Download PDF
ads:
NÁDIA LAGUÁRDIA DE LIMA
A ESCRITA VIRTUAL NA ADOLESCÊNCIA:
Os blogs como um tratamento do real da puberdade, analisados a partir da função
do romance
Belo Horizonte, março de 2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
NÁDIA LAGUÁRDIA DE LIMA
A ESCRITA VIRTUAL NA ADOLESCÊNCIA:
Os blogs como um tratamento do real da puberdade, analisados a partir da função
do romance
Tese apresentada ao Programa de s-Graduação em
Educação da Faculdade de Educação da Universidade
Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à
obtenção do título de Doutor em Educação.
Linha de pesquisa: Psicologia, Psicanálise e Educação
Orientadora: Ana Lydia Bezerra Santiago
Belo Horizonte, março de 2009
ads:
Ficha Catalográfica
LIMA, Nádia Laguárdia de.
A escrita virtual na adolescência: os blogs como um
tratamento do real da puberdade, analisados a partir da função
do romance.
Belo Horizonte, UFMG/FAE, 2009.
394 p.
Tese (doutorado) UFMG. FAE.
A ESCRITA VIRTUAL NA ADOLESCÊNCIA: os blogs como um
tratamento do real da puberdade, analisados a partir da função do romance
Autora: Nádia Laguárdia de Lima
Orientadora: Ana Lydia Bezerra Santiago
Tese de doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Educação, da Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Educação.
Aprovada por:
____________________________________________________
Presidente, Profª. Ana Lydia Bezerra Santiago Orientadora
____________________________________________________
Profª. Leny Magalhães Mrech
____________________________________________________
Profª. Tânia Coelho dos Santos
_____________________________________________________
Prof. Jésus Santiago
_____________________________________________________
Prof. Antônio Augusto Gomes Batista
Belo Horizonte
Março de 2009
Para Antônio Cláudio
AGRADECIMENTOS
O trabalho apresentado nesta tese é resultado da participação de várias pessoas, que
gentilmente possibilitaram essa trajetória e participaram dela, desde o incentivo ao
ingresso no doutorado, passando pelo acolhimento do projeto inicial, a indicação e o
acesso ao material bibliográfico, o estímulo e o apoio constantes, a leitura, os ricos
ensinamentos, a interlocução calorosa, os questionamentos e sugestões valiosos, as
traduções de textos, a leitura e a discussão do material na banca de qualificação, as
revisões do texto e, enfim, a participação na banca de defesa da tese. Entre as várias
pessoas que estiveram presentes neste percurso, gostaria de agradecer a Elisa Alvarenga,
Antônio Augusto Gomes Batista, Tânia Coelho dos Santos, Jésus Santiago, Leny
Magalhães Mrech, Andréa Máris Campos Guerra, Márcia Rosa Vieira, Celso Rennó
Lima, Elisa Arreguy Maia, Nádia Rodrigues de Figueiredo, Maria Júlia Andrade Vale,
Margaret Pires do Couto, Mônica Assunção Costa Lima, Paula Ângela de Figueiredo e
Paula, Rosana Figueiredo Vieira, Andréa Franco Milagres, Alexandre Dutra Gomes
Cruz, Cláudia Maria Generoso, Bárbara Guatimosin, Renata Dumont Flexa, Avany
Pazzini Chiavetti, Roberto Arreguy e aos professores e colegas do Programa de Pós-
Graduação em Educação.
Em especial, um agradecimento a Ana Lydia Bezerra Santiago, pelo acolhimento do
projeto, pelo estímulo e pelas importantes contribuições dadas na orientação dos
trabalhos desta tese.
Um agradecimento especial aos meus filhos Bernardo, Gabriel e Pedro, pelos grandes
ensinamentos no ciberespaço e pela paciência e respeito nos momentos de ausência.
Por fim, um agradecimento muito especial ao Antônio Cláudio, companheiro querido,
pelo grande apoio, carinho e cumplicidade no dia-a-dia.
RESUMO
A ESCRITA NA ADOLESCÊNCIA: os blogs como um tratamento do real da
puberdade, analisados a partir da função do romance
O objetivo deste trabalho é investigar a função da escrita de blogs por adolescentes na
contemporaneidade, apoiados por recursos teóricos da psicanálise e pela leitura de blogs.
Para fazer essa reflexão, adotamos dois eixos norteadores. Um eixo que relaciona a
escrita com a cultura e o outro que analisa a função da escrita no tempo da puberdade.
Defendemos a hipótese de que o romance é o paradigma do diário íntimo. A puberdade
é um tempo em que se o encontro com o real do sexo, promovendo um desatar do nó
que amarra os três registros da realidade psíquica. A escrita de um romance familiar
pode operar na construção do sintoma adolescente. Identificamos em nossas pesquisas
três tipos de blogs de adolescentes, a partir da referência ao romance: como uma escrita
de gozo; como uma “escrita de si para si; e aquele que corresponde à escrita de um
romance, como produto de um endereçamento a um outro, que faz laço social. Nas duas
primeiras vertentes, não o estabelecimento de um laço social, o que pode ser
considerado como um resultado do discurso capitalista. E por último, na vertente onde
a produção de um personagem como o principal protagonista da própria história,
promove-se uma mudança na posição do sujeito, que deixa de ser determinado pela
história para ler essa determinação.
Palavras-chave: escrita, blogs, romance, adolescência.
ABSTRACT
VIRTUAL WRITING IN ADOLESCENCE: blogs as a way to treat reality in puberty
time, analyzed from the novel function perspective.
The purpose of this work is to investigate the role of blog writing by adolescents in
contemporary times, supported by theoretical psycho-analytical resources. In making
such a reflection, our study has taken two guiding lines: the first relates writing to
culture and the second analyzes the role of writing in puberty time. We sustain the
hypothesis that intimate diaries have the novel as their paradigm. Puberty is a period in
which one meets the reality of sex, promoting the unfastening of the knot that ties the
three stages of psychic reality. The writing of a familiar novel can operate in the
construction of the adolescent symptom. Our research identifies three kinds of blogs
produced by teenagers, from a novel perspective: as a writing to achieve pleasure; as a
writing practice by oneself; and the third type of blog writing which corresponds to a
novel, as a product of acknowledgment to the other, allowing social bonds. The first two
types do not establish a social link, which can be considered an outcome generated by
the capitalist discourse, whereas the last type presents the production of a character as
the main protagonist of his/her own story, promoting a change of the subject position so
that one, rather than being determined by history, is able to read one‘s historical
determination.
Key terms: writing, blogs, the novel, adolescence.
SUMÁRIO
Introdução .....................................................................................................................12
Capítulo 1. O diário íntimo adolescente como produto da modernidade ................21
1.1. Primórdios da escrita de si: a subjetivação de um -dito ........................................21
1.2. O surgimento do diário: a tensão entre o público e o privado..................................27
1.3. O diário íntimo como produto da cultura moderna .................................................34
1.4. O diário como paradigmático da adolescência ........................................................56
1.4.1. Da escritura escolar ao diário íntimo ........................................................57
1.4.2. A escrita na adolescência ..........................................................................65
Capítulo 2. O diário íntimo como um romance .........................................................88
2.1. O romance e o diário: aproximações .......................................................................88
2.1.1. Origem, classificação e caracterização do romance .................................88
2.1.2. Romance, autobiografia e diário..............................................................100
2.2. O diário e o romance familiar ................................................................................108
2.3. Hystorização e romance: a construção do personagem no diário íntimo
adolescente....................................................................................................................119
Capítulo 3. O blog adolescente como produto da contemporaneidade .................140
3.1. O discurso capitalista e seus efeitos sobre o sujeito ..............................................140
3.2. O surgimento dos blogs .........................................................................................149
3.3. Pesquisando no ciberespaço ..................................................................................154
3.3.1. O método de pesquisa em psicanálise ...................................................154
3.3.2. Circunscrição do campo ..........................................................................160
3.3.3. Recorte para a pesquisa empírica ............................................................160
3.3.4. Desenvolvimento da pesquisa .................................................................161
3.3.5. Construção e análise dos dados ..............................................................163
3.4. A primeira investigação: a escrita de si nos blogs..................................................166
3.5. Por que os adolescentes escrevem diários na rede? ...............................................168
3.5.1. Uma leitura dos blogs .............................................................................169
3.5.2. O blog como uma narrativa sobre si .......................................................169
3.5.3. O blog como um discurso .......................................................................173
3.5.4. A identificação com a adolescência” ....................................................178
Capítulo 4. A escrita do romance nos blogs .............................................................188
4.1. Escritos da adolescência: a vertente de romance nos blogs ...................................189
4.2. A escrita do amor: relacionamentos “fluidos” na contemporaneidade .................198
4.3. A escrita da “história familiar” no espaço público ................................................206
4.4. Amizades múltiplas: encontros e desencontros no ciberespaço.............................211
4.5. A escrita da sexualidade nos blogs ........................................................................213
4.6. A adolescência como resposta ao impossível de saber ..........................................217
Capítulo 5. Tempo e espaço nos diários virtuais: da linearidade à
espacialidade .............................................................................................................221
5.1. Um novo texto: leitura e escrita nos blogs ............................................................221
5.2. O constelar no ciberespaço: um hipertexto de fragmentos ...................................233
5.3. O esfacelamento da imagem e sua multiplicidade ................................................243
5.4. Letra: entre o significante e o gozo .......................................................................250
5.5. Tempo e escrita: o blog como uma memória efêmera ..........................................258
5.6. O adolescente no tempo e no espaço ....................................................................264
5.7. O adolescente e a escrita no blog: entre o sonho e o despertar .............................268
Capítulo 6. O blog como um sintoma atual na adolescência ..................................274
6.1. Diário virtual: da escrita do romance à escrita de gozo? ......................................274
6.1.1. Existiria uma perversão generalizada na contemporaneidade? ..............275
6.1.2. As incidências do discurso capitalista sobre os modos de gozo
contemporâneo: a “escrita de gozo” nos blogs de adolescentes ...................... 288
6.1.3. A escrita de si para si ..............................................................................310
6.1.4. Enfim, o que há de novo hoje? ...............................................................314
6.2. Uma saída aos impasses contemporâneos: a escrita no blog como um sintoma ...317
6.2.1. Do sintoma ao sinthoma .........................................................................317
6.2. 2. Voz do Solitário ................................................................................... 329
Conclusão ....................................................................................................................354
Referências bibliográficas ..........................................................................................362
Anexo Por que os jovens escrevem blogs?..............................................................378
Começava a descobrir-me. Eu não era quase nada, quando
muito uma atividade sem conteúdo, mas não era preciso mais.
Eu escapava à comédia: não trabalhava ainda, porém não
brincava mais, o mentiroso encontrava sua verdade na
elaboração de suas mentiras. Nasci da escritura: antes dela,
havia tão-somente um jogo de espelhos (SARTRE, 2005).
12
INTRODUÇÃO
... por ter descoberto o mundo por meio da linguagem, tomei
durante muito tempo a linguagem pelo mundo. Existir era
possuir uma marca registrada, em alguma parte nas Tábuas
infinitas do Verbo... (SARTRE, 2005: 122).
O diário íntimo, fechado “a sete chaves”, funcionou durante muito tempo como um
ritual de passagem para os jovens, simbolizando a entrada na adolescência, em especial
para as meninas. O término da adolescência era acompanhado, frequentemente, pelo
desinteresse por esse tipo de prática. O caráter transitório dessa escrita permite levantar
a hitese de que o diário desempenhava uma importante função subjetiva nessa fase da
vida.
Na contemporaneidade, o avanço tecnológico e a difusão da Internet possibilitaram que
muitos adolescentes começassem a escrever seus diários na rede, nos chamados blogs,
passando assim dos diários íntimos às páginas on-line, que podem ser acessadas
livremente. Nesse espaço virtual, os jovens escrevem seu perfil, poemas, pensamentos,
letras de músicas, fazem protestos, colocam fotos e interagem com os leitores que
deixam seus comentários nas páginas dos blogs. Os blogs de adolescentes multiplicam-
se de maneira surpreendente no ciberespaço. Seriam os blogs hoje os substitutos dos
diários íntimos? O que essa nova forma de escrita revela sobre o adolescente na
contemporaneidade?
O blog é uma produção cultural da contemporaneidade. O crescimento acelerado dos
blogs de adolescentes no Brasil e no mundo pode ser ilustrado através dos seguintes
dados estatísticos pesquisados: “o número de blogs no mundo chegou a 57 milhões”;
um quinto dos adolescentes nos EUA que tem acesso à Internet tem o seu próprio
blog”; “estima-se que o Brasil tem cerca de 3 milhões de blogs”; “entre 2004 e 2006 a
quantidade de adolescentes que criaram um blog passou de 19 para 28% dos jovens
conectados
1
. Acompanhamos uma mercantilização do gênero no mundo ocidental. Os
adolescentes representam a maioria dos autores de blogs dentro do estilo pessoal. A
1
Disponível em: http://tecnologia.terra.com.br/interna/0,,OI737650-EI4802,00.html. Acesso em 12 dez.
2007.
13
grande expansão do gênero entre os adolescentes mostra a importante relação entre a
cultura e a subjetividade.
É possível constatar que muito pouca coisa foi produzida até agora, no sentido de uma
possível interlocução entre a escrita adolescente nos blogs e a psicanálise,
provavelmente em função da atualidade do tema. Encontramos trabalhos recentes sobre
o tema na área da sociologia, da comunicação e da psicologia social, mas poucos no
campo da psicanálise. Podemos destacar nos campos da sociologia e da comunicação a
dissertação de mestrado de Rosa Meire Carvalho Oliveira, Diários públicos, mundos
privados: diário íntimo como gênero discursivo e suas transformações na
contemporaneidade, e a de Denise Araújo Schittine, Blogs: comunicação e escrita
íntima na Internet, que foi publicada. Ambos os trabalhos, entretanto, não discorrem
especificamente sobre os blogs de adolescentes.
Apoiados nos dados estatísticos que revelam o crescimento acelerado dos blogs entre o
público adolescente, nos perguntávamos, originalmente, sobre a importância da escrita
de si nesse ambiente virtual para os jovens. Dessa maneira, colocamos como objetivo
principal, quando da proposição do projeto de pesquisa para esta tese, a função dessa
forma de escrita no blog para o sujeito adolescente na contemporaneidade. Utilizamos
como recurso metodológico a pesquisa qualitativa, que dialoga com alguns dados
empíricos. Fizemos algumas incursões no ciberespaço, em especial nos blogs de
adolescentes. A teoria psicanalítica ofereceu-nos os subsídios teóricos para a discussão
do tema, que é também atravessado por diferentes campos do saber. Assim, tendo a
psicanálise como principal referencial trico, promovemos interlocuções com alguns
autores que fizeram um percurso histórico dos escritos de si” e do diário íntimo,
autores que analisam a modernidade, que discutem neros literários, gêneros virtuais,
além de autores que analisam a contemporaneidade.
Uma investigação preliminar do campo permitiu-nos constatar que os blogs de
adolescentes são “escritos de si”, apesar de estarem lançados no espaço público. Essa
observação nos leva a aproximar os blogs dos diários íntimos. O diário íntimo é um
produto da modernidade, assim como o blog é um produto da contemporaneidade. No
primeiro capítulo, apresentamos uma reflexão que permite situar historicamente o diário
14
íntimo como um produto da modernidade. Inicialmente, apoiando-nos em Foucault
(2006) e em Bakhtin (2002), identificamos o surgimento de uma escrita de si antes
mesmo do Cristianismo, mas destacamos como somente a partir do Renascimento ela
começa a transformar-se em uma “narrativa sobre si”, uma “escrita do eu”.
Na Grécia antiga, a escrita de si não tinha a função de apreensão de um eu”, mas a
subjetivação de um “já-dito”, tendo em vista uma cultura fortemente marcada pela
tradição, pelo discurso recorrente, pela prática da citação consagrada pela Antiguidade e
pela autoridade. No entanto, esses escritos, tal como concebiam os gregos, não
funcionavam como simples memorização de conhecimentos preestabelecidos, mas eram
um meio para o estabelecimento de uma relação de si consigo próprio. Eles podem ser
localizados entre o “já-ditoe “um dito com novo valor”, pois combinam a autoridade
tradicional da coisa já dita com a singularidade da verdade que nela se afirma e a
particularidade das circunstâncias que determinam seu uso. uma unificação desses
fragmentos “já ditos”, subjetivando-os na prática da escrita pessoal. Para Foucault, trata-
se de uma apropriação corporal”, pois a escrita constitui um corpo para aquele “que,
transcrevendo suas leituras, delas se apropriou e fez sua a verdade delas” (2006, p.152).
Para Bakhtin, esses escritos de si na antiguidade grega revelam um homem que é
totalmente público. Em tal homem biográfico não havia nada de íntimo-privado, de
sigiloso-pessoal, de introvertido, nenhuma privacidade. A unidade do homem e sua
autoconsciência eram puramente públicas.
Situando historicamente o surgimento do termo diário, é possível localizar os primeiros
usos do termo referindo-se a registros públicos, que gradativamente foram convertendo-
se em registros pessoais. No entanto, a dualidade público/privado permanece como
traço constitutivo dos diários. Essa dualidade está presente de forma contundente na
adolescência.
A escrita autobiográfica é possível na modernidade, com o surgimento do indivíduo
em sua concepção moderna. Além disso, nos países europeus onde o capitalismo
industrial triunfou, o apelo ao mercado, à concentração do capital, à racionalização dos
todos de produção, subordinou a idéia de sociedade moderna ou industrial à de
economia capitalista, separando brutalmente vida pública e privada. Na França, o
declínio da esfera pública levou à valorização da intimidade e à preocupação com a
15
própria existência singular. A confissão, a colocação do sexo em discurso e a
historização da vida levaram à valorização da narrativa individual. As escritas
autobiográficas tiveram sua grande expansão no século XIX, quando o diário consolida-
se como uma escrita íntima, confessional e fundamentalmente adolescente.
O diário é paradigmático da adolescência. Buscamos conceituar a adolescência na
psicanálise para tentar compreender a função que a escrita
2
pode exercer nesse momento
da vida. Se a adolescência enquanto uma fase da vida é uma construção social, na
psicanálise “a adolescência” pode ser considerada como um sintoma da puberdade.
Nesse tempo lógico, o sujeito é convocado a realizar um trabalho psíquico. Diante das
exigências que se impõem ao jovem adolescente: passagem do pai à lei social na
ampliação do pacto edípico ao pacto social, elaboração do luto dos pais infantis,
ressignificação da relação com o corpo e encontro com o outro sexo, a escrita de um
diário pode ser um instrumento que possibilita esse trabalho psíquico, operando sobre a
adolescência tomada como um sintoma. Fizemos a leitura de alguns diários íntimos de
adolescentes
3
que foram publicados, mas nos detivemos, em especial, na leitura de dois
que tiveram grande repercussão: O diário de Anne Frank (século XX) e Cem escovadas
antes de ir para a cama (século XXI), escrito por Melissa Paranello. Ilustramos, através
do diário de Melissa, o encontro com o real do sexo nesse momento da adolescência e a
escrita operando como uma forma de “dizer desse encontro com o inomivel”.
A leitura de diários íntimos levou-nos a interrogar se, nesta construção narrativa, a
escrita de um diário seria equivalente à escrita de um romance. Defendemos a hitese
de que o diário íntimo pode ser aproximado do romance como nero. Utilizando a
classificação dos romances em Bakhtin, relacionamos o diário íntimo com o romance de
formação. Utilizamos também, para a discussão sobre o romance, os autores Barthes,
Benjamin e Robert. Relacionamos a escrita de si nos diários com o romance familiar,
descrito por Freud. Podemos dizer que toda narrativa de si é, fundamentalmente, um
romance familiar.
2
O termo “escrita” utilizado aqui é relativo ao ato mesmo de escrever. No entanto, ao abordar a função da
escrita para o sujeito, tendo como referência a psicanálise, utilizamos o conceito de escrita em duas
vertentes: como linguagem e como escrita do real.
3
Utilizaremos o termo adolescente sempre que nos referirmos ao jovem que está situado no tempo da
puberdade. Consideramos que na puberdade o encontro com o real do sexo e a adolescência é a
resposta sintomática do sujeito a esse encontro.
16
Recorremos à elaboração feita por Lacan (2003 [1976]) de hystorização
4
e romance,
referidos ao processo do final de análise, e reportamos esses conceitos para o contexto
da escrita de si na adolescência. Brevemente, podemos dizer que a hystorização é a
redução da operação analítica transmitida no procedimento da transmissão de um final
de análise. a apresentação da análise como um relato, uma história, mas esse relato
o é cronológico. É o relato de um percurso, um testemunho. Esse relato hystoriza a
experiência singular de cada análise, faz elo numa história com seus cruzamentos e não-
cruzamentos, seu ritmo pprio. A essa construção se subtrai uma lógica. O testemunho
decorrente da hystorização” privilegia os efeitos de estilo. Operou-se uma contração do
tempo, próprio da passagem do romance à novela.
o romance é uma modalidade de narrativa em que a função reguladora do sentido se
faz por meio do tempo de construção desse ser de escritura que é o personagem. É a
temporalidade necessária à construção do personagem que constitui o eixo essencial da
legibilidade da significação da própria narrativa. Assim o personagem não é um dado a
priori, mas, uma construção temporal, uma forma vazia que vai pouco a pouco sendo
preenchida por diferentes predicados. Para Lacan: Termina-se sempre por tornar-se um
personagem do romance que é sua própria vida”
5
. Para isto, não é necessário fazer uma
psicanálise. Na hystorização, o desaparecimento do personagem, que, aentão, se
colocava como o principal protagonista de sua história. Cessa-se a decifração
significante e, nessa forma de testemunho, fica evidente que os significantes-mestres se
desprenderam, irremediavelmente, do personagem que outrora lhes deu suporte.
Defendemos a hipótese de que a escrita do diário íntimo na adolescência equivale à
perspectiva da escrita de um romance clássico, enquanto ele leva à construção do
4
A palavra utilizada por Lacan em “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”, publicado em Outros
Escritos (1976/2003) é hystorisation, uma soma de hystérie e historisation. Ao utilizar o termo
hystorização, Lacan faz entender a dimensão de ficção, de relato necessário para circunscrever uma
posição de gozo conectado a significantes-mestres. A adoção da vertente discursiva da histeria no
momento de conclusão de uma análise reforça a importância do testemunho na lógica de transmissão, em
detrimento da demonstração puramente matêmica. uma solução “particularencontrada pelo sujeito
no final de análise. Ele se deparou com os acontecimentos que, por definição, encarnam o que há de mais
contingente no percurso de sua vida e de sua análise. Há, portanto, uma diferença entre a hystorização,
que é relativa ao testemunho, da história, no sentido de sua versão romanceada. Essa discussão é
apresentada no terceiro capítulo.
5
Frase de Lacan dirigida a Eric Laurent e comentada por este no texto: Quatre remarques sur le souci
scientifique de Jacques Lacan. In: BRISSAC, Marie-Pierre de Cossé; DUMAS, Roland et al.
Connaissez-vous Lacan? Paris: Seuil, 1992.
17
personagem como o principal protagonista de sua história. O encontro com o Outro é
sempre faltoso e é desse encontro que nasce a possibilidade de construção de uma
resposta pelo sujeito. No despertar do real do gozo na puberdade, quando o simlico se
mostra insuficiente, o diário íntimo, como um romance, pode ser uma tentativa de suprir
essa insuficiência simbólica. Ao se fazer o principal protagonista da própria história, o
sujeito adolescente deixa de ser determinado pela história, podendo “ler essa
determinação”. No ritmo e na temporalidade próprios da escrita diária, o adolescente
pode descobrir um ponto de ancoragem de uma referência significante. Assim, a escrita
pode levar à construção de um romance no tempo da adolescência, fazendo surgir uma
resposta ao encontro com a falta no Outro. Ilustramos brevemente esse trabalho de
construção de um romance na adolescência por meio de recortes do diário de Anne
Frank.
O final do século XX foi marcado pela expansão tecnológica, com o crescimento da
informática atingindo e transformando todos os setores da vida humana. Surgem os
blogs ou diários on-line, que funcionam como sites pessoais. Esse tema é abordado
segundo capítulo, quando introduzimos a definição de blog e situamos historicamente o
seu surgimento. Desenvolvemos algumas investigações em blogs de adolescentes, com
diferentes objetivos.
Uma primeira leitura de alguns blogs escritos por adolescentes permitiu-nos conhecer
quem são os adolescentes que os escrevem (sexo, idade), a linguagem utilizada em seus
textos, o tipo de uso que fazem dos blogs, a quem dirigem os seus textos (se escrevem
para conhecidos ou desconhecidos), se utilizam o nome próprio ou um apelido (nick
name) e o que escrevem.
Numa outra investigação, buscamos conhecer por que os adolescentes escrevem blogs.
Para essa investigação
6
, recortamos nos textos os motivos pelos quais os jovens
escrevem diários on-line. O principal motivo eleito pelos adolescentes foi o interesse em
fazer uma "escrita de si" ou uma “narrativa de si”, o que aproxima os blogs dos diários
pessoais. Discutimos, portanto, a relação existente entre o diário íntimo e o blog,
utilizando a caracterização de diário enquanto gênero e buscando identificar nos blogs
6
Existem 6.310 blogs no site www.uol.com.br com as palavras “adolescente” e “diário” (palavras-chave).
com a palavra “adolescente” existem 34.028. Acesso em 13 ago. 2008.
18
as características formais de um diário. As leituras de alguns blogs de adolescentes
permitiram-nos concluir que, nesse encontro com o íntimo, os jovens se deparam com o
êxtimo”, com o real, com o estranho, que pode levar a uma nova construção simlica
que permita “dizer disso”.
O segundo motivo eleito pelos adolescentes foi o interesse em falar para outro
adolescente. O blog tem um caráter claramente público. Diferentemente do diário
íntimo, os blogs pesquisados revelaram que o adolescente se endereça a um outro
adolescente. Apresentamos brevemente a teoria dos discursos em Lacan, para discutir o
tipo discursivo presente nos blogs. Essa modalidade discursiva que leva à construção de
um romance, como resposta ao que o sujeito interpreta como vindo do campo do Outro,
é ilustrada pela modalidade de laço social que Lacan descreve como discurso histérico.
O discurso histérico nos mostra o sujeito dividido em posição de agente, que, ao
interrogar o outro sobre o desejo, escreve um romance e termina por se tornar um
personagem do romance que é a sua própria vida. O blog pode se constituir em um
romance que faz laço social.
O terceiro motivo eleito pelos jovens foi o interesse em falar sobre a adolescência, fase
em que se situam. Apresentamos então uma breve reflexão sobre a identificação que o
jovem faz, nesse tempo lógico, com a adolescência”. Para esta refleo, empregamos
os conceitos de identificação nas teorias de Freud e Lacan. Se a puberdade é o tempo do
encontro com o real do sexo, consideramos a adolescência como sintoma da puberdade.
Numa nova investigação de campo, buscamos identificar a presença da dimensão de
romance nos blogs, além de conhecer os temas mais comuns abordados pelos
adolescentes em seus escritos.
As rias leituras de blogs permitiram constatar que existem “particularidades” nessa
forma de escrita que se faz no universo virtual, em fuão de sua dimensão espaço-
temporal. Essas particularidades teriam incidências na relação do jovem com a “escrita
de si” na contemporaneidade? No quarto capítulo, discutimos a relação entre o suporte
material que sustenta a escrita de si e a dimensão espaço temporal envolvida nesses
suportes. A passagem do diário íntimo para o diário virtual revela a passagem da
19
linearidade à espacialidade, da lógica linear à lógica constelar
7
. Essa passagem implica a
própria mudança do estatuto de sujeito. Para essa discussão, o conceito de letra em
Lacan é fundamental. Assim, apesar da existência de uma lógica constelar” no
ciberespaço, alguns adolescentes constroem em seus blogs um texto que se aproxima
muito do diário íntimo, obedecendo a uma lógica linear, da ordem significante,
endereçada a um Outro, buscando uma construção de sentido ao encontro com o furo no
Outro. Mas em outros blogs podemos observar uma escrita fragmentária, sem
endereçamento, da ordem da ausência de sentido.
Normalmente, na primeira perspectiva, os blogs são escritos de maior duração, enquanto
na segunda perspectiva são textos mais curtos. Se o tempo é um fator importante na
escrita de um romance, buscamos investigar a questão temporal nos escritos
adolescentes, para comprovar a hipótese acima. Uma nova pesquisa feita com blogs de
adolescentes teve como objetivo investigar nos blogs a relação da escrita com o tempo a
partir de dois critérios: em primeiro lugar, pela presença do “passadoe do “futuro” na
escrita e, em segundo lugar, pelo tempo de duração dos blogs.
Essa investigação tornou possível compreender que os blogs pesquisados constituem-se
como uma escrita preferencialmente do tempo presente, do imediato. Mesmo nos blogs
de longa duração, acompanhamos uma preferência pela escrita da atualidade, um grande
interesse em descrever e situar o tempo da adolescência. Uma outra constatação feita é
que a maioria dos blogs tem curta duração.
Relacionamos a dimensão espaço-temporal dos blogs com a adolescência.
Apresentamos uma reflexão sobre o adolescente no tempo e no espaço. A dimensão
temporal na adolescência assume características peculiares. O adolescente busca
escrever sobre o tempo “presente”, tentando, nesse momento de transformações tão
rápidas, reter o fluxo temporal. Ele procura situar-se na adolescência, noção cultural que
implica uma posição social “intermediária”, de “tempo de espera”, entre a infância e a
fase adulta. A adolescência é um “não-lugar” assim como o ciberespaço. Muitos dos
paradoxos da adolescência se fazem presentes no ciberespaço, o que explica o grande
7
O termo constelar, utilizado na literatura e na psicanálise, é aqui referido ao predomínio do fragmentário
sobre o sistemático, pela retomada constante dos mesmos temas com rias significações e pelas rupturas
ou passagens bruscas de um tópico para o outro.
20
fascínio que o espaço virtual exerce sobre os jovens. Lançando mão da referência que
Lacan faz da adolescência como o tempo do despertar, apresentamos o ciberespaço
como um espaço onde é possível tanto a permanência no sonho quanto o despertar.
Discutimos então a adolescência e a escrita no blog, entre o sonho e o despertar.
No quinto capítulo, utilizando a discussão feita por Lacan de Kant com Sade,
questionamos se acompanharíamos, hoje, a passagem da escrita do romance à escrita do
gozo. Inicialmente, discutimos, a partir de autores que analisam a contemporaneidade,
se existe uma “perversão generalizada”
8
8
na contemporaneidade, ou uma ética sadeana”
hoje, que contribuiria para essa irrupção de gozo nos escritos dos blogs. Utilizando a
teoria lacaniana, fazemos uma diferenciação entre estrutura perversa e traços de
perversão. Buscamos extrair nos blogs esses traços de perversão. Constatamos em
rios blogs a presença de traços de perversão e a dimensão da escrita de gozo.
Se por um lado identificamos em alguns blogs a construção do romance, que leva à
construção do personagem como o principal protagonista de sua história, a construção
de um sentido, por outro lado identificamos em outros blogs a dimensão do apagamento
do sujeito no anonimato do ciberespaço. Na dimensão de romance, destacamos a função
significante, da mensagem endereçada como vertente do discurso histérico, que visa à
construção do sentido. Na dimensão da escrita de gozo, o imediato, as imagens obscenas,
agressivas, os fragmentos dispersos, as letras soltas, o “sem-sentido”.
Mas, além dos dois tipos acima, identificamos um terceiro tipo de blog, que não se
encaixa em nenhuma das duas perspectivas acima. Trata-se de uma escrita que tem um
endereçamento, na tentativa de se constituir um romance, mas que acaba por se fechar
em si mesmo, num curto-circuito narcísico, que não faz laço social. Apresentamos no
último capítulo uma leitura possível desse fenômeno, buscando refletir sobre o que a
escrita de si nos blogs de adolescentes revela de novo hoje.
8
A existência de uma perversão generalizada na contemporaneidade é uma hipótese defendida por alguns
psicanalistas. De acordo com Alain Merlet (s.d.), a perversão generalizada não é nada mais do que o
efeito e o resultado da mercantilização dos objetos vertidos para o gozo pela tecnologia. Essa discussão é
feita no quinto capítulo.
21
CAPÍTULO I: O DIÁRIO ÍNTIMO ADOLESCENTE COMO
PRODUTO DA MODERNIDADE
Pois aquilo que o fantasma impõe é o escritor tal como podemos vê-lo em seu
diário íntimo, é o escritor menos sua obra: forma suprema do sagrado: a
marca e o vazio. (BARTHES, 2003: 92)
1.1. Primórdios da escrita de si: a subjetivação de um “já-dito”
Escrever sobre si mesmo não é uma prática recente. Se na atualidade os jovens utilizam
o blog para falar de si, levando ao espaço público suas vidas pessoais, na antiguidade a
abordagem biográfica era também de caráter blico. Mesmo no século XIX, época
áurea dos diários íntimos, “guardados a sete chaves”, muitos diaristas decidiam publicar
seus escritos. Que particularidades apresenta, portanto, essa escrita de si no ambiente
virtual na contemporaneidade? O que há de inédito nessa forma de escrita? Em que a
leitura dos blogs de adolescentes ajuda-nos a compreender a importância dessa escrita
na adolescência hoje?
Buscamos localizar historicamente o surgimento das primeiras formas de escrituras
pessoais para compreender a interferência da cultura nessa prática. Os escritos de si têm
origem bastante remota, podendo ser localizados ainda na antiguidade. Os escritos
pessoais surgiram também a partir de registros públicos, de anotações de atividades
profissionais, religiosas ou de viagens dos primeiros séculos depois de Cristo, que aos
poucos foram convertendo-se em escritas de si”. No entanto, o diário íntimo, como
uma narrativa da experiência pessoal e subjetiva, de caráter confessional, foi possível
a partir do Renascimento, mais especificamente, na modernidade.
Se a escrita de si” pode ser localizada ainda na Grécia Antiga, ela assume diferentes
formas e objetivos ao longo da história e nos diferentes contextos sociais. No texto “A
escrita de si”
1
, Foucault (2006a) faz uma reflexão sobre as artes de si mesmo”, ou seja,
sobre a estética da existência e o domínio de si e dos outros na cultura greco-romana,
1
Esse texto foi publicado em: FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade, política. Colão: Ditos e
escritos de Michel Foucault, vol. V. Org. Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2006a.
22
nos primeiros séculos do império. A referência inicial de Foucault é a Vita Antonii,
que apresenta uma notação escrita das ões e dos pensamentos como um elemento
fundamental da vida ascética. A escrita tinha uma função importante para o asceta, ela
buscava atenuar os perigos da solidão e oferecer o que se faz ou pensa a um olhar
possível. A escrita é como um companheiro, suscitando o respeito humano e a vergonha.
Essa escrita tinha uma função de combate espiritual.
Foucault observa a presença de alguns aspectos comuns à escrita espiritual, em
documentos dos séculos I e II, os hypomnêmata
2
, e a correspondência. Considera que o
Vita Antonii, um dos mais antigos textos produzidos pelo Cristianismo sobre o
problema da escrita espiritual, torna possível detectar de forma retrospectiva alguns dos
aspectos que a função da escrita vai desempenhar na cultura filofica sobre si antes do
Cristianismo. Nos textos de Epícteto, a escrita parece regularmente associada à
meditação, ao exercício do pensamento sobre ele mesmo que reativa o que ele sabe,
torna presentes um princípio, uma regra ou um exemplo, reflete sobre eles, assimila-os,
e assim se prepara para encarar o real(FOUCAULT, 2006a: 146-147). Como elemento
de treinamento de si, a escrita tinha uma função etopoiética, ou seja, operadora da
transformação da verdade em êthos. Estas formas de escrita de si na antiguidade clássica
tinham uma função estética da existência” ou autodisciplinar, mas o eram ainda a
ascese e a moral de renúncia que o Cristianismo veio a consagrar mais tarde.
Os hypomnêmata podiam ser, no sentido técnico, tanto livros de contabilidade como
registros públicos ou cadernos de lembretes, mas sua utilização como livro de vida e
guia de conduta parece ter se tornado comum a todo público culto. No entanto, Foucault
observa que por mais pessoais que fossem, esses hypomnêmata não devem ser
entendidos como diários ou como narrativas de experiência espiritual. Elas não
constituem uma “narrativa sobre si mesmo”, nem têm papel de confissão com valor de
purificação. Não buscam o indizível, nem almejam revelar o oculto, o querem dizer o
o-dito, mas tratam de captar o já-dito, de reunir o que se pôde ouvir ou ler, “e isso
com a finalidade que nada mais é que a constituição de si” (FOUCAULT, 2006a: 149).
2
Hypomnêmata é uma palavra grega com rias traduções para o português: uma lembrança, uma nota,
um registro público, um comenrio. Foucault (2006) utiliza o termo referindo-se a uma caderneta de
notas.
23
Essa análise de Foucault é importante para se estabelecer alguns parâmetros de
diferenciação entre a escrita de si na antiguidade e a escrita de si a partir do
Renascimento. Somente a partir do Renascimento é que a escrita de si começa a
constituir-se em uma “narrativa sobre si mesmo”, com papel de confissão e valor de
purificação. No culo XIX, os diários íntimos e as diferentes formas de escrita
autobiográfica são marcados por uma reflexão pessoal que envolve a busca da revelação
do oculto, do não-dito, do indizível.
Situando as hypomnêmata no contexto da época, não se pode deixar de considerar na
antiguidade a cultura muito fortemente marcada pelo valor do saber tradicional, pelo já-
dito, pela recorrência do discurso, pela prática da citação sob a chancela da antiguidade
e da autoridade, marcadas por uma ética muito explicitamente orientada para o cuidado
de si.
Essa escrita de si era uma prática que visava contribuir para a formação pessoal.
Segundo Foucault, se a redação dos hypomnêmata pode contribuir para a formação de si
através desses logoi dispersos, é principalmente por três razões: os efeitos de limitação
devidos à junção da leitura com a escrita, a prática regrada do disparate que determina
as escolhas e a aproprião que ela efetua (FOUCAULT, 2006a: 149). Em primeiro
lugar, a prática de si envolve a leitura, como insiste Sêneca. Mas não é preciso dissociar
leitura e escrita. Deve-se recorrer alternadamente a essas duas ocupações. “A
contribuição dos hypomnêmata é um dos meios pelos quais a alma é afastada da
preocupação com o futuro, para desviá-la na direção da refleo sobre o passado”
(FOUCAULT, 2006a: 150). Em segundo lugar, a escrita dos hypomnêmata é uma
prática regrada e voluntária do disparate. Ela é uma escolha de elementos heterogêneos.
A caderneta de notas é dominada por dois princípios; “a verdade local da sentença” e
“seu valor circunstancial de uso” (2006a: 151). Foucault destaca que:
A escrita como exercício pessoal feito por si e para si é uma arte da verdade
díspar; ou, mais precisamente, uma maneira racional de combinar a
autoridade tradicional da coisa dita com a singularidade da verdade que
nela se afirma e a particularidade das circunstâncias que determinam seu uso
(FOUCAULT, 2006a: 151).
Personagens como Plutarco ou Sêneca ilustram a necessidade de apropriação que um
leitor deve fazer de um texto. Sêneca diz que é preciso ler sempre autores de uma
autoridade reconhecida. Entre os vários textos lidos, ele recomenda escolher um para ser
24
digerido durante o dia. Em terceiro lugar, esse disparate proposital, segundo Foucault,
o exclui a unificação. Trata-se de unificar esses fragmentos heterogêneos pela sua
subjetivação no exercício da escrita pessoal. Assim, essa escrita o representava uma
simples memorização do “já-dito”, mas ela combina a autoridade tradicional com a
singularidade da verdade que nela se afirma. O papel da escrita é constituir um corpo.
Trata-se mesmo de uma aproprião corporal por meio da escrita: “a escrita
transforma a coisa vista ou ouvida em „forças e em sangue‟ (in vires, in sanguinem)‖
(FOUCAULT, 2006a: 152).
É possível fazer uma aproximação entre essa função da escrita pessoal descrita por
Foucault na antiguidade e a função da escrita na psicanálise. Rapidamente, podemos
destacar dois aspectos, que serão aprofundados nos próximos capítulos. Em primeiro
lugar, o sujeito se constitui através do laço social. O sujeito se apropria dos significantes
que recebe do campo do Outro, enquanto campo simbólico ou cultural. É a partir do que
o sujeito recebe da cultura que ele constitui algo “próprio”. Em segundo lugar, ao
considerar que o papel da escrita é constituir um corpo, podemos pensar que, para além
do registro da linguagem, essa escrita revela a dimensão de uma escrita no corpo,
derivada de um mapeamento constitutivo das bordas erógenas. Essa escrita tem como
base os objetos a
3
, como o olhar, o seio, as fezes e a voz; objetos que, extraídos do
campo do Outro, recortam o campo do gozo próprio. A escrita revela, pois, para além da
vertente significante, a dimensão real.
Não eram apenas as hypomnêmatas que constitam-se como uma forma de escrita de si.
As correspondências também permitem o exercício pessoal, como revela Foucault
(2006a). As cartas eram enviadas para ajudar os correspondentes, aconselhá-los, exortá-
los, admoestá-los ou consolá-los. Mas essa escrita dirigida a um outro age, por meio do
próprio gesto da escrita, sobre aquele que a envia. Ela tem, portanto, uma dupla função.
Ela constitui uma maneira de se manifestar para si mesmo e para os outros, tornando o
escritor presente para aquele a quem ele envia. Foucault comenta que escrever é se
mostrar, se expor, fazer aparecer seu próprio rosto perto do outro. Assim, a carta é ao
mesmo tempo um olhar que se lança sobre o destinatário... e uma maneira de se oferecer
ao seu olhar através do que lhe é dito sobre si mesmo” (2006a: 156).
3
O conceito de objeto a é apresentado no final deste capítulo, quando é abordada a escrita na
adolescência.
25
A partir do texto de Foucault, podemos destacar as funções da escrita de si na
antiguidade. Para Foucault (2006a), no caso dos hypomnêmata tratava-se de constituir a
si mesmo como objeto de ação racional. Para que isso fosse possível, buscava-se a
apropriação, a unificação e a subjetivação de um “já-dito”. No caso da anotação
monástica das experiências espirituais, buscava-se desalojar do interior da alma os
movimentos mais escondidos para deles se libertar. No caso do relato epistolar de si
mesmo, buscava-se “fazer coincidir o olhar do outro e aquele que se lança sobre si
mesmo, ao comparar suas ações cotidianas com as regras de uma técnica de vida”
(FOUCAULT, 2006a: 162).
Uma outra particularidade da escrita de si na antiguidade era o seu caráter público,
aspecto que é destacado por Bakhtin (2002). O autor nomeia essas escritas na Grécia
Antiga como “formas biográficas e autobiográficas”. No entanto, faz a ressalva de que
esses escritos não apresentavam, nesse período, as funções que passam a assumir a
partir do século XVIII. Para o autor, essas formas biográficas exerceram enorme
influência para o desenvolvimento da biografia e autobiografia europeias, assim como
para o desenvolvimento de todo o romance europeu. Essas formas antigas estão
baseadas em uma noção própria de tempo biográfico e em uma imagem específica de
homem.
No Classicismo grego, as formas de autobiografias e biografias não eram desligadas do
acontecimento político e social concreto e da sua publicidade retumbante. Ao contrário,
eram inteiramente definidas por esse acontecimento, eram atos verbais cívico-poticos
de manifestação pública. “Em tal homem biográfico não havia nada de íntimo-privado,
de sigiloso-pessoal, de introvertido, nenhuma privatividade” (BAKHTIN, 2002: 252).
Não nada para si só”, nada que não seja sujeito ao controle e à avaliação público-
estatal. A unidade do homem e a sua autoconsciência eram puramente públicas. Toda a
existência era “visível e audível” (p.253). o havia nenhum núcleo no homem que
fosse mudo ou invisível. Ele situa as Confissões de Santo Agostinho nessa perspectiva.
Elas o podem ser lidas “em voz baixa”, é preciso declamá-las em voz alta, “em sua
forma ainda encontra-se vivo o espírito da praça grega, onde primeiro se formou a
conscientização do homem europeu” (p.254). O autor destaca como o grego não
conhecia a nossa divisão em interior e exterior, pois para ele os dois planos estavam no
26
mesmo nível. Viver exteriormente é viver para os outros, para a coletividade, para o
povo. A abordagem biográfica era, portanto, de caráter público.
A partir da modernidade, a escrita de si começa a apresentar novas funções. Não mais a
apropriação e a unificação de um “já-dito”. As referências identificatórias, bem
definidas na antiguidade, são desconstruídas na modernidade. À medida que os astros
deixam se ser tomados como determinantes absolutos e passam a ser vistos como
passíveis de efeitos polares, como observa Lima (1986), surge uma nova concepção de
homem, que exerce o livre-arbítrio. A iminência dessa nova concepção leva à
constituição da concepção moderna de indivíduo. A partir de então, através da escrita de
si busca-se conhecer “a si mesmo”, como um processo individual e de caráter privado.
Tendo localizado as primeiras formas de escrita de si e delineado as suas
particularidades nesse contexto histórico e cultural, buscaremos situar os primeiros usos
do termo “diário”, destacando a tensão entre o público e o privado que o caracteriza.
Depois, buscaremos identificar, na modernidade, os principais fatores que propiciaram o
surgimento desta forma de escrita como uma prática íntima e confessional, como uma
“narrativa de si e, fundamentalmente, adolescente. Para desenvolver essa discussão
sobre a escrita na adolescência, acrescentaremos algumas das principais elaborações
teóricas de Freud e de Lacan sobre o tema.
Construiremos dessa forma o percurso que fundamenta a discussão sobre a relão entre
a escrita de si e a cultura, permitindo situar o diário íntimo como produto da
modernidade. Vamos fazê-lo de forma a discutir posteriormente o blog como produto da
contemporaneidade. Essa abordagem cultural alimenta a discussão mais específica sobre
a aproximação entre o diário íntimo e o romance no segundo capítulo, que permitirá
delimitar com maior precisão teórica a possibilidade do blog, como um diário on-line,
se constituir também como um romance. A discussão sobre o romance será ponto chave
para, associada à reflexão sobre a dimensão espaço-temporal nos blogs, permitir
relacionar a escrita no blog, o sintoma e a adolescência na contemporaneidade.
27
1.2. O surgimento do diário: a tensão entre o público e o privado
Apesar da escrita de si” poder ser localizada antes mesmo do Cristianismo, os
primeiros usos do termo “diário” datam do século XIV e se referem a registros de
caráter público. Somente a partir do Renascimento europeu os diários deixam de ser
públicos. O diário, como um tipo de escritura íntima e confessional, como uma forma de
autobiografia”, alcança seu pleno desenvolvimento no final do século XVIII e início do
século XIX. Apesar da passagem gradativa que se acompanha no diário, de público a
privado, ele é marcado por uma constante tensão e ambiguidade entre esses dois polos.
Buscando o significado da palavra descobre-se que o termo diário refere-se à relação
do que se faz ou sucede em cada dia, ou à obra em que se registram, diária ou quase
diariamente, acontecimentos, impressões ou confissões. O termo refere-se tamm ao
jornal que se publica todos os dias ou ao livro comercial de uso obrigatório, no qual se
registram todas as operações econômicas, em ordem cronológica (FERREIRA, 1986).
No latim, segundo a etimologia apresentada pelo dicionário Houaiss, o adjetivo diarius
/a/ um‖ é “o que se faz ou acontece todos os dias”; e o substantivo neutro, pagamento
de um dia, registro escrito de memória que se faz cada dia”. E o vários os significados
encontrados no verbete. Como substantivo masculino: 1. Escrito em que se registram
os acontecimentos de cada dia; 2. Periódico que se publica todos os dias (...)”
(HOUAISS, 2000: 1032). O termo jornal vem do latim journale, o substantivo
masculino jornal significa: 1. Publicação diária, com notícias sobre o cenário potico
nacional e internacional, informações sobre todos os ramos do conhecimento,
entrevistas, comentários, etc.; (...) 4. Escrito em que é feito um relato cotidiano dos
acontecimentos; diário” (HOUAISS, 2000: 687).
O termo jornal vem do francês antigo journal, significando diário; do latim diurnal, de
pertencente ao dia. Segundo a pesquisadora norte-americana Gannett (p.106)
4
, cujo
livro publicado em 1992 constitui-se em uma referência anglossaxônica da história do
diário, os primeiros usos do termo em inglês parecem datar da metade do culo XIV e
4
GANNETT, Cinthia. Gender and the journal. Diaries and academic discourse. New York: State.
University of New York Press, 1992. 262 p.
28
se referem aos livros de serviços religiosos que continham as horas do dia, conhecidos
como “Livros de Horas”. Eles eram inicialmente de domínio religioso e aos poucos
passaram a ser utilizados pelos leigos. Ao final da Idade Média, surge a necessidade de
um livro para possibilitar aos leigos o acesso a certos elementos do breviário utilizado
pelos padres. Apesar das variações de formato e da abundância de ilustração, todos os
Livros de Horas são concebidos segundo um mesmo esquema: começam com um
calendário elaborado exclusivamente em função das festas religiosas. Seguem-se
numerosas preces. Estas, compostas em grande parte de salmos, seguem o ritmo
cotidiano as matinas, laudas, prima, tércia, sexta e noa, as speras e as completas
escalonam o dia. O livro de horas ficou limitado à leitura privada, alheia às cerimônias
públicas e coletivas. Todos tinham seu Livro de Horas, muitas vezes o único da estante.
O termo journal surgiu como verbete do dicionário inglês Oxford em torno de 1355-56;
e em 1454 aparece outra referência: a palavra journal é usada para se referir a viajar ou
para recordação de viagem. Em 1540, o termo é usado para designar os registros
comerciais do livro diário, e em encontros públicos é usado para se referir às
recordações diárias de eventos do dia ou às transações realizadas por corpos públicos.
Apesar da correlação etimológica existente entre os termos diário e jornal”, no Brasil
o observamos a utilização prática do termo “jornal” para denominar o diário íntimo,
como existe nas tradições culturais norte-americana e europeia (GANNETT, 1992: 106).
Os diários escritos antes do século XVI o primeiramente públicos. Robert A.
Fothergill, considerado o primeiro estudioso crítico do desenvolvimento das tradições
do diário na Inglaterra, que publicou Private chronicles (1974), citado por Gannett
(p.105), afirma que não uma fonte única da escrita do diário. Ele afirma,
especialmente, que o diário como nós conhecemos hoje se desenvolveu da “junção de
um número de hábitos pré-diários até a forma que excede os elementos componentes”.
Ele apresenta a evolução do modelo de diário íntimo com quatro formas de proto ou
pré-diários: diários blicos, diários de viagem, diários de registro pessoal análogos
aos livros comunitários (commonplace books) e diários de consciência ou espirituais,
que são descritos de forma sintética a seguir.
Os diários blicos, segundo Fothergill, são tão antigos quanto a própria escrita.
Marcados pela tradição de escrita comunitária, tinham a função de divulgação pública
29
de fatos e eventos. Exemplo de diário público são “as tábuas de argila encontradas na
Suméria, datando de aproximadamente 3000 a.C., contendo listas de ração para ser
distribuída, recordação de tributos e donativos, e listas de nomes divinos. Ainda nessa
categoria, estão incluídas as recordações e relatos sobre transações de corpos públicos,
diários de viagem, recordações diárias de campanhas militares e expedições científicas.
O diário de viagem agrupa relatos de experiências de viagens de inúmeros diaristas. Os
primeiros registros aparecem no culo X, no Japão. Eles relacionavam, frequentemente,
prosa narrativa e descritiva, bem como poesia, e eram um nero altamente reconhecido
pelo valor histórico e literário. Os diários de viagem tinham parte importante na relação
de hierarquia e poder nos meios religiosos, utilizados em orações e oráculos, e
entendidos como um diálogo entre os seres humanos e os deuses. Religiosos faziam
excursões para lugares citados em poemas famosos para promover o poder religioso.
Chegado ao destino, o viajante podia compor um poema incorporando uma linha a
partir do original. Essas práticas funcionaram como uma devoção ancestral, de acordo
com Fothergill (citado por GANNETT, 1992).
Os diários de viagem, muito comuns entre os séculos XV e XVIII, refletiam as viagens
de caráter exploratório ou não, trazendo informações sobre a geografia específica,
terreno, possibilidade de rotas, fauna e flora, mas também curiosidades sobre os povos
nativos e a expressão do sentimento associado a cada uma dessas experiências. Na
metade do século XVII, esse tipo de diário começa a ser utilizado como rito de
passagem na educação de rapazes. Uma das etapas para se tornar adulto, o Grand Tour,
oferecia ao jovem a oportunidade de empregar o diário de viagem para desenvolver o
hábito da observação e reflexão. Os jornais de viagem eram utilizados por exploradores
e militares na Europa, para relatar as expedições, como os textos gerados a partir dos
descobrimentos portugueses, denominados posteriormente de “literatura de viagens”.
Esse corpus é composto de obras escritas por testemunhas presenciais dos
acontecimentos narrados e que se identificam por uma temática comum, que é a
experiência proporcionada pela própria viagem.
Observa-se, portanto, como esses diários começam a passar do público ao privado, do
uso “informativo de viagens” a seu uso como um processo educativo, funcionando
como rito de passagem” para os rapazes, que desenvolviam a prática de observação e
30
reflexão em seus diários. A escrita de um diário de viagem era uma prática
essencialmente masculina.
Os diários de memória pessoal são análogos aos commonplace books (livros de família).
Conforme Ariès e Duby (2003), na Idade Média eram escritos livros de família
(ricordanze, ricordi) com o objetivo de prolongar no tempo o privado doméstico. Os
autores dão conta que essas ricordanze não eram escritas de forma coletiva. Em geral,
os autores eram os próprios pais de família que até podiam emprestar o livro de
memórias para algum familiar, mas, de fato, eles mantinham um caráter secreto.
Segundo Gannett (1992), o commonplace book é considerado um ancestral dos diários
de leitura, quotas, observações, notas e desenhos que pessoas letradas, particularmente
estudantes, têm mantido por séculos. Percebe-se aqui mais claramente o surgimento da
escrita privada nesses diários de memória pessoal, assim como a função educativa
desses escritos.
Os diários de consciência ou espirituais foram instrumentos religiosos utilizados para o
auto-exame espiritual. Gannett (1992), citando Fothergill e Brian Dobbs, afirma que os
puritanos, e mais tarde os Quacres, Metodistas e outros grupos que desafiaram a
autoridade externa em matéria de crença pessoal, voltaram-se para a punição e rigoroso
autoexame espiritual, para o que encontraram nos diários ferramenta muito útil. Pela
metade do século XVII, how-to, livros tais como o de John Beadle The journal or
diary of a thankful christian (1656) eram utilizados para ajudar praticantes potenciais
a usar o diário para examinar seus comportamentos, suas consciências, suas almas e sua
relação com Deus e seu trabalho, e para mapear e documentar a mão de Deus em seu
trabalho e no mundo.
A partir dessa época, a prática de escrever diários como meio de autoexaminação e
autopunição tornou-se muito comum entre os religiosos puritanos e protestantes. No
grupo protestante “A Sociedade dos Amigos” ou ―Quacres‖, os jornais também eram
um instrumento importante para avaliar as chances de salvação. Durante a Restauração
na Inglaterra, ocorrida após o assassinato do Rei Charles I e a subida ao trono de
Charles II (1660-1685), os diários tornaram-se palco de uma confissão geral,
determinada pela multiplicação de retiros e missões. Aterrorizados pela ameaça de culpa,
muitos passaram a investigar a si mesmos à procura de faltas. Os diários serviam tanto
31
para as confissões e a autoanálise, como também como regulamentos e resoluções que
aprofundavam os exames. As mulheres eram estimuladas a manter diários como parte
do sacramento e penitência e os homens mantinham a vida registrada e ordenada. Os
diários chegaram aos Estados Unidos pelas mãos dos primeiros protestantes, no séc.
XVII. A tradição norte-americana dos diários espirituais tornou-se uma das mais antigas
tradições literárias, situando-se como modelo central até o século XIX, junto com os
diários de viagem.
Os diários de consciência ou espirituais, que se tornaram muito populares no século
XVII, fomentaram a prática do diarismo nos séculos seguintes, segundo Gannett (1992).
Mallon, citado por Gannett (p.110), destaca que os diários espirituais representam “a
grande forma de arte protestante”, responsável por retirar dos diários o caráter público
que tinham até então, para concentrar-se no aspecto da vida privada do diarista.
É possível perceber que diferentes formas de escritura podem ser identificadas como
fontes do diário íntimo. Mas os diários espirituais, comuns a partir do Renascimento
europeu, ilustram de maneira mais clara a passagem da escrita pública para a privada ou
íntima. Esses diários espirituais contribuíram para o exercício de uma escrita de si com
valor de confissão, purificação e autorreflexão.
Como a passagem da escrita pública para a escrita privada se deu de forma gradativa e
com diferentes fontes, não existe um consenso com relação ao que se deva identificar
como o primeiro diário íntimo”. Gannett (1992, p.111) considera Samuel Pepys (1633-
1703) o precursor dos diários íntimos. Ele escreveu entre 1660 e 1669, em escrita
taquigráfica, os 64 volumes de seus diários chamados de Memoirs, que foram
publicados somente em 1825, após terem sido descobertos e decifrados. Esses
exemplares ilustram o bito crítico da mente, associado com a observação e reflexão
do mundo sico, social e do mundo interior. Os seus diários foram escritos em dez anos
entre os 27 e os 36 anos e apresentam uma reflexão do autor sobre sua atuação como
um homem importante da corte inglesa, circulando nos altos escalões científicos e
culturais do reinado de Charles II, a quem serviu de perto como membro da marinha.
Porém, outros dois ingleses, John Evelyn (1620-1706) que escreveu os diários entre
1641-1706, publicados apenas em 1818 e James Boswell (1740-1795) que teve o
32
diário publicado em 1785 são considerados por Gannett como os maiores praticantes
do gênero. Boswell é celebrado pelo fato de ter aberto a público, como ninguém até
então, a própria intimidade. John Evelyn também foi um membro da corte inglesa e
relatou detalhes da era do Rei Charles I até a Rainha Anne, além de descrever, em seus
diários, o nascimento da ciência e da arte modernas. Seus escritos comem uma leitura
do século XVII. Gannett (1992, p.112) destaca que, embora os diários de Pepys sejam
considerados modelo para o diarismo, o marco da nova consciência é o livro de ensaios
do francês Montaigne, escrito em 1580.
Enquanto Gannett considera Montaigne o precursor do diário íntimo, Lima
5
considera o
modelo clássico do gênero autobiográfico as Confissões de Jean Jacques Rousseau,
escritas no período de 1782-1789. Para Lima, o texto de Rousseau pode ser considerado
autobiográfico, porque busca o desvendamento do eu pela sondagem de suas
motivações, por mais remotas ou ocultas que fossem. Para Rousseau a “escrita de si”
possibilitaria ao leitor o conhecimento sobre a verdadeira natureza humana. Rousseau
inaugura uma escrita confessional, marcada pelo desejo de desvendar o “eu”, que não
existia na antiguidade e que passa a ser comum nas escritas de diários nos séculos XVIII
e XIX. Veremos adiante as condições que possibilitaram a emergência de um diário
íntimo e confessional na modernidade.
Se diferentes formas de escritura pessoal surgiram de registros públicos, elas não
marcam uma transição simples do público ao privado, mas, uma relação de ambiguidade
e de conflito entre os dois polos. O diário, desde suas formas originais até a sua forma
eletrônica contemporânea, é marcado por uma constante tensão entre a publicização e a
escrita de si, entre o desejo de seu autor de revelar-se e esconder-se.
Pode-se dizer que essa tensão é constitutiva do próprio diário. Não se pode deixar de
sublinhar que, de acordo com a psicanálise, essa tensão é também característica da
própria subjetividade. Partindo do conceito de sujeito cindido, a escrita de si revela
grande complexidade. As contradições entre o ficcional e o real, o subjetivo e o objetivo,
o público e o privado, estão presentes em todo texto e atestam a divisão do sujeito. Todo
5
LIMA, Luiz Costa. “Júbilos e misérias do pequeno eu”. In: Sociedade e discurso ficcional. Rio de
Janeiro: Guanabara, 1986.
33
texto joga com a ambiguidade que se traça entre o sujeito da enunciação e o sujeito do
enunciado, entre o consciente e o inconsciente, o “eu” e o outro. Na adolescência essa
ambiguidade se revela de forma contundente.
Fundamentalmente, baseamo-nos no pressuposto de que, por mais íntima que seja uma
forma de escrita, ela é sempre dirigida a um outro. Ao se dirigir ao seu “querido diário”,
o sujeito se dirige a um outro imaginário, a quem confere o poder de escuta, de
julgamento e de absolvição. O diário é um outro para o sujeito que escreve, um outro
capaz de acompanhar e atestar suas transformações subjetivas, capaz de acolher as mais
íntimas confises e desejos, respeitando-os e guardando-os para si, um outro especular,
matriz da projeção dos ideais narcísicos de seu autor. Mas toda escrita é também
endereçada a um Outro, campo simbólico, cultural. Veremos, na passagem que o sujeito
adolescente deve fazer do espaço familiar para o social mais amplo, como ele exercita a
constituição de um íntimo, que escapa ao donio parental, ao mesmo tempo em que se
lança no espaço público.
Se a escrita de si torna-se uma forma de desvendamento de um eu, como a apreensão de
uma unidade, essa unidade, como nos ensina Lacan, é uma ilusão. O sujeito é dividido e
o há como se curar dessa divisão. A origem de sua existência está situada no desejo
do Outro, dimensão inconsciente de seu ser, transindividual, que lhe escapa. O sujeito é
inicialmente marcado pelo Outro, pelo significante. O desconhecimento da
determinação simlica do desejo incita o sujeito a buscar restaurar sua unidade perdida,
ilusória. O texto autobiográfico é um campo especular, projeção de múltiplos reflexos e
espaço de encenão de um eu. O autor de um diário se dirige a um outro especular,
narcísico, tecendo um texto que, através de suas tramas significantes, deixa escapar o
desejo.
Veremos agora as condições que propiciaram o surgimento do diário como uma escrita
íntima, confessional, como uma “narrativa sobre si” na modernidade. Para essa
discussão, retomaremos as noções de público e privado, localizando na modernidade o
momento do declínio da dimensão pública e da expansão da dimensão privada da
existência.
34
1.3. O diário íntimo como produto da cultura moderna
A escrita autobiográfica”, incluindo o diário pessoal, pode ser historicamente
localizada. Se as escrituras pessoais existem desde a antiguidade, elas não se
configuram como autobiográficas nesse período histórico. a partir do Renascimento
e, mais especificamente, na modernidade, podemos encontrar condições efetivas para o
aparecimento de uma “autobiografia”. No mundo greco-romano a experiência pessoal,
como algo íntimo e particular, não era considerada digna de consideração pública e
inexistia uma tida linha diviria entre a narração dos fatos reais e de fatos inventados.
Uma vida adquiria sentido à medida que se adequasse a um modelo vigente. Mesmo a
autoconsciência não tinha nessa época uma dimensão individual, mas pública. Assim,
o existia uma dimensão propriamente privada, como passa a ser desenvolvida a partir
da modernidade. No mundo antigo, apenas a educação para a vida social e a moralidade
eram relevantes. Enquanto discurso ficcional, nem mesmo a literatura existe na
antiguidade, porque não fronteiras absolutas entre as formas ficcionais e as formas
autobiográficas.
Mesmo na Idade Média o sujeito não tem dimensões psicológicas. No conjunto literário
medieval a poesia aparece quase totalmente “objetivada”, cujo sujeito nos escapa
(LIMA, 1986: 255). O caminho autobiográfico se torna impossível num contexto
cultural onde os modelos de vida são colocados de forma que a opção individual
consiste apenas na escolha de um deles.
Assim, compreende-se que a escrita de diários, como uma forma de escrita
autobiográfica, é uma prática cultural. Ela é possível com o surgimento do
sentimento de individualidade. O Renascimento possibilitou a emergência de uma
escrita que visa “a si mesmo”, o indivíduo. É nesse momento que a individualidade
começa a se delinear, pois progressivamente se dissolve a vincia medieval da
comunitas e o indivíduo se encontra perante si mesmo, quando a ruptura das condições
esperáveis segundo um modelo prévio de conduta ganha a intensidade conhecida desde
o século XVI. Ela emerge acompanhada pelo exercício da escrita, pelo emprego da
simulação e/ou da sinceridade. A complexidade da vida renascentista começa a tornar
problemática a permanência de um ideal de conduta, uma vida coletivamente orientada
e previamente ensinável.
35
Tanto o eu individualizado quanto a literatura não são manifestações atemporais,
portanto, mas são possíveis com o desenvolvimento do individualismo. “Desde que o
Ocidente converteu a individualidade em valor, a impaciência de viver se desdobrou na
impaciência de contar” (LIMA, 1986: 243). A narrativa real ou fingida da própria vida
foi, desta forma, tomada como hisria. Até os fins do século XVI, portanto, inexistiu
uma literatura da interioridade. Lima situa o Renascimento como um ponto de ruptura,
que marca o surgimento de uma escolha individual na forma de conduta, mas ela ainda
está em estado embriorio.
É importante salientar que o indivíduo renascentista ainda não pertence à espécie do
indivíduo moderno, pois apesar da secularização do conhecimento tornar possível ao
homem ser individual na escolha de sua forma de conduta, esse homem ainda
permanece heterodirigido (LIMA, 1986). O monismo teórico e metodológico impedia
que se admitisse o livre-arbítrio, permanecendo o homem dependente da vontade dos
poderosos. Não há ainda espaço, no Renascimento, para o autoexame radical.
O que é, então, esse “indivíduo moderno”? Recorremos à definição de Dumont (1985)
para essa discussão. Segundo o autor, quando não há nada de ontologicamente real além
do ser particular e quando surge a noção de direito ligada ao ser humano particular (e
o a uma ordem natural ou social), é possível a noção de indivíduo no sentido moderno
do termo.
O indivíduo, em sua acepção moderna, começa a surgir nos textos autobiográficos no
século XVIII. É esse o momento da presea incontestável da autobiografia como
gênero, inaugurada com As confissões de Jean Jacques Rousseau.
Se a autobiografia é fruto da modernidade é porque uma série de condições, que
emergiram na modernidade, propiciaram o seu desenvolvimento. Mas o que caracteriza
a modernidade? O termo “moderno” é, com efeito, fonte de muitos equívocos. Cunhado
no século V pelo latim vulgar, e derivado de modo, o termo modernus significa “agora
mesmo, recentemente, agora”. O termo “modernidade” é assim definido por Baudelaire:
“A modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a
36
outra metade o eterno e o imutável” (BAUDELAIRE, 2002: 24). Baudelaire é
considerado o responsável pela introdução do termo no campo das artes.
Inserida em uma perspectiva temporal, a modernidade é destacada como o peodo
histórico marcado pelo declínio das grandes certezas e ideais, que reflete na incerteza
com relação ao homem. Descartes é considerado o primeiro filósofo moderno devido ao
cogito. Ao refletir sobre “o que sou eu” em suas Meditações filosóficas, ele conclui que
os sentidos são sempre enganadores, assim como o corpo próprio, então o que é
verdadeiro pode ser concebido pela razão. O autor coloca em suspenso a existência
de tudo, recusando qualquer autoridade externa, mesmo divina, que garanta a existência
das coisas. Ele defende um único ponto de certeza: o pensamento. O cogito cartesiano
penso, logo existo (sou)”, é correlativo do advento da ciência, que constitui seus
objetos liberando-os de suas qualidades sensíveis, tratando-os como letras matemáticas
(MILNER, 1996). Assim, a ciência moderna rompeu com a noção de cosmos,
destruindo a harmonia natural e, consequentemente, a harmonia humana. O universo da
ciência moderna se torna infinito e a regulação natural falha. O saber universal
desaparece.
O cogito cartesiano não é a afirmação de uma identidade, de um eu” como função de
ntese, ao contrário, é o esvaziamento da esfera psíquica e de todo o universo de
representações, de tudo o que é imaginário. Descartes introduz a noção de um eu
esvaziado de substância, desamarrado de todas as aderências naturais. Lacan
6
considera
que esse sujeito desprovido de qualidades e esvaziado de saber é a condição para o
surgimento do sujeito do inconsciente. A ciência moderna ofereceu condições
favoráveis para o nascimento da psicanálise. Lacan considera que Descartes elaborou o
sujeito da ciência (nomeado sujeito por Lacan, não por Descartes), que passa a ser
definido em função de seu pensamento.
Para Lacan (1998 [1965]), se Descartes inventa o sujeito moderno e o sujeito da ciência,
o sujeito freudiano, portanto, não poderia ser outro que não o sujeito cartesiano. Milner
(1996) utiliza alguns argumentos para fazer essa aproximação entre o sujeito da ciência
e o sujeito freudiano. O autor ressalta que a física matemática elimina todas as
6
LACAN, Jacques. “A ciência e a verdade” (1965). In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1998 (Campo Freudiano no Brasil), p.855-892.
37
qualidades dos existentes, uma teoria do sujeito que pretenda responder a uma física
como esta deverá, ela também, despojar o sujeito de toda qualidade. Esse é o sujeito da
ciência:
Não lhe assentarão as marcas qualitativas da individualidade empírica, seja
esta psíquica ou somática, nem as propriedades qualitativas de uma alma, não
é mortal nem imortal, nem puro nem impuro, nem justo nem injusto, nem
pecador nem santo, nem condenado nem salvo, nem lhe caberão as
propriedades formais que durante muito tempo se acreditou serem
constitutivas da subjetividade enquanto tal: não tem nem si mesmo”, nem
reflexividade, nem consciência (MILNER, 1996: 41-42).
O pensamento mesmo, qualquer um, verdadeiro ou falso, pode brindar-me com a
oportunidade de concluir que “eu sou”. Segundo Milner (1996), esse pensamento sem
qualidades responde ao gesto da ciência moderna e é necessário para fundar o
inconsciente freudiano. Se o pensamento ganha precedência sobre o ser, e este passa a
ser o que se deduz do pensamento, há uma morte do ser pelo pensamento. Lacan
considera que a teoria do sujeito do inconsciente é o efeito dessa exclusão entre o ser e o
pensamento, pois “se penso, logo sou”, isso equivale a “não penso, logo o sou”, logo,
podemos deduzir que: “penso onde não sou e sou onde não penso”. A consciência de si
o é uma propriedade constitutiva do pensamento. Essa relão de exclusão entre o ser
e o pensamento é o fundamento do desejo como desejo inconsciente. Se há pensamento
no sonho, um inconsciente. Se pensar, um sujeito. Como contrapartida, nem o
sujeito, nem o pensamento, exigem a consciência.
Essa concepção de sujeito, cartesiano, despojado de toda qualidade, que pensa onde não
tem consciência de si, é a concepção de sujeito da psicanálise. No entanto, se Freud
acentua a cisão do sujeito, essa divisão é negada pela ciência moderna. Esse sujeito da
ciência que emerge com Descartes, ao mesmo tempo em que emerge é rechaçado do
discurso da ciência. Se esse sujeito é a condição do surgimento da ciência moderna, ele
é lançado para o exterior, fazendo com que a ciência se apresente efetivamente como
um discurso impessoal, como o discurso sem sujeito.
Para a psicanálise o sujeito é dividido pela castração. A castração é considerada
enquanto impossibilidade real de simbolização. Freud postula que o sujeito não é o eu,
instância imaginária. Enquanto o “eu” (senhor da consciência e do corpo) é uma
instância imaginária, narcísica, o sujeito do desejo é o sujeito do inconsciente,
determinado pelas leis da linguagem, por onde desliza o desejo. O “eu” resiste ao saber
38
sobre o desejo, é um obstáculo ao sujeito do inconsciente. O sujeito na psicanálise é
tomado em sua dimensão radical de sujeito do inconsciente, sujeito desejante e, portanto,
sujeito que inclui uma articulação que considera o real em jogo na experiência da
castração. Se para a psicanálise o sujeito é dividido, para Descartes o sujeito é unificado
pelo pensamento.
A racionalidade da modernidade leva ao declínio da autoridade religiosa, promovendo o
direito à igualdade e à liberdade, que fomenta o individualismo. O nascimento do
Estado moderno é, de acordo com Dumont (1985), fruto do declínio do poder da Igreja
e da separação dos domínios econômico, social e potico no que se refere à religião. De
acordo com Touraine (1999, p.18), a ideia de modernidade substitui Deus no centro da
sociedade pela ciência, deixando as crenças religiosas para a vida privada”. A atividade
intelectual deve ser protegida contra o nepotismo, o clientelismo e a corrupção, e as
administrações públicas e privadas não podem ser instrumentos de um poder pessoal. É
necessário separar vida blica e privada, assim como devem ser separadas as fortunas
privadas do orçamento do Estado. Assim, a Declaração Universal dos Direitos do
Homem, ao separar o Estado e a família, promove a divisão do mundo moderno entre as
esferas pública e privada de existência. Surge, neste contexto, o indivíduo, noção central
das ideologias individualistas.
A ideologia modernista ocidental não triunfou apenas no domínio das ideias, mas
dominou também no mundo econômico, onde tomou a forma do capitalismo. Para Marx
(1975, citado por SANTOS, 2001: 185), o capitalismo é o retorno do que há de judaico
no Cristianismo, que é o desejo egoísta, o interesse pessoal, a necessidade prática, a
trafincia e o dinheiro. O judeu emancipou-se pela aquisição do poder do dinheiro, que
se tornou poder mundial. O que não existe de direito nas ideologias individualistas, em
que todos são livres e iguais, retorna por meio do capitalismo nos efeitos de segregação,
de exclusão, de concentração de riquezas e de produção de miséria. O segredo das
relações de produção capitalistas é o lucro, a mais-valia, o que produz como efeito a
escravização do trabalhador. O valor da mercadoria não se reduz ao valor de uso, nem
ao custo da produção, mas inclui a mais-valia, o lucro, que leva à acumulação do capital,
ao mesmo tempo em que reduz o valor de mercado da mão-de-obra. Nos países
europeus onde o capitalismo industrial triunfou, o apelo ao mercado, à concentração do
capital, à racionalização dos métodos de produção, subordinou a ideia de sociedade
39
moderna ou industrial à de economia capitalista, separando brutalmente vida pública e
privada.
Dumont (1985) considera que o indivíduo, agente empírico, que toma a si mesmo como
objeto de reflexão problematizando e tematizando sua interioridade, é fruto do
surgimento do indivíduo como valor e um dos efeitos da separação entre as esferas
pública e a privada da existência, além da moderna configuração de valores que levaram
à emergência do Estado burguês. Assim, o indivíduo é filho do individualismo burguês.
Na sociedade de corte não existia a divisão da vida humana em esferas profissional e
privada, como observa Elias (1993). Essa cisão inaugura uma nova fase no processo
civilizador. O modelo de controle de emoções que passou a ser necessário ao trabalho
profissional era muito diferente do que era imposto pela função de cortesão e pelo jogo
da vida na corte. Na esfera sexual passou a existir maior regulação das relações sexuais
e um maior controle das paixões. Ainda segundo o autor:
O fato de a conduta dos grupos ocidentais dominantes, o grau e tipo de seu
controle de paixões demonstrarem alto grau de uniformidade, a despeito de
todas as variações nacionais, foi, em termos gerais, resultado da existência de
cadeias de dependência muito entrelaçadas e longas, que ligavam as rias
sociedades nacionais do Ocidente (ELIAS, 1993: 254).
No entanto, apesar das diferenças nos hábitos da vida aristocrática e da burguesa, a
modelação aristocrática de corte sobre a personalidade passou para a burguesia
profissional e foi mais difundida por esta.
Nas formas de comportamento, no controle das paixões e em todo o estilo de vida da
burguesia, é possível identificar a impregnação dos valores da aristocracia, que tiveram
origem na sociedade cortesã. Na França, em especial, quando a nobreza perdeu seus
direitos hereditários e status, como classe superior separada, os grupos burgueses
assumiram as funções que eram dela e mantiveram, como resultado da longa
interpenetração anterior, os modelos, os padrões de controle de emoções e as formas de
comportamento da fase cortesã, de uma forma muito mais constante e invariável do que
as outras classes burguesas da Europa (ELIAS, 1993: 262). A divisão cada vez mais
clara entre o público e o privado nas classes burguesas contribuiu de forma decisiva
para a expansão da introspecção e para o interesse crescente pela escrita de si.
40
Os novos ambientes privados que começaram a proliferar foram dando lugar para a
introspecção: nesses espaços solitários, o sujeito moderno podia observar sua
enigmática vida interior, muitas vezes transcrevendo-a no papel. Nessa busca “interior”,
o desejo de escrever tomou conta dos indivíduos, imbuídos tanto pelo espírito iluminista
de conhecimento racional como pelo desejo romântico de mergulhar nos mistérios mais
insondáveis da alma. A escrita de si tornou-se uma prática comum nos lares burgueses,
dando à luz uma diversidade de textos marcados pela autorreflexão, pautada na
particularidade de cada experiência individual.
Se a modernidade ime a separação entre o público e o privado, existe uma relação de
ambiguidade entre as duas categorias, como foi visto. Hannah Arendt
7
, ao buscar
conceituar o termo público, destaca que tudo o que vem a público pode ser visto e
ouvido por todos e tem a maior divulgação possível. Aquilo que é visto e ouvido pelos
outros e por nós mesmos constitui “a realidade”. Até mesmo as maiores forças da vida
íntima, como as paixões do coração, os pensamentos da mente, os deleites dos sentidos,
que vivem uma espécie de existência incerta e obscura, precisam ser transformados,
desprivatizados e desindividualizados, para se tornarem adequados à aparição pública.
Quando falamos de coisas que podem ser experimentadas na privatividade, trazemo-
las para uma esfera na qual assumirão uma espécie de realidade. “A presença de outros
que veem o que vemos e ouvem o que ouvimos garante-nos a realidade do mundo e de
nós mesmos...” (ARENDT, 2008: 60).
Assim, como sublinha Arendt, mesmo com o pleno desenvolvimento da intimidade de
uma vida privada e com o declínio da esfera pública na modernidade, que “intensifica e
enriquece grandemente toda a escala de emoções subjetivas e sentimentos privados, esta
intensificação sempre ocorre às custas da garantia da realidade do mundo e dos
homens” (ARENDT, 2008: 60). A autora sublinha que, se nossa percepção da realidade
depende totalmente da aparência, ou seja, da existência de uma esfera blica onde as
coisas podem emergir da treva da existência resguardada, “até mesmo a meia-luz que
ilumina a nossa vida privada e íntima deriva, em última análise, da luz muito mais
intensa da esfera pública(ARENDT, 2008: 61). A autora observa, portanto, que aquilo
7
ARENDT, Hannah. “As esferas pública e privada”. In: ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2008.
41
que é privado precisa tornar-se público para que possa ser validado pelo outro,
confirmado, constituindo-se em realidade”.
Essa perspectiva pode ser relacionada com a abordagem psicanalítica. A ambivalência
que envolve as dimensões pública e privada, tão presente nos textos autobiográficos,
como vimos, reflete a divisão do próprio sujeito, que, ao buscar o si mesmo”, se depara
com a própria divisão. Em consequência da linguagem, todo homem está
irremediavelmente privado da verdade sobre o seu ser. A causa do desejo depende da
linguagem, da cultura. O desejo de cada sujeito comporta sempre uma dimensão da
alteridade, já que o desejo inconsciente é desejo do Outro. A dimensão da alteridade
(pública) se faz presente na mais incontestável intimidade (privada). Apesar da relação
intrínseca entre as duas dimensões, a valorização da privacidade e o declínio da esfera
pública da existência levam a uma busca constante pelo mais íntimo de si mesmo, como
algo que proporcionaria o encontro com a verdade individual.
A expansão do capitalismo, o declínio da esfera pública e a ampliação da esfera privada
levaram a uma valorização dos pequenos objetos, íntimos, pessoais. O irrelevante passa
a assumir um lugar cada vez mais importante na vida íntima, especialmente entre os
franceses. Arendt ressalta que “após o declínio de sua vasta e gloriosa esfera pública, os
franceses tornaram-se mestres da arte de serem felizes entre „pequenas coisas‟, dentro
do espaço de suas quatro paredes, entre o armário e a cama, entre a mesa e a cadeira,
entre o cão, o gato e o vaso de flores...” (ARENDT, 2008: 61-62). Com a rápida
industrialização, os objetos o continuamente destrdos e substitdos por novos
pequenos” objetos, considerados “fundamentais” para a felicidade humana. Esses
objetos, as latusas, como comenta Lacan, assumio lugar de destaque no século XX.
A ampliação da esfera privada e seu encantamento, entretanto, não a torna pública. A
esfera blica refluiu quase que inteiramente, e a grandeza foi substituída pelo encanto;
a esfera pública o pode ser encantadora precisamente por não abrigar o irrelevante. A
admiração pública é também algo a ser consumido, ela é consumida pela vaidade
individual. Como postula Arendt, “...os homens tornam-se seres inteiramente privados,
isto é, privados de ver e ouvir os outros e privados de serem vistos e ouvidos por eles.
São todos prisioneiros da subjetividade de sua própria existência singular...” (ARENDT,
2008: 67).
42
Essa vaidade individual é refletida no interesse crescente em falar e escrever sobre si.
Os diários íntimos fazem parte desses pequenos objetos íntimos, que passam a ser
“fundamentais” para as jovens adolescentes. Eles são também frutos dessa vaidade
individual. Na publicação de um drio íntimo existe certa dimensão de vaidade que se
revela na exposão pública de “um eu”, muitas vezes tomado pelo autor, como “ideal”.
Assim, o paradoxo entre o público e o privado se revela na necessidade de se expor
publicamente o íntimo.
A confissão assume um importante papel nas narrativas individuais. Para Giddens
(1995), a modernidade pode ser compreendida como um esforço global de produção e
de controle, cujas quatro principais dimensões são o industrialismo, o capitalismo, a
industrialização da guerra e a vigilância de todos os aspectos da vida social. Giddens
considera a sociedade moderna como um sistema de “reflexibilidade”, de ação sobre si,
o que a opõe às sociedades naturais, que uniam o indivíduo ao sagrado. A sociedade
moderna separa o indivíduo e o sagrado, em benecio de um sistema social
autoproduzido, autocontrolado e autorregulado, como comenta Touraine (1999). No
entanto, se essa autorregulação da sociedade moderna leva ao desaparecimento do
sujeito, o sentimento de intimidade cresce significativamente no século XVIII. As
reformas protestante e calica, graças à importância dada à piedade e à confissão,
instigaram o desenvolvimento da intimidade no final do século XVIII, sobretudo na
Inglaterra e na França. Rapidamente ela se seculariza, transformando-se, de confissão
dos pecados, em conselho psicológico.
A confissão passa a ser uma importante prática para a produção de verdade. Se aquilo
que é visto e ouvido pelos outros e por nós mesmos constitui “a realidade”, é
fundamental falar de si a um outro. Um fator determinante para o surgimento de uma
“narrativa sobre si” é, portanto, a necessidade de confissão a um outro. Segundo
Foucault (2006b), desde a Idade dia as sociedades ocidentais colocaram a confissão
entre os rituais mais importantes de produção de verdade: a regulamentação do
sacramento da penitência pelo Concílio de Latrão em 1215; o desenvolvimento das
técnicas de confissão, que vêm em seguida; o recuo, na justa criminal, dos processos
acusatórios; o desaparecimento das provações de culpa e o desenvolvimento dos
todos de interrogatório e de inquérito; a importância cada vez maior ganha pela
administração real na inculpação das infrações, a instauração dos tribunais de inquisição,
43
tudo isso contribui para dar à confissão um papel central na ordem dos poderes civis e
religiosos.
O termo confissão”, originalmente associado à função jurídica, designava status,
identidade e valor atribuído a alguém por outrem e passou gradativamente a designar
reconhecimento, por alguém, de suas próprias ações ou pensamentos. Foucault (2006b)
esclarece que durante muito tempo o indivíduo foi autenticado pela referência dos
outros e pela manifestação de seu vínculo com outrem (família, lealdade, proteção);
depois passou a ser autenticado pelo discurso de verdade que era capaz de ter sobre si
mesmo. A confissão de verdade veio a ser um dos procedimentos de individualização
pelo poder.
A confissão logo se tornou uma técnica essencial para a produção de verdade. Seus
efeitos apareceram nos mais diversos setores, como na justiça, na medicina, na
pedagogia, nas relações familiares, nas relações amorosas, na esfera pública e privada.
Quando a confissão não é espontânea, ela deve ser imposta ou extorquida. Se antes
havia um prazer de contar e ouvir, centrado na narrativa heroica ou nas provas de
bravura e santidade, passou-se a buscar, no fundo de si mesmo, uma forma de verdade
que a própria confissão acena como o inacessível. Essa busca passa a ser feita através
das “palavras”. Para Foucault (2006b) a obrigação da confissão se difundiu tão
amplamente e está tão profundamente incorporada a nós, que não a percebemos mais
como efeito de um poder que nos coage.
Mas, sabemos pela psicanálise que, para além da dimensão política e cultural, o ato da
confissão remete à experiência do testemunho, fundamental para a produção de um
saber. O endereçamento de uma fala a um outro leva à transformação de um vivido em
história. A psicanálise nos ensina que, no ato do testemunho, algum saber se produz, é
necessário um outro para testemunhar o inconsciente.
Um outro fator importante para o surgimento do diário íntimo é a colocação do sexo em
discurso na modernidade, que é analisada por Foucault (2006b). A partir do século XVI,
houve uma constrição geral no Ocidente moderno com relação à prática sexual, mas,
paradoxalmente, a pastoral cristã inscreveu a tarefa de fazer passar tudo o que se
relaciona com o sexo pelo crivo da palavra. O exame e a confissão aparecem como as
44
duas condições primordiais da salvação, que se tornou uma tradição ascética e
monástica no século XVII. Mas por volta do século XVIII nasce uma incitação potica,
econômica e técnica a falar do sexo. Para Foucault (p.74-80), o ocidente moderno no
século XIX fez funcionar os rituais da confissão nos esquemas da regularidade científica,
através de:
uma codificação clínica do “fazer falar” que combinava a narração de si mesmo
com o desenrolar de um conjunto de sinais e de sintomas decifráveis;
do postulado de uma causalidade geral e difusa, pois o dever de dizer tudo
encontra justificativa no princípio de que o sexo é dotado de um poder causal
inesgotável e polimorfo;
de uma latência intrínseca à sexualidade, já que o funcionamento do sexo é
obscuro e seu poder causal é em parte clandestino;
do método de interpretação, já que é preciso duplicar a revelação da confissão
pela decifração daquilo que ela diz, e através da medicalização dos efeitos da
confissão, já que o sexo aparece como um campo de alta fragilidade patológica e
a confissão é necessária para as intervenções médicas.
Há, portanto, uma relação entre o discurso da psicanálise e certa “coerção” à confissão
do sexual”, que passa a ser justificada cientificamente. Se a colocação do sexo em
discurso não nasce com a psicanálise, a psicanálise certamente contribuiu para que o
falar de si (e sobre o sexual) tomasse o caráter de exigência científica e terapêutica.
A confissão liga-se à sexualidade, mas também vai além. A palavra toma o valor de
libertação e de cura. Por volta de 1830, nos meios fervorosos, escolher um confessor é
um verdadeiro ritual de passagem; para a moça que retorna do internato e vai ingressar
no mundo, essa decisão é fundamental. No entanto, segundo Corbin (2003), o
isolamento imposto aos filhos e filhas da burguesia, que são afastados da convincia
popular e das relações mundanas, estimula a amizade particular e apaixonada; a
dificuldade da confissão a um estranho” aviva o desejo de se abrirpara um amigo de
sua escolha.
A prática da confissão, portanto, não fica restrita ao domínio religioso, mas se estende e
é relançada a outros campos. Escolher uma amiga íntima passa a ser importante na vida
45
de uma adolescente. Muitas estabelecem amizades íntimas e duradouras com as colegas
de internato. As correspondências íntimas entre as amigas passam a ser comuns, assim
como a troca entre si das anotações pessoais e de confidências íntimas. A confissão se
diversificou e tomou novas formas: interrogatórios, consultas, narrativas autobiográficas:
“A confissão libera, o poder reduz ao silêncio; a verdade não pertence à ordem do poder,
mas tem um parentesco originário com a liberdade...” (FOUCAULT, 2006b: 69).
Pressupõe-se que a verdade cura quando dita a tempo e quando dita a quem é devido.
A confissão pode ser considerada como um instrumento de poder. Se o poder
monárquico exibia seu excesso, como, por exemplo, através das punições públicas
violentas e das aparições públicas do rei, exibindo-se com todo o luxo e sujeitando a
população pela admiração e pelo êxtase, a direção do olhar, com o declínio da
monarquia, desviou-se do poder majestático para os próprios indivíduos, como observa
Foucault. Assim, entram em cena os novos poderes que, pela disciplina, adestram um
novo corpo, dócil e útil, para exercê-la. A aparente liberdade de direitos esconde uma
grande vigilância. O poder se torna uma instância invisível, que passa a ser interiorizada
e sujeitada à consciência moral. No ocidente moderno o poder não mais é operado pela
coerção externa e eventual, mas de modo contínuo e vigilante. Os novos poderes são
disciplinares, e não partem mais de um centro, mas se exercem como correlações
invisíveis de forças. A confissão é mais um efeito desse exercício do poder que nos
coage.
Os dispositivos do poder, que não se estruturam em termos de causa e efeito, funcionam
como correlações de força controlando a produção e a circulação de saber e prazer.
Foucault (2006b) distingue, a partir do século XVIII, quatro grandes conjuntos
estratégicos, que desenvolvem dispositivos específicos de saber e poder a respeito do
sexo: a histerização do corpo da mulher, a pedagogização do sexo da criança, a
socialização das condutas de procriação e a psiquiatrização do prazer perverso. Na
preocupação com o sexo, que aumenta ao longo do século XIX, ele destaca quatro
figuras que se esboçam como objetos privilegiados de saber: a mulher histérica, a
criança masturbadora, o casal malthusiano e o adulto perverso. O autor defende a ideia
de que nessas estratégias se trata da própria produção da sexualidade.
46
A sexualidade é o nome que se a um dispositivo histórico
8
. Foucault descreve dois
tipos de dispositivos: o dispositivo de aliança e o dispositivo da sexualidade. No
primeiro, trata-se de um sistema de matrimônio, de fixação e desenvolvimento dos
parentescos, de transmissão dos nomes e dos bens (FOUCAULT, 2006b: 117). Este
dispositivo perdeu importância à medida que os processos econômicos e as estruturas
políticas passaram a não mais encontrar nele um instrumento adequado.
Assim, as sociedades ocidentais modernas inventaram e instalaram, sobretudo a partir
do século XVIII, o dispositivo da sexualidade que se superpôs ao dispositivo de aliança.
Para esse dispositivo, as sensações do corpo, a qualidade dos prazeres, a natureza das
impressões, todas se articulam em torno do corpo, que produz e consome.
Contrariamente ao que se poderia pensar, esse dispositivoo leva à repressão da
sexualidade. O corpo é intensificado, valorizado como objeto de saber e como elemento
das relações de poder. Por outro lado, a colocação do sexo em discurso serviu para o
fortalecimento do dispositivo de aliança.
Foucault acredita, pois, que a hipótese da repressão da sexualidade e seu dispositivo
teórico clínico, o Complexo de Édipo, o na verdade, uma estratégia para submeter
todo poder ao imperativo do sexo rei”. Os perversos, as histéricas, o onanismo das
crianças, todo esse saber construído pela psicanálise, longe de banir o desejo sexual,
leva a proliferá-lo, “edipianizando” todos os los sociais. Realmente, como observa
Santos (2001), a liberação da sexualidade, o feminismo, o conflito de gerações, os
novos vínculos afetivo-sexuais nasceram da crença de que somos todos injustamente
reprimidos pela civilização. Surge então a reivindicação do direito ao prazer. Ao mesmo
tempo, há um aumento da demanda por uma análise, como via de alcance da felicidade.
Mas, se o homem sempre busca a felicidade, para a psicanálise essa busca é pelo objeto
perdido de satisfação, ou pela experiência primária de satisfação, impossível de ser
alcançada. Essa busca de felicidade que movimenta o homem é sustentada pela
realidade, não a cotidiana ou factual, mas a realidade psíquica. A psicanálise opera com
a realidade sempre a partir de sua definição de realidade psíquica. Parte do que se
8
A esse respeito, ver a reflexão feita por: SANTOS, Tânia Coelho dos. Quem precisa de analise hoje? O
discurso analítico: novos sintomas e novos laços sociais. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2001.
47
chama de realidade é efeito da apreensão que o sujeito, determinado pelo inconsciente,
faz dela.
Santos (2001) faz uma analogia entre as noções de poder e corpo nas teorias de Foucault
e Freud, que apresentaremos de forma sintética. Freud (1974 [1930]) ressalta que o
progresso da civilização exige a renúncia pulsional. uma moralidade interior ao
progresso da civilização que nos mantém confinados aos seus limites. Vivemos em
constante tensão entre a busca pela satisfação pulsional e as exigências da civilização.
Freud esclarece que aquilo que a nossa moral sexual civilizada recalca retorna por meio
das “descontinuidades dos processos psíquicos conscientes”, ou seja, através dos lapsos,
sonhos e sintomas. O inconsciente atesta essa falha do recalcamento. Segundo Santos
(2001), podemos supor uma analogia entre o corpo pulsional, corpo autoerótico fonte e
objeto da pulsão e o corpo social descrito por Foucault como constituído e atravessado
por correlações de força que testemunham a difusidade do poder e a erogeneidade
política do corpo social” (SANTOS, 2001: 208).
O poder é imanente ao corpo social, assim como a pulsão é imanente ao corpo
autoerótico. A erotização dos corpos faz parte das técnicas móveis e polimorfas de
poder que engendram novos donios e formas de controle na esfera do prazer e do
saber. A repressão da sexualidade, entendida como coerção externa derivada do código
moral e que se articula a partir do dispositivo de aliança, produz pela sua expressão
intrapsíquica e intersubjetiva novas fontes, novos domínios de exercício do poder”.
(SANTOS, 2001: 213). Assim, a repressão é também incitação sexual. Uma vez
codificadas as práticas sexuais, é engendrada a classe dos deserdados da aliança: os
homossexuais, onanistas, celibatários, bem como os controles: a medicina, a pedagogia,
a psiquiatria e a psicologia, destinados a reconduzi-los à ordem.
O dispositivo de sexualidade, apoiado no dispositivo da aliança, reorganizou as relações
no espaço da família, que se constituiu em suporte permanente da sexualidade. O
dispositivo da sexualidade é a expressão mais microfísica do poder. Para Foucault
(2006b), a demanda de liberação da sexualidade serve ao propósito de investir mais
fortemente nos vínculos familiares. A batalha pela liberação sexual é uma das formas
pelas quais a burguesia assegura o poder sobre a vida, base de sua diferença social e
alicerce de sua hegemonia potica (SANTOS, 2001: 216).
48
Assim, o dispositivo da sexualidade apoiado no dispositivo da aliança serve aos
propósitos da lógica capitalista. A liberação da sexualidade, a colocação do sexo em
discurso e a implantação das perversões fortaleceram os dispositivos de aliança,
fortalecendo também os propósitos mais gerais da ordem social capitalista.
A dissociação entre o público e o privado promove um movimento de “interiorização”,
que se articula com o exercício de poder. O poder autoritário gradativamente é
substitdo pelo poder disciplinar. Passa-se de uma ordem disciplinar externa para uma
interna, anônima, inconsciente e invisível. Os diversos campos do conhecimento passam
a discorrer sobre a sexualidade, produzindo saberes e estabelecendo padrões de
normalidade e anormalidade no campo sexual. As manifestações de desejos, raiva ou
tristeza devem ser mantidas na esfera privada. A sexualidade é também assunto privado,
expressa por meio da escrita íntima, confessional, revelada nos diários pessoais,
fechados com cadeados.
Com a expansão dos sentimentos de individualidade e de privacidade, surge a intensa
preocupação com a própria existência singular, o desejo imperioso de “falar de si” e de
narrar-se. Se na antiguidade existiam as “narrativas heroicasque despertavam grande
fascínio nas pessoas, a modernidade introduz uma nova modalidade de interesse.
Surgem as autobiografias e diários públicos, como pequenas narrativas individuais,
frutos da “vaidade individual”, que substituem os grandes mitos. Nesse momento de
questionamento sobre a própria existência, um estímulo à escrita pessoal. É nesse
espaço de posicionamento do sujeito frente a si mesmo que a autobiografia surge como
tentativa de refletir sobre sua existência, permitindo ao sujeito constituir-se e projetar-se
no futuro. É uma escrita que tem como objeto o “si próprio, a autoanálise da história de
uma vida, a vida do próprio sujeito narrada por ele mesmo.
Os diários íntimos no século XIX tinham a função de certa afirmação de identidade,
numa época de acelerada transformação social. Corbin (2003) explica que os grandes
autores de diários da primeira metade do século XIX buscavam a prática da
introspecção, um autoexame permanente. Esses diários registram simultaneamente o
trabalho, o dinheiro, o lazer e a ação amorosa. Manter um diário é uma disciplina de
interiorização, um exercício de confissão (discreta). O autor enumera as razões para o
crescimento dessa prática no século XIX (CORBIN, 2003: 457): apoiar a ciência do
49
homem na observação, captar as relações que se estabelecem entre o sico e o moral e o
aprofundamento da sensação de identidade, sobretudo diante da aceleração da
mobilidade social que engendra um sentimento crescente de insegurança. O autor do
diário é incitado a indagar-se sobre sua posição e a calcular o julgamento dos outros: A
muda presença da sociedade frequenta a vida privada e solitária do autor. O novo feitio
das relações interpessoais ditado pela urbanização multiplica as feridas narcísicas, gera
uma frustração que convida ao recolhimento neste refúgio interior (CORBIN, 2003:
458).
A escrita do diário íntimo é também possibilitada pela “historizaçãoda vida que surge
na modernidade. Para Foucault (2006b), a escritura pessoal surge quando o indivíduo
começa a situar sua vida num percurso histórico e esse percurso deve ser constrdo,
inventado e relatado, como uma aventura individual. As pessoas precisam “falar de si”,
contar a própria história”. Segundo Foucault (2006b), falar ou escrever de si é um
dispositivo crucial da modernidade, uma necessidade cultural, já que a verdade é sempre
e prioritariamente esperada do sujeito, subordinada à sua sinceridade. Com a
modernidade surgiu uma literatura ordenada em função da tarefa infinita de buscar, no
fundo de si mesmo, entre as palavras, uma verdade.
O discurso psicanalítico é contrário a esse discurso hegemônico da modernidade, pois
revela que, apesar de existir um saber inconsciente, o processo anatico o leva a um
autoconhecimento, já que qualquer conhecimento sobre si é sempre parcial e incerto. O
sujeito em seu processo de análise deve se deparar com o fato de que o seu ser é
somente um reduo irredutível no campo do saber. Na direção do tratamento, uma
destituição do inconsciente enquanto saber suposto.
Os diários buscam narrar a própria vida, escrever a própria história. Pierre Bourdieu, em
A ilusão biográfica (2005), observa que falar de história de vida é supô-la como um
caminho que percorremos e que deve ser percorrido, um trajeto ou um percurso
orientado, um deslocamento linear, unidirecional, que tem um começo, etapas e um fim,
no duplo sentido, de término e de finalidade. É aceitar tacitamente a filosofia da história
no sentido de sucessão de acontecimentos históricos. Essa teoria apresenta alguns
pressupostos, tais como o fato de que a vida é um todo, um conjunto coerente e
orientado, que pode ser apreendido como expressão unitária de uma “intenção”
50
subjetiva e objetiva, de um projeto, e que essa vida organizada segue uma ordem
cronológica e lógica, desde um começo até o seu fim. Essa história organiza-se em
sequências ordenadas segundo relações inteligíveis. O sujeito e o objeto da biografia (o
investigador e o investigado) têm de certa forma o mesmo interesse em aceitar o
postulado da existência narrada.
O relato autobiográfico se baseia sempre, ou em parte, na preocupação de dar sentido,
de tornar razoáveis os estados sucessivos, de extrair uma lógica, uma consistência e uma
constância entre eles. Para Bourdieu (2005), o interesse em escrever uma biografia
talvez tenha como origem a busca de coerência, selecionando certos acontecimentos
significativos e estabelecendo entre eles conexões, criando artificialmente um sentido.
Mas essa “individualização” da narrativa tica comporta características próprias de
uma cultura. O retorno à infância, como uma procura “interior”, é fruto da cultura
moderna. Cunha, na introdução de O mito individual do neurótico, de Lacan (1987),
fazendo refencia a A estética de Levi-Strauss, de Merquior (1975), comenta a
passagem do mito coletivo para a individualização da narrativa mítica. Lévi-Strauss
aborda a questão referindo-se à transformação do estatuto social do artista. No
Renascimento há uma individualização da produção artística, que passa a exprimir uma
“mitopoética individual” (CUNHA, 1987: 19). A individualização da produção artística
tem maior relação com o espectador/consumidor do que com o artista. O desfrute dessa
obra deixou de ser coletivo e passou a ser individual, como um “gozo íntimo do
cliente”. A obra de arte passou a ser produzida como mercadoria, numa relação
mercantil própria do modo de produção capitalista. uma possessividade em relação
ao objeto, como consequência da lógica capitalista.
A modernidade introduz a historização da vida e sua ordenação através da escrita. O
indivíduo passa a situar sua vida como uma aventura individual e que deve se manter na
memória dos outros, portanto, ele deve “arquivá-la” para que possa sobreviver ao tempo.
Arquivar a vida implica colocá-la no papel, registrá-la. Segundo Artières (1998), desde
o fim do século XVIII assistimos nas nossas sociedades a uma grande valorização da
escrita pessoal; que ele ilustra por meio de três exemplos. O primeiro é no século XIX,
no qual se desenvolve um verdadeiro comércio em torno dos escritos autográficos. O
51
texto autógrafo torna-se um objeto de coleção. M. de Lescure dedica um ensaio a essa
paixão, que ele caracteriza nos seguintes termos:
Cobiçam-se, procuram-se, adquirem-se a peso de ouro ou a custa de
esperteza algumas folhas de papel cujo branco um personagem qualquer
cobriu de preto, sobre o qual ele expôs, com uma tinta mais ou menos bela,
com caracteres mais ou menos finos, suas ideias, suas opiniões, seus
sentimentos, suas paixões, suas afeições, suas ambições, suas leras
(LESCURE, 1965, apud ARTIÈRES, 1998: 4).
Surge então um verdadeiro mercado no qual se trocam ou se vendem esses fragmentos
de escrita. Essa valorização coincide igualmente com a mudança profunda do estatuto
dos manuscritos dos escritores. Artières destaca que Victor Hugo foi o primeiro, no
início dos anos 1880, a entregar à Biblioteca Nacional os seus manuscritos. Desde então,
cada escritor decide o destino dos seus papéis. Alguns, como Sartre, o lhes dão
nenhum valor literário: considero que o uma forma intermediária e entendo muito
bem que desapareçam, uma vez produzido o objeto impresso” (ARTIÈRES, 1998: 4),
mas não ignoram seu valor financeiro; outros, como Aragon, valorizam e consideram os
manuscritos como parte integrante da obra e os em à disposição dos pesquisadores
(p.5).
Acompanhou-se também uma grande valorização dos escritos pessoais pela medicina.
Os médicos começaram a colecionar os escritos dos seus doentes, publicam certos
manuscritos (fragmentos de cartas, poemas etc.) e desenvolveram em torno dessas
coleções uma verdadeira ciência da escrita ordinária. E finalmente, nas sociedades
ocidentais, desde o fim do século XVIII estabeleceu-se progressivamente um
formivel poder da escrita, que se estende sobre o conjunto das atividades cotidianas; a
escrita está em toda parte: para existir, é preciso inscrever-se: nos registros civis, nas
fichas médicas, escolares, bancárias. A escrita vai assumindo um lugar crescente na vida
diária, tendo como consequência uma gestão diferente dos nossos papéis.
É imperativo na nossa sociedade manter arquivos domésticos, documentar tudo,
classificar, ordenar, numa tentativa de organização do mundo e do eu. Como destaca
Italo Calvino:
(...) Este mundo que vejo, este que costumamos reconhecer como o mundo,
se apresenta a meus olhos pelo menos em grande parte já definido,
rotulado, catalogado. É um mundo conquistado, colonizado por palavras,
um mundo com uma pesada crosta de discurso. Os fatos de nossas vidas
estão classificados, julgados, comentados, antes mesmo de ocorrerem.
Vivemos num mundo onde tudo já foi lido, antes mesmo de existir
(CALVINO, 2005: 143).
52
Calvino mostra a relação entre a existência humana e sua ordenação através da escrita.
A sensação de pertencer ao mundo passa pela necessidade de registrar essa existência. O
registro garante certa “estabilidade”, “ordenação” e, fundamentalmente, a identidade de
seu autor. Artières (1998) explica a necessidade do homem moderno de “arquivar sua
vida”:
Pois, por que arquivamos nossas vidas? Para responder a uma injunção social.
Temos assim que manter nossas vidas bem organizadas, pôr o preto no
branco, sem mentir, sem pular páginas nem deixar lacunas. O anormal é o
sem-papéis. O indivíduo perigoso é o homem que escapa ao controle gráfico.
Arquivamos portanto nossas vidas, primeiro, em resposta ao mandamento
“arquivarás tua vida” e o farás por meio de práticas múltiplas: manterás
cuidadosamente e cotidianamente o teu diário, onde toda noite examinarás o
teu dia; conservarás preciosamente alguns papéis colocando-os de lado numa
pasta, numa gaveta, num cofre: esses papéis são a tua identidade; enfim,
redigis a tua autobiografia, passas a tua vida a limpo, dirás a verdade
(ARTIÈRES, 1998: 3).
Assim, há uma exigência social de organização da vida por meio dos papéis. Até a
escrita do diário passa a ser uma exincia social, de organização e “controle” da
própria vida. Nessa escrita íntima, visa-se alcançar a verdade” de si mesmo.
A escrita passa a ter uma função de apreensão e controle do mundo, estruturada pela
lógica capitalista. Citando Lévi-Strauss, Cunha (1987) comenta que a escrita teve um
papel fundamental na evolução da arte para uma forma figurativa, ensinando aos
homens que era possível, por intermédio dos signos, não significar o mundo como
apreendê-lo, tomar posse dele. A passagem do mito coletivo para o mito individual,
portanto, está intimamente ligada à modernidade, que passa a ser estruturada pelo modo
de produção capitalista.
Nessa lógica capitalista, a apreensão material visa escamotear a castração. O
capitalismo joga com que de estrutural no homem: o seu desamparo, oferecendo
objetos” que supostamente poderiam tampo-lo, garantindo a sua existência
individual. Os objetos pessoais, como os diários, as fotos, os adornos, as pequenas
lembranças, funcionam como meios de arquivamento de si”, como tentativas de
apreensão de uma existência tão efêmera. A “escrita de si” visa à afirmação da
individualidade moderna.
53
Essa afirmação da individualidade tem diversos desdobramentos e repercute nas
diversas correntes da psicologia. Um dos pilares que sustenta o projeto civilizario
moderno é o mito do progresso, que se encontra na origem do desenvolvimento
científico e tecnológico. O outro pilar da tradição moderna judaico-cristã é o mito do
individualismo moderno, afirmado e sustentado pela Declaração Universal dos Direitos
do Homem, de 1789 (DUMONT, 1985). A noção de individualidade na modernidade
apresenta-se sob duas perspectivas: por um lado, como individualidade empírica
(individuum), o indivíduo é a unidade indivisível da espécie humana, sujeito da palavra
e do pensamento. Por outro lado, como valor supremo, o indivíduo não deve depender
senão de si mesmo em sua tarefa de produção de si, como indivíduo da moral e
independente. Aqui a noção de indivíduo está intimamente relacionada à noção de
autonomia.
Mas existe uma outra duplicidade envolvida na noção de indivíduo que tem implicações
nas diversas correntes psicológicas. A partir de meados do século XVIII, impõe-se uma
duplicidade na noção de indivíduo: para além do indivíduo soberano, que não gera um
saber sobre si, emerge o sujeito disciplinado
9
.
9
O indivíduo soberano surge a partir do
século XVI, quando o sujeito é constituído enquanto um sujeito autônomo, singular,
igual aos demais e dotado de uma interioridade (foro íntimo), que é a base contratual
dos Estados modernos e fonte jurídica do poder destes. O indivíduo é soberano e
regulado pela lei. O indivíduo aqui é a fonte de um poder e o o alvo de um poder.
Esse indivíduo soberano não é objeto de um saber, uma vez que é a fonte da legalidade
e identificado a um sujeito autônomo.
Surge, entretanto, a partir de meados do século XVIII outra forma de individualização,
oriunda das disciplinas e do biopoder. É o indivíduo disciplinado. No poder soberano o
indivíduo é avaliado a partir da lei contratada, já o indivíduo disciplinado é ordenado a
partir de uma norma, que determina a sua filiação ou não à normalidade. Esse novo
indivíduo desponta não como um sujeito, mas como um objeto determinado, singular,
diferenciado e dotado de uma interioridade que será o alvo do cuidado dos Estados
contemporâneos e de uma série de agências privadas. Esta dupla experiência de
9
A esse respeito, ver: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 23
a
edição. Rio de Janeiro: Graal, 2007.
295 p.
54
individualização, ao mesmo tempo soberana e disciplinar, configura o indivíduo ora
como sujeito livre, ora como objeto determinado, marcando diversas escolas fundadas
no século XIX, como correntes teóricas da psicologia
10
.
10
A psicologia se situa, portanto, em um espaço político entre o indivíduo autônomo e
soberano (fonte do poder) e o indivíduo sob controle das disciplinas (alvo dos poderes),
realizando o trânsito entre estes. O autor conclui que, sem esta ambiguidade moderna,
o haveria nem mesmo a psicologia, pois, se houvesse a individualidade autônoma,
o haveria a suposição do indivíduo como objeto de conhecimento e, por outro lado, se
só houvesse a determinação, toda a intervenção psicológica seria desnecessária.
