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FERNANDO HENRIQUE CREPALDI CORDEIRO
BALADA DA PRAIA DOS CÃES: O DESAFIATE ROMACE
POLICIAL DE CARDOSO PIRES
Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências, Letras e
Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista, Câmpus
de São José do Rio Preto, para obtenção do título de Mestre
em Letras (Área de Concentração: Literaturas em Língua
Portuguesa)
Orientadora: Profª. Drª. Sônia Helena de Oliveira Raymundo
Piteri
São José do Rio Preto
2010
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Cordeiro, Fernando Henrique Crepaldi.
Balada da praia dos cães: o desafiante romance policial de Cardoso
Pires / Fernando Henrique Crepaldi Cordeiro. - São José do Rio Preto:
[s.n.], 2010.
126 f. : il. ; 30 cm.
Orientador: Sônia Helena de Oliveira Raymundo Piteri
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de
Biociências, Letras e Ciências Exatas
1. Literatura policial portuguesa - História e crítica. 2. Ficção policial
portuguesa. 3. Romance policial português. 4. Pires, Cardoso - Balada da
praia dos cães - Crítica e interpretação. I. Piteri, Sônia Helena de Oliveira
Raymundo . II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências,
Letras e Ciências Exatas. III.Título.
CDU - 821.134.3-312.4.09
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do IBILCE
Campus de São José do Rio Preto - UNESP
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COMISSÃO JULGADORA
Titulares
Profª. Drª. Sônia Helena de Oliveira Raymundo Piteri - Orientadora
Profª. Drª. Márcia Valéria Zamboni Gobbi
Prof. Dr. Antonio Manoel dos Santos Silva
Suplentes
Profª. Drª. Marisa Corrêa Silva
Prof. Dr. Álvaro Luiz Hattnher
Em memória de meus avôs,
Sebastião e Arlindo.
AGRADECIMETOS
Agradeço à
Minha família: pai, mãe, Gu e Bi, obrigado por tudo;
Minha namorada: Mirane, obrigado pelo carinho e atenção;
Obrigado também ao Blaublau que sempre me escutou;
Meus amigos: Nessa hora sempre fica o sentimento de que se esquece alguém,
na tentativa de evitar isso vou fazer exatemente isso, ou seja, citar
alguns que representam todos. Gui, Tati, Poli, e Jú, obrigado pela
amizade e confiança;
Meus parentes: avôs, tios, primos, obrigado pela força;
Minha orientadora: Sônia, obrigado pela dedicação e paciência;
Meus financiadores: agradeço ao CNPq e à Fapesp.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 7
1. O GÊNERO POLICIAL EM DISCUSSÃO 14
2. UM ROMANCE EM SUSPEITA 32
2.1. O narrador e a construção dos personagens 42
2.2. O narrador sob uma nuvem de fumaça 62
3. OS FIOS COM QUE SE TECE A NARRATIVA 69
3.1. Primeira faceta: precisão 72
3.2. Outra faceta: questionamento 75
3.3. Narrador e autor: homologias 77
3.4. O autor, a subversão e a “lei” do policial 80
4. A CONSTRUÇÃO DE UM “BAÚ DE SOBRANTES” 87
4.1. O discurso jornalístico 88
4.2. O discurso técnico: científico/policial 94
4.3. O discurso literário 98
4.4. O “discurso musical” 101
4.5. Outros discursos 106
4.6. A variedade de registros e a construção do substrato social
107
CONSIDERAÇÕES FINAIS 113
BIBLIOGRAFIA 121
RESUMO: Este trabalho propõe-se a estudar Balada da Praia dos Cães (1982), de José
Cardoso Pires, sob a perspectiva da paródia do romance policial, tendo em vista que essa
obra utiliza-se de procedimentos típicos desse gênero para, a partir de dentro, subvertê-lo.
A subversão manifesta-se, principalmente, pelo desvio no foco da narrativa, que deixa de
ser a resolução do enigma, como no romance policial clássico, e passa a ser a construção
do texto/inquérito por parte do detetive e do narrador, ou seja, a obra não tem como foco
principal descobrir quem, como e por que ocorreu o crime, mas sim desvendar o processo
de composição narrativa. Nesse sentido, pode-se dizer que o romance cardoseano engendra
uma reflexão metalingüística que se desdobra em dois planos: por um lado, vemo-nos
diante de um texto que nos revela os próprios mecanismos que o constroem,
principalmente, pela recorrência e subversão do paradigma policial, e, por outro, temos um
romance sobre o processo pelo qual o detetive elabora uma narrativa a partir das provas,
indícios, etc. Tendo em vista essa configuração, destacam-se as instâncias do narrador e do
autor, que instauram no romance uma rede de desconfianças que desestabilizam as noções
de “verdade” e “autoridade” a partir do exame e questionamento dos mais diversos
discursos que se fazem presentes na obra de Cardoso Pires.
PALAVRAS-CHAVE: romance policial, paródia, narrador, autor, variedade de discursos,
Cardoso Pires
ABSTRACT: This paper aims at studying Balada da Praia dos Cães (1982), by José
Cardoso Pires, from the perspective of the detective novel parody, considering that the
novel uses the typical procedures of this genre and then subverts it. Subversion is
manifested mainly by diverting the focus of the narrative, which is no longer the puzzle
solving, as it is in the classic detective story, but the construction of the text/inquest by the
detective and the narrator, that is, the novel is not focused on finding out who, how and
why the crime occurred, but to unravel the process of the narrative composition. In this
sense, it can be said that the cardoseano novel engenders a metalinguistic reflection that
unfolds on two levels: on the one hand, we are faced with a text that reveals its own
mechanisms of construction, mainly for the recurrence and the subversion of the detective
paradigm, and, on the other hand, we have a novel about the process by which the
detective creates a narrative based on the proof, evidences, etc. Given this setting, the
highlights are on the instances of the narrator and the author, which introduce in the novel
a network of suspicions that destabilize the notions of "truth" and "authority" from the
examination and questioning of many different speeches that are made present in the work
of Cardoso Pires.
KEYWORDS: detective novel, parody, narrator, author, variety of speeches, Cardoso
Pires
Balada da Praia dos Cães: the challenging novel by Cardoso Pires
RESUME: Este trabajo se propone investigar la obra Balada da Praia dos Cães (1982),
de José Cardoso Pires, desde la perspectiva de la parodia de la novela policíaca, teniendo
en cuenta que dicha obra se sirve de procedimientos típicos de ese género para subverterlo.
La subversión se manifiesta, principalmente, por la desviación del foco de la narrativa, que
deja de ser la resolución del enigma, como ocurre en la novela policíaca clásica, y pasa a
ser la construcción de la investigación por parte del detective y del narrador, es decir, la
obra no tiene como foco principal descubrir quién, cómo y por qué hubo el crimen, sino
desvendar el proceso de composición narrativa. Así, se puede decir que la novela
cardoseana engendra una reflexión metalingüística que se desdobla en dos sentidos: por
una parte, nos vemos ante un texto que nos revela los mecanismos que lo construyen,
principalmente, por el empleo y la subversión del paradigma policíaco, y, por otra, nos
percibimos ante una novela acerca del proceso por el que el detective elabora una
narrativa a partir de pruebas, indicios, etc. Teniendo en cuenta dicha configuración, se
destacan las instancias del narrador y autor, que instauran en la novela una red de
desconfianzas que desestabilizan las nociones de “verdad” y “autoridad” a partir del
examen y cuestionamiento de los más diversos discursos que se hacen presentes en la obra
de Cardoso Pires.
PALABRAS-CLAVES: novela policíaca, parodia, narrador, autor, variedad de discursos,
Cardoso Pires
Balada da Praia dos Cães: La desafiante novela policíaca de Cardoso Pires
ITRODUÇÃO
Com mais de 20 livros publicados, José Cardoso Pires é um dos mais importantes e
influentes escritores de sua geração. Sua trajetória na Literatura Portuguesa inicia-se com a
publicação de Os caminheiros e outros contos, em 1949. Sua vasta produção literária inclui
contos, romances, crônicas, entre outros, de difícil classificação, textos que fogem às
limitações dos gêneros, ampliando as possibilidades do exercício de escrita.
Um primeiro indício dessa liberdade da obra cardoseana percebe-se na sua relação
ambígua com o neo-realismo, movimento estético em curso na Literatura Portuguesa na
época de suas primeiras publicações, tanto é que, para Ambrogi (1981), toda a sua
produção literária sempre foi lida e elaborada num contraponto com o neo-realismo,
constatando-se, por vezes, aspectos que a aproximavam e, em outros momentos, que a
distanciavam desse movimento. Essa ambígua relação com os neo-realistas, de acordo com
Lourenço (1998), se dá pelo fato de que, embora estivesse ligado aos “valores, sentimentos
e esperanças” desses artistas, Cardoso Pires deu uma conformação diferente aos seus
textos.
Desse modo, pode-se dizer que, ainda que se perceba em sua obra uma preocupação
social que o aproxima do neo-realismo, o autor, segundo Cardoso (1999), trilha seu próprio
caminho, caracterizado por uma sutil análise psicológica dos personagens equacionada
com a presença do sarcasmo e do humor, que transformam a palavra num afiado
instrumento de denúncia. Embora de difícil classificação, é possível perceber, em sua
produção literária, certos elementos mais ou menos constantes, em especial, “[...] um
esforço para ser limpo, sóbrio, transparente como um vidro, cortante como o gume que
nele se esconde” (JORGE, 1998, p.17). Talvez essa seja uma das principais características
10
da escrita de Cardoso Pires, o rigor, mesclado, como quer Vasconcelos (1998), a uma
abundante porém lúcida e contida imaginação.
Torres (1967, p.292), por sua vez, refere-se a um “pseudo-elementarismo” em
textos que conseguem nos apresentar o mundo interior dos personagens pelos diálogos,
gestos ou por meio de “uma escrita metafórica”. A obra de Cardoso Pires constrói-se a
partir de uma linguagem que é simultaneamente enxuta, despojada, mas rica, a sua
simplicidade não implica a ausência de perícia, pelo contrário. Nesse sentido, não é de se
desprezar a importância que o jornalismo teve na escrita cardoseana
1
, que, de acordo com
Luís Miguel Cardoso (1999), oscila entre a objetividade pura e a crônica de sabor adjetivo.
Para o próprio escritor “a separação académica jornalismo-literatura convém aos
jornalistas que escrevem mal” (apud PORTELA, 1991, p.47), o jornalismo, sob seu ponto
de vista, serviria para “desaristocratizar a linguagem literária”. Dessa forma, a obra
cardoseana consegue, segundo Luís Miguel Cardoso (1999), afastar-se da “típica prosa
portuguesa, pesada e adjetiva”, distanciando-se também da prosa introspectiva.
Além disso, sua obra destaca-se pela discussão de questões de sua época e da
sociedade em que viveu, passando pela problematização do próprio fazer literário a partir
da exploração de novas possibilidades de escrita e do experimentalismo. Nesse sentido, é
possível dizer que sua obra flutua entre dois pólos aparentemente distintos, mas que
contribuem para a sua complexidade: por um lado, encontramos uma constante
transgressão dos paradigmas e das normas da convenção literária e, por outro, uma certa
preocupação com a questão social. Não é de se estranhar, portanto, que Ambrogi (2005,
p.78) afirme que a obra cardoseana, em especial depois da publicação de O Delfim, em
1968, coloque-se numa imbricação entre a “modernidade final” – representada em Portugal
pelo neo-realismo empenhado com a derrubada do salazarismo e a pós-modernidade,
1
Entre outros, Cardoso Pires colaborou ou trabalhou nas seguintes revistas ou jornais: O Globo, Afinidades,
Eva, Época, Almanaque, Diário de Lisboa. Para mais informações, consultar: PORTELA, 1991, p.115-118.
11
com a revisitação da história recente, a estrutura aberta, suspensão do enredo,
descentramento do sujeito e aproveitamento ficcional de vários discursos. Esse é, em linhas
gerais, o tom das obras que seguem aquela que é considerada sua obra-prima (O Delfim),
como é o caso dos romances Alexandra Alpha (1987) e Balada da Praia dos Cães (1982),
sendo este último o objeto de estudo deste trabalho.
Balada da Praia dos Cães vem recentemente recebendo uma atenção maior dos
críticos, contudo, deve-se ressaltar que os estudos se centram principalmente, por um lado,
nas relações sociais ou de poder (PEREIRA, 2005), ou no substrato ideológico (PETROV,
2005) presente na obra, e, por outro lado, no modo como a narrativa se constrói a partir de
uma grande variedade de pontos de vista e de discursos (PITERI, 2004; DUARTE, 2005)
que instauram uma tensão entre o real e o ficcional.
Em número mais reduzido são os trabalhos que focalizam as relações entre o
romance cardoseano e o nero policial, relação que tende a ser vista como algo unilateral,
e não como um diálogo, como uma força simultaneamente construtora e questionadora.
Fala-se, por exemplo, que o romance cardoseano como “nenhum outro parece manifestar
de forma clara o uso de um gênero de massas com o fim de que a sua mensagem séria [...]
atinja o maior número possível de leitores” (BRIONES, 1998, p.274). Visto sob essa
perspectiva, o gênero policial é encarado como uma espécie de cula, que é purificada
ao se destacar “valores outros” por de trás, como se, como quer Seixo (1996, p.55-56), os
autores que enveredassem por essa forma literária o fizessem como “quem deve pedir
desculpas pela fraqueza da sedução experimentada”.
Segundo a concepção de alguns críticos, nem ao menos se pode chamar o policial
de “forma literária”, como revelam estudos que afirmam não pretender distinguir em obras
que se relacionam com o policial o que é próprio desse gênero e o que “transcendendo as
suas leis, será do domínio do literário” (CUNHA, 2002, p.278). Nesse sentido, as leituras
12
críticas da obra de Cardoso Pires levam a entender que Balada da Praia dos Cães recorre
ao romance policial para afirmar-se como um “anti-romance policial” (BRIESEMEISTER,
2005, p.53), negando, portanto, as aproximações que essa recorrência pressupõe. Dizer que
o romance de Cardoso Pires é o contrário de uma narrativa policial, a nosso ver, é mascarar
o fecundo diálogo entre esse gênero e a obra, é negar que se reconhece o romance
policial, embora subvertido.
O estudo dessa relação dúplice de aproximação e distanciamento de Balada da
Praia dos Cães com o gênero policial é justamente o objetivo desta dissertação, que
procura perceber em que medida se poderia pensar em uma paródia desse gênero literário.
A paródia torna-se, nesse sentido, um operador de leitura fundamental, principalmente se
levarmos em consideração a revisão do conceito de paródia promovida por Linda
Hutcheon em seu livro Uma teoria da Paródia (1989).
A estudiosa canadense propõe uma atualização da noção de paródia, pois, segundo
seu ponto de vista, a idéia de uma “[...] ridicularização conservadora dos extremos das
modas artísticas [...]” (p.22) não é suficiente para dar conta das paródias produzidas pelos
artistas modernos. Ela vai então à etimologia da palavra “paródia” buscando demonstrar
que “para” em grego, além de significar “contra”, também pode significar “ao longo de”.
Tendo em vista essa dupla possibilidade, segundo a autora, à noção tradicional de contraste
junta-se a noção de proximidade e é esse caráter dúplice da paródia que ela passa a
valorizar. Desse modo, passa a definir a paródia como uma “repetição com diferença” em
que fica “implícita uma distanciação crítica entre o texto em fundo a ser parodiado e a nova
obra que [o] incorpora, distância geralmente assinalada pela ironia” (1989, p.48). Além
disso, para Hutcheon, não existe nada na etimologia de “paródia” que implique a noção do
ridículo.
13
A estudiosa afirma que tanto a paródia como a ironia operam em dois níveis, pois em
ambas está colocada a questão da sobreposição de sentidos. Na paródia é necessário que o
leitor reconheça, no texto paródico, o parodiado, e que perceba a aproximação irônica que
as paródias promovem. Desse modo, de acordo com Hutcheon, a paródia se assenta sobre
um interessante paradoxo que é o de ser, por um lado, uma continuidade e, por outro, uma
“ruptura”; trata-se de uma “subversão legalizada”. A paródia traz em si, segundo essa
concepção, um poder destruidor, pois pode ser vista como “uma força ameaçadora,
anárquica até, que põe em questão a legitimidade de outros textos” (p.96-97), e um poder
“legitimador”, pois precisa que o outro seja reconhecido nela. Nesse sentido, a paródia
necessita da institucionalização, precisa que existam normas e convenções estáveis para
poder, em seguida, subvertê-las. O texto paródico implica, portanto, o distanciamento
crítico e a sacralização do código parodiado.
A paródia, portanto, parece ser um instrumento de leitura propício para se observar
em que medida a narrativa cardoseana estabelece um diálogo ambíguo com o gênero
policial, uma vez que, por um lado, se utiliza de alguns de seus recursos fundamentais,
entre eles, a estruturação em dois planos narrativos, um se referindo à história do crime e o
outro à história da investigação, planos que são constantemente entrelaçados. Por outro
lado, o texto de Cardoso Pires distancia-se dos modelos canônicos do romance policial,
especialmente porque antecipa a resolução do crime, que constitui, em geral, o clímax nos
romances policiais tradicionais. Observa-se, ainda, que Balada da Praia dos Cães
ultrapassa os limites do acontecimento narrado, pois, ao contrário do que ocorre no
processo redutor de investigação empreendido pelo personagem Elias Santana, a obra abre-
se para diversas possibilidades.
Nesse sentido, é interessante notar a importância da variedade de registros
(arquivos, autos e relatórios policiais; notas de rodapé; notícias de jornais e de rádio;
14
trechos de interrogatórios; panfletos; dossiers; etc.) presentes na obra e que exigem do
leitor um trabalho de recepção ativa, na medida em que, como observa Piteri (2004), os
fatos relatados não são articulados por um narrador onisciente, eles aparecem de forma
desordenada, cabendo ao leitor “reunir” as diferentes peças.
Levando em consideração as peculiaridades do romance de Cardoso Pires, nosso
estudo se dividirá em quatro capítulos. O primeiro, intitulado “O gênero policial em
discussão”, constitui uma explanação acerca da teoria do romance policial em busca de
uma melhor delimitação sobre o que seria próprio dessa forma narrativa. Para tanto, serão
mobilizadas as formulações de teóricos como Todorov (1970), Boileau e Narcejac (1991) e
Colmeiro (1994).
O segundo capítulo, “Um romance em suspeita”, promoverá uma análise do
narrador na narrativa cardoseana, destacando de que modo são mobilizadas diferentes
vozes na narrativa e como esse narrador, por vezes, entrelaça a sua voz com a de outros
personagens, especialmente com a do detetive Elias. Visamos ainda demonstrar como o
narrador não se limita a contar a história e se “intromete” na narrativa, bem como realizar
um cotejo entre as principais características do narrador de Balada da Praia dos Cães e as
do protótipo de narrador policial.
As “intrusões” do narrador abalam a divisão, proposta por Tacca (1983), entre
narrador e autor, pois esse narrador subverte os limites aos quais estaria limitado,
aproximando-se, da noção de autor. Essa tensa aproximação entre autor e narrador é o foco
do terceiro capítulo, “Os fios com que se tece a narrativa”, em que observaremos as
sutilezas de um autor cuja voz só se percebe pontualmente, mas que, de maneira paradoxal,
parece estar presente por todo o romance.
No quarto capítulo, “A construção de um ‘Baú de Sobrantes’”, atentaremos para os
diversos tipos de textos que compõem Balada da Praia dos Cães, agrupados em: discurso
15
jornalístico, discurso científico/policial, discurso literário, “discurso musical” e outros
discursos. Essa variedade de discursos nos levará a discutir duas questões que estão ligadas
à paródia do gênero policial: a primeira, diz respeito ao modo como o romance desnuda os
procedimentos e estratégias da polícia no regime salazarista revelando os mecanismos
opressores do Estado; a segunda, possibilita a percepção do substrato social na narrativa
cardoseana, que conta com um detetive que “penetra” nas mais diversas classes sociais,
permitindo uma visão da sociedade portuguesa da época.
Nas considerações finais procuraremos sistematizar como a análise do narrador, do
autor e dos vários registros presentes na narrativa de Cardoso Pires contribuem para que se
perceba como o romance policial é mobilizado e subvertido no texto cardoseano.
1. O GÊERO POLICIAL EM DISCUSSÃO
Antonio Candido em seu texto “Crítica e sociologia”, inserido em Literatura e
sociedade (2005, p.5), diz que o modo mais expressivo de se chamar a atenção sobre uma
verdade é exagerá-la, o que não deixa também de ser um grande equívoco, pois em algum
momento surge uma reação inevitável deslocando essa antiga verdade para a categoria de
erro. Segundo o crítico brasileiro, foi o que sucedeu com a relação entre a obra literária e o
seu “acondicionamento social”, que no século XIX era considerada imprescindível para a
compreensão de qualquer obra e, posteriormente, foi “rebaixada como falha de visão”.
Pode-se dizer que com a noção de gênero ocorreu algo semelhante.
Todorov (1970, p.93-94) afirma que é possível perceber nos estudos literários, até
aproximadamente a cada de 70, certa reserva quanto às pesquisas que propõem uma
reflexão sobre a noção de gênero literário. Esse fato, de acordo com Todorov (1970) e
Aguiar e Silva (1968), pode ser explicado pela reação, em especial após o romantismo, à
visão que se tinha a respeito dos gêneros na época clássica, quando o gênero era visto de
forma normativa, como uma prescrição de como as obras deveriam ser, ou seja, “a
obediência de uma obra às regras do gênero em que se integrava, constituía um factor
preponderante na avaliação do seu merecimento.” (AGUIAR E SILVA, 1968, p.209). Com
os românticos observa-se o a recusa em obedecer às regras de gênero, mas também
comparece o questionamento sobre a sua possibilidade de existência.
Contemporaneamente, como atesta Todorov (1970), uma tendência para
conciliar essas duas vertentes, o que consistiria em partir da descrição estrutural de objetos
particulares, buscando, conforme se verifiquem traços recorrentes, uma definição dos
gêneros. Dessa forma, concebe-se que afirmar a singularidade da obra literária não
significa negar a “mediação das relações e estruturas gerais que constituem as condições da
17
possibilidade de experiência literária” (AGUIAR E SILVA, 1968, p.224), podendo-se
dizer, de maneira precária, que é com base nesse conceito que se guiará a definição do que
seja o gênero literário. Cabe ainda ressaltar que o termo “gênero”, na crítica literária,
refere-se tanto às noções clássicas de lírica, épica e drama, quanto às “diversas espécies
englobadas nestas categorias” (p.228). No caso do nosso trabalho, quando se fizer
referência ao termo gênero, estaremos justamente aludindo a uma dessas diversas espécies:
o romance policial.
Falar em gêneros literários, contudo, não é uma tarefa simples, principalmente
tratando-se de literatura contemporânea, uma literatura que cada vez mais testa e transgride
seus limites, constituída por textos que interrogam e envolvem o leitor, trazendo-o para
dentro de sua estrutura, textos que fazem do leitor não mais um fruidor passivo, mas, ao
contrário, exigem dele uma participação ativa a fim de suplementar os “lugares vazios”
(LIMA, 2002). Conforme observou Aguiar e Silva (1968), passa-se a perceber que o valor
de uma obra, diferentemente do que afirmavam os clássicos, não reside no fato de ela
obedecer a leis preestabelecidas; os textos tornam-se avessos a qualquer tipo de
esquematização, tornam-se híbridos, “pertencem” e não pertencem a um gênero, ou não se
enquadram em apenas um, mas em vários. A noção rígida e normativa de gênero cai por
terra e a sua própria definição se quer flutuante. É necessário atentar para o fato de que a
formalização, a teorização em gêneros está sempre a reboque das obras literárias que, cada
vez mais, inovam, transgridem, inventam novas fórmulas a partir das antigas. Essa situação
levará Todorov (1970, p.94-95) a dizer que as grandes obras literárias estabelecem,
simultaneamente, dois gêneros: o que elas transgridem e o que elas criam.
Feita essa pequena apresentação, passemos à discussão de algumas teorias sobre o
gênero policial, buscando traçar os principais aspectos que o caracterizam a fim de que seja
18
possível, ao final deste texto, se ter em mente o esquema lógico abstrato que, a princípio, é
esse gênero.
Nossa reflexão acerca do romance policial terá como alicerce as considerações de
Todorov (1970), Boileau e Narcejac (1991) e Colmeiro (1994), autores que apresentam
perspectivas diferentes sobre o assunto. Pretendemos verificar, então, quais são os aspectos
que marcam esse gênero e discutir algumas questões problemáticas - por exemplo, a
existência de tipos ou subgêneros em seu interior e a sua relação com a chamada “cultura
de massa” - que se colocam no cerne da caracterização do romance policial enquanto
gênero literário.
Todorov (1970) promove uma investigação sobre a estrutura do romance policial
procurando demonstrar ser possível construir uma tipologia para esse gênero, ou seja, julga
pertinente dividir, segundo alguns elementos constantes, o romance policial em vários
tipos. Para tanto, Todorov fundamenta-se em um componente estrutural do romance
policial (observado por Michel Burton) que ele considera a melhor caracterização global
do romance policial. Segundo Burton, “a narrativa... superpõe duas ries temporais: os
dias do inquérito, que começam com o crime, e os dias do drama que levam a ele.” (apud
TODOROV, 1970, p. 95-96). Para esse teórico, portanto, a principal particularidade do
romance policial é o fato de ele ser constituído por duas histórias: a do crime e a do
inquérito. A partir dessa primeira caracterização, e levando em conta a forma de disposição
e a ênfase dos aspectos constitutivos desse gênero, Todorov propõe três tipos de romance
policial.
O primeiro tipo seria o “romance de enigma” ou o “romance policial clássico”.
Nele, a história do crime tem como principal característica estar ausente, ou seja, quando
esse tipo de romance se inicia, ela já ocorreu – geralmente esse tipo de texto começa com a
informação de que algum crime foi cometido, de que alguém foi assassinado, portanto,
19
essa história termina antes da outra começar. Essa história não pode, portanto, “estar
imediatamente presente no livro” (TODOROV, 1970, p.97), pois é o papel da outra
história, a do inquérito, descobrir o que aconteceu na primeira. Essa é a principal
característica da segunda história, nela “nada acontece”, apenas se descobre o que
ocorreu. De acordo com Todorov, “é uma história que não tem nenhuma importância em si
mesma, que serve sòmente de mediadora entre o leitor e a história do crime”. Com essa
estrutura, o que segura a atenção do leitor é a curiosidade em saber o que se passou na
primeira história, sendo a descoberta/revelação desse enigma o clímax da narrativa. Outro
fator interessante é que o detetive, nesse tipo de obra, é invulnerável, não corre nenhum
perigo, porque, segundo Todorov, a ação propriamente dita já ocorreu.
O segundo tipo seria o “romance noir”, que se caracteriza por fundir as duas
histórias, o crime não é anterior, narrativa e ão coincidem (TODOROV, 1970, p.98).
Nesse tipo de texto não é a curiosidade que mantém o interesse do leitor, ele não fica
tentado a adivinhar quem cometeu o crime, pois o crime ainda não ocorreu; o que o
mantém atento é o suspense, o interesse gira em torno da expectativa pelo que vai
acontecer. Esses aspectos são importantes para delinear o romance noir, contudo, de
acordo com Todorov (p.99), mais importante que o processo de apresentação das histórias,
é o ambiente representado; e o mais significativo nesse tipo de narrativa são os seus temas.
Para Todorov, “é em torno dessas constantes que se constitui o romance negro: a violência,
o crime geralmente sórdido e a amoralidade das personagens” (p.100). Além disso, nesse
tipo de romance, como ação e narração estão fundidas, o detetive é vulnerável, ele sempre
corre risco.
O terceiro tipo é chamado de “romance de suspense” e combina os outros dois tipos
de romance policial. Do romance de enigma ele mantém as duas histórias bem definidas,
mas se recusa a fazer, como no romance noir, da segunda história apenas uma detecção.
20
Esse tipo de narrativa reúne os dois tipos de interesse, “existe a curiosidade de saber como
se explicam os acontecimentos passados; e também o suspense: o que vai acontecer
às personagens principais?” (TODOROV, 1970, p.102). Pode-se deduzir, portanto, que o
detetive no romance de suspense, assim como no noir, está em constante perigo. Para
Todorov (p.103), esse tipo de romance policial pode ser dividido em outros dois subtipos:
no primeiro, por ele denominado a “história do detetive vulnerável”, “o detetive perde a
imunidade, é espancado, ferido, arrisca constantemente a vida, em resumo, está integrado
no universo das demais personagens”; no segundo, intitulado “história do suspeito-
detetive”, as suspeitas sobre um dado crime recaem em um sujeito que se encarrega, ele
mesmo, de encontrar o verdadeiro culpado.
Tendo traçado esse percurso e inventariado três tipos de romance policial, Todorov
(p.103-104) se pergunta se eles correspondem a uma evolução desse gênero. Para o autor é
difícil falar em uma evolução, pois “essas três formas coexistem perfeitamente hoje. Mas é
bastante notável que a evolução do romance policial, em suas grandes linhas, tenha
seguido precisamente a sucessão dessas formas”
3
(p.104).
