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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Memórias do front:
Relatos de guerra de veteranos da FEB
Luciano Bastos Meron
Salvador
2009
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Luciano Bastos Meron
Memórias do front:
Relatos de guerra de veteranos da FEB
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em História Social,
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
como requisito parcial para obtenção do
grau de Mestre em História.
Orientador: Prof. Dr. Carlos Eugênio Libano
Soares
Salvador
2009
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__________________________________________________________________________
Meron, Luciano Bastos
M567 Memórias do front: relatos de guerra de veteranos da FEB / Luciano Bastos
Meron. -- Salvador, 2009.
160 f.
Orientador: Prof. Dr. Carlos Eugênio Líbano Soares
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas, 2009.
1. Guerra Mundial, 1939-1945 - Brasil. 2. Brasil. Força Expedicionária
Brasileira 3. Memória. 4. Brasil – Política e Governo - 1939-1945.
5. Brasil – Exército – História II. Universidade Federal da Bahia, Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas. III.Título.
CDD – 940.5381
___________________________________________________________________________
Luciano Bastos Meron
Memórias do front:
Relatos de guerra de veteranos da FEB
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História Social, Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas, como requisito
parcial para obtenção do grau de Mestre em
História.
Orientador: Prof. Dr. Carlos Eugênio Libano
Soares
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Eugênio Libano Soares - UFBA
Orientador
_______________________________________________________
Prof. Dr. Antonio Luigi Negro -UFBA
Examinador
_______________________________________________________
Profa. Dra. Marina Helena Chaves Silva - UESB
Examinadora
Soldados
Renato Russo / Marcelo Bonfá
Nossas meninas estão longe daqui
Não temos com quem chorar e nem pra onde ir
Se lembra quando era só brincadeira
Fingir ser soldado a tarde inteira?
Mas agora a coragem que temos no coração
Parece medo da morte mas não era então
Tenho medo de lhe dizer o que eu quero tanto
Tenho medo e eu sei porquê:
Estamos esperando.
Quem é o inimigo?
Quem é você?
Nos defendemos tanto tanto sem saber
Porque lutar.
Nossas meninas estão longe daqui
E de repente eu vi você cair
Não sei armar o que eu senti
Não sei dizer que vi você ali.
Quem vai saber o que você sentiu?
Quem vai saber o que você pensou?
Quem vai dizer agora o que eu não fiz?
Como explicar pra você o que eu quis
Somos soldados
Pedindo esmola
E a gente não queria lutar.
Aos soldados desconhecidos
que jazem no Mausoléu da FEB
no monumento aos veteranos
brasileiros da II Guerra Mundial
no Rio de Janeiro.
Ao meu tio Alberto Bastos
Agradecimentos
Um trabalho com este não começa no dia que se presta a seleção do mestrado e
muito menos é realizado sozinho. Muitas pessoas e muitos acontecimentos antecedem o
dia da entrega da dissertação. Essas pessoas que contribuíram em maior ou menor
escala, como uma orientação, uma fonte ou com um “vai dar tudo certo” merecem ser
lembradas!
O trabalho chega ao fim
___
o que não quer dizer que eu esteja satisfeito com ele,
pois sempre penso que poderia ter citado mais uma fonte, explanado melhor um
argumento, ter anexado mais um mapa
___
e um alívio (UFA!), uma grande satisfação
toma conta de mim e, aposto, todos aqueles que dividiram esses anos de angustia,
dedicação, impaciência, fascínio, aprendizado e prazer comigo.
Como não poderia deixar de ser, emocionadamente, agradeça em primeiro lugar,
antes de tudo e de todos, à minha mãe. Minha orientadora, minha financiadora
(“mãetrocínio” é melhor que bolsa!), minha companheira, minha motivadora. Nas horas
em que todos duvidavam, até mesmo quando eu duvidei que fosse capaz de conseguir,
foi ela que acreditou em mim! Obrigado, mãe!
Obrigado também ao meu filho e aos meus irmãos Cláudio e Gustavo pelas
conversas, opiniões e atenção!
Ao meu tio Alberto Bastos pelos anos de aulas sobre Montgomery, Rommel,
Patton, Kelssering, e todos os grandes generais, exércitos, estratégias, batalhas e
campanhas sobre esse fascinante fato histórico que foi a II Guerra Mundial. Obrigado
pela ótima biblioteca, sempre a minha disposição, sem prazos, multas ou suspensões!
Obrigado aos meus amigos mais íntimos, André, Fernando, Luis, Marcelo e
Acúrsio pela paciência, pelo interesse e pelo incentivo. Obrigado a Luciana, Marcello,
Miwky, Daiana e Marquinhos pelo interesse e pelos momentos de descontração que
renovaram as minhas forças e contribuíram para seguir adiante!
OBRIGADO ALINE! Pelos livros dos sebos, pelos debates sobre metodologia,
pela paciência, por acreditar em mim! Muito obrigado!
Ao meu amigo, meu irmão Carlos Barros! Por poder dividir as angústias e
felicidades dessa trajetória! Pelo companheirismo nas pesquisas no Rio de Janeiro. Por
acreditar em mim!
Agradeço também a outro tio, Alberto Ikeda, pelo incentivo e pelos livros
fundamentais!
Obrigado aos companheiros de mestrado, em especial Izabel e Bruna pela
amizade, informações e risadas!
Obrigado ao meu orientador por ter acreditado em meu projeto, pois só quem
trabalha com história militar sabe das dificuldades e especificidades dessa área de
pesquisa. Obrigado não só pelas orientações, mas pelos papos divertidos e apaixonados
sobre a II Guerra Mundial.
Meus agradecimentos vão ainda para o Prof. Muniz Ferreira, que durante a
graduação foi meu guia, meu incentivador e no mestrado, sempre que possível, ter sido
atencioso com minha pesquisa.
Profª Maria Hilda B. Paraíso é uma pessoal que me deixa sem palavras nessa
hora. Uma mãe dentro da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA!
Sempre solícita, atenciosa e mesmo “sem saber bulhufas” (como ela fala) sobre guerra
me ajudou muito, muito! Não apenas com conhecimento, mas com carinho, atenção!
Tenho orgulho de dizer que fui seu aluno!
Ao professor Milton Moura, por ter me apoiado no inicio do mestrado e pelas
ricas e divertidíssimas aulas sobre cultura brasileira.
Às minhas amigas pesquisadoras e companheiras de paixão pela FEB Clarice
Helena e Virginia. Muitas dúvidas, muito material dividido e a paixão pelo mesmo tema
me aproximaram dessas garotas! Obrigado também a Fábio pelas mesmas razões!
Agradeço ainda aos meus alunos que foram pacientes e tolerantes com minhas
falhas no período de conclusão da pesquisa.
Especial agradecimento faço ao Sr. Raul Carlos dos Santos, presidente da
Associação Nacional dos Veteranos da FEB – Regional Bahia. Anos de contato,
paciência e boa vontade não só nas entrevistas, mas no contato com outros veteranos e
pelo grande conhecimento a mim transmitido! Obrigado a todos os veteranos que
colaboraram com este trabalho!
Aos oficiais e praças do Arquivo Histórico do Exército do Rio de Janeiro pela
colaboração, orientações e préstimo.
Enfim, obrigado a todos que ajudaram na execução deste projeto!
“Nosso século demonstra que a vitória dos ideais
de justiça e igualdade é sempre efêmera, mas
também que, se conseguirmos manter a liberdade,
sempre é possível recomeçar [...] Não há por que
desesperar, mesmo nas situações mais
desesperadas.”
Leo Valiani, historiador italiano.
Resumo
Este trabalho tem por objetivo analisar as narrativas de guerra de veteranos da
Força Expedicionária Brasileira (FEB) durante a II Guerra Mundial. A pesquisa foi
realizada dentro da abordagem da História Oral, discutindo os processos de formação
das diversas memórias existentes dentro do grupo dos veteranos. Contribuiu para a
análise dos depoimentos as perspectivas da Nova História Militar, onde os aspectos
sociais e culturais passam a se sobrepor nos estudos sobre as forças armadas e a
experiência do serviço militar.
As entrevistas cobriram a trajetória da FEB, desde sua formação, passando pelo
treinamento, envio à Europa, “batismo de fogo”, cotidiano no front, situações de
combate, retorno ao Brasil e desmobilização, abrangendo o período da declaração de
guerra às nações do Eixo, em agosto 1942, até o fim das hostilidades, em maio de 1945.
Questões como os aspectos das relações com os civis italianos e com os militares norte-
americanos, o medo e as estratégias de enfrentamento e as visões sobre os inimigos
tiveram destaque nas interpretações das narrativas.
Palavras Chave: II Guerra Mundial; Força Expedicionária Brasileira; Memória;
Narrativas de guerra.
Abstract
This work has for objective to analyze the narratives of war of veterans of
Brazilian Expeditionary Force (BEF) during the World War II. The research was carried
through inside of the boarding of Verbal History, arguing the processes of formation of
the diverse existing memories inside of the group of the veterans. It contributed for the
analysis of the depositions the perspectives of New Military History, where the social
and cultural aspects pass if to overlap in the studies on the Armed Forces and the
experience of the military service.
The interviews had covered the trajectory of the BEF, since its formation,
passing for the training, sending to the Europe, “fire baptism”, daily in front, situations
of combat, return to Brazil and demobilization, enclosing the period of the declaration
of war to the nations of the Axle, in August 1942, until the end of the hostilities, in May
of 1945. Questions as the aspects of the relations with the Italian civilians and the North
American military, the fear and the strategies of confrontation and the perception on the
enemies had prominence in the interpretations of the narratives.
Words Key: World War II; Brazilian Expeditionary Force; Memory; Narratives of war.
Sumário
Introdução
1
I O Brasil vai à guerra: a formação da Divisão de Infantaria Expedicionária
6
1.1 A guerra e seu contexto em meados de 1944
8
1.2 Noticias do front: O contato com a guerra e o preparo da FEB
12
1.3 A caminho do front
33
II “O belo país”: Os soldados brasileiros na Itália
42
2.1 A chegada: Destruição e miséria
43
2.1.2 O convívio com os civis: Os limites entre a ilegalidade, afeto e a sobrevivência
47
2.1.3
Brasiliani liberatori
58
2.2 Os americanos: O american way nos campos de batalha
61
2.2.2 Hierarquia e (des) igualdade
69
III A guerra: narrativas de combate
78
3.1 Sob fogo inimigo
80
3.2 O medo
96
3.3 Eles, os inimigos
108
3.3.2 “Um grupo especial”
119
IV Epilogo: de volta pra casa
125
4.1 O dia seguinte: esquecimento, preconceito, miséria
129
Considerações Finais
135
Referências bibliográficas
137
Fontes
141
Anexos
144
Introdução
Prateleiras cheias de pequenos livros da Renes e os volumosos exemplares da
Paris Match ou da Flamboyant. Foi assim que a Segunda Guerra Mundial começou para
mim, logo cedo. Na casa de um tio materno, folheava estes livros com grande
curiosidade e, ainda garoto, me surpreendi ao ver que o Brasil enviara tropas, como as
grande potencias mundiais, para lutar contra “os terríveis nazistas”.
Este fascínio me acompanharia por muitos anos. Durante a graduação em
história muitos temas chamaram minha atenção, afinal era por paixão que entrara na
academia. Outros livros volumosos iriam se juntar às idéias que os primeiros
introduziram e uma vez formado coloquei em prática as pesquisas que me aproximariam
de maneira mais direta dos campos de batalha europeus. Descobri que em minha cidade
havia uma associação de veteranos. Não poderia perder a oportunidade de pesquisar,
através dos depoimentos desses combatentes, uma parte do grande conflito que estava
ali “perto” de mim. A aproximação foi lenta e nem sempre os resultados colhidos eram
tão satisfatórios assim, mas foi o suficiente para “permanecer em combate”.
Diferente de outras abordagens a História Oral lida com uma particularidade
muito grande: as fontes estão vivas! Embora meus colegas que trabalham
exclusivamente em arquivos possam afirmar que os mesmos são muito trabalhosos e até
caprichosos
___
o que não tenho dúvidas!
___
mas os mesmos não podem dizer que se
deparam com cachorros ferozes que insistem em se colocar entre você e sua fonte! Ou
mesmo argumentar que hoje sua fonte não lhe dará atenção porque esta adoentada ou de
mau humor. Claro que há as benesses...uma cervejinha com salgadinhos, risadas e os
amigos que muitas vezes surgem durante a pesquisa. O historiador britânico Alistair
Thomson já tinha percebido, ao trabalhar com veteranos da Primeira Guerra Mundial,
que muitas vezes se cria um vinculo pessoal com os depoentes
1
. Contatos durante meses
e longas horas de entrevistas compartilhando informações tão íntimas e com freqüência
dolorosas, transforma estes homens em muito mais que objetos de pesquisa.
1
THOMSON, Alistair. “Recompondo a memória: Questões sobre a relação entre História Oral e
memórias”. In: ANTONACCI, Maria Antonieta. e PERELMUTTER, Daisy. Ética e História Oral. São
Paulo: EDUC, Abril/1997, nº 15.
Assim amadureceu a idéia de formular um projeto de mestrado utilizando a
História Oral como abordagem e tendo como foco as experiências de guerra de
veteranos baianos no último grande confronto mundial. O aprofundamento da pesquisa
me fez ver que a existência de trabalhos acadêmicos era bem escassa, embora houvesse
uma boa quantidade de fontes disponíveis. As dissertações e teses que surgiam
abordavam a Força Expedicionária Brasileira (FEB) de maneira ampla, fazendo grandes
panoramas. Posteriormente surgiram algumas pesquisas mais específicas, que se
tornariam referências para os novos trabalhos, como as que estudavam as questões
político-econômicas que levaram ao envolvimento do Brasil na guerra
2
; a trajetória da
FEB e relação entre memória e guerra
3
; e o pós-guerra e reintegração social dos
veteranos
4
. Mesmo assim são raros os trabalhos sobre a FEB, especialmente os que
enfocavam os momentos de combate, como os soldados encaravam as situações de
perigo, o medo e as visões sobre o inimigo.
Tentando responder a estas indagações norteei minha pesquisa. A abordagem
que segui nas entrevistas é a que a socióloga Alice Betriz G. Lang chama de relato oral
de vida, “[...] quando é solicitado ao narrador que aborde, de modo mais especial,
determinados aspectos de sua vida, embora dando a ele total liberdade de exposição,
mas o entrevistado sabe o interesse do pesquisador e direciona seu relato para
determinados tópicos”
5
. Assim não foram feitos questionários que pudessem limitar os
depoentes, mas tópicos sobre aspectos da experiência da guerra, onde as perguntas
surgissem de acordo com as particularidades das vivências de cada individuo.
Fundamentais para o entendimentos desse tipo de fonte foram os trabalhos de Michel
Pollak
6
, que lidou com sobreviventes do Holocausto Judeu; Alessandro Portelli
7
, que
pesquisou as vitimas de massacres alemãs na Itália; e o já citado Alistair Thomson. De
2
SEITENFUS, Ricardo. O Brasil Vai à Guerra: O Processo de Envolvimento do Brasil na Segunda
Guerra Mundial. Barueri: Manole, 2003.
3
MAXIMIANO, César Campiani. Trincheiras da memória:Brasileiros na campanha da Itália – 1944-
1945. USP, 2004 (Tese de Doutorado).
4
FERRAZ, César A. A guerra que não acabou: A reintegração social dos veteranos da Força
Expedicionária Brasileira (1945 – 2000). USP, 2003(Tese de Doutorado).
5
LANG, Alice Beatriz G. “História Oral: muitas dúvidas, poucas certezas e uma proposta”. In: MEIHY,
Joseé Carlos Bom. [Re]introduzindo a História Oral o Brasil. São Paulo: Xamã/USP, 1996, pp. 35.
6
POLLAK, Michel. “Memória, esquecimento e silêncio”. In: Estudos históricos. Rio de Janeiro, Vol.2,
n.3,1989.
7
PORTELLI, Alessandro. “O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito
e política, luto e senso comum”. In: Usos & Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 2002
grande serventia, também, para a prática das entrevistas foi o artigo de Verena Alberti,
sobre metodologia de História Oral
8
.
Realizei pouco mais de vinte e uma horas de entrevistas com três membros da
Associação Nacional dos Veteranos da FEB (ANVFEB) - Regional Bahia, ao longo dos
anos de 2007 e 2008. O espaço grande entre as entrevistas ocorreu devido a
compromissos particulares dos depoentes e suas idades avançadas (muitas vezes eles
estavam adoentados ou com parentes próximos neste estado). Dois dos entrevistados
são baianos e lutaram no mesmo regimento de infantaria, embora que em funções e
companhias diferentes. O terceiro entrevistado preferiu não ser identificado (passando a
ser tratado no texto como “Cabo X”), devido ao teor de suas declarações, por isso não
revelarei sua naturalidade, que levaria ao seu reconhecimento. O número pequeno de
entrevistados se deu especialmente pela riqueza de dados apresentados pelos depoentes
abordados e tempo exíguo para todo o processo de trabalho com as fontes orais numa
pesquisa de mestrado (levantar veteranos dispostos e em condições de serem
entrevistados, agendar e realizar as mesmas e transcrever as gravações e analisá-las).
A singularidade dessas fontes se dá, primeiramente, pelo conteúdo, pois nas
longas entrevistas foram aprofundados dados pouco trabalhados ou inéditos em outras
pesquisas, e, em segundo lugar, pelo fato de que veteranos baianos estarem de fora dos
trabalhos referenciais sobre a FEB
9
.
Utilizei ainda um conjunto de entrevistas realizado pelo Exército Brasileiro no
projeto “História Oral do Exército na Segunda Guerra Mundial (HOESGM)”. O
exército realizou entrevistas entre os anos de 2000 e 2001, contemplando veteranos nos
Estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Recife, Fortaleza e Brasília. Além
dos três regimentos que formaram a FEB, foram incluídos expedicionários de todas as
unidades, como o Batalhão de Engenharia, Esquadrão de Reconhecimento, Artilharia
Divisionária, além do 1º Grupo de Aviação de Caça e membros da forças que
patrulhavam o litoral brasileiro durante o conflito.
Este trabalho tem uma importância muito grande para os estudos da FEB, já que,
como uma instituição presente em todo território nacional, o exército possui um alcance
físico que dificilmente um pesquisador teria. Além disso, a maioria dos veteranos possui
fortes vínculos emocionais com a instituição, de forma direta ou através das
8
ALBERTI, Verena. “Histórias dentro da História”. IN: PINSKY, Cala B. Fontes históricas. São Paulo:
Contexto, 2005.
9
O historiador Paulo Leite chegou a entrevistar doze expedicionários baianos, disponibilizando parte
desse material no site http://veteranosbaianos.com/
associações, que participam, muitas vezes, de cerimônias oficiais nas diversas unidades
do exército espalhadas pelo Brasil. Mas justamente por causa deste vinculo faço
ressalvas a estes depoimentos.
Acredito que muito dos depoentes do projeto HOESGM se sentiram
constrangidos em fazer criticas ou determinadas observações relativas às experiências
de guerra, pois as entrevistas faziam parte de um programa promovido pela instituição
militar. O exército constitui-se hoje a principal esperança de preservação da memória da
FEB, pelo menos para as associações de veteranos.
Ainda como fontes foram utilizados livros de memórias produzidos por praças,
graduados e oficiais, tanto do Quadro Ativo quanto da Reserva, do exército que
participaram da FEB. As primeiras pesquisas sobre a participação brasileira na segunda
guerra utilizam em larga escala livros dos oficiais comandantes da unidade
expedicionária, talvez pela escassez de obras de praças e graduados
___
situação que se
observa até hoje, mas em menor escala
___
ou por influência de uma História Militar
tradicional
10
. Foram preferidas as obras daqueles que compuseram a maior parte da
tropa, mas que são menos conhecidas, ou seja, oficiais de baixa patente e praças.
Foram analisados também são os trabalhos dos correspondentes de guerra
brasileiros. Enviados à Itália sob a vigilância do Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP) estes jornalistas cobririam a participação brasileira desde o embarque
até o retorno da tropa. Descrições do cotidiano, relações com a população civil,
funcionamento das unidades, situações de combate, entre outros, são temas das
reportagens, que, após a guerra foram copiladas e reunidas em livros por alguns destes
correspondentes.
Em menor escala foram trabalhados alguns documentos levantados no Arquivo
Histórico do Exército (AHEx), localizado no Palácio Duque de Caxias (PDC), no Rio
de Janeiro. A menor utilização de fontes documentais não se deu pela escassez das
mesmas, mas a localização do arquivo em outro Estado e, principalmente, pela mudança
de foco da pesquisa. A documentação coletada em 2007 fundamentaria uma abordagem
direcionada para a análise das relações entre soldados brasileiros e seus inimigos, mas
durante a qualificação novo rumo foi tomado. Assim, poucos documentos levantados no
primeiro ano do mestrado tiveram aproveitamento no trabalho atual.
10
Ao longo da dissertação serão definidos e abordados os conceitos de “História Militar tradicional” e
“Nova História Militar”.
Utilizei ainda alguns exemplares do jornal ...E a cobra fumou, de autoria de
soldados do 1º Regimento de Infantaria e produzido durante a Campanha da Itália.
Mas as fontes orais, juntamente com os livros de memória se constituíram em
ricas fontes, viabilizando este trabalho final, que ficou composto de três capítulos e um
epílogo:
No primeiro capítulo falo, brevemente, do contexto da guerra na Europa, quando
do envio da FEB para guerra. Além disso, trato das repercussões do conflito e como as
noticias sobre o mesmo circulavam no Brasil e entre os convocados. Ainda neste
capítulo abordo o preparo e a viagem para o continente europeu.
No segundo, após tratar das reações surgidas na tropa com a chegada aos
campos de batalha, foco as relações desenvolvidas pelos brasileiros com a população
italiana e as visões que os praças e oficiais formularam sobre essa. Objetivo também as
relações com principais aliados, os norte-americanos, e reações frente a tropas
segregadas racialmente, além do choque com as diferenças de organização que o
exército dos EUA possuía.
Já no terceiro capitulo tenho como ponto central o combate. Abordo os
principais riscos que os com batentes estavam expostos e os ferimentos que sofriam.
Trato ainda de um delicado assunto entre veteranos de guerra: o medo. Analiso as
estratégias desenvolvidas para lidar com o mesmo e como eram vistos os combatentes
considerados covardes. Por último, neste capítulo, analiso as visões construídas sobre o
inimigo, em especial o alemão, e abordo um depoimento único de um cabo que fez parte
de um grupo que exterminava franco-atiradores alemães.
No epilogo fecho o ciclo da campanha com as narrativas sobre cessação das
hostilidades, a viagem de volta a emoção de estar novamente na pátria. Trato ainda, de
forma breve, dos problemas na reintegração social, da formação das associações de
veteranos e da preocupação em preservar uma memória do grupo.
I
O Brasil vai à guerra: a formação da Divisão de Infantaria
Expedicionária
Os fantasmas da Grande Guerra (1914-1918) mal tinham sido exorcizados e uma
novo conflito mundial despontava com a invasão da Polônia, em 1 de setembro de 1939,
pelas forças armadas da Alemanha nazista. Esta Era da Catástrofe segundo o
historiador Eric Hobsbawm estava em pleno curso
11
. E os números dessa guerra
mundial atingiriam cifras nunca antes vistas e difíceis de mensurar, aliás, como atenta o
historiador britânico citado, o “[...] que significa exatidão estatística com ordem de
grandeza tão astronômica?” Por exemplo, as baixas soviéticas giram entre 10% a 20%
da população total, ou seja, números que beiram entre 20 a 30 milhões de pessoas
12
.
Essa guerra de proporções mundiais envolveria não só os políticos e soldados,
ou os setores da indústria bélica, mas praticamente todos os segmentos sociais dos
principais países envolvidos. Ainda assim, mesmo nos países periféricos à disputa entre
Aliados e forças do Eixo, a guerra traria mudanças de grandes proporções, mesmo para
a população civil.
Temos, com certeza, que a guerra moderna envolve todos os cidadãos e
mobiliza a maioria; é travada com armamentos que exigem um desvio de toda
a economia para a sua produção, e são usados em quantidades inimagináveis;
produz indizível destruição e domina e transforma absolutamente a vida dos
países nela envolvidos.
13
Assim, este capitulo se propõe, primeiramente, a compor um breve contexto
dessa guerra onde o Brasil participaria não só com o fornecimento de matérias primas e
apoio político aos Aliados, mas, também, com o envio de um corpo expedicionário à
Europa. Busco com isso introduzir o papel da Força Expedicionária Brasileira no Teatro
de Operações italiano em fins de 1944 e inicio de 1945, quando do fim dos combates no
continente europeu.
11
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: O Breve Século XX-1918-1991. São Paulo: Cia das Letras,
1995
12
Id. Ibidem, pp. 50.
13
Id. Ibidem, pp. 51.
Em seguida abordarei a guerra no âmbito do grupo de veteranos brasileiros do
conflito analisando suas primeiras impressões sobre a guerra e como circulavam as
informações sobre a mesma no Brasil do Estado Novo. Tanto a população civil quanto
militar dos centros urbanos, especialmente nos estados nordestinos, se viram envolvidas
em campanhas de mobilização para o esforço de guerra, seja na vigilância sobre os
“súditos do Eixo” ou na arrecadação de donativos e matérias primas, a partir da ruptura
de relações com a Alemanha e a Itália e o posterior estado de beligerância contra os
mesmos, em agosto de 1942.
O envolvimento direto com a guerra moderna traria mudanças profundas na
organização militar brasileira. As diferenças de organização e recursos das Forças
Armadas do Brasil em relação aos Estados Unidos da América são perceptíveis no
processo de preparação da FEB em solo pátrio, sendo estas, focando o ponto de vistas
dos soldados convocados e militares da ativa, objeto de analise também deste capitulo.
Abordarei ainda as impressões sobre a viagem para a Itália. Embora a navegação
marítima, na primeira metade do século vinte, constituísse o principal meio de
transporte de longa distância no Brasil boa parte da tropa nunca havia realizado uma
grande viagem e, muito menos, uma incursão transatlântica. Esta viagem ainda tinha a
singularidade de ser realizada sob o estado de guerra, o que significava o risco de
ataques por parte de submarinos ou aviação alemã
___
embora remotos, já que a
Kriegsmarine (marinha de guerra alemã) e a Luftwaffe (força aérea alemã) no segundo
semestre de 1944, quando do envio da FEB, já tinham seus poderios muito limitados,
para não dizer quase anulados, comoveremos no contexto da guerra logo abaixo.
É importante ressaltar que não é objetivo deste trabalho discutir as causas do
envolvimento do Brasil varguista no conflito e sua aliança com os EUA. Obras voltadas
especificamente para a análise do quadro das relações internacionais brasileiras no
período conseguem explorar esta temática de forma consistente, entre as quais destaco
as dos pesquisadores Ricardo Seitenfus, Stanley Hilton, Maria de Lourdes F. Lins e
Frank D. McCann
14
. Logo, quando abordar as origens do conflito e os motivos que
14
Para mais detalhes ver: HILTON, Stanley E. O Brasil e as Grandes Potencias - 1930-1939: Aspectos
Políticos da Rivalidade Comercial. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1977; _____.A Guerra Secreta
de Hitler no Brasil: A Espionagem Alemã e a Contra -Espionagem Aliada. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1983; LINS, Maria de Lourdes F. A Força Expedicionária Brasileira: uma tentativa de
interpretação. USP, 1975 (dissertação de mestrado); McCANN, Frank D. A Força Expedicionária
Brasileira na Campanha da Itália, 1944-1945. In: SILVEIRA, Joel e MITKE, Tassilo. A Luta dos
Pracinhas: A FEB 50 anos depois – Uma Visão Critica. Rio de Janeiro: Record, 1983; SEITENFUS.
Op.cit.
levaram o Brasil à guerra, focarei as interpretações dos veteranos sobre as noticiais que
circulavam na época.
1.1 - A guerra e seu contexto em meados de 1944
Ao se pensar nas Forças Armadas no âmbito histórico já temos há alguns anos a
possibilidade de extrapolar a “história militar tradicional”, ou seja, o “[...] estudo das
batalhas, táticas e principais figuras militares”
15
, o que significa dizer que os avanços
historiográficos da Nova História passaram a ser utilizados na abordagem dos
questionamentos relativos às estas instituições.
A experiência militar é algo singular para a maior parte dos indivíduos, pois
instituições como o exército criam laços de sociabilidade próprios entre seus membros,
fruto do objetivo dessas organizações
___
ser um agente de violência controlado pelo
Estado
___
da sua estrutura e funcionamento. São instituições totais
16
, pois:
[...] compõem-se de pessoas divididas em um numeroso grupo de
indivíduos dirigidos e um pequeno grupo de supervisores, como pouca
mobilidade social entre eles e modos específicos de lidar uns com os outros. As
instituições totais socializam seus membros de maneiras especificas que
moldam seu pensamento, auto-imagem e comportamento.
17
Mas os militares não se encontram isolados da sociedade onde vivem, muito
pelo contrário. As interações se tornaram particularmente fortes desde generalização do
serviço militar obrigatório, entre os séculos XVIII e XIX
18
. Com as guerras mundiais
teríamos grandes potências industrializadas mobilizando milhões de civis para os
quadros das Forças Armadas, que seriam invadidas por novos comportamentos e novas
idéias, levando a uma interação muito relevante. Embora o Brasil não tenha uma longa
tradição de intervenções externas por meio das suas instituições militares, o mesmo não
15
CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor e KRAAY, Hendrik (orgs.) Nova história militar brasileira. Rio
de Janeiro: FGV/Bom Texto, 2004, pp. 12.
16
GOFFMAN, Erving. Asylums: essays on the social situations of mental patients and other inmates.
Chicago: Aldine, 1962. Apud: MACCANN, Frank. Soldados da pátria: História do Exército Brasileiro
(1889 – 1937). São Paulo: Cia das Letras, 2007, pp. 16-17.
17
MACCANN. Op. Cit. pp.17.
18
Embora o serviço militar obrigatório já começasse a ser utilizado por alguns países como a Suíça desde
o século XVII, ele só viria a se generalizar na virada do século XVIII para o XIX, especialmente a partir
da Revolução Francesa e das Guerras Napoleônicas. Para mais detalhes sobre a circunscrição militar
obrigatória e o significado da experiência militar ver LORIGA, Sabina. A experiência militar. In:
SCHMITT, Jean-Claude e LEVI, Giovanni (Orgs). História dos Jovens: A época contemporânea. São
Paulo: Cia. das Letras, 1996.
se pode dizer no âmbito interno. Diversos foram os momentos da história recente do
país onde os militares tiveram papel preponderante, demonstrando justa mente que as
instituições interagem com a sociedade e em muitos casos de forma violenta.
Quando do envio da FEB à Europa, a Segunda Grande Guerra já estava em
meados do seu quinto ano. Embora a Alemanha já encontrasse uma situação irreversível
no front oriental, contra a URSS, e no ocidental, contra os EUA e seus aliados, e já
tivesse tido derrotas significativas, a guerra ainda não apresentava um fim próximo. As
forças nazistas ainda teriam condições de impor obstinada e custosa resistência aos seus
inimigos
___
lembrando que EUA, Inglaterra e seus inúmeros aliados lutavam também
em duas frentes: no Teatro de Operações europeu e no do Pacífico.
Embora a proposta deste trabalho seja enveredar pelos caminhos da Nova
História Militar isso não significa que a historiografia clássica da II Guerra seja
dispensável, pelo contrário. Essa ainda é fundamental para a compreensão das
campanhas militares, lançando dados factuais importantes mesmo para análises mais
voltadas aos aspectos da Nova História. Assim construirei um breve contexto dos
principais acontecimentos relevantes para o entendimento da atuação da FEB na
Europa, especialmente no TO italiano.
Em fins de junho de 1941, os alemães iniciaram a Operação Barbarossa, a
invasão da URSS. Quatro mil blindados e mais de três milhões e meio de homens
avançariam em três colunas contra os russos. Hitler abria com isso uma segunda frente
na Europa Oriental, depois de derrotar e ocupar Polônia, Dinamarca, Noruega, Bélgica,
Holanda e França até meados de 1940. A Blitzkrieg, a “guerra-relâmpago”, alemã
voltava-se para o tão exigido Lebensraum, o “espaço-vital”, por Hitler e seus
seguidores, que defendiam a expansão para o leste. Nos anos seguintes o front Oriental,
como ficaria conhecido, tragou milhões de homens, veículos e recursos.
O governante alemão esperava uma vitória rápida, mas o que se viu foi uma
longa, desgastante e violenta campanha
19
. Mas os russos sofriam também e
necessitavam do apoio dos aliados, que foi feito em combates aéreos e marítimos em
diversos pontos do Atlântico, Mediterrâneo, Mar do Norte, etc. O apoio também era
19
Falar que um front foi mais ou menos violento pode ser muito questionável, mas dentro da literatura
sobre a II Guerra Mundial é comum perceber essa diferenciação, pelo menos no Teatro de Operações da
Europa. Alemães e russos travariam não só encarniçados combates, mas desrespeitariam diversos tratados
de direitos humanos e convenções de guerra, exterminando prisioneiros e populações civis. “[...] Guerra
impiedosa, que desconhece feridos e prisioneiros, que responde à insegurança pelo terror e não recua nem
diante da tortura nem da profanação de cadáveres”, assim se referiria a Frente Leste o historiador
Raymond Cartier. CARTIER, Raymond. A Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Larousse do Brasil
– Paris Match, 1967, pp. 590, Volume II.
feito com o fornecimento de armas, veículos, suprimentos na casa doas milhões de
toneladas, que atravessam perigosas rotas pelo Mar do Norte em comboios fustigados
pelos submarinos e aviação alemã.
Assim principal
frente de combate contra as tropas alemãs se deu pela ação do
Exército Vermelho, que desde o inicio de 1943 invertera
o fluxo de combate, fazendo a
Wermacht recuar. A segunda frente na Europa fora aberta com a Operação Husky, em
setembro de 1943, ao invadir a Itália. Mas a principal força aliada atacou a Europa em 6
junho de 1944, o “Dia D”, abrindo uma importante penetração nas linhas alemã na
França, formando assim, em conjunto com os soviéticos, um movimento de pinça contra
a Alemanha.
A Overlord, nome código da invasão da Normandia, envolveria um contingente
nunca antes visto numa operação militar durante a II guerra até aquele momento. Seriam
mais de 4 mil embarcações envolvidas, sendo que 213 eram grandes navios de guerra,
como encouraçados e cruzadores
___
além de 13 mil aviões de diversos tipos. No
desembarque inicial 5 Divisões de infantaria e de blindados inglesas, norte-americanas e
canadenses estariam responsáveis pelo assalto às cinco praias escolhidas na Baia do
Sena (entre Cherburgo e a desembocadura do Orne, próximo a Caen). Haveria ainda o
assalto de três divisões aerotransportadas, duas norte-americanas e uma inglesa, atrás
das linhas inimigas, em pontos estratégicos.
Nos dias seguintes à invasão seriam desembarcadas mais divisões, compondo
dois Exércitos, o I Exército Americano e o II Exército Britânico. Para compor essas
unidades foram deslocadas Divisões que atuavam em outros fronts. Algumas unidades
do VIII Exército Inglês e do V Exército Americano que formavam as forças aliadas na
Itália foram cedidas à Overlord.
A invasão da Normandia seria complementada por outra ação ao sul da França, a
Operação Anvil. A 15 de agosto de 1944, o VII Exército Norte-Americano, apoiado pó
9 porta-aviões e mais de 800 embarcações variadas desembarcam forças entre Toulon e
Cannes. Mais uma vez unidades experientes foram deslocadas de outras frentes de
batalha, incluindo a Itália.
Essencialmente, as forças que dela participam provêm do desmembramento
do exército da Itália. A 28 de julho, em plena perseguição, depois da tomada de
Livorno, Pisa e Siena, o 6º Corpo norte-americano e o Corpo expedicionário
Francês foram retirados do general Clark e levados ao Sul da Itália para serem
desembarcados com destino à costa provençal.
20
É neste contexto que devemos entender a participação da FEB no V Exército
Norte-Americano, no âmbito estratégico. Os brasileiros viriam cobrir claros deixados
pelas unidades que eram deslocadas para as ações na França. O comando americano na
Itália já estava realizando improvisos neste front, como atesta a composição da Task
Force 45, unidade formada por soldados treinados em guerra antiaérea. É nesse teatro
de operações que os EUA utilizariam sua única unidade de negros, a 92º Colored,
engajada no front
___
mais detalhes sobre esta divisão serão vistos no capitulo II.
Os avanços dos aliados na Itália continental foram bem mais lentos que o
previsto, pois os defensores tinham a disposição um terreno extremamente acidentado,
onde linhas fortificadas eram construídas sobre os baluartes naturais. Mas eram os
alemães estavam em sérias de dificuldades na Itália. A supremacia aérea dos aliados
destruía sistematicamente as linhas de abastecimento. Estradas e ferrovias eram
marteladas noite e dia, sendo as operações interrompidas apenas pelo mal tempo. Além
disso, a guerrilha, na medida do possível, atacava linhas de comunicação, abastecimento
e fustigava as guarnições germânicas.
Em 1943, quando da invasão da Itália, os aliados pretendiam aliviar o front
russo, desviado os esforços nazistas. Já no ano seguinte objetivo estratégico no front
italiano era reter o máximo de tropas nazistas possíveis: “A absorção de forças alemãs
nessa região iria desfalecer as reservas disponíveis [...]”
21
. Caso fosse conseguida uma
boa penetração nas linhas alemãs, especialmente após a queda de Roma (ocorrida em 4
de junho de 1944), os aliados tentariam empurrar o inimigo para o Vale do Pó, onde os
alemãs comprometeriam mais reservas, numa região mais desfavorável, onde o grande
volume de unidades blindadas e motorizadas anglo-americanas fariam grande
diferença
22
.
Com queda da Linha Gustav, localizada ao sul dos Apeninos, os alemães
recuaram para posições mais ao norte, recompondo sua defesa numa nova área, também
de grande altitude, batizando-a de Linha Gótica. Os combates na Itália, especialmente a
partir da região dos Apeninos, se caracterizaram pelo uso intensivo da infantaria, onde
os carros blindados tinham emprego muito limitado ___ para ver a distribuição das
20
CARTIER. Op. Cit. pp. 622.
21
MCNNIS, Edgar. História da II Guerra Mundial – 1939 -1945. Porto Alegre: Ed. Globo, 1958, vol. V,
pp. 169.
22
Id. Ibidem.
forças em combate, características do terreno e as localidades citadas ver os mapas nos
anexos. Mesmo assim, em muitas ocasiões, as manobras eram feitas em pequenas
unidades, com freqüência no âmbito de Companhias (menos de 200 homens) e até
Pelotões (42 homens).
A FEB seria empregada contra as forças nazistas encasteladas na Linha Gótica,
assim como as novas unidades americanas que seriam formadas e transferidas para o
front italiano visando cobrir os claros deixados pelas operações Overlord e Anvil, que
aspiraram divisões veteranas. O exército dos EUA chegou a preparar uma unidade de
elite, a 10ª Divisão de Montanha, para ser empregada no front italiano, operando ao lado
da FEB.
1.2 Noticias do front: O contato com a guerra e o preparo da FEB
Costuma-se dizer que numa guerra as pessoas manifestam o que tem de pior, que
não há limites para a crueldade. Inter arma silent leges. “Entre armas as leis silenciam”.
Mas o que vemos são extremos, a guerra é o extremo, onde o ser humano é testado em
seus limites
___
físicos, psicológicos, morais, econômicos, políticos, etc.
___
assim, o que
é visto como o máximo de desumanidade é na verdade a própria humanidade levada ao
extremo.
Embora a guerra seja vista como ato de barbárie e selvageria ela é um evento onde a
cultural se manifesta, ou seja, ela não é apenas a continuidade da política por meio das
armas
23
, mas uma área de atrito entre dois grupos, com valores e crenças próprias, mas
muitas vezes com elementos comuns compartilhados, que se chocam. Portanto, para
compreensão desse imaginário bélico, dessa forma de viver e de pensar a guerra,
trabalharei com o discurso de veteranos da FEB, pois a linguagem reflete e transmite
não só as visões particulares, as vivências individualizadas, mas toda uma carga de
experiências coletivas, de memórias compartilhadas.
Interessa-nos neste trabalho os depoimentos que relatam interpretações sobre a
guerra
___
sendo essas interpretações reais ou imaginárias, mas ambas visões construídas
por atores sociais que participaram de um acontecimento histórico determinado. Esta
seleção de fontes se baseia na idéia de que o trabalho do cientista social é uma
23
Para o militar prussiano, veterano das guerras napoleônicas, Carl von Clausewitz a guerra era a
continuidade da política, mas por outros meios. KEEGAN, John. Uma história da guerra. São Paulo: Cia
das Letras, 2002.
interpretação da realidade, “trata, portanto, de ficções; ficções no sentido de que são
‘algo construído’, ‘algo modelado’ [...], não que sejam falsas, não-fatuais ou apenas
experimentos de pensamento”
24
. Não entendo a história como a busca de uma verdade
imutável, mas como verdades, “[...] a cada geração se revisam interpretações. Afinal, a
história trabalha com a mudança no tempo, e pensar que isso não se dê no plano da
escrita sobre o passado implicaria negar pressupostos”
25
.
Desde o inicio das hostilidades na Europa os países das Américas se mantiveram
neutros. Postura adotada pelo Brasil e que garantia a manutenção de importantes
relações comerciais com os países beligerantes
___
havia um grande interesse por parte
do governo brasileiro em adquirir máquinas e armamentos e, em contra partida, da
Alemanha em adquirir matérias primas, como algodão e café
26
.
Mas esta situação mudaria imediatamente após o ataque japonês a Pearl Harbor,
em 7 de dezembro de 1941, que traria os EUA para a guerra. Este evocaria a unidade
política dos países americanos frente a ameaça estrangeira na III Reunião dos Ministros
das Relações Exteriores das Repúblicas Americanas, ocorrida em janeiro de 1942, na
qual as nações americanas concordaram em romper relações diplomáticas com os países
do Eixo
27
. A atitude do Brasil daria inicio a uma sucessão de eventos que o levariam ao
conflito na Europa.
Com a decisão de Vargas, haveria uma intensificação das relações políticas e
comerciais com Washington, dando origem a parcerias comerciais e especialmente
militares, já que o Comando Militar Norte-Americano tinha grande interesse no saliente
nordestino, pois a proximidade deste com a África possibilitava vôos diretos e ainda o
patrulhamento do Atlântico Sul. Teríamos então, em março de 1942, sob forma de um
Lend-Lease, “[...] os Estados Unidos comprometendo-se a fornecer, de forma
escalonada até 1º de janeiro de 1948, ‘armas e munições de guerra’ num total de
duzentos milhões de dólares”
28
, que seriam destinados a modernizar a Marinha e o
Exército brasileiros. No mesmo ano, é criada a Comissão Militar Mista Brasil-Estados
Unidos, que organiza um plano de defesa para o Nordeste brasileiro, resultando na
24
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989, pp.11-12
25
PESAVENTO, Sandra J. História & História Cultural. São Paulo: Autêntica, 2005, 2ª Ed, pp.15-16.
26
SEITENFUS. Op.Cit.
27
Apenas Chile e Argentina se negaram a seguir ar resoluções do encontro, mas o primeiro acabaria por
mudar sua posição no ano seguinte (janeiro de 1943) embora a Argentina mantivesse importantes relações
políticas com a Alemanha, Itália e Japão até as vésperas do fim da guerra na Europa, em maio de 1945.
28
SEITENFUS. Op. Cit, pp. 280.
autorização pelo governo Vargas da presença de tropas norte-americanas em território
nordestino, além da utilização de portos e aeroportos pelas mesmas.
A guerra provocaria grandes mobilizações no Brasil, especialmente nos grandes
centros urbanos. Ela chegava por meio dos jornais e do rádio, e, especialmente, após o
ataque japonês à base militar norte-americano de Pearl Harbor, os acontecimentos do
conflito mundial passariam a ser debatidos nos bares e cafés. A Rádio Sociedade da
Bahia, única existente no Estado, passaria então a irradiar programas ligados a
campanha de mobilização do governo inglês, num programa intitulado “A marcha da
vitória”
29
. Os feitos dos pilotos da Royal Air Force (RAF), nas batalhas sobre os céus
da Inglaterra e da Europa continental, eram contados de forma a enaltecer o esforço de
uma das poucas nações do velho continente que se colocavam contra o avanço do Eixo.
Este envolvimento das populações urbanas e de maior conscientização do conflito
mundial,pode ser observado em outras capitais nordestinas, como atesta a historiadora
Clarice Helena S. Lira, que trabalhou com veteranos da FEB em Teresina
30
Mesmo com uma população predominante de analfabetos, em diversas cidades
baianas surgiram movimentos organizados que acompanhavam o conflito e
concentravam apoio aos países que lutavam contra os nazi-fascistas
31
. Segundo João
Falcão a Bahia, por estar distante dos mecanismos repressores mais eficientes do Estado
Novo, seria palco das primeiras manifestações públicas de apoio a guerra contra a
Alemanha e a Itália
32
.
De salvador partiu a primeira grande manifestação popular contra o Eixo.
No dia 2 de fevereiro, cinco dias depois do rompimento, os jornais locais
publicaram com bastante destaque a convocação feita por todas as classes
sociais para um comício de solidariedade ao presidente Vargas a ser realizado
no dia seguinte, às 20 horas, no Largo da Sé. Estava assinada por
representativas figuras da vida baiana [...].
Mais de 30 mil pessoas desfilaram, sob a luz de fogos de bengala, em
direção ao Palácio da Aclamação, onde se verificou uma verdadeira
consagração ao chefe da nação. De todos os pontos partiam ruidosas
29
SAMPAIO, Consuelo N. A Bahia na II Guerra Mundial. Separata, Revista da Academia de Letras da
Bahia, n 40, 1996, pp. 137.
30
LIRA, Clarice Helena Santiago. O Piauí em tempos de Segunda Guerra: Mobilização local e as
experiências do contingente piauiense da FEB. UFPI, 2008. (Dissertação de Mestrado)
31
A Bahia tinha, no inicio da década de 1940, 92% de sua população analfabeta e 88% vivendo no
campo. SAMPAIO. Op. Cit. pp. 136.
32
O advogado e jornalista João Falcão teve intensa atuação política no período, sendo membro do partido
comunista e voluntário da FEB. Segundo ele o governo Vargas temia mobilizações populares,
especialmente as espontâneas, além de que certos membros do próprio governo tinham uma postura pro-
Eixo, como era o caso do chefe de policia do Distrito Federal, Filinto Strubing Müller. Sendo assim,
muitas manifestações públicas foram reprimidas no Rio de Janeiro e São Paulo. FALCÃO, João. O Brasil
e a 2ª Guerra Mundial: Testemunho e Depoimento de um Soldado Convocado. Brasília: UNB, 1999.
manifestação. Do Palácio, o interventor Landulfo Alves, o comandante da VI
Região Militar, coronel Pinto Aleixo, o prefeito Neves da Rocha, secretários de
Estado e altas autoridades assistiram ao grande espetáculo de civismo.
33
A mobilização contra a as nações do Eixo e o movimento a favor dos aliados
tornara-se um importante veiculo de ação popular, em especial das classes médias, pelo
menos no caso das cidades baianas. Os estudantes tornaram-se o meio de ligação dos
grupos que se articulavam, pois “[...] possuíam o entusiasmo próprio da juventude e
conhecimento suficiente para defender com ardor a causa que desejava fosse
defendida”
34
. Surgem associações civis com o intuito de mobilizar a sociedade baiana
em prol dos aliados, contra os fascistas e a favor da democracia
___
algo que chega a ser
irônico, se pensarmos que isso ocorria em pleno Estado Novo, ainda mais que em
praticamente todas as manifestações a figura de Vargas era evocada e enaltecida ao lado
de lideres como Franklin D. Roosevelt. “A Faculdade de Direito, a Faculdade de
Medicina, a Escola Politécnica e o Ginásio da Bahia foram centros irradiadores do
movimento pró-aliados [...]
35
. Em maio de 1942, seria fundada a Comissão Central
Estudantil pela Defesa Nacional e Pró-Aliados, na presença das principais autoridades
civis e militares do Estado, além dos cônsules da Inglaterra e dos EUA, na Faculdade de
Direito. Associações como essa surgiriam nas principais cidades do país, demonstrando
que, pelo menos nos centros urbanos e nas classes médias havia um interesse pela
guerra e por uma atuação política ativa junto às ações do governo frente ao conflito
mundial que crescia.