Assim, a escrita de si nesse contexto histórico pode ser compreendida operando a partir
dessa ambivalência que marca a noção de indivíduo. A narrativa sobre si busca a
libertação do “eu” e, paradoxalmente, seu controle e ordenação. Os diários apresentam
essa dupla vertente: caracterizam-se pela liberdade de expressão, que é afirmada pelo
seu caráter sigiloso e pessoal, e, ao mesmo tempo, funcionam como um autoexame
permanente, como uma forma de se obter controle sobre os próprios pensamentos e
ações, como forma de autoconhecimento e de apreensão do eu”, como tentativa de
alcance de uma unidade imaginária.
A divulgação das primeiras interpretações psicológicas e psicanalíticas também
contribuiu para reforçar o mito do individualismo e levar à busca pelo “conhecimento
sobre si mesmo”. Não podemos nos esquecer de que a psicologia e a psicanálise surgem
no culo XIX, período de grande expansão dos escritos autobiográficos. Existe grande
influência da psicanálise e, portanto, do surgimento do inconsciente”, na procura que
as pessoas passam a fazer de um “íntimo que deve ser desvelado”. Santos (2001)
chama de psicologismos alguns dialetos que surgem a partir de interpretações da teoria
freudiana. Ela destaca o fato de que o “psicologismonão é uma retórica homogênea.
Ele é sempre o efeito de um corte teórico-clínico muito particular” (SANTOS, 2001:
126). No movimento de difusão da psicanálise estruturaram-se diferentes
psicologismos, que ela considera como dialetos particulares do pensamento freudiano,
10
A esse respeito, ver as considerações de Ferreira em: FERREIRA, A. A. L. (2006). “O surgimento da
psicologia e da psicanálise nos textos da genealogia foucaultiana”. In: Memorandum, 10, 71-84.
Disponível em: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a10/ferreira03.pdf 84. Acesso em 12 jul. 2008.
55
e muito frequentemente estão ligados a interesses de certos movimentos sociais. Uma
versão medicalizada da psicanálise, que engendra um imaginário de normal e
patológico, como sublinha Santos, muitas vezes se reduz a uma paranoica explicação de
si. Essas explicações generalizantes ocultam a realidade psíquica, isto é, “o mito
particular por meio do qual um sujeito estrutura a relação do desejo ao desejo do Outro
(SANTOS, 2001: 144). Nesse contexto, podemos pensar que a escrita de um diário
passou a funcionar como um laboratório de experiências particulares e de explicação de
si que leva à afirmação da individualidade.
Se existe em todo historiador uma espécie de culto narcísico do arquivo, uma captação
especular da narração histórica pelo arquivo, como sublinha Roudinesco (2006), a
história como criação corre o risco de ser substituída pelo arquivo transformado em
saber absoluto, em espelho de si. Mas, paradoxalmente, se nada está arquivado, se tudo
está apagado ou destrdo, a história tende para a fantasia, uma soberania delirante do
eu, um arquivo reinventado que funciona como dogma. A autora ressalta que, entre
esses dois limites, deve-se admitir que o arquivo é a condição da história. A relação do
historiador com o arquivo é da mesma ordem que a do assassino com seu ato. A
ausência de vestígios ou a ausência de arquivos é, segundo Roudinesco, tanto um
vestígio do poder do arquivo quanto o excesso de arquivo. Assim, Roudinesco ressalta
que as diversas formas de escrita de si apontam duas perspectivas. Por um lado, essa
“narrativa de si” leva ao risco de se transformar em saber absoluto”, em espelho de si.
Por outro lado, nesse trabalho de documentação de si”, a escrita manm a história, o
a deixando desaparecer ou migrar para a “pura fantasia”.
Ora, sabemos quanto é tênue a linha que separa o ficcional do factual. Desta forma, os
diários e outras formas de escrita autobiográfica não servem à história, preservando-a,
como também a criam. Essa criação envolve tanto a realidade quanto a fantasia, que
parte do que chamamos de realidade” é uma construção sustentada pelas nossas
fantasias.
O que queremos destacar com esse recorte histórico é que a escrita de um diário íntimo
é uma prática que está inserida em um contexto cultural. O inconsciente é o discurso do
Outro, que representa o campo dos valores e determinações de uma cultura. Assim, em
cada momento histórico e cultural podemos encontrar produções discursivas diferentes,
56
que determinam posões subjetivas também diferentes. Se a escrita de si transformou-
se em uma narrativa íntima, confessional, que busca o desvendamento de um eu”, isso
foi possibilitado pela ascensão da individualidade, que foi tomada como valor a partir
do Renascimento europeu e que ganhou corpo com o individualismo burguês no século
XVIII. O nascimento da ciência e a expansão do capitalismo, com os seus diversos
desdobramentos, entre eles a valorização do privado, são fatores decisivos para a
crescente busca pela felicidade individual, que vê no mercado possibilidades de se
escamotear a divisão do sujeito, a sua castração. A escrita de um diário íntimo passa a
ser vista como uma possibilidade de alcance dessa unidade imaginária, através da
descoberta de si”.
A psicanálise nos ensina que todo conhecimento que se pode produzir sobre si mesmo é
insuficiente e incerto. Não existe a possibilidade de se alcançar um “si mesmo”, que a
alienação ao Outro é constitutiva da subjetividade. O sujeito, por se constituir pelo
significante que lhe é atribuído pelo Outro, nasce descentrado de “si mesmo”. Ao
buscar a essência de um ser, chega-se ao desejo do Outro. O texto autobiográfico revela,
pois, um sujeito descentrado, desconhecido de si mesmo e que, através das contradições,
tenes e equívocos de seu texto, emerge como uma multiplicidade, fruto de suas
múltiplas identificações. No máximo de “consciência de si” o que emerge é a fratura, o
êxtimo
11
,
11
quando o íntimo nos mostra o seu avesso.
1.4. O diário como paradigmático da adolescência
Sábado, 15 de janeiro de 1944
Minha querida Kitty,
Não há motivo para eu continuar descrevendo todas as nossas brigas e
discussões [com os vizinhos] até os mínimos detalhes. Basta dizer que
dividimos muitas coisas, como carne, gordura e óleo, e que estamos fritando
nossas próprias batatas. Ultimamente comemos um pouco mais de o de
centeio, porque às quatro horas estamos com tanta fome que mal podemos
controlar os roncos no estômago. (...) A guerra vai continuar,
independentemente das brigas e do desejo de liberdade e ar puro (...).
Acredito que, se eu morar aqui durante muito mais tempo, vou me
transformar num de feijão velho e seco. E na verdade quero ser uma
adolescente! Sua Anne (Diário de Anne Frank)
11
A discussão sobre o íntimo e o êxtimo é feita no capítulo 2.3, sobre hystorização e romance.
57
1.4.1. Da escritura escolar ao diário íntimo
O diário é uma escrita paradigmática da adolescência. No entanto, como vimos, nem
sempre foi assim. A própria adolescência é uma construção social, já que até o século
XVIII ela não era percebida como uma fase da existência humana distinta da infância e
da fase adulta. A escolarização foi um fator determinante para o surgimento da prática
da escrita de diários na adolescência. Muitos etnólogos, como Daniel Fabre (1993),
localizam no século XIX o momento de divulgação dessa prática na adolescência, em
grande parte consequência da escritura escolar. O autor, pesquisando as escrituras
pessoais adolescentes, mostrou que a tomada de notas de leitura cotidiana foi um
caminho natural para a escrita dos diários. Muitos diários íntimos se iniciaram como
prolongamentos das escrituras escolares.
Nos anos 1850, a escritura escolar alcança os alunos dos meios populares nas escolas,
que descobrem a arte de redigir textos e a maneira de dis-los em seus cadernos.
Assim, há uma passagem natural da tomada de notas de leitura para o diário. Ainda hoje,
muitos alunos utilizam os suportes escolares para a escrita mais pessoal, como um
prolongamento das escrituras da escola, como atestam as agendas escolares. Fabre
(1993) acrescenta que, com a proliferação dos cadernos graças à fabricação industrial
que substituiu as encadernações artesanais, a escritura pessoal foi facilitada,
possibilitando o surgimento do diário íntimo. Além disso, a alfabetização, praticamente
generalizada com a instauração da escola republicana, permitiu que a juventude
passasse a se dedicar às diferentes modalidades de escrita de si. Didier, citada por
Corbin (2003), afirma que o castigo cotidiano da escrita do diário prolonga os
imperativos da pedagogia juvenil, pois lembra simultaneamente o caderno escolar e o
dever de casa. Mas, gradativamente, os diários íntimos constituíram-se como um tipo de
escritura confidencial e íntima:
Quando estou sozinho, basta-me a ocupação de seguir o movimento de
minhas ideias ou impressões, de apalpar-me, observar minhas disposições e
as variantes de minha maneira de ser, de tirar o melhor partido de mim
mesmo, de registrar as ideias que me ocorrem por acaso, ou as que minhas
leituras sugerem... aspiro a tornar-me eu mesmo, retornando à vida privada e
familiar.... erguendo-me assim acima de mim mesmo; então não serei
ninguém (MAINE DE BIRAN, citado por CORBIN, 2003: 459).
A microfamília burguesa da província é o lugar privilegiado da ascensão do diário
íntimo. Ao comentar sobre os ritos da vida privada burguesa, Martin-Fugier (2003)
58
explica que a ritualização do cotidiano ganha, na sociedade burguesa, uma significação
sentimental. Assim, as lembranças capitalizadas o registradas em cadernetas. Os
diários íntimos são escritos como repositórios de lembranças. A autora cita o diário da
adolescente Gabrielle Laguin, que começa a ser escrito em julho de 1890, aos 16 anos
de idade:
Dentro de muitos anos, relerei talvez com felicidade esses rabiscos iniciados
nos dias de juventude e alegria (12 de julho). Mais tarde, quando eu for bem
velha, vou me divertir em relê-lo, em rever-me, nesse espelho do passado,
como eu era então (30 de outubro) (MARTIN-FURGIER, 2003: 195).
Philippe Lejeune, no livro Le moi de demoiselles (1993), apresenta um verdadeiro
mapeamento do diário íntimo na França: o aparecimento nos anos de 1780, o eclipse
entre 1789 e 1830, a época do diário romântico, a do diário de “ordem moral entre
1850 e 1880 e a sua democratização no final do século XIX. Ele pesquisou mais de 100
diários de adolescentes francesas do século XIX, analisando as particularidades dessa
prática cultural que era inicialmente uma técnica educativa que aos poucos foi se
transformando em uma atividade espontânea e secreta.
Com o estudo desses diários, Lejeune (1993) vai entrando em contato com a história da
educação, com a cultura francesa e penetrando no universo feminino do século XIX.
Aspectos psicológicos, sociológicos e literários são por ele abordados. Ele mostra como,
num universo de mulheres “reprimidas”, esses diários eram uma das possibilidades de
expressão feminina, apesar de, em sua maioria, eles serem misteriosos, elípticos, um
escrito de meias palavras e poucas revelações, mostrando uma escrita feita de si para si.
Se no século XIX homens e mulheres escreviam diários, essa prática vai sendo
gradativamente de domínio feminino e adolescente. Do ponto de vista social, existem
rias razões para isso. As mulheres do século XIX eram proibidas de publicar, segundo
o código das conveniências, portanto o diário supria as suas necessidades de escrever.
Segundo Corbin (2003), mal inserida na sociedade onde foi chamada a viver, a mulher
autora de um diário sofre por não poder comunicar-se.
A repressão sexual imposta às mulheres era um forte motivo para o incentivo à escrita
de um diário. No século XIX os pais, aconselhados pelos educadores, impunham um
rígido regulamento às moças que retornavam do internato, com o objetivo de afastá-las
59
das tentações da vida. Alguns as estimulam a escrever diários, como corolário do
sacramento da penitência. Em Marselha, Isabelle Fraissinet, com 12 anos de idade, é
constrangida a preencher todos os dias o seu. Elas o estimuladas a registrar o
progresso da vida espiritual e aliviar os escrúpulos nascidos das pequenas falhas diárias
(CORBIN, 2003: 456). Jullien, militar de reserva, em seu Ensaio sobre o emprego do
tempo ou método, redigido em 1810, recomenda que se divida o dia em três fatias de
oito horas. A primeira deve ser consagrada ao sono, a segunda aos estudos e aos deveres
de seu emprego, e a terceira, às refeições, ao lazer e aos exercícios corporais. Aconselha,
sobretudo, que se mantenham três diários: um para registrar as flutuações da saúde,
outro para as vicissitudes da moral e outro para as pulsações da atividade intelectual.
Às mulheres é imposto que escrevam às escondidas, ocultando mesmo dos pais suas
escritas pessoais. Os álbuns, as pequenas lembranças e até o enxoval bordado à mão o
objetos pessoais que passam a ter grande valor na adolescência. Os álbuns guardam
registros dos momentos importantes das jovens; ali se colam boletins escolares,
diplomas, gravuras, leituras, fotos e declarações dos primeiros admiradores. Todo esse
material irá unir-se aos cadernos e diários, fazendo parte dos arquivos pessoais. “O
enxoval bordado pela jovenzinha não pode ser considerado como uma atenta
escrituração de si e de seus sonhos para o futuro?” (CORBIN, 2003: 460).
De fato, o diário íntimo é um texto híbrido, composto de “fragmentos de si”, reunidos e
colados em suas páginas encadernadas. No tempo da adolescência, o simbólico se
mostra insuficiente para explicar as transformações da puberdade. Podemos pensar que
as palavras são insuficientes para “dizer” desse real, daí o apelo aos objetos “materiais”,
que, como os “detritos corporais”, são restos que escapam à significação. Todo esse
material faz parte do trabalho de escrita feito pelo adolescente. Veremos adiante como
os blogs, escritos no ciberespaço, ilustram de forma contundente o caráter híbrido de um
texto.
Até o século XX, diários de mulheres não eram autorreflexivos nem autorreveladores”,
conforme indica Blodgett: “(...) mulheres foram treinadas para não falar ou pensar sobre
seus corpos; foram treinadas para considerar o sentimento de outras pessoas em
detrimento de seus próprios, e muito da linguagem que elas usam pode silenciá-las
(GANNETT, 1992: 127). Gannett destaca as esferas privada e pública de discurso,
60
referenciando-as, respectivamente, à mulher e ao homem. Citando a pesquisadora norte-
americana Dale Spender, ela comenta que a dicotomia masculino/feminino,
público/privado, foi mantida para permitir às mulheres escreverem para uma audiência
privada, mas as desencorajando de escrever para audiências públicas, que seria uma
prática masculina. Na esfera privada as mulheres foram autorizadas a escrever para
elas mesmas (por exemplo, diários) e para outros em forma de cartas, tratados morais,
artigos de interesse para outras mulheres e mesmo novelas para mulheres (durante o
século XIX, as mulheres eram a viga mestra do público leitor de novelas e romances).
As pesquisas desenvolvidas por Lejeune (1993) também mostram que as jovens
mulheres eram encorajadas a escrever diários na esfera privada e essa escrita tinha uma
função autodisciplinar. Lejeune comenta que em 1847 a condessa de Basanville, em
Paris, assim escreveu em seu livro Du perfectionnement de l'éducation des jeunes filles:
Estudai vosso caráter, como se fizésseis vosso exame de consciência para vos
apresentardes ao tribunal da penitência; examinai vossas inclinações, vossos
gostos e vossos pensamentos [...] Para fazê-lo mais facilmente, existe um
hábito muito bom de ser adquirido: é o de todas as noites, antes de vos
deitardes, escreverdes o diário dos vossos pensamentos e das vossas ações
durante o dia que passou; vereis então se caís com frequência nos mesmos
erros, corrigir-vos-eis deles, para o terdes vergonha de vós. Dedicai
portanto uma atenção severa a vos observar, e em pouco tempo vossos
defeitos desaparecerão (LEJEUNE, 1993: 353).
Se às mulheres era permitida a prática da escrita de diários íntimos, assim como outras
formas de narrativas pessoais, um dos motivos desse interesse crescente pela escrita dos
diários pelas meninas adolescentes está relacionado à possibilidade de usar esse espaço
como forma de expressão pessoal, quando não lhes era permitido exprimir suas ideias
publicamente. Mas, para além dos fatores sociais, veremos adiante como a psicanálise
contribui para a compreensão da relação existente entre a escrita íntima e a
feminilidade.
A prática da escrita de diários vai se configurando gradativamente como adolescente e
feminina. Lejeune (1993) destaca que o que limita socialmente a adolescência
especialmente feminina, no século XIX, é o casamento. Em muitos diários de
adolescentes pesquisadas por Lejeune, ele identifica preocupações com relação ao
casamento, à escola e às amizades, além da família. Normalmente, a prática da escrita
dos diários era abandonada a partir do casamento. Assim, a escrita de um diário para a
61
jovem adolescente, nesse período histórico, parece substituir o encontro com o outro
sexo. O diário perde o sentido quando esse encontro se dá.
A escrita de diários por jovens adolescentes no Brasil não era muito diferente da França
no século XIX, como observa Cecília Brasil:
(....) as jovens de antigamente costumavam manter diários em que,
geralmente, anotavam sua vida amorosa, mas esses diários, com o casamento
e a chegada dos filhos, o progrediam e, dependendo de seu texto, tinham
até que ser queimados (BRASIL, Cecília de Assis. Diário de Cecília de Assis
Brasil, p.6, citado por LACERDA, 2003: 45).
Como o conteúdo do diário era secretoe, muitas vezes, escapava ao rígido padrão
moralista da época, era difícil mantê-lo guardado, devido ao risco que se corria dele ser
descoberto e lido. Muitas moças destram seus diários. Isso explica a dificuldade em
encontrar diários do século XIX. Lejeune destaca também que o interesse recente dos
pesquisadores pelos diários íntimos esbarra na dificuldade em recuperá-los, tendo em
vista a dificuldade dos autores em compartilhar seus conteúdos mais íntimos. Quando
surge o interesse pela publicação, normalmente os autores fazem uma revisão nos textos,
retirando aquilo que poderia comprometê-los de alguma forma. O interessante em sua
pesquisa é que ele o se limita a estudar diários íntimos que foram publicados. Lejeune
pesquisa diários íntimos não publicados, muitas vezes encontrados escondidos nas
próprias casas e recolhidos por parentes, filhos ou netos, após a morte do diarista.
Alguns são entregues pelo próprio autor quando está mais velho.
No Brasil, a dificuldade em conseguir drios íntimos do século XIX é ainda maior que
na França, onde muitos manuscritos foram conservados por bibliotecas e arquivos. Os
fatores políticos e sociais são determinantes na expansão que se observa dessa prática
no País. Desde o século XIX as mulheres brasileiras comaram a lutar pelo seu espaço
na sociedade, conseguindo gradativamente ampliar suas possibilidades de inserção e
expressão social, o que esdiretamente relacionado ao crescimento da prática de escrita
de diários. Segundo Minot:
Desde o século XIX, mulheres brasileiras que tiveram acesso à alfabetização
tentaram refletir sobre a própria vida, rompendo o silêncio sobre o mundo.
Famílias, confessores e educadores estimularam a anotação dos
acontecimentos mais importantes do dia, através de diários íntimos e troca de
corresponncias entre amigas, num projeto de educação dos sentimentos,
como assinala Anne Vincent-Buffault (1996). Nesse período, professoras
escreviam romances e poemas, publicavam em jornais e revistas,
participavam das campanhas abolicionista e republicana. Em prosa e verso,
elas expressaram seus sonhos, reclamaram seus direitos, ingressaram em
62
escolas, fundaram associações, assinaram manifestos (TELLES, 1997). Na
imprensa, defenderam a elevação cultural da população e das mulheres,
reivindicaram igualdade de direitos, melhores veis educacionais,
reconhecimento de profissões, reforma da legislação matrimonial, direito de
voto e elegibilidade. Reclamaram a mesmo a exclusividade feminina em
algumas profissões, como enfermagem, medicina para mulheres e magistério
para crianças, segundo Bernardes (1998) (MINOT, 2000: 20).
Um dos pioneiros diários brasileiros de adolescente é Minha vida de menina, de Helena
Morley, pseudônimo da dona de casa Alice Dayrell, escrito no final do século XIX, aos
15 anos, publicado pela primeira vez em 1942, e até transformado em filme em 2004. O
diário registra impressões sobre os acontecimentos da vida de Helena entre 1893 e 1895,
quando cursava a Escola Normal de Diamantina. O seu diário ilustra como as meninas
no século XIX eram encorajadas a escrever diários até mesmo pelos seus pais. Helena
comenta o que seu pai lhe disse ao presenteá-la com um diário: Escreva o que se passar
com você, sem precisar contar às suas amigas, e guarde neste caderno para o futuro as
suas recordações” (MORLEY, 2005: 68). Helena comenta: “Cada dia acho mais razão
no conselho de meu pai de escrever no meu caderno o que penso ou vejo acontecer” (p.
68).
O lugar social privilegiado ocupado pelo homem fazia com que muitas mulheres, em
seus diários, revelassem o desejo de serem homens. Helena Morley confidencia em seu
diário: “Eu sempre desejei ter nascido homem e só certas horas gosto mais de ser
mulher” (MORLEY, 2005: 75).
A prática da escrita de diários cresceu significativamente no século XX, passando a ser
cada vez mais associada à adolescência feminina. Os diários íntimos tornaram-se
praticamente um ritual de passagem” que marcava a entrada na adolescência das
meninas.
um aumento considerável da publicação de diários e autobiografias por mulheres no
Brasil a partir de 1960. Lacerda (2003) realiza uma pesquisa sobre a escrita de diários
por mulheres no Brasil e destaca que o boom editorial ocorrido a partir dos anos 1970 e
1980 recebeu inflncia do mercado editorial europeu, que desde os anos 1960 começou
a absorver as publicações de cunho autobiográfico de prisioneiros, camponeses, negros,
homossexuais, guerrilheiros e mulheres. Ela conclui que o crescimento e a divulgação
da literatura memorial feminina coincide com o final da censura militar. Segundo Viana,
63
citada por Lacerda (2003, p.56), uma outra razão para o crescimento da produção
autobiográfica feminina, além dos movimentos feministas da década de 1960, foi o
crescimento industrial e tecnológico, em particular dos meios de comunicação, que
favoreceu um avanço nas formas de produção e circulação das ideias. Ela observa
também o fato do diário ser uma prática feminina e adolescente. De acordo com
Lacerda,
Os diários são objetos que quase todas as mocinhas possam e, até certo
modo, ainda possuem. Era e ainda é comum presentear uma menina com um
diário ou caderno de notas. Assim fez Carlos Drummond de Andrade com a
filha Maria Julieta, fez o pai de Helena Morley e também o de Cecília de
Assis Brasil. Talvez, mais do que um objeto de leitura, a escrita dos diários
acabou se transformando em um refúgio para os desejos de transgressão
moral e religiosa da época, ainda que não fosse tomada como tal, nesses
cadernos guardavam-se pensamentos secretos, desejos contidos, curiosidades
e descobertas, suspiros de amor e tudo do cotidiano que merecesse papel e
tinta. Apesar do rigor dos preceitos sociais, permitia-se que tais cadernos
circulassem pelo interior da casa e que as moças sonhadoras se
desgovernassem pelas linhas de suas anotações pessoais. Muitos diários,
sendo suspeitos, terminavam queimados ou eram, as o casamento,
abandonados em função dos afazeres domésticos e da maternidade
(LACERDA, 2003: 242).
O século XX é o século dos diários íntimos escritos por adolescentes. É
fundamentalmente nesse momento histórico que as adolescentes começam a escrever de
forma mais livre e o diário íntimo vai assumindo um caráter cada vez mais confessional.
Se a escrita de diários passou a se caracterizar de forma crescente como uma prática
privada de adolescentes do sexo feminino, isso não significou, entretanto, a exclusão
dos homens e de adultos da realização dessa prática. Existem muitos diários conhecidos
escritos por homens, nas diversas culturas onde a prática do diarismo se expandiu,
como, por exemplo, nos Estados Unidos no século XIX: os de Meriwether Lewis e
William Clark, norte-americanos que escreveram suas aventuras ao mapear a Passagem
Noroeste; o nova-iorquino George Templeton Strong, que manteve um diário relatando
o tempo de estudante na Universidade de Colúmbia, o casamento, a carreira em Wall
Street e a Guerra Civil; na Europa no século XIX temos os famosos escritos de Tolstoi,
na Rússia; Jonathan Swift, na Irlanda; Charles Baudelaire, os irmãos Jules e Edmund de
Gouncourt e Andre Gide, na França.
Entre os diários de adolescentes que se tornaram famosos depois de publicados, o maior
destaque tem sido O diário de Anne Frank, o qual não registra os conflitos,
sentimentos e experiências de uma adolescente, mas também é um testemunho da
64
Segunda Guerra Mundial. O Diário da jovem Moshe, escrito pela adolescente polonesa
Moshe Flinker, é outro diário de guerra. Em 1942, a garota e a família, que vivia na
Holanda, foram forçadas a fugir do nazismo para a Bélgica. A Gestapo descobriu e
todos foram mandados para o campo de concentração de Auschwitz, onde morreram.
Um outro importante diário de adolescente, também escrito durante a guerra, é O diário
de Zlata. Ele foi escrito por uma garota de 11 anos que viveu em Sarajevo. Zlata
descreve o seu cotidiano, que vai sendo modificado gradativamente a partir da guerra na
ex-Iugoslávia, em 1992. Além desses, o célebre Une jeune fille mal dans son siècle,
diário de Amélie Weiler, editado por Nicolas Stoskopf e, mais recentemente, publicado
em 2003, o diário de Morgan Menzie, Diary of an anorexic girl, que se tornou famoso
por abordar um tema bastante divulgado na contemporaneidade, a anorexia. Há também
a obra L‘herbe bleue: journal d‘une jeune fille de 15 ans, diário de uma jovem viciada
em drogas, publicado na França por autor anônimo.
Um outro diário publicado na adolescência que teve importante repercussão em nosso
país foi o do antropólogo Gilberto Freyre, confirmando que essa prática, no século XX
no Brasil, não era exclusivamente feminina. Seus diários foram publicados pela
primeira vez em 1975, sob o título Tempo morto e outros tempos: trechos de um diário
de adolescência e primeira mocidade, 1915-1930. O texto constitui-se de fragmentos
dos diários, organizados para publicação por Maria Elisa Dias Collier, com
acompanhamento do próprio autor. O prefácio do diário de adolescência de Gilberto
Freyre apresenta uma reflexão sobre os motivos que podem levar um jovem adolescente
a escrever diários:
Esses registros foram afinal registros de conversa de um homem consigo
mesmo. De um homem desdobrado em dois: ele e o seu diário. De um
homem analítico e, ao mesmo tempo, com uns instantes tão antianalíticos de
devaneio poético, que o diálogo parece adquirir, por vezes, aspectos quase
líricos. Há nas notas um misto de lirismo anárquico e de tentativa de
organização: a de um adolescente e depois um jovem na sua primeira
mocidade a buscar dar alguma ordem aos começos do seu pensar, do seu
sentir, do seu viver, do seu existir. Ao seu preexistir e ao seu s-existir
dadas suas preocupações com seu futuro e até com o futuro de sua gente, em
particular, e do Homem, em geral (FREYRE, 1975).
Esse prefácio do diário, acrescentado por Gilberto Freyre na fase adulta, descreve o que
um adolescente no início do século XX podia buscar através da escrita de seu diário:
uma análise de sua vida, uma tentativa de organização de si no início de seu viver e de
seu ingresso no mundo social, uma construção de sentido para o seu passado, presente e
65
futuro, ordenando-os (como na escrita de um romance), além de uma preocupação
consigo mesmo e com o mundo. Mais recentemente, publicado em 1985, O diário de
uma garota, de Maria Julieta Drummond de Andrade, ficou famoso por retratar parte da
vida da filha de um importante poeta brasileiro, Carlos Drummond de Andrade, e por
apresentar reflexões comuns aos adolescentes do século XX.
Vimos como o interesse em escrever sobre si tem acompanhado a adolescência.
Inicialmente fruto de uma exigência escolar, os diários vão se constituindo
gradativamente como uma escrita cada vez mais livre, íntima, confessional, que visa
conhecer e desvendar um “eu”, num momento de transição do espaço familiar para o
campo social. Por outro lado, como evidenciou Lejeune, constata-se um frequente
abandono dessa atividade, no final dessa fase da vida. O caráter transitório dessa escrita
permite levantar a hitese de que essa prática exerce uma importante função psíquica
para o adolescente. Para que possamos aprofundar nessa reflexão, tentaremos, de forma
breve, conceituar a adolescência para a psicanálise e refletir sobre sua relação com a
escrita.
1.4.2. A escrita na adolescência
A adolescência” enquanto uma fase intermediária da vida, entre a infância e a fase
adulta, é uma construção social. Até o final do século XVIII a adolescência não era
percebida como um estágio particular do desenvolvimento humano. O termo
adolescência surge, em sua concepção moderna, entre o final do século XVIII e início
do século XIX. Até então, a adolescência se confundia com a infância e ambas
demarcavam a ideia de dependência socioeconômico-cultural.
Se a adolescência é uma construção social, o termo mais adequado para abordar esse
tempo lógico do encontro com o real do sexo talvez seja a puberdade, termo utilizado
por Freud. Consideramos a adolescência como uma resposta sintomática do sujeito ao
encontro com o real do sexo na puberdade, discussão que será feita adiante.
Freud utiliza o termo puberdade descrevendo-a como um segundo tempo da
sexualidade. O primeiro ocorre na infância e retrocede ou é detido na latência; e o
segundo sobrevém com a puberdade e determina a configuração definitiva da vida
sexual. E explica que com a chegada da puberdade introduzem-se as mudanças que
66
levam a vida sexual infantil à sua configuração definitiva. A pulsão na infância era
predominantemente autoerótica e na puberdade encontra o objeto sexual. Surge um
novo alvo sexual para a conjunção de todas as pulsões parciais: a zona genital.
Assim, com a chegada da puberdade, duas transformações são decisivas, segundo
Freud: a subordinação de todas as outras fontes de excitação sexual ao primado das
zonas genitais e o processo do encontro do objeto. A normalidade da vida sexual é
assegurada pela exata convergência das duas correntes dirigidas ao objeto sexual e à
meta sexual, a de ternura e a sensual: “A primeira destas comporta em si o que resta da
primitiva eflorescência infantil da sexualidade. É como a travessia de um túnel
perfurado desde ambas as extremidades” (FREUD, 1974 [1905]: 195).
Um outro trabalho que o jovem deve fazer é o de separação de seus pais, como ressalta
Freud. Ele destaca que na puberdade há o redespertar do Édipo, renovando os conflitos
edipianos e as fantasias incestuosas. Ele comenta:
Contemporaneamente à subjugação e ao repúdio dessas fantasias claramente
incestuosas consuma-se uma das realizações psíquicas mais significativas,
porém também mais dolorosas, do período da puberdade: o desligamento da
autoridade dos pais, unicamente através do qual se cria a oposição, tão
importante para o progresso da cultura, entre a nova e a velha gerações
(FREUD, 1974 [1905]: 213).
uma reativão do Édipo na puberdade que, diferentemente de sua primeira
manifestação na infância, agora tem a marca da interdição. De acordo com Cottet
(1996), Freud descreve a puberdade como ...um mito, o da conjunção de todas as
pulsões parciais em torno da genitalidade sobre um novo objeto após a fase da latência e,
portanto, para além do recalcamento (COTTET, 1996: 12). Na puberdade, o desejo
sexual, à medida que desperta a antiga corrente, reativa o Édipo. uma reativação da
escolha do objeto interdito. A diferença com relão à infância é que desta vez é
reativada numa época mais além do recalque com esse novo elemento que é a
genitalidade. O desejo sexual reativa uma interdição pondo em questão a
impossibilidade de uma harmonia entre a pulsão sexual e a corrente terna sobre o
mesmo objeto.
Os pais, enquanto modelos de identificação, devem ser substituídos por outras pessoas.
Em 1914, em Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar, Freud faz algumas
67
considerações sobre a adolescência, marcando em especial o desligamento que o jovem
faz do pai e sua substituição pela figura do mestre. Freud explica que é nessa fase do
desenvolvimento do jovem que sobrevém seu encontro com o mestre. Ele acrescenta
que tudo o que distingue a nova geração, tanto o que é portador de esperança quanto o
que choca, tem como condição esse desligamento do pai. Ou seja, a crise do pai faz
nascer a nova geração. Nesse movimento, a função de interdição edípica, bem como a
abertura à possibilidade do exercício do desejo, ampliam-se para sua concretização no
pacto social.
A partir das referências freudianas acima, podemos destacar como principais
determinantes da puberdade: as transformações fisiológicas com a consequente
maturação genital, o encontro com o outro sexo (que ele chama de encontro com o
objeto), o redespertar do Édipo com a necessidade de separação dos pais e a escolha de
outras referências de identificação, ou seja, a passagem do pai ao mundo social mais
amplo.
Para Freud a sexualidade humana não é inaugurada na puberdade, mas na infância. No
segundo ensaio de seu texto de 1905 o autor demonstra a existência da sexualidade
infantil, descreve a fragmentação das pulsões parciais e comprova o caráter normal das
exteriorizações sexuais infantis. A vida sexual infantil vai apresentar uma lógica pré-
genital organizada como oral e anal. Em 1924 o autor acrescenta a fase fálica. Essa fase
se apoia numa zona genital, mas com diferenças com relação à organização genital
adulta, pois a criança só reconhece uma classe de órgão sexual: o masculino. Mas não se
trata da primazia dos genitais, e sim do falo. A descoberta da diferença entre os sexos
(tendo o falo como referência) é fundamental para a constituição da sexualidade.
A separação entre masculino e feminino ganha significação após a puberdade, e essa
distinção será fundamental na sexualidade do adulto. O Complexo de Édipo e o
Complexo de Castração marcam a passagem da sexualidade infantil para a vida sexual
adulta. Freud formula o Complexo de Édipo para afirmar que o desejo inconsciente
determina no sujeito uma estrutura ternária, uma rede complexa na qual o sujeito
articula o seu desejo ao desejo do par parental. Podemos considerar que, ao escrever o
Complexo de Édipo, Freud indica uma direção, do mito à estrutura. A impossibilidade
do amor incestuoso encaminha o Édipo para a sua destruição. Essa impossibilidade é a
68
castração, enquanto um fato de estrutura. Marca-se a impossibilidade do encontro com o
objeto, não há complementaridade. As teorias sexuais infantis constituem o recurso
utilizado pela criança no trabalho de velar e desvelar a castração, enquanto
impossibilidade estrutural. um recalque das fantasias e do desejo incestuoso com a
incidência da castração, marcando a entrada da criança na latência. A latência se situa
nesse tempo intermediário entre a infância e o despertar da puberdade. Na puberdade
existia necessidade de distinção sexual e o primado da zona genital irá se firmar. A
maturação genital leva ao encontro com o objeto.
Há, portanto, uma constituição da realidade psíquica que se em dois tempos: o da
infância e o da adolescência. O trabalho psíquico que ocorre na adolescência envolve
um segundo tempo desse processo. Para a teoria lacaniana, a subjetividade se constitui a
partir do enlaçamento de três dimensões topológicas: o simlico, o imaginário e o real.
O registro simlico designa a relação do ser falante com o significante; o registro
imaginário, a relação do ser falante com a imagem; e o real, com o objeto. O Complexo
de Édipo é o que amarra os três registros.
O registro simbólico representa, na teoria psicanatica lacaniana, o lugar do código
fundamental da linguagem, o lugar da lei, onde fala a cultura, a voz do grande Outro. A
escritura do Outro (com maiúscula) foi adotada por Lacan para mostrar como a relação
entre a estrutura simbólica e o sujeito se distingue da relação imaginária do eu e do
outro (com minúscula indica o outro imaginário). Lacan, em O estádio do espelho como
formador da função do eu, chama a atenção para a matriz simlica em que o eu se
precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com
o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito
(LACAN, 1998: 97). O acesso ao simbólico tem como efeito “a divisão do sujeito”, ou
seja, a perda de uma parte essencial de si mesmo, pois no simlico o sujeito pode
ser representado.
O sujeito mediatizado pela linguagem está irremediavelmente dividido, pois está
excluído da cadeia significante, ao mesmo tempo em que é representado. Nomeado
no discurso dos pais, e deles recebendo um prenome, o sujeito entra no circuito da troca
e, nessa troca, algo se perde. A condição para a sua aparição na ordem do significante é
a sua “morte”, ou a sua “perda”, a sua divisão”, ou seja, pode-se dizer que ao mesmo
69
tempo em que ele se humaniza através do Outro, o preço a ser pago por essa
humanização é a sua alienação a esse Outro, a essa ordem cultural.
Entre o campo do sujeito e o campo do Outro há uma hiância; é nesse hiato que
acontecem as duas operações na relação do sujeito com o Outro. Se a primeira operação
é a alienação, como vimos acima, a segunda está situada numa interseção, é a separação.
O encontro inaugural com o Outro deixa como marca uma inscrição significante, o S1,
um significante sem qualquer sentido. O sentido de S1 o sujeito lhe dará retroativamente,
a partir de certo sentido, certo saber, o S2. A fundação do sujeito se então a partir
dessa marca originária vinda do campo do Outro, o S1, e de um significante que pretende
dar sentido, o S2. Nem S1 nem S2 dão conta de representar o sujeito integralmente. O
sujeito do inconsciente surge no intervalo entre S1 e S2, como $ (Sujeito dividido). Para
a psicanálise, não há relação entre S1 e S2, somente uma amarração. O objeto a é o que
aponta para aquilo que escapa a qualquer tentativa de recobrir um significante pelo
outro, substituindo-o, sem falha. O objeto a é o resto da operação de emergência do
sujeito entre S1 e S2, que supostamente taparia nossa falha estrutural.
A separação surge no recobrimento de duas faltas: a que o sujeito encontra no Outro e a
que recobre a primeira, quando o sujeito responde à primeira falta com a proposta de
seu desaparecimento, sua morte, que permanece na pergunta infantil: “Será que o Outro
pode me perder?” Falta um significante no campo do Outro do qual o sujeito do
inconsciente depende para se constituir como tal. Então surge a fantasia como resposta e
solução para o sujeito diante do enigma do desejo do Outro. Por meio da fantasia, o
sujeito pode evitar o encontro com o real faltoso, com a falta de objeto, com o que não
está inscrito. Com a fantasia, onde furo coloca-se objeto a fantasioso. Quando há a
instalação da fantasia inconsciente fundamental, a instalação dos três registros: o
real, o simbólico e o imaginário.
O imaginário para a psicanálise envolve não só as imagens e a imaginação, como
também o registro da identificação especular, onde há a relação do sujeito com as
identificações formadoras do eu. Lacan descreve o estádio do espelho como uma
identificação, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma
imagem: O estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da
insuficiência para a antecipação (LACAN, 1998: 100). Lacan, retomando Freud, diz
70
que no princípio não unidade, ou seja, inicialmente o corpo do indivíduo é
fragmentado pelas pulsões autoeróticas, ou pulsões parciais, que ainda não se
organizaram em torno de um eu. As pulsões autoeróticas convergem para a imagem do
corpo tomado pelo objeto: imagem com a qual o sujeito se identifica para constituir seu
eu. Essa imagem é o eu ideal formado pela imagem do outro, que dará a unidade que
constitui o eu, ou seja, a criança se identifica com aquela imagem refletida no espelho
(ou imagem do outro), alcançando uma “identidade alienante” que a acompanhará no
seu desenvolvimento. Essa unidade ou “armadura”, esse “eu”, é antes de tudo “um eu
corporal” (FREUD, 1974 [1914]). A percepção visual do corpo constitui a base do
imaginário e da identificação especular. A unidade do eu é, portanto, imaginária.
No entanto, se o espelho fornece ao sujeito uma unidade corporal, que o organiza,
conferindo-lhe uma gestalt, um eu ideal, essa imagem é sustentada pelo olhar de um
representante do Outro. O sujeito se vê no espelho através desse ponto simlico
situado fora da imagem, suporte da identificação simlica ao ideal do eu. Mas, como
nem tudo da realidade subjetiva é captado pela imagem, existe sempre algo não
especularizável, o objeto fora do espelho. Diante de sua falta a ser, o sujeito se
impelido a compensar sua incompletude através do recurso às imagens unificadoras do
eu. Mas em algum momento ele se depara com a impossibilidade de captar-se
totalmente numa imagem. A experiência especular traz como uma de suas importantes
consequências a subordinação do sujeito ao significante que o designa, com a
consequente perda do objeto. Os objetos pulsionais não se deixam captar pelo espelho,
permanecendo como traços no corpo do sujeito. O sujeito tenta recuperar esses objetos
mediante a construção de sua fantasia.
A puberdade é um tempo lógico, portanto, no qual o sujeito é convocado a realizar um
trabalho psíquico. uma ressignificação da sua relação com o corpo. A construção
especular do eu feita na infância é perturbada na adolescência. O corpo púbere”, em
transformação, denuncia os pontos de fraqueza da unidade especular construída na
infância. As perguntas sobre o ser, sobre o sexo, sobre o próprio desejo e o desejo do
Outro, surgidas na infância e silenciadas na latência, são redespertadas na adolescência.
A consistência imaginária do Outro é abalada. O Outro aqui é referido ao campo
simlico ao qual o sujeito do inconsciente está remetido. Sua consistência imaginária é
71
abalada nesta fase. O adolescente terá que fazer um intenso trabalho de construção
imaginária da realidade, quando o corpo desponta como fundamental ao sujeito. Na
reconstrução que o adolescente deve fazer da sua imagem, a questão do olhar é
fundamental. O adolescente demanda um olhar que confirme “a nova imagem corporal”
como desejável e desejante. O olhar do outro confere ao sujeito um reconhecimento de
sua nova condição sexuada.
Mas a imagem do corpo em transformação do adolescente torna-se estranha a ele
mesmo, correspondendo à categoria do estranho (Unheimliche), descrita por Freud em
1919. O estranho remete ao que é conhecido e familiar, que se tornou alheio ao próprio
sujeito. O termo unheimliche, através da partícula negativa um-, põe um limite na
ambiguidade de seu provedor heimliche
12
.
12
A raiz de ambos, das Heim (casa, lar),
refere-se a tudo o que é íntimo, conhecido e familiar, e de tão íntimo torna-se secreto,
estranho, assustador e angustiante. Para Freud o termo refere-se a tudo que deveria ter
permanecido secreto e oculto, mas veio à luz.
O duplo como figura do estranho, que comumente aparece como imagem especular,
torna-se causa de estranheza, quando o corpo familiar vira objeto de angústia. O eu para
a psicanálise é sempre imaginário, daí a sua fragilidade e o estatuto de ficção que
derivam de uma articulação entre o estranho e o narcisismo. O fundamento do duplo
está no momento de cristalização do eu. O espelho, parâmetro de exterioridade, oferece
ao sujeito a chance de se ver por inteiro, mas ao preço de se ver como um outro. Nessa
relação com o semelhante, a figura que se reflete aparece invertida, impondo uma
diferença no registro do idêntico, forçando a alteridade. A própria imagem, que deveria
ser o mais conhecido e familiar, vira estranho, sinistro. Surge então a angústia que leva
a buscar eliminar o duplo, este rival. O fenômeno do Unheimliche mostra que a mesma
imagem da qual o eu depende para se constituir pode se tornar uma ameaça à sua
suposta integridade. No fenômeno do duplo, um destacamento da imagem
especular, que se apresenta como duplo autônomo, estranho para o sujeito.
Na puberdade, a imagem corporal claudica, um despedaçamento da imagem,
causando estranhamento. A imagem do corpo torna-se estranha ao sujeito. O estranho é
12
A esse respeito, ver: PORTUGAL, A. M. O vidro da palavra. O estranho, literatura e psicanálise. Belo
Horizonte, Autêntica, 2006.
72
o real, que se rompe quando o véu que o recobre é descoberto. O estranho é o
impossível a ocultar, é a experiência do real que irrompe, furando a imagem. A
experiência do duplo traz à tona a outra cena”, que nos aliena de nós mesmos,
provocando um sentimento de estranheza que nos angustia, exigindo um trabalho de
escrita que leve à construção de sentido.
Lacan (1993 [1964]), no Seminário 11, introduz o olhar como objeto a no lugar do
Outro. Na experiência especular existe um ponto cego, uma parte faltante, que
corresponde ao que do registro real não é especularizável. O autor diferencia visão e
olhar, identificando o olhar com o objeto. O olhar ou o escópico aponta para o real, que
é diferenciado da visão ou do especular, que corresponde ao imaginário. A dimensão
escópica, apesar de não poder ser vista, razão àquilo que se vê (especular). Para
Lacan, o segredo do fascínio pela imagem é o encobrimento da falta e, também, o
encobrimento do objeto (olhar). O olhar como objeto a é encoberto pela imagem e é o
responsável, tanto pelo segredo da beleza, quanto pelo horror da imagem, que causa
estranhamento.
O despertar do real do sexo leva o sujeito a um desatar do que amarra a estrutura. Se
o Complexo de Édipo é uma amarração da estrutura, na puberdade uma exigência de
um novo enodamento. Como o sujeito pode fazer essa amarração? Tornar-se homem ou
mulher envolve fazer um trabalho de amarração com os restos do enlace do sujeito ao
Outro. Ilustraremos, com o diário de Melissa, o encontro com o real na adolescência e a
escrita de um diário operando como uma forma de dizer desse encontro.
Melissa Panarello, uma adolescente siciliana, publica o diário que escreveu dos 14 aos
16 anos, entre 2000 e 2002. Seu diário, Cem escovadas antes de ir para a cama (2004),
revela os seus desejos mais íntimos, o início de sua vida sexual e a busca desenfreada
pelo verdadeiro amor, que a leva a oferecer o próprio corpo a quem quer que o solicite.
Os conflitos da adolescência e as experiências sexuais são vividos intensamente e
descritos minuciosamente em seu diário. O seu texto mistura a escrita sem “pudores”
com a escrita poética de uma adolescente que faz uma viagem em busca de “si mesma”
e do amor. Se ela se entrega aos excessos carnais, seu prazer convive com a repulsa e a
angústia.
73
Na puberdade a gestalt do corpo muda, assim como a percepção que o jovem passa a ter
de si e do meio que o cerca. Melissa observa seu corpo no espelho e descreve em seu
diário seu encantamento com a nova forma que começa a se delinear: “Diante do
espelho, eu me admiro, extasiada com as formas que vão pouco a pouco se delineando,
com os músculos que ganham um contorno mais modelado e seguro, com os seios que
começam a aparecer sob as camisetas e se movem suavemente a cada passo”
(PANARELLO, 2004: 8).
O jovem, diante das rápidas transformações físicas, desconhece o seu corpo e não sabe
dele se servir. Ele então reinveste a imagem especular que o fazia reconhecer-se no
outro imaginário. Mas, é exatamente o seu corpo que lhe causa angústia, ele é um
estranho. Sua imagem claudica, despedaçando-se: “Sinto meu corpo arrasado e pesado,
inacreditavelmente pesado. É como se alguma coisa muito grande tivesse caído em cima
de mim e me esmagado. o me refiro à dor física, mas a uma dor diferente, por
dentro” (PANARELLO, 2004: 24).
De acordo com Freud, a forma definitiva normal do corpo é assegurada pela fantasia,
por meio da conjuão de duas correntes, a terna e a sensual, em direção ao objeto e ao
fim sexual. Nesse desencontro do sujeito com sua imagem especular, imagem que traz
em si um ponto de real, surge a angústia, quando se produz um abalo na significação
fálica
13
,
13
que de alguma forma sustentava essa imagem. Surge então a pergunta sobre o
seu ser. Essa pergunta, insistente, instiga a escrita pessoal, como tentativa de construir
uma resposta que lhe sustente: Mais buscas, não vão acabar até eu encontrar aquele
que procuro. Na verdade, não sei bem o que quero. Procura, continua a procurar,
Melissa, sempre” (PANARELLO, 2004: 78).
Através da prática sexual promíscua, Melissa busca despertar a paixão do parceiro:
...vou entregar meu corpo a qualquer homem por dois motivos: porque, saboreando-me,
13
Lacan, ao escrever a operação da metáfora paterna, indica que por meio desta substituição do
significante Nome-do-Pai pelo significante do desejo da e, “o significante Nome-do-Pai conserva um
efeito de significado que é a significação fálica. Ao mesmo tempo, o falo é um índice de gozo; é inclusive
o índice de gozo por excelência, a tal ponto que Lacan modificará esta construção e se ve conduzido a
falar do falo como significante do gozo(MILLER, J.-A., 2006: 274). NP DM = NP (A)
DM X falo
74
talvez ele sinta o sabor da raiva e da amargura e por isso pode sentir um pouco de
ternura, e depois porque vai se apaixonar pela minha paixão até não poder mais passar
sem ela” (PANARELLO, 2004: 30).
Lacan (2003) vai apontar a adolescência como fornecedora do paradigma da
impossibilidade do encontro simétrico e recíproco com o outro. A relão ao outro sexo
é contaminada pelo interdito. Lacan desenvolve este ponto de vista em seu Prefácio ao
despertar da primavera de Wedeking
14
,
14
peça que foi traduzida por François Regnault
nos anos 70 e que tinha sido discutida na Sociedade Psicanalítica de Viena em 1907. Na
puberdade, o despertar para a discordância entre o sujeito que surge como produto
dividido do recalcamento e o mundo das pulsões. Nesse tempo da puberdade essa
dicotomia se faz presente de forma contundente e não permite mais o recurso, utilizado
pela criança, de lançar mão do Outro parental para fazer frente a este desencontro entre
o sujeito dividido e a pulsão. O Outro parental apresenta-se falho, incapaz de responder
à altura dessa exigência. Os ideais vacilam, e os adolescentes vão à procura de novos
ideais.
É neste período também que o encontro com o outro sexo ganha corpo. É exatamente no
momento em que o rapaz satisfaz aos ideais de sua virilidade e a moça se instala na
identificação, momento de assunção do desejo, que o encontro fracassa. um mal-
estar, um impasse na relação sexual. Os desencontros dos primeiros amores são
paradigmáticos do impasse da relação sexual. De acordo com Lacan, quando chega a
hora do rapaz fazer amor com as moças, é preciso que sonhe com isso, antes disso se
ocupar. Em Televisão (2003)
15
, retomando o vocabulário da época que qualifica o
adolescente de jovem, Lacan observa que sua relação ao sexo é marcada por dois afetos
modernos, o tédio e a morosidade:
Se falei de tédio, e até mesmo de morosidade a respeito da abordagem
“divina” do amor, como desconhecer que esses dois afetos são denunciados
em falas e até mesmo em atos em jovens que se entregam a relações sem
repressão o mais incrível sendo que os analistas, em quem eles encontram
suas motivações, lhes respondem fazendo birra. Mesmo que as recordações
da repressão familiar não fossem verdadeiras, seria preciso inventá-las, e não
14
LACAN, Jacques. Prefácio a O despertar da primavera. In: LACAN, Jacques. Outros escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2003 (Campo Freudiano do Brasil), p.557-559.
15
LACAN, Jacques. Televisão. In: LACAN, Jacques. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003
(Campo Freudiano do Brasil), p.508-543.
75
se deixa de fazê-lo. O mito é isso, a tentativa de dar forma épica ao que se
opera da estrutura (LACAN, 2003: 530).
Se o existe a repressão sexual, como adverte Lacan, é necessário criá-la, inventá-la.
Assim, o adolescente, ao criar o mito da repressão familiar, forma épica ao que se
opera na estrutura. De acordo com Cottet (1996), Lacan designa uma espécie de
infelicidade do ser no fato dos jovens se devotarem ao exercício de relações sem
repressão. Sem fazer uma apologia da repressão, Lacan na verdade busca deduzir a
estrutura desse impasse, estrutura que ele referia à lógica, ao menos à aritmética, ao
gozo do Um, ideal de uma beatitude na qual o parceiro é reduzido ao semelhante.
Lacan observava a intolerância do adolescente em consagrar o outro como objeto a, em
enraizar seu desejo ou sua causa em um objeto que não fosse o semelhante idealizado
(COTTET, 1996: 19).
A adolescência pode ser considerada como um “sintomada puberdade. Stevens
16
16
considera que o termo puberdade tem mais pertinência na clínica do que o termo
adolescência. Retomando a tese de Freud de que após a infância certas escolhas são
feitas (de objeto e quanto à sexuação), ele ressalta uma terceira escolha, determinada
mais cedo na existência e que vai ter consequências na adolescência, é a eventual
escolha da perversão. É a escolha em permanecer em uma pulsão parcial, mas também
uma escolha de se colocar a serviço de uma vontade de gozo, de um Outro do gozo, do
gozo obscuro. Assim, a puberdade é tomada não só como um tempo de escolha de
objeto e de posição quanto à sexuação, mas também como um tempo lógico de escolha
de uma possível orientação quanto à perversão.
No momento em que se dá a sua entrada na adolescência, o sujeito ainda não se decidiu
totalmente sobre suas escolhas e esse é o momento de se decidir. O autor destaca que a
escolha do sintoma e a organização da fantasia se estabelecem extremamente cedo, mas
são recolocadas parcialmente na adolescência. Essas escolhas deverão ser recolocadas
tanto do lado da fantasia, posta à prova na puberdade, quanto do lado do sintoma. Elas
são recolocadas mesmo se a estrutura clínica está decidida. No entanto, as formas
comportamentais, fenomenais e também a forma do sintoma com o sexo vão se
encontrar modificadas na puberdade.
16
STEVENS, Alexandre. Adolescência, sintoma da puberdade. In: Clínica do Contemporâneo. Revista
Curinga. Escola Brasileira de Psicanálise. Seção Minas, 2004 (n° 20). p.27-39.
76
Se a puberdade é um dos momentos em que a não-relação sexual aparece para o sujeito,
a adolescência, segundo Stevens (2004), é a resposta sintomática que o sujeito vai dar a
isso, é o arranjo particular com o qual ele organizará sua existência, sua relação com o
mundo e com o gozo. O autor propõe a clínica da adolescência como a clínica do
sintoma. Mas se trata de uma resposta individual e como escolha de um sujeito. Na
adolescência, há certo despedaçamento do imaginário diante da irrupção do real da
puberdade rgão marcado pelo discurso na ausência de um saber sobre o sexo). Na
ausência de um saber, resta a cada um inventar sua própria resposta. Stevens descreve o
real da puberdade articulando-o com três definições de real em Lacan: um primeiro
conceito de real, articulável na disjunção entre a identificação simlica e imaginária,
disjunção esta acentuada no momento da adolescência em função do despedaçamento
da imagem; um segundo conceito de real como aquilo que irrompe, que não tem nome e
que vem modificar a imagem, que acontece no tempo do despertar da puberdade; e o
real como a não-relação sexual, que faz retorno na puberdade. A adolescência é, pois, a
enumeração de uma série de escolhas sintomáticas em relão a esse impossível, que é o
real da puberdade.
Diante das exigências que se impõem ao jovem adolescente: passagem do pai à lei
social na ampliação do pacto edípico ao pacto social, elaboração do luto dos pais
infantis, ressignificação da relação com o corpo, escolha do objeto e da posição sexuais,
além da escolha da perversão, a escrita de um diário pode ser um instrumento que
possibilita esse trabalho psíquico, ou, a partir das considerações de Stevens (2004), o
diário pode ser uma resposta do sujeito, uma escolha sintomática possível ao impossível
do encontro com o real, próprio da puberdade.
Mas uma questão que se faz pertinente é compreender por que a prática da escrita do
diário é preferencialmente feminina. A psicanálise permite ir além da referência
puramente social para explicar a escrita do diário como prática feminina. Para discutir
essa questão, apresentaremos, brevemente, o percurso da feminilidade na teoria
psicanalítica.
Freud, no terceiro dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1974 [1905]),
ressalta as transformações fisiológicas que acontecem na puberdade, em função do
aparecimento dos caracteres secundários. Para o autor, a singularidade do
77
desenvolvimento sexual feminino se por uma espécie de involução” dos órgãos
sexuais masculinos. Além disso, um novo recalcamento deve incidir sobre a atividade
clitoriana, fazendo sucumbir ao recalque uma parte da vida sexual masculina das
meninas. A menina, para tornar-se mulher, deve então organizar sua sexualidade em
torno da vagina. A essência da feminilidade está relacionada à troca de zona erógena.
Nos textos posteriores de Freud sobre a feminilidade, o autor define a feminilidade em
termos de maternidade. O menino renuncia ao objeto incestuoso pela ameaça de
castração e a menina tem a sua entrada no Édipo em função de uma privação real, a
ausência de pênis. Freud estabelece três saídas para a mulher, diante da “inveja do
pênis”: renúncia, masculinidade e feminilidade. A feminilidade é alcançada pela
aceitação de sua condição de privação e por não buscar autoproporcionar-se o substituto
fálico; ela o espera de um homem, especialmente sob a forma de um filho. O desejo do
pênis então deve ser substituído pelo desejo de um filho do pai, para que se instaure a
feminilidade. Esse é o impasse a que Freud chega com relação à feminilidade, pois ele
equivale mulher e mãe, não ultrapassando o complexo de masculinidade.
Inicialmente, Lacan retoma essas hipóteses freudianas, acrescentando, entretanto, que,
diferente do menino, a menina, ao passar pela fase fálica da castração, não herda o
reconhecimento simbólico do pai, a marca de uma filiação. Assim, esse “prejuízo” se
traduzi por uma demanda eterna de reconhecimento dirigida ao pai. Essa posão
estabelece a estrutura histérica, ditada pelo ideal fálico. A falta fálica traduz-se, na
histérica, num investimento da imagem corporal, como recurso para o “velamento da
falta”. Há um deslocamento do pênis que falta para um investimento em “todo o corpo”.
A mulher, na ausência do falo, busca “ser o falo”, como tentativa de uma identificação
possível. Na ausência de um traço especificamente feminino, a mulher recorre ao
significante viril, só lhe restando a saída via “a mascarada”. Assim, o conceito de
mascarada apresenta-se como uma saída à impossibilidade da identificação do feminino
no plano do significante pela via da ficção fálica. O lugar do feminino permanece vazio
e nele se encontram máscaras. As máscaras funcionam para velar o nada.
Lacan, no entanto, avança em suas teorizações sobre o feminino, afirmando que a
mulher não é a mãe. Para o autor, entre a mãe e a mulher existe um hiato. Um filho pode
obturar, em parte, a falta fálica na mulher, “mas não é a causa do desejo feminino que
está em jogo no corpo-a-corpo sexual” (SOLER, 2005: 35). Lacan identifica um desejo
78
bem alheio a qualquer busca do “ter o falo”, e que também não é a aspiração a “ser”. Ele
se define como equivalente a uma vontade de gozo. Mas um gozo que não é limitado ao
gozo fálico. O gozo fálico é o gozo do Um, localizado, limitado e fora do corpo. É
resultado da castração, sendo, pois, aquele que a castração deixa ao ser falante. Ele não
se limita ao registro do erotismo, sendo subjacente às conquistas e realizações do sujeito
no campo da realidade, constituindo a “substância de todas as satisfações capitalizáveis”
(SOLER, 2005: 37). No entanto, o outro gozo é um gozo que não cai sobre a barra do
significante, ele é foracluído do simlico, “fora do inconsciente”. Deste gozo, o
inconsciente nada sabe. Ele manifesta-se na experiência, mas não se traduz em termos
de saber. Esse é o gozo real. Ele está mais além do falo, é desmedido e o sujeito se
ultrapassado por ele”. Esse é o gozo d‟A Mulher. Por ser heterogêneo à estrutura da
linguagem, esse gozo não é identificatório.
À famosa interrogação de Freud: “Que quer a mulher?”, Lacan responde então: ela quer
gozar. a histérica, quer um mais-ser. O gozo fálico tem valor identificatório para o
homem, por isso eles se vangloriam de seus desempenhos fálicos. na mulher, apesar
do gozo fálico não lhe ser proibido, sair-se tão bem quanto os homens não faz dela uma
mulher. Longe de exibir seu gozo, o que ela faz é escondê-lo. Daí os seus esforços para
se identificar pelo amor. Na impossibilidade de ser “A Mulher”, resta ser “uma mulher”,
eleita de um homem. Ela toma emprestado o um” do Outro para se identificar, para se
certificar de que não é uma qualquer, mas uma mulher escolhida. “Assim, é
compreensível que as mulheres, histéricas ou não, mais que os homens, amem o amor”
(SOLER, 2005: 57).
Santiago, em: Psicose e surto na adolescência: por que os adolescentes surtam
tanto?”
17
,
17
retomando Freud, destaca que na passagem da infância para a adolescência
algo se manm intransponível, que é a perversão polimorfa. Ela é lançada no momento
em que o sujeito deve identificar-se com o ideal de seu sexo. A fantasia é um recurso
que o neurótico construiu e deve ajustar quando é chegado o momento do encontro
sexual, mas é também um exílio para não ter que se haver com a sexualidade, como o
que “faz buraco no real”. Segundo a autora, esse mal-entendido, apesar de estar
17
SANTIAGO, Ana Lydia. “Psicose e surto na adolescência: por que os adolescentes surtam tanto? In:
GUERRA, Andréa Máris Campoe e LIMA, Nádia Laguárdia de. A clínica de crianças com transtornos
no desenvolvimento. Uma contribuição no campo da psicanálise e da saúde Mental. Belo Horizonte:
Autêntica, 2003, p.75-89.
79
marcado para os dois sexos, apresenta especificidades no homem e na mulher, que não
fazem amor na mesma proporção. Enquanto a puberdade masculina se decifra como um
sintoma obsessivo, a puberdade na moça responde ao modelo histérico, cujo efeito
principal, uma vez passado o estupor e a angústia, é o desgosto da sexualidade. Esse
desgosto sanciona a difícil assunção da feminilidade a essa fase de reativação do
penisneid.
Na adolescência, a passagem do corpo de menina ao corpo de mulher leva ao confronto
com a questão: o que quer uma mulher? Na ausência de um significante feminino, a
adolescente constrói um semblante, velando a falta fálica. É nesse sentido que podemos
situar a escrita de um diário para a menina. O ressentimento pela ausência de um
significante feminino e a necessidade de se constituir um artifício fálico para recobrir a
falta levam muitos adolescentes a buscar a solução histérica.
A escrita pode apresentar-se nesse momento como alguma coisa que visa à construção
de um véu, como um semblante, que recobre o vazio. A tentativa de construção de um
feminino via um “artifício fálico” supõe o olhar do outro. Nos escritos dos diários
íntimos de adolescentes acompanhamos todo um jogo de se mostrar e de se ocultar, na
tentativa de elaboração de um íntimo que se subtrai e, ao mesmo tempo, se oferece ao
olhar do outro, num convite ao desvelamento. Podemos pensar na irrupção do feminino
como algo além do registro fálico, e a histerização como defesa contra esse encontro.
Essa solução não é necessariamente da mulher, mas pode ser comum aos dois sexos.
Todo adolescente, homem ou mulher, é confrontado com o feminino, no sentido da
indeterminação, da impossibilidade de uma representação única para o desejo.
Alguns adolescentes buscam certo isolamento social, um espaço íntimo, para tentar
construir uma significação diante desse encontro com o real. Pillippe Lacadée, em O
despertar e o exílio
18
,
18
descreve a busca que alguns adolescentes fazem de um exílio
particular. Como o autor observa, o adolescente é aquele que se encontra
particularmente confrontado ao mal entendido da linguagem e ao real da sexualidade. A
adolescência é um tempo que pode dar ao sujeito o sentimento de uma desconformidade
com o simlico. O adolescente está, em sua vida, em um tempo de corte com o seu
meio familiar, “um tempo de separação da criança ideal”, separação que traz a incerteza
18
LACADÉE, Pillippe. O despertar e o exílio. Editions Cecile Defaut, 2007.
80
identificatória e sofrimentos mais ou menos acentuados, mas traz também pedaços de
real que condicionam sua realidade.
Esse corte com o meio familiar aparece na maioria dos diários de adolescentes, como
pode ser ilustrado pelo diário de Melissa, por suas críticas aos pais: “O problema é que
os meus pais veem aquilo que eles estão a fim de ver. Quando estão animados,
participam das minhas alegrias e se mostram afetuosos e compreensivos. Quando estão
tristes, ficam afastados e me evitam como se eu tivesse uma doença contagiosa”
(PANARELLO, 2004: 20).
Esse sentimento intenso de uma desconformidade com o simbólico pode conduzir o
adolescente, portanto, a um exílio particular. Partindo de seu exílio da infância a este da
língua, o adolescente pode experimentar um “desregramento de todos os sentidos”.
Segundo Lacadée (2007), o adolescente vive momentos delicados de ruptura, de
contradição, onde a infância, adolescência e loucura se aproximam e se margeiam em
um fora do discurso que conduz a certas rupturas do laço social, como pode ser
observado na escrita de Melissa: Quando estou em casa, entro na Internet. Procuro,
exploro. Busco tudo aquilo que me excita e me faz ficar mal ao mesmo tempo. Busco a
excitação que nasce da humilhação. Busco o aniquilamento. Busco os indivíduos mais
bizarros, aqueles que enviam fotos sadomasoquistas, aqueles que me tratam como uma
verdadeira puta” (PANARELLO, 2004: 75).
Entrei num chat, na sala “Sexo perverso”, com o apelidowhore”... Ele logo me
contatou, “the carnage”; foi direto, explícito, invasivo, exatamente como eu queria que
fosse. Como você gostaria de ser comida?... E eu respondi: Com brutalidade, quero
ser tratada como um objeto (PANARELLO, 2004: 79).
A escrita da Melissa é muitas vezes “sem us”, descoberta, invadida pelo gozo:
“Montei em cima dele e deixei que sua haste mirasse bem no centro do meu corpo”
(PANARELLO, 2004: 27). Levantei-me e, chegando perto de sua orelha sussurrei:
Me fode” (p.99).
Ela busca essa mesma liberdade na “carne”, se oferecendo a qualquer um como objeto,
mas o que encontra é a angústia e o horror. O encontro com o outro é desconcertante. O
81
gozo avassalador causa estranhamento e angústia: Tudo começou como sempre, e
acabou da mesma maneira. Eu sou uma estúpida, diário, não deveria ter permitido que
ele se aproximasse outra vez (PANARELLO, 2004: 35).
A fantasia é o recurso utilizado pelo sujeito nesse momento de confronto com o outro
sexo, mas ela vacila exatamente diante do gozo que escapa ao falo: o gozo d‟A Mulher,
um gozo sem sentido e implacável. Ao se oferecer como objeto de gozo para o Outro,
Melissa se apavora diante da possibilidade de seu aniquilamento enquanto sujeito:
Embaixo das cobertas, voltei a pensar nas palavras do pintor e depois na manhã
anterior, quando perdi aquilo que o velho brasileiro tinha achado de tão especial em
mim. Perdi entre uns lençóis frios demais e as os de alguém que devorou o próprio
coração, que já não bate mais. Morro.” (PANARELLO, 2004: 29).
No encontro com o outro sexo, o sujeito, na posição feminina, se faz de semblante de
objeto causa do desejo do Outro. No entanto, o que faz Melissa é encarnar esse objeto.
Ela, no jogo sexual, ocupa uma posição de submiso absoluta, como objeto de gozo do
Outro. Ao invés de “se fazer” desejar bancando o objeto, ela o encarna. Freud, no texto
Uma criança é espancada” (1974 [1919]), mostra a construção da fantasia de
espancamento em três tempos: O meu pai está batendo na criança”, “estou sendo
espancada por meu pai”, “uma criança é espancada”. Comenta que essa fantasia é
também uma forma de assegurar o amor do pai, ou seja, “se o meu pai me bate é porque
me ama”. Melissa, ao se fazer escrava dos homens, tenta se assegurar do amor deles, e
fundamentalmente, tenta resgatar de alguma forma sua alienação ao Outro, buscando
anular a perda que se inscreveu com a irrupção do gozo no tempo da adolescência. Se
eu gritar, pensei, ele vai ficar satisfeito, afinal foi o que ele pediu. Vou fazer tudo o que
ele me mandar fazer” (PANARELLO, 2004: 46).
Nesse despertar pubertário, surgem pedaços de real que incitam a criação de um lugar e
de novos laços. O adolescente tem, entretanto, uma chance de inventar uma resposta
para si, capaz de tecer seu trajeto singular. A escrita pode ser uma possibilidade de certo
ordenamento desse desregramento. Alguns jovens se aventuram à escritura, como nos
seus diários íntimos, pois, segundo Lacadée, alguma coisa se liga a esta questão da
escrita, ou seja, a errância é ligada à questão da escritura. O gosto das palavras pode
permitir ao adolescente, em sofrimento, agarrar alguma coisa do seu ser. É o que
82
podemos observar no diário de Melissa: “A solio talvez esteja me destruindo, mas
o me medo. Eu sou a melhor amiga de mim mesma, eu nunca iria me trair, me
abandonar” (PANARELLO, 2004: 35).
Comentando sobre os escritos de Rimbaud, Lacadée (2007) observa como o tempo da
adolescência pode levar certos sujeitos aos sofrimentos do exílio. Mas ele acredita que
Rimbaud soube de modo magnífico elevar a perturbão do comportamento à dignidade
de uma pantomina, de um texto que se escreve. A língua que o adolescente procura
pode, por um trabalho onde o gosto das palavras é o motor, lhe permitir traduzir esta
parte viva em seu texto. Lacadée propõe ao psicanalista saber se aproximar desta língua
adolescente, se aproximar desse gosto pelas palavras tão próximas do corpo, para que o
despertar não readormeça.
Existe um grande interesse pelas palavras e pela escrita na adolescência. Essa escrita
tem uma importante relação com o corpo, já que as palavras estão tão próximas do
corpo. A relação entre escrita e corpo foi bastante enunciada na obra de Lacan. No
seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan comenta que nosso
corpo é mediatizado pelos objetos pulsionais, que são objetos compartilhados com o
Outro, como o olhar e a voz. Esses objetos a são objetos de circulação que não
pertencem exclusivamente ao corpo próprio nem ao corpo do outro: “O objeto a é algo
de que o sujeito, para se constituir, se separou como órgão” (LACAN, 1993 [1964]:
101). As pulsões fazem um movimento circular, saindo através da borda erógena
(orifícios pulsionais) para a ela retornar, depois de contornar o objeto a.
Lacan recorre a Freud para afirmar que a sexualidade se realiza pela operação das
pulsões, no que elas são pulsões parciais. Ele descreve a passagem da pulsão oral para a
pulsão anal não como um processo de maturação, mas pela intervenção da demanda do
Outro. Entretanto, o alvo da pulsão não é outra coisa senão o retorno em circuito:
Nenhum alimento jamais satisfará a pulsão oral, senão se contornando o objeto
eternamente faltante” (p.170). Esse circuito pulsional, descrito por Freud, é retomado
por Lacan, destacando os seus três tempos. O sujeito da pulsão, que é propriamente o
outro, só aparece no fechamento do circuito pulsional, no seu terceiro tempo. O que
organiza os orifícios pulsionais é a dialética fálica. No movimento do circuito pulsional,
83
algo se escreve. Na constituição de um corpo pulsional, um “escrever” do corpo,
marcado pela incidência do Outro.
Em O seminário 17, O avesso da psicanálise, Lacan comenta que a linguagem é a
condição do inconsciente e que o inconsciente permite situar o desejo (1992 [1969-70]:
43). No entanto, a repetição significante visa ao gozo, ela se funda em um retorno do
gozo. Na própria repetão, no entanto, há perda de gozo. Lacan situa a origem do saber
na repetição, sob a forma do traço unário. O significante se introduz como aparelho de
gozo. uma equivalência entre o gesto que marca, e o corpo, que é objeto de gozo do
Outro. Desta maneira se uma das vias de entrada do Outro em seu mundo. O autor
ainda observa que a imagem especular do eu é sustentada do interior pelo objeto perdido
que ela apenas veste, por onde o gozo se introduz. Assim, o saber, originado no traço
unário que funda o gozo e introduz a repetição significante, como retorno do gozo,
mostra a sua equivalência com o gozo do Outro. O saber é equivalente ao gozo do Outro.
Uma série de objetos vem preencher essa hiância que se produz na perda de gozo da
repetição significante (objetos a: oral, anal, escópico, vocal). É com o saber como meio
de gozo que se produz o trabalho que tem um sentido obscuro, que é a verdade. A
verdade é a impotência, pois ela poderia ser enunciada por um semidizer. Lacan,
então, mostra a lógica do funcionamento dos discursos, que estruturam o laço social,
discussão que será feita adiante. Apoiando-nos nesses recortes do seminário 17 de
Lacan, buscamos evidenciar a relação entre a escrita e o corpo. O gesto que marca o
corpo introduz nele o gozo. A imagem especular do eu é sustentada pelo objeto perdido,
ao mesmo tempo que o vela, por onde o gozo se introduz. A repetição significante, ou a
busca pelo saber, visa ao gozo e, paradoxalmente, leva à perda de gozo. O gozo, resíduo
da operação significante, é, no entanto, aquilo que põe o sujeito em marcha.
Em O seminário Mais ainda, Lacan (1985 [1972-73]) observa que falamos com o nosso
corpo. Ao falarmos, aquilo que está em jogo nas pules encontra um escoamento. Mas,
para além do entendimento das palavras, para além do sentido, está presente a escrita, a
dimensão da ngua. Assim, Lacan postula que as palavras funcionam como escoamento
84
das pulsões, como forma simbólica de apreensão do real, e destaca que, para além da
dimensão do sentido, está a dimensão da ngua
19
.
Na relação da escrita com o corpo na adolescência, existe uma dimensão pública e outra
privada. Ana Costa, em A transicionalidade na adolescência
20
, ressalta duas formas de
escrita e de marca corporal que a escrita coloca em causa. A primeira é o caráter
coletivo da escrita, que implica todos e cada um, inclusive corporalmente, na condição
de circular socialmente. A condição de coletivizar o corpo é de que ele constitua algo
que se inscreva no olhar do Outro. Um exemplo é a tatuagem, uma escrita no corpo. A
marca corporal constitui algo que faz circular o olhar pelo corpo. A autora descreve uma
outra face da escrita, que se apresenta através do seu caráter privado, como o diário
adolescente. Esse tipo de escrita diz respeito a uma necessidade que está colocada na
relação com um resto, como uma impossibilidade de universalizar, de tornar o corpo
completamente coletivivel, de sublimar completamente o que fica como resto da
operação de representação do corpo.
A escrita transporta detritos”. Os detritos são restos de uma operação de separação
nunca concluída, restos não assimiláveis, que escapam nesses objetos pulsionais que nos
ligam ao Outro. No ato de escrever, o sujeito transporta esses restos, buscando dar conta
de algo não “registrado do lado do autor, um resto inassimilável pelo simlico. Esse
resto, expresso nos drios, implica a necessidade de ter, de alguma maneira, o suporte
da letra. Quando só se escreve na condição de não se mostrar, segundo Costa (2004),
esta condição implica um resto ligado ao funcionamento do olhar, que somente funciona
a partir de algo velado. Em concordância com a autora, podemos localizar na escrita de
um diário a tentativa do sujeito de dar conta desse excesso não assimilável pelo
simlico, a tentativa de transportar pela via da escrita uma dimensão que não é
totalmente coletivizável, de um resto que deve se subtrair ao olhar do Outro.
19
A referência feita à língua (alíngua) diz respeito à lalangue que Lacan desenvolve no Seminário 20,
Mais ainda. Lacan opõe a língua à linguagem, quando esta se põe a serviço da comunicação. Lalangue
refere-se à relação do sujeito com a língua para além do plano comunicacional, sua relação com o gozo.
Mas existe uma relação da linguagem com alíngua. Lacan afirma que a linguagem é feita de alíngua. É
uma elucubração de saber sobre alíngua. No entanto, esse “saber fazer” com alíngua ultrapassa os limites
da linguagem. Essa discussão se feita no último capítulo.
20
COSTA, Ana. A transicionalidade na adolescência. In: COSTA, Ana (Org.) Adolescência e
experiência de borda. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004 (p.165-193).
85
Este resto como o impossível de sublimar, resto da operação de representação do corpo,
é também o resto que o espelho o recobre, o estranho, como ilustra Melissa:
Onde foi parar você, a Narcisa que se amava tanto e tanto sorria, tanto queria dar e
mais ainda receber? Onde acabaram seus sonhos, suas esperanças, suas loucuras,
loucuras de vida, loucuras de morte? Onde está você, imagem refletida no espelho, onde
posso te procurar, te encontrar, como te segurar?” (PANARELLO, 2004: 126).
A experiência do duplo, do estranho, é frequente na escrita de Melissa: “Não, aquela
o era eu. Era a outra, a que não se ama, deixando-se roçar por os ávidas e
desconhecidas...” (PANARELLO, 2004: 58).
Para Costa (2004), o diário íntimo pode ser pensado como semelhante a um objeto
transicional, que vai permitir uma contenção e uma reconstituição do campo do Outro,
viabilizando relações com os semelhantes. Nesse momento de passagem, de
reconstrução do corpo, o jovem precisa de outro suporte para “o olhar” e os diários são
suportes para uma circulação, que dependem de um registro fálico, uma representação
do corpo que seja em comum com outros. O diário, como evento transicional, é um a
priori para a construção desse registro, sendo mais da ordem do privado que do grupal.
No campo do privado, o sujeito faz do objeto um suporte da falha no espelho. Segundo
a autora, essa construção do amigo imaginário é algo do próprio corpo que se cola no
objeto, mas, ao mesmo tempo, ele não é só objeto nem só corpo, é também palavra.
Assim, a escrita na adolescência vai ocupar o campo da transicionalidade, como um
elemento terceiro que é ao mesmo tempo incluído e excluído do campo representacional.
Ela destaca também o caráter de endereçamento da escrita, que leva à construção de
dois lugares: o do sujeito e o do Outro. A autora distingue a escrita de um diário íntimo,
como construção de um espaço privado, da escrita para outros. No campo da
transicionalidade, a escrita ainda não é para outros, ela está construindo os lugares.
Escrever para outros significa perder. Portanto, a escrita, quando sai do campo
transicional e passa à cultura, mostra a possibilidade de produzir algo que seja
interpretante do contexto, que tenha a ver com o “espírito do tempo”, que diga respeito
ao laço social, para onde essa escrita se dirige. então a saída do suporte estrito ao eu
para que seja também uma produção cultural, uma passagem do privado ao público, da
86
dimensão do segredo para a dimensão da circulação social, podendo ser interpretante de
um sujeito.
De fato, podemos diferenciar a escrita para si” da escrita “para um outro”. Na escrita
de um diário íntimo, a construção de um espaço íntimo, privado. Essa escrita, ao ser
lançada no espaço público, faz laço social. Nesse sentido, podemos diferenciar o diário
íntimo do blog, que é uma escrita para os outros. Mas, a partir das considerações que
fizemos, sabemos da ambiguidade existente entre as dimensões pública e privada. O
diário íntimo comporta uma dimensão pública e veremos como o blog comporta
também uma dimensão privada.
Ao terminar o seu diário, Melissa mostra ter feito parte de seu percurso. Ela continua a
realizar a sua travessia para chegar do outro lado do túnel. A escrita tornou possível a
reconstrução de um véu fálico, a ilusão do amor”, a fantasia que encobre o traumático
do sexual:
Concluí minha viagem dentro do bosque, consegui escapar da torre do orco,
das garras do anjo tentador e de seus diabos, fugi do monstro andrógino. E
acabei no castelo do príncipe árabe, que esperou por mim sentado em
almofadas macias e aveludadas. Me fez despir as minhas vestes gastas e me
deu roupas de princesa. Chamou as criadas e mandou que me penteassem,
depois beijou-me na testa e disse que ia me olhar enquanto eu dormia. Depois,
uma noite, fizemos amor, e quando voltei para casa vi meus cabelos ainda
brilhantes e a maquiagem intacta. Uma princesa, como minha mãe sempre
disse, tão linda que até os sonhos querem roubá-la (PANARELLO, 2004:
157).
Através da escrita de seu diário, Melissa consti o seu romance particular, tecendo um
fio que reconstitui o manto imaginário que se desfez diante do encontro com o real do
sexo. Diante da ausência de um significante feminino, surge a necessidade de se
constituir um véu fálico, substitutivo da falta. Ao construir o seu mito particular, ela
passa a se reconhecer nessa história, que, ao final, termina como os contos de fadas, ao
se re-encontrar no traço identificatório que fisgou do Outro: a princesa, que escova 100
vezes os seus cabelos antes de ir para a cama. Uma princesa, como sua e a chamava.
Mas não mais a princesa da mãe”, e sim alguém que encontra um príncipe, que a
reveste” de princesa e que a ama. Nesse novo encontro, ela não mais “encarna” o
objeto sexual, mas se faz de semblante de objeto causa do desejo do Outro. De uma
prática sexual “sem restrições”, ao início da arte do velamento, via de acesso à
feminilidade.
87
Este trabalho foi possível através da escrita. A escrita possibilitou a Melissa um suporte
simlico para “dizer” desse encontro com o real do sexo. Melissa resolve publicar o
seu diário, coletivizá-lo, fazê-lo circular socialmente, marcando a saída do suporte
estrito ao eu para uma produção cultural, fazendo uma passagem do privado ao público,
da dimensão do segredo para a dimensão da circulação social. Podemos considerar essa
escrita do diário como um sintoma
21
21
para Melissa, pois foi uma solução encontrada por
ela diante do confronto com o real do sexo.
Veremos adiante as aproximações que podemos fazer entre o diário íntimo e o romance.
Essa reflexão é importante para a discussão da nossa hipótese de que a escrita de um
diário pode ser equivalente à escrita de um romance familiar, nesse tempo do despertar
da puberdade.
21
A discussão sobre o sintoma é feita no último capítulo.
88
CAPÍTULO 2: O DIÁRIO ÍNTIMO COMO UM ROMANCE
Escrevendo, eu existia, escapava aos adultos: mas eu existia para escrever, e
se dizia eu, isso significava: eu que escrevo (SARTRE, 2005: 103).
2.1. O romance e o diário: aproximações
Nossa hipótese consiste em considerar o diário íntimo como um romance. o é de
nosso interesse aprofundar na teorização do romance, apenas destacar alguns de seus
aspectos, que nos parecem relevantes para a nossa hitese. Para essa discussão,
utilizamos como referência os autores: Bakhtin, Benjamin, Robert, Corbin e Barthes. O
fio condutor desta leitura selecionará três aspectos do romance: sua origem,
classificação e caracterização, buscando, nesses três aspectos, fazer uma aproximação
entre o diário e o romance. Os autores escolhidos não apresentam um consenso com
relação a todos os aspectos abordados. No entanto, ao apresentarmos as diferentes
posições, tentaremos situar-nos em relão a elas, dentro do objetivo proposto.
2.1.1. Origem, classificação e caracterização do romance
O nascimento do diário íntimo é contemporâneo ao surgimento do romance como
gênero. O romance, da forma como o conhecemos hoje, nasce no século XIX, mas sua
origem está na antiguidade grega, como nos mostra Bakhtin (2002). O autor destaca que
o Classicismo dos séculos XVII e XVIII não considerava o romance como um nero
poético independente, e o relacionava aos gêneros rericos mistos (p.363). Na segunda
metade do século XIX surge um vivo interesse pela teoria do romance como gênero
predominante da Europa. O autor destaca que o estudo do romance enquanto gênero
caracteriza-se por dificuldades particulares, condicionadas pela singularidade do próprio
objeto, já que o romance para Bakhtin é o único gênero por se constituir, e ainda
inacabado. O autor considera ainda que o romance, por ser o único gênero em evolução,
reflete mais profundamente a evolão da própria realidade. “O romance tornou-se o
principal personagem do drama da evolução literária da era moderna precisamente
porque, melhor que todos, é ele que expressa as tendências evolutivas do nosso
mundo...” (BAKHTIN, 2002: 400). Tornando-se o “senhor da modernidade”, segundo o
autor, o romance contaminou todos os outros gêneros.
89
As particularidades do romance apresentam, para Bakhtin, uma relação importante com
uma determinada crise na história da sociedade europeia: sua saída das condições de um
estado socialmente fechado, surdo e semipatriarcal, em direção às novas condições de
relações internacionais e de ligações interlinguísticas. Essas características vão estar
presentes no romance.
Para Benjamin
1
, o surgimento do romance remonta à Antiguidade, mas ele precisou de
centenas de anos para encontrar, na burguesia ascendente, os elementos favoráveis a seu
florescimento. Benjamin considera que o surgimento do romance no início do período
moderno é um indício da morte da narrativa. Para esse autor, o que separa o romance da
narrativa é a sua vinculação ao livro. A tradição oral, patrimônio da poesia épica, tem
uma natureza profundamente distinta do romance. O romance não procede da
transmissão oral nem a alimenta e é possível com a invenção da imprensa. Enquanto
o narrador retira da experiência o que ele conta e incorpora as coisas narradas à
experiência de seus ouvintes, o romancista segrega-se. “A origem do romance é o
indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações
mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los” (BENJAMIN, 1994:
201). O autor considera que o romancista se separou do povo e do que ele faz. A matriz
do romance é o homem em sua solidão e escrever um romance significa descrever a
existência humana, levando o incomensurável ao paroxismo” (BENJAMIN, 1994: 54).
Assim, nas diferentes referências que se fazem ao romance, considera-se que ele,
enquanto gênero, nasce na modernidade. Para Benjamin, o romance, que está vinculado
à escrita, se diferencia de outras formas de prosa, como os contos de fadas, as sagas, os
prorbios, as farsas e, em especial, as narrativas, que provêm da tradição oral. A
narrativa, no sentido empregado por Benjamin, portanto, refere-se à narrativa oral.
Consideraremos, na aproximação que estamos fazendo entre o romance e o diário, o
romance como uma hisria narrada.
O que nos parece relevante destacar é que o diário, assim como o romance, é uma
herança burguesa. Um dos principais fatores que contribuíram para o crescimento do
1
BENJAMIN, Walter. “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica,
arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994 (Obras
Escolhidas, vol. 1), p.197- 221.
90
individualismo foi a ascensão do amor romântico, quando começou a construção da
subjetividade burguesa, com uma intimidade que era intermediada pela escrita. O
crescente interesse da classe burguesa pela arte de ouvir música e poesia levou a um
aumento considerável da produção escrita e as ideias românticas sobre o amor tinham
um público numeroso. Segundo Corbin (2003), o amor romântico modifica o
ordenamento da confissão, aumenta as reações devidas à vergonha e estabelece novos
procedimentos de deliberação. A palavra que poderia ser escandalosa é substituída pelo
olhar, o sorriso, o toque; surgem a perturbação, o rubor e o silêncio. Para Corbin, depois
de 1850, o modelo do amor romântico declina.
O estudo das experiências vividas impõe-se como uma tarefa fundamental dos
historiadores. Segundo Corbin (2003), o estudo das correspondências íntimas do início
do século XIX revela a violência da linguagem da paixão, logo após a Revolão. O
amor violento e os ciúmes doentios aproximam o amor da morte. A psicanálise floresce
nesse contexto, no jardim das Flores do mal (Baudelaire), quando há um crescimento do
tema da “felicidade do mal” (MILLER, 1997). Mas, ao mesmo tempo, prolifera a
linguagem angélica; a metáfora religiosa toma conta do discurso e o amante é uma
criatura celeste. A partir de 1850, encontra-se a mesma linguagem na pequena burguesia.
A linguagem forte da paixão e a linguagem angélica estão presentes também nos textos
dos diários íntimos que se proliferam no século XIX.
No final do século XVIII e no início do século XIX, a busca pela particularidade de
cada experiência individual promoveu a ascensão de uma literatura cujas formas
subjetivas ganharam maior visibilidade, surgindo um conjunto difuso de gêneros
conhecidos como “narrativas do eu”. Foi nesse contexto histórico que Goethe publicou
seu romance: Os sofrimentos do jovem Werther, que utilizava o formato epistolar (como
cartas) para narrar uma dramática hisria de amor que terminava com o suicídio de um
personagem. O livro teve grande repercussão e sucesso, provocando um efeito
inesperado, a identificação tão forte dos leitores com os personagens que uma onda de
suicídios por amores o correspondidos sacudiu a Europa. Foi em função desse
fenômeno que passou a se dizer que Goethe ensinou seus contemporâneos a se
apaixonar, seguindo a escola do movimento romântico. Outro romance que obteve
repercussão semelhante nesta época foi A nova Heloísa, de Rousseau. Diversos
romances que exploravam essa vertente “sentimentalista” tiveram enorme sucesso.
91
O Romantismo no século XIX influenciou, portanto, todas as práticas de escrita pessoal.
Para Barthes (2004), o romance e a história tiveram relações muito estreitas no século
XIX. A sua ligação profunda, segundo o autor, “está na construção de um universo
autárquico, a fabricar as suas próprias dimensões e limites, a dispor o seu tempo e
espaço, sua população, sua coleção de objetos e seus mitos” (BARTHES, 2004: 26). O
romance, assim como a história, organizam o universo, delimitando-o, dispondo seus
objetos e pessoas, construindo seus mitos e dispondo-os no tempo e no espaço.
Roland Barthes, em O grau zero da escrita (2004), observa que o romance é uma
mentira manifesta: traça o campo de uma verossimilhança que desvendaria o possível
no tempo mesmo em que ela o designaria como falso” (BARTHES, 2004: 29). A
finalidade comum do romance e da história narrada é alienar os fatos, segundo o autor.
É a tentativa de posse da sociedade sobre o seu passado e o seu possível. Barthes
relaciona esse ato com certa mitologia do universal, própria à sociedade burguesa, de
que o romance é um produto caracterizado: dar ao imaginário a caução formal do real,
mas deixar a esse signo a ambiguidade de um objeto duplo, ao mesmo tempo verossímil
e falso(2004, p.30). Essa ambiguidade está presente em toda a arte ocidental, segundo
o autor, para a qual o falso se iguala ao verdadeiro. O verdadeiro é sentido como
contendo uma universalidade. A burguesia, conforme observa Barthes, considerou os
seus próprios valores como universais. É esse o mecanismo do mito o que o aproxima
do romance.
Existem diferentes classificações do romance. Bakhtin (2003) apresenta a seguinte
classificação, segundo o princípio de construção da imagem da personagem central: o
romance de viagens, o romance de provação, o romance biográfico e o romance de
educação (formação). O romance que tem início no século XIX é romance de formação.
Faremos uma breve exposão dos diferentes tipos de romance segundo essa
classificação do autor, para depois apresentarmos a nossa hitese.
No romance de viagens a personagem é um ponto que se movimenta no espaço e não se
encontra no centro da atenção artística do romancista. Seu movimento no espaço são as
viagens que permitem ao artista desenvolver e mostrar a diversidade espacial e
socioestática do mundo. O romance de viagens tem como característica uma concepção
92
puramente espacial e estática da diversidade do mundo. O tempo nesses romances
carece de um sentido substancial e de colorido histórico. O tempo biológico do
personagem está ausente ou marcado em termos puramente formais e é ressaltado
apenas o tempo de aventura. A imagem do homem, mal traçada, é absolutamente
estática. Presente em solo antigo, ele pode ser exemplificado pelo romance picaresco
europeu: Lazarillo de Tormes.
O romance de provação é construído como uma série de provações das personagens
centrais, de provações de sua fidelidade, de bravura, de coragem, de virtude, de nobreza,
de santidade etc. Trata-se da forma mais difundida de romance da literatura europeia. O
mundo do romance é a arena de luta e provação da personagem. Todas as suas
qualidades são dadas desde o início, e ao longo de todo o romance apenas são
verificadas e experimentadas. Segundo Bakhtin (2003), o romance de provação surge
também em solo antigo, sendo representado tanto pelo romance grego quanto no início
do Cristianismo.
O romance biográfico é também de origem antiga, segundo Bakhtin (2003). Ele pode
ser encontrado nas biografias antigas, autobiografias e confissões do período inicial do
Cristianismo (terminando em Agostinho). Para ele, o romance biográfico nunca existiu
de forma pura. A forma biográfica apresenta as seguintes modalidades: a velha forma
ingênua do êxito-fracasso, os trabalhos e as obras, a forma confessional (biografia), a
forma hagiográfica e o romance biográfico familiar, a forma mais importante. Todas
essas formas apresentam características comuns, como: 1- O enredo de forma biográfica;
2- Apesar das modificações da vida da personagem, a sua própria imagem continua
essencialmente inalterada. A única mudança substancial da personagem é constituída
pela crise e pelo renascimento da personagem. A concepção de vida que embasa a obra
é determinada pelos seus resultados objetivos; 3- O tempo biográfico é plenamente real,
todos os seus momentos estão vinculados ao conjunto do processo vital, caracterizam
esse processo como limitado, singular e irreversível; 4- Os contatos e vínculos da
personagem com o mundo já o se organizam como encontros fortuitos e inesperados.
uma representação realista mais profunda da realidade; 5- A construção da imagem
do personagem sofre profundas alterações. A heroificação desaparece quase
inteiramente. O herói se caracteriza tanto por tros positivos quanto negativos.
93
Esses são os princípios fundamentais de informação das personagens no romance, que
se constituíram e existiram até a segunda metade do século XVIII, preparando o terreno
para o romance de educação. O romance de educação surge na Alemanha na segunda
metade do século XVIII, segundo Bakhtin (2003).
O romance de educação inclui alguns protótipos básicos dessa modalidade de gênero,
tais como Ciropédia, de Xenofonte (Antiguidade), Parzival, de Wolfram von
Eschenbach (Idade Média), Gargântua e Pantagruel, de Rabelais (Renascimento),
Emílio, de Rousseau, Infância, adolescência e juventude de Tolstói, Os Buddenbrooks,
de Thomas Mann, entre outros (BAKHTIN, 2003: 218).
Os romances de educação constituem um grupo bem heterogêneo, tanto do ponto de
vista teórico quanto histórico. Alguns o de natureza biográfica e autobiográfica,
outros não; alguns têm como princípio de organização a ideia puramente pedagógica de
educação do homem, outros não apresentam essa concepção; alguns apresentam um
plano rigorosamente cronológico de desenvolvimento do personagem central e carecem
de enredo, outros têm um complexo enredo aventuresco e são ainda mais substanciais as
diferenças no que diz respeito à relação desses romances com o realismo, mais
particularmente com o tampo histórico real.
Bakhtin (2003) destaca, nos romances, o elemento de formação substancial do homem.
Ele comenta que, na grande maioria dos romances, a personagem é uma grandeza
constante. A despeito de todas as diferenças possíveis de construção na própria imagem
da personagem, não movimento, não formão. A personagem é um ponto imóvel
e fixo em torno do qual se realiza qualquer movimento no romance. A permanência e a
imobilidade interna da personagem são a premissa do movimento do romance. O
movimento do destino e da vida dessa personagem pronta é o que constitui o enredo do
romance, seu conteúdo. Mas o caráter do homem, imutável, não se torna enredo.
Mas existe um outro tipo de romance, bem mais raro, que, em contraposição à unidade
estatística, apresenta uma unidade dinâmica da imagem da personagem. O próprio hei
e seu caráter se tornam uma grandeza variável na fórmula desse romance. As mudanças
sofridas pelo herói ganham significado de enredo e em face disso reassimila-se e
reconstrói-se todo o enredo do romance. Segundo Bakhtin (2003), nesses romances, o
94
tempo se interioriza no homem, passa a integrar a sua própria imagem, modificando o
significado de todos os momentos do seu destino e da sua vida. Bakhtin designa esse
romance como romance de formação do homem.
O romance de formão é o que buscamos destacar. Dependendo do grau de assimilação
do tempo histórico real, a formação do homem pode ser muito variada. Bakhtin (2003)
diferencia cinco tipos de romance de formão. O primeiro tipo diz respeito aos tempos
clicos, podendo mostrar a trajetória do homem entre a infância e a mocidade e entre a
maturidade e a velhice, mostrando as mudanças substanciais no caráter e na visão de
mundo do homem. Essa série de desenvolvimento do homem é de natureza cíclica,
repetindo-se em cada vida.
Um segundo tipo de romance de formação é também de formação cíclica, mantém
também sua ligação com as idades e desenha uma trajetória recidiva de formação do
homem, partindo do idealismo juvenil, por exemplo, até a sobriedade madura. Esse tipo
de romance tem como característica fundamental a representação do mundo e da vida
como experiência, como escola. Todo indivíduo deve passar e levar dessa experiência o
mesmo resultado.
O terceiro tipo de romance de formação é o tipo biográfico e autobiográfico. Aqui não
existe o tempo cíclico, mas o tempo biográfico. O indivíduo passa por etapas
individuais, singulares. A formação é o resultado de todo um conjunto das mudanças
nas condições de vida, de acontecimentos e de trabalho. Cria-se o destino do homem,
cria-se com ele o próprio homem, o seu caráter. A formação da vida-destino se funde
com a formação do próprio homem” (BAKHTIN, 2003: 221).
O quarto tipo é o romance didático-pedagógico. Ele se baseia em uma determinada ideia
pedagógica, ou seja, ele representa o processo pedagógico da educação no próprio
sentido do termo, como Emílio, de Rousseau.
No quinto tipo de romance de formação, a formação do homem não é um assunto
particular. O homem se forma concomitantemente com o mundo, reflete em si mesmo a
formação histórica do mundo. Trata-se da formação do novo homem. A imagem do
homem em formação começa a superar seu caráter privado e desemboca em outra esfera.
95
Esse é o romance realista. Esse romance tem uma relação próxima com o romance
biográfico de formação.
No nosso entender, a partir dessa classificação de Bakhtin, é possível fazer uma
aproximação entre o romance de formação, em especial o terceiro tipo, e o diário. Nos
relatos dos diários, o indivíduo passa por etapas singulares, experiências individuais.
Junto com as mudanças que seu autor relata nas condições de vida e nos acontecimentos
diários, acompanham-se as transformações subjetivas, a formação da vida e do
destino se misturam com a formação do próprio homem. O próprio autor e seu caráter
se tornam uma grandeza variável durante a escrita do diário. As mudanças sofridas pelo
“herói (autor e protagonista da própria história) ganham significado de enredo e em
face disso reassimila-se e reconstrói-se todo o enredo do romance. O tempo se
interioriza no homem, passa a integrar a sua própria imagem, modificando o significado
de todos os momentos do seu destino e da sua vida. Diferentemente dos outros tipos de
romance, aqui o sujeito é constitdo pela escrita de sua história, transformando-se
continuamente.
Alguns autores destacam no romance a sua abrangência e a sua liberdade expressiva.
Para Robert (2007), o romance é um gênero revolucionário e burguês, que do ponto de
vista literário apropria-se de todas as formas de expressão: utiliza a descrição, a
narrativa, o drama, o ensaio, o comentário, o monólogo, o discurso, sendo sucessiva ou
simultaneamente fábula, história, apólogo, idílio, crônica, conto, epopeia, com liberdade
para a escolha do tema, do cenário, do tempo e do espaço.
Essa abrangência do romance e a sua liberdade expressiva permitem aproximá-lo do
diário. O texto do diário pode incluir: poesias, letras de música, descrição de fatos,
narrativas, comentários soltos, além de colagens de fotos, desenhos, entre outros. No
entanto, na escrita de um drio há um predonio da narrativa. O diarista narra os
acontecimentos de sua vida, além de incluir pensamentos, sonhos e lembranças. Essa
narrativa segue uma ordem sucessiva e temporal, compondo uma história. Um relato de
um dia não necessariamente leva a uma continuidade no dia seguinte, mas existe uma
ordem e uma coerência nessa sequência. O diarista busca a “compreensão do leitor”,
que, no caso, é o próprio diário, que funciona como um outro. Ele se preocupa em ser
coerente, em se fazer compreender, em relacionar os fatos narrados, em oferecer
96
explicações para o diário”. É comum o autor de um diário escrever: “Você não deve
estar entendendo nada, vou explicar melhor...”;Vou te colocar a par dos últimos
acontecimentos” etc. Uma outra diferenciação que pode ser feita é com relação ao
tempo. Não existe essa liberdade de escolha do tempo nos diários. O diário é uma
escrita do tempo presente, a narrativa é datada.
Assim como as trocas epistolares, os diários íntimos se constituíram como uma
atividade burguesa por excelência, tendo grande expansão no culo XIX. A linguagem
dos diários aproximava-se da linguagem dos romances, em especial, dos romances
psicológicos, que utilizavam não só a forma epistolar como a forma da confissão íntima,
construindo uma maior aproximação entre a ficção e a realidade. Diversos personagens
de romances se destacavam das páginas dos livros para transformarem-se em modelos
de identificação. As novas subjetividades eram influenciadas pelas referências
identificatórias ofertadas pelos romances e relatos autobiográficos modernos.
Mas é importante salientar que, ao lado do romance sentimentalista, desenvolve-se um
outro tipo de romance. Diferenciando-se desse movimento “extrínseco” e do seu caráter
marcadamente idealista e sentimentalista, alguns românticos alemães (Novalis, August e
Friedrich Schelegel) configuraram um outro movimento “intrínseco do romance
moderno. Esse movimento é marcado pelo privilégio da consciência poética em
detrimento da espontaneidade e da inspiração, na leitura das questões do sujeito poético
e da representação, de acordo com Maciel
2
.
Essa modalidade de romantismo introduziu a ironia como método, marcando uma
distância crítica entre o poeta e a sua obra. Assim, há um descentramento do sujeito
poético, contribuindo para a construção do espaço poético da modernidade, “a
linguagem e os seus mecanismos converteu-se no cerne da experiência poética, a poesia
foi submetida a um processo de desreferenciação e assumiu a tarefa de se autodizer
(MACIEL, 1999: 22).
Uma outra diferenciação que pode ser feita é entre o romance clássico e o romance
contemporâneo. No romance clássico (a literatura da interioridade se inscreve muitas
2
MACIEL, Maria Esther. Vôo transverso. Rio de janeiro: Sette Letras, 1999.
97
vezes nessa perspectiva), um relato linear, que postula um sentido na existência
narrada. Nessa modalidade de romance, observa-se a tentativa de extrair uma lógica
retrospectiva e prospectiva, estabelecendo relações inteligíveis entre os estados
sucessivos.
Essa modalidade de romance, que pode ser nomeada comoromance clássico” ou
“sentimentalista”, é a que buscamos aproximar dos diários íntimos. Ressaltamos, na
escrita dos diários íntimos nos culos XVIII, XIX e XX, essa busca por um sentido na
existência narrada, a tentativa de extração de uma lógica retrospectiva e prospectiva, por
meio de certa ordenação e busca de coerência entre os estados sucessivos.
o romance contemporâneo é descrito por Bourdieu em A ilusão biográfica (2005).
Para o autor, o romance “moderno” (ou contemporâneo) é aquele que apresenta uma
dupla ruptura na visão da vida como existência dotada de sentido: tanto da significação
quanto da direção. Assim, o advento do romance moderno, que podemos identificar
com o contemporâneo, está ligado a essa descoberta: “o real é descontínuo, formado de
elementos justapostos sem razão, todos eles únicos e tanto mais difíceis de serem
apreendidos porque surgem de modo incessantemente imprevisto, fora de propósito,
aleatório” (BOURDIEU, 2005: 185). Esse novo modo de expressão literária, como
adverte o autor, faz surgir o arbitrário, que rompe com a representação tradicional do
romance como história coerente e totalizante.
Nossa hitese consiste em aproximar essa modalidade literária, nomeada como
romance contemporâneo” ou romance moderno” da escrita dos blogs. O texto virtual
ilustra de forma magistral essa emergência de elementos justapostos, sem uma ordem,
todos únicos e imprevistos, aleatórios, que apontam para uma lógica não coerente e
totalizante. Essa perspectiva não linear, da lógica da multiplicidade e da espacialidade,
marcada pelo império dos semblantes, é ilustrada pelos blogs, discussão que será feita
adiante.
Alguns autores ressaltam que o romance é a forma literária mais próxima da realidade.
O romance mantém relações mais estreitas com a realidade que qualquer outra forma de
arte, podendo representá-la de forma mais fiel ou falseá-la, deformá-la ou conservá-la
(ROBERT, 2007).
98
Essa proximidade da realidade não é também a característica do diário? Para a
psicanálise, a realidade é sempre fantasmática, assim, qualquer narrativa implica a
dimensão da fantasia. Se o romance é livre, aberto a todos os possíveis, de certa forma,
indefinido, essa mesma liberdade não existiria no diário? Segundo Robert (2007) a
razão principal da grande expansão do romance nas sociedades modernas é a sua
liberdade. Veremos como alguns autores diferenciam a autobiografia do romance
exatamente pela liberdade de expressão. Segundo esses autores, a autobiografia é menos
livre, pois ela pretende oferecer a realidade dos fatos”, enquanto o romance o tem
esse compromisso. Discutiremos isso adiante. Robert acrescenta que a ilusão realista
talvez seja o recurso romanesco mais frequentemente escolhido, apesar do romance ter
justamente a particularidade de não comportar nenhuma obrigação definida. Ora, o que
seria essa ilusão realista? Não poderíamos pensar que toda realidade é uma ilusão?
Para Robert (2007), Dom Quixote é provavelmente o primeiro romance moderno, se
entendermos por modernidade o movimento de uma literatura que, perpetuamente em
busca de si mesma, se interroga, se questiona, fazendo de suas dúvidas e sua fé a
respeito da própria mensagem o tema de seus relatos” (p.11). A autora acrescenta que
Robinson Cruzoé pode ser considerado moderno, sobretudo na medida em que reflete
com bastante clareza as tendências da classe burguesa e mercantil oriunda da Revolução
Inglesa. O romance é um nero burguês que, antes de se tornar universal, começou
como especificamente inglês, segundo a autora. Ainda segundo Robert (2007), a
Enciclopédia britânica expõe que a palavra “romance” é simplesmente consagrada pelo
uso, nada dizendo da regularidade de seu objeto.
O romance pode ser escrito na primeira ou na terceira pessoas, segundo Barthes (2004).
Ele considera que a terceira pessoa fornece aos leitores de romances a segurança de uma
fabulação credível e, no entanto, manifestada como falsa. o eu” é menos ambíguo e
por isso mesmo menos romanesco, segundo o autor. É a solução mais imediata, quando
a narrativa fica aquém da convenção (obra de Proust) e a mais elaborada, quando o eu”
se coloca além da convenção e tenta destruí-la devolvendo a narrativa à falsa
naturalidade de uma confidência (algumas narrativas gidianas).
Para Barthes (2004), considera-se que o ele” seja uma viria sobre o “eu”, como um
ato de fidelidade à essência da linguagem, na medida em que realiza um estado mais
99
literário e mais ausente. Essa convenção literária do “ele” leva ao apequenamento da
pessoa, mas corre o risco de entulhá-la com uma espessura inesperada. “A Literatura é
como um fósforo: brilha mais no momento em que tenta morrer” (BARTHES, 2004:
34). A terceira pessoa do romance ilustra a tragicidade da escrita, quando, sob o peso da
história, a literatura se viu desligada da sociedade que a consome.
Mas esse caráter destrutivo e ressurreicional do romance é considerado por Barthes
como próprio de toda arte moderna. Busca-se destruir a duração inefável da existência
através da ordem. Se o romance é uma morte, é a sociedade que a ime: “...a escrita,
livre em seus começos, é finalmente o liame que acorrenta o escritor a uma História, ela
própria acorrentada: a sociedade o marca com os sinais bem claros da arte a fim de
arrastar seguramente sua alienação” (BARTHES, 2004: 36).
Essa perspectiva do romance como morte é importante para a discussão do diário como
escrita de si”. O romance tenta destruir a duração inefável da existência através da
ordem, ao fazer desaparecer o “eu” elegendo o “ele”, mais impessoal e mais literário.
Há, portanto, uma supremacia da História sobre a história individual. Barthes, entretanto,
mostra toda a ambiguidade presente nos gêneros romanescos, mesmo aqueles que
utilizam a “terceira pessoa”. A terceira pessoa pode manter a existência tomando parte o
mínimo possível, em benefício de uma “tragicidade das relações humanas”, mas, por
outro lado, a função do “ele” romanesco pode ser a de exprimir uma experiência
existencial. Barthes (2004) ilustra como em muitos romancistas modernos a história do
homem se confunde com o trajeto da conjugação. O autor parte de um “eu” e conquista
pouco a pouco o direito à terceira pessoa, à medida que a existência se torna destino, e o
solilóquio, romance.
Podemos aproximar o romance escrito na primeira pessoa do diário. O diário, um texto
escrito na primeira pessoa, é considerado menos literário e mais pessoal. Nesse texto, o
eu” se sobrepõe à história. A história é individual, e a escrita aqui envolve o relato de
uma experiência existencial, uma narrativa de si. Veremos adiante como em um blog
escrito por um adolescente podemos acompanhar em seus textos a passagem da primeira
para a terceira pessoa.
100
Alguns críticos negam a existência de algo como um nero romanesco, ou afirmam
que “o romance é demasiado vasto, variado, amorfo para ser considerado um gênero ou
uma espécie literária” (ROBERT, 2007: 21). Segundo a autora, a verdade do romance
o reside em outra coisa senão em um aumento de seu poder de ilusão. O romance se
distingue de todos os outros gêneros literários por sua aptidão, o para recriar a
realidade, mas para subverter a vida, para lhe recriar novas condições e redistribuir seus
elementos.
Existem diferentes classificações do romance. Como afirma Robert (2007), ele pode ser
classificado de acordo com temas, como sugere Thibaudet (doméstico, aventura,
intelectual, de prazer, de dor etc.), de acordo com o estado social ou a profissão dos
personagens (O Larousse diferencia o romance religioso do romance de caça, por
exemplo), de acordo com a nacionalidade (romance ings, russo, alemão, entre outros).
Mas, segundo Robert (2007: 15), em vão se multiplicam as subclasses do romance, pois
a variedade não explica o gênero, que é precisamente o invariável.
A tentativa de diferenciar e classificar os romances pode deixar escapar aquilo que não
se enquadra em nenhuma classificação, como adverte Robert (2007). Mas, utilizando da
diferenciação já abordada entre o romance clássico e o contemporâneo, defendemos a
hipótese de que o diário íntimo pode ser aproximado do romance clássico.
O diário e o romance são muitas vezes diferenciados a partir do critério ficcional, mas o
grande poder de ilusão e a aptidão para subverter a vida, característicos do romance, não
estariam presentes também nas diferentes formas de escritura pessoal, como o diário?
Poderíamos estabelecer uma diferença entre o diário e o romance a partir do critério
ficcional? Por mais que exista uma linha bastante tênue entre a realidade e a ficção,
seria o diário marcado por uma escrita pelo menos mais pretensamente realista” e
menos ficcional? Teria o autor de um diário “menor liberdade” na recriação da realidade?
Faremos essa discussão a seguir.
