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novo na célebre Carta a Marcus Herz de 21 de setembro de 1772, onde
esboça o plano da obra que, após uma longa gestação aparecerá em 1781
sob o título de Crítica da razão pura. Ora, a primeira secção da primeira
parte dessa obra deveria, segunda a carta de Herz, intitular-se: A
fenomenologia em geral. O fato de que Kant não tenha posteriormente
retido esse título e tenha preferido o de Estética transcendental retardou
sem dúvida alguma a carreira do termo. Mas nem por isso uma
fenomenologia está ausente da Crítica kantiana pois esta, ao se entregar
a uma investigação da estrutura do sujeito e das “funções” do espírito, se
dá por tarefa circunscrever o domínio do aparecer ou “fenômeno”. A
meta de tal investigação é, no entanto, menos a elucidação desse
aparecer do que a limitação das pretensões do conhecimento que, por
atingir apenas o fenômeno, não pode jamais se prevalecer de ser
conhecimento do ser ou do absoluto.
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Sabemos que Kant defende, na sua Crítica da razão pura, que o conhecimento
humano é um conhecimento apenas dos fenômenos e não das coisas-em-si. Para ilustrar
esta discussão, o filósofo alemão introduz, nesta mesma obra, o termo noumenon (nômeno)
para designar a coisa-em-si ou, em outras palavras, a própria realidade e o termo
phenomenon (também phainómenon), que seria a única esfera do real à qual o homem teria
acesso. Nas próprias palavras de Kant, o phenomenon, ou fenômeno, é “o que não pertence
ao objeto em si mesmo, mas se encontra sempre na relação entre ele e o sujeito, e é
inseparável da representação que este tem daquele.”
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Inspirado na visão kantiana Regis de Morais
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nos explica que
o mundo visita os nossos sentidos e, através destes, faz-se numa oferenda
à nossa inteligência e à nossa sensibilidade, estimulando-as. Mas os
nossos sentidos, todos eles, têm limitações de alcance; além do que, entre
os sinais do entorno e os sentidos que temos, há vibrações do ar,
entrecruzamentos de efeitos, distâncias – enfim, um complexo de
interferências e dificultações. Assim, olhamos e vemos, mas vemos aquilo
a que nossa inteligência e nossa sensibilidade podem ter acesso.
Por esta razão lembrava o filósofo Immanuel Kant que temos
acesso ao fenômeno (phainómenon), no sentido daquilo que aparece no
âmbito das nossas humanas possibilidades. As “coisas em si” (o
nômeno), que com sua incidência sobre nossa sensação e nossa
percepção estimulam-nos a atingirmos os fenômenos, a estas realidades
em si mesmas o homem não tem acesso. Isto é desanimador e diz-nos que
7
André Dartigues, op. cit., p.11-12.
8
Apud N. Abbagnano, op. cit., p.415.
9
Arte: a educação do sentimento, p.37.