Como ator de muitas destas mobilizações políticas estava o PCB. Mesmo na
clandestinidade o Partido Comunista estava envolvido e ativo junto a estes movimentos,
tanto na capital quanto no interior, ajudando a articular as associações que englobavam
estudantes, professores, operários, profissionais liberais. “O Comitê Regional [do PCB]
havia sido reconstituído e uma ala do partido, destacada para atuar junto ao movimento
estudantil”
36
. Para os setores mais progressistas e até os comunistas, segundo o
sociólogo Paulo Ribeiro da Cunha, este foi um momento muito oportuno para “[...] uma
oxigenação política para as hostes intelectuais liberais e de esquerda, constituindo o
ponto de partida para a criação de frentes antifascistas pelo país [...]”
37
. O combate ao
33
Id. Ibidem, pp. 79-81.
34
SAMPAIO. Op. Cit. pp. 138.
35
SAMPAIO. Op. Cit. pp. 139.
36
Id. Ibidem. pp. 139.
37
CUNHA, Paulo Ribeiro da. Um olhar à esquerda: A utopia tenentista na construção do pensamento
marxista de Nelson Werneck Sodré. Rio de Janeiro: Revan, 2002, pp.185.
nazismo e ao fascismo era uma das principais preocupações do PCB e os militares de
esquerda tiveram importante atuação neste sentido, como, por exemplo, Nelson
Werneck Sodré, que produziu uma série de artigos neste sentido enquanto colunista do
Diário de Noticias
38
.
Algumas cidades do interior baiano seriam atingidas por estes movimentos cívicos.
“Embaixadas” de estudantes conclamavam a população a aderir as agremiações,
especialmente os estudantes. Comícios pró-aliados eram organizados em cidades como
Cachoeira, São Felix, Feira de Santana, Ilhéus e Itabuna.
O auge da comoção popular foi atingido no segundo semestre de 1942, com a
intensificação da campanha submarinista alemã e italiana no litoral brasileiro
39
. Só em
agosto deste ano, entre os litorais da Bahia e Sergipe foram afundados 6 navios entre os
dias 15 e 19, totalizando 607 vitimas fatais
40
. A ação das marinhas do Eixo visava
comprometer a economia dos EUA e espalhar os navios de guerra aliados ao longo de
uma extensa área de operação, facilitando as ações militares da Alemanha. Assim, com
a ruptura de relações diplomáticas, o Brasil passava a ser um alvo, já que a economia
brasileira estava cada vez mais vinculada aos norte-americanos, contribuindo para o
esforço de guerra contra o Eixo.
Brados de guerra e passeatas pedindo enérgicas ações do governo eram ouvidos na
capital, no recôncavo e em municípios do interior. Os ataques acirraram os ânimos da
população: o Clube Alemão, de São Felix, seria fechado e “súditos do Eixo” seriam
detidos em Ilhéus, assim como integralistas. Em Salvador até pastores protestantes de
origem germânica seriam detidos
41
. Ataques às propriedades de imigrantes alemães,
italianos e japoneses se tornam comuns e alguns membros dessas comunidades chegam
ao ponto de procurarem a força policial para serem detidos, como medida de
38
Sodré serviria como capitão na no recém criado 5º Grupo de Artilharia de Dorso, com sede em
Salvador. Para mais detalhes quanto a atuação política de Nelson Werneck Sodré em salvador ver: Id.
Ibidem. pp.183-197.
39
Até junho daquele ano haviam sido afundados 11 navios brasileiros, sendo que quase todos em águas
norte-americanas ou no mar do Caribe. SANDER, Roberto. O Brasil na mira de Hitler: A história dos
afundamentos de navios brasileiros pelos nazistas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.
40
Segundo José Goes de Araujo a intensificação das ações norte-americanas contribuiu para que os U-
Boots agissem com maior liberdade no Atlântico Sul, além de que, por ele “[...] fluíam os mercantes
carregados de matérias-primas em direção ao norte, enquanto que outros levavam para a Ásia, tropas e
equipamentos”. O principal responsável pelos afundamentos de agosto de 1942 foi o U-507, comandando
pelo capitão-de-corveta Harro Schacht, que torpedeou os seguintes navios: Baependi, Araraquara, Aníbal
Benévolo, Itagiba e o Arara. Haveria ainda o afundamento de uma escuna, Jacira, que, por acaso e
infelicidade, cruzaria a rota do submarino alemão as 2hr da madruga de 19 de agosto do ano citado. O U-
507 seria afundado no dia 13/01/1943, na costa do Piauí, por um avião Catalina norte-americano.
ARAUJO, José Goes. Bahia 1942: Um episodio da 2ª Guerra Mundial. Instituto Geográfico e Histórico
da Bahia. Ver também SANDER. Op. Cit. pp. 97.
41
SAMPAIO. Op. Cit. pp. 143.
preservação de sua integridade física
42
. A perseguição e a desconfiança se
disseminaram, sendo reforçadas com declarações de autoridades, como o interventor do
Estado e o Ministro da Justiça. Estes instavam a população a redobrar a vigilância sobre
os elementos suspeitos.
O Governo Federal, segundo a historiadora Marina Helena Chaves Silva
___
que se
debruçou especificamente sobre a situação dos alemães na Bahia deste período
___
vinha tomando uma série de medidas legais desde o inicio do ano de 1942, no intuito de
cobrir os prejuízos provocados pelos ataques estrangeiros, responsabilizando Alemanha,
Itália e Japão.
[...] os imigrantes oriundos desses países eram obrigados a se dirigir às
repartições credenciadas para prestar informações acerca do valor do seu
patrimônio, de modo que fosse possível calcular a porcentagem devida.
Com a declaração de guerra aos países do Eixo, o governo federal nomeou
interventores para promover a liquidação do Banco Alemão Transatlântico,
Banco Germânico da América do Sul e do Banco Francês e Italiano6. A
medida foi justificada em função da necessidade de: “garantir a segurança
nacional contra atividades perigosas de pessoas físicas ou jurídicas
estabelecidas no Brasil (...) e reforçar o fundo de indenização dos prejuízos
causados ao Brasil pelo torpedeamento de navios brasileiros”7, mediante
confisco de bens pertencentes aos súditos alemães e italianos.
43
O historiador Dennison de Oliveira atenta que a nacionalização dos grupos
estrangeiros
___
uma preocupação do governo Vargas desde o inicio de Estado Novo
___
tomaria grande intensidade nesse período e meios arbitrários passariam a serem
utilizados explicitamente após a declaração de guerra contra alemães, italianos e
japoneses. A vigilância tornara-se uma xenofobia:
[...] Estabeleceu-se o confisco de bens e imóveis das empresas acusadas de
colaborar com a “subversão eixista”. Vários empreendimentos industriais
foram colocados sob o controle direto do poder público, para os quais se
nomearam interventores, em substituição aos seus gerentes anteriores. [...] Para
dar conta do volume de detidos acusados de colaborar com as potências do
Eixo, o sistema prisional teve de se adaptar, surgindo inclusive autênticos
campos de concentração, onde eram encarcerados descendentes de alemães,
italianos, japoneses e, muito freqüentemente, ex-integralistas.
44
A escalada de vigilância e perseguição na Bahia chegaria a um estágio similar, após
serem fechados o Clube Alemão e a Casa de Itália, onde funcionavam os consulados
42
Id. Ibidem. pp. 145.
43
SILVA, Marina Helena Chaves. Vivendo com o outro: os alemães na Bahia no período da II Guerra
Mundial. UFBA, 2007. (tese de Doutorado)
44
OLIVEIRA, Dennison de. Os soldados alemães de Vargas. Curitiba: Juruá, 2008, pp. 28.
destes países. Os cidadãos originários destes países, mesmo naturalizados brasileiros,
passaram a necessitar de salvo-conduto para se deslocar ou mudar de domicilio.
Sampaio atesta que não há dados precisos sobre o número de indiciados e detidos, mas
fala que, “[...] no mês de janeiro de 1943, foram ouvidos 110 indiciados, subindo o
número de presos para 156, dos quais 141 eram alemães, 10 italianos, 1 japonês, 2
austríacos, 1 húngaro, e 1 alemão naturalizado brasileiro”
45
. Assim como ocorreu em
outros estados do Brasil, as populações de italianos, alemães e japoneses seriam
deslocadas para áreas onde pudessem ser vigiadas e controladas. “Temia-se que, através
de sinais luminosos ou outros, pudessem se comunicar com navios inimigos”
46
. Cidades
do interior seriam indicadas pelo governo federal para que essas pessoas fossem
vigiadas.
Foi-lhes dado o prazo de 10 dias para a mudança. Poderiam fixar residência
nos municípios de Andaraí, Caetité, Maracás, Mucugê ou Seabra. Aqueles que
por qualquer razão, se recusassem a viajar, ficariam concentrados na Vila
Militar da Força Policial dos Dendezeiros. De imediato, Maracás e Caetité
receberam cerca de 100 “eixistas”, que passaram a trabalhar sob regime de
vigilância.
47
Chegou a ser criada uma comissão especial de policiamento para selecionar e
garantir o deslocamento desses “súditos do Eixo” que representassem perigo, para os
municípios designados. Era a “[...] Comissão Civil Policial de Vigilância do Litoral
(C.C.P.V.L). Composta por cinco membros, essa comissão deveria exercer o controle
sobre os ‘elementos nocivos à defesa nacional’”
48
, que colaborava com as Forças
Amadas.
Embora toda essa perseguição fosse exagerada e na maior parte dos casos
infundada, havia o risco de espionagem por parte de indivíduos comprometidos com a
causa nazista que residiam no Brasil. A rede de informações nazista era extensa e não se
restringia aos países envolvidos diretamente no conflito. Pelo Atlântico Sul circulava
grande quantidade de suprimentos, combustível e uma diversidade de matérias primas,
assim como tropas de variadas nacionalidades, além de navios de guerra. Informantes
dos países dos países do Eixo estavam atentos ao deslocamento dessas embarcações e
de qualquer acontecimento importante.
45
SAMPAIO. Op. Cit. pp. 147.
46
Id. Ibidem.
47
SAMPAIO. Op. Cit. pp. 147.
48
SILVA. Marina Helena. Op. Cit. pp. 171.
Com a ruptura das relações com o Eixo a ação da policia e de outros órgãos de
vigilância do governo foi iniciada uma ação contra a espionagem em terras brasileiras.
No próprio mês de janeiro foi identificada uma estação de rádio clandestina
que transmitia para os alemães informes sobre a movimentação dos portos
nacionais. Não foi possível localizar o ponto exato da costa em que estava
instalada, mas descobriu-se, através de navios brasileiros, entre ele o próprio
Cairu, que acabaria por ser abatido, que ela se comunicava com uma estação
denominada DLB, situada na Alemanha. No dia 21 de janeiro, chegou a ser
interceptada uma transmissão que revelava a reunião de navios que iriam partir
em comboio a 10 milhas da ponta de Olinda. Houve uma mobilização do
Departamento de Correios e Telégrafos para localizar o transmissor, que
acabou sendo malsucedida.
49
As ações dos espiões também se davam através de negócios legais, já
estabelecidos no Brasil anos antes da guerra. Os cidadãos alemães e alguns até já
naturalizados brasileiros eram cooptados pela ideologia nazista para trabalharem como
espiões ou ajudarem estes.
A química Bayer, além de ter feito operações financeiras ilícitas, “lesando
os cofres públicos do Banco do Brasil, que tinha, por lei, o monopólio de tudo
que se referia ao mercado cambial do pais”, mantinha um depósito no sexto
andar de sua sede no Rio de Janeiro um mimeógrafo empregado na confecção
de boletins “contendo noticias de guerra e vasta literatura, que, sob capa
cientifica, era espalhada por toda a América do Sul”.
50
Assim nos primeiros anos da década de 1940 haveria um contexto de
mobilização e comoção popular, nos centros urbanos, quem atingiria diversos
segmentos sociais, em especial os estudantes
51
. Muitos futuros soldados da FEB
entrariam em contato com a guerra neste contexto de ebulição social, onde os
acontecimentos dos campos de batalha e política internacional eram debatidos em cafés,
bares e até no ambiente doméstico.
Além disso, as mobilizações de civis, de órgãos do governo e dos militares
alterariam o cotidiano das pessoas. Temia-se um ataque aéreo ou até mesmo um
desembarque. O cabo Raul Carlos do Santos, que, em 1942, estava sendo preparado
49
SANDER. Op. Cit. pp. 93.
50
SANDER. Op. Cit. pp. 95. Para mais detalhes sobre a ação de espiões alemães e da difusão do nazismo
no Brasil ver: HILTON, Stanley. A Guerra Secreta de Hitler no Brasil-1939-1945: A Espionagem Alemã
e a Contra-Espionagem Aliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
51
O interessante observar que muitos dos protestos e ações de mobilização ideológica, especialmente de
origem popular, contra o nazismo e o fascismo se deram por meio de charges, brincadeiras e matérias em
jornais com tons jocosos. Essa abordagem fazia parte dos mecanismo de comunicação culturais
brasileiros. As ações publicitárias de guerra, ou seja, ações de violência, ocorriam também, de maneira
cômica. Ver SILVA, Marina Helena. Op. Cit. pp 177 – 182.
para engajar em uma das unidades que formariam a FEB, relata os acontecimentos deste
período:
Olha, a Bahia aqui, Pernambuco, Aracaju sofreram muito. Nós sofremos
muito. [...]Primeiro: nós tínhamos um blackout a noite, tudo apagava! Aí
começou a faltar tudo! Dizem que aqui, principalmente, que os navios não
traziam mais nada. Carne a gente andava, procurava e nada.
52
A ação dos submarinos alemães e italianos não afetaria apenas o fornecimento
de produtos estratégicos aos aliados, mas comprometeria a própria ligação entre as
unidades da federação, a circulação de mercadorias e o abastecimento de alimentos. Um
dos produtos que logo escasseou foi o combustível, que passou a ser racionado.
Os futuros soldados da FEB evocam este período como o momento de
conscientização da guerra. Os jornais se tornariam um dos principais meios de
informação das populações urbanas afetadas pelo conflito mundial:
[...] A guerra vinha batendo, com Hitler. O Adolfo Hitler vinha acabando
com o mundo. [...] [Sabíamos] Pelos jornais, rapaz. Os jornais não paravam de
falar! A gazeta, [como era] chamada, o A Tarde, Jornal da Bahia, Diário de
Noticias. Essas coisas assim. [...] [Líamos] Quando a gente tava aqui.
53
Mas a desinformação era patente, especialmente devido ao baixo grau de
instrução da população brasileira como um todo, no período em questão. “Na sociedade,
em Fortaleza, não havia opinião formada em relação à guerra. Falava-se, apenas, que o
Brasil tinha declarado guerra ao Eixo, em 1942”
54
. Além disso, alguns oficiais da
reserva atribuíram parte desse desconhecimento ao próprio Exército, que, segundo eles,
deveria ter feito um melhor preparo psicológico dos convocados
55
.
Fato é que, entre convocados e voluntários que tinham alguma informação sobre
os acontecimentos na Europa e no Brasil relativos à guerra, os torpedeamentos
perpetrados pelos submarinos do Eixo na costa brasileira são, com freqüência, evocados
como razões para o envolvimento pessoal e nacional no conflito.
No âmbito das ações militares haveria a culminância da mobilização nacional
para formar os quadros que defenderiam a pátria e, num segundo momento, o Corpo
Expedicionário. Os acordos com os EUA levariam ao fornecimento de armamentos e
52
O cabo Raul Carlos dos Santos serviu na Companhia de Petrechos Pesados (CPP) do 11º Regimento de
Infantaria. Entrevista concedida ao autor em 25/09/07.
53
O Sd Abdias de Souza serviu na 1ª Cia do I/11ºRI. HOESGM, Tomo II, pp.186. Entrevista realizada
em 22/09/2000
54
Soldado da 1ª Cia de Fuzileiros do 11º Regimento de Infantaria da Força Expedicionária Brasileira.
HOESGM. Tomo entrevistado em 22 de novembro de 2000.
55
ARRUDA, Demócrito C. de. Depoimento de Oficiais da Reserva. São Paulo: Ipê, 1949.
treinamento, mas sempre aquém dos desejos dos militares e do governo brasileiro, que
temiam não só a ação das forças do Eixo, mas da Argentina
56
. A visita de Roosevelt,
em 1943, ao nordeste brasileiro abriria espaço para o envio de tropas brasileiras à
Europa e com isso um maior aparelhamento das Forças Armadas brasileiras.
Com o Estado de Guerra os efetivos das Forças Armadas cresceriam, pois
aqueles indivíduos que estavam a cumprir o serviço militar obrigatório não seriam mais
dispensados, podendo ficar a disposição das unidades militares até o fim da guerra.
Além disso, o programa de nacionalização dos cidadãos estrangeiros que viviam no
Brasil incluía o serviço militar obrigatório, contribuindo para aumentar os efetivos. Este
foi o caso do veterano da artilharia da FEB, Boris Schnaiderman. Nascido na Ucrânia,
em 1917, veio para o Brasil em 1925. Como estudava agronomia, para se formar e
exercer a profissão deveria prestar serviço militar, o que garantiria a naturalização.
Como estava no exército no período da declaração de guerra manteve-se na unidade que
servia, no Rio de Janeiro, sendo convocado para FEB às vésperas da guerra
57
.
As convocações se tornariam um ponto de muitas criticas na história da
formação a FEB. Segundo os veteranos uma série de erros seria cometida pelo governo
e pelo exército na preparação da defesa nacional e na formação dos quadros que
comporiam as unidades expedicionárias. Embora as Forças Armadas dispusessem de
30% das verbas do orçamento o Estado Novo não conseguiu desenvolver um programa
eficiente de modernização e reequipamento para as mesmas
58
. O exército contava com
uma miscelânea de material: canhões de campanha franceses e alemães; artilharia
56
Para Stanley Hilton a política de segurança militar do Brasil estava diretamente vinculada às diferenças
com a Argentina, englobando, inclusive, a própria FEB. “Foi por causa do fator argentino que os
estrategistas brasileiros ficaram preocupados com o efeito da invasão anglo-americana da África do Norte
em novembro sobre seu poder de barganha com Washington. Essa campanha eliminou qualquer ameaça
militar séria do Eixo ao Nordeste do Brasil, o que fatalmente diminuiria o interesse americano em
prosseguir com o programa de rearmamento do Brasil. Como justificar então a ajuda militar dos EUA na
escala necessária à defesa simultânea do Sul e do Nordeste? A solução, em fins de 1942, parecia ser
ampliar a participação do Brasil na guerra através do envio de tropas além-mar. Vargas aprovou a idéia
em janeiro de 1943, tornando a oferta dependente do recebimento do armamento necessário não apenas às
unidades destinadas aos campos de batalha no exterior, mas também a número igual de tropas que
permaneceriam no Brasil”.Interessante observar que alguns veteranos já tinha chamando a atenção para
essa questão relativa a diminuição do poder de barganha política junto a os EUA quando este realizou a
Operação Tocha, ou seja, a invasão do Norte da África. Ver HILTON. Op. Cit. pp. 409 e ARRUDA,
Demócrito C. “Nossa participação na Primeira e Segunda Guerras Mundiais”. In: Depoimento de oficia
da reserva sobre a FEB. São Paulo: Ipê, 1949, pp. 46-47.
57
Boris Schnaiderman serviu como sargento na Central de Tiros de uma das unidades de artilharia
divisionária da FEB. Parte dos dados citados foram obtidos na conferência realizada em 15 de julho de
2009, no I Seminário de Estudos sobre a Força Expedicionária Brasileira, promovido pela UFRJ/UEL.
Ver também: SCHNAIDERMAN, Boris. Guerra em surdina: Histórias do Brasil na Segunda Guerra
Mundial. São Paulo: Brasiliense, 1995, 3ª Ed.
58
ARRUDA. Op. Cit. pp.34.
costeira norte-americana; artilharia antiaérea alemã; metralhadoras dinamarquesas e
francesas e fuzis alemães
59
___
o que representava um inferno para a logística e a
instrução da tropa.
Seriam selecionadas unidades muito distantes umas das outras: os Regimentos
foram compostos por Batalhões que estavam espalhados por vários estados, como foi o
caso do 11º Regimento de Infantaria, com sede em São João Del Rei, Minas Gerais, que
teve soldados advindos de diversas unidades do Nordeste. Isto comprometia o “espírito
de corpo” e dificultava o treinamento. Exercícios envolvendo os três regimentos
___
6ºRI, 11ºRI e1ºRI
___
que compuseram a FEB só seriam realmente realizados
praticamente em campo de batalha.
As convocações seriam feitas por jornal e correio. As turmas selecionadas
deveriam se apresentar em quartéis determinados, em suas Regiões Militares. Embora
houvesse voluntários, tanto do meio civil quanto do meio militar, a maioria absoluta dos
soldados, suboficiais e oficias da FEB foram convocados, algo esperado numa
mobilização de guerra
60
. Estes homens, além de jovens (a média era de 20 anos),
vinham muitos de cidades do interior e possuíam baixo grau de instrução:
[...] quanto às profissões: a maioria absoluta de lavradores, pequenos
sitiantes, agricultores modestos, operários e empregados do comércio. Não
foram raros os casos de pequenos sitiantes, pais de famílias, vivendo do
próprio esforço, ou do salário jornaleiro, virem a ordem de convocação descer,
brutalmente, sobre eles, colocando-os em situação de caridade pública, pois, o
soldo de um recruta [...], não daria para o sustento de uma família e até esses
nunca chegaria a presença da Legião Brasileira de Assistência [...].
61
Haveria uma predominância de indivíduos com baixo grau de instrução, reflexo
da sociedade brasileira da época. Segundo a historiadora Maria de Lourdes Lins numa
amostragem de 500 militares da FEB apenas 7% teria instrução superior e 17%
formação secundária, concentrados entre oficias e graduados. A maioria absoluta dos
soldados tinha apenas o grau de instrução primário
62
. Podemos perceber melhor este
quadro de despreparo ao compararmos essa amostragem com unidades norte-
59
Id. Ibidem. pp. 36.
60
As reformas feitas pelo Marechal Hermes da Fonseca, quando Ministro da Guerra do governo Afonso
Pena (1906-1909), instituíram o serviço militar o obrigatório em janeiro de 1908. Segundo o Marechal,
era necessário racionalizar as Forças Armadas e garantir sua modernização, daí uma série de reformas
inspiradas especialmente no Exército Prussiano. MACCANN. Op. Cit. pp. 137-145.
61
ARRUDA. Op. Cit. pp. 39.
62
A historiadora utilizaria os dados fornecidos pela Associação de Veteranos de São Paulo. LINS, Maria
de Lourdes F. A Força Expedicionária Brasileira: uma tentativa de interpretação. USP, 1975
(dissertação de mestrado), pp.41.
americanas. Segundo Stephen Ambrose “[...] aproximadamente metade dos convocados
tinha diploma de escola secundária; um em dez tinha alguma formação superior”
63
.
O cabo Raul Carlos dos Santos, natural de Ilhéus-Ba, apresenta características
deste perfil. Seu pai trabalhava numa fazenda de cacau e já tinha quatro filhos, quando
se mudou para Salvador no momento em que os mais novos era ainda pequenos (os
gêmeos Raul Carlos e Carlos Álvaro). Quando de sua convocação, Raul Carlos, já
trabalhava para ajudar nas despesas familiares, tendo estudando apenas até os 15 anos.
Ele relembra os acontecimentos relativos à sua apresentação na 17ª Circunscrição de
Recrutamento:
Fui convocado. Foi eu, meu irmão, Miltinho, Alfrides...[...] todos que
foram chamados se apresentaram no Forte de São Pedro. Ele é defronte a Casa
da Itália. E o que aconteceu? [...] O bloco que foi chamado, eu me lembro,
nessa época, que saia no jornal né? No Jornal A Tarde saia a lista, por exemplo,
a turma de 1922, é que tava na idade de 20/21. Ai eu me lembro bem quando
chegamos lá num dia de manhã, aquela rapaziada toda, gente! A maioria
estudantes e outros, como eu, que não puderam estudar. Mas foi a maioria de
gente de certa educação, de certa instrução. Então fizeram uma reunião, vários
sargentos, tenentes e disseram: “olhem, nós vamos aproveitar os srs, que nós
estamos precisando de militares que façam cursos. Quem quer fazer o curso de
cabo?”
Havia uma grande carência de graduados, ou seja, cabos e sargentos, e de
especialistas, como motoristas, mecânicos, cozinheiros, etc. Assim, o exército tentou as
pressas remediar esta situação com cursos para grandes turmas. Esta situação se
agravaria com a formação da FEB. Dentro da organização dos moldes norte-
americanos, e da própria guerra moderna, havia a necessidade de grande preparo dos
soldados, já que o número de viaturas e unidades especializadas para a FEB cresceria
em grande volume e velocidade.
Envolvimentos pessoais, além do contexto histórico, também exerceram
influência no alistamento de jovens, especialmente de ascendência estrangeira. O Cabo
“X”
64
, que originalmente sentou praça como Artilheiro, e posteriormente foi voluntario
para formar a Cia. de Policia Militar da FEB (hoje conhecida como Policia do Exército),
tinha amigos e membros que sofriam diretamente com a presença de tropas nazistas.
E ai fui convocado.[...] Eu fui servir no Forte de Copacabana. Artilharia de
Costa. Mas eu recebia correspondência de casa com freqüência, principalmente
de meu pai. Ele não falava praticamente português e era uma mistura de
63
AMBROSE, Stephen E. O Dia D – 6 de Junho de 1944: A batalha culminante da Segunda Guerra
Mundial. Rio de Janeiro, 2004, pp.54.
64
O Cb. “X” prefere não ser identificado. Entrevista concedida ao autor em 25/04/08.
português com grego (eu infelizmente, fazendo um parêntese, saia das aulas de
grego para fazer basquete, quando meu pai era cônsul da Grécia, quando ele
me procurava eu já estava no campo de basquete lá do Salesiano). Mas ai eu
então, as ultimas cartas que ele escreveu, ele se lamentando do sofrimento da
Grécia na II Guerra, então, as coisas que eles estavam passando, as privações,
os parentes [...].
Já [tinha certo conhecimento do que ocorria fora]. Porque ele [o pai] era
cônsul da Grécia. E falava de sofrimento e reunia lá com os gregos de [cidade
natal]. E me chocava aquilo. [...]Então, quando houve a convocação para quem
quisesse seguir para os expedicionários, formou-se a tropa no Forte de
Copacabana, que desse um passo a frente. E eu dei o passo a frente como
voluntário. Naturalmente empolgado pela juventude, pelos acontecimentos eu
me apresentei como voluntário.
65
O soldado Vicente Alvos do Nascimento também estaria entre os selecionados
para uma unidade que comporia a FEB. Natural de Salvador o soldado Vicente entraria
pro serviço militar como um meio de ter sustento, “a bem da xepa
66
” literalmente, já
que vinha de família mais humilde, onde sua mãe sozinha provinha o sustento
trabalhando “em casa de família”.
Não, não fui convocado. Fui a “bem da xepa” e quando falo isso a turma
ri. Eu fui voluntário. Servi em 1940. E ai de 40 em diante não teve mais baixa
nem para mim e nem para ninguém! Ia convocando gente daqui e do interior,
preparando para ir embora. [...] Os que estavam, os mais antigos ficavam,
como eu e muitos outros.
67
Haveria também aqueles que se apresentaram como voluntários, número bem
menor dentro do montante da FEB, mas presente tanto entre civis quanto como entre os
próprios militares. Movido pelo nacionalismo e pela comoção da declaração de guerra
Oswaldo Matuk se apresentaria:
Eu era civil antes da declaração de guerra contra o Eixo, em agosto de
1942. [...] Eu e meus companheiros, que estávamos observando o trabalho [de
uma draga], percebemos que tocavam muitas canções militares ali por perto e,
interessados em saber o que estava acontecendo, para lá nos dirigimos.
Chegando ao local, um repórter comunicou que o Brasil tinha declarado guerra
e, já nessa hora, estavam convocando os brasileiros para se apresentarem, a fim
de vingarem os torpedeamentos de navios. Aquilo me penetrou na alma porque
diversos navios tinham sido afundados, num total de 32. Isso, para quem ama a
pátria e dá valor ao patrimônio nacional é o mesmo que uma punhalada no
coração. Surge o sentimento de vingança não sei se comovido pelas marchas
militares ou pela voz do locutor.
Já tinha feito Tiro de Guerra, justamente para não servir em Corpo de tropa.
[...] Ganhava até bem, quase o dobro do que iria ganhar no Exército. Mas
65
Id.Ibidem.
66
“Xepa” quer dizer comida de quartel e também restos, sobras. Vicente Alves do Nascimento O Sd.
Vicente Alves do Nascimento serviu na Cia. de Petrechos do 11º RI como metralhador. Entrevista
concedida ao autor em 17/07/08.
67
Id.Ibidem. Op. Cit.
estava convicto de que a agressão deveria ser vingada, o sentimento me tocou
tanto como a meus amigos que estavam perto, então decidimos: apresentamo-
nos ao III/4ºRI [...].
68
Mas haveria outras situações mais inusitadas na formação da FEB. Como existia
uma grande dificuldade em compor os quadros das unidades expedicionárias, o exército
se fez de variados artifícios neste intuito. Primeiramente os critérios de saúde nos
moldes norte-americanos foram relaxados, já que era difícil para população brasileira
com baixo grau de instrução e com grandes índices de doenças como tuberculose,
verminose e mesmo sífilis fornecer, 100 mil soldados
69
, como previsto inicialmente, e
até mesmo os pouco mais de 25 mil que formaram a FEB. Neste aspecto podemos ver
vozes dissonantes entre depoimentos realizados poucos anos após do conflito e outros
mais recentemente. Em 1949, um grupo variado de oficias da reserva produziria um
polêmico livro com sérias criticas ao exército e à FEB. Em Depoimento de Oficiais da
Reserva o então tenente José Alfio Piason declara:
[...] Estudado e organizado um exame consciencioso e completo nos moldes
do executado no Exército Americano, médicos civis foram chamados a
colaborar, em grande número, e a máquina começou a funcionar. A
percentagem dos julgados incapazes foi inicialmente, enorme; mas, contornou-
se o resultado. . . aconselhado-se exames mais brandos, ou seja, não levando
em conta certos pequenos detalhes, como, por exemplo, o estado dos dentes,
tanto que “dezenas de militares brasileiros (centenas ou milhares, diríamos
nós), inclusive vários oficiais, apresentaram-se com os dentes em precária
situação e em condições, portanto, de lhes ameaçar o equilíbrio físico”, logo
após a chegada do 1º Escalão à Itália, como se lê às páginas 45 e 46 da livro
“A FEB pelo seu comandante” do Marechal J. B. Mascarenhas de Moraes. [...]
Praticamente todos os soldados examinados foram julgados capazes, Classe E
(perfeita integridade física e psíquica!)
70
68
Oswaldo Matuk foi Sgt. da 2ª Cia do I/11º RI. HOESGM, Tomo III, pp. 256. Entrevista realizada em
23/05/2000.
69
Inicialmente seriam formadas 3 divisões de infantaria, compondo um Corpo de Exército brasileiro, daí
a literatura se referir, muitas vezes, à FEB como 1ª D.I.E, ou Divisão de Infantaria Expedicionária. Além
dos três regimentos de infantaria (1º; 6º e 11º), formavam a FEB: Artilharia Divisionária (composta de 4
grupos de artilharia e mais a Esquadrilha de Ligação e Observação – ELO); o 9º Batalhão de
Engenharia; o 1º Esquadrão de Reconhecimento; a 1ª Cia de Transmissões; o 1º Batalhão de Saúde.
Completando essas unidades tínhamos a Tropa Especial: Comando do QG e da Tropa Especial;
Destacamento de Saúde; Companhia de Manutenção Leve; Companhia do Quartel-General; Companhia
de Intendência; Pelotão de Sepultamento; Pelotão de Policia e Banda de Música. Havia ainda unidades
não-divisionárias, ou seja, que não pertenciam aos quadros efetivos de uma divisão, mas que eram
necessárias para o funcionamento de um Corpo de Exército, que seria a FEB: Inspetor Geral da FEB;
Depósito de Pessoal (reserva para recomposição de quadros); Serviço Postal; Serviço de justiça; Depósito
de Intendência; Pagadoria Fixa, Agência do Banco do Brasil. Algumas dessas unidades e órgãos
sofreriam modificações ao longo da campanha, de acordo com as necessidades da tropas e das ações,
como foi o caso do Plt. De Policia, que viria a se tornar uma Cia. SILVEIRA, Joaquim Xavier da. A FEB
por um soldado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, pp. 51-52.
70
Itálicos e aspas do autor. O tenente Piason serviu como Oficial de Informações (S-2) do I/ 6ºRI.
PIASON, José A. “Alguns erros fundamentais observados na FEB”. In: ARRUDA, Demócrito C. de.
(Org.) Depoimento de oficia da reserva sobre a FEB. São Paulo: Ipê, 1949, pp. 78-79.
Iniciada a mobilização, haveria então seleções médicas e o preparo dos homens.
A seleção médica séria uma das grandes falhas da formação da FEB, algo percebido não
só pelos oficias de baixa patente, mas graduados, soldados e até pelo comando. No
relatório apresentado pelo então General de Divisão, comandante da FEB, Mascarenhas
de Moraes, ao Ministro da Guerra, fazendo um balanço das ações do Brasil no Teatro de
Operações da Itália, podemos observar a dificuldade em compor os quadros da unidade
expedicionária:
Estabelecidas as condições mínimas a satisfazer para integrar a FEB, as
diversas Juntas de Inspeção [...] começaram o seu penoso trabalho,
constatando-se desde logo as maiores decepções, pela massa de homens,
oficiais e praças, que nem siquer [sic] se classificaram na categorias
“Normais”.
No 11ºRI (S. João d’El Rey) apenas três homens: um capitão, um sargento
e um soldado conseguiram a classificação “Especial”, isto é a única que
permitia integrar a FEB. O mesmo descalabro se assinalava em todas as outras
unidades. Tão calamitosa se apresentou a situação que a Diretoria de Saúde
recebeu instruções para admitir, também, os homens da categoria “Normal”.
As medidas para o complemento dos efetivos, em face dos aspectos
verdadeiramente alarmantes da Seleção Física, foram drásticas, extendendo-se
[sic] a todas as Regiões Militares, com resultados compensadores,
principalmente pelos elementos oriundos das 3ª e 5ª RM, que enviaram
sucessivos continentes selecionados criteriosamente.
71
As regiões militares do Rio Grande do Sul (3ªRM) e a que englobava o Paraná e
Santa Catarina (5ªRM) conseguiram ter um aproveitamento satisfatório. As outras
apresentaram grandes dificuldades para atingir os padrões estabelecidos. Neste contexto
encontramos o depoimento do cabo Raul Carlos:
Ai começou o exército a fazer a escolha. Que foi muito bem feita. Tudo
programado, com ajuda do americano. Não só aqui como no RJ, onde fiz novos
exames. A turma daqui fez novos exames, para verificar se tava tudo certo.
Aquelas papeletas bem feitas. E aqui nós fizemos. Sabe onde é o Campo da
Pólvora? Na saída, a direita, tem um posto de saúde...ali tinha o nome
de...naquele tempo tinha poucos. Isso em que, 1942? Poucos. Hoje tem
bastante. Ali nós fizemos os exames, eu e minha turma.
[...] Chegava lá e já tinha médicos em 12 salas, espalhados. Você chagava
lá e também só tinha homem, nenhuma mulher, nem enfermeira. Só
enfermeiro, muitos sargentos. Chegava lá, tirava a roupa e saia todo mundo
sem roupa e entrava numa sala, ai saia um grupo e outro entrava. Então eles
fizeram uma seleção bem feita. Primeiro, se o camarada era forte, se era
doente, se tinha perna doente, se tinha dente ruim, se tinha, por exemplo, ai
nego fez logo exame de próstata. [...] No fim você queria ver o resultado só
passaram os Classe E.
72
71
Força Expedicionária Brasileira - Relatório Secreto. Volume I – 1943-1945. Pp. 17-18. AHEx. 1ª D.I.E.
– Relatórios.
72
Cabo Raul Carlos dos Santos. Op. Cit.
A imagem de um processo de seleção médica organizado e eficiente ficou nas
recordações do cabo, talvez pelo tamanho da mobilização militar, em larga escala, e
pela presença de militares norte-americanos que tentavam manter padrões mínimos de
qualidade entre os selecionados. Mesmo assim, mais a frente, este veterano admite em
seu depoimento que a quantidade de reprovados foi grande:
Muitos [reprovados]! Muitos e muitos! Sabe por quê? Nessa época já tinha
vindo de todo interior uma porção! Aí vinha gente doente, vinhas outros
fortões, mas a maioria, dizem que no Brasil todo
___
não foi só aqui, a gente
conta nossa história, mas os outros [veteranos] tem [histórias] parecidas [...].
73
O exército se valeria de outro artifício no intuito de preencher os claros nas
unidades selecionadas para ir à Itália: passaria a transferir soldados com péssimas fichas
de serviços de variadas unidades para os regimentos expedicionários. A FEB se tornaria
o destino certo de muitos praças classificados como indisciplinados, ainda segundo
Piason:
[...] Para os já avançados em instrução que saiam, (instrução, é verdade, à
moda da casa), cuidou-se substituir por outros em igual fase de instrução das
unidades não expedicionárias. A ordem, baixada assim simplesmente, foi
cumprida; mas, nela encontraram as unidades não expedicionárias um ótimo
meio para se livrarem de boa parte de seus maus elementos, baseados também
na mentalidade de que para eles a guerra era “castigo” merecido!
74
O tenente Mário Amaral, que serviu no 6º RI faz coro às considerações de seu
colega Piason quanto ao aproveitamento de soldados de má conduta para a FEB:
Certa vez em que o Regimento recebia um contingente de perto de 150
homens vindos de diversas Unidades, o oficial encarregado de sua recepção
ordenou:
___
quem estiver no bom comportamento, levante o braço; os braços
permaneceram abaixados; nova pergunta;
___
quem estiver no comportamento
regular, levante o braço; ninguém se moveu;
___
quem estiver no mau
comportamento, levante o braço; a só tempo como que movidos por uma
satisfação em demonstrar as suas “qualidades”, os braços se ergueram em
posição vertical.
75
Havia uma mentalidade entre muitos militares que o serviço em unidades
expedicionárias era um castigo, uma forma de punir soldados de má conduta, o que
poderia comprometer o funcionamento eficiente de seus quadros em campanha.
73
Id. Ibidem.
74
PIASON. Op. Cit. pp.76.
75
O tenente Mário Amaral serviu no 6º RI como oficial de ligação com unidades americanas. AMARAL,
Mário. “A instrução da FEB”. In: ARRUDA. (Org.) Op. Cit. pp. 148.
Analisando o caso do Sargento Ayrton Vianna Alves Guimarães podemos observar
como esta mentalidade do serviço na guerra como punição ainda existia entre alguns
setores militares.
O sargento Ayrton é natural de Olinda, Pernambuco, foi incorporado em 1941, no 14º
RI, em Jaboatão dos Guararapes, também neste estado. Sua narrativa começa com a
transferência para Fernando de Noronha:
Veio uma ordem para que todos os graduados fossem para Fernando de
Noronha, porque existia um “zum-zum-zum” de que o alemão iria atacar o
litoral; havia um cuidado permanente do Exército em guarnecer a Ilha de
Fernando de Noronha, que se tornou a sentinela avançada do País. Assim, do
14o RI fui transferido para o 30º BC, com sede naquela ilha.
Como era datilógrafo e tinha prática de contadoria, fui trabalhar na
tesouraria. Foi implementado no 1º GIA, 1º Grupo Independente de Artilharia,
que estava sediado na Ilha, um curso de sargento e eu me apresentei.
76
As Forças Armadas teria grande preocupação com ações das hostes nazistas no
litoral nordestino e transfeririam diversas unidades para variados pontos dessa região
brasileira, no intuito de impedir, ou pelo menos dificultar a ação do inimigo. Estes
homens passaram a ser conhecidos como “praieiros”
77
. Assim, Fernando de Noronha e
tornava um ponto avançado da defesa nacional. Não é incomum encontrar veteranos da
FEB que tenha, antes, servido nesta ilha ou em unidades que estavam estacionadas no
Nordeste. Com as constantes transferências de homens entre as unidades o sargento
Ayrton imaginaria uma possibilidade de conseguir retornar ao seu estado de origem,
isso em 1942:
Em dado momento chegou um radiograma pedindo para transferir um cabo
com o curso de sargento, que fosse datilógrafo. Quem preenchia aqueles
requisitos era eu! Esse telegrama passou por todos os cabos da Unidade, para
que fosse colocado o nome de quem desejava ser transferido para o 9º Batalhão
de Engenharia, agora aquartelado em Três Rios, entre Minas e Rio: ninguém
quis. Quando a mensagem chegou às minhas mãos, eu, pernambucano, com
vontade de voltar para minha casa, para minha terra, disse:
– Eu quero! Fica onde?
– Fica em Pernambuco (mas em Pernambuco, ficava a cidade de Entre
Rios).
Um engano da peste!
76
Sargento Ayrton Vianna Alves Guimarães foi integrante da 2ª Cia do 9º Btl. de Engenharia. HOESGM,
Tomo III, pp. 266. Entrevistado em 3 de maio de 2001.
77
A mobilização para a guerra formou dois tipos de tropas: a Força Expedicionária enviada à Europa,
onde seus membros ficaram conhecidos como “veteranos”; e a unidades que patrulhavam o litoral
nordestino, que foram denominados “ex-combatentes”. Estes, por terem ficado no Brasil, passaram a ser
vistos como “secundários” sendo até menosprezados pelo exército e, especialmente, pelos veteranos, pois
não teriam enfrentado situações reais de combate, ficando no litoral “tomando sol e bebendo água-de-
coco”. Para mais detalhes ver as pesquisas as historiadora Virginia Guimarães.
Assinaram, eu assinei também e fizeram a minha transferência para o 9º
Batalhão de Engenharia.
Pego minha mala, meus pertences todos, vou-me embora para a estação,
feliz de voltar para casa, para Pernambuco, para o seio da minha família.
Perguntei ao chefe da estação, quantos dias se levava para chegar em
Pernambuco! Ele olhou e disse: “O senhor não vai para Pernambuco. O senhor
está indo para Três Rios, no Rio de Janeiro!”
78
A transferência errada o colocaria à caminho da guerra. Sua recepção no 9º
Btl.de Engenharia seria um exemplo de como muitos comandantes de unidades viam os
homens que chegavam oriundos de cessões para complementação dos quadros:
Fui me apresentar ao Comandante do Batalhão e, por ordem dele, ao
comandante da Companhia, o Capitão Raul da Cruz Lima Junior.
Ele tinha mais ou menos uns quarenta anos, esguio, de bota, uma
“chibatazinha” batendo na bota, muito destemido, de cara trancada, eu me
apresentei, dizendo que estava indo para a 2ª Companhia do 9º BE.
– Você só pode ser um mau elemento, não é?
– Como assim, Capitão?
– Você, transferido para ir à guerra, é porque não vale nada. Não presta,
não é?
79
A reação do capitão e de outros oficiais, que viam as transferências dos soldados
infratores e com má conduta como punições, possivelmente esteja relacionada à uma
antiga visão do serviço militar como castigo e correção, algo destinado aos indivíduos
marginalizados socialmente e mesmo criminosos. Peter M. Beattie assim avalia a
imagem dos praças das Forças Armadas brasileiras em fins do século XIX e inicio do
XX:
A ascensão do nacionalismo militarista encerrava uma ironia para os
soldados brasileiros. Ainda que designados para defender a honra nacional,
muitos praças vinham da mal-afamada classe do desprotegidos. Os
recrutadores, a polícia e os juízes extraiam a maioria dos recrutados das fileiras
dos vadios, ex-escravos, órfãos, criminosos, migrantes, trabalhadores sem
qualificação e desempregados. A maioria dos voluntários se alistava para
escapar da fome, do desabrigo, do desemprego [...].
80
Se considerarmos que os soldados que serviram na FEB e nas unidades do
exército naquele contexto de guerra nasceram em fins da década de 1910 e inicio da
década de 1920 podemos situá-los nesta mentalidade assinalada por Beattie. Mas neste
período já estava em curso uma série de reformas que tentavam mudar esta visão
78
Sargento Ayrton Vianna Alves Guimarães. Op. Cit. pp.267.
79
Id. Ibidem. pp. 268.
80
BEATTIE, Peter. M. “Ser homem pobre, livre e honrado: a sodomia e os praças nas Forças Armadas
brasileiras (1860-1930)”. In: CASTRO; IZECKSOHN; e KRAAY. Op. Cit. pp.274.
pejorativa da Marinha e do Exército
81
. A diminuição do tempo de serviço militar
obrigatório, de seis anos para dezoito meses, o fim dos castigos físicos (mudança mais
perceptível no Exército que na Marinha) e, principalmente, o sorteio para prestação do
serviço militar, que trouxe para os quartéis indivíduos de diversos segmentos sociais.
Estas reformas já estavam em curso, em fins do século XIX, em vários países,
especialmente na Europa, onde o serviço militar obrigatório passa a ser utilizado pelos
Estados para incutir ideais patrióticos e educar as massas
82
. Vemos no último quartel do
século XIX um movimento moralizador das Forças Armadas, que chegaria ao Brasil no
inicio do século XX e ganharia força com as mudanças implementadas durante a I
Guerra Mundial. Haveria uma forte campanha propagandista para incutir na população
uma imagem positiva das Forças Armadas, que apelavam para o nacionalismo, o dever
cívico e a necessidade de proteger a pátria e até mesmo a própria família através do
serviço militar.
A propaganda louvava o serviço militar como um dever varonil e afirmava
que, com a conscrição, os quartéis seriam mais como casas de família, onde os
jovens seriam orientados por oficiais virtuosos e paternais.
[...]
Nos anos de 1930, quando os militares assumiram papel proeminente na
política e lutaram para arrochar o cumprimento das leis do recrutamento
obrigatório, os oficiais tornaram-se mais defensivos [de uma melhor imagem
das Forças Armadas].
83
A formação dos quadros da FEB ainda enfrentaria outra dificuldade: o tráfico de
influência. Muitos oficiais da ativa e da reserva se esquivaram do serviço em unidades
expedicionárias. Valiam-se de justificativas legais para serem transferidos e quando
essas não eram suficientes ou possíveis apelavam para “padrinhos” de alta patente ou
políticos.
Sabemos que a centralização burocrática o impediu os casos de suborno,
numerosos por sinal, nesses exames de seleção, a ponto de chegar ao absurdo
de só terem permanecido nas fileiras os desprotegidos, os humildes e os
abnegados, evadindo-se para os cursos de última hora do C.P.O.R. [Centro
Preparatório de Oficiais da Reserva], os filhos da chamada classe média, ou de
volta à vida civil, através de arranjadas incapacidades ou por motivos os mais
inconsistentes.
84
O tenente continua seu protesto contra os convocados que se evadiram, já que a
troca dos mesmos acabava por prejudicar a instrução dos praças, o vinculo entre
81
A Força Aérea Brasileira seria criada em 1941.
82
LORIGA, Sabina. “A experiência militar”. In: LEVI, Giovanni e SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.).
História dos Jovens: A época contemporânea. São Paulo: Cia das Letras, 1996, Volume 2.
83
BEATTIE. Op. Cit. pp. 290-291.
84
ARRUDA. Op. Cit. pp. 41.
comandantes e comandados nas pequenas unidades e privava a FEB de indivíduos com
melhor grau de instrução.
Entre os Oficiais da Reserva, conhecemos os casos daqueles que, filhos de
políticos, conseguiam interessar o governo do Estado para serem contratados
em qualquer função pública e, nessa qualidade, requisitados e posteriormente
desconvocados [sic]; ou, este outro, de um filho de interventor num Estado do
Nordeste, conseguindo a desconvocação [sic] por ter se bacharelado e ir
assumir a direção das empresas de jornais do pai,conhecido doutrinador do
“Estado Forte” brasileiro...
Quanto aos Oficiais da Ativa, corre entre nós a lenda ainda não averiguada,
da existência de um dilema nascido no próprio Ministério da Guerra: “escolha,
ou a FEB, ou as fronteiras”.
O fato é que as portarias ministeriais, publicadas no “Diário Oficial” e
“Diário de Noticias” do Rio, entre junho de 1943 e junho de 1944, de
transferências de oficiais para os regimentos expedicionários, substituídas logo
depois por outras, tornando sem efeito as primeiras, deram corpo ao rumor, tal
número dos que conseguiam esse beneficio.
85
Este tipo de situação era preocupante para a manutenção de um espírito
combativo, “do moral” da tropa. Já havia uma grande dificuldade em conscientizar e
justificar aos convocados o envio de tropas à Europa, pois o Brasil não tinha tradição de
envolvimentos em guerras externas ou mesmo uma rivalidade histórica com os alemães.