Como contraponto, e buscando nos aproximar da forma do romance policial,
vejamos agora como Boileau e Narcejac (1991) e Colmeiro (1994) conceituam esse gênero
e como se coloca a questão da tipologia nos seus estudos.
Para os autores franceses, o romance policial tem uma estrutura fixa que “segura”
seu autor (1991, p.7), e apresenta como fundamento a necessidade do homem de explicar,
racionalmente, o mundo onde vive. Nesse sentido, conforme esses teóricos, é interessante
3
Segundo Todorov, o romance policial clássico tem, historicamente falando, seu auge no período entre as
duas Guerras Mundiais; o romance noir surge nos Estados Unidos pouco antes e principalmente durante a
Segunda Guerra Mundial; o romance de suspense do tipo “história do detetive vulnerável” surge como uma
transição entre o romance de enigma e o noir, enquanto o do tipo “história do suspeito-detetive” é simultâneo
ao romance noir.
21
notar que esse gênero tenha em Edgar Allan Poe um de seus criadores e expoentes, pois em
sua “Filosofia da Composição” (1999) Poe diz:
Nada é mais claro do que deverem todas as intrigas, dignas desse nome,
ser elaboradas em relação ao epílogo, antes que se tente qualquer coisa
com a pena. Só tendo o epílogo constantemente em vista, poderemos dar
a um enredo seu aspecto indispensável de conseqüência, ou causalidade,
fazendo com que os incidentes e, especialmente, o tom da obra tendam
para o desenvolvimento de sua intenção. (1999, p.130)
Esse fragmento traz em germe a base do romance policial pelo menos do clássico
em que se parte de um fato que aconteceu, um crime, e o que se busca é saber como,
por quem e por que ele foi cometido, ou seja, o desfecho do “acontecimento” é o crime,
que é, por assim dizer, o “fim da ação propriamente dita”
4
e o início da narrativa. O texto
policial tem sempre em vista o desfecho, todos os elementos que o compõem devem
confluir para esse ponto que está presente logo no começo.
De acordo com os estudiosos franceses, ao aproveitar-se dessa concepção de
literatura em obras que, posteriormente, foram consideradas fundadoras do romance
policial, Poe não descobriu simplesmente uma técnica do raciocínio aplicável à ficção, ele
inventou um novo nero: o policial. A partir dessa constatação, e pensando na estrutura
investigativa do romance policial, Boileau e Narcejac propõem uma relação entre o
detetive e o cientista, pois ambos devem se utilizar da lógica para explicar os fatos que se
propõem a investigar. Portanto, para esses autores, o romance policial seria uma espécie de
investigação científica que, estruturalmente, se constrói pela afirmação da razão, o que
levaria esse nero a exigir uma expressão clara e direta, alheia aos “ornatos da narração”
(1991, p.27). Assim, o papel do detetive nesse tipo de narrativa é reunir e ordenar os fatos,
4
que se lembrar da conceituação de Todorov (1970, p.96-97) que diz que na segunda história ocorre
pouca coisa e que os personagens dela não agem, apenas descobrem. Nesse sentido, a primeira história é
conceituada como “o que se passou efetivamente”, ou seja, aquela em que há a ação, o acontecimento e não a
explicação de “como o leitor (ou o narrador) tomou conhecimento dela”.
22
sendo-lhe vetadas quaisquer interpretações subjetivas. Cabe a ele, apenas, extrair da
experiência a verdade.
Colmeiro (1994) ressalta a dificuldade de se reconhecer o romance policial como
um gênero coerente e bem delimitado, principalmente devido à sua grande proliferação e
variedade. Entretanto, segundo o estudioso espanhol, uma característica que é comum a
todas as narrativas policiais: elas sempre têm como fio condutor a investigação de um
crime, não importando os métodos, os objetivos e os resultados dessa detecção.
Assim como Todorov (1970), Colmeiro (1994) destaca o importante papel das
“duas histórias” na estrutura das narrativas policiais. No entanto, Colmeiro promove uma
reformulação crítica dos postulados de Todorov ao questionar a relação por ele
estabelecida entre história do crime e fábula, história da investigação e trama. Apesar de
atentar para o fato de que a “história do crime” é o resultado da “história da investigação”
e, nesse sentido, poder se dizer que ela se equipara à ordenação dos eventos ocorridos no
relato por parte do leitor, ou seja, “obedecendo ao princípio de causalidade e inscrevendo-
se numa certa cronologia” (TOMACHEVSKI,1976, p.173) que está relacionado ao
conceito de “fábula”, a proposta de Todorov (1970) não considera uma questão
fundamental: a de que a “história da investigação” faz parte da fábula dos romances
policiais da mesma maneira que a “história do crime” está presente na trama dessas
narrativas. Assim, de acordo com Colmeiro,
[…] la narrativa del crimen siempre está presente en el <<discurso>> de
la novela policiaca, directamente exteriorizada por el narrador o evocada
por los personajes, si bien expuesta a una serie de manipulaciones (como
su inversión, fragmentación o retardación). Por otra parte, el
<<discurso>> de la investigación, sometiendo las secuencias de la
<<historia>> de la investigación (del detective) a similares estrategias
narrativas ambiguadoras, no se corresponde exactamente con la
23
investigación del detective, sino con la investigación que necesariamente
realiza el lector al leerla
5
. (1994, p.75-76)
O crítico espanhol demonstra, portanto, de que maneira a “história do crime” vai se
inserindo, geralmente de maneira fragmentária, no romance policial, e como não uma
relação necessária entre a “fábula”, a “história da investigação” (do detetive) e a “trama”,
pois no primeiro caso é o leitor quem reconstrói a narrativa a partir da ordenação
cronológico-causal dos eventos, enquanto no segundo caso tem-se o relato da investigação,
do modo como o detetive vai descobrindo as respostas que levarão à resolução do enigma
e, no terceiro, deparamos com o romance propriamente dito, a forma como o narrador
apresenta-nos a sua fábula.
Essas distinções permitem ao estudioso revelar um dos mais interessantes
mecanismos narrativos das histórias policiais e que se refere ao modo como nessas
histórias se constrói a ilusão de que leitor e detetive compartilham as mesmas informações.
Esse engodo instaura-se a partir da confusão entre a investigação do detetive e a que nos
apresenta o narrador, pois a história é contada como se narrador e detetive tivessem acesso
aos mesmos dados (o que, em certo sentido, é verdade), contudo, um elemento que
passa despercebido: o ponto de vista. Segundo as palavras de Colmeiro,
A través del <<discurso>> presentado por el narrador el lector sigue los
pasos del detective, pero su investigación por definición no puede ser
igual a la del investigador ya que la perspectiva del investigador y la que
el narrador ofrece nunca coinciden plenamente en la novela policíaca
6
.
(1994, p.76-77)
5
[...] a narrativa do crime sempre está presente no “discurso” do romance policial, diretamente exteriorizada
pelo narrador ou evocada pelos personagens, mesmo que exposta a uma série de manipulações (como sua
inversão, fragmentação ou retardação). Por outro lado, o “discurso” da investigação, submetendo as
seqüências da “história” da investigação (do detetive) a estratégias similares de ambigüização, não se
corresponde exatamente com a investigação do detetive, mas com a investigação que necessariamente realiza
o leitor ao lê-la. [Tradução nossa]
6
O leitor segue os passos do detetive por meio do “discurso” apresentado pelo narrador, mas sua
investigação por definição não pode ser igual à do investigador, pois a perspectiva do detetive e a que o
narrador oferece ao leitor nunca coincidem plenamente no romance policial. [Tradução nossa]
24
Essa afirmação torna-se ainda mais instigante ao se constatar que os principais
procedimentos narrativos das histórias policiais estão costurados por essa ilusão de
compatibilidade de percepção entre detetive e narrador, e, por extensão, do leitor. Nos
romances que trazem como detetive Sherlock Holmes ou Hercule Poirot, por exemplo,
distingue-se, na maioria das vezes, o recurso ao narrador-confidente”, ou seja, tem-se um
narrador homodiegético que narra em primeira pessoa os feitos do detetive, como é o caso
de Watson e Hastings, respectivamente. Nessas situações, de um modo geral, o narrador
tem acesso aos mesmos fatos que o detetive, contudo, ele está sempre defasado em termos
de raciocínio, tendo em vista que uma das características do romance enigma é o fato do
detetive ser uma “super máquina intelectual”. Note-se, além disso, que a presença desse
confidente-narrador atende a outra demanda desse tipo de obra policial: destaca, por
contraste, a inteligência superior de seu protagonista em oposição ao “senso comum”
representado pelos seus ajudantes. Ainda de acordo com Colmeiro, mesmo quando nos
deparamos com um narrador autodiegético, principalmente no caso de romances noir, a
informação compartilhada por ele com o leitor sofre restrições, que são explicáveis por
algumas características desse detetive “[…] reservado e introvertido por naturaleza,
marginado y algo asocial, siempre lacónico en su expresión, hermético e impenetrable para
los demás
7
” (p.76-77).
O narrador surge, então, como uma entidade fundamental no romance policial,
embora muitas vezes negligenciada. Essa questão fica patente quando temos em mente que
o interesse do romance policial, segundo Colmeiro (p.78-79), não é causado por uma
estrutura sintática particular ou pelo desenvolvimento de um tema, mas por uma
meticulosa e bem enredada intriga, gerada pela manipulação da informação por parte do
narrador. Desse modo, pode-se dizer que o crítico espanhol destaca a importância do
7
[...] reservado e introvertido por natureza, marginalizado e pouco socializável, sempre lacônico em sua
expressão, hermético e impenetrável para os demais. [Tradução nossa]
25
trabalho do autor do policial enquanto romancista, opondo-se às visões de Todorov (1970)
e de Boileau e Narcejac (1991) que consideram que as narrativas desse gênero devem
primar pela simplicidade. Para Colmeiro (1994, p.83-84), o que revela a singularidade e,
muitas vezes, a qualidade de um romance policial são os elementos “desnecessários”,
aqueles que não são fundamentais para a resolução do enigma, mas se tornam importantes
na medida em que desviam a atenção (e a tensão) do leitor, divertindo-o, deleitando-o.
Colmeiro (p.65) também propõe uma tipologia para o romance policial que, em
muitos aspectos, se aproxima da sugerida por Todorov (1970). Para tanto, utiliza-se das
quatro estruturas narrativas básicas propostas por Frye: romântica, irônica, cômica e
trágica. Esses quatro tipos de narrativas colocam-se em oposições binárias. Dessa maneira,
tem-se, de um lado, a forma romântica que se contrapõe à irônica, pois, enquanto a
primeira caracteriza-se pela idealização, pela presença de um herói superior aos outros
homens, a segunda caracteriza-se por um maior realismo e pela promoção de um anti-
herói; de outro lado, observa-se uma forma que tem como elemento fundamental um final
eufórico, com o restabelecimento da ordem, após a sua desestabilização, e outra que se
marca pelo desfecho disfórico em que o protagonista se incapaz de lograr sucesso em
sua empresa, correspondendo, respectivamente, às formas cômica e trágica.
O estudioso espanhol demonstra como no interior do gênero policial é possível
distinguir uma oposição entre uma tendência romântico-cômica e uma irônico-trágica que
corresponderiam às formas do romance enigma e do romance noir, respectivamente. Para
ele, o romance policial clássico traz como características principais: o detetive
invulnerável, com faculdades intelectuais superiores; o método de investigação
supostamente científico e racional; a resolução do enigma apontando para a “pessoa menos
suspeita”; entre outras. Além disso, esse tipo de narrativa se fundamentaria numa oposição
radical entre Bem e Mal, representados nas figuras do detetive e do criminoso: enquanto
26
este quebra as normas de conduta da sociedade, cabe ao detetive restaurar a ordem social
vigente. Nesse sentido, essa vertente do policial exige sempre o “final feliz” típico das
formas cômicas. O romance noir, por outro lado, apresenta como aspectos fundamentais: o
estilo incisivo, os personagens duros e a narrativa com ação violenta. Segundo Colmeiro
(1994, p. 61), diferentemente do que ocorre no policial clássico, a temática criminal passa
de um mero jogo estético para incorporar elementos éticos, na medida em que “[…]
funciona como excusa o armazón para la articulación del problema moral de la actitud del
individuo frente a la sociedad.
8
”. Além disso, o romance noir foge do tradicional “final
feliz”, trazendo uma visão pessimista e desesperançada do mundo.
Do mesmo modo que Todorov (1970), Colmeiro destaca um terceiro tipo de
romance policial que se constituiria a partir do aproveitamento de elementos das outras
duas vertentes. O romance policial “psicológico” ou “de costumes” tem como aspectos
fundamentais a caracterização e introspecção psicológica dos personagens e a importância
dada à descrição dos usos, costumes, paisagens e ambientes sociais (1994, p.63-64). Do
romance noir ele herda a problemática social e moral, mas não carrega consigo o poder
corrosivo, a violência e a linguagem crua desse tipo de narrativa policial, aproximando-se,
nesse sentido, do romance enigma.
Apresentados alguns elementos fundamentais da teoria sobre o romance policial
elaborada por Todorov, por Boileau e Narcejac e por Colmeiro, vamos adentrar em uma
daquelas questões problemáticas que dissemos que se colocam ao estudar esse gênero: a da
possibilidade de uma tipologia. Conforme já vimos, Todorov (1970) e Colmeiro (1994)
9
não admitem essa possibilidade como propõem uma tipologia, o que aparentemente não
8
[...] funciona como uma desculpa ou suporte para a articulação do problema moral da atitude do indivíduo
frente à sociedade. [Tradução nossa]
9
Cabe realçar que existem diferenças entre as tipologias dos dois autores. Colmeiro (1994, p.44-46), destaca
que, apesar de a classificação proposta por Todorov ser um interessante ponto de partida, o modo como os
diferentes tipos são descritos não proporciona uma delimitação clara dessas diferentes manifestações do
gênero policial.
27
ocorre com os teóricos franceses. Para explicitar a posição de Boileau e Narcejac (1991)
quanto à possibilidade de uma divisão do romance policial, convém relembrar brevemente
o texto de Todorov (1970), que traz como epígrafe o seguinte trecho do livro Le Roman
Policier dos autores franceses: “O gênero policial não se subdivide em espécies. Apenas
apresenta formas històricamente diferentes.” (apud TODOROV, 1970, p. 93).
Observemos, também, como se coloca essa questão em O romance policial (1991) dos
mesmos autores:
Por definição, o romance policial é um problema. É falso pensar -
entretanto nós já o acreditamos - que o romance policial evoluiu das suas
origens aos nossos dias, como se o romance-problema tivesse
engendrado o romance policial psicológico, depois o suspense, depois o
romance criminal, etc. Na realidade, o romance policial contém em
germe, em dose homeopática, portanto despercebida, todos os gêneros
que parecem sair dele. (p.19)
Tendo em mente essas considerações dos escritores franceses, pode-se dizer que
elas apresentam diferenças significativas. Nesta última, segundo nos parece, não se nega a
possibilidade de uma tipologia para o romance policial, ao contrário, mesmo que os autores
sejam contrários à possibilidade de se instituí-la, parece que eles mesmos acabam
apontando nessa direção, embora não usem o termo “tipo”. Assim pensamos em função
dos “rótulos” utilizados: romance-problema, romance policial psicológico, romance
criminal, suspense. Contudo, Boileau e Narcejac negam a evolução do romance policial, no
sentido de que há uma sucessão de formas em que uma substitui a outra.
Outro aspecto a se destacar é que os autores reivindicam para o romance policial
“todos os gêneros que parecem sair dele” (p.19), o que a nosso ver dá a idéia de um gênero
“maior”, o “romance policial”, que se desdobra, desmembra, como uma árvore de vários
galhos que, por sua vez, podem se desmembrar também em várias facetas”; seriam
aqueles “rótulos” que sugerimos anteriormente, mas que não deixam de pertencer a uma
mesma “espécie”, o romance policial.
28
Quanto ao primeiro fragmento, aquele que serviu de epígrafe ao texto de Todorov,
pode-se dizer que ele nega a possibilidade de se instituir uma tipologia para o romance
policial - o que o outro fragmento não faz -, mas, segundo nosso ponto de vista, ele
também acena para a possibilidade da construção de uma tipologia, de uma sistematização
da produção nesse gênero quando afirma que existem “formas historicamente diferentes”.
Parece-nos, portanto, que uma tipologia é possível, pois, como argumentamos, mesmo
Boileau e Narcejac que a negam, acabam mostrando um caminho para a sua confecção,
seja pela afirmação de que existem formas historicamente diferentes, seja pelo fato de
utilizarem aquelas nomenclaturas (“romance-problema”, “romance policial psicológico”,
“romance criminal”, “suspense”).
Acreditamos ser possível encontrar nos teóricos franceses até uma explicação para
o surgimento dessas diferentes formas
10
; trata-se de uma característica fundamental do
romance policial: a necessidade da invenção. Para eles, esse gênero não pode se repetir,
pois quando isso acontece, quando as soluções não são originais, o leitor consegue prever o
desfecho facilmente, matando sua curiosidade e, conseqüentemente, seu interesse na
leitura. Assim, o romance policial estrutura-se como uma espécie de jogo em que se deve
“oferecer ao leitor um enigma que ele não poderá resolver, mas que tem, contudo, o poder
de esclarecer. Eu o desafiarei a descobrir. O desafio espicaçará até o fim a sua curiosidade,
mas a natureza excepcional da intriga o manteem malogro” (1992, p.37). Note-se que a
impossibilidade do leitor desvendar o enigma antes que o detetive o faça é um dos aspectos
significativos do romance policial clássico, sendo necessário, portanto, mantê-lo com a
10
Deve-se ressaltar que isso o é afirmado dessa forma no texto de Boileau e Narcejac (1991), pois, na
medida em que negam a possibilidade de construir uma tipologia, não seria coerente explicá-la. Entretanto,
parece-nos que a “invenção” colocada como um ponto-chave do romance policial na teoria dos escritores
franceses fornece-nos um instrumento importante para perceber porque esse gênero está sempre sendo
inovado, transgredido.
29
possibilidade, mas impedido de descobrir, e, nesse sentido, é interessante retomar a 15ª
regra do romance policial proposta por Van Dine:
[...] se o leitor, depois de tomar conhecimento da explicação para o
crime, voltar a ler o livro, perceberá que a solução, de certo modo,
estivera bem clara - que todas as pistas realmente indicavam o culpado -
e que se houvesse sido tão perspicaz quanto o detetive, poderia ele
próprio ter solucionado o mistério sem chegar ao último capítulo. (apud
ALBUQUERQUE, 1979, p.29)
Desse modo, a invenção deve estar sempre presente a fim de manter a curiosidade
do leitor; a tentativa de sempre surpreendê-lo é um ponto chave do romance policial, mas é
também, segundo Boileau e Narcejac, responsável por sua agonia. Para os autores
franceses, buscando surpreender o leitor os escritores procuram superar-se e, quando o
fazem, são espreitados pelo “sobrelaço” (1992, p.46), ou seja, para inventar, muitas vezes,
os autores recorrem à imaginação, o que seria um “pecado mortal” para um escritor de
romances policiais, pois a imaginação, geralmente, se exerce “no sentido da
inverossimilhança” (p.46) ou das soluções acrobáticas ou maravilhosas, o que iria contra o
rigor e os princípios racionais desse gênero.
Agora que nos situamos quanto a alguns aspectos fundamentais das teorias de
Todorov e de Boileau e Narcejac e discutimos a primeira questão problemática a que nos
referimos no início deste trabalho, cabe-nos a segunda questão: a da relação desse tipo de
narrativa com a chamada “cultura de massa”. Essa é uma discussão complexa na qual não
pretendemos nos aprofundar por não ser esse o nosso propósito, mas que, por outro lado,
não pode ser ignorada, pois nos leva a perguntar qual é o lugar dos estudos sobre o
romance policial no interior dos estudos sobre literatura.
Para Todorov (1970, p. 95), o romance policial por excelência será, sempre,
literatura de massa. Como parâmetro para essa afirmação, ele contrapõe a obra-prima da
literatura dita “elevada” com a considerada “de massa”. De acordo com Todorov, enquanto
30
a primeira transgride as regras do gênero a que pertence, criando um novo; a segunda é, ao
contrário, o livro que melhor se inscreve no seu gênero. A obra-prima da literatura de
massa seria, diante dessa perspectiva, o exemplo perfeito de seu gênero e, segundo ele,
esse é o caso do romance policial, que, ao invés de transgredir suas regras, adapta-se a elas.
Já para Boileau e Narcejac (1991, p.87), o romance policial não é, necessariamente,
produto de uma cultura que seria “inferior”. Para eles, só há subliteratura quando há
concessão, o que não ocorreria no caso dos grandes escritores do romance policial.
Sem querer entrar especificamente no mérito da questão, parece-nos que o primeiro
ponto a ser discutido é o sentido pejorativo que geralmente se atribui ao termo “cultura de
massa”, e mais, qual é o conceito de cultura de massa? O que essas duas palavras unidas
significam? Grosso modo, cultura de massa é aquela que “atinge as massas”, ou seja,
aquela com grande público. Mas isso é ruim?
Umberto Eco (1993, p. 39-43), refletindo sobre questões como essa, afirma que,
perante a cultura de massa, geralmente encontramos dois tipos de críticos: os apocalípticos
e os integrados. Os primeiros vêem na “cultura de massa” uma acultura, ou seja, o fim da
cultura. Segundo os apocalípticos, a “cultura de massa” torna homogêneos os produtos
culturais e os gostos dos leitores, dirige-se a um público que não é consciente de sua
situação social, utiliza-se de formas difundidas e desgastadas da “cultura superior”, não
exigem do leitor uma atividade intelectual ou mesmo emocional, entregam a emoção
confeccionada, encorajam uma visão passiva e acrítica do mundo, é puro entretenimento e
pode ser utilizada como um meio de controle por regimes autoritários.
Ainda de acordo com o crítico italiano, em muitos casos, a marginalização da
cultura de massa tem uma raiz aristocrática; muitas vezes, manifesta-se um desprezo que
parece apontar contra a cultura de massa, entretanto, o que se busca atingir, na verdade, é a
própria massa, ou seja, a população de classe social “inferior”. O segundo tipo de críticos
31
(os integrados) caracteriza-se por ter uma visão mais apaziguadora com relação à chamada
“cultura de massa”, pois, para eles, trata-se de uma manifestação cultural legítima que, de
algum modo, leva às massas algo que antes, em muitos casos, não lhes era permitido: o
acesso à cultura. Fazendo um balanço entre as duas posturas, Eco diz que toda essa
problemática instaura-se sobre uma formulação inadequada, pois, segundo ele, não é
importante saber se é bom ou mau que a cultura de massa exista, mas saber o que fazer
para que ela passe a veicular “valores culturais” (p.50).
De fato, a discussão valorativa sobre a cultura de massa é uma questão, pelo menos
aparentemente, sem sentido, até porque o conceito de bom ou mau é relativo. E também
um problema que é a aproximação se é que ainda é possível estabelecer limites entre
cultura erudita e cultura de massa em obras literárias contemporâneas. Basta citar, por
exemplo, que uma crítica como Linda Hutcheon (1991) afirma que uma característica
relativamente freqüente das obras literárias contemporâneas é a sua atração pelas formas
"inferiores" de arte como uma maneira de contestar, a partir de dentro, os processos da
indústria cultural. Segundo Colmeiro (1994, p.24-25), isso parece ser mesmo um aspecto
fundamental das obras de arte de nosso tempo que nos obrigam a […]adoptar una visión
más amplia y más completa de los fenómenos culturales y artísticos.
11
Assim, o teórico
espanhol questiona a associação entre “literatura de massa” e “subliteratura”, afirmando
que nos estudos sobre a chamada cultura de massa” há uma confusão entre as
classificações sociais e artísticas. Segundo sua perspectiva, que se distinguir os
conceitos de literatura culta e popular das noções de literatura e subliteratura, pois,
enquanto os primeiros se baseiam em critérios sociológicos, os segundos se assentam em
valores literários. Para ele:
11
[...] adotar uma visão mais ampla e mais completa dos fenômenos culturais e artísticos. [Tradução nossa]
32
Esta oposición entre una literatura culta y otra popular - basada
mayormente en criterios sociológicos - se ve reforzada generalmente por
otra división - sustentada esta vez en principios estéticos - que hace
coincidir el discurso culto con la <<literatura>> (de valor artístico a
priori) y el popular con la <<subliteratura>> (carente de mérito
artístico). Según esta doble concepción de la producción literaria, la
dimensión social de una obra (su adscripción elitista o popular) implica
invariablemente un prejuicio valorativo determinado a priori (positivo o
negativo respectivamente). Sin embargo, la realidad del hecho literario
es mucho más compleja que la división entre literatura de kiosko y
literatura de librería y no admite fácilmente estas simplificaciones.
12
(1994, p.22)
Essa proposta de Colmeiro pode ser entendida como uma tentativa de retirar a
discussão do nível sociológico e trazê-la para o âmbito literário. Desse modo, o foco
recairia na obra em si e não em como ela é aceita ou por quem é lida. Essa proposição,
embora não esgote a discussão sobre o tema, talvez seja uma das possibilidades para se
encarar essa questão do ponto de vista dos estudos literários.
Ainda no que se refere à discussão sobre “cultura de massa”, faz-se necessário
problematizar a “sentença” de Todorov dizendo que todo romance policial é “cultura de
massa”, pois nos parece que ela traz consigo um contra-senso, pois se o romance policial
tem como característica o “adaptar-se” a uma forma e não inová-la, talvez não seja
possível falar em uma evolução, como ele chega a sugerir, e, talvez, não seja possível falar
em uma tipologia como a que ele propõe, uma vez que um tipo surge da ruptura de alguns
elementos característicos de um outro tipo, por exemplo, o “romance noir surge como um
tipo a partir de elementos que não eram obrigatórios no “romance enigma” (TODOROV,
1970, p. 99), mas, de qualquer modo, rompe com os paradigmas que eram vigentes nele.
Dessa maneira, poder-se-á dizer que o “romance noir não se adapta ao “romance
12
Esta oposição entre uma literatura culta e outra popular baseada principalmente em critérios sociológicos
se geralmente reforçada por outra divisão sustentada desta vez em princípios estéticos que faz
coincidir o discurso culto com a “literatura” (de valor artístico a priori) e o popular com a “subliteratura”
(carente de mérito artístico). Segundo essa concepção dúplice da produção literária, a dimensão social de
uma obra (sua aceitação pela elite ou pelo povo) implica invariavelmente um preconceito de valor
determinado a priori (positivo ou negativo, respectivamente). Entretanto, a realidade da produção literária é
muito mais complexa que a divisão entre literatura de banca de jornais e a de livraria e não admite facilmente
essas simplificações. [Tradução nossa].
33
enigma”, antes o transgride, aspecto também realçado por Colmeiro (1994, p.43-44), para
quem “El caso de la novela policíaca tradicional parece contradecir especialmente la teoría
de Todorov, pues una de sus convenciones comúnmente aceptadas es precisamente la
creación constante de nuevas normas, infringiendo las anteriores.
13
Levando em consideração o que foi apresentado até agora, julgamos ser possível
depreender os seguintes aspectos das teorias sobre o romance policial: estruturalmente, ele
se assenta sobre duas histórias, a do crime e a do inquérito, tendo, portanto, como uma de
suas bases uma estrutura investigativa que se aproxima da científica; o romance policial
atrai e mantém a atenção do leitor ao aguçar a sua curiosidade e ao criar o suspense; a
invenção é uma de suas palavras-chave, pois a resolução do enigma não pode ser óbvia, o
leitor não pode desvendá-la antes do detetive porque isso acabaria com a sua curiosidade;
nele constrói-se uma homologia em que o leitor se identifica com o detetive, ambos
buscam descobrir os fatos; a relação entre o leitor e o detetive se propõe como um jogo em
que o primeiro é tentado a descobrir os fatos antes do segundo, o que, a princípio, não deve
ser possível, pois acabaria com a curiosidade do leitor.
13
O caso do romance policial tradicional, em especial, parece contradizer a teoria de Todorov, pois uma de
suas convenções comumente aceitas é precisamente a criação constante de novas normas, infringindo as
anteriores. [Tradução nossa].
2. UM ROMACE EM SUSPEITA
Um dos caminhos para a leitura de Balada da Praia dos Cães (1982) é certamente a
questão do narrador, uma vez que ela é das mais complexas e uma das que vem suscitando
maior divergência entre os estudiosos desse livro e da obra de Cardoso Pires como um
todo. Assim, partiremos de duas interpretações diferentes acerca do narrador dessa obra
(uma proposta por Petrov e outra por Margato), e que servirão como uma espécie de
subsídio à nossa busca de notar as sutilezas, os artifícios e os subterfúgios da instância
narrativa desse texto do escritor português.
Segundo Petrov (1996, p. 291), o romance de Cardoso Pires estrutura-se como um
romance policial clássico, ou seja, a sua narrativa é constituída fundamentalmente por dois
planos narrativos: o primeiro centra-se na investigação do assassinato que tem como figura
principal o detetive Elias Santana; o segundo relata, de maneira fragmentada, os
acontecimentos que ocorrem entre a fuga de Dantas C. e o descobrimento do seu cadáver.
O primeiro plano tem um narrador heterodiegético, enquanto o segundo tem como narrador
o detetive Elias Santana, que “reconstitui, com base nos depoimentos de Filomena, as
relações mantidas por Dantas Castro com a sua amante e com os seus companheiros de
fuga, o cabo e o alferes miliciano.” (1996, p.297). Petrov ressalta que essa estratégia
narrativa está ligada a um “intencional apagamento do narrador que, ocultando-se por trás
da visão de Elias, estabelece um maior distanciamento ideológico relativamente ao
narrado” (p.297). Essa diferenciação proposta por Petrov, no entanto, torna-se mais
complexa quando ele coloca em questão a importância da variação de focalização,
destacando, no primeiro plano, a constante alternância entre o ponto de vista do narrador e
o de Elias, e, no segundo, o fato de muitas situações serem mediatizadas pelo olhar de
outros personagens, principalmente pela visão de Mena.
35
Margato (2007, p.165-166) não estabelece essa diferenciação entre os planos
narrativos, não considerando, portanto, um narrador diferente em cada um dos planos. Para
a estudiosa, o narrador aproxima-se muito de Elias, conhece-o por inteiro (seus motes e
linguajar), confunde sua voz com a dele e lê seus pensamentos. Esse narrador, portanto,
está próximo e “não simula um distanciamento para imprimir às cenas o seu ponto de vista
crítico.”. Nesse sentido, para a estudiosa, a sua “criticidade” manifesta-se principalmente
por revelar a Polícia Judiciária (e, por extensão, a sociedade portuguesa) por dentro,
expondo todas as suas mazelas.
Nessas duas interpretações acerca do narrador de Balada da Praia dos Cães saltam
à vista pelo menos duas questões problemáticas: a existência de um ou mais narradores e a
relação distanciamento/proximidade entre narrador e narrativa e entre narrador e Elias.
Note-se que o distanciamento ressaltado por Petrov manifesta-se por meio de uma
aproximação da perspectiva do personagem que resulta num “ocultar-se por trás”, como se
o narrador se escondesse por de trás de Elias, utilizando-se do seu ponto de vista para
esclarecer/simular que a perspectiva segundo a qual o romance é narrado é a do
personagem e não a sua. Esse distanciamento acaba por ressaltar as divergências
ideológicas entre personagem e narrador. Da mesma maneira que o distanciamento
proposto por Petrov se constrói por meio de uma aproximação (esse “ocultar-se por trás”
visto como uma adoção do ponto de vista de Elias), pode-se dizer que na aproximação de
Margato está implicado um distanciamento, uma crítica, que, contudo, se revela a partir do
contato direto entre narrador e detetive e entre narrador e história.
Em ambos os casos, distanciamento e aproximação estão presentes, embora sejam
encarados de modos diversos. As diferenças de interpretação expostas acima por si
revelam a complexidade do aparato narrativo dessa obra de José Cardoso Pires, na qual se
distingue uma multiplicidade de vozes, de perspectivas, de discursos e de registros. Além
36
disso, essas análises, embora aparentemente discordantes, fornecem-nos algumas pistas das
principais peculiaridades de Balada da Praia dos Cães. A partir desses subsídios
procuraremos construir a nossa análise.
Da leitura de Petrov (1996) destaca-se o fato de que a divisão da narrativa em dois
planos é bastante proveitosa, visto permitir que se procure explorar no romance o tênue
limite entre a “história da investigação”
25
, que seria o primeiro plano, e a “história do
crime”, que seria o segundo plano. Tênue porque elas estão entrelaçadas de tal modo no
texto de Cardoso Pires que uma análise estanque desses dois planos torna-se inviável.
A idéia segundo a qual Elias é o narrador da “história da investigação” é um ponto
problemático, pois postula a existência de dois narradores dentro desse romance. Tal
argumentação, conforme vimos, não é defendida por Margato (2007), que prefere se referir
a um narrador móvel que assume o ponto de vista de Elias, às vezes confundindo sua voz
com a dele e, ocasionalmente, revelando seus pensamentos. Essa divergência de opiniões
está diretamente ligada ao modo como esses dois estudiosos observaram a questão do
distanciamento e da aproximação do narrador em relação ao detetive, um destacando o
primeiro termo e o outro o segundo. Entretanto, segundo nos parece, os dois aspectos
contribuem para a complexidade da obra, pois é a partir desse jogo que se constrói boa
parte da ironia de Balada da Praia dos Cães.
Foi dito acima que nesse romance detecta-se a presença de um narrador que não
participa diretamente dos acontecimentos. Além disso, afirmou-se que esse narrador
entrelaça sua voz com a de outros personagens e outros textos, em especial com a do
detetive Elias, e que assume diferentes pontos de vista. Vejamos como isso se dá no texto:
Um filho? Elias pede pormenores para ver melhor. No fundo estava
certo, um filho é o vértice do orgulho da mulher-só, o selo final, é a
25
Retomamos aqui as formulações de Todorov (1970) de que no romance policial existem duas histórias: a
história da investigação e a do crime.
37
mulher renovada pela misteriosa pacificação da carne e do amor como
escreveu alguém no Almanaque das Famílias em cercadura de
passarinho. E tenho dito. Elias tem dito. Por aqui ele pode figurar a
tragédia do dueto; o major a lembrar à Mena a independência dos
amantes, a chatice que é o amor de rotina [...] ela, pois sim, eu me
entendo, e a protestar que o amor é uso, é posse, nas tintas para a
liberdade. (PIRES, 2000, p.150)
Esse fragmento refere-se a um episódio em que Elias interroga a dona do
apartamento onde Mena viveu, que lhe relata uma briga entre esta e o Major Dantas C. O
trecho inicia-se com um discurso direto (“Um filho?”), ou com uma leitura dos
pensamentos do detetive, passando para uma narração impessoal
26
, retornando a uma
focalização interna de Elias em que se esmiúça a opinião desse personagem no que
concerne à independência de Mena. Interessante notar como se constrói a figura de Elias:
os seus pensamentos se coadunam com a idéia expressa no Almanaque das Famílias,
referido no corpo do texto, o que, de certo modo, deixa entrever duas características da
personalidade do detetive: o seu apego por discursos, frases, ditos, textos prontos (e
autorizados) e o seu gosto por “leituras ligeiras”.
Ainda no que diz respeito ao modo como se delineia o personagem do detetive
que se destacar a fonte citada: o Almanaque das Famílias. Seja pelo seu nome, ou pela
referência à “cercadura de passarinhos”, pode-se depreender que se trata de um tipo de
texto conservador, que se orienta por valores familiares patriarcais e moralistas,
condizentes com o pensamento do detetive, o que nos permite antecipar sua mentalidade
conservadora ou ultraconservadora, como considera Eunice Cabral (1999, p. 234). E ainda
mais: aqueles valores aproximam-se do que preconizava o governo totalitarista português,
que tinha como um de seus lemas “Deus, pátria, família”.
26
Por “narrador impessoal” entendemos um narrador em terceira pessoa. Tal designação, utilizada por
Pereira (2005, p.251), leva em consideração as formulações do lingüista Benveniste (1995), segundo o qual a
terceira pessoa é vista como uma “não pessoa”.
38
Além do discurso de Elias, do narrador e do Almanaque das Famílias, surge uma
voz na primeira pessoa (“E tenho dito”), que poderia, a princípio, ser atribuída tanto a Elias
quanto àquele narrador impessoal como sugerimos ler a primeira frase desse fragmento
, mas aparece, novamente, a voz do narrador (“Elias tem dito.”) resolvendo a possível
ambigüidade. É essa voz que continua na narrativa, invadindo a subjetividade do detetive
para mais uma vez revelar os seus pensamentos, ou seja, a imagem mental que ele faz da
cena da briga do casal.
Note-se como se o jogo de aproximação e distanciamento entre narrador e Elias:
no começo do período há a aproximação por meio do recurso do discurso indireto livre,
pois não se sabe se a voz é do narrador ou do personagem. Em seguida, observa-se o
distanciamento, pois o narrador é quem toma a frente para, depois, haver outra
aproximação, na medida em que ele mergulha nos pensamentos de Elias. Na seqüência
destaca-se a frase ambígua, porque, a princípio, não se sabe quem fala (aproximação), mas
a “confusão” é logo desfeita, uma vez que o narrador faz questão de demonstrar que aquele
discurso não é o dele (distanciamento). Temos, até aqui, uma visão da complexidade da
relação narrador-Elias que se deu como uma aproximação no entrelaçar das suas vozes e na
invasão da subjetividade do personagem, mas que, por outro lado, se colocou como um
distanciamento na medida em que o narrador não compactou com determinado discurso de
Elias, fazendo questão de determinar que aquela opinião é do personagem e não sua.
Também no trecho citado visualiza-se a focalização e o papel de mediador que
Elias exerce na narrativa. Como dissemos, nessa parte o narrador invade a subjetividade de
Elias ao expor o modo como ele imagina a briga de Mena e Dantas C., assumindo a
narrativa o ponto de vista do detetive, pois é a partir de sua perspectiva que temos acesso a
essa “cena”. Note-se ainda o modo como o narrador articula as vozes, em especial a de
Elias, de maneira a colocá-lo como elemento ativo na “reconstrução” dos fatos. É ele que,
39
a partir de depoimentos (como o da proprietária), imagina as cenas e são essas cenas
imaginadas que permeiam a narrativa. Temos, aqui, de forma ainda mais acentuada, a co-
existência do distanciamento e da aproximação propostos por Petrov (1996) e Margato
(2007). Distanciamento porque entre o narrador e o leitor existe a consciência de Elias, que
“filtra” os acontecimentos. Nesse sentido é que Petrov (1996, 297) afirma que o narrador
se oculta por trás da visão de Elias, mas, por outro lado, o narrador ainda está muito
próximo do detetive, porque é ele o veículo narrativo principal, é por meio dele que boa
parte da história é contada. Talvez seja isso que tenha levado Petrov a dizer que Elias
adquire um status de co-narrador; entretanto, é importante diferenciar aquele que
daquele que fala, pois:
Um narrador pode valer-se da óptica de uma personagem, do seu olhar.
[...] De igual modo, um narrador pode servir-se da consciência de um
personagem para mostrar o mundo. Mas em ambos pode subsistir a
pergunta: quem conta? De facto, uma narração pode adoptar o ponto de
vista ou a consciência de um personagem sem assumir a sua voz.
(TACCA, 1983, p. 32)
Em alguns momentos de Balada da Praia dos Cães é possível considerar que a
narração adota a perspectiva e a consciência não de apenas um personagem, mas de vários,
como, por exemplo, de Mena: “Acordar com a sombra dum policial à cabeceira é de
arrepiar. Mena inquieta-se, imagina traições do sono, os delírios, os pesadelos que podem
comprometer qualquer pessoa enquanto dorme.” (PIRES, 2000, p.55). Aqui, por meio de
uma focalização interna, da exploração da consciência do personagem, o narrador expõe o
medo que a domina e que aproxima a prisão à Casa da Vereda. Ainda que a voz seja do
narrador, o ponto de vista e a consciência são de Mena.
A diferenciação proposta por Tacca (1983) entre voz, consciência e olhar
possibilita-nos perceber certas sutilezas do romance de Cardoso Pires, pois, segundo nos
40
parece, parte significativa da engenhosidade de sua narração se pelo confronto desses
três elementos.
Voz e ponto de vista não estão necessariamente ligados, de tal modo que é possível
distinguir em Balada da Praia dos Cães algumas situações nas quais a voz de quem narra é
de um, mas o ponto de vista é de outro, assim como outras em que ambos se referem ao
mesmo personagem. É o que se observa na cena em que Mena é interrogada por Covas
27
:
Naturalmente que correram logo a juntar-se, diz. Queriam ver-se, saber
que estavam vivos, discutir o que tinha acontecido. Puseram-se a rever
desde o princípio, contaram as reacções e as conjecturas, os instantes de
cada um. Recordaram os movimentos, foram as [sic] mais pequenos
nadas, mas, pormenor esquisito, ninguém falou do toque do telefone.
(PIRES, 2000, p.122)
A voz que comparece nesse trecho, apesar de propagar o que Mena disse, não é a
dela, e sim a do narrador heterodiegético. Contudo, o ponto de vista ainda é o do detetive
Elias, e, embora nessa parte do romance não se possa afirmar que a voz seja dele, é
possível dizer que em praticamente toda a “história do crime” a consciência de Covas
permeia a narrativa, o que explica, como dissemos, porque Petrov (1996) julga ser Elias
o narrador dessa história.
Em termos práticos, pode-se dizer que, textualmente falando, a narração segundo a
consciência do detetive funciona como um meio de revelar como ele constrói sua versão
dos fatos, como ele reage diante das informações que lhe são dadas pelas testemunhas.
Nesse sentido, como quer Margato (2007), o narrador coloca-se perigosamente próximo do
personagem, perigosamente porque os dois se posicionam de maneira muito diferente
sobre os acontecimentos e sobre a vida, pois, ao narrar a segunda história conforme o
ponto de vista de Elias, o narrador corre o risco de que se considere que ambos pensam e
vêem as coisas da mesma maneira, o que, na verdade, não se verifica. Essa aproximação é,
27
Covas é o apelido de Elias Santana.
41
portanto, uma aproximação irônica, visto ter como objetivo principal revelar o modo como
esse personagem raciocina, como age, como ele cria a história oficial a partir de uma visão
peculiar dos acontecimentos. Em outras palavras, é uma aproximação que distancia, uma
aproximação desconfiada, em suma, uma aproximação que revela a diferença.
No romance distinguem-se, de fato, variados pontos de vista, como se pode notar
nos trechos a seguir: “Chega-se à janela. Os eléctrios sobem a Conde Redondo a fio lento
com cachos de passageiros a deitar fora. vendedores ambulantes perseguidos por
polícias de maus fígados, snack-bars, montras de electrodomésticos, o Soares da Tabacaria
está à porta” (2000, p.28), em que o ponto de vista é o do Inspetor Otero, mesmo que a voz
seja do narrador. Ou ainda em “[...] avistou dessas alturas um vulto à janela das águas-
furtadas que reconheceu ser de uma mulher. Estava levemente recuada, como que para
evitar ser vista do exterior e parecia despida; […]” (p.20). O ponto de vista aqui é de um
personagem, o pedreiro, mas a voz é a do narrador, é ele quem nos relata essa “visão” do
pedreiro. Desse modo, a narrativa caracteriza-se por apresentar uma visão prismática, ou
seja, o romance constrói-se pela junção de diversas visões de mundo, a partir das quais ele
ultrapassa o ponto de vista individual, colocando-se como uma espécie de mosaico de
visões.
Para além da utilização de diversos pontos de vista e do entrelaçar de vozes,
encontra-se em Balada da Praia dos Cães um narrador que marca presença, que se
“intromete” na história, revelando opiniões, fazendo observações irônicas, antecipando
fatos, etc. São essas intervenções que, a partir de agora, buscaremos detectar.
Comecemos com as antecipações, procedimento usado com freqüência durante a
narrativa e com funções diversas. Manifesta-se, às vezes, com o propósito de acelerar o
ritmo ou resumir a narrativa: “Lá mais para o sul Elias abrirá a pasta para dar uma última
vista de olhos aos papéis” (PIRES, 2000, p.30), em que se antecipa a narração de um
42
evento para que não seja preciso narrar o contexto em que ele ocorre. Ou de antecipar uma
informação relacionada com o que se relata, como é o caso de: “(só mais tarde [Elias]
saberá que ela usou uma corrente de ouro no tornozelo como as aves reais; mas não agora,
agora ela está descalça e sem ornatos)” (p.31). Contudo, mais importante do que detalhar
cada função textual exercida por essas antecipações, é perceber como elas se relacionam
com a informação possuída pelo narrador, visto que, segundo Tacca,
O romance é uma imagem depurada de uma certa dimensão do mundo:
aquela que é dada pelo que o homem sabe, por si e pelos outros, e,
sobretudo, pelo que sabe que não sabe, de si e dos outros. É, em suma,
uma espécie de recomposição do mundo, operada pelo leitor a partir de
uma limitada quantidade de informação, habilmente repartida entre
autor, narrador e personagens. (1983, p.17-18)
No que concerne às antecipações referentes ao jogo de informações que se verifica
no romance, podemos dizer que, de fato, elas estão vinculadas a um conhecimento, senão
total, pelo menos considerável, do narrador em relação aos fatos narrados. Ele dispõe de
um número maior de informações que os personagens, ele tem, ou aparenta ter,
conhecimento completo dos autos policiais e do relatório final do processo sobre a morte
do Major. Certamente o narrador dispõe também de mais dados do que Mena, uma vez que
ele tem acesso, por exemplo, a dados que Elias escondia dela.
Num outro plano ainda, o narrador tem uma sapiência maior do que os personagens
porque se utiliza da visão prismática, ou seja, vê as coisas sob o ponto de vista de
diferentes personagens, adquirindo uma grande “soma de conhecimentos parciais”
(TACCA, 1983, p. 89). Para Tacca, a utilização desse perspectivismo resulta numa forma
de conhecimento que se aproxima da onisciência. A diferença entre ambas é que “na visão
omnisciente, o fundamental é o dom de penetração, de clarividência; enquanto que, na
visão estereoscópica, é o dom da ubiqüidade.” (p. 90). que se destacar que, segundo o
estudioso espanhol, nas narrativas que fazem uso desse procedimento (o exemplo citado
43
por ele é o filme Rashomon, de Akira Kurosawa), o autor “nunca surge, o próprio narrador
parece ausente” (p. 90). De fato, ao se referir a essa visão prismática, Tacca leva em
consideração a figura de um narrador que se serve do ponto de vista dos personagens,
nesse sentido Rashomon é um exemplo útil, pois conta “a mesma história” segundo
diversos pontos de vista mas não utiliza da consciência deles, ou seja, narra como se
estivesse no lugar dos personagens, mas não invade a subjetividade deles. No caso de
Balada da Praia dos Cães, no entanto, o narrador recorre a esses dois procedimentos, e
mais, pois, além de um narrador que constantemente marca presença, temos a emergência
daquela entidade que Tacca chama de “autor”, que estabelece no texto uma rede de
desconfianças: o autor desconfia do narrador que desconfia dos personagens que
desconfiam de outros personagens, etc.
Não concordamos, entretanto com Tacca, quando diz que ao narrador cabe apenas
contar, sendo que quaisquer dúvidas, interrogações, apreciações, reflexões, generalizações,
têm, na verdade, por de trás a voz do autor, pois haveria uma limitação no campo de
ação do narrador, eliminando-se da alçada dessa instância narrativa tudo, ou quase tudo,
aquilo que se costumava chamar de “intrusões”.
Acreditamos ser possível detectar o posicionamento do narrador a partir das
escolhas que ele faz: o que ele conta e o que não, como ele conta uma coisa e como conta
outra. demonstramos, por exemplo, como esse narrador cria um jogo de distanciamento
e aproximação com o detetive, utilizando-se, por vezes, do discurso de Elias, entrelaçando
sua voz com a do personagem. Em outros momentos, o narrador faz questão de esclarecer
que determinados posicionamentos, opiniões, pensamentos são do personagem, e não dele.
Convém observar ainda como a partir de recursos textuais simples, como o uso de
um advérbio, ou de uma diferenciação tipográfica, o narrador insinua-se para o leitor:
Logo depois, 10 de abril, um domingo, Mena caiu inesperadamente nas mãos da
44
Judiciária por denúncia duma telefonista (PIRES, 2000, p. 40, grifo nosso). A forma
como o advérbio “inesperadamente” é aqui empregado, além de mostrar como o narrador
recebe a notícia, revela uma ironia, uma vez que ele próprio Lisboa e todo Portugal
como um país em que se instaura uma constante vigilância, em que não se respeita o
direito à privacidade e liberdade dos cidadãos, ou seja, se Mena estivesse no país era
questão de tempo que fosse capturada.
Por sua vez, no trecho: “O CHEFE DE BRIGADA DESDE OS PRIMEIROS DIAS
QUE ESTAVA NA POSSE DE TODA A VERDADE” (p.85), o uso da caixa alta e a
repetição dessa frase diversas vezes no decorrer do romance levam o leitor a refletir sobre
o motivo dessa informação ser tão destacada.
Além disso, segundo Petrov (1996, p. 292), cabe ao narrador o delineamento dos
personagens, pois embora realizado de forma indireta, tendo em vista que o narrador não
os descreve psicologicamente, é ele quem nos relata as ações e reações dos personagens,
deixando a cargo do leitor a depreensão de suas “personalidades”. Além disso, é o narrador
que seleciona os diferentes aspectos que quer destacar em relação aos personagens, sendo
ele também responsável pelas focalizações internas, que lhe possibilitam revelar a visão
dos personagens a respeito deles próprios, dos outros e das variadas situações em que se
acham envolvidos.
2.1. O narrador e a construção dos personagens
Observemos, então, como se constroem as imagens dos personagens,
principalmente de Otero, Dantas C., Mena e Covas, e como, a partir daí, o narrador institui
algumas das mais importantes tensões do romance.
45
Otero é fundamental na caracterização da relação entre a PJ
28
e a PIDE
29
e entre a
PIDE e o detetive Elias. Atentemos para os principais elementos que compõem a imagem
de Otero. Na sua “folha corrida” (p. 26-27) destacam-se principalmente: iniciativa,
imaginação, persistência, sentido promocional e complexos de afirmação. Esses aspectos,
de um modo ou de outro, vão sendo evidenciados durante toda a narrativa, mas os dois
últimos obtêm especial relevo. O complexo de afirmação constata-se seja a partir da sua
indumentária (“Tira um cigarro, bate-o na cigarreira, os punhos da camisa aparecem muito
dignos e engomados. Isqueiro radioso [...]” p. 82), seja pela pretensa intelectualidade, que é
ironizada pelo narrador e por Elias:
indícios de que o ultimamente major sofria de perturbações, explica
ou, como quem diz, elucida o inspector Otero que sem ninguém lhe
pedir se pôs a falar em tom de conferência de Imprensa (mas era de
esperar, pensa Elias, vem sempre com este solfejo) e efectivamente,
prossegue ele, todas as violências que encontramos por [...] são
exteriorizações de uma crise de personalidade que tem a ver com uma
angústia de afirmação quase patológica. (p.102)
O narrador evidencia essa pompa, essa vaidade de Otero ao dizer que fala “em
tom de conferência de Imprensa”, o que é reforçado por Elias, que destaca esse tom como
sendo habitual no inspetor. Além disso, a “correção”, a troca do termo “explica” por
“elucida” atesta a presença da ironia, pois, embora ambos sejam sinônimos, o termo
“elucidar” é mais refinado do que explicar” (mais coloquial), ficando assim registrada a
vaidade intelectual do inspetor.
É interessante perceber também como o inspetor procura explicar os atos do major
fundamentando-se em um “pretenso psicologismo” e, especialmente, como ele procura
imputar a Dantas C. uma característica que fora ressaltada como sendo sua: os distúrbios
de afirmação. Essa questão ganha efeitos nitidamente irônicos, pois perguntado se não é a
28
Polícia Judiciária.
29
Polícia Internacional e de Defesa do Estado.
46
necessidade de afirmação que faz as pessoas (no caso Dantas C.) se interessarem pela
política, o inspetor concorda e diz: “meu professor de direito civil costumava dizer que a
política é a projecção da frustração individual sobre o colectivo” (p.103). É irônico
também porque talvez o principal elemento da imagem que se constrói de Otero durante
todo o texto é o seu “sentido promocional”, que pode ser sintetizado na seguinte frase
pronunciada por ele: “As polícias devem-se colaboração no âmbito das suas
competências.” (p.15). Essa sentença resume o seu posicionamento em relação às
intromissões da polícia política (PIDE) nas investigações e mostra como o próprio inspetor
tinha um relacionamento “amigável” com outros setores do governo ditatorial. Colaborar
aqui é a palavra chave para a promoção e é isso que o narrador põe em destaque ao dizer
que ele “anda a magicar aliados constantemente” (p.103). Pode-se dizer, portanto, que
Otero estava tão ou mais envolvido em política do que Dantas Castro e, por conseguinte, se
ao primeiro se aplicavam aquelas idéias, a este, provavelmente, também se aplicam. Esse
relacionamento entre Otero e a PIDE, intermediado pelo Diretor da PJ, é um dos elementos
criticados durante todo o romance:
Dr. Otero, inspector: <<As polícias devem prestar-se colaboração no
âmbito das suas competências>>. Elias está a vê-lo, óculos fumados, a
falar pela boca do Director. As mesmas palavras, o mesmo bater de
cigarro para dar tempo à frase. Disse alguma coisa, Covas? (2000, p.14)
Observe-se como nesse fragmento constrói-se uma crítica ao inspetor Otero ao
caracterizá-lo como uma espécie de ventríloquo, desmascarando uma pretensa
independência da PJ, revelando que, na verdade, ela estava sujeita às mesmas intervenções
que qualquer outra instituição daquela época. Note-se que essa crítica se por meio de
Elias, por uma focalização interna, ou seja, o narrador revela-nos o que ele está pensando.
Essa postura crítica do detetive é um dos elementos que fazem com que o leitor o veja com
47
certa condescendência, pois, embora preso na mesma rede que Otero, percebe essas
relações e as revela com distanciamento.
A imagem do Major Dantas Castro, por sua vez, é construída segundo diversos
pontos de vista, tornando-se, assim, um pouco mais complexa do que a do inspetor Otero.
É, principalmente, a partir dos depoimentos de Mena que sua figura vai se delineando, mas
é necessário também destacar a imagem dele que surge, por exemplo, num panfleto da
Frente Armada Independente (p.78-79), ou ainda o modo como Elias e Otero o vêem.
Para Elias (p.152), a imagem do major é um enigma, um rastro, ou seja, de certa
forma, Dantas C. é uma história acabada a morte tem um caráter dúplice, por um lado, o
seu sentido mais corriqueiro de fim de ação, de término, mas, por outro, ela vai representar
o início do ciclo hermenêutico em que se busca desvendar os motivos, os meios e os
responsáveis por seu assassinato – para qual o detetive tem que tentar encontrar um
sentido. Assim, não é de se estranhar a seguinte descrição do morto:
E mais uma vez o major aparece despojado de figura, é apenas indício,
rastro. Um rastro de sémen ou de sangue, um vendaval de insultos, uma
lenda de soldados. Sempre assim, nunca passa disto. Mesmo quando o
descobriram em podre e estraçalhado pelos cães não era mais que rastro,
memória. (p.152)
Referindo-se a um relatório da PIDE acerca de um carro que fora utilizado pelo
major e por Mena e no qual encontraram vestígios de sêmen, esse trecho sintetiza quase
todos os contatos que Elias teve com o major, indo desde o encontro de seu corpo,
passando pelos rastros de sangue na Casa da Vereda, pela queixa da dona do apartamento
que ele alugara para Mena, onde ambos tiveram brigas e se insultaram, e pela carta da
Frente Armada Independente (FAI) até chegar ao relatório do carro feito pela PIDE. Em
todos os casos, entretanto, o que se tem não é o major, mas relatos sobre ele, sombras, e é
com isso que Elias precisa lidar, é a partir desses vestígios que ele busca depreender como
48
Dantas era. Cabe ao detetive, também, ocupar-se com visões inteiramente diversas acerca
da figura do major e que compõem um interessante mosaico que tentaremos organizar.
A primeira imagem do major no romance é a do seu corpo sem vida na Praia do
Mastro. As primeiras especulações giram em torno do fato de o terem encontrado com os
sapatos trocados (sapato direito no esquerdo e vice-versa), o que, segundo a imprensa,
seria uma mensagem de que ele teria sido executado como traidor por “grupos
clandestinos” (p.13). Outra especulação dava como hipótese para a sua morte o crime
sexual, sugerindo que ele era homossexual. Segundo Elias, essa última suspeita teria sido
armada pela PIDE para afastar a possibilidade de um crime político. Note-se que nos dois
casos a imprensa tenta passar ao público uma imagem negativa do major, devendo-se ter
presente que em Portugal nos anos 60, assim como em vários outros países, o
homossexualismo não era visto com bons olhos.
Em contraposição direta a essa imagem do major surge a que se delineia no
panfleto da FAI (Frente Armada Independente) em que se descreve o major como um
militar corajoso, honrado e audaz, que não se interessava por política “até que, indignado
com a subserviência imposta ao Povo e ao Exército pelo totalitarismo salazarista,
participou, com dezenas de camaradas e civis, num levantamento militar” (p.78). Esse
panfleto, que consistia numa carta à população, além de sair em defesa do major, questiona
os rumos das investigações e afirma que todos sabem muito bem que a PIDE é quem mata
os anti-salazaristas.
Note-se até aqui como a partir de textos de suportes diferentes (o panfleto ou a
notícia dos jornais), o romance traz interpretações distintas sobre os fatos, apresentando
diversos pontos de vista e construindo uma intrincada rede de discursos que se
complementam e se contrapõem, delineando a complexidade das relações do mundo
representado.
49
É a partir dos depoimentos de Mena que se constrói a “imagem definitiva” do
major, uma imagem que, em certo sentido, conjuga os elementos expostos acima. Pode-se
dizer que o perfil que se depreende dos relatos de Mena é o de um homem “de mentalidade
marialva, comprovada nas suas atitudes de machismo e paternalismo” (PETROV, 1996,
p.297), e também de um “homem de ação”, um bom soldado e amante. Essa faceta de
homem de ação percebe-se, principalmente, pelos relatos de suas aventuras na África,
caçando hipopótamos (PIRES, 2000, p.90) e pelo seu desprezo pelos que “invocam a
lógica para retardar a acção” (p.120). No que se refere a sua situação de amante é de se
destacar os episódios em que Mena e Dantas C. se reencontram na Casa da Vereda
episódio imaginado em quase sua totalidade por Elias e a dedicatória que o major deixa
para Mena no verso de uma narrativa erótica encontrada no apartamento dela.
Percebe-se seu machismo no ciúme que sente por Mena, tratando-a como um objeto
seu, recorrendo, inclusive, à violência (p.200-201), que parece estar associada à impotência
sexual que o acomete. Nesse sentido, é possível sugerir que a violência aqui se como
uma tentativa de manutenção do poder, pois surge como um “substituto” do sexo que, para
o machista, é uma maneira de controle, de submissão da mulher. Essa forma autoritária de
tratar a sua amante expande-se na relação com o arquiteto e com o cabo, visto que o desejo
do major de impor sua vontade, conforme afirma Petrov (1996, p.298), converte-se na
negação da individualidade dos seus comandados, o que agrava as tensões na Casa da
Vereda e leva ao seu assassinato.
Na tentativa de estabelecer seu poder na Casa da Vereda parece que Dantas Castro
acaba por construir um sistema autoritário semelhante ao que se opõe, sendo possível
considerar a Casa da Vereda como um Portugal em miniatura, governado pelo terror e pela
constante vigilância. Sob essa perspectiva, segundo Pereira (2005, p.262), a imagem do
major é emblemática em dois sentidos: representa, por um lado, a ação transformadora
50
(tentativa de golpe) e, por outro, o fracasso que mantém o status quo. Desse modo, o
próprio assassinato do major pode ser comparado à tentativa de golpe no qual ele
participou, sendo que, ao contrário deste, aquele obteve êxito. Querer impor o poder, que o
major acredita perdido, por meio da violência, resulta numa reação proporcional, seja no
que se refere à sua morte, que se manifesta, principalmente, como um ato de libertação
daqueles que viviam sob seu regime de terror, seja no que diz respeito a Mena, que, para se
“livrar” de sua sombra, mantém, logo após a morte do major, relação sexual com o
arquiteto.
A imagem de Mena não é menos complexa e se constrói, fundamentalmente, pelo
contato direto entre ela e o detetive, e a partir dos relatos dela sobre os acontecimentos que
levaram à morte do major. Além disso, depoimentos como o do pedreiro (PIRES, 2000,
p.19); o de Emília (p.66), porteira do prédio onde Mena morara quando criança; o de
Norah (p.91), amiga de faculdade da acusada; e o da galinheira (p.146-150), dona do
apartamento que Dantas Castro alugara para sua amante, contribuem para a percepção das
várias facetas de Mena. Outro expediente que ajuda na construção de sua figura são as
fotografias encontradas em seu apartamento e na Casa da Vereda.
Mena surge pela primeira vez no romance caracterizada como “a mulher dos seios
nus” (p.18). Seu nome era ainda desconhecido, havia apenas a narração de um pedreiro que
dizia ter visto uma mulher nua na janela da Casa da Vereda, e essa aparição inicial ecoará
na imagem que se fará dela durante praticamente toda a obra.
É significativo constatar o contraste entre essa primeira visão de Mena e a de que
dela se constrói a partir do depoimento de Emília, pois esta não acreditava no que os
jornais relatavam sobre Mena. Ainda com relação ao depoimento da porteira, destaca-se o
modo como ela se refere à acusada, “menina Mena”, revelando carinho e familiaridade,
utilizando-se de um registro coloquial. Norah, outro personagem que Mena com
51
simpatia, serve-se de um discurso mais elaborado, mesclando uma linguagem mais formal
com uma mais popular quando necessário. Faz uma forte crítica aos valores machistas e
moralistas que regem a sociedade portuguesa, voltando-se, em especial, à imprensa e aos
especuladores em torno do caso. Norah, tal como Mena, é uma mulher independente e
liberal que foge aos parâmetros conservadores da sociedade portuguesa da época. No pólo
oposto está a galinheira, personagem ultraconservadora, que presta queixa contra Mena:
O agente que está ao teclado: Diz aqui <<lesada moralmente>>.
Moralmente, em que sentido?
A queixosa: Escândalos, senhor agente. Ofensas à moral cristã.
O agente: Não é resposta. Moral cristã dá para tudo.
[...]
O agente: Que frases obscenas?
A lamentosa treme a cabecinha, tem buço na venta e olhinhos recatados.
Palavrões, diz em voz sumida.
O agente: Tais como?
Curta para aqui, curta para ali, responde a galinheira ainda em mais
sumido.
E, o agente: Curta? Diga puta, senhora. Os autos querem-se precisos.
(p.147)
Extremamente moralista, a galinheira relata que Mena teria pichado, após uma
briga com o major, o apartamento com as palavras “Sou uma puta porca”. Como se
verifica no fragmento acima, a linguagem da galinheira é recatada, evitando palavrões e
expressões de baixo calão. A partir do depoimento da dona do apartamento, pode-se
depreender a imagem de Mena em constantes brigas com o major, trocando insultos, e com
vida sexual bastante ativa, ou nas palavras da galinheira: “toma lá, minha esta, toma lá,
meu aquele, e diz a piquena que aquilo era para eles se encristarem ainda mais, essas
nojeiras, porque, bem entendido, entrementes eles iam fazendo as outras coisas.” (p. 148).
Ao se dar espaço para a fala desses personagens, institui-se no interior do romance
uma diversidade lingüística que contribui para a construção do tecido social no texto
cardoseano, pois a partir desse relato é possível observar um instigante confronto
ideológico entre personagens de gerações e classes diferentes. Mena e Norah representam,
52
de certo modo, a juventude liberal dos anos 60, década em que muito se lutou, ao redor do
mundo, pelas liberdades individuais, e elas se opõem ao conservadorismo da galinheira,
representante de uma geração mais velha e que não está de acordo com a revolução
comportamental da época em questão.
A visão de Elias, por sua vez, entre as outras apresentadas, aproxima-se da do
pedreiro, porque, conforme afirma Eunice Cabral (1999, p. 236), “O olhar de Elias
objectualiza Mena.”. Ele não a como um ser humano, mas como corpo
despersonalizado, ou, nos termos de Cabral: “O fenómeno da objectualização da mulher,
por um olhar masculino, manifesta-se pela configuração do corpo feminino como uma
entidade autónoma.(p. 233). Observemos como se a construção da figura de Mena no
imaginário de Elias:
Pelas fotografias apreendidas na busca da polícia ao apartamento de
Mena, Elias adivinha esse corpo. Um corpo sumptuoso; e todo no
concreto, cada coisa no seu lugar. Admira-o em particular numa foto em
que ela aparece em bikini num relvado de piscina com um friso de
pavões ao fundo e era uma verdade, aquele corpo. Coxas serenas e
poderosas, o altear do púbis, [...] Tinha um esplendoroso, um pródigo e
ardente púbis, imaginava Elias. (PIRES, 2000, p. 23-24)
Essa representação de Mena é criada num momento em que o detetive ainda não
teve contato direto com ela, realçando um perfil fortemente sexualizado da amante do
major. O corpo é o elemento principal, tanto é que, entre as fotos possíveis, o detetive
escolhe a que deixa o corpo mais à mostra, aquela em que Mena está apenas de biquíni.
Essa imagem perpetua-se em Elias de tal maneira que o corpo de Mena torna-se mais
importante que o seu discurso, ou seja, a descrição e a imaginação do corpo dela têm
primazia na narrativa em relação a sua voz, que raramente surge no romance. Esse aspecto
é significativo, pois influi na percepção que o detetive tem dos fatos.
Mena transforma-se em objeto de desejo, uma obsessão do detetive que se
amplifica devido à distância e ao desprezo que ela assume, ou que Elias crê que ela assume
53
perante ele. Esse possível desprezo é sentido a fundo pelo detetive que, às vezes, parece
não se sentir confortável (embora sempre tenha curiosidade) diante de Mena. Isso ocorre
em função do seu aparente desleixo, do seu ar intelectual, de sua atitude muito “à vontade”
com relação a Elias e aos fatos e, ainda, pela sua falta de pudor ao relatar suas relações
sexuais com o major. É como se, por um lado, essa figura de mulher independente e liberal
perturbasse os valores conservadores do detetive, e, por outro, alimentasse seu desejo:
Mena ouve-o sem o desfitar. A cabra. A cabra retorcida. Para Elias toda
aquela estória de cama contada como foi contada tinha sido desprezo
calculado, estava à vista. Desprezo da boa fêmea, até aquele perfume
filhadaputa era isso, desdém, a cabronada para humilhar. Daí o à-
vontade com que ela se pôs desnuda diante do polícia. (PIRES, 2000,
p.158)
Constata-se aqui um procedimento semelhante ao que se observou quando tratamos
da questão distanciamento/aproximação: a princípio, depara-se com a voz do narrador
(“Mena ouve-o sem desfitar”), identificando-se, na seqüência, o discurso indireto livre.
Pode-se dizer, entretanto, que mesmo quando comparece a voz do narrador, o discurso
pertence ao detetive, pontuando-se uma espécie de disjunção entre os dois. Além disso,
nota-se como Elias sente-se incomodado com o à vontade de Mena, que ele considera uma
provocação. Todavia, permanece uma certa ambigüidade nessa situação, pois, como diz
Pereira (2005, p.268), não fica explícito no romance se ela repara na atração de Elias ou se
é ele que a vê como provocante e dissimulada.
Estabelece-se uma espécie de jogo de poder entre interrogador e interrogada, pois é
como se Mena, apercebendo-se do desejo, da obsessão que Elias nutre por ela, se utilizasse
justamente de seu corpo com a intenção de que o detetive se sentisse desconfortável.
Configura-se uma dupla inversão nesse duelo: por um lado, o detetive, que tentava
incomodar a prisioneira (privando-a do contato com o exterior, deixando-a sem saber as
horas, visitando-a repentinamente, fazendo com que ela repetisse várias vezes a mesma
54
história, invadindo o seu espaço, não permitindo que ela dormisse, etc.), acaba ele mesmo
se sentindo incomodado, humilhado; por outro, Mena, ao invés de se sentir mal pelo fato
de ele tentar coisificá-la, passa a usar o seu corpo para causar perturbação no detetive.
Dessa maneira, o detetive, que, a princípio, tinha o controle, o poder sobre a situação,
passa a ter problemas em se relacionar com a interrogada. Institui-se, assim, um
“contraponto tenso entre a vida de Mena, repleta de aventuras amorosas, e a de Elias,
solitária” (PEREIRA, 2005, p.268).
Da relação de Mena com o detetive surgem no texto várias designações, quase
todas de teor pejorativo: “donzela rebelde dos filmes americanos à espera do amante-
estivador” (PIRES, 2000, p.154), “boazona em tratos de perdão”, “bela adúltera” e “ovelha
tresmalhada” (p.156), “mulher-a-dias-pornográfica” (p.165) e “marquesa da porra”
(p.167). Esses nomes funcionam como um meio para rebaixar Mena, entretanto, esse
tratamento, ao contrário, parece revelar um sentimento de inferioridade de Covas em
relação a ela.
Ao se falar da imagem que se cria de Elias durante toda a narrativa deve-se ter em
mente uma questão importante, embora óbvia: ele é o detetive, ou seja, o que ele é está
intrinsecamente ligado ao que ele faz e, assim, a análise desse personagem é a análise do
detetive, de seu papel, de seu método, de sua atuação, nesse romance.
Sua figura constrói-se principalmente em função de suas ações e de seus
pensamentos, embora uma breve descrição física e sua folha corrida, inseridas logo no
início do romance (PIRES, 2000, p.9-10), antecipem-nos algumas de suas características.
Entre elas, merecem destaque a miopia, seu comportamento mortiço e a referência à unha
do dedo mínimo, que é crescida e envernizada. Além disso, afirma-se também que seu
apelido é Covas devido ao fato de trabalhar mais de vinte anos “a desenterrar mortes
55
trabalhadas e a distribuir assassinos pelos vários jazigos gradeados que são as
penitenciárias do país” (p.10).
Elias tem um papel central no romance, pois, como quer Petrov (1996, p.291), é a
ele que cabe reconstituir todos os ambientes, segundo dados reais e conjecturas. Nesse
sentido, pode-se dizer que Balada da Praia dos Cães aproxima-se dos romances policiais,
pois nestes o investigador ocupa um papel primordial na medida em que é sua função
esclarecer os fatos. Segundo Martin Cerezo (2005, p.369), é a partir do detetive que a
narração “[...] se mueve, se despliega, desarrolla, avanza, retrocede, aclara o confunde, se
lía o se resuelve.”
30
.
ainda outras características referentes a esse personagem que são constantes nas
narrativas policiais e que podem ser encontradas, de um modo ou de outro, no romance de
Cardoso Pires. Boileau e Narcejac vêem os detetives sob a seguinte ótica:
São todos - porque não há meio de se fazer de outro modo - excêntricos,
personagens estranhas, cheias de cacoetes e manias e - é claro - solteiras,
pois não se vê bem Sh. Holmes casado ou Poirot constituindo uma
família. Cerebrais ao extremo, parecem incapazes de amar. Digamo-lo:
são monstros. Será que pelo menos são capazes de distinguir-se uns dos
outros por um modo pessoal de conduzir a investigação? Não. Ao
contrário, eles se parecem todos, porque uma maneira de
raciocinar, claramente definida por Sh. Holmes, aplicando o método de
Dupin: “O raciocínio ideal, uma vez de posse de todas as características
de um simples fato, poderia deduzir disso o conjunto de suas causas e
efeitos”. (1991, p.24)
Tomando como ponto de partida o trecho acima, que ressalta a excentricidade, a
incapacidade de amar (solidão) e um método de investigação que privilegia o raciocínio
rigoroso e lógico como elementos prototípicos e recorrentes dos detetives, discutamos
esses aspectos em relação ao detetive de Balada da Praia dos Cães.
Elias é, sem dúvida, excêntrico, no sentido etimológico da palavra, ou seja, ele se
afasta do centro, está fora dos padrões considerados normais ou comuns. Nesse sentido,
30
[…] se move, se avoluma, desenvolve, avança, retrocede, aclara ou confunde, se complica ou se resolve
[Tradução nossa].
56
conforme afirma Pereira (2005, p.255), ele pode ser considerado um personagem marginal,
pois “é um homem solitário, cheio de manias [...] vive só, não se relaciona com ninguém e
tem os mortos como seus mais queridos interlocutores: os mortos da família e os cadáveres
com quem convive diariamente.” Temos aqui três elementos característicos de Elias:
manias, morbidez e solidão. As manias, em especial, o cultivo da unha e o costume de
dizer frases prontas acabam, sob certa perspectiva, ridicularizando-o, tornando cômica a
sua imagem. Por outro lado, essas suas particularidades consolidam sua individualidade, ou
seja, acentuam as suas diferenças em relação aos outros seres humanos. Note-se como,
nesse caso, as manias – e, por extensão, a excentricidade – parecem ter um papel duplo: em
primeiro lugar, evitam uma maior identificação entre detetive e leitor, pois o leitor percebe
certa comicidade no personagem, o que resulta num distanciamento; em segundo lugar,
essas particularidades o caracterizam como um indivíduo que faz parte de uma
coletividade, mas que, ao mesmo tempo, se diferencia dela.
Sob essa perspectiva, é possível dizer que Elias se configura no texto cardoseano
como uma paródia, um desvio, em relação aos detetives clássicos, pois nestes as manias e
gostos estranhos “[…] dan una nota de exquisitez, de distinción, que es precisamente lo
que se pretende, distinguirlo de los demás personajes y situarlo en una esfera superior”
31
(MARTIN CEREZO, 2005, p.365-366). Essa pretensão de superioridade, contudo, não
existe em nenhum momento em Balada da Praia dos Cães: pelo contrário, segundo Petrov
(1996, p.292), impotência e miserabilidade constituem as principais características de
Elias. A tradicional superioridade dos detetives é um dos aspectos da narrativa policial que
o romance do escritor português subverte, tendo em vista que nos apresenta um
investigador em que as manias e gostos, embora diferentes, não lhe conferem um lugar de
destaque entre os outros homens; esses elementos reforçam sua marginalidade, sua miséria.
31
[…] dão um tom de refinamento, de distinção, que é precisamente o que se pretende, distingui-lo dos
demais personagens e situá-lo em uma esfera superior [Tradução nossa].
57
A morbidez de Elias está relacionada ao seu trabalho, mas, de certo modo, também
à maneira irônica, entremeada de humor negro, com que ele a vida e o mundo. Um
exemplo é a piada, politicamente incorreta, que ele faz do chefe da secretaria: Agora ao
vê-lo levantar-se é que Elias se lembra que o fulano é cocho, se tinha esquecido, um
destes cochos que andam de través levando a reboque uma perna e batendo com a outra em
de carimbo.” (PIRES, 2000, p. 128). Durante todo o romance essa particularidade
mórbida de Covas é demonstrada, seja pela descrição da sua casa em que o quarto dos pais
e o da irmã se mantêm intocados, apenas com os móveis amortalhados, lembrando uma
“casa-fantasma”; seja por suas constantes visitas ao jazigo da família; seja pelo seu gosto
pela Rua da Madalena, conhecida pela sua feira de ortopédicos em que se vendiam
próteses para diferentes partes do corpo.
Outro aspecto destacado por Boileau e Narcejac (1992, p. 24) é o fato de os
detetives serem solteiros. De fato, Elias Santana não é descrito como solteiro, mas
também como solitário. A essa solidão do personagem, associam-se outros fatores, como,
por exemplo, certa carência no campo afetivo e sexual. Segundo Petrov (1996, p. 294),
“Outra faceta doentia, particularmente enfatizada ao longo do texto, é a depravação do
protagonista no plano afectivo que aparece diretamente condicionada por uma insatisfação
sexual”. Ainda de acordo com o crítico, os episódios em que esse aspecto do detetive se
apresenta são quase que totalmente “construídos em forma de diálogos teatralizados,
monólogos interiores, cenas imaginadas ou estados oníricos e sempre pelo recurso da
focalização interna ou externa”. Observemos um desses momentos:
Chega. Elias arruma o Popular. Como está sem idéias senta-se ao
telefone e liga para determinado número.
[...]
- Isso faz-se? Desligar ao querido?
- Já lhe disse que sou senhora casada.
- Então estás lavadinha por baixo.
58
- Ai toda, meu querido. Estou todinha. E tu? Sabes de uma coisa, hoje eu
não estou nada-nada para chatice.
- Nem eu. Estou doentinho (Elias mira a unha gigante),
- Com quê, meu querido? Foram-te ao rabo?
- Mais ou menos.
- Logo vi, mas, sabes, com chantilly, filho, com chantilly.
- Costumas pôr chantilly, é?
- Sempre, filho. Com muitas natas. Olha, vou desligar que o meu marido
já chegou. (PIRES, 2000, p. 135-136)
Sentindo-se sozinho, Elias estabelece, com uma estranha, um diálogo telefônico
que adquire tom pornográfico em função do rumo que ele dá à conversa. A mulher
responde no mesmo nível, ou melhor, sobrepõe-se ao detetive, tendo em vista que,
mudando o enfoque do diálogo, debocha dele. Nesse sentido é possível estabelecer uma
analogia entre o modo como se dá o relacionamento do chefe de brigada com essa mulher e
entre ele e Mena, pois em ambos os casos, ao que parece, a intenção de Elias era criar uma
situação desconfortável (e ver como reagiam diante dessa situação) para seus
interlocutores, mas eles se adaptam ao jogo que ele propõe e passam a jogá-lo habilmente.
Note-se como, no fragmento acima, a mulher passa de uma postura defensiva para uma
ofensiva, insinuando que o policial seja homossexual. Outro aspecto a se destacar é o
linguajar de Elias, bastante coloquial, quase sempre se utilizando de palavras de baixo
calão.
A relação de Elias com as mulheres, durante toda a narrativa, demonstra laivos de
uma visão machista notadamente no que se refere à coisificação da mulher. É possível
dizer que Covas, assim como a maioria dos detetives das histórias policiais, é incapaz de
amar, contudo, enquanto estes não amam devido a seu acentuado cerebralismo, Elias se vê
distante do amor pela conversão do corpo feminino em um objeto de fetiche.
A atração que Mena exerce em Elias aproxima-o do morto, Dantas Castro, em dois
sentidos: o primeiro refere-se à questão do exercício do poder, pois ambos se impõem:
Dantas Castro na Casa da Vereda por meio do terror, e Covas em seus interrogatórios,
59
obrigando Mena a falar; o segundo diz respeito à impotência com relação à Mena: no caso
de Dantas C. se deu, a partir de dado momento, no plano físico; em Elias, manifesta-se
pelo fato de ele desejá-la, mas não ter condições de “possuí-la”, o que leva o detetive a
recorrer ao “exercício da fantasia erótica” (PEREIRA, 2005, p. 264, 268).
O terceiro elemento destacado por Boileau e Narcejac (1992, p.24) alude ao método
de investigação. Vejamos em que sentido é possível fazer uma relação entre o método de
investigação de Elias Santana e a proposição feita por Sherlock Holmes sobre o raciocínio
ideal. Partamos do que significa investigar para o detetive da narrativa cardoseana: “A
experiência diz-lhe que o investigar é como nos filmes, depois do écran, depois do
contado e olhado, é que, repetindo e ligando, as fitas se vêem no todo e por dentro.”
(PIRES, 2000, p. 165). Na comparação entre as duas definições, realça-se a observação
como forma de promover a relação entre causa e efeito, a fim de se chegar à determinada
conclusão. Todavia, o detetive de Balada da Praia dos Cães, e o próprio romance, vão
contra uma das principais características do gênero: o rigor. De fato, a imaginação, as
adivinhações e suposições de Elias fazem-se presentes na reconstituição dos fatos, a ponto
de Eunice Cabral afirmar que “o crime é reconstituído pelo movimento retrospectivo da
confissão de Mena assim como pela imaginação de Elias” (1999, p. 226), ou seja,
investigação e imaginação se equiparam na reconstituição, ou melhor dizendo, na
reconstrução dos fatos.
Essa questão, segundo nos parece, é uma das que mais afastam Balada da Praia
dos Cães dos romances policiais tradicionais e é um dos elementos que o narrador não
deixa de destacar no trabalho do detetive. Nesse sentido, aquele jogo de aproximação e
distanciamento assume seu papel revelador, de denúncia e crítica. que se ter em conta,
portanto, como o narrador, a partir de recursos textuais simples, consegue revelar as
interferências do chefe de brigada na investigação. Note-se, por exemplo, o recurso a
60
verbos como “figura” (PIRES, 2000, p.21),aparecem-lhe” (p.22), “adivinha” (p.23),
“imaginava” (p.24), “conjectura” (p.31) nos episódios em que o narrador quer pôr à mostra
a “mão” de Elias, controlando, inventando a história.
Para além de demonstrar as interferências de Covas no processo, o narrador, muitas
vezes, tem uma atitude irônica com relação ao personagem. Isso não é diferente com
relação ao método de investigação adotado por ele, como exemplifica o trecho abaixo, que
ressalta uma espécie de lema que o detetive teria adotado logo nos primeiros anos de
carreira:
<<Escuta o vento sem paixão mas também sem temor. Procura os seus
sinais no deserto mais desapetecido, aquele onde não haja ovo de
serpente nem caveira de camelo, e eis que estás na senda da verdade. Em
breve se te abrirão as portas do mistério>> - palavras de Moisés segundo
Elias, ou garantidas como tal. (p.84)
Trata-se de uma citação da Bíblia que, do modo como utilizada por Elias, deixa
supor uma analogia entre a religiosidade ou a procura da verdade nesse sentido, verdade
entendida como conhecimento de Deus e dos Seus desígnios e a investigação policial. Se
aplicada à investigação, essa citação aproxima-se da definição de detetive comum ao
romance policial clássico (conforme vimos em Boileau e Narcejac), ou seja, ressalta a
imparcialidade, a paciência e a persistência na procura de provas (e da verdade) como
elementos fundamentais do trabalho investigativo. Entretanto, pela leitura que fizemos até
aqui, a referência a esse método de Covas assume, na narrativa, um cariz extremamente
irônico, pois vai de encontro ao que o narrador vem apresentando como a investigação do
detetive. Isso porque, ao contrário do que indica o “sem paixão”, ou seja, sem
envolvimento emocional, o trabalho de Elias demonstra constantemente que ele se envolve
com os fatos, não tem o distanciamento necessário, e não se restringe às evidências, às
provas.
61
Essa liberdade com relação ao “comprovável” institui no texto um segundo nível de
leitura dos acontecimentos ou “uma leitura segunda”, como quer o narrador (PIRES, 2000,
p. 84), que parece constituir uma espécie de “ética de leitura” de Covas, em que a
imaginação, a suposição, a adivinhação, etc., o elementos a par das provas e das pistas.
Tal leitura é constantemente referida pelo narrador como um modo de revelar a
parcialidade do ponto de vista do detetive e o quanto sua visão dos acontecimentos está
impregnada do que ele é, ou seja, do que ele lê, do que ele gosta, do que ele tem contato:
[...] se na sua alma deserta não há, como se diz, senão vozes de defuntos
e música do passado, também no sono aparente em que se move não
mais que vigilância e leitura, uma leitura segunda para do que lhe
contam e do que vê. (p.84)
Interpreta os fatos e os testemunhos não pelo lado da fé, isso é o menos,
mas também não os folheia com as mãos preciosas dos advogados. Não,
a ele cabem-lhe as entrelinhas mais desprezadas. (p.29)
O chefe de brigada regista a dois tons, o que lhe vem de Mena e o que
lhe segreda a memória (p.60).
O corpo nu. O corpo que Elias contempla (e completa) na fotografia da
piscina nu e por inteiro. (p.95)
Aguça o mais que pode o ouvido e as lentes (preenchendo por sua conta
os espaços em branco) enquanto ela vai avançando [...]. (p.154)
Apresentamos até agora como o narrador denuncia a presença de Elias na
investigação, ou seja, como ele interfere nos fatos ao manipular as provas e os
depoimentos. Outra faceta interessante nessa relação narrador-detetive é o modo como o
narrador revela a influência da atração que Elias sente por Mena na construção do
processo, da investigação:
Tentei os impossíveis para limpar aquela barafunda logo que saltei da
cama pela manhã. Despida e tudo. Nem pensei em me vestir, o que
queria era ver-me livre daquilo, sabe Deus. Não consegui, não é?
Paciência, limpa-se tudo em tribunal, que é que a mulher quer mais?
<<Nem se vestiu.>> Palavras da própria. Nua em lo como saiu
dos braços do major, a lavar paredes no grande desespero. E o major a
dormir o sono dos desgastes, mais que pacificado no corpo dela. Não o
62
disse, claro, mas esses segredos lê-lhos Elias na raça que ela tem, não
carecem ser mencionados. (p.157)
Trata-se de um episódio que não contribui especialmente para o esclarecimento da
situação em que o major foi assassinado, mas que é significativo na narrativa por mostrar
como que, de um incidente inteiro, Elias atribui importância desproporcional à nudez da
amante do major, o que se torna ainda mais evidente pelo fato dos acontecimentos serem
mostrados a partir da consciência de Elias. A princípio, o detetive repete, parafraseando, a
frase de Mena, que parece tê-lo chocado; é como se ele ainda não tivesse digerido a
afirmação dela. Desse modo, o narrador mostra-nos um Elias embasbacado com a “frieza”
do depoimento da acusada, que não se intimida diante do policial e revela os pormenores
da sua relação com o major.
Como dissemos anteriormente, uma predileção, uma obsessão do detetive em
relação ao corpo de Mena, o que, segundo nos parece, acaba afetando sua visão, sendo que
esta nos é revelada, pelo narrador, como a de um detetive que “se perde” na sua obsessão e
que constrói uma versão dos fatos “desequilibrada”, um detetive que vê e importância
diferencial ao que lhe fascina, não conseguindo manter a distância necessária. Essa visão
parcial é, em certo sentido, metaforizada na miopia que o acomete. Além desse aspecto,
um outro está ligado a esse “problema de visão”: o fato de Elias ser um funcionário público
e ter sua verdade restringida pela verdade que interessa ao Estado que ele serve,
especialmente por se tratar de um governo totalitarista que tem como uma de suas
características a homogeneização dos discursos e o sufocamento de vozes contrárias aos
seus propósitos (MARGATO, 2007, p. 165). Esse é outro componente que distancia Elias
dos detetives dos romances policiais tradicionais, pois, segundo Martin Cerezo, “[…] la
excepcionalidad con que se perfila la figura del detective evidencia la necesidad de no
encuadrarlo dentro de un servicio público ni en una organización, que, como todas, limita
63
las posibilidades de actuación de cualquiera de sus miembros.”
32
(2005, p.368). O fato de
Elias pertencer a uma instituição governamental é um dos elementos marcantes do
romance de Cardoso Pires, pois é a partir dessa visão de dentro dos meandros do sistema
ditatorial que se constrói a crítica subjacente a Balada da Praia dos Cães.
Convém ressaltar, no entanto, que mesmo com todas essas limitações e manias,
Elias, de acordo com Petrov, conta com certa “simpatia” do leitor, pois ele aparece “como
vítima de um sistema que ele próprio protege e pela lucidez crítica com que encara as
limitações impostas pela conjuntura de opressão” (1996, p. 351). Um outro fator que
corrobora essa “simpatia”, a nosso ver, é a sua “falta de ambição” (PIRES, 2000, p. 83),
pois a aversão que ele sente pela PIDE, a quem denomina “anjo leproso”, indicia que ele
não devia favores e não precisava bajular ninguém, sendo possível dizer que as suas
“falhas” nas investigações não têm um intuito “promocional”.
Elias surge como um dos principais pontos de vista pelos quais a narrativa é
contada. De acordo com Pereira (2005, p. 251), a centralidade” do detetive confere um
maior distanciamento em dois níveis: no estrutural, porque promove uma mediação entre
narrador e relato por meio da visão de Elias; no ideológico, porque o ponto de vista de
Elias geralmente não coincide com o do narrador.
Mostramos até aqui como se constrói a imagem de alguns dos principais
personagens de Balada da Praia dos Cães, pois, a maneira pela qual o narrador os
apresenta revela-nos o seu posicionamento frente a eles e reforça a idéia de um narrador
que se “intromete” na narrativa. Observemos, agora, como essa intromissão, juntamente
com os outros aspectos anteriormente ressaltados, tais como: a variação de ponto de vista,
o entrecruzamento de vozes, o recurso a vários discursos e textos, a narração
32
[…] a excepcionalidade que é própria à figura do detetive evidencia a necessidade de não enquadrá-lo
dentro de um serviço público nem de uma organização, que, como todas, limita as possibilidades de atuação
de qualquer de seus integrantes [Tradução nossa].
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estereoscópica combinada com a narração segundo a consciência de um ou vários
personagens, se relacionam com o modo de narrar dos romances policiais tradicionais.
2.2. O narrador sob uma nuvem de fumaça
Pelo que se pôde perceber até este momento, em Balada da Praia dos Cães atesta-
se a presença de um narrador heterodiegético e, servindo-nos do termo de Tacca (1983, p.
90), “quase-onisciente”. É certo, contudo, que a onisciência não é algo passível do quase,
ou se é ou não se é, não existe um narrador “mais ou menos onisciente”. Talvez seja esta,
então, uma das questões levantadas pelo romance de Cardoso Pires, uma vez que o
narrador joga tanto com a visão estereoscópica quanto com o narrar segundo a consciência
do personagem, utilizando-se, portanto, tanto do “dom” da ubiqüidade quanto do da
clarividência, caracterizando-se, nesse sentido, como um narrador onisciente. Sob essa
perspectiva, ele teria conhecimento total da narrativa que está a narrar, contudo, essa noção
é constantemente abalada pelas incertezas que pairam sobre o crime e pelo clima de
desconfiança instaurado na trama. Dessa maneira, a obra cardoseana acaba por
problematizar o conceito de onisciência ao se constituir numa narrativa em que a
indefinição, falta de clareza e imparcialidade são elementos fundamentais. Em outras
palavras, diríamos que, em termos formais, há subsídios suficientes para dizer que o
narrador é onisciente, contudo, essa onisciência é perturbada pelos vazios, pelas brechas
deixadas pela narrativa.
Verifica-se freqüentemente uma desestabilização tanto da noção de “saber” quanto
da de “verdade”, que se em pelo menos três sentidos, todos eles ligados a uma falta de
credibilidade que atinge aqueles que constroem as narrativas: o primeiro está ligado à
narração conforme a consciência dos personagens, em especial da de Elias, que, muitas
65
vezes, é flagrado em dúvidas sobre os acontecimentos; o segundo refere-se a uma falta de
credibilidade das fontes de informação, seja no que diz respeito ao depoimento de Mena,
seja no que concerne aos meios de comunicação; o terceiro relaciona-se com intervenções
pontuais do narrador/autor que questionam a narrativa, como veremos no próximo
capítulo. No primeiro caso temos a construção de um “detetive imperfeito”, que não trilha
o tradicional caminho da dedução certeira; no segundo, confrontamo-nos com diferentes
histórias, todas elas manchadas pela dúvida quanto à sua fidedignidade; no terceiro,
deparamo-nos com um sujeito textual que imerge sua narrativa nesse mar de dúvidas e
desconfianças e faz com que recaia sobre ela o mesmo ceticismo.
O primeiro modo de desestabilização da “verdade” e, por extensão, do “saber”,
ocorre majoritariamente por meio das focalizações mediadas pela consciência do detetive,
que, em diversos momentos da narrativa, mostra-se vacilante, vê-se diante de pistas que
não consegue decifrar. É o que se presencia no trecho: “Quando é que o Barroca foi
alertado para estes avisos? Em 15-5-59 na sua cama de caserna ou depois, numa leitura
segunda, na Casa da Vereda? Com que pressentimento infernal sublinhou ele aquilo, com
que intenção?” (PIRES, 2000, p. 46). Aqui se identifica o trabalho de reconstrução e de
preenchimento de lacunas praticado pelo detetive, que tenta estabelecer nexos entre os
vestígios e os acontecimentos, mas fica patente a sua desorientação, as suas dúvidas, que
vão ressurgir, entre outros momentos, no “baile das datas”: “Mas revelado, quando? Na
véspera do crime, como dissera Mena ao arquitecto? E hoje é a própria Mena que tem
dúvidas [...]” (p.191). Note-se como estão aqui expressos os questionamentos de Elias, mas
também a desconfiança dele com relação à versão dos fatos contada por Mena (p.123),
desconfiança que permeia praticamente todo o romance (ele a via, conforme
observamos, como dissimulada).
66
Adentramos, agora, numa imbricação entre o primeiro e o segundo modos de
desestabilização do saber, pois, para além das dúvidas do detetive a respeito dos
acontecimentos, o seu descrédito com relação às várias versões sobre eles, como ilustra
o trecho a seguir:
O Paris de cabo era ali amarrado à Casa da Vereda, ele que não pensasse
escapar. Ali. Paris-sur-Tage, estúpida de graça. E mais uma vez era
impressionante a clareza com que expunha, sentia-se nele a tal felicidade
dramática de que falava Mena há bocado.
(Felicidade dramática, ela disse isso? Elias aperta o olho amolecido neste
embalar do conto de Mena. (p. 123)
O questionamento do detetive não recai mais sobre uma ação ou sobre as
circunstâncias que levaram a ela. O que está em jogo é a própria narrativa: a pergunta não é
acerca da veracidade de um acontecimento, mas sobre o que foi contado e como foi. Essa
mudança parece inserir uma profunda descrença na noção de “verdade”, pois se
questionam as fontes, os depoimentos, dos quais tanto o detetive quanto o narrador se
utilizam. Tal contestação torna-se ainda mais relevante se levarmos em conta que se trata
de um momento no qual o narrador invade a subjetividade de Elias, revelando seus
pensamentos, ficando patente que o próprio detetive todos os depoimentos e provas
como narrativas. A postura do narrador parece apontar para o mesmo sentido ao se referir
às declarações de Mena como “conto”, termo utilizado, principalmente, para textos
ficcionais ou “enganosos”.
Tendo em vista as duas modulações de desconfiança consideradas, reafirmamos
que o narrador está continuamente assinalando as frestas, os problemas, as limitações que
acometem a narrativa. Estamos, portanto, diante de um relato que parece desconfiar de si
mesmo, que investe na dúvida.
Nesse sentido, Balada da Praia dos Cães afasta-se consideravelmente dos
romances policiais clássicos em que a narração se apresenta como uma verdade
67
incontestável devido aos dotes superiores de um detetive espetacular, o que indica um certo
autoritarismo. Esse é um elemento subvertido pelo romance de Cardoso Pires que se serve
de procedimentos, tais como a focalização interna, a variação de pontos de vista, o jogo
com diversas vozes que contribuem para uma visão ampla e diversificada, e, portanto, não
autoritária.
Outro aspecto que distancia o narrador de Balada da Praia dos Cães dos narradores
prototípicos dos romances policiais clássicos é o modo como ele trabalha a informação.
Isso porque, grosso modo, mesmo quando o narrador de um romance policial clássico
emprega vários pontos de vista para compor seu relato, essas diversas perspectivas
apresentam-se como diferentes peças que o detetive (e o narrador) deve organizar para, ao
final, chegar à composição de um grande quebra-cabeça em que todos aqueles pedaços
foram encaixados e harmonizados. Na obra de Cardoso Pires, ao contrário, muitas vezes os
diferentes pontos de vista não podem ser conciliados, não se completam, antes, se opõem.
Também é possível verificar que Balada da Praia dos Cães e o romance policial
tradicional apresentam duas maneiras distintas de se depreender o mundo, pois, enquanto
este gênero em especial nas obras anteriores ao surgimento do “romance noirtinha
como um de seus fundamentos a crença na capacidade do homem de ordenar e entender o
mundo onde vive como algo coeso e coerente; o romance do escritor português depara-se
com um mundo instável, desestabilizado. Contrapõem-se, portanto, uma percepção
positivista e “harmônica” do mundo e uma cética e problematizadora.
No romance policial clássico, a narrativa tende a ser conduzida por um narrador
homodiegético, que, geralmente, é um amigo do detetive, o que se constata, por exemplo,
nas histórias de Sherlock Holmes e em grande parte das histórias de Poirot. Esse
personagem-narrador acompanha todos os passos do detetive, tendo, a princípio, acesso a
todas as informações que ele, e é quem nos relata os seus feitos. Como afirma Martin
68
Cerezo (2005), o recurso a esse amigo-narrador é uma técnica literária que está fortemente
vinculada a uma “eficiência narrativa”. De fato, a presença desse tipo de narrador amplia
as informações, uma vez que possibilita, muitas vezes, o aparecimento de dois pontos de
vista na história (o do detetive e o do amigo), permitindo que seja feita uma confrontação
entre a interpretação de ambos.
Além disso, em histórias como as de Sherlock Holmes e Poirot, os seus
companheiros têm como uma de suas atribuições realçar a inteligência do detetive por
contraste, ou seja, segundo Martin Cerezo, enquanto o detetive representa uma inteligência
superior, o seu companheiro representa o “senso comum”. Esses romances policiais são
marcados, portanto, por um “narrador-cronista” que vai relatando as aventuras dos
detetives. Trata-se de um narrador equisciente (TACCA, 1983, p.68), mas que está sempre
“um passo atrás” do detetive, pois este é detentor de um conhecimento “superior”, muitas
vezes exótico, de um saber que se estrutura numa rigorosa gica dedutiva e que consegue
a partir de parcos (e muitas vezes falsos) indícios desvendar os mais complexos casos. A
própria noção de equisciência nesse caso é bastante controversa, pois o narrador-
companheiro tem acesso a todos os dados que o detetive, ele não tem, contudo, acesso à
sua mente, aos seus pensamentos e, portanto, não tem o mesmo conhecimento que este.
Trata-se, aqui, não propriamente de uma diferença de informações, mas de uma diferença
de interpretações e que é fundamental para a construção da intriga no romance policial.
Por meio desses recursos narrativos, segundo Colmeiro, instaura-se a ilusão de que
leitor e detetive têm o mesmo conhecimento sobre os acontecimentos, o que, de fato, não
acontece, pois o leitor não segue a narrativa do detetive, mas a do narrador; portanto, a
investigação do leitor nunca vai ser igual a do detetive porque entre eles o narrador que,
no romance policial, nunca tem o mesmo conhecimento que o detetive.
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Instigado por esse engodo, o leitor do romance policial insere-se num jogo em que
tenta desvendar, antes do detetive, o enigma, o crime presente na história. Este é outro
aspecto que Balada da Praia dos Cães subverte, pois no início se revela qual é a
resolução do detetive: “E estes são os três suspeitos, os que mataram e levaram o segredo
com eles.” (2000, p. 13). Note-se como, nessa frase, Mena, Fontenova e Barroca passam de
suspeitos a criminosos. Temos, portanto, uma antecipação dos resultados da detecção de
Elias, mas que não redunda em um desinteresse por parte do leitor, porque a “história
oficial” surge como mais uma versão possível para o caso.
Além disso, o recurso à focalização interna, principalmente em relação ao detetive,
como se observa em Balada da Praia dos Cães, não é comum no romance policial, pois, se
o narrador pode se infiltrar na consciência do detetive e nos informar sobre o que ele
realmente sabe, o leitor, de fato, vai ter a oportunidade de desvendar o enigma antes do
detetive, o que poderia causar um desinteresse súbito por parte do leitor. Nesse sentido, o
romance de Cardoso Pires distancia-se, inclusive, do romance policial noir, escrito por
Hammett ou Chandler, uma vez que nessas narrativas a “deficiência de conhecimento foi
um recurso deliberadamente explorado pelo romance ‘behaviorista’ dos norte-americanos,
que, confinando-se à descrição do comportamento, abstinham-se de penetrar nas
consciências.” (TACCA, 1983, p.78). Todavia, conforme procuramos demonstrar, mesmo
utilizando-se de procedimentos como a focalização interna e a variação de perspectiva
narrativa, o texto cardoseano é permeado pela dúvida, pela desconfiança.
De maneira semelhante ao que ocorre no gênero policial, o romance de Cardoso
Pires solicita do leitor uma postura ativa, mas, ao contrário daquele, o leitor deste não
busca desvendar o crime antes do detetive, mas reconstruir os passos que levaram esse
personagem a chegar a determinado desvendamento dos fatos. Dessa forma, enquanto os
romances policiais tradicionais se estruturam em torno da resolução do crime, Balada da
70
Praia dos Cães tem sua base num desdobramento vertiginoso do processo de investigação
que se converte numa espiral de investigações, pois, além da detecção promovida pelo
detetive, tem-se a que é realizada pelo leitor, pelo narrador e até mesmo pelo autor. Uma
investigação que avança do caso específico do assassinato do major para averiguações
concernentes ao regime salazarista. E que chega, por fim, aos próprios limites do gênero
policial.
Essa espiral de investigações, no entanto, não visa a uma solução conciliadora, o
se procura alcançar uma resolução que não deixe margens ao debate, o que nos possibilita
promover uma analogia entre a narrativa de Balada da Praia dos Cães e a de Mena, pois,
da mesma maneira que esta está sempre envolta por uma nuvem de fumaça proveniente de
seus cigarros, o romance do autor português parece estar envolto por uma névoa, por uma
fumaça, que o torna incerto, errante.
3. OS FIOS COM QUE SE TECE A ARRATIVA
Apontamos, na parte anterior de nosso estudo, para a presença de um narrador
arisco, um narrador que promove um intenso jogo de aproximação e distanciamento com a
narrativa, um narrador que, da mesma maneira que o detetive, parece não se cansar de
deambular pelas margens da narrativa, um narrador que marca presença, que não se
contenta em relatar os fatos, deixando entrever críticas, insinuando incoerências,
desconfiando de tudo e de todos.
A partir de agora visamos, então, realizar uma leitura que chame atenção para a
figura do autor na narrativa cardoseana. Destacamos, contudo, que, se se pode dizer que o
narrador é arisco, deve-se presumir o mesmo do autor, que, por um lado, parece estar
presente em toda a narrativa, observando, acompanhando, mas, por outro, sua voz surge
pontualmente, em especial, por meio das notas de rodapé, do apêndice e da nota final.
Na maioria dos casos, torna-se difícil uma separação nítida entre o que seria a voz
do autor e o que seria a do narrador, principalmente porque, no romance cardoseano,
muitas vezes cabe ao narrador “tarefas” que, se pensarmos na divisão proposta por Tacca
(1983), são próprias do autor, o que nos leva a problematizar e relativizar o limite entre as
noções de narrador e autor, e a empregar, por vezes, o termo narrador/autor.
Atentemos para as duas passagens que seguem: em uma delas percebe-se mais
claramente a voz do autor; na outra, persiste a dúvida:
Elias está sem óculos, tem pálpebras pisadas e rugosas como as dos
perus. Mastiga em seco fitando sempre (através das pálpebras? Por uma
réstea sumida?) aqueles retratos desfalecidos em sépia de antepassado.
Depois levanta-se e atravessa o corredor, aqui um cheiro que o
engana: ratos? (PIRES, 2000, p.11).
Aqui o uso dos parêntesis, que pressupõe uma quebra de continuidade na narrativa,
possibilita pensar na voz do autor questionando a do narrador, como que desconfiando de
72
seu relato (como Elias está vendo algo se seus olhos parecem estar fechados?) ou ainda
exigindo uma maior precisão
40
(seus olhos estão quase fechados, mas resta uma fresta por
onde ele vê?). que se notar, no entanto, a presença de um outro ponto de interrogação
no final do trecho (“ratos?”) que coloca um problema: por que aquelas intervenções
apontam para a voz do autor e essa não? A resposta, nesse caso, é simples: é um narrar
segundo a consciência do personagem; depreende-se que a pergunta “ratos? seria
formulada por Elias.
Todavia, esse mesmo procedimento narrativo de adotar a consciência de
determinado personagem pode causar ambigüidade, conforme se verifica no fragmento
abaixo:
Elias espalma a mão para apreciar a unha gigante. Roda-a à contraluz
como se fosse um diamante, mira-a e admira-a e vai memorando que
as intelectuais ou as camponesas é que deixam crescer assim os pêlos
dos sovacos em liberdade, não era a primeira vez que observava isso.
Mas na jovem dos pavões havia uma indiferença humilhadora nesse à-
vontade com que punha à vista aquelas emanações secretas do corpo.
Haveria? (PIRES, 2000, p.117)
Parte-se de uma narração do ponto de vista de Elias chegando-se a uma focalização
interna por meio da qual o narrador nos revela os pensamentos do detetive, até que surge o
verbo “Haveria?” a suscitar algumas perguntas: até que ponto “Haveria?” pode ser
entendido como a voz do narrador questionando o que a focalização interna afirma, e a
que ponto é possível dizer que se trata de uma intervenção do autor que se sente
“incomodado” pela excessiva aproximação entre os pensamentos de Elias e a voz do
narrador? Se levarmos em consideração a primeira hipótese, temos uma situação em que,
ao contrário do que ocorre em outros momentos, o narrador não se limita a esclarecer que o
que vai expresso é a opinião de seu personagem, ele põe em dúvida a percepção de Elias
40
Essa exigência de uma maior precisão deve ser entendida sempre no âmbito da ficção, da narrativa, ou
seja, é um elemento interno ao romance.
73
sobre os fatos. A segunda hipótese, por outro lado, não questiona os pensamentos de Elias,
mas o relato do narrador que afirma que “na jovem dos pavões havia uma indiferença
humilhadora” (grifo nosso) e, nesse sentido, parece estar de acordo com o pensamento de
Elias. Em ambos os casos, no entanto, essa intervenção implica um questionamento da
própria narrativa. No primeiro caso, ao questionar os pensamentos de Elias o narrador
coloca em suspense a sua própria narração, pois, conforme viemos demonstrando, ele se
utiliza freqüentemente tanto da perspectiva quanto dos pensamentos de Elias como veículo
narrativo. No outro caso teríamos uma intervenção do autor desconfiando do relato do
narrador, “desautorizando” a narração.
Os dois excertos analisados acima levam-nos a questões que parecem fundamentais
no romance: percebe-se um primeiro indício do modo como o autor se insere no jogo de
desconfianças que afirmamos estar presente no romance; nota-se também de que maneira a
insurgência da voz do autor contribui para a consolidação daquilo que chamamos de
desestabilização dos conceitos de verdade e saber na obra; revela-se como, muitas vezes,
encontram-se situações em que não é possivel uma diferenciação entre a voz do autor e a
do narrador, deixando entrever que não há entre esses dois sujeitos enunciativos uma
separação estanque como a que se vê na teoria.
Uma das dificuldades para a distinção entre autor e narrador deve-se ao fato de que
o autor abre espaço para o surgimento na narrativa de diferentes tipos de registros,
provenientes das mais diversas fontes com os quais o narrador deve conviver. Desse ponto
de vista pode-se dizer que as intromissões desse autor requerem que o narrador mobilize
suas habilidades narrativas, que interaja com esses discursos, o que aproxima a sua atuação
daquela que seria prototípica de um autor e não de um narrador. Se, como quer Tacca
(1983, p.19), ao autor cabe a inclusão de todo um conhecimento artístico, literário, etc., ao
74
narrador cabe lidar com essas intervenções do autor; o narrador, em certo sentido, precisa
compartilhar as mesmas informações que o autor.
Cientes da dificuldade que se apresenta, focalizaremos agora as notas e o apêndice
incluídos no romance, manifestações em que se identifica de forma mais evidente a voz do
autor, segundo as duas atitudes que consideramos lhe serem mais específicas: o
questionamento e a exigência de precisão. Essas atitudes são complementares e atuam,
principalmente, em dois sentidos: primeiro, são um desdobramento da rede de
desconfianças; segundo, tem papel primordial no diálogo entre ficção e realidade percebido
na narrativa.
3.1. Primeira faceta: precisão
A busca pela precisão tem especial importância nas notas de rodapé e no apêndice.
Em número de nove, as notas de rodapé são informações que visam conferir maior
referencialidade à narrativa, uma tentativa de demonstrar sua factualidade
41
, sendo comuns
as notas que trazem citações, seja do processo (p.62), seja do Caderno de Dantas C.
(p.51,120), seja do livro O lobo do mar (p.124); correções de dados constantes na obra
(p.28); ou ainda informações complementares sobre episódios (p.17, 115) ou figuras
históricas citadas no romance (p.131, 162). Observemos:
(*) A trajectória seguida pela Pide para referenciar a Casa da Vereda é
ainda hoje um dos pontos obscuros do <<Caso Dantas Castro>>. Se está
fora de dúvida que se tratou de denúncia, é evidente também que das
interpretações postas a correr na altura dos acontecimentos apenas duas
subsistem com alguma validade. Uma delas, a do senhorio da casa, que
41
Essa factualidade, essa precisão, que julgamos ser um dos elementos implicados no recurso às notas de
rodapé e apêndice, não devem ser entendidas como uma relação direta entre o romance e a realidade. Esses
enunciados, a partir do momento em que se encontram num romance, tornam-se também ficcionais, sofrem,
por assim dizer, um processo de ficcionalização. Nesse sentido, mais do que garantir a veracidade do que se
diz, eles apontam para sua verossimilhança, são elementos que tendem a tornar o texto mais “referencial”,
mas não necessariamente mais real. Sob o ponto de vista da ficção não interessa se as notas em que
comparecem trechos dos autos pertencem, de fato, aos autos; o que importa é que no romance surgem como
tais.
75
teria reconhecido a companheira do major pelas fotografias da Imprensa,
e uma outra que atribui a denúncia a alguém da vizinha localidade de
Fornos onde Filomena Joana fazia as compras semanais. Hipótese
igualmente viável: após a Revolução do 25 de Abril os ficheiros da Pide
revelaram a existência naquele lugar de dois informadores efectivos e de
um filiado na Legião Portuguesa, organização que colaborava
estreitamente com a polícia política. (N. do A.) (2000, p.17)
Essa primeira nota do romance é a única em que temos a designação “N. do A.”
(nota do autor); trata-se de uma complementação com especulações sobre como a PIDE
teria descoberto a Casa da Vereda. É de se reparar aqui o distanciamento temporal entre o
momento da enunciação e o tempo em que se passam tanto a “história do crime” quanto a
“história da investigação”. O autor coloca-se num tempo posterior a 25 de abril de 1974,
data da Revolução dos Cravos, enquanto o assassinato do major ocorreu em 1960. Outro
aspecto que merece destaque é a dificuldade, mesmo 20 anos depois e com muitos dos
arquivos da Pide à disposição, de se chegar a um consenso sobre certos elementos da
investigação.
O apêndice, de maneira semelhante às notas de rodapé, acrescenta informações, boa
parte delas contextuais, ao romance. Essa seção do texto é composta por oito fragmentos
que complementam a narrativa, trazendo, por exemplo, dados sobre a vida do detetive
Elias Santana após o caso Dantas Castro”, bem como sobre outros personagens. O
apêndice estabelece uma ponte entre as notas de rodapé e a nota final, uma vez que, por um
lado, abre as portas para uma discussão sobre a constituição do próprio romance,
semelhante ao que propõe a nota final, e, por outro, acrescenta informações pertinentes à
história narrada e ao contexto, tal como é típico das notas de rodapé.
Depreende-se, de um modo geral, que, no que concerne à exigência de precisão,
tanto as notas de rodapé quanto o apêndice procuram, no arrolamento de documentos,
entrevistas, etc., fundamentar a narrativa em cima de textos que lhe emprestem um valor de
verdade. Sob essa perspectiva devem ser destacados três aspectos: primeiro, a busca por
76
provas, por meio da observação e encadeamento lógico de dados, é um dos elementos que
permitem que se veja em Balada da Praia dos Cães uma homologia entre o modo como o
romance se estrutura e a maneira como trabalham os detetives nos romances policiais;
segundo, um desdobramento dessa relação com o gênero policial é a aproximação com o
texto científico, no sentido que ambos se utilizam de procedimentos como a documentação
e procuram oferecer dados e resultados testáveis e comprováveis; terceiro, a excessiva
necessidade de documentação torna-se uma faca de dois gumes, pois, por um lado,
estabelece vínculos entre a história narrada e o contexto, e, por outro, acaba dando brechas
para questionamentos.
Muitas vezes as notas de rodapé mais do que apontar para fontes e contribuir para a
construção do efeito de verdade acabam se tornando um veículo de questionamento da
narrativa, pois surgem como uma correção, apontando imperfeições daquela história.
Assim, a inserção desse recurso atua no sentido de, por um lado, revelar uma intromissão
do autor na narrativa, numa tentativa de contribuir para uma maior precisão (destaca-se,
portanto, o teor “corretivo” dessas intervenções); por outro lado, contribuir para que a
desconfiança se instaure no processo de leitura.
Levando em consideração esse duplo efeito, é possível dizer que o apelo às notas
de rodapé e ao apêndice, mais do que assinalar a referencialidade do romance, acaba por
chamar atenção para a sua ficcionalidade, num procedimento que parece requerer do seu
receptor uma leitura crítica e desconfiada. Deve-se destacar que mesmo o “intuito
corretivo” do autor atua num sentido bastante difuso, pois em vários momentos se
materializa como um acúmulo de provas, documentos, contraditórios entre si, esbarrando
numa multiplicidade de textos que abrem um leque de possibilidades, uma vez que para
um mesmo acontecimento tem-se uma diversidade de explicações que remontam a uma
grande variedade de pontos de vista, ideologias e interesses.
77
Desse modo, a inclusão de documentos contraditórios aponta não para a
objetividade, mas para a parcialidade de cada um desses textos, podendo-se afirmar que o
autor, ao introduzir os mais diversos fragmentos de textos, está desnudando a relação do
romance com outros discursos. Depreende-se até mesmo uma atitude irônica com os textos
incorporados, pois além de o romance assinalar que eles não são “a” verdade sobre um
acontecimento, ele indica que esses textos são narrativas e não a “realidade”.
3.2. Outra faceta: questionamento
Dissemos acima que o apêndice pode ser visto como um momento de transição
entre o tipo de discurso do autor presente nas notas de rodapé e o encontrado na nota final.
De fato, algumas das informações acrescentadas no apêndice, mais do que acerca de dados
constantes no romance, tratam da própria constituição deste, colocando-se como a
apresentação dos “bastidores” da obra. Trata-se, nesse sentido, de uma reflexão sobre o
processo de elaboração do romance. Nessa vertente destacam-se, por exemplo, as partes
em que o autor fala sobre os textos que contribuíram para a construção da chamada “Noite
dos Generais” (PIRES, 2000, p.233), citando obras de Sarmento Pimentel, Fernando
Queiroga, Álvaro Lins, entre outros. É no apêndice que o autor adota, de maneira mais
clara, um discurso em primeira pessoa: “Aqui, como noutras circunstâncias descritas, devo
ao arq. Fontenova o esclarecimento pessoal de vários factos do processo-crime.” (p.232,
grifo nosso). Nota-se, portanto, um afunilamento para uma reflexão de teor mais
metalingüístico, que aponta para a própria composição do romance, para as suas fontes,
etc., reflexão que ganhará maior fôlego na nota final.
A nota final é composta por três partes. A primeira diz respeito ao modo como o
autor teve contato com o material utilizado no romance; a segunda fala sobre a solidão; a
terceira expõe a relação entre “facto e ficção” (PIRES, 2000, p.236).
78
O tópico “1” da nota final nos informa que em 1961 o autor recebeu um relato de
22 páginas do personagem Fontenova
42
. Tratava-se de uma “descrição cida e frontal de
uma tragédia [...]. Simples e objetivo, o que impressionava era a consciência solitária que o
ditava e a voz corajosa em que o fazia” (p.235). Chama atenção o fato de que a primeira
referência ao relato de Fontenova é como texto, como narrativa, como se pode verificar
pelos termos “descrição lúcida”, “simples e objetivo”. O autor revela, então, ao leitor as
características do texto de Fontenova, fincando na discursividade, o que nos permite
sugerir que a história do arquiteto se “submete” ao critério de verossimilhança e não ao de
verdade. Atentemos para o seguinte trecho:
A leitura posterior dos dois processos-crime (Polícia Judiciária e PIDE)
veio confirmar-me essa serenidade factual, mas foi o conhecimento
directo que tive com o autor do relato, depois de cumprida a pena, que
me deu uma dimensão mais profunda dessa objectividade. Apercebi-me
então de que naquele homem sensível e dotado de criatividade e
imaginação a obsessão do estrito e do pontual era quase uma
despersonalização deliberada e que impusera a si próprio como um
princípio na análise deste capítulo da sua vida. (p.235)
Note-se como esse excerto, em certo sentido, promove um desdobramento do
anterior, pois ao lado da noção de objetividade ressaltada anteriormente, o autor acrescenta
uma descrição de Fontenova: “homem sensível e dotado de criatividade e imaginação [em
que] a obsessão do estrito e do pontual era quase uma despersonalização deliberada”.
Perceba-se como o autor coloca na berlinda o relato do arquiteto ao realçar a imaginação
como uma de suas características. Se somarmos isso com o comentário do autor sobre o
relato de Fontenova, é possível indicar que a objetividade é um recurso retórico utilizado
para conferir verossimilhança ao texto, um recurso criativo por meio do qual se desperta a
credulidade do leitor.
42
No romance os nomes dos personagens não são compatíveis com os das pessoas que estiveram envolvidas
no caso. Deve-se perceber como, mesmo na nota final, o autor ainda se refere aos personagens como
personagens, não divulgando os nomes das pessoas que vivenciaram os acontecimentos.
79
Ao realçar sua presença, o autor diferencia a sua narrativa das de Fontenova, do
detetive e até mesmo do narrador. Em todos esses casos revela-se uma busca por certa
objetividade, por uma certa impessoalidade. Quanto ao detetive, é possível afirmar que
mais do que uma questão de escolha, a objetividade que se entrevê nos seus autos é uma
questão de adequação às normas do texto técnico: “Reconhecia-se ali o peso duma
informação bem fundamentada. Mas resumida. Era densa e concisa, sem uma repetição
que não fosse intencional, e impecável no método, articulação a toda prova.” (p.86). No
que tange ao narrador, pode-se dizer que alguns dos procedimentos por ele adotados tais
como recurso a uma enunciação “impessoal”, utilização de variados pontos de vista, uso da
focalização interna, etc. atestam aquilo que Petrov (1996, p.297) chama de um
“intencional apagamento do narrador”.
Em contraposição, o autor surge por várias vezes em primeira pessoa,
especialmente no apêndice e na nota final. Ele se expõe. Ora, se, como demonstramos, ele
assinala que a objetividade é um artifício retórico, não mais do que um meio pelo qual se
causa a impressão de que dado fato é crível, é possível dizer, portanto, que a sua irrupção
no romance é coerente com essa sua crítica, minando uma aparente ilusão de
imparcialidade.
3.3. Autor e narrador: homologias
Tanto no que se refere ao narrador quanto ao autor utilizamos o termo “intrusões”,
uma vez que, segundo a nossa perspectiva, são as “intrusões” um dos principais elementos
que aproximam esses dois sujeitos do discurso.
As “intrusões” do narrador, grosso modo, se delinearam como uma indicação de
que determinado discurso é de outro, demonstrando que não compartilha determinada
opinião; as do autor podem ser divididas em duas coordenadas: primeira, surgem para
80
acrescentar dados, para comprovar com documentos; segunda, comparecem para comentar
a obra.
A primeira coordenada aproxima narrador e autor, na medida em que a introdução
de textos alheios pode ser percebida como uma estratégia homóloga à variação do foco
narrativo, pois ambas têm como principal intuito inserir o ponto de vista do outro na
narrativa e, nos dois casos, contribuir para a construção de uma visão mais ampla, que
acolhe diferentes versões de um mesmo fato. A narração estereoscópica e a assimilação
dos mais diferentes textos são, portanto, procedimentos pelos quais o romance ultrapassa o
ponto de vista individual, a univocidade, constituindo-se como uma obra plural e aberta.
A segunda coordenada, por sua vez, também indicia um desdobramento de uma
“intrusão” do narrador. De maneira semelhante ao que o narrador faz quando deixa
entrever que não está de acordo com um discurso, quando questiona determinado
enunciado, o autor surge em alguns momentos para se questionar:
O medo, uma forma dramática, um limite de solidão. Foi ele que o
disse? São de facto palavras dele ou do aqui designado Fontenova? Ou
doutro alguém, quem sabe? Não teria, até, sido eu que me achei a ouvi-
lo dizer essa e outras coisas numa memória inventada para o tornar mais
exacto e real? (PIRES, 2000, p.236)
O autor discute aqui a sua própria percepção dos fatos, de maneira semelhante ao
que o narrador faz com relação ao detetive, demonstrando ter dúvidas sobre o que enuncia,
sobre até que ponto a sua presença modula a sua obra; em outros termos, o que está em
foco é em que medida tudo o que vem narrado não é “seu”, no sentido de criado por ele:
“Não teria, até, sido eu que me achei a ouvi-lo dizer essa e outras coisas numa memória
inventada para o tornar mais exacto e real?”. Note-se como em certo sentido o que vem à
baila é um questionamento do processo de documentação, bem como uma ênfase no
caráter ficcional da narrativa. Aqui, ficção e “realidade” se entrelaçam de forma
permanente: a invenção configura-se como o meio de tornar algo mais “exato e real”.
81
O que se revela no excerto acima, enfim, é que a imagem do arquiteto, criada pelo
autor, deve ser entendida como uma versão, como uma construção de sentido. Essa versão
pode ser contrastada com outras versões presentes no romance, tais como a do detetive, a
de Mena, a da mãe do arquiteto, a de Aldina Mariano, a da PIDE. Não há, por assim dizer,
uma hierarquização de versões, todas elas compõem a imagem de Fontenova, todas
representam uma imagem dele sob determinado ponto de vista; o autor, portanto, parece
não ver necessidade de delimitar, de simplificar essa pluralidade.
Tão importante quanto esse aspecto é o fato do autor demonstrar estar ciente da
problemática que o seu texto suscita. Revela que pensou o seu romance como um texto em
que a dúvida é fundamental, em que o questionamento se entranha na sua própria estrutura,
como se observa no fragmento abaixo:
Em certas vidas (eu acrescentaria, em todas) circunstâncias que
projectam o indivíduo para significações do domínio geral. Um acaso
pode transformá-lo em matéria universal - matéria histórica para uns,
matéria de ficção para outros, mas sempre justificativa de abordagem.
Interrogamo-la, essa matéria, porque ela nos interroga no fundo de cada
um de nós – foi assim que pensei este livro, um romance. Nele, o
arquitecto Fontenova é uma personagem literária, e da mesma maneira o
major. E Mena. E o cabo Barroca. Todos são personagens literárias, isto
é, dissertadas de figuras reais. (p.236)
Note-se como a própria materia do romance, na perspectiva do autor, surge como
uma interrogação. A resposta a essa interrogação, ao que parece, é transformá-la em
narrativa e, a partir daí, questioná-la.
Temos, portanto, em Balada da Praia dos Cães, um autor que não se engana
quanto aos discursos alheios, bem como não se ilude com o seu, um autor que nos
apresenta os bastidores do seu romance, revelando suas fontes, discutindo suas
particularidades, apontando os fios com os quais a obra foi tecida, indicando problemas e
incoerências.
82
Elabora-se um texto que habilmente articula ficção e história, mostrando que “entre
o facto e a ficção distanciamentos e aproximações a cada passo, e tudo se pretende num
paralelismo autónomo e numa confluência conflituosa, numa verdade e numa dúvida que
não são pura coincidência.” (p. 236). Tudo isso conduzido por um autor que demonstra um
alto grau de conscientização em relação ao modo de composição de seu texto, uma obra
que é gerada ao mesmo tempo em que se questiona e que se comenta. Um texto que
convida o leitor a participar efetivamente da narrativa, que o instiga a realizar suas próprias
concatenações de dados e criar a sua própria versão dos fatos ou a perceber que toda versão
é limitadora. Esse leitor é convidado a observar de perto não só a investigação do detetive,
mas também a construção da história oficial, é levado a questionar os motivos de certas
informações não serem aproveitadas e outras terem um peso diferenciado na narrativa de
Elias. E, por fim, ainda são apresentados ao leitor os bastidores do romance na figura de
um autor que traz as suas dúvidas e que mostra as engrenagens de seu texto.
3.4. O autor, a subversão e a “lei do policial
Explicitados alguns dos mecanismos pelos quais o autor se faz presente em Balada
da Praia dos Cães, bem como a sua relação com o narrador, é chegado o momento de
discutir quais são as repercussões que o surgimento do autor provoca na relação entre o
romance e o gênero policial.
O irromper do autor na narrativa indica uma subversão do romance policial
mediante um desmascaramento de sua convencionalidade e uma alteração da estrutura
tradicional desse tipo de narrativa. Uma das conseqüências dessa intervenção textual do
autor é uma maior ênfase no processo de construção da narrativa, pois, ao apresentar o
modo como se compõe, a obra de Cardoso Pires não desnuda apenas a sua estruturação,
mas também a do romance policial.
83
Um primeiro indício do desmascaramento da estrutura policialesca é perceptível
pela divisão do romance em duas partes, uma intitulada “A investigação” e a outra “A
reconstituição”, que, em certo sentido, simulam as “duas histórias” que, para Todorov
(1970), é a principal característica formal do gênero policial. Todavia, o que se presencia
em Balada da Praia dos Cães é a transfiguração desses dois planos narrativos.
“A reconstituição” que seria, a princípio, a tentativa de recuperar a “história do
crime”, apresenta-se como a “encenação” desse assassinato, constantemente interrompida
pelas formalidades do processo de reconstituição do crime promovido pela polícia, mas
também por comentários e indagações de Elias. É significante o fato de que a subparte em
que se desenvolve a cena do crime é intitulada “acção”, termo que pode remontar às
filmagens cinematográficas. Deve-se destacar, ainda, as constantes interrupções para as
fotos que compõem os autos, que, somadas com as intervenções de Elias, contribuem para
o esfacelamento da potencialidade dramática do “drama dos personagens”. Vislumbra-se,
desse modo, um procedimento que distancia o leitor da “cena”, que dificulta o seu
envolvimento emocional com o que se passa, é como se, constantemente, se atentasse para
o fato de que aquilo é uma representação, uma ficção.
Se a encenação do assassinato é permeada por dúvidas (“Mas Elias pressente:
qualquer coisa que não bate certo” (p.214)), deve-se lembrar que o fluxo narrativo de
Balada da Praia dos Cães é recorrentemente interrompido por intrusões do narrador ou do
autor. Cria-se, assim, a possibilidade de uma homologia entre as intervenções de Elias
nessa parte do romance e a do narrador/autor em toda a obra, principalmente porque tanto
em um caso como em outro nota-se o questionamento e a quebra com a ilusão de realidade.
Além disso, as intervenções em “A reconstituição” apontam para a presença da “história da
investigação” nessa simulação da “história do crime”, sendo que a recíproca é verdadeira,
84
principalmente se pensarmos nos depoimentos de Mena que nos relatam fragmentos dessa
primeira história.
“A investigação”, parte consideravelmente mais volumosa do que “A
reconstituição”, promove uma alteração fundamental no romance ao explorar uma das
possibilidades do romance policial que, contudo, fora pouco desenvolvida: tornar a
“história da investigação” a parte central da narrativa. Em contraposição, pode-se
argumentar que, de fato, em quase todos os textos policiais a investigação é a parte de
maiores proporções. A questão aqui, realmente, não é o tamanho, mas a ênfase. Como
afirmamos, nos romances policiais tradicionais a investigação é vista como um mero meio
de se chegar a uma resolução; em Balada da Praia dos Cães, ao que parece, o processo de
investigação é mais importante do que a resposta ao enigma que, por sinal, surge logo nas
primeiras páginas da obra.
Essa alteração está intimamente ligada com a presença do autor no romance, na
medida em que implica o destaque do narrar que, no romance policial clássico, era
considerado um pormenor, em detrimento da intriga policial, vista como fundamental.
Desse modo, há uma desestabilização do modo tradicional de se construir o texto, pois:
[…] tipicamente, al principio del <<discurso>> son expuestos los
resultados de la acción criminal, sobre los que periódicamente se van
añadiendo datos sueltos, reservándose para el final la exposición de los
motivos y la identidad del criminal. Al mismo tiempo, entre estas
unidades de la narrativa se interponen las respectivas unidades de la
narrativa de la investigación, que retardan la resolución final. La
narrativa de la investigación se ve expuesta a esos mismos dispositivos,
dispersándose en las múltiples direcciones que toma la encuesta y
continuamente posponiendo su propia conclusión
43
. (COLMEIRO, 1994,
p.79)
43
[...] normalmente, no começo do “discurso” são expostos os resultados de uma ação criminal, a que vão
sendo somados periodicamente dados soltos, reservando-se para o final a exposição dos motivos e a
identidade do criminoso. Ao mesmo tempo, entre essas unidades da narrativa são interpostas as respectivas
unidades da narrativa da investigação, que retardam a resolução final. A narrativa da investigação se
exposta a esses mesmos dispositivos, dispersando-se nas múltiplas direções que toma a pesquisa e
continuamente atrasando sua própria conclusão [Tradução nossa].
85
A antecipação da resolução por parte do detetive Elias quebra com a estrutura
tradicional do romance policial, pois ao deslocamento espacial (em termos textuais)
corresponde uma mudança de composição. A obra traz ainda, em termos, a reconstrução do
crime como desfecho, mas deixa de ter a resolução como seu clímax, não correspondendo
à idéia de que no gênero policial tudo converge para o desvendar do enigma. Nesse
sentido, os procedimentos que, anteriormente, funcionavam como retardações, que
visavam garantir o suspense e manter o leitor atento, passam a ser o centro do romance.
Quando o próprio narrar se torna o cerne do discurso literário, encontramo-nos
diante de uma reflexão metalingüística que, no caso do romance de Cardoso Pires, se
em dois níveis: um, mais amplo, que demonstra os procedimentos pelos quais o romance se
constrói, sendo a paródia ao romance policial o elemento de maior destaque nesse sentido;
outro, mais restrito, que denota como a obra nos narra o processo pelo qual se constrói a
reconstituição do crime, ou seja, o modo pelo qual o detetive Elias cria uma narrativa ao
concatenar os fatos segundo sua percepção e com as suas “limitações” acerca do
assassinato do major Dantas. Temos, desse modo, uma narrativa sobre a construção de
outra narrativa, neste caso, e uma narrativa que se desnuda diante do leitor, introduzindo-o
em seu processo criativo, no outro.
O enfoque na investigação indica também, pelo menos, outras duas direções.
Primeiramente revela que, mesmo nos romances tradicionais, os elementos “[…]
extrínsecos à investigação propriamente dita” são mais importantes do que se supõe, pois
“[…] son precisamente estos efectos digresivos, y no las secuencias progresivas de las
acciones, los que dan carácter e individualidad a una novela policiaca”
44
. (COLMEIRO,
1994, p.83-84). Nesse sentido, a obra cardoseana parece contribuir para que se lancem
novas luzes a esse tipo de recurso presente nos textos policiais. Em segundo lugar,
44
[...] são precisamente esses efeitos digressivos, e não as seqüências progressivas das ações, que o caráter
e individualidade a um romance policial [Tradução nossa].
86
promove-se uma modificação na estrutura do jogo que o romance policial propunha, pois o
quebra-cabeças não diz mais respeito à descoberta do criminoso, mas à construção do
texto.
Com relação à paródia do romance policial, deve-se observar que a antecipação da
resolução do crime, ao mesmo tempo em que “viola” uma “regra” básica dessa forma
narrativa, parece reforçá-la. Nesse sentido, é instigante um cotejo com a análise da obra O
Anjo (Black Angel) de William Irish proposta por Todorov em seu texto “Introdução ao
verossímil” (1979). Trata-se de uma narrativa policial em que uma mulher tenta provar a
inocência de seu marido tendo como único indício uma caixa de fósforo marcada com a
letra “M”, deixada pelo assassino na cena do crime. A partir da agenda do morto, ela passa
a procurar as pessoas que ele conhecia que tinham o nome iniciado pela letra “M”,
descobrindo que o terceiro é o dono dos fósforos, mas acabando por acreditar em sua
inocência.
Todorov afirma que esse texto se constrói sobre um erro de lógica, pois Alberta
perde o fio condutor de sua investigação quando descobre o dono da caixa de fósforos e
acredita em sua inocência. A partir desse momento o assassino pode ser tanto uma pessoa
que comece com a letra M quanto qualquer outra pessoa. Nessa configuração, segundo
Todorov, o quarto episódio (em que se conhece a quarta pessoa que tem nome iniciado
pelo M) “não tem razão de ser” (1979, p.99). Contudo, esse suposto erro explica-se pelo
fato de que se, por um lado, se subverte “uma lei narrativa geral [que] pretende que, à
sucessão temporal, corresponda uma gradação de intensidade. Seguindo essa lei, a última
experiência deve ser a mais forte, o culpado é o último dos suspeitos.”, por outro, “É para
se esquivar a esta lei, para impedir uma revelação demasiado fácil, que Irish coloca o
culpado antes do fim da série de suspeitos.”. Desse modo, Irish “desobedece” uma “lei da
narrativa” para atender a de um gênero específico, o policial, que “procura mostrar-se
87
perfeitamente livre, e, para o fazer, utilizou um meio engenhoso”. Partindo dessa análise, o
estudioso afirma que o gênero policial tem como tema o verossímil, mas a sua lei é o “anti-
verossímil”, uma vez que nessas narrativas impera uma “lógica da verossimilhança
invertida” na medida em que “são precisamente os suspeitos que se revelam inocentes, e os
inocentes, suspeitos. O culpado, no romance policial, é o que não parece culpado.”. Assim,
“A revelação deve obedecer a estes dois imperativos: ser possível e inverossímil.”
Em Balada da Praia dos Cães, a precoce solução do caso policial poderia fazer
com que o restante da narrativa “não tivesse razão de ser”; contudo, tanto aqui, como no
texto de Irish, nota-se que se trata de um procedimento que tem seus motivos. Um primeiro
poderia ser muito parecido com aquele que se apresenta na leitura de O Anjo: a forma do
policial exige o novo, o diferente. Um segundo motivo diz respeito mais particularmente
ao modo como se constitui a obra, em que a “verdade”, a versão oficial, é apenas uma das
narrativas sobre o crime, além de limitada. Se, na narrativa de Irish, a recusa de ver no
“terceiro M” o culpado cria tantas probabilidades de se encontrar o culpado que a
possibilidade de se chegar a uma conclusão se esvaece, no romance cardoseano, o apontar,
no início, os culpados parece libertar a narrativa da necessidade de se chegar a uma
resolução satisfatória, sendo, talvez, mais importante os motivos do crime do que a sua
autoria.
Deve-se destacar, no entanto, que por promover um diálogo com o romance
policial, a obra cardoseana não consegue fugir do “estigma” desse gênero que, para
Todorov (1979), ao tentar contestar as verossimilhanças, acaba estabelecendo uma nova
semelhança ainda mais forte: aquela que o liga a seu gênero. A noção de paródia é
reveladora, nesse sentido, pois demonstra como a crítica supõe uma aproximação, como ao
tentar ser diferente, ao realizar uma subversão, evidencia-se a presença do que é
subvertido. Essa tensão é, ao que parece, ainda mais forte no romance policial, gênero em
88
que a novidade é uma exigência. Desse modo, a revelação prévia dos culpados pode ser
vista como uma maneira do romance policial se atualizar e, portanto, de se ligar a sua “lei”.
Ainda aqui se percebe que o foco passa da construção da intriga policial para a da
narrativa, pois o que se tem não é mais uma resolução engenhosa do crime, mas um
recurso narrativo diferente.
4. A COSTRUÇÃO DE UM “BAÚ DE SOBRATES”
Variados tipos de discursos convergem na composição de Balada da Praia dos
Cães. Segundo nosso ponto de vista, essa forma de proceder está intrinsecamente
vinculada à construção de um romance arisco e desconfiado que põe à prova os mais
diversos textos, inclusive ele próprio. Estrutura-se, desse modo, uma obra bia e
desafiadora que, simultaneamente, incorpora e contesta a própria matéria com que é tecida.
Tendo em vista a multiplicidade discursiva, focalizaremos os registros mais
significativos e que agrupamos do seguinte modo: discurso jornalístico, discurso
científico/policial, discurso literário, “discurso musical”, e outros discursos. Essa variedade
textual aproxima-se do método de investigação do detetive Elias, que vai acumulando
pistas, depoimentos, documentos, etc. para construir a sua narrativa. Em contrapartida a
esse acúmulo, no entanto, está o processo por ele redigido, que prima pela concisão, o que
leva Otero a especular que o detetive tinha um processo alternativo para si, onde
aproveitava todos os documentos e evidências que foi somando durante a investigação.
Esse outro arquivo é denominado “Baú de Sobrantes”.
Os textos introduzidos no fluxo narrativo
50
, embora diferentes entre si, apresentam
um ponto em comum: instauram o diálogo entre ficção e “realidade”, na medida em que
visam atestar a referencialidade do narrado, contribuindo, como quer Petrov (1996, p.372),
para “tornar mais relevante o efeito do real”. Esse recurso, segundo Hutcheon (1991,
p.183), “propõe uma relação de referência (embora problemática) com o mundo histórico,
tanto por sua afirmação da natureza social e institucional de todas as posturas enunciativas
quanto por sua fundamentação no representacional”. Problemática é, de fato, uma palavra
50
Quando utilizarmos os termos “introduzidos”, “incorporados”, inseridos”, “insertados”, entre outros, em
situações semelhantes a esta, não se deve entender que se trata de registros “intrusos” ou alheios ao romance
em si, pois, na verdade, esses diversos registros compõem o romance, são parte fundamental dele. De um
modo geral, são enunciados que “interrompem” o discurso do narrador, a sua narração.
90
adequada a este caso, porque uma das principais características da incorporação de outros
discursos em Balada da Praia dos Cães é a sua transfiguração, acompanhada de um
conseqüente questionamento. Transfiguração aqui quer dizer, principalmente,
ficcionalização, estabelecendo-se, portanto, uma tensão entre o ficcional e o “real”, pois,
ao mesmo tempo que os documentos concedem certa referencialidade à narrativa literária,
esta impinge ficcionalidade ao documento. Não se deve esquecer, no entanto, que, em
última análise, estamos diante de um romance, e que os vários discursos alinhavados
precisam ser vistos na sua configuração de textos.
4.1. O discurso jornalístico
Em Balada da Praia dos Cães estão presentes tanto o discurso dos jornais e
revistas quanto o do rádio. A inserção deles ocorre de duas formas: entrelaçada à voz do
narrador e personagens, ou destacada do fluxo narrativo.
O discurso jornalístico ganha destaque em virtude da desconfiança de Elias
Santana, e também do narrador/autor, em relação à imparcialidade e fidedignidade das
informações fornecidas pelos jornais, que são vistos como manipuláveis e a serviço da
versão oficial. Observemos a passagem abaixo em que o texto jornalístico, por meio de um
processo de colagem, entrelaça-se à narrativa, constatando-se, na seqüência, a opinião de
Elias:
A olho rasante passa por cima da página dos cinemas e Notícias do
Ultramar, paz plurirracial, Fim do silêncio com os aparelhos Sonotone,
preços populares, Luas & Marés. O pior, pensa, é que gente que
os jornais a contraluz para descobrir a palavra apagada pelos polícias da
caneta e quando não a descobre inventa-a. Isso é uma censura segunda,
confusão a dobrar, e qualquer dia andamos mas é todos a ler o escrito
pelo ex-crito [...]. (PIRES, 2000, p.14)
91
O narrador, a partir da adoção do ponto de vista de Elias, leva-nos a várias seções
desse veículo de comunicação. Trata-se, segundo Piteri (2004, p.5), de transfigurações das
seções do Diário da Manhã (21/05/1960, p.2, p.6) denominadas “Notícias do Ultramar” e
“As marés e as luas”, como também do aproveitamento da propaganda dos aparelhos de
surdez Sonotone, localizada, por exemplo, no Diário Popular (10/04/1960, p.4).
Detecta-se também no excerto um primeiro motivo de desconfiança para com a
imprensa: a censura. Entretanto, não é ela apenas que põe o discurso jornalístico em
suspeita:
está. Aqui a notícia entra em oração de sabedoria encomendando o
defunto para o lado pior do inferno, o mais torvo. Política, eis o pecado,
uma vez que, tendo sido posta de parte a hipótese de crime sexual a
princípio admitida, todos os indícios recolhidos, indicam estar-se
em presença de um assassínio político. O facto de o cadáver ter
sido calçado com os sapatos trocados é por si revelador, pois
constitui uma prática da execução de traidores entre os grupos
clandestinos
e nestas entrelinhas Elias está mesmo a ler que é por que a Pide vai
entrar. (PIRES, 2000, p.13)
Tem-se aqui um típico exemplo de incorporação do discurso jornalístico destacado
do fluxo narrativo. O texto que surge como proveniente do jornal é apresentado como uma
espécie de “corpo estranho” que interrompe a corrente narrativa, identificando-se um
distanciamento entre este discurso e o do narrador. O enunciado da imprensa não goza de
credibilidade, e, segundo o detetive Elias, tentar-se-ia desviar a atenção da população sobre
a possibilidade de um crime cometido pela polícia política salazarista (PIDE), relacionando
o assassinato do Major a grupos de extermínio, e, assim, apontando ligações entre Dantas
C. e os comunistas.
Ainda no que se refere ao “engajamento” da imprensa portuguesa, torna-se
sintomática a inserção, na narrativa, de um texto atribuído a um jornal brasileiro:
92
<<Rio (Especial) Círculos oposicionistas radicados na Guanabara
responsabilizam a polícia de Salazar pelo assassínio do major Dantas
Castro [...].
[...]
A versão oficial protagoniza o crime na amante e em dois companheiros
da vítima, atribuindo-o a discordâncias internas. Os assassinos teriam
atuado em termos de execução política [...].
Porém, fontes independentes e no geral bem informadas asseguram
que Dantas Castro foi abatido pela PIDE, polícia especial de Salazar,
num encontro preparado com falsos elementos revolucionários. [...].>>
(PIRES, 2000, p.80-81)
Agora por contraste, fica assinalada, mais uma vez, a parcialidade da mídia
portuguesa, pois é possível, à imprensa brasileira, jogar com as diferentes versões dos
fatos, inclusive apresentando a idéia de que se tratava de um crime político sim, mas
cometido pelo governo salazarista. Em termos de procedimento, a inserção do discurso do
jornal brasileiro apresenta algumas peculiaridades se comparada com a forma como outros
textos jornalísticos foram introduzidos no romance: ele aparece entre aspas, portanto, sob a
forma de uma citação. Ou seja, enquanto os outros textos, de um modo geral, são
apresentados como colagens, como enunciados em que o narrador não tem participação
ativa; no fragmento acima a citação pressupõe, ao que parece, a voz do narrador, mesmo
que o discurso não seja o seu. Em outros termos, é o narrador que enuncia o que vai entre
aspas, embora estas indiquem que aquelas informações “não lhe pertencem”.
Um dos procedimentos visualizados nas situações em que o texto jornalístico é
incorporado à narrativa é a paródia. No excerto abaixo, a ênfase recai na utilização que a
imprensa faz da fotografia:
O jornalista e o pedreiro-testemunha enfrentam-se no terreiro à entrada
da vivenda, dali quase não se a janela da mansarda porque fica um
tanto recolhida em relação à fachada. Mas que a janela existe, existe.
Está lá, e todos os leitores do Diário da Manhã do dia seguinte irão ficar
em suspenso diante dela, denunciada por uma seta que atravessa o céu
por cima do pinhal. Ei-la. temos a seta aberta a branco na fotografia;
e mais abaixo, no rés-do-chão (ver legenda), uma outra janela que
também tem sua história e que é a da sala onde se reuniam os
criminosos. (PIRES, 2000, p.21)
93
Um dos elementos que saltam à vista nesse trecho é o uso dos advérbios de lugar,
que, por um lado, apontam para um movimento no espaço/tempo e, por outro, nos acercam
do narrado. Quanto à questão espaço-temporal, o “Está lá” refere-se à janela propriamente
dita, observada pelo narrador; em seguida, com a utilização de “Ei-la. temos”, somos
jogados diante do jornal do dia seguinte, num procedimento que leva o leitor a um salto no
tempo e no espaço, pois em um momento ele está acompanhando a narração sobre a ida de
Elias até a Casa da Vereda e, logo depois, é transportado para o dia seguinte, quando o
jornal noticia a descoberta da casa que serviu de esconderijo a Dantas C. e seus comparsas.
No que tange à aproximação com o narrado é de se notar como se constrói um jogo
irônico com a questão do recurso à fotografia no discurso jornalístico. A ironia aqui tem
seu centro num jogo entre presença e ausência. A princípio deparamos com um narrador
que, diante da impossibilidade do jornalista e do pedreiro virem a janela por inteiro, faz
questão de afirmar que ela existe. Na seqüência, o narrador apresenta-nos outros que o
verão a janela (“todos os leitores do Diário da Manhã”), mas sim, sua representação.
Justaposta a essa idéia, no entanto, está a “presentificação” da janela nos jornais por
intermédio da fotografia que é, no entanto, ilusória.
Ainda nesse sentido, percebe-se como se constrói uma paródia da noção de
“presentificação” acima referida, pois, por meio do termo “Ei-la” ou “(ver legenda)”, o
narrador indica a ausência tanto da foto, quanto da janela real”. Note-se como o “Ei-la”
deveria indicar a presença da janela ou pelo menos da foto, o que não ocorre no romance.
Contudo, ele mantém a simulação da foto com a inserção de “(ver legenda)”. Desse modo,
o narrador utiliza-se de procedimentos típicos do jornalismo para apontar a sua falácia,
para revelar os mecanismos pelos quais se cria a ilusão de realidade. Por outro lado, no
entanto, o romance sem se utilizar da foto propriamente dita, convida o leitor a construi-la
94
mentalmente e a “vê-la” no momento da leitura, tal como sugere o advérbio “aí”, ou seja,
próximo à pessoa que ouve/lê. A ironia diz respeito à introdução da imagem da janela por
meio da indicação da sua ausência, enquanto a paródia, relacionada à ironia, se pelo
desnudamento crítico dos recursos com os quais a imprensa constrói seu texto.
No que diz respeito à presença da transmissão radiofônica em Balada da Praia dos
Cães, julgamos significativo ressaltar a passagem abaixo:
Elias traz o transistor para a secretária: Ora vamos ouvir este
ventríloquo.
E palavras não eram ditas explode um gooong! E sai o noticiário das
três da manhã declamado por uma voz engravatada, Lisboa, Emissora
Nacional. Fala do Dia da PSP e das forças da Ordem em parada na
presença de estados-maiores [...] Missa Campal pelos agentes que
tombaram no cumprimento do dever, paz ao casse-tête. Guardas a
desfilar pela trela, cães-polícia medalhados. Discurso do Ministro do
Interior [...] declara guerra eterna <<aos agitadores que, a soldo do
estrangeiro ou inspirados por idéias de libertinagem, pretendem por
todos os meios corromper a Escola e o Trabalho, renegar a Moral e a
e pôr em causa a Autoridade>> fim de citação.
[...]
se deixa ver que o rádio nessa altura não falaria de polícias a desfilar
em primavera de casse-têtes, datas são datas, não era o momento; nem
em missas campais por alma dos bons agentes emolduradas em
criancinhas (Deixai, deixai vir a mim os pequeninos, implora uma voz ao
ouvido de Elias, mas não é ninguém, é o famigerado capitão Maltês,
armado de viseira, escudo e bastão numa de suas caçadas aos estudantes
e disso não fala o noticiário) o noticiário fala, sim, está a falar, na caça às
raposas do Thomaz Presidente e no Te Deum a que ele assistiu mais para
a tarde pela conversão dos indus. [...].
Porque eram dias pavorosos então. Cheias no Vale de Santarém,
bairros de lata à deriva, e no desconhecido, Casa da Vereda, quatro
fugitivos debruçados sobre um rádio aceso. (p.47)
No primeiro parágrafo, a designação de “ventríloquo” atribuída ao noticiário do
rádio já denuncia a posição “colaboracionista” desse meio de comunicação, deixando
latente a idéia de que a “voz engravatada” que se ouve seja uma espécie de marionete
controlada pelo governo totalitarista, impressão que se expande ao serem citadas as
palavras do Ministro do Interior, que demonstram o caráter repressor e combativo do
governo militar, bem como os ideais que ele defende.
95
No segundo parágrafo, após o resumo das notícias do dia, surge uma “manchete”
que se entrelaça ao discurso do narrador : “Missa Campal pelos agentes que tombaram no
cumprimento do dever, paz ao casse-tête(grifos nossos), como se a voz do narrador se
tornasse um contraponto da do noticiário, como se nos fornecesse a outra face da mesma
história, ou seja, o trabalho dos agentes era o de manter a “ordem” à força.
Ainda nesse parágrafo, a onomatopéia (gooong!) simula, no texto, um som que
anuncia o noticiário. Trata-se de uma tentativa de, por meio dos recursos disponíveis em
termos de narrativa, promover uma transfiguração de um procedimento típico do rádio para
o discurso literário, transfiguração que visa à aproximação com o discurso radiofônico
mediante a “imitação” de um de seus elementos característicos: a sonoridade.
O terceiro parágrafo, por sua vez, traz entre parêntesis a “voz” do capitão Maltês,
numa evidente alusão às atrocidades cometidas pelos homens do governo para reprimir
manifestações e opiniões contrárias aos interesses do Estado. Deve-se ressaltar aqui
também a subversão do trecho bíblico “Deixai, deixai vir a mim os pequeninos”, pois, essa
frase, ao ser associada a um indivíduo descrito como “famigerado”, aponta para um
significado bastante diferente do original. Desse modo, o narrador revela ao leitor o que
fica suprimido, censurado, nas notícias divulgadas, e utiliza-se de uma estratégia
semelhante a do governo salazarista, “cujo discurso está filiado a princípios religiosos para
seduzir o povo” (PITERI, 2004, p.13). Mas, ironicamente, ao invés de esconder os pecados
desse governo na sua relação promíscua com os meios de comunicação, revela-os,
sugerindo ainda como a Igreja, ou o discurso religioso, é um dos meios empregados na
manutenção de seu poder.
A longa citação acima possibilita-nos também refletir sobre o procedimento de
construção narrativa bastante comum nos romances policiais de intercalação entre dois
planos narrativos, sendo o rádio, neste caso, o elemento que promove a aproximação entre
96
dois momentos cronologicamente distintos: um onde Elias escuta o rádio, enquanto tenta
organizar as informações acerca da morte do major, e outro em que os quatro fugitivos
(Dantas C. e seus três comparsas: Mena, Fontenova e Barroca) ouvem o rádio e discutem
sobre a situação em que se encontram. Esse segundo momento surge no romance mediado
pela consciência do detetive que tenta reconstituir a vivência dos quatro foragidos em seu
esconderijo. Um dos elementos que ajudam a clarificar essa diferença temporal são,
justamente, as diferenças entre as notícias (pelo menos as manchetes delas) que surgem
entrelaçadas à voz do narrador, que opõem um momento (correspondente ao tempo da
investigação) em que se tem como notícias: o dia da PSP, a missa pelos agentes mortos
bem como o desfile em homenagem a eles e o discurso do Ministro do Interior a um outro
momento (correspondente ao tempo do crime) em que temos: a caça presidencial às
raposas, a missa pela conversão dos hindus e as cheias no Vale do Santarém.
4.2. O discurso técnico: científico/policial
Incluem-se aqui os textos que, de alguma maneira, compõem o arsenal policial e
científico de Balada da Praia dos Cães, ou seja, trechos do processo, dos autos, dos
relatórios policiais, da autópsia, dos dossiês, do julgamento, entre outros. São, de um modo
geral, textos que se vinculam ao que se poderia considerar a versão oficial dos fatos e que
revelam, também, os meandros da polícia.
O entrosamento do romance com o texto científico se evidencia a partir de seu
subtítulo - “Dissertação sobre um crime” -, se pensarmos que uma dissertação pode ser
definida como “um tratado científico fundado em um método racional-lógico específico.
Vista assim, uma dissertação representa precisamente uma contraparte da ficção [...]. Uma
dissertação demanda precisão documental, ela oferece dados e resultados testáveis”
(BRIESEMEISTER, 2005, p.49-50). Todavia, a explanação que se faz do crime em Balada
97
da Praia dos Cães adquire outra conformação, distanciando-se do caráter lógico, racional,
e investindo no dúbio, no incerto, nas artimanhas da ficção, como se pode verificar na
feição muito particular que adquire o laudo médico do corpo do major Dantas C.:
CADÁVER DE UM DESCOHECIDO
encontrado na Praia do Mastro em 3-4-1960:
1. Indivíduo do sexo masculino, 1,72m de altura, bom estado de
nutrição, idade provável cinquenta anos---------------------------------------
2. não aparenta rigidez cadavérica, não tem livores-------------------------
3. na calote craniana, ao nível da sutura dta. occipito-parietal, uma
perfuração circular de 4mm de diâmetro provocada por projétil ---------
[...]
15. ausência de sinais de homossexualidade activa ou passiva ----
Ap. Exame 'in situ': Areal acidentado de pequenas dunas, numa das
quais, a cerca de 100 ms. da estrada se viam a descoberto um cotovelo
humano e um joelho cujos tecidos se apresentavam parcialmente
destruídos -------------------------------------------------------------------------
--- e cobertos de moscas. [...] as regiões a descoberto algumas peças
do vestuário apresentavam-se rasgadas pelos cães ------------
---------------------- um dos quais, cão de fora e jamais identificado, foi
aquele que chamou a atenção dum pescador local e o levou à descoberta
do cadáver (PIRES, 2000, p.5-7)
Percebe-se uma imbricação entre o texto do laudo, marcado por uma grande
quantidade de termos técnicos, tais como “rigidez cadavérica”, “sutura dta. occipito-
pariental”, “projéctil”, etc., e a narrativa ficcional, pois o narrador parte de um dado
cientificamente comprovado (o fato de os cachorros terem dilacerado as roupas do
cadáver) para construir uma narrativa na qual parece atribuir características humanas a
esses animais, insinuando que os cães não eram de fato cães, mas pessoas, mais
precisamente agentes do governo. Essa analogia entre cães e homens da PIDE se fará
presente ao longo do romance e, já nas primeiras páginas, indicia uma possibilidade para a
resolução do crime: o assassínio do major ter sido cometido pela polícia salazarista.
As citações e incorporações de fragmentos dos autos também são freqüentes, sem
contar as vezes em que o processo é apenas referido ou parafraseado. De um modo geral,
98
os autos são introduzidos para adicionar ou antecipar informações e para sistematizar e dar
coerência aos dados que o detetive possui, como se pode observar no trecho que segue:
[<<... a respondente, após ter saído do escritório do dr. Gama e e
sempre protegida pelos mencionados disfarces, deslocou-se a um
prestamista da Praça da Figueira, número 118-F, sobreloja, onde
transaccionou alguns objectos de uso pessoal. [...] que na missiva se
aludia também a remessas de fundos, mapas geográficos e
documentação falsificada, nomeadamente três bilhetes de identidade, um
passaporte e uma carta de condução, tudo isto a ser fornecido
oportunamente pelo Dr. Gama e após indicação pelo sinal telefónico
que tinham combinado,>> – Autos] (PIRES, 2000, p.77-78)
Os detalhes aqui fornecidos sobre a conversa entre Mena e o Dr. Gama e não
constam na narrativa do interrogatório no qual a ex-amante do major fala sobre essa sua
visita ao advogado, em especial, no que se refere ao conteúdo da carta que este havia
enviado a Dantas Castro. Além disso, nesse fragmento aparecem, de maneira sistemática e
mais pormenorizada, acontecimentos e circunstâncias que, muito lentamente vão se
esclarecendo na narrativa, pois a “história do crime” é constantemente interrompida pela
“história da investigação”, num procedimento de retardamento da revelação de
informações típicos do romance policial
51
. Desse modo, não é de se estranhar que, neste
caso, o narrador qualifique a narrativa do personagem Elias, tendo em vista que é este
quem escreve os autos, como concisa e precisa, sem nenhum fio solto. Essas características
do texto do detetive se opõem as da narrativa de Cardoso Pires, na qual se identifica uma
multifacetação de discursos e textos que dificilmente se harmonizam numa visão coerente
e fechada. No entanto, deve-se ter em mente que o auto desempenha um papel importante
na obra, na medida em que, por um lado, é o portador do discurso oficial e, por outro,
revela as habilidades discursivas do detetive.
51 Para um melhor detalhamento dos modos pelos quais se retarda a narrativa, conferir: STERNBERG, Meir.
Expositional modes and temporal ordering in fiction. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1978
99
Ainda no que se refere aos textos técnicos, são significativos dois casos que, de
alguma maneira, possibilitam constatar a presença da paródia, como também a
“deslegitimização” de alguns textos considerados “autorizados”. Nosso ponto de partida
será a “folha corrida” do inspetor Otero:
[Manuel F. Otero, folha corrida: As observações de pouco ao
examinar o cabeção de sacerdote demonstram um conhecimento directo
da vida religiosa que lhe veio da sua frequência do Seminário (9º ano
incompleto). [...]. Promovido com distinção a agente de 2ª classe: idem a
agente de classe com a classificação de <<Bom>>. 1) Iniciativa e
imaginação satisfatórias, boas relações de trabalho. 2) Persistência e
sentido promocional [...]. 3) Desajustamentos, complexos de afirmação
[...]. Resíduos de um discreto e não confessado anticlericalismo
característico dos indivíduos que abandonaram o Seminário.] (PIRES,
2000, p.26-27)
Note-se, que, logo no início, essa folha corrida, que surge como um texto destacado
do contexto narrativo, ou seja, que se quer como um documento introduzido no fluxo
narrativo, faz referência ao texto ficcional (“As observações de pouco”). Nesse sentido,
deve-se perceber que o romance promove uma inversão de papéis ao colocar a narrativa, a
ficção, como referência para um texto que surge no romance com a feição de um
documento. A narrativa demonstra que Otero freqüentou o Seminário e valida” a “folha
corrida”, e não o contrário, permitindo-nos sugerir o desencadeamento de um processo
parodístico, pois os documentos perdem o seu caráter de “fiador” da verdade, tendo a sua
“veracidade” comprovada pela ficção.
Processo semelhante verifica-se na subparte intitulada “Relatório” (p.34-39), texto
composto por vários fragmentos narrativos que registram a passagem do detetive Elias e do
agente Roque pelo Forte da Graça, em Elvas. Um primeiro indício de paródia é perceptível
pelo fato de o relato das atividades dos fugitivos de Elvas ser um dos aspectos menos
importantes do “Relatório”, pois ele inclui apenas um breve resumo das informações,
repercussões, comentários, lembranças e pensamentos de Elias e Roque. Portanto, o
100
“Relatório” que nos é apresentado não é o da fuga de Dantas Castro, como se supunha, mas
das impressões e opiniões de Elias e seu ajudante. Nesse sentido, o relatório se converte
num relato feito pelo narrador, e não em um documento entregue ao detetive. O narrador
cria a expectativa em torno da apresentação de um documento, mas nos oferece uma
narrativa que se distancia das características habituais dos relatórios. Observemos como ele
próprio aponta para essa questão:
Elias daria tudo para saber se o incêndio do carro à vista da fronteira não
foi só encenação para despistar. [...] Foi?, não foi? Se foi uma encenação
também as cartas que o major mandou de Paris não passaram doutro
golpe para baralhar. Mandou-as daqui para Paris e alguém se encarregou
de as meter no correio para serem apanhadas pela Pide. Outro truque
antigo, mais um. Mas isto são suposições, não pode vir no relatório.
(PIRES, 2000, p.36, grifo nosso.).
Por meio das artimanhas da linguagem, o narrador deixa entrever uma ironia ao
dizer que suposições não são bem vindas em relatórios; contudo, essas suposições
encontram-se justamente numa parte do romance denominada “Relatório”. Assim, por um
lado, o narrador subverte as regras que regem esse tipo de texto construindo uma paródia
dele e, por outro, sugere a possibilidade de que suposições podem vir, sim, em Relatórios,
como acontece com o seu, denunciando, desse modo, a pretensa objetividade desse tipo de
texto. Balada da Praia dos Cães traz, portanto, para seu interior, esse outro registro,
assimila-o e, logo em seguida, transforma-o, subverte-o, abrindo brechas, apontando
possibilidades, alargando limites.
4.3. O discurso literário
Outro discurso encontrado na narrativa cardoseana é o literário, que pode ser
exemplificado pela presença de trechos do romance O lobo do mar (1904), de Jack
London, e pela alusão a um conto erótico que teria sido extraído de uma revista intitulada
Erotika. Ambos os textos têm papel importante em Balada da Praia dos Cães: o primeiro é
101
matéria-prima para uma fecunda analogia entre as duas narrativas; o segundo aponta para o
caráter aberto da obra de Cardoso Pires, que se constrói a partir dos mais variados tipos de
texto, inclusive aqueles considerados marginais.
A narrativa do escritor português traz fragmentos da obra do autor norte-americano
como um dos indícios que contribuem no processo investigativo em, pelo menos, dois
sentidos: num mais restrito, tendo em vista a investigação conduzida pelo detetive, que
encontra nos trechos grifados pelo cabo Barroca algumas pistas sobre o ambiente que
precedeu o assassinato do major, e, num sentido mais amplo, que aponta para uma
“investigação” do Portugal da década de 60.
O primeiro sentido é mais evidente, e assinalado, várias vezes, pelo próprio
detetive:
<<Vagueei todos estes anos por um mundo de mulheres, procurando-
te...>>
Elias sente os ecos da Casa da Vereda a perpassarem por estas linhas do
Lobo do Mar, pág.183, o que mais o intriga é que quem soube decifrar
os recados do escritor foi o charruas do cabo Barroca. [...] O major podia
ter perfeitamente escrito aquilo – e acrescentado: Morte, <<Vagueei
todos estes anos por um mundo de mulheres procurando-te, Morte.>>
Seria a sua confissão final, aquela que não consta dos autos e que o cabo
já tinha sublinhado. (p.172-173)
Aqui a citação do romance de Jack London sofre uma adaptação ao contexto em
que se encontrava Dantas C (ou tal qual o imaginava o detetive), o que indica que a leitura
de O Lobo do Mar empreendida por Elias é mais do que uma simples leitura. Trata-se de
um exercício analógico atiçado pelos sublinhados que ele encontra no livro que pertenceu
ao cabo, sublinhados que o detetive descobriposteriormente não terem sido feitos por
Barroca, mas por Mena. Nesse sentido, os grifos encontrados no livro do autor norte-
americano correspondem, grosso modo, à reconstrução que o detetive faz dos dias em que
os quatro foragidos estiveram escondidos na Casa da Vereda. É como se o ambiente de
terror vivido nesse esconderijo fosse muito próximo ao que Van Weyden e os outros
102
marujos (personagens de O Lobo do Mar) agüentam no Ghost (nome da embarcação de
Lobo Larsen), ou seja, da mesma maneira que Larsen impõe a seus subalternos um regime
de terror, Dantas C. vive testando, provocando, intimidando, impondo sua vontade, a
Fontenova e Barroca.
Caracterizando essa situação, comparecem na narrativa cardoseana as seguintes
frases de O Lobo do Mar: <<ós somos todos mortos>>”, <<Ele chefiava uma
causa perdida e não temia os raios de Deus.>>(PIRES, 2000, p.46), <<Seria um acto
moral libertar o mundo de semelhante monstro>>(p.218). E em ambos os romances, as
atitudes violentas e repressoras do capitão e do major resultam numa reação contrária
proporcional, mas em Balada da Praia dos Cães, ao contrário do que ocorre na narrativa
de London, os personagens matam seu opressor.
Elias chega ao ponto de identificar Mena, Barroca e Fontenova com Van Weyden,
Maud e os outros marujos, além de ver em Lobo Larsen o Major Dantas C. Constrói
também uma imagem do major na qual despontam características típicas de Larsen, tais
como: vigor, autoritarismo, sagacidade, brutalidade, egoísmo, praticidade, enquanto os
outros se colocam como oprimidos nas mãos desse homem praticamente sem escrúpulos. E
o detetive vai ainda mais além na sua leitura, inferindo do texto de London, de certa forma,
o próprio destino dos acusados: “Mas muitas coisas que não estão ali por escrito mas
que correm como profecias à tona da prosa. Muitas coisas que estão muito para além do
capitão Larsen e dos dias que se fecharam sobre ele.” (p.45-46).
Por sua vez, o conto erótico vem referenciado, no romance, como uma folha de
revista encontrada entre os objetos de Mena. Trata-se de um presente de Dantas Castro,
acompanhado de uma dedicatória. A narrativa, em forma de epístola, narra a aventura
sexual de um casal em um elevador:
103
E todavia tudo se passou fora do tempo e do espaço! Tudo, ma chérie,
tudo! Ainda mal tínhamos fechado a porta [do elevador] o Gaston-
Philippe se colava a mim a percorrer-me desvairadamente com as mãos.
Contornava-me, cingia-me com um braço e procurava-me as coxas e as
nádegas por baixo da roupa. Eu própria levantei o vestido, colando-me a
ele, e imagina a surpresa que o tomou quando sentiu nos dedos a verdade
do meu ventre!
Sim, minha Melanie, eu estava nua por baixo do vestido! [...]. O
assombro e o deslumbramento do Gaston-Philippe por aquela surpresa
não tiveram limites e eu sentia tudo isso através da sua mão que era grata
e ardente. E que hábil, que mão! Que imaginativa e que extensa,
Melanie! Penetrava com tais segredos que me levava para lá da ascensão
do próprio elevador e logo me esgotava e me fazia afundar à medida que
voltávamos a descer. (PIRES, 2000, p.110-111)
Estamos diante de um estereótipo de narrativa erótica em que se tem a descrição de
uma relação sexual que foge do vulgar, mas não do clichê. Uma das principais
conseqüências da inserção desse texto é a diluição das ditas “fronteiras” entre “alta” e
“baixa” literatura, uma vez que o romance de um autor consagrado está se servindo de um
texto que alguns consideram como um típico “produto de massa” ou, em outros termos,
“inferior”. Para quem pensa dessa maneira, cabe ressaltar, mais uma vez, o instigante
diálogo que o romance cardoseano promove com o romance policial (outra manifestação
cultural que sofre preconceito), além de fazer, por várias vezes, referências aos chamados
“filmes B norte-americanos, como é o caso dos filmes de Frankenstein protagonizados
por Boris Karloff. Nesse conjunto, a introdução da narrativa erótica na obra cardoseana
parece atestar o caráter aberto desta, tendo em vista que diferentes modalidades de textos
têm (ou podem ter) o seu espaço.
4.4. O “discurso musical”
Citações de trechos e títulos de músicas são freqüentes em Balada da Praia dos
Cães. De alguma maneira, a referência aos mais variados tipos de música colaboram para
delinear o estado psicológico de Elias, compondo o cancioneiro do romance: La Violetera,
104
O Último Couplet, Carmen, Oh, Sole Mio, Os Sinos de Corneville (p.229), La Golondrina
(p.44), O Barbeiro de Sevilha (p.135), entre outras. Em geral, são canções escutadas,
cantadas ou recordadas por Elias durante o processo de investigação ou logo após a
reconstituição dos fatos.
A incorporação de fragmentos de letras de músicas assemelha-se à forma como são
trazidos os outros discursos acima apresentados, ou seja, verifica-se também por um
processo de transcodificação, como se pode perceber abaixo:
Acabou de averbar mais uma sessão das Violetas Imperiais no capitólio
e veio por acima embalado em valsa até ao jardim da sua predilecção.
Elias solfeja por dentro e em sustenido. [...]
[...] sem parar de cantar de memória: Borboletas, Mariposas de mi ronda,
Perlas de mi penar. E isto podia ser ainda uma continuação das coplas
das Violetas Imperiais mas não é, é apenas um conversar com ele
mesmo. (PIRES, 2000, p.225)
O narrador, a partir de uma focalização da interioridade do detetive, mobiliza a
música “Violetas Imperiais”, inserindo o trecho “Borboletas, Mariposas de mi ronda,
Perlas de mi penar” como se fizesse parte da letra da canção. O leitor desavisado poderia
pensar que esses versos compunham a música, mas vem a advertência: “E isto podia ser
ainda uma continuação das coplas das Violetas Imperiais mas não é”. Nota-se, portanto,
como a partir dessa focalização interna o narrador nos põe em contato com um Elias mais
introspectivo, realçando também sua imaginação, sua criatividade, o que também se
observa no trecho abaixo, embora construído de maneira diferente:
Aquellos ojos negros...
que giram na máquina de discos são do Nat King Cole. Sempre que ouve
a voz deste preto brilhantinas Elias magica no sucesso que ele não teria
se lhe desse para cantar fado de Coimbra em tricano tropical. Anjos
Crioulos na Sé Velha, bananeiras no choupal, havia de ser bonito. Mas o
Neto Quingoles não está hoje nas noites do mais mavioso. Estremece o
comércio e cabo das meninges do pacato, e sendo assim, andante,
Elias põe-se a andar para casa. (p.134)
105
Por meio da imaginação de Elias fica sugerida a hipótese do músico norte-
americano se tornar um cantor de fados. Dessa maneira, nem que seja por um instante, o
leitor visualiza essa imagem e o cantor sofre uma espécie de metamorfose, transformando-
se no “Neto Quingoles”.
Tanto nesse trecho quanto no anterior comparecem termos específicos da notação
musical: “sustenido”, “andante”. A inserção deles, bem como de outros similares, indiciam
que a música se faz presente em Balada da Praia dos Cães o apenas pela referência a
títulos, mas como um princípio estruturador, a ponto de se poder insinuar que a narrativa
avança de acordo com o ritmo de Elias, no seu andamento. Mas qual é o andamento do
detetive? Os fragmentos abaixo ajudam a elucidar essa questão:
Depois vem o passado, história antiga, como é uso nas conversas de
velório, o morto fez, o morto aconteceu, ai coitadinho; e andante,
andante, resmunga o polícia em pijama, segue o funeral. Agora juntam-
se mais três à procissão,
OS SUSPEITOS
e qualquer um deles, dramatis personae postos na praça pública para
servirem ao jogo das reconstituições (p.12)
Elias: Andante, andante, que o coice do morto vem mais para o fim.
Sabe tudo linha a linha, pode dizer-se. Leu e releu o jornal, e por isso
acelera a pauta (como na música) andante, andante, até que a páginas
tantas bate com a mão: Cá está. (p.13)
Mas isso da página da revista (Erotika, chama-se ela) demanda outro
ler e outro rimar, tem uma nota do major que ainda há-de dar pano para
mangas. Andante, andante, diz Elias. Lá iremos. (p.90)
“Andante” termo utilizado também em outras situações refere-se, na música, a
um trecho que deve ser executado nem muito depressa nem muito devagar. Pois bem:
parece ser este o ritmo da investigação do detetive Elias, personagem que vai, pouco a
pouco, acumulando dados, informações, pistas. Ele não se prende a detalhes, deixa que eles
se somem, mas sem pressa: “Fica alapardado na secretária. A digerir, a jiboiar. [...]
Depenou-a em poucas bicadas, foi fácil, trigo limpo, e agora, todo sozinho, soma as penas
que ficaram a flutuar depois dela, é assim que a abrange melhor” (p.151). Essa forma
106
moderada de proceder aproxima-se da que rege a própria constituição de Balada da Praia
dos Cães, em que, aos poucos, são introduzidos e trabalhados novos elementos.
Uma outra ligação possível de ser realizada no âmbito musical diz respeito ao título
do romance, que nos conduz a uma forma literário-musical: a balada.
Segundo Briesemeister (2005, p.43), a balada é uma cantiga narrativa sobre
“assuntos históricos lendário-fantásticos [...] de ampla disseminação popular,
dramaticamente condensada nos pontos culminantes dos acontecimentos. No centro,
encontra-se com freqüência o destino humano no instante de decisões trágicas.” Alarcão
(s.d., p.1), por sua vez, diz que o termo balada “parece indiciar o papel originalmente
desempenhado pela dança, pelo acompanhamento musical e pelo canto na execução ou no
desempenho (performance) do texto baladístico, que seria, pois, o resultado, produto ou
cruzamento de várias actividades e linguagens.”. Ainda de acordo com ele, o ritmo, as
rimas e a recorrência a fórmulas convencionais, tais como símbolos, números, termos e
expressões repetidas numa “mesma estrofe ou de forma interestrófica” (p.2),
desempenhavam um papel fundamental nesse tipo de texto, uma vez que facilitavam a sua
memorização.
Para Alarcão (s.d., p.2), a “qualidade artística” das baladas foi por muito tempo
discutida e se criticou algumas de suas características principais, tais como: “a concisão
nua e crua da forma, [...] conteúdo e [...] temática [...]; o delinear algo primário dos
conflitos e das personagens; a inverossimilhança; [...] o vocabulário pouco elevado”.
Entretanto, principalmente a partir do século XVIII, começa a haver uma revalorização das
baladas.
Levando em consideração todas essas informações, pode-se detectar alguns
aspectos que aproximam a balada do romance cardoseano. Semelhante ao que se constata
na forma literário-musical, tem-se na narrativa o desenvolvimento de um assunto histórico
107
de ampla repercussão em Portugal, mas, em certo sentido, já “lendário”. Não é de se
estranhar, portanto, que em uma entrevista o autor tenha afirmado: “Balada porque à
maneira das baladas inglesas, o que eu pretendi foi escrever sobre um acontecimento real
tocado pela lenda” (apud RODRIGUES, 2006, p.2). Nesse sentido, a referência à forma
balada adquire contornos irônicos e contribui para o contraponto entre ficção e realidade
propagado no romance, pois a balada é uma canção que conta uma lenda, então o próprio
romance poderia ser lido segundo esse paradigma, contudo, o recurso a determinados
procedimentos, tais como a inserção dos mais variados documentos, aponta para o sentido
contrário. Cria-se, desse modo, uma constante tensão no romance entre “verdade” e ficção
que se encontram inapelavelmente imbricadas. Além disso, da “história do crime”
depreende-se um teor dramático que tem sua fonte no conflito estabelecido entre o major e
seus companheiros, justamente pela ênfase num momento de decisão trágica: o assassinato
do major.
Outro elemento que possibilita a comparação de Balada da Praia dos Cães com a
balada popular é o recurso a um “vocabulário pouco elevado, com um evidente recurso à
‘prosaica’ linguagem corrente” (ALARCÃO, s.d., p.2), como exemplificado no capítulo
2 desta dissertação.
O caráter conciso atribuído à balada leva-nos a pensar que, também no romance, o
foco na investigação do detetive faz com que a narrativa se centre em alguns poucos
momentos cruciais da “história do crime”, reconstituídos a partir dos depoimentos de
Mena. Essa cadência acelerada que marca a narrativa sobre a vivência na Casa da Vereda
corrobora a idéia de um texto conciso, mas entra em choque com o modo como se constrói
a “história da investigação”, na qual o ritmo moderado da narrativa é homólogo ao do
detetive. A “história da investigação”, ao que parece, relaciona-se mais adequadamente
com a vertente musical de balada conforme ela “ressurge em algumas composições de
108
ritmo mais lento [...] quer de índole romântica, quer de apontamento, [...] quer ainda
animadas de propósitos de intervenção político-ideológica.” (ALARCÃO, s.d., p.1).
que se destacar ainda um interessante jogo com a questão da memorização que
se pode depreender do romance e da forma poético-musical. Enquanto as baladas se
utilizam do ritmo, das rimas e das formas convencionais para garantir a sua permanência, a
obra cardoseana mobiliza textos que, de certo modo, auxiliam na perpetuação do relato
construído pelo autor. Em outras palavras: se a rima e o ritmo são marcas estruturais da
balada, o romance do escritor português tem como um de seus elementos constitutivos
principais o recurso a uma grande variedade de registros, que lhe conferem um ritmo
marcado pela fragmentação, pela repetição, pelo retardamento.
4.5. Outros discursos
Para além dos discursos acima apresentados, constata-se ainda no romance de
Cardoso Pires a presença de: panfletos (2000, p.167), cartas (79-80), postais (p.80, 90-91),
orações (p.94), bilhetes e anotações (p.44, 139), assinaturas (p.45), propagandas (p.71),
entre outros.
De um modo geral, esses textos atuam no interior do romance de maneira
semelhante aos outros tipos de discurso; assim, limitar-nos-emos a apenas duas dessas
manifestações. Uma delas surge logo no início da narrativa:
Pelo terreno encontravam-se restos de férias, farrapos de jornais
soterrados no areal, um sapato naufragado, embalagens perdidas; a bóia
de socorros a náufragos sempre à vista, dia e noite; refugos de marés
vivas; o conhecido cartaz PORTUGAL, Europe´s Best Kept Secret, FLY
TAP crucificado num poste solitário. (p.7)
Como se pode notar, há a referência a um cartaz que veicula propaganda de
Portugal como um lugar turístico. O que salta à vista é a discrepância entre o que se infere
109
do cartaz e o ambiente onde ele se encontra, pois é de se esperar que um local de turismo
seja limpo, bonito, agradável, etc., mas o que o narrador descreve é justamente o contrário,
um lugar desolado, sujo, abandonado.
Um outro elemento a se destacar é o termo “crucificado”, que reforça a idéia de
desolação, de suplício, de devastação. Por fim, e talvez mais instigante, é a própria ironia
que se pode captar no cartaz, pois a sugestão de um lugar que a Europa não conhece
realmente, um lugar que ainda guarda surpresas e encantos, tende a ser desviada para
denunciar o isolamento, o distanciamento de Portugal dos outros países europeus durante o
salazarismo Desse modo, enfatiza-se a idéia de um lugar mantido em segredo,
incomunicável, e não a de um lugar ainda não conhecido.
Também revelador da condição portuguesa durante a ditadura militar é o texto
seguinte:
Documento B. Carta dactilografada (original) dirigida ao Director da
Polícia Judiciária, Lisboa:
<<Neste país sem imprensa e sem liberdade ninguém dá crédito às
vossas <<perspicazes>> investigações sobre o caso da Praia do Mastro.
Enquanto a tenebrosa Pide continua a praticar os crimes mais
repugnantes a vossa actividade não faz mais que encobri-los. (ass) Um
Português.>> (p.80)
Essa carta, por um lado, revela a consciência de alguns cidadãos quanto ao contexto
sócio-político português, e, por outro, demonstra a situação delicada em que se encontra a
Polícia Judiciária no regime salazarista, pois é vitima de descrédito de parte da população.
Essa é uma questão constantemente apontada pelo narrador que contribui para que se
perceba a subserviência da PJ em relação à PIDE, denunciando, por extensão, as
interferências políticas do governo no esclarecimento dos casos policiais.
4.6. A variedade de registros e a construção do substrato social
110
Como se pôde ver pelos itens anteriores, Balada da Praia dos Cães constitui-se por
uma grande variedade de textos que, por um lado, contribuem para o diálogo entre ficção e
realidade e, por outro, favorecem a construção de um romance plural. Essa multiplicidade
de discursos colabora para a composição de “uma narrativa de exaustão, de sobras, de
restos que transformam os fatos narrados em uma possível versão. Versão que poderia ser
substituída por outra, e mais outra, dependendo da escolha desta ou daquela peça”
(MARGATO, 2007, p.164). O termo “escolha” aqui não é acidental, pois a obra
cardoseana apresenta-nos um multifacetado conjunto de textos e visões que não se
restringem a uma versão unilateral.
Esse processo de acumulação de textos permite uma aproximação entre autor e
detetive na medida em que ambos constroem seus textos por meio desse procedimento.
Essa aproximação, no entanto, deve ser percebida como irônica, pois marca a diferença
entre os autos e o romance. No caso de Elias, temos um armazenamento de sobras, ou seja,
daquilo que não foi escolhido para fazer parte de sua versão dos fatos, compondo o tal
“baú de sobrantes”. Num procedimento semelhante, o romance de Cardoso Pires consiste
ele próprio numa espécie de “baú de sobrantes” ao ir incorporando à sua narrativa toda a
sorte de discursos. Esse recurso pode ser visto como um elemento estrutural da obra e que
o autor parece fazer questão de ressaltar, como se pode averiguar na parte intitulada “Baú
de sobrantes: diversos”, que nos apresenta uma série de depoimentos, declarações e, até
mesmo, a reprodução de uma conversa de bar. Desse modo, a parte intitulada “Baú de
Sobrantes” é, de fato, um baú de sobrantes.
Ao aproveitar as sobras do detetive, o autor transforma-as em matéria fundamental
do romance, dessa maneira, o que fora ignorado na construção do detetive ganha peso
diferenciado em Balada da Praia dos Cães. Tal estratégia realça o caráter revisor da obra
de Cardoso Pires que questiona o discurso oficial. Além disso, esse processo de
111
“recrutamento” de diversos registros aponta para mais duas questões que se inter-
relacionam com a paródia do gênero policial no romance cardoseano: primeiro, revela
procedimentos e estratégias da polícia e, por extensão, do regime salazarista; segundo,
contribui para a construção do substrato social na narrativa.
No primeiro caso, a “reconstrução obsessiva dos fatos pelo detetive” leva-nos,
segundo Briesemeister (2005, p.53-54), a um labirinto de “lembranças, observações,
conclusões, suposições que oscilam entre fato e investigação, possibilidade e
verossimilhança”, mas também contribui para nos mostrar como essa “excessiva recolha de
detalhes [...] revela diretamente o tipo de preocupação dos agentes de polícia: isto é, a
insegurança e o medo de perder o controle dos fatos” (MARGATO, 2007, p.164). Nesse
sentido, para Margato, temos um desdobramento da imagem da miopia de Elias, pois o
próprio trabalho da polícia manifesta-se como a vigilância e a investigação do pequeno,
imagem perceptível no fragmento que segue:
Mas atenção, aviso. Lisboa, esse vulto constelado de luzes frias do outro
lado do rio é um animal sedentário que se estende a todo país. É cinzento
e finge paz. Atenção, achtung. Mesmo abatido pela chuva, atenção
porque circulam dentro dele mil filamentos vorazes, teias de brigadas de
trânsito, esquadras da polícia, tocas de legionários, postos da GNR, e em
cada estação dessas, caserna ou guichet, está a imagem de Salazar [...]. O
perímetro da capital está todo minado por estes terminais, Lisboa é uma
cidade contornada por um sibilar de antenas e por uma auréola de
fotografias de malditos com o Mestre da Pátria a presidir. (PIRES, 2000,
p.43)
Essa descrição de Lisboa reforça a idéia de uma cidade sob constante vigilância.
Note-se, em termos formais, como a introdução dessas considerações com o sintagma
“Mas atenção, aviso” parece sugerir uma mensagem veiculada por um sistema de rádios.
Pode-se dizer que se simula um “comunicado à população” ou até mesmo um
“comunicado oficial” desses propagados por alto-falantes –, entretanto, o seu conteúdo
expõe uma imagem de Lisboa em que se mostram os instrumentos de controle do Estado.
112
Destaca-se também a repetição “Atenção, achtung”, uma vez que “achtung”, em alemão,
significa “atenção”, o que sugere uma relação entre Portugal e Alemanha, ou melhor, entre
salazarismo e nazismo. Além disso, ganha relevo o retrato de Salazar que, segundo Pereira
(2005, p.259), “representa sua onipresença e a onipotência dos que em seu nome exercem
o poder hipertrofiado dos regimes de exceção que, entretanto, se pretende velado sob uma
aparência de paz e normalidade”.
A revelação dos mecanismos de controle vão paulatinamente, segundo Piteri (2001,
p.10), demonstrando “as arbitrariedades desse organismo repressivo [a Pide] do governo
salazarista: violação de correspondência, serviço de escuta, rede de informantes, métodos
de tortura, infiltração de agentes entre presos políticos.” Observemos o trecho a seguir:
Conversa de Bar - excertos (Estoril, 18-4-60, 0.30h, aprox.)
Um tal engenheiro Martins, cliente habitual deste Bar, e um indivíduo
não identificado, em comentário ao Crime da Praia do Mastro que os
jornais têm noticiado referiram-se a certa altura ao pai da amante da
vítima, o qual tratavam por «Chico» [...].
[...]
Lamentava (com alguma ironia) que a rapariga tivesse caído nas mãos
dum companheiro de cóboiadas do pai, [...]. O engenheiro disse ainda:
«Fatal como o destino: papá fora, bacanal na cama.»
[...]
ass.) Tony Clemente, barman de 1ª classe
Hotel Continental, Estoril (PIRES, 2000, p.67-68)
A inserção desse tipo de informação referenda a idéia de um país com uma ampla
rede de informantes. Além disso, é aclarador o fato de que se trata de uma conversa que
nada ajuda na investigação, pois muitas informações que se poderiam depreender dessa
conversa se mostram falsas, como, por exemplo, a idéia de que Mena e seu pai se
encontrariam no exterior. É de se destacar, particularmente, a presença dessa rede no
“submundo”, numa espécie de “pacto” entre policiais e delinqüentes, como se verifica na
prisão de Fontenova e Barroca (p.187). Esse deslocar-se pelo “submundo” afasta a obra
cardoseana do romance policial clássico e a aproxima do romance “noir”. Além disso,
113
aumenta o número de camadas sociais presentes no romance, contribuindo para fornecer
uma melhor imagem do contexto português.
Para Colmeiro (1994, p.71), o romance policial possibilita que os leitores “vejam
furtivamente”, entrem em casas fechadas, abram baús e armário nas casas dos outros.
Dessa maneira, o gênero policial se marca por uma “curiosidade intrusa”, na medida em
que conta com um personagem móvel que muda constantemente de ambientes, permitindo
que se tenha uma visão ampla da sociedade, contemplando ricos e pobres, poderosos e
miseráveis. Depreende-se que em Balada da Praia dos Cães acontece algo semelhante.
Dessa maneira, a inclusão de depoimentos, relatos de informantes, de escutas
telefônicas, entre outros, como afirmamos no capítulo 2, atua no sentido de criar um
“curioso mosaico de sociolectos, caracterizador tanto do seu [dos personagens] perfil
psicológico como da sua pertença social.” (PETROV, 1996, p.328-329).
Essa “penetração social” da obra cardoseana está ligada a uma revisão da história
portuguesa, um dos elementos que compõem o que chamamos de espiral de investigações.
Nesse sentido devem ser destacados: como a narrativa constrói uma imagem de uma
sociedade oprimida, com medo, mediante, principalmente, a construção de um “Portugal
em miniatura” na Casa da Vereda; como se desvelam as arbitrariedades desse governo, em
especial, em relação à quebra dos direitos individuais; como se destaca a presença de uma
mentalidade machista, ainda fortemente atuante na sociedade portuguesa.
Ressalta-se, assim, como quer Petrov, como os conflitos que se instauram no texto
estão interligados com o “contexto político e social existente em Portugal nos anos 60”
(p.299). Não é de se estranhar, portanto, que o próprio motivo do crime esteja relacionado
com uma questão social. Esse é, inclusive, um dos aspectos do romance policial clássico
subvertido por Balada da Praia dos Cães, pois, segundo Cabral, naquelas narrativas as
114
contradições sociais nunca aparecem como o <<motor>> da intriga, na medida em que são
as paixões privadas que imperam enquanto motivação do crime.” (1999, p.229).
Em termos de relação com o romance policial convém ressaltar ainda um
deslocamento da noção de observação, característica prototípica do detetive clássico, para
a de vigilância. Num caso, temos um método de investigação, em outro, um meio de
controle. Controle da vida do indivíduo, mas também dos discursos por um regime que,
segundo Margato (2007, p.165), impôs, por mais de quatro décadas a sua versão
homogênea dos fatos. Nesse sentido cabe repetir que o próprio romance coloca-se em
tensão com o discurso oficial, pois percebe-se uma oposição evidente entre um discurso
autoritário (o do Estado) e um plural (a narrativa). Pluralidade que se evidencia até pelo
fato de incluir o unívoco, ou seja, no romance espaço também para o discurso
autoritário.
COSIDERAÇÕES FIAIS
A leitura da obra literária, como qualquer leitura, aliás, implica a interpretação, a
exploração de possibilidades. Diante das muitas vertentes que um texto ficcional oferece, o
leitor se vê, constantemente, realizando escolhas. Neste trabalho propusemos uma leitura
de Balada da Praia dos Cães enfatizando o seu diálogo com o gênero policial, num
relacionamento que, por um lado, evidencia distanciamentos e, por outro, aproximações.
Trata-se de um modo de abordar o romance de José Cardoso Pires que não descarta,
contudo, outros. Afinal, como buscamos demonstrar, a própria obra cardoseana sinaliza a
sua pluralidade ao se posicionar contra discursos unívocos, autoritários.
Levando em consideração essa nossa perspectiva de análise, realizamos uma síntese
das teorizações acerca do romance policial que nos permitiu delimitar alguns aspectos
constantes nesse gênero literário: uma estrutura que se divide em dois planos narrativos, o
da investigação e o do crime; a homologia entre detetive e leitor, tendo em vista que ambos
tentam desvendar o crime; a presença do suspense e/ou da curiosidade como meios de
cativar o leitor.
O estudo de Balada da Praia dos Cães focalizou, fundamentalmente, as presenças
do narrador, do autor e dos mais variados textos que compõem o romance. Quanto ao
narrador, demonstramos como ele constrói um intenso jogo de aproximação e
distanciamento com o detetive e como ele se utiliza tanto de uma grande variedade de
pontos de vista quanto do recurso à narração segundo a consciência dos personagens. Além
disso, indicamos como esse narrador se “intromete” na narrativa ao desconfiar dos mais
variados discursos, insinuando críticas e incoerências. Essas intervenções do narrador
acercam-no do autor e mostram como uma delimitação estanque dessas duas entidades
enunciativas é problemática.
116
Destacamos a presença de um autor arisco no romance de Cardoso Pires, um autor
cuja voz se distingue pontualmente, mas que parece estar sempre espreitando a obra. Suas
intromissões exigem uma maior precisão da narrativa, além de questionar, em certos
momentos, o relato do narrador, bem como outros discursos, incluído aqui o próprio
romance. Desse modo, o autor está constantemente revelando a ficcionalidade da obra e os
procedimentos pelos quais ela é construída.
Em relação à variedade de registros, observou-se como eles contribuem para o
fecundo diálogo entre ficção e realidade instaurado na narrativa. O recurso a esses textos
tende a parodiar o processo de documentação, uma vez que esses discursos passam por
uma ficcionalização, tornando-se, portanto, a “imitação” de um documento.
A análise desses aspectos de Balada da Praia dos Cães forneceu subsídios a uma
investigação dos principais elementos que relacionam o romance cardoseano com o gênero
policial. Nesse sentido, mesmo as subversões revelam uma duplicidade, na medida em que,
para além de um processo de distanciamento crítico, vê-se também como é possível
reconhecer aspectos desse gênero no texto de Cardoso Pires. Visando a uma sistematização
desse diálogo ambíguo fizemos algumas ponderações.
Em termos estruturais, o romance cardoseano aproxima-se da forma como se
estruturam as narrativas policiais ao incluir duas partes (“A investigação” e “A
reconstituição”) que simulam a “história da investigação” e a “história do crime”,
consideradas por Todorov (1970) as marcas formais do romance policial. Por outro lado,
Balada da Praia dos Cães promove uma alteração estrutural, uma vez que a “história da
investigação” passa a ter, ao contrário do que acontece nos romances policiais clássicos,
um valor diferencial, pois essa parte da narrativa, normalmente vista apenas como um meio
para se chegar à resolução do enigma, é o ponto central do texto de Cardoso Pires, que
117
privilegia o processo de investigação, ou melhor, realiza uma investigação sobre esse
processo.
O desdobramento da idéia inicial de investigação leva-nos a uma averiguação no
nível da estrutura romanesca, pois, com a intervenção do autor, um dos elementos que
ganham destaque é a própria construção da narrativa. Sob esse ponto de vista, realça-se na
obra uma reflexão metalingüística que se constrói em dois planos: um, em que se desnuda
os procedimentos constitutivos da obra, sendo, nessa perspectiva, a paródia ao romance
policial um elemento fundamental; outro, que ressalta que o que é contado é o processo
pelo qual o detetive elabora uma narrativa a partir das provas, indícios, etc. Trata-se,
portanto, de uma obra em que se relevo à construção da narrativa, seja a do detetive,
seja a sua própria.
A resolução do enigma, que antes era o aspecto central do texto policial, sofre um
abalo que passa, por um lado, pela desestabilização dos conceitos de “verdade” e de
“saber”, e, por outro, pela divulgação antecipada dos culpados. A quebra do suspense ao se
revelar precocemente os assassinos do Major está fortemente vinculada à relativização da
noção de “verdade”, pois a obra cardoseana indicia que não uma verdade, mas
“verdades” que variam segundo o ponto de vista adotado. Pode-se dizer, desse modo, que o
que é antecipado é a versão oficial sobre a morte de Dantas C., mas não a “verdade” do
caso, que permanece em aberto.
Nesse sentido, que se ressaltar o papel que desempenha a variação do foco
narrativo e a presença de uma grande diversidade de discursos em Balada da Praia dos
Cães. Esses recursos, de um modo, geral, produzem os seguintes efeitos: por um lado,
inserem uma multiplicidade de pontos de vistas, muitas vezes ideologicamente
contraditórios, sobre um mesmo acontecimento, obtendo-se uma visão ampla e
diversificada que se opõe à perspectiva unívoca, comum nos romances policiais
118
tradicionais. Por outro lado, contribuem para a elaboração do substrato social do romance,
o que possibilita, segundo Cabral (1999, p.229), que o crime seja visto como resultado das
contradições sociais, instaurando-se, assim, uma subversão da narrativa policial, na qual o
motivo do crime é, grosso modo, sempre fruto de uma “paixão individual”.
Se, como dissemos, a resolução do crime perde em importância, pode-se dizer que
surge um novo enigma, um novo quebra-cabeças para o leitor: a junção e organização
desses diversos registros que constituem a obra, por meio dos quais o leitor tem a
possibilidade de criar a sua própria versão dos fatos.
Além disso, na comparação entre Elias e os detetives prototípicos do romance
policial, percebem-se algumas diferenças essenciais. Uma delas diz respeito à
caracterização de Covas como um homem cheio de manias, de gostos extravagantes que
ao contrário de um Sherlock Holmes, por exemplo não o distinguem como um “ser
superior”, mas acentuam a sua miserabilidade. Uma outra refere-se ao fato de que,
diferentemente dos detetives clássicos, o investigador cardoseano envolve-se
emocionalmente, deixando que suas paixões interfiram em seu trabalho. Desse modo, Elias
pode ser visto como uma paródia do detetive tradicional, pois, ao contrário deste, utiliza a
imaginação como uma parte de seu método de investigação, derrubando o rigor
característico desse tipo de personagem.
A focalização do detetive Elias abre espaço para a percepção de uma polícia que
não se marca pelo cientificismo, mas pela intimidação, pela vigilância. Constrói-se, assim,
a crítica ao sistema salazarista, um governo autoritário que promoveu uma constante
violação dos direitos individuais, impondo, por meio da censura e da violência, a sua
versão homogênea dos fatos. O contrário identifica-se no romance de Cardoso Pires, que se
configura como um texto que busca a diversidade, a multiplicidade de visões, opiniões,
registros, etc. Essa atitude, sob certo ponto de vista, já se evidencia no contraste, por nós
119
apontado, entre a narrativa de Elias (os autos) e a obra. Isso porque, ao contrário dos autos
elaborados pelo detetive que deixam de fora várias pistas, documentos, evidências, etc. que
constituem o “Bde sobrantes”, a narrativa cardoseana parece, ela própria, se converter
numa espécie de “Baú de sobrantes” onde se abre espaço para todo tipo de texto.
Durante este trabalho procuramos, enfim, assinalar como Balada da Praia dos Cães
propicia que o leitor ative o seu conhecimento prévio com relação ao gênero policial e de
que modo essa “conexão” pode fornecer subsídios para a leitura do texto do escritor
português. Evidenciamos que essa relação se como um diálogo, como um
questionamento, de maneira não passiva.
Dessa forma, julgamos que Balada da Praia dos Cães pode ser lido como uma
subversão do romance policial, uma vez que na obra se reconhecem estruturas próprias do
gênero, contudo, também distanciamento crítico com relação ao objeto parodiado. O
romance de Cardoso Pires coloca-se numa posição ambígua em relação ao romance
policial, na medida em que, por um lado, acaba fazendo uma espécie de reverência ao texto
parodiado, nos termos de Hutcheon (1989), promove a sua “sacralização”, e, por outro
lado, critica, transforma, desafia, subverte. Essa ambigüidade é fundamental, pois explicita
que Balada da Praia dos Cães deve ser pensado como um romance policial diferenciado,
haja vista que o próprio autor tinha reservas com relação a essa forma, considerando-a
defensora da propriedade burguesa e de suas instituições
54
.
Ao nos referirmos à crítica que Balada da Praia dos Cães promove do romance
policial, quisemos demarcar um questionamento que se constrói de dentro, ou seja, a partir
do conhecimento e da subversão de procedimentos e estruturas desgastadas. Trata-se,
54
“Tirando o caso raríssimo dum Dashiel Hammett e pouco mais, o que essa literatura [a policial] faz é
defender a propriedade burguesa e todas as instituições (polícias, seguros ou espionagens) que a garantam por
muitos anos e bons.” (PIRES, 1977, p.187).
120
portanto, de uma ação transformadora em que aquelas características “negativas”
apontadas por Cardoso Pires, entre outras, são revisadas.
Outro ponto fundamental do romance escolhido como corpus deste trabalho é o fato
de que, ao promover uma “sacralização” do romance policial, acaba por valorizar esse
gênero sob determinada perspectiva, o que relativiza, ou torna até improcedente, a divisão
entre literatura erudita e popular, de que se serve Todorov (1970).
Como procuramos demonstrar também, a abertura do texto para outros textos,
outros discursos, inclusive para os textos considerados “marginalizados”, realça essa
postura de contestação dos discursos unívocos, totalitários, institucionais e se impõe como
elemento estruturador em Balada da Praia dos Cães, seja com relação ao romance policial,
seja com relação a outras formas literárias e culturais, seja com relação ao passado
histórico português.
Trata-se de uma obra, enfim, que testa e amplia os limites do gênero policial e da
literatura como um todo, deixando transparecer que os textos interagem entre si, num
diálogo constante. Configura-se, assim, um texto que parece fugir de qualquer classificação
simplista, um romance desafiador, aberto às interpretações mais diversas, pois, como
parece estar sempre a indicar, uma leitura nunca é igual à outra. Desse modo, não é de se
estranhar que a narrativa proposta pelo detetive surja como uma versão sobre os fatos,
versão intimamente relacionada ao sujeito que a elaborou, versão que poderia ser diferente,
caso fosse conduzida por outro personagem. Deve-se lembrar que, apesar de revelar as
várias hipóteses sobre a morte do major, o romance não descarta, pelo menos não
categoricamente, nenhuma solução.
A escolha do gênero policial torna-se fundamental, pois favorece a reunião dos
mais diversos textos e discursos, bem como a análise investigativa dos fatos, depoimentos,
suposições, etc. O desdobramento da noção de investigação permite que tanto o drama dos
121
personagens, como o contexto sociopolítico da época, quanto o próprio romance sejam
colocados sob uma lupa. Assim, narrador e autor tornam-se eles próprios detetives e
carregam o leitor consigo, três instâncias que, de algum modo, se encontram sempre no
romance e que podem apresentar opiniões diferentes sobre os fatos, sobre a própria
narrativa.
Pode-se dizer que Balada da Praia dos Cães expande a idéia de Torres (1967)
segundo a qual os textos cardoseanos têm, de um modo geral, como um de seus focos os
personagens, o choque de valores, as contradições entre núcleos sociais, entre visões de
mundo divergentes. Aqui não apenas os personagens deixam entrever diferentes
perspectivas, mas narrador e autor também; essas duas entidades se revezam indiciando
versões possíveis, revelando que há interesses por de trás de toda enunciação, que toda fala
é um exercício de poder. Não deixa de ser exemplar, portanto, o fato da figura do autor
surgir textualmente, às vezes questionando o que vai narrado, pondo em xeque o relato do
narrador, sob certo sentido desautorizando-o ou relativizando o seu discurso. Questiona,
inclusive, o próprio romance e, por conseqüência, a si próprio, o que parece conduzir o
leitor a fazer o mesmo, a perguntar: se esse autor não confia cegamente no narrador, por
que eu deveria? Ou ainda: se esse autor parece não estar certo sobre o que nos diz, como eu
posso ter certeza de algo? Não deveria eu mesmo duvidar de minha leitura? Se narrador e
autor são detetives nessa narrativa, talvez, possa-se dizer que o desafio, o questionamento é
o seu método de investigação.
É nesse momento que o confronto entre o romance e a narrativa do detetive (os
autos) se faz crucial. Os autos ignoram a complexidade e a diversidade de opiniões,
destacando-se como um texto a que são impostos limites, um texto censurado, ou melhor,
auto-censurado, uma vez que Elias sabia de antemão o que poderia e o que não poderia
constar no seu relato. A obra cardoseana, por outro lado, compraz-se em ser multíplice, em
122
transgredir limites e convenções, em desafiar as narrativas policiais, que, de um modo
geral, são marcadas pelo seu autoritarismo, por um final fechado e conclusivo.
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