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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
A ASSEMBLÉIA CONSTITUINTE DA BOLÍVIA:
Etnografia do Nascimento de um Estado Plurinacional.
Salvador Schavelzon
2010
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iii
A ASSEMBLÉIA CONSTITUINTE DA BOLÍVIA:
Etnografia do Nascimento de um Estado Plurinacional.
Salvador Schavelzon
Tese de Doutorado submetida ao Programa de
Pós-graduação em Antropologia Social, Museu
Nacional, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutor em
Antropologia Social.
Orientador: Marcio Goldman
Rio de Janeiro, 25 de Outubro de 2010
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iv
A Assembléia Constituinte da Bolívia:
Etnografia do Nascimento de um Estado Plurinacional.
Autor: Salvador Andrés Schavelzon.
Orientador Prof. Dr. Marcio Goldman, PPGAS/MN/UFRJ
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Museu
Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutor em Antropologia Social.
Aprovada por:
_______________________________
Presidente, Prof. Dr. Marcio Goldman orientador da tese, PPGAS/MN/UFRJ
_______________________________
Prof. Dr. Moacir Gracindo Soares Palmeira, PPGAS/MN/UFRJ
_______________________________
Prof. Dr. Giuseppe Mario Cocco, ESS/UFRJ
_______________________________
Prof. Dr. Emir Simão Sader,UERJ
_______________________________
Prof. Dr. Maria Manuela Ligeti Carneiro da Cunha, University of Chicago
_______________________________
Rio de Janeiro, 25 de Outubro de 2010
v
Schavelzon, Salvador Andrés.
A Assembléia Constituinte na Bolívia: Etnografia do Nascimento de um
Estado Plurinacional / Salvador Andrés Schavelzon. - Rio de Janeiro:
UFRJ/ PPGAS, 2010.
xviii, 590f.: il. 31cm.
Orientador: Marcio Goldman
Tese (doutorado) UFRJ/ Museu Nacional/ Programa de Pós-graduação
em Antropologia Social, 2010.
Referências bibliográficas: f. 572-586.
1. Bolívia. 2. Assembléia Constituinte. 3. Antropologia do Estado. 4.
Estado Plurinacional Comunitário. 5. Povo Boliviano. 6. Autonomia. I.
Goldman, Marcio. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Museu Nacional, PPGAS. III. Título.
vi
RESUMO
A Assembléia Constituinte na Bolívia: Etnografia do Nascimento de um Estado
Autor: Salvador Schavelzon
Orientador: Marcio Goldman
Este trabalho trata do processo constituinte boliviano e da aprovação de um texto que se
propõe constituir a Bolívia como um Estado Social de Direito Plurinacional e Comunitário,
com autonomia para níveis distintos, fundamentado na pluralidade de todas as ordens, com
reconhecimento de autogoverno, domínio ancestral e justiça indígena em seus territórios; com
ênfase no controle do Estado sobre os recursos naturais, sua exploração e industrialização. A
partir de uma pesquisa de campo de tipo etnográfico centrada na Assembléia Constituinte que
ocorreu entre 2006 e 2007, no processo de aprovação da nova Constituição promulgada em
2009 e no começo de sua implementação, esta tese se pergunta pelas idéias políticas que
emergiram ao longo de inúmeros debates, sobre a maneira como tais idéias se combinaram e
sobre seu lugar no desenvolvimento da redação do texto constitucional. A Assembléia
Constituinte permitiu a manifestação de conflitos regionais como o da “autonomia” na Meia-
Lua e “capitalia” em Sucre que influenciaram fortemente em seu desenvolvimento. Ao
mesmo tempo, o processo aqui estudado, es intimamente vinculada à chegada de
camponeses e indígenas ao Estado, concretizada pela vitória eleitoral do MAS (Movimento ao
Socialismo) e de Evo Morales em dezembro de 2005.
Para entender este processo prestei especial atenção no surgimento do sujeito coletivo de
“nações e povos indígena originário camponeses” que está no coração do projeto de
Constituição do MAS e das organizações sociais. Tal proposta de Constituição se apresenta,
nesta tese, como uma teoria dos camponeses indígenas e seus aliados sobre o Estado.
Proponho que esta teoria, combinada com elementos heterogêneos e posicionamentos
políticos contraditórios, deu lugar ao que chamo de “Constituição Aberta”: Um texto ambíguo
que contém o conflito que acompanhou sua redação, espaços deixados para interpretações
futuras e tensões não resolvidas com diferentes visões políticas justapostas. Estas
características da nova ordem constitucional se vinculam à tentativa de ocupar o Estado de
uma nova maneira e nos falam: 1) das condições nas quais a Constituição foi aprovada; 2) da
natureza da política institucional em um momento de transformação; 3) de um centro político
que se escapava não permitindo o alcance de um pacto que desse lugar a um novo Estado e 4)
de (des)encontros entre a diferença indígena comunitária em relação à linguagem normativa
do direito estatal, que inspirava a busca pela descolonização e um avanço para além da forma
liberal republicana.
Palavras Chave:
1. BOLÍVIA. 2. ASSEMBLÉIA CONSTITUINTE. 3. ANTROPOLOGIA DO ESTADO. 4.
ESTADO PLURINACIONAL COMUNITÁRIO. 5. POVO BOLIVIANO. 6. AUTONOMIA.
vii
ABSTRACT
The Constituent Assembly of Bolivia: Ethnography of the birth of a Plurinacional State.
Author: Salvador Schavelzon
Adviser: Marcio Goldman
This work is about the Bolivian constitutional process and the approval of a text that proposes
to constitute Bolivia as a Welfare, Rule of Law, Plurinational, and Community State with
autonomy for different levels. This State is based in the plurality of all orders, with
recognition of self-government, ancestral domain and indigenous justice in their territories,
with emphasis in the state control over natural resources, their exploitation and
industrialization. From an ethnographic research focused on the Constituent Assembly that
occurred between 2006 and 2007; also on the process of approval of the new constitution
promulgated in 2009 and the early implementation, this work asks about the political ideas
that emerged, about how such ideas were combined and about its place both in writing of the
text of the Constitution. The Constituent Assembly led to the manifestation of regional
conflicts such as the "autonomy" in the Eastern states and the "capital place" in Sucre that
strongly influenced in its development. At the same time, the process here studied, is closely
linked to the arrival of peasants and indigenous to the state, expressed by the election victory
of MAS (Moviment toward Socialism) an of Evo Morales, in December, 2005.
To understand this process, I have paid special attention in the emergence of a collective
subject of “peasant autochthonous indigenous people and nations” that is at the heart of the
constitutional project of MAS and social movements. The proposal of the Constitution is, in
this work, seeing as a theory of the peasants, indigenous and their allies about the State. This
theory, combined with heterogeneous and contradictory political positions, gave birth to what
I call an “Open Constitution”: an ambiguous text that contains the conflict that was there
when it was elaborated, spaces left for futures interpretations and unresolved tensions with
different political views juxtaposed. These features of the new constitutional order are bound
to attempt to occupy the state in a new way. They tell us about: 1) the conditions under which
the Constitution was approved; 2) the nature of institutional politics in a time of change; 3) a
political center that was slippery, not allowing a pact that would give rise to a new state and 4)
(dis)encounters between difference of the indigenous people community in relation to the
normative language of state law. Such difference inspired the search for decolonization and
for the improvement beyond the liberal republican form.
Keywords:
1. BOLIVIA. 2. CONSTITUENT ASSEMBLY. 3. ANTHROPOLOGY OF THE STATE. 4.
PLURINATIONAL STATE OF COMMUNITY. 5. BOLIVIAN PEOPLE. 6. AUTONOMY.
viii
RESUMEN
La Asamblea Constituyente de Bolivia: Etnografía del Nacimiento de un Estado
Plurinacional. Autor: Salvador Schavelzon
Director: Marcio Goldman
Este trabajo trata del proceso constituyente boliviano y la aprobación de un texto que se
propone constituir a Bolivia en un Estado Social de Derecho Plurinacional Comunitario; con
autonomía para distintos niveles; fundamentado en la pluralidad de todos los órdenes, con
reconocimiento de autogobierno, el dominio ancestral y justicia indígena en sus territorios;
con énfasis en el control sobre los recursos naturales y la intervención del Estado en su
explotación e industrialización. A partir de un trabajo de campo de tipo etnográfico centrado
en la Asamblea Constituyente que funcionó en 2006 y 2007 y en el proceso de aprobación de
la nueva Constitución promulgada en 2009; esta tesis se pregunta por las ideas políticas
involucradas, la forma en que se combinaron y su lugar en el proceso de redacción del texto
constitucional y el comienzo de su implementación. La Asamblea Constituyente reflejó o
permitió manifestar conflictos regionales como el de “autonomía” en la Media Luna y
capitalía” en Sucre que influyeron fuertemente en su desarrollo. Al mismo tiempo, el proceso
aquí estudiado se enmarca en la llegada de campesinos e indígenas al Estado, concretada con
la victoria electoral del MAS (Movimiento al Socialismo) y Evo Morales, en diciembre de
2005.
Para entender estos procesos presté especial atención a la aparición del sujeto colectivo de
“naciones y pueblos indígena originario campesinos”, que está en el corazón del proyecto de
Constitución del MAS y las organizaciones sociales. Esta propuesta de Constitución se
presenta en esta tesis como una teoría de los campesinos indígenas y sus aliados sobre el
Estado. Propongo que esa teoría, combinada con elementos heterogéneos y posicionamientos
políticos contradictorios dio lugar a lo que llamo una “Constitución Abierta”: un texto
ambiguo que contiene el conflicto que acompañó su redacción, espacios dejados a la
interpretación futura, y tensiones irresueltas con miradas políticas diferentes yuxtapuestas.
Estas características del nuevo orden constitucional se vinculan al intento de ocupar el Estado
de una nueva manera y nos hablan: 1) de las condiciones en que la Constitución fue aprobada;
2) de la naturaleza de la política institucional en un momento de cambio; 3) de un centro
político que se escabullía sin permitir alcanzar un pacto que diera lugar al nuevo Estado; y 4)
del (des)encuentro entre la diferencia indígena comunitaria respecto del lenguaje normativo
del derecho estatal, que inspiraba la búsqueda de descolonización y de ir más allá de la forma
liberal republicana.
Palabras Clave
1. BOLIVIA. 2. ASAMBLEA CONSTITUYENTE. 3. ANTROPOLOGIA DEL ESTADO. 4.
ESTADO PLURINACIONAL COMUNITARIO. 5. PUEBLO BOLIVIANO. 6.
AUTONOMÍA.
ix
Às cholitas, aos que marcharam pela Constituição e à Maíra.
x
AGRADECIMENTOS.
A Marcio Goldman, pelo acompanhamento deste trabalho, as sessões de orientação e
pela liberdade que me deu na elaboração desta tese. Também, de um modo muito especial, à
banca examinadora: Manuela Carneiro da Cunha, Emir Sader, Moacir Palmeira e Giuseppe
Cocco, por ter aceitado gentilmente participar e por dispor-se a ler uma tese de considerável
tamanho, pelo que peço desculpas. Este trabalho foi beneficiado por uma bolsa da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), no período 2006-
2010. Quero agradecer também os dois financiamentos para pesquisa concedidos pelo
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS), um subsídio obtido por meu
Orientador para possibilitar uma terceira estada de campo na Bolívia e uma bolsa de ASDI e o
Programa Regional de Bolsas da CLACSO em 2007, com o aval do CIDES-UMSA de La
Paz, através de sua diretora Ivonne Farah. Não poderia deixar de agradecer de maneira geral
ao Museu Nacional da UFRJ, seus professores, empregados, secretaria e biblioteca. A missão
de observação eleitoral da OEA, dirigida por Pablo Gutiérrez, me permitiu realizar uma quarta
viagem de pesquisa à Bolívia.
Agradeço também a participação neste processo, pelos seus comentários, a Olívia
Cunha e Eduardo Viveiros de Castro, membros do jurado de qualificação. Agradeço a Olívia,
também, pelo convite a participar no Colóquio Territórios Sensíveis, e a Eduardo por várias
intervenções no processo de elaboração desta tese e, junto a Marcio Goldman e outros
participantes, por tornar possível o Núcleo de Antropologia Simétrica Rede Abaeté, do qual
esta tese é também produto. Esta tese foi beneficiada por minha participação no Simpósio
organizado por Laura Gotskowitz e Rossana Barragán na Iowa City University, do qual
também participaram ex-constituintes e acadêmicos com os quais compartilho o interesse no
processo constituinte da Bolívia e que também contribuíram com o conteúdo do trabalho. A
tese foi enriquecida também com a contribuição de professores e companheiros do Primer
Taller de Metodología del SEPHIS, organizado pelo IEP de Lima em 2009, ao que agradeço
ter sido selecionado, e por comentários às apresentações dos rascunhos nos Congressos de
Antropologia RAM (2007 e 2009), ABA (2008) e Americanista (2009). Agradeço a Marisol
de la Cadena pelo convite a Davis (University of California) e à conferência “Natureculture:
Entangled Relations of Multiplicity” (Society for Cultural Anthropology) em Santa Fé; e em
geral pela interlocução e apoio enquanto redigia esta tese. Também meus agradecimentos a
Nestor Kohan da CLACSO; Rodolfo Stavenhagen, a Héctor Díaz Polanco, Raquel Gutiérrez,
Maria Teresa Sierra e Araceli Burguete pela recepção no México. E por outros diálogos e
xi
apoios que favoreceram o trabalho, a Mabel Grinberg, Sinclair Thompson, Giuseppe Cocco, e
à Fundação Escola de Sociologia de São Paulo.
Esta tese se deve e se dedica principalmente à bancada de constituintes do MAS na
Assembléia Constituinte, por permitir a minha presença e pelo tempo concedido, em alguns
casos honrando-me com a amizade. Suas reuniões foram muito importantes para mim, e
permanecerão para sempre, com discussões tensas, momentos trágicos e também de
gargalhadas prolongadas e conversas amistosas. Agradeço a todos, mas menciono
especialmente alguns que generosamente compartilharam em várias oportunidades seus
pontos de vista comigo: Raúl Prada, Carlos Romero, Mirtha Jiménez, Macario Tola, Carlos
Aparício, María Oporto, Ana María Núñez, Rogelio Aguilar, Marcela Revollo, Francisco
Cordero, Loyola Guzmán, Ada Jiménez, César Cocarico, Jimena Leonardo, Walter Gutiérrez,
Nélida Faldín, Rebeca Delgado, Dora Arteaga, Benedicta Huanca, Román Loayza, Sabino
Mendoza, Saúl Ávalos, Ignacio Mendoza, Weismar Becerra, Ramiro Guerrero, Isabel
Domínguez, Pablo Zubieta, Magda Calvimontes, Limbert Oporto, Rosalía del Villar, Filiberto
Escalante, lix Cárdenas, Marcela Choque, Saturnina Mamani, René Navarro, Esperanza
Huanca, Eulogio Cayo, Armando Terrazas, Charo Ricaldi, José Lino Jaramillo, Paulo Rojas,
Freslinda Flores, Marcela Choque, Cornelia Flores, Filiberto Escalante. De outros partidos,
também contribuíram com esta tese Guillermo Richter, Ana María Ruiz y Álvaro Azurduy.
Fico também profundamente agradecido a aqueles que durante o tempo da Assembléia
me ajudaram ou compartilharam comigo dificuldades e vitórias, além de ressaltar que suas
vozes foram fundamentais para dar forma às páginas desta tese. Agradeço seu tempo e
generosidade que me permitiram entrar neste mundo: Adolfo Mendoza, Iván Égido, Hernán
Ávila, Jesús Jilamita, Nelly Toro, Fátima Tardio e Família, Albert Noguera, Elva Terceros,
Juan Carlos Pinto, Cynthia Cisneros, Judith Rosquellas, Leonardo Tamburini, Manuel
Morales, Pilar Valencia, Magaly Guzmán, José Maldonado, Pablo Ortiz, Wilbert Vilca López,
Rubén Dalmau, Ronny Mendizabal, Rubén, Miguel Ángel, Luty Mendoza, Wenceslao
Humerez Tiñini, Diego Cuadros, Diego Pary, Nancy Vacaflor, William Bascopé, Jasmín
Salinas, Soledad Domínguez, Roxana Zaconeta, Silvia Mejia, Jorge Sauneros, Omar Guzman
Bontier, Iván Bascopé, Dora Copa, Zaida, Ruth Vilches, José De La Fuente.
Em La Paz e outros lugares, por compartilhar suas visões sobre o processo político; ou
pela amizade: a Oki Vega Camacho, família Molina Barragan, Xavier Albó, Pablo Regalski,
Silvia Rivera, Luis Tapia, Carmen y Andres Soliz Rada, Jiovanny Samanamud, Reyna, Lidia
Urquizo, Chiqui Núñez, Pablo Stefanoni, Gloria Bereterbide, Hervé do Alto, Heidy Campos
xii
Salazar, Martín Sivak, María Fernanda Rada, Yandira Claros, Isabela Raudhuber, Noelia
Carrazana, Johana Kunin, Andrea Kramer, Iñigo Terrejón, Caroline Freitas, Pedro Barros e o
grupo Nossa América de São Paulo, Lorenza Fontana, Alice Soares Guimarães, Andrea
Velasco, Consuelo Tapia, Marcelo Álvarez, Caroline Freitas, Sue Iamamoto, Pavel López.
Amigos e também companheiros, pedindo desculpas por não poder explicitar
corretamente os termos de cada agradecimento. Debora Lanzeni, amizade sempre próxima;
Agustín Barna, amigo fundamental (anarquista e vegetariano); Julieta Quirós, pelos caminhos
que percorremos juntos; Hernán Pruden, que respeita os bolivianos quando estes estão
bêbados. A aqueles amigos também pelas leituras e comentários que ajudaram muito e a Clara
Flaskman, Virna Plastino, Nicolás Viotti, Flavio Gordon, Francisco Barreto Araújo, Cecília
Mello, Ana Carneiro e Antonia Walford, ainda que esteja em Manaus. Também pelos
comentários ao meu trabalho, além da amizade, a Renato Sztutman, Valeria Macedo, Soledad
Torres Agüero, Danilo de Assis Clímaco, Luis Angosto, Bruno Fornillo e Jorge Derpic. E a
Soledad Gesteira, Blas Amato, Flávia Marreiro, Bruno Marques, Indira Nahomi, Suiá Omim,
Camila Medeiros, Renato Baptista, Julia Polessa, Luciana França, Tânia Stolze, Chloe
Nahum-Claudel, Luana Almeida, Virginia Vechiolli, José Kelly, Orlando Calheiros, Gabriel
Banaggia, Julia Sauma, Pablo Lapegna, Kregg Hetherington, Natalia Gavazzo, a Magaly e
Nate, Adalton Marques, Jean Tible, Eduardo Marques, Pedro Cesarino, Emerson Giumbelli,
Ulises Fierro, David Moskowitz y Pablo Vommaro. Agradeço também a Yara Santi, Paulo
Roberto Bühler, a Regina Célia Fabiano de Campos e a Graciela Fernández. Aos que me
ajudaram na versão em português da tese, também sou grato, são eles: Erico Valadares,
Juliana Caetano, Inés Olivera, Danilo de Assis Clímaco, Heloisa Gimenez, Marina Fuser,
Juliana Sada, Sandra Silva, Hercules Quintanilha, Luana Almeida, Julio Delmato, Reca e
Maíra.
Sempre, aos meus pais, Diego e Margarita, por tudo. Ao meu avô Coco e aos meus
irmãos Martin e Victoria. E a Maíra, companheira e amor doce, com quem iniciávamos nossa
vida enquanto esta tese ia sendo escrita.
xiii
Sumário.
Mapa da Bolívia. xvi
Lista de siglas. xvii
Introdução. 1
1 A Assembléia Constituinte. 1
2 Para estudar o Estado e o Contra-Estado na Bolívia. 11
3 Estado, Cultura e Diferença Plurinacional. 27
4 Plano da tese. 44
Capítulo 1 Definição do Povo Boliviano. 47
1 Redação de um artigo entre opressão de classe e discriminação étnica. 47
1.1. As reuniões do MAS na casa Argandoña. 47
1.2. A classe social e a esquerda na Assembléia. 51
1.3. O katarismo como teoria política da articulação entre classe e etnia 61
2 A vírgula que separava indígenas e camponeses; e o ayllu do sindicato 71
2.1. Os “indígena originário camponeses” no projeto de Constituição. 71
2.2. Ayllu e sindicato. 81
3 Povos de terras baixas, colonizadores e afro-bolivianos. 92
4 A revisão da fórmula: os mestiços e a nação, novamente. 110
Capítulo 2 As Comissões. 118
1 A lei de convocação e os “dois terços” 118
2 A busca de um centro e as “duas bolívias” 126
2.1. Buscando consenso na estrutura do Estado 129
3 Terra e território, entre a CAO e a CONAMAQ 144
3.1. O centro na Comissão de Terra e Território 144
3.2. Territorialidade indígena e formas de propriedade 151
3.3. Recursos naturais nos territórios. 155
3.4. Marcha indígena. 161
4 Autonomias indígenas, departamentais e regionais. 165
4.1. Autonomia Departamental. 165
4.2. Autonomia Indígena. 169
xiv
4.3. A indefinibilidade selvagem dos conceitos indígenas. 174
4.4. A Autonomia Provincial. 180
5 A Comissão Visão de País e as formas de alcançar um novo centro. 184
6 Outras comissões, o trabalho técnico e a ampliação. 199
Capítulo 3 A Questão Capitalia. 215
1 A Demanda de Sucre. 215
1.1. A Questão da Capital. 221
1.2. Capitalia e Cúpula Social. 230
2 O Conselho Político Suprapartidário de La Paz. 235
2.1. Os Acordos do Conselho. 240
2.2. Novo Conflito na Bancada. 248
3 As propostas sobre Capitalidade. 256
4 Entre a violência e a decisão final. 265
4.1. O Bloco Dissidente e a tentativa de agregar. 270
4.2. Entre vigílias e as última tentativas de convocar. 275
4.3. Do triângulo simbólico à decisão final. 296
Capítulo 4 A Guerra da Aprovação. 305
1 La Glorieta. 305
1.1. A Aprovação “em grande”. 312
1.2. A Evacuação. 319
2 O Hotel Torino. 322
2.1. Um novo triângulo de opções. 330
3 A última sessão na Universidade Tecnológica de Oruro. 338
3.1. Novamente “Capitalia” e a aprovação do texto. 348
3.2. Retoques ao texto na Loteria e o novo cenário. 357
4 A ofensiva do Oriente contra a Constituição. 361
4.1. A agenda de Evo Morales e o MAS. 368
4.2. Os Estatutos Autonômicos e a crítica governamental. 372
5 Referendo revocatório e o extremo da polarização. 381
Capítulo 5 O Acordo e a Constituição Aberta. 393
xv
1 O grande acordo Constitucional. 394
1.1. O diálogo de Cochabamba. 398
1.2. O acordo do Congresso. 401
1.3. García Linera e a nova narrativa política Plurinacional. 412
2 A Constituição Aberta e a Meia-Lua. 417
2.1. A visão do Oriente na Constituição. 422
2.2. Terra e reclamações setoriais do Oriente. 429
3 A Esquerda Nacionalista e o Popular, Socialista, Latino Americano. 435
4 A Constituição Aberta do pluralismo comunitário. 442
4.1. A Constituição indianista. 446
4.2. Autonomia Indígena na Constituição. 453
4.3. A Justiça Comunitária e o Estado. 460
4.4. Justiça Indígena na nova Constituição. 466
5 A parcialidade liberal mestiça conservadora. 473
Capítulo 6 A Implementação do Novo Estado. 485
1 O Nascimento do Estado Plurinacional. 485
2 A Gestão. 493
3 Reeleição, Pachamama e desencanto Moderno. 503
3.1. Pachamama e processo de mudanças: o Debate. 510.
4 Representação Especial Indígena e Marcha das Terras Baixas. 526
5 As Tensões Pós-Constituintes. 544
Referências Bibliográficas. 555
Artigos, livros e matérias jornalísticas. 555
Leis e documentos jurídicos. 583
Outros Documentos. 585
Anexo Fotográfico. 588
xvi
MAPA DA BOLIVÍA E PAÍSES LIMÍTROFES
xvii
LISTA DE SIGLAS E SEU SIGNIFICADO EM ESPANHOL.
Organizações Sociais.
ANARESCAPYS Asociación Nacional de Regantes y Sistemas Comunitarios de Agua
Potable y Saneamiento
APG Asamblea del Pueblo Guaraní
BOCINAB Bloque de Organizaciones Campesinas e Indígenas del Norte
Amazónico de Bolivia
CIDOB Confederación de Pueblos Indígenas de Bolivia
CNMCOIB-BS Confederación Nacional de Mujeres Campesinas Originarias e
Indígenas de Bolivia “Bartolina Sisa”
COB Central Obrera Boliviana
COD Central Obrera Departamental
CONAMAQ Consejo Nacional de Ayllus y Markas del Qullasuyu
CPEM-B Central de Pueblos Étnicos Mojeños del Beni
CPESC Coordinadora de Pueblos Étnicos de Santa Cruz
CSCB Confederación Sindical de Colonizadores de Bolivia
CSCIB Confederación Sindical de Comunidades Interculturales de Bolivia
CSUTCB Confederación Sindical Única de Trabajadores Campesinos de Bolivia.
FEJUVE Federación de Juntas Vecinales
FNMCB-BS Federación Nacional de Mujeres Campesinas de Bolivia, “Bartolina
Sisa”
MST-B Movimiento Sin Tierra de Bolivia
OICH Organización Indígena Chiquitana
PU Pacto de Unidad
ONGs, fundações e órgãos de cooperação.
CEDIB Centro de Documentación e Información Bolivia
CEFREC Centro de Formación y Realización Cinematográfica
CEJIS Centro de Estudios Jurídicos e Investigación Social
CENDA Centro de Comunicación y Desarrollo Andino
CIEDAC Centro de Información Especializada de Apoyo a la Deliberación de la
Asamblea
CIPCA Centro de Investigación y Promoción del Campesinado
CEFREC Centro de Formación y Realización Cinematográfica
CEJIS Centro de Estudios Jurídicos e Investigación Social
CENDA Centro de Comunicación y Desarrollo Andino
FES-ILDIS Fundación Friedrich Ebert - Instituto Latinoamericano de
Investigaciones Sociales
FBDM Fundación Boliviana para la Democracia Multipartidaria.
HRF Human Rights Foundation
PNUD Programa de las Naciones Unidas para el Desarrollo
GTZ Gesellschaft für Technische Zusammenarbeit (cooperación de
alemania)
xviii
Partidos, Agrupaciones Ciudadanas e Alianças.
AAI Alianza Andrés Ibáñez
ADN Acción Democrática Nacionalista
APB Autonomía para Bolivia
AS Alianza Social
ASP Alianza Social Patriótica
Ayra Movimiento AYRA
CN Concertación Nacional
IPSP-MAS Instrumento Político Soberanía de los Pueblos Movimiento Al
Socialismo
MAS Movimiento al Socialismo
MBL Movimiento Bolivia Libre
MCSFA Movimiento Ciudadano San Felipe de Austria
MIR-NM Movimiento de Izquierda Revolucionaria NM
MNR Movimiento Nacionalista Revolucionario
MNR-3 Movimiento Nacionalista Revolucionario A3
MNR-FR Movimiento Nacionalista Revolucionario Frente Revolucionario de
Izquierda
MOP Movimiento Originario Popular.
PODEMOS Poder Democrático y Social
UN Unidad Nacional
Outros:
AC Asamblea Constituyente
CAO Cámara Agropecuaria del Oriente
CEPOS Consejos Educativos de los Pueblos Originarios
COMIBOL Corporación Minera de Bolivia
CPE Constitución Política del Estado
IDH Impuesto Directo a los Hidrocarburos
INRA Instituto Nacional de Reforma Agraria
IOC Indígena Originario Campesino
MDRAyMA Ministerio de Desarrollo Agrario y Medio Ambiente
OIT Organización Internacional del Trabajo
ONU Organización de las Naciones Unidas
PIB Producto Interno Bruto
REPAC Representación Presidencial para la Asamblea Constituyente
TCO Tierra Comunitaria de Origen
UTAC Unidad Técnica de la Asamblea Constituyente
UMSA Universidad Mayor de San Andrés
YPFB Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos.
1
INTRODUÇÃO.
“Hoje, por acaso, estamos em um novo século
XVI, ou seja, em uma época na qual as velhas
categorias implodem e é necessário cunhar novas”.
Paolo Virno
1 A Assembléia Constituinte.
Este trabalho é uma etnografia da chegada dos camponeses e indígenas
1
ao
Estado boliviano, centrada na Assembléia Constituinte e no nascimento do Estado
Plurinacional. Como leitura antropológica da política boliviana, interessa-nos
especialmente a perspectiva dos protagonistas deste momento constituinte. A etnografia
combina para isso uma crônica dos acontecimentos e a apresentação das hipóteses
políticas que surgiam no devir da construção deste novo Estado. Antes, nesta
introdução, tentarei apresentar o processo boliviano, tecendo algumas notas sobre a
abordagem conceitual para o estudo etnográfico do Estado com as idéias sobre o Estado
e o indígena comunitário, a partir das vozes do próprio debate boliviano.
No dia 18 de dezembro de 2005, Evo Morales chega à presidência da Bolívia
com 54% dos votos, a mais alta porcentagem desde o retorno à democracia, ocorrido em
1982, e a primeira vez em que o novo presidente não precisa recorrer a pactos
parlamentares para ser eleito. O faz pelo MAS (Movimiento Al Socialismo), que não era
um partido de tipo clássico, mas uma sigla cedida por uma força política ativa em
décadas anteriores, como forma de driblar o requisito burocrático da justiça eleitoral. A
sigla partidária servia de abrigo eleitoral ao Instrumento Político pela Soberania dos
Povos (IPSP), que tinha sido formado pelas centrais sindicais do campo. Entretanto, o
MAS ganharia certa vida própria, pelo menos como símbolo, com o impulso inicial dos
produtores de folha de coca do trópico de Cochabamba. Os camponeses liderados por
Evo Morales começaram a disputar eleições locais e conquistaram o apoio de setores de
1
Veremos que essas duas categorias serão objeto de controvérsias e importantes discussões do
processo constituinte, assimilando-se, diferenciando-se ou sendo criticadas. Mas digamos aqui que na
Bolívia a palavra “índio” tem uma conotação discriminante, ainda que houvesse quem a reivindicasse
politicamente. É mais comum o uso de “indígena” e também de seu relativo “indigenista”, geralmente
com sentido diferente ao de outros países latino-americanos, de não indígenas que fazem políticas
destinadas a estes. Mas também se utiliza “indianista”, como corrente política dos indígenas,
especialmente aymaras. O governo do MAS às vezes se considerava um governo camponês, mas não
indígena, outras vezes indígena como sinônimo de governo camponês, e outras governo indígena, além
de camponês.
2
esquerda, indígenas e sindicais que tinham protagonizado a pauta política boliviana
recente desde as ruas e estradas em marchas, bloqueios, greves de fome e
enfrentamentos com o exército. O ponto mais intenso do avanço dos movimentos
sociais tinha sido em outubro de 2003, quando fugia aos Estados Unidos o presidente
Gonzalo (“Goni”) Sánchez de Lozada, no que se veio a conhecer como a guerra do
gás”. Daí vinha a “agenda de outubro”, que Evo Morales começava a cumprir ao iniciar
seu governo, em 2006, com a nacionalização dos hidrocarbonetos
2
e a convocatória da
Assembléia Constituinte
3
.
A Assembléia Constituinte se inaugurava em Sucre, no dia 6 de agosto de 2006.
Uma anedota diz que, pouco antes do desfile dos povos indígenas nas ruas da até então
tranqüila cidade “Branca”, de arquitetura colonial, trabalhadores encarregados da
segurança do ato pediram a umas mulheres camponesas com pollera (saia andina),
manta e chapéu que se levantassem do chão onde esperavam porque por ele passariam
os constituintes. Essas mulheres confundidas com público desavisado se levantaram,
mas não para se retirar e sim para participar do percurso da marcha, pois eram elas
mesmas as constituintes. Este era o grande meta-tema da Assembléia: tratava-se da
chegada ao Estado de novos atores, especialmente indígenas e camponeses, que o olhar
2
Sobre a convocatória à Assembléia Constituinte, veja-se FUNDAPPAC (2004 a e b) Kafka (2004) Prada
(2006); Verdesoto (2005); Revista Tinkazos Nro 17 (2004); Revista Opiniones y Análisis Nros 74 (2005);
78 e 79 (2006); Romero Bonifaz (2005 e 2006). Existe uma ampla bibliografia sobre “os anos anteriores”,
incluindo a trajetória política de Evo Morales e dos sindicatos camponeses (STEFANONI y DO ALTO,
2006; ZUAZO, 2008; DUNKERLEY, 2007; HARNECKER y FUENTES, 2008; MOLINA, 2006; URQUIDI, 2007),
assim como as mobilizações e a crise estatal do período 2000-2005: García Linera, Tapia Mealla, Prada
Alcoreza, Gutiérrez Aguilar (2000, 2002, 2004); Mesa Gisbert (2008); Ceceña (2005); Gómez (2004);
Mamani Ramírez (2005); García Linera (coord., 2004); Grebe López (2008); Revista Artículo Primero Nro
16 (2004) e 18 (2006). Sobre os primeiros passos do governo de Evo Morales, a sua trajetória e
características pessoais de mando, veja-se Sivak (2008); Baes y De La Hoz (2008); Gironda (2008) e
Pineda, (2007). A chegada do MAS e Evo Morales ao governo começa a se consolidar com o segundo
lugar obtido nas eleições de 2002, e se precipita depois da queda de Sánchez de Lozada na Guerra do
Gás (outubro de 2003) e a renúncia definitiva do seu Vice-presidente e sucessor Carlos Mesa, com a
importante mobilização de camponeses e mineiros, que em 9 de junho de 2005 impediram a posse dos
dois políticos de partidos tradicionais que estavam na linha de sucessão, chegando ao presidente da
Corte Suprema de Justiça. A eleição de dezembro de 2005 foi mais um momento da longa chegada
dos candidatos das organizações sociais ao governo, que veremos como começa a ser construída muito
antes.
3
A nacionalização” dos hidrocarbonetos gerou um novo quadro, permitindo a renegociação dos
contratos com doze empresas do setor (entre elas REPSOL, PETROBRAS, TOTAL, BP e EXXON), pelo qual
toda a comercialização e controle da produção passaram ao Estado e os impostos aumentaram 30%
respeito dos 52 % que tinham se conseguido também com o voto do MAS e a pressão das organizações
sociais na reforma à lei de hidrocarbonetos de 2005. O decreto presidencial roes del Chacochegou
em um momento de preços internacionais altos de petróleo e derivados, o que permitiu aumentar
consideravelmente a receita do Estado (de 250 milhões em 2005, para 1 bilhão do petróleo), dado que a
Bolívia é o segundo produtor da América do Sul. Veja-se decreto:
http://www.ypfb.gov.bo/documentos/DS_28701.pdf e Orgaz García (2008).
3
rápido dos que preparavam a passagem dos constituintes não esperava, porque, devido a
como havia sido até então, não assimilavam os “constituintes” com a fisionomia das
maiorias do povo, agora no Estado, e com a maioria na Assembléia Constituinte.
Em sua turnê pelo mundo, após ser eleito e antes de assumir, Evo Morales tinha
causado sensação quando exibiu uma chompa, pulôver de lã, dos que se vendem nos
mercados populares da Bolívia e que ninguém associava com a investidura presidencial.
Pouco depois, assumia o mando frente aos povos indígenas, nas ruínas de Tiwanaku,
com vestimentas cerimoniais inspiradas em roupas tradicionais de povos originários. E,
finalmente, adotaria como vestimenta oficial um traje exclusivo, diferenciado do resto
das repúblicas democráticas do ocidente, com motivos andinos, mas confeccionado por
uma estilista de alta moda. As três vestimentas podem servir de metáfora para o
processo que aqui estudaremos: a chegada do povo ao governo, o Pachacuty e o retorno
de Katari, pondo fim aos tempos coloniais, ou a incorporação da “cultura” tradicional ao
Estado. As três tendências, e também o terno e a gravata, atravessariam a Assembléia
Constituinte e a política boliviana desta época.
A oposição mais forte ao projeto político das organizações sociais e do MAS a
“Revolução Democrática Cultural” ou o processo de mudança viria da região da
Media Luna, com os departamentos de Beni e Pando, atrás de Santa Cruz de la Sierra, o
mais rico, e de Tarija, onde se tinha começado a explorar grandes reservas de
hidrocarboneto recentemente descobertas. A oposição a Evo Morales vinha também de
várias capitais, mas era principalmente nessas regiões, onde vinha crescendo nos
últimos anos uma demanda por autonomia e descentralização, que tinha dado lugar, em
2005, à realização da primeira eleição direta para “prefectos” departamentais
(equivalente a “governadores” em outros países, máxima autoridade do departamento).
No mesmo dia em que se elegeram os constituintes, 2 de julho de 2006, quatro de nove
departamentos votaram pelo “sim” à autonomia, estabelecendo um mandato que deveria
ser incluído na nova Constituição, por ser de natureza “vinculante”
4
.
Nestas regiões, seria também eleita a maior parte dos constituintes opositores ao
MAS, que se configuraram como um verdadeiro obstáculo para as mudanças que
impulsionava o governo e as organizações sociais. Em dezembro de 2006, depois do
“Cabildo do milhão”, em Santa Cruz, que dava continuidade a uma seqüência de
4
Sobre a demanda de autonomia departamental e a Media Luna, pode se consultar Soruco (coord.,
2008); Urenda (2005, [1987] 2007); Urenda y El-Hage (2007); Prado (coord., 2007), Barrios (2005);
Zegada (2007); Dabdoub (2007), ILDIS (2003).
4
cabildos
5
pela autonomia iniciada anos antes, a oposição conseguiu impor dois terços
como norma de aprovação. Isso depois de sete meses de quedas-de-braço nas
discussões, que se limitaram a tratar da elaboração do regulamento dos debates, nas
quais o MAS procurava que os artigos constitucionais fossem aprovados pela maioria
absoluta com a qual contava (tinha 147 de 255 constituintes). O não avanço mostrava
a profunda polarização; de um lado, a oposição pelos “dois terços” (incluídos na lei de
convocatória à Assembléia), e, de outro, o MAS pela “maioria absoluta”; com a qual
contava, expressava a tensão entre uma Assembléia derivada do poder instituído, ou
uma Assembléia “originária”, que o MAS via como única forma para poder aprovar
uma nova Constituição e avançar no sentido da “descolonização” e das mudanças
profundas contra o velho Estado.
Uma vez aprovado o regulamento, criaram-se 21 comissões que realizaram
encontros territoriais temáticos nos departamentos. Logo após alguns meses de
deliberações nas comissões, ampliou-se o prazo de funcionamento da Assembléia a
dezembro de 2007, mas não foi possível convocar as sessões plenárias no Teatro
Mariscal, de Sucre, sede da Assembléia, pela eclosão de protestos na cidade capital, que
reivindicavam a transferência para a cidade dos poderes executivo e legislativo,
instalados mais de um século na cidade de La Paz, na busca da capitalia plena”.
Veremos adiante que o trabalho da Assembléia se conclui de uma forma tumultuada e
barulhenta, sem participação da maioria da oposição, e somente após um acordo no
Congresso, com numerosas modificações no texto, é que a Constituição seria conduzida
até sua aprovação
6
.
Para os assessores do MAS na Assembléia Constituinte, o caráter Plurinacional
do Estado era a peça mais importante do novo texto constitucional. Tinha sido proposto
pelas organizações indígenas e assumido pela bancada de constituintes do MAS. Certo
dia, em uma das comissões, os assessores explicavam no quadro, diante dos
constituintes do MAS, que o Estado Plurinacional Comunitário seria uma contribuição
desta Assembléia ao constitucionalismo a nível mundial. É uma inédita combinação do
social, do liberal e do comunitário com a qual, diziam os assessores, a nova
Constituição combinaria o melhor dos constitucionalismos francês de 1789, mexicano
5
Atos políticos ou concentrações de pessoas convocadas por causas políticas. Palavra de origem
colonial, mas também utilizada pelos povos indígenas do oriente.
6
Sobre a dinâmica da assembléia e os conflitos que a envolveram, veja-se Serham (2008), Garcés (2010),
Gamboa (2010), Éjido e Valencia (2010), Romero, Böhrt e Peñaranda (2009); Revista Tinkazos Nro 23-24
(2008); Revista Artículo Primero (2008).
5
de 1917 e soviético de 1935, acrescentando também a contribuição do comunitário por
parte dos povos indígenas. O Estado Plurinacional procuraria superar também dois
modelos de Estado no que diz respeito à questão étnica: o monoculturalismo da
assimilação e “integração do indígena na vida nacional”, associado à revolução de 1952;
e o multiculturalismo, de reconhecimento da diferença enquanto continue subordinada,
restringida, associado às reformas da década de 90
7
.
O artigo quinto da nova Constituição expressaria essas discussões. No seu
primeiro inciso, busca que o Estado expresse a diversidade étnica do país, com o
reconhecimento oficial de 36 línguas indígenas como oficiais: “São idiomas oficiais do
Estado o castelhano e todos os idiomas das nações e povos indígena originário
camponeses, que são o aymara
8
, araona, baure, bésiro, canichana, cavineño, cayubaba,
chácobo, chimán, ese ejja, guarani, guarasu‟we, guarayu, itonama, leco, machajuyai-
kallawaya, machineri, maropa, mojeño-trinitario, mojeño-ignaciano, moré, mosetén,
movima, pacawara, puquina, quechua, sirionó, tacana, tapiete, toromona, uru-chipaya,
weenhayek, yaminawa, yuki, yuracaré y zamuco”. Mas procurando ir para além do
“mero reconhecimento” associado ao multiculturalismo, no segundo inciso do artigo se
estabelecia que o governo plurinacional e os departamentais devem usar pelo menos
dois idiomas oficiais, sendo um deles o castelhano, e o outro uma língua indígena. Isso
pode, em alguns contextos, ser entendido como política multicultural, mas dado o
exagero da exclusão das línguas originarias e de seus falantes do Estado boliviano
(embora mais de um terço as fale), significava uma transformação importante.
Não faltaram aqueles que, em momentos difíceis da Assembléia, diziam que,
uma vez no poder, os camponeses do MAS e seus aliados de classe média não
precisavam de uma Assembléia Constituinte, bastariam as ações do Poder Executivo,
como tinha sido com a nacionalização dos hidrocarbonetos, que tinha incrementado a
receita estatal e dado lugar a uma política de bolsas sociais para as crianças em idade
escolar e, mais adiante, para os idosos. Tratava-se, pelo contrário, de impulsionar um
Estado forte, intervindo na economia para redistribuir o excedente econômico,
desmontar o sistema neoliberal instaurado desde 1986 e, para alguns, apontar ao
7
Sobre o projeto do Estado Plurinacional, ver Albó e Barrios (2007), García Linera (2008), Noguera
Fernández (2008); Tapia (2008, 2008b, 2009); García Linera, Tapia, Prada (2007); De Souza Santos (2008
a e b); Acosta (2009); Acosta e Martínez (2009); Almeida (2008); Schavelzon (2009). Sobre
Multiculturalismo, veja-se: Jameson, Zizek (eds. 1998); Gutiérrez Martínez (2004); Borrero García (2003);
Arocha (2004); Velasco Gómez (2006); Fernández Martinet, 2006; Kymlicka (1997).
8
Em lugar de “Aimará” utilizarei na tese o “Aymara” que é o mais utilizado na Bolívia.
6
socialismo. A partir dessa posição, tratava-se de centrar forças na gestão, para
impulsionar a industrialização dos recursos naturais e redistribuir os investimentos para
reduzir os índices de pobreza, recuperando a soberania nacional sobre os recursos. A
nova Constituição era para muitos um apêndice das ações do governo que “arremataria”
as políticas estatais e procuraria também introduzir mudanças nos três poderes para
consolidar o poder do novo governo, e possibilitar a reeleição.
Para outros, a Assembléia era fundamental para re-fundar um Estado que, desde
o nascimento da república em 1825, tinha deixado de lado os povos originários, dando
continuidade às estruturas coloniais. O Estado deveria ser transformado, não apenas
ocupado pelos que haviam sido excluídos. A Comissão Visão País iniciaria nesse
sentido um “Julgamento ao Estado Colonial Republicano e Neoliberal”, tentando
estabelecer um tribunal que julgasse a república, dando ênfase à descolonização, peça
central do projeto plurinacional, também presente no discurso de Evo Morales. Quem
mais apostava na Assembléia Constituinte, antes mesmo das mudanças promovidas pelo
Poder Executivo, eram as organizações indígenas das terras baixas, que a tinham
demandado na marcha dos povos em 1990, que foi repetida em outras oportunidades
e que, em 2002, realizou simbolicamente o encontro com os povos indígenas das terras
altas. A partir desse encontro, cada vez mais freqüente até 2006, surgira o Pacto de
Unidade, que nucleava as maiores organizações camponesas e indígenas integrantes do
MAS, ou somente aliadas do mesmo. Nesse espaço, elaborou-se uma proposta de
Constituição que foi assumida pelo MAS em varias comissões. Na proposta (PACTO
DE UNIDAD, 2006, 2007) traduzia-se a “agenda de outubro”; além do controle dos
recursos naturais pelo povo, propunha-se autonomia indígena e camponesa, eliminação
do latifúndio, direitos coletivos para os povos indígenas e controle de seus territórios,
representação direta no Parlamento e pluralismo jurídico.
Ainda que esta tese seja parcimoniosa no que diz respeito às extensas discussões
bibliográficas, é importante assinalar a relação com debates latino-americanos sobre
direito indígena, autonomia e as experiências políticas de camponeses e indígenas, em
especial do Peru e do Equador, assim como experiências constituintes vinculadas à
boliviana. As mudanças na Bolívia e a proposta de Estado Plurinacional se entroncam,
como se verá mais adiante, na tradição política do indianismo boliviano, mas também se
acompanhada pelo desenvolvimento dos instrumentos do direito internacional sobre
os povos indígenas, e em particular as discussões que foram também refletidas na
Convenção 169 da OIT (de 1989) e na Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, da
7
ONU (2007). Na etnografia da Assembléia, essas discussões têm lugar, levadas à
Bolívia por pessoas e instituições concretas, mas também recriadas de forma particular a
partir da situação específica dos povos indígenas bolivianos e seu caráter populacional
majoritário
9
.
Pelo tipo de objeto etnográfico, a “voz dos nativos” algumas vezes se confundia
com a bibliografia específica sobre o tema em questão, e também documentos
elaborados por participantes do processo, inclusive da imprensa. A etnografia procura
incorporar todas as fontes etnográficas e bibliográficas no mesmo plano. A principal
fonte de dados etnográficos, porém, provem de minha observação de reuniões e da
convivência com os constituintes e outros atores políticos vinculados ao processo. Por
outro lado, os temas que atravessavam a Assembléia me levaram a me aprofundar em
trabalhos onde tensões parecidas se desenvolveram em outros tempos. Eram os
percursos seguidos pelo debate constituinte, que revisava fraturas do passado, retomava
aspirações já visitadas ou remetia à época colonial. O momento político era inédito, mas
eram comuns os retornos a 1536, 1781, 1825, 1874, 1898, 1934, 1952, 1964, 1971,
1979, 1986, 1990, 1994, 2000 e 2003
10
.
O trabalho de campo em que esta tese se baseia começou pouco depois de
iniciadas as discussões das comissões da Assembléia em Sucre e continuou até a
aprovação do texto nas sessões finais, num colégio militar das redondezas de Sucre e na
Universidade Tecnológica de Oruro, em dezembro de 2007. O trabalho de campo na
Bolívia se retomaria pouco mais de um ano depois, enquanto a Constituição era
aprovada no Referendo de 25 de janeiro de 2009 e promulgada na cidade de El Alto, no
dia 7 de fevereiro. Nesse momento, trata-se de começar a implementar o novo Estado.
Realizei ainda uma rápida visita em 2010, com Evo Morales reeleito e o Parlamento
9
Sobre o Direito Internacional dos Povos Índígenas (YRYGOYEN 2009; VERDUM 2009; CHARTERS e
STAVENHAGEN, org. 2010) sobre o caso da autonomia e a situação indígena de México e os países
andinos (DÍAZ POLANCO, 1996, LOPEZ e RIVAS, 2005; LÓPEZ BÁRCENAS, 2007; ALMEIDA, ARROBO,
OJEDA, 2005; ALBÓ, 2008; PAJUELO, 2007; DÁVALOS, 2006; BURGUETE, LEIVA, SPEED, 2008; AZEVEDO e
SALAZAR-SOLER, eds. 2009; QUIJANO, 2006; GUERRERO e OSPINA 2003); e sobre o processo
constituinte venezuelano e equatoriano, veja-se Pastor e Dalmau (2001 e 2008), Maingon (2000);
Brewer-Carías (2004); Dieterich (2005); Ayala Mora e Quintero pez (2007); Verdesoto (2007); e
Quintero (2008).
10
Iniciei um percurso de pesquisa por estes caminhos com autores como Dunkerley (2003), Klein (1982),
Zavaleta (1982, 1983, 1990), Platt (1982), Thompson (2006), Condarco (1982); Rivera [1984] (2003); Albó
et al (1989), agradeço a Rossana Barragán por me guiar com a recomendação de leituras.
8
Plurinacional elaborando as primeiras leis do novo Estado. O marco temporal desta tese
compreende esse momento
11
.
No dia 18 de março de 2009, logo que promulgada a nova Constituição, Evo
Morales assinava o Decreto 0048, dando lugar a um ato que foi lido como a morte da
República da Bolívia. O decreto mudava o nome de “República da Bolívia” para
“Estado Plurinacional da Bolívia”. O texto do decreto era: “em cumprimento ao
estabelecido pela Constituição Política do Estado, deverá ser utilizada em todos os atos
públicos e privados, nas relações diplomáticas internacionais, assim como na
correspondência oficial a nível nacional e internacional, a seguinte denominação:
Estado Plurinacional da Bolívia”. Para Ricardo Calla (2010), ministro de Assuntos
Indígenas em um governo anterior, a mudança substitui o regime republicano
antimonárquico instalado em 1825 por um regime sem rotação nem mudança periódica
de governo, que potencialmente fragmentaria a Bolívia em “micro-nações”. Via a
mudança sendo impulsionada por um “nacionalismo étnico estadolátrico”, que com o
reconhecimento de diferentes nações daria espaço para “o utopismo localista e
separatista” do Oriente.
Nas discussões do processo constituinte e além delas, a idéia de Estado
Plurinacional aludia a formas ou sentidos políticos diversos e, às vezes, em conflito: um
sistema de tipo confederativo de povos indígenas; uma alusão ao respeito genérico pela
igualdade de oportunidades; um modelo inspirado na estrutura soviética de nações e na
seqüência evolucionista de Engels e Morgan. Para outros, era um poder central
hegemônico autoritário com ritualidade cerimonial indígena. Não seria o único tema
aberto à controvérsias. As nacionalizações realizadas pelo governo estariam também
cruzadas por interpretações diversas, que iam da glorificação apologética de abertura de
um futuro proeminente à tentativa de desmascarar um pressuposto caráter limitado,
falso ou problemático. O mesmo com o tema das autonomias e da capital do país com o
assentamento dos poderes de governo, causador dos enfrentamentos políticos mais
fortes no período estudado. Além disso, e dadas as características do contexto em que
11
O trabalho de campo foi realizado em quatro períodos na Bolívia, contabilizando um total de 14
meses: fevereiro-julho e setembro-dezembro de 2007; Janeiro-abril de 2009; março-abril de 2010.
Incluiu também observações de campo em distintos lugares da Bolívia e âmbitos da política, antes do
início do trabalho de campo em Sucre. Devemos incluir também entrevistas e conversações com
protagonistas do processo em Cidade do México, Buenos Aires, São Paulo, Rio de Janeiro e Iowa City.
Além de um contato continuo com a política boliviana através de publicações, jornais e Internet. A parte
principal do trabalho de campo na Bolívia centrou-se na Assembléia Constituinte, que tinha sua sede
original em Sucre, mas realizei freqüentes visitas de campo à La Paz, e também estive em Santa Cruz,
Oruro e Beni.
9
era definida uma nova ordem constitucional, uma ou outra verdade de forma negociada
ou imposta transformava-se em verdade do Estado, em verdade que ia além do
confronto político entre argumentos.
A vida das controvérsias não acabaria, de fato, quando a lei fixava de forma
escrita uma resolução determinada. A partir das múltiplas leituras que surgiam depois
de ser promulgada, a Constituição é um bom exemplo da maleabilidade de significados
ao redor de cada conceito no âmbito político. Tanto suas virtudes, como seus perigos
reapareceriam depois de terem sido eliminados no processo de redação. De nada valeu
que a oposição revisasse, intervindo no texto constitucional aprovado pelo MAS na
Assembléia, porque os supostos riscos contra a democracia e o Estado de Direito
reparados voltavam a aparecer independentemente das revisões. Também as bandeiras
dos povos indígenas que caiam na mesa de negociações reapareciam em entrelinhas ou
em formulações ambíguas e indefinidas de artigos que apontavam em distinta direção.
Haveria, talvez, algo mais, que estava na Constituição, mas não necessariamente nas
letras das palavras de seus artigos. Esse excedente se expressava em silêncios ou
ambigüidades do texto e se vincula com o debate político boliviano que não se reduz à
atualidade do Estado. É este o nível que procuraremos indagar desde uma antropologia
de um Estado em estado constituinte.
Um constitucionalismo “experimental”, propunha Boaventura de Sousa Santos
quando visitou a Bolívia, pouco antes que a Assembléia iniciasse em Sucre o trabalho
de suas comissões. Em uma de suas apresentações
12
, destacou que, dando continuidade
às reformas que incluíam o reconhecimento à plurinacionalidade e plurietnicidade, na
Bolívia se estava aprofundando um constitucionalismo “pós-colonial” (2008:22).
Recomendava também deixar algumas questões “abertas”, para que soluções que ainda
não estivessem presentes pudessem ser resolvidas no futuro. Desse modo, o povo
manteria o poder constituinte em suas mãos e sua força não seria absorvida pelo poder
constituído. Pensava que a democracia liberal do Estado moderno encontrava-se em
crise irreversível, e que por isso era necessário inventar uma “demodiversidade” com
democracia de vários tipos. Rubén Martinez Dalmau, assessor do MAS na Assembléia e
12
Boaventura de Sousa Santos realizou encontros com organizações sociais das terras baixas e de El
Alto; ministrou também uma série de palestras que foram publicadas em De Sousa Santos (2008).
Concluiu uma das reuniões afirmando que “o que é diverso não está desunido, o que está unificado não
é uniforme, o que é igual não tem que ser idêntico, o que é diferente não tem que ser injusto. Temos o
direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza, temos o direito a ser diferentes quando a
igualdade nos descaracteriza” (2008:34-35 trad. nossa).
10
também participante dos processos constituintes da Venezuela e Equador, escrevia
sobre o “Novo Constitucionalismo Latino-Americano”, localizando o caso boliviano
como “evolução última” dessa corrente, mas sem caracterizar as reformas desde o
Plurinacional e a pós-colonialidade. De modo diferente de outros participantes desse
processo, esse observador destacava antes a centralidade de elementos como um
“caráter social integrador”, a “soberania popular”, a integração com América Latina, a
“democracia participativa” e a constitucionalização do lugar preponderante que o
Estado começava ocupar na economia (2008:74).
Uma concepção da política vinculada ao conflito, mais que à homogeneidade de
opiniões ou cumprimento de leis e administração, refletirá na forma como foi construída
esta etnografia. Uma escolha na construção da etnografia foi considerar a política e a
escrita da Constituição como espaço atravessado por controvérsias, reino mais de
paradoxos do que de verdades estabelecidas ou programas fechados, e mais de disputas
que de posições unânimes. Isto se reflete na fragilidade de muitos significados, na luta
por impor interpretações e verdades diferentes que, às vezes, se evidenciavam
incompatíveis, e, outras vezes, eram combinadas dando lugar a alguma coisa nova. No
processo constituinte, se mostra cruamente visível a construção de uma verdade que não
era assim considerada antes de ser aprovada como “lei”, mas então passa a ser aceita por
todos. Torna-se visível também a contínua desconfiança sobre as verdades, mostrando
assim a fragilidade da lei e ao mesmo tempo a sua força. Um espaço como a Assembléia
Constituinte permitia comprovar o poder da política de invadir qualquer situação, sem
nada que não possa ser “politizado”, pondo em questão o seu caráter estabelecido e
abrindo todo significado à contínua redefinição.
A opção metodológica para o estudo deste processo será a de uma etnografia
que, de acordo com a proposta de Bruno Latour (2005), procura seguir minuciosamente
os atores, suas controvérsias e estabilizações, sem explicações que passem por cima aos
traçados de associações enquanto são realizados. Trata-se de uma narrativa que procura
o plano de profundidade, no enfoque que Alfred Gell chamou de “biográfico”, sem se
impor com explicações acima dos agentes, como na “sociologia do social” que Latour
rejeita, nem por baixo deles, procurando causas ocultas para seus comportamentos,
como em certa psicologia (1998:10-11). Interessa aqui apresentar antes de tudo as
teorias políticas, sobre o Estado, dos próprios bolivianos que participaram do processo,
procurando o que em antropologia se compreende como dar autodeterminação
conceitual aos nativos, e encontramos na proposta de antropologia simétrica de Latour
11
(1994), na Teoria Etnográfica em Goldman (2006) ou em Viveiros de Castro, quando
escreve sobre uma continuidade epistêmica, na qual os procedimentos de pesquisa
sejam da mesma ordem que os procedimentos que caracterizam a pesquisa (2002).
A proposta tem certa especificidade quando a simetria do antropólogo se coloca
frente a atores que adquirem uma voz estatal. É uma situação atípica em antropologia,
onde a continuidade epistêmica em geral procura ressaltar perspectivas que eram
silenciadas pelo Estado moderno e suas disciplinas de conhecimento. No entanto, penso
que esta situação evidencia sobretudo uma cumplicidade ou simetria entre a perspectiva
etnográfica e o próprio projeto de descolonização e Estado Plurinacional, em que novos
atores sociais - e inclusive a Pachamama adquirem cidadania plena num Estado que é
transformado por um modelo pluralista e de autodeterminação para os povos e nações
indígenas originárias camponesas.
Na etnografia do Estado e do processo constituinte, teremos que avançar por um
caminho duplo porque ao mesmo tempo nos encontramos com instituições fundadas nos
grandes divisores do que Latour chamou Constituição Moderna (1994); e também com
uma proposta política de Estado que em algum nível questionava a separação moderna
entre sociedade e natureza; e também entre Estado e sociedade. Essa precaução deverá
ser tomada quando a chegada ao Estado dos camponeses e indígenas abriu um cenário
onde a força do majoritário, como construção política que consegue se transformar em
governo, não deixava de lado a especificidade do minoritário, com seu espírito
diferenciador e que, no processo constituinte boliviano, se expressava no desejo de
descolonização e de autonomia. Nesse sentido é que, na Bolívia, observamos como a
verdade das maiorias indígenas chegava ao Estado e escrevia uma nova lei; mas ao
mesmo tempo também víamos como tinha lugar a busca por garantir autodeterminação
para povos com verdades civilizacionais diferentes, que não tinham a força ou a
intenção de se constituir em verdade do Estado nem de assumir a tarefa de governar o
país de todos.
2 Para estudar o Estado e o contra-Estado na Bolívia.
Numa direção explorada para outros campos etnográficos por autores como
Marshall Sahlins (1976) e David Schneider (1968), houve quem tenha indicado a
pertinência de um estudo cultural e etnográfico do Estado. Marc Abélès (1990, 2000) e
Bruno Latour (2004a e b) realizaram estudos etnográficos em instituições centrais do
12
Estado francês, prestando atenção ao processo de elaboração de leis. Outros, ainda,
procuraram entender as “imagens” do Estado na Ásia, África e América Latina
13
. Na
introdução a uma compilação de artigos que exploram a conexão entre cultura e Estado,
George Steinmetz fundamenta esse tipo de estudo e apresenta uma proposta de pesquisa
em que, longe dos estudos de impacto de políticas de governo na cultura, posiciona o
próprio Estado como fenômeno e produto cultural (1999). Steinmetz critica as visões
clássicas da teoria social nas quais o interesse pela cultura se limita aos casos distantes
em espaço e/ou tempo, a respeito da modernidade ocidental. Steinmetz sugere que a
racionalidade instrumental pode ser considerada outra forma de cultura e contrasta seu
olhar com Weber, para quem essa lógica funcionaria como “uma espécie de não-cultura,
uma „pura racionalidade‟ privilegiada, contra a qual outras ações orientadas podem ser
contrastadas” (:16, trad. minha)
14
.
Este olhar crítico sobre o Estado, desnaturalizando seus pressupostos
cosmológicos, é um lugar por onde com freqüência passa o pensamento da política.
Rancière falava da política como ilusão, Paul Veyne não lhe encontrava sentido à
pixação “a imaginação ao poder”, de maio de 68, porque afirmava que o poder sempre é
imaginação. Walter Benjamin concebe o capitalismo como uma religião, e Lévi-Strauss
comentou, ao escrever sobre a estrutura dos mitos, que as ideologias políticas são para
ele as mitologias modernas. Nesta tese, trata-se de acompanhar o que acontece com os
povos indígenas, os camponeses e seus aliados, quando se encontram com o Estado e
procuram transformá-lo. Veremos até que ponto eles começam a ter poder para
manipular essas idéias, como xamãs, chefes ou sacerdotes estatais, e até que ponto a
constituinte se encontrará com a força persistente da silueta do Estado colonial e liberal.
13
Latour tem uma pesquisa sobre o Conselho de Estado, e Abélès estudou instituições da União
Européia e o Parlamento. Outros autores realizaram trabalhos sobre as formas diversas como que o
Estado é imaginado pela população que entra em contato com políticas estatais; planos de
desenvolvimento ou burocracia: Yang (2005), Scott (1998); Hansen e Stepputat (eds.) (2001); Gupta
(1995); Nugent (2007); Sharma e Gupta (2006). A minha pesquisa propõe um diálogo com ambas
perspectivas de analise, se dirigindo às instituições centrais do Estado moderno, mas num país
considerado marginal, que poderia bem se enquadrar nos casos para estudar “imagens do Estado”
diversas ou alternativas às européias. Nesse universo também se localiza o influente trabalho de
“Antropologia nas margens do Estado” (DAS e POOLE, eds. 2004).
14
A proposta de Steimentz vincula-se a toda uma linha de trabalhos sobre o Estado, próximos à
antropologia, mas que surgem desde a sociologia histórica inspirada pelo trabalho de Corrigan e Sayer
sobre a formação do Estado inglês como processo cultural (1985). Alguns desses trabalhos podem se
encontrar em Aspectos Cotidianos de la Formación del Estado, compilado por Joseph e Nugent (2002)
com várias contribuições que estudam a articulação entre cultura popular local, violência política e o
Estado, em torno do período revolucionário no México. Esse conjunto de trabalhos dialoga também com
James Scott (1998), de quem retomam um enfoque sobre o Estado, que coloca ênfase nas práticas
culturais cotidianas.
13
A Bolívia parece um bom lugar para estudar isso, com um Estado debilmente
consolidado, e ao mesmo tempo com fortes mecanismos de imposição do modelo
moderno, necessários numa realidade onde encontramos formas políticas alternativas
vigentes e com vitalidade.
Michael Taussig escreve sobre a necessidade do Estado de criar uma aura de
poder legítimo e irrefutável em torno de si, e observa que a legitimidade da Constituição
dos Estados Unidos não deriva de seus princípios legais, mas dos fundamentos culturais
e políticos da idéia dos norte-americanos sobre o Estado Moderno (1992:506, trad.
nossa). O exemplo norte-americano é apropriado para evitar a interpretação de que o
Estado é mágico ou mítico porque agora são os indígenas que o ocupam. Em The
Magic of the State (1997), Taussig discute como se conforma a imagem e força do
Estado Nação, mostrando suas proximidades com a magia, o espiritismo e a religião.
Em seu trabalho, se destaca a ambivalência da lei e da imagem do Estado, entre o oficial
e o ideal, entre o culto e o calote, entre o considerado kitsch ou sagrado. Na construção
do seu poder, o Estado faz referência a elementos externos e simbolicamente
antagônicos, que lhe outorgam sentido, e se aproxima do povo, tanto quanto no povo
aparece o estatal, diz Taussig (:157 e passim).
Michel Foucault se perguntava o que significa governar numa determinada
época e qual é a mentalidade de governo que surge com a modernidade desde o século
XVI e se expressa de forma característica no Estado (2004). Além de levar a política
para novos espaços deslocando a análise dos “centros” de poder, a partir de uma
concepção em que as relações de poder estão por todas as partes, em suas páginas sobre
governmentality, enquadra o estudo do Estado numa história mais geral de certa
“racionalidade típica da arte de governo”, que aparece como resultado de estratégias,
táticas, tecnologias e discursos que se impuseram a partir de determinada época (1991,
2004:120). Esses trabalhos dariam lugar a estudos sobre a formação dos Estados e as
formas de autoridade e governo, como o de Corrigan Sayer (1985), onde o Estado deixa
de ser uma coisa, essência ou espírito, para se mostrar como produto de processos no
marco de uma determinada mentalidade que pode ser datada. De alguma forma, na
Bolívia encontramos uma crítica a esse mesmo modelo, mentalidade, ou instituições
associadas à modernidade, e às quais algumas práticas comunitárias (e a forma em que
entram na discussão política) não se adaptavam
15
.
15
Com o conceito de “política da verdade” (1994), Foucault também trata de como cada sociedade
produz historicamente rituais e mecanismos que lhe permitem aceitar algumas coisas como verdadeiras
14
Outro trabalho influente para os estudos do Estado, derivado da concepção de
poder como relações disseminadas, é o de Phillips Abrams (1988), que propõe seguir e
pesquisar as relações e não a representação, ideologia ou ilusão que identificariam o
Estado. Como alguma vez escreveu Raddcliffe-Brown, descarta o uso da categoria
Estado por considerá-la uma ficção que deve ser substituída pelas noções de sistema
político, organização política e governo. Para Abrams, o Estado é uma máscara que
deve se colocar entre parênteses para evidenciar a função ideológica do Estado. Suas
idéias abrem novas linhas de pesquisa como as de Troulliout (2001), que considera que
o Estado-Nação não é mais um contêiner válido, e prefere apontar para o estudo de seus
efeitos. Esses trabalhos são uma referência para localizar uma pesquisa antropológica
sobre o Estado na Bolívia. No entanto, a discussão é pertinente também porque diz
respeito ao próprio debate político boliviano.
Nos trabalhos dos autores mencionados, o Estado aparece como mentalidade que
tudo abarca, e também que não existe em absoluto. A ênfase num olhar materialista, ou
simbolista, nos leva a oscilar entre uma e outra visão: trata-se apenas do nosso olhar
determinado pela cultura, dizem uns; mas outros assinalam que ele tem materialidade e
provoca efeitos. Um ponto interessante desse debate é que a tensão entre inexistência e
onipresença do Estado também aparece nas questões políticas do processo boliviano. De
algum modo, os enfoques heurísticos sobre como estudar o Estado parecem ter reflexo
nas posições políticas do processo político. De um lado, encontraríamos uma idéia do
político limitado ao que se refere ao Estado e que encontra na institucionalização o
único caminho para realizar mudanças; do outro lado, a idéia de que relações políticas
atravessam o corpo social, ou têm a sua essência na comunidade e contra o Estado.
Encontramos também posições que procuram pensar a política “para além das
instituições”, ou “para além do Estado”.
A variação entre concepções sobre o poder e a política, que vai do formalismo
universalista que encontra a política em todo lugar ao substantivismo que
reconhece a política institucional , pode ser encontrada nos sentidos em que a política
aparece para uma antropologia da política desenvolvida no Brasil. Em seus trabalhos,
e outras como falsas. Também seguindo caminhos abertos por Foucault, Mitchell (1999) questiona as
fronteiras entre sociedade, economia e Estado, mostrando-as como artifícios impostos contra relações
microfísicas que atravessam a separação. O mesmo que Latour aponta como híbridos de natureza e
cultura que a “Constituição Moderna” permite, mas não deixa ver. Em algumas discussões, a
comunidade e o pensamento indígenas introduziam uma posição de ruptura com as clássicas dicotomias
da modernidade que a mentalidade de governo trazia.
15
Moacir Palmeira se aproxima da política de Estado, mas ali onde a mesma não constitui
um domínio constante de atividades, mas um fenômeno esporádico, correspondente à
época de eleições, que era concebida como único “tempo da política” entre os habitantes
de comunidades rurais do nordeste brasileiro (Palmeira e Heredia, 1995, Palmeira
1996). Em seu trabalho sobre pessoas vinculadas ao movimento negro de Ilhéus, Marcio
Goldman (2006:83-85) encontra concepções sobre política sempre em coexistência e
interpenetração: “os militares negros tendem [...] a pensar a política de acordo com uma
espécie de dinamismo, que a conceberia principalmente como uma atividade, que tem
certamente um espaço e tempo próprios, mas que, simultaneamente, parece estar dotada
de um caráter invasivo, que faz que, com freqüência, supere os limites em que deveria
ficar confinada (as eleições, o governo) e penetre relações e domínios dos quais deveria
estar excluída (o parentesco, a arte, a religião)” (:84-89)
16
.
Na Bolívia, o debate sobre o Estado atravessa os trabalhos do grupo Comuna,
ativo especialmente no período de 2000-2005, de avanço dos movimentos sociais até o
Estado, embora também com contribuições mais recentes. Entre seus membros,
verdadeiras personagens narrativas desta tese, alguns se mantiveram fora do Estado e
outros integraram o governo do MAS. Parte desse grupo, o vice-presidente de Evo
Morales, Álvaro García Linera, converteu-se em importante intérprete da realidade
boliviana, além de ideólogo do Estado Plurinacional. Como ex-professor de sociologia,
preso cinco anos sem ir a julgamento por participar de um movimento armado nos anos
90, gramsciano, indianista katarista
17
e marxista bolchevique”, segundo sua própria
definição, algumas vezes combinava as interpretações políticas com interpretações
sociológicas, e, em março de 2009, disse também que “a política é metade matéria e
coisa, metade idéias e símbolos; quem domina os símbolos domina a política”. Citava
Lênin dizendo que “não processo revolucionário sem teoria revolucionária”
18
.
16
Marc Abélès (1996) também destaca duas posições que aparecem em sua pesquisa sobre a União
Européia, e que se pode ver remetendo aos dois extremos da onipresença e da total inexistência: as
posições em sua pesquisa vão desde a idéia de que “a Europa política não existe”, até a que diz que são
os Estados-Nação os que não existem, então a política é agora essencialmente supranacional,
portanto, exclusivamente de instâncias, como a da união de países europeus.
17
O katarismo, como veremos no capítulo 1, é o movimento cultural e político do altiplano aymara, que
nasce nos 70 e cresce junto com os sindicatos campesinos de oposição à ditadura. Inspiram-se em Tupac
Katari e reivindicam a discriminação étnica, combinando também a reivindicação de classe.
18
O vice-presidente fazia menção a uma concepção coincidente com a de Bourdieu, autor que citou em
diversas ocasiões, para quem o Estado se expande por todo o corpo social, com poder inclusive para
definir as categorias com as quais pensamos e percebemos. Em um dos seus textos (1996), Bourdieu
apresenta um complemento à fórmula weberiana e define o Estado como uma incógnita a ser
determinada, que reivindica com êxito o monopólio da força física, mas também simbólica, num
16
Veremos seu papel na disputa por impor uma interpretação sobre o sentido do Estado
Plurinacional, e também seu lugar no processo constituinte como voz governamental no
conflito político e nas negociações da Assembléia. Mas aqui nos interessa sua posição
decidida a favor da defesa de uma estratégia que passe pelo Estado para os movimentos
sociais e indígenas. Para García Linera, o Estado aparece como único caminho.
Com seu artigo sobre autonomias indígenas e a proposta de um Estado
Multinacional, já em 2003 García Linera vinha falando de uma saída institucional para a
onda de movimentos sociais (2003), mas sua posição era ainda mais próxima aos
setores nacionalistas aymaras, mais radicais em sua crítica ao Estado colonial que aos
camponeses do Chapare. Quando assume a vice-presidência, encarna o papel de
defender o Estado como único instrumento para a transformação social e realização das
vontades políticas. Nos debates em meio à intelectualidade, seria explicito ao
reivindicar Hegel e em qualificar como não realistas e infantis as posições não
estadistas. “Muito Estado” é totalitário, mas “muita sociedade” é uma utopia anarquista
para dentro de 7300 anos, dizia em uma palestra organizada em março de 2007 pelo
grupo Comuna; e sua ênfase no Estado seria ainda maior quando o tema fosse o papel
do Estado na industrialização e no desenvolvimento econômico.
Por se tratar de um momento constituinte e de chegada de movimentos de fora
ao Estado, ainda era possível ouvir o debate do Estado como estratégia política dos
movimentos. Ainda que ninguém discordasse da importância da nova fase inaugurada
pela vitoria de Evo Morales, o Estado como lugar da política o dava conta das
expectativas de todos os grupos políticos expressivos do país. Para muitos componentes
do MAS, que tinham chegado à Constituinte ou ao governo por trajetórias externas ao
Estado, ele não era mais que uma realidade circunstancial. Os sindicatos cocaleros
viveram uma guerra contra as políticas de erradicação; indígenas e camponeses haviam
travado batalhas por terras comunitárias e território, contra usurpadores ou
aproveitadores de recursos naturais, às vezes com cumplicidade do Estado, a partir de
governos locais corruptos; outros vinham de ONGs próximas às organizações sociais.
Vinham também da luta armada, da militância nas cercanias ou da atividade privada. O
que difícil no MAS era encontrar biografias institucionais, ainda que desde a chegada ao
território e diante de uma população. O Estado para Bourdieu se encarna tanto na objetividade como na
subjetividade. E se institui em esquemas de percepção e pensamento para conseguir ocultar que é
produto de uma longa série de atos de instituições (:97-98). A drástica separação entre as dimensões
objetiva e subjetiva é questionável a partir uma concepção crítica às bases do pensamento moderno e
às suas conseqüências derivadas.
17
governo não faltaram personagens reciclados e incorporados ao MAS quando este se
incorporou ao Estado.
As trajetórias não institucionais não supõem uma perspectiva de não disputa do
Estado; pelo contrário, para muitos, o Estado sempre tinha sido um horizonte pensado
como espaço de cristalização das vitórias. O Estado, para muita gente, era quem deveria
estar presente para defender territórios indígenas de madeireiros ou garimpeiros, como
responsável por garantir o controle dos recursos naturais para o povo. Para os sindicatos
que acompanharam Evo Morales, era explícita a busca por superar o limite sindical da
negociação nunca respeitada por parte do Estado como fundamento para a
construção do instrumento político. Mas ao mesmo tempo existia um espírito não
institucional, por exemplo, no projeto de autonomias indígenas defendido pelo MAS
como contraproposta às autonomias departamentais da oposição , o qual era a principal
reivindicação dos povos indígenas que apoiavam Evo Morales, mas não se propunham a
participar da administração do Estado. Ainda que essa reivindicação surgisse
especialmente como demanda das terras baixas, foi incorporada ao processo constituinte
como estratégia pelas organizações camponesas e indígenas das terras altas, que tinham
maioria demográfica nas suas localidades.
Tratava-se de um projeto de reconhecimento por parte do Estado da autonomia
que em alguns aspectos existia, mas que em outros se relacionava a tendência de
reconstituição do ayllu (comunidade andina de parentesco e organização social),
consolidação de territórios ancestrais e desenvolvimento do autogoverno como projeto a
construir. O tema traria também controvérsias, e se mobilizariam as idéias de “gueto”,
de “nova redução colonial” e, também por parte de setores nacionalistas, se criticaria a
ameaça de fragmentação do país ou debilitação para a defesa dos recursos naturais. Mas
a proposta era importante no sentido que introduzia no debate sobre o Estado a questão
dos “regimes civilizatórios” alternativos, de cosmologias diferentes, e da possibilidade
de um Estado não apenas aberto às grandes maiorias, mas que fosse também para além
das formas políticas liberais e republicanas associadas à colonialidade
19
.
19
A procura de autonomias indígenas aparece em distintas formas por toda América Latina. Surge com
esse nome na década de 80 na Nicarágua, para os territórios da costa atlântica, e se incorpora à
Constituição dos sandinistas. Entre os zapatistas, tem um desenvolvimento independente do Estado
depois que os diálogos de San Andrés e a proposta de Lei COCOPA fracassaram. Na Colômbia, Oaxaca e
Peru, se associa às experiências de seguridade comunitária (ver SIERRA, 2007, 2009). No México,
aparece tanto como forma incorporada à estrutura estatal na proposta que às vincula às autonomias
regionais, como também projeto não estatal em vários lugares (DÍAZ POLANCO, 1997; LOPEZ e RIVAS,
18
As alternativas à estratégia de ocupação do Estado remetem também diretamente
à “Guerra da Água” de Cochabamba, de abril de 2000, que tinha aberto a possibilidade
de questionar a representação que o Estado exerceria, assim como o capitalismo de
mercado, a partir do comunitário, com a expulsão de uma empresa concessionária de
água, realizada por uma Coordenação (pela água e a vida) que nucleava setores sociais
diversos, e que não se propunha à disputa eleitoral. Em Cochabamba se tinha vencido o
Estado e dado lugar a pensar a administração blica auto-organizada. Hardt e Negri
considerariam estas lutas como prototípicas da defesa do comum (Commonwealth,
2009), e o próprio García Linera falava de um importante avanço nas lutas dos
movimentos sociais de 2000, em relação aos objetivos políticos do movimento operário
liderado pelos mineiros no período anterior.
Num artigo de 2000, o futuro vice-presidente de Morales escrevia sobre a
“mitologia política de classe operaria no Estado”, apontando uma subordinação em
relação ao Estado da classe operária organizada, com demandas que não questionavam a
autoridade do governo. Na análise de García Linera, na Cochabamba de 2000, se tinha
quebrado o vínculo da subalternidade com a construção de um “horizonte de ação
autodeterminante”. Não obstante, já no governo, durante um encontro com Negri, Hardt
e outros intelectuais (VVAA, 2008), García Linera reconhecia que “os movimentos
podem ser alguma coisa num período, mas depois devem declinar, descansar, têm que
haver um Estado para fixar os pontos altos, e depois, em anos, outros movimentos
sociais poderão avançar”
20
.
Negri e Hardt, atentos à Bolívia, expressavam um interesse internacional que se
traduzia em visitas ou declarações de apoio de intelectuais e líderes políticos do mundo
todo. Em seu livro Commonwealth, entende-se o lugar de contraponto que a Bolívia
pode representar quanto à república e seu forte vínculo com a propriedade privada, o
2004; SÁNCHEZ, 1999; ANAYA, 2006). Sobre autonomias na Bolívia, veja-se Rocha (et al, 2008); Molina,
Vargas, Soruco (2008); Galindo (2007).
20
Hardt e Negri, no livro Commonwealth (2010), sobre como na guerra da água os diferentes sujeitos
políticos se combinam sem que nenhum deles prevaleça. Nesse sentido mencionam os trabalhos de
García Linera e do grupo Comuna, com o uso da categoria “forma multidão” para se referir às redes
horizontais de articulação social que substituem a forma classe, refletindo a realidade que é, ao mesmo
tempo, em palavras de García Linera étnica, cultural, política, de classe e regional; e que além disso
não emergem como rebelião espontânea, mas numa estrutura organizacional madura, vinculada às bem
estabelecidas redes e práticas autônomas dos setores bolivianos envolvidos. Esses autores destacam o
desenvolvimento do conceito Multidão paralelo ao do seu próprio trabalho que no caso do grupo
Comuna aparece derivado da obra de René Zavaleta e da sua idéia de Bolívia como sociedade
abigarrada (HARDT e NEGRI 2010:110-112). Em Commonwealth, porém, os autores têm o cuidado de se
distanciar da associação que fazia Zavaleta entre o abigarrada e o caráter pré-capitalista da Bolívia, para
recuperar o uso que atualmente tem o conceito na Bolívia, em sentido de pluralidade.
19
que é a temática desenvolvida por esses autores no primeiro capítulo do livro. Negri e
Hardt escrevem sobre “a linha dominante do pensamento político europeu, que vai de
Locke a Hegel, no direito a se apropriar de coisas como base e finalidade do indivíduo
livre legalmente definido” (2010:11-13). Do ponto de vista da política cotidiana da
Bolívia, era exagerado dar esse lugar ao país, já que a preocupação do governo do MAS
era, pelo contrário, difundir que a propriedade privada seria respeitada, para o que foram
impressos cartazes inéditos na campanha a favor da nova Constituição com o texto
“A Revolução Democrática Cultural Respeita a Propriedade Privada”. Os constituintes
do MAS se preocupavam com o voto das cidades e com dar fim aos fantasmas
disseminados por rumores. Mas cabe ressaltar que uma possibilidade de mudança
profunda estava presente, pelo menos nos rumores, nos medos dos vizinhos de classe
média, nas esperanças dos militantes e no interesse dos intelectuais.
Na hora de achar elementos concretos para justificar o lugar da Bolívia na
política internacional crítica da modernidade, aparece a comunidade andina e a
persistente presença de lógicas coletivas tradicionais. E nesse lugar encontramos outro
regime de propriedade, outras formas coletivas e plenárias de participação política,
outro regime de verdade sobre a relação entre todas as coisas, as montanhas e as plantas.
O próprio Evo Morales adotou a máxima zapatista de “mandar obedecendo”, como
algum tipo de prestação de contas às bases, ao menos como intenção declarada no MAS
e, no início do mandato, alguma vez de fato realizada; e vigente sim em níveis
comunitários e sindicais mais baixos. De algum modo, podemos pensar que os
movimentos sociais na Bolívia fizeram um movimento de “laço”, que avança até um
ponto máximo para depois retroceder e ficar estabilizado não tão longe como onde tinha
chegado. Assim tinham ficado marcadas na memória as jornadas de Cochabamba, nas
quais o capitalismo tinha sido impugnado, assim como a representação republicana e a
autoridade do Estado; mas isso para depois empreender a construção de um Estado, com
o essencial das instituições modernas preservado.
Marisol De La Cadena (2008 trad. nossa) trabalha também distinguindo os
elementos não modernos dos Andes, e destaca ainda as conexões parciais entre
humanos e seres que não o são (como plantas, animais ou paisagens: other-than-
humans beings”) nas serras peruanas, onde, a partir de protestos em defesa de
montanhas contra a exploração mineira, ou seguindo outras intervenções dos
movimentos indígenas e camponeses na política andina, se fazem presentes “seres da
terra” como atores políticos que dão conta de outra matriz política e outras ontologias
20
ameaçadas pelo casamento neoliberal entre capitalismo e Estado”. Veremos mais
adiante o debate sobre esses seres não-humanos no Estado. Antes, consideremos a
discussão na Bolívia sobre a comunidade andina contra o Estado.
Outro membro do Grupo Comuna, o constituinte do MAS Raul Prada, de La
Paz, em alguns de seus trabalhos anteriores ou contemporâneos à Assembléia
Constituinte, ocupa-se de pensar o ayllu como forma arcaica que se mantém na memória
cultural até os dias de hoje, com sua própria historicidade (1995, 1998, 2001, 2008).
Para ele, diferentemente de García Linera e apesar de também ter ingressado no Estado,
a via institucional para a transformação política se manteria sempre como uma hipótese
não confirmada. Em seus trabalhos, a forma arcaica do ayllu se relaciona com o
princípio do coletivo, em oposição ao da individualização, ligada à modernidade. É a
sociedade contra o Estado e contra o mercado capitalista, que aparece como forma com
transcendência histórica da região andina e estende sua presença aos sindicatos e às
mobilizações políticas da época recente, tanto no campo como no âmbito urbano (:76)
21
.
Prada faz referência a Pierre Clastres e identifica no ayllu a repressão de uma
aparição do Estado, a partir do sistema de comandos rotativos e de confederações entre
chefes de clãs. Refere-se a arquipélagos de comunidades unidas por nomadismo ou
pactos, que se encontram em contínua dinâmica de circulação, de redes de reciprocidade
e complementaridade de longo alcance no espaço e no tempo, o que também se associa
ao politeísmo. Segundo Prada, o perpétuo movimento des-territorializador e re-
territorializador consegue ainda hoje grandes mobilizações populacionais em momentos
chave do ciclo agrário, sem necessidade de recorrer à coerção por parte do Estado
22
.
Em nossa revisão bibliográfica para o estudo do Estado, Pierre Clastres (2004)
pode ser mencionado como etnógrafo ou etno-historiador do Estado à medida que
pensamos sua observação sobre a força que origem à divisão da sociedade, como
21
Num texto recente, Prada (2010) escreve: “O sindicato camponês não deixa de ser uma transformação
moderna do ayllu, tem como matriz e referência o ayllu, inclusive cumpre funções e atribuições do ayllu.
Durante o processo constituinte, o ayllu tem sido o referencial imprescindível para o desenvolvimento
dos artigos que têm a ver com o comunitário. Agora, depois da aprovação da Constituição, o ayllu é o
referencial obrigatório para a aplicação da Constituição em tudo que tem a ver com a realização do
Estado comunitário, como a democracia comunitária, com os direitos das nações e povos indígenas
originários camponeses, com o pluralismo jurídico, com a economia comunitária”.
22
A caracterização anti-Estado do ayllu é interessante quando, em leituras mais genéricas, costuma-se
associar o mundo andino ao estatal, se reduzindo as formas andinas ao império inca. Em Prada, o ayllu
se contrapõe às cidades-Estado, como Cuzco e antes Tiwanaku, e às sociedades estadistas como o
incanato. Em sua genealogia do ayllu, Prada acha a forma contra-Estado para além, o da colônia
espanhola, mas também do incanato. Critica ainda o ayllu de alguns trabalhos etnológicos, por se
remeterem a um referencial histórico já fragmentado pela Colônia, nas reduções do Vice-rei Toledo. E os
limites da cartografia colonial, que foi transmitida à República (2008:75).
21
sinal de um órgão que separa os que exercem o poder daqueles que a ele se submetem, e
que é uma força que se identifica com o Estado. Clastres trata do papel fundamental que
cumpre a guerra como estrutura social da dispersão, que impede acumular excedente
econômico e que permite conjurar o surgimento do Estado para conservar a autarquia e
ideal de totalidade sem divisões
23
. Deleuze e Guattari (2000, trad. nossa) retomam o
trabalho de Clastres em Mil Platôs... com uma homenagem e uma crítica. Percebem a
importância de Clastres reconhecer um Estado presente nas sociedades primitivas de
forma potencial que não consegue se atualizar. Mas duvidam da possibilidade de um
desenvolvimento progressivo do Estado nas sociedades primitivas, entendendo que seu
surgimento é súbito; para Deleuze e Guattari, “o Estado sempre existiu, e bem perfeito,
bem formado”.
Para Deleuze e Guattari, os bandos nômades sempre estiveram em contato com o
Estado, e o Estado sempre esteve em relação com os ”de fora”, dos quais não poderia
deixar de tentar se apropriar, impondo-lhe sua soberania. Em vez de Estado e contra-
Estado, de Tudo e Nada, esses autores falam, então, de interioridade e exterioridade. O
que interessa a Deleuze e Guattari, e que nos servirá como ferramenta para entender a
ascenção dos camponeses e dos indígenas, é a relação do Estado com o que está fora
dele. O Estado é soberania, escrevem, mas a soberania apenas reina sobre o
interiorizado e apropriado localmente (:367). O Estado não pode ser concebido sem a
relação com a exterioridade. Antes que um corte entre o Estado e a inexistência absoluta
do mesmo, então, trata-se de coexistência, concorrência e interação (:366-368); e para
pensar essas relações, os autores colocam uma série de ferramentas que permitem
entender a captura do externo, a fuga a partir de seu interior, os fluxos moleculares e as
grandes organizações molares.
A leitura de Deleuze e Guattari sobre Clastres parece apropriada para pensar a
atualidade política da Bolívia e as relações sociedade/Estado no contexto de uma
Assembléia Constituinte e da procura por transformar o regime republicano num Estado
Plurinacional Comunitário. Seguindo com Prada, este observa que o ayllu se fez
presente com a unificação de fragmentos no altiplano aymara de hoje, quando os
sindicatos comunais conseguiram sua aglutinação mobilizada nas reuniões dos comitês
23
O interesse de Clastres pelo Estado o aproximava inclusive do estudo da sua transição até a aparição
nas sociedades de América do Sul: em escritos pouco anteriores à sua morte, anota que pretende
explorar a guerra de conquista no Estado Inca, e a possível mudança de estrutura política entre os Tupi,
que em momentos da conquista européia se encontravam em processo de unificação (notas da revista
Livre, citada em Clastres 2004:268 e 316).
22
de bloqueio. Outras mobilizações, como as de colonizadores, fabris ou cocaleros do
Chapare, exploram outras formas, com componentes autogestionários, do tipo de
assembléia, sindicatos, novos ou tradicionais, e com a prática da deliberação como
hábito de consenso e da arte de convencimento, diz Prada. Ele nota como o bloqueio de
caminhos, bastante freqüente entre 2000 e 2005, e o cerco às cidades são táticas
nômades que recuperam a memória guerreira das comunidades andinas, fazendo
presente o ayllu (2008:77 y 44).
Agora, como algo contra-estatal, o ayllu não tem nada a ver com a nação e com
o partido, ambas instituições modernas, escreve Prada. Assinala também as contínuas
tentativas por parte do Estado de fragmentação do ayllu desde a colônia até a Lei de
Participação Popular de 1994, passando pela reforma agrária em 1953 e pelas leis de
Exvinculação de 1874. Todas elas violavam a territorialidade nativa, cortavam alianças
familiares e enclausuravam povos em reservas passíveis de vigia e controle, afirma
Prada. O autor permite pensar a questão da relação do ayllu com o Estado e do Estado
com o comunitário, quando escreve que para o ayllu apenas dois caminhos que
aparecem como dilema em momentos cruciais: estatização ou transtorno profundo do
Estado, que não apenas tenta uma nova forma de convocatória, de res publica, mas
também uma nova forma de sociedade (:45).
O próprio Raul Prada, como um dos constituintes com influência na redação da
Constituição, tentaria percorrer os dois caminhos, e também a possibilidade de atalhos
que unam um com o outro, o do ayllu e o do Estado, representando com outros a
vertente do pluralismo indianista no projeto de texto e assumindo o momento
institucional dos camponeses e indígenas. A partir da sua posição na Assembléia e,
depois, como vice-ministro de planificação estratégica, Prada pensaria o
desenvolvimento da idéia de Estado Plurinacional como projeto de Estado que canaliza
parte das forças do ayllu em elementos como a democracia comunitária e as
reivindicações que parte das organizações indígenas levavam à Assembléia
Constituinte, como a re-territorialização, as autonomias, a representação direta e a
recuperação de territórios ancestrais
24
.
24
Uma pergunta pertinente a respeito dessa questão, foi colocada por Álvaro García Linera em
diferentes intervenções. É possível ocupar o poder sem construir um outro poder? A resposta era não, e
o exemplo do vice-presidente era a eleição de candidatos com voto individual e secreto, mas feita
depois de que uma assembléia da comunidade tivesse resolvido de forma coletiva quem seria
candidato.
23
Num diálogo semelhante, o trabalho de José Rabasa (2003, trad. nossa) é
interessante porque também articula os trabalhos de Negri e Hardt, o Zapatista de
Chiapas e o processo boliviano. No artigo titulado “Negri por Zapata: o poder
constituinte e os limites da autonomia”, explora essa conexão dada especialmente pela
idéia de autonomia e pela defesa em Negri de uma posição “além do racionalismo
moderno”, que também se encontra entre os zapatistas, que demonstraram ser versados
nas tradições jurídicas ocidentais, a partir das quais debatiam com o governo nos
acordos de São Andrés, diz Rabasa. Esse autor entende que “a tarefa para Negri e os
zapatistas não consistiria mais no estabelecimento de um novo Estado (segundo o velho
modelo da tomada do Estado), mas na destruição do Estado, „desse monstruoso fetiche
burguês e capitalista e, por conseqüência, na transferência de suas funções à
comunidade‟” (citando o trabalho de Negri The Politics of Subversion, p. 175, trad.
nossa).
Assinala também o perigo de que o poder constituído domestique o poder
constituinte da multidão, no México, com a resolução constitucional dos acordos de São
Andrés. E a mesma preocupação aparece num comentário mais recente (Rabasa, 2010)
sobre o discurso de García Linera na reunião da Latin America Studies Association
(LASA), em Montreal 2007, onde o vice-presidente teria mencionado sua afinidade com
Lênin sobre a necessidade de “um Estado que não é um Estado”, mas que ao mesmo
tempo manteria em subordinação o conhecimento dos indígenas para as tarefas do
Estado. Rabasa aponta tentativas via Estado para apaziguar a rebelião do ayllu para
governar, além do paradoxo de que a Assembléia Constituinte e a nova Constituição
procurem legitimar os movimentos que levaram à sua criação, mas também regulá-los
(:279). O problema é colocado em termos da interação entre a mais ocidental das
instituições, o Estado, e entidades sociais não ocidentais como comunidades indígenas
mesoamericanas, ayllu e, no passado, também os soviets da revolução de outubro
(:271)
25
.
25
Neste sentido, Rabasa cita a Raúl Zibechi, outro intelectual latino-americano em contato com a
Bolívia, que escreveu que “as relações sociais não capitalistas e os poderes não estatais que
potencilizaram o movimento podem entronizar no poder forças que pretendam legitimar o Estado e
expandir o capitalismo.” (ver ZIBECHI, 2006). Sobre esta crítica ao neoliberalismo, Rabasa se pergunta:
“O que fazer, dado que as forças e interesses que García Linera critica como ‘grande fraude do
neoliberalismo’ não irão desaparecer de um dia para o outro, e qual o papel do poder do ayllu para
mobilizar e fazer o governo do MAS assumir a responsabilidade de destruir esse Estado Neoliberal?”.
Uma resposta, disse Rabasa, seria a criação de um novo tipo de Estado de esquerda, mas essa opção não
considera o poder da oposição e a inevitabilidade de operar desde dentro da estrutura de poder
neoliberal estabelecida. Uma segunda resposta seria a dissolução do Estado por dentro, mas surge
24
Guiseppe Cocco também avança em mostrar as conexões entre o pensamento
autonomista e o processo boliviano em dialogo também com a “crítica ameríndia às
máquinas antropológicas de ocidente” (2009). Com as verdades outras dos indígenas,
ressalta Cocco, encontramos alternativas às dicotomias modernas desde a lógica do
comum, da relação e do intercâmbio. Nesse sentido, se refere ao “devir aymara da
Bolívia”, a partir da relação do poder constituinte com o ayllu, as migrações e o mundo
rural. Citando García Linera sobre a dimensão cultural que na Bolívia adquire a
condição de classe, Cocco aponta a possibilidade de articulação de setores sociais
diversos. E, citando Viveiros de Castro, enfatiza também a importância da aliança como
máquina própria da ontologia ameríndia, que pela sua natureza se enfrenta com o
Estado, entre os povos indígenas amazônicos projetado no parentesco pela filiação. A
mesma tensão está, sem duvida, presente na Bolívia a partir de reivindicações que
propõem defender a comunidade andina ou a autonomia indígena das terras baixas
contra o Estado, tal como chegava ao processo constituinte em algumas vozes
indígenas.
Outra posição no mesmo debate é apresentada por Raquel Gutierrez Aguilar,
também participante do Grupo Comuna, ex-companheira de García Linera e, como ele,
presa pela participação no Ejército Guerrillero Tupak Katari (EGTK). Em seu livro
sobre o período 2000-2005 e a chegada dos movimentos ao governo, Gutierrez escreve
sobre como “as ações de levantamento e mobilização na Bolívia abriram novas
perspectivas para produzir e pensar o convívio social e as possibilidades „outras‟ de sua
auto-regulação”. Dialogando com a experiência do processo boliviano, ressalta a
existência de duas fraturas sociais: aquela entre os que trabalham e os que vivem do
trabalho alheio; e aquela outra entre os que governam e decidem e os que obedecem e
padecem as decisões de outros. Essa autora participante do processo boliviano
critica a idéia do Estado como síntese ilusória de um suposto interesse geral, que
procura ser deslocado como lugar privilegiado do político. Citando Pablo Dávalos
(2006), a partir da experiência de participação do movimento indígena no governo de
Equador, Raquel Gutiérrez faz referência aos governos progressistas na região como
“triunfos que mascaram derrotas”.
Raquel Gutiérrez atribui aos governos progressistas o “declive da capacidade
coletiva de intervir no assunto público”, e critica que os mesmos “reforcem instituições
o paradoxo de pensar um Estado de um novo tipo, baseado no poder aymara que levou García Linera e
Morales ao poder, quando o conceito de Estado está ausente entre os aymaras (2010:272).
25
colapsadas e reeditem relações de mando que não têm nada que ver com o horizontal, o
autônomo ou em forma de assembléia, reinstalando o monopólio da decisão política
anteriormente em xeque” (:43-45). Entretanto, sua posição não é a da guerra contra o
Estado; antes ressalta que a experiência da chegada ao governo por parte do MAS “não
permite concluir de forma contundente que sempre a ocupação do governo ou do Estado
por algum grupo da população mobilizada seja contraproducente e freie a luta pela
emancipação”. Sua proposta consiste, pelo contrário, “na procura de emancipação como
ação criativa, para coletivamente estabilizar um jeito de regulação social por fora,
contra e além da ordem social imposta pela produção capitalista e pelo Estado liberal”
(:46). Entre o Estado e o Contra-Estado, sua posição é a de Para além do Estado. E
encontra também ressonância especialmente na Guerra da Água de 2000 e nos
bloqueios do altiplano aymara em defesa da autonomia local.
Na posição de Raquel Gutiérrez, o Estado passa a ser irrelevante, mais do que
um objetivo a ser ocupado, destruído ou conjurado. Numa nota de rodapé, afirma nesse
sentido que não se compromete com nenhuma defesa da “propriedade estatal da
riqueza”, mas que também não a rejeita. E, ainda que a luta boliviana constitua o
exemplo mais exitoso contra o Capital e contra o Estado na América Latina, pensa que a
forma de avançar para além do Capital e do Estado, ainda está pendente (:361). Sua
posição dialoga com o trabalho de John Holloway e sua proposta de “mudar o mundo
sem a tomada do poder”, que Raquel Gutierrez reformula para fins argumentativos
como: “a tomada do poder não é condição, nem necessária nem suficiente, para mudar o
mundo” e, “em termos bolivianos”, formula como “da estratégia de tomada do poder de
corte revolucionário clássico, ou de sua versão leve de ocupação do aparelho de governo
mediante eleições em meio ao horizonte de uma próxima Assembléia Constituinte, não
se deriva de forma direta a emancipação social” (trad. nossa).
Raquel Gutierrez cita um artigo em co-autoria com García Linera e Luis Tapia,
de 2000, em que escreviam sobre um “novo sentido da soberania social anteriormente
depositada no Estado. O comum, o coletivo não é mais pertinente ao Estado, que tem se
mostrado como uma forma de propriedade privada dos funcionários governamentais”. E
“ficam de duas novas posições de longo alcance, dois grandes eixos da multidão em
ação: a autogestão político-econômica e a comunidade ou ayllu amplificado” (:97 trad.
nossa). A mudança nas posições de García Linera, parece-me, não deve ser lida como
um contradição. Seus posicionamentos, assim como as idéias do Grupo Comuna
tomadas em conjunto (somando também as posições mais intermediárias de Luis Tapia
26
e Oscar Vega) devem ser lidas como fases da exploração política que encontramos em
um grupo de intelectuais e na política boliviana. A realidade política para os
movimentos intelectuais de esquerda desde 2006 seria institucional, como cenário de
reflexão, quando não de participação direta. Embora a comunidade continuasse sempre
presente, como exterioridade que procura se incluir para configurar um novo Estado,
apesar de a relação entre interioridade e exterioridade nunca deixar de ser problemática.
A relação tensa entre comunidade e Estado irá aparecer como pano de fundo de
diversas discussões no processo constituinte, e cabe se perguntar se a resolução que
configurou um novo código estatal significaria a cooptação da comunidade por parte do
Estado ou a transformação do Estado por parte da comunidade. Deleuze e Guattari são
úteis para pensar esse cenário, ainda que algumas leituras parecessem associá-los apenas
com o contra-Estado. Em Mil Platôs (2000) escreveram “Um fluxo molecular foge,
primeiro minúsculo, mas cada vez menos atribuível... Entretanto, o contrário também é
verdadeiro: as fugas e os movimentos moleculares não seriam nada se logo não
voltassem a passar pelas grandes organizações molares, e não modificassem seus
segmentos, suas distribuições binárias de sexos, de classe, de partidos. A Assembléia
Constituinte abriria novos cenários de articulações diversas, além de uma defesa do
comunitário por parte do MAS contra o Estado; surgiriam críticas minoritárias das
feministas ao machismo e à opressão da comunidade; dissidências indianistas ou de
setores de classe média contra posições majoritárias do MAS; além da posição do
Estado como defensor da comunidade. Os sindicatos, o partido, as bancadas, podiam
fazer parte de um fluxo desmultiplicado e disperso contra o Estado, podiam ser a
macropolítica de fases e sistemas de Estado, e podiam ser a proposta de um novo
Estado, molar, mas pluralista e comunitário.
É preciso considerado isso para dar conta da chegada dos camponeses e
indígenas ao Estado. Fato político que é contestado por quem dizia que aqueles que
chegaram não são indígenas ou que os indígenas não chegaram. Nesta etnografia,
trataremos dessa chegada e presença do Estado, cujo sentido não é fácil de determinar e
que não resume todas as formas de participação política da atualidade boliviana, mas
que negá-la seria uma retomada da clássica operação de atribuir ou negar certas
possibilidades ao índio. Negar a possibilidade de ser Estado lembra a atitude contrária,
na origem da antropologia e ainda depois, quando as populações indígenas eram
definidas a partir da carência e da falta, como se não pudesse se tratar de uma ordem
27
social positivamente construída por sociedades não em forma de Estado, como se os
problemas fossem os mesmos em todas as sociedades.
Negar a presença indígena no Estado, ainda que não fosse da forma que alguns
tivessem imaginado, resulta também semelhante aos argumentos que afirmam que para
ser indígena é preciso não ter tido contato com a sociedade abrangente. O inédito caráter
majoritário dos indígenas na Bolívia, expressado no voto em Evo Morales, permitiu que
nesse país os indígenas procurem resolver seus problemas a partir do governo do Estado
e pelo caminho da Assembléia Constituinte; caminhos que em outros contextos só
foram vias para reforçar a exclusão. Para alguns, inexorabilidade; para outros, renúncia
ao projeto inicial; fatalidade para vários e também caminho estratégico; o controle do
Estado chegava junto ao desejo de descolonização e de pensar um Estado não moderno,
não homogeneizador, não republicano, não excludente, nem centralizado, o que
significava em algum ponto pensar um Estado que fosse também não Estado.
3 Estado, cultura e diferença Plurinacional.
O Estudo antropológico do Estado tem uma longa trajetória no que diz respeito
às políticas estatais destinadas a povos indígenas, quando não do contato “civilizatório”
com populações distanciadas (cf. SOUZA LIMA, 1995). Mas o que realmente leva a
antropologia ao estudo do Estado é, no meu entender, a desaparição de barreiras
analíticas entre um mundo que seria mitológico e mágico e outro que se guiaria por uma
lógica racional de um mundo desencantado. Era uma conseqüência gica quando se
rompia a linha teleológica desde o não Estado ao Estado, e quando se assumiu a riqueza
dos povos que positivamente escolheram conjurar a formação do Estado. Este
pressuposto é cada vez mais aceito no pensamento acadêmico ocidental, apesar da
resistência justamente em áreas vinculadas aos afazeres do Estado; é também uma
realidade na política boliviana, o que pode ser verificado no avanço dos direitos
reconhecidos aos povos indígenas, na queda do paradigma da tutela e no afloramento da
cultura indígena também em esferas estatais. Se evitamos as desqualificações da idéia
de Estado indígena e do Plurinacional Comunitário que alguns se apressam em
considerar falácias e mera propaganda política, podemos encontrar na Bolívia um novo
cenário para a questão da crítica indígena ao Estado moderno e liberal
26
.
26
Eduardo Viveiros de Castro (1999) propõe uma disjuntiva entre uma antropologia que estuda o ponto
de vista indígena, inclusive sobre assuntos como contato e Estado; e uma antropologia que estuda os
28
A discussão sobre o lugar dos povos indígenas e camponeses em relação à
construção da nação e da república nos Andes faz parte de um importante debate
protagonizado pelos etno-historiadores interessados na região andina (cf. MALLON,
1995; MÉNDEZ, 2005). Presentes como mestiços no discurso homogeneizante da
nação boliviana, os camponeses eram ao mesmo tempo privados de suas terras e de seus
modos comunitários de sociedade. Por outro lado, eram convocados a lutar nas guerras
da independência, ou contra os países vizinhos, ainda que fossem excluídos na hora de
administrar o país que tinham defendido. Em Estado boliviano y ayllu andino (1981),
Tristan Platt escreve sobre os conflitos entre os membros da comunidade, o Estado
Oligárquico e também o Estado da Revolução de 52, que significava, em termos de
autonomia e garantias da propriedade comunitária, um retrocesso em relação ao “pacto
de reciprocidade” dos primeiros anos da colônia. Escreve que, na luta contra a “cultura
alternativa” da maioria “nativa”, “partindo de uma postura de benevolência paterna, as
atitudes criollas
27
diante dos índios se transformariam em desprezo autoritário quando
estes se mostravam resistentes a participar de um “projeto nacional”, cuja realização
pressupunha a destruição de suas próprias organizações tradicionais” (:17 trad. nossa).
A chegada dos camponeses, indígenas e seus aliados ao Estado, em 2006,
permite repensar a temática. Trata-se da procura por dar conta da teoria dos indígenas
bolivianos sobre o Estado, sem dar crédito, assim, aos especialistas sobre Estado que
afirmavam que o Estado Plurinacional não teria efeitos na realidade boliviana de tipo
“prático”, “verdadeiro”, ou que, ao contrário, teria sim efeitos, mas ameaçando a
república, ou inaugurando uma situação de “caos e anarquia” com riscos para o “Estado
de Direito”. Não quer dizer que se ignore o retrocesso da comunidade, dados os
combates sofridos ao longo de tantos anos; mas trata-se mais de identificar elementos
que, a partir da Bolívia, permitam pensar a crítica ao Estado Moderno e à realidade de
diversas formas de ver o mundo, também presentes na disputa pela transformação do
Estado.
A crítica ao Estado liberal Republicano não é exclusiva da Bolívia, e os
processos que acompanharam a chegada dos indígenas ao Estado boliviano podem se
relacionar com a emergência geral da identificação étnica na América Latina, que veio
indígenas desde o ponto de vista do Estado brasileiro. A chegada dos indígenas ao Estado boliviano abre
uma nova possibilidade para a antropologia simétrica e do ponto de vista indígena, que é crítica ao
Estado e, ao mesmo tempo, estatal.
27
Na América Hispánica o termo criollo refere aos filhos de espanhóis nascidos na América. Refere à
sociedade mestiça ou colonial.
29
acompanhada também da busca pela autonomia e autogestão, com a proposta de Estado
pluralista. A chegada ao Estado de formas não modernas, nem liberais republicanas na
Bolívia, consiste na valorização do conhecimento tradicional, relacional, não
dicotômico, nem individualista, que se acompanhado de inúmeros doutorados
Honoris Causa para Evo Morales, assim como do acolhimento internacional da
mensagem de seu chanceler aymara David Choquehuanca, em foros internacionais,
onde fala de valores e saberes não modernos como o poder sagrado da folha de coca e a
filosofia do Viver Bem e o respeito à Pachamama. Tanto como a Constituição de
Equador de 2008, que também declara o Estado como Plurinacional e reconhece direitos
da natureza, a nova Constituição boliviana irá introduzir princípios e valores andinos,
além de abraçar o pluralismo em distintos níveis, reconhecer o direito ao autogoverno e
incentivar o desenvolvimento dos conhecimentos tradicionais desses povos.
Uma das respostas locais à introdução desses elementos foi a ridicularizarão
28
.
Outra reação consistia em falar de hipocrisia e impostura, ou considerar mera retórica
em contradição com o marco da continuidade do capitalismo no governo do MAS
29
. O
bom recebimento dessas idéias em âmbitos internacionais ou de ONGs não faz mais do
que alimentar críticas nacionalistas, tanto a setores identificados como mestiços, quanto
à suposta folclorização e perda de clareza na defesa da soberania nacional. Outra
posição no debate intelectual da Bolívia consistia em considerar a chegada da
Pachamama ao Estado como passos iniciais no caminho da descolonização, a partir da
disputa política por uma ordem alternativa que permitisse pensar outro Estado e outra
vida. Nesse sentido, a possibilidade de nos depararmos com alguma coisa nova na
Bolívia parece ser ratificada pelos piores inimigos dos indígenas no poder, que
descreviam as propostas de um Estado Plurinacional e de autonomia indígena como
ameaças às garantias constitucionais, denunciando selvageria e falta de civilidade.
A situação que encontramos na Bolívia merece um comentário acerca dos
trabalhos citados linhas antes, segundo os quais o Estado aparecia como aberto a um
28
Sinclair Thompson (2010) trata da reação à aparição pública de Katari, em março de 1781, quando as
elites e os oficiais espanhóis começaram a depreciá-lo em termos monstruosos e burlescos. Frey Borda,
o Frey Domênico cativo no campo rebelde de El Alto, escreveu que Katari parecia “muito ridículocomo
chefe político e militar, e descrevia seus costumes religiosos como grotescos e cômicos.
29
Pablo Stefanoni (2010) faz uma crítica ao discurso da descolonização a partir da observação de uma
realidade de uso de celulares, grande quantidade de convertidos ao pentecostalismo e a música disco na
vida dos camponeses e indígenas. Nessa análise, porém, não concede status de realidade ao ayllu e aos
impulsos de descolonização, que reduz a um mero discurso intelectual. Esse discurso não teria status de
existência comparável ao que têm as letras das músicas que o autor da matéria escutava numa viagem
de microônibus em El Alto. No último capítulo da tese, iremos voltar a esse debate, com a crítica de
Stefanoni aos que chama de “pachamámicos”.
30
estudo culturalista, que desnaturalizasse os princípios sobre os quais se constitui, como
a antropologia fez tradicionalmente longe do Estado moderno. Na Bolívia, encontramos
uma situação especial porque, além de nos depararmos com uma cultura de Estado
moderna e neoliberal, agora nos encontramos no primeiro plano da atualidade estatal, o
que tradicionalmente se considera cultura não estatal. O desafio é, então, realizar um
estudo que ao mesmo tempo aborde o Estado como cultura, e como “cultura”, no
sentido do que Manuela Carneiro da Cunha chamou “cultura entre aspas”
30
.
Está claro que no Estado boliviano nos encontramos com os dois níveis
misturados de forma muito explícita que de alguma forma os dois níveis nunca vêm
separados com uma cultura estatal que recentemente incorpora “cultura”, como
resultado da chegada ao governo de quem tem formas de ver o mundo, práticas e idéias,
normalmente entendidas como “culturais” no sentido estrito, do qual esta tese procura
escapar, e que reaparece constantemente nas críticas políticas ao governo de Evo
Morales. Esse mesmo ponto de vista poderia, no âmbito acadêmico, considerar uma
etnografia do Estado na Bolívia como um caso “folk” de Estado. O desafio é fugir dessa
possibilidade, talvez presente em trabalhos que de um modo um tanto superficial
ocupam-se de achar “rituais” ou “mitos” em contextos não indígenas. Trata-se, pelo
contrário, de refletir processos que se vinculam ao caráter gico ou mitológico de
qualquer formação de Estado, em particular as que se inspiram na forma republicana
liberal que a proposta do MAS na Assembléia procurava reavaliar. Procuraremos
entender também a emergência da “cultura” e das formas alternativas que os indígenas
procuram politizar, dando poder àquilo tradicionalmente reduzido ao âmbito da
“cultura”.
Uma visão da política contemporânea na qual a questão da cultura e das
categorias raciais e étnicas ocupa um lugar privilegiado é encontrada em autores
associados ao “pensamento descolonial”, que podem ser mencionados como movimento
paralelo aos processos políticos latino-americanos, nos quais de fato esses autores se
inspiram e baseiam suas pesquisas. Alguns desses autores o fazem de forma um pouco
reativa ao marxismo e às analises classistas; outros apenas assinalando a importância da
raça e da etnia para o estabelecimento da colonialidade. Provenientes de distintas
disciplinas, coincidem em um interesse comum pelo mundo colonial hispano-americano
30
Cunha (2009:372) escreve que “falar sobre a ‘invenção da cultura’ não é falar sobre cultura, e sim
sobre ‘cultura’, o metadiscurso reflexivo sobre a cultura. *...+ a coexistência de ‘cultura’ (como recurso e
como arma para afirmar identidade, dignidade e poder diante de Estados nacionais ou da comunidade
internacional) e cultura (aquela ‘rede invisível na qual estamos suspensos’) gera efeitos específicos”.
31
e os recentes Estados Plurinacionais. Antes, tinham traçado vínculos com o pensamento
pós-colonial da Índia e da África, com base na academia norte-americana e procurado
alertar sobre os efeitos obscuros da modernidade
31
.
Entendida no sentido político que os bolivianos introduziam no Estado, a
pergunta que a “cultura” traz ao debate sobre o processo constituinte boliviano é sobre
em que medida os novos ocupantes do Estado se encarregariam do aparato institucional
e das tarefas de governo de uma forma diferente. Tratava-se, para eles, de dar voz
estatal ao que antes ficava limitado ao comunitário, tradicionalista ou folclórico. E
tratava-se de dar autodeterminação a humanos e não humanos que até então não a
tinham, no sentido do que autores da antropologia contemporânea e a atual discussão
sobre direitos de povos indígenas propõem (cf. a idéia de Parlamento das coisas em
LATOUR, 1994; e também CLAVERO, 2008; CHIVI VARGAS, 2006).
Trata-se da politização da “cultura” de forma paralela a um empoderamento da
própria comunidade, com o reconhecimento de suas instituições no âmbito do Estado,
incluído o reconhecimento de suas instâncias de governo comunitário como instâncias
de Estado, às quais se transferem recursos e competências, antes apenas destinados a
governos municipais. É verdade que muitos municípios na Bolívia eram controlados
por sindicatos camponeses que combinavam a lógica liberal com a comunitária; e
também que muitas vezes a mudança de nomenclatura pode não significar uma
diferença mais profunda. Mas o que interessa aqui é que as propostas inspiradas na
cosmologia tradicional e no empoderamento dos povos e nações indígenas procuram
pensar uma ordem estatal alternativa. Tratava-se de politizar a Pachamama, que era
considerada inclusive sujeito de direitos políticos, tanto quanto os humanos, em
algumas discussões. Quanto ao estudo do Estado, podemos considerar alguns
31
Cf. Escobar (2003); Castro-Gómez e Grosfoguel (eds., 2007); Lander (2000); Quijano (2005), Walsh
(2009); Dussel (1996, 2008); Mignolo (2003, 2007 a e b). Mignolo (2007) é um desses autores, e
assinalava “os eventos do Equador nos últimos dez anos, assim como aqueles da Bolívia que culminaram
com a eleição de Evo Morales presidente, são hoje alguns dos mais visíveis signos da opção descolonial,
embora formas descoloniais e pensamento descolonial tenham aparecido nos Andes e sul do México
pelos quinhentos” (:10 trad. nossa). O Estado Plurinacional que está bem avançado na Bolívia e no
Equador é uma das conseqüências de identidade na política, quebrando a teoria política na qual o
Estado moderno e mono-tópico foi fundado e perpetuado, sob a ilusão de que era neutro, objetivo e
“democrático”. Mignolo define a opção descolonial desta maneira: “descolonização (uma palavra muito
usada nos Andes) significa que o Estado não está mais nas mãos da elite local (que acabou em
‘colonialismo interno’ na América do Sul durante o século XIX, e na Ásia e África depois da Segunda
Guerra Mundial). Descolonização, ou melhor, descolonialidade, significa ao mesmo tempo: a)
desvendando a lógica da colonialidade e da reprodução da matriz colonial de poder (que
evidentemente, significa economia capitalista); e b) se desfazer dos efeitos totalitários das categorias
ocidentais de pensamento e subjetividade. (e.g., o bem sucedido, sujeito progressista, prisioneiro cego
do consumismo)” (2007b:17 trad. nossa).
32
comentários de Geertz, em seu estudo do Estado Teatro de Bali no século XIX. A
tentativa, no debate boliviano, de despolitizar a proposta do governo e aliados,
procurando reduzi-la a nada mais que “cultura”, pode ser pensada à luz do estudo
“culturalista” de Geertz sobre o caso histórico de um Estado em Bali e da sua crítica à
idéia ocidental de governo na qual “o simbólico” aparece como acessório
32
.
A presença de indígenas e camponeses, que alguns entendem como inédita e
restauradora de tempos anteriores à conquista espanhola, visibilidade à pergunta
sobre a possibilidade da presença do externo no Estado, e também sobre a viabilidade
da institucionalização do comunitário e do indígena sem que sua natureza se desvirtue.
É uma questão que se colocava para os próprios indígenas na Bolívia, às vezes no
âmbito do Estado, outras vezes em suas margens, dentre aliados próximos que tinham
marchado junto deles nos anos anteriores e que assumiriam de fato uma posição pelo
Estado. Nesta tese, procura-se explorar se era possível constitucionalizar a diferença; o
comunitário; o que os indígenas levavam a um Estado até agora fechado aos povos
indígenas; a “cultura” politizada. Muitos apostavam nisso levando propostas à
Assembléia Constituinte, por exemplo, pela a igualdade de hierarquias entre a justiça
comunitária e a do direito positivo liberal; ou o reconhecimento oficial de formas
políticas de comando e tomada de decisões baseadas no consenso, na assembléia e na
rotatividade de autoridades. Já alguns trabalhos (cf. ARNOLD e YAPITA, 2000;
SPEDDING 1996) têm apontado a dificuldade de expressão dessas gicas através do
código estatal da lei escrita. O risco era aquele associado ao multiculturalismo como
aceitação do diverso, que o reconhece sempre que se mantiver subordinado e sem
aceitação plena de direitos políticos e territoriais.
Tratava-se da questão da descolonização como objetivo presente nos discursos
governamentais. Descolonização significava pensar um Estado diferente. Em seu livro
Etnicidad y Clase, Regalsky escreve sobre o problema da diferença indígena,
expressada pela oralidade, quando se encontra com a “violência do logos”, da
institucionalidade escolar escriturária”. O educativo é um dos âmbitos onde as
32
Geertz critica uma linha reducionista que considera a simbologia política, a parafernália e a cerimônia
como simples formas de infundir terror e mistificações que permitem às elites extrair excedentes,
ideologia política e hipocrisia de classe. Geertz defende uma poética, mais que uma mecânica, do poder,
e uma “aproximação semiótica” do estudo dos elementos habitualmente considerados folcloricos ou
“alguma coisa que não atua e apenas esconde, exagera ou moraliza” (:218-219). No caso do Estado
Negara esses componentes, tão reais e fortes como os que tradicionalmente se associam à idéia de
governo; é de suas energias imaginativas e de sua capacidade semiótica que o Estado extrai sua força
para fazer com que a desigualdade cative (:220 trad. nossa).
33
comunidades camponesas da Bolívia têm procurado construir sua autonomia. Junto a
todo um conjunto de relações econômicas e políticas de dominação, Regalsky estuda o
caso da luta da comunidade cochabambina de Raqaypampa por ter seus próprios
professores, que ensinem em língua quéchua, e se pergunta “até que ponto pode o
espaço da escola compatibilizar a lógica logocêntrica do Estado com a lógica de
textualidade oral da comunidade, que é o que a Reforma Educativa de 1994 propõe em
teoria?” (:168). Silvia Rivera nota também, sobre o Estado colonial e monocultural, que
“desde 1532, um dos fundamentos desse domínio manifestou-se no modo como as
sociedades nativas usaram e foram transformadas pela escrita” (1993 trad. nossa)
33
.
A autonomia da qual se fala na Bolívia recupera disputas comunitárias de
séculos, quanto ao que se considera na Bolívia “autonomia de fato”, que não precisou
ser incorporada à legislação do Estado para se desenvolver. De alguma forma, agora era
o momento de pensar na possibilidade de um Estado a favor da Sociedade, que desse
lugar a uma legislação não mais hostil às comunidades. O trabalho de campo realizado
para a tese nos colocou frente a uma temática que se vincula ao encontro entre
comunidade e Estado, mas do ponto de observação da entrada no Estado e na proposta
de reforma constitucional pela Assembléia Constituinte, onde as comunidades
confrontavam agora a lei do Estado. Era a partir de constituintes eleitos em todo o país,
e dos debates intelectuais que constituintes indígenas ou urbanos levavam à assembléia,
que o ayllu e as formas comunitárias não estatais se faziam presentes. E era justamente
no âmbito do Estado que a presença indígena resultava intolerável. Se estiverem no
Estado, não são indígenas: era o raciocínio. Como é freqüente em toda a América
Latina, quando os povos indígenas reclamam terras, o governo do MAS e o presidente
também viam seu caráter indígena questionado. Por isso, questionava-se o resultado do
Censo nacional de 2001, em que 62% da população boliviana respondeu
afirmativamente pertencer a alguma etnia indígena
34
.
33
Antes de 2006, Silvia Rivera escrevia: “ali onde um cabildo, uma assembléia sindical ou um paylamintu
de ayllu deliberaram em sua própria língua e levavam em conta a silenciosa pressão e opinião das
mulheres, hoje se implantará um município, com vereadores aos que se deve dirigir por escrito e
organizações territoriais de base que, para sobreviver, terão (novamente) de aprender a tecnologia do
‘poder da escrita’ e da política ilustrada que durante séculos os têm excluído do poder”.
34
Segundo o Censo de 2001, do Instituto Nacional de Estatísticas da Bolívia, a população indígena do
país é de 62,0%, e a seguinte proporção de pessoas que declararam pertencer a alguma etnia por
departamento: La Paz 77,5%, Chuquisaca 65,6%, Cochabamba 74,4%, Oruro 73,9%, Poto83,9%, Tarija
19,7%, Santa Cruz 37,5%, Beni 32,8%, Pando 16,2%. Com algumas exceções, as porcentagens são
semelhantes à porcentagem de votos obtidos por Evo Morales quando foi submetido ao referendum
revocatório em 2008: total nacional 67,41%, La Paz 83,2%, Chuquisaca 53,8%, Cochabamba 70,9%,
Oruro 82,9%, Potosí 84,7%, Tarija 49,8%, Santa Cruz 40,7%, Beni 43,7%, Pando 52,5%.
34
O caráter majoritário da população indígena e do voto no MAS, atravessando
fronteiras rurais e chegando às cidades onde também parece existir uma fronteira que
apenas pode ser atravessada deixando de lado a identificação étnica, acompanha o
surgimento de um movimento indígena que se assume como majoritário e, por tanto,
legítimo ocupante do governo. García Linera falou várias vezes de “uma maioria
demográfica que se transformou em maioria política”, e o próprio Evo Morales lia sua
chegada ao governo como “retorno” depois de séculos de exclusão colonial. Mas a
oposição na Assembléia ou na imprensa nacional observava que no Censo não se tinha
incluído a categoria “mestiço” e mostrava uma pesquisa do PNUD que, apesar de se
basear numa amostra pequena de casos, era utilizada para negar o caráter indígena da
Bolívia, mostrando que o 68% dos entrevistados tinha se declarado “mestiço”, e20%
indígena (ver La Prensa 3/3/2009).
O jornalista e historiador Carlos Mesa, presidente em exercício entre 2003 e
2005, qualificava o país como “nação culturalmente mestiça, ainda que não uniforme” e
escreveu que “o exemplo mais eloqüente dessa mestiçagem é o presidente Morales
Ayma, começando por seus sobrenomes”, e que “a Bolívia não é nem nunca será uma
nação melhor em cima de uma falsa „descolonização‟”
35
. Pela “esquerda nacional”,
Andrés Soliz Rada, primeiro Ministro de Hidrocarbonetos de Evo Morales e autor do
decreto de nacionalização, era uma das penas mais afiadas e bem fundamentadas contra
a proposta do Estado Plurinacional, que via como potencial debilitador da defesa dos
recursos naturais. Escrevia que “os 330 anos de colonização hispânica e os 180 anos de
vida republicana geraram uma mestiçagem que coloca em xeque aos dogmáticos. Uma
pesquisa sociológica recente não conseguiu diferenciar os mestiços dos indígenas
urbanos, que agora são a maioria do país”
36
. Como veremos, todavia, por trás da defesa
nacionalista dos recursos naturais, parecia ser necessário conceber uma identidade
boliviana comum. Com a proposta de Estado Plurinacional Comunitário o MAS parecia
poder fazer essa defesa nacionalista acompanhada de uma idéia de povo boliviano
alternativa àquela da mestiçagem.
35
Coluna no jornal La Razón, domingo, 17 de janeiro de 2010. Disponível em: http://www.la-
razon.com/versiones/20100117_006975/C_246.htm
36
Agrega: “depois de 1952, a migração de quéchuas e aymaras alcançou todo o país, de forma que não
existe um lugar da geografia nacional em que não se tivesse produzido uma simbiose cultural
irreversível. Hoje em dia, a primeira língua das crianças indígenas não é o quéchua, o aymara ou o
guarani, senão o castelhano, que unifica ao país e vincula a Bolívia à América Latina” (SOLIZ RADA, s/d).
35
Silvia Rivera Cusicanqui escreve sobre o caráter ambivalente da mestiçagem;
“positiva e renovada”, para alguns; “um entrave que impede a ocidentalização do país
ou a emergência libertadora do índio”, para outros. A autora define em um de seus
trabalhos a “mestiçagem colonial andina” como marco político determinado pela
conquista que deu lugar às três identidades estruturantes da sociedade boliviana até
hoje: índio, cholo (ou mestiço) e q´ara
37
. Rivera fala de uma polaridade básica entre
culturas nativas e cultura ocidental, e da “ambigüidade e insegurança discursiva” do
termo “cholo” ou “mestiço” na região andina. Cita também um debate de finais dos
anos 70, em que Ignácio Mendoza, que seria também constituinte pelo MAS em 2006 e
secretário da Assembléia, gerou um grande escândalo ao propor o conceito da
“cholificação” a jovens aymara que, inspirados pela obra de Reynaga, viam na
mestiçagem um corte anti-revolucionário, oposto ao indígena (1993:55).
O precursor do indianismo aymara, Fausto Reynaga, falava da “Cholagem
branco-mestiça que governa desde 1825”, e, na tese escrita para as federações sindicais
do campo em 1970, apontava: “no Kollasuyo dos Inkas, desde 1825, há duas Bolívias: a
Bolívia européia e Bolívia índia. A Bolívia índia tem 4 milhões de habitantes, e meio
milhão, a Bolívia européia. No entanto, esta é uma nação opressora; escraviza e explora
à Nação índia. A Nação índia não tem Estado. O Estado é da Bolívia mestiça; e assume
a autoridade das duas Bolívias. Personifica, sem seu consentimento, quatro milhões de
índios. O Estado boliviano usurpa a vontade da nação índia”. Felipe Quispe, el
Mallku”, viria refrescar na política boliviana recente a imagem das “duas Bolívias” e,
quando liderava o levantamento dos movimentos sociais contra o Estado, em 2001,
declarou: “a mestiçagem me dá nojo”, pedindo aos índios “que pensem com suas
próprias cabeças e não com idéias emprestadas que vêm do pensamento criollo-mestiço
e de sua fracassada construção do Estado-Nação” (SANJINÉS, 2002:48). A visão que
dividia em dois dos indígenas frente aos brancos de gravata seria uma importante
imagem, onipresente também na Assembléia Constituinte em 2006-2007.
A partir das reivindicações do indianismo aymara, entendem-se também várias
modificações constitucionais impulsionadas especialmente pelas organizações indígenas
do Pacto de Unidade. Com base também na política aymara do altiplano boliviano,
Pablo Mamani e os editores da revista Willka escreviam: “para nós [...] a mestiçagem
não foi solução para o convívio democrático dos povos índios, ainda que nas décadas de
37
Branco, europeu, literalmente “pelado”.
36
60 e 70 muitos jovens índios tenham apostado em ser mestiços, assimilando
aceleradamente a cultura da “alta sociedade”, mas sem poder se constituir como
cidadãos bolivianos, continuando a ocupar posições subalternas, inferiores, em
diferentes espaços sociais. [...] o indígena, ou índio, [...] não o compreendemos segundo
o que construiu a antropologia colonialista, que o indígena é aquele ser que vive nas
condições mais miseráveis e muito distante das cidades, atrás das montanhas ou dos
pampas. Certamente, vivemos nesses lugares também. [...] inclusive muitos indígenas
viajam em avião de último modelo, temos celulares, computadores, e damos
conferências em distintas universidades [...]” (2007:230 trad. nossa).
Apesar das propostas de “indianização da sociedade”, provenientes também do
indianismo, o reconhecimento da mestiçagem como identidade assumida de forma
estratégica, buscando iludir o racismo, lugar na Bolívia ao reconhecimento do Cholo
e do mestiço como identidade étnica genérica, que não necessariamente implica a perda
total dos princípios comunitários ou indígenas. García Linera referia-se à exclusão
indígena e à tendência à mestiçagem a partir da explicação bourdiana e das categorias
de habitus e campo simbólico. Pablo Regalsky identifica na etnicidade um duplo caráter
que, apesar de ter sido promovido pelo colonialismo, pode se transformar em uma
ferramenta política de resistência (2003:38 trad. nossa). Nesse sentido, Silvia Rivera
diverge com Fredrik Barth, afirmando que, além da etnicidade não depender de “traços
diacríticos” permanentes, para ela a definição de um grupo étnico não necessariamente
vem acompanhada de uma auto-identificação explícita como grupo cultural
diferenciado. Na introdução de seu livro Bircholas, Silvia Rivera propõe que “em
sociedades pós-coloniais como a boliviana, o processo de despojo étnico ou aculturação
imposta (e auto-imposta) vêm criando situações de autogestão que constituem, em si
mesmas, marcas de etnicidade, mas que também evocam a aspiração a uma etnicidade
alheia”
38
.
38
Na Bolívia de hoje, o termo "mestiço" se refere tanto a "cholo" ou "índios aculturados", como aos
"não-indígenas", de cultura ocidental, talvez porque foi entre as áreas urbanas que o "projecto de
mestiçagem" teve maior êxito. No Peru é diferente, como mostra o trabalho de Marisol De La Cadena
(2004), onde o termo "mestiço" é de uso comum entre camponeses próximos dos que na Bolívia
adquiriram mais recentemente uma identificação étnica. No Peru, já nos anos 60, o Estado implementou
um projeto “culturalista” de recuperação das tradições indígenas, de modo que a identificação mestiça
monocultural dos camponeses peruanos não era a reprodução do discurso oficial, em contraste com a
Bolívia. O projeto "culturalista" de recuperação de tradições da comunidade da Bolívia veio da
reivindicação política por fora do Estado, até recentemente. A partir de 2005, aproximadamente, no
entanto, se registra no Peru um reconhecimento de identidade parecido com o da Bolívia. De La Cadena
(2006) percebe, no entanto, o modo como a categoria de "mestiço" é duplamente híbrida e, em alguns
dos seus sentidos, podia significar ser “indígena”.
37
Para Silvia Rivera, a etnicidade do povo boliviano se encontra além dos espaços
da comunidade territorial e do parentesco, alcançando bairros marginais urbanos, a
colheita, os mercados, os cocais yunguenhos e as piquerías cochabambinas, em
“caleidoscópicas e múltiplas etnicidades” como “marca prolongada do colonialismo
interno”, no meio a “registros ocidentais e bagagem cultural nativa”, e com “pluralidade
étnica nos marcos da legislação e das políticas estatais”. Silvia Rivera se refere, dessa
forma, às pessoas protagonistas desta tese e que conformaram o instrumento político
que chegou ao Estado e à Assembléia Constituinte em 2006. O Estado e as instituições
são, assim, apenas uma das situações onde achamos “índios, cholos, mistis, pobres”
que, em uma pesquisa anterior à chegada do MAS ao governo, Rivera via como bases
de “armações clientelistas”, que atavam homens e mulheres do povo a “aparatos
burocráticos”. Silvia Rivera fala de uma terceira república (citando Rossana Barragán),
que nasceu como república chola, entre mimesis e auto-identificação, invocada por todo
populismo moderno da história do país (1993, trad. nossa)
39
.
Em 2006, surge uma novidade, porque vemos o Estado e a maioria da
Assembléia Constituinte serem alcançados por uma estrutura política conformada e
dirigida por esses cholos, indígenas e pobres além de aliados da classe média, não
pouco importantes até então presentes de forma subordinada. então uma nova
fase na relação entre indígenas e Estado, que tem origem na época colonial. Voltando à
pergunta sobre a diferença no Estado, vemos que uma vitória superficial do projeto de
mestiçagem, que na Bolívia é cultural, econômico e identitário (“civilizatório”), não
impede a persistência do comunitário na sociedade. A pergunta que fica em aberto para
ser desenvolvida nesta tese, então, é se o comunitário subsiste ainda na
institucionalidade moderna do Estado.
Depois de 2006, o cenário que se abre é o da ocupação inédita do “poder da
escrita” por parte do povo. Não seria fácil avançar para o horizonte da descolonização
em um contexto no qual a lei nunca foi escrita pelas comunidades. Bartolomé Clavero
escreve que “acontece que na América Latina a doutrina jurídica é ainda, quase sem
mais, ladina, criolla, mestiça, ou como quer que se chame o caracteristicamente não
39
No artigo “La raíz: colonizadores y colonizados” (1993), Silvia Rivera escreve sobre a aparição, na
década de 90, de forças políticas populares “cholas”, como CONDEPA e UCS (do dono de uma cervejaria
e um popular apresentador de rádio e televisão) que também recorrem à simbologia indígena andina.
continuidades entre esse processo e a chegada do MAS, no sentido de voto em candidatos que não
são da elite, ainda que não houvesse nesses partidos relação com as organizações sociais que deram
origem ao MAS. A primeira entrada de atores políticos populares na Bolívia, não entanto, ocorre com
o MNR.
38
indígena, nem afro-americano”. Essa é uma preocupação que algumas organizações
sociais e componentes do MAS levaram para a Assembléia Constituinte e que, veremos,
obtém uma solução original. Para estender este processo, contudo, digamos novamente
que é preciso aceitar a premissa da possibilidade de estatalidadeindígena, que é o
ensaio que encontramos na Bolívia a partir da estratégia adotada pelos camponeses,
indígenas, pobres urbanos e outros aliados. Contra essa idéia, não estão apenas os
setores conservadores que negavam o caráter indígena do MAS. Também havia crítica
de setores indianistas que viam Evo Morales controlado por um “entorno brancóide”
que impediria um governo verdadeiramente indígena. Também havia crítica de setores
da esquerda não indígena que partiam da idéia de triunfo da mestiçagem na superação
da identidade indígena, considerada, então, falsa. A política, as ciências sociais, o
jornalismo e vários setores sociais (urbanos) criticavam um suposto “essencialismo”,
“invenção de tradição”, “populismo”, que seriam suficientes para negar o caráter
indígena dos que assim se reconheciam.
A pobreza da legislação estatal e os problemas em fazer uma descolonização a
partir de leis, não obstante, contrastava com a riqueza do comunitário, ausente na lei,
mas presente na vida social do campo e da cidade. O processo de implantação do
“pacote cultural da cidadania”, no dizer de Silvia Rivera, não foi linear, nem completo,
e esteve acompanhado de “enigmáticos retrocessos nos quais voltavam a crescer, com
todo seu frescor, os protestos culturais indígenas, as tácticas de assédio e a raivosa
exterioridade do trabalhador mineiro frente aos códigos culturais capitalistas”. Sua
explicação é que “a cidadanização não conseguiu transformar, realmente, as
confrontações de casta em confrontações de classe, posto que entre ambos os horizontes
se produziu uma articulação colonial-civilizatória que permitiu a precária introjeção
coerciva do horizonte cultural da cidadania no coração e no corpo dos trabalhadores
índios-mestiços” (1993:75). A presença do ayllu nos movimentos sociais recentes, nos
sindicatos e entre os mineiros, tal como o entende Raul Prada, pode ser agregada no
mesmo sentido.
Fechando um livro de contribuições sobre a colonialidade do poder, Aníbal
Quijano (2005), que também é um dos autores que procuram re-centralizar o debate na
questão racial e colonial, demanda “deixar de ser o que não somos”, em relação ao
“espelho eurocêntrico onde nossa imagem está sempre, necessariamente, distorcida”
(2005:274). O caso boliviano abre uma série de perguntas a respeito, ainda sobre o tema
da possibilidade da diferença no Estado: trata-se de conquistar as velhas instituições?
39
Trata-se de criar um novo direito de Estado? É possível a descolonização do Estado? O
Estado Plurinacional poderá reverter o sentido do vetor da mestiçagem? Podemos falar
de descolonização desde uma perspectiva mestiça ou não indígena? O processo
constituinte boliviano não responde todas estas perguntas, mas avança na exploração de
algumas de suas possibilidades. A certeza é a de que a bandeira da descolonização,
junto à tentativa de autodeterminação, seria parte fundamental da nova proposta do
Estado.
Ficaria em aberto a pergunta sobre até que ponto o projeto político liderado por
Evo Morales deveria ser lido como o ponto chave de uma alternativa aos processos de
individualização, formação do Estado e liberalismo moderno dos últimos dois séculos.
Outros elementos do processo de mudança, as relações com o modelo de “socialismo
do século XXI” e as tensões com o indianismo e as organizações indígenas parecia às
vezes deixar de lado a questão da descolonização e expressar os desejos de mudança em
outros códigos. No processo constituinte, não se trataria apenas da correlação de forças
entre a comunidade e o Estado. Parte das reivindicações que levaram os mestiços ou
pobres a ocupar o Estado seriam atendidas por meio de um aumento da intervenção do
Estado, de um maior desenvolvimento da escrita onde o Estado ainda não tinha
chegado, a partir de uma vontade de soberania nacional representada pelos sindicatos
camponeses em aliança com o exército e procurando deixar para trás o projeto
neoliberal. Então, a diferença e as tradições indígenas ficavam sim reduzidas a
“culturas”, e se tratava de conseguir investimentos para que fosse extraída do sub-solo a
riqueza natural.
Muitos mostrariam as contradições entre o modelo desenvolvimentista e o
cuidado com o meio ambiente, intrínseco ao modelo do “Viver Bem” (“Bem Viver” em
Equador). E defender os recursos naturais também pode fazer parte da descolonização, o
que fica claro quando estudamos o saqueio econômico ao longo da história da Bolívia.
Interessa-me, no entanto, apontar a tensão presente no processo constituinte e no texto
constitucional aprovado, relativos à proposta de ir além do Estado liberal moderno, não
mencionado por parte dos defensores da posição nacionalista, que dão mais ênfase à
questão da soberania econômica. E me interessa também a relação com outro
componente forte do processo constituinte boliviano que é o do desejo de
autodeterminação e autonomia indígena. Em outras palavras, me interessa nesta
etnografia rastrear como distintos elementos da política boliviana se combinam dando
lugar ao novo tempo dos camponeses e indígenas no Estado. Uma das chaves será essa
40
combinação do minoritário e do majoritário como dois elementos centrais, presentes nas
distintas combinações do pensamento político boliviano atual.
Encontramos na Bolívia uma política de povos minoritários, que se cruzam no
avanço internacional da legislação vinculada a povos indígenas, deixando, tempos, a
orientação de “integração ou desaparecimento” para aceitar a livre determinação. Essa
política se expressava na Assembléia Constituinte em propostas de autonomia indígena,
representação parlamentar direta, controle dos recursos naturais nos territórios
indígenas, direitos coletivos e pluralismo jurídico. Por outro lado, há na Bolívia um
aumento da consciência indígena, consciência de seu caráter majoritário, que leva a se
propor ao controle do aparato estatal, sua instrumentalização como meio para solucionar
a pobreza e sua força para garantir a recuperação do controle dos recursos naturais. E o
interessante no processo constituinte é o contágio e conexão de ambas as lutas políticas.
Observa-se, então, que as populações minoritárias das terras baixas ascedem, mediante
alianças, ao poder central do Estado que defende suas propostas; e também que as
maiorias descendentes de quéchua e aymaras começam a perseguir projetos de
autonomia e direitos especiais, em outros países apenas pensáveis para grupos
minoritários. Um discurso de Estado não moderno e não dualista (a respeito das ficções
sobre sociedade e Estado, ou homem e natureza) é produto também da combinação de
um pensamento minoritário, que chega ao Estado na Bolívia graças à sua força eleitoral
majoritária.
O que une ambos os projetos é a identidade indígena cada vez mais adotada por
aqueles que, produtos de processos políticos provenientes do Estado, tinham
aparentemente se transformado em camponeses modernos. Outra coisa que os unifica é
o voto massivo no MAS e em Evo Morales, além da formação do Pacto de Unidade
como congregação de organizações camponesas e indígenas que foram a base social que
deu origem à proposta defendida pelo MAS na Assembléia Constituinte. Iremos ver
como uma forte união de diferentes permitirá ao MAS chegar à aprovação de uma nova
Constituição, combinando dois projetos e imaginários políticos de uma etnicidade
genérica, produto do avanço do projeto de mestiçagem, cidadanização e nacionalidade
bolivianas; com uma etnicidade cosmovisional de etnias e propostas civilizatórias
alternativas, vindas de dezenas de povos das terras baixas, de onde por vezes ainda se
pode encontrar um sentimento contra o Estado e de busca autônoma pela terra sem mal.
Como uma luta indígena de retorno às tradições, e como força popular que articula um
bloco de poder, trata-se de uma tarefa política permanente, pela qual o caráter
41
majoritário se constrói sem perder a especificidade do minoritário, dando lugar à
“verdade” que passava a ser estatal com a adoção da plurinacionalidade.
A minha hipótese é que, na proposta do MAS que foi constitucionalizada,
podemos encontrar uma teoria nativa de Estado. Ela foi desenvolvida a partir do
encontro de um novo sujeito social chamado, na Constituição, pelo nome de “povos e
nações indígenas originários camponeses”, que inclui componentes em tensão, mas com
alguns acordos básicos, como o da vontade de avançar na descolonização e na
recuperação dos recursos naturais. Com o crescimento dos movimentos sociais,
desenvolveu-se um processo inédito de avanço do Estado, com legitimidade também
inédita nas comunidades, que viam que agora os indígenas podiam também votar em
indígenas e administrar a máquina do Estado. Era uma teoria indígena original, que
trazia para o Estado os elementos da comunidade, mas que também dialogava com
formas de governo liberais, que agora os indígenas bolivianos tinham conquistado. A
teoria nativa, portanto, deve ser entendida como um híbrido bastante aberto que
incorpora elementos comunitários, mas também a experiência da política sindical e
institucional de tipo republicana.
Evo Morales mostrava os números da sua gestão em que, além de arrecadação
recorde para os municípios, apresentava indicadores de macroeconomia como inflação,
déficit e reservas melhores que em tempos de governo neoliberais. Alguns viam uma
cooptação dos camponeses e indígenas por uma gica política que lhes era alheia;
outros viam uma vingança do colonizado, que utilizava os instrumentos do colonizador
para se emancipar. Para a oposição liberal e urbana, era lugar comum falar da vingança
indígena, junto à denúncia de discriminação dos não indígenas, que não teriam sido
incluídos na nova Constituição. A chegada dos camponeses e indígenas ao Estado era
ambivalente. Significava um projeto que permitia pensar para além do Estado e da
república liberal. Ao mesmo tempo, no entanto, parecia se dirigir à realização, pela
primeira vez na Bolívia, de um projeto exitoso de Estado moderno, com a inclusão de
todos como base para a liberdade e o desenvolvimento.
Em um artigo republicado algumas vezes, Silvia Rivera analisa um conceito
aymara que serve para entender os fundamentos da teoria nativa do Estado na base da
proposta Plurinacional (RIVERA, 2006, 2009, 2010a). Na realidade, trata-se de um
conceito que serve para compreender uma forma de ver o mundo, mas que também
esteve presente em uma das vertentes que influenciaram a redação da nova
Constituição. Após criticar a mestiçagem como “fusão de raças, „passada de borracha e
42
começo do zero„, que resulta em uma camisa de força para entender a fluidez mutante e
heterogênea de uma complexa articulação de culturas nativas que se mantêm diferentes
e não desaparecem” (2006: 58-62), Silvia Rivera propõe pensar para além da amálgama
e do “melting pot” (e também da dialética), propondo o conceito de chhixi (que é escrito
de modo diferente em cada republicação: chhixi, chixxi, cheje, ch‟ixi). Este provém do
mundo aymara, de onde também surge o indianismo katarista que a historiadora e
socióloga estudou e acompanhou de perto, e de onde também surge a proposta de
Estado Plurinacional que chega à Assembléia Constituinte.
O conceito de chhixi aparece como conceito epistemológico e político e é
polissêmico. Por um lado, é utilizado para se referir à lenha que não serve, a que Silvia
Rivera compara com a idéia de “híbrido” que traz a idéia de infertilidade. Por outro
lado, chhixi refere-se à compreensão de uma terceira forma, na qual, “diferentemente do
híbrido, as diferenças não se fundem em uma nova forma pura”; e este último é o
sentido que a autora resgata. É utilizado pelos aymaras como um conceito visual, que se
refere à coexistência de cores opostas, mas que não se misturam, nem se sintetizam,
nem dão lugar a uma nova cor misturada, mas que permanecem como manchas de cores
diferentes sendo ao mesmo tempo as duas cores e nenhuma das duas, segundo a autora.
Em um trabalho anterior, esse tipo de amálgama aparecia entre o setor açougueiro, que
era ao mesmo tempo grêmio e ayllu, então pagavam impostos municipais e tributo
indígena. Nos documentos analisados por Silvia Rivera, o Estado e os mestiços (mistis)
aparecem como opressores, e os operários se identificam ao mesmo tempo como classe
e como etnia, no entanto, na rearticulação descolonizadora, supremacia do étnico,
considerado mais permanente e estrutural (1993:75-78 trad. nossa)
40
.
Silvia Rivera, entretanto, em um texto de 2009, é crítica ao projeto
Plurinacional, que vê associado a um mapa de 36 etnias. O mapa não foi incorporado ao
projeto de Constituição do MAS, mas esteve presente na forma em que alguns
pensavam o desenvolvimento futuro da plurinacionalidade, razão pela qual a crítica é
pertinente. Para Silvia Rivera, o projeto de Estado Plurinacional deixa de fora o mundo
intersticial de cholos e mestiços, birlochas, grêmios, regiões de colonização, migrantes,
40
Essa rearticulação, por outro lado, remete à língua aymara, na qual, tanto como no quéchua, existiria
uma estrutura dialogal em que “qualquer forma do ‘nós’ se converte automaticamente em um ato de
interpelação a um ‘outro’ que está dentro ou fora do âmbito da percepção ou identificação e cuja
posição sempre é definida pelo ato da linguagem” (1993:88). Assim, falar de um deles significa falar ao
mesmo tempo do outro, como encontramos também no pensamento ameríndio de outros lugares
(Viveiros de Castro, 2006).
43
comissões de vizinhos e aqueles que provêm da comunidade, mas romperam com ela
para não ser discriminados. A autora encontra uma invisibilização do mundo mestiço,
que continua aparecendo como sinônimo de universalidade, e nota que “a representação
dos povos indígenas como universos homogêneos e estanques, reclusos em trinta e seis
territórios, permite às elites se desligar de toda responsabilidade sobre a violência inter-
étnica que ocorre sempre nos espaços intersticiais”. Dada a condição de maioria que tem
a população indígena, para Rivera, seria preciso antes “a indianização do conjunto da
sociedade” (2008:219), e nisto se afasta do projeto do governo na Assembléia,
aproximando-se do indianismo aymara, crítico mais radical do entorno brancóide” no
governo do MAS (2008:219)
41
.
As críticas são claramente pertinentes a um processo político em que, para além
do constitucionalizado, segue estando aberta a disputa por significados e pelo curso que
segue o processo político. No Preâmbulo da Constituição que o MAS redigia, sentiam-
se as tensões de um projeto que procurava, ao mesmo tempo, ser o Estado e transformá-
lo. Realizar projetos modernos de desenvolvimento econômico e do Estado-Nação; e
pensar uma política “para além da modernidade”. Leia-se o Preâmbulo:
PREÂMBULO
Em tempos imemoriais se erigiram montanhas, se deslocaram rios, se formaram
lagoas. Nossa Amazônia, nosso Chaco, nosso Altiplano e nossas superfícies e
vales se cobriram de verdes e flores. Povoamos esta sagrada Mãe Terra com
rostos diferentes, e compreendemos desde então a pluralidade vigente de todas
as coisas e nossa diversidade como seres e culturas. Assim conformamos nossos
povos, e jamais compreendemos o racismo até que o sofremos desde os funestos
tempos da colônia.
O povo boliviano, de composição plural, desde a profundidade da história,
inspirado nas lutas do passado, na sublevação indígena anticolonial, na
independência, nas lutas populares de libertação, nas marchas indígenas, sociais
e sindicais, nas guerras da água e de outubro, nas lutas pela terra e território, e
com a memória de nossos mártires, construímos um novo Estado.
Um Estado baseado no respeito e igualdade entre todos, com princípios de
soberania, dignidade, complementaridade, solidariedade, harmonia e eqüidade
na distribuição e redistribuição do produto social, em predomine a procura do
Viver Bem; com respeito à pluralidade econômica, social, jurídica, política e
cultural dos habitantes desta terra; em convivência coletiva com acesso à água,
trabalho, educação, saúde e moradia para todos.
41
Numa entrevista recente, Silvia Rivera (2010b) acrescenta: se um particularismo, é o do mestiço,
[e], se há um arcaísmo na Bolívia, é o tratamento senhorial que o mestiço da elite oferece à sua
trabalhadora doméstica *…+, o índio é moderno porque resolve o problema de sobrevivência fazendo
três coisas ao mesmo tempo, uma delas é capitalista, a outra auto-gestionária, com a flexibilidade de
viver em vários mundos e mudar de código e cruzar fronteiras, que perfeitos e que perfeitas para o
mundo moderno!”.
44
Deixamos no passado o Estado colonial, republicano e neoliberal. Assumimos o
desafio histórico de construir coletivamente o Estado Unitário Social de Direto
Plurinacional Comunitário, que integra e articula os propósitos de avançar para
uma Bolívia democrática, produtiva, portadora e inspiradora da paz,
comprometida com o desenvolvimento integral e com a livre determinação dos
povos.
Nós, mulheres e homens, através da Assembléia Constituinte e com o poder
originário do povo, manifestamos nosso compromisso com a unidade e
integridade do país.
Cumprindo o mandato de nossos povos, com a fortaleza de nossa Pachamama e
graças a Deus, refundamos a Bolívia. Honra e glória aos mártires desta proeza
constituinte e libertadora, que tornaram possível esta nova historia.
Esse preâmbulo foi aprovado pelo MAS na Assembléia Constituinte e
sobreviveu às mudanças e revisões que a oposição realizou no Congresso Nacional
sobre o texto antes aprovado na Assembléia pelo MAS e aliados. A etnografia da
Assembléia Constituinte será uma crônica sobre a chegada dos camponeses e indígenas
ao Estado e as suas teorias sobre o Estado incorporadas na nova Constituição, mas
também sobre uma série de obstáculos e de problemas previsíveis e imprevisíveis que o
processo político impulsionado pelo MAS enfrentou. Meu objetivo é que os
acontecimentos permitam dar lugar a uma reflexão sobre o Estado e sobre sua
interioridade em relação com o externo, no momento em que entra para transformá-lo,
governá-lo, ou para construí-lo de novo.
4 Plano de Tese
No primeiro capítulo, apresento o relato que acompanha chegada dos
camponeses e indígenas ao Estado, que consiste na menção de uma série de
acontecimentos significativos e marcos que concluem com a convocatória da
Assembléia Constituinte. Também das discussões entre constituintes do MAS que
remetem a esse percurso histórico e às distintas miradas políticas que confluem na
proposta do Estado Plurinacional e na conformação do sujeito chave dos “povos e
nações indígena originário camponeses”. Pretendo nesse começo ir tecendo esta
discussão com os traços dos distintos setores que se articularam na base do MAS e que
deram lugar ao Pacto de Unidad, como espaço a partir do qual surgem as idéias centrais
que serão o espírito da nova Constituição. Também veremos a mão da oposição liberal
mestiça que, no final do processo, intervém na definição de “povo” construída pelo
MAS e pelas organizações sociais.
45
Nos capítulos dois, três, quatro e cinco, apresento a etnografia da Assembléia
Constituinte e seu percurso, começando com um capítulo sobre as discussões centrais
que atravessaram a fase de comissões; seguindo com outro em que se trata a irrupção do
tema “capitalia”; o quarto sobre o complicado processo de aprovação do texto; e um
quinto capítulo vemos o acordo alcançado junto às diferentes vertentes que definem o
novo texto constitucional. Nestes capítulos, vemos o assunto do Estado dando lugar ao
conflito político regional que ameaçava fazer fracassar a Assembléia e o projeto de
reformas. Junto ao projeto constitucional do MAS, aparecem nestes capítulos alguns
elementos básicos que veremos se combinar e se recombinar, dispersar-se na conjuntura
política de forma circular, repetitiva e às vezes surpreendente e reveladora de novos
cenários e caminhos. A tensão entre a guerra e o pacto, que aparecem como extremos da
dinâmica política que se vê no horizonte. Vamos ver, também, como se escreve a
Constituição em cenários variados, nos quais a dimensão técnica se politiza e a política
adquire uma forma “técnica”.
À medida que tinha continuidade a redação da Constituição por parte de
constituintes e assessores do MAS, o conflito político e a tentativa de viabilizar a
Assembléia parecia tomar certa independência. Podemos ver esse conflito como uma
interceptação por parte do Estado, em relação aos camponeses e indígenas que
chegavam ao governo. Tanto com vistas à redação da Constituição, como na dinâmica
do conflito político, tratar-se-ia de encontrar um centro político que permitisse fundar
um novo Estado. Se a sociedade sem Estado é uma sociedade para a guerra, em
Clastres, na etnografia do Estado, encontramos aparentemente o contrário. Trata-se de
uma sociedade para o pacto, que para realizá-lo depende da construção de um centro
político. A violência, a vontade de mudança radical e os obstáculos à governabilidade
fazem, no entanto, bastante instável o caminho em direção ao pacto, que parece estar
por um fio, e em vários momentos chega a desabar.
Na apresentação do novo texto, após o acordo, vemos o problema da
comunidade e do Estado na legislação constitucional e um modo de resolução aberto,
indefinido e difuso, que parece ser a forma em que o comunitário e a autonomia
garantem um lugar na nova ordem estatal. Essa resolução era forjada pelas condições
políticas, mas também desenvolvida como forma estratégica de proteger o externo ao
Estado, o diferente ao direito liberal, que quando era definido ia contra daquela teoria
nativa do Estado, marcada pela procura de pluralidade. Veremos a presença de quatro
vozes na redação da Constituição: a liberal, a autonomista, a indianista e a nacionalista
46
antiimperialista popular. São vozes de distinto tipo, que não podem ser postas no
mesmo plano e que dão lugar a um texto heterogêneo, com ambigüidades e espaços
vazios.
No último capítulo, o sexto, as possibilidades abertas pelo texto começam a ser
exploradas na gestão, com os primeiros conflitos do Estado Plurinacional e também
com o interesse por impor um novo marco histórico a partir da simbologia indígena, que
ocupa um lugar importante desperta a uma considerável quantidade de controvérsias.
Nesse capítulo, concluímos o assunto da presença de elementos da tradição indígena e a
“cultura” no Estado, que abrimos nesta introdução. Também tratamos das distintas
leituras sobre este tema no mundo político, em que esta etnografia está focada. Além
disso, é apresentada a fase da gestão e da tarefa de começar a implementar o novo
Estado Plurinacional.
Neste trabalho, optei por manter os nomes originais das pessoas que aparecem
nesta tese, ainda que evite mencioná-los quando me pareceu que poderia causar
suscetibilidades. Devo esclarecer, não obstante, que sendo o material etnográfico muitas
vezes produto de rumores, ou, inclusive, de críticas infundadas, ou operações políticas
enquadradas em disputas, tudo o que aqui se afirma pode ser relativizado e considerado
apenas como exemplos de veracidade não confirmada sobre o tipo de material com o
que se vive a política boliviana.
47
Capítulo 1
Povo boliviano, Contra-hegemonização e Teoria Constituinte (nativa) do Estado
O povo boliviano, de composição plural, das
profundezas da história, inspirado nas lutas do
passado, na sublevação indígena anticolonial, na
independência, nas lutas populares de libertação,
nas marchas indígenas, sociais e sindicais, nas
guerras da água e de outubro, nas lutas por terra e
território, e com a memória de nossos mártires,
construímos um novo Estado.
(Preâmbulo da nova Constituição).
Neste capítulo, percorrerei dois caminhos com temporalidades diferentes. Um
será o da discussão da Assembléia, entre os constituintes, sobre a redação do artigo que
tratava sobre a definição de “povo boliviano”; o outro será o tema da Constituição, nos
anos anteriores, do sujeito coletivo que redigia esta Constituição, e que é um sujeito
político que se vincula com os distintos sentidos em que chega à Assembléia a idéia de
Estado Plurinacional. Trata-se de uma etnografia sobre a chegada dos camponeses e
indígenas ao Estado, e o modo como esse processo se incorpora em um artigo central
para o projeto de Constituição. O resultado é a Teoria Nativa do Estado, que aparece no
diálogo dos constituintes sobre a genealogia dos setores que participavam desse
processo e da trajetória na luta por fora do Estado que haviam protagonizado. As idéias
que se cristalizam na redação desse artigo nos remetem 30 anos atrás, quando se
começa a escutar as idéias políticas e a formar-se organizações sociais que agora
chegavam ao Estado. Veremos como essa teoria do Estado de camponeses, indígenas e
seus aliados é construída juntando dimensões que para alguns deveriam estar separadas:
etnia e classe; ayllu e sindicato; povos das terras baixas, colonizadores e afrobolivianos.
Ao final do processo constituinte, a definição de povos bolivianos seria uma vez mais
alterada, desta vez pela oposição, reintroduzindo no debate as idéias de mestiçagem e de
nação.
1 Opressão de classe e discriminação étnica na redação de um artigo chave.
1.1 As reuniões do MAS na Casa Argandoña.
48
As reuniões da bancada do MAS na Casa Argandoña eram a instância na qual os
constituintes discutiam os artigos redigidos pelas 21 comissões da Assembléia
42
. Em
três grupos que combinavam departamentos do Oriente e do Ocidente, os constituintes
da situação liam os avanços do projeto da maioria e realizavam modificações. Assim se
confirmou uma primeira versão do texto constitucional, a partir dos informes do MAS
nas distintas comissões. Esse espaço era conhecido como “comissões mistas do MAS”,
e preparavam uma proposta de texto constitucional que deveria ser aprovada nas
reuniões plenárias que começariam logo após finalizado o trabalho de comissões. Na
reunião, projetavam na parede os artigos e iam lendo, comentando e modificando. O
primeiro rascunho da Constituição, de julho de 2007, somava mais de 700 artigos que
deviam chegar a dois terços até 6 de agosto, data prevista para a finalização da
Assembléia. O texto foi distribuído entre os constituintes do MAS com a inscrição
“rascunho”, incluída a pedido de Roberto Aguilar, vice-presidente da Assembléia, para
que não houvesse vazamento de informação à imprensa.
Os dois terços eram o requisito incluído no regulamento dos debates da
Assembléia depois de sete meses de discussão. E a tarefa era difícil porque a oposição
havia se mostrado relutante ao acordado nas Comissões. Por isso falava-se de uma
extensão de prazo, mas isto também seria difícil porque o Senado era controlado pela
oposição e era a instância à que cabia aprovar uma ampliação, modificando a lei de
convocatória à Assembléia. A oposição do Senado havia bloqueado todas as leis
propostas pelo governo no primeiro ano e meio de gestão, e, portanto, era difícil
imaginar um acordo congressual. Alguns se preparavam então para terminar de forma
apressada a Assembléia, que, sem consenso, implicava em que todos os artigos da
maioria e da oposição fossem submetidos a referendo. Os técnicos então corriam para
compatibilizar uma versão final do texto. E os constituintes revisavam, na Casa
Argandoña, os artigos dessa provável versão final.
Respondendo à “agenda de outubro” que havia expulsado um presidente na luta
pelos recursos naturais, quando o governo tentou impulsionar a exportação de gás aos
Estados Unidos via portos do Chile, os constituintes buscavam garantir a propriedade
dos recursos naturais para o povo boliviano. “Movemos um tijolo e se move toda a
parede”, dizia um constituinte; porque, se declarada a propriedade dos recursos naturais
para o povo boliviano, seria necessário definir antes quem compunha esse povo, para
42 Os constituintes do MAS autorizaram a minha presença nas suas reuniões, das quais participavam
também alguns de seus assessores técnicos.
49
que não ocorresse de novamente os estrangeiros se apropriarem das riquezas do solo
boliviano. E esta seria a discussão em que entrariam os constituintes do MAS, e que
trataremos neste capítulo. A definição era importante também porque,
independentemente dos recursos naturais, a idéia de povo se fazia presente como sujeito
principal do processo de cambio estatal impulsionado pelos que se identificavam com o
povo boliviano. Alguém lembrava que “o presidente” havia dito que o poder radicaria
no povo, e não mais no Estado. A categoria servia então para que os indígenas e
camponeses deixassem sua marca no texto constitucional que estavam redigindo.
Contudo, definir a categoria povo não era fácil, visto que se pretendia desdobrar um
conceito difuso, e que, no terreno social, se mantinha como uma soma de identidades
diversas sem necessidade de serem explicitadas. O problema era análogo ao da
institucionalização de formas comunitárias que no projeto de Constituição o MAS
também procurava realizar.
Na definição de consenso, que se incluía como artigo terceiro da Constituição, se
incluíram como indivíduos as mulheres e os homens, como “bolivianas e bolivianos”.
Fez-se referência também à divisão classista da realidade social, do marxismo e do
movimento operário boliviano, mas como forma de inclusão também dos setores
médios não identificados etnicamente, como “áreas urbanas de diferentes classes
sociais”. O lugar central na Constituição e nesta definição de povos indígenas das terras
baixas, os camponeses de todo o país, os colonizadores (“comunidades interculturais”) e
os afrobolivianos, que não se consideravam indígenas nem originários mas também
exigiam ser reconhecidos. A primeira formulação da definição sobre a qual os
constituintes discutiriam era a seguinte: “o povo boliviano é o conjunto dos bolivianos e
bolivianas pertencentes às nações e povos indígenas originário-camponeses,
afrobolivianos e classes sociais, setores e grupos economicamente e culturalmente
diversos”.
Uma constituinte mulher sugeriu que se falasse em “bolivianas e bolivianos” ao
invés de “bolivianos e bolivianas”, e a sugestão foi aceita, ainda que para alguns a
questão de gênero fosse uma discussão ocidental levada à Bolívia pelo desenvolvimento
e pela cooperação estrangeira. Também foi eliminada a qualificação de “culturalmente
diversas” originalmente incluída como modificador das áreas urbanas. Havia sido uma
sugestão da constituinte Rosalía del Villar, de El Alto, que era formada em serviço
social e dizia que ela não se identificava como “culturalmente diversa”, o que lhe
parecia aludir a “uma salada”. Também aconteceu uma longa discussão sobre a
50
necessidade de se fazer menção, ou não, a “classes, setores e grupos sociais”. Uma
assessora dos povos das terras baixas opinava que não se deveria incluir porque as
classes “classificariam novamente”. Outro agregou: “nosso aliado Cuba não tem classes,
se as nomeássemos as estaríamos reafirmando”. Roberto Bustamante, que tinha
participado da luta armada décadas atrás, propunha que seja mencionado o proletariado,
e Rosalía interveio novamente para defender a menção às classes. Como realizadora de
enquetes, dizia haver constatado que as pessoas identificavam-se como classe baixa”,
“classe média”, ou “classe média-baixa”. Outro constituinte propunha substituir o termo
“classe” por “populações urbanas”.
Como fruto das alianças realizadas pelo MAS desde a sua formação, alguns
constituintes que vinham da esquerda buscavam incluir a classe social como forma
sociológica de entender a sociedade, mas também como categoria cultural que os
identificasse. Ex-militantes de partidos de esquerda, antes que trabalhadores, tentavam
que, junto à inclusão dos indígenas e camponeses, fossem incluídas as classes,
especialmente como modo de incluir as classes médias urbanas que não se viam
incluídas na categoria central da definição. Seguindo com a discussão, Eulogio Cayo,
que se reconhecia como indígena da cultura dos K'alchas e era professor de escola,
considerava que era mais ideológico e político falar em classe, e que assim se evitaria as
lutas étnicas, que se anteporiam às lutas sociais. Sem a idéia de classe na Constituição,
para Cayo, “a luta étnica vai ser entre pobres, cada um em seu território autônomo, não
deixemos que aconteça o mesmo que aconteceu na Iugoslávia”. Via a inclusão de
critérios exclusivamente étnicos como uma estratégia do neoliberalismo para submeter
os indígenas. Neste sentido, um assessor defendia a inclusão de classe argumentando
contra o muticulturalismo, o qual via ocultando as relações de poder. A divisão da
sociedade em classes serviria para realçar as relações de desigualdade.
Além das propostas de eliminar a menção a classe, alguém propunha incluir
como definição de povo “o conjunto de bolivianos das distintas classes e setores que se
sentem pertencentes a nações e povos”. Deste modo queria-se evitar uma dupla
classificação de um mesmo sujeito, que, assim como etnia, a classe podia indicar a
totalidade do povo. Mas não convencia. Marcela Revollo, mulher do alcalde (autoridade
máxima do governo municipal) de La Paz e constituinte pelo MSM
43
, falava do
problema de “desdobrar populações” fazendo aparecer classes dentro de nações
43 Movimento Sem Medo, partido que elegeu constituintes nas listas do MAS. Sua força política era
especialmente urbana, e governavam o município de La Paz.
51
indígenas. Preferia que se falasse somente de povo, e também pedia que se discutisse
depois, continuando com outra coisa. Interveio também um ex-membro do Partido
Comunista Boliviano, René Navarro, que, num inflamado discurso, disse “não nos
iludamos que a luta de classes vai terminar em 30 ou 50 anos, não tem a ver com o
marxismo, senão com os meios de produção. Em Huanuni estamos estatizando os
produtores e assim fortalecendo a vanguarda. Não colocar classe social é desconhecer o
momento político. As classes estão em tudo: no campo classe social, luta de ricos e
pobres. Como caracterizar os safreros, são camponeses? Trata-se de lutar entre classes,
não entre nações”.
1.2 A classe social da esquerda na Assembléia.
No contexto da política boliviana, discutir a pertinência do conteúdo de classe
para entender a sociedade remetia diretamente à Central Operária Boliviana (COB), e
aos mineiros da Federação, outrora centro da política (e economia) do país. Desde que
protagonizaram a revolução de 1952, houve reiteradas experiências de co-governo, com
nomeação de ministros, a experiência da Assembléia Popular de Torres em 1971 e da
participação no governo da UDP em 1982, com a presidência de Hernán Siles (1983-
985), que terminou em fracasso e funcionava como contra-exemplo para o MAS ao
iniciar sua gestão. Em 2007 a COB estava desprestigiada, sem participação no cenário
político, isolada em sua visão classista e crítica ao governo do MAS. Mas sua visão
classista seguia presente no ponto de vista político de vários constituintes da bancada do
MAS, urbanos de esquerda, marxistas, ex-militantes dos partidos de esquerda, que no
passado viveram a influencia da central operaria. Entre os constituintes não havia
dirigentes da COB ou mineiros, o que pode ser explicado pela ausência da Central no
último ciclo de protestos sociais de 2000 a 2005 e na formação do MAS.
Ainda que sobrevivesse no olhar dos constituintes, o classismo havia retrocedido
na política boliviana depois da derrota da Marcha pela Vida de 1986, na qual os
mineiros espinha dorsal da COB tentavam resistir ao decreto 21060 do velho
caudilho de 1952, Paz Estenssoro que, com sua assinatura, em agosto de 1985, dava
origem à época “neoliberal”. O decreto, entre outras coisas, fechava as minas estatais, e
a marcha se desfez quando o exército a freia antes que chegasse a La Paz. Os mineiros
haviam apresentado um plano para evitar o fechamento, com redução de salários, como
havia ocorrido nas nacionalizações em 1952. Mas a Federação Mineira estava em crise;
52
em 1985 nas minas haviam votado pelo ex-ditador Bánzer e a maioria aceitara a
indenização oferecida pelo governo, migrando de forma massiva a São Paulo, Buenos
Aires, El Alto e também ao Chapare, aonde também havia chegado Evo Morales. Para o
povo boliviano, começava uma etapa de silêncio que se interromperia anos depois,
com novas idéias e formas de organização.
Filemón Escóbar tinha sido o principal dirigente dos mineiros, e era um dos
sindicalistas que aportaram à formação política de líderes e sindicatos no Trópico
Cochabambino. Seria também um dos fundadores do MAS, mas Evo Morales o
expulsaria em 2004 depois de uma confusa sessão no Senado na qual Filemón se
absteve de votar. Em seu livro de memórias, Filemón permite entender algo da
concepção política dos mineiros, onde se nota a importância da produção econômica, a
classe trabalhadora e o nacional. Cita as resoluções do Congresso de 1985, em que a
Federação Sindical de Trabalhadores Mineiros da Bolívia (FSTMB), se declarava “o
maior símbolo da nação e da futura revolução, sintetizada no guardatojo (capacete) do
mineiro, [que] ficará apagado e com ele nossa emancipação […] não deve esquecer-se
que a Bolívia teve traços de nação por ser um país fundamentalmente produtor de
matérias primas exportáveis. [Com] o decreto 21060 […] a produção e a produtividade
já não contam. O trabalho e o trabalhador, o técnico e o produtor já não têm sentido para
forjar a nação (2007:103-104, trad. nossa)”.
Defendendo uma proposta de interculturalidade e complementação da cultura
indígena e da européia, em seu livro, Escóbar critica a falta de flexibilidade da visão
classista da COB, e do “pensamento da esquerda tradicional”, que até os dias de hoje
estabelece em seus estatutos que sua estrutura corresponde a 51% de proletariado, 40%
de setores da classe média e 10% de campesinato (2007:165). Em sua escalada como
líder social, Evo Morales havia tentado ganhar espaço na COB mas fora expulso.
Durante a Assembléia Constituinte a Central foi opositora e em momentos de
definição houve uma aproximação, que se mantém até hoje em dia. A ameaça do MAS
de buscar o controle da COB, dizem alguns, havia sido o motivo da aproximação. Sílvia
Rivera atribui essa rigidez da COB quanto aos camponeses e indígenas à “raiz liberal-
ilustrada das direções sindicais” e sua “imbricação com o horizonte civilizador de 1952,
da forma cidadã e imaginário mestiço construído pelo discurso nacionalista e de
esquerda”. Apesar de uma aliança abstrata entre operários e camponeses que se
53
fortalece desde a década de 70, Rivera faz referência a “barreiras infranqueáveis para
articular a diversidade étnica dos trabalhadores” entre os dirigentes operários
44
.
Analisando a discordância num outro plano, a autora conta das divergências
acerca de práticas produtivas, em que a produção alimentícia dos camponeses e suas
necessidades de reposição da fertilidade do solo se encontravam com uma “cultura
operária insensível” que defendia as empresas mineiras, dedicadas à “atividade
predadora e poluidora por excelência” (1993:105). Também o sociólogo aymara Félix
Patzi, primeiro ministro da educação de Evo Morales, dá conta do desencontro: “quando
o katarismo e o indianismo insistiam na idéia de que na Bolívia persiste o colonialismo,
os membros da esquerda argumentavam contra indicando que essa afirmação é racista.
Explicavam que na Bolívia o que existe é o proletariado e a burguesia e que, no meio,
localiza-se o campesinato, que devia transitar rumo à sua proletarização para fazer a
revolução socialista e comunista. A esquerda afirmava que a luta na Bolívia era entre
pobres e ricos, entre proletariado e burguesia, mas eram tão míopes que não se davam
conta de que os pobres justamente eram os índios e os ricos os brancos, isto é, que o ser
de uma determinada classe estava constituído, também, pelo elemento étnico. Em outras
palavras, os esquerdistas não compreenderam jamais a verdadeira dimensão das classes
sociais na Bolívia”.
Do ponto de vista classista, até a atualidade se assinalava o papel conservador do
campesinato. Alguns mencionavam a força dos mineiros que Che Guevara conheceu
quando passou pela Bolívia em sua viagem de motocicleta. Esta seria uma imagem que
podia ter influenciado na eleição da Bolívia como destino de Che para iniciar um foco
guerrilheiro na América do Sul. De fato, também se diz que em 1967 os mineiros
haviam votado em Assembléia contribuir com a guerrilha de Che com uma mita
(sistema instalado pelos espanhóis no qual cada comunidade enviava trabalhadores de
maneira rotativa, como serviço obrigatório temporário), o que explicava os massacres
ordenados por Barrientos em 1967, nas minas de Catavi e Siglo XX, com centenas de
mortos, enquanto os camponeses permaneciam imóveis no “pacto militar-camponês”.
44 Silvia Rivera cita também o que seria primeiro vice-presidente aymara, Victor Hugo Cárdenas, que
como dirigente katarista, ocupava a representação da central camponesa na COB. Nos congressos de 87,
89 e 92, ele protagonizaria conflitos entre os indígenas e camponeses com a central operária, a qual
Cárdenas acusaria de “organização excludente” incapaz de expressar a democracia comunal” das
bases, e que Silvia Rivera atribuía ao “verticalismo, caudilhismo e corrupção” dos proletários, liderados
pelos operários Tratava-se, segundo Cárdenas, do “desencontro entre o operário e o camponês, entre a
luta de classes e a luta de culturas” (em Rivera 1993:106).
54
Evo Morales mencionaria Che Guevara em vários discursos, como em outubro de 2008,
em que declararia no aniversário de sua morte, que ele “não derramara seu sangue em
vão”. Em 2007, contudo, alguém dizia em um debate político em La Paz que Che havia
escrito: “não consigo entender a humanidade do índio”. Costumava-se mencionar que,
pela entrega de parcelas individuais de terra a camponeses desde a Reforma Agrária de
1953, a chegada de Che ao oriente boliviano não fora no momento nem o local
apropriado. O certo é que, na longa lista de leituras de Che Guevara na Bolívia,
separadas mês a mês em 1966 e 1967, conservada ao igual que seu diário pelos seus
capturadores e que se encontra na abóboda do Banco Central da Bolívia, entre Cortázar,
Graham Greene, Maquiavel e um livro sobre o projeto de Constituição da República
Popular da China, encontramos vários tulos sobre etnologia e questão indígena na
Bolívia
45
.
García Linera (em El retorno de la Bolivia plebeya) também conta da
importância e depois decadência do setor operário. Em um artigo publicado pela
primeira vez no ano 2000, narra os acontecimentos da Marcha pela Vida. Era o
encerramento de um ciclo no qual os mineiros, “alma virtuosa da nação nascida em
1952”, haviam sido os protagonistas. Linera fala deste setor como o dos “fundadores de
um sentido real de cidadania sumamente democratizadora através da figura do sindicato
que se expandiu até o último canto da geografia estatal. Enfim, se algo existia de nação
e de Estado na Bolívia, era pelos mineiros das grandes empresas nacionalizadas, pelo
seu trabalho e seus desejos” (2007:29, trad. nossa). Como vimos na introdução, aquele
que seria vice-presidente de Evo Morales fala de “uma inclinação irredutível deste
proletariado, e, em geral, do proletariado moderno, de buscar seus direitos pela
mediação do estado, o que significa um reconhecimento implícito do estado como
representante geral da sociedade […]”. García Linera escrevia sobre um hábitus de
classe da condição operária “conservador e dominado”. Assinala a ambição de
integração no Estado, que se apresenta “não com titularidade governativa, mas como
45 Entre estes livros encontramos: As origens do homem americano (P. Rivet); O homem americano (A.
d’Orbigny); O Iténez selvagem (Luis Leigue Castedo); Tupac Amaru o Rebelde (Boneslao Lewin); O
indoamericanismo e o problema social nas Américas (Alejandro Lipschutz); Informe das Nações Unidas
sobre os problemas das populações indígenas andina, O.I.T. Genebra 1953; Monografia estatística da
população indígena da Bolívia (Pando Gutiérrez); História do colonialismo (J. Arnault); Raça de bronze
(Alcides Arguedas); Sobre o problema nacional e colonial da Bolívia (Jorge Ovando); A sociedade
primitiva (Lewis H. Morgan); A cultura dos Inkas (Jesús Lara); Idioma nativo e analfabetismo (Gualberto
Pedrazas); Costumes e curiosidades dos aymaras (Valda). Fonte:
http://museocheguevaraargentina.blogspot.com/2007/08/che-guevara-y-los-libros-que-lea-en.html
55
súdito, como seguidor, arrogante e belicoso, mas tributário de adesão e consentimento
negociados”. O operário não se via soberano, escreve Linera, pois “o soberano não pede
e sim exerce, não reclama e sim sentencia”. E via a Marcha pela Vida, na qual se
reclamava o não fechamento das minas, como “a maior prova dessa sujeição da classe à
legitimidade estatal”. Nesse sentido, aponta uma característica que anos mais tarde
serviria para fundamentar o novo Estado Plurinacional. Para García Linera, a classe
operária boliviana “nunca abandonará a crença de que o sobrenome, o dinheiro e o
conhecimento letrado são requisitos imprescindíveis para governar” (:39 trad. nossa).
Um ativo grupo trotskista que tinha um jornal e havia aberto a “Casa Operária e
Juvenil de El Alto”, eram críticos do governo e dos trabalhos de García Linera
46
.
Também eram irônicos sobre um grupo trotskista dissidente de uma das facções do
POR, que haveria sido cooptado e agora era a equipe de trabalho de García Linera na
vice-presidência. Consideram o MAS “um partido camponês burguês” com “traços
semi-bonapartistas” que diluem seu caráter de “frente populista (sua permeabilidade às
pressões dos „movimentos sociais‟)” impondo seu controle sobre a classe trabalhadora e
com acordos com a burguesia nacional e o capital estrangeiro. Definiam o discurso do
governo como “mescla ideológica confusa de fraseologia indigenista, discursos
democráticos e elementos semi-marxistas, combinando tudo isso com apelação à
„pátria‟ e à „bolivianidade‟, dentro da qual sobressai, pela sua persistente retórica, a
interculturalidade”. Sobre os trabalhos de García Linera, descreviam uma “operação
ideológica de negar o caráter de classe dos fenômenos reais dos quais fala e denuncia,
resumindo a suas manifestações étnico-culturais, como a língua e a cor de pele, com o
que pretende deter-se nas soluções superficiais, sem abordar as bases materiais às quais
estão sujeitas a situação de opressão dos povos originários”. Também criticavam as
autonomias indígenas por deixar de lado os indígenas urbanos e restringirem-se a áreas
empobrecidas, sem desenvolvimento produtivo e industrial, o que as converteria em
presa fácil da voracidade de empresas e transnacionais “que poderão aproveitar a
etiqueta intercultural para saquear suas matérias primas e recursos naturais” (trad.
nossa).
Uma das principais controvérsias que acompanhariam o processo constituinte
seria a do significado do Estado Plurinacional. Incluído na Assembléia na proposta das
organizações sociais, seus sentidos eram diferentes dependendo do setor político
46 Se tratava da LOR-CI (Liga Operária Revolucionária Quarta Internacional), seção Bolívia. Conferir por
exemplo: http://www.lorci.org/article.php3?id_article=768.
56
envolvido. A esquerda classista estava, entre outras tradições, presente na origem do
termo. Uma de suas fontes era o modelo soviético introduzido pelo Partido Comunista
da Bolívia. Xavier Albó lembrava em uma conversa comigo as discussões de Ovando
Sanz, um dos fundadores deste partido, que falara do problema das nacionalidades na
Bolívia e de um “Estado Mutinacional” inspirado no jargão comunista e nos trabalhos
de Engels que retomavam Morgan com aquela seqüência evolucionista que partia da
fratria para chegar à tribo e depois à nação, como preâmbulo do Estado. Albó lembrava
que na década dos ‟60 “o camponês era o saco de batatas e importava a classe
operária, como diz o 18 Brumário”; e que naquela época John Murra dizia “o que
aconteceu em um pais como Rússia, não serve para todo lugar”.
O livro de Ovando Sanz era um dos que levava Che Guevara na sua mochila, e
inclusive escrevera algumas notas sobre a proposta
47
. Filemón Escóbar também
associava a idéia de Estado Plurinacional com esta tradição e os trabalhos de Ovando
Sanz, quando em outubro de 2008 buscava “alertar” Evo Morales dos supostos perigos
deste tipo de Estado, que associava a “uma declaração de novembro de 1917 na Rússia
que estabelecia a igualdade e soberania de todos os povos, sua autodeterminação e o
livre desenvolvimento das minorias nacionais e etnográficas”. Em uma carta aberta,
Filemón pensava que a proposta poderia “desfazer” a Bolívia como “provocou a
derrubada da URSS”, quando se tentou reverter o processo de homogeneização cultural,
ou “russificação”
48
. Devido à importante influência do Partido Comunista no
movimento camponês e indígena do Equador, ainda mais “classista” que na Bolívia, não
é estranho que seja essa a origem do termo também em tal latitude, de onde também
chegara à Bolívia mais recentemente, pela via do movimento indígena.
No debate dos constituintes na Casa Argandoña, a discussão derivou em uma
posição de consenso pela qual se incluía a menção à classe social junto à das categorias
de identificação dos grupos étnicos e nações originárias. Adolfo Mendoza, assessor da
confederação de mulheres camponesas Bartolina Sisa, fundamentava isso aludindo ao
movimento katarista, que critica a identificação exclusivamente classista e antepõe à
identidade aymara, mas buscando combinar uma e outra classificação, dizia. A partir da
47 Ernesto Guevara escreveu sobre o livro de Ovando: “Livro monocorde, com uma tese interessante
sobre o tratamento da Bolívia como estado multinacional, aqui expressa que a Reforma Agrária é um
mito, coisa que haveria que investigar mais a fundo e estatisticamente”.
48 Escobar, Filemón. 2008. “Carta aberta dirigida ao presidente”. Publicada pelo diario La Razón. 8 de
outubro de 2008. Disponível em: http://www.la-
razon.com/versiones/20081008_006719/nota_247_685844.htm.
57
década de 70, continua Adolfo, não é suficiente o classista, e tem que ser étnico-
cultural, que inclui também as terras baixas. Dizia na reunião de constituintes: “primeiro
é o indígena camponês, sem dúvida. Mas não podemos esquecer dos setores urbanos e
inclusive dos empresários que estão pelo processo de mudança”. Longe de impor uma
visão classista como definição da totalidade do povo boliviano, ao menos a esquerda
classista podia incluir sua categoria de luta como brasão no novo texto. A fórmula
incluiria na definição de povo boliviano, em primeiro lugar, as bolivianas e os
bolivianos “pertencentes às áreas urbanas de diferentes classes sociais”.
Raúl Prada reconhecia que a proposta de Adolfo permitia incluir outros setores,
mas pensava que o assunto ainda não estava sendo resolvido. Lembrou que antes não
existia este artigo, e se estabelecia então que a soberania radicava nos povos e nações.
Havia sido na reunião de constituintes com o presidente Morales e as organizações em
Cochabamba, a finais de maio de 2007, que se agregou à definição de povo, que é um
conceito político singular, mas de composição plural, explicava Raúl Prada. Pilar
Valencia, assessora do CEJIS
49
, lembrava que a idéia de definir o povo devia-se aos
camponeses que haviam reivindicado que, além de “nações e povos” figurasse o termo
“camponeses”, com o qual se identificavam.
Propunham que o artigo podia ser deslocado para outra parte da Constituição, ou
que o assunto poderia ser resolvido no preâmbulo. Devia esperar-se também que
estivesse resolvida a discussão sobre soberania e usufruto dos recursos naturais.
“Estamos complicando-nos”, dizia Prada, e opinava que não se devia misturar no
mesmo artigo a classe e a definição étnica, porque “nos levará a excluí-los”. Explicava
que no processo geral havia duas posições, uma antropológica étnica que fazia
referência às nações, e outra sociológica, que falava de classes. Citou Thompson: “a luta
de classes cria as classes” e defendia que não seria necessário mencionar as classes
pelo fato de que elas existem. Tampouco queremos colocar “mestiço”, dizia, que na
África do Sul, pelas explicações que tinham ouvido em Cochabamba. Referia-se às
discussões sobre o projeto homogeinizador de 1952, incluídos os comentários da
especialista peruana Raquel Yrigoyen, que havia criticado o uso do termo mestiço,
qualificando-o de colonial. Raúl Prada propunha seguir pensando, e “buscar um texto
que não conote nem a definição sociológica nem a antropológica”. Sua proposta era
49
Centro de Estudios Jurídicos e Investigación Sociales (http://www.cejis.org/). Foi criado pelos jesuítas
a começos dos anos 80. De ali saíram vários ministros de Evo Morales (Muñoz, Rada, Almaraz, Rivero,
Romero). É a ONG responsável pelo 80% das demandas de titulação de terras em Oriente. Ver Terceros
Cuellar (2004).
58
“pensar outra sociologia”, e era de algum modo o que os constituintes estavam fazendo.
Hernán Ávila, também assessor do CEJIS, me dizia enquanto transcorria a reunião que
esta revolução é regional, indígena e de classe. Cansados da discussão alguns pediam
para seguir no dia seguinte, e vários constituintes tinham se retirado. Que
permaneçam os que se interessam, dizia um, “essa reunião não é por quorum”. Faltava
ainda discutir os termos em que o olhar étnico da sociedade se incluiria.
Na bancada de constituintes do MAS existia uma divisão entre os “orgânicos”
que haviam chegado às listas de candidatos a partir das organizações sociais que
integram o instrumento político, e os “convidados” que haviam sido convocados para
atrair o voto das cidades ou por seus conhecimentos e trajetória. Além de externos, os
“convidados” eram profissionais urbanos de classe média e mestiços ou brancos, pelo
que entre os constituintes do MAS se reproduziam duas denúncias comuns à política
boliviana: os indígenas aos mestiços, sentindo-se discriminados ou excluídos das
decisões, e dos mestiços aos indígenas, contra a repentina subordinação ou
discriminação por tratarem-se de “não orgânicos”. A dualidade às vezes era inclusive
usada simbolicamente no sentido da complementaridade e união das “duas Bolívias”,
como era entre “Evo e Álvaro”, a presidenta da Assembléia de pollera, Silvia Lazarte, e
o vice-presidente de gravata, o economista e ex-reitor da Universidade Maior de Santo
André UMSA de La Paz, Roberto Aguilar. Também havia sido a foto de campanha de
muitos, com a imagem de campo e cidade nas candidaturas departamentais e locais. E
todos tinham sua imagem das “duas Bolívias” nas comissões da Assembléia, falando ou
fotografando o trabalho com os representantes do outro lugar.
O MAS tinha surgido como partido camponês, embora desde o início teve
articulação com setores de esquerda. Apesar de que seus candidatos, ministros e
militantes ultrapassam todas as fronteiras sociais, no entanto, sempre mantinha uma
posição de partido do campo e dos movimentos sociais do campo que tinham lhe dado
origem. Se bem que tinha conseguido votos urbanos, principalmente no Altiplano; a
força das votações marcariam claramente a fronteira entre campo e cidade, com várias
cidades capitais de departamento menos leais ao MAS. A divisão trazia uma imagem
um pouco colonial, onde os “vizinhos” criollos ou mestiços, mantinham receio dos
“índios”, que respeitavam principalmente posições subalternas. Como resposta é que
tem dos constituintes camponeses alguma desconfianza ou crítica à chegada de setores
profecionais e de esquerda urbana, que reproducem complexos esquemas coloniais de
delegação nos mais letrados, misturado com resentimento dos dois lados e relações
59
entre pessoa e pessoa que podem ser enquadradas nas estruturas de longa duração com
que a realidade é pensada desde os tempos coloniais.
Mas havia problemas, especialmente entre profissionais de esquerda e aymaras.
Filha de um dirigente do MNR, arquiteta de Oruro, Mirtha Jiménez era constituinte do
MAS na Comissão Estrutura do Estado, outra das quais eu visitava diariamente. Desde
jovem seguiu outro caminho político que seu pai e somou-se ao PS-1 de Marcelo
Quiroga Santa Cruz, líder desaparecido na ditadura (em 1980), integrando inclusive a
guarda armada e dormindo nas épocas difíceis cada dia em uma casa diferente. Um
parente militar a salvou quando a detiveram. Nunca participou de cargos públicos, mas
sempre da milincia “nas ruas”. Com um grupo de 20 pessoas fizeram uma “operação
de se fazer visívelfalando da Constituinte nos meios de comunicação e conseguiu ser
indicada pelo MAS de Oruro como candidata dessa cidade para a Assembléia. Assumiu
a vice-presidência da bancada do MAS e tinha muita presença nos meios de
comunicação durante a Assembléia. Em uma conversa informal comentava que se sentia
discriminada pelas suas companheiras de pollera de El Alto. Ela se define como
birlocha, que na Bolívia tem vários sentidos, mas ela usava no de mestiça que adota a
moda européia ou ocidental
50
. Emiliana da Comissão de Educação perguntou-lhe
por que pintava seu rosto e ela respondeu “eu sou assim”. E comentava que a outra
constituinte de Oruro as cholitas de El Alto disseram “pinta o cabelo e é índia”. Mirtha
reconhecia, no entanto, que os constituintes estão para dar poder a estes setores
indígenas, e para acabar com a servidão.
Armando Terrazas era constituinte da Comissão de Desenvolvimento Social mas
atuava como um dos principais articuladores políticos da bancada. Era fundador do
MAS e dirigente de San Julián, área de colonização de migrantes do ocidente cravada
em Santa Cruz, mas era médico e de pele branca. Sua situação era diferente da maioria
dos profissionais constituintes do MAS porque era membro orgânico do MAS, e não
50 Silvia Rivera escreveu: Acerca dos estereotipos raciais e da sua terminología, subsistem toda uma
série de discriminações: índio, puro”, t'arasão insultos raciais dirigidos ao camponés da comunidade
ou migrante de primeira geração, enquanto que indiaco”, cholo”, cholango”, medio pelo e outros
referem a setores intermédios em assenso. Se bem que na sua versão feminina o conteúdo negativo de
esses términos diminui (”chola ou cholita”, que também são utilizados como auto-designação), as
variantes ascendentes femininas continuam sendo designadas em termos negativos: birlocha”,
chota, etc. No caso masculino, os insultos ao cholo provêem especificamente do mundo q'ara,
enquanto que no caso feminino, o termo birlocha”, por exemplo, pode ser usado de forma negativa,
tanto pela mulher oligarca quanto pela chola orgulhosa que sente como uma degradação adotar o
“vestido” ou vestimenta feminina criollo-q'ara” (1993:68 trad. nossa).
60
“convidado”. Considerava mesmo que os convidados eram os primeiros que traíam, e
mencionava o caso de um chuquisaquenho que, sendo eleito como aliado, se convertera
em duro opositor quando estourou em Sucre a reivindicação de que a cidade se
convertesse em sede dos poderes de governo. Não obstante, falava de discriminação por
ser mestiço e profissional. Alguns companheiros acreditam que o MAS é para
organizações indígenas, dizia. Não aceitam classe média e classe alta, mas aqui o tema é
ideológico, afirmava.
Armando Terrazas defendia que o MAS se transformara em uma organização de
esquerda, para além da difusa rede de organizações sociais. Assim, via que haviam
transformado San Julián em vanguarda do MAS em Santa Cruz. O aporte ideológico
das pessoas de esquerda é importante, dizia. As organizações sociais às vezes brigam
somente por espaços de poder deixando de lado o aspecto ideológico. Elege-se, por
exemplo, um candidato para ser deputado ou constituinte, mas temos deputados que
nunca abriram a boca, dizia. Essa era uma visão comum entre os setores de esquerda e
urbanos do MAS, na a crítica à posição dos “orgânicos” dos sindicatos contra a
esquerda da cidade, poderosa entre os quadros de governo e também entre os
constituintes.
Armando exemplificava: em San Julián tinha uma pessoa que era do MNR e
agora é deputado do MAS, ganha pelo mandato, e nunca abriu a boca. Isso é o orgânico
às vezes. No Parlamento Plurinacional devem estar os quadros políticos, necessitamos
gente que batalhe dentro. E dava o exemplo de uma dirigente camponesa de
Chuquisaca que também havia mudado para a oposição, apesar de ser indígena. O
aspecto ideológico ainda é frágil no Movimento ao Socialismo, me comentava. Para
cargos locais, alcaldes, não ser indígena ou camponês é um ponto negativo. Não temos
partido ainda. As pessoas são evistas, nos falta aprofundar. Enquanto não formos um
partido vamos ter a ambigüidade do sindicato. Armando dizia que o sindicato: agora nos
ajuda, mas vai haver desvios no futuro, porque o sindicato tem outro objetivo, o de
defender seus filiados. O partido é para tomar o poder, daí o poder da classe média para
conduzir esse processo, explicava.
Como resposta à chegada de “convidados” com uma expcita intenção de
alcançar à classe média, era comum a crítica do indianismo à exclusão dos indígenas,
crítica que se dirige especialmente ao “entorno brancóide” que havia se formado ao
redor de Evo impedindo um governo verdadeiramente indígena, ainda que alguns
setores indianistas mais radicais também negassem o caráter indígena de Evo Morales,
61
pela sua distância da língua e dos costumes comunitários. Os dois primeiros números da
revista Willka, editada por Pablo Mamani Ramírez e Quisbert Quispe (2006, 2007), se
dedica a criticar os entornos brancóides”. No segundo número, os autores propõem
uma visão da política na qual prevalece o étnico e criticam “a maioria das produções
intelectuais [que] costumam centrar-se nas temáticas econômicas e políticas, deixando
de lado a presença física ou não de indígenas no poder político […](2007: 229-234,
trad. nossa). Em seu posicionamento, situam-se na “perspectiva da plebe ou do indígena
aymara” que não buscaria atacar, senão defender Evo Morales desse “entorno” que
impediria ao presidente relacionar-se com seus correligionários indígenas
51
.
Eulogio Cayo, constituinte da comissão Estrutura do Estado, potosino, fazia a
crítica inversa aos que assinalavam a falsidade na incorporação de símbolos e
vestimentas indígenas. Falava dos “camponeses que aprendem a falar espanhol e a usar
o computador e dizem „sou q„ara‟”. De todo modo, os entendia e reconhecia que
usavam gravata para não serem marginalizados. Ele mesmo se reconhecia como
indígena (da cultura dos K'alchas) e usava terno e gravata. Havia sido professor de
escola e depois da Assembléia tinha pensado ser candidato a alcalde. Outro que faz eco
com a teoria do “entorno brancóide” é Felix Patzi, primeiro ministro de educação do
governo de Evo Morales, que renunciou depois de enfrentar professores (de esquerda) e
a igreja católica (2007:340). Em seu livro Insurgencia y Sumisión, avalia que toda a
estrutura de poder do Estado quase nada mudara, e continua sendo dominada pela elite
branca mestiça que pregara a visão unilinear da história eurocêntrica. Também via o
projeto de descolonização abandonado pelo Poder Executivo, legislativo e pela
Assembléia Constituinte.
1.3 O katarismo como teoria política da articulação entre classe e etnia.
A articulação da definição classista de povo com a definição a partir de critérios
étnicos era a primeira implementação de uma visão política chegada à constituinte do
indianismo katarista. Também daí tinha chegado o sentido adotado na Assembléia
51 Os autores assemelham o processo atual com o de 1952 no que se refere a que os que fizeram a
Revolução ficaram de fora e um grupo reduzido, entre os quais alguns que nem participaram da
Revolução, entrou ao Palácio de Governo. Outro ponto forte desta crítica é a igualação de esquerda e
direita como colonialistas e racistas, além do que se refere à língua: “Aqui os presidentes, Senadores e
ministros deveriam falar em aymara, quechua ou guarani como algo absolutamente normal. Todos os
povos do mundo o fazem em seu idioma e com todo direito”, escrevem.
62
acerca do caráter Plurinacional do Estado. O katarismo surge no trânsito entre a cidade
de La Paz e as comunidades das províncias (interior) do departamento no momento em
que as estruturas sindicais do campo quebram o “pacto militar-camponês” e aliam-se à
COB contra a ditadura militar. Junto ao declínio da COB, a visão katarista surgia e
ampliava sua base social, remetendo ao intelectual precursor do indianismo Fausto
Reynaga. Em seu livro Kataristas, Javier Hurtado (1984) narra o surgimento deste
movimento entre jovens da província Aroma, berço de líderes míticos do passado
rebelde aymara, no sul do departamento de La Paz, que, quando chegavam para estudar
ou trabalhar na cidade refletiam sobre a discriminação que sentiam na própria pele.
Entre 1969 e 1971, alguns destes jovens destacando-se Raymundo Tambo e Jenaro
Flores voltam às comunidades e rapidamente chegam ao berço do sindicalismo agrário,
substituindo os dirigentes que haviam sido parte, desde 1964, do pacto com os militares
que afastara os camponeses dos operários. A renovação consistia no surgimento da
leitura étnica da realidade, mas também à rearticulação entre classe e etnia
52
.
Hurtado narra o percurso político do katarismo surgido em Aroma, que começa
controlando centrais provinciais em 1969 e, em 1971, chega à cúpula da central sindical
nacional dos camponeses, que è proibida pela ditadura, e seria reassumida pelo
katarismo em 1978. Os dirigentes são perseguidos por Bánzer, que os manda para o
exilo. Jenaro Flores chega a ser o primeiro camponês a ocupar o mais alto cargo na
COB, ainda na clandestinidade, antes de ficar paralítico por um tiro na coluna disparado
por agentes da ditadura. Os kataristas também tirariam conclusões políticas do massacre
do Vale (Tolata 1974) que golpeava aqueles que haviam sido mais leais ao pacto com
Barrientos.
Nas origens do katarismo, Hurtado apresenta duas vertentes que surgem a partir
de leituras do nacionalista Montenegro y do indianista Reinaga: uma era indigenista, diz
Hurtado, pensando a luta índia com conteúdo racial, e a outra era também indigenista,
52 Sobre as origens do katarismo menciona-se espaços culturais e não somente políticos, como a dio
San Gabriel, com programas em aymara. Segundo lvia Rivera, eram “expressões multiformes do
assentamento índio nas cidades”. Em uma apresentação em congresso recente, enviada pelo autor,
Sinclair Thompson menciona o ressurgimento de Tupac Katari desde os 60, com os indianistas
seguidores de Reynaga que, nos bloqueios de 1979, tornam o nome de Katari parte de uma ampla
consciência histórica popular”. Também menciona os trabalhos de historiadores aymaras como Roberto
Choque, que seria vice-ministro de Evo, e da Oficina de História Oral Andina (THOA em espanhol),
também a adoção do nome Tupak Katari pela Federação Camponesa de La Paz em 1969, e a estátua ao
líder indígena que a Federação constrói em Ayo Ayo em 1971. A “serpente resplandecente” começou a
surgir à luz pública depois de um longo período de escuridão, escreve o historiador.
63
mas “recalcaria o problema camponês a partir de uma perspectiva nacional e de classe”.