No campo de batalha isto seria um fator a levantar questionamentos: “como convencer
soldados a lutarem por uma causa pouco conhecida, a matar e se arriscar?” Isto será
melhor abordado no III capitulo. A idéia de tratamento justo entre os combatentes
contribuiria para lidar com os desconfortos da mobilização e com a própria idéia de ir
para uma guerra. Mas parece que o exército não tinha essa percepção. A mentalidade
era que os praças deveriam se submeter a diversas privações e maus tratos como parte
de seu preparo para a guerra.
Outro fator que marcou alguns convocados, durante a preparação da FEB, foi a
idéia de injustiça nas condições tratamento entre soldados americanos e brasileiros.
Alguns instrutores norte-americanos foram enviados para certas unidades no Brasil,
com o intuito de adestrar a tropa com o novo material e armamento. No período das
convocações e formação da FEB circulavam boatos que os torpedeamentos dos navios
brasileiros haviam sido perpetrados por submarinos norte-americanos, com o intuito de
forçar a entrada do Brasil na guerra. Assim existia uma animosidade entre muitos contra
as tropas norte-americanas. As recordações de Boris Schnaiderman exemplificam isso:
85
Id. Ibidem. pp. 41-42.
Um ordenança passou carregando uma travessa coberta com um
guardanapo.
___
O que é isso, velhinho?
___
É para o jantar dos gringos.
Um convocado suspendeu o guardanapo. Apareceram alguns bifes bonitos,
suculentos.
___
Isto sim é que é pátria, por isso eu daria a vida. Comer um bife desses e
depois morrer!
___
Vem cá
___
replicou um outro convocado
___
venha ver como eles vivem.
Dirigimo-nos num grupo numeroso para o edifício principal [do quartel] e
nos esgueiramos até uma das janelas, procurando não chamar a atenção das
sentinelas. Espiando para dentro, vimos um quarto asseado, com duas camas
boas, cobertas com mosquiteiros. Nada de especial, em suma. Para os
convocados, porém, aquilo parecia uma ofensa.
[...]
Alguns procuravam convencer-me de que eu estava errado, outros
tratavam-me com ironia complacente. “Vocês foram pedir guerra na Avenida,
agora agüentem”
___
diziam.
86
Os veteranos atribuem hoje estas visões de critica e desconfiança em relação aos
norte-americanos às intrigas e desinformações espalhadas pelos brasileiros pró-nazistas,
chamados de “Quinta-Colunas”
87
. Esses tratamentos diferenciados, exemplificados
acima, provocavam revolta. Talvez ai encontremos a razão para o soldado Vicente
Alves do Nascimento chamar tanto alemães como norte-americanos de gringos em seu
depoimento, de forma similar ao exemplo dos companheiros de Schnaiderman. Em
outras circunstâncias isso não chamaria a atenção, mas no momento de guerra, onde
aliados e inimigos tem que ser claramente diferenciados, é de se provocar estranheza.
Mas essa visão em relação aos americanos, para a maioria da tropa, mudaria
completamente no decorrer da campanha, aliás, as relações entre praças e oficiais no
exército norte americano passariam a provocar admiração
___
como será visto no
Capitulo II.
Mesmo com todas as adversidades a FEB seria formada e, pelo acordo junto ao
governo norte-americano, transportada para o front em navios dos EUA, sendo
comboiados por belonaves deste país e, também, brasileiras. Esta viagem é outra
experiência marcante dentre os veteranos, que merece ser abordada com mais detalhes.
86
SCHNAIDERMAN. Op. Cit. pp 10-11.
87
“Quinta-Coluna” é uma expressão que surgiu durante a Guerra Civil Espanhola
1.3 A caminho do front
[...] O nosso embarque foi de madrugada, no Rio; chegamos aos cais do
porto quando estava escuro. [...] Todo mundo chegou e entramos em fila por
um para embarcar. Quando vi o navio de não sei quantas mil toneladas pensei
comigo: “Caramba! Isso é pra valer”. Era um navio enorme o General Mann
que nos transportou para Nápoles.
88
Quando chegamos ao cais, noite adentro, dormi por cima do saco “A”,
como outros também, bastante casados. O vagão estava todo fechado, não se
podia ver nada do lado de fora; acordei com o barulho da água do mar
chicoteando o cais e logo veio a ordem para o desembarque do trem. Nunca
mais esquecerei o navio General Mann, parecia um arranha-céu, tão alto que
era. Afinal, também sou mineiro.
89
Surpresa. Este foi o sentimento de muitos soldados designados para o primeiro
escalão da FEB a ser transportado para o front. Mesmo com unidades formadas para
este fim, ainda havia uma forte descrença em relação à participação brasileira no
conflito mundial, tanto entre a população civil quanto entre os próprios militares
90
.
Como o Brasil não dispunha de meios próprios para efetivar o transporte, pelo
menos de forma rápida e segura, para os mais de 25 mil homens que compunham sua
Divisão Expedicionária, foram cedidos dois grandes navios norte-americanos, o
General Mann e o General Meigs
91
. Foram cinco escalões, sendo que os três primeiros
enviaram as principais unidades da FEB.
O primeiro escalão partiu do Rio de Janeiro em 2 de julho de 1944, aportando
em Nápoles no dia 16 do mesmo mês. O segundo e terceiros escalões saíram juntos, no
dia 22 de setembro de 1944, chegando na Itália no dia 6 de outubro deste ano. Os
últimos escalões transportaram principalmente o Depósito de Pessoal, chegando o
último transporte em 22 de fevereiro de 1945. Haveria um pequeno contingente de
oficiais, capelães, funcionários do Banco do Brasil e enfermeiras que viajariam por via
aérea para o Teatro de Operações italiano.
O comando havia programando uma série de manobras diversionistas com os
três regimentos, no inicio de julho de 1944, que partiram da Vila Militar do Rio de
Janeiro, para localidades próximas, embarcando realmente o 6ºRI e mais algumas
88
Daniel Lacerda serviu como sargento auxiliar da Cia. de Petrechos Pesados do III/6º RI. HOESGM,
Tomo III, pp. 120. Entrevista concedida em 8 de junho de 2000.
89
Vicente Pedroso da Cruz serviu no III/6ºRI. HOESGM, Tomo III, pp. 298. Entrevista concedida em 6
de julho de 2000.
90
LINS. Op. Cit. pp. 31.
91
BRANCO, Manoel Thomaz C. O Brasil na II grande guerra. Rio de Janeiro: Bibliex, 1960, pp. 159-
160.
unidades que o reforçariam
92
. A idéia era garantir o máximo de segurança em relação à
espionagem inimiga. Mas era muito difícil conseguir o completo isolamento da tropa
com a população civil, além de disfarçar um deslocamento de mais de 5 mil homens,
feito em 72hr, além de que o próprio navio já denunciava a partida de um contingente
para o front. Além disso, houve grande preocupação em relação ao próprio embarque
dos soldados. Simulacros de navios e de pranchas de embarque e foram construídos no
Rio de Janeiro a fim de adestrar a tropa e evitar acidentes, conseguindo também, adaptar
o soldado à embarcação.
Neste primeiro escalão havia uma grande incerteza quanto ao destino.
Especulava-se deslocamentos para estados do Nordeste e muitos soldados chegavam a
cogitar a África, para novos treinamentos.
Fiquei assistindo a nossa partida, mas não sabia o destino, ninguém sabia
para onde navegávamos, comentávamos que a gente iria para a Bahia receber
mais instruções, era o que mais se falava:
___
Nós vamos para a Bahia e de lá sairemos.
E eu assuntava:
___
Mas como, se tem tanto lugar aqui no Rio, não precisa ir à Bahia para
receber mais instrução!
O comentário era esse, mas fomos embora e fiquei olhando o Cristo
Redentor até ele desaparecer; o navio se afastando e a imagem sumindo; foi a
última visão do Brasil, o Cristo de braços abertos. Viajamos sem saber para
onde e sem poder mandar correspondência, nem nada.
93
Nos escalões posteriores, mesmo já sendo conhecido o destino da FEB, as
medidas de segurança continuariam a serem tomadas, especialmente após as ameaças de
ataque aéreo da Luftwaffe ao navio transporte General Mann e ao porto de Nápoles,
quando da chegada dos brasileiros
94
.
Mas além da surpresa haveria outras reações da tropa que partia para a guerra.
Havia certa tensão no ar, os preparativos em algumas unidades denunciavam o
embarque iminente. O tenente Ítalo Diogo Tavares que serviu no 6ºRI relata sua
despedida de familiares e alguns acontecimentos em seu quartel no seu diário:
92
MORAES, João B. Mascarenhas de. A FEB pelo seu comandante. São Paulo: Instituto Progresso
Editorial, 1947, pp. 35.
93
Vicente Gratagliano serviu no I/6ºRI. HOESGM, Tomo III, pp. 283. Entrevista realizada em 12 de
setembro de 2000.
94
BRAYNER, Floriano de L. A Verdade Sobre a FEB: Memórias de um Chefe de Estado-Maior na
Campanha da Itália. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, pp. 103-104.
Rio de Janeiro, 29 de junho de 1944
Estamos hoje de prontidão as 17hr. A informação que nos foi prestada era
que iríamos passar 15 dias no campo, tendo instrução no âmbito do RI, porém
nós tínhamos a impressão que seria o embarque para os campos de batalha. O
meu capitão deu-me três horas para ir em casa e me despedir de minha família.
Encontrei em casa somente minha mãe e Marcília [irmã]. Foi dificílimo
abordar o assunto que me levava a casa. Já sabia que minha mãe não resistiria à
minha partida. [...]
Rio de Janeiro, 30 de junho de 1944
[...]
O momento da partida não me sairá jamais da lembrança. Aquela azafama
de lacrar portas, de queimar papeis que iríamos deixar e limpar o alojamento
todo, isto nos deixava um pouco tristes. Porém, sentia-me contente em
embarcar o meu Brasil.
95
O contentamento nacionalista engasgava na possibilidade de não ver mais os
entes queridos. Aliás, para a maior parte dos praças e graduados não haveria essa chance
de se despedir da família, já que estavam muito distantes de suas cidades natais,
alojados no Rio a espera do embarque. O sargento Ayrton Vianna A. Guimarães ainda
conseguiria despedir-se de uma tia:
[...]
Meu pai, minha mães, minha família não sabia nada do que estava se
passando comigo.
Um soldado me disse:
___
Vá na grade do cais do porto!
Era proibido, ninguém podia se afastar de jeito algum. Os soldados que não
iam embarcar estavam de baioneta, de metralhadora, para ninguém fugir, para
ninguém correr, estávamos encurralados.
___
Ali na grade há uma senhora dizendo que é sua tia e quer falar com
você!
Fui. Era realmente uma irmã de meu pai, tia Alzira; ela morava em
Pernambuco, mas foi ao Rio e fez tudo para se avistar comigo.
96
A sensação de encurralamento, de impotência frente ao navio que levaria ao
desconhecido, ao perigo, à guerra, pode ser encontrada em outros depoimentos. Na
narrativa do sgt. Schnaiderman há uma seqüência de ações tensas e melancólicas, até
chegar ao embarque:
95
TAVARES, Eduardo Diogo (Org.). Nós vimos a cobra fumar: Diário de um jovem tenente brasileiro
na Itália durante a II Guerra Mundial. Salvador: P&A Editora, 2005, pp
96
Sargento Ayrton Vianna Alves Guimarães. Op. Cit. pp.269.
Chegamos à estação. Um trem de carga nos espera. Tendo havido, dia
antes, exercícios preliminares, cada um sabe o lugar que deve ocupar. Vamos
entrando nos vagões à escuras e sentamo-nos sobre o Saco A.
O trem põe-se em movimento. Pelas janelinhas do vagão, percebem-se
luzes da casas, lá em cima. O tenente Raposo vem com umas bravatas,
misturadas com palavrões, tentando uma familiaridade difícil. “Quem tem cu,
tem medo
___
comenta-se em resposta às bravatas do tenente. Mas seria
realmente medo? Lembro-me apenas de umas sensações vagas e de um esforço
para aceitar tudo maquinalmente.
O trem chega ao cais, isolado pela Policia Militar. Pára bem em frente ao
navio: a primeira coisa que vemos ao sair do vagão. Parece um monstro pré-
histórico. O cinzento do casco se confunde com quase com o negror da noite.
As chaminés parecem chifres empinados, os canhões da proa lembram presas
pontiagudas.
[...]
O monstro que estava à espreita no cais engoliu numa noite 5075 homens.
97
A idéia do soldado como “engrenagem”, como algo alienado e impotente
aparece em vários momentos das recordações do sargento. As pilherias do tenente não
alcançam a tropa, que segue como gado, mesmo tensa, mesmo assustada. Navio e noite
confundem-se num terror só e o clímax é atingido quando o monstro-navio engole a
todos
___
os embarques levavam de dois a três dias, mesmo assim era algo
surpreendente, devido a capacidade de transporte do navio.
Essa tensão entre os soldados pode ser vista nas brincadeiras feitas à caminho do
porto. Aqueles que eram conduzidos à guerra brincavam para espantar o medo.
Até que um dia, de manhã, sol quente, bonito, veio a ordem de treinamento
novamente. Se o embarque era de noite, tudo camuflado, ninguém podia abrir a
janela, ninguém podia fumar [...]. Fomos cantando samba e brincando, uma
batucada medonha, o povo dando adeus...e ninguém parou, não!
98
A atitudes jocosas, o canto e o samba apareceriam como estratégias de para lidar
com o medo e com o stress também no front, como será visto do capitulo III.
Mesmo com o nacionalismo, o medo ou mesmo com a própria alienação, as
vezes, para alguns, o pensamento pairava na possibilidade de desistir, desertar e voltar
para o lar. A proximidade deste, para aquele que moravam no Rio de Janeiro, era uma
tentação maior: “No nosso segundo dia a bordo, esperávamos que o navio desatracasse e
97
SCHNAIDERMAN. Op. Cit. pp. 31-32.
98
Sargento Ayrton Vianna Alves Guimarães. Op. Cit. pp.269.
atravessasse a barra. Às duas noites passadas foram incríveis. Um calor tremendo, todos
nós pensando: ‘tão pertinho de casa, é só saltar, tomar um bonde e lá estaremos’”
99
.
Deserção e covardia são temas muito delicados entre os veteranos de guerra.
Temos uma imagem pública de que o soldado deve ser destemido, já que é treinado para
a guerra, sendo esta sua razão de existência. Admitir atitudes de medo e fuga do
combate se choca contra essa imagem coletiva construída
___
em muitos casos
construída pelo próprio grupo
___
sobre o veterano de guerra. Alistair Thomson
perceberia como essas questões entre história pública e narrativas destoantes poderiam
criar grandes constrangimentos para indivíduos que vivenciaram uma guerra
100
.
Como será visto em situações de combate, no capitulo III, o medo é algo pouco
admitido e, muitas vezes, aparece em relatos sobre soldados desconhecidos ou de outras
unidades a qual o narrador não pertence. O sargento Daniel Lacerda presenciou, no
embarque, indícios de deserções: “[...] Mas quando chegamos e entramos na fila e o
pessoal foi embarcando, ficaram alguns sacos no chão, abandonados. Homens que
deixaram os sacos e de mandaram. Desertaram na hora de embarcar”
101
.
Estas narrativas destoam do que a propaganda oficial e os jornais, censurados,
veicularam. Rubem Braga, correspondente do Diário Carioca, enviado à Itália junto ao
segundo escalão da FEB, ainda a bordo do navio transporte General Mann reitera a
imagem dos soldados brasileiros como imunes ao medo e a deserção:
[...] E os piores praças, os mais rebeldes, os que sumiam de repente, os que
nunca chegavam na hora, todos estão presentes. Não faltou um só homem, não
houve uma só vaga tentativa de deserção. Os homens que vieram de reserva
voltaram do cais, não havia lugar para eles a bordo, porque na hora da “cobra
fumar” todo mundo compareceu.
102
Uma vez embarcado, o soldado estava sob responsabilidade e controle da
tripulação norte-americana dos navios. Os soldados foram distribuídos em
compartimentos, separados dos oficiais, e haveria uma série de procedimentos de
segurança a serem seguidos. Outro correspondente de guerra brasileiro daria uma idéia
dessa preocupação quanto à segurança, além de explicitar o sentimento que muitos civis
convocados teriam ao partir para a guerra:
99
SILVEIRA, Joaquim Xavier da. Cruzes brancas: Diário de um pracinha. Rio de Janeiro: Bibliex,
1997, pp.21.
100
Thomson trabalhou com veteranos australianos da I Guerra Mundial, abordando os choques entre as
narrativas destes combatentes e a História Oficial construída sobre a participação da Austrália no conflito.
THOMSON. Op. Cit.
101
Sgt. Daniel Lacerda. Op.Cit. pp. 120.
102
BRAGA, Rubem. Crônicas da guerra na Itália. Rio de Janeiro: Bibliex, 1996, pp.17.
Os avisos e os alto-falantes que se multiplicavam por todos os
compartimentos são os guias orais e explícitos do que se deve e não se deve
fazer. Estamos em guerra, somos uma multidão que segue para guerra, e muita
coisa não se deve fazer; não se deve, por exemplo, atirar qualquer coisa ao mar.
Sou apenas um recruta, bisonho e desprevenido como todo recruta, um pobre e
indefeso civil em poucas semanas transformado em soldado da ativa, e me
emaranho e me confundo num mundo que nunca foi meu.
103
Cada um receberia um cartão numerado onde haveria o registro das refeições
feitas a bordo. Começava no navio o contato mais intenso com os americanos e seus
costumes, especialmente, sua alimentação.
Setembro, 1944
A bordo, o oficial ou praça que trabalha como três vezes ao dia; quem não
trabalha como duas vezes. Quem como duas vezes faz o pequeno almoço às
nove e o jantar às quatro da tarde. Os americanos resolveram abrasileirar a
comida, mas a comida foi mal traduzida. Não é comida brasileira nem
americana; é, provavelmente, a comida típica de alguma parte do Atlântico.
Come-se.
104
Embora se estranhasse o paladar da nova alimentação, o soldado, que não estava
acostumado no Brasil como tamanha fartura e variedade no exército ou mesmo em sua
vida como civil, se espantou e demonstrou grande admiração pela organização.
Eu me lembro que tinha um refeitório cheio de mesas, nada de cadeiras. A
gente ia chegando, tinha uns elevadores, e iam botando as panelas, as coisas,
geralmente marinheiros brancos e pretos, e tinham aquelas bandejas. A bandeja
tinha um copo de mingau, mingau bom, de aveia, melhor mingau que já tomei
na vida! Você não conhecia [naquele tempo] leite em pó, ovo em pó. Um pão
de forma, um pedação! Umas bolachas não sei de quê. Um bicho assim de
doce. Eu aprendi a comer bolacha e pão com doce. Uma xícara de café com
leite. Uma maçã. Um troço deste tamanho assim de chocolate, um tablete.
Melhor coisa que tinha na nossa ração!
105
O soldado Vicente Alves do Nascimento também se surpreenderia com a nova
alimentação.
[...] Era a primeira vez que tinha contato com a comida americana. De
manhã cedo eles furavam uma lata assim de suco de limão, chamavam
grapefruit
106
. Faziam a gente beber aquele caldo azedo! Aí tinha leite,
103
SILVEIRA, Joel. O inverno da guerra. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005, pp. 21.
104
BRAGA. Op. Cit. pp. 18.
105
Raul Carlos dos Santos. Op. Cit.
106
É uma fruta cítrica, parente da laranja.
chocolate, tinha de tudo, de quanto você quisesse comer você comia. Ovos
“estalados”!
107
O cotidiano nos navios era feito, além das refeições, de jogos de tabuleiro,
baralhos, conversas e rodas de música. Havia também uma rotina de limpeza, que
gerava competições entre os compartimentos. Um dos momentos de grande incômodo
era o banho e a utilização das privadas. Alguns soldados receberam com grande choque
a falta de privacidade, vista como promiscuidade nesses momentos:
Um dos piores capítulos dessa viagem, feita num barco que é a versão
moderna do navio negreiro, foi sem dúvida o banheiro. Nosso banheiro estava
localizado na popa do barco; tinha dois planos, em cima chuveiros e pias, em
baixo, formando um semicírculo, um átrio perfeito, umas casinholas separadas
umas das outras, por meias paredes, sem portas: as latrinas. Foi o meu primeiro
choque intimo. Num momento compreendi até que ponto a guerra brutaliza os
homens. Habituado toda a vida a banheiro particular, era agora obrigado a
comparecer em público, na frente de todos que passassem, uns indiferentes,
outros que procuravam divertir-se, fazendo gaiatices com os companheiros em
apuros. Quase chorei de vergonha; porém, mais tarde iria achar tudo isso
pueril, iria dizer as mesmas piadas, ter a mesma desfaçatez, iria tornar-me
animal, sem o menor pudor.
108
Há uma homogeneização na vida militar, o coletivo se sobrepõe ao individual. A
perda da individualidade e da privacidade chocam, especialmente para aqueles
indivíduos de maior instrução e condição social, como era o caso do soldado Joaquim
Xavier, que era estudante de direito. “[...] Para os tímidos e retraídos, para os que se
acostumaram a viver confortavelmente, ela proporciona um choque salutar no sentido
da adaptação [...]
109
” à vida na guerra. A referência ao transporte como um navio
negreiro pode estar relacionada ao histórico familiar, já que, segundo o veterano, seu
avô foi ativo abolicionista. Esse sentimento de brutalização do soldado Joaquim se
manifestaria com maior intensidade durante as situações de combate, diante do risco da
morte, como será abordado no capitulo III.
Em meio aos seus questionamentos ideológicos quanto ao sentido de sua
participação e do envolvimento do Brasil na guerra, Boris Schnaiderman não deixa de
observar as diferenças raciais existentes na Marinha Norte-Americana:
[...] Eu não penso que fomos vendidos por dólares, eu acredito na
democracia, eu acredito nos marinheiros americanos que nos transportam no
bojo do monstro. Acredito sim. É verdade que eles têm uma divisão na proa,
107
Sd. Vicente Alves do Nascimento. Op. Cit.
108
SILVEIRA, Joaquim X. da. Cruzes brancas. Op. Cit. pp. 22.
109
SCHNAIDERMAN. Op. Cit. pp. 39.
reservada especialmente para os marinheiros de cor, que não se misturam com
os brancos. [...] É verdade que eles passam por nós, distantes, superiores, na
sua condição de servidores do monstro que nos carrega. Tudo isso é verdade,
mas eu acredito na democracia, soberana e superior, com parlamentos e
imprensa livre. [...]
110
As diferenças raciais nas Forças Armadas Norte-Americanas se tornariam mais
notórias para os soldados da FEB quando estes convivessem com uma quantidade maior
de soldados aliados. No front os brasileiros se orgulharia de ter uma formação mista em
duas unidades, como será visto no capitulo seguinte.
Mas era uma viagem para a guerra e mesmo com o espanto que as novidades
traziam o perigo estava presente e perceptível. Exercícios que simulavam situações onde
a embarcação deveria ser abandonada eram realizados com freqüência.
Durante a viagem marítima, caso o navio fosse torpedeado, a gente tinha
um ponto exato para se dirigir e pegar o bote , a fim de abandoná-lo. O bote
iria fiar vagando no mar e a gente teria que saber como sobreviver, aguardando
naturalmente ser socorrido. Aprendemos que havia determinado peixe cuja
carne possuía grande quantidade de água, teríamos que comer a carne crua para
matar a sede, mas graças a deus, isso só foi treino, não precisou não.
111
Os navios de transporte tiveram variadas escoltas, de contratorpedeiros à
cruzadores, tanto americanas quanto brasileiras. Estás quando chegavam ao Estreito de
Gibraltar retornavam ao Brasil, sendo rendidas por embarcações responsáveis pelo
patrulhamento do Mediterrâneo. Mesmo assim tanto o General Mann quanto o General
Meighs estavam armados. O medo era de ataques aéreos e, principalmente, de
submarinos.
É difícil afirmar se houve realmente uma tentativa de ataque por parte de
submarinos alemães a algum dos escalões que transportava a FEB. Mesmo tendo
reduzido muito suas ações no Atlântico a Kriegsmarine ainda operava e oferecia perigo.
Talvez as notícias dos afundamentos, tanto alardeadas pela imprensa e pelo governo,
tenham aflorado com os exercícios para abandonar o navio na viagem para a Europa.
Fato é que os submarinos inimigos parecem em algumas narrativas:
Na viagem para a Itália, após cinco dia de viagem, fomos acompanhados
por submarinos alemães, o que me trouxe um certo receio. Entretanto,
estávamos bem escoltados por três belonaves de grande porte, três destróieres
e, inclusive, aviões. No quinto dia soou alarme de submarinos na área, os
110
Id. Ibidem. Op. Cit. pp.36.
111
O soldado Joaquim Carlos de Oliveira foi observador da Cia de Comando do II/11ºRI. HOESGM,
Tomo III, pp. 160. Entrevista realizada em18 de maio de 2000.
destróieres lançaram quatro bombas de profundidade, giraram rapidamente e
foram atrás do submersível que se afastou. [...]
112
O cabo Raul Carlos dos Santos descreve os procedimentos e reações dos
soldados e da tripulação durante uma possível ação de um submarino inimigo:
Aí um dia o alto falante chamou “Atenção! Atenção! Todos para os seus
compartimentos!”, sem dizer mais nada. Ai todo mundo desceu correndo.
Chegou lá embaixo, todos compartimentos tinham duas portas, uma de entrada
e outra de saída. Quando a gente entrava as portas fechavam por fora. Se
fossemos torpedeados estava todo mundo campado! Não tinha por onde sair.
[...]
Poderíamos ser bombardeados pelo lado de baixo, pois são diversos
[compartimentos], vários andares. Desse dia em diante teve outras vezes
também. Trancaram a gente e “paaar, paaar, paaar”. O pau comeu lá na frente.
Som de tiro! Todo mundo caladinho! Sabe o que aparece? Ninguém sabia,
ninguém avisou. Não sei quantos minutos, um monte! E a gente “O que será
isso?”.[...]
113
Estas experiências seriam apenas uma prévia de todas as agruras, tensões e
surpresas que a guerra traria. Como no front, mas em menor intensidade, os momentos
de combate eram apenas parte dos acontecimentos dos soldados. Os navios levariam os
homens para um novo mundo, como novas relações, novas experiências, que
transformaria os soldados. No próximo capitulo veremos algumas dessas o novas
ocasiões nas quais os praças tiveram que lidar.
112
Soldado José Bernardino de Souza. Op. Cit.
113
Raul Carlos dos Santos. Op. Cit.
II
“O belo país”: os soldados brasileiros na Itália
Embora alguns dos soldados brasileiros já começassem a ter uma noção da
proporção do conflito em que estavam envolvidos, para a maioria da tropa isso
aconteceria ao chegar na Europa. Lutar em outro continente, além mar, foi mais uma
etapa na experiência singular do envolvimento do Brasil no conflito mundial.
Quando da chegada das tropas brasileiras, a Itália se encontrava numa situação
política e social complicada: quase 1/3 de seu território estava ocupado por forças
alemãs ou simpáticas ao nazi-fascismo; e a outra parte do seu território era controlada
por tropas aliadas, especialmente forças norte-americanas e inglesas. Isso foi resultado
do processo de envolvimento desse país europeu com a guerra, pois, até meados de
1943, a Itália era a principal aliada da Alemanha nazista. Embora o rei Vitor Emanuel
III tivesse destituído e prendido o líder fascista Mussolini, o governo assumido pelo
monarca tinha pouco poder de fato sobre os rumos da Itália.
O fim da aliança com os nazistas, em julho de 1943, não trouxe a paz para o
povo italiano. Naquele momento a situação da nova frente de batalha que se tornara a
Itália se agravaria, pois os Aliados tinha a necessidade de aumentar a pressão sobre as
forças nazistas, no intuito de, no mínimo, aliviar as perdas que os soviéticos sofriam no
principal front, ou seja, na Europa Oriental. Após um ousado resgate perpetrado por
forças especiais alemãs, em setembro de 1943, Benito Mussolini formaria a República
Social Italiana, conhecida também como República de Salò
___
cidade próxima a Milão
e que seria a sede do novo governo fascista. O ditador italiano teria, com a fundamental
ajuda da Alemanha, o controle sobre quase toda a região setentrional da península
itálica, pelo menos até o primeiro semestre de 1944. As tropas italianas seriam treinadas
e, em parte, aparelhadas pelo governo alemão. Ao longo da campanha brasileira na
Itália, em momentos diversos, algumas dessas unidades fiéis a Mussolini entrariam em
combate com a FEB. As Divisões Itália, Monte Rosa e San Marco seriam as principais
adversárias fascistas dos brasileiros.
Completando o quadro principal de combatentes da frente italiana, havia os
guerrilheiros, ou seja, os partiggiani. Não é meu objetivo esmiuçar as nuances da
resistência civil à ocupação alemã, mas se faz necessário oferecer alguns
esclarecimentos. Embora a literatura, de maneira ampla, generalize especialmente os
movimentos de resistência armada nos países ocupados pelas tropas do Eixo (referindo-
se como “a resistência francesa”, “a resistência iugoslava”, “a resistência italiana”), o
quadro era bem mais complexo. Focando o caso italiano, a guerrilha surgiria com o
armistício de 8 de setembro de 1943 e o conseqüente estado de ocupação alemã. Assim
teríamos o envolvimento de segmentos da população civil, organizada em unidades
armadas, lutando contra as forças germânicas, agora invasoras. Estes grupos tinham
orientações políticas variadas: comunistas, anarquistas, monarquistas, liberais
socialistas. O que os colocavam do mesmo lado, a pesar de antagonismos ideológicos
muitas vezes, era a resistência, organizada pelo Comitê de Liberação Nacional. Estes
guerrilheiros atuaram no inicio com pouca ou nenhuma ajuda estrangeira, mas com o
avanço dos Aliados na península, e a necessidade desses de informações e soldados,
surgiria uma colaboração, talvez não tão organizada e regular como a estabelecida entre
ingleses e os partisans franceses.
Estes guerrilheiros lutaram muitas vezes ao lado das tropas Aliadas e, portanto,
das unidades da FEB. Quando não agiam diretamente numa operação, era comum
servirem como apoio logístico ou, especialmente, fornecendo valiosas informações
sobre o terreno, posições e deslocamento, efetivos e moral do inimigo.
Assim, teríamos uma frente de combate com diversos atores, ou seja, além das
tropas regulares dos exércitos alemão, italiano fascista e Aliados (norte-americanos,
ingleses, poloneses, sul-africanos, brasileiros, etc.), haveria ainda as unidades
guerrilheiras. A Itália era um grande campo de batalha.
Neste capítulo abordarei as impressões dos soldados brasileiros frente ao quadro
de destruição apresentado pela guerra na Itália, as relações estabelecidas com a
população italiana, e ainda as visões sobre os norte-americanos. Para a tropa brasileira,
seria nas proximidades do front que a maioria dos soldados entraria em contato mais
freqüente e intenso com os principais aliados, os norte-americanos, nos campos de
treinamento e no transcorrer dos combates.
2.1 A chegada: Destruição e miséria
A chegada em Nápoles representou para os soldados brasileiros a primeira visão
de uma área destruída por um conflito em larga escala. Carcaças de navios, estrutura
portuária arrasada e a própria cidade, que também fora duramente castigada pela ação
da artilharia aliada e pela ação das tropas alemãs, que demoliram a maior parte das
instalações, civis ou militares, que pudesse ser utilizadas pelo inimigo.
Essa cidade portuária foi alvo do desenrolar da “Operação Avalanche”. Primeira
grande operação anfíbia Aliada, realizada no Golfo de Salerno, localizado
aproximadamente 30 Km ao Sul de Nápoles. O general norte-americano Mark Clark,
comandante do V Exército, ao qual estaria subordinada a FEB, no segundo semestre de
1944, enfrentaria a resistência de experimentadas tropas alemãs, que, na primeira
quinzena de setembro de 1943, quase impediram a invasão da Itália continental.
O cabo Raul Carlos dos Santos, que chegara à Itália com o 2º e 3º escalões da
FEB no dia 6 de outubro, relata suas primeiras impressões sobre a chegada à Nápoles:
Eu quero lhe dizer como chegamos. Estava frio. Ô se estava! Tudo estava
organizado, por conta dos americanos. Eles registraram tudo, anotava quem
desembarcava, soldado, sargento, tudo. Tenho uma foto ai, das pranchas de
madeira onde descíamos. [...] Ah! Vimos [destruição]! O porto de Nápoles,
para um navio entrar era maior dificuldade. Rapaz, parece que tinha não sei
quantos navios afundados! Uns girados “assim”, outros tombados. Navio que
entrava já ia de num jeito pra encostar e descarregar. Mas o que tinha de
navio!
114
O sargento Silas de Aguiar Munguba mostra-se tão ou mais espantado que o
cabo Raul com a destruição da cidade italiana, o que, no seu discurso, mostra as
impressões provocadas pela guerra e seu argumento para lutar em outro país:
No dia 6 de outubro, chegamos a Nápoles que me causou uma impressão
terrível. Não tinha idéia do que era guerra, nada disso; Nápoles era uma
desolação, a gente via o cais todo destruído, navios afundados, navios
emborcados e tudo mais; as casas destruídas, não havia prédio inteiro; dezenas
e dezenas de homens no cais do porto, pedindo comida, pedindo esmola.
Imagine, antes de seguir para a guerra, sempre dizia: “Por que tenho que lutar
pelo Brasil, fora do Brasil? Eu quero lutar é no Brasil”; mas me mandaram e eu
fui. Quando cheguei à Itália, constatei que é mil vezes melhor combater fora de
nossa Pátria; porque o estrago, a miséria são muito grandes numa guerra.
Fiquei, realmente, perplexo.
115
Combater longe da pátria afastaria desta as agruras da guerra, a destruição física
das cidades e a miséria que se abateria sobre as populações.
A Itália não era mais um país aliado dos alemães. Não havia mais restrições
quanto as táticas a serem implementadas contra as tropas Aliadas que invadiam a
península, a única exceção era o norte do país, ainda sob um regime fascista. Assim, as
ações de combate tenderiam a serem recrudescidas, no intuito de barrar ou retardar o
114
Raul Carlos dos Santos. Op. Cit.
115
O sgt. Silas de Aguiar Munguba serviu na 2ª Cia do I/1ºRI. HOESGM, Tomo II, pp. 90. Entrevista
realizada em 01/06/2000.
máximo o inimigo. O pesquisador David Mason relata a ação das forças alemãs em
Nápoles:
[...] A cidade se encontrava em ruínas, pois os alemães haviam realizado
com a habitual minúcia o trabalho de destruição das instalações portuárias e de
grande parte das edificações da cidade. Numerosíssimos prédios foram
consumidos pelas chamas, que tiveram a alimentá-las o mobiliário das casas e
até mesmo os arquivos da cidade. O pandemônio, na zona portuária, era total,
pois além da pulverização, pelo fogo dos prédios e armazéns nela existentes, os
alemães haviam bloqueado os acessos aos cais, afundando navios na baía,
derrubando guindastes e jogando caminhões n’água e ate mesmo descarrilando
locomotivas nas docas.
116
A pesar da ênfase na capacidade destrutiva dos alemães
___
que não eram os
únicos exímios “pulverizadores” de prédios, vide os intensos bombardeios perpetrados
pelos Aliados em diversas cidades alemãs ou japonesas
___
, que soa quase como algo
maquiavélico, o fato é que os danos à cidade forma intensos, pois um ano depois da
tomada da região a destruição ainda era notória para os recém chegados soldados da
FEB.
O Sargento de artilharia Boris Schnaiderman, que desembarcara em Nápoles
junto com o primeiro escalão das tropas brasileiras, a 16 de julho de 1944, demonstra
suas visões sobre o desembarque:
De longe, o casario de Nápoles parece acolhedor, com as suas cúpulas,
o seu colorido, os contornos estranhos em face do Vesúvio. Aos poucos,
porem, os contornos delineiam-se melhor: as cúpulas brilhantes e os palácios
no alto das colinas servem de fundo a casas velhas e miseráveis. E, depois que
o navio passa em meio a vasos de guerra [...] de todos os tipos, [...] e sobre os
quais há dezenas de balões cativos de defesa antiaérea, vão-se tornando mais
visíveis os estragos junto ao cais: navios de cascos pro ar, outros partidos ao
meio, chaminés emergindo à superfície, esqueletos de edifícios, um amontoado
informe de escombros, sobrados sem teto, estatuas decapitadas, um mundo
inesquecível, lúgubre, de alucinação e demência.
117
Os escombros se sobrepõem à bela paisagem que a Itália oferece e a destruição
reina na descrição do local de desembarque. As cenas de guerra passam a ser cada vez
mais presentes para a tropa. Os balões, que impediam a ação de bombardeios de
mergulho também chamariam a atenção de outros soldados, como o Cb. Raul:
Outra coisa que assustou foram os balões. Balões, amarrados, eu vi muito.
É um cabo de aço, amarrado no chão e no balão lá em cima. Balão, daqueles
116
MASON, David. Salerno: Invasão da Itália. Rio de Janeiro: Renes, História Ilustrada da 2ª guerra
Mundial, 1977, 2ª Ed, pp. 146.
117
SCHNAIDERMAN, Boris. Guerra em surdina: Histórias do Brasil na Segunda Guerra Mundial. São
Paulo: Brasiliense, 1995, 3ª Ed. pp.48.
compridão. Aquilo impedia ataques de aviões. Tinham muitos, em todo lugar!
Em Livorno também. Era uma fartura!
118
Embora também registre a destruição avistada pela tropa em território italiano, o
discurso do Chefe do Estado-Maior (EM) da 1ª DIE, coronel Floriano de Lima Brayner,
tem outro foco. O romantismo sobre as paisagens de Nápoles se faz mais presente:
Dia 16 de julho. Dia de sol maravilhoso. Céu azul, em harmonia com o
Mediterrâneo tranqüilo, onde o sol estendera uma esteira prateada para o
comboio passar.
As 9 horas penetrávamos na Baia de Nápoles, a imensa enseada dominada
pelos dois extremos da vida: Capri, a poesia, o amor, a blandícia do clima e do
convite à vida; e o Vesúvio, imponente, fumarento, sempre mal humorado,
como que a negar a mãos aos que chegavam, mesmo timidamente, como nós,
que nada queríamos da bela Itália senão fazê-la esquecer as maldades que os
submarinos do Eixo praticaram na nossa costa.
Estávamos agora nos avizinhando lentamente das ruínas do antigo Cais de
Nápoles.
As pequenas cidades e vilas, engastadas nas montanhas que emolduram a
baía, ou debruçadas sobre as águas azuis, constituíam um poema para os olhos
do viajor cansado, preparando o espírito para a lenda imortal: vedere Napoli,
poi morere. [...]
119
Este tipo de “demonstração lírica” é possível de ser observada em outros
depoimentos de oficiais de alta patente, além nacionalismos exagerados e exaltações à
liderança de comandantes, muitas vezes sem o menor disfarce da parcialidade frente aos
oficiais superiores
___
o historiador Luis Felipe da Silva Neves atenta para o fato de que
existe um forte culto à personalidade do Gen. Mascarenhas de Moraes, entre os
veteranos da FEB, tanto entre praças quanto oficiais de variadas patentes.
A intensa destruição das cidades italianas foi fruto da aguerrida defesa alemã,
caracterizada por linhas fortificadas sucessivas, que muitas vezes iam do mar Tirreno ao
Adriático, aproveitando-se do terreno acidentado, que dificultava o avanço das tropas
aliadas, especialmente das unidades blindadas. O avanço das tropas anglo-americanas, e
de outras nacionalidades a elas vinculadas, se deu com muita dificuldade e as vezes com
grandes perdas.
Esses intensos combates traziam grandes conseqüências para a população civil,
que, além da destruição física das cidades sofria com a desestabilização econômica e
social. As famílias, quando não eram dizimadas pelo fogo cruzado, eram, muitas vezes,
118
Cb. Raul Carlos dos Santos. op.cit.
119
BRAYNER, Floriano de L. A Verdade Sobre a FEB: Memórias de um Chefe de Estado-Maior na
Campanha da Itália. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, pp. 106-107.
separadas. Os combates provocavam ondas de refugiados, que vagavam pelas estradas,
normalmente vindas das regiões dominadas pelos alemães. Embora sejam freqüentes os
relatos de violências e abusos cometidos por tropas alemães contra essa população há
outros fatores que podem ser elencados para entender a preferência dos italianos pelas
áreas controladas pelos Aliados.
2.1.2 O convívio com os civis: Os limites entre a ilegalidade, afeto e a sobrevivência
A guerra desestruturara o fornecimento dos serviços básicos, como água
eletricidade, transportes e, especialmente, a produção e distribuição de alimentos. As
grandes áreas urbanas sofriam mais que as rurais, pois estas ainda tinham a
possibilidades de estarem próximas às zonas produtoras de algum tipo de alimento.
Além disso, são constantes os relatos da rapina alemã. É difícil avaliar a
extensão da carência de material da Wehrmacht, mas é certo que em fins de 1944, a
Alemanha já não conseguia nem prover a reposição adequada de homens perdidos.
Assim, embora o veterano da 232ª DI alemã Heinrich Boucsein
120
ateste que as tropas
germânicas pagassem pelos suprimentos e outros produtos adquiridos junto à população
civil, é bem provável que os depoimentos sobre saques, especialmente de animais, como
porcos, ovelhas e aves, e grãos, sejam verídicos.
O correspondente dos Diários Associados, Joel Silveira, apresenta um exemplo
de como o desenrolar dos combates afetava a população civil de maneira direta:
Durante mais de três meses Abetaia foi terra de ninguém. Os paesani [civis]
daqui foram expulsos de suas casas: seus lares com o passar dos dias, aos
poucos foram se transformando num monte de ruínas. Noite e dia as patrulhas
brasileiras e alemãs aqui se defrontavam em combates violentos, em sucessivas
disputas que fazem parte do cotidiano da guerra e que nunca são mencionados
nos comunicados oficiais, porque não passam de pequenas células do
monstruoso tecido que é a guerra em si.
121
120
Heirich Boucsein serviu como oficial de comunicações da 232ª DI, uma das principais adversárias da
FEB. A respeito da relação entre os civis, os partigiani e as tropas germânicas ele narra: “Comparada à
Rússia, a guerra na Itália é mais que estranha. Vizinhos, os soldados italianos do Estado de Salo
combatem ao lado dos alemães contra os aliados, na frente voltada para o sul: a população é solidaria com
ambas as partes, muitas vezes comportando-se de forma amistosa e solicita, porém os guerrilheiros
comunistas conduzem sua guerra civil sem fazer qualquer distinção entre os alemães e seu próprio povo.”
BOUCSEIN, Heinrich. Bombardeiros, caças guerrilheiros: Finale furioso na Itália – A história da 232ª
Divisão de Infantaria, a última divisão alemã a ser deslocada para a Itália (1944-45). Rio de Janeiro:
Bibliex, 2002.
121
SILVEIRA, Joel. O inverno da guerra. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005, pp. 99.
Havia também um temor em relação a convocação de mão-de-obra. Para
construir seus abrigos, trincheiras e outros tipos de fortificações, as tropas alemãs
comumente convocavam homens. Como conseqüência a população masculina que não
estava incapacitada por ferimentos acabava sendo afastada de seus familiares, seja pela
convocação forçada, seja se escondendo das mesmas. Isto contribuía para o movimento
de resistência, pois junto aos partiggiani esses homens ainda tinham a possibilidade de
manter sua liberdade e até meios de sustento, pois havia uma relação de apoio logístico
entre muitos grupos guerrilheiros e as forças Aliadas.
Alguns correspondentes de guerra brasileiros escreveram sobre o uso da
população civil para trabalhos forçados pelas tropas alemães. Em outubro de 1944,
Rubem Braga, do Diário Carioca, relatava:
No dia seguinte àquele em que os brasileiros tomam conta de algum lugar,
começam a aparecer, descendo as montanhas, homens e mulheres italianos.
Isso é gente que enfrentou a alternativa de fugir para as montanhas ou ser
agarrada pelos nazistas, que têm fome de braços. Não há nisso qualquer
exagero: todos são unânimes em dizer que os alemães pegam a força todos os
jovens para lutar ou trabalhar para ele.
122
Era necessário criar uma estrutura mínima de funcionamento das cidades
conquistadas, especialmente porque a Itália tornara-se um aliado ao declarar guerra a
Alemanha. A grande quantidade de sfollati, ou seja, de refugiados, provocava um
grande risco de segurança, tanto para as operações militares quanto para a saúde da
população envolvida direta ou indiretamente na guerra. Assim, o fornecimento de
alimentos e outros serviços básicos estavam além de ações de caridade por parte dos
soldados, embora estas fossem constantes.
As vezes, dependendo da logística de cada unidade e das condições encontradas
no desenrolar das operações, o comando da FEB autorizava a distribuição direta de
alimento à população italiana:
A rapina [alemã] das cidades e dos campos é tão completa quanto possível,
e o que os brasileiros encontram nas cidades é uma população famélica. Nosso
comando já sabe disso e envia na vanguarda mantimentos e cozinha. Deixando
de lado as outras razões, não de admirar que nossa gente seja bem recebida
onde vai chegando.
123
122
BRAGA, Rubem. Crônicas da guerra na Itália. Rio de Janeiro: Bibliex, 1996, pp. 36-37.
123
BRAGA. Id. Ibidem. pp. 37.
A guerra da fartura conquista os corações, ou melhor, os estômagos. Há certo
exagero em colocar uma cozinha de campanha como uma unidade de vanguarda, mas
neste momento o correspondente cumpre seu papel em promover uma boa imagem da
FEB, mesmo assim não deixa de criticar a boa ação do comando.
De qualquer forma, havia ações concretas do comando aliado para tentar
restabelecer uma rotina mínima da vida dos civis, tanto no campo quanto nas cidades.
Certas áreas eram urbanas restritas para os militares, delimitadas por fitas. Alguns
estabelecimentos comerciais, como certos bares e casas de espetáculo, eram proibidos à
militares e até determinados produtos eram restritos apenas aos civis. Ao chegar em
Nápoles, Rubem Braga percebe as dificuldades da população civil in loco:
[...] Os alimentos são caros e poucos, mas há. Há homens trabalhando a
terra, e os estrangeiros que ocupam a cidade não são mais os nazistas que
pilhavam todo mundo, que roubavam o porco e a vaca do camponês. Os
aliados evitam que seus soldados comam o alimento do povo pobre. Com
minha farda de oficial [os correspondentes usavam fardamento de oficial,
sendo equivalentes, extra-oficialmente, à capitães] eu pude entrar num bar e
beber: mas quando pedi um sanduíche, me avisaram que a comida é reservada
aos civis. São raros os restaurantes em que um oficial estrangeiro pode comer,
raros e caros. Na própria cidade, os oficiais aliados têm lugares certos onde
podem comer a preço baixo comida fornecida pelos seus países.
124
O cabo Raul Carlos dos Santos também passou por experiência similar e
comenta que “[...] Era proibido [comprar alimentos], pois o que tinha na cidade era para
os italianos que quase não tinham. Não tinham!”
A boa relação com a população italiana era a tônica do discurso para com os
civis. O compadecimento com a pobreza e a degradação social, que a presença alemã
trouxe na interpretação dos brasileiros, é algo universalizado hoje, embora encontremos
também em relatos da época. O então sargento de artilharia Boris Schnaiderman relata
suas impressões na cidade e da população de Pozzuoli, uma província de Nápoles,
durante a folga do serviço:
Mostravam-se [os soldados brasileiros] quase todos sentimentais e
compassivos. Era com grande espanto que os paisanos os viam afastarem-se,
para ceder passagem a uma senhora, ou tomar uma criança pela mão, a sim de
ajudá-la a atravessa a rua.
As maneiras afáveis de nossa gente pareciam anacrônicas na Pozzuoli
daqueles dias. Era freqüente encontrar-se algum dos nossos crioulos parado no
124
BRAGA. Op. Cit. pp. 31.
meio da rua, cercado de uma chusma de crianças, distribuindo biscoitos ou
balas trazidas do Brasil. Mas, por fim, aquele espetáculo deprimia. As crianças
maltrapilhas, de braços como espetos, aqueles olhos parados, aquela
palidez...[...]
125
O sofrimento desses civis criava um vinculo emocional, uma espécie de
identificação familiar que levava os pracinhas a ajudar de alguma forma.
[...] Quando cheguei, desembarquei no cais, na Itália, logo apareceram
muitas crianças e velhos, pois a gente quase não via jovens, presos e levados
que foram para as linhas alemãs, a fim de participarem na construção de
casamatas e abrigos para o inimigo. Mas as crianças, as mulheres e os velhos se
aproximavam dos brasileiros e diziam: Brasiliano, noi abbiamo molta fame;
dammi um poco d’alimento [...]. Então, víamos, imaginávamos nossa casa no
Brasil, graças a Deus, sem aquele tipo de coisa, em virtude de uma guerra que
destruía tudo, como aconteceu em Nápoles, as famílias esfaceladas, sem que
soubessem onde andavam os irmãos, os pais, sem teto. [...] Aí, agente metia a
Mao no bornal e dava uma lata de chocolate, uma barrinha de biscoito, uma
carteira de cigarro
___
cigarrete. Então diziam assim: grazie, grazie, brasiliano,
voi avete um buon cuore
___
agradecido, agradecido, brasileiro, você tem um
bom coração [...]
