enunciados é determinado pelo critério da existência do
evento.
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Isso mostra que, na construção dessa narrativa e, principalmente na
opção por um narrador interventor, Saramago demonstra o conhecimento e
a aproximação com essa nova perspectiva histórica. Partindo dessas
reflexões, adentramos naquilo que poderemos chamar de “presença de
Camões” nesse romance, lembrando do que Linhares Filho
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propõe como
sendo “intertextualidade”, vendo como paródia de Os Lusíadas o episódio
da morte de um velho anônimo, quando da partida de alguns homens que
iriam trabalhar nas obras do convento, em Mafra:
Maldito sejas até à quinta geração, de lepra se te cubra o corpo todo,
puta vejas a tua mãe, puta a tua mulher, puta a tua filha, empalado
sejas do cu até à boca, maldito, maldito, maldito. Já vai andando a
récua dos homens de Arganail, acompanham-nos até fora da vila as
infelizes, que vão clamando, qual em cabelo, Ó doce e amado
esposo, e outra protestando, Ó filho, a quem eu tinha só para
refrigério e doce amparo desta cansada já velhice minha, não se
acabavam as lamentações, tanto que os montes de mais perto
respondiam, quase movidos de alta piedade, enfim já os levados se
afastam, vão sumir-se na volta do caminho, rasos de lágrimas os
olhos, em bagadas caindo aos mais sensíveis, e então uma grande
voz se levanta, é um labrego de tanta idade já que não o quiseram, e
grita subido a um valado, que é púlpito dos rústicos, Ó glória de
mandar, ó vã cobiça, ó rei infame, ó Pátria sem justiça, e tendo assim
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HANSEN, João A. Experiência e expectativa em memorial do Convento, em LOPONDO (1998), p. 20.
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FILHO, Linhares. Uma leitura de Memorial do Convento, em BERRINI (1999), p. 169.
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