2.1.2. Romance, autobiografia e diário
Vários autores apresentam uma diferenciação entre o texto autobiográfico e o romance a
partir do critério ficcional. Lima (1986) considera que as dificuldades em se diferenciar
101
o ficcional do factual não podem apagar suas especificidades. Ele observa que, apesar
das fronteiras que separam o gênero ficcional do autobiográfico não serem absolutas,
elas não são espécies discursivas indistintas. Elas se separam pelo papel que reservam
ao “eu”. Na ficção o “eu” empírico do escritor é um suporte da inveão e na
autobiografia é a fonte de experiências que tentará transmitir. O autor postula que a
autobiografia não é nem história nem ficção. a partir do Renascimento, quando o
eu” adquire destaque, quando ele se faz uma figura de contraste com seu meio, é que o
material autobiográfico não poderia se confundir com o puro documento histórico.
Se a autobiografia apresenta suas especificidades, esse gênero literário” é marcado por
contradições e incongruências que o acompanham desde o seu surgimento. Somente no
século XX a autobiografia e o romance foram diferenciados. Contudo, a despeito de
todos os esforços para diferenciar os vários estilos de escrituras do eu”, essas escrituras
se inter-relacionam e se entrelaçam. O romance autobiográfico, uma mistura entre a
realidade e a ficção, se diferenciaria da autobiografia, que se pretende mais realista.
Entretanto, a delimitação entre o ficcional e a realidade é bastante tênue para que se
possa situar a autobiografia totalmente no campo da realidade e o romance somente no
campo da fião.
Essa vizinhança de discursos entre a historiografia, a ficção e a autobiografia é
reconhecida por Lima (1986). O historiador se quer “relativamente isento” do que
descreve e analisa. Ele tem e deve ter a pretensão de oferecer “a verdade” sobre seu
objeto. na ficção, o seu limite não é a verdade, mas as possibilidades de conceber a
existência de acordo com o seu imaginário. Entre a ficção e a autobiografia, o “eu” é a
barra separadora. “Entre a história e a autobiografia, a barra separadora o suas
pretenes diversas à verdade” (LIMA, 1986: 302). Mas esses territórios vizinhos
apresentam uma inter-relação e certa zona comum e indistinta. O texto autobiográfico
ora se inclina para a história, ora para o ficcional.
Alguns autores, portanto, consideram problemática a separação entre a ficção e a
hisria. Para Philippe Lejeune
3
, o texto autobiográfico e o texto ficcional obedecem às
mesmas leis. A diferença entre eles o está no texto, mas no “paratexto”, no
3
Entrevista com Philippe Lejeune. Ipotesi, Revista de Estudos Literários. Juiz de Fora, vol. 6, n. 2. p. 21-
30. (s. d.)
102
compromisso do autor com o leitor em dizer a verdade sobre si mesmo. Em um polo, o
compromisso com a verdade, em outro, o descompromisso, a instauração de um jogo,
de um distanciamento. Entre os dois polos posições intermedrias,
comprometimentos, ambiguidades, tudo o que se define pelo termo vago de
autoficção”, segundo Lejeune. O compromisso de dizer a verdade implica a
possibilidade de verificação, compromete social e juridicamente seu autor. No plano
relacional, Lejeune comenta que o autobiógrafo pede ao leitor reconhecimento,
aprovação e amor. E propõe a reciprocidade. Quanto às fronteiras, existe uma série de
produções híbridas, autoficções, memórias imaginárias e autobiografias em terceira
pessoa.
Os diários íntimos podem ser definidos como gêneros literários? Para Lima (1986),
comumente a palavra gênero parece encobrir apenas as manifestações literárias. O autor,
no entanto, considera que o termo tem uma extensão maior que o termo literatura. Para
ele, “gênero não significa outra coisa senão uma forma historicamente reconhecida de
comunicação, seja literária ou não literária, seja escrita ou oral, seja presente em
discursos claramente configurados, seja em discursos difusos, como o do cotidiano”
(1986: 247). Neste sentido, observa que a categoria gênero deve ser subordinada e
associada à ideia de discurso. Os discursos são definidos pelo autor como formas de
territorialidade, que estabelecem descontinuidades sobre o contínuo da parole e assim
possibilitam que um mesmo enunciado tenha diversas significações, de acordo com o
contexto discursivo em que se mostra. Os gêneros se integram a cada discurso, como
modalidades de manifestação deste. Assim, de acordo com Lima, podemos identificar o
diário como um gênero, não literário, mas de discurso.
O eu” é a matéria-prima indispensável para a escrita do diário e da autobiografia, “pois
tem como seu traço absoluto o intercâmbio de um eu empírico com o mundo” (LIMA,
1986: 255). Os textos autobiográficos (como os diários) supõem um duplo e simultâneo
foco: como o eu reage ao mundo e como o mundo experimenta o eu. Sabemos que todo
gênero, literário ou não literário, é uma forma de comunicação dotada de regras. O leitor,
ao ler uma autobiografia, a reconhece mesmo que formalmente não saiba defini-la. O
diário apresenta, portanto, características formais que levam o leitor a reconhecê-lo.
Lima (1986) insere o material autobiográfico entre a história e a ficção, não se
instalando em um polo nem em outro. Para ele, o relato do autobiógrafo pode constituir
103
“seu próprio conto tico”, que não é experimentado pelo autor como ficção, mas como
algo em que se crê. Assim, o diário é um texto em que o autor busca construir o seu
próprio conto mítico.
Para Lejeune (s.d.), a autobiografia é uma arte difícil, pois difícil é construir uma
narrativa que prenda a atenção dos outros. A autobiografia é pouco escrita e muito lida.
com os diários acontece o oposto. Muitos são escritos e poucos são lidos. O diário
o intimida. Todos acham ter o direito de escrever um e se creem capazes de fazê-lo.
Mas, para o autor, é uma escrita invisível, quase o é publicada e é frequentemente
destruída. Lejeune afirma que antes de 1986 ele não pesquisava diários, pois tinha
preconceitos com relação a eles. A partir dessa data tentou estudá-los, inicialmente não
como umnero literário, mas como prática ordinária.
A característica fundamental da escrita autobiográfica, que a difere da escrita ficcional,
para Lejeune (1975), é sua identidade entre autor, narrador e personagem. Para o autor,
a semelhança deve fundar a identidade. Ele diferencia basicamente três formas de
escrita biográfica: o diário, a memória e a autobiografia. Para o autor, a escrita que ele
chama de memorialística pode assumir outras denominações, como romances pessoais,
diários intimistas, crônicas memoriais e romances autobiográficos, embora todas elas
sejam sobreposições da trilogia clássica.
Algumas especificidades do gênero diarístico são destacadas por Lejeune (1975).
Segundo o autor, no diário não existe a preocupação com a publicação e o autor se
exprime com a maior liberdade possível. a correspondência, por exemplo, apesar de
tão datada e embebida das delimitações impostas pelo cotidiano quanto o diário,
apresenta uma diferença crucial em relação a ele: as cartas possuem um interlocutor
explicitamente definido, ao passo que o diário pertence ao diarista, sendo ele, a
princípio, seu próprio interlocutor.
Uma outra diferenciação pode ser feita pelo critério temporal. O diário é escrito no
tempo presente, mesmo que o seu autor recorra a lembranças do passado para compor o
presente, enquanto as autobiografias e memórias recorrem à memória de eventos e fatos
situados no passado. O diário é, então, uma narrativa feita na primeira pessoa, datada,
que segue uma ordem cronológica e de caráter confessional.
104
A autobiografia se define como um relato retrospectivo em prosa, que uma pessoa real
faz de sua própria existência, dando ênfase à sua vida individual e, em particular, à
história de sua personalidade. Lejeune (1975) reconhece os limites dessa definição e
propõe uma série de elementos organizados em categorias diferentes: forma de
linguagem (narração em prosa), tema (a vida individual, a história de uma
personalidade), situação do autor (identidade do autor como pessoa real com o narrador
do discurso), posição do narrador (identidade do narrador com a personagem principal,
perspectiva retrospectiva do relato). Discutindo essas categorias, o teórico demonstra a
falibilidade do critério de pessoa gramatical, uma vez que a primeira pessoa tanto pode
ser usada numa autobiografia quanto num romance, e coloca em xeque critérios como a
autenticidade da narrativa, ao defender a hitese de que a ficção pode até encorajar
uma confissão mais sincera e menos censurada pelo pudor.
Assim, se a autenticidade da narrativa e a identidade do autor o critérios
problemáticos, a questão da identidade colocada em jogo nas autobiografias pode ser
tratada, segundo o autor, através do pacto autobiográfico. O que diferencia basicamente
essas formas literárias de outras são as marcas da escritura do eu e os modos de
inscrição de si mesmo, que resultam num pacto denominado por Lejeune de pacto
autobiográfico (LEJEUNE, 1975). O pacto autobiográfico é selado num acordo tácito de
cumplicidade entre quem escreve e quem lê, à medida que o texto avança e que se
partilham experiências do mundo privado do escritor. Mas, se a pessoa gramatical não é
um fator decisivo na diferenciação das diversas formas de escrita literária, toda a
existência do que designamos como autor resumir-seao nome impresso sobre a capa
do livro, sobre a página de abertura, acima ou abaixo do título do volume, à qual se
atribuia responsabilidade da enunciação de todo o texto escrito. Uma pessoa cuja
existência é atestada pelo estado civil e verifivel.
De acordo com Lejeune, portanto, o nome próprio, signo da realidade”, faz com que o
autor seja um nome de pessoa, assumindo uma identidade” que se manm nos
diferentes textos publicados. Assim, os escritos autobiográficos, como o diário,o
definidos pela identidade de nome próprio entre o autor, narrador e personagem. Fica-se
então indicado que o gênero autobiográfico é baseado numa crença em uma identidade
entre o personagem e a pessoa real.
105
O objeto da autobiografia é o nome próprio, que designa um indivíduo, como uma
identidade estável. Bourdieu (2005) observa que o nome próprio é umdesignador
rígido”, que “designa o mesmo objeto em qualquer universo possível” (KRIPKE, citado
por BOURDIEU, 2005: 186). Para Bourdieu, por essa forma inteiramente singular de
nominação que é o nome próprio, institui-se uma identidade social constante e durável,
que permite ao indivíduo biológico ter uma identidade social em todos os campos
possíveis onde ele intervém como agente, em todas as suas histórias de vida possíveis.
Ele assegura a constância através do tempo e a unidade através dos espaços sociais. A
assinatura, signum authenticum, autentica essa identidade, é a condição jurídica das
transferências de um campo a outro (BOURDIEU, 2005). O nome próprio é uma
instituição que assegura aos indivíduos designados, para além de todas as mudaas e
flutuações biológicas e sociais, a constância nominal, a identidade no sentido de
identidade consigo mesmo, que a ordem social demanda:
O nome próprio é o atestado visível da identidade do seu portador através dos
tempos e dos espaços sociais, o fundamento da unidade de suas sucessivas
manifestações e da possibilidade socialmente reconhecida de totalizar essas
manifestações em registros oficiais, curriculum vitae, cursus honorum, ficha
judicial, necrologia ou biografia, que constituem a vida na totalidade finita,
pelo veredicto dado sobre um balanço provirio ou definitivo (BOURDIEU,
2005: 187).
Assim, o relato de vida aproxima-se do modelo oficial da apresentação oficial de si,
como a carteira de identidade, o curriculum vitae, entre outros, como sublinha Bourdieu
(2005). No entanto, o relato de vida varia tanto em sua forma como em seu conteúdo, de
acordo com a “qualidade social” do mercado no qual é oferecido. O autor acrescenta
que a apresentação pública de sua vida privada implica um aumento de coações e de
censuras específicas. Mas apenas o nome próprio apresenta um estatuto gido e fixo.
Não se deve pretender compreender uma vida como uma série única e organizada em
acontecimentos sucessivos. Os acontecimentos biográficos se definem como colocações
e deslocamentos no espaço social, cuja personalidade designada pelo nome próprio nada
mais é do que “o conjunto das posições simultaneamente ocupadas num dado momento
por uma individualidade biológica socialmente instituída e que age como suporte de um
conjunto de atributos e atribuições que lhe permitem intervir como agente eficiente em
diferentes campos” (BOURDIEU, 2005: 190). A discussão sobre o nome próprio será
aprofundada adiante, considerando a perspectiva psicanalítica.
106
A partir das considerações psicanalíticas, sabemos da impossibilidade da existência
dessa “identidade” entre o personagem e a pessoa real, já que essa “identidade” é
imaginária, da ordem do “eu”. O estatuto de sujeito na psicanálise revela a
complexidade que envolve um relato de si.
Freud, em Um estudo autobiográfico (1974 [1924-1925]), ressalta que, ao escrever um
estudo autobiográfico, ele deve esforçar-se por construir uma narrativa na qual atitudes
subjetivas e objetivas, interesses biográficos e hisricos, se combinem em nova
proporção. No seu discurso na casa de Goethe, em Frankfurt
4
, comentando sobre as
biografias de Goethe, Freud destaca que mesmo a melhor e a mais integral delas não
pode elucidar o enigma do dom miraculoso que faz um artista, e não nos ajuda a
compreender melhor o valor e o efeito de suas obras. Assim, mesmo a melhor e a mais
completa biografia não é totalmente reveladora. Ele acrescenta que não dúvida de
que uma biografia desse tipo satisfaz uma poderosa necessidade existente em nós. É o
desejo de aproximar-mos de tal homem de maneira humana. O biógrafo, por outro lado,
deseja também trazer seu herói para mais perto de nós. Ele tenta reduzir a distância que
o separa de nós e tende ainda no sentido de uma degradação. Freud destaca a nossa
atitude para com os mestres como de ambivalência. ...Nossa reverência por eles via de
regra oculta um componente de rebelião hostil (p.245). A admiração comporta,
portanto, a hostilidade. A respeito de Goethe, Freud ressalta que “Goethe, como poeta,
o foi apenas um grande revelador de si mesmo, mas também, a despeito da
abundância de registros autobiográficos, um cuidadoso ocultador de si mesmo(p.246).
Ainda citando Mefistófeles, Freud conclui: “O melhor do que sabeis não pode, afinal de
contas, ser contado a meninos” (1974 [1930]: 246).
Essa reflexão freudiana nos permite fazer uma aproximação da biografia com a escrita
do diário. O autor de um diário pretende aproximar-se de seu leitor (mesmo que
imaginário), por meio de sua escrita. Toda escrita é, portanto, dirigida a um outro.
Quando se escreve para um outro, mesmo imaginário, o sujeito busca, de alguma forma,
atender a esse outro, agradá-lo, fazer-se compreender ou construir uma imagem que
atenda à suposta demanda do outro. Ao mesmo tempo, a leitura de um drio publicado
oferece ao leitor tanto a chance de identificar-se com um “modelo ideal”, como também
4
FREUD, Sigmund. O prêmio Goethe (1930). In: O futuro de uma ilusão, o mal-estar na civilização e
outros trabalhos. Vol. XXI. Edição Standard das Obras Completas, Imago, 1974.
107
com um modelo mais humano, mais próximo, obtendo certa satisfação na “degradação”
do outro, que se apresenta como alguém que falha, erra, peca ou sofre. A partir do
comentário de Freud sobre Goethe, é possível compreender como toda escrita (poética
ou não, autobiográfica ou não) envolve a revelação e a ocultação de si mesmo.
Para Paul de Man
5
, a autobiografia não é um gênero, mas uma figura da leitura ou da
compreensão que ocorre, em algum grau, em todos os textos. Assim, não são tão claros
os limites que separam a autobiografia (incluindo o diário) do romance. O lugar do
autor/narrador em um texto é sempre móvel, deslocando-se entre os diversos
personagens, numa articulação que se constrói em vários planos da narrativa, mostrando
a dimensão da ambiguidade entre realidade e ficção. Mesmo no texto autobiográfico
uma divisão entre o sujeito do enunciado e da enunciação, que atesta a cisão do sujeito.
Ao escrever um texto sobre si mesmo, o autor consti um percurso no próprio ato da
escrita, tomando um rumo muitas vezes totalmente imprevisto para o próprio autor.
Se a autobiografia supõe um sujeito que diz sobre si, a psicanálise nos adverte que o
dizer é que tem por efeito o sujeito, que o sujeito é um efeito do discurso (LACAN,
1998 [1957]). O sujeito falante inscreve-se na linguagem que o constitui e o institui. O
sujeito é escrito e inscrito no texto, onde ele se encena. O sujeito da enunciação está
aquém da escritura, que é, no entanto, a sua condição. É o lugar onde se produz o
discurso que suporta o autor e do qual sua verdade é um dos efeitos. Assim, é ao dizer-
se que o sujeito se constitui como seu produto. A distinção entre historiografia e
ficcionalidade, que poderia permitir uma diferenciação entre autobiografia e romance,
torna-se, portanto, probletica, a partir dessas considerações psicanaticas.
Pode-se pensar, portanto, que toda escrita comporta essa ambiguidade, ela é ao mesmo
tempo factual e ficcional, e toda escrita ficcional é também autobiográfica. Se o diário,
como uma “escrita de si” ou autobiográfica, baseia-se num contrato, numa identidade de
nome próprio entre o autor, o narrador e o personagem, sabemos que essa identidade
o é senão imaginária. Na narrativa sobre si, constrói-se um sujeito através de uma
sucessão de fatos descritos no diário. Mas uma sucessão nunca é senão imaginária.
Não há uma última instância real que legitime as ordens seriais” (MILNER, 1996: 62).
5
MAN, Paul de. Autobiography as de-facement”. In: The rhetoric of Romanticism, p.70. Citado por
MIRANDA, Jo A. Bragança e CASCAIS, Antonio Fernando. A lição de Foucault. In: FOUCAULT,
Michel. O que é um autor? Lisboa: Nova Veja, Passagens, 2006, p.13.
108
Toda história, segundo Lacan, é da ordem da falácia, e “a primeira adulteração reside
justamente na homogeneização mínima que supõe a seriação temporal(p.61). Veremos
adiante como todo romance sobre si é fundamentalmente um romance familiar.
2.2. O diário e o romance familiar
O Romance é uma Morte; ele faz da vida um
destino, da lembrança um ato útil, e da duração
um tempo dirigido e significativo (BARTHES,
2004: 35).
Paralelamente à Revolução Industrial, se desencadeia na Inglaterra, no início do século
XIX, o Romantismo inglês. Apresenta-se, segundo Lacan (1997), com seus traços
particulares que constituem o valor dado às recordações de infância, ao mundo da
infância, aos ideais e aos votos da criança, temas explorados pelos poetas da época. A
referência à infância pautada no pensamento de que a criança é o pai do homem levou à
grande exploração do tema pela psicologia. A perspectiva de um desenvolvimento
humano que leva à maturação ou ao alcance de um “ideal” adulto o é a perspectiva
psicanalítica. A psicanálise nos mostra que o desenvolvimento ou a gênese oferece um
suporte inconstante. É a tensão entre o processo primário e o processo secundário, entre
o princípio do prazer e o princípio da realidade que caracteriza a subjetividade humana
(LACAN, 1997 [1959-60]: 37). Existe um conflito na gênese do desenvolvimento,
conflito esse insuperável. Freud observa que o infantil é insuperável. Esse caráter
insuperável do conflito é identificado por meio das fantasias infantis que se revelam em
análise.
Freud menciona pela primeira vez o romance familiar em 1897, numa carta a Wilhelm
Fliess, mas o artigo sobre o tema foi publicado pela primeira vez em 1908. Ele descreve
uma fantasia infantil que, consciente na criança e inconsciente no adulto, revela-se com
conteúdo constante e com tão grande frequência que pode atribuir-lhe valor quase
universal. Mostra-se com um padrão de narrativa que, mesmo variando conforme os
casos e passando por diferentes graus de desenvolvimento, nunca muda de cenário, nem
de personagens, nem de tema; nunca perde sua coloração afetiva nem os desejos
confusos que o obrigam a camuflá-los. Esse padrão repetitivo parece estar ligado a uma
necessidade primordial. Esse pequeno mito ou fantasia, caracterizado pela originalidade
109
de sua estrutura, pela especificidade de seu conteúdo e pelo modo patológico sob o qual
é convocado a reviver, é nomeado por Freud de romance familiar dos neuróticos”.
Todo homem o forja conscientemente em sua infância, mas o esquece, ou antes, o
recalca” e ele reaparece regularmente nas condições especiais de tratamento
analítico, sob a forma de vestígios mais ou menos bem conservados que, uma vez
complementados e reunidos por meio de uma interpretação apropriada, recompõem-se
em um todo coerente.
A criança constrói seu romance familiar” porque precisa dele num momento de crise
grave para superar a primeira decepção com os pais: “Os pais constituem para a criança
pequena a autoridade única e a fonte de todos os conhecimentos” (FREUD, 1974 [1908]:
243). O desejo mais intenso da criança é igualar-se aos pais. Contudo, com o seu
desenvolvimento, a criança começa a se tornar descontente com seus pais e a criti-los:
Para manter essa atitude crítica, utiliza seu novo conhecimento de que existem outros
pais que em certos aspectos são preferíveis aos seus” (p.243). Sua sensação de que sua
afeição não está sendo retribuída, pois a criança começa a desenvolver um sentimento
de estar sendo negligenciada, encontra abrigo na ideia de que é uma criança adotada, ou
de que o pai ou a mãe não passam de um padrasto ou de uma madrasta.
O estádio seguinte no desenvolvimento do afastamento do neurótico de seus pais pode
ser descrito como o romance familiar do neurótico”, sendo raramente lembrado
conscientemente. Freud acrescenta que essa atividade imaginativa emerge inicialmente
no brincar das crianças e, depois, mais ou menos a partir do período anterior à
puberdade. Exemplifica essa atividade imaginativa com os devaneios que se prolongam
até muito depois da puberdade.
Que funções teriam esses devaneios? Freud esclarece que eles constituem uma
realização de desejos e uma retificação da vida real. Têm dois objetivos principais: um
erótico e um ambicioso. A imaginação da criança entrega-se à tarefa de libertar-se dos
pais que desceram em sua estima, e de substituí-los por outros, em geral de uma posição
social mais elevada” (p.244). Os acontecimentos fortuitos que a levam a conhecer
pessoas de posição social mais elevada despertam-lhe inveja, que encontra expressão
numa fantasia em que seus pais são substituídos por outros de melhor linhagem. Esse
110
estádio é alcançado quando a criança ainda ignora os determinantes sexuais da
procriação. Esse primeiro estádio do romance familiar é, portanto, assexual.
Quando a criança passa a conhecer a diferença entre os papéis desempenhados pelos
pais e pelas mães em suas relações sexuais e compreende que a mãe é certíssima e o pai
incerto, o romance familiar sofre uma restrição. A criança passa a exaltar o pai,
deixando de lançar dúvidas sobre sua origem materna. Esse segundo estádio, sexual, do
romance familiar sofre o influxo de outro motivo. A criança tende a se imaginar em
relações e situações eróticas, cuja força motivadora é o desejo de colocar a mãe em
situações de infidelidade sexual. Nessas fantasias aparece também o desejo de retaliação
e vingança contra os pais, presentes no primeiro estádio. Para Freud,
...todo esse esforço para substituir o pai verdadeiro por um que lhe é superior
nada mais é do que a expressão da saudade que a criança tem dos dias felizes
do passado, quando o pai lhe parecia o mais nobre e o mais forte dos homens,
a e, a mais linda e amável das mulheres. Ela as costas ao pai, tal como
o conhece no presente, para voltar-se para aquele pai em quem confiava nos
primeiros anos de sua infância, e sua fantasia é a expressão de um lamento
pelos dias felizes que se foram (FREUD, 1974 [1908]: 246).
Esse texto de Freud nos esclarece sobre a função da construção do romance familiar
para o sujeito: a realização de desejos e a retificação da vida real, determinantes
fundamentais de qualquer fantasia. Há, portanto, uma tentativa de encobrimento da
castração, como uma forma de o se haver com a separação, no momento em que o
sujeito se depara com a falta no Outro. Essa construção fantasística envolve, desta
forma, uma separação dos agentes parentais, ou, no dizer de Freud, o desenvolvimento
do afastamento do neurótico de seus pais. Destacamos, assim, o caráter paradoxal da
fantasia: ela busca recobrir a castração, mas, por outro lado, envolve um desligamento
da autoridade dos pais. Ao construir a própria fantasia, o sujeito se separa da posição de
objeto da fantasia materna.
Para Freud, o Complexo de Édipo como um fato universal é o que dá origem aos mitos,
ficções e romances familiares. Assim, as diversas linguagens da imaginação, pertençam
elas à literatura, à música, à pintura, ou mesmo à ciência, todas remetem a um nível bem
primitivo do “romance familiar”, segundo Robert (2007). Para ela, o mito familiar da
infância define o romance naquilo que o torna precisamente indefinível: sua ausência de
características genéricas e, sobretudo, o desejo de engendrar verdade. Para a autora, o
romance o se contenta em representar, mas pretende fornecer um relatório completo
111
e verídico”, como se respondesse diretamente à realidade. Dessa maneira ele trata
espontaneamente seus personagens como personagens, suas palavras como tempo real e
suas imagens como a própria substância dos fatos, o que vai ao encontro do convite ao
sonho e à evasão, especialidade do romance. Para Robert (2007), a natureza particular
da que todo homem atribui a seu romance familiar é a única explicação aceitável da
ilusão romanesca. O herói de romance recebe unanimemente o direito de confundir
sem cessar o vivo e o escrito, como se pudesse sair do papel” (ROBERT, 2007: 50).
O mito construído por Freud, Totem e tabu
6
,
6
traça o drama primordial que é o
assassinato do pai e suas consequências, que estariam na origem da cultura. Esse mito
da origem da Lei se encarna no assassinato do pai. Freud cria um personagem
onipotente, temível, semianimal da horda primitiva, que é morto por seus filhos. Esse
assassinato leva à instauração de uma lei, que organiza as relações entre os homens.
Como comenta Lacan, o assassinato do pai não abre a via para o gozo (que era
“supostamente” interditado pelo pai), mas reforça sua interdição (LACAN, 1997: 216).
Todo exercício de gozo comporta algo da vida. Lacan nos mostra que existe uma
relação entre o gozo, sua interdição, a falha dessa interdição e o mito: Essa falha
interditiva é, portanto, sustentada, articulada, tornada sensível pelo mito, mas é, ao
mesmo tempo, profundamente camuflada por ele (LACAN, 1997: 216). Poderíamos
pensar que, nessa perspectiva, todo mito sustenta, evidencia e camufla a falha da
interdão do gozo. No romance familiar, trata-se de construir uma fantasia que, como
um mito individual, contorne esse drama primordial.
As teorias sexuais infantis funcionam como mitos. Lacan (1995)
7
7
apresenta uma série
de características do mito. O mito apresenta-se como uma narrativa. Ele tem um caráter
de ficção. Esta ficção apresenta uma estabilidade que não a torna maleável às
modificações que lhe podem ser trazidas, sugerindo a noção de estrutura. Lacan
acrescenta que essa ficção mantém uma relação singular com alguma coisa que está
sempre implicada por trás dela, e da qual ela porta, realmente, a mensagem formalmente
indicada, a saber, a verdade. O mito se apresenta com um caráter de inesgotável. Ele
está muito mais próximo da estrutura que de todo conteúdo. A espécie de molde que ele
6
FREUD, Sigmund. Totem e tabu (1912-13). Totem e tabu e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago,
1974, p.13-191. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 13.
7
LACAN, Jacques. “Para que serve o mito”. In: O seminário. Livro 4. A relação de objeto (1956-57). Rio
de Janeiro: Zahar, 1995, p.254-273.
112
oferece é um certo tipo de verdade que trata de uma relão do homem com os temas da
vida e da morte, da existência e da o-existência e do nascimento, ou seja, temas
ligados, por um lado, à existência do próprio sujeito e aos horizontes que sua
experiência lhe traz; por outro lado, ao fato de que ele é o sujeito de um sexo, do seu
sexo natural. Para Lacan (1995), é a isso que a atividade tica se emprega na criança:
Os mitos, tais como se apresentam em sua ficção, visam sempre mais ou
menos, não à origem individual do homem, mas à sua origem específica, à
criação do homem, à gênese de suas relações nutrizes fundamentais, à
invenção dos grandes recursos humanos, ao fogo, à agricultura, à
domesticação dos animais (LACAN, 1995: 260).
O autor relaciona também a construção tica com a relação do homem com a força
sagrada, diversamente designada nos relatos míticos que explicam como o homem
adveio em relação a ela. Lacan ressalta uma surpreendente unidade entre os mitos
aparentemente mais distantes. Assim, as fantasias infantis, como criações ticas,
apresentam uma estrutura comum. O romance familiar, uma fantasia infantil, nas suas
diferentes versões, apresenta uma estrutura comum e ordena-se em torno dos mesmos
temas.
Se existe uma base comum ao romance, ao mito e aos escritos autobiográficos, essa
base é a fantasia. A fantasia do neurótico é estruturada como um romance. O romance
familiar dos neuróticos, essa ficção primária, é o que alimenta o imaginário romanesco.
Enquanto ainda desconhece as diferenças sexuais, as construções fantasísticas são
expressas nos contos de fadas, nos mitos de heróis e nas hisrias românticas, onde o
sujeito onipotente reina. Com a descoberta da sexualidade e da incerteza do pai na sua
gênese, a criança atribui-se um nascimento ilegítimo, revestindo e colorindo sua
pseudobiografia com a fantasia do bastardo. Para Robert (2007), essa é a origem do
romance propriamente dito, ilustrado através de Robinson Crusoé ou Dom Quixote,
nascidos na modernidade. Como observa Soler (1998a), a psicanálise freudiana nos
mostrou que o neurótico é aquele que parece copiar a fábula ao narrar sua história
familiar, a qual chama de o romance familiar”, ou seja, sua fantasia é estruturada como
um romance.
O romance é marcado pelo desejo do autor de refazer a vida em condições ideais, é a
busca do tempo perdido através da ilusão. A ilusão do romance pode ser tratada de duas
formas, segundo Robert (2007). Na primeira, o autor faz como se ela não existisse, e a
113
obra passa por realista, naturalista ou fiel à vida. Na segunda, a obra é dita onírica,
fantástica, subjetiva ou classificada na forma ampla do “simbólico”. No primeiro tipo,
uma tentativa de escamotear a ilusão, dimensão sempre presente na subjetividade,
como sabemos.
Segundo essa classificação, podemos dizer que o diário aproxima-se do primeiro tipo,
que pretende oferecer uma visão realista” dos fatos, detalhando-os e organizando-os
numa escrita diária. Nesta tentativa de fazer do drio um “espelho”, tenta-se apagar a
dimensão de ficção presente em qualquer escrita de si. Toda escrita pessoal está
marcada pelo “romance familiar” de seu autor. Por outro lado, nos romances mais
“fantasiosos” e seguramente o realistas, uma dimensão de verdade. Com efeito,
...as ideias supersticiosas ligadas ao romance contêm a porção de verdade que
cabe a toda realidade psíquica esquecida, testemunham a antiga que todo
homem acrescentava outrora às suas próprias histórias e atestam a
sobrevivência do romance familiar” tornado inconsciente, que não cessa de
tentar desbravar um caminho e fascina para am do tempo (ROBERT, 2007:
55).
O romance não é totalmente livre, já que é determinado pelo mito familiar. Ele não
determina livremente sua idade nem o nível das relações humanas que está apto a
figurar, mas é claro que existe uma margem de liberdade em sua crião. Se para Robert
essa liberdade está na possibilidade infinita de técnicas entre as quais lhe é permitido
escolher, para misturar o fingido e o verdadeiro, o que se considera verdadeiro está
muitas vezes no campo da fantasia. Essa imensa margem de liberdade seria menor nos
diários íntimos? Existiria no diário íntimo uma preocupação maior com a verdade?
Ora, como vimos, se a realidade é fantasmática, mesmo o compromisso em dizer a
verdade o isenta o sujeito de “construir uma fantasia” e crer nela. Em Construções em
análise, Freud (1937) comenta que a restituição, feita pelo analista, de um fragmento da
história vivida pelo analisante, ao invés de provocar no paciente uma recordação,
provocava uma cena encobridora. Freud define essa cena encobridora como uma “falsa”
lembrança infantil, formada a posteriori, que, por deslocamento, surgiu no lugar da
lembrança “recalcada”. Freud faz então uma equivalência entre essas construções e as
formações delirantes. Apesar das diferenças estabelecidas por Freud entre a neurose e a
psicose, ele conclui que sempre existe certo caráter delirante que acompanha as
narrativas ficcionais. Assim, a construção ou o mito individual é uma “falsa” lembrança,
que na verdade vem encobrir algo da verdade do sujeito. Por outro lado, o ficcional do
114
romance nos fascina exatamente por revelar aquilo que se busca velar. Para a
psicanálise, a verdade tem estrutura de fião. Ela pode ser abordada pelo dizer, e
que será sempre um semidizer, através do saber colocado em posição de verdade. Essa
discussão será feita adiante.
A ambiguidade de um romance e sua relação com o mito aparece nos comentários de
Barthes (2004) sobre os novos ensaios críticos. Ao se referir a Rochefoucauld
8
,
8
Barthes
destaca que seu discurso é ambíguo, situado na fronteira de dois mundos: o da morte e o
do jogo. Do lado da morte, há a questão trágica por excelência, endereçada pelo homem
ao deus mudo: Quem sou? Mas essa pergunta mortal é também, por excelência, a
pergunta de todos os jogos. Ao interrogar Édipo sobre o ser do homem, a Esfinge
fundou ao mesmo tempo o discurso trágico e o discurso lúdico, o jogo da morte (já que
para Édipo a morte era o preço da ignorância) e o jogo do salão(BARTHES, 2004:
102).
O tema da morte permeia toda escrita autobiográfica, como tentativa de conter a
proximidade entre a vida e a morte:
Desvencilhou-se do resto do grupo. Foi envolvido pela névoa. Uma clareira
redonda na floresta. O pássaro Fênix no mato. Uma mão fazendo o sinal da
cruz num rosto invisível, sem parar. Eterna chuva fria, um cântico instável
como de um peito arfante (Franz Kafka. Diário, 30 jul. 1917)
9
.
9
Na verdade, todo pensamento é biográfico na medida em que está em causa a relação
da finitude ao que a nega, a escrita, como diz Miranda e Cascais (2006). Assim, a escrita
visaria à apreensão da vida, dada a sua fragilidade. Essa relação entre a biografia e a
morte é sublinhada por Derrida
10
.
10
Para ele a biografia não é um meio de unir a vida e a
obra, mas é um discurso sobre vida/morte, ocupando certo lugar entre o logos e o drama.
A biografia procura dominar essa relação, apresentando como sujeito absoluto o que é
apenas um sujeito possível. Para Derrida, o discurso biográfico coerência ao corpo
próprio num dado corpus de escrita, mas ele é sempre desassossegado pela presença de
uma relação com a morte. Derrida acrescenta que a singularidade tem a ver com esta
8
Barthes, R. “La Rochefoucauld: reflexões ou sentenças e máximas. In: O grau zero da escrita. São
Paulo: Martins Fontes, 2004, p.79-103.
9
KAFKA, Franz. Sonhos, trad. Ricardo F. Henrique. São Paulo: Iluminuras, 2008, p.99.
10
DERRIDA, Jacques. Otobiographies l‟énseignement de Nietzsche et la politique du nom propre.
Paris: Galilée, 1984 (citado por MIRANDA, José A. Bragança e CASCAIS, Antonio Fernando. A lição
de Foucault. In: FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Nova Veja, Passagens, 2006).
115
indomesticabilidade da morte, que leva a estabilizar a biografia, ao mesmo tempo em
que possibilita abrir as categorias abstratas do sujeito, do autor etc. O autor observa que
a modernidade constitui o sujeito como proprietário da sua escrita e da sua vida, que
acompanha a transformação do particular em discurso.
Já que toda escrita é marcada pelo desassossego diante da presença de certa relação com
a morte, então ela pode ser uma forma de se esquivar dela e de corrigir uma realidade
insatisfatória. Em Escritores criativos e devaneios, Freud (1974 [1908]) sublinha que o
escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca, pois cria um mundo de fantasia
que ele leva muito a sério, mesmo mantendo uma separação nítida entre o mesmo e a
realidade. Ele acrescenta que toda fantasia é a realização de um desejo, uma correção da
realidade insatisfatória. A fantasia flutua entre os três tempos: passado, presente e
futuro, que são entrelaçados pelo fio do desejo que os une.
Nas criações dos escritores de romances, novelas e contos, Freud salienta um aspecto
em comum: “Todas possuem um herói, centro de interesse, para quem o autor procura
de todas as maneiras possíveis dirigir a nossa simpatia, e que parece estar sob a proteção
de uma Provincia especial” (FREUD, 1974 [1908]: 155). Nessas criações, identifica-
se também uma divisão dos personagens em “bons” e “maus”. Os bons” são aliados do
ego que se tornou o herói da história e os “maus” são seus inimigos e rivais. Freud
reconhece que muitas obras guardam boa distância do modelo do devaneio ingênuo,
mas todos eles estão ligados através de uma sequência ininterrupta de casos
transicionais. Ele destaca então uma característica dos romances chamados
psicológicos”. Nestes, só o herói é descrito interiormente, como se o autor se colocasse
em sua mente e observasse as outras pessoas de fora. Ele conclui que o romance
psicológico deve sua singularidade à inclinação do escritor moderno de dividir seu ego,
pela auto-observação, em muitos egos parciais, e em personificar as correntes
conflitantes de sua própria vida mental por vários heis.
Freud destaca, entretanto, que existem certos romances “excêntricos” que parecem
contrapor-se a esse modelo. Nestes, o herói desempenha um papel pouco ativo, os
atos e sofrimentos das demais pessoas como mero espectador. Freud faz então uma
relação entre a vida do escritor e suas obras:
Uma poderosa experiência no presente desperta no escritor criativo uma
lembrança de uma experiência anterior (geralmente de sua infância), da qual
116
se origina então um desejo que encontra realização na obra criativa. A
própria obra revela elementos da ocasião motivadora do presente e da
lembrança antiga (FREUD, 1974 [1908]: 156).
Ainda nesse artigo, Freud examina um outro gênero de obras imaginativas, que não são
uma criação original do autor, mas uma reformulação de material preexistente e
conhecido. Ele afirma que mesmo nessas obras o escritor mantém certa independência
que se manifesta na escolha do material e nas alterações do mesmo. Esse material
procede do tesouro popular dos mitos, lendas e contos de fadas. Ele apresenta como
uma reflexão inicial, que ele considera que precisa ser mais investigada, a seguinte
hipótese: “...É muito provável que os mitos, por exemplo, sejam vestígios distorcidos de
fantasias plenas de desejos de nações inteiras, os sonhos seculares da humanidade
jovem” (FREUD, 1974 [1908]: 157).
Existe uma outra dimensão na fantasia que é a sua dimensão que vai além do princípio
do prazer. Para Freud, as fantasias que o indivíduo oculta cuidadosamente dos demais,
se ele as comunicasse, não causaria prazer às pessoas, mas sim repulsa ou indiferença.
Mas quando um escritor nos apresenta suas peças ou as relata, sentimos um grande
prazer, provavelmente originário da conflncia de muitas fontes” (FREUD, 1974
[1908]: 158). Ele destaca que “o escritor suaviza o caráter de seus devaneios egoístas
por meio de alterações e disfarces, e nos suborna com o prazer puramente formal, isto é,
estético, que nos oferece na apresentação de suas fantasias” (p.158). Freud conclui que
todo o prazer estético que o escritor nos proporciona é dessa natureza, a verdadeira
satisfação que usufruímos de uma obra literária procede de uma liberação de tenes em
nossas mentes, da possibilidade que o escritor nos oferece de, dali em diante, nos
deleitarmos com nossos próprios devaneios, sem auto-acusações ou vergonha.
Assim, o que nos interessa apontar nesses recortes freudianos é que, como postula o
autor, qualquer romance é construído a partir das fantasias de seu autor, além de
proporcionar ao leitor a possibilidade da identificação através das próprias fantasias.
Essa é a chave do verdadeiro prazer que uma obra literária pode proporcionar ao leitor.
Ao mesmo tempo, aquilo que normalmente acreditamos ser “lembranças da infância”,
muitas vezes são fantasias infantis. Em Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua
infância, Freud (1974 [1910]) sublinha que, nos primeiros três ou quatro anos de vida,
117
certas impressões tornam-se fixadas e as formas de reação para com o mundo exterior
ficam estabelecidas, não perdendo a sua importância para outras experiências
posteriores. Comentando o caso de Leonardo da Vinci, ele relaciona as fantasias infantis
com sua curiosidade adulta. Quando criança, Leonardo enfrentou um problema a mais
do que as outras crianças, segundo Freud, e começou a pensar nesse enigma com uma
intensidade toda especial, tornando-se um pesquisador atormentado pela grande
pergunta: saber de onde vêm os bebês e o que tem a ver o pai com sua origem.
Leonardo declarou, mais tarde, que tinha sido destinado, desde o começo de sua vida, a
investigar o problema do voo das aves, pois tinha sido visitado por um abutre, quando
em seu berço. Em sua fantasia, o abutre tinha aberto a sua boca com a cauda. Freud
acrescenta que a curiosidade que ele passou ater acerca do voo das aves deriva das
pesquisas sexuais de sua infância.
Nos primeiros anos de sua vida, Leonardo viveu sozinho com sua mãe, que foi
abandonada pelo pai da criança. Aos cinco anos de idade Leonardo foi recebido na casa
de seu pai para ser cuidado pela sua jovem esposa, devido à esterilidade desse
casamento. Assim, Leonardo, como filho ilegítimo, passou a ser cuidado pela madrasta.
Freud (1974 [1910]) interpreta a fantasia do abutre da seguinte forma: a substituição de
sua mãe pelo abutre indica que a criaa tinha conhecimento da ausência do pai e se
sentia solitário junto à sua mãe nos primeiros anos de sua vida. Como filho ilegítimo,
ele se compara ao filhote de abutre.
Apesar de Leonardo descrever essa cena como uma recordação infantil, Freud
esclarece que se tratava de uma fantasia que ele criou mais tarde, transpondo-a para sua
infância: “É deste modo que muitas vezes se originam as lembranças da infância” (1974
[1910]: 77). Como atesta Freud, diferentemente das lembranças conscientes da idade
adulta, elas não se fixam no momento da experiência, mas surgem muito mais tarde,
quando a infância acabou; nesse processo sofrem alterações e falsificações de acordo
com os interesses posteriores, de maneira que, de um modo geral, não poderão ser
claramente diferenciadas de fantasias. Para Freud, depois de sua curiosidade ter sido
ativada, na infância, a serviço de interesses sexuais, Leonardo conseguiu sublimar a
maior parte da sua libido em sua ânsia pela pesquisa. No entanto, muitos interesses e
habilidades demonstrados por grandes artistas na idade adulta revelam sua ligação com
118
as fantasias infantis. Nesse sentido, é possível pensar que os romances, como uma
criação artística, revelam muitos dos desejos e fantasias infantis de seus autores.
Ainda ao comentar sobre Leonardo da Vinci, Freud faz uma importante reflexão sobre a
história, que nos permite reportar para a escrita do diário. O diário é uma narrativa sobre
si, seu autor busca construir uma história de si, um romance da própria vida. Nesse
processo de historização da própria vida, ele recorre a lembranças ou fantasias do
passado, enlaçando-as com as experiências presentes e se lançando no futuro. Segundo
Freud (1974 [1910]), quando as nações eram pequenas e fracas, não cuidavam de
escrever a sua história. Foi uma época de heróis e não de historiadores. Seguiu-se outra
época a da refleo; os homens sentiram-se ricos e poderosos e sentiram a necessidade
de saber suas origens. Os relatos históricos começaram por anotar os sucessos do
presente e depois se voltaram para o passado recolhendo lendas e tradições,
interpretando os vestígios da antiguidade, para criar uma história do passado: “Era
inevitável que essa história primitiva fosse a expressão das crenças e desejos do
presente, e não a imagem verdadeira do passado...” (p.77). Freud justifica essa
afirmação explicando que muitas coisas já haviam sido esquecidas, outras distorcidas ou
interpretadas erradamente, de modo a corresponderem às ideias contemporâneas.
Freud acrescenta, além desses fatores, o motivo que leva as pessoas a escreverem uma
história: o desejo de influenciar seus contemporâneos, animá-los, inspirá-los ou
oferecer-lhes um exemplo onde mirar-se. A história de si, quando publicada, pode ser
considerada nessa perspectiva de transmissão de um modelo individual considerado
ideal, para o grupo social mais amplo.
A leitura aqui realizada de alguns textos freudianos, acrescentada de alguns comentários
de Barthes e Robert, teve como propósito mostrar que todo romance é um romance
familiar. Por mais ficcional que seja um romance, ele é alimentado pelo romance
familiar. Todo romance tem algo de biográfico. Em sua construção narrativa, existe
sempre uma tentativa de buscar o tempo perdido no campo da ilusão, além de tentar
domesticar seu desassossego diante da angústia de morte. Da mesma forma, o mito é
uma narrativa ficcional, construída para responder aos enigmas da existência. Assim, o
pano de fundo para a construção de um romance ou mito é a fantasia, que por sua vez é
estruturada como um romance. Ao se pretender escrever “a realidade dos fatos”, o autor
119
escreve a partir de suas fantasias. A partir dessas considerações, não é difícil constatar a
relação existente entre o romance e o diário íntimo.
Concluindo com Barthes e Freud, podemos pensar que toda escrita é ao mesmo tempo
autobiográfica e ficcional. Todo romance é uma busca pela resposta ao grande enigma
humano: Quem sou? Para respondê-la, o autor de um texto combina o factual com o
ficcional, a realidade e a fantasia, revelando a ambiguidade de todo discurso, sempre
situado na fronteira de dois mundos: o da morte e o do jogo. Esse conflito está sempre
presente na escrita dos diários íntimos: O impulso de representar minha vida orica
deslocou todo o resto para um plano secundário, que definhou assustadoramente e não
para de definhar. Nada mais poderá me satisfazer, nunca (KAFKA, 1914: 86).
Continuaremos a discussão do romance a partir das considerações psicanalíticas sobre
hystorização e romance. Essa abordagem psicanatica sefundamental para a reflexão
sobre a importância da escrita de um romance para um sujeito adolescente.
2.3. Hystorização e romance: a construção do personagem no diário íntimo
adolescente
Os termos hystorização e romance foram utilizados por Lacan para se referir à
construção feita pelo analisando no processo final de sua análise, no momento do
passe”
11
.
11
É possível localizar em Lacan diferentes perspectivas com relação à
historização.
Inicialmente, no texto Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise
12
,
12
Lacan
utiliza o termo “história” para se referir ao inconsciente. A histérica, ao revelar o seu
passado ao analista, ao descrever a sua “história”, vacila. O caráter ambivalente da
revelação histérica, segundo Lacan (1998 [1953]), é resultado do fato de que ela nos
apresenta o nascimento da verdade na fala e, através disso, esbarra-se na constatação de
que esse discurso não é verdadeiro nem falso. A verdade dessa revelação é a fala
11
Lacan introduziu em sua escola, na “Proposição de outubro de 1967”, a partir de sua conceituação do
que seja a experiência de uma análise levada até suas últimas consequências, o procedimento do passe
como dispositivo que visa articular a questão do fim de análise com a nomeação de analistas e da assim
dita análise didática.
12
LACAN, Jacques. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1998 [1953], p.238-324.
120
presente, que funda a verdade em nome dessa realidade. “Ora, nessa realidade, somente
a fala testemunha a parcela dos poderes do passado que foi afastada a cada encruzilhada
em que o acontecimento fez uma escolha” (p.256). Trata-se “de rememoração, isto é de
história, fazendo assentar unicamente sobre a navalha das certezas da data a balança em
que as conjecturas sobre o passado fazem oscilar as promessas do futuro” (p.257).
Assim, Lacan conclui que não se trata, na anamnese psicanalítica, de realidade, mas de
verdade. O efeito da fala plena é reordenar as contingências passadas, oferecendo-lhes o
sentido das necessidades por vir.
Para Lacan, na análise, trata-se da assunção de sua história pelo sujeito, no que ela é
constituída pela fala endereçada ao outro. Ele define o método psicanalítico da seguinte
forma: “Seus meios são os da fala, na medida em que ela confere um sentido às fuões
do indivíduo; seu campo é o do discurso concreto, como campo da realidade
transindividual do sujeito; suas operações são as da história, no que ela constitui a
emergência da verdade no real(LACAN, 1998 [1953]: 259). O inconsciente apresenta,
nesse texto, uma estrutura intersubjetiva: “O inconsciente é a parte do discurso concreto,
como transindividual, que falta à disposição do sujeito para restabelecer a continuidade
de seu discurso consciente” (p.260).
Ainda nesse texto, Lacan considera o inconsciente como o capítulo de minha história”
que é marcado por um branco ou ocupado por uma mentira, um capítulo censurado. Mas
a verdade pode ser resgatada e muitas vezes ela está escrita em outro lugar: no próprio
corpo, nas lembranças da infância, na evolução semântica (vocabulário particular, estilo
de vida e caráter), nas tradições e lendas que sob forma heroicizada veiculam a própria
história e em outros vestígios. Trata-se aqui do reconhecimento da história pelo sujeito,
que equivaleria a seu inconsciente. O inconsciente é uma história a reconhecer e o
analista está na posição de coadjuvante (MILLER, 2006)
13
.
13
Lacan então distingue dois tipos de historização, a primária e a secundária. A
historização priria é equivalente à simbolização, o real é traduzido em verdade. A
história do sujeito é organizada na sua relação ao Outro. Na historização secundária, a
historização é remanejada por tal acontecimento histórico. O ocorrido de maneira
13
MILLER, Jacques-Alain. Orientation lacanienne III, 9. Troisième séance du Cours (mercredi 29
novembre 2006) III. Sixième séance du Cours (mercredi 10 janvier 2007), trad. Elisa Alvarenga.
121
contingente torna-se o caminho necessário para alguém ser o que deverá ser. As
conjecturas sobre o passado se articulam com as promessas de futuro.
Nessa perspectiva, podemos fazer uma aproximação do diário com a historização
secundária. O adolescente, ao escrever seu texto, constrói uma história de si que é
remanejada por um determinado acontecimento hisrico. O adolescente frequentemente
elege um fato histórico como o desencadeador da necessidade de escrever sobre si. Este
acontecimento histórico pode ser nomeado como: a entrada na adolescência, o despertar
da primeira paixão, a crise com os pais, entre outros. Esse ocorrido leva à construção de
um caminho que visa ao alcance de uma nova posição, que implica o desligamento da
autoridade dos pais. Nesse percurso da escrita, o jovem faz conjecturas sobre o passado,
articulando-as com as promessas do futuro, tecendo uma história sobre si, um romance
familiar.
Esta primeira abordagem do inconsciente supõe uma supremacia da verdade sobre o real.
uma mudança de perspectiva com relação à historização na teoria lacaniana. No
Prefácio à edição inglesa do Seminário 11
14
,
14
Lacan (2003) introduz o termo histoeria
[hystoire], que busca reunir “história” e “histeria” (p.567). Lacan acrescenta que ...o
analista se historisteriza [hystorise] por si mesmo...” (p.568). Segundo ele, “a
miragem da verdade, da qual se pode esperar a mentira... não tem outro limite senão
a satisfação que marca o fim da análise” (p.568). Ele designa por passe essa verificação
da historisterização da análise. O passe, “deixei-o à disposição daqueles que se arriscam
a testemunhar da melhor maneira possível sobre a verdade mentirosa” (p.569). Em O
seminário 24, L‘insu que sait de l‘une-bévue s‘aile à mourre, Lacan continua a discorrer
sobre o tema da hystorização.
Diante do real, diz Miller (2006), história é histoeria (hystoire). Tendo chegado ao
inconsciente real, trata-se de produzir sentido, uma boa história. Ela se faz sem o
analista, na solidão e se endereça à psicanálise e à escola. Busca-se medir o que faz
função de verdade na análise, diante do real. Aqui uma falha entre real e verdade.
14
LACAN, Jacques. “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2003 [1976], p.567-569.
122
Fazer sentido com pedaços do real é diferente de objetivação, como ilustra Miller
(2006). A miragem da verdade termina no inconsciente real, que pode se apreciar pela
satisfação que marca o final da análise. No passe há a passagem do inconsciente
transferencial ao inconsciente real.
Segundo Pierre-Gilles Guéguen
15
,
15
no caso do relato do passe, se pode apresentar a
análise como um relato, uma história, um witz. Esse relato não é cronológico. É o relato
de um percurso, um testemunho. Esse relato hystoriza a experiência singular de cada
análise, faz de elo numa história com seus cruzamentos e não-cruzamentos, seu ritmo. A
essa construção se subtrai uma lógica. Ela tem a estrutura de uma histeria, histeriza o
público que a escuta, no sentido de que suscita identificação e desejo, e também apela à
verdade. Ele destaca o êxtimo e íntimo no trabalho do passe. algo íntimo no relato,
um “semblante”, um pudor que vela as coisas. Mas também o êxtimo no relato, o
que não se pode dizer.
Fazendo uma diferenciação entre o romance e a historização a partir de Lacan e dos
comentários de Miller, Santiago
16
16
explica que o romance é uma modalidade de
narrativa em que a função reguladora do sentido se faz por meio do tempo de
construção desse ser de escritura que é o personagem. É a temporalidade necessária à
construção do personagem que constitui o eixo essencial da legibilidade da significação
da própria narrativa. Assim o personagem não é um dado a priori, mas sim uma
construção temporal, uma forma vazia que vai pouco a pouco sendo preenchida por
diferentes predicados.
Os processos cumulativos pelos quais os traços distintivos dos personagens se
distribuem ao longo da narrativa é o que levam à construção do romance. A
temporalidade não é nada evidente entre a construção, ou a obra e o autor. A construção
vem em primeiro lugar, ela está à espera do autor. O autor se reduz ao lugar de retorno
do discurso que vem do Outro, como uma mensagem sempre invertida. O autor chegará
15
GUÉGUEN, Pierre-Gilles. Acerca de lo inesencial del Sujeto supuesto Saber. Conferência. In:
LAURENT, Éric (Org.). El pase y la formación del analista. IX Conversación de la ELP. Madrid, 5 de
mayo de 2007.
16
SANTIAGO, Jésus. O tempo na metodologia do testemunho. Texto não publicado, produzido pelo
grupo de pesquisa que se formou em função da VIIIª Jornada da EBP-MG, sobre o tema do “destino do
sintoma no final de análise”. Essa investigação baseou-se no estudo detalhado de cinco relatos e das
atividades de ensino dos Aes, publicados em revistas e livros das Escolas da Associação Mundial de
Psicanálise.
123
depois. Ele encontrará o lugar que o esperava. Segundo Lacan: “Termina-se sempre por
tornar-se um personagem do romance que é sua própria vida”
17
.
17
Para isto, não é
necessário fazer uma psicanálise. Segundo Laurent (1992), é a obra que é primeira e que
espera o autor.
Se a obra é primeira em relação ao autor, podemos dizer que um romance construído
pelo sujeito em seu diário, esse romance familiar, leva à constituição do autor? Trata-se
de que tipo de autoria? Buscaremos inicialmente em Foucault um apoio para essa
discussão. Foucault, em “O que é um autor?”
18
,
18
mostra toda a complexidade que
envolve a noção de autoria. Ele observa que a noção de autor constitui o momento forte
da individualização na história das ideias, dos conhecimentos, das literaturas, na
filosofia e nas ciências. Ele destaca a relação do texto com o autor, discutindo como um
texto pode apontar o seu autor. Foucault faz uma crítica a certa perspectiva
contemporânea que pretende excluir o autor, separando-o da obra, pois o que importa é
a obra”. Ele então questiona o que significa “obra” e como podemos pensá-la sem um
autor. Foucault destaca ainda a noção de escrita, que apesar de toda a discussão sobre o
desaparecimento do autor, ela, com sutileza, preserva a existência do autor, pois faz
subsistir o jogo das representações que configuram uma certa imagem do autor.
Foucault, ao tentar definir o que é um autor, esclarece que, longe de dar uma resposta,
ele limita-se a indicar algumas das dificuldades que a noção de autor apresenta.
Foucault (2006) estabelece uma série de características e condições que definem a
noção de autor, problematizando-as. Ele postula que o nome do autor é um nome
próprio, é mais do que uma indicação, em certa medida, é o equivalente a uma descrição.
Ele não tem uma significação pura e simples. O nome próprio e o nome do autor
encontram-se situados entre os polos da descrição e da designação; têm seguramente
alguma ligação com o que nomeiam, nem totalmente à maneira da designação, nem
totalmente à maneira da descrição, mas uma ligação específica. A ligação do nome
próprio com o indivíduo nomeado e a ligação do nome de autor com o que nomeia não
são isomórficas e não funcionam da mesma maneira. O nome do autor não é um nome
próprio exatamente como os outros.
17
Frase de Lacan dirigida a Eric Laurent e comentada por ele no texto: LAURENT, Eric. Quatre
remarques sur le souci scientifique de Jacques Lacan”. In: BRISSAC, Marie-Pierre de Cossé; DUMAS,
Roland et al. Connaissez-vous Lacan? Paris: Seuil, 1992.
18
FOUCAULT, Michel. O que é um autor. Lisboa: Nova Vega, Passagens, 2006.
124
Um nome de autor, segundo Foucault (2006), não é simplesmente um elemento de um
discurso; “ele exerce relativamente aos discursos um certo papel: assegura uma função
classificativa; um tal nome permite reagrupar um certo número de textos, delimitá-los,
selecioná-los, opô-los a outros textos” (FOUCAULT, 2006: 44-45). O agrupamento de
rios textos sob o mesmo nome indica que se estabeleceu entre eles uma relação de
homogeneidade, de filiação, de mútua autenticação, de explicação recíproca. O nome de
autor serve para caracterizar um modo de ser do discurso, indica que esse discurso não é
um discurso cotidiano, indiferente, flutuante e passageiro, imediatamente consumível,
mas que se trata de um discurso que deve ser recebido de determinada maneira e que
deve receber um estatuto numa determinada cultura.
Uma diferença entre o nome de autor e o nome próprio, segundo Foucault (2006), é que
o nome de autor não transita, como o nome próprio, do interior de um discurso para o
indivíduo real e exterior que o produziu, mas ele bordeja os textos, recortando-os,
delimitando-os, caracterizando-os. O nome de autor não está situado no estado civil dos
homens nem na ficção da obra, mas na ruptura que instaura um certo grupo de discursos
e o seu modo singular de ser. A função autor é característica do modo de existência, de
circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma sociedade.
Para analisar a função autor, Foucault (2006) destaca quatro características diferentes.
Resumidamente, o nome de autor serve para caracterizar um modo de ser do discurso,
ele bordeja os textos, recortando-os, delimitando-os, caracterizando-os, a função autor
está ligada ao sistema jurídico e institucional que leva o autor a apropriar-se de uma
obra, ele determina e articula o universo dos discursos, o autor não está no escritor real
nem no locutor fictício, ele lugar a vários “eus” simultâneos e o texto sempre traz
consigo um certo número de signos que reenviam para o autor. Mas o autor não se
confunde com o nome próprio. O autor de uma obra não está situado no estado civil e
o transita, como o nome próprio, do interior de um discurso para o indivíduo real e
exterior que o produziu.
O texto de Foucault mostra a relação existente entre a noção de autoria e o conceito de
sujeito, envolvendo também uma questão ética. O autor coloca em questão o
pressuposto filosófico de um sujeito livre e autônomo e a ética como exercício da
racionalidade e consciência. Para Foucault, a ética não pode ser considerada fora da
125
dimensão da historicidade. A base epistemológica de Foucault reside na crítica à visão
filofica do sujeito racionalista, autônomo e senhor de si. Em suas análises
arqueológicas, Foucault considera o sujeito como função do enunciado, efeito das
formações discursivas. O sujeito é falado pelo discurso. Qualquer fixidez identitária é
diluída nas móveis e fragmentárias posições e funções nas formações discursivas. Para
Foucault, a figura discursiva do homem é atrelada aos jogos de verdade, remetida à
malha de poderes do tecido social. A subjetividade, portanto, não é um conceito
genérico e abstrato, mas se constitui a partir de jogos de poder e de uma política das
verdades.
Batista (2004), em O texto escolar: uma história”, também apresenta uma reflexão
sobre a questão da autoria, ao discutir a noção de texto. Segundo o autor, a partir das
considerações de Foucault, Bakhtin e Bourdieu, pode-se estabelecer três pontos
principais em torno dos quais é possível construir um modo de compreensão concreto
do texto. O primeiro ponto é a noção de autor, que, a partir das considerações de
Chartier (1994), é visto não como uma unidade ou estabilidade, mas ao mesmo tempo
como dependente e reprimido. Dependente, pois ele não é o mestre do sentido e suas
intenções expressas no texto não se imem necessariamente nem para os editores ou
operários da impressão nem para os leitores. Reprimido, pois ele se submete às
múltiplas determinações que organizam o espaço social da produção literária. O
segundo ponto é a manifestação linguística por meio da qual o autor se expressa, que
o contém todos os elementos necessários à sua interpretação e nem os oferece a seus
leitores, deixando “espaços em branco”, “não-ditos”. E o terceiro ponto é o caráter de
imobilidade, estabilidade e unidade de um texto. O texto existe apenas em estado
potencial e supõe um leitor que o atualize. O leitor está presente na própria constituição
do texto, não só como parte de uma formação imagiria do escritor, como um suposto
leitor, mas também como aquilo que se deseja construir: um texto contém “instruções
de uso”, protocolos, que mostram ao leitor como ler. No entanto, os leitores podem
desenvolver formas diferentes de aproprião, constituindo assim um novo texto.
Essa visão apresentada por Batista (2004) vai ao encontro da nossa perspectiva, que não
considera a dimensão de autor como unicidade e estabilidade, mas como marcada por
uma instabilidade e multiplicidade, que também deve ser considerada como inserida em
uma cultura.
126
Lacan, em sua releitura de Freud, ressalta como a psicanálise também se opõe à tradição
racionalista de sujeito, pois Freud, ao postular a exisncia do inconsciente, destrói a
soberania da consciência. No seminário 16, Lacan, ao comentar a palestra de Foucault
sobre “O que é o autor?”, mostra que Foucault encontrou meios de destacar a
ordenação dessa função no vel de uma interrogação semântica, atendo-se a sua
situação estreitamente interna ao discurso...” (LACAN, 2008: 184). O autor comenta
que dessa posição de Foucault decorre um questionamento, um efeito de cisão ou
rompimento da relação com o discurso que prevalece na “Sociedade dos Seres
Pensantes, ou República das Letras” (p.184). Lacan então retoma a discussão sobre a
ética da psicanálise. Para Lacan, o ponto axial do que se refere à ética da psicanálise é o
real.
Essa discussão sobre a ética da psicanálise é fundamental para a nossa reflexão sobre a
noção de autoria. Ainda no Seminário 16, Lacan postula que o gozo é o absoluto, o real,
definido como aquilo que volta sempre ao mesmo lugar. O autor observa que o
enunciado do inconsciente traz a marca do a no nível em que falta o saber, pois não
sabemos nada desse absoluto, do real. O real não es ligado no enunciado. Lacan
postula que o gozo só se institui por sua evacuação do campo do Outro. O sujeito é
efeito do significante, então aquele que o representa pode colocar-se em posição de
anterioridade, como lugar dos significantes. Se o gozo só se constitui por sua evacuação
do campo do Outro, o objeto a é o resíduo dessa operação, funcionando como lugar de
captura do gozo. A constituição do sujeito no campo do Outro produz sempre perda,
restos não articulados na cadeia significante, que Lacan nomeia como objetos a. Ao se
referir ao objeto a, Lacan considera: “Aqui, ele está num lugar que podemos designar
pelo termo êxtimo, conjugando o íntimo com a exterioridade radical” (LACAN, 2008:
241). O objeto a é êxtimo na relação instaurada pela instituição do sujeito como efeito
do significante, determinando, por si , no campo do Outro, uma estrutura de borda.
Esse a é o que de mais estranho para representar o sujeito, com toda a ambiguidade
que a palavra estranheza comporta, “com seu toque afetivo e também com sua indicação
de margem topológica” (p.303).
Para a psicanálise, não verdade que não tenha a estrutura de ficção. Qualquer
discurso esbarra em seus limites, mostra a sua fratura, o seu impasse, aquilo que não
127
pode ser representado pela linguagem. um limite na linguagem. Não existe um saber
sobre o real. Essa perspectiva problematiza ainda mais a questão da autoria de um texto.
O tema da autoria é tratado muitas vezes como equivalente ao estilo. Com frequência,
considera-se que o autor destaca-se do texto pelo seu estilo, como algo singular, que se
manm constante, invariável. Faremos uma aproximação entre o estilo e o nome
próprio, utilizando a teoria psicanalítica. Consideramos que essa aproximação pode ser
feita a partir da relação do singular com o real: tanto o estilo quanto o nome próprio
tocam o real.
Podemos articular o estilo com algo que se constitui entre o social e o singular
19
.
19
Ele
implica algo que é, ao mesmo tempo, próprio a cada um, pertencente à dimensão
privada da existência, mas também está inserido na via da transmissão e do
endereçamento. O estilo pode ser situado entre o objeto a e o Outro, como algo da
ordem de um gozo próprio que busca conquistar a aceitação social.
A aproximação com o real em um texto pode ser identificada nas interrupções de
sentido, nas quebras de previsibilidade na ordem das sequências e no surgimento de
elementos “estranhos” à narrativa, que apontam para a falência da linguagem, do vazio
significante. Pode-se apreender em um texto algo da ordem de uma repetição, como o
encontro com o real. O estilo pode ser abordado também pelo tratamento que o sujeito
a esse encontro com o real. Esse tratamento singular, ao ser lançado no espaço
público, pode alcançar reconhecimento de valor universal. O estilo é, portanto, o
trabalho que se faz a partir da ruptura, um trabalho de escritura que toca o real. aqui
a aproximação entre o estilo e o nome próprio.
Na psicanálise o nome próprio tem um estatuto particular. O nome próprio é um modo
de designação do ser, o modo pelo qual um sujeito reconhece a si próprio por meio da
linguagem. Inicialmente, essa designação é abordada por Lacan pela noção de
identificação. Na dimensão da nomeação inserem-se as identificações imaginárias,
relacionadas às imagens que alguém faz de si mesmo, ou as identificações simlicas
pelas quais o sujeito encontra seus traços de identificação, provenientes das insígnias
19
Uma discussão interessante sobre o estilo é feita por Heloísa em CALDAS, Heloísa. Da voz à escrita:
clínica psicanalítica e literatura. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2007.
128
advindas do Outro. Posteriormente Lacan destaca, na nomeação, a dimensão de gozo. O
nome próprio é um índex da existência do sujeito, segundo Soler
20
.
20
Se o neurótico é
um sem-nome, ele é encoberto pelo nome próprio. O nome próprio é um índex daquilo
que no sujeito é impensável, é o índex do sujeito como real, um esforço para dar uma
significação fálica à existência de sujeito.
O que seria essa significação fálica? Lacan considera que a nomeação é relacionada à
presença de uma função essencial na constituição da realidade psíquica de um sujeito, a
incidência do Nome-do-Pai. O Nome-do-Pai é a função capaz de nomear um vazio
enigmático, correspondente ao desejo da mãe. Ao nomear esse enigma, a operação do
Nome-do-Pai equivale a uma metáfora, conferindo ao desejo enigmático da mãe uma
significação universal, o falo. Essa operação de fixar uma significação a um significante
(sem significado) produz como resultado um apaziguamento na relão do sujeito com o
gozo.
Lacan, no Seminário 9, A identificação (1961-62), discute a função do nome próprio,
relacionando-o com o traço unário, ou seja, com a via da identificação a um traço do
Outro. Ele retoma a definição de nome próprio de Stuart Mill, que diferencia o nome
próprio do nome comum em função do sentido. O nome comum concerne ao objeto,
enquanto junto com ele vem um sentido. No caso do nome próprio, ele não é o sentido
do objeto que ele traz consigo, mas algo da ordem de uma marca aplicada ao objeto,
superposto a ele. Lacan evoca Gardner, que, em contraposição à definição de Mill,
afirma que o nome próprio tem sim um sentido. Todo nome próprio tem um sentido, por
ex., Smith quer dizer ferreiro. Mas, para Gardner (citado por LACAN, 1961-62), o
acento do nome próprio não está no seu sentido, mas no som enquanto distintivo. Lacan
postula que nessa definição a introdução da dimensão subjetiva (psicológica), da
atenção dispensada ao significante como material sonoro.
Para Lacan (1961-62), a partir da função do traço unário, não pode haver definição do
nome próprio a não ser a partir da relação da emissão nomeadora com algo que em sua
natureza radical é da ordem da letra. A letra, nesse momento da teorização de Lacan, é
definida como o suporte do significante. Ele acrescenta que o que representa o advento
20
SOLER, Collete. “A clínica do Real”. In: FOLHA. Revista da Clínica Freudiana. Ano 3, n. 30.
Salvador: Fator, 1989.
129
da escrita é que alguma coisa que é escrita (isolamento do traço significante) passa a
servir como suporte do som. A característica do nome próprio é sempre mais ou menos
ligada a este traço de ligação, não ao som, mas à escrita.
O que distingue um nome próprio é que de uma ngua para outra ele conserva sua
estrutura, sonora provavelmente, mas esta estrutura sonora se distingue das outras
especialmente em razão da afinidade do nome próprio com a marca, com a designação
direta do significante como objeto. Lacan destaca o uso de uma função sujeito na
linguagem: a de nomear por seu nome próprio. O nome próprio faz parte deste
recalcamento no qual o sujeito se apoia para falar, ele inaugura a cadeia. O sujeito é o
que se nomeia e nomear é antes de tudo algo que tem a ver com uma leitura do traço um.
Designando esse traço como unário, ele ressalta seu caráter estruturante da
subjetividade, ao inscrever uma marca que inaugura o sujeito, a partir da qual ele insere-
se em uma rede simlica. Lacan ressalta que o fundante não está no dito. O nome
próprio faz falar. No seminário Os Nomes-do-Pai, Lacan comenta que o nome absoluto,
o nome como singular, o nome único não existe (MILLER, 1992). Seria mais adequado
dizer os Nomes-do-Pai, pois uma série de nomes pode fazer essa função. Há, portanto,
uma pluralização dos Nomes-do-Pai. No trabalho de uma análise deve-se considerar o
que, para cada sujeito, pode fazer às vezes de Nome-do-Pai.
Em Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano, Lacan (1998)
comenta que os nomes próprios não recobrem inteiramente o ser. Há um ser que aparece
em falta no “mar de nomes próprios”, esse ser chama-se gozo. Assim, Miller (1992)
propõe agregar ao nome próprio uma dimensão para além do Nome-do-Pai. Trata-se da
dimensão do “nome de gozo”. É por meio do gozo que o sujeito experimenta-se como
vivo.
Ao se referir a Joyce em seu seminário O sinthoma, Lacan (2007) mostra como que, por
meio da leitura de sua obra, o nome James Joyce desloca-se do nome registrado em
cartório, para apontar para uma nova maneira de se ver designado em seu ser. Lacan
destaca então que se trata de um nome relacionado agora a uma experiência de
linguagem, ou uma experiência de gozo por meio da linguagem. Ao designar “Joyce o
sintoma”, Lacan nomeia uma experiência de gozo particular. Por meio dessa forma de
gozo associada à experiência literária, Joyce constrói uma obra a ponto de se ver
130
determinado, em seu nome, por ela. Lacan, nesse seminário, ao renovar a noção de
sintoma, relaciona-o com o nome próprio, pois o sintoma inscreve o que de mais
singular em um nome. O sintoma passa a ser um modo como um sujeito busca capturar
o gozo. Ele opera fazendo um aparelhamento do gozo. Assim, a dimensão de nomeação
passa necessariamente pela dimensão do gozo.
Essa digressão teve como propósito discutir o que seria a autoria de um texto e sua
relação com o nome próprio. Se a escrita de um romance leva à construção de uma
autoria, poderíamos relacionar a autoria com a nomeação, com o nome próprio? Os
diários de adolescentes poderiam levar à construção de um nome próprio? Podemos
concluir que alguns drios publicados podem ter esse efeito. Existem diários
publicados que são verdadeiras obras literárias e que permitem ser articulados com a
construção do nome próprio. Se o nome do autor está relacionado a uma experiência de
gozo por meio da linguagem, associado à experiência literária, ele pode ter esse efeito
de nomeação. Se o nome do autor nomeia uma experiência de gozo singular, por meio
da qual ele pode construir uma obra a ponto de ser determinado por ela, então algo
nesse nome que permite ao sujeito a construção de uma nova maneira de se ver
designado em seu ser. Mas acreditamos que essa é apenas uma possibilidade, que não
caracteriza toda e qualquer escrita de diário.
O diário íntimo pode ser aproximado do romance, como uma narrativa individual.
Laurent (1992) observa que a psicanálise não é uma experiência de comunicação, mas
uma experiência narrativa. Segundo o autor, o inconsciente de Freud caminha junto com
uma forma de narrativa que é a do romance de Goethe. Essa forma de narrativa implica
algumas exigências: “Definição clara e distinta dos personagens, estrutura dividida de
interlocução, separação do comentário e da descrição, jogo de palavras da conversação
pública e a ruminação da conversação interior” (p.38). a prática de Lacan é
contemporânea de uma estrutura de narração que transformou da escritura moderna
onde o romance é subvertido para a contração do tempo, do espaço, dos personagens, do
interior e do exterior (LAURENT, 1992).
Podemos então diferenciar o romance clássico do romance moderno. O romance
clássico é caracterizado por um relato linear, que postula um sentido na existência
narrada. Esse sentido é construído através da tentativa de se extrair uma lógica
131
retrospectiva e prospectiva, estabelecendo relações inteligíveis entre os diversos estados
que se sucedem. o romance moderno apresenta-se como um real descontínuo,
formado por elementos que se justapõem, únicos, sem relação entre si, que surgem de
maneira imprevista e aleatoriamente, como descreve Bourdieu (2005).
A passagem do romance à novela leva à contração do tempo e produz efeitos de estilo.
Esse é processo do passe. A metodologia do testemunho inclui a exigência lacaniana da
contração do tempo. Para isto, é necessário recusar o “empuxo-ao-romance”. O passe
isola efeitos de estilo, que estão sempre na contramão do romance. Esses efeitos de
estilo emergem no lugar em que a tendência ao romance vacila ou fracassa. Nessa
perspectiva, o romance se opõe ao estilo. Se o romance envolve a criação de um sentido
para encobrir o real, o estilo envolve a contração do tempo, do espaço e dos
personagens, do interior e do exterior, promovendo uma “quebra” do sentido, deixando
surgir o descontínuo, o aleatório, o real.
O romance inclui o tempo entre seus princípios constitutivos. Como observa Benjamin
(1994), de acordo com a “Teoria do romance”, somente o romance separa o sentido e a
vida, o essencial e o temporal, sendo toda a ação interna do romance uma luta contra o
poder do tempo. Desse combate, (...) emergem as experiências temporais
autenticamente épicas: a esperança e a reminiscência (...). Somente no romance (...)
ocorre uma reminiscência criadora, que atinge seu objeto e o transforma...”
(BENJAMIN, 1994: 212). O sujeito ultrapassa o dualismo da interioridade e da
exterioridade quando percebe a unidade de sua vida na corrente do seu passado,
resumida na reminiscência. Essa visão da unidade da vida é uma apreensão intuitiva do
sentido da vida. O romance gira em torno de um centro que é o sentido da vida.
Benjamin não considera o romance como uma narrativa, porque para ele a narrativa é
oral. Enquanto a narrativa busca a moral da história”, o romance gira em torno do
“sentido da vida”, sempre inatingido e inexprimível.
O romance visa, portanto, à construção do “sentido da vida” do protagonista, numa luta
contra o poder do tempo. O romance clássico (provavelmente é o romance ao qual
Lacan se refere) busca estabelecer um sentido para a vida individual, enquanto a novela
superpõe camadas temporais de modo a produzir um efeito de simultaneidade. A novela
trabalha com o princípio de sincronicidade.
132
Santiago (op. cit.) relaciona o testemunho com a h(y)storização e a história com o
romance. A h(y)storização é algo inovador na metodologia do testemunho. Se a história
se faz presente no desfecho da análise é porque o testemunho se apoia sobre o valor
ficcional de um relato em que predomina a apreensão dos significantes-mestres (S1) que
viabilizaram a conexão do aparelho do sintoma com a posição de gozo do sujeito.
A h(y)storização é a resposta que se encontra no lugar preciso em que o saber do mestre
se verifica impotente para responder à questão que se implanta no âmago da divisão do
sujeito. Se há aqui uma elevação da histeria é no sentido de desembaraçar esse final do
todo-saber” próprio do tipo clínico da obsessão. Aqui, o ponto culminante do passe
deixa de ser o matema para prevalecer a clínica das soluções particulares de cada um
quanto ao saber-como-fazer com o sintoma. O testemunho é privilegiado em relação à
demonstração puramente matêmica. As soluções decorrentes da h(y)storização exigem
do analisante deparar-se com os acontecimentos que, por definição, encarnam o que
de mais contingente no percurso de suas vidas e de suas análises.
Nos relatos de passe, o personagem conta menos do que os efeitos de estilo que
resultam do destino do sintoma no final. O testemunho decorrente da h(y)storização”
privilegia os efeitos de estilo. Operou-se uma contração do tempo, próprio da passagem
do romance à novela.
A contração do tempo é compatível com a operação analítica de captura dos
significantes-mestres (S1) que cunham a trama ficcional do passante e, nesse mesmo
instante, corroem o personagem que, até então, se colocava como o principal
protagonista de sua história. Esses efeitos de estilo cessam a decifração significante e
são o signo de que, nessa forma de testemunho, os significantes-mestres se
desprenderam, irremediavelmente, do personagem que outrora lhes deu suporte. A
temporalidade é importante para se definir o romance. Se a novela envolve a contração
do tempo, no romance (clássico) existe “um tempo da construção da história”,
necessário à formação do personagem.
Não é o nosso objetivo, nesta tese, o estudo do processo de final de análise. Ao realizar
esse breve percurso sobre hystorização e romance, buscamos recortar as especificidades
do romance, naquilo que o contrapõe à hystorização.
133
Defendemos a hipótese de que a escrita do diário íntimo na adolescência equivale à
perspectiva da escrita de um romance clássico, enquanto ele leva à construção do
personagem como o principal protagonista de sua história. Ele surge como o lugar de
retorno do discurso que vem do Outro. Se a escrita de um romance familiar na
adolescência produz efeitos na relação do adolescente com a sua obra, talvez seja no
sentido de sair da posição de ser determinado pela hisriapara se tornar o principal
protagonista dela, podendo “ler essa determinação da história”.
Ao se deparar com o real na puberdade, o sujeito deve fazer um trabalho de escritura
que envolve a amarração com os restos do enlace do sujeito ao Outro. Com esses restos,
o sujeito constrói o seu romance familiar. O romance familiar é uma construção que
resulta do desligamento da autoridade dos pais, ao mesmo tempo em que busca encobrir
essa separação. A construção de um romance familiar envolve, pois, um distanciamento
dos pais que permite uma leitura de sua determinação histórica”. No entanto, nessa
construção narrativa, que visa à elaboração de um sentido para o real do sexo, pode-se
esbarrar nos limites do sentido, tropeçar no real”, naquilo que faz obstáculo à
simbolização. Na construção que o sujeito faz a partir desses obstáculos, surge o estilo.
O mais famoso diário de adolescente escrito durante a guerra, o diário de Anne Frank,
ilustra essa construção de um romance, tendo como efeito a constituição de um
personagem como principal protagonista de sua história. no texto de Anne Frank
uma escritura autorreferencial e um tom confessional, que busca o desvelamento de uma
subjetividade. O pacto entre leitor e escritor permite uma aproximação dessa intimidade
que se constrói no texto autobiográfico. Veremos em sua escrita esse trabalho de
desligamento da autoridade dos pais e a construção de um romance familiar.
Anne Frank nasceu em 12 de julho de 1929, na Alemanha. Ela escreveu o seu diário
durante a Segunda Guerra Mundial, entre 12 de junho de 1942 e de agosto de 1944,
portanto, dos 13 aos 15 anos, na Holanda, onde a família refugiara-se com a perseguição
aos judeus após a chegada de Hitler na Alemanha. Ela morreu aprisionada no campo de
concentração antes de completar 16 anos. Inicialmente, escrevia-o sem a intenção de
torná-lo público, mas depois decidiu que o publicaria quando a guerra terminasse.
Assim, resolveu reescrever seu diário, melhorando o texto, omitindo algumas passagens
134
e acrescentando outras. Ao mesmo tempo, continuava a redigir seu diário original. O
primeiro diário de Anne é conhecido como versão a, para distingui-lo do segundo, com
alterações, conhecido como versão b. Três dias depois da última anotação em seu diário,
Anne e as outras pessoas que se escondiam no Anexo Secreto foram presas. Duas
secretárias que trabalhavam no prédio encontraram as folhas do diário de Anne
espalhadas no chão e as guardaram. Depois da guerra as entregaram ao pai de Anne,
Otto Frank, que decidiu realizar o desejo da filha de publicar o diário. Ele selecionou
material das versões a e b, organizando-os numa versão mais concisa, citada como
versão c, que é a versão mais conhecida, editada pela escritora e tradutora Mirjam
Pressler.
O seu diário passou a ser um documento histórico do Instituto Estatal Holandês para
Documentação de Guerra, em Amsterdã, que procurou fazer uma profunda investigação
para avaliar a autenticidade do texto de Anne Frank. Depois de ter sido considerado
autêntico, ele foi publicado na íntegra, juntamente com o resultado das exaustivas
investigações que foram feitas para comprovar sua autenticidade.
O objetivo dos recortes feitos no diário de Anne Frank (versão c) para esta pesquisa é o
de se refletir sobre a escrita na adolescência como a escrita de um romance familiar.
Nesse sentido, não são as dramáticas experiências da guerra que se buscou retirar de sua
narrativa, mas as condições que definem um romance clássico, segundo a definição de
Laurent: Definição clara e distinta dos personagens, estrutura dividida de interlocução,
separação do comentário e da descrição, jogo de palavras da conversação pública e a
ruminação da conversação interior” (1992: 38). Além de se considerar a presença dessas
condições no diário de Anne, foi possível identificar a construção do protagonista nessa
construção temporal e a busca pelo sentido da vida no tempo do despertar da puberdade.
Anne Frank busca, a partir da escrita do diário, construir o que lhe é próprio, suas
próprias ideias, antes mesmo de conseguir verbalizá-las: “Tenho minhas próprias ideias,
meus planos e ideais, mas ainda não consigo verbalizá-los” (FRANK, 2007: 163). A
escrita, portanto, tem a função de organização e apropriação de suas ideias: É por isso
que sempre termino voltando ao meu diário começo nele e termino nele...” (p.164). A
escrita permite também diminuir a angústia: ―O fato de escrever me levantou um pouco
das ‗profundezas do desespero‘‖ (p.177).
135
A escrita na adolescência tem a função de organização de um corpo que se apresenta
como algo estranho, um corpo que não é mais de criança, mas também não é de adulto.
Nesse momento de passagem para o qual não há inscrição, a escrita do diário pode
funcionar como possibilidade de situar essa passagem, como suporte da reconstituição
do corpo. A escrita “privada” registra e ao mesmo tempo possibilita uma mudança de
endereço, da casa dos pais para o grupo social, como um espaço intermediário. Nessa
travessia, o diário permite a construção de um percurso “solitário”, “íntimo”, que leva
ao reconhecimento de si mesmo como o principal personagem dessa hisria. Assim, o
romance, como “escrita”, é a condição para esse percurso.
No despertar do real do gozo na puberdade, quando o simlico se mostra insuficiente,
o diário íntimo, como um romance, vem tentar suprir essa insuficiência simlica:
“Acho que o que está acontecendo comigo é maravilhoso, e não falo somente das
mudanças que acontecem no exterior do meu corpo, mas também das que ocorrem por
dentro. Nunca comento essas coisas com os outros, e é por isso que tenho que falar
sobre elas comigo mesma” (FRANK, 2007:184).
O diário íntimo, por seu caráter privado, permite escrever as fantasias e descobertas
sexuais: “Às vezes, quando me deito à noite, sinto um desejo terrível de tocar meus
seios e ouvir as batidas calmas e firmes de meu coração (FRANK, 2007: 184). As
descobertas sexuais envolvem o próprio corpo e o corpo do outro: Uma vez, quando
estava passando a noite na casa de Jacque, o pude conter minha curiosidade sobre seu
corpo, que ela sempre havia escondido de mim e que eu nunca tinha visto. Perguntei se,
como prova de nossa amizade, poderíamos tocar os seios uma da outra” (p.184).
Anne Frank se dirige ao seu diário como a um amigo, um amigo ideal, silencioso e
paciente, que a escuta e a compreende. Esse companheiro imaginário exerce a função de
um amigo íntimo: “...Quero que o diário seja minha amiga, e vou chamar essa amiga de
Kitty(FRANK, 2007: 19). “Agora voltei ao ponto que me levou a escrever um diário:
o tenho um amigo (p.19). “Tenho vontade de escrever e uma necessidade ainda
maior de desabafar tudo o que está preso em meu peito(p.18). Espero poder contar
tudo a você, como nunca pude contar a ninguém, e espero que vo seja uma grande
fonte de conforto e ajuda” (p.11).
136
A construção da “história” vem em primeiro lugar na escrita do diário, ela está à espera
do autor. Anne Frank coma seu diário escrevendo sua “história passada”, para tentar
situar-se a partir dela: “Como ninguém entenderia uma palavra de minhas histórias
contadas a Kitty se eu começasse a escrever sem mais nem menos, é melhor fazer um
breve resumo de minha vida” (FRANK, 2007: 20).
O mergulho no passado permite situar-se no presente e lançar-se no futuro, trabalho
feito pela escrita: “Concluí que, quando se começa a buscar, é preciso cavar cada vez
mais fundo no passado, o que leva a descobertas ainda mais interessantes” (FRANK,
2007: 200).
A memória dos fatos passados é também acompanhada de angústia. A memória
apresenta uma estreita relação com a morte. Ela é construída exatamente a partir da
perda, do “já vivido”. Na tentativa de resgatar o perdido, entretanto, busca-se capturar o
vivido. Mas, quanto mais se escreve o passado, mais dele se distancia. A morte da
“infância” exige seu luto, trabalho feito na adolescência pela via da escrita “dos
fragmentos de lembranças”.
Na reconstrução do infantil, ficções e fatos se misturam, tecendo um texto que é
marcado pela angústia diante da impossibilidade de tudo dizer: Estou numa confusão
absoluta, não sei o que ler, o que escrever, o que fazer. Só sei que estou sentindo falta de
alguma coisa.... (FRANK, 2007: 211).
Mas a presença iminente da morte na vida de Anne faz com que a angústia se
intensifique e o passado seja nostalgicamente reconstituído: “Agora que estou relendo
meu diário, depois de um ano e meio, estou surpresa com a minha inoncia infantil. No
fundo, sei que nunca poderia ser tão inocente de novo, por mais que quisesse” (FRANK,
2007: 77). “Simplesmente não consigo imaginar que o mundo volte a ser normal para
nós” (p.166).
As teorias sexuais da infância, recalcadas, não são mais acessíveis ao adolescente, mas
Anne Frank descreve em seu diário uma fantasia sexual infantil de sua amiga: “Eva
achava que as crianças cresciam em árvores, como maçãs, e que a cegonha as arrancava
da árvore quando estavam maduras e levava para as mães” (FRANK, 2007: 67).
137
Anne Frank esboça, através da escrita, um esforço constante de separação de seu
estado infantil”, marcando as diferenças entre a adolescência e a infância. Ao descrever
o período da infância como o de inocência, resgata o romance familiar constrdo na
infância: “Antes de vir para cá, quando eu não entendia tanto as coisas, de vez em
quando achava que não pertencia a mamãe, papai e Margot, e que seria sempre uma
estranha. Algumas vezes passava uns seis meses fingindo que era órfã” (FRANK, 2007:
191).
Os conflitos de Anne Frank que envolvem o amor pelo pai e o ódio pela mãe ilustram a
reedição do Édipo na puberdade: “Aque enfim contei a papai que gosto mais dele que
de mamãe, e ele respondeu que era só uma fase passageira, mas não acredito” (FRANK,
2007: 66) “Papai é sempre tão bom comigo e, além disso, me entende muito melhor.
Nessas horas, não suporto mamãe. É obvio que sou uma estranha para ela; ela nem sabe
o que penso sobre as coisas mais simples” (p.56). “Então, será que eu deveria sentir
mais simpatia por mamãe? Será que deveria ajudá-la? E papai? Não posso, vivo
imaginando outra mãe” (p.210).
Mas, gradativamente, a separação dos pais, trabalho psíquico tão doloroso e
fundamental nesse percurso, é proporcionada pela escrita: Demorou um bocado, mas
finalmente percebi que papai, por mais gentil que seja, o pode ocupar o lugar do meu
mundo antigo. Quando se trata de meus sentimentos, mamãe e Margot deixaram de
contar há muito tempo (FRANK, 2007: 88).
O amor pelo pai é substituído pelo amor ao Peter: Ontem à noite sonhei que eu e Peter
estávamos nos beijando, mas o rosto de Peter foi uma frustração: não era tão macio
quanto parecia. Era mais como o de papai o rosto de um homem que se barbeia”
(FRANK, 2007: 239) “Quando meu pai me beijou de manhã, eu quis gritar: Ah, se você
fosse Peter!” (p.188).
O principal personagem dessa história se reduz ao lugar de retorno do discurso que vem
do Outro, como uma mensagem sempre invertida: “É engraçado, mas às vezes consigo
me enxergar como os outros me veem. Dou uma olhada tranquila na pessoa chamada
Anne Frank e folheio as páginas de sua vida como se ela fosse uma estranha” (FRANK,
138
2007: 191). Parece que cresci desde a noite daquele sonho, como se tivesse ficado mais
independente” (p.195).
Mas, nessa construção de sua história, sempre algo de “estranho”, de desconhecido,
de incontorvel pela linguagem:
Na cama à noite, enquanto penso em meus muitos pecados e em meus
defeitos exagerados, fico o confusa pela quantidade de coisas que tenho de
analisar que não sei se rio ou choro, dependendo do meu humor. Depois
durmo com a sensação estranha de que quero ser diferente do que sou, ou de
que sou diferente do que quero ser, ou talvez me comportar diferente do que
sou e do que quero ser (FRANK, 2007: 90).
Ao se fazer protagonista da própria história, no ritmo e na temporalidade próprios da
escrita diária, o sujeito adolescente pode descobrir um ponto de ancoragem de uma
referência significante. Assim, a escrita de seu romance particular” pode funcionar
como um operador de subjetivação para o adolescente. O diário, então, torna-se
desnecessário no final da travessia.
Anne Frank observa suas transformações, fazendo um reconhecimento de si como
resultado dessas transformações. Ao reler seus primeiros escritos no diário, ela faz uma
avaliação crítica do que escreveu, se sentindo agora diferente: “Eu me escondi dentro de
mim, pensei somente em mim e escrevi no diário sobre toda a minha alegria, o meu
sarcasmo e a minha tristeza. Como este diário se transformou numa espécie de livro de
memórias, ele significa muito para mim, mas eu poderia facilmente escrever „passado
esquecido‟ em muitas páginas” (FRANK, 2007: 181).
Anne Frank escrevia o seu diário com a intenção de publicá-lo quando a guerra
terminasse. Seu pai realizou o seu desejo e o nome “Anne Frank” ficou
internacionalmente conhecido.
O diário íntimo na adolescência equivale à perspectiva da escrita de um romance
clássico ou “de formação”, permitindo a construção do personagem como o principal
protagonista de sua própria história, funcionando como um operador de subjetivação
para o adolescente. Vimos dois tipos de romances: o da Melissa e o da Anne Frank. Os
dois drios apresentam aspectos comuns e diferentes. Em Melissa, destacamos uma
escrita inicialmente invadida pelo gozo. Melissa, no início do século XXI, é uma
139
adolescente que busca “a liberdade sexual”. Ela quer experimentar tudo, dizer tudo,
numa escrita “sem véus”. Mas, como nos mostra Lacan, não existe um saber sobre o
real. O que Melissa encontra, nessa proximidade com o objeto, é o horror. No final de
seus escritos Melissa reconstitui o véu que encobre o traumático do sexual, através da
ilusão do amor. Anne Frank, também no despertar da puberdade, é invadida pelo gozo.
Mas, em seus escritos, o gozo é abordado de forma sutil, por meio da curiosidade sobre
o próprio corpo, o corpo da amiga e do amigo por quem ela se apaixona. Anne Frank
vive a paixão, que ela cultiva na sua impossibilidade.
Nos dois diários identificamos o trabalho de desligamento da autoridade dos pais na
construção do romance familiar, e o desejo de publicar seus escritos. Podemos dizer que
o diário íntimo, nos dois casos, através da construção de um romance familiar,
promoveu uma mudança na posição do sujeito.
A partir de nossas considerações sobre o romance, podemos estabelecer algumas
hipóteses. A escrita de um romance familiar, no diário íntimo, pode desempenhar, no
tempo da puberdade, uma importante função para o sujeito. Essa função, como foi visto,
relaciona-se com a construção de um sentido que encobre o traumático do encontro com
o real. Essa construção narrativa permite a elaboração de uma resposta ao enigma da
origem, que ressurge a partir de uma contingência na adolescência. Ela possibilita
sustentar o sujeito em sua travessia no tempo da puberdade, operando como uma
solução para o encontro com a castração. É uma fantasia criada pelo sujeito no
momento em que ele se depara com a falta no Outro, como uma interpretação dessa
falta. Ao se deparar com a impossibilidade real da castração, o sujeito adolescente
constrói um outro a quem se ligar. É uma ficção que visa a relaçãoentre o sujeito e o
outro, diante do confronto com a não-relação sexual. O romance familiar é a articulação
significante que encobre o real. Nesse sentido, se o sintoma é uma construção do sujeito
ao encontro com o impossível, a escrita de um diário pode ser uma resposta possível a
esse encontro, como uma modalidade de resposta sintomática na adolescência.
O blog, como um diário contemporâneo, também pode ser considerado como um novo
espaço de escrita de um romance na adolescência? Existe no blog o esforço de
construção de uma autoria, ou ele marca a passagem da construção do romance à escrita
de gozo? Essa discussão será feita adiante.
140
CAPÍTULO 3: O BLOG ADOLESCENTE COMO PRODUTO DA
CONTEMPORANEIDADE
http://avidanaochega.blogs.sapo.pt/
3.1. O discurso capitalista e seus efeitos sobre o sujeito
Lacan partiu da lógica capitalista constrda por Marx para escrever o discurso
capitalista, introduzindo o conceito de mais-de-gozar, que deriva do conceito de Marx
de mais-valia. Mas para apresentar o discurso capitalista é necessário introduzir os
quatro discursos de Lacan, já que o discurso capitalista é o seu quinto discurso.
A teoria dos discursos foi elaborada por Lacan para formalizar os laços sociais entre os
homens. A noção de discurso, segundo Lacan, visa à inscrão daquilo que funda a
palavra nos seus efeitos. Ela permite que se perceba o que se passa quando se faz uso da
palavra. Uma palavra é endereçada a um outro. O discurso, portanto, enquanto
articulação significante, funda um nculo social instaurado pela palavra. Por outro lado,
nesta articulação significante um exercício de poder. No Seminário 17, Lacan (1992
[1969-70]) afirma que todo discurso é discurso de dominação. Uma certa ação (exercida
pelo agente do discurso) é exercida sobre aquele a quem se dirige a palavra (o outro).
Assim, o discurso funda um poder, na medida em que supõe o uso da palavra, e algo é
produzido, como efeito dessa relação (produção). Mas quando alguém dirige a palavra a
alguém, onde está a verdade? A verdade é a dimensão oculta, que escapa à captura do
141
dito, é irredutível ao dito. O sujeito que fala não tem a verdade daquilo que diz. Lacan
estabelece, portanto, quatro lugares (agente, verdade, outro, produção)
1
:
o agente o outro
↑ ↓
a verdade // a produção
O lugar do agente é o lugar do “dominante”. Na teoria dos discursos, cada discurso
apresenta um elemento diferente no lugar dominante. Esse elemento, no lugar de agente,
domina o laço social. O lugar da verdade, escamoteado pela barra, é o que sustenta a
verdade do discurso. O lugar do outro é o lugar do dominado, daquilo que se pretende
dominar. O lugar da produção refere-se ao que o outro de cada laço social deve produzir.
Os termos que ocuparão estes lugares, ou seja, as funções em relação às quais se situa o
sujeito que fala, são quatro: o significante inaugural (S1), o saber (S2), o sujeito ($), o
objeto (a).
O discurso como laço social é um modo de aparelhar o gozo com a linguagem. Os
discursos podem então ser tomados como aparelhos de tratamento do gozo nos laços
sociais. Os laços sociais escritos pelos quatro discursos se constituem como
possibilidades diante da impossibilidade da relação sexual.
O “mal-estar” na civilização é representado nos discursos por esse elemento
heterogêneo, o objeto a, parte excluída da linguagem, aquilo que a civilização exige do
homem renunciar. Mas o gozo tamm se presentifica no campo significante: como
traço unário (S1), que inaugura a irrupção de gozo e como saber (S2), enquanto meio de
gozo. Como perda e produção de gozo, próprios à repetição, ele é representado pelo
objeto a (mais-de-gozar). O sujeito ($) enquanto significante barrado é o sujeito do
inconsciente, que não pode ser representado na cadeia significante, é uma resposta real
da repetição significante do gozo. É a repetição do S1 que constitui o S2 como saber
inconsciente. Lacan identificou também o objeto a com o supereu, que, como rebotalho
da civilização, retorna na sua modalidade de supereu como a voz que critica e o olhar
que vigia.
1
A flecha indica a direção da mensagem e, ao mesmo tempo, o sentido da relação sincrônica entre os dois
lugares. Há uma irredutibilidade entre a verdade e a produção.
142
Lacan formaliza quatro tipos de discursos, que são: o discurso do mestre, da histérica,
do analista e da universidade. Os discursos vão se constituindo por um quarto de volta a
partir do discurso do mestre, girando no sentido horário.
Discurso do mestre: S1 S2
$ // a
Discurso da histérica: $ S1
a // S2
Discurso do analista: a $
S2 // S1
Discurso da universidade: S2 a
S1 // $
O discurso do mestre é o discurso por excelência da dominação: ...A referência de um
discurso é aquilo que ele confessa querer dominar, querer amestrar. Isto basta para
catalogá-lo em parentesco com o discurso do mestre” (LACAN, 1992: 65). Aqui o
dominante é a lei, que encarna o mestre, que leva o outro a produzir para ele objetos de
gozo. No discurso do mestre, o governo parece se instaurar a partir de leis, projetos ou
programas (S1), mas na verdade o que está escamoteado é que existem sempre sujeitos
($) sustentando esse governar.
No discurso da histérica o sintoma assume a posição dominante. A divisão do sujeito
está expressa no sintoma. A histérica se dirige a um outro como mestre (S1), para que
ele produza saber (S2). “Mas se é de seu discurso que se trata, e esse discurso é o que
possibilita que haja um homem motivado pelo desejo de saber, trata-se de saber o quê?
que valor ela própria tem, essa pessoa que está falando. Porque, como objeto a, ela é
queda, queda do efeito do discurso, por sua vez quebrado em algum ponto(LACAN,
1992: 32). Lacan demonstra que a verdade da histérica é que precisa ser o objeto a para
ser desejada.
No discurso do analista, o mais-de-gozar assume a posição dominante, ou seja, o
analista, na posição de objeto, se dirige ao outro como sujeito, para que ele produza um
significante de sua singularidade. É do lado do analista que há saber. O saber aqui ocupa
143
o lugar da verdade: “É do seu lado que S2, que saber que ele adquira esse saber
escutando seu analisante, quer seja um saber já adquirido, localizável, isto pode, em um
certo nível, ser limitado ao savoir-faire analítico” (LACAN, 1992: 33). Mais adiante,
ele formula: “Um saber como verdade isto define o que deve ser a estrutura do que se
chama uma interpretação” (p.34).
No discurso universitário o saber (S2) ocupa a posição dominante e se dirige ao outro
como objeto (a), para produzir o sujeito dividido ($), que se revolta por ser tratado
como objeto. Nesse discurso, a educação se pela aplicação do saber como saber
universal, que, no entanto, é sustentado por autores ou inventores (S1) desse saber.
O discurso do capitalista foi proferido por Lacan na conferência de Milão em 12 de
maio de 1972
2
. Lacan introduz uma modificação no discurso do mestre, designando-o
como o discurso capitalista para caracterizar a nossa civilização. , portanto, uma
mudança na teoria dos quatro discursos, com a inclusão do quinto, o discurso capitalista.
No capitalismo, o mais-de-gozar, produzido e condensado por meio do objeto a, ganhou
o caráter de um “mais” de valor produzido e condensado em mercadorias. No lugar do
mais-de-gozar surge a mercadoria. O discurso do mestre na atualidade é o discurso do
capitalismo. Ele não se constitui a partir de um quarto de giro de letras como os outros
discursos, mas se deduz por uma torção do discurso do mestre.
Lacan transforma o discurso do mestre a partir de uma comutação dos termos que
ocupam os lugares do lado do sujeito esquerda), conservando inalteradas as posições
daqueles que estão no lugar do “outro significante” (à direita):
2
LACAN, JACQUES. Du discours psychanalytique. Discours de Jacques Lacan à l‟Université de Milan
le 12 mai 1972, paru dans l‟ouvrage bilingue: Lacan in Italia 1953-1978. En Italie Lacan, Milan, La
Salamandra. 1978, p.32-55.
144
Em certo momento da evolução do conhecimento o mestre se apropriou do saber que
era produzido pelo escravo. O escravo, antes, era o que trabalhava e que ocupava o
lugar do saber e do gozo (à direita). Ele detinha o saber sobre o trabalho que produzia.
Mais tarde, as ciências e a própria universidade determinaram uma mudança dessa
relação, universalizando o saber do escravo. Transmutado num saber de mestre, ele
passou a circular no mercado com valores especiais de troca, de uso e, ainda, agregado
de certo poder. O que antes era um saber-fazer” do escravo, transformou-se em um
aparelho de saber” para o mestre, numa passagem do saber prático para o saber teórico.
Essa condição passou a fazer parte da própria dimensão da linguagem, de alguma forma.
Houve, portanto, uma modificação no estatuto do saber, responsável pela transmutação
do discurso do mestre antigo para aquele que se constituiu como o capitalista.
O mestre contemporâneo é o capitalista. Lacan partiu da lógica capitalista construída
por Marx, introduzindo o conceito de mais-de-gozar, derivando do conceito de Marx de
mais-valia. Na teoria marxista, o valor está vinculado ao trabalho e a mais-valia refere-
se a trabalho não pago. O discurso do capitalista corresponde a um deslocamento a
partir do discurso do mestre. O gozo produzido neste discurso ganha um caráter contábil
quando passa a valor relativo a um mercado.
Ao aproximar o conceito de mais-valia em Marx do seu conceito de mais-de-gozar,
discussão iniciada no seminário da Ética, Lacan relaciona o mestre com o capitalista e o
escravo com o trabalhador, para fazer uma reflexão sobre a lógica capitalista. Lacan
comenta que Marx parte da função de mercado. O trabalho para Marx é comprado,
um mercado de trabalho. É a relação com o trabalho que constitui o senhor, o qual
pretende fazer dela o princípio de seu poder. A separação entre capital e trabalho
engendra uma perda do lado do trabalhador (do escravo), uma apropriação de um mais-
de-gozar (a mais-valia) por parte do mestre (no caso, o capitalista), de forma que o
escravo fica numa relação de alienação da fruição do produto e da razão pela qual
trabalha. o escravo antigo detinha um saber-fazer com o gozo. O mestre antigo não
queria saber, era o escravo quem sabia fazer. O mestre moderno se apropria do saber do
escravo, expropria o gozo do escravo e o transforma em lucro. O escravo fica privado
do usufruto do seu trabalho e do saber sobre o conjunto da produção.
145
O capitalismo alterou por completo os hábitos do poder. O capitalismo introduziu o
poder liberal. E, segundo Lacan (2008), ele reina, porque está estreitamente ligado à
ascensão da função da ciência. O poder do capitalismo é um poder camuflado, secreto e
anárquico, pois é dividido contra si mesmo por seu aparelhamento com a ascensão da
ciência, pois a ciência avança para além do seu controle. A globalização desse saber
apropriado do escravo, tendo adquirido um estatuto de “objeto ao qual tem sido
agregado um valor de mercado, permitiu deduzir o discurso do capitalista. O saber passa
a valer o quanto se pode vender e comprar dele. Nestas condições, o “próprio
trabalhador” também vai se transformar num valor de mercado que pode ser vendido e
comprado, ou seja, ele tem seu “passe” colocado
à
venda.
Marx denunciou a existência de algo do trabalho e do gozo do proletário como “um a
mais”, que era tomado e espoliado pelas ciências. Lacan retomou a noção de “mais-
valia” transformando-a em “mais-de-gozar”, mas para definir algo que não deve ser
entendido como uma alienação do trabalho do escravo ou do proletário, mas que
corresponde a essa condição de que, aquilo que se produz, paga-se com o gozo. Trata-se
de algo de que o sujeito
tem que se desembaraçar.
Assim, a partir de um determinado momento, como afirma Lacan, o mais-de-gozar
passou a se contar, a se contabilizar, a se totalizar. “Aí começa o que se chama de
acumulação de capital(LACAN, 1992: 169). A partir de então, o significante mestre
aparece como mais inatacável, justamente na sua impossibilidade. “Onde está ele?
Como nomeá-lo? Como discerni-lo, a não ser, evidentemente, por seus efeitos
mortíferos? Denunciar o imperialismo?...” (p.169).
O saber na modernidade, ao tornar-se homogêneo, passa a ordenar-se num elemento
comum de gozo, mas é somente no século XX que essa condição se tornou mais
explícita, com o surgimento das leis de mercado, quando o saber passou a ser reduzido a
um valor de mercado, sendo tomado como mercadoria. Desta maneira, ele adquiriu essa
condição de mais-valia ou, em termos lacanianos, mais-de-gozar
,
passando a conter uma
dimensão
do real.
O saber, ao transformar-se em mercadoria, toma o estatuto de objeto a, ocupando o
lugar da produção, adquirindo a condição de ser consumido. Enquanto nos outros
146
discursos o objeto desliza, sendo impossível apreendê-lo, no discurso capitalista ele
passa a ser um objeto acessível. O saber, ao perder sua relação com o inconsciente (S1
S2), leva a uma produção contínua de objetos (S2/ a).
Esse novo estatuto que o saber adquire traz uma mudança essencial para o sujeito. O
saber, ao ser transformado em objeto de consumo, num objeto com valor de mercado,
produz uma subversão do desejo e altera sua própria relação com o sujeito. Antes, havia
uma impossibilidade estrutural e discursiva do sujeito ter acesso ao saber e ao objeto
causa do desejo, mas agora, ao adquirir o estatuto de objeto de consumo, ele é oferecido
continuamente como uma promessa de satisfação possível para o sujeito.
O sujeito, apesar de ocupar o lugar dominante no discurso, faz apenas semblante de amo.
Ele se crê capaz de comandar, através do saber (que está no lugar do outro), o objeto
mais-de-gozar. Estabelece-se uma relação entre o sujeito e o objeto que ocupa o lugar
da produção. Com efeito, o discurso do capitalista por um lado promove o sujeito à
posição de mestre, ou seja, o comando é exercido por um sujeito e o pela tradição
impessoal, ao mesmo tempo o apaga, ao fazer desaparecer as expressões individuais de
comando na estrutura do próprio discurso. Dessa forma o ideal do sujeito autônomo,
senhor do seu destino, desaparece. O que causa o desejo do sujeito é um objeto do qual
ele não tem controle. Assim, embora o lugar de comando seja ocupado pelo sujeito, o
verdadeiro comando é exercido pelo objeto de consumo, que sustenta de fato o discurso.
Diferentemente do discurso histérico, aqui certa rejeição da castração, determinando
no sujeito certa suspensão de sua divisão subjetiva. Desligando o sujeito do saber
inconsciente, certo apagamento de sua subjetividade com uma eleição do objeto de
consumo, que deve ser produzido e forçosamente consumido. A intensa produção de
objetos (cada vez “melhores” que os anteriores) leva a um funcionamento clico
infinito. O sujeito é comandado pela presença do objeto, mas dentro das regras e leis de
mercado.
O discurso capitalista visa à produção constante de objetos que passam a ser desejados
com voracidade pelo sujeito, sempre insaciável. O sujeito, através da mediação do saber,
disponibiliza os meios para a aquisição do objeto. Esta condição, no entanto, é imposta
pelo discurso capitalista, que visa ao consumo, obedecendo às leis do mercado.
147
Essa suspensão da castrão tem como um dos efeitos o desaparecimento da disjunção
entre o lugar da produção e o lugar da verdade. Assim, o saber, reduzido ao mercado
comum de gozo, torna-se acessível ao sujeito. O discurso capitalista, portanto, passa a
se organizar numa circularidade completa, onde todos os vértices são alcançados.
Como consequência, a verdade passa a ser capaz de ser “toda dita”. O saber é
transformado em informação. O não-saber (sobre o real do gozo) passa a equivaler à
falta de informação. Desde que os proletários (ou escravos) tenham acesso aos objetos
de consumo, eles se satisfazem. Essa é a estratégia da lógica capitalista. O proletário
goza por produzir e por dispor daquilo que produz e alimenta o capitalismo.
Se para o mestre antigo interessava, sobretudo, que as coisas funcionassem, para o
capitalista interessa manter a insatisfação do sujeito para garantir um mercado para o
qual não há falta, onde tudo é possível. O objeto neste caso é produzido em escala veloz
para ser imperativamente consumido. A demanda perde valor para a oferta embrutecida.
Gadget ou latusa é o nome do seu produto. De acordo com Lacan (1985: 115), depois
do meteoro do amor cortês, foi de uma partitura totalmente diferente que veio o que o
rejeitou à sua fertilidade primeira. Foi preciso nada menos do que o discurso científico,
ou seja, algo que não deve nada aos pressupostos da alma antiga”.