126
.
A reação de gratidão da população funcionava como um reforço positivo
à participação do Brasil na guerra, para este praça, uma espécie de compensação pelos
riscos que corria, assim formulava-se uma auto-aprovação moral em atitudes que
ajudassem os italianos. “Tudo isso fazia com que nos sentíssemos aliviados e dispostos
a enfrentar o perigo que se avizinhava
127
”.
Todos os dias eram enviados às cidades milhares de soldados que estavam de
licença
___
fora os que estavam em folgas clandestinas, as chamadas tochas. Era
necessário organizar um fluxo tão grande de pessoas.
Inspirado no exército norte-americano surgiria na FEB o Serviço Especial, ou
seja, uma unidade responsável por entreter os soldados quando de licença na retaguarda
ou em momentos de folga no front. Esta unidade organizava shows com soldados
artistas
128
, além de espetáculos de ópera e teatro e até um jornal. Em Florença, Roma,
125
SCHNAIDERMAN, Boris. Guerra em surdina: Histórias do Brasil na Segunda Guerra Mundial. São
Paulo: Brasiliense, 1995, 3ª Ed. pp. 71
126
Sd. Benedito Barros. HOESGM, Tomo II, pp. 76
127
Id. Ibidem.
128
Muitos soldados levaram instrumentos musicais para o front e alguns deles eram músicos e
compositores experientes. Para mais informações sobre a relação e entre música popular e a II Guerra
Mundial ver MERON, Luciano B. E a cobra sambou: A II Guerra Mundial nos sambas. (artigo inédito).
Nápoles e Pistoia haviam centros organizados para entretenimento. Segundo o veterano
Joaquim Xavier da Silveira:
Os oficiais eram hospedados em hotéis de luxo, requisitados para as tropas
aliadas, enquanto, enquanto os soldados ficavam instalados em instalações
mais modestas. O serviço permitiu que as tropas não se brutalizassem nas
férias e tivessem alternativas além do simples apelo ao sexo. Foram
organizadas visitas a museus, onde guias davam informações sobre a cultura
italiana.
129
O soldado Vicente Gratagliano também foi agraciado com uma licença e relata
sua experiência num desses hotéis em Roma:
O ruim desse passeio em Roma era que ia [apenas] um homem de cada
Companhia, havia bastante soldados e íamos dormir num hotel chamado
Fórum Mussolini. Tratava-se de um hotel grande; para dormir, precisava-se
banhar-se primeiro. A gente já estava sem tomar banho há bastante tempo, mas
tinha que cumprir a exigência para poder dormir no alojamento. Nós éramos
mais de cinqüenta para dormir. Ficava um italiano com a toalha e ele falava:
___
Tomare banho! Tomare banho!
[...] Em Montecatine havia um hotel onde os americanos dançavam de um
lado e do outro havia uma piscina. Os americanos organizaram uma orquestra
de soldados e dançavam com as italianas; na outra parte, a da piscina, quem
desejasse tomava banho. Estávamos aguardando o caminhão que iria nos levar
à Roma, ainda no hotel, e assistíamos tudo.
130
Estes serviços dependiam da cooperação de civis e contribuíam para a formação
de uma série de relações com os militares aliados, licitas e ilícitas, aliás, mesmo nas
localidades próximas do front era necessária, em muitas circunstâncias a participação da
população italiana. Informações, serviços e produtos circulavam entre os soldados e os
paesani. Era comum que mulheres lavassem o fardamento de praças e oficiais em troca
de comida. Dessa interação era freqüente o surgimento de relacionamentos amorosos.
O relacionamento do soldado brasileiro com a população local era muito
bom. Se bem que apareciam só para pedir, não tinham nada, principalmente
comida, as mulheres apareciam querendo roupa para lavar, a fim de ganhar
algum dinheiro; todo mundo dava. Elas eram honestas, preparavam a roupa e
traziam direitinho, em um espaço curto de tempo, pois estávamos sempre nos
locomovendo. Elas ganhavam alimento também, dávamos-lhe o que nos
sobrava, assim como cigarros.
131
129
SILVEIRA, Joaquim X. da. Op. Cit. pp. 122.
130
Vicente Gratagliano. Op. Cit. 291.
131
Joaquim Carlos de Oliveira. Op. Cit. pp. 165.
O convívio com a população em seu cotidiano muitas vezes representava uma
possibilidade de alivio para o soldado desgastado pelos riscos do front. Especialmente
nas vilas rurais e nas cidades de menor porte praças e oficiais brasileiros desenvolviam
laços de amizade com os civis. As folgas eram ansiosamente esperadas e longas viagens
eram empreendidas para encontrar os amigos.
[...] Depois da primeira refeição do dia, que foi as 8h, partimos com destino
a Campolemisi. Havíamos sido dispensados pelo capitão por oito dias. Íamos
rever nossas namoradas. Depois de 45 dias nas posições, estávamos saturados
daquilo tudo. O nosso espírito pedia paz e diversões. A paz, teríamos nos
afastando o mais possível do front. A diversão, encontrando dente amiga que
nos alegrasse.
132
Os italianos parecem que, de maneira geral, também encaravam de forma
agradável a presença dos soldados brasileiros e os tratavam de modo amistoso,
integrando-os às suas atividades cotidianas e festivas. O tenente Ítalo Diogo Tavares,
que serviu no 6ºRI, continua a relatar sua licença junto à população de Campolemisi
___
uma localidade próxima à Lucca:
Enfim, depois de enormes sacrifícios, lá chegamos. Que festa! Que alegria!
Fiquei louco quando meus olhos pousaram de novo naquela figurinha de meus
sonhos [uma garota chamada Ana, com a qual o tenente namorava]. Passei
vários dias feliz e esquecido de tudo que se passava em roda. Dancei várias
vezes. Dá prazer dançar naquela paz. O tocador de fisarmônica
133
é o Osvaldo,
de Basso Matana. Toca que e uma maravilha! No seu repertório há vários
trechos de ópera. O tratamento a mim dispensado foi o melhor possível.
Deram-me a melhor cama. Deram-me o melhor vinho. Faziam tudo para me
agradar. Lá se vivia como em casa. Dona Rose me tratava como a um filho.
Todos os dias fazia questão de que eu comesse com ela. [...]
134
Rubem Braga pode testemunhar os momentos de integração da tropa brasileira
com a população civil, especialmente a rural:
[...] Atravessamos calmos vilarejos onde nossos soldados mantêm longas e
alegres palestras com as jovens louras. Esses diabos desses pracinhas vivem
por aí como se estivessem em casa. Um deles passa com uma criança italiana
ao colo. Ao seu lado, a jovem mãe leva outra criança. [...]
135
132
TAVARES, Eduardo Diogo (Org.). Nós vimos a cobra fumar: Diário de um jovem tenente brasileiro
na Itália durante a II Guerra Mundial. Salvador: P&A Editora, 2005, pp.79.
133
Um tipo de acordeom.
134
TAVARES. Id. Ibidem. pp. 82-83.
135
BRAGA. Op. Cit. pp. 43.
Braga e muitos praças justificam tamanha facilidade de relações ao fato de tanto
brasileiros quanto italianos serem emotivos, atribuindo à origem latina uma
sensibilidade diferente dos anglo-saxões
___
“tutti latini, tutti amici”
136
___
além disso, a
proximidade das língua seria outro elemento fundamental nessa boa relação
137
.
Mas a guerra afetava de forma nociva, na maioria dos casos, a população civil. A
falta de gêneros básicos, como remédios, combustível e alimentos, levou ao surgimento
de um mercado paralelo onde a corrupção era constante e a prostituição e a mendicância
eram os principais meios de arrecadar recursos ou cooptar a conivência de militares
estrangeiros. Esse “mercado negro” é pouco falado pelos soldados, talvez pelo fato que
alguns tivessem participação no mesmo, especialmente através do envolvimento com a
prostituição. Em uma de suas primeiras crônicas, Rubem Braga fala sobre esse comércio
paralelo:
[...] O mercado negro funciona por toda a parte: tem-se às vezes a
impressão cômica e trágica de que cada pessoa procura comprar escondido
uma coisa por 20 liras para revender por 40 liras a outra pessoa, que revenderá
por 70 liras a outra, que a revenderá a outro revendedor ___ e assim por diante,
até aparecer, não sei em que altura da escala, um cidadão que resolve consumir
o artigo, graças ao dinheiro que arranjou ninguém sabe onde, talvez à custa de
outros negócios desse gênero.
138
Esse comércio paralelo se deslocava em várias direções. Negociava-se entre os
civis e também com os partiggiani. Muito provavelmente havia relações com os
alemães, além, claro, dos aliados
___
principal fonte de produtos industrializados de
qualidade, como cigarros e combustível, além de alimentos. Heirich Boucsein nos dá
uma pequena idéia de um ambiente onde estas negociações eram realizadas numa
grande cidade:
Conforme aconselhado pelo oficial da Divisão de Caçadores, não se deve
freqüentar a zona portuária em grupos inferiores a quatro, quiçá seis homens,
principalmente quando se vai a bares localizados no subsolo, como o “Gato
Preto”. Entre um “público civil” difícil de classificar, estão, sobretudo,
marinheiros quase sempre sem blusa do uniforme. [...] Ali se bebe sem limites,
Spumante, Bitter, Vino rosso e várias “combinações”, incluindo todas as cores
do arco-íris e seus tons intermediários. Mesas e bancos “flutuam”, e é claro
que, no caso de alguns velhacos, nem toda conta é paga. No recinto tomado
pela fumaça dos cigarros, uma senhora totalmente decadente, mas com boa
voz, interpreta um repertório obsceno. Tudo é negociado aos preços do tráfico;
até mesmo os aliciadores utilizados pelos bandos e os guerrilheiros fazem
ofertas ostensivas para comprar armas ou, mediante altas somas, o “desfrute de
136
SCHNAIDERMAN. Op. Cit. pp. 161.
137
Id. Ibidem. pp. 37.
138
Id. Ibidem. pp. 31
um guerrilheiro”. [...] A impressão que se tem é de estar “no vestíbulo do
inferno de Dante”.
139
Este relato fora feito em meados de setembro, quando a 232ª DI alemã estava
encarregada da defesa de Gênova. Mesmo com intenso combate à guerrilha e suas redes
de informação e logística, é difícil coibir o mercado negro mesmo nas cidades
controladas por grandes efetivos alemães. O comércio ilegal caminha por trás de ambas
as linhas, tanto dos aliados quanto dos germânicos, e no espaço entre elas.
Talvez estes ambientes de ilegalidade e a ação de italianos criminosos
___
ambos,
neste contexto, relacionados a degradação da guerra
___
seja a origem de impressões
negativas por parte de alguns praças brasileiros em relação aos civis. O sargento Ayrton
Vianna tece controversas e severas criticas aos civis:
Alguns italianos agiram de forma solerte e criminosa. A Itália é uma terra
bonita, boa, língua parecida com a nossa e por isso nós nos envolvemos muito,
particularmente pela facilidade de idioma. A camaradagem do brasileiro com
qualquer pessoa foi abrindo oportunidade para que alguns poucos entrassem no
acampamento, a fim de apanhar comida, cigarros, e muitos soldados nossos
foram assassinados pelos italianos quando de sentinela no acampamento. [...]
Nós passávamos por aquelas cidades e encontrávamos italianas ajoelhadas
no chão, pedindo ajuda a Deus, dizendo que o filho e o marido estavam no
front, levados pelos alemães. Nós agradávamos a italiana, fazíamos com que
ela saísse daquele medo, daquele pavor, com carinho, com delicadeza e, apesar
de todo esse conforto éramos barbaramente atraiçoados no acampamento e no
front. Não podíamos nos descuidar com aqueles desviados...Mas foi uma
minoria, produto da própria guerra.
140
Este depoimento destoa das memórias dos veteranos da FEB. É consenso entre
estes a boa relação entre civis e soldados, mas isto não quer dizer que atritos não
pudessem ocorrer e, muito menos, que furtos e trapaças não pudessem ser cometidos. O
sargento Munguba narra uma dessas ações de engodo perpetrada por italianos:
Por vezes, como nós outros, faziam algumas molecagens. Coisas pitorescas.
Havia um cigarro brasileiro chamado Yolanda, que tinha a figura de uma loura
na caixa; mas a gente recebia cigarro americano, Chesterfield, Camel etc; não
me lembro exatamente, porque não fumo; os italianos não suportavam o
Yolanda, cigarro forte que alcunhavam de bionda cativa (loura ruim). Os
meninos abriam a carteira americana por trás, retiravam o cigarro americano,
enchiam-na de cigarro brasileiro e vendiam para os italianos. Havia uma outra
“malandragem local”: chá de casca de qualquer coisa, diziam que era vinho.
Mas, de qualquer forma nos dávamos muito bem; ainda hoje, tenho uma grande
admiração por eles.
141
139
BOUCSEIN. Op. Cit. pp. 60
140
Ayrton Vianna Alves Guimarães. Op. Cit. pp. 273.
141
MUNGUBA. Op. Cit. pp. 99-100.
Mesmo assim é desconhecido na literatura sobre a FEB casos de assassinatos ou
agressões de italianos civis contra soldados brasileiros, muito pelo contrario, já que a
Justiça Militar teve que condenar praças por crimes contra a população (como será visto
no capitulo III). A população civil estava muito mais vulnerável a abusos por parte dos
militares, algo que é reconhecido pelos veteranos:
Eu só pensava em minhas irmãs, nas brasileiras e esperava que a guerra
jamais acontecesse no Brasil, porque quem pena mesmo é a população civil. O
soldado sofre mais tem comida, uma ração, tem seu descanso, tem tudo e a
população civil não tem nada, por vezes, perde até o teto, perde tudo. A gente
fiscalizava e monitorava o comportamento do soldado, porque sempre existiu
um mais afoito, que poderia desrespeitar a mocinha ou outras senhoras que
estivessem ali, por sinal, mulheres bem bonitas, com um rosto que parecia uma
maçã madura.
142
O receio que tantos homens juntos, num ambiente de brutalização que era a
guerra, pudessem desembocar em abusos contra a população civil estava presente entre
comandantes e comandados. O soldado Abdias de Souza fala da possível punição de
quem assediasse uma italiana:
Eu acho que o italiano não se queixou do brasileiro, porque tínhamos uma
segurança tão grande, um respeito, uma ordem de ninguém se aproximar das
mulheres. Inventaram até um boato que o cara que corresse atrás de uma
mulher ia para o saco de areia. Não sei se aconteceu isso. Era um saco de areia
mesmo de cinqüenta quilos nas costas do soldado. Era o castigo. Você ficava lá
no Sol com aquele saco pendurado nas costas.
143
Mas predominava relações pacificas, amistosas, inclusive em meio ao comércio
clandestino. Nas ramificações desse comércio ilegal era possível encontrar situações
inusitadas. Numa localidade chamada de Pieve di Cascio, Boris Schnaiderman
testemunha, talvez, uma das “pontas” nos elos que formavam as redes de comércio
clandestino:
Era um ambiente de camponeses abastados, que não foram atingidos pela
miséria e que certamente tiravam suas vantagens no câmbio negro. Grandes
salames e lingüiças pendiam ali do teto. Os praças ficavam a namorá-los, mas
não adiantava querer comprar: eram pra passar o inverno, o sustento da família,
diziam os donos da casa, embora ele dessem para alimentar um batalhão.
Via-se o estoque diminuir de quando em quando e, no dia seguinte, era
infalível ouvir-se o ganir desesperado de um porco, pendurado pelas patas
142
Sgt. Oswaldo Matuk. Op. Cit., pp.257.
143
Abdias de Souza. Op. Cit., pp. 190. .
traseiras e sangrando vivo. E após esta operação prolongada e sinistra, o
estoque se renovava.
144
A unidade de artilharia onde servia o sargento Schnaiderman havia se instalado
nesse vilarejo e passara a conviver com alguns civis, especialmente com a família que
cedera a casa para o Posto de Comando (PC) e a Central de Tiro (CT). É difícil ter
certeza da ligação dessa família em especifico com o mercado negro, mas podemos
especular que sua condição era no mínimo suspeita. A existência de porcos para abate
era um indicio, já que as tropas alemãs, que tinham certa dificuldade em serem
abastecidas de gêneros frescos, rapinavam animais domésticos. Havia um controle, ou
pelo menos uma tentativa, do comando aliado no comércio de gêneros alimentícios,
justamente para evitar o desabastecimento da população civil. Mas a grande circulação
de tropas de varias nacionalidades, a destruição dos meios de comunicação e a presença
de forças inimigas criava grandes dificuldades para os serviços básicos.
Esse exemplo nos chama atenção para outro possível justificativa
___
além da
proximidade lingüística
___
para a relação entre os soldados da FEB e os civis serem tão
intensas. A convivência muito próxima com a população, com grande freqüência, era
fruto do uso do mesmo espaço doméstico. Embora nas folgas os soldados tivessem
oportunidade de freqüentar grandes centros urbanos, como Florença e Roma, era mais
fácil transitar pelos pequenos vilarejos dispersos entre as elevações do Apeninos. As
unidades se instalavam nas vilas, ocupavam as casas com seu material de campanha, em
especial os PCs. As famílias italianas se acomodavam entre os soldados, dividindo
cômodos e partilhando a cozinha, o banheiro e as demais instalações da propriedade.
Aliás, era comum os soldados entregarem suas rações para que a mulher da casa
preparasse refeições. Era como uma relação mutualista entre duas espécies: os praças,
com seu grande volume de mantimentos e material, trazendo uma fartura desconhecida
desde o inicio da guerra; os paesani com suas residências pobres, mas cheias de um
ambiente familiar, que evocavam o país distante, a normalidade de uma vida campesina
simples. Para muito soldados, havia uma carência por afeto, algo difícil de conseguir
numa simples aventura com as prostitutas:
O romance começou quando o comando do Grupo ainda estava em Silla. Toda
Bateria-Comando comentou então a novidade. [..] Pobre Giovanna. “Mia povera
Giovanna”, como dizia Anésio nos momentos de efusão.
144
SCHNAIDERMAN. Op. Cit. pp.152.
___
Corre, vá. I ragazzi stano esperano.
Ela saia correndo, segurando as latas. Entrava num dos casarões e subia para o
segundo andar. No quartinho abafado, havia três crianças pálidas, magras,
doentias. [...]
As crianças gostavam muito dele. Sentavam-se no seu colo, metiam-lhe a mão
no bolso, para ver se trouxera caramelli. Anna de olhos profundos e sérios,
rodeados de círculos roxos, Gioia de cabelos de ouro, Ricardo de corpo franzino.
Eram os seus bambini, a sua família.
Não adiantava fingir que era simples aventura, coisa de homem, de soldado.
Realmente aproximara-se da viúva pensando em seu corpo cheio, maduro, de
pernas grossas e seios robustos. Mas depois foi aquela amizade boa, aquele
convívio afetuoso, aquele carinho feminino em sua vida rude e insípida. [...]
Na estrada de Silla, a sinistra 64, pensava naqueles lábios, naquele corpo ainda
bom de Giovanna. Mas, sobretudo, naquele calor que se introduzira em sua vida, e
que o impelia estrada afora, os bolsos do capote repletos de escatoletas, na direção
do vilarejo bombardeado, fazendo esquecer o medo da morte e o temor do coronel,
a uma repreensão na Folha de Alterações, às zombarias inevitáveis dos praças.
145
O soldado Joaquim Xavier e seus companheiros de unidade também
demonstrariam esse estreito laço emocional com uma família de italianos, convivendo
na residência dos mesmos. Em Bombiana passariam boa parte do inverno
___
quando um
grande número de operações se dava no nível de patrulhas (ver capitulo III)
___
à espera
da chegada da primavera e de uma grande ofensiva dos aliados.
[...] D.Dina e “seu” Mario eram os donos da casa, e nela moravam quando a
requisitamos.
Esse casal de italianos conquistou nossa amizade para todo o povo da Itália.
Cedeu-nos os melhores quartos, com cama. No Natal ofereceu-nos um modesto
almoço, mas era tudo quanto tinham. Procurou dar-nos um ambiente de
família. Quando algum de nós chegava estropiado, com a roupa úmida,
avivavam o fogo da lareira para secar nossa roupa. Nossa equipe passou quase
todo o inverno em Bombiana, mas na nossa volta encontramos nossa roupa
lavada e arrumada num cantinho. Sei que eles nunca lerão estas linhas, mas
quero deixar aqui expresso o nosso agradecimento. Acho que posso falar em
nome de todos os companheiros do pelotão de transmissões.
Na noite que fui para casa com bronquite, D. Dina fez emplastros quentes,
que substituía a intervalos [...]. Quando a gente fica doente é que sente bem
falta do carinho da família [...].
146
Embora a carência de afeto fosse claramente perceptível entre os soldados nos
momentos entre combates, era mais fácil conseguir prazer pago, imediato, seja através
do vino rosso ou com as signorine bionde. A prostituição possivelmente era um dos
meios mais comuns de contato dos soldados com os civis. Tanto nas pequenas vilas
rurais como nos grandes centros urbanos é presente a prática da prostituição, muitas
145
SCHNAIDERMAN. Op. Cit. pp. 156-158.
146
SILVEIRA, Joaquim Xavier da. Op. Cit. pp. 99.
vezes com a conivência de parentes próximos como pais, irmãos e maridos. O soldado
Joaquim Xavier da Silveira, de licença em Roma, relata suas experiências com o
submundo de comércio clandestino e prostituição:
[...] Às 22 horas fechavam todos os bares públicos da cidade, mas abriam os
clandestinos. Fomos a um deles. Entrava-se por uma portinha de uma casa
qualquer, encaminhando-se para um portão, através de várias portas. A última
abria para um vasto salão, cheio de mesas onde homens e mulheres bebiam,
num ambiente de fumaça dos cigarros e no meio do barulho dos bêbados.
Homens em traje civil, de todas as idades, andavam com maços de retratos na
mão, oferecendo pequenas dispostas a proporcionar aos soldados uma noite
agradável. Havia de todos os tipos e preços, algumas bem lindas e novas. Era
um dos cancros da guerra, a prostituição, conseqüente da miséria e da fome. È
claro que lá naquela ocasião, ninguém se perdeu em cogitações dessa natureza.
Cada um procurou o tipo do seu agrado, e eu mesmo acabei esquecendo-me
por completo que tinha sido abençoado pelo Papa naquele dia.
147
Mas relatos como esse hoje são evitados pelos veteranos, já que muito não
consideram de bom tom assumirem que se relacionaram com prostitutas, mesmo na
época da guerra. Mesmo assim admitem que muitos companheiros procuravam por
estes serviços nas vilas e cidades, até mesmo os oficiais, embora estes fossem mais
discretos
___
devido a uma certa imagem de superioridade que tentavam manter em
relação aos praças e graduados mesmo em ocasiões fora das atividades bélicas.
Além das diversas situações e aspectos citado das relações com os civis
italianos, os soldados da FEB ainda passariam por uma experiência singular junto a
esses: a libertação de cidades.
2.1.3 Brasiliani liberatori
A ocupação da Itália pelas tropas alemãs e a mudança de atitude destas para com
a população civil
___
que passou a ser vista com desconfiança muitas vezes e até como
inimiga devido às ações da guerrilha
___
contribuiu para as forças anglo-americanas e
suas subordinadas terem uma boa imagem.
Além das ações humanitárias e da própria tentativa de organização de uma
administração, a reação positiva dos civis italianos se manifestava logo após os
combates. Isto era bem perceptível quando tropas aliadas chegavam numa cidade recém
abandonada pelos nazistas em fuga, ou até mesmo logo após os combates para libertar a
mesma:
147
SILVEIRA. Op. Cit. pp. 96.
[...] Em qualquer lugar que chegávamos, depois dos alemães se retirarem,
éramos recebidos com festa, eles [civis] diziam brasiliani liberatori. Se
quiséssemos era festa de manha à noite. Sempre contaram com o nosso apoio,
em comida inclusive. Como eu era casado, minha mulher me mandava sempre
uns caixotinhos com goiabada e café. Eu fazia o café e, quando havia
oportunidade, oferecia às famílias italianas.
148
Após o rompimento das linhas defensivas alemãs no alto do Apeninos, em
meados de Abril de 1945, os brasileiros teriam acesso ao Vale do Panaro. Os alemães
recuam suas unidades e a FEB começa uma acelerada perseguição. Seguidas cidades
são libertadas neste processo. Boris Schnaiderman fala sobre este momento:
[...] Finalmente a estrada não desce mais, estamos mesmo no vale,
passamos por aldeias e pequenas cidades, a população vem às ruas, em muitos
lugares agrupa-se nas margens da estrada para jogar fores nos carros, flores,
gritos de saudação, beijos atirados pelas moças, há um bem-estar que sobe
pelos membros e vai até a cabeça, liberatori! Liberatori! Passamos por
Vignola, com suas casas antigas, com seus pomares e hortas, por toda a parte
há lençóis brancos nas janelas, em algumas cidades aparecem também
bandeiras vermelhas com a foice e o martelo [...].
149
O clima de festividade tomava a Itália a medida que a guerra se distanciava com
a retirada das tropas nazistas. Joaquim Xavier da Silva e sua unidade de comunicação
pôde presenciar,e aproveitar, como Schnaiderman a receptividade dos civis. Ele relata
sua passagem por cidades do Vale do Panaro e do Vale do Pó:
O tal vale foi uma agradável surpresa, havia de tudo, menos pó.
Graças a Deus! Uma grande alegria reinava por toda a parte. Não havia
ninguém que não estivesse sorridente. E os italianos também, a alegria era tanta
que nos beijavam homens e mulheres, nesse arrebatamento tão próprio da raça
latina . Nós só apreciávamos, naturalmente, o arrebatamento feminino, o outro
sendo bem dispensável. Não sei se nossa aparência era muito heróica, mas um
pouco grotesco eu garanto, com as roupas cinzentas de pó [...]. Mas nem com
essa aparência deixávamos de ser saudados pelas belas italianas, nem o nosso
paladar embotou tanto que nos impedisse de provar o vinho com regaram a
nossa passagem pelas cidades. Assim, atravessamos uma fileira de cidades,
aldeias, paesi, como Vignola, Reggio Emilia, Fidenza, Parma, Fidenzuola,
Pontenura, etc.
150
148
O Sgt. Moacyr M. Barbosa serviu na 7ª Cia do III/1ºRI. HOESGM, Tomo V Op. Cit. pp. 333.
Entrevista realizada em 31/08/2000.
149
SCHNAIDERMAN. Op. Cit. pp. 177.
150
SILVEIRA, Joaquim X. Op. Cit. pp.136.
Estes relatos mais festivos e alegres são uma exceção nas narrativas de
Schnaiderman, que, de maneira geral, abusa da angustia e melancolia para descrever
suas experiências da guerra. O clima de festividade era contagiante. Logo os relatos
sobre os eventos ocorridos numa libertação se espalharam. A libertação de uma cidade
era um momento que alguns dos correspondentes de guerra passaram a desejar
presenciar. Depois de lamentar não estar na vanguarda das unidades aliadas quando da
libertação de Bolonha, Rubem Braga e Raul Brandão
___
este correspondente do Correio
da Manhã
___
decidem se aventurar pelo Vale do Pó, seguindo as estradas recém
abandonadas pelos alemães, se adiantando em algumas localidades à unidades da FEB:
Quando chegamos a Montecavolo, a aldeia parece vazia. [...] Não
estamos seguros se os alemães já abandonaram Quatro Castella, que fica
poucos quilômetros além. Quando nota que somos aliados, o velho se Poe a
gritar,e minutos depois estamos cercados de gente
___
principalmente mulheres
velhas e moças. São faces rosadas que avançam para nós tremulas de emoção,
rindo entre lagrimas, vozes estranguladas de prazer. [...] Dois homens me
puxam pelos braços, uma mulher me beija, todos disputam a honra de nos levar
para sua casa. Afinal, um casal de velhos ganha a partida e nos leva para uma
sala, e toda a casa se enche de gente. A todo momento chegam retardatários,
que ficam nas pontas dos pés para nos ver, para ver esses estranhos seres, tão
longamente, tão ansiosamente esperados: os soldados aliados.
___
Há tanto tempo que vos esperávamos! Há tanto tempo! Liberatori!
Brasiliani!
Trazem queijo, abrem garrafas de vinho espumante, obrigam-nos a beber.
Dezenas, centenas de olhos nos fixam, como se estivessem vendo três deuses
___
e não dois feios correspondentes de guerra e um pracinha chofer. Somos os
primeiros aliados a chegar ali. Os alemães partiram horas antes.
___
Liberatori!...
151
Mas a guerra ainda não terminara. Nem sempre se encontrava vinhos e flores a
receber os praças e mesmo durante as festividades o risco de morte ainda se fazia
presente. As tropas alemães e italianas fascistas, em fuga, muitas vezes disparavam
contra a população. Pontes eram minadas e casas dinamitadas para retardar o
deslocamento das forças aliadas.
[...] Ouvem-se de quando em quando uns disparos isolados e, numa
garagem da vizinhança, há dois infantes feridos, atendidos por um soldado do
batalhão de saúde, estendidos sobre as mantas, gemem baixinho, esperando
pacientemente a evacuação [...].
152
151
BRAGA. Op. Cit. pp. 260.
152
SCHNAIDERMAN. Op. Cit. pp. 178.
O relato do sargento Schnaiderman, feito próximo a Quatro Castela, se soma ao
de outros veteranos, que mostram os riscos que os soldados ainda estavam submetidos,
até mesmo ao lidar com os civis ou os guerrilheiros, nos momentos finais da guerra ou
mesmo no ato de libertação de uma cidade em qualquer momento da campanha da FEB.
Os partiggiani, quando da libertação de uma localidade, promoviam a caça a elementos
nazi-fascistas ou seus colaboradores. Pessoas eram presas e executadas. Algumas
vezes, praças e oficiais brasileiros se viam em situação de tensão e interviam para evitar
execuções sumarias e brutalidades por parte dos guerrilheiros
153
.
Mas as situações de risco e até de atrito que os soldados da FEB passariam frente
a população civil eram secundárias, pois, embora a situação fosse tensa entre fascistas e
seus simpatizantes derrotados e os partiggiani, com os soldados aliados haveria outra
tônica, de cooperação, de trocas e as vezes até de contravenções, como visto.
Pensar as relações dos soldados brasileiros durante a campanha da Itália, após
avaliar o papel dos civis italianos, nos remete, agora, a considerar as influências dos
norte-americanos que lutaram ao lado da FEB no front italiano.
2.2 – Os americanos: o american way nos campos de batalha
Uma vez acertado o envio de uma força expedicionária brasileira surgia a
necessidade de aparelhar e treinar esses homens, especialmente no caso de um novo
modelo de guerra que se apresentava, uma guerra altamente mecanizada, com uma série
de tecnologias inéditas para o exército brasileiro. Como o Exército Brasileiro não tinha
recursos para prover estes novos armamentos e o adequado treinamento
___
o que não
era exclusivo dessa arma, pois tanto a Marinha quanto a nova Força Aérea Brasileira
estavam carentes de material e homens preparados
___
se tornou condição sine qua non
para a existência da FEB a ajuda norte-americana.
Não seria a primeira vez que o Exército Brasileiro teria que se adequar a um
modelo de organização estrangeiro. Só no período republicano já teríamos tido, pelo
menos, duas missões militares de relevante influência doutrinal, técnica e até política.
Nas primeiras décadas do século passado militares brasileiros viajariam à Alemanha
para conhecer os avanços marciais desse país, mas com a I Guerra Mundial (1914-1918)
e o alinhamento do Brasil contra os alemães
___
o que não impediu o governo de
153
Em Camaiore, oficiais da 1ª Cia do 6º RI interferiram junto ao comando americano para libertar civis
aprisionados por guerrilheiros. GONÇANVES, José e MAXIMIANO, Cesar C. Irmãos de armas: um
pelotão da FEB na II guerra Mundial. São Paulo: Códex, 2005, pp. 81.
adquirir armamento germânico, especialmente canhões da Krupp
___
teríamos a
aproximação com outras potencias, em especial a França. Essa Missão Militar Francesa,
que se instalara no inicio da década de 1920, teria grande influência sobre a formação
do oficialato do Exército Brasileiro, e conseqüentemente sobre sua doutrina militar, já
que passara a comandar as instruções de alguns dos principais centros de formação
como a Escola de Comando e Estado-Maior e a recém fundada (pelos franceses) Escola
de Aperfeiçoamento de Oficiais
154
.
Durante o governo Vargas haveria uma reaproximação comercial e política com
a Alemanha, que resultaria, também, pelo menos até o inicio da década de 40 numa
proximidade militar. A Alemanha hitlerista gerava uma admiração em certos setores do
governo varguista, especialmente a partir do Estado Novo
155
. As vitórias militares e as
novas estratégias e tecnologias bélicas germânicas impressionava militares influentes do
governo, como o Chefe do Estado-Maior do Exército, Góes Monteiro. Nesse momento
o Brasil se tornara um importante fornecedor de matérias primas para Alemanha nazista,
que pagava com material bélico
156
.
Mas o ataque japonês a Pearl Harbor e a entrada dos EUA no conflito, em
dezembro de 1941,
___
juntamente com a declaração de guerra da Alemanha à potência
norte-americana
___
promoveram uma reviravolta nas relações internacionais das
Américas. Embora o Brasil tivesse significativas e crescentes relações com a Alemanha,
o quadro era mais favorável aos EUA. O Brasil tinha neste país seu principal parceiro
comercial, além disso, havia acordos entre as nações do continente para cooperação
mutua no caso de agressões externas
___
acordos esses que foram prontamente evocados
pelos EUA em janeiro de 1942, na III Reunião dos Ministros das Relações Exteriores
das Repúblicas Americanas.
Uma vez formada a e enviada a Europa, a FEB estaria subordinada ao V
Exército norte-americano, ou seja, lutaria ao lado de outras unidades do Exército dos
EUA: 1ª Divisão Blindada, 34ª Divisão de Infantaria, 10ª Divisão de Montanha e a 85ª
Divisão de Infantaria. Com isso, além do treinamento com instrutores norte-americanos
teríamos a convivência com soldados, tanto em ocasiões no front quanto na retaguarda.
Assim, a maneira dos brasileiros de fazer a guerra teve muita influência dos soldados
154
MACCANN, Frank. Soldados da pátria: História do Exército Brasileiro (1889 – 1937).Sao Paulo: Cia
das Letras, 2007, pp.269-271.
155
STANLEY, Hilton. Oswaldo Aranha: Uma Biografia. Rio de Janeiro: Objetiva, 1994.
156
Para mais detalhes sobre as relações comerciais entre o Brasil e as principais potências do período da
II Guerra ver SEITENFUS. Op. Cit.
estadunidenses. Estes haviam aprendido primeiramente com os ingleses e até
adquirirem experiência tiveram que sofrer baixas e derrotas, como as frente ao Afrika
Korps germânico no norte da África.
O engajamento dos norte-americanos significou, entre outros acontecimentos,
um volume inimaginável de recursos para os Aliados. Os parques industriais dos EUA
___
distantes do alcance dos bombardeios inimigos
___
passaram a fornecer armas,
veículos e equipamentos à boa parte das tropas engajadas contra as forças do Eixo,
como australianos, neozelandeses, poloneses livres, ingleses, russos e etc. O historiador
Luis Felipe da Silva Neves, do Departamento de História da UFF corrobora o peso da
produção industrial e, especialmente, como isto impressionava os soldados envolvidos:
Mais de 30 milhões de pessoas alistaram-se, quase a população do Brasil na
época, e destes, mais de 17 milhões passaram por exame médico. A
mobilização e a manutenção desta economia de guerra envolveu recursos
fantásticos fazendo o pracinha ficar estupefato com o que via.
Somente em 1944 os EUA puseram no mar uma tonelagem de navios de
guerra igual à de toda marinha japonesa às vésperas de Pearl Harbor.
Produziram milhares de tanques a mais do que os alemães, fabricaram quase
300 mil aviões. Mas talvez o maior sucesso tenha sido o “Liberty Ship”, um
cargueiro produzido em larga escala, de forma padronizada, que tornou
possível ter tantas pessoas e tanto material em tantos lugares diferentes ao
mesmo tempo.
157
Essa “guerra da fartura”, ou seja, a profusão de recursos oferecidos pelas Forças
Armadas Norte-Americanas marcaria os pracinhas brasileiros desde o transporte para a
Itália, feito em navios dos EUA. Para muitos era a primeira vez que se via comida em
tal quantidade e variedade:
A comida até ai não era ruim, era boa. Era a primeira vez que tinha contato
com a comida americana. De manhã cedo eles furavam uma lata assim de suco
de limão, chamavam greapefruit. Faziam a gente beber aquele caldo azedo! Aí
tinha leite, chocolate, tinha de tudo, de quanto você quisesse comer você
comia. Ovos “estalados”!
158
Essa profusão de alimentos contrastava com o quadro geral das unidades no
Brasil, onde os recursos eram parcos e o preparo técnico dos soldados responsáveis
pelas cozinhas e setores sanitários estava muito aquém dos padrões mínimos exigidos e
oferecidos pelos aliados estadunidenses. O cabo Raul, também demonstra seu espanto
com a alimentação estrangeira e compara com a oferecida pelo Exército brasileiro:
157
NEVES, Luis Felipe da Silva. “A Força Expedicionária Brasileira: 1944-1945”. In: COGGIOLA,
Osvaldo (Org.) Segunda Guerra Mundial: Um balanço histórico. São Paulo: Xamã, 1995, pp.305-306.
158
O Sd. Vicente Alves do Nascimento serviu na Cia. de Petrechos do 11º RI como metralhador.
Entrevista concedida ao autor em 17/07/08.
[...] De Livorno fomos para San Rossole. Era uma área perto de Pisa, muito
grande. Então aqui nós recebemos material. Todas as Cias, num dia de manhã.
Ai tinha americano, tinha tudo. Os americanos estavam ajudando os nossos
cozinheiros a fazer comida. Chegou material, fogão, um monte de coisa que
não tinha visto.
Aqui? Aqui era carroça. Na Bahia e em todo lugar. A gente vinha trabalhar,
fazer exercício, no mato, eram carroças puxadas por burros e com a cozinha no
fundo, já vinha até cozinhando por ai. Mas a americana não, eram uma
cozinhas mesmo. Toda Cia tinha uma. Enquanto a gente tava aprendendo, os
cozinheiros também estavam. Eu tava num local onde demoramos mais e ai eu
pude ver com mais calma. Foi leite em pó, não, ovo em pó. Fui ver como eles
faziam. Rapaz! A gente vai num supermercado e vê ‘aqueles bichão’ grande de
presunto. Aquilo! Uns panelões, modo de dizer. Eram gavetas enormes, de
puxar. Ai bota a gordura e pega um saco e derramava assim, ovo em pó! Ai
outro já ia cortando o presunto. E outro puxava outra coisa ali. O café era
brasileiro, o Brasil mandou muita coisa. De inicio, mandou até feijão.
O açúcar já era do jeito deles. Aquelas pedras. Torrões. Uma vez o 11º RI
tava descansando e chegou feijão. Ai chegou aquilo. A maior comida que
tinha, peru! Rapaz! Aquelas coisas enormes nas cozinhas. Já vinha gelado. Era
peru! Eu nunca tinha comido! Nem em minha casa! No exército aqui era feijão,
arroz, farinha e uns pedaços de carne. Carne de sertão. A comida aqui era
sempre essa. Até no Rio. Eu nunca vi comida como aquela [americana]!
159
Era uma estrutura e fornecimento inéditos para os brasileiros. A larga escala de
produção das cozinhas de campanha não estava desacompanhada de soluções criativas
para manter o fornecimento adequado de alimentos e a higiene. A admiração pela
organização norte-americana se faz presente até entre alguns dos mais fervorosos
críticos da FEB. No polêmico Depoimento de Oficiais da Reserva, o Tenente Ubirajara
Dolácio Mendes assina um artigo especifico sobre a alimentação da FEB e comenta:
[...] junto ao rancho ficavam sempre três latões de água, dentro de cada um
dos quais era mergulhado um esquisito aquecedor a gasolina, provido de
chaminé. O conjunto todo dava um aspecto de uma girafa gordinha, sem pés,
com um longo pescoço preto. No primeiro daqueles três recipientes citados, a
água tinha sabão dissolvido; no segundo e no terceiro, a água era pura. As
refeições nos eram servidas em nossas marmitas de campanha. Assim que
comêssemos, jogando o resto em locais previamente designados, metíamos
marmita, caneca e talheres dentro da água de sabão a ferver, agitando tudo lá
dentro por uns instantes. Daí passávamos tudo por novos banhos nos outros
dois latões de água em ebulição...e todo o material estava limpo como novo.
Esse método de limpeza de marmitas e talheres foi novidade absoluta para o
pracinha brasileiro, habituado, até então a higienizar aquele material, em
campanha, com água e terra...
160
A preocupação com a alimentação vinha não só dos fatores nutricionais, mas
também com o psicológico. Fornecer refeições quentes ou especiais contribuía para a
159
Raul Carlos dos Santos. Op. Cit.
160
Esta é uma obra referencial, pois fora produzida poucos anos após o conflito mundial por jovens
oficias da reserva, representando uma das primeiras avaliações da participação brasileira na II Guerra
Mundial sem se ater às versões da historia militar oficial. MENDES, Ubirajara D. Soldado com fome não
briga. In: ARRUDA, Demócrito C. (Org.) Depoimento de Oficiais da Reserva Sobre a FEB. São Paulo:
Ipê, 1949, pp. 248.
moral elevada da tropa, pelo menos na visão do comando. Os soldados percebiam esse
intuito, como é no caso do peru. Alguns brasileiros atentam que esta ave só era
fornecida as vésperas de alguma operação:
Uma das coisas curiosas, também, só para chamar a atenção: quando nos
davam peru, sorvete, queijo, doce, era sinal de que, no outro dia, haveria uma
batalha, alguma coisa grande; parece que era para a gente morrer com a barriga
cheia de coisa boa. Assim como a “última refeição dos condenados”!
161
O sargento Moacyr Machado Barbosa corrobora essa visão a respeito de
alimentações especiais quando da iminência de uma ação:
A alimentação era boa. Recebíamos até peru. Só que quando era servido no
almoço, sabíamos que, à tarde, tínhamos uma missão nova para cumprir. Peru
era um presente de grego. Era uma coincidência tremenda! Se não era asa, se
era peito, ou coxa, nós sabíamos que dali a pouco sairia um Pelotão para fazer
um reconhecimento difícil em uma igreja, em uma aldeia ou para verificar
algum movimento lá na frente. Almoço com peru era seguido de missões
variadas, coincidência que não falhava!
162
Mas nem sempre era possível ter essa atenção e muitas refeições eram enlatadas
ou acondicionadas em caixas. Essas latinhas, as “rações C”, poderiam ser mais
facilmente transportadas, e, mesmo tendo variações, de forma geral o sabor não
agradava muito aos brasileiros
___
além de que, muitas vezes, sua distribuição poderia
significar uma missão onde o retorno às linhas amigas não era breve. Já as “rações K”
eram acondicionadas em caixas de papelão impermeabilizadas e também distribuídas
quando da impossibilidade da cozinha ser instalada próxima à Cia, sendo três caixas
diárias.
Junto com as rações vinham chicletes, chocolate, caramelos, papel higiênico e
cigarros. O Brasil enviava cigarros para suas tropas, mas, segundo o relato de muitos
veteranos, o melhor fumo nuca chegava aos soldados do front. De qualquer forma a
intendência norte-americana fornecia maços diariamente aos soldados brasileiros, que
permitia a esses um grande poder de barganha junto à população civil, como veremos
mais a frente neste capitulo.
Essa guerra da fartura também acontecia com as armas, veículos e
equipamentos, mesmo com a concentração de recursos e homens na Operação
Overlord, em junho de 1944, ou seja, a invasão da Normandia, o front italiano trouxe
para os brasileiros uma quantidade inédita de material e inovações da tecnologia militar.
161
Sgt. Silas de Aguiar Munguba. Op. Cit., pp. 98.
162
O Sgt Moacyr Machado Barbosa. Op. Cit. pp. 332.
O Exército brasileiro era basicamente hipomóvel, havia poucas unidades mecanizadas e
os carros de combate eram em números muito reduzidos e antiquados
163
. A FEB
sozinha possuía quase 1400 veículos e, embora não possuísse tanques, seu Esquadrão de
Reconhecimento era equipado com treze blindados leves M-8, cinco veículos de meia
lagarta e mais vinte e quatro jeeps
164
. Diferente das tropas germânicas, que tinham
grande dificuldade em manterem o fornecimento de insumos para suas unidades
motorizadas, havia uma fartura de combustível entre os aliados: “Não tivemos falta de
gasolina. O motorista que deixasse sua viatura parar por falta de gasolina era preso. Em
espaços regulares, havia camburões para troca e, também, bombas de combustível; era
só parar e abastecer”
165
.
Essa grande quantidade de material criou uma demanda por técnicos inédita e
sobrecarregou o serviço de seleção do exército. Isto resultou numa intensificação nos
cursos para cabos e soldados, sendo que muitos já começaram tendo instrutores norte-
americanos no Brasil. No caso de muito oficias os cursos poderiam ser ministrados em
escolas preparatórias nos EUA, como foi o caso do capitão Plínio Pitaluga, comandante
do Esquadrão de Reconhecimento da FEB. Mas para boa parte da tropa, em especial do
primeiro escalão, a instrução junto aos americanos se deu já na Itália. A respeito desta
instrução Vicente Gratagliano recorda as diferenças e m relação ao treinamento
fornecido pelo exército brasileiro:
Depois de Tarquinia nos deslocamos para Vada, onde recebemos o
armamento. Lá passamos dois meses recebendo instrução, agora, segundo os
padrões americanos. Quase tudo que aprendemos aqui [no Brasil], ao estilo
Frances, ficou esquecido, não existia mais e, em dois meses aconteceu uma
verdadeira reviravolta. Aprendemos e praticávamos pelo sistema americano.
Até o “sotaque” das metralhadoras do inimigo, eles nos mostraram, bem como
o nosso novo armamento. Na verdade não conhecíamos nada; fizeram uma
demonstração, dispararam uma “Lurdinha”:
___
Essa é uma metralhadora do alemão.
Quer dizer, quem falou foi o interprete:
___
Dispara 1200 tiros por minuto [...]
166
163
Segundo o cap. Plínio Pitaluga: “Esses carros Ansaldo [Fiat Ansaldo Carro Veloce CV33]
constituíram o núcleo do esquadrão autometralhadoras e daí a formação do Centro de Instrução
Motomecanizado, junto com os Renault [FT 17]. Eram um 38,40. Dos Renault, uns 10 ou 15 ainda
funcionavam”. Apud. BONALUME NETO, Ricardo. A nossa Segunda Guerra: Os brasileiros em
combate – 1942-1945. Rio de Janeiro: Expressão Cultural, 1995, pp.125.
164
BRANCO. Op. Cit. Tabela. pp. 129
165
Moacyr M. Barbosa. Op. Cit. pp.332.
166
Vicente Gratagliano. Op. Cit. pp. 284
A falta de pessoal preparado resultou em variadas conseqüências, das mais
simples (como o preparo errado de refeições por não ter tradutores nas cozinhas) às
mais graves (houve muitas baixas provocadas por acidentes, especialmente com
veículos e armas de fogo, levando inclusive à óbitos no inicio das operações da 1ªDIE).
Ao todo foram sessenta brasileiros mortos em acidentes diversos, especialmente de
veículos e com armas de fogo.
167
As dificuldades de adequação da FEB foram percebidas e registradas pelos
órgãos e instrutores norte-americanos responsáveis pelo treinamento da tropa brasileira,
gerando, segundo Neves, uma volumosa documentação a ser analisada:
A documentação produzida pelo BLD [Brasilian Liaison Detaclument – um
destacamento de ligação entre o Exército Brasileiro e o dos EUA] é vasta,
antecedendo à chegada dos pracinhas à Itália. Servia, de inicio, para informar
aos americanos as características essenciais não somente as forças amadas do
Brasil, mas também como eram seus novos aliados como povo.
168
De acordo com o pesquisador fluminense, essas críticas foram fruto de
diferenças culturais
___
que ele não especifica
___
e de desenvolvimento, pois a indústria
civil e militar dos EUA, quando do envio da FEB à Europa, em 1944, já acumulava
quase três anos de experiência no conflito. Embora identifique certa arrogância e
preconceito nas análises dos observadores norte-americanos, é nesse contexto de
grandes diferenças de desenvolvimento econômico que o autor sugere entender as
criticas dos reports, pois:
[...]