Esta última é a que lugar ao katarismo nos sindicatos camponeses (1984:32-33). Em
1971 participam da Assembléia Popular de Torres (o Kerensky boliviano, diz Filemón
Escóbar) que havia chegado ao poder com um levantamento dos que chamou de “quatro
pilares”: militares, operários, camponeses e estudantes. Em 1979, os kataristas fundam a
Central Sindical Única de Trabajadores Campesinos Bolivianos (CSUTCB), até hoje a
organização sindical dos camponeses e que se integra ao instrumento político que leva
Evo Morales à presidência. Surgia desmoronando o sistema político de camponeses,
operários e Estado do qual o MNR era mediador, e a nova central se filia à COB, ainda
que já em 1979 mostra que a supera em convocatória e mantém autonomia em relação a
ela.
É a partir deste espaço político que surge a articulação sem síntese de classe e
etnia. Reproduzia uma aproximação dos camponeses com os operários que, apesar de
uma discriminação que os indígenas viam por parte dos dirigentes de esquerda, se
construíra na oposição à ditadura, nas prisões e no exílio em Cuba. A articulação era
interna à própria central camponesa, que, além dos kataristas, incluía camponeses do
resto do país onde a modernização e a idéia de mestiçagem introduzidas pela Revolução
Nacional havia sido mais exitosa que em Aroma. No próprio nome da central sindical
introduz-se a identificação de “trabalhadores camponeses”, própria da visão classista,
eliminando-se a proposta dos kataristas de que o nome do líder mítico fosse incluído na
denominação. De todo modo, o nome de Katari aparecia em distintivos e selos, e
permanece até hoje no nome das federações departamentais de La Paz e Oruro. A
chegada da visão indianista e sua articulação com a visão classista se dava como uma
introdução paulatina de componentes étnicos e descolonizadores junto à idéia de classe
que era o dado e aceito anteriormente no marco do sindicalismo herdeiro da Revolução
Nacional, com importante presença da esquerda. Silvia Rivera critica os conceitos de
vanguarda e “atitudes e gestos paternalistas e discriminatórios aos quais os kataristas
são extremamente suscetíveis”. A autora, além disso, dá conta de uma desconfiança que
era mútua, que a esquerda via o katarismo como racistas anti-criollos (2003:169 nota
46)
53
.
53 No primeiro documento do katarismo, Manifesto de Tiwanaku, de 1973, estão presentes algumas das
idéias que chegariam até a Assembléia Constituinte de 2006-2007. No manifesto elementos básicos
da visão indianista da política, com frases como “somos estrangeiros em nosso próprio país”, e, apesar
da proximidade com a COB ou justamente por isso, em suas teses fundadoras da CSUTCB se
64
Este encontro de operários e indígenas é analisado por Silvia Rivera em
Oprimidos Pero Jamás Vencidos (2003, trad. nossa), onde destaca a união a partir da
qual, pela primeira vez, “ponchos e lluch‟u rompem a monotonia dos trajes ocidentais
na sede da Central Operária Boliviana”. Esta “descolonização visual” é a marca da
Assembléia Constituinte e do governo de Evo Morales, e podemos pensar que, na
chegada dos camponeses e indígenas ao governo em 2006, se reproduz o processo de
chegada às estruturas sindicais primeiro e da COB depois, no final dos anos 70. Rivera
conta de que dirigentes operários são obrigados a falar aymara e quéchua, que eram
idiomas que muitos conservavam como língua materna, e cita o testemunho de um
dirigente que narra como os mineiros começam a visitar suas comunidades no campo,
onde, por muitos anos, os militares iam fazer política. Nesse tempo surge o grito de
“Viva Tupaq Katari!, Viva la COB!”, diz Silvia, que é o que gritaria Evo Morales em
dezembro de 2009 quando encerrava sua campanha para a reeleição junto a Pedro
Montes, dirigente máximo da COB, que passara a apoiar o governo do MAS. O
reconhecimento dos operários “a quem, no fundo, consideravam tão índios como eles”,
significa para Silvia Rivera o efeito ideológico mais importante do katarismo na COB, e
será convertido em verdade estatal quando o artigo três da Constituição inclua ambas as
formas de descrever a realidade. A importância do katarismo para a política boliviana
das últimas décadas fica clara também na sua disseminação tanto na oposição quanto na
situação, no momento do meu trabalho de campo
54
.
Do katarismo vem também a discussão sobre a estratégia dos indígenas perante
o Estado. Desde a década de 1980, setores indígenas saídos das filas kataristas
impulsionaram projetos políticos partidários, chegando primeiro ao Parlamento e depois
a outras instâncias estatais, em experiências que devem ser consideradas para
compreender o que estava em jogo na Assembléia Constituinte convocada em 2006. O
Movimento Indígena Pachakuti (MIP), de Felipe Quispe, incorporava militantes e
esclareceria que “não aceitaremos qualquer reducionismo classista convertendo-nos em camponeses” e
declaravam aceitar a colaboração e solidariedade da esquerda, na medida em que não implique
imposições de nenhuma natureza” e respeite a “independência de ordem ideológica” do movimento
camponês (Rivera 2003:154).
54 Encontramos seus protagonistas em todos os lugares políticos possíveis, por exemplo, o chanceler
Choquehuanca, o ex-ministro e candidato do MAS Félix Patzi (ainda que de forma muito minoritária no
governo), opositores liberais como ctor Hugo Cárdenas; opositores de esquerda como Pablo Mamani
no âmbito intelectual e Felipe Quispe na política, aliados críticos como o CONAMAQ, candidatos da
oposição progressista em La Paz, como Simón Yampara. Em um debate anterior às eleições de abril de
2010 organizado pela revista Pukara, vários desses caminhos estiveram representados. Conferir em:
http://periodicopukara.com/archivos/historia-coyuntura-y-descolonizacion.pdf
65
discussões do partido Movimiento Indio Tupac Katari (MITKA), de Luciano Tapia e
Constantino Lima, que seria resistente às alianças com partidos “mestiços”. O primeiro
antecedente era o Partido Índio da Bolívia (PIB), do próprio Fausto Reynaga. Mas o
principal partido surgido do katarismo seria o Movimento Revolucionário Tupaq Katari
(MRTK), depois MRTKL (agregando o “L” de Libertação), que consegue dois
deputados (Víctor Hugo Cárdenas em La Paz e Walter Reynaga em Potosí). Aproximar-
se-ia primeiro do governo da UDP, de esquerda e de organizações sociais, convidaria
como candidato a vice-presidente o dirigente mineiro Filemón Escóbar; para depois se
aproximar do MNR de Sánchez de Lozada, com o discurso de fazer reformas por dentro
e situando Víctor Hugo Cárdenas como vice-presidente em 1993
55
.
Xavier Albó desenvolveu a figura dos “dois olhos” para explicar o indianismo
katarista (en STERN, 1990) em que um olho se orienta para a classe e a opressão das
classes, e o outro para a discriminação étnica das nações. Em Mestizaje cabeza
abajo…(2002) Javier Sanjinez considera esta dupla dimensão no discurso de Felipe
Quispe, o qual promove um “Estado dos trabalhadores e da união socialista das nações
oprimidas”. Quispe assume a direção da CSUTCB e desde 2000 hostiliza os governos
neoliberais com bloqueios de estradas e mobilizações. Sanjinez o discurso de Quispe
como “a mescla do extermínio indígena com a luta de classes”, com um apelo a
“aymaras, a quéchuas, e a outras nacionalidades indígenas para a criação de uma nova
pátria mãe, a „União das Nações Socialistas do Qullasuyu‟ […] sob a égide do
coletivismo e do comunitarismo […] agregando às idéias de Fausto Reinaga à luta de
classes” (:147 trad. nossa). Em 2000 Felipe Quispe tinha criado o partido MIP, pensado
como o braço político da CSUTCB que liderava
56
, que tinha se dividido em dois galhos,
sendo o outro afim de Evo Morales.
O enfrentamento de Quispe contra o governo democrático do ex-ditador Hugo
Bánzer, em 2000, deu uma popularidade exponencial a seu discurso da república
aymara e república de brancos como “duas Bolívias”, inclusive com a célebre resposta,
na televisão, à jornalista de La Paz Amália Pando, de que se rebelava para que a filha
55 Jenaro Flores, dirigente histórico do katarismo, deixaria este partido por diferenças com outros
dirigentes e formaria o FULKA. Em seus estatutos, o MRTKL incluía formas andinas de organização, como
a dualidade, a rotação e o controle coletivo dos líderes, e seria fundado no lugar onde Katari foi
esquartejado pelos espanhóis, em um ritual de sangue. Víctor Hugo Cárdenas se identifica com a
proposta de uma democracia intelectual que combine o comunitario com o liberalismo (em entrevista
de CALDERON 2002).
56 Ver Quispe em: http://www.ft.org.ar/Notasft.asp?ID=1127
66
dele não tivesse mais que ser empregada a serviço dela (cf. MANTILLA 2002). Um ano
depois, Quispe teria seu momento de auge com o levantamento da região aymara
controlada por ele e a formação do Quartel General Indígena de K‟ala Chaca, com um
Exército Indígena Comunal que expulsou as forças estatais da ordem e ocupou as
instituições administrativas junto a bloqueios no altiplano com vistas a expandir-se e
marchar para La Paz. García Linera tivera contato com Quispe desde a década de 80,
quando ambos apostariam pela sublevação armada operário-indígena para a tomada
do poder, primeiro nos ayllus vermelhos”, com trabalhos em minas e no Chapare,
dando lugar à Ofensiva Vermelha dos Ayllus Kataristas, e seu braço armado, o EGTK
(Exército Guerrilheiro Tupak Katari), talvez o único movimento armado do continente
que propôs combinar indianismo e marxismo. A organização seria desarticulada com a
prisão, em 1993, de Quispe, García Linera, Raquel Gutiérrez, o futuro constituinte
Macario Tola e Juan Carlos Pinto, responsável em 2007 pela Representação
Presidencial para a Assembléia Constituinte (REPAC).
Depois de cinco anos de prisão viria o período protagonizado por Quispe na
CSUTCB, com uma rivalidade com Evo Morales que na ocasião era visto como líder
apenas regional do Chapare. Em um artigo Indianismo e Marxismo (2008a), García
Linera distingue três correntes indianistas: a de Quispe, do nacionalismo aymara, que vê
como o verdadeiro questionamento ao Estado colonial como superação da crítica que
havia feito à mentalidade do movimento operário que sai de cena com a Marcha pela
Vida em 1986. “Sob esta visão”, escreve Linera, “o indígena aparece não como um
sujeito político, senão também como um sujeito de poder, de soberania” e propõe “um
Estado que, por esta presença índia, terá que constituir-se em outro Estado e outra
República”. Outra vertente é menos urbana, e se relaciona com “os discursos políticos
integracionistas, que reivindicam o ser indígena como força de pressão para obter
reconhecimentos na ordem estatal vigente”. E a terceira é a vertente “culturalista”, que
se refugia no âmbito da música, da religiosidade e que é denominada de
pachamámicos” (trad. Nossa).
Em Pueblos Indios en la política (2002), complementando com uma entrevista
que realizei em 2009, Xavier Albó narra a trajetória de Felipe Quispe como líder da
CSUTCB depois de 2000, e sua complementariedade/rivalidade com Evo Morales, que
Albó descreve como realização ou quebra do ayni (reciprocidade) entre aymaras,
seguindo a seqüência de bloqueios coordenados ou não acompanhados entre as regiões
controladas por Quispe e Morales. Ambos comandavam massivas mobilizações, Quispe
67
falando de tomada aymara do poder e Evo Morales contra a política de “coca zero” de
erradicação da produção da folha no Chapare iniciada por Bánzer e seguida com
violência pelo seu vice-presidente Tuto Quiroga, que assumira o cargo antes da morte
do ditador, e que seria o líder do PODEMOS, principal agrupação de oposição ao MAS
na Assembléia Constituinte.
Albó também escreve sobre um favor do governo a Felipe Quispe vinculado
com o título de historiador de seu filho Eusebio, que haveria aparecido no momento em
que se destravava uma difícil negociação, e Quispe dava o seu apoio a Wilberto Rivero
como candidato a ocupar o novo ministério de assuntos indígenas. Nesse momento, se
falava de Felipe Quispe como candidato à vice-presidência do MIR, mas o Mallku
desmentiu com uma boa saída: ele seria é candidato a presidente e mandaria Jaime Paz
(o verdadeiro candidato) ao ministério de assuntos de brancos”
57
. Ouvi vários
comentários em tempos de Assembléia Constituinte sobre qual seria o destino do
Mallku, que em algum momento se calculava que iria ser o primeiro presidente
indígena: “deixou a política e estava plantando nabo”, ou também “dizem que o Mallku
está só indianista e deixou o marxismo”. Tentou reaparecer com distintos projetos
políticos e candidaturas mas também demonstrou externalidade com o jogo político no
qual entrou o MAS. Para as eleições de 2009 Evo Morales convidou-o a somar-se, mas
ele respondeu com críticas ao entorno brancóide que controlaria o governo no lugar de
Morales. Quando foi deputado, buscava criticar a etiqueta da instituição, sentando-se em
um pedaço de couro, como no campo. Renunciou antes de terminar o mandato.
como candidato à vice-presidente de Evo Morales, García Linera não fala de
Indianismo e Marxismo, mas de “Evismo, indianismo e Marxismo” (2006, com primeira
versão de 2005, trad. nossa). Refere-se ao indianismo como o que “coesionará uma
massa mobilizável, insurrecional e eleitoral, conseguindo politizar o campo político e se
consolidando como uma ideologia com projeção estatal”. Distingue então a variante
radical, liderada por Quispe, que constitui um indianismo nacional aymara” com o
57 Cenas que fazem parte destes anos são as das disputas pelo controle da CSUTCB, negociações
unilaterais ou conjuntas com o governo, a expulsão de Evo Morales do parlamento considerando-o
narco-terrorista e a intervenção da embaixada dos Estados Unidos apoiando a disputa contra a folha de
coca e Evo Morales. Também a foto do Mallku, Evo Morales e Oscar Olivera, líder da guerra da água de
Cochabamba, saindo do apartamento de García Linera e mostrando a unidade que o governo estava se
empenhando em romper com dinheiro para dirigentes e também com outros métodos. Rivero tinha
sido Ministro de Asuntos Campesinos y Pueblos Originarios de Banzer. Sua relação com Quispe está
vinculada às tentativas do governo de negociar de forma separada com os líderes dos protestos do
Altiplano e Chapare.
68
“projeto de indianização total das estruturas de poder político”, e também do que seria
uma variante moderada de indianismo liderada por Evo Morales com um “discurso
„campesinista‟” que foi adquirindo conotações mais étnicas nos últimos anos […] com
um leque de alianças flexíveis e plurais […] um projeto de inclusão dos povos indígenas
nas estruturas de poder e dando maior ênfase em uma postura anti-imperialista” (trad.
nossa).
García Linera define esta vertente como indianista de esquerda “pela sua
capacidade de reunir a memória nacional-popular, marxista e de esquerda formada nas
décadas anteriores, o que permitiu-lhe uma maior recepção urbana, multissetorial e
plurirregional, fazendo dela a principal força parlamentar da esquerda e a principal força
eleitoral municipal do país”. No artigo citado, García Linera chama de evismo aquilo
que, com certa licença interpretativa, considera o “indianismo” do MAS. Em outra
entrevista (Stefanoni, Ramírez e Svampa :2008) o explicará como “indianismo flexível
capaz de convocar aos setores não indígenas, mestiços, setores médios e urbanos”, em
um “projeto de auto-representação da sociedade plebéia e dos movimentos sociais que
rompem as estratégias anteriores de luta pelo poder”, que propõe um “nacionalismo
expansivo, uma nação com „unidade na diversidade‟” (trad. nossa).
Mas, se o universo político do indianismo katarista não é o que marca o governo
de Evo Morales e os camponeses, devemos reconhecer a força do projeto indianista para
além da participação concreta de alguns quadros kataristas em áreas específicas (cultura,
chancelaria, justiça comunitária) e avaliar seu rastro no governo do MAS especialmente
a partir de importantes pontos introduzidos no novo texto constitucional. Além de ser o
marco ideológico da definição do povo boliviano, combinando classes sociais com as
nações indígenas, será do katarismo de onde chega até a Assembléia Constituinte a
proposta do Estado Plurinacional. Xavier Albó lembrava em uma conversa, que o
primeiro Congresso no qual se funda a CSUTCB foi clandestino, em um cinema que
agora é estacionamento para carros, e que o segundo foi em democracia, em 1983,
grande e bem organizado. Nesse Congresso, a “tese” política que se apresenta é a do
Estado Plurinacional. Víctor Hugo Cárdenas, que era dirigente do katarismo, no entanto,
disse à Albó (com quem trabalhou por oito anos na ONG CIPCA), que, em 1978, o
termo era usado no sentido de entender como nações os povos aymara, quéchua,
guarani, moxo, etc. Xavier Albó conta também a anedota de que, por influência de
Cárdenas, Gonzalo Sánchez de Lozada, propôs o Estado Plurinacional no comício de
fechamento da campanha para a primeira eleição que ganhou, em 1993, e levou o
69
katarista à vice-presidência. Por isso Albó dizia que “o Plurinacional não é uma
invenção do Evo contra as autonomias como dizem os cambas
58
”.
Isto pode ser encontrado nos principais documentos do katarismo, como a sua
tese de fundação em 79, que diz: “os camponeses aymaras, qhechwas, cambas,
chapacos, chiquitanos, moxos, tupiguaranis e outros somos os legítimos donos desta
terra. Somos a semente de onde nasceu a Bolívia e somos os desterrados em nossa
própria terra. Queremos reconquistar nossa liberdade interrompida em 1492, revalorizar
nossa cultura e com personalidade própria ser sujeitos e não objetos da nossa
história…”. Na tese de 1983, incluída como anexo no livro de Silvia Rivera (2003,
trad.nossa) se diz: “somos herdeiros de grandes civilizações. Também somos herdeiros
de uma permanente luta contra qualquer forma de exploração e opressão. Queremos ser
livres em uma sociedade sem exploração nem opressão organizada em um Estado
plurinacional que desenvolva nossas culturas autênticas e formas de governo próprio”
59
.
Segundo lix Patzi (2007:46), depois da crise pelas disputas de partidos de
esquerda, ONGs e o katarismo pela CORACA, a CSUTCB se divide em dois grupos:
um defenderia uma posição classista pelo socialismo (Víctor Morales pelo Movimento
Camponês de Base) e outro pluri-multicultural (de Jenaro Flores, Víctor Hugo
Cárdenas, etc.). Silvia Rivera faz referência a um processo do qual foi testemunha,
quando, depois do segundo Congresso da CSUTCB, em junho de 1983, buscava-se
convocar um encontro de “ayllus e autoridades originarias”, o que terminou em fracasso
(2003:51). Miguel Urioste, diretor da Fundação Terra, menciona as propostas políticas e
econômicas da CSUTCB, na qual se falava em “colonialismo interno” e em
“plurinacional”, mas, para ele, ainda com a terminologia campesinista, na época da
abertura democrática que marca também o recomeço do contato entre organizações
camponesas e ONGs para financiar e assessorar (Urioste 2007:l,li,lii). Félix Patzi
menciona também que, ao entrar na década de 90, a leitura classista da vanguarda
58
“Cambas” refere às pessoas naturais de Santa Cruz, mas as vezes tem um sentido diferente de
“crucenho”, sendo não inclusivo dos “collas”, quéchuas e aymaras.
59 Em seus primeiros congressos depois da volta da democracia, em 1983 e 1984, a CSUTCB, dirigida
pelo katarismo, elaborará também o projeto da Lei Fundamental Agrária, que manteria como
reivindicação por anos. Depois criaria a Corporação Agropecuária Camponesa (CORACA), seu “braço
econômico”, em um contexto de disputas de facções. Estas ações antecipam outra linha que levará a
Assembléia Constituinte, e que tem a ver diretamente com o sustento das comunidades, antes que com
as demandas de inclusão, crítica ao racismo e propostas de descolonização, ainda que estejam
vinculados. Algo disso confluirá nas discussões e críticas à elaboração da Lei INRA aprovada em 1996
e no projeto de recondução da reforma agrária aprovado em tempos de Assembléia Constituinte, em
2006, que serão importantes antecedentes para a discussão de terra e território na Constituição.
70
proletária e o caminho ao socialismo ia cedendo espaço aos discursos de
autodeterminação ou pluri-multiculturalidade. Os sindicatos que seguem Quispe na
vertente da autodeterminação e distanciados de acordos com outros partidos, propondo
estados independentes de quéchuas e aymaras. A vertente “pluri-multi” tem mais
contato com intelectuais mestiços, a esquerda, a igreja e ONGs, e uma de suas versões
entrará no Estado e se traduzirá em políticas durante a vice-presidência de Víctor Hugo
Cárdenas.
É interessante que o katarismo lugar primeiro a uma versão multiculturalista
que se articula com um governo neoliberal, e depois, junto ao MAS, a superação dessa
mesma matriz política faz o projeto plurinacional se articular com políticas nacionalistas
de aumento da intervenção do Estado. Durante o mandato de Goni e Víctor Hugo
Cárdenas, se lugar a reformas constitucionais que incluem o caráter “pluricultural e
multiétnico” da Bolívia, reconhece as Terras Comunitárias de Origem (TCO) para os
indígenas e lugar à educação bilíngüe, junto a políticas de descentralização e
participação das organizações de base na política municipal. García Linera critica, na
prisão, estas políticas impulsionadas pelo MNR, em um número dos Cadernos de
Discussão de Chonchocoro, em 1993, intitulado El “pluri-multismo” o el vergonzoso
asimilacionismo burgues
60
. Segundo Patzi, os mestiços de esquerda “se deram conta
que a proposta „pluri-multi‟ era a única teoria de confraternização que podia permitir a
convivência entre dominados e dominantes. Por isso se apropriam desta proposta
convertendo-a em algo próprio”.
Nas suas fundamentações, o projeto de Estado Plurinacional das organizações
sociais na Assembléia era, em primeiro lugar, um desdobramento que vinha da matriz
katarista e incorporava a crítica ao projeto de homogeneização cultural identificado com
a Revolução Nacional e também à visão classista da esquerda moderna. O projeto
buscava operar em uma contra-homogeneização que fosse na direção oposta à da
unidade cultural da mestiçagem como identidade nacional imposta desde 1952, como o
monoculturalismo espanholizante introduzido a partir da escola e do serviço militar,
com participação da igreja e do camponês como identidade que se impunha através de
60 Em indianismo y marxismo (em 2008a) García Linera escreveria que as “políticas de Estado de
reconhecimento da multiculturalidade contrapõe a identidade indígena autônoma assentada nos
sindicatos *…+ a uma caleidoscópica fragmentação de identidades, de ayllus, de municípios e etnias”. E
esse processo seria o que explicaria, para o futuro vice-presidente, um deslocamento das lutas sociais
do altiplano aymara às zonas cocaleiras do Chapare onde o discurso de tipo camponês complementado
com componentes culturais indígenas não seria preso do multiculturalismo, como nos Andes.
71
sindicatos junto à introdução da economia de mercado fragmentando a propriedade
comunitária do ayllu. Em segundo lugar, além disso, o projeto do Estado Plurinacional
se distinguia da experiência das reformas da década de 90, consideradas
multiculturalistas e, portanto, um reconhecimento meramente teórico das diferenças,
não realmente descolonizador e marcado pela sua cumplicidade com a república liberal.
Pode-se pensar então que a nova proposta incorporava também o
reconhecimento da autodeterminação que na década anterior havia permanecido fora do
programa político do katarismo “pluri-multi”. O ar de família do katarismo, contudo,
conectava todas estas variantes que no Pacto de Unidade, e na Assembléia também,
articulariam-se com outras vertentes contidas também no espaço político abarcado pelos
constituintes do MAS. Além da inclusão dos indígenas em lugar central, como vemos
na definição de povo boliviano, a nova Constituição estabeleceria em seu primeiro
artigo, depois da caracterização do Estado como Plurinacional e Comunitário, que “a
Bolívia se funda na pluralidade e no pluralismo político, econômico, jurídico, cultural e
lingüístico, dentro do processo integrador do país”.
No segundo artigo, a marca katarista pluricultural, combinada com a luta pela
autordeterminação, agregaria a declaração de que: “Dada a existência pré-colonial das
nações e povos indígena originário camponeses e seu domínio ancestral sobre seus
territórios, é garantida sua livre determinação no marco da unidade do Estado, que
consiste no seu direito à autonomia, ao autogoverno, à sua cultura, ao reconhecimento
de suas instituições e a consolidação de suas entidades territoriais, conforme esta
Constituição e a lei”. Em outros artigos se garantem as crenças espirituais “de acordo
com suas cosmovisões” e se oficializam “todos os idiomas das nações e povos indígena
originário camponês”.
2 A vírgula que separava indígenas de camponeses; e o ayllu do sindicato.
2.1 Os “indígena originário camponeses” no projeto de Constituição.
Antes de chegar à fórmula final na definição de povo boliviano, o rascunho da
Constituição se referia a “nações e povos indígena originário e camponeses”, com um
“e” entre “indígenas originários” e “camponeses”. Isto não conformava aos constituintes
72
oriundos das fileiras dos sindicatos camponeses, nem às organizações do campo da base
do MAS, que viam na separação entre originários e camponeses a discriminação dos
camponeses como não indígenas, modo no qual eles também se identificavam. Os
desejos de descamponesar de setores do katarismo críticos ao processo de transformar
comunários em camponeses desde os anos 50, se choca com a realidade concreta de
camponeses que não tinham problemas com essa forma de denominação, nem com
manter suas propriedades individuais de terra, e eram companheiros do MAS e do
processo de mudança contra o neoliberalismo e pela descolonização.
Concretamente, os camponeses da CSUTCB e os “colonizadores” que haviam
migrado em busca de terras, não queriam deixar de ser reconhecidos como indígenas,
porque se reconheciam como quéchuas e aymaras mas também não queriam deixar de
estar presentes como camponeses. E se opunham, então, a que na definição de povo
boliviano fossem separados das nações originárias e povos indígenas por uma vírgula
(“,”), que podia significar a perda de direitos e porque não correspondia a como eles se
auto-identificavam. Ao mesmo tempo, tampouco queriam deixar de lado a categoria
com que foram identificados e inventados, inclusive por eles mesmos por meio
século. A crítica ao “projeto da campesinización não impedia que seguissem operando
as explicações do mundo que muitos haviam incorporado, e que implicava também na
apropriação positiva inclusive como brasão de luta do termo camponês.
A discussão derivava do tema de como, nos últimos anos, os sindicatos
camponeses e o próprio Evo Morales começam a assumir uma identidade indígena,
sem deixar de lado a de camponeses. Era uma situação distinta à do Peru, onde a
identidade camponesa nas serras era, até pouco tempo, unânime, o que pode ter a ver
com a influência do katarismo em Bolívia, mas também sem dúvida com a amplitude
numérica do indígena comunitário nesse país. Com a identificação de camponeses como
indígenas se revertia a direção do processo dominante no século XX, marcado pelo
mandato “modernizante” de “integração do índio à vida nacional”, o que implicava
deixar de lado não um reconhecimento étnico (que na verdade se construiria depois),
mas instituições, formas culturais, políticas e organizativas concretas, próprias da vida
comunitária. Revertia-se um processo que, na realidade, nunca chegou a ser completo
mesmo com os esforços estatais em acabar com a lógica comunitária (e apropriar-se das
terras coletivas) como assinalava um constituinte no debate que narra a história política
recente da Bolívia: “as bases seguiram falando as línguas originárias e agora estão
recuperando sua identidade indígena”.
73
O Pacto de Unidade, que havia elaborado o projeto de Estado Plurinacional,
continha esta tensão em seu âmago. Estava conformado de forma mais permanente por
três organizações “matrizes” camponesas (a CSUTCB, os “colonizadores” e a Central
de Mulheres Camponesas Bartolina Sisa) e por duas organizações matrizes de
originários e indígenas (CONAMAQ, das terras altas, e CIDOB, das terras baixas). Em
função desta divisão no mundo político boliviano, a união de indígenas e camponeses
aparecia em primeira instância como contra natural. As duas metades do Pacto de
Unidade mostravam suas diferenças na cotidianidade de suas relações na Assembléia, e
o próprio Evo Morales havia feito referência à diferença de status das distintas
organizações quando, na reunião “para afinar o projeto”, em Cochabamba com os
constituintes, disse que ao falar da Assembléia Constituinte “os indígenas são os
impulsionadores, e os camponeses os que se mobilizarão e a defenderão”. CONAMAQ
e CIDOB eram organizações indígenas que formavam o Pacto de Unidade e apoiavam o
processo de mudança liderado por Evo Morales, mas não eram “orgânicos” do MAS
nem participavam de seus Congressos e instâncias de decisão. Como organizações não
formavam parte do Estado e ainda que houvesse alguns (poucos) constituintes da
CIDOB e do CONAMAQ entre os constituintes eleitos nas listas do MAS a relação era,
em vários pontos, tensa e conflitiva. Mas ao mesmo tempo o que se via neste processo
constituinte é que ambas partes se uniam.
Para muitos da oposição, a identificação de camponeses como indígenas era algo
como um golpe ou engano dos que procuravam privilégios. Uma definição ampla e
genérica do ser indígena não era, para essas pessoas, compatível com a participação em
instâncias políticas estatais e também não com o uso de relógio, roupa moderna ou
óculos. Apesar das raízes étnicas dos camponeses, que em muitos casos inclusive
conservavam a língua e outras tradições, até para alguns constituintes do MAS
camponês e indígena tratavam-se de categorias não assimiláveis. Na reunião de
constituintes revisando o projeto, o advogado potosino Víctor Borda opinava que
camponeses e indígenas deveriam permanecer como sujeitos separados porque “os
camponeses não são pré-colombianos, são de 1952”. Jose Lino, de Tarija, não estava de
acordo e respondeu-lhe que uns e outros “temos as mesmas raízes”.
As tensões entre as organizações indígenas e camponesas tinham a ver
diretamente com o rumo do projeto de Estado Plurinacional. O mesmo era o marco de
um projeto que ia acompanhado de medidas que os camponeses e colonizadores
pareciam não acompanhar ou, em alguns casos, rejeitavam explicitamente. Durante a
74
Assembléia, as organizações indígenas CIDOB e CONAMAQ reclamavam da falta de
acompanhamento por parte da outra parte do Pacto de Unidade em reivindicações que
para eles eram elementos fundamentais do projeto de Estado Plurinacional, como a
autonomia indígena, a representação direta, e o reconhecimento da propriedade coletiva,
entre outras. E podemos perguntar por que esta tensão, quando vimos que a CSUTCB é
criada pelos kataristas que se distanciam do projeto de Estado de 52 impulsionado pelo
MNR e continuado pelos militares, e que desenvolve propostas que são antecedentes
diretos do Estado Plurinacional. O certo é que o indianismo katarista que funda a
CSUTCB trinta anos antes da Assembléia explica o Pacto de Unidade e a aproximação
entre camponeses e indígenas, mas como organização sindical que se expande a nível
nacional, incorpora também a herança da reforma agrária, a campesinizacióne a
mentalidade moderna que se organiza ao redor do sindicato. A CSUTCB rompe em
1979 com as organizações camponesas anteriores, que se encontravam ligadas ao
Estado do MNR e dos militares, mas passou a ser a estrutura sindical que ocupava o
mesmo lugar das centrais anteriores, com as mesmas bases que tinham sido submetidas
ao projeto de transformar comunarios” em camponeses bolivianos, falantes de
espanhol, e pequenos produtores com propriedade individual.
Para entender a CSUTCB nos momentos da Assembléia e a ambigüidade da
discussão ao redor da vírgula na definição de “povo” devemos ir além dos kataristas
que conseguiram em 1979 criar uma nova central sindical (a CSUTCB) englobando sob
seu controle todo o sindicalismo camponês nacional, e mantendo-se na direção dele até
1988. A força política que isso significou permitiu-lhes enterrar definitivamente o pacto
militar-camponês iniciado por Barrientos em 1964, mas de maneira natural o núcleo de
dirigentes originados em Aroma perderia coesão e se veria exposto a outras visões
políticas com as quais deveria conviver. De algum modo, os kataristas na CSUTCB
dirigiam um âmbito que não era o que mais se ajustava à sua visão política, como se
evidenciaria quando com o passar do tempo se desenvolveria uma crítica política clara à
forma sindicato. Rivera escreve que “o sindicato como modalidade única de
organização significava introduzir a herança clientelista, populista e homogeneizadora
do modelo cidadão e negar de fato o pluralismo cultural e organizativo das sociedades
indígenas reais. Nessa medida, a CSUTCB se isolou das organizações indígenas da
Amazônia e das autoridades étnicas de regiões como o norte de Potosí, o ocidente de
Oruro e inclusive o altiplano e vales de La Paz e Chuquisaca, onde a presença sindical
75
resultou artificial e não esteve isenta de práticas prebendarias e civilizatórias herdadas
do sindicalismo mestiço da etapa 1952-64” (2003).
Silvia Rivera escreve também acerca de que o próprio katarismo foi vítima de
“efeitos perversos emanados da articulação liberal-populista-colonial, reproduzindo
práticas que acabaram contradizendo sua própria ideologia pluriétnica” (2003:50). Este
contexto permite entender as posições que encontrávamos entre camponeses que a
CSUTCB dirigida até 2010 pelo mestiço de Santa Cruz Isaac Ávalos, vinculado ao
comércio de terras, à Confederação de Colonizadores da Bolívia, dirigida por Fidel
Surco, com uma empresa de transporte nos Yungas de La Paz. Suas posições internas
no Pacto de Unidade distavam do indianismo katarista clássico que havia fundado a
central e, antes, se aproximava em suas posições a esse nacionalismo popular que deriva
da revolução de 52, da que também boa porção do governo de Evo Morales fazia parte.
Seriam CONAMAQ também derivada do katarismo e CIDOB dos povos das
terras baixas as organizações que exigiriam, junto a alguns poucos constituintes,
aprofundar, desenvolver e transversalizar a idéia de Estado Plurinacional, que se
buscava que não fosse um rótulo meramente declarativo. A tensão era vivida no Pacto
de Unidade e no interior da CSUTCB como uma tensão entre um modelo político
moderno, acompanhado de uma identidade indígena genérica e difusa, e a busca das
tradicionais formas culturais e políticas indígenas e era criticada freqüentemente como
“folclorismo”. A fórmula que superava estas diferenças e juntava a todos os quéchuas,
aymaras, guaranis e membros de outras etnias em uma única categoria englobante, era a
de “povos e nações indígena originário camponesas”, incluída pelos constituintes no
projeto de Constituição e que não permitia manter as diferenças no texto constitucional
que os camponeses e indígenas que chegaram ao Estado em 2006 redigiam.
A fórmula que unia em um único nome sujeitos sociais diferentes e também em
distintas formas de ser indígena implicava uma amplitude conceitual que permitia
incluir grupos étnicos nômades junto a comunidades camponesas com propriedade
individual. Esta variação, para muitos, trazia o risco de que o indianismo menos
genérico, que conservava modos de vida comunitários, se diluíra na falta de definição
do indígena, que incluía também camponeses mestiços modernizados, e assim havia a
possibilidade, alguns alertavam, de generalizar para grandes quantidades de camponeses
(majoritários nos seus municípios) os regimes de direito especiais que em outros países
só eram pensados para aplicar em populações minoritárias. Este era o medo da oposição
do MAS na Assembléia, que criticava a idéia de Estado Plurinacional como regime
76
etnocrático que excluiria os mestiços e os deixaria sem garantias nem Estado de Direito
frente aos excessivos direitos outorgados a excessivos indígenas.
Adolfo Mendoza, assessor das Bartolina Sisa, contribuiu na criação do novo
nome de “povos e nações indígenas originário camponeses”, que se incluiria em grande
quantidade de artigos do projeto de texto constitucional elaborado pelo MAS. Ele
defendia a fórmula em uma das tantas reuniões com constituintes na revisão do projeto.
A defendia afirmando que não importava o nome, e sim o sujeito social, se tratava de
um sujeito com os três nomes de indígena originário e camponês, “como se fosse falado
Luis Pedro Enrique José Maria Jorge”. Os nomes tinham a ver com a denominação
cultural histórica de cada setor e dava o exemplo de seu nome, segundo nome e dois
sobrenomes, que não iam sendo separados por vírgulas quando assinava. Hernán Ávila,
do CEJIS e próximo às organizações das terras baixas, explicava que o termo
“camponês” fazia referência à atividade, mas internacionalmente se reconhece como
referente à identidade originária, pelo que se havia adotado a fórmula de “indígenas
originário camponeses” como acordo do Pacto de Unidade. A constituinte Isabel
Domínguez, executiva das mulheres camponesas da Bolívia, dizia na discussão que “se
trairmos um artigo vamos receber justiça comunitária, vamos ser wasqueados
[golpeados com chicote]. Somos originários, não menonitas ou brasileiros. Tiramos uma
proposta com as organizações”.
O Pacto de Unidade era a união das organizações que a definição também
juntava, e que permanentemente ironia políticas nas discussões, piadas ou formas de
entender a identidade indígena separavam. Entre os constituintes que protestavam com a
nova fórmula se encontrava o caso dos que vinham de comunidades camponesas que
não se identificavam como indígenas, notadamente de Tarija, um dos departamentos
com mais baixa porcentagem de população indígena (18% em censo 2001). Por outro
lado, a identidade camponesa continuava tendo seu atrativo para muitos na CSUTCB
que criticavam organizações como CONAMAQ por “querer voltar ao passado” e dar
lugar a um discurso “importado por ONGs estrangeiras”. Atribuía-se ao próprio Evo
Morales, o mandato de que na Constituição “não ponham indígenas em todos os lados”
e que “parem com o indigenismo”. Sobre isso Hernán Ávila do CEJIS dizia que pouco a
pouco a CSUTCB vai perdendo do CONAMAQ e que eles sabem… muitos
consideravam com tom crítico que agora convinha ser indígena. Era conveniente para
conseguir terras, diziam certos setores. Evo Morales era um dos que, saindo da
comunidade, se convertera em camponês colonizador, para mais recentemente recuperar
77
a identidade indígena, apesar de não falar línguas originárias nem viver no marco de
obrigações comunitárias do ayllu. Por isso, tanto a partir do indianismo nacionalista
aymara como dos setores conservadores se denunciava que o caráter indígena de
Morales seria falso.
As tensões entre organizações camponesas e indígenas levavam freqüentemente
a que se duvidasse da força e da viabilidade do Pacto de Unidade. Hernán Ávila contava
que em fevereiro os assessores do pacto se reuniram em Santa Cruz, CEJIS dominou as
reuniões e desde então não tinham voltado a conversar. Comentava que o trabalho no
projeto de Constituição foi retomado pelo Bloco Oriente sem os camponeses, e somente
quando Isaac Ávalos viu que esse trabalho era reconhecido, os camponeses voltaram ao
Pacto para apoiá-lo. Em maio de 2007, se reuniria novamente o Pacto para aprovar a
proposta que havia sido formulada em agosto de 2006, e organizar a reunião em
Cochabamba com constituintes e Evo Morales. A reunião é importante porque recoloca
o Pacto como ator político do processo constituinte, depois de que a sua presença
política tinha minguado e sua existência se manteve porque a sua morte não havia
sido decretada, apesar de não ter havido mais reuniões nem instâncias de coordenação.
A volta de colonizadores e camponeses e o apoio à proposta cuja base era na verdade
mais próxima às propostas da CIDOB e do CONAMAQ que das organizações
camponesas, daria o ar político necessário para converter a proposta em base de texto
constitucional do MAS em várias comissões. Junto à proposta dos ministérios e de
especialistas, este foi um insumo importante para o trabalho de redação da Constituição.
O assunto da crescente ascensão da identificação indígena, podia ser visto entre
as mulheres camponesas da Confederação Bartolina Sisa, que modificaram o nome da
sua organização incluindo a palavra “indígena” junto à de camponesas
61
. A variação na
nomenclatura dos povos indígenas na Constituição se sentiu também na redação do
projeto de capítulo de autonomias entre os constituintes do MAS. Era uma reunião na
casa da secretária da Comissão, Magda Calvimontes, e se tratava sobre a denominação
das unidades territoriais. Estas eram formadas por população mais território, dizia um, e
mencionava o importante que foi o território para que os judeus se desenvolvessem
como nação. Por derivação da discussão da composição do povo boliviano, as Unidades
Territoriais Indígenas, se chamariam Unidades Territoriais Indígena Originária
61 A mudança em consonância com a nova Constituição era de Federação Nacional de Mulheres
Camponesas da Bolívia, “Bartolina Sisa”, para Confederação nacional de Mulheres Camponesas
Indígenas Originárias da Bolívia “Bartolina Sisa”. http://www.bartolinasisa.org/
78
Camponesas (que substituiriam as anteriores Terras Comunitárias de Origem
estabelecidas em 1994, incluindo o conceito mais integral de Território). Os Municípios
poderiam ser também Indígena Originário Camponeses, e também existiria a
possibilidade de que houvesse Região Indígena Originário Camponesa, se essas
unidades acessassem à autonomia indígena. Durante a leitura do projeto alguém pedia
que não se “encapsulasse” os indígenas no município, porque “podem ser mais do que
isso”. Dependeria de que dois terços dos moradores assim o definissem em referendo,
ainda que na busca do consenso com a oposição o presidente houvesse definido que não
se modificassem os limites territoriais. Tratava-se então de pensar uma redação que não
fechasse essa possibilidade para o futuro.
De igual modo, se havia definido que a região indígena não poderia superar os
limites do departamento. “Com isso nos deram cheque-mate”, dizia Iván Égido,
assessor da CIDOB. Adolfo Mendoza explicava que era uma decisão política de outra
ordem. “Faz cinco anos que nos falam bonito”, havia queixas sobre a decisão. E alguém
lembrava as declarações da oposição a favor, provocativamente, de que um
departamento pudesse também, por dois terços dos votos, converterem-se em
departamento indígena. O faziam porque Santa Cruz se mostrava indiferente ao que se
passava com as maiorias indígenas no altiplano, mas um constituinte do MAS dizia:
“por que não o tomamos?”. Sobre as conseqüências que teriam no país as discussões
que estavam sendo sustentadas, alguém colocou o exemplo de Tarija, com 12
municípios: “nem sempre vai haver reconstituição, onde ganha o movimento popular
será camponês e indígena, onde não, nos entram pelo lado do território”. E havia
dúvidas quanto à região, um assessor dizia “se colocamos região, poderão enganar como
o PODEMOS com as províncias, que é mas não é”. Chamemos unicamente Território
Indígena Originário Camponês. Os do CONAMAQ queriam que o nome fosse por
denominação cultural histórica de cada comunidade.
Por outro lado, a CSUTCB e os “colonizadores” lembravam que eles estavam
conformes com a figura de município, pediam então que quando se definisse unidades
territoriais não as misturassem às nações e povos. Era uma crítica à disputa principal do
CONAMAQ, que buscava “descolonizar” os termos das unidades territoriais,
substituindo o termo sindicato por ayllu. Agora viam que município também devia
substituir-se pela unidade comunitária tradicional correspondente. O ayllu, que
substituía o sindicato, substituiria também o município, com uma concepção que
integrava território e organização comunitária correspondente. A CIDOB também
79
intervinha no debate, com seus assessores e dirigentes, esclarecendo que nem sempre
seus territórios coincidiam com o município, e que deveria chamar-se somente
“território indígena” para que não fosse ocupado por camponeses que comprem ou
vendam a terra. Mas um constituinte opinava que se deveria colocar a palavra
“camponês” para que não se inviabilize, porque a CSUTCB não permitiria que fosse
somente indígena. Novamente aparecia o problema de que muitos camponeses não
queriam deixar de serem considerados indígenas originários.
Enquanto continuavam com a leitura do projeto de informe de Comissão, os
constituintes encontravam que se fazia referência a “povos indígenas originários e
comunidades camponesas”, separando os dois sujeitos novamente. Adiantando a
discussão que citamos, mas que na realidade teria lugar dias depois na bancada do
MAS, o assessor Iván Égido sugeria que se modificasse para “indígena originário
camponês”, que era o acordo ao que havia chegado o Pacto de Unidade. Mas Pablo
Zubieta pedia que a decisão se postergasse até que estivesse na reunião alguém “da
Única” (CSUTCB) presente. Junto com Magda opinavam que se devia manter o “e”
separando povos indígenas e comunidades camponesas. Iván Égido dizia que era um
acordo de meses de discussão. Criticava a idéia de camponês com a imagem de que na
mesma “entro eu que tenho terras, ou teu pai com sua fazenda. Camponês é qualquer
um que vive no campo, quando se tratava de beneficiar os indígenas ou camponeses
com pouca terra”.
Jorge Saunero, assessor da CONAMAQ, pedia, por sua vez, não confundir a
criação de entidades com a reconstituição que sua organização promove. E considerava
também que os camponeses “não querem assumir, mas também têm história”. Falava de
um “debate histórico com camponeses”. A redação do artigo incluiria que “a
conformação de entidades territoriais indígenas originárias camponesas se baseia na
reconstituição de seus territórios ancestrais e na vontade de sua população expressada
em consulta democrática conforme as suas normas e procedimentos próprios de acordo
com a Constituição e com as leis”. Jorge pedia que no projeto, para quando se
convertesse um território indígena, se fizesse referência à preexistência da colônia. De
modo contrário, qualquer camponês poderia reclamar o território. Os representantes das
organizações camponesas não concordavam com que os limitassem; e explicavam que
também haviam perdido terras que eram suas antes da colônia. Alguns camponeses e
colonizadores se assentam em territórios não ancestrais, mas pediam o direito a
reconstituir territórios, assim como os ayllus originários. Para não impedir essa
80
possibilidade dever-se-ia falar de “entidades territoriais indígenas originárias e
camponesas”.
O que pediam os camponeses era que se estabelecesse, sim, uma diferença com
“os camponeses menonitas ou dinamarqueses” (os primeiros tinham alguns
assentamentos com grandes extensões de terra no Oriente), para que eles não fossem
beneficiados. Na redação do artigo haviam eliminado o termo “ancestrais”, para
considerar aos colonizadores ou os camponeses tarijeños sem assentamento continuo
desde tempo pré-colonial. A conformação de entidades territoriais basear-se-ia na
reconstituição de territórios, retirando a palavra ancestrais”. Mas deste modo se estava
abrindo a porta para que “os menonitas reconstituam”, alguém advertia alarmado. A
menção a indígenas originários camponeses impediria essa possibilidade e,
aparentemente, ao final da reunião, havia-se chegado a um acordo: “todos coincidem?”,
perguntava o constituinte que tinha a seu cargo o computador com o arquivo definitivo
do texto.
Sobre a consulta para que uma entidade territorial se convertesse em indígena, o
CONAMAQ pedia que se retirasse o termo “democrático” para a consulta, que os
procedimentos tradicionais de eleição podiam não se ajustar a essa definição. Também
pedia que se mencionassem os termos originários para as unidades territoriais: ayllus,
markas e suyos. Mas o constituinte percebeu que não era possível mencionar somente
alguns nomes, e não outros, como tentas e capitanias, usados pelos guaranis nas terras
baixas. Alguém propunha mencionar todos os nomes. Um assessor do CONAMAQ
enxergava o problema e queixava-se de que nas terras baixas não houve o projeto de
reconstituição que eles desenvolviam no ocidente. “O processo nos pegou de calças
curtas”, dizia. Mas armou-se uma discussão forte na casa da constituinte do MAS que
servia de sede da reunião entre constituintes da Comissão de Autonomias e as
organizações. Um assessor da CIDOB respondeu a outro do CONAMAQ: “é uma
opinião pessoal estar de calças curtas. E é decisão de vocês que tenha que ser ayllu para
ser indígena, mas não podem impor aos outros”. Mencionava também a comunidade de
Sacón Pampa, que o CONAMAQ não havia reconhecido porque mantinham o nome de
sindicato. Os chiquitanos chamam de capitania, ainda que seja um nome dado pelas
missões, porque a eles lhes serve assim, continuava. E pedia mais responsabilidade à
organização aliada de CONAMAQ. Sua posição era de que não se incluísse os termos
indígenas, porque seria como pôr na Constituição o nome dos departamentos. Mas o
constituinte Pablo Zubieta discordava lembrando que os ayllus têm nomes específicos.
81
E se queixava: “se não vai o termo ayllu terei que explicar em Oruro que assim foi pela
vontade da CIDOB”.
Finalmente as autoridades originárias do CONAMAQ presentes aceitaram que
no projeto do MAS se dissesse “nome ancestral que corresponde”, sem especificações.
Tata Víctor fez menção às lutas de anos e pediu desculpas pela discussão. “Viemos de
coração aberto”, dizia. Lázaro Tacoó, um dos lideres da CIDOB, pedia “que nos
respeitemos” e comentava que eles estavam contentes com nome “cabildo”. No Oriente
não falamos de reconstituição, mas avançamos nisso com as TCOs, dizia. Magda
dizia aos indígenas que ela tem muito a aprender com eles para defendê-los e festejava
seu “acerto” em ter chamado Isaac Ávalos, executivo da CSUTCB, e Adolfo Mendoza,
assessor das Bartolinas, porque antes, dizia, estava sozinha na reunião pela defesa dos
camponeses. Tinham trabalhado o capítulo do projeto de “autonomia de povos e nações
indígenas originárias camponesas” que, para o cruzenho Saúl Ávalos, presidente da
Comissão, deveria resumir-se a “autonomia indígena” para quando se fizesse
propaganda ou se falasse com os meios de comunicação.
2.2 Ayllu e sindicato.
As tensões na elaboração do projeto de Constituição em Sucre refletiam as
disputas das organizações matrizes nas comunidades. Tem a ver com o choque entre
perspectivas políticas distintas, que a conjuntura da Assembléia Constituinte e a
chegada do MAS ao governo tinham conseguido amenizar, mas que ainda existia e
tinha repercussões na Assembléia. A controvérsia vinculava-se à crítica que vinha do
katarismo à forma sindical como estrutura alheia às comunidades, imposta a partir de
uma concepção monocultural. O sindicato foi estabelecido pelo governo do MNR
obrigatoriamente como meio de conseguir terras, depois da Reforma Agrária de 1953.
Também era proibido o uso de vestimentas tradicionais, com o argumento de que
remontava à servidão de índios anterior à revolução. Os índios seriam camponeses.
A crítica a este processo, presente no nascimento da CSUTCB, impulsionou
também o surgimento do Conselho Nacional de Ayllus e Markas do Qullasuyu
(CONAMAQ), em 1997 (a partir de trabalhos nas comunidades iniciados anos antes),
com o projeto de reconstituição de territórios ancestrais muitos deles fragmentados ou
usurpados pelo regime de Fazenda de mais de cem anos atrás e de recuperação do
ayllu e das formas tradicionais de governo comunal às vezes vigentes; às vezes,
82
recriadas. A organização CONAMAQ tinha como projeto de larga escala a busca da
reconstrução do Qullasuyu, parte sul do Império Inca, baseando-se em mapas coloniais,
em reconstruções históricas e no trabalho nas comunidades, com oficinas e atividades
dirigidas nesse sentido. Os objetivos do CONAMAQ à época da Assembléia eram
conseguir incluir na Constituição o direito à livre determinação, para exercer o
autogoverno e a autonomia das nacionalidades e dos povos indígenas originários; com a
meta de alcançar o Sumaq Qamaña (Viver Bem), conceito que foi introduzido na
política pelo katarista Simón Yampara, segundo ele mesmo. Os modos para obtê-lo:
reconstituindo o território, restituindo as autoridades do ayllu, e fortalecendo o governo
do Qullasuyu
62
.
Segundo Xavier Albó, o discurso do CONAMAQ “conseguiu dar certo” e pôde
aproveitar a simpatia de ONGs internacionais à sua proposta indígena. Ao mesmo
tempo, as ONGs ignoravam a CSUTCB, porque “se esqueciam do katarismo”, e os
viam somente como sindicatos a que se reporta seu nome. O crescimento do
CONAMAQ também se viu beneficiado, segundo Albó, pelo caráter autoritário de
Felipe Quispe quando dirigia a CSUTCB, de onde “expulsava todos os que não estavam
com ele”. O CONAMAQ teve um momento de crise quando se dirigiu a Bánzer, em
2000, querendo se diferenciar do Mallku com o discurso de que “não são politiqueiros”.
Quem acedeu a aquele encontro com o ex ditador, Vicente Choquetilla, foi deposto em
Oruro, e desde então a organização tinha crescido e incorporado autoridades dos ayllus,
deixando de lado moradores urbanos de La Paz e Oruro que tinham estado na origem da
organização.
O CONAMAQ era uma das organizações sociais mais ativas durante a
Assembléia Constituinte, com observadores em várias Comissões e acompanhamento
permanente e local em Sucre. Os princípios que se buscavam recuperar ou reforçar no
trabalho comunitário eram os da dualidade-complementaridade; da rotação; da
reciprocidade; e da redistribuição. Antes que o governo do MAS entregasse ao
CONAMAQ uma casa que lhe serviria de sede em La Paz, em 2008, seus técnicos
62 O CONAMAQ era dirigido por um conselho de autoridades originárias que representavam os
seguintes ayllus reconstituídos: Jach’a Karanga; Jatun Killaka Asanajaqi; Charka Qhara Qhara; CAOP;
Ayllus de Cochabamba; Jach’a Pakajaqi; Sura; Uru; Kallawaya. Também estavam os seguintes suyus em
processo de reconstituição: Larikaja; Chuwi; Comunidades de Tarija; Yampara; Qulla. Tinham-se somado
o Povo Afrodescendentes e os migrantes andinos de Yapacaní. Veja-se:
http://www.fondoindigena.org/apc-aa-files/74656d706c6174653132333435363738/Plan-
CONAMAQ.pdf e http://www.conamaq.org.bo/
83
trabalhavam na sede de uma ONG, com parte de seu financiamento proveniente da
Dinamarca, motivo da crítica mais comum ao CONAMAQ por parte das organizações
camponesas, em referencia à influencia de supostos interesses estrangeiros. O
CONAMAQ encontrava-se no Pacto de Unidade, com organizações que apoiavam o
governo, mas mantinha sua independência e foi crítico em algumas conjunturas. Em
2007, suas bases e organizações locais viviam disputas internas entre setores afins do
governo, setores independentes e setores próximos ao alcalde de Potosí, René Joaquino,
do partido Aliança Social.
Mais recentemente, o CONAMAQ foi crítico do neoliberalismo e defensor do
desenvolvimento integral e da proposta de Estado Plurinacional Comunitário. As
organizações tinham uma idéia clara do que seriam as nações do Estado Plurinacional,
porque é assim que a colônia espanhola tinha traduzido seus suyus. Jesús Jilamita, um
dos principais técnicos que trabalhavam para o CONAMAQ, tinha participado de
processos de reconstituição num dos primeiros suyus de Oruro em iniciar esse processo,
e os comparava às províncias que era o modo em que os cronistas espanhóis tinham
chamado às parcialidades indígenas do Qullasuyu. Jesús mostrava um mapa no qual se
justapõe o a Bolívia atual arredores com os suyus, que são, por sua vez, integrados por
markas, que costumam ter variações de dialeto e que, por sua vez, são formados pelos
ayllus (a comunidade local, com antepassado comum). A idéia de dezesseis suyus
ideais, que o CONAMAQ buscava reconstruir, baseava-se no Memorial de Charcas de
1552, dezesseis anos depois da chegada dos espanhóis. As organizações camponesas
eram muito genéricas na delimitação de nações e consideravam a totalidade de quéchuas
e aymaras como nações específicas. O CONAMAQ considerava que a nação ou
nacionalidade que compõe o Estado Plurinacional conjuga as variáveis de população,
território, governo e identidade cultural.
A organização cresceu com um discurso alternativo ao da CSUTCB, nas suas
diferentes vias de luta pela autodeterminação aymara e na luta camponesa entendida
como avanço dos Vales pelo controle do Estado. O CONAMAQ tinha um projeto de
grande escala, mas seu trabalho era, sobretudo, em nível local, com articulações
regionais que igualavam CONAMAQ com as organizações dos povos das terras baixas,
também no Bloco Indígena e no Pacto de Unidade. Assim, o objetivo era antes a
autonomia e não a disputa pelo poder estatal. Uma diferença importante com os
camponeses colonizadores de da CSUTCB era a crítica à relação com os partidos
políticos que eram considerados, assim como os sindicatos, organizações modernas e
84
alheias à comunidade. Mas o conflito mais forte com os camponeses ocorre nos lugares
onde o ayllu e as autoridades originárias rivalizam com o sindicato. A reconstituição do
ayllu foi realizada em muitos casos a partir da estrutura do sindicato. Por isso alguns
criticam que se trate somente de uma mudança de nomenclatura enfeitada com roupas
folclóricas. O CONAMAQ corresponderia à central sindical, e os suyus e markas às
federações departamentais e subcentrais de províncias. O CONAMAQ, claro, via que a
mudança era a descolonização. Em algumas comunidades, porém, persistiam as
estruturas sindicais em tensão com as do ayllu.
Essa era a grande diferença que separava indígenas originários camponeses:
enquanto o sindicato se focava na perspectiva classista ou na herança da Revolução
Nacional, os originários do ayllu consideravam a questão étnico-cultural como
fundamental. Por isso, a questão da vírgula (“,”) nas discussões dos constituintes
implicava a possibilidade de união de perspectivas políticas diferentes, ainda que
unidas conjunturalmente no Pacto de Unidade; no apoio à chegada de Evo Morales ao
governo; e na convocatória da Assembléia Constituinte. O projeto de reconstituição do
ayllu era criticado pelas organizações camponesas como política localista e
fragmentadora, além da acusação ao CONAMAQ relativa à influencia estrangeira,
devido ao financiamento de ONGs e à cooperação internacional. Por sua vez, a
CSUTCB era vista como apegada à visão dos anos 1950 e 1960, com vínculos fortes
com o clientelismo e com as máquinas partidárias do poder do Estado. O CONAMAQ
desenvolve sua posição política de certa forma como continuidade às reflexões do
katarismo, ainda que, para isso, precisasse se opuser à organização na qual surgiu o
indianismo que a inspirava
63
.
Os assessores técnicos que estavam em Sucre trabalhando junto com as
organizações indígenas das terras baixas e CONAMAQ tinham uma posição crítica aos
camponeses. Na reunião em Cochabamba entre os constituintes, organizações e Evo
Morales (maio de 2007), colonizadores e camponeses tinham demonstrado seus
observações com o projeto do Pacto de Unidade chamando ao fim das discussões e
buscando deixar de lado pontos essenciais para o CONAMAQ do projeto de
63 Neste sentido, Silvia Rivera, que foi assessora da CSUTCB, quando controlada por Jenaro Flores, e que
participou do THOA, também vinculado à origem do CONAMAQ, considera o impacto do projeto estatal
monocultural a partir de relações de encontro-desencontro entre a multiplicidade do social e a unidade,
a partir do choque da comunidade com o Estado e o sindicato, e a partir do sindicato, como espaço de
unidade do social “introduzindo uma pressão homogeneizadora da diversidade que cobiçava em seu
seio”(2003:100).
85
Constituição do MAS, como o reconhecimento da pré-existência e da propriedade
exclusivamente coletiva para os territórios. “A CSUTCB não dizia nada na reunião e, no
dia seguinte, disse que não estava de acordo”, queixava-se um desses assessores, e outro
agregava “estão arraigados à lógica de 1952-53 e não aceitam o plurinacional”
64
.
Mas a diferença de perspectivas não correspondia à realidade das comunidades,
onde havia, sim, oposição e disputas entre as macro-organizações; mas havia também
articulação, convivência e transformação fluida. Os constituintes consideravam essas
variáveis quando falavam de suas comunidades de origem. Jimena Leonardo, por
exemplo, constituinte de pollera que impulsionaria a Justiça Comunitária, tinha
participado de estruturas tradicionais de mando à ocasião da convalescência de sua mãe,
quando acompanhou seu pai no mandato dele como autoridade originária. Ao mesmo
tempo, integrava a estrutura da Federação de Mulheres Camponesas de La Paz como
dirigente, e testemunhava que sua comunidade era reconhecida como ayllu, mas
convivia com comunidades vizinhas organizadas em sindicato, e tanto uma quanto as
outras assistiam a reuniões sindicais e também às convocadas por CONAMAQ. Sua
província era “metade ayllu, metade sindicato”, dizia. Em sua própria comunidade,
alguns iam quando o CONAMAQ chamava; outros, quando quem chamava era a
CSUTCB ou a Federação Departamental Tupak Katari. Porém, a comunidade estava
representada em ambas as instâncias. Isso mesmo pode encontrar quando acompanhei
dois constituintes a uma comunidade de sua circunscrição, em Oruro, na sala onde
expunham o avanço do trabalho, sentavam-se lado a lado autoridades originárias e
dirigentes sindicais, diferenciados pelas jaquetas de couro no caso de uns, e de ponchos
por cima das roupas no caso de outros.
Um constituinte aliado do MAS, Chuy Veizaga, que tinha sido eleito numa
comunidade que se reconhece como parte de CONAMAQ, sempre vestia um ll‟uchu
(chapeu) tradicional e tinha percorrido todos os ayllus de sua circunscrição em um
miniônibus de sua propriedade, acompanhado de um companheiro que agora era seu
assessor na Constituinte, mas que ficava a maior parte do tempo fazendo trabalho
político na região. Esperanza Huanca assistia também com vestimenta tradicional e
provinha de um ayllu do CONAMAQ, numa área do norte potosino em que, apesar da
64 Uma tese de 1999, citada por Regalsky (Andolina en REGALSKY 2003), dá conta destas rivalidades em
relação à idéia do plurinacional. Andolina diz que assembléias alternativas para imaginar e construir um
novo Estado, chamado Estado Plurinacional, foram neutralizadas desde o início pelo partidismo político
no interior na autoridade máxima da CSUTCB, com ajuda das ONGs religiosas.
86
relação com as minas, nunca se perdera a organização comunitária. Em sua pesquisa
sobre organizações sociais, García Linera (et al 2004) distingue três situações que se
encontram nas relações entre o CONAMAQ e a CSUTCB. No primeiro caso
(especialmente em Oruro e no norte de Potosí), a institucionalidade do ayllu está
presente porque nunca deixou de existir. No segundo caso, depois da revolução de
1952, o sindicato foi adotado e agora há um retorno às formas originárias, mas a
fidelidade organizativa às estruturas macrorregionais é variável: “em determinados
momentos responde à representação do CONAMAQ para negociar algumas exigências
às instituições do Estado, entretanto, em tempos de mobilização, pode responder à
convocatória da CSUTCB”. Na terceira situação, “a relação entre sindicato e ayllismo é
problemática, na medida em que as estruturas organizativas disputam a adesão das
comunidades” (2004:329, trad. nossa).
A crítica que García Linera tinha feito à classe operária em seu artigo sobre a
Marcha de 1986 e que tinha encontrado superada com a Guerra da Água e, depois,
com Felipe Quispe, junto a quem estaria politicamente ligado até 2004 era também
direcionada à estratégia “ayllista” de CONAMAQ
65
. Na crítica daquela organização ao
sindicato, García Linera enxergava uma “leitura formalista e literal das diferenças”,
porque, na realidade das comunidades, os sindicatos tinham mantido as formas
tradicionais de governo. Para García Linera, “há ocasiões em que o sistema de
autoridade do ayllu se apresenta como uma artificialidade alheia, sustentado no apoio de
ONGs e de vizinhos de povoados ou residentes urbanos”. Algo parecido sustentava
Félix Patzi, quando, afastando-se da crítica do CONAMAQ ao sindicato, dizia: “o
sindicato foi danoso em nível supracomunal, isto é, da central agrária para cima
(federações provinciais, departamentais e confederação nacional). Todas essas
instâncias se estruturam sob a gica da separação da sociedade civil e da sociedade
política, onde os dirigentes flutuam por cima das bases”. Mas considera a comunidade
blindada desta política e o projeto de reconstituição do ayllu impulsionado pelo
65 García Linera assinala que o que separa estas organizações são as estratégias políticas perante o
Estado. Enquanto a CSUTCB indica a tomada do poder estatal pela sublevação, para instaurar um
governo indígena em escala nacional, o CONAMAQ indica uma defesa dos direitos locais dos ayllus em
troca de reconhecimento e legitimação histórica da estrutura estatal dominante.” (Linera et al
2004:336).
87
CONAMAQ como idealização, “já que o sindicalismo imposto a partir de 1952 havia
dizimado as formas organizativas de poder do ayllu
66
.
Esta sobrevivência do ayllu por trás do sindicato será crucial para entender o
momento político atual na Bolívia. A emergência étnica dos sindicatos camponeses e
colonizadores tinha essa base material. Enquanto projeto de chegada ao governo de
estrutura republicana, podemos pensar que se reproduzia, em nível estatal, a relação
entre comunidade e estruturas políticas modernas nos últimos 50 anos com a
perspectiva classista, o pacto com os militares, a chegada do neoliberalismo e as
reformas multiculturais. Omar Guzmán tinha trabalhado junto com os camponeses em
Cochabamba e visitava Sucre para intervir no debate das comissões e participar em
reuniões que buscavam reviver o Pacto de Unidade em momentos de crises. Falava do
caráter sindical e camponês do MAS, com a influência do marxismo dos anos 1960, que
pensava o campesinato como atividade econômica equivalente à de mineiros e
operários, e que pensava o indígena fora deste esquema, como economia de
subsistência.
Guzman acreditava que o CONAMAQ tinha surgido para quebrar a CSUTCB e
dividir o movimento camponês. Longe da crítica ao sindicato como ranço colonial, via a
CSUTCB como organização anticapitalista que surge por meio da luta operária e,
depois da Revolução Cubana, mantendo isto em sua essência e na sua estrutura. E, por
isso, parecia-lhe importante destacar as Bartolinas e a CSTUCB, por sua perspectiva de
classe que vem da revolução de 1952, com um discurso mais consistente que não gerava
rejeição, “como falar do tempo de antes da colônia”, como o CONAMAQ. Omar
defendia que a perspectiva cultural não reconhecia a luta de classes e lembrava que “a
transformação não é no céu, mas na terra”. A partir de sua experiência com os
colonizadores de Cochabamba, Omar encontrava mais potência política no universo
quéchua dos sindicatos camponeses do que entre os aymaras. Considerava o
CONAMAQ uma organização capitalista, lembrando que os primeiros que introduziram
a mercadoria na Bolívia foram os aymaras, por meio do comércio, e mencionava as
66 Patzi escrevia que “no interior das comunidades, o sindicato tinha a mesma função que
ancestralmente eram designadas às autoridades originárias, ainda que tivesse sido retirado o poncho e
o chicote; isto é, conservavam a rotação, mas as hierarquias seguiam com leves alterações. Da mesma
maneira, o exercício de um cargo sindical continuava sendo obrigatório, tal como está instituído para as
autoridades ‘originárias’ e é requisito básico para ascender aos diversos recursos existentes na
comunidade. Ou seja, temos um panorama no qual diversos cargos políticos foram habilmente
submetidos pela lógica comunal, assinalando-lhes um nome ‘moderno’: sindicato”.
88
fábricas e as maquiladoras de El Alto, com exploração entre os próprios familiares.
Como técnico dos colonizadores, Omar tinha tentado que as organizações sociais não se
subordinassem a um partido mas tinha perdido, dizia, e via então que as organizações
eram um braço do MAS, e não o MAS um braço das organizações. Omar via que,
apesar da influência do marxismo, o MAS jamais havia proposto a revolução classista
mas sim, antes, “que o Estado não seja tão merda”, com políticas de bônus que
considerava “placebos”.
As autoridades originárias de Pakajes, no departamento de La Paz, e dos ayllus
da província Bolívar, em Cochabamba, mostravam um matiz interessante entre as
realidades que o CONAMAQ abrangia. A primeira era um exemplo bem-sucedido de
reconstituição do ayllu; a segunda o ayllu convivia de forma paralela ao município,
controlado por autoridades sindicais. Num evento para discutir as autonomias, o “tata
autoridade” de Pakajes explicava que se tratava de levar ao da letra a autonomia que
já existia, e que, por acordo do CONAMAQ, a autonomia seria em nível de marka ou de
suyu, e não de ayllu, e deveria deixar para trás o município. Eles tinham enterrado o
sindicato dia 13 de setembro de 1997. Explicava que, atualmente, para algumas coisas
articulavam com o município e que para outras, não; ou gradualmente. Depois de ter
reconstituído, o passo seguinte foi a gestão territorial. Estavam inventariando os
recursos naturais com GPS, e tinham contratado duas consultorias. Os recursos naturais
eram administrados em nível de suyu, e havia um Poder Executivo de Mallkus, e outro
legislativo de amautas (sábios), que, havendo autonomia, iria ocupar-se das leis.
Pakajes tem 10 mil quilômetros quadrados e 50 mil habitantes, mas o governo não quis
reconhecer o território como TCO, explicavam.
O Mallku de Pakajes contou que, apesar de ter enterrado o sindicato e eliminado
sua personalidade jurídica, quando Felipe Quispe formou seu partido, em 2002, o
sindicato tinha voltado, e por isso existiam duas estruturas. Mas eles de CONAMAQ
tinham legitimidade e o sindicato teve de se incorporar, disse. Enxergava a CSUTCB
ligada ao sistema e “acamponesada”, enquanto eles vinham resistindo quinhentos
anos, dizia. Os de Carangas, em Oruro, tinham substituído o sindicato, mas em Orinoca,
terra natal de Evo Morales, estavam voltando. Em Pakajes, os objetivos incluíam exigir
participação no diretório das explorações mineiras do COMIBOL e uma porcentagem
para “empreender o desenvolvimento” e recuperar a cultura milenar. A longo prazo, o
projeto era somar mais territórios às dez markas ancestrais iniciais, que formavam parte
do suyu original do qual Pakajes é a cabeça, mas que tinha sido desestruturado. Para o
89
desenvolvimento produtivo, os recursos que chegam pela Lei da Participação Popular
(de 1996) não eram suficientes e, por isso, tinham alianças estratégicas com vice-
ministérios, financeiras e universidades. Nossos antepassados usavam ouro, prata e
vestes, “era igual”, refletia.
Os ayllus de Cochabamba queixavam-se do município, que era o único executor
de recursos na sua região. Uma mulher que acompanhava as autoridades, como
assessora ad honorem, explicava que os alcaldes não tinham conhecimento dos
processos de reconstituição e faziam escolas, estádios de futebol, latrinas ou canais,
assessorados por ONGs, mas não faziam o que queria o povo. A visão é a do Banco
Mundial ou a das Nações Unidas: qualquer um que ganhe as eleições se enquadra nas
leis e nos financiamentos. Nas instâncias de controle e de gestão participativa (também
estabelecidas na lei de 1996), são todos homens e todos dirigentes sindicais. E como são
do partido, elegem pessoal do MAS para o comitê de vigilância e dizem “não escrever
carta para o presidente, não criticar o partido”, porque pensam em ser deputados no
governo, ou fazem uma festa e tudo se resolve. Toda a província é TCO, explicava, mas
não o podem conseguir o título da propriedade porque existe oposição dos próprios
comunários e do sindicato. O município não quer se tornar autônomo porque dizem que
as autoridades iriam a substituir o sindicato. A estratégia dos comunários de
CONAMAQ é não entrar no governo municipal, porque não se pode fazer nada por
meio das leis. Queixava-se que os que eram eleitos abriam seu escritório e se esqueciam
de tudo. “Nós estamos na reconstituição, e não na luta eleitoral, e nos trombamos na
parede feito moscas”, dizia. “Não querem saber nada dos ayllus”. “Nós também somos
indígenas”, dizem os do sindicato, “os ayllus não têm lugar”. Mas como estamos fora,
dizia CONAMAQ, “fazemos controle social e temos uma visão que não é
desenvolvimentista, mas de sumaq qamaña” (Viver Bem).
Enquanto as comissões da Assembléia estavam em sessão, em junho de 2007,
outro encontro do CONAMAQ, em Sucre, era fechado por Jesús Jilamita, que
apresentava um informe às autoridades, Mama Qállas y Tata Mallkus. Eram momentos
críticos, porque se temia que muitas das propostas ou reivindicações do CONAMAQ
saíssem do projeto do MAS na Assembléia, em seu afã de conseguir consenso com a
oposição. “Temos 16 constituintes do MAS e de outros partidos não inimigos”, avaliava
Jesús, “dos quais onze são de ayllus integrantes do CONAMAQ, mas só dois estão aqui,
na reunião. Muitos dos constituintes propostos pelo CONAMAQ e incluídos nas listas
de partidos não respondiam mais à organização, nem assistiam às suas reuniões, e não
90
„baixavam‟ para dar informes. Não nenhum constituinte nosso na Comissão de Terra
e Território”, criticava Jesús àquilo que via como erro técnico. “Na Terra e Território
trata-se da reconstituição, que é central para nós”, dizia às Tata autoridades. “Mas nem
tudo foi fracassos”, continuava. Avaliava que se tratava de um momento histórico que
não se iria repetir em muito tempo. “Há quatro meses, que incidência tínhamos?”,
perguntava. E considerava: “temos avançado”
67
.
No CONAMAQ, pensava-se, em tempos de Assembléia Constituinte, convocar
o II Congresso Indigenal (o primeiro tinha sido em 1946), que era uma proposta que
circulava nessa época e que servia para perguntar o que os povos querem com território,
autonomia e recursos naturais. Jesús observava que a imprensa não noticiava as
propostas da organização, apesar dos comunicados, para que as pessoas não tivessem
medo. Não tinham publicado a proposta de que os originários das terras altas pudessem
ter terras fiscais no Oriente. No CONAMAQ, criticava-se uma lei que terra por
proximidade e nos deixa de lado”. Também criticava o termo “adjudicação” para as
dotações de terra, o qual é o termo espanhol para arrematar terras. No dia seguinte ao
evento, haveria um Acullico (mascada coletiva de coca) que aconteceria na Recoleta de
Sucre, por se tratar de uma data astrológica importante. Utilizar-se-ia o espaço para
reclamar inclusão das propostas do CONAMAQ nas comissões: “temos que assentar
nossa posição”. Os da CIDOB, das terras baixas, contudo, não sabiam se assistiriam, e
alguns do CONAMAQ viam-se no jogo de aceitar custos para não haver brigas dentro
do Pacto com os camponeses. A autoridade para o ato seria o Mallku do suyu Qhara-
Qhara, porque Sucre está no território desse povo. Este deveria definir se somente as
autoridades ou todos os comunários deveriam estar presentes na cerimônia, ao nascer do
sol. O horário não era o melhor para convocar a imprensa, mas a convidariam para o
final.
O CONAMAQ tinha feito do ayllu um tema político, ainda que, como disse
Javier Hurtado, todo ressurgimento aymara baseia-se sempre na defesa da língua e do
ayllu. Baseava-se na crítica ao sindicato surgida de setores intelectuais vinculados ao
katarismo. O conceito de ayllu, de fato, ia além do conceito de sindicato, referindo-se
também à unidade territorial comunitária. Como se, além de um significado paralelo ao
67 No projeto do MAS tinha entrado o reconhecimento da pré-existência à côlonia, a autonomia que
não deveria ser somente administrativa, mas, sim, entendida como reconstituição de territórios
ancestrais e o direito à consulta, defendido junto com a CIDOB. Sobre a demanda de uma
“transterritorialidade” que permita reconstruir um território fragmentado por províncias e
departamentos, essa tinha sido acolhida pela Comissão de Autonomias, mas ainda havia resistências.
91
do Estado, representasse também o de nação, com o vínculo de nascimento e de
parentesco entre seus membros. A crítica de que era uma mudança de nomenclatura
tem a ver com o fato de o sindicato geralmente ser, na Bolívia, mais do que um
sindicato, embora o ayllu contivesse de forma mais explícita o desejo descolonizador
que às vezes se poderia expressar por meio do sindicato, mas que, com o projeto de
reconstituição, tinha um significado unívoco crítico das estruturas modernas como o
partido, o município e também o sindicato. Apesar dos desenvolvimentos desiguais
entre os diferentes territórios, a partir de uma homogeneidade cultural diferente e de
uma persistência também variável das instituições comunitárias, o projeto de retorno do
ayllu consolidava-se como modelo alternativo de gestão e de organização política. E
seria a proposta da autonomia indígena a forma de avançar em seu desenvolvimento,
integrando-se na estrutura do Estado Plurinacional.
O CONAMAQ apresentava esta proposta como modelo objetivo para ser
aplicado ou reforçado e recuperado nas comunidades que se somaram ao processo
político de reconstituição. Os elementos deste modelo não eram exclusivos do
CONAMAQ, faziam parte da política comunitária e era comum escutá-los nas
discussões da Assembléia Constituinte como parte de uma linguagem comum nas
regiões rurais da Bolívia. Além do código ético-moral dos incas, de não mentir, não
roubar e nem ser preguiçoso a que alguns kataristas tinham agregado “não seja llunku
(bajulador, puxa-saco) incluía-se a rotação, a dualidade e a complementaridade entre
homens e mulheres e entre comunidades. Para obras de risco, escavações, limpeza,
estradas, recorria-se à minka, trabalho comunal de raízes pré-colombianas, utilizado
pelos incas e também pelos espanhóis, ao ayni ou reciprocidade, e ao Muyu ou turno.
Pensa-se a minka como trabalho que se faz com prazer, mascando coca, como um
encontro festivo, diferente de outros trabalhos. Em Carangas, explicava-se que se o
Mallku é uma boa autoridade, ninguém foge do trabalho comunitário, mas se é “fajuto”,
sim. Diziam também que, com os planos sociais do governo, tinha-se debilitado,
“porque agora dão dinheiro para tudo, até para fazer plano de latrina”. Nos ayllus de
Cochabamba, diziam que o trabalho comunitário continuava forte, principalmente em
época de colheita. Quando não dinheiro para as festas, faz-se ayni, e quando chegam
os convidados com bebidas registra-se se o fazem como ayni ou como presente. Se é
ayni tenho que ir dançá-lo, comê-lo, e retribuí-lo depois de anos.
Em Charcas, diziam que, para eles, a reconstituição não é ir para trás, mas pegar
elementos que permitam melhorar nosso sistema de vida. Além do Muyu, mencionava-
92
se o Thaqui, que é a carreira política, que começa com pouca responsabilidade e vai
ascendendo. Uma crítica a Felipe Quispe, escutada algumas vezes, era que adquiriu o
título de Mallku quando estava na prisão, sem ter feito toda a carreira, em parte por ter
migrado jovem para Santa Cruz, onde trabalhou como operário da construção civil. No
projeto de Constituição, o MAS buscava incorporar a democracia comunal e estes
mecanismos. Alguns propunham que fosse válido também para a administração estatal.
Uma autoridade de Charcas Qhara-Qhara explicara que a idéia do sistema é não
concentrar funções, com autoridades para a justiça, para o governo, além dos amautas,
como um conselho de anciãos. Além disso, havia decisões que correspondiam ao
Cabildo. Em Charcas, um conselho de Segundos ocupar-se-ia do legislativo, onde se
designa um executivo, com autoridades para o Suyu (Mallku), a Marka (Khuraka) e o
Ayllu (Segundos Mayores). Além disso, o Cabildo tem um Jilakata como autoridade.
Para pensar o processo de conversão em autonomia indígena, pensava-se
codificar este sistema e, a partir da cooperação, falava-se de quantificar e talvez
monetarizar este trabalho. No entanto, existia um consenso majoritário de rejeitar
salários para autoridades e outros pagamentos, ainda que houvesse um interesse
importante em conseguir financiamento para projetos. Nos ayllus de Cochabamba,
dizia-se que sindicato é sinônimo de alcaldia e que nos municípios não havia minka
mas, sim, mercantilismo. As autoridades pedem verba para pagar lanche, contratam um
motorista. Um sistema importado, nas terras ancestrais. Para conseguir financiamento
para projetos, alguns ayllus ou suyus tinha recorrido à cooperação internacional, a
ministérios e até mesmo a financeiras privadas, porque os municípios dizem que “isto
não é da nossa competência”. Mas alguns comunários questionam “para que vamos nos
sentar para tomar um cafezinho com os irmãos das ONGs?”. Com a autonomia
indígena, pensavam que seria mais fácil atrair recursos para obras nos ayllus, como o
manuseio de camélidos (lhamas), banheiros na escola, conservação do solo e das bacias,
etc. Enquanto, em Charcas, esclareciam que, se houvesse dinheiro, haveria corrupção,
ainda que fossem autoridades originárias, em Oruro agregavam que, para fiscalização e
controle, também se deveria empregar a minka, o ayni e o muyu.
3 Povos das terras baixas, colonizadores e afrobolivianos.
O sujeito coletivo chave de “nações e povos indígena originário camponeses”
contemplava os povos indígenas, e os camponeses que reconheciam sua herança
93
originária. Além de na definição de povo boliviano, em um dos primeiros artigos do
projeto de Constituição, a fórmula se repetiria em várias partes do texto, como no que
diz respeito aos “territórios indígena originário camponeses”, à “jurisdição indígena
originária camponesa” de justiça, etc. Mas um importante setor social, os
“colonizadores”, não se sentiam incluídos. Partindo da crítica à folclorização ou do
modo como os camponeses colonos que não se reconheciam como indígenas se
identificavam, por exemplo em Tarija, a unificação de indígenas e camponeses, sem
vírgulas, trazia problemas. Os “colonizadores” eram uma das organizações mais fortes
na base do MAS, e uma das principais colunas do campesinato desde os anos 1970.
Quatro das federações do Trópico de Cochabamba, berço político de Evo Morales, eram
parte da central, assim como as de outras regiões que o MAS tinha como espaço político
garantido, seja em La Paz ou no Oriente (San Julián, Alto Beni, Yapacaní, Caranavi e
Coroico). Além disso, eram uma importante organização social, parte do Pacto de
Unidade e, por isso mesmo, sua voz era importante nas reuniões do MAS onde se
discutia o projeto de Constituição.
A Confederação Nacional de Colonizadores é fundada em 1970-1971, na
abertura democrática do General Torres, a partir do descontentamento com a
Confederação Nacional Camponesa, que fora próxima aos militares na ditadura de
Barrientos e apoiava o pacto militar-camponês. A Confederação Sindical de
Colonizadores da Bolívia (CSCB) filia-se a COB, rompendo com os militares ao mesmo
tempo em que se aproximam dos operários, assim como os kataristas na mesma época.
Depois de 2000, é uma das organizações que impulsionam a Assembléia Constituinte, e
são também fundadores do MAS-IPSP. Por acordo político, a presidência do MAS
corresponde a Evo e à CSUTCB, enquanto que a vice presidência corresponde aos
colonizadores. Era então parte orgânica e parte da direção política do MAS. Contavam
sete constituintes saídos de suas fileiras na bancada do MAS, aos quais se deviam somar
outros que provinham de circunscrições onde a organização era importante e, portanto,
acompanhavam suas demandas. Durante o tempo da Assembléia, modificaram seu
nome para Confederação Sindical de Comunidades Interculturais da Bolívia (CSCIB). E
era dessa forma que exigiam ser incluídos na definição de povo boliviano
68
.
68 García Linera et al (2004) dá conta do debate interno dos colonizadores sobre o termo com que se
identificam. E é ao indianismo-katarismo, com representantes na zona de colonização do departamento
de La Paz, que se atribui a substituição no momento da pesquisa, de maneira ainda amorfa pela auto-
identificação como “indígenas”. Neste trabalho, é citado um mandato de um congresso para não mais se
94
Em reunião das organizações sociais com constituintes da Comissão de Visão
País, em junho de 2007, um dirigente colonizador reclamou que seu setor deveria ser
incluído na nova Constituição: “Se não estamos com nome e sobrenome não nos
interessamos por terra, nem por autonomia”, disse. Perguntava onde estava seu setor no
Estado Plurinacional, que no projeto do Pacto tinha sido incluído, mas depois eliminado
nas versões que circulavam nesse momento. O dirigente criticava o MAS, que pedia
acompanhamento, mas não os incluía como queriam: “dizem „somem-se os mineiros‟,
mas onde estão incluídos? Não estão! Que nos digam onde estamos. Só falam de
indígenas e originários. E este é o setor mais estigmatizado pela cooperação”. O
dirigente fez um percurso histórico das mudanças que os membros deste setor social
viveram: “Primeiro éramos „índios‟; depois, „colonos de fazenda; depois, criollos sem
direitos da Espanha‟; depois, nossas avós vão à Guerra do Chaco e, depois,
„camponeses‟. Villarroel, General Arce, na Tese de Ayopampa, fala-se de nação
boliviana, querem uniformizar, já há planos de assentamento. Primeiro, assentamento
espontâneo; depois, planejado, saímos do ayllu e somos colônias e colonizadores.
Temos origem quéchua, aymara, alguns irmãos vão às festas, chuño, batata, mas vivem
no Trópico ou em San Julián. Os aymaras de distintos lugares são distintos. Entre
quéchuas e mosetenes, aymaras e lecos, há matrimônios interculturais”.
E advertia o dirigente: “houve acordos no Pacto de Unidade, se vão cortar algo,
que haja consulta”. Em junho de 2007, contudo, discutia-se a fórmula com que se
definiria o povo boliviano, e um constituinte esclarecia, nas reuniões com as
organizações, que o tema ainda não tinha sido resolvido, e que se seguia discutindo. Os
afrobolivianos apareciam nos rascunhos como setor diferenciado e eles o, reclamava
o dirigente. “Entendo a preocupação”, dizia um dos assessores do Pacto de Unidade,
presente na reunião. Depois de algumas discussões, seria incorporado o termo
“comunidades interculturais” na definição. Além da classe e da etnia, a inclusão
relacionava-se com o setor político-chave para a aglutinação dos setores que
acompanharam a chegada de Evo Morales à presidência.
denominar colonizadores. No livro coordenado por García Linera, diz-se: “*…+ esta identidade indígena
originária *…+ está no meio de uma identidade primordial fundada em suas próprias condições de
produção e reprodução social, a atividade agrícola camponesa: *…+ esta adesão primordial *…+ sempre
será o ponto de partida e de chegada, de suas reinvidicações e convocatorias perante o Estado. *…+ daí
que a lógica vitimizadora seja um elemento central de agregação social e, como mostra a história das
rebeliões recentes, um dos mecanismos simbólicos mais influentes na mobilização bem-sucedida dos
movimentos sociais. (:294 trad. nossa)
95
Silvia Rivera escreve que “não é por acaso que essas formas de colocar a
etnicidade como parte de um projeto político mais amplo e, também, a possibilidade de
um presidente indígena tenham saído do Chapare, e não dos ayllus do Altiplano. Nesse
sentido, Rivera cita a autobriografia do dirigente katarista Luciano Tapia (1992), que
“tendo sido mineiro, comunário e colonizador, é neste último espaço interétnico onde
encontra a explicação de sua realidade, […] não é precisamente em seu ayllu ou no
interior das fronteiras de seu grupo étnico que [Tapia] descobre sua condição cultural e
política e a projeta para a luta eleitoral”. Para Rivera Cusicanqui: “Muitos dos dirigentes
indianistas têm tomado consciência de seu projeto político por meio da passagem pelo
quartel, pela universidade, ou pelos sindicatos de colonizadores. É onde tem sido
possível comprovar que a igualdade cidadã era uma falácia, e que havia discriminação.”
(:221 trad. nossa).
O Chapare era o lugar de confluência de setores urbanos e rurais empobrecidos,
respeitando, em muitos casos, a tradicional lógica andina de exploração de diferentes
nichos econômicos por parte de parentes que se distribuem por diferentes espaços, sem
nunca perder o vínculo com a comunidade de origem. Pode-se ver este encontro de
situações e pessoas como a realização de uma combinação de diferentes idéias e olhares
políticos que, antes de ocorrer na teoria, ocorre a partir de estratégias de vida e
construção prática das bases para uma definição plural de povo boliviano. Para isso,
contribuiria a organização política e sindical que defendia a folha de coca, fonte
econômica para a vida desses camponeses, além de símbolo andino e indígena, com
importância ritual e espiritual, ameaçada pelas políticas de erradicação. No Chapare,
pode-se ver um microcosmo da Bolívia, no qual o MAS aprende a dialogar com o
macrocosmo boliviano. Preocupados em melhorar sua situação política, que encontrava
limites na luta sindical, e marcados por uma forte busca de mudança, os camponeses do
Vale decidem, em 1995, intervir nas eleições e, em 1997, Evo Morales chega ao
Congresso aliando-se com o partido Izquierda Unida com a mais alta votação no país
para um deputado uninominal, 61,8% na circunscrição 27 das províncias Carrasco e
Chapare, em Cochabamba. O encerramento do movimento seria, além de tudo,
elemento estruturante contra o imperialismo espontâneo motivado pela autoria
ideológica e cooperação “técnica” dos Estados Unidos nas políticas de erradicação do
Chapare.
Em uma entrevista com o jornal estatal Cambio, Evo Morales (2010) remonta
sua trajetória política, começando por mencionar as reuniões da CSUTCB, de quando
96
Jenaro Flores ainda era executivo e o lema era “por poder e território”. No relato passa
depois pela fundação do instrumento político no Chapare, e chega ao tempo da disputa
com Quispe, em que este dizia “não, você é um llok‟alla [jovem], não te corresponde,
eu sou mais velho, você vai ser depois. Agora eu serei candidato à presidência”. Depois
a Corte legaliza o partido do Mallku, com o argumento de evitar barricadas mas
segundo Morales para evitar que se somassem ao MAS, que foi a sigla que conseguiram
os cocaleros quando a própria não era legalizada pela Corte Eleitoral, apesar de cumprir
com todos os requisitos. Evo Morales conta também na entrevista que juízes da corte
nesse momento reconheceram depois que a embaixada dos EUA chantageava a Corte,
que dependia de seu financiamento e estava submetida. Se tivessem se unido em 2002,
teriam ganhado as eleições dizia Morales porque o MAS perdeu por apenas 1% e o
MIP obteve 4%, mas reconhece que nesse momento, com 27 deputados, havia-se
repetido a experiência da UDP. Em 2005, ganhou com 76 deputados, e em 2009, com
88, obtendo a maioria de dois terços.
García Linera, vice-presidente, realça a importância dos cocaleros aglutinarem o
novo bloco de poder que chegaria a controlar toda a institucionalidade do Estado. Mas é
interessante também considerar seu ponto de vista sobre os colonizadores, em seu
trabalho sobre repertórios de mobilização social (2004), que pode esclarecer alguns
aspectos dos caminhos do MAS no governo. García Linera aponta a importância do
Estado como referente negativo unificador dos colonizadores, sem que disso derive uma
posição anti-estatal, mas, sim, uma “dialética de inserção e pressão muito própria do
mundo subalterno boliviano”, com a qual também tinha analisado o retrocesso da visão
operária na época da Marcha pela Vida. García Linera (et al :299) fala de lutas por
reconhecimento e inclusão social, com demandas realizadas a partir de “uma
externalidade suscetível de ser negociada com o Estado por meio de concessões”, como
se deriva do tipo de demandas que os mobiliza, ligadas necessariamente à regulação e
presença estatal: definição de limites municipais, reconhecimento legal dos produtores e
dos comercializadores de coca, itens para escolas, titulação de terras, manutenção de
estradas, participação dos próprios camponeses na regulamentação da terra, etc.
69
.
69 García Linera também assinala o “desenvolvimentismo” próprio da filosofia da colonização de 1952,
em concordância com o restante das iniciativas do Estado nacionalista: “incorporar os camponeses ao
mercado, ampliar a base produtiva, substituir importações de produtos agropecuários, ‘nacionalizar’ o
território mediante uma presença dirigida de povoadores articulada sindicalmente, etc. Nesta visão
estatal e camponesa, o oriente se apresenta, na maioria dos casos, como zona ‘despovoada’ ou com
97
Cabe notar que, de fato, as áreas colonizadoras de coca não foram impulsionadas
pelo Estado, mas desenvolvidas de forma clandestina, o que provavelmente teria
conseqüências no quebre do vínculo de subordinação. A expansão da colonização
continuará durante o governo Evo Morales, com colônias de cocaleros avançando
também sobre áreas indígenas tanto no TIPNIS, fronteira com o Chapare, como no norte
de La Paz
70
. Em ambos, a disputa entre comunidades étnicas e colonizadores inclui o
questionamento do verdadeiro caráter indígena das populações dessas áreas, às vezes
também falantes do quéchua. Em 2010, este conflito alcançou o projeto de Evo Morales,
com financiamento do governo do Brasil, para construir uma estrada que atravessa parte
da Amazônia boliviana para unir o Chapare com San Ignacio de Moxos, no Beni,
departamento em grande medida conectado com Santa Cruz de la Sierra, mais do que
com o Altiplano e com os Vales. Os cocaleros garantem ter apoio do presidente e os
conflitos periódicos chegam a rompantes violentos.
Os cocaleros do Chapare assumem nas décadas dos 90 e 2000 uma liderança que
os leva ao Estado e que deixa pouco mais atrás aos setores aymara do Altiplano,
protagonistas depois da descida dos operários. Mas é interessante considerar o que
Xavier Albó escrevia em 1984 (em STERN, 1990: 386-388 trad. nossa), quando a
irrupção aymara era uma novidade, porque era Cochabamba aonde se tinha esperado a
liderança das mobilizações, como tinha sido a partir de 1936 até o fim do pacto militar-
campesino. Albó diz: “para alguns essa mudança poderia até parecer desconcertante,
que esses aymaras que continuam numa economia de subsistência com muito
autoconsumo alimentar, e inclusive conservam ainda muito das antigas comunidades,
pareciam estar correndo contra a história. O setor agrícola de Cochabamba tinha
liderado o movimento de fato por ter um maio nível de modernização e de abertura a
novas formas de organização. Se a liderança das mobilizações abandonasse
Cochabamba o mais lógico teria sido que passe às regiões de colonização, as mais
abertas e as mais expostas às contradições do mercado […]. Assim pensaram os
maoístas da UCAPO, muitos operários e universitários vinculados a Caranavi, e assim
chegou a meditá-lo o grupo do Che...”. A aparição do MAS no Chapare, deve então se
inserir nessa linha histórica mais ampla, como um retorno ou re-emergência, embora a
presença de selvagens’ sobre cujos direitos ninguém, nem governo, nem camponeses, nem
proprietários de terra, se questiona ou se preocupa (:275 trad. nossa).
70 Veja-se La expansión cocalera en el TIPNIS en el gobierno de Evo Morales SENA-Fobomade
BOLPRESS. Y Erbol febrero 2009.
98
aparição Aymara era também um retorno pensando na época colonial e pre-colonial, na
que os vales eram só um apêndice do ayllu andino
71
.
Mas o momento político em que ocorre a Assembléia Constituinte e o projeto de
novo Estado tratava justamente de contornar o enfrentamento e a parcialidade dos
setores sociais, dando lugar a uma articulação de movimentos que teria sua expressão na
definição constitucional de povo boliviano. Este caminho começa a ser traçado naquelas
discussões em que o katarismo pensava um país plural, nas décadas dos 70s e 80s. Mas
teria um forte avanço depois de 1990, com a aparição dos indígenas das terras baixas na
cena política. O colombiano Efraín Jaramillo Jaramillo (2008, trad. nossa), do Coletivo
de Trabalho Jenzera, escreve: “na Marcha pelo Território e pela Dignidade, que foi
protagonizada pelos indígenas das terras baixas, de Trinidad até La Paz, os indígenas
serranos os acolheram solidários, recebendo os marchantes com cobertores e comida.
Algo aprenderam uns com os outros. Os das terras baixas, ao compreender o sentido e a
importância da mobilização para reclamar direitos. Os da região andina, ao entender que
os ayllus, markas e suyus da região andina e sub-andina devem-se constituir com base
na noção de territorialidade indígena das terras baixas para reivindicar os territórios
ancestrais. Isto deu lugar a que ayllus, markas e suyus do Qullasuyu da região andina se
organizassem no CONAMAQ e apresentassem demandas de Terras Coletivas de
Origem (em Chuquisaca, três demandas por 961.000 hectares; em Cochabamba, quatro
por 456.000 hectares; em La Paz, 38 por 1.2 milhões de hectares; em Oruro, 80 por 7.9
milhões de hectares; e em Potosí, 49 por 4.2 milhões de hectares. IWGIA, El Mundo
Indígena 2006)”.
Devido ao reduzido número de habitantes nestes povos
72
, na Assembléia só
quatro constituintes eram representantes dos grupos étnicos das terras baixas, por meio
71
Albó acrescenta que o modelo de revolução populista, muito ligada a um projeto estatal, foi mais
digerível em Cochabamba. E no Altiplano se encontrava não em Aroma mas em Achacachi, a
“Cochabamba” do Altiplano pela sua longa história de fazendas e outras características, diz Albó. Por
isso foram os kataristas os primeiros em quebrar com o pacto militar-campones, retomando a memória
da sublevação dos Katari e outros levantamentos mais recentes. Também assinala como em
Cochabamba a tradição comunitária e o vínculo com o Estado e o MNR era mais forte. E Albó também
enxerga esse contraste entre quéchuas e aymaras como uma reedição do dos Amarus do Cusco, com
fazendas reais, e os Katari dos ayllus altiplánicos. Albó ve aos Amaru como precursores do “populismo”
do MNR, com alianças sistemáticas com mestizos e criollos. Sobre a participação de indígenas na política
antes do MAS, ver Ticona, Rojas, Albó (1995); e Albó, 2003.
72 População estimada: Araona 112; Ayoreo 1.701; Baure 976; Canichana 420; Cavineño 1.677;
Cayubaba 645; Chacobo 501; Chiman 8.528; Chiquitano 184.248; Ese Ejja 939; Guarasugwe 31; Guarayo
9.863; Itonama 2.940; Joaquiniano 3.145; Lecos 2.763; Machineri 155; Maropa 4.498; Moré 101;
Mosetén 1.601; Movima 10.152; Moxeño 76.073; Nahua s/d; Pacahuara 25; Sirionó 308; Tacana 7.056;
99
das listas do MAS nas poucas circunscrições onde há densidade considerável em relação
ao total (Nélida Faldín e José Bailaba, do povo chiquitano; Miguel Peña, dos mojeños;
Abilio Vaca, dos guaranis). Mas o restante dos povos estavam presentes por meio de
sua organização matriz, a CIDOB (Confederação de Povos Indígenas da Bolívia, antes
Central de Indígenas do Oriente Boliviano), que era uma das organizações sociais mais
ativas em Sucre
73
. A perspectiva das terras baixas na proposta de Constituição
beneficiou-se também do trabalho da ONG CEJIS (Centro de Estudos Jurídicos e
Pesquisa Social), da qual provêm vários ministros do governo do MAS, e que se ocupa
da maioria das reclamações territoriais dos povos das terras baixas. A Marcha de 1990 e
a linha política da CIDOB e de suas filiais surgem em um contexto internacional de
emergência de grupos indígenas com reivindicações de direitos. Em 1989, depois de
anos de debate, aprova-se o Convênio 169 da OIT, que servirá como marco de direitos
para estes povos sendo ratificado pela Bolívia em 1991 (ver CHARTERS y
STAVENHAGEN, 2010, VENTURA, 2009).
A Marcha de 1990 “por Território e Dignidade”
74
é correntemente reconhecida
como o primeiro antecedente direto da Assembléia Constituinte. As reformas “pluri-
multi” incorporadas no primeiro governo de Goni buscavam responder à aparição
desses setores, ao mesmo tempo em que abriam um espaço que trazia os povos das
terras baixas à política estatal. O governo de Paz Zamora, em 1990, tinha iniciado o
reconhecimento de territórios. Os indígenas das terras baixas eram os atores que
estavam por trás da abstração do pluricultural e do multiétnico. Estas políticas eram
incorporadas simultaneamente em outros países da região, influenciados pelas mesmas
discussões e por um mesmo processo de emergência indígena na política nacional.
Apoiados por ONGs afins que davam suporte aos povos das terras baixas nos demais
países amazônicos, os indígenas levavam à política nacional o testemunho da diferença
cosmológica de seu passado nômade e não estatal; como elementos fragmentados de um
Toromona s/d; Yaminahua 188; Yuqui 220; Yuracare 2.755; Guaraní 133.393; Tapiete 63; Weenhayek
2.020.
73 A CIDOB é formada em 1982 com representantes dos povos Guaraní-Izoceños, Chiquitanos, Ayoreos
e Guarayos (povos que, segundo a lenda, guerreavam entre si até décadas atrás). Em 1977, enquanto os
kataristas se encaminhavam para criar a CSUTCB, estes povos começaram a fazer contatos, estimulados
pelo guarani Sombra Grande e o intelectual Jurguen Riester, que funda a ONG APCOB (Apoio para o
Camponês do Oriente Boliviano). Trata-se também da entrada de ONGs, de cooperação internacional e
de participação de setores da Igreja Católica, assim como ocorre com os camponeses nas terras altas.
74 Impulsionada depois do segundo encontro da Central de Pueblos Indígenas del Beni (CPIB), em San
Lorenzo de Moxos.
100
conhecimento que passou, na Bolívia, pela experiência das missões e pela inclusão em
regimes de trabalho semi-escravo nas fazendas. Um dos mojeños que se encontrava em
Sucre para observar o trabalho das comissões foi-me apresentado como representante de
um povo canibal que até pouco tempo comia gente. O mojeño cumprimentou-me
orgulhoso e de forma amável, e esclareceu-me que já não faziam isso nos dias de hoje.
Para o projeto de Estado Plurinacional que se mencionava em documentos
kataristas de 1979, a aparição dos povos das terras baixas era fundamental, porque dava
nome a uma idéia de multiplicidade que, em princípio, era muito mais teórica.
Politicamente, permitia fortalecer as disputas dos camponeses do ocidente em direção à
proposta katarista, a qual se buscava afastar da herança da Reforma Agrária de 1953. As
distintas economias, línguas, “sistemas civilizacionais”, seriam incluídas num projeto
político pluriétnico para o Estado boliviano, conforme a demanda da Assembléia
Constituinte. A aparição dos grupos étnicos do oriente materializava a uma série de
reflexões intelectuais surgidas no katarismo e retomada pelos trabalhos do grupo
Comuna, que assinalava a “condição multisocietal” de uma Bolívia abigarrada
segundo a leitura de Luis Tapia sobre a obra de René Zavaleta e com distintas
formulações que derivariam também da proposta de “capitalismo andino-amazônico”,
em García Linera
75
.
Uma das críticas ao Estado Plurinacional se dirige justamente ao questionamento
da existência ou da viabilidade das distintas “nações” que conformariam o Estado
Plurinacional, partindo principalmente do argumento da debilidade demográfica. No
debate sobre este tema, uma nota do diário La Razón questionou a idéia de Estado
Plurinacional e o número de 36 povos indígenas, por meio de uma entrevista do
75 García Linera então escreve Marxismo, nacionalismo e indianismo en Bolivia (2008 trad. nossa),
pequeno esboço da discussão em que faz referência a que “uma leitura mais rica da temática indígena e
comunitária virá das mãos de um novo marxismo crítico que, apoiando-se nas reflexões demonstradas
por René Zavaleta Mercado (1937-1984), buscará uma reconciliação do indianismo e do marxismo”. Luis
Tapia Zavaleta como o trabalho de síntese mais elaborado e complexo para entender a Bolívia.
Destaca seu conceito do “nacional-popular”, síntese mais intensa e extensa da Bolivia, segundo Tapia.
Num texto de 2000, avaliaria que ainda não uma força social que lembre, incorpore e sintetize a
densidade da história, da questão colonial e das novas condições de exploração e dominação; mas que
resgataria sim a importancia do katarismo como síntese do que foi e do que é a Bolivia do ponto de vista
dos conquistados, colonizados ou dominados e que escreve Tapia “em suas versões mais fortes, puxa
a história e atualiza e coloca, hoje, a grande contradição dessas terras: somos um territorio
multissocietal sob domínio colonial, com uma sociedade mestiça dominante racista e um estado
inorgânico em relação aos povos e às culturas locais (2007 [2000]: 86).
101
antropólogo Wigberto Rivero
76
, que tinha sido o encarregado do estudo governamental
sobre etnias da Bolívia, o qual deu como resultado esse número de referência. Este
antropólogo agora dizia que possivelmente haja mais etnias não contabilizadas
inicialmente no estudo que deu o número 36, incorporado na Constituição na menção a
este número de línguas indígenas oficializadas. Cita dois grupos nômades (nahua e
toromona), que vivem na fronteira e que não foram incluídos inicialmente. O tulo e
subtítulo do La Razón era “A tese de 36 nações indígenas carece de uma base
acadêmica. Não se fez um mapeamento recente e completo das etnias da Bolívia, em
todas as regiões”. O artigo também menciona que dentro da etnia aymara ou quéchua há
povos que se autodefinem nações, pelo que, se alguns dos 36 povos não seriam nação,
outros, por sua vez, seriam formados por várias
77
.
Como contraproposta à idéia de reconhecimento de nações, outro antropólogo
em Sucre argumentava que, em vez dessa categoria, deviam ter utilizado a de “grupo
étnico”. O comentário também busca questionar a idéia de Estado Plurinacional,
procurando restaurar o tratamento do tema presente na Constituição até então vigente.
Nesta, os grupos étnicos” não teriam autogoverno nem representação no Parlamento
Plurinacional. Outra crítica comum de ser escutada entre a oposição do oriente foi
expressa numa coluna de opinião do diário cruzenho El Deber
78
, na qual um analista
considerava que, a partir do reconhecimento de habitat ancestral, serão criados 36
“mini-estados”; que, sobre essa territorialidade, “o etnoculturalismo, estimulado por
certas ONGs, os levará a formar trincheiras em seu território contra mouros e cristãos”;
e que “abrirá as portas não somente a enfrentamentos entre municípios e povos nativos,
mas também entre as próprias nações „indígenas‟. A briga será pelos recursos e pelo
território”; e que “definitivamente, o „plurinacional‟ é uma bomba-relógio…”.
Em 1992, a convergência que expressa a definição de povo boliviano seria
concretizada, talvez pela primeira vez na história, quando as distintas organizações
indígenas e camponesas confluíram para a organização do 500 aniversário da conquista
européia. E além do encontro entre terras altas e baixas, os indígenas bolivianos se
articularam numa corrente continental de protesto e emergência de lutas indígenas. O
próprio Evo Morales (2010 trad. nossa) se lembra, o que é importante porque conta
76 Xavier Albó foi Ministro de Assuntos Camponeses de Banzer e recorda que Felipe Quispe o apoiou
para ocupar este cargo em troca de um favor, num confuso episódio que se vincula às tentativas do
governo de negociar em separado com as manifestações do Altiplano e as do Chapare.
77 La Razón, janeiro 2009.
78 Assinada por Mario Rueda Peña.
102
de como os camponeses mais distantes do discurso étnico também são parte deste
processo: “entre os anos 1989-1990, começa a campanha pelos quinhentos anos de
resistência indígena popular, falamos da visão espanhola, européia, do ano de
1492.Antes se chamava Abya Yala. Em 1991, fui convidado a ir para Quetzaltenango,
Guatemala, para participar de um evento pelos 500 anos de resistência indígena popular.
O debate era: até quando vamos seguir na resistência? Por que a tomada do poder? Foi
um forte debate do movimento indígena do Peru, do México, da Guatemala e do
Equador. decidimos a tomada do poder no ano de 1992, justamente 500 anos. Eu
organizei uma marcha de Sacaba a Cochabamba; tenho vídeos, fotografias, estava cheia
de wiphalas. A marcha, genial, em outubro, por causa dos 500 anos de resistência […]”.
A aproximação de camponeses e colonizadores nas demandas reforçava, em termos de
identidade indígena, um vetor político presente desde os kataristas, mas que, num
momento de aniversário, consegue se massificar nas organizações, como balanço das
reflexões dessa época.
Em junho de 1990, uma reunião da CSUTCB com a CIDOB, perto do lago
Titicaca, elaborou uma plataforma conhecida como “declaração de Corqueamaya”.
Propunha a unificação da CSUTCB e da CIDOB na Assembléia de Nacionalidades.
Definiram, então, os trabalhos mais importantes dessa Assembléia: “a recuperação das
identidades e patrimônio indígena alienado, começando um processo de
autodeterminação em níveis econômico, territorial, cultural e ideológico”.
Combinavam-se os horizontes das diferentes vertentes kataristas: tanto o “pluri-multi”
como a autodeterminação e a autonomia perante o Estado parecem estar presentes nessa
declaração, que vemos como antecedente das discussões da Assembléia Constituinte em
2007. Em seguida à reunião ficou estabelecido um comitê que incluía a CSUTCB, a
CIDOB, a COB, as igrejas e a UNITAS (rede de ONGs, de onde provém o chanceler
Choquehuanca) para convocar a Assembléia de Nacionalidades, que aconteceria em
outubro de 1992. O comitê definiu um “projeto” em agosto de 1991, chamado
“Campanha Quinto Centenário”. Porém, Regalsky (2003:153) dá conta do “fracasso” da
Assembléia de Nacionalidades, cuja agenda era de fato avançada em discussões
coletivas que passariam também pela Assembléia Constituinte
79
.
79 Houve um Comitê Interinstitucional dos 500 anos de Resistência e Rechaço ao Festejo do “V
Centenário”. Regalsky cita as tarefas propostas no encontro de organizações, que incluíam: escrever
uma nova Carta Fundamental; Lei de Terras e Território; Livro Nuestra Historia’; Proposta de Educação
Multinacional; Estratégia Econômica; Novo Mapa da Bolivia; Livro de Cultura e Religião; Projeto de Lei
103
Embora a agenda tenha ficado inconclusa e a Grande Assembléia não chegasse a
ser convocada, vimos que, pela primeira vez, encontravam-se os atores e as propostas
que, no Pacto de Unidade, fariam o primeiro esboço de Constituição. Havia um claro
percurso em direção ao que encontramos na Assembléia Constituinte. García Linera et
al conta de uma falta de esclarecimento dos objetivos da Assembléia de
Nacionalidade. Para uns, era uma instância para construir um Estado “pluri-nacional e
pluri-multicultural”; para outros, a Assembléia de Nacionalidades era visualizada como
um esforço para a construção do instrumento político (2004:310). Embora sem uma
articulação firme, já estavam presentes os elementos temáticos e os atores sociais de um
mundo político que chegaria ao Estado 15 anos depois. Nesse tempo, haveria outras
marchas partindo das terras baixas, cada vez mais bem coordenadas com outros atores
sociais do país (1994, 1996, 2000, 2002 e 2004). Uma delas, conhecida como “a marcha
do século”, organiza-se em repúdio ao projeto de Lei INRA do governo (em 1994-
1995), com a participação de camponeses da CSUTCB, de indígenas da CIDOB e de
colonizadores do Chapare. A convocatória foi “Marcha pelo Território, Terra, Direitos
Políticos e Desenvolvimento”. Além de alcançar consenso para a Lei INRA, pedia-se a
incorporação de trabalhadores assalariados do campo à lei geral do trabalho; postulação
de candidatos a eleições sem intermediação de partidos políticos; criação de fundos
nacionais de desenvolvimento indígena camponês; etc.
Outra experiência nesta mesma direção foi o Estado-Maior do Povo, com a
participação de Evo Morales. Camponeses e Indígenas se encontravam, mas o ausente
sistemático era sempre a COB, que não se incorporara no avanço das demandas
indígenas, cuja principal bandeira era o pedido de uma Assembléia Constituinte. Ao
chegar o ano 2000, a temática étnica estava totalmente instalada na política boliviana.
Isto se deve, em primeiro lugar, ao katarismo, mas o cenário que daria lugar à
Assembléia Constituinte não estaria completo até a articulação com os povos das terras
baixas. O encontro das terras altas e baixas daria lugar a um duplo contágio produtivo
em termos políticos. Um dos efeitos será que, nas terras altas, incorpora-se a exigência
de direitos habitualmente pedidos por povos minoritários, como autonomia e território,
para populações majoritárias em suas regiões (quéchua e aymara). Nisto também têm
participação algumas ONGs que levam à Bolívia experiências de outros países e os
debates internacionais dos direitos indígenas.
de Patrimônio Cultural. Somente teve succeso a Reforma Educativa proposta na Comissão coordenada
por Víctor Hugo Cárdenas, que publica o documento em 1991 e que resulta em Lei em 1994.
104
Neste processo, a busca de autonomia, que surge como reclamação de povos que
se encontram fisicamente limitada no oriente, é adotada progressivamente por
comunidades das terras altas em relação a projetos como os do CONAMAQ de retorno
do ayllu e recuperação de territórios e práticas ancestrais. Ao mesmo tempo, algo da
leitura katarista da realidade é adotado nas terras baixas. Daí surge uma crítica comum
ao colonialismo, o desejo de descolonização e o projeto de Estado Plurinacional, que ia
sendo incorporado como reivindicação por nações do oriente e do ocidente, ainda que,
em princípio, somente os guaranis das terras baixas se reconheçam como nação naquele
sentido muito tempo adotado pelos aymara e, mais recentemente, entre alguns
quéchuas.
controvérsia sobre o entusiasmo dos distintos setores sociais do Ocidente ao
receber e se solidarizar com os povos do oriente nas suas marchas. Mas o certo é que
indígenas das terras altas e baixas terminam confluindo em espaços comuns de
articulação política. E, à distância, pode-se ver claramente como ambos começam uma
frutífera experiência de influência mútua. Regalsky descreve a marcha de 1990 assim:
“quando, depois de 34 dias de caminhada, os quase 800 habitantes dos bosques tropicais
cruzaram as neves permanentes de cima das montanhas, a 4600m acima do nível do
mar, e começaram a descer rumo à cidade, já lhes escoltaram mineiros, cocaleros,
povoadores andinos, estudantes universitários e membros das principais igrejas. O apoio
urbano massivo aos povos étnicos bolivianos “redescobertos” pressionou o governo a
aprovar quatro decretos presidenciais, assim como exigia a marcha indígena da CPIB.
[…] Foi a primeira vez em que se menciona de forma explícita a Jurisdição Indígena
Territorial. (2003:149-150 trad. nossa)”. Segundo Silvia Rivera, acerca da mesma
marcha, foi uma festa multiétnica que não pôde ser dominada nem desvirtuada pelo
país oficial de terno e gravata” e também a qualificou de “pachakuti, um vôo cósmico,
que irrompia novamente como um raio no céu destituído do tempo linear (:53 trad.
nossa)”.
O antecedente direto para a formação do pacto é a marcha do 13 de Maio de
2002, de Santa Cruz a La Paz, com a demanda de convocatória de Assembléia
Constituinte para refundar Bolívia. Em uma carta do CONAMAQ ao presidente e ao
Congresso, diziam VIVA A MARCHA À SEDE DO GOVERNO!!! INDÍGENAS E
CLASSES SOCIAIS DO ORIENTE E OCIDENTE UNIDOS!!!” e declaravam: “a
CONAMAQ, como Autoridade Nacional dos Povos Indígenas Originários dos Ayllus,
Markas e Suyus, CONVOCA a todos os irmãos da comunidade dos Ayllus, Markas, do
105
campo e da cidade, profissionais, transportistas, comerciantes, pedreiros, sapateiros,
mestres rurais e urbanos filhos dos aymaras, quéchuas, guaranis, tupiguaranis,
mosetenes, chipayas e todos em geral, habitantes do atualmente chamado Estado
Boliviano, somando-se à defesa dos direitos consuetudinários perante a política do
Governo que quer impôr a reforma da Constituição, aprovando-a no Congresso
Nacional, quando isso deveria ser consultado e acordado com a participação direta das
Organizações Nacionais representativas”.
Para Adolfo Mendoza, o encontro se dá, em 1990, na Cúpula pela Inclusão dos
Povos, mas, em 2002, o encontro é para transformar o Estado. Ai começou a se falar
em “refundar o Estado” com a Assembléia Constituinte. O Pacto se forma em 2004,
graças a algumas organizações indígenas das terras baixas como CPESC e CPEMB e
APG, depois da marcha pela Assembléia Constituinte. García Linera o havia visto
passar com os pés com bolhas por causa da marcha e marcou se encontrar no Café
Ciudad da Praça do Estudante em La Paz. Pediu-lhe que explicasse por que fazia isso, e
ele disse que era que tinha de estar. Álvaro lhe disse que nunca iriam corrigi-lo.
Segundo Adolfo, o MAS, Álvaro e Evo nunca acreditaram na Constituinte. Quando a
marcha de 2004 passou pelo Chapare, os cocaleros não lhes deram nem água da
montanha, ainda que outros setores camponeses do MAS como o de Román Loayza
tivessem-se somado.
Adolfo comentava que o MAS, nesse momento, apostava nas eleições e não
na Assembléia Constituinte; e assinalava as contradições dos cocaleros, que pediam
livre mercado para a folha de coca. Alguns no grupo Comuna viam a Assembléia
Constituinte como reformista; e o MAS pensava que a palavra de ordem poderia ser
prejudicial nas eleições. Mas Adolfo Mendoza via o MAS como o último recurso
legítimo que restava ao sistema de partidos, com capacidade para, em alguns momentos,
ser mais do que um partido e se aproximar das organizações. Outra versão diz que como
o Pacto não respondia a Evo Morales como ele queria, os cocaleros tinham tentado
fundar outro “pacto” com as mesmas organizações (esse seria o Estado Maior dos
Povos). Se os colonizadores e a CSUTCB tinham-se reincorporado ao Pacto, os
cocaleros permaneciam à margem. Mas, para Adolfo Mendoza, o Pacto é capital
político e, por isso, ele se definia como um “cachorro-guardião” do Pacto.
Segundo Omar Guzmán, o Pacto se forma em outubro de 2003: “depois que
Goni fugiu, havia 4000 colonizadores nos arredores da cidade, fizeram um ritual com
outros setores, disseram que não iam se separar e daí surge o Pacto de Unidade”. Omar
106
tinha sido assessor dos “colonizadores”, mas agora estava distanciado. Ele acompanhou
a formação do Pacto e comentava que as primeiras que se somaram depois desse ritual
foram as Bartolinas, e depois a CSUTCB que contribuiu com o domínio do território. A
CONAMAQ tinha-se agregado porque não se pode fundar algo novo sem incorporar
novos setores, dizia Omar. Porém, acreditava que o CONAMAQ tinha sido feito pela
embaixada dinamarquesa, com grandes quantidades de dinheiro. E se queixava que na
Dinamarca não fizeram isso com seus índios. Segundo Omar, havia distintos projetos
em jogo para se transformar em Constituição. Um era o de Evo, feito com assessores
venezuelanos e cubanos que fizeram o projeto e foram embora. Outro era o projeto do
Pacto de Unidade, que em maio de 2007 ainda estava sendo elaborado, mas em segredo,
dado os problemas internos que ainda existiam. Daí poderia surgir “uma Constituição
num passe de mágica”. E o terceiro projeto era o que estava sendo elaborado em
comissões, a partir das posições do Pacto de Unidade entrando em cada Comissão.
Formalmente, o “Pacto de Unidade” surge como espaço das organizações sociais
para dar curso a três demandas da “agenda de outubro”: Assembléia Constituinte,
referendo para a nacionalização do gás e Reforma Agrária. Iván Égido e Pilar Valencia
(2010:27-29) escrevem sobre este processo e dão conta de discussões sobre a
necessidade “legalista” de propor uma reforma da Constituição e uma lei que permita a
convocatória da Assembléia, de um lado, e a idéia de uma convocatória que emanasse
do povo, sem necessidade de recorrer aos poderes constituídos, do outro. A tensão
percorreria todo o processo constituinte como oposição entre a Assembléia “originária”
ou “derivada”. Em 2004, o presidente Mesa e o Congresso dão curso a estas reformas,
abrindo caminho para a convocatória. Subscrito por seis organizações, ainda que com
outras também presentes, em setembro de 2004, em Santa Cruz de la Sierra, firma-se o
Pacto de Unidade”, com o objetivo de dar alinhamento à convocatória de Assembléia a
partir da perspectiva da Agenda de Outubro.
Depois de participar ativamente na discussão da lei de convocatória da
Assembléia, as organizações voltariam a se encontrar na construção de uma proposta de
consenso para a Assembléia, elaborada em encontros nacionais em Cochabamba, Santa
Cruz e La Paz e em uma Assembléia Nacional em Sucre que, em 5 de agosto de 2006
um dia antes da inauguração da Assembléia entrega aos constituintes a “proposta para
a Nova Constituição Política do Estado”. O documento é entregue “à Assembléia
Constituinte, ao governo nacional e ao povo boliviano”, e os autores se apresentam no
107
texto como “organizações camponesas, indígenas, originárias e de colonizadores”
80
. A
proposta do Pacto de Unidade foi configurada especialmente entre os meses de maio e
agosto de 2006, em mais de dez encontros, Assembléias e oficinas, além do
funcionamento de uma comissão técnica permanente (ver VALENCIA e ÉGIDO,
2010). No Terceiro Encontro Nacional de Organizações Camponesas Indígenas
Originárias rumo à Assembléia Constituinte (Minka Abya Yala por Bolivia hacia la
Asamblea Constituyente), de junho de 2006, com cerca de 120 participantes nacionais e
20 internacionais, se alcaou o acordo de utilizar “o sujeito dos três nomes”, indígena
originário camponês, como maneira de superar as discussões da reclamação do
CONAMAQ à CSUTCB por sua identidade “camponesa”.
O único que faltava para dar luz à definição de povo boliviano era a inclusão do
povo afroboliviano. Em seguida à inclusão dos colonizadores com o nome de
“comunidades interculturais”, deu-se lugar a esta população, cujos representantes
estavam em Sucre durante a Assembléia Constituinte. Os afrobolivianos concentram-se
especialmente na região dos Yungas de La Paz e organizam-se no Movimento Cultural
Saya Afroboliviano (MOCUSABOL), formado por migrantes dos yungas na cidade de
La Paz, assim como ocorreu com o katarismo anos antes. Os afrobolivianos recorriam,
como muitos outros, às comissões no Colégio Junín, de Sucre. Não queriam ficar
excluídos da Constituição como tinham ficado do Censo de 2001. Não se consideravam
indígenas, nem pré-existentes à colônia, nem camponeses. E a gica pluralista com que
o MAS pensava a nova Constituição dava razão à demanda deste grupo,
independentemente de seu tamanho demográfico, calculado em 22 mil pessoas, ainda
que possivelmente muito maior. O MAS e os constituintes tinham chegado a Sucre para
incluir, esse era o mandato.
Representantes de um grupo político de homossexuais também percorriam as
comissões em Sucre, mas, diferente dos afrobolivianos, eles não reclamavam ser
nomeados na definição do povo. Apenas queriam que se aprovassem “todas as formas”
80 O documento está assinado em 5 de agosto 2006, mas foi distribuído em maio de 2007.
Ratificaram o documento a CSUTCB, a CIDOB, os “colonizadores”, a Federação de Mulheres “Bartolina
Sisa”, o CONAMAQ, a Coordenadoria de Povos Étnicos de Santa Cruz (CPESC,) o Movimento Sem-Terra
da Bolívia (MST), a Assembléia do Povo Guarani (APG), a Confederação de Povos Étnicos Moxeños do
Beni (CPEMB). E em nota se esclarece que a Associação Nacional de Regantes (ANARESCAPYS) e a
Coordenadoria de Defesa do Rio Pilcomayo (CODERIP) “aderem à proposta, razão pela qual têm
integrado suas contribuições e enriquecido o documento”. Durante a Assembléia os cinco primeiros
seriam os que representariam o Pacto de Unidade e dariam seguimento ao trabalho de Comissões,
assessoramento técnico, propostas, protestos e mobilizações.
108
de família, sem nomear explicitamente o casamento gay porque os constituintes e a
Bolívia, diziam, não estavam preparados para mais do que isso. Outro grupo de
homossexuais tinha-se aproximado da oposição, que lhes prometeram incluir o
casamento entre pessoas do mesmo sexo na proposta de Constituição. Suas demandas
chocar-se-iam fortemente com as posições das igrejas, com força na Assembléia e em
especial dentro do MAS, a partir da confissão religiosa de muitos camponeses, em
tensão com posições progressistas de esquerda de constituintes urbanos.
A inclusão dos afrobolivianos não foi assimilada automaticamente, e também
gerou debate na reunião de constituintes do MAS, na Casa Argandoña. Eles reclamavam
que na definição de povo boliviano, assim como em todos os artigos que se referiam a
indígenas e camponeses, apareceram nomeados. Em desacordo com isso, alguns
constituintes reclamavam que seria injusto dar-lhes um lugar destacado. Alguns
pensavam que se os nomeassem, deviam nomear todas as etnias, por extensão. “Ou
todos ou nenhum”, dizia-se. Outros avaliavam que, ao nomeá-los, “estamos criando um
macro povo quando são somente 500 pessoas, por que não colocamos os quéchuas, que
somos dois milhões?”. Isto é um chenko (confusão), escutava-se. Na discussão,
alguém propôs, então, “que os irmaõs afro fossem em outro parágrafo, com os
camponeses”, e também que se faça uma lista de todos os povos numa lista anexada.
Nas primeiras versões do texto, falava-se de “afrodescendentes”, mas alguém advertiu
na reunião que se devia falar em afrobolivianos, porque senão se estaria dando direitos
aos brasileiros”. “Não nos preocupemos,” alguém tentava tranquilizar, “isso vai para
correção de estilo”.
Em junho de 2007, enquanto as comissões se preparavam para apresentar seus
informes, a discussão dos constituintes do MAS chegava à seguinte fórmula: “o povo
boliviano está conformado pela totalidade dos bolivianos e das bolivianas pertencentes
às áreas urbanas de diferentes classes sociais, às nações povos indígena originário
camponeses, e às comunidades interculturais e afrobolivianas”.
Em Gramática de la Multitud (2003, trad. nossa), Paolo Virno estuda a
contraposição dos conceitos de povo e multidão, que vê como central no momento de
fundação dos Estados modernos na Europa, e que, nos dias de hoje, estaria de volta
depois de ter desaparecido de cena por muito tempo. O povo seria um conceito ligado à
existência do Estado, sua reverberação ou reflexo. Virno recupera o sentido de povo em
Hobbes, para quem tem a ver com o uno, com a vontade única, com a instituição do
corpo político estatal. Depois da afirmação do conceito moderno de soberania, a
109
multidão desaparece, mas parece ter sobrevivido de maneira raquítica, e agora reaparece
junto à decadência desse Estado. Apoiando-se em Spinoza, Virno define a multidão
como algo que evita a unidade, é refratária à obediência, não estabelece pactos duráveis
nem se constitui em pessoa jurídica. A multidão é pluralidade que persiste como tal na
cena pública e na ação coletiva, sem convergir no uno, nem se desvanecer em um
movimento centrípeto. A multidão é a existência política dos muitos em tantos muitos,
como forma permanente e não intersticial ou episódica, escreve Virno.
Na Bolívia, é evidente o movimento em direção ao povo e ao Estado como
conceitos relacionados. No momento de crescimento da mobilização social encontramos
a multidão emergindo junto às fissuras do Estado moderno, mas vemos que logo depois
de aparecer se canaliza num processo de renovação “popular”, de um novo povo que
conforma um novo Estado. Na constituição do povo boliviano e do Estado
Plurinacional, vimos a busca de preservar a pluralidade na unidade, e assim
encontramos o momento político boliviano atual, ao mesmo tempo (re)construindo um
Estado moderno e expressando um desejo coletivo não moderno de ir além do
instituído. um inquestionável processo estatal em marcha na Bolívia, que podemos
ver até mesmo contra a multidão, na medida em que unifica, institucionaliza,
desmobiliza. Mas também um movimento em direção à multidão, no sentido
contrário em que Virno descreve o povo, isto é, “detestando” a multidão, como
“unidade sintética”, monopólio da decisão e contrário à pluralidade. Na Bolívia, parece
mais se tratar de um povo e de um Estado que não detestam a multidão, mas que
buscam manter um diálogo com ela. O processo constituinte boliviano ia no sentido do
Estado e do povo. Esta tinha sido a decisão dos movimentos sociais quando decidiram
disputar as eleições e ocupar o aparato estatal. Mas também tinha, no mesmo processo,
um movimento em direção ao não centralizado, à autonomia, e à multidão, como lugar
político enterrado no século XVII pela formação dos Estados modernos.
Alguns elementos que os constituintes buscavam incluir na Constituição,
começando pela idéia de Plurinacional Comunitário, parecem ter consonância com a
multidão que, para Virno, não está composta nem por cidadãos”, nem por
“produtores”, ocupando uma região intermediária entre o individual-coletivo da tradição
socialdemocrata, e do público-privado da tradição liberal. “Para ela, não vale de modo
algum a distinção entre público e privado”. Veremos, nas discussões sobre
territorialidade, propriedade da terra dentro dos territórios indígenas, representação
política, como esta afirmação soa familiar às discussões dos constituintes. E a
110
particularidade do debate boliviano é que esta crítica à modernidade vem de uma
intenção de recuperar tradições pré-modernas. Virno rejeita “entoar canções
desafinadas, de cunho pós-moderno („o múltiplo é bom; a unidade é a calamidade da
qual que se cuidar‟)”, e reconhece que “a multidão não se contrapõe ao Uno, mas o
redetermina. Até mesmo os muitos necessitam uma forma de unidade, um Uno, mas
aqui está o ponto chave esta unidade não é o Estado, mas a linguagem, o intelecto,
as faculdades comuns do gênero humano. O Uno não é mais uma promessa, mas uma
premissa”. O que parece caracterizar o processo constituinte boliviano não é a
estabilidade no pólo estatal ou da multidão, como talvez jamais encontremos. Vemos
um Pacto de Unidade que tem a pluralidade como premissa. Por isso, os movimentos na
Bolívia buscam, ao mesmo tempo, a definição de sua identidade (do povo) e as
garantias de diferença
81
.
4 A revisão da fórmula: os mestiços e a nação, novamente.
Mas o trabalho dos constituintes em Sucre e as discussões que os levaram à
fórmula citada não ficariam assim. Como veremos, em um difícil processo constituinte
o MAS conseguiria aprovar, em dezembro de 2007, o artigo formulado pelos
constituintes do MAS, mas o conflito da aprovação da Constituição e o debate
continuariam até outubro de 2008, quando o texto seria reaberto para modificações,
antes de ser definitivamente aprovado. A oposição ao governo dizia que, no projeto dos
constituintes do MAS, os indígenas e camponeses teriam privilégios em relação a outros
setores do país, em particular aos mestiços (os reconhecidos como “não indígenas”, na
Bolívia); que, na pesquisa do PNUD que citamos na introdução, tinha dado como
resultado que 68% da população se reconhecia como mestiço. O tema tinha sido
freqüente nas discussões da Assembléia, até mesmo dentro da bancada do MAS. Setores
de classe média, ou camponeses não indígenas, buscavam que a autonomia ou o acesso
a terra fosse também para os mestiços. A esquerda nacional, por sua vez, partindo da
leitura da sociedade boliviana como mestiça, tinha vozes críticas à proposta
81 No comunitário, que se refere aos modos coletivos de política e organização, encontramos os signos
que Virno associa às formas atuais de vida e produção. É difícil dizer onde termina a experiência
individual e privada, diz Virno, e encontramos uma turvação onde as linhas de fronteira colapsam, ou
tornam-se pouco fiáveis às categorías de cidadão e produtor, importantes en Rousseau, Smith, Hegel y
Marx. Era o mesmo “pacote” criticado pelo katarismo na década de 1970, contra as tentativas contínuas
do Estado de impor esse modelo na Bolivia com leis, reformas agrárias, escolas e quartéis.
111
plurinacional ou de autonomias indígenas, que potencialmente poderia facilitar a divisão
territorial e o retrocesso da soberania.
Enquanto se avançava no projeto de Constituição, surgiam críticas de todos os
lados: internas; na imprensa; e na opinião pública. Em particular, os mestiços ou
membros da classe média tinham alguns temores, apesar de terem votado em Evo
Morales. Nos corredores da Assembléia, conheci uma cientista política chamada
Carmen, que estava fazendo estudos de pós-graduação no CIDES-UMSA de La Paz.
Ela tinha pedido para se reunir com constituintes e disse que não estava com a oposição,
mas dizia que lhe dava medo o empoderamento dos indígenas e que não se sentia
incluída no sistema político atual. A proposta do MAS de eliminar as circunscrições
plurinominais, estimulando que a eleição de representantes fosse somente por
circunscrição uninominal (local), que finalmente ficaria sem efeito, lhe parecia “uma
barbaridade”, porque implicaria a destruição dos partidos políticos: “haverá voto
uninominal onde o candidato faz o que quer porque não tem nenhum compromisso com
o partido, nem um projeto para a região; votam nele e qualquer um entra”, dizia.
Também lhe dava medo o que tinha conversado com Magda Calvimontes, da Comissão
de Autonomias, quem leu o projeto do MAS para ela, segundo o qual qualquer
território, município ou região podedeclarar-se autônomo pelo voto de dois terços de
seus habitantes. Isso, para a cientista política, “geraria inúmeros conflitos”.
Magda tinha defendido a constitucionalização de 11% do IDH para Tarija e
outros departamentos produtores de hidrocarbonetos, “ganhos por meio de luta” na
constituinte, mas que, para Carmen, prejudicaria os departamentos sem recursos.
Preocupava-lhe a relação entre autonomia e recursos naturais e opinava que deveria
haver uma distribuição equitativa, per capita, dos recursos nacionais. Isso vai fazer com
que todos reclamem, dizia, e também que “onze guaranis, que ganham por dois terços,
sejam autônomos e tenham ingresso desproporcional”. Pede que seja pensado um plano
de desenvolvimento de modo centralizado ou local, mas que o desenrolar não esteja
vinculado aos recursos. “Com a Lei de Participação Popular (1996), os municípios
tem recursos e somente compraram jipes e ll‟uchus (gorros indígenas)”, dizia. Dizia que
duvidava que os territórios indígenas fossem um espaço bom para o desenvolvimento
produtivo.
O lugar dos indígenas no projeto de Constituição do MAS era, para a cientista
política, excesso de corporativismo. Estava de acordo com cotas parlamentares para
indígenas (representação especial), mas não com a eleição por usos e costumes, que
112
considerava uma mostra do corporativismo que criticava. Pensava que seria melhor
fortalecer o Senado, como expressão das regiões. Via problemas com a idéia de
comunitário e coletivo, que os indígenas e o MAS defendiam, por ir contra a de
propriedade individual. Ela representava setores considerados, na Bolívia, mestiços da
cidade, numa versão acadêmica e informada, que não era opositora, ainda que
compartilhasse as críticas dos setores oposicionistas. “Não perdoarei Evo se rifar essa
possibilidade”, dizia. E criticava a idéia de “descolonização”, que também utilizavam
alguns pesquisadores do programa de pós-graduação onde estudava. Isso passou”,
dizia, e também criticava “que gonistas infiltrados no governo do MAS, e que, até o
momento, o MAS seguia no caminho do neoliberalismo”.
Uma das críticas diretamente dirigidas à fórmula do MAS para a definição de
povo boliviano veio do analista José Antonio Quiroga, economista e empresário
editorial que rejeitou, em 2005, a oferta para ser vice-presidente na chapa que levou Evo
Morales à presidência. Para Quiroga, a definição de povo boliviano pode-se reduzir a “a
nação boliviana está conformada pela totalidade dos bolivianos e pelos camponeses”; e
na redação do texto por parte do MAS haveria uma confusão entre “nação cultural” e
“nação política”, por meio da qual, com a idéia de Estado Plurinacional estar-se-ia
chamando “nações” ao que deveria ser assim como na Espanha “nacionalidades”.
Segundo o analista, isto faria com que a “nação boliviana” ficasse excluída do Estado
Plurinacional e que os que não fazem parte dos povos e das nações indígenas fossem
diferenciados, num processo que via como o da conversão da nação boliviana em
“nação clandestina”, em alusão ao famoso filme de Sanjinez, no qual a nação excluída
era a comunitária indígena. Ao considerá-la equivocadamente mono-cultural e
excludente, dizia Quiroga, o Estado Plurinacional substituiria a nação boliviana.
Contrastando com esta análise, na interpretação de Adolfo Mendoza
82
, a nova
definição incluída no texto não era redundante e a menção de bolivianos e bolivianas,
por um lado, e de nações e povos, por outro, significava integrar os dois tipos de
categorias: uma individual e outra coletiva. Deste modo, selavam-se na Constituição os
direitos coletivos dos povos e sua identidade não individual, válida como sujeito
político perante o Estado. Neste sentido, o constituinte Carlos Romero, antes da
aprovação da nova Constituição, dizia à imprensa que o “plurinacional” é o que
verdadeiramente torna a nova Constituição particular e diferenciada, e “enfatiza o
82 Em conversa pessoal, fevereiro de 2009.
113
reconhecimento de coletividades que podem se auto-identificar, de forma legítima,
como povos ou nações indígenas”. Romero diferencia o plurinacional do pluri ou multi
cultural. na Constituição anterior de 1967, reformada em 2004 (e em anteriores)
aparece “somente como direito declarativo, e ensejo a que a diferença cultural seja
vista somente como um fato basicamente folclórico; não assume que o componente
cultural é transversal a todas as relações sociais, com componentes econômicos,
políticos e sociais”. O que se pretende com o plurinacional, afirma, é um
reconhecimento efetivo das nações originárias como parte efetiva do Estado boliviano.
Para um analista assíduo na mídia boliviana, o advogado constitucionalista
Carlos Alarcón, “o plurinacional, na definição do país, é começar pelo que divide os
bolivianos, deixando de lado o mais importante, que é o comum, o que nos une”. “A
grande falha deste projeto é que, pela inovação, quer-se destacar e ressaltar o diverso, e
não coloca claramente o que é comum a todos os bolivianos. Gera uma sensação de falta
de pertencimento quando elimina a nação e a república; aquele que não pertence a um
povo ou nação indígena anda descolado, como marciano dentro do Estado”. Para
Alarcón, o denominador comum de onde podem partir o restante das identidades são os
conceitos de nação e de república boliviana que tinham saído do projeto de
Constituição do MAS e os valores compartilhados por todos, como liberdade,
igualdade e justiça.
As críticas buscavam esvaziar a legitimidade de uma Constituição aprovada pelo
MAS, e que a oposição desconhecia. Mas isso não tinha sido tudo…
83
, quando se reabre
o texto constitucional e a oposição “revisa” a Constituição defendida pelo MAS e
aprovada na Assembléia Constituinte em 2007, este artigo é modificado e fica redigido
da seguinte forma: “a nação boliviana está conformada pela totalidade das bolivianas e
dos bolivianos, das nações e povos indígenas originários camponeses, e das
comunidades interculturais e afrobolivianas que, em conjunto, constituem o povo
boliviano”. Esta seria a fórmula que finalmente se inclui na nova Constituição
boliviana. O importante para a oposição era que se havia incorporado o termo nação,
assim como o termo república, que não estava no projeto de Constituição que o MAS
tinha aprovado. Também se eliminava a menção a classes sociais (com a idéia de
“pertencentes às áreas urbanas de diferentes classes sociais”, que inclui mestiços de
esquerda), sem especificar os grupos (classes ou nações e povos) aos quais pertencem os
83 As contínuas modificações nos artigos da Constituição lembra-nos a fórmula “Ce ne pas tout”, de Lévi
Strauss, na análise transformacional dos mitos.
114
bolivianos, como na versão anterior. O que o artigo três da Constituição define não é
o povo boliviano, mas a nação e seus componentes, “que em conjunto constituem o
povo boliviano”.
Por outro lado, a partir das modificações, as nações indígenas ficavam
submetidas à categoria principal de nação. Ao passar de uma definição por extensão a
outra englobante, pode-se verificar repetição. Isto seria analisado distintamente como
virtude ou incongruência. Mas o importante é que, com isso, a oposição tentava impor
continuidade à Constituição anterior e defender a idéia de nação. O termo nação,
introduzido neste artigo da Constituição, não tem pouco peso político na Bolívia. Como
assinala Tapia, “nação contra anti-nação” era a clivagem principal no processo
inaugurado com a revolução de 1952 (Tapia, 2008: 76). Mas a oposição, no projeto do
MAS, à introdução da idéia de “nação” não vinha do “antinacional”, identificado, na
Bolívia, com os representantes dos interesses capitalistas estrangeiros.
No projeto do MAS, a nação era deixada de lado com as idéias de Estado
Plurinacional e de povo, que para os constituintes eram primordiais. No entanto, no
desenvolvimento do processo e com a disputa política com a Meia-Lua, a idéia de nação
obteve cada vez mais importância. No marco da rivalidade com Oriente e a ameaça
separatista, para o governo voltou a ter sentido a ênfase na unicidade da nação. Política
que também se expressou com a aliança do governo com o exército, explicada como
aliança estratégica baseada na importância que os militares davam à unidade da pátria,
pondo em segundo plano outras diferenças ideológicas. Também a reintrodução da
nação era possível no momento das “nacionalizações”. Talvez por isso, estes motivos
oriundos da conjuntura política, a introdução pôde ocorrer sem traumas, e a Bolívia
seria, ao mesmo tempo, nação e plurinação. Seria possível uma nação plurinacional, que
vá de encontro ao processo de homogeneização e que abra espaço à diferença no
contexto de um Estado?
Apesar das modificações e da introdução do termo “nação”, as críticas
continuariam sendo as mesmas e a nova Constituição seria criticada como etnocrática.
Analisando a Constituição, Víctor Hugo Cárdenas diria que ela tem virtudes, como mais
direitos e mais temas que não existiam, como meio ambiente. Mas tem graves e sérios
erros, dizia: “se Mandela tivesse estado aqui, tivesse feito uma Constituição como na
África do Sul, onde não se diz „brancos, brancos, brancos‟, e negros esmagados por
baixo; mas também não teria dado volta a situação e dito: „cidadãos negros, negros,
negros. Brancos esmagados‟… É isso o que faz a Constituição atual. uma tripla
115
cidadania: os que têm mais direitos são os chamados nações e povos indígenas
originários camponeses. Segundo, as comunidades interculturais. O restante que não é
indígena originária nem intercultural é de terceira categoria. Infelizmente deve-se dizer
que a Bolívia tem uma Constituição etnocêntrica, até mesmo racista por sua tripla
cidadania. É o único país no mundo que tem uma Constituição construída com base no
critério da cidadania étnica”. Em outro momento também tinha criticado o que via como
sistema judicial que creditavam 36 justiças independentes. De fato, reconhecia que “o
MAS abriu as portas à presença de setores sociais excluídos, isso é um grande avanço.
Que não tenha qualificação agora, tudo bem; que qualquer um entre no cargo, tudo bem.
Mas não podemos negar que uma democratização era importante na Bolívia. […] temos
que reconhecer a valentia do MAS, sua audácia e sua decisão de abrir, escancarar as
portas
84
.
Outra crítica ao Estado Plurinacional e à definição de povo seria escrita por Julio
Aliaga. Para ele, a nova Constituição estabelece a existência de 36 nações culturais e/ou
étnicas definidas por origem, sem opções, enquanto que a “mais uma” nacionalidade se
pertence por adscrição quando não se é étnica/racial/culturalmente identificável. Essa
outra nacionalidade é definida por Aliaga como “limbo boliviano”. O autor define esta
última como democrática, e as outras, como antidemocráticas, por serem impostas, mas
com diretos especiais e privilégios como justiça própria, ou prioridade na dotação de
terras e de controle de recursos naturais renováveis em seu território. Considera que “os
outros, a grande maioria do país, os não índios, os não originários, os não camponeses,
estamos no limbo, reconhecidos legalmente como „bolivianos‟, definidos como „o que
resta‟. Basta a noção de mestiçagem, do urbano ou a prática de um ofício não vinculado
à terra: mestiço, residentes urbanos, operário, mineiro, taxista, consultor ou funcionário
de escritório, todos os ofícios valem para viver no limbo”
85
.
84 Eram as declarações mais positivas que o ex-vice-presidente aymara tinha feito com relação ao MAS.
Foi no evento organizado pelo jornal Pukara antes das eleições de 2010. Ver PUKARA (2010) Disponível
em: http://periodicopukara.com/archivos/historia-coyuntura-y-descolonizacion.pdf
85 Artigo Un 6 De Agosto Post-Inter-Pluri-Mega -Multiple: La Identidad Y El Limbo”, escrito 6 de agosto
de 2010, distribuído na lista de emails Aula Libre. Também afirma: Enquanto nossas raízes ocidentais
não se revalorizarem, nenhum esforço de unificação ou reconstrução de uma alternativa político-
ideológica será possível e o etnonacionalismo seguirá errante em seu caminho de destruição das bases
democráticas e da institucionalidade política do republicano. E jusrisprudência: o reconhecimento
constitucional da condição de ‘afro- descendente’ para receber o reconhecimento de ‘afroboliviano’
como identidade e as vantagens e os privilégios correspondentes, similar a de
indígena/originário/camponês. Nota importante: os afro-descendentes não são
indígenas/originários/camponeses, mas não estão no Limbo. E os euro-descendentes?” (trad. nossa).
116
Do MAS, no entanto, tinha surgido no processo constituinte uma definição
flexível e aberta do plurinacional. Não se referia a nações delimitadas que se
integrariam no governo central, mas, antes, à possibilidade de incorporação de todos às
instituições. Mantinha a essência da reclamação katarista, que era a denúncia da
exclusão das maiorias. Mas as maiorias não defenderiam uma visão etnicista e sim uma
construção identitária mais flexível que cairia melhor ao povo boliviano. Seria o
genérico “indígena originário camponês, intercultural e afroboliviano”, que teria as
portas do Estado tão abertas como até então tinham tido os brancos. Do indianismo ou
das organizações indígenas de terras baixas, que de fato não viam aumentar sua
participação no Estado, criticar-se-ia o plurinacional como uma reforma “meramente
declarativa”, mas a base do MAS, os camponeses e colonizadores que agora
integravam de fato o governo, com mulheres de pollera ou camponeses nos três poderes
e na Assembléia Constituinte viam, sim, uma mudança.
Numa entrevista ao diário La Prensa (2010a, trad. nossa), perguntavam a García
Linera acerca no novo Estado, e ele disse: “O que é a plurinacionalidade? É a igualdade
de direitos dos povos, de culturas em nosso país. Não é nada além disso. Tudo isso no
contexto de uma identidade nacional boliviana. Somos uma nação de nações. A
plurinacionalidade é o reconhecimento dos direitos coletivos de mestiços, aymaras,
quéchuas, guaranis, de seu idioma, tradição e cultura; que todos tenham as mesmas
oportunidades para acessar benefícios, cargos públicos e reconhecimentos”. O
plurinacional como algo que “não é nada além disso” conformava à esquerda nacional,
aos camponeses e a certa demanda das maiorias indígenas que buscam uma participação
moderna no sistema do Estado liberal. Não era um projeto de mestiçagem, de
monoculturalismo como condição para a cidadania e, além disso, permitia desenvolver
as autonomias e a territorialidade para ir além do multiculturalismo do reconhecimento
que não dá poder político às minorias étnicas do país.
A ampla definição será uma marca registrada das muitas discussões incluídas na
nova Constituição. Já vimos um pouco de amplitude conceitual quando os constituintes
e as organizações sociais discutiam o modo de sua inclusão, chegando à conclusão de
que somente a soma sem hierarquização, nem divisão, poderia expressar a diversidade
sem excluir. A intervenção da oposição deixou mais evidente seu caráter genérico e
abrangente. E, de algum modo, a definição constitucional acompanha esses processos
sociais que, nas pessoas e nos grupos, deu lugar a mudanças identitárias, à recuperação
do caráter indígena e à combinação de perspectivas (classista, nacional, étnica). O
117
próprio Evo Morales é exemplo disso. Nem índio puro, nem mestiço puro… quando a
OEA considerava a revogação da resolução que tinha excluído Cuba da entidade, em
maio de 2009, Evo Morales declarou que ele, como Cuba, também era marxista-
leninista e comunista. Em outra oportunidade, declarou-se humanista, criticando que
esquerda e direita discriminavam os indígenas. Ao mesmo tempo, reconhecia-se como
presidente indígena, sem nunca deixar de lado sua atribuição camponesa, sua aliança
com o Exército, os projetos desenvolvimentistas, e seu posto de dirigente máximo das
Federações de Produtores de Coca no Trópico Cochabambino.
Como Evo Morales, o Estado Plurinacional e o povo boliviano eram muitas
coisas, e somente a somatória do indígena, do moderno, do autonomista, do marxista,
do MAS e de Evo Morales poderia alinhar todos, ganhar com o voto de todos e fundar
um novo Estado. Também as críticas viriam de muitos lugares: indianistas, liberais,
marxistas ou nacionalistas. Evo Morales seria católico quando a Igreja encabeça as
críticas à Constituição; seria indígena ou lembraria seu passado no Exército. García
Linera falaria de movimentos sociais e de socialismo; ou de Estado e institucionalidade.
Também o Pacto de Unidade era muitas coisas, somente assim haveria acumulação de
forças para criar novos sentidos a velhas palavras, inventar palavras novas ou repetir
fórmulas, mas significando algo diferente. A política aparece como esse espaço onde as
palavras mudam de sentido, ou os velhos sentidos aparecem com novas palavras.
A política coroa seus êxitos e conduz batalhas por trás de conceitos. Às vezes,
parecia que são esses que se mobilizam e podem chegar a ter vida. A política é terra de
paixões, e assim veremos que autonomia, capitalidade e nacionalizações contêm mais
do que uma lei ou um procedimento de gestão podem regulamentar: a descentralização;
a transferência da sede dos poderes; ou a expropriação, compra de empresas por parte
do Estado ou aumento das retenções compulsórias ainda contêm significados
fervorosos, mas um pouco menos do que os primeiros. A máquina do Estado faz essa
tradução, onde, uma vez vencidas as batalhas, surge uma nova verdade estatal, e esta é
traduzida em leis e regulamentações. Antes, podia ser considerada um engano,
propaganda ou mera retórica. E, às vezes, este caráter pode até mesmo sobreviver
independente da aprovação das leis, ou de uma nova Constituição. O processo boliviano
mostrava continuamente como existem significados que ultrapassam as leis, o Estado e
as palavras.
118
Capitulo 2
As comissões e a procura de um centro entre “duas Bolívias” e o Estado.
1 A Lei de Convocatória e os Dois Terços.
A chegada dos povos indígenas à Assembléia tinha se consumado entre
controvérsias e a desconfiança de que, mais uma vez, o sistema político fosse bloquear-
lhes o caminho. A Lei de Convocatória da Assembléia tinha sido uma das primeiras
medidas do governo de Evo Morales, promulgada no dia 6 de março de 2006, quase três
anos antes do que a nova Constituição
86
. Mas, dado o controle do Senado pelos
parlamentares da oposição, a lei somente pôde ser aprovada depois de uma negociação
política pela qual foi cortada a possibilidade de representantes diretos dos povos
indígenas, além de outras propostas que nos anos anteriores vinham sendo discutidas
pelas organizações sociais. A proposta aprovada determinaria a composição da
Assembléia Constituinte e muito do seu desenvolvimento. Na mesma Lei de
Convocatória, as eleições eram convocadas para julho de 2006; estabelecia-se que a
Assembléia funcionaria por um ano a partir de agosto de 2006; e que estaria composta
por 255 constituintes. Além do mais, seria aprovada por dois terços. No acordo político
com a oposição se incluía que, no mesmo dia em que fossem eleitos os assembleistas,
votar-se-ia em cada departamento um referendo autonômico, que seria vinculante e que
deveria ser implementado pela nova Constituição.
Em setembro de 2004, quando durante a presidência de Carlos Mesa se
habilitaram os mecanismos para a convocatória da Assembléia, as organizações sociais
fizeram uma proposta na qual se propunha a eleição de um total de 248 constituintes,
incluindo 10 por circunscrições especiais étnicas de terras baixas e 16 por representação
direta de nacionalidades indígenas de terras altas em processo de reconstituição
territorial, nos dois casos eleitos por formas próprias
87
. Numa investigação da época,
García Linera apresentava a voz de Evo Morales, que defendia uma proposta de três
circunscrições e, como entrevistado, dizia: “se o conseguimos [...] que os quéchuas,
86
O artigo 232 da Constituição reformada em 2004 determinava que a Assembléia seria convocada por
“Lei Especial de Convocatória”, sancionada por dois terços dos votos do Congresso, e sem possibilidade
de veto presidencial.
87
No Pacto de Unidade, em maio de 2004, tinha sido já proposto na comissão respectiva do parlamento
que tivesse seis constituintes para terras baixas e 12 para terras altas, dentro de um total de 188, por
representação direta. Ver o trabalho de Éjido e Valencia (2010: 34).
119
aymaras e guaranis sejam maioria, essa constituinte não serve, não vai mudar o modelo,
não vai mudar o sistema político, vão ser apenas emendas [...] nós queremos, pelo
menos, que 60% dos constituintes sejam quéchuas, aymaras, e guaranis, baseados no
último censo nacional do país, para mudar o sistema econômico e o sistema político [...]
como somos três [constituintes por circunscrição] de forma obrigada um deles deverá
ser indígena, o segundo: mulher, o terceiro: dependendo de que zona estivermos, pode
ser mineiro, camponês da região [...] se foi em Yungas, um seria aymara cocaleiro,
depois uma mulher, porque os hoteleiros são pouquinhos e o terceiro um negro, se é
uma circunscrição da comunidade negra” (:346, trad. nossa)
88
.
Raquel Gutiérrez Aguilar (2006, trad. nossa) permite mostrar certo desconcerto
que percorreu o campo das organizações sociais no momento da aprovação da Lei de
Convocatória à Assembléia. Em uma entrevista realizada por esta época, ela fala de
“diques” na Assembléia, para evitar o que desde a sociedade poderia irradiar para o
Estado. Considera que a lei de convocatória à Assembléia Constituinte recompõe o
sistema institucional. Ao autorizar somente os partidos políticos e agrupações cidadãs a
participar nela, ficaram de fora nada menos do que as organizações sociais que deram
suor e sangue ao projeto”. Raquel Gutiérrez dizia “o cenário da Assembléia Constituinte
significa, para mim, sem dúvida nenhuma, o desenho institucional, organizativo e
político para a contenção do avanço dos movimentos sociais. É uma procura
desesperada pela cicatrização das feridas que abriu a insurreição social”. Fala de “uma
tentativa sistemática de Evo de apaziguar a dissidência autônoma para fazer do MAS
um instrumento político consolidado”. E citava setores políticos aymaras que tinham
expressado “nós que demos início a tudo isto, vamos ficar de fora, latindo pros muros
como se fôssemos cachorros”
89
.
88
Evo Morales criticava algumas fórmulas de eleição com o argumento de que as organizações se
dividiriam para ter mais constituintes. Mas defendia uma proposta de circunscrições com representação
tripla com voto individual e secreto, mas também com pré-candidatos das organizações escolhidos de
forma comunitária. Ainda como pesquisador, García Linera (et al 2004) faz uma crítica à proposta de
CIDOB e CONAMAQ, que procuravam ser o canal para que candidatos indígenas eleitos por formas
próprias sejam reconhecidos. O futuro vice-presidente dizia que estas desconheceriam estruturas de
povos indígenas em alguns casos mais representativas, como as do sindicalismo agrário do altiplano
norte (Felipe Quispe), causando o fracionamento de identidades indígenas maiores, como a aymara que
adquiriu força política “não a partir de micro-identidades regionais estatalmente reconhecidas e
fomentadas”. (:346-7)
89
O debate que estava aberto nesta data era o de se participar ou não, comentava Raquel. Sua proposta
é, então, deixar o MAS como problema do governo, e “seguir o caminho do Sun Tzu: quando o inimigo
avança, retrocedemos; quando o inimigo retrocede, avançamos. Quando o inimigo se pasma, o
ofendemos; quando o inimigo ofende, nos protegemos. Em fim: isto é uma dança”. Quando falava com
o Óscar Olivera (líder da “Guerra da Água”) na época da campanha, dizia: ‘vai de férias, à praia, corre,
120
Dada a importância que teria no desenrolar da Assembléia a questão da
proporção de constituintes que se estabelecia, vários viam na lei de convocatória o selo
do destino do processo. Do acordo no Congresso derivaria a futura composição da
Assembléia. E o poder de veto da oposição controlando o Senado se transladava, assim,
à Assembléia, apesar de que esta tentasse esquivá-lo declarando-se “originária” em uma
de suas primeiras votações. Na Lei de Convocatória aprovada haveria 210 constituintes
eleitos em circunscrições locais “uninominais” e 45 por circunscrições “plurinominais”,
pelos votos a nível departamental de cada partido ou agrupação cidadã que postulava
candidatos, cinco em cada departamento (dois por maioria, um pela segunda força, um
pela terceira e um pela quarta, quando estes conseguiam mais do que cinco por cento
dos votos válidos). Por outra parte, em cada circunscrição uninominal entrariam dois
constituintes pela maioria e um pela minoria. Este mecanismo de escolha, unido ao
número fixo de cinco constituintes plurinominais por departamento, deu aos
departamentos opositores do MAS do Oriente uma porcentagem bem maior do que teria
conseguido em um modelo de representação apenas populacional
90
.
No entanto, apesar da exclusão das organizações indígenas, o MAS serviu como
canal para que muitos camponeses e indígenas fossem eleitos constituintes. Xavier Albó
e a rede de ONGs Apostamos por Bolívia realizaram uma pesquisa com a totalidade dos
constituintes cujo resultado foi que 55,8% se auto-definiam como membros de algum
povo originário (31,8 quéchuas; 16,9 aymaras; 7,1 de outros povos: 6 chiquitanos, 4
mojeños, 4 tacanas e 1 das etnias guarani, guarayo, itonama e joaquiniana) (ALBÓ
2008:96). A porcentagem dos constituintes que vivem na área rural é parecida à
porcentagem da população rural no último censo: 33%. Se bem que na pergunta “raça”,
69,8% declaram ser mestiços, 26,7% indígenas e 3,6% brancos; entre os mestiços se
incluem alguns dos que responderam também pertencer a algum povo originário
(especialmente os não aymara). Estes resultados permitem, na Bolívia, que tanto os que
se identificam como mestiços como os que se identificam como indígenas, possam se
dança, os romances que você nunca leu. É o momento da festa de eles. Não invitaram a gente e não
queremos comparecer. Vamos de férias a repor forcas’”.
90
Teve dezesseis agrupações ou partidos com representantes. O MAS elegeu 137 dos 255 assembleistas
(mais 5 que entraram com outras siglas partidárias); PODEMOS 60; a terceira força era o MNR
(Movimento Nacionalista Revolucionário), com 18 constituintes através de três facções departamentais
(MNR, MNR-FIR e MNR-A3); UN (Unidade Nacional) 8; o MBL (Movimento Bolívia Livre) 8; AS (Aliança
Social) 6; CN (Consertação Nacional) 5; MOP (Movimento Originário do Povo) 3; APB (Autonomia Para
Bolívia) 3; Ayra 2; ASP 2; o MIR-NM 1; MCSFA 1; e AAI 1. Muitos dos partidos ou agrupações cidadãs
eram a renovação de velhos partidos como a ADN de Hugo Banzer, que muitos de seus membros
integravam agora o PODEMOS; e como os partidos MNR, MIR, UCS e NFR que formavam tinham
formado parte da coalizão que governava até a expulsão de Sánchez de Lozada em outubro de 2003.
121
apresentar como maiorias. Por outro lado, a categoria “mestiço” abarca tanto os que se
reconhecem como não indígenas, como outros que de fato assim se reconhecem. Entre
os constituintes, 88 eram mulheres e 167 homens; e dentre eles 43,2% das mulheres e
62,3% dos homens eram “profissionais”. A pesquisa apontou, ainda, que as mulheres
eram mais jovens, em maior proporção dirigentes de base e, também em mais casos,
membros de grupos étnicos.
Mais do que os números, no entanto, a história de alguns constituintes permite
dar conta de até que ponto o MAS tinha incluído setores externos ao Estado. Além do
mais, 80 constituintes do MAS provinham de organizações camponeses e indígenas do
pais todo. A necessidade de encontrar candidatos de todo o território evitou que os
candidatos da cidade monopolizassem as candidaturas, e permitiu que o MAS recorresse
às organizações sociais das quais surgira. Nos lugares em que os sindicatos agrários não
estavam presentes, o MAS também recorreu às agrupações indígenas. A composição
era, então, a mais diversa: representantes de grêmios, intelectuais, donas de casa. Jimena
Leonardo, mulher de pollera de uma província de La Paz tinha se candidatado porque
na sua circunscrição faltavam candidatas mulheres e fizeram uma convocatória por
rádio. Chegou depois de ter sido ratificada em várias instâncias em assembléia e
enquanto outros se ajoelhavam para pedir votos, ela fez sua campanha falando de
Justiça Comunitária, a qual conhecia por ter sido autoridade originária junto com seu
pai, quando sua mãe tinha adoecido, e por ter se especializado respeito disso estudando
na cidade.
Benedicta Huanca nasceu em uma mina, depois migrou ao Chapare e depois ao
Plan 3000, bairro da cidade de Santa Cruz. Com o armazém lhe foi muito bem, em sua
casa, seu filho estava a ponto de se graduar como engenheiro e nos domingos ganhava
18 mil pesos bolivianos, quase o dobro que o salário mensal de constituinte, que
alarmava a vários cidadãos por ser alto e que, para muitos constituintes, era mais
dinheiro por mês do que ganhavam em um ano. Havia candidatos de longa militância
política ou carreira sindical, e outros que tinham sido nomeados candidatos graças a
dinheiro ou bons contatos.
Ainda que o próprio governo no Poder Executivo reconhecia a dificuldade de
encontrar quadros indígenas, no Congresso e na constituinte, pessoas que se
identificavam desta maneira ingressavam de um modo nunca antes visto. A entrada de
indígenas era, ao mesmo tempo, o ingresso de pobres, comerciantes varejistas,
trabalhadores, pequenos produtores do campo, etc. 137 do MAS (142, com os 5 de
122
outras siglas) do total de 255 constituintes representavam isto da melhor maneira, mas
ainda tinha camponeses e indígenas em agrupações ou partidos menores que obtiveram
25 representantes. A outra parte das “duas Bolívias” tinha votado pelo PODEMOS, que
reduziu a porcentagem obtida na eleição presidencial, mas obteve 59 ou 60 constituintes
(33 de Santa Cruz, Beni e Pando); o MNR e o Unidade Nacional (UN), do Doria
Medina, que como milionário, branco e de um partido opositor, era um dos símbolos
desta assembléia, utilizado freqüentemente para exemplificar as “duas bolívias”, como
por exemplo quando aparecia com Teodora, a presidenta de pollera da comissão de
economia e pequena comerciante de La Paz
91
.
Apesar da diferença a favor do MAS, a quantidade de constituintes da oposição
impedia que o partido de governo alcançasse os dois terços, por isso seus adversários
defendiam de modo irredutível e acirradamente a posição de que se aceitem os dois
terços para o modo de aprovação de artigos no regulamento de debates. A representação
especial para os departamentos (sendo que o MAS tinha triunfado apenas em três
governos departamentais e a oposição em seis), somada à não inclusão da representação
especial para povos indígenas colocava o MAS na obrigação de procurar acordos para
aprovar o texto da Constituição, ainda que existia a possibilidade de que, finalizado o
prazo da Assembléia sem acordos, sejam submetidas a referendo duas constituições pela
maioria e a minoria, sem acordos. Antes de assumir uma destas posições, no entanto, o
MAS procurou por meses impor a maioria absoluta (com a que contava) como modo de
aprovação do texto no regulamento. Isso deu lugar a meses de disputas que derivaram
em cabidos e greves de fome, como a iniciada por Doria Medina e outros constituintes
de seu partido, sem que por vários meses seja aprovado o regulamento de debates nem
se pudesse dar início às deliberações constituintes. Do outro lado, o Pacto de Unidade
realizou vigílias para apoiar a decisão do MAS de impor a maioria absoluta.
Roman Loayza é um dos líderes camponeses históricos e foi eleito como
constituinte. Adolfo Mendonza, assessor das bartolinas o descrevia como um grande
mobilizador: “te diz „em tantos dias eu te mobilizo tantas pessoas‟, e o fazia”. Tinha
sido secretário executivo da única (CSUTCB) e era o presidente da bancada de
constituintes do MAS. Alguns o viam como sucessor de Evo e este ultimo parecia lhe
91
Um constituinte da Comissão de Cidadania e Nacionalidade explicava que a interculturalidade é o que
se dá com Doria Medina: ele é rico, nós pobres e nós apertamos as mãos; às vezes ele se sente grande e
nós pequenos, às vezes nos igualamos. Filiberto Escalante era constituinte do MAS por Oruro, com
infância pobre, agora era milionário e, graças à sua fábrica de peças de reposição automobilísticas em
São Paulo. Graças a deus agora nós indígenas estamos de igual a igual com Doria Medina, dizia.
123
diminuir espaço político. Dirigindo-se aos constituintes, em reunião fechada, Román
disse que era preciso fazer uma Constituição para todos e apresentava sua análise
política: “o PODEMOS diz „querem dividir em 36‟, dizem que vamos lutar inclusive
entre quéchuas e aymaras. Mas cada um tem seu território. Quéchuas e aymaras somos
muito honestos, não somos guerreiros. A invasão espanhola e a conquista quiseram
acabar conosco, quéchuas e aymaras. E se nos colocamos cara a cara, parecemo-nos
muito os de oriente e ocidente”.
No dia primeiro de setembro de 2006, enquanto o MAS tentava avançar na
aprovação de um regulamento que permitisse a aprovação da Constituição por maioria
absoluta e não por dois terços, Román Loayza caiu no fosso do Teatro Gran Mariscal,
onde se realizavam as sessões plenárias, batendo a cabeça e perdendo o conhecimento
por vários dias. Caiu no meio de um tumulto causado pelos constituintes da oposição
que queriam impedir o avanço da sessão, fazendo barulho com garrafas de plástico
contra a mesa e se dirigindo à mesa da Diretoria. García Linera, por telefone de La Paz,
dava ordem de que “procedam a votar”, segundo contam os constituintes. Para o MAS
estava em jogo a aprovação de uma Constituição sem a necessidade de negociar com a
oposição. Isabel Domingues, prima de Román, executiva das mulheres camponesas
Bartolinas, queria castigar a oposição com seu chicote, com o que caminhava desde o
dia em que foi eleita autoridade. Alguns explicavam “a queda de Román” em termos de
cosmologia andina. Para Jorge Saunero, assessor de CONAMAQ, “em 2004, quando se
forma o Pacto de Unidade, Román Loayza se compromete a reconstituir [territórios
ancestrais], caso contrário não tivéssemos feito o Pacto, mas não cumpriu e por isso a
pacha (Madre terra) se está ocupando”.
Outros comentavam que, nesse dia, um policial tinha impedido a entrada de
Román com seu chicote e seu líquidos, dois elementos que ritualmente devem estar
juntos, à sessão plenária da Assembléia. Ele advertiu que não deviam se separar, mas o
policial da entrada não lhe permitiu que entrasse com os dois. Enquanto conversava com
constituintes logo após uma sessão da Comissão Estrutura do Estado, Mirtha Jiménez,
que ficou encarregada da bancada do MAS depois do acidente, contou que se fez cristã
porque seu filho se salvou da bruxaria de uma mulher do ex-marido. Hernán Ávila,
assessor do CEJIS e sociólogo, contou que o dirigente indígena de terras baixas, Miguel
Bejarano, não vai a um lugar se seu médico diz que perigo. Hernán se reconhece
como indígena, mas não acredita em bruxaria, e acha uma explicação a partir de efeitos
psicológicos. Mirtha se reconhece como mestiça, é mulher “de vestido” (em oposição à
124
“de pollera”), e acreditava em bruxaria e também em fantasmas. Conta também que sua
casa se encontra sobre uma mina e por isso sua mãe se curou de hérnia de disco e ela de
pedras na bexiga. A classe média socialista, neste caso, tinha crenças tradicionais, e o
que se reconhecia como indígena defendia explicações modernas. Hernán diz que lhe
diziam bruxas às mulheres que lutavam e Nélida Faldín, constituinte do povo
chiquitano, conta que foi acusada de ser bruxa há pouco, porque ter sido eleita como
constituinte atraiu a inveja de seus próprios companheiros e de dirigentes velhos que
queriam retirá-la. Nélida conta também que chuqui é um tronco com o qual se cura, em
sua comunidade. E Cayo diz que, onde ele vive, as pessoas curam com lagartixa e tripa
de cachorro.
A discussão dos primeiros meses da Assembléia se centrou no artículo 70 (71,
antes) do Regulamento de Debates, referente ao sistema de votação a ser utilizado na
aprovação das decisões da Assembléia e do novo texto constitucional. Houve votações
em setembro e em novembro em que o MAS se impôs pela maioria absoluta da sua
bancada, com o voto de 140 constituintes e com 87 contra, sem respeitar os acordos que
se estavam alcançando. Mas a oposição conseguiu impor os dois terços, tal como
estabelece a Lei de Convocatória, especialmente, depois de mostrar sua força em uma
importante concentração em Santa Cruz que se conheceu como cabido do milhão”; e
nos outros departamentos da Meia-Lua com a formação de uma Junta Autonômica. A
situação mostrava ao MAS que a Meia-Lua não participaria da Assembléia se não fosse
com essa forma de votação. Apesar de ter aprovado o artigo, alguns setores do MAS se
mostraram dispostos a continuar dialogando para encontrar um acordo. Os dois terços
seriam aprovados apenas no dia 14 de fevereiro, depois de uma reunião dos
constituintes com Evo Morales, que aval ao acordo com MNR e UN, apesar das
críticas da CSUTCB
92
.
92
Aprova-se que os artigos na última votação “em detalhe” seriam aprovados por dois terços, e os
informes de comissão e a primeira votação em grande”, por maioria absoluta. No caso de não se
alcançar os dois terços se passaria ao referendo. No dia 17 de novembro, o MAS tinha aprovado que os
artigos se votariam por dois terços dos presentes, e a oposição somente poderia observar a votação de
três artigos, que no caso de não serem revisados por dois terços, passariam a referendo. Depois desta
votação, se iniciam as greves de fome. Antes, uma comissão de busca de consenso tinha se aproximado
ao acordo com parte da oposição (MNR e UN) com uma fórmula mista, que propunha uma votação por
maioria absoluta dos artigos, exceto nos casos mais polêmicos, e dois terços para o texto final,
regulamento e perda de imunidade dos constituintes. O acordo seria recusado pela intransigência do
MAS, impulsionada pelo governo, tratando de traidores aos integrantes do MAS que estavam
negociando, mas para depois terminar aceitando uma fórmula menos favorável, quando a tentativa de
impor a maioria absoluta fracassou. Também em novembro, uma decisão do Tribunal Constitucional
125
Em novembro de 2006, no discurso ao VI Congresso do MAS, Evo Morales
tinha colocado seu mandato em mãos da Assembléia: “meu mandato depende dos
constituintes, se os constituintes querem revogar o mandato de Evo Morales, nenhum
problema. Se a Assembléia Constituinte quer adiantar as eleições, nenhum problema da
minha parte, missão cumprida, cumpri com o que nos tínhamos proposto”, disse. O que
passaria depois da aceitação dos dois terços seria uma perda de força da Assembléia na
valoração do próprio governo; e se passaria ao extremo oposto do procurado nos
primeiros sete meses da Assembléia, com uma tentativa desesperada de procurar
consenso com a oposição. O cenário com o qual começavam as deliberações da
Assembléia, uma vez aprovado o regulamento, era para muitos frustrante e afetava o
projeto do MAS. A oposição poderia por limites ao que o MAS tinha pensado para a
Assembléia Constituinte que acompanharia a chegada de Evo Morales ao governo,
apesar dos dois triunfos eleitorais com 54% e 53% dos votos em dezembro de 2005 e
julho de 2006.
O secretariado técnico da Comissão de Educação, Diego Pary, que mais adiante
seria vice-ministro “indígena” de Educação Superior, dizia que a Assembléia
Constituinte devia ter sido instalada em outubro de 2003, depois da queda de Goni, ou
quando ganhou Evo. Agora dava para perceber que a oposição tinha ganhado espaço
e que o MAS não poderia impor as mudanças revolucionárias que procurava. Por outra
parte, os dois terços não eram o único que afastavam a Bolívia das mudanças
revolucionárias profundas. Raúl Prada escreveria (2010, trad. nossa): “As eleições eram
um instrumento democrático para viabilizar a agenda de outubro e o ímpeto do poder
constituinte dos movimentos sociais. Mas em 2006, depois da posse do presidente Evo
Morales Ayma e do vice-presidente Álvaro García Linera, apresenta-se uma disjuntiva
ao novo governo indígena e popular: Mudar tudo ou efetuar mudanças paulatinas de
uma maneira diferida e pragmática. Escolhe-se o segundo, frente ao temor de não poder
manejar um governo inserto em radicais transformações institucionais. Esta decisão
cautelosa se toma não sem hesitações, sobretudo por parte das organizações sociais”.
Paralelamente à resolução dos dois terços, houve também bastante movimento
pelo tema da conformação das 21 comissões, que o MAS tentou distribuir
conseguiu frear a tentativa da oposição de judicializar a Assembléia, embora tenha se declarado
competente deixando atrás, assim, a idéia de Assembléia Originária.
126
estrategicamente
93
. Em março e abril se realizaram fóruns territoriais nos 9
departamentos, com sessões às que assistiam boa parte dos constituintes e se recebiam
propostas das pessoas. Alguns geraram bastantes tensões, como o de Santa Cruz pelas
Autonomias, ou o de Sucre pela demanda da volta dos poderes e o de Tarija pela
proposta de “décimo departamento”. A oposição criticava os gastos elevados na
organização dos fóruns. As discussões da Assembléia começaram a final de abril,
depois que cada comissão elaborou sistematizações das propostas recebidas. No começo
de maio, começava a fase localizada em Sucre do meu trabalho de campo, com o
seguimento do trabalho das comissões. Conversei em maio com Doria Medina, que
pelos votos que representava era chave para conseguir o acordo. Ele pensava que o
MAS conseguiria a reeleição (não indefinida) e o voto direto para juízes da Corte
Suprema, enquanto que a oposição ficaria com a autonomia departamental e com a
manutenção da atual estrutura do Congresso. Era uma análise que terminaria sendo
acertada. A incógnita seria a reclamação de Sucre como sede dos três poderes de
governo (só possuía o judiciário), que aparecia logo após de ter sido resolvida a questão
dos dois terços. O tema dividia inclusive os constituintes do MAS e ninguém poderia
prever o desenlace.
2 A procura de um centro e as “duas bolívias”.
Depois de definidas as regras da Assembléia, com a aceitação dos dois terços
pelo MAS, iniciar-se-ia a elaboração dos artigos nas comissões e a procura de acordos
para cada comissão. Com apoio dos ministérios, a participação de assessores do MAS e
das organizações e com as propostas recebidas, iniciar-se-ia também a tarefa de elaborar
o texto constitucional. Tendo eu chegado à Assembléia neste momento, o MAS que
conheceria era o que ao mesmo tempo tentaria introduzir reformas importantes e
conseguir consensos. Isso implicava que algumas propostas iniciais, como a de refazer o
mapa da Bolívia, ficariam em nada, mas outras que não gozavam da aceitação da
oposição, como o Congresso Unicameral e as autonomias indígenas, mantinham-se em
pé.
93
Em janeiro se conformaram as comissões. Ao MAS correspondia 11 das 21, e escolheu as de Estrutura
de Estado; Poder Legislativo; Poder Executivo; Poder Judicial; Autonomias; Educação; Hidrocarbonetos;
Minérios-Metalurgia; Desenvolvimento Rural; Terra e Território; Desenvolvimento Econômico, segundo
seus nomes abreviados. No dia 24 de janeiro se escolheram presidente e vice das mesmas. A oposição
não compareceu, exceto alguns dissidentes interessados em conseguir dirigir alguma comissão.
127
O que veremos neste capítulo é a tentativa do MAS da Constituinte que não era
o MAS de antes de 2005 nem o MAS do Poder Executivo em encontrar um centro
político que pudesse permitir conseguir dois terços. As organizações sociais
permaneciam no jogo político, mas o protagonismo passaria a ser procurar acordos na
construção do projeto de nova Constituição. Esse lugar do centro era o lugar do qual
nasceria um novo Estado. Ninguém podia indicar com exatidão onde estava esse lugar,
mas era necessário alcançá-lo para aprovar a Constituição. Viriam, então, diferentes
teorias que imaginavam um centro e tentavam construí-lo. Nesta fase de comissões,
houve casos de independência em explorar diferentes caminhos políticos. Procurar um
centro seria, então, ao mesmo tempo, elaborar um projeto com elementos trazidos por
camponeses e indígenas ao Estado e contemplar os setores políticos que, apesar de
serem minoritários, tinham a chave para a aprovação.
Veremos um diálogo entre constituintes indígenas e da oposição, explorando o
lugar de um centro que se escapulia ou mudava de lugar. Também o centro aparecerá,
no caso da Comissão Terra, como equação entre os lugares das diferentes forças e idéias
políticas, como construção de uma proposta de artigos constitucionais que incorpora
pequenas modificações deixando de lado os extremos. O lugar do centro seria também a
articulação em um projeto de propostas diferentes, como quando o MAS combinava
autonomias de diferentes níveis. E, por último, veremos a tentativa de avançar com os
movimentos sociais com uma proposta forte que configurasse um centro a partir de um
movimento brusco de deslocamento, como ocorreu na Comissão Visão de País.
Encontrar o centro era um trabalho artesanal e político e, em algum ponto, impossível
de localizar com precisão, determinando o nascimento de um novo Estado a partir de
um lugar político cuja base é sempre evasiva e em movimento. A etnografia mostrará
esse movimento de encontrar o centro, de construí-lo, e também de conjurá-lo, de
impedir que comece a ser desenhado em um novo lugar. O que fica claro, como marca
desse tipo de processo, é que a opção pelo Estado se traduzia na necessidade do pacto.
Do que se tratava era de construir um Estado, e isso se fazia procurando um centro
como lugar onde o acordo político é possível. O ponto de partida, no entanto, era
longínquo do pacto, era o das “duas bolívias”, uma delas até este momento externa ao
Estado.
Na cronologia da Assembléia publicada por Carrasco y Albó na revista Tinkazos
(2008) se resume o debate realizado em março de 2007, no qual as forças políticas
apresentaram sua visão de país. Segundo Albó, é a primeira vez que as propostas de
128
Estado e de Constituição dos constituintes eram debatidas publicamente, quando
finalmente superada a discussão do regulamento. Março de 2007 era também o
momento em que começavam a aparecer nas comissões as vozes dos constituintes de
todo o país, que na negociação dos meses anteriores tinham sido relegados a uns poucos
negociadores. MAS, MOP, AS, ASP e MCSFA defenderam o Estado Plurinacional
Comunitário e Solidário e uma nova Constituição fundacional. PODEMOS, parte do
MNR e outros defendiam, mais do que qualquer outra coisa, a autonomia
departamental. Humberto Tapia, “poncho vermelho”, falou do Pachakuti, e Guillermo
Richter, do MNR, coincidiu com Doria Medina, do UN, na economia social de
mercado, o papel estatal na economia e o controle dos recursos naturais, temas centrais
para o acordo com o MAS. Na apresentação havia também um contraste entre o Power
point, mediante o qual PODEMOS expunha suas idéias, e as dissertações do MAS em
quéchua, aymara, guaria, bésiro, mojeño e castelhano, acompanhado de um q‟uwacha,
incenso ritual com menta silvestre.
Uns meses depois, com as comissões em funcionamento, a constituinte
Esperanza Huanca, originária do norte de Potosí, trajada com vestimentas tradicionais,
dirigia-se à oposição em uma sessão da comissão de Visão de País, na chave das “duas
bolívias”. Tinha como interlocutores à oposição do PODEMOS e do MNR, com terno e
gravata, na sala da comissão e lhes dizia: vocês não querem a verdadeira mudança.
Vocês são agora os representantes das transnacionais que não querem a mudança, sua
proposta somente são emendas e nós queremos mudanças profundas. Quando vocês
gozam de privilégios. Quando meus irmãos morrem de fome. Quando meus irmãos nem
sequer têm acesso a saúde, a educação. Nós não vamos nos curvar, não temos medo de
vocês. E que fique bem claro para cada um de vocês. Eu acredito que tivemos
paciência o suficiente. Mas é o cúmulo que sequer neste momento nós não possamos ser
responsáveis. O que vocês acham, hein? Que nos dizem? “estes tontos”, como nos
dizem, “que não sabem de leis”... tenham um pouquinho de seriedade, de quê adianta
que usem esta gravata? de quê adianta que sejam estudiosos, letrados, mestrados? Onde
está a responsabilidade?
Estamos fazendo uma nova Constituição política do Estado para Bolívia. E nos
dizem: “vocês vão se vingar de nós”. Para nós não há vingança... Não fizemos nada com
vocês e estão chorando?... Nós matamos vocês? Nós assassinamos vocês? Como
fizeram seus avôs? Se vocês quisessem a verdadeira mudança, então, deveriam discutir.
Nós fomos tolerantes. Evidentemente, vocês nos dizem “esses índios, esses
129
camponeses... não sabem nada”. Será que não sabemos sobre história? Mas em nós está
nossa realidade, em nós está inato. Não é como vocês nos dizem, não é como somos
tratados nos meios de comunicação, especialmente as mulheres. Sempre nos estão
ameaçando, mas não estamos naqueles tempos, quando mataram, quando
esquartejaram nossos avôs, Tupaq Katari, Bartolina Sisa, que nunca podemos esquecer.
O que somos? Objetos de brincadeira? Marionetes? Palhaços? Falo isso com
muita dor, e também com muito orgulho, os meios de comunicação dão cobertura a uns
quantos, mas nunca deram cobertura a uma índia como eu. Nunca se viu. Para vocês,
este processo tem que ser travado. Para vocês, seria ótimo que este processo constituinte
fosse abortado, mas não vamos dar este gostinho pra vocês, porque vocês são na
verdade os mentirosos, os que enganam [...] Eu acho que temos que ser bem cautos com
o que dizemos. E eu, pelo menos, segundo meus usos e costumes, digo ama llulla, ama
qhilla, y ama suwa
94
. E então, o que é isso? Não temos que esquecer quanto sangue foi
derramado por este processo, não é uma piada. Talvez isso não doa em vocês, mas sim
dói na gente. Quero mudanças. E para isso, as minhas bases me encomendaram redigir
uma nova Constituição política do Estado, de acordo a nossas vivências, não cópias de
outros países. [...]. E que fique muito claro. Vocês não nos tomem por tontos, antes o
fizeram com nossos avós, agora aqui estamos... [frase em quéchua] ... y não temos medo
de vocês.
2.1 Buscando consenso em Estrutura do Estado.
Em um dia de abril de 2007, Guillermo “Cacho” Richter, 58 anos, advogado do
departamento de Beni, ex-ministro e parlamentar, líder do MNR na Assembléia, fazia
perguntas a Nélida Faldín, de Lomerio, 26 anos, representante do povo indígena
chiquitano, eleita pelas listas do MAS. Ambos eram parte da Comissão Estrutura e
Organização do Novo Estado, ou “Estrutura do Estado” e o diálogo se enquadrava na
procura de consenso para aprovar o relatório da comissão. Uma vez mais, se
encontravam as “duas bolívias” em Sucre. O líder emenerrista perguntava pelos avanços
e contribuições da proposta do MAS e das organizações de criar “autonomias
indígenas”. Ele achava que tal era viável para as terras baixas, mas via complicações
para culturas amplas como aymaras e quéchuas.
94
Não seja mentiroso, não seja preguiçoso, não seja ladrão. Princípios morais dos Incas.
130
Em cima da mesa havia uma Wiphala, bandeira dos povos indígenas do altiplano
que o MAS queria reconhecer como símbolo nacional, e uma sacola com folhas de coca
que alguns assembleistas pijchavam enquanto transcorria a reunião. Um mapa da
Bolívia na parede, computadores, assistentes dos constituintes, um observador de uma
organização social, com lluch'u (chapéu tradicional), fazia anotações num caderno. No
intervalo da reunião haveria, como quase todos os dias, uma apresentação de
especialistas, organizada pelo CIEDAC
95
, e um almoço. Nélida Faldín estava
preocupada com o possível cenário do referendo que, segundo o regulamento aprovado,
seria o caminho de todos os temas que não obtivessem dois terços. Por serem minorias
populacionais em seus territórios, achava difícil que temas como a autonomia indígena
se impusesse no referendo nacional, devido ao fato de afetar interesses de poderosos,
expressava.
Mas Richter encontrava problemas no projeto de autonomia indígena, e não via
com clareza, por exemplo, como um território acederia a se transformar em autônomo.
O MAS propunha um referendo para criar regiões ou autonomias indígenas que, da
mesma forma que a autonomia departamental, teria que se realizar na unidade que se
transformaria em autônoma e não no nível territorial mais amplo em que se encontrava.
A autonomia indígena não poderia ser votada no nível departamental pelo mesmo
motivo que a departamental não vai poder ser votada a nível nacional, ilustrava um
técnico que participava na mesa junto com Nélida e outros constituintes. Isto provocava
temor em Richter, que via uma possível fragmentação do país, com centos de referendos
pela autonomia indígena em um país com “Estado débil”. Propunha, então, pensar
algum mecanismo e “cadeados” como poderia ser aquele de por um prazo de cinco anos
antes da conformação de cada governo autonômico; ou uma porcentagem elevada de
votos mínimos; se não, poderia ser estabelecida a necessidade de revisão e ratificação
95
Centro de Información Especializada de Apoyo a la Deliberación de la Asamblea Constituyente
(CIEDAC). Organizaram 28 consultorias” com a participação de expositores de um variado arco
ideológico e político: Carlos D. Mesa Gisbert, Carlos Cordero, Omar Guzman, Juan Albarracin, Luis
Alberto Orellano, Ramiro Molina, Franz Barrios Suvelza, Jose Luis Chamon, Drina Sarik, Guillermo
Aponte, Ramiro Salinas, Federico Escobar, Gonzalo Ruiz Paz, Carlos Hugo Laruta, Roxana Zaconeta,
Rosario Baptista, Ismael Soriano, Eduardo Pardo, Mauricio Mancilla, Soledad Noya, Silvina Ramirez,
Roberto Balza, Clareth Toro, Jose Ivankovic, Marcelo Zabalaga, Cristina Methfesel, Mario Oroxol, Carla
Nemtala. Também AECI financiou a participação de Carlos Alarcón, Paulino Verastegui, María Bolívia
Rothe. Quem financiava esta ONG era um ministério, mas esta página da USAID, agora acessível, prova
as suspeitas de que essa era a origem, o que se manteve em segredo dada a inimizade do MAS com a
cooperação dos EUA, o que poderia ter inviabilizado as atividades:
http://www.usaid.gov/our_work/cross-
cutting_programs/transition_initiatives/country/bolivia/rpt0607.html
131
das autonomias no Congresso ou no Tribunal Constitucional. Richter opinava que, no
caso de se incorporar um modelo novo, era necessário um controle preventivo.
Por outra parte, Richter expressava suas dúvidas sobre a idéia de autonomias
indígenas no que diz respeito aos recursos naturais, outro grande tema desta
Assembléia. Se a comunidade não quer explorar os recursos, o prefecto não pode fazer
nada? O que acontece se vem uma transnacional como o laboratório Merck para fazer
uma inversão? O que acontece se o Estado quer e a comunidade não, ou ao contrário?
Para Richter, as autonomias não podem ser um muro e, caso sejam descobertos recursos
naturais, não podem ser apenas deles, dizia. As interrogantes de Richter apareciam
também internamente no MAS. Por isso, os contornos do debate nos interessam, porque
em parte são os do projeto que se construía coletivamente neste processo constituinte,
ao mesmo tempo em que avançava procurando um centro. Nas suas respostas, Nélida
diferenciava entre recursos renováveis e não renováveis, dizia que seria necessária
“capacitação”, mas que a opinião da comunidade sobre a exploração dos recursos tem
que ser vinculante. Era um direito que figurava no convênio 169 da OIT, ratificado pela
Bolívia, assim como pela maioria dos países da região, acrescentava um técnico
presente na reunião.
Este diálogo era o de uma mulher jovem e um homem maduro, mas podia ser
lido como um diálogo paradigmático da Bolívia atual, ou entre essas “duas bolívias” de
descendentes de brancos europeus e indígenas; e entre a política velha e a nova; que ao
mesmo tempo voltavam a aparecer nitidamente enfrentadas e procuravam condições
para um encontro. Era um diálogo que tinha lugar em cada comissão, no governo, nas
disputas regionais e em muitos espaços da vida social na Bolívia. Pelo menos assim se
vivia esta Assembléia e muitas situações nas ruas das cidades, comércios, sets de
entrevistas televisivas ou universidades. Era impossível estar na Bolívia e não ouvir os
bolivianos falarem sobre indígenas “que até pouco tempo não podiam comprar uma
bala”, como dizia uma constituinte de La Paz, que não tinham permissão para falar em
sua língua ou que seus pais não a ensinavam para que não sofressem discriminação na
cidade.
E além de um advogado descendente de europeus e uma indígena da etnia
chiquitana, esse diálogo tinha em um de seus lados o MNR e, do outro, uma
organização de povos indígenas das terras baixas. O MNR era o partido que tinha
liderado a revolução de 52 e que, com o primeiro Paz Estenssoro, nacionalizou as
minas, aprovou o voto universal, fez a reforma agrária e abriu escolas. Mas também era
132
o partido que, com o último Paz Estenssoro, tinha dado lugar ao decreto 21060 de
desativação das minas estatais e dado início ao neoliberalismo; aprofundado ainda pelo
MNR com Sánchez de Lozada (1992-1998, 2002-2003). Depois de Outubro, o MNR
tinha ficado reduzido a uma força regional minoritária em Oriente; mas era importante
na Assembléia, na medida em que, da mesma forma que o UN, podia ser a chave dos
dois terços para o MAS.
A organização indígena de Nélida tinha sido uma das que marcharam em 1990,
na Marcha pela Dignidade e pelo Território, reconhecida como primeiro antecedente da
Assembléia Constituinte e que foi seguida de outras quatro marchas que deram lugar às
reformas multiculturais dos anos 90. As marchas tinham dado lugar também aos
avanços na titulação de terras indígenas, com o reconhecimento das Terras
Comunitárias de Origem (TCO) que a reforma constitucional de 1994 tinha habilitado e,
com o assessoramento do CEJIS, tinha sido constituída como prioridade para as
organizações de terras baixas. Os povos das terras baixas, como o de Nélida, nucleados
na CIDOB, não participavam do governo de Evo Morales, mas eram aliados e
procuravam participar na redação da nova Constituição e na formação do Estado
Plurinacional, apostando especialmente na consolidação das autonomias indígenas,
como passo seguinte ao da titulação. O encontro de Nélida e Richter simbolizava o
desafio de um acordo nacional que se escreveria em uma nova Constituição. Uma certa
abertura no setor do MNR representado por Richter, parecia mostrar que o acordo era
possível. E era o artifício moderno Assembléia Constituinte o que fazia que esse
diálogo fosse mais do que um diálogo entre duas pessoas e tivesse que ver com a nova
forma do Estado.
Nélida contava que, quando chegou o processo constituinte, foi escolhida
representante das dez famílias de sua comunidade, depois pelo cantón [distrito menor
que municipio] e depois percorreu às 28 comunidades do seu TCO, onde foi
confirmada. Coube a ela, como dirigente, concluir o processo de saneamento e titulação
da TCO. Nélida, ainda, explica a Richter que é a partir da TCO que seu povo procurará
construir a autonomia, conquistando reconhecimento de poder político nessas estruturas,
que para ela não deveriam estar subordinadas ao departamento. Devemos pensar, dizia,
que quando Evo Morales não seja mais presidente, os mananciais podem ser-lhes
retirados, e criticava que até agora somente tinham sido representados pelos políticos da
capital do departamento. Richter mostrava o avanço nos tempos do governo do seu
partido a favor da descentralização com a Lei de Participação Popular e a incorporação
133
das circunscrições individuais que “aproximaram os candidatos do povo”. Pessoas como
Nélida, dizia Richter, tinham podido entrar na política graças a essas medidas
impulsionadas pelo MNR.
Havia um pouco de ressentimento no MNR que via o MAS de Evo Morales ser o
beneficiário de medidas impulsionadas por esse partido na década de 1990 e que tinham
contribuído à entrada de camponeses e indígenas na política estatal (BARRIOS 2003;
HUFTY et al 2005, ILDIS 2003). Ainda que o pontapé inicial tivesse sido dado durante
o governo de Paz Zamora em 1990, também as TCO tinham sido implementadas graças
a reformas do governo de Sánchez de Lozada, do qual Richter foi ministro, com uma lei
de reforma agrária que incorporava as TCO, desenvolvendo a reforma constitucional do
artigo 171 que estabeleceu Bolívia como país multiétnico e pluricultural e o direito dos
indígenas às suas terras. Eram as políticas que o MAS e seus assessores entendiam
como multiculturalistas e queriam superar.
Esta versão que Richter apresentava de um MNR impulsor de reformas
progressistas contrastava com a mais habitual do presidente neoliberal com sotaque
americano, mas era a auto-imagem do MNR e de onde era possível construir uma ponte
com o MAS, que tinha chegado para “desmontar o neoliberalismo” associado à última
fase governamental do MNR. Mas a leitura ciumenta do MNR, que ao mesmo tempo
tirava valor ao MAS, mas fazia possível o encontro, chegava a postular que o processo
político impulsionado pelo MAS não faria mais do que reeditar o clássico projeto do
nacionalismo revolucionário da década de 1950. Como muitos outros
96
, Richter pensava
que muitas das políticas impulsionadas por Evo Morales se enquadravam no programa
nacionalista do MNR. Destacava, neste sentido, as nacionalizações de Evo Morales,
mas acrescentava que, à diferença da revolução de 52, com as minas dos barões de
estanho, a nacionalização do MAS não transferia o total das empresas ao Estado, e o
aumento da participação do Estado na renda não era em todos os poços, incluindo
também reembolsos que não se conhecem muito bem e que baixariam indiretamente a
porcentagem de impostos arrecadados pelo Estado.
O caráter progressista e a visão compartilhada entre MNR e MAS podem ser
questionados no trabalho de Regalsky, que considera a Lei de Educação de 1994, a Lei
de Participação Popular, Lei Florestal e Lei de Municipalidades dos anos do primeiro
governo de Sánchez Lozada (com Victor Hugo Cárdenas como vice-presidente) no
96
Molina, Fernando 2007 escreveu sobre El retorno de la izquierda nacionalista”, e tem trabalhos no
mesmo sentido de Pablo Stefanoni, e.g. “el nacionalismo indígena en el poder” (2006).
134
mesmo espírito de “integração” para criar uma “consciência nacional” de décadas
anteriores. Em seu trabalho mostra que, no nível local, a reforma educativa ia contra a
experiência de educação comunitária, limitando a autonomia da comunidade que a
proposta do MAS na Assembléia procuraria fortalecer. As leis do MNR, mostra
Regalski, implementavam a descentralização, mas davam ferramentas aos municípios e
cidades intermediarias para controlar comunidades menores, como a estudada por ele.
No caso de Raqaypampa, em Cochabamba, estas reformas renovaram as contínuas
disputas da comunidade com os vizinhos e transportadores do povoado próximo, com
vínculos com o MNR. Do mesmo modo, a lei de Educação estabelecia a educação
bilíngüe mas fortalecia os professores provindos das cidades, contribuindo a asfixiar
experiências locais de educação comunitária em quéchua (2003:192-195).
Desde o governo, García Linera também recusava a comparação da política do
MAS com a do MNR, no que constituía uma importante discussão presente desde que o
MAS chegou ao governo e deu asas a seu plano de nacionalizações. Para ele, a
Revolução de „52 foi um projeto contra o indígena, na medida em que consagrava o
monoculturalismo e iniciou uma reforma agrária que buscava adaptar as comunidades à
lógica do capitalismo no campo: os comunarios devinham em camponeses bolivianos,
sindicalizados e com propriedade individual da terra. Além da proposta do
multinacional, feita por García Linera em 2003, e depois devindo em plurinacional; a
proposta de “capitalismo andino” do vice-presidente, defendida desde 2005, procurava
ir no sentido oposto a essas transformações e utilizar o excedente econômico para
potencializar ou garantir formas econômicas comunitárias e inclusive de caça e coleta
na selva amazônica (cf. GARCÍA LINERA 2005 a e b, 2006b).
Perguntado pelo Clarín de Argentina se o aumento da participação do Estado na
economia (que passou em menos de dois anos de 6% a 19%) significava um retorno ao
desenvolvimentismo dos anos 50, García Linera respondeu que não (STEFANONI,
2007). Tratar-se-ia agora de uma modernização pluralista na qual a economia moderna
industrial se somaria à micro-empresa familiar urbana e à economia camponesa
comunitária. Para García Linera, o objetivo seria ir no sentido oposto às transformações
da Revolução de 1952, estando a diferença já visível, como em um caso que ele utilizou
como exemplo em diferentes entrevistas, o de um menino indígena que, em um ato em
Potosí, disse a Evo Morales que seu sonho era ser presidente como ele, quando antes os
indígenas se projetavam apenas como pedreiros ou cabos policiais. A idéia era resumida
em outras declarações de modo rotundo: “A Constituinte pode inclusive não mudar
135
nada; o fundamental é que os indígenas, historicamente excluídos, sejam os que
estampem com sua assinatura a nova Constituição (apud ROJO y CAMACHO 2007).
Se o Estado Plurinacional impulsionado por Evo Morales, então, retomava
bandeiras e políticas do primeiro nacionalismo revolucionário, era claro que deveria ir
além, e esta diferença tinha que ver com a inclusão dos indígenas. A procura de
consenso entre constituintes como Guillermo Richter e Nélida Faldín, nas diversas
comissões, devia se construir além da Constituição e das leis da década de 1990, do
“mutilculturalismo” e do programa do nacionalismo revolucionário dos anos 50. García
Linera cumpria, em diversas falas, o papel de fundamentar o centro conceitual deste
novo Estado Plurinacional que, segundo o vice-presidente, estava abrindo uma nova
fase na história boliviana, depois das do Estado liberal (das primeiras décadas do
século), do nacionalismo (inaugurado pela revolução do MNR, em 1952), e do
neoliberalismo (iniciado em 1985, também pelo MNR e fechado com Evo Morales).
Este novo momento estatal tinha novos atores e novas idéias para realizar um novo
Estado, e isso era o que estava em jogo na mesa da comissão Estrutura do Estado com
as posições defendidas por Nélida que Richter resistia em assimilar. Eram os temas,
também, levados ao Estado por camponeses e indígenas e que tinham dado lugar à
Assembléia Constituinte.
Em termos constitucionais, tratava-se do passo do multicultural ao plurinacional,
que se entronca na crítica acadêmica e política à inclusão subordinada do indígena.
Buscava-se, então, nesta Assembléia, uma mudança na estrutura do Estado que desse
outro tipo de lugar ao indígena. Era o que estava em jogo nas discussões sobre a
autonomia indígena e a inclusão pluralista com igual hierarquia do comunitário
indígena. Esse era o centro para o MAS, que procuraria converter em posição de centro
que desse lugar a um Estado para todos os bolivianos. As mudanças também se
entroncavam no avanço da introdução de direitos indígenas na legislação dos países da
região, no marco da implementação de instrumentos jurídicos como o convênio 169 da
OIT e a declaração das Nações Unidas para povos indígenas que seria assinada
enquanto a Assembléia estava ainda aberta, e que chegavam à Bolívia pela mão de
assessores técnicos de ONG e expertos.
A discussão sobre a similitude com o MNR, no entanto, não tinha um interesse
meramente historiográfico. Os 18 constituintes do MNR, que não representa nada
considerando que foi um grande partido nacional no passado, poderiam, no entanto,
aproximar o MAS aos dois terços. Assim, o partido do governo procuraria seduzir
136
Richter, líder do MNR na Assembléia. A possível proximidade dos projetos era, então,
o que poderia entusiasmar aos que procuravam um pacto que possibilitasse a nova
Constituição, e o que colocava Guillermo Richter no centro de onde sairia a negociação
constituinte de um novo Estado. Todas as análises políticas chegavam à conclusão de
que, sem o MNR e o partido UN, definido de “centro-esquerda” por seu chefe; e como
de “centro-direita” pelo MAS, seria impossível conseguir os 28 votos que o MAS
necessitava para alcançar os dois terços da Assembléia, 180 de 255 constituintes. Daí,
também, a importância do diálogo entre Richter e Nélida na Comissão de Estrutura do
Estado.
Guillermo Richter expressava ter vontade de entrar em consenso: “todos nós
perdemos o sono com a responsabilidade perante com a história” e “para além dos
partidos... não estou fechado a ninguém”, dizia. Em todo momento, da mesma forma
que Doria Medina e à diferença de PODEMOS, expressava a vontade de atingir o pacto.