Lacan (1992) cria o neologismo aletosfera, que é uma condensação de aleteia com
atmosfera, para designar o lugar onde se situam as fabricações da ciência moderna. E
cria o termo latusa para designar os objetos que povoam a aletosfera: “E quanto aos
pequenos objetos a que o encontrar ao sair, no pavimento de todas as esquinas, atrás
de todas as vitrines, na proliferação desses objetos feitos para causar o desejo de vocês,
na medida em que agora é a ciência que o governa, pensem neles como latusas”
(LACAN, 1992: 153).
O saber formalizado da ciência trabalha na fabricação de latusas, na proliferação de
objetos mais-de-gozar. O saber da ciência, entretanto, não está submetido a nenhum
senhor, nada o detém. Isso aponta para o declínio do senhor, do mestre, a crise dos
ideais, que gerou a crise dos significantes-mestres que ordenavam a civilização. Fala-se,
portanto, em declínio da função paterna. O que impera é o mercado, são as leis do
mercado, que é o mercado das latusas. A universalização introduzida pela ciência
148
conjuga-se à unificação do mercado produzida pelo mercado capitalista. Lacan, no
Seminário 17, comenta que:
Em um mundo onde emergiu, de maneira que existe de fato, sendo uma
presença no mundo, não o pensamento da ciência, mas a ciência de algum
modo objetivada, refiro-me a essas coisas inteiramente forjadas pela ciência,
simplesmente essas coisinhas, gadgets e coisa e tal, que por enquanto ocupam
o mesmo espaço que nós no mundo em que essa emergência teve lugar, será
que o savoir-faire, no vel do manual, pode ainda ter peso suficiente para ser
um fator subversivo? É assim, para mim, que a questão se coloca (LACAN,
1992: 140-141).
Esses objetos a, as latusas, passam a ser encontradas em toda parte, exploradas pela
mídia, prometendo um acesso ao mais-de-gozar. São objetos feitos para se consumir e
para se destruir, descartáveis. Como esses objetos não são distribuídos igualmente nas
diferentes camadas sociais, os sujeitos se sentem prejudicados pelo “outro”, aquele que
ele julga responsável por ter lhe tirado a possibilidade de ter esses objetos. então um
enfraquecimento dos laços sociais.
Para Lacan, a saída para o discurso do capitalista é a psicanálise. O analista, em sua
prática, não oferece a felicidade nem o gozo, possibilitando, pelo seu silêncio, que o
analisante interrogue o enigma de seu desejo e sua condição de gozo. O discurso
analítico articula essa renúncia e faz evidenciar-se nela a função do mais-de-gozar. Essa
é a essência do discurso anatico.
Assim, a globalização não permitiu o acesso igualitário de todos os países ao
desenvolvimento tecnocientífico, nem extinguiu o desequilíbrio social. As leis do
mercado não são nada “livres”, pois são prescritas dentro de normas rígidas de mercado
ditadas pelas grandes empresas e pelos cartéis econômicos. Articulados numa produção
de massa, os objetos produzidos pelo capitalismo atual, torneados com adornos
infalíveis, se oferecem como imprescindíveis para o alcance da felicidade. Há um
imperativo do novo, e tudo se torna rapidamente obsoleto, ultrapassado, descartável. A
história perde o sentido, torna-se também descartável, como o próprio sujeito, que deve
manter-se eternamente jovem, dinâmico e belo, ou também será descartado (LIMA,
2003). Os objetos são oferecidos como podendo escamotear o desejo, mantendo o
sujeito preso na ilusória promessa de que a falta estrutural pode ser preenchida.
Veremos, no último capítulo, as incidências do discurso capitalista sobre os modos de
gozo contemporâneos, a partir da leitura de alguns blogs de adolescentes.
149
3.2. O surgimento dos blogs
O final do século XX foi marcado pela expansão tecnológica, com o crescimento
acelerado da informática atingindo e transformando todos os setores da vida humana. A
informatização promoveu (e continua a promover) uma “revolão” na história da
humanidade comparável à Revolução Industrial. As tecnologias digitais promoveram o
surgimento do ciberespaço
3
, um novo espaço de comunicação, de sociabilidade, de
organização e de transação, e também de informação e conhecimento. Nesse espaço
virtual surgem os blogs, que funcionam como sites pessoais.
O diário aberto na rede é conhecido como weblog ou blog. O termo weblog é resultado
de um jargão derivado da união das palavras inglesas web, que significa rede (no caso,
de computadores), e log, que significa registro, diário de navegação (de bordo). Weblogs
são serviços de atualização de sites pessoais ou coletivos
4
. Trata-se de uma página web
atualizada frequentemente, composta por pequenos parágrafos apresentados de forma
cronológica. A primeira característica que o diferencia do diário tradicional ou íntimo é
seu caráter público.
O norte-americano Justin Allyn Hall é considerado por muitos como a primeira pessoa a
manter um diário on-line. Hall, em janeiro 1994, aos 19 anos de idade, inaugurou na
rede o diário Justin‘s links from the underground. Passou a fazer dele um livro sobre sua
própria vida. Desde então, inúmeras pessoas começaram a narrar as próprias vidas na
rede.
Mas o termo weblog foi cunhado em dezembro de 1997 pelo norte-americano Jorn
Barger, editor do Robot Wisdom Weblog (www.robotwisdom.com), quando os
textitblogs comavam a despontar. Segundo Barger, o termo weblog foi utilizado no
site pessoal Robot Wisdom Weblog em dezembro de 1997:
3
O termo ciberespaço foi criado pelo escritor William Gibson e passou a ser usado para se referir ao
espaço abstrato construído pelas redes de computadores. O ciberespaço é o novo meio de comunicação
que surge da interconexão mundial dos computadores. O termo especifica não apenas a infraestrutura
material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informações que ela abriga, assim
como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo (LÉVY, 2000: 17).
4
Disponível em www.blogger.com. Acesso em 7 jul. 2007.
150
Weblog (sometimes called a blog or a newspage or a filter) is a webpage
where a weblogger (sometimes called a blogger, or a pre-surfer) ―logs‖ all
the other webpages she finds interesting. The format is normally to add the
newest entry at the top of the page, so that repeat visitors can catch up by
simply reading down the page until they reach a link they saw on their last
visit (BARGER, 1999, citado por LEMOS, 2002
5
).
A norte-americana Rebecca Blood, autora de Weblogs: a history and perspective, em
1999, comenta que o desenvolvedor de web Peter Merholz, em seu blog Peterme.com
(www.peterme.com), anunciou que passaria a chamá-los de wee-blog. Com o uso, o
termo foi inevitavelmente reduzido para blog e o dono do site passou a ser chamado de
blogger (blogueiro). Ainda segundo Blood, em 1998 Jesse James Garrett, editor do blog
Infosift (www.jjg.net/infosift), recolheu pela primeira vez endereços de 23 blogs
existentes e depois os mandou para Cameron Garrett, que os publicou no site que
mantinha, o Camworld (www.camworld.com). A partir daí, outros editores de blogs
passaram a mandar os endereços para serem incluídos na lista.
Em 1999, outros anéis de site surgiram, como o Eatonweb Portal, da blogueira Brigitte
Eaton, considerado por Rebecca a mais completa lista de weblogs disponível
6
. O
Eatonweb Portal
7
mostra a presença dos weblogs no mundo, divulgando numa lista o
número de blogs cadastrados por país. Para ser incluído no Eatonweb Portal, a única
exigência é ser considerado um weblog, que tem por principal característica a presença
de links e de "entradas datadas", marcas do software.
Em julho de 1999 surgiu o Pitas, o primeiro serviço gratuito do tipo publique seu
próprio weblog”. Em pouco tempo apareceram centenas. Todos os serviços eram
gratuitos e tinham o objetivo de habilitar indivíduos a publicarem seus próprios weblogs
de maneira rápida e fácil.
O autor de um blog pode controlar, autorizar, negar ou restringir o acesso público e
permitir ou controlar os comentários em seu blog, o que mostra seu caráter também
privado. A sua autonomia depende de qual servidor de blogs utilizar. Pagos ou
5
LEMOS, André. A arte da vida: diários pessoais e webcams na Internet. Disponível em:
http://www.comunica.unisinos.br/tics/textos/2002/T3G4.PDF. Acesso em 7 jul. 2007.
6
BLOOD, Rebecca. Weblogs: a history and perspective Disponível em:
http:www.rebeccablood.net/essays/weblog_history.html. Acesso em 8 jul. 2007
7
Disponível em: http://portal.eatonweb.com/portal/portal.php3. Acesso em 8 jul. 2007.
151
gratuitos, os servidores de blogs variam quanto aos tipos de serviços oferecidos, sendo
que assinantes de grandes portais brasileiros de Internet como o UOL, a Globo, ou o
Terra, entre outros, oferecem a possibilidade de criação de blogs mais sofisticados,
mantendo também serviços gratuitos mais simples para não-assinantes. Grande parte, se
o a maior, dos sites publicados atualmente é na forma de blogs. Existem diversos
servidores em todo o mundo para esse tipo de serviço e boa parte deles é gratuita, o que
facilita o acesso de todo o tipo de público. A facilidade com que é possível criar e
publicar um blog e a popularização de diversas modalidades de Internet de banda larga
no Brasil (e em todo o mundo ocidental) são fatores que estimularam a utilização dos
blogs por jovens. O blog requer atualização constante, por isso seu autor precisa
adicionar novas informações a cada momento. Os leitores participam da vida do autor,
fazem comentários e sugestões, tornando coletivo o diário íntimo.
vários tipos de blogs, com diferentes propósitos e estilos, coletivos ou individuais,
literários, jornalísticos, pessoais, profissionais ou temáticos. Eles podem apresentar
relatos de experiências em salas de aula, viagens, crônicas, jornalismo, comentarismo
esportivo, econômico, social, erotismo etc. O blog pode ser uma forma de contato ou de
comunicação entre famílias, amigos, grupos de trabalho, escola ou empresas. Ele
permite a comunicação entre grupos de forma mais simples e organizada do que por e-
mail ou grupos de discussão, por exemplo. Servem também para promover pessoas,
bandas, lançar artistas, divulgar notícias, informar, formar grupos por interesses
temáticos, entre outros. Artistas famosos, esportistas, profissionais de diversas áreas
fazem seus blogs para divulgarem informações pessoais ou profissionais, ou
simplesmente para estarem “na mídia”.
Os blogs pessoais ou confessionais são muito comuns, principalmente entre
adolescentes, como revelam as pesquisas feitas com blogs. Eles talvez estejam entre os
que mais se aproximem do que seria a ideia de diário íntimo. Mas um mesmo blog pode
ser uma combinação de diferentes tipos, apresentando vários objetivos.
Autores de blogs desconhecidos podem se tornar famosos a partir de seus blogs. Ava
Lowery, uma garota norte-americana de 16 anos, é uma estrela do mundo dos blogs (sua
página, http://www.peacetakescourage.com/page-home.htm, recebe mais de 30 mil
visitas por dia), devido às suas mensagens contra o presidente George W. Bush. Uma
152
estudante de 16 anos foi presa em Shizuoka, região central do Japão, por envenenar a
e colocando em sua comida altas doses de tálio, um veneno para ratos. Ela descreveu
em seu blog cada passo de sua ação: "Hoje é um dia claro e ensolarado, e eu administrei
uma dose de tálio acético. O homem da farmácia o percebeu que tinha me vendido
uma droga tão poderosa"
8
. Alguns blogs “muito acessados” abrem possibilidades para
os seus autores no mercado de trabalho ou na mídia. Muitos jovens que criaram blogs
interessantes e criativos foram contratados por agências de publicidade ou outras
empresas.
O número de blogs no mundo já ultrapassou 57 milhões. O dado faz parte de um estudo
feito pelo site de busca e hospedagem de blogs Technorati no terceiro trimestre de 2006.
De acordo com a pesquisa, entre julho e agosto de 2006 foram criados cerca de 100 mil
novos blogs por dia, alimentados por 1,3 milhão de posts, algo em torno 54 mil
postagens por hora. Dos 57 milhões de diários virtuais registrados, 55% receberam pelo
menos uma postagem nos últimos três meses. Entre as nguas mais utilizadas para a
criação dos blogs está o inglês, com 39% dos textos. Em seguida aparece o japonês,
com 33% dos diários virtuais. Já a ngua portuguesa ocupa a sétima posição no ranking,
com apenas 2% dos blogs, e empatada com o russo e o francês
9
.
Segundo a pesquisa da Pew Internet and American Life Project
10
, que procura explorar
o impacto da Internet e outras tecnologias na sociedade, três em cada cinco adolescentes
dos EUA com acesso à Internet criaram material on-line, e um quinto tem seu próprio
blog. Ainda segundo a pesquisa, a maioria dos adolescentes de 12 a 17 anos coloca
fotografias, narração ou vídeos na web, ou faz suas próprias páginas, e inclusive cria um
blog. A enquete indica que 25% das meninas de 15 a 17 anos mantêm seu próprio diário
pessoal, em comparação com 15% dos meninos dessa mesma idade. Entre os adultos, a
enquete da Pew indica que somente 7% dispõem de seu próprio blog. Entre os adultos,
26% declaram lê-los habitualmente, um número baixo se comparado com 38% que
declaram fazê-lo entre a população mais jovem. Para os adolescentes norte-americanos,
8
Disponível em: http://www.netmarkt.com.br/noticia2005/6227.html. Acesso em 11 nov. 2007.
9
Fonte: Info-Exame Brasil Data: 7 nov. 2006. Dispovel em:
http://www.conceitoweb.com.br/news.asp?codigo=3294. Acesso em 20 jul. 2007.
10
Disponível em: http://tecnologia.terra.com.br/interna/0,,OI737650-EI4802,00.html. Acesso em 12
dez. 2007.
153
os blogs são sobretudo uma maneira de expressar-se e manter redes de amizades,
assinala Amanda Lenhart, pesquisadora da Pew e diretora do estudo.
No Brasil, apesar de se considerar que os blogs surgiram no início de 2000, algumas
pesquisas mostraram os primeiros blogs escritos no País em 1998. Segundo uma
reportagem da revista Época
11
, o primeiro blog brasileiro em português foi o de Renato
Pedroso Júnior, Nemo Nox, O diário da megalópole, em 1998. Com o sucesso de seu
diário na rede, foi contratado para escrever num portal e lhe pediram para manter a
assinatura. O nome acabou conhecido pela Internet e ele resolveu mantê-lo como marca.
Nemo Nox mora atualmente nos Estados Unidos e seu site atual é
http://www.nemonox.com/ppp/.
Em 2 de março de 2000 entrou no ar aquele que, segundo a reportagem da revista, é
provavelmente um dos mais antigos blogs brasileiros ainda em atividade, o Zamorim
(http://zamorim.com), do brasiliense Marcus Amorim. No final de 2000, começavam a
se formar as comunidades blogueiras, que estão hoje ativas na rede. Desde esse ano
surgiram blogs espalhados nos diversos pontos do País, formando comunidades ativas,
participantes, entusiasmadas, fazendo com que o fenômeno blog se tornasse um sucesso
entre os internautas.
Segundo dados do Ministério da Cultura
12
,
12
estima-se que o Brasil tenha cerca de 3
milhões de blogs, o que representa mais ou menos 6% do número total de blogs da
blogsfera registrado pelo Technorati.
Segundo pesquisa feita em São Paulo pela InfoMoney
13
,
13
entre 2004 e 2006, a
quantidade de adolescentes que criaram um blog aumentou de 19% para 28% dos
jovens conectados. Porém, são as meninas que dominam esses sites: 35% delas possuem
blogs, contra 20% dos garotos. De acordo com uma pesquisa do instituto norte-
11
Disponível em: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/1,,EDG74942-5856,00.html. Acesso em
19 jul. 2007.
12
Dispovel em:
http://www.cultura.gov.br/foruns_de_cultura/cultura_digital/na_midia/index.php?p=20645&more=1&c=1
&pb=1. Acesso em 20 jul. 2007.
13
Dispovel em:
http://web.infomoney.com.br/templates/news/view.asp?codigo=900429&path=/suasfinancas/. Acesso em
27 jan. 2008.
154
americano Pew Internet & American Life Project
14
,
14
enquanto as meninas preferem os
blogs, os meninos utilizam mais os sites de vídeos, como o YouTube. O estudo também
aponta que os adolescentes que fazem parte de alguma rede de relacionamentos, como
Orkut, Facebook ou MySpace, têm maior probabilidade de criar blogs. Dois em cada
cinco jovens que participam desses sites possuem diários na Internet.
3.3. Pesquisando no ciberespaço
A metodologia em pesquisa científica implica o caminho que se deve trilhar para a
investigação de um problema, especificando e esclarecendo os procedimentos que o
pesquisador utilizará para alcançar seus objetivos. Nesta pesquisa, esbarramos em
algumas especificidades relacionadas ao objeto de estudo e à abordagem teórica
escolhida.
3.3.1. O método de pesquisa em psicanálise
Em primeiro lugar, uma particularidade desta pesquisa diz respeito à atualidade do
tema, que gira em torno do diário on-line. A atualidade do tema envolve algumas
dificuldades, tanto teóricas quanto metodológicas. Como afirma Jean brard, citado
por Galvão e Batista (2004), na medida em que se trata de um campo de pesquisa
relativamente novo, certamente os instrumentos metodológicos serão continuamente
"(re)inventados" ou “reconstruídos” durante o desenvolvimento da pesquisa. O campo
de pesquisa é o ciberespaço, que, se implica facilidade de acesso, implica também
dificuldades na determinação da credibilidade da fonte alimentadora dos dados, o que
nos remete a uma discussão sobre a confiabilidade da pesquisa desenvolvida na rede.
Mas se a virtualidade já se impôs na atualidade, não cabe mais evi-la, como se fosse
perigosa” ou “irreal”. Sabemos também que os limites real/virtual são bastante tênues e
o ciberespaço não faz mais do que confirmar essa complexidade. Precisamos nos
conduzir pela interconectividade, diversidade, flexibilidade e variedade do ciberespaço,
que impõem a ruptura dos padrões invariantes e tradicionais, em busca de novas
soluções, permitindo a inveão e a criatividade. Segundo Costa,
14
Disponível em: http://tecnologia.terra.com.br/interna/0,,OI737650-EI4802,00.html. Acesso em 27 jan.
2008.
155
Navegando na rede, o estaremos, portanto, apenas nos apropriando de um
novo instrumental técnico revolucionário ou de novos códigos sonoro-visuais
ou gráfico-auditivos comunicativos para escrever e ler, mas, sim, construindo
um novo objeto conceitual mediado por novos tipos de interação linguística,
social e cultural (2005: 26).
Em segundo lugar, ao utilizar a teoria psicanalítica para a leitura do material pesquisado,
esbarramos nas dificuldades que advêm da inter-relação da psicanálise com o campo da
ciência. Freud sempre buscou inserir a psicanálise no campo científico, mas, apesar de
seus esforços, ela sempre teve uma relação de exterioridade com a ciência, por
considerar os efeitos do real em sua elaboração teórica e clínica. A psicanálise parte do
pressuposto de que se deve considerar, em toda teoria, aquilo que orienta a clínica
psicanalítica: a castração enquanto impossibilidade real de simbolização.
Lacan em, A ciência e a verdade (1998 [1965]), destaca que a psicanálise aparece como
uma derivação da ciência, pois sua condição de possibilidade está radicada no corte que
inaugurou, com Descartes e Galileu, a ciência moderna no século XVI. Mas esse corte,
ao mesmo tempo em que permitiu a emergência do sujeito, também o excluiu do campo
da ciência. A psicanálise, derivada da ciência, dela se distancia ao incluir o sujeito em
seu campo. Se o sujeito com o qual a psicanálise opera não é senão o sujeito da ciência,
como afirma Lacan (1998 [1965]), esse sujeito é tomado em sua dimensão radical de
sujeito do inconsciente, portanto, dividido e desejante. Essa dimensão de sujeito inclui
uma articulação que considera o real em jogo na experiência da castração.
A psicanálise não opera com a realidade factual, mas com a realidade psíquica. Assim,
toda realidade é fantasmática. A constituição da realidade é sempre efeito da apreensão
que o sujeito, determinado pelo inconsciente, faz dela. Nesse sentido é que podemos
pensar num rompimento da lógica dualista mundo interno-externo, sujeito-objeto da
ciência positivista. Como consequência, o acesso ao fenômeno estudado se faz a partir
dessa mediação simbólica, introduzindo, em sua análise, a interpretação do sujeito no
fato. Não se demonstra, afirma ou refuta o fato do inconsciente em si mesmo, mas sim a
construção que foi erigida em torno dele. É somente a partir dessa perspectiva que se
processaria seu critério de validação.
É Freud quem nos esclarece, portanto, sobre a metodologia utilizada em pesquisa
psicanalítica. A psicanálise parte, na clínica e na pesquisa, da dimensão de um saber
156
o-todo constituído pelo inconsciente. Freud pontua que, uma das reivindicações da
psicanálise a seu favor é o fato de que, em sua execução, tratamento e investigação
coincidem (FREUD, 1974 [1912]: 152). Mais tarde, em seu texto sobre “Os instintos e
suas vicissitudes” (1974 [1915]: 137), o autor faz algumas observações sobre a
metodologia que procede da epistemologia psicanalítica. Segundo Freud, nenhuma
ciência, nem mesmo a mais exata, começa com conceitos básicos claros e bem definidos.
O verdadeiro início da atividade científica consiste em primeiro lugar na descrição dos
fenômenos, passando depois a seu agrupamento, classificação e correlação. Mas Freud
nos adverte que, mesmo durante essa fase de descrão, não é possível evitar a aplicação
de ideias abstratas ao material manipulado. Essas ideias, que se tornam cada vez mais
indispensáveis à medida que o material é elaborado, se constituirão como os conceitos
básicos da ciência. E, apesar de apresentarem necessariamente certa indefinição no
início da investigação, não podem apresentar dúvidas quanto à delimitação de seu
conteúdo. Freud acrescenta que “chegamos a uma compreensão acerca de seu
significado por meio de repetidas referências ao material de observação do qual
parecem ter provindo, mas ao qual, de fato, foram impostas” (p.137).
Uma outra observação destacada pelo autor refere-se à escolha desse material trico,
ou, segundo Freud, a escolha dessas ideias” que antecedem a pesquisa empírica. Tal
escolha não é arbitrária, mas determinada pelas relações significativas que essas ideias
estabelecem com o material empírico. depois de uma investigação mais completa
do campo de observação, somos capazes de formular seus conceitos científicos básicos
com exatidão progressivamente maior, modificando-os de forma a se tornarem úteis e
coerentes numa vasta área (FREUD, 1974 [1915]: 137). Esse é o momento de
confiná-los em definições” (p.137). Ao concluir uma investigação mais aprofundada
do campo de observação, portanto, as definições se tornariam mais exatas, entretanto,
ainda passíveis de alterações em seu conteúdo, à medida que as pesquisas avançam e
novas descobertas se fazem.
Freud situa o método utilizado na construção do saber psicanalítico numa posição
intermediária entre o empirismo e o racionalismo, deslocando a importância central ora
do fenômeno, ora das ideias, para uma relação na qual, sobre o conjunto de fenômenos
encontrados, sobreponham-se ideias que os organizam, construindo um campo de saber
teórico que os contemple. No entanto, a universalidade dos conceitos e seus efeitos de
157
verdade, orientadores do método de clínica e pesquisa em psicanálise, são recolhidos
por cada sujeito na singularidade de sua experiência. Assim, a psicanálise nos revela
que a verdade é sempre singular. Para Lacan, toda verdade tem estrutura de ficção. Toda
teoria é ficcional, mas, entretanto, produz seus efeitos de sentido. A prática psicanalítica
reintroduz o sujeito na ordem da construção do saber, de onde a ciência positivista o
excluiu.
Uma dificuldade encontrada nesta pesquisa está relacionada à sua proposta de realizar a
leitura de um fenômeno atual, que é a escrita dos blogs, buscando compreender sua
emergência e sua função subjetiva na adolescência. O blog, como uma página em
branco, permite qualquer tipo de construção. Cada sujeito imprime, nesta página, as
próprias marcas, fazendo um percurso singular, conduzido por sua posição subjetiva.
Então, como proceder?
Primeiramente, ao ler fragmentos de blogs buscamos conhecer um pouco dessa cultura
virtual, e, mais especificamente, conhecer um de seus produtos, o blog. A utilização do
recurso de leitura dos blogs não teve como objetivo desenvolver uma pesquisa
quantitativa, mas serviu como um pré-texto”, um caminho inicial, para impulsionar a
pesquisa teórica. Assim, realizamos uma pesquisa qualitativa, fazendo uma interlocução
da teoria com alguns dados empíricos.
Os femenos e manifestações subjetivas sofrem alterações em fuão das
transformações culturais. Santiago
15
,
15
a respeito dos sintomas histéricos, observa que o
sintoma sofre transformações, muitas vezes de maneira bem mais rápida que o avanço
da própria teoria psicanalítica. Destaca que o sintoma é uma mensagem que tem a
estrutura de uma metáfora, cuja formulação está condicionada pelas manifestações
particulares do mal-estar na civilização. Estas manifestações não são simples abstrações,
mas assumem seu acento e sua incidência efetiva no campo do outro simbólico,
considerado como lugar de inscrição. O lugar do Outro não pode ser concebido como
uma entidade fixa e estável, mas como lugar aberto às eventualidades próprias da
diacronia da hisria. As manifestações subjetivas revelam a ação do discurso no
15
SANTIAGO, Jésus. “Aspecto atual da histeria na civilização da ciência”. In: COUTO, Luís Flávio
Silva (Org). Pesquisa em psicanálise (Coletâneas da Anpepp n. 16, p.33-42). Rio de Janeiro: Associação
Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia, 1996.
158
sistema de significantes e dos ideais. Assim, Santiago ressalta que essas manifestações
obedecem ao processo de metamorfose das configurações dominantes do mal-estar da
civilização. Podemos pensar que os jovens adolescentes, na atualidade, encontram, na
cultura, dispositivos específicos de manifestação e de expressão simbólicas, de
subjetivação e de inserção social.
Assim, exatamente por se constituir como discurso do Outro, como sede de uma
determinada cultura, o inconsciente se manifesta de forma diferente em cada momento
da civilização. Como sublinha Pinto, “em cada momento simbólico podemos ter
produções discursivas diferentes, as quais determinam posições subjetivas diferentes”
(PINTO, 2008: 70).
Nossa pesquisa promove uma interlocução entre a psicanálise e a literatura. A
aproximação entre esses dois campos do saber existe desde os primórdios da psicanálise.
A teoria psicanalítica deve muito aos escritos autobiográficos, às obras de arte e aos
escritos literários. Leonardo da Vinci, Gide, Schreber e Joyce o alguns dos principais
exemplos de que é possível fazer uma aproximão entre o discurso analítico e o escrito
literário. Segundo Soler (1998a), Freud viu nos artistas seus precursores e nos textos
literários a oportunidade de validar o método anatico. Freud encontrou na ficção uma
antecipação da descoberta do inconsciente. Já para Lacan, como sublinha Soler, o texto
escrito não deve ser psicanalisado; antes é o psicanalista que deve ser bem lido
(SOLER, 1998a: 14). Os trabalhos artísticos não são produtos do inconsciente. Se é
possível interpretar um romance ou um poema, este sentido não tem nada a ver com a
criação do próprio trabalho, com sua existência, pois um enigma permanece do lado da
obra de arte. O trabalho tanto resiste quanto se presta à interpretação. Mas Soler (1998a)
sublinha que, ainda que a psicanálise não se aplique à literatura, aquela pode tirar uma
lição desta. Podemos aprender a partir da obra do artista, de sua pessoa e de sua vida, ou
seja, a psicobiografia é possível, mesmo que seja incapaz de explicar a obra de arte.
uma impossibilidade de se deduzir a obra de arte da vida do autor.
Podemos dizer que a arte provoca no observador a interpretação. Nesse sentido, não é a
arte que deve ser interpretada ou desvendada, mas ela provoca no sujeito o surgimento
159
da palavra, ela faz falar. Segundo Miller
16
,
16
a arte “interpreta o comentador, pelo menos
no fato de que lhe faz falar”. Assim, não buscamos “interpretar ou desvendar a cultura”,
mas seremos por ela interpelados, interpretados.
Se, através de recortes nos blogs, pretendemos conhecer um pouco dos blogs e dessa
cultura virtual, sabemos que a psicanálise, como método, não se apoia em um
conhecimento geral sobre o real, mas ela visa à apropriação do que é oferecido pelo
Outro, porém de modo singular. A ética da psicanálise, como afirma Pinto, “visa à
singularidade do sujeito, sua particularidade de gozo e desejo contra qualquer pretensão
universalizante dos outros discursos” (2008: 72). Toda e qualquer pesquisa em
psicanálise é, em sua essência, uma pesquisa cnica, pois se um campo de pesquisa
em psicanálise, este campo é o inconsciente, que inclui o sujeito. Freud nos mostrou que,
a cada novo objeto de investigação, desenvolve-se um novo método, impulsionando a
ciência. Assim, a psicanálise, como método de pesquisa, parte do não-todo e pode
chegar até a classificar modos de gozo ou padrões de sintomas, mas sempre a partir do
singular, como destaca Pinto (2008).
Dessa forma, nos conduzimos nesta pesquisa de duas formas. Em um primeiro momento,
visando recortar fragmentos de vários blogs para que eles “nos fam falar”, para que
possamos aprender alguma coisa com o que extrmos dessa escrita adolescente na
cultura virtual. Buscamos conhecer o que os jovens escrevem, como escrevem, para
quem escrevem, por que escrevem, o tempo de escrita, a duração do blog, se uma
construção narrativa e o que há de inédito nessa escrita de si nos blogs. Tentamos extrair
do próprio discurso do adolescente essas informações. Em um segundo momento,
buscamos, em um blog de longa duração (três anos e cinco meses), fazer um
acompanhamento dessa escrita, procurando a solução encontrada por um sujeito ao
encontro com o real do sexo. Se o real é o impossível de escrever, sabemos que cada
sujeito cria um arranjo próprio para lidar com essa impossibilidade. Diante dos impasses
impostos pela formação discursiva do momento atual da civilização, buscamos ler a
resposta de um sujeito adolescente a esses impasses.
16
MILLER, Jacques-Alain. “Siete observaciones de Jacques Alain Miller sobre la creación”. In: Revista
Malentendido, n° 5, maio de 1989. Citado por VIEIRA, rcia Maria Rosa. Fernando Pessoa e Jacques
Lacan: constelações, letra e livro. Tese doutorado. Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos
Literários. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. 292 p.
160
3.3.2. Circunscrição do campo
Nossa pesquisa foi desenvolvida no espaço virtual, ou ciberespaço, que é o novo meio
de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores. Como o objetivo
aqui era buscar compreender a função da escrita dos blogs na adolescência, optamos por
tentar extrairdos próprios blogs essa função. Os blogs são sites pessoais ou páginas
web atualizadas frequentemente, compostas por pequenos parágrafos apresentados de
forma cronológica. Existem diversos servidores em todo o mundo para esse tipo de
serviço e boa parte deles é gratuita, o que facilita o acesso de todo tipo de público.
Assinantes de grandes provedores brasileiros de Internet como o UOL, a Globo, ou o
Terra, entre outros, oferecem a possibilidade de criação de blogs, mantendo também
serviços gratuitos mais simples para não-assinantes. Para a primeira pesquisa empírica,
recolhemos blogs da UOL. Para as outras pesquisas recolhemos blogs de diversos
provedores.
3.3.3. Recorte para a pesquisa empírica
A seleção dos blogs obedeceu ao seguinte critério:
- Os blogs selecionados foram de provedores brasileiros. Apesar da expansão dos blogs
em diversos países, dos efeitos da globalização e da expansão dos meios de
comunicação em todo o mundo, defendemos a hipótese de que os jovens inseridos numa
determinada cultura apresentam características próprias dessa cultura. Buscamos
conhecer os blogs e sua função para o adolescente do Brasil.
- Nos diferentes provedores brasileiros de Internet, a procura pelos blogs pode ser feita
através de palavras-chave. Utilizamos duas palavras-chaves para ter acesso aos blogs:
diárioe “adolescente”. Acreditamos que essa “filtragem” nos ofereceria a vantagem
de não precisarmos definir quem é ou não adolescente, são os pprios autores de blogs
que se nomeiamadolescentes”. Além disso, a maioria dos blogs pesquisados tinha
como tulo a palavra: diário. Os próprios adolescentes definem os seus blogs como
diários.
161
- Foram excluídos os blogs “sem texto, só com imagens. A maioria apresenta textos,
mesmo que curtos. Os blogs só com imagens e fotos pertencem à categoria dos fotologs.
3.3.4. Desenvolvimento da pesquisa
Realizamos essa investigação basicamente em seis etapas, descritas a seguir.
1- Numa primeira etapa, fizemos uma aproximação desse tipo de espaço virtual de
escrita, conhecendo alguns blogs de adolescentes. Para essa primeira investigação,
foram selecionados 17 (dezessete), através da página da UOL (www.uol.com.br).
Aberta a página Blog, encontra-se à direita da página o título “busca por blogs” e logo
abaixo aparece a janela “palavras-chave”. Foi escrita a palavra “adolescente” na janela.
Apareceram 8.829
17
17
blogs. Portanto, todos os blogs selecionados apresentavam a
palavra adolescente no título ou no corpo do texto. A escolha dos 17 foi aleatória, tendo
como único critério de seleção a existência de palavras, além de imagens, já que o
objetivo do trabalho era pesquisar os textos dos blogs de adolescentes. Depois de
imprimir as páginas, foi feita uma primeira análise deles, bem como um quadro
classificatório para identificar os blogs segundo as seguintes características: nome (do
blog), idade (do autor), sexo, se o autor se identifica ou não, se ele se caracteriza como
adolescente, se usa uma linguagem de internauta ou não, se fala de si diretamente
(descrevendo suas atividades diárias e se é do tipo confessional) ou indiretamente (com
poemas, pensamentos, notícias etc.) e se escreve para um interlocutor conhecido ou
desconhecido. Essa primeira classificação teve como objetivo uma aproximação dos
blogs a partir de algumas características iniciais e a identificação de outras
características passíveis de serem pesquisadas. Além disso, a investigação contribuiu
para uma melhor delimitação do objeto de pesquisa, maior compreensão do tema,
definição dos referencias teóricos a serem utilizados e aprofundamento teórico do objeto
de estudo.
17
Pesquisa desenvolvida em 7 jul. 2006. Para se ter uma ideia do crescimento acelerado de blogs de
adolescentes, ao se fazer a mesma consulta no site da UOL no dia 12 out. 2008, o número havia
passado para 35.500.
162
2- A segunda etapa da pesquisa buscou investigar por que os adolescentes escrevem
blogs. Para essa pesquisa foram lidos 50 blogs de adolescentes, recolhendo-se em seus
textos os motivos que elegem para a escrita. Normalmente esses motivos encontram-se
no primeiro dia de postagem. Assim, são os próprios adolescentes que descrevem as
razões que os levam a escrever um diário aberto na rede. Como critério de seleção, a
presença das palavras “diário” e adolescente” no corpo do texto ou no título do blog.
Nessa pesquisa, uma opção importante foi a de selecionar blogs que eram definidos
pelos próprios autores como um “diário”, o que já evidencia a aproximação que o
próprio adolescente faz entre o blog e o diário.
Optamos por manter a linguagem do autor, sem alterações na sua escrita, mesmo que
apresente erros ortográficos (comuns e até normais na Internet) e o formato do texto.
foram alterados o tamanho, a cor e a forma da letra, a fim de se estabelecer certa
padronização que favorecesse a leitura. As poucas imagens mantidas foram as
consideradas componentes do texto do blog. Esses textos recolhidos dos blogs estão em
anexo.
3- A terceira etapa teve como objetivo pesquisar se os blogs se constituem como
romances para os adolescentes. A leitura de três diários íntimos publicados permitiu que
fizéssemos uma aproximação entre o diário íntimo e o romance. Buscamos identificar a
existência dessa mesma aproximação entre o romance e o blog, coletando nos textos dos
diários virtuais os elementos que definem um romance, segundo Bakhtin, Benjamin e
Lacan. Buscamos também recortar” os temas mais comuns abordados pelos
adolescentes em seus blogs, em seus romances”. Buscamos conhecer o que os
adolescentes escrevem em seus blogs. Seriam os mesmos temas dos diários íntimos?
Para essa pesquisa foram selecionados dois blogs de adolescentes de curta duração, que
foram transcritos de forma integral, sem recortes, para que se pudesse avaliar, a partir de
seu texto, os diferentes temas abordados e sua evolução temporal. Mostramos as
diferenças na forma da construção narrativa entre os dois blogs. Foram também
selecionados dez blogs para identificar os temas mais frequentes em seus textos. Os
textos desses dez blogs não foram reproduzidos na íntegra, mas foram “recortados”
alguns trechos de seus textos para ilustrar os temas mais frequentes.
163
4- Uma outra investigação utilizou os mesmos 50 blogs da segunda etapa da pesquisa.
Buscamos identificar a possibilidade de o blog ser uma tentativa de arquivamento de si
ou, ao contrário, ser uma escrita do imediato, do fugidio e do efêmero. um privilégio
do presente, dos fragmentos curtos e imediatos, com um consequente apagamento da
“história” nesses diários virtuais? Optamos por investigar essa relação com o tempo nos
blogs a partir dois critérios: em primeiro lugar, pela presença do “passado e do
“futuro” na escrita dos blogs e, em segundo lugar, pelo tempo de duração dos blogs.
5- Esta pesquisa teve como objetivo identificar nos blogs a dimensão de pura escrita de
gozo, para além da dimensão de romance. Utilizando a discussão feita por Lacan de
Kant com Sade, investigamos se haveria na escrita a passagem do romântico à escrita de
gozo na contemporaneidade. Buscamos extrair dos blogs alguns traços de perversão
nessas páginas virtuais. Para esta investigação, utilizamos os mesmos dez blogs que
foram selecionados para a terceira pesquisa.
6- Fizemos um estudo mais detalhado de um blog de longa duração (três anos e cinco
meses), acompanhando o percurso de construção de um romance feito pelo autor.
Destacamos as transformações na escrita durante todo o percurso no blog, através de
recortes feitos de seus textos.
3.3.5. Construção e análise dos dados
Até alcançar a definição do percurso metodológico e teórico desta pesquisa, foram feitas
rias tentativas e percursos diferentes. Realizamos muitas leituras sobre blogs, diários,
gêneros literários, ciberespaço, escrita na psicanálise, adolescência, até que
conseguíssemos definir e centralizar dois eixos: a escrita de si na cultura e a escrita no
tempo da adolescência. As questões centrais que nortearam toda a pesquisa
permaneceram constantes: - Qual a importância que a escrita do blog tem para o
adolescente? Qual a sua função? O que a escrita de si nos blogs nos revela sobre o
adolescente hoje? O que há de inédito nessa forma de escrita de si nos blogs?
Como a primeira investigação nos revelou que o adolescente utiliza o blog para escrever
sobre si, decidimos então empreender uma pesquisa histórica, para localizar o
surgimento e da escrita de si e do diário. Esse percurso teve como objetivo analisar a
164
relação entre a escrita de si e a cultura. O diário é uma forma de escrita de si, mas o é
a única. Como o diário íntimo é paradigmático da adolescência, buscamos situar na
história o momento em que o diário se transformou em uma escrita preferencialmente
adolescente. Buscamos na teoria psicanalítica a relação entre a adolescência e a escrita.
Por que os adolescentes escrevem blogs? O resultado da pesquisa nos revelou que os
três principais motivos para a escrita de um blog são: o interesse em escrever sobre si
(que já havia sido identificado na primeira pesquisa), o interesse em escrever para um
outro adolescente e o interesse em escrever sobre a adolescência. A discussão teórica
desses dados foi feita considerando três aspectos: o blog como uma narrativa sobre si, o
blog como um discurso e a identificação nos blogs.
O diário íntimo é contemporâneo ao surgimento do romance como gênero. Realizamos
uma aproximação entre o diário e o romance. Recorremos às contribuões de Freud
sobre o romance familiar e de Lacan sobre historização e romance, para relacionar a
escrita na adolescência com a escrita de um romance. A leitura do diário de Anne Frank
permitiu ilustrar a importância da escrita na adolescência ligada à construção de um
romance familiar.
A terceira investigação foi movida pelo interesse em tentar identificar nos blogs a
dimensão de romance. Assim como os diários íntimos, os blogs de adolescentes seriam
também romances? Como se constituiriam esses romances? Quais os temas abordados
pelos jovens em seus romances? Recortamos em seus textos os principais temas
abordados pelos jovens em seus blogs e fizemos uma leitura desse material utilizando a
teoria psicanalítica, situando o tema no entrecruzamento entre a estrutura e a cultura. A
leitura de um blog de longa duração permitiu acompanhar a construção de um romance
feita pelo autor, para que pudéssemos assim fazer a leitura de uma solução de um sujeito
ao encontro com o real do sexo.
Como toda pesquisa apresenta encontros inesperados ou novas continncias, a
abundância de material recolhido nos revelou uma grande variedade de blogs, de
diferentes estilos, formas e prositos. Ao lado de textos belíssimos, poéticos,
melancólicos, de longa duração, encontramos textos curtos, em fragmentos, alguns da
ordem do sem-sentido, bizarros, apelativos. Identificamos que o ciberespaço facilita um
165
tipo de escrita fragmentária, espacial, o linear. Achamos que seria importante analisar
a mudança temporal e espacial que ocorre com a passagem do diário íntimo ao blog.
Essa pesquisa nos levou a um encontro inesperado com um conceito da literatura e da
psicanálise: o conceito de constelar. Analisamos a mudança do diário íntimo ao blog,
operando uma passagem da linearidade à espacialidade. Essa mudança implica uma
alteração também no estatuto de sujeito: da lógica do binarismo significante à lógica
constelar, da multiplicidade significante. Para essa discussão, o conceito de letra foi
fundamental. Desenvolvemos uma outra investigação nesses mesmos blogs recolhidos
para a pesquisa temática. Buscamos identificar a dimensão temporal dos blogs, o que
nos possibilitaria compreender a relação entre essa escrita e o tempo. Qual o tempo
dio de duração de um blog? Ele é uma escrita diária? Os adolescentes escrevem
sobre o passado e o futuro ou apenas sobre o tempo presente? O blog é uma escrita do
imediato e do fugidio ou é uma escrita sequencial e ordenada, que busca a construção de
um sentido, como o diário? Haveria um “apagamento da história” e a sua subordinação
ao fluido e efêmero?
Ao pesquisarmos a função do blog na adolescência, relacionando-a com a escrita de um
romance, pensamos na possibilidade desse romance operar como um sintoma para o
adolescente. Da questão central surgiu então uma nova questão: O blog poderia operar
como um sintoma para o adolescente na contemporaneidade? Seria essa a função do
blog na adolescência? Se o romance está relacionado com a vertente de sintoma, alguns
blogs não parecem situar-se nessa dimensão. Acompanharíamos então na atualidade a
passagem do romântico à escrita de gozo? Essa dimensão seria prevalente nos blogs? As
duas dimensões corresponderiam às duas dimensões do sintoma, como mensagem
dirigida a um outro e como escrita de gozo? A quinta pesquisa foi realizada para
responder a essas questões. Buscamos extrair dos blogs a dimensão de escrita de gozo.
Recorremos à teoria psicanalítica para definir os conceitos de perversão, gozo, escrita de
gozo, sintoma e sinthoma, buscando analisar a possibilidade do blog operar como
sintoma para o adolescente na contemporaneidade.
A maior dificuldade encontrada para se avaliar a possibilidade do blog operar como um
sintoma para um adolescente está na dificuldade em se acompanhar a escrita de um blog
durante muito tempo, analisando as transformações subjetivas ocorridas durante o
tempo de sua escritura. Os blogs têm vida curta e os textos, em sua maioria, são também
166
curtos, muitas vezes enigmáticos, em fragmentos. Selecionamos, portanto, um blog de
longa duração para acompanhar sua evolução e buscar identificar mudanças em sua
escrita durante esse percurso, avaliando também a possibilidade de um blog, como um
romance, fazer laço social.
3.4. A primeira investigação: a escrita de si nos blogs
Buscamos uma primeira aproximação dos diários on-line a partir da leitura de alguns
blogs escritos por adolescentes. O objetivo dessa investigação foi conhecer quem o os
adolescentes que escrevem blogs (sexo, idade), a linguagem utilizada, como usam o
blog, se escrevem para conhecidos ou para desconhecidos e o que escrevem.
A primeira investigação, cuja descrão já foi feita na abordagem metodológica,
proporcionou os seguintes resultados: os jovens blogueiros identificados se caracterizam
como adolescentes e encontram-se na faixa etária entre 12 e 19 anos, sendo que apenas
um diz ter 23 anos. Dos 17 blogs, apenas três foram escritos por jovens do sexo
masculino, e as jovens do sexo feminino são a grande maioria dos autores: 14 blogs
(82,35%). Seis autores se identificam com nome e sobrenome, além de fotos e outras
características pessoais. Onze (64, 07%) se identificam por apelidos ou nick names, ou
seja, o se expõem diretamente. Sete autores utilizam uma escrita tradicional (não
internauta) e dez (58, 82%) utilizam a escrita típica do ciberespaço.
A grande maioria dos jovens, isto é, 15 (88, 23%), escreve de forma confessional, ou
seja, escreve para falar de si diretamente, de suas atividades diárias, de seus
sentimentos, experiências, valores, ideais, relações afetivas, vida social e familiar. Nesse
sentido, os blogs de adolescentes constituem-se como diários. Os próprios títulos dos
diários virtuais permitem compreender algumas de suas funções: “Eu adolescendo”,
Eu e o meu mundinho”, “Confissões de uma adolescente quase normal”, “Delírios
anônimos”, “Confissões de uma adolescente”, Relatos diários de uma adolescente”,
Ser uma adolescente”, “Um ser adolescente”, “Loucuras de adolescente”, Diário de
uma jovem”, Volta ao mundo”. Apenas dois não falam de si diretamente, não
167
descrevem suas atividades ou sentimentos, mas reproduzem citações de autores, letras
de música, poemas e filmes. Podemos dizer que eles falam de si de forma indireta. Sete
jovens escrevem para pessoas desconhecidas, enquanto nove (52, 94%) escrevem para
conhecidos e desconhecidos. Apenas um escreve somente para conhecidos, deixando
isso explícito, nomeando os interlocutores e usando digos a que eles têm acesso.
Foi também possível observar que todos escrevem de alguma forma sobre a
adolescência, situando-se nela, tentando descrevê-la ou compreendê-la. Assim,
chegamos às seguintes conclusões:
- Os jovens que se nomeiam adolescentes estão entre 12 e 19 anos.
- As mulheres representam a grande maioria dos autores de blogs “adolescentes” (82,
35%).
- A maioria dos adolescentes não se identifica pelo nome, mas utiliza um nick-name
(64,07%).
- A maioria utiliza uma linguagem típica do ciberespaço (e da adolescência) em seu
blog (58,82%).
- A maior parte escreve para um público conhecido e também para um público
desconhecido (52,94%).
- A maioria dos adolescentes utiliza o blog para falar de si, como em um diário (88,
23%).
- Todos escrevem sobre a adolescência (100%).
As conclusões acima serão comentadas a partir das próximas pesquisas de campo.
Rapidamente podemos observar que a idade dos jovens corresponde à faixa etária
normalmente definida como adolescente”. Se a escrita do diário íntimo sempre foi uma
prática preferencialmente das mulheres, elas continuam representando a grande maioria
dos autores dos diários on-line. O blog é um diário público. Os adolescentes endereçam
seus escritos às pessoas conhecidas e desconhecidas. Veremos como os jovens
adolescentes buscam fazer novas amizades e estabelecer novos contatos através de seus
blogs. A maioria dos adolescentes utiliza o blog para falar de si, como em um diário
íntimo. Seria esse o principal motivo que leva o adolescente a escrever um blog? A
segunda investigação buscou responder a essa questão.
168
3.5. Por que os adolescentes escrevem diários na rede?
A primeira vez nunca se esquece.
Olá eu! Dou hoje início àquilo que será a mais profunda busca de mim
mesma, à mais intensa viagem àquilo que sou e que sinto
http://malucadanet.blogs.sapo.pt/
seja vc mesmu que seja estranhu mesmu que seja bizarro bizarro bizarro !!!
http://debora.vitoria.blog.uol.com.br/arch2004-10-10_2004-10-16.html
Por que os adolescentes escrevem diários abertos na rede? Para essa investigação,
buscamos “recortar” nos textos dos adolescentes os motivos que eles mesmos elegem
para escrever um blog, como apresentamos na discussão metodológica. Os textos
recortados de todos os blogs estão em anexo.
3.5.1. Uma leitura dos blogs
A leitura dos 50 blogs mostrou que a grande variedade de formas, estilos e objetivos
torna difícil caracterizá-los e defini-los com critérios únicos. Os autores, apesar de
usarem alguns recursos comuns a todos os blogs, usam esse espaço “próprio” de forma
também própria. Mesmo sendo todos caracterizados dentro do estilo pessoal, definidos
por seus autores como “diários” e escritos por adolescentes”, existe grande variedade
169
de tipos e formas. As mulheres continuam representando a maioria nesse universo da
escrita de si: 90% dos blogs pesquisados são de adolescentes do sexo feminino.
Identificamos três principais motivos para a escrita dos blogs: o interesse em escrever
sobre si, a busca por fazer amizades e conhecer pessoas (adolescentes) e o interesse em
falar sobre a adolesncia. Optamos por fazer uma leitura desses motivos acima a partir
das seguintes perspectivas:
- O interesse em escrever sobre si: o blog como uma narrativa sobre si.
- A busca por fazer amizades e conhecer pessoas: o endereçamento ao outro. O blog
como um discurso.
- O interesse em falar sobre a adolescência: a identificação com a adolescência nos
blogs.
Essas reflexões serão apresentadas a seguir.
3.5.2. O blog como uma narrativa sobre si
Começo de tudo
Olá...
Aqui começo a escrever de mim, um pouco de cada dia, um pouco da minha
vida...
http://rluchiari.zip.net/arch2006-11-19_2006-11-25.html
Constatamos em nossa pesquisa que a grande maioria dos adolescentes elege como o
principal motivo para a escrita de um blog o interesse em falar de si. Em 70% dos blogs
o principal motivo para se escrever é o desejo de se expressar e de falar da própria vida,
continuamente (muitas vezes, diariamente), como em um diário íntimo. Eles assim
descrevem seus motivos: “contar suas aventuras”, “contar suas histórias”, “escrever
sobre si”, “falar de si um pouco a cada dia”, expor sua vida amorosa em capítulos”,
desabafar”, “fazer um diário”, “expressar totalmente”, “escrever diariamente”, “falar
da adolescência”, “contar tudo o que se passa em sua vida”, “falar tudo o que vier à
mente”, “relatar toda a vida”, “fazer confissões a cada dia”, descrever cada momento
da própria vida”. O adolescente busca escrever sobre si, relatar a própria hisria,
continuamente, ordená-la, como uma escrita diária, confessional (o termo confissão
aparece frequentemente, assim como “falar tudo”, relatar tudo”, “expressar
totalmente”). O principal motivo eleito pelos adolescentes, portanto, foi o interesse em
fazer uma “escrita de si”, uma narrativa sobre si.
170
Alguns blogs se assemelham muito ao diário clássico. Um adolescente inicia seu diário
assim: Querido diário”. Esse blog parece não se diferenciar em nada de um diário
confidencial, impresso. Seu autor não se dirige ao diário para se apresentar e falar de
si, como acaba o seu texto também se despedindo do diário. Uma autora expressa
enfaticamente o desejo de conhecer a si mesma. Revela seu desejo de fazer uma
profunda busca de si mesma, de querer saber quem é, de ser “eu própria”.
Todos os blogs pesquisados são nomeados por seus autores como diários. As
características formais de um diário são facilmente identificáveis pelo leitor e serão
resumidas abaixo. Muitas dessas características estão presentes nos blogs, como
podemos ver:
- Escrita pessoal: normalmente o autor de um diário íntimo o escreve para falar de si. O
texto é escrito na primeira pessoa. Os textos dos blogs são também escritos em primeira
pessoa e têm como objetivo falar de si.
- Datação: apesar de o existir a exigência da escrita diária, todo registro é datado,
tanto no diário íntimo como no blog. O diário e o blog são escritos do tempo “presente”,
mesmo que recorram a lembranças do passado e escrevam sobre o futuro. Essa é
considerada a principal característica formal de um diário.
- Caráter linear da escrita: a escrita no diário segue uma ordem cronológica, uma
evolução temporal, apesar de não ser necessária a presença de um encadeamento lógico
entre os registros. A escrita do blog também segue uma ordem cronológica, uma
evolução temporal, com a presença da datação. Mas o texto do blog é mais fragmentado,
híbrido, marcado por diferentes tipos de escrita, imagens e sons. Os diversos links
permitem uma leitura amplamente não linear, descontínua, com acesso a diferentes
caminhos, definidos pelo leitor.
- Leitura descontínua: a leitura do registro de um determinado dia não obriga à leitura
dos registros anteriores nos diários íntimos. Mas a leitura nos blogs é acentuadamente
descontínua, permitindo o acesso a outros blogs, outros textos, a partir de diferentes
links situados nas páginas do blog.
- Registro de língua familiar: a linguagem normalmente utilizada pelo autor de um
diário é familiar, espontânea, informal. A linguagem nos blogs não só é uma linguagem
informal, mas é também típica do ciberespaço, com suas características de fragmentação,
uso de clichês, acrescentada dos recursos de imagens e sons.
171
- Caráter confessional do texto: o texto do diário íntimo é normalmente confessional. O
diarista se dirige ao diário como a um amigo íntimo, um confidente e o conteúdo de seu
diário é secreto. Apesar do caráter público do blog, o adolescente faz muitas
confidências em seu blog. Essas confidências são facilitadas pela possibilidade de se
ocultar a identidade. Se nos diários íntimos as confidências são facilitadas pelo caráter
privado de seus escritos, nos blogs as confincias são possibilitadas pelo caráter de
“velamento do espaço virtual. Os blogs, portanto, aproximam-se dos diários íntimos
em alguns aspectos e distanciam-se em outros.
Apesar das características formais descritas acima, alguns autores consideram que
apenas duas características definem o diário íntimo: a temporalidade e a sinceridade.
Para Maurice Blanchot (1971)
18
,
18
o diário pode apresentar grande liberdade de formas,
que pode conter pensamentos, sonhos, ficções, comentários sobre si mesmo,
acontecimentos importantes, insignificantes, tudo lhe é conveniente, dentro da ordem e
desordem que quer o autor, de modo que parece conter vários gêneros dentro de si. No
entanto, um aspecto determinante na escrita de um drio é que ele deve respeitar o
calendário. A identidade do diário está, desse modo, na temporalidade.
Se o pacto de sinceridade é a outra característica do diário íntimo, uma espécie de
contrato de sinceridade entre autor e leitor, como considera Lejeune (1975), existiria
esse contrato no blog, já que o ciberespaço é por excelência o espaço da ficção? No blog
o a exincia do nome próprio e seu autor pode criar um nome ficcional. O autor
de um blog pode criar diferentes identidades e nomes no espaço virtual, tendo vários
blogs simultaneamente. Podemos pensar que o texto escrito no ciberespaço é um texto
ficcional por excelência. Mas a leitura dos blogs nos levou a considerar que leitor e
autor estabelecem certo “pacto de sinceridade”, mesmo que o espaço virtual seja “o
campo da fião”.
Se, mesmo no diário íntimo, o narrador que se quer contar divide-se em sujeito do
enunciado e sujeito da enunciação, narrador e personagem, relacionando-se de forma
dual com sua escritura e percorrendo múltiplos caminhos até imprevistos para o pprio
autor, o blog expande infinitamente” essas possibilidades, potencializando-as. O
18
BLANCHOT, Maurice. “VIII le journal intime et le récit”. In: Le livre à venir. Gallimard, 1971,
p.271-279.
172
caráter ficcional do ciberespaço torna mais próximo o ficcional do autobiográfico,
promovendo uma quase indistinção entre os dois gêneros literários. Consideraremos, no
próximo capítulo, a dimensão de narrativa, presente em muitos blogs, que os aproxima
da escrita de um romance.
Uma particularidade do blog é o seu caráter declaradamente público, que cria
possibilidades de interlocução com diferentes pessoas e que favorece uma interatividade
constante. Assim, a escrita íntima se torna pública e o texto pessoal se torna “plural”. O
autor de um blog submete o seu texto à apreciação de um outro. O interesse do autor em
ser lido e avaliado por um outro pode estar presente na escrita de qualquer drio íntimo,
mas esse desejo nem sempre é revelado e a publicação de seus escritos pode ser adiada e
até mesmo nunca realizada. No blog, ao contrário, esse interesse é explícito. O autor de
um blog não espera concluir o seu diário para publi-lo, mas, a cada fragmento de
texto que escreve, ele já é laado no espaço público. Ele espera os comentários do
leitor e se decepciona quando seu texto não é lido ou comentado. Essa frustração
apareceu em vários blogs.
Essas particularidades do blog tornam difícil sua localização dentro de um gênero
discursivo. O blog aproxima-se do diário íntimo, mas mantém dele certa distância. É
uma escrita ao mesmo tempo individual e coletiva, uma escrita de si e endereçada a um
outro. Podemos, talvez, localizá-lo entre o diário íntimo e a carta, com a diferença que o
blog, mesmo sendo endereçado a um leitor específico (como, por exemplo, a um outro
adolescente), pode ser lido por várias pessoas. Assim, sem buscar fazer uma análise
comparativa entre o diário e o blog, interessa-nos conhecer as especificidades desse tipo
de escrita no universo virtual. Veremos adiante esse endereçamento presente nos blogs
de adolescentes.
3.5.3. O blog como um discurso
O adolescente que escreve um blog se dirige a um outro. Quase metade dos blogs revela
o desejo de seus autores de serem lidos, vistos, de receberem comentários ou de fazerem
amizades, como vemos abaixo:
173
Meu nome é Cat,e no meu blog eu vou fala de tudo na minha vida tipo sobre: meus amigos,a
escola,passeios,inimigos e sobre o que penso e vcs vão me ajudar às vezes, a resolver muitos problemas
que se passam na minha vida,a vida de uma adolescente.
Em outro blog seu autor revela:
.... e pretendo compartilhar todas minhas alegrias e tristezas aqui... procurar conselhos de vez em
quando tbm eh bom, ñ faz mal a ninguem.. =D
Muitos terminam seus textos pedindo aos leitores que deixem seus comentários: ... e por
favor, deixem seus comentários.
Uma blogueira faz a seguinte proposta:
Quero fazer amizade. Alguém topa?
Os adolescentes muitas vezes buscam, através da Internet, se lançar no espaço público
para fazer amizades, se mostrar e conhecer pessoas. Eles manifestam querer
compartilhar com amigos alegrias e tristezas”, procurar conselhos”, atrair pessoas que
estejam passando pelo mesmo problema”, “conquistar amizades verdadeiras”,
compartilhar ideias”, começar uma boa conversa”, “ouvir sugeses”, se abrir com
alguém, discutir os assuntos da adolescência, compartilhar cada momento.
O adolescente busca fazer muitos amigos através de seu blog. O desejo de fazer
“inúmeros” amigos na rede parece ser facilitado pela possibilidade de se omitir o nome
próprio. Os adolescentes revelam que poder omitir a identidade facilita uma escrita
“mais livre, solta, despreocupada”. Assim, a possibilidade de se expressar sem ter que
se identificar é um motivo importante para se escrever um drio na rede:
Eu não vou me apresentar, que eu não confio muito em Internet e tenho as minhas paranoias. Não é
qualquer um que sabe o meu nome não!!! Onde já se viu...‖
―Vou ser sincera mesmo, vou falar tudo o que eu fiz e o que eu eu penso em fazer. Não vou esconder
nada, já que a minha identidade será mantida em mais perfeito sigilo; Medo? Acho que o motivo não
seria esse, mas sim, a vergonha e o receio de me abrir como já disse. ~Por isso não vou me identificar, e
se achar ruim, o que está fazendo aqui???‖
Aki poderei colocar todos os meus pensamentos....Sem ninguem ao menos saber.... poderei colocar de
td, desde meus desejos mais fortes, qto aos meus piores rancores.... Sei q minha vida eh igual a de toda
adolescente... e todos temos um objetivo, e o meu, eh perder minha timidez podendo assim, flr com todos
sem receio algum...‖
―OI gente ....eu sou a Gatinha Maluca...desculpa não colocar meu nome verdadeiro...é que como isso é
um diario, prefiro declarar tudo sem omissoes e é bem melhor fazer isso sem qu voces saibam quem eu
sou...‖
174
O caráter paradoxal que envolve a publicização/privacidade é também característico dos
blogs. A escrita de si no blog comporta certa dimensão privada: o adolescente pode
restringir o acesso de pessoas por meio de vários recursos, como o uso de códigos a que
um grupo restrito tem acesso. Ele pode usar um pseudônimo, o colocar fotos,
omitir dados mais pessoais e até alterá-los. Mas, mesmo apresentando uma dimensão
privada, o blog está lançado no espaço público. Existe um velamento que se mostra”,
num jogo de se ocultar e de se oferecer ao olhar do outro, como um convite ao
desvelamento. O adolescente, ao endereçar a pergunta sobre o seu ser a um outro, se
histeriza, como solução à feminilidade.
O adolescente elege um outro adolescente para se comunicar. Ele busca assim um
outro “supostamente igual”, especular. Pensa que está se dirigindo a um outro especular,
mas na verdade ele está interrogando a linguagem. Para além do outro especular, um
endereçamento a um Outro. Para Lacan, o Outro é o tesouro do significante, o lugar
simlico de onde o sujeito recebe sua mensagem invertida, é o Outro como sítio
prévio do puro sujeito do significante” (LACAN, 1998: 807)
19
.
19
O Outro está numa
posição de anterioridade lógica em relação ao sujeito, que busca nesse lugar sua
determinação significante. O adolescente situa no Outro sua determinação significante,
como aquele que, situado como lugar de anterioridade lógica em relação ao sujeito, lhe
enviará sua própria mensagem invertida. Como já foi abordado, nesse trabalho psíquico
de separação dos pais, feito na adolescência, esses são destituídos do lugar de saber e,
na atualidade, podemos interrogar se o mestre” ainda se situa como um substituto dos
pais, como na época de Freud. Será que a identificação horizontal hoje substitui a
identificação vertical?
Existe uma outra leitura possível desse endereçamento que o jovem faz a um outro
adolescente. Ao questionar sobre o seu ser e sobre o sexo, o adolescente precisa
construir a própria resposta a essa pergunta. Ele não pode endereçar essa pergunta aos
pais, por vários motivos. Em primeiro lugar, porque os pais são destituídos deste lugar
de saber, nesse momento em que o adolescente está fazendo um esforço de separação
deles. Em segundo lugar, porque os pais apresentam dificuldades em abrir mão do lugar
de saber e se sentem ameaçados diante do novo. Os pais normalmente se fecham” no
19
LACAN, Jacques. “Subversão do sujeito e dialética do desejo”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1998, p.793-842.
175
próprio saber e não conseguem abrir espaço para um saber que lhes escapa, para algo
que possa ser diferente da própria experiência. Eles repetem frequentemente suas
experiências passadas, nostalgicamente, como um ideal que deve ser seguido e
repetidopelos filhos. Esse fechamento dos pais pode levar o adolescente a buscar
um outro lugar de endereçamento. Um outro adolescente está exatamente no lugar do
vazio de saber, como aquele que não é suposto saber”, que, assim como ele, não sabe.
Assim, é nesse lugar do vazio de saber que pode haver a produção de um novo. Como
isso se relaciona com a histerização? Veremos essa relação a partir do discurso histérico.
O romance clássico é caracterizado por um relato linear (S1 - S2), que postula um sentido
(I/S) na existência narrada. Esse sentido é construído pela tentativa de se extrair uma
lógica retrospectiva e prospectiva, estabelecendo relações inteligíveis entre os diversos
estados que se sucedem. O autor se reduz ao lugar de retorno do discurso que vem do
Outro, como uma mensagem sempre invertida. No blog um endereçamento da
pergunta sobre o próprio desejo e sobre o sexo a um outro adolescente e,
retroativamente, há a construção de um romance familiar pelo sujeito, como retorno do
discurso que vem do outro, como uma mensagem invertida.
Temos aqui a estrutura do discurso histérico. Mas, ao abordar o discurso histérico,
estamos indo além da estrutura clínica que o mesmo evoca a histeria para definir um
tipo especial de relação de palavra, uma estrutura elementar de linguagem. O discurso
histérico refere-se, portanto, não à histeria enquanto tipo clínico, mas à própria posição
do sujeito falante. O discurso histérico constitui uma estrutura elementar da relação de
palavra.
É na demanda endereçada ao Outro que circula o desejo, sempre escamoteado na
enunciação. A partir do desejo do Outro, abre-se para o sujeito a dimensão do seu
desejo. O sujeito constrói respostas para o suposto desejo do Outro: “Que queres?O
desejo do Outro é sempre enigmático, é algo apenas suposto. O desejo, ao se apresentar
como pergunta, faz surgir a dimensão do enigma, pois o desejo é um enigma. O desejo
inconsciente é, portanto, articulado a uma questão e sustentado pela fantasia que se
constitui na resposta do sujeito a essa questão. A resposta que o sujeito constrói ao
enigma do desejo do Outro lhe advém como mensagem que ele recebe do Outro. O
desejo inconsciente se articula com a demanda, circulando em seus significantes. O
176
discurso histérico ilustra como o sujeito situa o Outro com o poder de responder sobre o
seu desejo.
Qualquer sujeito emerge do laço social. O matema de Lacan nos esclarece que todo
laço social que trata o outro como um mestre é discurso da histérica. Ao escrever o
discurso da histérica, Lacan buscou colocar em evidência o que constitui o valor da
histeria, que é obter do mestre a produção de um saber. Aqui o sujeito ($) é aquele que
manm o discurso, enquanto que o outro é suposto ser o detentor do saber. que este
saber será sempre incompleto, jamais podendo atingir sua verdade e escrever seus
próprios limites, pois a verdade do saber que tal discurso supõe se acha no sintoma que
caracteriza o próprio sujeito ($). No Seminário 17, Lacan postula que no nível do
discurso da histérica, esta, na posição dominante, aparece sob a forma de sintoma ($).
É em torno do sintoma que se situa e se ordena tudo o que é do discurso da histérica”
(LACAN, 1992: 40). O saber que o sujeito faz advir no outro é apenas parte do saber.
A histérica representa a falta-a-ser. Seu desejo, como todo desejo, é o desejo do Outro.
O discurso histérico é o inconsciente em exercício. A linguagem é a condição do
inconsciente, e o inconsciente permite situar o desejo (LACAN, 1992: 43). A repetição
significante visa ao gozo, pois ela se funda em um retorno do gozo.
Lacan observa que o discurso da histérica tem o mérito de manter na instituição
discursiva a pergunta sobre o que vem a ser a relão sexual, como um sujeito pode
sustentá-la ou não. Desde que faça a pergunta sobre o desejo, o sujeito entra na função
do desejo e faz o significante-mestre cair (LACAN, 1992: 122). Lacan, ainda neste
seminário, diz que nós temos necessidade de sentido (p.13). Para ele, o que conduz ao
saber não é o desejo de saber, mas o discurso da histérica (p.21). O que o analista
institui como experiência analítica é a histerização do discurso, a introdução estrutural
do discurso da histérica. A experiência analítica ao outro, como sujeito, o lugar
dominante no discurso da histérica, histeriza seu discurso, faz dele um sujeito a quem se
solicita que produza significantes que constituam a associação livre, soberana, do
campo.
O discurso histérico inscreve um tipo especial de relação de palavra e refere-se à própria
posição do sujeito falante, que busca no Outro a resposta para o seu desejo. O enigma é
177
uma enunciação e o discurso histérico mostra a entrada do sujeito na função do desejo.
Assim, podemos pensar que a escrita de um blog, como artifício fálico substitutivo da
falta, pode se inscrever no registro do “discurso histérico”, e o como discurso “da
histérica”, pois ele revela uma “estrutura discursiva que parte da pergunta sobre o
desejo. Como destaca Soler, como discurso, a histeria determina um sujeito que nunca
está sozinho, mesmo que esteja isolado, um sujeito sempre pareado na realidade com
um outro que se define pelo significante-mestre, e que o sujeito interroga quanto a seu
desejo de saber sobre o sexo (SOLER, 2005: 55). Se o estabelecimento de um
discurso, já existe o laço social, e podemos considerar que o sujeito es dando um
tratamento à sua questão sobre o sexo.
O adolescente, em seu blog, se dirige a um outro adolescente, interrogando sobre o seu
desejo de saber sobre o sexo. O sujeito dividido na posição de agente determina o laço
social definido como discurso histérico:
$ S1
a // S2
A partir da leitura dos blogs, situamos hipoteticamente, nos quatro lugares do discurso
histérico, os seguintes elementos:
Adolescente outro adolescente
o-relação sexual // romance familiar
O adolescente ($), na posição de agente, interroga um outro adolescente (semelhante)
sobre o seu desejo de constituir um saber sobre o sexo. Ao se dirigir a um outro
adolescente, o jovem busca um outro supostamente semelhante (“só um outro
adolescente pode entender o que estou passando...”), como um lugar esvaziado de saber
(o adolescente, assim como ele, não sabe). O produto dessa operação é a produção de
um novo onde existe um vazio de saber. O produto é a escrita de um romance familiar
no blog. No lugar da verdade encontra-se a “não-relação sexual”, enquanto
impossibilidade. Essa verdade encontra-se recalcada. Como verdade, ela não pode ser
capturada em sua totalidade, se organizando sempre como um semidizer. É ela,
178
entretanto, que faz agir o agente, mas se mantendo e se situando como ponto de
interrogação para cada sujeito.
Diante do encontro com o real do sexo, o adolescente busca uma saída fálica para
encobrir esse vazio. A construção de um romance familiar permite bordejar esse vazio,
conferindo-lhe um sentido, como a tessitura de um véu fálico que permite velar o real.
O romance familiar escrito no blog, como produto do discurso, pode representar a
construção de um novo que inclui o real e faz laço social.
3.5.4. A identificação com “a adolescência”
O adolescente escreve em seus blogs sobre a adolescência: 44% deles mostram
explicitamente um dos principais motivos que levam seus autores a escrever: “falar
sobre a adolescência”. Em alguns textos, aparece a representação de adolescência do seu
autor; em outros, a busca por compreender essa fase da vida:
―sou uma adolescente normal, com meus 14 anos, chegando nos 15 esse ano, o//tenho meus amores,
minhas dores, decepções.. como todo mundo!‖
―nunca vi um livro onde uma adolescente tenha escrito (exceto, talvez o Diário de Anne Frank) todas as
suas dúvidas, as suas confusões, os seus problemas, seus dramas, suas carências...‖
―É irónico como vimos um diario de uma adolescente, dixem k esta é a faxe melhor da noxa vida, una
parte tem rasão por outra ñ, 1º andamos na escola e temos carradas d coisas para estudar! temos de
tomar decisões importantes k iram afectar a nossa vida já por adultos. Por ixo não venham com história
k a vida de um adolescente é a melhor fase, pois eu digo n é! A pesar k iremos ter muitos mais
problemas‖
―vcs vão me ajudar às vezes, a resolver muitos problemas que se passam na minha vida,a vida de uma
adolescente‖
―O que uma adolescente poderia fazer? Viver, Amar e Aprender. E é nisso que se resume a minha vida,
neste espaço vou colocar como eu estou aprenderndo a amar e a viver.‖
e tô aqui pra falar de assuntos atuais de Adolescentes para Adolescentes...‖
Bom á partir de hoje iremos falar e discutir sobre os assuntos da adolescência numa especie de Blog
Novela...‖
179
―hj eh o 1°dia de postar ...quero q aqui seja um diario q atrai apenas pessoas q estao passando pelo
mesmo problema ....ser adolescente nao eh facil neh ...‖
Porque eu preciso me abrir com alguém, e como não tem "alguém" em que eu confie vou me abrir para
você, que está lendo meu diário neste momento. Quem sabe você não está passando por isso, ou passou e
Deus queira que não passe.‖
.....como ja viram meu nome e mayta tenho 14 anos e estou naquela faze onde nunca sei se estou fazendo
as coisas certas onde nunca sei se meus "amigos" na verdade sao meus "amigos" espero dar conta de
expressar o que ando sentindo para voceis....
Escrever sobre a adolescência é algo comum ao diário clássico e ao diário aberto na
rede. Além do interesse em escrever sobre essa fase da vida, identificamos o interesse
em ler o que o outro adolescente escreve sobre a adolescência. A leitura de outros blogs
de adolescentes é uma prática muito frequente entre os blogueiros pesquisados. Além de
blogs de amigos, eles visitam outros de autores desconhecidos (também adolescentes) e
o formando uma rede de amigos blogueiros adolescentes. Costumam indicar, no
próprio blog, outros blogs que consideram interessantes. Assim, os adolescentes
identificam-se com o grupo de adolescentes no ciberespaço.
Freud, no texto “Psicologia de grupo e análise do eu”, descreve a identificação como a
mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa” (FREUD, 1974 [1921]:
133). Ele destaca três tipos de identificação. O primeiro tipo é bem precoce na vida de
um sujeito, relaciona-se com a primeira fase da organização da libido, a fase oral: “...em
que o objeto que prezamos e pelo qual ansiamos é assimilado pela ingestão, sendo dessa
maneira aniquilado como tal. O canibal, como sabemos, permaneceu nessa etapa; ele
tem afeição devoradora por seus inimigos e só devora as pessoas de quem gosta”
(p.134). Essa identificação, que ele define como identificação ao pai, pode perder-se de
vista, segundo Freud. E acrescenta que esse primeiro tipo de laço já é possível antes que
qualquer escolha de objeto tenha sido feita.
Freud recorre ao sintoma para exemplificar o segundo tipo de identificação, que está
relacionado com a escolha de objeto. Ele o exemplo de uma menininha que
desenvolve o mesmo sintoma da e de uma tosse atormentadora. Freud esclarece que
...a identificação apareceu no lugar da escolha de objeto e que a escolha de objeto
regrediu para a identificação” (FREUD, 1974 [1921]: 135). Nesse caso, o “eu” assume
180
as características do objeto. A identificação é parcial e extremamente limitada,
tomando emprestado apenas um traço isolado da pessoa que é objeto dela” (p.135).
O terceiro tipo de identificação é baseado na possibilidade ou desejo do sujeito de
colocar-se em uma mesma situação de um outro sujeito. Freud explica esse processo
com o exemplo de uma moça que está num internato e recebe uma carta de seu
namorado que lhe desperta ciúmes e que a ela reage por uma crise de histeria. Outras
moças do internato que conhecem o assunto passam a ter a crise, como um desejo de
colocar-se na mesma situação, ou seja, gostariam também de ter um caso amoroso
secreto e, sob a influência do sentimento de culpa, aceitam também o sofrimento
envolvido nele. Freud nomeia esse tipo de identificação como “identificação por meio
do sintoma”.
Freud resume os três tipos de identificação da seguinte forma: o primeiro tipo constitui a
forma original de laço emocional com um objeto; no segundo tipo, de maneira
regressiva, ela se torna sucedâneo para uma vinculação de objeto libidinal, por meio da
introjeção do objeto no ego; e no terceiro tipo, pode surgir com qualquer nova
percepção de uma qualidade comum partilhada com alguma outra pessoa que não é
objeto da pulsão sexual(FREUD, 1974 [1921]: 136). O terceiro tipo de identificação
explica o laço mútuo existente entre os membros de um grupo, segundo Freud, e é
baseada numa importante qualidade emocional comum.
Para Lacan, a identificação é da ordem da relação do sujeito ao significante. Como a
identificação se confunde com a identidade, Lacan parte da desmontagem dessa falsa
equivalência que estaria no centro da identificação: A=A. O significante não pode ser
idêntico a si mesmo. Para dar suporte ao que se deseja, é preciso uma letra. Lacan
mostra na letra justamente esta essência do significante por meio do qual ele se
distingue do signo. O significante não é o signo. O signo é representar alguma coisa
para alguém. O significante se distingue do signo por manifestar apenas a presença da
diferença, nada mais. Lacan afirma que a primeira coisa, pois, que ele implica é que a
relação do signo com a coisa seja apagada (LACAN, 1961-62). É tomando a
identificação enquanto significante que podemos diferenciá-la dos efeitos da imagem
para compreender o que é colocar em um ser a substância de um outro, essa operação
181
em que o sujeito assume a identidade de duas aparições tão diferentes. É o significante
que introduz a diferença no real.
A primeira espécie de identificação abordada por Freud é, portanto, segundo Lacan,
tica, ambivalente, sobre o fundo da devoração assimilante, da incorporação. Ela é
direta e imediata, sem a mediação do traço (do significante). Essa primeira identificação
tem a marca que o sujeito recebe do Outro como suporte, quando se a fundação do
sujeito no campo do Outro, mas com a segunda identificação essa marca invisível
será revestida.
A segunda, de tipo regressivo, tem o tro unário como instrumento de identificação.
Lacan introduz a noção de traço unário, esse tro único, traço de estrutura mais simples,
destituído de toda variação. O que o distingue não é uma identidade de semelhança.
Como significante, ele se distingue do signo por manifestar apenas a presença da
diferença. O traço unário é a marca da diferença. Sua função e seu valor estão
justamente relacionados a essa redução extrema das diferenças qualitativas. Todos os
significantes têm esse traço por suporte. O Einziger Zug é o traço que Lacan designa
unário para acentuar seu caráter de um, contável, esse um em cuja repetição toda a série
se apoia, por oposição ao um-unificador. O traço unário suporta as variações, o
deslizamento da bateria significante.
O sujeito só pode ser situado a partir da segunda identificação, a de tipo regressivo, que,
ao tomar um traço do objeto como instrumento da identificação, escreve no inconsciente
o enlace do sujeito com o objeto. O objeto perdido é conservado nesse traço unário ao
qual o sujeito se identifica. Lacan destaca que esta identificação é parcial, altamente
limitada, mas que é acentuada no sentido de estreiteza, de encolhimento, que é nur ein
einziger Zug”, somente um traço único da pessoa objetalizada.
Essa segunda identificação reporta, pois, ao ideal, como tro que reveste essa marca
invisível. O ideal representa o Outro através de um signo, um traço único. Esse traço
intervém na relação narcísica, constituindo a orientação dos investimentos libidinais e
mantendo a função do eu ideal. Esse traço tomado emprestado do objeto torna-se o
signo do amor. No amor, a dimensão da falta está sempre presente. O eu do amante,
182
empobrecido, situa no outro aquilo que lhe falta, para resgatar a sua imagem ideal.
Trata-se de uma escolha narcísica, tendo como referência o tro unário.
A terceira identificação é ao Outro por intermédio do desejo, desejo subjacente às
relações do sujeito com a cadeia significante, que alteram profundamente a estrutura da
relação do sujeito com suas necessidades.
Lacan reporta aos tempos da privação e da frustração para situar a emergência do sujeito.
Ele comenta que, para que a verdade simlica, que supõe a contagem, seja fundada, é
preciso que algo tenha aparecido no real, esse algo é o traço unário. É no nível da
privação que se situa o tempo anterior à contagem. Freud se refere à primeira como a
mais importante identificação do sujeito. Mas a segunda identificação é necessária, pois
reforçaria a primeira. Lacan demonstra que o (-1) constitutivo do sujeito da privação, ou
seja, a casa vazia de traços está ligada à estrutura mais primitiva do inconsciente, mas
requer o apoio, a sustentação do traço unário como instrumento de identificação do
sujeito.
É no tempo da frustração que se introduz com o Outro a possibilidade para o sujeito de
um novo passo essencial. Surge, no tempo da frustração, a dimensão de perda essencial
à metomia, perda da coisa no objeto. O par presença/ausência introduz o sujeito no
registro do apelo. Assim, o sujeito pode estabelecer uma relação não com o objeto
real, mas com os traços que restam dele. As duas identificações vão se articular no
ponto em que o sujeito toma um significante como insígnia dessa toda-potência, no
traço unário que aliena o sujeito na identificação primeira e forma o ideal do eu. Lacan
localiza na imagem do eu o ponto de nascimento do desejo. E afirma que, depois da
privação real, a frustração imaginária. Mas a imagem fundadora do desejo vai situar-se
dentro do simlico.
O terceiro tipo de identificação é a identificação ao Outro por intermédio do desejo. A
identificação histérica mostra como o desejo supõe em sua subjacência a articulação das
relações do sujeito com a cadeia significante, já que esta relação modifica a estrutura de
toda relação do sujeito com cada uma de suas necessidades. Para Lacan (1961-62), o
desejo está articulado a um ponto de falta na imagem do Outro, na qual o sujeito se
aliena. O automatismo de repetição é a busca, ao mesmo tempo necessária e condenada,
183
do traço unário, aquele que não pode se repetir. O desejo é o que suporta o movimento,
certamente circular, da demanda sempre repetida. Esse ciclo de repetição, como o
movimento da bobina, desenha o objeto do desejo, o objeto a. É pelo fato de ter sido
tomado no movimento repetitivo da demanda, no automatismo da repetão, que ele se
torna objeto do desejo, segundo Lacan. O advento constitdo pela repetição, o
metonímico, que desliza, é evocado pelo próprio deslizamento da repetição da demanda.
Nesse terceiro tipo de identificação, portanto, um ponto de falta é percebido pelo eu no
outro. Nesse ponto vazio, um objeto é convocado para ser colocado no lugar do ideal do
eu. Aqui a escolha de objeto não é narcísica. Esse modo de identificação é que está na
base do sintoma histérico. Num grupo social, as pessoas colocam um objeto no lugar de
seu ideal e, em função disso, se identificam entre si no seu eu. Assim, uma comunidade
se organiza em torno de um ponto, objeto inapreensível que causa o desejo, objeto a.
O desejo se constitui, para Lacan (1961-62), antes de tudo como aquilo que está
escondido no Outro por estrutura; é justamente o impossível ao Outro que se torna o
desejo do sujeito. O desejo constitui-se como a parte da demanda que está escondida ao
Outro, este Outro que não garante nada justamente enquanto Outro. O objeto vai pôr-se
coberto no princípio de ocultação do lugar mesmo do desejo. O objeto de desejo existe
como este nada enquanto oculto ao Outro, e torna-se o invólucro de todo objeto.
O sujeito de que se trata, este do qual seguimos o traço, as pegadas, segundo Lacan, é o
sujeito do desejo, e não do amor. Lacan (1961-62) comenta que o desejo remete ao falo,
que é a presença a partir da ausência. Ele acrescenta que eu desejo o outro como
desejante, e não como me desejando, pois quem deseja sou eu e, desejando o desejo,
esse desejo poderia ser o desejo de eu (moi); se me encontro nessa reviravolta onde
estou bem seguro, ou seja, me amo no outro, se sou eu quem eu amo. Lacan explica que
o neurótico está numa posição crítica em razão de sua impossibilidade estruturante de
identificar sua demanda com o objeto de desejo do Outro ou de identificar seu objeto
com a demanda do Outro.
Assim, a identificação histérica remete à alienação ao Outro. Soler (1998a) comenta que
o sujeito histérico se caracteriza por sua conexão direta com o Outro barrado e por sua
propensão a identificar-se pela via do sintoma (SOLER, 1998a: 446). Esse uso do
184
sintoma não separa o sujeito do Outro, ao contrário, o conecta com ele. Como salienta
Soler, a identificação em seu sentido habitual implica a alienação ao Outro. Ela
acrescenta que o que permite ao ser falante ser educável, cil ao laço social, é a sua
possibilidade de identificação, sua capacidade para aceitar as ordens do significante”
(p.445).
No seminário RSI, Lacan, comentando sobre os três registros e seu enodamento, retoma
a identificação tripla, como foi definida por Freud, a partir da formulação dos três
registros: real simbólico e imaginário: ...se há um outro real, o está senão no próprio
e é por isso que não há Outro do Outro. Esse Outro real, identifiquem-no com o seu
imaginário, terão então a identificação do histérico com o desejo do Outro, esta se passa
nesse ponto central” (LACAN, 1974-75: 53). Quando há uma identificação com o
simlico do Outro real, há a identificação como traço unário (Eizinger Zug). Quando
uma identificação com o real do Outro real, o nome do pai, no que a identificação
tem a ver com o amor. Essa discussão da identificação com o real levará à formulação
de Lacan sobre a identificação com o sintoma.
Podemos relacionar esse terceiro tipo de identificação com o processo de identificação
que ocorre na adolescência. Diante da necessidade de se operar uma separação da
autoridade paterna, o adolescente vai em busca de novas identificações. Se o saber, na
infância, estava ligado aos pais, a adolescência é exatamente o momento em que eles
são destitdos deste lugar de saber. Nesse momento, o adolescente busca a construção
de um saber próprio, que escape aos pais.
Assim, nesse grupo social, os jovens colocam um objeto no lugar de seu ideal e, em
função disso, se identificam entre si no seu eu. Uma comunidade se organiza em torno
de um ponto, objeto inapreensível que causa o desejo, objeto a. Os adolescentes se
identificam entre si com “a adolescência”.
O grupo de adolescentes vai ser o lugar de construção de um novo saber, que é
compartilhado pelo grupo de pares, que exclui os pais. Nesse espaço, cria-se uma
comunidade de códigos, de língua, de regras, um saber comum. Num grupo de iguais,
estabelecem-se critérios de “entrada” e de “saída”, “inclusão” eexclusão”, onde é
possível reconhecer-se enquanto adolescente. As identificações coletivas constituem-se,
185
portanto, possibilidades de inserção social, mas que funcionam, de certa maneira, à
margem do social. O adolescente busca o reconhecimento “fora” do grupo social,
enquanto pertencente a um grupo que está certamente à margem da sociedade, pois a
representação social de adolescente define-o exatamente como aquele que está em
transição, não é criança nem adulto, está, consequentemente, “fora”, “à margem”, “em
compasso de espera” para entrar no universo social.
O grupo é um campo de fenômenos narcisistas maciços, como salienta Soler (1998a). A
pertinência ao grupo leva aos ganhos narcisistas. Ela destaca que, neste laço do sujeito
com o Outro do significante, há uma dupla necessidade: incluir-se e subtrair-se. O
incluir-se realiza-se nas admissões formais ou instituídas, quando o sujeito, ao pedir
para ser admitido, busca ser representado pelo significante do grupo, incluir-se. Mas,
paradoxalmente, “ao ser admitido como um entre outros, o sujeito não pode menos que
sentir sua diferea aplainada e então aspirar a distinguir-se” (SOLER, 1998a: 297).
Assim, a autora aponta a dialética do sujeito e o Outro: incluir-se através da
identificação com o grupo e distinguir-se para deixar aí o seu vazio.
Podemos estabelecer aqui uma hipótese: os adolescentes, ao identificarem-se com o
grupo de “adolescentes”, buscam incluir-se a partir da identificação com o grupo. Mas,
para distinguirem-se nesse grupo onde a diferea fica aplainada, eles escrevem seus
diários, seus “blogs” pessoais, individuais, como uma “escrita de si”, que os
particulariza nesse universo de iguais.
Soler (1998a) identifica o grupo enquanto o Outro do significante no qual o sujeito deve
alojar-se e enquanto o Outro do gozo. Retomando Freud em “O mal-estar na
civilização”, Soler destaca que o grupo identifica, coletiviza e contém o gozo destrutivo.
Assim, o grupo exerce uma função humanitária, mas ela destaca que é um efeito interno
e parcial, que toda renúncia se paga com um retorno do gozo. No grupo, o contido
no interior retorna ao exterior” (SOLER, 1998a: 298). Esse conjunto identificado por
um significante (S1), que no caso dos blogs pesquisados é adolescente”, opera uma
certa regulação interna do gozo. Fica, portanto, excluído aquele que o se inscreve
como S1, ou seja, aquele que não é adolescente”, como o adulto. Entre os dois cria-se
uma luta estruturalmente programada. Como salienta Soler, o S1, como significante
mestre, pacifica apenas localmente e leva, de maneira correlata, à guerra com o que não
186
é S1. Há o racismo em relação ao gozo do Outro, mas, paradoxalmente, a idealização
dos modos de gozo em relação ao que está fora. Identificamos em muitos blogs de
adolescentes o “adultocomo aquele que não compreende o adolescente, está situado
“fora”, “excluído” do grupo, desta forma, incapaz de compreender o que se passa
internamente no grupo e, muitas vezes, “um inimigo em potencial”.
Atualmente, como há uma homogeneização dos modos e objetos de gozo, há um
apagamento das diferenças, o que pode levar à exaltação das particularidades e a
reivindicações regionalistas, como um retorno da diferença foracluída, uma de suas
compensações, como sublinha Soler (1998a). É possível pensar que a adolescência,
como fase marginal da vida, não muito bem situada (“entre” a infância e a fase adulta),
ao se agrupar na marginalidade do espaço virtual (que é também um “lugar/o lugar”),
exalta suas particularidades, unindo-se e retornando como uma diferença foracluída.
No blog abaixo, sua autora se dirige apenas às pessoas que estão passando pelo mesmo
problema, os “adolescentes”. Ela exclui, portanto, quem o é adolescente:
e tô aqui pra falar de assuntos atuais de Adolescentes para Adolescentes...‖
...quero q aqui seja um diario q atrai apenas pessoas q estao passando pelo
mesmo problema ....ser adolescente nao eh facil neh...‖
http://desabafodeumaadolescente.zip.net/arch2006-10-15_2006-10-21.html
A autora do blog abaixo comenta que “odeiaescritores adultos falando da adolescência.
Para ela, só mesmo um adolescente pode escrever sobre a adolescência:
Sinceramente, eu odeio esses livros para pessoas como eu, em plena
puberdade (por sinal, que palavra horrível) de autores adultos e
principalmente autores homens. OK, eles passaram por isso um dia e,
muitas vezes já nos sentimos como eles, mas existe um pequeno e modesto
detalhe nisso: nunca vi um livro onde uma adolescente tenha escrito (exceto,
talvez o Diário de Anne Frank) todas as suas dúvidas, as suas confusões, os
seus problemas, seus dramas, suas carências...se alguém conhece um, me
diga, por favor, porque eu estou cometendo uma rata terrível.
http://adolescentegirl.zip.net/arch2006-07-30_2006-08-05.html
Se a puberdade é um dos momentos em que a não-relação sexual aparece para o sujeito,
sabemos que a adolescência é a resposta sintomática que o sujeito vai dar a isso, é o
arranjo particular com o qual ele organizará sua existência, sua relação com o mundo e
com o gozo. O autor propõe a clínica da adolescência como a clínica do sintoma. Mas se
187
trata de uma resposta individual e como escolha de um sujeito. Na adolescência, há
certo despedaçamento do imaginário diante da irrupção do real da puberdade rgão
marcado pelo discurso na ausência de um saber sobre o sexo). Na ausência de um saber,
resta a cada um inventar sua própria resposta. Stevens descreve o real da puberdade,
articulando-o com três definições de real em Lacan: um primeiro conceito de real,
articulável na disjunção entre a identificação simbólica e imaginária, disjunção esta
acentuada no momento da adolescência em função do despedaçamento da imagem; um
segundo conceito de real como aquilo que irrompe, que não tem nome e que vem
modificar a imagem, que acontece no tempo do despertar da puberdade, e o real como a
o-relação sexual, que faz retorno na puberdade. A adolescência é, pois, a enumeração
de uma série de escolhas sintomáticas em relação a esse impossível, que é o real da
puberdade.
Podemos pensar que a identificação com a adolescência é, portanto, uma resposta a esse
impossível de ser nomeado, ao real da puberdade”. Mas, dentro das várias respostas a
esse impossível, cabe a cada sujeito uma escolha particular. Assim, podemos pensar que
o blog é uma das possibilidades ofertadas pela cultura atual ao jovem que se identifica
com a adolescência. Nessa cultura “global”, o sujeito, em seu blog, pode construir algo
que o particulariza. A construção de um romance familiar no blog pode ser a tentativa
de tecer algo particular, nesse universo de iguais.
188
CAPÍTULO 4: A ESCRITA DO ROMANCE NOS BLOGS
O texto do blog, como uma narrativa sobre si, é construído a partir da pergunta sobre o
desejo e sobre o sexo. Na tentativa de responder a essa questão, o sujeito pode construir
um romance familiar. Ele é feito de recortes de frases, palavras e letras soltas, poemas,
ilustrações, fotos, letras de música, piadas, crônicas, escritos enigmáticos, sem sentido,
lembranças, compondo um texto híbrido, que revela duas dimensões da escrita: como
linguagem e como letra
1
, escrita de gozo. Como sublinha Lacan em Lituraterra (2003
[1971]: 16), “a literatura é uma acomodação de restos”.
A escrita de um blog evidencia a tessitura de um território, ao mesmo tempo íntimo e
público. É uma escrita de enigmas, que são constituídos para não revelarem e, portanto,
que velam. Mas também é uma escrita que se oferece ao olhar do outro. Como escrita
do íntimo, ela inscreve-se como vertente do u, como tentativa de inscrever o feminino,
esse vazio para além do registro fálico com o qual o jovem é confrontado na puberdade.
Lançada ao olhar do outro, ela provoca e incita, convidando ao seu desvelamento. O
adolescente tece seu texto com o cuidado de se oferecer e, ao mesmo tempo, de se
subtrair ao olhar do outro, construindo uma solução à feminilidade, num jogo histérico.
A escrita de um blog, como artifício fálico substitutivo da falta, pode se inscrever no
registro do “discurso histérico”, que parte da pergunta sobre o desejo e sobre o sexo,
podendo levar à construção de um romance.
Na vertente romanceada dos blogs, identificamos, assim, a vertente do discurso
histérico, do inconsciente estruturado como linguagem, a vertente significante (S1 S2),
que busca a construção de um sentido (a amarração entre o imaginário e o simbólico),
como mensagem endereçada a um Outro, que serve à comunicação e faz laço social,
como será visto adiante.
1
O conceito de letra é trabalhado no capítulo 5.
189
4.1. Escritos da adolescência: a vertente de romance nos blogs
02/08/2007
AMOR ROMÂNTICO
Se você não tem mesmo certeza se é amor o que está sentindo, não se preocupe.
A melhor coisa sobre o amor é sua constante incerteza. Um dia você está
seguro, sabe exatamente o que está se passando com você, então numa semana
inteira de angústia, sua certeza desaparece e você não tem mais certeza de
nada.
Um dos grandes mitos que nos engana muito, é como saber quando o amor
verdadeiro chega; outro é, se não sentimos aquela descarga elétrica que nos
tira a respiração, então não é amor; e um terceiro é a existência da "Pessoa
Certa".
E nada disso é verdade...
Namorar é muito divertido e romântico, mas eu descobri que para muitos
casais o namoro é uma fonte de angústia, por causa do medo da rejeição e da
solidão.
O mito do "Amor Romântico" é o que causa mais sofrimento, pois hoje em dia
ninguém demonstra o romantismo que tem dentro de si, para não se tornar
uma pessoa "careta", e é essa expectativa do amor romântico que deixa as
pessoas solitárias e inseguras. E o mais interessante é que somos nós mesmos
os responsáveis pela manutenção desse mito, somos nós que damos a
expectativa que o mesmo terá.
E ninguém tinha me dito que eu passaria o tempo avaliando as diferenças que
me separavam da pessoa que talvez eu estivesse amando. Ficamos todo o tempo
tentando descobrir qual é a natureza do amor verdadeiro, isto machuca as
pessoas e aumenta as dúvidas a respeito dos sentimentos dedicados a ela.
Muita gente pensa: ... se tivesse encontrado a pessoa realmente certa, o
estaria em conflito com ela o tempo todo...
http://xonadinhamarcell.zip.net/arch2007-07-29_2007-08-04.html
No blog acima, sua autora (Xonadinhamarcell) fala dos desencontros amorosos e do
ideal do amor romântico. Comenta que na atualidade o existe mais o romantismo,
190
mas, paradoxalmente, ela sofre por buscá-lo. Assim, mesmo na cultura do “amor fluido”,
o romance, como a ilusão do amor, é o que permite sustentar o vazio do encontro com o
que escapa à significação.
Terça-feira , 06 de Junho
Oiee!!
Hmmm.. o//
Então.. ateh q enfim criei meu Blog.. Meu diário.. hehe. Deve ser legau, contar minhas
"aventuras".. quer dizer, nem são aventuras.. ah sei lah, soh sei q passo por tanta coisa..
bem, sou uma adolescente normal, com meus 14 anos, chegando nos 15 esse ano, o//
tenho meus amores, minhas dores, decepções.. como todo mundo!
tenho meus amigos, minahs amigas..minha vidinha normal..tenho meus estudos.. tenho
a minha família q eu amo d+!
tenho mta coisa.... e pretendo compartilhar todas minhas alegrias e tristezas aqui...
procurar conselhos de vez em quando tbm eh bom, ñ faz mal a ninguem..
=D Acho q eh isso. Beijos!!
Postado por: ^^_Bah_^^ às 19h53
191
No blog acima, “Bah” utiliza uma imagem para ilustrar seu texto, que transmite sua
angústia. Ela escreve em sua primeira postagem que é uma adolescente “normal”. O que
ela considera uma adolescente normal? Logo vem a resposta: tem seus amores, dores,
decepções, amigos, amigas, família... O significante adolescente opera pacificando o
gozo, mas, por outro lado, não a singulariza nesse universo de adolescentes. Ela se
descreve “igual” a todos os outros adolescentes. Seria o blog o início da tessitura de
algo particular? Buscamos conhecer o que os adolescentes escrevem em seus blogs.
Seriam os mesmos temas dos diários íntimos? Os blogs se constituiriam como romances,
assim como os diários íntimos?
Para esta pesquisa foram selecionados dois blogs de curta duração escritos por
adolescentes. Eles foram transcritos de forma integral, sem recortes nem correções, para
que se pudesse avaliar, a partir de seu texto, os diferentes temas abordados e sua
evolução temporal. Foram também selecionados dez blogs para identificar os temas
mais frequentes em seus textos. Estes não foram reproduzidos na íntegra, mas foram
recortados” alguns trechos para ilustrar os temas mais frequentes, como foi
apresentado na discussão metodológica.
As condições que definem um romance clássico podem ser encontradas em alguns blogs.
Em alguns textos os personagens são distintos e bem definidos, há a separação do
comentário e da descrição, está presente também o jogo de palavras da conversação
pública (os autores muitas vezes dialogam com os leitores que deixam os seus
comentários) e a ruminação da conversação interior (muitas vezes o blogueiro
conversa com ele mesmo”). A busca de um sentido para a vida individual aparece em
rios blogs pesquisados. É possível identificar a construção do personagem como
principal protagonista da própria história.
Os temas mais frequentes são: relacionamentos amorosos, relacionamentos familiares,
amizades, vida sexual (medos da iniciação sexual, fantasias, experiências e conflitos
sexuais) e adolescência. Em seguida, são também comuns os temas: músicas (shows,
bandas, letras de música), artistas, novelas, filmes, leituras, moda, animais de estimação,
objetos de consumo, esportes, política e religião.
192
De acordo com a pesquisa, o preconceito com relação ao blog pessoal ou confessional,
comum aos blogueiros adultos, não parece estar presente entre os adolescentes
2
. Os
adolescentes utilizam o blog para uma escrever “sobre sie nomeiam seus blogs como
diários. Selecionamos dois deles para ilustrar a grande variedade de temas abordados e
para mostrar dois percursos diferentes na escrita.
O primeiro é o blog “Volta ao Mundo”, de uma adolescente de 15 anos, Graziele.
BLOG Volta ao Mundo “ GRAZIELE
22/02/2004
Outro BLOG que vale a pena: - Diário da Dani -Pensamentos e idéias
"Existe diferença entre conhecer o caminho e trilhar o caminho." ( matrix )
Escrito por Escrito por Grazi às 04:55
[ (0) Dê sua opinião! ] [ envie esta mensagem ]
21/02/2004
Graziele = Puro conhecimento
Escrito por Escrito por Grazi às 03:35
[ (0) Dê sua opinião! ] [ envie esta mensagem ]
Blog da ZiZi...
É este aqui!!!
Escrito por Escrito por Grazi às 03:33
[ (0) Dê sua opinião! ] [ envie esta mensagem ]
Você tem um caminho certo, ou vive se perdendo? Você tem um caminho a seguir ou está ao vento?
Converta seu caminho, mude a direção, pois onde estás, pode terminarem em um abismo. Siga
o caminho que leva à salvação. E o caminho é um: O Senhor Jesus
Escrito por Escrito por Grazi às 03:18
[ (0) Dê sua opinião! ] [ envie esta mensagem ]
Dica: Ao colocar sua foto na internet, você está dando a oportunidade de qualquer um-la. Se uma
pessoa mal intecionada acha a sua foto, e à transfira para um outro programa e escreva sobre você
( no caso sua foto ) um monte de bobagens, seria deságradavel, não seria?
2
Denise Schittine constata em sua pesquisa que existe uma grande rejeição por parte dos blogueiros
quanto à classificação do blog como diário íntimo. In: SCHITTINE, Denise. Blog: comunicação e escrita
íntima na internet. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. 235 p.
193
Escrito por Escrito por Grazi às 03:09
[ (0) Dê sua opinião! ] [ envie esta mensagem ]
Somos todos brasileiros! Qual a diferença do carioca para o gaúcho, ou do paraibano para o
paulista, ou do mineiro para o amazonense, ou do baiano para o paraense?
Existem pessoas que se sentem ofendidas, por serem confundidas com uma pessoa que tenha nascido
em um estado que não seja o seu. Existem também, pessoas que por terem conhecido ( exemplo ) um
carioca ruim, generalizam, tendo o Rio de Janeiro como um estado ruim, e que todos os cariocas ou
fluminenses sejam ruins, essa atitude é incorreta, digna de uma pessoa sem conhecimento.
É claro que muda de estado para estado, o modo de falar, alguns modos de agir, alguns alimentos,
as paisagens, enfim, cada estado tem sua cultura e sua história, mas isso não significa que uns sejam
melhores que os outros, pois todos nós, de Norte a Sul defendemos uma única pátria, temos um único
hino, e sofremos com o mesmo governo.
Escrito por Escrito por Grazi às 02:58
[ (0) Dê sua opinião! ] [ envie esta mensagem ]
18/02/2004
Suz@ninh@maninha amada!
Escrito por Escrito por Grazi às 12:45
[ (0) Dê sua opinião! ] [ envie esta mensagem ]
O Rio é tri legal, E o gaúcho é sangue bom... Visite Viamão ( Rio Grande Do Sul)
Escrito por Escrito por Grazi às 03:35
[ (0) Dê sua opinião! ] [ envie esta mensagem ]
Vamos fazer justiça!
Vamos fazer rebelião!
Vamos tirar pobre da cadeia!
E por político ladrão!
Escrito por Escrito por Grazi às 03:28
[ (0) Dê sua opinião! ] [ envie esta mensagem ]
Coisa boa no Rio: Praia Coisa ruim no Rio: Carnaval
[ (0) Dê sua opinião! ] [ envie esta mensagem ]
Somos nós que criamos a nossa realidade, enquanto DEUS nos permite viver. ( Ronaldo Monteiro
Nunes )
Escrito por Escrito por Grazi às 03:19
[ (0) Dê sua opinião! ] [ envie esta mensagem ]
194
Teen Não é só porque você é jovem, que vai ser um tolo, adolescente não precisa ser ridículo para
ser adolescente.
Escrito por Escrito por Grazi às 03:16
[ (0) Dê sua opinião! ] [ envie esta mensagem ]
2/12/2004
GRAZIELE
* Todo mundo procura ser feliz na vida. Não é? E você, quer uma sensaçâo de felicidade, quer ser
feliz hora sim hora não, quer uma felicidade que dure uma noite só, ou uma Felicidade que não tem
fim?
** Então não seja mais careta! Conheça o Deus vivo e tenha a verdadeira felicidade!! **
Escrito por Escrito por Grazi às 02:49
[ (0) Dê sua opinião! ] [ envie esta mensagem ]
Saiba mais sobre mim:
Sou uma carioquinha de 15 aninhos, que brevemente irá morar no Rio Grande do Sul.
Como toda adolescente gosto de dançar, paquerar, ter amigos, etc. Tudo que faço é bem pensado,
sou bem responsável, porém não sou aquela pessoa chata. Sou justa e crítica, sei valorizar uma
verdadeira amizade e não suporto pessoas preconceituosas, pois para mim são dignas de pena.
O meu objetivo com este blog é ter um espaço que seja a minha cara, onde eu possa por o que eu
penso, é uma oportunidade a mais de conhecer pessoas legais, de ter acesso a outros mundos, etc.
Vimos no blog da Grazi que ela utiliza uma linguagem informal e própria do
ciberespaço. Seu texto é composto de citações diversas, contestações, indicações de
blogs e de cidades que ela considera interessantes, pensamentos que abrangem
diferentes temas: Deus, amizades, adolescência, riscos da Internet e política. Mistura
imagens, cores, letras e mensagens diversas. Ele é marcado, de uma maneira geral, por
frases curtas, é claramente fragmentário, sem um encadeamento de ideias. Não existe
uma sequência lógica nos temas abordados. Esse tipo de blog é muito comum no
195
ciberespaço. Não acompanhamos aqui a construção de um romance próprio e,
consequentemente, a constituição de um personagem como o protagonista dessa história.
É um blog de curta duração, um texto de fragmentos, sem a construção de uma história.
Veremos agora o blog da Lana:
Blog da Lana
04/01/2005
Amores possíveis...
Tenho uma amiga, praticamente uma irmã, na verdade é um grupo heterogêneo de vidas que se
encontraram no colégio e dividem seus segredos mais íntimos e põe íntimo nisso, alegrias , tristezas ,
esperanças , dores .
Mas esse texto se refere a uma unica exclusivamente, a erica, é doce, carinhosa, compreesiva, mas
quando põe algo na sua cabeçinha naum volta atrás. É pra ela que estou escrevendo, pra dizer: por mais
que pareçe o mundo vai desabar, queum buraco no chão se abriu e vai cair nele, amiga ,sentimentos
são transitórios e até aqueles que achamos eternos se tornam ternos , pois o fogo que o arde incendiando
o nosso peito apenas se transformanm em brasas.
Amiga, com o tempo exergamos muitas coisas que antes no calor do amor naum percebíamos, talvez
qualquer coisa que fale naum adiantaria, no entanto te peço apenas pra descer da gangorra , pois no
amor deve haver um equilíbrio...e caso vc resolva descer , moída , despedaçada , angustiada e chorosa ,
aqui estarei eu pronta pra te consolar ,porque pra que servem os amigos se naum estão conosco nas
horas cruciais?
- Postado por: Lana às 20h16
[ (0) Comente] [ envie esta mensagem ]
28/12/2004
Pessoas que passam.... na nossa vida
Há pessoas que passam nas nossas vidas, e apesar de um papel quase coadjuvante são de
extrema importância para o continuar de nossa jornada ...
Eu tinha um pensamento preconceituoso, onde apenas pessoas "mestradas", ou com alguma experiência
de vida, e com a cabeça no lugar poderiam me ensinar alguma coisa, onde poderia extrair delas algo de
grande pra minha vida...
Pois é ledo engano... e talvez só agora a ficha tenha caido, pois conheci pessoas a pouco tempo que
mudaram um pouco a forma de eu ver o mundo , os meus conceitos e pré -conceitos e a forma de ver
o amor .....Acho ou melhor tenho a certeza de não que não as verei mais nesta minha passagem
pela majestosa terra ....Mas fiquei com algo delas em mim.
Aprendi o valor de um simples toque de pele; pude constatar que a frase clichê" um olhar valem mais
que mil palavras", é a afiramativa mais coerente quando não há muito que falar .No entanto a alma usa
os olhos como seu espelho pra declarar o que está sentindo naquele instante mágico , e este irá
ser preservado em algum lugar de nossa memória.
196
Aprendi também, como está no filme de Cazuza que existe o certo, o errado e todo resto. O todo resto é
aquilo que ninguém aplaude, nem vaia, porque ninguém vê. E as vezes a forma de nós realmente
descobrirmos um pouco de nós e descolarmos de nossas pobres almas os mitos do sapo que se
transforma em príncipe , o amor ideal ,o amigo perfeito , que tipo de pessoa vamos ser daqui a dez anos :
inacessíveis ,distantes , amargas porque não nos permitimos viver aquelesmomentos mágicos por não ter
tido alguém que nos abriu as janela de nossas almas , pois ignoramos as pessoas que que se enquadram
no todo resto.
Quem sabe um dia eu digo quem são essas pessoas que deixaram suas marcas mais intimas em
mim,apesar de termos ficados juntos por instantes....
- Postado por: Lana às 21h15
Monique
Martins
23 anos
São Gonçalo -
RJ
Meu perfil
BRASIL , Sudeste ,
Mulher , de 20 a 25 anos ,
Arte e cultura , Bebidas e
vinhos , gastronomia
MSN -
niktista@hotmail.com
Histórico:
- 01/03/2005 a 31/03/2005
- 01/01/2005 a 31/01/2005
- 01/12/2004 a 31/12/2004
- 01/11/2004 a 30/11/2004
02/12/2004
Alguma vez na vida, já precisou mudar radicalmente a sua vida .... seja de lugar , ou de estilo de
vida .Pois é eu estou passando por essa fase , naum vou mudar de bairro e sim de cidade, um lugar não
desconhecido, mas que não tinha vinculos pois minhas raízes ainda estavam aqui...
Mesmo sem ter ido, sinto uma certa melâncolia. apesar de um dia ter desejado muito sair daqui por
causa de uma paixão do passado, hoje consigo ver tudo que passei aqui e ao analisar vejo que valeu a
pena.
Aqui começeu a minha vidinha de criança, brinquei de escolinha mesmo que sozinha pelos corredores do
meu apartamento. Sonhei em ter uma amiguinha perto , mas com o tempo fui crescendo e quis apenas
ficar no meu quarto escrevendo no meu diário à cadeado , sobre os meus amores platônicos ... e
olha daria um livro pq arrastava esse sentimento platônico por anosssss...rsrs.
Quando dei por mim já não era mais pré -adolescente e sim aborrecente, não queria mais me exilar no
quarto e sim fazer com que o mundo me conhecesse , queria ser descoberta por alguém ,ou descobriru
primeiro amor ...Foi aqui que descobri o amor ou o que se parecia com ele ,e tive minha primeira
decpção também..Hoje que estou adulta... acho que tenho que ir Está na hora de bater a porta daqui
para outra se abrir....