De um lado, estava em funcionamento um complexo esquema militar
de uma formação social desenvolvida, industrializada, no limiar da era nuclear;
de outro, 25 mil homens de um país pobre, rural, atrasado, agrícola
___
que de
jeito nenhum estava preparado para participar da guerra daquela forma.
169
Utilizando também esta mesma documentação
___
e mais uma série de arquivos
alemães e ingleses
___
o jornalista William Waack produziu um livro com severas
criticas ao Exército Brasileiro e à participação da FEB na II Guerra Mundial.
Considerado persona non grata entre os veteranos, pois Waack coloca sérias duvidas
sobre a atuação brasileira, argumentando que pela “qualidade ruim” das tropas alemãs
no front italiano e pelo volumoso apoio norte-americano o desempenho da FEB esteve
aquém do possível. Mesmo com o grande volume de considerações negativas o autor
167
MORAES, João B. M. de A FEB pelo seu Comandante. São Paulo: Ipê, 1947, pp. 268-270.
168
NEVES. Op. Cit. pp. 304.
169
Id. Ibidem. pp. 306.
acaba por admitir que a avaliação da FEB pelos observadores do Exército dos EUA era
preconceituosa, como avaliou Neves:
Mesmo correndo o risco de fazer uma grosseira simplificação é difícil fugir
à impressão de que, para os americanos, quando as coisas iam mal, a
responsabilidade cabia sobretudo aos brasileiros. Quando melhoravam, deveria
ser atribuída a eles mesmos, americanos.
170
Ainda em suas conclusões Waack atribui o patrocínio da FEB pelos EUA a um
projeto político maior deste, de longo prazo, onde os aliados continentais visavam uma
rede de influência nas Américas:
Para os Estados Unidos, a presença de tropas brasileiras na Itália foi mais
uma necessidade política do que militar. [...] Washington jamais perdeu a idéia
de que sua cooperação militar com o Brasil resultaria num instrumento
poderoso, sobretudo após o conflito. A importância dessa experiência, não
custa ressaltar, não deve ser vista apenas na venda de armas ou equipamentos.
Sob o lema da “defesa da democracia” e da “solidariedade continental”,
ocorreu a importação de doutrinas e métodos de impacto vital para uma
decisiva camada de militares brasileiros.
171
Abordada dessa forma, o apoio norte-americano parece algo simplista, pois
desconsidera todo o processo diplomático e político dos primeiros anos do Estado
Novo, onde Vargas negociava tanto com a Alemanha nazista quanto com os EUA,
como atestam o historiador Dennison de Oliveira e o doutor em relações internacionais
Ricardo Seitenfus
172
. Além disso, há o próprio desenrolar da guerra em seus primeiros
anos e as necessidades táticas e estratégicas dos Aliados na campanha do Atlântico Sul e
do Norte da África.
Mas também isto não exclui um projeto maior de alinhamento político à
Washington, assim, a FEB e as Forças Armadas possivelmente foram importantes
pontes neste processo
___
lembrando que a Escola Superior de Guerra, órgão de
formação de oficias superiores brasileiros, fora fundada, em 1949, dentro da doutrina
militar norte-americana, inspirada no National War College de Washington, e teve a
frente nos seus primeiros anos o general Cordeiro de Farias, ex-comandante da artilharia
divisionária da FEB
173
. Waack tenta estabelecer relações entre o desdobrar da FEB e o
170
WAACK, William. As Duas Faces da Gloria: A FEB vista pelos se Aliados e Inimigos. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1985, pp. 217.
171
Id. Ibidem. pp. 217-218.
172
OLIVEIRA, Dennison de. Os soldados alemães de Vargas. Curitiba: Juruá, 2008; e SEITENFUS. Op.
Cit.
173
CAMARGO, Aspásia e GÓES, Walder de. Diálogo com Cordeiro de Farias: Meio século de combate.
Rio de Janeiro, Bibliex, 2001, pp.349-351.
golpe de 1964, mesmo admitindo que os oficiais de carreira que participaram da
campanha da Itália acabaram por não ter, de forma geral, um grande envolvimento nos
acontecimentos do regime de exceção citado, aliás, pagaram por isso, pois “[...] para
muitos desses militares brasileiros, aliás, a FEB transformou-se num estigma difícil de
vencer em sua luta pela ascensão profissional. Ter pertencido à FEB nem sempre ajudou
nas promoções”
174
.
Ricardo Bonalume Neto, outro jornalista que pesquisou sobre a participação
brasileira na II Guerra Mundial, é um critico da obra de Waack, atentando para o fato de
que a caracterização das tropas alemãs adversárias da FEB como cansadas e de
qualidade duvidosa é algo relativo, pois ainda assim eram soldados muito mais
experientes e comandada por oficiais que já somavam anos de guerra, especialmente da
frente russa
175
___
essa critica, ainda segundo Bonalume, é compartilhada com o
historiador norte-americano Frank McCann, que a firma sobre as constatações de
Waack que “se tivesse lido mais a respeito da campanha italiana, teria percebido que
não havia descoberto nada de novo”
176
.
Embora tenha proporcionado grandes mudanças técnicas e de doutrina militar, o
contato com tropas norte-americanas, talvez, tenha trazido maior impacto no âmbito das
relações hierárquicas e raciais. A maneira como o exército dos EUA tratava praças e
oficiais e os negros em suas fileiras impressionou os soldados da FEB, provocando
admiração, no caso das relações hierárquicas, e criticas, no caso dos tratamentos raciais
segregacionistas.
2.2.2
Hierarquia e (des) igualdade
Como a FEB foi constituída de soldados de todos os Estados da Federação
havia, portanto, uma grande heterogeneidade de fenótipos na tropa, desde os
descendentes de germânicos do Sul aos caboclos do Centro-Oeste. Era o mito da
democracia racial brasileira travestido em verde-oliva para a guerra.
Embora os veteranos hoje não se refiram ou não se recordem de preconceito
racial dentro da FEB, pelo menos durante a campanha italiana, há registros de que no
174
WAACK. Op. Cit. pp. 216.
175
BONALUME NETO. Op. Cit. pp. 120.
176
MACCANN Apud. BONALUME NETO, pp. 121.
transcorrer dos preparativos para o envio dos soldados brasileiros à Itália houve atitudes
discriminatórias por parte de alguns oficiais. O veterano Demócrito C. de Arruda fala
sobre o preconceito racial no Exército:
Em 1943, quando o nosso Regimento foi designado para fazer uma
demonstração física em São Paulo e se tratou da seleção e organização das
turmas componentes, veio uma ordem surpreendente, partida de um general:
“tirem fora os negros!” A ordem não foi cumprida, mas houve uma posterior
recomendando colocá-los no meio das turmas, evitando a testa e as pontas.
Igual espetáculo ocorreu no Rio, em março de 1944, quando se preparava
um desfile da infantaria expedicionária. Nas vésperas de sua realização, lá veio
o mesmo comandante, já nosso conhecido, a ordem: “Excluam os negros!”. O
problema era que, excluído os negros
___
e por aproximação também os
cafuzos, os mulatos, os morenos, etc.
___
pouco restaria da nossa infantaria. A
ordem, mais uma vez, foi desconhecida; mas, não podemos deixar de guardá-la
em nossos espíritos como testemunho sobre a conduta do nosso comando.
177
Talvez a ausência de relatos sobre este tipo de discriminação seja fruto do
contraste com a estrutura racial do Exército dos EUA, o que foi lembrado em algumas
obras de oficias brasileiros, como a do Chefe do Estado-Maior da FEB, Cel. Lima
Brayner. Diferente do exército brasileiro, nas forças armadas norte-americana não havia
unidades mistas racialmente: grandes unidades (regimentos e divisões) eram formadas
por soldados e graduados negros, tendo no máximo tenentes como oficiais; a premissa
era que nenhum branco da grande unidade tivesse patente inferior a um negro. Em sua
tese de doutorado o historiador Cesar M. Campiani também atenta que a segregação
racial no exército norte-americano reforçou a idéia de igualdade na FEB, inclusive para
os praças.
Campiani lembra que mesmo sem existir um sistema jurídico segregacionista no
exército brasileiro havia o reflexo da sociedade dos anos 40 onde discriminações ainda
eram muito presentes:
De fato, em termos de restrições legais e regulamentações, era impossível
identificar qualquer traço de racismo no Exército do tempo de guerra. Na
prática, os negros brasileiros continuavam a enfrentar obstáculos em suas
carreiras militares, fosse pelo tratamento paternalista, fosse pelo mais arraigado
preconceito. A ausência de segregação oficializada no Exército Brasileiro
bastou para que muitos soldados e oficiais inferissem que o racismo também
era inexistente no Brasil dos anos 40, embora poucos expedicionários tenham
especulado o porquê da FEB ou mesmo o Exército Brasileiro não contarem
com oficiais negros.
178
177
ARRUDA, Demócrito C. (Org.). “Impressões de um infante sobre o comando”. In: ARRUDA. Op.
Cit. pp. 64.
178
MAXIMIANO. Op. Cit., pp. 313-314.
Mas no imaginário formado pelos veteranos a respeito das relações raciais a
idéia que se construiu era que a FEB constituía-se num exemplo a ser seguido, muito
diferente do ocorria com a 92ª Divisão de Infantaria norte-americana, a divisão colored,
ou seja, formada por soldados negros, mas comandada por oficiais brancos. O soldado
Vicente Pedroso da Cruz expõe a opinião de muitos praças brasileiros, quanto a
organização racial da 92ª DI norte-americana:
[...] A 92ª Divisão lutava na frente, mas, mesmo assim, persistiam os
preconceitos; os oficiais, de Capitão para cima, eram brancos. Os praças eram
negros; até os tenentes eram negros. Vi muitas vezes a formatura deles. Nossos
colegas comentavam: “Olha o pássaro preto e o tico-tico. Porque o tico-tico
põe ovo no ninho do pássaro preto.”
179
Fora esta unidade de linha de frente, os negros no exército norte-americano eram
utilizados em serviços de retaguarda, como motoristas, cozinhas e unidades sanitárias.
Isto demonstrava claramente uma segregação, pois indicava um descrédito do comando
americano em relação a capacidade de combate dos afro-descendentes. Mas mesmo
nessas funções estes soldados criavam mecanismo de defesa e se valiam de
circunstâncias onde armas e o tipo da unidade pouco importavam:
Conseguimos pegar uma carona num caminhão de um americano negro que
também estava meio perdido por lá [redondezas de Milão], e ele nos conduziu.
Eu e Bridão, que éramos negros, aparecemos na frente da viatura, o Sérgio de
Souza, branco, ficou pra trás, caso contrario, ele não pararia. Porque um
americano negro não faria para um branco; quando ele estancou, subimos no
caminhão e fomos para Milano. E lá era mais fácil a gente chegar ao nosso
destino.
180
Na estrada o motorista é o senhor. Vale-se das distâncias, das lacunas da
hierarquia e da dependência que todos os soldados e oficiais tem do transporte seguro
em um país distante e em guerra. Nesse momento o discriminado tem o poder de
“retribuir” todos os maus-tratos e manifesta sua solidariedade apenas aos companheiros
de cor, mesmo que estes fossem de outra nacionalidade.
É comum nos depoimentos um regozijo quanto ao aparente tratamento
racialmente igualitário na FEB. “Brasiliani, andare bianco com nigro”, como relembra
o soldado Abdias de Souza, a respeito dos comentários da população italiana
181
.
179
Vicente Pedroso da Cruz. Op. Cit., pp. 303.
180
José Bernardino de Souza serviu como atirador de bazuca no 1ºPlt da Cia de Canhões Anticarros do I
RI. HOESGM, TomoVII, pp. 274. Entrevista realizada em11/07/2000.
181
Sd, Abdias de Souza. Op. Cit. pp. 191.
Questionado por mim quanto a possibilidade de existência de preconceito o cabo Raul
Carlos dos Santos respondeu:
Foi isso que o italiano ficou admirado também. Era tudo igual, não tinha
essa coisa não. Principalmente hoje, brasileiro nenhum é diferente. O preto é
tão quanto qualquer um de nós. Não. Absolutamente não! Não, não e não! Eu
tinha Agostinho, ele era um “negão preto, preto”! Inclusive do Rio Grande do
Sul. Desses que não sabiam nem escrever! Não sabia escrever!
182
O mito da democracia racial se prolonga dos dias da guerra até hoje. Não há
desigualdade nos tratamentos no que tange a cor da pele. Mas a igualdade na guerra não
mascara a desigualdade social que é carregada para o front. O companheiro Agostinho é
“desses que não sabiam nem escrever”.
Isto nos faz levantar alguns questionamentos quanto a relação da FEB com os
exércitos de outras nacionalidades que combatiam na Itália. Os limites raciais de uma
tropa mista como a FEB eram perceptíveis, ou seja, a convivência entre negros e
brancos numa mesma unidade sem critérios legais e claros de distinção racial estavam
restritos à tropa brasileira? Os oficiais e soldados que trabalhavam junto a outras
unidades, como inglesas e norte-americanas, eram selecionados por suas capacidades
enquanto militares ou o critério racial se fazia presente? O caso de unidades como a
Military Police (MP) nos faz pensar nessas questões.
Não havia MP no Exército Brasileiro, hoje chamada de Policia do Exército.
Criada por decreto, em dezembro de 1943, especialmente para compor a FEB
___
mais
uma das influências do Exército dos EUA
___
teria inicialmente o tamanho de um
pelotão, sendo formado, a principio, por homens da Guarda Civil de São Paulo. Essa
unidade tinha por função as ações de policia, efetuando prisões, policiamento ostensivo,
controle de trânsito e ainda transporte de prisioneiros. As atribuições desta tropa
implicavam muitas vezes em lidar em situações intimidatórias e violentas, como em
brigas. O cabo “X” relata a sua primeira ação num pelotão de MP:
A primeira ação me parece que foi até numa festa, que tinham muitos
negros americanos e depois, em determinada área da festa, só entrava branco e
ai ouve uma rusga com os americanos brancos, não somente tinham
americanos brancos, mas de outras nacionalidades. Mas os negros eram
realmente violentos e não nos respeitavam muito.
182
Raul Carlos dos Santos. Op. Cit.
Assim, essa unidade destinava-se a manter a ordem e, portanto, a ordem racial
estabelecida nos exércitos de outras nacionalidades, como no caso citado a segregação
nas forças norte-americanas. Isto pode ser observado na formação da própria MP.
Quando questionado sobre a presença de negros na sua unidade, o cabo “X” se mostrou
surpreso ao perceber que não havia, assim como hispânicos:
Mas que me lembre assim, não tinha preto. Agora você me chamou a
atenção de uma coisa: estou pensando se tinha algum preto nas formações de
MP. Eu não me lembro que tenha algum preto na MP. [...] É. Que eu me
lembre eram australianos, canadenses, principalmente australianos e
canadenses e americanos.
183
Observando que na 92ª DI não havia brancos com patentes inferiores aos negros
podemos supor que numa unidade como a MP não haveria soldados ou oficiais que não
possuíssem um fenótipo caucasiano. Fazia parte do exercício da função a imposição de
um “respeito”. Hispânicos, negros, árabes, asiáticos deveriam obedecer a MPs
caucasianos, mas o contrario não ocorreria. Estes fatos me fazem supor que ao lidar com
outras unidades, pelo menos no âmbito de atribuições de serviços como o de policia, a
premissa de ser uma tropa mista que era a FEB não se aplicava. Resta saber se em
outros serviços, como o de saúde e entre os Oficiais de Ligação
184
, este quadro de
segregação também existia. Infelizmente não tive acesso a depoentes e a dados destes
serviços.
Por outro lado, as relações entre praças e oficiais no US Army provocaram
admiração e inveja nos soldados e graduados da FEB. No exército brasileiro havia uma
forte segregação da soldadesca por parte do oficialato. Além dos elementos distintivos
necessários para a manutenção da hierarquia e do funcionamento do comando
___
fardas
e símbolos de patentes diferenciadas
___
havia uma série de comportamentos e hábitos
dentro dos quartéis que estabeleciam claramente a distinção entre estes dois grupos
(praças e oficiais).
Isso se manifestava, por exemplo, em refeições e refeitórios diferenciados,
punições severas e muitas vezes desnecessárias impostas pelos oficiais, códigos penais
defasados
185
e um sistema paternalista que funcionava, muitas vezes, por tráfico de
183
Cabo “X”. Op. Cit.
184
Eram oficiais que mantinham contato com unidades vizinhas e aliadas para trocar in formações e
executar missões em conjunto, por exemplo, a FEB tinha Oficiais de Ligação junto a 10ª DM e a 1ª DB
com quem atuou em varias circunstâncias.
185
Segundo o veterano Joaquim Xavier da Silveira “[...] a questão da justiça em tempo de guerra exigiu
alterações no sistema vigente, para adequar a legislação especifica às contingências do envio de uma
influência e beneficiava o oficialato. Este sistema de benefícios se mostrou claro na
formação da FEB e na participação facultativa de muitos oficias de carreira, quando
deveriam ser os primeiros a serem convocados, como visto no Capitulo I. Embora as
Forças Armadas brasileiras já viessem de transformações
___
como a tentativa de
modernização de sua aparelhagem e uma melhor formação em suas escolas
preparatórias
___
e com uma campanha cívica forte no governo Vargas em especial, para
muitos o serviço militar obrigatório e a vida em caserna eram vistos como punição.
Segundo Campiani o exército norte-americano antes da II Guerra também
comportava sérias diferenciações de tratamento entre praças e oficiais, mas o conflito
mundial mudaria isso, pois o crescimento substancial dos quadros levou à convocação
em massa de civis. Esse novo perfil, em especial devido há uma grande quantidade de
oficias de baixa patente e graduados convocados devido a suas qualidades técnicas,
levaram a diminuição da rigidez das relações hierárquicas.
Como a incorporação de oficiais da reserva e conscritos no Exército dos
Estados Unidos atingiu respectivamente a casa da centena de milhar e dos
milhões, com o passar da guerra a tensão e atritos entre profissionais e
convocados tenderam à diluição. Raras eram as unidades americanas onde se
podia observar qualquer coisa próxima à equivalência de oficiais da ativa e da
reserva. Nas divisões que combateram nos teatros de operações Europeu,
Pacífico e Mediterrâneo, a proporção era francamente favorável aos últimos. É
inegável, no entanto, que os americanos também testemunharam instâncias de
inveja profissional e consciência demasiada, por parte de graduados e oficiais
da ativa, de que elementos que até poucos meses se encontravam na condição
de civis, após curtos períodos de instrução, dispunham das mesmas
prerrogativas da patente de militares profissionais que serviam há anos nas
fileiras do exército.
186
O contato com as tropas norte-americanas trouxe essa percepção para os
soldados brasileiros, que notavam a diferença de tratamentos entre os oficiais e praças
no Exército dos EUA.
Em conversa, tenho dito que há uma grande diferença entre a época em que
éramos jovens e os moços de hoje. A guerra acarretou alguma melhora, serviu
para a gente aprender um pouco de igualdade. Observávamos que os uniformes
dos oficiais e praças americanos só apresentavam diferenças nas insígnias. De
costas os dois eram iguais. Os brasileiros usavam fardas distintas em certos
Força expedicionária ao Teatro de Operações no além- mar. A legislação militar tinha como base o
Código Penal da Armada de 1881, estendido ao Exército Nacional em 1899 [!]. Seguiram-se algumas leis
complementares e essa legislação anacrônica e deficiente começou a ser modificada pelo Decreto-lei nº
4.766, de 01/10/42, que definiu, inclusive, o que seria crime militar contra a segurança do Estado. Pouco
depois, novo diploma legal, o Decreto-lei nº 6.227, de 24/01/44, promulgou o Código Penal Militar”.
SILVEIRA, Joaquim Xavier da. A FEB por um soldado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, pp.109.
186
CAMPIANI. Op.cit. pp. 316.
detalhes. Havia tecidos de diferentes qualidades. Nos ranchos
187
americanos os
oficiais, na fila, poderiam seguir atrás de um praça, para pegar a refeição. Em
nossos ranchos havia uma fila para oficiais, outra para sargentos e uma fila de
praças.
188
O momento da refeição talvez fosse um dos mais claros para a percepção dos
soldados brasileiros, no que tange as diferenças entre praças e oficiais no Exército dos
EUA. O sargento Daniel Lacerda do 6º RI demonstra este momento de reflexão e
espanto:
Nosso rancho, na Itália, a exemplo do que acontecia no Brasil, deveria
prever locais para oficiais, sargentos, cabos e soldados, correspondentes aos
círculos regulamentares. No entanto, na Itália, durante a guerra, seguindo
costumes do Exército dos Estados Unidos aquela separação não existia.
189
Embora a influência da convivência com essa outra dinâmica hierárquica tivesse
grande influência sobre estas considerações dos veteranos brasileiros, é possível
identificar outra causa nesta visão. Como dito anteriormente havia na FEB uma grande
quantidade de soldados convocados, ou seja, civis e entre os oficiais de baixa patente,
especialmente tenentes, também havia um número significativo de homens que não
tinham nas Forças Armadas sua profissão. Como foi percebido por Cesar Maximiano,
no caso do Exército dos EUA essa convivência entre civis e militares de carreira
modificou comportamentos da caserna. Acredito que o mesmo ocorreu com a FEB e
como os tenentes eram os oficias que os praças e graduados mais tinham contato essa
flexibilização da hierarquia ocorreu de forma mais fácil. Na visão de muitos veteranos
este processo foi percebido de outra forma. Para muitos era a própria guerra que
aproximava os homens. Dividir os riscos do front criava laços de companheirismo
únicos entres os membros dos grupos de combate e pelotões
___
este vínculo será melhor
abordado no capitulo seguinte.
O sargento Moacyr M. Barbosa fala sobre como a experiência compartilhada da
guerra serviu para aproximar praças e oficiais na FEB:
O relacionamento entre oficiais, sargentos e soldados era fraterno, diferente
do que se via no Exército de antes da guerra, onde havia grande separação,
onde sargento e soldado não podiam conversar. Na guerra, o soldado pedia
187
No jargão militar se refere tanto ao refeitório quanto a comida servida neste.
188
O soldado Antonio Gonzales foi armeiro da Cia de Manutenção. HOESGM, Tomo III, pp. 118.
Entrevista realizada em 29/05/2000.
189
Sgt. Daniel Lacerda. Op. Cit. pp. 125.
cigarro ao tenente, este ao sargento. Conversávamos, estávamos todos na
mesma situação.
190
A presença constante de elogios nos depoimentos à organização e fartura do
Exército dos EUA não significa, porém, que a inexistência de atritos e que, fora as
criticas quanto a questão racial, incidentes e choques não ocorressem entre as tropas.
Entre os elogios e a admiração à fartura das unidades norte-americanas surgem alguns
relatos de disputas, furtos e até brigas. Eventos ocorridos, principalmente, fora das
circunstâncias de combate própria mente ditas.
Mesmo o Exército dos EUA fornecendo o equipamento da FEB e de outras
unidades, havia pequenas diferenças de material
___
algumas críticas foram feitas por
oficiais brasileiros quanto ao fornecimento irregular de determinado material, como
roupas de inverno e até de armamento, mas há também observações quanto a
morosidade e desorganização da Intendência da FEB
191 ___
que despertava a curiosidade
e, as vezes, a cobiça dos soldados.
A expressão utilizada por alguns soldados brasileiros nessas ocasiões onde se
furtava algo era “desapertar”. Em tom jocoso o soldado Vicente Gratagliano relata
como ocorria este aspecto da relação com as tropas norte-americanas:
Eles gostavam de nós [soldados de outras nacionalidades]. Ofereciam
uísque que não tínhamos. Alguns brasileiros, para tomar uísque, entravam no
blindado americano e furtavam o deles.
Numa ocasião, em Zocca, havia um tanque americano. Alguns mais “vivos”
entravam e tiravam tudo que existia, até os combat boot dos americanos,
porque os brasileiros eram loucos por um combat boot que o americano não
forneceu para nós. Eles nos deram uma perneira de lona amarela. Quando viam
um tanque sem alguém, sempre desapertavam alguma coisa...
192
O sargento Munguba relata que após os primeiros ataques ao Monte Castelo
feito em conjunto com unidades norte-americanas, à 24 e 25 de novembro de 1944, veio
a autorização para quem encontrasse qualquer material extraviado, como armamento, a
ficar com o mesmo. Nesta ocasião, mais uma vez, o soldado brasileiro “desaperta”
material alheio:
Os brasileiros eram um pouco atrevidos, “pegaram ao pé da letra” a
ordem que receberam; se viam um jipe parado em algum lugar, levavam a
190
Sgt Moacyr Machado Barbosa. Op. Cit. pp. 333-334.
191
Ver Brayner e Arruda. Op. Cit.
192
Gratagliano. Op.Cit. pp. 291.
viatura como se fora abandonada. Havia um soldado na minha Companhia que
usava um jipe, mesmo assim se apropriou de um caminhão americano. Isto
antes de entrarmos propriamente em combate.
193
Mas havia momentos onde esta relação terminava de maneira mais trágica.
Talvez pelo relativamente pequeno contingente da FEB foram raros os relatos de atritos
fatais entre brasileiros e norte-americanos
194
. Onde estes acontecimentos aparecem com
uma incidência mais significativa é no próprio momento de combate, sendo conhecido
como “fogo amigo”. Erros de identificação e enganos quanto a cálculos de artilharia
levavam os soldados e pelotões “no calor da batalha” a dispararem uns contra os outros,
mas esses acontecimentos são pouco relembrados.
As impressões, riscos e reações dos soldados brasileiros nos momentos do front,
assim como frente aos soldados inimigos, serão analisadas no capitulo seguinte.
193
MUNGUBA. Op. Cit. pp. 92
194
“O Pelotão da Policia teve algumas baixas, uma delas extremamente dolorosa: um soldado da MP, em
serviço na Ponte Venturinna, no dia 10/02/1945, deu voz de prisão a um elemento da tropa aliada, em
estado de embriaguez, que não queria obedecer sua instrução. Foi abatido a tiro por este militar
embriagado, que, preso logo em seguida respondeu à Corte Marcial e foi fuzilado. O fato causou
constrangimento, mas também, surpresa, pela rapidez com que o comando aliado julgou e condenou o
responsável à pena máxima, sem apelação ou qualquer mercê.” XAVIER, Op. Cit. pp. 103.
III
A GUERRA: NARRATIVAS DE COMBATE
Embora o front italiano fosse considerado naquele momento secundário
estrategicamente, ele era tão perigoso quanto qualquer outro onde as tropas aliadas
combateram a Wehrmacht. Os combates envolvendo a FEB não se caracterizavam pelo
emprego de grandes unidades, já que as forças brasileiras contavam apenas com uma
Divisão e os alemães estavam limitados materialmente, realizando assim uma guerra
defensiva. Com isso, a maioria das operações ocorria em pequenas unidades, ao nível de
Companhias e muitas vezes Pelotões
195
.
Dois outros fatores condicionaram as ações táticas da FEB: o relevo e clima. Os
combates nos Apeninos exigiam instruções e equipamentos específicos para lidar com o
a altitude, dando grande vantagem para as tropas defensoras, que podiam acompanhar a
movimentação das forças aliadas nos vales. Além disso, havia o inverno italiano. Os
brasileiros chegaram ao final do verão e só se engajaram em combates a partir de
setembro. O prolongamento da guerra os fez enfrentar situações de combate muitas
vezes durante o inverno, onde a neve beneficiava os defensores, dificultando a
visualização das posições, o deslocamento e o apoio aéreo, além de provocar muitas
baixas entre homens acostumados a temperaturas tropicais.
Obras produzidas pelos oficias de altas patentes do comando expedicionário
compõem uma narrativa muito detalhada das ações da FEB e sua relação com o clima, o
terreno e a utilização estratégica e tática de suas unidades
196
, ou seja, seguindo o
195
Como a FEB seguia o modelo de unidades do Exército Norte-Americano um Pelotão tinha quarenta
homens, em média, ou seja, três Grupos de Combate (unidades com 12 homens em média, sendo
comandadas por um Sargento e um ou mais Cabos), sendo comandado por um Tenente, Segundo-Tenente
ou Aspirante a Oficial e mais alguns graduados. Já uma Companhia de Infantaria tinha por volta de cento
e noventa homens e era comandada por um Capitão – três Pelotões, mais pessoal de comando e um
Pelotão de Metralhadoras. Em seguida, sendo considerada ainda uma unidade pequena, havia o Batalhão,
que era constituído de três Companhias de infantes, uma de armas de apoio (era uma Companhia de
Petrechos Pesados – CPP - morteiros e metralhadoras pesadas) e mais um grupo de oficiais que formava o
comando e Estado Maior da unidade (semelhante ao Estado Maior da Divisão)
196
O general comandante da Força Expedicionária Brasileira, general Mascarenhas de Moraes, produziu
um relatório oficial, no inicio de 1946, ao Ministério da Guerra, narrando todo o processo de formação do
corpo expedicionário e o desenrolar da campanha até o retorno dos soldados brasileiros. Posteriormente
este relatório daria origem a um livro. MORAES, João B. M. de A FEB pelo seu Comandante. São Paulo:
Ipê, 1947; O chefe do Estado-Maior da FEB também produziu algumas obras nesse sentido, com destaque
para: BRAYNER, Floriano de L. A Verdade Sobre a FEB: Memórias de um Chefe de Estado-Maior na
Campanha da Itália. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968; Outro livro minucioso e considerado
modelo narrativo da história militar tradicional. Mas as impressões dos combates e de
seus fatores condicionantes vistos pelos praças, sub-oficiais e graduados, ou seja, a
maior parte do Corpo Expedicionário, ainda é pouco conhecida, abordada por algumas
poucas obras acadêmicas que seguem a Nova História Militar
197
.
O principal objetivo neste capitulo é abrir um debate sobre as impressões, os
sentimentos, o imaginário dos veteranos a respeito da batalha, dos momentos de
engajamento contra os inimigos, a partir de suas narrativas. Foram selecionados para
este trabalho os depoimentos que relatam os combates, as reações diante dos perigos e
considerações sobre os inimigos. Visões, reais ou imaginárias, mas ambas construídas
por atores sociais que participaram de um acontecimento histórico determinado. Esta
seleção de fontes se baseia na idéia de que o trabalho do cientista social é uma
interpretação da realidade, “trata, portanto, de ficções; ficções no sentido de que são
‘algo construído’, ‘algo modelado’ [...], não que sejam falsas, não-fatuais ou apenas
experimentos de pensamento”
198
. Não entendo a história como a busca de uma verdade
imutável, mas como verdades, “[...] a cada geração se revisam interpretações. Afinal, a
história trabalha com a mudança no tempo, e pensar que isso não se dê no plano da
escrita sobre o passado implicaria negar pressupostos”
199
.
A guerra é uma experiência traumática, pelo menos para a maioria dos soldados
que vivenciam as situações de combate. Essas vivências encontram grande dificuldade
de serem narradas, seja pela dor que recordar momentos de angustia, medo e dor física,
por exemplo, ou por pressões culturais e sociais
___
como os valores incutidos de
coragem e honra, premissas fundamentais do discurso militar. Além disso, a resistência
em narrar essa experiência bélica também reside no fato do interlocutor não ter
compartilhado uma vivência similar, havendo o receio de ter suas falas vistas como
mentiras, como “estórias” elaboradas simplesmente para entreter desconhecidos.
Mesmo assim os veteranos hoje sentem necessidade de expressar os momentos
relacionados a vida durante a guerra. “O esforço para contar o incontável resulta em
narrativas interpretáveis, constructos culturais de palavras e idéias”
200
. O que viabiliza
na atualidade novas interpretações sobre essas visões de mundo e sobre os eventos
por muito veteranos portador de um discurso oficial sobre a FEB é o do Ten. Cel. Manoel Thomas
Castello Branco, na época, oficial de comunicações do 1º Regimento de Infantaria, o “Regimento
Sampaio”, BRANCO, Manoel Thomaz C. O Brasil na II grande guerra. Rio de Janeiro: Bibliex, 1960.
197
CASTRO; IZECKSOHN e KRAAY. Op.Cit.
198
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989, pp.11-12
199
PESAVENTO, Sandra J. História & História Cultural. São Paulo: Autêntica, 2005, 2ª Ed, pp.15-16.
200
PORTELLI. Op. Cit., pp. 109.
relacionados a este fato histórico, ou seja, a participação brasileira na Segunda Grande
Guerra.
A profusão de acontecimentos e sentimentos que circundam num campo de
batalha é muito grande, sendo difícil, na maioria das vezes, compor uma trajetória linear
de ações e reações dos seus participantes. Sendo assim selecionei algumas ocasiões
especificas, onde a experiência do combate foi particularmente marcante para aqueles
que as vivenciaram, e, a partir destas, passo a analisar os comportamentos, discursos e
sentimentos dos sujeitos. Para tanto começarei pelo batismo de fogo, o primeiro
contanto com uma situação real de combate.
3.1 Sob fogo inimigo
A primeira missão de guerra recebida pelo Destacamento FEB, emanada do
IV Corpo de Exército, consistiu em deslocar-se na noite de 13 de setembro para
uma zona de reunião ao sul de Pisa. [...] Na noite de 13 de setembro, mal
findara o movimento desse grupamento de forças brasileiras, o general Zenóbio
da Costa, recebeu ordem do IV Corpo para:
- “Substituir os elementos do II [Batalhão]/370 RI [Regimento de Infantaria],
às 19 horas do dia 15, na região Vacchiano – Massacinccali – Filetole.
- Substituir o 434º GAAe [Grupamento de Artilharia Anti-Aérea], às 19 hr do
dia 15 de setembro.
- Manter contato com o inimigo e sondar-lhe o dispositivo, por meio de
vigorosa ação de patrulhas.
- Caso o inimigo se retire, persegui-lo mediante ordem deste IV Corpo.
- Manter contato com a 1ª DB [Divisão Blindada Americana] que opera a
Leste”.
201
Esta foi a primeira missão que o comando do IV Corpo de Exército norte-
americano determinou para os brasileiros na Itália, em setembro de 1944. A FEB ainda
era um Grupo Tático
202
___
formado basicamente pelo 6º Regimento de Infantaria (RI) e
mais algumas unidades de artilharia, engenharia, reconhecimento e comando
___
que
precedia a maior parte do efetivo da Divisão de Infantaria brasileira, que estava em vias
de embarcar para a Itália.
O objetivo era substituir tropas de uma unidade improvisada, a Task Force 45,
composta de elementos variados (incluindo frações de uma unidade antiaérea que
201
MORAES, João B. M. de A FEB pelo seu Comandante. São Paulo: Ipê, 1947. pp. 74
202
Grupo Tático era uma unidade formada para um objetivo específico, sendo normalmente composta por
grupos oriundos de diversas unidades diferentes.
atuavam como infantaria) e nesse processo aclimatar os novatos brasileiros à linha de
frente. O comando teve a preocupação de designar um setor calmo do front, para evitar
riscos
___
os alemães poderiam se aproveitar da inexperiência dos soldados e efetivar um
ataque, caso esta fosse uma área de combates mais intensos.
Outros dois Regimentos – o 1º RI e o 11º RI – não tiveram tanta sorte, ou
preocupação do comando em adaptá-los ao combate. Foram empregados em
circunstâncias mais adversas e com um treinamento aquém do ideal, ou pelo menos
inferior ao do 6º RI
___
como visto anteriormente
203
. O 1º RI teve sua primeira atuação
em 20 de novembro, substituindo elementos do 6º RI em Torre de Nerone, uma
elevação que se aprofundava dentro do território inimigo a curta distância, recebendo
fogo direto até de armas portáteis, além de morteiros e artilharia. Enquanto isso o 11º RI
não esteve em situação melhor, tendo um de seus batalhões empregados no segundo
ataque infrutífero ao Monte Castelo, em 29 de novembro de 1944.
Mas esta é uma narrativa é insípida, fundamentada em relatórios oficiais de
membros do comando, que estavam distante das trincheiras e da maior parte dos riscos
do combate. A narrativa de um batismo de fogo ou de um assalto sobre posições
inimigas, especialmente numa localidade de maior intensidade de ação inimiga, toma
outras perspectivas quando expressadas por um infante de linha.
A exposição aos perigos provocados pelo inimigo se dava na maioria das vezes
sem que este fosse avistado. A falta de experiência era uma grande adversidade, que
criava situações de extremo risco para os soldados. O soldado Vicente P. da Cruz
discorre sobre seu primeiro contanto com alemães numa situação de combate:
O Pelotão recebeu ordem para atingir um determinado ponto. Estávamos
nos aproximando de Camaiore [...]. Alcançamos uma região, um silêncio
incrível e logo começou uma chuva intensa, enquanto subíamos pela elevação
[...]. Ao descermos vimos uma casa de italianos [...].
Avistamos na elevação um grupo de homens como se estivessem olhando
de binóculos, nesse mesmo instante, encontramos um italiano que vinha com
um guarda-chuva grande de listas brancas, vermelhas e verdes. Um soldado
pegou o guarda-chuva e começou a brincar [...]. De repente os homens
desapareceram da crista e todo mundo comentou que seria a 9ª Companhia [de
brasileiros] que estava lá em cima. Pressupunha que fosse a 9ª Cia, porque esta
à nossa direita. Entretanto nos esquecemos de que tínhamos virado para a
esquerda.
203
Os efetivos aliados na Itália haviam diminuído sensivelmente desde meados de 1944, para compor as
forças que invadiriam o norte e o sul da França. Assim as unidades existentes passaram a ser empregadas
prematuramente e/ou em largos fronts. “Não dispondo de outros recursos para atender àquelas
solicitações [de ocupar a região], decidiu aspirar um dos regimentos que se encontravam em preparativos
à retaguarda. Embora ainda não estivessem completamente equipados e armados nem, tão pouco,
houvessem encerrado o período de treinamento previsto [...]”. BRANCO. op. cit. pp. 175 – 182 e 233.
Eram alemães mesmo. Quando chegamos à casa [...] veio uma chuva de
balas sobre nós e ficamos atarantados. Não esperávamos aquilo. O tenente
Gerson, Comandante de Pelotão, estava à beira da casa e o vespeiro de balas
veio por cima do telhado. O sargento Samuel [...] foi regular a peça de
metralhadora [...]. Vi passar por ele uma rajada bem pertinho, porque eram
traçantes; só via aquele braseiro passando por cima. O susto foi terrível. [...]
Houve um engano na ordem, daí termos ido parar na retaguarda alemã. Um
soldado ficou três dias extraviado, comendo pão duro dado pelos italianos.
204
O resultado desta patrulha poderia ter sido catastrófico, devido aos graves erros
cometidos. A inexperiência está patente no discurso do soldado, vivendo sua primeira
jornada de combate. A patrulha avista os alemães, mas não os identifica, um erro
imperdoável para um veterano, reflexo do batismo de fogo, uma das mais críticas
experiências de guerra para um soldado. A surpresa de um terreno estranho e adverso,
um inimigo que ainda não apareceu, o medo do primeiro confronto, tudo isso marca não
o relato aqui visto, mas a própria experiência da FEB naqueles dias de setembro.
Falhas na orientação, distração com a população civil e, especialmente, má
identificação das tropas avistadas deram chance para uma emboscada, surpreendendo a
todos. A munição traçante
205
chamou a atenção do Soldado (doravante Sd) Vicente. O
volume de fogo da metralhadora alemã, associado ao tipo de munição criou uma
impressão de chamas, de um “braseiro”, que era lançado sobre a posição que se
encontravam seus companheiros de pelotão, contribuindo para intensificar a confusão e
o terror. Este foi grande, já que provocou a dispersão de alguns soldados, levando, pelo
menos um a se perder do resto do grupo durante dias.
O Cabo Raul Carlos dos Santos, que serviu num Cia de Petrechos
(metralhadoras e morteiros) do 11º RI, relatou para mim sua primeira experiência sob a
artilharia alemã:
Aí fomos recebidos com granadas. A gente dizia “as boas vindas”. O
inimigo já sabia do nosso deslocamento. Em Lucca, Monte Cassino, em
Pistóia. Cada um procurava um lugar pra se esconder. Já estávamos a pé.
Estávamos numa área montanhosa, subindo para Sila. Uma coisa horrível! No
dia 28 [novembro], para Bombiana [lê anotações]. Botei aqui, Bombiana, mas
não botei tudo. Era uma área, tudo tinha número, fica do lado...... do Monte
Castelo? A direita assim. Era uma cidade pequena, estava tudo destruído.
Minha Cia teve que ficar aqui. Encontramos muita resistência aqui, demais! De
perto! De perto numa guerra é um Km, 800 metros. É! Tiro direto! Desses
204
Vicente Pedroso da Cruz. Op. Cit., pp. 301.
205
Os projéteis traçantes eram assim chamados por deixarem um rastro luminoso provocado pelo atrito de
um revestimento químico com o ar. Era utilizado para orientar o atirador, especialmente quando era
inviável a utilização de aparelhos ópticos. Para cada projétil traçante, normalmente, havia mais 4
comuns.
canhõezinhos então! Bombiana, nós passamos aqui umas duas, três semanas
talvez. Quando chegamos cada qual recebeu ordem de cavar seu fox hole.
Fomos instruídos disso. Tínhamos que procurar uma coisa pra nos defender.
Você sabe o que é cavar um buraco ligeiro? Usávamos umas pazinhas.
Quebrava a mão toda! Calo! Calo de estoura e você não sentir! Tirava a luva
via aquela zorra toda saindo sangue!
206
O fogo de artilharia inimigo era um dos principais riscos que os soldados
estavam sujeitos na linha de frente e o mais comum. Para canhões e obuses
207
, que
poderiam alcançar mais de duas dezenas de quilômetros, situações descritas como acima
mostram o alto risco que os soldados estavam expostos. A lembrança do perigo foi tão
marcante que extrapola as anotações do depoente. A cidade de Bombiana era uma
localidade constantemente batida por fogo inimigo, devido a proximidade de suas linhas
defensivas e às rotas de acesso ao front.
A ação desse tipo de arma era aterradora, desnorteante, como narra o soldado
Joaquim Xavier, do Pelotão de Transmissões do 11º RI, que deveria auxiliar unidades
do 6º RI, em Torre de Nerone:
As cenas que então se desenrolaram estão até hoje gravadas nos meus
olhos. Tínhamos parado o jipe perto de uma encosta. A antena do rádio era a
todo instante sacudida pelas explosões. O Batalhão estava rechaçando um
ataque inimigo, e o céu de vez em quando clareava como o dia. Eram os very-
light. Nesses momentos, tínhamos que ficar deitados, imóveis, pra não trairmos
nossa posição. Por fim conseguimos contato com o Comando. O Almeida
avisou que ia desmontar a estação [de rádio] para operar em terra, dentro de
alguma trincheira.
[...]
Talvez o alemão tivesse percebido algum movimento. Foi um inferno
montar aquela estação no escuro. A todo momento tínhamos que nos deitar.
As bombas caiam sem cessar.
[...]
Depois de termos mandado todas as mensagens, voltamos para o posto
avançado do batalhão, porque descer naquela hora era impossível. Na volta, o
Pontes vinha comigo; senti um assobio perto e o grito:
___
Deita!
Atirei-me numa cratera de granada, senti o Pontes cair ao meu lado e assim
ficamos algum tempo. Em cima de nós estourou um very-light, iluminando
tudo. As granadas de morteiro começaram então a nos procurar. Ao meu redor
206
Cb. Raul Carlos dos Santos, Entrevista concedida ao autor 25/09/2007
207
Canhões são armas de artilharia, assim como o obus, mas os primeiros possuem tubo de fogo (o
“cano”) raiado, o que provoca uma trajetória tensa e alta velocidade ao projétil, sendo mais bem
aproveitado para tiros diretos. Já o obus tem seu tubo de fogo liso e a trajetória do seu projétil ocorre em
parábola, sendo utilizado em tiros indiretos.
só via aqueles clarões alaranjados das granadas explodindo, porém, já nada
ouvia, tonto como estava.
208
A principal proteção nessas circunstâncias era oferecida por trincheiras
individuais, chamadas pelos norte-americanos de Fox hole (“buracos de raposa”). Mas
também era muito comum a utilização de crateras feitas pela artilharia. Em último caso
deitava-se no chão. Os very-light aos quais o soldado se refere são granadas especiais
que apresentam uma carga incandescente que ilumina intensamente determinada área,
caindo de pára-quedas lentamente, e assim permitindo visualizar alvos a noite. As
granadas de artilharia e de morteiros laçavam dezenas de estilhaços que poderiam
estraçalhar facilmente um corpo. Além disso, havia o deslocamento de ar, que
resultavam em sérios ferimentos concussivos, provocando fraturas e hemorragias
internas, além de atordoamento. Esta sensação de perigo total e permanente da artilharia
alemã está evidente no relato do tenente Ítalo Tavares, que serviu no 6º RI:
Primeiro caíram algumas granadas uns 100 metros além de onde estávamos.
Ao ouvirmos um sibilo, todos nos deitamos no chão, pois não havia nenhum
abrigo próximo.Depois veio outra rajada, que caiu uns dez metros acima de
onde estávamos. Por felicidade num barranco, que impedia que nos ferisse. O
intervalo de tempo entre um tiro e outro era muito pequeno, impedindo assim
que escapássemos daquele lugar. Mais uma granada veio. Esta, porem, caiu
bem no meio de onde estávamos. Mal deu tempo para que nós deitássemos.
Senti logo um bafo quente na face e meu capacete voou da cabeça. Começamos
logo a ouvir gritos e vozes de feridos. Vi logo que tinha morrido alguém, pois a
granada havia caído a uns dois metros de onde estávamos e bem no meio do
pessoal.
[...]
Ao chegarmos em nossa posição, passei uma revista e me faltavam três
homens. Dois eu sabia que estavam feridos, pois ouvira os gritos dos mesmos:
o cabo Canedo e o soldado Morais. O Cabo Rossin, porém, não sabia onde
estava [...]. Telefonei para o capitão e ele me disse que o cabo tinha morrido.
[...] No dia seguinte, quando foram ao local da tragédia, encontraram um outro
corpo. Estava completamente estraçalhado. Conseguiram identificá-lo: era o
soldado Tansini.
Quando cheguei ao meu PC [Posto de Comando], que era numa casa,
estava com o rosto e as mãos todos sujos de sangue. O capote também estava
todo ensangüentado. De certo o sangue era de um dos que tinha morrido. [...]
209
Nos ataques acima descritos, a respeito do fogo de artilharia, normalmente era
possível ouvir o sibilar da granada se aproximando e tentar alguma medida de proteção
208
SILVEIRA, Joaquim Xavier da. Cruzes brancas: Diário de um pracinha. Rio de Janeiro: Bibliex,
1997, pp. 55-56.
209
TAVARES, Eduardo Diogo (Org.). Nós vimos a cobra fumar: Diário de um jovem tenente brasileiro
na Itália durante a II Guerra Mundial. Salvador: P&A Editora, 2005, pp. 75-76.
___
“A granada de canhão sibila e o soldado se joga no chão
210
___
mas de eficácia nem
sempre satisfatória, caso os soldados estivem se deslocando ou em abrigos
improvisados. Nestas ocasiões sob o fogo inimigo é que a maioria dos soldados obtinha
a percepção da sua vulnerabilidade, que mesmo invisível e/ou distante o inimigo se
fazia presente e dedicado, ao menos por algum momento, à matá-los
211
. O risco das
granadas estava também em projéteis secundários, feitos por fragmentos de rochas,
madeiras e até pedaços de corpos que recebiam o impacto dos estilhaços e acabavam
por serem deslocados em alta velocidade.
A maior parte dos ferimentos sofridos pelos brasileiros na Itália foi provocada
por estilhaços de granadas e pelo deslocamento de ar:
TABELA 1
Número de feridos em combate por armas e serviços
Armas e
serviços
Balas Estilhaço
de
granada
Estilhaço
de mina
“Blast”
(sôpro)
“Boob-
Trap”
(armadilha)
Lança-
rojão
Baioneta Total
Cavalaria 4 11 - - - - - 15
Infantaria 149 1052 73 148 7 1 1 1431
Artilharia 1 37 4 2 - - - 44
Engenharia 1 26 3 - 1 - - 31
Tropa
especial
- 2 2 2 - - - 6
Serviço de
saúde
1 18 2 1 - - - 22
Total 156 1146 84 153 8 1 1 1549
Fonte: BRANCO. op. cit. pp. 319.