Sem um projeto alternativo ao do MAS para além do assunto das autonomias do
Oriente, viam seu papel como grandes construtores do espaço político do centro. Nas
reuniões, afirmava que queria que a Comissão não fracassasse. Entrevistei-o em um fim
de semana por aqueles dias, em um dos bares em frente à praça central de Sucre. Após
expor as idéias que defendeu na Comissão, lhe perguntei em que o MNR poderia
contribuir ao país e ele respondeu que, se a oposição ao MAS fosse o MNR no lugar de
PODEMOS, o caminho da mudança democrática estaria garantido.
À diferença de PODEMOS e dos setores de poder aos quais este está vinculado,
dizia Richter, o MNR não está de acordo com uma confrontação civil com o MAS. Nós
temos estruturas democráticas e disso não vamos sair, opinava. setores que não
querem saber de coincidências. É preciso discutir muito, visões diferentes, mas o
MNR quer contribuir à governabilidade que o MAS necessita, e devemos tentar a
possibilidade de outro pacto social a partir da nova Constituição. Estivemos em
governos por 60 anos e vejo que PODEMOS comete o erro de achar que, se o MAS
fracassa, os votos iriam para eles, dizia. Também reclamava dos “dinossauros” do seu
partido que o chamaram quando leram em La Razón que contribuiria à governabilidade
do MAS. No momento em que o entrevistava, uma constituinte do MNR ligou para ele.
O consultava antes de falar na televisão. Ele recomendou falar que o departamento é
para eles o melhor âmbito para igualar, onde os direitos são garantidos sem prejuízo
para ninguém. Também lhe pediu que esclarecesse que não fizeram um acordo com o
MAS, do qual PODEMOS lhes estava acusando.
137
A sua posição política era importante, porque podia significar o cenário de
aproximação que o MAS necessitava na Assembléia. Richter achava que, somente com
a vontade para o consenso, o MAS poderia criar uma governabilidade duradoura como o
MNR na sua época. No entanto, observava que, para além de alguns círculos, faltava ao
MAS vontade para isso, porque, para ele, Evo Morales carecia de formação democrática
sólida por não ter abandonado práticas do sindicalismo corporativo. Depois de um ano e
alguns meses de governo, porém, valorizava algumas políticas e também o fato de que
tinha se gerando uma consciência de inclusão social muito importante. Richter dizia
que, apesar de seu passado movimentista, interpreta a história do país e, se bem
temas impossíveis de serem consensuados, como o do Congresso Unicameral e do
quarto poder, acreditava que o acordo era possível
97
.
Seguindo com o debate na comissão, Richter se manifestava a favor de avançar
na proteção, defesa e fortalecimento da propriedade dos povos sobre as TCO, e também
da sua linguagem e cultura. Mas esclarece: isto não é para separar o departamento da
província e do Estado. O Estado nacional deve ter presença em todo o território. A
autonomia indígena como concebida pelo MAS inclui exercício de soberania,
autogoverno, dizia. Querem um Poder Social que corta as possibilidades de integração
nacional. Richter imaginava uma guerra de ayllus e o país teria que ficar impassível
para com eles, explicava que entendia o projeto plurinacional do MAS como 36 povos
com direito à auto-regulação em todo sentido, e unidos em um quarto poder elegido
corporativamente por povos indígenas e sem controle constitucional.
Richter não concordava com a proposta do MAS de que a autonomia indígena
deveria ter a mesma autarquia que a autonomia departamental. Nisto coincidia com a
Meia-Lua, onde tinham sido também eleitos os candidatos emenerristas. Mencionava o
caso de uma TCO de 900 mil hectares ocupadas por apenas 90 pessoas e que, se fosse
completamente autônoma, implicaria não aproveitar os recursos naturais que a província
e o departamento poderiam explorar. Opinava que se deve avançar nos direitos das
comunidades indígenas originárias, em um marco gradual, sem ruptura com o Estado,
97
Com o tempo, se evidenciaria que os 18 constituintes do MNR estavam divididos por facções
independentes e com posicionamentos políticos diferentes. Também pode se pensar que o fato de o
MAS substituir o MNR como principal partido nacional, com semelhanças em seu programa que diz
respeito ao MNR clássico, provocava nos dirigentes emenerristas uma reação mais reativa do que aberta
para uma aproximação. Tinham uma sensação de falsidade e ressentimento para com um partido que os
retirava do espaço político utilizando muitas de suas receitas e pontos de vista. Havia um problema em
garantir um acordo que significaria a vitória política para aqueles que os tinham tirado do poder e
faziam muitas coisas parecidas, ainda que de um modo diferente.
138
incorporando as autonomias na estrutura territorial do departamento e no seu conselho
legislativo. Era o projeto que seu partido tinha incorporado na reforma de 1994 à
Constituição e que o agora Estado Plurinacional procurava superar.
Tendo estatuto e poder de autogoverno, a autonomia indígena significaria,
segundo Richter, uma reterritorialização imediata e modificação da estrutura do Estado.
Ele se preocupava pela relação com outros níveis territoriais e via problemas com a
formação de 36 autonomias correspondentes a cada um dos povos indígenas. O assessor
das bartolinas, Adolfo Mendoza, intervinha na reunião para dizer que, se as autonomias
não entram na estrutura do Estado, fica sendo apenas um direito, presente na atual
Constituição. Este assessor técnico e futuro Senador do MAS por Chochabamba,
colocava na mesa essa mudança que deveria significar um avanço com respeito ao
Estado atual, e era, portanto, um dos pontos contra os quais um velho político reagia.
Sobre o projeto de reterritorializar, que a procura de dois terços postergava,
Nélida explicava que seu povo quer formar uma região chiquitana, juntando as
comunidades dispersas que se encontram em TCO de cinco províncias. A constituinte
Mirtha Jiménez, falava do objetivo de reterritorializar para dar reconhecimento jurídico
a territórios indígenas que ocupam parte de vários departamentos com relações efetivas.
Mas dizia saber que isso não ia ser para esta Assembléia. Os constituintes vieram a
Sucre, dizia Mirtha, para consolidar os territórios indígenas porque a autonomia
municipal (estabelecida em 1996 pela Lei de Participação Popular, também do MNR)
não funcionou para alentar o desenvolvimento. Os municípios recebem dinheiro e atuam
com essa lógica territorial de departamento e município, que não corresponde com as
regiões nem com a lógica dos povos indígenas. Ela via que com a reterritorialização, o
desenvolvimento e a distribuição da riqueza seriam mais fáceis porque o prefecto teria
capacidade política e controle territorial para dar suporte à comunidade e não ao partido,
como vinha sendo até agora.
Richter dizia não ter jeito de que não haja guerra se uma parte de Beni ou outro
departamento fosse recortada, como a proposta de reterritorialização implicava. E
criticava a fragmentação que implicaria o sistema de autonomias indígenas ou a criação
de regiões. Mirtha disse que existem 329 municípios com autonomia sem que ninguém
queira se separar; e Richter pedia que na nova Constituição se garantisse o respeito
pelos nove departamentos. Nisso Mirtha coincidia e lembrava que, em 2005, quase
houve uma guerra por redistribuir curuis (bancas) legislativos de modo que Oruro e
Potosí perdessem representantes para Santa Cruz. Os constituintes mencionam os
139
pedidos de autonomia em El Alto, do norte de Potosí e do Chaco. Uma província de
Chuquisaca quer ir para Tarija pelas regalias do gás, e representantes cívicos do
departamento beniano de Vaca Diez fizeram uma fala na comissão para pedir a
conformação de uma região, ou inclusive de um novo departamento a partir da sua
província. Em todos os departamentos de Bolívia havia regiões que potencialmente
poderiam se converter em outra unidade, ou que tinham vínculos econômicos ou
culturais com povos de outros departamentos.
No MAS, com um pouco de resignação, considera-se que esta será uma
Constituição “de transição”. Adolfo Mendoza falava de um processo que ia das
províncias às regiões. Esta Assembléia traria alguns elementos para iniciar essa
transformação. No horizonte da reterritorializaçao, algumas organizações do Pacto de
Unidade propunham o fim dos municípios, províncias e departamentos. CONAMAQ
tinha como prioridade avançar na “reconstituição” dos territórios ancestrais das nações
originárias e povos indígenas. Para eles, a territorialidade e a consolidação de territórios
ancestrais eram a base fundamental para a autonomia, o autogoverno e outros direitos
que a nova Constituição reconheceria aos povos indígenas.
O momento político, e as próprias posições do governo, da bancada do MAS,
além da falta de definição das centrais camponesas, no entanto, exigiam moderação com
respeito ao projeto das organizações indígenas. A dificuldade de impor este projeto não
era somente a distância de 28 constituintes para se alcançar os dois terços. Existiam
limites às posições indígenas de setores fortes dentro do MAS, e também a consolidação
do MAS como partido e como governo implicava um distanciamento de algumas
propostas, no que era entendido como realismo político e moderação na interpretação de
quais eram as mudanças realizáveis e quais não. Era a “leitura estatal” da real politik, a
partir da qual se procurava desenhar um centro para o acordo, tão distante e tão próximo
das propostas do Pacto de Unidade como fosse possível.
Outro tema conflitante era a proposta de representação direta no Parlamento,
discutida na elaboração da Lei de Convocatória à Assembléia. Se bem o Estado
Plurinacional se fundamentava no caráter majoritário de camponeses e indígenas que
agora seriam realmente incluídos, em Oriente os povos indígenas eram minoritários e,
por isso, a autonomia cobrava outro sentido. Nélida explicava que a maioria dos
povos indígenas das terras baixas não pode aceder à representação política por serem
minorias populacionais em suas circunscrições. De fato, para ela ser eleita como
representante pela circunscrição 57, teve que fazê-lo dentro das listas do MAS, para o
140
qual disputou com os Ayoreo e outras etnias que ficaram sem representantes na
Assembléia, e somente pôde permanecer por um aval de Evo Morales que, no lugar de
beneficiar a seus aliados mais próximos, os camponeses colonizadores, definiu que esse
lugar seria para povos indígenas. Mas tinha sido com os votos dos colonizadores do
MAS que Nélida tinha entrado na Constituinte, como uma dos apenas quatro
representantes de povos de terras baixas.
A representação direta era, então, parte importante do projeto de Estado
Plurinacional e um dos pontos que o diferenciaria do projeto multicultural associado às
reformas do MNR nos anos 90. Além de apresentar seu livro sobre filosofia andina
Taypi, Omar Guzmán chegou a Sucre para dar conferências aos constituintes sobre
representação direta e outros temas, apresentando nas comissões a posição do Pacto de
Unidade. Expunha que, apesar do direito à auto-representação e à auto-determinação, o
Congresso não contemplava a variável étnica ou cultural e somente a territorial
(Senado) e populacional (em deputados). Sem representação direta, dizia, o Estado
continuaria sendo monocultural
98
.
Richter também expunha suas “preocupações” sobre este tema na reunião da
comissão e citava o caso do povo Moré, no rio Mamoré de Beni, que o seus amigos,
dizia, e que são em total 190 pessoas. Nesses casos, para Richter, a autonomia aparece
agora menos viável nas terras baixas que nas altas. Concordava em que estes povos
tenham capacidade para eleger autoridades, para administrar recursos naturais e ter sua
própria justiça. Mas a representação estatal cria desvantagens, dizia. Além do mais, se
na Assembléia Departamental de Beni representantes de seus 16 povos indígenas,
por exemplo, os indígenas teriam maioria sobre os representantes das doze províncias,
apesar de serem minoritários em termos de população. Para Richter, não pode haver
democracia para um setor do país e corporativismo para outros, haveria desigualdade
porque os departamentos com mais povos indígenas teriam mais representantes. Se os
Ayoreo são 100 e têm um representante, quantos corresponderiam aos quéchuas?
perguntava, e era uma pergunta que se escutaria também dentro do MAS.
98
Presente no debate, um técnico da CONAMAQ interveio explicando que, segundo a tradição de
autoridades comunitárias, a representação direta devia ser, também, rotativa. Para que se sirva
mandando, dizia, é na assembléia comunal onde se escolhe, planifica, segue-se a gestão e retifica os
representantes. O presidente da Comissão de Poder Legislativo, presente no debate, por outro lado,
criticou que, de cem habitantes em um povoado, cinqüenta votem duas vezes: na circunscrição indígena
e na atual. Lázaro Tacoó, dirigente da CIDOB, disse por sua vez que existe consenso sobre isso no Pacto
de Unidade e que, sem representação cultural, não seria um Estado Plurinacional.
141
Hernán Ávila, encarregado de fazer seguimento à Assembléia para a ONG
CEJIS, também contribuía à discussão. Os Moré são 190, mas têm lógicas diferentes de
ver a natureza e têm que estar representados. Para ele, dever-se-ia combinar o voto
direto e o sufrágio universal com modos tradicionais, inclusive no Congresso. Richter
perguntava o que aconteceria com os indígenas urbanos e se estes votariam por
representantes indígenas. Nélida responde que se os urbanos se reconhecem como
indígenas, têm que se submeter a nosso estatuto e aos usos e costumes. Constituintes e
técnicos pensavam em justiça histórica de inclusão como critério por cima da proporção
populacional. E como argumento se citava o convênio 169 da OIT. Uma unidade
territorial sem representação política não seria totalmente autônoma, defendiam.
Numa nova reunião, depois de realizar consultas, Richter se mostrou mais aberto
à idéia de representação direta. De fato, dizia, um quebre perigoso se os indígenas
não se integram nas estruturas de poder. Sem representação, via riscos à unidade e
integração. Sua proposta era, agora, a de que os povos indígenas tivessem
representação, mas reagrupados e não um por cada povo. Ele acha razoável” que haja
dois representantes indígenas por departamento no Senado ou deputados. E comentava
que, se bem no MNR muitos não aceitam essa proposta, e que, ainda se isso trouxer
problemas com os donos de gado de seu departamento, em princípio vai defender a
representação na Assembléia Departamental. “Os cambas”, continuava Richter, dizem
“que haja autonomia nos quatro departamentos que votaram pela autonomia no
referendo, e que com o resto do país façam o que quiserem”, por isso não aprovariam
representação direta para os povos no Oriente, justamente onde os povos indígenas são
minoria populacional e não podem ter acesso a representantes. Richter apresentaria uma
proposta formal sobre este tema, com nove deputados (por cada departamento) e quatro
Senadores (dois por terras altas e dois por terras baixas) eleitos por usos e costumes.
Também trazia problemas a proposta do MAS de criar um Parlamento
Unicameral, anulando o Senado, ainda que mantendo algo da representação territorial.
Omar Guzmán apresentava a proposta em outra atividade organizada para a discussão
de constituintes. Em sua proposta haveria 27 representantes territoriais (como no atual
Senado, quatro por departamento), 70 elegidos por sistema populacional uninominal e
70 de modo étnico cultural com representação direta. Esse era um modelo para um país
em que 62% se reconhece indígena, explicava. Para Richter, com apenas uma câmara,
perde-se a igualdade entre departamentos. E a desigualdade na representação pode levar
à guerra. Quando Santa Cruz levou quatro deputados, quase se quebrou o sistema
142
democrático, lembrava. Alguns parlamentares representavam 200 pessoas e outros 300
mil. Outro problema é que os indígenas também fossem votar nas circunscrições
uninominais. Perguntava como garantir a igualdade de todas as regiões. Eu me retiro
depois da Constituinte à minha atividade, dizia Richter, mas acho que é melhor o
Senado. O Senado e a bicameralidade, insistia Richter, dão equilíbrio. Um técnico
mostrava, no entanto, que com o Senado também haveria desigualdade na quantidade de
representados pelos Senadores dos diferentes departamentos. Recriminava que a
representação direta fosse criticada com o argumento da diferença populacional.
Nélida se sentiu mal com a insistência de Richter sobre a necessidade de manter
o Senado e lhe perguntou: “por que não vai fazer seu relatório e deixa de repetir a
mesma coisa”. O mesmo digo para a senhora, respondeu Richter. Mirtha tentava baixar
a tensão com a posição de que não se tratava de fazer dois relatórios. E Richter se
mostrava aberto: se você me convence, eu assino, mas não vejo como substituir os
departamentos e fechar o Senado. Mas a discussão era complicada e inclusive despertou
diferenças internas na bancada do MAS na comissão. Um constituinte do MAS pensava
em voz alta: na Venezuela fizeram Unicameral e agora estão se arrependendo; e como
vai Motete Zamora
99
dizer “não tem mais Senado”?; Vai La Paz aceitar que cada
departamento tenha dez deputados? “Não”.
Por outro lado, Mirtha expressou a voz dos departamentos pequenos que não
viam com bons olhos terminar com a Câmera Territorial: se houver apenas uma câmara,
tudo vai ser decidido por La Paz, Cochabamba e Santa Cruz. Esses desequilíbrios
fizeram que Potosí e Oruro não se desenvolvessem, acrescentava. Pensava que a
distribuição do imposto de hidrocarbonetos devia ser equitativa e a cota de co-
participação não devia ser por população. E dava o exemplo de um município de Oruro,
que tem 200 habitantes, que recebe apenas 500 dólares e sequer tinha chegado a eleger
um alcalde. O MAS hoje tem a maioria, dizia Mirtha, mas o que aconteceria quando
fosse oposição? Estas posições podiam contribuir na criação de um centro com a
oposição, o que implicava a renegociação do centro que poderia ser estabelecido
internamente.
Pressionados pelo tempo, pois o prazo inicial de clausura da Assembléia
Constituinte iria ser Agosto de 2007 dois meses depois destas discussões Mirtha
dizia que a Constituição Política do Estado não é uma fábrica de batatas fritas, e temia
99
Um dos constituintes da comissão Estrutura do Estado, ex-prefeito de Tarija e ministro, mas que não
assistia nas reuniões por problemas de saúde.
143
que o tempo não fosse suficiente para que se alcançasse o consenso. Perguntava-se:
quem vão ser os 10 iluminados que vão fazer meu trabalho de constituinte? Prevendo
que pela falta de tempo um pequeno grupo faria a versão definitiva do texto. Antes de
chegar a reuniões plenárias, era necessário fazer reuniões com outras comissões de
temas afins, disso depende a paz social e o futuro do país, dizia, e pensava que tinham
que pedir extensão de prazo para a entrega de relatórios, pelo menos até o dia 13 de
junho, mas que nenhum partido quer se encarregar de pedir a prorrogação. Tudo está
politizado e, se alguém pede, o outro partido arremete, se queixava.
Depois da entrega de relatórios de comissão, viriam as plenárias, e todo avanço
na procura de consensos seria uma grande contribuição para essa etapa final. Richter
também estava preocupado porque a data de 30 de maio para entrega de relatórios era
inamomível, segundo a Diretoria da Assembléia, e nesse tempo seria impossível chegar
com apenas um relatório. Não tempo para o consenso. Aproximando-se o final do
prazo outorgado, os constituintes de PODEMOS pediram uma licença coletiva para
fazer um seminário interno com o líder do partido, Tuto Quiroga. Na sexta-feira era
feriado, e na seguinte quinta-feira o MAS ia se encontrar para discutir os projetos de
comissões com Evo Morales e seus assessores em Cochabamba. Seria uma reunião
importante, estabelecida para o último fim de semana de maio para tomar decisões sobre
o projeto, com as organizações sociais e autoridades nacionais do MAS
100
.
Faltavam apenas três dias de trabalho antes do prazo final. Mirtha dizia que, até
quinta-feira deviam-se fazer os fundamentos do relatório. No outro dia, eu terminaria
ajudando na redação dos mesmos, quando encontrei Mirtha sozinha na comissão
tentando avançar com isso no computador da comissão. Poucos dias depois, o prazo se
estiraria por um mês, até o dia 31 de junho, com data de compatibilização entre
comissões entre os dias cinco e onze de julho, para começar as plenárias no dia 14 de
julho e votar a Constituição até o dia 6 de agosto. Se para o dia 24 de julho não se
chegava a aprovar a Constituição “em grande” (aprovação geral); seria necessário
chamar uma consulta cidadã para ampliar o prazo da Assembléia, pensava-se. Alguns
falavam da necessidade de mais quatro meses. Também se escutava falar de declarar
esta Assembléia como pré-constituinte e pensar em se preparar para uma nova
Assembléia mais adiante. Nélida dizia que antes de votar, ela tem que levar a proposta a
100
À reunião do MAS assistiram dois representantes de cada comissão e cinco por departamento, o que
estava causando algumas disputas internas para definir aqueles que iriam. Em Estrutura do Estado se
pensou que os que fossem à reunião não fossem os mais leais, como prêmio, mas os que se mostravam
com mais dúvidas sobre a proposta do MAS, para dessa maneira garantir sua posição de apoio.
144
seu povo. E, além da proposta de relatórios com artigos de cada comissão, não existia
ainda uma proposta de Constituição que pudesse ser discutida. Depois, a data de
relatórios se postergaria ainda mais, até o dia 13 de julho.
Benedicta Huanca, do Plan 3000, que também compunha esta comissão, dizia
por esta época que se sentia prejudicada, ia todos os dias à Comissão e não se reunia a
subcomissão da qual ela formava parte: a oposição não assistia. Venho e não tem nada
para trabalhar, vim pela mudança, porque no campo sofrem, essa é minha reclamação,
dizia. E considerava que não se deve pedir extensão de prazo da Assembléia, porque
não estão discutindo nem debatendo. Não estamos fazendo nada e pedimos extensão,
estou doída. Todos sentiam o peso dos meses que tinham se passado sem avanços pelas
duras posturas sobre o modo de votação.
3 Terra e território, entre a CAO e a CONAMAQ.
3.1 O centro na Comissão Terra e Território.
A comissão de Recursos Naturais Renováveis, Terra, Território e Meio
Ambiente, conhecida na Assembléia como “Comissão Terra”, pode ser vista como outro
microcosmos do cenário político ideológico de Bolívia em tempos da Assembléia. Nas
diferentes comissões ocorria um enfrentamento de diferentes magnitudes entre os
mesmos dois projetos políticos rivais. A Comissão Terra estava presidida por Carlos
Romero, que havia entrado como primeiro candidato constituinte departamental por
Santa Cruz, auspiciado por organizações indígenas de terras baixas, com as quais tinha
trabalhado nas propostas de titulação, quando ocupava seu posto de diretor do CEJIS.
No trabalho da comissão, Romero teria um papel de mediador e possibilitador de
acordos que iriam ser chave em outros momentos do processo constituinte. Romero era
bem valorizado no MAS, por seu papel à frente de CEJIS nos últimos dez anos.
Acompanhou organizações indígenas em marchas políticas, trâmites de titulação de
terras e cenários legislativos como o do debate para a reforma do artigo 171 da
Constituição em 1994, a incorporação de possessão de terras na elaboração da lei INRA
de 1996, sua modificação em 2006 e a reforma da Lei Florestal, todas as discussões que
confluíam no projeto de relatório de comissão na Assembléia
101
.
101
Segundo o que me dizia uma das colaboradoras de Romero em 2007, a proximidade com as
organizações de terras baixas faz que seja difícil para ele integrar o partido e instrumento político como
145
A Comissão estava formada por 17 constituintes, oito representando a posição
majoritária do MAS, oito dissidentes nos diferentes extremos, com quatro indianistas do
altiplano de um lado e quatro representantes de PODEMOS do outro, deixando os oito
do MAS no centro das “duas bolívias”. O voto restante para complementar os 17
constituintes era o de Ana María Ruiz, do MNR, que em votações chaves nas quais os
indianistas não apóiam o projeto do MAS, permitiu que o partido de governo alcançasse
a maioria. Este entendimento do MAS com o MNR para a temática de terra tinha a ver
com um compromisso do MAS em continuar nos marcos da reforma agrária iniciada
pelo MNR em 1953. Apesar de representar apenas um voto, como na Assembléia como
um todo, o MAS devia seduzir o MNR, e também ocorria que esta aproximação do
MAS com o centro resultava em dissidências internas de setores indígenas.
Um tema sobre o qual o MAS não evitou a divergência com o MNR foi o da
autonomia departamental, que também aparecia nesta comissão. O MNR apoiava que a
administração da terra (saneamento, dotações) fosse a nível departamental, e o MAS
pôde contornar este tema para o relatório apenas com o apoio dos indianistas que, em
outros temas, tinham diferenças com o projeto do MAS, “(Rubén) Costas nem sonhando
que terá jurisdição sobre terra e bosque” declarou Romero à imprensa (EL DEBER
5/7/2007). Neste tema, o MNR e o PODEMOS se alinhavam e “Ana María levantava os
braços” dizia Romero, mostrando novamente as dificuldades que surgiriam nas
plenárias
102
. Em sua tarefa de procurar consenso, Romero via a comissão como um
centro em precário equilíbrio e dizia “com essa postura de PODEMOS, se rebelariam
dentro do MAS”. Sua idéia para centrar o debate e conseguir apoios para o relatório que
facilitaria depois o trabalho em plenárias era eu freio a CONAMAQ, que eles freiem a
CAO (Câmara Agropecuária de Oriente)”, em referência à oposição, mas via “muito
tal, algo ao qual ele teria de ir se adaptando. No trabalho da comissão, no entanto, haveria mais tensões
justamente com as organizações indígenas e o próprio CEJIS, com uma direção diferente à que Romero
tinha impulsionado. Anos economizando para a Assembléia Constituinte e justamente perde a direção
neste ano, se lamentava um de seus colaboradores. Romero tinha disputado a presidência da
Assembléia com Sílvia Lazarte, e Evo Morales o excluiu acusando-o de “apetite pessoal”, quando os
jornais reproduziram que suas bases de Oriente o tinham proposto. Havia tensão com a Diretoria da
Assembléia quando a comissão não participou dos Encontros territoriais, recolhendo propostas da
sociedade de forma independente, como resposta à tentativa de Lazarte de bloquear a participação de
Romero. Mas também era quase unânime no MAS o reconhecimento da Comissão Terra como uma das
mais eficientes e com bom trabalho.
102
Apesar da coincidência entre PODEMOS e MNR neste tema, no desenvolvimento das votações, no
entanto, a constituinte do MNR se enfrentou a Elianne Capobianco, de PODEMOS, acusando-a de ter
confessado que sua agrupação não iria consensuar nada com o MAS e acrescentando que se ela queria
apoiá-la, devia fazê-lo para todo o projeto do PODEMOS e não apenas em alguns artigos, de maneira
seletiva. Isto fez com que, em temas em que o MNR se distanciou do MAS, como na defesa do
departamento, o fizesse em um projeto próprio e alternativo ao de PODEMOS.
146
longe os setores indígenas que falavam de reconstituição do tawantinsuyu” e no
PODEMOS “um projeto ditado por câmaras empresariais”.
Entre os diversos temas que a comissão abordaria, o da terra era o que cativava
mais atenção, por ser importante foco de conflitos no Oriente. O empresariado de Santa
Cruz, além disso, é a base da oposição a Evo Morales e sua base econômica é
eminentemente agroindustrial. A terra era um dos temas que estava em pauta, então, na
demanda de autonomia departamental. Mas a comissão também chamava a atenção de
todos pelos discursos de “revolução agrária” do governo, por exemplo, na mensagem de
Evo Morales pelo aniversário de um ano de governo, a inícios de 2007, no Vale de
Ucureña, Cochabamba. Alguns pensavam que viriam mudanças no campo devido à
pressão da base camponesa do partido de governo, que poderia impulsionar a reversão
da propriedade de latifúndios e ocupações de terra, como tinha acontecido antes da
reforma agrária de 1953.
Mas a realidade política mostrava que o que o MAS queria era chegar às
cidades, à classe média e às regiões opositoras, razão pela qual a terra não seria
prioridade do governo, por seu potencial conflitante. Por parte de setores da esquerda
havia, por outro lado, queixas pela postergação das mudanças na distribuição da terra, o
que pode se dever, parcialmente, ao fato das organizações camponesas estarem no
Estado antes que na demanda social. Sobre este tema, Luis Tapia ressaltava a
contradição de o MAS ser um partido camponês e estar falando em industrializar, o que
necessariamente significa promover o movimento do campo à cidade
103
.
Em uma entrevista para o coletivo AMAUTA, Evo Morales (2008, trad. nossa)
foi perguntado pelo tema e respondeu: “existe uma profunda diferença entre a reforma
agrária e a revolução agrária. A reforma agrária de 1952 e 1953 se produziu sob um
levantamento permanente indígena, com fuzil no ombro, que obrigou os partidos e
governos de turno a realizar uma reforma agrária. Mas essa reforma agrária de 1952
deixou minifúndios, surcofundios, latifúndios (principalmente no oriente boliviano)...
Nós, agora, dentro de uma revolução agrária nos propusemos a redistribuição da terra.
Em dois anos chegamos a redistribuir mais de 10 milhões de hectares, a nível titular.
Nós o fizemos em dois anos. A eles [governos anteriores ao MAS] cada hectare saneado
custou dez dólares, para nós não custou um dólar sequer. A revolução agrária tem
quatro componentes: a redistribuição, acabar com o latifúndio (improdutivo,
103
Fala em Seminário Internacional organizado por Comuna, março 2007.
147
especialmente), depois a mecanização (entregamos mais de mil tratores), os créditos e a
aposta por produtos ecológicos. Também está o tema do comércio. Frente aos tratados
de Livre Comércio (TLC), tratamos de promover um tratado de comércio justo entre os
povos (TCP), que nos está custando um pouco implementar”.
Como explicava Morales, a revolução agrária consiste em dar terras e condições
para que sejam produzidas, além de avançar com o “saneamento” (verificação da
titularidade, ao que Morales tinha se referido), e isso poderia ser feito com as
ferramentas da legislação vigente. O que se esperava da Comissão Terra, como de
outras, então, era “constitucionalizar” instrumentos introduzidos como a lei de
“Recondução Comunitária da Reforma Agrária”, de 2006, que modificava a lei INRA
(Instituto Nacional de Reforma Agrária) aprovada em 1996, mas principalmente dar
lugar a uma reforma que dependia do Poder Executivo e podia ser impulsionada
inclusive com os elementos de 1996. O conteúdo destas reformas consistia no
fortalecimento da política agrária derivada da reforma de 1953, com a introdução do
tema indígena e com a propriedade na dotação de terras para camponeses e indígenas
como destinatários das terras estatais a serem distribuídas. Além do mais, incluir-se-ia
na Constituição mecanismos para procurar neutralizar uma série de decretos ou
procedimentos administrativos que tinham dado lugar ao que Romero chamava “contra-
reforma agrária”, que impedia o acesso dos indígenas às terras e orientava a verificação
de propriedade para impedí-lo.
A disputa na Comissão Terra seria, então, a de garantir que seria o Estado
central e não o departamento quem dirigiria o processo, para dar continuidade à reforma
de 1953, em oposição às reformas liberais de mercado em temas agrários e à corrupção
ou tergiversações dos instrumentos estabelecidos, utilizados a favor dos grandes
proprietários de terra. ONGs como CIPCA, CENDAS, CEJIS e Fundación Tierra, que
tinham representantes em Sucre ajudando aos trabalhos das comissões, tinham
consolidado um trabalho técnico de consenso sobre esse assunto durante muitos anos, o
qual era a base para o projeto da comissão. Além da denúncia de irregularidades e
obstáculos dos governos departamentais ao saneamento e à entrega de títulos agrários
para comunidades indígenas, priorizando a demarcação de terras de produtores dentro
de território indígena e a redução das superfícies demandadas pelos povos; ou negando
personalidade jurídica a organizações indígenas, este consenso indicava como grandes
148
problemas agrários na Bolívia o minifúndio no Ocidente e o latifúndio no Oriente, além
da distribuição desigual da terra
104
.
A reforma da Lei de Reforma Agrária a fins de 2006, enquanto a Assembléia
discutia seu regulamento, é interessante porque, além de introduzir os elementos fruto
do balanço que os camponeses faziam de 50 anos de reforma agrária, punha em marcha
no Congresso uma dinâmica política que se repetiria na Assembléia e que tinha que ver
com o novo lugar das organizações de camponeses e indígenas. Nessa oportunidade, se
viu pela primeira vez com clareza o jogo de forças políticas, projetos de reforma, e o
novo papel governamental do MAS, com uma combinação de caminhos políticos para
serem explorados, tais como: negociação com a oposição para aprovar reformas;
encontrar-se com uma oposição dura que se sentava para dialogar mas não modificava
suas posições procurando golpear politicamente o governo e que as mudanças não
fossem realizadas.
Nesta oportunidade também apareceu, por primeira vez com clareza, a
mobilização nas ruas das organizações sociais para pressionar por mudanças; a procura
de resquícios institucionais ou “manobras” que, com a razão da justiça social para as
minorias, tentava fechar o conflito; o recurso ao povo, dentro do qual o MAS tinha
maioria; e também a possibilidade de ceder às demandas da oposição e renunciar a
mudanças profundas ou postergá-las para avançar e terminar o conflito. No fundo, a
dinâmica política evidenciava o problema de como fazer mudanças respeitando a
institucionalidade republicana e democrática herdada, que era o grande tema a se
resolver também na Assembléia. Era o problema de um governo que queria realizar
mudanças, mas se encontra com obstáculos institucionais fortes e com força
institucional dos setores políticos que tinham sido deslocados do poder. No caso da
“recondução da lei INRA”, que devia se reformar porque tinha vencido o prazo para o
saneamento disposto pela lei anterior, fracassou a mesa de diálogo com a oposição e,
depois de mobilizações e de ameaças de que se aprovasse a lei com Senadores
suplentes, finalmente foi aprovada por decreto.
104
Urioste e Kay (2005), Hernaiz y Romero (2008), e entrevista a Euologio Núñez (CIOCA), mencionavam
as duplas dotações, os latifúndios entregues como favor político e outros fraudes que tinham estudado
e denunciado. Tratava-se do trabalho de muitos anos junto às organizações que agora eram a base do
MAS. Pode-se mencionar como antecedente deste trabalho o projeto de Lei Fundamental aprovado
pelo histórico congresso da CSUTCB em 1983, organizado pelos kataristas, que por muitos anos foi
referência para as comunidades camponesas e seus assessores técnicos das ONGs. Com uma relação
teoricamente simétrica entre ayllu e Estado, segundo Albó, este projeto marca a direção a um estado
plurinacional (1987:408). Veja-se também Romero (2005, 2006a, 2006b, 2008) onde se resume sua
posição sobre o curso da política agrária.
149
Além das diferenças de “institucionalidade agrária”, ou seja, de se seria o
departamento ou o nível central que administraria estas questões, houve outros temas
irredutíveis, sobre os quais não havia consenso possível com a Meia-Lua e que,
possivelmente, chegariam até o referendo, pela dificuldade de se obterem os dois terços.
Romero os resumia à imprensa, consistiam nos mecanismos de redistribuição da
propriedade agrária, que incluía limites ao latifúndio e a reversão como modo de
recuperar terra não produtiva; a gestão territorial indígena, que daria mais controle aos
povos indígenas em seus territórios, incluindo o domínio dos recursos naturais não
renováveis. A diferença de olhares se evidencia já nos primeiros debates da comissão,
quando cada bancada apresentou sua caracterização.
Quando se discutia o tema da origem da riqueza de Santa Cruz, os constituintes
de PODEMOS insistiam que era produto do “mérito próprio” de Santa Cruz, sem ajuda
do Estado; enquanto o MAS considerava que era devido à transferência do excedente da
renda mineira de Ocidente. PODEMOS, por outra parte, se negava a assumir a
existência de latifúndio na Bolívia com o argumento de que as terras assim consideradas
não suportavam tecnicamente uma exploração intensiva nem semi-intensiva. Romero
perguntava se estavam querendo levar as coisas ao tempo de Roma, logo de que o
PODEMOS se opôs à necessidade de função econômica social (FES) como condição
para a propriedade empresarial, base da política agrária desde 1953. Com o avanço das
discussões, o PODEMOS aceitou a FES, mas estabeleceu que a propriedade agrícola
que não a cumprisse seria expropriado com pagamento de indenização, contemplando
inversões, melhorias e danos vindouros; e proibindo a reversão
105
.
No momento de conclusão de relatórios de comissão, o vice-ministro de terras,
Alejandro Alamaraz, também ex-diretor do CEJIS, iniciou uma demanda contra a
constituinte de PODEMOS, Elianne Capobianco, ex-diretora do INRA em Santa Cruz e
acusada de doar 12 mil hectares em território do povo Guarayo, à família do também
demandado Branco Marinkovic, presidente do Comitê Cívico Pró Santa Cruz, líder da
oposição e das mobilizações contra o governo. Por outra parte, se a bancada do MAS na
comissão estava formada especialmente por constituintes provenientes de ONG e
105
Sobre isso, Romero perguntava: “como vai ser indenizada uma pessoa que não cumpre a condição
para a qual obteve a terra? Acabaria sendo premiada com a indenização. Mas também é contraditório o
conceito, porque querem indenizar as melhorias e danos sobreviventes, mas se o prédio está
abandonado, de que melhorias ou inversões futuras podemos falar? Isto inviabilizaria qualquer
mecanismo de distribuição da propriedade agrária e seria reproduzir um problema estrutural do Estado
boliviano atual que é uma estrutura de terras absolutamente desequilibrada e injusta.
150
organizações sociais, os representantes de PODEMOS provinham especialmente das
câmaras empresariais. Durante os debates da comissão, inclusive, interesses florestais
entraram em conflito com os agropecuários quando a constituinte Capobianco defendia
a ampliação da fronteira agrícola e o constituinte Ávila, também do PODEMOS,
propunha outorgar poderes de polícia aos concessionários florestais em seus territórios,
para garantir suas explorações e frear essa expansão.
A dissidência indianista do MAS na comissão, que não teria expressão na
Assembléia a nível geral, mas que sim se sentiria em diferentes episódios contra o
governo de Evo Morales, estava representada por dois partidos pequenos do Altiplano e
Potosí, aliados com dois constituintes do MAS. Os dois partidos dissidentes eram o AS
do alcalde de Potosí René Joaquino e ASP de Omasuyos, que junto com outros partidos
menores do ocidente indígena somavam na Assembléia ao redor de dez constituintes,
com os quais o MAS contava para os dois terços. Eram setores indígenas que não
tinham relação com o Pacto de Unidade, ainda que formavam parte de ramos locais da
CSUTCB e a CONAMAQ. Representavam um nacionalismo étnico que considerava
Evo Morales um irmão, mas o viam capturado pelo “entorno brancóide” de mestiços e
ONGs. Eram produto da representação de estruturas políticas locais opositoras ao MAS
em regiões de maioria indígena onde os partidos conservadores não tinham espaço
nenhum. No entanto, em vários momentos, inclusive, falava-se da possível postulação
de René Joaquino, como rosto indígena em aliança com a Meia-Lua
106
.
Romero via estes setores muito longe do projeto do MAS, que julgava mais
próximo à esquerda nacional. Estes constituintes eram críticos também às
reivindicações de terras baixas e chamaram “latifúndios” às TCO de povos indígenas de
Oriente, propondo a necessidade de redistribuição. Esta era uma das críticas ao grupo
majoritário do MAS, e acusavam Romero de favorecer às terras baixas em detrimento
de quéchuas e aymaras. Novamente se colocando no centro, Romero dizia: acusam-me
de apenas vermos o Oriente, mas em Santa Cruz somos atacados com matões, porque
dizem que estamos contra Santa Cruz
107
.
106
Humberto Tapia, de ASP e sempre com seu poncho vermelho, apresentou com outros três
constituintes dissidentes uma proposta para a “revisão de títulos de propriedade agrária outorgados
pelo governo neoliberal aos nacionais e estrangeiros. Recuperação de terras dos estrangeiros, e a não
transferência de terras a título de compra e venta a favor dos mesmos”. O projeto também punha limite
à possessão de terras por parte de estrangeiros, não somente em terras fiscais, como tinha
impulsionado o MAS, mas ainda quando cumprissem a função econômico-social e fossem produtivas.
107
No trabalho de Devin Beaulieu (2008) é citado o enfrentamento destes constituintes com Romero na
comissão de Terra. Tapia considerava insuficiente e reformista o projeto do MAS, por se tratar de
151
Em termos de dinâmica política da Assembléia, estes setores eram os que
procuravam empurrar o MAS a deixar de procurar consenso com a oposição e assumir
posições mais duras. Vladimir Alarcón, aymara de El Alto e que provinha do Partido
Comunista Boliviano, interrompeu Romero em uma sessão na qual este falava de
consenso e exigiu: “Devemos nos impor! Somos revolucionários ou amarelos?
Avancemos irmão presidente! [da comissão]”. De fato, o MAS sempre considera como
possibilidade a adoção de uma postura de avanço sem concessões, como tinha tentado
por meses no debate do regulamento. Uma alternativa avaliada pelo MAS em Terra e
Território era transferir votos da proposta majoritária do MAS à posição minoritária de
indígenas e MAS, para excluir o relatório de PODEMOS. O número de constituintes na
comissão permitiria se desdobrar para aprovar dois relatórios deixando a proposta da
oposição fora das plenárias e, assim, sem que a sua proposta pudesse tampouco chegar
ao Referendo em caso de que nenhuma proposta obtivesse dois terços. Romero chegou
a consultar esta possibilidade com seus companheiros na reunião da bancada do
MAS
108
.
3.2 Territorialidade indígena e formas de Propriedade.
O projeto da maioria do MAS procuraria atualizar a reforma agrária
incorporando a territorialidade indígena que, segundo as organizações indígenas do
Oriente, na reforma de 1994 tinha sido introduzida de forma limitada. Com a Nova
Constituição, as Terras Comunitárias de Origem (TCO) passariam a ser Territórios
Indígena Originário Camponeses (TIOC), no sentido da “recondução comunitária da
reforma agrária” promulgada por Evo Morales em 2006. Deste modo, reintroduzir-se-ia
o conceito de “territorialidade” que os povos tinham reclamado em 1996, mas que o
MNR considerou mais apropriado não incluir, limitando-se ao conceito de Terra, junto a
uma concepção limitada dos direitos envolvidos nesse reconhecimento.
interesses de classe dos profissionais de ONGS. Tapia e Vladimir Alarcón falaram em uma última sessão
de traição ao povo, e Romero os tratou de “demagogos, discurso incendiário e show político para a
imprensa”; destacando que tinham avançado na consulta com os líderes do Pacto de Unidade, José
Bailaba, constituinte do MAS, e representante indígena das terras baixas que tinha permanecido em
silêncio, ratificou isto quando Romero lhe passou o microfone para que expressasse sua opinião.
108
Ao final, houve um empate entre dois projetos de informe que foram os segundos mais votados, com
quatro votos. Sem os votos do MNR para o projeto de PODEMOS nesta comissão, criava-se um vazio
legal, pois não estava estabelecido o que aconteceria em caso de empate. O diário La Razón reproduzia
a preocupação da oposição de que passassem à plenária dois informes semelhantes, quando o de
PODEMOS era defendido como o que “verdadeiramente representa a outra metade do país”.
152
Em entrevista que realizei na época da conclusão do trabalho das comissões,
Romero explicava que a proposta do MAS “é uma continuação da reforma agrária que,
de alguma maneira, tinha sido impulsionada por leis especiais, mas também é uma
constitucionalidade da territorialidade indígena e é, sobretudo, uma melhor base
material para outorgar dimensão política a esta territorialidade e aumentar o
empoderamento das associações sociais. A dimensão política é que se reconhecem
direitos de gestão sobre a terra, sobre os recursos naturais, se respeita a integralidade da
territorialidade e isto fortalece o papel de comunidades e povos”. Romero considerava
também que “todos os processos políticos e sociais dos últimos anos ficaram em torno à
territorialidade, às disputas com empresas petroleiras, à „Guerra da água‟, à „Guerra do
gás‟, às demandas de terra e território, às novas estruturas organizativas dos povos
indígenas e aos movimentos sociais com base a controle de territorialidade. Então, esta
é uma transversal que é a que vai trazer as verdadeiras mudanças na estrutura do
Estado”
109
.
José Blanes (2007) escrevia, nesse sentido, que os problemas de classe e de
tradições nacionalistas encontraram nos direitos indígenas, particularmente nos direitos
pelo território, um eixo fértil e um motor potente para sua ascensão política. A perda de
centralidade do olhar classista deu lugar ao tema da gestão do território, que vai além da
terra dos camponeses e informa as diferentes posições sobre a autonomia; foi o eixo
conducente à Assembléia Constituinte e também o que fez despertar a reivindicação das
autonomias departamentais. O MAS defendia as mudanças e a inclusão da variável
étnica aos mecanismos de reforma agrária e da territorialidade reconhecida pelo Estado,
mas isto não se introduzia na ordem constitucional sem problemas. A posição de centro
do Novo Estado, e não somente da possibilidade de alcançar os dois terços, não ia longe
como as propostas das organizações sociais. Esse era o ponto exato onde o governo dos
movimentos sociais deixava de ser os movimentos sociais.
109
O significado da idéia de territorialidade é considerado também por Isabella Radhuber em seu livro
sobre terra, em várias entrevistas (2008:38). Ela cita o constituinte Raúl Prada que entende que,
enquanto “terra” enfatiza uma dimensão sócio-econômica, “território” se refere a uma dimensão
ecológica e antropológica da mesma. Também cita Miguel Urioste, que entende território como
construção social entre cultura e ambiente, que além da distribuição no espaço, se relaciona a um
sentimento de pertença da comunidade como experiência coletiva. Para Alison Spedding, a
territorialidade é inexistente no sentido material, e é mais uma construção imaginária, uma projeção de
idéias sociais coletivas em direção a um território que também pode se materializar e que se transforma
em um espaço vital, com idéias que abarcam valores culturais, normas, idéias religiosas e sistemas de
ordem econômica, política e jurídica, entre outras, em redes ou sistemas sociais que estão marcados
pela influência mútua entre território e sociedade.
153
Por outra parte, a inovação implicava também incorporar os camponeses às
TIOC, associando os territórios a novas comunidades. A mudança tinha que ver com o
contexto das transformações identitárias que tinha feito com que comunidades
camponesas começassem a se considerar indígenas. Um estudo do CIPCA
110
menciona
o caso dos sindicatos camponeses de Ayopaya, em Cochabamba, que renunciaram a
títulos individuais de terra e optaram por titulação coletiva com preservação de
estruturas e instituições comunitárias. Mas esse não era o caso mais comum, e o
tratamento do tema na Assembléia gerou um problema entre as organizações
camponesas e indígenas que ameaçaram com quebrar no meio o Pacto de Unidade.
Alguns remontavam às diferenças a tempos anteriores, quando os Incas procuravam
controlar os vales e se perfilavam sobre as terras baixas. Assim era lida por
organizações indígenas do Oriente a chegada de camponeses e colonizadores a seus
territórios, o que tinha dado lugar recentemente a vários conflitos violentos, com a
entrada de plantadores de folha de coca em territórios indígenas e, de forma mais
pacífica, o mencionado conflito entre estruturas políticas identificadas com o ayllu
frente ao sindicato.
O conflito eclodiu quando se discutiu o tipo de propriedade no interior dos
novos TIOC. As organizações indígenas procuravam que apenas fosse reconhecida a
propriedade coletiva, mas as centrais camponesas pressionavam por um projeto onde
também estivesse permitida a propriedade privada individual, impulsionada desde 1953
nas comunidades agrícolas. Os camponeses e colonizadores não estavam dispostos a
coletivizar suas propriedades, ainda que em várias comunidades estes mesmos
camponeses as mantivessem em combinação com as propriedades individuais. O
próprio Roman Loayza explicava, em uma reunião de constituintes, como a propriedade
é individual e coletiva ao mesmo tempo, por exemplo, quando se encontra gesso, que é
de toda a comunidade. O vice-ministério de Terras, dirigido por Alejandro Almaraz,
tinha feito a recomendação de que se continuasse a política da lei de “recondução
comunitária” de 2006, onde pela primeira vez se abria as portas ao reconhecimento da
propriedade coletiva e se estabelecia que esta fosse a forma de propriedade nos
territórios indígenas
111
.
110
Apresentação em Power point facilitado por Eulogio Núñez.
111
A proposta do Pacto de Unidade ia ainda além do reconhecimento coletivo de terras, propondo a
propriedade comunitária não apenas para os territórios indígenas, espaço onde finalmente se terminou
circunscrevendo a discussão. Nas discussões técnicas dos camponeses, desde a proposta da Lei Agrária
de 1984, se opunha o modelo da “coletivização”, associado ao caso soviético e entendido como “a
154
Em determinado momento se chegou a cogitar que no Oriente os territórios
teriam propriedade coletiva e no Ocidente individual, mas Álvaro García Linera
terminou fechando a discussão quando disse em reunião com os constituintes que se
respeite a propriedade individual nas TCO. A Constituição consagraria a propriedade
coletiva, então, mas sem limitar a possibilidade de dotações individuais. O problema da
propriedade individual nos territórios se devia, dizia Romero, ao medo de terras baixas
de que a dotação individual possa favorecer outra vez uma apropriação privada de
especuladores de terras. Romero via vantagens da titulação coletiva em termos de
organização, planificação, gestão territorial e em termos de tradição organizativa dos
povos. Mas defendia a coexistência das diferentes formas sobre a base de que a
propriedade individual é uma realidade destes povos desde o tempo incaico. Pensava
também que as diferenças entre organizações se deviam à falta de conhecimento,
insuficientes contatos, disputas de espaços organizativos, mas que de nenhuma maneira
se pode falar de contradições que não se possam conciliar
112
.
E no processo constituinte havia também vozes críticas ao modo como se tinha
levado nos últimos anos a política de territorialidade que havia sido o centro da política
das organizações indígenas de terras baixas nos últimos anos. O antropólogo Roberto
Balza apresentava algumas críticas em uma das exposições de especialistas organizadas
pela Comissão de Estrutura do Estado. Criticava às organizações indígenas, o Estado e
às ONGs como CEJIS, por ter procurado titular territórios diferentes àqueles que os
povos efetivamente habitavam e usavam, por ter priorizado a estratégia de reclamar as
terras menos ocupadas e que, por tanto, eram as mais fáceis de serem reconhecidas pelo
Estado. O resultado teria sido, segundo Balza, que não se tinham respeitado os modos
tradicionais de ocupação do espaço, apropriados para a forma de vida dos povos, e se
tinha dado lugar a mudanças territoriais de comunidades inteiras e o distanciamento de
áreas cerimoniais e também de caminhos com acesso a centros urbanos. Desse modo, os
povos se distanciavam de mercados e serviços, e dos lugares onde vendem artesanato
somatória aritmética de cidadãos”, ao modelo da comunitarização”, próprio do ayllu andino, e que se
entende como sistema holístico vinculado ao Dom e à reciprocidade (sobre reciprocidade andina, cf.
TEMPLE, 1995). Outros reconhecem o comunitário como espaços comuns às famílias e reconhecido pela
colônia espanhola, mas desacreditam do coletivo, como tipo de propriedade que seria exógeno
(MOLINA, 2008).
112
Xavier Albó refere a este encontro entre o individual e o coletivo quando critica as autoridades
encarregadas de levar adiante a Reforma Agrária, que nunca teriam chegado a entender o jogo entre o
comunal e as famílias individuais. Desde essa lógica, alheia a esta realidade andina, seguiram exigindo,
inclusive nos regulamentos da Lei INRA de 1996, que toda propriedade agrária seja ou coletiva ou
individual, quando o essencial da comunidade andina é a combinação jurídica de ambos tipos (Em:
Introducción a nietos de la Reforma Agrária, Barragan e Urioste 2007:x-xi).
155
para ter dinheiro que utilizavam em alguns momentos para comprar, por exemplo, bala
ou caderno para as crianças, ilustrava Balsa. Também se afastavam do acesso à água,
aos solos férteis e aos espaços de caça e coleta com as que complementam sua dieta
113
.
A constituinte do MNR na Comissão Terra elaborou um relatório separado que
mantinha a TCO sem modificações, manifestando que a inclusão de direitos territoriais
de pré-existência e acesso tradicional aos recursos seria excessiva e entraria em conflito
com a posse de terra produtiva existente. Frente a esta posição, Romero pediu projetar
os artigos do convênio 169 na parede da sala da comissão para mostrar até que ponto a
proposta de relatório da maioria coincidia com esse convênio, marco enquanto a direitos
territoriais. Dias depois, após consultar deres indígenas da sua região, Ana María Ruiz
apoiou o projeto de artigo do MAS, que reconhecia direitos coletivos e acesso
tradicional, mas tendo retirado a menção a direitos de pré-existência (Beaulieu: 2008).
A oposição se opunha ao reconhecimento da territorialidade com o argumento de que
daria aos indígenas controle dos recursos naturais em seus territórios e considerava que
a mudança de TCO para TIOC ameaçava os produtores privados não indígenas e que,
porque com a introdução do termo “camponeses” o MAS procurava impulsionar
colonizações de camponeses do Ocidente no Oriente
114
.
3.3 Recursos Naturais nos territórios.
O assunto das formas de propriedade não seria o único conflito entre os
diferentes setores do MAS nos temas da Comissão de Terra. A inclusão no Estado dos
direitos indígenas não era automática nem realizada sem fricções, que se sentiam
inclusive dentro do MAS. Acredito que, para além das disputas setoriais, tratava-se do
problema da diferença indígena em relação ao Estado. Alguns setores defendiam
posições estatais contra os indígenas ou de uma ordem jurídica que não podia incluí-los
113
Balza criticava também a participação de representantes indígenas nas estruturas do Estado, como
com as eleições de alcaldes indígenas. Para ele não tinha saído dos moldes ocidentais de organização e
participação política, não tinha dado frutos positivos nem um trato preferencial às suas demandas. Em
sua tese de graduação (2001), Balza critica a lei INRA de 1996 como procedimento equivocado do
Estado para delimitar territórios, o que ele percebe como uma lei de desenvolvimento agrícola
capitalista, não para grupos da floresta. Distanciando-se das organizações indígenas, também percebe
como problemática a demanda de presença ancestral nos territórios, por causa da presencia de mais de
um grupo, alguma vezes.
114
Eulogio Núñez explica que a formulação de esses artigos na comissão (e depois na Constituição), não
implicavam reconstituição de territórios originários em sentido amplo, porque na legislação boliviana os
territórios não têm demarcação contínua. Deste modo, o reconhecimento da territorialidade não
ameaçava propriedades privadas legalmente constituídas que cumprem a função econômica social.
156
sem conflito porque tinha outra natureza e partia de princípios que chocavam com suas
formas tradicionais em processo de reconstituição ou ainda vigentes em algumas áreas.
Constituintes urbanos do MAS, os sindicatos do campo e a esquerda nacionalista no
governo tinham motivos para “frear” os desejos das organizações indígenas, que em
última instância viam como ameaçantes para a unidade e soberania do país, ou como
não acordes com o Estado de Direito, encontrando-se com os argumentos da oposição.
O estado que se fazia presente nas discussões do MAS não era exatamente o do comitê
de assuntos da burguesia, ou da defesa política dos interesses dos empresários ou de
elites tradicionalmente no poder, mas tinha também argumentos “de esquerda” para
limitar as reivindicações indígenas.
O tema dos recursos naturais era considerado pelas comissões de
Hidrocarbonetos, Recursos Hídricos e Energéticos, Mineração, Desenvolvimento
Integral Amazônico, Desenvolvimento Rural e Coca. Mas seria a Comissão de Terra,
ocupada dos recursos naturais renováveis, a que se ocuparia de abordar o principal
artigo em que se definia a propriedade e o domínio de todos os tipos de recursos,
afetando todo um bloco de capítulos na Constituição reunidos sob o Título de “Meio
Ambiente, Recursos Naturais e Terra Território”. Este artigo estabelecia que “Os
recursos naturais são de domínio e propriedade direta e indivisível do povo boliviano.
Corresponde ao Estado sua administração reconhecendo, respeitando e outorgando
115
direitos proprietários individuais e coletivos sobre a terra, assim como direitos de uso e
aproveitamento com participação social sobre outros recursos naturais conforme a lei”.
A fórmula era: domínio e propriedade para o povo; administração para o Estado
e uso e aproveitamento para indígenas em seus territórios ou concessões privadas. O
importante era posicionar o povo como proprietário no lugar do Estado. Com essa
mudança, nas palavras de Romero para esta tese, se procurava “evitar o que havia
passado com administrações públicas que privatizaram as riquezas nacionais, como
Sánchez de Lozada que, por decreto regulamentário, entregou os campos petroleiros a
empresas privadas e isto derivou na perda de controle do excedente econômico, a
externalização das riquezas, a reprodução da pobreza, e o enfraquecimento da soberania
econômica e política do país”. Os constituintes do PODEMOS impulsionavam que o
domínio e a propriedade fossem do Estado, e dois constituintes do MAS, junto aos dos
115
Havia uma discussão prévia de se o Estado deveria “reconhecer” ou “conferir” direitos. Finalmente se
definiu que seria “reconhecendo, respeitando e outorgando”, integrando ambos sentidos.
157
partidos indianistas, defenderam a moção de domínio originário da terra e do território
para os povos originários e comunidades diversas do campo e da cidade.
Adolfo Mendoza, cnico das mulheres camponesas e do MAS na Assembléia,
era assinalado como responsável pela fórmula em que os recursos passavam a ser
propriedade do povo, não do Estado. Sobre seu trabalho, ele opinava que
possibilidade de influenciar, e que os assessores são responsáveis pelo que influenciam
ou pelo que não. Mas, se bem reconhecia sua responsabilidade nessa definição sobre a
propriedade dos recursos, e a defendia, considerava que respondia a uma posição
coletiva. Outro técnico, Iván Égido, da CIDOB, o questionava por essa posição, porque
implicava ir além do acordo do Pacto de Unidade, que consistia em que os direitos
indígenas iriam primeiro; sem ficar em um segundo plano apenas como reconhecimento
de uso exclusivo para recursos renováveis, ao se reconhecer antes a propriedade para o
povo. Era a determinação que tinha dado lugar à definição que vimos, no capítulo
anterior, ser elaborada. Conversávamos os três no bar Salfari de Sucre, famoso por
servir ajenjo artesanal e outros licores, e Iván expunha uma crítica comum neste
processo, de que as organizações camponesas não acompanhavam as posições das
organizações indígenas. No documento do Pacto de Unidade, dizia que ele tinha tido
que , pessoalmente incluir o acordo, porque os assessores das outras organizações não o
faziam por iniciativa própria
116
.
O conflito sobre os recursos naturais em áreas indígenas apareceu com força na
reunião de Cochabamba a finais de maio de 2007, quando as comissões apresentaram
seu trabalho ao presidente Morales, com a presença das organizações sociais do Pacto
de Unidade. Nessa reunião se definiram com Evo Morales temas importantes como que
não iria no projeto do MAS a proposta de um quarto poder “social”, que depois de ter
sido bastante anunciado e trabalhado inclusive na Comissão Estrutura do Estado o
MAS via como obstáculo para o acordo, ao mesmo tempo em que começava a observar
que implicaria formar uma imensa estrutura burocrática. Os constituintes do MAS
foram de Sucre até Cochabamba de ônibus e, em um acidente dos que são tão freqüentes
116
A Proposta do Pacto de Unidade de 5 de agosto (2006) era mais favorável para os povos indígenas e
estabelecia: “Toda extração dos recursos naturais renováveis e não renováveis no interior do território
plurinacional, está submetido a processos de consulta preévia e obrigatória às organizacoes sociais do
lugar *…+ o domínio originário dos recursos não renováveis é das nações e povos indígenas originários e
camponeses. A propriedade dos recursos não renováveis é compartida entre as nações e povos
indígenas originários e camponeses e o Estado Unitário Plurinacional. [...] As naçoes e povos indígenas
originários e camponeses co-administram, co-gestionam os recursos não bio renováveis com o Estado
Unitário Plurinacioanl. Assim, tem participação equitativa nos benefícios [...].
158
em rodovias bolivianas, vários ficaram feridos. Também o projeto de Constituição
sofreu ferimentos, de diferentes graus de profundidade. E um deles era que Evo Morales
manifestou que os povos indígenas não poderiam ter domínio e propriedade de recursos
naturais em seus territórios. Tampouco teriam uso exclusivo, que segundo a opinião do
presidente “era a mesma coisa que a propriedade”. E, segundo Romero, também havia
problemas no governo em assimilar a demanda de consulta vinculante para exploração
de recursos, presente no convênio 169 como direito.
No artigo citado acima, define-se que corresponde ao Estado a administração
dos recursos naturais, “reconhecendo, respeitando e outorgando direitos de uso e
aproveitamento com participação social sobre outros recursos naturais conforme a lei”.
As organizações indígenas não aceitavam que seus direitos dependessem do
reconhecimento e de ser outorgados pelo Estado, e exigiam que em seus territórios o
uso e aproveitamento não sendo possível exigir a propriedade e o domínio
estivessem garantidos. Apesar de que este tinha sido um dos pontos acordados
internamente no Pacto de Unidade e apresentado em sua proposta de agosto de 2006, a
direção do MAS comunicou Romero de que retrocedesse neste ponto e no modo em que
se estava concebendo a territorialidade. O mesmo repetiria Evo Morales em uma
reunião a sós com líderes das terras baixas e seus assessores, solicitada para baixar a
tensão levantada por diferentes assuntos. Depois desta reunião, alguns se queixaram do
“entorno” do Evo. O presidente tinha justificado a decisão dizendo que não queria que
ocorresse de novo “como em Madidi”, parque nacional em que indígenas e
colonizadores tinham se enfrentado violentamente pela terra. E a intervenção do
governo na Assembléia, na grande maioria dos casos, era guiada pela tentativa de evitar
possíveis conflitos.
Se a renúncia ao quarto poder, social, era simbolicamente importante por ter sido
uma importante reivindicação mencionada em todos os discursos dos dirigentes
camponeses sobre a nova Constituição e no de vários constituintes na comissão
Estrutura do Estado se acabava de organizar uma atividade ao respeito a mesma tinha
sido mais facilmente assimilada pelas bases camponesas do MAS, que de algum modo
compartilhavam a visão de que agora eram governo. Controlando o Poder Executivo, o
Poder Social perdia importância e inclusive se corria o risco de que fosse um
mecanismo aproveitado pela oposição ao governo, dos grupos cívicos das regiões. A
definição de Morales a respeito do que os indígenas esperavam o tinha sido
assimilada tão facilmente. Leonardo Tamburini do CEJIS, que me explicava que estava
159
em Sucre para contribuir a baixar a tensão entre as organizações e os constituintes,
resumia a situação em que o consenso era dar uso a indígenas e propriedade ao Estado
mas havia preocupação de que se retrocedesse.
Em Cochabamba, o próprio Romero tinha assegurado que o uso exclusivo
estava garantido. Apenas se tratava de incluir na Constituição o que já estava no
Convênio 169 da OIT, dizia Leonardo. Mas agora, desde a presidência se diz que “uso
exclusivo” é quase igual a propriedade, e por isso querem colocar outra palavrinha. A
posição dos povos indígenas, a essa altura, era a de garantir autonomia e o uso
exclusivo, sem pedir propriedade dos recursos nesta Assembléia. Caso se retrocedesse e
não houver autonomia indígena, então, as organizações se quebrariam, dizia o diretor do
CEJIS. Em reunião com as organizações do Pacto, dias depois, Tamburini analisava o
cenário interno do MAS, e via o preço a pagar politicamente pelo MAS caso não
aceitasse incluir a posição dos indígenas. Era esse preço o que criava possibilidades para
um acordo. Um novo acordo com os indígenas traria crédito político para o MAS. Mas
Leonardo analisou também que Carlos Romero não pode se comprometer pelos recursos
não renováveis, porque não é tema de sua comissão e sim da de hidrocarbonetos. O
tema a discutir com ele era, então, apenas o dos recursos renováveis, mas também se
entendia que não quisesse assumir coisas que o enfrentariam ao MAS, dizia Tamburini.
Apesar da proximidade com as organizações de terras baixas em anos anteriores,
Romero agora falava da posição do MAS na Assembléia. Deste lugar, a CONAMAQ e
a CIDOB apareciam para Romero “com propostas sectárias muito radicais”.
Junto com a oposição do governo à sua reivindicação, os indígenas começavam
a se dar conta de que suas demandas também não seriam acompanhadas pelas
organizações camponesas e de colonizadores, com uma proximidade orgânica com o
novo governo e que falavam da perspectiva do interesse nacional, apesar de que eram
co-assinantes da proposta do Pacto entregue aos constituintes do MAS. Os camponeses
e colonizadores se reconheciam como indígenas, mas na discussão dos recursos
nacionais pensavam como bolivianos e apoiavam o que era a base da política econômica
de Evo Morales. Não eram minorias étnicas que, com o aval do Convênio 169 da OIT
exigiam direitos no quadro de um Estado nacional, mas, agora, o próprio Estado-Nação.
Do outro lado, as organizações que apostavam pela consolidação de territórios
ancestrais e que estavam em processo de demandas territoriais em terras altas e baixas,
nucleados em CONAMQ e CIDOB, apóiam o governo do MAS, mas não eram o MAS
nem o governo.
160
Segundo os técnicos destas organizações, “as trigêmeas” –como se conheciam as
três organizações camponesas atuavam como operadoras” do governo para frear o
bloco indígena (CIDOB e CONAMAQ) “e ainda falavam de terra no lugar de
territorialidade”. Próximo às organizações indígenas, e entre os constituintes, se
comentava o último documento do Pacto de Unidade que as Bartolinas não apoiavam e
que a CSUTCB não teria assinado. Ou que sim teriam assinado, mas por erro de uma
regional da CSUTCB que estampou seu selo. Por esta época, alguém lembrava que um
dos assessores do presidente esclareceu em Cochabamba que não tinham assinado nada
com as organizações, razão pela qual deviam reconhecer que tinham ficado sozinhas em
suas posições sobre estes temas. Especialmente após escutar a voz de “o chefe”, que na
dinâmica do processo se sabia que era a última palavra em termos de decisões, e cuja
imagem era também uma das bases da união entre as diferentes organizações do Pacto
de Unidade.
Como a de todo mediador, a posição de Evo Morales sempre tinha algo de
desequilíbrio para um dos lados. E, assim, tinha ordenado os atores do processo dizendo
aos constituintes que “os indígenas são os impulsores, mas os camponeses os que se
mobilizarão e defenderão”. E talvez não seja casual que tenha sido um camponês com
identidade indígena, mas também boliviana nacional, o que tenha conseguido encabeçar
o movimento social Boliviano e ser o primeiro presidente indígena e de esquerda em
muitos anos. Apesar de todas as casualidades que devem acompanhar a um homem para
chegar à presidência, o modo camponês de ser presidente de todos parece mais viável
que o modo de ser presidente que podemos imaginar em um líder aymara com marcada
identidade étnica, como Felipe Quispe; ou de um indígena de terras baixas com suas
demandas de direito para minorias; ou então algum dirigente histórico da esquerda
proveniente da classe média, como Peredo ou Del Granado, sem a interlocução com o
povo boliviano que agora ingressava com força no Estado como nunca antes.
As diferenças de interesses entre indígenas e camponeses sobre recursos
naturais, que apareciam no período de comissões, não eram novas. Assim o mostram
documentos do Pacto de Unidade do tempo em que se elaborava a proposta para a
Assembléia Constituinte, como os de Camiri em maio de 2006, em que o tema dos
recursos aparece como um dos pontos sem consenso entre as organizações. Até agosto
de 2006, quando começava a Assembléia, não se tinha concluído a discussão sobre o
domínio e a propriedade dos recursos naturais não renováveis, apesar de que um dia
antes do início da Assembléia se apresentava o documento citado acima, onde o
161
consenso das organizações era que o domínio e a propriedade apareciam compartidos
entre os povos indígenas e o Estado
117
. O conflito político que eclodiu no tempo da
Assembléia, no entanto, respondia a que alguns temas que tinham consenso, eram
revisados. Isso aconteceu com os temas do uso e aproveitamento exclusivo e com o
direito de consulta vinculante, postos em dúvida por Evo Morales na reunião de
Cochabamba.
3.4 Marcha indígena
No desenvolvimento das negociações, as organizações indígenas aceitaram não
pedir a propriedade e o domínio dos recursos não renováveis, mas de nenhuma maneira
aceitariam retirar da Constituição o uso exclusivo em seus territórios dos recursos
renováveis. Era muito para eles e, junto com outras diferenças surgidas em diferentes
comissões, punha às organizações próximas à ruptura com o MAS. É nesse contexto
que a CIDOB decide iniciar uma marcha indígena “Pelas autonomias indígenas, terra e
território e pelo Estado Plurinacional”. A marcha saía em momentos de definição nas
comissões, unindo-se ao clima conflituoso que se vivia em Sucre nessa época, com
mobilizações diárias de diversos setores, como os universitários (pela autonomia
universitária e contra o “controle social” na universidade); os mineiros corporativistas;
os cívicos que ameaçavam com desobediência civil e greve cívica na Meia-Lua; as
mobilizações pelo tema da sede dos poderes em La Paz e Sucre; etc. “CIDOB vem em
caminhões de Santa Cruz”, dizia-se em Sucre
118
.
CONAMAQ também faria parte da marcha, mas depois decidiu realizar uma
vigília em Sucre com representantes de todos os suyus devido a que, por ser tempo da
colheita, não poderia se mobilizar em grande número, diziam. No que diz respeito ao
resto dos integrantes do Pacto de Unidade, as relações tinham se esfriado. Entre as
demandas da VI marcha indígena se incluía a representação direta em um Parlamento
novo, a autonomia indígena, os direitos coletivos, o Estado Plurinacional e o Pluralismo
117
“Encuentro nacional de organizaciones indígenas, originarias y campesinas” junho de 2006 e
“Propuesta de las Organizaciones Indígenas, Originarias y Campesinas, hacia la Asamblea Constituyente”
apresentada no dia 19 de junho de 2006. Fonte: Éjido e Valencia (2010).
118
A marcha rememorava as históricas marchas que, a partir do ano de 1990, tinham levado os povos
das terra baixas à política nacional. Era a sexta marcha indígena da história, que arranca por resolução
de 6 de junho de 2007 das organizações da CIDOB reunidas em Comissão Nacional e que, fazendo uma
avaliação do debate nas comissões da constituinte, decidem iniciar a marcha “com a preocupação com o
que está acontecendo na AC em que se estão minimizando, tergiversando ou excluindo as propostas e
demandas históricas dos Povos Indígenas”.
162
Jurídico; também, “a propriedade e o uso e aproveitamento exclusivo sobre os recursos
naturais renováveis e a participação na gestão, administração e utilidades na exploração
dos recursos naturais não renováveis que se encontram em seus territórios”. Os temas
exigidos eram recusados nas comissões especialmente pela oposição (PODEMOS, UN,
MNR), mas o destinatário da marcha também era, sem dúvidas, o MAS, que
manifestava suas dúvidas ou, na procura do consenso, deixava cair especialmente os
temas reivindicados pelos indígenas. Do lado do MAS, a marcha teve como reflexo a
redução na participação dos assessores de terras baixas na elaboração do projeto do
partido
119
.
Falando com jornalistas, o presidente da CIDOB, Adolfo Chávez, dizia que, se
as suas demandas não fossem escutadas, haveria um levantamento indígena
120
.
Esperanza Huanca, de Visão País, dizia que o Pacto se quebraria porque no dia anterior
não tinha sido possível se reunirem. Nélida Faldín, de Estrutura do Estado, dizia que se
mobilizavam porque “negociam conosco” e comentava nesta época que Silvia Lazarte
disse “com indígenas ou sem indígenas vamos ter nova Constituição”. Isso podia ser
dito pela presidente da Assembléia porque “somos poucos e eles têm os camponeses”,
acrescentava. Sobre os camponeses, Nélida dizia que “eles não têm mais terras
coletivas, mas individuais”, que “chegam, produzem e as vendem”. No entanto, ela
tinha achado boa a reunião com Evo Morales, quando combinaram continuar
discutindo.
Finalmente, depois de picos máximos de tensão entre os povos indígenas e “os
políticos” do MAS, em privado, e com os da oposição, em público, o MAS e o Pacto de
Unidade puderam superar o conflito sobre os recursos naturais. O uso exclusivo dos
recursos naturais renováveis nos territórios foi garantido, não houve quebra entre o
MAS e as organizações indígenas, que interromperam a marcha antes de deixar o
departamento de Santa Cruz, alegando doenças e clima adverso, no dia 17 de julho. As
palavras do Chefe tinham sido desautorizadas, ou talvez Evo Morales tivesse cedido
119
A plataforma de demandas da VI Marcha indígena era mais detalhada: Estado Unitário Plurinacional
com reconhecimento da pré-existência das nações e povos indígenas originários e a participação em
todos os níveis de governo. Autonomias indígenas sem subordinação e com igualdade de hierarquia
frente às demais entidades territoriais, para que os recursos naturais que se encontram nos territórios
indígenas beneficiem coletivamente nossos povos. Representação direta das nações e povos indígenas
no órgão legislativo. Direitos coletivos dos povos indígenas. Comissão Política da VI Marcha Indígena, 16
de julho de 2007 (VALENCIA e ÉGIDO, 2010).
120
No dia 20 de julho, enquanto se desenvolvia a marcha, o constituinte de PODEMOS, Fernando
Morales (Santa Cruz) bateu em Adolfo Chávez. O agressor justificava a ação com o argumento de que o
presidente da CIDOB viajava em avião enquanto suas bases marchavam a pé.
163
para manter a unidade. Ao mesmo tempo, pôde ser contornado o fato de que não
entrasse no projeto de Constituição do MAS a importante demanda de domínio sobre os
recursos nos territórios, dando lugar à posição de consenso no MAS a favor da
propriedade comum dos recursos para o povo boliviano, em cuja definição os indígenas
tinham um lugar destacado.
Carlos Romero explicava à imprensa, nesta época, quais eram os alcances do
“uso exclusivo” sobre os recursos. Os jornalistas consideravam que era um abuso e
perguntavam alarmados as conseqüências depois de escutar as declarações catastrofistas
da oposição. Procurando tranqüilizá-los, Romero explicava que o uso exclusivo é para a
lenha e recursos dos indígenas, e que para exploração comercial o Estado interviria. Ao
mesmo tempo, a Comissão de Poder Legislativo tinha se comprometido a que entrasse o
tema da representação direta, dissolvendo assim as razões que tinham motivado a
marcha. A reunião dos dirigentes do Pacto pela qual se chegou ao acordo com Romero
não se fez pública “como espaço” para, desse modo, evitar que se acuse assessores ou
dirigentes de estar “negociando o domínio originário”, reivindicação mantida até o final
pelas organizações, mas que o governo não ia aceitar. Evo Morales também contribuiu à
aproximação, convencendo na reunião de La Paz solicitada pelas organizações
indígenas que uma posição crítica iria prejudicar o processo de mudança.
O resultado das reuniões entre as organizações e Romero foi a assinatura de uma
ata em que se estabeleceu o acordo. As organizações tinham pedido que ficasse escrito.
A reunião onde se assinou a ata foi realizada na casa que funcionava como sede das
organizações indígenas, com sete constituintes, autoridades da CONAMAQ, a CIDOB e
os afro-bolivianos presentes. Na reunião, os dirigentes das organizações indígenas
manifestaram seu descontentamento. Tata Agustino, autoridade máxima da
CONAMAQ, manifestou-se frustrado pela decisão de deixar fora a demanda de domínio
originário de recursos naturais para os povos originários. Disse que estava
compreendendo que o MAS não os apoiava. “queríamos uma Constituição originária,
nossos direitos se baseiam na pré-existência dos povos indígenas originários, nossa
vivência é diferente, não temos representantes suficientes para levar nossa voz e por isso
confiamos em vocês constituintes aqui”, dizia. Lázaro Tacoó, do povo chiquitano e da
CPESC disse “pensamos que íamos como duas pontas contra a direita, mas aconteceu
que entre nós também tem diferenças”. Disse também que Evo tinha dito que seguissem
adiante, mas nas reuniões com técnicos, os camponeses começaram a trair. Pediu que as
164
instâncias superiores do MAS falassem com os constituintes, porque alguns querem
eliminar as TCO. E concluiu que estava lastimado porque se sentiam postergados.
A reunião concluiria com a palavra de Romero, que lia o acordo: “a propriedade
e o domínio dos recursos naturais serão para a população boliviana; a administração
será no marco do nível central do Estado Plurinacional Unitário; os povos indígenas
teriam em seus territórios o usufruto exclusivo dos recursos naturais renováveis”. Disse
também que seguiria trabalhando com o Poder Executivo para procurar melhorar o
acordo, talvez incluindo a consulta vinculante que os povos pediam para exploração de
recursos naturais, mas que temia que fosse difícil porque por acordo com a Diretoria da
Assembléia, o trabalho das comissões deveria ser concluido no dia seguinte.
Imediatamente, Romero saiu com o papel da ata assinado e a reunião continuou entre os
dirigentes das organizações indígenas, os afro-bolivianos e os técnicos. Havia frustração
e Tata Martin, Mallku da CONAMAQ manifestou que nem as trigêmeas nem o governo
aceitariam o domínio dos não renováveis, pelo qual marchar contra isso seria bater
cabeça. Pensava, no entanto, que se poderia pedir a co-gestão. Não achava que dariam
aos guaranis os recursos naturais, dizia, porque toda Bolívia vive disso, mas que não
poderiam novamente ser abandonados com uma mão na frente e outra atrás. Na reunião
se avaliava a pouca força que tinham frente ao MAS, pois, em última instância, a outra
parte do Pacto de Unidade seria fiel ao presidente. Álvaro Infante, assessor técnico da
CIDOB, acrescentava: “Sabemos que é o governo dos camponeses e não o nosso,
sabemos que não vamos ganhar, mas pelo menos não teríamos que perder”.
Depois, foi a votação na Comissão de Terra e Território. Os constituintes de
PODEMOS e os do MNR, além de estabelecerem no projeto que os recursos naturais
seriam de propriedade do Estado, procuravam que a territorialidade indígena ficasse
restrita às TCO da reforma constitucional de 1994. Com nove votos, a maioria dos
constituintes dos MAS aprovavam o acordo com umas poucas modificações: “se
reconhece a integralidade do território indígena originário e das comunidades que inclui
o direito à terra, ao uso e aproveitamento exclusivo dos recursos naturais renováveis nas
condições determinadas por Lei, a consulta prévia e informada e a participação nos
benefícios pela exploração dos recursos naturais não renováveis que se encontram em
seus territórios; a faculdade de aplicar suas normas próprias, administradas por suas
165
estruturas de representação e definir seu desenvolvimento de acordo a seus critérios
culturais e princípios de convivência harmônica com a natureza”
121
.
Mas a procura do consenso abriria frentes continuamente. O acordo com os
povos indígenas deu lugar a que, do lado do MAS, dissessem a Romero: “por que você
ofereceu isso?”, ele reclamava. Por outro lado, as organizações indígenas seguiam
ameaçando com considerá-lo traidor, em percepções que ele via como sectárias. Carlos
Romero me contava que, se quisessem declará-lo traidor por não dar-lhes recursos aos
povos indígenas, que o fizessem, e explicava que fez que eles assinassem a ata
justamente para evitar isso. Próximo de Romero, se pensava que os dirigentes aceitavam
o acordo e que eram os técnicos que insistiam em que se procurasse algo mais.
4 Autonomias indígenas, departamentais e regionais.
4.1 A Autonomia Departamental.
Quando o debate constituinte é intensificado durante o governo de Carlos Mesa,
depois da reforma constitucional de 2004, que possibilitou a convocatória da
Assembléia e a realização de referendo, de Santa Cruz os impulsionadores da autonomia
departamental impulsionavam também um referendo autonômico se opondo à
realização da Assembléia
122
. Susana Seleme, colunista respeitada em Santa Cruz,
sempre opositora do governo do MAS, escreve em 2005 defendendo um referendo
sobre autonomias antes que uma convocatória à Assembléia, acreditando que em um
cenário como o da Constituinte, “a proposta de Santa Cruz perderá pela política
matemática do voto” (La Prensa, 16-2-05). Ainda não tinha surgido a idéia dos “dois
terços” como modo de aumentar o poder político dessa representação minoritária
123
.
121
Com algumas modificações, seria o artigo 403 da nova Constituição. No artigo 30, do capítulo sobre
direitos indígenas, se garantiriam os direitos “à consulta prévia obrigatória, realizada pelo Estado, de
boa fé e concertada, no que diz respeito à exploração dos recursos naturais não renováveis no território
que habitam”; “Á participação nos benefícios da exploração dos recursos naturais nos seus territórios”;
“À gestão territorial indígena autônoma, e ao uso e aproveitamento exclusivo dos recursos naturais
renováveis existentes no seu território”. Em outubro de 2008, agregar-se-ia “sem prejuízo dos direitos
legitimamente adquiridos por terceiros”.
122
Criticando a proposta de Assembléia Constituinte, que se atribuía a Mesa Gisbert-Evo Morales, e
solicitando em seu lugar apenas um referendo autonômico, veja-se (ANTELO s/d e LANDIVAR s/d), no
website da Nación Camba s/d) Nación Camba (http://nacioncamba.net/articulos/).
123
Em seu artigo sobre o mesmo tema, Archondo (2005) faz um cálculo dos constituintes que teria
Oriente a partir do resultado das eleições municipais de 2004, chegando à conclusão de que as pessoas
afins às propostas de Santa Cruz não superariam 37% dos constituintes, em qualquer uma das rmulas
166
A falta de entusiasmo de Santa Cruz pela Assembléia Constituinte explica muito
do comportamento de PODEMOS, com sua força especialmente concentrada no
Oriente. A estratégia de Santa Cruz para conseguir a autonomia tinha apostado na
realização de concentrações públicas ou “cabidos”, defendidos como marcos no
caminho autonômico. O primeiro cabido foi convocado para o dia 22 de junho de 2004
pelo Comitê Pró Santa Cruz, quando seu presidente era Rubén Costas, prefecto do
departamento desde 2005. O segundo Cabido foi no dia 28 de janeiro de 2005 e nele,
segundo seus organizadores, assistiram 350 mil pessoas, e foi criada a Assembléia
Provisional Autonômica com mandato de convocar um Referendo autonômico
vinculante e eleições de prefectos em todo o país, em caso de que o governo nacional
não o fizesse
124
.
Antes das eleições de constituintes e da realização do referendo autonômico em
novos departamentos, no dia 28 de junho de 2006, outro Cabido se reuniu no Cristo
Redentor da cidade de Santa Cruz, com presença estimada de 500.000 pessoas,
chamando-se ao voto pelo sim no dia dois de julho. O seguinte seria o já citado “Cabido
del Millón”, com o cenário da Assembléia em marcha, realizado para que se
aprovasse os dois terços como modo de votação, e acompanhado de uma greve de fome
com 2500 participantes, no dia 15 de dezembro de 2006. Esse cabildo resolveu
desconhecer a nova Constituição se fosse violada a Lei de Convocatória ou o mandato
vinculante do Referendo Autonômico. Em tal caso, demandava-se à Prefeitura aprovar
um Regime Autonômico Departamental mediante qualquer via democrática, a qual
estabeleceria os princípios de um Estado Social e Democrático de Direito, que seria a
proposta de PODEMOS apresentada a seguir na Assembléia.
Se bem a demanda surge com anterioridade à chegada do MAS ao governo,
rapidamente se estrutura como principal oposição ao governo, e Evo Morales herda o
propostas pela Corte em janeiro de 2004. Apenas 2% dos votantes inscritos em 2004 eram de Santa Cruz
e, por isso, “a origem das suas angustias é quase exclusivamente demográfico”, diz Archondo.
124
Além de Rubén Costas, nas primeiras eleições diretas para esse cargo, de 2005, o PODEMOS elegeria
como prefectos Leopoldo Fernández em Pando e Ernesto Suarez em Beni, que tinham sido parte do ADN
do ditador e depois presidente eleito democraticamente, Hugo Banzer. Em Tarija, o prefecto eleito seria
Mario Cossio, que tinha sido presidente da Câmara dos deputados pelo MNR. Assim, se conformou a
Media Luna, que impulsionava a demanda de autonomia mediante a que se considerava “agenda de
janeiro”, pelo cabido de 2005, em contraposição à “agenda de outubro”, incorporada pelo MAS em sua
plataforma de governo, com a demanda de nacionalização dos hidrocarbonetos e da Assembléia
Constituinte. Ver a cronologia dos “marcos” de Santa Cruz do secretário de autonomia da prefeitura,
Carlos Dabdoub, que tinha sido ministro de Saúde no governo do MIR:
http://www.santacruz.gov.bo/dialogodepartamental/index2.php?option=com_content&do_pdf=1&id=1
07.
167
lugar do centralismo contra o qual a demanda se organiza. Do lado do MAS, desconfia-
se que a demanda é uma estratégia das elites poderosas, habituais participantes de
governos dos partidos tradicionais. Por isso, apesar de ter se mostrado neutral em um
primeiro momento, Evo Morales inicia, um mês antes do referendo, uma campanha pelo
“não” às autonomias que triunfa em La Paz, Potosí, Oruro, Cochabamba y Chuquisaca.
O resultado tinha dado uma nova imagem das “duas bolívias”, que entoava com o
contraste entre cambas e collas e que alimentava alguns desejos separatistas presentes
na Meia-Lua, em ascensão a partir de importantes descobrimentos de hidrocarbonetos
nos últimos dez anos.
Félix Cárdenas, constituinte aliado do MAS, falaria em um evento vinculado à
Constituinte em 2007 de “Autonomia da carteira, para vender o petróleo e o gás sem
garantir desenvolvimento”. Para ele, a autonomia tem sentido nas culturas em perigo,
como direito para preservar o caráter étnico cultural. Falava de “36 formas de ver o
mundo em processo de resistência”. Sem essas culturas, o mundo se empobrece e por
isso o Estado tem que cuidar as culturas em extinção, dizia. Em contraposição,
expressava que algumas famílias de Oriente não estava certo ser nação. Pedia definir o
que é ser nação, e via que os índios ganhavam no campo de batalha, mas poderiam
perder na mesa de negociações. Para ser nação autônoma, deveria existir registros de
território, idioma, religião própria, defendia. E afirmava que os cambas não têm isso, é
somente autonomia de uma oligarquia.
Muitos dirigentes cívicos, empresários e políticos de Santa Cruz, vinculados à
demanda autonômica, integravam ou tinham afinidade com uma organização chamada
“Nação Camba”, fundada em 2000, que defende abertamente o separatismo como
proposta geopolítica para a região. Os prefectos de Santa Cruz e Trinidad, em Beni,
funcionários da prefeitura de Santa Cruz e dos comitês cívicos da Meia-Lua se
manifestaram publicamente neste sentido. A organização que se apresenta como nação
camba tem um braço político que se chama Movimento Nação Camba de Liberação
(MNC-L) e, em sua website, definem que Bolívia –que também chama de “Estado
colonial andino-kolla”– como “uma espécie de Tibet Sul-americano, constituído
majoritariamente pelas étnias aymara-quéchua, atrasado e miserável, onde prevalece a
cultura do conflito, comunalista, pré-republicana, iliberal, sindicalista, conservador, e
cujo centro burocrático (La Paz) pratica um execrável centralismo colonial de Estado
168
que explora suas „colônias internas‟, se apropria de nossos excedentes econômicos e nos
impõe a cultura do subdesenvolvimento, sua cultura”
125
.
Em seus documentos, definem sua “nação não oficial” ocupando 70% do
território e com 30% da população boliviana, com uma “cultura mestiça que provêm do
cruzamento de hispanos e guaranis”, com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)
mais alto do país e quinto produtor mundial de soja. Reclamam ser incluídos na
Constituição como minorias nacionais diferenciadas, anunciando que, se isto não for
cumprido, acederão à sua independência nacional pela via pacífica do referendo, sobre a
base do Direito de Autodeterminação reconhecido pela ONU. Poderia parecer uma de
tantas páginas de internet sem repercussão fora do espaço virtual; mas o certo é que essa
foi uma linha política importante entre os partidários do PODEMOS de Santa Cruz
durante o processo constituinte, como se veria, especialmente, em 2008.
O Comitê Cívico Pró Santa Cruz, a União Juvenil Cruzenhista e meios de
comunicação com muita audiência no departamento expressavam essa posição,
acompanhada de um racismo para com a população de origem andina (denominados
“collas”) que constatei que sofriam insultos correntemente em cidades como Trinidad e
no centro de Santa Cruz. A Meia-Lua, no entanto, tem uma porcentagem importante de
população migrante do altiplano, o que explica também o triunfo do MAS nas eleições
para constituintes em julho de 2006. Mas a cultura dominante da cidade de Santa Cruz
parece não ter assimilado a realidade de alguns de seus mais povoados bairros, como o
Plan 3000 e a Villa 1 de Mayo e, antes, parece pensar como Gabriela Oviedo, ganhadora
do concurso Miss Bolívia 2004, que na competição de Miss Universo declarou: Um...
unfortunately, people that don't know Bolivia very much think that we are all just Indian
people from the west side of the country, it's La Paz all the image that we reflect, is that
poor people and very short people and Indian people ... I'm from the other side of the
country, the east side and it's not cold, it's very hot and we are tall and we are white
people and we know English so all that misconception that Bolivia is only an Andean
country, it's wrong…” (sobre o “habitus Camba”, ver WALDMANN 2008).
125
Um dos artigos do website se titula “Ser Separatista no es Delito”, e defende sua posição a favor do
livre mercado (MUÑOZ GARCÍA s/d). Seu líder, Sergio Antelo Gutiérrez, publica na página de Internet um
capítulo de seu livro “Los Cruceños y su Derecho de Libre Determinación” onde afirma que o destino de
Santa Cruz e da nação Camba não descansa nos mercados Alto-peruanos, que foram a justificativa dos
“integracionistas” para encobrir suas incompetências empresariais. Fala, antes, de integrar a nação
Camba ao ALCA (zona de livre comércio das Américas, impulsionadas por Bush) ou aos Estados Unidos
de América do Sul, que seria liderado por Brasil e Argentina, com um mercado que calcula de 400
milhões e com costas marítimas que, afirma, “serão nossas”.
169
Dado o caráter vinculante do referendo autonômico realizado junto com as
eleições da Constituinte, a autonomia departamental para a Meia-Lua não era
questionada na Assembléia Constituinte. O modo as contra-restar viria no momento de
implementá-las, e com um modelo que incluía outros níveis autonômicos, indígena e
regional, que se uniriam ao nível municipal, autônomo desde uma lei de 1999, tirando
poder ao nível departamental. Para a Meia-Lua, na “Comissão de Autonomia”, o projeto
do MAS desvirtuava uma verdadeira autonomia departamental, e este era um dos
principiais enfrentamentos da Assembléia Constituinte. Esta Comissão era a mais
numerosa da Assembléia, com 25 membros. Veremos algumas discussões que
aconteceram nela, especialmente aquelas entre os constituintes do MAS e as
organizações socais que permitem nos aproximar á discussão das autonomias na
Bolívia
126
.
Em Autonomias se refletiam os mesmos conflitos das outras comissões: a
procura de aproximação com o MNR; a tensão com os indígenas; o enfrentamento com
o PODEMOS. Desde o Chaco, região mais rica em hidrocarbonetos, falava-se de um
décimo departamento e os indígenas ameaçavam que, se não se incluíssem as
autonomias indígenas, entrariam com greve de fome e não contribuiriam com a procura
do MAS pelos dois terços. Magda Calvimontes, constituinte do MAS e secretária da
Comissão, dizia que “a expulsariam” de Tarija se não saísse a autonomia provincial.
Com a autonomia departamental aceita, a disputa com a oposição era pelas
competências que teriam as autonomias departamentais e, especialmente, se seria
incluída a qualidade legislativa para o nível departamental, que o MAS queria impedir.
4.2 Autonomia indígena
No MAS, o projeto incluía a tensão entre o desenvolvimento do projeto
plurinacional, com a autodeterminação para as autonomias indígenas; e um projeto
nacional, socialista, popular, que procurava frear o que entendia como ambições de uma
elite deslocada recentemente do poder e encurralada no Oriente. Nesta última discussão,
o MAS ocupava o lugar do centralismo, que tentaria recortar poder às autonomias,
como forma de assegurar a unidade nacional e avançar com o processo de mudança. O
projeto de Estado do MAS, assim, cruzava-se entre o caminho de manter um
126
O nome da Comissão era: Autonomias departamentais, provinciais, municipais e indígenas,
descentralização e organização territorial. Estava presidida por Saúl Ávalos, do MAS de Santa Cruz.
170
centralismo que por primeira vez beneficiaria indígenas e camponeses, e o caminho da
autonomia impulsionada especialmente pelas organizações indígenas que apoiavam o
processo mas que não tinham se envolvido na tarefa de governar. O MAS procuraria,
então, que a autonomia indígena fosse o modo de neutralizar as denominadas
“autonomias de capitais de departamento”.
Por outro lado, os povos indígenas do altiplano, que eram majoritários em
termos demográficos nas suas regiões, articulariam a nova proposta das autonomias
com a luta de séculos pela defesa de suas organizações frente ao Estado. Mas nos
debates da comissão, o ex-presidente do Senado em 2005, Hormando Vaca Diez, que os
movimentos sociais impediram de chegar à presidência, dizia que apenas entendia as
autonomias indígenas nas terras baixas, como ação afirmativa, onde eram minoria; e
perguntava se iriam lhes dar recursos naturais ao 2% dos habitantes porque são
chaquenhos e estavam antes da colônia. O que acontece com o 98% restantes, se
perguntava. O chefe da bancada de PODEMOS na Assembléia, Rubén Darío Cuellar,
acrescentava: não façamos interpretações erradas nem digamos o que não é, não pode
haver um departamento com quatro cabeças que vão se digladiar. O presidente tem que
saber o que acontece em Puerto Suarez. Dizia que 36 nações não constituem um
governo unitário, autonomia indígena é soberania absoluta e se perguntava o que iria
acontecer quando houver duas ou três autoridades para a mesma área.
O constituinte Roy Moroni, do MNR-FRI de Tarija dizia que o MAS queria
igualdade, mas apenas pensava nos indígenas, deixando de lado os mestiços. Se nós
tiramos os chapéus e as roupas, somos todos iguais, todos mestiços. E pensava que a
autonomia indígena era despedaçar o Estado, o caos e a anarquia. Carlos Aparício,
constituinte chuquisaquenho do MAS, pedia à oposição que deixasse de predicar com o
medo, porque os indígenas querem ser parte deste Estado. Para ele, autonomia não é
divisão, mas sim que os excluídos formem parte do Estado. O objetivo era aproximar o
Estado ao indivíduo, ao cidadão e às regiões, dizia, e comentava que nos encontros
territoriais realizados pela Comissão em Santa Cruz lhe tinham dito “estamos cheios da
centralização dos departamentos”. A constituinte Magda Calvimontes defendia que
quem lutou pela autonomia não foi a Meia-Lua, mas os povos indígenas. E pedia pensar
nas pessoas simples e não nos que apenas pensam em ter dinheiro e agora inventam isso
das autonomias departamentais porque não têm lugar no governo central.
Enquanto o MAS redigia seu projeto com as organizações, o técnico da CIDOB
Iván Égido raciocinava que, se o direito à autonomia não fosse bem fundamentado,
171
continuar-se-ia dizendo que a autonomia indígena surge como estratégia do MAS para
fazer buracos na autonomia departamental, quando esta tinha sido a principal bandeira
das marchas de 2000 e 2002. Escutando os diferentes setores camponeses e indígenas,
ficava claro que as autonomias indígenas, assim como a idéia de Estado Plurinacional
tinham diferentes sentidos. Para alguns camponeses era simplesmente consolidar o
poder que tinham sobre o controle de municípios por parte dos sindicatos. Outros
povos do altiplano procuravam, antes, deixar de lado a estrutura municipal de alcaldes e
desenvolver as próprias formas comunitárias de governo, em alguns casos existentes,
como parte da estratégia de reconstituição dos territórios pré-existentes à colônia. Nas
terras baixas, guarayos ou yuracarés procurariam reforçar o autogoverno nas TCO, em
alguns casos com diferentes autonomias no marco de espaços multiétnicos mais amplos.
O debate das autonomias indígenas tinha sido importante nos anos anteriores à
chegada do MAS ao governo, sendo as marchas e encontros entre organizações
acompanhados de propostas políticas de diferentes tipos (ROCHA, 2008; VALENCIA e
ÉGIDO, 2010). Havia, sem dúvida, uma conexão ou reflexo da discussão no México,
onde Diaz Polanco e outros tinham desenvolvido o modelo de “autonomias regionais”,
pensando inicialmente na costa atlântica nicaragüense e incluído na Constituição dos
sandinistas na década de 1980
127
. No México, o tema tinha entrado no debate nacional
quando os zapatistas o incorporaram durante os Acordos de San Andrés em 1996 e os
processos conseqüentes. Em 2003, García Linera tinha apresentado uma proposta de
autonomias indígenas, como sistema combinado com formas diferentes para territórios
de terras baixas, departamentos “mestiços” e o caso que lhe era mais próximo nesse
momento, de uma grande nacionalidade aymara no altiplano com um avançado esquema
127
Diaz Polanco (1996, 1997) tinha desenvolvido a proposta de Autonomias Regionais que foi
posteriormente retomada pela ANIPA (Asamblea Nacional Indígena Plural por la Autonomía). Surgia no
marco da crítica mexicana às políticas indígenas integracionistas e tutelares presentes em todo o
continente. Durante o diálogo de San Andrés, o governo aceita a autonomia indígena, mas sem dar
autogoverno com base territorial (era meramente um reconhecimento declarativo de direitos sem real
autogoverno nem jurisdição própria judicial); depois o governo falaria de “municípios com população
majoritária indígena” e não de autonomia. Essa proposta era etnicista, fragmetadora e não
autonomista, diz Diaz Polanco, além de separar índios de não índios. Os indígenas de Oaxaca não
estavam de acordo com a proposta de autonomia regional e proponham a autonomia a partir da
comunidade. Em 1997 uma tentativa parlamentaria por desenvolver a temática indígena (lei
COCOPA) que conclui negativamente para os povos com a reforma constitucional de 2001. Quando
também a Corte fecha as portas à autonomia, os zapatistas começam uma estratégia de procurar
autonomia sem relação com o Estado (Caracoles y Juntas del Buen Gobierno). O contato entre a
experiência mexicana e a Bolívia ocorre mediante a semelhança das realidades e de pessoas que levam
as discussões de um lado para outro. Ver também Gabriel e López Y Rivas (2005).
172
de autogoverno com instituições próprias e participação em todos os níveis do governo
central (ver GARCÍA LINERA, 2005a).
Em sua proposta de autonomia estatal, García Linera chegava inclusive a propor
que as autonomias étnicas de quéchuas e aymaras tivessem um Executivo e uma
Câmara Legislativa Nacional Indígena com jurisdição territorial urbana e rural contínua
e competências totais em educação, titulação de terras, impostos, recursos naturais não
renováveis, etc. (2003, reeditado em 2005a e 2008a). Félix Patzy havia sido crítico,
afirmando que a autonomia não era na Bolívia uma demanda dos movimentos
indígenas, que por seu caráter majoritário falam mais de uma substituição do poder por
outro projeto societal diferente ao liberalismo, que Patzi articulava com sua proposta de
Sistema Comunal, com empresas comunais na cidade e no campo que substituiriam a
economia capitalista (2004:153)
128
.
Na época da Assembléia, a autonomia tinha sido incorporada pelos camponeses
e indígenas e formava parte da proposta do Pacto de Unidade. Ao mesmo tempo, cada
povo pensava sua autonomia de um modo específico. No caso dos guaranis, seria a
autonomia regional a que tinha sentido como forma de reconhecimento de suas
estruturas organizativas mais amplas, e não as autonomias indígenas de nível menor que
viam como uma possível burocratização. Um técnico dos guaranis explicava, enquanto
se elaborava o projeto, que com a autonomia seria outorgada entidade política aos
“filtros contra o Estado” que eles já tinham construído e que graficava com círculos
concêntricos, a partir das 25 capitanias até a grande Assembléia do Povo Guarani
(APG). Por isso, oponha-se à formação de autonomias indígenas no nível municipal,
que para outros povos poderia ser estratégico. Temiam que as “capitanias” se
transformassem em 25 governos guaranis, fragmentando a nação que para eles deveria
atravessar os limites atuais de Chuquisaca, Santa Cruz e Tarija. Avilio Vaca,
128
Patzy ressalta como dificuldade da proposta de autonomias a difícil delimitação de um território
específico, devido a que os indígenas estão dispersos e, no caso dos quéchuas y aymaras, o fato dos
territórios serem descontínuos, inclusive pelo sistema de andares ecológicos integrados (estudados por
Murra) que o sistema de autonomias não permitiria manter. Patzy afirma que seria mais apropriado
pensar autonomias regionais que envolvam o resto da população não indígena. Mas isto não
solucionaria o problema da colonialidade e o tipo de civilização, dado que tal como é proposta, a
autonomia se refere à administração própria dentro do marco de um Estado nacional capitalista,
escrevia Patzy. Ressaltava também que o enraizamento territorial da cultura impediria que aqueles que
circulam e estão fora do território sejam favorecidos. Sua crítica mais forte é a de que as autonomias
não questionam a economia capitalista e a colonialidade: “dentro das regiões autônomas preveemos a
continuidade da discriminação racial e a exploração capitalista” (2004:153). García Linera a responde de
um modo interessante: considerando a proposta de autonomia como conjuntural y dada pela correlação
de forças.
173
constituinte guarani do MAS explicou que eles tinham pedido 10 mil hectares e que
receberam 60%, razão pela qual a luta agora era para garantir a unidade do território.
O vice-presidente da CIDOB, Lázaro Tacoó, da chiquitania, comentava a
estratégia de sua organização, que diferia da dos guaranis. Eles procurariam chegar à
autonomia regional a partir da soma progressiva de territórios ancestrais juridicamente
reconhecidos e de municípios que tivessem maioria indígena. Assim tinha sido entre os
Guarayos, que somente quando ganharam o poder no município de San Miguel puderam
iniciar o processo de titulação da TCO. Também se poderia aspirar a construir a região
desse modo em Ignácio de Mojos, em Beni, com 170 comunidades indígenas. É um
sonho, dizia, que se não se chega a cumprir, o tentariam realizar mediante outros modos
de luta, talvez em uma nova Assembléia Constituinte dentro de cinco anos, dizia.
Com outra visão, como tinha manifestado nos debates da Comissão Estrutura do
Estado, Guillermo Richter pensava que a autonomia indígena devia se subordinar ao
departamento; e mostrava a favor dessa tese o fato de que em Beni muitos indígenas
tinham votado pela autonomia departamental em 2006. O MAS estava criando uma
contradição falsa entre autonomia indígena e autonomia departamental, dizia. Sua
opinião era que o MAS tinha que compreender que a inclusão dos indígenas no
departamento era o único mecanismo institucional e político para evitar que as
oligarquias do Oriente obtivessem o poder. Dizia: necessitamos os indígenas para evitar
que o poder fique em mãos das oligarquias. A autonomia [departamental] é
inevitável, não querê-la seria uma declaratória de guerra, mas somente com um conceito
avançado de inclusão [sem abandonar o marco do departamento] se pode vencer o
projeto autonômico. Era uma visão que o MAS não compartilhava. A distância que
separava o MAS do acordo com o MNR era também a distância que o separava nos
projetos de texto constitucional.
Na Comissão de Autonomias, o MAS tinha dado a vice-presidência para
Eduardo Yañez, do MNR beniano. Este constituinte, como na Comissão Terra, estava
disposto a elaborar um relatório junto com o MAS. Mas para isso deveriam aproximar
as posições. Entre as idéias expressadas na comissão, as do MNR coincidiam com as de
alguns constituintes urbanos do MAS, sendo os representantes indígenas aos que ficava
mais difícil achar um centro que permitisse pensar em um consenso. Um dirigente
guarani se queixava, em um fórum com convidados externos organizado pela Comissão
de Autonomias: “Evo Morales fala de governo indígena popular, mas quer manter as
províncias, um sistema obsoleto e arcaico que freia a reconstituição”. Queixava-se de
174
como tinham sido divididos em cinco províncias e em cantones e temia que fossem
ainda mais fraturados. Pedia que os constituintes vestissem a camisa da mudança e que
não deixassem as competências para os estatutos dos departamentos, “porque em Tarija
os indígenas que estão antes de Tarija ser parte de Bolívia, agora apenas chegam a
4,5% da população”.
4.3 A indefinibilidade selvagem dos conceitos indígenas.
A oposição dos setores mais preocupados pelo Estado de Direito dentro e fora
do MAS muitas vezes não impugnava as propostas indígenas, mas exigia definição e
explicitação de em que consistiriam as inovações e quais seriam seus limites e
atribuições. Assim, a incorporação do autogoverno indígena e do pluralismo traria
problemas para vários constituintes que viam com preocupação deixar temas sem
definir, o que pode ser visto como fricções vinculadas à incorporação na
institucionalidade do Estado de algo externo. Reunido com o MAS para a elaboração do
projeto, Eduardo Yáñez pedia que seja incorporada a necessidade de estatutos nas
autonomias indígenas como mecanismo para que haja normas escritas, que hoje não
existem. Pensava que os indígenas tinham que desenvolver suas normativas, porque
estava se estabelecendo que as autonomias teriam “qualidade normativa administrativa”
e não poderia ser que algumas legislem e outras não.
Seu comentário apontava a defender os indígenas: se eles não são incluídos,
teremos fracassado, dizia. Continuará sendo “nós e eles”. Concorda que os municípios,
províncias ou departamentos onde os indígenas tenham presença majoritária se
transformem automaticamente em territórios indígenas. Mas com Estatutos escritos.
Porque não pode ser que em alguns territórios se governem de uma forma e em outros
de outra, dizia. Deve existir normas genéricas. Também pedia que se falasse em povos
indígenas e não em nações, porque nação é Bolívia, dizia. No mesmo evento, o
advogado Juan Carlos Urenda, ideólogo das autonomias, dizia que os indígenas eram
divisionistas. Ele estava preocupado com a inclusão na Constituição de “usos e
costumes” e “formas próprias” e pedia que estas fossem esclarecidas com precisão. E
acrescentava o que tinha se convertido na principal demanda da oposição na
Comissão: sem qualidade legislativa para o departamento, não haveria autonomia
129
.
129
Carlos Hugo Molina, que elaborou em 1996 a lei de Participação Popular impulsionada pelo MNR de
Goni, opinou sobre o projeto de informe da comissão, em um fórum organizado com especialistas.
175
O problema da definição aparecia entre os próprios constituintes do MAS da
Comissão de Autonomias. Em reunião de elaboração do relatório, em junho de 2007,
Saúl Ávalos perguntava pelas TCO, que são 27, e que inclui casos de 10 pessoas com
400 hectares, dizia. Não via o projeto com clareza. Pablo Zubieta dizia que as TCO não
seriam automaticamente autônomas e que haveria uma lei para regiões e autonomias
indígenas que definiria o que fazer com as uniões ou subdivisões internas das diferentes
etnias dentro de algumas TCO. O que aconteceria se em uma mesma TCO alguns povos
querem autonomia e outros não, perguntava Saúl, e pedia que não se deixasse em
aberto, para impedir situações de caos. Deveria, para ele, definir-se como artigo na parte
de definições do capítulo de autonomias, e não ficar para a legislação posterior. Pilar
Valencia, do CEJIS, que tinha participado do processo de elaboração da proposta do
Pacto de Unidade, dizia que no Pacto se falou de que não se defina tudo na
Constituição.
Saúl Ávalos pedia que alguém fizesse um gráfico de como ficaria a Bolívia uma
vez reconhecida a autonomia indígena e regional com descontinuidade geográfica. A
autonomia com descontinuidade era uma demanda de povos com uma mesma
identidade que estavam dispersos ou em ilhas, como os Chiquitanos em Santa Cruz.
Pablo Zubieta fez um gráfico para explicar o caso de Oruro, com círculos que
representavam os quatro diferentes grupos de Uros; com um deles não contínuo e mais
distante. As organizações tinham renunciado, para esta Assembléia, procurar o
reconhecimento de entidades territoriais indígenas que superassem os limites
departamentais, mas neste projeto se incluía a idéia de unidade de povos no interior de
um mesmo departamento.
Ávalos percebia como preocupante o fato de que não se tenha definido
tampouco quem poderia aceder à autonomia. À diferença de outros presentes na
reunião, achava que era necessário considerar a porcentagem em censos para definir a
identificação como indígena. Também se preocupava com o tema dos quéchuas e
aymaras em Santa Cruz (por exemplo, no Plan 3000 e na Villa 1 de Mayo) que o
têm estrutura social nem política organizativa como indígenas. Se na Constituição se
Interveio criticando a possibilidade de que qualquer distrito que o decidisse poderia se constituir em
entidade com as mesmas qualidades governativas, com o qual se criariam 39 departamentos. Não
escapa a vocês que este tema pode gerar uma guerra civil, dizia. E opinava que o Convênio 169 da OIT
para povos indígenas e tribais em países independentes está pensado para minorias e não para
maiorias, como são considerados os quéchuas e aymaras em algumas regiões. Para evitar isso, pedia
que as competências sejam definidas e não genéricas.
176
define que seria por autodeterminação, indígena pode ser qualquer um, dizia Saúl. Pedia
maior precisão. Pedia uma lista dos que assim se definem. E reclamava de uma redação
forçada para que estejam todos presentes, na qual a definição não é clara. Onde os
indígenas vão se registrar? Acho que estamos escrevendo algo que não vai ser possível
de se realizar. Se falarmos de território ancestral, onde estão os mapas? E onde estão os
decretos de que estavam e não o estão? Tem muitos discurso e não falamos de
espaços territoriais concretos. Não estamos identificando aqueles que são indígenas.
Pedia não criar falsas expectativas que não iam poder ser concretizadas. Assim não
vamos poder ajudar os indígenas, raciocinava.
Cada pontinho no mapa vai ser um território autônomo? continuava Saúl.
Poderiam ser, respondia Francisco Cordero, do MSM, que opinava que um registro de
comunidades e territórios que Saúl via como necessário seria para depois da
Constituição. Para Saúl, tinha que estar na Constituição, se não, seria algo que não
acaba mais; achava que teria que ser possível desenhar um mapa, e devemos saber do
quê estamos falando quando dizemos nações e povos. Para redigir é necessário saber
quem são, como sabemos quantas províncias tem. Em Santa Cruz sabemos, com base
no censo 2001, que cinco grupos indígenas, mas hoje ninguém sabe fazer um mapa
do Beni e não sabemos quantos povos indígenas existem. Alguém mencionou os mapas
realizados pelo Ministério de Descentralização e um outro, de CONAMAQ. Saúl
perguntava como ajustar a redação ao mapa se existem vários mapas diferentes, isso é o
que queremos? Ele afirmava que o MAS tem o mandato de fazer autonomia indígenas e
que não estava contra isso, mas pedia maior definição.
O pacto tinha proposto que as 36 nações correspondentes ao número de grupos
étnicos da Bolívia tivessem autonomia, dizia Pilar, mas muitas comunidades estavam
em processo de reconstituição dos territórios e algumas ainda não tinham alcançado a
titulação de TCO em dez anos de lei INRA. Se as preocupações de Saúl fossem
estritamente seguidas, deixar-se-ia de fora aos que ainda não têm terras juridicamente,
explicava. Alguém contribuía com as críticas de Xavier Albó ao último censo
apresentadas também no fórum de especialistas em que houve povos não censados e
que se tomou o critério da língua, quando existem aqueles que falam línguas nativas
sem se reconhecer como indígenas e indígenas que o são sem falá-las. Pilar mencionou
a autodeterminação que está nos primeiros dois artigos do Convênio 169 da OIT. Saúl
perguntava de quê se estava falando se tudo era tão confuso: se tudo está um chenco
(desordem, confusão), do quê vocês estão falando? É necessário um reconhecimento
177
preciso. Se o censo não serve, o que vamos fazer? Não podemos nos basear em critérios
individuais. Eu digo que devemos estabelecer aqueles que vamos beneficiar, dizia Saúl.
Saúl Ávalos era representante dos setores profissionais ou de classe média
eleitos pelo MAS em várias circunscrições urbanas do país. Pilar chegou a ficar
vermelha de raiva escutando os raciocínios dele ligados à esquerda mestiça não
indianista, que não provinham do mundo político dela, ligado às reivindicações políticas
indígenas. Nas reuniões da comissão de Autonomia, tinha sido autorizada a participação
de técnicos próximos às organizações, como Pilar, que aproximava os acordos do Pacto
de Unidade aos constituintes. Conversando com os técnicos de organizações como
CONAMAQ, APG e CIDOB, eram claras as diferenças com o MAS, e existia algo de
frustração com o que eles explicavam como distância entre um governo indígena de um
Estado Plurinacional, tal como tinha sido pensado no Pacto de Unidade, e um Estado
não indígena com presidente aymara. A proposta do Pacto de Unidade era a de um
governo por usos e costumes, com outro tipo de democracia e de justiça, comentava um
dos técnicos, e por isso algumas comissões do MAS a tinham deixado de lado. Era
também um Estado com sujeitos coletivos e não individuais. E com outra
institucionalidade, diferente da Ocidental. Essa distância entre o projeto do MAS e o das
organizações era fruto direto da decisão da comissão do Congresso que não aceitou a
proposta do Pacto para a Lei de Convocatória da Assembléia.
Saúl, por outra parte, registrava atentamente a opinião dos opositores de Santa
Cruz e sempre estava escutando as declarações de cada dia em um pequeno rádio.
Citava Juan Carlos Urenda, “que chama de falsos aos povos indígenas”, e perguntava se
havia TCO que não são povos; e o que aconteceria quando fossem cem pessoas. E o que
é território indígena? Não pergunto pelo conceito, do qual podemos escrever 20 páginas.
Nas regiões indígenas muitos poucos territórios ou municípios vão ficar em um
departamento, e a maioria nas terras altas vão cruzar departamentos, Bolívia não vai
mais se organizar em departamentos, mas em departamentos e territórios indígenas...
Isso custa imaginar, dizia, na etapa de comissões da Assembléia. A posição de Saúl na
reunião era a de que, se fosse deixado assim o projeto, dever-se-ia saber que existia
imprecisão. Temos que defender essa proposta, é necessário mostrar e falar de algo real,
concreto e certo: “existe 36 povos”, por exemplo, se existe mais terão que esperar que
sejam reconhecidos, o censo é o único real, oficial. Pablo Zubieta, também constituinte
urbano do MAS, discordava. Dizia não haver imprecisão, que é um processo, e que ele
podia dizer exatamente quais povos indígenas existem em Oruro, e que isso se definiria
178
na comissão de nacionalidades e cidadania. Marcela Revollo também dizia que era um
processo que vai se resolver caminhando.
Em uma reunião convocada pelas organizações indígenas para escutar
explicações dos constituintes do MAS, no momento de definir os relatórios da comissão
e frente à ameaça por parte da CIDOB de uma marcha indígena, Pedro Nuny, vice-
presidente da CIDOB, que seria eleito deputado em dezembro de 2009, dizia que teria
gostado que comparecessem mais constituintes do MAS e que a proposta dos povos
indígenas tinha sido deturpada. Esperava, dizia, que seus aliados, os camponeses, não
sejam cúmplices disso. E se perguntava em voz alta o que o MAS iria fazer sem eles,
“[já] que se declara representante dos povos indígenas mas não nos ouve”. Um dirigente
de CONAMAQ explicava que a questão das autonomias vem de anos e que não
estavam pedindo um favor. É obrigação de vocês inserirem-nas na Carta Magna, dizia
aos constituintes. Temos um presidente indígena, a maioria dos constituintes é indígena,
por que não o fazem? perguntava. Deixamos nossas famílias para vir aqui e queremos
que mude a situação dos últimos anos. Seria muito triste se não. Nós pedimos a
autonomia e a Assembléia Constituinte; e vocês da noite pra manhã mudaram a
proposta. Isso nos muita tristeza, que a proposta dos povos indígenas não ser
inserta.
Um assessor técnico de CONAMAQ expressou que viam o MAS com outro
olhar, com outro trabalho, e que, ainda que dissessem que o MAS é dos povos
indígenas e camponeses, a visão não é mais a mesma do que eles. Sabemos aqueles que
estão com a linha e aqueles que não, diziam as organizações de povos originários das
terras altas. E lamentavam nunca ter podido verdadeiramente consensuar com os
camponeses e colonos, que são do governo, e que têm que defender a posição oficial. Os
dois constituintes indígenas da comissão, Evaristo Payro e Avilio Vaca, estavam
dispostos a apresentar um relatório na comissão separados do resto do MAS e
defenderiam a posição das terras baixas, se fosse necessário, com greve de fome. Os
dois constituintes do MSM do alcalde de La Paz, também tinham um projeto
alternativo. Eram votos, que impediriam o MAS de alcançar a maioria. As sucessivas
tentativas do MAS de elaborar um projeto que, ao mesmo tempo, disputasse com o
Oriente, mas incluísse parte de suas demandas, tinha deixado o MAS no centro, mas
sem o apoio das bordas.
Pelo MAS, da comissão de Autonomias falou Pablo Zubieta. Defendia não ser
possível jogar fora todo o caminho recorrido e que o projeto não tinha sido deturpado.
179
Contava que o primeiro rascunho do projeto tinha 21 artigos, dos quais apenas um, (o
19) falava das autonomias indígenas. Mas agora tinham um projeto com seis artigos
sobre autonomias indígenas e seguiam melhorando o documento. Agora tinham
recebido competências, fiscalização e controle de recursos e é necessário continuar
afinando, dizia. Agora tinha um capítulo para cada autonomia, que antes estavam
diluídas. Temos dez dias de trabalho, verifiquem os documentos, nunca foi dito que não
fossem a ser consolidadas as autonomias indígenas. Pablo Zubieta também disse estar
em contato permanente com a Direção Nacional do MAS, que considera CONAMAQ e
CIDOB aliados e companheiros. Todos os constituintes do Instrumento e os aliados
estarão com a linha, assegurou. O tema, de todos modos, seria alcançar dois terços.
Os dirigentes máximos de CIDOB e CONAMAQ solicitaram que, no dia
seguinte, todos os constituintes do MAS na comissão de autonomias dedicassem uma
hora de seu tempo a escutá-los. Iriam fazer uma contra-proposta ao projeto que
trabalham na comissão, mas daí não se moveriam mais. Se são abandonados, iriam
colocar a boca no trombone, dizia Adolfo Chávez, presidente da CIDOB. Se não
assistem, veremos o que fazer, mas podemos dar uma opção mais. Se for necessário,
vamos fazer uma nota escrita, mas entre irmãos não é necessário. Não é possível que
vocês sejam complicados, juntemos os outros constituintes e convidem também os da
direita, instruia. Falou também dos antepassados, que semearam a sombra grande, de
seus filhos e de anos de luta, com mortes e acidentes nas marchas. Outro dirigente dizia
que às vezes tem muita teoria, são muito declarativos nos artigos quando se necessitaria
ir direto ao que se quer, sem rodeios. As organizações também reclamavam de que Evo
sempre escutava mais os camponeses e pediram que a autonomia indígena fosse
aprovada em plenária para que não fosse a referendo. Se as coisas não melhorarem
chamaremos a atenção daqueles que nunca querem sair mal, advertiam. As discussões
aconteciam simultaneamente com o conflito que observamos na Comissão Terra com o
tema dos recursos e que derivou na convocatória da marcha
130
.
130
No dia seguinte, apresentaram suas reivindicações na sala da comissão: Estado Plurinacional,
Autonomia Indígena, Território, Recursos Naturais, Representação Direta. Antes tinham dado uma
conferência de imprensa e presentearam poleras (camisetas) aos constituintes. Com um duro tom,
disseram que doía escutar (da boca de constituintes do MAS) discursos como o dos políticos de antes.
Magda Calvimontes, do MAS, dizia que o plurinacional estava acima da Constituição, no primeiro artigo,
e que assim era transversal em toda a Constituição, ainda que não estivesse explícito em cada parte.
Saúl Ávalos explicava que no dia anterior não foi à reunião porque o chefe é Zubieta, o da barbinha,
chefe de bancada e interpelava os indígenas: os inimigos não somos s do MAS, nem os do MNR que
estão com a gente. Também expunha, em junho de 2007, ser necessário que a proposta tenha 170
votos, mas que o MAS tem 137, mais quatro. E não todos os massistas estão com tudo. Estão uns dez
180
Defendemos a autonomia indígena, explicava Saúl, mas o queremos fazer de
modo que se alcancem os dois terços. Temos que ter uma visão ampla, nacional e não
dizer “se o meu está aí, o resto não me preocupa”, isso é ruim para os dirigentes. Devem
pensar em Bolívia, prosseguia Ávalos. Entre nós, na casa, podemos nos arrebentar, mas
fora temos de ser apenas um, e eu digo isso com carinho. Rosário Ricaldi, constituinte
tarijenha da comissão, acrescentava: estamos trabalhando com o projeto escrito por
vocês... na história podemos ter tido um processo de mudança, mas o desperdiçamos
por não estarmos juntos. Não podemos ser como aqueles que pedem autonomia
departamental. Vemos nosso interesse, mas devemos ter um horizonte amplo. Lázaro
concluiu a reunião dizendo que já tinham tido muita paciência. Tinham feito o que disse
Saúl: de ser um fora, mas foram vendo como eram defraudados e que constituintes
aliados os negavam. Mencionava o constituinte da Comissão Terra que tinha renegado,
inclusive, das TCO.
Pedro Nuny acrescentou que algumas comissões tomaram a proposta do Pacto
como proposta de texto base, mas outras não. Disse também que se queriam
descolonizar Bolívia, antes era preciso descolonizar a cabeça de alguns constituintes.
Pedro explicava que as autonomias era uma proposta integradora, e que jamais tinham
pensado em fragmentar Bolívia. Mas concluiu reafirmando que não podia se escrever
uma Constituição sem eles: os povos indígenas.
4.4 A autonomia provincial.
Na elaboração do projeto do MAS, internamente, também surgiram problemas
com os que defendiam o nível de autonomia intermediário das províncias, também em
junho de 2007. Alguns constituintes de regiões orientais buscaram inclusive contra-
restar a tentativa do MAS de limitar o poder da autonomia departamental, com a leitura
de que a mesma seria boa para as regiões independentemente das cores políticas dos
departamentos. Rosário Ricaldi, de Tarija, pedia que seus companheiros não fossem
imediatistas e não pensem que nunca o MAS ia governar seus departamentos. O MAS é
chúcaros do MAS. Somos 130 e necessitamos 40. Sem os dois do Ayra, três do MOP, dois de CN, oito de
UM, 18 do MNR, não chegamos aos dois terços. Ontem fiz as contas e cagadingo (por muito pouco)
alcancei dois terços, dizia. Se não o conseguirmos aqui, vai ter referendo. Não é o MAS o inimigo.
Quando nós vemos nos jornais vocês contra o MAS, isso dói. Quando lutaram pela Assembléia, lutaram
contra eles, contra os que agora estão contra o MAS. Saúl dizia que escutava todos e pede que, para
conformar a todos , alcance-se a sabedoria que deus pode dar, e incorporar em todas as demandas.
181
forte, podemos ganhar e estamos nos limitando a nós mesmos, dizia. Magda
Calvimontes, também de Tarija (onde, de fato, não era exagerado pensar que o MAS
ganhasse as eleições), coincidia e lembrava seus companheiros que se trata de
aproximar o governo às pessoas. No mesmo sentido, também opinava que a única forma
de evitar divisões é escutar às províncias. Para ela, a demanda autonômica em Oriente
não se limitava exclusivamente ao pedido de autonomia para os departamentos e devia
chegar às províncias.
Na redação do capítulo se definia a autonomia indígena originária camponesa
como “o exercício do direito ao autogoverno como expressão da livre determinação das
nações e povos indígena originário camponeses”. Magda Calvimontes pedia que a
autodeterminação saísse desse lugar e se deslocasse à parte dos fundamentos ou das
disposições gerais de todo o regime de autonomias. Pensava que os mestiços (e os
departamentos) também tinham direito à autodeterminação. Esta declaração gerou
protestos entre as organizações indígenas e seus técnicos. A livre determinação aplicada
aos departamentos implicaria independências, diziam. Pablo distinguia entre
autodeterminação e livre determinação, que estavam sendo usadas indiferenciadamente.
Avilio Vaca dizia que a autodeterminação devia ser apenas para os indígenas e Iván
Égido explicava que a livre determinação se exerce com as instituições, se não, seriam
Estados dentro de Estados. E não se trata disso, que os indígenas exercem sua livre
determinação no marco do Estado.
Iván Égido notava, não obstante, que no caso dos indígenas, as autonomias
seriam diferentes que para o caso dos departamentos: sem livre determinação seria
integracionismo, dizia, integração dos indígenas ao município. Mas Magda Calvimontes
insistia que é igual tanto para os indígenas como para o departamento, porque em uma
comunidade indígena não são completamente livres. Ela dizia “estamos construindo não
importa o que digam os autores”, citando uma exposição do mexicano Diaz Polanco; e
mencionando que trabalhou no Tribunal Constitucional e é advogada, mas não
acreditava que existisse técnica constitucional para fazer uma Constituição. Pode-se
fazer tudo. É o povo. Deve-se inventar. Não fecharmos em nossas posições, nem dizer
“que fique o documento como eu o apresentei”, solicitava. Tata Victor, autoridade
originária de CONAMAQ, dizia que eles não iriam deixar as cidades: “os da cidade são
nossos filhos e temos que contemplá-los, não deixá-los soltos. Os povos indígenas
originários não podemos deixar a cidade. Ainda que no futuro os departamentos venham
a desaparecer. Se não, parecemos egoístas”. Disse também que o autogoverno tem 35
182
mil anos, e que hoje a reciprocidade que manejávamos está com os cooperativistas
[mineiros], mas não totalmente, e por isso as cooperativas fracassaram”. Também
esclareceu que a livre-determinação não é libertinagem
131
.
A defesa das províncias em voz de alguns constituintes do MAS gerou uma crise
interna. Avilio Vaca, do chaco guarani, dizia que isso é o que quer a direita. Um técnico
de CONAMAQ dizia que o tema merece ser discutido politicamente inclusive com o
irmão Evo, e esclarecia que não seria algo para se decidir nas altas instâncias, mas para
se decidir “com”. Para Marcela Revollo, do MSM de La Paz, as províncias tinham sido
criadas como processo de desconcentração da fazenda e não respondiam a critérios
culturais ou econômicos e sim aos interesses dos latifundiários. Coincidia com as
organizações indígenas que viam no projeto de reterritorialização as províncias como
um obstáculo colonial. Pensava que as províncias anulariam as regiões, que eram a base
para pensar uma nova territorialidade, inclusive para além dos departamentos. Para
Marcela, o que tinha que ser fomentada era a união de províncias para formar regiões e
não a divisão de regiões, dando autonomia às províncias. Os técnicos das organizações
indígenas diziam que as províncias invisibilizavam a questão indígena e chamavam a
atenção do risco de que em pouco tempo haja 112 províncias autônomas
132
.
A bancada do MAS em Autonomias se encontrava sem conseguir fechar um
projeto que obtivesse a maioria. Se incluíssem as províncias autônomas, não a
assinariam Marcela Revollo e Francisco Cordero, do MSM, Avilio Vaca, Evaristo
Payro que apresentava a proposta de CONAMAQ e talvez mais alguns. Eduardo Yáñez,
aliado do MNR, Saúl Ávalos, Magda Calvimontes e três constituintes mais não estavam
de acordo com um relatório que não as incluísse. O constituinte Oña, do MBL, aliado
inicial do MAS, tinha se unido à oposição pelo tema capitaliae em nenhum dos dois
131
A ambigüidade do termo livre determinação não é resolvida no convênio da OIT e em outros tratados
internacionais. Em uma conversação em São Paulo, Rodolfo Stavenhagen, que participou de sua
elaboração, menciona que a inclusão em um convênio anterior surge pensando nos povos da África
ainda coloniais, aos quais a ONU queria outorgar instrumentos para que conseguissem sua
independência. A postulada autodeterminação, outorgada por vários países assinantes do tratado aos
povos indígenas, entra em conflito quando os Estados procuram dar concessões de exploração de
recursos naturais a empresas ou quando as terras indígenas passam a ser atrativas por algum motivo.
Ver Stavenhagen (2010).
132
Isto é fomentar constitucionalmente a fragmentação de Bolívia, diziam, com argumentos parecidos
aos utilizadas pela Meia-Lua para criticar a autonomia indígena. A tendência na América Latina é criar
regiões, dizia um técnico. Também a FAM (Federação de Associações Municipais de Bolívia, FAM-Bolívia.
. http://www.fam.bo/portal/) estava contra a autonomia para as províncias, porque consideravam que
com elas a autonomia municipal se veria debilitada. Por tal motivo, apesar de uma boa relação inicial, a
enviada da FAM à assembléia deixou de participar nas reuniões fechadas do MAS para a elaboração do
projeto.
183
cenários o MAS podia apresentar seu relatório. Apenas com um acordo interno o MAS
poderia se impor por um voto, deixando em segundo lugar o relatório de PODEMOS.
O problema das províncias tinha que ver com poucos casos no país, como o
Chaco e a província Cordillera e Vaca Diez no Beni, onde a “identidade provincial” era
forte. O argumento de Saúl, presidente da Comissão, eram os votos no referendo que se
perderiam nessas regiões se não se dava a autonomia. Saúl dizia que deveria primar a
estratégia e para que em Oriente haja simpatia tem que dizer província, assim como
região no Ocidente. Qual é a diferença com a proposta da direita? Perguntava-lhe um
técnico que via em ambos projetos a província descentralizada. Saúl diz que a direita
chama as coisas da maneira que as pessoas gostam, e que ele pensava por um milhão e
meio da cidade enquanto o técnico pelas organizações indígenas. Propunha que se
denominassem províncias em Oriente e regiões em Ocidente, não se preocupava pelo
MSM, que iria manter seu apoio no final das contas, mas com dois constituintes
indígenas que tinham dito que nem mortos aprovariam o projeto do MAS. Magda tinha
consultas com dirigentes do Chaco para ver se aceitavam mudar o termo província para
adotar o de região. Outros manifestavam no MAS que os indígenas pediam muito para o
pouco peso eleitoral que tinham.
Finalmente, a solução foi criar um nível provincial-regional, que contemplaria
os diferentes casos, “por estratégia”. Evo Morales tinha se manifestado a favor de que as
províncias e departamentos se mantivessem, e disse “vamos -los por muito tempo”.
Para um técnico das organizações indígenas, isso significava uma camisa de força,
aceita em virtude da procura dos dois terços. A solução era, como muitas outras neste
projeto de Constituição, aberta e indefinida. A discussão passou a ser se seria
“provincial e regional ou “provincial ou regional”. Ficou “provincial regional”, como
“indígena originário campones”, sem separação. Na redação, Francisco pediu eliminar a
especificação de que este nível estava entre o departamento e o município, para que no
futuro possa ser a base para um novo departamento. Os constituintes e técnicos
pensavam também em como fazer para que não se deixe à margem uma província com
história comum fora de uma região, para que não isolem nenhuma. Yáñez dizia que se
esperem dois anos, para que não seja um chenco.
Pensava-se também se usariam o termo Governador, Chefe de Governo “como
em Buenos Aires”, Prefecto... Governador é muito... Continuariam vendo. As
autonomias indígenas se incluiriam, mas não exatamente como as organizações pediam,
debater-se-ia em fazer com que aquelas sejam circunscritas aos atuais municípios ou
184
TCOs. Isto freava os projetos de reconstituição, mas seria algo para começar. A inclusão
das autonomias, de fato, aliviava a tensão entre indígenas e MAS em Sucre. Adolfo
Mendoza explicava a diferença entre autonomia e descentralização, ainda, notando que
era algo que algumas pessoas confundiam. A descentralização vem de Banzer, dizia, e
autonomia é autogoverno. Uma autonomia se vinculava com a discussão dos direitos
indígenas a nível internacional, estava sendo desenvolvida pelos povos indígenas em
todo o continente e partia dos próprios povos e nações; a descentralização era uma
delegação que partida do poder central às outras unidades. O debate se vinculava à Lei
de Participação Popular de 1996, da qual o único resgatável era que situava como
sujeito às organizações “de baixo”, dizia Adolfo. E pedia acrescentar algo para que
quando a TCO se transforme em autonomia não se perca a propriedade coletiva. Tinham
que ter cuidado contra os próprios dirigentes e o corporativismo do MAS, que vai tentar
ocupar espaços das autonomias, observava outro técnico.
5 Comissão Visão de País e as formas de alcançar um novo centro.
Do relatório de maioria do MAS na comissão de Visão País sairia o coração do
Estado Plurinacional com sua caracterização; os princípios e valores; a inclusão de
símbolos pátrios; reconhecimento de línguas e crenças espirituais; e outras importantes
definições como a declaração do autogoverno para os povos e nações indígenas
preexistentes à colônia. O MAS trabalhou sobre a base do projeto apresentado pelas
organizações sociais no Pacto de Unidade. O relatório desta comissão era, então,
bastante mais ousado que o tom geral dos relatórios do MAS no resto da Assembléia.
Tinha-se avançado na proposta de plurinacionalidade como em nenhuma outra
comissão. Tudo isto fazia destas linhas da Constituição, talvez, o momento mais
katarista do governo de Evo Morales. Os setores indígenas procurariam
“transversalizar” o plurinacional ao resto dos relatórios, e se encontrariam com limites
no próprio MAS e na procura de consenso com a oposição. Mas nesta comissão não
haveria queixas das organizações, que tinham assistido como observadores e aprovavam
o trabalho sem reparos.
Por isso mesmo, a oposição era particularmente ofensiva na crítica deste
relatório. Enquanto a Comissão avançava com seu trabalho, o constituinte de
PODEMOS da Comissão, Gamal Saham, opinava que o MAS quer com o Estado
Plurinacional Comunitário maquiar um Estado comunista com republiquetas que seriam
185
como soviets de nações, com o soviet maior do Poder Social
133
. Opinava que isto levaria
ao enfrentamento entre bolivianos e bolivianas, antes que a um Estado nacional com
democracia e paz. O projeto do MAS era para ele político e totalitário de quem não quer
concertar, razão pela qual não via sentido em prolongar a Assembléia. E afirmava:
queremos um governo para todos e não um novo colonialismo aymara sobre os vales.
Em resumo, definia o governo de Morales e a proposta do MAS como a de um governo
com características “comunistas, indígenas e totalitárias”. Nas reuniões de Comissão, os
constituintes de PODEMOS continuavam com as críticas. Para Gamarra, o Estado
Plurinacional é uma idéia etarra para dividir o país. Menciona assessores espanhóis do
MAS. Zulema Arza, constituinte de PODEMOS pelo Beni, agregava que não querem
ser escravos de Cuba e Venezuela, apontando de modo equívoco a mim, o antropólogo,
enquanto denunciava a presença de assessores estrangeiros do MAS. Manfredo Bravo,
também de PODEMOS, insistiu em que o projeto do MAS deixa uma parte de
bolivianos fora.
Jorge Lazarte participava das reuniões, ainda que não fosse autorizado seu voto
quando tentou se integrar depois de renunciar á Diretoria. Mas tinha direito a voz; e
dizia que o MAS estava brincando de aprendiz de feiticeiro por combinar o
Plurinacional com o Unitário, para ele uma contradição explosiva. Lazarte dizia que é
uma experimentação, porque nenhum país no mundo é assim e que com isso se despreza
o Estado de Direito, parte inerente do Estado Moderno, para por limites ao poder. Para
Lazarte, não é possível ser democrata sem respeitar o Estado de Direito. Por esta época,
e em especial nesta comissão, PODEMOS procurava se embandeirar atrás do “Estado
de Direito”, contra o Estado Plurinacional. Meses depois, o MAS o incorporaria,
acrescentando o Estado Social de Direito, na definição do caráter do Estado.
Na apresentação de relatórios na Comissão, Lazarte fundamentou o projeto do
PODEMOS. Explicava que, ainda que não estivesse de forma explícita, quando no
projeto se fala de “nossas tradições”, os povos indígenas estavam sendo reconhecidos.
Mas enfatizava em não fugir dos desafios da modernidade e em enfrentar os desafios do
mundo atual reconhecendo as tradições universais. No projeto se falava de Estado
Constitucional de Direito, Democrático Social; falava-se de interculturalidade,
liberdade, igualdade, justiça com o castelhano como único idioma oficial para todos.
Jorge Lazarte também afirmava que, pela unidade do país, o Estado não pode se basear
133
Entrevista televisiva em estúdio, Canal Gigavisión, 22 de junho 2007.
186
na diferença étnica como o faziam Franco e Hitler. Na fundamentação do projeto de
relatório por minoria criticava ainda a idéia de nações indígenas, e dizia “não existe
raça aymara ou quéchua, estão misturadas e o chapéu e a pollera vêm dos espanhóis”.
O constituinte Raúl Prada tomou a palavra em uma reunião que as organizações
do Pacto de Unidade solicitaram a membros do MAS e aliados na Comissão. Antes,
Isaac Ávalos, executivo da CSUTCB de Santa Cruz, disse que “não é possível excluir o
Estado Plurinacional porque aí estamos todos, os 37 povos”; pediu aos constituintes que
explicassem o que é o Estado Plurinacional para que todos os dirigentes presentes
escutassem e disse também que sua organização faria uma propaganda televisiva sobre
o tema. Raúl Prada disse aos dirigentes que o Estado Plurinacional era a aposta mais
importante do Pacto de Unidade e das organizações. É o reconhecimento das
comunidades originárias e da preexistência, que para Prada se vinculava com o eixo da
descolonização. Descolonizar significa reconhecer nações, suas formas políticas,
institucionais e sociais, além de seus idiomas, incorporando também populações
camponesas mestiças como chapacos e vallunos. Não se excluía ninguém e não se faria,
como na revolução de 52, um Estado mestiço que desconhece indígenas. Nesta
proposta, continuava Prada, a matriz principal é descolonizar o Estado. Pedia que fosse
corrigida a doença deste Estado que se crê Estado Nação moderno, unitário e universal,
mas que desconhece a realidade, querendo construir a unidade desconhecendo a
diversidade. O estado Plurinacional corrige esse erro, e converte em Estado o que somos
realmente: as culturas em forma de Estado, continuava Prada.
Nesta direção, a comissão de Visão de País tinha organizado semanas atrás um
seminário sobre descolonização, com amautas indígenas. Em sua argumentação, Raúl
Prada resgatou a contribuição de Boaventura de Souza Santos, com sua idéia de Estados
experimentais, próprios, pós-liberais, pós-modernos, a partir de uma nova forma de
entender a interculturalidade. E criticou Franz Barrios e Xavier Albó, que ele associava
com o Plurinacional liberal, como tinha discutido com eles na recente apresentação de
um livro no auditório do Arquivo Nacional sobre o Estado Plurinacional editado pelo
PNUD (Albó y Barrios 2007). Prada falava de superar os exemplos de Estados
Plurinacionais liberais da Europa, como Suíça, Espanha e também África do Sul, para
superar o liberal e o colonialismo interno. Trata-se de elevar nossa complexidade a
formas de representação que fossem além do voto individual e de impulsionar a
reterritorialização. O Estado Plurinacional é reconhecer instituições com reciprocidade,
como o ayllu e a tenta, dizia.
187
No debate da apresentação do livro, Albó esclarecia que tinham tratado de
procurar uma proposta operativa, refutando críticas como que o Estado Plurinacional
seria Estado dentro de Estado, mas que via difícil reconstruir o tawantinsuyu, “não sei o
que diriam em Chile, Peru e Equador, mas suponho que seria um pouco complicado”.
Franz Barrios disse que tentaram ir “um pouco além do liberalismo clássico”, como ao
falar de direitos coletivos, mas que Raúl tinha razão e não abandonam totalmente o
Estado liberal, que via como um Estado que tem coisas a serem aproveitadas. Pensava
que não era possível falar de viabilidade do intercultural sem liberalismo, e não se pode
negar o direito de apelação, que é uma idéia européia liberal. Mas que era necessário
reformar o liberalismo, e pensava que sim era possível proteger a decisão de juízes
originários sem que a justiça ordinária revise suas decisões, assim como uma
composição intercultural do tribunal. Mas Barrios dizia duvidar se realmente os
indígenas querem a reconstituição do território. O trabalho de encontro entre Albó e
Barrios era um diálogo entre a postura intercultural e a postura liberal e podia ser visto
como outra procura pelo centro. Era um centro com muito liberalismo para a discussão
que acontecia em Visão País, mas terminaria sendo mais próxima à posição do MAS na
Assembléia para obter os dois terços.
No mesmo debate, também interveio Félix Cárdenas, ex-executivo da CSUTCB
e que era presidente da comissão Visão País (tinha sido eleito nas listas de Concertação
Nacional, mas seu partido era Pátria Insurgente). Disse que na nova Constituição não se
tratava de direitos de criollos e mestiços, que os tinham, mas de incluir os que não
saíram na foto em 1826. Duvidava da viabilidade de “um novo pacto social”, porque via
que existia igualdade de direitos formais, mas a cor da pele e o sobrenome definem a
ascensão e a queda social. Procurava uma transformação mais radical do que via como
continuidade colonial. Diferenciava-se, no entanto, de toda idéia de luta de índio contra
branco, como em Tupac Katari; resgatando a Zárate Willka, “com respeito de índios a
vizinhos e de vizinhos a indígenas”. Dizia que a idéia de autonomias estava [no
final do século XIX, ver capítulo seguinte] com as mesmas bandeiras de agora. A
descolonização, por tanto, era um trabalho não apenas para indígenas, dizia Félix, que
em 2010 seria nomeado vice-ministro de descolonização por Evo Morales, pai do filho
de sua esposa. Dizia também que o intercultural não é igual ao plurinacional, como
alguns pensavam, e que sem plurinacionalidade não poderia haver interculturalidade.
Na conclusão da reunião que os constituintes tinham com as organizações
sociais, Raúl Prada mencionou que na comissão assumiram a proposta do Pacto e que
188
agora tinham que construir entre todos um sentido comum e uma fundamentação
teórica, porque o projeto não apenas deveria ser defendido nas plenárias mas também
na sociedade. Para isso, pedia aos dirigentes que ajudassem, e pedia também uma
reflexão coletiva sobre as conseqüências teóricas e políticas do que os constituintes
tinham assumido na comissão. Referir-se-ia à votação do relatório de Comissão do dia 6
de junho de 2007, no qual os constituintes da maioria tinham decidido se desdobrar para
excluir o relatório de minoria elaborado pelos quatro constituintes de PODEMOS e do
MNR, que nesta comissão estava alinhado sem bemóis com PODEMOS. Os
constituintes do MSM, que tinham sido eleitos nas listas do MAS pela aliança entre os
dois partidos, apoiaram o projeto de relatório de comissão proposto por Félix Cárdenas.
Dessa forma, passavam à fase de plenárias dois projetos afins, com a proposta de Estado
Plurinacional (com 6 votos do MAS) e do Estado Multinacional (com 5 votos).
A exclusão do relatório de PODEMOS converteu a comissão Visão País no
epicentro da atenção na Assembléia, em um momento em que se fechavam os relatórios
de todas as comissões. O projeto da oposição de um Estado Social de Direito ficava
fora. Com esta medida, buscava-se neutralizar o que achavam seria a estratégia da
oposição, fechada ao consenso, de construir com os relatórios de minoria de todas as
comissões uma Constituição alternativa para submetê-la a referendo, evitando que o
MAS conseguisse os dois terços. O referendo impulsionado por PODEMOS, esperava-
se, incluiria temas polêmicos como a volta dos poderes para Sucre (“capitalia”), além de
outros temas sensíveis, como religião e símbolos pátrios que, qualquer que fosse o
resultado da votação, “poderia dividir o país”. Para os constituintes de Visão País,
impedir a chegada a plenárias da “cabeça” da virtual Constituição de PODEMOS,
evitava esse cenário.
A resposta da oposição foi condicionar sua participação na Assembléia, ou
qualquer negociação em busca de consenso, à aceitação do relatório. Além disso, um
grupo de constituintes de PODEMOS de diferentes Comissões decidiu invadir a sala da
comissão Visão País com gritos e golpes, para se manifestar. Longe do consenso
necessário para a aprovação final da Constituição, a comissão estava partida no meio e
com duas posições politicamente opostas. Do lado das organizações sociais, alguns
falavam em apoiar a medida com mobilização. Na reunião pedida pelas organizações,
Félix Cárdenas foi direto e pediu ao Pacto de Unidade que dissesse aos constituintes da
comissão o que deveriam fazer. Defendeu a medida tomada na Constituição, como
forma de evitar que PODEMOS “introduzisse a sua Constituição toda”, medida pela
189
qual “até agora ficam chorando”. Também advertiu que em outras comissões estão
tentando meter o que não entrou em Visão País. E criticou o vice-presidente que, “diz
que devemos fazer consensos quando com a direita não para pactuar”. Disse que os
pactos são entre pessoas iguais e que apenas pode ser feito um pacto se são aceitos o
Estado Plurinacional e as Autonomias Indígenas.
Todo Estado surge de um pacto, mas na comissão Visão de País estavam
discutindo se nesse pacto devia participar PODEMOS, que nesse momento se negava a
consensuar com o MAS. Por isso, depois de terem sido chamados a reverter a medida
por parte da Direção do MAS no governo, consultavam às organizações e pedia “que o
Pacto de Unidade nos diga se incluímos PODEMOS”. Félix Cárdenas esclarecia que
nenhum dos constituintes mudaria o voto, mas que existe a possibilidade de que o
relatório de PODEMOS seja válido retirando o relatório de CN-Pátria Insurgente, que,
com votos do MSM, tinha colocado de lado o do PODEMOS. Outra possibilidade era
permitir a incorporação de Jorge Lazarte, que a maioria da comissão estava bloqueando.
Se ele votasse, junto com outro constituinte do MAS que deveria ingressar para
respeitar a proporcionalidade, o relatório de PODEMOS ficaria empatado com o
relatório proposto por CN-Patria Insurgente e poderiam assim entrar os três relatórios.
Avaliavam-se também outras soluções formais, e alguns queriam convencer Miguel
Peña, do povo mojeño, que saísse da Diretoria na qual ele se entediava para participar
na comissão, habilitando também o voto de Jorge Lazarte, e ganhando assim uma voz
de terras baixas para a discussão em plenárias.
Paulo Rojas, de Vallegrande e do MSM, pequeno produtor rural, lamentou que
não seja apenas a direita a que questiona o relatório e o Estado Plurinacional. Tudo o
que eles fazem, reclamava, “a culpa é de Visão País”, apontando alguns constituintes do
MAS. Paulo tinha organizado reuniões com membros de sua comissão e técnicos para
tentar pensar a fundamentação e a “transversalização” do plurinacional nos relatórios do
resto das comissões, mas as reuniões não tiveram muito sucesso. Muitos comentavam,
nesta época, que o Plurinacional estava entrando meramente como algo “simbólico” ou
“declarativo”. Por isso, Paulo reclamava que faltava um lineamento da Diretoria para o
Estado Plurinacional, e pedia “que saia a decisão de se reunir com toda a bancada para
defender o Estado Plurinacional”. Dizia que alguns o apoiavam individualmente, mas
que necessitava o apoio de toda bancada.
Talvez haja dois terços em “deveres e direitos”, mas não no Estado
Plurinacional, dizia Paulo Rojas, e se não Estado Plurinacional, para quê viemos?
190
Propôs que nas manifestações a serem feitas em La Paz para contra-restar o pedido de
Sucre por ser novamente sede dos poderes se diga e se coloquem nas paredes que Sucre
é capital da Nação Camba e La Paz do Estado Plurinacional. Concluiu também dizendo
aos dirigentes do pacto que fariam o que eles dissessem: se dizem que nos matemos
aqui dentro, o faremos, mas necessitamos apoio moral. Se os do MAS querem que entre
o relatório de PODEMOS, que o digam na cara de vocês, dizia às organizações. E pedia
apoio do Pacto: não podemos brigar sozinhos, necessitamos aliados; o Estado
Plurinacional é o ajayu, o espírito do país. Se não, o que vamos dizer quando
voltarmos? “a direta nos enganou” “somos babacas”? Não, não vamos poder dizer isso,
temos que assumir essa responsabilidade, dirigidos por vocês, refletia. E pedia:
consultem com suas comunidades; como em outro momento da história do país foram
os mineiros, agora somos nós camponeses e indígenas que temos que lutar contra a
oligarquia.
José Lino Jaramillo, outro constituinte do MAS que foi da Juventude Comunista
e que muito jovem tentou entrar na guerrilha do Che, mas não o deixaram, pedia que se
convocassem reuniões com as autoridades e com a bancada do MAS; onde o presidente
poderia estar, melhor. Os líderes sociais não responderam diretamente à consulta.
Justino, de CONAMAQ, explicou que tinha reuniões previstas com a Diretoria da
Assembléia e com a bancada do MAS, para que digam seus pontos de vista. Agradeceu
a informação e por responder à chamada das organizações, mas disse que tinha falado
com o presidente que era necessário dar uma bronca. Fidel Surco, executivo dos
colonizadores, criticou os constituintes que não trabalhavam muito: “é preciso trabalhar
de forma continua [por tiempo y matéria], mas na sexta-feira vão embora”. Disse
também que alguns constituintes estão se desmarcando e que “é preciso ver quem está
conosco”. Para isso, o presidente tinha pedido que as organizações se reunissem com os
assembleistas. Outro Tata autoridade de CONAMAQ manifestou descontentamento
com o trabalho dos constituintes: “falam de incluir uma coisa e depois a retiram” e
criticou a falta de capacidade de negociação e persuasão do MAS com a oposição. Disse
que o Estado Plurinacional está misturando açúcar com areia, com a combinação de
caráter Unitário e Plurinacional Comunitário do Estado. Criticou o governo Unitário por
ser igual ao atual, “com um líder supremo” e recomendou retirá-lo. E concluiu pedindo
não largar o governo indígena que se tinha conquistado.
Com respeito à decisão de Visão País de um avanço mais radical que excluísse
PODEMOS, abria-se a possibilidade que um setor descontente, com o apoio das
191
organizações indígenas também descontentes, criasse um bloco independente e se
afastassem da vontade concertadora do governo. Poderia ser este setor o que distanciara
o MAS dos dois terços, e não os setores de centro como o MNR ou UN que o MAS
procurava seduzir. Os constituintes mais críticos estavam desapontados com as posições
do MAS, que tinham motivado as mobilizações de terras baixas e também com os
companheiros que procuravam fazer esforços às custas do projeto para conseguir se
aproximar à oposição. Mas a verdade é que esta saída testemunhal de esquerda e
indígena não teria sido acompanhada sequer pelos aproximadamente 15 constituintes
que vinham de organizações indígenas de terras altas e baixas. Foi um mérito do MAS,
não obstante, manter todos juntos sem rupturas. A hipótese de uma ruptura não garantia
maior possibilidade de avançar com o Estado Plurinacional e outras demandas, às quais,
depois de tudo, o MAS não tinha fechado totalmente as portas. Como Isaac Ávalos
esclareceu na reunião com Visão País, o governo respeitava a plurinacionalidade e para
as organizações era mais o que se ganhava com a Constituição do MAS, que com uma
magra dissidência.
Por outra parte, a figura de Evo unificava essa aliança, com uma popularidade
que inclusive chegava às bases de CONAMQ e CIDOB, quando não a seus quadros
dirigentes e a seus técnicos, e com a ameaça da Meia-Lua sobre o governo indígena e
popular. O recado dos constituintes do Pacto de Unidade, no sentido de que eles dizem
“o que fazer”, se diluiu no transcurso dos acontecimentos como uma via morta de
possíveis rumos deste processo constituinte. Em conversação pessoal, enquanto a
questão da comissão se definia, o Chato Prada me disse que era cético e que acreditava
que seu papel neste processo deveria ter sido o de ficar de fora. Raúl reclamava de seu
lugar atual, como constituinte, por considerar que fracassou em sua tentativa de ser
crítico desde dentro. Agora via que isso não era possível e também não via um avanço
decidido na reconstituição de nações e do Estado Plurinacional, via cooptação,
“refluxo” das organizações e, do lado do governo, um projeto limitado ao Estado de
Bem-estar, presente na incorporação do caráter “social” na definição do tipo de Estado
do primeiro artigo. Raúl Prada, nesse momento, não sabia responder por que, se a
maioria dos constituintes do MAS são anti-capitalistas, não faziam um projeto de
Constituição com esse caráter, mas via que no âmbito plebeu dos movimentos
continuava o processo e que o projeto do Pacto de Unidade tinha salvado a Assembléia,
sem sua proposta não teríamos nada, dizia.
192
García Linera tinha tido certa participação no processo constituinte desde o
começo. Esteve a cargo da negociação da Lei de Convocatória e na apresentação de
listas na Corte Eleitoral que confeccionou junto com Evo Morales. Também com
reuniões políticas com os constituintes, conduzindo a procura da maioria simples na
discussão do regulamento. Era o responsável político da Assembléia e chegava desde La
Paz como delegado do presidente e chefe do MAS. O trabalho das comissões se
desenvolveu com independência até o final, para além das consultas. E no dia 15 de
junho, próximo à data final de entrega, o vice-presidente chegou a Sucre para se reunir
com os constituintes do MAS em conjunto, e depois de forma separada com as
comissões para tratar temas conflitantes e contribuir na tomada de decisões políticas.
Havia vozes que protestavam, por baixo dos panos, pelo que parecia ser uma tentativa
de controlar a Assembléia, mas também se escutava o pedido de sua presença por parte
de constituintes que sentiam que as decisões mais difíceis não estavam podendo ser
tomadas por eles. Os críticos simplificavam a visita como uma simples ingerência, mas
algumas comissões demonstraram poder tomar decisões diferentes às recomendadas
pelo governo. Sua presença era um fator mais na redação do texto constitucional.
Numa reunião à que assisti, antes de abrir um diálogo com os constituintes,
afirmou que a Constituição deve ser revolucionária, mas duradoura. Para isso,
recomendava retirar a base social dos opositores e abarcar, assim, de 70 a 80% dos
bolivianos. Com um grupo de pessoas é impossível dialogar e devem ser deixadas de
lado, porque não é possível negociar com ladrões e traficantes; por isso alguns temas
vão a referendo, dizia. Mas se deve dialogar com setores que têm base social e
incorporar suas demandas para que aconteça que se chegue à plenária com maioria, mas
ainda assim perfurem o espírito da Constituição. Recomendo trabalhar em comissões de
essa forma: “não demos base social para eles”. Se conseguirmos isso, a Constituição vai
ser imparável, prosseguia. Como não têm maioria, procuram confrontação com o
discurso de dividir o país. Quando pressionam com a capitalia nas comissões,
conseguem que nós, de La Paz e de Sucre, nos enfrentemos, querem outra guerra civil?
Devemos dizer que esses são os divisionistas e os violentos. Garantamos a unidade do
54%, conquistemos 30% e isolemos 10%. Se fizermos isso, teremos a estabilidade do
governo e haverá continuidade do processo de mudança. Somos constituintes que
viemos dos movimentos sociais, esse é nosso núcleo irrenunciável, mas devemos ganhar
o resto. Não podemos dar esse 30% flutuante para os opositores, eram suas palavras
iniciais.
193
O conflito com Visão País era o principal tema de conjuntura e foi o que abriu o
diálogo na reunião entre o vice-presidente, a Diretoria da Assembléia e os constituintes
no salão principal da prefeitura de Chuquisaca. Mario Orellana, do MSM, falou pela
Comissão em questão e disse que eram necessárias decisões políticas a serem tomadas
entre todos (nós, o senhor, e os movimentos sociais”). Apresentou a estratégia como de
bloqueio do projeto de PODEMOS para impedir que consolidassem sua Constituição e
introduzissem sua visão de país. Pedia, então, uma decisão política sobre se seria
“mantido ou liberado o bloqueio”. O risco de liberá-lo seria que haja duas constituições,
dizia, uma das organizações e outra da oposição. Se fosse esse o caso, considerava que
não seria necessário ampliar a Assembléia para além do dia 6 de agosto, e que era
necessário desafiá-los para ir o quanto antes ao referendo. Outros constituintes
discordavam. Saúl Ávalos, de Autonomia, considerava que o relatório de PODEMOS
não ficaria fora de plenária, apesar de ter sido excluído na comissão. Por acaso vamos
calar a boca deles para que não opinem? Perguntava.
Da comissão, José Lino Jaramillo esclareceu que tentaram consensuar, mas a
oposição não tinha querido; e Paulo Rojas aclarou que se tratava de descabeçar seu
projeto de Constituição e não de deixá-los sem voz. Renato Bustamante, da comissão
Outros Órgãos do Estado, recordou a disputa pelo regulamento em que se dizia que a
oposição iria se retirar, mas chamaram cabidos e conseguiram aprovar sua proposta.
Refletiu que não seria uma Constituição revolucionária, mas apenas algumas reformas.
Raúl Prada destacou que tinham apresentado um rascunho de Constituição
revolucionária: Plurinacional, reconhecendo a preexistência de nações e povos, com
uma mudança na representação e importantes candidatos. E dizia que era necessário
sustentá-la em plenária, mas também no país. Defendeu o que aconteceu em Visão País
como sinal para mostrar que a proposta da minoria não existia, que são uma minoria da
minoria. Mas destacou que não podem retirar a voz, que acha que isso seja seguro e que
não se deve ter medo à voz da oposição. Melhor do que isso, prosseguia, deve-se deixar
que falem para que se veja que não tem mais nada a dizer.
Emiliana, mulher de pollera, também lembrou a disputa pelo regulamente e
pediu que não acontecesse a mesma coisa. Perguntava também o quê iriam fazer em
plenárias se não sabem o que é o Estado Plurinacional, ainda que reconheceu que as
organizações estavam felizes porque se votou pelo mesmo. Magda Calvimontes,
advogada tarijenha, interveio dizendo que tinham que se apaixonar pelo projeto de
Constituição, pediu que falassem uma mesma linguagem, porque viram nas comissões
194
mistas que entendiam coisas diferentes. Também considerou que muitos não entendiam
o que é o Estado Plurinacional, incluindo ela mesma. E sobre o conflito de Visão País,
pediu que se respeitasse a decisão da Diretoria, que tinha devolvido o relatório à
comissão com observações menores para que modificassem a medida. Loyola Guzmán
dizia: não fizemos a revolução para impor nossa posição; e recomendava esperar
domingo para ver quantas pessoas mobiliza a oposição com a convocação às ruas que
tinha feito. Pablo Zubieta, de Autonomias, advertia contra o núcleo duro que quer
destruir a Assembléia e chamava a atenção para o risco de dois pacotes de artigos em
plenárias. Notava também que, depois do que aconteceu em Visão País, outras
comissões começaram a se desestruturar.
Rosalía del Villar, de Estrutura do Estado fazia uma avaliação diferente e notava
que Carlos Goitia, de PODEMOS, “acérrimo inimigo”, tinha dito que não concorda,
mas que aprovava o Estado Plurinacional, o que mostraria o consenso ser possível.
Teodora, constituinte de pollera da comissão de Desenvolvimento Econômico, notava
que se antes a oposição queria consensuar, da última semana para cá agredia, e a
consigna era a de fazer fracassar a Assembléia e dizer que esfora da lei. Disse que
querendo consensuar, não podem estar fazendo provocações artigo por artigo, e
mencionou que na semana anterior Tuto Quiroga, chefe do PODEMOS, tinha se
reunido com os constituintes dessa agrupação em Sucre; e depois dessa reunião, em
várias comissões se comentava um endurecimento das posições de PODEMOS.
Falou também o Doutor Gutiérrez Sardán, ex-líder da Falange Boliviana e
assessor direto de Evo. Disse que não tinham que aprovar uma Constituição mediante
manobras, “porque um constituinte foi ao banheiro e aí aprovamos”. Isto não nos mostra
como pais da pátria, dizia. E criticou Félix Cárdenas, presidente de Visão País, a quem
muitos no MAS responsabilizavam pela medida tomada, apesar de que na verdade foi
uma decisão coletiva da comissão. Sardán dizia que é um companheiro de luta, mas
queria estar liderando o movimento camponês e hoje está muito diminuído. Por isso,
dizia Sardán, ele não perde nada. E opinou que, ainda havendo um pouco de risco de
que apresentem uma Constituição, temos de respeitar o regulamento e o artigo 26 que
diz que os relatórios se aprovam por maioria absoluta.
Também discorreu Roberto Aguilar, vice-presidente da Assembléia, dizendo que
o conflito de Visão País estava elevando poeira desnecessariamente, porque a proposta
voltaria à plenária. Pediu que se respeite a decisão da Diretoria (de voltar a votar) e
considerou que apenas depois vai se saber se foi um erro político ou não, como agora se
195
avalia como um erro não ter votado o regulamento por manter uma posição em 2006.
Disse que eram momentos de agüentar e chamou a atenção para o modo com que os
constituintes de PODEMOS entraram a protestar em Visão País, lembrando que os
companheiros do MAS tinham ficado olhando. Isso mostrava que nós somos o diálogo e
eles a violência, continuava. E reconhecia que, se decidissem modificar na Comissão a
decisão dos constituintes do MAS, teriam problemas internos e Félix Cárdenas vai
chamá-los de traidores. Mas para isso propunha “como figura” que mandem o relatório
e na Diretoria eles o observariam como errôneo. Reconhecia também os erros deles
como Diretoria, que por burocracia não tiveram capacidade de responder rapidamente à
comissão; e concluiu dizendo que primeiro deveria ser definida a estratégia: aonde
queremos ir, e depois as táticas; e que a estratégia é aprovar a Constituição por dois
terços.
Em sua intervenção sobre o tema, García Linera retomou sua análise inicial e
disse que existem duas maneiras de enfrentar uma posição adversa, cada uma com
conseqüências diferentes: “ou você se enfrenta sem reconhecê-la, ou você a absorve, a
incorpora em seu projeto e a vence cara a cara com a sociedade”. E compartia sua
leitura política: o bloco opositor não vai desaparecer, vai seguir aí. Esse opositor não
reconhecido se rendeu ou se desmoralizou... mas; e se não for assim? Se tiver base
social que se mobiliza; desconhecem-te na negociação. Se a proposta da minoria é débil
e não tem base social, é uma coisa. Se tiver, complica. Se tiverem base social, vão
obrigar a fazer o referendo, a votar reforma no Congresso. Se você deixar que a pressão
se acumule, dizia, por algum lado vai explodir. A atitude de negar a oposição tem
conseqüências. Poderemos ter que amarrar, negociar... Agora nós concedemos o que em
julho de 2006 não aceitávamos. Mas se eles têm base social, não podemos negar, porque
vai aparecer por cima ou por baixo. Temos que ganhar bem. E nossas propostas ganham
mais eleições. O que parecia impossível se conseguiu: o voto. Em janeiro e julho [de
2006] tivemos 54%, o que não tinha acontecido nunca. Temos que ir ganhando: ano
passado em Sucre nos vaiaram por uma quadra de percurso, ficamos desmoralizados.
Ontem tinha uma menina chorando. A melhor forma de ganhar é com o voto; nunca
ganhamos negando o voto. Isso é a trajetória do MAS; ganhamos com os votos.
García Linera pedia “refletir com muita estratégia política”. E sobre os rivais,
dizia: eles confundem autonomia com separação e pode ser que não haja duas visões de
país, mas também pode ser perigoso. E analisava que se se ganha a Constituição com
60%, vai ter um 40% que não a reconheça, vai ter cabidos. Seria dar argumentos para
196
eles. O ideal é uma Constituição aprovada pelo 80 ou 90%. E que apenas alguns artigos
cheguem ao referendo, analisava. A assembléia não é o único espaço para as mudanças,
devemos fazer a onde chegue a força, não devemos por toda a carne no espeto,
recomendava. Muito vai ser feito nas próximas gestões de governo. Nem tudo deve ser
transformado, preocupa-me dividir o país. E concluía: recomendação companheiros, se
têm base social, temos de reconhecer. Decidamos, a Diretoria emitiu decisão: se isso
tem base social, a reconhecemos. E continuou com a análise de outros temas
problemáticos.
A teoria da base social como definidora dos temas que entravam no projeto de
Constituição era a teoria do centro do ponto de vista da gestão estatal. O MAS tinha
renunciado a mudanças profundas pelo caminho da Assembléia Constituinte e, por
tanto, o lugar do centro era o lugar de um Estado que reconhecia os limites impostos por
setores opositores com poder de mobilização. Essa era a forma de procurar a
estabilidade requerida para imprimir mudanças pela via que tinha encontrado o MAS: o
crescimento econômico e a distribuição, para o qual aportavam as nacionalizações, o
projeto de industrialização e de desenvolvimento econômico impulsionado pelo Estado.
Visão País, nesse sentido, aparecia como uma resistência à posição de acordo e
consenso que era a estratégia do MAS desde o momento em que aceitou os dois terços
como forma de aprovação e talvez desde antes, quando foram definidas as regras
básicas, em acordos com a oposição, na Lei de Convocatória para a Assembléia. Por
outra parte, era interessante que a procura de um caminho mais radical de
transformações não viesse da esquerda, talvez mais conforme com a estratégia estatal de
transformações. A idéia de um centro mais longe do centro do Estado atual vinha do
indianismo e do discurso da descolonização, com a crítica ao Estado republicano como
continuação do sistema colonial.
A posição do governo do MAS, expressada por García Linera nas reuniões com
cada uma das comissões era a mesma: a posição do consenso para alcançar dois terços.
As recomendações de García Linera iam, então, contra o possível cenário de um
referendo com duas posições em disputa. O caminho contrário tinha sido examinado nos
meses iniciais da Assembléia, com a tentativa de impor a maioria absoluta, talvez mais
como ambição de controle total do que para procurar uma Constituição radicalmente
diferente à que se propunha em 2007. As propostas que eram intoleráveis para a
oposição seguiam sobre a mesa, defendidas por alguns ou como carta de negociação.
Mas o governo procura especialmente neutralizar o Oriente, incluindo suas demandas
197
no projeto, e de forma alguma se preparava para uma guerra que existia somente nos
temores da oposição ou em algumas posições marginais no MAS, onde se escutava falar
da reversão massiva de terras, do controle social com o quarto poder ou co-governo, e
da proposta de superação do Estado liberal e do capitalismo de mercado com seu regime
de propriedade.
Como forma de entender o exercício do poder, a procura do centro consistia,
então, em deglutir as propostas do outro em um ato canibal que o incorpore ao projeto
de Estado, deixando-o sem discurso e força política, ainda quando para isso fosse
necessário mudar os objetivos iniciais e renunciar ao que se era. Seriam os camponeses
e indígenas os que administrariam o Estado nascido do novo centro, e isso implicava um
Estado diferente, mas estava claro que a prioridade não era mudar o poder e, sim,
ocupá-lo. Nesse sentido, o processo boliviano dialogava com a tradição de esquerda
moderna e o debate sobre a tomada do poder. Na sua exposição, García Linera dizia que
falava da experiência que tinham adquirido na presidência, agüentando
greves/interrupções de estrada de caminhoneiros, protestos de mineiros cooperativistas,
com milhões de dólares perdidos em comércio, mobilizações por vários dias, dizia.
Tratava-se de escutar a sociedade, antes que de implementar um programa e o desejo de
um setor. Não houve por parte dos constituintes uma reação de clara alternativa a essa
posição. Tratava-se de conseguir consolidar a posição de intérpretes da sociedade, de ser
o Estado. Faltava apenas saber se o MAS teria sucesso, e o quanto deveria renunciar
para consegui-lo.
Outro grande conflito da época das comissões tinha sido o que enfrentou a
política e o exército pelas propostas de mudança da comissão de Segurança e Defesa.
Policiais do MAS e da oposição tinham se unido e propunham retirar do exército a
potestade sobre a segurança interior e se eliminaria o serviço militar obrigatório e a
justiça própria. Como resposta, constituintes que representavam interesses dos militares
elaboraram um projeto que “esquartejava” a polícia, distribuindo algumas de suas
competências em diferentes instituições. O governo interveio a Comissão e estabeleceu
que não houvesse mudanças a respeito da Constituição anterior. García Linera
explicava: nossas três forças são a opinião pública, as mobilizações sociais e as Forças
Armadas, cada uma em uma coisa. Mas se os do Chaco ou Camiri tomam poços, a
quem vamos mobilizar? Não vão ser os movimentos sociais. o estamos no melhor
momento dos movimentos sociais, não é 2003 quando mobilizávamos 80 mil, 300 mil
198
pessoas. Necessitamos a fidelidade das forças armadas e a unidade no mando. Se não, o
Estado Plurinacional pode ser derrubado.
De nada serve mudar em Visão País ou Terra e Saúde, continuava García Linera,
se as Forças Armadas e a política estão se enfrentando. Para que possamos fazer todas
as mudanças, têm que estar firme Defesa e Segurança. Se não conseguem unificar a
autoridade, não vamos ter força para defender o que se faça em outras comissões. Caso
contrário, companheiros, vocês vão ser os responsáveis pela estabilidade do governo de
Evo Morales, e mencionava que a direita estava se aproximando de sub-oficiais. Tomara
que tivéssemos policia e Forças Armadas produto de uma revolução, dizia, mas não é
assim. Se em um tempo consolidamos as mudanças, poderemos mudar a polícia e o
exército; mas, como no xadrez, não é possível atacar com tudo ao mesmo tempo. Podem
acontecer algumas mudanças a partir de leis orgânicas, para preservar este núcleo do
Estado, continuava García Linera. E concluía: “Tomara que desapareça o Estado, mas
temos que ser realistas: não vai desaparecer o Estado; peço que os companheiros mais
radicais sejam mais maduros”
134
.
No final da reunião, alguns constituintes conversavam desapontados. Alguns
tinham esperado uma defesa mais dura da decisão de excluir PODEMOS. Loyola
Guzmán reclamava que viessem a se impor e perguntava ironicamente se a Assembléia
não era originária. Vladimir de El Alto dizia que García Linera apenas pensa na
reeleição, e que não teria medo de dizer isso a ele pessoalmente. Os constituintes de
Visão País estavam descontentes e criticavam companheiros de outras comissões como
demagogos. Esperanza expressava que, revisando a medida, perderiam aliados como
Félix Cárdenas e que seriam castigados na comunidade, onde eles teriam que responder.
Advertiam, também que, de se seguir assim, vários constituintes se rebelariam. E
Esperanza também pedia que era para terem avisado eles quando fizeram o pacto com a
134
O constituinte Limbert Oporto, ex-major da polícia, tinha sido impulsor do projeto inicial e estava
desapontado Contava-me que o exército tinha feito um trabalho psicológico com especialistas
internacionais para fazer que o presidente acreditasse que havia risco de instabilidade. Criticava Hector
Arce, Quintana e García Linera, que intervieram no conflito e também notava que o desenlace favorável
ao exército se explicava pela coesão que conseguiu, enquanto a política não funcionou como instituição
com suas autoridades oficiais não intervindo a favor do projeto. Dizia que os policiais se importavam
pelas promoções, ainda que era uma instituição mais democrática e citava a informação “não pública”
de uma oportunidade em que oficiais do exército tinham disparado contra soldados quando não
queriam reprimir. Limbert notava que antes se apoiava nos movimentos sociais e agora no exército, em
sua análise, na Assembléia primava a subordinação ao partido e ressaltava o caso dos constituintes que
mudaram seu voto inicial por ordem do executivo. O originário ficou em nada e via que a subordinação
ao executivo era um mal exemplo para o mundo. Limbert esperava que se instalassem novamente as
plenárias, onde tentaria expor o projeto em duas horas e que entre novamente, com apoio dos
constituintes.
199
direita para não perderem tempo discutindo, com ironia. Outro constituinte lembrava
que García Linera tinha retrocedido da mesma forma com a Lei de Convocatória, que
não podia se esperar outra coisa. Nesse dia, 17 ônibus da Juventude de Santa Cruz
chegavam a Sucre para se unir aos universitários e cívicos sucrenses em seus protestos.
A polícia tinha encontrado armas entre os estudantes. O locutor da Univisión dizia que
tinham sido colocadas. Em La Paz os policiais entravam em greve de fome, García
Linera voltava de urgência para lá. No dia seguinte se reuniriam de novo das seis da
tarde até as seis da manhã, com cada uma das comissões. Os constituintes falam muito,
alguém reclamava.
Prada era o que se mostrava mais arrependido pela decisão da comissão e via
com preocupação o que tinham gerado. O MAS aparecia fazendo o que antes
denunciava –“manobras”– e tinha deixado à oposição o discurso da democracia. Sobre o
vice-presidente, destacou que, à diferença de antes em que chegavam para impor, agora
sentia que García Linera tinha vindo a Sucre para escutar. A resolução do tema Visão
País chegou enquanto o MAS negociava com PODEMOS no Congresso a possibilidade
de ampliar as sessões para além de agosto. No dia 31 de julho, os constituintes da
Comissão que pertenciam ao MSM e tinham dado seus votos ao projeto alternativo,
retiraram o apoio do projeto de CN, que ficou com três votos, e o deram ao projeto do
MAS, que obtinha oito votos. Permitiam, assim, a entrada do relatório de PODEMOS,
como segundo relatório mais votado, com as assinaturas de quatro constituintes. O tema
perderia relevância dado o curso que tomariam os acontecimentos, mas foi um momento
importante da Assembléia, como expressão nítida entre os projetos das “duas Bolívias”
como proposta de um centro para a construção de um novo Estado que deixou de lado a
visão da oposição mais dura ao governo do MAS.
6 Outras comissões, a ampliação e o trabalho técnico.
O tratamento dos temas nas comissões tinha revelado conflitos que não se
esperavam, e revivido outros discutidos em outros momentos da história política
boliviana. Na comissão Deveres, Direitos e Garantias, Loyola Guzmán, participante do
grupo urbano de apoio à guerrilha do Che em „67 criticava que alguns de seus
companheiros do MAS na Comissão defendiam a posição do Vaticano sobre o direito à
vida a partir da concepção. Grande parte dos constituintes do MAS participavam de
cultos cristãos e tiveram um problema de consciência entre a posição do MAS e a das
200
suas igrejas. Do MAS se pediu reverter o voto que tinha aprovado o artigo sobre o tema
por maioria, com alguns constituintes do MAS aliados circunstancialmente aos da
oposição. A votação se reverteu, mas não todos no MAS mudaram seu voto. A posição
de esquerda se encontrava com a adesão religiosa às igrejas pentecostais em
crescimento na zona rural. Estas crenças eram, para alguns, a prova da mestiçagem entre
os camponeses e se utilizava como argumento para criticar a emergência do discurso
étnico e a introdução de práticas rituais andinas no Estado. Não era o indianismo que
aqui enfrentava camponeses contra a esquerda urbana dentro do MAS, mas o
evangelismo.
Na Comissão de Cidadania, Nacionalidade e Nacionalidades estava em questão
a maioridade e se poderia eleger-se ou ser eleito aos 16 ou aos 18 anos. Um constituinte
avaliou que os jovens estavam a favor do processo de mudança, mas deixariam que a
presidência resolvesse esse assunto. Nessa comissão também discutiam quantos anos
um estrangeiro deveria residir no país para obter a naturalização. Alguns pediam 10 ou
20 anos, mas chegaram ao acordo em 5 anos, com uma posição também muito comum
entre os camponeses de recusa aos estrangeiros, associados ao colonialismo e a elite
política mestiça. PODEMOS propunha que fossem apenas 2 anos, com sua também
clássica posição de afinidade com todo o que vem de fora. Na comissão de Poder
Executivo, também se consultaria no governo o tema conflituoso da reeleição
indefinida, e pensavam incluir uma cláusula transitória que convoque Referendo
Revocatório do presidente, vice e prefectos para 2009. Achavam também fórmulas para
impedir presidentes que tivessem residido toda sua vida no exterior ou que tivessem
conjugue estrangeiro, pensando nos casos particulares de Tuto Quiroga y Sánchez de
Lozada
135
.
135
Entre os temas de difícil resolução entre os próprios constituintes do MAS se incluía, em
“Mineração”, problemas com o tema da reserva fiscal de áreas. E a disputa entre mineiros estáveis e
cooperativistas que meses antes tinham chegado a um enfrentamento com mortos em Huanuni. Os
cooperativistas tinham apoiado o MAS em sua chegada ao governo e agora protestavam com dinamite
em Sucre. Na comissão de “Fronteiras”, os constituintes propuseram como problema o tema de se
deixar às populações de municípios limítrofes fazer comércio com países vizinhos; e se dariam status
constitucional a tratados e convênios internacionais econômicos. Os temas mencionados na Comissão
de “Outros Órgãos do Estado” eram o de controle social que, se bem “o presidente já tinha definido que
não entrariam como quarto poder”, poderia entrar de algum outro modo, transversalizado. Outros
temas sem consenso dessa comissão eram o de caráter autárquico ou autônomo do Banco Central (que
o presidente já tinha definido) e temas que tinham alarmado à polícia, como o destino do registro único
de pessoas, a independização da Unidade de Luta Contra o Crime respeito à FELCC; e a relação da polícia
com o Ministério Público. Em “Desenvolvimento Social Integral” faltava definir o tema da aposentadoria
universal e obrigatória: e a incorporação dos funcionários públicos à lei geral do trabalho. Dizem que
não existe muita divergência ideológica na comissão. A comissão de “Recursos Hídricos e Energia” tinha
201
Na comissão de educação, a classe e a etnia voltaram a se encontrar, em
confrontos entre constituintes indígenas e constituintes do magistério, cujos grêmios
têm uma importante tradição de esquerda trotskista. Em 2006, o Congresso Educativo
gerou tensões entre o projeto indianista do então ministro Félix Patzi contra as posições
dos professores urbanos de esquerda e também contra a igreja católica e outras
congregações religiosas, juntando atores que na Comissão de Diretos tinham se
enfrentado pela discussão do aborto. O problema na comissão de Educação, depois de
se resolver o tema da laicidade, era o da educação nas autonomias indígenas e
departamentais, porque os professores queriam mantê-la centralizada. Sobre a demanda
de Universidades Indígenas, García Linera as tinha definido como mecanismo de
exclusão, e com a oposição tinha problemas pelo tema de controle social na
Universidade, que tinha dado lugar a mobilizações de estudantes e “pais de família”.
Eram muitos temas a serem tratados que caiam pelos lados na procura do centro,
ou levavam as discussões a extremos onde o acordo era impossível. Havia temas que
impediam acordos internos, ainda antes ou às vezes no lugar de serem obstáculos de
acordo com a oposição. Uma vez definida a estratégia de procurar dois terços, tinha-se
que construí-los, e interpretar como poderia ser um projeto que os obtivesse. O centro
devia ser interpretado, tanto para ter viabilidade, como para detectar em que temas o
MAS poderia avançar com os projetos de mudança que representava. PODEMOS tinha
detectado uns 30 temas em que não coincidia e procurava apoio em suas regiões para
articular, junto aos prefectoss da oposição, uma Constituição alternativa que chegasse
ao referendo, em vista de que o MAS não iria conseguir os dois terços. O chefe de
PODEMOS propunha que o referendo sobre os temas sem consenso fossem vinculantes,
como condição para aceitar uma ampliação da Assembléia. Entre os temas que
procuravam dirimir estavam a capitalidade plena de Sucre; o direito à vida a partir da
concepção; as autonomias departamentais e não indígenas; o Congresso Bicameral e
problemas com a palavra “concessões” para a apropriação desses recursos, e a exploração e reserva
física de áreas, onde tinha problemas com a palavra “vinculante”. Na comissão de “desenvolvimento
Amazônico” os temas que faltavam definir eram o da exploração ou pausa ecológica; o das concessões
florestais, assim como o capítulo do regime amazônico que deveria definir entre outras coisas a
amplitude do que se definira como Amazônia. Desenvolvimento Rural tinha apenas um artigo em
dissenso: transgênicos. A Comissão de Poder Legislativo discutia vários temas conflituosos, como a
capacidade de membros do parlamento, sua forma e a representação direta. Apenas houve consenso
com a oposição na suplência sem remuneração.
202
não Unicameral; e a recusa ao voto a partir dos 16 anos, a reeleição, o Estado
Plurinacional, a eleição de juízes com voto popular e a Justiça Comunitária
136
.
O grande conflito que se avizinhava, no entanto, era o da demanda de Sucre para
que voltassem os poderes Executivos e Legislativo, a “capitania plena”. O final da fase
de comissões, com a entrega de relatórios finais no dia 13 de julho, foi marcado pelo
crescimento desta demanda, que entrou nos relatórios de seis comissões, com o apoio
dos representantes da Meia-Lua, de outros departamentos e também chuquisaquenhos
do MAS e outros partidos aliados ao governo. A participação da Meia-Lua fazia do
tema da sede dos poderes um conflito entre as “duas Bolívias”, e não entre duas
cidades e regiões, ainda que a adesão de constituintes camponeses do MAS levavasse o
tema novamente ao plano do regional, de modo transversal às procedências partidárias,
étnicas ou de classe. Depois da entrega de relatórios, o MAS se encontrava com um
projeto de Constituição de mais de 700 artigos. Procurariam uma empresa para xerocar
em cinco dias, quando deveriam se iniciar as plenárias. No caso de não conseguir a
ampliação do prazo, o MAS procuraria aprovar a Constituição em poucos dias.
No dia 2 de julho houve uma sessão plenária para votar a extensão do prazo. A
Diretoria deu 10 minutos para cada orador, mas ainda assim o debate durou mais de seis
horas. Havia duas propostas: 6 de dezembro e 14 de dezembro, “porque não se cumpriu,
próximo ao prazo, com o mandato do povo”
137
. Antes tinham circulado as propostas de
ampliá-la com prazo indefinido, ou que se suspendesse por uns meses para retomar com
uma situação política menos volátil. Seria um triunfo dos que queriam que a Assembléia
do Evo fracassasse. As intervenções de Doria Medina, líder de UN, e Guillermo
Richter, líder do MNR na Assembléia, pareciam mostrar que o pacto estava ao alcance
da mão. Doria Medina dizia que as visões de Oriente e Ocidente podem ser
complementárias, e considerou que no prazo previsto se poderia alcançar um consenso
136
Carlos Romero coincidia em vários dos temas, mas os mencionava como temas detectados para
discutir em uma eventual mesa de concertação. Ressaltava os de capitalidade; reeleição (ilimitada ou
por uma vez); o modelo de Estado (Plurinacional Comunitário ou Social de Direito); as autonomias (com
ou sem qualidade legislativa); sistemas parlamentares (unicameral ou bicameral); eleições de
magistrados (por voto da população ou no congresso); redistribuição de terras e modelo econômico.
137
A Diretoria dizia que após a ampliação, haveria cartão de presença. Nos últimos meses havia um
reclamo por parte de constituintes de diferentes partidos contra o desconto que a Diretoria queria
implementar por faltas. No final, um constituinte entrou para assinar a lista de presenças e saiu
correndo com ela, roubou-a, impossibilitando que se contabilizem os descontos. Era uma crítica
generalizada contra o cumprimento dos constituintes: meses discutindo o regulamento e depois apenas
trabalhando até quarta-feira ou quinta porque nas sextas viajavam às regiões e voltavam a Sucre apenas
na segunda à tarde. O salário de 10 mil bolivianos também era considerado excessivo. A única sessão
dos últimos meses tinha sido para aprovar uma cláusula por unanimidade a favor do futebol na altura.
203
com a inclusão do plurinacional do Ocidente e do autonômico do Oriente. Pedia que se
aprendesse da experiência da primeira etapa, quando se tinha chegado a um acordo e
uma ligação de La Paz o quebrou. Criticou a intervenção de outros poderes e chamou o
MAS a aprender algo de democracia e a não ter medo das minorias. Estas idéias o
colocam no centro do jogo político da assembléia: seduzia o MAS falando da
possibilidade de acordo e parecia dizer aos outros atores que faria bem o papel de
controlar o MAS e não deixar que propostas radicais fossem aprovadas.
Richter dizia que havia caos e desordem, mas que eram caos e desordem
democráticos. Dizia que não tinha existido na história de Bolívia um contexto de
movimentos sociais como constituintes. Em 1826 teria havido meia liberdade, com um
sistema liberal, mas sobre uma base de exploração, e que somente votavam os que
tinham dinheiro, até 1952. Passou-se do constitucionalismo liberal ao
constitucionalismo social, mas com democracia restringida, dizia. Sentia-se feliz porque
agora outros partidos falam de pacto, e dizia que a única justificativa para pedir
ampliação é a de construir um grande acordo nacional no qual todos têm que estar. Que
ninguém se sinta à margem nem departamentos, nem províncias, nem indígenas, dizia.
Nós queremos discutir mudanças e transformações para Bolívia. Isto é a prova de fogo,
não vamos poder pedir mais, acrescentava. E pedia que se re-estabelecesse a partir do
dia seguinte a comissão que trabalhou no artigo 70.
As dificuldades voltavam com os discursos da Meia-Lua. Hugo Oliva, único
representante do MIR na Assembléia, também falava da necessidade de um acordo
político nacional, mas advertia que “se o MAS não retira o Plurinacional, não vai ter
consenso”. Também votaria contra a ampliação porque entendia que a mesma não
favorecia acordos e que a crise política nacional atual surgia da Assembléia
Constituinte. O chefe de PODEMOS na Assembléia, Rubén Darío Cuellar, também
falou de consensos, mas criticou a intransigência e imprecisão do MAS, que estaria
querendo impor uma situação que não condiz com a democracia. Necessitava-se
vontade política antes que encontrar um cavalo voador, dizia. E Hormando Vaca Diez
via que, se não se ampliava a Assembléia, haveria uma frustração nacional, e dizia que
por sorte existem dois terços para a resolução, porque dizia querer que se ampliasse,
ainda que nesses termos não o pudesse apoiar. Como e para quê ampliar era a grande
pergunta, dizia
138
.
138
Pelo MAS houve alguns discursos procurando esse centro do acordo. Carlos Romero falava de
recorrer nostalgicamente ao Parlamento como na época em que se tomavam decisões sem levar em
204
Depois de aprovado na Assembléia, era necessário que a Lei Especial de
Convocatória à Assembléia fosse modificada, também por dois terços, no Congresso
Nacional. Depois de uma difícil negociação, no dia 3 de agosto a ampliação foi aceita,
prolongando suas sessões até o dia 14 de dezembro de 2007, e mostrando que o acordo
era possível. A oposição tinha aproveitado a ocasião para garantir a necessidade de dois
terços para a aprovação e outras cláusulas como a autoridade do Congresso e não a da
Assembléia para levar a cabo os referendos finais; reverter o ocorrido em Visão País
estabelecendo regras para aprovação de relatórios de comissão; ratificar a necessidade
de inclusão do referendo autonômico e tomar precauções para que não se evite o
ingresso dos constituintes ao hemiciclo
139
.
Um centro de Estado Plurinacional mais autonomias parecia se perfilar com o
acordo pela ampliação. Mas PODEMOS não estava de acordo com o plurinacional nem
com a forma em que o MAS concebia as autonomias, e constituintes indígenas
ameaçavam com não contribuir para os dois terços se deixassem de lado suas demandas.
Nos primeiros dias de agosto, enquanto se resolvia a ampliação no Congresso,
CONAMAQ decidiu romper com o MAS, distanciando-se das outras organizações do
Pacto de Unidade e realizando Um ato de clausura simbólica da Assembléia, que era a
mesma posição que tinha também adotado a COB. Desapontados com o rumo da
Assembléia e com o curso de suas demandas a presidenta da Assembléia tinha
manifestado que por ordem do MAS não entraria com representação direta e tinham tido
uma reunião muito ruim com os constituintes do MAS a CONAMAQ pendurou um
cartaz de clausura na porta do teatro Gran Mariscal, e abaixou a Wiphala do mastro,
consideração os bolivianos. Expressou também que daí em diante não é possível fazer nada sem os
indígenas e que o Estado pluralista multicultural é o melhor nível para implementar as autonomias. Não
digam à maioria que seja democrática, se deixam de lado o plurinacional. Isso não é querer concertar:
Democracia pluralista. Estado Multicultural, Estado com Autonomias. É daí que se deve partir para o
acordo. Walter Gutiérrez, da comissão de Educação dizia que deram muitos sinais de diálogo e que esta
era a última oportunidade que daria ao MAS para consensuar. Não deve haver medo ao Estado
Plurinacional porque nós não temos medo às autonomias. Foi uma demanda indígena que aceitamos,
porque o povo a tomou para si. Que agora seja um pacto real. Nós o manifestamos de forma oral e
escrita, disse Walter.
139
Os novos cadeados estabeleciam dois caminhos para aprovação do texto. No primeiro, todos os
artigos deveriam ser aprovados em detalhe pelo voto dos dois terços dos membros presentes e o texto
final pelo voto de dois terços do total de membros da Assembléia. No segundo caminho, no caso de não
se conseguir os dois terços de votos em um ou mais artigos, na etapa de detalhe, o congresso os enviará
a referendo vinculante. Neste caso, após a consulta, o texto final se aprovará por dois terços dos
constituintes presentes, para então submetê-lo a referendo de aprovação. Ver a lei, promulgada no dia
4 de Agosto, disponível em:
http://www.vicepresidencia.gob.bo/?TabId=36&ctl=wsqverbusqueda&mid=435&id_base=2&id_busca=
3728
205
decidindo procurar outras formas de incidência política. Seus companheiros indígenas
da CIDOB, e seus técnicos, se mantiveram com o Pacto de Unidade e nesse dia não
responderam a ligações.
Enquanto isso, alguns constituintes e técnicos do MAS começavam a trabalhar
na consolidação do texto constitucional a partir dos relatórios de maioria aprovados pelo
MAS. Alguém dizia “necessitamos um texto, não podemos não ter estratégia, sem um
rascunho, com o quê vamos convocar as organizações?”. A partir de então, a
constituição do texto constitucional dependeria mais da negociação de elementos que
entravam e saíam do projeto, do que de um debate ideológico ou de olhares políticos.
As posições políticas e diferenças tinham se traduzido em uma série de temas que
técnicos e constituintes transformariam na forma de artigos. Os matizes poderiam gerar
diferenças, mas a partir de então seria apenas em um grupo reduzido que se conheceu
como a Comissão Técnica. A Assembléia Constituinte voltava a se reduzir a uma
pequena comissão como na época das negociações pelo regulamento em 2006. A
Comissão tinha dificuldades para fazer reuniões porque era perseguida pelos
universitários de Sucre da causa da capitalidade, razão pela qual se reuniam em casas
particulares, secretamente. Estava constituída por um grupo reduzido de constituintes
que trabalhava com assessores das organizações sociais e delegados do Poder
Executivo
140
.
Com o nome de Ajustes Técnico-Jurídicos al Documento Consensuado en
Bancada el 3 de agosto de 2007”, o diário La Razón, de La Paz publicava no dia 14 de
agosto, sem permissão do MAS, o avanço de seu projeto de Constituição, com 434
artigos. Com essa publicação, a imprensa tinha procurado gerar polêmicas, por
exemplo, pela inclusão da reeleição indefinida para presidente e vice-presidente, mas
não para os prefectos. No MAS circulavam suspeitas sobre quem poderia ter filtrado à
imprensa, e se suspeitava de um jornalista que poderia -lo roubado quando a
Comissão Técnica foi almoçar deixando o documento no computador em uma sala do
140
Os constituintes do MAS que participavam na Comissão eram Rebeca Delgado, ex-juíza
cochabambina que tinha entrada na política partidária por primeira vez como candidata a constituinte;
Carlos Romero, por Santa Cruz, com um perfil técnico por sua trajetória na ONG CEJIS; Saúl Ávalos,
empresário de Vallegrande e ex-dirigente político na Universidade, próximo a Sílvia Lazarte; Rosario
Ricaldi de Tarija, advogada que trabalhou com organizações sociais em comunicação popular em uma
ONG. Victor Borda, de Potosí, com claro perfil de advogado. César Cocarico, também advogado que
seria eleito governador de La Paz em abril de 2010; o intelectual Raúl Prada; Walter Gutiérrez, dirigente
do magistério com mais perfil político que técnico; e Marcela Revollo, do MSM, esposa do prefeito de La
Paz e socióloga. Alguns tinham proximidade política com a presidência da Assembléia e seu vice-
presidente; mas outros não, e se somaram ao grupo por sugestão do governo, com aprovação da
bancada.
206
Hotel Oberland. Era o projeto que teria sido votado apressadamente se não tivesse
acordo para a ampliação da Assembléia, no dia 6 de agosto. Com a possibilidade da não
ampliação, antes de que García Linera tivesse conseguido fechar a negociação para
ampliar o prazo no Congresso, a Comissão trabalhou dia e noite sem interrupção.
Quando a versão do texto constitucional estivesse pronta, haveria uma aproximação
com os partidos pequenos, o MNR e o UN, porque se sabia que não dariam apoio a um
texto “no qual não puseram nem uma vírgula”.
Depois dos desentendimentos com a CIDOB, seus assessores (e os do CEJIS e
do CENDA, que trabalhavam com ele) foram proibidos de continuar nas reuniões. Pilar
Valencia, no entanto, pôde permanecer quando ligou, indignada, para o presidente da
CIDOB, que ligou para reclamar com Evo Morales, quem se comunicou com o vice-
presidente da Assembléia, que ligou para Carlos Romero para que lhe permitissem
continuar presente. Roman Loayza também tinha apoiado que as ONGs entrassem nas
reuniões, desde o seu lugar na bancada. Ao mesmo tempo, tinha alguns constituintes
eleitos para participar da comissão que não assistiam a muitas reuniões, e outros que
não tinham sido eleitos mas às vezes chegavam para ajudar em temas específicos. A
dinâmica foi colocando Romero como o centro do trabalho e era Elva Terceros, sua
assistente, a que controlava o computador com o documento sobre o que era trabalhado,
aceitando apenas introduzir as mudanças que seu chefe autorizava; “todos falavam, mas
ela apenas escrevia aquilo sobre o qual Romero dava o ok”, dizia um dos participantes.
No dia 18 de setembro, o Grupo Líder de jornais (El Correo, El Deber, La
Prensa e outros) intitulava “uma Constituição da equipe técnica”. Era uma nova nota
sobre o projeto de Constituição trabalhado pela Comissão Técnica. Informava-se
também que alguns temas polêmicos tinham saído do projeto: a autonomia regional
seria transferida para médio ou longo prazo; o haveria quarto poder (social), e se
garantia a educação privada e a autonomia indígena. Sobre o documento, Carlos
Romero explicava à imprensa que “foram eliminadas duplicidades, justaposições,
concordaram-se textos, ajustaram-se redações, vai ser concluído ao amanhecer, calcula-
se que serão 300 artigos e será apresentado à bancada amanhã às 9h00”. A imprensa
informava, satisfeita, que não haveria reeleição contínua e que se respeitaria a
propriedade privada; mas alarmada, acrescentava que se incluiria como símbolo pátrio a
Wiphala e que Sucre não era definida no projeto como capital constitucional.
207
Albert Noguera era um dos dois assessores espanhóis que trabalhavam com a
Comissão Técnica, convocados pelo Poder Executivo
141
. Coube a ele trabalhar com
Rebeca Delgado em Direitos e Deveres, artigos que seriam unificados no título três da
Constituição, mas que se encontravam dispersos porque várias comissões tinham se
dedicado a isso. A Comissão Técnica distribuía alguns temas problemáticos em
subcomissões de dois ou três técnicos ou constituintes para agilizar o trabalho. Eu
acompanharia Albert enquanto trabalhava no documento e cheguei a sugerir alguma
correção de escritura no rascunho do texto que no dia seguinte Romero iria revisar.
Albert trabalhava também em um relatório que tinha sido solicitado pelos colaboradores
de Hugo Chávez, para se inteirar do avanço da constituinte boliviana antes de uma
reunião do venezuelano com Evo Morales. Chávez tinha pedido dez pontos.
Este relatório é útil para ver quais eram os temas que o MAS discutia
internamente, e nos quais ainda não alcançava consenso na redação do projeto. A maior
preocupação de Albert era, talvez, o tema da distribuição da renda entre departamentos
por hidrocarbonetos. 11% para os departamentos produtores tinha sido o incluído pela
lei de hidrocarbonetos de 2004, e agora seria constitucionalizado. Com esta distribuição,
escrevia Albert, Tarija recebia 143 milhões de dólares e La Paz três milhões; e em
projeções para dentro de 20 anos, Tarija ganharia dois bilhões, entanto que La Paz
continuaria com três. Ele se preocupava também com o tipo de maioria requerida para
aprovar algumas leis importantes, e inclusive a facilidade com que se estipulava a
aprovação dos tratados internacionais, que na versão provisória dependia apenas da
aprovação do Congresso e, para Albert, devia ser mais difícil, dada a possibilidade de
que Estados Unidos continue sua tentativa de aprovação bilateral de tratados de livre
comércio. Albert e outros técnicos propunham que a aprovação de tratados fosse por
referendo, e mais adiante assim seria incluído no texto. Albert via o MAS como
formado por indígenas conservadores, urbanos de esquerda e classe média de direita que
entraram porque garantiam votos. Na Comissão, no entanto, tinha urbanos e os de
141
Como Rubén Martínez Dalmau, estava em Bolívia como representante do CEPS de Valência
(http://www.ceps.es/), ONG de advogados que tinha participado na elaboração da Constituição
venezuelana de 1999, participaria na do Equador e também em assessoria política em outros países da
ALBA. Pela origem espanhola, às vezes eram hostilizados, especialmente pela oposição e pela imprensa,
com a idéia de que “estrangeiros escreviam a Constituição”, ainda que também tenha habido críticas de
constituintes do MAS. Seu papel era o de apoio técnico em diferentes temas quando os constituintes o
solicitassem, e trabalhavam também com assessores das organizações do Pacto de Unidade, ainda que
os do bloco indígena depois da entrega de informes tinham se distanciado. Trabalhavam coordenados
por Teresa Morales e a cargo do Vice-ministro de coordenação Governamental, ctor Arce, que tinha
sido advogado de Evo e por esta época também procurava terminar sua tese de doutorado.
208
direita não eram um perigo, porque estavam alinhados com os intelectuais mais de
esquerda
142
.
Quando a Comissão Técnica terminou a consolidação de um texto
constitucional, voltaram às reuniões na Casa Argandoña para discutir seu conteúdo entre
os constituintes. Conheceu-se como “projeto finalíssimo”, em setembro, e trouxe
desgostos a muitos que viam modificados ou ausentes os artigos trabalhados nas
comissões. A maioria das queixas vinha de setores urbanos e em alguns casos se
misturava com a expectativa de participar da Comissão, mas também se escutavam as
críticas de que “os indígenas perderam a voz, e tem classe média e intelectuais”, ou
“a classe média é chamada para os assuntos técnicos e os indígenas o são apenas para o
simbólico”. Criticava-se também que a comissão tivesse apenas duas mulheres, e que
“modificam o que querem”.
Ada Jiménez e Magda Calvimontes encabeçavam as críticas à Comissão
Técnica, manifestavam-se “frustradas” e “usadas como palhaços”. Magda dizia “eu teria
morrido pela Constituição que queria, mas não por esta. Na discussão do artigo 70
estava disposta a ir às armas para defender”. Magda criticava que não queriam incluir o
11% para Tarija: “pode não dizer 11%, mas tem que constitucionalizar as regalias”. Se
não, dizia, voltariam a ser, como no passado, “povos fantasmas” e queremos
desenvolvimento
143
. Sabino Mendoza defendia à Comissão, cujos membros, lembrava,
tinham sido eleitos na bancada e tinham o apoio da Direção do MAS. Dizia que
reconhecia os que sabiam de leis; ele sabia de coca. Uma cholita dizia que ela queria os
profissionais, porque aprende deles, “sem eles, o quê faríamos?”, se perguntava, e
142
Albert também via que a parte de deveres e direitos tinha uma forma liberal; e comentava que o
Poder Social tinha sido recortado em suas atribuições, pelos problemas que traria para o governo mais
adiante. Um comentário do informe era que a política regional tinha deslocado muitos temas sociais, e
que os departamentos autonômicos teriam “mini-assembléias legislativas”. Entre seus comentários,
Albert manifestava sua preocupação por alguns temas, como a distribuição de cadeiras por
departamento no congresso, com possíveis dificuldades do ponto de vista político, dada a correlação de
forças na Bolívia.