- Postado por: Lana às 23h11
[ (1) Apenas 1 comentário] [ envie esta mensagem ]
01/12/2004
197
só por hoje eu não quero chorar, por aquilo que eu não vivi...pelo vazio que ficou sem você mesmo nunca
ter vindo...por amar sem nunca saber ao certo quem ao menos és...pelo adeus que não lhe dei porque
nunca partiu...pelas brigas que naum protagonizei...e pelas pazes que não fizemos, já que nunca
brigamos...
- Postado por: Lana às 22h55
[ (0) Comente] [ envie esta mensagem ]
30/11/2004
Aguma vez em sua vida ...
Alguma vez quis que o tempo parasse e aquele momento congelasse...Que naum amanhesse nunca....Que
a pessoa que encontrou fosse exatamente aquilo que estava alí , mas ao mesmo tempo naum fosse ,
porque por ser assim , seria o começo do fim ...Que a porta do elevador naum fechasse...Que o taxi
naum chegasse...Que o carro tivesse pra sempre quebrado...Que o telefone tocasse e sempre fosse quem
queria...Que tudo isso fosse verdade, e naum mentira...Que naum fosse apenas uma recordação solitária,
mas fizesse parte das lembranças de alguém...Que pelo menos, a parte da música "ela dormiu no calor
dos meus braços e eu acordei sem saber se era um sonho" fosse por completo protagonizada por
vc ...Mas essa é amelhor forma de sair e entrar na vida de alguém, sem deixar rastros e naum saber
quantas marcas deixou, ou pior...saber que naum deixou nenhuma marca, pelo menos alguma vez na
vida de alguém...
- Postado por: Lana às 12h22
[ (2) Vários Comentários] [ envie esta mensagem ]
29/11/2004
que tipo de pessoas somos ....
Pode parecer que tenho uma visão romântica das coisas, mas aminha volta só comheço uma pessoa que
talvez naum tenha sucumdido ao glamour do dinheiro , ou as coisas que ele proporciona, ou a
pedantismos devido a um novo amor , sabe aquele sentimento adolescente quase infantil de quando
estamos amando e tudo e todos parecem pequenos diante do que vivemos ...God... parece que esses vírus
estão se espalhando pelos meu queridos ...
A vida é tão curta ligeira, e perdemos o tempo com sentimentos mesquinhos e pequenos. Afastamos de
nós aqueles que realmente poderiam nos estender a o , nos amar de verdade sem termos que pagar
pedágio por isso .Mas tudo bem as vezes na vida uns crescem e sua mente evolui quase igual de um
monge budista do Tibet , outras involuem e perigam pssar pelo que esna música do Ben Harper
"quem acha que tem tudo , tem tudo a perder "
Beijos
28/11/2004
Queria entender, porque tendo entender tanto as pessoas?Claro que naum são todas... algumas
especiais...Queria entender porque acabamos muitas vezes repetindo os mesmos erros, como se
acontecessem em circulos...Queria entender porque nos apaixonamos por pessoas que são cópias de
outras... Será que amamos também em círculos...Queria entender o motivo de achar quem achamos,
talvez porque tenha procurado, mas quero ir mais além... Porque o achei se naum foi por você que
procurei...Como faço eu, pra colacá-lo de volta aonde o encontrei sem que algum dia queira passar por
lá...Queria apenas entender, não para mudar alguém ou o mundo, mas pra descobri o que nunca me
disse:Quem realmente é você?
198
O blog da Lana apresenta a combinação da linguagem formal com a linguagem típica do
ciberespaço. Ele possui muitas características formais do diário tradicional.
Diferentemente do Volta ao mundo”, neste aqui não existem muitas imagens e cores,
recursos muito frequentes nos blogs de adolescentes. Lana aborda os seguintes temas:
relacionamentos amorosos, amizades, transformações da adolescência, conflitos com
relação à identidade e os motivos da escrita de um diário na rede. Apesar dos diferentes
temas abordados a cada dia, no texto um encadeamento de ideias, uma ordem lógica,
uma articulação significante. um predomínio da vertente romântica, sentimentalista.
Como no romance clássico, a busca pelo estabelecimento de um sentido para a vida
individual. Acompanhamos, também, a relação entre o tempo e a construção de um
personagem. Está presente uma escritura autorreferencial e um tom confessional, que
busca o desvelamento de uma subjetividade. Ela questiona as escolhas amorosas, o
sentido da vida, recorre ao passado, interroga o futuro. Começa a construção de um
romance familiar. Mas como o blog é interrompido, não podemos acompanhar todo o
processo de construção de um romance. Talvez ele possa ser definido como um blog
que tem a intenção de um romance.
Nos blogs que se constituem como romances, identificamos a busca de construção de
sentido, de significação. Essa construção se em torno de diferentes temas. Os cinco
mais frequentes encontrados nos dois blogs citados acima e nos outros dez blogs
pesquisados foram: relacionamentos amorosos, relacionamentos familiares, amizades,
vida sexual e adolescência. Esses temas sempre estiveram presentes nos diários de
adolescentes. No entanto, eles devem ser considerados também em sua relão com a
cultura, pois apresentam especificidades na contemporaneidade. Discorremos sobre eles
considerando essa dupla perspectiva.
4.2. A escrita do amor: relacionamentos “fluidos” na contemporaneidade
Os conflitos amorosos estão presentes em quase todos os blogs pesquisados. No blog da
Lana, ela situa a fase em que está: aborrecência”, diferenciando-a da pré-adolescência.
Diz que na pré-adolescência tinha um diário fechado com cadeado” e ficava sozinha
escrevendo em seu quarto. Agora diz que na adolescência “não quis mais se exilar no
quarto e sim fazer com que o mundo a conhecesse, queria ser descoberta por alguém, ou
descobrir o primeiro amor”; acrescenta que foi aqui(Internet) que descobriu o amor e
199
teve também sua primeira decepção. Fica claro o interesse da autora em “ser conhecida”
pelo mundo e em fazer relacionamentos amorosos via Internet.
As declarações de amor dirigidas aos parceiros, na maioria das vezes não identificáveis,
estão muito presentes nos diários virtuais. Em um outro blog de adolescente,
encontramos:
Amor...tá tão difícil sem você aqui
Faz tanto tempo e eu não me acostumei
Eu com você seria tão feliz
Não sei, quanto demora pra essa dor passar
E se vai ter alguém no seu lugar
Que possa um dia me fazer feliz
Eu não agüento ficar sem você
E dói de um jeito, nem dá pra explicar
Meu sonho com você é tão real...
Acordo e sinto seu cheiro no ar
Como eu queria que o tempo te fizesse voltar
Outra vez, me amar...Só não pode demorar!!!!
No “Navblog”, sua autora, que escreve um “drio da minha vida”, relata “coisas de
mim”, como ela mesma nomeia. Afirma estar amando e descreve outras coisas e
pessoas de que gosta, incluindo sua mãe:
Diario da minha vida
coisas de mim!
no momento meu coraçaozinho esta muito bem ocupadinho com um
grande everdadeiro amor
Eu adoro sair com os amigos adoro conversar, adoro ver no rosto de
uma criança um sorriso
Me amarro em sk8 so que nem sei andar mas olha adimiro o Chorao ele
e a pampa !
Eu gosto de amar!
Eu amo minha mae
navblog.uol.com
Freud escreve três textos sobre “Contribuições à psicologia do amor”, entre 1910 e 1918.
No segundo texto, intitulado “Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do
200
amor(1974 [1912]), postula duas correntes cuja união é necessária para assegurar um
bom relacionamento amoroso, a afetiva e a sensual. A corrente afetiva é a mais antiga
das duas e constitui-se nos primeiros anos da infância. Ela se dirige aos membros da
família e aos que cuidam da criança. Desde o início está ligada à pulsão sexual e
corresponde à escolha de objeto, primária, da criança. As pulsões sexuais encontram
seus primeiros objetos, segundo Freud, no momento em que as primeiras satisfações
sexuais são experimentadas através da satisfação das necessidades de sobrevivência do
organismo. Assim, “essas fixações afetivas da criança persistem por toda a infância e
continuamente conduzem consigo o erotismo, que, em consequência, se desvia de seus
objetivos sexuais” (p.165).
Na puberdade, essas fixações afetivas se unem à corrente sensual, a qual já não se
equivoca mais em seus objetivos” (FREUD, 1974 [1912]: 165). O autor destaca que,
evidentemente, “jamais deixa de seguir os mais primitivos caminhos e catexizar os
objetos da escolha infantil primária com cotas de libido, que são agora muito mais
poderosas (p.165). Freud ressalta, entretanto, que agora se defronta com obstáculos
erigidos pela barreira contra o incesto. Portanto, um esforço para transpor esses
objetos (inadequados) e encontrar um caminho para outros objetos, com os quais possa
ter uma vida sexual. Esses novos objetos serão escolhidos ao modelo dos objetos
infantis e com o correr do tempo atrairão para si a afeição que se ligava aos mais
primitivos:
Um homem deixará seu pai e sua mãe segundo o preceito bíblico e se
apegará à sua mulher; então, se associam afeição e sensualidade. O máximo
de intensidade de paixão sensual trará consigo a mais alta valorização
psíquica do objeto sendo esta a supervalorização normal do objeto sexual
por parte do homem (FREUD, 1974 [1912]: 165).
As escolhas amorosas são feitas segundo o modelo dos objetos infantis. No blog da
Lana ela escreve: “Queria entender por que nos apaixonamos por pessoas que são
cópias de outras... Será que amamos também em círculos...”
Freud observa ainda que, quando a frustração da realidade for muito grande, no sentido
de se opor à nova escolha de objeto, e quando a quantidade de atração dos objetos
infantis for suficientemente forte, a libido afasta-se da realidade e é substituída pela
atividade imaginativa, fortalecendo as imagens dos primeiros objetos sexuais e fixando-
se nos mesmos. Mas a barreira erguida contra o incesto manm a libido no inconsciente.
201
A sensualidade do jovem fixa em fantasias incestuosas inconscientes. O resultado disso
é a impotência sexual.
Freud descreve também o que ele denomina como “impotência psíquica”. Nesses casos,
a atividade sexual é forçada a evitar a corrente afetiva. A restrição se coloca na escolha
do objeto. A corrente sensual que permaneceu ativa procura apenas objetos que não
rememorem as imagens incestuosas que lhe são proibidas. Toda a esfera do amor,
nessas pessoas, permanece dividida: quando amam, não desejam, e quando desejam,
o podem amar. Procuram objetos que não precisem amar. Assim, sempre que um
objeto relembra o objeto proibido, o sujeito o evita. Freud explica o mecanismo
utilizado pelos homens para protegê-los contra essa perturbação, que consiste na
depreciação do objeto sexual, sendo reservada a supervalorização do objeto incestuoso e
seus representantes. Quando se consuma a condição de depreciação a sensualidade pode
se expressar livremente.
Pode-se compreender, portanto, nessa leitura freudiana, os motivos ocultos que levam o
menino a construir uma fantasia que degrada a mãe ao vel de uma prostituta. o
esforços para transpor a distância entre as duas correntes amorosas, pelo menos em
fantasia, e, pela depreciação da mãe, ele a possui como objeto de sensualidade.
Nesses três textos, Freud descreve uma série de fatores relacionados aos mal-entendidos
entre os amantes, entre eles o ciúme, a escolha de um parceiro que não esteja livre ou de
um socialmente depreciado, as dificuldades relativas à virgindade, entre outros. Essa
lista evidencia a atemporalidade dos mal-entendidos, que estão presentes nas diferentes
relações amorosas através dos tempos.
No blog da Shirlene ela descreve alguns “mal-entendidos” que envolvem sua relação
amorosa:
05/03/07: Nesses dias fikei sabendo d uma coisa muito xata, o Pablo a ploc q ele tem como namorada e
as ploc amigas dela ligaram pro Patrik d madrugada xamando ele pra sair pq a ploc Mariana keria falar
com ele e ainda disseram q eu não ia fikr sabndo d nada, fikei muito xateada, briguei com o Pablo,
pensei maldades, até adoeci por isso, mas nada vai abalar nosso sentimento. Essas pessoas são sujas, eu
odeio todos os q se envolveram nisso.
Beca também relata algumas dificuldades que enfrenta em sua relação amorosa:
202
E, mudando de assunto, tadinho do meu namorado!!! Eu terminei com ele há algumas semanas, estava
estressada por um monte de coisas e tal, mas acabamos voltando depois de muitos desaforos e roupa
lavada (e alguns corações partidos, claro). O legal é que agora o namoro está às mil-e-uma-maravilhas!
Estamos saindo bastante, conversando mais e ele está sendo super carinhoso.. Aiai, tudo muito fofo³³³!
Ele acabou de sair daqui de casa e tal...
http://beca_glitter.blig.ig.com.br/
Freud relaciona a complicada transição da posição de filho para a de amante com as
dificuldades nas relações amorosas. Essa passagem é inaugurada na puberdade. Assim,
os primeiros amores da vida de um sujeito deixam marcas que afetarão profundamente
as escolhas amorosas futuras. Lacan (1995 [1956-57]), no Seminário 4, A relação de
objeto, ao comentar o caso clínico de Dora, paciente atendida por Freud, afirma que se
ama para além daquilo que o sujeito é, ama-se o que lhe falta: “...o que faz o dom é que
um sujeito alguma coisa de uma maneira gratuita; na medida em que, por detrás do
que ele dá, existe tudo o que lhe falta, é que o sujeito sacrifica para além daquilo que
tem” (p.143).
Lembramos que Lacan (1992 [1960-61]), no Seminário 8, A transferência, acrescenta
que aquele que ama não sabe o que lhe falta e o objeto amado é aquele que não sabe o
que tem. A célebre frase: “Amar é dar o que não se tem”, que Lacan retira do Banquete,
ilustra a impossibilidade de um relacionamento amoroso pleno, sem faltas. Para Lacan,
o que caracteriza o amante é essencialmente aquilo que lhe falta. E ele não sabe o que
lhe falta. O objeto amado, por sua vez, não sabe o que tem, o que tem de oculto e que
constitui sua atração. Entre o amante e o amado não nenhuma coincidência. O que
falta a um não é o que existe, escondido, no outro(p.46). está todo o problema do
amor. No amor sempre um mal-entendido que ilustra o desencontro fundamental
entre os seres humanos.
No momento da adolescência, há um apelo a um encontro de um parceiro para a
realização do ato sexual. O sujeito recorre então à fantasia. Freud, em um de seus
primeiros textos, Interpretação dos sonhos, escrito em 1900, distingue o desejo do “eu”
de dormir, do desejo inconsciente. O sonho é, ao mesmo tempo, uma forma de
realização de desejo, guardião do sono e do desejo do “eu” de dormir; e,
paradoxalmente, como realização do desejo inconsciente, leva ao despertar”. Nesse
sentido, todo sonho tem um efeito despertante (FREUD, 1974 [1900]).
203
Os rapazes pensam em fazer amor com as moças porque, de alguma forma, algo os
despertou” de seus sonhos
3
. O real do gozo desperta o sujeito de seus sonhos infantis.
O desejo infantil de responder ao desejo do Outro como falo já não mais o satisfaz. O
sujeito, ao se dirigir ao outro, agora o parceiro, o semelhante, se interroga sobre o seu
ser e sobre o desejo do Outro. A relação entre os parceiros na verdade é uma encenação
da relação de cada um com o objeto de sua própria fantasia.
É exatamente quando os rapazes satisfazem as ideias de virilidade e as moças se
posicionam como semblante de objeto, que o encontro sexual fracassa. É no momento
em que os rapazes e as moças estão “prontos” para o encontro, que ele fracassa. Assim,
Lacan enuncia a relação sexual como impossível, como já foi abordado. Não relão
sexual entre os sexos. No inconsciente não inscrição de significantes que poderiam
elaborar um saber sobre a relão entre um homem e uma mulher. Nenhuma relação
entre dois significantes vai possibilitar inscrever um saber sobre a relação sexual”.
no inconsciente uma falha de saber, um buraco estrutural, que aponta para a
impossibilidade da linguagem recobrir o real. No lugar dessa ausência, se inscreve a
função fálica. O Complexo de Édipo inscreve a função fálica, como efeito da castração.
A linguagem introduz a possibilidade de gozar e a universalização da perda de gozo.
Mas Lacan ressalta que algo que escapa aos limites implicados na função fálica, que
é o enigma do gozo sexual feminino. O gozo feminino não se submete à norma fálica, é
enigmático, está fora do sentido.
Na adolescência a irrupção do sexual faz ruptura com o gozo fálico, mostrando a
impossibilidade da relação entre os sexos. O encontro com o parceiro aponta para algo
que não se inscreve no falo, que confronta o adolescente com essa ausência que é da
ordem da estrutura.
O amor vela essa ausência, evitando o trauma do encontro. Lacan (2003 [1974])
comenta que o amor cortês é um grande engodo, é uma maneira de evitar o trauma do
encontro. O amor cortês, ao colocar o objeto de amor como inacessível, evita e adia o
3
LACAN, Jacques. Prefácio a O despertar da primavera (1974). In: Outros escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2003 (Campo Freudiano do Brasil), p.557-559.
204
encontro. Esse momento do encontro é ricamente ilustrado no romance de Marguerite
Duras, O deslumbramento
4
.
Nesse romance, a adolescente Lol V. Stein, de 19 anos, o noivo Michael Richardson
ser arrebatado por uma desconhecida no grande baile do Cassino Municipal de T.
Beach. Toda a trama se desenvolve em torno da cena do baile. É nesse momento que
começa e, ao mesmo tempo, se interrompe, por dez anos, a vida de Lol. Lacan comenta
esse romance no texto em que faz uma homenagem a Marguerite Duras
5
. O romance
gira em torno do arrebatamentode dois numa dança, sob o olhar de uma terceira, Lol,
a noiva que observa o rapto de seu noivo por uma outra mulher. “Ele tinha parado,
olhado as recém-chegadas, depois conduzido Lol em direção ao bar e às plantas verdes
do fundo do salão” (DURAS, 1986: 10). Lol, momentaneamente imobilizada, tinha
visto avançar, como ele, aquela graça abandonada, encurvada, de um pássaro morto. Era
magra. Devia ter sido sempre assim” (p.10).
Marguerite Duras descreve a roupa que vestia o corpo da mulher, sob o olhar atento de
Tatiana, a amiga de Lol que a acompanha: “Havia coberto aquela magreza, lembrava-se
claramente Tatiana, com um vestido preto bastante decotado, com duas sobressaias de
tule igualmente pretas... Adivinhava-se a ossatura admivel de seu corpo e de seu rosto.
Da mesma maneira que apareceria dali por diante, morreria, com o corpo desejado
(DURAS, 1986: 10).
O tema do vestido, como Lacan sublinha, sustenta aqui a fantasia a que Lol se prende
posteriormente, “a de um além para o qual não soube encontrar a palavra certa, essa
palavra que, fechando as portas aos três, a teria conjugado no momento em que seu
amante tivesse levantado o vestido, o vestido preto da mulher, e revelado sua nudez”
(LACAN, 2003 [1974]: 201). um indizível dessa nudez que se insinua e, segundo
Lacan, é que tudo se detém.
Lacan destaca que o olhar esem toda parte do romance e a mulher do acontecimento,
segundo Lacan, é descrita por Marguerite como “não-olhar”: ...a visão se cinde entre a
4
DURAS, Marguerite. O deslumbramento (Le ravissement de Lol V. Stein), trad. Ana Maria Falcão. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 145 p.
5
LACAN, Jacques. “Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein”. In: Outros
escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.198-205.
205
imagem e o olhar, que o primeiro modelo do olhar é a mancha de onde deriva o radar,
que o corte do olho oferece à extensão” (LACAN, 2003 [1974]: 202). A partir do olhar
do noivo para a desconhecida, Lol observa as mudanças que ocorriam nele: Lol
olhava-o, olhava-o mudar” (DURAS, 1986: 11). “Os olhos de Michael Richardson
haviam-se iluminado. Seu rosto se havia contrdo na plenitude da maturidade. Nele se
lia uma dor, mas uma dor antiga, da infância” (p.11).
A cena do vestido ilustra, para Lacan, o amor, que não é nada mais que essa imagem de
si que é revestida por um outro e que o sujeito “a veste”, e, no entanto, quando é
desinvestida, o outro “a deixa”. Lacan chama a atenção para o fato de que Lol é
desinvestida de seu amante e a outra mulher é agora investida (vestida) por ele. “O que
quer dizer disso, quando nessa noite, Lol totalmente entregue à sua paixão dos dezenove
anos, „sua investidura‟ [prise de robe]; sua nudez ficou por cima, a lhe dar seu brilho?”
(LACAN, 2003: 201).
O adolescente encontra com o que do sexo faz buraco no real. uma queda das
vestiduras fálicas, que desvela o nada que as sustenta. Por trás do vestido, o indizível. O
u levantado mostra o nada. Lol desmaia.
Os adolescentes, nesse redespertar da sexualidade, buscam seus parceiros amorosos.
Essa procura não parece diferir da procura que os adolescentes sempre fizeram. Mas
uma particularidade da contemporaneidade é que essa procura se também no
ciberespaço. A maior facilidade de conhecer pessoas nesse espaço é um fator de grande
fascínio pelo ambiente virtual. Alguns autores enfatizam a maior facilidade de
engajamento e de rompimento dos relacionamentos amorosos na contemporaneidade,
impulsionados pelo ciberespaço.
Bauman, em Amor líquido (2004), comenta que os relacionamentos “virtuais” parecem
feitos sob medida para o quido cenário da vida moderna, em que se espera e se deseja
que “as possibilidades românticas” surjam e desapareçam numa velocidade crescente e
em volume cada vez maior, aniquilando-se mutuamente e impondo a promessa de “ser a
mais satisfatória e a mais completa” (BAUMAN, 2004: 12). Ele acrescenta que na vida
moderna os compromissos são irrelevantes e a facilidade do engajamento e do
rompimento nas relações virtuais seduz as pessoas. Para o autor, “pode-se namorar sem
206
medo de repercussões na vida real” (p.85). Assim, as coligações tendem a ser flutuantes,
frágeis e flexíveis.
Existe uma proximidade entre o amor, a morte e a adolescência. Bauman ressalta a
relação entre o amor e a morte, considerando que o amor é tão atemorizante quanto a
morte. Mas o amor encobre essa verdade com a comoção do desejo e do excitamento.
Se a tentação de apaixonar-se é grande e poderosa, é igualmente poderosa a atração de
escapar. Como o encontro com o outro sexo envolve, ao mesmo tempo, o fascínio e o
medo, o adolescente pode evitar uma aproximação que leve ao despertar da paixão.
Nos blogs de adolescentes é possível identificar tanto a tentativa de encontrar o par
amoroso através de seus blogs, como a necessidade de se escrever sobre o mal-estar que
envolve as primeiras relações amorosas. Mas também uma outra dimensão
importante nessa busca amorosa feita no espaço virtual. Essa dimensão é exatamente a
do não-encontro. No despertar do real na puberdade, o adolescente pode buscar adiar o
encontro com o outro sexo. A Internet tanto possibilita o acesso ao outro como o
interdita. O amor é a ilusão necessária para a relação amorosa. Na ausência de contato
corpo a corpo, o adolescente, no ciberespaço, adia esse encontro, mantendo e
possibilitando a ilusão necessária ao amor.
06/02/2007 15:29
TE AMO
Quando penso em te perder, me sinto sufocada, uma dor imensa me invade, é
como se o céu se abrisse e dele viesse um raio em minha direção que me
partisse em mil pedaços.
Quando penso em te perder, não consigo lembrar da certeza que tenho do
nosso amor.
Queria nunca mais pensar assim, queria viver nossos momentos
maravilhosos, certos, e loucos, que me deixam com o prazer de acordar a
cada dia.
Acho que esse medo de alguma forma me faz bem, que é pra nunca esquecer
que não quero te perder.
enviada por Amor
http://shirlenepatrik.blig.ig.com.br/
4.3. A escrita da “história familiar no espaço público
Os relacionamentos familiares são abordados com grande frequência nos blogs de
adolescentes. Conflitos com os pais e a busca por “maior liberdade” são temas comuns.
207
Esses temas são também típicos da adolescência, pois envolvem o importante trabalho
de separação que os jovens devem fazer de seus pais, como foi visto. Os conflitos
familiares, comuns na puberdade, atestam as tentativas e as dificuldades nesse processo
de separação. Beca escreve em seu blog o desejo de conseguir um emprego e ter o
próprio dinheiro para conseguir se libertar da dependência das tias (substitutos dos pais)
e obter o “reconhecimento” delas:
03/09/2007 01:04
- Chateada, Lembranças, Rosas Coloridas, Etc...
Oi Amores! Como vocês estão??
Postando rápido para mostrar algumas coisinhas legais que achei por aí e desabafar um pouco...
Estou louca pra arrumar um emprego logo. Não agüento mais ficar aqui em casa ouvindo reclamação
das minhas tias por isso ou aquilo. É incrível como algumas pessoas, por exemplo, só reconhecem que eu
arrumei a casa se me virem arrumando a casa. Caso contrário, acham que está tudo arrumado todos os
dias porque a casa resolveu se arrumar sozinha. Tô de saco cheio de tudo isso. Já tive que dar o Cookie
(meu toy poodle) porque uma delas acha o fim existir seres de quatro patas no mundo. Enfim, vou
arrumar um emprego, ganhar meu próprio dinheiro e, quando passar no vestibular ano que vem, vou
tapar a boca de todo mundo que acha que eu não sou capaz. De todo mundo que acha que eu não estudo
ou não reconhece o que eu faço.
http://beca_glitter.blig.ig.com.br/
No blog da Thaise, ela escreve a sua “história de vida” e reflete sobre o sentimento de
ter sido “usada” pelos pais:
―Meus pais são divorciados ha praticamente, dezesseis anos e alguns meses, todavia se respeitam,
apesar de sempre reconhecerem os defeitos um do outro. Não tenho muito contato com o meu pai. Ou
seja, fui, e continuo sendo filha de mãe solteira. Segundo os relatos de minha mãe, fui gerada com
prévios planos, ditados em um acordo entre meus pais, ou seja, os poderes e obrigações que ambos
poderiam exercer sobre mim. Por um lado, fico triste quando penso nisso, uma vez que me sinto usada,
por não ter sido fruto de uma paixão ou de um amor, tendo sido tratada como mera aquisição derivada
208
de um contrato comercial, todavia, por outro lado me alegro por perceber que fui desejada por ambas as
partes‖
No blog da Carol, ela escreve toda a sua história de vida”, a história de amor de seus
pais, com seus encontros e desencontros, buscando situar-se nesta história:
Diário de Uma Adolescente
As confusões dessa adolescente fodastiicas...** E ollha que confusão é o que nao falta...
Domingo, 6 de Abril de 2008
O Começo
E ai pessoas??
Depoois de muuuiiitos "deixa pra depoois" finalmente resolvii fazer meu blog...O principal
motiivoo??...Simples...Procuro alguem que me de conselhos e me apoie...É que os problemas por aki
andam seno meio frequentes e ja nao tenho com quem lidar...É ser Adolescente não é facil...
Mas a Adolescente aki nao começou adolescente...Começou criança...E como o titulo diiz...Hoje vou
explicar o começo...Nasci em Sorocaba, mas morava com meus pais e meus avós em uma cidade vizinha,
era meio que a "keridinhá do papai"...A princesinha pra ser mais exata...rsrs...Titulo que no começo me
serviu muito, mas ja nao tem tanta serventiia...Dois anos apos minha chegadaa esse doce lar (ahh...A
quem queremos enganar??), chegou minha irma... e 5 anos depois dela outro irmao...Como moravamos
com meus avvos a casa começou a apertar demaiis...Era Hora de se mudar!...Arrumamaos as coisas e
fomos pra Sorocaba (isso em 2001), a casa era beem grande e espaçosa...Tinha o meu quarto(meu e da
minha irma)..Era tudo otiimo...Mas os problemas começaram a chegar...E quando evm um...Vem logo
variiios...É a leii da vida nao?!...Meua paiis começaram a brigar demais...Eram brigas diarias...As
coisas melhoravam e pioravam a todo tempo...Em uma das melhooras chegou minha irmazinha maais
nova(e a mais chata...)...Mas depoois as coisas se complicaram e eles se separaram...Uma separaçao
nada...nada amigavel...Quem nos apoiou??...A familia da minha e...Chegamos a passar uma
temporada na casa deles...E como meu pai nunca gostou da familia da minha mae a briga depois da
separaçao foi maior, mas eu sai em defesa deles e eu e meu paii brigamos feio e ficamos um tempo sem
nos falar...Ai no dia da minha 1ª comunhao ele apareceu e fez minha mae escolher entre ele e a familia
dela...E ela??...Escolheu ele.. É o Amor realmente fala mais alto quando o quesito é AMORxFAMILIA....
Boom...Ai viemos fazer uma visitinha pros meus Avós(akeles com kem moravamos qnd eu era pekena) e
nunca mais saimos daki..rsrsrs...Mas a casa foi reformada e ta maior(sao duas casas...Uma casa-Um
jardim-Outra casa)...Tenho meu quarto(meu e da minha irma), meus irmaos menores tem o
deles...Enfiim...Beem melhor...Meus pais tao SUPEEER BEEEM agoora, mas de vez em quando
aindatem akelas briguinhas tipicas de casais(Hoje msm teve uma...Nao é que meu "Dad" brigou com
minha mae pq o cel dela tava sem bateria?? =/)...
Aki tenho coisas que nunca sonhei em ter antes...A vida ta beem melhoor..Mas toda Adolescente que se
preze enfrenta crises na viida não??...E eu sou uma delas...pra fazer uma historia com o tanto de
coisas que acontece comiigo...haha³³...O Título???...Esse mesmo ai do blog: Diário De Uma
209
Adolescente...
Mas um pokinho sobre miim??
É pra já...Sou uma menina muito sensivel e qualquer coisinhá ja me faz derramar umas lagrimas nada
booas...Sou leal em todos os quesiitos e se tem uma coisa que eu odei é mentira e deslealdade...(Ai não
da neah?!)...Sou FATICA ASSUMIDA E MORRIDA por RBD...Mas meu trauma mesmo...A razão da
minha vida é Ponny(Any e Poncho) e eu sei que muita gente nao gosta e talz..mas eu AMO...E so peço
que respeitem e nada maiis....
Também Amo...Vondy (Dul e Ucker),Pollis e Mai e Zanessa...
Ahh...Camila(Uma banda mexicana fodastica de booa) e claroo....JONAS BROTHERS....(Nao tem como
nao amar)...
É sou uam menina beeem diversificada...
Agoora, por esse blog dessa garota fodastica aki...Vou contar meu diia, meus amoores, minhas
amiizades...Tudo...Agoora encontrei um meio de me abrir....
Besitoos fodastiicos de boons!!!
http://diarioadolescente33.blogspot.com/search?updated-min=2008-01-01T00%3A00%3A00-
08%3A00&updated-max=2009-01-01T00%3A00%3A00-08%3A00&max-results=1
No blog acima, Carol constrói o seu romance familiar. O romance familiar é a história
que cada sujeito cria, em sua fantasia, sobre as relações dos pais, como foi visto. Essa
criação fantasiosa está ligada à sexualidade e acontece em dois tempos: na infância e na
puberdade. As fantasias da infância correspondem ao primeiro tempo do romance
familiar e seu conteúdo relaciona-se normalmente com a depreciação dos pais. Nesse
tempo, trata-se de substituir os pais por outros de posição social mais elevada, como foi
visto.
Na puberdade, as fantasias estão relacionadas ao desejo sexual e ao encontro com o
sexo. O desejo pode ser realizado pelo sujeito por meio de suas fantasias, como ilustra
Freud ao comentar sobre a vida de Dostoievski (FREUD, 1928 [1927]). Freud relaciona
a compulsão de Dostoievski pelo jogo com um sentimento de autopunição. Além do
amor ao jogo existia a necessidade de se punir e o jogo era também um método de
punição. Depois de perder tudo no jogo, até suas últimas posses, Dostoievski censurava-
se e humilhava-se diante da esposa, um ciclo que se repetia constantemente em sua vida.
No entanto, a sua esposa observa (em seu diário) que era exatamente quando o
sentimento de culpa dele se satisfazia com os castigos que se havia inflingido, que ele
conseguia libertar-se um pouco de sua inibição para a escrita e seu trabalho tornava-se
mais criativo, permitindo-lhe dar mais alguns passos ao longo da estrada do sucesso.
210
Freud (1974 [1927]) relaciona esse sentimento de culpa e a obsessão pelo jogo com o
redespertar do Édipo na puberdade. Mostra como a análise muitas vezes revela uma
fantasia plena de desejo pertencente ao período da puberdade que muitas vezes é
lembrada conscientemente. Essa fantasia revela o desejo do menino de que a própria
e o inicie na vida sexual, para salvá-lo do cio da masturbação. Freud relaciona o
vício do jogo com o cio da masturbação. Em Dostoievski, a antiga compulsão de se
masturbar é substituída pela paixão pelo jogo. Relatando um conto de Stefan Zweig, que,
segundo Freud, causa um efeito profundo no leitor, ele demonstra como o conto é
motivado pelas fantasias comuns na puberdade. Freud observa: “A igualização da mãe a
uma prostituta, feita pelo rapaz da história, vincula-se à mesma fantasia. Traz a mulher
inatingível para um alcance fácil. A consciência má que acompanha a fantasia provoca o
final infeliz da história” (FREUD, 1974 [1927]). O encontro com o sexual na puberdade
caracteriza o despertar para o mal-estar. o redespertar do Édipo e das fantasias
sexuais, que exigem do sujeito um longo trabalho de separação.
Na adolescência o sujeito tem que refazer suas escolhas de objeto, mesmo que essa
escolha já esteja colocada. A escolha do sintoma e a organização da fantasia se
estabelecem extremamente cedo, na primeira infância. Mas essas escolhas são
recolocadas na adolescência, tanto do lado da fantasia, que vai ser posta à prova na
puberdade, quanto do lado do sintoma, que assume diferentes formas.
O real desperto na puberdade, essa explosão hormonal”, é exatamente uma irrupção, a
eclosão de alguma coisa radicalmente nova. Esse real é a emergência de um novo para o
qual o sujeito não tem uma resposta pronta. As palavras são insuficientes para explicar
esse surgimento. As fantasias construídas na infância não são suficientes para interpretar
esse novo. Há uma falha de saber no real.
Como lembra Stevens (2004), no primeiro tempo do ensino de Lacan o real é o
enquadramento da fantasia como janela ou como véu sobre o impossível, sobre o que é
inacessível ao sujeito. uma discordância entre o imaginário e o simlico por uma
espécie de intervalo operado entre as identificações simlicas e as identificações
imaginárias. Na adolescência, essa discordância entre o imaginário e o simlico falha;
logo, a fantasia falha” (STEVENS, 2004: 33). Do lado da identificação imaginária, a
imagem se modifica, no “vai tornar-se” há um certo despedaçamento do imaginário. Do
211
lado da identificação simlica, a criança tem de operar uma separação entre as figuras
simlicas dos pais. “Ela tem de modular seus ideais de outra forma que não seja pela
simples identificação com o pai. Isso se faz por ancoragem sobre um certo número de
outros traços tomados de outras pessoas” (p.34).
O blog é um espaço onde é possível identificar o esforço do sujeito de separar-se do
Outro, escrevendo seu romance familiar, buscando novas identificações e tentando
construir um saber sobre o que se pode fazer em face do outro sexo. O diferencial na
contemporaneidade é que esse romance familiar é também construído e lançado no
espaço virtual. Se o avanço tecnológico abriu novos espaços de expressão e
comunicação, tornando a cada dia mais forte a relação dos jovens com o espaço virtual,
o adolescente utiliza o blog como uma ferramenta para fazer circular suas ideias,
estabelecendo contato com pessoas e reescrevendo, a partir do retorno do outro, seu
romance. A dimensão de sentido, significante, como mensagem do Outro invertida, é
facilitada pela rapidez desse retorno no universo virtual: Vou contar meu diia, meus
amoores, minhas amiizades...Tudo...Agoora encontrei um meio de me abrir...”.
4.4. Amizades múltiplas: encontros e desencontros no ciberespaço
A passagem da infância para a puberdade envolve a entrada no universo social mais
amplo. As amizades são extremamente importantes nessa etapa da vida, quando os
amigos passam a substituir as refencias parentais. No blog da Lana, a autora escreve
sobre a importância da amizade em sua vida: Tenho uma amiga, praticamente uma
irmã, na verdade é um grupo heterogêneo de vidas que se encontraram no colégio e
dividem seus segredos mais íntimos e põe íntimo nisso, alegrias, tristezas, esperanças,
dores .....”
O grupo de adolescentes, como um grupo de semelhantes, é o endereço privilegiado dos
jovens, pois o adolescente os supõe em posição subjetiva semelhante. Como campo de
identificações horizontais, o grupo relativiza o poder do pai, pluralizando as referências
identificatórias e facilitando a separação do Outro parental. Nesse sentido, podemos
pensar numa passagem: do Nome-do-Pai aos Nomes-do-Pai.
212
O adolescente, ao escrever seu blog, se dirige a um outro. É como uma carta que contém
seu endereço. Esse endereçamento pode estar explicitado ou não. Mas,
fundamentalmente, existe um endereçamento a um Outro, lugar para o qual o autor se
dirige, que não está subscrito, que comporta uma demanda de reconhecimento e que o
faz produzir. Os adolescentes se dirigem preferencialmente a outros adolescentes,
buscando, por meio de um outro supostamente semelhante e, portanto, situado num
local vazio de saber, a produção de algo novo, como vimos. Mas, quais as
particularidades desse endereçamento a um outro adolescente no espaço virtual?
Com o avanço tecnológico a comunicação ficou mais rápida e mais fácil. Os diversos
aparelhos tecnológicos que servem à comunicação multiplicam-se mais rapidamente do
que se pode imaginar. O celular, o Orkut, Messenger, e-mail, os blogs e fotologs são
ferramentas “vitais” na atualidade para os jovens adolescentes comunicarem-se uns com
os outros. Para estar inserido no grupo de “adolescentes” hoje, é necessário estar
conectado”. Essas ferramentas trouxeram maior liberdade e grande facilidade de
expressão, ampliando as possibilidades de se estabelecer contato com pessoas do mundo
inteiro.
O ciberespaço configura-se como o mais novo ambiente de comunicação e de circulação
social, que possibilita uma ampliação sem limites” das redes de socialização. Nesse
universo sem fronteiras é possível ter um milhão de amigos, nos mais distantes pontos
do mundo, e manter contato com eles diariamente, no tempo presente, mas afastados
corporalmente.
Nesse novo universo virtual, um intenso fluxo de palavras e imagens, onde, segundo
Bauman (2004), a “circulação” é mais importante que “a mensagem”. Como destaca o
autor, a introspecção é substituída pela interação frenética e frívola, onde os segredos
mais profundos pessoais misturam-se às listas de compras. “Pertencemos à conversa,
o àquilo sobre o que se conversa” (BAUMAN, 2004: 52). No ciberespaço o silêncio
equivale à exclusão. Na verdade, podemos dizer que o próprio meio é a mensagem, ou
seja, a mensagem é isso: Tô na rede”. O jovem busca uma marca nesse universo
virtual. Não ter amigos na Internet hoje equivale à exclusão social. No blog da Tati
acompanhamos a sua procura desesperada por amizades nesse universo virtual:
213
27/02/2006
ola,galera to super triste ninguem quer seu meu amigo.po galera venham
ser meus amigos. por favor
bjs tati
Os blogs constituem-se em espaços virtuais onde se pode escrever sobre amizades e
também fazer amizades. No entanto, nem sempre essas amizades são mantidas fora do
espaço virtual. O ciberespaço é o campo por excelência dos paradoxos: o sujeito pode
fazer um milhão de amigos e, entretanto, não sair de casa e não encontrar pessoalmente
com nenhum deles. O ciberespaço é um lugar de encontro e, ao mesmo tempo, de
desencontro. As relações são feitas e desfeitas com a mesma facilidade e velocidade. É
possível aproximar-se de um desconhecido do outro lado do mundo compartilhando
com ele as mais íntimas confincias, sem o contato pessoal e sem a garantia de que as
informações trocadas sejam verdadeiras.
Numa cultura onde a quantidade se sobrepõe à qualidade, o superficial ao profundo e a
velocidade à estabilidade, como o jovem adolescente pode hoje construir um saber que
se sustente, diante desse encontro com a falha do saber sobre o real? Veremos a partir
de um blog de longa duração, no último capítulo, a resposta a essa questão.
4.5. A escrita da sexualidade nos blogs
O tema da sexualidade é muito comum nos blogs de adolescentes. Um deles nos mostra
como até as fantasias ou os “medos” sexuais mais íntimos podem ser compartilhados no
diário virtual:
Ådøl¢sc¢ñt¢ ¢m åpµrøs
26/09/2004
Estou mais confusa do que nunca!!!!
Tem coisas pra mim que ainda são dificeis de entender, o que um namoro exige, uma delas é: virgindade
realmente é uma coisa importante? até que ponto?...acho q só eu penso nisso, conheço tantas meninas
mais novas que eu que não tem essa preocupação, e já até perderam a virgindade.
Acho que eu tenho um certo bloqueio em relação a isso, não que eu tenha medo de perder minha
virgindade, eu tenho medo é de não gostar, de não ser a pessoa certa e o mais desesperador de
todos....será que vai doer????..genteeeeeee isso me aterroriza de uma forma que vc nem imaginam.
214
Dei-me ir .. .tenho muita coisa pra fazer, uma delas é tentar resolver os meus dilemas pessoais...
Bju galerinha!!!!!
http://nenavanhalensp.zip.net/arch2004-09-26_2004-10-02.html consultado em 24/07/2007
Ao contrário do que se pensa, a maior liberdade de se falar sobre o sexo hoje não tem
facilitado o tratamento simbólico desse real que irrompe na puberdade. O encontro
com o sexo é sempre traumático. Mesmo o tabu da virgindade o está excluído da
nossa cultura, como atesta o blog acima. Longe de ser apenas uma “exigência cultural”,
ele expressa um conflito de maior complexidade, como observa Freud em O tabu da
virgindade (1974 [1917]). “O alto valor que o pretendente atribui à virgindade da
mulher parece-nos tão natural, que ficaremos quase perplexos se tivermos de oferecer
razões para justificar essa opinião” (p.179).
Freud relaciona o tabu da virgindade, entre outras coisas, com as fantasias ligadas ao
sangramento no defloramento da virgem. O horror ao sangue, presente nas raças
primitivas que o consideram como a origem da vida, levam muitas tribos a criar um
ritual onde o marido não pode ser aquele que irá deflorar a virgem. Ela precisa ser
iniciada antes do casamento por outro homem. Como ressalta Freud, longe de
demonstrar maior liberdade sexual, essas tribos confirmam a dificuldade dos povos
primitivos de dissociar o sangramento de ideias sádicas. O sangramento do ato do
defloramento, assim como da menstruação mensal, é interpretado como a mordedura do
espírito do animal, como sinal de relação sexual com esse espírito. Assim, “a menina
que menstrua é tabu porque constitui propriedade desse espírito ancestral (FREUD,
1974 [1917]: 182). Freud explica o horror ao sangue e sua relação com a primeira
ocasião de relação sexual, que passa a ser visto como um ato perigoso.
Freud ressalta também que o tabu da virgindade é parte de uma grande soma que
abrange a totalidade da vida sexual. Não a primeira relação sexual é um tabu, mas a
totalidade da vida sexual. A “mulher” é também um tabu. A menstruação, a gravidez, o
parto e o puerpério estão sujeitos a restrições tão solenes que levam a duvidar da
suposta liberdade sexual entre os selvagens, como adverte Freud. A mulher muitas
vezes é considerada como sendo fonte de perigos e como um perigo de especial
intensidade. Freud acrescenta que, mesmo na nossa cultura, a mulher é vista como fonte
de desconhecimento e, portanto, de perigo.
215
É comum na nossa cultura, segundo Freud, a mulher “fugir” da primeira ocasião de
relação sexual. E que é frequente a decepção sentida pela mulher na ocasião da primeira
relação sexual e a instalação de uma frigidez que pode desaparecer ou não com o tempo.
O autor relaciona as muitas agressões, até sicas, da mulher contra o homem “que a
deflorou”, mesmo quando o ama, com a “injúria narcísica que decorre da destruição de
um órgão ...” (FREUD, 1974 [1917]: 187). Por outro lado, a dor das primeiras relações
sexuais é também associada às proibições feitas pelos pais.
Freud faz uma relação entre as dificuldades sexuais da mulher e o Complexo de Édipo.
Na infância, os desejos sexuais estão voltados para os pais (no caso da mulher, para o
pai ou para o irmão que o substitui). O marido é apenas o substituto, nunca o homem
certo. É o pai que primeiro tem direito ao amor da mulher. Quanto maior a ligação da
filha com o pai e sua fixação na puberdade, maior a rejeão sentida pelo seu substituto.
Freud então explica a frigidez como um sintoma resultante desse conflito.
Um outro motivo descrito por Freud como responsável pela relação paradoxal em
relação aos homens está relacionado à assunção da feminilidade. A inveja do pênis
(símbolo de masculinidade) e a hostilidade para com seus iros, dela decorrente, na
infância, podem levar a mulher a uma agressividade incontrolável dirigida contra o
marido, segundo Freud. Com a importância dada à virgindade na nossa cultura, quando
ela passa a ser considerada uma propriedade do marido, um aumento do sentimento
de raiva das mulheres com relação ao marido. O defloramento não prende a mulher
permanentemente ao homem, como desencadeia também a reação arcaica de hostilidade
para com ele. Freud constata então as dificuldades sexuais das mulheres muitas vezes
relacionadas aos conflitos inconscientes ligados ao Complexo de Édipo e à assunção da
feminilidade.
Não estamos mais na época de Freud. No entanto, em pleno século XXI, uma
adolescente escreve em seu blog que tem muito medo de perder a virgindade. Como na
atualidade “não cabe mais” dizer isso, ela tenta explicar esse medo. Diz que não é medo
de perder a virgindade, que atualmente isso é normal, mas tem medo de não gostar,
de o ser com a pessoa certa, e tem muito medo de doer!!! Diz que fica aterrorizada
de pensar nisso. Se na atualidade não mais a exigência da virgindade para o
casamento, esse “medo de perder a virgindade, ainda presente, mostra sua raiz nas
216
fantasias inconscientes. Lacan, em Os complexos familiares (1938), observa que na
puberdade a emergência do ideal, que ele nomeia nessa época como viril no rapaz e
virginal na moça, ideais que, portanto, já marcam a impossibilidade de um encontro
harmonioso entre os parceiros sexuais.
As primeiras experiências sexuais o certamente decepcionantes, em função das
expectativas e das fantasias que as acompanham e, fundamentalmente, pela
impossibilidade de se saber sobre o sexo. O encontro sexual é sempre malsucedido e o
sexual é sempre traumático. Em outro blog, sua autora descreve o seu primeiro beijo,
que lhe pareceu bastante decepcionante:
25/02/2006
primeiro beijo
ola,galera eu vou contar como foi o meu primeiro;eu tava na casa da
minha prima em outra cidade era carnaval eu tava doida para deixar de ser bv
eu pedia a minha prima para pergunta todo menino q eu via se ele queria ficar
comigo,entao um aceitou ele tinha 15 e eu 8 ,a gente ficou conversando e
derepende ele me beijo o bj duro 4 seguntos foi horrivelmente horrivel
Na contemporaneidade, o blog é utilizado pelo sujeito adolescente para escrever sobre a
sexualidade, para trocar com o outro suas experiências e fantasias sexuais. O
adolescente leitor é convidado a participar de sua escrita, compartilhando também de
suas ideias e fantasias sexuais, emitindo opiniões e sugestões no texto escrito. Essa
vertente de sentido sexual que aparece na linguagem esconde a sua vertente
traumática, de não-sentido. O adolescente pode utilizar-se do virtual para evitar o
encontro sexual. Fala-se de tudo no ciberespaço, sem restrições e constrangimentos, mas
se evita o encontro corpo a corpo.
Por outro lado, nos deparamos com jovens que não adiam o encontro, ao contrário, o
antecipam. Os jovens parecem estar em constante experimentação, gozam da liberdade
para viver as mais diferentes experiências, em um ritmo acelerado e numa
multiplicidade que parece nunca se esgotar, sem barreiras sociais ou familiares. Nessa
vivência intensa, o imperativo do gozo absoluto, numa cultura que promete o gozo
acessível a todos, sem limites.
217
4.6. A adolescência como resposta ao impossível de saber
Se a inexistência da relação sexual é a dificuldade de saber o que fazer quanto ao sexo,
no lugar dessa ausência de saber o sujeito constrói uma resposta possível a esse real
impossível de circunscrever. Se a puberdade é um tempo privilegiado em que essa
inexistência da relação sexual reaparece para o sujeito, a adolescência pode ser uma
resposta sintomática que o sujeito dá a esse desarranjo, como foi visto. É a construção, o
arranjo possível, com o qual o sujeito organiza sua existência, sua relação com o mundo
e sua relação com o gozo.
Vimos como, diante da falha de saber sobre o seu ser e sobre o sexo, o sujeito busca
respostas a partir das identificações com os grupos de adolescentes, tentando se situar na
adolescência” e nomeando-se “adolescente”. Buscamos extrair nos blogs as
representações ou significações que os jovens dão à adolescência na atualidade.
Adolescente
Adolescente não briga.......da porrada
Adolescente não vai na festa.......vai pra balada
Adolescente não cai.......capota
Adolescente não entende.......se liga
Adolescente não come.......engole
Adolescente não entra.......invade
Adolescente não mata.......destroi
Adolescente não pede.......impõe
Adolescente não fala.......troca ideia
Adolescente não cospe.......escarra
Adolescente não solta gases.......peida
Adolescente não vai em bora.......vaza
Adolescente não digita.......tecla
Adolescente não reclama.......protesta
Adolescente não dorme.......capota
Adolescente numca tá apaixonado.......ta afim
Adolescente não viaja.......faz uma trip
Adolescente não namora.......da uns cata
Adolescente não ouve musica.......curti um som
Adolescente quando beija nao poem a mao na cintura....mete a mao na buda
Adolescente não se da mal.......se fode
Adolescente não fica triste.......fica xateado
Adolescente não axa interessante...... axa irado
Adolescente não eh gente.......é JOVEM
http://lilinelinda.zip.net/arch2005-07-17_2005-07-23.html consultado em
20/07/2007
218
Nessa representação de adolescência, o adolescente é identificado com “um
transgressor”, não só da linguagem adulta, como também do comportamento adulto.
Assim, a adolescência é percebida como uma fase de transgressão, que aparece no
comportamento, na linguagem e na aparência dos jovens. Essa é também a
representação social de adolescente. uma identificação do jovem com essa
construção social.
No Blog Volta ao Mundo sua autora apresenta, numa frase contraditória, uma
representação de adolescência que demonstra o próprio preconceito com relação a essa
fase: ―Teen: Não é porque você é jovem, que vai ser um tolo, adolescente não
precisa ser ridículo para ser adolescente.‖
No blog da Lana ela comenta a sua passagem da infância à adolescência, construindo
uma representação de adolescente, que ela nomeia como “aborrescente”:
Aqui começeu a minha vidinha de criança, brinquei de escolinha mesmo
que sozinha pelos corredores do meu apartamento. Sonhei em ter uma
amiguinha perto, mas com o tempo fui crescendo e quis apenas ficar no meu
quarto escrevendo no meu diário à cadeado , sobre os meus amores
platônicos ... e olha daria um livro pq arrastava esse sentimento platônico
por anosssss...rsrs. Quando dei por mim já não era mais pré -adolescente e
sim aborrecente, não queria mais me exilar no quarto e sim fazer com que o
mundo me conhecesse , queria ser descoberta por alguém ,ou descobriru
primeiro amor ...Foi aqui que descobri o amor ou o que se parecia com ele ,e
tive minha primeira decpção também..
Lana descreve sua entrada na adolescência a partir do desejo de “sair para o mundo”,
o mais se exilando no quarto. Nesse momento ela substitui o diário privado” pelo
diário “público”. Zizi (Blog “Volta ao Mundo”) descreve o que considera que uma
adolescente gosta de fazer: Como toda adolescente gosto de dançar, paquerar, ter
amigos, etc.‖
Ao ler as representações de adolescência escritas pelos próprios adolescentes em seus
blogs, descobrimos que eles se identificam com esses significantes que vêm do campo
do Outro, determinados pela nossa cultura. Alguns textos revelam uma tensão entre essa
representação social” e a própria. Uma particularidade da contemporaneidade é que o
ciberespaço configura-se como um novo espaço público, onde o jovem se sente
“incluído”. Um espaço onde é possível encontrar os seus pares e exercitar a passagem
do privado ao público, da família para o laço social mais amplo. Além disso, os jovens
219
podem construir, nesse espaço de escrita, uma significação própria para “esta fase da
vida”. Os adolescentes buscam, nesse momento do despertar, novos significantes para
estarem ancorados em sua travessia. Inserir-se na adolescência construindo o seu
romance particular e fazendo-o circular no espaço público pode ser a possibilidade para
o sujeito encontrar os significantes que irão balizar o adolescente hoje em sua trajetória
subjetiva.
Defendemos a hipótese de que o blog pode ser um espaço onde o sujeito constrói o seu
romance familiar. Como no romance autobiográfico, o indivíduo passa por etapas
individuais, singulares, que são registradas em seu blog. A “formação” é o resultado de
todo um conjunto das mudanças nas condições de vida, de acontecimentos e de trabalho.
Assim, “cria-se o destino do homem, cria-se com ele o próprio homem, o seu caráter. A
formação da vida-destino se funde com a formação do próprio homem” (BAKHTIN,
2003: 221). As mudanças sofridas pelo “herói(autor e protagonista da própria hisria)
ganham significado de enredo e em face disso reassimila-se e reconstrói-se todo o
enredo do romance. O tempo se interioriza no homem, passa a integrar a sua própria
imagem, modificando o significado de todos os momentos do seu destino e da sua vida.
O sujeito é constituído pela escrita de sua história, transformando-se continuamente. O
romance apresenta uma dimensão paradoxal, como foi visto: representa, de um lado, um
encobrimento da castração e, por outro lado, um esforço de separação. Nessa construção
narrativa, uma mudança de posição subjetiva. a construção do personagem como
principal protagonista da própria hisria. O sujeito adolescente deixa de ser
determinado pela história para ler essa determinação.
A escrita no blog como escrita de um romance pode levar à construção do personagem,
como o principal protagonista de sua história. Alguns blogs têm a duração de dois, tês
anos, a mesma de muitos diários íntimos. O blog abaixo foi escrito durante dois anos, de
2004 a 2006. Pode-se acompanhar sua evolução durante todo esse tempo. O início e o
fim de um relacionamento que durou um ano, além de outros fatos da vida da autora,
são compartilhados. O nome do blog é “Diário de uma louca”. Depois desse percurso de
dois anos, ela faz em sua sua última escrita” nesse diário sua despedida, mostrando que
o mais precisa de um diário e que não se considera mais “louca”. Nesse blog
recortamos essa despedida final:
220
Completou um ano. Um ano que embarquei nesta loucura, na ilusão de que ia ser feliz. Fui feliz é
verdade! Mas fui feliz às prestações. E pagava os momentos de felicidade com lágrimas; lágrimas que
nasciam por essa felicidade ser tão volátil, tão madrasta, tão puta!
Sofri o que jamais achei que seria capaz de sofrer o sofrimento do amor faz nascer outros
sofrimentos Tornei-me frágil e tudo me foi atirando para esta loucura. Agora, passou um ano e eu estou
feliz de novo. Consigo olhar para trás e admirar com saudade os bons momentos que passamos.
Ajudaram-me a crescer como pessoa e foram bons a seu tempo.
Agora, que passou um ano, consigo olhar novamente nos teus olhos sem dor, sem rancor, sem
angústia.
No fundo sei que não me mereces! Sou demasiado boa para ti. Foste muito importante para mim e
vai ser assim que te recordarei. Mas agora, agora deixo este diário inacabado, sem saber o que virá
depois. Dizem que os diários não devem ser acabados, pois isso significa o fim da vida e a minha ainda
mal começou. Por isso, agora que não me sinto louca, não vos digo adeus digo-vos apenas um até
breve! Nem que o breve seja eterno...
Até breve! http://missantipatia.blogs.sapo.pt/
221
CAPÍTULO 5. TEMPO E ESPAÇO NOS DIÁRIOS VIRTUAIS: DA
LINEARIDADE À ESPACIALIDADE
...O fragmento é como a ideia musical de um ciclo: cada peça se basta, e no
entanto ela nunca é mais do que o interstício de suas vizinhas: a obra é feita
somente de páginas avulsas (BARTHES, 2003: 110).
5.1. Um novo texto: leitura e escrita nos blogs
Os diários íntimos são “escritos de si” reunidos em folhas encadernadas, seguindo uma
ordem cronológica, que favorece uma leitura linear, sequencial e contínua. Os blogs que
funcionam como diários são textos fragmentados, descontínuos, móveis e abertos,
escritos em páginas virtuais e lançados no espaço público. Do diário íntimo ao diário
público opera-se uma passagem, da linearidade à espacialidade. Buscamos fazer uma
aproximação entre a noção de espacialidade do espaço virtual e a noção de
constelação” utilizada na literatura e na psicanálise. A partir das considerações sobre a
lógica constelar no ciberespaço, buscamos fazer uma reflexão sobre as mudanças
ocorridas no estatuto de sujeito, da lógica linear à lógica constelar. Essa reflexão nos
dará suporte teórico para as reflexões finais sobre a escrita adolescente na
contemporaneidade.
Para que a escrita de si fosse possível, era necessário um suporte material que
possibilitasse um texto contínuo, linear, que proporcionasse ao escritor os meios para
alcançar o domínio do tempo que passa e uma representação estável de si. Esse esforço
de apropriação de sua história a partir de uma escrita de si exigia um suporte material
que facilitasse e possibilitasse essa narrativa. Os suportes materiais de escrita foram
sendo constrdos a partir das exigências que a prática fazia e, ao mesmo tempo, esses
mesmos suportes favoreciam o desenvolvimento de novas práticas.
Analisando a relação da prática da escritura pessoal com seus suportes, Hébrard (2000)
comenta que o scriptorium
1
, e depois a oficina do impressor, tiveram que construir
suportes apropriados para administrar as continuidades narrativas e argumentativas
praticadas nos livros. O autor acrescenta que articular o tempo da escritura e o tempo
social e aprender a manifestar a continuidade de uma sensibilidade durante muito tempo
1
. Scriptorium era um local dos mosteiros destinado aos monges copistas que na época medieval
elaboravam os manuscritos.
222
continuou a depender de soluções improvisadas, da singularidade de toda escritura
pessoal.
O hábito de escrever um diário, difundido a partir do século XVI, esbarrava na
dificuldade de obter os suportes de escrita e prepará-los. Até o primeiro terço do século
XIX, as folhas eram compradas de um fabricante de papel e depois confiadas a um
encadernador, que as trabalhava em função de seu uso. Para Hébrard (2000), a
articulação entre o gênero de escritura do diário pessoal e o suporte que o recebe se
constitui em torno da exincia da continuidade textual, que era dificultada pelo uso de
folhas separadas. A escrita do diário exigia, pois, um caderno com folhas presas, que
o se soltassem. O diário íntimo é então possível quando se afasta o uso de folhas
separadas e quando se pode assegurar de que as folhas não sairão da ordem. A
possibilidade de ordenação dos textos com seu encadernamento facilitou a escrita dos
diários íntimos. A encadernação favoreceu a escrita linear, com uma ordem cronológica,
temporal, sequencial.
Mas não se pode deixar de considerar que o texto encadernado é também um texto
híbrido. Nas diversas fontes de escritura pessoal que estiveram presentes nos diversos
períodos da história, observa-se como, num mesmo caderno, diferentes tipos de
escritura se misturam: o pessoal e o profissional, o escolar e o informativo, o subjetivo e
o objetivo, sem limites gidos que os demarquem, compondo um texto muitas vezes
marcado por turbulências e contradições. Registros profissionais, escolares, jurídicos ou
religiosos eram associados aos lembretes e pensamentos; registros de caráter público
convertiam-se em notas pessoais e informações sobre fatos e eventos eram
gradativamente substituídos por reflexões pessoais, formando um texto híbrido,
multifacetado.
Mesmo quando o diário se configura como um texto pessoal e íntimo, ele combina
diferentes temas, ritmos e formas de escrita. O diarista não precisa escrever diariamente,
pode variar o ritmo da escrita, sem obedecer a uma sequência lógica na ordenação dos
temas, pode utilizar outros recursos além da escrita de palavras, como colagens de
objetos, fotos e desenhos. O texto impresso apresenta suas descontinuidades, diferentes
recursos visuais e gráficos, recortes e rupturas. O diário também permite ao leitor
percorrer diferentes caminhos, em um ritmo complexo, descontínuo. O leitor se
223
aproxima e se afasta do texto, interrompe a leitura, consulta referências, retorna ou
avança na leitura, estabelecendo uma relação particular com o texto.
Se todo texto é híbrido e não linear, o texto do ciberespaço potencializa essa não-
linearidade, com seus inúmeros recursos que permitem uma multiplicidade de caminhos
e ritmos e pelo seu caráter fragmentário. O blog é um texto escrito no ciberespaço. A
leitura e a escrita no ciberespaço possibilitam a criação de um texto fundamentalmente
diferente do texto no papel, o hipertexto que é, segundo Lévy (2000, p.56): “um texto
móvel, caleidoscópico, que apresenta suas facetas, gira, dobra-se e desdobra-se à
vontade frente ao leitor”. Esse novo espaço de leitura e escrita interfere também nas
formas de aprendizagem, nas interações sociais e na relação do sujeito com a escrita.
O termo hipertexto foi utilizado pela primeira vez por Ted Nelson, na década de 1960,
em que o prefixo hiper expressa generalidade, extensão, designando sistemas textuais
o lineares, ou seja, uma escritura eletrônica o sequencial e não linear. O hipertexto
possui uma textualidade eletrônica virtual. Segundo Costa (2005), trata-se de um texto
composto de blocos de palavras ou imagens, conectados eletronicamente, conforme
múltiplos percursos, numa textualidade sempre aberta e infinita.
O hipertexto compreende a noção de hiperdia, o que inclui modos de informação
visuais, animados, como outras formas de organização de dados. O hipertexto é uma
estrutura de rede, cujos elementos textuais são nós, ligados por relações não lineares e
pouco hierarquizadas.
As principais características do hipertexto (MARCUSCHI, 2004) são: a não-linearidade,
a volatilidade, a topografia (sem limites espaciais definidos de leitura ou escritura), a
fragmentação, a acessibilidade ilimitada, a multissemiose (integra linguagem verbal e
o verbal), interatividade (interconexão interativa do leitor-navegador com uma
multiplicidade de textos e autores) e a iteratividade (intertextualidade). Segundo Levy:
Se definirmos um hipertexto como um espaço de percurso para leituras
possíveis, um texto aparece como uma leitura particular de um hipertexto. O
navegador participa, portanto, da redação do texto que lê. Tudo se dá como se
o autor de um hipertexto constituísse uma matriz de textos potenciais, o papel
dos navegantes sendo o de realizar alguns desses textos colocando em jogo,
224
cada qual à sua maneira, a combinatória entre os nós. O hipertexto opera a
“virtualização” do texto (LEVY, 2000: 57).
Os processos discursivos que ocorrem na Internet revelam uma comunicação viva,
característica da oralidade. Se na oralidade as mensagens circulam em espaço e tempo
reais, numa interação face a face, quando os interlocutores compartilham da mesma
situação de produção discursiva, a escrita rompe com essa partilha da situação de
produção e com a interação face a face, como já foi abordado. O hipertexto, com sua
dinâmica e características próprias, mistura formas, processos, funções da oralidade, da
leitura e da escrita.
Várias características da oralidade, como as pausas, entonações e expressões
fisiomicas, são transportadas para a linguagem do computador criando códigos de
escrita específicos desse universo virtual, como alongamento de letras, sinais de
pontuação, uso de letras maiúsculas, caracteres (emoction), além do alfabeto tradicional,
como podemos ver nos recortes feitos em diferentes blogs:
Oiee!!
Abração!!!!!!!!!!
Querido diário, hoje é o primeiro dia de nossa caminhada..... Blá, blá, blá, blá....
A vida é tão complikada
Estou ficando nervosa com o simples fato de não estar sabendo usar um negócio que fiz aqui na web,
e isso é totalmente irritante. Mas vou tentar e tentar até conseguir. Aff.
Bom meu plimeiro post...
meiu sem u qi iscrever...us outrus jujubb i jujubb2 saum meus tbm...sow qi eu perdih a senha....i agora mi
deu uma saudade di blog..intaum resolvih fazer outruh...aki eu vow desabafar mtu...msm qi poukus
vejam...=[[
Amigus...amu v6!!!!
Existem, portanto, as regras ortográficas próprias desse espaço virtual. o é nosso
objetivo apresentar as regras ortográficas do ciberespaço, mas, entre elas, sabemos que
escrever uma palavra ou frase com letras maiúsculas é um recurso que se usa para
acentuar o que se quer dizer, normalmente significa que se está gritando:
Adoro a banda RBD, animais, internet... AMO MEU NAMORADO!
225
Nesse espaço virtual, leitor e autor se cruzam, on-line, participando da edição do texto
que leem e escrevem. Dessa maneira surgem novos gêneros discursivos, novas
modalidades de linguagem, novos códigos e novos estilos de leitura, escrita e
conversação (COSTA, 2005).
Diversos autores (FRADE, 2005) confirmam que os movimentos entre o oral e o escrito
demonstram a não-existência de uma oposição entre eles, mas um contínuo entre os
modos de utilização dessas linguagens. A escrita proporcionou a virtualização da fala,
ou seja, tornou a fala virtual, existindo em potência e podendo ser atualizada. Nesse
sentido, o texto escrito, seja qual for o suporte (papel, papiro, pergaminho, tábua, barro,
livro ou a tela do computador), é sempre virtual; o leitor atualiza o texto, por meio de
leitura e interpretação. Mas a revolução numérica introduzida pela cultura digital tornou
ainda mais complexas as relações entre os termos oralidade e escrita, fazendo surgir
textos híbridos entre essas duas modalidades, como os da comunicação on-line.
Com o hipertexto, ou o texto da Internet, o trânsito informacional se em um
ciberespaço, um o-lugar. Na verdade, a informática simula um espaço e essa
simulação permite atualizar um texto. Com a Internet não precisamos mais de um
espaço geométrico, apenas de sua simulação na tela do monitor. A informática eliminou
a dependência espacial, assim como a escrita eliminou a dependência temporal.
(RIBEIRO, 2005).
Chartier (2002) descreve várias rupturas introduzidas pela revolão do texto digital.
Uma delas refere-se à ordem dos discursos. Na cultura impressa, essa ordem se
estabelece numa relação entre tipos de objeto, como os livros, o diário ou a revista, as
categorias de textos e as formas de leitura. Essa vinculação está arraigada a uma história
antiga da cultura escrita e surgiu devido a três inovações fundamentais: a difusão de um
novo tipo de livro composto de folhas e páginas reunidas numa mesma encadernação
(códex), a partir do século II; o aparecimento do livro unitário, ou seja, a presença
dentro de um mesmo livro de obras compostas em ngua vulgar por um único autor, no
final da Idade Média, nos séculos XIV e XV; e, por último, a invenção da imprensa no
século XV.
Essa ordem dos discursos foi profundamente alterada com a textualidade eletnica. Um
único aparelho, o computador, apresenta diante do leitor os diversos tipos de textos que
tradicionalmente eram distribuídos entre objetos diferentes. O computador cria uma
226
continuidade que não diferencia os diversos discursos a partir de sua materialidade. A
percepção da obra como obra se torna mais difícil em função da leitura diante da tela ser
geralmente descontínua. A partir de palavras-chave, busca-se o fragmento textual do
qual se quer apoderar, sem que sejam percebidas a identidade e a coerência da
totalidade do texto que contém esse elemento. Chartier (2002) acrescenta, que quanto à
ordem dos discursos, o mundo eletnico provoca três rupturas: introduz uma nova
técnica de difusão da escrita, provoca uma nova relação com os textos e ime-lhes uma
nova forma de inscrição. Essa revolução digital obriga o leitor a abandonar todas as
heranças que o fundaram nesse universo da leitura, pois o universo virtual não utiliza a
imprensa, ignora o “livro unitário” e desconhece a materialidade do códex.
É possível fazer uma caracterização dos blogs, utilizando os parâmetros que definem o
texto digital. Os blogs o diários localizados em um espaço virtual, não material, onde
seu autor pode também desenvolver pesquisas, fazer compras, conversar no MSN e
entrar em salas de bate-papo, abrindo simultaneamente diversas telas, como num
continuum, transitando nesses diversos espaços ao mesmo tempo em que escreve seu
diário. Esses espaços virtuais funcionam em uma lógica completamente diferente da
lógica do livro impresso, na qual o diário tem as características de um “livro unitário”.
Outra ruptura provocada pelo texto digital diz respeito à ordem das razões (as
modalidades das argumentações e os critérios ou recursos de que o leitor pode dispor
para aceitá-las ou dispensá-las). O texto eletnico introduz uma lógica que não é
necessariamente linear nem dedutiva, mas aberta, clara e racional, graças à
multiplicação dos vínculos hipertextuais. O leitor pode comprovar a validade de
qualquer demonstração consultando pessoalmente os textos e imagens que são o objeto
de sua análise, e se estiverem acessíveis numa forma digitalizada. Assim, a revolução
textual é também uma mudança epistemológica que transforma as formas de construção
e crédito dos discursos do saber.
Essa nova lógica também interfere na escrita e na leitura dos blogs. O escritor de um
blog pode, ao escrevê-lo, consultar autores, poetas, letras de música e imagens e utilizar
tudo isso em seu texto. Ele pode fazer consultas a outros blogs, copiar imagens e frases,
e consultar diretamente autores citados por outros blogueiros. Essa liberdade de
percurso pôde ser vista nos textos dos blogs pesquisados.
227
Uma terceira ruptura refere-se à ordem das propriedades que, segundo Chartier (2002),
abrangem tanto um sentido jurídico (propriedade literária) quanto um sentido textual
(propriedades dos textos). O texto eletnico é um texto móvel, maleável, aberto. O
leitor pode intervir no conteúdo do texto, pode deslocar, recortar, estender, recompor as
unidades textuais e modifi-las. A atribuição dos textos ao nome de seu autor pode,
nesse processo, desaparecer, e o texto é modificado por uma escritura coletiva, múltipla,
polifônica. A possibilidade de o leitor interferir pode modificar a escrita do próprio
texto, e sua elaboração deixa de ser individual, passa a ser coletiva.
Essa possibilidade de interferir em um texto foi experimentada em nossa pesquisa.
Entramos em um blog de uma adolescente e deixamos um comentário, apresentando-
nos, falando de nossa pesquisa e perguntando se ela queria entrar em contato conosco.
Logo depois, ela escreve em seu blog: “Estou ficando com medo de blogs”.
O autor do blog pode responder aos comentários, dialogar com seus leitores através da
escrita no próprio blog, manter contato com eles também pelo MSN, por e-mail e outros,
o responder aos comentários, selecionar alguns etc. Tanto o autor do blog quanto o
leitor têm autonomia para seguir um rumo próprio. A presença de links nos blogs revela
suas possibilidades de incursão, para diferentes caminhos”. O leitor tem acesso a outras
páginas que o autor do blog costuma visitar, a lista com os blogs favoritos do autor da
página, comentários e alguns links de outros blogs. O leitor do blog pode acompanhar o
caminho percorrido pelo autor, visitando outros blogs, conhecendo as preferências do
autor e entrando em contato com esses outros autores. O navegante da rede pode abrir
rias “janelas” para observar sites diferentes em paralelo.
Ao pesquisar blogs de adolescentes, tivemos a chance de experimentar essa liberdade de
percurso no ciberespaço. Ao entrar em um blog, começávamos a ler um texto,
pulávamos para outro, deixávamos um comentário, visitávamos outros blogs que
estavam indicados nesse blog, voltávamos para o blog original, construindo um
percurso próprio.
A leitura e a escrita de um texto na tela apresentam, portanto, características distintas da
leitura e da escrita do texto impresso. Segundo Marcuschi (2004), a deslinearização e a
constituição plurilinearizada do texto virtual (hipertexto) trazem como grande novidade
228
o rompimento com a ordem da construção textual, tornando-se um princípio de sua
construção.
O texto do blog é um hipertexto eletnico, o que o diferencia do texto impresso. O
hipertexto é não linear e uma forma de apresentar e consultar informações. Ele vincula
as informações contidas em seus documentos (ou hiperdocumentos) criando uma rede
de associações complexas através de links (LÉVY, 2000: 254). O hipertexto envolve a
atualização constante, em qualquer lugar e em tempo real, com utilização de links e
outros recursos audiovisuais. A interface oralidade/escrita encontra-se então dissolvida
na Internet, que fez surgir novos gêneros textuais, ligados à interatividade verbal. A
emergência de novos suportes de escrita influencia o surgimento de novos gêneros de
escrita, e o leitor amplia seu leque de possibilidades de leitura à medida que entra em
contato com esses novos suportes e gêneros, mais híbridos.
Para discutir sobre as especificidades de um determinado gênero virtual, podemos
utilizar as considerações de Souza (2007). Segundo o autor, um nero virtual é um
gênero interativo guiado por funcionalidades, com uma natureza dialógica e hipertextual.
As formas de enunciação, por conseguinte, o são monológicas, mas dialógicas. Do
ponto de vista da recepção, quando um sujeito interage com um gênero virtual, não
apenas constrói uma representação desse gênero, mas reconstrói uma representação de
um nero existente. Um gênero virtual é sempre identificado na relação que
estabelece com o suporte; essa relação chamada de “modelos mentais ajuda os
indivíduos a operarem com esses gêneros de forma intuitiva. Para Souza (2007) para ser
rotulado de e-mail, por exemplo, umnero deve ter: endereço de destinatário ou
destinatários, assunto, local, data e modo de enunciação de acordo com o “Eu co-
enunciador”.
Para ser denominado blog, o gênero deve ter um eu que enuncia, um eu que processa
essa enunciação, um local para comentários desse segundo eu, dados relevantes sobre
quem enuncia. Em substância, o sujeito possui internalizada(SOUZA, 2007) a forma
que um gênero virtual comporta e se apresenta, e a forma de enunciação que está
diretamente ligada àquele gênero.
229
Circulando pelo universo virtual, gradativamente nos familiarizamos com as
particularidades de cada gênero virtual. Assim, o adolescente, ao conduzir-se no
universo virtual, transita com facilidade de um gênero ao outro, conhecendo as
especificidades de cada um e sabendo como utilizar os diversos recursos de que dispõe.
Os jovens, nos textos de seus blogs, evidenciam essa grande familiaridade com os
diversos gêneros virtuais.
As mudanças no letramento introduzidas pelo texto eletrônico são destacadas por Soares
(2002). Ela comenta as alterações que o texto impresso promoveu na leitura e na escrita,
para discutir as novas alterações introduzidas pelo texto eletrônico. Ainda segundo a
autora, a tecnologia da impressão, mais do que o rolo e o códice, enformou” a escrita
em algo estável, monumental e controlado. Estável, porque o texto impresso é passível
de ser reproduzível em pias sempre idênticas; monumental, porque sobrevive e
persiste como um monumento a seu autor e a seu tempo; controlado, porque numerosas
instâncias intervêm em sua produção e a regulam.
As tecnologias de impressão e difusão da escrita permitem instaurar a propriedade sobre
a obra, que se expressa de maneira concreta no surgimento da figura do autor, que nos
livros manuscritos apareciam em geral de forma difusa e não identificada. As
tecnologias de impressão e difusão da escrita instituem os direitos autorais, a
criminalização da cópia e do plágio (SOARES, 2002).
Sabemos que as tecnologias de impressão e difusão da escrita criam várias instâncias de
controle do texto, de sua escrita e de sua leitura. O texto é produto não só do autor, mas
também do editor, do diagramador, do programador visual, do ilustrador, de todos
aqueles que intervêm na produção, reprodução e difusão de textos impressos em
diferentes portadores (jornais, revistas, livros...) (SOARES, 2002). Assim, com o
surgimento do texto impresso, se altera fundamentalmente o estado ou condição dos que
escrevem e dos que leem. O texto impresso marca uma profunda alteração no
letramento com relação ao texto manuscrito.
A cultura do texto eletrônico traz uma nova mudança no conceito de letramento,
segundo Soares (2002). No entanto, em certos aspectos, essa nova cultura do texto
eletrônico traz de volta características da cultura do texto manuscrito: como o texto
230
manuscrito, e ao contrário do texto impresso, também o texto eletnico não é estável,
o é monumental e é pouco controlado. Segundo Soares (2002), assim como os
copistas e os leitores frequentemente interferiam no texto, também os leitores de
hipertextos podem interferir neles, modificar e definir seus próprios caminhos de leitura;
o é monumental em função de sua instabilidade, que faz com que o texto eletrônico
seja fugaz, impermanente e mutável; e finalmente, pouco controlado, porque é grande a
liberdade de produção de textos na tela e quase totalmente ausente o controle da
qualidade e conveniência do que é produzido e difundido.
Essa ausência de controle de qualidade permite também a maior liberdade de expressão
nos blogs. Existem os mais diferentes blogs de adolescentes. Encontramos blogs
completamente sem “identidade”, verdadeiras “cópias” de outros blogs.
uma nova diferenciação entre o texto impresso e o eletrônico. No texto impresso, é
grande a distância entre autor e leitor. no texto eletrônico, a distância entre autor e
leitor se reduz, porque o leitor se torna, ele também, autor, tendo um papel ativo e
podendo construir, independentemente, a estrutura e o sentido do texto.
Essa maior proximidade entre o autor e o leitor pôde ser vista nos blogs pesquisados. Os
autores pedem comentários, gostam de recebê-los e escolhem aqueles que querem
responder. Acompanhamos como os adolescentes ficam incomodados com alguns
comentários que recebem, satisfeitos com outros ou “ignoram aqueles que não
interessam comentar. Para essa pesquisa, tentamos entrar em contato com dois
adolescentes através de seus blogs. Deixamos um comentário em cada um dos blogs,
sempre nos apresentando e tentando conversar com eles sobre os seus blogs. Eles não
responderam (vimos como os adolescentes escrevem para outros adolescentes”).
O hipertexto é construído pelo leitor no ato mesmo da leitura, pois, optando entre várias
alternativas propostas, é ele quem define o texto, sua estrutura e seu sentido. Soares
explica que, no texto impresso, cuja linearidade por si já impõe uma estrutura e uma
sequência, o autor procura controlar o leitor, lançando mão de protocolos de leitura que
estabeleçam os limites da interpretação e impeçam a “superinterpretação (SOARES,
2002). No texto eletrônico, ao contrário, o autor será tanto mais competente quanto mais
alternativas de estruturação e sequenciação o texto possibilitar, ou quanto mais opções
231
de interpretação oferecer ao leitor. A autora comenta que na verdade o hipertexto não
tem propriamente um autor; pois a intertextualidade, presente no texto impresso, quase
exclusivamente por alusão, no hipertexto se materializa. Ela se pela articulação de
textos diversos, de diferentes autorias. No hipertexto, não uma autoria, mas uma
multiautoria.
Essa questão da autoria deve ser pensada a partir das considerações que já fizemos. Em
primeiro lugar, Foucault nos mostra que a dimensão da autoria de um texto deve ser
problematizada, pois qualquer autor, na construção de um estilo próprio, sofre
influências de vários autores com os quais ele se identifica durante todo o percurso que
fez (e faz) enquanto leitor. Sabemos, como foi mencionado nesta tese, que um sujeito se
constitui no campo do Outro, campo simlico que o determina. A dimensão da
alteridade está, portanto, presente em qualquer texto. Sendo assim, não consideramos
pertinente afirmar que no texto eletrônico não uma autoria, mas uma multiautoria. A
dimensão da multiautoria está presente em qualquer autoria. Veremos no blog “Voz do
solitário”, no último capítulo, como Gabriel constrói um percurso que o particulariza, a
partir não só das leituras que faz de vários autores, como também das trocas que
manm com os leitores.
Vários autores analisam o hipertexto de acordo com a sua organização. Marcuschi
(2005) destaca que no hipertexto a forma de organização não é hierárquica e linear: a
maneira de o hipertexto organizar a informação é o bricolage e a justaposição, numa
perspectiva flexível, ou seja, sem uma relação de natureza lógica ou outra que lhe
pareça evidente ou imediata. Dessa forma, pode-se esperar uma fragmentação do
conteúdo. O autor acrescenta que os links, interconectores que guiam de forma objetiva
e direta a textos ou blocos informacionais novos, estão submetidos a uma complexa
retórica. Para Marcuschi (p.197), tanto o texto impresso quanto o hipertexto eletrônico
são emergentes, incompletos, maleáveis, não determinísticos, multidimensionais,
plurineares, multifocais e interativos. Para o autor, as diferenças entre o texto impresso e
o eletrônico o o tão definidas. Ele comenta que lidar com o hipertexto é lidar com o
texto. O autor e o leitor continuam ativos e com papéis bastante claros. Mas podemos
pensar que, se todo texto é multidimensional, plurinear, emergente e interativo, o
ciberespaço expande e potencializa essas características.
232
Ora, ao apresentarmos a diferenciação entre o diário clássico e o moderno (ou
contemporâneo), aproximamos o diário íntimo do romance clássico. Não poderíamos
aproximar o blog do romance moderno? O romance moderno é aquele que denuncia o
caráter descontínuo do real, que é formado de elementos justapostos sem razão, todos
eles únicos, difíceis de serem apreendidos, pois surgem de forma imprevista e aleatória.
Assim, esse romance “moderno” inclui o arbitrário, rompe com a representação
tradicional do romance como história coerente e totalizante. Essa é exatamente a lógica
do ciberespaço.
O hipertexto evidencia, em suas diversas manifestações, o efêmero, desprovido de
limites, indefinido, multilinear, composto por textos verbais e não verbais, como
imagens e sons, apresentando um amplo aparato paratextual, como referências, gráficos
e dados informacionais. A rede possibilita múltiplos percursos e construções,
considerando sua textualidade aberta, sem fronteiras definidas. Podemos fazer uma
aproximação entre o texto no ciberespaço e as reflexões das teorias s-estruturalistas,
que analisam a contemporaneidade. Nessas teorias (Foucault, Barthes, Benjamin), o
texto é caracterizado pela ausência de um início e de um fim definidos, que permite
múltiplos percursos, abolindo-se qualquer forma de organização hierárquica.
Com a emergência de novos suportes e novos recursos, mais confortáveis e ágeis,
surgem também leitores mais rápidos e mais íntimos desse material. O leitor amplia seu
leque de possibilidades de leitura à medida que entra em contato com esses suportes e
gêneros reconfigurados, por vezes híbridos. Essa questão abordada por Ribeiro (2005)
nos remete a uma diferenciação entre os diários tradicionais e os diários virtuais. Os
textos dos blogs apontam para a lógica do ciberespaço: escrita mais ágil, fracionada,
muitas imagens, sons e interatividade. Discutiremos essa lógica do ciberespaço a partir
das considerações psicanalíticas.
233
5.2. O constelar no ciberespaço: um hipertexto de fragmentos
Escrever por fragmentos: os fragmentos são então pedras sobre o contorno do
círculo: espalho-me à roda: todo o meu pequeno universo em migalhas; no
centro, o quê? (BARTHES, 2003: 108)
A mudança do texto impresso para o hipertexto envolve a passagem da linearidade para
a espacialidade. Mesmo sabendo que a leitura de um texto impresso nunca é totalmente
linear, que todo texto é maleável e multidimensional, o ciberespaço potencializa e
expande essa “espacialidade”. O ciberespaço ilustra a dimensão constelar, noção
utilizada na literatura e na psicanálise. Walter Benjamin (1994) aproxima as ideias
das constelações intemporais, que apreendem os elementos como pontos luminosos
nessas “constelações”. Se cada estrela localiza-se em um ponto em relação a um
conjunto, a constelação mostra o ponto em que dois extremos se encontram.
O termo constelação aparece diversas vezes na teoria de Lacan. Em O mito individual
do neurótico, Lacan (1987) utiliza o termo constelação para se referir às relações
familiares que estruturam a união de um casal. Ao se referir ao “Homem dos Ratos”,
Lacan sublinha que “a constelação do sujeito é formada na tradição familiar pela
narração de um certo número de traços que especificam a união dos pais” (p.54). Ao
narrar o mito familiar desse paciente neurótico obsessivo, ele apresenta a constelação
familiar do sujeito”. Para Lacan:
A constelação e por que não? No sentido em que dela falam os astrólogos
a constelação originária que presidiu ao nascimento do sujeito, ao seu destino,
e diria quase à sua pré-história, a saber as relações familiares fundamentais
que estruturam a união de seus pais, mostra ter uma relação muito precisa, e
definível talvez por uma rmula de transformação, com o que aparece como
sendo o mais contingente, o mais fantasmático, o mais paradoxalmente
mórbido do seu caso, a saber o último estado de desenvolvimento da sua
grande apreensão obsidiante, o cenário imaginário ao qual chega como a
solução da angústia ligada ao desencadear da crise (LACAN, 1987: 53-54).
O termo constelação aqui aparece relacionado a uma reunião de traços que estruturam e
organizam o mito familiar. Para Lacan, a narrativa do sujeito, no decorrer da análise,
apresenta uma série de “fragmentos” que são reunidos pelo analista para compreender
os elementos essenciais que levam ao desencadeamento da neurose.
234
No seminário A angústia, Lacan
2
demonstra que a psicanálise, em conformidade com a
ciência moderna, denuncia o cosmo como lugar de engano. Num primeiro tempo, o
mundo. Num segundo tempo, o palco em que fazemos a montagem desse mundo. “O
palco é a dimensão da história. A história tem sempre um caráter de encenação”
(LACAN, 2005 [1962-63]: 43). Ele acrescenta que tudo o que chamamos de mundo ao
longo da história deixa resíduos superpostos, que se acumulam sem se preocupar com as
contradições. “O que a cultura nos veicula como sendo o mundo é um empilhamento,
um depósito de destroços de mundos que se sucederam e que, apesar de serem
incompatíveis, não deixam de se entender muito bem no interior de todos nós” (p.43). E
mais adiante destaca: ...Nada é mais legítimo do que o questionamento do que é o
mundo da visão smica no real. Isso com que acreditamos lidar como mundo, será que
o são simplesmente os restos acumulados do que provinha do palco, quando ele
estava, se assim posso me expressar, em turnê?(p.43).
A perspectiva de mundo sugerida nesse texto é a de que ele não passa de restos
acumulados, empilhados, superpostos, emrio de épocas que se sucederam. A noção
de cosmo para a psicanálise é a de um lugar de engano e o mundo deixa de ser
idealizado, o que coincide com a perspectiva da ciência moderna. O sujeito, portanto,
o está sustentado em um conjunto harmonioso de significantes, mas exatamente nas
falhas significantes.
Em Lituraterra (2003 [1971]), Lacan comenta que o sujeito japos, devido às
particularidades de sua língua, é dividido pela linguagem como em toda parte, mas um
de seus registros pode satisfazer-se com a referência à escrita, e o outro, com a fala”
(LACAN, 2003 [1971]: 24). Lacan destaca a divisão do sujeito entre a letra e o
significante. A letra aqui é apontada como servindo de apoio ao significante. Ele
evidencia a modificação do status do sujeito, promovendo a letra a um “referencial tão
essencial quanto qualquer outra coisa...” (p.24).
Relacionando a constelão com a identificação, Lacan destaca que o sujeito se apoia
num céu constelado e não apenas no traço unário, para sua identificação primordial. O
2
. LACAN, Jacques. “Do cosmo à unheimlichkeit. In: O seminário. Livro 10. A angústia. Rio de Janeiro:
Zahar, 2005 (1962-63), p.38-52.
235
sujeito japonês, além de se apoiar nas leis de polidez para sua identificação, ou seja,
numa estrutura de ficção da verdade nos graus de cortesia que marcam as relações entre
os japoneses, num “império dos semblantes”, ele se apoia também na escrita, no vazio
escavado pela escritura. É essa segunda dimensão que está sempre pronta a dar acolhida
ao gozo, “ou, pelo menos, a invo-lo com seu artifício(LACAN, 2003 [1971]: 24-25).
Em Observações sobre o relatório de Daniel Lagache
3
, Lacan (1998 [1960]) observa
que é no Outro que o sujeito encontrará as marcas de resposta que tiveram o poder de
fazer de seu grito um apelo. Ele comenta que assim ficam circunscritas na realidade,
pelo traço do significante, as marcas onde se inscreve a onipotência da resposta do
Outro. Essas realidades são chamadas de insígnias. Ele destaca que é a constelação
dessas insígnias que constitui para o sujeito o Ideal do Eu” (p.686). Miller, em Los
signos del goze (2006)
4
, compreende que Lacan introduz nesse momento o termo
constelação de insígnias” para diferenciá-la da cadeia significante. Ele apresenta uma
oposição conceitual entre a cadeia” e a “constelação”. Ao se referir à constelão de
insígnias, Lacan sugere que esses significantes introduzem um modo de identificação
diferente daquele que é o apagamento dos traços em cadeia significante. Miller (1998)
observa que o estatuto significante da insígnia é o de um significante solto, que não tem
par, que o está articulado em uma cadeia.
Na concepção de “agrupamento em cadeia”, trata-se da ordem da representação, na qual
o significante representa o sujeito para um outro significante. O sujeito surge dividido
entre dois significantes. Na concepção de “constelação de insígnias”, diz respeito a
captar a identificação onde ela não é uma representação, ali onde o sujeito se toma por
um só. Miller (2006) diferencia, portanto, dois tipos de identificação aqui. No caso
clássico citado por Freud da histérica que tosse como seu pai, a identificação estabelece
uma relação com o pai e se decifra a partir dessa relação. Trata-se da ordem da
identificação representativa. No caso da identificação que tem valor de insígnia, é outra
coisa. Nesta identificação o sujeito não está representado pelo Outro, mas está no lugar
3
. LACAN, Jacques. “Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: „Psicanálise e estrutura da
personalidade‟” (1960). In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p.653-691.
4
. MILLER, Jacques-Alain. “La constelación y la cadena”. In: Los signos del goze. Buenos Aires: Paidós,
2006, p.139-154.
236
do Outro. Nesse caso, “o sujeito se toma pelo Um, por uma substância, uma entidade”
(MILLER, 2006: 149).
Destacamos aqui duas vertentes de sujeito, que não são excludentes entre si, mas que se
complementam: a que se refere à lógica simbólica e a que se refere à dimensão real. Na
primeira, o campo dos semblantes, as palavras e imagens. Na segunda, o campo do real,
a escritura. Acompanharemos brevemente a evolução do pensamento lacaniano com
relação à noção de sujeito para fazer essa articulação.
Num primeiro tempo de seu ensino, Lacan define o sujeito como efeito da cadeia
discursiva, como já foi visto. Nos anos 60, Lacan menciona a constelação de insígnias
que constituem para o sujeito seu Ideal do Eu. Agora, para além do agrupamento em
cadeia, onde um significante representa o sujeito para outro significante, é possível
identificar uma constelação de insígnias. No seminário Mais, ainda..., Lacan (1985
[1972-73]) sublinha que o significante é signo de um sujeito. Ele lembra que o sujeito
o é jamais senão pontual e evanescente, é sujeito por um significante e para um
outro significante. O significante Um é um-entre-outros, referido a esses outros”,
“sendo somente a diferença para com os outros” (p.196). Ele então se refere ao S1, que é
o significante-mestre, como um enxame: S1 (S1 (S1 (S1 → S2) ) ).
O Ideal do Eu passa a ser apresentado como uma constelação de insígnias, que podem
representar o sujeito e fazer com que ele seja reconhecido pelo Outro, e que podem
também se soltar da cadeia significante e se transformar em insígnias, operando fora do
sistema simlico na sua face representativa e comunicativa. Dos Ideais do Outro
tomados na vertente significante, aos tros tomados Um a Um. O império dos
significantes transforma-se em um império dos semblantes, com sua multiplicidade.
O significante funciona como insígnia sempre quando está solto, fora do sistema. Um
significante que faz parte de um sistema adquire valor de insígnia quando é extraído
deste, quando não funciona mais com este estatuto, quando funciona como redução do
Outro (MILLER, 2006). Lacan indica que os traços do sujeito emprestados ao Outro,
que o representam e que o fazem ser reconhecido pelo Outro, podem se soltar do
sistema significante e se transformar em insígnias, operando fora do sistema simbólico
na sua face representativa e comunicativa, fundada na lógica simlica. Neste sentido,
237
eles operam como letra. Assim, o império do significante transforma-se em um
império de semblantes.
Acompanhamos a mudança do estatuto de sujeito, da linearidade à espacialidade. Na
perspectiva da linearidade, o simlico tem uma função organizadora e apaziguadora e
o inconsciente é estruturado como linguagem. Na perspectiva da espacialidade, a
substituição do Nome-do-Pai por uma pluralização. Surge a constelação de insígnias
que constituem para o sujeito seu Ideal do Eu. O império dos significantes transforma-
se em um império dos semblantes, com sua multiplicidade. Agora a própria linguagem é
aparelho de gozo. O conceito de letra reúne significante e gozo.
Essa perspectiva não linear, da lógica da multiplicidade e da espacialidade, marcada
pelo império dos semblantes é claramente exemplificada pelo ciberespaço. Como na
literatura, o caráter constelar manifesta-se pelo predomínio do fragmentário sobre o
sistemático, pela retomada constante dos mesmos temas com várias significações e
pelas rupturas ou passagens bruscas de um tópico para outro
5
. O hipertexto do
ciberespaço ilustra a continncia do múltiplo, a lógica fragmentar e multifacetada. Sua
forma de organização não é hierárquica nem linear, sua informação é organizada na
forma de bricolage e de justaposição, numa perspectiva flexível. Isso leva a uma maior
fragmentação do conteúdo. Os links, interconectores que guiam de forma objetiva e
direta a textos ou blocos informacionais novos, estão submetidos a uma complexa
retórica.
Essa lógica do hipertexto pode ser ilustrada pelo texto “escrevível”, definido por
Barthes em S/Z (1992). O autor diferencia o texto escrevível (scriptible) do texto legível
(lisible). Para ele, um texto escrevível é aquele que convida o leitor a reescrevê-lo, a
ponto de torná-lo não um simples consumidor do texto, mas um produtor do texto. O
texto escrevível não tem compromisso com a legibilidade. Já o legível é aquele que
pode ser lido, mas não escrito. Sua leitura não convida o leitor a se engajar na escritura.
Barthes define o texto escrevível como um texto onde as redes são múltiplas e se
entrelaçam, sem dominação de uma sobre a outra; ele apresenta-se como uma galáxia de
5
Márcia Rosa discute a presença do constelar na obra de Fernando Pessoa em: VIEIRA, Márcia Rosa.
Fernando Pessoa e Jacques Lacan: constelações, letra e livro. Tese Doutorado. Programa de Pós-
Graduação em Letras: Estudos Literários. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. 2005.
292 p.
238
significantes, e não como uma estrutura de significados; não tem início; é reversível;
tem rias entradas; seus códigos perfilam-se a perder de vista e não são dedutíveis nem
submetidos a um princípio de decisão; os sistemas de sentido podem apoderar-se do
texto, que é plural e infinito; trata-se de afirmar a pluralização do ser, que não é o ser
do verdadeiro, do provável ou até do possível” (BARTHES, 1992: 40).
Os textos dos blogs são, em sua maioria, textos curtos, pessoais, que misturam recortes
de cenas, imagens, fatos, mensagens, fragmentos de vida. Esses fragmentos de vida
aproximam-se dos biografemas de Roland Barthes (2005), como unidades mínimas da
biografia que compõem um texto aparentemente autobiográfico. Esses fragmentos
revelam os desejos e iluminações fugazes, momentos físicos e textuais de seu autor.
Barthes (2005) comenta que, se ele fosse escritor, morto, gostaria que a sua vida se
reduzisse, pelos cuidados de um biógrafo, a alguns pormenores, a alguns gostos, a
algumas inflexões, ou biografemas, “cuja distinção e mobilidade poderiam viajar fora
de qualquer destino e vir a tocar, à maneira dos átomos epicurianos, algum corpo futuro,
prometido à mesma dispersão... (BARTHES, 2005: XVII). Esses fragmentos de vida,
segundo o autor, o os pormenores que captam o desejo do leitor, que o levam a se
identificar com o autor, como o regalo branco de Sade, os vasos de flores de Fourier, os
olhos espanhóis de Inácio.
Nos fragmentos de vida dispersos nos textos dos blogs, nessa lógica constelar, o leitor
seleciona os seus retalhos e percorre um caminho singular, fisgado pelos pequenos
detalhes, gostos e pormenores com os quais se identifica. Esses fragmentos podem
viajar para qualquer destino, compondo diferentes caminhos e se reatualizando a cada
instante, permitindo ao leitor fazer o próprio percurso, construindo um arranjo particular.
Assim, autor e leitor podem seguir diferentes rumos, que são refeitos e desfeitos
continuamente. O sujeito adolescente tanto pode escolher a escrita do descontínuo, do
fragmentário, do sem-sentido, como pode construir uma narrativa de si, seguindo uma
ordem linear, sequencial, endereçada a um outro e que faça laço social.
239
Sábado , 16 de Agosto de 2008
Bom, decidi criar esse blog para desabafar, porque, afinal, todo adolescente
passa por suas crises e na maioria das vezes nem tem com quem conversar.
Não vou citar nomes nem nada, para garantir que eu continue anonima,
beleza?) Por favor respeite minha decisão, afinal não são todos que querem
que todos saibam da sua vida. digo que sou uma menina, 14 anos e moro
em São Paulo - Capital. E não, o nome do blog não foi escolhido em
idolatria ao filme e muito menos à Lindsy Lohan, mas sim porque eu
achei que ele combina com o contexto que queria! Template temporário,
ainda não sei se faço um com meus (mínimos) conhecimentos de html ou se
pego um em algum site. Bem, é isso, espero que leiam o que eu escrevo, e
mesmo que não, foi uma forma de desabafo para mim : D Beijos :*
http://umacrisedeadolescente.zip.net/arch2008-08-10_2008-08-16.html
No blog acima, sua autora (que não quer se identificar), comenta que o seu blog tem um
template temporário, pois ela ainda não decidiu como irá construí-lo. Ela não sabe se faz
com os conhecimentos (mínimos) que tem de html ou se “pega um” em algum outro site.
Identificamos, portanto, algumas das possibilidades de percurso que o sujeito tem ao
construir o seu blog. Os adolescentes “visitamvários blogs, buscando fisgar detalhes,
imagens, palavras, copiar modelos, criando, a partir destes recortes, algo particular. Não
podemos deixar de destacar o que nos chamou a atenção nesse blog. A imagem
escolhida pela autora é a de uma página de caderno, com desenhos, anotações pessoais e
letras de música, que “preenchem toda a página do caderno”. Esta página do blog
“Confissões de uma adolescente em crise” é equivalente à página de um caderno
impresso, ou de um diário tradicional.
240
A rapsódia, comentada por Barthes (2005), permite uma aproximação da lógica do
ciberespaço. Barthes destaca que a rapsódia é pouco estudada pelos gramáticos da
narrativa e que existe uma estrutura rapsódica da narração que é própria ao romance
picaresco e, talvez, ao romance proustiano. Essa estrutura não obedece à ordenação
própria de uma história, com um modelo implicitamente orgânico (nascer, viver,
morrer), não segue uma ordem natural ou uma sequência lógica, com um sentido
imposto pelo “Destinopara a vida, mas, ao contrário, ela é formada pela justaposição
pura e simples de pedaços iterativos e móveis. O contínuo não é mais do que uma
sequência de retalhos cosidos, um tecido barroco de trapos. Ele compara essa
justaposição com a rapsódia de Sade, que enfileira sem uma ordem as viagens, roubos,
assassínios, dissertações filoficas, cenas libidinosas, fugas, narrações segundas,
programas de orgias, descrições de máquinas etc. Essa construção, segundo Barthes,
constitui um escândalo do sentido: “o romance rapsódico (sadeano) não tem sentido,
nada o obriga a progredir, amadurecer, terminar” (BARTHES, 2005: 166).
Essa construção rapsódica o se aproximaria da lógica do hipertexto do blog? A
justaposição de “fragmentos” iterativos e móveis, sem sentido, que não segue uma
ordem própria ou uma história sequencial e evolutiva, que permite múltiplas
combinações, não seria o modelo de texto do blog? Essa lógica constelar é resultado da
própria lógica capitalista, que leva a um imperativo do gozo e a um empobrecimento do
desejo, com a perda da singularidade. Há um enfraquecimento dos laços sociais.
A escrita do sujeito evidencia a sua face fragmentária, o sem-sentido, o desconexo, que
ele deixa “escapar”. A lógica constelar no blog manifesta-se, pois, na desconexão, na
desarticulação entre os significantes, que se desprendem da cadeia. O significante solto,
fora do sistema, vale como insígnia e ganha o estatuto de letra, que é o significante
considerado fora de sua função de produzir significações
6
. Enquanto a palavra é
escutada, a letra se escreve. Para Lacan, a escritura tem acesso direto ao gozo. Essa
nova escrita é referida ao registro do ilegível, que sacrifica o efeito de significado. No
blog abaixo seu autor utiliza digos, letras, sinais e números desarticulados, da ordem
do “sem-sentido”, da ausência de significação. Em um blog encontramos:
6
O conceito de letra é discutido no subcapítulo 5.4.
241
?&¨*¨**%$$$##$@#!#@%$%$5466467?
Por fora está tudo confuso.
Por dentro está tudo ...
http://wastedwords.zip.net/arch2006-04-23_2006-04-29.html
Em outro blog, seu autor escreve alguns textos numa sequência lógica, construindo um
texto que apresenta coerência e clareza em sua enunciação. Em seus últimos escritos,
entretanto, o seu texto mostra uma escrita que é da ordem do “sem-sentido”, da ausência
de significação (ou seria uma escrita enigmática, em digos?):
Pah.......... nois moh xeganu( soh danu nois na cosmoFIASCO.... e tal's... ae... a
MiSs-xuruk...xega xeganu.... tropeça nu carro e vai pah frenti.... e dps... tropeça again dentro du
salaum lá........NHAAAAAAAA!!! mto comedia...........
Eh nois......nu niver da Tha-larik.... ae... qndu a lok resolve ih atraix dus kras ki
tava moh com umas baketas lá... ae PAH....... a tha-larik...: OH DA BAKETAH....
HSAuosuiHOSUIAhsuiha!!!!!1
td mundu olhaaaaaaaaaaaaaaaaaaaah!!!!!!
gsaIOSHAishiUAHSahsuiaHOISHaouishaISHAuishIAUSHAsiaHISUOAiusaHSAi
UIa!!! as ALEGRIIIIIIIIII....=> Miss-xuruk ï Tha-larik si perderu nu centru da cidadi...
e pah fexa cum chavi di DIAMANMTIIIIIIII!!! elas vaum para na 9 di julho...(o comercio
pornografico da city.... ou seja... A RUA DAS PUTAH Ï TRAVECUUUUUUUUU)
É nois indo felix pah kza... ae pah... começamu a cantah LONELY... nu meio da rua...
=> Eu(Pamk-da), e Jekinha, e Flavinha i a Tha-larik............ moh GRITANUUUW!!!!
Nhaaaaaaaa!!!! nois gritanu pus karinha di Brod's .. DETALHE BASIKUUUUUUUUW!!!
Us krinnha moh ouvinu funk......... shaUSOAhsuoiHOSUIA!!!!
NOis pixanu a iskola di Brod's tbm... moh nas iscondida...shAUSOIAUHSUI!!!
http://adolescenterebelde.zip.net/arch2005-11-13_2005-11-19.html
242
Luke | Estranho, pô... disse:hmmm
£µß¡ † Será?Será?Será? † de blog novo www.bizarro-meu.zip.net disse:hmmm
£µß¡ † Será?Será?Será? † de blog novo www.bizarro-meu.zip.net disse:tá pensativo hoje 0.o
Luke | Estranho, pô... disse:hmmmm
£µß¡ † Será?Será?Será? † de blog novo www.bizarro-meu.zip.net disse:n.n
Luke | Estranho, pô... diz:hmmmmm
£µß¡ † Será?Será?Será? † de blog novo www.bizarro-meu.zip.net diz:estranho,pô
Luke | Estranho, pô... diz: hmmmmmmmmmmm
£µß¡ † Será?Será?Será? † de blog novo www.bizarro-meu.zip.net diz:
hmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm
Luke | Estranho, pô... diz: hmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm
Luke | Estranho, pô... diz: HAHAHAHAHAHHAHAHAHAHJSDJDKFKF
£µß¡ † Será?Será?Será? † de blog novo www.bizarro-meu.zip.net diz: 0.0
Luke | Estranho, pô... diz: AHAHHAHAHA
243
Luke | Estranho, pô... diz: foi o espirito do edu que baixou em mim
Luke | Estranho, pô... diz: ele ja me sacaneou assim
Luke | Estranho, pô... diz: hahahahaahhahahahaa
£µß¡ † Será?Será?Será? † de blog novo diz: o.o
http://bizarro-meu.zip.net/
amor te beijo a morte beijo
W%%%%%%#$&*(((((((((((((((((((@#!”~´????????****&¨%$$#@bzzzzzzz
@W!W@²²²²?????????? %%%%&*)*****#ZOOOOOOOOOOOOOommmmPUTZZZZZZZZZZZZ
http://rnester.blog.uol.com.br/arch2004-11-21_2004-11-27.html
5.3. O esfacelamento da imagem e sua multiplicidade
Na passagem da linearidade para a espacialidade, há a substituição do Nome-do-Pai por
uma pluralização. A constelação de insígnias constitui para o sujeito seu Ideal do Eu.
Assim, o império dos significantes transforma-se em um império dos semblantes, com
244
sua multiplicidade e a própria linguagem é aparelho de gozo. No entanto, essa
pluralização já está presente em Lacan desde as suas primeiras elaborações teóricas.
Para discutir essa pluralização recorremos inicialmente ao texto de Lacan sobre a
injeção de Irma, no Seminário 2.
Lacan (1992 [1954-55]), no Seminário 2, O eu na teoria de Freud e na técnica da
psicanálise, retoma o sonho de Freud da injão de Irma para ilustrar o que ele vai
desenvolver ao longo de seu trabalho com esse sonho, que é ressaltar a função dos
sonhos. Para Freud, a função do sonho é a de fazer passar a mensagem, a fala atemporal
do sujeito, dado o estatuto atemporal do simbólico.
Esse sonho de Freud foi comentado por ele para mostrar a natureza de todo sonho, sua
função de realização de um desejo inconsciente. Irma era paciente de Freud e amiga da
família, o que implica em dificuldades no que diz respeito à contratransferência. Freud
esbarrava em uma dificuldade especial nesse caso, pois havia para ele uma recusa de
Irma em melhorar. Freud nessa época defendia a hipótese de que a revelação do sentido
inconsciente de um conflito era suficiente para o seu desaparecimento. Irma obteve uma
melhora de seus sintomas, mas ainda persistiam alguns, em particular a propensão a
vômitos. Freud pouco havia tempo interrompido esse tratamento, que obteve cura
parcial, quando recebe, por Otto, um médico amigo da família, notícias de sua paciente.
Este lhe diz que Irma estava muito bem, porém não tanto. Freud identifica um tom
irônico na fala de Otto e acredita que este pode ter participado de críticas feitas pela
família da paciente à sua condução desse caso. A desaprovação de Otto traz à tona os
próprios conflitos de Freud, sendo o elemento provocador do sonho. Naquela noite
Freud tem um sonho.
Um grande hall muitos convidados que recebemos. Entre eles, Irma, que levo
imediatamente para um lado, como se fosse para responder à sua carta e repreendê-la
por não ter ainda aceito a ―solução. Digo-lhe: Se você ainda sente dores, é realmente
apenas por sua culpa. Ela responde: Se o senhor subesse as dores que sinto na
garganta, no estômago e na barriga, isto me sufoca... Fico amedrontado e olho para
ela. Ela parece pálida e inchada. Penso: afinal, deixei escapar, então, algum distúrbio
orgânico. Levo-a até a janela e examino-lhe a garganta. Ela se mostra um tanto quanto
recalcitrante como as mulheres que usam dentaduras postiças. Penso comigo mesmo:
245
no entanto, ela não precisa disso. Então, ela abre bem a boca e descubro, à direita,
uma grande mancha branca; e em outro lugar avisto extensas crostas cinza-
esbranquiçadas sobre extraordinárias estruturas crespas, que evidentemente são
modeladas nos cornetos do nariz. Chamo depressa o Dr. M., que repete o exame e
confirma... O Dr. M. tem uma aparência muito diferente da costumeira; ele está muito
pálido, claudica e tem o queixo escanhoado. Meu amigo Otto também está agora ao
lado dela, e o amigo Leopoldo a percute por cima do corpete e diz: Ela tem uma
matidez embaixo à esquerda. Indica também uma região infiltrada da pele, no ombro
esquerdo (o que noto, como ele, apesar da roupa)... M. diz: Não dúvida, é uma
infecção, mas não tem importância; sobrevirá a disenteria, e a toxina será eliminada...
Sabemos também diretamente de onde provém a infecção. Meu amigo Otto deu-lhe, não
faz muito tempo, quando ela não estava se sentindo bem, uma injeção com um
preparado de propil, propileno... ácido propiônico... trimetilamina (cuja fórmula vejo
diante de mim, em negrito)... Não se fazem injeções dessa natureza tão levianamente...
Provavelmente, a seringa não estava limpa (LACAN, 1992 [1954-55]: 190-191).
Lacan interpreta esse sonho de Freud destacando os seus três registros: simlico,
imaginário e real. Esse sonho pode ser dividido em dois momentos. No primeiro, os
personagens cumprem mais ou menos os mesmos papéis que cumprem na vida desperta.
Nesse momento do sonho, seu Eu encontra-se no mesmo vel de seu Eu vigil. Ele
encontra-se com Irma e a repreende por não ter aceitado sua solução. Quando esta lhe
fala de seu sofrimento, ele insiste para que ela abra a boca. Lacan ressalta a existência
de outras mulheres envolvidas na imagem condensada de Irma, e aponta para o
enfrentamento de Freud com a resistência feminina. Aqui ele está mostrando a
dimensão imaginária do sonho, em que o que está em jogo é o Eu de Freud em sua
relação narcísica com essas mulheres, bem como a função de resistência do Eu.
