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surpreendentes, que Graciliano coloca algumas apostas esperançosas, algo inexistente em
Kafka, como reforça seu modo de trabalhar a linguagem.
267
Ao invés de representar apenas uma forma conservadora, a escrita preponderantemente
realista pode - como acreditamos ocorrer nos dois livros analisados - configurar uma outra
maneira de revelar as profundas contradições da modernidade
268
, a qual, em seu princípio,
demonstrava a mesma solidez de sua forma literária mais eminente: o romance que, como
mostra Watt
269
tem o realismo como uma de suas principais marcas. Diante disso, poderíamos
questionar: a escrita realista ainda poderia dar conta de uma realidade que não cumpriu as
promessas burguesas dos auspícios da modernidade? Colocado desta maneira, possivelmente
teríamos uma resposta negativa, mas o fato é que consideramos que a modernidade não
apenas cumpriu suas proposições iniciais, como perversamente as superou. Ao contrário de
ser exultada pelos seus ganhos, a modernidade tornou-se, por seu êxito, um produto
amplamente paradoxal, como exemplarmente demonstra sua multifacetada ambivalência
270
.
Diante de tal cenário, um novo questionamento sobre a pertinência do realismo possivelmente
ganharia uma resposta distinta: sim, a forma realista, cujo apogeu representou a necessidade
de dar contornos concretos a um mundo que envolvia sujeitos profundamente singularizados,
pode ser significativa em um contexto de frágeis singularidades e de uma realidade que se
configura num absurdo profundamente hostil. A escrita realista, nessa condição, não significa
um retrocesso a uma fase moderna que não mais voltará, mas uma maneira de reagir a essa
modernidade no modo que lhe é mais peculiar: através de uma negatividade que não recusa a
origem, mas que a supera ao fazer uma crítica assentada, precisamente, nos moldes formais de
sua ascensão. Assim, expõem-se as fissuras da modernidade, devolvendo a ela com um olhar
267
Seligmann-Silva, Márcio. O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. São Paulo:
Editora 34, 2005, p. 75: “Não há esperança na literatura de Kafka, porque ela leva até às últimas consequências o
saber em torno dessa linguagem ‘decaída’, dessa linguagem que condena a priori, que exclui e vive dessa
exclusão. Na sua literatura, a linguagem é desconstruída enquanto máquina de conceituação e consolo diante da
‘Queda’. Daí a impossibilidade da metáfora e a sua literalização que leva os leitores ao ‘desespero’. O espetáculo
da catástrofe a que se resume a vida (moderna) é apresentado como se fosse um evento banal. Também a
temporalidade da narrativa é estancada: a literatura de Kafka reduz o mundo a imagens sem um necessário nexo
entre elas. Sua obra apresenta o ‘trauma’ do indivíduo alienado moderno que porta em si a marca do choque.”
268
Barbosa, João Alexandre. “A modernidade do romance” In: A leitura no intervalo: ensaios de crítica. São
Paulo: Iluminuras, 1990, p. 128: “Na verdade, sem neologismo, sem montagens abruptas, conservando-se nos
limites da gramática, Graciliano Ramos deixa sempre latejar o momento, en abime, da crise e da crítica. Por sua
prosa precisa, passa a consciência da instabilidade e da ignomínia que marca, em nível profundo, o moderno.”
269
Watt, Ian A Ascensão do Romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
270
“A ordem e a ambivalência são igualmente produtos da prática moderna; e nenhuma das duas tem nada
exceto a prática moderna – a prática contínua, vigilante – para sustentá-la. Ambas partilham da contingência e
falta de fundamento do ser, tipicamente modernas. A ambivalência é, provavelmente, a mais genuína
preocupação e cuidado da era moderna, uma vez que, ao contrário de outros inimigos derrotados e escravizados,
ela cresce em força a cada sucesso dos poderes modernos. Seu próprio fracasso é que a atividade ordenadora se
constrói como ambivalência.” In: Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p.
23.