143
Também tinham uma lista de queixas como a necessidade de incluir mudanças sobre como “a
reversão de prova na presunção de paternidade, para que não seja a mãe a que tivesse que
demonstrar”, e proibir o trabalho infantil antes dos 16 anos, “ainda que digam que no campo é normal
que trabalhem”. O grupo rebelde tinha reparos também em relação à proposta de plurinacionalidade, e
Magda dizia que é uma Constituição folclórica, e que a inclusão de palavras em quéchua como
Pachamama era dizer sem que mude nada. Ada dizia que o plurinacional “não passava do
reconhecimento que tem agora” e estava contra à oficialização de 36 línguas, porque pensava que o
espanhol serve para que os indígenas possam estudar e não fiquem marginalizados em reduções, foi a
língua dos colonizadores, mas passou a ser a língua de todos”. Rosália, também deste grupo, lembrava
que sua e não queria ensinar aos filhos língua aymara. Ada se queixava da presidência de Marcela
Revollo, do MSM, partido com o qual tinha cortado relações. Dizia que em seu aniversário tinha muita
ONG e nenhum índio, dizia.
209
acrescentava que se alguém está negociando, isso vai ser possível saber e as famílias
vão julgá-los. Dentro da Comissão, tinham aparecido diferenças também, com
constituintes reunidos que sem convocar o resto mudavam coisas; e com críticas frente
ao excesso de legalismo dos que tinham a idéia de que determinadas coisas da ordem
constitucional vigente o podiam ser mudadas. Também se perfilava uma posição que
dialogava mais com a proposta pluralista das organizações indígenas e outra que o fazia
com o modelo desenvolvimentista e nacionalista dos camponeses com base de esquerda
socialista, embora existissem inúmeras exceções e cruzamentos
144
.
Enquanto os constituintes discutiam o projeto na bancada do MAS, na Casa
Argandoña, apareceram novamente problemas com temas vinculados aos militares.
Quando se lia o projeto, Maria Oporto citou o encontro da juventude, onde se teria
pedido que o serviço militar fosse obrigatório não apenas para os homens, mas também
para as mulheres, sem exceção. Um constituinte do campo, que pediu que o
traduzissem, porque falaria em quéchua, disse que o serviço militar traz perda
econômica à família e também sofrimento às mães. Queixava-se de que os mandem à
fronteira. Vendo que se falava de um tema que envolvia o que tinha sido decidido não
modificar com respeito à Constituição anterior, Gregorio Mamani, principal
representante do exército no MAS, pôs a boca no trombone. Disse que o serviço militar
é obrigatório e que apenas fosse esclarecida a objeção de consciência, acrescentando
que seria definida por lei. A discussão crescia e Mamani saiu da reunião com o celular
na mão, dizendo que ia ligar para o Evo Morales
145
.
Em uma reunião nos primeiros dias de outubro, em Cochabamba, realizada para
analisar na bancada do MAS o projeto, eclodiu uma rebelião dentro do MAS. Setores de
classe média descontentes, aliados com os que defendiam o projeto dos militares e com
parte da comissão que questionava o papel central de Romero, fizeram que se
144
Um grupo com matizes internos era mais próximo a Sílvia Lazarte (Saúl, Pablo, Armando, Charo e
Roberto) e outro a Carlos Romero (Rebeca, Víctor, Chato, Marcela), o segundo “mais progressista” e
com vínculo com García Linera antes que diretamente com Evo. A exceção de Silvia Lazarte, depois da
Assembléia, os membros destes dois grupos entrariam a formar parte das autoridades do governo.
145
Loyola Guzmán contou que, como membro da ASOFAM (Agrupación de Familiares de Detenidos
Desaparecidos), tinha nos últimos anos se reunido com mães de filhos que morreram fazendo o serviço
militar, com cadáveres sem autópsia. Os pobres o fazem para ter casa e comida por um ano. Para
Loyola, a objeção de consciência não é solução e devia se estabelecer como serviço voluntário com
opção de se fazer um serviço social. Evo diz que o serviço militar serviu para ele, mas que era algo
pessoal, dizia. Raúl Prada notou que era necessário compatibilizar, porque em uma parte da
Constituição se falava de objeção de consciência e em outra não, dever-se-ia mudar em um dos lugares
“não está sendo observada a defesa da pátria”, esclareceu, mas devia se modificar a parte sobre a
defesa que por acordo não ia ser modificada.
210
levantassem muitos outros descontentes com o fato do relatório ter passado de 700 a
300 artigos e ter-se mudado artigos elaborados nas comissões. Magda Calvimontes
alentava com o argumento de que “estes iluminados mudaram nossos relatórios que
tanto nos custaram fazer”. Romero renunciou à Comissão como alguns “rebeldes”
queriam, mas por intervenção direta de García Linera, o tema se resolveu com sua
permanência e com a ampliação da Comissão. Evo Morales apenas esteve no início da
reunião, pediu que se incluísse a proibição de bases militares estrangeiras e se retirou
após um discurso em que não opinou sobre os temas do projeto
146
.
Como meses atrás, e com participação de assessores de Evo Morales, em
Cochabamba se fizeram mudanças importantes no projeto, como retirar a objeção de
consciência, o controle social, a representação direta, o referendo para ratificação de
tratados; além de introduzir a porcentagem de 11% das regalias e referendo para
estatutos parlamentares. Era o lento avanço em direção a um centro que possibilitasse
aprovar a Constituição e avançar na fundação de um novo Estado, ainda que às custas
de preservar as instituições do velho. Em um texto distribuído por e-mail tempos depois
(8/12/2009), Magda Calvimontes defendia a introdução das regalias e da autonomia
regional, o que a tinha enfrentado tanto com os assessores espanhóis quanto com os
constituintes que defendiam o projeto das autonomias indígenas. O assunto tinha
ingressado como parte das negociações, uma vez aceito o jogo dos dois terços e de
consolidar a governabilidade do Estado
147
.
Os assessores que acompanhavam o trabalho da Comissão Técnica conversavam
durante o jantar em um descanso do trabalho. Participavam Diego Pary, das
organizações e com confiança da Diretoria, os espanhóis do CEPS; Elva Tercertos, de
confiança de Romero; Cecília Rocaballo que era candidata a ser proposta como
candidata do futuro Tribunal Constitucional do novo Estado, mas apenas se trabalhasse
do modo que o governo exigisse, como a tinham ameaçado. E também o Doutor
146
Uniram-se à Comissão René Navarro, Freslinda Flores (que tinha família de militares e tinha
entregado pela janela o projeto das forças armadas contra a polícia), Magda Calvimontes, Ada Jiménez,
Pablo Zubieta, Marco Carrillo, Víctor Hugo Vázquez, Eduardo García, Miriam Cadima. Esteban Urquizu
foi eleito para assistir, mas não o fez devido o conflito da capitalia. O grupo trabalharia paralelamente
com reuniões a parte, em parte porque alguns do grupo inicial passariam a ocupar outro espaço de
negociações em La Paz (o Conselho Político). Cocarico coordenaria esta reunião.
147
Em discussão com os que se opunham à autonomia da região do Chaco, Calvimontes escrevia:
"graças às autonomias regionais, tem se constitucionalizado pelas e pelos constituintes do MAS-IPSP o
11% a favor do DEPARTAMENTO PRODUTOR e não da REGIÃO PRODUTORA *…+ deixem que as
chaquenhas e chaquenhos, caminhem sozinhos. Por isso è AUTONOMIA, que cobre muito mais do que
legislar, ‘democratiza o poder e democratiza os recursos, aquela é a essência da autodeterminação do
Povo Chaquenho’”.
211
Gutiérrez Sardán, que também foi advogado de Evo Morales; dirigente da falange
boliviana e do antigo MAS, partido que cedeu a sigla para o MAS dos cocaleros. Evo o
chamava de “Doutor Tarzan”, e este antes tinha também sido advogado da COB, e de
sindicatos, pelo que opinava com conhecimento que o direito à greve no projeto de
Constituição poderia trazer problemas ao governo. Era necessário pensar algo para o
caso dos sindicatos onde o que emprega é o Estado como Saúde e Educação, que eram
setores políticos críticos.
Os técnicos estavam preocupados pela constitucionalização do 11% de regalias
para os departamentos produtores que exigiam estas regiões e que García Linera e
Santos Ramírez tinham garantido. Para alguns na mesa, “capitalia não é nada do lado do
conflito que podem armar as regiões se levantando, caso seja tocado o 11%”. Deviam
pensar, então, em qual parte do texto e de que forma entraria. Existia um problema
ligado ao formato do texto, com mistura de números romanos, numerais e letras dentro
dos artigos, “um Frankenstein”, dizia um, mas outro pensava que “em uma noite
arrumamos isso”. Alguns artigos eram muito longos e temas afins estavam separados
em diferentes artigos que poderiam ser unificados. Alguém comentava com mistura de
horror e humor que em uma Comissão se tinha defendido a pena de morte. Cecília
estava contente por ver uma Constituição finalmente inteira, apesar de que ainda faltava.
Era comentado na conversa, também, que havia debates ainda sem fechar, como o da
relação entre as duas justiças, que o movimento indígena deverá seguir discutindo,
porque não vai ser um assunto fechado agora.
Albert Noguera opinava que deviam pedir uma reunião com Evo para ter
autoridade para negociar um projeto de consenso com os técnicos de UN e outros. E
eles se preparavam para viajar ao Equador, que iniciava sua Assembléia Constituinte.
Vários lhes pediam que fossem recomendados para assessorar neste país ou ir expor
naquela Assembléia. Como em toda conversação na Assembléia, por esta época, chegou
o momento de discutir sobre os números. Victor Borda tinha comentado nesse dia que,
segundo seus cálculos, não se alcançariam os dois terços, o que levava ao cenário de
duas constituições. Segundo o constituinte, necessitavam-se pelo menos 10 de
PODEMOS para alcançá-los. Sardán comentou suas gestões pessoais com alguns
constituintes do MAS que não tinham se mostrado decididos, ou que inclusive tinham
sido críticos. Falaria com Vladimir, que na Comissão Terra não votou pelo projeto da
maioria. Eles não estão se sentindo parte, dizia, é necessário incluí-los e falaria com eles
sobre responsabilidades.
212
Outros assessores técnicos calculavam que se alcançariam os dois terços se
houvesse polarização com PODEMOS e se conseguisse, então, o apoio de todos sem o
PODEMOS. E, para Diego Pary, alcançar-se-iam os dois terços, mas não para todos os
temas. Não se teria para o Estado Plurinacional, por exemplo, porque partidos como AS
e outros pequenos não estavam de acordo. Segundo os espanhóis,acerca da situação de
não conseguir os dois terços, havia culpados pessoais entre os assessores do presidente,
comentar-me-iam mais adiante. Eles responsabilizavam um deles por ter defendido em
2006 que era possível alcançar aquela forma de maioria. Relatavam-me como nesse
momento o assessor presidencial tinha dito “tranqüilo, estamos próximos dos dois
terços, conseguimos uma bolsa nos EUA para o filho de um, um posto para outro e
chegamos lá”. E que para defender esse ponto de vista também se acudia à mentira,
dizendo que o exército não queria outro modo de aprovação. Meses depois, um dos
assessores espanhóis publicaria uma crítica ao “inventor dos dois terços e da quadratura
do círculo”
148
.
Román Loayza tinha ficado um pouco relegado das decisões, como muitos
outros constituintes, apesar de ter entrado na Assembléia como um dos dirigentes mais
poderosos. Seu assessor, Wenceslao, longe do centro a partir do qual ia se conformando
um projeto de Constituição para ser negociado, classificava o MAS em três setores, que
ilustrava nos nós dos dedos de sua mão. No centro estava Roman e as organizações
indígenas camponesas que tinham proposto o Estado Plurinacional. Localizava também
Raúl Prada, a Comissão Visão País e aos setores indianistas do governo, que apenas
tinham entre os ministros David Choquehuanca. Incluía Félix Patzi, com quem
Wenceslao tinha trabalhado na elaboração da lei Avelino Siñani, quando aquele era
ministro da Educação, e notava como principal falência deste setor a falta de quadros
técnicos. Desde este centro, o olhar sobre o processo era crítico e se demandava a
necessidade de desenvolver mais o plurinacional, presente no projeto rascunho somente
como declarativo. Era a vertente do MAS que derivava das discussões do katarismo,
148
E escrevia: “Imagino ele sentado na frente da sua mesa perto dos escritórios do presidente, talvez
inclusive observando a praça Murillo desde um de esses escritórios do Palacio Quemado que ressistem
ao tempo, com móveis que faz décadas deixaram de brilhar, e aonde chega-se subindo escadas e
atravessando recantos que nunca foram pensados para um prédio de essas características”. Esta é uma
descrição exata do despacho de um dos assessores de Evo Morales, o argumento de Dalmau (2008) era
que a incorporação dos dois terços na lei de convocatória da Assembléia era uma previsão adequada
para o Parlamento, onde é necessário um consenso maior para que não se imponham minorias, mas
não no marco de uma Assembléia, onde haveria um referendo aprobatório da Constituição. Em sua
opinião, uma minoria de um terço teria em suas mãos a decisão, decidindo sobre a maioria.
213
ainda que Roman Loayza acrescentasse um setor de Cochabamba, onde os cocaleros e
camponeses mais nacionalistas hegemonizavam mais que os indianistas.
Mencionava os camponeses no centro, que era o lugar que Román procurava
controlar como na época em que foi líder da CSUTCB. Mas a força política dos
camponeses estava nesse tempo afastada desse centro imaginário, e se aproximava aos
dois extremos imediatos na mão de Wenceslao, correspondentes para ele aos setores que
hoje decidiam. Um é o da esquerda socialista, que contava com alguns ministros e na
Assembléia se identificava com Roberto Aguilar e Armando Terrazas, o outro o
identificava com a direita e mencionava o MSM do alcalde de La Paz, alguns assessores
na Assembléia e alguns dos ministros influentes como Arce, Quintana e San Miguel
149
.
Estes eram os três nós centrais dos dedos de sua mão, e no esquema ainda acrescentava
os nós do mindinho e do polegar, reservados para PODEMOS de um lado e “el Goni
do outro. García Linera e Carlos Romero eram localizados por ele entre os camponeses
e a direita. Wenceslao estava desconforme com o curso da Assembléia, e pensava que
esta tinha que retomar um papel de protagonista e fechar o Congresso. O melhor
argumento para fechá-lo era que o Senado tinha freado já 97 projetos de lei, dizia.
Wenceslao pensava que fechar o Congresso era melhor que rodeá-lo, como
tinham feito os de El Alto em 2003. Também criticava que houvesse desconexão no
MAS e que não se tomassem decisões coletivas. Sobre a estratégia para a Assembléia,
pensava que tinha que desconhecer os acordos com a oposição e levar a referendo duas
constituições. A construção de um centro criava dissidência, e Román Loayza
terminaria excluído por Evo Morales e abandonaria o MAS, apresentando-se como
candidato alternativo em 2009 e aumentando a lista de fundadores do MAS ou ex-
aliados afastados do governo. De todos modos, como a construção de um centro do qual
pudesse nascer um novo Estado era uma procura às cegas, a constelação de propostas
impulsionada por esses anos, a possibilidade de uma mudança de rumo e de procurar o
centro em outro lugar continuavam presentes.
Por outra parte, a partir do grupo que trabalhava o projeto de Constituição,
continuava-se com o trabalho “técnico” de construir e refinar um marco constitucional
149
Alguns constituintes urbanos podiam ser considerados a direita do MAS, por suas posições em várias
discussões, muitas vezes com um discurso formalista pela legalidade parecido ao da oposição. O MSM
era um partido de mestiços urbanos, com sua base na cidade de La Paz. Mas não pode ser englobado na
direita se vemos, por exemplo, seu papel em Visão País e Autonomia, quando se aliaram com o setor
indígena plurinacional, apesar do partido também ter manifestações em sentido contrário. Em 2010, o
MSM se independizará do MAS, mas não se aproximaria aos indígenas, e tampouco à oposição ao MAS
de direita. Tenta encontrar um lugar fora do MAS, mas “dentro do processo de mudança”.
214
desde certa idéia de centro determinada por alguma equação entre as milhares de
propostas recebidas; a correlação de forças no MAS e na Assembléia; o trabalho de anos
de ONGs com organizações sociais; idéias inspiradas em processos de outros países: a
redação dos primeiros relatórios e sugestões do Poder Executivo. Tudo isso começava a
apresentar a silhueta de um novo Estado e, à diferença de meses atrás, em outubro de
2007 havia um texto de Constituição; apesar de que tinha ainda um difícil processo
político por diante antes de entrar em vigor e puder ser implementado.
215
Capítulo 3
A questão da capitalidade.
1 A demanda de Sucre.
Enquanto o MAS elabora seu projeto de Constituição, o conflito em torno de
qual deveria ser a capital da Bolívia, a questão da “capitalia” ou “capitalidade”, começa
a envolver e ameaçar o processo em seu conjunto. A classe, a etnia, e inclusive a
autonomia e o Estado Plurinacional foram ofuscados pela reivindicação de Sucre, que se
transformou em um conflito político de escala nacional, por mais que a memória da
guerra federal vinculado com esse assunto também recolocaria as imagens do
colonialismo, como veremos. Sucre tinha um status formal de capital do país, mas era
sede somente do Poder Judiciário. Era agosto de 2007 e os ventos carregavam o gás
lacrimogêneo lançado no dia anterior pela polícia para dispersar os estudantes que se
manifestavam a favor da “capitalia”. As passeatas de estudantes se tornaram rotina em
Sucre a partir do momento em que o conflito que eclodira no final da fase de comissões
passou a ocupar o centro político da Assembléia Constituinte. Pela primeira vez um
governo indígena e de esquerda foi defendido por policiais e militares contra estudantes.
“Antes queríamos um mundo sem militares e agora precisamos deles”, me disse Sacha
Llorenti, colaborador próximo de Evo Morales
150
.
A questão impeliu a população de Sucre a se mobilizar no seu dia-a-dia, sob a
convicção de que a “capitalia” traria emprego e desenvolvimento para o departamento.
Entre os constituintes primava a frustração, por não poder reiniciar o trabalho após a
ampliação do prazo. Arias, dono do canal de TV Univisión, eleito para a Assembléia
pelo MAS de Santa Cruz renunciou. Jorge Lazarte pediu licença e viajou para Paris para
realizar atividades acadêmicas na Sorbonne. Alguns pensavam que o governo não
fazia questão da Assembléia, e não faria nada para salvá-la. Era corrente o argumento de
que não houve uma pré-Constituinte e que muitos erros foram cometidos na lei de
convocatória. Muitos pensavam que a Assembléia se encerraria sem alcançar resultados,
150
Sacha Llorenti presidiu a Assembléia Permanente de Direitos Humanos (APDH-Bolívia) e apoiou os
cocaleros mesmo antes da ascensão do MAS à presidência. Era o vice-ministro encarregado da
coordenação do governo com os movimentos sociais e seria nomeado ministro do Governo encarregado
da polícia em 2010. Alguns clamavam por uma ação mais firme da polícia contra os manifestantes em
Sucre. Havia rumores de que a polícia não reprimia pois suas autoridades estavam receosas pelo
relatório da Comissão de Segurança e Defesa na Assembléia, após o confronto entre congressistas,
policiais e militares da comissão.
216
de forma que em poucos anos haveria uma nova Assembléia. Ada Jiménez, assembleista
do MAS, alegava que mesmo com o ano anterior tendo passado rápido, muitos
assembleistas sentiam como se houvesse passado cinco anos. Muitos falavam de stress
ou de doenças atribuídas à tensão política à qual estavam expostos.
Na fase de comissões, o tema foi abordado pelos relatórios de minorias das
comissões do Poder Judiciário, do Poder Legislativo e do Poder Executivo, vinculados
diretamente com os poderes do Estado. Na Comissão de Outros Órgãos do Estado, o
tema estava no relatório da maioria, com a participação de Orlando Ceballos, até então
aliado do MAS, eleito pelo Movimento Bolívia Libre (MBL). O tema também foi
levado em consideração nas comissões de Hidrocarbonetos e de Autonomia, nesta
última com o voto de Mario Oña, que abandonou a aliança que selara com o MAS nas
primeiras semanas de trabalho da comissão para se aproximar da Meia-Lua. Na
tentativa de neutralizar o assunto, o MAS tentou propor na Comissão de Poder
Judiciário que a capital passasse a ser em Potosí ou em El Alto, nesta última em
homenagem à luta do povo dessa cidade na guerra do gás de 2003.
À intransigência dos sucrenses, somava-se a do MAS e dos cinqüenta
constituintes de La Paz das diversas forças políticas que rechaçavam o tratamento do
tema e ameaçavam regressar ao departamento. La Paz também não estava de acordo
com submeter o tema a um referendo, inclusive com um cálculo favorável na virtual
votação graças aos votos leais do MAS no ocidente. Apesar de se impor nos votos, o
referendo poderia “dividir o país”. Por ter sido incluído nas pautas das comissões,
segundo o regulamento dos debates, o tema deveria ser contemplado obrigatoriamente
nas plenárias e assim, pelo mecanismo regulamentado, caso não fossem alcançados os
dois terços, seria submetido automaticamente a um referendo popular. Além dos votos
favoráveis à “capitalia” dos constituintes da Meia-Lua, a Junta Autonômica formada
pelos comitês cívicos e governos dos quatro departamentos onde se impôs o “sim” no
referendo pela autonomia de 2006, assinou resoluções a favor da pauta. O conflito, no
entanto, também produziu divisões em PODEMOS, que seus constituintes provindos
de La Paz não apoiavam a medida.
A pauta foi introduzida lentamente no processo constituinte. Em novembro de
2006, em um encontro da Federação de Associações Municipais da Bolívia (FAM-
Bolívia), o presidente do Conselho Municipal de Sucre, Fidel Herrera, eleito pelo MBL,
que se declarava progressista mas também foi candidato a segundo Senador por
Chuquisaca em 2005 com PODEMOS, apresentou a moção para que na nova
217
Constituição se incluísse o caráter de “capital constitucional” da cidade de Sucre,
ausente na Constituição de 1967, além da transferência dos poderes. A proposta contou
com o apoio de todas as capitais exceto La Paz. Não se tratava de um conflito regional
instalado, mas apenas de movimentos de alguns dirigentes. Prova disso é que os
funcionários da prefeitura, que futuramente tomariam a frente nas mobilizações pela
pauta, impulsionaram uma mobilização política após a inauguração da Assembléia em
agosto de 2006, na qual foi elencada uma rie de reivindicações ao governo do MAS,
embora não se tocasse no assunto da capitalia”, segundo reporteava o jornal sucrense
Correo del Sur
151
.
Quanto aos argumentos políticos da oposição, o tema principal era o do “respeito
à legalidade” e “a defesa da democracia”. O Comitê Interinstitucional reivindicava que
o tema “capitalia” fosse contemplado pela Assembléia e eventualmente submetido ao
referendo, tal como previa o regulamento, alegando que não se oporiam caso a proposta
fosse rechaçada por dois terços. Também exigiam que a sede da Assembléia não fosse
transferida e, em última instância, que fosse respeitado o status de Sucre como capital,
transferindo para todos os poderes de governo. Conversando com a população de
Sucre, podia-se notar que era considerável a força da aliança política estabelecida com a
Meia-Lua, em uma região onde se tinha votado em peso pelo MAS e por Evo Morales
em 2005 e 2006. As pessoas começaram a fazer circular comentários a favor das
reivindicações de Santa Cruz, o que não acontecia até então, sob pretexto de que os
habitantes de Santa Cruz são mais hospitaleiros que os de La Paz, ou que para Sucre
seria conveniente do ponto de vista econômico olhar para o Oriente.
O MAS via com preocupação esta aliança com aqueles que no ano anterior
quase conseguiram inviabilizar a Assembléia com a demanda de “dois terços” sobre o
modo de aprovação. Paulo Rojas, do MSM, defendia as consignas “La Paz capital do
151
Em novembro de 2006, o deputado de PODEMOS Fábio Porcel defende a “capitalia plena” na
Assembléia. Os constituintes de Chuquisaca procuram se incorporar às direções de todas as comissões
para introduzir a proposta. Em março inaugura-se o Comitê Interinstitucional pela Capitalia Plena, com
uma manifestação de milhares de pessoas. De acordo com a imprensa, se trata da manifestação mais
importante em muito tempo na cidade. Dias depois, o tema entra pela primeira vez como pauta formal
na Assembléia, quando se realiza o Fórum Territorial para receber propostas em Sucre. As autoridades
locais entregam a proposta à presidente Sílvia Lazarte. Logo o tema entraria em pauta nas comissões e a
posição do MAS é não considerar o assunto para evitar o enfrentamento entre regiões. Mas ainda o
tema não tinha a força que obteria pouco tempo depois. Em uma das revistas editadas pela vice-
presidência com “Reflexões sobre a conjuntura” de García Linera (2007), o vice-presidente afirma que
no ato do 25 de maio de 2007, autoridades locais teriam se aproximado dele para falar sobre a capitalia,
explicitando sua disposição a transferir pelo menos o poder legislativo. A posição posterior mais
intransigente, e pedindo os três poderes, era para García Linera, sinal de que por trás da reivindicação
havia intenções políticas desestabilizadoras.
218
Estado Plurinacional e Sucre capital da nação camba” tal como também afirmavam
categoricamente os líderes cívicos de Sucre e Santa Cruz, propondo a convocação de
outra Assembléia. Isso também se encontrava como eco nos horizontes políticos dos
sucrenses. Uma professora da Faculdade de Direito me disse “não queremos ser do
mesmo país que eles”, referindo-se aos pacenhos, que nesse momento apareciam como
centralistas, embora em julho do ano anterior Chuquisaca tenha votado pelo “não” no
referendo pela autonomia.
La Paz reagiu com força e em 20 de julho realizou uma concentração popular em
El Alto, que ficou conhecida como o “cabildo dos dois milhões”, para superar
numericamente o cabildo do milhão” realizado em Santa Cruz e em outros
departamentos em 15 de dezembro de 2006, em torno da questão dos dois terços. O
número era exagerado, uma vez que a população de La Paz e Alto totalizam 1.704.293
habitantes, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística, embora sem dúvida tenha
sido a concentração mais numerosa na história do país. A consigna era “A Sede não se
Transfere” e foram votadas algumas resoluções, lidas por Macario Tola, presidente da
bancada de constituintes de La Paz na Assembléia, onde os constituintes de La Paz eram
orientados a impedir que a questão da sede de governo na Assembléia fosse abordada,
definindo um prazo até 6 de agosto para que se eliminasse a questão de maneira
definitiva. Caso contrário, ocorreria uma paralisação departamental indefinida com
mobilização geral nacional e vigília permanente da Assembléia
152
.
Segundo a mídia, os “ponchos vermelhos” de Omasuyos, junto aos pescadores
do lago Titicaca, colonizadores do norte pacenho, cooperativistas mineiros e
comunidades de El Alto ocuparam cerca de três quilômetros de uma das principais
avenidas de El Alto. Juan del Granado, alcalde de La Paz pelo MSM, e as autoridades
nacionais não estavam presentes, e se ouviriam reclamações do MSM ao MAS,
exigindo uma posição mais firme contra a “capitalia” ao passo de criticar também a
intervenção do legislativo para ampliar a Assembléia. O governo procurava manter
152
Nas resoluções se falava também da unidade da pátria e se incentivava a realização de um plano de
desenvolvimento. Sobre o tema da convocatória, era ratificada a “decisão irrenunciável de garantir a
manutenção dos poderes Executivo e Legislativo” em La Paz; se reafirmava “o apoio do departamento
de La Paz ao processo de mudança e à Assembléia Constituinte”; e se rechaçava “a intenção daqueles
pequenos setores conservadores antinacionais que querem dividir e enfrentar todos os bolivianos”.
No ato central houve oito oradores, principalmente dirigentes sociais do departamento: Federação
Camponesa, FEJUVE (juntas de vizinhos), Central Operária Regional de El Alto, gremiales (vendedores
autônomos), a Reitora da UMSA e a FAM, além de Macario Tola pelos constituintes e Luis Revilla, futuro
prefeito de La Paz pelo MSM nas eleições de 2010, então presidente do conselho municipal e
coordenador do Comitê de Emergência de La Paz pela Defesa da Sede do Governo, que convocaram o
ato na Assembléia de La Paz.
219
oficialmente uma posição neutra de “não tomar partido por nenhum departamento”,
falando em garantir a “autonomia dos constituintes”, embora houvesse algumas palavras
de Evo Morales sobre o Cabildo de El Alto, destacando o rechaço à demanda da
transferência de poderes “pela mensagem de unidade nacional”.
Cinco dias depois, Sucre também se mobilizava de modo contundente,
mostrando que não seria fácil contrariar quaisquer das cidades na resolução do conflito.
Eram as maiores mobilizações políticas na história das duas cidades. Em Sucre se falava
de 200 mil a 500 mil pessoas, número também controverso dado o contingente total da
população. O ato ocorreu junto ao Estádio Pátria e o único orador foi Jaime Barrón,
reitor da Universidade e presidente do Comitê Interinstitucional pela Capitalidade
Plena, que também foi o único orador da mobilização de março, dando voz à
reivindicação de Sucre de “constitucionalização de Sucre como capital plena” e
tomando posição contra “o centralismo do Estado e o desequilíbrio entre as regiões do
país”. De modo similar ao discurso pacenho contra a capitalidade plena de Sucre, fazia
uma crítica às “elites reacionárias”, aquelas que defendem o centralismo que “asfixia a
República”. No discurso de Barrón, elaborado pelo Comitê Interinstitucional, também
foi levantada a bandeira da “unidade nacional”, e se fez “um enfático apelo à
democracia”
153
.
Dias depois, em 15 de agosto, com a ampliação da assembléia até dezembro
aprovada no Congresso, em reunião plenária da Assembléia convocada para aprovar o
orçamento e outras questões organizativas, os constituintes de La Paz defenderam um
projeto de resolução da Assembléia que seria um marco na dinâmica do processo. A
resolução proibia a inclusão do tema da capitalidade e foi votada por maioria absoluta
do plenário, provocando a revolta dos constituintes contrários à medida, e em seguida
da população de Sucre. Os manifestantes ao redor do Teatro Mariscal impediam a saída
de cerca de 20 constituintes do MAS. Marco Carrillo, constituinte e porta-voz do MAS,
acenava de uma janela, enquanto lá fora o ameaçavam de linchamento. Os constituintes
saíram após horas. Por sua vez, as instituições de Sucre e seus porta-vozes se
mobilizaram, declarando paralisação cívica, greve de fome, luto e até incendiando pneus
153
Esses eram os pontos básicos da fundamentação: contra o centralismo, pela democracia e pela
unidade nacional. O jornal Correo del Sur anunciava que Gerard Ortiz, Senador do MAS, pilotava um
jatinho que sobrevoava a manifestação, com panfletos a favor da “capitalia”. Os manifestantes gritavam
“transferir a sede”. A mobilização foi convocada como “O Dia do Regozijo pela Capitalidade”, e teve
início às 07h00min com o toque dos sinos das igrejas e uma missa solicitada pelo Comitê
Interinstitucional e a Prefeitura à qual compareceram ministros da Corte Suprema que respondiam
naquela ocasião a um processo impulsionado pelo MAS.
220
e bandeiras wiphalas. Centenas de manifestantes se concentraram em frente ao teatro.
Os comitês cívicos da Meia-Lua solidarizaram-se com cartas endereçadas a líderes
cívicos de Sucre enquanto os constituintes e parlamentares dessa região cogitavam um
recuo aos departamentos (repliegue).
Em sessão de seis horas, na pessoa de Macario Tola o projeto votado de
resolução dizia “dispor que, perante a inexistência de uma comissão específica,
preservando a unidade nacional e a paz social, sejam excluídos dos relatórios de minoria
e maioria e da apreciação plenária da Assembléia Constituinte o tema da capitalidade
plena pela”. A moção impediria também a reivindicação dos cívicos de Sucre de que o
tema fosse submetido a um referendo da população, caso não fosse aprovado no
plenário por dois terços. De um total de 234 assembleistas inicialmente presentes, a
resolução foi aprovada com 134 votos a favor, 73 contra, 6 abstenções e 21 constituintes
que se retiraram da votação. A resolução foi introduzida através do ponto “vários”
inserido na pauta pelo MAS, que desde cedo alertou os cívicos de Sucre. De acordo com
o regulamento, para modificar a resolução do plenário seriam necessários dois terços,
ainda que se tentasse impugnar a votação por questões de forma. A votação foi
precipitada devido a um pedido de La Paz que foi aceito pela presidente Silvia Lazarte,
que, fiel ao seu estilo, iniciou a votação enquanto se discutiam outros pontos de pauta,
em meio a gritos que a acusavam de “ditadora” e “golpista”, vindo dos assembleistas
opositores.
Após a resolução, oito constituintes de Chuquisaca de distintos partidos,
incluindo alguns do MAS, deram início a uma greve de fome e incitaram a ocupação
dos edifícios onde ocorreria a Assembléia
154
. O Comitê Interinstitucional pela
Capitalidade Plena falava em “procedimentos antidemocráticos”, declarando luto,
através de um ato simbólico com faixas pretas “pela morte da democracia”
155
. O
prefecto David Sánchez, eleito pelo MAS, se manifestou contrário à resolução,
colocando à disposição uma sala do Palácio da Prefeitura para acolher aqueles que
154
Eram os constituintes Orlando Ceballos (MBL), Epifania Terrazas (MAS), Sabina Cuéllar (MAS), Álvaro
Azurduy (dissidente do PODEMOS), Oscar Urquizu (PODEMOS), Mario Oña (MBL), Rolando Tejerina
(PODEMOS) y Cirilo Mallón (MBL). À exceção de dois integrantes do PODEMOS, o resto votou junto com
o MAS em 2006.
155
Em poucos dias, o total de pessoas que faziam greve de fome chegava quase a 80, em lugares
designados para jejum, inaugurados pelas empresas locais de água, de eletricidade e de
telecomunicações; pela Federação Universitária, Grêmios Escolares, a Central Operária, e sindicatos de
trabalhadores universitários, entre outros que aderiram à greve, funcionários e autoridades. Também
houve adesão de parlamentares, da prefeitura. O Comitê Interinstitucional anunciaria semanas depois a
presença de 600 pessoas em greve de fome, mas a imprensa estimou esse número em torno de 200.
221
faziam greve de fome. Pouco depois, renunciaria, mas essa renúncia não seria aceita por
Evo Morales, que lhe pediria para se manter no cargo e evitar assim que fossem
chamadas eleições no departamento do conflito. Haveria piquetes de grevistas também
em Santa Cruz, organizado por residentes de Chuquisaca. Alguns estudantes aderiram à
greve de fome, em alguns casos só por um dia, e dizia-se que na sopa dos grevista havia
pedaços de frango. Ada Jiménez, constituinte pacenha do MAS, colocava em questão o
caráter da greve, alegando que via com bons olhos o protesto. Enquanto funcionários da
prefeitura a fotografavam, ela dizia ”façam o que quiserem comigo”.
Os universitários constituíam uma das principais colunas de mobilização. Dizia-
se que os professores obrigavam os estudantes a aderir à marcha, em troca de nota.
Forçados ou não, é certo que as aulas foram suspensas em todas as faculdades. Em
declarações do ministro de Governo, o MAS se referia aos estudantes como um grupo
de jovens alcoolizados ou drogados e violentos. Outra importante coluna era a de
funcionários da prefeitura, de instituições públicas e da universidade, dispensados do
trabalho. Militantes do MAS, como alguns colaboradores da Comissão de
Desenvolvimento Integral Amazônico, com os quais conversei, diziam que a resolução
seria iminente e que haveria confrontos entre marchas a favor e contra a Assembléia.
Pensavam, por sua vez, que a Assembléia teria que ocorrer mesmo que houvesse
derramamento de sangue. Partiam da idéia de que se o tema chegasse a um referendo, os
confrontos seriam ainda mais violentos. Um constituinte considerava que suspender por
um mês a Assembléia não seria legal, porém politicamente correto. De acordo com sua
análise, isso “levaria a uma paralisação em Sucre, mas apenas em Sucre, cidade que não
existe”. Um constituinte de Chuquisaca afirmava que o governo adotava uma posição
tendenciosa e não queria diálogo, visto que La Paz tinha 1.300.000 votos e Chuquisaca
só 240.000.
Depois de dois dias, ficou claro que a medida impulsionada por La Paz, a fim de
colocar a Assembléia novamente em movimento, na verdade a paralizou. Os habitantes
de Chuquisaca exigiam que as pautas das comissões fossem respeitadas como condição
para retomar a sessão. Sucre não permitiria a continuidade da Assembléia caso o tema
da transferência dos poderes não fosse tratado, considerando ilegal a forma com que o
tema foi excluído da pauta. Nesse sentido também houve uma sentença judiciária de um
tribunal de Sucre, que a Diretoria da Assembléia se negou a considerar. Salvo por seus
membros de La Paz, o PODEMOS confluiu com a posição do ComiInterinstitucional
de Sucre. Guillermo Richter afirmou que o MNR também estava contra a resolução.
222
Uma assembléia dos cocaleros do Trópico de Cochabamba caracterizou o tema da
capitalidade como “ente para distrair”, colocando-se em estado de alerta, prontos para
marchar para Sucre caso considerassem necessário
156
.
O Comitê Interinstitucional organizou uma vigília para impedir o funcionamento
do fórum até que o tema fosse reintroduzido na pauta. Também foram convocadas
constantes mobilizações ou paralisações cívicas. Vendiam-se ou distribuíam-se
camisetas alusivas à “capitalia” em vários modelos. Setembro se inaugurou com
mobilizações constantes de tal modo que não se encontravam pneus na cidade para se
queimar. Nas paralisações, ruas eram bloqueadas com pedras ou veículos para impedir a
circulação. Havia pedras preparadas nas esquinas para assegurar novos bloqueios de
rua dias mais tarde. Nos atos na praça incitava-se o não reconhecimento da Assembléia.
A palavra de ordem era “capitalia” e os manifestantes de Sucre começaram nesse
mesmo período a gritar por “autonomia”. No dia em que foi excluído o tema da
Assembléia, se escutava inclusive o grito de “independência” e, como reportaram os
jornais do dia, foi muito escutado o refrão de “independência, com a Meia-Lua”.
A Diretoria da Assembléia suspendeu as reuniões plenárias enquanto nos
espaços de negociação tentava-se retomá-las. Não se vislumbrava uma solução para
reiniciar as plenárias, que por sua vez se deparavam com um resultado incerto, que a
busca dos dois terços dos votos também não avançava. Em uma conversa rápida, Fidel
Herrera disse-me que não eram eles quem apoiava a Meia-Lua mas a Meia-Lua quem
tinha se aproximado as reivindicações deles; também disse que não queria o fracasso da
Assembléia e que estava de acordo com o Estado Plurinacional, porém não podia dizer
o mesmo quanto à reeleição e o Congresso Unicameral. Referia-se a um projeto
regionalista “com todos” que a princípio situava-se politicamente ao centro e mais tarde
se abriria para a disputa ideológica. Disse também que, de acordo com suas estimativas,
em um eventual referendo nacional pela “capitalia”, Sucre ganharia. Mirtha Jiménez
denunciou os líderes desse movimento, que segundo ela queriam “levar vantagens
políticas para limpar a imagem de políticos desgastados, corruptos e neoliberais” e que
156
A Confederação Sindical de Colonizadores da Bolívia deu um ultimato a Sucre para conter os
protestos, ameaçando transferir o fórum para outro departamento. A CSUTCB se reuniria em Sucre para
decidir sua posição em 23 de agosto, quando venceria o prazo que os cívicos de Sucre outorgaram à
Assembléia para reincorporar o tema. A Federação de Camponeses de Chuquisaca anunciava a marcha
de sete mil camponeses rumo a Sucre para defender a Assembléia. Também havia declarações à
imprensa de Adolfo Chávez, presidente da CIDOB, que dizia que a Comissão Nacional desta organização
estabeleceu que, caso Sucre não permitisse avançar no tema da Constituinte, ocorreria um cerco a essa
cidade por parte dos povos indígenas da Amazônia, do Chaco e do Oriente boliviano.
223
para tal, “enganavam e mentiam para a população alimentando falsas esperanças de uma
demanda que não era possível de se realizar”
157
.
Em uma exposição de seu ponto de vista, frente a seus companheiros da bancada
constituinte do MAS, Carlos Romero explicou que o tema não se restringia à questão da
“capitalia”, mas apontava também para uma divisão do país. Para Romero, deslocar a
sede de La Paz implicaria em isolar os movimentos sociais da região andina e estaria
vinculado a um projeto federalista, quase de confederação: o projeto de autonomias. O
constituinte criticou que o MAS tivesse sido contra as autonomias, “foi um erro político,
levando em conta o processo democrático, que tem primazia em todo o mundo”. Agora
nós defendemos as autonomias e eles reivindicam muito mais que isso: aspiram à
autonomia legislativa sobre competências nacionais, continuava. Querem autonomia
sobre os recursos naturais não renováveis, que corresponde à base da sua estrutura de
poder. Os habitantes de Tarija não podem dizer ao país que querem para si o gás pois
seriam amplamente rechaçados. Dizem, porém, que cabe ao departamento deliberar
sobre as regalias (coparticipação estatal) e os impostos sobre o gás. Querem controlar
os recursos. Isolariam o ocidente do país. Chegado o momento oportuno, dariam uma
patada no Ocidente para o Peru ou fariam com que se submetesse. Mas “capitalia” rima
com “autonomia”, de acordo com sua leitura, expressava.
Carlos Romero denunciou também a intervenção da Liga Sucre no conflito,
apoiada pela Maçonaria e pelas duas poderosas confrarias (logias) de Santa Cruz (que
controlavam as cooperativas de serviços públicos e outras instituições). Essa coligação
se conformou durante o processo de responsabilidades (julgamento) dirigido ao ditador
García Meza, por gente beneficiada pelo regime, que nesse momento agrediram e
perseguiram aqueles que impulsionavam o julgamento. Romero denunciou frente à
imprensa que a Liga era ultra fascista; de que seu setor mais linha dura, que liderava a
demanda pela capitalia”, coincidia bastante com o PODEMOS ainda que pretendesse
reviver a Falange Boliviana como espaço político. Alertava também para os vínculos
políticos e de parentesco entre líderes do protesto em Sucre e os cívicos crucenhos.
157
Foram quatro os líderes midiáticos do protesto, aos quais os meios de comunicação recorriam
diariamente: Aydee Nava, prefeita, que agitou seus funcionários, perdendo o mandato por denúncias de
corrupção impulsionadas pelo MAS; Jaime Barrón, reitor da Universidade San Francisco Xavier e
presidente do Comitê Interinstitucional, que seria eleito prefeito de Sucre em 2010 e também perderia
seu mandato por denúncias de responsabilidade em um episódio racista; Fidel Herrera, presidente do
conselho da cidade, que seria preso em 2009 pela denúncia de sua filha por abuso sexual: e Jhon (sic)
Cava, presidente do Comitê Cívico Pró Interesses de Chuquisaca (CODEINCA), que em abril de 2010
perderia as eleições para governador de Chuquisaca para outro protagonista do conflito da “capitalia”,
Esteban Urquizu, constituinte do MAS e líder camponês.
224
Romero dizia que alguns o teriam acusado de louco, diziam que ele pensava estar em
Santa Cruz, mas o diretor do jornal El Correo, defensor da causa da “capitalia”, teria
confirmado que suas denúncias das confrarias eram todas verdadeiras
158
.
Enquanto a Assembléia permanecia suspensa, Román Loayza, presidente da
bancada do MAS, declarava ao jornal La Razón que “não importa que fracassemos, nós
somos a maioria absoluta, somos orgânicos e não nos intimidamos, não deixaremos que
impeçam a nova Constituição Política do Estado”. No MAS se falava em transferir a
sede da Assembléia para Cochabamba, Potosí ou Oruro, embora isso não fosse possível
sem uma nova e improvável intervenção do Congresso, uma vez que a sede em Sucre
estava definida na Lei de Convocatória à Assembléia. Ocorreram reuniões entre o
governo e os dois departamentos coligados, às quais toda a população de Sucre
acompanhou, seguindo o curso do conflito passo a passo pelo rádio, televisão e
comentários entre conhecidos. Após assistir à mobilização de La Paz, alguns em Sucre
pensavam que seria mais razoável participar do Poder Legislativo. Porém os
dirigentes estavam determinados e pareciam apostar no tudo ou nada: “Capitalia Plena”.
1.1 A Questão Capitalia de 2007 a 1825.
“Questão Capitalia” foi o nome dado ao conflito que ocorreu no culo XIX
sobre a sede dos Poderes, travado entre as cidades de La Paz e Sucre, que então se
chamava Chuquisaca e, no período colonial, La Plata e depois Charcas como capital da
Audiência, dependente inicialmente do Vice-Reinado do Peru e desde 1776 do Vice-
Reinado de Rio da Prata. O conflito surgiu junto com a formação da nova pátria,
independente a partir de 1825. Segundo Condarco, em seu livro consagrado ao caudilho
indígena Zárate Willca e sua participação na “guerra federal” (1983) que concedeu a
capitalidade à La Paz, Sucre era um lugar inadequado para sediar os poderes, sendo só o
158
Além do núcleo duro, Romero informava também que Aydeé Nava estava formando um partido
político que se chamaria País. Prepararam uma campanha colossal com cartazes (“Sucre, nenhum passo
para trás”), sob a liderança regional e municipal de Tuto Quiroga. Eram os mblistas associados a Santa
Cruz e Tommy Durán, que formalmente ocupava um cargo técnico na Prefeitura de Sucre, mesmo sem
ter o diploma necessário. Quiroga é presidente do Comitê de Luta pela capitalia plena, responsável por
orquestrar os grupos de choque em coordenação com a Unión Juvenil Cruceñista, operando pelos
mesmos procedimentos que em Santa Cruz, com bastões de baseball. Também alegava que a prefeitura
de Sucre está apodrecida em corrupção, com 23 denúncias judiciais contra Aydeé Nava e seu ex-marido.
Toda a família de AyNava ocupa cargos na prefeitura e ela recebia cinco salários: como prefeita, em
FANCESA e no EMAS, na APAS e em outras entidades. Marcos Bustamante, seu ex-marido, era Oficial
Mayor da prefeitura, mas morava e trabalhava em Santa Cruz. Romero também mencionava os
familiares de Fidel Herrera com cargos na prefeitura e uma nora na CAINCO.
225
interesse de políticos poderosos, o que explicaria essa localização da capital. Uma vez
impugnada por razões climáticas a proposta de realizar a assembléia na cidade de Oruro,
segundo Condarco, os “espertos doutores de Charcas” teriam transferido a assembléia
de 1825 para a “Cidade Branca”, convocada pelo marechal Sucre para definir “a sorte
das províncias do Alto Peru” (:64-65 trad. nossa).
O primeiro corpo legislativo da república boliviana definiu que a capital da
república se chamaria Sucre, e declarou Chuquisaca como sede provisória do governo,
dando ao libertador Simón Bolívar o poder de escolher o lugar em que se estabeleceria a
nova capital com o nome de Sucre. Bolívar se inclinou por Cochabamba, e o marechal
Sucre mandou construir a sede para o Executivo e o Legislativo. Mas a transferência
não se concretizou. sem os líderes Sucre e Bolívar, os interessados conseguiram a
aprovação de uma lei, em 1839, que declarava que a capital seria a antiga Chuquisaca, e
que para acatar a deliberação da primeira assembléia, levaria o nome de Sucre. A
Constituição, no entanto, autorizou o Executivo a realizar suas sessões em qualquer
cidade do país. Tanto o presidente como o Congresso realizaram suas sessões em
cidades diferentes por vários anos. No debate pela “capitalia” que acompanhava esse
vai-e-vem, La Paz usava exageradamente o argumento de que foi nessa cidade onde o
governo teria se instalado mais vezes, escreve Condarco, embora segundo com algumas
fontes no século XIX o Congresso teria se reunido 29 vezes em Sucre, 20 em La Paz e
10 em outras cidades. Em 1898, o Congresso declarou “residência permanente” do
Poder Executivo em Chuquisaca, levando à eclosão da Guerra Federal.
Além da disputa pela capitalidade, as duas cidades foram marcadas por
polêmicas acaloradas entre historiadores de La Paz e Chuquisaca, sobre a primazia de
suas cidades como lugar do “primeiro grito libertário lançado na América do Sul”,
interpretando o sentido autonomista de 25 de maio de 1809 em Chuquisaca e em 16 de
julho do mesmo ano em La Paz. Também houve resoluções do Parlamento,
impulsionadas por La Paz, conferindo a esta cidade a “capitalia” ou capitalidade. O
governo vigorou nessa cidade entre 1828 e 1846. Em novembro de 2007, o der da
Central Operária de El Alto, Edgar Patana, expôs os argumentos favoráveis a que a sede
do governo fosse La Paz, e disse que havia se instaurado uma sede de governo desde
1828 na Praça Murillo, enquanto em Sucre o governo era exercido a partir do Palácio
Arcebispal. Eram as primeiras décadas de vida de um país conformado pela união de
algumas províncias coloniais, relativamente auto-suficientes, sem conexão entre si, e
226
com soberania sobre vastos territórios relativamente despovoados mas com valiosos
recursos naturais
159
.
Em 1871, o Parlamento tinha discutido também a possibilidade de transformar a
Bolívia em um país federal, outra reivindicação regionalista que voltava em 2007 com a
demanda de autonomia. Mas, pela diferença de apenas um voto, a votação em 1871 foi
favorável ao sistema unitário. Condarco acrescentou que naquelas discussões, “mais que
uma aliança do povo de La Paz, se tratava da ambição de seus homeins de partido,
aspirantes aos altos cargos de Estado, que agitaram o espírito regionalista da inocente
cidadania local” (:67). O mesmo se dizia dos doutores de Sucre nesse período, e seria
repetido em 2007. Tratava-se de uma disputa entre as elites que sempre governaram o
país. Mas o certo é que durante a Assembléia Constituinte o povo de Sucre, os
estudantes e habitantes dos arredores da cidade articularam manifestações pela
“capitalia”, palavra que ressoava nos ouvidos de qualquer um que passasse por Sucre
em 2007, pelo canto insistente dos manifestantes nas repetidas passeatas pela cidade.
Foi impulsionado por um grupo de dirigentes, como a demanda de autonomia em Santa
Cruz, mas se converteu em reivindicação popular.
Quando a Assembléia Constituinte foi inaugurada com um desfile dos povos
indígenas em Sucre em 6 de agosto de 2006, dia da Independência da Bolívia, a cidade
parecia tranqüila e recebeu a Assembléia sem sobressaltos e com hospitalidade. Porém o
conflito da “capitalia” transformou totalmente o clima de Sucre. De acordo com
Condarco, Fernández Alonso, se tendia para La Paz e “por trás estava sua agradável
cidade, languidamente adormecida e perfumada com a essência de suas hortas floridas,
junto a um passado de vãs esperanças” (:150). A “Cidade Branca”, cujo nome oficial
fora estabelecido em 1843 como “Sucre Ilustre e Heróica” tem um ar colonial, que
também se observa na presença importante de camponeses que chegam a mendigar nas
ruas da cidade no Natal ou a vender nos mercados, mas que parecem ser de fora da
159
A República da Bolívia (inicialmente República de Bolívar) surge em 1825 com as quatro antigas
províncias da Audiência de Charcas que se convertem nos departamentos de Chuquisaca, Potosí, La Paz
e Cochabamba. No ano seguinte são criados os departamentos de Santa Cruz e de Oruro,
desprendendo-se de Cochabamba e de Potosí. Tarija, que era parte de Potosí, em 1831 é incluído e Beni
é criado em 1842. Posteriormente se inaugura o distrito Litoral, antiga extensão de Potosí, perdido na
guerra com o Chile (1879) junto à saída do país para o mar. Em um tratado de 1889, a Argentina anexa
territórios em disputa com a Bolívia, ao mesmo tempo em que renuncia a Tarija e Chichas. O último dos
nove atuais departamentos da Bolívia a ser criado é Pando, que tem origem em 1938 com a parte das
colônias do nordeste que restaram à Bolívia após a perda do Acre e a guerra com o Brasil. Como
consequência desta guerra, a Bolívia perdeu também territórios com o Peru, país com o qual esteve
confederado entre 1837-1839. Finalmente, como consequência da Guerra do Chaco (1932-1935), a
Bolívia também perde territórios disputados com o Paraguai.
227
cidade, reservada aos “vizinhos” que como nos tempos da Audiência de Charcas tratam
com exclusividade dos assuntos públicos da cidade e tem saudade do tempo em que por
lá também passavam as decisões da nação
160
.
O ar de metrópole colonial também confere a Sucre certo orgulho por ter sido
sede da Audiência, tribunal administrativo sobre um vasto território que vai do sul do
Peru ao norte da Argentina incluindo o Paraguai ao leste, que se estabeleceu em 1559;
do Arcebispado de La Plata; da Universidade fundada em 1624, onde hoje estudam
jovens de toda a Bolívia e se formavam os “doutores de Charcas” que no século XIX
participaram dos movimentos de independência de vários países da América hispânica;
e da Casa da Liberdade onde se assinou a certidão de nascimento da república em 1825.
Algo desse brio se fazia sentir quando os manifestantes de Sucre cantavam “pelo
desenvolvimento integral, luz e verdade”; “Sílvia, Lazarte, chola ignorante”; “Evo, volte
pra escola, Lazarte pra cozinha”; ou em 2007, quando o arcebispo, a alcaldesa (prefeita
da cidade) e o reitor; constituintes de Chuquisaca; a ordem de advogados e outras
instituições, defendiam a causa da capitalia, com a contribuição dos tribunais judiciais
que emitiam sentenças no intuito de impugnar as decisões da Assembléia.
Claro que também teriam “outras” Sucres, começando por um departamento
majoritariamente camponês, que fala quéchua, pobre e sem força econômica, que elegeu
um prefecto do MAS em 2005, apenas junto com os departamentos de Oruro e Potosí.
Ocorreu uma mudança radical de signo político que também aconteceu em 1899,
quando a juventude de Sucre aderiu ao exército liderado pelo presidente conservador
Alonso, para lutar contra os deres liberais de La Paz que até então admiravam; ao
passo que em La Paz os conservadores apoiaram na guerra ao liberal Pando. O crescente
rechaço contra La Paz encontrava eco nos gritos de “quem não pula é lhama”, e em
expressões racistas dirigidas aos indígenas, como também ocorreu na cidade de
Cochabamba, em fevereiro de 2007, com o enfrentamento entre camponeses e
“vizinhos” da cidade. Ou quando no hotel mais importante de Sucre, o Sucre Grand
Hotel, situado em frente à praça, se recusou a hospedagem de constituintes de pollera,
enquanto foram hospedados constituintes engravatados da oposição; e como se repetiria
160
Na cidade se sente o ritmo conservador, que remete ao passado, com jovens que saem até as dez
da noite, e cidade que pára na hora da siesta. Sucre foi tombada como patrimônio cultural pela UNESCO
em 1991, por sua arquitetura hispânica colonial bem conservada com praças, jardins, parques, colunas
greco-romanas, fontes talhadas em granito, igrejas antigas, ruas de paralelepípedo e casas de telhas de
cerâmica no centro da cidade, pintadas rigorosamente de branco.
228
de maneira mais grotesca em maio de 2008 com setores cívicos forçando camponeses a
se ajoelhar.
Frente a este cenário colonial de Sucre, marcado por conservadores arcaicos que
não alteraram um milímetro sequer da relação que seus pais e avós travaram com as
comunidades indígenas ou camponesas, se fortalecia a imagem da Bolívia popular e
indígena que o projeto do MAS na assembléia procurava aprovar, e o das “duas
Bolívias”. A imagem de Zárate “O Terrível” Willka aparecia novamente, com a
lembrança dos jovens de boa família de Sucre que foram massacrados, e cujo sangue foi
bebido em Ayo Ayo quando se dirigiam na operação militar para tentar submeter a
rebelião dos liberais de La Paz que não aceitavam a “Lei da Radicatoria que designava
Sucre como capital. Os liberais de La Paz recorreram ao exército do Estado Federal
declarado por Willka contra a elite de Sucre. Os líderes da causa da capitalia em 2007
reivindicavam também a memória dos criollos que realizaram a independência em
1825, como movimento pela liberdade e a república que não tinha muito a ver com os
indígenas.
Na disputa política pela volta ao trabalho da Assembléia, o MAS aludia à guerra
federal não só como estratégia de comunicação, senão também porque a estrutura
narrativa se repetia com ataques a um governo indígena, cantos racistas, e constituintes
como Félix Cárdenas, eleito na região de donde era oriundo o terrível Willka; Nancy
Flores Barco, que se apresentava como bisneta de Santos Marca Tola, líder de um
levante em 1904, que ela descrevia como “uma espécie de secretário de Zárate Willka”.
Nancy Flores chegou à Assembléia “para velar pela dignidade das mulheres de pollera
que somos bastante humilhadas”, dizia, tinha sido “autoridade originária” na sua
comunidade e em seguida, dirigente na FEJUVE de El Alto. Em Sucre sentiu os efeitos
da guerra federal em sua própria pele quando foi agredida por empregados da alcaldía
(prefeitura) que a intimidavam, perseguindo-a com câmeras pelas ruas da cidade,
quando percebiam que ela era de La Paz por sua manta, saia bolada e chapéu.
A leitura das “duas Bolívias” tinha sentido se vemos que a Federação de
Camponeses de Chuquisaca, não aderia às posições do Comitê Interinstitucional pela
Capitalidade Plena. Mas as posições a favor ou contra a reivindicação cortavam
transversalmente os partidos e os meios urbanos e rurais. Dos 16 constituintes de
Chiquisaca que integram o MAS, 10 se mantiveram fiéis às posições do resto da
bancada e do governo; e outros do campo e da cidade aderiram à greve de fome,
acompanhavam e davam relatórios nas reuniões do Comitê Interinstitucional, além de
229
participar dos protestos, ou assumiram uma posição oscilante. Um dos casos
emblemáticos foi o de Sabina Cuellar, dirigente sindical camponesa, que se apresentava
como prova de que não era uma questão de advogados criollos da cidade e que seria
eleita Prefecta (governadora) em 2008, como representante do Comitê
Interinstitucional
161
. Também foi emblemático o líder camponês Esteban Urquizu que
se manteve fiel ao governo e seria eleito governador, após o mandato assumido por
Sabina chegado ao seu fim. O que mais se aproximava ao estilo “Doutor de Charcas”
era o constituinte de PODEMOS Jaime Hurtado, ex presidente da Ordem de Advogados
de Chuquisaca
162
.
O espírito colonial de Sucre permitia colocar em 2007 a hipótese de que por trás
da demanda de Sucre havia uma oposição conservadora contra o governo camponês
indígena do MAS. Nesse sentido ia o governo interpretava a aproximação que houve
então entre os cívicos de Chuquisaca com os de Santa Cruz. Outros entendiam que o
conflito da capitalia em 2007 não tinha a ver com aquelas antigas rivalidades mas sim
com a reivindicação de uma região atrasada frente ao centralismo dos poderosos.
Também se ouvia nas passeatas o canto que clamava por uma “Bolívia soberana, não
venezuelana”. Ao mesmo tempo, alguns membros do Comitê Interinstitucional
procuravam desfazer a associação da reivindicação com a elite colonialista.
A imagem da guerra federal, não trazia para o centro da cena apenas o quadro de
indígenas contra conservadores criollos, além do presidente aymara atacado por uma
elite que levantavam a bandeira “Sucre de pé, Evo de joelhos”. Outros ressaltavam que
depois de pedir o apoio indígena, os liberais de La Paz lhes deram as costas,
continuando com o processo de expropriação de terras, instaurando outro governo
criollo colonial. Era a posição dos indígenas que denunciavam às oligarquias tanto de
La Paz como de Chuquisaca em suas disputas de poder, que lembra as posições
161
Foi alfabetizada pelo programa Yo Si Puedoque os cubanos levaram a Bolívia. Mas por sua origem
camponesa e por sua adesão ao MAS, ela começou a ser comparada com Malinche, a mulher asteca que
traiu seu povo aliando-se a Hernán Cortez, no México. tinha se enfrentado ao MAS quando, impelida
por sus convicções religiosas, votou pelo direito à vida desde a concepção, divergindo dos outros
constituintes. A diferença de outros, depois de instaurado o conflito e chegado uma ordem de cima, ela
não mudou seu voto.
162
Era o encarregado de apresentar os argumentos legais da reivindicação. Depois da aprovação da
resolução de 15 de agosto, apresentava onze irregularidades frente aos meios de comunicação e dois
tipos de procedimentos para impugná-la: “a reapreciação da votação de quarta-feira ao amparo do
artigo 71 da CPE vigente no momento e concordante com o Pacto de San José, que consta que toda
norma tem direito a ser revisada; e também apelar ao artigo 120 da CPE vigente, onde se estabelece o
recurso abstrato de inconstitucionalidade, o amparo constitucional, o recurso direto de nulidade e,
finalmente, a demanda ao procedimento constitucional”.
230
indigenistas, críticas tanto à esquerda quanto aos partidos nacionalistas ou liberais no
século XX, ou que por sua vez acusam Evo de ser enganado por um entorno
blancoide”. Assim, a volta ao tema da capitalia remetia ao fato de que depois da guerra
federal, os liberais deixaram os indígenas de lado
163
.
1.2 “Capitalia” e Cúpula Social.
A situação do processo constituinte se reduzia à questão da “capitalia”. A
disputa se dava em termos de confrontação entre verdades irreconciliáveis. Sucre
defendia uma verdade histórica ao se enxergar como capital, para além das leis e da
possibilidade logística da transferência. Os habitantes de La Paz se tinham outra
verdade histórica, mas também uma verdade de fato, determinada pelo poder político
explicitado pela mobilização, que reivindicava que os poderes não fossem transferidos
(“La Sede No Se Mueve”). A outra verdade que fundamentava a posição do MAS
transcendia o tema dos poderes de governo: a verdade do direito dos povos indígenas a
construir um Estado para todos. Era a verdade do Estado Plurinacional, ao qual a elite
racista pretendia impor obstáculos. Frente ao desacordo, restava resolver uma
situação de relações de força: se o tema não era abordado, Sucre não permitiria que se
levasse a cabo a Assembléia. Se o tema fosse discutido, La Paz “recuaria”, retirando os
seus 50 constituintes. Também se falava na possibilidade de se impulsionar um
referendo sobre a transferência do Poder Judiciário, como modo de fazer Sucre desistir
da idéia de referendo.
Em Sucre circulavam rumores em todas as direções. Constituintes eram
agredidos nas ruas ou obrigados a devolver os imóveis alugados. As mulheres de
polleras eram insultadas pelas ruas (“índia” ou chola de merda”) e constituintes como
Esperanza Huanca deixaram de usar sua vestimenta tradicional. Segundo ela, Evo devia
estar mal orientado, Nélida Faldín se referia a um povoado cujos habitantes decidiram
se suicidar e desaparecer para que seus filhos não sofressem como eles tinham sofrido
163
O general Pando prometera a Zárate Willka ser o segundo presidente da Bolívia e devolver as terras
comunitárias expropriadas com a lei de 1874, libertando os colonos das fazendas, em troca de destruir o
branco do sul com seu exército de quéchuas e aymaras. Porém morre com suas terras expropriadas e
seus companheiros na prisão. Após triunfar, com um exército mais numeroso embora menos armado,
na Proclamação de Caracollo declarou que “os indígenas e os brancos se ergueremos para defender a
República da Bolívia [...] ...devem respeitar os brancos ou vizinhos aos indígenas, porque somos do
mesmo sangue, filhos da Bolívia, e devem se amar como irmãos com os índios... previno aos brancos
que dediquem respeito aos indígenas...". Tradução nossa, ver Gisbert et al (2001) e Ari, Marina (2004).
231
no passado. Sonia e Marcelina, que trabalhavam como repórteres para o canal e a rádio
estatal, também foram agredidas. Arrancaram o chapéu e a manta de Sonia, ao passo
que um grupo de manifestantes dirigia-se a Marcelina gritando “vejam, a chola agora
tem celular”. Ela achou graça do fato de as mulheres de vestido que gritavam não
reconhecerem a diferença entre um celular e um gravador digital. Nelly Toro, que tinha
um programa em quéchua às 6 da manhã, filmou uma jornalista do canal Unitel de
Santa Cruz, de oposição ao governo, dizendo “um, dois, três” a crianças para filmá-los
cantando a favor da “capitalia”, além de discutir com uma repórter desse canal opositor
que alegava ser “uma licenciada (graduada na universidade) e não uma qualquer164.
No intuito de buscar soluções, a bancada do MAS convocou uma reunião entre
constituintes de La Paz e os de Chuquisaca que não deixaram a bancada perante os
protestos da “capitalia”. Eram sete, depois passariam a dez. Mirtha Jiménez os
considerava heróis, por manterem-se leais apesar de terem sua face estampada nas
paredes de Sucre com um sinal de proibido e a palavra “traidores”. Cogitava-se um
referendo por fora da constituinte sobre os três poderes, que seguramente não seria
aceito pelo Comitê Interinstitucional. Uma constituinte de pollera, de El Alto, dizia que
a reivindicação era um pedido das confrarias oligárquicas e não algo que beneficiaria o
povo. Por sua história, Sucre não deveria ser capital. Os constituintes de Chuquisaca
apresentaram argumentos contrários, alegando que ser capital era um direito. Eles
também não estavam de acordo com a possibilidade de transferir a Assembléia para
Oruro. Tudo parecia levar ao cenário de duas constituições enfrentadas no referendo, e
existia para eles o risco de que os departamentos onde o MAS não ganhasse
desconheçam o resultado geral165.
Marco Carrillo e René Navarro davam declarações à imprensa no quintal da
Casa Argandoña. Após um atentado contra a casa particular da alcaldesa de Sucre,
repudiaram a agressão. Mas Carrillo alega ter sido agredido e que apesar de que a porta
da sua casa ter sido queimada com gasolina, isso repercutiu em poucos meios de
comunicação. Segundo afirmava, muitos outros constituintes do MAS tiveram que se
164 A Indymedia Bolívia também denunciava agressões: http://bolivia.indymedia.org/node/1195
165 Carlos Aparicio, da região do Chaco de Chuquisaca, que seria eleito deputado em 2009, calculava
que o tema “capitalia” não entraria na Constituição da minoria, pois assim corria o risco a perder votos
em La Paz. Contava-se um montante de dois milhões de votos em La Paz, Cochabamba, Potosí, Oruro e a
metade de Santa Cruz em um referendo entre duas constituições o MAS ganharia, somos maioria”.
Mas outro constituinte não era tão otimista. Lembrava que o prefeito de Potosí tinha deixado claro
que não apoiaria o MAS e levaria alguns votos, contando com aliados também na Federação Camponesa
de Chuquisaca. Além de La Paz e Cochabamba, os prefeitos eram opositores. Evo Morales ganhou com
54%, mas uma eleição pela Constituição poderia ter outro resultado.
232
mudar, pois a consigna era “matem uma lhama”. “Eu nasci de uma pollera linda”, dizia
Carrillo, complementando que “se Jesus Cristo viesse à Bolívia, distribuiria alimentos
primeiro na área rural, onde às vezes é preciso caminhar 15 km para obter água”. Ele
pedia o fim da discriminação e dos insultos pelas ruas. “A Praça 25 de Maio é de todos
e este governo atende aos interesses dos mais pobres”, concluiu.
A resposta das organizações sociais da base do MAS, frente à paralisação da
Assembléia e às mobilizações em Chuquisaca pela capitalidade consistiu em convocar
uma Cúpula Social, para 10 de Setembro em Sucre e “Em Defesa da Democracia, da
Vida e da Refundação da Bolívia. Contra o Ódio e o Racismo. Pela Revolução
Democrática e Cultural”. Na convocatória, assinada pelas organizações do Pacto de
Unidade exceto a CONAMAQ, e as Juntas Vicinais de La Paz e El Alto, e a
Confederação de Gremiales (comerciantes), falava-se em “Defender nossa Democracia,
a Assembléia Constituinte e as Autonomias Regionais e Indígenas”. As organizações
sociais procuravam defender a Assembléia e criar um cenário que propiciasse a volta às
sessões, com base na defesa física do fórum em um cerco que se contrapusesse à vigília
de Sucre.
Passaram-se três semanas após a resolução de 15 de agosto, seguida pela
decisão da Diretoria de abrir um recesso com o intuito de desarmar o conflito. Vieram
cocaleros do Chapare e dos Yungas, camponeses do país todo, indígenas das terras
baixas e “ponchos vermelhos”, entre outras organizações. Os cocaleros de Yungas
chegaram a e os camponeses de Potosí e de Chuquisaca foram os que mobilizaram
mais, junto aos do Chapare. Mas antes que as organizações chegassem a Sucre, Silvia
Lazarte prolongou a suspensão da Assembléia. A cúpula ocorreria, mas não seria um
cerco, imposto pela mobilização para reabrir as sessões. A Cúpula Social seria apenas
um ato no estádio Pátria de Sucre. Por isso também se reduziu a convocatória de 100
mil que tinham sido anunciados por García Linera a12 mil, de acordo com a imprensa.
O líder da CSUTCB, Isaac Ávalos, garantia em coordenação com o governo e da
Diretoria do fórum, que se reuniriam para discutir a situação política da Assembléia.
Apenas o Comitê Interinstitucional advertia que os camponeses se dirigiam a Sucre
para ocupar instituições e provocar confrontos.
Em Sucre se deu o encontro nacional de juventudes cuja data propositalmente
coincidiu com a Cúpula Social. O encontro declarou seu apoio à continuidade da
Assembléia. Nas intervenções era considerado um erro a suspensão por um mês da
Assembléia, decidida por Silvia Lazarte, e que “as bases das organizações não fossem a
233
Sucre para fazer o cerco contra a oligarquia”. Além disso, julgavam necessário
“pressionar a Assembléia para evitar o seu fracasso”. Estudantes de Sucre contrários às
posições do Comitê denunciavam que as marchas pela “capitalia” eram obrigatórias.
Diziam que os estudantes participavam das manifestações em troca de pontos “na Uni”,
ou para não serem afastados. Informavam que na Universidade Tecnológica se
mobilizaram apenas 1 mil estudantes de um total de 5 mil, sob pressão. Outros disseram
que os manifestantes saíam às ruas apenas por diversão. Afirmavam que naquele
semestre haveria somente uma prova parcial, e que a paralisação cívica era assegurada
pelos funcionários públicos da prefeitura e da universidade, mas que era uma
reivindicação de uma elite que prejudicaria os comerciantes de Chuquisaca. Acusavam-
nos de dar coca e bebidas alcoólicas para manter as vigílias. Consideravam falsa a
impressão de que a Bolívia estivesse com eles, como se explicitava na votação dos
constituintes contra a resolução de 15 de agosto: dos 54 de Chuquisaca, 34 votaram
contra a resolução. Outro estudante achava equivocado negar poder de convocatória do
movimento pela “capitalia”. Segundo ele, quando os sinos da igreja soavam duas horas,
todos saíram às ruas. Via a direita se rearticulando, dando indícios de que haveria um
enfrentamento, pois eles queriam mortes166.
Após as arquibancadas do estádio se encher com os camponeses que marcharam
em alguns casos por vários dias, inaugurou-se o ato com uma extensa lista de oradores,
coordenados por Nelly Toro, jornalista que colaborava com o Pacto de Unidade. Pela
Assembléia, Silvia Lazarte ratificou a suspensão das sessões, a não consideração do
tema capitalidade e o rechaço a uma decisão judicial. Fidel Surco, dos colonizadores, e
Isaac Ávalos dirigiam tudo no palanque, indicando aqueles que deviam falar. Os
estudantes do mencionado encontro quiseram se manifestar, mas Isaac disse que não,
pois não os conhecia. Falaram os dirigentes das federações de trabalhadores
camponeses, colonizadores e mulheres camponesas de todos os departamentos. Fidel
insistia em dar a palavra para Sabino Huanca, que não estava presente. Mandou buscá-
lo. Formou-se uma “segurança comunitária”, composta por indígenas com ponchos e
166 Nas decisões finais do encontro consta o apoio à Constituinte e se condenava sua suspensão, “que é
o que quer a direita”. Propunham uma coordenadoria que tivesse propostas claras. Solicitava a
reinstalação da Assembléia o quanto antes, pois caso o contrário não se chegaria até dezembro.
Também se propunham a incorporar a vigília das organizações mas preferiram não avançar mais com as
declarações. Ainda não sabiam o que se resolveria na reunião. Segundo alguém explicou, por isso não
seria prudente se precipitar. Se propusessem algo diferente ao decidido na Cúpula, poderia ocorrer
como em uma reunião anterior em que não lhes deram ouvidos. Deviam ter uma posição flexível, pois
caso o contrário, a imprensa diria que os estudantes estavam contra o governo.
234
adereços tradicionais. Houve vários Jallalla (vivas) à Assembléia Constituinte. Também
foi alvo de repetidas críticas à sentença da Corte Distrital que mandava a anular a
resolução de 15 de agosto e reintroduzir a questão da capitalidade. Os oradores pediam
pelo reinício da Assembléia. Nas resoluções se refletia a posição do MAS frente ao
conflito e também, por uma questão de ética, se exigiu que os constituintes
renunciassem ao salário referente ao mês em que a Assembléia permaneceu suspensa.
Além disso, se proferiu uma ameaça dirigida à elite de Chuquisaca de que as
organizações tinham direito de tomar medidas mais radicais caso não permitissem o
funcionamento da Assembléia167.
As organizações indígenas constatavam que “o governo não queria outro
Cochabamba e preferiu ceder”, referindo-se a fevereiro de 2007 quando vizinhos e
camponeses se enfrentaram nessa cidade. O MAS mantinha fortes vínculos com os
movimentos sociais, que se mobilizaram para defender a Assembléia, mas sua posição
consistia em ser Estado, apostando na via institucional. Isso significava a Assembléia
Constituinte e o governo, ainda que Evo Morales continuasse formalmente dirigente dos
produtores de coca e adotasse freqüentes posturas que o distanciavam dos códigos
tradicionais de poder. Ninguém na Bolívia esperava seriamente que as organizações
camponesas fossem lançar mão da ocupação de terras, expropriações de empresas ou
exigir outras reformas, pois os movimentos tinham se alinhado com a estratégia de
167 As resoluções da Cúpula foram as seguintes “1. Defender a Assembléia Constituinte até com nossas
vidas, bem como o processo irreversível, que propicia mudanças profundas impulsionadas pela força
histórica de nossos povos e nacionais indígenas originários e camponeses junto às organizações
populares. 2. [...] Caso não haja garantias democráticas nas Sessões, deverão se instalar imediatamente
em outro departamento mantendo como sede a cidade de Sucre. 3. Respaldamos a nossa ir Silvia
Lazarte Flores, [...] que por ser uma mulher indígena de saia foi discriminada por setores oligárquicos
racistas da cidade de Sucre. 4. Desacatar e rechaçar de maneira contundente o erro cometido pela Corte
Superior do Distrito de Chuquisaca, em uma postura de prevaricação, passando por cima do caráter
fundacional independente da Assembléia Constituinte. Não podemos permitir que uma resolução
aprovada pela maioria dos constituintes eleitos pelo povo seja eliminada por dois juízes nomeados a
dedo por apadrinhamento político de partidos tradicionais da direita. 5. Exigimos aos constituintes que,
com base em princípios de moral e ética, não recebam salários pelos dias não trabalhados. 6. Os
movimentos sociais do campo e da cidade defenderemos o processo de mudança de Evo Morales Ayma
[...]. 7. Exigimos a instauração do Congresso Nacional e que o informe presidencial de cada 6 de agosto
assuma um caráter rotativo entre os 9 departamentos, por princípio de igualdade, equidade e justiça.
8. Denunciamos [...] a agressão e os insultos a dirigentes de organizações sociais e constituintes, a
queima de símbolos dos povos indígenas, originários e camponeses, bem como a destruição de sedes
das organizações sociais. 9. Alertamos os pequenos grupos das juntas fascistas que, se continuarem
desvirtuando informações à população, prejudicando à Assembléia Constituinte, e minando a
possibilidade de diálogo, que assumiremos outras medidas mais radicais [...] 10. As organizações sociais
do campo e da cidade se declaram em estado de emergência, vigília permanente e assumem o
compromisso de organizar comitês de defesa da Assembléia Constituinte através de nossas
confederações, federações, juntas vicinais, associações, sindicatos, capitanias, ayllus e todas as
organizações sociais, populares [...]. http://bolivia.indymedia.org/node/1195
235
ocupar o Estado, com poucas vozes dissidentes. Ainda mais depois da aceitação dos
dois terços como forma de aprovação da Constituição na Assembléia.
O chamado às organizações se mantinha no MAS, no entanto, como reflexo. As
mobilizações coordenadas com iniciativas do governo constituíam um instrumento
importante para obter a aprovação do texto na Assembléia, como ocorrera em 2006 com
a lei de recondução e também em 2005, quando as organizações impuseram leis no
Parlamento e intervieram na definição da sucessão presidencial, impugnando dois
candidatos até que nomeassem o presidente da Corte, enquanto se preparava o caminho
para a chegada do MAS. Mas as transformações ocorreriam a partir do Estado da
“Revolução Democrático Cultural”. Para isso, antes de qualquer coisa, era preciso rifar
duas grandes demandas da oposição: “capitalia” e autonomia.
2 O Conselho Político Suprapartidário de La Paz.
Com seu projeto concluído, a pesar de ainda haver alterações em curso, o MAS
precisava retomar a iniciativa para aprovar sua Constituição. Precisava superar, ou de
algum modo evitar a reivindicação da capitalidade; além de ir atrás dos dois terços para
aprovar seu projeto. Se não o conseguisse, teria que proporcionar as condições para
realizar as sessões em outro departamento e provavelmente no intuito de submeter os
temas a um referendo, enfrentando nas urnas os artigos dos relatórios de minoria da
oposição. A aposta, depois de ter minimizado a cúpula social, era uma convocação ao
diálogo de todos os partidos políticos com representação na Assembléia. Para isso
entrou em cena o vice-presidente García Linera, que como presidente do Congresso,
convocou uma Cúpula Política em seus escritórios de La Paz. Iniciariam-se semanas de
diálogo, onde haveria múltiples esforços para conseguir o acordo
168
.
Uma reunião de Chefes de bancada em Sucre deu o aval para o espaço.
Tentariam fechar acordos em torno de diversos temas, inclusive a capitalidade, que não
seriam vinculantes para a assembléia, e sim os insumos para ser adotados e em seguida
ratificados nas plenárias, que devia ter início em 8 de outubro, quando venceria o prazo
168
A nova possibilidade começou a tomar forma depois de uma reunião de dirigentes políticos e
constituintes na Fundación Boliviana por la Democracia Multipartidaria (FBDM), que organizou uma
reunião para analisar os consensos na fase das comissões. Carlos Romero organizaria o diálogo, por ter
se destacado na fase técnica a pesar da rivalidade com a Diretoria, que perdia agora seu papel
protagonista. A instância de diálogo começou a operar nos dias que se seguiram após a Cúpula Social e
teve como primeira data de convocação a segunda-feira 17 de setembro, depois postergada, no palácio
da vice-presidência.
236
da última suspensão. O Senador Börth, do PODEMOS, participou das negociações que
confluíram no novo cenário de diálogo, mas seu partido criticou a proposta de que todos
os partidos teriam igual número de representantes (com uma pequena diferença a favor
do PODEMOS e do MAS), e pediam para que respeitassem a proporção presente na
Assembléia
169
.
O prefecto de Chuquisaca pelo MAS, David Sánchez, retornou a seu cargo
depois de retirar seu pedido de renúncia, a pedido de Evo Morales. Em Sucre, Armando
Terrazas e outros achavam que seria difícil chegar a um consenso, comunicando à
imprensa que estariam diante de um cenário de duas constituições submetidas a
referendo. O Conselho de La Paz seria um último movimento antes do final, para o qual
faltavam três meses. Paralelamente, a direção anunciou em Sucre uma reunião com os
chefes de bancada para buscar soluções para o tema da capitalidade. Depois das
reuniões iniciais do novo espaço de diálogo, houve uma reunião na casa Argandoña de
Sucre onde Carlos Romero informou ao resto dos constituintes do MAS sobre o estado
da questão. Anunciou o acordo por unanimidade; acordo este fechado após 16 horas de
debates em La Paz, dando luz à Comissão de Diálogo e Consenso. O diálogo teve início
com as 16 forças políticas (e 23 representantes) em La Paz na quarta-feira 19 de
setembro. Além de constituintes havia autoridades partidárias para que houvesse poder
de decisão “e não fosse um diálogo de amigos”
170
.
O caminho não estava totalmente aberto para o diálogo e a Diretoria da
Assembléia parecia tomar decisões de forma independente da reunião realizada em La
169
Os membros de Chuquisca que assistiram ao espaço da vice-presidência (Orlando Ceballos, chefe do
MBL e Edwin Velásquez, sub-chefe da bancada do PODEMOS) deixaram a sala apontando que
novamente seria excluído o tema da capitalidade. Mas paralelamente à formação do Conselho, os
ministros Quintana, San Miguel e Delgadillo se reuniram primeiro em Sucre e depois em Cochabamba
com os líderes de La Paz e Chuquisaca para buscar saídas ao tema de capitalidade. Por Chuquisaca
participaram o reitor Jaime Barrón; o vice-reitor Iván Arciénega; o prefecto David Sánchez; a alcaldesa
Aydée Nava; o presidente cívico Jhon Cava; o constituinte Jaime Hurtado; um dirigente do comercio e
um jornalista. Por La Paz assistiram o presidente municipal Luis Revilla; o secretário geral da Prefeitura
Alejandro Zapata; o presidente cívico Jorge Ríos; o historiador Juan Reyes; a reitora da UMSA, Teresa
Rescala; um representante da UMSA e outro jornalista.
170
Reuniram-se mais de 40 pessoas entre delegados políticos, constituintes e autoridades partidárias. À
frente estava Álvaro García Linera como presidente do Congresso e pelo governo. Estava presente a
Diretoria da Assembléia Constituinte (Lazarte, Aguilar, Mendoza, Padilla, Cuevas, Peña, Villacorta e Paz,
Arista). Pelo MAS, Santos Ramírez, Román Loayza e Armando Terrazas; pelo Podemos Rubén Darío
Cuéllar, Sandro Aguilar, Óscar Ortiz, Óscar Mercado e Edwin Velásquez; pelo MNR Guillermo Richter e
Mario Justiniano. Pela CN Mario Machicado, Félix Cárdenas, Ivar Morante e Gonzalo Aruni; por AS René
Muruchi, Wenceslao Alba; pelo MOP Félix Velásquez e stor Tórrez; por Ayra Fernando Untoja. Pelo
MCSFA Juan Zubieta, Carlos Delgado, Hugo Martínez e Roxana Yujra. Pelo MNR A3 Freddy Soruco; pela
UN Samuel Doria Medina, Ricardo Pol, Arturo Murillo e Jaime Navarro. Pelo MBL Orlando Ceballos.
Faltarm somente os Constituintes Hugo Oliva (MIR) e Hormando Vaca Diez (AAI), de blocos
indepentendes na Assembléia.
237
Paz, explicou Romero. No mesmo dia em que foi convocada em La Paz uma reunião do
novo espaço de diálogo com constituintes e dirigentes políticos, a própria Diretoria
controlada pelo MAS teria citado em Sucre numa sessão do Comitê de Diálogo com os
Chefes de Bancada partidários para contemplar o tema de capitalidade. Em uma reunião
dos constituintes do MAS, Romero disse que a decisão foi um erro político da Diretoria,
porque começariam novamente os cercos, e considerava a situação dificílima
171
.
Romero clamava por “apoio total” à bancada do MAS para viabilizar o espaço
aberto em La Paz. “Temos uma semana para salvar a Assembléia”, disse. “Se não
houver acordo político ela não vai reabrir e cada um de nós vai voltar desmoralizado
para sua casa como cadáveres políticos”. Eu me sinto desmoralizado, disse Romero, e
acresentou, “se não resolvemos isso aqui, será resolvido nas ruas, a base de barras e
golpes ou de bala”. Sugeriu que a bancada se declarasse em mobilização, porque “se
esta semana fracassar o diálogo, a Assembléia Constituinte está morta”. Romero estava
de acordo que os Chefes da Bancada se reunissem com a Diretoria, mas sempre e
quando o fizessem sem boicotar o espaço de La Paz, denominado Comitê Especial de
Diálogo e Consenso, que funcionaria até meados de outubro, viabilizando as
plenárias
172
.
Na reunião em que Romero, Revollo e os outros participantes do Conselho
deram um informe aos seus companheiros, os constituintes da bancada silenciados com
o centro de gravidade política deslocado para La Paz, retomavam fôlego. Protestaram
contra a proporção de representantes por partidos no Comitê, que não consideravam
favorável: “Estamos fodidos”, “vai dar 17 contra 6”, “vão fechar a Assembléia”, “esse
acordo é uma besteira”, “quem negociou?”, “não era uma assembléia originária?”, foi a
primeira onda de opiniões que apareciam desordenadas e se somavam ao
171
Na instância de diálogo convocada em Sucre pela Diretoria enquanto Comitê Especial de Diálogo e
Consenso; reunido na segunda-feira 24 de setembro, a discussão degringolou no ponto da capitalidade e
da sentença contra sete membros da Diretoria por ter excluído o tema das sessões. Os notificados pela
corte do distrito de Chuquisaca declararam que não acatariam a sentença, que em todo caso a Corte
devia notificar os 134 constituintes que votaram a favor. O tema paralisou a instância de diálogo e
Roberto Aguilar declarou que o tema de capitalidade não era mais manejável. A instância de diálogo dos
ministros do governo também não teve sucesso. Segundo Juan Ramón de la Quintana, o Governo
ofereceu a Chuquisaca ser sede nacional de instituições descentralizadas como o Defensor do Povo, a
Controladoria, a Corte Eleitoral, ou o Serviço de Impostos; que inclusive estavam dispostos a transferir
outras instituições do Executivo, excetos os ministérios.
172
Marcela Revollo leu o documento “Grande Acordo Nacional para Viabilizar a Assembléia
Constituinte” assinado em 20 de setembro em La Paz com os 16 partidos, em 16 horas de diálogo, que
consistia em 4 artigos sobre a disposição par um acordo e o compromisso em respeitar os dois terços. O
espaço de diálogo seria formado por 6 constituintes do MAS, 3 do PODEMOS, e 1 de cada dos outros
partidos na assembléia. Em 1 de outubro fariam uma avaliação do avanço de acordos, para reiniciar as
plenárias uma semana depois.
238
descontentamento que predominava nesse período frente à Comissão técnica.
“Descordamos da posição do executivo” diz Mirtha, evidenciando a falta de planos e a
incerteza vivida nesse momento. René perguntou se na reunião foi cogitada uma
transferência da Assembléia para Oruro.
Carlos Romero continuava se queixando da falta de estratégia, dizendo:
“improvisamos tudo”. Decidi fazer uma autocrítica”, dizia, “ainda que isso possa me
render inimigos”. Contou a seus companheiros que na noite anterior teria falado com
vice-presidente, e que este estava de acordo com seus critérios. Romero apresentou o
problema da convocatória da Diretoria em Sucre, feita ao mesmo tempo em que ocorria
o diálogo de La Paz. O vice-presidente prometeu se articular com a Diretoria para que
coubesse a La Paz a decisão. Na segunda-feira haveria uma reunião para dar início ao
diálogo. O primeiro ponto na pauta seria o tema capitalia”, de acordo com os
prognósticos de Romero. “É preciso que haja opções”. Apontava os vínculos com a
Meia-Lua e alegava que depois de um referendo sobre o tema não seria possível garantir
a unidade. Seria preciso aceitar a guerra civil. Propunha “um Plano A, de negociação
política”, no qual ele apostaria; “mas também um Plano B, para ir a um cenário de duas
constituições; e um Plano C, que consistiria em preparar o exército social que teria que
entrar em campo se em três semanas as outras estratégias não funcionassem”.
Enquanto isso, a CSTUCB dava um ultimato à Assembléia, e o CONAMAQ e a
COB a declaravam encerrada. A Cúpula Política de La Paz convocou o Comitê de
Diálogo, que se reuniu em Sucre. Mas o diálogo mais uma fez não foi possível em
Sucre e as discussões se deslocaram definitivamente para La Paz, na vice-presidência e
sem a Diretoria. Mas em Sucre tinha sido possível avançar na elaboração de uma
agenda com seis eixos propostos pelo MAS, aos quais a oposição acrescentou temas que
lhes interessava incluir no diálogo. A discussão de capitalidade seria inserida no eixo
Estrutura e Organização do Estado, como pretendia a oposição, mas o MAS conseguiu o
aval para que o tema fosse tratado no final. Ainda não estavam definidos, no entanto,
em que termos o tema seria incluído. Os outros eixos temáticos a serem tratados eram
os seguintes: Caracterização do Estado; Estrutura territorial do Estado; Modelo
Econômico-Social; Terra, Território e Recursos Naturais173.
173 A agenda era mais complexa, e pautava os temas mais polêmicos da Assembléia: 1) Caracterização
do Estado: modelo de Estado; sistema de governo; religião; reconhecimento dos povos indígenas: visão
de país. 2) Estrutura territorial do Estado: Autonomia departamental e municipal, provinciais, regionais e
indígenas, bem como a descentralização; divisão política e administrativa do Estado. 3) Modelo
econômico e modelo social: Sistema econômico; organização social do Estado; sistema educativo e
239
Desse modo, nos últimos dias de setembro, inaugura-se um espaço de diálogo
em La Paz, cujo caráter não vinculante acenava para à possibilidade de entrar nos temas
polêmicos. Não foi possível chegar a algum acordo antes de 8 de outubro, quando se
iniciariam as plenárias. Mas a mesa estava posta. Ou quase posta, pois quando tudo
parecia resolvido, eclodiu um novo conflito, uma vez que La Paz mantinha uma linha
intransigente se recusando a abordar o tema “capitalia”. A questão da sede dos poderes
entraria como Asiento Institucional”. Por alguns dias, em La Paz, foi posto em
discussão se essa fórmula significava ou não incluir o tema. O vice-presidente da
Assembléia, Roberto Aguilar (MAS), convocou uma conferência de imprensa, onde
dera o informe de que La Paz teria decidido desconhecer o acordo por considerar que a
discussão de asiento institucional” dos poderes recolocava a capitalidade em debate.
Nesse sentido, Aguilar se esquiva do que foi acordado na reunião dirigida pela
presidente da Assembléia e expunha a opinião intransigente de La Paz174.
Era difícil: para encaminhar a Assembléia, alguns setores consideravam
indispensável que o tema fosse pautado e outros, que não o fosse. Corria-se o risco de
que ambos os lados não chegassem a um acordo. Porém a rmula de asiento
institucional” alcançou seus objetivos, o que pode ser explicado como revisão da
resolução de 15 de agosto pelo MAS, que se negava a pautar o tema. Para isso, a
engenharia política teve que tirar de cena a Diretoria e dissolver no novo espaço de
diálogo às minorias com poder de veto, como o PODEMOS e as bancadas de
Chuquisaca e de La Paz. Era uma solução provisória, e não se dava no marco da
Assembléia, mas foi necessária para abrir o diálogo. Asiento Institucional” foi uma
fórmula sem significado, ou ainda, com um significado proporcional à vontade política
de cada um para abrir o diálogo: para La Paz, isso implicava que o tema não fosse
cultural; direitos, deveres e garantias. 4) Terra, território e recursos naturais: Disposições gerais
(domínio e propriedade, regime de uso e aproveitamento); hidrocarbonetos; mineração; recursos
hídricos; energia; florestal; terra e território. 5) Disposições transitórias. 6) Estrutura e organização do
Estado: Executivo, Legislativo, Judiciário, Outros Órgãos, Controle Social, Sistema Eleitoral, Sistema de
representação política, segurança e defesa; transferência de poderes ou Capitalidade.
174 O termo “asiento institucional” figura nas referências históricas da discussão do tema no século XIX.
Foi proposto por Ricardo Pol, de Cochabamba, do partido Unidade Nacional, com o aval do Comitê de
Diálogo. Constituintes do MSM deram declarações que reafirmavam que “asiento institucional” era
sinônimo de capitalidade. Outros, porém, como Raúl Prada presente na reunião onde a agenda foi
elaborada, junto aos representantes da ASP, o “poncho vermelho” Humberto Tapia defendiam na
imprensa que asiento institucional” não era sinônimo de capitalia. Ricardo Pol dizia, por exemplo, que
“Não entra o tema da capitalidade com outro nome, e sim a discussão do asiento institucional dos
poderes do Estado”. Prada também declarou à imprensa que “A interpretação do asiento institucional
como sendo a capitalidad é uma interpretação da direita, que está conspirando contra a Assembléia
Constituinte”. Esteban Urquizu, de Chuquisaca, disse que o tema foi pautado, mas de forma indireta.
240
pautado; para Chuquisaca, que o fosse. Só o PODEMOS se negava a fazer parte do
diálogo. O jornal La Razón anunciava: “Sem uma definição clara sobre seu significado,
o tema de asiento institucional‟ dominará hoje a agenda do comitê suprapartidário que
busca viabilizar o trabalho da Assembléia Constituinte”. Roberto Aguilar continuava
insistindo que o tema da asiento institucional” deveria ser retirado e o Comitê de
Emergência de La Paz convocou uma nova Marcha “da Pacenhidadepara rechaçar a
contemplação do tema175.
O Conselho Político deu início às discussões em torno dos eixos temáticos de
modo aberto e triunfalista, introduzido por García Linera, que anunciou que, com as dez
forças que decidiram compor o espaço, estariam assegurados mais de dois terços dos
votos necessários para aprovar o texto constitucional. O contingente totalizava 179
constituintes (sobre um total de 255), superando por nove a linha dos dois terços, caso
se desse por certo que a totalidade dos constituintes das forças participantes votaria no
mesmo projeto. A contagem incluía UN, MNR, AS, Ayra e MBL, que não eram aliados
do MAS e totalizavam 29 votos. Mas de todo modo, o plano consistia em buscar
acordos e isso é o que estava começando a acontecer na vice-presidência, com longas
jornadas de discussão. Nesse mesmo dia, em conferência de imprensa com a mídia
internacional, Evo Morales foi bastante claro: “eu não tenho nenhum Plano B”.
Chuquisaca dava indícios de que alimentava expectativas. Edwin Velázquez, do
PODEMOS, se retirou mais uma vez do encontro mas Orlando Ceballos, do MBL, antes
aliado do MAS, porém que fizera greve de fome após o 15 de agosto, permaneceu. O
Conselho Político decidiu escutar as propostas de La Paz e de Sucre, e os dois lados
aceitaram participar da reunião, em 7 de outubro, na qual os cívicos repetiriam suas
posições e o vice-presidente, como representante do Conselho, tomaria nota.
2.1 Os Acordos do Conselho.
O início das plenárias foi adiado até 24 de outubro. Após três dias de diálogo sob
a coordenação do vice-presidente, o Conselho anunciou que chegara a um primeiro
175 O principal partido de oposição alegava estar trabalhando em aprimorar seu projeto de Constituição
de minoria, e nessa época vivia conflitos internos também provocados pelo tema da capitalidade, que
redundou num enfrentamento entre os constituintes de La Paz com os da Meia-Lua e Chuquisaca. Isso
encontrava ressonância nas declarações de seus constituintes, que questionavam o chefe da bancada,
discutindo publicamente para que os representantes eleitos internamente pudessem participar do
comitê de diálogo.
241
acordo, sobre o “Modelo de Economia Privada, Estatal e Comunitária” (terceiro eixo da
agenda). Isso implicava no reconhecimento do direito à propriedade privada, na
sucessão hereditária dois temas que a oposição costumava dizer que o MAS não
respeitava em seu projeto de Constituição além do cuidado pela segurança jurídica na
economia privada. Também foi reconhecida a “economia plural” e o “viver bem”, além
de um Estado “que intervenha, não observe ou regule”. O acordo conseguia também
o aval de dois constituintes dissidentes do PODEMOS (Lindo Fernández e Ramiro
Ucharico), bem como de dez das 14 forças presentes. Era a primeira boa notícia de
avanço rumo a um consenso, talvez desde a ampliação da Assembléia em agosto.
Pouco depois, o Conselho passou a selar acordos nos temas de Autonomia e
Visão de País, que correspondem aos eixos de Estrutura Territorial e caracterização do
Estado. A constituinte do MAS Rebeca Delgado era então a responsável por apresentar
os avanços aos constituintes do MAS em Sucre, como parte do comitê técnico e
participante do diálogo de La Paz. Foi uma reunião tensa, em 15 de outubro, com cerca
de 60 constituintes mais uma vez na casa Argandoña. Houve reclamos de falta de
informação à bancada por parte da Comissão Técnica de constituintes do MAS. Mas
Rebeca retrucava: “Dizer que estamos substituindo os 255 é discurso da direita”.
Estavam enclausurados trabalhando e por isso não mantiveram comunicação com o
resto da bancada que os esperava em Sucre, explicava. Às queixas de La Paz se somava
o fato de que se o tema de capitalidade não entrasse, o diálogo não teria começado176.
O objetivo político é construir consensos e identificar os temas polêmicos que
não lograrão os dois terços na votação do plenário, explicou Rebeca. Ela apontou que no
primeiro acordo no setor econômico havia dois terços, com a aprovação de dez ou onze
representantes. No entanto, advertiu que, quando estavam prestes a firmar o segundo
acordo (sobre autonomias) com doze forças políticas, apenas oito se fizeram presentes.
Doria Medina, bastante firme em suas decisões até o primeiro acordo, depois se afastou,
sob o argumento de que havia quatro níveis de autonomia. Rebeca ficou e achou bom
que o PODEMOS enfim mostrou sua cara e se retirou, mas pouco depois o PODEMOS
176 Ressaltou que a oposição queria abordar “temas concretos e assuntos específicos” como Justiça
Comunitária, Capitalidade, Reeleição, Congresso Unicameral e Estado Plurinacional, mas que eles, por
sua vez, apresentavam a proposta de trabalhar com eixos temáticos gerais para que os temas de conflito
não aparecessem. Mas para viabilizar o diálogo era necessário que os temas fossem pautados, e Linera
disse que deviam entrar em pauta. No entanto, se esses eram os eixos de discussão, seria visto como
uma derrota quando não se chegasse a um consenso. Outro tema que dificultava a negociação nos
primeiros três dias de diálogo em Sucre era que o MNR e a UN diziam que Silvia Lazarte não era a pessoa
adequada para dirigir as negociações.
242
e o MNR Camino al Cambio (de Tarija) voltaram atrás e “mais uma vez bloquear e a
discutir”. Quando se incorporaram às discussões, “outra vez, voltaram a falar das
autonomias e do Estado Plurinacional”. Entre o MNR e a PODEMOS se passavam
bilhetinhos: “são a mesma coisa” - dizia Rebeca. Ela continuou a descrever as reuniões:
não sabiam do que falávamos, mas eram contra. Os partidos pequenos começavam a se
afastar sem assinar. A Aliança Social, de René Joaquino, adotou a linha de não assinar.
Eram eles os porta-vozes do discurso da direita no lugar do PODEMOS, “com um
verniz de partido de esquerda”177.
A grande concessão do MAS no campo das autonomias foi aceitar a faculdade
normativa, explicava Rebeca. Era algo que a oposição reivindicava fortemente mas que
mesmo assim, não permitiu a assinatura de acordos. Desenvolvendo a questão, Rebeca
indicava que de fato a palavra “legislativa” era incluída, mas que pelas competências
que eram atribuídas em cada nível de governo, na verdade a autonomia não tinha aquela
capacidade. Era difícil conformar à oposição e também ao próprio MAS e por isso
surgiam essas complexas fórmulas. Tratava-se de qualidade legislativa no que diz
respeito às competências específicas, que seriam negociadas em uma discussão a
posteriori. Passaram entre quatro e cinco horas avaliando se assinavam ou não, mas os
partidos com poucos representantes na Assembléia queriam se retirar, segundo relatava
Rebeca. A qualidade legislativa significaria a possibilidade de criação de leis e levaria à
federalização. Se Santa Cruz ou outro departamento tiveram suas próprias leis
significaria a divisão do país. Com essa característica, se tratariam de Estados
independentes. Também houve diferenças pela capacidade dos departamentos de fazer
acordos e convênios internacionais. Isso implicaria firmar tratados de livre comércio,
militares, comercialização de recursos naturais, explicava. Rebeca dizia que “para nós é
um bom documento, leva à frente as reivindicações”. Mas apesar dos avanços em
direção a um consenso, no segundo acordo já não havia dois terços178.
177 O problema passava novamente pelas autonomias indígenas. Se aqui mesmo na bancada não se
entendia “livre determinação”, imaginem como era lá, dizia Rebeca a seus companheiros. No fim,
chegou-se a um acordo de que não transporiam limites municipais e os quatro níveis teriam a mesma
posição hierárquica. Também foi definida uma hierarquia segundo a qual depois da Constituição haveria
uma lei que demarcasse as autonomias, além dos decretos, dos estatutos e das normas administrativas.
Isso não foi aceito e se foram o MIR e o MNR com suas três facções, que pretendiam hierarquia
equitativa do caráter normativo do departamento e da lei nacional.
178 Rebeca comentava com o MAS que o MNR tem uma política de que “mesmo oferecendo flores, eles
seriam contra”, disse Rebeca, e o fator positivo eram as assinaturas de Pastor Arispe, que se desprendeu
do AS, e de Ana María Ruiz (do MNR), que assinou como independente. Rebeca explicou que não se
sabia quantos votos essas assinaturas representavam. Explicava também que, como outra vez se estava
fortalecendo a direita atraindo os outros partidos, Carlos Romero divulgou na imprensa o seu Plano B.
243
Por outro lado, enquanto o governo fazia o máximo de esforço para se
aproximar da oposição, se descuidava o lado das bases sociais, aqueles que se
distanciavam do MAS quando este encontrava um centro de acordo com seus rivais.
Firmado o acordo de 11 de outubro, o presidente da CIDOB solicitava esclarecimento
quanto ao rumo das autonomias indígenas e anunciava novas mobilizações. Evo
Morales se reuniu com eles e conseguiu fazer com que os indígenas suspendessem os
protestos. Mas permanecia o mal-estar. Com as organizações indígenas das terras baixas
não houve ruptura, como no caso do CONAMAQ, mas se mantinha o clima de tensão.
Lázaro Tacoó, do CIDOB, em uma nota do jornal La Prensa (19/10/2007) afirmava que
o Conselho suprapartidário freou o encaminhamento de quatro das sete demandas
fundamentais das organizações indígenas na Assembléia. “Pouco a pouco foram
cedendo em tudo”, dizia na mesma nota Justino Leaños, dirigente do CONAMAQ, que
falava de “traição” do MAS179.
Os terceiro e quarto eixos de discussão foram mais difíceis. O MAS apresentava-
os como mérito ainda que também não chegassem a representar dois terços, com o
apoio conseguido de oito forças políticas180. Era sobre o eixo temático de
caracterização do Estado, correspondente aos temas abordados na polêmica comissão de
Visão de País e que ficaram conhecidos como “acordos de Visão de País e
caracterização do Estado”. Rebeca Delgado continuava a dizer a seus companheiros que
as posições da fase de comissões foram flexibilizadas, e incorporando na proposta do
MAS elementos da oposição se acrescentava ao Estado Unitário Plurinacional e
Comunitário um caráter “Social-democrático de Direito”, que vinha do relatório da
minoria e a Constituição proposta por PODEMOS. O MAS resolveu ceder em seu
projeto para chegar a um pacto, ainda que este último por enquanto não se
179 Segundo ambas as organizações, as demandas que os acordos colocavam por terra, se é que não
tinham caído antes, eram as seguintes: 1) a Representação Direta no Congresso; 2) aquelas que foram
incluidas no ponto Visão de País, como o Estado Plurinacional, agora articulado com a proposta da
oposição que os indígenas consideravam meramente declaratório ou ”de título” ; 3) a propriedade
direta sobre os recursos naturais em seus territórios, que não consideravam prioritários, visto que viam
a dificuldade de que isso fosse aprovado; 4) As autonomias indígenas, que agora Lázaro achava que
dependeriam das prefeituras, apesar da declarada igualdade de hierarquia, pelas competências e limites
atribuídos aos municípios. O MAS apenas manteria em pé as reivindicações de pluralismo jurídico
(Justiça Indígena), a constitucionalização da consulta e o autogoverno.
180 O MAS, UN, AS, CN, MOP, MBL, ASP, MCSFA, junto com os constituintes Lindo Fernández (dissidente
do PODEMOS) y Ana María Ruiz (MNR), todos aliados do MAS desde o início.
244
concretizasse. Por isso as críticas das organizações que viam retrocessos que não
vinham acompanhadas de nenhuma concessão181.
Sobre o acordo de estrutura e modelo de Estado, García Linera declarou à
imprensa que “é um grande avanço, é uma revolução total da concepção do Estado, que
não exclui ninguém”. Também disse que os três grandes eixos da história boliviana
estavam articulados: o comunitário; o social e democrático; e o autonômico . Chamou-o
de “uma revolução total do Estado”. Em entrevista ao El Deber, explicou que o eixo em
que os três acordos se circunscreveram corresponde às múltiplas facetas de um mesmo
bloco histórico que combina “o comunitário, o estatal e o privado” enquanto correlato
regional na temática das autonomias departamentais do empresariado regional
ascendente, bem como da autonomia indígena, que reconhece a força material
comunitária. Na definição do Estado, García Linera falava de conteúdo estatal para as
dimensões econômica e territorial, e o “Social de Direito”, com um vínculo social de um
Estado que protege, cuida da educação, redistribui e está presente na economia; e um
Estado também Plurinacional Comunitário, que para o vice-presidente significa um
aporte boliviano às definições de Estado que rompe com a leitura napoleônica de que
toda nação tem um Estado, com uma nação conformada por muitas nações (GARCÍA
LINERA 2007a).
O líder do UN, Samuel Doria Medina, declarou que nas três semanas anteriores
tinha sido definida a estrutura fundamental do acordo sobre a nova Constituição. Foi
estipulado que a base do acordo seria aplicável em todos os quesitos, como relata a
imprensa. Para Doria Medina, estava em voga a aprovação de uma fusão entre as
perspectivas do MAS e da minoria, sem confluir em uma visão indigenista do Estado
Plurinacional, mas em uma Carta Magna mestiça. Por sua vez, Guillermo Richter
explicava que seu partido não apoiou o documento porque não compartilhava a mesma
visão de Estado, ponderando que “elevar os povos indígenas à qualidade de nações é
uma arbitrariedade conceitual que ameaça a unidade nacional”. No relatório aos
181 Rebeca dizia, em síntese, que o acordo reconhecia a pluralidade em todos os aspectos. Também
comentava que os desmotivou em La Paz ter que explicar cem vezes o Estado Plurinacional, inclusive
dando-lhes livros da REPAC. O MIR dizia “não estou convencido do Estado Plurinacional” e o AS sugeria
que fosse mais apropriado usar a expressão “país intercivilizatório”, para não dividir a Bolívia. “Sim,
vamos incluir isso”, dizia o MAS, usando a palavra “intercivilizatório” para buscar mais assinaturas no
acordo, ressaltava Rebeca. O MNR não estava convencido e pedia alguns dias de recesso. Depois
disseram que estavam de acordo mas que receberam telefonemas para que não assinassem. Zubieta
deu indícios de que assinaria mas não o fez, dizendo que não estava de acordo com o título Visão de
País. Também mudou a composição populacional pois alegavam excluir os não indígenas, e mudou para
que o enfoque se tornasse mais abrangente.
245
constituintes do MAS sobre os últimos acordos, Rebeca contava que a oposição também
reivindicava que a caracterização do Estado terminasse com a palavra Plurinacional.
Porém “há coisas que não é possível fazer”, disse. A disposição para o diálogo tinha
limites. “Não se pode ir além”, disse Rebeca. “Querem nos confundir. É importante que
a bancada saiba quais são as dificuldades. Não pode haver mais adiamentos. Decidimos
que se estenderá até quinta e sexta-feira”, 18 e 19 de outubro, “e ai acaba”. Rebeca
ponderou que, se o diálogo fracassasse, ao menos teria servido para expor as mentiras
da oposição, como por exemplo de que o MAS não queria diálogo ou que era uma
Constituição importada de Cuba182.
No final de outubro, o MAS declarou que 80% da Constituição tinha obtido
consenso. O MAS reconheceu aos departamentos a qualidade legislativa para as suas
competências, e o nível regional de autonomia tinha tido a sua importância reduzida,
restringindo-se ao departamento e como espaço de planificação. O debate de meses com
o Oriente passou a se centrar em repartir, ceder ou compartilhar as competências. Foi o
último avanço do Conselho de La Paz. O jornal La Prensa destacou o papel do
especialista Franz Barrios, convocado à vice-presidência para contribuir no debate,
ocasião em que propôs um modelo de distribuição de competências que serviu de base
para o trabalho (BARRIOS 2007, cf. 2009)183. O jornal El Deber publicou a lista de
competências nacionais exclusivas propostas pelo governo, e as diferenças na proposta
da Meia- Lua184.
182 Enquanto o conselho negociava, Saúl Ávalos, participante da Comissão Técnica, apresentou à
imprensa um esboço do projeto de Constituição. O projeto não incorporava os avanços do diálogo no
conselho político de La Paz, apresentando uma versão dura de um projeto que na realidade permanecia
em work in progress em temas como reeleição, tipo de parlamento e autonomia, com variáveis de
máxima e de mínima para submetê-las na negociação na tentativa de alcançar os dois terços. Carlos
Romero chamou a apresentação de Ávalos de “atitude irresponsável individual do constituinte”,
explicando que o partido não decidiu publicar nenhum documento e que nas comissões mistas os
acordos de La Paz deveriam se transformar em artigos. Saúl Ávalos era politicamente próximo a Aguilar
e Lazarte, da Diretoria, que não vira com bons olhos a transferência das decisões para a sala do vice-
presidente.
183 Na entrevista, reconheceu o papel de García Linera dirigindo o diálogo e avaliou que o MAS cedera
bastante e era agora seria a vez da oposição. Barrios atribuía especial importância a que depois de 180
anos de história boliviana o eixo central outorgasse qualidade legislativa aos departamentos. Pensava
inclusive que o MAS deveria ir além, eliminando a "primazia e prerrogativa legal" que situava decretos
por cima dos estatutos e leis locais. Outro tema aberto à discussão, podendo alterar o cenário, consistia
em que as competências não expressamente dispostas na Constituição também correspondessem à
ordem central de governo.
184 Os dissensos incluíam as demandas da oposição, consideradas características de um modelo federal
próprio do MAS: administração de justiça; política fiscal e da Fazenda; política exterior; controle da
terra; ordenamento territorial; impostos; política de recursos naturais renováveis e não renováveis, bem
como a demanda departamental de ter a prerrogativa de firmar convênios internacionais. Outra
exigência bastante criticada de setores cívicos era a demanda de controle de migrações internas. Barrios
246
Em publicações e exposições durante a fase das comissões da Assembléia,
Barrios tinha apresentado exemplos de outros países em todas as direções. Por tanto,
tratava-se de pensar no melhor modelo para Bolívia. Franz Barrios representava o lugar
do conhecimento técnico de confiança do MAS e da oposição que dialogava como lugar
do centro político a partir do qual seria possível articular um acordo. Ele tinha
defendido a idéia de que a autonomia deveria ter poder de legislar, esclarecendo em
suas intervenções que a autonomia indígena não seria um perigo se fossem tomadas as
necessárias precauções, com base em uma estrutura bem delineada. Para que os
indígenas não se retirassem seria preciso apresentar válvulas para que se sentissem
confortáveis, disse Barrios em uma exposição alguns meses antes. Acusavam-no de dar
um verniz técnico às posições políticas de um ou outro lado, mas sua posição sustentaria
um projeto de Constituição que aspirava alcançar os terços. Em diversos fóruns ou
espaços de discussão em torno da Constituinte, por via-de-regra, sociólogos,
antropólogos e indígenas defendiam à risca a proposta do MAS; advogados e
empresários eram mais críticos. O cientista político Franz Barrios procurava esboçar
uma posição intermediária, alegando se expressar desde o ponto de vista da ciência, em
oposição à lei e à opinião de jornalistas e outras pessoas fora desse âmbito.
Em um desses fóruns, Barrios disse que a Bolívia não é tão complicada se
comparada a outros países, como por exemplo a Índia, com seus 2.300 deuses, além de
inúmeras nacionalidades, e disse também que o mundo apresenta diversos modelos para
todos os gostos. Criticava os mal-entendidos sobre a idéia de federalismo que, para
Barrios, pode não existir ainda que com legislação regional no país. Antes que de
federal e unitário preferia falar de modelos simples e complexos, citando os casos da
Espanha e da Itália, que não são federais mesmo com regiões que legislam. Discordava
também do governo do MAS, que entendia que legislar colocaria em xeque a unidade,
argumento com o qual se tentava impedir que os departamentos ganhassem autonomia
para legislar, acusados de ter um projeto federalista. Atribuir às regiões um caráter
exclusivamente administrativo, como no referendo, equivaleria a uma autonomia
meramente formal mas não efetiva, de acordo com Barrios.
Segundo um dos participantes do Conselho Político, o vice-presidente esteve
presente 90% do tempo, durante um mês. Abria as reuniões, fazia sínteses e
fundamentava saindo para dar relatórios ao presidente Evo Morales. Óscar Vega, do
defendia a proposta da manutenção da legislação sobre esses temas nas mãos do Congresso Nacional,
mas se colocou a favor de delegar a planificação, a regulamentação e a operação (El Deber 17/10/2007).
247
grupo Comuna, próximo ao vice-presidente, pensava que Álvaro exerceu o papel de
mediador pela primeira vez desde que assumiu como vice-presidente de Evo, enquanto
nas ocasiões anteriores sempre teria optado pelo confronto. Pensava que só no momento
do Conselho o vice-presidente assumira a constituinte, o que vários de seu entorno
vinham sugerindo, enquanto antes ele preferira priorizar a participação no campo
econômico. Raúl Prada disse em tom de brincadeira que Oki Vega era o último
“romântico da Assembléia”, pois acreditava que os dois terços estavam próximos. Raúl
Prada estava entre os seis representantes do MAS que participaram do Conselho, e
reconhecia que o UN estava “colaborando” mas via a Richter do MNR como “mais
bandido”, que sem ser PODEMOS e se apresentando como de centro-esquerda, mas
também não assinando os acordos com o argumento de que estava sob pressão.
García Linera trabalhava na busca pelo centro, apresentando por isso a proposta
de 199 cadeiras parlamentares elaborada por Adolfo Mendoza como “um texto
elaborada pelo entorno do Chato Prada”, como modo de levar o debate para o centro
antes do que defender a proposta que surgia do âmbito das organizações. Ana María
Ruiz, que aprovou os acordos em pauta nos debates, elogiava o vice-presidente por sua
clareza e paciência na busca de acordos: “Esperava durante horas para ver se eles
fechavam”. Descreve o papel de Linera como o de um homem munido de pragmatismo.
A busca pelos dois terços continuou sendo tratada por ele como prioridade, inclusive
impondo empecilhos aos companheiros do MAS, por exemplo interrompendo
discussões para pedir “sejamos realistas, vejamos se isso é possível ou não”. Referindo-
se a seu companheiro de partido no Conselho, Ana Maria Ruiz disse que uma coisa era
Richter antes de ingressar PODEMOS nas reuniões, outra era depois. Convenciam-no.
“Todos nos chamam”, disse ela a Richter. O MNR é amplo, todos os demais setores o
chamam. Ele escuta a uns, Ruiz a outros, mas ela também era pressionada com ameaças
para que não apoiasse o MAS. Ela tinha sido alcaldesa de Mojos, é próxima aos
indígenas e estava a favor do Estado plurinacional. Isso seria mais do que lógico em um
país com 70% indígenas com ódio e discriminação racial. Por isso assinou, disse, sem
importar o que dissesse o seu partido. Pensava: se o MNR se retirar com o PODEMOS,
o MNR cai por terra185.
185 Quanto às outras frações, o MNR-FRI e o MNR “Camino al Cambioalegavam que jamais se efetivou
uma reunião e que muitos tinham compromissos em campanhas financiadas, ou campanhas a financiar.
Capobianco do Podemos, convidou Ana María para sua casa; a CAO e CAINCO lhe ofereciam jantares e
convites. Um companheiro convidou-a para uma reunião com 40 pessoas e quando chegou eram 700
248
Alguns concordavam em que a presidente Silvia Lazarte foi a voz ausente no
Conselho”. Havia quem a criticasse porque ela “não dirige mas impede toda a possível
liderança”. Para Elva Terceros, assistente de Romero, o problema do Conselho não foi
da direita, da qual pouco se podia esperar, mas da esquerda, por irresponsabilidade. Um
grupo disse “nem Oruro com o MAS, nem com o PODEMOS em Sucre”. Outra
discussão presente na literatura política do Conselho era se o MAS teria cedido demais
ou mantido intactos os pontos importantes de sua proposta. Para Sabino Mendoza, a
maior conquista do Conselho foi desfazer mitos, como aquele segundo o qual o MAS
não queria dialogar ou que o MAS praticava “racismo ao contrário”. Pensava que se a
oposição conseguisse impedir que se aprovasse a reeleição, ele lideraria a linha
indigenista radical. A situação política parecia transitar em um tênue limite entre a
guerra e o consenso, entre o pacto e a volta ao tempo da luta social. Sabino tomou por
coincidência o mesmo vôo que Richter, que lhe disse que pensava que a Assembléia
deveria se estender até março. Sabino disse que havia cansaço para tal, e Richter
respondeu: “A política é assim”.
2.2 Novo Conflito na Bancada.
A reunião na casa Argandoña com o relatório de Rebeca Delgado dirigido à
bancada continuou com colocações, recriminações e demandas à comissão técnica que
participava do diálogo e da revisão do projeto de Constituição. O Comitê Técnico foi
questionado pela falta de comunicação com a bancada. E no Comitê preocupava a
recente informação segundo a qual eles seriam impugnados pela bancada. Rebeca
alegou que, durante a reunião em La Paz, havia chegado informação de que havia
problemas na bancada em Sucre, que se questionava se os constituintes que negociavam
em La Paz mantinham o apoio do resto de seus companheiros. Era o momento de fechar
acordos com a oposição e não houve um canal aberto com Sucre para verificar se a
bancada ou as organizações sociais acompanhavam as decisões. “Vão apoiá-los ou
não?”, perguntavam para os representantes do Conselho em La Paz. Rebeca afirmava:
“Decidimos continuar pensando que nossa bancada ia entender”. Segundo ela, é
legítimo querer se projetar, “Sabemos que problemas de lideranças pessoais”, disse,
“mas pensemos em seguir em frente”.
para que explicasse pela Comissão Terra. Disse que as mulheres são vistas como frágeis e que estavam
certos de que elas iriam acabar cedendo às pressões.
249
Armando Terrazas substituiu Román Loayza na direção da reunião, depois que
ele saiu, com dor de cabeça. “No lugar de informação, ouvíamos queixas”, disse,
negando “os rumores de La Paz de que “estão fazendo outra Constituição no Colégio
Junín e na Argandoña”. O problema repousa no paralelismo do trabalho da Comissão
Técnica inicial e os constituintes que se agregaram à mesma depois. A posição que se
afigurava tinha sido a de não trabalhar com autonomias, pois “nosso comitê” está
trabalhando nisso. Estavam realizando mudanças não para ir contra, mas para
“melhorar” o projeto, dizia: “se temos que mudar alguma coisa é pelo bem do país, no
final”. Armando disse também: “O presidente se incomodou e estipulou dois dias de
prazo para que entregássemos a Constituição, por isso é preciso aprimorá-la”. Eram
correntes os rumores de que a velha Comissão Técnica disse que o único documento
válido era Oberland (o nome do hotel onde se encontrava a primeira Comissão Técnica)
e que depois quer iriam negar “o que Cocarico e seus amigos fizeram em Sucre”.
Armando também criticou Carlos Romero, que “não pode dizer „metade do meu corpo
ao comitê técnico e a outra ao coité político‟... era preciso continuar trabalhando”.
César Cocarico falava de ambições de poder. Pedia a Armando para não dizer
que não tentaram colocar em descrédito a Comissão Técnica porque isso, para ele, não
era verdade. Eles estavam contra. Queixava-se de que da direção da bancada entrou
alguém na reunião da Comissão Técnica e defendeu que ele não dirigisse a comissão.
“Não querem que um índio dirija”, dizia Cocarico. Acrescentou que na primeira
comissão técnica, “se mudaram as autonomias, porque era quase a mesma coisa que
tinha proposto o PODEMOS”. Declarou ainda que alguns, que não trabalharam,
tentaram desautorizá-lo ao não decidir na comissão. Referiu-se ainda a um conflito entre
Saúl Ávalos e Marcela Revollo, que fez com que Ávalos se retirasse da Comissão. “Pela
alusão” Magda Calvimontes, da Comissão de Autonomia, disse discordar da
comparação do projeto da comissão com o da direita. Segundo ela, na Comissão
Técnica acrescentaram a Lei Marco, com a qual concorda. Mas achava que o resto
continuou igual. Na sua defesa, solicitou que lessem o documento antes de acusar.
Também acrescentou que falavam em “projeto de Saúl” mas a parte de autonomia
indígena foi feita pelos indígenas e a regional pelos que trabalham nas regiões
186
.
186
Rebeca apresentou as modificações no informe original de autonomias com um quadro na lousa,
onde ilustrava as novas hierarquias entre leis e decretos. Na Comissão de Autonomias da Constituição,
as modificações eram encaminhadas diretamente ao Estatuto Departamental. “Isto nos assustou”, disse
Rebeca. Disseram que seria como na Espanha, podendo-se alcançar a autonomia plena departamental.
Por isso entre os Estatutos e o CPE se situava a Lei Marco, seguindo o modelo francês. O debate da
250
Um constituinte indígena de Potosí pedia para que a bancada reunida na
Argandoña respeitasse a Comissão Técnica, que reduzira de 700 para 330 artigos.
Marco Carrillo, designado porta voz pela bancada e com o apoio de Evo, disse:
“Confiamos no ComiTécnico Político, mas não assinamos um cheque em branco”.
Também havia reivindicações pelas modificações que a Comissão de La Paz realizara
no texto do “decálogo” que outro grupo de constituintes da Bancada elaborou em
Chimoré, junto a Santos Ramírez. Alex Contreras, porta-voz do governo parabenizou
pelo trabalho. O documento era necessário para que se pudesse ir aos distritos eleitorais
fazer campanha, e que deveria ser um único documento no país todo. Cocarico
reconhecia que o documento fora modificado, pois havia contradições. Emiliana, de La
Paz, disse que no Conselho a direita os estava enganando. “Estou me sentindo mal”,
afirmou. “Estamos sendo discriminados porque alguns de nós são branquinhos e outros,
moreninhos”. Perguntava: “para que viemos? Por interesse pessoal? Agora isso está
nítido.” Alertou que se fossem com esses 10 mandamentos ás comunidades não seriam
bem recebidos não queriam 10 pontos, mas uma nova Constituição
187
.
René Navarro afirmou que na vida ninguém é insubstituível, mas ao contrário,
os indivíduos não são nada além de partes de uma engrenagem. “O erro desta Comissão
consiste em assinar documentos quando não dois terços, isso não está certo”,
declarou. “Por que vou assinar um documento para a direita? No diálogo só precisamos
atentar para as linhas gerais.” Para René, frente à iminência do fracasso, eram
importantes os 10 pontos “aprovados com aplausos em Cochabamba”. O povo vai ficar
com isso, acrescentou, pedindo para que comunicassem a Evo que seria preciso a
máxima cobertura nos meios de comunicação. Dunia reconhecia que havia temas menos
Comissão de Autonomias não se esgotara. Outro questionamento era o de lida Faldín e das
organizações indígenas porque disseram que não haveria reconstituição territorial. Mas a linha do MAS
era de que não haveria reconstituição, dizia Rebec. Quando o conselho político fechou um acordo foi
com base nisso, não houve traição. As autonomias seriam do mesmo nível, mas não haveria
reconstituição territorial, explicou.
187
O Decálogo do MAS destacava os elementos que seriam utilizados para fazer campanha a favor da
Constituição. Esperava-se que as organizações se mobilizassem em caso de fracassar a Assembléia.
Entre outras coisas o Decálogo falava do Estado Unitário Plurinacional Comunitário com democracia
direta e controle social, incluía a representação direta dos povos; a reeleição e a revogação de mandato;
a justiça comunitária, o voto popular de juízes e o tribunal com “juristas e indígenas”. Deixava intacto o
respeito à propriedade privada e anunciava maior protagonismo do Estado na redistribuição da
riqueza”. Quanto aos recursos naturais, abrangia-se o “domínio originário do povo boliviano, através do
Estado”, deixando claro que os povos indígenas teriam direito à administração e ao usufruto dos
recursos renováveis em seus territórios. Também estava inclusa a constitucionalização de 11%. Falava-
se em incorporar direitos coletivos. Estava garantida a autonomia universitária, “mas com o controle
social e prestação de contas”. Estava também à renúncia à guerra e a proibição de bases estrangeiras no
território boliviano.
251
impossíveis, mas insistiu que terra e território não são negociáveis. De fato era um eixo
que o diálogo até então não tinha tocado e que permanecia pendente em La Paz.
Rebeca falava pelo celular com Romero, do lado de fora da sala de reunião.
Depois diria que Romero lhe perguntou de La Paz: “como está indo a reunião?” e que
ela teve que responder: “É isso mesmo, tem gente dizendo que traímos, que estamos
indo contra as organizações. Dizem que o MAS não precisa de oposição para nos
destruir e é verdade”. Chegamos e vamos embora desalentados. Há pessoas que chegam
atrasadas e se queixam sem saber, alguém atira uma pedra e já começa”… Explicou que
no diálogo de La Paz a dinâmica é dura porque exige-se que tomem as decisões no
próprio momento. Eles não estavam isolados, uma vez que se encontrava o vice-
presidente com mandato do presidente. “Já não somos crianças”, prosseguiu, “temos
uma linha política clara. Como podemos ser tão destrutivos? Se alguém pensa que
traímos nos retiramos”, disse. Evo se reuniu com o CIDOB e em todos os acordos
estavam sendo consultados o presidente e o vice. Alguém pedia que não houvesse mais
brigas porque “temos que ser soldados do instrumento”. Em qualquer momento eles
podiam ser convocados. Evo disse que se o diálogo não triunfasse, caberia aos cívicos
decidirem.
Avilio Vaca, guarani, pediu a palavra, colocando que “os representantes
indígenas não fazem parte de nenhuma comissão e agora não alimentamos esperanças
quanto às autonomias indígenas”. Informou que houve uma assembléia da APG guarani
e que no ponto 12 rejeitaram os acordos do Conselho Político, onde se estabelece que as
autonomias indígenas não poderiam alterar os limites municipais: “De que mudança
estamos falando?”, perguntou, ao mesmo tempo em que anunciou que sua organização
iria protestar. Ameaçou entrar em greve de fome e disse que os indígenas que
acompanharam a redação não iriam recuar e que estavam de acordo com o texto do
MAS, mas não com o Conselho Político. Era a voz mais crítica na reunião sobre diálogo
de La Paz, e foi justamente Avilio o favorito da bancada para integrar o Conselho
Político, em um posto livre deixado por outro constituinte. Assim a bancada mostrava
seu descontentamento perante os acordos. Por outro lado, elegê-lo seria também um
modo de neutralizar seu discurso, que não se sustentaria no espaço da vice-
presidência em La Paz.
Cayo disse que alguns constituintes pareciam deputados defendendo suas
regiões, ou se rebaixando na posição de Comitê Cívico, quando é preciso redigir uma
Constituição para nove milhões de bolivianos. Cayo foi aclamado por todos, entre
252
palmas e risos. O clima começava a se amenizar e Armando disse: “Às vezes dá vontade
de chorar quando brigamos entre nós mesmos”. Admitiu que, ao se disporem a
negociar, é possível que se perca. “Não podem pedir recesso no meio da negociação
para vir consultar a Sucre”, disse. Perguntou a todos se ratificavam a Comissão Técnica
e a Comissão Política de La Paz, e ninguém se pronunciou em contra. Encerrou sua fala,
solicitando que reunissem os diversos documentos de decálogo em Sucre. Walter
Gutiérrez acrescentou que naquela semana seria decidido se a assembléia sobreviveria
ou não. Segundo ele, Evo teria dito: “Eu me preparei para o caso de, se fracassarem,
que o governo não saia queimado; vocês é que vão pagar o pato”. Rebeca pedia para
que tenham pronto logo o decálogo, “pois se entrarmos no Plano B, aprovamos nossa
Constituição”. Disse também que era momento de trabalhar como na campanha para
Constituinte e levar a difusão da Constituição até todos os lugares do país.
Com a prorrogação da suspensão da Assembléia decretada pela Diretoria, o
Conselho Supra-partidário de La Paz ganhou tempo até o 24 de outubro para tentar
fechar acordos nos pontos restantes, inclusive sobre a capitalia, porém o MAS não
lograria mais acordos como no início do diálogo. A agrupação PODEMOS voltará a
freqüentar as reuniões no intuito de criar empecilhos nas disputas internas. Doria
Medina declarou à imprensa que o PODEMOS estava dando uma grande contribuição
ao estudo sociológico criando uma nova categoria: “o partido político problema”, ou
seja, aquele que não propõe soluções e sempre encontra uma deixa para fazer
observações e questionamentos às propostas apresentadas. Ángel Villacorta constatou
que essa dinâmica também encontrara ressonância na fase das Comissões: “O
PODEMOS sempre esteve contra e, apesar de lançar uma proposta, discute e muitas
vezes altera o teor dos acordos, mas chegado o momento, os “podemistas” não assinam,
dizendo não terem acordo com o relatório geral”. García Linera disse: Passamos dias
inteiros escutando argumentos, colocando-os em pauta, para que depois não assinem. O
que fazem é jogar os temas, embaralhá-los e sufocá-los com a idéia de que este Comitê
Político não venha a assinar mais documentos. Então faz-se preciso tomar decisões
políticas
188
.
Enquanto o Conselho se encerrava introduzindo alterações importantes no
projeto de Constituição, mas sem a menor garantia de dois terços, Evo Morales
orquestraria uma nova frente de luta, à margem da assembléia mas provavelmente
188
21 de outubro de 2007, Diario El Deber. Op. cit.
253
vinculada com a possibilidade de seu fracasso. Era uma proposta de lei que pretendia
criar um bônus universal e vitalício para idosos, de 300 pesos bolivianos por mês, com o
nome de Renta Dignidad
189
. O conflito eclodiu porque o dinheiro para o pagamento da
renda seria proveniente de parte do Imposto Direto sobre os Hidrocarbonetos (IDH) que
até então era destinado aos governos departamentais, prefeituras e universidades. Em
poucos dias começaram os protestos e foram anunciadas mobilizações e greves de fome.
Evo Morales anunciou que aplicaria o corte de verba às prefeituras por decreto, se
necessário, e haveria assim uma frente de confronto com o Oriente, que se somava à
questão da capitalia.
Com uma composição diversa da disputa inicial pela maioria absoluta ou dois
terços, ou da cúpula social e as múltiplas formas de construir os relatórios na fase das
comissões, permanecia um clima de tensão entre o pacto republicano com o centro que
desse lugar a um novo Estado; e o avanço que construísse outro Estado de maneira
revolucionária impondo a transformação. Em declarações anteriores, García Linera
alertou que o Oriente só teria autonomia departamental caso a Constituição fosse
aprovada. No referendo de 2006, o texto votado nas regiões por “...dar à Assembléia
Constituinte o mandato vinculante para estabelecer um regime de autonomia
departamental, aplicável imediatamente após a promulgação da nova Constituição...”
Portanto, o fracasso da Assembléia levava a atrasar a implementação das autonomias
nos quatro departamentos onde ganhou o “sim. A mensagem de García Linera era que,
sem diálogo e consenso, haveria violência. Aludia-se ao processo político liderado por
Evo Morales como a última alternativa antes do caos, ou do avanço dos movimentos
sociais sobre a propriedade. “A direita contra-revolucionária e fascista não de frear o
programa de mudanças de governo, que continuará com ou sem Constituinte”, declarou
García Linera
190
.
189
Beneficiaria 673.000 pessoas maiores de 60 anos. Supriria o déficit previdenciário da Bolívia, onde
apenas 5% das pessoas em idade de aposentadoria, a cobravam. Ainda que fosse visto como
continuação do Bono Sol impulsionado pelo MNR com o dinheiro das empresas capitalizadas
(parcialmente privatizadas), o seu caráter universal era algo inédito na Bolívia.
190
Em uma entrevista no rádio, no programa de notícias La Hora del País, apresentado por Eduardo
Pérez, o vice-presidente disse: “acredito que duas forças no Podemos, a força do chefe nacional que
tem uma linha de ir até o fim, e há outras forças assentadas em Santa Cruz, bastante vinculadas ao setor
empresarial, com a linha de rejeição absoluta. No Podemos uma disputa entre a liderança nacional,
entre Quiroga, e as forças de Santa Cruz que têm uma outra linha para o líder das próximas eleições.
Quiroga é líder da direita conservadora residual. [...] Viemos compactuar, ceder no sentido de conciliar,
levando em conta os interesses das outras forças para garantir os dois terços, *…+Desde o início, algo de
estranho acontecia com o Podemos: primeiro me mandaram interlocutores com muita capacidade de
negociação e depois me trouxeram pessoas que tinham a intenção ideológica de fazer passar o tempo”.
254
Sobre o final do trabalho do Conselho Político, García Linera dera uma
entrevista ao jornal de Santa Cruz El Deber, e fora indagado sobre o que quis dizer
quando falou “nos vemos nas ruas”, suscitando revolta na imprensa favorável à
oposição. A resposta foi: “A Assembléia Constituinte foi proposta como lugar
democrático de definição dos interesses do país. É um cenário conflituoso, mas
dialógico. A seu modo, é o reconhecimento das forças emergentes do direito das forças
que estão em retirada a sentarem na mesa e incorporarem seus direitos e pontos de vista
no horizonte do país”. Sobre o Conselho Político, refletia: “Por que estamos aqui, por
que dei quatro semanas da minha vida como vice-presidente para me enfurnar 15 horas
com os constituintes? Porque queremos impedir que essa ala radical se retire, mas isso
algumas forças conservadoras não querem entender. Estamos dando mostras de que
queremos negociar um acordo. Este é o melhor e talvez o último cenário para conciliar
interesses
191
.
Conversei com Raúl Prada sobre seu ponto de vista em diferentes entrevistas,
após fechar-se o espaço de diálogo e consenso em La Paz. Pensava que a Assembléia e
o governo teriam desmobilizado as principais organizações; e que Evo Morales queria
acabar com a Assembléia, mandando Linera como última tentativa de salvá-la. Por isso,
o objetivo no Conselho tinha sido ceder para salvar a Assembléia. Reconhecia que 85%
dos acordos definidos no Conselho tinham sido sobre temas que não eram importantes
e, além do mais, lembrava que tais acordos não eram vinculantes. Atentava para que
não se tivesse pautado temas como os dois terços e a capitalidade, que deveriam ter sido
elencados, ao passo que via outros temas de relevância postos de lado durante a
Assembléia. Mas ainda achava possível salvar a Assembléia e conseguir chegar até o
referendo da população. De todo modo apontava que no texto havia limites e que
conseguindo aprová-la, seria uma Constituição de transição sem grandes mudanças. Não
era a Assembléia que haviam querido, e por isso falava também em apostar em uma
nova Constituinte mais para frente.
191
21 de outubro de 2007, El Deber. Op. cit. Trad. nossa. A entrevista concedida a Pablo Ortiz, que não
voltaria a lhe conceder, parecia ter um claro destinatário: “As próprias forças conservadoras que não
souberam aproveitar o cenário de diálogo, de paz e de esforços que a história permitiu à nossa
geração”. Disse: “arcarão com a responsabilidade histórica por traçar esse cenário e ter provocado a
emergência de forças sociais que questionarão de maneira radical o latifúndio, a propriedade da terra e
as riquezas”. Se esse processo se encerrar, afirmava, os setores conservadores poderão dizer que foi
uma conquista, ‘conseguimos encerrar’; mas pode dar vazão para que algumas alas dos setores
populares não considerem o direito do outro, mas tentem atender a seus próprios interesses. García
Linera se referiu expressamente aos setores de El Alto, e alguns setores indígenas do norte de Potosí
que “se perguntam como questionar os limites da terra”.
255
Raúl Prada observou que a Assembléia ficou isolada, e que havia desgaste. Não
foi um processo do qual tenham participado os movimentos sociais, imprescindíveis na
construção de um sujeito constituinte. A aprovação do texto seria uma vitória contra a
“direita recalcitrante”, mas era notável que no texto constitucional não constasse a
reterritorialização nem a descolonização. Hidrocarbonetos, meio ambiente e terra
podem constituir eixos para uma reforma importantíssima, diz, mas no sentido de um
projeto nacional e não descolonizador. A política se faz nas mobilizações e não nas
instituições, acrescentava, lembrando do projeto inicial segundo o qual todo o país seria
Assembléia, com “assembléias rodeando a Assembléia”. Para ele, foi uma Assembléia
convencional, preservando o “liberalismo de nossos costumes colonizados”, e a
“arquitetura do Estado colonial”. “Temos muito que aprender”, disse. “Somos bons para
a resistência, mas não para governar. Temos que aprender a coordenar esses cenários
onde se é governo e se está com a maioria. Temos que exercer a maioria politicamente
e não declará-la, sobretudo quando um complô da direita e dos grupos de poder.
Também temos que aprender a não fazer política da mesma maneira que eles. Caímos
na lógica do velho Estado”, refletia.
Para salvar o processo, era preciso aprovar e colocar em marcha mobilizações
pós-constituintes que interpretem à sua maneira os artigos. Assim caminhamos no
sentido da descolonização, pensava Raúl, com uma apropriação plebéia do texto. Se
articulando também com o governo, com uma luta no Congresso para transformar o
texto em leis, em materialidade jurídica. “Simples assim: é preciso terminá-la”, disse
Raúl Prada. Defendeu a transferência da Assembléia para Oruro caso o tema da
capitalidade não fosse resolvido. Enumerou, “tem coisas”: o pluralismo jurídico, a
reversão de terras pelo não cumprimento da função econômico-social, que a água não é
propriedade privada, o desenvolvimento sustentável e eles ficaram sem a bandeira da
autonomia. modificações de forma que podem dar vazão a transformações
posteriores. Por isso defendeu “aprovar o texto assim como está e deixar que o povo, as
nações, se apropriem do texto e o usem como instrumento de luta”. O que interessa é a
interpretação, dizia Prada, a interpretação mobilizada em âmbito plurinacional. E
ponderou: sabemos que é uma transição, agora a aposta é concluir o texto e continue
essa transição.
256
3 As Propostas Sobre a Capitalidade.
As tarefas do Conselho Suprapartidário sob a direção de García Linera em La
Paz se encerram com a apresentação de uma proposta dirigida aos setores a favor da
capitalidade de Sucre. As negociações sobre os outros temas acabaram sem mais
acordos, ainda que circulou a informação de que o MAS estaria disposto a abrir mão de
pontos importantes de seu projeto, por exemplo, o Parlamento Unicameral ou a
reeleição presidencial indefinida. Mas não houve mais acordos (cf. BOLPRESS
24/20/2007). No último ato do Conselho reunido em La Paz votou-se na proposta pela
sede dos poderes, elaborada por uma subcomissão que a princípio permaneceu em
segredo e que depois foi sabido que era integrada por Carlos Romero do MAS, Samuel
Doria Medina do UN e Guillermo Richter do MNR. Em 24 de Outubro, após 70 dias de
suspensão da Assembléia e de algumas semanas de funcionamento do Conselho, com
três acordos firmados que não asseguravam os dois terços, ou quatro contando o de
capitalidade, esta comissão elabora uma proposta em documento firmado na supra-
partidária por dez grupos e um dissidente do PODEMOS. O acordo oferecia a Sucre o
status de sede do Poder Judiciário e do novo Poder Eleitoral; algumas sessões do
Congresso, a declaração de que era “Capital Histórica” e a construção de uma estrada e
um aeroporto
192
.
Os cívicos de Sucre rejeitaram a proposta. O vice-presidente declarou que 90%
do documento descartado foi proposto e “quase redigido” pelos membros do Comitê
Interinstitucional de Sucre que sugeriram sediar os poderes Judiciário e Eleitoral e a
construção do aeroporto e da estrada. Aparentemente, a proposta surgira a partir de um
pré-acordo dos líderes cívicos de La Paz e Chuquisaca, mas suas bases o aceitaram o
192
A proposta se baseava em sete pontos principais: 1) Reconhecer constitucionalmente Sucre como
capital histórica da Bolívia, sede do Poder Judiciário e do Poder Eleitoral; e La Paz como sede do Poder
Executivo e Poder Legislativo nacional; 2) Constitucionalizar o Quarto Poder (Corte Nacional Eleitoral)
com sede em Sucre; 3) Sessão inaugural, sessão de encerramento e todas as sessões de honra do
Congresso Nacional em Sucre; 4) Criar uma Oficina de Coordenação Legislativa na cidade de Sucre; 5)
Criar uma oficina regional permanente do Ministério de Justiça em Sucre; 6) Ratificar o art. 46 da atual
Constituição (que permite a transferência de sessões do congresso), e 7) Captar recursos econômicos
para a construção do novo aeroporto de Sucre e da estrada “Diagonal Jaime Mendoza”. Assinam: Silvia
Lazarte, Roberto Aguilar, Pastor Arista, Ricardo Cuevas, Weimar Becerra, Ángel Villacorta, Miguel Peña
Guaji (Diretoria), Carlos Romero, Franz Asunción (CN), Roxana Zaconeta (MBL), Sabino Condori (AS);
Avilio Vaca Achuco, nome ilegível por Camino al Cambio; Guillermo Richter; Román Loayza; Ricardo Pol
(UN); outra assinatura pelo A3 MNR; outro constituinte do MAS, Lindo Fernández (independente); David
Vargas (ASP); Oscar Mamani (AS); Raúl Prada; Félix Vásquez Mamani (MOP); Jaime Navarro (UN);
Samuel Doria Medina; Mario Machicado (CN); Evaristo Pairo; Juan Zubieta; Humberto Tapia (ASP); E Ana
María Ruiz por conta própria.
257
acordo. Romero denunciou que a explicação da interrupção no avanço das negociações
se devia a uma viagem a Sucre de Branco Marinkovic, presidente do Comitê Pró-Santa
Cruz, que produziu uma mudança radical no clima das negociações, depois de pelo
menos sete reuniões. A agência estatal ABI, falava em reuniões dos cívicos de Sucre
com Carlos Dabdoub
193
.
Além de rechaçar o documento, o comitê interinstitucional convocou
mobilizações para o dia seguinte. Jaime Barrón, presidente do Comitê Interinstitucional,
explicou uma dura “contrapropostado Comitê: “Pedimos para que o Legislativo volte
imediatamente depois de aprovar a nova Constituição Política do Estado e de forma
progressiva o Executivo e todos os órgãos de Poder que devem ficar na capital
constitucional da Bolívia”. Em resposta ao rechaço, o Comitê de Emergência de La Paz
pediu a transferência da Assembléia fora de Sucre. Marcela Revollo, do MSM, era uma
voz representativa dos atores políticos de La Paz que impulsionaram a consigna “a sede
não se transfere”. Quando a notícia era o rechaço de Sucre, à proposta do Conselho me
disse “pronto, Salvador, continua tudo em janeiro”. Essa era sua proposta (reabrir no
ano seguinte), crítica da estratégia do MAS, e observou que “cuidam de oito do UN mas
pelo outro lado vão perder nove”. Alguns membros do governo falaram na possibilidade
de fechar a Assembléia, deixando os temas centrais para ser submetidos a um referendo
da população
194
.
193
Romero contava à bancada do MAS que houve muitas reuniões privadas com Barrón, muitas delas na
casa dele de Sucre, outras na minha casa em Santa Cruz e também em La Paz em uma casa colocada a
disposição por Doria Medina. Eles reconheceram que se trata de um tema de enfrentamento civil e que
se transferissem os poderes haveria uma guerra civil com La Paz. Houve contrapropostas, algumas
instituições, plano de desenvolvimento, mas depois negaram as propostas e disseram que sequer se
conheceram pessoalmente e jamais se reuniram. Foi um avanço quando a correlação de forças se
alterou dentro do Comitê Interinstitucional com a posição da Federação de Camponeses de Chuquisaca.
Disseram que não pertencia ao Comitê mas tiveram de assumir que havia duas propostas; uma dura e
outra mais flexível. Também lograram incorporar duas instituições com as quais havia princípios de
acordos: o comitê do bicentenário e o colégio de advogados. Com a incorporação deles havia um pré-
acordo, mas foi declarado um recesso e nesse momento souberam por acaso que Javier Limpias do
PODEMOS e Branco Marinkovic se dirigiam a Sucre em um jatinho privado. Depois disso disseram que a
reunião que estava marcada para às 15:00 passaria para às 17:00. Os agentes da inteligência seguiram
Marinkovic e soube-se que se reunia com Fidel Herrera em sua casa. Na reunião diziam que não
poderiam começar sem o Fidel e que não podiam localizá-lo pois ele perdeu o telefono celular. Quando
finalmente chegou às cinco e meia, interrompendo a reunião, tinham se engessado pelo comitê cívico
de Santa Cruz.
194
O Senador Santos Ramírez garantiu à agência APG que os temas que deviam ser levados em
consideração no referendo podem ser latifúndio, recursos naturais e o segredo bancário, e declarou: "Se
a direita pensa que fechando a Assembléia Constituinte tornaria mais difícil o processo de
transformação, ela está equivocada pois a Assembléia não é uma medida de Governo, é um cenário de
patrimônio e transformação política, econômica social e cultural dos bolivianos".
258
Uma novidade foi a posição da Federação Única de Trabalhadores e Povos
Originários de Chuquisaca (FUTPOCH), que apresentou uma contraproposta sobre
capitalidade de forma separada do Comitê Interinstitucional, depois de seu encontro em
Zudáñez. Era uma proposta difícil de cumprir para o MAS e que La Paz nunca aceitaria,
mas representava uma ruptura importante na posição do bloco da região, mostrando aos
camponeses a favor da capitalidade mas longe das posições intransigentes do Comitê,
associado aos mestiços da cidade. Voltava assim a imagem das “duas Bolívias”, que a
chegada do MAS ao governo reavivou. Pela Comissão de negociação, Doria Medina
declarou à imprensa que a proposta era bastante exigente porém menos que a do Comitê
e que por tanto seria a base do acordo. De modo similar Romero considerava factível
uma transferência progressiva ou compartilhada do Poder Legislativo
195
.
Além dos protestos de Sucre e do rechaço de Chuquisaca à proposta do
Conselho Político, um obstáculo para o funcionamento da Assembléia era a intervenção
da Fiscalía (Procaduria) do Distrito de Chuquisaca que emitiu um mandado de
apreensão para forçar a declaração e depois arraigar (reter) em Sucre os membros da
Diretoria que aprovaram a resolução que proibia a discussão do tema da capitalidade na
Assembléia. Os constituintes se declararam “perseguidos” e anunciaram que
permaneceriam em La Paz onde as organizações sociais os defenderiam. Esta
intervenção do poder judiciário de Sucre no processo constituinte, se converteu em
outro dos pontos que entraram na negociação
196
.
Foi então que os setores do MAS que não participaram das negociações puseram
em marcha o plano de transferir a Assembléia para Oruro, a pesar de isso a rigor não
ser possível, que a Lei de Convocatória estabelecia expressamente a sede da
Assembléia em Sucre. O plano começou a se orquestrar rapidamente, com declarações
do Comitê Cívico, a prefeitura e a Universidade de Oruro garantindo apoio logístico; e
uma delegação de representantes de 9 partidos que viajaram no intuito de avaliar as
condições. Ao mesmo tempo, a comissão negociadora do Conselho Político avaliaria a
situação de segurança em Sucre, para decidir o retorno ou a transferência da
195
Na sua proposta, os camponeses pediam que Sucre fosse declarada “Capital Constitucional” (e não
histórica); o retorno do poder legislativo; e só o ministério da justiça e novas instituições que se
desdobrem do poder executivo. A proposta admitia a criação do Quarto Poder, Eleitoral, e para além
das obras oferecidas exigia o desenvolvimento do departamento.
196
A partir de uma demanda apresentada pelo Comitê Inter-institucional sobre o erro de um tribunal de
garantias que anulou a resolução da Assembléia Constituinte de 15 de Agosto sobre o não tratamento
do tema da capitalidade foram intimados Roberto Aguilar (MAS), Silvia Lazarte Flores (MAS), Ángel
Villacorta Vargas (UN), Miguel Peña (MAS), Weimar Becerra (MAS), Pastor Arista (AS) e Svetlana Ortiz
Tristán (MAS).
259
Assembléia. Mas o plano fracassou e foi abortado depois de no último dia de outubro
participarem apenas 87 constituintes do MAS em uma reunião convocada em Oruro
para medir forças.
A reunião foi mantida em segredo, mas foi importante para verificar que seria
difícil convocar um alto número de constituintes fora de Sucre. O MOP, o MNR e
Richter do MNR declararam que não participariam, e o MAS não tinha segurança
sequer para obter a maioria absoluta. Os dez constituintes de Chuquisaca leais ao MAS
também não participariam, a pesar de confluir com as posições da Federação de
Camponeses do departamento. Ao voltar para Sucre, Armando se queixava da falta de
compromisso “tive que mentir para que fossem a Oruro porque não queriam”. Era
tempo de recriminações e rupturas. Evo Morales não tomava decisões pela Assembléia,
e Armando se queixou de Silvia Lazarte por dar poder de decisão a García Linera,
quando o consultou em 2006, no lugar de aceitar o primeiro acordo pelos dois terços ao
começar a assembléia. Também havia queixas contra Romero, que continuava
apostando no diálogo. Armando o via mais como um técnico, despolitizado. As críticas
também se dirigiam à intransigência de La Paz, que não permitia a contemplação do
tema que estava paralizando a Assembléia
197
.
Sem saber do recuo na estratégia de ir para Oruro, o ComiInterinstitucional
decidiu tomar medidas para evitar o translado. As sessões em outro departamento
possivelmente anulariam a Assembléia, mas também debilitariam a força que os cívicos
obtiveram com as vigílias e os protestos que bloqueavam a Assembléia. Reagindo frente
à possibilidade de transferência, o Comi Interinstitucional convocou então uma
Cúpula Nacional cívico-institucional para 6 de novembro, para que a “Junta
Democrática da Bolívia assuma uma posição sobre a eventual transferência das
sessões”, que consideravam iminente.
Como o principal fundamento para a transferência eram as manifestações de rua
em Sucre que impediam o funcionamento da Assembléia; para evitar a transferência, os
cívicos fizeram uma tentativa de diálogo e decidiram oferecer condições para a volta ao
funcionamento normal do fórum na cidade. Em um acordo firmado com a sub-comissão
197
A convocatória foi apresentada por Armando Terrazas em uma reunião da bancada, e muitos
disseram discordar da estratégia, mas que a aceitariam se fosse necessário como soldados”. O plano
significava para Armando a última possibilidade de aprovar a Constituição. Tal plano consistia em
alcançar o quórum, aprovar a Constituição amplamente e em seguida lutar para que seja aprovado via
referendo. Não ficava claro o que aconteceria se o PODEMOS comparecia. E o preço a pagar seriam as
contestações por ilegalidade.
260
coordenada por Romero, os camponeses de Chuquisaca e o Comitê, no dia 31, enquanto
o MAS media forças em Oruro, os sucrenses garantiam que as ações legais contra a
Diretoria e a Vigília permaneceriam em suspenso sempre que na primeira sessão
contemplassem o tema da capitalidade, e anulassem a resolução de 15 de agosto
198
.
Após o pré-acordo; Silvia Lazarte, anunciou que a Assembléia voltaria para
Sucre, e convocou os constituintes a se apresentarem na cidade na próxima segunda-
feira, 5 de novembro, quando apresentaria um cronograma de trabalho, convocando o
reinício das sessões, com um prazo de 40 dias para entregar o novo texto constitucional.
Ao mesmo tempo, uma resolução do Conselho Político estipulava um prazo para a
negociação, orientando a sub-comissão de diálogo a “realizar os últimos esforços para
resolver o tema da sede dos poderes”
199
. Pairavam no ar resquícios de ar fresco na
política de Sucre, e o fechamento da Assembléia não era o único cenário visível,
embora a situação ainda não se descomprimisse pois a contemplação do tema capitalia
na primeira sessão não era aceita por La Paz; e Sucre não aceitava a proposta do
Conselho Político. Romero declarou à imprensa escrita “É bastante delicado, não queria
dar uma posição otimista nem pessimista porque a estas horas o tema deveria estar
sendo resolvido. É muito complicado, continuamos nos esforçando. Admiro os
integrantes da subcomissão que continuam buscando iniciativas; enfim, não queria
adiantar mais considerações. Não se fez nenhuma nova proposta. Precisamos de mais
tempo”.
Deu-se início às conversações entre os cívicos e a comissão formada por Richter,
Romero e Doria Medina
200
. A base das negociações era a proposta segundo a qual dois
198
1. As instituições de Chuquisaca representadas pelo Comitê Interinstitucional e a Federação Única de
Trabalhadores dos Povos Originários de Chuquisaca, garantiam a continuidade das atividades da
Assembléia Constituinte, reafirmando a existência de condições necessárias para seu funcionamento na
cidade de Sucre, que poderá se reiniciar a partir de 5 de novembro. 2. Estudar um acordo que resolva o
tema da capitalidade no marco das diversas propostas para sua posterior constitucionalização na
primeira sessão plenária da Assembléia Constituinte. O Conselho Político se compromete a responder às
instituições de Chuquisaca no tempo mais breve possível. 3. As ações legais iniciadas contra a Diretoria
da Assembléia Constituinte foram suspendidas até a o tratamento da proposta de acordo sobre
capitalidade na primeira plenária. Assinam: Jaime Barrón (Comitê Interinstitucional); Damián Condori
(secretário executivo FUTPOCH); alcaldesa Aidee Nava; Jhon Cava (Comitê Cívico); Antonio Jesús
(Federação Universitária de Chuquisaca); Guillermo Richter, Samuel Doria Mediana e Carlos Romero.
199
Ao mesmo tempo, a Corte do Distrito de La Paz anulava o mandato da Corte de Sucre, declarando
procedente um recurso de Habeas Corpus e determinando que os membros da Diretoria não poderão
ser julgados até que a Assembléia levantasse o foro de imunidade de seus membros por dois terços.
200
Carlos Romero conta que quando a subcomissão se dirigia a Sucre para fazer a segunda proposta ao
Comitê, Richter disse “quando lhes apresentemos essa proposta vamos ter que dizer ‘desculpe pela
pequeneza”, e Doria Medina disse que isso era o que ele devia dizer habitualmente a sua esposa. Com
seu humor, Doria Medina também disse que o MAS queria tentá-lo com uma de suas constituintes.
261
poderes se concentrariam em La Paz (Legislativo e Executivo) e dois em Sucre
(Eleitoral e Judiciário) o que significaria uma vantagem para Sucre se considerarmos a
situação atual e que, tendo em vista a falta de simetria da importância dos poderes, seria
possível complementar com outras instituições o “cedidas” por La Paz, mas
“compartilhadas”. Circulavam rumores de que o Senado poderia ser também transferido
para Sucre, bem como algumas instituições do executivo até que seja garantida
determinada quantidade de empregos. Assim surge uma segunda proposta, em 4 de
novembro, e pouco depois uma terceira, final e engordada”, apresentada no dia 6, que
deixava de lado a demanda de La Paz sobre constitucionalizar seus dois poderes,
incorporando pontos presentes na proposta dos camponeses. A nova proposta consistia
em outorgar a Sucre o status de “Capital Constitucional” e por mais que não abordasse o
tema da sede dos outros poderes, se propunha a dar à cidade de Sucre, entre outras
coisas, a Defensoria do Povo, o Ministério da Justiça, uma Comissão do Congresso que
funciona no recesso parlamentar, e também um ponto exigido pelo Comi
Interinstitucional: que as entidades nacionais a ser criadas a partir de agora radicariam
em Sucre
201
.
A posição dos camponeses de Chuquisaca era agora mais decidida a favor de
viabilizar a Assembléia, apoiando a proposta do Conselho. Também houve apoios de
setores opositores como um Senador de Chuquisaca do PODEMOS, e o Senador de
Oruro Carlos Börth, também do PODEMOS, que disse à imprensa que a proposta de
Chuquisaca de solicitar a transferência imediata do Poder Legislativo era incoerente.
Mas o Comitê Cívico rechaçou também a nova proposta, mantendo a posição de não
negociar a reivindicação que clamava pela volta dos dois poderes e da capitalidade
plena. A proposta também não conseguira o apoio de La Paz, que alegou “nem um
201
Proposta de acordo entre o Comitê Interinstitucional de Chuquisaca e o Conselho Político, em 6 de
novembro: 1. Sucre Capital Constitucional da República da Bolívia no texto constitucional. 2.
Constitucionalizar a criação do Quarto Poder com sede em Sucre, com base em: 2.1. Corte Nacional
Eleitoral. 2.1. Registro Civil. 3. Radicar as novas entidades nacionais a fundar-se no marco da nova
Constituição Política do Estado na cidade de Sucre: 3.1. Procuradoria do Estado. 3.2. Tribunal de
Ajuizamento de Juízes e Fiscais. 4. A Nova Constituição Política do Estado se estipulará que a Comissão
do Congresso tenha como sede a cidade de Sucre, onde se levarão a cabo todas as suas sessões, com
todas as atribuições pautadas na atual Constituição Política do Estado no Capítulo VI do Título Primeiro
do Poder Legislativo. O Congresso Nacional se reunirá em Sucre para:
4.1. Inauguração, Encerramento, Sessões de Honra. 4.2. Juízo de Responsabilidades ao Presidente, Vice-
presidente, Ministros e Prefeitos. 4.3. Eleição de todas as autoridades do Poder Judiciário. 4.4. Leis que
aprovem Reformas Constitucionais parciais. O Poder Executivo se compromete a honrar os seguintes
compromissos no marco deste acordo: 5. Abrir oficinas permanentes na cidade de Sucre que
compreendam: 5.1. Congresso Nacional. 5.2. Ministério da Justiça. 6. Garantir financiamento para:
6.1. Rota Diagonal Jaime Mendoza. 6.2. Aeroporto Internacional de Alcantarí. 6.3. Desenvolvimento do
setor de hidrocarbonetos. 6.4. Desenvolvimento do setor agropecuário.
262
alfinete para Sucre”. Roberto Aguilar, vice-presidente da Assembléia, comenta mais
para frente que neste momento o preocupava a possibilidade de os cívicos aceitarem o
acordo que considerava um retrocesso para o MAS. Por isso “beijava a televisão”, dizia,
quando Edgar Arraya (constituinte dissidente do MAS) começou a gritar que isso era
inaceitável.
La Paz defendia a posição de não ceder a partir do que tinha em mãos (a sede
dos poderes Executivo e Legislativo), e não do que possa ser equilibrado em uma
negociação abstrata. O realismo de La Paz se chocava com o historicismo de Sucre.
Também estava em jogo o processo político iniciado pela chegada do MAS ao governo,
que não era um tema alheio à discussão da sede dos poderes. Neste sentido, Macario
Tola, presidente da brigada de La Paz e constituinte do MAS, disse-me que o
importante era o comunitário e o plurinacional; que não pensava que cederam muito no
Conselho, e que teriam que apostar nas autonomias indígenas. Explicava que em El Alto
não se lutava pela consigna “a sede não se transfere” como também pela constituinte
e o Estado Plurinacional. Contava que estavam trabalhando com a população de El Alto,
com projeções no Power Point sobre a proposta de nova Constituição que deveriam
defender nas urnas. Disse que esteve preso por cinco anos fora companheiro de García
Linera no EGTK e que não tinha medo da violência. Pensava que assim como se
nacionalizou 70% dos hidrocarbonetos (com o aumento de impostos), o povo teria que
continuar a exigir outras nacionalizações. Mas o boliviano se mexe mas depois para e
espera, me explicava.
Em 6 de novembro, García Linera declarou o encerramento da instância de
diálogo em La Paz e a responsabilidade em buscar alguma forma de que a Assembléia
volte ao trabalho passou para a Diretoria. Os cívicos reiniciaram suas vigílias para
impedir o reinício das reuniões plenárias até que se revertesse a exclusão do tema pela
resolução de 15 de agosto. Depois de ficar pública a recusa de Sucre frente à proposta
do Conselho, García Linera lançou mão de suas declarações mais duras desde a
ascensão do MAS ao governo: “A Assembléia Constituinte está nas mãos de sua
Diretoria, dos constituintes e do povo boliviano, que saberão encontrar o mecanismo
para liberar a Assembléia Constituinte desta chantagem ultraconservadora, deste
seqüestro reacionário, racista e fascista de alguns setores empresariais e políticos que
querem prejudicar o país”. Referia-se aos dirigentes do Comitê Interinstitucional de
Chuquisaca, bem como a alguns empresários de Santas Cruz e a agrupación cidadã
PODEMOS, que impediam o funcionamento de la Assembléia, e advertiam que "Esta
263
decisão abre caminho para que a maioria possa tomar decisões ainda mais radicais
quanto à distribuição de riquezas nos próximos dias. A minoria não terá direito a
contestar as decisões radicais da maioria, acerca de temas como a propriedade, porque
eles, a minoria, é a que estão minando o cenário de encontros e diálogo”
202
.
Os setores mais duros da oposição pareciam aceitar a confrontação direta, e
tentavam multiplicar vontades para impor uma contra-reforma com as bandeiras de
autonomia departamental, capitalidade e oposição ao Estado Plurinacional. Pretendiam
abrir uma Assembléia opositora ao MAS, em Sucre, convocando 128 constituintes (o
quórum básico), ou organizando uma Assembléia paralela na sede oficial do fórum caso
o MAS insistisse em se transferir para Oruro. O constituinte Edwin Velázquez de
Chuquisaca, do PODEMOS, declarou que a oposição tinha reunido cerca de cem
assembleistas dispostos a impedir a transferência para Oruro. As três vertentes do MNR,
AS do alcalde de Potosí, os grupos da Meia-Lua (MIR, APB, AAI) e o PODEMOS
deram uma conferência de imprensa anunciando esta posição e uma nova configuração
de forças. Diziam que constituintes do MAS e do UN também aderiram. Falava-se no
apoio de constituintes de 10 forças políticas, um número parecido ao qual o MAS
conseguiu reunir para assinar acordos no Conselho Suprapartidário de La Paz.
Na tentativa de evitar a transferência da sede, os manifestantes de Chuquisaca
mobilizados e em vigília, que tinham como grupos fixos mais numerosos os estudantes
e os funcionários da prefeitura, cercavam o edifício das oficinas administrativas da
Assembléia Constituinte, no Teatro Gran Mariscal, para impedir a eventual retirada de
documentos da Assembléia. Não obstante, o diálogo com os cívicos não foi totalmente
cortado, e em 9 de novembro o jornal La Razón publicou uma foto de Romero chegando
na casa do assessor do Comitê Interinstitucional Germán “Chunca” Gutiérrez, à meia-
noite, depois de sair de uma reunião com a Federação de Camponeses. Diziam que
Barrón e Cava estavam dispostos a aceitar um acordo que lhes desse “pelo menos o
202
Setores até então críticos à posição pró-diálogo do MAS, como o consejal (vereador) de El Alto
Roberto de la Cruz e o CONAMAQ, apoiaram as palavras do vice-presidente. Porém o CONAMAQ deixou
claro que o apoio se daria sempre e toda vez que se respeitassem a consulta para exploração de
recursos naturais. Os “ponchos vermelhos” de Achacachi (na voz de seu prefeito, que seria Senador do
MAS) e organizações de El Alto manifestaram apoio ao Vice-presidente e ao governo. Eram os setores
aos quais o vice-presidente se referiu quando anunciou mudanças sobre a propriedade e a distribuição
de riquezas. Dirigindo-se aos camponeses em Potosí, em 8 de novembro, Evo Morales entregou 76
tratores e incitou a defesa da Assembléia. Em seu discurso explicitou: “Ao povo boliviano, especialmente
o movimento indígena do oriente, do ocidente ou do vale, quero dizer-lhes que não podemos permitir
que grupos, famílias, não queiram que a Assembléia Constituinte seja concluída. Temos que nos esforçar
para concluir a Assembléia Constituinte, para refundar a Bolívia”. Disse que sentia que a oligarquia quer
barrar a Assembléia por medo de perder no referendo, por medo do povo.
264
legislativo”. Mas qualquer que seja seu estado nesse momento, a negociação beirava o
impossível.
O avanço sobre a propriedade cuja possibilidade García Linera anunciara não se
efetivou, a transferência para Oruro também não, nem mesmo o avanço das negociações
com o Comitê. Raúl Prada lembra que nas oficinas entre os constituintes, realizadas
antes de começar o rum, a posição em voga era “reforma constitucional” ou
Assembléia Constituinte”. No fim, seria apenas uma reforma, avaliava. As brigas
internas afetaram inclusive a saúde de Raúl, bem como a de outros constituintes, e teve
um surmenage. Ele fora mais uma vez desautorizado no Conselho Político, como
acontecera quando participava de uma primeira negociação pelo regulamento em 2006,
e depois da decisão de excluir o PODEMOS da pauta Visão de País. Lembra que Álvaro
teve um momento anarquista quando saiu da cadeia, influenciado por Raquel Gutiérrez,
mas depois apostou no Estado e na real politik e foi “ganhado” pela mídia. Até 2005
havia uma tensão entre Estado e anarquismo. Depois, o anarquista mana kanchu
203
,
dizia Raúl. Confessava que decidiu ver o que acontecia com a real politik e pensou
“quem sabe o Álvaro tenha razão”, mas agora estava se comprovando que o
pragmatismo político não funcionava e era política tradicional. Por isso pensava que
quem sabe seu lugar teria que ter sido o de acompanhar o processo de fora.
Pensava que o governo tinha “aberto mão da Assembléia”, e que não havia
estratégia para a Assembléia Constituinte, havia incoerência e falta de planificação,
dizia. Contava que após o bravo discurso de García Linera ao encerrar o Conselho, era
momento de lançar o Plano B, com mobilizações e medidas do executivo, mas não
aconteceu nada. Álvaro pensava do mesmo modo, cujo discurso ia no sentido de
deflagrar a revolução agrária com redistribuição de terras. Operam com ambigüidade e
hoje se o claro risco de que não encontrem desfecho. Para concluir, são necessários
colhões e isso não temos. Colhões para se enfrentar com o que dizem acima dizia o
Chato Prada, apontando para os assembleistas.
Raúl Prada estava a favor de que a minoria se expressasse em um segundo texto,
e que houvesse um referendo entre as duas visões de país, uma com os movimentos
sociais e outra com os comitês cívicos da Meia-Lua. Pensava que ninguém apoiaria a
Constituição do PODEMOS e que os chuquisaquenhos não seriam suficientes para
203
“Não há”, em quéchua, frase geralmente acompanhada de um gesto repetido de giro, feito com a
mão aberta com os dedos apontando para cima.
265
aprová-la. Frente à possibilidade de uma Assembléia chuta
204
em Sucre, acreditava que
teriam que considerar seriamente a transferência para Oruro. Agora é tudo ou nada,
dizia Prada, vendo como algo positivo o fato de Carlos Romero ter negociado para
reabrir mas observando que se depois não houver dois terços, não haveria um plano para
dar continuidade às plenárias. O que havia era incerteza e falta de decisões. Agora
enxergaram os nossos tornozelos e eles se encorajaram, dizia. As únicas opções em
vista do Raúl Prada eram apenas duas: “Oruro… ou ganhar a praça”.
4 Entre a Violência e a Decisão Final.
Uma vez encerrada a possibilidade de diálogo, com o fechamento quase sem
resultados do Comitê Multipartidário de La Paz, o MAS e a oposição começaram a
medir forças para conseguir a aprovação do texto, ou então para aterrar definitivamente
a Assembléia. Começaria uma fase agônica de puxar dos dois lados sem iniciativa de
nenhuma das partes, por conta de uma distribuição de forças que impedia o MAS a
alcançar os dois terços, mas também estancava as outras forças políticas envolvidas. O
êxito da Meia-Lua em impor os dois terços como forma de aprovação parecia estar
levando a Assembléia à nada. Ainda que ambos os extremos orquestrassem estratégias
para reconduzir a Assembléia em direção radical: uma autonomista, atribuída à Meia-
Lua, com a capital em Sucre; outra revolucionária. No decorrer do mês de novembro, o
Comitê Interinstitucional em Sucre não dava mostras de flexibilidade para negociar uma
saída. Os defensores da capitalidade receavam que em uma eventual sessão se
permitisse a transferência do fórum sem retomar a contemplação do tema capitalidade.
Os que lideravam o conflito pareciam não aceitar uma solução arbitrada. Também
ocorreu uma reunião em Tarija das Prefeituras departamentais opositoras e das forças
cívicas da Meia-Lua e Chuquisaca, na qual se configurou uma agenda independente da
Assembléia
205
.
Recusadas as propostas, com o discurso de García Linera devolvendo a Sucre o
rol protagonico; em 7 de novembro Silvia Lazarte convoca uma sessão para sexta-feira
204
Falsa, falsificada.
205
Na “cúpula política, cívica e social” de Tarija estavam presentes os prefectos de Santa Cruz,
Cochabamba, Beni, Pando e Tarija, além de cívicos de Chuquisaca. O intuito era dar início a um plano de
ação para enfrentar o corte orçamentário do dinheiro do IDH, demarcando um ultimato para que o
governo devolva o dinheiro retido e anule o Decreto que determina o desconto. Também estabelece a
declaração da “autonomia de fato” para 15 de Dezembro, se a Assembléia não constitucionaliza o
mandato do referendo autonomista antes desse prazo.
266
9 de novembro na qual se deliberaria uma possível transferência da sede. O que
viabilizou a convocação foi um acordo assinado entre os cívicos de Sucre e a
subcomissão do extinto Conselho Político, em 31 de Outubro, com o Comitê
Interinstitucional garantindo a ordem em troca da promessa da contemplação do tema da
capitalidade logo na primeira reunião da Assembléia. A disputa política central passaria
a ser posta na Pauta do dia que seria tratada nas sessões, na expectativa de que se
incluísse o tema da capitalidade. Porém na sua primeira convocatória em Sucre após
quase três meses de suspensão, a Diretoria não chegava a um acordo favorável para a
inclusão do tema. Alguns membros da Diretoria não compareceram a uma reunião
extraordinária, de acordo com Silvia Lazarte, por terem seus celulares desligados. Sem
respeitar o pré-acordo que viabilizaria a reabertura, no entanto, Diretoria anunciava a
agenda para a próxima sessão e não incluía aquele ponto
206
.
Frente à posição da Diretoria, e influenciados pela radicalidade do discurso de
García Linera segundo comentavam alguns daqueles que estiveram presentes na
reunião a Assembléia do Comitê Interinstitucional desconsidera o pré-acordo e decreta
vigília, bloqueio de estradas e marchas. Alguns vêem a decisão como precipitada e sem
cautela frente ao eventual cumprimento do acordo na primeira sessão, não dando
ouvidos ao pedido dos dois líderes Fidel Herrera e Aydee Nava impelidos pela
emoção e pela certeza de que o MAS tentaria aprovar sua Constituição “em cinco
minutos”, mas também no marco do discurso duro de Linera, no qual o vice-presidente
chamava os cívicos de fascistas, e que foi ouvido no inicio da reunião e antes de se
pronunciarem e tomarem a decisão do que fazer. O Comitê declarou vigília impedindo
mais uma vez as plenárias, num apelo à adesão à “luta em defesa do IDH” e à
mobilização em prol da legalidade, declarando García Linera de “inimigo de
Chuquisaca”. Na tensa reunião falou mais alto a voz mais radicalizada dos estudantes,
que disseram que “novembro se converteria na revanche de Ayo Ayo”, em alusão ao
episódio da guerra federal no qual alguns jovens de Chuquisaca foram sacrificados, há
mais de cem anos atrás. A reunião se encerrou com o chamado dos estudantes a deixar
de lado o discurso e partir para a ação; e a reunião se converteu em vigília, bloqueando
o acesso ao Teatro Gran Mariscal.
206
A agenda incluía: transferência de sessões, controle de assistência, leitura de correspondência e
assuntos variados. No regulamento da Assembléia, um ponto dizia “a Diretoria fará a agenda”, eis o
motivo esgrimido por Silvia Lazarte e a Diretoria para não dar espaço para o acordo realizado pela
subcomissão do Conselho capitaneada por Romero, à qual La Paz se opôs desde o início.
267
Entrevistei o prefecto de Chuquisaca (MAS), David Sánchez, que participava da
Vigília, sentado nas grades da porta do teatro, junto aos líderes do Comitê
Interinstitucional e ao lado das constituintes do MAS Epifania Terrazas e Sabina
Cuellar que endossaram o protesto. Mais pessoas chegaram à praça em frente ao teatro,
até cerca de 150, sendo os estudantes o grupo mais numeroso. O prefecto defendia a
posição do Comitê: contemplar o tema da capitalidade como única forma de desestancar
a Assembléia. Enquanto conversava com ele dava pra se ouvir os gritos “Aqui é Sucre
caralho, vamos defender Sucre!”, e “Silvia, Lazarte, bolas mana kanchu”. Decretaram a
medida de força pois a agenda incluía o tema de transferência de sessões. Perguntei ao
prefecto Sánchez se a vigília não justificaria a transferência e este reconheceu que essa
foi uma posição no debate do Comitê, porque é um círculo vicioso, reconhecia, no qual
se permitiria o funcionamento da Assembléia caso se suspendam os protestos, porem
estes não seriam suspensos sem que houvesse garantias da contemplação do tema no
fórum
207
.
A Vigília acabou mal. Cerca de 17 constituintes do MAS de La Paz entraram no
teatro às 6 da manhã, para a sessão que começaria no dia seguinte, e cerca de 50
estudantes em vigília reagiram violentamente. Entraram alguns constituintes mais com o
objetivo de reabrir as sessões e os cívicos quebraram portas e janelas do teatro, na
tentativa de invadir e ocupar o edifício. A polícia se empenhava em retirar os
assembleistas advertindo que corriam risco de vida, frente à recusa dos constituintes de
deixar o lugar das sessões, tentando se proteger no último andar do teatro. Jaime Barrón
pedia aos estudantes que não invadissem o teatro, pois seria a desculpa que faltava pra
mudar a sede. A Federação de Camponeses também era alvo das críticas de Barrón na
imprensa “por se deixar influenciar pelos interesses particulares do MAS e de alguns
dirigentes”. Para evitar a violência a Diretoria suspendeu mais uma vez a sessão. No
mesmo dia, diversos constituintes do MAS foram agredidos fisicamente em pontos
diferentes da cidade, especialmente quando se aproximavam do teatro para cumprir a
207
É preciso considerar a habilidade daqueles que contam com 80% do apoio do povo, disse,
transferindo a responsabilidade para o partido do governo. Perguntei se ele achava aceitável a última
proposta do Conselho Político e disse que era difícil falar de propostas. “Já o raciocínio ou as opções
não vão”, disse, e reconheceu a dificuldade da situação, em que se aceitassem (a proposta) a gente
pensaria que estão retrocedendo. Reconheceu que “tem gente de direita que quer derrubar o governo”,
também que em Chuquisaca tinha “muita gente quebrada politicamente que aproveitou para fazer
discursos”. Reconheceu que o tema capitalidade poderia evitar a mudança necessária para o país, como
a luta contra a pobreza; mas sua posição era que a mudança devia ser levada a cabo levando em
consideração os temas menores e que como autoridade do departamento tinha que estar com o povo,
disse. Sem dúvida, acrescentou que “As pessoas se sentem felizes porque estão unidas, mas muitos de
nós estamos preocupados porque o tema não está sendo resolvido”.
268
convocatõria da Diretoria. Jimena relatava dias depois como foi a surpresa ao chegar no
teatro na madrugada do dia 9. Os taxistas começaram a buzinar para denunciá-los,
pensava que os taxistas estavam com a capitalidade, e que seria necessário arranjar
outros taxis.
Radio ERBOL informou que “uma turba ensandecida que respondia ao Comitê
Interinstitucional de Chuquisaca” agrediu pelo menos sete assembleistas e que o vice-
presidente do fórum declarou que os agressores foram identificados por câmeras. Eram
funcionários da alcaldía de Sucre. Os constituintes foram identificados facilmente pela
população, por sua aparição nos meios de comunicação, como comprovei quando um
engraxate da praça disse a Raúl Prada que sabia que ele era “um constituinte pacenho”.
Prada seria um dos agredidos, com uma paulada no rosto quando funcionários da
alcaldía pararam o táxi em que se encontrava. Foi ajudado por um constituinte que não
foi reconhecido. Também houve tentativas de parar o veículo que transportava Silvia
Lazarte, mas a polícia conseguiu dispersar os manifestantes. “Esta é a garantia que
ofereceram?” perguntava o comandante de polícia de Chuquisaca enquanto seus agentes
dispersavam os manifestantes
208
.
Carlos Romero conta que se salvou da turba se escondendo debaixo de uma
mesa do escritório da ONG CIPCA, quando se aproximaram para agredir Román
Loayza. No momento estava a falar com Álvaro Linera, e foi obrigado a deixá-lo
esperando do outro lado da linha sem explicações, com o telefone fora do gancho,
enquanto se escondia. Romero comenta que García Linera perguntou pelo número de
baixas, pois “pensa que se trata de uma guerrilha”. A imprensa de Sucre e alguns de
seus dirigentes, explicavam a violência como resposta às provocações do MAS: Mirtha
Jiménez e Marcela Revollo criticaram os manifestantes e a causa da capitalidade,
diziam. “Podem nos matar, mas o processo não vai parar” disse Mirtha depois. Um
constituinte foi atrás de gás paralisantes e entrou em contato com militares para tal.
Outro constituinte propôs que seria melhor que se atirasse gás paralisante na Diretoria,
responsabilizada por não ter incluído o tema na agenda, a pesar do acordo.
208
Outro canal de notícias elevava para 25 o número de assembleistas agredidos e também reportava
agressões a militantes do MAS em Tarija e de jornalistas em Sucre, sobretudo dos meios oficiais de
comunicação. Renato Bustamante foi um dos mais atingidos, enquanto tentava proteger Marcela
Revollo e Loyola Guzmán, dos objetos e cuspes jogados na direção delas. Algo semelhante ocorreu com
Mirtha Jiménez e Peregrina Cusi. Esta última, de 60 anos, declarou ao jornal La Razón: me agrediram
por atrás, puxando as minhas tranças e meu aguayo”. *…+ nos jogaram contra a parede e começaram a
gritar que somos índias, ignorantes, porcas. Os policiais nesse momento não apareceram para nos
proteger e quando estávamos de saída, começaram a gritar ofensas e atirar pedras nos batendo com
os mastros de suas bandeiras”.
269
Após as agressões, muitos enxergavam as condições políticas favoráveis para
transferir a sessão para Oruro. Porém o MAS decidiu insistir na convocação de sessões
em Sucre, “Queremos que continuem batendo no MAS em nome da democracia, que
coloquem os valentões em nome do respeito à legalidade, chutando nos assembleistas”
declara Armando Terrazas à imprensa, em um tom sarcástico. O principal discurso dos
cívicos de Sucre, “em defesa da legalidade”, estava debilitado. Em conferência de
imprensa, Silvia Lazarte declarou “Se querem nos matar, que nos matem, se querem
expulsar-nos, que nos expulsem, mas nós não vamos sair da cidade. Essa é a decisão,
até que o plenário decida o que fazer, não vamos sair daqui, porque é isso o que diz a
Lei de Convocatória”. Paralelamente, a CSUTCB, a central de mulheres camponesas e
os colonizadores também davam conferência de imprensa para anunciar protestos em
Sucre a partir da segunda-feira seguinte para garantir a Assembléia, “em cumprimento
das resoluções da Cúpula Social de 10 de setembro em Sucre”.
Entre os rumores que circulavam ouvi dizer que Evo Morales governaria em La
Glorieta três meses por ano, palácio nas imediações de Sucre. Também se dizia que a
alcaldia estava se afastando dos protestos porque não receberia dinheiro para obras.
Carrillo comentou que Barrón não estava de acordo e era intransigente, mas que Fidel
Herrera, a alcaldesa Nava e John Cava lhe disseram em particular que não queriam
“tudo” mas “algo mais do que a terceira proposta”. Ele pediu que se é isso o que eles
querem, que o digam de forma oficial. Romero continuava se reunindo com esses
setores, e com os camponeses de Chuquisaca para chegar a um acordo. Um dos
assessores de Silvia Lazarte, Rubén, disse que os membros do Comitê Interinstitucional
estavam quebrados e que Barrón era alvo de questionamentos. Os estudantes lhe
disseram que se eles querem continuar a fazer política no Comitê tinham que deixar a
reitoria
209
.
Marcela Revollo reclamava de que quando estava por chegar o acordo, Silvia
Lazarte resolveu não mudar a Pauta do Dia e os que negociavam ficaram sem coragem
de falar com a oposição. Disse que depois disso o MNR alegou que o MAS não era
sério, e pediu que lhes viessem com uma proposta concreta. Sentia-se brava com o
MAS e disse que depois disso o MSM não apoiaria a última proposta do Conselho,
209
Rubén disse que estavam ameaçando em processar (juicio de responsabilidades) aos constituintes
depois de 14 de dezembro se não entregassem uma Constituição, mas que não importava pois em
pouco tempo o MAS controlaria o Poder Judiciário. Disse que em Santa Cruz são todos brancos, e que
deviam entrar em cena advogados indígenas. E tinham feito que Germán “o chunca” Gutiérrez, assessor
do Comitê que se declarou a favor de fechar um acordo, entrasse no poder judiciário.
270
por falta de seriedade. Cayo disse que se não aprovassem a Constituição não iam poder
voltar às suas casas e não deixariam os permitiriam de falar em lugar algum: “Cayo, vai
embora vão dizer-nos”, ilustrava, dizendo que não iam ser eleitos nem de corregedores.
Outro constituinte do MAS disse que acabou o tempo da legalidade, e que era preciso
aprovar a Constituição por maioria simples e deixar o povo a ratifique depois por dois
terços. Do outro lado, o Prefecto de Pando Leopoldo Fernández anunciava que se o
governo não cumprir o prometido, os departamentos do Oriente e de Cochabamba
declarariam “autonomia de fato”, assumindo o mandato do povo no referendo de 2006.
4.1 O Bloco Dissidente e a Tentativa de Somar.
Os problemas do MAS para aprovar uma Constituição não se reduziam à tensão
entre La Paz e Sucre. As organizações indígenas permaneciam descontentes com as
lacunas em temas como a autonomia indígena e a representação direta depois do
Conselho Político. Evo Morales tinha concordado em reduzir o alcance ou abrir mão
dessas reivindicações no projeto, caso a negociação o exigisse. Jazmín Salinas, que
trabalhou na Comissão Visão de País e agora estava no CONAMAQ, conferia a tensão
da confederação com o governo, mas também dos conflitos internos da organização
indígena, com uma forte intervenção do partido AS de René Joaquino a partir dos ayllus
de Potosí, onde exercia influência política. Também as bartolinas tinham fissuras
internas. A tentativa de negociar com a oposição em La Paz, além de infrutífera,
debilitou as bases sociais do MAS, principalmente das organizações indígenas que
viram cair por terra algumas de suas reivindicações, por mais que, em seu discurso final,
García Linera parecesse dar indícios de que após o fracasso na negociação haveria um
avanço no projeto dos camponeses indígenas.
As dificuldades internas do MAS e a reinstalação das sessões deram lugar à
aparição de um novo ator político na Assembléia, cujo nível de coesão era duvidoso,
embora na imprensa se anunciasse como um bloco de 35 constituintes. Era um grupo
formado por setores aliados ao MAS que vinham se diferenciando do partido nos
últimos tempos. Na maioria dos casos, buscavam uma posição que não implicasse em
um distanciamento do processo de mudança, mas expressavam um mal-estar frente aos
procedimentos do MAS na direção do processo, ainda que também houvesse quem
tivesse diferenças mais profundas. A imprensa exagerou a magnitude do bloco e as
conseqüências de sua formação, porque muitos deles não deixariam de contribuir com a
271
busca pelos dois terços do MAS; mas o bloco existia e trazia um certo nervosismo aos
que contavam votos para o MAS. A imprensa falava de uma “brigada patriótica”, ou
“Frente Ampla de Assembleistas Patriotas” que contaria com 35 votos e aparecia como
força definidora frente aos 120 constituintes leais ao MAS; 6 do UN e 81 da Meia-
Lua210.
Loyola Guzmán, eleita nas listas do MAS, e Néstor Torres, do MOP, deram
declarações representando o “Bloco Bolívia”, que se formara após o fracasso do
diálogo. Guzmán pedia para que não os chamassem de dissidentes, mas sim de
constituintes com posições críticas e autocríticas com o intuito de tirar a Constituinte do
estancamento. Torres foi para além e declarou em sintonia com a oposição o intuito
de convocar 128 constituintes para reabrir a Assembléia sem esperar o MAS e
recusando uma possível transferência, posição para a qual contariam com 110
constituintes. Loyola Guzmán me explicou sua posição, e esclareceu que o espaço que
se constituiu se chamava Bloco Bolívia e não Frente Patriótica ou alternativa, como
dizia a imprensa. O que impeliu sua formação era o desagrado pelo modo como o MAS
manejava as coisas, disse ela, enfatizando que não queriam apoiar uma Constituição
votada sem passar pela discussão: “Não sabem fazer alianças, não te chamam para
participar do projeto e querem teu voto”. Queixou-se de que na reunião disseram que se
não votassem, teriam que se submeter à Justiça comunitária211.
Nancy Burgoa era integrante de uma Comissão do MAS formada para negociar
com os partidos aliados minoritários. Em seu relatório à bancada, disse: queriam nos
sondar sobre se vamos para Oruro ou ficamos aqui. Dissemos que estamos fazendo
também nossa avaliação, mas que havia uma tendência a ir para Oruro. O MOP e o ASP
210 Na contagem incluíam o MSM, que reclamou não ter sido consultado por seus aliados; o MBL, que
havia se distanciado pelo tema da capitalidade; ASP, MCSFA, AS, CN, Ayra e MOP críticos em algumas
discussões da fase de comissões. Também somavam dois dissidentes do PODEMOS, um da UN, três do
MAR (Pando) e três do MAS. A imprensa publicou uma lista com os seguintes nomes: Revollo, Orellana,
Cordero, Apaza, Bustamante, Rojas, Vaca (MSM), Oña, Ceballos, Mallón Meras (MBL), Rivas, Lima,
Guzmán (MAS) Vargas, Tapia (ASP); Machicado, Peres Mamani, Alanez Nina, Cárdenas (CN); Durán, Pairo
(AYRA); Ucharico, Fernández (PODEMOS); Gutiérrez (dissidente UN) Zubieta (MCSFA); Becerra, Tiburcio
(MAR); Murichi, Arista, Condori, Mamani Ramos, Alba (AS); Vale Vega, Vásquez, Torres (MOP).
211 Criticava a arrogância do MAS, que passava a idéia de que esse partido representava a mudança.
Reclamava que levantaram a mão antes de saber no que iam votar. não eram ovelhas, mas robôs,
dizia. Duvidava que o MAS fosse socialista. Descrevia a trajetória de Evo desta forma: liderou um
movimento maior do que imaginava; depois se aproximou do governo para conseguir mais coisas para
seu movimento; se vestiu de indígena sem nunca tê-lo sido, não fala quéchua nem aymara e isso é algo
importante em uma cultura. Disse que sua relação com Fidel fez com que se aproximasse um pouco do
socialismo e sua relação com Chávez fez com que se aproximasse do caos. Era crítica da idéia de Estado
Plurinacional: “não tem nada a ver, o étnico se sabe que não vai com a classe”. Também protestava
contra as “idas e vindas”: com os dois terços, com a imunidade, e agora com Oruro.
272
disseram que eles seguiriam a decisão do MAS, o resto dos que estavam por conta
própria disseram que iriam pensar e que ainda não tinham se decidido. Mas eles tiveram
problemas internos porque alguns pensavam em seus interesses particulares. Havia 18
constituintes na reunião e disseram que faltavam dois ou três. Segundo o relatório de
Nancy Burgoa, aqueles constituintes deixaram claro que eram aliados naturais do MAS
e pediram que se multiplicassem os esforços para que as sessões ocorressem em Sucre.
Torres, do MOP, propôs que as sessões se dessem em um quartel de Sucre. O MSM
solicitou uma reunião em separado para explicar sua posição, e disse que queria forjar
uma identidade política no interior do MAS, o que não significava que fossem a deixá-
los, embora não iriam participar mais das reuniões. Teriam dito “Vamos continuar
sendo soldados, não rompemos acordos”; “estamos com vocês e nos avisem o que
decidirem porque os seguiremos”, e isso tinha sido o combinado.
Freslinda Flores também participou das reuniões e chamou os que participavam
do novo bloco de constituintes com sede de poder; que queriam chantagear o MAS no
momento preciso para obter vantagens econômicas e de liderança. Freslinda tinha dito
para eles: “por que raios não dizem de uma vez o que querem?” e eles diziam “podemos
compartilhar o poder” e “o irmão Evo se esqueceu de nós”. Ela sugeriu que “o MAS
devia materializar o apoio deles porque era preciso ter os partidos pequenos, os
chirlas… e não é bom achar que os temos”. Propôs que alguém de La Paz com poder
político negociasse com os integrantes daquele bloco, um por um. Álvaro Azurduy,
dissidente do PODEMOS, disse que tinham vontade de se integrar na gestão de governo
e que há expectativa de que o pessoal dele entrasse no Ministério da Saúde. Isso teria
que se concretizar de qualquer maneira, opinava Freslinda.
Depois de conversas nesse novo espaço que se abrira, o MAS fechou um acordo
para que os partidos menores voltassem a trabalhar com o MAS, com a condição de que
a sessão se instalasse em Sucre, após estabelecer uma agenda que incluísse o tema da
capitalidade. Mas Silvia Lazarte e a Diretoria não modificaram a pauta, criando
novamente desgosto entre os aliados. Em uma reunião da bancada de constituintes do
MAS na Argandoña na qual datilografei a ata Mirtha Jiménez corrigiu Román, que
disse que os aliados apoiariam o MAS, e disse que não tratava-se de um “apoio” ao
MAS, mas sim, a partir daquele momento, de pensar uma estratégia em conjunto.
Daquele momento em diante, dizia Mirtha, as decisões seriam tomadas com toda a
Frente Ampla, que era o espaço no qual o MAS tentava reintegrar os seus aliados.
“Infelizmente, a irmã Silvia estava reunida em outro lugar e não respeitou a decisão de
273
modificar a agenda”, explicou Mirtha, e pediu que se explicasse aos aliados “que
compreendessem que isso não aconteceu por nossa vontade”. “De hoje em diante, os
acordos devem ser cumpridos, inclusive pela Diretoria”, disse ela. E acrescentou: “Essa
é a primeira coisa que temos que aprovar como bancada caso querermos que funcione
essa Frente, para que isto avance”.
Charo também relatou a falta de coordenação dentro da Diretoria e disse que não
era necessária uma carta formal, mas usar o telefone, que estava para isso. Armando
Terrazas reclamava aos seus companheiros da falta de coordenação entre a Diretoria e a
bancada. “Primeiro houve o conflito da comissão técnica, quando voltou o texto, na
reunião do dia anterior. À noite, a bancada decidiu a agenda junto aos partidos aliados e
antes que terminasse a reunião, a companheira Silvia, em conferência de imprensa,
estava anunciando outra Pauta do Dia. Tínhamos acordo com os partidos pequenos que
não acreditam em nós”, disse Armando. Disse ainda que eles tinham perdido
credibilidade, ainda que estivessem dizendo a verdade: “Tivemos de formar uma
comissão de três constituintes do MAS com aqueles que se reivindicam de esquerda, e
até comemos na mesma mesa, a presidenta paga frango para todos, mas na prática
fazem outra coisa e não votam conosco”, continuou Armando. E prosseguiu: “Depois
dizem 'não nos batam pesado‟, pois não querem que o MAS diga a verdade nas
comunidades”212.
Para contribuir com a tomada de decisões políticas e a tentativa de conciliar
interesses para obter os dois terços ou um número aceitável para viabilizar a
transferência para Oruro, pouco antes de tomar uma decisão final, o principal operador
do MAS se mudou para Sucre: o Senador Santos Ramírez, que mais tarde deixaria o
Senado para assumir a presidência do YPFB, não tendo muita sorte nesse destino. No
MAS estava em voga a ordem segundo a qual todos teriam que permanecer em Sucre,
pois Santos chegaria para definir os próximos passos. Santos configurou uma comissão
para disputar os dois terços formada pelos constituintes do Conselho Político, da
Diretoria, dirigentes das organizações e membros da Direção Nacional do MAS.
212 Fora da reunião me explicou que para convencer os partidos pequenos teriam que ir diretamente
aos ayllus. “Imagine a impressão que dá um branco como eu falando quéchua”, acrescentou. Silvia
Lazarte ficou irritada com ele por responsabilizá-lo pelo fato de a bancada ter tomado decisões sem
consultar a Diretoria, mas ele disse em privado que não importava o que Silvia lhe dissesse porque ele
falava direto com o presidente, uma vez que é um dos fundadores do MAS e sua mulher é comadre do
Evo.
274
Deveriam dar início às visitas. Ele estaria presente sempre que possível, pois
precisavam dele também no Senado, dizia.
Santos Ramírez disse, em uma reunião com a bancada do MAS, que era
fundamental o trabalho das organizações para ganhar os constituintes dos partidos
pequenos de Oruro e Potosí, que podiam responder para suas bases antes que aos seus
partidos. Os integrantes do Bloco Alternativo criticavam o Instrumento mas se disseram
favoráveis ao processo de mudança, assim como os Sem Medo. Santos Ramírez
pensava que estavam se aproximando dos dois terços para a última proposta de
capitalidade. Se não obtivessem os dois terços, a posição era não voltar às sessões. O
Senador Ramírez minou a possibilidade de uma nova ampliação a partir do Congresso.
Quanto ao MBL, sabia-se que a estava com a direita, mas não se sabia qual era a
posição de Ceballos. O MNR ameaçava não votar na proposta de capitalidade se La Paz
não fizesse o mesmo, alegando que o acordo firmado não era válido por não ter sido
aprovado pelos setores quando foi apresentado.
Em uma de suas reuniões, quando o reinício das sessões era iminente, o MAS
avaliava, estudava a estratégia e media forças. Foi feita una revisão por bancada e
contabilizaram-se aproximadamente 130 constituintes do MAS. Isso dava quórum por
uma estreita margem de um ou dois constituintes, mas estavam ainda longe dos dois
terços, como se sabia desde o início. Pablo Zubieta sugeriu que o voto fosse nominal,
para comprometer os constituintes de La Paz, e lembrou que dois terços para o tema da
capitalidade não era dois terços para o resto. Em suas contas, que escreveu na lousa,
contavam-se 28 constituintes de partido pequenos, que se somavam aos 133 do MAS
contabilizando 161 constituintes, nove a menos que os dois terços. Deveriam somar
também dois dissidentes do PODEMOS. Rebeca pedia para que insistissem com Richter
para alcançar os dois terços, sugerindo que o apoiassem no discurso, forçando-o a falar
para comprometê-lo. Mas havia três correntes no MNR que respondiam a diferentes
chefes políticos das regiões. Reclamavam do duplo discurso de Richter, mas diziam que
se ele garantisse 6 votos já era o suficiente213.
213 Dentro do MAS, contavam com 37 por La Paz (perderam Loyola Guzmán mas ganharam aliados de
outros partidos), 10 por Chuquisaca (ganharam dois incondicionais e havia quatro dissidentes), 18 de
Potosí, 13 de Oruro mais 7 aliados, 2 de Pando, 2 de Beni, 10 de Tarija e 20 de Cochabamba. De Santa
Cruz eram 20, mas Arias renunciou. Bailaba estava doente e de dois não se tinha notícias. Contavam
com 9 constituintes a menos do que os 142 iniciais do MAS em 2006 (eram 6 de Chuquisaca, 1 de Cocha,
1 de La Paz e um de SC que renunciou). A isso se deviam somar 7 da UN (sem Lazarte), 3 do MOP, 12 da
AS, 2 ASP, 2 Ayra, 1 San Felipe e 1 do MBL.
275
4.2 Entre as Vigílias e as Últimas Tentativas de Convocatória
Na reunião do MAS, Víctor Hugo Vázquez se perguntava o que eles fariam nas
plenárias. Não estava claro para os constituintes o que ocorreria depois que
conseguissem instalar a sessão. O tema da capitalidade chegaria, fosse por
correspondência ou qualquer outra forma, segundo as suas previsões. Qual proposta
vamos homologar?” Raúl Prada conta que a primeira proposta foi aceita pelo Comitê de
Emergência de La Paz, e não a terceira, alertando que seria importante evitar problemas
com La Paz. Magda Calvimontes, de Tarija, propunha homologar a primeira proposta, a
qual segundo ela teve 95% do seu texto redigido por John Cava e Barrón. Propunha
homologar essa proposta, “e então o problema é deles, quem vai decidir o que fazer com
a capital somos nós”. Pablo Zubieta, de Oruro, não concordava com ela. Para ele, seria
preciso submeter o projeto à votação, garantindo os dois terços, e essa era a última
proposta, “mesmo se La Paz não estiver de acordo”. A falta de consenso era evidente
inclusive entre os constituintes que não eram de Chuquisaca nem de La Paz. Rosario
Ricaldi disse que era necessário considerar que na Assembléia estava em jogo o apoio
ao MAS, ao governo. Na sua visão, se houvesse referendo, além de se perder Sucre se
poderia perder também La Paz. Disse que o PODEMOS de La Paz não iria apoiá-los
balizado no discurso em defesa do mandato de La Paz, que recusou a terceira proposta.
Víctor Borda, de Potosí, achava que não deviam incluir na Pauta a homologação
de nada, e sim a modificação do regulamento, que considerava um disparate. Propunha
que modificassem a forma de aprovação dos relatórios e a Constituição, nos artigos 50,
70 e 71. Pedia que priorizassem o regulamento e que não adotassem uma posição oficial
sobre qual tema tratar. E, ainda, que se formasse uma comissão para o tema da
capitalidade. Considerava um contra-senso pôr em reconsideração a resolução de 15 de
agosto e homologar alguma das propostas. Também notava que seria incoerente pedir a
transferência da sede dos trabalhos, como indicava a Pauta anterior, porque o assunto
estaria se tratando em uma sessão, e se poderia solicitar isso caso não houvesse uma
sessão em curso nem a possibilidade de reunião. Mirtha questionava que, por mais que
não houvesse a proposta de uma homologação, de qualquer maneira a oposição pautaria
esses temas. Borda respondeu que se Arraya ou o PODEMOS pediam para que se
reconsiderasse a resolução, ela seria reavaliada, mas não poderiam ser eles a incluir isso
na convocatória.
276
Muitas pessoas concordavam com a necessidade de modificar o regulamento,
especialmente para evitar a perda de tempo em debates extenuantes. Prada acrescentou
que, sem isso, não seria possível concluir, e que “nosso intuito é aprovar e não discutir”.
Quanto à pauta, se não houvesse alterações, estariam dando argumentos para novas
mobilizações. Era preciso falar e agir coordenadamente com a Diretoria, pois era
possível que eles estivessem tentando provocá-los para justificar a transferência para
Oruro. Os constituintes do MAS concordaram então em mandar uma carta para a
Diretoria solicitando a modificação da agenda, pensando em proteger as relações com
os aliados com os quais isso foi acordado. Se abrissem as sessões seria proposto como
primeiro ponto a revisão do regulamento, para que não ficassem todos os constituintes
discutindo cada artigo. Mirtha se adiantou apresentando a proposta dirigida ao vice-
presidente da Assembléia, e comunicou a todos que Roberto Aguilar avisou que eles
estavam de acordo. Sobre o que aconteceria com a capitalidade; Mirtha disse que se o
tema entrasse em discussão, seria possível homologar a proposta do Conselho, mas os
constituintes responderam com um “não” generalizado, em uníssono.
Rebeca disse que eles deveriam estar “contando ovelhinhas” e sugeriu se
articularem com os demais para não se lançarem para Oruro sozinhos. Também
informou que nos relatórios do serviço de inteligência foi dito que os sucrenses
pretendiam invadir e ocupar a Constituinte. Pedia, portanto, para que comprovassem se
havia garantias de segurança, “para não se meter na boca do lobo e serem encurralados”.
Para isso pedia a atuação dos operadores políticos, e também clamava por confiança na
Diretoria. Víctor Hugo Vásquez afirmou: “Não estamos preparados para a revolução.
Não se faz revolução com esta quantidade de gente. Uma revolução se planeja entre
duas ou três pessoas. Aqui todos querem falar”. Denunciou que, poucos minutos depois
da última reunião, a informação havia vazado. Armando também era da opinião de
que “não podemos traçar estratégias em um âmbito como este, é preciso que haja
generais” e sugeriu que esse papel fosse cumprido pelos chefes das bancadas, pois
discutindo assim o avançamos e os nossos irmãos se aborrecem frente aos nossos
problemas”, disse.
Enquanto se esperava uma nova convocatória, em Sucre ocorriam reuniões entre
a Diretoria e os chefes de bancadas dos partidos, sem alcançar um acordo sobre a Pauta.
Permanecia a vigília, exigindo que se alterasse a pauta da convocatória, ao passo que os
cívicos davam volteios argumentativos na tentativa de evitar que a vigília aparecesse
como um impedimento para a realização das sessões, alegando que se tratava de uma
277
“ocupação pacífica” que não impediria a sessão. Também foram superadas certas
diferenças internas entre os membros do MAS na Diretoria, provocadas pela falta de
flexibilidade de Silvia Lazarte para modificar a agenda, apesar do acordo com os cívicos
perpetrado por Romero e pela bancada do MAS com os partidos aliados. Porém outros
afirmavam que era Roberto Aguilar quem mantinha uma posição dura, por ser fiel à
posição de La Paz214.
Naquele fim de semana de 10 de novembro os constituintes do MAS se
encontraram em Tarabuco, a 60 km de Sucre, “para tomar decisões”. A convocatória
foi secreta, para evitar agressões, mas um constituinte de Oruro anunciou-a na imprensa.
Sabino Mendoza lembra que no tempo da luta sindical dez pessoas sabiam qual era a
estratégia e ninguém dizia nada. Comparava também os constituintes que vinham das
lutas e os que lançaram sua campanha isolados na cidade com um grupinho de dez
pessoas. Enquanto conversávamos, os dirigentes da sua região procuraram-no
preocupados porque ouviram dizer que houve violência contra os constituintes. Sabino
estava preocupado com a possibilidade de esse processo não dar em nada, vendo-o
como “o máximo ao que se chegou”. Sabino também participava da comissão de
negociação com os partidos pequenos. “PODEMOS dar-lhes cargos no governo mas
eles exigem muito”, me disse. O importante era disputar os dois terços. “Agregar,
agregar, agregar”, disse Sabino. Reconheceu, no entanto, os avanços. Agora tinham uma
Constituição que em agosto ainda não tinham; achava que não se tinham feito muitas
concessões no Conselho e que negociaram bem; também que a que violência contra
constituintes tinha deixado Chuquisaca com uma péssima imagem no resto do país215.
Dizia-se que em caso de ter tido sessão no dia 9 de novembro, tivesse se
decidido por maioria simples a transferência para Oruro. Mas em Tarabuco os
constituintes de Chuquisaca, junto à Federação Camponesa, solicitaram que a
Assembléia não fosse transferida. Esteban Urquizu disse que sair de Sucre seria perder,
214 A Pauta foi alterada, por mais que o irmão jornalista balance a cabeça” disse a presidenta em seu
último contato com jornalistas. Também se referiu ao “irmão público”, para ratificar uma nova
convocação à plenária, que entrava em contradição com a suspensão anunciada horas antes por
Roberto Aguilar, por falta de garantias de Sucre. Para Pablo Ortiz, do jornal El Deber, Silvia Lazarte era o
problema principal do processo, “humilhando as pessoas nas reuniões e com assessoresque parecem
com os de um sindicato”. Defendia o papel de Romero nas negociações “porque aceita as coisas”, em
oposição à Diretoria e também ao Chato Prada, sobre o qual disse que “não se importa por nada”.
215 Eram épocas de emboscadas com a polícia nas quais se perdiam entre as montanhas com pedras e
hondas contra balas de borracha e gás lacrimogêneo. A FELC era como o diabo e hoje os militares nos
defendem. Seu intuito era ir para o bosque e deixar Sucre. Queria também começar a trabalhar com
turismo em Coroico, diversificar, e também concluir sua faculdade de Direito, que cursava em La Paz.
Eram dias de tensão em Sucre.
278
e que quem deveria sair eram as minorias. Também temiam que em uma eventual
transferência para Oruro eles perdessem cerca de vinte constituintes do MAS. Na
reunião houve críticas a Romero “por fazer as coisas sem consultar”; e à Diretoria pela
falta de coordenação com a bancada. Inclusive se discutiu longamente a possibilidade
de mudar a Diretoria, porém a proposta foi descartada.
“Decidimos avançar”, disseram-me alguns constituintes ao voltar da reunião. O
MAS decidiu chamar uma sessão para a terça-feira 13 de novembro com uma pauta que
incluísse a modificação do regulamento; a leitura de correspondência; e os relatórios da
suprapartidária, onde entraria indiretamente o tema da capitalidade. Também foram
distribuídas as tarefas em comissões para a negociação com as outras forças políticas.
Uma comissão formada por Armando e Rebeca trabalhariam no projeto de modificação
do regulamento. A Comissão técnica incluiria os acordos no projeto de Constituição.
Romero daria prosseguimento ao diálogo com o Comitê Interinstitucional e junto com
Ada Jiménez denunciaria as agressões para a imprensa. René Navarro e Sabino
Mendoza se ocupariam de realizar acordos políticos com os outros partidos e
dissidentes para tentar agregar constituintes.
O plano se completava com a convocação das organizações sociais, camponesas
e indígenas, cujos dirigentes também estiveram na reunião de Tarabuco, para proteger
os constituintes e permitir as sessões. Essa possibilidade de mobilização evocava o
ressurgimento das imagens de guerra na política boliviana. Fidel Surco declarou à
imprensa que não queriam um confronto mas que os companheiros estavam preparados
e “se a Constituinte for custar sangue, vai ser com sangue, o que vamos fazer?”. Adolfo
Chávez, presidente da CIDOB, disse, referindo-se aos estudantes de Chuquisaca
:“Vamos a limpar esses moleques teimosos e submetê-los a castigos tradicionais”.
Romero declarou que os movimentos não deviam se prestar aos confrontos e à violência
incitados pelos setores ultraconservadores para destruir a Assembléia. As organizações
organizaram uma vigília para impedir que os sucrenses voltassem a impedir o reinício
das sessões. Haveria então duas vigílias em vértices opostos e temia-se que houvesse
confrontos216.
216 A CPESC também se mobilizou, declarando que em seu escritório de onde se comunicavam com a
imprensa nasceu a Assembléia. Anunciaram presença os produtores de coca das seis federações do
trópico, os ponchos vermelhos” e outras federações de trabalhadores camponeses do país. Em Potosí,
a polícia também mobilizava reforços. Também foi anunciada a presença em Sucre de setores
importantes das mobilizações do período 2000-2005, mas que não estavam participando de forma ativa
no processo da Assembléia, como os regantes de Cochabamba, e o Movimento dos Sem Terra da
Bolívia. Vladimir Machicao, secretário Nacional do MST-B, anunciou que frente ao possível fracasso da
279
Na reunião do MAS, Román Loayza pediu a Gerardo García (“que é vice-
presidente do Instrumento”) que seria bom que interviesse para que não houvesse
confrontos entre camponeses e universitários. “Os universitários têm armas e os
camponeses vão aparecer mortos. Nós (os camponeses) estamos acostumados a dormir
na rua e não vamos beber como eles”, disse. “Então irmãos e irmãs, está claro isto: que
as organizações sociais têm que assumir a liderança, porque foram elas que organizaram
este instrumento político. Tomara que não nos abandonem, Gerardo, nestes 20 dias. É
preciso preparar panelas comunitárias. E se não nos permitirem, seja legalmente ou
ilegalmente, temos que decidir em outro lugar. Vamos ganhar, irmãos, com toda
certeza. Na Brigada Patriótica uns quantos são uns traidores. Inclusive podem ficar com
o PODEMOS. Gerardo disse que estavam falando com os irmãos mineiros que estão
bravos. Dizem que se continua La frega, como se diz, La joda, vão vir vinte mil
mineiros. Os setores estão cada vez mais descontentes.”
Em sincronia, de La Paz, García Linera iniciou a semana, que tinha tudo pra ser
decisiva, convocando uma mobilização. Em uma emissora de rádio declarou: “O que
pedimos à população? Que nos acompanhe onde puderem, na fábrica, na assembléia, na
prefeitura, na marcha; queremos uma população que nos impulsione para fazer mais
mudanças”. Neste chamado à mobilização, encontramos um momento político que pode
ser incluído na seqüência analisada no primeiro capítulo como avanço na Constituição
do povo boliviano que chega ao Estado convocando a Assembléia. Primeiro viemos as
mobilizações da classe operária, derrotadas na Marcha pela Vida de 1986, com um
horizonte político que segundo García Linera estava marcado pela impossibilidade de se
pensar para além da subordinação ao Estado. Depois, as mobilizações recuperariam o
componente étnico no caminho da descolonização, e no ciclo iniciado em abril de 2000
expressara na forma de uma multidão que não tinha o Estado como interlocutor
exclusivo. O novo chamado à mobilização remete à ascensão do governo do MAS, com
as organizações sociais em estado de desmobilização, mas com a necessidade de sua
intervenção para garantir a continuidade do processo217.
Assembléia Constituinte, ocupariam e recuperariam terras de latifundiários. Estava prevista uma cúpula
do MST nos últimos dias de novembro em Cochabamba.
217 Nas declarações publicadas na mídia em 12 de novembro, García Linera refletiu: “É como se o povo
dissesse: confiamos no que o presidente Morales fizer e ficamos aqui; o que estamos vendo é que o
presidente Morales está profundamente comprometido com as mudanças e a mudança em função da
justiça e da igualdade; mas agora é a vez da sociedade, do vizinho, do profissional, do camponês, do
indígena, do operário se mobilizar pelos seus direitos”. “Se sindicatos que se voltam à vida cotidiana,
não haverá continuação do processo, haverá um suporte ao processo, mas não um incremento ou
280
A convocação saiu finalmente para o 14 de novembro, após discussões com a
oposição na Diretoria, que queria garantir a leitura da sentença judicial de um tribunal
de Chuquisaca que mandava reintroduzir o tema da capitalidade na Assembléia. Não foi
incluído o tema da reforma do regulamento; mas no terceiro ponto da agenda foi
pautado um “Relatório da Diretoria sobre o Comitê de Diálogo e Conselho Político”; e
como quarto ponto “Conformação de uma Comissão de Concertação”. O grupo Líder
informou que “Lazarte contradisse quando consultada sobre o tratamento da
capitalidade. Primeiro repreendeu os jornalistas ao assegurar que aqueles que
acompanham a informação da Assembléia sabem que esse é um tema que foi incluído
no Conselho Político. Mas, quando foi consultada novamente, recusou a falar sobre o
assunto e, segundo disse, isso não está sequer em discussão na agenda”. Outro jornal
informou que “ao ser consultada se o tema da capitalidade estava incluído na agenda do
dia, respondeu: „Sobre isso não vou responder, porque não está na pauta, não posso falar
desse assunto, porque não tratamos disso enquanto Diretoria‟”.
Em reunião com constituintes do MAS, Silvia Lazarte criticou os cívicos do
Comitê Interinstitucional por não buscar propostas de solução, mas apresentar “apenas
uma carta dizendo que querem diálogo e estão prontos e abertos”. Essa carta não diz
nada, disse a presidenta. Sobre uma audiência dos cívicos com a Diretoria, ela explicou:
“A verdade, a verdade das coisas é que queriam impor que inseríssemos de novo a
capitalidade na agenda. Queriam fazer a agenda conosco para a assembléia. Isso eu não
podia tolerar. Acabou a minha paciência com eles. Se me calei até agora foi por respeito
à imagem do MAS e o instrumento político e pela federação de camponeses”. Silvia
Lazarte perguntou: “como é possível que eles queiram preparar a pauta da
Assembléia?”, e disse que ela perguntou para eles se deixariam que ela fizesse a pauta
da reunião deles.
Os constituintes de Chuquisaca do MAS apoiavam a aprovação por dois terços
da proposta do Conselho Político, como solução do conflito da capitalidade.
Explicitavam sua posição em entrevista coletiva de imprensa em uma sala do Teatro
Gran Mariscal. Declaravam que a proposta do Conselho era favorável para o
desenvolvimento. “O tempo está acabando”, disse Carlos Aparicio, e acrescentou
“Brincar de „capitalidade ou morte‟ é demais e „tudo ou nada‟ vai dar em nada”. Um
jornalista lhes perguntou em tom de provocação se eles não queriam a volta do
enriquecimento do processo, isso dependerá muito da mobilização das pessoas”. Na sua análise, o
triunfo do novo ou a ressurreição do velho dependiam da mobilização (agência ANF, trad. nossa).
281
Executivo e do Legislativo, e a resposta dos constituintes foi “Não é que não queiramos.
É inviável porque as negociações foram rompidas”. Falavam por dez constituintes,
porque quatro saíram e estavam com o Comitê.
“O povo nos mandou fazer a Constituição e vamos a entregar a ele a nova
Constituição”, acrescentou outro constituinte. Após a entrevista à imprensa, os
acompanhei à rádio ACLO, que tinha um microfone aberto todos os dias às 17 horas e
eles queriam aproveitar para passar sua mensagem. Mas a rádio os convidou para
participar de um programa no dia seguinte. Também participariam do programa de
Cristina Corrales. “Cristina na Constituinte”. María Oporto me contou que ela não sabia
até então que havia um escritório de protocolo da Assembléia que chamava todos os
meios de comunicação para organizar a entrevista coletiva. “Só agora o descubriram,
porque agora começamos a sair”, me disse. Carlos Aparicio acrescentou que, se na
reunião daquele dia do Comitê Interinstitucional chamassem uma greve cívica, tudo
estaria terminado.
“Se concercarem a pauta”, disse Borda na reunião do MAS, “amanhã não vai ter
mais bloqueios e prosseguiremos. Mas o que vai acontecer depois disso? Não quero ser
uma ave agourenta, mas acho que não chegaremos lá”, disse. Richter e os outros
pediram tempo para pensar, porque o MAS lhes pediu uma definição antes de iniciar a
plenária. Víctor Borda disse que sem dois terços seria o caso de passar o tema da
capitalidade para a Comissão de Concertação. Não podiam confiar em contabilizar o
PODEMOS de La Paz porque não apoiavam a mesma proposta do Conselho Político
que o resto dos constituintes e em especial os constituintes do MAS de Chuquisaca.
Santos Ramírez disse que poderia passar para a Concertação a proposta de dois mais
dois poderes, sem que seja proposto dar capital constitucional a Sucre, que era a
primeira proposta, diferente do que os camponeses e o MAS de Chuquisaca apoiavam.
A última proposta seria a morte da Assembléia, disse Santos Ramírez, pensando na
força da bancada de La Paz. O chefe da bancada do MAS de La Paz ratificou que não
apoiavam a terceira proposta.
A Assembléia do Comitê Interinstitucional ocorreu na Universidade San
Francisco Xavier, na terça-feira 13, um dia antes da sessão convocada. Havia cerca de
60 pessoas, líderes das instituições. Eu entrei e fiquei junto com a imprensa local
presente na sala. A reunião era importante porque decidiriam se aceitariam a
convocatória da Diretoria, onde o tema da capitalidade entraria indiretamente nos
relatórios do Conselho Político. Mas ninguém ousou propor levantar a medida de força.
282
Nas intervenções criticavam “a ditadura de Evo”, e duas “manipulações” correntemente
criticadas: a dos camponeses por parte do MAS; e a do MAS por parte de Cuba e da
Venezuela. Alguns dos que fizeram uso da palavra não eram de Chuquisaca, a julgar
pelo sotaque. Havia vários constituintes presentes, como Sabina Cuellar, Arminda
Herrera, Epifania Terrazas, do MAS, Urquizu e Velásquez, do PODEMOS; e Arraya,
do MBL. O salão onde ocorria a reunião é decorado com um mural do célebre pintor
boliviano Walter Solón Romero que ilustra aos líderes criollos da independência
cercados de trabalhadores do campo, mostrando suas mãos e fontes com produtos
alimentícios (ver foto em anexo)218.
Em seu relato, o reitor Jaime Barrón informava sobre seu encontro com
constituintes, que garantiam falar em nome de 40, “e não estamos falando dos que
sempre nos apoiaram”. Disseram-lhe que tentariam incluir o tema na plenária quando
tratassem do relatório do Conselho Político de La Paz. O reitor tentava medir forças
frente à reivindicação dentro da Assembléia. “Dizem que 105 com a capitalidade”,
disse, “que agregando mais 30 ou 40 do Frente isso nos permitiria enfrentá-los”. Pedia
para que fizessem reunião. “Vamos reunir os 105 e o resto para colocar estratégias na
assembléia, peço aos constituintes para que se comprometam com isso”. Refletia: “Se
formos poucos vai haver confrontos, mas se formos 200 mil não haverá problemas com
os poucos camponeses que aparecerem”. Informou também que os camponeses de
Chuquisaca chamaram-no dizendo que queriam a continuidade da Assembléia, e que ele
lhes respondeu: “Nós também queremos.” Foi o que disse o reitor.
Edwin Velásquez, constituinte do PODEMOS, deu um relatório da reunião com
a Diretoria, reclamando da versão dada à imprensa por Silvia Lazarte. “Não sei se nos
acham bobos mas se esforçam para continuar violando as leis”, disse. Barrón perguntou
pelas ações no interior da Constituinte e o podemista respondeu que muito pouco podia
ser feito, porque estavam impedidos da possibilidade de participar. “Estão cerceando os
direitos e as garantias dos constituintes porque sequer teremos direito ao uso da
palavra”, disse. Acompanhariam nas ruas e iriam a estar presentes na plenária do dia
218 O mural retrata um movimento popular, mas que não tinha os camponeses como protagonistas.
Estes aparecem no mural com elementos de trabalho e o centro é reservado para os líderes criollos da
revolta independentista. Não havia como evitar a comparação com “a gesta da capitalidade”, com seus
líderes mestiços da cidade e letrados que protagonizaram a demanda. Era a auto-imagem de muitos no
Comitê Interinstitucional, que defendiam que toda Chuquisaca os apoiava e sem vida se sentiam no
lugar dos ilustres criollos retratados. O mural de 1950 era o telão de fundo da reunião onde os líderes do
protesto falaram. Chama-se Jaime Zudáñez e a Revolução de Maio” e é de 1950. Zudáñez foi um dos
Doutores de Charcas. http://www.funsolon.org/solon.htm
283
seguinte mas pedia que não lhes solicitassem mais do que podiam fazer. Quer-se pisar
as leis mudando o procedimento, por isso estamos nas mesmas condições da semana
passada, afirmava. E a sua proposta de Pauta era: fazer chamada; correspondência;
leitura da sentença; aprovação de relatórios; continuar com o procedimento da lei de
ampliação
219
.
O prefecto Sánchez também falou, agradecendo os aplausos e dizendo que
parecia ser o único que queria ser mais flexível e buscar espaços de diálogo. Pediu para
que refletissem, pois estavam isolados e que era necessário falar com a federação de
camponeses para unificar cidade e campo. Sugeria que convidassem os camponeses à
Reitoria. Barrón lembrava que todas as decisões ocorriam naquele lugar, e que “toda
conversa particular deve ser posta na mesa”. Intervindo na reunião, os estudantes
pediram a palavra, disseram que o tempo esgotou e anunciaram que naquele momento o
setor estudantil iria para a vigília. Propuseram que o presidente permanecesse para
dialogar com o setor camponês mas disseram que eles iam embora nesse momento
“para que não se antecipem a nós”. Saíram gritando “capitalidade”. A reunião
continuou. Arraya anunciou uma reunião com as 15 forças políticas da Assembléia sem
o MAS e disse que estava em contato telefônico com os chefes de bancada que naquele
momento entravam em reunião com a Diretoria para continuar discutindo a Pauta do
Dia.
O constituinte Jaime Hurtado, do PODEMOS, concordava com Velásquez que a
Comissão de Concertação só podia formar depois da aprovação pelo conjunto das forças
políticas, o que não ocorreria da noite para o dia, disse, mas deixava claro que poderia
funcionar, de acordo com o regulamento, uma Comissão Especial de Diálogo e
Consenso. Pedia também para que convocassem uma greve cívica, pois em caso
contrário as pessoas estariam trabalhando e não poderiam comparecer à vigília que
pretendiam convocar para esse dia. John Cava disse que estava ausente um setor da
área rural, e que não devia dizer que isso era toda a área rural, porque outros estavam
presentes. Considerava que não devia “lançar” uma greve cívica porque desvirtuaria a
219
A sua diferença com a Diretoria, dizia Velásquez, era que considerava que, de acordo com a
normativa vigente, o assunto não podia passar diretamente à comissão de Concertação e também não
poderia ser aceita uma Pauta com a leitura dos relatórios do Conselho, porque essa tinha sido a
instancia que usurpou as tarefas dos constituintes. Explicava que a lei 3728 de ampliação (BOLIVIA,
4/8/2007), no seu artigo 2 estabelecia que primeiro era preciso votar os relatórios, depois o texto “em
grande” e depois abrir a comissão de concertação depois da qual não tendo conseguido consenso os
assuntos chegariam ao referendo. Velázquez defendia que a lei estava por cima do regulamento da
Assembléia, que poderia ser modificado pelos constituintes.
284
medida e pedia que, melhor, as instituições tivessem tolerância até o meio dia por causa
da greve do transporte já anunciada. Também pedia para que fosse convocada uma
cúpula social e que se decretasse a retirada (repliegue) dos parlamentares para ver quem
estava com seu povo.
John Cava disse, que na vigília anterior, o prefecto ficou até às 5 da manhã, mas
reivindicava que controlassem a presença de todas as instituições, pois a vigília devia
integrar a todos e não “alguns poucos”. Por sua observação sobre a greve e seu
pedido final, era notável um certo temor entre os “cívicos” sobre o poder de
convocatória que tinham. Em Sucre era comum ouvir o comentário de que teria
diminuído. Arminda Herrera, constituinte dissidente do MAS, disse que nesse sentido
“temos que agradecer aos deuses porque universitários, sem desmerecer os outros
setores”. E refletia: “Se dissermos que somos apoiados por seis departamentos, mas não
houver mostras desse apoio, como implementaremos a legalidade na Assembléia?”. Em
sua resolução, o Comitê voltou a decretar uma vigília, entendendo que com a pauta
proposta pela Diretoria e aceita pelos camponeses não estava garantida a
contemplação do tema da capitalidade nas sessões220.
Entre os constituintes de La Paz também não parecia haver condições para
apoiar a reabertura das sessões. Macario Tola me explicou a posição de La Paz: não
estava de acordo que abrissem uma Comissão de Concertação, que implicaria que o
tema seria submetido diretamente a um referendo. “Sabe-se que se a reeleição vai ao
referendo, La Paz ganha”, me disse. “Mas a capitalidade não pode passar, é perigoso”.
Macario disse que El Alto estaria de acordo em aprovar a proposta do Conselho sobre a
capitalidade ainda que referisse à primeira proposta e não à última que obtendo dois
terços poria fim ao conflito. Mas via que os membros do Comitê tinham iniciado a
vigília e não aceitariam a proposta. Pensava que deveriam aceitar o cenário de duas
constituições, e reiniciar as sessões, por mais que houvesse um problema se as duas
obtivessem uma votação parecida. Havia a proposta de realizar as sessões em um
quartel, em outro lugar de Sucre, mas o problema era a imagem que teria, quando era
220 Em reunião com a Diretoria, o Comitê vico também deixou claro que aceitaria uma comissão de
diálogo mas que não mandaria o tema para uma Comissão de Concertación sem prévia votação e a
anulação da resolução de agosto. Na resolução de 13 de novembro, o Comitê estabeleceu: “Defender à
direção do Comitê Interinstitucional e defendê-lo do ataque terrorista e midiático do governo. Os
responsáveis por esses fatos são o vice-presidente da República, por incitá-los, e os membros da
Diretoria, que aprovaram a temática provocativa da sexta-feira passada. Chuquisaca defende o trabalho
da Assembléia Constituinte, pautada na legalidade e na democracia, debatendo todos os temas
incorporados corretamente nas 21 comissões. Convocar a vigília de manhã, a partir das 19h00min, em
defesa da legalidade e da democracia”.
285
para ser uma Constituinte aberta ao povo, acrescentou. Confessava também que na
verdade ainda não teriam o número necessário para convocá-la. Abrir a sessão com
menos de 140 seria se queimar, pensava.
A plenária do dia seguinte não começou, e foi postergada para as 15 horas. Eu
estava na casa Argandoña com constituintes do MAS, Esperanza, sem suas vestes
tradicionais, hesitava se entrava ou não no teatro para esperar a sessão. Rogelio Aguilar,
constituinte do MAS em Chuquisaca, me pediu que o acompanhasse para ver quantas
pessoas estavam na vigília em frente ao teatro. Sua idéia era perigosa, porque seu nome
estava nas paredes entre os supostos traidores de Chuquisaca. Perguntei-o antes de
chegar se caso fosse agredido pelos manifestantes de Sucre preferiria que o defendesse
ou que tirasse fotos, e disse “fotos”. Quando chegamos à Praça Libertad, em frente à
porta do teatro, tirei algumas fotos e percebi que cerca de 200 pessoas viravam seus
rostos para mim.
Um grupo aproximou de mim dizendo que eu era venezuelano, ou buzo (espião)
do MAS, e que levariam a minha câmera. Eu observava como dezenas de rostos
voltavam na minha direção, também começaram assobios em repúdio à minha presença.
Alguns gritavam para que eu fosse embora, me cercaram e alguém tentou me tirar a
câmera. Começaram a difundir a opinião de que eu era “assessor venezuelano do
MAS”. Alguns me aconselhavam a ir embora e outros pediam para ver meus
documentos. O círculo ao meu redor crescia. Expliquei que era antropólogo e que estava
fazendo uma pesquisa para uma tese. Não acreditaram em mim. Apesar de não haver
venezuelanos trabalhando com o MAS, o discurso generalizado dos líderes e dos
sucrenses em geral contra os venezuelanos e cubanos que estariam redigindo a
Constituição do MAS foi o fantasma com qual os manifestantes me identificaram. Me
aproximei de um dos líderes do protesto, Fidel Herrera, e disse que me confundiram
com outra pessoa porque não sou venezuelano, e sim argentino. Ele disse às pessoas que
tratava-se de um mal-entendido. Depois disso a atenção em torno de minha pessoa
dispersou, apesar de o reitor Jaime Barrón questionar minha versão e dizer que eu não
tinha sotaque argentino221.
221 Eu era próximo do MAS, tanto por minha preferência política, como pelos laços de amizade e
confiança estabelecidos naqueles meses. Estava consciente também das conseqüências metodológicas
dessa aproximação. Meu objetivo era entender a política boliviana a partir de um ponto de vista
próximo aos indígenas e camponeses, com seus aliados, que eram a maioria na Assembléia, o que
implicava em não ter uma proximidade do mesmo grau com os opositores ao governo. Após o ocorrido,
fui entrevistado ao vivo por jornalistas da Rádio Sucre e da Rádio Universitária que estavam na vigília.
Fidel Herrera também prestou declarações sobre a que aconteceu e disse que às vezes as pessoas se
286
Por falta de garantias, a sessão que devia começar a tarde foi novamente
suspendida sem nova data para a sua realização. A oposição pensava pedir para ler a
sentença judicial e caso o conseguisse o tema capitalidade estaria dentro. Não teve
sucesso uma negociação que tentava fazer com que o tema da capitalidade entrasse em
uma comissão especial e não na comissão de concertação, e nem Sucre nem La Paz
estavam de acordo com manter a sessão dessa forma. “A Assembléia está à deriva”, lia-
se na manchete de um jornal, e não havia como reiniciar o trabalho. Na bancada alguns
integrantes do MAS faziam cálculos com o celular de quanto tempo deveria ter cada
relatório de comissão para que alcançassem o tempo limite. Era impossível sem
modificar o regulamento dos debates, para aumentar as horas de duração das sessões.
era sabido que não haveria tempo para discutir cada artigo; devia-se restringir a
participação no âmbito das plenárias. Roberto Aguilar preparou um novo cronograma de
trabalho para submeter à votação222.
No domingo 18 de novembro, as organizações sociais mobilizaram até a cidade
de Sucre e reuniram num ampliado de todas as organizações sociais do Instrumento
Político e suas regionais, num micro-estádio de Sucre, com a presença dos constituintes
e autoridades do partido. Era a máxima instância resolutiva do MAS e iria se reunir
“para aprovar determinações”. O plano a ratificar era que o ampliado desse lugar a um
cerco das organizações que permitisse a re-inauguração das sessões. Gerardo García
tomava assistência aos constituintes e dirigia a reunião do ampliado. Informou sobre a
compra da casa para o funcionamento da Direção do MAS; sobre o recebimento de 400
computadores doados mas “apropriados” por uma secretaria e sobre dívidas. Agradeceu
os aportes descontados aos assembleistas que desde Outubro iriam apenas para
equivocam e acontecem essas coisas. Uma senhora me disse que me confundiram com outro argentino
que aparece na televisão e diz mentiras. Alguns me pediram desculpas por parte de Sucre. Aproximei-
me de novo de Rogelio, que assistiu o ocorrido, e ele estava discutindo com alguém sobre o tema da
capitalidade. Ele disse que Sucre ia perder tudo. Seu interlocutor disse que não iriam se deixar comprar
por um aeroporto e uma estrada. Eu comecei a dizer alguma coisa, mas o sujeito que conversava com
Rogelio me pediu que não opinasse sobre assuntos de outro país. Depois desse dia me reconheceram
várias vezes nas ruas de Sucre sem saber muito bem quem eu era, mas me identificando com o MAS.
“Não queremos massistas”, me disseram na porta de um bar, tentando impedir que eu entrasse.
222 Com o regulamento em vigor (trabalhando 6 horas por dia de segunda a sexta-feira) haveria 20 dias
e 180 horas, com 30 minutos por artigo sobre um total calculado de 350. Havia duas variantes de
modificação, aumentando para 10 ou 12 horas por dia de trabalho, de segunda a sábado. Isso daria 24
dias e 240 horas ou 288 horas, com 41 ou 49 minutos por artigo, ainda que também se estipulasse dar
duas horas para os 156 artigos polêmicos e 15 minutos para os consensuais. A proposta do cronograma
era modificar o regulamento e aprovar por maioria absoluta “em grandeo primeiro esboço de 19 a 22
de novembro, ler os 21 informes até 24 de novembro, aprovar os artigos de consenso (por dois terços)
até 27, e até 8 de dezembro os polêmicos. Até o dia 12 fariam a leitura e a revisão do texto final e em 13
de dezembro aprovariam a Constituição.
287
publicidade. Disse que uma vez no governo o surpreendera que tivesse muitos massistas
“busca-pegas” (pessoas que pedem vagas de emprego) enquanto os irmãos esperam com
paciência
223
.
No ampliado houve discursos das federações sindicais dos nove departamentos.
Damian Condori, dos camponeses de Chuquisaca deu uma “saudação revolucionária” e
levantou o chapéu. Ratificou o apoio à proposta do dia 6 de novembro sobre capitalia,
que era a proposta com maior consenso ainda que sem o apoio de La Paz. Anunciou que
os povos estão chegando e também pediu lineamentos do ampliado para não ficar
apenas em palavras. A Federação Camponesa de Chuquisaca tinha anunciado um
bloqueio por tempo indeterminado de todos os caminhos que chegam a Sucre para a
seguinte semana. O dirigente camponês de La Paz pediu, em representação de 23
delegados, que explicassem o acordo com os chuquisaquenhos e lembrou que os alteños
(de El Alto) no cabildo do dia 20 de julho tinham dito que a capitalidade “não é
discutido”.
Nos últimos dias, tinha-se ativado novamente a comissão de Diálogo
conformada por Romero, Doria Medina e Richter, a qual aderiu Torres do MOP e
Gamal Serham de PODEMOS. No sábado 17 assinava um acordo com o Comitê
Interinstitucional incluindo o assunto da capitalia na Pauta da seguinte forma: “o
relatório da comissão de Dialogo ao respeito da temática que gerou o problema”. O
acordo assinou-se no reitoria depois de ficarem reunidos das 9 às 23 horas, com a
presença da Igreja Católica ainda que para Romero o monsenhor não fosse de boa fé. O
acordo ratificava o assinado no dia 31 de outubro, não cumprido, nem pelos cívicos nem
pela Diretoria em que se chamava a convocar plenárias para segunda-feira, dia 19, no
dia seguinte do ampliado. O dialogo com os cívicos tinha-se inicializado em setembro e
teve a sua ultima proposta no inicio de novembro. No final de novembro re-abria.
Porém, as posições continuavam contrapostas: o Comitê Institucional apostava que
fosse lida a sentença nas plenárias, interpretando que apenas com a leitura da sentença
223
Santos Ramirez pendurava uma bandeira da Fundação Boliviana para a Democracia Multipartidária
(FBDM), com a qual o MAS tinha assinado um convenio para criar uma escola de formação política
consistente em nove eventos departamentais e 20 regionais até o final do ano. Ramirez pedia que o
ampliado votasse resoluções autorizando dito curso. A Ordem do Dia do ampliado foi: Informe da
direção nacional e dos dirigentes; estratégia para a Assembléia. Gerardo García cumprimentou aos
dirigentes da direção do MAS pressentes: Avilio Flores, Lidia, Fabio, Mauro Willca, Felix Machicado,
Adolfo Flores, Antonio Flores, Román Loayza, Isabel Dominguez, sua pessoa, Leon Richeard, Santos
Ramirez, Leonilda Zurita.
288
judicial (do dia 8 de setembro) passaria a ser valida e anularia o veto a capitalidade sem
necessidade de votação
224
.
Pelo lado do MAS, a estratégia seria aprovar por dois terços a terceira proposta
do Conselho Político e, em caso de não -los, enviar o assunto à Comissão de
Concertação. Apenas a bancada do MAS de La Paz não estaria de acordo, e defenderia
aprovar a primeira proposta, do dia 25 de outubro, que reparte e constitucionaliza os
poderes: Executivo e Legislativo para La Paz e Judiciário e Eleitoral para Sucre.
Macario Tola me explicou que se os constituintes deixassem que o assunto chegasse a
referendo em La Paz os estuprariam, pelo mandato do cabildo, e que deixar que chegue
á comissão de Concertação já era um luxo. Romero explicava, de outro lado, que se não
conseguiam dois terços para ratificar o acordo sobre capitalidade, voltar-se-ia ao ponto
inicial com La Paz de recolhimento e Chuquisaca em vigília, e isso era bastante
possível. Pensava que nunca o conflito seria resolvido se entrassem na discussão de se a
resolução do dia 15 de agosto é ilegal ou legal. Como o assunto é político, apenas
poderá ter solução com um acordo político que logo após fosse constitucionalizado. O
Comitê Interinstitucional tinha reconhecido isso, e por isso assinaram dizendo que
construiriam um acordo político, explicava Romero.
Perguntei-lhe a Romero se ele trocaria aprovar a nova Constituição por permitir
o referendo e me respondeu que sim, mas que pela posição de La Paz, o MAS se opunha
oficialmente a essa possibilidade. Segundo Romero, a de La Paz era uma posição
radical desnecessária porque ganhariam o virtual referendo. Aceitar o referendo poderia
viabilizar a Assembléia, mas o MAS de La Paz não permitiria chegar a essa
224
Romero contou que os sucrenses pediam como condição que fosse lido o falho que anulava a
resolução que eliminou capitalia, mas isso não ia ser aceito. A jogada deles era dizer: não custa nada,
apenas uma lidinha”, quando se é lido somos notificados, se ativa o mandamento de apreensão e a
resolução de agosto fica anulada, explica Romero. Depois, os de PODEMOS propuseram que se
considere a anulação da resolução do dia 15 de agosto e também dissemos que isso não discutimos.
Pedimos garantias assinadas que desmobilizem grupos de choque. A quem embebedam e dão bates. A
garantia tem que ser do Comitê de Sucre. “Álvaro, tenho que te fazer duas consultas rapidamente”
informava um jornal que escutou a Romero falar no telefone celular antes de assinar o acordo. O
“Acordo pela Assembléia Constituinte” (AC) comprometia a: 1. O tratamento democrático e pacifico das
diferentes propostas acerca dos temas de interes regional e nacional... 2. A garantir a realização das
sessões da AC, de acordo á normativa da AC, plasmada em regulamento e leis. 3. Na segunda-feira dia
19 de novembro se reiniciara a plenária com a seguinte Pauta: Controle de assistência; informe acerca
da temática que gerou o problema e tudo o tratado com o Comitê Interinstitucional de Chuquisaca e seu
debate de acordo a regulamento da AC; Informe sobre o cronograma de trabalho a da AC. Assinatura
dos representantes do Comitê Interinstitucional (Nava, Herrera, Barrón, Cava e outros) e da Comissão
de Dialogo da AC, juntamente a Monsenhor bispo de Chuquisaca como testemunha de boa fé. Sucre, dia
17 de novembro de 2007. Por conflitos internos do Comitê, a Federação Universitária de Chuquisaca
abandonou a reunião sem assinar e dizendo “tem traído”.
289
possibilidade, com o argumento da possível divisão do país qualquer um seja o
resultado do referendo. Para Romero era um erro, porque a proposta dava uma série de
instituições a Sucre sem envolver o traslado, e comentava que o diário La Razón tinha-
se dado conta disso quando colocou a manchete “a Assembléia reabre sem discutir o
traslado da sede”. O que avaliava como positivo era que a bancada de La Paz ainda não
tinha recolhido; até que isso acontecera, existiam possibilidades de êxito. Raúl Prada
acrescentava um comentário critico ao MSM, que ameaçava recolher de forma
unilateral, quando devia ser “todos ou nenhum” os que recolheram.
Romero resumiu o cenário político como orador do ampliado, um dia depois de
ter assinado o acordo com a posição; e também o faria em reuniões com os constituintes
do MAS. É de conhecimento que a Assembléia está num momento muito difícil, dizia.
Esteve bloqueada de forma física e houve ação direta de grupos de Chuquisaca com os
assembleistas. É importante a presença das organizações porque temos somente 27 dias
para resolver assuntos importantes como capitalia, autonomia, terra e território,
estrutura do Estado. Na suprapartidária houve acordos importantes, mas está em disputa
a distribuição do poder político com distribuição da riqueza e pluralismo. Porém
setores que querem que fracasse a Assembléia declarando as autonomias de fato.
Romero explicava que o que está em disputa é um projeto de autonomias de tom
federalista. Pedem controle da terra, do bosque (recursos renováveis) e que entreguemos
o controle da renda petrolífera e do gás a titulo de capacidade legislativa e competências
fiscais. Romero disse que foi esse tom político o que distorceu a Assembléia.
Para tirar da frente a temática de capitalidade Romero falava no ampliado da
necessidade de uma mobilização social. É um fato que vamos ver quem é que manda:
Poder Executivo ou Meia-Lua e vamos ver para as seguintes décadas a configuração de
poder. Romero apresentou o trabalho da comissão conformada pela Diretoria e a
Suprapartidária. Centos de horas dedicadas à temática e dezenas de reuniões.
Oferecemos instituições importantes como a Comissão do Congresso, mais projeto de
desenvolvimento de 300 milhões de dólares, disseram que foi uma enganação do MAS
e as propostas foram rejeitadas. Mas Branko Marinkovic não lhes da permissão a
subscrever um acordo, dizia. E voltava a fazer referência ao “bloqueio covarde da
Assembléia com bates de basebol para quebrar a cabeça de constituintes”. Foi que
nos detivemos, dizia. Por isso pedia que para re-abrir era necessária a colaboração das
organizações sociais, constituintes e os dois departamentos de La Paz e Chuquisaca. É
fácil para PODEMOS ser radicais sem responsabilidade, pedindo referendo, expressava
290
Romero. Mas está em risco que o país divida em dois blocos. Também criticava a
postura de “nem um alfinete a Sucre” que para ele significava lhe fazer o jogo aos
separatistas.
O plano para a plenária convocada para o dia seguinte, explicava Romero, seria
ler o relatório com as três propostas, e se de Chuquisaca começam com que seja lido o
falho, se lhes irá dizer que não está na agenda de trabalho. O passo seguinte seria
aprovar por dois terços a ultima proposta. Não vamos a seguir com a espada de
Damocles na cabeça. Deve-se resolver, dizia Romero, e informava que a proposta foi
consultada com Juan del Granado, Luis Revilla, Macario e FEJUVE de El Alto. É fácil
disser na imprensa “não fui consultado”, para o público, mas foram consultados. Se não
conseguem dois terços continua vigente a resolução do dia 15 de agosto. A estratégia é
clara, repetia: entra-se, a comissão informa a proposta, votamos a proposta que a
Federação de Chuquisaca aceitou. Se dois terços perfeito, se não, continua a
resolução.
Mas no dia seguinte, 19 de novembro, voltou a ser suspendida a plenária. A
Diretoria publicou na imprensa a mesma pauta elaborada para a sessão passada, sem
incorporar o acordo assinado o sábado anterior com o Comitê Cívico. A intransigência
da Diretoria vinha acompanhada da do Comitê de emergência de La Paz, que criticou o
acordo e chamou traíras a quem o assinaram
225
. Mas é bem provável, cotejando algumas
fontes, que a decisão de não mudar a agenda da convocatória não viesse apenas por
pressões de La Paz, e também pela negativa de Silvia Lazarte a que alguém lhe
impusera a pauta, ao que poderia ter contribuído também a rivalidade desde o começo
da Assembléia com Romero que estava adquirindo muita influência no processo. Outra
possibilidade poderia ser que de La Paz havia outro plano em marcha e não é visto
conveniente abrir sessões em Sucre. O dia da suspensão, Silvia Lazarte declarou que era
esse âmbito dirigido por ela o que devia elaborar a pauta, desconhecendo o acordo
assinado por constituintes com o Comitê. Barrón declarou que se instalaria
imediatamente a vigília pela “palhaçada” da Diretoria. E ouviu-se dizer que numa
225
Inclusive alguém chegou a ameaçar com a toma da empresa de concreto do Assembleista Doria
Medina, participante da Comissão que assinou o acordo. Juan del Granado declarou que poderia se
mobilizar contra os grupos pequenos e racistas radicais vinculados à Meia-Lua. Formalmente, não
obstante, a sessão tinha sido postergada porque o vôo da manha que trazia os constituintes de Tarija e
Santa Cruz não saiu. “Essa escusa nós salvou e pudemos mudar a convocatória” disse Armando.
Guillermo Richter intentava justificar ante a imprensa interpretando que foi um erro devido a que o
serviço publicitário do jornal foi contratado na sexta, antes do acordo. Pensava que a convocatória se
retificaria, mas com o decorrer das horas se manteve.
291
reunião do MAS pela noite, Santos Ramírez, Gerardo García, Sardán e Armando
Terrazas teriam “encurralado” a Silvia Lazarte e depois de “se sacarem a merda”
(caírem no pau) acordaram que o acordo seria respeitado
226
.
Não houve Assembléia mas tinha saído sim à manifestação desde Caracollo
(Oruro) para pressionar ao Senado pela aprovação da lei da Renda Dignidade.
Conversando com constituintes próximos no dia da suspensão, Romero comentou que
tinha começado a fazer lobby nos meios, e tinha falado com ERBOL, ATB e ACLO,
para denunciar que a Diretoria estava desconhecendo o acordo. Alguém disse “tinha-se
alcançado o acordo e a chola entrou no meio”. Romero comentava que lhe disse a
Richter que dos outros está acostumado, mas o problema é quando o golpe vem de
dentro. Richter tinha dito que assim não é possível confiar, e avaliavam que estavam
perdendo o apoio que tinham. “A Silvia é foda”, outro constituinte acrescentava.
Desconhecem as comissões que nomeiam, reclamava Romero, e dizia que ia a deixar
tudo porque assim não está acostumado a trabalhar. Estes querem fechar a Assembléia,
seguia Romero. E sua posição era agora “deixar toda a decisão na Diretoria”. Tinha-lhe
dito a Santos e a Álvaro que quando organizassem ao MAS o chamassem, porque assim
não dava. A noite anterior García Linera tinha chamado a Romero para lhe advertir que
o queriam deixar sozinho, e disse que faria alguma coisa para tentar isolá-lo.
Evidentemente as gestões do vice-presidente não tinham dado resultado
227
.
Na reunião da bancada do MAS, Cayo reclamava de que por quarta vez a
bancada decide algo, mas não serve para nada porque é encima que decidem. Em vão
226
Romero declarou a Amália Pando, por Radio ERBOL, que se a pauta não se modificava por capricho
ou estreites política a Diretoria terá que assumir os custos políticos e responsabilidades. Silvia Lazarte
afirmava que o Comitê Interinstitucional não era quem para fixar à convocatória. Roberto Aguilar, no
entanto, declarou segundo a imprensa que a pauta do dia seria sim modificada para incorporar os
informes de La Paz. Lazarte declarou que não conhecia o acordo, ainda que tivesse escutado a Romero
no ampliado, que falou depois dela, e o próprio Aguilar tinha se reunido para tratar sobre a temática
com a Comissão.
227
Carlos Romero contava que o dia do acordo se encontraram às 17hrs com Roberto Aguilar, que disse
que Silvia Lazarte estava doente e por isso não se reuniria. O vice-presidente da Assembléia esteve de
acordo com a proposta de modificação da pauta. Depois Silvia insistira em que ninguém vai lhe fazer a
pauta e na reunião de Chefes de Bancada dos partidos disse que ninguém consultou e também mentiu
que a bancada não estava de acordo com a modificação. Roberto teria se posto vermelho e disse que a
reunião do sábado foi a titulo pessoal e não institucional. Romero também reclamara que com a Rebeca
e o Chato pediram uma reunião com a Diretoria e a Direção Nacional para fazer análise séria e tomar
decisões, mas quando foi tinha uma colaboradora de Roberto “e os rapazes da REPAC”, lhe faziam
vácuo, pensava. Álvaro teria lhe dito também a Romero que já em agosto pensaram em mudar a
Diretoria, mas que tiveram medo do impacto político. Pablo Zubieta, próximo à presidenta, tinha outra
versão segundo a qual Roberto tinha lhe dito a Romero em aquela reunião que consultasse com a chefa
e ele não o teria feito. Desde esse espaço político de diferenças internas ao MAS, rumores e versões
encontradas, também se acusava que Romero seria próximo ao MSM e se apresentava como prova que
quando estava em La Paz, Romero hospedava casa de Juan Del Granado e Marcela Revollo.
292
nos fazem falar. Não há capacidade para dirigir a Assembléia e por culpa deles isto pode
fracassar. José Lino pedia disciplina e firmeza porque tinha chegado o momento de
demonstrar quem eram. Deponhamos atitude de briga entre nós. Parecemos pedra de
muinho que gira e gira e não faz nada. Pedia convocar às organizações e que tomassem
decisões. Estava puto da vida e entedeado. Outro constituinte pedia aprovar a
Constituição “em grande” quando chegassem as organizações porque calculava que
depois de uma semana iriam embora.
Silvia Lazarte falou sobre as recriminações que estava recebendo por falta de
coordenação. Se estiver todos os dias aqui sou culpável... se não estiver aqui também
sou culpável, dizia na reunião da bancada do MAS. Como acham que eu vou ficar feliz
quando aqui decidem outra coisa e nos dão bronca? Virei, sentarei num canto e não
falarei nada. Eu agüento que a direita bata em mim... o inimigo verdadeiro, mas quando
entre nós fazemos isso é muito grave. Para ganhar ou para perder temos que estar
unidos, mantenhamos unidade, dizia. Inclusive ao interior batem duro em mim. Acaso
acham que eu não tenho coração? A Roberto lhe dou duro também, que tem que ver
quantos votos conseguimos. Mas contamos os votos um dia e não chegamos a essa
quantidade. Há que refletir e não deixar soltos aos constituintes. Têm que estar todos em
estado de emergência e juntos. Eu acredito que poderemos superar. Eu vejo as coisas de
essa forma.
Saul Ávalos reclamava de novo ter feito muita confusão para no final aceitar o
acordo do sábado. Parecemos deixando tonta a perdiz, dizia. E depois de ter escutado
500 vezes as sumas sem que aparecesse dois terços via duas alternativas: entrar sem
saber o que vai acontecer, ou entrar sabendo. Mas a única opção é entrar, pensava.
Depois de ter visto vídeos que pular á piscina. Sugeria entrar preparados para ficar a
viver até acabar, porque não devem sair com as mãos vazias. Como Silvia diz, “a sessão
correspondente” pode até não ser na primeira noite, mas sim no outro dia. Pensava que
não havia forma de errar porque ninguém iria a pôr neles uma pistola na cabeça para
aceitar alguma coisa que não queiram. É preciso ir anotando como vão votando e talvez
por alguma desgraça alguém desmaie ou alguma coisa e detêm a votação. Mas temos
que entrar. E não acabar até que salga fumaça branca. Considerava que se não tivessem
ampliado no dia 6 de agosto teriam ganho. Agora a oposição recuperou espaço e a
receita vem dos EE.UU. e a Espanha financiada pelas multinacionais.
Walter Gutierrez dizia que continuavam sendo prisioneiros porque ingressando
mas sem tratar o tema capitalia como eles querem seriam cercados novamente. A
293
decisão seria tomada fora. Hoje vimos que não parecem humanos, dizia Walter, tem
chutado a uma senhora e tem feito isso por ser maioria. Os camponeses não vão a ficar
aí, estamos chegando ao enfrentamento. Os Senadores dizem que vão secionar em outro
departamento e nós continuamos caminhando por sem decidir. O Senador Luis
Vásquez falou de criar um Congresso constituinte para meter o referendo autonômico de
2006. Mas se vamos a outro lado dois terços é dos presentes, não do total de
constituintes. Não é tarde agora para ir a Oruro, pensava. Caso fiquemos aqui e não
capitalia, como vamos sair?, perguntava. Temos que tomar decisões porque vai chegar o
dia 14 de dezembro quando qualquer coisa que seja feita não vai ter sentido. Walter
era de La Paz, e sua bancada ainda não aceitava tratar o tema capitalia em sessões
realizadas em Sucre. O encontrei em outro momento pelas ruas de Sucre e disse que ia a
aproveitar para ir na Internet antes de que La Paz peça o recolhimento, que era iminente.
Macário dizia-me que a estratégia para a plenária seria mandar a temática à
comissão especial que pode ser conformada sem precisar dois terços, algo que nem os
mais próximos sabem, dizia. Carlos Romero também concordava com esse plano.
Victor Borda tinha revisado o regulamento e confirmava que as comissões especiais
não a de “concertação”– se criam por maioria absoluta e não por dois terços. O assunto
capitalia não tem comissão como os outros temas, para onde vão ser incorporados os
acordos do Conselho, dizia Victor, por isso devia ser criada uma comissão especial.
Propunha deixar que a oposição falasse e depois criar a comissão. Logo após votar os
relatórios, votar pela proposta de capitalia e se não tem dois terços que seja ratificada a
resolução do dia 15 de agosto.
Isto seria necessário pela falta dois terços que se previa para qualquer proposta
saída do Conselho Político. Em reunião dos chefes de bancada com as organizações,
tinham chamado pelo telefone celular com alta voz a Edgar Patana, da FEJUVE de El
Alto, para que explicasse sua posição e todos o escutaram disser que os constituintes
que fossem à sessão e tratassem o assunto capitalia seriam procurados nas suas casas.
Depois de que não foi modificada a pauta conforme acordado, o Comitê
Interinstitucional reiniciou a vigília. Vivia-se um clima de guerra iminente, apenas
diminuído porque também o Comitê Interinstitucional aparecia debilitado. A FUL
não respondia a Barrón e o criticavam por ter assinado o acordo sobre a pauta para a
294
sessão. Tinham acabado as aulas na Universidade e por tanto também a principal força
de mobilização tinha em grande parte desaparecido
228
.
Na terça-feira dia 20, longe de ser instaladas as sessões convocadas com a antiga
pauta, houve novos episódios de violência. Sucrenses em vigília agrediram um grupo de
camponeses que iniciaram um cerco nas portas do teatro. Eram camponeses chegados
de Potosí e Orinoca (terra de Evo, em Oruro) para defender a Assembléia. Choviam-
lhes insultos e objetos procurando que abandonassem o cordão na frente da porta do
Teatro Gran Mariscal. Sacavam-lhes os chapéus e gritavam “lhamas ignorantes”,
“macacos de Chávez”, etc. A tensão derivou em golpes quando um camponês reagiu e
feriu um estudante com o mastro da Wiphala que tentavam lhe tirar
229
. Os cocaleros dos
Yungas de La Paz anunciaram que chegariam uns 20 mil a Sucre para exigir respeito à
Assembléia e a La Paz como sede dos poderes Executivo e Legislativo.
Juan Pijcha, dirigente camponês, anunciou o corte de abastecimento da água
desde Chayanta numa entrevista publicada por El Correo/Grupo Líder (21 de novembro
de 2007). O entrevistador dizia-lhe que se cortavam a água também os camponeses
perderiam sua produção ao que ele respondeu que “na guerra todos temos que perder e
isso têm compreendido os irmãos camponeses”, “guerra?” perguntou o jornalista e
Pijcha dize “Nós temos conseguido a Assembléia Constituinte com sangue, luta e
mortos e grande sacrifício. Não é isso uma guerra silenciosa?. Temos sido agredidos e
insultados no Teatro Gran Mariscal. Somos seres humanos, não somos lhamas como
tem nos dito e vamos lutar por nosso projeto. Esses insultos reforçam nossa decisão de
mudar o país com um novo texto constitucional”. Juan Carlos Pinto, encarregado da
REPAC, escreveu um editorial para o jornal El Constituinte que editava essa
organização de apoio à constituinte, onde dizia que tinha culminado o tempo de
consenso e não tinham que ter medo de confrontar. Era preciso se preparar para
apresentar duas constituições com duas visões de país.
228
“O tem que fazer por amor e não por nota” diziam os docentes aos seus alunos durante os protestos,
me contava uma estudante. Alguém contava também que desde a alcaldía tinham dito no seu bairro
que caso não fossem à manifestação fariam os paralelepípedos em outro bairro. Corria o boato também
de que Aydee Nava comprou uma casa em Miami e iria-se embora, o que contradizia a informação de
que estaria, na verdade, fundando seu partido.
229
O camponês ferido foi levado à guarda do hospital Santa Bárbara, na esquina da Praça Libertad à que
dava o Frontis do Teatro, acompanhado da constituinte Isabel Dominguez. Antes, a constituinte Rosália
Del Villar se tinha posto diante dele para protegê-lo. A polícia formou um cordão e separou os bandos.
Houve alguns feridos. Em resposta às agressões, os camponeses de Potosí ameaçaram com deixar Sucre
sem água, cortando o canal do rio Ravelo que leva água até a cidade.
295
Em reunião do MAS desse dia, Maria Oporto de Chuquisaca atribuiria a
violência à Diretoria que não aceitou o decidido na bancada. Ela viu como tinham
batido no constituinte Martín Serrudo, e se Rosita não tivesse se jogado no meio, o
teriam matado, dizia. O constituinte agredido pedia que a irmã Silvia fosse a tirar
conclusões com eles. Hoje tem humilhado, metido bombas às irmãs e não temos que ser
servos (pongos) de ninguém, dizia. Propunha que fossem a um morro para acabar, e
esqueceram dos dois terços. Também tinham tido incidentes na Universidade
Pedagógica (ex-normal) porque o lugar foi sido cedido aos camponeses para que
dormissem enquanto ficavam na cidade, mas foram expulsos pelos estudantes, com o
argumento de que os camponeses tinham chegado para agredi-los, e acusando ao reitor
de ser “massista” por -los recebido. Silvia Lazarte lhes disse que aprovaria a
Constituição por eles, ainda que seja nas ruas. As organizações camponesas de rios
pontos do país asseguraram que não deixariam que nenhum dos formados nessa
universidade fossem professores em suas regiões. A Ministra de Justiça, Celima
Torrico, criticou a discriminação dos camponeses, a quem tinham dito que não podiam
ingressar à cidade. No MAS se dizia que o ferido chuquisaqueño foi por uma pedra de
eles mesmos jogaram e que a jornalista Cristina Corrales tinha imagens
230
.
A última sessão convocada no Teatro Mariscal, foi terça dia 21. A Diretoria
tinha cedido e convocava sessão em Sucre apresentando como pauta a formulada no
sábado com os cívicos. Isso deu lugar a que alguns constituintes de La Paz advertissem
que deixariam o foro se a temática fosse tratada nas plenárias. E lembravam que
necessitariam dois terços dos votos para derrogar a resolução do dia 15 de agosto.
Macário Tola disse que a fórmula de “a temática que gerou o problema” não significava
nada e ele não sabia qual era essa temática. Como quando se discutiu o significado de
“assento institucional”, as interpretações eram variadas. Mas essa sessão também não
foi realizada, e por oitava vez consecutiva a Diretoria voltava a suspendê-la, por falta de
condições de segurança. Foi um dia de versões encontradas, tensões no ar e clima de
230
Tinha jogado ao chão a câmara de Cristina Corrales que ao ver os vídeos tinha identificado que foi
pessoal da prefeitura e empregados da universidade. Cristina disse que em Sucre são mais racistas que
em Cochabamba. E falava dos collas que gritam contra os “lhamas de La Paz”, que são os piores, como
os camba-colla de Santa Cruz. Patrick, câmera francês, disse que não vai dar as imagens à REPAC porque
o ameaçaram que se aparecem imagens em spots estava morto. Eu também contribuí com fotos e
imagens das agressões à REPAC, que as juntava para elaborar spots televisivos.
296
desenlace iminente, embora ainda não apresentado. Alguém se queixava de que em
lugar de todo ir para uma decisão, tem se embarrado”
231
.
Roberto Aguilar conversava com uns poucos jornalistas de forma informal no
pátio do Colégio Junín. Dizia que Bolívia sempre procura equilíbrios. Desde o ano 2000
tinha-se balanceado para as organizações, com um máximo com Goni em 2003 e a
chegada do MAS ao governo. Depois de ai em diante tinha-se nivelado, com retrocessos
da mobilização e o avanço da Meia-Lua. Dizia que via a Assembléia como o centro
aparentemente tranqüilo de um tornado ao redor. E que se fechasse a Assembléia viriam
mudanças violentas. Os camponeses são como fermento, dizia, depois das agressões vão
crescer. Eram duzentos e vão a ser dois mil. E assinalava que poderiam vir duas
situações: uma oposição reduzida com grupos isolados em descontento e estudantes
protestando; ou a do enfrentamento, que podia se fazer realidade em Bolívia. Alguém
lhe perguntara se teria traslado e Aguilar respondeu que Silvia tinha dito que a
Assembléia ficava em Sucre.
4.3 Do Triangulo Simbólico à Decisão Final.
Nestor Torres, do MOP e no Bloque Patriótico, tinha proposto junto a outras
forças que existiam três quartéis em Sucre que cumpriam as condições para albergar as
sessões. A vantagem era que não se descumpria o requisito imposto na Lei de
Convocatória de que fosse Sucre a sede das sessões. Victor Hugo opinava que indo a
Oruro não se evitava o problema da temática capitalia. Pablo Ortiz, que estava em Sucre
cobrindo a Assembléia para El Deber de Santa Cruz, dizia que se realizando a sessão
haveria enfrentamento. Pensava que se ia para uma guerra balcânica pela temática
étnica, mas Bolívia se salvava porque não tinha dinheiro para guerra. O Doutor Sardán
dizia que agora era momento de fazer valer o caráter Originário e ativar às organizações
sociais. Linera declarava que ou se voltava a um bloco de poder anterior ou se avançava
para uma reconfiguração da relação entre blocos. O Senador de PODEMOS Carlos
231
Pela manha Mirtha mandou a todos os empregados da bancada ao teatro. Havia uns 200
camponeses que tinham novamente intentado proteger o teatro, mas que ante o assédio se tinham
corrido da porta e separado em pequenos grupos pela praça. Os estudantes gritavam “para ir embora” e
tiravam pedras, papeis e galhos. Mama Isabel Dominguez deu declarações à imprensa. Ada e Rosália, de
La Paz e El Alto tiravam fotos. A Ada constituinte de PODEMOS gritou-lhe chola, vai se por a saia” e ela
respondeu que defendeu ao povo e que é chola com orgulho.
297
Börth, desde La Paz, declarava que a temática capitalidade iria acabar no Referendo por
falta dos dois terços.
Falando aos constituintes do MAS, Carlos Romero avaliava as possibilidades de
secionar em Sucre ou Oruro, pensava que se ficavam em Sucre tinham que organizar
proteção social e levar em consideração que o teatro em determinado momento se abre
com chutes. O risco de Oruro era que muitos não iriam seg-los e que todos os
pequenos, dizia Romero, vem uma possibilidade de extorquir ao MAS.Teremos que
lidar com isso e é nojento um projeto de pais misturado com isso, pensava. Sobre a
possibilidade de Oruro Romero dizia que se essa era a opção tinha que ser rápido, e não
como o conto do lobo. El Correo dizia hoje: “os massitas não tem quorum e por isso
não vão”, eles se agrandaram, reparava Romero. No momento em que falava estava
pendente uma nova convocatória para secionar em Sucre, e se ia ser mantida Romero
via a necessidade de um resguardo social, e também um resguardo policial e militar.
que exercer o poder; com resguardo social não é suficiente, dizia, porque se tem
enfrentamentos vão ter o morto que estão procurando. Notava também um risco que
tinha sido apontado por Victor Borda: Sem dois terços para resolver a temática capitalia,
a espada continua sobre nossas cabeças e está também o risco de que se gere um novo
Viru Viru
232
.
Mas enquanto se esperava a sessão em Sucre, numa reunião da bancada do MAS
com as organizações a mediados de novembro, se definiu ir a Oruro. Cansados de que
de manhã os do interinstitucional diziam uma coisa e de tarde outra, me explicaram,
tomou-se a decisão. Era também uma decisão que se tomava em resposta das agressões
e de que não tinham garantias de segurança em Sucre. Acabaram-se as instancias e ao
dia seguinte a Diretoria iria anunciá-lo às bancadas. Os camponeses de Chuquisaca
eram os únicos que estavam contra, mas se decidiu pela maioria e Silvia Lazarte iria
acatar o que as organizações decidessem. A decisão de ir a Oruro chegava “porque se
acabara o tempo e as alternativas”, e porque “os constituintes temos que ser
responsáveis com os votantes e o país”. O plano era mandar ao Congresso dois
relatórios de minoria e maioria para que decida o povo boliviano entra as duas
constituições. Mas o translado ficaria como decisão tomada no calor dos
acontecimentos, de forma pressurosa.
232
Militarização do aeroporto de Santa Cruz para desbaratar um esquema de corrupção, umas semanas
atrás, ao que se opuseram mobilizações de pessoas que participaram de um enfrentamento com o
exército. Querem o morto que não tiveram em Viru Viru dizia Romero.
298
A decisão de ir a Oruro “nãos se consolidou”, e se deu marcha atrás quando
algumas estavam se preparando para o translado fazendo mandar seus pertences. A
pesar da decisão pela maioria entre constituintes e representantes das organizações; a
ordem não chegou e a Diretoria ratificou que a sessão seria em Sucre. No governo
preferem que não haja Constituição a que houvesse um morto e se feche por isso,
alguém disse. Ter ido a Oruro teria sido transformá-la numa Assembléia regional,
outros justificavam. Outros asseguraram que novamente o problema era o número.
Iriam apenas 130, tinha-se calculado, e outros apontavam suas críticas a García Linera:
“quer fechá-la e por isso não se joga com Oruro”. Depois de recuar havia irritação e
outro constituinte disse que o problema não era que a Assembléia fosse dirigida desde
cima, mas que fosse mal dirigida.
Armando Terrazas e outros reclamavam da falta de estratégia clara “temos uma
ou três cabeças?”, perguntava a seus companheiros. Em Tarabuco decidimos ficar em
Sucre, mas depois que agridem a gente dissemos Oruro e de cima chamam a ficar em
Sucre, explicava, e dizia que era necessária uma única direção política. Mas via que à
bancada os constituintes não obedeciam; muitos não ficavam em Sucre esperando a
sessão e quando voltavam gritavam descontentes. Comecemos a organizar a tropa para
nós organizar, pedia. Em outro momento, conversando com companheiros, Armando
dizia que se ele fosse o Comitê Interinstitucional deixaria ao MAS secionar, “porque
não chegamos”. Apenas faria o pedido de que se respeite o regulamento dizendo que
Sucre pela unidade permite uma Constituição concertada. Mas outro constituinte
apontava “Se dizem isso os penduram”. Conversavam que a idéia do quartel não estava
descartada, e que para ir a Oruro era preciso esperar mais tempo para juntar a mais
pessoas.
Entanto a resolução da Assembléia não se definia, as organizações sociais
convocavam uma importante mobilização até La Paz para defender o projeto de Renda
Dignidade, “não podemos deixar ao presidente só”, dizia o der dos camponeses. A
simultaneidade da iniciativa do governo com a Assembléia debilitava a mobilização,
mas procurava algo prioritário: legitimidade para o governo em horas de definição
233
.
233
A Renda Dignidade abriria uma série de críticas vindas de certa consciência de esquerda do governo,
que podia ver a iniciativa fora dos cânones da esquerda marxista e também do projeto
desenvolvimentista industrial. Mas ao mesmo tempo era parte essencial do projeto liderado por
Morales, desde a perspectiva da divida social com os idosos e lares pobres. Alguns podiam ver a medida
como um desaire à Assembléia, porque a mobilização ao congresso tirava os olhos de Sucre e também
minguava o poder de convocatória das organizações, mas a popularidade da medida será um elemento
que o MAS também precisava para resolver a disputa política pela Assembléia. A decisão de cortar
299
Issac Ávalos explicava aos constituintes que estaria correndo de um lugar para o outro
para estar nessa mobilização e também em Sucre, ainda que não tivesse avião como
Branko Marinkovick, dizia a autoridade camponesa. Tinha falado com o presidente e
Oruro já estava descartado, e comentava que o dia anterior o doutor (referia-se a
Armando) o tinha chamado para dizer que iriam se trasladar a Oruro; mas já os
companheiros estavam sendo convocados a La Paz para depois confluir em Sucre. O
executivo da CSUTCB dizia que tinha convocado 400 pessoas por federação
departamental, com outro contingente adicional de 500 pessoas que se sumariam desde
o Chapare, e triplicando esse numero na seguinte semana.
Chuquisaca e Potosí mobilizariam um numero maior de camponeses, por serem
os territórios mais próximos, e ficariam em Sucre para garantir o cerco que iria permitir
reiniciar as sessões
234
. Não queremos nos enfrentar, mas não podemos continuar igual,
é demais. Aqui não passa de 300 malucos, e não vamos a perder a Assembléia por
300 malucos. Vamos a ter que dar alguns tapas dizia Issac Ávalos. Pablo Zubieta via
dois cenários: que não dois terços e sejam duas constituições; ou que se faça em
Sucre o que ia ser feito em Oruro e se secione sem a oposição com a vigília dos
movimentos sociais. Neste ultimo caso, pelas modificações na lei de ampliação, as
temáticas em dissenso sairiam da Concertasão aprovados por dois terços “dos
presentes”, e do contrario vão a referendo, pelo qual também se chega, explicava, a duas
constituições. Macário Tola dizia que “cheirava” que irá ser em La Glorieta, à qual não
devia se chamar mais de o quartel, nem de Liceu nem de Militar, senão de Colégio e
Museu, o que também era
235
.
Podia se estabelecer um triângulo simbólico entre as três opções que apareciam
no horizonte entre as quais não havia ainda uma decisão. Na cúspide do centro se
propunha o quartel de La Glorieta, como opção intermédia e menos problemática onde
ingressos das prefeituras para pagar a Renda dava instrumentos para que a oposição reagisse ante a
opinião publica. Mas dado o superávit das contas das prefeituras pelo IDH, tirar de ai o dinheiro era um
cálculo de racionalidade econômica, com certeza combinado com adversidade política.
234
Freslinda apresentava o plano estratégico: A polícia faria um primeiro cordão, com o apoio de um
grupo de choque da policia nacional que responda ao mando direto do comandante sem intervenção do
prefecto. O segundo cordão seriam as organizações sociais e um terceiro as forcas armadas em pontos
estratégicos protegidos. Ao mesmo tempo, para abrir o comitê político devem ser feitos acordos com os
partidos minoritários e ver o que estão pedindo. Afirmava que esse bloco formou-se para tirar redito
político e econômico ao MAS, e que já tinha acabado a reunião de amigos.
235
O castelo de La Glorieta era um palácio de finais do s. XIX, localizado no recinto do Liceo Militar
Teniente Edmundo Andrade. O MAS procurava tirar a conotação militar, mas Madaí Sivila, jornalista
sucrense da FAM me disse que ela tinha feito a prática de tiro durante o serviço militar. A distinção
não foi precisa depois de que se decidisse acondicionar um galpão do Colégio Militar e não o Palácio,
que tinha sido saqueado na Revolução de 52.
300
se poderia pensar num novo pacto de Estado. Nos extremos, a possibilidade de Oruro
era a do avanço dos movimentos sociais deixando à margem à oposição e a alguns
aliados; e a possibilidade do Teatro Mariscal era a posição mais conciliadora com o
Comitê Interinstitucional e que garantiria a presença da oposição, mas que podia trazer
uma maior quantidade de custos a pagar ou fraturas internas. Oruro era a opção que
significava renunciar à procura de dois terços, e era levada em consideração desde o
mesmo espírito de 2006 quando o MAS se opôs aos dois terços e da fase de comissões
quando o MAS tentou um avanço sem a oposição na Comissão de Visão de País. Mas a
opção do MAS a nível geral tinha sido a do caminho institucional, exercendo o poder do
Estado e se apoiando numa aliança com as forças armadas. La Glorieta era então a
cúspide do triângulo que permitia manter em a procura dos dois terços, com o apoio
dos militares e sem quebrar a legalidade. As organizações sociais acompanhariam.
Essa decisão foi ratificada em reunião de Evo Morales com os chefes de
Bancada departamentais de constituintes do MAS, que foram levados desde Sucre em
avião. Evo Morales tinha dito para Silvia Lazarte na reunião: “viva ou morta, você
entrega para mim a Constituição o 14 de dezembro”. Também avisou que a Assembléia
Constituinte não entraria no orçamento para 2008 e que sem Constituição os
constituintes iriam ter que enfrentar um julgamento político. Evo Morales disse que a
Constituição devia ser o presente de natal para os bolivianos, e também garantiu que
não lhes iria faltar nada, porque o plano era ficar a dormir no quartel até o final da
aprovação. Carlos Romero perguntou a García Linera porque não Oruro, já que em La
Glorieta seria fácil para os cívicos fazer bloqueios; “querem nós transformar em
mártires” dizia Romero. A resposta era que em La Glorieta era possível convocar mais
constituintes que em Oruro. Continuava-se precisando de dois terços para aprovar o
texto, para modificar o regulamento e para impor as regras do jogo.
Entanto o MAS esperava para fazer o anuncio da decisão final; os onze membros
da Diretoria discutiam sobre propostas diferentes perante o conflito político da
Assembléia. Como foi transmitido à imprensa, um dos vice-presidentes, Angel
Villacorta do UN, propos voltar a convocar a sessão em Sucre. Ricardo Cuevas, do
MNR de Tarija propunha suspender as sessões por seis meses. Pastor Arista, expulso de
AS defendia a opção do translado da sede a outro departamento; e Mauricio Paz do
PODEMOS preferia continuar em Sucre e sugeria ativar as comissões mistas para ler os
relatórios de maioria e minorias nas comissões, onde a temática de capitalia apareceria.
Willy Padilla do CN reproduzia o discurso opositor dos sucrenses a favor da “volta para
301
a legalidade”. Fora da Diretoria, o constituinte crucenho Alberto Serrate pedia o
fechamento definitivo da Assembléia. Era a posição dos Comitês Cívicos da Meia-Lua.
Ao mesmo tempo, pela primeira vez juntavam-se as distintas versões do MNR para
apresentar uma declaração conjunta na que rejeitavam a possibilidade de um translado.
E PODEMOS de Chuquisaca solicitava ao segundo vice-presidente da Assembléia,
Mauricio Paz, que convocara sessões sem o MAS na sede legal.
A convocatória final chegou no dia 22 de novembro para a sexta-feira dia 23 no
Liceu Militar das redondesas de Sucre. Às sete da tarde da quinta-feira se fez a ultima
reunião do MAS na Casa Argandoña para ultimar detalhes. Armando anunciou aos
constituintes que foi lançada a convocatória e não era tempo de discutir, mas de ver
quantos constituintes tinham. Disse que tinha começado o Estado de Emergência.
Santos Ramirez conduziu a reunião. A ultima decisão está, anunciou, “foi tomada na
reunião com os chefes da Bancada em La Paz”. Ir-se-ia a La Glorieta, ao Liceu Militar.
Se configura um fracasso, dizia aos constituintes do MAS, seria do governo e de vocês.
E fundamentava a medida dizendo que saindo de Sucre seria isolamento, acusar-se-ia de
ilegalidade e seriamos os responsáveis do fracasso. Por isso, esse debate tinha-se
esgotado. A reunião era para tomar as ultimas decisões e verificar a responsabilidade
política dos nossos constituintes, não haveria debate, explicava. está a Pauta e a
convocatória, falta apenas verificar disciplina e ver como nos trasladamos. O lugar
estava ocupado pela polícia e mais tarde teria reunião com duas autoridades militares
sobre a preparação do lugar.
No seu relatório sobre as negociações com outros partidos, Santos Ramirez dizia
que UN mudou sua posição e hoje propunha “vamos, se primeiro nos deixam falar com
o presidente”. Que falem depois, é chantagem, dizia Ramírez. Sobre o perigo de que a
oposição decidisse convocar sem o MAS ao teatro; Santos Ramírez acreditava que UN e
os pacenhos da oposição não iriam, porque La Paz iria os enforcar. Além do mais,
explicava que não tinham de que se preocupar com a ameaça de abrir sessões no teatro
porque o único que pode convocar sessões é a presidenta e a Diretoria pode ser
instalada com a maioria de seus membros. O MNR estava espalhado e disperso, mas
perguntaram a Marcela na reunião com o presidente, e disse que definitivamente o
MSM estará lá. Santos pede cumprimentar com um bate palmas a Lindo Fernández,
dissidente de PODEMOS que tinha se aproximado ao MAS e estava na reunião. Os dois
Felix do Bloco Alternativo disseram “Estamos prontos para acompanhar sempre que
fosse a ter um resultado”. Agora haveria outra reunião para explicar para eles a temática
302
alimentação e esse tipo de coisa. Com eles re-instalaremos a plenária, e os partidos
pequenos disseram “agora nos convocam, mas depois o que?”. Nós fomos claros em
que o processo os convocava antes e depois, dizia o Senador
236
.
O pior seria a nossa ausência, disse Ramirez. Se faltarem um ou dois seria um
problema. Temos que garantir os dois terços que estamos trabalhando. Santos dizia que
o Bloco Alternativo dize que vão a acompanhar, mas reclama que suas propostas não
estão no texto. Temos que incluí-las. Trabalhemos com os técnicos, solicitava, e pedia
que houvesse cuidado com o tema Forças Armadas e polícia. Seria grave gerar conflito
com isso. Esta noite que se mobilizar. Alimentação vai ser lá. que mobilizar com
tudo para estar lá 10 ou 15 dias. Na sessão se respeitaria o regulamento: primeiro
aprovar relatórios, se aprova em debate, logo se vota o projeto “em grande”. Até não
tem como errar, dizia. Por capitalia, temos pacto com Federação de Chuquisaca. Pedia
que se designasse um constituinte por bancada para tomar decisões políticas e técnicas
de forma operativa no Liceu, por qualquer coisa que se apresentasse
237
.
Santos pede a presencia militante de cada um. Se aqui não avançamos, não
temos um cenário mais. Se agora fracassamos, não vamos poder fazer nada. Vieram
ônibus de La Paz, amanhã Cochabamba... Vamos nos desdobrar com tudo. Não vamos
236
A bancada de La Paz apenas tinha duvidas com Loyola e sem ela eram 37. Santos disse que vão se
encontrar e disse que era apenas problema de coordenação. Não acredito que não vá, seria grave que
se isole sozinha de La Paz. Outro disse que falou com ela e “como sempre falou da sua ideologia” e disse
que tem compromissos com os outros companheiros do bloco alternativo. Em Cochabamba 26
assinaram a ata e tinha dúvidas ao respeito de Rodolfo Rivas. Arispe de PODEMOS também “disse que
ia”. Chuquisaca também somava a Álvaro Azurduy de PODEMOS. Os do MBL “numa hora dizem que não
e depois que sim”. De Pando iam quatro, de Beni três firmes. Potosí contabilizava 18 e Oruro 13 aliados
mais. Tarija seriam 10, mas Jurado não tinha chegado e estava com celular desligado ainda que
soubesse que tinha que estar presente. O total superava o necessário para quorum, mas ainda estava
longe de dois terços do total. A decisão política é que se na terça não é aprovada a Renta Dignidad no
congresso, o presidente decreta e todos vem para Sucre. A imprensa tem que ingressar, senão seria
nossa debilidade. Informou que os dois companheiros que faltam saíram e chegariam em pouco
tempo, Enrique Jurado chegaria no dia seguinte e também José Bailaba porque tinham atropelado ao
seu irmão. Avocar-se-iam em que estejam presentes, tinham passagens reservadas por se acontecesse à
sessão.
237
Depois da aprovação “em grande” existiam dois caminhos, segundo as modificações da Lei de
ampliação. Alternativa um, se aprova tudo por dois terços do total de constituintes; alternativa dois,
aprova-se por dois terços dos presentes e os artículos que não alcancem essa maioria iriam a referendo.
Se o MNR e outros vão, se forma uma Comissão de Concertación com as diferenças, explicava Santos.
Via como problema, que a oposição mude de estratégia e decida ir ao Liceu. Nesse caso pediriam que
fossem respeitados os acordos do Conselho. Eles têm direito de entrar neste cenário. Se não, vamos
com o texto da maioria, ao que se lhe agregaria o das minorias aliadas. Nem nós iríamos se não
pudéssemos ler o texto, observava. Alguém dizia que tinha problemas com o texto, entre as versões de
Oberland, Sucre, Cochabamba, mas Santos Ramírez aclarava que não era possível discutir agora como
bancada. Se a oposição vai respeitamos o regulamento e se discute os relatórios articulo por articulo. Se
não vão, os dois terços vão abaixando de 170 a 165, 164 e é mais fácil. Mas a falta de um ou dois de nós
sobe as duas terceiras partes, advertia.
303
fazer mesquinharia agora, vamos com tudo. Inicialmente era segundo anel para o
movimento social, primeiro anel polícia e terceiro militar. Mas os movimentos querem
ser primeiro cordão. Que eles decidam. E temos que continuar falando com os
constituintes do MAS que não vão apenas por ressentimento pessoal. Santos Ramirez
passou a palavra às bancadas para ver se tinham perguntas e preocupações. As duvidas
não poderiam continuar aparecendo. É a ultima sessão. Tinha um tom mais solene entre
os constituintes, como René Navarro que disse que a Assembléia vai ficar na história.
Outros davam recomendações práticas, como a de falar com alguém em particular cujo
voto não estava garantido. Cayo, disse que era preciso aplicar a reciprocidade, ao que
Santos respondeu “viemos com autorização plena e é a tarefa coletiva que estamos
assumindo”.
Carrillo sugeriu publicar o texto no domingo ao que seguiu um “não”
generalizado. Dizia que canal 7 “tem nos abandonado” e pedia fazer um esforço para
que chegassem jornalistas do interior do país porque todos os canais de Sucre eram de
Barrón. Saúl Ávalos anunciava que a partir desse momento haveria um corte e se
pronunciava o inicio do final. Não havia mais incerteza. E o corte de hoje é que o que
fazemos é legal, dizia. Eles não tem como contradizer porque a sede continua sendo
Sucre e o regulamento é respeitado. Pedia falar de Liceu e não de Quartel, e evitar
também a palavra militar. É um instituto como qualquer outro, apenas é que está sob o
controle de militares. Nossa realidade deve ser como se estivéssemos no teatro, dizia.
São eles quem estão na ilegalidade, falando de departamentos de fato e Assembléia
paralela. Somos a maioria do país. Também pedia não esquecer o que passa fora, no
país. Fazer leitura diária de conjuntura. Não descartar nada. Inclusive a possibilidade de
voltar ao teatro. Porque, como vamos voltar às ruas sem militares nem quartel a fazer
campanha pela Constituição depois de nos fecharmos num quartel? Pedia ser
conscientes que não é questão apenas de aprovar. O mundo não acaba
238
.
Outros constituintes começaram a expor seus pontos de vista e Santos Ramirez
os interrompeu. Se entrarmos no debate vamos ficar cansados e temos que mobilizar.
238
Victor Borda e Raul Prada tinham duvidas com a estratégia. Prada sugeria comissões e pensava que
era legitimidade antes que legalidade. Que estavam deixando um cenário de debilidade em Sucre e que
era preciso “assumir o caráter originário”. Dizia que a Assembléia era o epicentro da conjuntura política
e que em suas mãos estava a re-fundação de uma segunda República. César Cocarico estava de acordo
com Raul em fazer comissões de seguimento e perguntava por apoio técnico e computadores. Também
disse que não apenas haveria ruptura na Assembléia mas também a nível geral porque Santa Cruz iria
pular. Santos esclareceu que não vão ser melhores condições e que pela noite trabalhariam a temática
política e ao dia seguinte o organizativo.
304
Sejamos operativos, pedia. Anunciou um nível político formado por Santos, Gerardo,
Armando e Roberto Aguilar, que deverá estar em comunicação com abaixo e com
encima. O grupo de constituintes que participaram da comissão técnica ficava fora dessa
comissão. Haveria também uma comissão que trabalharia com o regulamento e pela
noite Santos teria reuniões ainda com o Bloco Alternativo e com os comandantes. Uma
comissão logística se mobilizaria também um pouco depois para o Liceu. Santos
Ramirez apresentou a estratégia novamente ao final: se PODEMOS vai, vamos com o
documento do Conselho. Não se trata apenas de reinstalar. Se tem 50 para dar canseira,
vão encher minuto a minuto. Nesse caso, a última opção é lhes dar Constituição de
minoria e haveria duas constituições. Tem duas alternativas, primeiro consenso, mas
senão duas constituições.
Para encerrar Santos deu a palavra a Barrientos, secretario da CSUTCB. Issac
Ávalos estava na marcha de La Paz. As organizações decidiram que os mandos oficiais
são os executivos regionais, decidiram não fazer um novo ampliado. Estavam esperando
para se reunir e ver qual seria seu papel no dia seguinte. Qual vai ser o mecanismo e que
horas e em qual lugar nos transladamos. Santos Ramirez dizia para todos:
companheiros, façamos historia. Eu assustei quando nos botaram do Congresso (Santos
era deputado junto a Evo Morales quando o expulsaram em 2000). Se tudo certo vão
se sentir bem por ter cumprido com o trabalho para o que foram eleitos. Pela noite jantei
com alguns constituintes que se preparavam para ingressar no Liceu Militar. Magda
Calvimontes disse que gostaria de morrer numa soneca chaquenha como cheiro de bosta
de vaca. Raul Prada acrescentou que numa rede. Os universitários tiravam petardos em
sua vigília da Praça Libertad, frente ao Teatro Mariscal, com casacos de coloridos.
Outros constituintes brindavam com dirigentes sociais de suas organizações de base que
tinham chegado a Sucre para o ampliado e que, de forma obrigatória, faziam pagar a
conta aos Assembleistas.
305
Capítulo 4.
A Guerra da Aprovação
1. La Glorieta.
Na manhã de sexta-feira, 23 de novembro, foi anunciada a formação de um
cerco por organizações de todo o país à cidade de Sucre para garantir o funcionamento
da Assembléia no Liceu Militar. O palácio La Glorieta, ao lado do qual as sessões
seriam realizadas, ficava a sete quilômetros do centro de Sucre. Os grupos de
manifestantes mais numerosos eram das organizações de El Alto e dos camponeses de
Chuquisaca e de Potosí. Em Santa Cruz, o segundo vice-presidente do Comitê Cívico do
departamento, Roberto Gutiérrez, declarou que o “massismo” se assemelha ao nazismo,
qualificou de ilegal a sessão da Assembléia e criticou que se tentasse escrever a
Constituição “entre fuzis e baionetas”. Diego Pary se aproximou com seu veículo a dois
constituintes da oposição que tinham aceitado participar das sessões. Enquanto
entravam no Liceu, alguns manifestantes chamavam um dos constituintes de
PODEMOS de traidor mas Diego avisava “ele está nos ajudando”, para que não
gritassem. Ele confirmou que os sucrenses estavam mobilizados no Liceu mas Jaime
Barrón havia declarado, de Sucre, que não iriam mobilizar pois não queriam que um
altenho matasse um sucrense. Do recinto, no qual se encontrava o MAS, chegava a
informação de que haveria quórum e que estava tudo pronto para começar239.
Na porta havia jornalistas entrevistando os constituintes que entravam. Um
deles, Esteban Urquizu, falou como porta-voz dos dez constituintes de Chuquisaca
dizendo que entrariam na sessão. Informou que participavam pessoas do campo e alguns
da área urbana, favoráveis à mudança. “Capitalia é uma fachada”, afirmava aos
jornalistas. Emilio Gutiérrez, de El Alto, ignorou a posição de seu partido e entrou no
Liceu com o torso pintado com a frase do hino nacional “Unidade antes que morrer
escravos”. Se avisava que na Praça Libertad os policiais haviam usado gás contra os
manifestantes. Tuto Quiroga dava declarações à imprensa falando de Cuba e Venezuela.
Era notícia também um ritual realizado em Achacachi, onde os ponchos vermelhos
239 Estavam chegando 16 ônibus de El Alto. Macario deu 30 mil bolivianos para contratar os veículos e
estava buscando onde colo-los. O prefeito foi recebê-los e pediu que não houvesse confronto. Não
permitiram a revista da polícia e Patana disse que a única arma que levavam era a da organização.
Cantavam: “fuzil, metralha, El Alto não se cala!”. Ver BOLPRESS (21/11/2007) e (23/11/2007).
306
haviam degolado cachorros em Q'ala Chaca, Omasuyos, povoado onde se formou o
Quartel Geral Indígena, liderado por Felipe Quispe, em 2001240.
Em La Paz o Senado, controlado pela oposição, havia aprovado a Renta
Dignidad mas com fontes de financiamento diferentes das propostas pelo governo,
como provocação. A marcha das organizações chegaria segunda-feira à Praça Murillo.
De Sucre, Loyola Guzmán avisou a seus companheiros que não deliberava em quartéis.
Nava e Herrera estavam desaparecidos e a imprensa não conseguia encontrá-los. Evo
Morales falou desde El Alto. A agência estatal de notícias ABI destacava que “centenas
de jovens abordavam caminhões e se dirigiam ao Palacio de la Glorieta”. A CIDOB
anunciava uma marcha a Sucre em defesa da Assembléia e seu vice-presidente, Pedro
Nuny, informava que os setores urbanos de associações de vizinhos e organizações
sociais se juntariam a eles. Juan del Granado havia enviado cinco mil pessoas.
O ministro De La Quintana criticava a UN e o MNR por não participar da
plenária e “enganar o país”. Inclusive os que na fase das comissões haviam se mostrado
próximos ao MAS, decidiram não participar da iniciativa da Glorieta: Eduardo Yáñez,
que votou junto ao MAS na Comissão de Autonomias, chegou a declarar que não
reconhecia a Assembléia; Ana María Ruiz que havia se aproximado do MAS na
Comissão Terra e no Conselho Político também não compareceu. Entretanto, era
compreensível que não comparecessem se pensamos que o lugar político que buscavam
era entre o MAS e o PODEMOS. Não viam como benéfico possibilitar os dois terços ao
MAS nem ficar como opositores a uma Constituição que estariam ajudando aprovar241.
Antes de entrar, almocei com Adolfo Mendoza que iria permanecer fora do
Liceu. Adolfo dizia que tudo dependia da quantidade de constituintes que fossem e que
no dia seguinte poderia acontecer qualquer coisa, mas que o importante era que
militarmente a posição do MAS tinha vantagem, pois os camponeses iriam estar como
cristãos esperando e os estudantes seriam os que deveriam tomar a iniciativa para se
aproximar. Poderiam usar a estratégia do Cavalo de Tróia, dizia Adolfo, ou uma
240 Dias depois, em La Paz e Santa Cruz, se realizariam marcha contra o maltrato de animais, motivadas
pelo ritual. Exigiam uma lei de proteção aos animais e cantavam “assassinos” e “não somos selvagens”.
As imagens do sacrifício correriam o mundo e seriam usadas para criticar o governo de Evo Morales por
muito tempo. O ato dos ponchos rojos foi realizado em resposta às agressões da Meia-Lua.
241 Apesar da concordância que pudessem ter com um projeto do MAS feito para seduzi-los, o MNR e
UN poderiam não ser os que viabilizariam e dariam ar político à tentativa do MAS de realizar a sessão no
Liceu. Em contraste com os partidos pequenos, o MNR não via benefício em ser co-autor da Constituição
do MAS, partido que havia crescido sepultando o MNR e ameaçava deixá-lo no passado. De um lado,
muitos constituintes do MNR respondiam politicamente à Meia-Lua. De outro lado, a jogada do MAS era
arriscada que se somar ao jogo podia significar compartilhar uma derrota. Outros setores políticos da
oposição, mais para frente, avaliariam como positiva sim essa possibilidade de colaborar.
307
dobradiça para fechá-los. E se dava por certo que haveria confrontos. Ele esta ai “por
decisão das organizações”. Adolfo pensava que seria neste momento que viria a
discussão. Se a oposição não comparece ao Liceu, não razão para o que o MAS
aceite a Constituição para o acordo e as organizações exigiriam modificações.
Assistíamos Jaime Barrón fazer um discurso exaltado em um ato na Praça 25 de Mayo,
em uma televisão mal sintonizada de um povoado próximo à La Glorieta. Convocava ao
desacato civil de qualquer resolução da Assembléia Constituinte. No final do ato que se
declarou Cabildo”, pediu votos para declarar ilegal a Assembléia; para decidir a
abertura de livros para recolher assinaturas por um referendo sobre a sede dos poderes e
autonomia para Chuquisaca; e convocou uma mobilização no Teatro Gran Mariscal,
onde naquele momento estudantes confrontavam com a polícia242.
Logo entrei no Liceu. “Estou dentro” anotei no meu caderno de campo. A sessão
teve início às 15 horas. Era a sessão número 70 da Assembléia, a maioria sendo
realizada em 2006, enquanto se tentava elaborar um regulamento. As sessões seriam em
um grande galpão e os constituintes dormiriam em pavilhões do Liceu Militar. Foi
autorizada a participação da imprensa e o jantar seria servido no refeitório. Havia um
gramado bem cortado e quadras de esporte. No momento de início, 144 constituintes
estavam presentes, 109 ausentes e um havia renunciado. Com 128 pessoas o quórum
estava garantido e com 97 votos se alcançava dois terços dos presentes. Compareceram
todos os Departamentos e todas as comissões, com constituintes das nove forças
políticas, festejava o MAS. Félix Cárdenas propôs uma nova pauta que foi aprovada, na
qual se incluía a modificação do regulamento. Roberto Aguilar disse que a sessão
ocorreria de maneira legal mas não em condições normais243.
242 Para Adolfo, o projeto de Constituição era ruim. Pensava que o Poder Eleitoral Social devia ter mais
força. Criticava, entre outras coisas, a exclusão da representação direta e de coisas de gênero; e
assinalava contradições entre o geral que se dizia sobre recursos naturais e os artigos específicos de
recursos hídricos, minerais, etc. Via que as organizações poderiam pedir uma nova Assembléia em
pouco tempo, se esta fracassasse, ainda que o governo o fosse querer. Adolfo criticava o pessoal de
Santos Ramirez e dizia que este faria o que sabia fazer: ganhar votos ameaçando em dizer o que souber
da oposição; e que isto se chama chantagem. E está muito errado, acrescentava. Via os técnicos
espanhóis mais acostumados a respeitar decisões partidárias do que coletivas e das organizações.
Outros técnicos haviam defendido a opinião de um grupo do governo. Ou a idéia de que a realidade
deveria se adequar às leis e não o contrário, dizia Adolfo.
243 A pauta proposta era: 1) Assistência; 2) Leitura de correspondência; 3) Renuncia de Arias; 4)
Modificação do regulamento; 5) Relatório da Diretiva; 6) Relatório das 21 Comissões. O relatório sobre o
Comitê de Diálogo e o Conselho Político seria dado pela Diretiva e não pela Comissão de Diálogo.
Estavam presentes 10 constituintes de Chuquisaca (Álvaro Azurduy não estava presente, ao contrário do
que se esperava); 37 de La Paz; 19 de Santa Cruz; 21 de Poto(MAS e Aliados sem AS); 16 de Oruro; 8
de Tarija; 2 de Pando e 3 de Beni. Os números eram diferentes dos contabilizados diante de Santos
Ramírez no dia anterior na reunião do MAS, com altas e baixas nos Departamentos.
308
A ausência da oposição mudava o cenário que tinham esperado. Raúl Prada
explicava que pela lei de ampliação que se incorporava ao regulamento havia dois
caminhos para a aprovação: um “curto”, quando há dois terços do total de votos, com os
quais o MAS não contava em La Glorieta; e outro “comprido”, quando não há
consenso e se deve submeter os artigos a referendo. Entretanto, pedia para que se
refletisse sobre o fato de que a lei de ampliação levava em conta o cenário do teatro, e
não o novo cenário que foi criado. Prada perguntava: “vamos manter esse cenário?”.
Como tinha sido proposto Walter Gutiérrez e Juan Zubieta, Prada ponderava que
deviam modificar o artigo 70 que pedia dois terços do total dos votos, apesar da lei de
ampliação. Isto implicaria fazer o que Raúl Prada já havia proposto na reunião do MAS
no dia anterior: “assumir o caráter originário da Assembléia”.
No entanto, Carlos Romero interrompe a exposição de Prada e faz uma
explicação “rápida e prática”. Se aprovarmos os 400 artigos por dois terços, o que
aparentemente não é muito difícil, o texto será enviado ao Congresso, que é responsável
por convocar o referendo. Se dissermos “desconheço a lei”, o Congresso nos devolverá
o texto, por mais originários que sejamos... então não existe a possibilidade. Será
necessário conseguir mais 25 constituintespara alcançar dois terços ou ir a referendo.
E, antes de mais nada, a troca de pontos de vista na sessão provava que não havia
estratégia definida e que ainda não se falava da que viria a ser a estratégia final.
Nos arredores do improvisado recinto das sessões vários constituintes e
assessores comentavam os acontecimentos. Alguns técnicos trabalhavam com membros
da bancada chuquisaquenha porque ainda não estava claro o que aconteceria com o
acordo sobre a questão capitalia nas atuais condições. Wenceslao insistia que a
Assembléia deveria fechar o Congresso; e se queixava que quando o mesmo é
mencionado no regulamento, ganhava reconhecimento. Esperanza Huanca voltou a
vestir sua Almilla (roupa indígena). E também Nélida Faldín vestia a roupa tradicional
do seu povo. De fora do Liceu, chegava a informação de que se havia fechado a
passagem de El Tejar para evitar a chegada dos manifestantes.
Diego Pary agradecia que Pastor Arispe, da Diretoria, estivesse participando da
sessão. “Senão, estaríamos perdidos”, dizia. As organizações sociais esperavam nos
morros que nasciam ao lado da estrada na qual estava a entrada da La Glorieta. Saúl
Ávalos observava que, como ele, todos estavam escutando rádio. O repórter do jornal
La Razón se queixava de que tinha que fazer duas notas até uma da manhã. Uma nota
seria sobre a plenária e outra com dados anedóticos, me dizia. Elva Terceros, assistente
309
de Carlos Romero, dizia que não se havia tirado nem adicionado nada ao projeto
trabalhado pela Comissão Técnica. Ana de Chuquisaca declarava à rede de rádios
Patria Nueva que se estava por assinar o último acordo sobre capitalia da comissão
criada pelo conselho suprapartidário.
No recinto, o debate continuava. Pablo Zubieta analisava que os dois caminhos
possuíam armadilhas, incluídas pela oposição no Congresso quando se aprovou a lei de
ampliação. O caminho “curto”, requeria que todos estivessem de acordo para ter dois
terços do total. No caminho “comprido”, as diferenças iriam a referendo dirimidor, mas
este deveria ser aprovado por dois terços do Parlamento, o que aconteceria. Como o
Congresso não vai convocar o referendo, Pablo propunha colocar um prazo ou permitir
que o presidente o convocasse. Haveria também que procurar algumas combinações
para o caminho “curto”, dizia. Poderia ser o que disse Cayo, dizia, de considerar a
ausência como uma renúncia, ainda que a oposição possa vir. Considerava que o
caminho “comprido” tem saída, mas não o “curto”, na situação atual.
A seguir Silvia Lazarte disse que “feita a lei, feita a armadilha”, e que não
podiam se culpar, nem ao presidente. Existem “cadeados” e não nos darão a saída
facilmente, não percebem? E pedia que se votasse se seria o caminho curto ou o
comprido. Para Carlos Romero era um debate estéril. Foi uma saída inteligente
continuarmos em Sucre e não podemos violar a lei assinada por Linera e promulgada
por Evo, dizia. Se dissermos que retiramos alguém por faltar, sempre serão 255. E
afirmou de forma contundente que se não se respeita a lei, estariam fazendo um auto-
golpe e o efeito que conseguimos ao abrir as sessões, será revertido. se discutiu
muito. “Votemos”, pedia. Faltava votar o artigo 70. Vásquez refletia que a única forma
de que o PODEMOS fosse ir à sessão era que se publicassem as faltas e se
descontassem do pagamento. Mas se comparecem, poderiam aborrecer, diziam.
Humberto Tapia tinha dúvida de se o Congresso poderia modificar os artigos. Silvia
Lazarte respondia que o Congresso não pode modificar nada. A afirmação não se
demonstraria verdadeira.
Assim como todos os anteriores, o artigo 70 do regulamento foi aprovado por
unanimidade. Na modificação do regulamento houve protestos de Mario Orellana, pelo
MSM, e de outras minorias em defesa da possibilidade de participação e debate, ainda
que limitada. Entretanto, se decidiu que haveria apenas vinte minutos para cada Chefe
de Bancada por cada parte da Constituição, e que não se discutiria artigo por artigo. E
com as mudanças, não seriam seis horas por debate e sim por “tempo e assunto” e sem
310
tempo limite até que se esgotasse a Pauta do Dia, incluindo os finais de semana. A idéia
do MAS era apenas ler os artigos de forma contínua e somente aceitar alguns
comentários feitos pelos partidos, até que se terminasse a aprovação
244
.
Roberto Aguilar convoca um recesso até às 8h do dia seguinte. Eram às 23h30 e
terminava a sessão. Aguilar também pedia para se decidir sobre o tema da capitalia e
informou que os irmãos de Chuquisaca e de La Paz estavam dialogando. Evidenciava
que não havia acordo. Jantamos no refeitório do quartel e havia otimismo. Dividiram as
camas. Ainda que a oposição não estivesse presente, se decidiu respeitar os acordos
suprapartidários, incluindo o bicameralismo e outras coisas que não se havia chegado a
assinar nos acordos da vice-presidência. Haveria uma resolução da Assembléia
ratificando os acordos. A presidenta, o vice e um grupo de constituintes realizavam a
c‟oa, na qual Pastor Arispe fez um discurso com componentes de rituais andinos.
Alfredo Rada, ministro de governo, estava no Liceu, ele chegou para “conferir a
segurança” junto do vice-ministro de defesa legal do Estado, Héctor Arce. Afirmava aos
constituintes que estava tudo bem e que “agora depende de vocês”. Santos Ramírez
também estava presente e respondeu às dúvidas sobre a estratégia no jardim onde se
reunia um grupo de constituintes. Para optar pelo caminho “comprido”, que era o que se
buscaria por não possuir dois terços do total, não se podia ter consenso em todos os
temas, explicava o Senador. O MAS não poderia aprovar por unanimidade todos os
temas porque para ativar este caminho pelo menos um tema deveria ser submetido a
referendo. No caso de que a situação seguisse igual e a oposição não se apresentasse, se
optaria pelo caminho mais comprido, criando uma dissidência artificial em algum tema
que se decidisse submeter a referendo.
244 O MSM estava sendo prejudicado porque não era considerada uma bancada separada da do MAS,
perdendo assim a possibilidade de fazer observações. O debate sobre a necessidade de aprovar ou
discutir mais seria importante no desenlace da Assembléia Constituinte do Equador, em 2008. Dentre as
modificações, o Artigo 27 criou um Comitê para receber os relatórios das Comissões e transformá-los
em uma estrutura constitucional. O Artigo 50 ampliou as sessões nos sábados, domingos e feriados. O
Artigo 51 amplia a duração das sessões. No Artigo 61 se estabelece dois turnos de vinte minutos para
fazer uso da palavra por grupos políticos. No Artigo 63 se reduziu o tempo para apresentar o relatório
das comissões de duas horas para quinze minutos. Para aprovação de blocos, cada bancada política e
brigada departamental tinha uma hora e agora se reduziu a 15 minutos. Para a aprovação em detalhe
não poderiam falar por dez minutos cada um dos 255 constituintes, haveria 20 minutos para cada
bancada, por bloco de texto. No Artigo 64, se reduziu de dois a um minuto de tempo para moções. No
artigo 68 se incorporou o sistema de votação por levantamento de mão. O Artigo 70 sobre os dois terços
não foi modificado, e o Artigo 71 se modificou para que se haja reconsideração, é necessário um terço
dos votos dos presentes. A perda de mandato, Artigo 84, se aprovaria por dois terços dos presentes para
eventualmente retirar o mandato da oposição.
311
Haveria problemas para que o Congresso autorizasse o referendo, mas sem essa
falta de unanimidade a Lei de Ampliação não permitiria optar por esse caminho de
aprovação, pensado inicialmente para uma resolução da Assembléia sem dois terços que
se resolvesse no referendo. O MAS devia então escolher qual tema levar à consulta
pública. Ao não participar, a oposição perdia a possibilidade de decidir quais temas
iriam a referendo. A vantagem e a forma de viabilizar a sessão em La Glorieta era que,
seguindo este caminho, o MAS teria legitimidade para aprovar os artigos “em detalhe”
por dois terços dos constituintes presentes, e não do total, de acordo com as regras
aprovadas pelo MAS e pela oposição no Congresso, em agosto.
Este mecanismo não afastava toda a incerteza, principalmente pela necessidade
de enviar o trabalho ao Congresso, mas era sem dúvida a estratégia que mostrava menos
complicações e maior legalidade. Santos Ramírez então perguntava qual tema os
constituintes pensavam ser o mais adequado para ir a referendo. Armando propunha que
fosse o voto aos 16 anos. Santos discordava pois os de 16 ainda não votavam. Dunia
propôs que fosse a terra. Roberto Aguilar propunha a reeleição, “que é pelo que mais
nos criticam e é central no nosso projeto”. O Oficial Major da Assembléia sugeriu que
fosse algo como a Renda Dignidade. Havia comentários generalizados de elogio aos
constituintes de Chuquisaca que tinham defendido a posição do MAS. Alguns estavam
ameaçados e não poderiam voltar às suas regiões. Santos Ramírez dizia que havia que
levá-los à La Paz.
Roberto Aguilar pensava que deveriam permitir que o MSM e os partidos
pequenos falassem, que de cada cinco minutos, se dessem dois a eles. Estava
preocupado com a ordem, porque muitos não estavam votando e com dez constituintes a
menos, não se teria quórum. Quando se iniciasse a votação, se deveria contar os votos.
Santos observava que faltava uma instância de reunião dos chefes com suas bancadas
para que houvesse uma só e clara posição. Um constituinte observava que Doria Medina
estava suavizando o discurso, talvez por estar se preparando para o que estava por vir.
Ricardo Cuevas, do MNR, dizia que não compareceu pelo IDH. Um jornalista avisou
que os partidos pequenos não estavam votando, por isso começaram a dá-lhes a palavra,
dizia Roberto.
De Sucre, chegava a informação de que no primeiro dia de sessão houve 180
feridos nos confrontos, entre eles muitos policiais, e em torno de 40 presos. Por
telefone, me avisaram da cidade que havia dois mortos. A repressão no centro da cidade
havia durado horas. Um Chefe Nacional da Polícia estava encarregado da força na
312
cidade. Os manifestantes de Sucre haviam deixado sem luz a zona de El Tejar, próxima
ao Liceu, ao qual se aproximavam. Foi solicitada uma reunião com o prefecto, Barrón y
Herrera, para levar os manifestantes de volta à Praça 25 de Mayo mas os líderes não
controlavam os manifestantes. Além disso, os membros do Comitê Interinstitucional
não queriam se reunir devido à presença do prefecto e o haviam ignorado por sua
posição dúbia em relação ao MAS; “alguns do Comitê não querem capitalia, querem a
prefeitura”, havia dito Alfredo Rada245.
No Liceu, Santos Ramírez me cumprimentou e perguntou quem eu era e de onde
vinha. Contou-me que havia percorrido toda Argentina cultivando tabaco e verduras.
Estava indo participar da reunião entre La Paz e Chuquisaca. Em solidariedade aos
companheiros que estavam fazendo vigília nas montanhas, alguém dizia que não se
poderia permitir dormir. A reunião da madrugada La Paz Chuquisaca foi suspensa por
não conseguir um acordo. O ponto-chave seria Macario, escutei. La Paz não aceitava o
terceiro acordo e teria dito a Santos Ramírez que o MAS deveria escolher entre La Paz e
Chuquisaca. Ou entre 10 e 37 constituintes. Diego Pary perguntava a Saúl Ávalos quem
Santa Cruz apoiaria entre as posições de La Paz e Chuquisaca. Se não houvesse acordo,
o tema seria definido pelo voto dos presentes. Para Diego Pary, assessor mas que seria
em breve empossado como vice-ministro, a proposta dava coisas boas a Chuquisaca e
deveria ser aprovada246.
1.1 A aprovação “em grande”
247
.
No dia seguinte, sábado, 24 de novembro, segundo dia, a imprensa não podia
chegar ao Liceu devido aos bloqueios de caminhos. Os constituintes do MAS davam
explicações aos meios de comunicação a partir do Liceu por telefone e repetiam os
245 Madai Sivila, jornalista sucrense, havia escutado que a oposição estava discutindo se entrava ou
não. Ela dizia que o pessoal de Sucre queria que o MAS fosse para El Alto ou Oruro e que deixassem
Sucre; porque se calculava que as pessoas de El Alto não deixariam que se aprovasse a capitalidad em La
Glorieta. A Assembléia era vista nesse momento como um espaço pacenho. Madaí também dizia que
não queria estar no mesmo país dessa gente. E me contou que assinaria pelo referendo de autonomia e
capitalia para Sucre, nos livros abertos por Barrón. Outros falavam de querer independência. A
repressão não ajudava o MAS na sua busca por conquistar a opinião pública.
246 A posição de Macario e de boa parte da bancada de La Paz era que se constitucionalizassem dois
poderes para Sucre e dois para La Paz. Do contrário, dizia La Paz, Chuquisaca seguiria pedindo o
referendo até obter a total capitalia. A posição de Santos Ramírez também era que se
constitucionalizassem os quatro poderes.
247 “Aprovação em grande” se refere à primeira votação na qual se vota o documento inteiro. Em um
segundo momento haveria a “aprovação em detalhes”, na qual se considera cada artigo.
313
argumentos de que a legalidade tinha sido respeitada e que a presença das novas forças
políticas davam legitimidade às sessões. Em Santa Cruz, ocupavam ou bloqueavam
instituições como a aduana, YPFB, e a Secretaria de Trabalho em protesto pelo recorte
no IDH e pelas sessões em La Glorieta. Os prefectos da Meia-Lua se dirigiam a Sucre.
Ana María Ruiz chamou a uma assistente técnica chorando, deprimida por tudo acabar
assim, “naquele lugar tão feio”. Ada Jiménez, preocupada afirmava: “necessitamos que
entre uma força da direita”. Romero dizia que estava definido que o PODEMOS não
iria e tinham lançado um manifesto. Na coletiva de imprensa na sede do governo, Evo
Morales fez um chamado à paz e à unidade do país, buscando equilíbrio econômico e
pediu apoio às Forças Armadas
248
.
No início da segunda sessão, o número de presentes havia diminuído a 132, mas
logo depois subiu a 139. Uma constituinte teve que ser levada ao hospital e chegou uma
a mais de Pando, outros estavam no Liceu mas não entraram na sessão. Isto causou
aborrecimento em Roberto Aguilar, que abriu a sessão criticando a indisciplina que era
notória naquele ambiente, dizia. Aqueles que conversam no fundo, atrapalham os da
frente, explicava. A partir de então, as sessões seriam mais pontuais e os que não
estivessem presentes seriam registrados como atrasados ou ausentes. A única forma de
modificar a nossa imagem é mostrar que somo responsáveis. Eles querem mostrar que
indisciplina e um jornalista disse que isto parece uma reunião sindical e que tem até
teto de zinco. Não tem nada a ver com infra-estrutura e sim com a institucionalidade e
disciplina. Silvia Lazarte complementou que quem não estivesse presente, não teria
direito ao uso da palavra. E deu permissão apenas às bancadas de Chuquisaca e de La
Paz para que se reunissem e chegassem a um acordo. A Assembléia estava paralisada
novamente, dentro do Liceu, por conta da capitalidad249.
248 Denunciou também que teve acesso a um documento no qual a Meia-Lua planejava bloqueios nas
principais estradas do país para evitar o abastecimento de recursos ao ocidente; e também fechar as
válvulas dos principais oleodutos energéticos que alimentam as principais cidades do país. E dizia ter
medo de que o povo realmente reaja. Canal ATB, ATB NOTICIAS 3ra EDICIÓN (Apresentado por Casimira
Lema) 24 de novembro 2007.
249 Aguilar informou que divulgaria na imprensa a lista de presença para que a população pudesse
acompanhar. Pedia para que se preservasse o quórum e que, para isto, saíssem o menos possível e que
estivessem próximos para serem convocados. Sugeriu organizar o ambiente, separando por bancada e
por departamento, para facilitar a contagem de votos. As votações constitucionais têm que ser rigorosas
e como não há sistema eletrônico não poderia haver problemas com nenhum voto, porque fariam
recursos constitucionais. O major Vargas disse que não permitiriam que o vice-presidente impusesse um
sistema de controle e Roberto corrigiu que seu pedido era apenas para o MAS e que os outros partidos
poderiam sentar aonde quisessem. Disse que não era controle e sim assumir com responsabilidade este
processo que é tão importante e o último.
314
Na reunião entre os dois departamentos confrontados pelo conflito, Santos
Ramírez havia dito aos pacenhos: “eles não poderão voltar às suas casas”. “Como se nós
pudéssemos”, se queixava Marcela Revollo. Chuquisaca não estava de acordo em
constitucionalizar dois poderes para La Paz mas Marcela dizia que eles voltariam tendo
dado tudo a Sucre e sem nada. Evo tinha lhe dito que o assunto não se trataria na
Assembléia. Marcela pensava que Sucre queria deixar isto em aberto para seguir
pedindo uma próxima constituinte. Sucre não aceitaria que nada fosse
constitucionalizado para La Paz e exigiria que seu caráter de capital ficasse
constitucionalizado. Deveria aparecer “Sucre, capital constitucional da Bolívia”. Com
isso, La Paz ameaçava retirar-se250.
Pela manhã, na sessão, houve alguns problemas na definição de procedimentos.
Não se poderia votar “em grande” pois isso não estava na Pauta do Dia. Estava previsto
ler os relatórios das Comissões mas queriam evitar que entrasse o tema da capitalia,
presente em seis relatórios. Alguns constituintes pediam para que não violassem o
regulamento. E havia alguns que estavam preocupados pois seus relatórios não seriam
lidos. Uns diziam que primeiro se deveria ler os relatórios e outros defendiam que antes
deveria ser formada a comissão. Criou-se informalmente uma Comissão de
sistematização de relatórios, para ser ratificada no dia seguinte, quando estivesse
incluída na Pauta, e teve início a leitura dos relatórios. Magda estava mobilizada porque
não estavam presentes o presidente, nem o vice, nem o secretário da Comissão de
Hidrocarbonetos e esta comissão é importante para Tarija, dizia. Enrique Jurado, do
MAS, era o presidente e não havia chegado porque estava doente. Magda estava indo
falar com Santos sobre esse assunto.
Somente o relatório da Comissão Visão de País foi apresentado de maneira mais
extensa por Félix Cárdenas, que explicou que o relatório da minoria que tanto conflito
havia gerado tinha sido incluído, mas que não seria lido. O relatório é ratificado na
plenária com três abstenções: Ramiro Ucharico, dissidente do PODEMOS; Torres, do
MOP e Magda Calvimontes, do MAS. O restante dos relatórios foram votados sem
250 Na hora do almoço, Rosalía del Villar buscava um quarto privado para ela e Ada, pois na noite
anterior chegaram às duas da manhã acordando as cholitas pacenhas e estas, em vingança, as
acordaram cedo. Isso vinha depois das discussões políticas na brigada de La Paz pelo acordo da
capitalidad, onde também haviam confrontado. Rosalía dizia que as cholitas eram muito intolerantes e
que além de brigar na bancada, agora faziam confusão para dormir. Segundo Rosalía, pela manhã havia
acordo mas Macario e outros foram com “fofocas” às organizações e estas mudaram de opinião. E disse
que apenas Nazario não aceitou a proposta. Os assessores técnicos buscavam oferecer alternativas mas
também possuíam suas preferências.
315
comprovação nominal de voto por departamento, porque o vice-presidente da
Assembléia afirmou que lhe lembraram que para relatórios era necessário apenas
comprovar que havia maioria absoluta. Outros pediam compreensão para concluir a
leitura dos relatórios das suas Comissões, o que foi seguido por intervenções como a de
César Cocarico, que falava em dar resposta ao povo boliviano. Walter Gutiérrez dizia
que a UTAC havia distribuído os relatórios e por isto os relatórios eram conhecidos.
Afirmou também que se demorassem cinco minutos por cada um, não avançariam. O
povo está esperando a aprovação “em grande” , dizia Armando. Depois de tantas
discussões sobre a definição de Povo Boliviano, era necessário que se aprovasse o texto
para consolidar a sua inclusão constitucionalizada251.
Depois de ler os primeiros relatórios, onde não entrava o tema da capitalia,
Macario Tola pede a palavra “em caráter prévio” e informa que Chuquisaca e La Paz
estavam reunidos para buscar uma solução ao conflito que era de conhecimento de
todos. Pediu para que se deixasse pendente o assunto nas Comissões em que estava
incluído e que se continue com as seguintes para esperar o acordo, que era iminente.
Outros defenderam a proposta. Saúl Avalos propunha dar tempo para o acordo até
que se terminasse a leitura dos relatórios porque o assunto não poderia seguir
interrompendo a Assembléia. Aguilar sugeriu pular as Comissões onde entrou o tema da
capitalidad e desta maneira seu tratamento foi evitado. Para o relatório de Segurança e
Defesa, Roberto pediu que seja votada a proposta do vice-presidente da Comissão, que é
a de manutenção do tema igual que na Constituição vigente. Apesar de estarem na
sessão praticamente sozinhos, o MAS havia decidido respeitar acordos e conseguir a
aprovação de uma Constituição não radical. Roberto Aguilar fazia um apelo à
legalidade de modo a evitar futuras impugnações legais.
No jardim ao lado da porta do recinto, alguns constituintes tomavam ar enquanto
continuava a leitura dos relatórios. Havia dificuldade para conseguir sinal de celular e
muito mais para que os jornalistas transmitissem pela internet. Havia apenas algumas
poucas tomadas que não eram suficientes para carregar as baterias de todos os celulares.
251 A plenária corria contra o tempo e os constituintes sugeriam maneiras para a cada vez avançar mais
rápido. Propuseram resumir apenas o mais relevante e inovador de cada relatório. Não se terminava
com a leitura pois o tempo de exposição acabava rapidamente. Aguilar fazia malabarismos para salvar
os procedimentos formais. Informou que na Comissão de Integração os artigos seriam lidos em detalhe.
Carlos Romero e Roberto Aguilar discutiam durante o almoço se deveriam ou não ler todos os relatórios.
Chegavam à conclusão que deveriam ser lidos de qualquer jeito. Alguém sugeriu que fosse um relatório
executivo e outro constituinte respondeu “você é quem vai ao poder executivo”. Romero anunciou que
se retirava para trabalhar com seu computador no projeto de Constituição. Sugeriam que quando
aparecesse o tema da capitalia, se diga que não se trataria pela resolução de 15 de agosto.
316
Era advertido que os policiais queriam tocar novamente no assunto Segurança e Defesa.
“Isso não!”, disse Armando alarmado. Chegava também informação de que em Sucre
haviam atirado gás no mercado camponês porque estavam retirando as pessoas de La
Paz que vendem coca. René disse preocupado que iriam matar Román e que os
camponeses não entram mais em Sucre. Entrei na sessão para ver o que estava
acontecendo, apesar dos arredores se mostrarem politicamente mais relevantes, e escutei
o vice-presidente Aguilar dizer: “companheiros ou colegas assembleístas, não
microfone”252.
Esteban Urquizo explicava que os dez constituintes de Chuquisaca tinham uma
posição clara. Dois pontos não se negociavam: que Sucre fosse declarada a capital
constitucional e que a sede do poder não seja constitucionalizado a favor de La Paz. E
dizia que não aceitariam a radicalidade de El Alto. La Paz dizia que a única maneira de
terminar o conflito era constitucionalizar dois poderes para La Paz e dois para Sucre. Se
dizia que era preciso reconhecer à Federação de Chuquisaca que permitiu desbloquear.
Diego Pary e um jornalista do La Razón diziam que se fosse aprovado o terceiro acordo
sem constitucionalizar as sedes, o conflito seria desinflado. Chuquisaca também ameaça
se retirar (e poderiam ir mais que os dez). E também havia risco iminente de que La Paz
se retirasse. Esteban diz que se não aceitam isso, não acordo e irão à votação dos
constituintes presentes. Na tarde, Raúl Prada dizia que não haveria acordo. Ele tinha se
encontrado com Esteban Urquizu no caminho, que pediu que acordassem a terceira
proposta. El Chato dizia que estava de acordo mas que era preciso convencer os
companheiros. Perguntou a Esteban se havia conversado com as organizações e ele
respondeu que também não estavam de acordo.
María Oporto conversava com Macario, ao lado do local onde a sessão se
realizava. Macario teria dito que La Paz agora não queria acordo. Em resposta à posição
de La Paz, María dizia aos seus companheiros “vamos nos reunir para ir embora”. Não
querem nem colocar Sucre Capital, dizia María indignada. La Paz tinha endurecido.
Vargas dizia a Macario que fizessem uma resolução e uma coletiva de imprensa para
252 Na tarde do segundo dia de sessões, o prefecto de Chuquisaca chegou ao Liceu para pedir que
paralisassem a Assembleia que, em Sucre, não havia garantias e existia risco de mortes. Encontrou-se
com a presidenta Lazarte em uma ponte, na entrada de La Glorieta (ver foto em anexo). Deu
declarações à imprensa: que não sentido que dois povos se enfrentem; que ele gostaria de renunciar
mil vezes, mas estamos aqui”. Pedia que demitissem o comandante da policia porque houve excesso
no uso do gás. Dizia que o reitor estava paralisado sem poder avançar nem retroceder com seu carro.
Também que os camponeses haviam ido recrutar pessoas no mercado camponês para se enfrentar com
os estudantes e civis.
317
que as pessoas se acalmassem. Eu percorria o Liceu e escutava a uns e outros. Algum
constituinte de La Paz me explicava depois que havia três posições na brigada daquele
departamento. Macario, Vladimiro, Yoni Bautista e as organizações de El Alto estavam
contra o acordo. Um segundo grupo queria se abstiver e deixar que o resto aprovasse.
Neste estavam os do partido Sin Miedo e Raúl Prada. E o terceiro grupo era Ada e
Rosalía que pensavam que para resolver o conflito se devia aprovar o acordo que
Chuquisaca solicitava. Humberto Tapia chamava a todos de traidores. Outros não
tinham posição e não sabiam se iriam se colocar como negociadores ou como radicais.
Os constituintes seguiam votando e o prefecto Sánchez, que depois de se reunir
com Lazarte permaneceu próximo ao Liceu, entrou na sessão com uma bandeira branca,
acompanhado da APDH e outras pessoas exigindo a suspensão da sessão com o
argumento de que havia um morto pelos confrontos253. Raúl Prada pedia que se
aprovasse a Constituição naquela noite. Não se agüenta até a noite, dizia Ramiro
Guerrero. A polícia poderia se exceder e havia risco de invasão. Alguns concordavam
que se encerre e que o Congresso a transfira a Oruro. Não é viável continuar, se
escutava: “vão entrar”. Os estudantes começavam a ingressar pelo rio e tinham
superaram a polícia. Jogavam pneus pegando fogo dentro do Liceu. Outros constituintes
observavam que não poderiam entrar pois ainda se mantinha o cordão do exército.
Em determinado momento, começou a circular a informação de que os militares
tinham ordem de atirar caso os manifestantes entrassem no quartel. É a sua “lógica”, os
militares não poderiam permitir uma invasão deste tipo. O plano dos constituintes era
então terminar a primeira sessão e automaticamente iniciar outra para aprovar “em
grande”. Roberto dizia que, se não houvesse minorias seria possível, mas exigem
modificações que podem levar a noite toda. Esteban dizia que a polícia havia
retrocedido 300 metros. Félix Vázquez disse que às 17hs tinha pedido que se votasse
“em grande” mas que agora era tarde, deveriam fechar e reabrir em outro lugar. O
Major Vargas foi ver o terreno e descobriu que havia um gasoduto. Lembrava que em
outubro em El Alto haviam voado um posto de gasolina e uma ponte. Aguilar dizia que
se os estudantes tomassem o quartel, destituiriam o comandante. Este tinha que impedi-
los até com bala, explicava. Outro risco eram os gases mal lançados. Ele alguma vez
mandou comprar dinamite, recordava. E dizia que poucos reitores sabiam de combate
como ele.
253 Anunciam uma morte http://www.bolpress.com/art.php?Cod=2007112501
318
Alguém dizia que havia acordo mas Macario e outros não votariam.
Calculava-se que os manifestantes entrariam em algum momento e a Constituição
deveria ser aprovada “em grande” urgentemente. O índice foi lido, ou os títulos das suas
partes, e se aprovou de forma rápida. A resolução com o acordo com Chuquisaca se
aprovou com 118 votos a favor e 18 abstenções de La Paz. Estabelecia que se incluísse
nos artigos da Constituição que Sucre seria capital e sede dos poderes Eleitoral e
Judicial, de acordo com a última proposta do conselho, além de sediar novas instituições
que fossem criadas e a Comissão do Congresso estariam em Sucre. Também se
recomendava ao Poder Executivo a realização de algumas obras. o abrangia a
demanda de La Paz de que seus poderes fossem também constitucionalizados, como
aparecia na primeira proposta do conselho. Também se aprovou a formação da
Comissão de Sistematização, sem especificar seus membros, estabelecendo que cada
bancada disporia. Votaram também que o projeto de Constituição contemplaria as
Comissões não lidas254.
Enquanto se aprovavam as últimas resoluções com emoção, María Oporto, da
bancada de Chuquisaca saía do recinto e pedia que eu a acompanhasse. Queria buscar o
texto da resolução que se havia votado na sala na qual haviam trabalhado os técnicos e
que possuía impressora. Ela precisava apresentar a resolução à Diretoria para que
assinassem, garantindo sua validade. No caminho, atravessando uma quadra de
basquete, cruzamos com o Doutor Sardán, que felicitou María pela coragem
demonstrada255. Depois de terminar com a aprovação em sua primeira instância “em
grande”, alguns constituintes tiravam fotos do cenário para imortalizar de outra forma o
momento imortalizado com a aprovação do texto. Muitos pensavam que terminava
a Assembléia Constituinte.
254 Macario me disse que tinham entrado em votação sem acordo, assustados pelo que acontecia do
lado de fora. E que não houve acordo pois “a menina” não queria, dizia em referência a María Oporto,
com quem negociou. Os outros estavam calados, dizia. Chuquisaca tinha ameaçado em se retirar se não
aprovassem a terceira proposta e se neste dia não saísse nada, se mostraria a ruptura e seria grave, dizia
Macario. La Paz ameaçou em se retirar mas terminou cedendo e priorizando a aprovação “em grande”,
caso contrário seria o fim da Assembléia.
255 Cecilia, Gonzalo e Rubén estavam na sala e ajudaram María a imprimir a resolução. Havia várias
versões. Uma que havia sido elaborada pela Diretiva às 13h30, e que me foi passada por um assessor da
Diretiva, introduzia a primeira proposta que incluía La Paz. Havia outra proposta que fundamentava a
necessidade de constitucionalizar os quatro poderes, mas nos artigos da resolução
constitucionalizava dois. Depois de imprimir a resolução, María queria buscar seu bebê, que estava com
a cholita responsável por cuidar dele. E pediu que eu entregasse a Miguel Peña para que assinasse.
Voltei ao Paraninfo no momento em que começavam a cantar o hino. Entreguei a resolução a Ramiro
Guerrero, de Chuquisaca, que entregaria para a Diretiva assinar.
319
1.2 A evacuação.
Com a Constituição aprovada “em grande”, faltava apenas sair do quartel antes
que os manifestantes entrassem. Esteban Urquizu partiu caminhando pelas montanhas,
com outro companheiro. O Major Vargas saiu caminhando pelo rio e Ramiro Guerrero
foi buscado por seus irmãos, de caminhonete. Dizia-se que o PODEMOS tinha se
arrependido por ter ficado de fora e teriam pedido a Evo que parasse a Assembléia para
poder assistir. Entretanto, também se dizia que UN e MNR renunciariam coletivamente
à Constituinte no dia seguinte. Carlos Romero disse “não somos mais amigos de
Álvaro”, bravo pela decisão de realizar a sessão no Liceu. Contava que havia avisado a
Linera que em La Glorieta haveria um morto em dois dias.
Rebeca dizia que esperava que ao menos a Constituição permanecesse, que se
salvasse. E Rosario analisava que o problema é que isto debilitava o presidente.
Conseguiram a aprovação “em grande” mas ninguém sabia como poderiam continuar
com a aprovação em detalhe”, era apenas uma primeira aprovação parcial. O
Congresso não autorizaria o traslado a Oruro e em Sucre estava demonstrado que não se
poderia trabalhar. Chegava informação aos assembleístas que em pouco tempo a polícia
ficaria sem munição. Na cidade, estavam cercando as delegacias. O constituinte Vargas,
líder da revolta policial de 2003, dizia que iriam tomá-las e que voltariam com armas.
Uns duzentos policiais controlavam a porta do Liceu. À noite, os enfrentamentos tinham
cessado. Porém no Liceu era possível ver tochas de fogo nas montanhas ora reunidas,
ora descendo.
Serviram a janta e alguns pareciam comer normalmente. Outros eram tomados
pela incerteza, o medo ou a solenidade. No refeitório, Silvia Lazarte chorava cercada
por oito cholitas de pollera e chápeu. Sabino, Pablo Zubieta e outros estavam com cara
de muita preocupação. Diziam que Romero havia chorado quando se anunciou que
havia um morto. Os militares haviam juntado todos no local para dar instruções. Antes
tentaram retirar os 23 jornalistas presentes, com um cerco militar, mas ficaram presos
entre as pessoas e o Liceu, sem poder avançar nem voltar. Walter perguntava se
pensávamos que haveria outra plenária. E todos diziam que não. Dizia que no seu
distrito, um senhor havia dito: “pensava que seria fácil, sopa de leche
256
? Estão
mexendo no formigueiro”.
256 Expressão que significa algo muito fácil, equivalente a “mamão com açúcar”.
320
O comandante em serviço tomou a palavra e disse uma frase que todos os
presentes recordariam para sempre: “fizemos três planos de evacuação, mas todos
falharam”. Imediatamente foi cortado pelo ministro Alfredo Rada e não houve mais
mensagens. Falava-se que seríamos retirados por helicóptero às cinco da manhã, ou que
se iria caminhando até o bloqueio policial na estrada ou em ir de comboio de carros até
Potosí. Disseram que iriam avaliar a situação e nos mandaram dormir. A maioria
obedeceu e foi aos pavilhões. Saúl Ávalos dizia que a noite favorecia aos rivais. Weimar
Becerra, que era piloto, dizia que os helicópteros venezuelanos emprestados ao governo
poderiam pousar na quadra de basquete, transportando de 30 por viagem.
Acompanhávamos a movimentação das tochas dos estudantes. De vez em quando se
escutava “lhama”e outros insultos quando os de Sucre se encontravam com os altenhos
ou camponeses que também estavam nas montanhas. Macario Tola não estava no
Liceu, havia subido às montanhas com seus companheiros. Eu permanecia com os
ministros, Romero, Aguilar e outros vendo como se resolveria a situação, estávamos
próximos ao posto de saúde257.
Logo todos foram reunidos numa quadra esportiva de cimento. Dora Arteaga
pediu que eu sentasse do seu lado na beira onde todos esperávamos instruções para sair
em fila pela trilha. Saímos andando por um caminho entre as montanhas. Passamos um
rio, subimos uma pedra e nos fizeram esperar sentados até que chegassem os veículos.
A maioria dos constituintes levavam bolsas e malas grandes, que haviam preparado
pensando que estariam duas ou três semanas aprovando a Constituição. Alguns
deixaram coisas no quartel. Havia uma quase lua cheia e faltava o lobo, diria mais
adiante Sabino Mendoza. Caminhonetes 4x4 da polícia e bombeiros nos tiraram da rua
onde havíamos chegado por meio da trilha. Pelo caminho, cruzamos com um bloqueio
de manifestantes em Yotala. O ministro Rada coordenava o operativo e ia em frente.
Escutávamos pelo rádio que os constituintes seguiam no Liceu. Rada ia a diante dos
257 Em determinado momento, as tochas começaram a apagar. Roberto contava que quando havia
conflito no teatro, aprendeu que as três ou 3h30 era à hora em que baixava, porque são mantidos à
álcool. Não entendi se fazia referência às tochas ou aos manifestantes. Nessa hora, nos tempos do
teatro, o vice-presidente da Assembléia armava seu próprio operativo, com seu pessoal, com um carro
não muito conhecido. Carlos falou com Linera, que pediu que contássemos as pessoas e contamos 76
em um pavilhão. Depois Arce e Rada falavam com Evo (Roberto reconheceu sua voz no celular, com alto
falante). Eu fiquei acordado perto dos constituintes que dirigiam a situação, mais por necessidade de ver
como se resolveria do que por preocupação de metodologia etnográfica. O comandante perguntou se
eu era jornalista, pois nesse caso não poderia permanecer ali. Também outro militar me perguntou
quem eu era, estava desconfiado até que outros constituintes disseram que eu poderia permanecer.
Quando o plano estava pronto, integrei uma comissão para acordar os assembleístas que dormiam nos
pavilhões. Roberto me disse para não acender a luz, para que não se assustassem.
321
veículos e negociou ou disse alguma coisa para que levantassem o bloqueio e deixassem
passar258.
O comboio de caminhonetes com constituintes parou em determinado local do
caminho onde havia ônibus esperando para nos levar a Potosí. houve dispersão para
os distintos pontos cardeais. Com um grupo grande fui até Oruro e com um grupo
pequeno, segui até La Paz. Ao chegar em Potosí, Carlos Romero dava entrevistas à rede
de rádios Patria Nueva. Dizia que havia duas possibilidades: mudanças e processo
constituinte ou que os grupos de poder fechem a Assembléia. Humberto Tapia viajava
camuflado com um gorro potosino e sem o poncho que sempre usava na Assembléia.
Félix Cárdenas havia saído também pelas montanhas junto a Félix Vásquez, Mario
Machucado e Nelly Toro, logo se separaram e Cárdenas foi interceptado por grupos pró-
capitalia, pego como refém e torturado por universitários. Dizia que fizeram um
simulacro de enforcá-lo e queimá-lo vivo, jogando gasolina. E que lembrando que ele
descendia de Zárate Willka, poderia ser visto como vingança histórica dos jovens de
Sucre pelo que tinha acontecido em Ayo Ayo, ainda que o enfrentamento não precisava
se remeter a tanto tempo atrás. Cárdenas teria sido salvo por Tommy Durán
denunciado por Romero como quem mobilizava os grupos de choque no Comitê que o
levou ao hospital, da onde Félix escapou259.
Diego Pary dizia que agora recuperaria sua vida. Um assessor técnico da
comissão do Poder Legislativo me perguntava se na Argentina havia trabalho de técnico
de informática. Uma constituinte de Chuquisaca me dizia também que emigraria à
Argentina. Richter declarava que na aprovação “em detalhe” vão frear a Constituição do
258 Saúl fazia o monitoramento com seu rádio. Quando passamos por Yotala, ouvimos uma senhora
que ligou para a dio e dizia que mais cedo tinham detido um casal e que neste momento estavam
passando veículos. Enquanto passavam os veículos, os constituintes foram reconhecidos e alguém gritou
algo sobre a consciência. Também passariam por os ônibus com 400 pessoas de El Alto. Macario Tola
ia com ele e contaria depois que para burlar o bloqueio passaram cantando capitaliae com mulheres
de Potosí na borda falando em quéchua, para confundir.
259 A situação trágica se misturava com o humor. Não havia ficado claro em qual acordo sobre capitalia
se tinha votado. Rául Prada conversava com Yoni Bautista e não entravam em acordo sobre se haviam
constitucionalizado os dois poderes para La Paz. Yoni dizia que o terceiro acordo do Conselho não foi
lido. Alguém pensava que tinha sido por engano. Em tom de brincadeira, Pablo Zubieta pedia que não
fossem paranoicos e que prestassem atenção pois no lugar de “Comissão do Legislativo” poderia ter
posto comissões e legislativo”, dissimuladamente incluindo o translado do legislativo. Carlos Romero
contava um tenso diálogo que ocorreu mais cedo. Álvaro Linera tinha a informação de que os
constituintes já haviam deixado o Liceu e que restavam poucos estudantes. Perguntou se estavam
preparados para resistir desde dentro. Sem estar em posição de negociar, dizia Carlos, falava ao vice-
presidente que se não começassem a retirá-los, suas mortes seriam culpa deles. Outra pessoa
perguntava se García Linera queria fazer deles vítima, e dizia: “depois de ter aprovado 'em grande',
não servimos para eles”.
322
MAS. Era isso: “a Constituição do MAS aprovada em um quartel e com mortos”.
Havia morrido um advogado de 21 anos. Desfilavam com o caixão pela cidade. Porém
seriam três mortes ao todo, em episódios não totalmente explicados, um alegadamente
por tentar entrar no quartel pelo rio. Rada declarava que não usaram balas, apenas
agentes químicos. Pela noite, haviam tomado e incendiado o departamento de polícia.
Também haviam escapado os presos da cadeia. A polícia abandonou a cidade de Sucre
afirmando que “não tinham garantias” para voltar. “Perdemos” dizia um constituinte
enquanto nos afastávamos de Sucre. “A direita freou a Assembléia e ganhou espaço nas
regiões”, analisava outro. O MAS publicaria o texto e buscaria formas de retomar as
sessões. Necessitavam de pelo menos um dia para aprovar o texto “em detalhe”. No
ônibus que saiu de Potosí, a maioria dormia ou olhava pensativamente a paisagem.
Parecia impossível convocar outra sessão.
2 O Hotel Torino.
Exilados de Sucre, no dia 25 de novembro, o clima de derrota apenas não era
maior porque a Assembléia ainda tinha prazo legal para funcionar até o 14 de dezembro.
Cocarico pedia a organização de uma reunião para analisar os acontecimentos mas
ninguém se entusiasmou com a proposta. Ele avaliava que haviam perdido tempo com
o regulamento, e que era possível ter aprovado “em detalhe” se tivessem pulado esta
discussão no primeiro dia. Saúl Ávalos dizia que foram prejudicados com a
informação. Em um momento as rádios diziam que havia cinco mortos. Alguns que no
dia anterior estavam esgotados ou “não queriam saber de mais nada”, começavam a
recuperar o semblante. Também se escutava recriminações internas na bancada de La
Paz. Marcela Revollo insistia que alguns haviam ficado sem posição na discussão da
capitalia. Tínhamos a cidade contra nós, dizia Chato Prada, que pensava que em La Paz
tivessem sido mais fortes, como em 2003.
A principal notícia era a repressão e os mortos, e não a da aprovação da
Constituição “em grande”. No rádio, um homem dizia que haveria uma guerra. Roberto
Aguilar comentava que quando pensou em se candidatar à Constituinte, afirmou que ou
a Assembléia transformava o Estado ou desatava a guerra civil. Chegou informação de
que dois policiais foram mortos. Pablo Ortiz dizia que a polícia roubou seu gravador e
que ameaçaram os cinegrafistas que filmavam a repressão. Ele havia ficado do lado de
fora de La Glorieta e pensava que se tivessem permanecido na sessão, em pouco tempo
323
o quartel teria sido invadido. Desde o meio dia haviam ultrapassado a polícia e somente
não entraram porque voltaram à cidade para velar o morto. Evo Morales disse que havia
que investigar sobre as mortes e apenas brevemente falou que apoiava a nova
Constituição. Dizia que em junho havia advertido as autoridades do Comitê Cívico
que reconsiderassem tratar o tema que podia dividir o país.
A oposição buscava ignorar a aprovação do texto no Liceu. Sua posição era falar
em Constituição ilegal, aprovada no quartel, e apenas pelo MAS. A frase “Constituição
massita aprovada com sangue” se escutaria por meses. Para combater esse projeto de
Constituição, os cívicos e prefectos opositores, organizados no Concejo Nacional
Democrático (CONALDE) convocaram uma paralisação cívica-empresarial nas seis
regiões opositoras (Santa Cruz, Beni, Pando, Tarija, Cochabamba e Chuquisaca) e
greves de fome a serem iniciadas na semana seguinte. Emilio Gutiérrez foi o único
constituinte do partido UN que assistiu às sessões no Liceu. Dizia que o fez por
consciência e por El Alto. O restante havia ficado do lado de fora, pedindo legalidade e
agora não podiam opinar, diziam no MAS. Afirmavam também que poderiam ter
participado mantendo seu perfil de centro esquerda mas não o fizeram. Dizia-se que UN
tinha pensado em entrar e provavelmente o fariam se o MAS ficasse mais tempo em La
Glorieta. E ainda se pensava que MNR e UN poderiam optar pelo acordo, para não
ficarem associados a PODEMOS. Tinham visto Doria Medina com vontade de
conversar.
Depois da sessão no Liceu, Heinz Dieterich (2007, trad. nossa) intelectual
alemão que esteve vinculado ao chavismo e teria sido o autor da expressão “Socialismo
do Século XXI”– escreveu uma crítica ao governo do MAS, anunciando seu fracasso
iminente. Segundo Dieterich, “nas condições concretas da Bolívia, uma Assembléia
Constituinte significava iniciar uma guerra por um pedaço de papel (a Constituição), no
lugar de conduzir uma guerra real pelo poder real. Este erro permitiu à direita se
reagrupar e recuperar a iniciativa estratégica”. Comparava a situação boliviana com
agosto e setembro de 1973 no Chile de Allende, e via uma situação de coexistência de
“dois governos e dois Estados”, um popular e outro latifundiário ou feudal, a partir da
formação do CONALDE e o chamado à autonomia de fato. Avaliava que o poder duplo
historicamente havia sido resultado da neutralização física do inimigo com força militar
ou civil, mas não encontravam condições favoráveis para isso na Bolívia, na qual via
a opção de “negociar as demandas da oposição nas condições desfavoráveis ou deixar a
324
ilusão da Carta Magna e da Assembléia Constituinte no esquecimento e convocar novas
eleições gerais260.
Na televisão, se falava da “pior crise do governo”, ainda que o porta-voz Alex
Contreras negasse que houvesse crise. Marco Carrillo tentou entregar a Constituição ao
prefecto Manfred Reyes Villa, opositor, porém foi expulso e golpeado devendo correr
até metade da praça principal, em frente à prefectura. A ministra Celinda Sosa iniciava
em Santa Cruz a campanha pelo “sim” em um ato com comerciantes agremiados.
Macario Tola declarou que a resolução votada ao final da sessão não era válida pois foi
aprovada sob ameaça dos chuquisaquenhos. Poderia ser revisada na eventual sessão
seguinte. Outros diziam que depois do que aconteceu, não se poderia premiar
Chuquisaca. Evo Morales pediu publicamente a Silvia Lazarte convocar outra sessão. E
comentavam no MAS que a presidenta tinha sido hospitalizada. Ela queria que a sessões
tivessem continuidade em Cochabamba, próximo às bases de Evo. Porém o problema
era o prefecto Reyes Villas, que era opositor e poderia complicar os planos. Também se
lembravam dos enfrentamentos entre camponeses e vizinhos nessa cidade, em janeiro de
2007.
Alguns diziam que poderia ser em La Paz ou em El Alto, talvez no recinto do
Congresso, ainda com o problema de que se “regionalizaria”. Diziam que em Oruro
poderia haver problemas com os cooperativistas mineiros e que aquela cidade não era
adequada pois não possuía aeroporto, o que complicaria a viagem da oposição. Também
transpareceu que houve uma disputa entre Silvia e Roberto. O vice-presidente da
Assembléia disse que chamaria Evo ou Álvaro pois a presidenta queria “tomar as
decisões sozinha”. Esperariam que terminasse a paralisação cívica-empresarial
anunciada no Oriente e decidiriam. No dia 6 de agosto não tínhamos Constituição e hoje
sim, valorizavam no MAS. Marcela Revollo ria de uma pesquisa que apresentavam na
rádio a favor da Constituição do MAS, porém feita com apenas 18 telefonemas. Em 26
de novembro, Evo Morales participou de um importante ato na praça Murillo. Nesta
260 Dieterich (2007) pedia para salvar a Bolívia, que via como o elo mais débil no grupo dos países
bolivarianos, pois “as conseqüências de sua derrota para os governos de Venezuela, Equador e
Nicarágua, seriam terríveis”. Entre as causas subjetivas da derrota popular na Bolívia” mencionava a
falta de experiência da equipe governamental de Evo, sem pensamento estratégico realista, tipo
Cromwell ou Lenin. Criticava que a vice-presidência de Álvaro García Linera tenha convidado “a um dos
principais criadores de confusão do imperialismo, Tony Negri, para que expusesse sobre a 'multitude', as
novas subjetividades e da 'merda que é o Estado Nacional'”, escreve Dieterich, em um discurso
intelectual que o alemão via se encaixando com as propostas de “autonomia” departamental.
Mencionava também como erro a subestimação do inimigo, e como erro estratégico mais grave “a
sacralização suicida do constitucionalismo, com a Carta Magna e a Assembléia Constituinte.
325
ocasião falou extensamente da nova Constituição, além das políticas sociais. Enquanto
falava, Rubén Costas dava declarações ao vivo em Santa Cruz, ocupando todo o tempo
da televisão regional. Não sem motivo em La Paz, durante o ato, os manifestantes
expulsaram da praça os cinegrafistas deste canal crucenho.
Sobre a Assembléia, Evo Morales disse: “espero que nossa companheira Silvia
Lazarte convoque novamente para aprovar 'em detalhe'”, e mencionou que haviam
participado dez forças políticas. A Assembléia era a única forma de garantir a
Revolução Democrática, dizia. Pedia aos professores e estudantes que o perdoassem
porque não podia entender que se ensinasse racismo ou a cuspir e humilhar as mulheres
de pollera. Lembrou que não aceitaram mulheres de pollera em alguns hotéis de Sucre.
E que a universidade é feita com o dinheiro do povo; que hoje era muito dinheiro
devido à luta pelos hidrocarbonetos. Como podem parar as sessões? perguntava. E
adicionava que o tema da capitalidad não é parte da “agenda de outubro”. Sobre as
mortes disse que as Forças Armadas não usavam balas e lembrou de quando Banzer
tinha que viajar para pedir dinheiro aos EUA aparecia no Chapare um soldado morto.
Eu assistia o discurso a metros de Evo, em um cercado onde estavam alguns
constituintes e organizações na esquina da praça Murillo, entre o Congresso e o palácio
de governo. Um manifestante pediu que eu saísse das primeiras filas pois “sairia nas
filmagens e diriam que só tinha estrangeiros” 261.
Um dia após o ato em La Paz, no dia 27 de novembro, as organizações sociais
realizavam um cerco ao Congresso para aprovar a lei que criava a Renta Dignidad,
insistindo no projeto que tirava uma porção do imposto aos hidrocarbonetos das
261 Evo Morales apresentou García Linera como “o pesquisador do governo”, que tinha dito que desde
1940 a Bolívia não tinha superávit comercial como durante seu governo. Em seu discurso, defendeu
algumas mudanças incluídas na Constituição aprovada “em grande”. Os serviços básicos como água e luz
não poderão ser privatizados e são declarados como direitos humanos. E dizia: quando ignoram a
Constituição, estão ignorando esta proposta, e desafiava aos prefectos e ao Comitê Cívico a que
dissessem abertamente que não poderiam ser um direito humano. Evo também informava que os
hidrocarbonetos nacionalizados estavam sendo “blindados”, e que se rechaçassem a Constituição,
estariam rechaçando isso. Explicava também que o Estado Plurinacional não é apenas indígena.
Saudamos os negros de Yungas, dizia, e “ao irmão Juan, meio gringuinho, que não atrasa” em referência
a Juan Del Granado, que o acompanhava. Disseram que não iríamos respeitar a propriedade privada,
dizia, e assegurava que estaria garantida a economia mista plural: estatal, privada e também a comunal.
Todos temos algo de propriedade privada mas também coletiva, afirmava. A Constituição propõe a luta
contra a corrupção mas retroativa, ainda que os Senadores não queiram aprovar a lei de fortunas
suspeitas. E concluía: se cívicos e prefectos da Meia-Lua não querem que se aprove é porque têm medo.
E também defendeu a revogação de mandato. Dizia: em Sica Sica querem fazer bloqueios nas estradas
porque acusam o prefeito. Alguns acusavam, outros dizem que é inocente. muitos problemas como
esse no país. Em vez de bloquear a estrada, prejudicando as pessoas, revogar o mandato. E isso está
incluído na Constituição.
326
prefecturas. Depois de passar pelo Senado, onde se modificou o projeto, García Linera
convocou uma sessão conjunta do Congresso (reunindo câmeras de Senadores e
deputados) onde se evitou a entrada de opositores e Santos Ramírez garantiu a presença
dos suplentes da oposição que apoiavam a iniciativa. Se falava do Renta Genoveva
Pintopara os Senadores, parafraseando ao Juancito Pintoque recebiam as crianças
em idade escolar. Um suplente foi levado de avião desde Cobija. Os manifestantes
rodeavam a porta do Parlamento com fotocópias com o rosto dos Senadores do
PODEMOS, mas não foi necessário barrar-los pois não assistiriam.
Algo importante para a Assembléia Constituinte era que junto ao Renta
Dignidad, o Congresso aprovou um artigo único habilitando a Diretoria da Assembléia
a transladar as sessões da Constituinte262. Era uma medida surpreendente que permitia
por meio de uma manobra irregular no Congresso melhor dizendo, fora do Congresso
dar legalidade ao translado da Assembléia. Ao mesmo tempo, a votação do bônus
universal buscava lhe dar legitimidade social, ainda que a impossibilidade de realizar as
sessões em Sucre apesar de ser a sede estabelecida por lei não era uma dúvida para
ninguém. Com a ação no Congresso se provava que a iniciativa da Renta Dignidad
estava vinculada à estratégia da Assembléia, ainda que o movimento sem dúvida não
estava nos planos iniciais porque se esperava inicialmente que a Constituinte
funcionasse até o 14 de dezembro em La Glorieta. O cerco ao Congresso, por sua vez,
situava de novo o processo político liderado por Evo Morales em um espaço liminar
entre o respeito institucional e o avanço dos movimentos sociais frente à lei de um
Estado considerado colonial263.
Aos poucos dias, a Assembléia retomou seu cotidiano com reuniões de bancada,
de Diretoria e de Comissão Técnica. Macario Tola compartilhava comigo sua análise e
dizia que se estava vendo o suspiro final de PODEMOS. Pensava que, em 14 de
262 Aprovavam “em grande” e “em detalhe” a modificação do Artigo 6 da Lei 3.364 de convocatória da
Assembléia Constituinte. Esta determinava que a Assembléia Constituinte terá sua sede na cidade de
Sucre, Capital da República”. O novo texto estabelecia que “Se concede ao presidente da Assembléia
Constituinte, o direito de convocar a sessões em qualquer lugar do território nacional”.
263 O cerco ao Congresso era o desenlace da marcha a partir de Caracollo das organizações sociais que
tinham se dividido para ao mesmo tempo pressionar o Senado e garantir o funcionamento da
Assembléia. Tinha-se calculado que depois da aprovação em La Paz confluísse à Sucre uma mobilização
massiva para o encerramento da Assembléia. Mas que seria um cerco à Assembléia, se converteu em
um cerco ao Congresso, que inicialmente não esperava se envolver com o processo constituinte tão
rapidamente. Com a medida se abriam as portas para convocar a uma última sessão para aprovar “em
detalhe” a Constituição. Depois da dramática aprovação “em grande”, também se conseguiu o apoio
para o deslocamento de aliados que não tinham comparecido no Liceu: os camponeses e a bancada de
Chuquisaca, que uma semana antes eram um dos motivos para continuar em Sucre.
327
dezembro, essa organização política que colocava obstáculos ao MAS na Assembléia e
no Senado, morreria. Pensava que UN e MNR deveriam ir à última sessão se não
quisessem o mesmo destino. “Ou você se posiciona ou você morre”, me dizia. Sobre o
ainda incerto final que teria o assunto capitalia, Macario me confessava que estava com
receio de ir expor na reunião do Comitê de Emergência de La Paz, que ocorreria mais
tarde naquele dia. Havia descontentamento porque em La Glorieta somente se
constitucionalizaram dois poderes a Sucre. Contava que o Chato foi pedir ao Comitê
que apoiasse o voto à resolução mas não o deixaram falar; não queriam que se desse
nada a Chuquisaca. Macario conversaria com Revilla antes da reunião264.
O ministro da defesa, Walker San Miguel respondia ao canal de TV Bolivisión
no dia 20 de novembro, em uma entrevista realizada por uma apresentadora (Miriam)
indignada com o MAS. O ministro explicava que não era uma Constituição comunista
porque havia Tribunal Constitucional, Congresso, propriedade privada e autonomias
departamentais. No programa de televisão, o ministro criticava que PODEMOS dissera
“nem um alfinete para Sucre” em La Paz mas “capitalia plena”, em Sucre. Falava da
incitação à violência de dirigentes cívicos em seus discursos por “Evofobia”, que se
relacionava com a idéia de “você não pode vir aqui pois está de pollerae quando dizia
que o tema da capitalia se havia convertido no principal tema do debate, a
entrevistadora o interrompe dizendo que “não havia debate”. A apresentadora criticava
que a Constituição havia sido aprovada apenas com a leitura do índice e o ministro
respondia que seria debatida na votação “em detalhe”. Mencionou também as comissões
e o Conselho suprapartidário como instâncias onde houve discussão, ainda que a
oposição tivesse a tática de “debater e alongar para não chegar a nada”. No programa,
também entrou a discussão da Renta Dignidad. Somente 115 mil pessoas recebem
aposentadoria e o governo propunha que fosse uma renda universal e vitalícia para
todos os maiores de 60 anos, dizia o ministro.
Em outro programa de televisão (Final Abierto, Canal 7, 28/11/2007), Guillermo
Richter do MNR dava explicações de porque não tinha participado das sessões em La
Glorieta. O Major Vargas e o Raúl Prada criticavam seus argumentos. Para Richter, ir
ao Liceu implicava introduzir elementos de confrontação, pois não se tinha construído
264 Macario era uma pessoa otimista sobre o futuro do governo, o que era difícil de encontrar nesse
tempo. Pensava que se poderia ganhar Cochabamba e Tarija, dividindo a oposição. Indicava que os
ministérios eram do MAS. E anunciava que se lançaria o Programa Evo Productivo”. não seria para
construir escolinhas ou quadras de basquete como com o Evo cumple”, e com isso o MAS se
reposicionaria.
328
um cenário para a redação do texto. Criticava a falta de acordo entre as duas visões
majoritárias; e também a introdução do tema capitalia para que fracassase a Assembléia
e o MAS. Sentia que em “alguns momentos o pão queimou antes de sair do forno”, e
para eles os culpados disso eram os extremos, se localizando no meio do quadro
político. Richter mencionava o não respeito ao acordo sobre a Pauta do Dia do qual
tinha participado como um dos motivos de descontentamento com o MAS. Vargas e
Prada recordavam que a Diretoria tinha reintroduzido o acordo da subcomissão sobre a
Pauta do Dia, mas que o MNR mesmo assim não havia participado da reunião. Richter
criticava também o que havia ocorrido em La Glorieta. Não ler a Constituição é um
grave desrespeito à história legislativa e ler apenas o índice quebra a tradição
constitucional. Criticava a vocação hegemonista do MAS e afirmava que agora não
podiam tratar “em detalhe” um texto que foi ilegalmente aprovado. Prada criticou o
colonialismo de se amparar nas velhas leis265.
A “Cidade Branca” aproveitou o branco de suas paredes para escrever todo tipo
de mensagens. Encontrei Sucre cheia de grafites como “Viva Bolívia sem lhamas”,
“Evo assassino”, “Evo aborto de lhama”, Linera Prostituta”, “Prefecto corno”, “Viva
Gonzalo Durán, caralho, sua morte será vingada”, “Prefecto traidor”, “Evo, servo de
Chávez”, “Evo narco”, Evo = Goni”, “julgamento a Evo Sánchez de Lozada”, Linera
de terrorista a Prostituta”, “Evo cocainista” y “Linera kewanchu, bolas mana kanchu.
Na sexta-feira 30, voltei para buscar minhas coisas em Sucre e a mesma coisa estava
fazendo a constituinte Benedicta Huanca, constituinte da urbanização Plan 3000, de
Santa Cruz. Macario Tola me havia recomendado cuidado e ofereceu um militar para
me acompanhar. A polícia ainda não tinha voltado à cidade e declarava que não voltaria
se não devolvessem o armamento roubado e ressarcissem pelos veículos e edifícios
destruídos266.
265 Richter desafiava que se o MAS se comprometesse a desconsiderar a aprovação, o MNR poderia
assistir às eventuais próximas sessões. Porém a defesa de Richter à tradição constitucional gerou
imediata reação de Raúl Prada contra o “Estado colonial”. Antes do direito está a legitimidade, dizia. E
também: não podemos ficar presos na teia de aranha do direito colonial, há que fundar novas leis e uma
segunda república. Prada pensava que se não aprovassem “em grande”, viria uma guerra civil e
questionou também aquilo que chamou de “velha prática de Guillermo de alongar sem chegar a nada”.
Prada dizia que era possível modificar o fato de não se ter lido o texto, que já se conhecia com
anterioridade, mas recordava que a Assembléia era o último caminho de diálogo. Richter considerou as
idéias de Raúl Prada uma irracionalidade”. E aproveitava para enfatizar que “não podem dizer que isso
é uma revolução maior que a de 52”.
266 Benedicta dizia que depois de tudo isso, iria se afastar um pouco da política. Entretanto, um ano
depois eu a encontraria eleita como presidenta de um distrito do Plan 3000. Avaliava que tinha se gasto
muito tempo em uma Constituição que não era tão boa. Porém nesse momento havia que permanecer
329
Tinha sido incendiada e saqueada a casa do prefecto Sánchez, que estava na
clandestinidade, em “retiro espiritual”. O prefecto interino era repudiado por ser do
MAS, e alguns diziam que Sánchez não renunciaria e poderia voltar do Peru, onde se
encontrava. O prefecto declarou também que os do Interinstitucional disseram que se
ele dava 50% de pegas (empregos) na prefectura, o deixariam tranqüilo. Havia sido
difícil para ele encontrar uma posição entre o MAS e o Interinstitucional. Por outra
parte, em Sucre estava presente a idéia de que o MAS não se importava com os mortos.
No bar em que não queriam me deixar entrar pois “não queremos massistas”– me
aproximei aos que haviam tentando me barrar, diziam que Evo é ditador por se fechar
no quartel, que estavam de acordo que não se poderia transladar os poderes pois é muito
caro, mas que teriam que ter permitido que se discutisse; que os camponeses se
mobilizavam por obrigação e que todos sabiam que García Linera era terrorista267.
Macario Tola dizia que a posição de La Paz não era mais do que pedir o que
existia, que constitucionalizado. E lembrava que Evo Morales tinha dito aos
constituintes chuquis que aceitassem isso e ele daria um cato
268
de terra no Chapare para
eles. Se não se constitucionalizassem os dois poderes também para La Paz, dizia
Macario, Sucre pediria um referendo popular, por meio da coleta de assinaturas. E não
seria Sucre versus La Paz, como pensa Evo, e sim toda Meia-Lua contra La Paz. María
Oporto disse a Macario que ainda que não realizassem o referendo, não se podia tirar a
esperança das pessoas de alguma vez ter os poderes de volta, constitucionalizando para
La Paz.
María Oporto e Ada diziam que se houvessem votado a resolução às 2hs da
tarde, as mortes teriam sido evitadas. Charo estava mal e dizia ter medo de que tudo se
perdesse. Magda confessava que havia marchado pela capitalidad, ela tinha estudado
em Sucre e conservava carinho pela cidade (nem classismo, nem regionalismo:
carinho). “Você se desalinhou” dizia Marco Carrillo a Magda diante de tal declaração.
Magda dizia que não lhe importava que expulsassem ela do MAS se for por defender os
para ajudar, dizia. No dia seguinte estaria em La Paz para uma reunião de constituintes com Evo
Morales. O presidente é nosso, dos pobres, dizia. E via que a direita ia seguir freando, como na
Venezuela. Pensava que a oposição iria à Oruro “ou em qualquer lugar” para atrapalhar.
267 Na televisão local, se difundia uma propaganda sobre como o prefecto de Chuquisaca contribuiu
para a pacificação. O programa enumerava suas ações nos últimos dias: “falou aos de El Alto, pedindo
que se manifestassem de forma pacífica”; “fez reuniões com todos, o Comitê Interinstitucional não
compareceu porque foi ele que fez a convocatória”, “foi interromper a sessão da Assembléia” e “pediu
que renuncie o chefe da polícia devido à repressão”.
268 Medida agrária que corresponde a uma propriedade de 40m², tamanho limite para produção de
coca.
330
departamentos pequenos, sempre oprimidos. Porém defendia que não tinha se
desalinhado pois não aprovou que se tratasse capitalidad na sua comissão. Isto seria me
desalinhar, dizia. E estava enojada com Juan del Granado, alcalde de La Paz e um dos
organizadores da manifestação “a sede não se move”. Ele era cochala e tinha sido
consejal (vereador) em Sucre. Magda dizia que Sucre havia aberto as portas para ela
também quando esteve ali para o julgamento de García Meza. E ela até foi presa por se
manifestar a favor do julgamento, recordava.
Na segunda-feira, 3 de dezembro, começava a greve de fome na Meia-Lua,
encabeçada pelo prefecto Rubén Costas. Tinha sido convocada pelo CONALDE sob a
consigna negativa de “pelo recorte do IDH e a aprovação da Constituição”. Os prefectos
e os cívicos chamavam à “resistência civil” ao governo para dar continuidade à
paralisação cívica-empresarial da semana anterior (BOLPRESS 27/11/2007). Também
chegava a notícia de que na Venezuela havia ganho o “não”, por um ponto por cento, no
referendo impulsionado por Hugo Chávez para reformar mais de trinta artigos da
Constituição (cf. VICIANO PASTOR y MARTÍNEZ DALMAU, 2008). O MAS devia
decidir nesse momento quais temas submeter a referendo, e assim o resultado negativo
de uma consulta extensa e muito técnica poderia influir no processo boliviano. Freslinda
dizia que poderiam incorporar no projeto de Constituição coisas da reforma venezuelana
como a redução da jornada de trabalho, ao máximo de seis horas. Albert Noguera vinha
do Equador, onde estava participando como assessor. Nos dois processos havia
discussões parecidas e ele comentava que no Equador deixaram que a direita limitasse
os direitos.
2.1 Um novo triângulo de opções.
Em La Paz, não se havia resolvido nada na reunião com Evo, porém os
constituintes foram convocados a se prepararem para quando a Diretoria dissesse o local
das sessões. Era necessário aprovar com rapidez para que não houvesse reação. O
presidente tinha dito que não deviam perder tempo no “detalhe”. Era preciso estar
preparados para subir ao ônibus quando fossem convocados. Enquanto isso, a
continuaria o trabalho de fazer os últimos ajustes no texto da Constituição, incorporando
também as modificações propostas pelas minorias, desde a Comissão de Sistematização
dos relatórios formada na sessão de La Glorieta. E ainda restavam vidas de que
passaria, não apenas com capitalia, mas também outros temas como o modelo de
331
Parlamento e a reeleição. O plano era esperar que o trabalho da comissão estivesse
terminado e então se reunir durante 24h desde a tarde até a noite, aprovando o texto. E
terminar na tarde seguinte, para dar tempo para que a oposição chegasse. As minorias
pediriam ampliação de prazo. Porém Evo e Linera disseram que a Assembléia
terminaria no dia 14 de novembro, da forma que fosse.
Sobre o destino da Assembléia, que seria mantido em segredo até o último
momento, surgia novamente uma série de opções, com um novo triângulo que lembrava
o do Teatro, La Glorieta e Oruro. O debate e uma série de boatos agora transitavam
entre Oruro, La Paz e o Chapare. Era um dos temas de conversação nos ambientes do
Hotel Torino de La Paz, onde muitos constituintes de diversos departamentos
esperavam como em uma concentração de time de futebol; e onde eu também havia me
hospedado. Assim passaram vários dias. Roberto Aguilar contava que Ricardo Cuevas,
do MNR de Tarija, havia comparecido à reunião da Diretoria como espião, para ver
onde seria a última sessão. Disseram que seria no Chapare. Perguntei se ele pensava que
o MNR e UN iriam e colocou cara de dúvida, dando a entender que existia a
possibilidade, mas também disse que do modo como estavam as regiões, não os
deixariam ir. Se vão, queimarão suas casas alguém complementou. A oposição
também fazia seus jogos e algumas vezes diziam que iriam à sessão e outras que não.
Mirtha tentava organizar os constituintes. Avisava que estavam em alerta
máximo. Eram 64 constituintes hospedados no Torino. Mais tarde se realizaria outra
reunião com “o chefe”. Uma mulher, “braço operativo da direção do MAS”, tinha
chegado para ver se todos estavam presentes e preparar a reunião. Seria somente uma
reunião informativa, dizia Armando a Limbert. Mais tarde seria suspensa, quando
Santos chamasse Víctor Hugo para dizer que podiam descansar. Vários jogavam xadrez
ou passeavam pelo pátio. No Liceu haviam roubado a filmadora da Angelica e o laptop
do René. “Estão investigando”, disseram. Weimar Becerra dizia a Carlos Aparicio que
se não o deixassem voltar a Chuquisaca, lhe daria uma propriedade em Pando. Alguém
tocava a guitarra e Román Loayza se aproximava dizendo que tocava o charango
(instrumento andino) e que havia comprado um em Villa Serrano269.
269 Muitos estavam preocupados porque depois de aprovado o texto, ficariam sem salário e sem poder
trabalhar, até a Constituição ser aprovada. Álvaro disse que eles já estavam voltando como heróis, e isso
seria suficiente, não era necessário dar nada. Seis meses depois do referendo dirimidor, deveriam voltar
às sessões para aprovar a versão final do texto e submetê-la ao último referendo ratificador. Até então
teriam o mandato mas sem salário, segundo o estipulado. Evo Morales havia dito que não iria pagar,
mas Silvia disse que se entregassem a Constituição a tempo, poderiam pedir o pagamento. “Porém
temos que fazer campanha pela Constituição”, se escutava a preocupação, “Do que vamos viver e como
332
Desde um mês atrás enquanto o MAS buscava os dois terços, a oposição
buscava alcançar 128 vontades que permitiriam abrir a sessão em Sucre sem o MAS. Ao
mesmo tempo em que o MAS ia à La Glorieta, PODEMOS e aliados tinham conseguido
juntar 80 constituintes. E enquanto o MAS se preparava para a reunião final, a oposição
seguia tentando acumular forças. Porém o conflito da capitalia também havia dividido
PODEMOS (com 60 constituintes) e muitos duvidavam que o partido pudesse mostrar
força agora e sobreviver com unidade após a constituinte. Limbert comentou no Torino
que havia sido chamado para se somar à Assembléia paralela. Em troca, a proposta
recebida oferecia que seu relatório entrasse na Constituição e foi feita por um
constituinte que era ex-policial como ele e que havia votado no mesmo relatório na
Comissão de Segurança e Defesa. Limbert dizia que não compareceu somente pelo
compromisso que tinha com o presidente. Porém pensava que o Major Vargas iria com
os outros. E que tinha dito que faria “tudo o que quisessem” se reincorporavam aos seus
dois companheiros policias expulsos por Goní em 2003. “Deveriam dar”, opinavam
outros constituintes, “até porque foi na luta contra o Goni”.
Víctor Hugo dizia que o plano da Meia-Lua era fazer um golpe de Estado,
nomeando Costas à presidência da república nova e com a Juventud Cruceñista como
exército. quer que haja resolução. Santos tinha dito “estou articulando” e foi ao
encontro de outros dois. Eu pergunto, porque vocês não articularam antes, dizia Víctor
Hugo. Ada refletia que quando chegaram na Assembléia queriam mudar tudo. Via
algumas mudanças mas também frustrações. Da sua Comissão, Outros Órgãos do
Estado, não tinha ficado nada, lamentava. E dizia que queria ser parlamentar no futuro,
pois como constituinte ficou com o gostinho. Marco Carrillo analisava que o maior
problema eram as prefecturas. Manfred em campanha tinha apoiado Evo para ganhar e
agora apoiava o Bônus Dignidad com propagandas sentado ao lado de camponeses, e
também pedindo o IDH270.
vamos manter nosso filhos?”. “Em Beni a campanha é toda feita em jatinho”. Uma constituinte do
Chapare explicava que para os atos, havia que se pagar “banda, chicha, tudo”. Tem que pagar o almoço,
não é fácil, Salvador. E alguém propunha uma solução: dizem que a UTAC não gastou nem metade do
dinheiro, podemos usar isso pedindo em nota, propunham. Minha Federação me ajuda na minha
província mas não nas outras, dizia outro. (ver fotos do Torino, em anexo)
270 Ada também criticava que o governo “não fazia imprensa”, tinham que estar 30 segundos na
televisão todos os dias, dizia. E sobre a Constituinte pensava que teriam que ter ido a Oruro
imediatamente após as agressões em Sucre. Tanto Ada como Marco coincidiam que a debilidade do
MAS está na relação com a classe média. Haviam incorporado setores médios e profissionais na direção
mas faltava nas bases. Marco dizia que era necessário uma aproximação ao Colégio de Advogados e de
outros profissionais. Mirtha tinha falado para Santos sobre uma consejal (vereadora) de UN que “tem
base e seria alcaldesa”.
333
As conversas durante a espera no Torino eram um novo espaço para comprovar
a heterogeneidade do MAS. Peregrina saía para comprar sabão para lavar sua roupa e
contava que sabia fazer uma Co‟a com cocô de burro. Alguns se entusiasmaram
porque “nunca fizemos uma”– e iriam organizar. No mesmo local escutei uma conversa
entre Magda e Limbert sobre a necessidade que tinham de quartos com banheiros. “Eu
sou pequeno-burguesa”, dizia Magda, “e quero que todos os bolivianos tenham o que eu
tive”. Magda criticava que todos pensavam ser donos do partido ou que eram mais
porque tinham marchado com Evo quando ninguém estava com ele. José Lino dizia que
não era do MAS, partido criado pela Falange, e sim do Instrumento como rede de
organizações271.
Da Comissão de Sistematização saía fumaça. Era onde realmente se estava
definindo a redação da Constituição. Silvia Lazarte havia dado o poder a Pablo Zubieta
enquanto que Carlos Romero e outros tinham sido afastados. Pablo não permitia que
vissem o texto. Era discutido quem entrava ou não na Comissão. Faziam-se movimentos
de pressão para modificar as coisas. Marcela não queria a autonomia regional, que para
ela parecia bastante com a provincial. Tinham trocado a parte sobre terra e de outras
comissões. “Grave”, dizia Diego Pary, que participava de algumas reuniões, ao escutar
as queixas. Rubén Dalmau dizia que tiveram que tirar que a Justiça Militar dependia da
Justiça comum. A Justiça Militar seria somente para delitos militares mas Limbert
notava que para o código deles, tudo entra como delito militar, inclusive fraude, e
explicava que condicionaria seu voto na última sessão à que tudo ficasse ao menos igual
e que não se retroceda no tema da segurança.
Magda Calvimontes também condicionava seu voto. Exigia a entrada de regalias
regionais até então estabelecidas por lei. Havia sido eleita para estar na Comissão mas
não a deixavam entrar na reunião. Weimar falava com cada um para convencer que não
poderiam aprovar “as concessões” com as quais empresas do mundo todo estavam
devastando os bosques e florestas de Pando. Rebeca estava também aborrecida com
Pablo, pelas mudanças no Tribunal Constitucional. Reuniam-se na vice-presidência.
Ameaçavam dizer-lo na reunião plenária se não fosse modificado. Pela subordinação,
271 Nora Martínez era diretora da Associação de Profissionais de Cochabamba e tinha sido chamada
pela Federação de Camponeses para ser candidata porque na sua circunscrição da cidade não havia
candidatos do MAS que pudessem seduzir a classe média. Para ela, o Estado Plurinacional parecia um
experimento mas apoiava o projeto pois é o que as organizações querem, dizia. Criticava também aos
que antes usavam sapatos e agora trocaram por abarcas (sandalia camponesa) e não entendia por que a
Constituição seria traduzida a todas as línguas se ninguém as falava.
334
tinham tirado que o Estado era laico, alguém dizia, embora depois fosse reintroduzido.
Outros estavam incomodados com Sardán, que tinha convertido o texto em PDF para
que ninguém fizesse mais modificações. Jimena estava aborrecida com Rebeca e Víctor
Borda, que haviam sido companheiros na Comissão de Justiça. Dizia que eles não
queriam a Justiça Comunitária e que havia sido incluído em um artigo que a ordinária
iria revisar. Depois asseguraram que era um erro e que o tirariam.
Por ordem de Silvia Lazarte, Pablo Zubieta não dava o texto a ninguém. Carlos
entrou na reunião, falou e foi embora. O Chato Prada estaria presente mas Santos não
leu seu nome na reunião. “Melhor”, dizia. E se queixava das muitas mesquinharias.
Alguns se queixavam de outros que puxavam o saco da Silvia para modificar o texto.
Pablo dizia que mais complicado que do que os partidos pequenos, eram os integrantes
do próprio MAS. E se queixava dos teimosos. Depois da reunião, a Marcela também se
queixava de Pablo por alguma coisa das autonomias. Chamou o Chato para que
ajudasse mas este disse que não iria porque não tinha sido nomeado e o queria mais
problemas. Payro dizia que foram chamados por suas organizações e lhes disseram que
era preciso mudar coisas em Autonomia indígena. Isso trava, dizia. Saúl Ávalos também
não concordava pois tinham saído as autonomias provinciais mas a regional apenas
seria aceita por dois terços do Conselho Departamental, o que a subordinava e tornava
difícil de aprovar. Além disso, somente as províncias que “tem características de região”
poderiam se converter em tais272.
Alguém de Oruro recordava que quando Pablo foi reitor houve seis meses de
greve e as coisas foram mal solucionadas, sem um bom acordo. Pablo Zubieta tinha o
computador com o projeto que seria votado “em detalhe” e isso o convertia em alvo de
todas as críticas. Desde a bancada, todos tinham algo para reclamar que havia sido
272 Nos dias de espera, o hotel Torino se transformou em um espaço de redação do texto. Alguns
meninos de uma organização de trabalho infantil pediram para falar com os constituintes. Diziam que
iam organizar apoio à Constituição. Em resposta, Mirtha Jiménez dissera que uma secretária organizaria
um encontro deles com o vicepresidente, mas eles pediram que fosse com o Evo. “Com Evo por meio do
vice” dizia Mirtha. Víctor Hugo dizia aos garotos que o presidente aceitou que se proíba a exploração
infantil, não o trabalho infantil. Pediram para ler como o texto tinha ficado. Também se aproximaram
outros com reivindicações, como os que pediam os direitos dos animais. Um jovem fazia lobby pela
proteção dos animais e dizia que Adolfo Chávez da CIDOB tinha ajudado e feito ligações para que
entrassem artigos. Também disse que tinha explicado a causa a Silvia Lazarte em uma viagem de avião
quando a encontrara e que ela disse: “não venha com coisas da Argentina”, quando mencionou os
direitos ali reconhecidos. Queria que se adicionasse algo sobre o trato sem sofrimento para animais.
Marco dizia que não fosse ingênuo pois estava fazendo campanha ao PODEMOS, que criticava o ritual
de Omasuyos com cachorros. O jovem disse que eles saíram da marcha quando outra organização
protetora dos animais, em Santa Cruz, quis marchar contra a sede do MAS. Contou também que
entregou uma tese sobre o assunto à García Linera e este disse que leria.
335
adicionado ou retirado por “iluminados”. Entrei na vice-presidência acompanhando
constituintes que participavam da reunião da Comissão de Acordo. Nesse momento, o
vice-presidente se reunia com dirigentes das federações mineiras, o que levava a pensar
que a opção seria Oruro. Os cooperativistas já tinham se manifestado contra o governo e
era um fator de risco. Pediam propriedade e décimo terceiro salário como se fossem
mineiros estatais. É extração capitalista, alguém analisava. Também havia problemas
com os vendedores de roupas usadas, que eram fortes em Oruro pois estavam na rota
das roupas que entravam do Chile. 99% do mercado camponês de Oruro é de roupa
usada, me explicavam. Porém se dizia para distrair que a reunião seria no Chapare.
Silvia Lazarte anunciou publicamente que a convocatória seria para o dia 12 de
dezembro em Lauca Ñ, bastião cocalero de Evo, no Chapare. Constituintes do Chapare,
no entanto, me diziam que não seria no Chapare mas que diziam isto para que a
Juventud Cruceñista fosse até lá. Agora não queriam que fosse a oposição à sessão, mas
se for, “de qualquer jeito haveria avanço”, dizia Walter. Se comparecesse PODEMOS,
poderiam não alcançar os dois terços dos presentes. Na reunião do MAS, Santos
Ramírez pediu que todos ficassem em La Paz pois a locomoção seria aérea. Quem não
estiver, é por que foi com a direita, disse. Muitos saíam de acordo com a reunião, pois
agora havia data e plano. Para passar o tempo, no Hotel Torino havia cursos para os
constituintes dados pelos vice-ministros. Houve um curso sobre o Banco Central e outro
sobre o Plano de Desenvolvimento. É importante e o presidente queria que soubessem
sobre isso, dizia Santos Ramírez aos constituintes.
O constituinte e dirigente cocalero Martín Serrudo era entrevistado para um
documentário. Dizia “me sinto realizado por contribuir com estas mudanças que
custaram muito sangue, dor e luta”. O cinegrafista pedia que repetisse uma frase que
considerava muito boa e não tinha conseguido filmar corretamente: “70 mortos em El
Alto para sair do estelionato” Martin repetiu. Raúl Prada era talvez o mais concorrido
para entrevistas televisivas. Romero também era muito entrevistado mas especialmente
por repórteres a pé, na saída dos espaços de trabalho e acordo dos que participava.
Roberto Aguilar era quem dava declarações quando havia que fazer anúncios, do
mesmo modo que a presidenta. O programa Entre Culturas gravou uma entrevista em
cinco partes com Raúl Prada. Antes de começar, o produtor do programa recomendava
ao entrevistado que o tom não fosse coloquial mas contestador e incisivo, sem
336
interrupções. Não pode ser um tom suave quando o contexto está fervendo, dizia. Que
seja o tom de Visión País quando estava Jorge Lazarte, sugeria273.
Uma notícia importante nestes dias era que Evo Morales havia decidido
submeter seu mandato e o do vice e dos prefectos a referendo revogatório274. A
princípios de dezembro, o projeto seria aprovado pelos deputados no entanto, como
tantas outras iniciativas, seria barrado no Senado. Macario falava sobre a iniciativa de
Evo: o MAS perderia a prefectura de Chuquisaca mas ganharia em La Paz e
Cochabamba, hoje controlada pela oposição. Pensava que em Tarija Mario Cossio não
ganharia e tinha se visto que a marcha da Renta Dignidad foi muito forte ali. A
incógnita era Pando, onde existiam possibilidades mas era complicado pois “se alguém
se manifesta, vem um brasileiro e te mata”, me explicava. Carlos Aparicio de
Chuquisaca havia viajado de helicóptero para sua região do chaco chuquisaquenho com
Evo Morales. Foram para um ato pelo descobrimento de um poço de petróleo que era
maior que o Margarita. Evo tinha dito nessa viagem que com o referendo ganhariam em
La Paz, Pando, Cochabamba e talvez Tarija.
Enquanto esperavam no Hotel Torino, os constituintes seguiam as notícias pela
televisão. Informava-se sobre uma marcha da CIDOB. E também sobre a visita do
Relator das Nações Unidas para questões indígenas, Rodolgo Stavenhagem, que
cumprimentava o programa Renta Dignidad e reconhecia que na Bolívia os indígenas
viviam em piores condições que os não indígenas. Destacava que Evo tivesse
substituído o Ministério de Assuntos Indígenas por políticas transversais dirigidas pelo
Ministério da Presidência. Roberto Aguilar comentava “a nossa Constituição tem o
apoio da ONU” e outra constituinte de Santa Cruz dizia “somos famosos”. Depois
assistiam Saúl Ávalos em um programa de entrevista. Vários riam de que ele usasse
gravata. “Se veste de mestiço”, dizia Jimena275.
273 No programa, Prada explicou sua visão de que seria uma Constituição de transição entre o unitário-
social de bem-estar e o plurinacional-comunitário, e criticou a oposição revoltosa que tinha provado que
na realidade não queria nem capitalia nem autonomia ao repudiar a proposta de capitalia e o caráter
legislativo que se propunha dar aos departamentos.
274 Evo Morales enviou o projeto ao Congresso. Recuperava a iniciativa surgida em janeiro de 2007
como resposta à violência de Cochabamba e a tentativa das organizações sociais de não reconhecer o
prefecto, porém, nunca tinha sido considerada. Meses depois, em outro contexto, o desafio seria aceito
pela oposição.
275 Saúl pedia ao público que prestasse atenção na Constituição que têm em casa e lessem alguns
artigos. Pedia que lessem os artigos 22 e 56 sobre o direito da propriedade privada e a função social da
propriedade. Também não se impede a herança, dizia, como dizem”. E lia o único artigo sobre a coca
“para mostrar que não é uma narco Constituição”. Os constituintes comentavam que pela primeira vez
na história se estava lendo a Constituição na Bolívia. Era vendida por três pesos bolivianos na Perez
337
Na televisão era também reproduzida uma entrevista com Evo Morales realizada
pela televisão venezuelana. O presidente informava que havia três opções para a última
sessão: La Paz, Chapare e Oruro. E cumprimentava aos mineiros de Oruro “que devem
garantir” e também as organizações de El Alto e os camponeses do Chapare. Porém
estava dizendo que seriam os grupos de Oruro que teriam que garantir. Recordava que
em Sucre não tinham permitido que as sessões acontecessem e que graças à entrada no
Liceu Militar existia uma Constituição “em grande”. Dizia esperar que no próximo final
de semana entregassem a versão “em detalhe”. O fim de semana seria oito de dezembro,
quatro dias antes da data oficialmente anunciada. Evo Morales também falava já de uma
festa para o quinze de dezembro na praça Murillo com a entrega final da
Constituição276.
Às 19 horas do sete de dezembro, entrevistei a segunda Secretária da
Assembléia, Svetlana Ortiz, que seguia afirmando que a convocatória “não passaria do
dia 12”. Outros constituintes afirmavam que seria em Oruro. Filiberto Escalante
assegurava que às seis da manhã sairia um avião para esse departamento. Pela noite
havia começado a reunião da Diretoria que convocaria sessões para o dia seguinte, em
Oruro. Próximo à sede da Loteria, no passeio de El Prado, os ajudantes de Roberto
Aguilar estavam comprando frango para todos, parecia que a reunião se estenderia.
Jimena Leonardo, a quem encontrei na rua, perto dali, dizia que não entendia por que
não tomavam decisões rapidamente. E por que alongavam. Já deveria ter se decidido e a
oposição vai prejudicar em qualquer lugar que se vá, dizia277.
A sessão seria em 8 de dezembro às 18 horas. Cada constituinte devia ir por sua
conta. Weimar me convidou a viajar na caminhonete que conduzia Roberto Aguilar,
(Avenida central em La Paz) e perto da praça Murillo, além de nas bancas de jornal. Alguém dizia que as
pessoas levaram isto a sério e agora sabiam o que é uma Constituição, um referendo e dois terços.
276 No dia sete de dezembro alguns constituintes deviam ir para outro hotel, pois a reserva ia apenas
até essa data. Porém a Comissão tinha entregado o texto, anunciando que participaram constituintes
de onze forças com modificações de forma e não de fundo. A imprensa anunciava que participariam 164
constituintes, incluindo UN de Doria Medina convencida após a assembléia de La Paz (o Comitê de
Emergência de La Paz disse que devem ir 52, senão são traidores) e os dissidentes do MAS Pedro Lima
e Rodolfo Rivas. As declarações à imprensa de Doria Medina haviam mudado de tom. Declarou ao
semanário Pulso, publicado dia oito de dezembro, que lhe constava que o MAS “tinha feito tudo para
negociar e os que colocaram obstáculos foram os do Oriente. Perguntaram para ele se não lhe parecia
que isso foi apenas até o Liceu e Doria Medina respondeu que quando os moderados não trazem
resultados, é normal que os mais radicais apareçam.
277 No dia seguinte me explicariam que a reunião tardou pois Ángel Villacorta, quarto vice-presidente,
de UN, pediu tempo para consultar Samuel se iriam participar. Porém Samuel estava em um seminário e
tiveram que esperar que saísse. Por isso pediram frango. À meia noite, confirmou que sim e por isso
atenderam o pedido deles de que fosse em Oruro, me dizia outro secretário da Diretiva da Assembléia,
Weimar Becerra.
338
com ele, a esposa de Aguilar, Miguel Peña e dois assistentes. No caminho de La Paz a
Oruro chovia. Aguilar cumprimentava com buzina os ônibus da polícia que iam reforçar
a segurança da sessão, e mostrava as vicunhas do caminho. Weimar recomendava
colocar tabaco no para-brisas e contava histórias de corredor, de caciquismo e da lei do
mais forte em Pando. Evo Morales falava a partir do Chapare pelo rádio do veiculo.
Saudou a Huanuni e dizia uma vez mais que a melhor forma de fazer mudanças na
democracia era com a Assembléia Constituinte; e que os movimentos sociais
conseguem democracia para todos os bolivianos e não apenas para os camponeses.
Jorge Lazarte declarava que ao voltar da França comprovou que a Assembléia tinha que
ser suspensa por um tempo. É um cínico, dizia Roberto, temos que dizer que pediu um
tempo porque tinha um curso.
Entravam em Oruro e começaram as chamadas telefônicas. Ligavam para dizer
que a Ana María viria, “que venha de ônibus mesmo, que gente mais folgada” ordenava
Roberto. Perguntou a Romero se havia novidades, ele disse que não tinha dados. Com
outro dizia “por que se hospedaram? A idéia é não se hospedar, o trabalho deve durar a
noite toda”. Miguel Peña disse que somente iriam dormir se dormissem na mesa.
Roberto falava com Silvia Lazarte informando que chegavam, como vai tudo? Então
vou para ai”. Teriam reunião. Reunir-se-ia com Santos para contar o número de
constituintes alcançado, calculavam que até com sessenta deles, teriam dois terços (dos
presentes). Havia dois de Pando que tinham “mudado de lado”. Eram 15h30 e a sessão
seria às 18hs. Weimar propus ir comer cordeiro. Miguel falou quase pela primeira vez
na viagem para dizer que pela primeira vez concorda com Weimar. Roberto disse que os
deixará no restaurante e irá ao local278.
3 A última sessão na Universidade Tecnológica de Oruro
A sessão ocorreria no Centro de Convenções da Universidade Tecnológica de
Oruro. Os constituintes foram recebidos por manifestantes mineiros e por organizações
sociais como CONAMAQ e vizinhos. Jornalistas da rede de rádios Patria Nueva
informavam que a oposição estava na cidade e tinha convocado uma coletiva de
278 Weimar falava com um: “quanto você quer? Que faz em Sucre? Quanto ofereceram os podemistas?
70 mil? Eu te dou 80”, dizia, suponho que de brincadeira. “É... às seis. Te liguei muito. Nos encontramos
mais tarde”. Dizia que seu interlocutor está bêbado e que se não for, estaria ferrado, seu pessoal e o
alcalde tinham lhe dito. Sobre a oposição analisava que as pessoas estavam se dando conta de como
são. A agressão a camponeses em Sucre e Cobija e o acontecimento de Riberalta tinha ajudado, opinava.
339
imprensa, porém não estava presente no início da sessão. O MNR também não
assistiria. As agrupações pequenas do Bloco Patriótico estavam presentes, inclusive
Loyola Guzmán que não havia participado do Liceu Militar e Unidad Nacional de Doria
Medina. No momento de começar a sessão eram 153 constituintes na sala. José Bailaba
estava com licencia por motivos médicos na cidade e outros estavam chegando. Um
número parecido, de 154 constituintes, havia votado em agosto de 2006 com o MAS
para declarar a Assembléia originária. Os números pareciam não ter mudado muito em
relação aos números de então, mostrando até que ponto o destino da Assembléia tinha
sido em boa medida selado com a lei de convocatória de março de 2006.
Fora da Universidade esperavam as organizações, um grupo orurenho tocava
bombo enquanto chegavam os constituintes e o resto das pessoas aplaudia. Havia
imprensa internacional. Uma repórter da Folha de S. Paulo, Flávia Marreiro, me
perguntava sobre o cerco das organizações que impediam a entrada da oposição. “A
defesa?”, repliquei espontaneamente. O que para mim e para o MAS era uma vigília
para proteger os constituintes, para parte da imprensa um novo cerco que impediria o
funcionamento normal da Assembléia. E explicava que no Brasil o problema da capital
tinha sido resolvido com dinheiro, transferindo os poderes a Brasília mas mantendo no
Rio de Janeiro o mesmo número de empregados públicos que haveria na nova capital. A
partir de La Paz, o jornalista Pablo Stefanoni me perguntava como iam as coisas e dizia
que havia escutado que Evo poderia ir para Oruro com os camponeses para o final.
Ao iniciar a sessão, o MAS se apressava e começava a aprovar artigos. As
minorias pediam a palavra e Silvia Lazarte negou a princípio mas depois consentiu.
Ricardo Pol, de UN, dizia que estavam ali para fazer ouvir sua voz e não para validar o
que consideravam ilegal. Os camponeses não impediram a entrada de uns doze
constituintes do PODEMOS. Enquanto ocorria a sessão, entraram na plenária, rodeados
da imprensa, para fazer um ato de repúdio e denunciar ilegalidade. Alejandro Medina de
Oruro, Gamal Serham de Cochabamba, José Antonio Aruquipa e Carlos Goitia de La
Paz, entre outros, gritavam “ditadura” e “ilegal”. Pediam garantias de segurança e que
se suspendesse a sessão até a chegada dos outros constituintes da oposição. Porém o
resto de PODEMOS estava nas suas regiões pois a agrupação estava dividida em pelo
menos duas facções correspondentes ao Oriente e o Ocidente. A sessão tinha sido
convocada com 18 horas de antecedência e não 24 horas. No caso da oposição
participar, a estratégia do MAS era fazer uma resolução para que houvesse duas
Constituições e deixar assim que a oposição fosse para Sucre fazer a sua Constituição.
340
Porém a presença da oposição depois do MAS ter começado a aprovar a Constituição
poderia ser problemática porque poderia interferir nas votações.
Svetlana lia o texto que ia sendo aprovado “em detalhe”. Vários constituintes
seguiam a leitura em uma cópia do texto na mão, outros conversavam ou davam voltas.
Às nove da noite estavam no artigo 121, alcançavam 158 constituintes votando, e Silvia
Lazarte deu a ordem para que não entrasse nem saísse mais ninguém. Faltavam poucos
constituintes para alcançar dois terços do total na sala porém quatro constituintes de UN
votavam contrários e pediam que se incorporassem modificações. Carlos Romero e
outros estavam nisso, incorporando os pedidos de Doria Medina. Buscavam um acordo
com ele, de última hora. Mirtha estava mal porque tinham tirado “o social” como parte
da Constituição. Com o texto na mão, Limbert chamava Rebeca para que “chequemos
isso”. Freddy Alánez, de CN, buscava intervir na Constituição do MAS. Propôs que se
incluísse o inglês entre as línguas oficiais, pela globalização279.
Os técnicos também estavam mobilizados. Um deles havia detectado que na
parte da expropriação se falava em função social, quando isso estava na parte da
propriedade privada. Seria melhor dizer “quando seja necessário para o interesse
público”. “Entenderam”, dizia, quando deram lugar a sua observação. Cleto Perez
Mamani, constituinte pela CN, era outro que queria intervir com modificações na
Constituição do MAS. Na Assembléia havia oitenta membros de distintas igrejas que
protagonizaram vários conflitos com as posições defendidas pelos constituintes da
esquerda. Este constituinte pacenho dizia que o reconhecimento da espiritualidade dos
povos restringia a prática religiosa do irmãos. Pedia que se explicitasse que a união era
entre homem e mulher e não entre pessoas pois desta maneira se aceitava a
homossexualidade; e que o povo boliviano era claramente contra isso, dizia280.
279 UN pedia recesso e alguém dizia “isso me soa a negociação”. O MAS não queria parar, corria contra
o tempo. Doria Medina dizia que ou cedem ou “continuam sozinhos”. Armando Terrazas disse: “temos
que falar de democracia quando os embriões da ditadura que sumiam com vidas hoje estão aqui falando
de democracia. Aqui não apenas se conseguiu consenso com o companheiro Samuel, mas também com
o resto”, explicava. E pedia “que se dessem os quinze minutos que pede Samuel”. Roberto propôs
quinze minutos na sala. Emiliana, da região do lago, pedia que os quinze minutos para a Comissão de
Integração não sejam uma ou duas horas como nas outras sessões.
280 Além de homofôbico era xenófobo porque vinculava a homossexualidade aos estrangeiros. E
considerava que o artigo 56 deixava a porta aberta para o aborto, quando dizia “se garantirá o exercício
de práticas sexuais”. Isso o pode ser constitucional, dizia. Se isso permanece aí, ameaçava, o povo
evangélico não votará no referendo nacional. E lembrava que os evangélicos são 20% da população,
mais de um milhão e meio de pessoas. Também propôs que na quinta seção, referente ao esporte, se
incluísse a questão da altitude. Fazia referência à campanha de Evo Morales contra a proibição da FIFA
ao futebol em grandes altitudes.
341
O Major Vargas pedia que se reconhecesse o ser humano como fundamental,
que havia sido incluído da Comissão de Concertación porém não estava presente da
versão de Oruro. Pediu “de coração” que apoiassem e aprovassem essa modificação,
que não foi aceita. Quem mais fazia uso da palavra eram principalmente as minorias que
pareciam querer cobrar um preço do MAS por estarem presentes na sessão. E o MAS
fazia sugestões, depois da leitura de cada bloco da Constituição, mais “de forma”, com
propostas surgidas a partir da última leitura. Em termos de redação e estilo, com
repetições ou imprecisões, o texto tinha vários problemas. Saúl Ávalos parabenizava
que chegavam a 160 constituintes; pedia para trocar a palavra “exército” por “Forças
Armadas” e que se incorporasse um parágrafo que indicasse que se garantia a educação
privada e de convênio; e louvava que a educação seria gratuita assim como os trâmites
para o diploma. Para garantir o acordo que se esperava no tema da capitalia, pedia
também que se anulasse a resolução votada em La Glorieta sobre o assunto, na qual
Sucre se declarava capital281.
Doria Medina e outros constituintes de UN fizeram uma intervenção sugerindo
várias modificações. O líder da UN recordava que alguns dias atrás Chávez tinha
perdido um referendo. Seu povo pediu tempo e ele não escutou, refletia. Unidad
Nacional não veio para sabotar ou fechar a Assembléia. Espero que quando se aprove
não sejam apenas os do MAS que considerem que é um bom projeto. Se derem tempo
para tratar os temas, nós vamos dizer. Não se está respeitando o regulamento que diz
que os documentos devem ser entregues com 24 horas de antecedência e se entregou
hoje, sendo o texto constitucional. Por isso devem ter paciência. Dizia: esta Constituição
é um avanço, melhora a visão do Estado e não deixa ninguém de fora. Porém mostrava
que algumas coisas acordadas e assinadas (nos acordos de outubro, no conselho
suprapartidário) foram modificadas.
Entre suas observações, Doria Medina questionava que se tenha modificado o
primeiro artigo da Constituição, tal como se havia acordado na Suprapartidária. cada
palavra era importante, dizia. A formulação era “Estado Unitário Social de Direito
Plurinacional Comunitário” e Raúl Prada insistia que o Plurinacional fosse na frente,
como estava na versão distribuída para a votação “em detalhe”. Doria Media reconhecia
281 Rebeca mencionava quatro artigos da primeira parte, que acreditava que deveriam se
complementar. Haviam omitido o idioma machajuyai-kallaguaya; para a proibição de escutas de
conversas privadas, sugeriu adicionar “salvo autorização judicial”. No artigo 26 faltava um ponto e
vírgula. Marcela Revollo cumprimentava a sessão histórica, que esperava que desse paz ao povo
boliviano. Criticava a separação entre direitos fundamentais e fundamentalíssimos.
342
que não existia uma visão indígena que ia contra o resto do texto, ao contrário, se inclui
algo que antes estava excluído; e lembrava que isso havia sido discutido na presença do
“vice” no Conselho Suprapartidário reunido em La Paz. Pensem se não vão estar dando
razão ao PODEMOS que dizia “por que assinam se o MAS não cumprirá?”, interpelava
Doria Medina em uma demanda que foi atendida. O resto das correções não eram muito
significativas. Um pedia também respeito à educação privada, alguma coisa sobre o
modo como se garantia a propriedade privada. Pelo partido UN, falaram também
Soledad Chapetón, Emilio Gutiérrez e Ricardo Pol282.
Uma das assistentes de Álvaro Linera telefonava para saber “como anda isso”.
Informavam que UN advertiu que não respeitaram os acordos da vice-presidência,
exceto na parte econômica. O doutor Sardán caminhava pelo salão com nervosismo.
“Mudaram suas coisas”, alguém me explicava. Rosalía reclamava com Silvia de que
tivesse sido Marcela Revollo uma das que falasse representando o MAS. Silvia
resmungava. Juan Carlos Pinto, da REPAC, criticava também que Marcela não falou
como MAS mas que também disse coisas que não haviam sido aceitas no Comitê.
Adolfo Mendoza estava organizando uma reunião com os técnicos para revisar algumas
coisas. Moradia não poderia entrar como assistência social, alguém dizia. Félix
Vásquez, do MOP, se queixava da maneira como tinham reordenado os direitos. Loyola
Guzmán queria falar no tempo do MOP mas não foi permitido. Saiu do salão. Um
constituinte de AS propunha que o ministério da mineração fosse trasladado a Potosí e
que a COMIBOL fosse constitucionalizada. Falava de revolução social dos
trabalhadores. Juan Zubieta, do MCSFA, pedia para observar se isto era revolução ou
reformismo. E destacava que no texto se incluía o trabalho de comissões e das propostas
dos encontros territoriais. Não era apenas a Constituição do MAS.
A uma da manhã do dia nove de dezembro, eram 164 constituintes presentes,
com a chegada de José Bailaba, de Santa Cruz, Mamani e Félix Cadiva. Faltavam
apenas seis constituintes para alcançar os dois terços do total, que poderiam ter vindo do
MNR ainda que a UN continuava votando contrariamente. Para um acordo faltava
282 Doria Medina questionava que a maneira de garantir a função social e o interesse coletivo da
propriedade privada, no artigo 56, criava desconfiança. Um proprietário não poderá ter um terreno sem
construção, dizia. Agora uma família não poderá ter uma propriedade para os filhos. Tampouco estava
convencida sobre o artigo 11, sobre o reconhecimento da democracia comunitária. Ricardo Pol
acrescentou que apoiava o pedido de Ávalos de incluir o ensino privado. Emilio Gutiérrez pedia para
incluir pequenos empresários e algo sobre as empresas falidas. Soledad Chapetón também apoiou a
educação privada e pediu alguma coisa sobre profissionais para as crianças com capacidades acima da
média.
343
tempo e um pequeno número adicional de constituintes, duas coisas que o MAS não
tinha e não podia parar a sessão para procurar. Roberto Aguilar falava das propostas
recebidas, algumas de forma e outras de conteúdo. Voltariam a discutir o tema mais
conflituoso e pedia que houvesse acordo entre La Paz e Chuquisaca. Formariam uma
Comissão de Concordância e Estilo, com a Diretoria e Chefes das Bancadas. Pela
madrugada começaram a votar os artigos ou adiar, no caso de que recebessem alguma
observação de pelo menos quinze constituintes, de acordo com o regulamento. Pelos
corredores, Romero dizia que era infantil não ter trocado a ordem dos termos no artigo
1, como tinha sido pedido por UN e acordado na vice-presidência. Loyola Guzmán
estava em um canto fora da sessão junto a Jorge Lazarte e outros críticos, que não
poderiam sair. Isaac Ávalos, o prefecto de Oruro, e dirigentes locais que estavam
autorizados a entrar passeavam pelos ambientes próximos.
Chegou informação de que estavam vindo manifestantes em ônibus desde Santa
Cruz. “Temos que terminar”, dizia Romero. Vargas foi falar sobre isto com Santos que
estava em um dos prédios ao lado do salão onde acontecia a plenária. Carlos sugeria
modificar o novo regulamento para poder terminar antes. Alguém dizia que com
dinheiro, a direita poderia por os mineiros na oposição ou poderiam entrar e sentar para
criar conflito e terminar mal. Depois da leitura da segunda parte, Doria Medina voltou a
apresentar suas observações. Referia-se criticamente à opção por circunscrições
unicamente uninominais no Parlamento como “um retrocesso para a democracia”; à
reeleição por uma vez, que a indefinida havia sido eliminada pelo projeto; e aos
procedimentos para eleição do Defensor del Pueblo (Ombusman) e magistrados. Dizia
que o sistema eleitoral excluía as minorias283.