Os ferimentos por bala seguem aos provocados pela artilharia. Nesse tipo de
ferimento são recorrentes as referências às metralhadoras alemães, chamadas de
“Lurdinha”. A origem do nome é controversa, além de que há certa confusão na
aplicação do apelido. Embora os alemães possuíssem uma grande variedade de
metralhadoras leves e pesadas, tanto germânicas como de outras nacionalidades
(aprendidas nos países conquistados), de forma geral esse apelido se referia às
metralhadoras MG-34 e MG-42, especialmente esta, que chegava uma cadência de mais
de 1200 tiros por minuto. Essa alta cadência produzia um som característico, facilmente
210
O Sgt. Epapharol Silveira serviu na 1ªCia de Petrechos do I/6º RI como Chefe de Seção de morteiros
de 60 mm. HOESGM. Tomo III, pp. 132. Entrevista realizada em 14/03/2000.
211
MAXIMIANO. Op. Cit. pp. 180
reconhecível para aqueles que já haviam presenciado tal armamento. O tenente Tavares
relata suas impressões sobre este armamento poucos dias após seu batismo de fogo: “As
metralhadoras alemãs são um terror. Nós já apelidamos as mesmas de máquinas de
costura, pois as suas rajadas são no mínimo de cem tiros”
212
.
Num assalto à um conjunto de casas próximas a Abetaia, na estrada que ligava
Pistóia à Bolonha, durante as ações do quarto ataque ao Monte Castelo, em doze de
dezembro de 1944, o Cb. Raul descreve o efeito do fogo de metralhadoras sobre os
brasileiros:
Tinha instruções e dois tenentes, um da minha Cia e um de outra Cia
depois...não foi uma Cia inteira, mas foi quase...metralhadora .30, com tudo já
preparado, até morteiro pequeno se precisasse! E levaram aquilo tudo e nós
fomos chegando, chegando. Era claro ainda. Tem coisa que não pode ser de
noite, que só pode ser de dia e vice-versa. Mas nesse dia...Tem dia que
ninguém precisa saber de nada! Do jeito que se está, vai! Ai é outra coisa, não
tem esse negocio de risco não.
[...]
Cada um que se cuide! [...] E então, nós fomos chegando, chegando,
chegando, subindo, tudo com cuidado. As casas com duas janelas, assim,
dessas casas todas prontas de madeira, de pedra. [...] Ai, de repente, e o Sgt
Neci, que era sempre o meu amigo [diz]: “Eu tô é com medo! Esse negócio não
está bom!”. Eu viro: “Rapaz, quem é que não está dizendo? Está todo mundo
com medo! Até eu! Todo mundo! Que não ta certo, não ta não! Vai sair alguma
coisa”. Foi dito e certo. Um pulando pra lá, outro pra lá, um se abaixando,
outro se arrastando. Quando deu...[quando deu a distância de tiro dos alemãs]
alguém calculou mais ou menos 80, 70 metros.
Pertíssimo! Lá de cima? Para tiro de metralhadora? E foi aquela zoada:
“práá!” A janelas se abriram assim [faz gesto com as mãos]. E ai, em cada
uma, havia uma metralhadora, já atirando. Já atirando assim! Foi uma coisa
horrível! Sujeito metendo a cara na terra, outro tomando tiro e gritando, e
outro.... Bom, ai o tenente, já sabe, “recuar”. Recuar com todo mundo. Tem
um tenente que foi preso, você sabe da história?
[tenente Emílio Valori]
Foi. Ele mesmo. Ele não pôde nem sair [dali], se saísse morria! Com uma
chuva de metralhadora, só com sorte! Ou se o sujeito está meio enterrado.
Porque tinha muita pedra, pedra pra lá, pedra pra cá. E deitado o sujeito ia se
escondendo. Os que ficaram, ficaram por ali. O pessoal da 4ª Cia chegou já
para reforço. Todo mundo lá. Todos os sargentos pedindo artilharia, artilharia,
artilharia. Saiu até errada nesse dia [a artilharia].
[...]
Errada! Errada! Todo mundo saiu! O Sgt. Neci gritou: “Filhos da mãe!
Vocês estão doidos? Querem acabar com a gente?” Ai, como é que dizia? “A
alça [aparelho de pontaria] aumentada tanto” [explica] . Foi ai que melhorou. A
212
TAVARES. Op. Cit. pp. 51.
artilharia caiu em cima! “Bram, bum, bram”. Cada bicho desgraçado que de
coisa [granadas].
213
Este é um dos episódios mais singulares da história da FEB, pois relata a captura
do único oficial do exército brasileiro durante a II Guerra Mundial, o 2º Tenente Emilio
Varoli
214
. Uma situação de combate como esta pode ser muito confusa para seus
integrantes. São diversos estímulos sensoriais e emoções, relacionadas especialmente à
possibilidade da morte, mutilação ou captura. Riscos que se agravavam ao realizarem
uma patrulha diurna
215
. É importante perceber que a memória do combate se dá de
forma multi-sensorial. O barulho, o cheiro, as cores, os gritos de terror, explosões,
sibilar de granadas compõem um universo de impressões que formam uma imagem do
combate
216
. Referindo-se aos combates em Montese, o soldado Abdias de Souza utiliza
de suas impressões sensoriais para descrever sua experiência: “Começou no dia 14,
entrou pela noite, nos dias 15, 16 e 17 foi só pó e fumaça [grifo meu]. E eu ali no meio
com dois colegas cujos nomes não me lembro. Uma granada de morteiro caiu em cima
deles, ocasionando-lhes a morte”
217
.
Os diversos sujeitos numa ação de combate registram o fato de maneira própria,
de acordo com suas funções e objetivos no plano de ataque ou defesa
___
além da
influência de sua carga cultural, vivências, significado da guerra e etc. Circunstâncias de
maior exposição aos perigos eram perceptíveis para soldados com alguma experiência
de combate, diferente daqueles que ainda não passaram pelo batismo de fogo, que,
segundo César C. Maximiano, apresentavam grande confiança e até um sentimento de
invulnerabilidade
218
. A reação dos alemães naquele evento narrado acima fora
praticamente antevista pelo Sgt. Neci. O horror provocado pelo fogo das metralhadoras
levaria ao recuo dos atacantes, que terminariam com feridos e prisioneiros
219
.
213
Cb. Raul Carlos dos Santos. op.cit.
214
Ao todo a FEB teve 34 soldados e graduados prisioneiros e um oficial. MORAES. Op. Cit. pp.303.
215
Referindo-se ao Sgt. Max Wolf Filho, companheiro de batalhão, o Sgt. Rubens Leite de Andrade
comenta: “Conheci esse homem. Passou a fazer patrulhas diurnas, muito mais perigosas que as noturnas.
Os soldados que faziam patrulhas diurnas eram dispensados de fazer guarda durante a noite”. HOESGM.
Tomo V, pp. 340. Entrevista realizada em 19/09/2000.
216
POLLAK. Op. Cit. pp. 11.
217
O Sd Abdias de Souza serviu na 1ª Cia do I/11ºRI. HOESGM, Tomo II, pp.187. Entrevista realizada
em 22/09/2000
218
MAXIMIANO. Op. Cit. 175.
219
Segundo o Tenente Varoli mais seis soldados do Iº RI também foram capturados, vindos de uma
patrulha que fazia parte da operação, cobrindo uma outra área do vilarejo, e que também foi pega pelo
fogo inimigo. VAROLI, Emilio. “Aventuras de um prisioneiro na Alemanha Nazista”. In. ARRUDA,
Demócrito C. (Org.) Depoimento de Oficiais da Reserva Sobre a FEB. São Paulo: Ipê, 1949, pp. 408.
Nos depoimentos os veteranos utilizam com freqüência recursos onomatopéicos
para tentar transportar oralmente uma idéia mais clara e próxima do transcorrer do
combate, compondo um conjunto de atitudes para a rememoração
220
. As palavras não
são suficientes para se comunicar, assim imitam sons de armas, explosões e outros
acontecimentos da batalha, como fez, por exemplo, o Cb. Raul com as explosões da
artilharia brasileira sobre as posições inimigas.
Ainda, segundo a Tabela 1, temos as minas como quarta maior causa de baixas,
por ferimentos resultantes da ação de armas inimigas. Em uma crônica para o jornal
Diário Carioca, o correspondente de guerra Rubem Braga descreve os tipos de minas
terrestres usados pelos alemães.
[...] Ao longo de quilômetros e quilômetros, através de bosques inteiros, a
estrada está cercada de uma invisível muralha. Em inglês, em alemão, em
italiano, em português
___
mines, minen, mini, minas
___
as placas, ponteadas de
exclamações alarmistas e, às vezes, com uma caveira pintada a negro, erguem,
às duas margens da estrada, essas muralhas de medo e de morte.
[...]
Mas um caminhão vai dar a volta numa estrada e recua um pouco mais que
o conveniente na marcha à ré
___
e uma pequena mina explode sob o peso da
roda. Explicam-nos: há as S. Minen, que saltam e explodem no alto; as
Holzminen, que são 10 quilos de dinamite dentro de uma caixa de madeira que
o detentor [sic] não localiza; as Tellerminen, as Schuminen, que explodem ao
peso de sete quilos e não matam o homem, mas lhe arrancam os pés ou
pernas...[...]
221
As minas são armas defensivas, muitas vezes formando a primeira linha de
proteção de uma área. Assim próximo a trincheiras e bunkers era muito comum
encontrar cercas de arame farpado e minas, especialmente as anti-pessoais. Trata-se de
um tipo de artefato explosivo que é acionado principalmente por pressão ou tração
___
o
soldado ao pisar no dispositivo aciona sua espoleta e detona o explosivo. Haviam tipos
de minas destinadas à veículos, que explodiam apenas sob grande peso. Eram dispostas
em estradas, trilhas ou qualquer região por onde as tropas adversárias pudessem se
deslocar. As minas serviam para retardar o avanço dos atacantes, que passavam à
depender da inutilização dessas armas, feita por tropas especializadas de sapadores-
mineiros (no caso da FEB havia o 9º Batalhão de Engenharia, além de alguns soldados e
graduados que tinha curso de explosivos e estavam dispersos pelos três regimentos).
220
MAXIMIANO. Id. Ibidem. pp. 251-252.
221
BRAGA. Rubem. Crônicas da Guerra na Itália. Rio de Janeiro: Bibliex, 1996, pp. 50
Embora os alemães estivessem na condição de defensores do terreno as tropas aliadas
também utilizavam este tipo de arma.
Rubens de Leite Andrade, que serviu como sargento na 1ª Cia do I Btl /11ºRI,
narra o dia que foi gravemente mutilado por ação de uma mina terrestre:
Formada a patrulha, saímos em direção aos morros. Eu estava na retaguarda
quando o sargento me chamou, para frente; eu lhe disse que nunca tinha sido
esclarecedor. Ele retrucou que não tinha importância, que seria naquele dia.
Andamos a tarde toda até chegarmos às montanhas onde caímos num campo
minado.
O primeiro a pisar em uma mina fui eu. O Comandante da patrulha,
sargento Ferrine, tomou a frente dizendo para que os demais só pisassem onde
ele já tivesse pisado. Mas os outros pisaram em minas; até o anoitecer, foram
oito baixas, oito que perderam as pernas. Meu Comandante de Grupo de
Combate, o sargento Aquino, perdeu as duas pernas, três dias depois morreu.
[...]
Pisar numa mina dói muito. É uma amputação a sangue frio.
222
Estar num campo minado era um terror, os soldados ficavam sem muitas opções
e até recuar acabava sendo perigoso. Além disso, a explosão chamava a atenção do
inimigo, que poderia desencadear fogo de morteiros ou artilharia, agravando o risco. Os
ferimentos eram tão graves que desmembramentos e mortes eram muito comuns.
O dia 7 de novembro ficará marcado na nossa memória para sempre.
Tombaram dois companheiros e alguns ficaram feridos. O Cabo Ladeira e
Orlando não estavam conosco. [eram de outra unidade] Eram do pelotão de
reconhecimento, saíram para exercício,
223
entraram num campo minado. Os
dois morreram, o Vasquinho Nery e o tenente ficaram feridos. A tristeza nos
invadiu. Era a guerra na sua triste realidade, mesmo longe da frente: onde ela
passa semeia morte.
224
Como narrado pelo Sd. Joaquim Xavier, que teria seu batismo de fogo em Torre
de Nerone em meados de setembro, para algumas unidades o contato com as minas
precedeu qualquer tipo de ação do inimigo, que, também por meio dessa arma se fazia
presente, mesmo a quilômetros de distância do primeiro “tedesco”.
Havia ainda outro tipo de artefato explosivo que oferecia perigo aos soldados,
mesmo trazendo menos baixas que as minas: boob-traps. Estes dispositivos eram
armadilhas que detonavam explosivos. Canetas, caixas de música, armas e até corpos
222
Sgt. Rubens Leite de Andrade. Op. Cit. pp. 341-342
223
Era comum a formação de patrulhas de veteranos e novatos para adaptar estes ao front. Eram
chamados exercícios.
224
SILVEIRA, Joaquim Xavier. op. cit. pp. 45
poderiam estar ligados a fios que acionavam as espoletas. José Bernardino de Souza,
que serviu na Cia de Canhões Anti-Carros do 1ºRI, quando se encontrava numa patrulha
para localizar um lançador de foguetes inimigo, explica esse tipo de armadilha:
[...] Quando andamos mais ou menos uns duzentos metros começamos a
descer, encontramos outro alemão morto, mas conforme ele caíra no solo, em cima
de neve, esta derreteu e ele ficou com as costas voltadas para baixo, as pernas e os
braços no ar. Era tempo da caneta Parker 51. Havia uma em seu bolso e uma
pistola no coldre. Estavam bem aparentes, verificamos, novamente, a existência de
algum cordel de tropeço no corpo; se a pessoa bate no cordão de tropeço ou o
traciona, inadvertidamente, a armadilha explode. A caneta Parker, no bolso da
gandola, e a pistola estavam ligadas a uma bomba colocada debaixo dele.
225
É interessante observar que estes artefatos explosivos eram ligados a objetos
cobiçados não apenas pelo seu valor material, mas também pelo seu valor simbólico e
que ainda havia uma diferenciação quanto aos alvos. Certos objetos destinavam-se a
atrair a atenção de oficias desavisados ou incautos. Quadros tortos nas paredes, livros de
clássicos da poesia, caixas de música e pistolas, em especial as Luger P-08 e a Walther
P-38, eram objetos destinados aos oficiais, que, por exemplo, ao abrirem um livro ou
sacarem uma pistola do coldre acionavam os detonadores. Já destinado aos soldados
havia os tabuleiros de jogos como xadrez, canetas tinteiro, latas de biscoitos e os corpos
de soldados mortos. Cadáveres tanto de alemães como de brasileiros deveriam ser
recolhidos pelo Pelotão de Sepultamento para evitar epidemias, mas muitos soldados
tentavam recuperar os corpos de companheiros, expondo-se assim às armadilhas.
Visando alertar a tropa brasileira para os perigos das boob-traps o “jornal de
trincheira
226
...E a cobra fumou, produzido pelo I Btl/6º RI, avisava: “[...] Há, por toda
parte, os ‘bonbons de Rhum’ [sic] que os alemães semearam e que o vulgo chama de
‘booby-traps’ ”
227
.
Combates corpo-a-corpo foram incomuns, devido a distribuição das forças
beligerantes no terreno, que permitia aos alemães se valerem de posições mais altas para
225
O Sd. José Bernardino de Souza era Atirador de Bazuca da Cia Anti-Carros. HOESGM. Tomo VII, pp.
275. Entrevista realizada em 11/07/2000.
226
Havia jornais feitos pelos próprios soldados, os chamados “jornais de trincheira”, pois eram
produzidos próximo ao front. Eles funcionavam com a permissão e apoio do comando da FEB e das
unidades menores (Regimentos e Batalhões), sendo que alguns eram oficialmente produzidos por
determinação do comando. Entre os mais conhecidos temos o Zé Carioca, o Cruzeiro do Sul, A Cobra
Fumou, o Sampaio e o Vem rolando. MERON, Luciano B. Noticias do Front: Correspondentes de guerra
brasileiros na II Guerra Mundial. Anais do III Encontro de Cultura & Memória – História: Cultura e
sentimento. Recife-Pernambuco, pp.2. CD-ROM.
227
...E a cobra fumou. Tarquinia (Itália), Ano I, nº 1, pp. 2, 17 de agosto de 1944.
enquadrar alvos a distâncias consideráveis, além do longo alcance do armamento,
especialmente da artilharia. Mesmo assim algumas raras ocasiões de contato direto
foram registradas. Em Montese, já em meados de abril de 45, os combates ocorreram de
prédio em prédio, e num desses assaltos á fortificações alemães se registrou um
ferimento de baioneta num soldado brasileiro que adentrou inadvertidamente numa
posição inimiga.
228
Havia uma grande preocupação em recuperar os corpos de companheiros
mortos, mas muitas vezes estes se encontravam perto de posições vulneráveis ao fogo
inimigo, causando grande comoção. O Sgt Moacyr Machado Barbosa, após o último
ataque ao Monte Castelo, narra o encontro de corpos de brasileiros:
[...] Fazendo uma verificação na área, encontramos os corpos dos
brasileiros mortos no ataque de 12 de dezembro [de 1944], daqueles que não
pudemos trazer de volta. Eram corpos dos sargentos Aires e Pinto, do cabo
Lucena e dos soldados Benone, Eliaquim, Durvalino, Álvaro, Lima, Miguel e
Marcelino. O Eliaquim era aquele que eu ouvira encomendando a alma.
[explicar em nota] Estava com a Bíblia. O Aires era torcedor do Fluminense,
por isso havia-lhe dado uma fivela do seu clube. Reparei que eles estavam
escuros. Isso me deu uma certa agonia, pois sabíamos que os alemães não
gostavam de gente escura, eram racistas. Mas reparei no sargento Aires, logo
me veio a mente que o frio de 20 graus abaixo de zero conserva, mas queima a
pele. Eles estavam mumificados na neve, sem cheiro. Os alemães não os
enterraram.
229
Mais de 60 anos após os ataques feitos durante o inverno italiano a lembrança
dos companheiros mortos é forte. Nomes e preferências pessoais são rememorados.
Mesmo nos soldados já mortos temia-se que o inimigo provocasse algum mal aos seus
corpos, remontando as visões de um inimigo cruel e preconceituoso. Além disso, o fato
dos dez estarem insepultos é lembrado. Uma constatação quase recriminatória. O Cabo
Raul compartilha lamentações parecidas em relação a soldados brasileiros mortos:
“Deixar um camarada nosso era a coisa que podia dar mais tristeza pra gente! Ficou
[muito] brasileiro!
230
Todos estes perigos oferecidos pelos alemães poderiam se manifestar de uma só
vez numa circunstância de combate: a patrulha. As patrulhas eram grupos de variados
em formação e número de componentes, dependendo dos seus objetivos. Existiam, de
forma geral, dois tipos de patrulhas: as de reconhecimento e as de combate.
228
MAXIMIANO. op.cit. pp. 271.
229
Sgt Moacyr Machado Barbosa. Op. Cit. pp. 330.
230
Cb. Raul Carlos dos Santos. op. cit.
As patrulhas de reconhecimento serviam para manter contato com o inimigo ou
coletar uma informação especifica, pois muitas vezes perdia-se o contato com as tropas
adversárias, o que poderia acarretar desvantagens táticas e estratégicas. Outras vezes era
necessário confirmar se determinada peça de artilharia ou posição no terreno era
ocupada por forças inimigas, daí as patrulhas de reconhecimento. Essas poderiam ser
menores, menos armadas e mais homogêneas, dependendo da visão do comando, do
terreno e das informações pré-existentes sobre os alemães na área alvo. Elas não tinham
como objetivo atacar os inimigos, apenas coletar informações. O soldado Bernardino de
Souza narra uma patrulha de reconhecimento:
Certa vez, numa patrulha no Monte Campiano, estávamos na parte mais
elevada e, mais abaixo, havia uns platôs com roças de italianos. Na margem de
um pequeno rio, um lançador de foguetes
231
de oito bocas a cada dez ou vinte
minutos atirava, os foguetes passavam por cima de nós e iam cair lá para as
bandas do Belvedere, mais pra trás.
A patrulha deveria localizar aquele ninho de foguetes; tivemos que descer,
dar a volta no morro, para poder chegar ao local onde se ouviam os tiros.
Fomos avançando por lanços, ia um na frente e dava sinal para nós que
estávamos mais atrás, para que fizéssemos outro lanço [...].
Nossa missão era só localizar e depois voltar, missão de uma patrulha de
reconhecimento. [...] Descemos até chegar o local de onde partiam os tiros; a
neve estava com uma capa de gelo por cima, quando pisávamos fazia aquele
ruído de gelo quebrando. Era importante andar com muito jeito para não
chamar a atenção; quando chegamos a uns vinte metros da pirambeira, onde
deveriam estar os foguetes, no meio da mata, eles receberam ordem de tiro,
isso a vinte metros de nós, um lança-foguetes de oito bocas, que fazia um
barulho enorme. Foi a hora de tremer na base, bambolear as pernas.
Aí voltamos, informamos a posição e a Artilharia mandou fogo em cima
deles e acabou com aquilo tudo.
232
Mesmo não tendo obrigação de enfrentar o inimigo muitas vezes isso ocorria, já
que os soldados se aproximavam muito das linhas inimigas para coletar as informações.
O medo, como visto, não diminuía. Embora corresse um risco menor que as patrulhas
de combate essas ações não se constituíam em passeios na “terra de ninguém
233
”, eram
ações de guerra, onde os homens se expunham ao fogo inimigo fora das suas áreas
fortificadas. A cada saída a incerteza do retorno pairava sobre estes homens criando
231
Provavelmente tratava-se do lança foguetes Nebelwerfer 41. Uma arma de artilharia de saturação,
composta de seis tubos que lançavam foguetes de quase 32 kg cada. Tinha um inconveniente de serem
facilmente localizáveis, devido ao rastro de fumaça dos projéteis. História ilustrada da 2ª Guerra Mundial.
Armas. Rio de Janeiro: Renes, 1975.
232
Sd. Bernardino de Souza. op.cit. pp. 275.
233
Área que ficava entre as linhas de combate. Tinha largura variada, indo de algumas centenas de metros
a alguns quilômetros, e se estendia por toda a linha de ação dos exércitos em contenda. Eram áreas
batidas constantemente por fogo de artilharia, possuindo muitas vezes uma paisagem com crateras, ruínas
e quase sem vegetação.
forte desgaste psicológico. O Sgt Silas Aguiar Munguba, que serviu no 1ºRI, descreve o
funcionamento de uma patrulha:
Enfatizo o importante trabalho das patrulhas: uma de suas missões era fazer
com que o inimigo se mostrasse. Quando a gente saía de patrulha, geralmente
era coluna por um, primeiro, por causa do caminho atopetado de neve (a gente
ia abrindo o caminho). E vêm aqueles cuidados de sempre: o primeiro fica
olhando para a frente, o segundo, para um lado; o terceiro para o outro; e, o
último, para trás; parar e observar. Uma patrulha dessas é muito lenta e, na
realidade, não precisaria atirar, porque raramente encontrávamos o inimigo,
que permanecia sempre oculto. Do mesmo jeito, às vezes, eu estava na posição
lá na frente, observava o inimigo passar por dentro do terreno da gente e não
atirava nele. Porque a finalidade era localizar o inimigo; se eu atirasse, ele
passaria à saber a minha posição e a Artilharia nos bombardearia. Do mesmo
modo, ele procedia com a gente.
234
Como na patrulha do Sd. Bernardino de Souza a artilharia tomaria papel
fundamental após a localização do inimigo. Assim essas patrulhas possuíam cartas do
terreno e rádios para comunicação, mas a desorientação era comum, especialmente na
neve. Além disso, o terreno acidentado dificultava a comunicação por rádio, diminuindo
seu alcance, além de que era comum o inimigo interferir nas comunicações para impedir
o contato entre as unidades.
As patrulhas de combate visavam atacar objetivos específicos, onde um poder de
fogo menor era suficiente ou que a artilharia não tinha condições de destruir ou
alcançar. Além disso, a captura de inimigos também era caracterizada como uma ação
de combate, já que era necessário adentrar nas linhas inimigas e com freqüências
encontrar resistência nesse processo. Muitas das operações maiores de grandes unidades
___
como Regimentos e Divisões
___
começavam com ações preparatórias do terreno
através de patrulhas, que destruíam ponto de resistência inimiga especificas. Essas
patrulhas também eram conhecidas como “golpes de mão”. Assim, as patrulhas de
combate normalmente eram mais bem armadas e com uma quantidade maior de
membros.
Durante o inverno, quando a neve paralisou a frente de combate, as patrulhas se
tornaram fundamentais, já que as posições inimigas se tornaram quase invisíveis e o
contato com estas rompia, as vezes por dias. Quando isso acontecia o comando
brasileiro necessitava de informações mais especificas, como detalhes de unidades,
moral da tropa, tipo e quantidade de armamentos, determinando muitas vezes a captura
234
O Sgt. Silas de Aguiar Mungunba serviu na 2ª Cia do I Btl./I RI. HOESGM, Tomo II, pp. 95.
Entrevista realizada em 01/06/2000.
de soldados inimigos para interrogatório. Mas essas eram ações que obtinham pequeno
grau de sucesso, especialmente no inverno, onde as operações de combate diminuíam
sensivelmente. Segundo César C. Maximiano apenas vinte e cinco soldados inimigos
foram capturados em janeiro de 1945, quando houve a total paralisia do front
235
.
Algumas patrulhas de combate tinham a perigosa missão de fustigar as linhas
inimigas, para avaliar a disposição destas e seus recursos. Eram missões de extremo
perigo, mas que podiam resultar em informações importantes. Observemos a narrativa
do Sgt. Munguba numa de suas patrulhas para averiguar uma posição inimiga na “terra
de ninguém”, durante o inverno italiano:
Certo dia, pegaram um partigiani, um italiano, que sabia da existência, em
determinado local, de um grupo de alemães; recebemos ordens de trocar fogo
com eles, de qualquer maneira, provocar o bicho na sua toca. [...]Lá, não
existia ponte; era um rio que apresentava a superfície congelada; a gente
passava por cima daquela camada de gelo, em seguida enfrentava a neve quase
na cintura, sobe morro, desce morro, até chegar ao local previsto.
Aproximamo-nos, cercamos a casa... isso demorou horas, com um frio danado;
(preciso entrar na casa, cabe a mim fazê-lo, como especialista nessas coisas).
Inicialmente pensei que houvesse alguma coisa estranha, segurei a porta, abri,
nada...então, ótimo! Entrei com a metralhadora e notei um casal com duas
filhas, bem à frente, perto da mesa. Apontei a metralhadora para eles e disse:
“Onde é que está o alemão?” Ele respondeu: “Aqui não tem alemão.” Mandei
os soldados entrarem, a gente rodeou..., “nós não estamos aqui para prejudicar
ninguém, não queremos ferir ninguém, agora quero saber onde é que está o
alemão.” Aí, o dono da casa repetiu: “Não tem alemão”(em italiano); “tem, nós
recebemos informação de que tem alemão.” E acrescentei: “Então, faça o
seguinte: vamos correr os quatro [tudo isso?] andares da casa.” Aí, o bicho
frouxo que só ele mesmo mandou-me subir com a mulher; eu e os dois
soldados subimos, vasculhamos a casa, não encontramos realmente alemão.
Cheguei junto ao velho, novamente, e falei: “Onde é que está o alemão?”, ele
repetiu: “Não tem alemão”; aí, desembainhei a faca, pois a gente andava com
uma faca de trincheira, encostei-a no braço dele e disse: “Onde está o alemão?”
e ele, outra vez: “Não tem alemão”. Nisso, eu o furei! Quando ele viu o sangue
correr, disse mais uma vez: “Não tem alemão”; eu retruquei: “Tem não?”;
peguei a faca, botei no peito dele, em cima do coração e ameacei: “Se você não
disser, eu o mato; não dou tiro, senão o alemão ouve e descobre; mas eu o mato
aqui e agora”; e, quando apertei um pouco, ele viu que eu estava falando sério
e disse: subito. Subito quer dizer “perto”; então chamei: “Vamos comigo.” O
velho veio até a porta e saímos andando, nos aproximamos de uma
determinada posição, uma elevação e um pequeno canal lá em baixo; ao olhar,
vi uma árvore – disso nunca me esqueço – ao lado da árvore, um toco. Quando
a gente chegou e olhou, o coitado do italiano viu aquilo e deu um berro:
“sentinela tedesca”, “sentinela alemã”. Ao dizer isso, o toco – que era um
vigilante, um vigia que eu pensava ser um toco – virou-se para mim, eu estava
atrás dele. Acho que essa foi a minha salvação. Ele virou-se para mim e deu
um grito – não sei alemão – esse grito era raus! raus!, mais ou menos foi esse o
som que ele emitiu. Mas foi um grito bem forte; dizem que é “fora daí” num
tom bem agressivo. Empunho a metralhadora, aponto para ele (estava perto,
talvez uns 15 metros); quando puxo o gatilho, não funciona; pronto, a
metralhadora não funcionou; peguei uma granada de mão; quando fui botar o
dedo no aro para tirar o grampo, não entrava, porque a luva era grossa. Repare,
235
MAXIMIANO. op.cit. pp. 283
tudo isso em décimos de segundos; então, tirei a luva com os dentes, arranquei
o grampo e lancei a granada. Acabei com aquele camarada ali. Muito bem,
volto e peço ao Tenente que me dê outra metralhadora, porque a minha tinha
falhado. Ele me deu a metralhadora e, quando estou regressando àquela
elevação,encontro-me face a face – talvez não houvesse cinco metros entre nós
dois – com o segundo alemão que ia subindo. Um fica olhando para o outro; eu
pego e aponto a metralhadora, que falha novamente; ele me joga uma granada
de mão, que cai entre as minhas pernas; pronto, pensei... Aqui..., só fazendo um
parêntese a respeito dessa sensação que você tem, quando vai morrer. Eu era
jovem, tinha 21 anos de idade, estudante de medicina, uma família organizada,
tudo estruturado, tudo bonitinho e, de repente, uma granada entre as pernas, sei
que vai explodir e que vou morrer. É uma sensação terrível: você está sabendo
que vai morrer e o fim é iminente. Mas, graças a Deus, a granada não explodiu
e eu peguei a minha, joguei-a e ela funcionou. A partir daí, começou: apareceu
alemão de todo lado e foi só troca de tiros, daqui, dali. [...]
236
O apoio da artilharia brasileira se faria presente, dando cobertura ao recuo da
patrulha, e a posição inimiga seria destruída
___
provavelmente arrasando também a casa
dos civis. “
Recordo-me de que chegou uma Bandeira da Cruz Vermelha [alemã] pedindo-nos
para suspender o fogo, a fim de retirarem os mortos e feridos daquele local”
237
. O Sgt acabaria
condecorado por ato de bravura, por ter localizado as posições inimigas e eliminado
pelo menos dois soldados alemães.
Além dos perigos do deslocamento na neve
___
como atravessar o rio congelado
___
a patrulha do Sgt. Munguba sofre grande tensão na abordagem à casa dos civis. A
cautela ao adentrar demonstra o medo de uma emboscada ou uma armadilha, que
poderia ser acionada ao abrir da porta. O trato com a população civil é feito sob grande
tensão e desconfiança, culminando em ações violentas, onde a tortura para obter
informações se faz presente, contrariando as normas de guerra que preservam a
integridade de não-combatentes. O combate que se segue nos oferece uma idéia de
imprevistos que poderiam ainda ocorrer: A sentinela alemã camuflada; a arma que
emperra, pois o material lubrificante congelou; a luva que é grossa demais para acionar
o pino da granada. Quando da falha da granada inimiga e a proximidade da morte o Sgt
fornece a justificativa para não morrer. Sua juventude, estar estudando ter uma família
“estruturada”, “tudo bonitinho”, são características, na sua visão, de condições ideais de
vida, de alguém de futuro promissor, que não poderia ser desfeito por uma granada entre
as pernas. “Mas, graças a Deus”, a granada não funciona e é o Sargento que pode
interromper os planos do soldado inimigo.
236
MUNGUBA. op.cit. pp. 93-94.
237
Id. Ibidem.
Os combates e sua violência provocavam reações variadas nos soldados, mas
pelo menos um sentimento, o medo
___
e conseqüentemente seu oposto, a coragem
___
merecem algumas considerações especificas.
3.2 O medo
“Não tem essa pessoa que quando parte para um lugar [a guerra] não tenha
medo.”
238
Medo é um sentimento facilmente associável a uma situação de guerra, mas
poucos durante o desenrolar da batalha admitem tê-lo.
Uma característica constante da atividade do soldado era obedecer a ordens,
independente do risco. “Tem dia que ninguém precisa saber de nada! Do jeito que se
está, vai [para o combate]! Ai é outra coisa, não tem esse negocio de risco não. Cada um
que se cuide”
239
. Embora o front permitisse uma maior liberdade no comportamento do
soldado e até desfizesse certas formalidades da caserna
___
como continências freqüentes
e rigor no fardamento
___
especialmente nas relações com oficiais de baixa patente e
graduados, isso na verdade acabava servindo para manter o soldado em sua função, que
era fazer a guerra, ser obediente e disposto a matar e/ou ser morto. Estar na guerra era
“um quinhão desagradável que lhes cabia
240
”, aceito por respeito à hierarquia, pelo
temor de represálias legais e sociais
___
como ser rotulado de covarde
___
, orgulho e
vínculos emotivos aos companheiros de unidade. Em menor escala haveria o
patriotismo, segundo Maximiano
241,
que seria pouco trabalhado pelo exército entre a
tropa convocada. O Sgt. Ayrton Vianna Alves Guimarães explica porque enfrentou o
medo e seguiu para a guerra: “Fui para a guerra com medo; quem é que vai para a
guerra sem medo? E não desertei com medo também, para não ser covarde.”
242
Nos diários e depoimentos próximos à guerra é muito difícil observar
declarações espontâneas de medo, onde este quando ocorre é destinado sempre a
homens de outras unidades ou de “casos que se comentava”. A coragem é algo muito
evocado como uma virtude do bom combatente, vinculada a idéia de virilidade, de
masculinidade, dentro da cultura militar. Estes ideais podem ser percebidos no
depoimento do Tenente José Alfio Piason:
238
O Sd. Vicente Alves do Nascimento serviu na Cia. de Petrechos do 11º RI como metralhador.
Entrevista concedida ao autor em 17/07/08.
239
Cb. Raul Carlos dos Santos. op.cit.
240
MAXIMIANO. op. cit. pp. 169.
241
Id. Ibidem.
242
Sgt. Ayrton Vianna Alves Guimarães. Op. Cit. pp. 268.
A guerra para mim, como médico [após a guerra], foi uma coisa muito
importante, porque eu aprendia a psicologia do homem em perigo. Porque vi
alguns que aqui no Brasil eram valentões e quando chegaram lá [na Itália]
cometiam alguns atos de covardia. Um deles, no Rio dava bastante alteração,
bebia, vivia preso, era o valentão, batia em todo mundo, se envolveu em uma
briga e esfaqueou um sujeito. Mas na guerra se acovardou. O comandante dele,
o Capitão Aldenor, reuniu a Companhia e na frente de todo mundo disse:
___
Você vai ficar na cozinha, seu covarde!
Já aqueles “mocorongos” do Mato Grosso, quase analfabetos, quietinhos,
agüentavam firmes; alguns eram até voluntários para patrulhas, parece mentira
que alguém pudesse ser voluntário para aquele tipo de missão bastante perigosa
[...]. Acarretaram muitos atos de bravura e isso é preciso assinalar.
243
A covardia é inadmissível e tem que ser exposta publicamente, assim como sua
punição. O soldado é designado para uma função considerada secundária, para alguém
que tinha a possibilidade de ser um combatente de linha de frente. Além disso, é
interessante observar que, na visão do tenente Piason, é surpreendente que homens
pobres, simples, vindos de um Estado fora do eixo de desenvolvimento nacional da
época (Rio de Janeiro – São Paulo)
___
os “mocorongos, analfabetos, quietinhos”
___
sejam capazes de apresentar as qualidades do “bom soldado”, ou seja, serem obstinados,
destemidos e voluntários.
Nas entrevistas realizadas décadas após a guerra o discurso sobre o medo
mudou. Este é um sentimento admitido quase que com unanimidade, algo natural para
quem passou pela guerra. Mas essa postura coletiva adotada hoje não implica, na
maioria dos casos, numa autorização a acusações de covardia contra companheiros de
guerra. Pelo contrario, o que se encontra é a defesa do soldado brasileiro. O Sgt.
Oswaldo Matuk faz questão de diferenciar medo de covardia:
[...]
Na minha Companhia não houve caso algum de indisciplina ou de covardia,
covardia principalmente, não tive conhecimento de que ocorresse.
Lembro-me ainda que, na véspera do Natal de 1944, os alemães fizeram
uma salva com os canhões 88 mm. Deram tanto tiro, emendavam um no outro.
Um sargento teve uma crise psíquica, ficou doido e acabou morrendo: Corria
para a frente e para trás e eu gritava para ele voltar, mas como não se abrigou,
foi atingido. O coitado ficou doido, não foi covardia.
Naquele dia, por exemplo, a gente deveria sair em patrulha e a nevasca não
estava permitindo; cheguei a dizer ao Tenente que não dava e ele ponderou
com o Capitão, pelo telefone.
243
Tenente José Alfio Piason foi Chefe da 2ª Seção do I/6º RI. HOESGM, Tomo III, pp. 175. Entrevista
realizada em 02/05/2001.
Não foi covardia, foi segurança, preservação, porque covardia é uma coisa
e medo é outra. Todos tem, ninguém pode dizer que não tem medo, é muito
natural, somos seres humanos. A gente vai em uma noite escura, não enxerga
nada à sua frente, com um fuzil e baioneta armada, uma hora a gente espera ser
espetado, porque o inimigo pode vir também. Então esse é o medo, o receio,
que é natural. A reação é positiva: provoca um estado de alerta e agressividade.
O bom combatente reage à aquele medo, vence-o e cumpre a sua missão,
diferente de outras situações em que se expõe afoitamente à morte,
comprometendo a si mesmo e ao grupo.
244
A covardia não é vista como um sentimento de auto-preservação, não é admitida
como algo natural, mas o medo hoje é quase algo positivo, esperado de um ser humano,
e presente num soldado consciente que não se expõe a toa.
Algumas estratégias eram desenvolvidas pelos soldados para lidar com o medo
nas situações de maior perigo. Brincadeiras eram feitas pra desviar a expectativa de uma
patrulha ou ataque iminente, além disso, cantava-se para evitar o medo. Quando por
mim questionado sobre como encarava o medo, o soldado Vicente comentou:
Mas eu gostava de fazer o seguinte: cantava aquele sambinha, aquela
coisa, aquela brincadeira, e os meninos “o que é que trouxe de novo?” e ia lá,
aquela coisa, e começa a cantar “Senhor do Bonfim”, e ai era todo mundo
batendo naquele capacete e tava todo mundo entregue a Deus, né?!
245
Até durante a ação da artilharia inimiga alguns soldados tentavam brincar, no
intuito de amenizar o medo e o stress do combate:
[...] Quando caiam algumas granadas de 88 mm, nós jogávamos bolas de
neve ou pedra nas costas dos companheiros . Quando o bombardeio acabava, a
gente levantava voltando à normalidade. Aquele que tinha sido atingido pela
bola de neve ficava passando a Mao no local atingido, procurando sangue, para
ver se tinha sido ferido. Ferimento não dói na hora, só depois. Por isso, ficava
procurando a ferida. Era uma brincadeira de brasileiro.
246
Havia ainda para alguns um alheamento à violência dos combates e,
especialmente, à morte de companheiros. Isso além de ser uma estratégia para lidar com
o tormento da guerra também era fruto da própria banalização da morte e da
brutalidade, constantes no conflito. Dedicar-se a objetivos imediatos, ligados a sua
missão, e a auto-preservação eram meios de enfrentar o medo, a violência e a dor da
244
Sgt. Oswaldo Matuk. Op. Cit., pp. 256.
245
O Sd. Vicente Alves do Nascimento serviu na Cia. de Petrechos do 11º RI como metralhador.
Entrevista concedida ao autor em 17/07/08.
246
Moacyr Machado Barbosa. op.cit. pp. 328-329.
perda. O soldado Abdias de Souza, relembrando o ataque sobre Montese, de meados de
abril de 1945, comenta:
Na guerra, quando a gente estava atravessando um rio, o nosso problema é
procurar sair do outro lado. Não se quer saber o que se está passando por lá
nem pra cá. Você recebe um objetivo e parte para ele. Não quer saber o que
está acontecendo, nem de um lado nem de outro. Era fazer o assalto e escolher:
matar ou morrer. Não morreu, começa tudo de novo. [...] Os feridos ficavam
pra lá, o negócio da gente era pra frente. Ficou ferido, fica para trás. E, atrás,
logo vinham os padioleiros pegando os feridos.
Éramos 44. Quando regressamos estávamos com 27. Nem isso a gente
notava a falta. Pensava que o companheiro estava escondido ou estava do outro
lado. Quando perdíamos um companheiro, fazíamos de conta que ele tinha ido
para o outro lado. E como chorei. Eu vi aqueles dois amigos queimados.
Estivemos juntos, como estamos aqui.
247
Após sobreviver a um intenso bombardeio da artilharia alemã, o Sd Joaquim
Xavier reflete sobre sua situação:
O resto da noite passamos numa adega, que estava cheia de feridos.
Cochilei sentado a um canto, ouvindo o gemido baixinho e incessante dos
companheiros atingidos. [...] A sensação que tinha era de embriaguez, e um
zunido constante nos ouvidos. Ao meu redor, homens deitados, envoltos em
cobertores, num porão cheio de trastes velhos e teias de aranha. Esse era um
verdadeiro quadro de guerra, digno de Erich Maria Remarque para descrevê-lo.
Junto a mim, um pracinha vomitava um liquido viscoso misturado com sangue.
Eu estava imundo, coberto de lama, com o corpo todo dolorido, a mão direita
machucada, tonto, porém feliz, imensamente feliz, porque estava VIVO. O
espetáculo do sofrimento alheio deixava-me indiferente. Eu estava vivo. Era
isso o mais importante.
248
O mundo de violência que cerca o soldado Joaquim é aludido à outro ambiente
de guerra, do romance Nada de novo no front, do autor veterano alemão da I Guerra
Mundial, Erich Maria Remarque. Está obra se tornou, na década de 30 do século
passado, um referencial sobre a violência da guerra e as agruras que o soldado passava.
A felicidade com a auto-preservação se faz mais importante que qualquer coisa, na
reflexão do praça. Mais a frente no seu diário, como o Sd. Abdias, ele demonstra outro
exemplo da indiferença que a guerra pode provocar, mesmo quando se trata da morte de
companheiros.
O tempo foi passando; todos os dias ia a Porreta levar mensagens ao
QG [Quartel General]. Aos poucos me acostumava com os sustos de atravessar
as duas pontes e comecei a achar um esporte fascinante fugir das bombas. Já
não tinha mais a sensação dos primeiros dias ao ter que enfrentar um
247
Abdias de Souza op.cit. pp.189.
248
SILVEIRA. op.cit. pp56.
bombardeio, ou quando me diziam que algum companheiro tinha morrido. O
verbo, aliás, era “sobrar”, pois não se falava em morte. Nunca tocávamos o
nome daqueles que tinham “sobrado”. À primeira vista, parece desrespeito. Era
apenas uma defesa, uma reação natural. O que tinha acontecido com eles
poderia suceder também a qualquer um de nós, sem escolha de hora, nem de
local. Sabíamos que estávamos ali para morrer, mas ninguém gostava de que
isso fosse lembrado. Começávamos a adquirir a mentalidade de veterano, e um
vocabulário lógico. Quando a “cobra começava a fumar”
249
, cada qual tratava
de enfiar o focinho no chão para não “sobrar”. Assim vivíamos, dormindo,
comendo, executando as ordens e esperando nossa vez, com a esperança de que
para nós ele nunca chegasse.
250
A morte era “logicamente” ignorada, assim como o medo, que era disfarçado.
Este fatalismo alcançava em alguns pracinhas grandes proporções. A brutalidade da
guerra, a incerteza da morte, a miséria da população civil, o pensamento medíocre e
desdenhoso de alguns oficias para com os subalternos produzem no depoimento do Sgt.
de Artilharia Boris Schnaiderman uma narrativa angustiada, tensa e predominantemente
triste.
Há também uma ferocidade transformada em rotina, enquadrada em normas
burocráticas, obediente aos regulamentos escritos. As normas prescrevem que
se atire todos dias sobre o Ponto Base, obrigatoriamente um ponto fixo e bem
visível. Por conseguinte, nada melhor que um campanário. E lá se vai a igreja
de La Serra, transformada em um montão de escombros! Constatou-se que os
alemães transportavam munições de guerra em ambulâncias, logo devemos
atirar em todas as ambulâncias alemães que estiverem a vista. O inimigo é
feroz e implacável, portanto temos de usar contra ele balas explosivas,
proibidas pela Convenção de Genebra, balas que se estilhaçam ao encontrar o
primeiro obstáculo e provocam ferimentos horríveis. Ferocidade contra
ferocidade! Será possível que o nazismo nos contaminou?
Não pode ser! Olho os soldados, os mesmos que eu vi em Pozzuoli, bons e
compassivos com a população. Há uma dureza e uma impassibilidade que,
pensava eu, jamais apareceriam em seus rostos. A guerra tem uma lógica
implacável. E eu queria esta guerra! Eu não tenho o direito de protestar contra
nada!
251
Os brasileiros acabam se igualando aos nazistas, que são muitas vezes
demonizados, rotulados de cruéis. A guerra, em certos momentos, se torna um “olho por
olho”. Como visto no Capitulo I, alguns soldados participaram da FEB com uma
ideologia pró-guerra, devido a adesão à uma política anti-nazista, que foi o caso do Sgt
Schnaiderman, daí sua auto-condenação quanto ao direito de protestar contra a
249
Expressão muito usada para descrever momentos de perigo, onde o inimigo atacava e o risco de ser
atingido era grande.
250
SILVEIRA. op.cit. pp. 57.
251
SCHNAIDERMAN. Op. Cit. pp.128-129.
brutalização do soldado. O alheamento ao sofrimento é algo quase que impossível de se
evitar. Mais a frente o Sgt continua sua reflexão:
A morte, ora a morte! Outro dia, fomos metralhados por engano por um
avião americano. Vi cair morto, sob minha janela, o soldado americano da
máquina fumígena
252
. Eu estava encolhido no canto, junto à janela, vendo as
balas traçantes penetrarem no quarto, numa esteira de fogo. Espiei para fora
com o rabo dos olhos, e lá estava o americano caindo. Que importam as
circunstâncias acessórias? Se o avião fosse alemão, teria sido mais fácil? No
turbilhão de absurdos, vivemos entregues ao inexorável, como nos entregamos
ao monstro cinzento que nos trouxe para a guerra.
253
Mesmo reconhecendo a existência de absurdos, a morte é uma fatalidade
inevitável e pouco importa se venha por engano ou numa ação contra o inimigo. Os
acontecimentos violentos são banalizados. A morte se torna algo tão banal como a
viagem para a guerra no “monstro cinzento”, que foi o navio transporte.
Para alguns havia, também, o uso da religiosidade como estratégia de
enfrentamento do medo. Os soldados tinham um serviço religioso oficial, o “Serviço de
Assistência Religiosa” do Exército
___
criado por decreto presidencial de Getúlio Vargas
em 26/05/1944
___
que enviou a Itália junto com a FEB vinte e quatro sacerdotes
católicos e dois protestantes
___
um metodista e outro batista. Estes religiosos foram
todos voluntários. Receberam algum treinamento militar, especialmente
condicionamento físico, e passaram a incorporar unidades do exército no Brasil.
Inicialmente não possuíam patentes, mas, posteriormente, assimilando o padrão norte-
americano, foram “promovidos” a oficias, na maioria tenentes e capitães. O Serviço de
Assistência Religiosa da FEB era chefiado pelo Tenente-Coronel Capelão Padre João
Pheneey de Camargo e Silva.
Embora os capelães visitassem unidades mais próximas da linha de frente, a
maior parte do serviço religioso era realizada para as unidades mais à retaguarda. A
dificuldade de acesso e os perigos do front eram empecilhos para que os capelães
conseguissem estar presente de forma eficiente. Os cultos constituíam um alento para os
soldados e ajudavam a lidar com o medo e o desgaste psicológico da guerra. O Sgt
Rubens Leite fala da importância do Serviço Religioso:
Deus é brasileiro, ele nos ajudou muito e nos orientou. Nossos capelães
também nos confortaram. Sempre que havia oportunidade armavam o altar e
252
Eram motores a diesel adaptados para gerar cortinas de fumaça sobre determinadas áreas, com o
intuito de impedir o enquadramento de alvos pela artilharia e aviação inimiga.