A dimensão real do sonho aparece no fundo da garganta de Irma, quando se revela, para
Freud, o horror do real da carne, na presença da membrana diftérica modelada em forma
de cornetos nasais: Tudo se mescla e se associa nesta imagem, desde a boca até o
óro sexual feminino, passando pelo nariz. Freud, justamente antes ou logo depois, foi
operado, por Fliess ou por outro, dos cornetos nasais. Eis uma descoberta horrível, a
carne que jamais se vê, o fundo das coisas, o avesso da face, do rosto, os secretados por
excelência, a carne da qual tudo sai...(LACAN, 1992 [1954-55]: 197). Em seu sonho,
246
Freud vai mais além da imagem, atravessa a hiância e depara-se com o impossível de se
ver. As essa visão aterradora, entramos no segundo momento do sonho.
No segundo momento, aparecem então o Doutor M., Otto e Leopold. Os três
apresentam, cada um a sua vez, uma fala absurda, e finalmente chega-se à conclusão de
que Irma apresenta uma infecção decorrente da aplicação por Otto de uma injeção,
provavelmente através de uma seringa suja, de uma solução, trimetilamina, solução essa
que aparece para Freud no sonho, na literalidade de sua fórmula. Lacan conclui que é
que está, no sonho, o inconsciente, aquilo que está fora de todos os sujeitos
(LACAN, 1992 [1954-55]: 202).
Para Lacan, a estrutura do sonho permite-nos compreender que o inconsciente não é o
ego do sonhador. O que está em jogo na função do sonho se acha para além do ego, no
inconsciente. Como destaca Lacan, para Freud o desejo motivador do sonho seria
descartar de si qualquer responsabilidade no fracasso do tratamento de Irma. Lacan nos
adverte para o fato de que Freud, embora estivesse tão interessado em desenvolver a
função do desejo inconsciente, contentou-se em explicar um sonho pela satisfação de
um desejo nitidamente pré-consciente. Lacan se propõe a ir além de Freud, afinal, assim
como na análise, encontra-se diante da possibilidade de interpretar um sonho a partir da
interpretação do relato daquele que sonha. Lacan ressalta o fato de Freud continuar
dormindo no momento crucial do sonho, quando normalmente qualquer um acordaria.
Esse momento define-se pela visão da garganta de Irma, o ponto de virada do sonho, a
visão da angústia.
Diante da visão do objeto em sua unidade (nesse momento de sua teorização, Lacan
aborda o objeto pela via imaginária), o que aparece é a dimensão rasgada do desejo. Tal
rasgamento se mostra pela regressão pica do sonho, pela perda da unidade narcísica
do Eu, acompanhada pelo que Lacan chama de imisção de sujeitos, o aparecimento dos
três médicos, cuja fala ele diz, podem ser tomadas como frases interrompidas. Estes
personagens são todos significativos, uma vez que são personagens da identificação na
qual a formão do ego reside(LACAN, 1992 [1954-55]: 199). Lacan destaca que um
limiar é transposto, a primeira parte do sonho, mais imaginária, chega ao fim e entra em
cena a multidão. Mas é uma multidão estruturada, como a multidão freudiana. Eis por
247
que eu preferiria introduzir um outro termo, que vou deixar para que meditem com
todos os duplos sentidos que comporta a imião dos sujeitos” (p.204).
Dois sentidos da palavra imisção são destacados por Lacan. No primeiro, os sujeitos
entram e se intrometem no sonho. No segundo sentido, um fenômeno inconsciente, que
se desenrola num plano simlico, descentrado em relação ao ego, ocorre sempre entre
dois sujeitos. Quando emerge a fala verdadeira, ela faz deles dois sujeitos muito
diferentes do que eram antes da fala. Eles se constituem como sujeitos da fala a partir do
momento em que a fala existe.
Lacan destaca a substituição do sujeito pelo sujeito policéfalo. Há uma pluralidade
imaginária do sujeito, pelo espalhamento, pelo desabrochamento das diferentes
identificações do ego. O sujeito transformado nesta imagem polifala parece ter a ver
com o acéfalo(LACAN, 1992 [1954-55]: 213). O autor ressalta que a noção freudiana
do inconsciente é justamente a de um sujeito acéfalo, que não tem mais ego, que não é
do ego, que é extremo em relação ao ego, descentrado em relação ao ego. No entanto,
ele é o sujeito que fala, é o que faz proferir todas as falas do sonho: “Este
desarvoramento, este despedaçamento, esta discordância fundamental, esta não-
adaptação essencial, esta anarquia, que abrem todas as possibilidades de deslocamento,
ou seja, de erro, caracterizam a vida instintual do homem” (p.215).
A partir dessa anarquia, intervém a ordem simbólica. “O poder de nomear os objetos
estrutura a própria percepção”, como sublinha Lacan (p.215). Retomando o sonho, é em
seu final que aparece o elemento que vai esclarecer tudo. De uma voz desconhecida, de
ninguém, surge a solução: a trimetilamina. O sonho, que culminou no primeiro
momento, ainda na presença do Ego de Freud, na imagem horrível do objeto, no
segundo momento culmina naquilo que, segundo Lacan, não se pode deixar de
identificar como sendo a fala, o rumor universal. Apesar da fórmula não fornecer
resposta alguma ao que quer que seja, a estrutura triádica de todo o sonho revela por
essa acefalia a impossibilidade da localização de um significante para o Sujeito. A
acefalia da fórmula da trimetilamina revela o impossível de localizar, o ponto em que o
sujeito se insere na cadeia simbólica. Assim, no ápice do sonho, não há outra palavra,
outra solução senão a própria palavra.
248
Essa relação do sujeito com o objeto quando mediada pelo simbólico se numa forma
esvaecente, em que Se for você, não sou. Se for eu, é você que não é” (LACAN, 1992
[1954-55]: 214). Para além do Ego, o que está em jogo no sonho, o inconsciente, é
aquilo que é do sujeito e o é do sujeito. É isso que conferiria a esse sonho o seu valor:
a busca da significação como tal.
É no meio de todos os seus confrades, no meio do consenso da república dos que sabem
pois se ninguém tem razão, todo mundo tem razão, lei paradoxal e ao mesmo tempo
tranquilizadora, é no meio deste caos que se revela a Freud, neste momento original em
que nasce sua doutrina, o sentido do sonho... não outra palavra-chave do sonho a
o ser a própria natureza do simbólico (LACAN, 1992 [1954-55]: 203).
Esse sonho possibilitou a Lacan sustentar que o sintoma analítico se produz na corrente
de uma fala que tenta passar, e para passar precisa vencer essa dupla resistência
estabelecida entre o ego do sujeito e sua imagem, o eixo a-a. É necessário que o sujeito
atravesse a janela onde sempre vê a sua imagem. Ao ultrapassar esta barreira, a
interposição entre o sujeito e o mundo cessa. É a partir do ego que todos os objetos são
olhados e é pelo despedaçamento desse ego que os objetos são desejados. Dessa forma,
o sujeito não pode desejar sem se dissolver. Essa dissolução o reduz à dimensão da fala,
e é sempre na juntura da fala, no nível onde esta aparece que se manifesta o desejo. O
desejo surge no momento em que se encarna numa palavra.
O que é importante destacar nessa retomada de Lacan do sonho de Freud é o estatuto de
sujeito para a psicanálise. Vimos que a lógica constelar nos revela um tipo de
funcionamento para além da lógica do binarismo significante. A subjetividade, como
atesta Lacan, é ilustrada pelo sujeito polifalo. uma pluralidade do sujeito, pelo
espalhamento, pelo desabrochamento das diferentes identificações do ego. A noção
freudiana do inconsciente, retomada por Lacan é a de um sujeito acéfalo, que não tem
mais ego, que não é do ego, que é extremo em relação ao ego, descentrado em relação
ao ego. Diante do real, o que aparece é a dimensão rasgada do desejo, a pluralização do
sujeito, sua espatifação”. Tal rasgamento se mostra pela regressão pica do sonho,
pela perda da unidade narcísica do Eu, acompanhada pelo que Lacan chama de imisção
de sujeitos. (Essa mistura de sujeitos e essa interrupção de frases sem sentido revelam a
249
impossibilidade da localização de um significante para o Sujeito, o impossível de
localizar ou o ponto em que o sujeito se insere na cadeia simbólica.)
Num primeiro tempo de seu ensino, portanto, Lacan anunciava esse descentramento
do sujeito em relação ao ego e reconhecia essa multiplicidade de identificações egóicas,
mas ele trabalhava com a estrutura formal e unificante do Édipo via Nome-do-Pai,
retomando os conceitos freudianos de castração e recalque. Assim, o simlico tem uma
função organizadora e apaziguadora e o inconsciente é estruturado como linguagem,
sendo o sujeito separado do corpo. Num segundo momento, Lacan substitui o Nome-do-
Pai por uma pluralização e a operação do recalcamento não é mais atribuída à interdição
paterna, mas à própria ação da linguagem. O sujeito não é mais falta-a-ser, mas ser
falante ou falasser. O falasser ou parlêtre tem uma ancoragem no corpo. Os efeitos do
significante não são mais significações, mas afetos, como o gozo. O gozo precisa de um
suporte corporal e está em constante tensão com o significante. Ao invés de sujeito,
trata-se agora de um corpo afetado pelo significante.
Nos anos 60, Lacan
7
menciona a constelação de insígnias que constituem para o sujeito
seu Ideal do Eu. Não se trata mais do agrupamento em cadeia, onde um significante
representa o sujeito para outro significante, mas de uma constelação de insígnias. Aqui
o Ideal do Eu passa a ser apresentado como uma constelação de insígnias, que podem
representar o sujeito e fazer com que ele seja reconhecido pelo Outro, e que podem
também se soltar da cadeia significante e se transformar em insígnias, operando fora do
sistema simlico na sua face representativa e comunicativa. Dos Ideais do Outro
tomados na vertente significante, aos traços tomados Um a Um. O império do
significante transforma-se em um “império de semblantes” e ele traz de volta os signos
que, ao ressurgirem, portam em seu bojo a continncia do múltiplo, a lógica
fragmentar e multifacetada. A lógica constelar manifesta-se, pois, na desconexão, na
desarticulação entre os significantes, que se desprendem da cadeia. O significante solto,
fora do sistema, vale como insígnia e ganha o estatuto de letra. Em seu último ensino,
nos anos 70, o conceito fundamental trabalhado por Lacan é o de gozo. Agora a própria
7
. LACAN, Jacques. “Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: „Psicanálise e estrutura da
personalidade‟”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p.653-691.
250
linguagem é aparelho de gozo, significante e gozo o mais se opõem. Surge o conceito
de letra, que reúne significante e gozo.
5. 4. Letra: entre o significante e o gozo
O conceito de letra merece uma discussão mais específica, já que ele esrelacionado ao
conceito de escrita, tema fundamental para a nossa pesquisa. Lacan (1998), no
seminário proferido em 26 de abril de 1955 sobre o conto “A carta roubada”, de Edgar
Allan Poe, e publicado nos Escritos (1998), destaca o valor da letra, ao caracterizar o
inconsciente a partir de sua estrutura de linguagem. Para Lacan, a carta pode ser
comparada à letra. Assim como a carta, a letra apresenta esse caráter ambíguo de ser
absolutamente visível e, ao mesmo tempo, invisível. A carta/letra, bem como o
inconsciente, não é algo profundo, mas está na supercie, está exposta. A carta circula
sem que se saiba seu conteúdo. Seu conteúdo, apesar de estar tão próximo, na superfície,
permanece um enigma até o final do conto. Assim, a carta se assemelha ao inconsciente.
Lacan ressalta que a letra, enquanto significante, mata, que ele materializa a instância
da morte. O significante materializando a instância de morte está mais do lado da letra
que mata do que do espírito que vivifica. Lacan aqui define a letra como o suporte
material do significante: “A letter, a litter, uma carta, uma letra, um lixo (LACAN,
1998: 28). Letra e significante se aproximam, diferenciando-se da palavra. A palavra é
sopro etéreo, a letra, enquanto significante, é matéria carnal. Como o significante é
apenas forma, sem um conteúdo que lhe seja permanentemente associado, ele é
identificado com a letra, cuja consistência se encontra justamente nessa sua estrutura
vazia.
Em “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”, Lacan (1998 [1957])
propõe a letra em relação com a linguagem e com o discurso. Retomando o texto
freudiano sobre os sonhos, Lacan postula a noção de “letra do discurso” (p.513). Aqui,
o conceito de letra remete à materialidade do discurso, “em sua textura, seus empregos e
sua imanência na matéria em causa” (p.513). Nesse texto, linguagem e significante são
equivalentes.
Lacan (1961-62), no Seminário 9, A identificação, retoma a noção de traço único
(einziger Zug) formulada por Freud na teoria da identificação, para abordar a função da
251
escrita no inconsciente e na constituição do sujeito. Como abordamos essa teoria da
identificação, retomaremos brevemente apenas para articulá-la com o conceito de letra.
O traço único é o instrumento da segunda espécie de identificação. A primeira espécie é
a identificação ao pai, tica, ambivalente, que se faz sobre o fundo da devoração
assimilante, da incorporação. A segunda, de tipo regressivo, tem o traço unário como
instrumento da identificação e está ligada à perda do objeto. A identificação é parcial,
pois se liga a tomar do objeto um único de seus traços.
Assim, Lacan introduz a escrita na fundação do inconsciente, no enlace do sujeito com o
objeto, ao tomar dele um de seus traços. Designando esse traço como unário, ele
ressalta seu caráter estruturante da subjetividade, ao inscrever uma marca que inaugura
o sujeito, a partir da qual ele insere-se em uma rede simlica. Lacan o designa como
unário para acentuar seu caráter de um, contável, em cuja repetição toda a série se apoia.
Lacan ilustra essa inscrição significante através do caçador que grava a cada expedição
um novo entalhe na caverna para marcar a repetição de um ciclo que é, ao mesmo
tempo, “o mesmo” e “um outro”. Essa função significante introduz a diferença no real, e
requer, a cada vez, mais um traço. Esse automatismo de repetição é determinado pela
“sombra do trauma”.
Um ciclo determinado é suportado por um significante inscrito, que sozinho tem função
de suporte, de letra. Lacan (1961-62) define então a letra como o suporte do
significante. O ciclo de comportamento se apresenta no lugar desse significante
primordial, repelido, recalcado, mas presentificado através do ciclo de repetição. Esse é
o “sistema do trauma”, segundo ele. O inconsciente busca em seu modo de retorno a
identidade de percepção e essa identidade faltará sempre ao que quer que venha
representá-lo. No advento da escrita, alguma coisa que já é escrita, pois sua
característica é o isolamento do traço significante, vem servir como suporte do som, e é
na medida em que ela é fonetizada que funciona verdadeiramente como escrita. Lacan
menciona que, num tempo historicamente definido, um momento em que alguma coisa
está ali para ser lida com a linguagem, quando ainda não escrita, é pela inversão
dessa relação de leitura do signo que pode nascer a escrita, uma vez que ela serve para
conotar a fonetização.
252
Ainda nesse seminário, Lacan assinala um ponto essencial quanto à função do
significante na constituição do sujeito, que é a função do nome, definindo o nome
próprio como a maneira de designar uma coisa como particular, fora de toda descrição.
Assim, ele demarca a relação entre a letra e o nome próprio, que é esse traço de ligação
à marca, à escrita. Ele não esligado ao som, mas à função da letra. É em razão dessa
afinidade com a marca que, de uma ngua para outra, ele conserva a sua estrutura
sonora, e não se traduz.
No Seminário 18, De um discurso que não seria do semblante, Lacan (1971) diferencia
a escrita da linguagem: “...O próprio escrito, enquanto se distingue da linguagem, está aí
para mostrar que, se é do escrito que se interroga a linguagem, é justamente enquanto o
escrito não o é, mas que ele se constrói, se fabrica de sua referência à linguagem”
(LACAN, 1971: 59). Lacan afirma que o significante está no simbólico e que a escrita
está no real: “Os efeitos da articulação do semblante quero dizer da articulação
algébrica e, como tal, trata-se apenas de letras eis aqui o único dispositivo por meio do
qual designamos o que é real; o que é real é o que faz buraco neste semblante” (p.24). O
discurso científico é postulado por Lacan como o semblante. Aqui a letra não tem a
primazia sobre o significante.
Destacamos, em especial, o conceito de letra introduzido no texto Lituraterra, que é
contemporâneo ao Seminário 18. Em Lituraterra, Lacan (2003 [1971]), ainda no início
do texto, faz uma relação entre a letter (uma carta, uma letra) e a litter (um lixo). Ele faz
da letra liteiralixo. Afirma então que a literatura é uma acomodação de restos” (p.16).
Assim, Lacan evoca a metáfora da carta para se referir à letra. Nesse texto, a distinção
entre letra e significante se torna expcita: “É esse o relato bem-feito do que distingue a
carta [lettre] do próprio significante que ela carrega. ...É que o conto [Poe] consiste em
que se transmita como um passe de mágica a mensagem, com que a carta faz peripécias
sem ela” (p.17). Aqui Lacan enuncia a letra (carta) como uma materialidade
desconectada de sentido.
Lacan evoca também nesse texto a metáfora do litoral para se referir à letra. A imagem
do litoral que, situado entre o mar e a terra, entre esses dois elementos distintos, desenha
a borda do furo no saber. Lacan aproxima então o conceito de letra da noção de rasura.
Ele evoca esse aspecto a partir de sua viagem ao Japão. No avião, em viagem de retorno
253
à França após sua segunda viagem ao Japão, Lacan avista a planície siberiana, com seus
sulcos e cursos d‟água:
...por entre as nuvens, o escoamento das águas, único tro a aparecer, por
operar ali ainda mais do que indicando o relevo nessa latitude, naquilo que da
Sibéria é planície, planície desolada de qualquer vegetação, a o ser por
reflexos, que empurram para a sombra aquilo que não reluz (LACAN, 2003
[1971]: 21).
Essa imagem serve de apoio a Lacan para figurar a letra como litoral entre a ordem
simlica e a dimensão real. Ele diz que o escoamento (das águas) é o remate do traço
primário e daquilo que o apaga. Assim, ele continua, é pela conjunção deles (o traço e
seu apagamento) que se faz sujeito. Isso é então a rasura do traço. Mas de onde surge a
rasura? Lacan então evoca uma outra metáfora, a das nuvens:
... ao se produzir por entre as nuvens, ela se conjuga com sua fonte, pois que
é justamente nas nuvens que Aristófanes me conclama a descobrir o que
acontece com o significante: ou seja, o semblante por excelência, se é de sua
ruptura que chove, efeito em que isso se precipita, o que era matéria em
suspensão (LACAN, 2003 [1971]: 22).
Lacan sublinha que, ao se romper um semblante, que é essa nuvem de significantes,
surge o gozo, isso que no real se apresenta como um ravinamento das águas”. Assim, a
escrita é, no real, o ravinamento do significado, aquilo que choveu do semblante como
aquilo que constitui o significante(p.22). Ela não decalca o significante, mas sim
...seus efeitos de língua, o que dele se forja por quem a fala” (p.22). Temos então duas
dimensões da letra. De um lado, a dimensão simbólica, e do outro, a dimensão do gozo.
A nuvem de significantes, ao ser rompida, leva ao surgimento do gozo, como efeito do
real.
No Seminário 20, Mais, ainda, Lacan destaca a escrita como efeito da linguagem: “...há
um outro efeito da linguagem, que é a escrita” (LACAN, 1985 [1972-73]: 63). Lacan
postula a noção de letra valendo-se do recurso à matemática:
...qual é o suporte que podemos encontrar ao não lermos senão letras? É no
jogo mesmo da escritura matemática que temos de encontrar o ponto de
orientação para o qual nos dirigir para, dessa prática, desse liame social que
emerge e singularmente se estende, o discurso analítico, tirar o que se pode
tirar quanto à função da linguagem... (p.66).
Utilizando-se da teoria dos conjuntos, Lacan define a letra como um ajuntamento de
objetos de pensamento:
A teoria dos conjuntos rompe ao colocar o seguinte falemos do Um para
coisas que não tenham entre si estritamente nenhuma relação. Ponhamos
juntos objetos de pensamento, como se diz, objetos do mundo, cada qual
254
conta como um. Ajuntemos essas coisas absolutamente heteróclitas, e nos
demos o direito de designar esse ajuntamento por uma letra (p.65).
O inconsciente, para Lacan, pode ser tomado então como estruturado como os
ajuntamentos de que se tratam na teoria dos conjuntos como sendo letras” (LACAN,
1985 [1972-73]: 65). Ele define a escrita, nesse seminário, como aquilo que vem a se
tramar como efeito da erosão da linguagem (p.92). Segundo Milner (1996), nesse
seminário Lacan define a letra a partir da presença de traços específicos, como: o caráter
fragmentário ou dispersivo, a não-dedutividade e o cálculo local. O caráter fragmentário
é identificado nesse ajuntamento de letras, sem vínculo entre uma e outra. A não-
dedutividade e o cálculo local se mostram pela presença da letra depurada de qualquer
procedimento de demonstração que implique um raciocínio lógico ou dialético. O
matemático disjunto da dedutividade consiste num literal puro, “zonas estritamente
circunscritas de literalidade”, que levam a um cálculo restritivo e local (1996, p.168).
Assim, nesse momento de suas teorizações, significante e letra passam a ser mais
claramente diferenciados.
O recurso à matemática permitiu que Lacan distinguisse o significante da letra. Em O
seminário 22, RSI, Lacan (1974-75) comenta que o borromeano pode ser escrito. É
uma escritura que comporta o real. Nesse seminário, ele formula: O que é dizer o
sintoma? É a função do sintoma, função a se entender como o faria a formulação
matemática: f (x). O que é esse x? É o que, do inconsciente, pode se traduzir por uma
letra, a identidade de si a si está isolada de qualquer qualidade” (LACAN, 1974-75: 23).
Lacan então afirma que todo Um, naquilo que ele sustenta o significante em que o
inconsciente consiste, é suscetível de se escrever com uma letra.
Em O seminário 23, O sinthoma, Lacan (2007 [1975-76]) aproxima a escrita do
conceito de letra. Lacan comenta que o sinthoma faz laço real. Esclarece que o pai é um
sintoma, assim como o Complexo de Édipo é um sintoma. O Nome-do-Pai é o sintoma,
é o quarto que ata os três registros: real, simbólico e imaginário. Lacan então, nesse
seminário, relaciona a escrita com o real. Para ele, é por meio dos pedacinhos de escrita
que entramos no real. A escrita suporta o real. A escrita pode ter uma relão com a
maneira como se escreve o (p.66). Trata-se de alguma coisa que tem uma relação
muito estreita com a letra. Quando se escreve, toca-se o real. Os nós são pensados como
tudo o que há de mais real. O o é a consistência, ele ex-siste ao elemento corda, à
255
corda-consistência. É por estar enganchado na linguagem que o sintoma subsiste. O real
faz acordo entre corpo e linguagem. O gozo fálico situa-se na conjunção do simlico
com o real. O real se funda por não ter sentido, por excluir o sentido ou por ser excluído
dele. A fala, ao ser quebrada, acaba por ser escrita. É por intermédio da escrita que a
fala se decome. Para Lacan, uma escrita é um fazer que suporte ao pensamento. O
a tal escrita uma autonomia. uma outra escrita que resulta de uma precipitação
do significante.
Dois tipos de escrita são destacados por Miller (2005), a partir de sua leitura de Lacan.
A escrita como representação da palavra e a escrita como traço. Na primeira perspectiva,
ao relacionar o escrito com a voz, Miller comenta que “falar” o escrito foi necessário
por muito tempo, para dar um significado ao escrito. Isso era ainda mais necessário,
que no início os rolos, assim como os códices, não tinham pontuação e nem as próprias
palavras eram separadas umas das outras. A passagem do escrito pela voz era, afinal,
uma condição para a legibilidade do escrito. No fundo, o escrito devia ser falado para
tornar-se falante. Assim, temos a escrita como inscrição da palavra, como notação do
que é dito, como sua coletânea, como sua representação. Mas existe um outro modo da
escrita enfatizado por Lacan, que é a escrita como marca, a escrita como traço isolado,
talvez como se dela criasse um neologismo, como traço, como um traço unário em
oposição ao binário.
Temos então dois modos de escrita: uma forma de escrita que é verdadeiramente como
um corpo, aquela que fala, e outra forma que é a da escrita que não significa nada,
aquela que não se lê. Miller, utilizando uma referência de Lacan, destaca esse “para-
o-ler” fazendo uma permutação de letras
8
, como “não-ligar”. “Fou-à-lier” (louco
varrido), fou-pas-à-lier (louco não varrido), nós somos loucos não varridos. O que
o-é-para-ligar, e a quê? Não-é-para-ligar a um significado. Miller acrescenta que, às
duas formas de escrita, correspondem dois nomes. Primeiro, o significante, o escrito, o
escrito que está para significar, que está para o significado, para ter efeito de
significado; e segundo, a letra. A dicotomia entre o significante e a letra permite
compreender a noção de “sinthoma”. O sintoma freudiano é constituído de significantes,
é uma formação do inconsciente, que é estruturado como uma linguagem. O sinthoma
8
Permutação válida apenas para a palavra em francês: non-lire non-lier (cf. MILLER, 2005).
256
lacaniano pertence à ordem da letra. Aqui aparece mais claramente a diferenciação entre
escrita na via significante e a letra.
Os nós de Lacan são uma escrita. Apesar de Lacan ter utilizado letras para escrever as
formações do inconsciente como efeito do significante, a letra é significante na
medida em que é semblante. As relações entre a letra e o significante foram
estabelecidas mais claramente a partir de Joyce. Joyce fez da letra um uso para que
fosse lido. Depreende-se das últimas elaborações de Lacan uma ampliação no estatuto
de sujeito. O inconsciente não repousa apenas nas ligações entre S1 e S2 com seu efeito
$, isto é, sua estrutura de linguagem, mas repousa sobre o gozo de uma verdade.
Miller, em Los signos del goce (2006), destaca a relação entre o signo e a letra, que se
faz importante para a refleo sobre a escrita nos blogs. Ele ressalta que Lacan
inicialmente privilegiava o significante e depois passou a privilegiar o signo.
Retomando a definição de Peirce, o signo representa algo para alguém. O signo para
Lacan refere-se ao sintoma, que não pode reabsorver-se por completo na ordem
significante. O sintoma apresenta uma matéria de linguagem, uma linguagem que faz do
corpo uma matéria distinta dos efeitos de significado. O sintoma está vinculado à
escritura: “O sintoma toma a linguagem fora do sentido(MILLER, 2006: 277). Ora, o
que nos parece relevante destacar, a partir dessas considerações do autor, é que o
sintoma apresenta duas vertentes: uma que corresponde à ordem significante e outra que
está vinculada à escritura.
A escritura é o caráter ideográfico, é o símbolo matemático, é o desenho. Lacan passa a
substituir a definição de inconsciente a partir da palavra para determiná-lo pela função
do escrito. Sua definição é de um saber cifrado. Miller (2006) chama a atenção para o
fato de que o cifrado inscreve-se no ensino de Lacan quando ele opera uma substituição:
o que importa não é mais o efeito de significado do significante, mas o efeito de gozo da
letra. Assim, o signo produz gozo mediante o cifrado. O cifrado equivale à pura
escritura. A letra é o significante considerado fora de sua função de produzir
significações, o que permite diferenciar, portanto, letra e significante. A interpretação é
uma leitura que capta a escritura no campo da linguagem a partir da palavra. Enquanto a
palavra é escutada, a letra se escreve. O inconsciente é o que se lê, é da ordem do que se
escreve. Para Lacan, a escritura tem acesso direto ao gozo.
257
O signo pode ser tomado a partir de duas perspectivas. Como significante, pelos seus
efeitos de significado, e, como letra, “quando é considerado de acordo com o seu
segundo efeito: a produção de gozo” (MILLER, 2006: 290). Enquanto o significante é o
signo em seu efeito de sentido, a letra é o signo considerado por seu efeito de gozo. O
significante conduz à teoria da comunicação, implica o Outro na linguagem. O ponto de
vista da letra é, ao contrário, autista, é a perspectiva de um gozo que não se dirige ao
Outro. Miller ressalta que essa nova perspectiva permite compreender a mudança
operada por Lacan no conceito de traço unário com o caso Joyce. O tro unário não é
mais só de ordem significante. Este traço já não designa o sujeito como efeito de
significação, mas sim como uma resposta do real. O sintoma o encarna. Por isso Lacan
diz que Joyce é “desabonado” do inconsciente. Ele é desabonado dos efeitos de
significado, segundo Miller (2006). Se o inconsciente supõe um sujeito representado por
um significante para outro significante, este uso representativo é descartado por Joyce.
O novo conceito de literatura, que começa a ser formulado por Lacan a partir de Joyce,
está referido ao registro do ilegível, sacrifica o efeito de significado e apresenta uma
linguagem cujo efeito pertence a outro registro. O sintoma, como uma função
matemática, como um f (x), realiza a transferência da contabilidade ao gozo, do
simlico ao real. “Lacan chama sintoma aquilo do inconsciente que pode traduzir-se
por uma letra, e escreve essa tradução como f (x)” (MILLER, 2006: 299). O sintoma
o depende do que do inconsciente pode traduzir-se por um significante. O significante
é sempre diferente de si. Na ordem da letra identidade. Miller ilustra essa afirmação
através da diferenciação entre Sade e Joyce. Enquanto Sade teve como ideal o
apagamento de seu nome até não sobrar nenhum traço, Joyce quis eternizar seu nome e
fazer dele uma insígnia.
Esse novo conceito de literatura formulado por Lacan a partir de Joyce permite-nos
pensar a nova escrita nos blogs. Essa nova escrita referida ao registro do ilegível que
sacrifica o efeito de significado apresenta uma linguagem cujo efeito pertence a outro
registro. Que efeito teria essa nova escrita nesse ambiente virtual? Essa linguagem que
pertence a outro registro revela uma mudança na noção de sujeito, que rompe com a
linearidade e a ordem significante, introduzindo uma nova lógica, a da espacialidade e
da universalidade, a lógica constelar.
258
Assim, a ruptura da linearidade da cadeia significante implica uma mudança no estatuto
do sujeito. Na perspectiva linear, o sujeito é resultado de um movimento associativo,
conectivo e articulativo (S1 S2). Nessa vertente discursiva, o significante representa o
sujeito para um outro significante e o inconsciente se articula entre um significante e
outro, permitindo que o sujeito se represente e que o gozo se localize. Na perspectiva
constelar há um movimento de dissociação, de ruptura, de desconexão ou desarticulação
entre os significantes (S1//S2). Nessa vertente, uma mudança no estatuto de sujeito e
de inconsciente. aqui um inconsciente escritural que se sustenta ali onde S1,
letra que se repete. O inconsciente é constituído de traços ímpares, memórias de gozo. O
Um do traço é pluralizado, há um enxame de S1s.
Se o signo pode ser tomado a partir de duas perspectivas, como adverte Miller (2006),
nesse universo virtual carregado de signos, o sujeito adolescente pode conduzir-se de
duas formas. Em primeiro lugar, buscando orientar-se pela lógica significante, pelos
seus efeitos de significado. O significante conduz à comunicação, implica o Outro na
linguagem. Assim, em seu blog, o jovem adolescente se dirige a um outro adolescente,
visando à comunicação e construindo o seu romance familiar. E em segundo lugar, na
produção de gozo, como letra. O ponto de vista da letra é, ao contrário, autista, é a
perspectiva de um gozo que o se dirige ao Outro. Mas veremos como, na leitura dos
blogs, localizamos ainda um terceiro tipo de escrita.
5.5. Tempo e escrita: o blog como uma memória efêmera
Os diários, privados ou públicos, apresentam uma importante relação com o tempo.
Hébrard (2000) diferencia três tipos de escritura, considerada sua relação com o tempo:
a escritura literária, a escritura científica e a escritura pessoal. A escritura literária cria
um tempo específico, o da ficção que ela produz; a escritura científica se instala numa
discursividade que apaga o tempo e a escritura pessoal precisa organizar sua relação
com o tempo de uma maneira específica: o sujeito que escreve, para não se perder na
alteridade, percebida como perigo ou ameaça, deve distinguir sua história própria (os
acontecimentos sucessivos de sua vida social ou interior) do continuum mais ou menos
organizado das temporalidades às quais está preso.
259
Existe uma íntima relação entre escrita e imortalidade. Escrever sobre si é uma tentativa
de se fazer imortal. O diário é uma escrita do tempo presente, recorrendo às memórias
do passado e se projetando no futuro. Os diaristas revelam o desejo de guardar seus
escritos para que no futuro não se esqueçam do “presente”, como forma de “fixar” o
tempo, como uma maneira de “guardar na memóriaos fatos, pensamentos, sonhos e
desejos atuais. Diferentemente dos livros de memória, onde se escrevem as lembranças
do passado, nos diários há a escrita do tempo presente, para eterni-lo.
Para os gregos, o tempo é o deus Cronos, filho do Céu e da Terra
9
. No mundo latino, o
tempo é representado pela figura de um velho descarnado, de barba e cabelos brancos,
grandes asas nas costas e, nas mãos, uma foice e uma ampulheta. Sua imagem vincula-
se também à morte e à destruição. No mundo greco-latino, o rculo constitui o modelo
da temporalidade. O tempo é circular, inexorável, do qual o é possível fugir. Ele
sempre retorna, gerando a eterna repetição. O tempo cristão tem a imagem da linha reta,
sucessão de instantes únicos. A Renascença apontou o profundo descompasso que
divide o homem entre o tempo linear da história e o tempo cíclico do mito e da natureza.
O relógio é uma invenção renascentista, uma maquinaria construída para tentar capturar
o tempo e medi-lo de forma mais científica. O relógio, usando a gravidade e a rotação,
registra o tempo em quantidades mensuráveis, individualizando-o e domesticando-o. O
relógio contabiliza o tempo, que passou a se representado como um fluxo contínuo e
uniforme. Na modernidade o tempo passa a ser pensado como um encadeamento
coerente de fatos, uma sucessão cronológica, que ressalta a ideia de marcha contínua e
automática em direção ao progresso. a visão contemporânea não percebe o tempo
como linearidade homogênea e vazia, mas como uma realidade intangível, permeado de
agoras” em permanente fluir. O tempo é visto como uma dimensão onde se cruzam
ritmo e acaso, velocidade e inércia, aceleração e quietude. O tempo apresenta-se com
uma natureza paradoxal, que não possui ordenamento ou lei presumível, princípio ou
fim definível e é impossível de ser dominado (SANTOS, L. A.; OLIVEIRA, S. P, 2001).
Nas narrativas dos diários íntimos uma tentativa de se seguir o ritmo do calendário,
reproduzindo um tempo que se ordena e se apreende através do ritmo da escrita diária.
O narrador tem o poder de se deslocar livremente, a partir de visões retrospectivas,
9
SANTOS, Ls Alberto Brandão; OLIVEIRA, Silvana Pessoa de. “Leituras do tempo”. In: Sujeito,
tempo e espo ficcionais. Introdução à teoria da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.54-65.
260
prospectivas ou simultâneas e por meio de arranjos entre planos temporais distintos,
possuindo múltiplas formas de ordenar os eventos narrados. Existem representações
objetivas e subjetivas do tempo, a primeira relaciona-se com os seus aspectos físicos e a
segunda com uma percepção ou consciência do tempo. As duas representações são
indissociáveis, pois mesmo se utilizando da maior liberdade imaginativa, um tempo
da realidade que transcorre e que não se controla.
Toda narrativa manm um nculo com o tempo, tende a representá-lo de algum modo.
Diferentemente do texto poético, que explora sobretudo o tempo da própria linguagem,
o texto narrativo, apesar de também explorar o tempo da linguagem, está subordinado a
um propósito de reconhecimento de tempos ficcionalizados. Narra-se para intensificar a
sensação de pertencer a um tempo e para produzir a ilusão de que se pode evitar a
própria transitoriedade.
O blog, como uma escrita no ciberespaço, tem uma relação particular com o tempo. Ele
aproxima-se e distancia-se do diário íntimo em sua relação com o tempo. O diário
íntimo é publicado (quando seu autor decide publicá-lo) e disponibilizado ao leitor
depois de ter seu texto concluído, organizado e revisado. O leitor recebe o texto integral,
algum tempo depois de pronto, e não interfere na sua produção. o blog é escrito e
simultaneamente laado no espaço público. A cada dia o leitor tem a chance de
acompanhar a escrita do diário, podendo interferir no texto, modificá-lo, a partir de seus
comentários, perguntas e sugeses. O leitor pode, portanto, participar da escrita do
texto do diarista. No blog a relação com o tempo é marcada pela instantaneidade e
simultaneidade. O autor de um blog escreve o texto e o disponibiliza na Internet no
mesmo instante, e ele pode, simultaneamente, consultar outros textos, fazer pesquisas na
Internet, consultar outros blogs, acessar diversos links e conversar no MSN. Embora
sejam publicizados rapidamente, os blogs podem também, na mesma velocidade, ser
retirados do ar. O diário impresso, por sua ppria natureza, parece ter um caráter de
maior permanência no espaço e no tempo em relação ao diário on-line. No entanto, os
blogs podem alcançar maior número de leitores, no mundo inteiro, com maior
velocidade.
Os blogs podem ser caracterizados por uma dimensão temporal síncrona, ou seja,
constituída na simultaneidade temporal entre o que é escrito e o que é veiculado na rede.
261
O programa indica o dia e a hora exatos em que o autor do blog disponibiliza o seu
texto em rede. Assim, existem duas perspectivas implicadas nessa simultaneidade
temporal: o texto do blog é eternizado pelo suporte (da Internet), mas, por outro lado,
ele é fugaz, pois é prontamente substituído ou apagado do espaço de sua circulação
10
.
Existe uma “memória artificial” na contemporaneidade, graças aos recursos
tecnológicos. O sujeito utiliza-se não do recurso da escrita para a preservação e
construção” da memória, mas também de uma série de recursos tecnológicos, como os
recursos da fotografia e da infortica. É possível focalizar ou aplicar zoom sobre
detalhes, utilizar sombreamentos, modificar cores, realçá-las, disfarçar ou destacar
cenas, corrigir imperfeões, fazer cortes, operar flashbacks, utilizar da “câmera-lenta”,
deletar dados”, escanear, gravar informações com segurança redobrada, colocar trilha
sonora, editar a montagem de eventos e abrir links para arquivamentos de dados. Essa
montagem implica a própria construção da história que se busca preservar” e tem seus
efeitos sobre os mecanismos da memória.
As lembranças do passado cada vez mais estão marcadas pelas seleções que fazemos
com os recursos tecnológicos audiovisuais. Selecionamos ou subtraímos cenas,
alteramos ou enfatizamos detalhes, construímos uma história que queremos preservar na
memória. Se essa “reconstrução” da própria história sempre foi feita pelas nossas
fantasias, agora temos o apoio dos recursos tecnológicos que possibilitam uma
“verificação” dessa história, dando a ela um caráter de maior fidedignidade, apesar de
sua dimensão ficcional.
O computador permitiu a multiplicação de arquivos, que cresceu em importância na
contemporaneidade. O computador possui uma capacidade infinita de memória artificial,
mas, por outro lado, é muito difícil manter um blog muito tempo no espaço virtual do
computador em virtude de seus dispositivos, muitas vezes falhos, de memória. O
computador ajuda a guardar e organizar os arquivos de memória. No HD é possível
organizar os escritos separando-os por assuntos, criar arquivos pessoais e separá-los em
pastas, como numa biblioteca.
10
. A relação entre espaço e tempo na escrita dos blogs é trabalhada por Fabiana Komesu, em Blogs e as
práticas de escrita sobre si na Internet. Disponível em: http://www.ufpe.br/nehte/artigos/blogs.pdf.
262
A Internet possibilitou ao usuário a chance de “navegar” pelo mundo inteiro,
selecionando os assuntos e guardando-os em seus arquivos pessoais. Segundo Bauman
(1998: 202): “Agora todos têm a possibilidade e a probabilidade de ter o nome e o
registro de vida conservados para sempre na memória artificial dos computadores”.
Com a capacidade infinita e o apetite insaciável da memória artificial, todos podem ser
registrados. Todos os comentários são guardados na memória do computador e no texto
do blog. O computador permite esse “arquivamentode informações, tendo a tela como
porta de acesso aos diferentes assuntos. Esse arquivo é pessoal e plural, como uma
memória pessoal e coletiva. Além disso, o blog conta com a autorização do próprio
autor para colocar informações sobre si na rede e recebe a contribuição do público para
essas memórias pessoais. Mas, apesar de já ser possível procurar textos por assunto,
autor ou data no texto virtual, o blog é ainda um arquivo que falha. Ele permite escrever
textos sobre vários assuntos e armazená-los, mas não oferece ainda ao autor e ao leitor a
possibilidade de procurá-los, pois o programa não desenvolveu até hoje um mecanismo
de busca e de organização.
Nos blogs os assuntos estão juntos numa mesma página e não são classificados por tema
ou ordem de importância. O texto é fragmentário, individual e coletivo, com escritos do
autor e de seus leitores. É, portanto, um arquivo pessoal e plural, uma memória
individual e coletiva. A participação numa memória coletiva passa a ser acessível a
muitos indivíduos. Os registros biográficos ficam na memória dos computadores, e
circulando na Internet. No ciberespaço, esses registros escapam ao controle do seu autor,
Os grandes sites de busca podem conter informações sobre a vida de uma pessoa sem
que ela mesma saiba que esses dados estão registrados na Internet.
A velocidade e a instantaneidade na era do tempo real exigem rapidez na reconstrução
da história. O passado parece perder um pouco o seu sentido diante da supremacia do
presente. Assim, as hisrias devem ser curtas e carregadas de imagens, para facilitar a
apreensão rápida e imediata e evitar o desinteresse pela leitura. O passado parece ter
perdido também o seu sentido como causa do presente. Vivemos uma sucessão de
tempos presentes e todo o passado parece ter perdido sua importância na explicação da
atualidade. O passado só interessa como produto a ser consumido, vendido, como objeto
recriado e estetizado pela tecnologia.
263
O fluxo constante de informações que recebemos nos faz sentir incapazes de absorvê-las.
Temos a sensação de estarmos sempre desatualizados. O tempo se comprime, virando
uma sucessão de presentes acelerados. Diante de tantas informações que não
conseguimos absorver, utilizamos o arquivo do computador para guardá-las, caso
precisemos delas “algum dia”. São inúmeras pastas para o arquivamento de informações.
No entanto, a memória artificial não garante ao indivíduo a possibilidade de exercitar a
própria memória.
Se muitos acreditam que a memória artificial leva ao desaparecimento do arquivamento,
que ela permite a substituição do espaço sico, como as estantes e armários onde se
guardam as inúmeras “lembrancinhas”, folhetos, diários íntimos e cartas, pelo espaço
virtual , o computador, na verdade, possibilita a expansão dessa ilusão do
arquivamento. Exatamente por ser um espaço virtual, ele permite a ilusão de se poder
arquivar tudo, sem “ocupar espaço físico” e “sem perdas”.
Assim, o blog pode ser pensado como uma tentativa de arquivamento de si ou, ao
contrário, é uma escrita do imediato, do fugidio e do efêmero? um privilégio do
presente, dos fragmentos curtos e imediatos, com um consequente apagamento da
“história” nesses diários virtuais?
Optamos por investigar essa relação com o tempo nos blogs a partir dois critérios: em
primeiro lugar, pela presença do “passado e do “futuro” na escrita dos blogs, e, em
segundo lugar, pelo tempo de duração dos blogs.
Investigando essa relação com o tempo nos blogs comentados no capítulo anterior, foi
possível constatar que: dos 50 autores de blogs, apenas seis fazem referências ao
passado e quatro fazem referências ao futuro. A grande maioria dos autores escreve
sobre a “adolescência”, sobre a atualidade. Com relação ao tempo de duração dos blogs,
a grande maioria dos autores (70%) não escreve ali mais de um ano. O tempo médio de
duração é de seis meses. Alguns têm curtíssima duração, com a escrita de dois ou três
textos apenas (duração de dois ou três dias).
O blog é, portanto, um texto marcado pela instantaneidade. Os textos são, de uma
maneira geral, curtos, breves, com muitos recursos visuais e de sons. Os blogs, em sua
264
maioria, não têm longa duração. um privilégio do tempo presente, dos fragmentos
curtos e imediatos, com um consequente apagamento da “história nesses diários
virtuais.
Mas existem aqueles que se aproximam muito dos diários tradicionais em sua relão
com o tempo, pois têm longa duração, os textos são densos e longos. Encontramos blogs
com a duração de dois, três e quatro anos, ou seja, blogs que duram praticamente todo o
período da adolescência. É possível observar que, ali, ao esforçar-se para distinguir sua
própria história das temporalidades às quais es preso, o sujeito faz um esforço
subjetivo de apropriação dessa história. A partir de uma escrita diária, busca tornar-se o
autor e o protagonista de sua própria história. Como sublinha a autora do blog abaixo,
ela não espera que “entrem em seu blog”, esse não é o seu propósito. Ironicamente, seu
diário público é denominado por ela como secreto diário”:
A primeira vez que eu vou blogar... bem nesse blog pretento contar a minha
vida mesmo quero q ser torne meu diario eu pretendo contar tudo o que
acontece na minha vida...o que eu acho... não vou esperar que entrem pq
esse não é o proposito... blz!!!!
http://secretodiario.zip.net/arch2006-09-24_2006-09-30.html
Vimos como a escrita tem uma importante relão com o espaço e com o tempo e
refletimos sobre essa dimensão espaço-temporal no ciberespaço. Veremos agora como
na adolescência existe uma relação particular com o espaço e com o tempo, e como essa
relação aparece na sua escrita de um blog. Essa discussão nos levará a uma reflexão
sobre a escrita de um texto “virtual” na adolescência, localizada entre o sonho e o
despertar.
5.6. O adolescente no tempo e no espaço
No tempo do despertar pubertário, o sujeito sofre um despedaçamento de sua imagem
corporal e precisa refazê-la. Da mesma forma, ele deve reorientar-se no tempo e no
espaço.
Com relação ao espaço, o adolescente, ao sentir seu corpo transformar-se, começa a
alterar também sua percepção do mundo e do espaço. Há a necessidade de reposicionar-
265
se em um mundo que é ampliado abruptamente. O espaço familiar passa a ser pequeno e
as distâncias entre os locais de circulação são reduzidas. As fronteiras espaciais são
diluídas e o sujeito passa a sentir a necessidade de circular mais livremente pelo espaço
urbano. Nessa fase de transição do espaço familiar para o espaço social mais amplo, o
jovem busca experimentar a dimensão exterior ao espaço familiar. O exercício de “sair
de casa” é uma tentativa de separação dos agentes parentais. Passam a circular pelas
ruas, em bandos, exercitando a liberdade fora do domínio parental e explorando os
diversos espaços da cidade. O exterior passa a ser um lugar menos ameaçador do que o
“interior”, espaço psíquico das fantasias e desejos “perigosos”. Assim, os jovens
querem sair o tempo todo: para festas, barzinhos, fazer caminhadas “de aventura”,
fogem da escola, de casa, vagando muitas vezes sem um destino específico, evitando o
confronto com o “desconhecido interior” e experimentando a separação familiar.
A presença do adolescente no espaço urbano se muitas vezes de forma “evidente”.
Ele busca “ser visto”, se destacar no grupo social. As roupas, o corpo, os adornos, a
linguagem e os movimentos são frequentemente destacados e lançados ao olhar do
outro. toda uma linguagem corporal que é dirigida ao Outro social. Através dessa
presença tão “visível”, os jovens denunciam a invisibilidade do adolescente na
sociedade, interpelando o Outro social. Se a sociedade não os reconhece como adultos”
e, portanto, responsáveis pelos próprios atos e capazes de produzir e oferecer a sua
contribuição social, ela também não os reconhece como crianças, dependentes dos
cuidados paternos e sociais. Enquanto os lugares sociais de criança e de adulto o bem
definidos na nossa cultura, o lugar social do adolescente não é claramente delineado. As
cobranças feitas aos adolescentes são contraditórias: ora são novos demais para terem
liberdade e autonomia, ora são “grandes demais” para brincarem, demandarem cuidados
e atenção. O adolescente é alguém que já tem o corpo de adulto, mas ainda não pode
usufruir das condições dele. Até mesmo o acesso à vida sexual é impedido. A liberdade
sexual é vista como “perigosa” e inconsequente. Assim, marginalizado pela sociedade, o
adolescente se identifica com este lugar social marginal, confirmando sua condição de
exterioridade, como vimos.
Existem, no entanto, aqueles jovens que evitam sair às ruas, se enclausuram dentro de
seus quartos e, muitas vezes, se alienam no espaço virtual. Se o confronto com o espaço
exterior é evitado (por diferentes motivos), o jovem adolescente hoje tem a chance de
266
“viajar pelo mundo” através de um aparelho de computador dentro de casa. Esses jovens,
aparentemente tão próximos dos pais, distanciam-se totalmente deles, imersos na
virtualidade. A dimensão espacial nesse universo é intensamente ampliada, oferecendo
ao adolescente muito mais facilmente a chance de se deslocar para dimensões e lugares
jamais imaginados. Os apelos dos pais, as chamadas telefônicas, a campainha, nada
parece atingi-los, dada a “distância” em que se encontram. Eles abandonam o próprio
corpo para imergirem numa viagem que lhes oferece as mais variadas possibilidades de
satisfação. Transformam-se em heis poderosos, guerreiros invencíveis, mulheres
atraentes, fazem um milhão de amigos e namorados virtuais, circulam pelos ambientes
“mais perigosos e proibidos”, experimentam diferentes identidades imaginárias,
satisfazem suas pules exibicionistas, voyeristas e suas curiosidades mais mórbidas.
O ciberespaço expande a dimensão subjetiva imaginária, com todos os seus efeitos. O
jovem adolescente, nesse momento de “passagem”, é facilmente capturado por esse
universo fascinante de possibilidades e promessas. Mas, para além da dimensão
alienante, o ciberespaço pode funcionar como um espaço de transição entre o familiar e
o social. O adolescente está dentro de casa e ao mesmo tempo fora, estabelecendo
contatos sociais, exercendo a liberdade da circulão fora do domínio dos pais,
escrevendo suas próprias ideias e se preparando para o ingresso social. Nesse sentido, o
espaço virtual pode propiciar a separação e não ser um espaço de alienação.
O adolescente também precisa situar-se no tempo. A velocidade das transformações
pubertárias o convoca a uma rápida reorientação temporal. Atropelado pelo confronto
com o real do sexo, o adolescente precisa rapidamente reapropriar-se de seu corpo e de
seu espaço. Para fazê-lo, muitas vezes ele busca reter o fluxo temporal, colecionando
imagens, fotos, pequenas lembranças, objetos, músicas e escrevendo suas ideias,
experiências cotidianas, sensações e fantasias. Escrever diariamente oferece-lhes a
ilusão da apreensão do tempo que passa tão rapidamente.
O ciberespaço exe de forma intensa toda a ambivalência da dimensão temporal. O
ciberespaço é o espaço por excelência da rapidez, da velocidade tecnológica, do
imediato e do fluido. Nesse universo quase infinito de informações e imagens, o sujeito
é convocado a fazer uma apreensão imediata desse excesso. Para isso, mais vale a
quantidade do que a qualidade. O sujeito desliza pelas informações, sem se aprofundar
267
em nenhuma delas. A rapidez exige superficialidade. Paradoxalmente, o sujeito busca
na memória do computador o arquivamento de suas ideias, pensamentos, imagens,
para que não se percam. Diante da multiplicidade de informações e dados, as pastas do
computador são recursos para o apoio à memória, para guardar aquilo que “pode” ser
necessário algum dia. São várias as pastas que se multiplicam diariamente para arquivar
aquilo que o fluxo temporal pode apagar.
Os adolescentes, nesse exercício de apreensão temporal, utilizam os blogs como um
recurso para o arquivamento” de fotos, lembranças, ideias, pensamentos e experiências
cotidianas. Muitos afirmam que um dos motivos que os levam a escrever um blog é o
desejo de “guardarem” as lembranças da adolescência, para não serem esquecidas. Há,
portanto, uma tentativa de reter esse tempo da adolesncia, tão fluido e instável.
A pesquisa que desenvolvemos possibilitou constatar que os adolescentes escrevem
prioritariamente sobre o tempo presente. Seus escritos são breves, com curta duração,
em sua grande maioria. Levantamos algumas hipóteses para explicar essa constatação.
Primeiramente, a influência da cultura. Como vimos, o ciberespaço ilustra de forma
contundente as caractesticas que ilustram a contemporaneidade: o imediatismo, o
domínio da imagem, a velocidade das informações e a rapidez tecnológica. Os
adolescentes circulam nesse espaço com grande velocidade e agilidade. A escrita no
ciberespaço é superficial, rápida, abreviada, as frases são curtas, com muito apelo às
imagens. Os blogs, portanto, apresentam todas essas características: frases curtas,
palavras abreviadas, muitas imagens e sons. O tempo de duração de um blog é também
curto, o texto é superficial, com pouco conteúdo. O adolescente “passa brevemente
pelo blog e, logo, perde o interesse por ele. Em segundo lugar, não seria o próprio
tempo da adolescência tão rápido, marcado por tão grandes e rápidas transformações
fisiológicas, que a escrita apresentaria exatamente esse caráter fluido e inconstante?
O despertar pulsional envolve um confronto com a brevidade da vida, com a morte. A
insistência pulsional incessante é confrontada com a hiância que se abre na dimensão do
saber, que, se por um lado, desperta a angústia adormecida na latência, por outro lado,
abre possibilidades para o adolescente emergir como desejante. O real descoberto é,
pois, o anúncio da morte e também o começo de algo singular, o que permite pensar a
adolescência como o momento paradigmático da reatualização das relações possíveis
268
entre o significante e o gozo. O significante inaugural do sujeito é tanto a marca da
morte que o sujeito recebe ao nascer, quanto apresenta a dimensão de insígnia que, na
condição de semblante, recobre a dimensão do ser-para-a-morte. A psicanálise nos
esclarece que o sujeito o é apenas resultado de uma operação de significação, mas, ao
contrário, é antes o efeito de um vazio de significação, desse resto que não é absorvido
pelo significante.
Na puberdade, o efeito traumático do confronto com o real do sexo aponta exatamente
para esse vazio de significação, evidenciando a divisão do sujeito. Esse vazio faz apelo
a um novo sentido. As pesquisas desenvolvidas com os blogs de adolescentes nos
indicaram três modalidades de blogs, que serão aqui apresentadas brevemente, mas que
serão discutidas no próximo capítulo.
Em primeiro lugar, identificamos aqueles em que existe um endereçamento a um outro,
uma busca de construção de sentido, mas os textos são curtos, fragmentários, logo
são interrompidos. o há a construção de um romance familiar que faz laço social. Em
segundo lugar, os blogs se constituem como pura escrita de gozo”, e não fazem laço
social. Em terceiro lugar, o sujeito adolescente, endereça-se a um outro e, utilizando-se
das coordenadas simbólicas de que dispõe, constrói o seu romance familiar. Nesse
momento de vacilação das identificações, o inconsciente pode produzir novas
significações, fornecendo ao sujeito a possibilidade de obter um novo saber, que se
sustenta nessa cultura virtual.
5.7. O adolescente e a escrita no blog: entre o sonho e o despertar
A adolescência implica um confronto com o real do sexo, é um tempo lógico marcado
por uma ruptura simbólica, que aponta para a impossibilidade do simlico recobrir
totalmente o real. A partir do processo de constituição subjetiva, sabemos que, como
consequência da passagem do sujeito pelo Édipo, é instalada a função fálica. A função
paterna possibilita a renúncia ao gozo fazendo emergir o significante como resposta ao
enigma de sua existência; assim, pelo efeito do recalque, surgem as possibilidades do
desejo. A adolescência é o momento paradigmático da reatualização das relações
possíveis entre significante e gozo. Diante da pergunta: “Que sou eu?”, o sujeito busca
269
respostas através dos recursos simlicos que possui. A escrita de um diário ou de um
blog na adolescência pode ser uma tentativa de responder a esse enigma.
A puberdade leva o sujeito a relativizar os ideais parentais aos quais está alienado. A
necessidade de contestar a palavra dos pais e sair do lar familiar rumo ao laço social
leva o adolescente a buscar outras referências além das parentais, à exigência de uma
nova construção identificatória. Os adolescentes lançam mão de algumas estratégias
como forma de assegurar uma marca de identificação. Uma das estratégias buscadas
pelos adolescentes contemporâneos é a tentativa de inserir-se no universo virtual,
fazendo laços sociais e tentando “situar-se” dentro das possibilidades de ofertas de
identificação que o ciberespaço oferece.
Buscando situar-se fora do espaço familiar e lançar-se no espaço público, o adolescente
tenta um trabalho de separação. Nessa perspectiva, a escrita de um diário pode
possibilitar o início de um trabalho de separação, permitindo ao adolescente ultrapassar
a autoridade parental e inventar novas respostas, numa reorganização simbólica. O
desligamento da autoridade dos pais exige do sujeito que se situe em relação à
castração. Existe um endereçamento ao Outro simlico nessa escrita no ciberespaço,
que também pode ser pensada como uma tentativa de circunscrever um gozo. Esse
gozo, que é desperto na puberdade, é da ordem de um real do corpo e exige do sujeito
que o ordene, utilizando para isso das representações simlicas e imaginárias que
construiu ao longo da vida, ou seja, sua ficção de identificação e de objeto.
O adolescente, diante da sensação de fragmentação reforçada pela contemporaneidade,
pode buscar no ciberespaço alcançar essa unidade do eu, tendo o espaço virtual como
extensão do eu, alcaando uma identidade alienante. Se a sociedade caminha para uma
marginalização cada vez maior do sujeito, sustentada, principalmente, pela própria
tecnologia, a adolescência continua sendo um momento em que o sujeito procura situar-
se na partilha dos sexos. Na adolesncia a travessia pode ser mais rápida ou mais
demorada, mas de uma maneira ou de outra o sujeito acaba chegando do outro lado do
túnel.
Por que o ciberespaço é tão atraente para os adolescentes? A adolescência se configura
como uma passagem, uma transição de um lugar ao outro. O adolescente é aquele que
270
está presente, mas fora da relação. Ele pode estar presente na família, mas se ausenta do
contato. O espaço virtual, por sua vez, representa exatamente um lugar/não lugar. O
ciberespaço pode ser tomado também como um lugar que, por ser virtual, é um lugar de
espera, de transição, de deslocamento. Um lugar de todos e de ninguém. Lugar do
desconhecido, de mudanças rápidas, do descontínuo.
Os paradoxos da adolescência estão também presentes no ciberespaço: o encontro entre
o virtual e o real, o público e o privado, a interioridade e a exterioridade, o conhecido e
o desconhecido. Nesse espaço de jovens por excelência, é possível encontrar seus pares,
com os quais os adolescentes buscam uma identificação possível, quando as referências
identificatórias hoje são tão precárias. Se o saber construído na infância para lidar com o
real não mais se sustenta, a Internet (com o seu “excesso”) se oferece como podendo
obturar essa falta, permitindo a ilusão de uma plenitude de satisfação, onde todo o
conhecimento é possível, sem limites, incluindo a resposta sobre o seu “ser”.
A escrita de um diário “na rede” pode ser, portanto, uma forma de se fixar e se eternizar
numa imagem, encobrindo a castração. Se a adolescência é um tempo onde é dado ao
sujeito uma oportunidade de despertar, sabemos que nem sempre isto acontece. O que
desperta o sujeito é o real de um gozo que rompe os recursos simlicos constrdos
para lidar com ele:
A psicanálise nos alerta para a dificuldade do despertar. Quando dormimos e
somos atingidos por algum estímulo que nos obrigaria a acordar, sonhamos
para continuar dormindo. E, se durante o sonho algo irrompe e contraria seu
trabalho de realização do desejo que mantém o sono, acordamos para
continuar dormindo, embalados pela nossa realidade psíquica, que recobre
com a fantasia o que provocaria o despertar. Nem sempre o encontro faltoso
com o real que faz acordar, desperta. No entanto ele deixa a marca de um
limite, que exigi do sujeito uma resposta, mais cedo ou mais tarde
(BARROS, 1996: 69).
Assim, a escrita nos blogs pode ser uma escrita não separadora, que visaria manter o
sonho edipiano. Diante da irrupção do real na adolescência, o sujeito pode buscar
resgatar a onipotência perdida através da experiência virtual. Segundo Lacan, a imagem
especular encobre a falta-a-ser com o poder e o triunfo (imagem-rainha), tamponando as
insuficiências do sujeito. Na ausência do encontro corpo a corpo, a tela do computador
facilita a expansão das fantasias, do registro imaginário. O sujeito, ao escrever sobre si,
o busca construir um “novo eu” (que é sempre imaginário), como também pode
271
evitar ter que se haver com as frustrações inerentes ao encontro corpo a corpo. O
encontro com o outro virtual pode ser um encontro não faltoso, onde a inconsistência do
sujeito fica encoberta.
Manter-se sempre “conectado”, imerso em relações “virtuais”, seria, portanto, uma
forma de se desconectar” do mundo, como uma saída das relações sociais, para evitar
os desajustes do gozo sexual. Nessa perspectiva, a “virtualidade” o promoveria a
separação, ao contrário, manteria a continuidade dos “sonhos edipianos”, a esperança na
relação sexual”, a ilusão de não ter que fazer escolhas e se responsabilizar por elas,
velando a angustiante questão da falta de um significante no Outro.
O encontro faltoso com o real implica uma escolha do sujeito: a renúncia ao gozo já
perdido ou a tentativa de anular essa perda. É nesse momento que aparece a dimensão
paradoxal da fantasia. Ela surge a partir da separação e, ao mesmo tempo, tenta encobrir
o que a provocou. Podemos pensar que manter-se na “virtualidade” é buscar o
adiamento que protege o sujeito das consequências da verificação da inexistência da
relação sexual, a partir do encontro com o Outro sexo. Por outro lado, a inserção no
ciberespaço” pode ser uma tentativa de separação. Em busca de um lugar para existir, o
sujeito pode encontrar na escrita do ciberespaço (no seu diário virtual, no MSN...) um
ponto de ancoragem de uma referência significante.
Se o adolescente é esse sujeito que escolhe sustentado na alienação ao Outro, mas
inscrevendo, na relação com o Outro, a vertente da separação, o trabalho da
adolescência se inscreve nesse trânsito entre a alienação e a separação. O ciberespaço
pode ser tanto uma forma de não se haver com a separação como se configurar como
um espaço não penetrável pelos pais, portanto, um lugar “separado” dos pais. Para além
do apelo ao outro imaginário, existe o apelo ao Outro (simbólico). O endereçamento ao
Outro simlico aparece na exposição em um espaço público, na saída da intimidade
dos grupos para o campo do Outro. Nessa escrita de si também uma tentativa de
transformação, de uma mutação do íntimo ao público, presente em qualquer diário.
Ao se apresentar em seu texto, o autor se esforça por conferir-lhe um caráter de
identidade, numa tentativa de reconstrução racional de sua história, mas o ato da escrita
envolve uma outra dimensão subjetiva, que escapa a essa tentativa de ordenação. O
272
adolescente, nesse segundo tempo do despertar sexual, é novamente abalado pelos
enigmas humanos e impulsionado a responder sobre as questões sobre sua existência.
Nessa tentativa, ele busca os recursos simbólicos e imaginários de que dise. Mas essa
experiência escapa das amarras simlicas e imaginárias e não permite ser nomeada.
algo de incontornável na linguagem, a dimensão real.
Essa dimensão real no ciberespaço é apontada por Zizec (2006). Ele ressalta que o
ciberespaço, como o imaginário s-moderno digitalizado, deve ser considerado em sua
ambiguidade. Para o autor, a visão celebrativa (gnóstica) do ciberespaço é a de um
universo solto e impermeável ao real, no qual é possível manipular identidades e pôr as
fantasias em prática. Mas ele ressalta que o ciberespaço é também o lugar onde nos
aproximamos de nossos temores mais íntimos: obsessões fetichistas, mórbidas, o
fascínio e a repugnância por certas práticas sexuais e sociais, uma associação
insuportável com a alteridade, no sentido de se pensar que eu poderia ser como eles”.
Assim, há sempre a possibilidade do confronto com o excesso traumático, que também
é inerente ao imaginário. É possível o encontro com “uma janela distante demais” que
faça o sujeito fugir novamente para a realidade.
Dessa forma, manter-se sempre “conectado”, imerso em relações “virtuais”, pode ser
uma forma do adolescente se desconectar” do mundo, como uma saída das relações
sociais, para evitar os desajustes do gozo sexual, mas o ciberespaço não lhe garante essa
saída. Mesmo lá o adolescente pode ser confrontado com o real, o que lhe faria retornar
à realidade.
O ciberespaço tem, portanto, um caráter radicalmente ambíguo. Ele tanto pode
funcionar como meio de foraclusão do real, de um espaço imaginário sem obstáculos,
como pode ser um espaço em que é possível abordar o real, “cuja exclusão é
constitutiva da experiência da realidade social” (ZIZEC, 2006: 125). Assim, ao
constituir a “realidade social” buscamos excluir o real, porém a realidade em si é não
toda. Há certa lacuna na realidade e a fantasia é o que preenche essa lacuna. A
virtualização, segundo Zizec (2006), é possível porque o real abre uma lacuna na
realidade, que passa a ser preenchida pela virtualização.
273
O ciberespaço deve ser considerado, então, tanto um modo de escapar do real quanto
uma forma de se deparar com ele. Tanto podemos ser capturados num movimento
circular interno imaginário, como, nesse mesmo movimento circular, podemos nos
deparar com o real, com a dimensão traumática foracluída de nossa realidade.
A dimensão real também pode ser identificada na relação do sujeito com o corpo. Por
mais que o indivíduo se aprofunde na realidade virtual ele continua preso a um corpo,
que envelhece, adoece, sente fome etc., do qual não se pode abstrair. Assim, Zizec (op.
cit.) chama a atenção para o fato de que a transformação dos seres humanos em
entidades virtuais é uma impossibilidade. O real é uma impossibilidade presente no
próprio ciberespaço e é estritamente inerente a ele.
Em seus blogs, os adolescentes colocam suas fotos, imagens, cores, palavras, tentando
construir nesse espaço um “eu ideal”, que cative o olhar do outro e que alimente a ilusão
de uma unidade imaginária, sem faltas. Mas mesmo nesse blog tão fascinante seu
autor pode deixar escapar uma palavra que aponte um furo nessa imagem. Além disso,
um leitor que esteja lendo esse blog pode deixar no espaço de comentários uma palavra
ofensiva, agressiva, ou apenas dizer que não gostou do blog. Essa palavra pode ter um
efeito de rompimento do ideal, de fratura do espelho, para o autor do blog. Porém nos
interessa o que o sujeito pode construir a partir dessa quebra.
Podemos concluir que, mesmo na tentativa de adiar o encontro com o outro sexo,
evitando o traumático desse encontro, o ciberespaço não garante ao sujeito essa fuga.
No entanto, é frequente o adolescente permanecer um bom tempo preso nesse
movimento circular interno imaginário da virtualidade, até que algo o desperte. Muitos
blogs ilustram esse movimento circular fechado da virtualidade, que caracterizamos
como uma “escrita de si para si”.
274
CAPÍTULO 6. O BLOG COMO UM SINTOMA ATUAL NA
ADOLESCÊNCIA
6.1. Diário virtual: da escrita do romance à escrita de gozo?
Delícia
Olá, procuro você que esteja a fim de um papo bem gostoso, sensual, exótico,
erótico e com muito tesão. Estou te esperando. Beijos nessa tua boca
carnuda e molhada. http://gatom.blog.uol.com.br/arch2005-11-13_2005-11-
19.html
Estamos na atualidade vivendo uma perversão generalizada, que se revelaria, por
exemplo, através do exibicionismo da Internet (e dos blogs) e dos programas de
televisão, como o Big Brother? Vivemos uma ética sadeana”? Existiria alguma
especificidade com relação aos modos de gozar na contemporaneidade? O blog nos
revelaria uma mudança do diário, do romântico ao pulsional?
(P)reservar
Acordo de manhã quando possível,
Tiro a minha roupa sem me despir completamente
nem que seja pra me violentar numa cena de teatro,
nem que seja pra trepar com qualquer um,
para que minhas amigas não tão íntimas me chamem de puta em alto e bom
tom,
Para que os diretores digam em alto e bom tom que sou uma puta atriz,
Me dizem que sou a libido personificada,
a personificação do paradoxo.
Personificação? se não me engano essa palavra é referente a palavra
pessoa...
Abandono aquele sonho feliz de ser gente.
Um punhado de víceras sempre em horário de serviço
Um grotesco bolo de carne para fins mais ou menos sublimes.
http://semivirgem.zip.net/arch2007-11-11_2007-11-17.html
275
6.1.1. Existiria uma perversão generalizada na contemporaneidade?
Sabemos que os traços de perversão se imem como condições de gozo, possibilitando
a escolha dos objetos de satisfação dos seres falantes. Para Lacan, o desejo limita o gozo
a partir da metáfora paterna. O neurótico defende-se da pulsão com o desejo, no entanto,
a pulsão não é a perversão. É necessário diferenciar o gozo da perversão, a estrutura
clínica do tro perverso, para se pensar, finalmente, na possibilidade de estarmos
vivendo “uma perversão generalizada” na contemporaneidade. Para fazer esta reflexão,
buscamos dois eixos norteadores: em primeiro lugar, as noções de gozo e perversão
partindo da análise lacaniana de Kant com Sade, e, em segundo lugar, as incidências do
discurso capitalista sobre os modos de gozar contemporâneos.
A filosofia potica do século XVII foi marcada pela tese de Hobbes: o homem é o lobo
do homem” (MILLER, 1997). Assim, precisava-se de um governo forte para permitir a
convivência entre os homens. Necessitava-se de lei, que existia uma agressividade
fundamental do homem em relação ao outro. A lei passou a ser uma necessidade, um
ponto exterior que controlava a agressividade humana. Acompanhamos, portanto, a
relação entre o poder (externo) e a subjetividade.
No século XVIII observa-se uma mudança na filosofia política. A tese que caminhou no
século XVIII foi a da filosofia das Luzes, o Iluminismo, a crença na bondade natural do
homem. Segundo Miller (1997), foi essa tese que produziu a Revolução Francesa. “Se
os homens são bons naturalmente, não necessitam de um governo forte para ser o
mestre de todos” (1997: 170). Essa tese progressista foi encarnada por Jean-Jacques
Rousseau. A bondade natural do homem levou a uma mudança de filosofia política e
promoveu a luta contra o poder político da época. Essa filosofia aparece na literatura da
época, que é, sobretudo, angelical. A suposição do século XVIII é que o homempode
ter um bem-estar, um estado melhor, se ele for bom.
Depois da Revolução, a abordagem da literatura muda. Do Romantismo até Baudelaire,
trata-se das Flores do mal (MILLER, 1997: 170). Os personagens são angustiados,
maus, como Mefistófeles e Fausto de Goëthe. Durante todo o século XIX há um
crescimento do tema da “felicidade do mal”, que defende a ideia de que há uma
276
felicidade própria do mal. Isso quer dizer que o mal tem uma substância e que certa
felicidade e uma autonomia do mal. Existiria, pois, uma natureza humana “perversa”?
Essa é a concepção de homem que encontramos na teoria freudiana. Interessa a Freud
o o bem-estar na civilização, mas o mal-estar, aquilo que impede a harmonia entre os
homens. O sujeito na teoria psicanalítica é dividido, em conflito entre a moral e o gozo,
o nenhuma harmonização no ser humano. Essa divisão entre a moral e o gozo é
ilustrada por Lacan a partir da leitura que ele faz das obras de Kant e de Sade. A
Filosofia na alcova (1795) surge oito anos depois da Crítica da razão prática (1788) e,
segundo Lacan (1998), a obra de Sade completa a obra de Kant. Ele diz ainda que a
obra de Sade fornece a verdade da obra de Kant.
A busca da ética é a pergunta de Kant. Ele busca uma ética mais além da experiência,
um sistema de moralidade pura, para ser referência à experiência. Ele busca “uma
verdadeira universalidade”. A característica da ética kantiana é que não há objeto.
Quando se trata de objeto, não se pode dar uma regra universal à ação humana. O
princípio do prazer é a lei do bem, o bem-estar. Para Kant, nenhum fenômeno pode
prevalecer-se de uma relação constante com o prazer” (LACAN, 1998: 777). O bem é o
objeto da lei moral. “Ele nos é apontado pela experiência que temos de ouvir dentro de
nós ordens cujo imperativo se apresenta como categórico, ou seja, incondicional”
(LACAN, 1998: 777). Esse bem se propõe a despeito de qualquer objeto que lhe
imponha sua condição, por se opor a qualquer dos bens incertos que esses objetos
possam trazer, numa equivalência de princípio, para se impor como superior por seu
valor universal. “Assim seu peso aparece por excluir, pulsão ou sentimento, tudo
aquilo que o sujeito pode padecer em seu interesse por um objeto, o que por isso Kant
designa como „patológico‟” (LACAN, 1998: 778).
Lacan destaca o caráter subversivo do texto kantiano, pois Kant vai além dos objetos
ofertados pela cultura, ele se opõe a qualquer bem que esses objetos possam trazer,
defendendo uma posição de escutar apenas esse imperativo” que se encontra dentro de
nós. Lacan acrescenta que esse Bem Superior age como subtração de peso, ao subtrair o
peso que se produz no efeito de amor-próprio que o sujeito sente como satisfação de
seus prazeres, prazeres estes que se tornam menos respeitáveis diante do Bem. Lacan
destaca que ao longo de toda a Crítica da razão prática o objeto se furta, “mas é
277
adivinhado pelo rastro deixado pela implacável sequência apresentada por Kant para
demonstrar sua esquiva, e da qual o livro extrai seu erotismo, sem dúvida inocente, mas
perceptível...(LACAN, 1998: 779). Esse objeto é evidenciado na obra de Sade, como
objeto fetiche. Miller (1997) comenta que o objeto escondido na Crítica da razão
prática é o verdugo sadeano. Ele observa que na obra de Kant há uma separação entre o
sujeito e sua dimensão patológica para obter o campo da ética sem objeto, o campo da
ética pura. O objeto escondido é o objeto pequeno a da fantasia perversa. A separação
que propõe a máxima kantiana o é possível senão com uma ão escondida desse
objeto.
Ora, podemos então considerar que o objeto em Kant é definido negativamente, ele o
é nomeável e se distingue dos objetos do afeto. Para se alcançar a Lei moral, o objeto
deve ser extraído. Lacan observa o seguinte paradoxo: é no momento em que o sujeito
não tem diante de si objeto algum que ele encontra uma lei, “que é obtida de uma voz
na consciência e que, ao se articular nela como máxima, propõe ali a ordem de uma
razão puramente prática, ou vontade” (LACAN, 1998: 778). Para que essa máxima sirva
de lei, é necessário que na experiência de tal razão ela seja aceita como universal por
direito de lógica, ou seja, que ela valha para todos os casos. Mas como essa experiência
é de razão, ainda que prática, ela só pode ter êxito em relação a máximas de um tipo que
permita uma apreensão analítica em sua dedução. Lacan acrescenta que a Lei moral não
é nada além da fenda do sujeito operada por qualquer intervenção do significante. Para
ele, a máxima sadeana é, por se pronunciar pela boca do Outro, mais honesta do que o
recurso à voz interior, já que desmascara a fenda, comumente escamoteada do sujeito.
Diferentemente de Kant, o objeto em Sade é desvelado, é o objeto fetiche e pode-se
extrair dele toda a satisfação. A máxima sadeana é: Tenho o direito de gozar de teu
corpo, pode dizer-me qualquer um, e exercerei esse direito, sem que nenhum limite me
detenha no capricho das extorsões que me gosto de nele saciar” (LACAN, 1998:
780). Ou seja, de acordo com o imperativo sadeano, cada um tem o direito de gozar do
corpo do outro sem sua permissão e ao limite que quiser (Filosofia da alcova). Sade
fundamenta o império de seu princípio nos direitos do homem. É pelo fato de que
nenhum homem pode ser de outro propriedade, nem de algum modo seu apanágio, que
o se pode disso fazer um pretexto para suspender o direito de todos de usufruírem
278
dele, cada qual a seu gosto” (LACAN, 1998: 782). É a liberdade do Outro que o
discurso do direito ao gozo instaura como sujeito de sua enunciação.
Lacan observa que a problemática do direito de gozar aparece tanto em Sade quanto em
Kant. Lacan nomeia como o paradoxo sadeano o fato de que o limite do seu capricho no
uso do corpo do outro é morrer. Em contraste, o imperativo kantiano é moral e se
encontra na Crítica da razão prática, na qual há uma frase-chave de Kant que faz com
que ele apareça como o princípio maior da moralidade: “...preconceito incontrovertido
de dois milênios, para recordar a atração que pré-ordena a criatura para seu bem”
(MILLER, 1997: 177). Isso pressupõe que cada um quer o seu próprio bem. Lacan
aproxima, portanto, o imperativo kantiano do imperativo sadeano.
Assim, Lacan destaca uma característica comum à perversão e à moralidade: haver algo
mais do que bem-estar. A moralidade, por exemplo, implica sacrifício, e que pode levar
o sujeito até a morrer por uma causa. Na perversão também uma causa: a causa do
desejo, que pode levar o sujeito para além do bem-estar. Lacan destaca que por trás da
aparente” falta de objeto em Kant, que defende a ideia de que existe uma “máxima
universal”, esse objeto aparece de forma clara em Sade, o objeto fetiche.
A hipótese de Lacan é que, para compreender a máxima sadeana de gozar
incondicionalmente, é preciso conceber Sade como kantiano. A única forma de
conceber a ordem sadeana de gozar é interpretá-la como um imperativo categórico
kantiano, que o impele a seguir, que é, para Lacan, o supereu obsceno. Por trás da
aparente autonomia sadeana de gozar indefinidamente, existe um supereu obsceno que o
impele a gozar. Em Kant, a ética se alicerça num bem supremo e o preço pago por ela é
a dimensão obscena do supereu.
Assim, a fantasia sadeana é relacionada com o supereu. O supereu, na análise feita por
Lacan em “Kant com Sade”, aparece como um ponto exterior, que manifesta a divisão
do sujeito e impõe uma lei absurda, arbitrária, como um imperativo. Lacan (1997), no
início de seu Seminário 7, discorre sobre o conceito de supereu a partir da obra
freudiana. Ele questiona a gênese do supereu, mostrando que na obra de Freud seu
esboço vai se elaborando, se aprofundando e se tornando mais complexo à medida que a
obra de Freud vai avançando. Mostrando a impossibilidade de vincular o conceito de
279
supereu somente ao campo da necessidade social, Lacan demonstra sua relação com o
significante e com a lei do discurso.
No final do Seminário 7, Lacan (1997: 371), retomando a discussão sobre o supereu,
destaca que a interiorização da Lei nada tem a ver com a Lei. O supereu, mesmo
servindo de apoio à consciência moral, nada tem a ver com ela no que se refere às suas
exigências mais obrigatórias. O que ele exige nada tem a ver com o que teríamos o
direito de constituir como a regra universal de nossa ação. O imperativo moral não se
preocupa com o que se pode ou não se pode. É um Tu deves incondicional. O Tu deves
de Kant é substituído facilmente pelo gozo erigido em imperativo na fantasia de Sade.
Existe um imperativo kantiano e um imperativo sadeano, que estão além da lei ou do
prazer, como algo absoluto, uma lei absurda, implacável. É a lei feroz do supereu.
Miller (1997) comenta que o supereu em “Kant com Sade” é uma instância que se
manifesta como um ponto exterior, um ponto que manifesta a divisão do sujeito, que
impõe uma lei absurda, que abarca a alma e o corpo humano. “Trata-se dos deveres
absurdos que se impõem aos seres humanos, em sintomas e em suas fantasias”
(MILLER, 1997: 191). A moralidade kantiana não é uma moralidade comum, não está
no campo da lei, trata-se de um absoluto. Da mesma forma, um imperativo sadeano
que o impele a gozar até o extremo de seu capricho, para além do campo do prazer,
trata-se de um absoluto.
A experiência moral não está limitada ao reconhecimento da função do supereu, figura
obscena e feroz. Lacan questiona se o “eu” deve submeter-se ou não ao imperativo do
supereu, paradoxal, mórbido e semi-inconsciente. Assim, Lacan introduz a discussão
sobre a ética na psicanálise.
Lacan introduz a noção de ética para refletir sobre a ética da psicanálise. Mostrando que
a ética em Aristóteles é a ética do caráter, da dinâmica dos hábitos, da educação, ele
retoma Freud para destacar que a ética freudiana comporta o apagamento da dimensão
do bito e articula-se por meio de uma orientação do homem em relação ao real.
Enquanto Aristóteles buscava a verdade em uma lei superior, a verdade da psicanálise é
uma verdade particular. “A experiência de Freud instaura-se a partir da busca da
280
realidade que está em alguma parte dentro dele mesmo...” (LACAN, 1997: 38). A ação
humana é percebida na dimensão ética na teoria freudiana.
O conflito, como consequência da divisão do sujeito, se encontra desde o início como
ordem moral. O problema do conflito se coloca no interior de toda elaboração moral. A
mais profunda experiência moral encontra-se nessa divisão, de um lado, a busca de
uma qualidade arcaica, diria quase regressiva, de prazer indefinível, que anima toda a
tendência inconsciente, e, do outro lado, o que pode haver nisso de realivel e de
satisfatório no sentido mais completo, no sentido moral como tal(LACAN, 1997: 57).
Podemos dizer, portanto, que as exincias éticas o são contemporâneas.
Freud identifica o incesto com o desejo mais fundamental e a lei fundamental seria a sua
interdão. É na ordem da cultura que a lei se exerce. A interdição do incesto é a
condição para que subsista a falta. A função do pai é fundamental para que ocorra a
interdão do incesto e a interiorização da lei. Mas Lacan diferencia o Ideal do Eu do
Supereu. A tese de Lacan é de que “a lei moral se articula com a visada do real como tal,
do real na medida em que ele pode ser a garantia da Coisa” (LACAN, 1997: 97). Essa
Coisa situa-se no para além do princípio do prazer, é exatamente o real enquanto padece
do significante, mas o real aqui ainda era um conceito em elaboração por Lacan. Nos
seminários anteriores, o real era confundido com a realidade. Neste Seminário 7, Lacan
introduz o Das Ding como o real, o primeiro exterior ao campo simbólico. O simbólico
funciona como defesa em relação ao Das Ding.
Lacan conclui que a ética na psicanálise é a de não ceder de seu desejo. “Se a alise
tem um sentido, o desejo nada mais é do que aquilo que suporta o inconsciente, a
articulação própria do que faz com que nos enraizemos num destino particular, o qual
exige com insistência que a dívida seja paga, e ele torna a voltar, retorna e nos traz
sempre de volta para uma certa trilha, para a trilha do que é propriamente nosso afazer
(LACAN, 1997: 383). Para Lacan não há outro bem senão o que pode servir para pagar
o preço do acesso ao desejo. Esse preço que se paga, ou essa alguma coisa que se paga
para ter acesso ao desejo, é o gozo. Eis o objeto, o bem, que se paga pela satisfação do
desejo” (p.386).
281
O que merece uma observação, de imediato, é que Lacan quer destacar a ética
psicanalítica, que inclui o real. Não existe uma verdade universal, a verdade da
psicanálise é sempre uma verdade singular. A máxima kantiana de um bem supremo,
universal, esconde o objeto, que aparece na fantasia perversa.
Nosso questionamento inicial, que nos levou a realizar esse percurso em Lacan, deve
então ser retomado. Perguntávamos originalmente sobre a existência de uma perversão
generalizada na contemporaneidade. Ora, o que parece relevante, a partir dessa leitura
de Lacan do Seminário 7, é destacar a existência de uma dimensão que vai além do
princípio do prazer na natureza humana. O sujeito na teoria psicanalítica é dividido, em
conflito entre a moral e o gozo, não há nenhuma harmonização no ser humano. Para se
ter acesso ao desejo, é necessário abrir mão do gozo. Mas podemos dizer que existe na
contemporaneidade um imperativo do gozo? Vamos então continuar nosso percurso na
obra lacaniana que permite distinguir melhor desejo e gozo, situando-os na neurose e na
perversão, para que possamos chegar à discussão sobre a dimensão de gozo na
contemporaneidade.
Qual o estatuto de gozo na teoria lacaniana?
1
No seminário 7 de Lacan, o gozo está
articulado à pulsão de morte, ao real. As fantasias de Sade são relacionadas com a
perversão. O estatuto do desejo na perversão não é semelhante ao estatuto do desejo na
neurose. É na perversão que o desejo merece a nomeação de vontade de gozo. No
perverso existe o o desejo, mas a vontade de gozo. O gozo é esse excesso que está
mais do lado da pulsão de morte, segundo Miller (1997). Enquanto o prazer visa à
redução da tensão, o gozo visa ao mais da tensão. A fantasia permite ir além do prazer,
até o gozo. Permite atravessar esse obstáculo do prazer e os limites do prazer. A fantasia
sadeana vai mais além do prazer, chega até a dor.
1
Miller (2000) destaca seis paradigmas do gozo na teoria de Lacan. Muito resumidamente, relacionando
o gozo com os três registros da realidade psíquica, podemos dizer que no primeiro há uma imaginarização
do gozo. O gozo diz respeito ao eu. No segundo paradigma, há a significantização do gozo, a pulsão é
transcrita em termos simbólicos, sendo que o simbólico sobrepõe-se ao imaginário. No seminário 7,
surge o gozo como impossível. O gozo é da ordem do real. Há uma profunda disjunção entre o signifcante
e o gozo. No quarto paradigma (Seminário 11), o gozo deixa de ter um caráter absoluto e maciço e passa
a ser fragmentado, distribuído nos objetos a. Existe uma nova aliança entre o simbólico e o gozo. No
quinto paradigma o gozo é incluído no discurso (Seminário 17). O significante é o aparelho de gozo. O
sexto paradigma é orientado pela não-relação sexual (Seminário 20). O gozo surge como o gozo do corpo
vivo, disjunto do Outro. É um gozo solitário, do próprio corpo, o gozo Uno.
282
Ocorre, portanto, uma íntima relação entre a neurose e a perversão. Essa proximidade se
pela noção de gozo. Mas, enquanto o neurótico recupera o gozo pela fantasia, o
perverso considera-se como um sujeito que “sabe” a verdade do gozo. O neurótico
recusa a fantasia e ele “não sabe” do seu desejo. Para o perverso, ele já sabe o que
deseja; para ele o desejo não é uma pergunta, é uma resposta. Segundo Miller (1997), a
fantasia é alimentada pela substância do gozo. Contudo, esse saber sobre a verdade do
gozo” do perverso não implica o reconhecimento de sua divisão, ao contrário. A
manobra da fantasia perversa é recusar a divisão do sujeito em si, para fazê-la surgir no
Outro. Nas fantasias sadeanas existe certa “estática”, certa repetição ou monotonia, pois,
apesar das variações nas fantasias, uma mesma base, invariável, que pode ser
reduzida numa fundamental. O paradoxo da fantasia em Sade é que o sujeito (dividido)
aparece do lado da vítima, e não de quem produz a fantasia. Produzir a angústia no
parceiro é produzir nele a manifestação de sua falta. O perverso não tem nada a ver com
a castração. Em Sade, não se trata de usar o parceiro como objeto, ao contrário, trata-se,
na sua fantasia, do parceiro como um sujeito. Fazer dor ao sujeito é a sua maneira de
obter o ponto puro do sujeito, de imputar-lhe a castração.
Os conceitos de gozo e real são aprofundados nas obras posteriores de Lacan. Se, nesse
tempo de sua formulação teórica, a “Coisa” é inatingível, é exterior ao campo da
significação, o sujeito tem a ilusão de tocá-la via fantasia. É enquanto recalcado que
a Coisa se inscreve na cadeia significante. A “Coisa” passa gradativamente a ser tomada
na obra lacaniana sob a forma das “espécies da Coisa”, que se transformam em objetos
a.
Ao formalizar a fórmula da fantasia como $ a, Lacan faz uma aproximação do sujeito,
representado no campo significante, com o objeto, enquanto real. O gozo passa a ser
resto da cadeia significante, um resíduo, um resto como impossível de ser apreendido
pelo simbólico. A via para o acesso ao desejo é abrir mão do gozo, submetendo-o à
castração, como destaca Lacan no Seminário 7. O gozo sem lei, ao se sujeitar à lei, ao
Nome-do-Pai, deixa um resto não absorvível pelo simlico.
No Seminário 11, Lacan sublinha que “a pulsão não é a perversão” (LACAN, 1993:
172). A pulsão não determina a estrutura clínica, mas a posição do sujeito em relação às
modalidades de gozar. O que define a perversão é o modo pelo qual o sujeito se
283
coloca. A pulsão introduzida no campo das representações determina gramaticalmente o
lugar do sujeito nas coordenadas do gozo. O objeto escolhido pela pulsão conserva
sempre o caráter de fetiche, pois ocupa o lugar daquilo que o sujeito está
simbolicamente privado.
Vivemos numa sociedade escópica. A diferenciação entre olhar e visão é o que permitiu
a Lacan ajuntar a pulsão escópica à lista das pulsões e possibilitou também pensar o
gozo na sociedade escópica. Ao abordar o objeto olhar, Lacan (1993) destaca o caráter
ambíguo da pulsão escópica. Ele diferencia visão e olhar, identificando o olhar com o
objeto. O olhar é o objeto a no lugar do Outro. Na experiência especular existe um
ponto cego, uma parte faltante, que corresponde ao que do registro real não é
especularizável. O olhar é esse objeto perdido, e repentinamente encontrado, na
conflagração da vergonha, pela introdução do outro. Em nossa relação às coisas, tal
como constitda pela visão, algo escapa, passa, se transmite de piso a piso, para ser
sempre em certo grau elidido, é isso o olhar. Lacan diferencia o olhar ou o escópico
(real) da visão ou do especular (imaginário). A dimensão escópica, apesar de não poder
ser vista, dá razão àquilo que se vê (especular).
Para Lacan, o segredo do fascínio pela imagem é o encobrimento da falta e, também, o
encobrimento do objeto (olhar). Esse olhar como objeto a é encoberto pela imagem e
apagado pela visão. Esse é o segredo da beleza, do prazer e do horror da imagem. Ele
acrescenta que, de maneira geral, a relão do olhar com o que queremos ver é uma
relação de logro. “O sujeito se apresenta como o que ele não é e o que se para ver
o é o que ele quer ver. É por isso que o olho pode funcionar como objeto a, quer dizer,
no nível da falta (- φ )” (LACAN, 1993: 102).
Lacan ressalta que o que o sujeito procura ver é o objeto enquanto ausência. O que o
voyeur procura e acha é apenas uma sombra. É que ele vai fantasiar. O que ele
procura não é o falo, mas sua ausência. O que se olha é aquilo que não se pode ver”
(LACAN, 1993: 173). Lacan destaca o circuito pulsional no texto freudiano para ilustrar
que a estrutura da pulsão só se completa verdadeiramente na sua forma invertida, no seu
retorno. No momento do ato do voyeur o sujeito se situa no atingimento do fecho.
Quanto ao objeto, o fecho a volta em torno dele, e é com ele que, na perversão, o
alvo é atingido. No exibicionismo, o que é visado pelo sujeito é o que se realiza no
284
outro. Não é só a vítima que é visada, mas a tima enquanto referida a algum outro que
olha.
Ora, para que se possa compreender melhor o conceito de objeto, Lacan, ainda no
Seminário 11, retoma a noção de traço unário, o núcleo do ideal do eu, para diferenciá-
lo do objeto a, marcando uma distinção entre eles na função da identificação. Ele situa o
traço unário no campo do desejo, constituindo-se no reino do significante, no nível em
que relação do sujeito ao Outro. É no campo do Outro que se determina a função do
traço unário. Mas Lacan destaca uma outra função que institui uma identificação de
natureza singularmente de ordem diferente, e que é introduzida pelo processo de
separação. É pelo objeto a que o sujeito se separa, deixa de estar ligado à vacilação do
seu ser, ao sentido que constitui o essencial da alienação.
É no Seminário 11 que Lacan começa a introduzir o conceito de inconsciente como
modalidade de gozo. O inconsciente, até então, era apresentado como estruturado como
uma linguagem. Lacan postula no Seminário 11 que, para avançar em suas discussões,
ele encontra-se numa posição problemática, que é a de redefinir esse conceito de
inconsciente. E, contudo, esse ensino teve, em sua visada, um fim que qualifiquei de
transferencial... Vamos ao fato. A realidade do inconsciente é verdade insustentável
a realidade sexual” (LACAN, 1993: 143). Depois Lacan apresenta uma versão do
inconsciente que funciona como a pulsão, num movimento de abrir e fechar: “Vocês
compreendem igualmente que, se lhes falei do inconsciente como do que se abre e fecha,
é que sua essência é de marcar esse tempo pelo qual, por nascer com o significante, o
sujeito nasce dividido” (p.188). Essa noção de inconsciente é muito mais corpo
pulsional do que linguagem. É um inconsciente como modalidade de gozo pulsional.
A discussão sobre o gozo e a perversão é retomada no Seminário 16, por Lacan (2008).
Ele ressalta que a relação do mais-de-gozar com a mais-valia gira em torno do objeto a.
O objeto a é efeito do discurso analítico. Lacan afirma que a função do gozo é uma
relação com o corpo. Todo o nosso acesso ao gozo é comandado pela topologia do
sujeito. O sujeito cria a estrutura do gozo, mas tudo o que consegue são práticas de
recuperação. O que o sujeito recupera não tem a ver com o gozo, mas com a sua perda.
Asssim, Lacan diferencia o mais-de-gozar do gozo. O mais-de-gozar corresponde à
perda do gozo.
285
O gozo é, portanto, relacionado com a repetição. Retomando a noção de traço unário,
Lacan (2008) mostra a sua relão com a repetição: “...nesse tro unário reside o
essencial do efeito do que, para nós, analistas, no campo em que lidamos com o sujeito,
chama-se repetição(LACAN, 2008: 119). O objeto perdido é almejado, num esforço
de reencontro, de revivência do gozo, e ele só pode ser reconhecido pelo efeito da marca
instaurada pelo traço unário. No entanto, “a própria marca introduz no gozo a alteração
da qual resulta a perda” (p.119). Lacan esclarece que a nossa experiência na análise
confronta-nos a todo instante com a perda, que o é imaginária, narcísica, mas
simlica. Esse efeito simbólico inscreve-se no vazio que se produz entre o corpo e seu
gozo, na medida em que é a incidência do significante, do traço unário, que o determina.
uma relação entre o objeto perdido, objeto a, e o lugar chamado Outro. O traço
unário seria o campo completado do Outro, e o objeto a, a falta recebida do Outro.
Lacan explica o gozo masoquista como um gozo analógico. “Nele, o sujeito assume
analogicamente a posição de perda, de resto, representada pelo a no nível do mais-de-
gozar” (LACAN, 2008: 132). Em seu esforço para constituir o Outro, o sujeito joga com
a proporção que se furta, aproximando-se do gozo pelo caminho do mais-de-gozar.
Assim, Lacan postula que a perda que visamos, que está no horizonte do nosso discurso,
aquela que constitui o mais-de-gozar, é apenas um efeito da postulação do traço unário.
O objeto a é o que está em causa, o que faz com que todos estejamos em um discurso
qualquer. Relacionando o Um com a perda do objeto, Lacan postula:
...Um, na medida em que, uma vez repetido, ele prolifera, visto que só é
posto ali para tentar a repetição do gozo, para reencontrá-lo no que ele
fugiu. Aquilo que o era marcado na origem, o primeiro Um, inscrito para
encontrá-lo, o altera, uma vez que na origem isso o era marcado. Ele
se coloca, portanto, na fundação de uma diferença que o constitui como tal,
mas na medida em que a produz (2008, p.151).
Ao discutir a clínica da perversão, Lacan ressalta que o sujeito é efeito do simbólico no
real (p.244). Ele retoma o lugar do Outro a partir da fórmula S (
), para postular que o
lugar do Outro como esvaziado de gozo não é apenas um lugar desobstruído, mas algo
que por si se estrutura pela incidência significante. É isso que introduz nele essa falta.
Nesse momento ele retoma as pulsões escopofílica e sadomasoquista para discutir a
perversão. Ele mostra como, diferente do que normalmente se afirma, o perverso não é
286
aquele que sente desprezo pelo outro. O perverso é aquele que se consagra a tapar o
buraco do Outro, ele defende a existência do Outro.
Para Lacan, o neurótico sonha com a perversão para sustentar o desejo (2008: 247). Mas,
diferentemente do perverso, o neurótico quer ser o Um no campo do Outro. É no nível
do narcisismo secundário que se apresenta o problema do objeto a para o neurótico. O
neurótico visa a uma relação não de suplemento, mas de complemento no Um. Para ele,
trata-se da impossibilidade de fazer o objeto a entrar novamente no plano imaginário,
em conjunção com a imagem narcísica. O neurótico está fadado ao fracasso da
sublimação.
O importante a recuperar para a nossa reflexão é que, a partir da discussão sobre a
perversão, Lacan chega à estrutura das pulsões, mostrando que elas revelam que um
furo topológico pode fixar, por si só, toda uma conduta subjetiva. A pulsão, portanto,
o é a perversão, enquanto estrutura clínica. Existe sempre uma dimensão de gozo que
escapa às determinações simbólicas. O gozo sem lei, ao se sujeitar à lei, ao Nome-do-
Pai, deixa um resto não absorvível pelo simbólico.
No Seminário 20, Lacan reelabora o conceito de gozo, agora não mais partindo da
supremacia do simbólico, mas do real. O real passa a ser irredutível, apresentando uma
autonomia com relação ao simbólico. A dimensão do corpo é retomada na relação com
o gozo: “Propriedade do corpo vivo, sem vida, mas nós não sabemos o que é estar
vivo, senão apenas isto, que um corpo, isso se goza” (LACAN, 1985: 35). Gozar tem
esta propriedade fundamental de ser o corpo de um que goza de uma parte do corpo do
Outro, que o Outro o simboliza, como ilustra Sade. Lacan então diferencia o gozo fálico
do gozo da Mulher, ou o o-todo. O gozo fálico, que Lacan nomeia como o gozo do
homem, é diferente do gozo da Mulher, enquanto aquele que não é submetido à cadeia
significante.
No seminário RSI (1974-75) Lacan apresenta o desenho docom os três gozos: fálico,
gozo do sentido e gozo do Outro, os registros Real, Simbólico e Imaginário e as
manifestações cnicas: inibição, angústia e sintoma. O Gozo do Outro eslocalizado
entre R e I; o Gozo do sentido, entre I e S; e o Gozo fálico, entre S e R. Um registro
“fura” o outro, criando uma espécie de argola, por onde o gozo se inscreve. Lacan
287
associa o Imaginário à consistência, o Simlico ao furo e o Real à ex-sistência. A ex-
sistência articula os três registros da subjetividade humana pela via dos gozos. O gozo
fálico é o gozo do Um. Ele não se relaciona com o corpo da mulher enquanto tal. O
gozo sexual se desnuda como fálico a partir da inscrição do Nome-do-Pai, quando corpo
e gozo se aparelham pelo fio do significante fálico, sem fazer relação. O gozo do Outro
se situa para além do gozo fálico, fora da linguagem, fora da dependência da palavra.
Ele pode ser suposto, é mítico por definição. Já o gozo do sentido vem no lugar do
gozo que conviria à relação sexual, o gozo do Outro, se ele existisse. Mas existe ainda o
Outro gozo. Ele é da ordem do infinito, ele é suplementar, tem valor de excedente de
gozo. Ele é gozo real. Esse é o gozo da Mulher. O sujeito mulher é não-toda submetida
ao simlico porque esse gozo Outro lhe é correlacionado. A mulher passa a ser um dos
nomes do Outro como lugar do impossível.
Essa retomada de Lacan permite estabelecer alguns pontos fundamentais para a nossa
discussão. Vimos como Lacan apresenta o gozo, no Seminário 7, como transgressão,
prazer sexual no corpo, sendo um componente estrutural do sujeito. No Seminário 20,
surge a não-relação sexual, a ausência de um significante sexual. No campo masculino o
gozo é definido como gozo fálico e no campo feminino o gozo fálico e o gozo
suplementar, como Outro gozo. O gozo fálico nos mostra como o simbólico é tamm
parasitado pelo gozo. O falo é o índice de gozo, é o significante do gozo. O inconsciente
deixa de estar definido a partir da palavra para estar definido pela função do escrito. A
escritura é disjunta da palavra. A definição de inconsciente passa a ser de um saber
cifrado. Mas, existe um elemento não cifrável: a relação sexual. A relação sexual está
fora do campo simlico, é impossível de cifrar. Em seu lugar aparece a cifra fálica. O
inconsciente é o que se lê, é da ordem do que se escreve. O inconsciente freudiano é a
gramática, que se revela na linguagem com a escritura. A escrita, então, é um traço
onde se lê um efeito de linguagem” (LACAN, 1985: 164). A escritura oferece o acesso
direto ao gozo.
Como nos adverte Lacan (1971), a letra é consequência do significante. Ela se destaca
no momento em que cai como literalidade que vivifica o falasser. O sulco escavado é o
receptáculo que acolhe o gozo, por onde ele se aloja e escorre. A chuva de linguagem
faz escrita de gozo.
288
O gozo ex-siste como resposta real do sujeito. Existe sempre um excesso, que não se
submete à cadeia significante, e um modo do sujeito presentificar esse excesso. Ele está
escrito. uma escrita de gozo, uma marca de gozo, que resiste e é irredutível ao
simlico. -se uma impossibilidade estrutural de absorver esse excesso. O conceito
de gozo, abordado nos textos de Lacan como estrutural, transgressão, excedente, resto
ou impossível, é tanto um obstáculo quanto aquilo que impulsiona o sujeito, o coloca
em marcha.
Podemos concluir que essa marca de gozo que resiste, esse modo do sujeito
presentificar esse excesso, se inscreve e se atualiza nos “traços de perversão”,
localizáveis nos sintomas, fantasias e nas condutas sexuais dos neuróticos. Esses traços
de perversão diferenciam-se da estrutura clínica perversa. o se trata do desmentido da
castração que define a estrutura perversa, mas de tros de perversão. algo do gozo
que se deixa escapar, para além do gozo fálico, que remete à dimensão da letra.
A discussão sobre uma possível perversão generalizada” na contemporaneidade o
pode se basear, portanto, na estrutura clínica perversa, mas nos traços de perversão, ou
nas incidências do discurso capitalista sobre os modos de gozar contemporâneos. Em
que o discurso capitalista favorece essa irrupção de gozo, podendo até levar a uma
perversão generalizada na contemporaneidade? Faremos essa discussão a seguir.
6.1.2. As incidências do discurso capitalista sobre os modos de gozo
contemporâneos: a “escrita de gozo” nos blogs de adolescentes
Os blogs revelam traços de perversão que implicam modos de gozar contemporâneos.
Existem blogs em que seus autores fazem uma exposição pública de fotos insinuantes
ou de nudez explícita. Alguns textos são completamente ofensivos, agressivos ou
autoagressivos, nos quais seus autores revelam um grande ódio pela vida, pelas pessoas
ou mostram uma escrita sem véus”, onde o sexo é totalmente “desvelado”, em sua
forma mais “crua”. Muitos apresentam letras, palavras, códigos ou frases soltas, recortes
de imagens e cores sem uma ordenação ou coerência. São textos de fragmentos, da
ordem do “sem-sentido”. Poderíamos dizer que são escritas de gozo?
289
Vivemos o decnio da função do pai. O que isto significa? Retomaremos brevemente o
conceito de pai na psicanálise para poder situar esse decnio da função do pai. Existem
diferentes versões do pai nos textos de Lacan.
Em primeiro lugar, Lacan introduz a noção de Nome-do-Pai como sustentação da ordem
simlica. O pai é o significante da lei, portador do interdito. Essa concepção inicial
está apoiada na teoria freudiana do Complexo de Édipo, que estabelece o pai como
fundamento do laço social reduzido a um símbolo, na condição de pai morto. A
operação da metáfora paterna substitui a dimensão do desejo materno pela dimensão da
lei paterna, introduzindo uma nova significação no mundo simlico do sujeito. O pai é
agente do “recalcamento” do gozo da mãe, abrindo a possibilidade da sublimação.
Nesse primeiro momento do ensino de Lacan, a metáfora paterna traduz a subordinão
do imaginário, campo da relação erótico-agressiva, ao simbólico, campo da relação da
palavra. A operatividade do pai depende da anulação de sua própria condição de ser
vivo, atingindo o status de função simbólica, reduzida a um Nome.
Nos seminários A relação de objeto e As formações do inconsciente, Lacan introduz a
noção de um pai não que proíbe o desejo do filho ou que o priva de sua mãe, mas a
de um pai que permite e dá. O pai real é marcado como aquele que tem o falo e como
aquele que o dá, que será decisivo para a identificação do filho à sua posição sexuada. A
presença do pai surge como aquela que causa impacto no desejo da mãe, enquanto
mulher. Assim, temos duas versões do pai: o pai que intervém simbolicamente e o pai
de direito, o que intervém como pai real na relação. O pai não aparece como aquele que
opõe o desejo à lei, mas, ao contrário, aquele que une o desejo à lei. Há um enlace entre
o interdito e o desejo.
O percurso do ensino de Lacan sobre a questão do pai pode ser identificado como
promovendo um deslocamento do simlico para o real. A noção de Nome-do-Pai passa
a ser designada como uma função de nó, que múltiplos substantivos, inclusive o próprio
pai, podem desempenhar. No lugar de um significante primeiro que garantia o conjunto
do significante e fundava uma ordem necessária, surge uma “fundação” contingente,
encarnada na diversidade dos significantes mestres. um deslocamento do pai, de seu
valor universal, para aquilo que se excetua no universal, daquilo que na lei, não é ditado
pela lei. O status do Nome-do-Pai muda, pois, a partir do momento em que o lugar do
290
Outro, enquanto fundamento e garantia, evidencia-se como impossível. O Nome-do-Pai
deixa de ser intico ao Outro, para tornar-se apenas uma máscara, que vela a sua
inconsistência. Se vários Nomes-do-Pai é porque nenhum deles é o Nome-do-Pai,
nada corresponde ao nome próprio, todos são apenas semelhantes. Mas, dessa
pluralidade, o pai transmite uma função de exceção, uma versão da causa do desejo,
pois o pai é tomado na particularidade de seu desejo. A escolha de um gozo e não de
outro, daquele que é causa do desejo por uma mulher, é portanto decisiva para que a
função de exceção se torne modelo.
De Lei e fundamento universal, para uma multiplicidade de suplentes, como roupagens
do objeto a. Do pai inicial, morto e reduzido a um símbolo, a um pai vivo. Da unicidade
à multiplicidade de exceções à lei. Da universalidade à particularidade do objeto a que
um homem retira do corpo de uma mulher. Surge, a partir do desejo do pai, da versão
pai” do gozo, a “pai-versão”: única garantia de sua função de pai, que é a função de
sintoma.
Nessa perspectiva, ao considerar o declínio do pai, não estamos abordando apenas a
dissolução progressiva dos papéis tradicionais da autoridade na nossa sociedade. O
declínio do pai diz respeito a uma mudança no próprio estatuto de pai, que, da noção de
ordem simbólica e do portador do interdito, desloca-se para uma multiplicidade de
nomes que fazem suporte à sua função, tornando-se apenas um artifício, uma suplência
da não-relação sexual.
Acompanhamos o declínio da função do pai desde a modernidade. A modernidade, com
o advento e o desenvolvimento da ciência, promoveu uma separação entre o Estado e a
religião. O Deus da Antiguidade e da Idade Média, que sustentava certa coesão entre os
domínios econômico, social, político e religioso, declinou no mundo moderno. Se o
discurso religioso era até então hegemônico, integrando os domínios da vida pública e
privada, o advento da modernidade fez declinar a religião desse lugar central e ela
passou a ser assunto da consciência privada.
Os representantes no poder não se autorizam da palavra de Deus e não apresentam uma
verdade única, plena. Eles não fundam a verdade. De acordo com Santos (2006), eles
o têm autoridade simbólica e, a partir de então, esses representantes paternos estão
291
marcados pela impotência. O pai da modernidade é, por definição, alguém que não está
à altura da sua função. Santos comenta que esse novo regime de discurso, o discurso da
ciência, que exige que o sujeito faça valer a verdade pela argumentação e demonstração,
retirando dele a potência de emitir o significante enquanto fundador de uma verdade
oracular, demonstra a função paterna como uma função esvaziada do objeto a. Mas,
segundo Santos (2006), Freud descobre que um regime de discurso onde essa
potência paterna retorna. O discurso do inconsciente faz valer o Nome-do-Pai com sua
potência ordenadora e fundadora da verdade. Como dizia Lévi-Strauss, o mito do
Complexo de Édipo é o último grande mito que a ciência abriga e que traz de volta o pai
com valor divino, oracular, à margem do discurso da ciência que o recalcou. Mas, como
bem salienta Santos (2006), o valor do pai de família o excede o domínio familiar,
pois sua potência ou palavra eslimitada a um novo regime discursivo, entre os vários
regimes discursivos da ciência. Mesmo tendo potência no nível inconsciente, ela não é
assegurada ou validada nas demais instâncias sociais. Assim, como destaca Santos
(2006), na contemporaneidade, o poder não tem poder.
De acordo com Miller (1998), o reino do Nome-do-Pai é o domínio freudiano. Lacan
consagra a inexistência do Outro. Lacan inicialmente formula essa inexistência através
do matema S (
), significante do Outro barrado, que posteriormente vai culminar na
formulação pluralista dos Nomes-do-Pai. Inaugura-se a época da errância, a psicanálise
da época dos não-tolos”. Miller aponta que eles não são mais nem menos tolos quanto
ao Nome-do-Pai, quanto à existência do Outro. Eles sabem explicita ou implicitamente,
desconhecendo-o, mas sabem que o Outro não é senão semblante. Inaugura-se, portanto,
a época em que tudo não é senão semblante. Nesse ritmo acelerado contemporâneo,
uma desmaterialização vertiginosa, época em que o sentido do real tornou-se uma
questão.
uma crise do real, segundo Miller (1998). A imersão do sujeito contemporâneo nos
semblantes faz do real uma questão para todos. Uma questão que se desenha sobre
fundo de angústia. Ele destaca a inversão paradoxal do discurso da ciência. Desde a
idade clássica o discurso da ciência tem fixado o sentido do real para a civilização. O
mundo dos semblantes, resultado do próprio discurso da ciência, tem levado à
destruição da fixão do real.