Um dos temas mais controversos entre o MAS e a oposição tinha sido o da
reeleição. A reeleição “contínua sem limite de mandatos” era um dos pontos incluídos
na reforma constitucional proposta na Venezuela por Chávez e rejeitada uma semana
atrás. Apesar das idas e voltas, o projeto a ser votado “em detalhe”, incluía a reeleição
por apenas um mandato e não indefinida (artigo 169). Era uma das mudanças mais
283 Para Doria Medina as circunscrições plurinominais asseguram uma melhor representação. Se
permanece assim, um partido com 30% poderia ter todos os deputados, dizia, e recordava uma
exposição da corte eleitoral na vice-presidência. Também repudiava a eleição direta de magistrados que
“se bem não foram assinados acordos na vice, me lembro que disseram que seria um experimento” e
pensava que a valorização intercultural dos candidatos” pode dar lugar a diversas interpretações. Sobre
a reeleição, dizia que um dos pilares da nossa democracia é a alternância e foi quando um presidente
quis se reeleger que vieram os golpes de Estado. Pensava que o MAS tinha que passar a ser um “partido
do sistema”.
344
importantes na versão debatida em Oruro e que havia sido uma decisão de último
momento porque até pouco tempo a idéia era que o tema fosse a referendo, junto com a
questão da terra. A idéia era que para impulsionar a aprovação da Constituição no
referendo do MAS, se usasse a melhor arma: a popularidade de Evo Morales. Se no
decorrer do processo constituinte se passou da discordância absoluta em todos os temas
a apenas uma pequena lista de diferenças, se pode dizer que a reeleição era talvez a
maior controvérsia, sobre a qual nenhum acordo havia sido tentado ainda e que era peça
fundamental no projeto do MAS assim como o principal objeto de crítica da oposição,
que acusava Evo Morales de ser um ditador que quer se perpetuar284.
Depois das cinco da manhã e após onze horas de sessão, se votava “em detalhe”
a terceira parte da Constituição, sobre a Estrutura e Organização Territorial do Estado.
Os artigos sobre autonomias tinham passado sem conflito e faltavam uns cem artigos
para terminar. A dinâmica era sempre a mesma: quase todos os artigos eram aprovados
pelo MAS e seus aliados, com quatro votos contrários de UN. Somente alguns artigos
eram adiados para serem tratados na Comissão de Acordo ou Concordância e poucos
tiveram abstenções ou votos contrários de constituintes do MAS como foi o caso do
artigo 162 de designação do Defensor del Pueblo e outras autoridades de controle por
parte do Parlamento, por pedido de UN. Unidad Nacional estava votando contra todos
os artigos mas dava à sessão a legitimidade que o MAS queria mostrar285.
A sessão avançava e os artigos eram aprovados sem discussão. Somente algumas
observações da minoria, que na realidade tinham participado da Comissão que
elaborou o texto final. Somente Doria Medina apresentava observações dissidentes.
Como, por exemplo, sobre a YPFB, investimento estrangeiro e a necessidade de
284 García Linera era um dos que tinham garantido que este assunto iria a referendo ainda que
conseguissem os dois terços. A discussão era centrada no que diz respeito a uma cláusula transitória do
projeto de Constituição que estabelecia que o atual mandato iniciado em 2006, não seria contabilizado
após a aprovação da nova Constituição. Desta forma, Evo poderia se candidatar em 2008 e governar por
dez anos. O Pacto de Unidade tinha proposto que a reeleição fosse somente uma vez, porém muitos
constituintes defendiam que fosse indefinida. Segundo Linera, Evo Morales preferia não opinar sobre o
assunto e se mantinha frio quando alguém ao redor o fazia.
285 Os quatro votos da UN eram os de Samuel Doria Medina, Ricardo Pol de Cochabamba, Soledad
Chapetón e Emilio Gutiérrez de El Alto. UM tinha outro de seus membros na Diretiva e outros três
dissidentes, fora da sessão. Apesar de serem apenas quatro votos, a UN tinha certa capacidade para
simbolizar apoio de setores médios. E também aparecia como uma das forças políticas mais importantes
da Assembléia, era a quarta força. Do ponto de vista de Unidad Nacional, o MAS havia reinstalado a
sessão de forma legal e reconhecia que o diálogo tinha sido aberto, como testemunhou Doria Medina
com protagonismo.
345
autorizar sementes transgênicas286. Silvia Lazarte pedia que entregasse as observações
por escrito. A verdadeira discussão, na realidade, transitava de forma quase invisível nas
conversas entre os constituintes do MAS e os técnicos que estiveram mais próximos do
trabalho de redação. “Sardán mudou coisas”, diziam do assessor do presidente, que
não era “O Doutor Sardán”. Havia queixas por correções realizadas depois da aprovação
“em grande” na Comissão com pessoas das bancadas.
Para outros, o culpado não era Sardán e sim Silvia Lazarte por meio de Pablo
Zubieta, que havia chegado a coordenar o trabalho da comissão “isolando Carlos
Romero”. “Há problemas, mudaram coisas, Pablo manipulou”, dizia Raúl Prada e
Mirtha Jiménez dizia “fizeram barbaridades”. Não se tratavam de modificações muito
significativas, porém de coisas que não teriam tido aprovação de todos. “A estrutura
funcional [do Estado] foi mudada de lugar”, por exemplo
287
. Antes que amanhecesse,
me aproximei do alambrado e conversei com um grupo de pessoas que esperavam fora
da universidade, acendendo fogo para lutar contra o frio. Diziam que estavam esperando
o nascimento da nova Constituição Política do Estado. Um homem me dizia que eram
pobres e que nunca ninguém havia dado nada para eles. Havia mineiros, gente de El
Alto e da CONAMAQ. Gritavam “Jallalla nosso presidente”e “Jallalla cholita marina”,
uma conhecida música de charango288. Perguntavam como estava indo tudo do lado de
dentro e se os ânimos estavam quentes. Próximo à porta alguns impediam que as
pessoas saíssem, “vão trabalhar” ou “vão informar bem”, gritavam quando viam pessoas
circulando fora do recinto.
286 Doria Medina fazia observações ao artigo 320 pedindo “que não se discrimine o investimento
nacional frente ao estrangeiro” pensando nos hidrocarbonetos. É de interesse do país que haja
investimento, dizia. Também criticava que toda a produção fosse comercializada pela YPFB e que YPFB
tenha 51%, quando se sabe que a Petrobrás não aceita isso. Dizia que colocar porcentagens geraria
problemas no curto prazo. Criticava a qualificação de “traição à pátria” a quem fizesse algo diferente
com estes artigos, pois considerava que isto seria condenar distintas cisões econômicas como traição à
pátria. Notava que apesar de incluir o investimento privado, ao colocarem que não haverá concessões
na área de energia e água, estavam impedindo. E dizia que o uso de sementes transgênicas é uma
necessidade para que sejam competitivos em certos setores. Essas eram suas observações que
qualificava como “técnicas” para esta parte da Constituição, e não foram atendidas.
287
Rubén Martínez, do CEPS de Valencia, que tinha contribuído na Comissão Técnica, levou algumas
observações a Pablo, dias antes, e o orurenho disse para ele que “não garantia que entrasse”. Rubén se
queixava de que os artigos 178, 181, 284 e 290, de autonomias, estivessem mal redigidos. Se queixava
de maiúsculas depois de vírgula, e também lhe parecia absurdo que um referendo decidisse sobre uma
questão técnica referida à terra. Dizia “alguém teve a feliz idéia de trasladar isso para cá” sobre alguma
coisa que estava nas normas substantivas e tinha passado às transitórias.
288 “Cholita Marina” http://www.youtube.com/watch?v=_TVTSqSGYwk&feature=related E sua versão
no idioma original, quechua http://www.portaldefotos.com/y0BgXIpIAg9Qt/FLORA-CORTEZ-(CHOLITA-
MARINA)/
346
Ao chegar a votação do artigo 398 referente ao limite da propriedade da terra, já
próximo ao final, Pablo Zubieta explicava o mecanismo de votação e a estratégia que
seria adotada –de acordo com o caminho “comprido” estabelecido na lei de ampliação,
que o caminho “curto” era possível apenas com dois terços do total de 255
constituintes. O que não fosse aprovado por dois terços dos presentes, passaria à
Comissão adiado e depois ao referendo. Se apenas um tema não tem dois terços,
somente esse artigo vai ao dirimidor, explicava Pablo Zubieta. E para que se possa
aprovar o texto completo por dois terços dos presentes e não do total era necessário
que houvesse pelo menos um tema sem consenso entre os presentes, senão haveria um
vazio legal. Essa possibilidade de aprovação havia sido aberta pela ausência do
PODEMOS289.
O artigo que seria mandado pelo MAS a referendo, não seria o da reeleição.
Optou-se pelo artigo 398 sobre o latifúndio, que tinha então duas variantes sobre as
quais o MAS criaria uma dissidência artificial para possibilitar a aprovação do texto da
Constituição “em detalhe” por dois terços dos presentes. O artigo, em suas duas versões,
proibia o latifúndio e a dupla propriedade “por ser contrários ao interesse coletivo e ao
desenvolvimento do país”. A diferença dizia respeito à superfície máxima estabelecida
para propriedade de terras. A primeira opção estabelecia o limite de cinco mil hectares e
a segunda em dez mil. No resto do artigo, as duas opções estabeleciam que “se entende
por latifúndio: a propriedade improdutiva da terra; a terra que não cumpra a função
econômica social; a exploração da terra que use um regime de servidão, semi-
escravidão ou escravidão na relação de trabalho; ou a propriedade que ultrapassa a
superfície máxima estabelecida pela lei”. Na versão original do texto, votado “em
grande” no Liceu Militar, o artigo terminava e deixava para a legislação a tarefa de
estabelecer o número de hectares.
Silvia Lazarte pediu para votar em uma das opções do artigo 398 e confirmou
que não havia dois terços, mandando os artigos ao referendo. Uma das opções teve 45
votos e “como não alcança os dois terços, vai a referendo”, explicava Lazarte. Nancy
289 Quando o Congresso aprovou a ampliação do prazo até dezembro de 2007, em agosto, a
preocupação da oposição era garantir que o texto deveria ser aprovado por dois terços. Ninguém
imaginava que o PODEMOS sairia do cenário de definição, permitindo que o MAS consiga os dois terços
pelos quais haviam lutado para incluir. Porém, a essa altura a oposição tinha renunciado a qualquer
possível busca de consenso, não pôde ou não quis impor o cenário do referendo com duas constituições
alternativas e apostava em declarar a Assembléia e a Constituição como ilegais. Lembra um pouco à
estratégia da oposição venezuelana que resolveu não participar das eleições dando ao PSUV a maioria
do congresso por um mandato.
347
Vacaflor, da rádio ERBOL, presente durante toda a Assembléia, comentava que Silvia
fazia ela se lembrar dos sindicatos. No momento de votar os últimos artigos, alguns
aproveitaram para introduzir na plenária temas até então não debatidos. Já eram às 6h45
da manhã do dia nove de dezembro. Reyes, aliado do MAS em Pando, vice-presidente
da Comissão Amazônica, pedia que seu departamento fosse reconhecido como 100%
amazônico, que sempre foi esquecido. Seria algo que “não faz mal a ninguém”. E
explicava que tinha sido um tema polêmico pois feria os interesses dos produtores de
gado e concessão florestal para uso de recursos naturais. Quem não apoiar, é
antipatriota, dizia. E reconhecia que no departamento não iriam importar carne, “não
vou mentir, gado”. Porém buscamos que o governo transforme-o em turístico para
ganhar mais dinheiro. Se acreditam que isto não serve, os latifundiários serão
beneficiados, concluía. Seu pedido seria atendido.
René Muruchi, de AS, e René Navarro e Víctor Borda do MAS, todos de Potosí,
pediam a criação de uma entidade autárquica financeira para administrar a indústria
mineira com sede neste departamento. O pedido seria atendido porém adicionando que
seria em Potosí mas também em Oruro que as empresas autárquicas estabeleceriam seu
domicílio legal. O Major Vargas recordava que eram as pessoas de El Alto que lutaram
pela industrialização e pedia outra modificação. Este seria um dos artigos com resolução
adiada. Depois Ignacio Mendoza, primeiro secretário, leria dizendo artigo 732 ao invés
de 372. Ninguém havia dormido. Era votado que o Estado deveria intervir na
industrialização e que o órgão a ser criado funcionaria nos dois departamento.
“Chuquisaca e agora esta palhaçada” dizia um assessor técnico das organizações sociais,
ao meu lado. Vargas dizia “falamos de amor e criam outro conflito. La Paz não pode
permitir que nos tirem mais isso”. Muruchi respondia que não estavam tirando nada de
ninguém e lembrava que Potosí tinha sido o centro do país. Silvia disse “Então, em
votação”. alguns votos contrários de La Paz, Borda e outros riam e festejavam
felizes a aprovação.
Terminavam de votar os artigos “em detalhe” da última parte, aprovados por
dois terços, revogando a Constituição de 1967, com um artigo mandado a referendo e
um que havia sido diferido, informava Aguilar. O Comitê de Integração faria
modificações no artigo 19 sobre moradia, e de concordância e estilo no 36. O
coordenador do Comitê era Pablo Zubieta. Sobre a propriedade na zona urbana se
propunha incorporar o artigo 206 da Constituição então vigente. Samuel Doria Medina
fazia suas últimas observações, correspondentes à quinta parte da Hierarquia Normativa
348
e Reforma da Constituição. Apresentou observações a artigos que via como provas da
intenção de implantar uma democracia de um partido. Se esta forma de aprovação
não fosse modificada, Doria Medina anunciava que seriam os primeiros a fazer
campanha contra a Constituição no referendo. Raúl Prada dizia que havia uma questão
que Samuel deveria entender. Esta Constituição é um novo mapa institucional que abre
um horizonte político novo. É necessário um Estado Plurinacional com autonomias e
regiões indígenas. Se aprovamos esta Constituição, necessitamos novas
regulamentações eleitorais. Por isto, defendo o artigo primeiro da transitória, que o líder
de UM criticava290.
Então se aprova tudo “em detalhe”, o artigo adiado da mineração e somente
restava o artigo 6, sobre a capital. Agora Chuquisaca vai defender que a resolução entra
no artigo 6, porém ainda não há acordo, dizia Aguilar. Começava a tocar a banda
Imperial de Oruro, convocada para animar a comemoração com música de carnaval.
Porém cessaram diante do aviso de um constituinte de que ainda faltava um artigo.
Wenceslao dizia pelos corredores que agora não deveria demorar um ano para começar
com a reversão de terras. Sául Avalos pedia a palavra: quatro departamentos serão
autônomos e agora estamos aprovando isto, hoje estamos constitucionalizando,
festejava. E criticava que a imprensa disse que “o MAS está aprovando sua
Constituição” sem mencionar UN, MBL e outros partidos presentes. Aqui estão todos,
exceto os que governaram ontem, dizia. A isto queria chamar a atenção.
3.1 A capitalia novamente e a aprovação do texto.
Faltava votar o artigo 6 referente a capitalia, cujo tratamento tinha sido adiado.
Os chefes de bancada o a favor de um acordo, anunciavam. Pablo Zubieta disse na
plenária, em coordenação com Aguilar, que se leriam outras resoluções administrativas
que a Assembléia precisava aprovar, enquanto buscavam uma solução. Chuquisaca pede
a palavra e Adolfo Mendoza, do meu lado, se lamentava. Ceballos, do MBL
chuquisaquenho, que se afastou do MAS quando surgiu conflito mas agora estava se
reconciliando e participou da sessão, opinava que a resolução sobre o assunto tinha
290 Na disposição transitória primeira se estabelecia que, no prazo máximo de setenta dias desde a
promulgação da Constituição, o Congresso deveria aprovar o regime eleitoral provisório para eleição da
Assembléia Legislativa, presidente e vicepresidente com maioria absoluta. Doria Medina considerava
que isso era contrário ao princípio de respeito às minorias. Marco Carillo do MAS propunha que para
que nem as maiorias oprimam minorias nem vice-versa sejam dois terços dos presentes para reformar
a Constituição, e pedia aceitar a sugestão de Doria Medina.
349
sido aprovada em La Glorieta e não era necessário votar para que se incorpore o artigo.
Pedia que a resolução passasse ao Comitê de Concertación, que até esse momento não
havia trabalhado e Ceballos pedia à Diretoria sua conformação. Era a Comissão
estabelecida no regulamento para trabalhar os temas controversos e a partir da qual, se
não houvesse acordo, os temas seriam remetidos a referendo.
Mario criticava a “interpretação caprichosa de Ceballos” e lembrava que até que
o artigo diferido não se resolvesse, não poderia se votar a Constituição. Rubém Dalmau
e Teresa Morales, próximos a mim, aplaudiam a intervenção. O Major Vargas gritava
que essa questão não existe, pela resolução de agosto. Macario pediu a palavra e falou
“a vocês e ao povo boliviano”. Há problemas importantes para resolver, como os
raciais, porém se utilizou o assunto capitalia para travar a Assembléia. Era um tema
político para que a Assembléia fracasse, dizia. Mencionou a resolução de quinze de
agosto que retira o tema de tratamento. “Não pudemos encontrar uma solução e por isso
estamos em Oruro”. E pedia para ler o projeto de resolução dos assembleístas de La
Paz. Os constituintes conversavam entre eles sem saber como resolver a questão. Charo
dizia que se fosse votado, todos apoiariam a resolução e perguntava a Romero o que
fazer. Carlos respondia que não sabia e se lamentava com a cabeça. As possibilidades à
vista eram variadas e catastróficas: imposição de La Paz gerando conflitos posteriores
em outras regiões; retirada de La Paz; referendo. Pablo Zubieta falava com os
chuquisaquenhos. Magda dizia que tem o direito de defender Sucre e que tinha recebido
ameaças.
Tomando a palavra, Pablo resumia a situação: não acordo com relação a este
assunto e o artigo seis é prejudicado. Havia duas resoluções votadas: a de 15 de agosto
para que o tema não seja tratado e a de 24 de novembro no Liceu, que dispõe que se
escreva que Sucre é capital e sede do Poder Judicial e Eleitoral. A proposta de La Paz é
que haja uma resolução que diga que La Paz é sede dos outros dois poderes. Eu creio
que não se deve votar, dizia Pablo, e propunha procurar uma solução”. Sua proposta
era que se redigisse que Sucre é a capital constitucional, sobre o que não dúvidas, e
emitir outra resolução que ratifique a resolução de 15 de agosto. Silvia pedia para que
seguisse a leitura de resoluções até que Pablo levasse a resolução definitiva. Sigam
trabalhando, dizia. E algum constituinte respondia que não havia ninguém trabalhando,
solicitando que se pusesse em consideração o pedido de Chuquisaca.
Silvia dizia “queiramos ou não, que ter uma solução” e fez votar uma
resolução que permitia a aprovação de outra resolução. Pouco depois vi a Pablo Zubieta
350
sentado sozinho. Não havia mais negociações ou diálogo sobre o assunto entre os
envolvidos. Pediam que fosse lida a resolução da vice-presidência. Chuquisaca pedia a
palavra, e era lida por La Paz a proposta de constitucionalizar os dois poderes para esse
departamento. A bancada de La Paz dizia que as duas resoluções se complementavam
sem contradições. Seriam “dois para cada um”. Os constituintes de Chuquisaca
gritavam que não. A situação começava a ficar tensa. René Navarro, de Potosí, iniciou
dizendo “não podemos rifar o processo de mudança por posições regionalistas”, e
defendia constitucionalizar os quatro poderes e “dar nome e sobrenome às duas
cidades”. Pedia que se fizesse uma leitura política da segunda guerra mundial e
entrassem em consenso. Pois se os de Sucre não conseguem nada, seriam exilados de
seu departamento e mesma coisa se não constitucionalizam os dois poderes de La
Paz291.
Falou então Esteban Urquizu afirmando que os de Chuquisaca que são
favoráveis à mudança estão presentes e que haviam salvado a Assembléia. Quem quer
chantagear e oprimir os departamentos pequenos? Querem esmagar nós que somos dez
ou vinte constituintes por departamento, isso tem que constar na história, dizia buscando
o voto de outras regiões contra La Paz. Recordava: não nos aliamos à direita e salvamos
a Assembléia. Sua proposta era que os artigos diferidos fossem trabalhados pela
Diretoria e os chefes de bancada, incluindo a resolução mais votada e sem
constitucionalizar os poderes para La Paz. Basta de ser humilhados, pedia. A resolução
claramente diz que na Constituição devem ser incorporados os acordos de quéchuas e
aymaras. E advertia “se não se respeita, não nos resta outra opção que nos retirar desta
plenária”. E advertia que eram doze constituintes que poderiam deixar o MAS sem
maioria absoluta ou quórum.
Um constituinte de Oruro dizia que desde o jardim de infância se sabe que Sucre
é a Capital e que portanto deveriam constitucionalizar os poderes para Sucre. Román
Loayza criticava o PODEMOS e o ComiCívico e pedia que se incluísse o que ambos
pediam, respeitando a resolução de Sucre e dando dois poderes para La Paz. Silvia
Lazarte dizia que os constituintes tinham que se entender como uma família. “Nos
acalmemos”, dizia María Oporto. E anunciava que tinham uma proposta para viabilizar,
“como sempre”: “se respeita o princípio constitucional de Sucre Capital e não queremos
291 A proposta de resolução que se pretendia votar dizia que considerando a existência de
reivindicações legítimas e por um país unido, a Assembléia atua com justiça histórica de modo
equitativo. Escutando as organizações representativas das organizações de La Paz, agregava, e em artigo
único propunha constitucionalizar o Poder Executivo e Legislativo na cidade de La Paz.
351
que se constitucionalizem os poderes, que são de todos”. Estava renunciado a que se
constitucionalizassem o poder eleitoral e judicial para Sucre, além das outras ofertas que
o departamento tinha recebido e estavam incluídas na resolução aprovada em La
Glorieta. Víctor Hugo Vázquez pedia que atuassem com racionalidade e atualizava a
situação: constitucionalizando a capitalia em Sucre e repartindo os poderes, aplaudiria
La Paz; reconhecendo a Capital sem incorporar os quatro poderes, aplaudiria Sucre292.
Realmente havia agora, pela primeira vez, uma plenária discutindo abertamente
um assunto para encontrar a melhor solução e redigí-la na nova Constituição. As
tensões internas de um movimento sólido como o MAS fazem inimaginável a discussão
aberta de todas as forças da Assembléia. Vargas perguntava o que os pacenhos haviam
feito aos outros departamentos para que os odiassem. Chamam-nos de lhama e não
damos nenhum apelido a vocês. A bancada de Sucre explicava que era a oligarquia que
dizia isso. Quando em outubro atiravam em nós, dávamos a vida pelos recursos naturais
com os quais todos os departamentos vão viver, continuava o Major Vargas. Nunca
dissemos “queremos que isto seja para La Paz e somente pedimos unidade, dizia.
Vargas propunha não constitucionalizar os poderes para La Paz, se deixassem claro na
Constituição que o referendo nacional somente poderá ser realizado para revogar
mandatos e não para consultar sobre a sede dos poderes. Assim poderia servir para que
as pessoas que estão buscando guerra no país, não continuassem no futuro com estas
ambições neste tema. Silvia interrompia dizendo que não podia argumentar tanto.
Vargas termina dizendo “La Paz, irmã Silvia, tem dois milhões de votos e se isto se
consuma, eles não vão apoiar”.
Saúl Ávalos esclarecia que nenhum constituinte presente odiava La Paz e
propunha resolver separadamente a capitalidad e a sede. Propunha votar primeiro a
constitucionalização da sede, algo a que ninguém se opunha, pensava; e logo consultar
sobre os poderes. Silvia Lazarte tomou a palavra e pediu que se votasse. Disse: “eu não
292 Yoni Baustista explicou que La Paz jamais atropelou ninguém e sempre lutou com visão de país. Por
justiça pelos homens e mulheres que morreram nas lutas, pedia que constitucionalizassem o legislativo
e o executivo para La Paz, sem ignorar a resolução do Liceu. o pensava que por trás disso estivesse a
intenção de pedir mais posteriormente. René Muruchi dizia que se decidem por dois poderes para
cada cidade irá gerar um enfrentamento e não haverá Constituição. Propunha determinar que houvesse
consulta prévia sobre o translado dos poderes, antes do referendo dirimidor para que não haja
polarização. Chuquisaca dizia que sim a esta proposta. Féliz Vázquez sugeria buscar equilíbrio aos que
não eram desses dois departamentos. Fora da sessão, Juan Carlos da REPAC consultava sobre a proposta
de que se defina a capital mas que os poderes sejam descentralizados nos departamentos. E que a
primeira magistratura resolva o lugar dos poderes, complementava Adolfo Mendoza, pensando ideais.
Todo mundo está envergonhado, dizia Rebeca Delgado; e Saúl Ávalos recordava que Chuquisaca abrigou
a milhares de filhos de toda Bolívia que estudaram em Sucre.
352
entendo vocês. Queremos propor qualquer coisa sem ter o raciocínio fundamental para
nosso país. Neste momento, para mim nenhuma das coisas é primordial mais que
aprovar a Constituição Política do Estado. Sim ou não? Por que agora não podemos
entender isso?” Propunha não decidir nem que seja constitucional, nem capital, nem os
poderes. Sabemos que é outra instância que decide o lugar dos poderes293. Para mim,
nenhum departamento é inimigo, somos uma família unida, continuava. Que estão
dizendo no mundo? Os meios internacionais estão transmitindo que por interesses
políticos e econômicos regionais... Devemos ser exemplo como Bolívia.
Propunha que se respeitasse que os poderes Executivo e Legislativo estivessem
em La Paz e o Judicial em Sucre, porém sem constitucionalizar. Que se mantenha como
está e não vamos brigar, dizia. Se não queremos discutir, que colocar desta maneira.
E como não é contra nenhum, que se uma solução pois discutimos o suficiente.
Isto não corresponde à Assembléia Constituinte, dizia. Então Silvia Lazarte pediu a
votação do artigo seis, de maneira que surpreendeu a todos, propondo que a situação
ficasse como na Constituição até então vigente. Isto implicava não reconhecer o caráter
de capital constitucional de Sucre nem a sede dos poderes Legislativo e Executivo para
La Paz. Somente se constitucionalizava que as diferentes instituições do poder Judicial
teriam sua sede em Sucre, como definido na Constituição de 1967.
O resultado imediato foi que enquanto La Paz aplaudia e Lazarte declarava o
artigo seis aprovado, a bancada de Chuquisaca começou a se retirar. Diego Pary pedia
que Roberto chamasse a Santos. Rubém Dalmau e Adolfo tentavam convencer os
chuquisaquenhos a permanecer na sessão. Teresa Morales chorava e suplicava “não
podem voltar às suas casas”. Carlos Romero pedia que se reconsiderasse a votação.
Esteban Urquizu declarava que sem um departamento não Constituição, enquanto
deixavam o salão da Universidade de Oruro. Os constituintes de Chuquisaca subiam na
caminhonete de Ramiro Guerrero, que estava ao lado do edifício. Uns oitos
constituintes de Chuquisaca entraram no veículo com a intenção de deixar o prédio da
293 Perguntava se os constituintes somente deveriam decidir sobre quantos poderes existem e os
constituintes responderam em coro que sim. Perguntavam se algum artigo da lei de convocatória diz o
contrário e o coro responde que não. E continuava: Onde diz que temos que fazer isso? advogados,
economistas...demonstrem, já que estão aqui, irmãos. Eu não quero cometer erros diante do país e não
quero ser julgada. Eu sou uma mulher mãe e tenho o coração grande. Por que falam disso se não é
nossa atribuição? Eu não vou cometer um erro nesse momento: os poderes executivo e legislativo são
em La Paz e o judicial é em Sucre. Se alguém quer cometer esse erro, que cometa. Eu não vou cometer.
La Paz tem o executivo e legislativo e Sucre, o judicial. Perguntava: os outros departamentos que temos?
E o coro constituinte respondia “nada”. Então por que essa briga? Vamos deixar que quatro -ninguens
nos façam brigar? “Não”, respondia o coro em um discurso interativo com a bancada dos constituintes.
353
Universidade, e assim a Assembléia. Outros constituintes pediam que se formasse uma
comissão para trabalhar. Alguém sugeria que os outros departamentos deveriam sair
também, para negociar. Do lado de fora havia muitos manifestantes esperando, que
gritavam se amontoando para tentar ver e entender o que acontecia.
Mirtha Jiménez, Carlos Romero e Armando Terraza saíam com uma resolução
para buscar os chuquisaquenhos. Sucre aceita a proposta feita mas La Paz não. O
prefecto de Oruro e Armando negociavam com os constituintes dentro do veículo.
Esteban segurava a cabeça. Ramiro finalmente sai do carro e vai conversar com Santos
Ramírez. Na caminhonete Toyota, os chuquisaquenhos esperavam com a cabeça baixa a
negociação da qual participavam os seus companheiros. Dentro do salão a Diretoria
continuava lendo as resoluções de menor importância. Repudiaram o processo penal que
um juizado de Chuquisaca havia iniciado. Um assistente da Diretoria me dizia que tinha
medo. “Que saiam, já se sabia”, me dizia Macario, me pegava pelo braço e dizia “O que
te aflige? Tinha que terminar assim”.
Do lado de fora as pessoas em vigília gritavam: “a trabalhar”. Alguém dizia que
não poderiam ir...que se deixassem que fossem, os cívicos de Sucre os considerariam
heróis para deslegitimar. Ramiro saiu da reunião e Avelina Vaca, de Chuquisaca,
comentava que La Paz agora não queria colocar “Sucre Capital”. Teresa falava por
telefone com Evo Morales. Álvaro Linera queria que respeitassem os acordos da
suprapartidária. Evo que se apressem, pois começa a considerar que rios constituintes
não respondem políticamente a ele, alguém dizia. Santos desapareceu e ninguém o
encontrava para participar da negociação, também havia saído cedo do Liceu Militar,
antes do final. Evo repreendeu Sardán por telefone e mandou que parassem de discutir e
seguissem aprovando. Alguém dizia que os de cima não se importavam com eles, e
somente pensavam em avançar. Isaac Ávalos resmungava. Fidel Surco ligou para dizer
que os que discutissem não atrapalhassem o resto e que estava falando “como Pacto de
Unidad”. Evo não queria esperar nem pela capitalidad nem por terra, antes, que também
não estava sendo resolvido.
Foi realizada então uma reunião de chefes de bancada com as organizações
sociais como testemunhas, para buscar uma saída. Uma nova negociação partia do zero
e transitava no difícil espaço de buscar que La Paz e Chuquisaca continuem na sala para
aprovar todos a Constituição. Temos que solucionar, não podemos estragar o fim da
Assembléia Constituinte, dizia o Chato, Raúl Prada. Não podemos criar um problema
dessa envergadura, dizia Cesar Cocarico. Diziam que a direita seria a única beneficiada.
354
Roberto Aguilar dizia “Santos que resolva”. Ramiro dava voltas procurando Armando.
Magda pedia calma e solução. E havia aborrecimento com a presidenta e o vice-
presidente da Assembléia. “Alguém tem que bater em Roberto”, dizia um importante
constituinte. Interpretavam que Roberto queria constitucionalizar os poderes a posição
de alguns em La Paz porém não assumia e “passava a bola para Santos”. Ele deveria
ter enfrentado os pacenhos, alguns diziam. “Carlos, inventa uma solução”, outros
pediam. Tendo sido assim durante um ano e meio, por que mudaria no final? diziam
outros constituintes enquanto esperavam o resultado da reunião de negociação. Loyola,
que tinha ficado esperando no recinto ao lado pois não a deixavam sair, dizia que se
poderia ter tratado do tema no teatro e sem morto. “Me empresta um folha, irmão?me
pedia Romero, que continuava procurando uma solução.
E finalmente o acordo foi anunciado. Mirtha, Diego e outros corriam para a
plenária. Macario sorria, parece que ganhou La Paz. Uma cholita dizia que estava se
durmindo pela confusão. A banda esperava com os bombos no chão. Adolfo Mendoza,
que participou da reunião, dizia que tudo iria se tranqüilizar. A reunião foi coordenada
por Armando, com três constituintes por departamento mais as organizações sociais
como garantes. A maioria dos constituintes chuquisaquenhos esperava do lado da
caminhonete. Não poderiam sair, se quisessem, pois os manifestantes não permitiram.
Tinham a ordem de que ninguém entrasse ou saísse. No salão se começava a conferir o
quórum. Por que não sai Ignacio? Perguntava alguém de Chuquisaca. Carlos Aparicio
dizia que tinham que terminar. Ignacio havia dito que permaneceria na sessão. Havia
129 constituintes e o quórum estava garantido por uma pessoa.
Roberto reiniciou a sessão dizendo que escutaram a discussão que considerava
que não deveria ter existido. Submetia primeiramente a votação a resolução sobre se os
constituintes podiam trabalhar nos meses seguintes, até que fossem convocados para
uma sessão final de ratificação. Ricardo Pol da UN dizia que não se podia atropelar uma
lei com uma resolução, que era uma barbaridade e que se queriam introduzir isto
deveriam tê-lo feito quando colocaram maliciosamente a mudança da sede. Nove
constituintes se abstêm e a maioria vota que os constituintes não pudessem trabalhar e
49 votaram pelo sim. A resolução é repudiada, “se aplica automaticamente a lei” e
discutem se teriam salário nos próximos meses. Roberto disse que se houver salário, ele
não vai cobrar. Emitem uma resolução de reconhecimento à Polícia e às Forças
Armadas. Ignacio Mendoza sugere se pronunciar também pelos mortos da La Calancha,
no dia da La Glorieta.
355
Ao final Chuquisaca regressa à sessão e é aplaudida, três ou quatro de La Paz
deixavam a sala. Foi discutido se se havia votado a Constituição ou não, pois os
artigos “em detalhe” haviam sido aprovados porém faltava a etapa de “revisão”. É
aprovada uma resolução que delega a tarefa à Diretoria. Essa versão final seria a CPE
aprovada “em grande, detalhe e revisão”. “Trabalhem” gritavam as pessoas, que
acompanhavam a sessão desde fora, pelos alto-falantes. Sabino se lamentava com a
cabeça. Macario jogava um papel para Villacorta. Armando apresenta que acordo.
Jonnhy Valdez, de La Paz, diz que que mostrar excelência pois estamos em um
momento histórico; que os nove departamentos estão como irmãos pela unidade e que
La Paz propunha uma solução alternativa; e explicou o acordado antes.
O acordo consistia em que somente se constitucionalizasse “Sucre Capital”, que
não aparecia na Constituição anterior e que pusessem “cadeados” para evitar que o tema
continue sem resolução. Pelo medo de que o Tribunal Constitucional a sede a Sucre,
por não se constitucionalizar os outros poderes, se fundamenta para que o Tribunal deve
se remeter às atas. Como trava para evitar o referendo, se adiciona que é considerado
traição à pátria os que queiram dividir o país. Ramiro Guerrero, de Chuquisaca, também
fundamentava e dava apoio ao acordo. Que todos escutem a mensagem de Guerrero,
alguém pede. Fala de grandeza e unidade. Mario Orellana, do MSM pacenho, leu o
acordo e disse que quando se trata do interesse nacional, que renunciar às demandas
regionais. Entendemos a demanda de Sucre e por isso será constitucionalizada como
capital da república. Porém La Paz também tem história. As vezes pecamos por
soberbia pela manifestação que lutou por esta Assembléia e a Constituição que se
concretiza com unidade.
Orellana lia que para evitar o conflito sugeria-se complementar o artigo 11 com
um parágrafo que dissesse que “nenhum mecanismo de consulta se aplicará a temas que
diz respeito à unidade do país”. Cocarico, que foi protagonista na idealização da
proposta acordada, continuava dizendo “este momento deve ficar gravado na memória
de todos os bolivianos”. E propunha adicionar um parágrafo no artigo 197 com o texto:
“em sua função interpretativa, o Tribunal Constitucional Plurinacional aplicará como
critério de interpretação, de preferência, a vontade do constituinte, de acordo com as
atas; documento e resoluções; assim como o teor literal do texto”. E expressava que a
vontade constituinte era que ninguém mexa neste tema. Também constitucionalizariam
que “quem promove ações que dividam deve ser considerado traidor da pátria e assim
será castigado”. Que quem não queira unidade é traidor. Silvia pediu a redação para
356
incluir. Ceballos falava da vontade política dos departamentos e resumia: Art 6: Sucre
Capital; Art 11: o que não promove unidade é traição; e Art 197: texto que propôs
Cocarico. Esse é o acordo ao que chegamos, que se constitucionalize. Que se vote,
solicitava294.
Roberto Aguilar dizia: isto é histórico, “que seja aprovado por aplauso e por
unanimidade”. Porém se pediu que fosse aprovado por voto. Se vota pela
reconsideração do artigo 6, de “Sucre é capital da Bolívia”. Vargas, Macario, Vladimiro
e algum outro constituinte de La Paz votaram contrariamente e Renato Bustamante se
absteve. Pela reconsideração do artigo 125 apenas foi contrário Vargas, já Ignacio
Mendoza se absteve. O artigo 197 teve apenas três abstenções. Se pede seja lido. “Onde
está o texto?” perguntava Silvia. Entrava a banda e Armando lia o acordo: “é delito de
traição da pátria o que, de qualquer forma, divida o país”. Silvia perguntava: “quem não
quer a unidade do país?”. Um potosino discursou em quéchua. Alguém pede para que
todos se abracem, para sair como um corpo. Agora sim a banda começou a tocar e se
entoam estrofes do Hino Nacional, com o punho alto e a mão no coração.
Logo após o fim da sessão, Roberto Aguilar marcava para o dia seguinte às 9h a
reunião do Comitê de Concordância e Estilo. Já havia a nova Constituição. A mensagem
final de Silvia Lazer foi que deveriam seguir com o trabalho. Roberto falou aos
constituintes, antes de deixar o salão e iniciar a marcha pela cidade junto ao povo.
Lembrou de quando chamavam a Silvia de “índia de merda” e disse que nesse momento
falavam de milhares de mulheres. Destacou o Estado Plurinacional criticando a idéia de
que ele é divisionista e voltou a destacar a presidenta e a política “no bom sentindo da
palavra”. Disse também que houve homens valorosos e adicionou “eu não estou dentre
eles”. Aguilar mencionou as mulheres de pollera que enfrentaram insultos e eram
perseguidas. E lembrou de Martin (Serrudo) defendendo Damián (Condori, dirigente
dos camponeses de Chuquisaca). Pessoas batendo e chutando os irmãos, que são
pessoas que apenas querem se incorporar a este Estado, dizia. Eles foram nosso coração,
nosso sentimento.
294 Ramiro Guerrero faz um comentário, de forma. No Artigo 6: primeiro Sucre capital, depois os
símbolos. Propõe que a tipificação de “promoção da divisão” como traição da pátria fosse no Artigo 125.
Armando disse que não era parte do acordo. A proposta lida por Mario era a primeira que Sucre não
aceitou e depois voltou. A diferença se tornava clara e Cocarico explicava que as propostas são
complementáres: a divisão territorial do país pode ser a divisão dos órgãos, por isso pode ser incluída no
mesmo artigo de maneira genérica, sem especificar que a traição será pela sede dos poderes. Alguém
pede que se inclua no artigo 125 o tema dos poderes como tipo de causa de desintegração.
357
Saí junto aos constituintes em uma emocionante marcha que chegou até o centro
da cidade. Voavam pedaços de papel e as mãos eram dadas para caminhar juntos. Os
constituintes se misturavam com as pessoas que haviam se aproximado para assistir à
última sessão da Constituinte e as organizações do Chapare, El Alto e Oruro que haviam
esperado do lado de fora durante a noite enteira. Os constituintes felizes, aliviados e
com emoção. Havia terminado. Pablo Ortiz de Santa Cruz, jornalista crucenho que
havia seguido a Assembléia desde o princípio e era bastante crítico do MAS, também
chorava emocionado. No almoço Teresa Morales, assessora do governo, me chamava de
pós moderno porque lhe disse que não tinha uma hipótese de investigação para explicar
o processo que tinha observado. No dia 15 de dezembro, a Constituição seria entregue a
Evo Morales com um marcha e festa na praça Murillo, em La Paz.
3.2 Retoques ao texto na Loteria e novo cenário.
Com o texto constitucional na mão, o que o MAS deveria buscar era a difícil
tarefa de que o Congresso convocasse o referendo dirimidor e de aprovação; e depois
ganhar a votação nas urnas para promulgar a nova Constituição. Para isto, o governo
formaria um novo espaço de diálogo. Era também o momento de começar a difundir
pelo país afora o texto aprovado. Na vice-presidência se realizavam algumas reuniões
para pensar a estratégia de comunicação. Sem embargo, a Assembléia Constituinte
continuaria trabalhando mais alguns dias, com a Comissão de Revisão, que prepararia a
versão final para entregar ao presidente na praça Murillo e remeter ao Congresso para
que conclua o processo. Novamente Pablo Zubieta havia sido designado por Silvia
Lazarte como coordenador da Comissão e portanto era mais uma vez o principal
destinatário das críticas.
Mirtha Jiménez chamou Román Loayza, Álvaro Linera, Saúl Ávalos e Carlos
Romero reclamando que Silvia havia fechado a Comissão. Magda falava a Pablo
Zubieta de “a Constituição de você” e dizia que não votaria. Mirtha criticava Pablo,
“desde o início se aproximou de Silvia e se fez notar por Evo quando era reitor”, dizia.
Falava também que havia se aproximado dela somente porque era vice-presidenta da
bancada. Lembrava que Román havia ganhado a votação para a presidência porém isto
não foi respeitado e impuseram Silvia, a partir do governo. Para ela, teria que ter sido
Isabel Domínguez. Magda ia mais longe e dizia que o problema da Assembléia era
Silvia. Dos chefes de bancada apenas Víctor Hugo Vázquez e Agustina de Santa Cruz
358
são a favor da Silvia, alguém completava. Para vários outros, o presidente deveria ter
sido Carlos Romero, que disputou o cargo até que Evo Morales o denegriu, dizendo que
era ambicioso.
Um ano fazendo a Constituição para desfazê-la em uma noite”, dizia outro
constituinte, chamando Pablo de traidor. Muitos queriam entrar com o argumento de
que estavam “fazendo desastres”. “A política é suja”, Pablo disse para alguém. o
haviam deixado entrar os assessores espanhóis, por ordem de Silvia. E somente
permitiram a presença de Sardán, outro constituinte dizia indignado. Diziam que Silvia
havia mentido dizendo que os espanhóis tiraram a justiça comunitária, como meio de
justificar que não entrariam. Rubén Dalmau dizia que estava com seu salário de
professor, como voluntário, e que na porta da Universidade, em Oruro, as organizações
não o deixavam entrar por ser da Espanha. Um perguntava “deixamos passar este
q'ara?” e outro respondia “não... e que agradeça que havia luz, senão o teríamos
violentado”. Ele explicou que estava com o processo de mudança e assim permitiram
sua entrada.
Entre as modificações introduzidas na etapa da revisão, estava a mudança nos
requisitos para ser juiz do Tribunal Constitucional, que fechava as portas às autoridades
originárias. Havia sido sugestão de Borda e Cocarico, que segundo uma constituinte
tinha uma postura de “esta é a lei” quando do que se tratava de mudar as leis. Alguns
viam que nas modificações que eram feitas na sede da Loteria, em La Paz, havia
mudanças positivas que melhoravam o texto e que apenas se exagerava ou criava
conflito pelo desejo de estar presente. Na última madrugada antes de entregar o texto,
Silvia Lazarte, por influência dos pastores evangélicos, tinha mandado fazer mudanças
exigidas pelas igrejas, como a menção de homem e mulher para o casamento, como
outros constituintes evangélicos haviam sugerido no trabalho das comissões.
No balanço da última sessão, havia uma opinião crítica generalizada contra La
Paz e o uso da sua força na negociação para obter ganhos. Na bancada de Chuquisaca
do MAS havia frustração e não estavam de acordo com o que tinha acontecido. Esteban
Urquizu me dizia que defendia o acordo pelo qual haviam arriscado e se sacrificado,
porém não defendiam o que foi aprovado logo da imposição da La Paz. Pensava que La
Paz pediria mais e não se acalmaria. Os chuquisaquenhos tinham uma reunião com os
membros da Diretoria desse departamento para ver o que poderiam fazer. Poderiam
exigir que incluíssem o resolvido no dia 24 na resolução aprovada no Liceu. Em Sucre,
a polícia havia voltado e a Assembléia decidiu doar seus computadores à corporação.
359
Limbert dizia que a polícia de Sucre não deveria ter retornado sem as condições
adequadas, porém tiveram que voltar porque senão o exército, de maneira desleal, teria
começado a fazer as tarefas da polícia, explicava. Limbert também estava frustrado
porque não havia sido possível introduzir mudanças no assunto de Segurança e Defesa,
por pressão do exército e por falta de acompanhamento da força policial ao seu projeto.
Era fácil se perder em um mundo de rumores e brigas internas por poder que
envolviam as mudanças no texto constitucional. A indignação e ênfase com as quais os
constituintes falavam dessas disputas levavam a isso. A vida cotidiana dos políticos
estava cheia dessas coisas e disso também se construía o novo Estado. Uma etnografia
do processo constituinte deve passar pela tensão que constituía este amplo movimento e
é parte inseparável da política para os que participam nela como protagonistas. No
entanto, havia uma certa “contradição principal” que unificava as rivalidades internas e
criava um cenário mais formal e solene, no qual se dava espaço ao discurso político e se
escutava falar de revolução, luta contra a oligarquia, risco de separatismo e guerra civil.
Alguns qualificavam o discurso como uma casca que se impunha diante da realidade.
Porém poderia ser visto, antes, como outro nível da realidade, que era o da disputa com
a Meia-Lua e tinha efeitos consideráveis nas relações políticas de um processo que a
aprovação da Constituição apenas mobilizava para uma nova fase.
A força da oposição que controlava a maioria dos governos departamentais e o
Senado, além de ter somado Chuquisaca ao bloco da Media Lua fazia que o objetivo
de aprovar a Constituição se mostrasse como uma batalha necessária e difícil para
garantir a continuidade do processo de mudança. Entrevistei Romero antes da entrega
final da Constituição. Em suas respostas já podia ser sentida o tom da etapa que
começava, ou que continuava mas que aumentaria em intensidade. Dizia que o processo
constituinte havia sido tão difícil pois tratava de transformações estruturais. Resumia os
grandes momentos da história da Bolívia e chegava ao da nova Constituição na qual
“pela primeira vez participa a pluralidade, a heterogeneidade que é a Bolívia, de suas
regiões, de seus povos, suas culturas, suas classes sociais distintas expressas nestes 255
constituintes que integramos à Assembléia”. Romero falava de uma Revolução
Democrática com dispersão de poder, sem um poder hegemônico claro.
Um dos balanços da Assembléia, para Romero, era que se havia permitido
esclarecer qual é a disputa real de poder na Bolívia. Esta disputa era, para o constituinte,
o controle da terra e floresta em Santa Cruz e a definição da renda do gás em Tarija. Do
outro lado: movimentos indígenas que se moldaram como elemento articulador do
360
poder político. Na visão de Romero, o Estado ainda não conseguiu uma coesão
adequada e mantinha fraturas profundas a nível regional. Isso era o que estava sendo
explorado pelos setores conservadores que querem frear o processo de mudança, seguia
Romero, a partir da exacerbação de sentimentos regionais e um tema que ainda é muito
delicado na Bolívia, ainda que se vissem avanços substanciais, que é o racismo. Assim
definia o projeto político conservador que buscava gerar um cenário assimétrico dos
dois blocos de regiões, com setores mais radicalizados com tendências potencialmente
separatistas e setores mais moderados com um modelo de autonomia que buscava o
controle dos recursos naturais e o excedente econômico para redefinir as relações
políticas e econômicas com o Ocidente.
O nome de Romero como o de outros assembleístas, dirigentes indígenas,
representantes de ONGs, deputados, políticos do MAS, etc. estavam em listas coladas
nas paredes de Santa Cruz, que os acusavam de traidores ao departamento. A cidade de
Santa Cruz era governada por Percy Fernández, tio do presidente do Comitê Pró-Santa
Cruz Branko Marinkovic, que não ocultava seu olhar racista e que meses atrás tinha
proposto a divisão do país em dois. Em dezembro de 2007, enquanto em Oruro se
aprovava a Constituição, a praça central 24 de Septiembre se transformou em um
acampamento com barracas com pessoas de jejum numa greve de fome em protesto pela
Assembléia Constituinte e o corte de recursos aos governos departamentais. Nos
primeiros dias de dezembro tinham se difundido imagens de Santa Cruz, sobre uma
violenta agressão física contra militantes do MAS, expulsos com golpes de paus sob os
gritos de collas
295
de merda”, e outras de golpes contra um fotógrafo agredido por ser
acusado de “massita”.
A associação de empresários e a Câmara Agropecuária do Oriente (CAO), junto
aos Comitês Cívicos da Meia-Lua e de Chuquisaca declaravam que a Constituição não
era válida por ter sido aprovada de forma ilegal. O debate constituinte seguia fora e
depois da Assembléia. O governo e as organizações defendiam o texto e começavam a
organizar a campanha pela sua aprovação. Os sindicatos de professores haviam
conseguido que a educação seguisse centralizada e declararam que “assumirão a
Constituição”. Apesar da crise interna, a agrupação cidadã PODEMOS, que era a
aliança dos sobreviventes do partido ADN do ex-ditador Banzer no Oriente e Ocidente,
295
Pessoa proveniente da região andina da Bolívia.
361
se uniam na crítica à nova Constituição. Tuto Quiroga declarava que a Constituição
aprovada era “um pedaço de papel que vale tanto como papel higiênico usado”296.
Dia 15 de dezembro Silvia Lazarte entregava a Constituição ao presidente
Morales297. Na entrega da Constituição aprovada em Oruro pela Assembléia
Constituinte, Evo Morales falou de descolonização e ao final de seu discurso pediu que
o ajudassem a dizer: “que viva terra e território, kausachun coca, que vivam os
constituintes patriotas”. García Linera disse que insistiriam no chamado ao diálogo,
apesar de que enquanto faziam isso tinham golpeado constituintes, perseguido
camponeses, colocado bombas nas casas de constituintes. Contava que tinha se
encontrado com Costas e Marinkovic pedindo para que trouxessem suas propostas e a
resposta recebida foi “a Assembléia Constituinte não serve”. Haviam feito todos os
esforços, dizia García Linera, e afirmava que seguiriam fazendo.
4 A ofensiva do Oriente contra a Constituição.
No mesmo dia que em La Paz se entregava a Constituição aprovada pela
Assembléia Constituinte, em Santa Cruz ocorria uma Assembléia auto-convocada,
tentando abrir uma nova agenda contraposta à da Constituição “do MAS”. Acontecia no
edifício da prefectura de frente à praça, com a participação dos parlamentares
296 Em um documento que a oposição divulgou, se mencionavam 21 normativas do regulamento de
debates e leis que o MAS havia desrespeitado. Incluíam a tentativa de impor a maioria absoluta ao
iniciar a AC; o relatório da Comissão Visão de País; a resolução de 15 de agosto que excluía o tema
capitalidad do debate; a não publicação da Pauta do Dia 24 horas antes, para a sessão de La Glorieta e
Oruro; e que a oposição não tinha segurança para participar das sessões. Não cumpriram a necessidade
de “garantir a independência da Assembléia” também incluída nas atribuições da Presidência no
regulamento; se havia violado o caráter público das sessões; não se distribuiu com tempo o documento
a ser votado nas últimas sessões, ainda que poderiam haver casos “de urgência”; não se havia
convocado uma Comissão de Concordância integrada com representação proporcional das minorias;
não se havia distribuído com cinco dias de antecedência o texto final antes da revisão de concordância e
estilo; não haviam respeitado o direito à participação e não se concedeu a palavra para comentários dos
artigos; não havia registro confiável ou verificável sobre o número total de assistentes às últimas
plenárias; não se respeitou o regulamento nem o procedimento para reformá-lo; outras observações se
referiam a ausência de dois terços do total na aprovação, não considerando o “caminho comprido” que
a lei de ampliação também estabelecia.
297 Na sua cronologia da Assembléia, Albó (2008) inclui que dia 15 de dezembro no município de Santa
Rosa del Sara, no norte de Santa Cruz, quando uns mil camponeses incluídos, sem dúvida, os da colônia
Chore de onde vem Silvia Lazarte entraram na praça do povoado para festejar a aprovação do novo
texto constitucional, porém se encontraram com a Unión Juvenil Cruceñista e outros grupos. O que
resultou em uma confusão com saldo de 32 feridos. Ao mesmo tempo, a imprensa informava que o
Departamento de Estado dos EUA tornou blico um comunicado no qual recomenda aos cidadãos
estadunidenses adiar as viagens não essenciais à Bolívia” devido “à natureza altamente polarizada do
processo da Assembléia Constituinte da Bolívia”.
362
crucenhos, representantes das províncias e dos povos indígenas, para elaborar o Estatuto
autônomo de Santa Cruz, e igual que em Oruro também em uma sessão relâmpago de
menos de dois dias. Depois da sessão de Oruro, a estratégia dos departamentos da Meia-
Lua consistia na busca de aprovação, em referendo departamental, de estatutos que
dessem lugar a uma autonomia “da fato”. O assessor da Assembléia que elaborava o
Estatuto Departamental de Santa Cruz era Juan Carlos Urenda. O texto concluído no dia
seguinte, 16 de dezembro, era distribuído pelo jornal El Deber e apresentado como
contra proposta crucenha à Constituição recém aprovada em Oruro. O Estatuto não
respeitava o marco constitucional aprovado na Assembléia Constituinte, nem o existente
na Constituição anterior. Viriam tempos de enfrentamento.
Da prefectura de Tarija, Mario Cossio chamava a defender o mandato do
referendo autonômico de 2006 e declarar a autonomia de fato. Isaac Ávalos declarava
que se há autonomia de fato e os departamentos desacatavam a lei, os camponeses iriam
tomar as terras. Em La Paz, o governo declarava que os que convocavam à divisão do
país iriam à prisão. A ministra Torrico declarava que perseguiriam com a lei e a justiça.
O porta-voz Álex Contretas dizia que cinco pessoas (os prefectos) e os Comitês Cívicos
buscam a desestabilização da democracia. O MAS contava com as Forças Armadas para
garantir a unidade territorial, porém Rubén Costas anunciava que no exército muitos
juraram defender a Constituição ainda vigente e então iriam ignorar a aprovada pelo
MAS. Nesse dia, jovens que se identificaram como da Falange Boliviana sabiam onde
eu tinha estado nos últimos dias e qual era meu endereço em Sucre. Me diziam que não
queriam “indígenas de merda, ONGs de merda nem estrangeiros de merda”. Também
me expulsariam da sessão na qual aprovavam o Estatuto Departamental, dizendo que eu
deveria abandonar Santa Cruz.
Por trás de uma bandeira de Autonomia em sentido forte, Santa Cruz
encabeçava a aposta do CONALDE por vencer Evo Morales e impedir a entrada em
vigência da Constituição de Oruro. O plano começava com a aprovação dos estatutos
em referendos que mostrassem a popularidade da causa, nos quatro departamentos da
Meia-Lua onde havia ganhado o “sim” pela autonomia no referendo de 2006. Em Santa
Cruz se havia iniciado a coleta de assinaturas, que ultrapassaria cem mil adesões. No dia
30 de janeiro Rubén Costas emitiu a resolução que marcava para 4 de maio o referendo
departamental. Os outros departamentos seguiriam em seqüência escalonada pelo
mesmo caminho. Desde 2004 (lei 2769) estava habilitado, por pressão dos movimentos
sociais, o mecanismo para consulta popular departamental, nacional e municipal
363
vinculante298. Do lado do governo do MAS, que agora tomava as rédeas do processo
constituinte de maneira direta, começariam as tentativas de abrir espaços de diálogo,
que pudessem levar à aprovação da Constituição, então ainda em um horizonte muito
distante. Em 7 de janeiro uma reunião com os prefectos, que buscavam a restituição
da parte do Imposto sobre Hidrocarbonetos (IDH) que o governo havia destinado ao
pagamento da Renta Dignidad.
De acordo com o constituinte de PODEMOS, Gamal Serham em seu livro La
Historia no oficial de la Asamblea Constituyente” (2008:54, trad. nossa), neste cenário a
oposição repudiava a proposta de diálogo de García Linera, responsável pela Comissão
Política, que estabelecia que as propostas de modificação do texto da oposição depois
deveriam ser aceitas pela Plenária da Assembléia Constituinte. De acordo com Serham,
o vice-presidente fingia uma independência da Assembléia que nunca existiu e citava
também um parágrafo retirado de La Prensa escrito pelo seu companheiro de bancada,
José Antonio Aruquipa, em que este considerava a Constituição aprovada em Oruro
como “um estatuto azul [cor do MAS], aprovado entre fuzis e baionetas e reformulado
na Loteria Nacionale também era chamado de “texto denominado pelo MAS como
'nova Constituição' manchado de sangue, viciado em nulidade e cheia de aberrações
jurídicas para destruir o Estado de Direito” (:59 trad. nossa).
No final de fevereiro haveria uma nova tentativa de diálogo com líderes do
Congresso e no dia 26, García Linera propunha uma trégua de dois meses sem medidas
de força nas regiões e dos movimentos sociais para realizar um “grande acordo
nacional”, aceitando a possibilidade de que houvesse algumas modificações na
Constituição aprovada em Oruro. Porém a Corte Eleitoral Departamental de Santa Cruz
começou a preparar o referendo ratificador do Estatuto, para 4 de maio, desafiando a
Corte Nacional que havia desautorizado a votação. E no 28 de fevereiro, o MAS
buscaria uma nova jogada de mestre com os movimentos sociais no Congresso que
permitisse terminar o trabalho de aprovação da Constituição. Um terceiro cerco ao
Congresso como o que aprovou a mudança de sede e a Renta Dignidad (e, em 2006, a
tentativa de aprovação da lei de terras) permitiu esta vez a aprovação de três leis: uma
298 Cochabamba e La Paz, com prefectos de oposição, porém em território onde se havia votado pelo
MAS, ficavam fora desta estratégia assim como os vicos de Sucre, embora permaneciam aliados à
Meia-Lua. Em Sucre, se juntavam assinaturas para, em primeiro lugar, convocar um novo referendo que
revisasse o voto negativo à autonomia na votação de 2006. Os cívicos do Comitê Interinstitucional em
Defesa da Capitalia, que tinham se somado ao CONALDE, buscariam também eleger uma autoridade leal
à busca de capitalia que substitua o prefecto até então desaparecido David Sánchez.
364
proibindo a realização de referendos departamentais e outras duas viabilizando a
convocação do referendo Dirimidor e Aprovatório da Constituição, para o 4 de
maio, mesma data para a qual Santa Cruz havia convocado sua consulta299.
Uma vez mais, não se tratava de um avanço criador de uma nova
institucionalidade depois da ruptura com a ordem estabelecida e sim de um avanço
como manobra realizada para aprovar reformas normativas sem romper o marco
institucional vigente. Se trata de movimentos de introdução de pequenas modificações e
não grandes modificações, como parte do jogo institucional que o MAS decidiu jogar
desde a década de 90. As medidas se fundamentavam nas tentativas de atravancar e na
negativa de diálogo por parte da oposição, representada pela coexistência de um
pequeno grupo de legisladores de partidos tradicionais, formados por setores liberais
mestiços do altiplano, e a oposição do Oriente que defendia o regionalismo
autonomista.
A diferença entre os dois setores da oposição era que enquanto os do ocidente
davam ênfase na defesa do Estado de Direito e na “legalidade”; desde o Oriente se
impulsionava um caminho de imposição de reformas por fora da institucionalidade, com
medidas populares impostas pela força, como era o caso do projeto de aprovação dos
estatutos. Na Bolívia, as estruturas legais rangiam, independentemente do contexto da
Assembléia Constituinte, que era somente um indício dessa situação. As leis e
normativas, não eram então uma barreira intransponível, como em outros lugares, e
atrás do que se considerava verdades políticas, era possível encontrar caminhos políticos
para avançar na disputa política. Era um passado moribundo, na realidade, o que
aparecia preservados nas instituições. A força política da vontade popular, a favor de
Evo, do novo Estado Plurinacional ou da autonomia, aparecia ao lado do novo e
legítimo. Não era uma disputa contra a lei, no entanto, porque ironicamente todas as
batalhas em que se denunciava “ilegalidade”, se livravam com o cuidado de ratificar as
decisões políticas nos novos marcos normativos que passaram a estar vigentes.
No cerco ao Congresso, se aprovava então a convocatória para definir o processo
constituinte na data de pouco mais de dois meses depois. Segundo a ABI, agência
299 Eram as seguintes leis: 3835 que estabelece que somente o Congresso Nacional pode convocar a
consulta nos departamentos até que não haja autoridades departamentais eleitas. Lei 3836 que convoca
o Referendo Dirimidor sobre a expansão do latifúndio e o Referendo Constituinte de repúdio ou
validação do projeto da nova Constituição para o dia quatro de maio. E a lei 3837 que modifica artigos
da lei de ampliação da Assembléia, diminuindo o prazo de convocação do Referendo Dirimidor e
autorizando sua realização junto ao aprovatório da Constituição.
365
estatal de notícias, “era uma jornada histórica marcada pela pressão dos movimentos
sociais, o Congresso Nacional, com a presença de uma reduzida oposição, deixou nesta
quinta-feira nas mãos do povo boliviano o futuro do novo texto da Constituição Política
do Estado (CPE), depois de sancionar por dois terços dos presentes dois referendos
constitucionais para o dia 4 de maio”. Segundo Serham, o vice-presidente coordenava
em seu despacho uma das reuniões da Comissão Política aberta recentemente com os
líderes da oposição no Congresso, quando se desculpou para se retirar instantes antes da
reunião, insistindo para que continuassem em sua ausência. Porém nunca voltou à
reunião e apareceu no Congresso Nacional para possibilitar a sessão onde se aprovaram
as leis, logo antes que o cerco das organizações impedisse a entrada de parlamentares da
oposição.
Gamal Serham era desses constituintes de PODEMOS que insistiam na
legalidade da ordem vigente. Indicava então que a polícia não garantiu a segurança para
que o presidente do Senado pudesse percorrer as duas quadras que separavam a vice-
presidência do Congresso; que os parlamentares da oposição presentes não puderam
fazer uso da palavra; também que os Senadores suplentes não poderiam estar presentes
pois os titulares não tiraram licença; e tampouco se poderia haver aprovado leis na
sessão conjunta das duas câmaras, sem antes ter passado em cada uma separadamente.
Também se denunciou que algumas congressistas foram golpeadas para impedir sua
entrada. Eram as mesmas críticas que se havia escutado na Assembléia e na lista das “21
ilegalidades”, da qual Serham provavelmente era o autor. O MNR e Unidad Nacional
criticavam a medida e pediam voto no “não”. Isto é uma declaração de guerra às
regiões, dizia Guillermo Richter à imprensa300.
Porém esta vez, a jogada de xadrez não pode se concretizar. A Corte Nacional
Eleitoral, presidida por José Luis Exeni, suspendeu no dia 7 de março as consultas da
nova Constituição, “por falta de condições técnicas, operativas, legais e políticas”,
ratificando também a suspensão da consulta de Santa Cruz. A Corte era pensada até esse
300 Numa alusão negativa que remetia à definição de povo boliviano, o jornal El Deber informava no dia
29 de fevereiro: “Com a praça Murillo ocupada pelos partidários do governo e sem resguardo, algumas
parlamentares foram presas da multidão. Quando a cochabambina Ninoska Lazarte, de Podemos,
tentava entrar no Palácio Legislativo, foi agredida por homens e mulheres. Apanhou de capacetes
mineiros, monteras quechuas, chicotes aymaras, chutes e foi molhada com água e expulsa da praça *…+
Com cerco ao Parlamento, golpes a três deputadas, ocupação do hemiciclo pelos ponchos rojos e
mineiros com dinamites e rodillo congressual (voto automático da maioria), o Movimiento Al Socialismo
aprovou pela noite a convocatória para os referendos constitucionais e mudou a Lei de Referendo para
tentar eliminar a possibilidade legal de que os prefectos convoquem consultas sobre autonomias
departamentais”.
366
momento politicamente próxima ao governo, e provavelmente continuava sendo, porém
estava intervindo para orientar os processos ao Congresso da Nação de forma definitiva,
aonde a Corte resolve solicitar a realização das convocatórias, ratificando assim o curso
que havia sido estabelecido pela Lei de Ampliação de agosto de 2007301. Ou o MAS
retrocede, então, diante do risco de não ganhar o referendo, ou a partir de outros
cálculos políticos determinando assim um retrocesso na tentativa de vencer a
convocatória do referendo de Santa Cruz com os referendos constitucionais. Por sua
vez, e sem calcular a possibilidade de suspensão, depois do cerco, a oposição havia
começado a preparar uma campanha pelo desacato ao referendo do governo.
Em Chuquisaca, um dia antes da suspensão do referendo pela Corte, os cívicos
ocuparam de forma unilateral e também sem respeitar o marco institucional a Junta
Autonômica Departamental de Chuquisaca e proclamavam a Sabina Cuéllar, ex-
constituinte do MAS e ex-dirigente camponesa, Prefecta de Chuquisaca, diante da
ausência do Prefecto David Sánchez e o não reconhecimento do Prefecto interino Ariel
Iriarte, que tinha sido nomeado pelo MAS. A concentração dava um prazo até 17 de
março para que o governo a reconhecesse oficialmente, uma vez que reconheciam que a
nomeação não lhe dava respaldo legal para assinar cheques e resoluções302.
Em resposta, no dia 21 de março se realizava uma manifestação camponesa em
Tarabuco, interior de Chuquisaca, para ratificar o apoio ao prefecto interino e a nova
Constituição. Neste departamento, eram os partidários do MAS que falavam de respeito
à legalidade, criticando o nomeação ilegal de Sabina Cuellar. Em uma entrevista à
imprensa, Sabina Cuellar, até então constituinte, falava dos mortos do dia da aprovação
da Constituição no Liceu; de que o governo “marginalizou Chuquisaca”; e explicava
que “não havíamos defendido a autonomia quando tinha Assembléia, porém agora ele
301 É necessário esclarecer que as discussões legais não contavam com o Tribunal Constitucional para
ser definidas pois o mesmo estava acéfalo, de igual modo que a procuradoria (fiscalia, que funcionava
com um interino) e a Corte Eleitoral, que contava apenas com três de seus cinco membros. As
diferenças com a oposição no Congresso faziam impossível avançar nas nomeações.
302 Porém, o procedimento legal estabelecia que o MAS não poderia nomear um prefecto sem fazer
eleições, o que não era conveniente para o governo dado o clima político de Sucre após os
acontecimentos de capitalia. Minha amiga Nelly Toro que tinha sido proibida de introduzir “a visão dos
ayllusno canal do arcebispado, onde trabalhava me atualizava sobre a situação por e-mail. Dizia “por
outro lado, em Sucre elegeram Sabina Cuellar como prefecta, porém em um Cabildo apenas com
pessoas de Sucre e o do departamento todo. Os movimentos sociais de Chuquisaca não a receberiam
pois foi ignorada por trair suas bases no ano passado, a oligarquia de Sucre quer colocar uma índia,
como dizem eles, para derrotar outro índio e causar brigas entre os índios, para ver tudo de camarote. É
um jogo político realmente desagradável, o pior é que ela não se conta que está sendo usada por
estas pessoas
367
(Evo Morales) discriminou Chuquisaca, por isso nós optamos pela autonomia para o
departamento”. Dizia que não havia traído e sim vestido a camisa de Chuquisaca303.
No dia 11 de março, logo de que foram suspensas as consultas constitucionais,
assisti a uma conferência de imprensa do vice-ministro de Coordenação governamental,
Héctor Arce, realizada no Consulado da Bolívia em Buenos Aires. Anunciava que o ex-
chanceler argentino Dante Caputo chegaria à Bolívia como representante da OEA para
observar e falar com as partes. Dizia que o diálogo e o consenso era o único caminho
para aprovar os referendos. E manifestava sua preocupação pelos “líderes regionais que
querem fazer referendos sem se enquadrar na legalidade”. Explicava que a Corte
Nacional Eleitoral (CNE) os havia desconsiderado, deixando também em suspenso o
referendo da nova Constituição, porém que as Cortes Departamentais decidiram seguir.
O governo estava comprometido com as autonomias, dizia, porque as via como um
anseio antigo da população, porém seriam aceitas somente se encaixassem na nova
Constituição. Perguntado sobre como seria a resolução do conflito, Arce disse que
Linera iria convocar uma sessão do Congresso e que também havia outras instâncias
além do Congresso, porém insistia que a oposição devia respeitar a legalidade e aceitar
o diálogo e consenso.
Em abril, Jorge Taiana e Celso Amorim, ministros de Relações Exteriores do
Brasil e Argentina, e o vice-chanceler colombiano, Camilo Reyes, chegaram à Bolívia
para contribuir na busca pela aproximação e diálogo entre as partes. A Igreja Católica
também participou como facilitadora, se reunindo com uns e outros. Também foi
enviado pela OEA Dante Caputo, como havia anunciado Arce. A conclusão de Caputo
não foi muito original: indicou que as partes estavam distanciadas e via riscos de que as
diferenças não pudessem ser eliminadas pelo diálogo. A OEA declarou que respaldava a
unidade territorial da Bolívia, porém não emitiu comunicados condenando a consulta de
Santa Cruz , como o governo esperava. A situação era um governo convocando o
diálogo cada vez que se manifestava, incluso aceitando realizar mudanças no texto
303 Sabina continuava, diante da imprensa, contando que lutou desde seus 17 anos na organização
Bartolina Sisa, sempre pela esquerda e pela igualdade. E que lutou e fez campanha pelo presidente Evo
Morales, para que fizesse mudanças e respeitasse a legalidade, depois que mataram seu pai, marido e
cunhado, em 2001, quando iam comprar gado. Sobre Evo Morales dizia: “tem que levar em
consideração por que as pessoas estão reagindo. Tem que saber que a cesta básica está subindo. Ele
também tem que pensar na Bolívia, porque não pode dividir e sempre pregou: 'não vou matar, não vou
levantar armas e não vou matar ninguém porque vamos fazer mudanças'. Agora está fazendo o
contrário, está levantando armas, está usando as Forças Armadas e isso não podemos permitir”.
Entrevista de Carmela Delgado: “Evo prometeu não matar e está fazendo o contrário”. El Correo e El
Deber, disponível em http://www.eldeber.com.bo/2008/2008-03-
08/vernotanacional.php?id=080307222830
368
aprovado, no entanto com uma oposição que não mostrava gestos na mesma direção. No
Oriente, se havia lançado a convocatória para aprovar estatutos apesar da oposição
governamental e da Corte Nacional. No 5 de abril, o chefe do PODEMOS, Jorge Tuto
Quiroga, declarou que para possibilitar uma mesa de diálogo seria preciso que o
Governo retire sua Constituição e anule a redistribuição do Imposto Direto aos
Hidrocarbonetos (IDH).
Além do acompanhamento das notícias, uma conversa com Luty Mendoza,
assistente de Roberto Aguilar, via internet, me permitiu ter uma melhor idéia da tensão
que havia em torno da Assembléia Constituinte, em fins de março de 2008. Ela se
manifestava preocupada pelo Professor Aguilar. Me contava que o processo judicial da
Assembléia tinha sido negativo e que por esses dias se esperava uma ordem de prisão
para sete membros da Diretoria, pelo que consideravam entrar na clandestinidade. Os
membros do MAS da Diretoria pensavam que não poderiam voltar a Sucre (para
declarar) pois seriam linchados, dizia Luty. Porém também não poderiam permanecer
na clandestinidade porque em pouco tempo seria necessário convocar uma última sessão
da Assembléia para incorporar os resultados do referendo da terra. Além disso,
preocupava o referendo de Santa Cruz para o dia 4 de maio e que por necessidade de
trabalhar para ganhar dinheiro os militantes, se afastaram do político, dizia minha
interlocutora por chat. Também sinalizava o problema de que os constituintes estavam
“no limbo”, sem poder trabalhar até que se resolvesse o processo constituinte. Estava
preocupava também com a notícia que acabava de ler, sobre a presença de militares
estadunidenses na selva peruana.
4.1 A agenda de Evo Morales e o MAS.
Frente à iminência do referendo do dia 4 de maio em Santa Cruz, o governo
decidiu não impedi-lo, descartando a hipótese de militarizar Santa Cruz e priorizou
continuar na disputa política a partir da promoção de sua agenda de realizações
governamentais. Todos os ministérios eram orientados a avançar com suas políticas,
com ênfase na visibilidade, a partir de um estrito acompanhamento do presidente. No
de maio de 2008, foram anunciadas novas nacionalizações, seguindo com a tradição de
comunicar importantes medidas no dia do trabalhador. Evo Morales decretou a
nacionalização da ENTEL (Empresa de Telecomunicações) e quatro empresas
petroleiras (REPSOL, TRANSREDES, CHACO e CLHB) que tinham entre seus
369
acionistas empresas internacionais como BP, PAE e AEI. Ao mesmo tempo, Evo
Morales iniciava sua campanha em defesa do futebol na altitude e entregava campos de
futebol em comunidades com mais de quatro mil metros de altitude, organizando
também uma frente política regional contra a decisão da FIFA de realizar uma proibição
que afetava especialmente a Bolívia304.
Também os setores sociais tomavam iniciativas, assumindo o pedido de Evo
Morales e García Linera de acompanhar o governo com mobilização social, ou a partir
de iniciativas próprias. Nos povos indígenas de Santa Cruz (chiquitanos, ayoreos,
yuracaré-mojeños, guarayos e guaranis), a CPESC declarou a autonomia indígena “de
fato”, como modo de contrastar com a política do prefecto Costas, advertindo que em
suas comunidades não haveria votação do estatuto departamental305.
O presidente continuava com sua política de entrega de obras, tratores, rádios,
computadores, do programa “Evo cumpre”, financiado com recursos outorgados pela
Venezuela –que por algum estranho motivo não são considerados “cooperação
internacional”, como os aportes de outros países e sim como “os cheques de Chávez”
que tinham conseguido acelerar a gestão e esquivar a burocracia, mas tinham problemas
na fiscalização do uso dos recursos. Ao mesmo tempo, a brigada dica cubana
instalada na Bolívia desde 2006, anunciava a cifra de onze milhões de consultas
realizadas no país. O plano de alfabetização Yo Puedo”, que também era
coordenado pelos cubanos, anunciava ter superado a meta dos 500 mil alfabetizados,
aproximando-se à declaração do fim do analfabetismo na Bolívia. No início de abril,
foram expropriadas propriedades do americano latifundiário Larsen, em Alto Parapetí.
Se tratava de uma medida que beneficiaria a comunidade guarani que ali trabalhava em
condição de semi-escravidão e a repercussão da medida aumentou pois a comissão do
INRA que se dirigiu ao local, encabeçada pelo diretor da entidade, foi recebida com
tiros e pedras, tendo que voltar posteriormente com as forças de segurança.
304 Neste caso, a “nacionalização” se tratou da compra (expropriação ou confisco) de ações, nos três
casos em termos não aceitados pelas empresas, portanto os analistas criticaram a medida porém dessa
vez reconheceram que era uma nacionalização real, em contraste com a opinião sobre a de 2006, em
que se aumentou os impostos e obrigava a comercializar via YPFB. O decreto transferia o controle das
empresas à YPFB em uma operação de 43,6 milhões de dólares. O constituinte Pablo Zubieta, a cargo do
texto constitucional nos últimos dias da Assembléia, seria o presidente de uma destas empresas
nacionalizadas.
305 Adolfo Chávez declarou à imprensa “caso enviem ânforas, primeiro as destruiriam e se houvesse
resistência dos grupos, desembainharão arcos e flechas para obrigar que não realizassem a consulta”.
Em regiões como San Julián, em Santa Cruz, e Bermejo, em Tarija, também houve manifestações
contrárias aos estatutos e a convocatória do referendo departamental.
370
O discurso e a política oficial enfatizavam principalmente o aspecto econômico
e a crescente intervenção estatal no campo produtivo e de exploração de recursos
naturais. No dia 4 de abril, junto ao vice-presidente e Santos Ramírez que tinha
deixado o Senado para dirigir a empresa estatal de petróleo Evo Morales anunciava a
licitação para a construção de uma fábrica separadora de líquidos do gás natural, com
um crédito de 450 milhões de dólares concedidos pela Argentina, e dizia que Bolívia
não podia seguir sendo a mesma que foi durante a colônia, a república e durante os
modelos econômicos “que passaram pelo Palácio”, porque era hora de dar valor
agregado aos nossos recursos naturais, dizia, segundo informava a agência estatal de
noticias ABI. Evo Morales também reclamava que a imprensa se interessava mais pelo
aspecto político e não deram espaço a notícias como a que estava anunciando, ou ao
plano de exploração em áreas não tradicionalmente petroleiras do país (a cargo da
empresa mista Petroandina), e a nova política de industrialização de hidrocarbonetos.
No mesmo dia, Evo Morales também anunciava cem milhões de dólares em créditos
para pequenos produtores afetados por desastres naturais.
Em um ato em Ivirgazama, no Chapare, Evo Morales afirmava: “Enquanto esteja
legal e constitucionalmente eleito como Presidente, mortos poderão nos tirar do
Palácio de Governo. Vamos lutar até o fim pelos direitos dos pobres e pela igualdade
entre os bolivianos”. García Linera explicou a polarização que enfrenta o país como um
enfrentamento entre a anti-pátria, integrada por umas poucas famílias com duas
confrarias maçônicas (logias em espanhol) e o Governo do MAS, que deu o Bônus
Juacinto Pinto, a Renta Dignidad, nacionalizou os hidrocarbonetos e entregou terras aos
indígenas. A imprensa informava que com um exemplar do projeto da Constituição
Política do Estado (CPE) em uma mão e uma cópia dos Estatutos Autonômicos na
outra, Evo Morales disse que não tinha medo do referendo de Santa Cruz do dia 4 de
maio. E antecipou que o Governo enfrentará uma guerra econômica com os
departamentos da Meia-Lua, pedindo aos movimentos sociais que estivessem prontos
para se transladar a qualquer ponto do território para defender o projeto do MAS e a
unidade da Bolívia306.
306 Ao falar de guerra econômica, se referia à política de controle de preços lançada pelo governo, com
a proibição de exportação de óleo (cujo principal produtor é Branko Marinkovic) e também outros
produtos vindos do oriente como carne de gado, farinha de trigo, arroz e trigo. Em Santa Cruz, houve
importantes manifestações para se opor às medidas, e enquanto os produtores ameaçavam deixar de
produzir, o governo anunciou a baixa do preço e ameaçava nacionalizar as indústrias, no caso de que
“castigassem o povo”.
371
Considerando os dados macroeconômicos, a situação era boa para a
administração do MAS com recorde de reservas (sete bilhões), estabilidade econômica,
controle da inflação e aumento das exportações307. Também era divulgada uma
pesquisa realizada por IPSOS Apoyo Opinión y Mercado”, a mais conhecida empresa
de sondagem de opinião, que registrava um aumento do apoio à nova Constituição
Política do Estado, em março, nas quatro maiores cidades, de 36% para 41%. Era pouco
para garantir a vitória mas foi recebido como boa notícia pelo governo. O repúdio ao
novo texto baixou de 48% a 41%, com 18% que não responderam. No mesmo período e
sem informar o universo consultado, a aprovação da gestão de Evo Morales subiu de
55% a 56%.
Outra boa notícia para o governo, e importante em termos políticos, era que no
dia Primeiro de Maio se formalizou a aproximação da Central Obrera Boliviana (COB),
até então distanciada e crítica ao governo. Em abril, a central sindical realizou uma
marcha repudiando a consulta crucenha marcada para o dia 4 de maio, queimando
bonecos de Tuto Quiroga e Rubén Costas. A nova aliança era importante em termos do
percorrido analisado no capítulo 1 e é possível vê-la como ponto mais alto em termos de
congregação de organizações sociais ao MAS de Evo Morales. As más nguas diziam
que se a COB não se aproximasse do governo, o MAS tentaria disputar os cargos de
direção, muito provavelmente derrotando os atuais dirigentes. Porém o certo é que os
operários se uniam aos indígenas e camponeses, fortalecendo o bloco unido contra a
ofensiva lançada desde o Oriente. Lembrando o tempo da UDP, 25 anos, o ministro
do trabalho, Walter Delgadillo, anunciava junto a Pedro Montes, executivo da central,
que a COB e o governo haviam consumado uma aliança para defender o processo de
mudança.
No dia do referendo pela aprovação do estatuto em Santa Cruz, a televisão
oficial exibia uma aula do García Linera sobre “o Modelo Produtivo da Nova Bolívia e
as Nacionalizações”. O referendo não foi mencionado e nem o projeto de Constituição.
O trabalho apresentado seria publicado também na revista Análisis 3, editada pela Vice-
presidência com “discursos e reflexões” de García Linera, na qual se lia: entramos em
307 No primeiro bimestre do ano, as exportações haviam crescido 63% em relação ao mesmo período
do ano anterior, alcançando 1.026 milhões de dólares, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística
(INE), com superávit favorável de 368 milhões de dólares, 214 a mais que em 2007. O principal produto
era o s natural, com vendas de 417 milhões ao Brasil e 51,8 milhões à Argentina. Os principais
compradores da Bolívia eram Brasil (454 milhões), Coréia do Sul (109 milhões), Argentina (91 milhões),
Estados Unidos (69 milhões) e Peru e Venezuela (ambos com 42 milhões).
372
um novo ciclo que irá durar anos, aqueles que querem regressar ao arcaísmo do
neoliberalismo estão perdidos, agora que se pensar em um Estado forte que seja bem
administrado, que invista, que distribua as riquezas e que, fundamentalmente,
industrialize o país308.
No dia 19 de abril, a duas semanas do referendo, o vice-presidente García Linera
falou sobre a conjuntura de Santa Cruz, em uma entrevista concedida ao jornal El
Deber. O resultado do referendo determinaria uma elite cívica-prefectural-empresarial
mais legitimada ou menos. Consolidação, desgaste ou recuo, que de qualquer maneira
se tratava da estrutura de poder regional, e não nacional, dizia, porque não via nas elites
de Santa Cruz um discurso que disputasse o modelo com alternativas para o país todo.
O entrevistador perguntava se poderia se concluir que depois do dia 4 de maio Santa
Cruz poderia se separar. Linera respondeu que isto jamais seria permitido pelos
crucenhos, pelo Estado Nacional e pelas Forças Armadas. Pensava que as elites cívico-
empresariais, profundamente isoladas internacionalmente, não buscam isso e sim “uma
espécie de algo além do federalismo”. Como mensagem à região, quando perguntado
sobre a possibilidade de diálogo, García Linera disse que o governo “está disposto a
flexibilizar o IDH substancialmente”. E afirmava que a nova CPE e os estatutos devem
ser compatibilizados e legalizados no Congresso. E concluía: “caso queiram ceder, isto
se resolve em quatro horas” 309.
4.2 Os estatutos autonômicos e a crítica governamental.
No dia 4 de maio em Santa Cruz, o Estatuto foi aprovado por 83% dos votantes,
segundo a Corte Eleitoral Departamental, e por 51% de acordo com os cálculos do
governo, que descontava a abstenção em relação à última eleição no mesmo distrito e os
308 O tom e postura do vice-presidente na exposição na televisão era de professor e expunha enquanto
solicitava que passassem as imagens que acompanhavam a sua apresentação. “Podemos mudar o
quadro?”, pedia, e inclusive em uma oportunidade saiu do enquadramento da câmera para avançar o
slide seguinte da apresentação. Mostrava claramente o objetivo do governo de promover a gestão,
priorizando o tema da economia, deixando de lado outros temas como a inclusão dos indígenas e as
autonomias.
309 García Linera previa uma exasperação com intensificação das tensões intrarregionais quando
começassem a exigir o cumprimento das promessas do Estatuto, em temas como terra, aumento de
salário e seguro universal de saúde, como foi prometido. Também via tencionamentos com indígenas,
colonizadores e pequenos proprietários. “A luta de classes está chegando a Santa Cruz”, dizia, porque “a
classe operária e o empregado de escritório vai lhes cobrar contas”. “A luta de classes está chegando a
Santa Cruz”. Entrevista de Álvaro Linera, por Tufi Are, disponível em
http://www.eldeber.com.bo/2008/2008-04-20/vernotasantacruz.php?id=080420014110
373
votos pelo “não”. Nas zonas de colonização como Yapacaní e San Julián, a abstenção
havia sido muito alta ou diretamente se impediu a votação, registrando também
enfrentamentos com dezenas de feridos310. Em um e-mail coletivo, a produtora
argentina Gloria Beretervide informava sobre a situação vivida em um dos pontos mais
quentes da votação: “quase o dia todo de hoje estivemos filmando no Plan 3000, que
resistiu bravamente à imposição de uma votação repudiada pela maioria dos habitantes
deste populoso bairro. A violência foi uma constante desde a noite, quando os vizinhos
decidiram que não permitiriam a entrada das urnas da consulta. Durante o dia inteiro de
hoje, vizinhos se dirigiram às escolas para retirar e queimar as urnas...”. Escrevia e
denunciava também a presença de armas entre os manifestantes da Unión Juvenil
Cruceñista.
Os estatutos eram uma aposta radical da Meia-Lua. Tinham sentido uma vez
implementando o regime autonômico no país, porém ignoravam o marco do texto
constitucional que buscava estabelece esse regime. A Meia-Lua falava de realidade
autonômica de fato, ignorando sua responsabilidade no plano nacional para questões
que fossem além do local. Porém a necessidade de que as competências regionais sejam
reconhecidas, outorgadas ou garantidas pela Constituição do país era evidente. Os
estatutos entravam então mais como um documento para negociar com o poder central
que como marco jurídico para que as autonomias sejam implementadas imediatamente.
Pode ser que em alguns temas, o Estatuto pudesse ser visto como um plano de ação para
o futuro, de desenvolvimento de instituições próprias. Porém o separatismo não era um
projeto oficial para a maioria dos líderes autonomistas da Meia-Lua, ao menos na atual
conjuntura, pelo que a impossibilidade de implementar os estatutos sem coordenação
com o governo, caía por seu próprio peso.
Apontando a busca por espaços de negociação, o governo difundia seus dados de
48% de oposição ao Estatuto. Os indígenas anunciavam que fariam um Estatuto
autonômico próprio. Nos meios de comunicação, os estatutos não recebiam o mesmo
tratamento da nova Constituição: eram a voz do povo de Santa Cruz e legais pela
legitimidade do voto dos crucenhos que, no entanto, pareciam não ter dado a mesma
legitimidade aos constituintes eleitos para elaborar um texto na Assembléia, que era
310 Santa Cruz/ La Prensa. A Villa Primero de Mayo, Nueva Esperanza e o Plan Tres Mil são os principais
bastiões do Movimiento Al Socialismo (MAS) na cidade de Santa Cruz. Enquanto que San Julián, Cuatro
Cañadas, San Pedro, Yapacaní, Comarapa e Montero se converteram em refúgios dos movimento sociais
que repudiam o Estatuto Autonômico. A Corte Departamental Eleitoral (CDE) de Santa Cruz admitiu que
nestas zonas haveria problemas durante o referendo pelo Estatuto Autonômico.
374
considerado a “Constituição ilegal do MAS” e que não teria os votos dos parlamentares
da região para a convocação do referendo. Hernán Ávila, do CEJIS, pensava que o mais
lógico seria “abrir” a Constituição e os estatutos e somente depois convocar o referendo,
obtendo consenso. Porém nada garantia que a oposição desse à Constituição a
legitimidade que nunca tinha lhe dado, dizia Hernán, que pensava que no Oriente
seguiriam com sua agenda própria”. No entanto, via que na Meia-Lua, os
departamentos necessitavam ser constitucionais, o que o governo permitiria se
aprovassem a Constituição.
Outra assessora do CEJIS que participou do debate na Assembléia, Pilar
Valencia, agregava que o governo daria autonomia porém “com furos” pelas
autonomias indígenas. Deste modo, o MAS potenciaria processos interessantes, que até
este momento não havia impulsionado. Para ela, até então o MAS tinha priorizado a
governabilidade e o Estado Unitário mas a conjuntura de disputa com os departamentos
poderia dar lugar a processos interessantes para os povos indígenas. O tema étnico e da
política respectiva aos povos indígenas era uma das polêmicas do estatuto. Um colunista
crucenho, José Mirtembaon, do jornal El Deber, defendia “equilibrar o texto
constitucional do MAS que dá privilégio aos indígenas frente aos mestiços”. Apesar das
diferenças de nível entre uma Constituição e um Estatuto, esta tentativa de colocar um
frente ao outro era uma constante no discurso autonomista de Santa Cruz.
Com a sua legalidade questionada pelo governo, os Estatutos eram antes do que
nada um documento crítico à política do MAS e ao projeto de Constituição
impulsionado pelo governo. Na forma de artigos e de Estatuto, muito do seu conteúdo
era antes um manifesto político que uma normativa institucional. Assim ficaria claro no
debate político que ocorreria ao redor dos estatutos, do qual participou o governo,
apesar de ter como estratégia principal o não reconhecimento dos estatutos. Carlos
Romero e Juan Manuel de la Quintana discutiram seu conteúdo de forma detalhada e
também houve menção aos seus elementos mais polêmicos por parte de García Linera e
outros. O preâmbulo do Estatuto marca o tom da proposta, abrindo o texto com a
declaração de que “o Departamento de Santa Cruz, que antes da formação do Estado
boliviano possuía, devido à Ordenanza de Intendentes de 28 de janeiro de 1782, um alto
grau de autonomia para manejar assuntos relativos à Justiça, Fazenda, Administração e
Guerra, e que tinha uns limites territoriais e uma delimitação político-administrativa
definida (…) sob os princípios do Estado Social e Democrático de Direitos, e que os
375
elementos essenciais da democracia estabelecidos na Carta Democrática Interamericana
assinada pela Bolívia em 2001 (…)”311.
Um dos pontos mais polêmicos era a definição de “povo crucenho”, que
podemos ver em contraste com a definição de “povo boliviano” tratada no primeiro
capítulo desta tese. O artigo 161 do Estatuto crucenho diz assim: “De acordo com o
Convênio 169 da OIT e o Convênio das Nações Unidas sobre Povos Indígenas, o povo
crucenho reconhece com orgulho sua condição racial majoritariamente mestiça. Sua
obrigação de conservar a cultura e promover o desenvolvimento integral e autônomo
dos cinco povos indígenas oriundos do departamento: Chiquitano, Guarani, Guarayo,
Ayoreo y Mojeño”. Wilfredo Chávez, do Ministério da Justiça, considerou o estatuto
racista, em especial pela menção a uma “condição racial”. O relator da ONU sobre
Povos Indígenas, Rodolfo Stavenhagen, criticou a intenção de Santa Cruz de aprovar o
estatuto e qualificou este artigo de ilegal e racista, além de atentar contra os direitos dos
povos indígenas.
A menção do convênio 169 e a Declaração das Nações Unidas, citada
erroneamente no Estatuto crucenho como “convênio”, parece uma provocação às
discussões levadas pelos povos indígenas na Assembléia Constituinte, especialmente se
continua-se lendo que “o povo crucenho reconhece com orgulho sua condição racial
majoritariamente mestiça”. A menção à maioria mestiça, à que a oposição no Congresso
que revisaria o artigo que se refere ao povo boliviano na Constituição não teria
coragem, supõe a crítica ao caráter majoritariamente indígena da Bolívia. Segundo o
censo de 2001, os auto-reconhecidos como indígenas chegavam ao 37,5% dos
habitantes desse departamento. Para a oposição ao MAS que se expressava no Estatuto,
os mestiços haviam sido discriminados e negados na Constituição aprovada em Oruro.
Por outro lado, na definição de “povo crucenho” presente no Estatuto, a menção
a cinco povos indígenas “oriundos do departamento”, pode ser lida como uma crítica ao
reconhecimento étnico de uma grande porcentagem de quéchuas e aymaras que moram
no departamento. Além de buscar “fechar” a definição de povos étnicos do território
crucenho, como uma crítica ao processo de etnogênesis ou de reidentificação, o Estatuto
excluía de alguma maneira os migrantes do altiplano, que são os principais focos do
racismo crucenho expresso pela direção cívica e prefectural. Na base política que
inspirou a demanda autonômica e o Estatuto crucenho, somente se reconhece as cinco
311 O texto completo do Estatuto (2007) elaborado em dezembro e aprovado no referendo de 4 de
maio está disponível em: http://www.eldeber.com.bo/2007/2007-12-15/autonomia.php
376
etnias minoritárias; que tiveram um lugar na Assembléia autoconvocada que elaborou o
Estatuto com representantes indígenas afinados com o governo departamental. Estes
povos são aceitos como componentes iniciais da mescla com a população espanhola,
que originou a identidade “camba”, verdadeiro sujeito potico por trás do projeto
político da Meia-Lua contra o MAS. Ainda que não tenha sido incluído, no debate
crucenho se falava na proposta de limitar a partir do Estatuto as “migrações internas” a
Santa Cruz312.
Rafael Bautista escrevia, no dia 30 de abril especialmente para a ABI, que, em
primeiro lugar, o ultimato dos estatutos implicava a expropriação da decisão
democrática e pensava que as críticas deveriam ir além da condenação por sua
ilegalidade, que era uma oposição apenas de forma. Escrevia que “não se trata de
descentralizar o poder e sim acumular todo o poder possível. É uma estratégia
defensiva, urgente, que impõe uma oligarquia em processo de deslocamento. Frente à
avalanche popular, somente lhe resta se reagrupar e tomar de novo poder. Porém isto
não pode ser dito com todas as letras, por isso recorrem ao encobrimento. Como a
hegemonia oligárquica não pode se sustentar em seus próprios dogmas, tem
necessariamente que usurpar um novo discurso para abrigar neste a legitimação de seu
domínio”. Denunciava então uma “transformação semântica” no conceito de autonomia
reivindicação histórica associada aos indígenas e à autodeterminação com o “rapto”
do sentido original do conceito, com o fim de justificar e legitimar a recomposição no
poder de uma oligarquia relacionada ao capital transnacional313.
Como tinha sido na última instância de diálogo, convocada em outubro do ano
anterior na vice-presidência, o ponto central no qual o modelo autonômico do Estatuto
se opunha ao modelo presente no texto saído da Assembléia Constituinte, era a
distribuição de atribuições. Romero denunciava que o Estatuto não incluía as
autonomias indígenas e atrasaria sua agenda; que a Corte Departamental de Justiça não
312 Alguns indígenas recebiam salário na prefectura de Santa Cruz e também tinham suas organizações
indígenas afinadas com o autonomismo departamental e opostas às organizações indígenas históricas,
reunidas na CIDOB e que defendem a autonomia indígena.
313 E acrescenta como elemento explicativo a necessidade norte americana de aumentar a produção
agrícola para garantir certa demanda de etanol principal causa do aumento dos preços dos alimentos
no mundo. Compara se com a motivação dos EUA ao provocar a independência de Kosovo (onde
também a “autonomia” serviu de retórica útil) para possuir um satélite militar e ter acesso ao controle
das fontes de energia que provinham do mar negro. Bautista afirma que “ao dispor da terra para
alimentar os carros dos países ricos, minávamos a possibilidade de alimentação da própria população
local (a produção intensiva do monocultivo com transgênicos, de maior produtividade, somente
consegue a depredação dos solos e, o que é mais grave, minar a capacidade reprodutiva da terra)”.
Texto “O que há por trás do autonomismo?” Disponível http://www.rebelion.org/noticia.php?id=66821
377
era considerada a última instância; e que o governador decidiria sobre as terras como
máxima autoridade. García Linera se referiu também à tentativa crucenha de criar um
“inrinha”, pequeno INRA (Instituto Nacional de Reforma Agrária). Em alguns casos, a
atribuição de tarefas igualava ou superava as presentes em regimes federativos. Isto
despertava as correntes suspeitas sobre a intenção separatista dos crucenhos e por isso
Evo Morales pediu, em seus discursos, que se luta contra o separatismo.
Do lado camba, em uma coluna de opinião do jornal El Deber, o jornalista
Guillermo Capobianco Ribera falava da “revolução autonômica do 4 de maio”. Assim
qualificava a aprovação de um Estatuto com 53 atribuições exclusivas ao governo
departamental, “das quais, ao menos quarenta, serão arrancadas do governo central por
meio da força do voto cidadão”. Prognosticava que se deslocaria, de maneira
irreversível, o centro de articulação econômica nacional de La Paz para Santa Cruz,
destacava que a aprovação havia sido por parte do “cidadão nascido, que trabalha e que
mora em Santa Cruz, sem importar a cor de sua pele, sua classe social, sua religião ou
fortuna”.
Entre as competências que a Constituição de 1967 (República da Bolívia) e que
o texto aprovado pelo MAS atribuía ao governo nacional mas que o Estatuto crucenho
atribui ao departamento, estavam o controle sobre a terra, agricultura, pecuária, saúde
animal, solos florestais e bosques, aproveitamento florestal, hidráulico e hídrico, áreas
protegidas, meio ambiente e equilíbrio ecológico e uso da diversidade biológica. Em seu
artigo 12, o Estatuto proclama a capacidade para realizar “acordos intergovernamentais”
entre a região e o governo central, como se fossem países diferentes e afirma ainda que
“o Governo Departamental Autônomo de Santa Cruz celebrará convênios de
colaboração para a gestão e prestação de serviços correspondentes às matérias de sua
exclusiva responsabilidade, tanto com o Estado Nacional como com outros
departamentos e os Governos Municipais”314.
Outro tema polêmico era o da segurança. Em contraposição ao poder único da
polícia da Bolívia e imitando um regime federal, o Estatuto chama a promover ações em
314 O artigo 86 faculta ao departamento à definição de políticas para o aproveitamento e proteção dos
recursos naturais renováveis. Também se chama a aprovar por lei departamental o Plano
Departamental de Ordenamento Territorial e o Plano de Uso do Solo, ainda que explicando que seria
“no marco das leis básicas nacionais que regulam este procedimento”. Estabelece-se também uma
futura lei de terras, no artigo 102, outorgando ao governo departamental a competência sobre o direito
de propriedade agrária; a regularização de direitos; a distribuição, redistribuição e administração das
terras no departamento de Santa Cruz. O Estatuto também reconhece, no entanto, a necessidade de
evitar “grandes extensões de terras improdutivas, por ser contrário ao interesse coletivo e não cumprir
nenhuma função social nem econômico-social”.
378
coordenação com o Estado Nacional, os Governos Municipais, a Polícia Nacional e o
Conselho Departamental de Segurança Nacional. Se cria um organismo de segurança
que foi complementado com declarações públicas do prefecto Costas, que tomou a
iniciativa de criar “guardas civis” para garantir a segurança no dia 4 de maio, na votação
do Estatuto. O prefecto também prometeu que a guarda departamental teria um salário
de quatro mil bolivianos.
Uma das críticas ao Estatuto de Santa Cruz a que tive acesso, foi a de Mauricio
Ochoa Urioste, presidente da Associação de Juristas da Bolívia, em um evento
organizado pela Embaixada da Bolívia na Argentina. Ochoa trazia dados estatísticos de
pobreza que davam conta de que na província de Guarayos 90% da população era
pobre, na província de Velasco o índice era de 78% e que das quinze províncias, doze
têm mais de 50% da população de pobres, segundo o censo de 2001. “Este é o modelo
de desenvolvimento de Santa Cruz?”, perguntava. Mencionava que segundo o Estatuto,
o Estado deveria delegar as atribuições nas áreas de terra, educação e biocombustíveis.
Este último é algo que nunca se falou na Bolívia e é impulsionado por várias
transnacionais, dizia em sua exposição. O Estado central somente se ocuparia, de acordo
com o Estatuto, em cuidar do sistema penitenciário e do controle meteorológico. O
constitucionalista explicava que o Estatuto estava cheio de doutrina contra o Estado
boliviano e aportava dados para entender o lugar político de seus ideólogos.
O preâmbulo é cópia do estatuto da Catalunha, expunha Ochoa. E mencionava o
financiamento da cooperação norte americana e empresas multinacionais a Juan Carlos
Urenda, na Assembléia provisória autonômica de dezembro eu escutei ser apresentado
como “nosso constitucionalista”. Reproduzindo denúncias também apresentadas por
Quintana, Ochoa citava os encontros e relações dos distintos ideólogos da “autonomia”
como Teresa Bustillos, com a agrupação catalã PSA de Joan Pratt; Antelo, Asbúm,
Aguilera e também Urenda com USAID; agrupação Nación Camba; juízes do Tribunal
Constitucional; empresas crucenhas; associações do agronegócio; e as empresas
multinacionais do agro presentes em Santa Cruz, como importante produtor de soja315.
315 Também mostrava vínculos com a Conferência Liberal de América Latina; com EUA; com Carlos
Montaner e com Álvaro Vargas Llosa, intelectuais conservadores e críticos dos governos progressistas
ou de esquerda da região. A rede se completava com PODEMOS, que definiu como parte mediática do
Comitê vico, mencionando a estratégia de direita corporativista da Bolívia, com ação em várias
frentes: Comitês Cívicos, partidos, mutação de partidos, prefectos que se autodenominam
falaciosamente governadores (no Estatuto) e meios de comunicação. Marinkovic (presidente do Comitê)
e Ivo Kulkis (CAINCO) tinham meios de comunicação. Ver também artigo de Ochoa. Disponível em:
http://www.constituyentesoberana.org/3/destacados/otrosdest/sep2006/210906_1.html
379
Em uma entrevista ao La Razón, Juan Carlos Urenda era questionado pela
presença de direitos fundamentais no Estatuto crucenho. Entre eles, se incluía o direito
ao asilo, à propriedade privada, liberdade religiosa, segurança jurídica, direito à vida,
saúde, educação, etc. Entre os direitos políticos, se incluía a “condição política de
crucenho”, com direitos reconhecidas aos crucenhos no exterior. Urenda explicava que
se haviam incluído os direitos diante da incerteza em torno ao futuro texto
constitucional e dizia “é melhor que estejam e se repitam os direitos. Além disso, até
agora ninguém sabe qual será o texto constitucional futuro; se será do MAS ou outro.
Então, diante da ausência de um texto seguro, nhamos que garantir os direitos que
queremos que prevaleçam”. Em La Paz, o constitucionalista Carlos Alarcón esclarecia
que os direitos e garantias correspondem ao nível constitucional e que “se se repetem os
direitos constitucionais no Estatuto, é sinal de que não é um Estatuto e sim uma
Constituição paralela”. Sobre a condição política crucenha via que havia um excesso
pois a única condição política é de boliviano.
Fernando Garcés, da ONG CENDA, publicou na internet um esboço para a
reflexão e análise, onde criticava que na última edição do livro Separando la paja del
Trigo (Separando o joio do trigo, em português), de J.C. Urenda, de 2006, se excluísse a
proposta que havia sido incluída nas primeiras edições do livro, onde águas,
desenvolvimento florestal, hidrocarbonetos, mineração, meio ambiente, ecologia,
recursos naturais, regado e terras apareciam como competências a serem legisladas no
departamento. Garcés escreve que “em um ato mágico” desaparece sua proposta para
ocultar que os autonomistas queriam se apropriar dos recursos. Em seu livro, Urenda
defende o modelo de Estado Liberal e inclui os direitos indígenas porém de modo
marginal e subordinados à autonomia departamental; somente outorgando direitos
culturais e lingüísticos como atribuições do departamento. Por esse tratamento, Garcés
afirma “como já disse seu professor Requejo, em um país como a Bolívia o tema
indígena não pode ser parte marginal de um modelo de autonomias como propõe o
autor”.
Como Bautista e outros, Garcés retoma o argumento do desmascaramento dos
autonomistas (também critica o trabalho de Mario Galindo), mostrando que por trás de
“estratégias discursivas” “os 'cívicos' querem apenas recapturar o poder político
perdido no cenário nacional” e que “o objetivo é a articulação do Oriente ao eixo
geopolítico do Brasil”. O projeto é um projeto democrático, reconhecia Garcés, porém
escrevia que as práticas eram “monopólicas, separatistas, carregadas de virulência
380
verbal e violência física, armadas sobre uma montagem midiática de bondade, eficiência
e democracia”. Lembrava também, em seu artigo, que no dia três de outubro de 2006,
depois que a Assembléia Constituinte se declarou “originária” por incentivo do MAS,
Juan Carlos Urenda, como assessor do Comitê Pró Santa Cruz, propôs o retorno
imediato dos constituintes das quatro regiões do Oriente para estabelecer uma
Assembléia Constituinte paralela (Garcés cita El Deber)”.
No dia primeiro de junho, em Beni e Pando, e no 22 de junho, em Tarija, se
realizaram comícios para ratificar cada um dos Estatutos autonômicos, com resultados
políticos similares aos de Santa Cruz316. Em Tarija, Magda Calvimontes, constituinte
do MAS e secretária da comissão de autonomias, difundia por e-mail o texto “Estatuto
autonômico do Camino al cambio e outros”, em que denunciava o processo de
elaboração do Estatuto pela agrupação política do prefecto Mario Cossio e clamava por
“verdadeiras autonomias”. Calvimontes escrevia: “sinalizam que não respeitarão, se
aprovada, a 'Constituição Massista', por mais que seja aprovada por maioria, porém em
nome da 'democracia' convocam referendos para aprovar 'seus estatutos', sem uma lei
que os convoque, sem que existam as autonomias no texto constitucional, sem que
exista um governo departamental (pois o único que existe é um prefecto eleito porém
empossado pelo Presidente) […] nós de Tarija temos o direito de eleger nossos
legítimos e eleitos representantes para elaborar de maneira participativa com todos os
setores […] QUE NENHUMA PROVÍNCIA, NENHUM POVO INDÍGENA,
NENHUMA COMUNIDADE CAMPONESA SE SINTA EXCLUÍDA. QUE
DEMOCRATIZAR O PODER E OS RECURSOS, com verdadeiras autonomias,
autonomias para o Povo!!!”317.
316 A votação à favor dos Estatutos foi de 80,2% em Beni, 81,8% em Pando, e 80,1% em Tarija. O
governo havia apostado na abstenção e indicava que o abstencionismo havia alcançado 34,5% em Beni,
46,5% em Pando e 34,8% em Tarija. Segundo a lei sobre referendos, a consulta é válida se tiver uma
votação superior a 50% em relação à lista de inscritos. Porém o pedido de anulação das consultas
remetia ao fato de que não foram autorizadas pela Corte Nacional. Somando o “nãoe a abstenção nos
quatro departamentos, o governo informava que chegava aos 49,96% dos cidadãos da Meia-Lua
(575.632 pessoas habilitadas à votar), e era apresentada como cifra de repúdio aos estatutos
autonômicos promovidos por prefectos e cívicos.
317 Magda Calvimontes também escrevia: “Com relação aos estatutos aprovados por Camino al Cambio
(deputados de camino al cambio, Senadores de camino al cambio, prefectos de camino al cambio,
comitê cívico de camino al cambio, federação de campesinos picareta criada por camino al cambio,
amigos, parentes, compadres e outras relações conhecidas pela sociedade de Tarija do entorno de
camino al cambio) não merecem o esforço de analisar-los nem questionar-los pois serão considerados
constitucionalmente, para que o dia de amanhã quando os verdadeiros representantes do povo
tarijenho, aqueles que tenham 'o mandato para elaborar de maneira participava, o façam' *…+ Se o
Estatuto de Camino al Cambio e outros, fala em nome da maioria, é porque por tradição política eles
que sempre foram minoria, porém governaram este país, graças a sua democracia pactada, repartição
381
Uma das poucas boas notícias para o MAS provenientes de Santa Cruz era a
reaparição do espaço político Santa Cruz Somos Todos, que havia feito
pronunciamentos favoráveis à Assembléia Constituinte em setembro e outubro de 2007,
e que apresentava propostas de modificações ao texto constitucional e ao projeto de
Estatuto. Era um grupo de personalidades da cultura, intelectuais e outros (como o
deputado de UN Alejandro Colanzi e o reitor socialista Jerjes Justiniano), que não se
identificavam com o MAS porém também não com PODEMOS e o Comitê Cívico.
Também tinham a particularidade de não serem identificados como corpos estranhos
por parte da sociedade camba, tal qual entendem muitos de seus conterrâneos. Santa
Cruz Somos Todos, mais especificamente, era entendido como “a classe média de Santa
Cruz”. Sua posição frente ao Estatuto era que, antes de apoiar ou repudiar, devia ser
conhecido pela população. Se dirigiam aos “crucenhos e não crucenhos que vivem no
departamento”, buscando quebrar a dicotomia camba-colla, criticando o centralismo
porém também a “dívida social negada”. Apoiavam o caminho do diálogo e também a
autonomia, porém aprovada no marco da Constituição. Era o caminho que também
buscava explorar o MAS, porém que na primeira metade de 2008 permanecia
fechado318.
5 Referendo revogatório e o extremo da polarização.
No dia 8 de maio, surpreendentemente, os Senadores de PODEMOS aprovam
um projeto de referendo revogatório de mandato para presidente, vice e todos prefectos.
Isto havia sido proposto e aprovado pelos deputados e o MAS em dezembro de 2007 e
logo freado no Senado, controlado pela oposição. Evo Morales aceitou o desafio, ainda
que as primeiras declarações dos congressistas e do vice-presidente fossem contrárias à
medida, com o argumento da “mudança de contexto”. Os Senadores da oposição
possuíam ressalvas ao projeto aprovado, por exemplo na pergunta do referendo, que no
caso de presidente e vice, era formulada da seguinte maneira: “Você está de acordo com
de cargos e relações clientelares seguem pretendendo falar pela maioria porém esquecem que os
'invisíveis de antes' já não são mais (Ya No MAS, em espanhol)”.
318 Santa Cruz Somos Todos criticava também as lideranças da demanda autonômica denunciando que
não haviam escutado todas as vozes crucenhas na elaboração do Estatuto e havia observações como a
ausência do fórum sindical; a discriminação dos povos indígenas (cujos representantes seriam
nomeados por uma organização estabelecida pelo governador); e o centralismo para as províncias; a
falta de reconhecimento às minorias políticas e subregionais, entre outras. Documentos de SST
disponíveis em http://santacruzsomostodos07.blogspot.com/
382
a continuidade do processo de mudanças liderado pelo Presidente Evo Morales Ayma e
o vice-presidente Álvaro García Linera?”. Porém para que o projeto não pudesse ser
devolvido com modificações, foi aprovado automaticamente e votado no Senado sem
mudanças. O Executivo promulgou a lei e convocou o referendo para 10 de agosto de
2008.
A decisão explicitava as divisões internas da oposição. O CONALDE decidiu
não participar do referendo aprovado pelos Senadores de PODEMOS, apesar de que no
dia 31 de março, após um novo fracasso das instâncias de diálogo, os prefectos haviam
assinado uma carta convocando o encaminhamento do referendo revogatório que havia
sido proposto inicialmente em dezembro do ano anterior. Pouco depois e cientes de sua
popularidade, os prefectos de Beni, Santa Cruz aceitavam o desafio de serem
submetidos às urnas. Porém Manfred Reyes Villa, de Cochabamba, e José Luis Parades,
de La Paz, com menos certeza de saírem vitoriosos, mantiveram a oposição ao
referendo até o fim.
Nos meses anteriores ao referendo, se vivia uma tensão política e aumentava a
polarização. Enquanto Evo Morales anunciava um mal estar entre os militares e os
rumores de golpe de Estado nos quartéis. No dia 24 de maio, em Sucre, ocorria um
episódio de racismo, que percorreria o mundo, com camponeses espancados, obrigados
a ajoelhar-se, beijar o chão e a bandeira de Sucre, e gritar a favor de Sucre e contra o
MAS e Evo Morales na praça central da cidade, diante da imprensa e de uma multidão
de manifestantes. Eram camponeses que haviam chegado na cidade para participar de
um ato, no qual Evo Morales entregaria ambulâncias para os municípios, na véspera do
aniversário do grito de independência de 1809. Porém o presidente não conseguiu
chegar até o estádio, pelas manifestações que haviam ao seu redor. Nos vídeos do
episódio, é possível ver insultos às pessoas por apenas usar polleras ou ser do
campo319.
319 Em “Humilhados e Ofendidos” se registrou em vídeo o conflito e a participação dos líderes vicos
de Sucre (Barrón, Nava, Herrera). Em um dos testemunhos, uma mulher agredida perguntava, em
quechua, chorando: “senhora alcaldesa (prefeita), por favor, tenha um pouco de dó. Por que nos
batem? Porque nos fazem sofrer?”. Carlos Aparicio, constituinte, estava abatido pelas agressões e
defendia a necessidade de aprovar a Constituição. Seria deputado da primeira Assembleia Plurinacional.
Outros constituintes chuquisaquenos, como Édgar Arraya e Epifania Terrazas, trabalhavam na
campanha de Sabina Cuellar e, como mostram os vídeos, estavam presentes nos atos onde ocorreram
as agressões. O documentário de Brie, Brie e Álvarez está disponível em cinco partes em
http://www.youtube.com/watch?v=WuqohdMVNj4&feature=related Por este episódio, Barrón que
aparece nas imagens, seria suspenso da alcaldia (prefeitura) em 2010. Pelo ocorrido, o governo
instituiria o dia 24 de maio como “Dia Nacional de Luta contra a Discriminação Racial”.
383
Também houve agressões aos líderes cívicos contrários ao prefecto de Tarija,
onde se registrou um atentado com bomba a um canal de televisão de Yacuiba, cujos
envolvidos apareceriam em uma fotografia junto a Tuto Quiroga, divulgada pelo
governo. Como em Sucre, em diversos aeroportos da Meia-Lua se impedia a chegada de
Evo Morales, inclusive obrigando a cancelar um ato com Cristina Kirchner e Hugo
Chávez, pela ocupação dos aeroportos. Esses atos da oposição se difundiam como falta
de controle territorial por parte do Estado boliviano e seu governo. Pela mesma época,
no dia 3 de junho, o Colégio Nacional de Advogados, em La Paz, sugeria anular o
projeto de Constituição aprovado em Oruro, como única saída para a crise política do
país.
O crescimento político da oposição, depois da aprovação do Estatutos
departamentais, incluía uma nova prefectura, depois de que dia 29 de junho, se elegia
em Chuquisaca, agora oficialmente, a ex-constituinte do MAS Sabina Cuellar como
primeira autoridade do departamento. Era uma candidatura que havia surgido do Comitê
Interinstitucional em Defesa da Capitalia e venceu o candidato do MAS e de AS. Neste
momento, todos os prefectos departamentais, com exceção de Oruro e Potosí, eram
opositores do governo de Evo Morales. O referendo revogatório aprovado pela oposição
modificaria novamente a correlação de forças e o cenário político, porém neste
momento não se viam caminhos para buscar a aprovação do texto constitucional.
Em entrevista a Amalia Pando, em março de 2008, quando a Corte havia
anulado a convocatória do MAS ao referendo constitucional, García Linera dizia que a
Assembléia não estava morta e que havia renascido como a ave fénix para ser aprovada.
A conhecida jornalista pacenha Amalia Pando defendia que havia morrido, e que a
aprovação “em grande” havia sido seu testamento, pois a ausência do PODEMOS tirava
sua legitimidade. O vice-presidente garantia que o que faltava de trabalho da
Assembléia se faria com legitimidade e legalidade, com o texto que recupera os acordos
da vice-presidência, a inclusão das autonomias e o mandato do referendo
constitucionalizado, além das correções menores da versão “em detalhe”, dizia. O que
importa são os 54% que votaram no Evo Morales, também em Santa Cruz, e não a
oposição do prefecto, dizia. Assegurava que se não tivesse sido declarado um recesso
suspendendo os referendos constitucionais, os setores urbanos universitários e
cooperativistas iam se manifestar a favor da Assembléia. Apesar da oposição querer
matar à Assembléia, dizia o vice-presidente, as pessoas legitimarão e legalizarão com
seu voto o texto constitucional.
384
Na entrevista, García Linera também denunciava um decálogo de ações contra o
governo, ao qual Evo Morales também havia se referido meses antes, que consistia em
um plano “golpista” que começava a ser realizado desde a Meia-Lua e que incluía a
ocupação de instituições públicas, bloqueios do setor de transporte, guerra econômica
com aumento de preços, promoção de mobilizações e a tentativa de fechar válvulas para
o mercado interno de petróleo. García Linera incluía neste plano a tentativa de aprovar
uma suposta carta de autonomia e assegurava que o governo responderia com
mecanismos legais da Constituição, além de recorrer à mobilização popular. Dizia que o
soberano tem que defender se comprometendo com o processo de mudanças e que isso
se via nas mobilizações, depois de muito tempo de letargia do movimento social. García
Linera recordava também que um indígena havia cumprido o sonho cruceño de explorar
o Mutún (minerais) e que pela primeira vez em 180 anos, se reconhece a diversidade
dos povos320.
O resultado do referendo de 10 de agosto redesenharia o cenário político
boliviano, daria ar político ao governo, ainda que não seria suficiente para barrar o
avanço da oposição. Evo Morales e García Linera obtiveram 67,41% dos votos, com um
amplo aumento do total de votantes e também com a ratificação dos prefectos de Pando,
Beni, Tarija e Santa Cruz. As máximas autoridades de Cochabamba e La Paz, no
entanto, eram revogadas e, em Chuquisaca, não houve votação. O prefecto de Oruro
evitou a revogação de seu mandato, somente pela adoção do critério determinado pela
Corte, em contradição ao estabelecido em lei e defendido pelo governo antes da
eleição321. Nomeando interventores nos departamentos com prefectos revogados, a
oposição passaria a ter cinco governos e quatro passavam a ser do MAS.
Porém o principal resultado era o aumento de apoio a Evo Morales, que havia
ganhado em 95 das 112 províncias do país, apesar de que com a ratificação dos estatutos
e o controle de prefecturas, até então se havia visto um avanço da oposição nas regiões.
No entanto, a leitura que prevalecia na imprensa era da ratificação das “duas bolívias” e
uma situação de empate entre a Meia-Lua e o governo, a partir de que a maioria dos
prefectos da oposição foram ratificados, o que também podia ser lido, sem dúvida,
como uma nova votação a favor das autonomias. O mapa da vitória de Evo Morales e
320 Entrevista de Amalia Pando, 7 de março, Programa Cuenta Regresiva, disponível no site da vice-
presidência da Bolívia: http://www.vicepresidencia.gob.bo/
321 Houve controvérsias sobre se a porcentagem que determinaria a revogação seria a maioria absoluta
ou a porcentagem obtida na eleição anterior. A Corte Eleitoral aprovou uma resolução contrária ao
estabelecido pela lei.
385
García Linera expressava um apoio de mais de dois terços do país, em todas as regiões.
A oposição a Evo Morales em Tarija e Chuquisaca se reduzia às capitais e o presidente
havia obtido apoio em várias províncias dos departamentos de Santa Cruz, Beni e Pando
(ganhou em 27 das 44 províncias opositoras). Em várias regiões do Ocidente, havia
superado os 95% dos votos322.
O mapa da organização “Nação cambatinha sido desconfigurado, pintando de
azul grande parte dos territórios que politicamente eram vistos como opositores, e
trazendo uma imagem diferente da que havia deixado as tomadas de aeroportos para
impedir a presença de Morales em algumas regiões. Na realidade, somente a borda das
províncias fronteiriças com o Brasil e quatro capitais de departamento eram os locais
onde se havia votado contra o Evo Morales. A nova situação era contrária à imagem das
“duas Bolívias” e da oposição como “outra metade”, se acomodando melhor à imagem
da Bolívia como um país de maioria indígena, camponesa e popular. Depois do triunfo,
muitos questionaram Tuto Quiroga, chefe do PODEMOS e ideólogo do apoio dos
Senadores ao projeto impulsionado inicialmente pelo MAS. Ninguém entendia por que
tinha sido PODEMOS o que abrisse ao MAS as portas de semelhante triunfo
político323. Fundado em 1997, em 11 anos o MAS havia crescido à cifra de dois
milhões de votos324.
322 Ver Resultados http://www.cne.org.bo/resultadosrr08/wfrmPresidencial.aspx Por departamento, o
voto para Evo Morales obteve os seguintes resultados: La Paz 83,2%, Chuquisaca 53,8%, Cochabamba
70,9%, Oruro 82,9%, Potosí 84,7%, Tarija 49,8%, Santa Cruz 40,7%, Beni 43,7%, Pando 52,5%.
323 Em uma explicação legalista, a justificativa de Quiroga foi que aprovando o referendo se evitava a
convocatória do referendo aprovatório da Constituição, porque a lei do referendo indica que o
presidente somente pode convocar um referendo por mandato constitucional. Ainda era possível, no
entanto, que o Congresso fizesse a convocação. http://www.ernestojustiniano.org/2008/08/entrevista-
a-jorge-tuto-quiroga/
324 As porcentagens eleitorais do MAS haviam sido: 3,71% em 1997; 20,94% em 2002; 53,74% em
2005; 54,58% em 2006 e alcançando, em 2008, 67,41% da votação nacional, com 2.103.732 votos.
386
O novo mapa político. Elaborado pela Unidad de Información para la Participación
Ciudadana da Vicepresidencia de la República.
Era um desastre para a oposição, especialmente para o PODEMOS que havia
liderado a oposição e havia apostado na tentativa de impedir a aprovação da nova
Constituição. O resultado do referendo significava que o MAS poderia ter confiança
para convocar a consulta para aprovar a Constituição. O risco de governo ou
Constituição paralela, ou de separatismo e guerra civil, se tornava menor. E não
restavam dúvidas a ninguém da necessidade de ratificar um regime de autonomias.
Porém estranhamente, a consolidação política de Evo Morales, que em realidade era
forte com o 53,7% de 2005, foi seguida por um período de maior confrontação social.
Parecia ser o crescimento do MAS que estimulava opções violentas e por fora das
instituições da oposição, e não o contrário, como se a violência fosse um recurso das
minorias políticas e não das forças com apoio popular, o que parece bastante previsível.
No dia 15 de agosto fracassa uma nova tentativa de diálogo convocada pelo
governo e o CONALDE organizou uma nova greve de fome e paralisação cívica. O que
procuravam? Poderiam ter usado seu controle sobre o Senado e várias regiões para
impor condições ao MAS na aprovação da Constituição. O MAS se mostrava aberto a
realizar modificações e devolver as receitas retiradas das prefecturas para financiar o
Renta Dignidad, que somam 166 milhões de lares. Porém a oposição parecia estar
387
perdida na luta por tudo ou nada contra a Constituição e o governo de Evo Morales, e
pelo estabelecimento de autonomias plenas de forma unilateral e não negociada. Nesse
contexto um discurso do prefecto Costas insultava Evo Morales chamando-o de
“excelentíssimo criminoso”, na linha que havia iniciado quando chamou Hugo Chávez
de “macaco maior” e a Evo Morales de “macaco menor”.
No dia 21 de agosto, os pecuaristas de Santa Cruz e Beni decidiram não enviar
mais carne ao Ocidente. A medida foi suspensa antes de se concretizar, porém, dias
depois se iniciaram os bloqueios de estradas no Chaco e em Santa Cruz, ocupando os
postos policiais para evitar a passagem. Assim como ocorreu em Sucre no mês de maio,
em Santa Cruz houve enfrentamentos com a polícia e o exército. Em Beni, os cívicos
não reconheceram as forças de segurança nacional. Evo Morales falou em “golpe de
Estado civil”. Na Meia-Lua se iniciou também uma onda de tomadas de instituições
nacionais. Houve ocupações de instituições como a Superintendência de
Hidrocarbonetos em Tarija, de Impostos e a aduana em Villamontes, do INRA e a
Administradora de Estradas em Cobija e do Serviço de Impostos Nacionais e controle
do aeroporto em Trinidad.
A finais de agosto, Evo Morales busca forçar um avanço, convocando por
decreto o referendo aprovatório da nova Constituição e as eleições de prefectos que
tiveram o mandato revogado. Porém uma vez mais é detido por uma resolução da Corte
Nacional Eleitoral com argumentos legais, que resolve não organizar nenhuma eleição
até que esta não fosse convocada por lei do Congresso, como se havia definido em
março. De maneira unilateral, ao mesmo tempo, Rubén Costas chamava eleições para
eleger assembleístas departamentais no marco do Estatuto aprovado em maio o que
também foi repudiado pela Corte. A partir de então, a nova bandeira da oposição seria o
pedido de auditoria no padrão eleitoral e as acusações de irregularidades, que seriam
atendidas pela Corte325.
Em 3 de setembro, uma reunião do CONALDE havia decidido radicalizar o
confronto com o governo, a partir da intensificação do bloqueio de estradas, assumindo
325 No dia 28 de agosto de 2008, Evo Morales promulga o Decreto 29691, convocando para o dia sete
de dezembro de 2008 o Referendo Nacional Constituinte, Dirimidor e Aprovatório, convocado por meio
da lei 3837 de 29 de fevereiro de 2008 (e que havia sido repudiada pela Corte). Também foi marcada a
eleição para prefectos dos departamentos de La Paz e Cochabamba que haviam sido invalidados, além
de eleição dos consejeros departamentais (vereadores) e subprefectos, à nível provincial, em todo o
território nacional. Porém a lei aprovada no cerco de fevereiro, outorga ao Congresso o poder de fazer a
convocatória. E por tal motivo, no primeiro de setembro, José Luis Exeni, faz conhecer os impedimentos
legais ao presidente e emitiu a resolução 149/2008, na qual reconhece “as recomendações sobre o
Padrão Eleitoral dos observadores da OEA” e ordena uma auditoria independente do Padrão.
388
controle de válvulas de gasodutos e ocupando mais instituições do governo central.
Como o governo advertia há tempo, um plano de insurreição estava em marcha e
conseguiu cortar o fornecimento de gás aos países vizinhos. Os cívicos também
fecharam fronteiras internacionais e paralisaram as principais estradas de Tarija, Santa
Cruz e o sul de Chuquisaca. Também houve destruição nas sedes da ONG CEJIS e nas
organizações indígenas CIDOB e CPESC326.
O bloqueio total do Oriente pode ser visto com o inverso da paralisação do
Ocidente em 2003, durante a Guerra do Gás, e que abria o caminho para a chegada do
MAS ao governo. Neste momento, como assinala Böhrt (2009: 57), Santa Cruz se
apresentava como a Bolívia Produtiva” em oposição à Bolívia “bloqueada”. Em 2008,
era o governo quem impulsionava a Bolívia Produtiva e a Meia-Lua que bloqueava. Em
agosto, o governo havia difundido imagens de uma reunião secreta entre o embaixador
dos Estados Unidos Phillip Goldberg e Rubén Costas. Em 10 de setembro, Goldberg é
declarado “persona non grata” e expulso do país, ato que é seguido pela expulsão do
embaixador boliviano em Washington. Em solidariedade com Bolívia, o embaixador
americano na Venezuela é expulso, sob duras declarações de Hugo Chávez, que
expressou alguns dias depois “que se vayan, yankees de mierda”. Também declarou que
daria apoio armado à Bolívia caso Evo Morales fosse derrubado, o que gerou protestos
nas Forças Armadas327.
Em resposta às mobilizações da Meia-Lua, a partir de San Julián e na estrada
para Cochabamba, os camponeses começaram a organizar um cerco a Santa Cruz.
Porém no dia 11 de setembro, na estrada que sai de El Porvenir, em Pando, um novo
326 Um dos bloqueios ocorreu nos campos San Alberto e San Antonio, em Tarija, afetando o envio de
gás que supre 80% do consumo da indústria de São Paulo. Os meios de comunicação no Brasil instavam
o presidente Lula da Silva a tomar medidas. Santos Ramírez anunciou perdas milionárias e o governo
condenou os ataques, qualificando-os de terroristas. No sul de Chuquisaca, o corte do campo de gás
Vuelta Grande afetou o envio de gás à Argentina. Em Santa Cruz, sob a liderança da Unión Juvenil
Cruceñista, se ocuparam e saquearam os edifícios públicos do INRA, SIN (impostos), ENTEL, CANAL 6,
Migrações, Aduana, Superintendência florestal e outros. A televisão também havia filmado a agressão
da UJC ao chefe departamental da polícia de Santa Cruz.
327As relações com o governo de George Bush eram tensas, pelo descontentamento americano com o
estreitamento das relações da Bolívia com o Irã (Morales visitou o Irã e a Líbia, correspondendo à visita
de Ahmadinejad no ano anterior) e, da parte boliviana, havia denúncias de intromissão da
representação americana e da USAID em assuntos políticos internos. O embaixador inclusive havia
ironizado que não ficaria surpreso se Evo Morales quisesse mudar a sede da Disney World, depois que o
presidente havia dito que se deveria trocar a sede da ONU, devido às demoras nos aeroportos e
dificuldades que havia sofrido para participar das sessões. Dias após a expulsão de Goldberg, a
administração Bush incluiu a Bolívia na lista de países que não colaboram na luta contra o narcotráfico.
Em solidariedade Chávez expulsou seu embaixador. A rivalidade de Evo Morales com os EUA data do
tempo em que este país colaborava com a política de erradicação total da coca no Chapare.
389
fato mudaria novamente o cenário. No pico máximo da escalada da violência
insurrecional da Meia-Lua, uma emboscada a uma marcha de camponeses e
indígenas simpatizantes do MAS, que se dirigiam à cidade de Cobija para participar de
uma reunião. A emboscada com armas de fogo, organizada pelos empregados da
Prefectura de Pando, provocou vinte mortes e centenas feridos. Diz-se que haveria mais
cadáveres não reconhecidos que foram levados pelo rio, onde muitos haviam buscado
refúgio das balas. Ficaria conhecido como o Massacre de Pando e teria um papel
importante no curso do processo.
Diante da declaração de estado de sítio, o prefecto Leopoldo Fernández deu
ordem para resistir à entrada de forças de segurança, que tomaram o aeroporto de
Cobija. O prefecto foi preso, acusado de genocídio pela participação de seus
empregados e veículos no massacre, e enviado ao presídio de San Pedro, em La Paz. No
dia 15 de setembro e com a lembrança do golpe de Estado do dia 11 de setembro de
1973, se reúnem, em caráter emergencial em Santiago de Chile, os presidentes dos
países que integram a UNASUR, constituída em maio do mesmo ano. Na “Declaração
de La Moneda” aprovam resoluções expressando o respaldo ao governo de Evo
Morales, não reconhecendo qualquer tentativa de golpe civil e ruptura da ordem
constitucional, defendendo a integridade territorial, denunciando o Massacre de Pando e
criando uma comissão para acompanhamento do diálogo aberto pelo governo boliviano.
Na reunião com os presidentes, Evo Morales criticou a tentativa de golpe cívico-
prefectural328.
Em 12 de setembro, o plano da Meia-Lua ainda não havia sido abortado e Rubén
Costas promulgava a lei Departamental número sete, que fazia referência ao “processo
de transferência de competências exclusivas ao Departamento Autônomo de Santa
Cruz”, de acordo com a Disposição Transitória Primeira do Estatuto aprovado em 4 de
maio, e que servia de marco para incorporar ao Estado Departamental as instituições
tomadas pelos manifestantes. No artigo dois da lei se estabelecia que “todas as
instituições públicas do Governo Nacional que nesta data se encarreguem da
administração de alguma das competências exclusivas do Departamento Autônomo de
328 Houve uma investigação da procuradoria (a fiscalia) e outra de uma comissão da Unasur. No dia 24
de setembro, a Unasur formou uma comissão investigadora do Massacre de Pando, designando como
liderança o argentino especialista em direitos humanos Rodolfo Mattarollo. Ver a nota com informações
sobre o mesmo dia http://www.eldeber.com.bo/2008/2008-09-
12/vernotaahora.php?id=080912025512; e o relatório da Unasur (2008a); Vídeo Indymedia
http://bolivia.indymedia.org/node/19859 e Declaração (Unasur 2008b).
390
Santa Cruz, estabelecidas no Artigo do Estatuto do Departamento Autônomo de
Santa Cruz dentro desta jurisdição departamental, se incorporam à estrutura orgânica do
Executivo Departamental do Governo Departamental Autônomo de Santa Cruz” (2008,
trad. nossa)329.
Porém o Massacre de Porvenir seria o limite do avanço da Meia-Lua. Se as
ofensivas não cessassem e as organizações sociais decidissem se mobilizar contra os
autonomistas, não seria difícil supor um cenário de guerra civil e disso se falava nas
ruas da Bolívia, nos programas de rádio e de televisão. Porém depois do Massacre de
Pando, o diálogo foi aberto e pela primeira vez desde a chegada de Evo Morales ao
governo, teria êxito, como veremos no próximo capítulo. De algum modo, depois de um
mês de reação desesperada, o país assimilava os resultados dos dois terços obtidos por
Evo Morales no revogatório (Schavelzon 2008b). Com a prisão de Leopoldo Fernández,
do núcleo duro da Meia-Lua, ex parlamentário e ministro de Banzer como parte da
estrutura herdade de ADN por PODEMOS, a quantidade de prefecturas da oposição se
reduzia a quatro com dois prefectos substituidos, um preso e dois desde o princípio nas
mãos do MAS.
Na versão do pessoal de Leopoldo Fernández, apelidado “cacique”, e que “em
grande” proporção se exilaram na cidade brasileira de Basiléia, os culpados eram o
alcalde de Cobija “Chiquitín” Becerra e seu primo Weimar Becerra, ex-constituinte e
membro da Diretoria da Assembléia, ambos do MAR, aliado ao MAS na região.
Viajando com Weimar rumo a Oruro, para a sessão final da Constituinte em dezembro
de 2007, ele havia contado algumas histórias de Pando, que me permitiram entender
algo da fama de sem lei (ainda que com rei) que essas terras tinham. Com 50 mil
habitantes (e mais de mil km² para cada um, de acordo com a densidade populacional),
o departamento foi cenário da guerra do Acre, a inícios do século XX. Weimar contou
que sua família decidiu apoiar o processo de mudança com seus irmãos e primos. Os
Becerra e os Ferreira são as maiores famílias de Pando, porém a diferença era que os
Becerra são valentes e os Ferreira, não, explicava Weimar.
Weimar tinha um mandato de prisão porque quase matou atropelado dois
polícias que o incomodavam por um carro irregular, contava. Então partiu para o Brasil
e Peru, perdendo a casa e o caminhão com o qual trabalhava fazendo transportes, e
329 No artigo 5 se adicionava: “são transferidas gratuitamente à favor do Governo Departamental
Autônomo de Santa Cruz todos os imóveis e bens públicos das instituições do Governo Nacional que
administrem alguma das competências exclusivas do Departamento Autônomo de Santa Cruz”. Ver: Lei
da Assembléia Departamental de Santa Cruz (2008).
391
começou a se recuperar fazendo campanha para a um deputado. Weimar dizia que como
o comandante da polícia era um bandido haviam roubado também seu carro. Explicava
que Pando é o reformatório de policiais de Santa Cruz e de Cochabamba que se
comportam mal. Ele havia sido o campeão Peru-Bolívia-Argentina de motocross em
1991 e pôde voltar a Pando quando um político o chamou para correr representando
Pando no prêmio nacional de automobilismo. Um juiz que ele havia ajudado dando
peças de carro, sem saber que era uma autoridade, lhe arrumou tudo. Deram a ordem à
polícia que recuperasse sua carteira de identidade e quando foi buscar, quem lhe atendeu
havia sido sua companheira de colégio. De todos os modos, ele sabia que se lhe
pegassem poderia escapar, pois em Pando não prisão, explicava, a poucas horas da
última sessão da Assembléia330.
Depois se envolveu com os movimentos de dar terras aos que não tem, contava.
E dizia que o governo tinha que ajudar porque eles estavam sozinhos. O prefecto tem
mais armas e gases que a polícia nacional e quem denuncia Leopoldo, amanhece morto,
dizia. Faz muitos anos que se sabe que Leopoldo é narcotraficante e quando era
presidente do Senado, retiraram seu visto aos EUA por isso. Desde que é prefecto, o
narcotráfico aumento em mil por cento e os bandos se matam pelas ruas. Porém
ninguém nada e a polícia não diz nada. No município 5000 empregos, 1.500 a
mais que em La Paz, e nem 500 desses apóiam Leopoldo. Por isso havia levado
capangas do Acre, no Brasil. Weimar dizia que em Pando era também sabido que
Leopoldo não tinha ganho as últimas eleições, mas chegado com fraude. Evo não
escutou porém Leopoldo havia feito desaparecer 5000 carteiras que usaram brasileiros
para votar nele. A corte eleitoral está com eles. Fazer um referendo é perder,
dizia331.
330 Antes de começar a corrida, pelo qual havia podido voltar, prenderam-no em La Paz por estar com a
placa da moto irregular, quando havia ido experimentar o caminho para a corrida nacional e saiu ao
chamar o primo deputado. Depois não queriam deixá-lo competir pois não tinha cinto de segurança e
disse que se ele não “comia”, ninguém comeria e que se não o permitissem competir, cortaria a
passagem da estrada e ninguém correria. Ganhou a competição por 26 segundos. Houve uma tentativa
de tentá-lo com a Miss Guayrá porém ele priorizou a corrida.
331 Ainda que as pessoas tenham saído, pela primeira vez em trinta anos, contra Leopoldo; é preciso se
aliar com todo o mundo para ganhar dele, dizia. Pensava que com o tema da terra e dos recursos
naturais se podia ganhar na Meia-Lua. Havia pedido a Evo que o pusesse três meses de vice-ministro da
terra sem salário, “o emprego mais forte de Oriente”, porque via Almaraz reprovadissimo. E também
pensava que havia que mudar alguns comandantes e dois terços da polícia. Em 2010, Weimar assumiria
com Diretor do Desenvolvimento Florestal, denunciando o tráfico de madeira. http://www.la-
razon.com/version.php?ArticleId=61177&a=1&EditionId=1360
392
O ajudante pessoal de Leopoldo, quando ele era ministro de governo e Evo
pressionava no Chapare, levou uma maleta de dinheiro e Morales não recebeu. Weimar
elogiava Evo, porém o via sozinho. De que serve que trabalhe 18 horas?, perguntava.
Próximo ao fim da Assembléia Constituinte, em 2007, Weimar havia sido chamado por
amigos que perguntavam quanto valia seu voto. Dos quatro constituintes que o MAS
tinha como aliados em Pando, dois se haviam “desalinhado”. Um era de se esperar,
dizia Weimar, pois é sobrinho de Leopoldo Fernández e do presidente da Corte
Departamental. Porém o outro era firme e tinha trabalhado com ele na oficina mecânica.
Deve ter sido fortemente ameaçado, pensava, e agregava “o demônio está em Pando”.
Dizia que tinha que conseguir armas e ir com tudo ao referendo de aprovação da
Constituição. “Agora é a bala” acrescentou Roberto Aguilar, que dirigia a caminhonete
e se preparava para comandar a última sessão da Assembléia Constituinte, em Oruro.
Ambos coincidiam que seria difícil evitar mortes.
393
Capítulo 5
O Acordo e a Constituição Aberta.
“Em matéria indígena a América Latina tem uma longa
história de pelo menos um século, praticamente- com
ilusões e frustrações, no que diz respeito a isso,
provocadas por constituições que não mantém o costume
de se auto-questionar ao adotar novidades profundas.
Preocupam-se antes de qualquer coisa com sua linha de
flutuação. Acaba então por tornar incapacitados a quem
quer amparar: neutralizam o que reconhecem; ao integrar
reduzem. Eis os efeitos, em curto prazo, quando se
orientam aos indígenas.” Bartolomé Clavero
Em primeiro lugar, analisaremos neste capítulo; o modo como foi construído o
acordo político de outubro de 2008, origem da convocatória ao referendo da sua
aprovação, e o discurso estatal, que procura impor uma interpretação da história da
Bolívia, onde o Estado Plurinacional marcaria uma ruptura contundente com o passado.
Em segundo lugar, o capítulo analisa o texto constitucional, resultado de todo o
processo político estudado. O resultado desse processo seria uma Constituição aberta,
combinação de diferentes visões que resultou em um texto com definições estruturais
construídas sob tensão, dando lugar a ambigüidades, contradições ou espaços de
indefinição, propiciando ao mesmo tempo horizontes e formas normativas liberais,
indígenas e inspiradas por projetos políticos diversos.
Era uma grande constelação de interesses e vontades, embora tenha se formado
ao redor de um centro, como espaço político da onde nasce o pacto que começou a ser
construído em 2007, pacto concretizado em uma mesa de negociação e diálogo, tornado
possível, somente após a Meia-Lua ter avaliado até onde alcançavam suas forças. Esse
centro deu lugar ao Estado Plurinacional, com seus novos consensos básicos
estabelecidos, e era o MAS de Evo Morales, depois de ser ratificado em uma eleição
onde superou os dois terços dos votos, quem traduziria esse centro em uma nova ordem
constitucional. O centro que pode determinar a base do acordo e da nova Constituição,
não significava, em absoluto, o abandono do conflito. A Constituição Aberta o abrangia,
e dava lugar a um novo Estado que estabelecia um centro em um lugar diferente daquele
estabelecido pelo velho Estado, e isso implicaria uma tensão, própria de toda
394
transformação, e que uma Constituição com espaços indefinidos ou com elementos sob
tensão manteria latente, como os contornos da política boliviana de sempre.
1 O Grande Acordo Constitucional.
Após o Massacre do Porvenir, o diálogo foi estabelecido, tornando possível a
construção de um acordo constitucional. O modo pelo qual o pacto pode se realizar, e as
sínteses das discussões que lhe serviram de base, podem ser encontrados nos
documentos de seus operadores mais diretos, publicados pela Fundação Boliviana para
a Democracia Multipartidária (FBDM), vinculada a uma ONG holandesa, contando
ainda com a cooperação do governo alemão. Era esse o espaço onde foi construído o
núcleo político que deu origem ao acordo de 2008. A publicação desses documentos
tem como ponto de partida o trabalho político que acompanhou os encontros, que foi
também de onde começou a tornar-se realidade o diálogo até então esquivo entre o
MAS e a oposição, ao mesmo tempo em que iam se abrindo as condições políticas mais
gerais
332
. As discussões “técnicas” organizadas pela FBDM, com a participação de
Carlos Romero e Carlos Böhrt, responsáveis pelas “consultorias”, não eram o único
espaço de construção do “centro” de onde surgiu o acordo constitucional. Vimos que
na fase das comissões na Assembléia, o centro era multi-localizado em incontáveis
conversações informais ou oficiais; internas ao MAS, ou entre os distintos partidos.
Mas, durante a história do processo constituinte, o espaço articulado em torno de Carlos
Romero, que havia tido um papel de destaque durante a Assembléia, foi de onde
surgiu a articulação política do acordo político que deu origem ao pacto
333
.
332
Os três livros editados pela FES-ILDIS e FBDM são: Böhrt; Chávez Reyes; Torrez Villa Gómez, (2008);
Böhrt; Alarcón; Romero (2008); Böhrt; Romero; Peñaranda (2009). No primeiro livro Romero escreve
sobre terra e povos indígenas, Böhrt e Alarcón destacam os outros temas da Constituição. No segundo
livro Böhrt e Silivia Chávez discutem a possibilidade de compatibilizar estatutos departamentais e a
Constituição. Andrés Torrez traz “ferramentas para um diálogo”. O terceiro livro narra como foi
alcançado o acordo no Congresso. Entre outras atividades, a FBDM organizou uma viagem a Cuba com
alguns constituintes, que foi saudada por um artigo de Fidel Castro, em seu papel de analista na
imprensa escrita.
333
Por outro lado, desde janeiro de 2008 a Representação Presidencial para a Assembléia Constituinte
(REPAC) usando os meios de comunicação, deu inicio à difusão do texto constitucional, através de
atividades por todo o país, imprimiu exemplares do texto e “para convencer à classe média”, criou um
personagem que imitava uma mulher, dona de casa, que buscava refutar as críticas e rumores que se
ouviam na mídia, sobre a nova Constituição. Os constituintes participavam dos eventos. A Vice-
presidência também realizava atividades: como exposições comentadas pelo vice-presidente e eventos
com presença de convidados internacionais; Dussel, Laclau, Negri, Zemelman, Spivak e outros. Eram
uma demonstração de apoio ao governo, na busca de legitimidade e suporte político à Constituição, que
seria medida no referendo. Podemos ver esses espaços como uma importante instância na construção
do centro. Além disso, o vice-presidente da Assembléia, Roberto Aguilar, realizou uma turnê pela
395
O lugar do acordo, esteve imediatamente ligado à discussão de como levar à
mesma mesa de negociação a Constituição aprovada em Oruro em dezembro de 2007,
pelo MAS e alguns aliados, e os estatutos autonômicos aprovados em referendo pela
Meia-Lua, em maio e junho de 2008. Em fevereiro de 2008, foi publicado o trabalho
“pontes para um diálogo democrático Projetos de Constituição e Estatutos:
compatibilidades e diferenças”, de Carlos Böhrt, Silvia Chávez Reyes e Andrés Torrez
Villa-Gómez. O trabalho foi promovido pela FBDM, seguido por outro livro, sob a
responsabilidade de Böhrt, Romero e Carlos Alarcón, que, como o primeiro, sustentaria
a tese de que a compatibilização dos estatutos com a Constituição era possível e,
portanto, o acordo viável. No capítulo de Torrez são apresentadas interessantes tabelas
onde vemos que, nos Estatutos e na Constituição, os artigos de “consenso polêmico”,
apenas, atingiam um percentual minoritário. Na Constituição de Oruro, os percentuais
alcançavam os 22%, no Estatuto autonômico de Santa Cruz os artigos polêmicos
atingiam 13% do total, percentual que se reduzia no caso do documento de Tarija a 4%.
O Trabalho se completava com a organização dos artigos por graus de dificuldade, e
propostas de consenso
334
.
Antes das votações nos departamentos, o jesuíta e antropólogo Xavier Albó,
escreveu uma comparação entre “a Constituição nascida de uma eleição nacional de
constituintes e aprovada, apesar do assédio daqueles que queriam -la abortada”, e “os
estatutos aprovados também de forma desgastante, embora por um grupo
autonomeado”. Pese a polarização, entretanto, Albó reconhece que existiam muitos
elementos em comum entre ambos e que se deveria, então, polir, consertar e
complementar a Constituição, antes que abortá-la. Escreve Albó: Os artigos difíceis,
conflituosos de fato, são mínimos nos estatutos de Tarija e Pando, razoáveis nos do
Beni e maiores, apenas, no caso de Santa Cruz, e acrescenta que das 40 novas
competências departamentais “exclusivas”, 13 haviam sido contempladas pela nova
Constituição. Para Albó as minorias deveriam aceitar reparar o cio mais antigo da
primeira Constituição de 1826, que excluiu os povos majoritários do país
335
.
Inglaterra, Alemanha e Espanha, para “socializar” o processo constituinte. E também várias viagens ao
Equador, que havia concluído sua Assembléia no final de julho de 2008, iniciada em setembro do ano
anterior, e teria seu referendo dois meses depois.
334
Na Constituição, os temas polêmicos correspondiam aos seguintes assuntos: papel dos povos
indígenas (17%), Autonomias (22%), Reformas políticas (19%), Justiça (17%), Terra (12%), Regime
econômico (11%) e Direitos (2%).
335
Xavier Albó Constituição e Estatutos Autônomos”, La Razón, domingo 6 de abril de 2008.
396
Albó era um dos que buscavam o centro. Já mencionei o trabalho de diálogo que
ele havia protagonizado em outro livro, financiado pela cooperação internacional
(PNUD) junto a Franz Barrios Zuvelza. O grupo Santa Cruz Somos Todos tinha,
também, uma posição de centro, e o governo do MAS como um todo havia ensaiado
várias tentativas, desde que renunciou à busca por uma maioria absoluta, buscando a
aprovação da Constituição. Em entrevista feita com Xavier Albó, em 2009, ele analisa
que apesar das concessões, em La Glorieta e Oruro, o texto, ainda não estava refinado,
por um lado, porque a oposição não estava interessada em negociar, e por outro, pela
pressa devido ao prazo final da Assembléia, que se aproximava. Além disso, haviam
retirado os embriões à wawita [bebê, criança] (constituição) para que ela não nascesse,
para fazê-la fracassar, entre os quais o abortivo mais forte era o assunto da capitalia,
dizia. Recordava que Boaventura havia dito que chegara à Constituinte para aprender
teoria; mas também acrescentava que “temos o Premio Güiness de abortos, e idéias
interessantes que depois não são aproveitadas”.
Para o jesuíta Albó, ainda que em cada instância, o texto da Constituição fosse
se refinando. O resultado foi um texto repetitivo e com coisas “mal precisadas”, pela
falta de tempo. Embora em cada fase, viesse que o texto tinha ido se afinando.
Diferente são os ensaios, dizia, como a eleição popular de juízes, que é única no mundo.
Albó via os modelos econômicos como a parte mais débil, pela dificuldade de colocar
em prática muitos âmbitos de produção e não depender somente de matérias primas.
Albó dizia que, comparativamente, não existe na América Latina nenhuma Constituição
que se aproxime dela, porque, por exemplo, na Constituição equatoriana a questão das
nacionalidades estava muito mais diluída. Dizia sobre Bolívia que “Falando de relações
humanas, eu acho que temos muito mais possibilidades de dialogar do que em outros
lugares”. E concluía: “quando vemos o que existia e o que existe, vemos o quanto
avançamos”
336
.
Sem contar o infecundo diálogo na Assembléia, outras tentativas também não
haviam rendido bons frutos, como as de janeiro de 2008 num diálogo entre Evo Morales
336
Albó lembra que em La Glorieta havia ainda um parlamento unicameral, criado em Oruro, e que,
inclusive, quando a cópia foi entregue a Evo era diferente também da de Oruro. Para Albó, coisas
insensatas haviam sido colocadas em negociação, como a hierarquia, que colocava em primeiro lugar a
Constituição, em seguida, decretos e no final, leis, evidentemente, eram colocadas para serem
negociadas, mas, depois retiradas muito rapidamente. Recordava dos temas que os “ideólogos urbanos”
faziam uma sólida defesa, mas que em seguida eram modificadas, simplesmente se agregando uma
palavrinha. Foram ajustes que permitiram chegar ao referendo, dizia Albó, e para isso a aprovação de
Oruro havia sido um passo à frente.
397
e os prefectos; em fevereiro entre Linera e o Congresso; em março novamente com os
prefectos; com a mediação da igreja e da OEA; em junho sem resposta dos prefectos e
em agosto com uma nova convocação de Evo Morales, condenada novamente pelos
prefectos da Meia-Lua. O convite frustrado de Junho, feito pelo presidente, pela
primeira vez, era a origem do que veio a ser chamado mais tarde de “mesa paralela” ou
“mesa clandestina”, encontro de diálogo que não se tornou público na sede da FBDM,
cujo diretório era integrado pelos representantes de todos os partidos políticos do país, e
integrada também especialmente por Carlos Romero e Carlos Böhrt. A amizade pessoal
entre o constituinte do MAS e o Senador de PODEMOS havia tornado possível o inicio
das tratativas, que buscavam dar continuidade ao espaço de diálogo de fevereiro,
coordenado pelo vice-presidente García Linera, onde se havia identificado alguns
pontos da Constituição aprovada em Oruro, que o MAS estaria disposto a modificar
337
.
Em um dos trabalhos vinculados a este espaço técnico de discussão, Torrez (:83)
escreve que uma das competências geradora de controvérsias entre o Estatuto de Santa
Cruz e a Constituição de Oruro (educação) poderia ser exclusiva do Governo nacional.
Mas agrega um comentário de sentido comum que permite tirar conclusões
interessantes. Acrescenta que o fato de que seja competência exclusiva, não impede que
os departamentos tenham a competência de legislar o desenvolvimento da normativa
nacional, atendendo a suas particularidades históricas e culturais. E podemos pensar
também que o fato de um assunto ser definido pela Lei nacional, não impede que a
partir da representação departamental no Parlamento e a bancada de Santa Cruz não é
pequena as regiões possam imprimir sua visão na legislação nacional, como poderia ter
sido também na Assembléia Constituinte, foi o que ocorreu, pelo menos, dentro da
bancada do MAS.
O discurso da autonomia da Meia-Lua, se apresentava como totalmente excluída
pelo centralismo de La Paz. Santa Cruz parecia raciocinar dizendo “fiquem com o
governo que nos ocupamos do departamento com autonomia plena”. Santa Cruz
reivindicava sua proposta política, fechando a possibilidade de participar do governo,
como havia sido nas décadas anteriores, renunciando a pensar Santa Cruz dentro do
governo central. Com a chegada de Evo Morales, os representantes de Santa Cruz se
fecharam no departamento. As publicações, do ILDIS e FBDM, iam ao sentido
337
A informação foi retirada do texto “Quarenta dias que comoveram a Bolívia e um pacto político
forçado” cujo rascunho da versão me foi facilitado por Böhrt. A versão final seria publicada em Romero;
Böhrt; Peñaranda (2009).
398
contrário, pensavam a compatibilização de projetos, na contramão da polarização
presente nas regiões e também de algumas posições rígidas do governo, que não
assimilava a possibilidade de modificar o texto da Constituição, ainda que, também não
apresentasse os caminhos que levassem para sua aprovação. No espaço da “mesa
clandestina”, no entanto, um acordo era pensado apesar dos confrontos ainda fossem a
aumentar no país. Pela proximidade que esses trabalhos tinham com protagonistas do
processo constituinte como Romero, podemos considerar que faziam parte do trabalho
de elaboração de uma nova Constituição.
1.1 O Diálogo de Cochabamba
No trabalho de Peñaranda (2009, trad. nossa), a partir das entrevistas com os
protagonistas, percebemos como foi complexa a abertura do diálogo. Imediatamente
após o massacre de Pando, foi Tarija o elo que se rompeu da Meia-Lua, viabilizando o
diálogo com o governo. O Governador Cossio se dirigiu ao Palácio Quemado, enquanto
em Santa Cruz todas as instituições estatais iam sendo ocupadas. A viagem da comitiva
de Tarija a La Paz foi viabilizada pelo Senador Ruiz Bass Werner, durante as
negociações da dupla Böhrt-Romero ativadas no final de agosto, e com a participação
de outros mediadores, como Fabián Yaksic, e com a autorização bastante céptica e
desconfiada de García Linera
338
. La Paz havia prestado atenção ao discurso mais
conciliador de Cossio, depois do triunfo da revogação. Roberto Ruiz afirma que a
violência da terça-feira, dia 9 em Santa Cruz, e a que também se produziu em Tarija,
não foram espontâneas, mas sim, planejadas por setores radicais, que queriam preservar
a unidade do bloco da Meia-Lua, diante da decisão “tão forte” de Tarija de ir para La
Paz (Peñaranda, 2009:164). O diálogo vacilava e era frágil, inclusive pela detenção de
Leopoldo Fernández, um dos prefectos da CONALDE
339
.
338
“No rosto de García Linera surgiu uma sombra de enorme dúvida e cepticismo”, disse Böhrt, pelos
fracassos anteriores nas tentativas de diálogo. O Vice-presidente da República aceitou iniciar as
negociações, apesar das dúvidas. (ABI 21-10-2008)
339
Em uma reunião convocada por Ruiz em Tarija, o prefeito, o governador, o reitor e esse Senador
defenderam a posição de abrir o diálogo frente à oposição das outras 22 entidades de Tarija presentes,
que finalmente foram convencidas. Os acontecimentos de Pando contribuíram para que o CONALDE
avaliasse a gestão. Inclusive o governador preso havia avaliado que houve diálogo, avaliando que isso o
beneficiaria. Na versão dos representantes de Tarija o governo decretou Estado de Sitio em Pando para
que o diálogo fracassasse. Segundo o podemista Ruiz, a detenção de Leopoldo Fernández era um
“torpedo” da ala radical do governo. A assinatura do documento foi postergada, e como havia uma
mobilização dos “ponchos vermelhos” cercando o Palácio de Governo, Mario Cossio teve que sair
escondido, com escudo anti-bala e camuflado no caro de um ministro.
399
Ruiz relata que depois de ficar sabendo do acontecido em Pando, García Linera
chegou à reunião, ameaçou prender Cossio, criticou os referendos organizados com
dinheiro público e “e estava muito negativo, agressivo, exaltado… com uma ira contida
muito grande”. Segundo Ruiz, García Linera disse que estava presente somente porque
o Presidente lhe havia pedido e que ele teria preferido não assistir. Disse: “eu estive
preso cinco anos por colocar bombas em redes de transmissão de alta tensão; vocês
fizeram coisas muito piores e merecem prisão perpétua” (Peñaranda 2009:167-168 e
173). Durante o diálogo teve início a preparação de um documento construído em
conjunto, mas os setores mais radicais não garantiam a devolução imediata das
instituições tomadas em Santa Cruz e procuravam reintroduzir o assunto capitalia. A
posição mais moderada que via a necessidade de uma “saída pactuada da crise”
prevaleceu depois de negociações em Santa Cruz, “contataram o irmão de Rubén, Pepe
Costas, para que falasse com seu irmão”, “Falamos com vários amigos de Santa Cruz
entre eles Carlos Hugo Molina [ministro de Goni] que falaram com outras pessoas”
dizia Ruiz, que via que “a mobilização já começava a enfraquecer” e aceitaram devolver
as instituições viabilizando assim o acordo. O trabalho de Peñaranda mostra que
Marinkovic, primeiro relutante, aceita o acordo, do mesmo modo Tuto Quiroga.
O acordo inicial abriu uma mesa de diálogo entre governo central e governos
departamentais, que se reuniram entre os dias 18 de setembro e 5 de outubro, em
Cochabamba. A primeira reunião durou quase 18 horas. Na versão de Romero, era o
encontro de um governo nacional e re-legitimado, de maneira contundente nas urnas,
com prefectos de oposição vindos de mobilizações falidas. O fracasso das mobilizações
foi causado pela ocupação violenta das instituições, escreve ainda Romero, que
conseguiram o controle físico dos edifícios, mas não fazê-los funcionar, para quem
pretendia a instauração de um regime autônomo de fato. Sem contar que a violência da
Meia-Lua não teve adesão da população, observa Romero, que se manteve indiferente,
condenando logo os acontecimentos de Pando (Romero et al, 2009:15-18). Muitos
comentavam, que os setores urbanos de Santa Cruz também viam de maneira negativa o
vandalismo durante as ocupações das instituições, mostrado pela televisão
340
.
340
Outro fator mencionado por Romero era que as mobilizações não haviam conseguido paralisar a
dinâmica econômica, nem afetar a cesta básica familiar e a economia popular graças aos dispositivos
implementados pelo governo, conduzidos pela EMAPA, que garantiram o abastecimento alimentar. Ele
interveio diretamente nesse assunto ao ter sido nomeado, pouco tempo antes, como ministro de
Desenvolvimento Rural, Agropecuário e Meio Ambiente (MDRAyMA), após uma autocrítica do governo
à estratégia de guerra econômica”, com a proibição das exportações, em que tinha entrado com a
Meia-Lua nos meses anteriores.
400
O diálogo começou a avançar no vale cochabambino, com assessores das nove
prefeituras, uma mesa coordenada pelo ministro de Economia, Luis Arce Catacora, para
tratar do assunto do recorte de IDH, e outra, sobre autonomias, coordenada por Romero.
O assunto pendente da designação de autoridades judiciais e eleitorais, também seria
tratado. Participaram observadores da igreja católica, evangélica e metodista, e também
representantes da ONU, OEA, União Européia, UNASUR, alguns representantes de
seus países membros também em separado, França e Grã-Bretanha
341
. Ao abrir-se o
diálogo, a nova prefecta Sabina Cuellar tentou reintroduzir o assunto capitalia, mas no
acordo que deu origem ao diálogo o assunto tinha sido deixado de lado. Na realidade,
estava claro, que não poderia se chegar a um acordo com o tema capitalia sendo
reintroduzido. A Meia-Lua não concordava com a reivindicação de Sucre, apesar do
sentimento de traição que pudesse gerar em alguns participantes de Chuquisaca.
Enquanto o diálogo se desenrolava, os movimentos sociais realizavam uma
importante mobilização, que se anunciava como cerco a Santa Cruz, e ameaçava
recuperar as instituições ocupadas, caso os representantes civis e outros não as
desocupassem. Santa Cruz estava preocupada, porque no dia 24 de setembro, seria
inaugurada a Expocruz, feira de negócios do campo, que orgulhava aos setores
empresariais do departamento. Os camponeses da CSUTCB anunciavam que, aos 20
mil marchantes, se somariam 30 mil na semana seguinte se os prefectos do CONALDE
não concordassem com o governo em viabilizar o referendo aprobatório da
Constituição. García Linera chamava atenção para o fato de que, a marcha e bloqueio
das estradas, não tinham sido motivados, por aumento salarial ou reivindicações
econômicas regionais, mas sim, em defesa da democracia, da constitucionalidade, da
unidade nacional, era uma pressão que visava obrigá-los a assinar o documento. Ao
iniciar o diálogo em Cochabamba, Evo Morales criticou a perda de neutralidade do
Cardeal Terrazas e lembrou os “atos delinqüentes” da oposição, incluindo os atentados
aos dutos e o massacre de Pando. Em seguida, partiu para o Panamá, onde recebeu um
titulo de doutor Honoris Causa.
O diálogo foi viabilizado, e o consenso sobre o capítulo de autonomias da
Constituição, avançou. As organizações suspenderam o cerco a Santa Cruz, e também
341
Por Santa Cruz participaram, Urenda, Asbún e Strauss. Pela FAM participou Revilla além de outros,
Colanzi e Ricardo Pol estiveram pelo UN, o presidente do Senado Óscar Ortiz, Böhrt e Gamal Serham
pelo PODEMOS. Muitos dos atores protagonistas da Assembléia ressurgiram. Raúl Prada e assessores do
Pacto de Unidade, como Adolfo Mendoza, também estiveram presentes. Por Chuquisaca se apresentou
o constituinte de PODEMOS, Jaime Hurtado e o assessor do Comitê Institucional, “Chunca Gutiérrez”.
401
aceitaram devolver os recursos do IDH, por outros mecanismos. Romero informou que
o governo aceitou todos os pedidos dos prefectos: ficou acordado que os departamentos
tivessem recursos próprios; eleição de autoridades; soberania legislativa, as autonomias
teriam igualdade hierárquica, mas, não haveria modificação nos limites dos
departamentos. Entretanto, os prefectos se retiraram do diálogo sem assinarem, em
protesto pela detenção de um representante cívico do Chaco, preso por ter atentado
contra um duto de gás. Os prefectos declararam que as modificações não os
conformavam, mas, segundo Peñaranda, em nenhum momento, eles especificavam
quais seriam as divergências (op. cit. 181). No dia 5, foi apresentado o resultado a Evo
Morales e os prefectos de Tarija, Beni e Santa Cruz, aceitaram ser fotografados junto ao
presidente. Sabina Cuellar de Chuquisaca não quis, e também não participou o
departamento de Pando, que desde 20 de setembro tinha o ex-general, Rafael Bandeira,
no comando do Estado de Sitio, como autoridade interina
342
.
1.2 O Acordo do Congresso.
No dia 8 de Outubro, três dias depois da entrega dos resultados do diálogo de
Cochabamba, o acordo continuava em um novo cenário: o Congresso Nacional, que
adquiria caráter constituinte. Os prefectos não conseguiram assumir o trabalho de
continuar com o acordo referente ao resto da Constituição, que García Linera tinha lhes
oferecido, segundo ele mesmo manifestava (Peñaranda, 2009:182). O MAS recorreu
então a outros interlocutores, e se a autonomia tinha sido concertada com autoridades
departamentais; o resto do texto seria discutido com setores moderados da oposição, que
aceitaram esse papel no Congresso. Inicialmente, entretanto, o governo se mostrava
fechado a realizar novas modificações, especialmente a partir de declarações de Silvia
Lazarte e de outros constituintes, que se mostravam fechados diante dessa possibilidade.
Mas Evo Morales convocou aos presidentes das câmaras e chefes de bancadas
do Congresso, iniciando duas novas semanas de negociações, onde todo o texto
constitucional foi discutido. Evo Morales também tinha fechado a possibilidade de
342
Os acordos foram assinados pela FAM e pelo resto dos prefeitos. Romero menciona que, ainda que,
embora os prefectos não tivessem assinado, seus representantes haviam assinado uma ata, onde se
registrava um 80% do capítulo de autonomias com acordos. Urenda e outros autonomistas já haviam
assinado no dia 1 de outubro, indica Romero. Romero também informa que ocorreram duas audiências
de com representantes dos povos indígenas, com CIDOB e CONAMAQ, e acordaram os conteúdos da
autonomia indígena. Também com uma comitiva da região do Chaco chegou-se a um acordo sobre os
conteúdos da autonomia regional.
402
realizar novas modificações fora do capitulo acordado sobre as autonomias, dizendo
“não somos constituintes para mudar o texto”. Legisladores como Félix Rojas
aceitavam que houvesse algumas mudanças, mas não “de conteúdo”, apenas “de
forma”. E Isaac Ávalos declarou: “Já que os prefectos não querem, nos o faremos, mas
modificaremos o tema da terra, do Estado plurinacional, o tema da água, dos recursos
naturais, do gás e do petróleo, nós não aceitamos nenhuma outra mudança”. Falava-se
de aceitar modificações apenas no capítulo das autonomias (Jornal La Prensa 10-10-08)
343
.
Enquanto o espaço de diálogo se iniciava no Congresso, as organizações sociais
iniciaram, no dia 13 de Outubro, uma marcha saindo de Caracollo, a 200 km de La Paz,
para exigir a aprovação do Referendo Aprobatório e da diminuição da extensão máxima
permitida da propriedade da terra. Os dirigentes sociais anunciaram, primeiramente, que
realizariam um “cerco” para pressionar os parlamentares, mais tarde, corrigiriam a
proposta e anunciariam que seria apenas uma “vigília”, que chegaria a La Paz em oito
dias. Segundo algumas estimativas, participaram da marcha 100 mil pessoas, de 95
organizações. Evo Morales encabeçou a marcha nas primeiras horas de seu percurso. A
oposição criticava, pedia que o mandatário lembrasse que não era mais um dirigente
cocalero, mas Evo Morales declarou à imprensa que se juntava a marcha como afiliado
da COB, do CONAMAQ, da CSUTCB e como morador de Orinoca”
344
.
Durante um discurso, Evo Morales afirmou também que “A refundação de
Bolívia nos uniu… Saúdo a decisão da COB de unir-se à CONALCAM”. O conceito
tem importância se pensarmos nos últimos 20 anos de lutas sociais na Bolívia, que
unificaram os diferentes setores na formula que define ao povo boliviano como sujeito
chave na confecção da nova Constituição. Dessa vez, entretanto, o povo não marcaria
sua presença através da heterogênea bancada de constituintes, mas sim, por uma marcha
que chegaria ao Congresso exigindo a convocação da aprovação da nova Constituição.
As nações e povos indígenas originários e camponeses avançavam junto com Evo
343
Participaram do espaço de diálogo do Congresso: Peredo, Rojas, Navarro, Herbas do MAS, Ortiz,
Vázquez, Franco, Montenegro e o constituinte Serham pelo PODEMOS, além de Ruiz e Böhrt. Romero
representava ao governo e pelo UN estava o deputado Colanzi, Villavicencio e o constituinte Ricardo Pol.
O MNR levou o Senador Mario Justiniano, os deputados Roxana Sandoval e Fernando Romero e o
constituinte Richter. Böhrt nos informa sobre a autorização de Tuto Quiroga para começar o diálogo, e
de oposição ao diálogo dos representantes do congresso de PODEMOS, que apenas flexibilizaram sua
posição no final.
344
Outro jornal citava suas declarações dessa maneira: Venho à marcha como filiado do COB, como
filiado do Conalcam, como filiado da Confederação de Camponeses e como filiado da Confederação de
Colonizadores”.
403
Morales encabeçando a marcha, com destino ao poder central. Não obstante, para a
oposição, tratava-se, apenas, de um cerco e de uma nova ilegalidade.
No mesmo dia que começava a marcha de Caracollo, entrevistei Branko
Marinkovic em São Paulo, que iniciava uma viagem, por vários países, para denunciar
os “atropelos aos direitos humanos em Pando”, não pelo massacre de indígenas, mas,
para pedir garantias para os mais de 300 representantes civis e vinculados à prefectura,
que depois dos acontecimentos do Porvenir, por medo de serem convocados pela
justiça, se auto-exiliaram, declarando-se na clandestinidade, em uma cidade brasileira,
vizinha a Pando. Sobre a Assembléia Constituinte, criticava o fato de não terem sido
respeitados os dois terços, motivo alegado pelos cívicos, para não aceitarem a
Constituição, ainda que a mesma seja aceita pelos prefectos. Os motivos eram, segundo
o presidente do Comitê PSanta Cruz, não se conhecer os que a redigiram, e que
aceitar a “Constituição do MAS seria trair as prefeituras e o voto das pessoas que
defenderam a autonomia e votaram pelos estatutos. Para Marinkovic, a Constituição
deixava tudo sujeito à decisão do presidente da República e colocava em perigo o
Estado de Direito e a Democracia. Preocupava-lhe também a eleição de representantes
por “usos e costumes” e a justiça comunitária, que a seu ver, não daria direito de
apelação a alguém que fosse atropelado por um carro em uma comunidade, ou em San
Julián, terra de colonizadores.
Marinkovic era acusado de usurpar terras dos povos indígenas e tempos depois
se declarou também perseguido e deixou o país. Mencionava a presença de
venezuelanos na Bolívia e nos acontecimentos do Porvenir, e lhe preocupava a
participação do presidente na marcha que estava partindo de Caracollo; e que ele via
como um novo cerco ao Congresso. Perguntei-lhe em quê se opunha ao projeto de
autonomia do governo e disse que, fundamentalmente, a diferença era que não a
considerava autonomia, que um decreto do presidente estaria por cima das
determinações do departamento e do Estatuto. Este seria um dos elementos do texto
modificado no diálogo do Congresso, mas a posição intransigente do Comi não
mudaria. Por outro lado, sobre a violência do mês de setembro em Santa Cruz, se
queixava da atitude radical da Juventude de Santa Cruz, que definiu como vândalos, que
basta que recebam algum pagamento, eles resolvem qualquer problema
345
.
345
Marinkovic dizia que por três vezes tentaram ocupar o Comitê, porque um imbecil, presidente do
Comitê, anterior a ele, lhes havia cedido um espaço no prédio da instituição; e que estava tentando
negociar um novo espaço fora dali. Atribuía a ocupação das instituições à federação dos universitários,
404
Segundo escreveu Romero sobre o diálogo que se abria no Parlamento, “de
acordo com as informações preliminares, obtidas pelo governo, a principal força política
opositora havia adotado a estratégia de participar do diálogo, embora sem a decisão
política de chegar a um acordo, repetindo suas atuações anteriores; participando dos
debates de maneira muito dinâmica, mas logo inviabilizando os pactos, alegando
qualquer pretexto” (2009:21). Quando a linha mais dura, anti-acordo, do PODEMOS,
representado por Luis Vázquez, Óscar Ortiz e Walter Guiteras, foi à reunião de diálogo
houve descontentamento com o MAS. Mas pouco depois, com a participação de Böhrt,
também de PODEMOS, o diálogo começou a se viabilizar, fora da instância oficial,
onde as discussões eram intermináveis. Foi então, que a “mesa paralela”, organizada por
Böhrt e Romero, voltou a ser ativada, se reuniam nos escritórios de Romero em
MDRAyMA e antecipavam os assuntos que seriam discutidos, mais tarde, no
Congresso, “para orientar e direcionar o debate nas reuniões oficiais”.
O deputado de UM Alejandro Colanzi, um dos que assinaram o documento do
espaço “Santa Cruz Somos Todos” durante o referendo do Estatuto, também participou
das reuniões. Era o momento da aposta no diálogo, levado adiante por atores que podem
ser colocados no centro político, de onde surge um novo Estado. Nessa mesa não havia
lugar, nem para a visão separatista nem para o indianismo pluralista mais puro. Um ano
antes, segundo García Linera, em entrevista a Peñaranda, quando se abriu a
multipartidária na vice-presidência, pediu a Rubén Darío Cuellar que fosse organizado
um espaço onde “a força majoritária oferecesse um acordo à segunda força”, mas “até
agora, estou esperando resposta” dizia o vice-presidente. Em Outubro de 2008, García
Linera comenta que, no Congresso, às vezes, se aproximava da mesa grande do diálogo,
para mostrar vontade de diálogo e flexibilidade, mas as discussões avançavam muito
lentamente. “Vásquez é especialista em encontrar problemas em qualquer coisa”, dizia
Linera (:188)
346
.
mas em seguida, a coisa se descontrolou e os estudantes foram substituídos por ladrões que chegaram
do campo. Dizia que Santa Cruz era o departamento menos racista, dando como exemplo, o fato de que,
todos os anos, eles assistiam ao desfile em comemoração ao aniversário de La Paz, e mencionava que,
inclusive, havia gente de La Paz, no diretório do Comitê.
346
Para Böhrt, a mesa paralela de outubro começou com Romero, Novillo, chefe do MAS no Congresso e
com o Senador de Tarija, Roberto Ruiz. Os parlamentares de Santa Cruz e Beni eram a parte rígida do
PODEMOS, que não desejavam que o MAS pudesse convocar o referendo de aprovação da Constituição.
Böhrt também menciona a participação de Doria Medina e Santos Ramírez, e diz que pelas diferenças
internas do PODEMOS e da posição intransigente de muitos, ele e Ruiz “se auto-representavam” a
diferença de Romero e Novillo, que participavam das reuniões em representação do MAS. Reuniam-se
quando tudo parecia destinado ao fracasso, dizia Böhrt, “mas não podíamos permitir que a violência
ganhasse” (2009:188-189). Tuto Quiroga esteve no início fechado para a possibilidade de um acordo,
405
O verdadeiro avanço acontecia nas reuniões de Romero e Böhrt, tendo como
base o trabalho do primeiro semestre de 2008, facilitado pela FBDM. Segundo narram
os protagonistas, era o caráter “clandestino” e não oficial, que permitia um espaço de
trabalho onde os bons resultados eram alcançados. As reuniões começaram na
residência particular de Guido Rivero, presidente da Fundação, quando o Oriente
buscava aprovar seus Estatutos e o governo não sabia como viabilizar a homologação
do texto aprovado em Oruro. Acerca das facções do PODEMOS de Santa Cruz no
Congresso, contam os protagonistas, preferiam apostar no fracasso da Assembléia e que
fosse declarada a autonomia de fato. Por isso não queriam nenhum contato com o
governo. A lógica do Oriente era buscar a autonomia e deixar a confrontação com o
governo, da que as minorias opositoras de Ocidente eram mais dependentes para o seu
jogo político.
O Senador Ruiz explicava a tarefa política deste espaço de negociação da
seguinte maneira: “tínhamos que trazer até o centro político os setores que estavam à
direita no PODEMOS, e aos setores radicais do MAS” (entrevista com Peñaranda,
2009:192). Era o mesmo objetivo com que vimos Romero agir na Comissão da Terra, e
depois na comissão pelo assunto da capitalidade. Mas, especialmente na Comissão da
Terra, onde se encontravam presentes vozes bem parecidas daquelas que definiram o
acordo final pela Constituição, no Congresso. Ruiz também explica que, este espaço
externo à reunião de delegados por partido no Congresso funcionava de forma geral,
espontânea e desorganizada. Além do espaço de Romero e Böhrt, Ruiz dizia que as
mesas “Surgiram em momentos distintos, de acordo com a conjuntura. Todos os atores,
em algum momento, faziam suas próprias „mesas paralelas‟, onde discutiam, sem
pressões e livremente, as possibilidades de acordos. Estes acordos passavam
imediatamente para a mesa formal, e se incorporavam ao texto constitucional”. Para
Ruiz não se tratava também não de mesas clandestinas, e sim de “mesas técnicas de
trabalho, fora da câmara, não oficiais, não formais, mesas que serviam para explorar a
possibilidade de um acordo (2009:191-193)
347
.
mas depois, ficou mais flexível, e tanto ele como Evo Morales e García Linera eram informados de cada
avanço nas negociações, autorizando e possibilitando politicamente que a mesa clandestina funcionasse
e pudesse tomar decisões, que passariam ao Congresso. No espaço paralelo, eventualmente, também
participavam outros atores, como autoridades de governo, convocadas para tratar de algum assunto
específico, os parlamentares da oposição e ex-constituintes.
347
Sobre a informalidade e importância dos espaços paralelos, o constituinte Richter, que também
participou de algumas instâncias, afirmava que não se tratava de uma mesa paralela, e sim “informal”. E
também conta uma particularidade curiosa, na entrevista de Peñaranda, sobre a sua própria
406
Afora a reeleição outros temas que freavam o acordo logo em seguida foram
sendo acordados: a reversão de terras; as concessões dos serviços públicos; a estrutura
do Senado; a eleição de autoridades da Corte Eleitoral e a proposta do MAS para que a
reforma da Constituição fosse realizada por maioria absoluta. A oposição havia se
aproximado com uma primeira lista contendo uma dúzia de observações, mas, com o
passar dos dias, acrescentou mais observações sobre novos assuntos. Como vimos no
capítulo 1, a oposição também exigia a reintrodução dos termos “nação” e “república”;
liberdade de expressão e de imprensa; o controle social; a gestão de recursos naturais;
que ficasse mais claro os limites da livre determinação dos povos
348
. Sobre a reeleição, a
discussão era se, uma vez aprovado o novo texto, Evo Morales estaria habilitado a um
ou a dois mandatos, dependendo da contabilização, ou não, do mandato iniciado em
2006, e que na realidade seria meio mandato. Sobre as autonomias, foram incorporadas
as modificações de Cochabamba, na qual 24 novas competências eram transferidas para
os governos autônomos dos departamentos, consideradas, porém, poucas pela bancada
de Santa Cruz, porque tomava o Estatuto autonômico como referência
349
.
Segundo os protagonistas, entrevistados por Peñaranda (2009), o acordo
deslanchou depois da sexta-feira, 19 de outubro, quando a marcha estava perto de La
Paz e a ala dura do PODEMOS, comandada pelo presidente do Senado Óscar Ortiz, deu
um ultimato exigindo que fosse apresentada, em 24 horas, a redação alternativa do que
participação nas negociações: no sábado, 18 de outubro, enquanto a marcha se aproximava e a
possibilidade de acordo parecia se afastar, estava conversando informalmente com parlamentares da
UN e do MNR quando, em poucos minutos, se aproxima Carlos Romero, e, por casualidade também, se
somam ao grupo Ortiz e Guiteras, dois Senadores do PODEMOS, que também estavam passando por ali.
Foi nessa reunião, que pela primeira vez, se conversou “com sinceridade”, sobre um dos temas centrais
que, até então, não havia sido acordado: a reeleição. Romero denunciaria para a imprensa que a
oposição tentava deixar esse assunto para o final, passando uma imagem de inflexibilidade do MAS,
interessado apenas na reeleição.
348
Em 9 de Outubro, o PODEMOS havia apresentado uma primeira lista com 16 observações, que
incluíam: a liberdade de expressão; o controle social; a conformação do novo Poder Legislativo; a
justiça; insegurança jurídica; Corte Eleitoral; o sistema eleitoral; a conformação dos poderes do Estado;
a reeleição do Presidente; a “eliminação” do termo República do novo texto constitucional; a educação
e o ensino religioso; o direito à vida; a propriedade privada; os recursos naturais; as autonomias, e a
discriminação lingüística.
349
Os autonomistas de Santa Cruz exigiam em seu Estatuto ter competência exclusiva para temas não
contemplados na Constituição aprovada em 2007: educação, saúde, terra, justiça, policia, recursos
naturais renováveis e não renováveis, solos florestais e bosques, aproveitamento florestal, áreas
protegidas, meio ambiente, diversidade biológica, biotecnologia, águas, licenças para serviços,
telecomunicações, eletrificação urbana, relações trabalhistas, desenvolvimento sustentável
socioeconômico, defesa do consumidor, feiras internacionais (Santa Cruz organiza uma feira agrícola
todo ado), espectro eletromagnético, limites provinciais, desenvolvimento de povos indígenas e
camponês, assuntos de gênero, meios de comunicação e cooperativas. Ver Revista Opiniões e Análise,
vinculada a PODEMOS, Nros. 91, 92, 93, 95, 97, 98 (2006-2008) sobre projeto de Constituição e de
estatutos, e referendos.
407
havia sido debatido. O pedido parecia impossível de ser cumprido, parecia também uma
nova manobra do PODEMOS para tensionar o diálogo. Mas Romero conseguiu
apresentar as novas redações dos artigos, graças ao trabalho antecipado, com cerca de
180 artigos modificados, de um total de 411 que tinha o texto constitucional (2009:196).
Essa foi a proposta que seria transformada em texto constitucional, após uma primeira
sessão, concluída na madrugada, em que foi aprovada uma “lei interpretativa”, pela qual
o Congresso se autorizava a realizar mudanças no texto aprovado em Oruro
350
. As
02h45min começariam a ser considerados os artigos modificados, que eram lidos, quase
enquanto saiam da impressora. As 8h da manhã, quando a marcha que havia saído de
Caracollo havia entrado em La Paz, a seção final começou, com os parlamentares do
MAS mascando coca e os da oposição tentando se manter acordados com café e
cigarros.
A lei de convocatória dos referendos aprovada, estabeleceu a votação que
ratificaria a nova Constituição para o dia 25 de janeiro de 2009, e para o dia 6 de
dezembro de 2009, a eleição do presidente e parlamentares. Conforme foi introduzido
pelos estatutos, os novos prefectos, que passariam a se chamar governadores”, teriam
as suas eleições marcadas para abril de 2010, junto com a de alcaldes e membros das
Assembléias regionais. Na segunda-feira, 20 de outubro, Evo Morales foi para a
localidade de Ventilla receber a marcha e, nas últimas 9 horas, se reuniu à caminhada,
junto com os seus ministros que continuaram até a Praça Murillo, em frente ao
Congresso. Os manifestantes permaneceram durante o dia todo na frente do Congresso,
ouvindo grupos folclóricos e dormindo junto a Morales, que também permaneceu na
praça. Foi frente à multidão que Evo Morales, às 12:52min., chorando emocionado
351
,
promulgou a Lei de Convocatória ao referendo aprovada por 106 parlamentares, com
apenas um voto a mais além dos dois terços necessários
352
.
350
A “Lei Interpretativa” estabelece que seja faculdade do Honorável Congresso Nacional contribuir com
o processo constituinte e poderá realizar os ajustes necessários tendo como base a vontade popular e o
interesse nacional, poder conferido pela lei especial do atual Congresso, aprovada por dois terços de
votos de seus membros presentes. Os ajustes não poderão afetar a essência da vontade do constituinte.
351
Segundo o jornal La Prensa do dia seguinte: A alegria invadiu o centro político de La Paz. O Congresso
aprovou as convocações às consultas. Enquanto cantava o Hino Nacional, o Chefe de Estado caiu em
choro quase inconsolável. O porta-voz do presidente, Iván Canelas se aproximou e as lágrimas
começaram a rolar pelo rosto do comunicador. Acudiram também Isaac Ávalos, da Federação de
Camponês; Fidel Surco, líder da Conalcam, e Pedro Montes, executivo da Central Operaria Boliviana
(COB), e todos soluçaram.
352
A pergunta do referendo seria: Você está de acordo em referendar o texto da nova Constituição
Política do Estado, apresentado pela Assembléia Constituinte e ajustado pela Comissão Especial de
Acordo do Honorável Congresso Nacional, que inclui os acordos obtidos depois do diálogo sobre
408
Romero e Novillo encabeçaram o trabalho técnico de modificação dos artigos e
dessa vez não foi Santos Ramírez,e sim García Linera e Torrico que se ocupavam de
somar os votos e “amarrar as coisas” para que fosse alcançado os dois terços
necessários. O MAS tinha 80 constituintes e necessitava de 25 votos da oposição para
alcançar dois terços. Algumas semanas antes, o ministro Quintana havia advertido, em
uma conferência de imprensa, que poderiam aprovar a convocatória por maioria
simples, modificando a lei que tinha sido aprovada durante o cerco de fevereiro. O
argumento servia para dizer à oposição que independente da presença deles a
convocação aconteceria. Essa era a situação que estava no ar, na realidade, desde o
triunfo do revogatório, dia 10 de agosto. A lei foi aprovada com 9 votos do UN, 9 do
PODEMOS e 8 do MNR a favor do acordo. Durante todo o ano de 2007, foi o que se
havia buscado na Assembléia Constituinte, sem êxito, e que agora ficava demonstrado
ser possível. Como em outras oportunidades, novamente, o MAS reclamava de que
constituintes que haviam participado ativamente das negociações propondo reformas,
que inclusive haviam sido aceitas, deixaram a votação ou votaram contra.
Entre as dezenas de modificações introduzidas, uma preocupação à qual a
oposição havia sido particularmente sensível, tinha que ver com a própria sobrevivência
política dos partidos presentes na negociação, a partir das normas e estrutura do sistema
eleitoral. Isso fez com que o Senado e as circunscrições plurinominais voltassem à
ordem constitucional, apesar de anteriormente ter sido eliminadas em Oruro ou em
versões anteriores do projeto de Constituição. Também se estendeu para um ano o
mandato dos parlamentares que estavam cumprindo mandatos, fixando as eleições para
dezembro de 2009, e não imediatamente após a aprovação do novo texto. Esse assunto
seria tratado nas negociações finais, depois de já definidos todos os ajustes do texto. Ter
eleições de imediato, dizia Romero, era obrigá-los a votar a favor do seu próprio enterro
político
353
.
autonomias, estabelecido entre o governo, prefeitos e representantes municipais, incorporando o
resultado da consulta sobre o artigo 398 a ser resolvido nesse mesmo referendo e que a mesma seja
promulgada e colocada em vigência como nova Lei Fundamental do Estado boliviano?”.
353
Segundo relatou o deputado Gustavo Torrico: “a oposição explicou que não queriam encurtar o
mandato e pediam que fosse colocada uma cláusula transitória que permitisse que fosse concluído até
janeiro de 2011. Unidade Nacional reivindicou que se adiasse a eleição para dezembro de 2009 e s
aceitamos, em seguida, a oposição disse que deveria ser em maio de 2010; dissemos a eles que não
era mais possível, que fomos sinceros, que havíamos adiado o bastante, que havíamos feito todos
os ajustes, que nos pareciam caprichos e que isso não fazia sentido e que era melhor entrarmos de uma
vez no Congresso e aprovássemos. Logo após, a oposição apareceu com outra idéia, reivindicava que
fosse em dezembro de 2009, outra vez, mas que previamente se realizasse um referendo consultando a
409
Para selar o acordo, Evo Morales renunciava a aspiração de concorrer a uma
segunda reeleição. Sua decisão era a de conseguir um acordo com a oposição, pagando
todo o custo que seja necessário, inclusive no que diz respeito a esse assunto tão
sensível. Assim, enquanto o Congresso estendia seu mandato, Evo Morales o reduzia,
porque sua primeira gestão de apenas 3 anos, seria contabilizada como mandato
completo. Para Romero “esse é um desprendimento objetivo, inverossímil, indubitável,
incontrastável. De tal modo que está na consciência do povo boliviano, está na ética do
sistema político, tudo comprovado pelo testemunho de observadores da comunidade
internacional”. E pouco antes da marcha ingressar em La Paz, e logo após termos cedido
sobre esse tema, esperávamos que o PODEMOS fixasse sua posição final. Romero dizia
à imprensa: “de nossa parte, já cedemos tudo o que podíamos ceder”
354
. Raúl Prada, em
um texto de 2010 (“Desideratum na transição”) escrevia: “O Congresso, declarado
constitucional, fará, depois, cento e quarenta e quatro modificações, revisando cento
vinte dois artigos, mas não poderá mudar o espírito constituinte, a vontade constituinte,
expressada na própria estrutura da Constituição, na visão do país e no modelo de
Estado; vontade manifestada principalmente na parte declarativa da Constituição,
acarretando conseqüências importantes na parte orgânica da mesma”.
O acordo no Congresso acabou por criar fraturas entre os membros do grupo
político PODEMOS, primeira minoria também no Congresso, com o setor mais radical
dos representantes de Beni, Pando e Santa Cruz, que votaram contra as leis que selavam
o acordo. Apesar da rigidez da posição inicial, e de ter repetido até o cansaço que a
“Constituição do MAS” havia sido aprovada ilegalmente com sangue, Tuto Quiroga
acompanhou seus constituintes do ocidente e avalizou o acordo. Se não o fizesse, corria
o risco de ficar em situação ainda pior frente à ruptura provocada pelos parlamentares
de sua força política. Os protagonistas comentam que o convencimento dentro do
PODEMOS foi possível, apenas no final, e as posições contrárias ao acordo, como a do
população sobre a reeleição do Presidente e sobre a modificação ou mudança da data da eleição, o que
parecia uma irracionalidade.
354
Carlos Romero declarou “Não é verdade que a reeleição seja um fator de entrave para o diálogo, a
oposição transferiu o tema para o final, postergando provavelmente porque queria aparentar que essa
era a causa do entrave, mas, a reeleição não é um tema estrutural que trave os acordos. O Presidente da
República obteve mais de dois terços de votos em 10 de agosto, e apesar dessa legitimação emergente
das urnas, o MAS votaria generosamente a mudança para viabilizar a aprovação e a implementação da
nova Constituição. Na verdade, juridicamente a eleição e reeleição deveriam ocorrer para o futuro, sem
contar o atual período constitucional. Alguns partidos políticos consideraram que isso era excessivo, o
MAS e o Presidente da República renunciaram à possibilidade de reproduzir o controle da administração
publica pela via eleitoral em um segundo período constitucional, depois da proposta de adiamento da
eleição”.
410
presidente do Senado Óscar Ortiz e outros de Santa Cruz, que se opuseram até o final na
sua viabilização apesar de não existir demandas importantes que não tivessem sido
atendidas. Nos dias seguintes, Quiroga atribuiria para si os méritos do acordo,
assumindo publicamente que havia conseguido aliviar os perigos contidos no texto
anterior
355
.
Entretanto, da mesma maneira que o o MNR e UN de Doria Medina que
declarou que 95% das observações tinham sido incluídas Tuto Quiroga participaria
dentro de pouco na campanha pelo “não” a nova Constituição. No momento do acordo,
dos Estados Unidos, o líder civil Branko Marinkovic desconheceu também o acordo.
Rubén Costas clamava pela formação de uma Frente Ampla eleitoral para votar pelo
“Não”. E através do jornal de Santa Cruz, El Nuevo Dia, avaliava que o acordo havia
sido uma aliança entre o MAS e os partidos tradicionais contra a oposição autonomista
do Oriente. Porém, este jornal em seu editorial reconhecia que “o projeto absolutista que
utilizava os indígenas como escudo para se perpetuar no poder” havia sido abandonado,
ou melhor, transferido para mais adiante. Resignado e desejando, como sempre, a queda
dos camponeses e indígenas do governo, um Senador do Podemos declarava que a
Constituição duraria o mesmo tempo que Evo no poder.
Enquanto alguns se preocupavam em destacar seu papel no acordo para associar
seu nome a esse feito político constituinte, de Omasuyus chegava um documento de “El
Mallku” Felipe Quispe, intitulado “TRAIÇÃO AO MOVIMENTO INDÍGENA E
POPULAR! Evo Morales e o MAS acabam de se ajoelhar novamente diante da direita,
dos racistas e da reação”
356
. O caráter não retroativo do limite de propriedade máxima
da terra foi o principal ponto de crítica das forças sociais descontentes, mesmo que
Romero houvesse explicado que a reforma agrária não seria afetada porque os que não
cumprissem a Função Econômico-social teriam suas terras tomadas de qualquer
355
Quiroga declarou que o acordo incorporou a autonomia departamental com poderes legislativos e
administrativos, e foi abandonado o projeto totalitário garantindo as liberdades sicas e os direitos
fundamentais dos cidadãos, a propriedade privada e foi deixado de lado as atribuições todo poderosas
que tinha o denominado controle social, que antes podia pedir a renúncia de autoridades eleitas pelo
povo. Também se garantia o direito dos pais de família de eleger o tipo de educação para seus filhos,
dizia Quiroga à imprensa. Também dizia que com uma Constituição clara poderia atrair investimentos de
quem antes não arriscaria colocar aqui o seu capital.
356
Felipe Quispe criticava o respeito à propriedade privada que não estaria sujeita a expropriação, o
que seria contraditório com as declarações de Evo Morales que pregava a “destruição do capitalismo”,
dizia o dirigente; também criticava no documento a volta ao esquema vigente de Congresso e eleição de
parlamentares; a não retroatividade para devolução de latifúndios, que foi um dos temas mais difíceis
assimilação para as empresas; e que a justiça comunitária havia sido restringida. Documento assinado
pelo Comitê Político do Movimento Índio Pachakuti MIP. Chukiyawu Marka, 21 de outubro de 2008.
411
maneira. Após o acordo, Silvia Lazarte, também não concordando, se manifestaria
através da imprensa “ninguém me informou sobre o que aconteceria no Congresso esses
dias”. Román Loayza também foi crítico, e declarou que “era melhor que os
parlamentares fizessem desde o início todo o trabalho, que em menos de 48 horas foi
mudado tudo o que tinha sido construído durante o tempo de vigência da Assembléia”.
Carlos Romero, em entrevista que realizei meses mais tarde, dizia que as
condições que possibilitaram o acordo foi o resultado do Referendo Revogatório que
mudou a correlação de forças; a polarização extrema desde meados de 2006; o apoio
internacional; especialmente o limite que o país sentiu depois do massacre de Pando; e
de modo fundamental, a decisão de Evo Morales de respaldar as modificações no
projeto de Constituição, que havia sido aprovado “em grande, revisão e detalhe”. Evo
Morales foi importante, novamente, quando depois de 17 horas de espera na Praça
Murillo, os mineiros detonavam dinamite e tinham a intenção de furar a barreira policial
para invadir o Congresso, expulsar os parlamentares que não aceitassem um acordo, e
enclausurá-lo. Apenas com a voz do presidente, que explicou que a oposição buscava
uma desculpa para suspender a sessão, os manifestantes mais radicais aceitaram
continuar esperando. Mais cedo, também, o presidente havia suplicado paciência aos
“ponchos vermelhos”, que também ameaçavam tomar o Parlamento, e lhes explicou que
era o setor oligárquico o que tomava instituições.
Em seu discurso de promulgação da lei, Evo Morales declarou que “digam e
façam o que quiserem, o neoliberalismo não voltará a Bolívia” e anunciou a transição
para um Estado Plurinacional Autonômico. Também disse “Sinto de verdade que este
processo de mudança não será interrompido”, “Sinto que não sou importante para o
processo de mudança, novos líderes”, “Posso ir para o cemitério contente porque
cumpri o meu dever para com o povo” e “deste ponto em diante, todos os irmãos e
irmãs iniciarão a campanha para que como dizia nosso companheiro da COB
possamos aprovar a Constituição com 100% dos votos, especialmente as bolivianas e
bolivianos camponeses, como os sindicatos dos trabalhadores. Também pedimos para as
pessoas da cidade que se juntem a nós para refundarmos a Bolívia”. O deputado por
Potosí, Cesar Navarro, saudaria também o acordo, e qualificaria a nova Constituição
como “um dos produtos mais importantes da nossa história”. Evo Morales, também
declararia depois do acordo, que na Constituição de Oruro tinham incluído assuntos
estrategicamente pensados para serem negociados. A mesma coisa me diria um assessor
412
técnico da Assembléia sobre os Estatutos: tinham colocado exageros grosseiros para
serem diminuídos em um acordo posterior.
1.3 García Linera e a Nova Narrativa Política Plurinacional.
Álvaro García Linera construiria uma narrativa do processo, que apresentava em
discursos e entrevistas. Era claramente um trabalho intelectual assumido como
responsabilidade estatal, em defesa do processo político liderado por Evo Morales e que
selava seu projeto de transformação da nova Constituição. Seu discurso do dia da
promulgação das leis que permitiam viabilizar o processo constituinte foi publicado nos
cadernos da vice-presidência com o título de “Como se derrotou ao golpe Cívico-
Governamental” (2008). Consistia em uma exaltação da façanha constituinte; como
base para a consolidação de um novo consenso estatal que se estabelecia para o futuro,
diante do fracasso da oposição. Os constituintes que fizeram o texto foram perseguidos,
chantageados, foram agredidos chegaram a levar cusparadas e apesar de tudo isso
fizeram o texto, dizia García Linera, que admitia sentir profundo respeito e admiração.
Requeria-se um esforço a mais, narrava o vice-presidente, que explicava que aos 98%,
ou aos 95% do trabalho dos constituintes, o Congresso agregou uns 5%, que permitiu a
conclusão do trabalho, foi a única forma encontrada para que os pactos fossem
firmados, sem o qual García Linera pensava que “nós continuaríamos nos enfrentando,
no Congresso, na rua, nas regiões”.
Falava de uma “contribuição humilde, pequena, que fizemos na grande obra
deles, no trabalho titânico”; e de que “essa contribuição como por arte de magia fez que
todos se convertessem em constitucionalistas” e sobre a oposição dizia “até a direita se
não quiser ser ultrapassada pelo trem da historia terá que suavizar e engolir as palavras
de „enquanto estivermos vivos não vai haver nova Constituição‟. O que o constituinte
construiu com suas mãos é de toda Bolívia. Os constituintes podem descansar
tranqüilos”. Expressava que o que os constituintes construíram ia perdurar por 30, 40,
50 anos, “depois que Bolívia der o sim”, ainda faltava o referendo. O novo consenso o
centro que a nova Constituição estabelecia, se resumia em três elementos, segundo o
vice-presidente. Primeiro: a igualdade, como reivindicação do movimento indígena e
dos povos, a plurinacionalidade, dizia. Segundo: a desconcentração do poder e
descentralização, reconhecendo a vitalidade de cada região; era a autonomia. Terceiro: a
413
economia industrial, que reconhece a pequena indústria e a economia camponesa, como
tendo um papel especial para o Estado.
“Igualdade dos povos, industrialização e autonomia” eram as bases do novo
consenso que apresentava García Linera, no dia 23 de outubro, dando inicio também, à
campanha pela aprovação do texto, concluído logo após o acordo do Congresso. Para o
vice-presidente os três assuntos expressavam: “os três assuntos geradores dos conflitos
que nos separavam, as rachaduras da vida social, as rupturas do Estado que, hoje, são
parte do texto”. A direita tinha ficado sem propostas, ou o que quer que seja para
oferecer, dizia, e via que não tinham líderes nem programa. Calculava que em alguns
anos voltaria a surgir uma oposição, como um novo trem que passará dentro de dez
anos. Mas dizia que os que foram ao cabildo (não falava de um milhão,e sim, de 500 ou
200 mil), tinham seu projeto incorporado na Constituição. Via como atitude testemunhal
quase irrelevante os que continuavam intransigentes, os que não se submetessem à roda
da historia, seriam triturados. Quem se opõe a este texto, dizia, se opõe ao pedido de
autonomia e ao cabildo. E afirmava que todo o programa acumulado em 180 anos de
vida republicana agora havia sido incorporado na nova Constituição, e que o presidente
Evo havia encabeçado essa transformação, assinalava.
Com o texto constitucional definitivamente aprovado no referendo de janeiro de
2009, o que foi possível depois de uma campanha suja, onde os partidos que
contribuíram para o acordo do Congresso se opuseram duramente ao texto que haviam
revisado; García Linera continuaria em seu papel de expor, de forma sofisticada, a
interpretação do MAS sobre o processo político e seu lugar na historia boliviana. Podia
soar como apologia, discurso que fechava a luta política, impondo um panegírico ou
exaltação de um Estado novo como ponto de chegada e revolução vitoriosa. Mas esse
era o tom que requeria um discurso que se propunha a pôr as palavras de uma época, em
uma disputa de versões e significados próprios de um inegável momento de mudanças
políticas.
Ouvi o vice-presidente diretamente no Palácio de Telecomunicações de La Paz,
em março de 2009, com uma nova apresentação de sua leitura do processo político, na
inauguração da Escola de Fortalecimento e Formação Política “Evo Morales Ayma”,
organizado pelo grupo Os Satucos do deputado Torrico, então importante figura do
governo. Na sua palestra, definia o Estado como máquina de poder político que
monopoliza as decisões, e falava do problema de construir um “eu coletivo” que
representasse a todos. Esse é o dom do poder, a hegemonia, a liderança no mistério do
414
Estado, dizia. Mencionava a Marx, Weber e Gramsci, e empregava a frase de Zavaleta
Mercado: “os parentes pobres da burguesia”, para explicar o bloco que em 1952
conseguira colocar o resto da sociedade atrás de seu projeto. Agora “somos nós que
estamos construindo um novo discurso coletivo”, comparava, e destacava que era
através das idéias que podemos distinguir o novo Estado, porque não nada mais
idealista que o Estado, dizia. Era uma visão analítica que colocava o Estado
Plurinacional como fase histórica análoga àquela iniciada em 1952, com a Revolução
Nacional
357
.
