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operação no romance de Lins do Rego não é o de “Tal engenho, tal senhor ou Tal usina,
tal usineiro”
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, mas mais propriamente o inverso, apesar do esquematismo da
configuração, longe de nosso raciocínio até aqui, ou seja, algo como: Tal senhor, tal
engenho ou Tal usineiro, tal usina
145
. Melhor dito ainda: Tal intelectual urbano de
origem rural com afeição pela literatura intimista, tal visualização do engenho que
combina documento e invenção.
José Aderaldo Castello, por sua vez, também não alcança a literariedade da obra
de Rego, quando situa Bangüê como um livro de transição na obra de José Lins do
Rego, momento em que “o romancista julga libertar-se da predominância da
memória”.
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Se há, de fato, o cárcere da memória a dificultar a construção ficcional nos
dois primeiros livros, embora sem a impedir, aqui o processo é revertido a um discurso
mais objetivo sobre a memória do engenho, isto é, com Lins do Rego situando
conscientemente a literatura que estava fazendo no plano da história literária. Ao situar
a “literatura de engenho” como tema do passado, de uma tradição nobiliárquica do
século XIX (portanto associando àquela tradição passadista as obras de autores ainda
próximos, como Mario Sette e José Maria Bello) o escritor está pensando no papel da
sua própria literatura, sobre seu próprio tempo presente. Daí as hesitações e afasias da
própria forma literária. Ao figurar em Bangüê que a vida no engenho é um motivo
literário, o romancista, de certa forma, desfaz a idéia de instintivo, do memorialista
sincero, ressaltando o caráter de artifício (leia-se, de literário) de sua empreitada
147
. O
realidade do indivíduo e por isso consegue exprimir todo o patriotismo da vida do engenho, feito da
miséria do jornaleiro e da miséria do patrão.”
144
SÜSSEKIND. Op. Cit. p. 159.
145
Podem-se prever os resultados de tamanho esforço de esquematização em Süssekind, sendo o principal
deles a generalização apressada, como em “O engenho de José Lins mais parece um local paradisíaco,
sobretudo quando comparado à usina.” (Id. Ibid., p. 172). Sim, é o discurso ideológico dos personagens.
Mas será o do narrador? O engenho enquanto paraíso perdido é uma coisa, mas a visão do narrador
expressa a realidade do engenho em desarmonia tanto com a saúde precária do menino de engenho quanto
com o desencaixe cultural do Carlos de Melo em Bangüê, processo que se vai construindo em toda a
trilogia, mas principalmente em Doidinho, nas passagens em que o protagonista compara o engenho e o
que aprende na escola.
146
CASTELLO. Op. Cit. p. 129.
147
V. interessante discurso cosmopolita de Jorge Luis Borges (BORGES, Jorge Luis. O escritor argentino
e a tradição. In: Discussão. 2ª ed. São Paulo: Difel, 1986, p. 117-118), em que, comentando a rigidez da
tradição literária argentina, a exigência do tema nacional etc., escreve assim sobre a poesia “gauchesca”, o
que muito nos serve para a discussão de Lins do Rego: “Tudo isto pode ser assim resumido: a poesia
gauchesca, que produziu – me apresso a repetir – obras admiráveis, é um gênero literário tão artificial
como qualquer outro. Nas primeiras composições gauchescas, nas trovas de Bartolomé Hidalgo, já há um
propósito de apresentá-las em função do gaúcho, como ditas por gaúchos, para que o leitor as leia com
uma entonação gauchesca. Nada mais distante da poesia popular. O povo – e isto eu observei não apenas
nos ‘payadores’ do interior, mas igualmente naqueles dos arredores de Buenos Aires – quando versifica,
tem a convicção de realizar algo importante, e rejeita instintivamente as vozes populares e busca vozes e
rodeios altissonantes.”.