145
amorosas e ternas, especialmente com sua irmã, Maja; na casa dos Freud a música era
proibida — porque Sigmund, desde pequeno, não a tolerava — e as relações fraternas eram
difíceis. Ao longo de dez anos, Freud enfrentou uma seqüência interminável de irmãos, que
iriam, ao longo de toda a sua infância, roubar-lhe o tão necessitado aconchego da mãe
743
.
A infância e juventude de relativa e até aguda privação, e o “medo à pobreza”
744
,
deixariam marcas que influenciariam não apenas a personalidade de Freud, mas também o
desenvolvimento teórico, social e político da Psicanálise. Uma primeira conseqüência das
marcas da pobreza e da dependência financeira de outros, foi que ao lado da “profunda
autoconfiança”
745
que Ernest Jones identifica em Freud, haviam “estranhos sentimentos de
inferioridade”
746
que a encobriam. Freud caracterizou-se, mesmo na vida adulta, por aquilo
que Paul Roazen
747
chama de uma “tendência para idolatrar heróis”
748
, e que Ernest Jones
aponta como “dependência e um correspondente apreço excessivo da outra pessoa”
749
. Jones
atribui essa tendência de Freud a uma projeção de “seu inato senso de capacidade e
743
Em Freiberg nasceram Julius (1857-1858) e Anna (1858-1955). Em Viena, Rosa (1860-1942), Marie (1861-1942),
Adolfine (1862-1942), Pauline (1863-1942) e Alexander (1866-1943). Julius, o segundo filho de Jacob e Amalia, os pais de
Freud, morreu de uma complicação intestinal com cerca de sete meses, (Freud tinha dois anos), e recebeu o nome do irmão
mais moço de Amália, que falecera, aos vinte anos, um mês antes do nascimento do irmãozinho de Freud. Louis Breger
comenta que “A combinação do sofrimento de sua mãe, em conseqüência das mortes de seu irmão e seu segundo filho, e suas
aparentemente intermináveis gestações associadas às exigências dos novos bebês, significaram que o jovem Freud pôde
desfrutar muito pouco do tempo, da atenção e do cuidado dela [sua mãe]” (BREGER, 2000, p. 14.). Então, quando Freud
tinha menos de dois anos e meio, a situação se complicou ainda mais com o nascimento de sua irmã Anna, em 1858. Os
sentimentos de ciúmes e rivalidade extrema foram inevitáveis em Freud. Como escreveu Ernest Jones, “A experiência parece
ter tido um efeito duradouro, pois Freud nunca viria a gostar dessa irmã.” (JONES, 1963, v. 1, p. 10). (Todas as traduções das
citações são nossas.)
744
Freud a Fliess em 7/5/1900. Apud. GAY, 2004, p. 136.
745
JONES, 1963, v. 2, p. 3. A tradução é nossa.
746
Id. Ibid., p. 3. A tradução é nossa.
747
ROAZEN, 1971, p. 70. A tradução é nossa.
748
Freud, devido a “estranhos sentimentos de inferioridade” (JONES, 1963, v. 2, p. 3), provavelmente devido à imensa
cobrança de alto desempenho que lhe fora imposta pela família, associada à falta de aconchego do lar, procurou superar sua
infância de privações através da identificação com grandes heróis militares, algo que surgiu já muito cedo em sua vida.
Conforme analisa Louis Breger, isso era uma conseqüência natural da fuga compensatória de Freud de sua realidade pobre e
traumática. Como ele coloca, “Assim como muitas crianças espertas em circunstâncias similares, ele buscou refúgio no
mundo de sua imaginação” (BREGER, 2000, p. 2). Nessa fuga compensatória ao mundo dos heróis, era visível a
identificação preferencial de Freud com os heróis militares: “A figura heróica que mais o seduzia era a do conquistador, o
general que conduz seu exército para a vitória no combate. Alexandre, o Grande; Napoleão e o cartaginês Aníbal, que cruzou
os Alpes para atacar o poder de Roma, eram os homens que despertavam seu ardor” (BREGER, 2000, p. 3). Ernest Jones, o
mais elogioso biógrafo de Freud, comenta: “Durante seu amadurecimento Freud passou por uma fase inequivocamente
militarista, a qual ele relacionava com suas batalhas com o sobrinho na primeira infância. Um dos primeiros livros que lhe
caiu nas mãos infantis, após ter aprendido a ler, foi o Consulado e Império, de Thier [A. Thiers: História do Consulado e do
Império na França sob Napoleão]. Ele [Freud] nos conta como colava pequenas etiquetas nas costas de seus soldadinhos de
chumbo com os nomes dos oficiais de Napoleão. Seu favorito era Masséna, que se acreditava ter sido judeu; ele [Freud] era
auxiliado neste culto ao herói pela circunstância de terem nascido na mesma data, com cem anos de diferença” (JONES,
1963, v. 1, p. 23).
(A tradução das citações é nossa.)
749
JONES, 1963, v. 2, p. 420. A tradução é nossa.