A diferença com 1952, explicava, era que o núcleo do novo bloco agora eram os
indígenas, articulados às associações de moradores, trabalhadores e pequenos grupos de
classe média. E exemplificava as mudanças com a imagem das mães, que antes não
queriam que seus filhos falassem em aymara. Assim viveu Bolívia a faz 3 anos,
afirmava. O novo bloco, explicava García Linera, diferentemente do de „52, não era
homogêneo, e o gratificava comparar a vida de Evo com a sua: não freqüentaram as
mesmas festas nem escolas, ele havia podido viajar e fazer um mestrado; mas agora se
articulavam em um mesmo bloco de poder. Até 2005, expunha, se manteve a idéia de
rosca, de famílias que se casam entre si. García Linera dizia que com um bloco de poder
plurilinguístico e cultural, o Estado agora iria ser também plural, como o bloco de poder
que agora estava no governo.
Na sua caracterização histórico-política, García Linera (2008c e 2008d)
apresenta “como hipótese de trabalho” a tese de que o Estado neoliberal atingiu a auge
de sua crise a partir de setembro de 2008, dando origem à construção de um novo
Estado. Era a fase plurinacional, que sucedia à neoliberal, vigente desde 1986; que
sucedeu à fase nacionalista que teve origem em 1952; e a fase liberal, que lhe
antecedera. García Linera entende a vitória de Evo Morales, em 2005, como um marco
que tem correlato nas decisões estatais que começaram a ser tomadas, especialmente,
em termos econômicos, mas que até a resolução do processo constituinte ainda estava
consolidado de forma instável. Somente depois de setembro de 2008, explicava o vice-
357
As idéias que o Estado Plurinacional deixava para trás, eram as do neoliberalismo, que García Linera
explicava que era apoiado nas seguintes bases: privatização que traria recursos para modernizar a
economia; a globalização que era um feito irreversível, para o neoliberalismo, essas eram as condições
para se conquistar o bem-estar e a modernização da sociedade; enquanto que a democracia era um
regime de pactos políticos das elites, com uma ilusória divisão de poderes. Ver também suas exposições
e trabalhos acessíveis na web site da vice-presidência da República: http://www.vicepresidencia.gob.bo/
e seus artigos publicados pela Comuna (García Linera et al 2010), CLACSO (2008a) e a Vice-presidência
(2010a).
415
presidente, ocorreu o “ponto de bifurcação” (conceito de Prigogine utilizado por ele
desde dez anos atrás) em que o bloco do poder emergente se consolida. E é onde se
resolve a situação de “empate catastrófico”, expressão de cunho gramsciano
popularizada por ele na Bolívia, “em que ainda o velho não permitia ao novo impor suas
determinações”
358
.
Na palestra de março de 2009, em La Paz, García Linera explicava que o novo
bloco tinha outras maneiras de entender a democracia, para além da idéia de que o
individuo vem antes do que a sociedade. E assinalava que na Bolívia Plurinacional,
apesar da economia estatal liderar o novo modelo econômico e produtivo, os indígenas
teriam suas formas econômicas comunitárias respeitadas na construção do Estado e
não se dissolveriam como pequenas burguesias do campo, e nem se tornariam “o índio
folclórico” do neoliberalismo. Eram as idéias que havia elaborado como modelo do
“capitalismo andino-amazônico” durante a campanha eleitoral que culminou com a
vitória eleitoral de dezembro de 2005. Entretanto, na campanha que começaria em 2009,
buscando a reeleição, a proposta de industrializar e desenvolver o país economicamente
iria assumir o papel de protagonista, e a questão da pluralidade étnica e de formas
econômicas diferentes, sairia de cena.
Em uma entrevista concedida, após a vitória do projeto constituinte do MAS,
García Linera indica que dos três eixos do novo Estado, o assunto das autonomias e o
assunto da igualdade plurinacional haviam sido definidos pela Constituição. Sobre
isso, era necessário ainda elaborar as leis derivadas e criar as instituições
correspondentes, explicava García Linera. Fica claro, que com essas palavras, a vice-
presidência indicava não uma hierarquia, e sim, uma divisão de tarefas no processo de
mudança. O papel prioritário do Estado seria então concentrado no terceiro elemento,
introduzido com o novo consenso estatal: o da economia. García Linera explicava à La
358
Aqui, me baseio, especialmente, no texto publicado para uma exposição, em uma Universidade de
Santa Cruz (2008f). Na entrevista concedida ao jornal La Prensa (2010b) dizia: “tem terminado o
processo de transição estatal. Bolívia iniciou um processo de crise do Estado neoliberal, junto com suas
imutáveis condições de neo-colonialismo e patrimonialismo, no ano de 2000. Entre 2000 e 2008 foi o
momento da transição, quando foi colocado em questão a manutenção da velha ordem ou a criação de
uma nova. E teve suas etapas matematicamente calculadas: inicio da crise e formação de um projeto
alternativo de poder entre 2001 e 2003; entre 2003 e 2008 ‘empate catastrófico’, onde coexistem dois
projetos de poder de país: o dominante, porém em decadência, e o emergente, mas que ainda não é
dominante; em seguida, a conquista do governo por parte deste último, a tensão, o ‘ponto de
bifurcação’ entre agosto e outubro de 2008, que é o momento de correlação de forças, onde mediante
estratégias guerreiras dos dois blocos confrontados, se define o destino do Estado e assim, em 2009,
acontece a consagração e validação eleitoral, política e cultural da vitória estatal que começou a ser
trabalhada, desde o ano de 2000, com a rebelião”.
416
Prensa, nesse sentido, que o governo devia se ocupar, especialmente, do potenciamento
do Estado, com um crescimento econômico baseado na industrialização, acompanhado
por políticas sociais de acesso universal, melhorias nos serviços básicos e ampliação dos
direitos para todos
359
.
E uma vez solucionado o problema da aprovação da Constituição podíamos
observar, de fato, que o governo daria destaque ao programa “Bolívia Produtiva”, a
idéia-força da campanha, iniciada após a aprovação da Constituição, que visava à
reeleição de Morales e García Linera, nas eleições de dezembro de 2009. Essa idéia
seria colocada em prática nos meses seguintes à promulgação, as três idéias básicas do
Estado Plurinacional já não eram assunto de discussão; antes de qualquer coisa, se
falaria da industrialização do gás, de reservas de lítio, refinarias de petróleo, trens,
centrais separadoras, megacampos, represas, exploração no norte de La Paz e de novas
áreas, e até de um satélite, que o governo lançaria para ter “soberania tele-
comunicativa”, e que seria batizado com o nome de “Tupak Katari”. Veremos, no
último capítulo, que a perspectiva da descolonização e do governo indígena não sairia
do universo discursivo adotado pelo governo. Mas as prioridades políticas estariam
mais identificadas com o projeto econômico estimulado pela esquerda nacionalista e
estatal do governo de Evo Morales e pelos camponeses.
Em uma entrevista ao jornal do governo, Cambio, Óscar Vega, analisa esta
mudança no discurso de campanha, como um movimento de aproximação com o centro.
Ele dizia que: “A mudança no discurso da campanha de faz cinco anos é que, o que era
uma proposta de mudança, transformação, nacionalização dos hidrocarbonetos,
convocação à Assembléia Constituinte e descolonização; cinco anos depois se centra no
salto industrial, com um discurso fortemente economicista, e a garantias de que os
direitos presentes na nova Constituição Política do Estado Plurinacional serão
cumpridos. O que demonstraria que do discurso do processo de mudança, pretendemos
359
García Linera expressava: “O Estado é a grande locomotiva porque passou a gerar dos 13% do
Produto Interno Bruto para 31%, e nossa meta é de 35%” (2010b). Na sua exposição de abril de 2009, no
Palácio das Telecomunicações, Carlos Romero dizia a Constituição não devia modificar coisas no assunto
do desenvolvimento econômico, e sim, antes, introduzir o que foi modificado pelo Poder Executivo. As
mudanças marcam um novo papel do Estado na economia, dizia Romero, com a nacionalização do gás
(com controle de excedente); e reconstituição da empresa estatal, YPFB. O Estado aumentou a
participação da renda financeira, modificando a estrutura fiscal. Romero assinalava que, antes de 2005,
a principal fonte de ingressos eram empréstimos e doações (40%), e a participação da renda petroleira
era de 5,9%. Depois da nacionalização de 2006, os ingressos através dos impostos diretos sobre
hidrocarbonetos aumentaram de 180 milhões, entre 2000 e 2005, para 2400 milhões de dólares, em
2009, com a renegociação de preços e do aumento das exportações, apesar da queda do preço
internacional.
417
estabelecer agora um paradigma da mudança como visão de centro. Um centro que
permite resolver todas as necessidades como sociedade, reconhecendo que
desigualdades e onde todos serão contemplados, mas com um rumo que não fica claro”.
Perder-se-ia de vista uma perspectiva de transformação, marcada por uma “agenda” (a
de Outubro), e o discurso industrialista apresentava um plano econômico mais
estabelecido como época de administração e gestão das soluções do “já transformado”,
do que como política e desejo de “busca da transformação”
360
.
Voltando à exposição de García Linera, na inauguração da escola de formação,
com a presença, na platéia, de várias autoridades do Estado, o vice-presidente falava de
uma “previsão objetiva”, e vaticinava uma “década de ouro para Bolívia”, que não
teriam que dedicar muito tempo solucionado o problema do poder. O importante, agora,
era como aplicar melhor os três eixos estruturais: o plurinacional, a autonomia e o
Estado condutor da economia, dizia o vice-presidente. Considerava que o horizonte
epistemológico, dessa geração e dessa época, estava marcado pela Constituição Política
e esses três pilares. E que esta geração seria lembrada como uma geração virtuosa que
resolveu, a seu modo, o que oito ou dez gerações anteriores não conseguiram. Dizia que
as novas crenças seriam, a partir de então, a matriz da política na Bolívia, por vinte ou
trinta anos; e que, junto com a mudança institucional e a consolidação de um novo
bloco de poder a nível nacional, representaria uma mudança estrutural a partir da qual a
briga não seria mais por projetos de sociedade, e sim, por formas de interpretar,
administrar, conduzir e viabilizar, cada um dos três eixos do campo político nacional.
Havia nascido uma Bolívia com igualdade entre indígenas e mestiços; distribuição
territorial do poder; e participação do Estado na economia.
2 A Constituição Aberta e a Meia-Lua.
Depois de três anos de governo, o MAS conseguia aprovar a nova Constituição.
Em 25 de janeiro, o Referendo Dirimidor e Aprobatório da Constituição foi realizado.
O Sim pela Constituição venceu com 61% dos votos, e mais, 80,65% se manifestou
contra o latifúndio, definindo, para o futuro, o limite máximo para a propriedade em 5
360
O programa para a próxima gestão (MAS 2009a) se intitulava “Um plano para a Bolívia do Século XXI:
moderna, industrial, com satélite, com saúde para todos, auto-abastecida em sua alimentação, unida,
democrática, exercendo uma liderança energética na região, exportadora de eletricidade, ferro e com
sua própria indústria automotriz”. Foi elaborado, também, um documento para a campanha eleitoral
com “os cem sucessos do período 2006-2009”, (MAS 2009b).
418
mil hectares. “Ganhamos de deus” alguém dizia, em referência à campanha pelo Não,
protagonizada pela igreja católica e parte da oposição. A Nova Constituição era uma
realidade e seria promulgada por Evo Morales em 7 de fevereiro, na cidade de El Alto.
A seguir, apresento uma leitura do texto que foi aprovado, que permite sentir os rastros
de um processo conflituoso, cheio de tensões que se prolongaram no tempo, e que
alguns analistas mencionavam. Esta visão ia além da versão defendida por García
Linera, que vemos mais como narrativa que buscava impor uma posição política que
determinasse um rumo em um cenário que continuaria como campo de distintas forças
sociais e de idéias em jogo.
A três dias do referendo que aprovaria a Constituição, o CEJIS apresentou em
La Paz sua revista, Articulo Primero e o vídeo sobre o processo constituinte
Construyendo la Dignidad. No evento, Raúl Prada foi convidado a expor, e apresentou
sua visão do texto constitucional. Via dois pontos centrais determinando o texto e o
processo. A matriz do texto são os movimentos, daí seu caráter original e originário,
mas, também, estava presente o caráter formal, feito presente com a intervenção do
Congresso em vários momentos do processo (lei de convocatória, ampliação,
modificação), dando ao ato constituinte um caráter constituído. Eram essas duas
racionalidades, do constituinte e do constituído, que explicavam, para Raúl Prada, a
tensão que via presente desde o primeiro artigo da Constituição. Por isso o ex-
constituinte o considera um texto “de transição”, que se encontrava entre o Social de
Direito e o Plurinacional Comunitário. No discurso de Prada, ele analisou alguns
núcleos centrais dessas tensões.
Nos primeiros artigos tinham sido incluídas reivindicações indígenas, o
autogoverno e a gestão ambiental, que implicavam em uma descolonização, dizia Prada.
Eram, para ele, um passo transcendental, a fundação de uma segunda República, tendo
como base os povos indígenas. Mas, com respeito ao ordenamento territorial,
reconhecia, a maioria dos constituintes decidiram renunciar à reterritorialização ao
decidir não afetar os limites departamentais. O Estado Plurinacional foi aceito, mas, não
suas conseqüências, via Raúl Prada, mesmo que graças à pressão das organizações, se
havia introduzido a região, que em seu limite, permitia ao ex-constituinte pensar em
reterritorialização. Um segundo ponto de tensão, estabelecido por Raúl Prada, estava
presente na visão sobre os recursos naturais. Na mineração não se menciona o meio
ambiente, embora em hidrocarbonetos sim. Em Recursos florestais somos ambíguos e
não conseguimos resolver o problema das concessões madeireiras, dizia. E assinalava
419
que ao mesmo tempo foram incluídos os valores das comunidades que vivem em
harmonia com a natureza. Raúl Prada via que não se havia renunciado aos novos
paradigmas com respeito aos recursos naturais, mas fazia a leitura do texto “com
tonalidades”.
O balanço da Autonomia Indígena lhe parecia mais positivo. Esse é o alcance
político do Estado Plurinacional, observava. Para Chato Prada, tanto a reconstituição
como a tutela haviam sido discutidas nas comissões, e as duas coisas estavam no texto.
No que parece um ganho de Oruro em relação ao Congresso. No mundo do MAS, e das
organizações, o acordo de Outubro era visto como um retrocesso do projeto, obrigado
pelas circunstâncias. Mas, para Raúl Prada, as autonomias indígenas haviam sido
consolidadas no Congresso, onde ficou definido que passariam a ter mais competências.
Avançou-se numa definição mais clara do que em Oruro, dizia Prada, nos permitindo
observar, que a única linha de avanço do processo, não tinha sido apenas em direção à
indefinição e à ambigüidade. A abertura do texto era um balanço geral, baseado em
assuntos que se fechavam em direções diferentes. Com tantos assuntos sendo definidos;
não havia uma única linha com que o processo pudesse ser interpretado e o resultado de
um texto não homogêneo, era sobretudo fruto dos “avanços” e “retrocessos”; busca de
definição, ou de deixar uma discussão em aberto, para abranger mais em relação a
alguma versão anterior do texto, ou pelo contrário, de fechar-se.
Em sua exposição, Raúl Prada acrescentava que a representação direta tinha tido
origem antes da Assembléia, e que na multipartidaria entrado por causa das minorias
mas também, reconhecia, pelos sindicatos camponeses. Depois do Congresso, a
representação indígena conseguiu ser introduzida como circunscrições especiais, “mas
não a representação direta com seu foro”. Era o resultado de preconceitos a outras
formas de representação e de concessões a minorias, dizia Raúl Prada. Ele, também via
que a democracia comunitária presente nos primeiros artigos da Constituição havia
entrado na Autonomia Indígena, mas não na Assembléia Plurinacional, que com a
representação direta poderia ter tido o caráter Plurinacional fortalecido. Havia quatro
Senadores por departamento, nas propostas discutidas na Assembléia, mas depois do
Congresso, não ficou claro se seriam indígenas, dizia Prada.
Outro assunto que causava tensão, estabelecido por Prada, era a concepção
econômica. Eram mencionadas economias com objetivos que não visavam,
necessariamente, os lucros, e sim, por exemplo, a coesão da comunidade e o Bem-Estar.
A Constituição abria outros horizontes econômicos, não apenas capitalistas, mas
420
também comunitários, com alternativas ao desenvolvimento baseado no poder político e
econômico das comunidades. Mas simultaneamente, assinalava Prada, outro eixo do
texto era o fortalecimento do Estado, que aparece como articulador e promotor de toda a
cadeia econômica. As nacionalizações e o projeto industrializante, ao qual não se
renuncia, disse Prada, sob uma tensão, que lhe parecia interessante.
O último assunto, “gerador de tensão”, que Raúl Prada menciona era o da
modificação na relação entre o Estado e a Sociedade. Dizia que para evitar o Estado
hegeliano, da síntese política da Sociedade o que García Linera defendia
explicitamente, em algumas apresentações estava a Participação e o Controle Social
que interviria na construção coletiva da administração de justiça, do processo eleitoral,
etc. Porém, também foram feitas concessões, dizia Prada. Além de ter sido reduzido,
o Controle Social dependerá de uma lei. Ele via que “na pragmática dos artigos
podíamos constatar o resultado da correlação de forças”. E o Estado tinha um caráter
plural, mas, sem renunciar ao caráter estatizante. Prada via a Constituição como
“gramática de um pacto social”, e também, como “caixa de ferramentas que permite não
renunciar aos objetivos, mesmo que fosse um processo de mais longo prazo”. E via nos
artigos uma tensão, entre, “escritura pragmática”, resultado da correlação de força
interna e com a direita e “princípios filosóficos”.
A proposta de Prada era de se ler o texto dessa forma: não como letra morta, e
sim, como caixa de ferramentas. Para Prada, tratava-se de operacionalizar, a construção
das leis e das novas instituições, com o espírito constituinte do texto. Era uma transição,
que dependia das lutas, concluía Raúl Prada, para não entrar em uma
“desconstitucionalização” do texto, com leis semelhantes às anteriores. Em outro texto
de Prada, estes conceitos serão mais aprofundados. Escrevia: A democracia participativa
não pode se desenvolver e ser aplicada mantendo-se formas centralizadas, hierárquicas,
burocráticas, não deliberativas, obedientes, submissas, se as formas de cooptação são
reiterativas, se as formas de governo disciplinador e as formas de governo derivadas da
economia política são vigentes, se o Estado administrativo, se o Estado policial, se o
Estado do controle, da normalização subsistem, condicionando as práticas políticas. A
democracia participativa é possível se as forças contidas forem liberadas, se nos
libertamos de imaginários e da evocação de imagens radicais, se promovemos a
criatividade e a produtividade
361
.
361
Raúl Prada continuava, no texto De las Contradicciones (2010) afirmando que “A base mais
problemática das contradições tem a ver com a genealogia das tecnologias de poder, os diagramas de
421
Como vimos, o acordo de outubro havia modificado uma grande quantidade de
artigos. A Constituição aberta, ambigua, indefinida, ou com conceitos abrangentes é
produto, em primeiro lugar, da delicada correlação de forças entre o MAS e a oposição,
que obrigava por seu próprio peso, na base do texto do MAS, o PODEMOS e o resto da
oposição intervirem na redação. O que deu origem à abertura, mesmo que em muitos
casos, as modificações significaram o contrário: esclarecer, explicitar e eliminar
repetições. À margem da confrontação entre o MAS e o PODEMOS, em segundo lugar,
podemos passar pente fino e encontrar na Constituição também outras vozes, dentro de
cada uma das duas principais forças.
Enquanto ao MAS, vimos no capítulo 1, que a composição plural do povo
boliviano tinha reflexo na redação do texto. Além da definição de quem estava por
detrás do momento constituinte, essa tensão aparece presente em muitas outras
discussões. Como vimos na fase das comissões, a lógica do minoritário se combinava
com a das grandes maiorias; e também encontramos uma importante oposição; entre a
visão pluralista dos povos indígenas e outra, inspirada por um posicionamento político
de esquerda nacionalista ou socialista, sem ênfase na questão étnica. Pelo lado da
oposição, uma das vozes que aparecia com força no processo constituinte, e também foi
introduzida no texto, era a da reivindicação regional de autonomia. O governo
assinalava que esses setores políticos não tinham um projeto nacional, além da tentativa
de aumentar o controle político local; mas a visão desses setores, sem dúvida, está
presente no texto. Em segundo lugar, a oposição expressava nesse processo o
pensamento liberal, característico da “classe média mestiça” das cidades bolivianas, que
também estava presente no MAS ,mas que em algumas discussões, era subordinado.
A voz mestiça, era a que mais reagia em reconhecer a autonomia indígena e o
pluralismo, na estrutura estatal. Também era defendida pelos representantes orientais de
PODEMOS, e teve expressão, especialmente, na revisão final do texto no Congresso. A
Constituição que é produto de todas estas visões, porém, incorpora a visão da oposição,
não apenas, na revisão final do Congresso, e sim, desde a época das comissões, e
introduzida também pelo MAS, pensando em seduzir à oposição, ou às vezes, por
convicção própria de alguns setores do partido do governo; que inclusive ganhavam
espaço quando a linha política era a de se aproximar da oposição. Veremos, em seguida,
força, o mapa das instituições, as normas e procedimentos. Na medida em que estas técnicas se
mantém, perduram, se sedimentam, são recorrentes nas formas do governo, nas políticas blicas, nas
disposições institucionais, nessa mesma medida, entram em contradição com as transformações
desenhadas no horizonte plurinacional comunitário e autônomo”.
422
como aparecerá a discussão entre estas identidades políticas, no produto final que seria
convertido na Constituição da Bolívia.
No resto do capítulo, apresentarei as visões políticas que afetaram sensivelmente
o texto constitucional, como parte de seus componentes ideológicos ou políticos que
influíram na redação, e no caráter aberto e indefinido do texto que acompanha a
coexistência dessas visões. Primeiro, apresento a intervenção do setor mais duro da
oposição, forte no Oriente; em seguida a visão do nacionalismo de esquerda com ênfase
na soberania econômica. Posteriormente, agregarei a tensão entre visões liberais, que
buscavam preservar a República e demonstravam preocupação com o Estado de Direito;
junto ao pluralismo indigenista, como ameaça dessa visão e também como um dos
principais inspiradores do texto.
2.1 A Visão do Oriente na Constituição.
O regime de autonomias foi incluído da forma negociada com os prefectos em
setembro de 2008, ainda que nesta oportunidade se retirassem da mesa de diálogo, sem
assinar, e também não estivessem presentes no acordo do Congresso em Outubro.
Coube mais ao MAS a decisão de incluir as autonomias, apesar da oposição não ter
assinado os acordos, nem aportado votos na busca da aprovação. Alguns parlamentares
da Meia-Lua, na realidade, participaram das discussões e propuseram modificações no
Congresso, e antes, nos espaços de diálogo da Assembléia, mas se manteriam
politicamente afastados. O governo via isso como a tentativa de criar obstáculos que
ultrapassavam a discussão sobre o texto constitucional. Tratou-se de uma inclusão
estratégica, que via a necessidade de incorporar uma reivindicação com base social
como requisito indispensável para alcançar uma posição de centro. E veremos que isso
resultaria em um regime original construído sob tensão, entre projetos políticos distintos
de descentralização.
O lugar político dos autonomistas não seria totalmente redutível ao liberalismo
mestiço de boa parte da oposição. Mesmo que Nação Camba falasse, também, de
empresários exitosos e economia de mercado, como selo distintivo de Santa Cruz, havia
algo que os unia, que tinha uma relação com os laços de identidade do tipo proto-
nacionalista e de interesse local, mais do que ideológico, político, universal, abstrato, do
tipo moderno. Por isso, de igual maneira que entre os representantes cívicos de Sucre,
os autonomistas mostravam transversalidade ideológica por trás da fachada da defesa da
423
causa regional. O prefecto Costas manifestou, em algum momento, seu interesse
“social” e quando me dirigi ao Comitê Pró- Santa Cruz, para ouvir a opinião de seus
líderes, fui recebido por um dosvice-presidentes do Comitê, que havia militado na
Juventude do Partido Comunista, no movimento estudantil da FUL, tinha sido exilado
pela ditadura de Banzer e fazia críticas, pela esquerda, ao governo de Morales, parecidas
com as que ouvi da “esquerda nacional”
362
.
A Meia-Lua havia conseguido coesão e surgido como um forte setor político, na
verdade, antes de Evo Morales, com Sánchez de Lozada, e especialmente, com Carlos
Mesa, representante puro do liberalismo puro de La Paz (cf. MESA, 2008;
GUTIÉRREZ, 2008). A proposta do Oriente era regionalista, sem definir claramente os
demais assuntos que estavam em discussão, e deixando sua marca, desse modo, na
Constituição. Não buscavam a conservação do velho, como seria o signo principal na
visão dos setores liberais mestiços, e também o tinham uma proposta alternativa ao
MAS, além das autonomias plenas. Durante a Assembléia Constituinte, o Oriente não
hesitava em rechaçar oportunidades de diálogo, enquanto o MAS buscava incorporar as
autonomias, ainda que fosse com um modelo que as limitava. Havia interesses políticos
associados e que tentavam orientar uma reivindicação que havia se tornado popular,
alguns deles, com interesse direto de frear o governo indígena de esquerda; mas como o
nome desse setor político indica (Oriente, Santa Cruz, Nação Camba, Meia-Lua),
tratava-se de uma reivindicação regional.
Depois do conflituoso ano de 2008, o governo do MAS reconsiderou sua posição
e decidiu incorporar a reivindicação de autonomia a sua proposta, em termos próximos
aos propostos pelo Oriente. Já havia aceitado a autonomia, mas, foi só então, que
decidiu ceder a todas as reivindicações que haviam ficado sobre a mesa, e seria deste
modo como alcançaria um centro para fundar o novo Estado. O governo aceitou não
subordinar as leis departamentais a decretos presidenciais, com a modificação na
hierarquia das normas jurídicas, no artigo 410. Os decretos ficavam rebaixados a um
quarto lugar, atrás das leis nacionais, estatutos autonômicos, e também, legislação
departamental, municipal e indígena. Antes das leis, apenas a Constituição e os tratados
internacionais, que na versão de Oruro ocupavam o mesmo lugar das leis nacionais, e
com os decretos, acima das leis departamentais. Outra importante incorporação seria
362
O vice-presidente do Comitê, Nicolás Rivero, via no projeto das autonomias indígenas, do governo do
MAS, a intenção de fragmentar o país, e também o de concentrar poder, e ainda, longe de uma “visão
universal” com a qual ele se identificava. Ver Paredes Mallea (2003) e Rivera, J. A. (2008)
424
aceitar a qualidade legislativa (art. 278), apesar de que a mesma não aparecia na
pergunta do referendo vinculante das autonomias de 2006; e também foi proposto um
projeto mais equilibrado de competências, deixando de lado a idéia de que a Autonomia
seria apenas um projeto da “oligarquia”. As Autonomias Regionais, ao mesmo tempo,
seriam apenas, “espaço de planejamento e gestão” sem atribuições de governo (artigo
280), e sem ter designado competências exclusivas.
Em outro avanço para os departamentos autônomos, ficou estabelecido em
setembro que os recursos departamentais (e também universitários, municipais e de
autonomias indígenas) não seriam centralizados pelo Tesouro Nacional, como na
Constituição de Oruro (artigo 340). E foi estabelecido que a coparticipação do Estado
aos departamentos pela produção de hidrocarbonetos (regalias), criadas pela lei, os
impostos dos hidrocarbonetos e os impostos departamentais sobre recursos naturais, são
recursos departamentais (artigo 341). Entre as concessões feitas ao Oriente, as regiões e
os territórios autônomos indígena originário camponeses seriam limitados
territorialmente, proibindo que estas unidades superassem os limites departamentais,
isso tinha sido especificado, desde versões constitucionais de 2007. Uma mudança
simbólica era de nomenclatura, os prefectos passariam a se chamar “governadores”, tal
como eles vinham fazendo, desde a aprovação dos Estatutos. Os departamentos também
passariam a poder cobrar impostos e controlar um maior número de competências. O
nível central de governo tinha, na versão de Oruro, 43 competências privativas, que
passaram a ser 22, depois de outubro de 2008. Os departamentos passaram de 12
exclusivas a 36
363
.
O projeto do MAS não era o do Oriente, como podíamos constatar na
distribuição final das competências, e porque os diferentes níveis de autonomias
departamentais e indígenas mantinham igualdade de hierarquia, sem subordinar
363
A formulação de muitas competências foi modificada, algumas poucas desapareceram ou
apareceram sem ter existido no projeto anterior, e também repetições. Muitas das competências
privativas do nível central do Estado agora aparecem como “exclusivas”, com o qual se podem delegar.
Algumas eram, na versão de Oruro, concorrentes e agora passaram a ser exclusivas, tornando-as
delegáveis, mas não automaticamente. Entre as competências que agora podiam ser transferidas ao
departamento, algumas importantes, foram incluídas como: regime eleitoral; comunicações; recursos
naturais estratégicos; recursos hídricos; biodiversidade e meio ambiente; Política Florestal e regime
geral de solos; Segurança Social; sistema de educação e saúde; reservas fiscais com relação aos recursos
naturais; política fiscal; administração de justiça; políticas e regime trabalhistas; dívida pública, interna e
externa; regime da terra. No “catálogo das competências” foram incluídos alguns erros, como as
competências que figuravam como exclusivas, mas, estavam presentes entre os municipais e
departamentais, também aparecem competências que antes não figuravam, e “biodiversidade e meio
ambiente” aparece tanto como exclusiva como privada.
425
territórios indígenas ao departamento
364
. Mas tinha se avançado em um projeto
intermediário, muito afastado da vontade inicial do MAS de rechaçar a proposta. O
momento em que o MAS assume definitivamente as autonomias é na mesa de diálogo
de setembro, aberta depois do Massacre de El Porvenir; e seus avanços foram incluídos
na versão do texto constitucional que derivou no acordo do Congresso ratificado em
outubro. Essa incorporação, demonstrava, ao mesmo tempo, que a agenda dos prefectos
se limitava ao pedido de autonomia e recursos para financiá-las, porque não saiu do
Oriente uma nova reivindicação depois dessa data, e também demonstrava que o poder
de mobilização de Santa Cruz se enfraquecia com o passar do tempo
365
.
Quanto ao texto constitucional, no resultado final de sua terceira parte, sobre
Estrutura e Organização Territorial do Estado, vemos uma Constituição aberta que
combina um modelo de Estado centralista com um Federal, com elementos de
descentralização e distribuição de competências, que em alguns assuntos supera a
realidade dos Estados federalistas. Albert Noguera (2008, trad. nossa), participante do
processo como assessor, escrevia sobre o regime de autonomias, dando conta que a
Constituição não se define neste assunto a favor de um modelo claro. A tensão entre o
governo indígena e o bastião da oposição no Oriente, não poderia ter permitido outra
coisa. Se este autor assinala que o texto é pioneiro e vanguardista no reconhecimento do
caráter plurinacional do Estado e na participação dos diferentes sujeitos coletivos, sobre
364
Sobre a igualdade de hierarquia, Romero refutava a crítica de que se tornaria impossível de
administrar, e dava o exemplo do Poder Executivo e Legislativo, que não dão ordens uns aos outros,
mesmo tendo funções diferentes. Os distintos níveis de autonomia, de igual modo, tem competências
diferentes, mas uma autoridade não ordens a outra autoridade, o prefeito ou o governador não
manda no administrador municipal. E dizia que na Alemanha isso era chamado de igualdade de mérito e
na Espanha, de igualdade de oportunidade. Explicava em uma palestra, de abril de 2009, que a
autonomia municipal se fortalecia adquirindo capacidade legislativa e novas competências. E ainda que
gozasse de igualdade hierárquica com relação aos outros tipos de autonomia, isso significa que sua
estrutura era simétrica, que deve responder às particularidades da realidade social que expressa.
Assim, tem competências diferenciadas em um sistema de assimetria de competência.
365
A força que o Oriente havia demonstrado, obrigava ao governo atender seu pedido, o que fez o
governo, como expressava García Linera em uma entrevista para uma rádio, entrevistado por Eduardo
Pérez: “Contribuímos com alguns erros políticos, e admitimos com honestidade que cometemos o erro
de não levantar a bandeira da reivindicação pela autonomia em 2006. O Presidente está consciente
disso. Contribuímos para a coesão das lideranças de maneira muito contundente; mas aprendemos
rápido a lição, para no final do ano avaliando, revisando, estava claro que nós tínhamos que dar uma
virada de timão da nossa interpretação sobre as autonomias, e o que fizemos foi levantar a bandeira das
autonomias, incorporando a causa indígena”. Na análise do acordo de Romero (Romero, Böhrt,
Peñaranda, 2009), entretanto, das 13 competências projetadas pela Assembléia Constituinte no texto
aprovado em Oruro, 59 foram incrementadas, das quais 36 são exclusivas, 7 compartilhadas e 16
concorrentes. Estas competências fazem referência às políticas de desenvolvimento departamental em
termos socioeconômicos, prestação de serviços, infra-estrutura, patrimônio natural, patrimônio cultural,
tributos e outros ingressos, institucionalidade de seu autogoverno. As concorrentes e compartidas são
as que requerem um maior esforço, dada sua envergadura o que transcende a jurisdição departamental.
426
o assunto de autonomias estabelece que em comparação ao modelo espanhol, no qual se
inspirou, “tem como objetivo dar uma aparência de Estado autônomo ou ser mais uma
declaração para inglês ver, para tentar satisfazer as demandas de Santa Cruz e dos
departamentos do oriente”.
Segundo Noguera, no texto não uma aproximação técnica real ao modelo
espanhol de organização territorial autonômico e “apesar de sua auto-denominação no
artigo 1, o modelo territorial boliviano não é um Estado autônomo e sim um modelo de
Estado simples e unitário […] o novo projeto de Constituição boliviana leva o
centralismo ao limite do possível, mas não lhe supera”. Um elemento que demonstra
isso para Noguera é a “cláusula residual” pela qual as constituições prevêem
mecanismos para cobrir vazios de designação de competências. Se em casos como a
Itália e a Espanha diante do silêncio se favorece o nível intermediário de autonomia, na
Bolívia toda competência não incluída será atribuída ao nível central do Estado. Ainda
que a análise de Noguera é previa ao último acordo, este ponto permaneceu no texto
depois do pacto político com a oposição. No plano político, porém, apesar de que os
setores autonomistas mais duros reclamassem que no novo texto não estava
contemplada a “autonomia plena”, o governo conseguiu se mostrar flexível, cedendo e
outorgando o tão reclamado regime autônomo, que as regiões demandavam.
Apesar do acordo, o certo é que os representantes cívicos do Oriente negavam
que suas reivindicações tivessem sido atendidas, enquanto o governo tomava a bandeira
da autonomia no Oriente, anunciando o novo Estado que seria Plurinacional, mas
também autônomo. Mais atribuições do que as incluídas na Constituição, dizia o
governo, significava superar os limites do federalismo, enquanto que o caráter do
Estado Boliviano continuava sendo Unitário. A autonomia era então uma das categorias
abertas, indefinidas e polissêmicas incluídas na nova Constituição. O nível das
autonomias regionais de governo, também incluído na terceira parte da Constituição, era
outro dos elementos misteriosos e ambíguos; havia ficado restrito e subordinado ao
Departamento mas continuaria sendo objeto de críticas por parte de municípios e
departamentos como unidade que lhes restava poder; e manteria algo do sentido
original, pensado pelo governo central para disputar poder com o centralismo interno
aos departamentos; também continuava sendo paras as organizações sociais parte do
427
projeto a futuro de reterritorialização e redefinição do mapa do país, descartado por seu
potencial conflituoso já nas versões do texto em Sucre
366
.
A opinião do autonomismo radical de Juan Carlos Urenda parece ir no mesmo
sentido, reconhecendo a falta de uniformidade no texto. Urenda propõe a figura do
“Estado Catoblepas”, empregada para explicar “didaticamente” a Constituição aprovada
em 2009
367
. A Nova Constituição, para Urenda, contém o germe de sua própria
inviabilidade, a partir de cinco contradições descritas pelo autor da seguinte maneira: 1)
o principio de igualdade vulnerabilizado pelo racismo expresso que impregna seu texto;
2) o sistema democrático erodido pelo controle social tipo fascista; 3) o regime de
autonomias departamentais anulado por um sistema de competência centralizado de
maneira torpe; 4) o desenvolvimento econômico limitado pela tendência ao estatismo
comunitarista e um regime de inversões sobre recursos naturais absolutamente
desalentador e; 5) a justiça como função essencial do Estado, que tem na justiça
comunitária o germe de um mar de injustiças. (2009: 7). Urenda fala de uma “conversão
sem fé” do governo à autonomia. Os cinco níveis de governo garantiriam a
ingovernabilidade e clama pela realização de uma frente da Meia-lua com aliados nas
cidades para resistir à Constituição. Sua estratégia: criar um pacto que plasme uma lei
de reforma da Constituição.
Mesmo que, os delegados dos departamentos houvessem estado próximos de
aprovar o regime de autonomias do MAS, continuavam críticos, e foram os
representantes do Oriente no Congresso, também os que até o final mantiveram uma
linha de não aproximação com o governo e de sua proposta. Para os setores da Meia-
Lua, o ponto de comparação não era o Estado centralista anterior, e sim o que foi
desenhado no projeto de Estatuto aprovado em quatro departamentos. Na comparação
entre o Estatuto de Santa Cruz e o regime de autonomias da Constituição, Juan Carlos
366
Segundo o resumo da La Prensa de 22 de outubro, citado por Peñaranda (2009:198), apesar da
oposição dos representantes cívicos da meia-lua, as regiões foram incluídas no projeto. No diálogo de
Cochabamba a autonomia regional aparecia como opcional, mas na versão aprovada teria uma
Assembléia regional com faculdade deliberativa, normativo-administrativa e fiscalizadora, mesmo que
não fosse eleita pelo voto popular. Além disso, contaria com um órgão executivo de atribuições
menores e com os membros de sua Assembléia regional eleitos em cada município junto com as listas
de candidatos a membros dos conselhos municipais.
367
Em maio de 2009 publica Un Estudio Didático sobre la Constituição. El Estado Catoblepas. Las
contradicciones destrutivas do Estado Boliviano, em uma edição bilingüe (espanhol-inglês) com capa
dupla, a segunda: A Didactic Study of the Constitution... “Catoblepas” é um animal mítico que devora a si
mesmo, descrito como búfalo negro com cabeça de porco pendurada na altura do solo, descrito por
Leonardo da Vinci, e também ,mais recentemente, por Mario Vargas Llosa.
428
Urenda indicava, em entrevista concedida ao jornal El Mundo de Santa Cruz
368
, que
56,3% das competências não estavam cobertas; 29% haviam sido cobertas com
limitações, sujeitas a uma lei nacional; e que apenas 14,5% haviam sido completadas
inteiramente. Previsivelmente, então, antes do referendo de aprovação da Constituição,
em janeiro de 2009, o Oriente se juntava à campanha pelo Não
369
.
Juan Carlos Urenda romperia relação com o Governador Costas, a quem havia
assessorado nas negociações sobre autonomia; e, em 2010, postulou sem sucesso ao
governo do departamento de Santa Cruz com o discurso mais forte dos candidatos na
campanha. Na entrevista recentemente citada, quando fazia campanha pelo Não à
Constituição, expressava a leitura política de Oriente, negando que se tenham
distribuído as competências necessárias para que fora considerado um regime
autônomo; e vislumbra um país, que no que tange à organização territorial, teria
“governos indígenas e regionais irão crescer como capim, a divisão se aprofundará,
transformando a democracia representativa em democracia de feudos, o que gerará uma
grave ingovernabilidade”. E também falava de “fascismo” dos movimentos sociais com
a constitucionalização dos cercos; “tendência socialista, comunitarista com intervenção
do Estado em todo o campo da economia e dos recursos naturais”; e não via diferenças
entre a Constituição do acordo daquela aprovada em 2007, em Oruro
370
.
368
“Fizemos um Estado Autônomo Centralista” Entrevista de Pura Gonzales Velasquez, 23 de novembro
08.
369
Na campanha, e em função da comparação entre Estatuto e Constituição, difundiram a seguinte
pergunta: “poderia o governo departamental de Santa Cruz servir eficientemente a população se, a
diferença do Estatuto, o projeto de Constituição, aprovado no Congresso, não lhe outorgasse nenhuma
competência em educação, saúde, terra, justiça, policia, recursos naturais renováveis e não renováveis,
solos florestais e bosques, aproveitamento florestal, áreas protegidas, meio ambiente, diversidade
biológica, biotecnologia, águas, licenças para serviços, telecomunicações, eletrificação urbana, relações
trabalhistas, desenvolvimento sustentável socioeconômico, defesa do consumidor, feiras internacionais,
espectro eletromagnético, limites provinciais, desenvolvimento dos povos indígenas e camponês,
assuntos de gênero, meios de comunicação e cooperativas?. E se ao anterior fosse agregado que o
governo departamental teria competências limitadas, geralmente sujeitas à recomendação [sic] das leis
nacionais, para a elaboração de seu Estatuto, a transferência de competências, o regime econômico
financeiro das mesmas, tributos departamentais, obras públicas, planejamento departamental,
agricultura, pecuária, caça e pesca, habitação, turismo, telefonia fixa e móvel e ordenamento territorial.
Será que ganhamos?”. Urenda (2008, trad nossa).
370
Pensava que depois “do choque de que os representantes do altiplano e dos vales decidiram por um
texto constitucional nas costas da ‘meia-lua’, com os representantes dos departamentos onde ganhou o
Não [em 2006], decidindo sobre os departamentos onde ganhou o Sim, [...] o Conalde com outro nome,
os departamentos autônomos, terão que tomar as bandeiras da vontade soberana dos referendos de
maio e junho *de 2008+”.
429
2.2 Terra e Reivindicações Setoriais do Oriente.
O perfil indefinido de muitas partes do novo texto constitucional tinha a ver
diretamente com disputas de poder econômico entre setores empresariais e operários.
Além dos autonomistas, os políticos da Meia-Lua eram sensíveis às preocupações deste
tipo, dado os fortes vínculos das câmaras e associações empresarias com os
representantes políticos da oposição ao MAS na Assembléia Constituinte e no
Parlamento. Para muitos, eram justamente essas preocupações as que haviam dado
início à reivindicação pela autonomia. Santa Cruz era orgulhosa de seu setor produtivo,
e assim como havia sido com os constituintes de Santa Cruz do PODEMOS, os
legisladores do Oriente expressavam a voz das câmaras empresariais do agronegócio, da
exploração florestal de outros recursos naturais. Assim, foram impostas as mudanças
importantes na última versão do texto constitucional, que segundo Romero, foram
negociados diretamente com os setores empresariais, garantindo, deste modo, um apoio
à aprovação do referendo que não era possível alcançar quando tratavam diretamente
com os representantes políticos
371
.
Apesar da importância que a reforma agrária e o regime de recursos naturais tem
para o espírito da Constituição de indígenas, dos camponeses e da “agenda de outubro”,
através de consultas com Oriente, realizadas pelo parlamentar do MNR, Fernando
Romero, na época da revisão do Congresso, foram incluídas alterações que preservam o
status quo em assuntos em que se poderia ter esperado uma reforma mais profunda.
Depois do acordo, a nova Constituição estabelece que a exploração de recursos naturais
renováveis de forma exclusiva por parte de indígenas em seus territórios será “sem
prejuízo dos direitos adquiridos por terceiros” (art. 30); sobre as concessões dos
recursos naturais, eletricidade, telecomunicações e serviços básicos, a Constituição
afirma que deverão se adequar ao novo ordenamento jurídico, mas que, “em nenhum
caso supõe desconhecimento de direitos adquiridos” (cláusula transitória oitava). Nesse
371
Entre as modificações exigidas pelos setores do poder econômico na última versão do projeto, se
incluía a autorização à “produção, importação e comercialização de transgênicos” cuja proibição,
definida no projeto aprovado em Oruro, foi modificada pela “futura regulação por Lei” (art. 409). Os
delitos contra o meio ambiente, na última versão do texto, deixam de ser imprescritíveis (Art. 111),
ainda que, “quem viole o regime constitucional de recursos naturais” é incluído entre os delitos
classificados no artigo 124 como “traição à pátria”.
430
caso, estava em jogo o futuro das poderosas cooperativas de serviços, especialmente de
Santa Cruz
372
.
No conflituoso assunto da terra, o setor agro-exportador do Oriente também
havia obtido mudanças a ser incorporadas à Constituição. Mesmo que os legisladores de
Oriente não votariam com o MAS aprovando o acordo, as negociações podem ter
influído de outras formas para a criação de um clima propício para o avanço do mesmo.
Entre essas mudanças, se somava a propriedade agrária mediana entre a pequena e a
empresarial, porque setores políticos da oposição manifestavam que o desaparecimento
de aquela categoria poderia levar a uma política de expropriação desse tipo de unidades
por parte do governo, explicou Romero. Uma mudança importante era que, depois das
modificações do Congresso, ficassem garantidos os direitos “legalmente adquiridos por
proprietários particulares cujas propriedades se encontrassem localizadas no interior de
territórios indígena originário camponeses” (artigo 394), impedindo demarcações
continuas de terras que na Bolívia, à diferença de outros países, nem sequer é uma
reivindicação do movimento indígena, apesar do avançado saneamento de terras na
década de 90, em sentido contrário, com o ingresso de muitos empresários do agro em
território indígena.
Quanto à Revolução Agrária, anunciada por Evo Morais, o governo e as
organizações do campo asseguravam que seria possível a entrega, aos camponeses e
indígenas, de terras revertidas de latifúndios improdutivos, usando ferramentas
adequadas para isso, também presentes na nova Constituição. O governo explicava que
apesar de serem “direitos adquiridos”, os proprietários deveriam cumprir a Função
Econômico-social, sem o qual as terras seriam expropriadas. Mas o texto era
especialmente ambivalente nesse assunto. O artigo 399 estabelecia que os limites à
propriedade, que o povo ratificaria em referendo, seriam aplicados a propriedades
adquiridas após a vigência desta Constituição. Os efeitos da irretroatividade da Lei
seriam reconhecidos e respeitados os direitos de posse e propriedade agrária de acordo
372
Romero explicava o funcionamento das mesas informais onde participaram distintos atores políticos,
em Outubro 2008, para destravar o acordo. Em entrevista ao El Deber, de 22 de Outubro, Romero dizia
que o ministro das águas, René Orellana, demonstrou a Saguapaz, cooperativa de águas, que o sistema
de concessões anterior era desvantajoso frente ao sistema de licenças. A opinião da cooperativa era
“que o Estado queria acabar com todos os seus bens e se apropriar deles”, mas no diálogo, o consenso
foi alcançado, incluído no texto constitucional, de que “esses recursos não poderão ser objeto de
apropriações privadas, e tanto eles, como seus serviços não seriam concedidos e estão sujeitos a um
regime de licenças, registros e autorizações conforme a lei”. O tema, tão sensível para os bolivianos, que
haviam protagonizado duas guerras pela água, expulsando empresas concessionárias de Cochabamba e
El Alto, agora era solucionado com a introdução de outra palavra de significado aberto. Era abrir a
possibilidade de privatização, para alguns, e fechá-la e impedi-la, para outros.
431
com a Lei”. No segundo ponto, ficava definido, também, que “A proibição da dupla
doação não se aplica a direitos de terceiros legalmente adquiridos”. Ao mesmo tempo,
no mesmo artigo, se afirma taxativamente que “As superfícies excedentes que cumpram
a Função econômico-social serão expropriadas..” (sic, com dois pontos no final da
frase).
Mas apesar da concessão outorgada ao setor empresarial do agronegócio de
Santa Cruz, a constituinte, Eliane Capobianco, do PODEMOS, havia elaborado um
Power point, que usava na campanha pelo Não à Constituição, criticando a proibição,
no projeto de texto constitucional, ao latifúndio improdutivo e a proibição de sistemas
de servidão ou escravidão. Em seu comentário, dizia que apesar das terras serem
trabalhadas, “Existiam outros requisitos trabalhistas e administrativos que serão
suficientemente explicativos para a reversão das terras produtivas. […] por ex. Se uma
antecipação for dada a seus operários, se são padrinhos de seus operários, se consideram
baixo o sistema de servidão, razão suficiente para reverter a propriedade”. Segundo a
constituinte que tinha vínculos institucionais com os setores corporativos do Oriente,
impor limite ao latifúndio significava uma paralisação das fronteiras agrícolas e
produtivas, ninguém poderá transferir, no futuro, superfícies maiores das que haviam
sido regulamentadas”. Para Capobianco, além disso, a Constituição, submetida ao
referendo, era parte de uma conspiração promovida, pelo Foro de São Paulo, para criar
uma comunidade de nações, e citava como provas, frases nas constituições da Bolívia e
da Venezuela, a favor da integração latino-americana.
No entanto, se de um lado os setores opositores acusavam a nova Constituição
de ameaçar a propriedade e o Estado de Direito, apesar das mudanças introduzidas em
outubro, de outro, a partir de uma análise realizada pelo MAS, se chegava à conclusão
de que a expropriação de todas as propriedades, maiores de 5 mil hectares, não era
conveniente. A cláusula da “não retroatividade”, nesta interpretação, e apesar das
críticas de setores de esquerda, não afetaria os planos políticos do MAS, longe de ser
uma traição, como alguns haviam denunciado. Em sua análise sobre o assunto, Adolfo
Mendoza concluía que: “a proposta de limitar o tamanho da propriedade, em um limite
máximo de 5000 hectares, pode representar: Depressão econômica no setor pecuário,
desincentivo a inversão na pecuária, obrigar o setor pecuarista a migrar para a
agricultura, e conseqüentemente causaria dano ambiental dado que as terras tem
vocação para pecuária, desabastecimento de carne no mercado interno. Em um balanço
superficial, não cabe criar um clima de maior confrontação com o setor pecuarista, pois
432
as terras que podem ser recuperadas do processo de reversão pela limitação
constitucional, não serão de grande utilidade para a redistribuição de terras para quem
não a possui ou a possui de maneira insuficiente”
373
.
Em seus escritos sobre o acordo, de fato, Böhrt e Romero afirmaram que a
proposta de incluir a retroatividade fora aceita por Alejandro Almaraz, vice-ministro de
Terras, com uma longa trajetória nessa área, próxima das organizações indígenas, e
além de setores empresariais do poder do agronegócio, também foram realizadas
consultas com os altos dirigentes dos movimentos sociais (2009:190 e :23). Para
Romero; “Em todo caso, este acordo o altera a política de redistribuição de terras
contida na CPE, concretizada em três disposições fundamentais: a condição de
cumprimento da função econômico-social (FES) das propriedades empresariais,
reversão de terras dos que não a cumprissem, e distribuição exclusiva de terras fiscais a
favor de indígenas camponeses e afrobolivianos”, este último incorporado na Lei de
recondução, aprovada com pressão das organizações camponesas e indígenas em 2006,
e também incluído na nova Constituição.
Retrocesso das reivindicações das organizações ou não, o cenário político em
outubro de 2008 era de polarização extrema. As organizações sociais apóiam e aceitam
o acordo do Congresso, a “irretroatividade” do limite do latifúndio e a convocação ao
referendo, apesar do alto preço. Assessores próximos dos dirigentes dessas organizações
indígenas mais críticas, depois, me contaram como se interaram da noticia durante a
marcha, quando escolher uma dissidência era impensável. que considerar, que a
informação do acordo chegou, literalmente, “na marcha” e não havia muito que fazer,
além de acatá-la. Para entender como este "impensável" foi construído, os assessores me
373
O informe agregava que “as propriedades maiores de 4.000 hectares abrangem uma superfície entre
14 e 16 milhões de hectares, distribuídas em mais de 2.000 unidades produtivas, nas quais poderiam
estar sendo criados aproximadamente 3 milhões de cabeças de gado bovino, o que equivale a quase a
metade do gado existente no país, que alcança a cifra de 6,2 milhões de cabeças de gado bovino. Atingir
as propriedades acima de 5.000 hectares, implicaria na reversão de, aproximadamente, 7 milhões de
hectares e a redução de aproximadamente 1,4 milhões de cabeças de gado bovino, o que poderia
representar para os pecuaristas um prejuízo suposto de cerca de 400 milhões de dólares. Esta situação
poderia gerar um quadro de conflito muito agudo, sobretudo se considerarmos que a tendência dos
empreendimentos pecuaristas é de crescimento, devido ao incremento da demanda de carne bovina.
Assim mesmo, devemos considerar que não toda a superfície de uma propriedade é igualmente
aproveitável, existem porções que não podem ser utilizadas seja pelas qualidades ou porque as normas
ambientais proíbem o uso. Esta situação estabelece uma interrogação com respeito a como se poderia
operar a reversão das superfícies excedentes a 5.000 hectares. Se fosse voluntaria por parte do
pecuarista, ele poderia ceder as áreas não aproveitáveis, assim o Estado não ganha terra para ser
redistribuída; pelo contrário, se é o Estado que escolhe, a tendência será reverter as melhores terras, e
seria o pecuarista que perderia, de fato, a totalidade de sua propriedade”. (documento ayuda
memoria” cedido pessoalmente)
433
contaram também que Romero teve um papel chave, antes do acordo e da marcha, se
reunindo com os dirigentes e assegurando que defenderia a idéia de um apoio em bloco,
o que seria fundamental para o triunfo ou fracasso do processo de mudança.
Algumas pessoas observavam que estava em marcha um pacto para limitar as
conquistas da Reforma Agrária. A comparação com a revolução de 52, também
levantava a pergunta de se, como neste caso, haveria um avanço distributivo de terras.
Antes da Reforma Agrária iniciada por uma lei do MNR em 1953, e também da
Constituição de 1938, que antecipou, com Villarroel, muito das mudanças que vieram
com Paz Estenssoro (GOTKOWITZ, 2007); os camponeses haviam ocupado fazendas
de maneira direta e por tanto desde 2006, cabia a pergunta se os camponeses buscariam
ocupar latifúndios improdutivos, na maioria das vezes, cedidos pelo poder político e
militar das décadas anteriores a poucas famílias de maneira irregular. Entre outros
fatores, talvez, a estreita aproximação orgânica dos sindicatos camponeses com o
governo de Evo Morales, era um fator explicativo a mais para entender a passividade
das forças sociais desde a sua chegada ao governo, antes do que da passividade do
governo e o papel desmovilizador que poderia ter.
Assisti no princípio de 2009, pouco depois de aprovada a nova Constituição, às
reuniões entre funcionários do Vice-ministério de Terras e os altos dirigentes da
CSUTCB de todo o país, para coordenar e formar uma equipe de trabalho entre as
organizações e o Vice- ministério, visando tornar mais ágil as entregas de terras.
“Perdemos dois anos”, dizia Wilbert Vilca López, da Unidade de Dotación de Terra. E
se queixava das listas entregues pelas organizações com nomes fantasma, ou de quem já
tinha recebido terra, problemas com as adulterações nos censos de pessoas pertencentes
a sindicatos; e da presença de grileiros dentro das organizações. Os dois lados davam a
impressão de que uma Revolução Agrária não estava na ordem do dia. Os funcionários
do Vice-ministério afirmavam que havia dois milhões de hectares ainda disponíveis
para doação; mas que mesmo assim, por falta de interesse, era difícil organizar
camponeses para o assentamento. Alguns dirigentes se queixavam de que as terras
oferecidas eram inacessíveis, algumas localizadas a dias de viagem. E Isaac Ávalos,
líder da CSUTCB, que coordenava a reunião dizia “é preciso só um pouco de vontade”.
Do lado das organizações surgiam reclamos ao Vice-ministério, que não criava
as condições para que a terra fosse trabalhada; o que deveria ser feito em coordenação
com outros ministérios, que providenciavam limpeza dos terrenos, estradas e energia.
“Sem essa coordenação, todo trabalho seria em vão”, dizia um dos líderes. Os dirigentes
434
camponeses não se mostravam muito dispostos a se organizarem para ocupá-las. Era
evidente a quantidade de problemas técnicos envolvidos na entrega de terras, mas,
principalmente, chamava a atenção a falta de iniciativa das organizações em avançar
com a ocupação de terras; que tinham como principal preocupação, solicitar a
incorporação de gente de sua confiança nos organismos respectivos, prometendo,
apenas de forma vaga, que iriam formalizar listas de possíveis interessados nas
federações departamentais. Na reunião, Isaac Ávalos pedia que os camponeses
estivessem presentes no Vice-ministério de Terras, porque entendia que eram todos
“indigenistas”; “estamos muito chateados e seria oportuno reclamar o que temos
direito” agregava. E aclarava que não estavam “pedindo empregos, estamos?”, ao que
era respondido em coro pelo resto dos dirigentes das federações, presentes na reunião,
com um sonoro “não”.
Ainda que o governo de Evo Morales fosse o que mais terra havia concedido nos
últimos tempos, com 700 mil hectares em três anos de gestão, frente aos 26 mil, de 1996
a 2006. E, além de ter, pela primeira vez, priorizado aos indígenas e camponeses, a falta
de iniciativa no assunto por parte das organizações, explica o porquê da cláusula da não
retroatividade para os cinco mil hectares pudesse ser aceitável, possibilitando, em
Outubro, o acordo do Congresso. Conversei sobre o assunto com o ex-constituinte
Ramiro Guerrero, que pouco depois seria nomeado Juiz da Corte Suprema, mas estava
no momento de volta a Fundação Terra, em La Paz, “exilado”, por ser um dos
constituintes de Chuquisaca que se manteve fiel ao MAS, durante o conflito da
capitalia. Ele entendia que o governo não estava priorizando o tema da terra; e
observava que o INCRA apenas tratava de questões administrativas e não estava
verificando as propriedades. A falta de decisão política se juntava com os erros técnicos,
dizia, e considerava que “apesar de mostrarem cifras, a reforma agrária não era a
prioridade”. Entretanto, achava positivas as conquistas obtidas sobre a questão da terra
na nova Constituição. E entendia, então, que “é preciso colocar em funcionamento os
mecanismos de saneamento e verificação da Função Econômico-social, porque além da
irretroatividade, mecanismos que podem tornar a distribuição da terra mais
equitativa”.
435
3 A Esquerda Nacionalista e o Popular, Socialista, Latinoamericano.
Durante a elaboração do projeto de Constituição, em aliança tensa com os povos
indígenas das terras altas e terras baixas, surgia uma matriz política com distintas visões
de esquerda; socialistas, de defesa da soberania nacional, ou talvez, inclusive com o
ressabio de um classismo que fora dominante na esquerda boliviana até a marcha pela
vida. Podemos unificar como “esquerda nacional”, este selo que deixou sua marca na
nova Constituição, esse é o rótulo com que parte da esquerda boliviana (e latino-
americana) se reconhece e que ao governo do MAS o corte político que o identifica.
Era talvez a visão dominante entre os constituintes do MAS, e é também a que podemos
ver como visão da maioria dos camponeses que formaram o Instrumento Político e
ingressaram no Estado. Mais que plurinacionalidade e as teses do indianismo katarista,
que foram fundamentais na Constituição, os sindicatos de camponeses e colonizadores
preferiam levantar a bandeira da reivindicação de justiça social; de recuperação da
soberania sobre os recursos naturais, e inclusive manifestando um anti-imperialismo de
esquerda, que cresceu na década anterior e permitiu o apoio massivo ao “Movimento
para o Socialismo” de Evo Morales.
Adoto o termo “esquerda nacional” porque inclui as vertentes nacionalistas e
socialistas que lhe deram origem, e por não existir, na realidade, nenhum termo que
consiga incluir todas. o utilizo em referência aos que, de fato, se definem com essa
categoria. Este bloco surgiu durante o processo constituinte que daria início às reformas
pluralistas e a proposta do Estado Plurinacional, que era consenso absoluto, dentro da
bancada do MAS. Inclusive, podemos pensar que o apoio político dado pelo
nacionalismo e pela esquerda às propostas surgidas do indianismo, apesar das tensões,
lhes um peso político, que às organizações indígenas não teriam se dependessem da
força eleitoral e demográfica dos povos. Mas a ênfase do bloco da esquerda nacional
não era o pluralismo, proposto pelos indígenas e intelectuais, mesmo que este estivesse
presente. Junto com a reivindicação da inclusão das maiorias, a visão política mais forte
no MAS era a da busca do desenvolvimento e independência econômica, assim como
também propõe uma importante vertente da esquerda presente em toda América Latina
e nos governos progressistas que ocuparam a presidência dos países vizinhos nos
últimos anos.
Fernando Molina fala da chegada do MAS ao governo, como “o retorno da
esquerda nacionalista” (2006) e Pablo Stefanoni, de um “nacionalismo plebeu articulado
436
por massas indígena-mestiças, com um componente étnico-cultural” (Stefanoni
2006:38, trad. nossa). O certo é que o governo combinava o presente, nos primeiros
artigos da Constituição, com uma posição abertamente contrária à interpretação
indianista, apesar da aliança com esta visão, e que buscava posicionar o governo do
MAS, como “popular” antes que “indígena”. Podemos ver a substituição do par binário
classe/etnia pelo de povo/etnia, entendido como combinação que mantém todos os
elementos presentes e não como oposição entre eles, embora houvesse um notável
deslocamento da “classe”, com o aumento da identidade “popular”.
Desde seu nascimento, o katarismo havia combinado as demandas da
discriminação cultural com as de opressão de classe, aproximando-se das
reivindicações da esquerda que se popularizaram na época de resistência à ditadura.
Mas, ainda que a aproximação do indianismo com a esquerda seja forte na Bolívia
desde Jenaro Flores até Felipe Quispe é mais a vertente da esquerda nacional que
aproxima o processo boliviano do socialismo, estreitando laços com Cuba e Venezuela
mesmo que, às vezes, prefira se mostrar mais próximo de Lula e Kirchner e resulta
em um discurso antiimperialista, com menções de Evo Morales e García Linera, ao
“horizonte socialista” ou ao “socialismo comunitário”, em ocasiões seletas e
especiais
374
. A maioria dos ministros de Evo Morales são oriundos, politicamente, desse
espaço ideológico. Apenas um se identifica com o indianismo aymara; os outros podem
ser situados na esquerda nacional, com trajetórias, mais ou menos militantes; mais ou
menos próximas dos partidos de esquerda ou dos sindicatos.
Como García Linera havia dado a entender, as tarefas do Poder Executivo
(Órgão Executivo na NCPE) se vinculavam mais à economia e menos às outras duas
linhas do consenso da Bolívia Plurinacional. Isso explica o retrocesso, importante, da
linha indianista presente na Assembléia Constituinte, uma vez aprovado o texto,
resultando na colocação em prática, pelos ministros da “esquerda nacional”, de uma
política que busca em primeiro lugar o crescimento econômico com soberania. Ainda
que possamos estabelecer importantes diferenças entre nacionalistas, socialistas,
camponeses e o movimento trabalhista boliviano todos podem ser agrupados sob a
etiqueta de “esquerda nacional”– acho que no processo constituinte esses setores se
374
Em outras poucas ocasiões, García Linera fez referência ao primeiro, em seu discurso de posse ao seu
segundo mandato (22 de janeiro 2010) e ao segundo, Evo Morales, na promulgação da nova
Constituição, em 7 de fevereiro de 2009.
437
unificavam como núcleo, localizados estruturalmente ao lado da vertente pluralista do
indianismo, com que tinham relação, mas da qual se diferenciavam.
Esses setores eram majoritários nas fileiras do MAS, e devemos incluir aqui, não
apenas uma maioria dos ministros, mas também, parlamentares, constituintes e
organizações de camponeses e colonizadores, fundadoras do MAS, protagonistas das
mobilizações e também ocupando espaços no governo e dando apoio na tomada de
decisões estratégicas. No mapa político-ideológico, vemos que se a vertente pluralista
do indianismo surge como superação do marco do multiculturalismo; a vertente da
esquerda nacional buscava ir além do projeto do nacionalismo revolucionário de 52. E
podemos pensar que, justamente, o que permitia pensar um projeto para além do
multiculturalismo, era a relação do indianismo pluralista com as maiorias indígenas a
partir de um projeto político que buscava o poder. E o que permitia a esquerda nacional
superar o nacionalismo de 52 era a união com o pluralismo indigenista, que lhe permitia
superar seu monoculturalismo e cumplicidade com o Estado colonial.
Em relação aos setores da autonomia do Oriente, especialmente sua faceta
empresarial e vinculada ao modelo liberal de abertura econômica de mercado, típica da
última década do século XX, antes de que a crítica a uma elite racista como para o
indianismo para a esquerda nacional tratava-se de uma elite que entregava os recursos
naturais às multinacionais e que potencialmente defendia posições separatistas
ameaçadoras da unidade nacional e do projeto político estatal promovido pelo governo.
Em relação aos conteúdos da nova Constituição boliviana, apesar da esquerda
nacional ser responsável, principalmente, pela condução da linha executiva da política
econômica, deixando o indianismo brilhar na Assembléia Constituinte, no texto
constitucional, pode ser encontrada, também, sua marca, como uma das forças que
também deram origem a essa característica que estamos discutindo aqui; da indefinição
multi-direcional e a abertura. Em primeiro lugar, medidas que partiram do presidente,
como as diferentes nacionalizações e outras medidas que visavam o aumento da
participação estatal na economia e foram incluídas na articulação do texto. A Quarta
Parte da Constituição (Estrutura e Organização Econômica do Estado) dedica 104
artigos de um total de 411, ao modelo econômico, desenvolvimento rural e exploração
dos recursos naturais. Em realidade, antes que a 52, esta vertente se remetia mais
diretamente a Outubro de 2003, à “guerra do gás”, em que Sánchez de Lozada teve que
fugir diante dos protestos contra seus projetos para a área de hidrocarbonetos, pela
reivindicação de nacionalização, e pela crítica ao neoliberalismo.
438
Essa matriz de esquerda, com ênfase no econômico, estava presente nas leituras
que associavam a nova Constituição boliviana, ou seu projeto, com o chamado “Novo
Constitucionalismo da América Latina”. Esta corrente tem características de esquerda
nacional, de defesa da soberania e aproxima o processo boliviano ao da Venezuela e do
Equador, assim como o movimento, ou flerte, em direção ao socialismo. Rubén
Martínez Dalmau coloca o texto constitucional boliviano como sendo “um dos mais
avançados do mundo” e a “última evolução” (2008:74 trad. nossa) dessa corrente,
iniciada com a Constituição colombiana de 1991, e continuada pelas equatorianas (1998
e 2008) e pela venezuelana (1999). Segundo Martínez Dalmau, que participou como
assessor da Assembléia na Bolívia e também na Venezuela e no Equador, o que
caracteriza estas reformas é o principio da “soberania popular” e da “democracia
participativa”. Também, são elementos comuns dessas reformas, segundo Martínez
Dalmau, a proteção de novos direitos fundamentais; a regulação do papel do Estado na
economia; um “caráter social integrador” e a integração com a América Latina.
Outro traço comum ao novo constitucionalismo da região, é a presença do
Referendo para aprovação de qualquer mudança constitucional, que Martínez Dalmau
fundamenta como “a marginalização do poder constituinte constituído” (:72). O autor
também observa que esta corrente é considerada inovadora quanto a forma, como fica
demonstrado pelo emprego de novas expressões e uma tendência à efetividade
constitucional (:76), que no caso boliviano, pode ser visto na ampla atenção dada à parte
econômica, e um interesse em buscar clareza e expressão “sem sombras” da vontade do
constituinte, antes que maior brevidade ou melhor redação. Este constitucionalismo,
segundo Martínez Dalmau, “é considerado como uma superação da democracia
representativa para uma participativa (:96). Nesse sentido, a Bolívia incorpora
também o controle social; o órgão eleitoral (quarto poder) e a anulação do mandato.
Martínez Dalmau menciona como característica dessa série de textos
constitucionais a visualização de setores vulneráveis ou marginais (:87). Neles, foi
incluída a questão indígena, mas avaliando a reforma da Venezuela e da Colômbia,
poderíamos dizer que esse constitucionalismo não parece ir além da inclusão de direitos
para grupos minoritários, no programa das reformas bolivianas da década de 90, com o
reconhecimento do caráter multi-étnico e pluricultural; mas sem a autonomia e o
autogoverno dos povos. No entanto, mais do que associar o novo constitucionalismo
com a matriz política indianista e pluralista ou ao paradigma multicultural, deveríamos
associar essa rie de reformas ao “Constitucionalismo Social”, que teve um grande
439
desenvolvimento na América Latina, desde a Constituição mexicana de 1917, sua
primeira expressão, e em outras, como a da Argentina de 1949, com Perón. Era a
inclusão de direitos trabalhistas, que tinham a classe trabalhadora como sujeito político
central, apontando também para o modelo do Estado do Bem-estar
375
.
Se algo unificava as visões nacionalistas e socialistas no MAS, era a visão de
que o processo de mudança era dirigido pelo Estado. A distribuição de competências
privativas do nível central de governo mostra isso, quando inclui, de maneira exclusiva
em seu controle: Política econômica e planejamento nacional”, criação, controle e
administração das empresas públicas estratégicas do nível central do Estado”, “Política
geral sobre terras e território, e sua titulação” e Hidrocarbonetos”. No artigo 311 fica
claro o papel do Estado quando se estabelece que este se encarrega da “direção integral
do desenvolvimento econômico e de seus processos de planejamento”, e que “o Estado
poderá intervir em toda a cadeia produtiva dos setores estratégicos, buscando garantir
seu abastecimento para preservar a qualidade de vida de todas as bolivianas e de todos
os bolivianos”. No mesmo artigo se define que os recursos naturais são de propriedade
do povo, mas administrados pelo Estado, a partir das discussões que vimos se
desenvolver na fase das comissões
376
.
Porém, mais uma vez, vemos que este avanço decidido em direção ao
intervencionismo estatal, vem matizado por outras determinações, como a igualdade
jurídica das distintas formas de organização econômica, e da importância da “harmonia
com a natureza”, e do modelo do “Viver Bem”, inspirado na cosmovisão dos povos
indígenas, que apresento no último capítulo. Em relação aos recursos naturais, o artigo
351, estabelece que o Estado deve assumir o controle e a direção sobre a exploração,
pesquisa, industrialização, transporte e comercialização dos recursos naturais;
“colocando um cadeado” no que foi estabelecido pelo decreto de nacionalização de 1 de
Maio de 2006. Mas ao mesmo tempo, e depois da revisão do Congresso, se agrega que
não se tratava de todos os recursos naturais, e sim, dos recursos naturais “estratégicos
375
Ver Vanossi (1994), Gargarella (2008).
376
No Artigo 316 se determina a função do Estado na economia, que consiste em: 1. Conduzir o
processo de planejamento econômico e social, com participação e consulta cidadã. *…+ 2. Dirigir a
economia e regular, conforme os princípios estabelecidos nessa Constituição, os processos de produção,
distribuição, e comercialização de bens e serviços. 3. Exercer a direção e o controle dos setores
estratégicos da economia 4. Participar diretamente na economia mediante o incentivo e a produção de
bens e serviços econômicos e sociais *…+ 5. Promover a integração das diferentes formas econômicas de
produção, visando o desenvolvimento econômico e social. 6. Promover prioritariamente a
industrialização dos recursos naturais renováveis e não renováveis, nos limites do respeito e proteção
ao meio ambiente *…+.
440
através de entidades públicas, cooperativas ou comunitárias, que poderão por sua vez
contratar empresas privadas e constituir empresas mistas. Desta forma, foram feitas
concessões tanto ao setor empresarial como aos indígenas comunitários e cooperativos;
abrindo a possibilidade de formas de gestão, não totalmente controladas pelo Estado
377
.
Inclusive, as partes mais estatizantes e mais pluralistas da Constituição, não
deixam de articular os distintos imaginários presentes no MAS. Daí sua forma aberta e
indefinida. Desse modo, no artigo 306, o Modelo Econômico se define como plural e
“orientado para melhorar a qualidade de vida e o viver bem de todas as bolivianas e
todos os bolivianos”. No mesmo artigo, a economia plural se define como constituída
“por formas de organização econômica comunitária, estatal, privada e social
cooperativa”. Em outubro, a oposição apenas agregou a “segurança jurídica” entre os
princípios da economia plural, que incluem também reciprocidade, solidariedade,
complementaridade, redistribuição, sustentabilidade e transparência.
Nesse artigo da nova Constituição, foi incluído também um inciso que remete
para a idéia de potencializar a economia comunitária com o excedente da do mercado:
A economia social e comunitária complementará o interesse individual com o viver
bem coletivo”. Mas em outro inciso do mesmo artigo 306, outra tradição política
enquadrada no Estado do Bem-estar antes que na do comunitário influenciou, e então
ficou definido, também, que “O Estado tem como valor máximo o ser humano e
assegurará o desenvolvimento mediante a redistribuição equitativa dos excedentes
econômicos em políticas sociais, de saúde, educação, cultura, e na reinversão em
desenvolvimento econômico produtivo”. O ser humano havia sido uma inclusão de
último momento em Oruro, e ia contra os avanços realizados na nova Constituição do
Equador, com o reconhecimento de direitos da natureza, respeitando a cosmovisão
indígena.
No que se entendia como “desmonte do neoliberalismo”, o artigo 396
estabelecia que “O Estado regulará o mercado de terras” indo em direção contrária à
política agrária dos anos 90. A Constituição estabelecia que as concessões dos serviços
377
Em outro inciso fica assegurado o controle e a participação social na tomada de decisões para a
gestão e administração dos recursos naturais. Mas, em outubro, foi modificado para que o controle e a
participação social, apenas, fossem para “o desenho das políticas setoriais”. “Também se estabelece que
o Estado possa assinar contratos de associação com pessoas jurídicas, bolivianas ou estrangeiras, mas
devendo assegurar-se do reinvestimento das utilidades econômicas no país”. E no artigo 124 se define
que a violação do regime constitucional de recursos naturais é delito de traição à pátria, que merece a
máxima sanção penal. Na versão de Oruro, entretanto, a redação era mais forte. Considerava-se traição
à pátria “Quem realize atos para a alienação dos recursos naturais de propriedade social do povo
boliviano a favor de empresas, pessoas ou estados estrangeiros”.
441
básicos e recursos naturais, eletricidade e telecomunicações, e minas deverão se adequar
ao novo regime. Entretanto, em outubro se agregou uma cláusula transitória (a oitava)
pela qual o Estado reconhece direitos pré-constituidos e adquiridos para as concessões.
Outra mudança realizada em Outubro (no artigo 316) eliminava, entre as funções do
Estado, a de participar na economia mediante a produção direta de bens e serviços
econômicos e sociais. A Constituição Aberta era resultado de disputas de interesses,
mas também do encontro de horizontes políticos diversos. Vale a pena considerar o vai-
e-vem entre visões políticas variadas incluídas nesse artigo, sobre o modelo econômico
do Estado Plurinacional:
Artigo 311.
I. Todas as formas de organização econômica estabelecidas nessa Constituição gozarão de igualdade
jurídica perante a lei.
II. A economia plural compreende os seguintes aspectos:
1. O Estado exercerá a direção integral do desenvolvimento econômico e seus processos
de planejamento.
2. Os recursos naturais são de propriedade do povo boliviano e serão administrados pelo
Estado. Respeitar-se e garantira a propriedade individual e coletiva sobre a terra. A agricultura, a
pecuária, assim [sic] como as atividades de caça e pesca que não envolvam espécies animais protegidas,
são atividades que são regidas pelo estabelecido na quarta parte desta Constituição referente a estrutura e
organização econômica do Estado. (Nota: a última frase foi incluída em outubro de 2008 e está repetida
no artigo 349).
3. A industrialização dos recursos naturais para superar a dependência da exportação de
matérias primas e conseguir uma economia de base produtiva, no marco do desenvolvimento sustentável,
em harmonia com a natureza.
4. O Estado poderá intervir em toda a cadeia produtiva dos setores estratégicos, buscando
garantir seu abastecimento para preservar a qualidade de vida de todas as bolivianas e todos os bolivianos.
5. O respeito à iniciativa empresarial e à segurança jurídica.
6. O Estado fomentará e promoverá a área comunitária da economia como alternativa
solidaria na área rural e urbana.
Mesmo sabendo que a idéia da parte econômica da Constituição era de colocar
“cadeado” às políticas promovidas pelo governo, uma vez aprovado o texto, seus artigos
eram empregados como fundamento da política promovida pelo presidente Evo.
Quando o governo recuperou as ações da fábrica nacional de cimento para o governo de
Chuquisaca (ex departamento), o decreto presidencial começava com o seguinte texto:
CONSIDERANDO: Que o numeral 4 do Parágrafo II do Artigo 311 da Constituição
Política do Estado, estabelece que o Estado possa intervir em toda a cadeia produtiva
dos setores estratégicos, buscando garantir seu abastecimento para preservar a qualidade
de vida de todas as bolivianas e todos os bolivianos. Que o Parágrafo I do Artigo 319 da
Constituição Política do Estado, estabelece que a industrialização dos recursos naturais
seja prioridade nas políticas econômicas […] sendo prioritária a articulação da
exploração dos recursos naturais com o aparato produtivo. Que o Parágrafo I do Artigo
442
349 da Constituição Política do Estado, dispõe que os recursos naturais são de
propriedade e domínio direto, indivisível e imprescritível do povo boliviano e
corresponderá ao Estado sua administração em função do interesse coletivo”
378
.
4 A Constituição Aberta da Comunidade por um Estado pluralista.
O momento político iniciado com a chegada dos camponeses e dos indígenas ao
Estado estava protagonizado pelo tema étnico e plurinacional. Essa é a grande inovação
do texto constitucional aprovado e também a principal fonte de controvérsias. Seria
atacado pelo Oriente, pelo nacionalismo popular de esquerda e, também, por setores
mestiços liberais. Nesta parte, vou-me referir a essa tensão da Constituição aberta,
vinculada ao tema dos povos indígenas. Andrés Soliz Rada, ideólogo da esquerda
nacional e primeiro ministro de hidrocarbonetos de Evo Morales, escrevia em seu artigo
“O indigenismo e a USAID” que “a ambigüidade na linguagem é a arma favorita das
ONGs. Elas misturam as palavras nação, comunidade e povo e as tornam
intercambiáveis. Todo palavreado é útil, sempre que não se fale da contradição principal
que enfrentam nações opressoras e nações oprimidas. O pilar destas últimas é a aliança
indo-mestiça, sem a qual a libertação nacional é inalcançável. Por essa razão, a
verborragia que encobre o papel do imperialismo é financiada pela USAID, pela
Europa, pelo Banco Mundial, e pelo BID”. Numa conversa em La Paz, ele criticava a
idéia de Estado Plurinacional e, sobre a Constituição, dizia que “Há idéias para
fundamentar todas as posições…”. Era uma crítica ao caráter aberto da Constituição,
oriunda da consciência nacionalista do processo de mudança
379
.
As dúvidas e rejeições ao projeto de Estado Plurinacional dentro do espaço do
MAS podiam também ser notadas numa conversa que tive com Pablo Stefanoni em
setembro de 2007, à época correspondente na Bolívia do Jornal Clarín, da Argentina, e
próximo de García Linera. Como era comum escutar entre os camponeses e no governo,
dizia-se que CONAMAQ, aliada do MAS e parte do Pacto de Unidade, tinha sido uma
invenção dos dinamarqueses e das ONGs. Criticava a idéia de reconstituição de ayllus,
378
Ver decreto, de setembro de 2010, recuperação das ações privatizadas pelo governo do MIR em
1991. As ações estavam nas mãos do empresário e ex-constituinte, Samuel Doria Medina:
http://eju.tv/2010/09/decreto-supremo-no-0616-del-1-de-septiembre-de-2010/#ixzz0yoO0tBYq
379 Soliz Rada vincula num mesmo quadro de relações o governo do MAS, ONGs, o projeto
plurinacional e interesses imperialistas na Bolívia. Veja-se “O indigenismo e a USAID” (2009), Evo e
USAID” (2010a) e outros artigos em:
http://www.rebelion.org/mostrar.php?tipo=5&id=Andr%E9s%20Soliz%20Rada&inicio=0
443
que associava ao apartheid ou às reservas indígenas dos EUA. Falava de um sistema de
feudos, em oposição a um movimento indígena de ideologia comum. Explicava sua
influência no processo constituinte somente pelo dinheiro que recebiam de cooperação
internacional e de ONGs. Criticava a representação direta e pedia que se pensasse a
partir de uma “Bolívia real”, como a do Chapare, a qual opunha à idéia de nação
aymara, que não sabia de onde havia saído porque, para ele, as nações não existiam.
Stefanoni dizia, também, que ninguém no MAS soubera lhe explicar o que é o Estado
Plurinacional. E perguntava o que aconteceria em El Alto com a autonomia indígena.
Dizia que García Linera não falava do plurinacional, nem de outras
cosmologias, e que o processo se resumia a três ou quatro coisas que têm claras, como
nacionalização do gás, uma espécie de reforma agrária e, depois, ações pontuais como
doação de rádios e tratores. Pensava que se a constituinte fracassasse o que, no
momento em que conversamos, via-se como possibilidade muito provável- Evo Morales
aproveitaria para impor um decisionismo. Dizia que Evo Morales, quando deputado,
tinha dito que, para ele, acabar com o colonialismo era ir ao mesmo banheiro que um
deputado de direita, o que Stefanoni via como objetivo bem mais limitado do que os que
fundamentavam a idéia de Estado Plurinacional. Stefanoni observava que muitos no
MAS se perguntam para que a Constituinte se Evo está no poder, vendo essa chegada
como a revolução. Concluía que se convocou a Constituinte somente porque estava na
agenda, e dizia que tinha sentido, nos anos 1990, impor algumas coisas, mas que isso
agora não cabia ao governo. Opunha a convocação à Constituinte de Chávez, que tinha
claro o que queria, e via o risco de que se passasse na Bolívia o que se passou no
Equador, que tinha fracassado na sua Constituinte anterior
380
.
Para María Galindo, do grupo feminista pacenho Mujeres Creando (cf.
MONASTERIOS 2006 y MUJERES CREANDO, 2005), CONAMAQ estava
sobrevalorizado e “é uma ONG” e dizia que, com a proposta de reconstruir o
Tawantinsuyu, não se sabe o que se quer fazer, nem sob qual perspectiva histórica. Ela a
via como um modelo falso e imposição histórica. Em entrevista de março de 2009, na
sua critica afirmava que os indígenas se auto-recluem no território. Critica o andino-
380 Stefanoni também expressa essas críticas no artigo “'Mudar tudo' ou 'constitucionalizar o que foi
feito por Evo’” , da revista Archipiélago (2009). defende que a principal demanda indígena é inclusão
e modernidade, longe de promover o retorno dos antepassados (:49). Considera que Morales quase não
deu espaço ao indianismo radical, defensor da “autonomia indígena”, e suas principais políticas públicas
orientam-se a levar modernidade ao campo: hospitais, bônus contra a deserção, alfabetismo, estradas,
tratores, redução da tarifa de luz e de telefone, documentos, transmissão gratuita da Copa do Mundo.
444
centrismo que, segundo ela, restabelece hierarquias entre os povos. E via o plurinacional
como redirecionamento da discussão política do país, sem correlação na realidade
imediata. Criticava um Estado que considera colonial, racista, brancoide, burocrático,
centralista, homofóbico e alcoviteiro; e também as autonomias indígenas que, para
María Galindo, reproduzem o mesmo Estado em pequena escala, com novas cúpulas em
pequenos territórios, os quais irão perder vinte anos. Ela tinha dúvidas também a
respeito de os guaranis terem tido mais poder para frear REPSOL do que o Estado
nacional. Via as autonomias como um tema somente discursivo e que confunde e desvia
dos objetivos da sociedade boliviana. Dizia que a sociedade boliviana buscava se
repensar como sociedade e impugnar a forma de representação política para questionar
uma estrutura corrupta e colonial; e não criar uma nova representação baseada em
identidades.
No entanto, María Galindo pensava que os sindicatos camponeses não podiam
criticar organização como a CONAMAQ, porque também estavam Onguizados”. Ao
mesmo tempo, criticava o MAS por estar se convertendo em projeto populista, imitando
políticas do MNR como os bônus, mas carente de projeto político e em processo de
degradação e decomposição interna, ainda que não houvesse, contudo, desgaste político
externo. Perguntei-lhe em que usaria o dinheiro dos hidrocarbonetos e disse que em
saúde e em educação. O texto constitucional aprovado parecia-lhe ruim, discursivo e
pouco prático. Parecia-lhe que os militares e a política não eram grandes aliados do
governo de forma gratuita e, além disso, que o MAS os tinha trazido de volta quando a
democracia boliviana os havia confinado nos quartéis. Em um espaço tão pequeno, onde
o Sim era estar com o governo e o Não era ser traidor ao processo de mudança,
Mulheres Criando decidiu fazer uma proposta própria de Constituição. A proposta
acolhia propostas das mulheres como o sobrenorme materno; que não haja Forças
Armadas, como manifesto para continuar gerando esperanças, porque, dizia María,
“como mulheres, o texto do MAS colocava um espartilho que não lhes deixava
respirar”.
Outra voz no debate boliviano era a de Víctor Hugo Cárdenas, eleito Vice-
Presidente de Sánchez de Lozada, em 1993, que ameaçou candidatar-se a Presidente
para enfrentar o MAS, mas desistiu quando a oposição não conseguiu formar uma frente
que o incluísse. Expressava a posição liberal de tentar combinar o comunitário com o
445
liberal
381
. Em entrevista ao La Razón de junho de 2008, considera ser necessário
compatibilizar os Estados da Meia-Lua, que com uma visão liberal; e a Constituição
defendida pelo MAS, que com um sustento ideológico comunitário. Sobre as
Autonomias Indígenas, considera que a consigna não passou, mas que pretende
substituir a antiga exclusão criolla dos indígenas por meio da exclusão dos indígenas,
dos criollos e dos mestiços, uma cidadania de primeira (indígena) perante outra de
segunda ou de terceira (a não-indígena). Também criticava, antes do acordo de Outubro,
que a nova Constituição mutila a Nação, levando por terra os avanços de seu governo na
Constituição de uma nação pluricultural e multiétnica e de um Estado unitário,
democrático, intercultural, descentralizado e autonômico. Considera também que, nas
terras altas, as territorialidades ancestrais são difíceis de definir, diferentemente das
terras baixas: “qual mapa territorial é o ancestral? O mapa do domínio inca, aymara ou
uru?”, perguntava.
Em seguida, apresentarei a importância da vertente que deriva do indianismo na
redação da Constituição que dá origem ao Estado Plurinacional. E defenderei que,
diferente do que ocorre com as reivindicações de tipo econômica e até mesmo de
direitos sociais impulsionadas pela esquerda nacional; no caso das instituições
indígenas e comunitárias não é necessariamente negativa a indefinição e ambigüidade
na redação de uma Constituição Aberta. Esta hipótese surge, em primeiro lugar, da
observação etnográfica das discussões relacionadas a esses temas, quando se podia ver
exatamente em que altura as definições se fechavam e o espaço da interpretação pós-
Constituinte reduzia-se às comunidades, e povos saíam perdendo com um retrocesso em
relação ao Estado e à forma republicana da institucionalidade e da hierarquia liberal.
Essa situação tinha a ver, em parte, com uma simples situação de correlação de
forças, que com a exigência de dois terços punha as propostas superadoras da
colonialidade estatal contra a parede. Mas acredito que o motivo pelo qual é possível
fazer uma leitura positiva da indefinição tem a ver também com as características da
diferença da comunidade, dos princípios coletivos das formas indígenas, que não são
redutíveis ao Estado e à suas normas que permaneciam na Bolívia, no marco do
direito liberal que surge na modernidade e que foi implementado na Bolívia à época
colonial. Raúl Prada e outros defendiam este horizonte para o Estado boliviano. Viam
nesta indefinição as marcas da “transição”, e, no entanto, pode-se considerar isto certo
381 O mesmo Víctor Hugo Cárdenas afirma buscar “a combinação criativa das virtudes da democracia
indígena com as da democracia liberal” (Calderón, 2001).
446
se pensarmos que os elementos comunitários do texto podem ter muito mais
desenvolvimento. De fato, acredito que o lado positivo da subsistência de espaços
vazios e não difusos na Constituição boliviana podem ser vistos como um avanço da
comunidade que é medido como fato, sem necessidade de se analisar como um passo
prévio ou incipiente para um futuro redentor.
A tensão que veremos à continuação é, portanto, a de um forte choque que se
vem desenvolvendo desde tempos pré-coloniais e que tem a ver com o avanço do direito
positivo e do Estado sobre o ayllu, a oralidade, a autonomia indígena, e que, na
realidade, é um enfrentamento que me parece ser continuamente recriado em toda a
sociedade, e não necessariamente vinculado à territorialidade ancestral, que é a forma
em que se manifesta na Bolívia. De certo modo, é o encontro entre a lei do Estado e a
autodeterminação, que se pode expressar em qualquer âmbito social. O problema da
legalidade do Estado não podava o autogoverno comunitário, mas era também o
avanço das mudanças impulsionadas pela esquerda nacionalista, que os considerava
como obstáculo, como demonstra um famoso comentário de Morales difundido pela
imprensa em julho de 2008, no qual declarou que “Quando algum jurista me diz: 'Evo,
está se equivocando juridicamente, o que está fazendo é ilegal', eu faço, por mais que
seja ilegal. Depois digo aos advogados: 'Se é ilegal, legalizem. Para que estudaram?'”.
Isso era o que fundamentava, para o Presidente, a necessidade de descolonizar o Estado
e aprovar uma nova Constituição, manifestando uma oposição entre a ação, a decisão e
a legalidade burocrática do Estado.
4.1 A Constituição Indianista.
A forma aberta e indefinida da Constituição, com tensão e até mesmo
contradições ou forças políticas que avançariam em direção distinta, deve muito à
irrupção dos indígenas e sua reivindicação de autonomia no Estado. Esta forte
perspectiva introduzida no texto constitucional pode ser identificada como “pós-
katarista”, por seus vínculos históricos e por suas afinidades com o indianismo aymara,
que se transformou numa das principais linguagens políticas bolivianas, como vimos no
primeiro capítulo, ou como “indianismo pluralista”, como outra das cosmopolíticas que
intervieram na redação do texto. Ao mesmo tempo, esta vertente se relaciona e se une a
correntes autonomistas de esquerda ou pluralistas de outras partes do mundo e, em
447
particular, com a discussão internacional de direitos indígenas no âmbito das Nações
Unidas.
É a partir desta vertente e da crítica ao monoculturalismo e ao multiculturalismo,
que foram pensados os primeiros artigos da nova Constituição, redigidos pela Comissão
Visão País a partir da proposta das organizações sociais no Pacto de Unidade, integrado
por indígenas das terras altas e das terras baixas, camponeses e colonizadores, e também
com a participação de setores do MAS afins a estas colocações. Nesses artigos estão
estabelecidas as linhas básicas de um Estado que passa a se caracterizar como Unitário
Plurinacional Comunitário, intercultural, descentralizado e com autonomias
382
.
O reconhecimento de 36 línguas oficiais e a obrigação, para o governo
plurinacional e para os governos departamentais, de falar ao menos uma delas, além do
castelhano (artigo 5 e 234), é um dos elementos onde se a forma mais visível do
Estado Plurinacional. A Constituição não menciona 36 povos e nações, mas reconhece
as nguas minoritárias. Reconhecer todos os idiomas como oficiais é talvez o ponto
mais avançado, em nível mundial, em relação ao avanço do reconhecimento de direitos,
que, depois de abandonar as posições de “integrar o indígena à vida nacional” - isto é,
de impor-lhes a cultura do colonizador e a mestiçagem , passa a reconhecer e, portanto,
dar para eles todo o poder político que uma Constituição pode oferecer.
Este é um dos artigos nos quais o MAS busca ir além do mero reconhecimento
multiculturalista, e implica especialmente que as maiorias quéchuas e aymara terão uma
vantagem para ascender a cargos públicos. Deste modo, não é somente um elemento
pluralista introduzido na Constituição, mas também um elemento nacionalista e popular,
porque se refere a que o Estado não volte a ser uma minoria e a que a chegada dos
camponeses e indígenas ao Estado seja permanente, e não limitada à cabeça do
Executivo, de modo que se dissemine por toda a administração pública. O Estado
Plurinacional inauguraria, em 2009, uma escola de governo, e em La Paz foram
iniciados cursos de línguas aos funcionários. Mas o avanço do pluralismo seria
382 O projeto, que se converterá em Constituição, propunha-se também a fundar Bolívia na pluralidade
e no pluralismo político, econômico, jurídico, cultural e lingüístico, dentro do processo integrador do
país. Em outro artigo-chave (o segundo), se estabelece: “Dada a existência pré-colonial das nações e
povos indígenas originários camponeses e seu domínio ancestral sobre seus territórios, garante-se sua
livre determinação no marco da unidade do Estado, que consiste em seu direito à autonomia, ao auto-
governo, a sua cultura, ao reconhecimento de suas instituições e à consolidação de suas entidades
territoriais, conforme esta Constituição e conforme a Lei”. No artigo quinto, amplia-se a lista que o
katarismo havia começado a elaborar no final dos anos 1970, oficializando “o castelhano e todos os
idiomas das nações e povos indígenas originários camponeses”.
448
interceptado pelos setores defensores do velho Estado, que, em outubro de 2008,
agregariam à Constituição uma cláusula transitória (a décima), que dizia: “O requisito
de falar ao menos um dos idiomas oficiais para o desempenho de funções públicas,
determinado no artigo 235.7, será de aplicação progressiva, de acordo com a Lei”. O
artigo continha um erro, porque o requisito figura no artigo 234.7 e não no 235.7, que
era a numeração de Oruro, mas sem dúvida é mais um dos vetos da oposição ao projeto
do MAS que determinam seu caráter indefinido.
García Linera tinha sido, por meio de seus textos, um dos impulsores das
reformas plurinacionais. Em sua proposta publicada em 2003, menciona a necessidade
de que houvesse funcionários indígenas em todos os níveis do governo e formação de
carreiras administrativas de governo nos três idiomas majoritários do país (G. Linera
2008 :251). Como Vice-Presidente, no entanto, em uma conversa organizada pela
Comuna na Aliança Francesa de La Paz, reconhece como “impossível” encontrar
quadros indígenas capacitados para as tarefas do Estado. E dizia: “Não técnicos
petroleiros indígenas, nem sub-secretários em nenhum dos três ministérios, o que não é
culpa do governo, mas da realidade da estrutura social”. Ao final da conversa, no
momento de fazer perguntas à exposição, alguém que se apresentou como autoridade
originária lhe entregou seu cartão e disse que somente convocavam aos afiliados ao
MAS. O conflito é marcado não somente no problema dos quadros indígenas, mas
também no tema dos pedidos de “pegas” (postos) a autoridades de governos, que
alcançava dimensões consideráveis, resultado, sem dúvida, da mudança nas estruturas e
na cor da pele do novo poder
383
.
De qualquer modo, o que se escreve nos primeiros artigos da Constituição e no
preâmbulo, além de artigos sobre direitos dos povos indígenas e sobre sua autonomia e
territorialidade, marca a presença do indianismo pluralista como uma das imagens fortes
com as quais podemos entender o processo constituinte boliviano. Esses elementos
vinculam-se diretamente a muitos protagonistas e, em especial, à parte indígena do
Pacto de Unidade (CIDOB e CONAMAQ). Esta imagem é a da idéia de inclusão do
comunitário na Constituição como presença real e forte no projeto na nova Constituição.
Setores do governo ou a Constituinte, indígenas e mestiços, que pensavam os
fundamentos políticos do novo Estado a partir desta tradição, escreveram no preâmbulo
383 Num ato do MAS, no aniversário da criação do partido, um discurso de García Linera foi
interrompido pelo grito de “queremos pegas” dos militantes, segundo reportava Stefanoni no Clarín.
449
da nova Constituição: “Deixamos no passado o Estado colonial, republicano e
neoliberal”.
Bartolomé Clavero escreve que o Estado Boliviano “se afirma desde o século
XIX, combinando elementos recebidos de ultramar, pedaços de procedência hispânica,
francesa, britânica ou prussiana, ainda que se resista à adoção de componentes mais
próximos na própria terra, de instituições e experiências de cultura quéchua, aymara,
guarani ou de outra raiz indígena” (2006:55). O sentido da convocatória à Assembléia
Constituinte, em 2006, era justamente fazer essa reparação. E comprovar-se-ia mais
uma vez que as instituições indígenas e comunitárias não se introduzem no direito
estatal sem conflito. De fato, não encontramos um forte choque, nem transformação
radical das formas liberais, mas, sim, o aparecimento do indígena, assim como o de
reivindicações populares, na nova Constituição, em espaços não regulamentados, em
categorias abertas, difusas e até mesmo contraditórias o que posterga a definição para
diante.
Veremos à continuação o destino das reivindicações indígenas no texto final
aprovado como Constituição da Bolívia. Nas reuniões de discussão do projeto de
Constituição era visível a preocupação por introduzir o pensamento indígena. Não se
devia tratar somente de que sejam os indígenas os que redijam a Constituição, mas
também incorporar-se-iam os princípios e valores dos povos. Isto também era discutido
pelos constituintes do MAS nas suas reuniões da casa Argandoña, enquanto se
elaborava a primeira versão do texto constitucional.
Discutiam-se artigos da Comissão Visão Pais sobre os “princípios ético-morais
da sociedade plural” que o Estado “assume e promove”, e os valores e fins do novo
Estado. Entre os primeiros, incluíam-se: ama qhilla, ama llulla, ama suwa (não seja
preguiçoso, não seja mentiroso, nem seja ladrão), suma qamaña (viver bem), ñandereko
(vida harmoniosa), teko kavi (boa vida), ivi maraei (terra sem mal) y qhapaj ñan
(caminho, ou vida nobre). A grafia incluir-se-ia em língua nativa na versão original,
com a tradução entre parênteses, e foi-se modificando com revisões do texto. O ivi
maraei dos guaranis, por exemplo, traduzia-se como “sociedade sonhada”, até ser
incorporado como “terra sem mal”, assim como Pierre e Helene Clastres e a etnologia
desses povos o consagraram.
O suma qamaña aymara, traduzido como “viver bem”, teria um lugar especial
nos discursos de Evo Morales vinculados ao cuidado do meio ambiente, apresentado
como alternativa ao desenvolvimento capitalista. Deste modo, seria defendido em
450
oposição ao “viver melhor” associado ao individualismo capitalista. Também na
Constituição do Equador incorporar-se-ia este conceito como “Viver Bem”, que o
governo boliviano buscava instalar em nível internacional em fóruns e intervenções de
Evo Morales, e que Hugo Chávez havia incorporado no nome de um cartão de gastos
sociais subsidiados pelo Estado para a população. O princípio “ama qhilla, ama llulla,
ama suwa”, que, na Bolívia, se ensina às crianças na escola e cujo significado se explica
aos turistas nas visitas guiadas a sítios arqueológicos, apresenta-se como princípios da
sociedade Inca que se quebraram com a invasão espanhola. Raúl Prada propunha
agregar um quarto princípio, traduzido como “não seja egoísta”, que existia inicialmente
e foi eliminado, segundo um Amauta (sábio andino) havia ensinado aos constituintes da
Comissão Visão País. Opinava que a redução a três princípios era “uma mestiçagem”
384
.
Isabel Domínguez, líder da confederação de mulheres camponesas e constituinte
do MAS por Cochabamba, propunha traduzir diferente o “viver bem” para que fosse
plural e fosse para todo o povo. Saúl Ávalos, do MAS de Santa Cruz, dizia não se sentir
incluído por esses princípios, que eram exclusivamente provenientes dos povos
indígenas. Pediam que se incluíssem os princípios dos mestiços. Em seguida aos
princípios ético-morais, o projeto incluía outros artigos, com uma extensa lista de
valores em que o Estado se sustenta, adotados pelo MAS na Visão País, a partir da
proposta das organizações sociais
385
; e também os “fins e funções” do Estado. O
advogado potosino Víctor Borda manifestou-se surpreendido porque tinham sido
incluídos princípios como equidade, equilíbrio, solidariedade e harmonia, que
considerava liberais e europeus. Também pedia que se precisassem os valores, os
direitos e os princípios, o que é cada coisa, “porque os juristas interpretam mil coisas”
386
.
384 Silvia Rivera traduz de maneira diferente ama suwa, ama qhilla, ama llulla como “não seja ladrão,
não seja traidor, e não seja preguiçoso”, e agrega ama llunk'ku (não seja servil). Em (1994:49).
385 O texto revisado seria: “O Estado se sustenta nos valores de unidade, igualdade, inclusão,
dignidade, liberdade, solidariedade, reciprocidade, respeito, complementaridade, harmonia,
transparência, equilíbrio, igualdade de oportunidades, equidade social e de gênero na participação,
bem-estar comum, responsabilidade, justiça social, distribuição e redistribuição dos produtos e bens
sociais, para viver bem”.
386 Entre as finalidades e funções essenciais do Estado incluíam-se: 1. Constituir uma sociedade justa e
harmoniosa, cimentada na descolonização, sem discriminação nem exploração, com plena justiça social,
para consolidar as identidades plurinacionais. 2. *…+ fomentar o respeito mútuo e o diálogo intra-
cultural, intercultural e plurilingüe. 3. Reafirmar e consolidar a unidade do país, e preservar a
diversidade plurinacional como patrimônio histórico e humano.5. [...] garantir o acesso das pessoas à
educação, à saúde e ao trabalho. E mais uma, que seria eliminada em 2008: 6. Promover e garantir o
451
Raúl Prada interveio com a explicação de que seria uma Constituição híbrida e
uma Constituição “de transição”, “não valores universais, todos são culturais e aqui
tem duas culturas misturadas”. Raúl Prada continuava “desde o princípio, na definição
do Estado, elementos liberais. Não se trata de retirá-los, mas de combinar as duas
coisas. Movemo-nos entre ambas as águas: do liberal e do comunitário”, e concluiu que
“a reciprocidade é cara à cosmovisão andina; a redistribuição é da cosmovisão andino-
amazônica; e igualdade, liberdade e justiça são conceitos liberais; mas que no fim tem
que se construir uma sociedade descolonizada. Isso é o específico deste novo Estado”.
Marco Carrillo, ex-jornalista de Cochabamba, discordava. Disse: “parece-me que para
os discursos fica bem, mas não cabe ao Estado construir a descolonização”.
Mario Orellana, do MSM, pedia que se conseguisse a lista das nações e também
reclamava que os dirigentes do Pacto de Unidade tinham que ser convocados: “ficamos
que todos trabalhamos juntos”, recordava. Esperanza Huanca tinha insinuado que não se
estava respeitando a posição do Pacto de Unidade. E a discussão levou a suspender a
reunião até que estivessem presentes. Camilo também se somava pedindo que “Para não
prolongar, que haja dirigentes com poder de decisão para dizer 'isso está bem'”. Rebeca
recomendava não se esquecer do cultural, discutindo unicamente a perspectiva técnica.
E Eulogio Cayo propôs que, entre as finalidades do Estado, se incluísse o de criar uma
sociedade socialista. Em resposta a sua proposta, alguém gritou que seria melhor que se
escrevesse que seja um Estado comunista: “coloquemos Estado Comunista” disse o
constituinte, sob a risada de seus companheiros.
Num debate organizado pela Comissão Visão País, a tensão entre a posição
liberal e a posição indígena aliada aos setores progressistas da discussão internacional
do direito indígena, ficou visível quando a constituinte do PODEMOS Zulema Arza
perguntava a Bartolomé Clavero, membro do Fórum Permanente para Questões
Indígenas das Nações Unidas, pelo artigo 171, introduzido na Constituição anterior
nesse momento ainda vigente. O artigo era produto da reforma constituinte marcada
pela lógica multiculturalista, e reconhece direitos dos povos a “terras” (não a territórios)
e a personalidade jurídica. O artigo foi lido pela constituinte que, ao finalizar, perguntou
se parecia ao expositor Clavero com carga colonizante ou descolonizante”. A resposta
se marca nas diferenças que o MAS levava à discussão boliviana do plurinacional como
aproveitamento responsável e planejado dos recursos naturais, e impulsionar sua industrialização, por
meio do desenvolvimento e do fortalecimento da base produtiva em suas diferentes dimensões e níveis,
assim como a conservação do meio ambiente, para o bem-estar das gerações atuais e futuras.
452
superação do multiculturalismo da década de 1990. Ao mesmo tempo, buscava advertir
à possibilidade de inclusão de elementos coloniais que podem estar em uma
Constituição descolonizadora como marcas do colonialismo internos nos estados
latinoamericanos.
A leitura buscava a cumplicidade do jurista espanhol ao argumento de que não
era necessário incorporar novos direitos na Constituição, porque esses se
encontravam incluídos. Mas Clavero manifestou que o artigo “é uma expressão da
quintessência do colonialismo constitucional”. Em primeiro lugar, reclamava que o
Estado “reconhecesse” povos que são anteriores ao Estado, com direitos que não
dependem do Estado. Dizia que o problema é quem reconhece quem, e que, antes, a
Bolívia necessitava de reconhecimeento dos povos e das comunidades indígenas; e que
a Constituição deveria começar com “Bolívia se responsabiliza e agradece o
reconhecimento de povos e de comunidades indígenas à sua existência”. Esse era o
primeiro signo colonial. O segundo, comum a vários países latino-americanos, era que
no artigo lido, o Estado reconhece personalidade jurídica às comunidades indígenas e,
para o especialista, esse reconhecimento representava o poder auto-atribuído do Estado
para regê-las
387
.
E o terceiro traço colonial lido pela constituinte do PODEMOS era que se
reconhecem às autoridades como sistemas alternativos da solução de conflitos o que,
em linguagem jurídica, equivale a “arbitragem, mediação e conciliação”– isto é,
continuava Clavero, formas secundárias de resolução de conflito alternativas à justiça
institucional estabelecida, com a qual o Estado considera que não pode obrigar toda uma
cidadania a que confie para todo o sempre na justiça estabelecida. Esta colocação
elimina o reconhecimento da territorialidade e mesmo a natureza do que é uma
autoridade, continuava o jurista. Se uma autoridade é igual a um árbitro, depende de que
as equipes e a federação de futebol concorde em como funcionam e se juntam as regras.
387 Clavero dizia: “ao se reconhecer esta realidade, se está dizendo: que remédio me resta? Isto
existe e não posso acabar com ele; está-se atribuindo poder normativo sobre essas comunidades; está-
se atribuindo o poder de dizer se são alienáveis ou inalienáveis; que se se relacionam, de um modo ou
de outro, com a propriedade privada ou no mercado ou que chega à disposição de recursos ou não, que
se os recursos do subsolo não podem ser direito das comunidades, que se o recurso inclusive do solo,
como águas e bosques depende e, segundo as regras que cabem ao Estado, então, tudo bem… a
comunidade que o reconheça [em todo caso], se o reconhecimento do Estado implica que tem o poder
de dispor de si mesma. É outro signo quintessencial do que é o colonialismo; essencial porque o
colonialismo institucional é isto, e não outra coisa. Não significa dizer que as comunidades indígenas são
incapazes, mas que reconheçam as comunidades indígenas, ainda que, de fato, com isso, o que se está
dizendo é que são incapazes para conduzir a si mesmas”.
453
Isso é uma autoridade, “impossibilitado segundo a instituição colonial de que possam
exercer funções de autoridade em seu território em relação àqueles que não pertençam
ao território”, dizia. Qualquer Estado pode exercer funções de autoridade em relação a
pessoas que não pertençam à cidadania e estejam no território, agregava. É impensável
que uma autoridade indígena possa atuar em seu território porque a Constituição está
dizendo que é o mesmo que árbitro, e o horizonte segue sendo o horizonte colonial
388
.
Entre os que mais destacavam o perfil indianista da Constituição proposta pelo
MAS, era especialmente os mais alarmados opositores, que expressavam que a
aprovação do texto significaria a anarquia indígena, que não respeitaria o Estado de
direito e também o avanço dos aymaras colonizando o restante do país. Escutando os
opositores mais radicais, assim como os partidários mais indianistas do MAS, o
indígena aparece entendido como irredutível às instituições republicanas e liberais da
Nação.
À continuação, apresento de maneira mais extensa dois temas que marcam o
projeto de Constituição do MAS e surgem da vertente pós-katarista do pluralismo
indianista: a autonomia indígena e a justiça comunitária. Eram também dois dos temas
mais atacados pelo discurso da oposição.
4.2 Autonomia Indígena na Constituição.
Talvez o tema aberto e indefinido por excelência era o da autonomia indígena,
com a qual se trata de institucionalizar formas de organização social e política próprias
dos povos. Para setores indianistas críticos, as autonomias indígenas reproduziam a
lógica colonial das reduções indígenas. Para opositores liberais, era o fim do Estado de
Direito. Sua abertura permite todos esses juízos porque o que é não será definido, na
realidade, na Constituição ou nas leis e estatutos que a regulamentam, mas no
desenvolvimento autônomo da autonomia, que a nova Constituição pode impulsionar,
388 Clavero continuava explicando os elemento do colonialismo institucional, presente em múltiplas
constituições da América Latina, o que parece ser um grande reconhecimento de que essas autoridades
possam resolver seus conflitos conforme usos e costumes; é condenar a comunidade a que saia de sua
própria tradição, tratando temas que tradicionalmente o tratava, tentando resolver uma questão de
forma que não é a tradiconal. Aí não há reconhecimento institucional porque não pode sair de seus usos
e costumes, e a comunidade não tem capacidade auto-normativa e não pode assumir a
responsabilidade coletiva de regular o próprio território com vistas à própria felicidade e liberdade,
como cabe a quem livremente se identifica com essa comunidade e aceitam, portanto, as autoridades
dessa comunidade.
454
mas que a antecede. No que diz respeito à Constituição, dois grupos de artigos que
desenvolvem as autonomia indígenas. Esses dois estão diferenciados pela linguagem,
pelo propósito e pelo imaginário dos que os redigiram. Em primeiro lugar, os artigos 2 e
30 da Constituição desenvolvem os direitos desse sujeito-chave da Constituição:
“nações e povos indígena originário camponeses”. É uma formulação mais declarativa à
vanguarda do avanço internacional dos direitos indígenas expressado no Convênio 169
da OIT, de 1989, e na Declaração das Nações Unidas sobre Povos Indígenas, de 2007.
Artigo 2.
Dada a existência pré-colonial das nações e dos povos indígenas originários camponeses e seu domínio
ancestral sobre seus territórios, garante-se sua livre determinação no marco da unidade do Estado, que
consiste em seu direito à autonomia, ao auto-governo, à sua cultura, ao reconhecimento de suas
instituições e à consolidação de suas entidades territoriais, conforme esta Constituição e a Lei.
Artigo 30.
I. É nação e povo indígena originário camponês toda a coletividade humana que compartilhe identidade
cultural, idioma, tradição histórica, instituições, territorialidade e cosmovisão, cuja existência é anterior à
invasão colonial espanhola.
II. No marco da unidade do Estado e de acordo com esta Constituição, as nações e os povos indígenas
originários camponeses gozam dos seguintes direitos:
1. À existir livremente.
2. À sua identidade cultural, crença religiosa, espiritualidades, práticas e costumes, e à sua própria
cosmovisão.
3. A que a identidade cultural de cada um de seus membros, se assim o deseja, se inscreva junto à
cidadania boliviana em sua cédula de identidade, passaporte ou outros documentos de identificação com
validade legal.
4. À livre determinação e territorialidade.
5. A que suas instituições sejam parte da estrutura geral do Estado.
6. À titulação coletiva de terras e territórios.
7. À proteção de seus lugares sagrados.
8. A criar e administrar sistemas, meios e redes de comunicação próprios.
9. A que seus saberes e conhecimentos tradicionais, sua medicina tradicional, seus idiomas, seus rituais e
seus símbolos e vestimentas sejam valorizados, respeitados e promovidos.
10. A viver em um meio ambiente são, com manejo e aproveitamento adequado dos ecossistemas.
11. À propriedade intelectual coletiva de seus saberes, ciências e conhecimentos, assim como sua
valorização, uso, promoção e desenvolvimento.
12. A uma educação intracultural, intercultural e plurilingue e em todo o sistema educativo.
13. Ao sistema de saúde universal e gratuito que respeite sua cosmovisão e práticas tradicionais.
14. Ao exercício de seus sistemas políticos, jurídicos e econômicos de acordo com sua cosmovisão.
15. A serem consultados mediante procedimentos apropriados e, em particular, por meio de suas
instituições, cada vez que existam medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los. Neste
marco, respeitar-see garantir-seo direito a consulta prévia obrigatória, realizada pelo Estado, de boa-
fé e concertada, com respeito à exploração dos recursos naturais não renováveis no território que habitam.
16. À participação nos benefícios da exploração de recursos naturais em seus territórios.
17. À gestão territorial indígena autônoma e ao uso e aproveitamento exclusivo dos recursos naturais
existentes em seu território sem prejuízo dos direitos legitimamente adquiridos por terceiros.
18. À participação nos órgãos e instituições do Estado.
III. O Estado garante, respeita e protege os direitos das nações e povos indígenas originários camponeses
consagrados nesta Constituição e na Lei.
455
Em outro grupo de artigos do 289 a 296, 303 e 304 uma formulação mais
técnica, no marco do regime autonômico, que desenvolve as competências outorgadas a
esse nível camponês indígena de autonomia e que não se corresponde com os direitos
enunciados na primeira parte da Constituição. Na Bolívia, o desenvolvimento da
autonomia indígena como parte do regime autonômico se marca no processo de
descentralização iniciado nos anos 1990 e que deu lugar à Lei da Participação Popular,
de 1996, e a Lei de Municipalidades de 1999. Esses artigos são resultado de um
processo constituinte em que o desenvolvimento da autonomia indígena esteve
vinculado ao desenvolvimento de outros níveis, especialmente o departamental. Quanto
mais descentralizador era o projeto do MAS, mais avançava a autonomia indígena,
como quando os departamentos conseguiram com que as autonomias tivessem
qualidade legislativa
389
.
Assim, de certo modo, as autonomias indígenas aumentavam sua presença
institucional junto ao interesse do MAS de frear a oposição política de Santa Cruz. Ao
final de 2007, antes da aprovação do texto constitucional, Carlos Romero declarava que
as preocupações das organizações indígenas do Pacto de Unidade solucionar-se-iam
com uma reunião informativa. Explicava à imprensa que “A autonomia indígena é o
único auto-governo pleno. Diferente dos outros níveis autonômicos, são os únicos que
poderiam manejar suas próprias instituições e sistema jurídico e terão a possibilidade de
aproveitar seus recursos naturais renováveis. Também por meio das associações poderá
manter a unidade de seu território. E claro que não estará subordinada à autonomia
departamental”. As autonomias regionais, explicava, seriam uma garantia para que não
haja autonomias departamentais centralistas. O seguinte artigo mostra esta concepção de
autonomia.
Artigo 304
I. A autonomias originárias camponesas poderão exercer as seguintes competências exclusivas:
1. Elaborar seu Estatuto para o exercício de sua autonomia conforme a Constituição e a lei
2. definição e gestão de formas próprias de desenvolvimento econômico, social, político, organizativo e
cultural, de acordo com sua identidade e visão de cada povo.
3. Gestão e administração dos recursos naturais renováveis, de acordo com a Constituição.
4. Elaboração de Planos de Ordenamento Territorial e de uso de solos, em coordenação com os planos de
nível central do Estado, departamentais e municipais.
389 Do mesmo modo que os departamentos, as autonomias indígenas passaram a ter faculdades
“legislativas normativo-administrativa, fiscalizadora, executiva e técnica, exercidas pelas entidades
autônomas” (artigo 273 Oruro), a ter a administração de seus recursos econômicos e do exercício das
faculdades legislativa, regulamentária, fiscalizadora e executiva, por seus órgãos do governo autônomo”
(artigo 272 Congresso).
456
5. Eletrificação em sistemas isolados dentro de sua jurisdição.
6. Manutenção e administração de caminhos vecinais e comunais.
7. Administração e preservação de áreas protegidas em sua jurisdição, no marco da política do Estado.
8. Exercício da jurisdição indígena originária camponesa para a aplicação de justiça e resolução de
conflitos por meio de normas e procedimentos próprios, de acordo com a Constituição e a lei.
9. Esporte, espairecimento e recreação.
10. Patrimônio cultural, tangível e intangível. Resguardo, fomento e promoção de suas culturas, arte,
identidade, centros arqueológicos, lugares religiosos, culturais e museus.
11. Políticas de Turismo.
12. Criar e administrar taxas, patentes e contribuições especiais no âmbito da jurisdição de acordo com a
Lei.
13. Administrar os impostos de sua competência no âmbito de sua jurisdição.
14. Elaborar, aprovar e executar seus programas de operação e seu orçamento.
15. Planejamento e gestão da ocupação territorial.
16. Moradia, urbanismo e redistribuição populacional conforme suas práticas culturais no âmbito de sua
jurisdição.
17. Promover e subscrever acordos de cooperação com outros povos e entidades públicas e privadas.
18. Manutenção e administração de seus sistemas de micro-risco
19. Fomento e desenvolvimento de sua vocação produtiva.
-20. Construção, manutenção e administração da infra-estrutura necessária para o desenvolvimento em
sua jurisdição.
21. Participar, desenvolver e executar os mecanismos de consulta prévia, livre e informada relativos à
aplicação de medidas legislativas, executivas e administrativas que os afetem.
22. Preservação do habitat e da paisagem, conforme seus princípios, normas e práticas culturais,
tecnológicas, espaciais e históricas.
23. desenvolvimento e exercício de suas instituições democráticas conforme normas e procedimentos
próprios.
II. As autonomias indígenas originárias poderão exercer as seguintes competências compartilhadas: […]
Vimos, no capítulo dois, que as autonomias derivavam de duas tendências
encontradas, uma de cima para baixo e outra desde as comunidades rumo acima. Numa
conversa em abril de 2009, no Palácio das Telecomunicações, Romero descrevia essas
duas interpretações doutrinárias sobre a autonomia; e dizia que a duas tinham sido
trabalhadas no texto constitucional. Uma era descentralização político-administrativa de
desconcentração do poder do Estado; e outra era o reconhecimento do auto-governo a
entidadas vivas pré-existentes ao Estado. A autonomia departamental, municipal e
regional respondia à primeira, e a indígena, à segunda. Em uma reconheciam direitos
históricos pré-coloniais, como a possibilidade de reconstituir as entidades políticas por
meio da autonomia com uma base jurisdicional, territorial. Na outra, como
descentralização política, o Estado está transferindo funções aos níveis das entidades
sub-nacionais, dizia Romero.
Em sua exposição, Romero também afirmava que “na Constituição, temos
pensado que o desenho autonômico para este país deve ser flexível. Porque é um país
com muita heterogeneidade”, essa era outra concepção que resultava em um texto não
uniforme, independentemente das vertentes políticas que o redigiram. Falava de
heterogeneidades econômicas, geográficas e culturais, que estão muito claras, dizia. E
457
dava o dado de que, da população economicamente ativa, 81-83% oscilam entre
atividades terciárias, entre as que estão os sistemas econômicos mercantis simples,
tradicional e comunitário. Somente 17% da população se encontra vinculada
diretamente à economia capitalista moderna, contribuía Romero. Por isso, a
Constituição devia ser flexível.
O acordo congressual, também faria modificações que afetariam a autonomia
indígena e, também, sua indefinição estratégica. No artigo 291 da Constituição
aprovada em Oruro, estipulava-se que “A conformação de entidades territoriais
indígenas originários camponesas baseia-se na consolidação de seus territórios
ancestrais, e na vontade da sua população, expressada em consulta, conforme normas e
procedimentos próprios […]”. Fazia-se lugar à reivindicação das organizações indígenas
das terras altas (CONAMAQ) que impulsionavam há anos “a consolidação de territórios
ancestrais”. Na versão revisada pelo Congresso (artigo 290), estabelece-se que “A
conformação da autonomia indígena originário camponês se baseia em territórios
ancestrais, atualmente habitados por esses povos e nações, e na vontade de sua
população, expressa em consulta, de acordo com a Constituição e a Lei […]”. É
evidente como o adicionado “habitados por esses povos e nacionais” limita a
quantidade de povo que poderão ascender à autonomia
390
.
No Congresso (artigo 293), também, agregou-se que a lei estabelecerá requisitos
mínimos de população e outros, diferenciados para a Constituição de autonomia
originária camponesa. No processo de elaboração da Lei Marco de Autonomias, as
organizações indígenas pediam que este mínimo de população fosse mil pessoas, mas
foi estabelecido em cinco mil, com o argumento de Romero de que, com menos, não
haveria viabilidade para impulsionar projetos com os recursos distribuídos, em um
cálculo de recursos per capita correspondentes. Também se estabeleceu que a
conformação da autonomia, assim como o estatuto ou carta deverá ser aprovado por
390 No Brasil, durante a Assembléia Constituinte de 1988, houve uma discussão similar, à qual fazem
referência num artigo de Beto Ricardo, Carlos Marés e Márcio Santilli (2009). Os autores se referem à
ambigüidade do conceito constitucional de “terras tradicionalmente ocupadas”, que lugar a duas
interpretações: ocupadas faz muito tempo”, ou “ocupadas conforme a tradição”. Na Constituinte, o
tema deu lugar também a uma disputa entre as idéias de “terras efetivamente ocupadase a de “terras
permanentemente ocupadas”. Neste último caso, limitando-se a terras imemoriais. Na discussão,
setores contrários aos direitos indígenas diziam que a primeira formulação legitimaria invasões de terras
por parte dos índios. Os que defendiam, criticavam que a segunda formulação destituía de direitos os
índios que já tinham sido expropriados de suas terras por terceiros.
458
referendo da população (artigo 294), e não por procedimentos próprios, como era
estabelecido no artigo 291 de Oruro.
Outro golpe para os indígenas foi a eliminação da possibilidade de que
populações minoritárias de um município (e que não conformam um território indígena)
ascendam à autonomia. Isso trazia problemas especialmente na terras baixas, onde
grupos indígenas convivem com colonizadores ou população mestiça. Os chiquitanos,
por exemplo, situam-se territorialmente em ilhas que em alguns dos municípios onde se
situam administrativamente não teriam forma de ascender à autonomia por consulta à
população
391
. Antes de outubro de 2008, o projeto de autonomia indígena adotado pelo
MAS não era exatamente o que as organizações indígenas vinham querendo. O
Presidente tinha definido que não haveria modificações de limites departamentais. A
autonomia indígena teria igual hierarquia a outros níveis (de maneira análoga à
jurisdição indígena de justiça, no sistema judicial), mas subordinada pelas competências
que se lhes assinavam. Não haveria reterritorialização, ainda que se incluiriam as
regiões.
E ao lado da definição mais declarativa e de outra mais técnica das autonomias
indígenas que acabei de citar, resta mencionar uma terceira forma de autonomia,
vinculada a como, de fato, começam a construir governos indígenas e camponeses
autônomos nos territórios que ascendem a essa condição. O ponto de partida para as
autonomias indígenas tinha sido dado pela lei eleitoral transitória de abril de 2009, que
convocava o referendo nos municípios com maioria indígena que quisessem optar por
se transformar em entidades autonômicas. Ao se tornar autônomos, esses municípios
poderiam ascender a novas competências estabelecidas pela Constituição e inexistentes
para as autonomias municipais estabelecidas na Bolívia desde 1996.
Nessa oportunidade, somente 19 municípios apresentaram os trâmites, dos quais
somente 12 cumpriram os requisitos legais para que se realizasse a votação em
dezembro de 2009. Em 11, ganhou o Sim pela autonomia, com mais de 200 mil
votantes no total
392
. Os indígenas que quiseram optar pela autonomia, mas não foram
391 O artigo 294 de Oruro, em compensação, estabelecia de forma mais ampla que “A vontade expressa
em consulta para conformar territórios indígenas camponeses exercer-se a partir de territórios
ancestrais consolidados como propriedade coletiva, comunitária, ou por possessões e domínios
históricos em processo de consolidação, e por municípios existentes e distritos municipais.”
392 Os requisitos incluíam 10% de firmas do padrão municipal e dois terços dos votos no Conselho.
Votaram pela autonomia indígena: em La Paz, Jesús de Machaca e Charazani; em Santa Cruz, Charagua;
em Potosí, Chayanta; em Chuquisaca, Huacaya, Tarabuco e Mojocoya; e em Oruro, Chipaya, San Pedro
459
maioria em seus municípios, poderiam fazê-lo, uma vez aprovada a Lei Marco de
Autonomias, a partir de Territórios Indígenas Originários Camponeses (os antigos
TCO), ou se constituindo em território para depois buscar realizar os trâmites que os
convertessem em autonômicos. Segundo dados de Xavier Albó, que foi contratado
como assessor pelo Ministério de Autonomias e publicou um livro com Romero sobre o
tema (ALBÓ e ROMERO, 2009; cf. COLQUE, 2009; e FUNDACIÓN TIERRA, 2009
a y b), 187 municípios de 330 tem maioria indígena originária camponesa e, ademais,
mantém a língua. Somente três deles no Oriente. Mas sem considerar a variante
lingüística, são 226 os que contam com maioria (a maioria acima de 80%) reconhecida
como indígena, incluindo 16 das terras baixas.
Assim que aprovada a Constituição, realizar-se-ão eventos entre organizações e
comunidades para pôr em marcha o novo processo
393
. Alguns municípios e territórios
que não se somaram ao primeiro contingente de municípios convertidos em autônomos
começaram o processo autonômico, indicando que se somariam mais para frente. Um
deles foi Raqaypampa, no vale cochabambino, onde, no passado, houveram importantes
lutas pela autonomia vinculadas à defesa da educação bilíngüe (cf. Regalsky 2003). A
central sindical regional de camponeses elaborou um projeto de estatuto autonômico
(RAQAYPAMPA 2009), que é tarefa a que também convocar-se-iam os municípios
transformados em entidades autonômicas. O projeto propõe que “Os estatutos são a
norma escrita básica da autonomia indígena de Raqaypampa e têm a mesma gama de
normas e procedimentos próprios estabelecidos pela tradição oral vigente na vida de
nossas comunidades e subordinam-se unicamente à Constituição Política do Estado”.
Na fundamentação inicial do projeto também se lê: “O Estado Plurinacional será
uma realidade quando o povo exercer sua soberania de forma direta sobre todos os
aspectos da vida e sobre todos os rincões de seu espaço vital […]. A proposta de
estatutos para a autonomia indígena de Raqaypampa não está ainda fechada, nem nunca
estará. Não porque as comunidades de Raqaypampa ainda estão discutindo, mas
de Totora, Pampa Aullagas, Salinas de Garci Mendoza e Curahuara de Carangas neste último, ganhou o
“Não”. Até serem aprovados os Estatutos ou Cartas Orgânicas que permitam o modo de eleição de
autoridades por usos e costumes, em abril de 2010, os municípios transformados em autonomias
indígenas elegeram prefeito de modo tradicional, de forma provisória.
393 O lançamento das autonomias indígenas foi realizado em Camiri , em 2 de agosto de 2009, num
encontro de doze municípios que decidiram por sua autodeterminação. Em 29 de outubro de 2009, a
Fundación Tierra e a Coalición Internacional para el Acceso a la Tierra organizou um Seminário
Internacional intitulado: "Bolivia Pós-Constituiente, Terra, Território e Autonomias Indígenas"
http://www.bolpress.com/art.php?Cod=2009102904&PHPSESSID= (ver FUNDACIÓN TIERRA 2009b)
460
fundamentalmente porque a comunidade indígena não rende a nenhum texto escrito
como verdade fundamental. A verdade fundamental é a da vida, e nenhum texto escrito
está acima da vida. O exercício da soberania do povo, e sobretudo no caso dos povos
indígenas pré-existentes à colônia e à república, não se rende perante nenhum texto
sagrado; o sagrado é a vontade soberana do povo. O que define a realidade de um texto
escrito é quando o povo se põe em marcha e o põe em prática”.
No Powerpoint preparado por Eliane Capobianco para a campanha pelo Não à
Constituição, citavam-se alguns artigos vinculados à autonomia indígena, os quais a
assustavam. A ex-constituiente falava de “falsos povos indígenas” e pensava que era o
departamento, e não a Assembléia Legislativa Plurinacional, a instância que deveria
intervir em caso de temas de limites entre municípios e sua agregação para formar
regiões indígenas originárias camponesas (artigo 295). Preocupava-lhe que a decisão de
constituir uma autonomia indígena originária camponesa fosse “de acordo com as
normas e procedimentos de consulta própria”, ainda que para a transformação de
municípios se houvesse chegado, em outubro, ao requisito de que a consulta fosse por
referendo. Também lhe parecia vago o termo “população afetada” na hora de falar de
direito de consulta à população afetada por exploração de recursos naturais
394
.
4.3 A Justiça Comunitária e o Estado.
Segundo dados do Ministério da Justiça, que, em 1999, apresentou um extenso
estudo e proposta normativa, auspiciada pelo Banco Mundial, este modo de justiça
afeta, ao todo, dois milhões e meio de pessoas (de um total de 8 milhões) e dez mil
comunidades. Geralmente, trata-se de brigas e rivalidades, separações dúvidas, calúnias,
roubos, conflitos por terras ou danos causados por animais, entre outros, ainda que, em
alguns casos, chega-se ao linchamento ou torturas, em situações que excedem a justiça
comunitária, segundo seus defensores, mas que a caracterizam, para seus críticos
395
.
Carlos Alarcón (2009), analista sempre consultado pela imprensa e que fora Vice-
394 A constituinte de PODEMOS qualificava as autonomias indígenas de sistema de apartheid, que
entraria em conflito com os outros níveis autonômicos. Em sua apresentação, também se expunham as
preocupações pelo artigo 403, que estabelecia que reconhecia a integralidade do território, incluindo o
direito à terra, ao uso e aproveitamento exclusivo dos recursos naturais renováveis, à consulta prévia e
informada, e à participação nos benefícios pela exploração dos recursos naturais não renováveis que se
encontram em seus territórios”.
395 Sobre o debate do encontro entre a lei indígena e a estatal, ver Yrigoyen Fajardo (1995), Bascopé
Sanjinés (2005), Chivi Vargas (2006, 2009), Nicolas, Fernández, Flores (2007).
461
Ministro da Justiça no governo provisional que antecedeu a chegada de Evo Morales, e
que também participou da Assembléia Constituinte como especialista consultado na
fase de comissões pelo MAS na Comissão Estrutura do Estado escrevia numa coluna
de opinião de La Razón, a propósito de um controverso caso de justiça comunitária em
que uma assembléia decidira expulsar da comunidade e ocupar a moradia do ex-Vice-
Presidente aymara ctor Hugo Cárdenas, com os argumentos de que descumpriu as
tarefas comunitárias; de não ter dado nada ao município quando esteve no poder e de
fazer campanha pelo Não no referendo aprovatório da Constituição.
O analista escrevia: existe um dilema existencial na sociedade boliviana:
organizar-se como Estado de Direito com lei e justiça… ou se constituir como conjunto
de tribos, em que cada grupo administra a violência por conta própria, usurpa a
autoridade pública do Estado, e se transforma em legislador, juiz, carrasco com as
regras que lhes der na telha”. Carlos Alarcón reclamava “Estado de Direito já!” e
avaliava que “na Bolívia, estamos nos acostumando a uma situação em que, em
determinados lugares do território nacional, o Estado não exerce autoridade… a
expropriação, justiça comunitária e Assembléias populares se convertem em pretexto
para cobrir delitos graves contras as pessoas e violações aos direitos humanos”.
O tema da Justiça Comunitária, ou jurisdição indígena originária camponesa, era
o grande projeto katarista na Assembléia, e levava à Constituinte o tema da relação
entre comunidade e Estado. Era o capítulo constitucional onde se fazia mais concreto o
tema de como um Estado Plurinacional incorporaria outras formas o liberais sem
assimilação, subordinação ou reduzir a expressão local. Por outra parte, a justiça do
ayllu é um dos espaços onde, de maneira mais clara e forte, o comunitário permanece
vigente. É um tema que transcendia também o folclórico cultural, e exigia dos
constituintes um reconhecimento de sua entidade política. Seria também um dos temas
onde o caráter ambíguo, indefinido e aberto da Constituição ficaria exposto. E, além do
reconhecimento constitucional, o tema da existência de uma jurisdição indígena com
poder judicial, sem dúvidas se deslocaria a tribunais e cortes, âmbitos legislativo e
político, ministérios, e opinião pública em geral, onde os casos de justiça comunitária
correntes seguiriam sendo motivo de polêmica.
A Justiça Indígena Originária Camponesa era tema inevitável para as críticas ao
Estado Plurinacional provindas do setor mestiço liberal. Para eles, trata-se de desafios à
soberania do Estado, que se deve basear no monopólio do controle judicial, como
expressava Alarcón. Para outros, era preciso avançar com o pluralismo, inclusive
462
“indianizar” a Bolívia, reconhecendo o caráter majoritário da população indígena. No
debate boliviano, a defesa da Justiça Comunitária começa com a referência a Will
Kymlicka (1996). Seus trabalhos fundamentam a compatibilidade dos direitos coletivos
e culturais com o liberalismo; e avança até a proposta de superar os marcos republicanos
do Estado-nação moderno. Neste sentido, Raúl Prada (2008, trad. nossa) escrevia sobre
como a forma ayllu “contra estatal” resiste, em luta contra as reiteradas tentativas de
controle e redução por parte do Estado (primeiro incaico, em seguida, espanhol e,
depois, republicano)
396
.
Junto à reforma constitucional de 1994, em um processo protagonizado por
Víctor Hugo rdenas, como presidente do Congresso, inicia-se um processo de
reforma na legislação que inclui temática indígena, desde a perspectiva de um Estado
que passa a ser reconhecido a partir daquele ano, na sua Constituição, como
pluricultural e multiétnico. A reforma constitucional incluía a justiça comunitária, as
terras comunitárias (ainda que não os territórios), a educação bilíngüe, e outras
reformas, como a do digo penal que passou a reconhecer a justiça comunitária. A
forma em que esta justiça era incluída era como reconhecimento com subordinação em
relação à justiça “ordinária”. E nesse marco, Carlos Alarcón propôs, em 2005, uma
reforma que converteria as autoridades indígenas em “conciliadores comunitários”,
dependentes do Vice-Ministério da Justiça, que ele dirigia. Nessa linha de inclusão
estatal controlada do indígena, a Corte Suprema havia proposto, em 2004, que as
autoridades originárias fossem transformadas em juízes de paz.
Uma versão diferente para esta mesma inclusão e reconhecimento das práticas
jurídicas das comunidades surgiu em 2007, como parte do processo constituinte no
informe na Comissão de Justiça na Assembléia Constituinte
397
. No projeto de
Constituição do MAS, as decisões da justiça teriam “caráter definitivo” e “competência
plena” sobre qualquer pessoa que viole normas jurídicas próprias, ainda que não seja
membro da comunidade; e também em conflitos inter-comunitários. Um órgão de
396 Idón Chivi (2006), que tinha participado do Ministério da Justiça do governo de Evo Morales, critica
as aproximações recentes do Estado para reconhecer a justiça indígena, as considerando expressões de
pensamento da elite que exclui a experiência indígena e nega a capacidade de autodeterminação
conceitual dos mesmos. É a partir destas posições que no debate se fundamenta uma defesa da Justiça
Indígena não controlada pelo Estado, negando as tentativas de mero reconhecimento”, em defesa da
autodeterminação.
397 Informes da Comissão de Justiça, Assembléia Constituinte. 13 de Julho de 2007.
463
“Controle Constitucional Misto Intercultural” revisaria as decisões que transgridam
direitos fundamentais da Constituição
398
.
No projeto de informe da oposição na mesma comissão da Assembléia
(apresentada pelos partidos PODEMOS e MNR), a Justiça Comunitária somente
poderia ser aplicada aos membros da comunidade, e somente para os casos de
comunidades com unidade de etnia, idioma, etc., num território ancestralmente herdado.
Deste modo, limitavam as interpretações ao projeto da maioria pelo qual poderiam ter
Justiça Comunitária, até mesmo nas comunidades de migrantes mais recentes e nas
cidades. Ademais, neste projeto, o controle de jurisdição e constitucionalidade estaria
em mãos de um Tribunal Constitucional não misto. E agregava-se que as autoridades
das comunidades deveriam ser registradas na justiça ordinária, onde também deveriam
dar informes anuais de suas atividades. Para um constituinte do MNR, “legislar a justiça
comunitária sem base legal é voltar à barbárie”. Dizia que não normas nem dados
fidedignos, e que nos Estados civilizados não pode haver crime se antes não lei.
Mencionava torturas e penas de morte, a que qualificava de direito feudal.
A protagonista do debate sobre justiça comunitária na Assembléia foi Jimena
Leonardo, sempre de pollera, chapéu e xale, que estava participando da redação da
Constituição junto a advogados da cidade e a camponeses quéchuas dos vales. Ela
presidia a sub-Comissão de Justiça Comunitária, à qual não compareceu nenhum
membro da oposição. Ela queria que a justiça de seus avós fosse reconhecida, de um
tempo em que não havia ladrões, como agora com a Justiça Ordinária. E esclarecia que
os linchamentos ficavam à margem da Comunitária, como a oposição “quer fazer ver”.
Para a oposição, Justiça Comunitária era sinônimo de linchamentos. Entrevistei Jimena
depois de aprovada a Constituição, como executiva da Federação de Mulheres
Camponesas Bartolina Sisa de La Paz, e me explicava que a Justiça Comunitária “não é
um objeto que pudesse encaixar-se com outro. É outra lógica, coletiva e não
individualista, nem do lucro. Não trazida de fora. A outra é de fora e, por isso, ainda que
398 Neste órgão havia um importante reconhecimento da justiça indígena, mas com um leve
desequilíbrio em favor da justiça comunitária porque se propunha que o novo órgão estivesse integrado
por três titulares e dois suplentes que fossem autoridades indígenas designadas diretamente dos povos,
mas de um total de sete magistrados titulares e três suplentes, com o qual, ficam em minoria entre os
titulares. O Ministério da Justiça de Evo Morales (2006) também apresentava uma versão com amplo
reconhecimento da autoridade indígena, com uma Justiça Comunitária que era considerada
“obrigatória” para os membros das comunidades.
464
coloquem dinheiro, vai fracassar. A outra vai morrer”, dizia. E afirmava “se a Bolívia é
diversa, faremos um Estado diverso”.
O tema tinha sido discutido na bancada do MAS, naquelas reuniões da Casa
Argandoña, onde os constituintes revisavam os artigos das comissões; pela Comissão de
Justiça, faziam uma apresentação Rebeca Delgado e Jimena Leonardo. Contavam que
tinham recebido 400 propostas e que estavam preparando um informe da Comissão,
onde o monismo jurídico ficaria para trás. Também apresentavam dados num quadro
comparativo entre as duas justiças. A Justiça Ordinária tinha somente 900 juízes com
1200 empregados no país, e de 327 municípios somente em 130 sistema de justiça
ordinária. Rebeca explicava que a Justiça Comunitária não seria somente “para o
campo”, como agora, mas que também teriam um lugar no Tribunal Constitucional, que
seria de composição intercultural mista; os membros devem saber pelo menos uma
língua originária, explicava. Quando um tema não se resolvia na Corte Intercultural,
somente lhe restaria passar à Corte Internacional. Não estaria subordinada à justiça
ordinária. Rebeca pedia que a justiça comunitária não ficasse no quintal, e que tenha a
mesma hierarquia. Atualmente, dizia, a justiça comunitária está criminalizada. E
explicava os linchamentos como absurdos que ocorrem quando não chega a polícia,
principalmente em lugares da periferia urbana.
Quando Jimena se dirigiu ao cenário do auditório onde se realizava a reunião,
alguns assobiaram, como se fosse uma cantada, ao que ela lhes desafiou “não assobiem
para mim, às lhamas é que se assobia”. Jimena explicava “com os avós, não havia
ladrões, agora na, justiça ordinária, sim. Não mais como deve ser com erva daninha,
arrancada desde a raiz, expressava. Recordava que assassinato não era Justiça
Comunitária. E pensava que povos minoritários, como os Araona, com 101 habitantes,
em vulnerabilidade, também tinham que poder ter Justiça Comunitária para resolver
seus conflitos. Seus companheiros lhe perguntavam se somente vão a sancionar os
indígenas, e respondeu: “Todos, aos k´aras também”. Explicava que uma de suas
vantagens era ser gratuita, “romperia nossa lógica se cobrássemos, somente podem
comprar escritórios, etc”. Outro argumento a favor da Justiça Comunitária era a demora.
E definia as duas justiças como articuladas e não paralelas. E dizia que se devia incluir o
pluralismo contra o Estado Colonial, para recuperar a soberania popular. Quando
465
problema em uma comunidade, a justiça boliviana contrata um antropólogo estrangeiro
como assessor jurídico, e isso viola a Lei, ilustrava
399
.
No debate dos constituintes do MAS, voltamos a encontrar a multiplicidade de
perspectivas políticas que conviviam no marco de um mesmo projeto político. Alguém
desconfiava da leitura étnica da realidade e pensava que a justiça deveria ser igual para
todos, e que seria negativo se houvesse dois sistemas. “Como faremos para fazer chegar
a Justiça a El Alto?”, era sua questão. E dizia que, nisso, não havia nem justiça
comunitária, nem ordinária. Preocupavam-lhe os pobres das cidades, que pensava que
não estariam contemplados no pluralismo jurídico e seriam discriminados. Outro
constituinte propunha que se a Ordinária não resolve em determinado tempo, que se
passe à comunitária, e outro pensava que o castigo deveria ser trabalhar nas
comunidades, e não nas prisões onde se fazem dólares ou planejam roubos. Walter
Gutiérrez recordava que Evo Morales havia dito que os indígenas são a reserva moral da
América, e que, portanto, a justiça comunitária do campo deveria ser levada à cidade.
Da Comissão de Justiça, Víctor Borda dizia que se aplicaria no campo ou na
cidade, sempre e quando houvesse usos e costumes e uma cultura. “Não pode haver
Estado Plurinacional sem pluralismo jurídico, dizia. E pensava que não se estava
criando algo novo, mas lendo-se a realidade. Estava de acordo, sem dúvida, que se
deveriam incluir princípios como Não Matar e Não Humilhar, válidos para todos os
povos. Fátima Tardío era a secretária técnica da Comissão até que estourou o conflito da
capitalia. Como sucrense, tinha sentido a distância que, de um dia para outro, apareceu
entre o MAS e muitos de seus aliados da cidade. Com um esquema em um papel,
desenhava dois quadrados representando as duas justiças, conectados com a instância
máxima do Tribunal Constitucional Intercultural. Explicava-me que se adotaria um
modelo em que os dois sistemas seriam paralelos, ainda que, na prática, a Justiça
Comunitária ocuparia o lugar de um juiz de instrução, de nível local, o que não
significava, de fato, que fosse um juiz sem poder
400
.
399 No Informe de junho de 2007, a Sub-Comissão de Justiça Comunitária na Assembléia Constituinte,
presidida por Jimena, apresentou um quadro com as vantagens da Justiça Comunitária, entre as quais a
que é transmitida de geração em geração, e ancestral; que tem alto grau de legitimidade e credibilidade;
que é reparadora e dinâmica; oral, gratuita, rápida, flexível, solidária, preventiva, transparente e
participativa; com autoridades rotativas por consenso e com revocatória, que aponta à reinserção do
infrator; é localizada, de imediata execução, e sem o desprestígio do sistema ordinário.
400 Outro modelo inicialmente proposto, mas que tinha sido descartado, outorgava à Justiça
Comunitária diferentes instâncias de decisão correspondentes ao ayllu, às marcas, aos suyus e, em
quarto lugar, ao Tribunal Constitucional. Mas Fátima via problemas na articulação das justiças. A
466
A ONG norteamericana Human Rights Foundation (HRF), com atuação na
América Latina, apresentou um informe em 2008 sobre Justiça Comunitária, que pode
ser citado como caso extremo das propostas que limitam e subordinam o direito das
comunidades. Neste informe, recomendava-se que os povos indígenas pudessem ter
liberdade para decidir em que sistema de justiça ser julgados; também que não deveria
ser necessário recorrer ao Tribunal Constitucional para resolver conflitos de
competência e que, antes, todas as sentenças de tribunais de justiça comunitária
deveriam ser revisadas ou poder ser apeladas perante autoridades do sistema jurídico
ordinário. Para a HRF, a Justiça Comunitária é justiça pelas próprias mãos e, portanto,
ilegal, assim como conclui em seu informe
401
.
4.4 Justiça Indígena na Nova Constituição.
O consenso dentro do MAS, e que, em seguida, foi referendado por outros
partidos para transformar a proposta em Constituição, foi apenas um reconhecimento da
Justiça Comunitária como instância local de resolução de problemas menores. A
consideração dos limites entre dois sistemas, coexistentes e com autonomia, permitem
pensar em um conflito real entre formas políticas diferentes e que podem ser explicadas
como encontro da oralidade com a escritura, e tudo o que a passagem de uma à outra
não consegue contemplar. Na nova Constituição, a justiça comunitária é incorporada
como “Jurisdição Indígena Originária Camponesa” (Indígena “Originário” Camponesa,
algumas vezes), que, desse modo, inclui-se o como outra justiça, mas como a
jurisdição local e comunitária da justiça ordinária do Estado.
comunitária poderia apelar à outra, mas nunca o inverso. E na Corte haveria representantes das duas,
mas não via como se poderia conformar um Tribunal Constitucional. Observava que quase nunca
haveria apelações na comunitária, e os juízes fixos desse sistema não teriam nada, ou teriam que falar
sobre os temas da ordinária. Para ela, a solução era dois sistemas separados por jurisdições. E via que a
justiça comunitária dificilmente pudesse cumprir a Constituição porque chicoteiam, ou fazem dar duas
voltas nus na praça, o que é contra a dignidade.
401 O informe afirma que “uma justiça que decide consultando folhas de coca deve estar subordinada,
monitorada e constantemente revisada”. Em definitivo, para a HRF, a Justiça Comunitária viola direitos,
como de ser notificado formalmente de acusações, a presunção de inocência, o direito à representação
e à apelação. Para a HRF, a Justiça Comunitária discrimina a mulher, que costuma ter penas mais duras
quando comete adultério. Também associa esta justiça a linchamentos, “que, na Bolívia, se realizam
com o argumento de que a Justiça Comunitária os ampara”. Human Rights Foundation Reporte 15 de
janeiro de 2008 http://www.humanrightsfoundation.org/ Ver também Revista Opiniones y Análisis. N.
81 (2006).
467
Desta forma, a justiça indígena fica protegida pela Constituição, ao mesmo
tempo que se limitam algumas aspirações propostas pelas organizações indígenas e por
Jimena, na Comissão. Mas não totalmente. Como veremos, a Justiça Indígena é outro
exemplo de um texto constitucional aberto e ambíguo. No primeiro artigo da
Constituição, declara-se o Estado como Plurinacional e que a Bolívia se fundamenta no
pluralismo jurídico (junto ao político, econômico, cultural e linguístico); no segundo
artigo se reconhece às nações e povos indígenas originários camponeses” o direito à
livre determinação, à autonomia, ao auto-governo e ao reconhecimento das instituições.
Mais adiante na Constituição, a Bolívia adota para seu governo a forma democrática,
participativa, representativa e comunitária (art. 11); entre os direitos das nações e povos
se inclui o de que suas instituições sejam parte da estrutura geral do Estado e o direito
ao exercício de seus sistemas políticos, jurídicos e econômicos de acordo com sua
cosmovisão (art. 30.II.14).
Um capítulo especial do título corresponde ao órgão judicial do novo Estado,
ocupando-se da Jurisdição Indígena Originária Camponesa. Nas disposições gerais
sobre a estrutura e a organização do órgão judicial, declara-se novamente o princípio do
pluralismo jurídico (art. 178), que a função judicial é única, e que “jurisdição ordinária e
a jurisdição indígena originária camponesa gozarão de igual hierarquia” (art. 179). Esta
última definição talvez seja a mais importante declaração a favor da justiça indígena. É,
ademais, o maior reconhecimento de uma justiça não estatal no marco de uma
Constituição. No projeto de Constituição aprovado pela Assembléia Constituinte em
Oruro, em dezembro de 2007, havia recortes em relação ao informe saído da
Comissão de Justiça. À continuação, mencionaremos as mudanças finais que tiveram
lugar no Congresso Nacional, e que seriam ratificadas pela população e convertido em
texto constitucional no início de 2009.
Junto à defesa da jurisdição indígena, vemos no texto, também, recortes em suas
competências e alcances. Em outubro de 2008, especialmente dois dos três artigos
relativos à justiça indígena, foram modificados (ver tabela). No primeiro, além do
respeito ao “direito à vida”, presente na versão da Constituição aprovada pelo MAS
em dezembro de 2007, agregou-se o “direito de defesa”. No segundo artigo, eliminou-se
a frase que dizia “A jurisdição indígena originária camponesa conhecerá todo tipo de
relações jurídicas”, trocando-as pela de que “Esta jurisdição conhece os assuntos
indígenas originários camponeses em conformidade ao estabelecido em uma Lei de
468
Demarcação Jurisdicional”, no art. 191 da nova Constituição, derivando assim uma
futura lei da definição de seus alcances
402
.
Tabela comparativa de modificações de outubro de 2008, no Congresso, ao
capítulo sobre Jurisdição Indígena Originária Camponesa. A coluna da esqueda
representa a versão aprovada em 2007, e a da direita é o texto constitucional
vigente desde fevereiro de 2009. As mudanças aparecem sublinhadas
403
.
CAPÍTULO QUARTO. JURISDIÇÃO INDÍGENA ORIGINÁRIA CAMPONESA
Artigo 191
I. As nações e povos indígena originário
camponeses exercerão suas funções jurisdicionais
e de competência por meio de suas autoridades e
aplicarão seus princípios, valores culturais,
normas e procedimentos próprios.
II. A jurisdição indígena originária camponesa
respeita o direito à vida e os direitos estabelecidos
na presente Constituição.
Artigo 190
I. As nações e povos indígena originário
camponeses exercerão suas funções jurisdicionais
e de competência por meio de suas autoridades e
aplicarão seus princípios, valores culturais,
normas e procedimentos próprios.
II. A jurisdição indígena originária camponesa
respeita o direito à vida, o direito à defesa e
demais direitos e garantias estabelecidos na
presente Constituição.
Artigo 192
A jurisdição indígena originária camponesa
conhecerá todo tipo de relações jurídicas, assim
como atos e fatos que tornem vulneráveis bens
jurídicos realizados dentro do âmbito territorial
indígena originário camponês. A jurisdição
indígena originária camponesa decidirá de forma
definitiva. Suas decisões não poderão ser
revisadas pela jurisdição ordinária, nem pela
agro-ambiental e executará suas resoluções de
forma direta.
Artigo 192
I. A jurisdição indígena originária camponesa tem
fundamento em um vínculo particular das
pessoas que são membros da respectiva nação
ou povo indígena originário camponês.
II. A jurisdição indígena originário
camponês é exercida nos seguintes âmbitos de
vigência pessoal, material e territorial:
1. Ficam sujeitos a essa jurisdição os
membros da nação ou povo indígena originário
camponês, seja que atuem como atores ou
demandando, denunciantes ou processantes,
denunciados ou imputados recorrentes ou
recorridos.
2. Esta jurisdição conhece os assuntos
indígena originário camponês conforme
estabelecido num Lei de Deslocamento
Jurisdicional.
Essa jurisdição é aplicada às relações e fatos
jurídicos que são realizados ou cujos efeitos são
produzidos dentro da jurisdição de um povo
402 Ainda dependendo muito da definição a uma futura lei, na reforma foram incluídos alguns limites.
Na versão aprovada em 2007, a jurisdição indígena já se limitava ao âmbito territorial dos povos
indígenas, mas na modificação de 2008 agregava-se que somente afetaria aos “membros da respectiva
nação ou povo indígena originário camponês”. Embora na versão da Assembléia Constituinte não se
esclareça o contrário, porder-se-ia interpretar que pessoas externas à comunidade poderiam ser
julgados pela justiça indígena, como de fato ocorre em práticas habituais de justiça indígena. No terceiro
artigo sobre o tema (art. 192), manteve-se a declaração de que Toda autoridade pública ou pessoa
acatará as decisões da jurisdição”. Mas eliminou-se do segundo artigo que A jurisdição indígena
camponesa decidirá de forma definitiva. Suas decisões não poderão ser revisadas pela jurisdição
ordinária, nem pela agro-ambiental, e executará suas resoluções de forma direta”.
403 Tabela viabilizada por Adolfo Mendoza e que circulou no âmbito das organizações do Pacto de
Unidade para analisar os alcances do acordo do Congresso de Outubro de 2008.
469
indígena originário camponês.
Artigo 193
I. Toda autoridade pública ou pessoa acatará as
decisões da jurisdição indígena originária
camponesa.
II. Para o cumprimento das decisões da jurisdição
indígena originária camponesas, as autoridades
poderão solicitar o apoio do Estado.
III. O Estado promoverá e fortalecerá o sistema
administrativo da justiça indígena originária
camponesa. Uma lei determinará os mecanismos
de coordenação e cooperação entre a jurisdição
indígena originária camponesa e a jurisdição
ordinária e a jurisdição agro-ambiental.
Artigo 192
I. Toda autoridade pública ou pessoa acatará as
decisões da jurisdição indígena originária
camponesa.
II. Para o cumprimento das decisões da jurisdição
indígena originária camponesas, as autoridades
poderão solicitar o apoio dos órgãos competentes
do Estado.
III. O Estado promoverá e fortalecerá o sistema
administrativo da justiça indígena originária
camponesa. Uma Lei de Deslocamento
Jurisdicional determinará os mecanismos de
coordenação e cooperação entre a jurisdição
indígena originária camponesa e a jurisdição
ordinária e a jurisdição agro-ambiental e todas as
jurisdições constitucionalmente reconhecidas.
Na Constituição aprovada pelo MAS e aliados em dezembro de 2007 tinha
sido eliminada a proposta de um tribunal misto plurinacional que regulasse ambas
justiças. Dentro do MAS também havia dúvidas sobre os alcances que deveriam se dar à
Justiça Comunitária e, ademais, o texto tinha sido elaborado para tentar um consenso
com setores da oposição que contribuíram na busca dos dois terços. De fato, na
correlação final, houve modificações nos tribunais superiores que afetaram a força da
justiça indígena. Para optar à magistratura do Tribunal Constitucional Plurinacional
requeria-se, inicialmente, que “Os postulantes que provenham do sistema ordinário
deverão possuir título de advogado e ter desempenhado com honestidade e ética funções
judiciais, profissão de advogado ou cátedra universitária durante oito anos, e não contar
com sanção de destituição do Controle Administrativo Disciplinário de Justiça”. Aos
postulantes do sistema indígena originário camponês requer-se somente “ter exercido a
qualidade de autoridade originária sob seu sistema de justiça”. Segundo Carlos Romero,
“No diálogo parlamentário considerou-se que não era necessário o requisito expresso da
470
paridade, posto que não é uma representação por cotas, sem desconhecer a garantia da
presença de ambos os sistemas”
404
.
Para além de sua composição, com as modificações é possível que as funções do
Tribunal Constitucional Plurinacional, tal qual foram definidas, afetem o caráter
vinculante das decisões da jurisdição indígena. De fato, este tribunal tem como
atribuições: a de conhecer e resolver “As consultas das autoridades indígenas originárias
camponesas sobre a aplicação de suas normas jurídicas aplicadas a um caso concreto”,
sobre as quais “A decisão do Tribunal Constitucional é obrigatória” (art. 202.8). E
também lhe competem “Os conflitos de competência entre a jurisdição indígena
originária camponesa e a jurisdição ordinária e agro-ambiental” (art. 202.11). No artigo
203 agrega-se que “As decisões e sentenças do Tribunal Constitucional Plurinacional
são de caráter vinculante e de cumprimento obrigatório, e contra elas não cabe recurso
ordinário ulterior algum”
405
.
Outros parágrafos da nova Constituição, relativos ao novo órgão judicial e não
necessariamente ao capítulo da justiça indígena, incluem elementos que fortalecem a
404 Na nova Constituição, estabelece-se que o Tribunal Constitucional estará integrado por “membros
eleitos com critérios de plurinacionalidade, com representação do sistema ordinário e do sistema
indígena originário camponês”. Mas depois da revisão, na atual Constituição (no art. 199), não se faz
mais a distinção de proveniência dos postulantes, e se estabelece para todos que “para optar à
magistratura do Tribunal Constitucional Plurinacional requeria-se, além dos requisitos gerais para o
acesso ao serviço público, ter completado trinta e cinco anos e ter epecialização ou experiência
acreditada de pelo menos oito anos nas disciplinas de Direito Constitucional, de Direito Administrativo
ou de Direitos Humanos”. Elimina-se a possibilidade de magistrados provenientes do sistema indígena
que não tenham passado pelo sistema ordinário. Somente se reconhece que “Para a qualificação de
méritos, levar-se em conta ter exercido a qualidade de autoridade originária sob seus sistema de
justiça”, do mesmo modo no Tribunal Supremo de Justiça e em outras instâncias judiciais superiores. No
Tribunal Supremo Eleitoral, inicialmente dois, dos cinco membros, deveriam ser de “origem indígena
originária camponesa”. Na versão final, mantém-se o requisito de que os membros tenham essa origem
étnica (ainda que não necessariamente tenham participado do sistema judicial indígena ), mas sobre um
total aumentado de sete membros.
405 Nos outros artigos, fora do capítulo da jurisdição indígena, proibe-se o confinamento (outra prática
comum à Justiça Comunitária), e estabelece-se também que nenhuma pessoa pode ser condenada sem
ter sido ouvida e julgada previamente em um devido processo (art. 117). Como se houvesse dúvidas de
que essas definições afetam a jurisdição indígena, no artigo 119 estabelece-se que “As partes no conflito
gozarão de igualdade de oportunidades para exercer, durante o processo, as faculdades e os direitos
que lhes assistam, seja pela via ordinária ou pela indígena originária camponesa”. O art. 117 agrega a
todo o sistema um limite de sanções máximas e estabelece que ninguém sofrerá sanção penal não
imposta por autoridade judicial competente em sentença executória. No art. 119, agrega-se que toda
pessoa tem direito inviolável à defesa, e que o Estado proporcionará um defensor gratuito. No art. 120
estabelece-se que nenhuma pessoa poderá ser submetida a outras autoridades jurisdicionais que não as
estabelecidas com anterioridade ao fato da causa.
471
idéia de uma Constituição aberta que posterga a definição de hierarquia entre ambas as
justiças. No artigo 115, por exemplo, declara-se “Toda pessoa será protegida oportuna e
efetivamente pelos juízes e tribunais no exercício de seus direitos e interesses
legítimos”, e que “O Estado garante o direito ao devido processo legal, à defesa e a uma
justiça plural”, reconhecendo o pluralismo , mas remetendo aos termos da justiça
ordinária. Trata-se de um encontro entre idéias distintas de justiça na Assembléia
Constituinte. E a demanda de fortalecimento e reconhecimento da autonomia da justiça
indígena não tinha como adversários os mestiços e brancos conservadores ou liberais
da oposição, mas também a esquerda moderna, que buscava um sistema mais justo no
marco de um Estado mais forte e presente, sem compartilhar a reivindicação do
movimento indígena de hierarquização de suas instituições em relação ao sistema do
Estado nacional. Neste sentido, a Constituição incorporava inovações no sistema
judicial que não tinham a ver com a jurisdição indígena
406
.
O produto final constitucionalizado é ambivalente. A jurisdição indígena, apesar
dos cortes, está defendida e reconhecida. As análises no mundo político boliviano
parecem considerar esta inclusão como traição ao movimento indígena, ou então como
direitos demasiados, que põem em risco o Estado de Direito. Para mim, o balanço deve
ser intermediário, mais além de medir a força de sua inclusão ou controle. Trata-se mais
de uma Constituição com ambigüidade e contradições que postergam a análise de casos
concretos nos tribunais, e na elaboração das leis, na definição da relação entre justiça
indígena e o restante do sistema jurídico estatal. De fato, o artigo 304 estabelece como
competência exclusiva das autonomias territoriais indígenas “Exercício da jurisdição
indígena originária camponesa para a aplicação de justiça e resolução de conflitos por
meio de normas e procedimentos próprios, de acordo com a Constituição e a lei”.
A Constituição põe o nome de “Lei de Demarcação Jurisdicional”, a qual
deverá, na realidade, definir a real hierarquia desta justiça em relação à “ordinária”, ou,
antes, manter espaços abertos para que seja na vida jurídica cotidiana onde esta relação
continue a ser desenvolvida. A definição da hierarquia da jurisdição indígena está,
406 Por exemplo, o voto direto para eleição de magistrados do Tribunal Supremo de Justiça e as Ações
de Amparo Constitucional, de Libertade, de Cumprimento e Popular, com as quais a população poderá
se dirigir aos tribunais da justiça ordinária, sem necessidade de advogados nem de procedimentos
administrativos ou técnicos difíceis de levar adiante por qualquer cidadão.
472
assim, fora da Constituição, ainda que o que o texto diga possa ser uma ferramenta
importante para a mesma
407
.
Em muitos casos, assim, a construção de um novo tipo de Estado com garantias
para o pluralismo baseava-se no não escrito, no confuso ou no que, por ambíguo e
indefinido, delega-se para ser definido mais para diante, no curso da vida político e
social. Sustentarei assim que, apesar das soluções estatais para problemas de jurisdição,
apresentadas pelas vozes que defendem a universalidade de um monismo jurídico que
levaria a unificar o sistema de prestação de justiça sob o controle do Estado e os
julgados da jurisdição ordinária, na Bolívia busca-se uma resposta original ao problema
da convivência de sistemas jurídicos. Com o mesmo modelo, encontramos um resultado
semelhante para a convivência de línguas oficiais, economias distintas e também
distintos níveis territoriais na nova estrutura do Estado boliviano.
Na difícil tarefa de preservar o auto-governo e não dar lugar a que se acuse a
Justiça Comunitária de práticas ilegais, o Vice-Ministro de Justiça Indígena Originária e
Camponesa Valentín Ticona explicava ao periódico La Prensa (TICONA 2009),
pouco depois de a nova ordem constitucional ser aprovada pela população em
referendo, que ainda está em discussão se proibir-se-ia a aplicação de pena de desterro,
que não se permitiriam alguns castigos físicos habituais, mas que o objetivo geral é
impor as penas a partir do Estado e dar lugar aos procedimentos próprios. O que está em
jogo é até onde e de que forma o Estado regulamenta a justiça não estatal. A pena de
morte, sem dúvida, seria proibida na regulamentação da jurisdição, considerando ela
como uma tergiversação. Nesse tema, não há concessões e não é a comunidade de forma
autônoma que proíbe com seus próprios mecanismos a pena capital, mas o Estado,
como garante da ordem constitucional.
O que parece ser chave na disputa política que se viveu na Assembléia
Constituinte, e continuará nas discussões do MAS para sua regulamentação, é o limite
com que se pensa a Justiça Comunitária e como uma vez definida se articula com a
justiça estatal ordinária. O grau de autonomia da autonomia indígena, reconhecida pela
407 De modo coerente com esta estratégia de sobrevivência do indígena no Estado, Miguel Aragón
(2009) afirma que, sobre a determinação de competências entre os dois sistemas de justiça, “Não
consideramos que se devam estabelecer regras para determinar a competência, similares as que, por
exemplo, estão no artigo 49 e no artigo 10 do Código de Procedimento Civil boliviano. Realçamos isso
porque, do contrário, estaríamos perfurando a viabilidade da JIOC [Justiça Indígena Originaria
Camponesa], que se via submetida a permanentes processos de conflitos de competência desde outras
jurisdições à petição de pessoas que, dentro ou fora do território indígena, fazem graves danos aos
bens jurídicos individuais e coletivos dos indígenas”.
473
Constituição, é o que parece estar em jogo quando vemos, de um lado, uma Justiça
Comunitária escandalosa, não domesticada, incerta, e que, por essas características, tem
uma natureza incompatível com o Estado. E, do outro lado, uma Justiça não perigosa,
que se incorpora sem conflito nas instituições do Estado republicano que antes não a
reconhecia. Mas que necesssariamente se incorpora a partir de uma subordinação da
Justiça Indígena ao controle do Estado que perfura a força de sua livre determinação.
Em qualquer caso vemos, contudo, que ainda que minimizada a casos menores, a
Justiça Comunitária mantém por seu caráter de assembléia, oral, e não escrito algo de
indefinição. Nesse elemento, não totalmente ausente em qualquer forma de justiça,
parece-se preservar de algum modo a autonomia da comunidade, e que, no caso
boliviano, foi permitido graças a uma definição aberta da relação com o restante do
sistema de justiça. Não outro tema da Constituição onde o papel estratégico dessa
abertura esteja mais claro.
5 A Parcialidade Liberal Mestiça Conservadora.
Entre as vozes de oposição ao MAS na Assembléia, as que vinham da Meia-Lua
não tinham um “projeto alternativo” de país, mas interesses regionais e empresariais
para defender, e uma posição em relação à autonomia definida como “sempre algo a
mais do que seja oferecido pelo MAS”, ao ponto de protagonizar um modo de negociar
em que o objetivo parecia a tentativa de travar as conversações e evitar os pontos de
encontro. PODEMOS, durante a Assembléia, buscava evitar a construção de um centro.
Funcionava então como oposição política concentrada em um bastião, com força
suficiente de impor modificações que a beneficiaram, mas não com a vontade nem com
a força de alterar o curso geral do projeto impulsionado pelo MAS, como ficou
comprovado em 2008.
Mas um setor político-ideológico, ao qual a Meia-Lua havia se aliado na
conformação de PODEMOS, e que derivava de partidos políticos que tinham
protagonizado a vida nacional nas últimas décadas, tinha um projeto alternativo para
além do regionalismo e dos interesses particulares de empresários beneficiados no
passado com a proximidade do poder. Eram grupos liberais, conservadores,
nacionalistas críticos da presença do fator étnico na política, ou até mesmo setores
moderados da oposição, que tinham um modelo claro: o sistema econômico e político
anterior, que o MAS buscava modificar. Diferentemente do Oriente, o problema desses
474
setores era que careciam da força dos autonomistas para impor condições ao MAS, ou
aspirar a se impor nas eleições. Na Assembléia , eram setores do MNR e da UN
(integrado por ex-participantes do MIR de Paz Zamora, presidente em início dos anos
1990) no período 2006-2009, forças políticas minoritárias no Congresso e na
Assembléia, que, apesar do pequeno número de representantes, aspiravam a se situar
como terceira posição entre o MAS e a Meia-Lua.
Foi este espaço político o que se aproximou do centro ainda que não tenha
concretizado a aproximação até outubro de 2008 e possibilitou ao MAS aprovar a
convocatória ao referendo constitucional, não sem antes revisar a Constituição e
introduzir suas modificações. Sem uma agenda própria, como o Oriente, até mesmo
constituintes do PODEMOS (como os parlamentares Böhrt e Ruiz, que contribuíram
para o acordo) viam a conjuntura política de uma forma que os inclinava a negociar com
o MAS, talvez medindo que a necessidade de dois terços por parte do MAS lhes
outorgava uma oportunidade única para ter voz na redação da nova Constituição.
Para além da força política institucional, eu associo esses setores políticos com
um imaginário mestiço muito importante nas cidades capitais da Bolívia. Trata-se da
chamada classe média, ou os profissionais, que, ainda que fenotipicamente muitas vezes
tenham inegável vínculo com quéchuas e aymaras, com a exceção talvez de Santa Cruz,
com um considerável contingente de descendentes de imigrantes europeus mais
recentes. Não é por nada que, na Bolívia, faz-se referência a “mestiços”, como modo em
que a “classe média” se identifica; e que, na Bolívia, sempre me deu a impressão de ser
eufemismo para a pretendida “classe não indígena”. Esses “brancos de espírito”,
“profissionais”, ou clasemedieros”, que protagonizavam discussões com os indígenas
também dentro do MAS, são os setores que até hoje integram de forma
contundentemente majoritária a administração pública, as universidades e os
restaurantes das cidades da Bolívia. Mostrando as tensões que percorriam a composição
social da Assembléia e até mesmo do MAS. Silvia Lazarte declarou uma vez que tinha
“tinha orgulho de não ser profissional”
408
.
408 Taboada Terán (2008:52-53) fala do difícil de ver uma classe inferior por cima, e descreve a Bolívia
como “um povo de índios e mestiços que têm começado a andar”, mas que é “triste e complicado ver
como se aborrecem os pretensos brancos ao se ver governados por pobres e livres: os índios”. Ainda
que esta vertente de idéias que interveio na redação do texto não era nada alheia ao MAS, como vimos
na disputa de “convidados” e orgânicos”, dentro do partido dos constituintes identificados com este
olhar, tinha-se assumido uma aliança com os indígenas e com o projeto do Estado Plurinacional. Era,
portanto, desde a oposição que os setores expressavam a voz da república liberal estabelecida.
475
Sua situação de inferioridade numérica, ainda que tenha sido o que possibilitou
os dos dois terços que o MAS precisava, permitiu, ao final da redação do texto
constitucional, que o setor mestiço e liberal, que era minoritário, mas tinha em seu favor
a ordem estatal vigente e constituída, adquirisse uma importante possibilidade de fazer
escutar sua voz, revisando a Constituição dos indígenas originários camponeses, pela
primeira vez na cabeça do Estado. Esta revisão não traria elementos novos que não
tivessem estado presentes em um texto que apresentava muitas continuidades com o
passado e que até mesmo, desde o próprio MAS, tinha dado lugar às prudências
republicanas. Mas, contudo, permitiu fortalecer elementos deste olhar político e cultural
que, na versão saída da Assembléia Constituinte, tinha sentido algumas amputações,
embora com uma formulação ambígua que dava lugar a outro tipo de Estado.
A oposição do MAS insistia que o projeto de Constituição excluía as minorias
mestiças. O estatuto de Santa Cruz tinha incluído expressamente os mestiços, e se
difundia a famosa pesquisa do PNUD, na qual a maioria do país tinha se identificado
dessa maneira. Como visto, isso levou a que se introduzisse a categoria de “nação
boliviana” , em vez de “povo boliviano”. A idéia de povo ressoava a “populismo” e a
massas comunitárias coletivas não individualizadas. Excluía-se em outubro a frase do
mesmo artigo 3: a totalidade dos bolivianos e das bolivianas pertencentes às áreas
urbanas de diferentes classes sociais”, para se referir somente aos indivíduos bolivianos:
“a nação boliviana está conformada pela totalidade das bolivianas e dos bolivianos”,
corretamente também introduzindo a “perspectiva de gênero”. No projeto inicial do
MAS, o termo tinha sido excluído, mas em sua leitura do acordo, Carlos Romero
escreveu que, na realidade, o projeto aprovado na Assembléia pressupunha a
nacionalidade boliviana quando falava de “bolivianos e bolivianas”. Era, para Romero,
um medo injustificado da oposição, e por isso foi fácil reinserir a categoria sem
prejuízos.
Outra reclamação da oposição em outubro era a reintrodução do termo
“república”, que a oposição exigia recolocar na caracterização do tipo de Estado do
artigo 1, mas foi introduzida somente no artigo 11. Carlos Romero, em sua análise do
acordo, explicaria que isto não foi um pedido difícil de contemplar, porque, apesar da
oposição, falava de “desaparecimento da República”; contudo, as instituições que
conformam a República como forma de governo que emerge em oposição à monarquia,
tinham sido respeitadas. No artigo 11 da nova Constituição, que define a forma de
476
governo, substituiu-se “O Estado” por “A República da Bolívia” (quadro anexo em
Romero 2009).
O artigo também combina a forma democrática representativa, com a
democracia participativa e a democracia comunitária. As três formas de democracia
expressam as três vertentes principais na redação da Constituição: a liberal
(representação), a da esquerda nacional (participação) e a do indianismo (comunitária);
sendo a democracia a estrutura básica do centro
409
. A república também foi incluída em
vários artigos que se referem ao Presidente, ao Vice-Presidente e até mesmo a
Senadores “da república”. Mas a inclusão não foi completa. A oposição no Congresso
esqueceu-se,em outubro, de modificar o preâmbulo do texto, que inclui um parágrafo
com a seguinte afirmação: “Deixamos no passado o Estado colonial, republicano e
neoliberal. Assumimos o desafio histórico de construir coletivamente o Estado Unitário
Social de Direito Plurinacional Comunitário, que integra e articula os propósitos de
avançar rumo a uma Bolívia democrática, produtiva, portadora e inspiradora da paz,
comprometida com o desenvolvimento integral e com a livre determinação dos povos”.
E meses depois, morreria a “República da Bolivia”, quando, por decreto, Evo
Morales dera lugar ao “Estado Plurinacional da Bolívia”, como nome oficial. A
oposição protestaria pelo gasto que implicaria modificar o nome do país em
inumeráveis documentos oficiais. A morte da República e o nascimento do Estado
Plurinacional voltaria a ser manchete quando, em janeiro de 2010, tomaram posse os
novos representantes da nova Assembléia Plurinacional da Bolívia, enterrando o
Congresso Nacional, ou Congresso da República. Se, em outras latitudes, a república
não é uma forma política questionada ou é até mesmo uma forma progressista que
mantém o espírito de revoluções contra o absolutismo e a favor da liberdade, na Bolívia
os camponeses e indígenas o associam à colônia.
Na Bolívia, descolonizar é também desrepublicanizar. E também, do horizonte
socialista, a República se associa ao regime burguês de governo, ainda que também haja
países que se identificam como República Socialista, ou República Boliviariana, como a
409 Artigo11. I. A República da Bolívia adota para seu governo a forma democrática, representativa e
comunitária, com equivalência de condições entre homens e mulheres. II. A democracia se exerce das
seguintes formas, que serão desenvolvidas pela lei. 1.Direta e participativa, por meio do referendo, da
iniciativa legislativa cidadã, da revocatória de mandato, da Assembléia, do conselho e a consulta prévia.
As Assembléias e os conselhos terão caráter deliberativo conforme a lei. 2. Representativa, por meio da
eleição de representantes por voto universal, direto e secreto, conforme a Lei. 3. Comunitária, por meio
da eleição, designação ou nomeação de autoridades e representantes por normas e procedimentos
próprios das nações e povos indígenas originários camponeses, entre outros, conforme a lei.
477
Venezuela de Chávez. Ainda nos tempos da Assembléia, o artigo primeiro da
Constituição introduzia também as distintas visões: “a Bolívia se constitui em um
Estado Unitário Social de Direito Plurinacional Comunitário, livre, independente,
soberano, democrático, intercultural, descentralizado e com autonomias. A Bolívia se
funda na pluralidade e no pluralismo político, econômico, jurídico, cultural e
lingüístico, dentro do processo integrador do país”. Vimos que o modelo pluralista
buscava somar sem opor. A realidade política dava lugar a embates entre os distintos
componentes do caráter do Estado. O Unitário estava em tensão com o autonômico e
descentralizado, o Social de Direito impugnaria muitas das conseqüências lógicas do
Estado Plurinacional Comunitário. Por isso uma Constituição aberta, que necessitava
deixar a muitos conformes, antes de pensar em redigir um texto com coerência
uniforme.
Com 411 artigos, a Constituição boliviana é classificada como uma Constituição
longa. Isto seria uma marca também nas outras reformas da região e isso parece ser
também uma conseqüência do aspecto aberto e indefinido de seu caráter, com a
obrigada inclusão de diferentes gicas políticas, nem sempre em harmonia. A
Constituição dos Estados Unidos da América, com uns vinte artigos, é mais clara em
seu caráter republicano e liberal, ainda que talvez toda Constituição seja, por sua
natureza, em algum ponto, aberta e indefinida. Por outra parte, seu tamanho deve-se à
inclusão em seus artigos de questões que poderiam ser desenvolvidas posteriormente na
legislação. Mas é o conflito e a desconfiança das instituições republicana e do direito
estatal que provavelmente levou o constituinte a explicitar nos artigos muito de sua
vontade. Este desejo era confrontado com o mecanismo constitucional de “conforme a
Lei”, ou “de acordo com a Constituição e a lei”, que era agregado a dezenas de artigos.
Muitas das modificações da última negociação no Congresso poderiam ser
entendidas como conservadoras, no sentido de que restauravam a ordem anterior.
Algumas inovações que tinham sobrevivido até o final da Assembléia foram finalmente
descartadas. Em outros casos somente era o disparo final a elementos que já tinham sido
recortados desde Sucre. Era o caso do “controle social”, que inicialmente tinha sido
pensado como um quarto poder, depois diminuído pela oposição e pelo desinteresse do
MAS que, no poder, via o Poder Executivo como Poder Social. Em numerosas
mudanças, o controle social era debilitado, por exemplo, quando se estabelecia que o
Banco Central “será controlado pelo sistema de controle governamental e fiscal do
Estado”; e não, como na versão de Oruro, “controlado na forma disposta por esta
478
Constituição e pela lei”, que habilitava o controle social se a lei assim o definisse (art.
329).
Carlos Romero a conta de como o sentido inicial do controle social era mais um
fantasma que um verdadeiro quarto poder: “Na realidade, no assunto do controle social
não houve muitos problemas. Vários capítulos observados tinham demasiada carga
ideológica. Neste caso, pensava-se que era uma estrutura de suprapoder constituído, que
ameaçava todas as atividades econômicas, tanto públicas como privadas. Eles mesmos
se deram conta de que não era assim” (Entrevista a El Deber 22-10-2008)
410
. Na revisão
de outubro, a oposição tinha-se ocupado de agregar o requisito de “segurança jurídica”
como princípio da economia plural (art. 306), mas se retirava a possibilidade de que as
cooperativas de serviços públicos fossem submetidas ao controle social (art. 335).
Ainda que as principais preocupações deste setor político parecessem se centrar no
institucional, também defenderam o poder empresarial, ao que toda forma republicana
está intrinsecamente ligada. Em um dos artigos, por exemplo, incorporou-se uma
salvaguarda pela qual o setor privado poderia intervir na cadeia produtiva dos recursos
naturais estratégicos, seja como contratadas ou como empresas mistas, o que, por outra
parte, ia totalmente na direção da busca de investimentos por parte do governo.
Também tinha caído o projeto de um Parlamento Unicameral, como na
Venezuela. Mas o golpe mais forte dos interessados em manter a ordem, identificados
com a república liberal, deu-se em outubro com modificações tendentes a garantir a
continuidade do sistema político, limitando então com mecanismos institucionais a
força política do voto a favor do MAS. Romero escreve em seu capítulo do livro que
narra o acordo (2009: 22-23) que “Dados os interesses estratégicos conflitantes, os
temas que geraram maior debate foram os aspectos inerentes à conformação e à
composição funcional do poder político do Estado”. Isto incluía reeleição, estrutura da
Assembléia Legislativa Plurinacional, integração da Corte Eleitoral Plurinacional,
integração dos organismos jurisdicionais, sistema jurídico indígena originário camponês
e aplicação da maioria absoluta de votos para a reforma parcial da CPE.
410 No título sobre participação e controle social, uma mudança onde “o povo soberano, por meio
da sociedade civil organizada” deixa de participar “na tomada de decisões” para fazê-lo somente no
“desenho” das políticas públicas. Na versão da Assembléia Constituinte a participação e o controle social
ocupar-se-iam, além de outras funçõe que mantiveram, de velar pela aplicação adequada da jurisdição
ordinaria, da jurisdição agroambiental e da jurisdição indígena originaria camponesa, e também se limita
o controle sobre a universidade, permitido quando se estabelecia que se aplicaria sobre todas as
instâncias autonômicas ou autárquicas (241, 242).
479
Nas mudanças de outubro vinculadas com o poder político e sua
institucionalidade, recuperou-se o nome “Senado”, também se volta ao número anterior
de parlamentares
411
, e ao sistema de circunscrições departamentais (plurinominais, para
a metade dos deputados), quando, em Oruro, tinha-se definido que a Câmara de
deputados seria, em sua totalidade, eleita por voto de circunscrições locais
(uninominais), dando poder ao parlamentar que obtivesse votos, antes de ao partido que
o candidatou. Também retornaram os suplentes, que desapareciam no projeto do MAS
em Oruro. Nas modificações de outubro, reintegra-se o Presidente do Senado na
sucessão constitucional (169); exclui-se o poder judicial da revocatória de mandato
(240); e limita-se o poder do controle social, evitando que participe na tomada de
decisões sobre políticas públicas (art 242). No novo órgão judicial também diminuiu-se
a presença obrigatória de indígenas.
Uma das modificações buscava frear esse Poder Socialdo MAS no governo,
elevando os requisitos para reforma da Constituição e eleição de algumas autoridades.
Buscava-se evitar a possibilidade de um contra-poder que atuasse como última instância
contra os órgãos estabelecidos, onde a oposição perdia cada vez mais espaço. A
oposição queria manter seu poder de veto com a exigência de dois terços, como vimos
entre os principais pontos que freiavam as negociações de outubro. Estabeleceu-se,
então, em outubro, que a reforma da Constituição não fosse por maioria simples da
Assembléia Legislativa Plurinacional, mas por dois terços. A Assembléia Constituinte
poderá ser convocada por maioria absoluta, mas também adicionou-se em outubro que o
texto final deveria ser aprovado por dois terços, ainda que “dos presentes”, além do
referendo da população, incluído por iniciativa do MAS (artigo 411). Na eleição da
nova Assembléia, em dezembro de 2009, sem dúvidas, o MAS obteria os tão apreciados
dois terços, tornando fúteis essas modificações para o imediato
412
.
411 Seriam 130 deputados e 36 Senadores, como anteriormente. No projeto de Oruro, seriam 121
deputados e quatro representante departamentais por departamento, mas sem indicar o mero total
de 36 Senadores, deixando a porta aberta, talvez, à criação de um décimo departamento, possivelmente
no Chaco, onde existia a reclamação e que seria o primeiro lugar onde o MAS impulsionaria a criação de
uma região para perfurar o poder do opositor do departamento de Tarija.
412 O mesmo para a eleição do fiscal do Ministério Público (artigo 227), dos membros do Órgão
Eleitoral Plurinacional (artigo 158), e para a pré-seleção de candidatos a Magistrados do Tribunal
Supremo de Justiça (art. 182), que serão eleitos por sufrágio direto da população, em uma medida
muito criticada, mas que foi mantida e é parte do texto constitucional. Isto se soma às mudanças
referidas à composição dos tribunais, que consideramos mais acima e que, como vimos, terminava com
a composição paritária entre o sistema originário e o do direito acadêmico ocidental.
480
Mas onde mais se via uma disputa de poder entre setores políticos em
decadência, sem nenhum tipo de alternativa política, foi na disputa contra a reeleição,
que conseguiu limitar Morales a dois mandatos, e não três, como teria sido se não se
contasse o mandato iniciado em 2006, de acordo com a irretroatividade da lei, base de
outras modificações incluídas. Como vimos, esta negociação veio acompanhada da
discussão de prazo para as eleições, porque os parlamentares da oposição não estiveram
de acordo com a redução de seus mandatos. O acompanhamento desta reclamação da
oposição por parte dos congressistas do MAS causou-lhes um forte desafio de Evo
Morales, que lhes assegurou que nenhum dos presentes voltaria a ser candidato ao
Congresso. Evo Morales cumpriria o afirmado, em algo que muitos viam como negativo
para a consolidação de quadros políticos formados na tarefa legislativa e na formação
do MAS como partido com quadros dirigentes estáveis. Mas foi a favor da renegociação
de cargos a partir das bases, que sempre foi a fonte social do poder do MAS.
E, apesar da revisão da Constituição aprovada em Oruro, nunca deixava de ser
um texto ameaçador, discriminador dos mestiços, e com perigos para o “Estado de
Direito”. Isto foi uma marca do processo, porque, depois das modificações de outubro,
voltavam os argumentos com os quais as mesmas tinham sido fundamentadas. Às vezes
dava a impressão de que, modificasse o que modificasse, o texto receberia as mesmas
críticas. Outras vezes parecia, sem dúvida, que realmente sim, havia elementos
rupturistas que poderiam dar lugar a um Estado diferente. Mas a possibilidade de
ruptura com o velho, aparentemente não se encontrava na letra dos artigos, revisados
mais de uma vez para agradar a oposição. Tampouco se encontrava mais além do escrito
e da Constituição e todo o processo constituinte era somente a cristalização da força
social conseguida por indígenas e camponeses nos anos anteriores, junto à quebra do
sistema estatal anterior. Caso tivermos, então, que encontrar onde ficaram, na nova
Constituição, os desejos de mudança das organizações de base, deveremos concluir que
é nos espaços em branco, nas indefinições, nos silêncios e nas ambigüidades do que foi
constitucionalizado.
Talvez um texto constitucional tenha o poder de ser o que for, apesar do que está
escrito nele. Ou talvez haja formas de escrever que permitem estabelecer e constituir
uma realidade diferente do que está escrito, a partir do significado outorgado a conceitos
cujos significados somente podem ser definidos politicamente. O MAS atendia a todas
as preocupações da oposição porque sua prioridade era alcançar o referendo e tinham
afirmado muitos de seus porta-vozes que as mudanças continuariam partindo do
481
governo. Algo desta maneira foi o que percebeu Jorge Lazarte, opositor acirrado do
MAS procedente da oposição letrada de La Paz, que em uma coluna de opinião do
diário La Razón, pouco antes do referendo, afirmava que o perigo da Constituição do
MAS” estava justamente no que a Constituição não dizia. Mas a voz crítica não falava
de uma Constituição negociada com a oposição e seguia com o discurso alarmista dos
riscos do MAS, que encontramos, por exemplo, no Editorial do diário cochabambino
Los Tiempos (31/10/2008), quando afirmava que Nos encontramos perante uma obra-
prima de engenharia política mediante a qual, sem dizê-lo de maneira explícita,
constitui-se um quarto poder do Estado”
413
.
Talvez o elemento que despertava mais advertências de perigos catastróficos era
o referido aos direitos territoriais e políticos que se lhes outorgava aos povos e nações
indígenas camponesas. Depois do acordo, ao respeito disso, Romero declarou ao diário
El Deber: “Tinham muito receio que se adquirissem direitos coletivos excessivos. A
categoria „indígena originário camponês‟ provocava muitas dúvidas. Pediam para a
gente que colocássemos traços ou que a desagregássemos. Na realidade, o que estavam
tentando mostrar era que temiam que os direitos indígenas reconhecidos a minorias em
outros países se aplicassem na Bolívia a maiorias. Então lhes disse que deveríamos
balancear os equilíbrios em três níveis: territorial, cultural sobretudo de justiça
indígena, e social. Quando fomos revisando os tópicos e delimitamos a justiça
indígena em âmbitos territoriais, deram-se conta de que haviam conceitos
sobrecarregados. O trabalho técnico permitiu absolver as preocupações rapidamente”.
Apesar de que parlamentares da oposição de indubitável compromisso com o
Estado de Direito liberal terem despejado suas inquietudes na reforma do texto, com
mudanças em 120 artigos, os fantasmas continuaram. Os medos não desapareceram
talvez porque iam mais além do modificável; porque se trata simplesmente de um
posicionamento político opositor de qualquer jeito; ou porque o que os assustava eram
possibilidades no futuro desenvolvimento de elementos presentes no texto, como a
autonomia indígena e o reconhecimento de direitos políticos e culturais aos povos os
413 Na interpretação do periódico, o reconhecimento da “Ação Popular” (artigos 135 e 136), em que
qualquer pessoa, a título pessoal ou de uma coletividade, pode se dirigir à justiça para denunciar o não
cumprimento de qualquer direito ao trabalho, poderá tomar em nome da Ação Popular’, uma empresa
pública ou privada para fazê-lo cumprir, e nenhum empresário poderá negar-se a satisfazer esta
demanda, pois fazê-lo será interpretado como uma violação do texto constitucional. Da mesma forma,
poder-se-á exigir moradia ou saúde”. Conclui o raciocínio afirmando que “as demais disposições que
supostamente garantem a vigência do Estado de Direito, ficam reduzidas à condição de meras
declarações líricas”.
482
quais, dado o consenso internacional, a oposição não criticava o que restava para
setores liberais aterrorizados pela emergência indígena e com sobrevivência de modos
de organização social comunitária e não estatal, que agora entravam no Estado.
Uma boa exposição das críticas à Constituição por parte dos mestiços liberais de
La Paz é a de Fernando Molina (2009a, trad. nossa), diretor do semanário Pulso. Realça
que as inovações plurinacionais do texto são uma ficção jurídica que não contam com
instrumentos para se cumprirem, no que se pode ver como resultado da situação
ocorrida com as constituições dos primeiros cinqüenta anos da vida republicana.
Tratava-se de princípios republicanos, mas um regime político “cesarista”, que, para
Molina, remete à idéia expressada por Octavio Paz sobre “a hipocrisia legalista que
levou aos povos americanos a copiar leis que lhes permitiam se sentir civilizados, mas
que ninguém estava disposto a cumprir” (apud op. cit :3). Acredito que uma
diferença entre um governo aristocrático que nega direitos ao povo sem acesso ao poder,
ainda que os reconheça na Constituição; e um governo como o do MAS, que busca
ampliar os direitos para as maiorias e também no texto constitucional. Mas minha
principal diferença em relação aos argumentos que reduzem a plurinacionalidade a algo
declarativo ou até mesmo falso, como veremos no último capítulo, é que creio que é
com esse tipo de significados abertos e em ebulição que se faz a política. Apesar de
reconhecer as dificuldades da implementação acredito, portanto, que as mudanças
constitucionais tinham uma força política “real”.
Para Molina, a Constituição promulgada em 2009 leva a um extremo a
concepção da Bolívia com uma imagem da sociedade não homogênea e diversa (ele
também diz “não nacional e fragmentária”) introduzida desde as reformas
constitucionais de 1995; e também volta à matriz da economia estatizada com influência
nacionalista e socialista e anti-liberal, que é, para ele, até hoje, a principal “ideologia
boliviana”. A combinação dessas idéias, associadas por mim à esquerda nacional
(socialista e nacionalista) e ao indianismo pluralista, deu lugar, para Molina, ao “caráter
híbrido e até mesmo contraditório da filosofia desta Constituição, que por um lado
aponta a centralização e a acumulação do poder, e por outro oferece garantias políticas e
oportunidades de governo a um sem-número de entidades sub-nacionais, em particular
aos povos indígenas”; e o autor vaticina sobre essa situação que as duas tendências são
incompatíveis, daí que um dos dois aspectos necessariamente fracassará (:6). Minha
pesquisa centra-se no processo de redação de uma Constituição e não na avaliação das
políticas do governo e da situação econômica do país. Mas, sendo conseqüente com os
483
princípios pluralistas que combinaram elementos heterogêneos, não vejo que a
autonomia indígena impedir o controle dos recursos naturais, ainda que possa haver
conflitos pontuais neste sentido. É onde a flexibilidade do texto permite encontrar
soluções originais.
Em suas críticas ao texto, Molina assinala que a propriedade coletiva e a
propriedade comunitária limitam a liberdade econômica e a propriedade privada.
Também a determinação de que o uso que se faça da propriedade não deve ser
prejudicial ao interesse coletivo; Molina no termo “propriedade coletiva” uma
contradição. E que o mandato de “redistribuir a riqueza” aponta a “diminuir a
propriedade privada de uns para favorecer outros”; e prevê que muitos dos benefícios
sociais que se estabelecem (como criação de emprego), dever-se-ão fazer à custa da
propriedade “de alguém”. Também considera que o incremento da propriedade estatal,
com a participação na industrialização e no controle dos recursos naturais, também será
em detrimento da propriedade privada (:13). Molina reconhece que se aceita a
exploração privada de cursos não renováveis, mas assinala que a Constituição de 2009
evita dizê-lo, somente o fazendo com eufemismos.
Em sua leitura obre a ideologia da Constituição, ocupa-se das “idéias
indianistas” que associa a intelectuais geralmente dedicados à antropologia e à história,
alguns de origem aymara e que haviam tido uma força incomum desde os primeiros
anos do século XXI. Caracteriza o indianismo desde a idéia de novo ciclo milenário
com relação à natureza e à descolonização e à crítica ao pensamento ocidental
414
. Mas
assinala que este ideário não se concretizou. Escreve que “70% ou mais da Constituição
está baseada no republicanismo latino (soberania popular, divisão de poderes), o
liberalismo inglês (limitação do Estado por meio da definição dos direitos civis e
pessoais) e o francês (direitos políticos, princípios da não-discriminação). A
414 Menciona García Linera como um dos que fizeram sua síntese teórica. E resume o indianismo como
“rejeição ao pensamento ocidental, especialmente ao que se associa à Ilustração e à revolução
científica”; “exaltação da peculiaridade, “supostamente única”, das culturas autóctones”; “colonialismo
interno” como categoria explicativa central da sociologia e da historiografia; derivação dos problemas
de desenvolvimento à opressão social; repúdio às “tentativas prévias de superação da inclusão e
exploração indígena”, até mesmo à mestiçagem; linha de continuidade a partir dos levantamentos
contra a Coroa espanhola até as rebeliões recentes; busca da “descolonização”, que implique “a
indianização do Estado mediante a substituição das elites por dirigentes indígenas e a construção de um
Estado étnico que reflete a diversidade” além de uma reforma educativa; buscar o advento de um
“tempo novo”, como ciclo milenário no que imperará o coletivismo econômico (ainda que com
progressos tecnológicos), a impossibilidade do racismo e do colonialismo; a comunhão com a natureza.
Para outra perspectiva, veja-se Pacheco (1992) e Hurtado (1986).
484
autodeterminação dos povos indígenas tem sido tomada do acervo da esquerda européia.
A descolonização é um conceito pós-colonial, ou seja, desenvolvido nos centros
educativos do primeiro mundo. Etc.” (op cit :41). Assinala que a considerada primeira
Constituição indianista do país inclui a assembléia comunal somente com caráter
deliberativo (e não executivo); os usos e costumes são somente para o nível local e
supervisionados; o conhecimento tradicional não ocupa outro lugar que o atual no
sistema educativo; e o caráter “plural” pode-se encontrar em todas as economias do
mundo, escreve Molina.
Algo que chama atenção nas críticas ao projeto de Constituição e que mostram
seu caráter multiforme e ambíguo é que, ao mesmo tempo é considerado ameaçador e
supérfluo, retórico que vai contra os princípios básicos e a legalidade estatal, Molina
considera que o indianismo é sua ideologia, mas que a mesma não foi introduzida em
seus artigos. De fato, assinala que o caráter imprescritível da terra e da propriedade
coletiva são uma “condenação” e “discriminação para os indígenas que trabalham nela.
Sublinha que o indianismo da Constituição tem um caráter “superestrutural, político,
burocrático”, e que a autonomia indígena é “mais política e cultural do que produtiva e
social”, e somente servirá de fonte de emprego para os dirigentes. Afirma que
“Infelizmente, a Constituição se esgota em aumentar o reconhecimento político dos
indígenas (o simbólico) e realça muito pouco sobre a necessidade de revolucionar as
bases econômicas da sociedade rural”. Neste sentido, manifesta sua preocupação sobre
o que, para ele, é o verdadeiro problema da “opressão indígena” nas comunidades: a
explosão demográfica e o álcool. Mas, ao mesmo tempo, assinala que a Constituição
consagra um modelo capitalista de Estado e “populista”; e reconhece que aborda o
problema produtivo “do ponto de vista da exploração dos recursos naturais e da
transferência do excedente aos mais pobres, por meio do Estado”, ainda que, neste
ponto, observa, limitam-se as liberdade de mercado e da propriedade privada.
485
Capítulo 6.
A Implementação do novo Estado
Neste capítulo conclusivo, veremos os primeiros passos da implementação da
nova Constituição. Começava o tempo da gestão, com a consolidação do poder
institucional, ainda que as tensões que atravessaram a Assembléia seguiriam presentes e
se expressariam no momento de elaborar as primeiras leis do Estado Plurinacional.
Também aqui voltamos ao tema aberto na introdução desta tese, sobre a diferença
introduzida no Estado, com a presença de elementos indígenas que buscam pensar um
Estado Comunitário, e que ao mesmo tempo deram lugar a um debate intelectual sobre a
forma de entender este processo; com questionamentos que vêem falsidade no discurso
étnico e a presença da Pachamama, ou que buscam desenvolver uma filosofia
alternativa ao desenvolvimento capitalista e levar a cabo a descolonização.
1 O Nascimento do Estado Plurinacional.
No dia 7 de fevereiro, em um ato com desfile, em El Alto, Evo Morales
promulgava a Constituição junto a Silvia Lazarte e Rigoberta Menchú, entre outras
autoridades e convidados estrangeiros. Os constituintes assistiam ao desfile em um
palco, encostado no cenário central (ver fotos do ato em anexo). Em seu discurso, Evo
Morales reconhecia, como sempre, “a consciência do povo boliviano”, e reconhecendo a
marca indígena que inspirou a gesta, dizia: […] Depois de 500 anos de rebelião, invasão
e saque permanente; depois de 180 anos de resistência contra um Estado colonial;
depois de 20 anos de luta permanente contra um modelo neoliberal; hoje, 7 de fevereiro
de 2009, é um acontecimento histórico […] promulgar a nova Constituição Política do
Estado. Na história boliviana, é o movimento indígena camponês, depois de tantos anos,
irmãs e irmãos, que começou primeiro na eleição para uma Assembléia Constituinte no
ano de 2006, é sua participação para redigir uma nova Constituição, inspirado na luta de
nossos antepassados, na luta de nossos irmãos indígenas desde 1600 e 1700, inspirado
na luta de muitos irmãos que fundaram a Bolívia; e não podemos esquecer a rebelião do
movimento indígena na Bolívia, encabeçado por Tupac Katari, Julián Apaza. […].
Estavam à frente do palco central, antes que começasse uma marcha das
nacionalidades, o exército, a polícia e um grupo de yatiris que ch‟allaban (abençoavam)
exemplares da nova Constituição, em um ritual frente às camêras do mundo. Perguntei a
486
um deles se eram de CONAMAQ e me disse que esses eram pagos pela CIA: eles eram
das Comunidades Sagradas de El Alto. Também havia um grupo de quéchuas, com suas
famílias, fazendo cerimônias rituais menos chamativas, para também abençoar o novo
texto. O ato era desorganizado. Eu estava ao lado do Comandante do Exército que disse
a Evo Morales que as tropas estavam prontas para iniciar o desfile, antes do presidente
subir ao palco. Logo alguém se aproximou e me disse que eu não poderia estar ao lado
do comandante, por ser estrangeiro. A imprensa tirava fotos e Sacha Llorenti dizia que
deveriam fazer uma barreira, os jornalistas se opuseram e apenas saíram da frente do
palco quando o desfile começou a passar.
Em seu discurso, o presidente falou sobre a nova Constituição: […] Finalmente,
graças aos movimentos sociais, de trabalhadores e originários, esta nova Constituição
foi aprovada. Houveram tentativas de acabar com a Assembléia Constituinte usando
falsos argumentos, disseram autonomia, e ai tem autonomia; disseram capitalia, e ai tem
a capitalia correspondente; disseram dois terços e, em 10 de agosto do ano passado,
mais de dois terços do povo boliviano apoiou essa Revolução Democrático Cultural.
Devo agradecer esse apoio consciente do povo boliviano. Falaram da propriedade
privada, disseram que íamos abolir a propriedade privada, mas a nova CPE boliviana
não garante a propriedade privada, como também assegura a propriedade estatal e a
propriedade coletiva de cooperativas e associações em toda a Bolívia. Irmãs e irmãos,
esses grupos que representam os vende-pátrias, os neoliberais, tentam frear esse
processo revolucionário, mas não puderam e o poderão fazê-lo, porque existe uma
consciência do povo boliviano que seguirá vencendo os vende-pátrias na história
boliviana
415
.
