Se a água é a substância de todos os sacramentos, há toda uma vocação sacra desse rio
apostólico que, desde Anavilhanas, é pastor de ilhas, e de perto acode as igrejas de Manaus
com sua flauta de mururés e de marulhos.
Um dia, entre seus braços de garças e de orquídeas, a fé uniu-se à luta - e desde então a
nossa luta é a fé - quando Ajuricaba, a rogar ao seu Jesus Tupã, sofrendo no rosário das
correntes, chegou à eternidade para entregar os nossos últimos grilhões. O sangue do
mártir guerreiro nutriu de liberdade, para sempre, a fonte que nos tira a sede. E a fonte sabe
que carrega para nós, definitivamente, o penhor de uma vigilância que assegura a
identidade, defende o solo e constrói o destino. A luta da fé, ao nível das sociedades, é a
preservação das vocações mais essenciais do povo. O Rio Negro é um rio de liberdade, e
Manaus a sua companheira de atalaia. Nós somos a civilização indestrutível da água e da
terra que se amam.
Protegei, Senhora, essas águas enormes, irmãs das do Jordão, e suas ameaçadas festas
de gorjeios. Ao Negro pertencem as praias do futuro, a ele que, antes de nós, já celebrava o
Reino na Baía de Boiaçu, a partir de sua índole missioneira, com seu enluarado séquito de
virgens cobras-grandes. Protegei nosso Rio Negro, círculo de paraíso vindo do Gênesis
para fazer de Manaus a conservadora das primícias da Criação. E descansai também,
Senhora, sob a vigília lustral das suas águas vivas, na pontualidade devocional do seu
regime.
IV
Rogai pelo nosso clima - que, com o sol inteiro e a chuva inumerável, nos torna fortes e
contemplativos como os heróis e os santos. Aqui vossos fiéis se amorenam como faziam os
apóstolos ao sol da Galiléia, nas pescarias, de homens. Antes como agora, já nascem os
corações predestinados, pelo sinal da estrela, ao encontro definitivo com a luz. E as águas
descidas e palmilhadas são o espaço onde se dá a glória dessa busca.
Conservai, Senhora, as nossas chuvas, mães brancas dos igarapés, sempre coroadas de
canções perdidas. Chuvas de dezembro, fevereiro, abril, chuvas de todo dia, em que a luz
bebe, pelos arco-íris, os perfumes e as lendas. Chuva sempre doce para nós, e nunca
ácida. Essas bilhas de índias samaritanas que os céus quebram sobre nossas matas, essas
chuvas de grãos escolhidos, nós as recebemos na pele e na língua das raízes como o maná
distinto da Planície. E essas chuvas de Deus nos cercam de abundância, e sobem para Vós,
no ciclo da Providência, em nuvens satisfeitas, comovidas.
Imagino nossos ventos perfumados, artífices do clima, como pajens da vossas vestes,
pressurosos em vos entregar os bordados e as luzes da Amazônia. Os ventos da manhã
sopram de leste, trazendo os fios translúcidos da aurora. Chegam, os do meio-dia, com as
cores dos frutos e o cetins transpirados pelas rosas. Aqueles que, correndo a oeste,
conhecem as rocas do crepúsculo, trazem os florões de uma estrela que cai para as bandas
da eternidade. Recolhei as dádivas dos nossos ventos, Senhora, e usai-as como agasalho
que vos sirva em vossa peregrinação pelos mundos. Assim vos lembrareis de como são
belos, caridosos e mansos os ventos que dão alma à nossa atmosfera.
Também, Advogada nossa, conservai nosso sol e seu poder de dissipar as sombras, este
sol cujos raios ainda não recuam ante nuvens nimbadas de fuligem, mas que já teme, como
uma estrela de pouso ameaçado, enregelar seus dedos na palidez dos rios martirizados.
Senhora, nosso sol estala nos ouriços, alveja os varais de juta, ceifa na superfície o brilho
dos cardumes. Conservai-o assim, o mais íntegro, o mais digno, pelo seu alto brilho, de
prefigurar sobre o planeta o rosto do vosso Filho. Esse é o sol de Manaus, o mais belo e o
de missão mais forte.
Sabeis, Nossa Senhora de Manaus, que nós somos a civilização da água e das forças do
sol do terceiro milênio. Que permaneça entre nós esse inverno limpo e seus ventos sadios,
inverno dos frutos e das reflexões. Que permaneça sobre nós, com a vossa graça, esse
estrela forte do verão caboclo, suspensa como signo de Davi sobre a nossa união.