253
SCHNAIDERMAN. op.cit. pp. 129-130.
rezavam a missa, da qual participávamos com fé em Deus para que
voltássemos ao Brasil, para que não fossemos feridos. Todo mundo, numa hora
dessas, tem fé.
254
O Sgt Munguba, que é evangélico, também se recorda do Serviço Religioso e lhe
atribui importância para enfrentar o stress da guerra e ainda o conflito quanto a matar
outra pessoa:
A assistência religiosa também não podia ira à frente. Mas, antes de entrar
em combate, havia sempre um jeito de recebê-la. Os capelães, padre e o
evangélico, faziam reuniões conosco, antes de irmos para a linha de frente,
ainda no acampamento.
Essas reuniões eram muito úteis. Para mim, foram de vital importância.
Costumo dizer que, quando estava naquela confusão toda de matar, só me
ocorria um recurso: orar muito a Deus. Orei tanto que penso ter abusado da
paciência do Senhor. Andava com o Novo Testamento no bolso, porque sou
homem bastante religioso; então, lia o Novo Testamento, orava ao Pai e, de
repente, me acalmava, ficava tranqüilo. Essa parte espiritual foi muito
importante antes de sairmos do Brasil, até quando chegamos ao acampamento;
só houve dificuldade quando seguimos para a linha de frente, pois o capelão
não podia estar lá.
255
Havia ainda outras estratégias para lidar com o medo, mas de uma maneira mais
direta, com menos subterfúgios. A liderança e a camaradagem são muito evocadas como
meios de superação do medo da morte e da guerra, especialmente entre praças e
graduados.
É recorrente, talvez pela própria estrutura hierarquizada das instituições
militares, a evocação da importância da liderança. O papel do oficial que comandava os
Pelotões, no caso os tenentes e aspirantes a oficial, e dos Grupos de Combate, são
considerados preponderantes para determinar a reação da tropa frente a situações de
perigo e desgaste físico e psicológico. Há um discurso de confiança e lealdade em
relação ao grupo e ao líder. “O frio, o medo, a fome, tudo isso junto são privações que o
homem agüenta por causa de sua formação moral e pela ação de seus lideres”
256
.
O Cabo Antônio dos Santos Silva mostra sinais de desgaste psicológico, tendo
impressões sensoriais associadas à ferimentos, e evoca a lealdade ao líder como uma
força maior a mantê-lo na guerra:
[...] A proximidade da perspectiva da guerra, do combate, fez com que
gradativamente aumentasse a tensão e os nervos tendessem a se descontrolar.
254
Sgt. Rubens Leite de Andrade. op.cit. pp. 343.
255
Sgt. Munguba. op.cit. pp. 98-99.
256
Sgt. Rubens Leite de Andrade. op.cit. pp. 343.
Comecei a sentir um odor de éter, de remédio, como se estivesse num
hospital... Até hoje me lembro disso.
A minha impressão era de que estava caminhando no meio da rua; Silla
[explica isso] me deixou essa impressão, a de que estava indo para um
hospital....
Mas continuava na minha posição, com meu Comandante. Eu pertencia à
Companhia de Comando do Batalhão Uzêda e o Comandante do Regimento
era o Coronel Caiado de Castro.
257
O Sgt Rubens Leite também atribui a liderança um elemento preponderante para
superação do medo na guerra:
Meu Comandante de Companhia era o capitão Darcy Lázaro; de Pelotão, o
Tenente Resende; e de Grupo de combate, o sargento Aquino. Todos eles eram
muito bons. Ótimas lideranças, porque do sargento ao Oficial, ninguém
vacilava. Isso era bom porque o medo existia e oi exemplo deles nos arrastava.
O Sargento Aquino era um escurinho, muito bom, valente. Havia um
soldado, eu o chamava de “Carioca”, nunca vi tanto medo. Ele me olhava nos
meus olhos, eu já adivinhava o que queria saber e ele perguntava: “Rubens,
você está com medo?” “Sim, estou com medo”. Eu dizia, mas olhávamos para
nosso líder, o sargento, que estava na frente, com o Tenente mais à frente ainda
e não podíamos deixar de segui-los. Aonde eles fossem, nós iríamos.
258
A responsabilidade da liderança era percebida pelos próprios graduados e
oficiais, que se viam como exemplos de determinação e como mantenedores da coesão
do grupo, como é o caso do Sgt Matuk:
Naturalmente sabíamos que da ação do Comandante dependia a
conduta do soldado. Meus soldados sabiam que para meu desempenho ser
eficaz, era necessário que atuassem bem. Isso valia para cima também, ou seja,
em relação ao Tenente Comandante do Pelotão, que geralmente combate com a
primeira linha. Eu tinha confiança no meu Tenene, assim como os soldados
confiavam em mim. Estavam certos de que o sargento estava ali lutando com
eles, pensando por eles, e fazendo o Maximo possível para protegê-los, sem
deixar que sofressem situação de perigo. Criava-se o espírito de Corpo.
259
A idéia do Pelotão como um só corpo criava para alguns uma imagem muito
forte. O Sd Abdias de Souza imagina sua unidade como uma barata:
No pelotão, nenhum soldado se destacou em alguma missão, pela iniciativa
própria. Todo mundo cumpria as ordens do tenente. E o tenente, digamos
assim, coordenava tudo. Nós nos deslocávamos como o formato de uma barata.
O tenente era a cabeça da barata, ele ia na frente. Os dois sargentos da frente
eram as barbas da barata e nós, as pernas. E havia gente que vinha caminhando
já como no rabo da barata, porém mais de costas do que virado para a frente.
Para cobrir a retaguarda.
260
257
O cabo sapador-mineiro Antônio dos Santos Silva serviu na Cia de Comando do I/1ºRI. HOESGM,
Tomo II, pp.284. Entrevista realizada em 03/05/2001
258
Sgt. Rubens Leite de Andrade. op.cit.pp. 340
259
Sgt. Oswaldo Matuk. op.cit. 253-254.
260
Abdias de Souza. op.cit. pp. 189.
A analogia do Pelotão a uma barata é significativa. Nas ações de patrulha os
soldados muitas vezes se deslocavam se esgueirando, próximos ao chão, para evitarem
serem vistos, como uma barata que se esconde pelos cantos, furtivamente. Tinham à
frente “a cabeça”, o tenente, que decidia pelo destino do “corpo”, formado pelos
sargentos, cabos e soldados, “sem iniciativa própria”, para este soldado.
A lealdade ao oficial comandante era motivação para enfrentar situações
tensas e arriscadas, para o soldado Vicente Gratagliano. Um bombardeio numa posição
brasileira nos arredores do Monte Soprassasso levou o Pelotão a um recuo, temendo
serem arrasados pela artilharia e um golpe de mão inimigo. Após o cessar da artilharia
inimiga, o tenente pede voluntários para averiguar se a posição foi ocupada pelos
alemães, relembra Gratagliano:
___
Eu preciso de três voluntários para ir lá em cima.
Como eu estava perto, me apresentei. O que eu podia fazer? Sair dali,
fugir? Não, eu me apresentei e se apresentaram também o sargento
Comandante do Grupo e outro soldado; infelizmente esse soldado morreu lá.
Prosseguiu:
___
Vocês vão?
Repeti:
___
Vou, Tenente.
Falei meio contrariado, como quem não queria ir, mas ele era muito bom e
eu confirmei que iria.
261
Mas entre os fatores motivadores contra os perigos do front o companheirismo é
o mais evocado. A lealdade ao grupo levava o soldado, de maneira geral, a enfrentar o
medo, algumas vezes evitando até dar baixa quando ferido ou doente para não se afastar
de sua unidade. Pois quando ferido o soldado poderia dar baixa num hospital na
retaguarda, sendo substituído por outro soldado vindo do Depósito de Pessoal,
retornando ao front quando estivesse recuperado, mas possivelmente em uma unidade
estranha. Assim, os laços de camaradagem funcionavam como catalisadores de
eficiência, fazendo com o soldado permanecesse em combate por mais tempo
262
. O
Soldado Vicente Pedroso da Cruz relaciona a lealdade aos companheiros de unidade à
coragem: “O medo é o pai da coragem, ou se tem coragem ou vai-se para o desastre.
261
Vicente Gratagliano. Op. Cit., pp. 286-287.
262
MAXIMIANO. op.cit. pp. 149.
Não há tempo para raciocinar. E como o soldado pensa? Nos companheiros que não
pode[mos] deixar na mão”
263
.
O Sgt. Moacyr Machado Barbosa relata como burla a burocracia do Depósito de
Pessoal para voltar mais rápido para sua unidade no front:
[...] O sopro de uma granada me fez desmaiar. Fui para o hospital, de
para o Centro de Readaptação e, depois, para o Depósito de Pessoal. A guerra
já estava no fim e eu não queria ficar lá, longe do meu pessoal. Com a
permissão do Coronel Archiminio Pereira, deixei o Depósito. Disse-lhe que era
da 7ª Companhia do Sampaio [1ºRI], que estava cheio de dinheiro, que tinha
que pagar, que tinha sofrido um acidente e que fora hospitalizado. Ele deu
autorização e voltei para minha Companhia. Meu lugar era no Sampaio, onde
estive desde que cheguei à Itália.
264
Fato similar também é relatado pelo soldado José Bernardino de Souza Quando
sua unidade encontrava-se as margens da estrada que ia para Bolonha protegida num
barranco ele percebe um companheiro ferido e o avisa:
Quando ele olhou, soltou o fuzil, ainda não tinha percebido. Um estilhaço
pegou no fuzil e não mão dele, apenas cortou, não quebrou e como estava frio
ele não sentiu. Somente quando falei, ele notou: a mão tinha um corte grande e
do fuzil arrancou uma lasca. Recebeu atendimento médico e quando voltou á
linha de frente eu indaguei:
___
E aí, como é que está?
Respondeu:
___
Não foi grave, eu vou é pra frente com vocês.
Estava com a mão enfaixada, mas não baixou. São coisas que a gente vai
falando e lembrando.
265
Partilhar as agruras do front criava fortes laços entre os indivíduos e, para
muitos, após a guerra esta experiência se sobrepôs às diferenças sociais, raciais e até
nacionais, colocando quase que num mesmo patamar – o de veterano de guerra –
soldados que foram inimigos. Luiz Paulino Bonfim, que era aspirante a oficial durante a
guerra afirma que:
[...]Há muita coisa que os veteranos, não importa se aliados ou inimigos,
falam entre si mas não na frente de quem não esteve em luta. O Bill Mauldin,
263
Vicente Pedroso da Cruz. op.cit. pp.302.
264
Moacyr Machado Barbosa. op.cit. pp. 332-333.
265
José Bernardino de Souza. op.cit. pp. 278.
no seu livro UP FRONT, diz que todos eles pertencem ao que ele chama de
FRATERNAL IRMANDADE DOS QUE ANDARAM LEVANDO TIROS, a
mais exclusiva associação do mundo. Nela é aceito um SS da Waffen SS, mas
um partigiani ou um maquisard não! Eles não eram SOLDADOS. Um
mercenário ou um soldado da Legião Estrangeira também são excluídos. Você
tem que ser um cidadão que, seguindo o que era o seu dever, se tornou um
soldado. Adotou a conduta e a disciplina militar por que sabia estas serem
necessárias, eram parte da sua vida como soldados. Os civis, tal como você era,
passam a serem ‘paisanos’ [...] e você está muito acima deles. Se você não
estiver muito acima de todos e de qualquer um você não vai sair do seu fox
hole, fedorento e úmido, mas bem mais seguro do que os , sei lá, 400 ou 800
metros de terreno aberto até atingir as posições inimigas. [...] Pensa em entrar
em um banco que está sendo assaltado só por que o 'SEU" tenente deu a ordem,
o ‘SEU’ sargento gritou VAMOS e os ‘SEUS’ companheiros estão indo. Você
iria? SE você fosse seria um SOLDADO. Se não fosse você seria um cidadão
de bom senso, que tinha suas obrigações que não incluíam morrer por que uma
MISSÃO tinha que ser cumprida. [...]
266
O sentimento de pertencimento a um determinado grupo forma uma identidade
coletiva que distingue, na visão deste veterano, os soldados regulares de outros grupos
sociais, excluindo até os guerrilheiros que participaram da mesma guerra. Não basta ter
lutado. Tem que ter pertencido a uma instituição militar regular para ser reconhecido
como um soldado. A liderança, a obediência e o companheirismo são evocados como
qualidades deste grupo único, que é constituído para lutar, matar ou morrer.
Estes exemplos de obediência e de dedicação ao grupo, para enfrentar o medo e
as dificuldades do front, não significam dizer que a relação entre os soldados era
fundamentada na harmonia. Insubordinações, desacatos às ordens e até agressões aos
oficiais e graduados e entre praças eram cometidas pelos soldados.
Algumas vezes a liderança era imposta. Utilizava-se a hierarquia para o
cumprimento de uma missão e evitar a baixa na moral, sendo a obediência instituída
pela ameaça de sanções ou até a morte. O tenente Piason relata um fato ocorrido numa
localidade próxima ao Soprassasso, onde uma unidade havia debandando duas vezes.
Para manter a posição, o comandante do Batalhão, o Major Gross determina que o
Pelotão do tenente José Gonçalves ocupe a linha, sendo guiado por um sargento da
unidade que debandara.
[...] Chegaram lá à noite, depois de ter passado por nós, à tarde. Aí o
sargento [que tinha debandado] explicou:
___
Como já está tudo certo agora, vou descer.
O Gonçalves então ameaçou:
266
Aspirante Luiz Paulino Bomfim. Apud. MAXIMIANO. op.cit. pp.241-242.
___
Você fica aqui comigo, senão vai morrer.
O sargento ficou aquela noite, correu tudo bem e no dia seguinte retornou.
Naquele perigo, Gonçalves ficou lá e não desceu, não estou bem certo, mas
creio que permaneceu lá quase um mês, naquela tensão. A lição que se
aproveita é que na guerra, sobretudo os Comandantes têm que tomar, por
vezes, atitudes bastante enérgicas, até mesmo drásticas, para que, em última
análise, possa ser cumprida a missão.
Se deixasse um descer, outro e mais outro, acabaria o Pelotão, mesmo que a
maioria não tivesse com essa intenção; mas ver um companheiro recuar ou
mostrar-se amedrontado, gera quase uma psicose coletiva que contagia os
demais. Nessa hora o comandante tem que ser realmente firme, como ele
foi.
267
A guerra não impedia completamente que crimes fossem cometidos pelos
soldados, nem contra a população civil, nem contra militares. Mas havia alguns
instrumentos militares de controle da criminalidade entre suas fileiras. Assim, tínhamos
a Cia de Policia Militar e o Serviço de Justiça Militar. O Conselho Superior de Justiça
Militar (CSJM) da FEB, órgão máximo que regulava os crimes cometidos no front, teve
algumas atuações marcantes devido a algumas sentenças de pena capital, como
registrado na Tabela 2 (ver Anexos), que abarca o período de 5 de novembro de 1944 à
18 de fevereiro de 1945.
O CSJM funcionou em Nápoles até novembro de 1944, quando foi transferido
para o Distrito Federal pelo Ministro da Guerra, Gen. Dutra, que, segundo Castello
Branco, avaliou como dispensável a presença de três generais juízes e mais um como
procurador geral no Teatro de Operações da Itália, podendo este conselho atuar no
Brasil sem o comprometimento de suas atribuições.
268
Ainda segundo o militar:
Durante o tempo em que o CSJM esteve em atividades, realizou 65 sessões,
14 em Nápoles e 51 no Distrito Federal, com um total de 278 julgamentos,
sendo 137 delitos condenados, dos quais dois homicídios dolosos e quatorze
culposos, seis roubos, dezenove furtos, um caso de covardia, dezoito desacatos
a superior, onze desobediências, oito insubordinações, cinco violências contra
superiores, cinco inobservâncias do dever militar, seis abandonos de posto,
trinta e quatro deserções e oito casos sexuais num total de dezesseis [...].
269
Crimes como desacato, desobediência, insubordinações, agressões à superiores,
e abandono de posto são demonstrações de que nem sempre a liderança tinha o efeito
esperado de induzir a tropa à uma conduta obediente e focada contra os inimigos, assim
como os roubos e furtos demonstram que a “camaradagem” entre os soldados tinha suas
limitações. A real proporção e caracterização destes crimes necessitam de mais dados, o
267
PIASON. Op.Cit. pp 173.
268
BRANCO. Op.Cit. pp.337-338
269
Id. ibidem.
que ainda é inviável, pois os Inquéritos Policiais Militares (IPMs), assim como as fichas
médicas dos soldados, estão protegidas por lei até se completar setenta anos do fim da II
Guerra. Segundo Branco e Silveira as deserções, por exemplo, não se tratam de casos
concretos de soldados que abandonaram a FEB, seja para fugir da guerra ou se
entregando ao inimigo, mas de transgressões disciplinares, ou seja, desobediência de
prazos de licença
270
___
as tochas, como visto no Capítulo II.
O homicídio referido na tabela fora perpetrado por dois soldados do QG da
retaguarda, que estupraram uma italiana e mataram um parente dela que tentava impedir
o crime. Os soldados foram condenados a fuzilamento, mas as penas seriam comutadas
para prisão perpetua, pelo presidente. Este indultaria todos os soldados da FEB que
cometeram crimes, inclusive os assassinos, que acabariam cumprindo apenas seis anos
de reclusão.
271
Findando a análise das experiências dos veteranos da FEB sobre as
circunstâncias de combate, ainda me debruçarei sobre outro aspecto de grande
importância: as visões sobre os inimigos.
3.3 Eles, os inimigos
Embora ainda houvesse unidades italianas fieis a República Social Italiana (um
estado fascista submisso a Berlim criado em 1943), a maior parte das tropas que
enfrentaram a FEB era constituída de Divisões alemãs. Essas tropas tinham por objetivo
estratégico reter o máximo de unidades aliadas e bloquear o acesso das mesmas à
Alemanha. Gradativamente essas unidades nazistas foram perdendo terreno e se
deslocando para as regiões de maior latitude, especialmente após a penetração da Linha
Gustav, na Batalha de Monte-Cassino (entre janeiro e maio de 1944). Nos Apeninos,
formaram uma nova linha defensiva, a Linha Gótica, onde se daria alguns dos principais
combates da FEB.
Essas unidades alemãs eram compostas por uma miscelânea de homens, muitos
dos quais eram veteranos do front oriental, outros do Afrika Korps de Rommel, com
idades avançadas e desgastados por anos de combate, sendo que uma parte significativa
270
Ainda segundo Silveira o general Mascarenhas de Moraes comenta que houve um único caso de
deserção
___
de um soldado, filho de alemães que imigraram para o Brasil, que terminou se suicidando na
prisão do acampamento de Luchy Steik, em Saint-Valéry, França. SILVEIRA, Joaquim Xavier da. A FEB
por um soldado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, pp. 110. e BRANCO, op.cit. pp.338.
271
SILVEIRA. Id.Ibidem, pp. 110-111.
já havia sido dispensada para serviços na retaguarda. Entretanto, com o volume de
perdas que a Wehrmacht sofria, foram novamente convocados para o front
___
como era
o caso de soldados da 232ª Divisão de Infantaria, uma das principais adversárias dos
brasileiros na Itália. Mesmo assim, eram unidades experientes, comandadas por generais
habilidosos e equipadas o suficiente para criar uma obstinada resistência, como atesta
Cesar C. Maximiano:
[...] Em algumas ocasiões a FEB se defrontou com tropas de segunda linha,
mas com alguma freqüência os brasileiros se viram frente a frente com o
melhor material humano que o Eixo podia pôr em campo. Contra-ataques e
golpes de mão contra as posições aliadas eram geralmente desferidos por
tropas de montanha ou infantaria ligeira, com treinamento e equipamento
adequados para o combate em terreno acidentado
272
.
Havia uma fama de grandes combatentes ao redor das tropas alemãs, segundo
Maximiano. Os resultados militares de grande impacto dos primeiros anos da guerra
___
a derrota da Polônia em semanas, a invasão e derrota da França, seguida da fuga das
tropas inglesas do continente europeu e o avanço do Afrika Korps até quase o Cairo
___
e
a difusão desses acontecimentos por meio da mídia contribuíram para criar uma mítica
de “melhor soldado do mundo” para as unidades da Wehrmacht
273
. Ainda de acordo
com o historiador paulista, a propaganda oficial dos Aliados também teve sua parcela de
responsabilidade na formação do mito militar sobre os alemães, por meio de revistas,
jornais e panfletos que circulavam pela tropa e pelo home front, que tentavam
demonizar o inimigo e fazê-lo um povo cruel, militarista e belicista
274
.
É reconhecida na literatura militar que a qualidade do armamento alemão era
excepcional, assim como o preparo de muitas de suas unidades , mas isto não era algo
uniforme para todas as frentes de batalha e até mesmo dentro de uma unidade havia
diferenças. Além de que entre os exércitos dos Aliados havia também bons
equipamentos e treinamento
___
especialmente entre os americanos havia um volume de
material, suprimentos e armamentos avassalador, como visto no Capítulo II.
A admiração de alguns soldados brasileiros pelo inimigo se manifestava através
da idéia de aprendizado. O alemão, por ser considerado o melhor soldado, era, portanto,
o melhor professor. Para ser um veterano, um soldado experiente, era necessário estar
em contato com o inimigo, enfrentando-o. O soldado Vicente Pedroso afirma que:
272
MAXIMIANO, Cesar Campiani. “Neve, fogo e montanhas: a experiência brasileira de combate na
Itália (1944/45)”, pp. 354. In:CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor e KRAAY, Hendrik (Orgs). op.cit.
273
Forças Armadas nazistas
274
MAXIMIANO. op.cit. 201-202.
“Aprendemos a ser soldados com o inimigo que é professor. É necessário acreditar
nisso, porque o inimigo faz armadilhas, instala minas, cria obstáculos [...]”. O Sgt
Moacyr Machado também atribui importância ao inimigo como professor da guerra:
“Nós aprendemos muito com eles, aprendemos a combater e a superá-los”
275
. Para este
homem do 6ºRI, a identidade de soldado só é formada a partir da existência do inimigo
e de suas ações. O Sgt Matuk declara sua admiração pelo inimigo: “Creio que o soldado
alemão foi realmente muito bom, talvez o melhor do mundo, porque tinha habilidade,
coragem, senso profissional e visão superior de organizações militares”
276
.
O Sgt Rubens Leite também vê o inimigo como professor da guerra. Quando o
soldado brasileiro aprende a fazer a guerra se iguala ao alemão, não só em pericia, mas
também em virtudes morais:
Nós brasileiros, fizemos o melhor possível. Saímos daqui desconhecendo
até o armamento e lá enfrentamos os alemães. Chegamos inseguros. Eles tinha
uma matraca que fazia um barulho igual ao de uma metralhadora
“ta,tá,ta,tá”,que usavam principalmente à noite, deixando-nos zonzos. Mas
fomos buscar a matraca; logo, logo, a mesma perdeu seu valor. Nós
aprendemos muito com eles e nos igualamos em bravura e audácia.
277
Mais a frente ele insiste na idéia do inimigo experiente como professor do
soldado:
Volto, nesse final de minha entrevista, ao campo de batalha para relembrar
que os alemães, por todo tempo, nos fizeram aprender muito, fizeram-nos
sentir que estávamos á altura deles. Lembro-me que a nossa grande escola foi a
patrulha, que, como disse, é para o infante mais temível que o ataque. Foi, nas
patrulhas, principalmente no inverno, que o soldado brasileiro encontrou, sem
dúvida nenhuma, a sua maior escola, cujos ensinamentos permitiram-lhe
ombrear-se com o inimigo
___
veterano, ardiloso e profissional.
278
Embora alguns depoimentos evoquem o engajamento na guerra devido aos
torpedeamentos de navios mercantes brasileiros, dando a idéia de um forte patriotismo,
o alcance dessa razão é questionável. A circulação de noticias nos centros urbanos, seja
por jornais ou pelo rádio, pode ter contribuído para a formação de uma idéia da guerra e
do inimigo para uma parcela dos convocados e os voluntários da FEB, mas para a
maioria de seus homens
___
vindos de pequenas cidades do interior de um país
predominantemente rural e com baixo grau de instrução médio
___
isso se torna pouco
275
Sgt. Moacyr Machado Barbosa. op.cit. pp. 332.
276
Sgt. Oswaldo Matuk. op.cit. pp. 257.
277
Sgt Rubens Leite de Andrade. op.cit. pp.344.
278
Id.Ibidem. pp. 346.
crível
279
. A propaganda Aliada oficial durante a guerra falava de luta pela democracia,
assim como as crônicas e matérias dos correspondentes de guerra
___
que acabavam
fazendo parte desse esforço oficial ao tentarem motivar esses soldados contra os
alemães
___
mas este argumento também teria um alcance limitado
280
, devido aos
motivos já citados, além de que seria contraproducente para o próprio governo do
Estado Novo instigar esta ideologia no seio de uma tropa.
Mas então, o que motivava os soldados a lutarem contra este inimigo? Para
César c. Maximiano a motivação só surgiu quando começou realmente os combates,
após se formar um “espírito de grupo” nas pequenas unidades da FEB
281
. Lutar para
garantir a integridade do grupo, como ocorreu com as estratégias contra o medo.
Embora este argumento tenha grande validade, é necessário abordar com mais
profundidade a questão da motivação contra os inimigos entre os soldados brasileiros.
O Prof. Dr. Dennison de Oliveira, da UFPR, credita ao contato com a população
italiana outro fator, além do “espírito de grupo”, de motivação para a guerra. Ao
tomarem conhecimento de determinadas ações de tropas de ocupação nazistas, que
cometiam crimes, como saques e execuções, contra a população civil haveria uma
empatia com a mesma e, por conseguinte, uma antipatia generalizada das forças alemãs.
De importância muito maior foi o contato pessoal de nossos combatentes
com os civis italianos [...] vítimas da política de deportação forçada da
população civil ou represálias contra as atividades guerrilheiras. À medida que
avançavam rumo ao norte da Itália, nossos pracinhas viam e ouviam os relatos
de massacres, seqüestros em massa, estupros e pilhagens generalizados por
parte das tropas de ocupação alemãs, o que certamente contrastava com a sua
predisposição para se solidarizar com os civis italianos.
282
Mesmo assim estes fatores seriam insuficientes por si só para convencer o
soldado brasileiro a matar. Um dos principais elementos de desgaste emocional da
guerra era a possibilidade de ter que matar outro ser humano, mesmo sendo o inimigo.
Daí uma das principais estratégias psicológicas dos exércitos era desumanizar o outro,
transformá-lo numa categoria sub-humana, algo bem conhecido dentro da ideologia
279
ARRUDA, Demócrito C. de. “A nossa participação na I e II Guerras Mundiais” In: Depoimento de
oficias da reserva sobre a FEB. São Paulo: Ipê, 1949, pp. 39.
280
MAXIMIANO. op.cit. 199-200. Ver também OLIVEIRA, Dennison. “Poder militar e identidade de
grupo na Segunda Guerra Mundial: A experiência histórica da psiquiatria militar brasileira”. In: História:
Questões & Debates, Editora da UFPR, Curitiba, n. 35, 2001, pp. 128.
281
MAXIAMIANO. op.cit. pp. 200.
282
OLIVEIRA. op.cit. pp. 128-129.
racista nazista e que também foi aplicado contra a FEB
___
a propaganda nazista feita
dentro das fileiras alemãs falava que o soldado negro era cruel e implacável
283
.
Para o Prof. Oliveira, existem alguns fortes elementos comuns à cultura
ocidental que condicionam certos comportamentos no campo de batalha:
O condicionamento de seres humanos para a batalha envolve um duplo
desafio: anular pelo menos em parte os mecanismos conscientes e
inconscientes de preservação da própria existência dos indivíduos e, ao mesmo
tempo, suspender – e apenas temporariamente – a principal componente do
código ético do homem ocidental: a concepção firmemente arraigada de que
matar o seu semelhante é errado. Gerar um comportamento agressivo requer
tanto a anulação funcional das defesas do indivíduo contra a autodestruição
quanto a suspensão (durante o breve período de tempo de sua vida em que
presta serviço militar em tempo de guerra) dos tabus religiosos (“não
matarás”), jurídicos (assassinato é invariavelmente crime na civilização
ocidental) e éticos (que associa o assassinato ao roubo perpétuo daquilo que
cada indivíduo tem de mais precioso e absolutamente insubstituível: a própria
vida).
284
A superação desses tabus não pode ser relacionada a um único e exclusivo fator.
Como citado anteriormente o sentimento de grupo exercia forte influência, mas outros
elementos podem ser elencados. O alheamento à certos acontecimentos do front, assim
como nas estratégias para lidar com o medo e a morte de colegas, também eram
aplicados ao matar. Assim vemos a utilização de recursos retóricos para amenizar o ato
de matar, sendo muito comum sua analogia a “limpar”. “Limpava-se as defesas
alemães”, “limpava-se o terreno”.
Completando esses fatores motivadores havia a valorização da coragem e as
condecorações. O comportamento esperado para aqueles que controlavam o medo era
seguir em frente e encarar o inimigo com seu grupo. Como reforço positivo para estas
ações havia o elemento simbólico da condecoração. Nas organizações militares assim
como a covardia é condenada e punida publicamente a coragem é reconhecida e
incentivada. Citações em Boletins, medalhas de variados graus de hierarquia, folgas e
até promoções eram destinadas a indivíduos que se destacavam no front
___
destaque
este que muitas vezes incluía matar inimigos. Vicente Gratagliano, que foi condecorado
com a Cruz de Combate de 1ª Classe e a Silver Star [do Exército Norte-Americano],
relata sua premiação após ter se destacado em combate por envolver um ninho de
metralhadora, por iniciativa própria e apenas acompanhado de seu municiador,
capturando sua guarnição, permitindo com isso o avanço do seu pelotão:
283
CAMPIANI. op.cit. pp. 207.
284
OLIVEIRA. op.cit. pp. 126.
Depois o Major e o Tenente reuniram o pessoal, fizeram uma explanação, e
falaram sobre os homens que se destacaram. O tenente chegou peto de mim e
disse:
___
Gratagliano, você vai receber oito dias de licença, pode escolher para
onde você quer ir, para Roma ou para Florença.
Eu não fazia muita questão e respondi:
___
A Tenente, eu fico aqui mesmo com os meus companheiros.
Ele disse:
___
Não, você vai! O Comando do Batalhão já citou o seu nome e você vai.
E então fui conhecer Roma, Basílica de São Pedro, o Coliseu e muito mais.
[...]
Eu me orgulho da medalha que recebi do V Exército Americano e da
Medalha de campanha.
285
Para a maioria dos homens a raiva contra o inimigo era circunstancial. A
violência dos combates, a perda de amigos e intensa e constante possibilidade de ser
morto ou dolorosamente mutilado provocam reações extremadas, a priori, contra os
adversários, portanto encontramos trechos de narrativas vociferantes em relação ao
inimigo, como narrou à mim o Sd. Vicente Alves:
Não, a raiva não deixa de não ter. Você já pensou? Um dos colegas da
gente, sangrando, por exemplo, o que eu falo, Vadinho, o do Mercado Modelo,
que tem aquele negócio “Lembranças da Bahia”, ele recebeu, a granada entrou
“aqui” [toca o alto da coxa direita, quase na cintura] e tiraram aqui na perna
[toca um pouco acima do joelho direito], “ele” [o estilhaço] correu e desceu.
Ele até hoje “puxa” da perna, do estilhaço. [A raiva surgia quando acertavam
os brasileiros] Era! Quando mata uns aos outros a raiva cria e a gente....a
conversa de homem de guerra é “antes de morrer mata dez”, ele sabe que vai
morrer, mas vai pelejar pra matar dez!Tinha na prática, [na] prática mesmo! Se
você pudesse matar, você matava mermo [sic]!Não, digo...do alemão não se
sabe. O alemão era pra destruir tudo! Tanto sim que eles [os alemães] diziam
que a gente ia chegar nos boletins dele que a gente ia chegar, como é o
nome......motivado e o governo não ia lhe dar emprego, você iria vender
amendoim....tudo! Eles insultavam pelos boletins! Quando ele tinha tempo de
jogar....
286
285
Vicente Gratagliano. op.cit. pp. 290.
286
“Boletins” ao qual o depoente se refere eram panfletos que os exércitos de ambos os lados produziam e
jogavam contra o adversário, no intuito de baixar seu moral e provocar deserções. O Sd. Vicente Alves do
Nascimento. op.cit.
Oswaldo Matuk narra sua reação ao receber um elogio num boletim de sua
Companhia:
O meu Capitão escreveu um elogio individual, entre os outros. Mas esses
dois foram os principais:
Marchou com sua Companhia na vanguarda da coluna que atacou
Collechio, terminando a luta com a rendição do inimigo e a limpeza do
terreno. Nesse memorável combate sua Companhia teve uma ação destacada
devendo o êxito que alcançou, em última análise, a seu espírito de sacrifício,
sangue frio e coragem”.
E isso para mim é uma promoção a Marechal. O outro é o seguinte:
No desempenho de suas funções, atingindo seus objetivos, ao sucesso de
seu grupo bem conduzido, deve à Companhia o êxito que alcançou”.
287
Ter raiva do adversário é algo licito durante o combate, é algo natural, esperado,
a “raiva cria” do medo que a guerra trás e “antes de morrer” se quer “matar dez”. Este
discurso era incorporado à imagem que se faz do próprio combatente, era a “conversa
do homem de guerra”.
Mas essas ações são condenadas, primeiramente de forma moral e
posteriormente de forma criminal, caso sejam praticadas fora dos limites que o combate
trás, por isso encontramos relatos de um entendimento mais reflexivo, onde se
compreende que a guerra não é necessariamente culpa imediata do soldado adversário.
O próprio soldado Vicente deixa este raciocínio visível em seu discurso quando, mais a
frente na entrevista fala que “[...] Então tem aquele prazer de dizer....depois, até hoje
tem gente que tem raiva do alemão ai, que é ex-combatente. Mas a guerra é assim
mesmo, cada um defende a sua nação
288
”. O passo seguinte na construção dessa lógica
é a isenção da culpa do soldado adversário enquanto individuo. Neste momento a guerra
deixa de ser um embate entre homens, mas entre Estados e seus meios, ou seja, os
exércitos. Assim o que temos é uma violência mediada pelas leis, pelos códigos
militares e pela cultura.
A ausência de um elemento ideológico forte, como o nacionalismo ou a visão do
alemão como um inimigo histórico, entre a tropa brasileira contribui para a formação de
um comportamento limitante no matar. Alvejar o inimigo, para a maioria dos soldados,
287
Sgt. Oswaldo Matuk. op.cit. pp. 258.
288
Sd. Vicente Alves do Nascimento.
só é licito em circunstâncias de combate. O Cb Raul Carlos dos Santos nos fornece um
exemplo desse comportamento frente a inimigos vencidos:
Eu vinha, e nossos companheiros, uns dois soldados, levando prisioneiros,
foi em Vignola. Vinham dois soldados de outra companhia, trazendo eles. Uns
10 ou 12 prisioneiros assim. Eles vão levando assim até um lugar para a PE
(Policia do Exército) levar. Onde, naquela época no fim da guerra, tinha um
monte de rapazes, 18, 20 anos, todo mundo vestido, de metralhadora na mão.
Aí queriam tomar os prisioneiros. E eu ia passando bem de junto. Ai eu achei
aquilo assim: tinham 4 soldados passando do outro lado levando eles. Eu digo:
‘Não! Não! Não entrega nenhum!’. [Se pegassem os prisioneiros] Matavam
tudo!Olha! Eles chegaram, um bloco [os partigiani]! Eles vinham enfeitados, a
cidade já estava vencida, tínhamos tomado ela. Um era russo, outro era
polonês, outro não sei o quê. [os prisioneiros] E todos diziam que se
entregassem eles, levariam para um canto, todos seriam mortos.
Já viu pegar um inimigo já vencido pra matar depois? Chamei o sd. Dante e
disse pra dar um fim com aquilo. Ele gritava, ‘sai daqui’, e balança eles,
balançava metralhadora. E os prisioneiros começaram a agradecer o que nos
fizemos.
Não! Não era pra fazer isso [matar prisioneiros]. Nós temos uma história
muito feia por causa disso e quem sabia não queria saber deles. Não, não vou
contar quem eram eles.
289
O inimigo vencido não era mais um combatente. Pode-se matar o outro, mas sob
certas circunstâncias, o que sugere “[...] que a guerra ainda é, de algum modo, uma
atividade regida por normas, um universo de permissões e proibições [...]
290
”. Normas
são criadas para limitar a carnificina à aqueles que estão em batalha, o que mostra que
quando se matava alguém engajado em combate em condições mais ou menos
equilibradas não havia culpa, pelo menos não tanto quanto contra alguém desarmado ou
rendido. O Cb. Raul demonstra isso ao condenar a morte dos soldados vencidos. Ele
poderia ter feito diferente, poderia ter permitido aos partigiani executarem-nos, mas
não, era um ato condenado pelos outros soldados, e quem fazia “ninguém queria saber
mais deles”. As normas que atuam sobre quem se pode matar e ser morto delimitam um
universo entre combatentes. Matar alguém de fora dessa categoria não é licito.
“Somente se pode distinguir a guerra do assassinato e do massacre quando estão
estipuladas as restrições quanto ao alcance da batalha
291
”.
O soldado Vicente Pedroso compartilha com o Cb Raul a aversão à matar
inimigos rendidos:
289
O Cb. Raul Carlos dos Santos. op.cit.
290
WALZER, Michael. Guerras justas e injustas: Uma argumentação moral com exemplos históricos.
São Paulo: Martins Fontes, 2003, pp pp.61.
291
WALZER. Id Ibidem. pp. 71.
[...] Vi um pano branco dançando no ar, amarrado em um pedaço de pau
qualquer. Conclui que estavam se entregando. Lá debaixo gritaram: “Dovie a
sé Comando”, num italiano misturado com alemão. [...] Quando ele falou
comando, entendemos que estavam se entregando. Pouco antes, com o fuzil
metralhadora estava pronto para atirar neles: tive uma ânsia de vômito
tremenda, os meus pés esfriaram e eu me senti mal. Falei para o meu sargento:
“Estou me sentindo mal.” E ele disse: “Vai ao PC, toma um remédio e se
melhorar você volta.”
[...]
Na verdade sofri um choque emocional porque iria matar um soldado que
estava se entregando. E não há coisa pior para o soldado, do que matar outro
que esta se entregando, é uma lei natural, humana. O quem tem coração muito
ruim num momento desses fuzila, porque o outro já está neutralizado, não quer
mais lutar.
292
A morte de inimigos rendidos seria uma injustiça. O soldado fica tão abalado
com essa possibilidade que somatiza o stress em queda de temperatura e vômitos, indo
para a o Posto de Comando para se recompor emocionalmente.
Mesmo com estes pensamentos anteriormente citados, mortes de inimigos no ato
da rendição ocorreram com a FEB. O Sd Vicente Alves relata um desses casos:
Eu tinha um camarada que ele trabalhava ai na “cidade”, ele era mecânico,
Brito. Esse Brito fez, como era o nome, uma promessa que o primeiro alemão
que ele visse ele matava. Ah! Não foi fácil! O Brito foi um dia lá na “coisa” pra
ver o povo. A guerra já tava entregue. E ele não matou um gringo? Meteu-lhe a
faca num gringo? E foi um rebuliço no presídio infeliz! O alemão ia pro
presídio. Descendo em fila, em grupos de milhares de elementos pra aqueles
lugares cercados de “coisa” pelos brasileiros. Ele fez isso e foi um rebuliço
infeliz!
293
Interpelado pelos oficias que o detiveram o soldado “Brito” se justificaria
dizendo a um major que “[...] lá na hora do negócio a ordem era matar [...]”. Mas esta
atitude nos mostra que a agressão gratuita contra o inimigo rendido também era
condenável pela maioria da tropa na fala seguinte do Sd. Vicente, ao explicitar a
justificativa do “Brito”: “[...] Mas a gente que queria viver, era pessoa humana, que
gostava de tudo, a gente não quis fazer isso
294
”. A agressão foi vista como algo errado,
algo desumano, quase um impedimento para quem “queria viver”...uma vida tranqüila
com sua consciência. Como no caso do Sd Vicente pedroso, matar um inimigo rendido
era desumano.
292
Vicente Pedroso da Cruz. op.cit. pp. 309-310.
293
Vicente Alves do Nascimento.
294
Id.Ibidem.
Devido aos soldados brasileiros tanto rejeitarem matar inimigos rendidos quanto
realizarem este ato, Maximiano considera “[...] iníqua a tentativa de estabelecer uma
regra tocante às atitudes partidas de brasileiros em relação aos inimigos, seja em
combate ou quando feitos prisioneiros”
295
. Acho exagerada essa afirmação.
O soldado não é uma máquina que se liga ou desliga de acordo com as
necessidades de seus comandantes. É difícil fazê-los, muitas vezes, matar, e assim como
fazê-los parar de matar. A excitação ou medo que o combate provoca leva muitos a
ações extremadas, circunstâncias onde a reação do soldado é explicada pelo “calor da
batalha”. Mesmo assim alguns comportamentos em relação ao inimigo, especialmente
aqueles rendidos, se tornam o padrão, o comum. Como dito anteriormente, o soldado
brasileiro não tinha um sentimento motivador intenso para matar o inimigo. Havia um
encadeamento de fatores, coação e persuasão, para fazer o soldado lutar e matar. Mas
quando se apresentavam oportunidades para parar, a maioria absoluta dos soldados o
fazia.
O próprio Maximiano reconhece que os brasileiros desenvolviam com os
soldados alemães, muitas vezes logo após a rendição, ainda no front, um sentimento de
proximidade por terem dividido a experiência da guerra, mesmo estando em lados
opostos.
296
Era reconhecido no outro uma condição comum, a de combatente pela
pátria
297
. Matar o inimigo era um ato impessoal, para muitos, limitado às situações do
combate.
298
O que vemos muitas vezes é o campo de tensão entre memórias. Maurice
Halbwachs atenta que a formação de uma memória coletiva esta diretamente
relacionada a identidades
299
. Em eventos históricos como a FEB a diversidade de
testemunhos leva ao risco de que as versões apresentadas pelos sujeitos sejam “[...]
percebidas como provas da inautenticidade de todos os fatos relacionados”
300
. O que
acontece com a FEB é que existe uma disputa entre memória oficial, ligada às visões do
Exército, do Estado e das Associações de Veteranos, e o que Pollak chama de memória
subterrânea. Esta pode ser entendida como:
295
MAXIMIANO. op.cit. pp.229.
296
MAXIMIANO. op.cit. pp. 241.
297
Id.Ibidem. pp. 243-244.
298
Id.Ibidem. pp. 245.
299
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Edições Vértice, 1990.
300
POLLAK. op.cit. pp.10.
A fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável,
separa, em nossos exemplos, uma memória coletiva subterrânea da sociedade
civil dominada ou de grupos específicos, de uma memória coletiva organizada
que resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o Estado desejam
passar e impor.
301
Assim, quando se abre espaço para que diversos indivíduos que participaram da
guerra contem suas histórias, temos a possibilidade de encontrar exemplos dissonantes
das versões popularizadas e não conflituosas sobre o evento. Outro argumento para o
surgimento dessas versões pouco conhecidas nos últimos anos é que há uma
necessidade de expor acontecimentos intensos, experiências individuais marcantes, que
não podem mais ser contidas. A percepção da morte, muitos destes veteranos, compele
ao dialogo e a exposição de fatos e opiniões antes contidas. As memórias tamm são
formadas por silêncios e esquecimentos, intencionais ou não, mas nem sempre o tempo
trabalha contra as memórias subterrâneas. Ainda segundo Pollak o tempo de silêncio
pode “[...] reforçar a amargura, o ressentimento e o ódio dos dominados [...]
302
”.
No caso dos inimigos, o que pode ser percebido nos veteranos da FEB é um
abrandamento dos sentimentos que impulsionavam ao combate, ao longo das décadas
após o conflito
___
lembrando que esses sentimentos já eram circunstanciais. O que
aconteceu foi uma expansão do discurso de admiração e respeito, mesmo assim, não
encontrei nos depoimentos e documentos de época elementos que impedissem enxergar
a tendência um comportamento mais ou menos uniforme quanto a condenação da morte
de inimigos fora das circunstâncias de combate. O soldado Attilio Camperoni afirma:
“A pior coisa da guerra é, eu não te conheço, você não me fez mal, e eu tenho que te
matar senão você me mata. Pra falar a verdade, eu sentia dó dos prisioneiros. Quando o
cara era prisioneiro, para mim ele deixava de ser inimigo”
303
.
O fim da campanha da FEB é marcado pela rendição de uma grande unidade
inimiga: a 148ª Divisão de Infantaria alemã. Entre os dias 28 e 30 de abril de 1944, os
batalhões do 6ºRI e o Esquadrão de Reconhecimento iniciariam manobras de cerco à
grande unidade alemã, nas cercanias de Fornovo. Após resistir a todas as tentativas de
ruptura do cerco, o comando brasileiro receberia uma comitiva alemã que aceitava a
capitulação incondicional. Neste momento descobria-se que, além da 148
a
DI, havia
elementos remanescentes da 90
a
Divisão Blindada alemã e da Divisão de Infantaria
“Bersaglieri Itália”, que se rendia junto com seu general Mario Carloni. As 18hr do dia
301
Id.Ibidem. pp.8.
302
POLLAK. op.cit. pp. 9
303
Attilio Camperoni. Apud. CAMPIANI. op.cit. pp. 240.
30 terminava a rendição, com a apresentação do general Otto Fretter Pico e seu Estado-
Maior: a FEB capturara 14.777 homens, 4 mil cavalos, 80 canhões de todos os calibres
e mais 1.500 viaturas, além de munições e material de serviço. Este fato foi registrado
por vários veteranos, que demonstraram admiração pelo inimigo:
Descemos até a posição dos alemães, em Fornovo e, ao chegarmos lá, já
estavam todos em forma. Destaco a disciplina do soldado alemão. Não
largavam as armas antes do cumprimento. O Tenente chamou todos eles que
faziam o gesto característico e exclamavam:
___
Heil Hilter!
Eram mais de 14 horas e estávamos com um Batalhão, apenas na região. De
todos os combates que travamos, o melhor de todos para o Exército Brasileiro,
a maior gloria da história do nosso Exército foi essa, onde com apenas um
Batalhão rendemos toda uma Divisão alemã. Eram mais de 14 mil homens e
nós, com menos de mil, conseguimos fazer que se rendessem.
304
Vicente Pedroso da Cruz também manifesta sua admiração pelo alemão durante
a rendição da grande unidade inimiga: “[...] Uma parte foi presa pela nossa área, em
Collechio. Presenciei a Infantaria deles marchando em ordem, cantando, vieram se
entregar com as roupas rotas e tudo, mas mantendo a dignidade. Fiquei até emocionado.
Aí se vê o que é o soldado”.
305
Mas há casos únicos de relações com o inimigo que necessitam de abordagens
especificas para o melhor entendimento dos diversos aspectos e circunstâncias dos
combates entre brasileiros e alemães durante II Guerra.
3.3.2 –
“Um grupo especial”
Franco-atirador. Essa palavra era suficiente para provocar pânico quase que em
qualquer front durante a II Guerra Mundial. Este combatente tinha, normalmente, um
treinamento e equipamentos específicos para sua função. Esta consistia, basicamente,
em ser um especialista em tiro de precisão. Mas não bastava ser apenas um exímio
atirador: deveria ter excelente condicionamento físico e mental, para suportar horas, as
vezes dias, sobre grandes riscos e stress, até que surgisse a condição ideal de tiro, além
304
A manobra de envolvimento da unidade alemã foi executada pelos três Batalhões do 6º RI e pelo
Esquadrão de Reconhecimento da FEB, com o apoio de outras unidades do 11ºRI e 1ºRI. Vicente
Gratagliano. op.cit. pp. 295.
305
Vicente Pedroso da Cruz. op.cit.pp. 313.
de ser perito em camuflagem e conhecedor dos uniformes, insígnias, armas e veículos
dos exércitos adversários.
O emprego tático deste soldado era bem variado, pois poderia ser utilizado
como vanguarda, para coletar informações, fustigar as unidades adversárias que
recuavam, ou atrás das linhas inimigas, também coletando dados ou retardando o
avanço das tropas opositoras. Os principais exércitos envolvidos no último conflito
mundial tinham soldados treinados para esta função. Mas o principal resultado deste
tipo de ação se dava no campo psicológico.
Era comum no calor do combate, durante um assalto a uma posição inimiga ou
durante a defesa das próprias linhas, o soldado desconhecer de onde vinham os tiros do
adversário, aliás, muitas vezes não se sabia nem mesmo se seus próprios disparos foram
responsáveis pelo abate do outro.