[…] Esta nova CPE boliviana garante a igualdade de oportunidade para as
pessoas do campo e da cidade, garante fundamentalmente, irmãs e irmãos, a unidade, a
igualdade e a dignidade de todo o povo boliviano; e se falamos em dignidade, irmãs e
irmãos, quero dizer que nesses três anos de Presidência, dessa nova experiência, dessa
vida que é diferente da vida sindical, apenas a sabedoria dos nosso povo, nossa força
415
Durante a campanha para a aprovação da Constituição, Evo Morales também denunciava “mentiras e
enganos” da oposição: Nossos queridos avôs e avós me informaram que esses grupos viajaram pelos
campos para fazer campanha contra a nova Constituição, usando argumentos para que votassem contra a
permanência do Presidente Evo Morales, espalhando que nossos avôs e avós teriam que votar no “não”
se queriam ao Evo Morales; queriam enganá-los com esse tipo de mentira. O presidente também dizia:
*…+ Nas cidades, em algumas igrejas, alguns padres comentavam que “Se em 25 de janeiro de 2009 fosse
aprovada a nova Constituição, eles seriam perseguidos e as Igrejas seriam fechadas, não se poderia rezar
nem celebrar missa em nenhum lugar”.
487
social, permitiram identificar, resistir e derrotar os agentes externos, derrotar o
imperialismo norte americano. […] Nesta nova CPE boliviana não se permite, nem se
permitirá, instalar nenhuma base militar estrangeira. Portanto, não haverão
embaixadores como antes, que nomeavam e despediam ministros; embaixadores dos
Estados Unidos que autorizavam a entrada de aviões no aeroporto de Chimoré. Isto
terminou graças à consciência do povo boliviano.
[…] Também, irmãs e irmãos, uma ética foi recuperada, a lei que nossos
antepassados nos deixaram; pela primeira vez na nova CPE boliviana se incorpora o
ama sua, ama llulla y ama k‟ella. […] irmãs e irmãos, nesta nova Constituição Política
do Estado está, sem dúvidas, o sentimento do povo boliviano, a luta permanente contra
o colonialismo, contra o neoliberalismo e fundamentalmente contra o imperialismo […]
Irmãs e irmãos, nesta nova Constituição, pela primeira vez na história e sinto que pela
primeira vez na América Latina, ou mesmo no mundo os serviços básicos de água, luz
e telefone são um direito humano e, portanto, não serão responsabilidade de interesses
privados, mas sim um serviço público. Irmãs e irmãos, certamente algo importante e
central nesta CPE boliviana é que se reconhecem todos os idiomas dos povos
originários, e também se reconhece o idioma espanhol, ou castelhano, como dizemos;
não se exclui ninguém
416
.
[…] Bolivianas e bolivianos, sinto que se avançou bastante apenas graças à
consciência do povo boliviano; inspirados, repito, em nossos heróis, inspirados em
nossos heróis da liberação e, sobretudo, nos movimentos sociais, do campo e da cidade.
Saúdo a luta histórica do CONALCAM, da COB. […] A marcha, a grande marcha de
outubro para obrigar o Congresso Nacional a aprovar uma lei que permitisse consultar o
povo boliviano. […] As ordens das Forças Armadas, desde o momento em que
chegamos ao Palácio, passaram para a história, para a nova história, para a nova
página, por defender a pátria e servir ao povo boliviano junto aos movimentos sociais.
Um comandante das Forças Armadas me disse: “nos diga com quais dirigentes sindicais
devemos coordenar para defender a unidade da pátria”, quando sob pretexto de
autonomia queriam dividir a Bolívia. Não haverá, irmãs e irmãos, nem quatro prefectos,
416
Sobre as línguas, dizia: Algo importante é que um boliviano, ou uma boliviana, está obrigado, pouco a
pouco, a aprender o idioma originário e o espanhol, e também um idioma estrangeiro; inglês, alemão,
italiano ou português são uma forma de nos comunicarmos com o mundo todo. Então, começaremos
desde o Palácio, alguns para melhorar, alguns para aprender, nosso aymara ou nosso quéchua; mas
também idiomas estrangeiros para nos comunicarmos, repito, com o mundo todo.
488
nem quatro cívicos, que possam esquartejar a Bolívia, como quatro cavalos
esquartejaram Tupac Katari. […]
Evo Morales leu o documento histórico da ata com a sentença dos espanhóis
ordenando a tortura e a morte de Katari. Leu a sentença: “Quando for tirado da prisão
onde se encontrava atado a um cavalo, com uma corda no pescoço, como pedia a justiça
e o benefício e o sossego deles mesmos, com uma corda robusta nas mãos e nos pés,
seja desarticulado por quatro cavalos, para que morra e sua cabeça seja levada à cidade
de La Paz”
417
. Também mencionou todos os lideres indígenas, criollos e de esquerda
que haviam lutado no passado para possibilitar este momento e prosseguiu: “Com sua
licença, vamos promulgar a nova CPE do Estado boliviano, diante de vocês, cara a cara
com o povo boliviano, não como antes, somente dentro das quatro paredes do
Congresso. Aqui não temos nada para ocultar, é a transparência, isso é, irmãos e irmãs,
a consciência do povo boliviano para promulgar a nova Constituição”.
“Com a licença de vocês. Irmãos e irmãs da Bolívia, neste dia histórico
proclamo promulgada a nova Constituição Política do Estado boliviano, a vigência do
estado plurinacional unitário, social e economicamente, o socialismo comunitário. (…)
Irmãs e irmãos, é impressionante o que estamos fazendo, da rebelião de nossos
antepassados à revolução democrática e cultural, da revolução democrática e cultural à
refundação da Bolívia. Da refundação da Bolívia, é o meu pedido, com respeito, da
refundação da Bolívia”.
Nascia o Estado plurinacional, o ato e a marcha dos povos e militares
terminaram apressadamente sob um dilúvio acompanhado de granizo. A mera menção
ao “socialismo comunitário”, que era uma novidade, era suficiente para introduzir o
termo no debate boliviano, ainda que não viesse acompanhada de especificações. O
reconhecimento de Katari e outros líderes da luta anticolonial ia na direção de situar o
417 Sinclair Thompson escreve (2010: s/n): “desde que assumiu seu cargo presidencial, Evo Morales fez
um grande uso simbólico de Tupac Katari. Nenhuma cabeça de Estado boliviana havia jamais incorporado
Katari no panteão histórico dos heróis nacionais. Morales leu publicamente sua sentença de morte de
Diez de Medina em mais de uma ocasião. A primeira vez foi em 15 de novembro de 2006 em Peñas,
paradoxalmente pouco depois da cerimônia da reconstituição do corpo realizada por ativistas radicais e
líderes de base. Mas “Evo” mesmo adquiriu agora uma estatura mítica comparável a de Katari, e se
oferece como exemplo do mesmo fenômeno de condensação simbólica. Este não é unicamente um
fenômeno de adulação popular. A cobertura da imprensa contemporânea e a análise política sobre
Bolívia também estão freqüentemente concentradas nele, em uma profecia auto-cumprida tendem a
enfatizar seu papel como caudilho. Não dúvida de que ele, como Katari, exerce enorme influência e
tem grande peso político. No entanto, este tratamento normalmente se diminui no rol de amplas forças
sociais (setores populares, mulheres, jovens, etc) que constituem e até certo ponto ainda sustentam seu
poder atual.
489
discurso do governo do MAS na mitologia política das rebeliões indígenas. Fiel ao seu
estilo de líder agregador, ao mesmo tempo, pedia reconciliação de “originários
milenares” com “originários contemporâneos”, respeitando a igualdade de todos os
bolivianos. Mencionava os movimentos sociais mas também os militares, mencionava
vitórias anti-imperialistas e populares mas também recordava que a propriedade privada
estava garantida e a Igreja católica não seria perseguida.
Em suas últimas palavras gritava “El Alto de pé, nunca de joelhos! Bolívia de
pé, nunca de joelhos!; Pátria ou morte! Venceremos!; Que viva Bolívia unida com
autonomias! Jallalla Bolívia soberana! Kausachun Bolívia digna!”. Em suas palavras
havia muita meta-textualidade referida ao processo de Constituição do povo boliviano.
Recordava a luta pela folha de coca (do kausachum coca”, em quéchua), também o
grito da revolução cubana, “patria ou morte, venceremos”, que não sem polêmica seria
incorporado ao discurso oficial das Forças Armadas bolivianas; recordava também um
grito de El Alto popularizado na guerra do gás de outubro de 2003, que pode ser lido
também como um grito anti-imperialista (El Alto em pé, nunca de joelhos), e por último
dava um Jallalla típico da espiritualidade do Altiplano e somava ainda um viva para a
autonomia.
Nesta noite, os constituintes assinaram exemplares da Constituição promulgada,
jantaram e dançaram num restaurante com música folclórica. Os constituintes se
encontravam depois de muito tempo. Em 2008 só haviam se reunido uma vez, depois do
acordo de outubro, no qual falou com eles o presidente e se formaram grupos para
trabalhar nas futuras leis
418
. Alguns haviam criado uma fundação que poderia aportar no
futuro trabalho de elaborar leis, e que foi apresentada nessa noite. René Navarro, de
Potosí, reclamava de que diriam que é uma Fundação para buscar cargos e consultorias,
quando os constituintes tinham que ter uma autoridade moral. Também dizia que não se
pode confiar nos militares e recordava como o haviam pressionado na época da
comissão.
Vladimiro criticava a García Linera como “brancóide”, dizia que o vice-
presidente lhe tinha pedido para renunciar como candidato à Constituinte mas que havia
ficado por causa do povo. Achava que as pessoas se davam conta dos erros de Evo mas
que o respeitavam por seu sangue, e queixava-se que os ministérios estavam cheios de
418 Eram eleitos como parlamentares vários protagonistas do processo constituinte, como Rebeca
Delgado, Hector Arce, Carlos Aparicio, Ignacio Mendoza e Marcela Revollo. O ex prefeito de Chuquisaca
David Sánchez, o ex assessor do Pacto de Unidade Adolfo Mendoza, e os dirigentes campesinos e
indígenas Fidel Surco, Isaac Avalos e Pedro Nuny.
490
brancos. Continuava com ressentimentos em relação a Romero desde a época da
comissão, de quem dizia que “poderá ler 4 mil livros mas se os princípios não são bons
não serve”. Vladimiro tinha organizado o MAS de El Alto em 2001 e dizia que era duro
ver como tudo era levado pelos que apareciam agora. Em Cochabamba, Nora Martínez
havia voltado para sua empresa. Decidiu sair da política porque lhe parecia muito
ingrata. “Obrigam a te disciplinar e depois se esquecem de você”, dizia. Ada Jiménez
tinha se mudado para Santa Cruz mas dizia que a política nunca se deixa. Seguia com
reuniões. Da mesma forma que outros, Nora desiludiu-se quando soube que a medalha
que receberam fora paga com doação dos constituintes que hoje tinham cargo no
governo e não pelo Poder Executivo. Vários diziam sentirem-se esquecidos.
Havia ainda um mal-estar entre rios constituintes pela intervenção do
Congresso em outubro, ainda que a maioria aceitasse tal intervenção “como soldados do
processo de mudança”. Sabino Mendoza me dizia que era necessário haver uma leitura
política da Constituição e não se perder, como alguns, em críticas ao acordo. Referia-se
à importância da Constituição ter sido aprovada, o que era fundamental. Entre os
constituintes de Chuquisaca havia muito descontentamento porque Orlando Cevallos
fora nomeado delegado presidencial (representante do governo nos departamentos), ele
que havia oscilado com o tema da capitalia e durante a campanha chamava Evo de
ignorante, diziam. Ouvia-se que os constituintes chuquisaquenhos andavam como
galinhas sem garrote. Alguém perguntava por que não faziam algo mas a resposta foi:
“se nos opomos ao queridinho do presidente, nos rebaixam, nos congelam e
desaparecemos”. Outro ponderava dizendo que tinha sido eleito para tentar chegar aos
setores da classe média de Sucre que estavam com a capitalia e onde Ceballos podia ter
influência. Recordavam que antes da capitalia o MAS havia tido 65% de votos neste
departamento.
Pastor Arispe diferenciava três grupos de pessoas dentro do MAS: os massitas”,
os evistas” e os que “estão a favor da mudança”. Pensava que era preciso passar da
lógica vertical de Evo à lógica circular própria dos povos andinos. Alguém me pedia
que no meu trabalho eu contasse a verdade, incomodava-lhe que dissessem que a
Constituição fora escrita por um pequeno grupo. Ao terminar o evento, ainda que alguns
continuassem dançando pela madrugada, acompanhei Mamá Esperanza à sua
hospedagem, junto com outro constituinte. O local onde estava hospedada era na zona
do Mercado da Uyustus e o quarto custava um ou dois dólares a noite, dos mais baratos
de La Paz. Em seu aguayo levava sua manta, documentos, uma garrafa de água e a nova
491
Constituição. Como outros constituintes, convidou-me a visitar sua comunidade. São
200 pessoas e muitos não falam espanhol, mas ela poderia traduzir, dizia. Em seu povo,
100% haviam votado pelo Sim à Constituição ainda que a USAID tivesse feito
campanha dizendo que para votar por Evo era preciso votar pelo Não.
Vários constituintes estavam trabalhando em governos departamentais,
sindicatos e no governo central
419
. Ou entravam na corrida para serem candidatos à
deputados plurinacionais, nas eleições de dezembro de 2009. Perto do governo e entre
os constituintes, circulavam milhares de boatos de iminentes mudanças no gabinete de
Evo. Um decreto o reorganizaria para adaptá-lo ao Estado plurinacional. Havia
operações a favor e contra vários candidatos para os cargos. Uma constituinte me
contava seus chamados a dirigentes para falar mal de um deles. Muitos questionaram se
sairia Juan Manuel de la Quintana, desafiado pelos movimentos sociais por haver
participado de governos de direita e responsável político pelo triunfo do Não em
Pando
420
.
No dia seguinte da promulgação, Evo Morales empossava seus ministros sem
muitas novidades e mudanças. Seriam 20 ministérios, e houve algum descontentamento
porque os ministros questionados pelos setores sociais e indígenas continuavam junto ao
presidente e também não foram incorporados camponeses e indígenas como ministros,
para além de uma dirigente camponesa de Tarija na pasta de Desenvolvimento Rural.
Criava-se o Ministério de Autonomias, a cargo de Carlos Romero, com dois vice-
ministros ex constituintes: Saúl Ávalos (que deixa a pasta de Hidrocarbonetos) e
419 Marco Carillo e René Martinez haviam sido nomeados delegados presidenciais nos departamentos e
se perguntavam se com as mudanças seriam delegados para as autonomias. No governo, Roberto Aguilar
era ministro da Educação, e o assessor da assembléia Diego Pary estava como vice-ministro indígena de
educação superior. Armando Terrazas estava de assessor político e também convocaram Faustino Ollisco,
ex-presidente da comissão de Educação na Assembléia. Romero e Saúl Ávalos estavam também como
ministros, Freslinda em uma direção do ministério da Saúde, Rebeca como vice-ministra de coordenação
governamental, próxima ao presidente, Marcela Revollo em um ente dependente do ministério onde
estava Romero e de onde também havia sido convocado Sabino Mendoza e Vania rate. Pablo Zubieta e
Magda Calvimontes estavam trabalhando em uma empresa estatal de hidrocarbonetos. Cocarico em uma
unidade do Ministério da Presidência. E vários campesinos haviam voltado a assumir funções em seus
sindicatos e organizações de base. Com o passar do tempo se sumariam também outros.
420 As organizações sociais diziam que não pediam ministérios mas sim estar presentes nas reuniões de
gabinete para fazer controle social Vários rumores envolviam aos ex constituintes, que em muitos casos
foram contemplados pelo executivo e pelos governos locais do MAS. Os rumores vinculados aos
constituintes diziam que Saúl Ávalos sairia do Ministério de Hidrocarbonetos porque não teria apoios
suficientes para ficar, e entraria Sílvia Lazarte ao ministério de Governo ou da Presidência. Outros diziam
que tinha que descansar e então a mandariam a alguma embaixada. Marcela Revollo ou Fabián Yaksic, por
acordo com o MSM, poderiam ir a um novo Ministério de Autonomias que se criaria, mas com Pablo
Groux no vice-ministério da cultura que havia estado coordenando junto com Llorenti seriam muitos
dessa força política. Rebeca Delgado poderia ir à Justiça, Raúl Prada a Educação. Romero poderia passar
de autonomias ao ministério da presidência no lugar de Quintana.
492
Rosario Ricaldi, que havia trabalhado com a REPAC. Raul Prada estava trabalhando
como diretor no Ministério da Economia, a cargo de pensar as leis, em 2009 ou 2010
seria nomeado vice-ministro de planificação. Cultura passava a ser ministério e foi
criado o vice-ministério de Descolonização, que em 2010 passaria a estar a cargo de
Félix Cárdenas, ex constituinte de Visão País. Dentro deste vice-ministério, também
funcionaria a Unidade de Despatriarcalização, a cargo da ex constituinte Esperanza
Huanca, com as ex constituintes Elisa Vega e Dora Arteaga também trabalhando.
Um episódio notável ocorrido depois da promulgação foi a decisão por parte de
uma assembléia comunal em ocupar a casa do ex vice-presidente aymara Victor Hugo
Cárdenas, na comunidade de Sank'ajawira, Omasuyos. A polêmica em torno de casos de
Justiça Comunitária não é nova na Bolívia, mas a posição ambígua de um governo
respeito de esse assunto era uma novidade sim. Da comunidade chegou a versão de que
o castigo respondia a que Càrdenas votou pelo à nova Constituição, somado ao
argumento de que o sentenciado não tinha cumprido com sua comunidade. Evo Morales
impugnou a tomada da propriedade mas disse que o afetado deveria prestar contas à
comunidade. Raúl Prada opinou que a tomada da casa de Cárdenas não respondia ao
marco da justiça comunitária, constitucionalizada mas ainda não institucionalizada, e
que “aquela reunião foi uma manifestação política de uma democracia comunitária”.
Mas considerou que o caso deveria ser resolvido mediante a via judicial ordinária, uma
vez que a nova Constituição também garantia a propriedade privada (La Prensa
14/3/2009). Cárdenas iniciou um processo contra três líderes camponeses que
identificava como responsáveis individuais, e também contra o governo, por não haver
impedido o ocorrido, apesar de sua denúncia
421
.
Em 18 de março de 2009 foi aprovado o Decreto (0048), interpretado como a
morte da República da Bolívia porque mudava o nome do Estado para Estado
Plurinacional de Bolívia. A mudança se enquadra na série de medidas que
421 Em um spot de televisão em janeiro de 2009, Victor Hugo Cárdenas, disse, com sua esposa Lidia Katari
e seus filhos, "o governo não disse que a criação de 36 governos indígenas com governo próprio, leis e
juízes próprios vai colocar seriamente em perigo a unidade da Bolívia ". A jornalista Amalia Pando
perguntou ao vice-presidente se os membros da comunidade devem voltar para casa, Alvaro García Linera
hesitou alguns segundos, respirou e disse que Victor Hugo Cárdenas tinha o direito de propriedade e que
uma ocupação violenta não seria permitida pelo governo, mas que os membros da comunidade podem
fazer o processo próprio das comunidades - pelo qual aqueles que não cumprem trabalho comunitário e
responsabilidades coletivas são objeto jurídico interno para a recuperação e desapropriação. Entrevista
com o vice-presidente Alvaro García Linera, Rádio Erbol, 9 de março de 2009 (apenas áudio).
http://www.vicepresidencia.gob.bo/DireccióndeComunicación/Video2/Entrevista_erbol09032009/tabid/
228/Default.aspx Ver tambèm Schavelzon (2009d).
493
concretizavam a incorporação de elementos andinos e plurinacionais na estrutura do
Estado, e na definição de suas bases fundamentais, princípios e valores. A wiphala
havia sido incorporada como símbolo nacional, em que pese a crítica de opositores que
a viam como símbolo do avanço andino sobre o resto do país. Na disputa por impor
interpretações, García Linera associava a wiphala a todos os povos, inclusive os do
Oriente, mas sua imposição seria uma tarefa política que levaria algum tempo. Assim
ficou demonstrado no ato do Dia da Independência em 2010, quando o anunciado uso
da wiphala gerou polêmica nos dias que antecederam o ato de 6 de agosto, realizado em
Santa Cruz de la Sierra.
2 A Gestão.
Depois da promulgação, Evo Morales reuniu-se com seus novos ministros e
vice-ministros em Wajchilla, nos arredores de La Paz. Já o participavam as
organizações sociais, e apenas foram apresentados informes de cada ministério. Evo
Morales criticava o que não lhe parecia bem, punha prazos e também objetivos. Nesta
reunião criticou os “intelectuais” e disse “não quero teoria em que repetimos o mesmo,
quero ações, quero execução”. Pediu que em uma semana estivesse pronto o projeto de
Lei Marco de Autonomias, e criticou que alguns ministérios promoviam coisas sem ter
orçamento. Ao mesmo tempo, muitos ministérios, empresas públicas e departamentos
apresentavam “execução orçamentária” muito baixa. Evo exigiria que no mínimo
fossem alcançados 30%. Uma assistente da reunião dizia que o presidente queria
cantos de sereias e resultados. Ao iniciar sua gestão, em 2006, Morales baixou seu
próprio salário pela metade, determinando assim um máximo mais baixo para toda a
administração pública. Ao mesmo tempo, tem que ser ressaltado seu ritmo incansável
de trabalho, desde às cinco da manhã horário de camponês boliviano até depois da
meia noite (cf. SIVAK 2008).
Dias depois da promulgação da Constituição em El Alto, aconteceu talvez o
maior escândalo da gestão do MAS, com a prisão de Santos Ramirez, homem forte do
partido que era mencionado como possível sucessor de Evo Morales como candidato à
presidência, ou como possível candidato à vice-presidencia para dezembro de 2009.
Ramirez havia sido parlamentar junto a Morales antes deste chegar à presidência e,
enquanto era Senador como vimos em capítulos anteriores também cumpriu um
papel chave como operador político no desenlace da constituinte. Como presidente da
494
empresa estatal de petróleo YPFB, Ramirez foi envolvido em um suborno de U$ 450
mil a um empresário beneficiado em uma licitação para produzir GLC. O escândalo
veio a tona depois de um assalto que culminou na morte do empresário. É interessante
notar que também foi em linguagem étnica o argumento com que Santos Ramírez se
defendeu frente à imprensa: “Se fossem meus parentes de verdade, teriam que falar
quéchua e não matar”, disse para distanciar-se dos irmãos de sua mulher, envolvidos
diretamente no caso, além de pedir divórcio dela
422
.
Macario Tola tinha me dito que se estivesse no lugar de Ramirez renunciaria de
imediato declarando submissão à justiça comunitária e à ordinária. Escutei também um
argumento de alguém que defendia que algumas práticas tradicionais de reciprocidade
eram interpretadas como corrupção equivocadamente pelo sistema legal do Estado
colonial. Por outro lado, Bajo e Stefanoni (2009, trad. nossa) escreviam: “Se Santos
Ramírez fosse um convidado de classe média, a resposta teria sido fácil e conhecida
[entorno brancoide?], mas se trata de 'um peso pesado', com mãe de pollera”, falante de
quéchua, nascido no Norte de Potosí e, além disso, 'possível sucessor' de Evo; ou seja,
com todas as credenciais de um massista de verdade”. Os autores também aproveitaram
o escândalo para fazer uma crítica sobre a qual voltaremos a falar. Diziam: “limitar-se a
linchar Santos Ramírez pode […] tornar opaco o debate de fundo […] discutir o que
hoje não se discute por trás do predomínio da retórica, ainda oca, da descolonização:
que tipo de Estado tomará conta dos recursos estratégicos do país, tal como estabelece a
nova Constituição, evitando recair na tentação fácil do capitalismo de Estado que
emerge na Bolívia depois de cada fracasso liberal e sempre goza de amplo apoio social.
Temáticas […] praticamente ignoradas por uma esquerda que pendula entre o
nacionalismo e o culturalismo”.
422 Sua mulher era Giovanna Navia, cujos irmãos formavam parte de seu entorno na empresa e estavam
recebendo suborno na casa do Senador, que possivelmente também estava na casa esperando. A mulher
de Santos Ramirez havia sido protagonista de um documentário para a BBC, como militante do MAS. Um
dos cunhados de Santos Ramirez era deputado do PODEMOS e outro era incriminado nestes dias como
proprietário de prostíbulos e proxeneta. Também se dizia que Santos foi importante para unificar a
militância do MAS, e que depois de sua queda não haveria ninguém que mandasse à frente as diversas
frações. Alguns falavam também de uma confabulação para incriminar Ramirez, mencionavam a
rivalidade com García Linera, que era considerado pelos parceiros de Ramirez como alguém externo.
Escutei também a teoria de que havia sido um “presente de grego” que Evo Morales queria se livrar,
porque o incomodava ter por perto pessoas que não acompanhara desde o passado. Ele gosta de rodear-
se de obedientes e yunkus, me dizia alguém que citava a Filemón Escobar e a Hugo Morales, irmão de Evo,
que haviam saído porque o faziam sentir-se diminuído. Enquanto eu entrevistava ao Senador Peredo, o
chamavam para pedir que fizesse algo porque haviam destinado a Santos Ramirez a pior zona do presídio
de San Pedro.
495
Naqueles dias falei com o historiador Pablo Quisbert, ex-diretor do programa de
alfabetização Yo si Puedo”, que utilizando o método cubano conseguiu declarar a
Bolívia “livre de analfabetismo” em dezembro de 2008. Quisbert preocupava-se porque
a segunda fase (pós alfabetização) seria mais longa e mais difícil devido ao maior índice
de desistência. Nesta segunda fase não é simples ter resultados para mostrar, que é o
que o governo quer, Quisbert me dizia. Com o massista foi-se anunciando município
por município, departamento por departamento, o avanço. Tal avanço foi conquistado
com verticalismo e dinheiro para os professores, explicava-me. “É no grito ou com
dinheiro, e nesse governo ainda é a grito”, agregava. Evo Morales queria que o
programa fosse mais político, mas Pablo Quisbert pensava que o fato de não ter sido era
o que havia garantido seu êxito, por exemplo para poder entrar em municípios
opositores sem problemas. Para isso também teve que evitar passar pelas organizações,
que lhe pediam cargos. Quisbert dizia que não havia orçamento para chegar até a meta,
mas foi irresponsável e mandou que seguissem montando grupos. Podiam ter-lo matado
por irresponsabilidade, mas apareceram 25 milhões que não tinham sido gastos no
ministério da Educação e a meta foi atingida.
O assessor do Pacto de Unidade Adolfo Mendoza comentava uma campanha nas
paredes de Cochabamba e Santa Cruz durante o referendo constitucional, que dizia “sou
crítico mas não sou trouxa, voto pelo sim”. E via que agora chegava o momento de
implementar todo o aprovado na Constituição. Por isso para ele seria um erro adiantar
as eleições como algumas organizações propunham. Adolfo via a Constituição como
“comunitária liberal”, ou “liberalismo comunitário”. Em dezembro de 2009, Adolfo
seria eleito primeiro Senador por Cochabamba, mas em março de 2009 estava
trabalhando como consultor para a elaboração da Lei Marco de Autonomias no
ministério de Autonomias. Alguém me dizia que Romero havia chamado Adolfo para
ter uma versão próxima das organizações com a qual depois poderia negociar e ceder,
mostrando seu perfil de operador político. Romero chamou também Jesús Jilamita,
assessor da CONAMAQ; Xavier Albó e Carlos Böhrt, todos participantes da busca pelo
centro na Assembléia Constituinte. Evo havia pedido o projeto de Lei Marco para
segunda-feira à tarde.
Macario Tola estava trabalhando na vice-presidência, na resolução de conflitos
sociais com diversos setores sociais. Como figurava nas planilhas de empregados da
Vicepresidencia, não de ser candidato a governador de La Paz, quando seu nome
surgiu no início de 2010, depois que Félix Patzi teve que renunciar à sua candidatura.
496
Em outro caso que envolveu a linguagem étnica na política boliviana, Feliz Patzi,
indianista, ex-ministro da Educação e secretário do governo do departamento de La Paz,
protagonizou um escândalo no MAS quando resistiu ao pedido de Evo Morales para que
desse um passo atrás, depois de ser detido pela polícia por dirigir com alto percentual de
álcool no sangue, dias depois da assinatura de um decreto supremo que aumentava as
penas para esse mesmo delito, como reação ao elevado número de acidentes de trânsito.
O interessante é que Patzi tentou resistir ao pedido de Morales de que
abandonasse a candidatura, apelou às bases sociais que em parte o seguiram e buscou
defender sua candidatura apresentando-se a um tribunal de justiça comunitária em sua
comunidade de origem, a província Aroma, onde ficou definido que ele poderia
continuar como candidato depois de fazer mil tijolos como castigo. O MAS venceu a
disputa e Patzi anunciou formar um partido que lute por uma verdadeira descolonização.
Mas foi interessante que a disputa se expressou em termos culturais andinos. A primeira
defesa de Patzi foi dizer que havia bebido como parte de uma tradição aymara pela
morte de um familiar. O chanceler David Choquehuanca respondeu que estava violando
seu mandato indígena de “não mentir” (ama sulla) quando se comprovou que nenhum
familiar do candidato tinha morrido. Evo Morales também colocou em dúvida o modo
com que Patzi realizava os tijolos de castigo, ele mesmo havia trabalhado nisso quando
criança e sabia que era impossível realizá-los no tempo em que Patzi anunciou ter
terminado.
O candidato que o substituiria foi o ex constituinte Cesar Cocarico, que
conversou comigo em março de 2009 quando foi nomeado como responsável da recém
criada Unidade de Análise Constitucional, convidado para pensar a fase de
implementação, e respaldar ao presidente na interpretação da Constituição, dizia.
Cocarico tentaria de orientar a interpretação do texto constitucional frente à população.
“Os que participamos do processo constituinte temos que contribuir para que a doutrina
constitucional boliviana se oriente corretamente”, dizia. termos que não são
entendidos por setores acadêmicos ou sociais. A democracia comunitária, por exemplo,
não deve ser considerada como restritiva e sim como ampliação dos direitos. Apesar das
mudanças de outubro, para ele o texto significava a inclusão de absolutamente todos.
No entanto, esclarecia que o plurinacional não significava somente colocar um indígena.
Neste sentido Cocarico havia trabalhado no decreto do Órgão Executivo com que se
reformou o gabinete e via que “lamentavelmente” não haviam incluído muitas de suas
497
recomendações, como a que a economia comunitária tivesse sua área específica de
trabalho.
Outra conseqüência pós constituinte no governo de La Paz era o iminente
fechamento da REPAC (Representação Presidencial Para a Assembléia Constituinte).
Juan Carlos Pinto, seu diretor, estava preocupado com as 60 pessoas responsáveis pelas
capacitações sobre os conteúdos do novo texto realizadas em todo o pais, e também no
MAS. Evo não via sentido, porque queria as coisas de imediato e com resultados de
curto prazo, dizia Juan Carlos Pinto.Linera lhe havia dito que não serve ir para as
comunidades se estas se mantém caladas. A Juan Carlos lhe preocupava que o governo
se interessasse pela gestão, quando o importante continuava sendo a política. Álvaro
lhe havia dito que seus quadros demonstrassem o que sabiam na gestão, entrando nos
ministérios. Mas as pessoas da REPAC não conseguiriam trabalho no governo porque
não são do MAS, dizia Juan Carlos, que via que o que eles sabem fazer é política.
423
A gestão de governo era um mundo político bem diferente ao da Assembléia
Constituinte. Havia continuidades mas também uma dinâmica, um clima e uma
discussão diferentes. Também havia sido deixada para trás a confrontação com o
Oriente, para além da operação da polícia em abril de 2009 contra uma “célula
terrorista” comandada por um veterano da guerra dos Bálcãs que lutou pela Croácia, que
haveria planejado atentados com um plano separatista e com vínculos com líderes
crucenhos e armas pesadas. Depois de aprovada a Constituição, vinha uma nova fase
em que não se tentava de vencer ao inimigo que buscava obstaculizar e derrubar o
governo, e sim de fazer gestão. Não era uma “gestão sem política” o que o MAS tinha
em mente, ainda com as bandeiras de Revolução Democrático Cultural levantadas. Mas
muito menos era “política sem gestão”
424
. E nessa tentativa destacavam os problemas
da falta de quadros assim como o da falta de “execução orçamentária” como problema
derivado. O Ministério da Fazenda era o único lugar onde haviam festejado porque
havia sobrado 1 bilhão de dólares sem ser executado, que era o que calculavam ser
necessário por conta da crise econômica mundial.
423 No MAS queriam fechar a REPAC porque a viam como espaço do vice-presidente, dizia. E justamente
por isso tampouco o vice-presidente poderia insistir em defendé-la. A REPAC havia concentrado seu
esforço no Oriente, onde ganhou o NÃO à Constituição. García Linera havia dito também que a partir da
promulgação da Constituição devia começar a falar por si mesma, e que para a difusão estava a
CONALCAM.
424 Schavelzon (2006 y 2007).
498
García Linera era visto preocupado falando no celular e dizendo “é preciso que
me dêem os nomes, é preciso que me dêem os nomes”; e dizia querer voltar a ser
professor. Na vice-presidência, havia um setor a cargo de Jiovanny Sammamund que se
ocupava da descolonização, organizando eventos com intelectuais internacionais e com
um grupo de discussão teórica, diferente do pensamento político “mais concreto” do
grupo Comuna. Era um funcionário público da descolonização; assim como os que
integravam os vice-ministérios de Descolonização e de Interculturalidade, dependentes
do Ministério da Cultura. Quando entrevistei o ministro da cultura Pablo Groux, em
março de 2009, ele citava o artigo 98 da nova Constituição em que se definia a
interculturalidade como ferramenta de integração do país e de coesão entre nações e
povos; o que ia para além do mero reconhecimento da Constituição anterior e ia contra a
divisão. Interessava-lhe um modelo em que a visão indígena e a ocidental estivessem
equilibradas sem que nenhuma das duas se impusesse. E esse encontro ele via na base
da sociedade; não seria algo forçado. E propunha que onde preconceito se pudessem
pensar atividades, como juntar em um desfile cholitas de El Alto com as modelos
Magníficas das quais Santa Cruz se orgulha.
O Ministério da Educação é, anos, um espaço de discussão sobre
interculturalidade na Bolívia. Agora começava a pensar a plurinacionalidade. Estava
dirigido pelo ex vice-presidente da Assembléia, Roberto Aguilar, e outros ex
constituintes também o acompanhavam. Diego Pary, assessor em Sucre das
organizações, era o vice-ministro de Educação Superior, reconhecido como um dos
indígenas do governo de Morales. Não se criaria no entanto uma unidade para educação
indígena porque dizia-se que esta devia ser transversal. Acompanhei ao ex constituinte
Armando Terrazas na negociação com diretores de escolas que faziam greve de fome
por questões gremiais. Assisti a reuniões do Bloco Educativo Indígena, que nucleava
aos Conselhos Educativos de Povos Originários da Bolívia (CEPOS) e estavam
discutindo junto ao ministério a proposta de Universidades Indígenas e também o
projeto de lei de criação de Institutos de Língua e Cultura dos povos originários. O
diretor era Walter Gutiérrez, outro ex constituinte do MAS. Apesar de haver acordo nas
linhas políticas gerais, um dirigente perguntava: “por acaso a Constituição diz que é
preciso criar dois sistemas separados?”.
Na reunião houve reclamos de que se pedia título universitário para assumir
funções na universidade ou no ministério. E outros observavam que “já houve irmãos
no ministério, mas fazem o mesmo que no tempo colonial”. Se entrava alguém deveria
499
ser com mandato, acordavam. “Ponhamos na cabeça que estamos no poder”, alguém
dizia. E agregava que “o plurinacional temos visto como palavra mas temos que ve-lo
como gestão”. Às vezes mandamos irmãos por mandar, para garantir temos garantido,
queixava-se um dos presentes. Queixavam-se também que autoridades que chegaram
com seu aval agora desligavam o celular quando recebiam suas chamadas. O vice-
ministro Diego Pary enumerava os problemas de gestão para a abertura das
Universidades. Seriam três: uma quéchua em Cochabamba, uma guarani em Santa Cruz
e uma aymara em Warisata. Um problema era o prazo posto por Evo Morales, que não
permitia uma boa convocatória com concursos para professores e reitores
425
.
Raúl Prada havia assumido como Diretor Geral de Normas de Gestão Pública no
Ministério de Economia e Finanças Públicas. Estava elaborando as futuras normas,
especialmente a lei de administração pública e de orçamento para as autonomias.
Buscaria desenvolver elementos como a participação social, que haviam ficado
recortados no texto constitucional. Entrevistei-o em fevereiro de 2009, pouco depois de
nomeado o novo gabinete. Dizia que via “um paradoxo muito perigoso, com muito
show em relação à promulgação da Constituição e em relação ao plurinacional, ao
comunitário e ao novo; mas sem que haja, na prática, manifestações que de maneira
clara nos digam que estávamos avançando neste sentido”. Não o plurinacional nem a
equidade de gênero no novo gabinete, dizia. E via mais: “muito do espírito das velhas
leis nas novas leis, sem novidade, nem dedução radical do texto constitucional”.
Considerava que nem o governo nem as organizações estavam conseguindo encontrar o
novo paradigma. “É um andar às cegas em uma noite escura, e não se termina de
encontrar o horizonte”, ilustrava.
Em uma entrevista com Stefanoni, Svampa e Fornillo (2010), Raúl Prada fala do
desafio em pensar leis e também um novo conceito de gestão pública. Agora
percebemos que o mais difícil é como construirmos este novo conceito em uma
425 Em Warisata, onde foi a histórica experiência da escola ayllu de Elisardo Perez, havia um conflito
entre municípios por onde seria a universidade. Havia 36 consultores trabalhando nos conteúdos
(Curricula), mas muitos não haviam cumprido com o prazo do informe. Evo Morales havia dito que queria
que os cursos fossem de poucos alunos para que conhecessem o professor, e sugeriu que começassem
com 40. Na reunião do Bloco alguém dizia que deviam ser eles e não o presidente que decidisse isso.
Difícil era também porque havia pouco dinheiro, e ainda não haviam podido destravar os recursos do
Fundo Indígena de IDH. Deviam ser um exemplo educativo e não uma cópia de outras universidades.
Diego Pary sugeria que falassem com o presidente, porque “às vezes as organizações tem mais chegada
que os ministros e vice-ministros”. Se quisessem propor que se postergassem as datas para ampliar a
discussão do projeto, deviam pedir isto em uma carta ao presidente e não a ele, porque ele devia cumprir
o prazo. E o chefe havia dito que não se inaugure, me fizeram colocar muitas pedras fundamentais e
depois não avança, dizia Pary.
500
estrutura de lei, em uma lei, dizia. Dado que a técnica legislativa é muito conservadora,
a maneira de fazer leis é muito conservadora, além do fato de que baixar uma estrutura
tem a ver com incorporar os instrumentos da gestão pública, ou seja, o que tem a ver
com a formalização, a planificação, a administração, a avaliação. “Como incorporamos
estes instrumentos à nova concepção? Tínhamos uma saída, estes instrumentos tinham
que ser participativos, não podemos falar de uma formulação técnica de especialista,
mas de uma formulação coletiva, que tem que ter participação, que tem que ser uma
planificação participativa, um orçamento participativo, uma execução com participação
e controle social, que tem que ter uma avaliação, não somente da gestão e sim dos
resultados e do impacto”
426
.
Mas a estratégica estatal escolhida não o convencia. Quando entrevistei Prada
em 2009, ele dizia que no governo se pode lutar e transformar, mas também é uma folha
perdida numa ventania, é um processo que tem outra lógica. Prada definia o estar no
Estado como uma posição incômoda que dificultava uma posição crítica. Sobre o papel
dos intelectuais neste processo, interpretava as vozes críticas do período anterior não
cumprindo o papel de vanguarda crítica, e que “neste maremoto, ou melhor, neste mar,
as vontades individuais disseminaram-se, foram tragadas e absorvidas por esta
contingência. Frente a este patético fato, entre o que se esperava que fosse uma
assembléia revolucionária, com sinergia com as organizações sociais, uma assembléia
que responda a um debate nacional, tivemos uma assembléia que entrou em suas
próprias contradições, com muita dificuldade terminou saindo do debate difícil, da
disputa com a oposição e a duras penas aprovou um texto constitucional”
427
.
426 A partir de pensar o plurinacional não como tema lingüístico mas como multisocietal, também estava
pensando em um modelo multi-institucional” para a gestão pública pluri-institucional. Raúl Prada dizia
que a incorporação da institucionalidade indígena implicava a forma Estado abrir-se à outras formas de
institucionalidade que não fossem somente as modernas, da modernização. Isso nos levou a pensar que
devíamos idear uma gestão pública mista, ou seja, aceitar que uma herança da modernização, que
tarefas de modernização, no sentido de percorrer o mais democrático da modernização, aquele que
permite a democracia participativa mas articulada com formas comunitárias *…+ e a pluri-
institucionalidade nos abria a uma concepção plurinormativa, um pluralismo normativo. *…+ Um
pluralismo de gestões, muitas gestões: comunitárias, centralizadas, descentralizadas. Isso nos levou a
resgatar uma idéia de ayllu, que é a de arquipélago. Os arquipélagos administrativos *…+ a se abrirem a
projetos civilizatórios e culturais alternativos, e portanto abrir a uma concepção de Estado que não tenha
a ver com o Estado moderno, o Estado-Nação, e sim com um Estado que se está se movendo a outros
condicionantes, culturais, sociais. Desafios que tem que ver com a participação, com o pluralismo. Então
isso nos mostra não somente desafios que tem a ver com que não somente devemos avançar a uma nova
gestão e sim a um novo Estado, e ambos estão intimamente vinculados (versão de manuscrito, sem
edição, sem dados de paginação).
427 Considerava que não havia uma “massa crítica” na Bolívia, neste momento. E definia Álvaro Linera
como um intelectual lúcido defensor da aposta estatal no processo de transformações, o que lhe parecia
501
Na sua reflexão, Raúl Prada dizia que “quando se aposta no Estado, se aposta no
instrumental, no caminho da reforma, para falar em velhos esquemas, e não no
inovador, na decisão coletiva, nas pessoas, na ruptura revolucionária”. Em seu balanço
dizia que o texto havia trazido em grande parte o que havia colocado como horizonte,
mas o conteúdo da articulação havia diminuído. “As finalidades são alusivas mas os
conteúdos são conservadores”, pensava. E via de modo crítico uma supervalorização
dos significados e dos sentidos, com “show, inflar o discurso, inflar o sentido, e na
prática se repete e se continua com o velho ou se fazem as coisas pela metade. Essa
contradição é complicada e se repete em tudo, inclusive na nacionalização dos
recursos”, considerava. E afirmava: “Não podemos rifar um processo tão rico e tão
eficaz desde o ponto de vista da significação simbólica, que é termos um indígena
presidente”.
O Estado é o que temos, é o que está transformando, dizia. O que havia que
perguntar-se é se esta saída pragmática não tem um custo, que é a perda de iniciativa
dos movimentos sociais, a perda da iniciativa da opção do coletivo, do múltiplo, da
multitude, que é o que dá um caráter transformador ao processo, porque democratizam-
se as decisões, se fazem a partir de ações diretas as transformações; e há um processo de
maturação coletiva e política, de Constituição de sujeitos novos. Também afirmava que
quando há movimentos sociais se dá um processo de interpelação ao instituído e há uma
grande interpelação imaginativa das instituições. Há um processo realmente tocante, que
significa uma maturidade coletiva. Isso se perdeu, a iniciativa está no governo e nos
funcionários. E esta sempre será instrumental e não criativa. Pode-se ter uma
criatividade nos instrumentos, mas estes respondem a um esquema de comportamentos
e portanto ao que está dado, e não à possibilidade do devir, criação proliferante, que é
um ato revolucionário.
Prada reconhecia um passo importante na constitucionalização do comunitário e
na institucionalização das autonomias indígenas. É descolonizador conquanto que se
reconheçam as estruturas e instituições que se aninham em outros projetos civilizatórios
como marco e matriz numa nova matriz de sociedade e de Estado. Mas via que, depois
uma posição mais conservadora do que crítica. Creio que ele é otimista e crente de que os instrumentos
estatais são o mecanismo que temos para o processo de mudança, dizia, o que via como a “saída do
realismo político”, com a qual tinha dúvidas. E comentou a discussão do grupo Comuna em 2004, na qual
Álvaro dizia que os movimentos sociais deviam se institucionalizar. Luiz Tapia apoiava ambas as coisas (“os
movimentos sociais são dinâmicos e plásticos mas necessitam que suas conquistas se cristalizem”, dizia,
em palavras de Prada), e para Raul Prada a institucionalização era o momento em que o movimento
morre.
502
de reconhecer que somos uma sociedade comunitária, era preciso optar por saídas
comunitárias no econômico, na organização territorial do estado. Institucionalização e
estatização da comunidade, no entanto, dava à comunidade outro caráter e lhe fazia
perder peso específico. Expressava na entrevista que quanto de Estado e quanto de
sociedade ainda não tinham sido resolvidas, e mencionava que na segunda-feira
seguinte a CONAMAQ apresentaria um projeto de Lei Marco de Autonomias. “No
mínimo é outra saída”, dizia, “as comunidades empoderaram-se e agora apresentam
uma lei porque agora têm que pensar estatalmente, precisam de sua própria
institucionalidade”. Mas não deixava de ver um perigo na institucionalidade. A
institucionalização implica normas, leis, regulamentos, talvez processos muito fortes de
homogeneização e de controle, que têm a ver com a repetição do desenvolvimento
estatal.
428
A questão da tensão entre Estado e Comunidade era ainda uma pergunta aberta.
Raúl Prada dizia que se tratava de “uma discussão”. Se as comunidades se fortalecem
no processo, dizia, quer dizer que a institucionalização foi um processo de transição
necessária para uma saída comunitária, ou um socialismo comunitário, como dizem. Se
as comunidades debilitam-se, e servem como base de sustento a um processo de
estatização onde se reproduzem as grandes burocracias, estamos apostando em uma
saída reformista burocrática, e não numa saída transformadora. Não estamos optando
por uma saída autogestionada do comunitário, continuava. Ele via perigos. Mas via que
a decisão de fazê-la ou não precisava ser tomada no processo, depois de fortes
discussões, e agregava algo que o preocupava: estas discussões não estavam
acontecendo. Sua reflexão era que o mais rico do processo constituinte boliviano,
inclusive da conformação do plurinacional, era o comunitário. E o mais rico terminava
por institucionalizar-se, esse era o ponto crítico de seu pensamento. Estamos apostando
tudo o que temos no desenlace do processo, dizia. E estamos apostando às cegas, ou a
sorte, por uma saída ainda não corretamente discutida.
428 A discussão do Estado nunca terminamos de resolver, forma parte da tradição da esquerda, mas volta
a reiterar-se de forma nebulosa na Bolívia, com este horizonte de comunitário, dizia Prada. A comunidade
que em grande parte é uma espécie de interpelação do Estado, ao passar a estatizar-se participa de
processos de concentração de poder, e nisto estou de acordo com Zibechi, deveria se optar pela
disseminação e dissolução do poder. E recordava sua “velha tese”, na qual o ayllu substitui o mercado e o
Estado. E Acreditava que a medida que se impunham as comunidades tínhamos menos Estado, explicava.
Mas agora temos mais Estado, e a pergunta é quanto de comunidade vamos ter? As comunidades vão se
diluir em alguma forma estatal? Vão formar parte do fortalecimento da composição de uma nova versão
de Estado? Afirmava que isso não estava resolvido no texto da Constituição. Com tensões entre o
comunitário e o estatal, o descentralizado e o centralizado, o pluralismo econômico e um papel muito
forte do Estado.
503
Na entrevista de fevereiro de 2009 acrescentava: ao optar pelo reformismo
estamos afastando a utopia, que é o comunitário. Por que uma opção pelo realismo
político? Não outra saída? existe o princípio da realidade e não existe o princípio
do prazer? Depois de fazer a revolução não outra saída que o reformismo? Que está
acontecendo? Agora, respondamos o que respondamos, eu acredito que sempre há um
custo, que é o custo do processo, dizia Prada. Ao optar pelo reformismo estamos
optando por um maior prazo ao processo, estamos nos diferindo. Estamos aceitando
mesclas e combinações, transições, estamos aceitando as continuidades e as invenções e
estamos aceitando que este será o caminho, um caminho bastante ziguezagueante. E
esse é um preço a pagar, porque gente que está esperando mudanças. O Movimento
Sem Terra, espera a divisão imediata da terra. Se a Constituição é promulgada mas não
há possibilidade de ter terra, temos um problema, eram as suas palavras.
3 Reeleição, Pachamama e Desencanto Moderno.
Em 6 de dezembro de 2009, Evo Morales e Álvaro García Linera eram reeleitos,
com 64,22% dos votos válidos (quase 3 milhões de votos, um milhão mais do que em
agosto de 2008), deixando em segundo lugar, com 26,46%, Manfred Reyes Villa (Plan
Progresso para Bolívia- Convergência), ex governador e ex colaborador do ditador e
narcotraficante García Meza. A oposição não havia conseguido unificar-se em uma
frente contra Evo Morales, e apostavam mais nas eleições regionais de abril de 2010. Eu
vivi as eleições desde um dos quatro países onde os bolivianos no estrangeiro podiam
votar pela primeira vez (SCHAVELZON, 2009e). De forma não esperada nem sequer
para o governo, o MAS também conseguia controlar as duas câmaras da nova
Assembléia Plurinacional, e também os dois terços necessários para aprovar leis.
Também 11 municípios transformavam-se em autonomias indígenas originárias
campesinas, e o Chaco era a primeira região autônoma do país. O resto do país também
passava a ser autônomo desde esta eleição, que assim disseram os referendos nos
departamentos que não o haviam feito em 2006.
Na posse de Evo Morales, voltaram as cerimônias e as mudanças simbólicas.
Pela primeira vez Evo Morales pronunciou frases em quéchua, aymara e guarani. E
como quando foi promulgada a Constituição e quando mudou-se o nome do Estado,
voltou a ser enunciado o nascimento do Estado plurinacional. A posse de Evo Morales
diante dos povos indígenas do continente foi ainda mais grandiloqüente e espetacular
504
que em 2006. No ato, Evo Morales foi nomeado como “líder espiritual dos povos” e
recebeu cumprimentos de todos os povos do continente. A medalha que desde 1825 é
entregue ao presidente foi mudada por uma com o nome do Estado Plurinacional, e
também se anunciou que se mudaria a moeda corrente no país.
No velho Congresso, que agora era Assembléia Plurinacional, foi tirado o busto
de Paz Estenssoro e substituído pelo de Tupác Katari, e agregaram-se também as
imagens de Katari e Bartolina Sisa, junto a dos próceres criollos. Apesar da anunciada
“morte da República”, García Linera assumiu os valores republicanos, no sentido da
inclusão de todos, e disse a Manfred Reyes Villa que lhe enviaria um exemplar de A
República, de Platão. Outros falavam da fundação de uma segunda república. Na posse
no Congresso, García Linera falou de um horizonte socialista e utilizou conceitos
gramscianos empregados por René Zavaleta para anunciar a passagem de um Estado
Aparente a um Estado Integral, declarando em seu discurso frente à nova Assembléia
Plurinacional: “Necessitamos do Estado em cada centímetro da nossa pátria, não vão ter
mais ilhas e republiquetas como até alguns anos atrás, onde reinam os poderes
informais, o abuso e o patronato […] o Estado tem que liderar a economia nos níveis
estratégicos que geram excedentes que possam distribuírem-se ao resto dos setores
produtivos; se não fazemos isso, quem leva o excedente econômico são os poderes
estrangeiros, como fizeram durante 180 anos”.
O chanceler David Choquehuanca é o único indígena no gabinete e junto ao de
Economia e Finanças é o único que permaneceu em seu posto desde o começo da
primeira administração do MAS. Na abertura de um seminário internacional de povos
indígenas e mulheres parlamentares, pouco antes da posse de Morales em Tiwanaku, o
chanceler pediu impulso às ações internacionais para reconstruir o conceito de “Viver
Bem”, e criticou a lógica de acumulação ocidental e consumista. Por estes dias, também
dava uma entrevista para o diário La Razón, onde apresentava uma sistematização em
25 pontos, que consistia na filosofia do “Viver Bem”. Resumia o Viver Bem como
“viver em harmonia com a natureza”, que era um modelo herdado dos ancestrais
andinos. E relacionava esta filosofia com as transformações do Estado plurinacional.
Choquehuanca dizia “agora começamos a valorizar nossa história, nossa música, nossa
vestimenta, nossa cultura, nosso idioma, nossos recursos naturais, e depois de valorizar
505
decidimos recuperar todo o que é nosso”. Choquehuanca dizia que Viver Bem é também
a unidade de todos os povos
429
.
Afirmava também que quando o governo fala de mudança climática refere-se
também a direitos cósmicos. E Choquehuanca localiza os direitos cósmicos antes que os
direitos humanos. Dizia o chanceler à La Razón: Para os que pertencemos à cultura da
vida o mais importante não é a prata nem o ouro, nem o homem, porque ele está em
último lugar. O mais importante são os rios, o ar, as montanhas, as estrelas, as formigas,
as mariposas”. A filosofia do Viver Bem é um dos canais em que a diferença
comunitária e indígena se mostram no Estado. Propaganda, dizem uns, “etnocracia”,
dizem outros. Mas pode-se pensar também que estas discussões permitem dar conta de
que há algo de diferente na chegada dos camponeses e indígenas ao Estado, e no
desenvolvimento da plurinacionalidade. Choquehuanca incluía nesta filosofia o ama
qhila, ama llulla, ama suwa (não seja frouxo, não seja mentiroso nem seja ladrão)
incluídos no artigo 8 da Constituição, que via como princípios ético-morais da
sociedade plural e também via nas características da gestão de Evo Morales, que havia
se comprometido a cumprir estes princípios.
Choquehuanca explicava que o Viver Bem prioriza a natureza e postula que
todos os seres que vivem no planeta complementam-se uns com os outros. O modelo
inclui também a convivência em comunidade, onde todos se preocupam com todos e
onde as decisões se tomam por consenso. E também é importante saber comer, beber,
dançar, comunicar-se, trabalhar e “ouvir as árvores”, alguma vez havia declarado que
ele não lia livrosanos, e que aprendia lendo as rugas das mãos dos avós. Em seus 25
pontos sobre o Viver Bem, Choquehuanca disse que o mais importante não é o humano
(como defende o socialismo), e sim a vida. Pretende-se buscar uma vida mais sensível,
com o objetivo de salvar o planeta da prioridade dada à humanidade. Esta doutrina
inclui a todos os seres que habitam o planeta, como os animais e as plantas, e deve-se
respeitar as diferenças entre todos.
No Viver Bem o chanceler também incluía a necessidade de proteção às
sementes e à recuperação da riqueza natural do país para que todos se beneficiem. Por
429 O encontro foi organizado pela Confederación Nacional de Mujeres Campesinas Indígenas Originarias
de Bolivia Bartolina Sisa, pelo Foro Internacional de Mujeres Ingenas, pelo Parlamento Indígena de
América (PIA) e pelo Fondo para el Desarrollo de los Pueblos Indígenas de América Latina y el Caribe.
Recebeu apoio do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), do Fundo das Nações Unidas para a
Mulher (Unifem), Vice-presidência do Estado, Câmara Legislativa Plurinacional e Chancelaria. Ver
Choquehuanca (2009). O Viver Bem é incorporado também ao Plano Nacional de Desevolvimento 2006-
2010. E é explicado em entrevista a La Razón (CHOQUEHUANCA, 2010).
506
isso falava também de nacionalizar e recuperar as empresas estratégicas do país no
marco do equilíbrio e da convivência entre o homem e a natureza em contraposição com
uma exploração irracional dos recursos naturais. O Viver Bem aclara esta filosofia, não
defende o “viver melhor” como o capitalismo. Choquehuanca comentava que as
comunidades continuam honrando a Pachamama com danças e músicas mas nas cidades
as danças originárias são consideradas folclore. Na nova doutrina se renovará o
verdadeiro significado de dançar. O trabalho também é importante para Choquehuanca,
que disse que o Viver Bem considera o trabalho como festa. E explica também que o
trabalho é uma forma de crescimento e por isso nas culturas indígenas se trabalha desde
pequeno. Por isso o trabalho infantil não havia sido proibido na nova Constituição
430
.
Mas para muitos se tratava apenas de poder, mentira, interesse. Victor Hugo
Cárdenas, que é primo do chanceler Choquehuanca mas cujo pai mudou de sobrenome
para evitar o racismo, declarou sobre o Viver Bem: “Dizem da boca para fora. Falam de
respeitar a Mãe Terra, a Pachamama, mas mais narcotráfico, não intervenções do
Estado pelo meio ambiente, a mineração também envenena. Isso é marketing para
posicionar Evo como líder mundial, para isso foi o ato de Tiwanaku, onde aconteceu
uma encenação de sua comunicação com os ancestrais, durou um minuto. Não há
respeito aos deuses, à Pachamama, e muito menos à cultura aymara”. Em reportagem da
Revista Veja, do Brasil, depois da ocupação de sua casa, declarou que Evo Morales não
era indígena: Apesar de ter pais indígenas, Morales nunca aprendeu sua língua
materna, não voltou mais na comunidade nem pratica seus valores. Não vive no mundo
aymara. Ademais é solteiro, o que para um indígena significa ser uma pessoa pela
metade. Morales é apenas uma criação inteligente do marketing político, que foi muito
bem aceita no exterior. Com muita artimanha, conseguiram converter um dirigente
cocalero num indígena”
431
.
Entrevistei a Pedro Portugal, diretor do jornal Pukara, de orientação indianista e
crítico do governo. Portugal dizia que Evo Morales recentemente, a partir do contato
com ONG's do exterior, reconhece que é indígena porque o fizeram notar que tinha no
430 Também fala de complementaridade e equilíbrio com a natureza, e defender a identidade. Para
Choquehuanca, Viver Bem é também reincorporar a agricultura às comunidades, cultivando produtos
para cobrir as necessidades básicas da subsistência. Por isso o Estado Plurinacional fará devolução de
terras, dizia, e pretende também retomar a comunicação que existia nas comunidades ancestrais, os
preceitos que estabelecem o novo modelo incluem também o controle social e o respeito à mulher.
Também a reciprocidade, o ayni, que na comunidade é devolver em trabalho a ajuda prestada por uma
família em atividade agrícola. E menciona também distribuir racionalmente a água e aproveitá-la de
maneira correta.
431 Tradução minha de Cárdenas (2009) Ver também Lora (2009) e Soliz Rada (2010b).
507
rosto um bilhete de loteria que não estava sendo cobrado. Evo é o protótipo da pessoa
que nasceu em comunidade mas isso não lhe interessa, dizia Portugal, o problema dele
era a luta social e a luta da coca, e tão forte foi seu compromisso neste aspecto que
perdeu todos os aspectos culturais de quando vivia na comunidade, completava.
Portugal dizia que o que é uma impostura. Fizeram com que ele percebesse
que se vestisse da maneira correta poderia ser visto no exterior como um dirigente
indígena. Uma manipulação e posta em cena como um teatro, não tanto para beneficiar
ou para levar a debate políticas indígenas, “porque que políticas indígenas existem?',
perguntava, senão sobretudo para motivar e conseguir apoio no exterior. E perguntava:
“O que mudou? Em que a Bolívia de antes de Evo mudou? Não nada, é pura ficção.
Ele vai com seu trajezinho, com seu aguayo levando bulto, visita alguém importante e
começam a mascar coca, folclore! Não é político!”, exclamava, criticando também a
Choquehuanca como demagogo que não fala coisas apropriadas com seu posto
432
.
Em um artigo sobre a cerimônia de Tiwanaku, Portugal (2010) citava as
“distorções indigenistas deste ato” como nos desenhos da vestimenta, a oferenda e
outras rupturas com a etiqueta tradicional. Também mencionava que todos os porta-
bandeiras das 36 nacionalidades eram aymaras e outras observações deste tipo. Neste
texto, Portugal dava crédito à opinião de distintos líderes sobre a distância de Evo
Morales em relação à luta dos índios; e que compartilhava o critério dos sindicatos
camponeses porque “se afasta de qualquer ideologia que tivesse a ver com um
pretendido 'retorno ao passado': para ele isso era regressar ao ch'unch'u pacha, ou seja, à
época dos selvagens”. E criticava “quem o disfarça”, “uma esquerda frustrada, que
somente pode chegar ao poder debaixo do poncho de um índio”. E afirmava: esta
432 Pedro Portugal expressava que o plurinacional fragmenta, inventa identidades novas, não é para
quéchuas e aymaras, e sim para grupos de 400, 100, mil habitantes. Via um discurso indigenista quando
os indígenas estavam pedindo esmola na rua e 90% do gabinete não é indígena. Perguntava: Por que Evo
Morales gosta de ser a cara morena rodeada de brancos? Dizia também que os indígenas que estão no
governo são uns parasitas, que não resistem ao primeiro teste. Nosso chanceler, nos quinze minutos que
teve para falar na ONU falou de esoterismo e besteiras. Que pessoa perde um tempo assim para falar
besteiras? Acaso um americano mórmon fala de Adam Smith, ou um católico da Santíssima Trindade?
Ninguém! As convicções íntimas ficam guardadas e se fala de seu ofício, que é política internacional. Fala
dos indígenas do poder, que o indígena mantém a natureza, o sexo das plantas, do equilíbrio cósmico, que
não que se pisar nas pombinhas... mentiras! Não estão exercendo seu trabalho. E seu trabalho é
administrar essa sociedade do século XXI e garantir os direitos básicos dos indígenas. Opacam isso com
grandes eleições de tipo de modelo de sociedade, se engana com argumentos para crianças. É demagogia.
E isso porque uma pequena ONG que na Europa seria coisa mínima aqui é uma potência e define políticas,
continuava.
508
esquerda é a mais entusiasta neste “cosmovisionismo”, ainda que eles pertençam à
cultura que historicamente subjugou e dominou os índios
433
.
Voltei à Bolívia para a eleição de abril de 2010, em que se elegeriam o resto das
autoridades (assembleístas departamentais, alcaldes e governadores
434
). Os resultados
ratificavam um avanço do MAS no Oriente, significavam uma baixa no total de votos a
51% e incluíam algumas surpresas. O MAS não conseguiu ganhar em Tarija, onde se
havia imposto em dezembro, perdeu as prefeituras importantes de La Paz e Oruro, que
ficaram nas mãos de seus ex-aliados do MSM, pela primeira vez em listas separadas, e
protagonizou uma dura campanha de enfrentamento verbal com o MAS. Também
perdia em Achacachi e outros municípios por desconhecer os candidatos eleitos pelas
bases (os chamados candidatos “a dedo”), e baixava a eleição em lugares
tradicionalmente do MAS como o departamento de La Paz e El Alto. Em Charagua,
uma das primeiras autonomias indígenas, ganhava a oposição também por
desentendimentos entre organizações e o MAS. Os melhores resultados foram na Meia-
Lua, ainda que somente tenha conseguido ganhar no departamento de Pando. No
entanto, passava a controlar seis dos nove departamentos (elegendo entre outros o ex
constituinte Cocarico em La Paz e a Edmundo Novillo em Cochabamba)
435
.
Uma marca das mudanças frente ao avanço da consolidação do MAS como
partido de poder é a aparição de dissidentes de suas fileiras, por exemplo do ex
constituinte Román Loayza, do ex Senador Lino Villca, do ex porta-voz de Evo, Alex
Contreras e do próprio Movimento Sem Medo, que iniciou a construção de candidaturas
em todo o país. Ao mesmo tempo, o MAS tinha novos aliados, diferentes dos habituais,
e que incomodavam a vários. Como candidata ao governo de Beni se apresentava a ex
Miss Bolívia Jéssica Jordán; na prefeitura de Santa Cruz e Cobija candidatavam-se ex
opositores. Mas a notícia tinha sido a candidatura de membros da União Juvenil
433 Portugal (2010) agregava: o indígena é parte do mito europeu. Umas vezes como o “mal selvagem”,
negação da cultura: o antropófago. Outras como o bom selvagem”, salvador da humanidade: o sábio
natural. Ambas imagens são falsas e que só fazem parte do imaginário colonialista.
434 Participei como observador eleitoral na missão da OEA, acompanhando o ato eleitoral em Santa Cruz,
e realizei minhas últimas observações de campo, conversações e entrevistas no país.
435 O MAS também conseguiu um importante triunfo em Chuquisaca, onde foi eleito o ex constituinte e
líder campesino Esteban Urquizu, ainda que na cidade tenha sido eleito como prefeito Jaime Barrón, líder
do Comitê Inter-institucional, pouco depois suspenso. A oposição campo-cidade foi uma constante no
país: Cobija e Cochabamba foram as únicas capitais de departamento ganhas pelo MAS, ao mesmo tempo
em que manteve a dianteira em 220 dos 337 municípios. Elisabeth Salguero, candidata do MAS em La Paz
perdia frente a Luiz Revilla, do MSM, um dos grandes ganhadores da eleição. O MAS perdia também em
Potosí. Outro resultado notável foi em El Alto, onde Édgar Patana foi eleito prefeito com 38,7% mas onde
o MAS havia obtido 87% em dezembro, quando Evo era o candidato. Sobre a eleição de representantes
indígenas ver: Revista da CIDOB Bolivia Plurinacional (2010).
509
Cruceñista e ex empregados da prefeitura de Rubén Costas, com o MAS, a partir de
uma aproximação feita por Isaac Ávalos, então ainda executivo da CSUTCB. A
inclusão de políticos “reciclados”, no entanto, esteve presente desde a chegada ao
governo, como no caso de alguns importantes ministros da primeira gestão, que saíram
em sua maior parte na segunda
436
.
Desde um setor tradicionalmente crítico ao governo do MAS, a intelectualidade
aymara e indianista de esquerda chegava a uma leitura em que se afirmava que já não se
repetiriam as altas porcentagens eleitorais nas cidades de La Paz e El Alto, nem nas
comunidades do altiplano. Mamami (2009, trad. nossa) se perguntava: uma miopia
histórica em relação aos ideais e ao projeto histórico do povo aymara que é um dos
grandes suportes deste processo? um entorno brancóide que expropria novamente
como em 52 a luta e a história aymara ou índia?”, e falava de descontentamento ante
“ações governamentais que de um reformismo radical baixa a um reformismo débil”.
Para este autor, as políticas públicas não eram orientadas pela meta de uma efetiva
descolonização do estado, e a forma de governo pouco ou nada tinha de
plurinacionalidade. Também reclamava da “indicação quase a dedo dos candidatos às
eleições”.
Em um verdadeiro contra-programa de governo, Mamani referia-se à “lógica de
um entorno brancóide ao redor de um presidente índio”, questionava que “se haja detido
radicalmente a redistribuição de terra na Bolívia” e “a redução do indígena originário-
camponês a uma expressão territorial e social mínima. As autonomias indígenas foram
reduzidas a minúsculos territórios e governos. Que é contrário ao fato declarativo da
Nova Constituição”. Segundo Mamani, “com isso se estaria voltando a impor o
princípio de dominação colonial agora sob a figura do plurinacional. As autonomias
devem ser de fato e não sujeitos à constatação de um antropólogo que é a Certificação
do Ministério de Autonomias”. Também criticava a baixa representação indígena no
Parlamento, na Corte Eleitoral e no Sistema Judicial, e que o “impulso à economia
comunitária também está reduzido ao discurso”, e demandava bolsas para indígenas;
que se cancelem os convênios educativos com a Igreja que devia devolver terras e
436 Antonio Peredo (2010) escrevia sobre alguns candidatos, em uma advertência aos perigos para o
Instrumento Político. Com o MSM, a imprensa recordava o giro desde o pedido de Evo de “clonar o
prefeito” até a acusação de “traidores neoliberais”, “lixeiros” e entristas”, pelo que o MAS considerou a
tentativa de roubar candidatos quando o MSM incluiu em suas listas alguns candidatos eleitos pelas bases
que o MAS tinha deixado de fora.
510
pagar impostos e escolas de futebol para que possa haver um número 10 da seleção
com sobrenome indígena.
437
Em 2010, enquanto finalizava a redação desta tese, registrou-se uma rebelião em
Potosí, que havia votado por Evo Morales e pelo MAS; capitaneada pelo Comitê Cívico
e com um rol de reivindicações vinculadas ao desenvolvimento, e um conflito de limites
com Oruro relacionado com recursos minerais. Carlos Romero junto a outros ministros
voltaria às mesas de negociações. No dia da pátria, 6 de agosto, o governo decidiu fazer
o ato central em Santa Cruz, mas os camponeses da CSUTCB optaram por não assistir
ao ato. No caso Patzi, camponeses de La Paz também se mostraram críticos às
determinações do governo. Em 2010, dirigentes importantes do MAS como Torrico,
Llorenti e Fidel Surco, por outra parte, perderam seus cargos, foram questionados pelas
bases ou desfiliados do MAS.
Como veremos, também os indígenas de terras altas e baixas manifestariam
descontentamentos e organizariam medidas de protesto voltado ao modelo de governo
de exploração de recursos naturais, ou as novas leis em elaboração. A nova época,
vinculada também a um retrocesso da oposição, daria lugar ao debate político em
âmbitos intelectuais. Nenhuma destas dinâmicas, na realidade, seria realmente
movediça, e o avanço do MAS nas instituições não seria posto ainda em questão; mas
depois de um ponto máximo de crescimento, era outro o cenário, com gestão, desgaste e
desenvolvimento da nova ordem constitucional.
3.1 Pachamama e processo de mudança: o debate.
Uma voz crítica ao governo do MAS, que foi próxima mas que no começo do
segundo mandato começou a ser crítica, é a do jornalista e pesquisador argentino
radicado na Bolívia Pablo Stefanoni, com quem conversei em 2007, quando
desacreditava da proposta plurinacional, e como expressaria mais adiante em artigos no
Le Monde Diplomatique boliviano, dirigido por ele. É um ponto de vista que provém de
437 Mamani explicava que para a visão aymara a economia é um dos fatos fundamentais para a
reprodução da vida social e a reprodução dos animais, dos rios, o que não significava descuidar do
processo de produção industrial e de excedente. O fato é construir uma economia comunal que produza e
redistribua radicalmente seus excedentes a todos os setores sociais. Chamava a implementação de
programas de saúde desde a perspectiva de Sumaq Kamaña, como sistemas de alimentação própria com
o olhar da economia comunal. Isso implicava potenciar a economia dos ayllu e das comunidades, dos
bairros urbanos. Os grandes levantamentos de Omasuyus, El Alto, Yungas ou Chapare, Cochabamba,
haviam sido sustentados por esta dinâmica, agregava.
511
uma esquerda crítica, que havia sido incluída pelo indianismo recém mencionado de
Pablo Mamani e sua revista (Willka, 2007, 2008) como parte do “entorno brancóide”
do governo do MAS. Em sua análise das eleições de abril, fala de soberba oficial; falta
de densidade política do MAS e de “ausência de quadros à altura de um processo de
mudança como o que se proclama”. Em sua análise das eleições no Le Monde
Diplomatique encontra a evidência de uma “lógica caudilhista que impede a construção
de um real movimento coletivo”.
Stefanoni aponta que o MAS não entende o Oriente, onde a “retórica
pachamámica” não interpela a população, e onde o MAS haveria aplicado uma “razão
andinocentrista” que diz que “a revolução fazemos no ocidente, no oriente podemos
fazer qualquer coisa”. Os resultados de El Alto, com o retrocesso do MAS, põem por
terra na interpretação de Stefanoni uma visão ingênua sobre a cidade como pura
rebeldia social ou de teorias “indianistas”, “românticas” e “retóricas” sobre o “ayllu
urbano”. E agrega: “Mas o pachamamismo tampouco alcançou o suficiente para ganhar
em Achacachi, núcleo duro dos aymaras”, disse Stefanoni, sobre uma crítica a qual
voltarei em breve, e que o faz elogiar a aparição do MSM como oposição de centro-
esquerda que “sem amarras ao antigo regime, poderá abordar com maior credibilidade e
honestidade o debate sobre os déficits institucionais e de gestão que atacam o processo
de mudança”.
Em outro texto, Stefanoni (2009a, trad. nossa) comentava ainda sobre a
cooperação da França que punha em pé uma escola de administração pública, na qual “é
provável que a gica weberiana dos franceses se choque mais cedo do que tarde com o
discurso 'multiculturalista' e 'comunitarista' que predomina entre aqueles que hoje
discutem uma nova lei da função pública e consideram que o Estado boliviano deve ser
um reflexo das culturas comunitárias que predominariam sobre uma base de evidencia
bastante discutível na sociedade boliviana”. Referia-se a Raúl Prada, que trabalhava
nas normativas de gestão pública, e mais adiante escrevia que “a consolidação de uma
nova langue de bois (pensamento estereotipado, politicamente correto) 'pós-colonial'
corre o risco de substituir a realidade pelo wishfuk thinking (pensamento ilusório) que
veria supostos 'projetos alternativos à modernidade e ao capitalismo' no mundo
indígena-popular boliviano. Seu ponto de vista é que os elementos indianistas e de
cosmovisão andina no discurso oficial do MAS são “meramente retóricos”. Como os
liberais, escreve Stefanoni, este setor é incapaz de ver a matriz nacional-
512
desenvolvimentista que atravessa o processo de mudança e que se expressa, por
exemplo, na defesa oficial da exploração petroleira na Amazônia.
À raiz de um comentário de Raúl Prada a um artigo crítico de Stefanoni sobre a
cerimônia de posse de Evo Morales em Tiwanaku se desenvolveria um debate em uma
lista de e-mails sobre a caracterização do Estado Plurinacional e a nova Constituição,
bem ilustrativo da discussão sobre o processo político boliviano
438
. Junto à crônica da
nova posse de Evo Morales, Stefanoni apresentava sua análise em que assinalava que é
difícil ocultar as semelhanças com o nacionalismo dos anos 1950, “em que pese os
esforços do governo”. Dizia também que “o que parece unir a enorme diversidade que o
'evismo' contém é o nacionalismo popular” e que “nem a onda new age cósmica nem as
visões para as quais desde Katari a Evo não aconteceu nada, parecem explicar um
complexo processo de fortes rupturas e surpreendentes continuidades”.
Stefanoni escrevia que os chamados de García Linera pela construção do
socialismo, negados havia pouco tempo, “não parecem refletir-se nas políticas públicas
nem no debate dos movimentos sociais. E o discurso eco-comunitarista tem como
correlato um modelo econômico sustentado pelo extrativismo de matérias-primas: gás e
minerais, e em um imaginário fortemente desenvolvimentista”. Com um chamado ao
realismo, desencantado, Stefanoni falava de expectativas desmedidas, e citava as que
encontrava por exemplo na intelectual mexicana Ana Esther Ceceña, que se perguntava:
“Será a Bolívia o espaço de gestação de um novo sistema de organização da vida
planetária?”.
O debate que estas opiniões despertariam pode ser visto como um choque entre
as vertentes indianistas e de esquerda nacional, centrais na base da nova Constituição e
no processo de mudança, esta vez na disputa intelectual sobre como interpretar o
processo. Talvez também entre a leitura de intelectuais modernos republicanos e
intelectuais indianistas descolonizadores, mostrando a vizinhança já destacada pelo
katarismo entre a esquerda e o setor mestiço liberal. No intercâmbio de mensagens com
Raúl Prada, sempre próximo ao olhar derivado do indianismo, Stefanoni falava do MAS
como “reciclagem” e “etnização” da matriz ideológica do nacionalismo revolucionário,
o que ilustra com: “o escasso (nulo) interesse para começar a construir um pluri-
linguismo efetivo e o predomínio da retórica pachamâmica que encobre ao nacional-
438 O artigo crítico é Stefanoni (2010a) e o debate aconteceu na lista de um grupo de Yahoo chamado
“ayllu” nas mensagens 1250 a 1280 de janeiro e fevereiro de 2010.
513
desenvolvimentismo”; que “a nível governamental não nenhuma voz relevante que
ponha em questão as ilusões desenvolvimentistas imperantes”.
Stefanoni perguntava: “Onde se expressa o Estado plurinacional no novo
gabinete (4 ministros indígenas de um total de 20?”, e escrevia “eu vejo um
plurinacionalismo fortemente retórico e pouquíssima capacidade para operar em um
espaço mais terreno”; assim como que “o discurso eco-comunitário não tem nenhuma
correlação com as políticas estatais, desenvolvimentistas e extrativistas... há um risco de
cair no fetichismo do texto constitucional”. Stefanoni se perguntava, em suas
mensagens a Prada na lista de discussão por email: “na Bolívia não segue imperando o
velho Estado desde o qual se busca refundar o país? Basta uma Constituição para
transformá-lo? É isso que realmente se quer?”. Stefanoni apóia - criticamente”, diz ele,
como vemos o processo de mudança, e se desprende de sua argumentação que, em
última instância, não lhe parece convencer que o que qualifica como “retórica” se
realiza ou faça realidade. Assim, podemos contá-lo entre os que buscam outro tipo de
fundamentações como base do projeto político do MAS, mais distante do pós-katarismo
e do plurinacional.
A crítica de Stefanoni tem dois níveis: primeiro, o do alto grau de retórica; e em
segundo lugar uma crítica também aos fundamentos do Estado Plurinacional e à
descolonização. Ele pergunta-se: “basta o plurinacionalismo para baixar a pobreza de
60% e a extrema de 30%?”, “Até onde pode chegar a re-territorialização comunitária em
um país urbano - assumindo heroicamente que o campo sim seja comunitário, o que não
é para nada evidente na maior parte da Bolívia?”. Pareceria então que Stefanoni espera
que “a mera retórica” nunca se realize para além dos discursos e dos artigos da
Constituição. Ele abre inclusive interrogações sobre a associação das autonomias
indígenas com o apartheid sul-africano e afirma “não gostaria de viver em um país
governado por uma antropolocracia [sic] culturalista”, “podemos refundar o país desde a
base da política da identidade e do culturalismo?”.
O apoio crítico ao processo de mudança, por parte de Stefanoni, parece
sustentar-se ainda, devido a que de fato a “retórica constituinte” do plurinacional não se
traduz de fato nas políticas do governo, e esta posição pode ser vista também como
uma nova transformação da velha tensão entre o olhar étnico e o olhar de classe, ou
entre o ponto de vista indígena e o do nacionalismo de esquerda “popular”, que como
vimos percorre a política boliviana e o processo constituinte nas posições de
camponeses, indígenas e militantes de esquerda. O apoio de Prada ao processo é bem
514
diferente ao de Stefanoni, em que pese ser também “crítico”, como vimos. Em seu caso,
parece estar baseado justamente na possibilidade de avançar no sentido criticado como
“meramente retórico”. Sua posição se aproxima, assim, à da vertente indianista do
plurinacional, idéias que contribuem a que fossem incluídas na nova Constituição
quando foi constituinte chave no processo. Prada dizia que “o presente pragmático trata
de amortizar o alcance do possível. No entanto, se aprovou uma Constituição, este é o
referente que há que se defender”
439
.
Para Raúl Prada os fatos falam “de fenômenos complexos e contraditórios na
transição”. E considera que “a Bolívia é uma tomada de posição contra o colonialismo.
A descolonização se resolve pela reconstituição comunitária e pela interculturalidade,
pela emergência do plurinacional”. Em respeito a comparação com 1952 levantada por
Stefanoni como crítica, para Prada “as condições de possibilidade histórica, os cenários,
os atores sociais, os sujeitos sociais, os problemas são outros, novos, talvez mais
profundos e próprios devido à tarefa descolonizadora”. Concede algo de razão ao
panorama de Stefanoni: “que tudo isso se parece à reiteração do mesmo, como se
revivêssemos o circo político dos períodos republicanos liberais, de acordo”; mas a
chave de seu argumento e a posição política de Prada me parecem estar no trecho onde
logo depois pergunta: “Mas isto? Estes acontecimentos apagam definitivamente o
alcance do horizonte aberto pelos movimentos sociais, que se expressam nestas
finalidades nomeadas na Constituição como Estado plurinacional, comunitário,
autonômico, apontando a uma economia social e comunitária, ademais da participação
social”?.
Raúl Prada encontra no atual processo, e especialmente na nova Constituição,
“um discurso descolonizador, uma crítica ao projeto mestiço, uma crítica à nação
boliviana. O projeto descolonizador é oposto ao projeto do nacionalismo revolucionário,
é sua crítica”. Separando as duas experiências, em lugar de associá-las, Prada afirma
que “o projeto descolonizador aponta para a reconstituição e re-territorialização
comunitária, um objetivo oposto à formação de uma burguesia nacional”. E sobre os
simbolismos que para Stefanoni também falam de repetição, diz: “Em Tiwanaku se
439 No debate, Raúl Prada propunha afastar-se de “conjunturas e cenários concretos onde acontecem
esses fatos” e “decifrar e codificar os acontecimentos a partir do horizonte aberto pelos movimentos
sociais surgidos durante seis anos de lutas”. Assim, em sua crítica à leitura de Stefanoni, Prada destacava
especialmente o caráter plurinacional comunitário do novo Estado e seus modelos territorial e econômico
incluídos na nova Constituição. “Não se esqueça que os processos levam o conteúdo do que inscrevem,
em seus momentos de intensidade, as lutas sociais, os movimentos sociais, as emergência subversivas.
515
unge a um Inca, não a um presidente. Não creio que isso haja ocorrido antes, se bem que
se utilizou o símbolo de Tiwanaku para legitimar o projeto nacionalista, mas a forma de
utilização era outra, em todo caso era para articulá-lo a um projeto nacional e mestiço”.
Raúl Prada encontra “um campo de forças, em uma gama de acontecimentos, de onde
emerge um processo de empoderamento indígena. No campo das relações cotidianas
começa a mudar o papel, a função, a localização dos aymaras, quéchuas e guaranis, se
dá um enraizamento das presenças indígenas, populares e plebéias”.
Este é, para Prada, “o campo de possibilidades aberto pela crise múltipla do
Estado-nação”, e pela “irradiação do poder constituinte dos movimentos sociais”. Para
ele, “o horizonte de possibilidades aberto pelos movimentos sociais e pela Constituição
não se circunscreve de nenhuma maneira ao nacionalismo revolucionário nem ao
Estado-nação, ao contrário, propõe uma nova forma de Estado, uma nova forma de
relação do Estado com a sociedade, articulada pela participação social, um novo sistema
de governo, o da democracia participativa”. No lugar da “tese da reiteração do projeto
nacionalista”, Prada encontra a Bolívia frente à possibilidade de dar lugar a um novo
sistema político: “Estas transformações estruturais, históricas, culturais e políticas
implicam a morte do Estado-nação. A aprovação da Constituição, por parte do povo
boliviano, projeta a fundação de um nova forma de Estado, que a Constituição chama
Estado plurinacional comunitário autônomo, em seu novo perfil”.
Se para Stefanoni tratava-se de “retórico constitucionalismo” (e como
exemplo do retórico que os recursos naturais sejam do povo, mas através do Estado),
para Prada “este texto defina a morte do Estado-nação e o nascimento do Estado
plurinacional, descolonizador, comunitário e autônomo”. Prada reconhece que o texto
aprovado “resulta um texto radical para o pragmatismo preponderante”, e por isso
chama “a defendê-lo politicamente das tendências pragmáticas e certamente
nacionalistas”. Creio que o debate é interessante não pelas duas leituras deste
processo, senão também porque ilumina aspectos da política como estes que se vivem
como oposição entre símbolos, teorias e discurso de um lado e prática, ação concreta e
materialidade de outro. Este tema clássico da política moderna na Bolívia nos leva a
discutir elementos indígenas e comunitários em conflito com a lei estatal e, em algum
ponto, com esta posição moderna que pareceria destinar a diferença indígena à esfera
cultural dos significados estéreis na prática.
O debate continuaria, e somaria novos participantes, depois da Conferência
Mundial dos Povos sobre Mudança Climática e Direitos da Mãe Terra, organizada em
516
Tiquipaya, Cochabamba, pelo governo boliviano, em abril de 2010. Era um evento
preparatório para a Conferência Mundial do Clima, a realizar-se no México uns meses
mais tarde, e havia surgido por iniciativa de Evo Morales depois do fracasso da
conferência de Copenhague sobre o mesmo tema. Entre as atividades que
acompanharam o encontro, realizaram-se q'oas, danças tradicionais e houve também
discursos de Hugo Chávez contra o capitalismo. O evento tinha 17 mesas de discussão,
mas algumas organizações e ONG's organizaram a “mesa popular 18” com exposições
sobre conflitos sócio-ambientais registrados na Bolívia, com críticas também à política
de industrialização do governo e ao modelo extrativista
440
.
Na conferência, novamente ativaram-se os dispositivos que estiveram presentes
na cerimônia de Tiwanaku. E a crítica ao discurso presidencial de que os que
desconfiam dos elementos da cosmologia andina voltarão a reagir. Na abertura, Evo
Morales chamou um grito “Planeta ou morte”, David Choquehuanca discursou sobre o
sumaj qamaña (Viver Bem em aymara). E Stefanoni (2010b) publicou notas críticas
(como “Aonde nos leva o pachamamismo?”) dirigidas aos que chamou de
“pachamâmicos”, que vinculava ao indianismo no que definia como “neo-língua da
moda” que “contribui para dissolver as profundas ânsias de mudança dos bolivianos no
saco gasto de uma suposta filosofia alternativa à ocidental, ainda que freqüentemente
seja apreendida em espaços globais como as palestras de ONG's, na calma da Duke
University ou em cursos supervisionados por Catherine Walsh na Universidade Andina
ou Flacso de Equador”
441
.
440 Entre os organizadores da Mesa 18 havia vários protagonistas do processo constituinte: CONAMAQ,
CEJIS, CEDLA, CENDA, CESU, BOLPRESS, ENLACE, COLECTIVO CASA, FOBOMADE e o MST. Apresentaram-
se também os conflitos ambientais de Corocoro, San Cristóbal, Liquimuni, La Joya, lago Poopó, entre
outros. As outras 17 mesas emitiram resoluções “vinculantes para Bolívia”, sobre desenvolvimento
capitalista, direitos da Mãe Terra, Tribunal de Justiça Climática, Viver Bem, Protocolo de Kyoto, Migrantes
Climáticos e bosques, entre outros temas. García Linera declarou sobre esta mesa que “não existe uma
mal chamada mesa 18 e sim existia um clube de ONG's que querem fazer da Bolívia e dos povos um
protetor da orgia depredadora dos empresários do norte. Como organização social nem como governo
nós aceitamos”. Ver http://alainet.org/active/37226. Para Raúl Prada, então o vice-ministro de
Planejamento Estratégico e que foi um dos expositores da Conferência, "esta conferência mundial de
povos em defesa dos direitos da Mãe Terra foi para além das discussões nas pulas, circunscritas na
avaliação do aquecimento global, para a análise das causas estruturais da mudança climática [...] Chamo
começo de uma revolução mundial anticapitalista a este acontecimento pelo compromisso logrado pelos
movimentos sociais de defender os direitos da mãe terra, identificando o capitalismo como causa
estrutural da crise ecológica; creio que esta perspectiva forma parte dos novos movimentos anti-
sistêmicos, anti-globalizadores, anticapitalisas e ecologistas.
441 A crítica não foi direcionada para o que nos Andes é por vezes entendido como "Pachamama", as
políticas atuais não necessariamente procuraram recuperar o folclore andino. A crítica inclui isso, mas
principalmente em sua forma de manifestação de um aspecto cósmico da viagem oficial, e, embora não
os únicos que eu acho que são importantes e se relacionam com elementos importantes na nova
517
A crítica ao “pachamamismo” expressa uma opinião da esquerda nacional que
esteve presente desde o princípio nos comentários desta vertente em relação ao projeto
do Estado Plurinacional. De fato, Stefanoni (2009c) começa sua crítica citando o que
talvez seja o mais destacado intelectual desta tendência, em artigo no Le Monde
Diplomatique anterior à reeleição de dezembro
442
. Soliz Rada destacava o caráter
desenvolvimentista clássico da plataforma de governo para as eleições, e era citado
afirmando que ao mesmo tempo Evo Morales não apóia explicitamente aos
“pachamâmicos” mas que tampouco os desautoriza, e que vários deles ocupam cargos
no Estado e têm influência política, como o chanceler David Choquehuanca. Neste
artigo também falava da ambivalência no debate da nova lei gestão pública, por
sustentar “polemicamente que Bolívia é uma sociedade comunitária” e ao mesmo tempo
organizar uma escola de administração pública com cooperação da França, “um país
não adepto precisamente do multiculturalismo radical”, disse Stefanoni.
Por momentos a crítica de Stefanoni parece dirigir-se mais que nada a trechos,
frases escutadas do chanceler e de outros, nos discursos cerimoniais. Ele assinala um
hiato entre o “pachamamismo” e “a realidade”. E denuncia o que seria “mentira”,
explica como um “bom negócio”, atribuindo uso interessado de elementos da
cosmovisão andina. Mas em outras passagens de seus escritos é evidente que a crítica se
estende não a um uso descuidado de conceitos de uma cosmologia em palestra política e
sim, novamente, à cosmovisão andina mesmo, tal como aparece na política boliviana,
através de demandas como a plurinacionalidade e a descolonização. São esses
elementos os que permitem traçar uma relação entre o discurso oficial em Tiquipaya e
acadêmicos como Catherine Walsh e o projeto de pensamento descolonial ao que
Stefanoni fazia referência e que trabalharam tópicos como a interculturalidade com bons
Constituição. Embora o debate perdesse o foco de sua crítica, ficou claro que a idéia de "Pachamama",
referida às idéias dos indianistas ou discursos governamentais que são a linguagem cotidiana de grande
parte da política do altiplano desde Reynaga e o katarismo.
442 Soliz Rada observou que "a plataforma atual do MAS é a antítese da Constituição de Oruro. Promete
um grande salto industrial, estradas, trens, corredor bi-oceânico, aeroportos, hidrelétricas, siderúrgicas,
usinas de etanol, etileno, metanol e escala de produção agrícola, o seguro universal agrícola, o emprego
da riqueza, a recuperação de comunicações por satélite e à educação digital, identidade nacional ".
Andres Soliz Rada (2010C) sustenta a hipótese que foi o governo que exagerou o indigenismo para lidar
com a Meia-Lua, apesar de não ter viabilidade e nem vontade política para implementa-lo, a partir de
uma Constituição, que ele descreve como "incoerente". Veja o resto das suas contribuições
http://bolpress.com/a.php?autor=25
518
olhos, mas também para a leitura étnica da política, para além da nação e da classe
social
443
.
Stefanoni foi informado que foi Fernando Huananacuni o responsável por um
discurso de Evo Morales que gerou polêmica por conta de comentários sobre a relação
entre masculinidade, calvície e frangos não orgânicos. Mas o foco da crítica de
Stefanoni era o discurso anti-moderno de parte do indianismo presente no governo,
idéias inseparáveis do governo do MAS e que encontramos também na nova
Constituição. Não era um componente marginal e por isso Stefanoni dizia que a
conferência de Tiquipaya deixou a evidência de que “o processo de mudança é
importante demais para ser deixado na mão de pachamâmicos”. Sua crítica assinalava a
contradição de um discurso ecologista de cuidado com a Mãe Terra, com a realidade de
um país “extrativista e com reprimarização da economia”, e chama a atenção que neste
ponto coincidia com organizações sociais como CONAMAQ, que Stefanoni associa
com o “pachamamismo e o projeto plurinacional”
444
.
A contradição governamental é só um elemento que busca desmascarar: os
componentes étnicos de um discurso no qual Stefanoni não acredita, fala de: “discursos
vazios” e “uma cândida leitura da crise do capitalismo e da civilização ocidental”. Sua
crítica se dirige então a intelectuais e políticos provenientes do indianismo, como os
vinculados a chancelaria dirigida por David Choquehuanca e que organizaram a
conferência climática e também a Raúl Prada. Seus escritos receberiam críticas
justamente desde vozes provenientes do inidianismo, como Simón Yampara histórico
do katarismo que foi candidato pelo MSM e também de vozes de fora da Bolívia,
443 No que se conhece como projeto de pensamento decolonial ou de modernidade/colonialidade,
diferentes variantes e graus de profundidade em suas análises incluem autores como Enrique Dussel,
Catherine Walsh, Walter Mignolo, Arturo Escobar e outros. Cf. Lander (2000); Escobar (2003); Castro-
Gómez y Grosfoguel (eds., 2007); Quijano (2005), Walsh (2009); Dussel (1996, 2008).
444 Stefanoni aceita em seu texto que a Pachamama tem pouco efeito sobre o Governo, mas lhe
preocupa de que era um discurso útil para que não haja qualquer debate sério sobre o capitalismo
extrativista e dependente. Em um novo comentário na lista Ayllu, Raúl Prada concorda com a
preocupação, ressaltando a tensão entre a "Pachamama e Desenvolvimento", mas o ex-constituinte não
entende porque Stefanoni depreciativamente chama de "Pachamamamicos" a um conjunto de correntes
envolvidas na reconstituição da cosmovisão da pacha, entre os quais estão aqueles que procuram
defender os direitos da Mãe Terra. As ideologias indianistas encontradas no governo, diz Prada, são
aquelas que estão mais longe do industrial e do desenvolvimento. Por esta razão, não entendo por que os
comentários Stefanoni não são direcionados para as correntes nacionalistas responsáveis por aquilo que
critica.
519
como a do peruano Hugo Blanco (2010)
445
e da canadense Melaine Balanger (2010). O
primeiro trata Stefanoni como racista e o contradiz sobre se é possível fazer bloqueios
de caminhos pelo “Viver bem”, o que Stefanoni afirmava nunca ter escutado, dado que
“Felipe Quispe fala menos Pachamama e mais de tratores e Internet”.
Em um novo artigo publicado em La Paz, Stefanoni (2010c) continua
desenvolvendo seu conceito de “pachamamismo”, e se bem cuida de não mencionar
nenhuma vez a palavra “mestiçagem”, utiliza os mesmos argumentos com que os
setores liberais e a oposição ao MAS criticam a nova Constituição e o projeto
plurinacional, assinalando a falta de reconhecimento do caráter não puramente indígena
senão mestiço da Bolívia. Segundo esta crítica, haveria falsidade no “recente”
reconhecimento da maioria da população como indígena. A crítica ao “pachamamismo”
vai contra um elemento central no processo político liderado por Evo Morales, e que
sua particularidade à situação boliviana: a expressão étnica do sujeito político, a
realidade indígena do MAS. Stefanoni põe uma vez mais em evidência que o destino de
suas críticas é o projeto de Estado Plurinacional e seus fundamentos pluralistas ao
concluir com ironia afirmando que o que faz são perguntas de um “macaco-
pensante”
446
.
Em um dos seus escritos, Stefanoni considera como descolonização e
mobilidade social e cultural exitosa a via intermediária que aparece “entre a assimilação
e o gueto”, assumindo na realidade duas críticas habituais nos fundamentos do próprio
445 Blanco o exemplo das mulheres de uma comunidade que se opunham à extracção mineira com a
frase "Eu não vou comer ouro." Stefanoni, disse que a Argentina tinha comunidades modernas ocidentais
e também fizeram protestos. É a luta "cultural" que parece falsa e incomodava. Em sua crítica, Stefanoni
associava Pachamama e Viver Bem, e dizia que indianismo é política e Pachamama esoterismo. Melanie
Belanger faz uma crítica interessante porque fornece argumentos da tradição da esquerda nacionalista,
criticando o antagonismo que Stefanoni entre estrativismo e Pachamama é o processo atual, e fala de
consciência ambiental que tenta desenvolver fontes alternativas de energia na mesma “Revolução
Bolivariana extrativista". Melanie Belanger salienta que o "óleo de extracção permitiu grandes avanços na
saúde, emprego, moradia, alimentação e recuperação de identidade para o povo, e citou um historiador
que falava de" raios de luz e de esperança "na Venezuela.
446 De forma mais direta, em seu artigo “A farra da antropologia oportunista”, a revista Veja, do Brasil,
desenvolve um ponto de vista em essência assimilável ao dos mestiços liberais da Bolívia: o caráter
indígena dos que assim se reconhecem é denunciado como falso. Disponível em
http://veja.abril.com.br/050510/farra-antropologia-oportunista-p-154.shtml. A revista também se
dedicou à Bolívia ao mesmo tempo negando que a maioria da população seja indígena e advertindo sobre
os riscos da política indígena sobre o Estado de Direito. Disponível em
http://veja.abril.com.br/120510/farsa-nacao-indigena-p-134.shtml . A reportagem se intitula “A Farsa da
nação indígena” e afirma “A farsa da nação indígena”, y afirma Na Bolívia, país de maioria mestiça, a
ideologia que mistura nostalgia inca com marxismo levou Evo Morales ao poder. Muitos índios começam
a perceber o engano”.
520
Estado Plurinacional, “para além do multiculturalismo dos anos 90 e o
monoculturalismo dos 50”, mas em seu escrito no sentido de criticar o argumento de
ancestralidade com que se fundamenta o auto-governo indígena e que Stefanoni associa
com um “pachamamismo” que não seria capaz de reconhecer a “verdadeira” cara étnica
da Bolívia. Esta crítica, similar àquela pela qual os indígenas seriam na verdade
“mestiços”, não é rara na vertente política da esquerda nacional. Andrés Soliz Rada a
expressa em seus escritos e também o fez em uma conversação pessoal. Neste sentido,
Stefanoni assinala a crescente relação dos camponeses e indígenas com o evangelismo
pentecostal, o que parece ser suficiente para refutar a força do indígena na Bolívia,
como quando diz que essa imbricação cultural “é por demais empirista e/ou descritivista
para os pachamâmicos”.
O discurso de Stefanoni insiste na denúncia a um discurso duplo ou falsidade
vinculada a toda introdução da Pachamama no discurso do governo do MAS, no que me
parece ser uma marca da visão moderna nas ciências sociais; a visão do
“desencantamento do mundo” que confina “a cultura” a um plano marginal. Ainda que a
visão indianista não seja o foco das críticas de Stefanoni, que busca alcançar somente
suas vertentes “esotéricas”, a forma de Stefanoni entender a realidade boliviana está em
clara oposição às premissas do indianismo, como a que destaca a questão étnica, o
projeto plurinacional e a luta política de recuperação da matriz comunitária. Considerar
a Pachamama como esoterismo é não poder sair de um modo de pensar ocidental
restrito e não ver, em todo caso, até que ponto o desenvolvimentismo pode ser do
mesmo modo “esotérico” ademais de “político”, ao que Stefanoni exclusivamente o
status de realidade, poder de agência e cidadania epistemológica.
Talvez suas críticas se entendam se as pensarmos como leitura estática da
superfície de um processo político que busca transformar a realidade a partir de
elementos que não são regra mas sim os que inspiram esse movimento em uma luta com
memória histórica e sociológica. Em lugar de entender o indianismo como um
“projeto”, e como a busca de uma recuperação e introdução do comunitário no Estado,
Stefanoni espera encontrar esses vínculos não modernos como realidade já estabelecida,
e de o contraste em que insiste com projetos desenvolvimentistas ou uma realidade
cultural mesclada, ademais da importante presença de atores nacionalistas no processo,
por terem outras metas e recuperarem outra memória. Em lugar de um projeto político
em marcha possibilitado pela chegada real de indígenas e camponeses ao Estado, para
521
Stefanoni tratar-se-ia de um “véu” ou máscara que impede de ver a “realidade”, que
para ele não se lê com os olhos do indianismo.
A leitura é bastante parecida com a feita por setores aymaras que criticam o
“entorno brancóide” e vêem o caráter indígena do governo como falsidade e impostura.
A diferença é que para Stefanoni não se trata de que essa perspectiva indígena entre no
governo desalojando aos mestiços e sim de descartar totalmente o olhar étnico
considerado nostalgia de uma realidade étnica homogênea do passado que não existe.
O olhar que expressa Stefanoni não aceita então que a Pachamama, “o Viver Bem” e a
plurinacionalidade possam conviver legitimamente no mesmo plano de realidade
ainda que seja no conflito com elementos de um projeto nacionalista, o objetivo de
industrializar os recursos naturais e a política estatal do dia a dia. E tanto nas críticas do
“entorno brancóide” como as da esquerda nacional crítica do olhar étnico uma falta
de compreensão do caráter flexível, aberto e difuso do comunitário e da forma em que
se expressa atualmente na política boliviana. Ambas leituras são diferentes das de Evo
Morales, do Pacto de Unidade e do MAS.
Na entrevista citada de Stefanoni (et al 2010), este pergunta justamente por
este tema a Raúl Prada durante a Assembléia Constituinte. A pergunta era: “Não um
sobre-dimensionamento do comunitário, no sentido de associá-lo ao popular, quando
em realidade é uma pequena parte dos setores populares indígenas da Bolívia que ainda
mantém certas práticas comunitárias? Até que ponto se pode reivindicar um Estado
comunitário se as comunidades estão muito debilitadas e ocupam espaços cadas vez
mais residuais?”. E Raúl Prada respondeu, antecipando o debate que teria meses depois
na lista ayllu: “Na multipartidária havia uma visão de que as comunidades eram as
comunidades indígenas, estavam isoladas e não eram muitas; a outra visão (que é a
minha e que comparto com algumas organizações indígenas) é que a comunidade não
somente são as comunidades indígenas e sim que as mesmas comunidades indígenas
migram com suas redes de relações comunitárias e se transfere isso também às
cidades”
447
.
447 Prada continuou: Nesse sentido, a comunidade é muito mais complexa, é um tipo difuso da
instituição, mas consegue manter o comportamento de comunidade de identidades determinada. [...]
Aparece em diferentes lugares tão interessantes como a democracia comunitária, como a economia
comunitária, como a justiça indígena, o que normalmente é uma justiça da comunidade. Aparece, mas
não é resolvido. Isso tem que se dar através da interpretação da Constituição na obra da lei. " Em outro
artigo, Stefanoni desenvolve suas idéias e aponta para uma "retórica" que não reconheceria o verdadeiro
desenvolvimento urbano e moderno da Bolívia, e observa que muitas das categorias da Pachamama
522
Interessante que a crítica de Stefanoni aos “pachamâmicos” derivou no debate
entre sistemas cosmológicos e socio-políticos tradicionais e modernos, trazendo uma
vez mais a discussão intelectual do sentido da luta pela descolonização ao qual o
processo constituinte boliviano e a proposta do Estado plurinacional sempre
convocaram. Para Stefanoni não estava em jogo a discussão da alternativa ao
capitalismo e ao pensamento moderno ocidental. Isso era parte da “retórica oca” que
ocultava o que via como fundamental; “a pobreza”, “o desenvolvimentismo”, ainda que
como assinala o pensamento katarista os pobres na Bolívia sejam os índios. Com a
crítica ao pachamamismo, no entanto, a Pachamama se fortalecia como parte
inseparável do processo político em marcha. “Ao nomear-lhes, os constitui”, ressaltava
Marisol de la Cadena em uma conversação pessoal.
De fato, as intervenções que seguiram ao debate iniciado com a crítica de
Stefanoni nas semanas que seguiram à Conferência deram conta de como estava em
jogo a discussão sobre uma alternativa ao capitalismo e à modernidade, a partir da
inspiração do comunitário indígena. Não casualmente, era justamente esta discussão que
a conferência sobre o clima organizada pelos “pachamâmicos” buscava aportar, que
também havia percorrido o processo constituinte e era um dos componentes do novo
Estado Plurinacional. Também era um componente indispensável para entender a
Assembléia Constituinte, a formação do MAS, o Pacto de Unidade e a vitória eleitoral
dos camponeses e indígenas.
Nesta freqüência, Simón Yampara, que participou como especialista em alguns
debates da Assembléia Constituinte e recentemente havia se afastado do governo
apresentando-se como candidato do MSM ao governo de La Paz, dizia: “Se a
compreensão de Stefanoni é generalizada, creio que é necessário abrir um debate, pois
seu olhar simplista de um macaco pensador ocidental não entende a lógica andina pois
sua mente e coração só chegam a entender um sinônimo para o pachamamismo =
„exotismo familiar ou neo-língua‟, que ademais tem contato reciclando o lixo que
produz a filosofia e o pensamento ocidental. Isto evidencia que estamos frente a duas
maneiras de cultivar valores humanos e cosmo-convivenciais, uma é a ancestral e
milenária e outra é a ocidental centenária, mas até o momento estes dois elementos não
são fatores do debate, nem os quer encarar por simples mal formato do „chip‟ ocidental
(como o chacha-warmi) não podem suportar a pesquisa histórica e que "em algumas fazendas, os
proprietários, e não precisamente pluri-multis, deixavam entrar os sacerdotes que falam em aymara
com seus colonos ... não foi que aprenderam castelhano e se foram."
523
e colonial a que se acostumaram os intelectuais, „cientistas‟ e opinadores casuais, com
certo estigma racial. Isso é produto da embebedes e chaki colonial na qual se movem
pessoas como Stefanoni e ideólogos/intelectuais do Massismo que não são tão
diferentes. Esse debate e diferenciação de ambos eu gostaria de saber e escutar”
448
.
Outro que se somou ao debate foi Arturo Escobar, antropológo colombiano que
leciona na Universidade americana de North Carolina Chapel Hill. Ele tem um
importante trabalho no qual mostra a cara colonialista e “retórica oca” não do modelo
andino e sim justamente do “desenvolvimento” (1994), discussão muito apropriada para
Bolívia, porto de todo o tipo de “cooperações internacionais”. Em seu comentário aos
textos de Stefanoni sobre pachamamismo, Escobar (2010) analisa “duas posições de
sujeito” que subjacentes ao debate: a dos intelectuais-políticos “pachamâmicos” e a
dos que chama de “modernos”. Seriam duas “vozes sociais” que falam da “configuração
do conhecimento ou 'episteme' daquilo que provém, e a antologia ou premissas básicas
sobre o mundo que trazem”. a afirmação de Stefanoni de que “o pachamamismo
impede a discussão séria” no marco do pensamento moderno “eurocêntrico” e observa
uma desqualificação de um saber considerado “não científico”, “local”, “romântico”,
“incompleto”, etc. por parte de Stefanoni
449
.
Escobar argumentou que a “complexidade do conhecimento acadêmico e a
aparente simplicidade do pachamamismo são efeitos de discurso, e portanto, de poder
ou seja, têm um começo, um período de hegemonia e possivelmente um final, do qual já
poderíamos estar presenciando os primeiros sinais”. Considera também a visão
desencantada do mundo, que seria compartilhada pelas distintas variações do
“conhecimento moderno”, e que como algo profundamente alheio aos mundos e
conhecimento defendidos por muitos dos pachamâmicos. Em seu artigo, Escobar revisa
as limitações dos “conhecimentos modernos” (CMS) e as vantagens dos
448 E continuava: Como você pode ver não é uma afirmação simples Pachamama, o povo proveniente da
civilização Tiwanakuta, de passagem por mais de 10 milhões de anos até que tem sido capaz de
encaminhar esse tipo de mudança climática, como um resultado deste há a revolução agropecuária,
sistemas de waru warus mais conhecidos como qullus suka onde a gestão da água do solo para a
produção de batatas por exemplo [...] vêm de horizontes e sistemas de produção e que tais valores
distintos podem coexistir, mesmo em condições de assimetria e colonialidade do saber e experiência, mas
com uma compreensão da cegueira cognitiva ou compreender os países andinos eo chip ocidental.
Disponível em http://probolivia.net/wordpress/?p=674
449 Considerava as premissas de um conhecimento que se consolidou a partir da “secularização da
sociedade e a separação da natureza e cultura”; “a expulsão de deus (a espiritualidade) e dos seres não
humanos como atores do conhecimento objetivo, e à magia e o mito como suas práticas todos estes
ingredientes chaves de muitas das posições pachamâmicas!”; “a invenção do 'indivíduo' racional e
separado da comunidade, que se encontro com outros indivíduos para intercambiar em mercados
regulados por preços, ou que se agrupam em sociedades para criar estados”.
524
“conhecimentos pachamâmicos” (CPS) para iluminar caminhos ante a crise social,
ecológica e cultural atual. É a “crise do modelo civilizatório ocidental” que líderes e
lideranças indígenas asseveram em muitas de suas conferências, escreve Escobar.
Escobar situa a discussão surgida na Bolívia na crise do modelo de euro-
moderno, definido por uma ontologia e modelo de mundo dualista (que separa sujeito e
objeto, natureza e cultura, indivíduo e comunidade). Arturo Escobar menciona a alguns
dos movimentos sociais e tendências não dualistas que anunciam “o surgimento da
relacionalidade como fato epistêmico, social, político e cultural de grande importância
no início do milênio”. “algo assim como a 'revanche da relacionalidade'” no que
Escobar vê como um desafio frontal ao regime moderno de verdade desde a emergência
do pachamâmico/relacional. Também o identifica com distintas correntes do
pensamento contemporâneo
450
.
E creio que a perspectiva de Escobar é pertinente porque incorpora na discussão
os mesmos fundamentos com que surge o Estado Plurinacional, com os primeiros
artigos da Constituição e as propostas dos “pachamâmicos” que foram incluídas (na
Constituição) e são parte do discurso do governo. Escobar se pergunta: “Como
queremos inter-existir, inter-ser, com todos os seres sentimentais senti-pensantes, pois
a consciência não é atributo dos humanos como nos dizem alguns biólogos da
complexidade e muitos pachamâmicos com todos os humanos e não humanos de cada
lugar, de cada sociedade e do planeta/pluriverso?”. E menciona as experiências de
autonomia de Oaxaca e Chiapas, porque ali não se está falando do puramente teórico.
Trata-se, para Escobar, de “uma política que assevere que muitos mundos são possíveis
uma política para o pluriverso requere epistemologias que aceitem que muitos
conhecimentos são possíveis”.
450 Escobar cita um frequente visitante da Bolívia, Boaventura de Sousa Santos, cuja obra Escobar
descreve como dedicada ao diálogo entre a CMS e CPs, a partir de um conhecimento plural. Boaventura
de Souza Santos coloca no mesmo plano CMs e CPs como uma forma de lidar com os problemas
modernos para os quais não soluções modernas. Ele também observa diversas fontes onde você pode
encontrar formas não-dualistas do conhecimento, não apenas entre os grupos sociais vistos como
Pachamama (indígenas, afro-descendentes, ou aqueles que continuam a ter um apego ao território e
lugar). Citou o exemplo da fenomenologia, a ecologia, agroecologia, algumas teorias da complexidade,
biologia relacional de Maturana e Varela, a etnografia dos modelos locais da natureza, o budismo,
algumas correntes filosóficas da imanência / diferença, como a obra de Deleuze e Guattari, algumas
teorias de auto-organização das redes, algumas abordagens descolonial, e talvez algumas idéias
anarquistas, entre outros. Podemos observar aqui também a ontologia do candomblé (Goldman, 2006) e
a natureza-cultura dos agricultores peruanos (De La Cadena, 2006,2008 b), e perspectivismo amazônico
(Viveiros de Castro, 2006).
525
Em um de seus trabalhos, Raúl Prada (2010c) escreve que Stefanoni “não parece
haver entendido muito as lógicas imanentes nestes processos e das dinâmicas
moleculares dos movimentos sociais, tampouco das formas representativas que
acompanharam a formação do instrumento político. Entre estas formas jogaram um
papel politizador as recuperações simbólicas nos imaginários sociais, na reconstrução
das identidades coletivas; por exemplo, o discurso katarista formou parte da atmosfera
representativa e de legitimação das resistências, rebeliões e movimentos das últimas
décadas”. E associa o pesquisador e jornalista a uma tomada de posição a favor de “uma
tendência pragmática e de realismo político no campo de forças que marcam o
processo”. E continua: “Se acredita muito engenhoso ao desqualificar os rituais e as
cerimônias da challa dedicadas a oferendas à Pachamama, ao questionar com certo ar
pedante e pretenso racionalismo as crenças, os saberes e as interpretações que giram ao
redor da cosmovisão da pacha, do equilíbrio e da harmonia dual e complementária que
forma parte das concepções herdadas, recriadas e reconfiguradas andinas”
451
.
Em sua resposta às distintas mensagens, Stefanoni acha estranho que seja
questionada sua “posição de sujeito” como “cientificista” desde uma universidade
estadunidense (2010c). E utiliza o conceito de ventriculismo utilizado por Silvia
Rivera para criticar outros acadêmicos americanos para referir-se aos que falam em
nome dos índios. Não se referia aos indígenas, explica, porque Stefanoni associa o
Pachamamismo com uma elite desconectada da realidade, o que critica não são somente
os acadêmicos estrangeiros mas também os intelectuais mestiços e aymaras, como os
que foram responsáveis pela Conferência de Tiquipala. Contestando a seus críticos,
Stefanoni define o objeto de suas críticas como “um discurso difuso e vazio
(proveniente de alguns, não todos, descoloniais, subalternistas e autonomistas, além de
aderentes a outras correntes pós-modernas) sobre a Pachamama e uma suposta
epistemologia anti moderna, que constrói uma cosmovisão andina de salão, ventríloqua
aos indígenas realmente existentes de quem se atribui sua representação”.
451 Stefanoni retribui as críticas de Prada, e escreve (2010c): O vice-ministro Raúl Prada responde com
frases de estilo: “Desde esta perspectiva haveria que aproximar-se a cosmovisão da pacha ao complexo
configurativo da ajajpacha, espaço tempo do pluri-verso, da acapacha, espaço tempo do lugar, do aqui e
agora, da mancapacha, espaço tempo interior, que pode também ser o subsolo”, incluindo a frase sem
contexto e de maneira impressionista. No parágrafo anterior havia afirmado que o pachamamismo é um
“bom negócio” e sua filosofia “confundo tudo, impede de discutir/questionar seriamente o
desenvolvimentismo e não nos diz nada sobe o novo Estado, o novo modelo econômico nem como
melhorar efetivamente a vida dos historicamente excluídos e marginados.
526
Esta última definição me parece chave, se pensamos nas características
desenvolvidas no capítulo 5 sobre as características abertas, difusas e ambíguas do novo
texto constitucional. Stefanoni fala de um discurso “difuso e vazio” mas à
observação um sentido oposto à minha interpretação da Constituição e do Estado
plurinacional. Para mim, a abertura é o que permite a presença do comunitário no
Estado, a indefinição e os silêncios (“o vazio”) entre os artigos do texto protegiam em
vários casos as reivindicações indígenas e dos movimentos sociais frente a um contexto
político adverso. Era a única forma em que a oralidade e as formas sociais alternativas
se introduziam no Estado sem serem desvirtuadas.
A não definição da autonomia, justiça e democracia indígenas, por exemplo,
eram um caminho possível que vai mais além das estruturas institucionais estabelecidas.
Os perigos anunciados pela oposição sobre a propriedade privada e o Estado de Direito
ainda que não tenham base real no texto da Constituição parecem dar conta de que se
tocam fibras vinculadas à possibilidade de pensar um Estado e uma legalidade
diferentes. No caso de Stefanoni, pelo contrário, o difuso parece relacionar-se com a
hipocrisia e a falta de relação com a realidade. Creio que no indefinido radica a
possibilidade de algo novo, muito mais do que uma retórica mentirosa sem ingerência
real na realidade.
4 Representação Especial Indígena e Marcha de Terras Baixas.
Outro espaço de conflito aberto após a promulgação da Constituição era o da
implementação das leis derivadas da mesma. Veremos a seguir como as organizações
indígenas viveram o avanço da primeira lei do novo Estado, na verdade, a Lei de
Regime Eleitoral Transitório que regularia as eleições em que Evo Morales seria
reeleito e o restante dos cargos seria renovado. Era a última lei que deveria ser aprovado
pelo velho Congresso; e a Constituição definia um prazo para sua aprovação. Como
vimos, durante o processo constituinte foi constante a tensão entre os distintos setores
que formavam a base do governo, e veremos que o diálogo difícil com as organizações
seguiria presente na discussão das primeiras leis plurinacionais, com a Assembléia
renovada. As discussões que buscavam colocar em marcha o novo Estado devem ser
lidas como de continuidade do processo constituinte, ainda que ao mesmo tempo
dessem lugar ao cenário político novo que caracterizaria o período de implementação e
desenvolvimento dos princípios constitucionalizados do novo Estado nos territórios.
527
Na CIDOB e na CONAMAQ havia descontentamento com o projeto de Lei de
Regime Eleitoral Provisório entregue ao Congresso depois da promulgação da
Constituição, em fevereiro de 2009. “Já começamos a violar a Constituição e seu artigo
30”, me diziam os técnicos da CONAMAQ. Era a primeira lei do Estado Plurinacional,
e foi também o primeiro conflito pós-constituinte com as organizações indígenas. A lei
estabelecia as regras para a eleição de assembleístas para o novo Parlamento e a
reeleição de Evo Morales em dezembro, além da eleição do resto das autoridades
regionais em abril de 2010. Também dava lugar aos referendos em que os primeiros
municípios indígenas e também a região do Chaco ascenderiam à autonomia. A região
chaquenha seria o primeiro ensaio de autonomia regional no país, e era estratégico para
o governo tanto para debilitar a opositora em Tarija, como para garantir votos dos
deputados dessa região, o que permitiria aprovar a lei eleitoral em um Congresso que
mantinha um Senado opositor.
A Lei eleitoral transitória afetava todo o sistema político, mas em particular me
interessa o conflito desatado pelo tema das circunscrições especiais indígenas que
haviam sido incorporadas pela nova Constituição e agora se implementavam na Lei
Eleitoral Provisória. Tratava-se de um dos princípios que desenvolveriam o caráter
plurinacional para além do declarativo. Não havia sido incluída na Constituição a
reivindicação indígena de representação direta representantes do Parlamento eleitos
diretamente pelos povos. Cesar Cocarico havia me explicado sua posição contrária à
representação direta: “pensávamos que era ilegítima porque há povoados com centenas
de habitantes e outros com milhões, pensamos então que era uma forma de
discriminação dos povoados grandes que tinham mais população por parte dos
pequenos. E ia gerar muitos conflitos. Os povoados grandes estavam com a idéia de
fracionar-se muito mais, com o objetivo de terem mais representação. No povoado
aymara, por exemplo, os collas, os pacajes, os osamuyos e os lupacas. vemos que
quatro povoados grandes se fracionariam para que cada um tivesse sua
representação”
452
.
452 Segundo Cocarico, ainda que não tenha sido possível incorporar que fosse indígena um dos quatro
Senadores por departamento, a representação indígena foi reparada com as circunscrições especiais
indígenas, ainda que com eleição não direta, e sim por voto. O resto das minorias não indígenas entraria
com a incorporação das circunscrições plurinominais (deputados eleitos por voto contabilizado em todo o
departamento, e não na circunscrição local) que haviam saído do primeiro projeto de Constituição do
MAS. Isso havia sido reintroduzido no diálogo com a vice-presidência, sob a seguinte análise, segundo
Cocarico: um candidato pode ser eleito com 30% dos votos, mas os 70% que não votaram nele não
528
A representação indígena era um dos pontos mais ambíguos da nova
Constituição e portanto era fundamental a discussão da lei que implementaria estas
cadeiras e seu modo de eleição. Em dois artigos consecutivos da Constituição aprovada,
o 146 e o 147, se afirmavam enunciados opostos. No capítulo sobre as atribuições da
Assembléia Legislativa Plurinacional, no artigo 146 VII, se define que “As
circunscrições especiais indígenas originário-campesinas se regerão pelo princípio de
densidade populacional de cada departamento”. No artigo seguinte, 147. III, se
determina o contrário: “A lei determinará as circunscrições especiais indígenas
originário-campesinas, onde não deverão ser considerados como critérios condicionais
nem a densidade populacional nem a continuidade geográfica”.
453
Segundo o artigo 146,
as circunscrições indígenas se regerão por densidade populacional e segundo o 147 não
deverá ser considerada como critério a densidade populacional. Segundo Carlos Böhrt,
se tratava de um erro de revisão, segundo o qual em outubro se havia esquecido de
apagar um artigo que restou da versão anterior. Xavier Albó apresenta uma complexa
interpretação segundo a qual não há contradição
454
.
Com outra definição aberta, se habilitava àquela que estabelecia na
regulamentação da lei que se considere mais apropriado para além do definido na
Constituição, por exemplo, que grupos indígenas não minoritários acedam a esta
representação por circunscrição especial. Por isso, nos ante-projetos de lei eleitoral
teriam representantes, criando uma situação de “maiorias fictícias”. Notava, no entanto, o problema no
projeto que circulava nesse momento (de lei eleitoral transitória) de criar 15 circunscrições especiais
indígenas, porque restariam representantes das circunscrições plurinominais, que na Constituição se
estabelecia que deveriam ser a metade do total de circunscrições.
453 O artigo 146 também determina que estas circunscrições especiais “não deverão transcender os
limites departamentais. Se estabelecerão somente na área rural, e naqueles departamentos em que estes
povoados e nações indígenas originário-campesinas constituam uma minoria populacional. O Órgão
Eleitoral determinará as circunscrições especiais. Estas formam parte do número total de deputados”. O
147 agrega que “I. Na eleição de assembleístas se garantirá a igual participação de homens e mulheres. II.
Na eleição de assembleístas se garantirá a participação proporcional das nações e povos indígenas
originário-campesinos”. Na versão de Oruro, o artigo 149 estabelecia que nas circunscrições especiais
indígenas originário-campesinas não deverão ser considerados como critérios condicionais a densidade
populacional, os limites departamentais nem a continuidade geográfica.
454 Albó escreve: “Se contradizem? Penso que o artigo 146 refere-se a que deve haver mais
circunscrições especiais onde haja mais população indígena originária minoritária, enquanto o artigo 147
contrasta genericamente estas circunscrições 'especiais' com as demais nominais: a população das
primeira não deve balizar as segundas, assim como tampouco deve ter o mesmo critério de continuidade
geográfica. A razão é clara: o que se busca é assegurar a presença destes povos tão minoritários na
Assembléia Legislativa Plurinacional apesar de seu pequeno peso demográfico e sua dispersão geográfica.
Caso contrário, tal Assembléia nunca chegaria a ser suficientemente 'plurinacional' e aumentaria o risco
de que estes povos nunca cheguem a estar presentes”. (5-4-09) La Razón “Las circunscripciones
especiales indígenas”. La afirmación de Böhrt es del texto “40 días que conmovieron Bolivia”, mimeo.
529
transitória CIDOB se apoiaria no artigo 146 e CONAMAQ no 147. O tema já havia sido
largamente discutido no debate da lei de convocatória da Assembléia Constituinte, onde
finalmente os povos indígenas não foram habilitados a ter representantes diretos ou
garantidos em cada circunscrição, nem eleitos através de suas organizações.
A discussão se repetia três anos depois, com a Constituição aprovada. Para os
ideólogos do Estado Plurinacional, a representação direta seria a forma para que as
populações minoritárias mas com “sistemas civilizacionais” diferentes e marginalizados
pelo Estado colonial e republicano tivessem acesso à participação na direção do novo
Estado. Para a oposição era um despropósito, que discriminava toda a população não
indígena. Muitos pensavam assim também dentro do MAS. O tema também havia sido
largamente discutido na Assembléia. Lázaro Tacoo, do povoado chiquitano, reconhecia
que depois da Marcha a El Torno em 2007 o MAS havia incorporado todas suas
demandas exceção feita à representação direta, mas que esta entrou por uma “janelinha”
com as circunscrições especiais. Depois da marcha se reuniram com Evo, que afirmou
não concordar com a representação direta, “maduremos a idéia e vamos seguir
pensando”, haveria dito Evo.
Algo que preocupava aos técnicos da CONAMAQ no projeto de regulamentação
eleitoral provisória era que se exigia dos povos pessoa jurídica para postular candidatos.
“É um trâmite burocrático que vai nos dividir, não poderiam postular-se desde
organizações como CIDOB ou CONAMAQ, dependendo dos partidos políticos,como
havia sido nas eleições constituintes”, diziam os técnicos. Viam vontade de intervenção
do MAS na eleição de representantes indígenas. As agrupações indígenas poderiam
pedir pessoa jurídica segundo a lei de agrupações cidadãs e partidos políticos, mas não
chegariam a te-las a tempo para a eleição, somente restando-lhes voltar a postularem-se
nos partidos, via Jesús. Isso faria com que os partidos buscassem um mosetén ou yucaré
para disputar votos pelo representante indígena, observava
455
.
Outro tema difícil eram as cadeiras que se atribuíam para essa forma de eleição.
A proposta da CIDOB, de terras baixas, era de 19 cadeiras, a da CONAMAQ de 24. Ao
final de fevereiro chegava ao Congresso a proposta de lei elaborada pelo Poder
455 Jesús dizia que pelas condições da lei, a CONAMAQ não podia pedir cadeiras para povos majoritários
em suas circunscrições. Para não ficar fora das especiais deviam fundamentar então seu caráter
minoritário. Isso havia gerado diferenças entre os técnicos da organização. Em resumo, Jesús via que seria
um sistema completamente ocidental e não plurinacional, com as mesmas características dos códigos
eleitorais anteriores. Por usos e costumes se poderia eleger internamente ao candidato. E dizia que
pensava que o MAS não poderia se meter, “é uma eleição nossa”.
530
Executivo (a cargo de Hector Arce) que se propunha que fossem 15 cadeiras para as
circunscrições especiais indígenas originário-campesinas. Conversei com os técnicos da
CONAMAQ, que pensavam como atuar frente ao avanço do projeto: “Querem colocar
no mesmo saco quéchuas e aymara, isso não é plurinacional”, dizia um técnico
voluntário da nação kalawalla. Para CONAMAQ, na Bolívia havia 44 povos e não 36
como correntemente se considerava. CONAMAQ não considerava quéchuas e aymaras
como unidades homogêneas, e sim formados por distintos povos minoritários com sua
própria identidade étnica no marco dessas nacionalidades
456
.
Para as organizações campesinas e grande parte do MAS, CONAMAQ estava
integrada por povos indígenas majoritários que, como tais, não deveriam aceder às
circunscrições especiais. Evo Morales dizia: “se são bons dirigentes se fazem eleger”.
Para o MAS, era através das circunscrições não especiais (nominais e plurinominais)
que quéchuas e aymaras eram eleitos, e através deste partido. Era então a partir do MAS
que as organizações indígenas encontravam maior resistência às suas propostas de criar
24 cadeiras especiais, ou 19 segundo a proposta da CIDOB. A brigada crucenha do
PODEMOS havia declarado estar concordar que os indígenas tivessem 36 cadeiras. Em
suas reivindicações diziam neste época: liberdade para Leopoldo Fernandez, IDH e 36
cadeiras. A CIDOB havia visto como uma provocação e respondido que não eram como
os cívicos de Sucre que aceitavam ser apoiados pela Meia-Lua em algo que sabem que é
impossível.
Nas discussões entre técnicos e algumas autoridades originárias que se
encontravam em La Paz se discutia qual seria a melhor estratégia frente ao avanço do
projeto. Pensava-se em elaborar um comunicado para a imprensa mas havia um
problema: recentemente havia acontecido uma reação dos ayllus criticando o rumo
456 Os quéchuas e aymaras, para a CONAMAQ, subdividiam-se em 16 suyus, 14 deles dentro do território
boliviano, que eram as nações originárias do qollasuyu e que buscavam reconstruir. As circunscrições
indígenas que propunham não correspondiam com as nominais e em alguns casos abarcam territórios de
mais de uma delas. Ademais, em alguns departamentos havia diferenças entre a organizações dos
indígenas, de qual povo contemplar nas circunscrições especiais. CONAMAQ projetava 17 circunscrições
somente para as terras altas: em La Paz, povo Kallawaya (2), Pakajaqi (2) e uma aliança “estratégica” entre
Qhapaj Umasuyu e o povo afro-descendente. Para Oruro, propunha quatro circunscrições: : Karangas,
Killakas, Suras e Uru. Em Potosí, três: Charkas, Chichas y Quillakas. Para Chuquisaca a dos Qhara Qhara, e
dos Quillakas (San Lucas). Em Cochabamba as de Sura Urinsaya (2) e Chuwi. Os povos contemplados pela
CIDOB eram os seguintes: Santa Cruz, Chiquitano, Guarayo, Guaraní, Ayoreo, e Mojeño-Yuracare Mojeño.
Em La Paz: Tacana, Leco e Moseten; Tarija: Guarani, Weehayek e Tapiete. Pando: Tacana, Esse Ejja,
Yaminagua e Machineri; Cochabamba: Yuracare e Yuracare Mojeño. Beni: Cavineño, Tacana, Chácobo,
Pacawara; Mojeño, Tshimane, Movima, Canichana, Siriono; Itonama, Baure e More. Em Chuquisaca se
propunha contemplar o povo Guarani.
531
crítico da organização matriz. Alguns mallkus não querem criticar para que não se diga
que estamos contra o governo, alguém dizia. Havia um apoio a Evo Morales que
segundo algumas autoridades originárias não havia sido respeitado quando, em agosto
de 2007, CONAMAQ se distanciou do MAS e da Assembléia Constituinte. Para alguns
havia sido uma ação decidida no calor dos movimentos, após reivindicações indígenas
terem sido excluídas depois de uma reunião
457
.
Jesús Jilamita, técnico da CONAMAQ, expunha as preocupações num encontro
que discutiria a proposta da Lei Marco de Autonomias e que duraria cinco dias, com
autoridades originárias e técnicos das distintas regionais da organização. A cooperação
dinamarquesa e CIPCA haviam contribuído para que as autoridades das províncias
pudessem chegar a La Paz. A proposta de lei seria apresentada pouco depois ao ministro
de Autonomias, Romero, e ao vice-presidente García Linera. Mas era mais urgente a
discussão de uma única lei que a Constituição mandava aprovar antes que o Congresso
nacional desse lugar a nova Assembléia Plurinacional. “Há temas nos quais o governo
não queria ceder,” explicava Jesús: “Na lei eleitoral, no controle do órgão judicial e do
órgão executivo o governo demonstrou que não vai ceder”. Mas Jesús considerava
que a ambigüidade dos artigos 146 e 147 abria as portas para a criação de circunscrições
indígenas onde estes são minorias e onde são maioria
458
.
“Estamos conscientes de que há violação da Constituição e dos acordos, se
comprova que o governo quer um processo de mudança sem os povos indígenas”, dizia
Jesús. Mas esclarecia que “talvez não seja produtivo dizer isso agora”. Propunha
escrever uma carta ao ministro da presidência e presidente do Congresso para que se
enfrentasse o debate até que haja acordos com a sociedade civil. E falar com os Mallkus
para que reagissem. “A CONAMAQ já está na geladeira”, refletia, por conta das
457 A medida também tinha a ver com facções internas da CONAMAQ, associadas ao prefeito de Potosí, e
que dois anos depois continuava sendo parte da autocrítica. Mais recentemente, no entanto, uma
marcha dos Mallkus antes do referendo constitucional também havia sido mal interpretada. A forma em
que se expressaria a crítica ao projeto de lei eleitoral então teria que ser pensada pelos técnicos de
maneira cuidadosa. A impossibilidade de reunir todas autoridades para cada decisão de trabalho
considerado técnico era parte do problema e da situação que os técnicos deviam considerar.
458 No entanto, perguntava-se como iria se definir a nação quando não território que começa aqui e
termina ali, e os quéchuas e aymaras estão em todo o país. Jesús via que tal como estavam estabelecidas
as regras haveria disputas entre os povos para garantir suas representações. E sairiam perdendo os povos
menos numerosos como os Lecos em La Paz e os guaranis em Chuquisaca. Vão nos fazer brigar entre
CIDOB e CONAMAQ”, notava. No projeto de lei as circunscrições se estabeleciam em territórios formados
pela área de cada departamento, excetuando-se as cidades. As circunscrições não se estabeleceriam por
povo e sim por zona rural dos departamentos, todos poderiam votar por candidatos pertencentes a certos
povos detalhados.
532
reações críticas que o governo conhecia, mas dizia que alguém tem que reagir. Ainda
não estava claro, em fevereiro de 2009, qual seria a posição da CIDOB. Haviam
apresentado uma proposta, a qual Jesús dizia ser resultado de uma consultoria e não de
um trabalho de equipe com consulta aos povos. Mas avaliava que CONAMAQ seria a
mais afetada, porque os povos não se consideravam minoritários e portanto podiam ser
incluídos nas cadeiras especiais para os departamentos onde estão presentes.
Descontava-se que as “trigêmeas” não se manifestariam porque incluíram seus
candidatos “como MAS”, e se lamentava que os mallkus estavam reagindo muito tarde.
“Há que se ver se um pronunciamento nos posiciona”, dizia o assessor técnico
459
.
Por fim, Jesús dizia que não havia que se refutar a participar das circunscrições
uninominais, onde haviam demonstrado que poderiam ganhar como indígenas, como
no Norte de Potosí. São estratégias de trabalho, dizia. De fato, a flexibilidade do
camponês indígena abria possibilidades ainda não definidas em um sistema político em
transição e ainda em aberto. Mauro, outro assessor técnico da CONAMAQ, fazia um
mapa para explicar como seria a distribuição das cadeiras: ele calculava que haveria
alianças e se poderia incluir um sistema interno de rotação entre os povos. Mas a eleição
seria por voto universal e secreto, na proposta do governo. Mostrava também como
estavam sendo violados os artigos 11, 26 e 211 da Constituição, que estabelecem a
democracia comunitária e incluem as normas e procedimentos próprios das nações e
povos entre os direitos políticos. Propunha utilizar a reunião que haveria por conta da
Lei Marco para incluir este outro tema. O vice-presidente havia mandado pedir o projeto
“para saber o que falar”, mas o projeto ainda o estava pronto que mandem o que
temos, havia dito.
460
.
459 Mas além de pronunciamentos que se iniciar um processo de negociação com o governo. Jesús
notava que o governo estava entrando em processo eleitoral, e não estava para disputas nem para perda
de aliados entre os povos indígenas. “E eles pensam que nós vamos atacar, nós assumimos isso?”
perguntava Jesús. E via que uma declaração podia ser lida como crítica ao governo e contra o processo de
mudança, mas que não se devia reagir tarde ao processo eleitoral. Temia que o governo tivesse pedido
um tratamento acelerado e unilateral sem consulta às organizações, e sugeria fazer um pronunciamento
com questões técnicas mas sem ir contra Evo ou dizer que a Constituição não está respeitada. E em uma
carta pediriam que se freasse o trâmite e se pedisse uma reunião com as organizações “para que os
Mallkus digam 'irmão Evo, não estamos de acordo com a lei eleitoral'”. O governo havia mandado
Romero, Yaksic ou Teresa Morales e seus técnicos, mas issoo era vinculante.
460Pastor Arista, de Potosí, ex membro da direção da Assembléia Constituinte, havia sido eleito pelo AS,
ainda que terminou seu mandato como independente e participando das sessões finais como aliado ao
MAS. Propunha analisar a proposta do governo e emitir uma contra proposta sem importar-se com a
imagem blica. Pensava que a CONAMAQ tinha que ser realista e crítica e dizer algo para que não se
continuassem a cometer erros. Perguntava se com um pronunciamento prejudicaria-se o processo de
533
Na reunião entre autoridades e técnicos de CIDOB e CONAMAQ para fixar
uma posição conjunta se organizava uma conferência de imprensa para o dia seguinte na
Praça Murillo. “Não tempo”, dizia Lázaro Tacóo, de CIDOB, “na sexta se decide”.
E propunha pensar se seriam feitas vigílias, greves de fome ou mobilização. Alguém
avaliava Romero positivamente, que havia se posicionado pela representação direta
inclusive contra os camponeses e o MAS. Assim se ganham as organizações, outro
acrescentou. No dia seguinte, chegaram todos os mallkus da CONAMAQ e também
chegariam a La Paz representantes das onze seções de CIDOB. Havia sido violada a
Constituição, não consulta nem autogoverno, dizia Iván Bascopé, do CEJIS.
Chamava a luta por um direito que corresponde aos povos indígenas. Não estamos
pedindo um trator”, dizia; “Se assim nos colocam e excluem da lei, que vai se passar
depois com as autonomias?”, alguém perguntava. Mauro, assessor técnico da
CONAMAQ, dizia que era um tema político e técnico, porque estava começando a
penetrar a política do país. Sugeria pedir que se freasse o trâmite e que todos os
deputados se reunissem para conhecer o projeto, porque o conheciam o presidente da
comissão onde estava em tramitação.
Tata Jilliri Apu Mallku Elías, máxima autoridade da CONAMAQ, com o logo
da organização estampado em uma destes casacos de moto norte-americanos que se
conseguem nos mercados de roupa usada da Bolívia, denunciava que o governo não
havia atuado com eles da mesma forma que na Assembléia. “Pelo nosso presidente
agüentamos”, dizia, “mas é hora de sair a campo”. Haviam se reunido em comissão e
realizado sete observações, sem resultado. Isso lhe daremos, podiam ter dito”, dizia.
Criticava o gabinete, que qualificava de “juntucha” e não de um governo plurinacional.
“Como CIDOB e CONAMAQ fomos excluídos, mas quando apertam os sapatos nos
chamam, e dizem Pacto de Unidade”, prosseguia. Queixava-se dos camponeses, a quem
não interessava o tema porque estavam metidos por dentro; é seu governo. E pensava
que tinham direito de estar com ou sem convite, porque eram CIDOB e CONAMAQ
que lutavam e os outros não tinham interesse. No dia seguinte aconteceria o conselho
mudança ou o presidente e o partido MAS, e dizia que se preocupavam muito mais com que os povos
se prejudicassem com o neoliberalismo. Este processo segue com ou sem Evo, dizia. E pedia que se baixe
a informação para as bases para que não fiquem cegamente com o governo. Desde outras regionais, ou
suyus, da CONAMAQ outra pessoa dizia que o governo estava aproveitando a conjuntura de
encantamento. E criticava que desde o governo se dissera que as críticas provinham dos técnicos e não
das bases. Por isso pedia mencionar que coisas de fundo que estão na Constituição estão sendo afetadas
para gerar precedentes.
534
ordinário político da CONAMAQ, e haveria uma mobilização. “Já mandamos por fax a
nota aos suyus”, dizia Tata Elías. Na reunião se mencionava alguns Senadores com
quem havia diálogo, era preciso pressionar o Parlamento.
Na madrugada de 3 de março a comissão de assuntos constitucionais da câmara
dos deputados aprovava o informe da lei eleitoral, sem dar lugar às modificações
propostas e reduzindo de 15 para 14 a quantidade de cadeiras para indígenas. As
organizações matrizes seguiam sem ser reconhecidas para apresentarem candidatos, e
tampouco se reconheciam formas tradicionais de eleição. O desconforto se expressou
em uma reunião entre as organizações indígenas e deputados da comissão de assuntos
indígenas. José Bailaba, que havia sido constituinte e deputado pelo povoado
chiquitano, se manifestava frustrado e dizia a seus companheiros que ficaria em La Paz
até que houvesse fumaça branca, pois era um momento definidor. Dizia que lhe haviam
mentido porque disseram que conversariam mas aprovaram sem incorporar nada nem
reunir-se. Mauro dizia que com esse projeto haviam eliminado por completo o
Kullasuyu. “Não incluir muitos povos de terras altas, que haviam sido englobados como
quéchuas e aymaras é um erro político e técnico grave”, dizia. Evo havia dito:
“Especiais são para minoritários de terras baixas, porque no altiplano se pode ganhar
deputados e alcaldes com o voto”.
Tata Elías dizia que seguiam sendo excluídos. Lázaro dizia que os camponeses e
Evo se opõem, e que “não havia sido a direita o inimigo”. Hilarión acreditava que os
quéchuas não vão se candidatar por circunscrições uninominais feitas por membros do
MNR para que ganhe a cidade, e que eles eram uma minoria, como poderia ser
comprovado de forma documentada. A ele haviam desnudado os camponeses militantes
da prefecta Sabina, dizia, e por isso andava sem seu sombreiro e seu chicote. Também
se queixava de que os fizeram trabalhar como burros para o instrumento político e agora
queriam deixá-los de fora. Preocupava-se sobre como iam explicar a derrota aos ayllus.
Iván Bascopé apontava que os povos haviam cuidado em não mostrar um perfil “sempre
contra o Estado”, mas que no informe que agora passava à plenária de deputados não
incluíram nada, da mesma forma como na Constituição. Na Constituinte não se havia
podido lutar bem pelas reivindicações porque houve pouca representação indígena,
dizia, “mas 10 deputados para CIDOB e 4 para CONAMAQ não é legítimo”.
Jesus via que não havia vontade política e que Evo estava com seus sindicatos.
“Não podemos violar a CPE que tanto custou a aprovar, nem seguir atentando contra o
processo de mudança ao deixar sem representação indígena a CONAMAQ e CIDOB,
535
que são legítimos representantes dos povos indígenas da Bolívia”, dizia. Os deputados
da Comissão de Assuntos Indígenas do Parlamento reunidos com as organizações
propuseram pedir reunião com Evo e Novillo, e firmaram uma resolução para que se
freie o trâmite até que haja consenso. O presidente da Comissão, Leandro Chacalluca
dizia que pelo censo os indígenas são 62% e no projeto aprovado em assuntos
constitucionais são 15%, sendo 22% no projeto de representação da câmara. Uma
deputada de pollera pediu às organizações que trabalhassem em conjunto sua proposta,
porque ela ainda não a conhecia: “Se nada está incluído como disse Tata Elías, que essa
comissão faça outro projeto”, propunha, pedindo também que houvesse uma audiência
urgente com o presidente. Mas as organizações sabiam que dessa organização não sairia
nada, devido à “presença sindical”
461
.
No dia que se iniciaria a votação dos deputados, representantes das organizações
indígenas se fizeram presentes no Congresso para buscar uma proposta comum e buscar
introduzir modificações no projeto antes de que fosse aprovado. O presidente da
Câmara dos deputados, Eduardo Novillo, havia aceitado que se chegasse a consenso do
projeto com as organizações. Era um espaço de diálogo do qual também participavam o
Ministério de Autonomias, através de Diego Cuadros, para tentar chegar a um acordo. A
reunião se realizava em uma elegante sala do andar de baixo do Congresso, onde
costumam acontecer as reuniões de coligação. Na reunião foi analisado o projeto e
propuseram modificações. CIDOB e CONAMAQ se incorporariam como aptas a
apresentarem candidatos. Havia observações de que as circunscrições abarcassem toda a
461 O deputado Leandro Chacalluca exemplificou em uma lousa a situação das cadeiras no departamento
de La Paz. Havia 29 deputados por esse departamento, 15 nominais e 14 plurinominais. Destas, todos os
nominais haviam sido eleitos pelo MAS, e dos eleitos por voto departamental 7 eram do MAS, 5 do
PODEMOS e 2 da Unidade Nacional. Por isso era impensável que as circunscrições indígenas fossem
retiradas das cadeiras territoriais. Ademais, o deputado agregava que os campesinos e indígenas
deputados pelo partido do governo o eram pelas circunscrições nominais. Dos 7 plurinominais, um era
indígena e o resto “supostos intelectuais” e da classe média. O objetivo será que os indígenas entrassem
como plurinacionais restando ainda mais espaço para a oposição, com as cinco circunscrições especiais
indígenas que haviam sido incluídas no projeto. Os indígenas apoiariam o MAS querendo ou não,
raciocinava, porque senão os chicotearão em suas comunidades. Recordava também que os indígenas
eram 62% do país e todavia um percentual mais alto em La Paz, ainda que haja manipulações de imprensa
dizendo que são apenas 20%. Cacalluca dizia que os indígenas deviam reunir-se com o presidente, porque
alguns deputados dizem que “é ordem do presidente” reduzir as cadeiras indígenas, e não era verdade.
Ele encontrava-se entre a cruz e a espada, dizia, porque era do MAS mas também representava aos povos
indígenas. Nas organizações se mostraram insatisfeitos com a explicação, e ratificaram que os indígenas
estariam com o MAS. Os irmãos não vão se vender para direita porque vão estar controlados pelas bases,
dizia Jesús.
536
zona rural e não somente os lugares onde estão os povos indígenas. Diego Cuadros
opinava que se devia incluir cláusulas para que toda a zona rural de Cochabamba, por
exemplo, não vote pelos 2500 yucarés e yuquis do Chapare. Também para que seja
candidato único, senão, os camponeses teriam os seus
462
.
Jesús perguntava ao representante de autonomias se o que incomodava era que
retirassem cadeiras do departamento ou que restem ao MAS. Aclarava que esse não era
o espírito, porque a nível das organizações se fala de aliança com o MAS para as
próximas eleições. E assinalava casos pontuais de povos aymaras e quéchuas que nunca
haviam tido representação devido a cidades intermédias, por exemplo no sul de Potosí.
Observava que as circunscrições uninominais fragmentavam os povos Urus, Chichas e
Pacajes. Também Hilarión, dos Qhara-qhara, dizia que as uninominais não os
representam e que uma deputada e uma Senadora de pollera haviam se vendido. E que
não acreditava que viria um deputado de fora a trabalhar por seu povo. Mas desde o
MAS se dizia que as uninominais não se discutiriam, as circunscrições indígenas
sairiam das plurinominais.
Outro técnico da CONAMAQ pedia debate com os irmãos deputados e também
com a direita na sessão que neste momento havia começado a votar os artigos na
câmara dos deputados. Perguntava se o propósito seria somente administrar o sistema
colonial: “Queremos solucionar o problema da fome e os municípios não nos
462 Na reunião havia 8 dirigentes do CIDOB e 4 de seus técnicos, 10 autoridades da CONAMAQ e 3
técnicos, 2 afro-bolivianos e dois deputados do MAS: Jorge Silva e o presidente da Comissão de Assuntos
Indígenas, Leandro Chucalluca. Outros deputados e assistentes se aproximavam por um tempo em algum
momento do debate. A imprensa foi autorizada a passar rapidamente para captar algumas imagens da
reunião. Sobre o número de cadeiras, havia descontentamento porque na Comissão haviam diminuído de
15 para 14 o número de circunscrições especiais. Potosí havia deixado de ter circunscrição especial
porque considerava-se que não havia população indígena minoritária. As organizações consideravam esta
redução um retrocesso político e recordavam que a brigada crucenha havia manifestado pedir 36 ainda
que o no projeto do PODEMOS se incluíam 13. O projeto da Unidade Nacional atribuía aos indígenas as
cadeiras. Analisava-se na reunião a situação de cada departamento e das circunscrições plurinominais de
onde sairiam as indígenas. Na proposta do CIDOB a quantidade de cadeiras especiais respondia a critérios
demográficos internos. Em função da quantidade de população agrupavam-se os povos para serem
distribuídos e mostravam mapas que haviam confeccionado para fundamentar a proposta. Diego Cuadros
pedia que fossem realistas e pedissem o que era viável. Pedia para ver dados de corte eleitoral. Para ele,
as circunscrições indígenas deveriam abarcar somente aos povos quando seu número não pudesse
ganhar. Parecia-lhe exagerado o mapa do CIDOB, que incluía povos no Chapare que ele nunca havia
escutado que existiam. Analisava que seria razoável pedir e que seria inadmissível. O cálculo devia
considerar o total de plurinominais de onde sairiam estas circunscrições e não o total de povos presentes
em cada departamento. Ainda que existam 16 povos indígenas, por exemplo, em Beni nunca se aceitaria
recortar 4 ou 5 plurinominais, como poderia ocorrer em Santa Cruz, com menos povos mas com mais
cadeiras.
537
permitem”, dizia. “A estrutura republicana não o permite, podiamos debater”, agregava.
Diego Cuadros coincidia que o redesenho das circunscrições era adequado, de acordo
com os critérios que estavam sendo levantados. Seria dado um passo maior. Propunha
que se pedisse aos deputados que um representante do CIDOB e outra da CONAMAQ
passassem à câmara para apresentarem o tema. Mauro dizia que a proposta da
CONAMAQ era constitucional, “por que senão o que haveria de ser plurinacional”? O
plurinacional era para ele a entrada dos povos com nome e sobrenome, e não
englobados em macro identidades étnicas.
Enquanto a votação da lei avançava em sua primeira instância, ainda não se
havia alcançado uma proposta de cadeiras comum entre CIDOB e CONAMAQ. Um
Mallku da CONAMAQ exigia a presença de mais deputados e que as cadeiras se
designassem a partir do mosaico de nacionalidades. “Se não nos respeitam como
corresponde”, dizia, “tendemos a desaparecer”. Por isso, cada povo teria que ter sua
representação. “Nos colocaram num mesmo saco”, dizia. Hilarión dizia que os que estão
com o instrumento não têm que brigar entre si, e que não queria afetar aos irmãos
uninominais mas que queria voltar a suas bases com uma circunscrição especial
indígena para Chuquisaca. Um dirigente dos Tipnis, de Beni, pedia que desde a nacional
ajudassem aos povos originários e que mesmo eles sendo 5 ou 10 mil haviam sido os
que começaram as mobilizações pela constituinte em 1990. O ex-constituinte Sabino,
que estava na reunião pelo Ministério de Autonomias, pedia que aos dirigentes
compreensão. Os cocaleros haviam lutado e tinham mortos e não teriam nenhuma
cadeira especial, recordava. Como ex-dirigente pedia às organizações que ajudassem as
autoridades a avançar, “porque agora somos governo”.
Às 15:30 já havia sido aprovado a lei em grande parte, e se anunciava que Carlos
Romero chegaria ao Congresso. Na reunião se sugere pedir para que a sessão seja
interrompida, quando se escutava pelos alto-falantes que haviam aprovado o artigo 3
“em detalhe”. Um deputado foi chamar Novillo e a CONAMAQ levou finalmente uma
proposta comum de 19 cadeiras, baseada na proposta do CIDOB mas com o nome dos
povos e suyus que deviam ser incluídos em cada circunscrição especial. Lázaro disse
que o CIDOB quer ajudar a CONAMAQ porque são um bloco. Havia 5 cadeiras para
terras altas, e sugeria que depois no interior fariam acordo quanto a quem seriam os
representantes. Algumas autoridades da CONAMAQ estavam desgostosas porque não
havia sido atendido o pedido de que houvesse representantes para seus povos. Tata Elías
e Pedro Nuny firmaram o documento e o imprimiram para levar ao recinto. Romero
538
havia feito manobras para postergarem a votação dos artigos correspondentes, e agora
se reuniam com ele
463
.
Carlos Romero falaria com o presidente. Evo Morales estava em uma reunião
em Cochabamba e havia pedido 45 minutos. Romero também deu declarações à
imprensa, e se dirigiu ao palácio. Pedia que aprontassem a redação dos artigos que
solicitavam modificar. Leandro Chacalluca reforçava o pedido dos Mallkus, recordando
que La Paz representava 51% do voto nacional e sustentava o presidente Morales. Mas
de 12 nacionalidades de terras altas, somente se haviam atendido 3 cadeiras, para dividir
com o CIDOB ainda por cima. Diego Cuadros saiu com a cópia para levar à câmara.
Fora as organizações indígenas, no Congresso havia um grupo de mulheres
demandando que se cumprisse a equidade de gênero. A deputada Elisabeth Salguero
representava a proposta de que se incluíssem critérios de equidade de gênero e paridade
para a composição da Assembléia Legislativa, mas não recebeu nenhum voto de seus
companheiros do MAS. A votação no recinto avançava. Enquanto Evo Morales não
retornava o telefonema, as organizações se preparavam para resignarem-se, e esperar
a votação no Congresso (deputados mais Senadores) onde novamente poderiam incidir.
Esperava-se que o Senado fizesse modificações, e em poucas semanas se reuniria o
Congresso para a aprovação final.
Quando Evo Morales conversou com Romero, disse-lhe que não concordava
com o aumento das circunscrições indígenas. Romero insistiu em que pelo menos se
voltasse ao projeto que havia saído do Poder Executivo, com 15 cadeiras. O presidente
disse que não concordava mas se era necessário para viabilizar, ele aceitava. Sugeriu
ainda que os quéchuas deveriam ser incluídos. O ministro Romero recomendava às
organizações que pedissem audiência com o presidente o mais rápido possível, antes da
votação no Congresso. Lázaro dizia que aymaras e quéchuas não podiam ser incluídos
463 Diego Cuadros resumia o acordo: 1) haveria aval de CONAMAQ e CIDOB a candidatos para que não
haja organizações paralelas. 2) Se solicitavam 19 cadeiras, e se aumentavam os de terras baixas, por que
explicou-se que a Constituição estabelece que devem ser para minorias. Jesús explicava a um Mallku que
o importante agora eram os nomes. Em alguns departamentos haveria disputas entre povos nucleados na
CONAMAQ e povos de terras baixas, mas eles ganhariam porque são maioria, dizia. Houve reuniões entre
CIDOB e CONAMAQ, separados e juntos. Chegou também à reunião Cesar Navarro, chefe da bancada do
MAS. Tata Elias explicava que haviam acordado para dar viabilidade e porque haviam trabalhado em
conjunto, mas que a proposta não os satisfazia. Outro Tata autoridade explicava que em La Paz eram 12
povos mas estavam colocando 3. Lázaro disse que não queriam ir sozinhos e deixar a CONAMAQ.
Navarro faria as consultas com o presidente da Câmara. Dizia que havia mecanismos para incluir o acordo,
ainda que se haja avançado em grande parte da votação. Ao final da votação se modificariam alguns
artigos.
539
porque senão “entrariam por todos os lados”. Analisavam se apoiariam uma nova
proposta conjunta por 15 cadeiras, menos do que as organizações haviam pedido
originalmente. Romero pedia que isso fosse feito rápido. Houve acordo novamente para
pedir que voltasse ao número inicial de 15, e que se incorporassem todos os povos,
“assim todos teriam direito de lutar pelas cadeiras', dizia Jesús. Romero dizia às
organizações que estava em uma encruzilhada e sem mais margem de manobra.
Recordava que haviam sido companheiros por muitos anos, que lutaram juntos, mas que
não tinha mais margem de movimentação.
Diego Cuadros se mostrava incomodado e como reflexão me disse que este tipo
de coisa não deveria ser feita de última hora. A proposta devia ter sido apresentada com
tempo para que também com tempo fosse consultado o presidente. Para indignação das
organizações que observavam da platéia a sessão, os deputados votaram contra a
inclusão dos nomes dos povos acordados, contra o aumento para 15 cadeiras e ainda
incorporaram a CSUTCB como organização que poderia registrar candidatos. Havia
sido aprovado que La Paz e Santa Cruz teriam três circunscrições especiais,
Cochabamba e Beni duas, Chuquisaca, Oruro e Tarija teriam uma cada. Ainda se
convocava ao referendo autonômico nos departamentos onde o “NÃO” havia ganhado
em 2006, e também na região do Chaco. Em reunião com CIDOB e CONAMAQ,
Romero lhes dizia que havia sido uma provocação e que ele autorizava as organizações
a dizerem que havia um acordo com ele e com Navarro, e que o presidente havia
concordado. Criticava o discurso duplo dos deputados do MAS, que diziam que as
cadeiras deviam ser somente para as minorias e ao mesmo tempo colocavam a
CSUTCB. “Assim somos”, dizia o deputado Chacalluca, acrescentando que “há que se
tirar o poncho. Agora não há mais poncho, só paletó e gravata”
464
.
Carlos Romero mandou uma mensagem de texto por celular a Álvaro García
Linera dizendo “bancada do MAS não cumpriu acordo com CONAMAQ”. “Como vão
464 Na votação dos artigos finais, Leandro Chacalluca leu a proposta das organizações. Seriam
incorporados os registros de CIDOB e CONAMAQ, e o corte não poderia incluir outras organizações,
partidos e agrupações cidadãs senão as mencionadas. Novillo agrega que se aumentaria a 15 as cadeiras,
esclarecendo que isso fora consensuado. O deputado Ojeda pediu a palavra e disse que não iria votar
porque Potosí tinha só uma cadeira. Alguém disse que os quéchuas estavam sendo excluídos. Novillo disse
que na Constituição se estabelece que as cadeiras sejam para minorias e em Potosí os quéchuas são
maioria. Em Potosí incluíam-se 2 cadeiras indígenas na Assembléia departamental. Navarro também falou,
alternando entre a presidência onde estava Romero e se incluíam as mudanças e a bancada. Alguém
notava que na lista dos povos que podiam disputar estavam sendo incluídos alguns que não figuravam na
Constituição. Referia-se à lista de línguas oficiais.
540
explicar isso?”, perguntava Romero enojado, reunido com as organizações. “Como não
cumprem um acordo? E dizia que os argumentos para votar contra eram pretextos
infantis. Um Mallku da CONAMAQ dizia que “nunca se falou da CSUTCB”. Hilarión
dizia que foi explicado várias vezes que era para minorias, e Evo Morales dizia que era
para minorias quando nas terras altas havia maioria, mas agora incorpora a CSUTCB;
“isso tem que ir para debate”, dizia. Um assessor da câmara explicava aos Mallkus da
CONAMAQ que ainda haviam cinco instâncias até a aprovação final. Dizia que havia
sido uma decisão hormonal. Carlos Romero falava com o assistente de Álvaro: “quero
que transmita ao vice-presidente que o acordo com a CONAMAQ não foi cumprido, e
isso nos parece uma situação complicada. O vice e depois o presidente aceitaram
voltarmos a 15 cadeiras, e o acordo estava com o presidente da bancada, penso que
Novillo o conhecia, mas votaram 14. Ainda incorporaram a CSUTCB como
organização que pode se postular para as circunscrições especiais”
465
.
Considerava ainda que o texto seria mudado drasticamente no Senado. Se o
Senado não aprovasse por maioria absoluta sem modificações, necessariamente haveria
uma sessão do Congresso onde seria necessária a aprovação por dois terços. E o
Congresso não se convocaria com menos de 20 dias, então havia possibilidade de se
continuar insistindo. As organizações perguntavam como se poderia garantir uma
vitória no Congresso, e Cesar Navarro e Carlos Romero ficaram calados. “Não
controle”, dizia um. Não vai ser fácil para explicarmos nos ayllus”, dizia Tata,
autoridade da CONAMAQ. “Confiávamos nas autoridades mas não nos escutaram”,
dizia outro. Decidiram pela organização de uma sessão definitiva nas mesmas
465 No salão, com as organizações, Navarro chegou e Carlos Romero lhe pediu explicações. A explicação
foi que parte da bancada de Potosí havia interpretado que se estava reduzindo povos majoritários a
minoritários. E o problema foi porque neste departamento a circunscrição do povo Chichas inclui as
cidades de Tupiza e Cotagita e interpretaram que se a parte indígena se separa da circunscrição nominal
se estava fazendo um favor a uma minoria do MNR na cidade. Queriam que os indígenas votassem em
circunscrições territoriais, ainda que de outro modo isto não fosse impedido porque a circunscrição
indígena não se recortava da nominal, era coexistente. Parte do descontentamento dos deputados tinha a
ver com Chacalluca ter aumentado a representação de La Paz, “e isso lamentavelmente não pudemos
controlar”, dizia Navarro. Sobre a inclusão da CSUTCB, Navarro dizia que havia sido incluída ao final, no
primeiro artigo onde figuram as organizações que podem registrar-se não figurava. Romero agregava que
no direito isso chamava “ultrapedido”, que é quando alguém é incluído sem haver solicitado. Uma
autoridade originária dizia que entre os deputados havia inimigos da CONAMAQ. Navarro dizia que “nossa
bancada pode ser criticada mas é muito firme e não se pode dizer que não lute pelos povos indígenas”.
Observava criticamente que por conta da semana regional (férias mensais do congresso), e do carnaval,
não puderam debater suficientemente. E mencionava que a disputa entre os ayllus em Poto era
desnecessária, 5 anos antes já haviam chegado ao enfrentamento físico.
541
condições. Cesar Navarro dizia que era preciso resolver a questão de Potosí. Um fator
de complicação era a existência de nomes de povos considerados como majoritários,
como Chichas. E via um problema na enumeração dos povos. Já a ele acusavam de estar
negociando. Romero pedia que na reunião da semana seguinte estivessem presentes os
deputados de Potosí.
O desfecho foi bom para o MAS, porque a lei foi aprovada e assim convocadas
as eleições para dezembro de 2009 e abril de 2010. Mas foi pior que o esperado para os
povos indígenas. Mais de um mês depois da aprovação dos deputados, o vice-presidente
García Linera convocava, por tempo e matéria, a sessão do Congresso. Havia um prazo
impostergável marcado pela nova Constituição, e ante a falta de acordo o MAS
ameaçava com uma renúncia coletiva de parlamentares, além de entrar na justiça contra
à oposição e cercar novamente o Congresso. Evo Morales iniciou uma greve de fome
que foi secundada pelas organizações sociais. O líder da COB, Pedro Montes, jogava
xadrez com o presidente nas horas livres, mas as câmeras mostravam como o presidente
continuava com sua atividade de governo, a base de folha de coca, como nos tempos de
dirigente sindical, quando havia chegado a estar 18 dias em greve de fome
466
.
Comentava-se que a oposição buscaria postergar as eleições, com uma demanda
que reelaboraria o padrão eleitoral. A nova bandeira da oposição, depois do triunfo de
Evo Morales no referendo revogatório e na aprovação da Constituição, era a denúncia
de possível fraude e de irregularidades no padrão. José Luis Exeni dizia inicialmente
que demorariam três anos para refazer um padrão, que por outro lado a OEA e outros
auditores haviam declarado 97% transparente. Uma vez mais o governo cedia para
viabilizar, e o MAS aceitou a realização de um novo padrão biométrico e informatizado.
No dia 11 de abril a nova lei eleitoral transitória foi aprovada. Novamente, Carlos
Romero esteve à frente das negociações, e os dissidentes do PODEMOS Ruiz e Böhrt se
aproximaram do governo para permitir a aprovação da lei.
Mas as cadeiras especiais para indígenas foram reduzidas a oito, uma por
departamento, excetuando-se Potosí, por sua população ser considerada
majoritariamente indígena, e as cadeiras seriam apenas para minoritários. O projeto
aprovado pelo Senado opositor era de 3 cadeiras para indígenas, e não de 36, como
466 Isaac Ávalos também jejuava em um colchão junto ao presidente. Informou-se que havia 36 grupos
de grevistas de ao menos 114 organizações sociais com 1027 pessoas dos nove departamentos em greve.
Fidel Castro mandou seu apoiou e escreveu: “Os avanços econômicos e sociais que se produzem na
Bolívia enlouquecem a oligarquia que no Parlamento bloqueia as eleições convocadas para final do ano...
Não tenho a menor dúvida que Evo sairá vitorioso”.
542
haviam ameaçado aprovar. Estabelecia-se também que qualquer organização poderia
postular candidatos. Ao mesmo tempo se aprovava pela primeira vez o voto no exterior,
ainda que com um limite máximo de votantes menor do que o que o MAS esperava.
Depois de 26 horas de debate, quando foi concluída a lista de oradores, a oposição pediu
a palavra e o deputado cochabambino Bernardo Montenegro chamou o vice-presidente
de “veado”. Ao concluir a greve de fome com dirigentes sociais e promulgar a lei, Evo
prometeu que o número aumentaria uma vez instalado o primeiro Parlamento
Plurinacional. Mas disse que não seriam sete e sim dois terços. Expressava uma posição
comum dentro do MAS: Evo Morales e seu partido é que representam aos indígenas
sem necessidade de que haja representações territoriais especiais correspondentes a
etnias específicas. “O governo indígena era o do MAS”.
Os povos expressaram seu descontentamento, rechaçaram a lei e inclusive
escutou-se que formariam uma frente com sigla própria para as eleições e que deixariam
a Coordinadora Nacional para el Cambio (CONALCAM), que reúne as organizações
aliadas ao governo. Como vimos, o processo constituinte havia logrado juntar indígenas
e camponeses, classe média de esquerda com sindicatos do campo e povos das terras
baixas. Mas mesmo que tenham selado sua aliança de forma sólida, as tensões haviam
percorrido o processo constituinte e seguiam depois da aprovação
467
. Sobre as
freqüentes contendas entre organizações indígenas e camponeses do MAS, uma coluna
de opinião de Xavier Albó (2010) criticava a resolução da corte, pela qual continuavam
desrespeitadas as normas para eleição de candidatos indígenas em relação às onze
autonomias indígenas originário-campesinas recentemente criadas, obrigando-as a
apresentarem listas de todos os candidatos (que seguem sendo chamados de “alcades” e
“concejales”) avaliados por partidos políticos ou agrupações cidadãs habilitadas
468
.
467 Em sua resolução número 01/09, os povos indígenas de Beni declaravam: PRIMEIRO rechaçar a lei
de regime eleitoral transitório, por não reconhecer a existência dos 18 povos indígenas do departamento
de Beni na designação do número de cadeiras, e pelo desconhecimento da forma de postulação de nossos
candidatos através de nossas organizações legítimas e legalmente constituídas. SEGUNDO condenar as
manobras politiqueiras de que fomos objeto por parte da ultra direita parlamentária, do MAS e de seus
operadores políticos. TERCEIRO condenar a atitude desleal e deshonesta daqueles que considerávamos
aliados e irmãos: os parlamentares do MAS e as organizações andinas que formam parte da CONALCAM,
que na hora da verdade não nos deram apoio *…+ (15-4-09).
468 Para Albó, o procedimento imposto pela Corte poderia destacar distinções desnecessárias nestas
autonomias pioneiras que todo o país está vendo na vitrine. Em vários lugares pode acontecer que se
registrem duas listas ante a Corte: uma de candidatos apresentados pela organização originária local e
outra de candidatos do MAS. Seria lamentável que se fomentasse assim a imagem distorcida de uma
confrontação que no fundo não existe ou é muito superável, à luz do apoio massivo que estas mesmas
543
Para a oposição, o avanço da consolidação institucional do MAS derivava em
autoritarismo e desrespeito à democracia. A velha oposição congressista, que havia se
desfeito frente ao fracasso da estratégia de impedir a nova Constituição e a reeleição do
governo, estava longe de perceber um limite imposto pelo MAS ao auto-governo
indígena. Entendiam o processo de chegada dos camponeses e indígenas ao Poder
Executivo como uma ameaça ao Estado de Direito e à legalidade que eles haviam
administrado. O ex presidente Carlos Mesa, um dos mais destacados representantes do
setor urbano mestiço e liberal, que no começo de 2009 se pre-candidatava para opor-se
a Evo Morales em dezembro mas que assim como Victor Hugo Cárdenas ficaria pelo
caminho, considerava que a aprovação da lei eleitoral era “o último dique rumo à
masmorra”, avalizando “o caminho até a autocracia”. Para Mesa (2009, trad. nossa), que
assumiu o cargo em 2003 por ser vice-presidente de Sanchez de Lozada, estava por vir
“um governo que daqui para frente não fará outra coisa que construir o terrível
monólogo do poder pelo poder mesmo”.
Em sua coluna no diário La Razón escreveu: “O primeiro caminho de qualquer
democracia é o cumprimento da lei. A lei nesta democracia é a desafortunada
Constituição que uma parte majoritária do país votou sem te-la lido. Essa lei, mesmo
que com seus terríveis déficits, estabelece regras. Se apenas uma delas é violada por
uma nova lei eleitoral, será espúria. Para dar um exemplo, se uma circunscrição
uninominal especial indígena ocupa o espaço de uma circunscrição plurinominal se
violará a Constituição, por que esta estabelece sem sombra de dúvidas que 50% das
circunscrições devem ser plurinominais e os 50% restantes uninominais […] Somente a
idéia de apego à lei e a resposta democrática nos fará melhores que aqueles que usam a
democracia para um projeto de poder unilateral e com um só rumo, o fracasso. Uma boa
e legítima Lei Eleitoral é o último dique. Depois a água e o lodo correram sem freios e
nos afogarão a todos”
469
.
organizações matrizes e suas bases deram a Evo e ao MAS nas recentes eleições de dezembro. Estas
organizações e sobretudo os operadores do MAS, desde o nível local até a cúpula nacional, têm agora a
grande responsabilidade de evitar nestas onze autonomias IOC uma confrontação entre os que se alinhem
a este partido à margem da organização matriz do povo originário local e os que apóiem sua organização
à margem do MAS. Se um ganha e o outro perde todos perderemos pois a autonomia IOC é um projeto
comum de ambos.
469 Agregava: os horríveis dias desta Semana Santa inauguraram a separação entre Estado e religião, com
uma atividade política “frenética” retratam muito bem a alma deste processo. Uma vez mais a pressão e a
ameaça. Os insultos do pior nível dos quais não escapou nem o próprio vice-presidente substituíram
por agora aos “movimentos sociais” que agrediram parlamentares na Praça Murillo. É questão de
544
5 As tensões pós-constituintes
Além de receber críticas por ser “pachamamista”, desde 2009 se escutaram de
maneira cada vez mais forte críticas ao governo por ser desenvolvimentista e destruidor
da Pacha Mama. A mencionada mesa 18 da Conferência Climática foi um referencial
dessas críticas. A principal reclamação a esse respeito foi a denúncia de violação ao
direito a consulta incluído na Constituição. Algumas colunas de opinião escritas por
Soliz Rada (2010d) e Pablo Cingolani (2010) fizeram denúncias vinculadas a grandes
projetos de mineração, hidroelétricas e petróleo, realizados sem que os habitantes
fossem consultados (ver notas na sessão de autores da BOLPRESS). Em julho de 2010,
a CONAMAQ organizava uma Conferência de Ayllus e Comunidades Indígenas sobre
o Direito de Consulta Prévia e Impactos Industriais Extrativistas e Mega-projetos. Em
suas resoluções se chamava a elaboração de uma Lei Marco de Consulta e se
denunciava que o artigo 39 da Lei de Regime Eleitoral que estabelece o direito à
consulta “não tem caráter vinculante” em contradição com a nova Constituição. O
documento também falava da Pachamama e do Viver Bem
470
.
Em reunião com a CONAMAQ, Morales havia dito que “não podem ser feitas as
consultas porque demoram e prejudicam investimentos, porque é um ato burocrático e
como os projetos são um pedido do povo não vai ser possível consultar”. Um momento
de explicitação destas diferenças foi a entrevista do vice-presidente García Linera
publicada no Le Monde Diplomatique (2009, trad. nossa). Nela, Stefanoni, Bajo e
Sampa perguntavam: “Ao escutar Evo Morales se percebe uma defasagem entre seus
discursos para fora em defesa da Pachamama, da terra e do território e, por outro lado,
um discurso mais desenvolvimentista para dentro, incluindo denúncias das ONG's que
promovem uma Amazônia sem petróleo. Como você explica isso?”. O vice-presidente
respondeu: “Por um lado, se leva ao âmbito estatal esta lógica da relação dialogante
com a natureza, mas por outro, quando se é Estado necessita-se de recursos e excedentes
crescentes para atender necessidades básicas de todos os bolivianos, e de dos mais
necessitados, como comunidades indígenas e populares urbano-rurais. E aí,
tempo, pois estes se consitucionalizaram graças ao capítulo dedicado ao Controle Social em nossa Carta
Magna (as milícias mineiras, operárias e campesinas consagradas no texto constitucional de 1961
pareciam organizações serenas e ordenadas em comparação) *…+ Vamos sem nenhuma dúvida a caminho
da confrontação e da ruptura.
470 Ver resoluções em: http://www.cedla.org/obie/content/10237
545
evidentemente, se gera uma tensão. Portanto, que se caminhar com os dois pés”.
Comparava a tensão com a de “ser Estado de movimentos sociais”, entre
democratização do poder e monopólio de decisões.
García Linera dizia: “Hoje não estamos abrindo passo no norte amazônico para
que entrem Repsol ou Petrobrás. Estamos abrindo passo na Amazônia para que entre o
Estado”, e explica deste modo a necessidade inexorável do Estado: “É obrigatório
extrair gás e petróleo do norte amazônico de La Paz? Sim. Por quê? Porque
necessitamos equilibrar as estruturas econômicas da sociedade boliviana, porque o
rápido desenvolvimento de Tarija com 90% de gás vai gerar desequilíbrios a longo
prazo. Necessita-se, portanto, equilibrar a longo prazo as territorialidades do Estado.
Igualmente, requerem-se excedentes econômicos para reforçar as estruturas
comunitárias, para expandi-las, para buscar modos de modernização alternativos
distintos à destruição das estruturas comunais, como vem se sucedendo até hoje. E às
vezes é necessário impulsionar, de acordo com as comunidades, uma produção de
hidrocarbonetos não depredadora do entorno”. Mas a entrada na Amazônia havia gerado
rechaço da CPILAP (Central de Pueblos Indígenas de la Paz). García Linera os acusava
de terem vínculos com ONG's estrangeiras e com a USAID e contava que haviam
conseguido apoio negociando comunidade por comunidade
471
.
Outro conflito entre indígenas de terras baixas e o governo teve lugar depois da
saída de Alejandro Almaraz do vice-ministério de Terras. Victor Camacho, seu
sucessor, declarou que estaria preparando uma reforma na Lei de Reforma Agrária, para
permitir a propriedade individual para camponeses dentro dos territórios indígenas.
Segundo Álvaro Infante, assessor do CIDOB, em conversa pessoal, isto era uma
“proposta louca” e foi rapidamente desmentida pelo governo, desde o ministério
responsável, e logo também o vice-ministro recolocado no cargo. Mas de uma forma ou
471 Na mesma entrevista García Linera dizia: “Junto ao direito à terra de um povo está o direito do
Estado, do Estado conduzido pelo movimento indígena-popular e campesino, de sobrepor o interesse
coletivo maior de todos os povos”. O presidente da YPFB, Carlos Villegas, e o ministro de Hidrocarbonetos,
Oscar Coca, declararam que os indígenas eram obstáculos para o desenvolvimento e que o governo
desenhara mecanismos para restringir o direito à consulta e controle dos indígenas sobre os recursos
naturais em seus territórios. Ver em La Razón, 21 de setembro. http://www.la-
razon.com/versiones/20090921_006857/nota_249_881942.htm . O governo iniciaria uma campanha de
desprestígio às organizações que reclamavam ser consultadas, com a constante denúncia de vínculos com
USAID. As acusações se dirigiram a Fobomade, rede de organizações que trabalham o tema dos recursos
naturais, e também até as organizações indígenas que participaram ativamente do processo constituinte
desde o Pacto de Unidade, como o CIDOB. Ver: Ver: Foro Boliviano por el Medio Ambiente y Desarrollo.
http://www.fobomade.org.bo/index.php?option=com_content&view=article&id=167&Itemid=126
546
de outra se via ameaçada a unidade da categoria política do sujeito coletivo que havia
inspirado a Constituição de “povos e nações indígenas originário-campesinas”. Desde
Santa Cruz, um colunista de El Dever descrevia essa tensão como conspiração de
camponeses e cocaleros andinos contra os povos indígenas das terras baixas.
O medo do colunista (CAMACHO, 2010) não era justificado de acordo com a
normativa vigente
472
. Mas esse era um dos temas onde a Constituição era aberta e
indefinida, e seus medos sem dúvida reproduziam tensões presentes no mundo das
organizações campesinas e indígenas. Em março de 2009, havia entrevistado ao vice-
presidente da CIDOB, do povo mojenho, Pedro Nuny. Depois seria um dos primeiros
sete deputados indígenas eleitos por circunscrição especial nas listas do MAS. Como
deputado manifestaria diferenças com o governo, chegando inclusive a condicionar seu
apoio à Lei Marco de Autonomias, que sem os indígenas poderia significar ao MAS a
não obtenção dos dois terços necessários. Pedro dizia que os indígenas de terras baixas
tinham capacidade de ter responsabilidade de Estado mas até então o MAS não os havia
convocado, e nas reuniões com Evo se via que não havia vontade, e o presidente os via
com receio. Criticava que o gabinete recém-empossado não tinha três dirigentes
indígenas, e que estes eram somente do ocidente. Pedro Nuny dizia: “Até ontem, ou
agora, ainda há patrões carayanas, brancos, proprietários de terras, pecuaristas. Que não
aconteça que amanhã nossos novos patrões sejam nossos irmãos do ocidente, os
quéchuas e os aymaras. Porque nos demonstraram que têm um pensamento colonial de
seguir colonizando, de seguir conquistando mais terras, de seguir abarcando em
detrimento de nós”
473
.
472 Segundo seu argumento, os 12 milhões de hectares saneados nos territórios indígenas (ex TCO) agora
seriam ocupados por campesinos pequenos proprietários de terras, ao haverem sido constitucionalizados
como novos co-proprietários junto aos indígenas dos territórios que na nova Constituição se chamam
Territórios Indígena Originário Campesinos, mas que o colunista chama “Terras de Indígenas, Originários e
Campesinos”, fazendo eco das forças que buscam dividir o que o Pacto de Unidade uniu nos anos
anteriores à chegada de Evo Morales ao governo e à instalação da Assembléia Constituinte.
473 “Não quero crer que amanhã nos estejam avassalando o que conquistamos com tanto sacrifício,
nossos territórios, onde cremos que se garantir o desenvolvimento da autonomia indígena segundo
nossa própria visão e cosmovisão com auto-governo. Eu não quero crer isso, parece que uma
intencionalidade. Parecia que para este governo os povos indígenas somente são os quechuas e os
aymaras, com muito respeito aos nossos irmãos da CONAMAQ. Oxalá o presidente se dê conta em algum
momento de que somos seus aliados e que somos também indígenas. Só ve como indígenas aos indígenas
com ponchos. Estamos totalmente convencidos que este governo lamentavelmente tem uma cara com
tinta indígena mas não é indigenista, porque os indígenas não estão governando ainda. Alguns têm
privilégio, então perguntamos, quais indígenas somos, somos indígenas de segunda, de terceira, porque
estamos vendo que alguns têm a facilidade de chegar e os irmãos que somos, os orgânicos, estamos
547
Em 21 de junho de 2010, enquanto tramitavam as cinco leis do Estado
Plurinacional, a CIDOB inicia a VII Marcha “Pela defesa do território, pela autonomia e
pelos direitos dos povos indígenas”, saindo das terras baixas com uma lista de
demandas sobre saneamento de terra, direito à consulta e também autonomia indígena e
circunscrições indígenas, que estavam sendo discutidos nas primeiras leis da
Assembléia Plurinacional. Antes também havia mobilizado a Assembléia do Povo
Guarani, contra a exploração petroleira sem consulta no Chaco. As organizações
indígenas saiam do processo constituinte em grande desacordo. A Representação Direta,
os Recursos Naturais em Territórios Indígenas, a Autonomia, o Pluralismo Jurídico e os
direitos foram temas problemáticos até o final, por sua mera inclusão traziam
desconfiança à oposição, mas nunca satisfaziam o que era considerado básico para as
organizações. A ruptura, no entanto, nunca era definitiva. Houve muitas rupturas no
processo, e também muitas reconciliações.
Com a discussão da Lei de Regime Eleitoral definitiva voltaria à tona o tema das
circunscrições especiais, um ano depois da aprovação da primeira lei. Apesar das
propostas iniciais, os deputados haviam reduzido a 14 e depois foram aprovadas
somente 8 circunscrições especiais. Em 2010 o número foi reduzido à 7, excluindo
Potosí e Chuquisaca, a partir da avaliação de que não havia povos originários
minoritários nestes departamentos. Entre os povos contemplados incluíam-se 36
agrupados em 7 legislaturas - não estavam incluídos aymaras e quéchuas, nem
tampouco as parcialidades aymaras que a CONAMAQ havia demandado. Criticando a
redução de cadeiras, apareceu a voz do ex vice-ministro de terras durante todo o
primeiro governo de Evo Morales, Alejandro Almaraz. Suas críticas iam no sentido de
mostrar contradições entre posições do governo e a Constituição, e foram respondidas
por García Linera, no início de julho: “lamentavelmente Almaraz não leu a
Constituição, ou a esqueceu ”
474
.
como tanque que não se vende, como se diz. Eu digo isso e não tenho medo de dizer, não são
impressões pessoais, senão do coletivo que representamos.
474 Na resposta Almaraz (2010) lia o artigo 146 da Constituição onde se dispõe que as circunscrições
especiais indígenas se estabeleceriam onde os povos e nações indígenas constituíam uma minoria
populacional. Sua crítica era que os guaranis de Chuquisaca não tinham representação porque num novo
recorte das circunscrições indígenas os departamentos de Chuquisaca e Potosí careciam de representação
indígena especial. Também denunciava o descumprimento do artigo 292 em que se dispõe: “Cada
autonomia indígena originário campesina elaborará seu Estatuto, de acordo a suas normas e
procedimentos próprios”, quando o governo buscava impor o referendo como forma de transformação
em autonomia, na Lei Marco de Autonomias.
548
Sobre a demanda de representação parlamentar, Isaac Avalos, Senador e ex
executivo da CSUTCB, declararia em 2010: “Sinceramente eu não entendo aos
companheiros da CIDOB e da CONAMQ. Porque estão brigando no tema de
autonomias, que está definido, e para mim a participação direta não vai ser aprovada
porque não existem argumentos para que sejam criados seus próprios deputados. As
autonomias estão consensuadas e o que querem é obstaculizar o processo de
mudança”. As tensões entre indígenas e camponeses foram sentidas também com as
declarações do parlamentar e dirigente cocalero Julio Salazar veiculadas pela rádio
ERBOL, nas quais advertia que as federações do trópico haviam decidido não deixar
passar indígenas pelo seu território. Também reproduziam o discurso oficial de que a
marcha era financiada por interesses estrangeiros. Em resposta às acusações de
ingerência da USAID, o presidente da CIDOB, Adolfo Chávez, o governo expulsou da
Bolívia a agência do governo americano e denunciou que vários ministérios recebiam
financiamento dessa origem
475
.
Almaraz também falou nos meios de comunicação sobre “uma mudança de rumo
evidente” no governo, que se expressaria nas demandas indígenas, e mencionou também
como “manipularam o evento de Caranavi” e a briga com o MSM. A marcha durou um
mês e três dias, e terminou com um acordo firmado por Carlos Romero, a ministra de
desenvolvimento rural e o vice-ministro de águas e meio ambiente Juan Pablo Ramos,
que dias depois renunciava negando-se a assinar uma licença ambiental para autorizar a
construção da estrada Villa Tunari San Ignacio de Mojos sem consulta aos povos
indígenas
476
.
Uma comissão do Senado, integrada pelo ex-assessor do Pacto Adolfo Mendoza,
entre outros, foi chave para que os povos das terras baixas suspendessem a marcha, com
a incorporação de suas demandas ao projeto de Lei Marco de Autonomias, que
inicialmente não estava aberto à incorporação de modificações. Os indígenas cediam na
necessidade de referendo para ratificação de seus estatutos autonômicos, que era a
questão em que se enfrentavam no momento. Outros temas incluíam a tensa relação
475 Ávalos explicou que se a Constituinte e o Conselho Político cedem na representação direta, aymaras e
quéchuas abarcariam tudo, por sua presença massiva no país, não restando espaço para outros setores,
não indígenas. Uma fonte próxima ao governo assinalou que esta proposta foi vetada desde o
presidente, que afirmou que se os indígenas querem ter representantes no Poder Legislativo ou outra
instância devem ganhá-lo por votos.
476 O acordo firmado está disponível na página da CIDOB: http://www.cidob-
bo.org/images/2010/acuerdofirmado.pdf
549
entre indígenas e camponeses, como o reconhecimento dos Territórios Indígena
Originário-camponeses (TIOCs) como exclusivamente indígenas e não como
camponeses. A negociação paralela ao avanço da marcha terminou muito mal com
Carlos Romero e os representantes de seu ministério, que desta vez foram destituídos na
resolução do acordo por parte da comissão de Senadores
477
.
Os acordos em vários casos consistem no recebimento de cartas por parte das
repartições correspondentes do governo, mas não garantem rápido cumprimento. Em
outros casos se tenta garantir fundos para saneamento, revisão de concessões florestais e
mineiras, revisão de terras fiscais em terras indígenas e outros que respondem a leis
vigentes. Conseguiu-se garantir fontes de financiamento para as autonomias indígenas,
tema que voltaria quando se definia um pacto fiscal para todos os níveis autonômicos.
Outras demandas, vinculadas às sugestões de modificações na Lei Marco de
Autonomias (Estado Plurinacional de Bolívia, 2010b) foram atendidas em parte. Em
termos gerais criava-se um documento que voltará a sair a luz no processo que começa
no desenvolvimento da autonomia indígena e que reclamará o cumprimento das mesmas
demandas
478
.
O nascimento do novo Estado se concretizava com o nascimento de cinco leis
“orgânicas” que as cláusulas da Constituição davam 180 dias para sua aprovação: Lei de
Órgão Eleitoral Plurinacional, Lei de Regime Eleitoral, Lei de Órgão Judicial, Lei de
477 Em seu discurso de entrega da Lei Marco de autonomias aos marchantes, o Senador Adolfo Mendoza
recordava que graças à primeira marcha pelo território e pela dignidade “jamais vamos permitir
construção de um país sem os povos indígenas”. Que a segunda marcha deu um salto no reconhecimento
de uma nova forma de propriedade coletiva: graças às marchas de 2000 e 2002 se realizou a Assembléia
Constituinte. Recordou as marchas de 2006 pela recondução comunitária da reforma agrária e da de
2008. Com esta última marcha histórica se avançava na implementação da CPE e na incorporação dos
acordos com os povos indígenas na Lei Marco de Autonomias. Ver relatório do CEJIS sobre a Marcha. (cf.
BERGIER 2010). Na conjuntura da marcha, Raúl Zibechi (2010) dizia: No fundo, estão nascendo as
primeiras fendas no Estado Plurinacional, um edifício que ainda não se há terminado de construir. Por que
surgem estas fendas? Porque uma potente disputa de poder, que os povos originários não têm
porque aceitar o marco do Estado-nação, que é a que nos remete o Estado Plurinacional. Neste ponto
aparecem duas visões que tentam dar conta dos processos em curso”.
478 Além da reabertura do projeto da Lei Marco de Autonomias, a marcha conseguiu o aporte de 20
milhões de dólares para a implementação da Gestão Territorial Indígena de todos os territórios titulados.
O governo não acedeu que lhes fosse concedida a direção de Administração de Bosques. Os indígenas
pediram também a conclusão dos processos de saneamento e de desalojo de terceiros em seus
territórios, assim como a imediata reversão e expropriação de terras e a dotação de terras fiscais a favor
dos povos indígenas do lugar, temas sobre os quais o governo se comprometeu a formar uma comissão
com CIDOB para seu tratamento. Sobre as autonomias indígenas, CIDOB defendia seu projeto para
garantir o acesso dos povos indígenas à autonomia sem limites e requisitos que a impossibilitem. Ver
documento da CIDOB (2010) que analisa esse processo.
550
Tribunal Constitucional Plurinacional e Lei de Marco de Autonomias e
Descentralização. Sua aprovação no velho Congresso teria significado severas
dificuldades para o MAS. Os dois terços obtidos nas eleições de dezembro de 2009
permitiram aprová-las sem resistência da oposição. Por mandato constitucional, as
cláusulas transitória estabeleciam prazos para revisão do escalão judicial, revisão de
concessões e tratados internacionais. O trabalho legislativo continuaria durante o
primeiro mandato da Assembléia Legislativa até a implementação das leis necessárias.
Segundo Adolfo Mendoza em declarações a um jornal: “Necessitamos uma lei que nos
permite mudar o padrão de acumulação econômica e respeito aos direitos da Mãe
Terra”
479
.
Ainda divididos e não recuperados dos sucessivos triunfos do governo desde
agosto de 2008 (revogatório, convocatória do referendo, aprovação da Constituição,
reeleição de Evo e eleições locais), a oposição do Oriente teve um papel marginal nas
discussões do Congresso, retirando-se das negociações em oposição a uma cláusula da
Lei Marco, em que se autoriza a suspensão de autoridades eleitas com acusações por
delitos penais
480
. Mas o cenário que se impunha depois de aprovada a Lei Marco de
Autonomias era a discussão de compatibilização dos estatutos aprovados na Meia-Lua
em 2008 com a nova Constituição, que a partir do Oriente tinha-se tentado desconhecer.
Em um programa de televisão emitido no dia em que Evo Morales promulgou a nova
Lei Marco, Juan Carlos Urenda criticava uma vez mais o centralismo do governo a
partir da referência aos Estatutos. Assinalava que os Estatutos haviam sido aprovados
479 Para o primeiro ano de trabalho já se planificavam como prioritárias as leis sociais (de pensões,
trabalho, saúde, educação), além da de controle social, deslinde jurisdicional (que inclui a relação entre as
justiças ordinária e comunitária), unidades territoriais e também as leis “econômico produtivas”. Também
de procedimentos constitucionais, de faltas e contravenções, de seguridade cidadã, de armas e munições,
de procurador do Estado, modificações ao sistema penal a favor das crianças e adolescentes,
modificações do Código Tributário e a nova lei de Alfândega. As primeiras cinco leis podem ser baixadas
aqui:http://gobernabilidad.org.bo/component/content/article/2-noticias/362-ley-marco-de-autonomias-
y-descentralizacion-de-bolivia Até setembro de 2010 , em 8 meses de trabalho haviam sido aprovadas 32
leis. Ver: http://www.la-razon.com/version.php?ArticleId=117557&a=1&EditionId=2279
480 Isso havia permitido a suspensão de Jaime Barrón da prefeitura de Sucre, e era visto pelo Oriente
como parte de uma perseguição política por via judicial, iniciada com as detenções de líderes cívicos com
vínculos com uma célula terrorista descoberta em abril, na qual alguns também incluíam aos exilados
depois do massacre de Pando. Também se ameaçava ao prefeito de La Paz. Para a oposição, além de não
haver igual rigor para prefeitos do MAS, eram processos judiciais politizados. Com o discurso de estarem
sendo perseguidos, depois d aprovar-se uma lei retroativa contra corrupção, várias autoridades de
governos anteriores exilaram-se. Também o fizeram Manfred Reyes Villa e Branko Marinkovic.
551
por 86% das pessoas, frente a uma Constituição que não havia sido aprovada em Santa
Cruz (ali a votação pelo sim havia ficado em torno de 40%)
481
.
Sobre o futuro do processo autonômico, Juan Carlos Urenda falava da
necessidade de reforma constitucional. Citava o vice-presidente do país, que em
setembro de 2009 havia concordado com tal reforma. O ex-constituinte Saúl Ávalos,
presente no programa de televisão, dizia que eram os Estatutos os que deveriam ser
reformados para que se adequassem à Constituição, se quisessem ser implementados,
que era a posição governamental. Todos falavam da necessidade de pacto e de diálogo.
O governador Costas havia saudado a aprovação da Lei Marco de Autonomias para
desgosto de muitos no autonomismo crucenho. Mas Romero analisava que a Meia-Lua
havia improvisado argumentos muito ruins para se opor à lei pois sistematicamente
havia rechaçado todas as ofertas de coalizão convocadas pelo governo no último ano.
Por haver mantido o cenário de 2008, de buscar impugnar a Constituição desde os
Estatutos, a oposição havia perdido a possibilidade de opinar e ser considerada na
elaboração da Lei Marco, dava a entender Romero.No entanto, em um comentário
frente às câmeras logo depois de finalizado o programa, Romero declarava que era
necessário adequar os estatutos à Constituição, e também aceitava que em matéria de
competências podia haver uma adequação da lei e também da Constituição
482
.
Seriam as assembléias departamentais eleitas em abril de 2010 as responsáveis
pela adequação, e logo depois de aprovada a Lei Marco de Autonomias o jornal La
Prensa afirmava que em Pando, Beni e Tarija os parlamentares já haviam começado o
trabalho (23/7/2010). Ao mesmo tempo regularizava-se também a situação institucional
do país, e com uma “lei curta” Evo Morales supria provisoriamente as vagas nos
tribunais, que segundo a nova Constituição seriam eleitos por voto direto. Os Comitês
Cívicos continuavam com uma agenda dura, ainda que sem poder de convocatória,
em que pese a tentativa de convocação de novas manifestações para a metade de 2010.
Suas reivindicações eram contra as “perseguições penais com fins políticos”, propor
uma reforma parcial da Constituição para conseguir um “regime autonômico real” e
481 Urenda foi apontado como ideólogo das autonomias departamentais, e havia sido o candidato a
governador em abril, criticando a Rubem Costas reeleito que aparecia frente a Urenda como mais
aberto ao diálogo com o governo, deixando pra trás a agenda unilateral de autonomia. No programa se
discutiu sobre a partir de onde deveriam vir as ordens da polícia (governador ou governo central), se os
títulos de bacharel deveriam ser emitidos em Santa Cruz, em La Paz ou emitidos em La Paz mas entregues
nos estabelecimentos educativos, e a suspensão de autoridades que são processadas.
482 Imagens disponíveis em http://eju.tv/2010/07/ministro-romero-acepta-que-se-deben-revisar-las-
competencias-de-la-ley-marco-y-la-constitucin/
552
chamar as Assembléias Departamentais a adequar os Estatutos Autônomos votados
“sem modificar seus conteúdos”. Carlos Romero avaliava que “as pessoas passaram
de uma etapa de mobilização política a uma etapa de expectativa por resultados”, como
se veria nos conflitos entre Potosí e Oruro.
Em 26 de julho de 2010, logo depois de aprovadas as leis orgânicas do Estado,
García Linera discursava no ato de inauguração do XXI Congresso Ordinário da
Federação Especial de Trabalhadores Camponeses do Trópico, uma das maiores
federações de colonizadores cocaleros do trópico de Cochabamba, com 20 mil afiliados,
e da qual Evo Morales ainda é o secretário executivo. Nesta oportunidade, García
Linera anunciou o início de uma quinta etapa na Revolução Democrática, empreendida
pelo governo de Evo Morales, na qual a “ofensiva estratégica” estará orientada à
construção e à tomada do poder político, econômico e cultural “para ter capacidade de
decidir e mandar sobre a política e a economia” do país. O jornal Los Tiempos, de
Cochabamba (27/7/2010), tinha como manchete: “Vice anuncia o início da tomada total
do poder”. Segundo o vice-presidente, em uma primeira etapa se construiu o
Instrumento Político pela Soberania dos Povos; numa segunda incursionou-se no
cenário político dos processos eleitorais; na terceira chegou-se ao governo e na quarta
derrotou-se ideológica e politicamente a direita, reportava a imprensa.
Começava a quinta etapa em que “o desafio é construir o poder total em três
eixos: os poderes econômico, político e cultural, para garantir o processo de mudança”.
García Linera explicava que para ter o poder econômico era preciso consolidar o
processo de industrialização das matérias primas e a soberania sobre os recursos
naturais, depois redistribuir a riqueza e por último potencializar a capacidade
econômica dos sindicatos para que tenham capacidade econômica e produtiva. Pensava
em um modelo no qual os movimentos sociais começaram a ter organizações
produtivas, administradas coletivamente, o que os faria invencíveis, dizia. Enquanto
poder político, havia manifestado que além dos governos e da Assembléia a presença do
povo humilde e trabalhador sem que necessariamente tenha formação profissional
em todas as entidades do país, com servidores públicos dispostos a sacrificarem-se e
com a idéia de que vão sair pobres dos cargos; e com controle social. Para obter poder
cultural disse que deve reforçar-se e ampliar-se a ideologia de igualdade e sacrifício que
impulsiona o presidente Evo Morales. Mas recordava que a revolução era revolução
justamente porque não havia receitas.
553
Um dia depois ao ato no Chapare, em 28 de julho de 2010, após aprovadas as
leis fundamentais do novo Estado, García Linera encerrou um evento sobre Terra e
Território (apud BARTRA 2010). “Como nesta Revolução o sujeito era o movimento
indígena”, dizia o vice-presidente, “a questão Terra-Território é a chave de que
dependem no curto e no médio prazo”. Continuava desenvolvendo a idéia do poder
econômico para as comunidades. Dizia: o Estado não pode criar o comunitário, isto é
tarefa das próprias comunidades. Mas ele pode criar condições para que passem da
“propriedade comum” à “produção em comum”, na linha da proposta Década Produtiva
apresentada na Confederação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses da Bolívia
(CSUTCB). E dizia que era da comunidade que nascia o paradigma Viver Bem, com
mecanismos de desenvolvimentos que não estão baseados na rentabilidade. Esclarecia
no entanto que o Viver Bem não se sustenta sobre a miséria, necessita-se de saúde,
educação, estradas, eletricidade, sem destruir o entorno. Mas lhe preocupava que o
direito à consulta fosse vinculante porque quando se quer explorar um recurso renovável
e a comunidade não aceita, ela diz “não se toca” e “não se toca”.
Via que depois que os movimentos indígenas e camponeses “viraram” Estado,
com seu projeto e programa de políticas de Estado, haviam se voltado aos
particularismos, ao localismo, ao individualismo comunitário e corporativista. Da
possibilidade de tornar-se Estado se dão conta primeiro os quéchuas e aymaras do
altiplano e dos vales, enquanto os povos do oriente seguiram lutando em uma certa
exterioridade, dizia, com a marcha indígena recém terminada. Então, a questão é como
incorporá-los ao novo Estado plurinacional. era onde aparecia novamente a
necessidade do Estado: até 2008 o movimento representava o interesse geral e o Estado
ia na contramão, agora era o contrário. Devido à guinada de certos setores a seu
interesse particular, o Estado deve assumir por si mesmo a representação do interesse
geral.
No entanto assinalava que essa presença do Estado não era o que desejavam, e
que deve ser temporária. Prevendo um novo tempo afirmava: “Não há revoluções
permanentes, só por ondas. Esperamos uma nova onda de massas. Uma onda de
movimentos que passem por cima do Estado, que vão ainda mais para além que o irmão
Evo”. E antes havia dito que o mais importante da plurinacionalidade do Estado eram as
grandes mudanças simbólicas. E a mudança mais importante e significativa, o mais
profundo da plurinacionaliadde era que hoje no horizonte de vida de um indígena
camponês boliviano está o de ser chanceler ou pedreiro, contrabandista ou presidente.
554
García Linera lembrava que uns dias antes estava sentado entre uma camponesa que era
ministra e um camponês que era Senador. Isso é o mais revolucionário da Bolívia, dizia,
é possível ser ministro ou legislador sem necessidade de tingir a pele ou trocar de
sobrenome.
O novo tempo político do Estado Plurinacional anunciava que a aprovação da
Constituição fechava uma etapa para iniciar outra, na qual se trataria de gestão. A
dinâmica dos acontecimentos que havia levado até ali e que nos preocupamos em
apresentar se perdia em um passado que transcendia o modo como havia ficado
definido nas novas formas constitucionais. Seus espaços abertos e tensões não
resolvidas, no entanto, eram o território para onde a política boliviana tinha mudado.
Era um centro político e uma verdade formal que haviam custado a encontrar e que
havia dado lugar ao nascimento do novo Estado. Mas era um novo espaço
irremediavelmente tenso, não pelo trabalho dos constituintes e sim porque apesar dos
esforços destes a vitalidade de comunidade, a diferença de projetos de longo prazo, as
visões regionais ou ideológicas e a incansável vontade de mudança e descolonização
não deixariam de se articular e mobilizar.
O que não se podia negar era que neste processo acontecia alguma coisa. Alguns
buscavam negar com desconfiança os sentidos políticos que os povos e nações
indígenas originário-camponeses haviam definido e transformado em lei. Esta
verdadeira teoria concretizada como Constituição do Estado Pllurinacional determinará
um caminho para a política boliviana cuja direção e significados emergirão com o
tempo. Por enquanto, trata-se de uma nova Constituição promulgada por um presidente
indígena, e espero que estas páginas tenham permitido refletir algo da paixão, da
controvérsia e da força política que acompanhou a redação e a aprovação de seus
conceitos, espaços abertos e palavras.
555
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ANEXO FOTOGRÁFICO. (fotos Salvador Schavelzon).
Mobilização em Sucre e tribuna na Cúpula Social de 2007.
Produtores de Quinoa na Assembléia / periódico da REPAC com mão camponesa.
Diretoria em Sessão plenária Teatro Mariscal / A Meia Lua e o reclamo dos dois
terços.
589
Ministros e Comandantes na Comissão de Segurança e Defesa / Comissão Visão País.
Comissão Judicial em sessão / Mobilização pela Capitalia Plena.
Cúpula Social / Reunião do Comitê Interinstitucional em Defesa da Capitalia Plena.
590
Mobilização em Sucre, “a Cidade Branca” / Entrevista com constituinte de pollera.
Presidenta e Vice em uma C‟oa, primeira noite do Liceu/ Constituintes de terras altas e
baixas.
La Paz e Chuquisaca tentam alcançar um acordo/ Presidenta e prefecto em La
Glorieta.
591
Vicepresidente vislumbrando capacete mineiro característico de Oruro /Última sessão
em Oruro
PODEMOS irrompe em sessão sem ser impedida sua entrada / Ato de promulgação em
El Alto.
Evo Morales e Álvaro Linera chegam ao ato de promulgação / Yatiris Ch‟allan a nova
CPE
592
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