292
Miller denuncia o surgimento de uma civilização “no singular”, de hegemonia científica
e capitalista, de ascendência totalitária, que se designa como globalização. “Essa
globalização acarreta, atravessa, fissura e mesmo, talvez, já fusione as civilizações”
(MILLER, 1998: 7). Como ser francês? Miller reflete sobre essa interrogação que
atravessa todo um povo, levando-o a uma depressão coletiva, numa época em que os
ideais universalistas, alicerçados sobre certezas identificatórias milenares, são
desmentidos pela atual globalização. Ele observa que a subjetividade contemporânea é
arrastada, cativada e enrolada num movimento que a submerge numa escala industrial
com semblantes produzidos de forma cada vez mais acelerada. O simbólico, longe da
condição de perfurar o imaginário, é escravizado ou funciona em continuidade com o
imaginário. O simlico se submete à imagem.
A ascensão da imagem na contemporaneidade relaciona-se diretamente com a lógica
transformista e transiria da realidade. Nessa cultura imediatista, o adiamento da
satisfação torna-se insuportável, assim como qualquer ideia de trajeto, necessária à
construção de um projeto que implique retorno a longo prazo. Busca-se o prazer aqui e
agora e o conhecimento deve ser apreendido de forma rápida, panomica e globalizante.
A imagem se torna, portanto, a única forma de transmissão de conhecimento que pode
se adequar a essa demanda de rapidez e “imediatez”:
A contemporaneidade vem sendo descrita, portanto, como um período
histórico que tem como características fundamentais a grande velocidade de
transformações, a globalização, a convivência com contradições (dentre elas
o global e o local), a relatividade de valores, o acúmulo de informações, a
alta informatização, o avanço tecnológico e o predomínio da imagem. Tais
características colocam o homem diante de um mundo fragmentado, com
múltiplas referências, associadas ao declínio da autoridade e ao crescimento
do individualismo, onde a ética pessoal muitas vezes suplanta qualquer
tentativa de estabelecimento de uma ética comum a todos, universal (LIMA,
2003: 30).
Mrech
2
salienta que, enquanto na sociedade moderna os objetos originais possuíam um
papel fundamental, e buscava-se sempre consegui-los, em detrimento das imagens e
cópias, atualmente esse processo se inverteu. O Imaginário na sociedade s-moderna
adquiriu novos contornos: a imagem se impôs no lugar do objeto, a imagem tem sido
2
A autora apresenta essa discussão em seu texto “A informática: um dos nomes da imagem-rainha na
sociedade contemporânea”. In: MRECH, Leny Magalhães. Psicanálise e educação. Novos operadores de
leitura. São Paulo: Pioneira, 1999, p.121-128.
293
preferida em lugar do objeto(MRECH, 1999: 123). O objeto concreto foi abandonado,
privilegiando-se a produção de cópias, com as múltiplas reproduções. A imagem
expandiu-se, com a consequente perda simlica. A autora acrescenta que a informática
se apresenta hoje como a forma mais completa e elaborada do sujeito na atualidade. Ela
se propõe como um modelo ideal da comunicação humana. A infortica, através do
estabelecimento das redes internacionais, propõe um semblante em relação ao processo
de estruturação da linguagem humana, criando a ilusão de uma comunicação humana
sem falhas, exercendo grande fascínio sobre o sujeito.
Esse fascínio exercido pelo ciberespaço é observado principalmente pelos adolescentes,
como vimos. Miller (1998) destaca que, se a verdade sempre tem estrutura de ficção, na
atualidade a estrutura de ficção fez submergir a verdade, a engoliu. Para Miller (1998),
o se está na época do mal-estar da civilização, mas na época do impasse, que é
patente no nível da ética. A ética capitalista das virtudes, solão vitoriana que ainda
existia na época de Freud, foi transportada e quando retorna hoje é sob formas
inconsistentes e derrisórias. Quando não se encontra mais uma nova ética, ela passa a
ser procurada pela via dos comitês de ética, que é uma prática de falação, ensurdecedora,
que não tem chance de liberar uma relação ao real que o seja vaga. uma falência
do humanitarismo, que não consegue resistir ao cálculo universal da mais-valia e do
mais-de-gozar.
É nesse sentido que Miller afirma a promoção social do sintoma. A inexistência do
Outro implica a promoção do laço social no vazio que ela abre. Retomando o conceito
de identificação, ele ressalta seu caráter de laço social. A identificação faz laço social.
Retomando Freud, ao comparar a identificação na Europa e nos Estados Unidos, Miller
observa que, enquanto na Europa se pratica a identificação vertical ao líder, que aciona
a sublimação de uma forma poderosa, os Estados Unidos a sacrificam em benefício do
que se pode chamar identificação horizontal dos membros da sociedade entre eles. Não,
pois, identificação ao mais-um, mas aos membros da sociedade entre eles. Freud
antecipava aí a inexistência do Outro e sua substituição pelos comitês de ética.
Essa identificação horizontal é ampliada pela informática. Atualmente, vivemos “em
rede”, onde temos a possibilidade de acesso a qualquer tipo de informação. Não existe
um der que “detém um saber” e nos transmite o conhecimento, mas obtemos rápida e
294
livremente qualquer tipo de informação, sem limites. Da mesma forma, o há barreiras
geográficas para a comunicação. Temos a possibilidade de nos comunicarmos com uma
pessoa do outro lado do mundo, a qualquer momento. O declínio da função paterna
promove o declínio da autoridade, que leva a qualquer um se autorizar pela informação
que oferece. São milhares de informações na rede, que se multiplicam a cada instante.
Os adolescentes hoje não buscam um mestre, mas um supostamente semelhante. Eles
buscam essa identificação horizontal, com o grupo de semelhantes, na rede. E todos
querem escrever sobre si, escrever as próprias ideias” na rede. O interessante é que o
blog tanto pode ser algo que os torna “iguais”, pois todos têm, como pode ser algo que
os particulariza, nesse universo de iguais.
A civilização, segundo Miller (1998), é um sistema de distribuão de gozos a partir de
semblantes. Relacionando com o conceito de supereu, Miller formula que uma
civilização é um modo de gozo, um modo comum de gozo, uma repartição
sistematizada dos meios e das maneiras de gozar. Se é possível falar de uma grande
neurose contemporânea, seu determinante principal, segundo Miller, é a inexistência do
Outro, o que leva o sujeito sair em busca do mais-de-gozar. Miller diferencia o supereu
freudiano do supereu lacaniano. O supereu freudiano produziu o interdito e a
culpabilidade. O supereu lacaniano produz o imperativo: goze! Esse é o supereu da
nossa civilização.
Laurent, nesse mesmo artigo (1998), comenta que, na atualidade, somos confrontados a
uma perda de confiança nos significantes mestres e a uma nostalgia dos grandes ideais.
Para ele, os comitês de ética generalizados são as figuras onde a subjetividade de nosso
tempo tenta restaurar o sentido moral do Outro, nos tempos de fuga do sentido, do
paradoxo da fusão dos gozos e de sua segregação. De diferentes maneiras, tenta-se
constituir comunidades suficientemente estáveis para fazer face ao gozo do sujeito.
Acompanhamos o resultado da mercantilização dos objetos construídos para o gozo pela
tecnologia. Esses objetos prolongam a satisfação pulsional e favorecem a ilusão de uma
possível plenitude de satisfação. Os sujeitos ficam servos de um mais-de-gozar
insaciável. Diferentemente do que se passa na estrutura perversa, onde o sujeito tem
uma relão fixa com o objeto fetiche, na “perversão generalizada” o sujeito joga com
objetos intercambiáveis disponíveis na cultura.
295
Retomando o texto de Freud O mal-estar na civilização, Lacan (2008) comenta que, na
teoria dos discursos, aquilo que se acha excluído da civilização, esse resto ou rebotalho
de gozo, é na verdade o que estrutura toda a civilização. O supereu, como imperativo de
gozo, é uma instância crítica e de vigilância. Essas funções de crítica e de vigilância são
encontradas exatamente nas representações dos objeto a por excelência: o olhar e a voz.
Esses objetos a, como rebotalhos de gozo e como instâncias de controle, estão presentes
de forma contundente na nossa cultura.
Lacan (1995), ao comentar a diferença entre visão e olhar, ressalta que o mundo, o
espetáculo do mundo é onivoyeur. Mas não é exibicionista. “Quando começa a provocá-
lo, então começa também o sentimento de estranheza” (1995: 76). “No estado de vigília,
elisão do olhar, elisão do fato de que não só isso olha, mas que isso mostra‖ (p.76).
Assim, a divisão entre a visão e olhar aponta para o real, o estranho, aquilo que, para
além do fascínio, mostra o horror.
A possibilidade de se penetrar” no cotidiano alheio, através desse olhar, exerce grande
fascínio sobre as pessoas, como demonstram os programas de televisãode grande
audiência” chamados “reality shows”, como Big Brother e as diferentes formas de
exibição pública no ciberespaço, como as exposições de fotos pessoais e as diversas
formas de escrita de si nos blogs, no Orkut e outros. Mas é exatamente ao buscar o mais
íntimo do outro que o sujeito se depara com o êxtimo, que causa o estranhamento e o
horror. O autor do blog abaixo apela para o bizarro para atrair o olhar do outro:
296
Olha q bizarro!
http://chadmuska.zip.net/arch2004-04-18_2004-04-24.html
O blog da Emilly apresenta em sua página principal a seguinte foto:
minha amiga jú me enviou esta foto... Garotos, segurem-se... (os que gostam, eh
claro!)
Na contemporaneidade, o discurso do capitalismo, acoplado ao discurso da ciência, ao
invés de diminuir o mal-estar, o aumenta cada vez mais, produzindo, sem cessar,
objetos sob a forma de olhar e de voz. A voz tem sido também um objeto privilegiado
na contemporaneidade, com o aumento das inter-relações anônimas, através, por
297
exemplo, dos celulares que já oferecem possibilidades de estabelecer contatos com
grupos de pessoas desconhecidas, formar comunidades” sem contato visual ou pessoal
e também dos mandatos a que somos submetidos, atualmente, como, por exemplo, pelos
elevadores que anunciam os andares dos prédios ou nos anúncios dos shopping centers.
Os sons são comuns também nos blogs.
Assim, com o declínio da função paterna, a singularidade desaparece. A globalização
promove a extrema homogeneização. Entretanto, uma forma que o sujeito busca, nessa
cultura global, de se particularizar, é se servindo da particularidade do objeto do seu
gozo. Entretanto esse objeto é particular, mas não é singular, não é o resultado da
produção de um sujeito. Ele é industrializado e oferecido a todos, transformado em um
objeto ideal” pela mídia e colocado à disposição do sujeito pela indústria do consumo.
São criados vários grupos que, no lugar de terem o Nome-do-Pai como ponto em
comum, isto é, no lugar de terem colocado um nome próprio na posição de ideal,
colocaram o objeto a na posição de objeto do seu gozo.
Comunidades inteiras são criadas com base num certo mais-de-gozar, que se caracteriza
pela não particularidade, como ressalta Santos (2006). O objeto mais-de-gozar apaga a
distinção, reduzindo os grupos à comunidade de adictos. Colocar o objeto a no lugar do
Nome-do-Pai e fazer um grupo tem o efeito de abolir as diferenças, porque a relação do
sujeito com o Ideal do Eu requer dele uma operação de recalque. assim surge a
interpretação, a subjetivação. Se um objeto é promovido no lugar de agente, o resultado
é o surgimento de um laço que dispensa a singularidade do sujeito, apaga-a,
prescindindo da interpretação, da subjetivação.
Os blogs revelam essa emergência de comunidades de adictos. Alguns adolescentes
fazem parte da comunidade de: “anoréxicos”, “bulímicos” ou “compulsivos sexuais”.
Blog A minha vida
25/09/2006
Anorexia
Logo ao levantar
O corpo começa a fraquejar
De uma noite mal dormida
298
O estômago já só aguenta a cafeína
Pêlos arrepiados evidenciam o frio sempre presente
Tento abrir a boca petrificada
Mas este corpo quase sem vida já só respira
Os livros e o computador são a minha única companhia
Não tenho mais forças para lutar
Pois já não consigo dominar
Este corpo transformado em cadáver
Perdi os amigos e a felicidade
Agora só me acompanha a dificuldade
Em acreditar que ainda estou viva
Que m**** é esta que me persegue?
http://pekenadoll.blogspot.com/
No momento em que a psiquiatria produz intensamente classificões ateóricas de
distúrbios psiqutricos, os pacientes contam seu mal-estar na televisão (e, podemos
acrescentar, na Internet) e publicam obras documentais fazendo diagnósticos sobre si
próprios, utilizando termos da psiquiatria e da psicanálise, como lembra Roudinesco
(2006). A autora destaca que a prática do diário íntimo desenvolveu-se de forma
considerável nos últimos anos. Mas, apesar da autora o mencionar, podemos pensar
que os blogs proliferam nos últimos anos de forma muito mais acentuada que os diários
íntimos. Ela acrescenta que, na reivindicação contemporânea do modelo do
desnudamento, o romance transforma-se em autoanálise.
uma multiplicidade de autoanálises, automedicações, documentos toscos redigidos
pelos próprios doentes, que passam a se encarregar de um cuidado de si, inclusive
publicando depoimentos pessoais que se convertem em “verdades” sobre terapêuticas de
tratamento. O paciente fabrica seu tratamento. Se os diários íntimos vienenses do início
do século XX constituíam um nero ligado a certas situações invariáveis: a
adolescência, a desorientação, a conversão ou a lateração de uma identidade
3
,
remetendo a uma defesa contra a instabilidade, na contemporaneidade, o testemunho de
si pode ser apenas uma forma pervertida de relato, um arquivo de si enganador pelo
qual o sujeito se compraz em ser valorizado em seu amor e em seu ódio de si”
(ROUDINESCO, 2006: 62). Para a autora, o culto de um arquivo de si e em
primeiro plano uma visão da sociedade fundada na superestimação da figura imaginária
3
Jacques Le Rider, Journaux intimes viennois, Paris, PUF, 2000, citado por ROUDINESCO, Elisabeth.
“O culto de si”. In: A análise e o arquivo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p.61.
299
de um sujeito desprovido de sentido histórico, atemporal, sem passado nem futuro; um
sujeito limitado ao claustro de sua imagem no espelho...” (p.51).
O declínio da função paterna leva a uma perda do desejo. Soler (1998) comenta que na
atualidade vivemos uma fragmentação do significante amo, acompanhada da
multiplicação dos significantes amos, que corresponde à queda dos ideais na
modernidade: do matrimônio, da responsabilidade paterna, da responsabilidade no nível
da vida familiar, da educação, da vida dos cidadãos etc. A queda dos ideais clássicos e a
pluralização de novos ideais levam a uma fragmentação, que determina a época
contemporânea. Como consequência da fragmentação dos significantes amos, temos
“nenhuma proibição universalizante”. Agora temos: tudo é permitido ou nada é proibido.
o desaparecimento do desejo. Como desejar o que se possui? As proibições não têm
o papel de sustentar o desejo.
Atualmente o gozo é oferecido na dia, de maneira praticamente universal, por
interdio dos objetos da ciência. Quando a inexistência do Outro se torna evidente e
os ideais se desvanecem, observam-se formas de satisfação marcadas pela promoção do
objeto a. O declínio do viril, a solidão, a segregação e a degradação do amor são
resultados dos efeitos do discurso capitalista sobre o sujeito. A ciência moderna não se
interessa pela dimensão subjetiva, oferecendo objetos que “fazem calar” o sujeito, como
os remédios, que prometem solução para o mal-estar da cultura. Temos toda uma lista
de remédios oferecidos para curar a timidez, a depressão, a impotência sexual, entre
outros, que, como resultado de um discurso científico”, tentam obscurecer a questão do
desejo. O sujeito busca se satisfazer por meio dos objetos ofertados pela cultura.
Nos blogs de adolescentes são comuns as referências aos objetos de consumo:
Ah!!! Comprei a Atrê desse mês com a Avril na capa! A revista vem ótima, cheia de dicas de
esmaltes (amo!!!) e acessórios fofos que custam os olhos-da-cara (outros, nem tanto). Sem contar as
milhares de promoções e os pôsters de vários gatinhos.
300
Uma outra consideração interessante sobre o lugar dos objetos de consumo na
atualidade, é feita por Merlet
4
. Segundo o autor, a perversão generalizada não é nada
mais do que o efeito e o resultado da mercantilização dos objetos vertidos para o gozo
pela tecnologia. Esses são objetos fetiches, que engendram um mais-de-gozar, no
sentido da mais-valia de Marx. O uso desses objetos pode ter o efeito de prolongar a
satisfação pulsional, mas, no entanto, não mudam o caráter de “vazioque caracteriza a
pulsão. Na atualidade, os sujeitos estão tão conectados quanto desconectados, servos de
um mais-de-gozar insaciável. Diferentemente do perverso por estrutura, que se mantém
fixado ao objeto de sua perversão, na “perversão generalizada” o sujeito joga com
objetos intercambiáveis.
A contemporaneidade é regida pelo mercado. Brousse
5
considera que na atualidade
vivemos uma nova variação do discurso do mestre. Ela extrai quatro elementos
constituintes do discurso do mestre atual: o mercado comum, isto é, a universalidade de
um imperativo de troca como novo significante-mestre; o procedimento ou protocolo
como modalidade do saber; a rede, à medida que vem no lugar do sujeito, substituindo-
o; e o dejeto, pois existe hoje uma nova modalidade de gozo ligada ao estatuto de dejeto:
mercado protocolo
rede dejeto
A autora observa que, na contemporaneidade, nada nem ninguém escapam à troca. O
mercado é a forma atual do Um, sendo o lucro o princípio da troca. O modo de
funcionamento é regido pela abstração do lculo da quantidade, que permite a
universalização da troca: cotação e concorrência. Não se trata mais de um mundo
dividido entre mestres e escravos, capitalistas e proletários, mas de um mundo de
consumidores reais ou virtuais, um mundo de usuários potenciais. As modalidades de
troca tornam objeto todo elemento que entra nessa lógica. Tudo se transforma em objeto,
tudo é consumível e o que é consumível é útil. Assim, o desejo e o gozo estão afetados.
Ela acrescenta que a forma científica do saber obedece a essa mesma exigência de
universalidade. A revolão tecnológica no campo da comunicação transforma todo
4
MERLET, Alain. Entrevista. @gente. revista digital de psicanálise. Escola Brasileira de Psicanálise.
Disponível em: http://www.ebp.org.br/bahia/agente/pagina2.html.
5
BROUSSE, Marie-Hélène. “Em direção a uma nova clínica psicanalítica”. In: Revista Mental n. 15.
Paris: NLS, 2005.
301
dado em informação e a informação generalizada é a nova forma de saber absoluto. Os
protocolos e os procedimentos passam a ser regulamentos válidos para toda ação
humana, seguindo a lógica da gestão de massa num mercado global. O saber é submisso
à gestão. E ainda, a autora destaca que o sujeito, hoje, encontra-se em rede e não mais
submetido a uma hierarquia. Ele é informado, não comandado. Brousse (2005) observa
que o sujeito está submetido a uma informação infinita, sem princípio de ordenamento,
na qual ele pode e deve participar como produtor. A relação do sujeito com o simlico
encontra-se modificada e os modos de gozo também se transformaram. O modo de gozo
próprio ao novo discurso do mestre impôs uma nova definição de gozo, generalista,
compatível com todo objeto. O novo discurso do mestre não se apresenta como limite
ao gozo, mas ele dita um objeto: se ele pode gozar, é um objeto”. Do “freio ao gozo”
ao “imperativo ao gozo”. O supereu ocupa o posto de comando. Assim, esse empuxo”
ao enjoy leva a um rebaixamento geral do gozo, o que permite compreender a
expansão das patologias ligadas ao supereu, em especial as patologias aditivas que se
apresentam sob a forma do mais (bulimia) ou do menos (anorexia).
Com efeito, enquanto alguns autores consideram o discurso capitalista como um quinto
discurso, outros o consideram como uma variação do discurso do mestre, como Brousse
(2005). A autora enumeera algumas das consequências do discurso capitalista, que serão
mencionadas resumidamente abaixo, já que estão de acordo com a nossa perspectiva:
-A relação atual entre o objeto e o sujeito é sem véus no lugar da relação sexual. O
consumo é a forma atual de relação.
- O objeto de consumo não interpela nossa divisão, ao contrário, enfraquece-a,
oferecendo-se como o parceiro silencioso capaz de apagar os traços da castração pela
linguagem.
- O objeto, no lugar de agente, se endereça ao sujeito dividido prometendo-lhe o gozo
de ser. O objeto, longe de agalmático, é cinicamente desvelado. Seu valor encontra-se
no fato de estar à venda e seu destino é o lixo, o esquecimento, sendo que o próprio
consumidor pode se converter em dejeto do discurso gestor.
- O estatuto de dejeto do objeto realiza o desvelamento do véu. Estamos na época do
desvelamento, a época do desaparecimento do sentimento de vergonha.
- Como resultado do fim da autoridade do significante paterno, a desagregação do
desejo em relação ao gozo, já que não mais se encontram enodados pela lei do S1.
302
- Há o desaparecimento do enigma, que deixa surgir um real que antes estava mascarado
pelo u da fantasia.
- O gozo sexual é arrancado ao império do significante paterno e o responde mais à
sua lei. Cada um com seu gozo, tudo é permitido, desde que se desenrole com um
semelhante, isto é, sobre o eixo imaginário. Se um consenso entre os semelhantes,
o perversão; se não consenso, perversão (como a pedofilia, o assédio moral
ou sexual etc.). Assim, chega-se a um paradoxo: nada é perversão se existir
consentimento, mas tudo pode ser qualificado como perversão, se não responde a um
consenso.
Essa lógica contemporânea é ricamente ilustrada pelos blogs. Os objetos de consumo
são ali ofertados e promovidos a um lugar central, sendo considerados fundamentais
para o alcance da felicidade. Como resultado da revolução tecnológica no campo da
comunicação, todo dado vira informação e a informação generalizada é a nova forma de
saber absoluto. Qualquer informação é válida, mesmo que não tenha importância
nenhuma para a vida de ninguém. O sujeito está submetido a uma informação infinita,
sem princípio de ordenamento, na qual ele pode e deve participar como produtor. Assim,
ele “produz” informações em seus blogs, escreve “qualquer coisa sobre si mesmo,
sobre filmes, livros, artistas, o que importa é que ele escreva. O “empuxo” ao enjoy
leva a um rebaixamento geral do gozo, ilustrado pelas patologias ligadas ao supereu,
especialmente as patologias aditivas, que se multiplicam na rede: comunidades de
anoréxicas, bulímicas, entre outras.
Se o estatuto do objeto realiza o desvelamento do véu, o desaparecimento do enigma, o
gozo sexual não mais está submetido ao império do significante paterno.
Acompanhamos nos blogs essa relação atual entre o objeto e o sujeito completamente
“sem véus” no lugar da relão sexual. Corpos são exibidos nos blogs como objetos de
consumo. Tudo deve ser mostrado na rede: violência, morte e sexo. Surge, nesse
contexto, a escrita de “puro gozo”.
Para definir o que é uma escrita de gozo, utilizaremos as reflexões de Barthes
6
. O autor
faz uma distinção entre os textos de prazer e de gozo. Para ele, alguns textos provocam
6
BARTHES, Roland. O prazer do texto, trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1999.
303
prazer, enquanto outros, fruição/gozo. Quando a palavra é exposta, desvirtuada, o gozo
deixa de ser apenas prazer, apontando para uma dimensão que se aproxima do coito
proibido e desejado. Enquanto o texto do prazer contenta e euforia, o texto de gozo
põe em estado de perda e causa desconforto, fazendo entrar em crise a relação do leitor
com a linguagem. Para Barthes o texto de gozo é um texto insustentável, impossível,
sobre o qual é também impossível falar, havendo apenas a possibilidade de se falar
“nele”, a seu modo, pois a própria fruição/gozo, como grau supremo de prazer, é
impossível de se delimitar numa definição. Seu objetivo o é a clareza das mensagens,
mas os “incidentes pulsionais”.
O texto de gozo mostra sua relação estreita com a morte, com o excesso, com a
violência e a ruptura. Se qualquer tipo de escrita mantém uma íntima relação com a
morte, a especificidade do texto de gozo, para Brandão e Branco (1995), é que: “não se
trata apenas de edificar sobre o morto, mas de capturar, explorar, exibir a morte, o
como um pré-texto, mas como o próprio texto (1995, p.109). As autoras, em
concordância com Barthes, postulam que a escrita do gozo é necessariamente a escrita
do indizível, do impossível. “Falar em excesso, na máxima capacidade de minúcia do
discurso, a não falar, até o silêncio absoluto do que se cala pela mais incompleta
capacidade de dizer: o gozo” (p.109). Assim, esse é o texto não do sexo explícito,
mas da linguagem explícita, que pode cair no excesso de significação e, paradoxalmente,
desembocar no silêncio ou no vazio, tornando-se uma “não-linguagem”, referindo-se à
terminologia de Deleuze (p.109). A perversão maior do texto seria a de fazer com que
um texto, que é linguagem, esteja ao mesmo tempo dentro e fora da linguagem. O texto
de gozo é sempre incômodo, inquietante, inanalisável pela crítica hermenêutica
tradicional, como ponderam as autoras.
O texto de gozo é o texto do antiutilitarismo, do excesso, da extravagância, onde a
linguagem não visa de fato à comunicação, mas à fruição do delírio linguageiro, pois
o busca a representação, mas a pura apresentação, a exibição da linguagem em sua
materialidade. O texto de gozo, para Barthes, é subversivo e anarquista. Para Brandão e
Branco (1995), o texto da pornografia que repudia o pai-pátria linguística acaba fazendo
a trajetória do retorno à ngua materna, “à fala da mãe, à pré-linguagem de gemidos,
sussurros e balbucios, do suave toque de corpos, do gozo primeiro de um primeiro amor:
304
a linguagem de Eros. E ele é duplamente intransitivo, terrivelmente inquietante,
absurdamente imoral” (p.114).
Essa escrita de gozo pode ser identificada em muitos blogs pesquisados. Neste aqui, sua
autora comenta a entrevista de uma atriz que diz que fez um filme pornô e continua
virgem:
Fiz pornô… Continuo virgem
Peraí, como é que é o negócio…? Ah, tá, é que vai ter só sexo anal… Sugiro então outros títulos mais
adequados para o filmeco:
- Fiz pornô… Continuo com o hímen intacto
- Fiz pornô… Mas não contei que meu hímen é complacente
- Fiz pornô… Continuo fingindo que sairei dessa virgem mesmo depois de fazer SEXO anal
- Fiz pornô… Continuo virgem - nas orelhas.
- Fiz pornô… Continuo cara-de-pau
http://sextosexo.com/pedolatria
Neste outro, seu autor escreve que é preciso viver intensamente, sem medos, tudo que se
tem vontade. Ele coloca a sua foto em seu blog, além se outras fotos com conteúdos
eróticos. Abaixo, algumas imagens de seu blog e um texto que ele escreveu:
Alguma coisa como beijar a minha boca agora, como dizer que quer trepar comigo, que gosta de
imaginar a gente na cama fazendo um monte de coisa, que gosta de acordar comigo, que acha legal
procurar pela minha mão durante a madrugada, que gosta de ser beijado nas costas, que se excita
quando nossas pernas se roçam debaixo da coberta. Essas coisas simples.
http://joao.tipos.com.br/posts/2003/07/08/hora-de-viver
Como vimos, o discurso capitalista elaborado por Lacan é o único que não se funda na
renúncia ao gozo, mas, ao contrário, ele se erige sobre a crença no gozo todo, na
saturação da falta de gozo e no seu caráter imperativo. Na atualidade estamos imersos
no gozo e pobres de desejo. O capitalismo tenta assegurar o gozo para todos,
viabilizando o acesso aos objetos de satisfação disponíveis na cultura. Esse direito ao
305
gozo acena para uma legalização da perversão, que tem efeitos nos modos de gozo dos
sujeitos. O sexo virtual, a legalização das uniões homossexuais, as possibilidades de se
assistir à privacidade alheia através dos recursos tecnológicos exemplificam essa
liberdade de usufruir do gozo, sem restrições, como mostra a autora do blog abaixo:
Bem, eu acho que um dos principais motivos que me fizeram ter um blog, no estilo do meu, além do
tesão do exibicionismo, foi p/ quebrar alguns preconceitos, as pessoas precisam começar a enxergar o
sexo como algo natural, outro motivo foi que queria que as pessoas soubessem que na internet não existe
apenas aquele protótipo de ―nerds‖ ou mulheres feias e mal amadas… Existem pessoas de todos os tipos
como em qualquer lugar, sou uma mulher livre, dona dos meus pensamentos, e que assume os desejos....
Esses blogs se constituem como “escrita de gozo”, uma escrita “sem véus”, pois são
textos marcados pelo antiutilitarismo, pelo excesso, pela extravagância, onde a
linguagem não visa de fato à comunicação, mas à fruição do delírio linguageiro, pois
o busca a representação, mas a pura apresentação, a exibição da linguagem em sua
materialidade. Nesses blogs há um desaparecimento do sujeito no anonimato do
ciberespaço. São fragmentos soltos, dispersos, “sem autor” e sem endereçamento.
Situamos também nessa categoria uma escrita que é da ordem do sem-sentido, não
endereçada, como dimensão de gozo autista. A escrita nos blogs revela uma vertente
fechada aos efeitos do sentido, um impossível a decifrar, como algo fechado em seu
próprio gozo. É uma escrita que aponta para o gozo da letra, fora do sentido,
desconectado do Outro e dos efeitos da comunicação. Esses blogs são caracterizados
por uma escrita fragmentada, por vezes descontínua, não linear, revelando um texto
híbrido, permeado de imagens, desenhos, sons, cores, diferentes formatos de letras,
306
códigos e sinais. Mas essa escrita pertence ao registro do ilegível, da escrita ideográfica,
da letra enquanto puro gozo que não se dirige ao Outro, fora do significado e, portanto,
que acena para o real:
bloglllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllll##############**********!!!!!!""""""''''''''''''+++
++++++++++___________
__&&&&&&
&&&&&&&&&&&&&&&&&(((((((())))))??????????????/////////°°°°°°°°°°°°°°°|||||||\\\\\\\\\
}}}}}}}}}{{{{{{{{ººººººººººººººªªªªªªªªªªªºººººº}}}}}}}}}}}]]]]]]]]]]]]]]][[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[´´´´´´´´´´´´´´´````````
`¨¨¨¨¨¨¨¨¨
¨¨¨¨¨@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@
@@@@@²²²²²²²²²²²²²²²²²²²²²³³³³³³³³³³³³³³³³³³³³³
³³³¢¢¢¢¢¢¢¢¢¢¢¢¢¢¢¢¢¢¢¢¢¢¢¢¢¢¢¢¢¢¢¢¢¢¢¢£££££££££££££
£££££££££££££££££££££¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬
¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§
§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹
¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹
http://tremdedoido43.zip.net/arch2004-08-29_2004-09-04.html
Ora, o ciberespaço evidencia um tipo de escrita que pode ser de duas ordens distintas:
como “indecifrável ou “incompreensível”, remetendo a uma diferenciação feita por
Mandil (2003) de duas formas de escritura situadas na dimensão do “ilegível”. Como
indecifráveis podemos designar aquelas formas de escrita que possuem um caráter
enigmático, mas que não temos acesso ao seu sentido. Como incompreensíveis podemos
designar aquelas que não indicam nenhum esforço de decifração, que mostram uma
ausência de sentido. Não podemos afirmar que o texto acima é da ordem do
incompreensível, mas vários textos do ciberespaço apontam para uma escrita da ordem
do ilegível, que pode ser do tipo indecifvel ou do tipo incompreensível.
Diante das incidências do discurso capitalista sobre os modos de gozo contemporâneos,
questionamos se existe possibilidade do desejo emergir nessa cultura. Existiria alguma
saída, diante da perversão generalizada hoje? Brousse (2005) lembra que, diante dessa
grande onda de objetivação pelo cálculo e pela ciência, o limite é dado pela
307
objetalidade”, ou seja, pela dimensão do objeto perdido no momento da produção do
falasser. Retomando Lacan, a autora observa que, a Inibição, o Sintoma e a Angústia
são três modos da função Nome-do-Pai, ou três maneiras de barrar o gozo que não está
limitado pelo desejo. Assim, os três continuam presentes na contemporaneidade,
colocando limites ao imperativo do enjoyment”. A angústia é a manifestação do limite
colocado a esse imperativo. Vindo do mesmo lugar do interdito, ela nomeia um ponto
de insuportável para o sujeito. Como nomeação real, a angústia é o indicador da
presença do objeto a, que não é da mesma natureza dos objetos do consumo. O objeto a
ordena essa indiferenciação de objetos contemporâneos. A inibição também funciona
como freio à perversão em nossa época. Se na contemporaneidade um deslocamento
da perversão para o mundo virtual, a inibição, como da ordem do imaginário, pode
funcionar como freio à perversão. A terceira forma de limite feita ao gozo é o sintoma,
que se sustenta no simlico. Se por um lado observamos a ciência tentar fazer
desaparecer os sintomas, através da medicalização ou por recondicionamento, por outro
lado, é a partir dos sintomas que os sujeitos se ordenam nas instituições, cada vez mais
segregativas: especializadas em distúrbios alimentares, fobias, toxicomanias etc.
A angústia, a inibição e o sintoma, como três maneiras de barrar o gozo, podem ser
ilustrados pelos blogs. São muito comuns nas escritas dos adolescentes manifestações
de inibição (dificuldade social, para escrever, ler, sexual), de sintoma (anorexia, bulimia,
entre outras), assim como encontramos também textos atravessados pela angústia, pela
pulsão de morte, como veremos no blog abaixo, cujo autor se nomeia como suicidenew:
ESTEJA PREPARADO PARA O FIM, SERÁ MENOS DOLOROSO ESTEJA SEMPRE UM PASSO Á FRENTE.
ASSIM QUANDO SENTIMOS QUE TUDO ESTA INDO BEM TEMOS A NOTÍCIA MORTES NA FAMÍLIA, APARIR
DESTE CHOQUE SEU CORPO JÁ NÃO TEM MAIS CONTROLE PERDE O SENTIDO DAS COISAS VOCÊ
VOMITA SEM PARAR COM VONTADE DEPOIS VEM UMA TREMENDA DOR MENTAL MAIS UM ESTÁGIO
COMPLETO ―PARABÉNS ESTA É A VIDA‖ MINHA RAIVA É TAMANHA PRECISO ESCREVER FRASES SEM
SENTIDO, JOGOS DE PALAVRAS SEM NEXO APENAS NÃO VOU MORRER CALADO COM MEUS
PENSAMENTOS TRANCAFIADOS EM UM CAIXÃO. EXTREMO REAL BRUTAL REALLLLL
LIFEEEEEE!!!!!!!!!#######!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
EU QUERO QUE NO FUNDO DA MINHA MERDA , BEM LÁ ONDE SE FORMA A MERDA MAIS FEDIDA QUE
TODO MUNDO SE FODAAAAAAAAAAAA!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! FODAN-SE TUDO E A TODOS!!!!!!! ACHO QUE
FUI BEM CLARO. EXISTEM COISAS QUE JAMAIS IRÃO MUDAR SÓ DE PENSAR QUE TUDO DEPENDE DA
PESSOA ME DEIXA MUITO PUTO E TRISTE SE SOUBESSE QUE AS COISAS ERAM ASSIM PREFERIA ESTAR
MORTO PELO MENOS DA MORTE NÃO PRECISO IR ATRÁS ACHO EU, CAPAZ DE DEMORAR, MAS DAÍ EU
DOU UM JEITO.
308
DO QUE ADIANTAM MOMENTOS FELIZES QUE NÃO DURAM PORQUE LOGO VEM A DESGRAÇA A
MELHOR CONVIVÊNCIA QUE EU POSSO TER NESTE MUNDO É INEXISTENTE APENAS A MÚSICA ENTRA
EM MEU CORAÇÃO À MEDIDA QUE PASSAM OS DIAS VOU ME TORNANDO INSUPORTÁVEL PARA TAL
FARDO NESTE MOMENTO, TEMPO, PLANETA NESTA VIDA OS FATOS SE CONFUNDEM EM MINHA
CABEÇA OS SIGNIFICADOS JÁ NÃO MAIS EXISTEM OU POUCO IMPORTAM, O SENTIDO A META O IDEAL
SÃO APENAS PALAVRAS FALÇAS, SOZINHO É ASSIM QUE TEM QUE SER É ASSIM QUE VAI SER. A
COMPREENÇÃO NÃO COMPREENDIDA, PREOCUPAÇÃO COM O QUE? PR QUÊ? SOMENTE EM QUE
CEMITÉRIO IRÁ SE HOSPEDAR, OU QUEM SABE COM UM MUNDO DIFERENTE DIGITAL GRÁFICO
FANTASIOSO ILUSIONÁRIO, ESTOU FICANDO ESGOTADO CANSADO PALAVRAS FRIAS NÃO BASTA,
TORNO-ME MAIS FRORTE O ÁPICE DO ICEBERG, SIM ISSO MESMO E DAÍ EU ME REPITO E DAÍ SÃO
MEUS PENSAMENTOS TEM UM MONTE DE SITE PORNÔ AÍ GARANTO É MAIS INTERESSANTE.
força!!!!!!!!!
Escrito por suicidenew às 01h06
http://cumshotsperm.zip.net/arch2005-08-14_2005-08-20.html
O desenvolvimento sexual humano não segue a determinação biológica. No momento
em que há a maturação biológica e a possibilidade da realização do ato sexual, o
encontro com o outro sexo vai depender da estabilização do desejo como sexual. Na
infância o construídas as fantasias que conduzirão ao encontro com o real do sexo, as
identificações imaginárias. Na puberdade, a irrupção de um gozo não regulado pelo
significante e a urgência em assumir uma definição sexual o impor ao adolescente um
trabalho psíquico.
O adolescente precisa reconstruir o semblante que foi rompido pela incidência do real
do sexo. Para fazer esse trabalho, ele recorre às suas identificações imaginárias, e se
apoia no Nome-do-Pai, como dom simlico do falo, para construir um sentido ao real
da sexualidade. Esse trabalho é exatamente a construção do sintoma. Temos aqui os três
registros real, simlico e imaginário enodados pelo sintoma, na puberdade.
Discutiremos o tema do sintoma no próximo capítulo.
Esse trabalho de construção de um sintoma como resposta à ausência da relação sexual
é mais difícil na contemporaneidade, segundo Viganó (2008). Para o autor, o
adolescente hoje encontra dificuldade para realizar esse trabalho por dois motivos. O
primeiro está ligado à sua infância, marcada por uma pobreza de construções ideais. Os
jogos infantis, que permitem à criança mobilizar na fantasia sua imagem especular no
espaço da realidade e da relação com o semelhante, além de levarem à identificação
com os personagens das histórias, são trabalhados hoje pelas crianças de forma
309
extremamente apassivada. As histórias são oferecidas pela televisão, prontamente, sem
exigir do sujeito o esforço de tradução em imagens que poderiam ser articuladas à sua
própria imagem. O segundo motivo, segundo Viganó, está relacionado a uma
importante função do pai: o dom de uma fundação: é assim porque eu digo”. Na
atualidade, essa função é multiplicada ao infinito, que são inúmeros os portadores de
uma autoridade cuja fundação tem o estilo científico é assim porque a ciência diz”. O
sujeito da ciência, do saber do real, passou a ser encarnado pela dia que transforma
esse saber em verdade.
O adolescente é facilmente seduzido pelo sujeito da ciência. Os novos mestres são os
especialistas, os formadores de opinião. Mas essa autoridade, no lugar do pai, não pode
oferecer ao adolescente uma garantia real, um exemplo de vida, como salienta Viganó.
Fazendo uso dos objetos de consumo, o adolescente “curto-circuita” o trabalho de
escolha, numa incansável repetição, evitando a responsabilidade da escolha. O
adolescente toma um objeto de consumo como véu, como uma roupagem para dar
forma ao corpo, ou, como diz Viganó, “para dar corpo à nova carne”. A ciência, por
outro lado, demonstrou a inexistência da relação sexual, ao mesmo tempo em que
rompeu o encanto que o mito envolvia. O jovem adolescente encontra-se em maiores
dificuldades com relação às escolhas de parceiro. A escolha certa” do parceiro não é da
ordem natural e a via cultural não lhe oferece referências claras, nas formas
tradicionalmente assinaladas pelo mito. Como o adolescente hoje poderá se orientar,
como sublinha Viganó, uma vez perdida a bússola do desejo?
Ora, se acompanhamos um declínio da função do pai desde a modernidade, não se trata
de buscar resgatar ou instaurar uma noção de poder universal, totalizadora. O que é
decisivo na função do pai não é a imposição da disciplina ou a aplicação da lei, mas a
versão do desejo que é transmitida, a particularidade de seu desejo, a versão pai” do
gozo. Trata-se do sintoma do pai, da particularidade do objeto a que ele enquanto
homem extrai do corpo de uma mulher. A função do pai decorre da maneira particular
pela qual um pai pode suprir uma o-relação sexual. A “pai-versão” é uma forma” de
amarração dos registros da realidade psíquica, é apenas “uma das formas”, pois em seus
últimos ensinos Lacan destaca que alguns sintomas podem garantir uma função
semelhante à do pai. O pai liga o simlico e o real entre si, como “pai do nome”. Mas,
mesmo quando a incidência do pai, sobra um resíduo, um gozo não absorvido pelo
310
significante. um indizível para todos, resultado da falta inerente ao simlico. Na
puberdade há o despertar do gozo, mostrando essa insuficiência do pai. Cabe ao
adolescente buscar uma solução, para além do laço paterno, para restabelecer essa
amarração. É nessa solução que reside o singular.
Se existe na atualidade o declínio da função do pai, essa “carência” não diz respeito
simplesmente a uma falha do simbólico, a uma perda ou enfraquecimento da lei, mas
mais propriamente a uma demissão do pai real, que é relativa ao desejo da mãe, relativa
a alguém que ele não ousa confrontar como mulher. Nesse caso, a mãe não é privada do
seu objeto do desejo. Ela não se divide entre mãe e mulher. A função do pai é exercida
ao demarcar a inacesibilidade ao gozo primordial. Se o pai pode ser tomado como uma
forma de ligar os três registros da realidade psíquica, essa função é exercida por cada
pai como homem em relação a uma mulher, que decorre da maneira particular pela qual
um pai pode suprir uma não-relação sexual.
Acreditamos que a escrita de um blog pode ser uma tentativa de orientação, diante do
declínio da função do pai. Ela tanto pode representar um culto de si”, um “curto-
circuitoimaginário, especular, que evita a responsabilidade da escolha, como pode ser
um sintoma que enlaça os três registros da realidade psíquica no momento do confronto
com a não-relação, quando um desatar do nó que amarra os três registros. O blog
pode fazer um enlace social através da publicização de sua “escrita de si”, de seu
romance familiar.
6.1.3. A escrita de si para si
O blog que nomeamos como de si para si” representa, de acordo com nossas pesquisas,
a grande maioria dos blogs de autores adolescentes. Diante do desencantamento do
mundo, testemunhar sobre a própria vida no ciberespaço é uma forma de cultivo do
“eu”, cada vez mais incidente na contemporaneidade. Essa dimensão, abordada por
Roudinesco (2006) como o “arquivo de si”, em progressão no mundo inteiro à medida
da extensão do fenômeno de globalização econômica, funciona como um culto do
narcisismo, que se pretende uma prática de “autoterapia” ou autoconhecimento, fundada
numa valorização da imagem de si.
311
O culto de si e o cuidado terapêutico tornaram-se os grandes modelos de uma
organização da sociedade ocidental caracterizada como “narcísica” pelos sociólogos. À
afirmação de si da classe burguesa e seu elitismo hierarquizado, que, como destaca
Roudinesco (2006)
7
, foi caracterizada pela devoção à família e ao patrimônio
transmitido, segue-se uma sociedade de massa organizada em redes, que transforma os
sujeitos em individualidades múltiplas, em personalidades dissociadas, fragmentadas,
transformadas em mercadorias e corpos despedaçados, em sujeitos captados pela dupla
imagem no espelho.
Designamos o blog como um texto “de si para si” quando ele se mantém como um
espaço de pura valorização da imagem de si. Nesse espaço “particular”, o adolescente
expõe muitas imagens e algumas palavras, com a preocupação de construir um blog que
seduza o olhar do leitor. O adolescente inaugura o seu blog no espaço virtual e
frequentemente entra numa competição com o grupo, comum entre os blogueiros, sobre
qual blog é o mais bonito ou interessante. Para compor um blog que atraia a atenção dos
internautas, ele utiliza de todos os recursos disponíveis aos blogueiros, como imagens,
cores, sons e palavras. Nessa categoria de blogs, existe um endereçamento a um outro
adolescente. Não se trata aqui de pura escrita de gozo. Em alguns casos há uma intenção
de romance. Normalmente, nesses blogs, os textos são curtos e a produção própria é
escassa. São frequentes: letras de músicas, poemas, fotos de artistas, frases soltas,
desarticuladas, entrevistas de artistas famosos, mas “praticamente” não ocorre um texto
com uma elaboração própria. Os blogueiros copiam” modelos, palavras, imagens e
sons, muitas vezes de outros blogs. o abundantes as fotos pessoais. Sabemos que
nesses recortes que o jovem faz de outros blogs existe algo de particular, na própria
seleção que seu autor faz do que recortar ou copiar, mas essa produção própria é muito
pobre, as frases do próprio autor são quase inexistentes.
O que predomina aí é um culto narcísico de si. Dificilmente eles duram mais do que
alguns dias. Apesar de se dirigirem a um outro adolescente, e fundamentalmente
sabemos que toda escrita é endereçada a um Outro, nesses casos o blog se mantém num
curto-circuito especular, fechado em si mesmo, que evita o confronto com aquilo que
7
ROUDINESCO, Elisabeth. “O culto de si”. In: A análise e o arquivo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006,
p.51-76.
312
remete à impossibilidade, ou a responsabilidade da escolha. Esses blogs normalmente
o fazem laço social.
No blog abaixo, nomeado “Coisas de adolescente”, se encontra esse texto abaixo,
depois o blog é interrompido:
MeTaS:
* Comprar roupas lindas e fashion, que apareçam no mínimo um pouco da barriga.
* Aprender a me maquiar. "Fazer efeito dois tons nas sombras"
* Comprar maquiagem, batons, gloss...
* Pintar o cabelo de loiro.
* Comprar baby liss.
* Comprar tênis Skate, sapatos de salto...
* Comprar celular de abrir.
* Comprar esmaltes.
* Fazer tratamento de pele e eliminar as espinhas, cravos e sardas.
* Mudar de escola.
* Fazer mais amigos.
* Perder toda a vergonha.
* Conhecer mais sobre as pessoas e aprender a lidar com elas.
* Estudar para o peies.
* Saber mais sobre música.
* Dançar.
* Fazer segundo furo.
* Comprar brincos legais.
* Comprar perfumes.
* Comprar pulseiras e munhequeiras.
-> Mas o principal:
Ser eu mesma como pessoa. Jamais agir com falsidade. Mudar sim, mas não pelos outros e sim
por mim mesma. As vezes é bom mudar, eu quero mudar e tenho necessidade disso
http://stoop.zip.net/arch2006-01-22_2006-01-28.html
Inicialmente (ordem de prioridade?) estão colocadas as metas da autora, que envolvem,
além dos muitos objetos de consumo, alguns ideais culturais contemporâneos, como
perder toda a vergonha (o que seria perder toda a vergonha?) e ideais típicos da
adolescência, como mudar de escola, fazer mais amigos, dançar e saber mais sobre
música. O paradoxo é que no final ela acrescenta que o principal é ser eu mesma”.
Nessa busca pela individualidade, ela se apega exatamente aos objetos de consumo,
ditados pela cultura e “comuns a todos”. Essa mensagem teve três comentários, de
adolescentes que compartilham dos mesmos ideais:
thay] [thay.gprieto.zip.net]
adolei teu blog e tuas metas estã d + ,e é como as meninas
diceram :Soh falta posts ! visita o meu blog e da a tua
opinião :thay.gprieto.zip.net
04/05/2008 11:15
313
Letania~~ Bad Girlss* *] [http://triobadgirls.zip.net/]
oiii~~ adorei u blog~~ soh falta uns póstss aee =P~~ heauheu~~ viu moçaa~ entra nu meu blog
aee se qiseh algumas dicass dessa fazee show pela qual noss tamu passando~~ entra lah vale a
pena =) bejOnss
03/04/2007 21:59
[Naiara] [http://urbangirls.zip.net]
Huhuahauhauhauah oiee nossa essas suas metas estao oteeemass
mtu boom... verdadeiraas... td que uma adolescente ker mas tahh
otemo seu blog soh falta posts neahhh hehehehhe bjk passa nu meu
teh
10/06/2006 17:33
O blog abaixo foi escrito por duas adolescentes, que se nomeiam: Totalmente Bad
Girls”. Elas colocam as suas fotos e escrevem abaixo:
Jake++Lee++Bruu ~~ ; )
resoLvII~~ POsta uma fotenha di noixx~~ auhehauehu =P
Escrito por Baaad³ às 21h42
bOumm pessoass.. nòss fizemoss esse blog aqii~~
pq tivemooss a crazY idééiaa d fzer um trabalho di escola..(sab aqeles tipow feira d ciências??) ^^
sobre uss adolescentes~~ tipo comportamento em geral~~
Pq qem melhor pra fla dec assunto a n ser noss mesmoss??
=P qremo a ajudaa di vcs tbm .. nehhh?/ pleasee~~
conTamoss com a ajuda di vcsss~~uhuhuhu
bejoxx bejoss~~ aheuua
Escrito por Baaad³ às 19h43
A última mensagem que escrevem é:
03/04/2007
314
iobadgs.zip.net/net/arch2007-04-01_2007-04-07.html
http://triobadgirls.zip.net/
Assim como esses dois blogs ilustrados acima, existem inúmeros outros semelhantes.
Alguns m apenas dois ou três textos, muitas fotos e imagens, e logo o abandonados.
Não sabemos os motivos dessa interrupção, mas podemos levantar algumas hipóteses.
Eles correspondem exatamente à lógica contemporânea comentada acima, que
resumidamente pode ser descrita como a do declínio do simbólico e da expansão da
imagem, da cultura da fragmentação, da superficialidade, do imediatismo, do
transitório, do consumo e do culto de si. Como consequência do discurso capitalista, há
um apagamento do desejo, da dimensão da história, com o privilégio do imediato e do
efêmero.
6.1.4. Enfim, o que há de novo hoje?
Vimos que a escrita tem a função de dar um tratamento ao real. A escrita de si sempre
existiu, mas ela ganha contornos próprios na modernidade, com desenvolvimento do
individualismo e com a expansão do capitalismo, quando então surgem as narrativas
sobre si, os escritos autobiográficos. Vimos também que o diário é paradigmático da
adolescência, tempo lógico da irrupção do real do sexo. Se a escrita sempre foi
importante nesse despertar da puberdade, ela continua sendo na atualidade. Os
315
adolescentes continuam escrevendo sobre si, não mais nos diários íntimos, mas nos
blogs. Então, o que há de novo hoje?
Elegemos como paradigmático do diário moderno o romance. O que é paradigmático do
blog? Consideramos que a mudança do diário íntimo para o blog implica
fundamentalmente uma mudança na posição do sujeito. Essa mudança está relacionada
com as transformações que ocorreram no estatuto do saber, como consequência do
discurso capitalista, principalmente no século XX, com o surgimento das leis de
mercado. São rias as incidências dessa mudança sobre o sujeito contemporâneo, que
iremos retomar resumidamente:
- O saber vira mercadoria e passa a valer o quanto se pode vender e comprar dele.
- Ele passa a ordenar-se num elemento comum de gozo, adquirindo a condição de mais-
de-gozar, passando a conter uma dimensão
do real.
- Ele toma o estatuto de objeto a, ocupando o lugar da produção e adquirindo a condição
de ser consumido.
- Ele passa a ser um objeto acessível (nos outros discursos ele é inapreensível).
- Ele perde sua relação com o inconsciente (S1 S2) e leva a uma produção contínua do
objetos (S2/a). O saber formalizado da ciência trabalha na fabricação de latusas.
- Assim, o saber na posição de objeto com valor de mercado subverte o desejo e sua
relação com o sujeito. Agora não há mais uma impossibilidade estrutural e discursiva do
sujeito ter acesso ao saber e ao objeto causa do desejo. O saber é oferecido
continuamente como uma promessa de satisfação possível para o sujeito.
- O sujeito, por ocupar o lugar de agente no discurso, se crê capaz de comandar através
do saber o objeto mais-de-gozar. Mas, na verdade, ele é comandado pelo objeto de
consumo, esse que sustenta o discurso.
- certa rejeição da castração. Ao desligar o sujeito do saber inconsciente, certo
apagamento de sua subjetividade.
- uma disjunção entre o lugar da produção e o lugar da verdade. O saber (mercado)
torna-se acessível ao sujeito.
- A verdade passa a ser capaz de ser “toda dita”.
316
- O saber é transformado em informação. O não-saber (sobre o real do gozo) passa a
equivaler à falta de informação.
- Para o capitalista interessa manter a insatisfação do sujeito para garantir um mercado
para o qual não há falta, onde tudo é possível.
- A demanda perde valor para a oferta embrutecida.
- Há um apagamento do desejo.
- O saber da ciência não está submetido a nenhum senhor, nada o detém. Isso aponta
para o declínio do senhor, do mestre, a crise dos ideais, que gerou a crise dos
significantes-mestres que ordenavam a civilização. O que impera é o mercado, o as
leis do mercado, que é o mercado das latusas.
Com a entrada do saber no mercado, uma anulação da via singular, com o declínio
dos significantes mestres. O discurso do capitalismo sugere a eliminação do impossível,
é o discurso da qualidade total. Todo o saber é possível. O discurso do capitalismo
rompe, na verdade, a regra do discurso, cai nas letras desarticuladas. Onde não há
discurso, não laço social. Acompanhamos o decnio da diferença. um
apagamento do desejo. A ética do desejo lugar ao imperativo do gozo. uma
proliferação de gozos autistas. Como comenta Miller
8
, o social não tem mais
consistência visível, um embaralhamento geral das identidades sociais. A sociedade
o oferece aos sujeitos identidades visíveis, que permitam uma identificação estável.
Se a constituição do sujeito moderno implica a vertente significante (S1 S2), a
constituição do sujeito contemporâneo implica uma ruptura da cadeia (S1//S2).
Como identificamos isso nos blogs? Utilizando o romance como referência (paradigma
do diário moderno), identificamos três tipos de blogs: aqueles marcados por pura escrita
de gozo, da ordem da dimensão da letra; aqueles que se constituem como uma escrita de
si para si, como um culto narcísico de si; e os que se constituem como romances que
fazem laço social. Somente nesse último, a escrita opera para o sujeito como um
sintoma, fazendo laço social. As duas primeiras formas, que não fazem laço social, são
predominantes na escrita dos blogs. Essa constatação poderia nos indicar que na
8
MILLER, Jacques-Alain. O sobrinho de Lacan. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
317
atualidade o sujeito encontra maiores dificuldades em construir um saber que faça laço
social?
6.2. Uma saída aos impasses contemporâneos: a escrita no blog como um sintoma
Defendemos a hipótese de que um blog pode operar no sintoma adolescente. Mas, para
discutirmos essa dimensão de sintoma dos blogs, apresentaremos de forma sintética o
percurso psicanalítico na elaboração do conceito de sintoma e, posteriormente,
apresentaremos o blog que operou como um sintoma para um adolescente. Assim,
poderemos ter acesso aos efeitos da escrita em um blog para um sujeito adolescente.
6.2.1. Do sintoma ao sinthoma
A primeira abordagem do sintoma feita por Freud a respeito do sintoma histérico é a de
que ele tem uma dimensão de mensagem. O sintoma é uma mensagem do inconsciente a
ser lida. Freud reconhece também que o sintoma é da ordem da satisfação pulsional e
que, portanto, resiste ao dizer.
A primeira definição de sintoma em Lacan é elaborada a partir dessa perspectiva
freudiana. O sintoma é considerado como uma mensagem cifrada. O sintoma é uma
maneira de falar de forma cifrada e, ao mesmo tempo, um modo de gozar. Para Freud e
para Lacan, portanto, o sintoma apresenta duas facetas: uma de linguagem e outra de
gozo.
Lacan descreve o sintoma não como algo que perturba uma harmonia, mas, ao contrário,
como uma solução para evitar o encontro com a castração. O sintoma é uma tentativa de
estabelecer o laço entre o sujeito e o Outro. Esse laço se dá como uma conciliação que o
sintoma promove entre a castração e o “envelope formal do sintoma”, como um
invólucro significante. Esse termo foi utilizado por Lacan no texto De nossos
antecedentes”
9
. Partindo de um breve comentário de Lacan sobre o envelope formal,
Miller faz um extenso comentário no seu texto: Reflexões sobre o envelope formal do
9
LACAN, Jacques. “De nossos antecedentes”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998,
p.69-76.
318
sintoma
10
, destacando dois aspectos no sintoma: o núcleo de castração, de mais-de
gozo, em função da perda de gozo da operação significante, ou seja, da extração do
objeto a pela operação significante; e a vertente da mensagem endereçada ao Outro e
que espera decifração. Assim, podemos dizer que, da perda que se instala como
resultado da castração, surge uma intenção de significação, para recobrir essa perda.
Essa intenção de significação é uma resposta do sujeito ao confronto com a castração,
mas, exatamente por ser essa resposta da ordem do impossível, pois a falta instaurada
o pode ser totalmente recoberta pelo simlico, vai relançar o sujeito na busca
constante de significação.
Lacan denomina de “envolrio formal do sintoma” o envoltório significante que o
recobre, como uma vestidura simbólica. Portanto, em suas primeiras elaborações sobre
o sintoma, ele enfatiza a vertente simbólica do sintoma. Nessa vertente, o sintoma,
constituído como mensagem significante, tem estrutura de ficção e é endereçado a um
Outro. É o que demonstra o discurso histérico, pois na histeria o sintoma é colocado em
evidência, na posição de agente do discurso, fazendo o objeto a ocupar o lugar da
verdade. Essa posição do sintoma promove a construção de uma suposição de saber no
campo do Outro. O laço entre o sujeito e o Outro se faz pelo sintoma.
Mas o percurso teórico de Lacan sobre o sintoma leva-o a considerar cada vez mais a
dimensão real do sintoma. A vestidura simbólica não recobre todo o real. O real fura o
envelope formal que o envolve. Para Lacan, o real do sintoma é o que serve ao gozo.
Em “Televisão”, Lacan introduz o borromeu e passa a discutir os nós do imaginário
com o simbólico e o real, introduzindo novas categorias clínicas e novas formas de
sintomatologias.
No Seminário 23, O sinthoma, Lacan (2007) comenta que toda realidade psíquica
depende de uma estrutura onde o Nome-do-Pai é um elemento incondicionado. O pai é
o quarto elemento sem o qual nada é possível no nó do simlico, do imaginário e do
real. Esse pai é também nomeado como sinthoma. Lacan (2007, p.164) acrescenta que o
10
MILLER, Jacques-Alain. “Reflexions sur l‟enveloppe formelle du symptôme”. In: Les formes du
symptôme. Actes de L‟École de la Cause Freudienne. Paris, octobre, ECF, 1, Rue Huysmans, Paris 6.
(vol. IX).
319
sintoma, ao enodar-se ao imaginário, ao real e ao simlico, encontra seus limites, e é
por isso que se pode falar de nó.
A diferença entre linguagem e ngua permite compreender a noção de sinthoma. Milller
(2005)
11
, comentando o seminário de Lacan sobre o sinthoma, explica que, para que se
possa compreender esse conceito, Lacan introduz a diferença entre a linguagem e a
língua. Mais precisamente, uma vez que por trás da linguagem se faz surgir a ngua, a
linguagem decaiu ao estatuto de uma elucubração de saber sobre a língua. A linguagem
é o sistema eventualmente gramatical, o sistema linguístico que se inventa a partir da
língua. Lacan chega a dizer que a linguagem enquanto tal não existe, é uma ficção, uma
construção. É isso que permite compreender a definição inédita que Lacan ao
sintoma, porque o fato de clivar a linguagem em sua diferença com a língua o deixa
ilesa a referência ao inconsciente na prática analítica, já que o inconsciente não é um
dado.
Lacan escreve sinthoma para diferenciá-lo do sintoma, que repercute a diferença entre a
língua e a linguagem. O sintoma é uma formação do inconsciente. Segundo Miller
(2005), o sintoma se cura, mas não o sinthoma. No sinthoma, trata-se de saber que
função encontrar para ele. Lacan introduz a noção que não é da literatura, mas da lógica,
que deve ser aplicada ao sinthoma.
Para Lacan o sinthoma não é uma formação do inconsciente; desta forma, trata-se de
usá-lo logicamente até atingir seu real. Ele nota que Joyce fez mais ou menos isso. Mas
o uso lógico do sinthoma ao qual Lacan nos convida, segundo Miller, se opõe ao seu
uso de deciframento: o deciframento remete à noção de verdade do sintoma, enquanto o
uso lógico levaria ao real do sinthoma. O deciframento, portanto, o faz mais do que
alimentar o sintoma, já que ele bebe o vinho da verdade, da significação. Lacan faz uma
depreciação da verdade, afirmando que ela, enquanto significação, alimenta o sintoma.
O sintoma na perspectiva freudiana é a verdade, o que se interpreta e que é da ordem do
significante. A ordem da qual se trata é o que exprime essa relação, S1-S2, a vertente
significante. Ela é a condição para o sentido, pois o significante tem sentido em sua
11
MILLER, Jacques-Alain. “Pièces detaches”. In: La Cause Freudienne. Paris, n. 61 (2005), p.131-153.
320
relação com um outro significante. Esse sentido do significante que é chamado de
verdade. Essa verdade pode ser chamada de sintoma.
Quando Lacan faz uma disjunção entre sintoma e verdade, nessa disjunção ele um
lugar ao gozo. Ao mesmo tempo em que Lacan substitui a verdade pelo gozo, ele opera
outra substituição, a da linguagem pela língua. Por trás da linguagem, por trás da
organização linguística que constitui uma estrutura de linguagem, a língua, que não
funciona como a linguagem. A linguagem consiste a imaginar-se que falar serve para
comunicar. aquilo que da língua se deixa entrever serve a uma coisa completamente
diferente da comunicação, a algo diverso do que pode, a partir daí, tomar a forma de
diálogo.
Para mostrar que o significante serve ao gozo foi introduzido o conceito da ngua. E a
linguagem nada mais é do que uma elucubração sobre esse uso pririo, que leva a
acreditar que seu uso primeiro é servir à comunicação. O inconsciente freudiano pode
ser compreendido no nível da comunicação. Ele defende a ideia de que a comunicação
pode ser cifrada e, logo, que ela demanda ser decifrada.
Lacan introduz uma outra dimensão, para além do deciframento, que mostra a vertente
de puro gozo do sintoma, que não pode ser interpretada. Essa dimensão é abordada a
partir da leitura de Joyce. Assim, o significante é primeiro causa de gozo. Em
consequência, o sintoma como tal, quer dizer, desnudado, reduzido ao invés de
interpretado, não é verdade, ele é gozo.
Essa descoberta tem incidências clínicas, como comenta Miller (2005). Na direção do
tratamento, trata-se, portanto, da redução ao invés da interpretação. E, se
interpretação, é para servir à redução do sintoma. Nesse seminário, segundo Miller
(2005) Lacan descobre que a linguagem não existe como estrutura e ela é desfeita pelo
impulso da língua. O uso lógico do sinthoma faz objeção ao laço social e à forma sob a
qual nós o abordamos, a da comunicação. É o que permite o recurso à lógica. A lógica é
também uma ordem, segundo Miller, é uma articulação, mas que não nenhuma
leveza ao laço social. O uso lógico do sinthoma é como tal disjunto de seu uso social,
que sempre é comunicação.
321
O uso lógico do sintoma é o ponto de partida do seminário do sinthoma e se opõe ao
deciframento do sintoma em termos de verdade. Se ele introduz um desenvolvimento,
esse desenvolvimento não é uma revelação, é redução. Redução a um osso, a um
elemento, ou mesmo, redução a um significante.
O significante é representado e concebido por essa via, como um anel, um anel de
barbante, com o qual se compõe o nó. O anel de barbante vem no lugar do uso onde
Lacan colocava o significante. O anel de barbante fecha, isola, supõe um furo. Assim, o
furo é colocado no lugar do traço. Os nós de Lacan são construídos a partir dessa função
do furo. A partir de então, Lacan faz do furo a característica essencial do simlico.
Essa construção é iniciada por Lacan no seminário RSI:
Contentemo-nos então em dizer que o Inconsciente é o Real, enquanto no
falasser, ele é afligido pela única coisa que, do buraco, nos assegura, é o que
chamo o Simbólico, encarnando-o no significante cuja definição, no final das
contas, não é outra senão essa, o buraco (LACAN, 1974-75: 61).
E, a partir daí, é no imaginário que recai a consistência. Toda consistência é suspeita de
ser somente imaginária; mesmo o que se sustenta junto, como o em si, tudo o que
constitui um sistema, é suspeito de ser imaginário. Em todo o seminário RSI, Lacan
discute a consistência, relacionando-a ao Imaginário: E a consistência, para designá-la
pelo seu nome, quero dizer por sua correspondência, a consistência, diria eu, é da ordem
Imaginária (p.30).
Quanto ao real, ele é ex-sisncia, isso quer dizer que ele vem a mais, é o terceiro como
tal, o que faz com que o imaginário e o simlico se mantenham juntos. Esse é o
concreto, como relação dos três anéis. Um conjunto que não faz sistema, um conjunto
do furo da consistência e da ex-sistência. Bastam três dispostos de maneira borromeana
para que ele se sustente junto, e isso basta para servir de suporte para o sujeito, numa
primeira perspectiva de Lacan: ...a ex-sistência está, por relação a esta correspondência
da ordem do Real, que a ex-sistência do é real... (p.35). Lacan acrescenta, nesse
seminário, que o Real ex-siste enquanto impossível (p.66). E identifica a consistência
com o imaginário, o furo como proveniente do simbólico e a ex-sistência como da
ordem do real.
322
Lacan descobre, no entanto, que o básico não se sustenta sozinho. um quarto anel.
Na nova perspectiva, que é a da consistência e não a do sistema, o fundamental não é a
ordem simbólica. O primordial é a consistência do corpo. O corpo, nessa referência, é
aquilo que o direito concede ao sujeito como sua propriedade, habeas corpus, seu corpo
é seu; enfim, ele o concede ao sujeito de direito que, em consequência disso, toma-se
por uma alma; toma-se por uma alma quando se extrai do mundo e sente que se submete,
quer dizer que sofre dele. Essa consistência é imaginária, posto que, no que concerne a
sua matéria, esse corpo se decompõe: “O corpo decerto não se evapora e, nesse sentido,
ele é consistente... (LACAN, 2007: 64). “O falasser adora seu corpo porque crê que o
tem. Na realidade, ele não o tem, mas seu corpo é a sua única consistência, consisncia
mental, é claro, pois seu corpo sai fora a todo instante” (p.64). Essa consistência é,
entretanto, insuficiente, posto que o amor, na medida em que o amor ou que a
questão do amor se coloca, quer dizer, de fazer a escolha de um outro corpo.
Podemos pensar que a fase da adolescência ilustra um tempo lógico onde a consistência
do corpo é abalada. Se a consistência do corpo é imaginária, o real do sexo faz abalar
essa ilusão imaginária que sustenta o corpo, exigindo do sujeito sua reconstrução. No
encontro do adolescente com o outro, o amor é uma tentativa se tamponar essa
insuficiência do corpo, um véu que recobre sua inconsistência.
O amor é relativo à insuficiência do corpo pprio e, na perspectiva do sinthoma, é uma
maneira de dar sentido a um gozo que é sempre parasitário. Miller (2005) comenta que
o gozo não está no corpo como consistência, o corpo como consistência está articulado
com a sua forma; esse parasita vem a mais entre o corpo e o simlico. Ele os enlaça.
Lacan aborda o parasita do gozo como real.
Nesse sentido, o gozo como real é o que parasita o corpo e na adolescência o
despertar” é exatamente essa irrupção desse gozo parasitário. O amor é uma forma que
o adolescente encontra de dar sentido a esse gozo real.
O sinthoma vem se inscrever na demissão do pai. A função do sinthoma é a de ser
reparador. O sinthoma repara a cadeia borromeana quando os elementos dela não se
manm juntos. O sinthoma aparece como um operador de consistência que permite ao
simlico, ao imaginário e ao real continuar mantendo-se juntos. No caso Joyce, o
323
sinthoma é exatamente uma compensação da carência paterna, carência que se conclui
na geração seguinte pela esquizofrenia da filha de Joyce, como Joyce tivesse sido o
intercessor entre a carência de seu pai e a esquizofrenia de sua filha.
Na adolescência o sujeito se depara com a falha estrutural do pai, é um tempo lógico em
que o sujeito busca construir um sintoma para compensar essa carência paterna. O
Nome-do-Pai é insuficiente para abordar o real. Mas, se seu pai assegurou a conjunção
do simbólico e do real, ele possui os referentes fálicos que o sustentam em sua travessia.
Lacan vai abordar o inconsciente, a partir do caso Joyce, em torno do caroço do real: “O
real, aquele de que se trata no que é chamado de meu pensamento, é sempre um pedaço,
um caroço. É, com certeza, um caroço em torno do qual o pensamento divaga, mas seu
estigma, o do real como tal, consiste em não se ligar a nada. Pelo menos é assim que
concebo o real” (LACAN, 2007: 119). O que a análise faz é isolar o caroço e para isso é
preciso saber deixar cair o bordado. Miller (2005) interpreta esse deixá-lo cair como
sendo diferente de decifrá-lo, porque decifrar é sempre ligar, enquanto que o real é uma
invenção de algo que não é leve, mas é uma invenção frágil em si mesma, ele o se
liga a nada.
Em torno do caroço do real, tece-se uma história. A história na perspectiva de Lacan
neste seminário do sinthoma é uma fantasia. A hisria não passa de um mito, ela é
somente uma maneira que parece factual para dar sentido ao real: “A história é a maior
das fantasias, se assim podemos nos exprimir. Por trás da história dos fatos pelos quais
os historiadores se interessam, há o mito” (LACAN, 2007: 120).
O adolescente escreve a sua história no blog. Como toda história, trata-se de uma ficção,
uma maneira de dar sentido ao real. Na adolescência, busca-se dar sentido ao real. Para
Freud, as fantasias, assim como os sonhos, são realizações de desejo e o construídas
ainda muito cedo. Elas são herdeiras do Complexo de Édipo e se estabelecem a partir da
castração do Outro. As fantasias tentam encobrir a castração, mas, por outro lado,
veiculam uma função de real, como destaca Lacan. Na adolescência, quando as
identificações simbólicas e imaginárias se desfazem, a fantasia (fálica) vacila e surge a
interrogação sobre o sentido. É dessa maneira que podemos pensar que a escritura pode
ser uma tentativa de reconstrução a partir dos restos das primeiras relações
324
identificatórias. É a escrita de uma história particular, feita de restos, de fantasias, que se
organizam para a construção de um novo sentido.
Mas existe um limite na história, na criação de sentido. Numa análise, chega-se ao
limite da história. Lacan diz que a história é fútil em relão a um sintoma quando se
chega a esse ponto de redução onde não há mais nada mais a fazer para analisar.
Quando Lacan afirma que Joyce era desabonado do inconsciente, pode-se pensar que
isso não é exclusivo de Joyce. Ser desabonado do inconsciente é o real de qualquer
sintoma. Segundo a elucubração freudiana, o sintoma é verdade e, para Lacan, o
sinthoma é real. Lacan sublinha que o inconsciente de Freud não implica,
obrigatoriamente, o real do qual ele se serve. O real para Freud era algo como a libido,
uma energia constante. Para Freud, há um saber no real e era isso que dirigia seu manejo
do sintoma, como observa Miller (2005).
Para Lacan, a psicanálise leva a uma redução ao que não tem sentido, ao que não se liga
a nada. Entretanto, isso não quer dizer que devemos abolir qualquer sentido. Miller
destaca que nos servimos do Nome-do-Pai na psicanálise. Numa análise, passa-se pelo
deciframento, passa-se pelos efeitos de verdade, mas eles estão ordenados de acordo
com um real que o tem ordem.
Mesmo fora da análise, a criação do sentido pode esbarrar num limite, naquilo que
escapa à significação. Veremos essa passagem do sentido ao fora do sentido em um
blog de adolescente.
É essa nova perspectiva que Joyce ilustra por meio de sua escrita. Joyce a essência
do sinthoma, visto que sua obra é inanalisável, que aponta para um não-sentido. Lacan,
nesse seminário (2007), introduz a concepção dos três registros disjuntos. O simlico,
uma vez disjunto do real e disjunto do imaginário, não é mais uma ordem, não é mais a
ordem simbólica. O simbólico não se impõe ordem alguma.
A imagem do fascina, pois ela impõe a ideia de uma nova ordem, mas o essencial é
que as rodelas não são amarradas. É isso que se encontra no Seminário O sinthoma: a
categoria do soltar/destacar (détachement), como destaca Miller (2005), o corpo solto. O
sinthoma do qual Lacan trata, a partir do caso Joyce, é justamente um sinthoma solto do
325
inconsciente. Joyce é desabonado do inconsciente, ou seja, o inconsciente pode se soltar
do sintoma. Há uma disjunção do inconsciente e do gozo. Assim, o sinthoma vem abolir
o símbolo.
O sinthoma, portanto, é uma modalidade de atar os três registros da realidade psíquica:
Real, Simbólico e Imaginário. Ele opera como um quarto elemento que, junto com os
três anéis, se atam em um a quatro, que aperta um vazio central, o objeto a. Esse nó
pode falhar e pode ser reatado.
Na puberdade o falha e o adolescente deve então construir um sintoma, para enlaçar
os três registros. Nesse sentido, o sintoma corresponde a uma criação, uma invenção
particular que permite esse enodamento dos três registros da realidade psíquica.
O sintoma tem, portanto, duas vertentes. A primeira é a vertente significante, da
mensagem que pode ser decifrada e que se dirige ao outro, que remete à tese lacaniana
de que o inconsciente é estruturado como linguagem. A outra vertente é a da letra, fora
do significado, uma letra sozinha que é capaz de amarrar o próprio ser de gozo.
O sinthoma designa precisamente o que do sintoma é rebelde ao inconsciente, o que do
sintoma o representa o sujeito, o que do sintoma não se presta a nenhum efeito de
sentido, enfim, que evidenciaria uma revelação. o sintoma é aquilo que representa o
sujeito, ilustra a formação do inconsciente como linguagem, que tem efeito de sentido e
que faz laço social.
Vimos como o adolescente, ao buscar no outro a resposta para o enigma do desejo, se
histeriza. O sujeito neurótico se coloca numa posão para que o analista construa uma
linguagem oferecida ao deciframento. Nesse caso, o sujeito permite a suposição do
inconsciente. O neurótico faz a construção do romance familiar.
No caso da neurose, o sintoma quer dizer alguma coisa. Aqui se introduz a função de
sua crença. O sujeito acredita que existe sentido no real, ou seja, que o sintoma quer
dizer alguma coisa. É por isso que o adolescente busca escrever sobre si”, ele crê que
sentido no real.
326
O querer dizer do sintoma mostra, segundo Miller, o seu fundamento. O fundamento é
que desde a sua origem uma relação com a ngua. A língua para cada um, diz Lacan,
é algo que é recebido e não aprendido. A língua é uma paixão, é sofrida. Há um
encontro entre a língua e o corpo e deste encontro nascem marcas, que são marcas no
corpo. O que Lacan chama de sinthoma é a consistência destas marcas. Assim, ele reduz
o sinthoma a um acontecimento do corpo, algo que aconteceu ao corpo por causa da
língua. Esta referência ao corpo, enfim, é ineliminável do inconsciente. Identificamos as
duas vertentes do sintoma: uma que diz respeito à linguagem e a outra que diz respeito à
língua.
Na adolescência há a imposão de um trabalho subjetivo. No despertar pubertário o
encontro com o traumático, com o real do sexo, que faz desfacelar o corpo enquanto
consistência. “Este desarvoramento, este despedaçamento, esta discordância
fundamental, esta não-adaptação essencial, esta anarquia, que abrem todas as
possibilidades de deslocamento, ou seja, de erro, caracterizam a vida instintual do
homem(LACAN, 1992: 215). Diante do real, o que aparece é a dimensão rasgada do
desejo, a pluralização do sujeito, sua “espatifação”. Tal rasgamento se mostra pela
regressão pica do sonho, pela perda da unidade narcísica do Eu, acompanhada pela
imisção de sujeitos (1992). um desatar do que sustenta os três registros. O
adolescente pode, a partir da escrita, fazer uma amarração singular. O blog pode operar
como uma escrita que faz um enodamento entre os registros, como um sintoma.
Existe a versão do romance nos blogs. Essa versão do romance equivale à vertente
significante, da linguagem. Soler (1998b) destaca que um cenário, isto é, o imaginário,
pode ser a variável do sintoma. A autora faz uma diferenciação entre o romance e o
sintoma. Um romance se dedica ao significado, ao passo que o sintoma é real, fora do
significado (apesar dela usar aqui o nome sintoma, podemos dizer que essa vertente é a
do sinthoma). Mas ela mesma mostra o equívoco dessa afirmação, pois nada opõe uma
unidade de significado (como faz o romance) ao um do sinthoma. Assim, Soler postula
que o poeta torna clara a junção ou a costura na qual a audácia da letra engendra algo
novo no significado. Esta operação produz um gozo, mas esse gozo o é o puro gozo
da letra. Esse gozo emerge na junção em que o significado brota do literal, indo mais
além e então curto-circuitando a intenção do sujeito” (SOLER, 1998b: 19).
327
Soler faz, então, uma aproximação entre a letra e o significado, mostrando que as duas
vertentes do sintoma o se opõem, mas se avizinham. Existe no romance o gozo do
significado, ligado à ficção. Podemos pensar que, se o blog tem sua vertente de
romance, esse romance da própria vida escrito no ciberespaço relativiza ainda mais a
linha que separa o factual da ficção na escrita de si. O ciberespaço é o campo por
excelência da ficção. O blog é um romance em que a dimensão de ficção está muito
mais presente do que no diário íntimo. Se há no romance o gozo do significado, que está
ligado à ficção, o caráter ficcional do ciberespaço expande a dimensão imaginária do
blog, aproximando-o ainda mais do romance enquanto escrita ficcional.
Se, como foi visto, há na puberdade a irrupção de um gozo que escapa à ordem
significante e há a urgência em assumir uma definição sexual, o adolescente precisa
reconstruir suas vestiduras fálicas e, para tanto, ele se apoia em instâncias ideais de sua
relação com os seus semelhantes, ou seja, se apoia sobre o “eu ideal”. Ele utiliza-se do
Nome-do-Pai como dom simbólico do falo para dar uma nova forma ao real da
sexualidade.
A concepção de sinthoma relaciona-se com a invenção de um termo singular que fixa o
gozo. É importante destacar que a singularidade não é a mesma coisa que a
particularidade. Miller
12
explica que a singularidade é uma categoria lógica, mas que
também está nos limites da lógica. Esse singular ex-siste à semelhança, está fora do que
é comum. O que Lacan chamou de sinthoma é por excelência o conceito singular, que é
da ordem do incomparável, que requer o instante de ver. A orientação ao singular visa
ao próprio do sinthoma que exclui o sentido. É um gozo que não se deixa resolver na
significação fálica. A orientação para o singular o quer dizer que não se decifra o
inconsciente, mas que essa exploração encontra um limite, um obstáculo, que o
ciframento encontra o sem-sentido do gozo e que, ao lado do inconsciente, o singular
do sinthoma. O particular é da ordem do universal e está relacionado ao sintoma, como
vertente significante, que tem uma significação e que faz laço social.
12
MILLER, J.-A. “L‟orientation lacanienne. Choses de finesse en psychanalyse”. VI Cours du 17
décembre 2008. Texto não publicado.
328
O blog pode ser um sintoma no sentido de veículo de gozo, do gozo do significado, da
ficção. O cenário imaginário do ciberespaço é a variável do sintoma. O blog situa uma
transição do corpo infantil ao corpo adulto além de operar uma passagem do
privado ao público. O blog pode se constituir como um sintoma, construindo um
semblante para sustentar o real, que faz laço social. Nesse caso, podemos acompanhar
pela leitura de um blog uma construção da ordem do particular, que não exclui,
entretanto, o singular, enquanto vertente de gozo autístico. Ilustraremos o percurso de
um adolescente na escrita de um blog, mostrando o resultado desse percurso, ou seja, o
que a escrita “fez com esse sujeito”. Destacaremos nessa construção o que é da ordem
do particular de uma solução, que insere esse sujeito na ordem do universal. Trata-se,
portanto, da vertente do sintoma, como mensagem dirigida que faz laço social. Se
nesse caso algo da ordem de uma criação singular, enquanto vertente de gozo autístico,
o se pode afirmar. Só em análise é possível essa orientação em direção ao singular.
329
6.2.2. Voz do Solitário
VOZ DO SOLITÁRIO
E V I V A O E S C A ( L ) P I S M O!
http://vertigemvivente.blogspot.com/
Buscamos, com este blog, ilustrar um percurso de um adolescente na escrita, para tentar
identificar a possibilidade de um blog operar como um sintoma para um sujeito, diante
da irrupção do real na puberdade.
Gabriel escreve a Voz do solitário” durante três anos e cinco meses, dos 13 aos 16 anos,
de fevereiro de 2005 a maio de 2008. No início, sua escrita é muito pessoal e dirigida a
outros blogueiros: meninos e meninas do Brasil”. Na primeira página de seu blog,
encontra-se do lado esquerdo uma descrão do blog. Apesar de parecer literário,
veremos como é inicialmente um texto autobiográfico, como um diário. Ele coloca na
página principal do blog uma foto pessoal, com uma breve apresentação:
Sobre este blog
"Voz do Solitário". Não, não é um blog de poeta torturado sentindo pena de si mesmo;
eu odeio vitimização. É uma vitrine ensaio, onde eu coloco meus textos ruins para que
o mundo todo o veja, se quiserpuder. O título é de uma explicação do Octavio Paz
sobre o que é poesia. Entre muitas coisas, ele cita a poesia como a "Voz do Solitário", e
também coloca que a poesia não é a representação em versos. É isso, enfim, que eu
procuro fazer nesse blog: uma representação da poesia que todos nós podemos ter.
Sobre o autor
Pretensioso, prepotente, um tanto quanto arrogante e indiferente, um sorriso de louco
delinqüente e um ar solitário. Tão arrogante, prepotente e pretensioso, que tem uma
foto com sorriso de louco delinqüente aparentemente não-solitário. Não-poeta, escritor,
não-músico, açucarado ou lugar-comum, às vezes. Mas nem sempre.
Observamos, nesses dois trechos, uma escrita que joga com a ambiguidade da
linguagem, com a sua contradição. Ele brinca com as palavras, num exercício poético. É
a voz de um solitário que busca ser escutado por alguém. Ele se define pela negação:
“não-poeta”, “não-músico”, mas se afirma escritor.
330
Abaixo da apresentação, encontram-se links com os títulos de seus textos, que podem
ser acessados de acordo com o tema escolhido ou de acordo com a data de postagem,
além da indicação de outros blogs. Ele divide os temas de seus escritos em: blog, contos,
crônicas, diálogos, experimentais, microconto, pensata, pessoal, romance e textos de
que gosto”. Os textos também podem ser acessados por data de postagem. Nesse caso,
eles são organizados por ano de postagem: de 2005 a 2008. Em seu primeiro dia de
postagem, ele escreve:
Apresentação
Segunda-feira, 14 de Fevereiro de 2005
Aloha!
Olá, meninos e meninas do meu Brasil baromil! Pãtz, que lixo de apresentação. Ok, let´s start this over:
Meu nome é Gabriel, sou viciado em O Senhor dos Anéis e Legião Urbana. Na verdade, adoro ler,
assistir filmes e ouvir música. Gosto também de História, filosofia e política. Bem, já foi a apresentação.
Depois eu escrevo. Falou.
DATILOGRAFADO POR GABRIEL RIBEIRO ÀS 01:09 1 ADENDO(S)
Nesta primeira postagem Gabriel faz uma breve apresentação, bem informal,
descrevendo também o que mais gosta de fazer. Ele constrói uma “espécie” de
assinatura nesse universo virtual. Não sabemos se o nome Gabriel Ribeiro é um nick
name. um adendo depois dessa primeira postagem, o comentário de um leitor. A
mensagem postada pelo leitor foi:
Alguma/Destino disse... olaah...
Q apresentação mais mixuruca...
Se bem q me lembra: "Acho q não sie quem sou..só se ido q não gosto.."
Sei que vc num vai ler...
Não quer dizer q num deva escrever...
tehh..kissus e ciao
Domingo, 12 Novembro, 2005
A resposta do leitor, numa linguagem típica do ciberespaço, ilustra como os
adolescentes compartilham esses digos no espaço virtual. Mas o que nos interessa,
331
mais especificamente, nessa resposta da leitora Alguma/Destino, é a sua crítica à
apresentação de Gabriel. O autor de um blog, ao publicar suas ideias na rede, está
sujeito a elogios, incentivos, críticas e comentários de toda ordem. Lançar-se no espaço
público é arriscar-se a ser aceito ou não, a agradar ou desagradar. Algumas vezes
Gabriel responde a comentários de leitores, outras vezes não.
Em seus primeiros escritos, no mês de fevereiro de 2005, Gabriel indica e comenta
filmes e músicas, descreve suas atividades preferidas, escreve sobre a escola, sobre o
seu time de futebol e indica alguns blogs de sua preferência.
Domingo, 20 de Março de 2005
Agora sim, comentem!!
Bem, é o seguinte: depois de fuçar bastante no blogger, consegui "dar um jeitinho" de autorizar
comentários mesmo pra quem não é do blogger. Agora, vejam se comentam!!
DATILOGRAFADO POR GABRIEL RIBEIRO ÀS 23:39 1 ADENDO(S)
Nesse texto acima, Gabriel escreve que conseguiu autorizar comentários mesmo para
quem não é do blogger, abrindo possibilidades para mais pessoas deixarem comentários
em seu blog. Assim, verificamos o grande interesse do autor em se comunicar com o
maior número de pessoas possível. Ele busca leitores e comentadores para os seus
textos, é uma escrita dirigida aos leitores, endereçada a um outro.
O texto escrito em 29 de junho de 2005 é muito interessante, pois Gabriel escreve sobre
a importância da escrita” para ele:
Quarta-feira, 29 de Junho de 2005
Minha vocação é com papel e caneta
Escrever está virando uma necessidade para mim. Quero dizer, continuo escrevendo apenas inspirado;
nunca escrevo algo sen inspiração, a menos que valha algo. E volto ao que disse no início: estou me
sentindo forçado a escrever e, como não poderia deixar de ser, vejo tudo escrito nesse período com os
olhos mais críticos que existem.
Talvez seja porque esse é um talento que devo desenvolver; afinal, é o que de melhor faço, tenho de fazer
332
direito.
Ultimamente, só tenho cabeça para pensar numa certa japonesinha e na resposta que dela espero (para
ser positiva espero até o fim do mundo!). Ela está doente (mas melhorando) e o medo da perda assola
meu coração. Espero que nenhum de vocês passe pelo que passo agora...
Penso ser só isso... Precisava dizer, num sabem? Bem... Estou de férias! Viva! Vamos falar aí... Quem
quiser orkut deixa nos comentários... G-Mail também, tenho 50 convites...
Agora os agradecimentos... Mônica (ainda não sei se pode chmar de Momô^^), obrigado por ouvir esse
mala aqui, viu... É bom dizer tudo pra alguém! Aliás, tenho de agradecer à Bianca (uma nova amiga,
mas muito paciente), à Giu (menina, te adoro muuuuito! Você é dez!), ao Guilherme e ao Fernando por
me agüentar falando só sobre ela o tempo todo! Obrigado!
DATILOGRAFADO POR GABRIEL RIBEIRO ÀS 01:23 2 ADENDO(S)
Bianca disse...
oi Gabriel...!!!
Adorei seu blog...pena que ele naum esta falando de coisas muito felizes...pois o AMOR é triste!!!
( na minha opinião) Bom sinto muito por vc...sei que estar apaixonado não é facil...pq naum
temos cabeça para nada na VIDA...soh para a "pessoa", e sei que em muitas vezes acamos
esquecendo de viver...por causa dessas pessoas!!!!
Bom fikarei na torcida para que sua resposta..seja positiva!!!!^^
fiko aqui....adorei muito te conhecer....espero que a nossa amizade cresça a cada dia, ahhhhhhh
valew por ter citado o meu nome....BIANCA emocionei!!!^^
bjinhusssss...da sua nova amiga...Bianca
Terça-feira, 28 Junho, 2005
Lia disse...
Oi Gabriel, ñ te conheço, mas li seus textos na usina das palavras e achei mto bons,votei em
"Precisamos de você".Parabéns!Sou leiga no assunto, mas deu pra perceber q vc tem um grande
futuro!
bjos
Quinta-feira, 25 Agosto, 2005
Nesse texto acima, Gabriel afirma que escrever “está virando” uma necessidade, que se
sente forçado a escrever. Ele já escreve o blog há cinco meses. Sua escrita é inspirada
pelo amor. Gabriel recebe dois comentários, de Bianca e de Lia, que não conhecem
Gabriel pessoalmente. Gabriel começa a incluir em seus textos os comentários dos
leitores. Gabriel começa a publicar em um site literário. Ele escreve sobre o seu desejo
333
de ser um escritor”. Escritor” é um significante que causa o seu discurso, orientando a
série na busca de um sentido para a sua vida.
Gabriel fica sem escrever durante dois meses. Volta a escrever em agosto, quando busca
colocar os assuntos em dia:
Sexta-feira, 26 de Agosto de 2005
Vamos deixar as janelas abertas...
Há quanto tempo! Desde 28 de junho... Nossa, tanta coisa mudou durante esses dois meses! Pra
começar, sei que tem gente que vai perguntar e ainda não sabe: a resposta foi não! Mas isso nem me
incomoda mais... Agora estou mesmo tocando a vida, e não posso me ver tentando conseguir um sim...
Descobri novas pessoas, e uma me é tão querida apesar do pouco tempo de amizade que gostaria de
agradecer... Não sei se você tá lendo isso, Talita, mas é pra você o recado! O que mais dizer.. Ah, sim...
Conheci gente no orkut, mas lá minhas amizades que floresceram se resumem à Mônica (a propósito,
Mônica, sinto muito não estar respondendo, mas meu GMail anda com uns problemas básicos, então não
me leve a mal... Vou tentar postar mais aqui para compensar!)... Em compensação, no Fórum Jedicenter
(que anda com mais problemas no server que meu e-mail) conheci a Gabriella... E você é muito legal,
viu, mocinha? Adoro seu blog (o endereço é http://www.indie-gente.weblogger.terra.com.br/ , para quem
se interessar...)... Tô dando uma olhada lá freqüentemente (agora um recado pra quem tem e tá lendo
isso: é só comentar esse post com o endereço que eu vejo, ok?), e tá sendo uma boa leitura!
Por falar em blogs... Me dá muita raiva povinho que nunca fala comigo e do nada aparece no meu MSN:
"Comenta lá no meu blog plx?"... Vá ser folgado assim longe, ok?
Tô irritado mesmo. Na Educação Física o professor me pôs no pior time de basquete, o outro time
roubou, e hoje teve vôlei (quem me conhece sabe que eu amo vôlei, tanto quanto basquete), quando eu
recebia bola era deslocada ou adiantada... Tava fod*!
Agora, eu tô pensando em botar um template novo... Tipo Version 2.0... Que acham?
Sabem o que eu comecei a ouvir? Pop Asiático (também chamado de APop)... E é bom, viu? A maioria é
BoA (minha favorita), mas eu tô procurando mais... Kiss, alguém?
Por falar em Kiss (esse é o coreano, não o americano)... O clipe de Because I'm a Girl é muito bonito...
Assistam!
Como eu tô proibido até o final do mês de ver filme, não tem nenhum para eu comentar... Exceto O
Quarteto Fantástico, que vi nas férias e que é dez! O jogo online sobre o filme é melhor ainda!
Por falar em jogo online, tenho jogado Meteorus (www.meteorus.com.br)... É ótimo! Tô em 7.200 alguma
coisa... Nada mal para dois dias...
Eu não sei o que tá havendo, mas eu tô me afastando dos "amigos"... Quem sabe o que é? Só sei que
nada sei... Mas ainda tenho alguns bons^^
E sobre garotas... Bem, eu acho que gosto de uma... Mas como ela pode estar lendo... Não conto! Mas
vou dar uma dica... Já citei aqui... Nesse post...
E o post está gigante, hein! Mas é pra vocês entenderem tudo...
E já que falei em entender, não estou entendendo nada de Matemática! Pela primeira vez na vida! Quer
dizer, até entendo, mas regra que tem que decorar, nada! melhor em geometria que álgebra! Can you
possible imagine it??
Chega por esse post... Mas admitam, foi uma volta triunfal!
Até mais! ^-^
Ouvindo: Lady Madonna - Beatles
DATILOGRAFADO POR GABRIEL RIBEIRO ÀS 19:54 0 ADENDO(S)
Gabriel “circula” com grande familiaridade pelo ambiente virtual, fazendo muitos
amigos na rede. Mas ele escreve também sobre a sua vida fora do universo virtual.
334
Comenta que está proibido até o final do mês de ver filme. Aqui aparece uma referência
indireta aos pais, que surgem na sua função de interdição. E comenta que esgostando
de uma garota, mas o revela quem é. Sua escrita comporta a dualidade
público/privado, é lançada ao olhar do Outro, mas também vela, provoca e incita,
convidando a seu desvelamento. Gabriel se oferece e se furta ao olhar do outro,
construindo uma solução histérica ao encontro com o feminino.
Gabriel escreve com grande frequência, mas não diariamente. Ele fica sem escrever de
outubro de 2005 a janeiro de 2006, quando retoma os seus escritos no blog:
Quarta-feira, 18 de Janeiro de 2006
Here I go, is my shoot!
Faz tempo que não escrevo essas mal-traçadas linhas de amor...
Nunca fui de bater ponto, então não se surpreendam por eu ter evitado esse blo por tanto tempo. Não que
faltasse assunto, não mesmo. Faltou é vontade de expressá-lo.
O último post data de 27 de outubro. Na verdade, esse texto eu escrevi nesse dia, mas só o publiquei
mesmo hoje. Ou seja, eu não dou notícias minhas desde o dia 21 de setembro.
E muita coisa mudou desde então.
Aconteceu tanta coisa que eu vou colocar na ordem.
Pra começo de conversa, passei de ano. Fiz uma monografia bonitinha-lixo e um jornal meia-boca e
consegui empurrar mais um ano. Sem estudar quase nada. Fazer o que? Sempre fui um péssimo aluno no
que se refere a estudo retardado, daqueles decoreba. Felizmente, em nota não.
Depois, como eu merecia por ter passado, viagem de formatura! A melhor viagem que já fiz... Foi nela
que uma pessoa que já há bastante tempo me impressionava aceitou meu pedido... Sim, eu comecei a
namorar de novo! E, sim, EU TE AMO MUITO, LI!! A cada dia que passa mais eu me apaixono...
Teve meu aniversário... 14 aninhos =)
Tive alergia u.u'... Foi um saco >.<
Mas muitas notícias foram boas! Passei na CEFET (Federal) e na CEETEPS (Aprígio)! Agora vou fazer
Ensino Médio na Federal... Ahá!
Tenho medo de trote... Mas tô tranqüilo, tava mesmo pensando em raspar o cabelo careca...
Falando em radicalizar, eu tô querendo por um piercing na orelha... Mas quem diz que pai e mãe deixam?
Não tenho escrito muito; por outro lado, eu e meu amigo Caio (totalmente pirado) estamos com idéias
políticas. Por enquanto, somos nós dois apenas no 'partido'. Ele é a 'ala radical' e eu a 'ala moderada'.
Minhas idéias, eu tenho certeza, são muito mais viáveis, ainda que as mudanças que proponha sejam
menos imprescindíveis. Com alguns adeptos no poder, é fácil de se resolver legalmente. O problema da
política do Brasil não está no modelo econômico, na política externa, não é nada disso. Apenas a
corrupção e a burocracia acabam com nossas chances. Temos que nos mobilizar.
Ainda no assunto política, na Veja dessa semana tem uma entrevista com um economista. Ele fala sobre
o as mudanças necessárias. Como eu gostaria que o governo tivesse o bom-senso de tomar a atitude
renovadora... É por isso que estou com plenas intenções de entrar na política. Temos que fazer a
diferença enquanto ainda podemos.
Estou interessado em trabalhar! Sim, eu preciso, ou vou ficar louco. Não é pelo dinheiro, é pela
ocupação. Se alguém tiver interesse em um jornalista-escritor para seu site ou revista... Estou disponível.
Meus textos estão online! Muitos no site www.usinadaspalavras.com ! Estou começando a escrever
resenhas de CD's para o site www.revolvermusic.com.br , também. E quero mais trabalho!
Acho que escrevi um bocado, huh? Se alguém sentiu falta de alguma coisa, me avisa...
Fiquem na pax!
Ouvindo: I Can't Stop Lovin' You
335
Ele se justifica pela ausência e descreve o que lhe aconteceu durante esse tempo, como
em um diário íntimo. Dentre outras coisas, ele fala do desejo de colocar piercing na
orelha, mas que os pais não deixam. Podemos observar que os pais de Gabriel quase não
aparecem em seus textos, e, quando surgem, é sempre na função de interdição. Ora, o
desligamento dos pais” é o que permite a Gabriel se lançar no espaço público, correr
riscos, viver o amor. Isso não seria o resultado de uma operação bem-sucedida de
interdão paterna?
Acompanhamos as possibilidades que o universo virtual abre para Gabriel e como ele se
lança nesse espaço público. Ele passa a publicar seus escritos e consegue trabalho
fazendo resenhas de CDs. Em março de 2006, volta a falar do amor:
Domingo, 5 de Março de 2006
Eu sou rapaz direito, fui escolhido pela menina mais bonita...
Yeah, Urbana Legio Omnia Vincit, huh?
Ahá! Ontem fui na Liberdade... Sozinho, você pergunta? No way! Quem foi comigo? ...
Hum...
Yeah =D... Finalmente conseguimos sair, né Tata?^^
Foi, com certeza, o melhor passeio do ano! E, por enquanto, do século! huahuauhauhauh... Acho que por
causa da companhia, né?^^
Hey! Uma semana para o dia da Integração!! Federal, afinal! =D
Hoje pulei feito um bobo huauhahuahua... Tô tão feliz... Agora o que pega é só a saudade mesmo^^...
Mas um dia eu dou uma escapada pra ir até aí, viu... Kyu, kyu! xD
Hahaha, fico por aqui mesmo =)
Que o dia de vocês seja tão iluminado de alegria quanto o meu!
Buh-bye!
Ouvindo: Legião Urbana - Aloha
DATILOGRAFADO POR GABRIEL RIBEIRO
1 comentário - Mostrar postagem original
TaTa =] disse...
hayoow²
hiuahaiuaa!! UiA!
pensei~ será ke o bakazildo posto?
hiauhiua! acertei =]
la la la ^^ sim sim.
336
finalmenti a gnti saiu XD
sodades di vC tbm tiO. ObA ^^ vem pah kah sim ~;]
kyu kyu! iUAHIuahIUAHAiau =]
bjO² ;*
la la la! kyu³ ^^
Domingo, 05 Março, 2006
Uma observação que pode ser feita nesse trecho é que, apesar de Gabriel dominar a
linguagem do ciberespaço, a sua escrita aproxima-se mais da linguagem “formal”. Ele
também tem alguns interesses diferentes da maioria dos adolescentes de sua época,
como gostar muito de ler e ser “romântico”, como ele mesmo se define. Mas também
compartilha de vários interesses dos jovens de sua geração.
O texto escrito em abril de 2006 é particularmente interessante, pois Gabriel faz uma
retrospectiva de sua vida”, construindo o seu romance familiar:
Segunda-feira, 10 de Abril de 2006
I would say I'm sorry if I thought that it'll change your mind...
O engraçado é que eu nunca tinha pensado em escrever. Nunca me achei uma pessoa de letras, por assim
dizer. Todos diziam que eu era. Sim, eu era uma traça-de-livros, e daí?
Mas mesmo sendo um leitor, eu não sabia que só servia pra isso. Eu era bom em Matemática.
Aí, é claro, veio a minha sexta série. Sim, a sexta. 2003. Amigos. Diversão. Amor.
Parece estranho, eu sei. Eu tinha 11 anos, o que podia saber de amor? Pois é. Até que eu soube.
Eu simplesmente não me interessei por mais nada depois disso. Tudo pareceu sem sentido, e eu,
inexperiente completo nos terrenos da paixão, só encontrei uma forma de me expressar: versos.
Foi quando eu comecei a escrever. Bem, é claro que eu era péssimo. Não só pra escrever bonito, mas
para expressar sentimentos. Esse tipo de coisa não se ensina na escola, e não é bem considerado coisa de
garoto. Portanto, ninguém se preocupou em me ajudar.
Sim, eu era péssimo, já disse. Mas é interessante. Após dois anos escrevendo, eu aprendi alguma coisa.
Aprendi que não podia escrever apenas sobre meu amor. Os textos não eram apenas cartas, eu fiz deles
um diário informal. Meus medos estavam lá. Minha raiva. Fiz dos textos minha válvula de escape das
minhas emoções indomáveis.
Por exemplo agora.
Ao som de: The Beatles - Back in the USSR
DATILOGRAFADO POR GABRIEL RIBEIRO ÀS 19:49 0 ADENDO(S)
337
Ele localiza o interesse pela escrita no despertar da puberdade, com o surgimento da
primeira paixão. Segundo Gabriel, a escrita foi a única forma que ele encontrou de
expressar o seu amor. Ele passou a fazer dos textos sua “válvula de escape das emoções
indomáveis”. Aqui Gabriel revela a função da escrita para ele nesse tempo da
adolescência: tentar domar o gozo indomável que o invade.
Lacan (1985 [1972-73]), em Mais, ainda, define a escrita como o que vem a se tramar
como efeito da erosão da linguagem. Gabriel, nesse tempo lógico do confronto com a
erosão da linguagem”, tece, pela via da escrita, um trabalho de “suplência” a essa
fissura. Segundo Lacan, o que vem em suplência à relação sexual é precisamente o
amor(1985 [1972-73]: 62). Diante do encontro com o real do sexo, a escrita parece
operar no amor como suplência.
O texto abaixo comprova a importância da identificação na adolescência:
Quarta-feira, 12 de Abril de 2006
Eu sou emo.
Sim, meus caros. Eu sei que isso causará: 1- Vontade de me matar e 2- Tentativa de fingir que não me
conhecem.
Oh, bem.
Vejamos, que prejuízo declarar isso me trará?
Eu acho que emo é uma pessoa com capacidade de expressar suas emoções, que são irrefreáveis. É uma
pessoa sem limites no que diz respeito a sentimentos. É uma pessoa com amor infinito, não um bebê
chorão. Infelizmente, o mundo parece que se esquece ou nunca viu desse jeito.
Bem, eu não me importo com isso. Eu gostaria, sim, de conseguir viver sozinho, de não precisar de
amigos ou de amor. Não posso. Ser emo não é uma escolha, é a única opção.
Ahhh.
DATILOGRAFADO POR GABRIEL RIBEIRO ÀS 23:08 9 ADENDO(S)
O encontro com o indizível neste tempo do despertar leva o jovem a buscar em um
grupo uma “identificação imaginária”. O “eu” recobre-se numa imagem para velar a
falha simbólica. Assim, Gabriel se identifica com o emo”, que ele descreve como uma
pessoa com capacidade de expressar suas emoções “irrefreáveis”, uma pessoa sem
338
limites no que diz respeito a sentimentos e que precisa muito de amigos e de amor. O
amor é o tema preferido dos seus escritos; como sublinha Lacan (1985, p.94), o amor
cortês é uma maneira inteiramente refinada de suprir a ausência da relação sexual, uma
maneira de sair com elegância desse impasse.
Terça-feira, 18 de Abril de 2006
Hold me, love me...
Esse é o 50º post desse blog.
Por isso eu quero desabafar, dizer o que é que está me corroendo. Há tempos.
Havia um tempo em que eu experimentei um sentimento maravilhoso. Algo parecido com amor, eu tenho
certeza.
Sim, ela ainda é especial. Sim, eu só fiquei um dia com ela. E sim, foi o melhor dia da minha vida.
Caramba. Ela é linda, perfeita até nas imperfeições, inteligente, bem-humorada, japonesa. Tudo bem,
não tem problema, eu até posso entender.
Mas ela TINHA de beijar tão bem?
Droga, eu acho que gosto mesmo dela, e acho que ela não está com a mínima saudade de mim ^^'.
Ahhh, bem.
"I can't believe... That it's happenning to me..."
Ele parece desenvolver suas paixões no campo das fantasias, sempre como
impossibilidades, destinadas ao fracasso, o que é próprio do tempo da puberdade. Os
escritos de Gabriel são autobiográficos. Ele descreve os acontecimentos de sua vida,
suas atividades, pensamentos, preferências, seus amores, suas decepções amorosas,
construindo o seu romance familiar.
Mas, de repente o seu texto sofre uma alteração na forma da narrativa. Essa mudança
aparece nas quebras na previsibiidade de sequências, no surgimento de elementos
dissonantes à estrutura da narrativa, na mudança temática, na intensa angústia, nas letras
em maiúsculo que expressam gritos, ou seja, cortes que apontam no desenrolar do texto
para a falência da linguagem e que são indicadores da presença do vazio do significante,
do real:
339
Terça-feira, 23 de Maio de 2006
You got another thing comin'!
Eu quero que se dane. Mesmo.
Lutar?? Protestar?? Corrupção??
FODA-SE!
Egoísmo? Pode ser.
EU NÃO TÔ COM SACO PRA FAZER ISSO!! Não quero mais saber!
Estou torturado e dilacerado por dentro. Estou morrendo de amores!
E sem esperanças.
Se eu não posso mudar a mim mesmo, posso tentar mudar o mundo?
Eu quero parar de sofrer!
Eu quero deixar essa carcaça e voltar a ser uma pessoa!
Todos estão se mexendo, exceto eu!
E FODA-SE se meu blog está egocêntrico, sem produções literárias.
O fato é que eu estou muito mal. Não é hora de escrever o que devo.
AARGH!
DATILOGRAFADO POR GABRIEL RIBEIRO ÀS 18:57 4 ADENDO(S)
Ele fica um mês sem escrever. Quando retoma, seu texto revela uma escrita que é
inteiramente tomada pela angústia:
Segunda-feira, 26 de Junho de 2006
.Arrogância e prepotência.
Até perdi o ânimo de escrever cá por essas paragens.
Aliás, por quaisquer campos. E sítios.
As pessoas do meu convívio já não parecem me oferecer nada.
Eu continuo a viver por pura inércia. E um baque precisa acontecer.
E acontecerá.
Enquanto isso, eu vou vivendo. Tentando fugir da minha sina de jovem-adulto e me desiludir com as
pessoas aos 15 anos.
Ainda bem que tenho só 14.
DATILOGRAFADO POR GABRIEL RIBEIRO ÀS 22:41 3 ADENDO(S)
340
Mas ele insiste em escrever. Busca o amor como semblante” diante do encontro com o
lugar da estrutura que aponta para o indizível. Lacan (1985) comenta, no Seminário 20,
Mais, ainda, que não há relação sexual porque o gozo do Outro, tomado como corpo, é
sempre inadequado, tanto perverso, no que o Outro se reduz ao objeto a, quanto louco,
enigmático. Ele ressalta que é do defrontamento com essa impossibilidade de onde se
define um real, que o amor é posto à prova: Do parceiro, o amor só pode realizar o que
chamei, por uma espécie de poesia, para me fazer entender, a coragem, em vista desse
destino fatal(1985, p.197). Lacan define a relação sexual como aquilo que não para de
não se escrever. uma impossibilidade de se escrever a relação sexual. Mas Lacan
define a continncia como para de não se escrever. Diante da impossibilidade, o
outra coisa senão “o encontro, o encontro, no parceiro, dos sintomas, dos afetos, de tudo
que em cada um marca o tro do seu exílio, o como sujeito, mas como falante, do
seu exílio da relação sexual” (LACAN, 1985: 198). Nesses encontros, por um instante,
tem-se a ilusão de que a relação sexual para de não se escrever.
Quarta-feira, 19 de Julho de 2006
Amor Falso
É, eu nunca amei de verdade. Amor é sempre pra sempre, e o pra sempre nunca acaba.
Sabe o que eu acho que falta? É um tantinho assim... Pouco mesmo.
Um pouco de reciprocidade viria bem a calhar.
Aliás, só preciso de amor.
Amor.
Amor pra sempre.
Amor por uns dias a mais do que um ano.
Ah, amor.
Eu quero alguém pra chamar de 'querida'... É pedir demais?
Eu só preciso disso. Meus impulsos nunca falharam; eu não tomo decisões repentinas sem nexo. Acredite
em mim, dará certo.
Confie em mim, me dê a mão e vamos juntos...
DATILOGRAFADO POR GABRIEL RIBEIRO ÀS 04:52 1 ADENDO(S)
341
Gabriel reclama da falta de reciprocidade no amor, dos seus desencontros amorosos, da
ausência de uma complementaridade entre os sexos. Mas ele também escreve sobre
amizades:
Sexta-feira, 18 de Agosto de 2006
Procura-se:
Uma amizade.
De verdade (ou não).
Amigo pra conversar, jogar conversa fora. Ou para desabafar e pedir ajuda e ajudar. Ou ambos.
Amigo para discutir, mas para concordar. Para todas as horas, para a hora do almoço.
Para voltar junto no metrô, para sair para a rua. Para ver o pôr do sol da estação, com o vento batendo
no rosto, dividindo um refrigerante.