[...] A gente faz pontaria a 100m, dispara a arma e, às vezes, há um ou dois
que a gente não sabe se atingiu, porque não foi só você que atirou. Seu
companheiro também atirou, tanto que, em Santa Maria, um alemão atirava em
nós e nós atirávamos nele, inclusive a aviação atirava também. Quando
chegamos perto El estava sentado, com um buraco na testa, feito por
metralhadora. Então, não foi ninguém de fuzil. Não é tão fácil como a guerra
da televisão.
306
Mas estas dúvidas ocorriam, normalmente, nas circunstâncias citadas
anteriormente, onde muitos soldados atiravam ao mesmo tempo. No caso dos franco-
atiradores o efeito psicológico se dava justamente pelo fato do desconhecimento de
onde partia o tiro. Isto criava grande tensão na tropa, além de prejudicar o avanço das
unidades, as vezes por horas. Qualquer um poderia ser alvejado, a qualquer hora. É
nessa imprevisibilidade da ação de um atirador desconhecido, localizado muitas vezes à
centenas de metros, que residia o grande poder do franco-atirador.
As cidades destruídas eram terreno ideal para a ação desses atiradores de elite.
Os escombros formavam excelente cobertura e forçavam o deslocamento das tropas
adversárias em pequenas unidades, normalmente sem apoio de blindados, expostas. Os
alvos preferenciais eram oficiais e lideres de grupos de combate. A morte de um
sargento líder de uma patrulha, por exemplo, poderia significar a destruição ou captura
de todo o grupo.
Nas posições alemãs enfrentadas pelos soldados da FEB havia atiradores de
elite, que geravam um perigo a mais. Entre os oficias brasileiros mortos em ação, o
306
MATUK. Op. Cit. pp.256-257.
historiador Cesar C. Maximiano cita pelo menos um caso atribuído a ação de franco-
atirador alemão, que teria alvejado um tenente na boca
307
. O tenente Piason relata o
perigo vindo do alto do monte Soprassasso: “Os nossos soldados não podiam nem tirar
a cabeça fora dos abrigos porque eram mortos por atiradores de tocaia que lá de cima
dominavam toda região”
308
.
Para se protegerem deste tipo de ação os soldados desenvolviam uma série de
táticas, como evitar continências em público e até mesmo esconder divisas ou qualquer
outro indicativo de patente.
Uma ocasião estava próximo à base do [monte] Belvedere, passeando um
pouco. Abaixo, havia quatro tanques americanos parados. Começou um
bombardeio. Vi, então, um soldado pequenino correr para baixo de um tanque.
Fiz o mesmo. Quando cheguei, dei um tapinha nas costas do soldado, dizendo-
lhe: “Companheiro, a cobra está fumando lá fora”. Ele virou-se para mim e
disse: “Essa guerra é para sargento”. Eu o reconheci, era o general
Mascarenhas de Moraes. Não usava estrelas, como eu não usava divisas. [...]
309
Barro era passado nas divisas ou estrelas do capacete, além de outros
subterfúgios. O importante era não denunciar a patente para o atirador inimigo. Como
visto no depoimento acima, até mesmo o comandante da FEB temia a ação de franco-
atiradores. Mas não só por meio de ações defensivas se agia contra este perigo.
Podemos encontrar relatos, especialmente entre tropas norte-americanas, do uso
de artilharia com fogo direto contra edifícios onde snipers
310
estavam alojados. Os
russos também demoliam prédios inteiros para eliminar a ação destes atiradores. Cargas
explosivas eram colocadas no edifício, fazendo-o vir abaixo com os inimigos em seu
interior. Contudo nem sempre era possível utilizar de ações tão drásticas, especialmente
em áreas habitadas por civis.
Como citado antes, o cabo “X” serviu na FEB como MP, mas durante as
entrevistas ele revelaria que, depois de um determinado período como policial, foi
selecionado para integrar um “grupo especial”, destinado à perseguição e extermínio de
franco-atiradores alemães que atuavam dentro das linhas brasileiras e aliadas.
307
MAXIMIANO. Op. Cit. pp. 326.
308
PIASON. Op. Cit. pp. 172.
309
BARBOSA. Op. Cit. pp. 331.
310
Este termo inglês surgiu durante a Guerra de Secessão dos EUA (1861-1865), quando os atiradores de
elite provavam sua habilidade ao acertar uma pequena ave chamada “Snipe”. A história desse combatente
especializado remonta ao século XVIII, durante a Guerras Napoleônicas (1799-1815). Para mais detalhes
quanto ao emprego tático, definições e armamentos dos franco-atiradores
ver:http://world.guns.ru/sniper/sn00-e.htm
Era um grupo de 25 homens. E então ...”você tem q se apresentar a tal hora
ao major tal”. Um major brasileiro. Então me apresentei e já tinham dois lá,
brasileiros. “Sente aqui, pererê, pá”. Sentei e ... “nós estamos selecionando um
grupo de 25 homens especiais e esse grupo especial vai atuar numa área muito
delicada, não vou entrar em detalhes, mas é uma área muito delicada e não
pode ser comentada. Tanto é assim que vocês não sabem e nem eu sei qual o
serviço, mas não pode transpirar porque é uma determinação, digamos uma
ordem que não pode ser ventilada ou comentada”. Isso era aceito e aceito.
311
O grupo seria formado entre soldados experientes, segundo o cabo, todos
policiais e com grande habilidade no manejo do armamento. O sigilo se dava
primeiramente para garantir a o sucesso das operações, evitando que o inimigo soubesse
da existência de tal grupo especializado e, em segundo lugar, possivelmente, pelo fato
de que esta unidade não fazia prisioneiros.
“Vocês vão agir, com grupos americanos, na hora H vocês vão saber, mas é
para acabar com os franco-atiradores. É perigoso demais, eles não perdoam,
não tem prisioneiros e nós também não fazemos prisioneiros”. Aí fiquei
sabendo de como é que ia agir. Sem prisioneiros.
312
Normalmente era esperado que soldados cercados e rendidos fossem poupados,
aprisionados e tivessem sua integridade física garantida. O fato de não fazer prisioneiros
poderia criar uma imagem ruim, talvez até de ilegalidade, caso fosse veiculado fora dos
meios militares o procedimento desta unidade “anti-atirador”. Mas ambas as ações
___
tanto dos snipers alemães quanto do grupo aliado
___
não podem ser classificadas como
convencionais. Primeiro por serem combates assimétricos, atrás das linhas de combate
e, no caso do “grupo especial”, feito por uma unidade que não consta nos registros da
FEB. O cabo atribui outra razão para o fato de não serem feitos prisioneiros:
Então você não podia fazer prisioneiros, pois eles poderiam sair com um
lenço branco e você se expor. Era um homem morto. Um ou dois. Você não
podia atirar sem saber o poder de fogo do outro, porque as vezes ele provocava
para você reagir, porque reagindo ele sabia onde você estava e se mais alguém
do grupo atirasse eles sabiam exatamente onde todos estavam.
313
311
Realizei duas seções de entrevistas com este veterano, num total de quase 5 horas de gravações, mas
boa pare destas foram perdidas devido a problemas técnicos. Infelizmente não foi possível continuar o
trabalho pois a esposa do depoente adoentara impedindo que o mesmo disponibilizasse tempo para a
pesquisa. As informações aqui transmitidas são parte do material recuperado dessas gravações e de
anotações produzidas durante os encontros. Cb “X”. Op. Cit.
312
Id.Ibidem.
313
Cabo “X”. Op.cit.
Algumas vezes os franco-atiradores agiam em duplas ou trios, cruzando o fogo
de suas armas. Quando um era exposto ou abatido os outros sabiam de onde vieram os
tiros e poderiam mudar de posição, tanto para uma melhor defesa quanto para um
ataque eficiente. De qualquer forma, ao agirem atrás das linhas inimigas, os franco-
atiradores estavam sujeitos a execução imediata, como fala Walzer sobre a ação de
agentes e tropas especiais que fustigavam o inimigo pela retaguarda: “É consenso geral
que esses agentes não possuem nenhum direito de guerra, mesmo que sua causa seja
justa. Eles conhecem os riscos que seus esforços pressupõem [...]”
314
. A ação atrás das
linhas inimigas era passível de pouca ou nenhuma tolerância, como ocorreu com as
tropas do oficial SS Otto Skorzeny. A unidade deste oficial nazista sabotou e atacou as
forças aliadas, cortando linhas de comunicação e criando pânico entre as forças de
retaguarda, durante a Ofensiva das Ardenas (16 de dezembro de 1944 – 18 de janeiro de
1945), última operação significativa perpetrada pelos alemães. Os soldados de Skorzeny
capturados foram considerados criminosos e sumariamente fuzilados
315
.
A particularidade deste grupo de combate aos franco-atiradores criava uma
separação de seus membros em relação ao resto dos soldados da FEB. Os períodos de
descanso eram curtos e, possivelmente, os homens se sentiam deslocados junto aos
outros soldados: “Não [tínhamos folgas suficientes] para viajar, ninguém fazia. Tinham
algum tempo de descanso. Conversava, via alguma coisa. Mas nunca se misturando, só
como nosso pessoal mesmo”
316
. Segundo os relatos do cabo X as missões poderiam
durar dias, onde o grupo dormia em prédios abandonados, cobrindo grandes áreas nas
cidades não totalmente pacificadas.
Este grupo não é mencionado na literatura da Força Expedicionária. O cabo “X”
me confessou que esta parte da atuação dele na guerra é desconhecida pelos veteranos,
familiares e até mesmo de outras entrevistas que concedeu, daí o sigilo de sua
identidade. Encontramos neste caso outro exemplo do que Pollak chama de memória
subterrânea, especialmente porque a idéia de um grupo que não fazia prisioneiros
destoava da imagem que os expedicionários formaram de clementes com o inimigo.
Mesmo assim, esta “unidade de caça” formava um caso aparte. Era uma situação
muito específica o combate aos franco-atiradores. Mas é claro que esta ação era fruto de
uma escalada de táticas e ações de ambos os lados para obter o máximo de sucessos. No
314
WALZER. Op. Cit. pp. 313.
315
CARTIER. Op. Cit. pp. 660.
316
Cabo “X”. Op. Cit.
caso dos alemães a utilização de subterfúgios e ações desesperadas são mais constantes,
não por qualquer característica especifica do exército alemão, mas devido ao fato de
que, a partir do segundo semestre de 1944, a derrota era irreversível. De qualquer forma,
em outras circunstâncias a execução de prisioneiros continua sendo condenável
legalmente, pelas convenções de guerra, e moralmente
317
.
A falta de outras fontes inviabiliza, por enquanto, a obtenção de mais detalhes e
análises mais profundas
___
existe várias dúvidas, como por exemplo, quem organizou
este grupo
___
mas, de qualquer forma, acrescenta novos dados à campanha brasileira na
II Guerra Mundial.
317
WALZER. Op. Cit.
IV
Epilogo: de volta pra casa
“Por mais terras que eu percorra,
não permita Deus que eu morra,
sem que volte para lá.”
Canção do expedicionário - Guilherme de Almeida e Spartaco Rossi
8 de maio de 1945. Gritos ininteligíveis ecoam nas vilas e estradas, juntamente
com tiros para o ar. Aos poucos é possível distinguir algo inacreditável: La guerra
finita! La guerra finita! Gritam os italianos. Depois de quase um ano de sustos,
surpresas, angustias, medo, miséria, fartura, heroísmos, covardias, risos e lagrimas.
Tudo acabou. Podemos voltar para casa! Foi um turbilhão de pensamentos na mente do
mestre pracinha, que havia se tornado veterano.
Italianos e alemães se rendiam com freqüência e em grandes quantidades,
especialmente após as derrotas provocadas pelos sucessos obtidos na Operação Encore
(fevereiro de 1945) e na Ofensiva da Primavera (abril de 1945), que permitiu aos
Aliados quebrar as principais linhas defensivas remanescentes. O fim estava perto. Era
palpável, mas ainda havia perigo. A rendição final ainda não tinha sido anunciada.
Quando esta chega há a incredulidade e surpresa:
No dia 8 de maio, mais ou menos pelas 11 horas da manhã, perto de
Alessandria, chegou o comandante do meu grupo e falou-me: “Pessoal,
terminou a guerra!” Todo mundo ficou meio estranho, naquele momento, todos
sofreram um impacto e não sabiam o que falar, não sabiam como reagir. [...]
Era uma notícia tão inesperada que eu mesmo não soube como extravasar a
minha alegria. [...]
318
Vicente Pedroso da Cruz estava com sua unidade em Tortona, no Piemonte,
Noroeste da Itália, quando recebeu a noticia do fim das hostilidades:
[...] Não acreditávamos que tivesse terminado a guerra, ninguém. Os
italianos atirando para cima, e perguntamos o porquê daquilo. Os italianos
disseram: “Acabou a guerra!” A gente sem acreditar: “Que acabou a guerra que
nada!” era muito bom pra ser verdade, mas a guerra estava terminando mesmo
[...].
319
318
Joaquim Carlos de Oliveira. Op. Cit.pp. 165.
319
Vicente Pedroso da Cruz. Op. Cit. pp. 313.
Boris Schnaiderman faz coro à incredulidade. Meses condicionado à rotina da
guerra, aos estrondos da artilharia onde atua como calculador de tiros, o fazem duvidar
do fim de tudo aquilo:
[...] uma noite vem a noticia que passará no dia seguinte sobre a localidade
um avião pintado de branco e sobre o qual não se deve atirar, depois se recebe
a notícia que o mesmo avião vai passar na direção inversa, será mesmo a paz?
Nem se acredita que isto possa acontecer, parece impossível dissolver esta
nevoa, imobilizar o turbilhão dentro do qual vivemos [...].
320
Após as últimas ações no Vale do Pó, onde o inimigo tentava escapar em direção
ao Passo de Brenner para chegar à Alemanha, a FEB encerraria suas ações bélicas no
Teatro de Operações italiano. Nos primeiros dias após o fim das hostilidades, os
soldados e a população só queriam saber de festejar.
Mais festas, mais flores. Vino rosso, abundante, aparecia de barris escondidos,
enterrados para que o alemão não levasse. Brasiliani liberatori! Os gritos da população
eufórica eram agora ouvidos livremente. Aqueles que não tiveram a oportunidade de
participar dos festejos de uma cidade libertada tinham agora a chance de vivenciar a
grande comemoração.
[...] Há sempre uns bailecos ao som de sanfonas, o [músico] ganha maços
de cigarros e latinhas de carne, e o seu entusiasmo torna-se incontrolável, que
mistura simpática de gente nesses bailecos, mocinhas da vizinhança,
partiggiani barbudos com seus pitorescos uniformes, [...] há beijos na face e
calorosos apertos de mão, domani ritorno qua, como embriaga essa outra
faceta da Itália, tão diferente daquele país de pedra que deixamos atrás [...].
321
As tochas apareceriam com grande intensidade nesse período. Muitos soldados a
aproveitavam a paz para conhecer novos lugares, festejar em outros povoados,
conquistar novas garotas. Alguns mais tímidos contentavam-se em visitar, de bicicleta
ou a pé, os povoados vizinhos. Outros mais ousados pegavam viaturas, autorizados ou
não, e iam a grandes cidades e até mesmo a países próximos. Qualquer meio disponível
passava a ser usado para as aventuras: nas estradas era comum avistar grupos de
soldados pedindo carona; ou nas curvas e entroncamentos das estradas de ferro
___
as
que não foram arrasados pela aviação
___
lá estavam os aventureiros a se arriscar.
[...] Quando não há baile aqui, pego uma bicicleta e vou dançar nos
lugares visinhos: em Giola, Cornale, Silvano, Corona, Molino, etc.. É melhor,
porque sendo desconhecido posso me divertir mais a vontade. Assim mesmo,
320
SCHNAIDERMAN. Op. Cit. pp. 176.
321
Id. Ibidem. pp. 179.
de vez em quando, aqui em Casei [Gerola], sabem que eu dancei com uma
certa pequena, que dancei toda noite com uma outra e assim por diante. Dizem
logo que estou fegato
322
. Assim, cada vez vou procurar bailes mais distantes
daqui.
323
As unidades da FEB ainda ficariam na Itália por algumas semanas como tropa de
ocupação, garantindo a ordem pública das cidades, que estavam tentando reorganizar
seus governos e os serviços básicos, como o fornecimento de viveres, energia e
comunicação. Havia, também, sérios choques entre os partiggiani e fascistas
derrotados. Os primeiros realizavam caçadas, prisões e execuções dos italianos acusados
de colaborarem com o regime de Mussolini ou com a ocupação alemã.
Mas logo a FEB seria desmobilizada. A grande unidade era um símbolo de
democracia muito forte para ficar unido, preparado para agir. Logo uma série de
memorandos do Ministério da Guerra dissolveriam a FEB, proibiriam seus oficiais de
darem declarações públicas e os espalharia por diversas unidades pelo Brasil
324
. No
inicio de 1945, os debates sobre o fim do regime varguista já eram constantes entre
praças e oficiais da FEB
325
.
Gradativamente as cidades ocupadas pela FEB foram evacuadas e a tropa
substituída por outras aliadas, especialmente norte-americanas. Os soldados brasileiros
foram concentrados num poeirento acampamento em Francolise, a espera dos navios
que os levariam de Nápoles ao Rio de Janeiro.
A volta para o Brasil fora feita em sete viagens, sendo que o primeiro escalão de
regresso, trazendo, principalmente, o 6ºRI
___
pois este foi o primeiro a viajara para a
guerra
___
e outras unidades menores, chegou ao Brasil em 18 de julho de 1945. O
último escalão, trazendo a parte final do Depósito de Pessoal, chegou ao Rio de Janeiro
em 3 de outubro de 1945. Alguns oficiais voltaram antes, de avião, desembarcando em
Natal e, posterior mente, seguindo para o Rio de Janeiro
326
.
322
Audacioso.
323
TAVARES. Op. Cit. pp. 113.
324
O historiador Francisco César A. Ferraz em sua tese de doutorado defende que a rápida
desmobilização da FEB tinha um forte caráter político, sendo perpetrada por grupos dentro do exército
que temiam as repercussões e reformas que a experiência no front poderia trazer para o seio das Forças
Armadas. Além disso, haveria uma rivalidade entre os oficiais que foram para guerra e os que ficaram,
que acabaram criando uma série de dificuldades para os primeiros. FERRAZ. Op. Cit.
325
Id, Ibidem. pp. 121-122.
326
Alguns oficiais da reserva forma consultados por oficiais de alta patente da FEB quanto ao desejo de
permanecer na FEB, mas se negaram, provocando a raiva do comando. “Foi um castigo muito bom.
Regressamos, atravessamos o Atlântico, [...] chegamos [ao Rio] num sábado à cidade, cerca de 12 horas.
Não havia ninguém para nos receber, mais de vinte oficiais da reserva [...] Alugamos um táxi e fomos nos
apresentar no Quartel-General, junto à estação D.Pedro II. Lá o oficial do dia falou:
___
Não posso fazer
nada, vocês têm que ficar aqui até segunda-feira”. PIASON. Op. Cit. pp. 178
A viagem de volta produziu outras lembranças. Sem a tensão e o medo da
viagem de ida para o front, os soldados se referem a ela como um passeio. Sambas,
jogos e muita brincadeira.
Uma maravilha! Na volta, em vez de 15 dias, no dia, forma 12. Porque o
navio veio sozinho, porque vinha reto. Tinha filme...lembro depois do café...na
volta também foram duas refeições. Não tinha como 6 mil homens fazer três
refeições. De tardinha, disseram, “tem cinema lá na popa”. Aí chegou todo
mundo.
Eu não [me lembro do filme], pois virou esculhambação. Escureceu..e
ahhh! [...] Nesse dia veio a turma do lixo, que era soldado mesmo, pra pegar,
com aquelas cestas grandes, pra pegar. Não jogavam nada, nem cigarro no mar.
Proibido. Ai ouvi “Carrega! Carrega!” Quando olhei nego pegou o lixeiro com
carga e tudo, o moço, o balde do tamanho de um jegue e nego carregando tudo,
até lááá...carregaram pra lá! Uma esculhambação danada!
327
Os navios vieram mais rápido, pois não mais faziam manobras evasivas, em zig-
zag, contra submarinos. O clima era de descontração entre os três regimentos que
fizeram a guerra.
[...] Não havia mais escurecimento à noite, ficávamos nas cobertas,
fazíamos serestas, era livre. Quando passamos por Fernando de Noronha, pela
manhã, a tropa formou e cantou o Hino Nacional. Ainda me emociono quando
me recordo. A tropa toda correu para a amurada, do navio, para um lado só.
328
Ao se aproximarem do Rio de Janeiros o praças estavam eufóricos, ansiosos por rever
seus parentes, sua casa, acabar com aquela aventura que trouxe tantos riscos.
Ninguém dormiu na noite de vinte e um para vinte e dois de agosto. Logo
após a primeira refeição, os praças puderam subir para a coberta e viram um
pedacinho de litoral fluminense. Depois foi a entrada na barra, os canhões dos
fortes atirando, barcos indo ao encontro do transporte, apinhados de gente que
agitava lencinhos no ar. [...] É estúpido, mas alguém solta uma piada chula.
Para disfarçar a emoção, talvez? De longe, vem um bimbalhar de sinos. [...]
Será possível? Como é bonita esta cidade, as montanhas, a neblina, diabo, uma
perdição! Um nó pára na garganta. Tudo isso é para nós, será possível?
329
Os soldados brincam. Não se pode perder a oportunidade de voltar ao Brasil com
uma sorte melhor: “Ao descer do navio, todos queriam pisar com o pé direito. Era o que
todos diziam e era verdade mesmo. Diziam: ‘Pisa com o pé direito! Pisa com o pé
direito, que é pra dar sorte! ’”
330
.
327
Cb Raul Carlos dos Santos. Op. Cit.
328
Sgt. Moacyr Machado Barbosa. Op. Cit. pp 335.
329
SCHNAIDERMAN. Op. Cit. pp. 207.
330
Cb. Raul Carlos dos Santos. Op. Cit.
Desfiles. Hinos. Ovação. Multidões que desfaziam formações. Abraços, apertos
de mão, beijos. Os escalões desfilaram na capital federal em comemoração à vitória nos
campos de batalha da Itália. Todos querem se aproximar, tocar, ter alguma recordação
dos pracinhas.
O desfile foi muito bom. Ninguém sabe qual foi o mais bonito! Porque
não foi todo mundo de vez. Primeiro veio o 6ºRI, depois o 1ºRI...6 mil e tantos
homens...todos tiveram esse desfile. Muito bonito! O povo em cima! Todo
mundo querendo arrancar nossa identidade. Teve mocinhas que arrancaram do
nosso pescoço! No fim, no nosso já tava o povo assim...a gente passando de
dois em dois...na estação de trem.
331
Mas haveria uma outra parte da história, sem glamour, sem festas e paradas em
avenidas centrais. Uma outra guerra se iniciava, mas silenciosa. Como chamaria o
veterano Boris Schnaiderman, uma “paz em surdina”.
4.1 O dia seguinte: esquecimento, preconceito, miséria
Quando a FEB foi dissolvida, nós fomos licenciados. Cada um buscou
o seu destino neste Brasil afora. Ficamos sem emprego, jogados fora por mais
de 19 anos. Muitos de meus companheiros, que tinham alguma neurose,
começaram a se embriagar, a dormir pelos bancos das praças, vários, inclusive,
morreram. Só depois desses anos todos, é que passamos a ser aproveitados nos
Correios, porque empresa nenhuma queria ar emprego para os pracinhas, em
face de nossa idade já avançada, alguns com sérios problemas psicológicos,
iríamos, como falavam, só criar transtornos onde fôssemos.
332
A festa, as saudações, os hinos não durariam muito tempo. Logo os veteranos
perceberiam que o retorno a vida civil poderia representar uma nova guerra. Os
problemas começariam dentro dos próprios quartéis, no próprio exército. Muitos
expedicionários relembram com pesar a receptividade ruim a qual o exército lhes
dispensou. O cabo Raul Carlos dos Santos narra sua experiência:
[Foi] Horrível! Sabe o que aconteceu? Chegamos de tardinha, fomos pro
mesmo lugar desgraçado. Encontramos um pessoal da cozinha. Todo mundo
sem comer desde que saiu do navio...Eu vi aquela feijoada, velha, antiga. Vi
aquele feijão com carne e farinha. Só! Eu disse: “Ah! Eu fico sem comer”.
Divino, coitado, agora que me lembrei, ele comeu a comida. Quando chegou
no outro dia, vamos tomar café. Veio ele todo enrolado, com a coberta.
“Divino o que é que você tem?” “Rapaz eu to com uma dor de barriga que não
331
Cb. Raul Carlos dos Santos. Op. Cit.
332
O Cb. Francisco Pedro de Resende serviu no III/6ºRI. HOESGM, Tomo I, pp. 371. Entrevista
realizada em 23 de maio de 2001.
me agüento!” Ele me disse: “Pode ir, Raul, que eu tomo conta”. Outra coisa:
Nós chegamos com nossos sacos. Em outras Cias aconteceu de nego largar o
saco e ir para rua. Os soldados do quartel entraram e meteram a mão! Teve
gente que perdeu tudo!
333
Os furtos causaram grande transtorno e decepção, pois não eram apenas objetos
de valor perdidos, mas recordações, troféus de guerra, conquistados durante ou após
combates. Mas havia nesse acontecimento o prenuncio de decepções maiores com os
colegas de farda.
Acostumados com uma série de cuidados que o Exército Norte-Americano
proporcionou, no campo da alimentação, saúde, instrução e hierarquia, os veteranos se
viam novamente sob os descasos e maus tratos do “Exército de Caxias”
334
. Esta
percepção, da existência de dois exércitos brasileiros, surgiria na Itália, quando a FEB
passou a estar subordinada ao V Exército Norte-Americano.
Quando cheguei à Itália, senti logo quês os soldados dividiam em dois
o Exército Nacional: referiam-se à FEB como a um “novo exército”, bem
diferente daquele outro exército que ficara no Brasil e que eles sempre ouviram
chamar de “Exército de Caxias”.
Esta divisão era mencionada toda vez que os expedicionários
estabeleciam comparação entre os métodos, costumes e princípios adotados no
Brasil e os vigentes nos campos de operações da Itália.
335
Como o historiador Fernando Ferraz argumenta em sua tese “a FEB, ao invés de
constituir-se motivo de orgulho para o Exército e meio de modernização da organização
e instrução militar brasileira, tornava-se um incômodo, um estigma”, pois ressaltava
todas as falhas que a instituição apresentava
336
. Os militares que participaram das
unidades expedicionárias forma progressivamente desvalorizados dentro da instituição:
foram proibidos de usar seus uniformes, distintivos da FEB e de ostentar as
condecorações da Campanha da Itália
337
. Como atesta o próprio Chefe do Estado Maior
333
Cb. Raul Carlos dos Santos. Op. Cit.
334
A figura do Duque de Caxias como modelo de soldado virtuoso começou ser instituída a partir de
1923, com a comemoração do 120º aniversário do oficial. Em 1925, a turma de cadetes das Escola Militar
do Realengo adotou Caxias como patrono, o que sensibilizou o então Ministro da Guerra, Fernando
Setembrino de Carvalho, que fez do dia do aniversário de Caxias o Dia do Soldado. Iniciava-se uma série
de tradições que vinculava o exército brasileiro à figura de Caxias, com destaque para o uso de um
uniforme (o “azulão) similar ao usado pelas unidades comandadas pelo Duque em 1852; e a “[...] adição
de uma versão em menor escala da espada de campanha do duque como parte do uniforme de gala dos
cadetes. [...] Desde 1933 até hoje, a turma que se forma passa para seus espadins para os calouros, que
prestam juramento [...]”. MACCANN. Op. Cit. pp. 522-523.
335
O tenente José Andrade serviu como comandante de pelotão na 7ªCia do III/6ºRI. ANDRADE, José
X. Góis de. “Espírito da FEB e espírito ‘do Caxias’” In. ARRUDA (Org.) Op. Cit. pp.289.
336
FERRAZ. Op. Cit. pp. 114.
337
BRAYNER. Op. Cit. pp.520.
da FEB, o então coronel Floriano de Lima Brayner: “Gerou-se, assim, um ambiente de
angustia entre os que tinham cometido o feio crime de ter aceito a designação para as
formações expedicionárias [...]”
338
.
Ferraz ainda elenca como razão para este trata mento o medo que os oficiais que
não lutaram na Itália tinham de serem preteridos nas promoções em relação aos seus
colegas expedicionários
339
.
Para os que não seguiram a carreira militar a reintegração social foi mais difícil.
A inserção no mercado de trabalho já seria naturalmente prejudicada, pois maioria dos
soldados possuía baixo grau de instrução. Os que já possuíam empregos, pela legislação
da época, teriam o retorno a estes garantido, mas nem sempre isso funcionou, pois os
veteranos passaram as ser estigmatizados. A guerra não traria apenas seqüelas físicas,
criaria também sérios traumas psicológicos:
[...] A primeira vez que fui visitar colegas num hospital, senti vertigem,
fiquei mole. No primeiro velório a que fui, desmaiei. Não podia ver médico de
branco, hospital, defunto. [...] Tratei-me até 1968. Sonhava muito com os
alemães me atacando, às vezes me prendendo. Nunca sonhei que eu prendia os
alemães. Tomei remédios violentos, o médico dizia que ia passar. Uma vez
minha esposa passou mal, tive de levá-la no hospital. Fui na ambulância,
segurando o soro. Eu dizia: “Não vou desmaiar, não vou desmaiar”. Ela morreu
no hospital, tive que ficar ali. Foi um sofrimento. Mas não consegui ir ao
enterro, nem ao da minha segunda esposa, também falecida.
340
O soldo recebido após a guerra foi considerado insuficiente por muitos
veteranos. O exército da época dividia o soldo em três quantias: Parte era enviada para
família, parte paga na Itália e parte depositada em conta no Banco do Brasil. Como boa
parte da tropa era do interior e não tinha quem o abrigasse no Rio de Janeiro, ficaram
morando nos quartéis. Muito destes jovens, que nunca estiveram numa metrópole,
gastaram o dinheiro em roupas, bebidas, festas e jogos. Schnaiderman descreve esta
situação em suas memórias:
Custou a sair o pagamento do soldo e muita gente ficou em situação difícil.
Milhares de rapazes estavam sem tostão, em cidade estranha. [...]
Depois, cada um foi passando junto a uma mesinha onde recebeu o
certificando de campanha e a quantia que lhe era devida. [...]
Incríveis aqueles descontos! O sargento Anésio suava em bica, explicando
aos praças uma estranha contabilidade.
338
Id.Ibidem. pp.521.
339
FERRAZ. Op. Cit. pp.167.
340
Sgt. Moacyr Machado Barbosa. Op. Cit. pp. 336.
___
Escuta, estão faltando aqui dois piquetes de barraca, a um cruzeiro cada.
São dois cruzeiros a menos. Este cantil está completamente amassado, você
compreende que não posso devolve-lo deste jeito à Intendência. [...] Falta ainda
o gorro sem pala, no valor de vinte cruzeiros. Tenho que descontar apenas
trinta cruzeiros. [...]
Em todo caso, sempre se recebeu algum dinheiro. Somando-se o Fundo de
Previdência, o soldo correspondente ao último mês e as economias em liras,
depositadas na Itália antes do embarque, cada soldado tinha cerca de dez mil
cruzeiros, os cabos e sargentos um pouco mais. Não dava para se arrumar na
vida, mas bastava perfeitamente para encomendar dois ternos de casimira e cair
na farra. E foi justamente o que fizeram os rapazes do interior, que haviam
passado muitos dias trancados no quartel, enquanto os demais se divertiam.
341
Como fala o sd Vicente Alves do Nascimento: “O soldo eu recebi, mas o soldo e
nada era mesma coisa. Aquilo acabou de comprar uma besteira e acabou”
342
.
Schnaiderman sugere outra razão para os praças gastarem com tanta ansiedade o
dinheiro acumulado: “Muitos gastavam aquele pecúlio com um açodamento que tinha
algo de contrição religiosa. Era como se não quisessem conservar o dinheiro maldito,
como que manchado de sangue”
343
.
As condecorações também se tornaram um ponto de critica dos veteranos. Todo
soldado que participou da FEB tinha direito à “Medalha de Campanha”. Aqueles que se
destacaram para o esforço de guerra recebiam a “Medalha de Guerra”, sendo que civis
também poderiam ser agraciados com essa. Existiam ainda as medalhas “Sangue do
Brasil”, concedida aos feridos em combate, e a “Cruz de Combate” de primeira e
segunda classes, oferecidas por atos de bravura. Mas o comandante da FEB não tinha
autorização para conceder essas premiações simbólicas, sendo alijado deste estímulo
aos soldados: “As condecorações nacionais chegadas tardiamente ao Teatro da Itália
não produziram o desejado estímulo nos combatentes, uma vez que foram concedidas
cessadas as hostilidades, e mesmo assim de modo tumultuado e incompleto”
344
.
No caso dos veteranos baianos que tinham direito a receber condecoração por
ferimento em combate, esta só foram entregues muito tempo depois, pelo Comando da
6ª Região Militar, que repassou a responsabilidade para a Associação Nacional dos
Veteranos da FEB - regional Bahia. Os soldados portadores do certificado de ferimento
concedido pelos hospitais de campanha deram entrada junto ao exército.
341
SCHNAIDERMAN. pp. 214-215.
342
Sd Vicente Alves do Nascimento. Op. Cit.
343
SCHNAIDERMAN. pp. 215.
344
MORAES, Op. Cit. pp. 167.
[...] Em casa, quando cheguei, olhando no jornal o “Serviço Especial da
FEB” avisando aqueles todos que tiveram ferimento que podiam dar entrada.
Eu ai fui. Pedi, fiz uma copia pro ministério. Quando passou um mês recebi
uma carta da 6ªRM. Eu quando vi foi isso...ai recebi a medalha. Até hoje tem
gente aí [sem receber]. Está aqui o diploma. Dez [veteranos]. Não houve meio
de achar.
345
Desamparados pelo governo e pelo próprio exército, os veteranos se
mobilizariam em associações. Estas teriam a função de lutar pelos direitos às pensões e
assistência médica, serem centros sociais de reunião, além de manter a história coletiva
da FEB. Assim surgiria em 1 de outubro de 1945 a Associação dos Ex-Combatentes do
Brasil (AECB), fundada no Rio de Janeiro.
Esta entidade logo teria seções em varias seções estaduais e municipais. Esta
associação passaria a englobar militares da Marinha, Exército e Aeronáutica que
serviram no período, e, inclusive, ex-combatentes estrangeiros radicados no Brasil
___
inclusive militares que serviram em missões em décadas posteriores, como o Batalhão
Suez, que atuou como tropa de paz da ONU entre as décadas de 1950 e 1960 na região
do Canal de Suez. Segundo Ferraz a postura de não fazer distinções entre ex-
combatentes foi a tônica da AECB, especialmente a partir da década de 1970
346
.
O contexto político de formação da Associação de Ex-combatentes englobava
grandes transformação nacionais. O Estado Novo começava a se desfazer, eleições
estavam para serem realizadas e o pluripartidarismo voltava ao Brasil. O PCB estava
muito ativo e tentava se aproximar de grupos que pudessem ter projeção nacional, como
os veteranos. O sd Vicente Alves do Nascimento relata a tentativa de cooptação do
PCB:
Mas essa associação foi criada pela gente. Quando a gente chegou aqui
estavam todos desempregados. Aí reuniu todo mundo. Tinha o Ariston
Andrade e o Jacob Gorender. Eram comunistas. E ai a policia, naquele tempo,
achava que quando o sujeito arranjava uma flâmula, pedindo emprego nas
repartições públicas acharam que a gente era comunista. [...]
347
Ainda segundo o historiador Francisco Ferraz a postura da AECB de ampliar o
espectro de filiados criou certo desconforto entre os veteranos da Campanha da Itália,
assim, surgiria, também no Rio de Janeiro “[...] o Clube dos Veteranos da Campanha da
345
Cb. Raul Carlos dos Santos. Op. Cit.
346
FERRAZ. Op. Cit. pp.246.
347
Sd. Vicente Alves do Nascimento. Op. Cit.
Itália, fundado por cerca de uma centena de expedicionários, civis e militares [...]”
348
,
em 1963. Era exigido o diploma da Medalha de Campanha da Itália para associar-se, o
que excluía os “praieiros”. Em 1972, o Clube de Veteranos passaria a ser denominado
de Associação Nacional dos Veteranos da FEB (ANVFEB), denominação que perdura
até os dias atuais. As divergências entre ambos os grupos aumentariam quando a
legislação de benefícios aos veteranos passou a englobar os ex-combatentes, o que foi
considerado pelos primeiros como uma injustiça. Em salvador a ANVFEB localiza-se na
Vila Militar de Itapuã e a Associação dos Ex-Combatentes no Taboão, no Pelourinho.
348
FERRAZ. Op. Cit. pp. 247.
Considerações finais
A guerra não vale nada! Guerra é miséria! O verdadeiro inferno! Tive nela
e saí! Já pensou? Você não tem sossego noite e dia!
349
Essa é a recordação que predomina entre os brasileiros que vivenciaram
experiências de combate no front italiano durante a II Guerra Mundial. São lembranças
dolorosas, muitas vezes contidas durante décadas, mas que nos últimos anos vem
procurando espaço. Lembranças estas que procurando serem ouvidas. Isto
possivelmente ocorra devido à constante diminuição do número de expedicionários e
com a preocupação sobre a imagem que sociedade manterá deles.
As décadas que se seguiram ao conflito foram marcadas por grandes
dificuldades para os veteranos, reforçando a importância das associações como um local
não só de apoio jurídico, mas auto-valorização e formação de uma identidade coletiva
que pudesse ser apresentada a sociedade. Aliás, sugiro dizer que para alguns veteranos
apenas dentro das associações, entre os indivíduos que compartilharam as mesmas
experiências, é que eles se sentiam compreendidos, aceitos e reconhecidos como
indivíduos importantes para a história nacional.
Embora hoje exista um amparo legal mais efetivo, especialmente âmbito
pecuniário, ainda há um forte sentimento de abandono e esquecimento quanto ao papel
da FEB na história nacional. Segundo o presidente da seção baiana da ANVFEB, Raul
Carlos dos Santos, Salvador é a única capital estadual que não possui um monumento
aos veteranos.
Assim, um passado recente de descaso e esquecimento por parte da sociedade
são evocados facilmente:
Foi uma ingratidão com nossos heróis, com aqueles que deram tudo pela
nação! Todos foram ingratos, o governo, os empresários, o povo, todos se
esqueceram de nós! [...] Em seis meses nos esqueceram, já não existiam mais
heróis.
350
Os sentimentos de ingratidão, revolta e abandono são comuns entre muitos
veteranos. A demora em conseguir benefícios e assistências do governo federal e do
exército talvez sejam as principais causas para estas reações, mas podemos sugerir
349
Sd. Vicente Alves do Nascimento. Op. Cit.
350
Sgt. Rubens Leite de Andrade. Op. Cit., pp. 345.
outra. O Brasil não possui tradição de envolvimento em conflitos internacionais e
quando o faz são pequenos contingentes, logo essas experiências são pouco difundidas
entre a população, ficando praticamente restritas aos meios militares e dos familiares
dos soldados expedicionários.
Nos últimos dez anos o segmento acadêmico passou a dar atenção aos veteranos.
O amadurecimento da história oral e o a difusão de programas de pós-graduação no
âmbito da história social, especialmente, abriram espaço para pesquisas com foco nos
militares, aliás, o próprio distanciamento dos acontecimentos relativos à última ditadura
facilitaram este processo. Como atenta Jose Murilo de Carvalho, há em muitos
segmentos das Forças Armadas Brasileiras hoje uma forte tentativa de aproximação da
sociedade civil, uma maior profissionalização e desejo de cumprir seu papel
constitucional
351
.
A Segunda Guerra constituiu-se num fato histórico que ainda gera grandes
interrogações, por mais que tenhamos um volume de periódicos, resenhas, teses as
dúvidas, ou melhor, o fascínio sobre o tema ainda é muito forte. É um evento
catastrófico, que tem peso na adjetivação que Hobsbawm dá ao século XX, mas é
também um vento transformador, libertador, que pôs termo ao totalitarismo de ditadores
genocidas.
A participação brasileira no conflito pode ter sido limitada, o Teatro de
Operações que atuou pode ser visto com secundário e a própria unidade expedicionária
pode não ter participado de nenhuma batalha decisiva para a vitória dos aliados. Mas
durante os onze meses que durou a campanha, para cada praça e oficial, convocado ou
voluntário, aquele front era seu front, onde sua vida estava em risco, assim como de
seus companheiros, onde, consciente ou não seu futuro esta sendo mudado, onde seu
destino vinculava-se a história do Brasil e da humanidade de uma forma que raros
brasileiros experimentariam.
Missão cumprida!
351
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Guerra Mundial. Anais do III Encontro de Cultura & Memória – História: Cultura e
sentimento. Recife-Pernambuco. CD-ROM
MERON, Luciano B. E a cobra sambou: A II Guerra Mundial nos sambas. (artigo
apresentado no I Seminário de Estudos Sobre a FEB; UFRJ; 15/06/09).
MICHAUD, Eric. “Soldados de uma Idéia: os Jovens sob o Terceiro Reich”. In: LEVI,
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WALZER, Michael. Guerras justas e injustas: Uma argumentação moral com
exemplos históricos. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
Fontes
Entrevistas
a) Realizadas pelo autor
Raul Carlos dos Santos. Entrevistas concedidas a Luciano B. Meron. Salvador,
25/09/07; 29/09/07; 03/10/2007; 08/03/08 e 29/03/2008.
Vicente Alves do Nascimento. Entrevista concedida a Luciano B. Meron. Salvador,
25/05/08.
“X”. Entrevistas concedidas a Luciano B. Meron. Salvador, 25/04/08 e 29/04/08.
b) Realizadas pelo Exército
Abdias de Souza. História Oral do Exército na Segunda Guerra Mundial (HOESGM).
Tomo II. Entrevista realizada em 22/09/2000
Antonio Gonzales. HOESGM. Tomo III. Entrevista realizada em 29/05/2000.
Antônio dos Santos Silva. HOESGM. Tomo II. Entrevista realizada em 03/05/2001.
Ayrton Vianna Alves Guimarães. HOESGM. Tomo III. Entrevistado em 3/05/2001.
Daniel Lacerda. HOESGM. Tomo III. Entrevista realizada em 8/06/2000.
Francisco Pedro de Resende. Tomo I. Entrevista realizada em 23/05/2001.
Joaquim Carlos de Oliveira. HOESGM. Tomo III. Entrevista realizada em18/05/2000.
José Bernardino de Souza. HOESGM. Tomo VII. Entrevista realizada em 11/07/2000.
José Alfio Piason. HOESGM. Tomo III. Entrevista realizada em 02/05/2001.
Moacyr Machado Barbosa. HOESGM. Tomo V. Entrevista realizada em 31/08/2000.
Oswaldo Matuk. HOESGM. Tomo III. Entrevista realizada em 23/05/2000.
Rubens Leite de Andrade. HOESGM. Tomo V. Entrevista realizada em 19/09/2000.
Silas de Aguiar Munguba. HOESGM. Tomo II. Entrevista realizada em 01/06/2000.
Vicente Gratagliano. HOESGM. Tomo III. Entrevista realizada em 12/09/2000.
Vicente Pedroso da Cruz. HOESGM. Tomo III. Entrevista realizada em 6/07/2000.
Narrativas pessoais
ARRUDA, Demócrito C. (Org.) Depoimento de Oficiais da Reserva Sobre a FEB. São
Paulo: Ipê, 1949.
BRAGA, Rubem. Crônicas da Guerra na Itália. Rio de Janeiro: Bibliex, 1996.
BRAYNER, Floriano de L. A Verdade Sobre a FEB: Memórias de um Chefe de Estado-
Maior na Campanha da Itália. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
BOUCSEIN, Heinrich. Bombardeiros, caças guerrilheiros: Finale furioso na Itália – A
história da 232ª Divisão de Infantaria, a última divisão alemã a ser deslocada para a
Itália (1944-45). Rio de Janeiro: Bibliex, 2002.
BRANCO, Manoel Thomaz C. O Brasil na II grande guerra. Rio de Janeiro: Bibliex,
1960.
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Soldado Convocado. Brasília: UNB, 1999.
MORAES, João B. M. de A FEB pelo seu Comandante. São Paulo: Ipê, 1947.
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Mundial. São Paulo: Brasiliense, 3ª Ed., 1995.
SILVEIRA, Joel. O Inverno da Guerra: Jornalismo de Guerra. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2005.
________ e MITKE, Tassilo. A Luta dos Pracinhas: A FEB 50 anos depois – Uma
Visão Critica. Rio de Janeiro: Record, 1983.
SILVEIRA, Joaquim Xavier da. Cruzes Brancas: Diário de um Pracinha. Rio de
Janeiro: Bibliex, 1997.
TAVARES, Eduardo Diogo (Org.). Nós vimos a cobra fumar: Diário de um jovem
tenente brasileiro na Itália durante a II Guerra Mundial. Salvador: P&A Editora, 2005.
Documentos
Força Expedicionária Brasileira - Relatório Secreto. Volumes I, II e III – 1943-1945.
Arquivo Histórico de Exército - AHEx. 1ª D.I.E. – Relatórios.
Relatório sumario das atividades do Serviço de Saúde da 1ª DIE, desde o desembarque
na Itália do Escalão Avançado até a cessação das hostilidades – AHEx. Livro 151.
Documentos recebidos da 1ª Seção da FEB – AHEx, Pasta 27, Caixeta 25
Estudos e impressões sobre o inimigo - Arquivos da 2ª Seção – AHEx, Caixeta 25
Documentos recebidos da 1ª Seção da FEB – AHEx, Pasta 28, Caixeta 30
Documentos inimigos apreendidos – AHEx, Caixeta 30
Periódicos (acervo pessoal)
...E a cobra fumou. Tarquinia (Itália), Ano I, nº 1, 17 de agosto de 1944
...E a cobra fumou. Vada (Itália), Ano I, nº 3, 1 de setembro de 1944
...E a cobra fumou. Camaiore (Itália), Ano I, nº 5, 12 de outubro de 1944
...E a cobra fumou. Riola di Vergato (Itália), Ano I, nº 7, 25 de novembro de 1944
...E a cobra fumou. Riola (Itália), Ano I, nº 10, 28 de fevereiro de 1945
...E a cobra fumou. Em plena ofensiva (Itália), Ano I, nº 1, 25 de abril de 1945
...E a cobra fumou. Voghera (Itália), Ano I, nº 14, 9 de junho de 1945
Anexos
TABELA 2
Sentenças
Prazo da sentença
Apelação ao CSJM
Posto ou
graduação
Unidade
Ano(s) Mês(es) Dia(s) Confirmada Reformada
para
Crime
Sd 12 11 2 X Roubo e extorsão
Sd 24 24 X Idem
Sd 26 X Idem
Sd 11 30 X Idem
Sd 8 X Resistência
Sd
Dep. Pes.
11 X Roubo
Sd Abslv. Danos
Sd
BS
3 4 X
D
esacato e desobediência
Sd 6 6 X Desobediência
Sd
11ºRI
1 6 20 X Idem
Cb 1 6 20 X Idem
Sd
1ºRI
2 5 1 a 4 meses Idem
Sd 9 22 X Deserção
Sd 1 9 10 X Homicídio culposo
Sd 1 3 16 1 a 5 meses Violência c/ superior
Sd 3 X Deserção
Sd 1 8 X Desobediência
Sd
6ºRI
2 1 10 4 meses Insubordinação
Sd Bia
Cmdo
16 1 10 X
Crime sexual c/
abandono de posto
Cb 5 5 10 X Crime sexual
Sd
AD
5 X idem
Sd 2 10 20 X Desobediência
Sd 2 8 X Violência c/ superior
Sd 2 X Tentativa de violência
carnal
Sd
II/1ºRO
Au R
2 X Idem
3º Sgt Cia Mnt 1 X Incêndio culposo
Sd 1 6 X Furto
Sd 1 6 X Idem
Sd
9ºBE
2 1 10 X Abandono de posto
Sd MORTE X Homicídio em
presença do inimigo
Sd
Cia QG
MORTE X
Sd 1 5 10 X Abandono de posto
1º Ten R2
Cia I
1 8 X Homicídio culposo
FONTE: BRANCO. op.cit.pp.339
Mapas
Gentilmente cedido por Julio Cezar Fidalgo Zary
Distribuição das unidades engajadas nos combates do segundo semestre de 1944 nos
Apeninos, Norte da Itália.
BRANCO. Op. Cit., pp. 220.
Evolução dos avanços aliados entre agosto e outubro de 1944, Norte da Itália.
BRANCO. Op. Cit. pp. 278.
Disposição da FEB durante o inverno de 1944 até meados de fevereiro de 1945, quando as
operações defensivas predominaram.
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