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somáticas, pois a faculdade de pensamento se manifesta no mundo fenomênico através da
linguagem metafórica, é satisfatório para os nossos propósitos, ou seja, compreender a impli-
cação política da faculdade de pensamento. Contudo, não podemos deixar de mencionar que,
de forma circunscrita ao ego pensante, este possui sua localização naquilo que Arendt irá de-
nominar de nunc stans (o agora permanente), pois o homem não somente localiza-se espaci-
almente, mas também temporalmente.
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Nessa perspectiva, nossa autora realiza uma reinter-
pretação de uma perspectiva do tempo em Agostinho,
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recorrendo a Kafka
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e a Nietzsche
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para dar sustentação a seus argumentos.
objetos que entram, mas as suas imagens: imagens das coisas sensíveis, sempre prestes a oferecer-se ao pensa-
mento que as recorda” (AGOSTINHO. Confissões Livro X, p. 266 e 267).
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Para Kant, o tempo não deve ser compreendido como um conceito extraído do mundo sensível, tal como ocor-
re com os “esquemas”, mas sim como uma forma subjacente, a priori, a todas as intuições. O tempo é uma for-
ma pura de intuição dos objetos internos, que se caracteriza por ter uma única dimensão: diversos tempos não
são simultâneos, mas sucessivos, ou seja, quando se acredita que existem tempos no plural, o que há, de fato, é a
certeza de que diferentes tempos são partes de um mesmo tempo ilimitado. Nesse sentido, o tempo, o qual não
possui nem figura ou posição, deve determinar o arranjo no qual cada representação irá se apresentar ao pensa-
mento discursivo: anterior, posterior... Portanto, o tempo é a forma que o homem possui para intuir a si mesmo e
ao seu estado interno, ou seja, de representar as coisas e a si mesmo como objeto. Sobre isso, ver KANT. Crítica
da Razão Pura, B41.
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Arendt descreve “onde estamos quando pensamos”, reinterpretando a compreensão agostiniana do nunc stans,
que para nossa autora determina-se como a lacuna que se constitui a partir da batalha travada pelo homem-
pensamento contra seus antagonistas: passado e futuro. Passado e futuro, nessa perspectiva, são considerados
antagonistas do ego pensante, na medida em que o primeiro empurra-o para frente a partir do peso morto de sua
existência, enquanto o segundo, veda o caminho à frente, a partir da incerteza do que há de vir. O ego pensante,
nessas circunstâncias, necessita defender sua posição, no intuito de não ser esmagado por essas forças antagôni-
cas e de igual potência, para poder não ser dominado por elas, mas, sim, significá-las. Essa batalha formará um
ângulo denominado pelos físicos de paralelogramo de forças, configurando-se como “a região do espírito”. Essa
lacuna, o lar do ego pensante, pode ser descrita como um “eterno presente”, que surge do choque entre o não-
mais e o ainda-não, ou seja, o “lugar” onde se realiza a atividade de pensar. Esse hiato torna-se possível apenas
ao ego pensante, na medida em que ele, pelo fato de ter-se retirado das atividades ordinárias, pode manejar de
todas as formas o conjunto das experiências sensoriais, que para ele encontram-se despidas de suas vestes habi-
tuais e revestidas de uma outra roupagem: uma indumentária dessensorializada e desespacializada. Esse remane-
jamento do que é dado imediatamente permite ao homem, mergulhado em pensamentos, denotar o que foi de
não-mais e o que virá de ainda-não. A lacuna entre o passado e o futuro só se abre para a ação refletida, cuja
temática é aquilo que se encontra ausente e que, contudo, existe como coisa-pensamento. A esse respeito, ver
ARENDT. A vida do espírito, p. 152.
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Com o intento de ilustrar a experiência da atividade de pensar, de estar situado em “lugar nenhum”, Hannah
Arendt recorre à parábola de Kafka, que faz parte de uma coleção de aforismos intitulada “ELE”. Assim, o afo-
rismo se desenvolve da seguinte maneira: “Ele tem dois antagonistas: o primeiro empurra-o para trás a partir da
origem. O segundo veda o caminho à frente. Ele luta com ambos. Na verdade, o primeiro lhe dá apoio na luta
contra o segundo, pois ele quer empurrá-lo para frente; e, da mesma forma, o segundo apóia-o na luta contra o
primeiro, pois ele empurra-o para trás. Mas isso é assim apenas teoricamente. Pois não são somente os dois anta-
gonistas que estão lá, mas também ele; e quem conhece realmente suas intenções? (KAFKA apud ARENDT. A
vida do espírito, p. 153). Para Hannah Arendt, esta parábola de Kafka demonstra, de maneira correta, a sensação
do ego pensante, quando este está situado na lacuna possibilitadora da atividade de pensar, no qual há a realiza-
ção total do seu ser, de sua quintessência.
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Sobre isso, ver NIETZSCHE. Assim Falou Zaratustra. Nesse escrito, principalmente em sua Terceira Parte,
podemos vislumbrar uma experiência do ego pensante, semelhante àquela que Arendt aponta no aforismo de