Amigo para rir, para brigar feio. Para apresentar amigas, para disputar uma garota.
Para errar feio e cair na quadra. Pra ouvir Legião no máximo em um fone e Nirvana no outro.
Para deixar saudades.
Adeus, Paulo.
Adeus, amigo.
DATILOGRAFADO POR GABRIEL RIBEIRO ÀS 21:15 3 ADENDO(S)
O blog é um texto endereçado aos leitores virtuais. Ele busca fazer novos amigos e
corresponder-se com eles através do blog. Mas também escreve para amigos que
conhece fora do universo virtual. No texto acima, parece que Gabriel sofreu uma
desilusão com um amigo e se despede dele. Ao escrever sobre o amigo ideal, Gabriel
mostra o desejo de uma complementaridade também no campo das amizades.
Em novembro de 2006, escreve sobre uma mudança que observa em si mesmo:
Segunda-feira, 6 de Novembro de 2006
Eu (não) sei.
É tão estranho.
Estou feliz, dá pra entender?
Mas parece que fiquei mais frio. Há menos de, o que, dois meses, eu estaria me comportando à altura
342
desse sentimento. Estaria transpirando alegria, verdadeiramente curtindo a emoção. Mas, ao invés
disso...
...estou aqui. Qual é? Que diabo de contenção é essa? Nem eu mesmo entendo. Eu quero, eu preciso ser
eu mesmo. Porque eu mesmo estaria, a essa altura, perdido em seus pensamentos e sentimentos, porque
estou encantado...
...e graças a mim tenho esse blog pra descarregar temores e culpas.
E pra contar uma coisa boa, pelo menos. Sabe o que se procura?...
...Achei.
No texto acima, ele comenta que está feliz, mas, diferente das outras vezes, diz que
parece estar “mais frio”. Parece que a sua escrita possibilitou certa contenção do gozo.
Ele diz que está encantado, pois achou o que procura. Ele escreve que o blog serve
como meio de “descarga de temores e culpas” e também para contar boas notícias aos
leitores. Mas, fundamentalmente, a escrita no blog permite a construção de um
semblante, que ordena o caos promovido pela irrupção do gozo na puberdade.
Levantamos a hipótese de que, a partir da quebra evidenciada no texto do Gabriel, que
denuncia o encontro com o real, ele se apoia no amor como suplência para se reerguer.
O texto escrito em dezembro de 2006 é bastante interessante:
Sábado, 2 de Dezembro de 2006
One Thing Leads To Another
Não confundam aplicabilidade com alegoria. A primeira é a liberdade do leitor interpretar o texto como
quiser, enquanto a segunda é a dominação proposital do autor.
Sinto muito dizer que esse texto não é alegórico, mas faz alusão a fatos (dolorosos) recentes. É, acho que
a Renata amaldiçoou mesmo isso tudo aqui.
sei que tô com esses pensamentos na cabeça, e precisava exagerá-los um pouco e colocá-los num texto,
porque hoje fiquei bravo por ter de voltar de metrô.
E por uma outra porção de coisas.
Enfim, estou irritadiço, explosivo, chato e bobo.
É, definitivamente, só você me agüenta. E eu não agüento ninguém, só você. Eu prefiro acreditar que
amar é isso, ao invés de ser sofrer durante quase um ano em silêncio (e às vezes nem tão em silêncio
assim).
Ah, eu sinto muito se não sou sincero o tempo todo. Mas algumas coisas me são tão tristes que doem de
343
compartilhar.
Eu acho que isso passa.
As coisas boas e ruins, né?
(seria muita sacanagem passarem as boas)
[e só tem uma coisa boa me mantendo, por enquanto]
DATILOGRAFADO POR GABRIEL RIBEIRO ÀS 02:05 3 ADENDO(S)
O texto acima faz o jogo do revela e esconde, revelando alguns fatos, sentimentos e
nomes e escondendo outros. Quando escreve: “só você me aguenta” “e eu não aguento
ninguém, você”, não sabemos se ele se refere a uma pessoa ou ao blog. Ele se
desculpa por não ser sincero o tempo todo (no blog), mas afirma que “algumas coisas
me são tão tristes que doem compartilhar”. Acompanhamos em seu texto como em
alguns momentos ele escreve para “si mesmo”, em outros momentos escreve para
algumas pessoas” que dominam os seus códigos e às vezes escreve para “qualquer um”.
Assim, vemos como um blog pode ser, ao mesmo tempo, público e privado. Como
sublinha Lacan em O despertar da primavera, fazer amor, para os jovens, exige um véu
entre o público e o privado. O pudor designa o privado. Mas, se por uma levantada do
véu o “púbis” pode passar ao público, é somente com a condição de que o véu levantado
o mostre nada (LACAN, 2003 [1974]: 558).
Em fevereiro de 2007 Gabriel comenta que escreve: “para espantar a solidão”:
Domingo, 25 de Fevereiro de 2007
Sentimental
Escrevo para espantar a solidão e os pensamentos frios que ela me traz, nessa tarde quente de verão.
me sinto acompanhado quando encosto o lápis no papel e lhe conto alguma coisa. Ser escritor é gostar
de mentir, contar algumas histórias fantasiosas, quer pareçam críveis ou não. E, ao mesmo tempo, contar
algumas verdades.
Já não lembro direito como é se sentir feliz com alguém. Parece que a espécia humana não me serve, e é
algo como isso mesmo - mas o mais provável é que eu não sirva.
As pessoas são tanto melhores pra mim quanto menos conhecidas. O mundo traz mistérios que essas
pessoas revelam. E quanto mais conheço o mundo e as pessoas, menos faço questão de conhecê-las.
Gostaria, às vezes, de um sinal que mostrasse o caminho certo, e se é esse que estou seguindo.
Mas acho que isso estragaria a surpresa.
------------
Se isso consola, eu tinha um texto mais sentimental que esse pra postar.
344
Isso é metalinguagem - suponho. Escritor escrevendo sobre escritor; era isso, não?
Pois é, esse texto é fictício.
Mas tudo que eu escrevo também é um pouco autobiográfico.
DATILOGRAFADO POR GABRIEL RIBEIRO ÀS 15:17 6 ADENDO(S)
O papel é um outro a quem Gabriel se dirige “para contar alguma coisa”. Ele se diz
escritor” e, portanto, gosta de mentir, contar histórias fantasiosas, mas, ao mesmo
tempo, contar algumas verdades. Assim, revela a ambiguidade de seu texto, que é ao
mesmo tempo ficcional e autobiográfico, como conclui.
O desencanto com as pessoas marca a sua escrita no texto abaixo:
Segunda-feira, 12 de Fevereiro de 2007
Minhas Férias
As minhas férias foram boas, mas eu gostei de voltar à escola.
Bem, não gostei tanto. Mas isso não faz diferença, porque eu só tive um dia de aula, e nem ao menos teve
aula.
Nas férias, foi a maior confusão. Aconteceu uma porção de coisa, algumas chatas e outras legais. Como
sempre.
Saí um pouco e exercitei o lado cultural, em museus, Paulista e cinema. E livros, bastante.
Ainda assim, percebi que não conheço quase nada do mundo, da vida e de todo o resto! E isso me deixa
um pouco frustrado: achei que tivesse crescido e amadurecido tanto, que é desagradável acordar tão
rápido e ver que era só ilusão.
Esse ano, caí numa sala nova e, ao mesmo tempo, conhecida. A maioria das pessoas legais do segundo
ano estudarão comigo. O problema é que eu não estou muito relacionável, está faltando alguma coisa,
que eu sei bem o que é.
Sinto falta de alguém comigo.
E sei onde ela está.
Gabriel Ribeiro, nº 16, T200.
DATILOGRAFADO POR GABRIEL RIBEIRO ÀS 17:41 3 ADENDO(S)
Nesse texto, ele revela uma descoberta que acaba de fazer: descobriu que “não conhece
quase nada do mundo, da vida e de todo o resto e que essa descoberta o deixou
frustrado, pois achou que tivesse crescido e amadurecido e viu que era ilusão. Assim,
Gabriel se depara com a “ausência de saber” que poderia recobrir a falha da estrutura.
Essa falha simbólica, ou, como destaca Lacan em Lituraterra (2003 [1971]), esse
rompimento do semblante, aponta para o real enquanto resto de gozo: O que se evoca
de gozo ao se romper um semblante, é isso que no real se apresenta como ravinamento
345
das águas” (p.22). Para Lacan, “a escrita é esse próprio ravinamento (p.24). O vazio
escavado pela escritura é o que de mais distinto do semblante, e esse vazio é o que dá
acolhida ao gozo, como observa Lacan. Esse despertar do gozo impulsiona o sujeito à
construção de um novo semblante, num processo contínuo.
Vemos como Gabriel insiste em escrever, apesar do vazio que emerge na ruptura do véu.
Acompanhamos uma mudança nos textos. Muitos deles passam a ser escritos na terceira
pessoa:
Sexta-feira, 1 de Junho de 2007
Amou daquela vez como se fosse a última.
Atravessou a rua num passo tímido.
Como se fosse acontecer alguma coisa.
Não aconteceu.
Acho que ele ficou até que meio decepcionado.
Não sei.
Não podia se soltar na vida, então se soltou no tempo.
E no espaço.
Detestava aqueles pássaros.
"Vejam, pássaros, se eu não vôo é porque sou melhor".
E era, mesmo.
Muito melhor que eu.
Melhor que você, eu não sei.
Mas se me sinto culpado, e sem dúvida sinto, é porque era melhor do que eu.
E vai fazer mais falta.
Eu gostava dele, de verdade.
Mas ele foi pra estrada sozinho.
------------------------------------
Desculpem, mas sem espaço para comentários dessa vez.
Adeus, não. Até logo mais.
DATILOGRAFADO POR GABRIEL RIBEIRO ÀS 22:35
Os textos passam a ser menos pessoais e mais literários. Como comenta Barthes (2004),
a função do “ele” romanesco pode ser a de exprimir uma experiência existencial. O
homem-autor conquista pouco a pouco o direito à terceira pessoa, à medida que a
existência se torna destino, e o solilóquio, Romance” (2004, p.33). Segundo o autor, o
aparecimento do “ele” é o termo de um esforço que pôde extrair de um mundo pessoal
uma forma pura, significativa, mas também desvanecida, graças ao caráter tênue da
346
terceira pessoa. A invasão da terceira pessoa é uma conquista progressiva que se conduz
contra a sombra do eu”. Assim, o romance, “identificado por seus signos mais formais,
é um ato de sociabilidade; ele institui a Literatura” (p.33). Barthes destaca, portanto, que
o romance é uma morte, pois “ele faz da vida um destino, da lembrança um ato útil, e da
duração um tempo dirigido e significativo” (p.35). A morte do “eu” faz nascer o “ele”,
desta forma o romance é ao mesmo tempo destrutivo e criador. Podemos dizer que os
textos de Gabriel estão localizados entre o eu” e o ele”, num percurso que pode levá-
lo à criação de uma obra e de um estilo.
No texto acima, Gabriel o deixa espaço para comentários. Ele está angustiado e
escreve para si mesmo. Escreve sobre “um outro” que não podia se soltar na vida e
então se soltou no tempo e no espaço, um outro “melhor que eu”, que partiu, “foi para a
estrada sozinho”. Gabriel fala da perda, de sua divisão subjetiva. Não poderia se referir
também ao ciberespaço? Se ele não pode se soltar na vida, ele pode se soltar no tempo e
no espaço... O ciberespaço não é exatamente esse “não-lugar” que oferece ao sujeito
adolescente, que ainda não tem a independência necessária para se soltar na vida, a
chance de se soltar no tempo e no espaço? Mas, fundamentalmente, não teria a escrita
essa função separadora, libertadora?
A busca pelo “íntimo” leva-o ao encontro com o êxtimo. Vimos como a constituição do
sujeito no campo do Outro produz sempre perda, restos não articulados na cadeia
significante, que Lacan nomeia como objetos a. Efeito da linguagem, o objeto a é parte
integrante da fantasia, através da qual o sujeito “apreende a realidade”. Lacan (2008
[1968-69]) localiza o objeto a no lugar do êxtimo, conjugando o íntimo com a
exterioridade radical. Na relação instaurada pela instituição do sujeito como efeito do
significante, o objeto a é o efeito dessa operação, determinando no campo do Outro uma
estrutura de borda. O objeto a, no lugar de êxtimo, é esse estranho/familiar que, como
objeto agalmático, fascina e incita, mas também causa estranhamento e horror. É por
meio do objeto que o sujeito tenta apreender o seu ser, inatingível. Recoberto pelo
semblante, esse íntimo/exterior revela, ao ser descoberto, o vazio. No texto abaixo
Gabriel faz uma despedida amorosa:
347
Despedida amorosa
Quarta-feira, 8 de Agosto de 2007
Adeus, adeus
Oi. Eu queria
dizer tudo que estou sentindo por você, pensando de você. Queria abrir meu peito e não precisar falar,
queria que isso tudo saísse de mim como um veneno por uma ferida, já não agüento mais
ser só seu amigo. Que você pudesse falar comigo de qualquer coisa, sem nos deixar constrangidos. A
única coisa que importa pra mim é
que te amo mais do que qualquer pessoa. Mais do que qualquer pessoa possa ter amado alguma outra,
mais do que o eu amo a mim mesmo. E é estranho eu pensar isso, porque jamais falarei disso pra
ninguém; mal o admito a mim mesmo. Talvez por eu ter sido tão estúpido e egocêntrico, sempre.
espero
que você esteja bem. Agora e sempre. Vê se se cuida. Não acho que você vá pegar essa mensagem a
tempo, mas saiba que pensei em você até meu último instante.
Adeus.
----------
Por algum motivo qualquer, esse texto não parece melancólico demais pra mim. Mas que ele não
merecia estar aqui, isso é verdade.
DATILOGRAFADO POR GABRIEL RIBEIRO ÀS 21:35 1 ADENDO(S)
1 comentário - Mostrar postagem original
Rena disse...
ai ai ai
que melancólico.
xD
Sábado, 11 Agosto, 2007
A impossibilidade de uma relação simétrica com o outro faz com que todo encontro seja
um desencontro, que remete o sujeito ao desamparo fundamental e à não-completude,
inerente a todos os sujeitos. Assim, Gabriel faz uma despedida amorosa”. Ele faz uma
declaração de amor à amada, sabendo da impossibilidade desse amor. O
reconhecimento da impossibilidade não mais o destrói. O texto nem “lhe parece”
melancólico demais. Essa perda não o paralisa, mas o impulsiona a escrever. A saída
348
para o sujeito é a construção de alguma coisa que pacifique esse mal-estar provocado
pelo des-encontro. Gabriel encontra na escrita essa saída.
Gabriel atesta a íntima relação entre a escrita e a morte:
Quinta-feira, 20 de Dezembro de 2007
Escritor
Quando pensava em se matar, escrevia uma poesia.
DATILOGRAFADO POR GABRIEL RIBEIRO ÀS 01:10 1 ADENDO
Existe uma catástrofe anunciada na adolescência, que é a descoberta da inexistência da
relação entre os sexos. Essa constatação evidencia uma perda da ilusão. Se a escrita
implica perda, ela também é o que salva o escritor da morte.
A escrita parece operar uma saída a Gabriel, permitindo-lhe alojar seu gozo e sustentar
seu desejo. Diante do sem-sentido do gozo, ele parece ter construído algum saber sobre
si. Um saber que faz laço social. Um homem se faz O homem por situar-se a partir do
Um-entre-outros, por entrar-se entre seus semelhantes” (LACAN, 2003: 558).
No texto abaixo, Gabriel mostra como ele faz parceiros no universo on-line,
encontrando um lugar junto a outros que gostam de escrever, mas se destacando deles
pelo seu estilo próprio de escrita, que coma a se delinear. Ele mostra a sua
participação em blogs construídos em parceria, com fins literários:
Quinta-feira, 20 de Dezembro de 2007
Brevíssimos
Não sei se a idéia vingará, mas por enquanto parece bom: o blog Brevíssimos, feito em uma grande
parceria com (quase) todos os outros participantes do curso de produção de Narrativas Breves, com o
Marcelino Freire.
É claro que esse blog é minha prioridade, mas vale a pena conferir os textos de lá, porque muitos autores
são bastante bons.
(um projeto underground corre à boca pequena entre dois autores do Centro Federal de Educação
Tecnológica de São Paulo, mas por enquanto é um grande segredo.)
Voltamos agora com nossa programação normal.
349
DATILOGRAFADO POR GABRIEL RIBEIRO ÀS 23:42 1 ADENDO(S)
Em seus últimos escritos, escreve algumas de suas mudanças. Faz a “declaração de
desapego”, afirmando que ainda está apaixonado, mas que recentemente algo mudou:
Sábado, 10 de Maio de 2008
Declaração do Desapego
Eu te amei por tanto tempo que achei que não podia mais queimar.
Aquela paixão - lembra, aquela que rasgava, encolerizava, enlouquecia? - ainda me rasga, encoleriza e
enlouquece. Eu ainda sinto em meus nervos os choques, e quando você passa a vontade me faz
estremecer.
É, eu te amo tanto que com você eu esquecia gramática, literatura, fotografia, imagem, sons, cheiros e
gostos de tudo que não seja você.
Eu ficava absurdamente desconectado.
Mas recentemente algo mudou.
De repente, você deixou de ser o centro do meu universo. Deixei de viver em função de você. Você passou
de tudo para parte de tudo, de unanimidade para maioria.
E, pra ser sincero, isso é bom.
É bom porque eu não sou só uma metade esperando ser completa, sou inteiro e independente, e não vou
morrer porque você não me ama mais.
Eu não quero desistir de você, é possível que eu nem possa mais. Só que, agora, essa não é minha
obsessão.
Você ainda me corrói e eu ainda deixaria qualquer uma por você. Só não vou deixar de viver por isso.
consigo mudar de assunto.
Só falta avisar meus textos.
DATILOGRAFADO POR GABRIEL RIBEIRO ÀS 00:06 1 ADENDO(S)
Gabriel afirma que não morre sem o amor de sua amada, que ela não é mais a sua
obsessão, que já consegue mudar de assunto, mas sua escrita ainda não sabe disso,
uma divisão entre o saber e a escrita: “Só falta avisar meus textos”.
Diante do encontro com o real, o desamparo estrutural é “desvelado” e a linguagem
pode” contorná-lo:
Segunda-feira, 12 de Maio de 2008
Pluralidade
Todos os exércitos são de homens sós.
DATILOGRAFADO POR GABRIEL RIBEIRO ÀS 17:29 0 ADENDO(S)
350
Hugo Freda (1996), comentando sobre o texto de Freud Algumas reflexões sobre a
psicologia do escolar, escrito em 1914, observa o caráter autobiográfico desse texto, em
que Freud reflete sobre a própria adolescência. Nesse texto, Freud destaca a importância
da “colocação em palavras de um desejo, de uma intenção, mais precisamente, da
inscrição de um desejo no campo do Outro (FREDA, 1996: 25). Freud comenta nesse
texto que todo o período da sua adolescência foi percorrido “pelo pressentimentode
uma tarefa, que inicialmente se esboçava em voz baixa, até que finalmente conseguiu
“vesti-lo com palavras sonoras”, redigindo-o, ao escrever sua dissertação de conclusão
dos seus estudos. Ao colocar o desejo em palavras, numa redação, como a passagem de
um pensamento a um ato, o ato da escrita, o sujeito forma ao seu desejo, fazendo a
inscrição de um desejo no campo do Outro. Para Freda (1996), essa passagem do
pressentimento à definição marca a constituição desse Outro. Se para Freud esse
Outro é o saber, poderíamos pensar que para Gabriel esse Outro é a escrita no blog?
Freda (1996) sublinha que esse Outro tem um nome muito preciso para cada sujeito.
Podemos pensar que toda e qualquer aquisição de saber retorna ao sujeito através do
Outro, revelando a estrutura discursiva histérica, pois o que conduz ao saber não é o
desejo de saber, mas o discurso histérico.
A escrita opera uma passagem, do pensamento ao ato, dando forma ao desejo. Ela
desperta em Gabriel o desejo de ser escritor profissional. Na puberdade, o sujeito é
convocado a fazer um trabalho psíquico de reescritura, servindo-se de um dos Nomes-
do-Pai, permitindo que o semblante tenha lugar. Apoiado no significante “escritor”,
Gabriel se lança na escrita. Essa identificação orienta o seu desejo. A escrita de Gabriel
é marcada pela angústia despertada pelo encontro com a impossibilidade da relação
sexual, que aponta para um ponto de estrutura. Ao escrever, Gabriel tenta bordejar esse
real, construindo alguma coisa em seu lugar. Para além de sua função de “escrever sobre
o amor” e de servir como “meio de descarga de sentimentos”, a escrita passa a ser uma
necessidade vital, que o impulsiona na vida.
351
No texto seguinte, sua escrita é atravessada pela angústia de morte:
Quarta-feira, 7 de Maio de 2008
Mergulho
Abre os braços e se solta.
Fica perdido no ar
Junta os braços e as pernas, fica tenso, seus músculos enrijecem
C
A
I
Olha uma última vez para baixo antes de fechar os olhos pra sempre.
DATILOGRAFADO POR GABRIEL RIBEIRO ÀS 14:30
A irrupção de um gozo desconhecido do sujeito no tempo da puberdade, ao encontrar a
falta no campo do Outro, tem como efeito a perda do objeto. A queda do objeto faz com
que o significante que representa o sujeito, e ao qual ele se identifica (S1) e lhe
satisfação, não mais assuma um peso de um destino implacável. Assim, a perda do
objeto implica uma separação entre S1 e a. No encontro dessas duas faltas, tem-se a
possibilidade de se esvaziar o gozo do Outro, que ameaçaria o sujeito de aniquilamento,
abrindo possibilidades para o sujeito suportar-se na posição de objeto, necessária ao ato
sexual. Para que o sujeito possa se colocar como objeto no desejo do parceiro sexual,
ele precisa ter conseguido situar-se corretamente em relação ao que faz barreira contra o
incesto, contra o suposto poder devorador do Outro, ou seja, situar-se em relação à
função paterna de interdição. É possível articular o imaginário ao simlico diante do
real, produzindo um “sentidoou um semblante. Como sublinha Barros (1996, p.77):
Esse semblante tem que ser deduzido da própria estrutura do significante e do objeto
que aí se inclui, na medida em que estes são suplências do que ficou perdido na
constituição do sujeito”.
Diante do encontro com o real do sexo, Gabriel encontra duas saídas: o amor e a escrita.
A ilusão do amor é a primeira solução encontrada por ele, logo na irrupção da
puberdade, aos 11 anos de idade, que veio recobrir o vazio instaurado pela ausência da
relação sexual. Gabriel busca o amor, assim como busca o saber. Demonstra um grande
352
interesse pela leitura. Lacan (1985 [1972-73]) mostra a existência de uma importante
relação entre o saber e o amor: ...o saber, que estrutura por uma coabitação específica o
ser que fala, tem a maior relão com o amor. Todo amor se baseia numa certa relação
entre dois saberes inconscientes” (p.197). Na escolha do amor, um reconhecimento
feito através de signos sempre pontuados enigmaticamente, da maneira pela qual o ser é
afetado enquanto sujeito do saber inconsciente. Esse reconhecimento é a maneira pela
qual a relão sexual para de não se escrever, a continncia, diante da impossibilidade.
O amor é essa ilusão de que a relação sexual para de não se escrever. Assim, se a
necessidade, tal qual é articulada por Lacan, é o não para de se escrever, no
deslocamento da contingência à necessidade, um ponto de suspensão a que se agarra
todo o amor. O amor leva Gabriel ao não para de se escrever, não para, não parará,
como ressalta Lacan, tal é o substituto que pela via da existência, não da relação
sexual, mas do inconsciente, que dela difere constitui o destino e também o drama do
amor” (p.199).
O amor é um semblante, e como tal é inconsistente. As desilusões amorosas logo
deixam entrever o vazio, despertando a angústia. Assim, Gabriel busca na escrita esse
apoio, que o sustenta nos momentos de queda”. A cada decepção amorosa, a escrita o
salva. A escrita do seu romance” no blog opera como um sintoma, pois, sustentada
pelo Nome-do-Pai, permite enlaçar o amor, fazendo laço social. Gabriel se agarra na
letra, movido pelo desejo de ser escritor. Na tessitura da letra Gabriel escreve o amor,
como um semblante, que o sustenta em sua travessia. É pela “escrita do amor” que
Gabriel entra em contato com as pessoas, pois ele “tem o que contar” sobre suas
experiências amorosas. O blog funcionou para Gabriel como uma solução “particular”,
inserida no universal. O seu trabalho de escrita é uma tentativa de construir o nome
próprio.
Se o particular está inserido no universal, o singular diz respeito a uma escrita que não
se encaixa no universal, que aponta para o inconsciente real, um tipo singular de
enodamento que não faz laço social. Enquanto o particular diz respeito ao sintoma, o
singular diz respeito ao sinthoma. uma análise pode desvelar o singular. Podemos
dizer que Gabriel busca o singular no particular do amor, que o instaura no laço social e
o insere no universal.
353
Gabriel abandona o seu blog pessoal em maio de 2008. Em sua última postagem neste
blog, em 28 de maio, ele convoca parceiros para uma interlocução “intelectual”. Ele
continua a escrever em blogs construídos em parceria, com fins literários, e a publicar
suas ideias no site: Usina das palavras”. Mas ele não precisa mais de um blog pessoal,
pois parece ter chegado ao outro lado do túnel. O blog de Gabriel ilustra como a escrita
de um romance na adolescência nesse novo espaço virtual, o blog, pode produzir um
“sentidoou um semblante diante da irrupção do real do sexo, constituindo-se em um
sintoma que faz laço social.
Quarta-feira, 28 de Maio de 2008
Procura-se Para Breve
Interessados em conversas provavelmente com muita chatice intelectual com um interlocutor com
pouquíssima paciência para baboseiras.
Contatar por meio desta.
(Especificamente autores e atores, mais especialmente autoras e atrizes [mesmo que da vida real])
Pra muito breve, diga-se.
DATILOGRAFADO POR GABRIEL RIBEIRO ÀS 15:01 5 ADENDO(S)
354
CONCLUSÃO
Ao iniciar nossas pesquisas, constatamos que os jovens escrevem sobre si nos blogs.
Essa descoberta levou-nos a buscar as particularidades dessa escrita na
contemporaneidade. Se a escrita de si está presente desde a antiguidade, quais os
contornos que ela ganha na atualidade? A emergência de uma narrativa sobre si, como
um processo individual, se na modernidade, com o crescimento do individualismo e
com a expansão do capitalismo. O decnio da esfera pública e a ampliação da esfera
privada, com os seus diversos desdobramentos, levaram a uma valorização dos escritos
autobiográficos, especialmente nos séculos XIX e XX, quando se um grande
interesse pela publicação de diários íntimos e autobiografias. É também nesse momento
histórico que o diário íntimo passa a ser paradigmático da adolescência.
A puberdade é um dos momentos em que a não-relão sexual aparece para o sujeito.
No tempo do despertar da puberdade, o encontro com o real do sexo. Esse real da
puberdade pode ser articulado com as três definições de real em Lacan: articulável na
disjunção entre a identificação simlica e imaginária, disjunção que ocorre no
momento da adolescência em função do despedaçamento da imagem, como algo que
irrompe, que não tem nome e que vem modificar a imagem, e o real como a não-relação
sexual, que faz retorno na puberdade. A adolescência é, pois, a enumeração de uma
série de escolhas sintomáticas em relação a esse impossível, que é o real da puberdade.
Podemos rapidamente dizer que a puberdade é um tempo lógico que coloca em jogo o
real, o imaginário e o simlico, os três registros da realidade pquica. Há a irrupção de
um real sem controle, o esfacelamento da imagem (em função das rápidas
transformações que levam ao não-reconhecimento na imagem) e uma falha simbólica
para explicar esse acontecimento.
O Nome-do-Pai, que ata os três registros, mostra a sua insuficiência nos momentos de
irrupção do real. Há, portanto, a necessidade do adolescente fazer uma nova amarração.
Dentro das várias possibilidades sintomáticas “da adolescência” cabe a cada sujeito
fazer um arranjo particular, com o qual ele organizará sua existência, sua relação com o
355
mundo e com o gozo. Na ausência de um saber, resta a cada um inventar sua própria
resposta.
Vimos, a partir de dois diários íntimos publicados, como a escrita de um diário pode ser
uma escolha sintotica, como uma possibilidade ofertada pela cultura moderna ao
adolescente”. No diário de Melissa, destacamos o encontro com o real do sexo e a
escrita em um diário íntimo operando como forma de construir um recurso simlico
que permita dizer desse encontro.
O diário íntimo pode ser aproximado do romance enquanto gênero. Utilizamos a
definição de Bakhtin do romance de formão para fazer essa aproximação. A discussão
sobre o romance apoiou-se também em Barthes e Robert. Recortamos alguns elementos
de definição e classificação dos romances para relacionar esse nero literário com o
diário íntimo. Apoiando-nos nas leituras psicanalíticas, buscamos relacionar o tempo da
puberdade com a construção de um romance. Utilizando o diário de Anne Frank,
buscamos identificar a construção do seu romance familiar. Concluímos que no tempo
da puberdade a escrita de um romance familiar tem uma importante função para o
sujeito, permitindo que ele se torne o protagonista de sua história.
Os blogs são as formas atuais de escrita adolescente, ocupando o lugar dos diários
íntimos. A partir desses suportes materiais privilegiados de escrita na adolescência,
ofertados pela cultura contemporânea, destacamos dois aspectos: a importância da
escrita no tempo da adolescência e a forma que essa escrita assume na cultura. Se nos
séculos XVIII, XIX e XX o diário íntimo toma a forma de um romance cssico, qual a
forma que a narrativa sobre si assume nos blogs de adolescentes? O que é paradigmático
da escrita adolescente hoje? algo que essa escrita nos blogs revela de forma inédita
na contemporaneidade?
O que de novo pode ser pensado como consequência do lugar que o saber ocupa na
nossa cultura. A contemporaneidade é regida pelo mercado. O mercado é a forma atual
do Um, sendo o lucro o princípio da troca. O modo de funcionamento é regido pela
abstração do cálculo da quantidade, que permite a universalização da troca: cotação e
concorrência. Nessa lógica, todos são consumidores, reais ou virtuais. As modalidades
356
de troca tornam objeto todo elemento que entra nessa lógica. Tudo se transforma em
objeto, tudo é consuvel e o que é consuvel é útil. O desejo e o gozo estão afetados.
Com a entrada do saber no mercado, uma anulação da via singular, o declínio dos
significantes mestres. A revolução tecnológica no campo da comunicação transforma
todo dado em informão e a informação generalizada é a nova forma de saber absoluto.
Todo o saber é possível. O discurso do capitalismo sugere a eliminação do impossível, é
o discurso da qualidade total. Ele rompe, na verdade, a regra do discurso, pois cai nas
letras desarticuladas. O discurso do capitalismo não faz laço social. Acompanhamos o
declínio da diferença. A ética do desejo é substituída pelo imperativo do gozo. Do “freio
ao gozo” ao “imperativo ao gozo”. O supereu ocupa o posto de comando. uma
proliferação de gozos autistas. O social não tem mais consistência visível, um
embaralhamento geral das identidades sociais. A sociedade não oferece aos sujeitos
identidades visíveis, que permitam uma identificação estável. O sujeito, hoje, não está
mais submetido a uma hierarquia, ele está na rede. Ele é informado, não comandado.
Submetido a uma informação infinita, sem princípio de ordenamento, ele deve
participar como produtor. Se a constituição do sujeito moderno implica a vertente
significante (S1 S2), a constituição do sujeito contemporâneo implica uma ruptura da
cadeia (S1//S2). A lógica constelar do ciberespaço ilustra essa lógica contemporânea.
Em nossas pesquisas nos blogs, foi possível perceber as incidências do discurso
capitalista sobre o sujeito contemporâneo. Identificamos três formas de escrita nos blogs:
- A escrita pulsional, como escrita de gozo”. A dimensão aqui é de um gozo autístico,
que não faz laço social.
- A escrita de si para si, uma escrita narcísica, fechada em si mesmo e que, portanto, não
faz laço social.
- Aquela que leva à construção de um romance familiar, como um romance clássico,
que faz laço social.
As três formas de blogs descritas acima podem ser assim resumidas:
357
Tipo de escrita
1- Escrita de gozo
2- Escrita “de si
para si
3- Romance
Características da
escrita
-Significantes
soltos,
desarticulados.
-Ruptura da cadeia
(S1//S2)
- Lógica espacial,
fragmentária
-Articulação
significante
(S1- S2)
-Lógica linear
-Articulação
significante
(S1- S2)
-Lógica linear
Relação com o
saber
Manifestação do
o-saber, ausência
de sentido, enigma.
Ordem do sentido,
elocubração de
saber (mas logo é
interrompida).
- Sintoma
(uma resposta ao
encontro com o
real)
Laço social
Gozo autístico, não
faz laço social
Não faz laço social
(mantém-se num
circuito especular
fechado)
- Faz laço social
As duas primeiras formas, que não fazem laço social, são predominantes na cultura
atual. Podemos levantar a hitese de que a presença maior nos blogs de um tipo de
escrita que não faz laço social é uma consequência do discurso capitalista. Diante do
declínio da função paterna, da fragmentação e da multiplicidade de informações, da
indefinição geral das identidades sociais, o sujeito encontra na atualidade maiores
dificuldades em construir um saber que se sustente e que faça laço social. Apesar do
ciberespaço se constituir como um espaço claramente público, ele não necessariamente
facilita os laços sociais. Nos blogs pesquisados, um predomínio da fragmentação
sobre a linearidade, da escrita de puro gozo, fechada em si mesmo, sobre a escrita
endereçada que faz laço social. Assim, essa lógica contemporânea revela a mudaa no
estatuto de sujeito, do binarismo significante para o estatuto da letra. Apesar dos blogs
358
que se caracterizam por uma escrita de si para si” revelarem a intenção de construção
de sentido, de haver um endereçamento, eles permanecem num curto-circuito, fechados
em si mesmos, e não fazem laço social. uma pobreza simbólica de tal ordem que
dificulta a construção de um romance, que poderia sustentar o sujeito adolescente em
sua travessia. Esses sujeitos permanecem pobres de desejo, submersos numa cultura que
os homogeneíza, buscando nos objetos de consumo algo que os particularize.
A lógica constelar no ciberespaço, da espacialidade, com sua fragmentação,
descontinuidade e multiplicidade de ofertas, permite que o sujeito faça qualquer
percurso. Se essa lógica favorece a escrita do efêmero e do imediato, ela também
permite a construção de um romance. Identificamos blogs de adolescentes em que a
dimensão de romance está presente. O adolescente, ao interrogar um outro sobre o
desejo, por meio de seu blog, se histeriza. No discurso histérico, o sujeito ocupa a cena
com seu sintoma. Uma condição discursiva e estrutural que lhe assegura a divisão
subjetiva institda pela castração. Se o discurso capitalista promove a suspensão da
castração, tamponando-a com os objetos de consumo, o discurso histérico é uma
condição discursiva que permite preservar a sua divisão subjetiva, possibilitando a
emergência do desejo. Os blogs de adolescentes são endereçados a outros adolescentes.
A partir de nossa leitura dos blogs, situamos nos quatro lugares do discurso histérico os
seguintes elementos:
Adolescente outro adolescente
o- relação sexual // romance familiar
O adolescente ($), na posição de agente, se dirige a um outro adolescente (semelhante)
endereçando a questão sobre o seu desejo de constituir um saber sobre o sexo. Ao se
dirigir a um outro adolescente, o jovem busca um outro supostamente semelhante, como
um lugar esvaziado de saber. O grupo de adolescentes, como grupo de semelhantes, é o
endereço privilegiado, pois o jovem os supõe em posição subjetiva semelhante. Assim,
nesse campo de identificações horizontais ele relativiza o poder do pai.
Fundamentalmente, a condição de emergência de um sujeito depende da falta no
discurso do Outro. O produto dessa operação é a produção de um novo onde existe um
vazio de saber, é a escrita de um romance familiar no blog. No lugar da verdade
encontra-se a “não-relação sexual”, enquanto impossibilidade. Essa verdade encontra-se
359
recalcada. Como verdade, ela não pode ser capturada em sua totalidade, se organizando
sempre como um semidizer. É ela, entretanto, que faz agir o agente, mas se mantendo e
se situando como ponto de interrogação para cada sujeito.
Diante do encontro com o real do sexo, o adolescente busca uma saída fálica para
encobrir esse vazio. A construção de um romance familiar permite bordejar esse vazio,
conferindo-lhe um sentido, a tessitura de um véu fálico que permite velar o real. É o
lugar onde se produz o discurso que suporta o autor e do qual sua verdade é um dos
efeitos. Assim, é ao dizer-se que o sujeito se constitui como seu produto. Aquele que
fala testemunha uma verdade que lhe escapa. No ato do testemunho, algum saber se
produz. O endereçamento de uma fala a um outro leva à transformação de um vivido em
história, que pode ser transmitida. Essa transmiso da própria experiência estabelece o
laço social.
A escrita de um romance familiar no blog pode desempenhar uma importante função
para o sujeito, como uma possibilidade de tratar algumas questões que surgem no tempo
da puberdade. Nessa construção narrativa o enlace do passado com o devir futuro,
permitindo a elaboração de uma resposta ao enigma da origem, que ressurge a partir de
uma continncia, nesse momento da adolescência. Ao tecer a sua história, o sujeito se
constrói como o seu principal personagem, deixando de ser determinado pela hisria e
passando a ler essa determinação. Na escrita do romance, o desejo se articula sob a
cadeia significante, permitindo a construção de um sentido que encobre o traumático do
sexual, como uma solução para o encontro com a castração. Esse trabalho escritural
permite a constituição de um íntimo e de um público, como uma saída aos impasses do
feminino. Assim, se o sintoma é uma construção do sujeito ao encontro com o
impossível, a escrita de um blog pode ser uma resposta possível a esse encontro, como
uma modalidade de resposta sintomática na adolescência.
A escrita de um romance no blog pode operar no sintoma adolescente, permitindo atar
os três registros da realidade psíquica. Sua estrutura tica, veiculada a um discurso,
fornece o material para a escrita da castração. O romance familiar, como produto do
discurso histérico, pode representar a construção de um novo que faz laço social. Ele
funciona como um saber que permite uma articulação simbólica e imaginária,
possibilitando uma afirmação subjetiva, sustentada pelo Nome-do-Pai.
360
Vimos o percurso feito por um sujeito adolescente na escrita, em seu blog, durante três
anos e cinco meses. Recortamos em seu texto pontos de ruptura que sugerem a
emergência do real, a resposta do sujeito a essas rupturas, as mudanças operadas na
escrita durante seu percurso na construção do blog, a constituição do romance familiar
como suplência à ausência da relação sexual. A escolha de um blog de longa duração
permitiu-nos identificar, na particularidade de um caso, uma resposta de um sujeito aos
impasses contemporâneos. A escrita nos interessa quando, a partir de um encontro com
o real, o sujeito constrói uma saída para esse encontro. Foi o que buscamos extrair nos
textos de Gabriel.
A incidência de uma marca é o que leva um sujeito a emergir do real. Essa marca é
indestrutível, mesmo que esquecida ou revestida. Em torno dela o sujeito narra a sua
história, numa reedição sempre diferente, mas que inclui algo que se mantém constante.
Essa marca, apagada, reaparece como insígnia, que lembra a ausência. A primeira
identificação é um furo real, como resultado do encontro com o Outro, um tempo tico,
de privação. A segunda identificação reporta ao ideal, como traço que constrói e reveste
essa marca invisível, resultado desse encontro inaugural com o Outro. O ideal
representa o Outro através de um signo, um tro único. Esse traço intervém na relação
narcísica, constituindo a orientação dos investimentos libidinais e mantendo a função do
eu ideal. Aqui está o núcleo da função do amor, pois, abandonado o objeto de amor,
surge no seu lugar uma identificação. Esse traço tomado emprestado do objeto torna-se
o signo do amor. No amor, a dimensão da falta está sempre presente. O eu do amante,
empobrecido, situa no outro aquilo que lhe falta, para resgatar a sua imagem ideal.
Trata-se de uma escolha narcísica, tendo como referência o tro unário.
Gabriel busca essa complementaridade no outro, no momento em que é confrontado
com a ausência da relação sexual. Diante da impossibilidade, o amor é uma saída
elegante, como diz Lacan. Mas como o amor não se sustenta, dada a sua inconsisncia,
Gabriel se agarra na letra, enlaçando-a no amor. Nas desilusões amorosas, a escrita o
salva da queda. No encontro com o real do sexo, a escrita operou no amor como
suplência. A escrita no blog tem a função de sintoma para Gabriel, pois permite uma
solução ao impasse provocado pelo confronto com a ausência da relação sexual.
361
A operação de constituição de um sujeito envolve o laço com o Outro, que deixa marcas
desse encontro inaugural. Podemos dizer que esse encontro deixa “restos”, “detritos”,
que escapam nesses objetos pulsionais que nos ligam ao Outro. No ato de escrever, o
sujeito transporta esses restos, como pedaços de real, buscando assimilar aquilo que
escapa à simbolização. No entanto, nessa constrão da narrativa de si, existem sempre
pontos de ruptura, de quebra, restos não assimiláveis, que apontam a insuficiência do
Outro, os limites da linguagem. Gabriel tropeça nesses limites da linguagem, mas se
ergue pela escrita. Na construção que o sujeito faz a partir dessas rupturas, surge o estilo.
Gabriel, orientado pelo desejo de ser escritor”, persegue o seu estilo.
362
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARENDT, Hannah. As esferas pública e privada. In: A condição humana. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2008, p.31-88.
ARIÈS, Philippe & DUBY, Georges. História da Vida Privada, 4: Da Revolução
Francesa à Primeira Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 637 p.
ARTIÈRES, P. Arquivar a própria vida. In: Arquivos Pessoais. Revista Estudos
Históricos. Rio de Janeiro: Cpdoc/FGV, n
o
21, 1998. Disponível em:
http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/234.pdf.
BAKHTIN, Mikhail. Biografia e autobiografia. In: Questões de literatura e de estética.
A teoria do romance. 5 ed. o Paulo: Annablume, 2002, p.250-262.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética. A teoria do romance. 5 ed.
São Paulo: Annablume, 2002. 439p.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 476p.
BAUDELAIRE, Charles. A modernidade. Sobre a modernidade. São Paulo: Editora Paz
e Terra. 3 ed, 2002, p.24-25.
BARROS, Maria do Rosário C. do Rêgo. Adolescência: quê despertar? In: RIBEIRO,
Heloisa C. e POLLO, Vera (Orgs). Adolescência: o despertar. In: Revista Kalimeros
Escola Brasileira de Psicanálise. Rio de Janeiro, Contra Capa Livraria, 1996, p.69-80.
BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo: Estação Liberdade,
2003. 214 p.
BARTHES, Roland. O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 225 p.
BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loiola. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 225p.
BARTHES, Roland. O prazer do texto, trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva,
1999.
BARTHES, Roland. S/Z. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
BATISTA, Annio Augusto Gomes. O texto escolar: uma história. Belo Horizonte:
Ceale; Autêntica, 2004. 160 p. (Coleção Linguagem e Educação, 08).
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2004. 190 p.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1998. 272 p.
363
BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In:
Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7 ed. São
Paulo: Brasiliense, 1994 (Obras Escolhidas vol. 1), p.197- 221.
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão, trad. Sérgio Rouanet. São
Paulo: Brasiliense, 1984.
BLANCHOT, Maurice. VIII Le journal intime et le récit. In: Le livre à venir.
Gallimard, 1971, p.271-279.
BLOOD, Rebecca. Weblogs: a history and perspective Disponível em:
http:www.rebeccablood.net/essays/weblog_history.html. Acesso em 8 jul. 2007.
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, J. e FERREIRA, M. de Moraes
(Orgs.). Usos e abusos da história oral. 6. ed. Rio de Janeiro: FVG, 2005, p.183-191.
BRANCO, Lúcia Castello e BRANDÃO, Ruth Silviano. Literaterras. As bordas do
corpo literário. São Paulo: Annablume, 1995 (Coleção E; 4). 180 p.
BRANCO, Lúcia Castelo. Literaterras. A traição de Penélope. São Paulo: Annablume,
1994.
BROUSSE, Marie-Hélène. Em direção a uma nova cnica psicanalítica. In: Revista
Mental n. 15. Paris: NLS, 2005.
CALDAS, Heloísa. Da voz à escrita: clínica psicanatica e literatura. Rio de Janeiro:
Contra Capa Livraria, 2007.
CALVINO, Ítalo. A palavra escrita e a não-escrita. In: AMADO, J. e FERREIRA, M.
de Moraes. Usos e abusos da história oral. 6. ed. Rio de Janeiro: FVG, 2005, p.139-147.
CHARTIER, Roger. Os desafios da escrita. São Paulo: Editora Unesp, 2002. 144 p.
CORBIN, Alain. Bastidores. In: PERROT, Michelle (Org.). Da Revolução Francesa à
Primeira Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.413-611. (Coleção
História da Vida Privada, 4, dir. Philippe Ariès e Georges Duby).
COSTA, Ana. A transicionalidade na adolescência. In: COSTA, Ana (Org.).
Adolescência e experiência de borda. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004, p.165-
193.
COSTA, Ana. Corpo e escrita. Relações entre memória e transmissão da experiência.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
COSTA, Sérgio Roberto. Leitura e escrita de hipertextos: implicações didático-
pedagógicas e curriculares. In: FREITAS, Maria Teresa de Assunção e COSTA, Sérgio
Roberto (Orgs.). Leitura e escrita de adolescentes na internet e na escola. Belo
Horizonte: Autêntica, 2005, p.37-43.
364
COTTET, Serge. Estrutura e romance familiar na adolescência. In: RIBEIRO, Heloisa
Caldas e POLLO, Vera (Orgs.). Adolescência: o despertar. In: Revista Kalimeros.
Escola Brasileira de Psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1996, p.7-20.
CUNHA, Tito Cardoso. Do mito coletivo ao mito individual. Prefácio. In: LACAN,
Jacques. O mito individual do neurótico. Lisboa: Asrio & Alvim, 1987, p.9-42.
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo. Uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2001. 130 p.
DERRIDA, Jacques. Otobiographies l‟énseignement de Nietzsche et la politique du
nom propre. Paris: Galilée, 1984.
DESCARTES, René. Meditações. o Paulo: Editora Nova Cultural, 1999. 431
p.(Coleção Os Pensadores).
DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia
moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1985.
DURAS, Marguerite. O deslumbramento (le ravissement de Lol V. Stein), trad. Ana
Maria Falcão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 145 p.
ELIAS, Norbert. Formação do Estado e civilização. In: O processo civilizador, vol. 2.
Rio de janeiro: Zahar, 1993, p.248-262.
ERCÍLIA, Maria. A Internet. In: Folha de S.Paulo. São Paulo: Publifolha, 2000. Folha
Explica. 100 p.
FABRE, Daniel (Org.). Écritures ordinaires. Paris: Bibliotheque Publique
D‟Information (Centre Georges Pompidou) et P. O. L., 1993.
FERREIRA, A. A. L. O surgimento da psicologia e da psicanálise nos textos da
genealogia foucaultiana. In: Memorandum, 10, 71-84. Disponível em:
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a10/ferreira03.pdf 84. Acesso em 12 jul.
2008.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua
portuguesa, 27ª impressão. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986. 1838 p.
FOTHERGILL, Robert A. Private chronicles a study of English diaries. London:
Oxford University Press, 1974.
FOUCAULT, M. A escrita de si. In: Ética, sexualidade, política. Coleção Ditos e
Escritos de Michel Foucault. Vol. V. Org. Manoel Barros da Motta. 2. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2006a, p.144-162.
FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade, política. Coleção Ditos e Escritos de Michel
Foucault. Vol. V. Org. Manoel Barros da Motta. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2006a.
365
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. 17 ed. Rio de
Janeiro: Graal, 2006b. 174 p.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 23ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2007. 295 p.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor. Lisboa: Nova Vega, Passagens, 2006.
FRADE, Isabel Cristina A. da Silva. Alfabetização digital: problematização do conceito
e possíveis relações com a pedagogia e com a aprendizagem inicial do sistema de escrita.
In: COSCARELLI, Carla Viana e RIBEIRO, Ana Elisa (Orgs.). Letramento digital.
Aspectos sociais e possibilidades pedagógicas. Belo Horizonte: Ceale; Autêntica, 2005,
p.59-83.
FRANK, Anne. O diário de Anne Frank. [Editado por Otto Frank e Miryam Pressler].
Rio de Janeiro: BestBolso, 2007. 373 p.
FREDA, Hugo. O adolescente freudiano. In: Clínica do Contemporâneo. Revista
Curinga. Escola Brasileira de Psicanálise. Seção Minas, 2004 (n° 20), p.21-29.
FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. In: A interpretação dos sonhos (Parte I).
Rio de Janeiro: Imago, 1974/1900. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud, v. 4).
FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. In: A interpretação dos sonhos (Parte
II). Sobre os sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1974/1900-1901. (Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 5).
FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Um caso de histeria,
três ensaios sobre a sexualidade e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1974/1905,
p.118-230. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud, v. 7).
FREUD, Sigmund. Romances familiares. In: ―Gradiva‖ de Jensen e outros trabalhos.
Rio de Janeiro: Imago, 1974/1908, p.241-247. (Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 9).
FREUD, Sigmund. Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância. In: Cinco
lições de psicanálise, Leonardo Da Vinci e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago,
1974/1910, p.53-124. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud, v. 11).
FREUD, Sigmund. Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor. In:
Cinco lições de psicanálise, Leonardo Da Vinci e outros trabalhos. Rio de Janeiro:
Imago, 1974/1912, p.153-163. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud, v. 11).
FREUD, Sigmund. O tabu da virgindade. In: Cinco lições de psicanálise, Leonardo Da
Vinci e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1974/1917-1918, p.175-192. (Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 11).
366
FREUD, Sigmund. Recomendações aos dicos que exercem a psicanálise. In: O caso
de Schreber, artigos sobre a técnica e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago,
1974/1912, p.147-159. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas
de Sigmund Freud, v. 12).
FREUD, Sigmund. Os instintos e suas vicissitudes. In: A história do movimento
psicanalítico, artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago,
1974/1915, p.129-162. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas
de Sigmund Freud, v. 12).
FREUD, Sigmund. Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar. In: Totem e tabu e
outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1974/1914, p.281-288. ( Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 13).
FREUD, Sigmund. Totem e tabu. In: Totem e tabu e outros trabalhos. Rio de Janeiro:
Imago, 1974/1912-1913, p.13-191. ( Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud, v. 13).
FREUD, Sigmund. Sobre o narcisismo: uma introdução In: A história do movimento
psicanalítico. Artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago,
1974/1914, p.85-119. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud, vol. 14).
FREUD, Sigmund. O estranho. In: Uma neurose infantil e outros trabalhos. Rio de
Janeiro: Imago, 1974/1919, p.273-318. (Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 17).
FREUD, Sigmund. Uma criança é espancada. In: Uma neurose infantil e outros
trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1974/1919, p.223-253. (Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 17).
FREUD, Sigmund. Psicologia de grupo e análise do eu. In: Além do princípio do prazer,
psicologia de grupo e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1974/1921, p.89-179.
(Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.
18).
FREUD, S. A dissolução do Complexo de Édipo. In: O ego e o id, uma neurose
demoníaca do século XVII e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1974/1924, p.215-
224. (Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v.
19).
FREUD, S. Dostoievski e o parricídio. In: O futuro de uma ilusão, o mal-estar na
civilização e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1974/1927-1928, p.203-227.
(Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.
XXI).
FREUD, Sigmund. O prêmio Goëthe. In: O futuro de uma ilusão, o mal-estar na
civilização e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1974/1930, p.240-247. (Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XXI).
367
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. In: O futuro de uma ilusão, o mal-estar
na civilização e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1974/1930, p.75-256. (Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XXI).
FREUD, Sigmund. Construções em análise. In: Moisés e o monoteísmo, esboço de
psicanálise e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1974/1937, p.291-308.
(Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.
XXIII).
FREYRE, Gilberto. Tempo morto e outros tempos. Trechos de um diário de
adolescência e primeira mocidade 1915-1930. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.
267 p.
GALVÃO, Ana Maria de Oliveira; BATISTA, Antônio Augusto Gomes. Entrando na
cultura escrita: percursos individuais, familiares e sociais nos séculos XIX e XX.
Projeto de pesquisa. Belo Horizonte: Faculdade de Educação da UFMG; Recife: Centro
de Educação da UFPE, 2002. p.12-38.
GANNETT, Cinthia. Gender and the journal diaries and academic discourse. New
York: University of New York Press, 1992. 262 p.
GIDDENS, A. et al. A modernização reflexiva. São Paulo: Unesp, 1995.
GIRARD, A. Le journal intime. Paris: Presses Universitaires de France, 1986. 672p.
GUÉGUEN, Pierre-Gilles. Acerca de lo inesencial del Sujeto Supuesto Saber.
Conferência. In: LAURENT, Éric (Org.). El pase y la formación del analista. IX
Conversación de la ELP. Madri, 5 maio 2007.
HÉBRARD, Jean. Por uma bibliografia material das escrituras ordinárias: a escritura
pessoal e seus suportes. In: MIGNOT, Ana Cristina V., BASTOS, Maria Helena C. e
CUNHA, Maria Teresa S. (Orgs.) Refúgios do eu. Educação, história, escrita
autobiográfica. Florianópolis: Mulheres, 2000, p.29-59.
HOUAISS, Annio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. São Paulo: Editora
Saraiva, 2000. 3008 p.
KAFKA, Franz. Carta ao pai, trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras,
2007. 86 p.
KAFKA, Franz. Sonhos, trad. Ricardo F. Henrique. São Paulo: Iluminuras, 2008. 24 p.
KANT, Immanuel. Crítica da razão prática, trad. Artur Morão. Lisboa: Ed. 70, 1997.
KOMESU, Fabiana. Blogs e as práticas de escrita sobre si na Internet. Disponível em:
http://www.ufpe.br/nehte/artigos/blogs.pdf.
368
LACADÉE, Pillippe. O despertar e o exílio. Editions Cecile Defaut, 2007.
LACAN, Jacques. O sonho da injeção de Irma. In: O seminário, Livro 2. O eu na teoria
de Freud e na técnica da psicanálise, 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992/1954-
1955, p.187-217.
LACAN, Jacques. Para que serve o mito. In: O Seminário, Livro 4. A relação de objeto,
trad. Dulce Duque Estrada, texto estab. por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Zahar,
1995/1956-57, p.254-273.
LACAN, Jacques. O seminário, Livro 7: A ética da psicanálise, trad. Antônio Quinet,
texto estab. por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997/1959-60. 396p.
LACAN, Jacques. O seminário, Livro 8: A transferência, trad. Dulce Duque Estrada,
texto estab. por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992/1960-61. 386p.
LACAN, Jacques. Le séminaire, Livre IX: L‘identification. 1961-62. Inédito.
LACAN, Jacques. Do cosmo à unheimlichkeit. In: LACAN, Jacques. O seminário,
Livro 10: A angústia, trad. Vera Ribeiro, texto estab. por Jacques-Alain Miller. Rio de
Janeiro: Zahar, 2005/1962-63, p.38-52.
LACAN, Jacques. O seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise, trad. M. D. Magno, texto estab. por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1993/1964. 269 p.
LACAN, Jacques. O seminário, Livro 16: De um Outro ao outro, trad. Vera Ribeiro,
texto estab. por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008/1968-69. 412p.
LACAN, Jacques. O seminário. Livro 17: O avesso da psicanálise, trad. Ari Roitman,
texto estab. por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992/1969-70.
LACAN, Jacques. O seminário, Livro 18: De um discurso que não seria do semblante.
1971. Inédito.
LACAN, Jacques. O seminário, Livro 20, Mais ainda, trad. M. D. Magno, texto estab.
por Jacques-Alain Miller. 2 ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985/1972-1973.
LACAN, Jacques. Livre XXII, RSI, 1974-75. Disponível em http://gaogoa.free.fr/>.
LACAN, Jacques. O seminário, Livro 23, O sinthoma, trad. Sérgio Laia, texto estab. por
Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007/1975-76.
LACAN, Jacques. O seminário sobre “A carta roubada” In: Escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1998 (Campo Freudiano no Brasil), p.13-66.
LACAN, Jacques. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In:
Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998/1957 (Campo Freudiano no Brasil), p.13-
66.
369
LACAN, Jacques. A psicanálise e seu ensino. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1998/1957 (Campo Freudiano no Brasil), p.437-460.
LACAN, Jacques. A ciência e a verdade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1998/1965 (Campo Freudiano no Brasil), p.855-892.
LACAN, Jacques.
O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998/1949, p.96-103.
LACAN, Jacques. Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: Psicanálise e
estrutura da personalidade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p.653-691.
LACAN, Jacques. Subversão do sujeito e dialética do desejo. In: Escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.793-842.
LACAN, Jacques. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998/1953, p.238-324.
LACAN, Jacques. De nossos antecedentes. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1998, p.69-76.
LACAN, Jacques. Prefácio à edição inglesa do Seminário 11. In: Outros escritos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2003/1976, p.567-569.
LACAN, Jacques. Prefácio a O despertar da primavera. In: Outros escritos. Rio de
janeiro: Jorge Zahar, 2003/1974 (Campo Freudiano do Brasil), p.557-559.
LACAN, Jacques. Televisão. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
(Campo Freudiano do Brasil), p.508-543.
LACAN, Jacques. Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: Psicanálise e
estrutura da personalidade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998/1960, p.653-
691.
LACAN, Jacques. O mito individual do neurótico. Lisboa: Assírio e Alvim, 1987, p.52-
64.
LACAN, Jacques. Lituraterra. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2003/1971, p.15-25.
LACAN, Jacques. Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein.
In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.198-205.
LACAN, JACQUES. Du Discours Psychanalytique. Discours de Jacques Lacan à
l‟Université de Milan le 12 mai 1972, paru dans l‟ouvrage bilingue: Lacan in Italia. En
Italie Lacan. Milan: La Salamandra, 1978/1953-1978, p.32-55.
LACERDA, Lilian de. Álbum de leitura. Memórias de vida, histórias de leitoras. São
Paulo: Editora UNESP, 2003. 498 p.
370
LAURENT, Eric. Quatre remarques sur le souci scientifique de Jacques Lacan. In:
Brissac, Marie-Pierre de Cossé; DUMAS, Roland et al. Connaissez-vous Lacan? Paris:
Seuil, 1992.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 2000. 260 p.
LEJEUNE, Philippe. Entrevista. Ipotesi. Revista de Estudos Literários. Juiz de Fora.
Vol. 6, n. 2, p.21-30. (s. d.)
LEJEUNE, Philippe. Cher écran: journal personnel, ordinateur, Internet. Paris: Seuil.
2000. 443 p.
LEJEUNE, Philippe. Le moi des demoiselles. Enquête sur le journal de jeune fille. Paris:
Seuil, 1993. 487 p.
LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1975. 357 p.
LEMOS, André. A arte da vida: Diários pessoais e webcams na Internet. In: BLOOD,
Rebecca. Weblogs: a history and perspective. Disponível em:
http:www.rebeccablood.net/essays/weblog_history.html. Acesso em 8 jul. 2007.
LESCURE, M. Les autographes et le goût des autographes en France et à l‘étranger.
Portraits, caractères, anecdotes, curiosités. Paris: J. Gay Éditeur, 1965.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 2000. 260 p.
LIMA, Luiz Costa. Júbilos e misérias do pequeno eu. In: LIMA, Luiz Costa. Sociedade
e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986, p.243-309.
LIMA, Nádia Laguárdia de. Fascínio e alienação no ciberespaço. Uma contribuição da
psicanálise para o campo da educação. Dissertação de mestrado. Belo Horizonte:
FAE/Universidade Federal de Minas Gerais, 2003.
MACIEL, Maria Esther. Voo transverso. Rio de janeiro: Sette Letras, 1999.
MAN, Paul de. Autobiography as de-facement. In: The rhetoric of Romanticism. Citado
por MIRANDA, José A. Bragança e CASCAIS, Antonio Fernando. A lição de
Foucault. In: FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Nova Veja, Passagens,
2006.
MANDIL, Ram. Os efeitos da letra. Lacan leitor de Joyce. Rio de Janeiro/Belo
Horizonte: Contra Capa Livraria/Faculdade de Letras UFMG, 2003. 283 p.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. A coerência no hipertexto. In: COSCARELLI, Carla
Viana e RIBEIRO, Ana Elisa (Orgs.). Letramento digital. Aspectos sociais e
possibilidades pedagógicas. Belo Horizonte: Ceale; Autêntica, 2005, p.185-207.
MARCUSCHI, Luiz Annio. Gêneros textuais emergentes no contexto da tecnologia
digital. In: MARCUSCHI, Luiz Antônio; XAVIER, Annio Carlos. Hipertexto e
371
gêneros digitais: novas formas de construção de sentido. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.
Disponível em: http://www.lucerna.com.br/downloads/8586930369.pdf.
MARTIN-FUGIER, Anne. Os ritos da vida privada burguesa. In: PERROT, Michelle
(Org.). História da vida privada. Da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003, p.193-261. (Coleção: História da Vida Privada. Vol. 4. Dir.
Philippe Ariès e Georges Duby).
MARX, K. A questão judaica. In: Manuscritos econômicos-filosóficos. Edições 70,
Lisboa, 1975.
MERLET, Alain. Entrevista. @gente. revista digital de psicanálise. Escola Brasileira de
Psicanálise. Disponível em: http://www.ebp.org.br/bahia/agente/pagina2.html.
MERQUIOR, José Guilherme. A estética de Lévi-Strauss. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1975.
MILLER, Jacques-Alain. La constelación y la cadena. In: Los signos del goze. Buenos
Aires: Paidós, 2006, p.139-154.
MILLER, Jacques-Alain. Los signos del goze. Buenos Aires: Pais, 2006. 447 p.
MILLER, Jacques-Alain et al. Comentário del seminário inexistente. In: Comentário del
seminário inexistente. Buenos Aires: Manantial, 1992, p.11-43.
MILLER, Jacques-Alain. Elementos de epistemologia. In: Percurso de Lacan. Uma
introdução. Rio de Janeiro: Zahar, 1987, p.40-54.
MILLER, Jacques-Alain. Sobre Kant com Sade. In: Lacan elucidado. Palestras no
Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.153-218.
MILLER, Jacques-Alain e LAURENT, Éric. O Outro que não existe e seus comitês de
ética. Revista Curinga. Escola Brasileira de Psicanálise. Belo Horizonte, n. 12, set. 1998,
p.4-18.
MILLER, Jacques-Alain. Reflexions sur l‟enveloppe formelle du symptôme. In: Les
formes du Symptôme. Actes de L‟École de la Cause Freudienne. Paris, octobre, ECF, 1,
rue Huysmans, Paris 6. (vol. IX).
MILLER, Jacques-Alain. Orientation lacanienne III, 9. Troisième séance du Cours
(mercredi 29 nov. 2006) III. Sixième séance du Cours (mercredi 10 jan. 2007), trad.
Elisa Alvarenga.
MILLER. Jacques-Alain. Siete observaciones de Jacques Alain Miller sobre la creación.
Revista Malentendido, n° 5, maio 1989.
MILLER, Jacques-Alain. O sobrinho de Lacan. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2005.
372
MILLER, Jacques-Alain. Pièces détachées. La Cause Freudienne. Paris, n. 61. 2005,
p.131-153.
MILLER, Jacques-Alain. L‘orientation lacanienne. Choses de finesse en psychanalyse.
VI Cours du 17 déc. 2008. Texto o publicado.
MILNER, Jean-Claude. La obra clara. Lacan, la ciencia, la filosofia. Buenos Aires:
Ediciones Manantial, 1996.
MINOT, Ana Chrystina Venâncio. Editando o legado pioneiro: o arquivo de uma
educadora. In: MINOT, A. C. V. et al (Orgs.). Refúgios do eu: educação, história e
escrita autobiográfica. Florianópolis: Editora Mulheres, 2000, p.123-143.
MIRANDA, José A. Bragança e CASCAIS, Antonio Fernando. A lição de Foucault. In:
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Nova Veja, Passagens, 2006.
MORLEY, Helena. Minha vida de menina. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
335 p.
MRECH, Leny Magalhães. Psicanálise e educação. Novos operadores de leitura. São
Paulo: Pioneira, 1999, p.121-128.
OLIVEIRA, Rosa Meire Carvalho de. Diários públicos, mundos privados: diário íntimo
como gênero discursivo e suas transformações na contemporaneidade. Dissertação de
mestrado (Comunicação e Cultura Contemporâneas). Facom/UFBa, 2002. Também
disponível em URL: http://bocc.ubi.pt/pag/oliveira-rosa-meire-diarios-publicosmundos-
privados.pdf. Acesso em: 20 fev. 2006.
PANARELLO, Melissa. 100 escovadas antes de ir para a cama, trad. Eliana Aguiar.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. 157 p.
PEREIRA, Ana Paula M. S. e MOURA, Mirtes Zoé da Silva. A produção discursiva nas
salas de bate-papo: formas e características processuais. In: FREITAS, Maria Teresa de
Assunção e COSTA, Sérgio Roberto (Orgs). Leitura e escrita de adolescentes na
internet e na escola. Belo Horizonte: Autêntica, 2005, p.65-83.
PINTO, Jeferson Machado. Psicanálise, feminino, singular. Belo Horizonte: Autêntica,
2008.
PORTUGAL, A. M. O vidro da palavra. O estranho, literatura e psicanálise. Belo
Horizonte, Autêntica, 2006.
RIBEIRO, Ana Elisa. Ler na tela letramento e novos suportes de leitura e escrita. In:
COSCARELLI, Carla Viana e RIBEIRO, Ana Elisa (Orgs.). Letramento digital.
Aspectos sociais e possibilidades pedagógicas. Belo Horizonte: Ceale, Autêntica, 2005,
p.125-150.
373
ROBERT, Marthe. Romance das origens, origens do romance, trad. André Telles. o
Paulo: Cosac Naify, 2007. 280 p.
ROUDINESCO, Elisabeth. A análise e o arquivo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
76p.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Confissões. Coleção Clássicos Edipro, trad. José Benedito
Pinto. Bauru: Editora Edipro, 2007. 592 p.
SADE, Marquês de. A filosofia na alcova, trad. Augusto Contador Borges. São Paulo:
Iluminuras, 2008. 256 p.
SANTIAGO, Ana Lydia. A inibição intelectual na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2005. 229 p.
SANTIAGO, Ana Lydia. Psicose e surto na adolescência: por que os adolescentes
surtam tanto? In: GUERRA, Andréa Máris Campos e LIMA, Nádia Laguárdia de. A
clínica de crianças com transtornos no desenvolvimento. Uma contribuição no campo
da psicanálise e da saúde mental. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, p.75-89.
SANTIAGO, Jésus. O tempo na metodologia do testemunho. Texto não publicado (s.d).
SANTIAGO, Jésus. Aspecto atual da histeria na civilização da ciência. In: COUTO,
Luís Flávio Silva (Org.). Pesquisa em psicanálise (Coletâneas da Anpepp n. 16). Rio de
Janeiro: Associão Nacional de Pesquisa e s-Graduação em Psicologia, 1996, p.33-
42.
SANTOS, Luis Alberto Brandão e OLIVEIRA, Silvana Pessoa de. Leituras do tempo.
In: Sujeito, tempo e espaço ficcionais. Introdução à teoria da literatura. São Paulo,
Martins Fontes, 2001, p.54-65.
SANTOS, Tânia Coelho dos. O discurso analítico: novos sintomas e novos laços
Sociais. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2001. 340 p.
SANTOS, Tânia Coelho dos. Sintoma, corpo e laço. Social. Ed. Sephora/UFRJ: Rio de
Janeiro, 2006.
SARTRE, Jean-Paul. As palavras. Memórias. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2005.
175 p.
SCHITTINE, Denise. Blog: comunicação e escrita íntima na internet. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2004. 235 p.
SOARES, Magda. Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura.
Educação e Sociedade. São Paulo, Campinas, vol. 23, n. 81. 2002, p.143-160.
Disponível em http://www.cedes.unicamp.br.
SOLER, Collete. A clínica do Real. FOLHA. Revista da Cnica Freudiana. Ano 3, n. 30.
Salvador: Fator, 1989.
374
SOLER, Colette. Rousseau, ombolo. In: A psicanálise na civilização, trad. Vera
Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1998a, p.29-62.
SOLER, Colette. Sintomas. Comisión de Publicaciones. Asociación del Campo
Freudiano de Colombia (ACFC). Calle 51, n. 9-29. Santafé de Bogotá, Colômbia, jun.
1998b.
SOLER, Collete. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
SOUZA, Aguinaldo Gomes. Revista Letra Magna. Revista Eletnica de Divulgação
Científica em Língua Portuguesa, Linística e Literatura, Ano 4, n. 7, 2º semestre de
2007. ISSN 1807-5193. Disponível em: http://www.letramagna.com/generos
_virtuais_revista_aguinaldo.pdf.
STEVENS, Alexandre. Adolescência, sintoma da puberdade. In: Clínica do
contemporâneo. Revista Curinga. Escola Brasileira de Psicanálise. Seção Minas, 2004,
n° 20, p.27-39.
TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1999. 431 p.
VIEIRA, Márcia Rosa. Fernando Pessoa e Jacques Lacan: constelações, letra e livro.
Tese doutorado (Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários). Belo
Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais, 2005. 292 p.
VIGANÓ, Carlo. As dependências patológicas. Latusa Digital, ano 5, n. 33, jun. 2008.
ZIZEK, Slavoj e DALY, Glyn. Arriscar o impossível. Conversas com Zizek, trad.Vera
Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 211 p.
375
Sites pesquisados
www.blogger.com
www.robotwisdom.com
http://pt.wikipedia.org
http://www.ufpe.br/nehte/artigos/blogs.pdf
http://tecnologia.terra.com.br/interna/0,,OI737650-EI4802,00.html
www.uol.com.br
http://www.comunica.unisinos.br/tics/textos/2002/T3G4.PDF
www.peterme.com
www.jjg.net/infosift
www.camworld.com
http://www.peacetakescourage.com/page-home.htm
http://portal.eatonweb.com/portal/portal.php3
http://www.peacetakescourage.com/page-home.htm
http://portal.eatonweb.com/portal/portal.php3
http://www.conceitoweb.com.br/news.asp?codigo=3294
http://tecnologia.terra.com.br/interna/0,,OI737650-EI4802,00.html
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/1,,EDG74942-5856,00.html
http://www.nemonox.com/ppp/
http://zamorim.com
http://www.cultura.gov.br/foruns_de_cultura/cultura_digital/na_midia/index.php?p=206
45&more=1&c=1&pb=1
http://web.infomoney.com.br/templates/news/view.asp?codigo=900429&path=/suasfina
ncas/
http://tecnologia.terra.com.br/interna/0,,OI737650-EI4802,00.html
376
Blogs de adolescentes
http://desabafodeumaadolescente.zip.net/arch2006-10-15_2006-10-21.html
http://umacrisedeadolescente.zip.net/arch2008-08-10_2008-08-16.html
http://wastedwords.zip.net/arch2006-04-23_2006-04-29.html
http://bah-ba.zip.net/arch2006-06-04_2006-06-10.html
http://malucadanet.blogs.sapo.pt/
http://jovemsonhador.zip.net/arch2004-11-28_2004-12-04.html
http://desabafodeumaadolescente.zip.net/arch2006-10-15_2006-10-21.html
http://natinha.br.zip.net/arch2006-12-03_2006-12-09.html
http://kel-canarinho.blogspot.com/search?updated-min=2006-01-01T00%3A00%3A00-
02%3A00&updated-max=2007-01-01T00%3A00%3A00-02%3A00&max-results=11
http://rluchiari.zip.net/arch2006-11-19_2006-11-25.html
http://clarasonhadora.zip.net/arch2004-02-08_2004-02-14.html
http://adolescentegirl.zip.net/arch2006-07-30_2006-08-05.html
http://faroldalua.blig.ig.com.br/
http://kokoy_kitty.zip.net/arch2005-05-15_2005-05-21.html
http://gatinha.rbd.zip.net/arch2006-07-09_2006-07-15.html
http://my-private-life.blogspot.com/2006_11_01_my-private-life_archive.html
http://odiariodecaio.zip.net/arch2004-07-25_2004-07-31.html
http://avidalouca.zip.net/arch2004-08-08_2004-08-14.html
http://mlga.zip.net/arch2006-03-19_2006-03-25.html
http://srta.kah.myllinha.zip.net/
http://avidanaochega.blogs.sapo.pt/
http://pekenadoll.blogspot.com/
http://momentosdelilian.zip.net/arch2007-06-17_2007-06-23.html
http://luanadiario.zip.net/arch2007-12-09_2007-12-15.html
http://blogdasandia.zip.net/arch2005-10-23_2005-10-29.html
Http://pablomod.zip.net/arch2004-07-04_2004-07-10.html
http://diariodeumaadolescente.zip.net/arch2005-01-09_2005-01-15.html
http://secretodiario.zip.net/arch2006-09-24_2006-09-30.html
http://marializ.zip.net/arch2005-06-26_2005-07-02.html
http://mahandtassi.zip.net/arch2006-07-23_2006-07-29.html
http://odiariodeeumaadolescente.zip.net/arch2007-09-30_2007-10-06.html
377
http://laisrrodrigues.zip.net/arch2006-01-01_2006-01-07.html
http://naycacau.zip.net/arch2005-11-20_2005-11-26.html
http://diariodeadolescenteroquera.zip.net/arch2005-04-03_2005-04-09.html
http://cat12.zip.net/arch2007-07-08_2007-07-14.html
http://jujubb3.zip.net/arch2005-11-20_2005-11-26.html
http://thediarygirl.zip.net/arch2007-07-29_2007-08-04.html
http://heleng.zip.net/arch2005-09-18_2005-09-24.html
http://kcat.zip.net/arch2005-07-24_2005-07-30.html
http://diariodalola.zip.net/arch2006-07-23_2006-07-29.html
http://lloquinha12.zip.net/arch2005-07-16_2005-07-31.html
http://mia.aostreze.zip.net/arch2006-10-08_2006-10-14.html
http://carol_miranda12.zip.net/arch2004-06-06_2004-06-12.html
http://pitikacrys.zip.net/arch2005-10-23_2005-10-29.html
http://jaqueh.zip.net/arch2005-10-09_2005-10-15.html
http://arianediario.adolescente.zip.net/arch2006-07-02_2006-07-08.html
http://gatinha.rbd.zip.net/arch2006-07-09_2006-07-15.html
http://poetisaamorim.zip.net/arch2005-02-06_2005-02-12.html
http://magiasedesencantosdaadolescencia.zip.net/arch2006-11-16_2006-11-30.html
http://veronicah.zip.net/arch2006-10-29_2006-11-04.html
http://eu.adolescente.adicta.zip.net/arch2007-05-20_2007-05-26.html
http://gatinhamaluca.zip.net/arch2004-12-05_2004-12-11.html
http://gostodeopostos.blogspot.com/2007/12/selo-do-blog.html
http://rluchiari.zip.net/arch2006-11-19_2006-11-25.html
http://debora.vitoria.blog.uol.com.br/arch2004-10-10_2004-10-16.html
378
ANEXO: POR QUE OS JOVENS ESCREVEM BLOGS?
1) Blog: Diário da BaH
http://bah-ba.zip.net/arch2006-06-04_2006-06-10.html
06/06/2006
Oiee!!
Hmmm.. o//
Então.. ateh q enfim criei meu Blog.. Meu diário.. hehe. Deve ser legau, contar minhas "aventuras".. quer
dizer, nem são aventuras.. ah sei lah, soh sei q passo por tanta coisa..bem, sou uma adolescente normal,
com meus 14 anos, chegando nos 15 esse ano, o//tenho meus amores, minhas dores, decepções.. como
todo mundo! tenho meus amigos, minahs amigas..minha vidinha normal..tenho meus estudos.. tenho a
minha família q eu amo d+! tenho mta coisa.... e pretendo compartilhar todas minhas alegrias e tristezas
aqui... procurar conselhos de vez em quando tbm eh bom, ñ faz mal a ninguem.. =D
Acho q eh isso..
Beijos!!
2) Blog: Adolescente-Blog da gatinha
http://malucadanet.blogs.sapo.pt/
02/01/2004
A primeira vez nunca se esquece.
Olá eu! Dou hoje início àquilo que será a mais profunda busca de mim mesma, à mais intensa viagem
àquilo que sou e que sinto. Não acho que sou louca, pelo menos não mais do que aquela anormalidade
que consideram normal. Sou apenas uma rapariga que tomou como decisão de ano novo querer ser eu
própria. Para isso preciso saber quem sou, mas eu chego lá. Por hoje digo só: olá vida nova! ___eu___
3) Blog: Diário de um adolescente
http://jovemsonhador.zip.net/arch2004-11-28_2004-12-04.html
28/11/2004
Beleza galera ...
Oi galera, neste blog pretendo falar um pouco do que penso, do que gosto,eventualmente vou publicar
letras de músicas,fotos e dicas legais,além de um pouco do meu dia a dia,espero que vocês gostam, e por
favor, deixem seus comentários.
4) Blog : Desabafo de uma adolescente http://desabafodeumaadolescente.zip.net/arch2006-10-
15_2006-10-21.html
379
18/10/2006
oi gente q eu acho q nao vai ter muita pois nao vou passar para todos .....hj eh o 1°dia de postar ...quero
q aqui seja um diario q atrai apenas pessoas q estao passando pelo mesmo problema ....ser adolescente
nao eh facil neh ...bjs boa noite ate a proxima
- Postado por: Bruninha �s 00h35
5) Blog: Vida de Adolescente é Style!!
http://natinha.br.zip.net/arch2006-12-03_2006-12-09.html
03/12/2006
Este Blog é tipo um diário de duas adolescentes completamentes sequeladas, mas super alto-astral!!!
Conta os nossos rolos, micos, muitas históriasss!!!!!
6) Blog Diário de uma canário: a história de um canarinho que queria voar
http://kel-canarinho.blogspot.com/search?updated-min=2006-01-01T00%3A00%3A00-
02%3A00&updated-max=2007-01-01T00%3A00%3A00-02%3A00&max-results=11
10/09/2006
Sou Racquel. Mas me chamem de Kel, por favor. Mãe adolescente. Engravidei com 15 anos. Agora tenho
17. Moro com meus pais e meu namorido praticamente mora conosco. É daí que surgem a maioria dos
meus problemas. Amiga, companheira pra todas as horas e conselheira. Alguém que busca liberdade,
independência. Uma menina tentando ser mulher. Querendo ser guerreira. É isso o que sou. Não sou
uma garota de vícios. Mas "preciso" de uma xícara de café com chocolate seguidos de um copo d'água
depois do almoço. Também estou viciando em Net e Internet. E, agora que descobri o blog, em escrever.
Não consigo mais parar. Sou louca por doces. Não vivo sem. Minha mente é confusa e contraditória.
Quero ser uma patricinha fútil. Quero mudar o mundo. Quero mudar minha vida. Quero coisas demais.
Coisas contraditórias demais. Repito muito as palavras. Uso reticências demais. Gosto muito do que
escrevo, e me orgulho. Mas normalmente quem gosta do que escrevo sou eu... Tinha escrito um texto
enorme. E infinitamente melhor que esse... Mas que deu erro. Fica isso mesmo! Beijos a todos! E não
se esqueçam de comentar...
7) Blog: Diário de uma adolescente
http://rluchiari.zip.net/arch2006-11-19_2006-11-25.html
19/11/2006
380
Começo de tudo
Olá...
Aqui começo a escrever de mim, um pouco de cada dia, um pouco da minha vida...
Aqueles que queiram ler, muito bem!
Quem nao quiser, aperta o X lá em cima...
Procurarei atualizar assim que puder sempre!! valeu!!
8) Blog: Diário amoroso de uma adolescente sonhadora
http://clarasonhadora.zip.net/arch2004-02-08_2004-02-14.html
11/02/2004
Saudações
Essa é a mensagem inicial do meu blog, a partir de amanhã minha vida amorosa estará exposta em
capítulos muito interessantes, tenho certeza que todos vão adorar os desencontros de uma vida real
alimentada por fantasias.
9) Blog: Diário de uma adolescente.... Escrito por uma adolescente
http://adolescentegirl.zip.net/arch2006-07-30_2006-08-05.html
Apresentação
Sinceramente, eu odeio esses livros para pessoas como eu, em plena puberdade (por sinal, que palavra
horrível) de autores adultos e principalmente autores homens. OK, eles passaram por isso um dia e,
muitas vezes nos sentimos como eles, mas existe um pequeno e modesto detalhe nisso: nunca vi um
livro onde uma adolescente tenha escrito (exceto, talvez o Diário de Anne Frank) todas as suas dúvidas,
as suas confusões, os seus problemas, seus dramas, suas carências...se alguém conhece um, me diga, por
favor, porque eu estou cometendo uma rata terrível.
Eu não vou me apresentar, que eu não confio muito em Internet e tenho as minhas paranóias.
Não é qualquer um que sabe o meu nome não!!! Onde já se viu... hehehe...parece o meu pai falando. Ele
vive dizendo que tomemos cuidado com o que dizemos na Net. Eu sou a favor à opinião dele, mas às
vezes a gente burla um pouco essa ―regra‖.
OK, enrolei até agora, certo? Bem, eu decidi escrever esse diário pra desabafar e porque eu
sempre quis que alguém lesse o meu (que é cheio de babados!!! Tudo que as garotas mais gostam!!!) mas
nunca teria de coragem de entrega-lo de mão beijada.
Dêem uma olhada na minha condição atual:
Apelido: <<M>>
Orkut: eu tô na comunidade ―Eu amo a minha mãe‖ hehehe
Cidade: Qualquer lugar a qualquer hora
Idade: 15 anos
Status: Offline by the world
Preferências: música, beijar, fofocar, escrever, dormir, dançar, amar...
Odeio: acordar cedo, levar pé-na-bunda, TPM, menstruação, estudar, segurar vela...
Tô...: solteira e feliz
Acho que ta bom...diz aí, você não se parece comigo?
10) Blog: Farol da Lua
http://faroldalua.blig.ig.com.br/
14/03/2006
381
Sei lá... eu tenho um pobre blog largado... nem eu ligo pra ele coitado. Mas, é bom ter um blog... é bom
ter um lugar pra desabafar... quando comentam sobre aquilo que eu disse é melhor ainda ...
11) Blog: Diário de uma Adolescente Patty
http://kokoy_kitty.zip.net/arch2005-05-15_2005-05-21.html
15/05/2005
sse eh meu novo bloguinho...
naum sei mexer muitxo,
maix minha amiga tah me ajudando...
sejam bem vindas todas as °pattys° q visitarem meu blog!
eu vou blogar um monte d plaquinhas bem frescas...
quem gostar eh soh copiar e colar
bem....passei o meu fds todinho em ksa, na net...
vou indu agora!!!!
xauzim....e COMENTEM
12) Blog: Gatinha
http://gatinha.rbd.zip.net/arch2006-07-09_2006-07-15.html
3/07/2006
confusa
Isso parece ser estranho mais a cada dia que passa minha vida muda e pra pior pequenas coisas me
diverte o meu corpo muda, minha mente, como penso, minhas atiudes. As vezes para e pra que serve um
blog se quase ninguem o ve,outras vezes penso que serve para ser um diario (se vc tem medo que os
outros vejam o sue diario que se esconde em baixo da cama).Para todos os blogados ai vai uma dica as
nossas coroas so querem o nosso bem por isso denhem um tempo pra ela,ela sofre muito pra nos dar o
que temos.Vcs devem pensar que sou so uma pre-adolescente que ve muitos filmes e quero conparar
minha ida a eles mais neste instante nao penso nisso so penso em me acustomar com as mudanças da
vida principalmente as mudanças do boletim,mais isso é o de menos quero começar a pensar 10 vezes no
minimo antes de fazer alguma coisa diferente e estraordinaria.Bom isso é o que penso,essas foram
confisoes de uma pre-adolescente em crise
13) Blog: O diário de uma adolescente
http://my-private-life.blogspot.com/2006_11_01_my-private-life_archive.html
02/11/2006
Minha Vida Secreta
Oi!!!
hoje é meu primeiro post!!!
382
qro compartilhar com vc's minhas alegrias, tristezas, tudo q
eu estiver com vontade de compartilhar com alguém e não puder falar para
pessoas "ao vivo" eu colocarei aqui. """"""
Abração!!!!!!!!!!
14) Blog: Diário de um adolescente
http://odiariodecaio.zip.net/arch2004-07-25_2004-07-31.html
27/07/2004
Querido diário, hoje é o primeiro dia de nossa caminhada..... Blá, blá, blá, blá....
O necio e o seguinte, este blog vai dar o que falar, com histórias reais da vida de um adolecente que
tem muita experiências para contar. Me indentifico como Caio ou C@C@´ pois ainda não posso dizer
que realmente sou, mas no futuro direi a todos que me acompanham e seguem meu fatos. Isso porque sou
bastante conhecido, pois postei um blog a um tempo atrás e foi muito comentado então fiz muitas
amizades e derrepente percebi que não tinha mais graça postar naquele blog, pois não podia me
espressar totalmente, contar os fatos acontecidos em minha vida, pois tinha medo do que podia acontecer
por ser muito conhecido.
Agora resolvi blogar novamente e contar tudo sem por enquanto me identificar.
Mas se conquistar amizades verdadeiras que me demonstrem segurança, porque não contar quem sou? E
talvez poderemos até entrarmos em contato. O que acha deste meu novo projeto de vida????
15) Blog: A vida de Manu: Uma adolescente perturbada
http://avidalouca.zip.net/arch2004-08-08_2004-08-14.html
14/08/2004
Boas Vindas
Seja bem vindo ao meu blog, aqui você vai ver um pouco do meu diário, as fofocas, barracos, festas e
muito mais.
16) Blog: O meu diário na Net
http://mlga.zip.net/arch2006-03-19_2006-03-25.html
19/03/2006
É irónico como vimos um diario de uma adolescente, dixem k esta é a faxe melhor da noxa vida, una
parte tem rasão por outra ñ, andamos na escola e temos carradas d coisas para estudar! temos de
tomar decisões importantes k iram afectar a nossa vida já por adultos. Por ixo não venham com história
k a vida de um adolescente é a melhor fase, pois eu digo n é! A pesar k iremos ter muitos mais problemas,
mas as nossa decisões refletem nas escolhas k fazemos! A vida é tão complikada
383
17) Blog: Diário de uma aborrescente
http://srta.kah.myllinha.zip.net/
25/12/2007
Quase Louca aqui!!
Ah, hoje eu acordei agora a pouco, como ontem eu estava muito cansada, consegui me levantar
agora, mais isso não vem ao caso.
Estou ficando nervosa com o simples fato de não estar sabendo usar um necio que fiz aqui na web,
e isso é totalmente irritante. Mas vou tentar e tentar até conseguir. Aff.
Mas agora mudando de assunto, quero apenas dizer que irei postar duas vezes por dia, claro nem
sempre, pois não é sempre que temos algo interessante a dizer. Mas então, por agora é só que quero ver
se consigo arrumar o negócio que já citei a cima.
Beijos e até mais.
18) Blog: A vida não chega...
http://avidanaochega.blogs.sapo.pt/
26/08/2005
O meu nome é Joana, tenho 15 anos (por pouco tempo...) e moro em Portimão. Como é normal nas
pessoas da minha idade, tenho os meus amigos, muito importantes para mim, e o meu namorado, João.
Posso descrever-me, tal como diz na imagem sobre as pessoas com o meu nome, como uma pessoa
bastante indecisa, ou não fosse eu do signo Balança. Sou um pouco tímida, mas apenas quando não
conheço as pessoas. Considero-me uma boa amiga e, até agora, não tenho recebido queixas!
19) Blog: A minha vida.... a partir de agora
http://pekenadoll.blogspot.com/
Segunda-feira, Setembro 25, 2006
384
Bem este é o meu primeiro blog..decidi criá-lo nesta altura da minha vida pois preciso de desabafar..nem
ke seja so para um computador.. estou num buraco sem fundo, e kada vez sinto-me a afundar cada vez
mais.. foi-me diagnostikado anorexia nervosa, nada ke nu fundo eu já nao soubesse quando estou nos
meus momentos mais virados para a realidade.. levaram-m a uma medika, nem seker sabia ke ia a uma
psikiatra.. vim para casa pratikament km um ultimato da psikiatra, "ou keres te kurar a bem ou temos ke
tratar de ti a mal".. por um lado o k eu mais kero e livrarme dixtu..so penxo em cumida, sonho com
kumida, prokuro as calorias de tudo e mais algma coisa..mas dpx olho-me ao espelho e penxo, "espera la,
mas kual anorexia kual ke exa gaja (psikiatra) ta mas é maluka..eu tou gorda ke nem uma porka..magras
sao akelas modelos, essas sim sao anorecticas eu nu minimo sou obesa". Tenhu até para a semana pa
penxar no k kero fazr da minha vida.. amiga ou inimiga "ela" vive e sei ke sempre viverá cmgo..
Nome: pekena_doll
Localização: Portugal
20) Blog: Momentos da vida de Lilian
http://momentosdelilian.zip.net/arch2007-06-17_2007-06-23.html
18/06/2007
Este aki é meu 1º post
Neste blog vou contar um pouco sobre momentos vividos por mim e das minhas amigas. É como se fosse
um livro, um diário sobre minha complicada vida de adolescente.
21) Blog: O diário de uma adolescente
http://luanadiario.zip.net/arch2007-12-09_2007-12-15.html
Sábado , 15 de Dezembro de 2007
Oi meu nome é Luana, tenho 12 anos, tenho 1,52 metro, gosto de animais, viajar, estudar, moda,
minha familia, escrever no meu blog, desenho (ANIME). E eu sou mais eu quando sou eu!!!
385
Escrito por Luana às 22h27
22) Blog: Diário de uma adolescente
http://blogdasandia.zip.net/arch2005-10-23_2005-10-29.html
Quarta-feira , 26 de Outubro de 2005
E ai pessoal, beleza? Espero que gostem do meu blog, aqui vou compartilhar com vocês as minhas
histórias, fotos e fatos da minha vida e também da vida das pessoas que convivem comigo. Vai ser ―dá
hora‖. Aguarde e verá!!!!!!!!!!!
Escrito por SANDIA às 21h42
23) Blog: Simplesmente eu
Http://pablomod.zip.net/arch2004-07-04_2004-07-10.html
10/07/2004
É... Hoje é a primeira vez que ponho mensagens aqui. No meu diário virtual, onde expressarei todos os
meu sentimentos, vontades e tudo mais que eu sentir.
Hoje minha vida está na mesma rotina de um adolescente meio revoltado porém muito feliz.
Amanhã direi algo mais...
Escrito por Pablo às 07h53
24) Blog: Diário de uma adolescente
http://diariodeumaadolescente.zip.net/arch2005-01-09_2005-01-15.html
14/01/2005
BOA TARDE!!!!
O i gente, td bem? Espro que sim... Nossa que indelicadeza a minha, começo a postar aqui sem me
apresentar: M,e chamo Sheila, e acho que adolescente é um termo que eu me enquadro apesar de ter 18
aninhos... Bem, aqui pretendo contar tudo que se passa na minha vida, tristezas alegrias, e tudo que
de bom para ser contado e apreciado... mas não escrevo aqui, eu tbm escrevo num caderno, pois,
quando eu ficar velhinha, e não puder ir a cyber (rsss) eu quero ler e lembrar de omo eu era... mas
deixemos de detalhes bobos e vamos começar logo a blogar de verdade.
Ontem no orkut aconteceu uma coisa muito chata, eu disse que era uma Paty que gostava de rockeiros e
eles me xingaram até, mas hoje, meu scrap estava cheio de pedidos de desculpas!!!!! Muito legal, saber
qye há pessoas que assumem seus erros...
Meu tempo acabou beijos até amanhã...
25) Blog: Diário de um adolescente em crise
http://secretodiario.zip.net/arch2006-09-24_2006-09-30.html
30/09/2006
Oi
386
A primeira vez que eu vou blogar... bem nesse blog pretento contar a minha vida mesmo quero q ser
torne meu diario eu pretendo contar tudo o que acontece na minha vida...o que eu acho... não vou
esperar que entrem pq esse não é o proposito... blz!!!!
Escrito por secret.jr às 23h07
26) Blog: Depois que a gente cresce
http://marializ.zip.net/arch2005-06-26_2005-07-02.html
02/07/2005
Pra comecar...
Antes havia um diário, capa vermelha, forrado em tecido, tinha ate cadeado! Mas as palavras ficavam
ocultas demais! Para que escrever se não haverá leitor?
Assim, resolvi compartilhar minhas idéias. Não haverão manchetes em jornais, pois o que aqui esta
escrito é meramente um desabafo. Coisas que não diria olho no olho ou que tão somente vieram em um
momento que não havia para quem falar.
Eis então meu novo diário... diário de uma pós-adolescente que ainda vive situações similares àquela
época, pois, nesse arremedo de vida, todas as eras parecem sempre voltar; como se tivéssemos que ser
criança-adolescente-joven-adulto ao mesmo tempo!
Escrito por Maria Liz às 11h27
27) Blog: *. Diário Maah and Tassi . *
http://mahandtassi.zip.net/arch2006-07-23_2006-07-29.html
23/07/2006 Hii !*
Meu nome eh Anna Maria,tenho 12 anos e tive a idéia de criar um diário com minha * Best Friend *
para contar o que rola no nosso dia-a-dia e desabafar nossos pensamentos,porque daqui a algum
tempo,nós vamos querer saber o que se passava entre nós e saber o que pensavamos quando estavamos
se tornando uma adolescente.
Espero que gosteem !*
Kisses :*
/Maah
387
28) Blog: O diário de uma adolescente
http://odiariodeeumaadolescente.zip.net/arch2007-09-30_2007-10-06.html
04/10/2007
Boa tarde...
Bom, na verdade eu nem sei o que dizer... hum... eu ja tive um blog... um blog bem "baladado"... mas
acontece q eu excluí... To fazendo esse agora pq eh mais o meu estilo... Bom, aki eu postarei tudo oq me
vier a cabeça... só isso.....
Escrito por ~*~Lulynhah~*~ às 13h36
29) Blog: O diário de uma adolescente
http://laisrrodrigues.zip.net/arch2006-01-01_2006-01-07.html
06/01/2006
oie...primeira vez que tow blogando,espero que dessa vez dê certo isso aki!!! rsrsbom pra começar vou
falar um pouco de mim,o que digo?meu nome né?dã....me chamo Laís,vou fazer 17 anos(quero
presente),moro com minha e,só nois duas(meu pai,depois eu explico),estudo vou fazer 3
ano,amigos?tenho sim,que privilegio,hein? tenho amigos,conto nos dedos,mas isso que importa,amo
minha mãe(ela acha que nãO)mas ela é chata,qual mãe que não eh?briga pra caramba.."vai estudar
menina","sai dessa internet",mas e axim...gosta de pegar no meu pé,antes de sair passo por akele
interrogatório:"pra onde tú vai?","com quem?","fazer o q?","que horas volta?","qual o telefone de
lá?",bom....eh só isso,acho que acontece com muitos adolescentes,mas no fundo ela eh legal,acho que
vou entender por completo quando por mãe(isso que ela me diz),agora namorado cadê?bem...num
tenho,mas dizem que melhor tá sozinha que mal acompanhada,né?entaum...quando tiver que aparecer
vai aparecer(eu espero)....
acho que pra ter uma noção de como é minha vida,e a partir de hoje vou relata-la,naum liguem pois
ela eh monotona!!huahua
bjux
Escrito por L@lah às 19h07
30) Blog: diário de uma pré-adolescente
http://naycacau.zip.net/arch2005-11-20_2005-11-26.html
26/11/2005
Olá.
Meu nome é Nayara Souza Rocha, tenho 9 anos e estou terminando a série do ensino fundamental.
Tenho um irmãozinho que é a coisa mais linda. O nome dele é Gabriel e tem 1 ano e 3 meses. Espero
começar aqui uma boa conversa sobre tudo que gosto. Beijos, Nay.
31) Blog: Diário de uma adolescente
http://diariodeadolescenteroquera.zip.net/arch2005-04-03_2005-04-09.html
05/04/2005
388
oi galera esse eh o mais novo blog da net vao saber como eh a vida de uma pessoa q adora viver mas
naum tem tanta liberdade estou aberta a sugestões ajudem ai!!
Escrito por nathyrock às 15h31
32) Blog: Meu diário
http://cat12.zip.net/arch2007-07-08_2007-07-14.html
12/07/2007
Oi!
Meu nome é Cat,e no meu blog eu vou fala de tudo na minha vida tipo sobre:meus amigos,a
escola,passeios,inimigos e sobre o que penso e vcs vão me ajudar às vezes, a resolver muitos problemas
que se passam na minha vida,a vida de uma adolescente.
Bejuh!
Fui!
33) Blog: Diário de um adolescente
http://jujubb3.zip.net/arch2005-11-20_2005-11-26.html
6/11/2005
Bom meu plimeiro post...
meiu sem u qi iscrever...us outrus jujubb i jujubb2 saum meus tbm...sow qi eu perdih a senha....i agora mi
deu uma saudade di blog..intaum resolvih fazer outruh...aki eu vow desabafar mtu...msm qi poukus
vejam...=[[
Amigus...amu v6!!!!
34) Blog: Diário de uma menina
http://thediarygirl.zip.net/arch2007-07-29_2007-08-04.html
01/08/2007
*** Bem - Vindos ***
Sejam bem vindas
Nosso Blog... que não é bem um blog é na verdade o nosso diário. Vai tratar de vários assuntos do
universo de uma adolescente que retrata seus problemas e suas alegrias.
Somos duas meninas que estamos fazendo um trabalho escolar...mas q pretendemos levar isso muito
além ! (será q agente tira 10 nesse ?!?! hahaha )
Em breve traremos dicas e textos dos mais diversos e interessantes assuntos.
Não deixe de nos visitar Heim ?!
389
Beijos Milla e Juh
35) Blog: Meu diário na NET
http://heleng.zip.net/arch2005-09-18_2005-09-24.html
24/09/2005
Oi gente!!! Tudo bem com vocês? Espero que sim, né? Só para começar eu quero lhe dar as boas vindas,
ok? Espero que gostem do meu blog e voltem sempre... Se vcs quiserem é deixar o nome do seu blog,
que assim eu passo nele também, mas nao se esqueçam vcs serao sempre muito bem-vindos e voltem
sempre!!!
36) Blog: Diário de uma adolescente
http://kcat.zip.net/arch2005-07-24_2005-07-30.html
30/07/2005
Stand By Me
Boa noite galera, tenho 13 anos e criei este blog com a finalidade de compartilhar assuntos e idéias
com meus amigos e pessoas que se identifiquem com meu modo de pensar (mas tb com aquelas que
pensam diferente de mim). Parece estranho o título da mensagem, mas é que ao criar o Blog estava
tocando a música do Oasis que tem este nome e por se tratar de uma música muito bonita, resolvi coloca-
la como título da mensagem.
Um abraço a todos!!!
37) Blog: O Diário de uma Adolescente!
http://diariodalola.zip.net/arch2006-07-23_2006-07-29.html
24/07/2006
“Vivendo, Amando e Aprendendo.”
O que uma adolescente poderia fazer?
VIVER, AMAR e APRENDER
E é nisso que se resume a minha vida, neste espaço vou colocar como eu estou aprendendo a amar e a
viver.
Meu nome é... bom, meu nome não vem ao caso agora, mas pode me chamar de Lola, Miss Lola. Tenho
15 anos, moro no Estado de Santa Catarina. Logicamente no Brasil :}
Porque fiz esse blog?
Porque eu preciso me abrir com alguém, e como não tem "alguém" em que eu confie vou me abrir para
você, que está lendo meu diário neste momento. Quem sabe você não está passando por isso, ou passou e
Deus queira que não passe.
390
Cada dia, ou duas vezes por dia... não sei, vai depender muito de mim, vou colocar um assunto, no titulo
do post, e vou descrever o que está acontecendo comigo relacionado a este assunto, ou seja, vou escrever
o que eu estou passando que tem a ver com esse assunto.
Vou ser sincera mesmo, vou falar tudo o que eu fiz e o que eu eu penso em fazer. Não vou esconder nada,
já que a minha identidade será mantida em mais perfeito sigilo ;]
Medo? Acho que o motivo não seria esse, mas sim, a vergonha e o receio de me abrir como disse.
~Por isso não vou me identificar, e se achar ruim, o que está fazendo aqui???
Acho que é só por agora...
Depois eu voltarei...
XD~~
beijos...
∙•°○♥ Miss Lola ♥oº•
38) Blog: O diário de Lloquinha
http://lloquinha12.zip.net/arch2005-07-16_2005-07-31.html
21/07/2005
Bem vindos ao meu blog, em breve ele estará pronto e vcs vão adoramar!!! Estou fazendo o possível para
vc fazê-lo ficar legal, ah, e para quem não me conhece sou Lloquinha12 tb chamada de Arual ....
Esse blog está sendo feito especialmente para aqueles que o louquinhos(as), fanáticos por td que é
legal, que gostam de gifs fofos e para os integrantes do Elite s_aclube ....
Espero que gostem da Hello Kitty...
Escrito por Lloquinha12 às 11h33
39) Blog: Confissões de uma adolescente
http://mia.aostreze.zip.net/arch2006-10-08_2006-10-14.html
13/10/2006
Oi gentii!!
Bem-vindos ao meu blog!!
Espero ki vcs gostem... =)
391
~> Dexa eu me apresentar...
Bom, meu nome é Micaelly, mais todo mundo me chama de Mia (adoro).
Adoro a banda RBD, animais, internet... AMO MEU NAMORADO!
Hum... me add no orkut?
www.orkut.com/Profile.aspx?uid=7626977158761156257
Se vc gosta de rebelde tbm, entra aew:
www.flogao.com.br/rbdmixmia
Meu diário está aki... Em breve minhas confissões...
Bjux... fui...
Escrito por Mia às 13h37
40) Blog: Diário virtual
http://carol_miranda12.zip.net/arch2004-06-06_2004-06-12.html
10/06/2004
E aí galera, este é o mais novo blog sobre tudo o que uma adolescente deve saber
espero que gostem !!! BEIJÃO
Escrito por cacau às 16h30
41) Blog: Diário de uma adolescente
http://pitikacrys.zip.net/arch2005-10-23_2005-10-29.html
29/10/2005
como ja viram meu nome e mayta tenho 14 anos e estou naquela faze onde nunca sei se estou fazendo as
coisas certas onde nunca sei se meus "amigos" na verdade sao meus "amigos" espero dar conta de
expressar oque ando sentindo para voceis oi seja benvindo ao meu blog espero que gostem e se divirtan
com meu dia a dia que e uma comedia ha e não se esqueçam de comentar
:: Postado por mayta às 14h47
42) Blog: Diário da JaQuEhH
http://jaqueh.zip.net/arch2005-10-09_2005-10-15.html
09/10/2005
392
Apenas mais um dia
olah galera, to comexando hj o meu blog max antes tarde do q nunca. Bom hj eh apenas mais um dia
xato com xuva, mta ressaca d ontem, pq soh enchendo a cara pra mim ficar feliz, hj mta dor de cabexa e
mto sono. Estou decepcionada com algumas pessoas, max graxas a minha mamanhe grah e meus
miguxos lindux do colaxaum eu ganhei forxas e me reergui. Max eh issu essa mensagem eh apenas o
comexo, logo logo vcs saberam maix sobre meus dias infernais de adolescente!!
Escrito por by *_* JaQuEhH *_* às 14h02
43) Blog: Diário de uma adolescente em crise
http://arianediario.adolescente.zip.net/arch2006-07-02_2006-07-08.html
04/07/2006
Oi!!!!
Eu sô a Ariane... e tô aqu pra falar de assuntos atuais de Adolescentes para Adolescentes...
Escolhi este nome por que o filme é muito legal... vale a pena conferir
Bom estarei todos os dias postando para falar sobre fatos que acontecem com Adolescentes... dando
dicas ou coisas assim...
Bom é só... amanhã agente começa...
Escrito por Ariane Rovesse às 22h07
44) Blog: Diário de uma adolescente - Gatinha
http://gatinha.rbd.zip.net/arch2006-07-09_2006-07-15.html
14/07/2006
blog
Pra que sera que realmente serve um blog para colocar fofocas, ou pra falar do que a gente gosta, ou
pra falar nossos sentimentos, ou sera pra retirar nossas duvidas seja pra que for, faço de tudo um
pouco!E vc oq faz?*SEJA OQ FOR BOA SORTE E BAY*
45) Blog: Diário de uma adolescente
http://poetisaamorim.zip.net/arch2005-02-06_2005-02-12.html
11/02/2005
espero que tenham gostado da poesia.
meu nome é diuli e adoro escrever
Quero fazer amizade. Alguém topa?
393
Moro em Porto Velho -Ro. onde foi gravada a nova mini serie da globo 'Med Maria' ou Maria Louca
assim dizendo. Tenho 22 anos e você?
Sempre deixarei uma poesia, para que possam refletir sobre alguma coisa. Só espero que gostem.Um
abraço!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Escrito por poetisa às 20h09
46) Blog: Magias e desencantos da Adolescência
http://magiasedesencantosdaadolescencia.zip.net/arch2006-11-16_2006-11-30.html
23/11/2006
Bom á partir de hoje iremos falar e discutir sobre os assuntos da adolescência numa especie de Blog
Novela...
Esperamos que vocês gostem!!
Oi diário...
Hoje estou muito feliz, completo 12 acabo de me tornar uma adolescente, meus pais sempre me disseram
que esta fase é muito boa mais também que todos os adolescentes são estressados, briguentos, rebeldes...
Bom acho que comigo não será assim, acho que é apenas ladainhas que eles contam, sei que eles são
muito exagerados; Diário, estou feliz, na verdade estou animadíssima ganhei meu primeiro sutiã, meus
seios estão crescendo e na verdade isso é muito bom, alias, não sei se já lhe contei mais há um garoto no
meu colégio, mais velho, ele está na 7ª série é muito lindo e vive falando do corpo das meninas do
colegial, quero ter um corpo bonito igual o delas, assim quem sabe ele me olha também...
Bom diário vou ficando por aqui, tenho que ir pro colégio e a noite é minha festa de 12 anos, eu convidei
a todos da minha sala e também algumas de outras salas, alias fiz questão que o Rafael ficasse sabendo
da minha festa, nossa seria legal se ele aparecesse por lá mais acho que é sonhar de mais...
Até amanha Diário
Beijos
47) Blog: Veve
http://veronicah.zip.net/arch2006-10-29_2006-11-04.html
02/11/2006
Aki poderei colocar todos os meus pensamentos....
Sem ninguem ao menos saber.... poderei colocar de td, desde meus desejos mais fortes, qto aos meus
piores rancores....
Sei q minha vida eh igual a de toda adolescente... e todos temos um objetivo, e o meu, eh perder minha
timidez podendo assim, flr com todos sem receio algum...
Nao sei pq, as vezes tento me afastar das pessoas... gosto mtu de ficar sozinha, na minha.... pensando na
vida....... mas mtas vezes preciso de uma compania para poder me desabafar.. pq apesar de td, ninguem
eh de ferro neh...........
Resolvi fzr esse "diario", pra ver se assim, eu consigo me expressar mais o q eu sinto... e kem sabe ate
desabafar um pouco neh.............
394
48) Blog: Eu. Adolescente. Adicta.
http://eu.adolescente.adicta.zip.net/arch2007-05-20_2007-05-26.html
25/05/2007
bom dia eu adicta em recuperaçao mais um dia limpa de substancias que alteram meu estado de humor
prestes a completar 6 meses de recuperaçao e durante esse tempo mim vem varias lembranças boas e
ruins também.... como falei eu sou uma adolescente que esta em recuperaçao bastante cedo graças à uma
irmandade "NA" que salvou minha vida... mim perdi no cruel mundo de drogas e graças ao apoio de
minha família eu pude sair deste mundo à tempo... hoje descobri que existe sim uma maneiro nova de
viver sem nenhuma substancias pscoativas.. e hoje sou uma pessoa feliz graças ao meu poder superior
que mim devolveu a minha sanidade e minha vida a esta irmandade e a minha família... mas tudo
aconteceu poque eu quis pois so consegue sair das drogas quem realmente quer e nao quem precisa.... só
por hoje continue voltando que nas proximas páginas mas coisas serão reveladas.... por hoje bons
momentos a todos
Escrito por EU ADOLESCENTE EM RECUPERAÇÃO às 12h15
49) Blog: Só para loucos
http://gatinhamaluca.zip.net/arch2004-12-05_2004-12-11.html
10/12/2004
OI gente ....eu sou a Gatinha Maluca...desculpa não colocar meu nome verdadeiro...é que como isso é
um diario, prefiro declarar tudo sem omissoes e é bem melhor fazer isso sem qu voces saibam quem eu
sou....aposto que querem saber tudo o que se passa na cabeça de uma adolescente que não mediu
esforços para curtir a vida...então é isso que eu irei fazer só com escondendo uma coisa minha
identidade espero que voces entendam...
Escrito por Gatinha Maluca às 15h22
50) Blog: crônicas de um adolescente
http://gostodeopostos.blogspot.com/2007/12/selo-do-blog.html
Sou um louco atrás da felicidade. Um louco que procura amigos e creio ter encontrado uns mais
loucos que eu. Um louco que ri, brinca,chora,tem dias de bom e de mau humor. E esse louco
compatilhará cada momento dele com vcs.
Sexta-feira, 30 de Março de 2007
desabafo inicial
Mesmo com a intenção de sair do armário, ainda não consegui. Com todas as correntes que me prendem
a essa sociedade que independentemente de dizer que é contra o preconceito ainda discrimina da pior
forma o possível todo ser que tente sair desse antro de marionetes.
Vivo no anonimato desde que encontrei minha sexualidade... Desde cedo percebi que tinha gostos
diferentes dos meus amigos e de certo modo sentia algo por eles que não sabia explicar,mas sabia o que
era.
Como ouvi dizer: "gosto de maçã e de pêra" ou "do meu lado eu gosto de opostos" ainda não assumi
minha bissexualidade por medo... Medo de que ainda não sei.
Pretendo descobrir com os que aqui vierem a me ajudar e buscar ajuda,pois tenho consciência de que há
muitos na mesma situação que eu.
agradeço aqueles que me compreenderem.
Com saudade por Raphinha às 16:34
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo