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JUAN ANDRÉS CAMOU VIACAVA
SE ARMARON CON ELLOS LAS IDEAS PARA RESISTIR A LA FUERZA:
POR UMA REAVALIAÇÃO DA OPOSIÇÃO ENTRE CAUDILHO E ESTADO
NO URUGUAI A PARTIR DE HERRERA Y OBES, BERRO, ANTUÑA E ZÁS
(1ª METADE DO SÉCULO XIX).
Dissertação apresentada como requisito
parcial à obtenção do grau de mestre pelo
curso da Pós-Graduação do Departamento
de História, Setor de Ciências Humanas,
Letras e Artes, Universidade Federal do
Paraná.
Orientador: Prof. Dr. Carlos A. M. Lima
CURITIBA
2005
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AGRADECIMENTOS
Agradeço aos professores doutores do Departamento de História da Universidade
Federal do Paraná, especialmente ao meu orientador Prof. Dr. Carlos Alberto Medeiros
Lima. Outro grande agradecimento é dedicado à minha família, tanto em sua parte uruguaia
quanto brasileira. Gracias a mi abuela Edith Camou (Mamina), a Blanca dos Santos y a
Beatriz Torrendel Larravide. Mais especial ainda é meu agradecimento à Rachel Lora
Lambrecht que, além de companheira, é minha revisora de texto. Este trabalho foi feito com
o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a
quem também agradeço.
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iv
RESUMO
Esta dissertação tem como objetivo estudar algumas relações entre caudilhismo e Estado para o
contexto da ‘Guerra Grande’ uruguaia. Para a historiografia platina, o caudilho e seu fenômeno
condensam uma série de relações sociais e políticas, resultando em modelos específicos de Estado e
sociedade. Abordando sentidos construídos para as palavras ‘revolução’ e ‘civilização’ na
interpretação de movimentos que se consideravam revolucionários no contexto platino da primeira
metade do século XIX, examinam-se os textos de Manuel Herrera y Obes e Bernardo Prudencio Berro,
publicados entre 1847 e 1848 como exemplos de dois indivíduos que puderam entender e reconstruir
sua recente história sob a influência do contexto bélico da ‘Guerra Grande’ e de um campo de
discussão que abrangia ambas as margens do rio da Prata. Na seqüência, com a ajuda das memórias de
José Encarnación de Zás e Francisco Solano Antuña, procurar-se-á analisar possíveis combinações ou
antagonismos entre instituições estatais e determinados elementos do caudilhismo. Estas duas últimas
fontes não tinham as mesmas finalidades da escrita de Herrera y Obes e Bernardo Berro, uma vez que
os textos de Zás e Antuña estavam baseados em suas experiências cotidianas e não tinham como
objetivo a publicação; entretanto, as informações ali contidas oferecem boas oportunidades de
verificação da utilização das categorias ‘civilização e barbárie’ e ‘caudilhismo’ em práticas políticas e
estratégias de alguns atores sociais daquele período. Desta forma, serão encontrados elementos
“modernos” e de Antigo Regime combinados na organização de instâncias estatais, discursos e
práticas políticas.
Palavras-chave: Caudilhismo, Estado, América Ibérica.
v
ABSTRACT
This dissertation aims the study of some relations between caudillism and the State in the Uruguayan
Guerra Grande’s context. To the River Plate historiography, the caudillo phenomenon sets a series of
social and political relations. Revising some meanings of the words ‘revolution’ and ‘civilization’ in
the interpretation of movements that considered themselves as revolutionaries engagements during the
first half of the 19
th
century, the texts of Manuel Herrera y Obes and Bernardo Prudencio Berro are
taken as examples of two individuals who were thinking their recent history under the influence of the
Guerra Grande’s war years, a discussion field that covered both shores of the River Plate. As a
sequence, José Encarnación de Zás and Francisco Solano Antuña are helping this work with their
written memories, which will lead to the analyses of possible combinations or antagonisms between
state institutions and certain elements of caudillism. These two last texts weren’t thought with the
same intentions of Herrera y Obes and Berro, but their matter might offer an opportunity of
verification of the concepts of ‘caudillism’, ‘civilization’ and ‘barbarism’ in political practices and
strategies of some social actors of that period. Therefore, “modern” and Ancient Regime elements will
be found mixed in the organization of state institutions, speeches and political practices.
Key words: Caudillism, State, Latin America.
SUMÁRIO
RESUMO............................................................................................................................................. iv
ABSTRACT.......................................................................................................................................... v
INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 1
1 DEBATES ARGENTINOS E URUGUAIOS ACERCA DO CAUDILHISMO........................ 20
1.1 HISTORIOGRAFIA URUGUAIA EM SEUS ASPECTOS GERAIS.......................................... 20
1.2 DUALISMOS: CAUDILHOS E DOCTORES; CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE. CONSTRUÇÃO
E USO PARA O CASO PLATINO............................................................................................... 31
1.3 ESTADO, CIVILIZAÇÃO E CAUDILHISMO EM ALGUNS AUTORES URUGUAIOS........ 39
1.4 QUESTÕES ATUAIS ACERCA DO “CAUDILHISMO CLÁSSICO”....................................... 62
1.4.1 Dualismos: poder institucional e personalizado; civilização e barbárie; rural e urbano. ............ 62
1.4.2 Um tipo social e seu fenômeno: o gaúcho e as montoneras........................................................ 70
1.4.3 Clientelismo ................................................................................................................................ 74
1.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................................... 77
2 AS CATEGORIAS “CIVILIZAÇÃO”, “CAUDILHISMO” E “REVOLUÇÃO” EM
ALGUNS AUTORES PLATINOS DA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX ............. 81
2.1 A GERAÇÃO DE 1837 E SUA PRESENÇA EM MONTEVIDÉU............................................. 81
2.1.1 A categoria “civilização” em Alberdi ......................................................................................... 91
2.2 UM SARMIENTIANO: MANUEL HERRERA Y OBES. REVOLUÇÃO E CIVILIZAÇÃO ... 98
2.4 A RESPOSTA BLANCA DE BERNARDO PRUDENCIO BERRO........................................... 118
2.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................................... 129
3 ENCONTROS DE (E COM) JOSÉ ENCARNACIÓN DE ZÁS E FRANCISCO SOLANO
ANTUÑA ...................................................................................................................................... 132
3.1 A TRAJETÓRIA DE JOSÉ ENCARNACIÓN DE ZÁS............................................................. 133
3.1.1 Encontro com um empleado...................................................................................................... 137
3.1.2 Instâncias estatais em um de seus empleado............................................................................. 155
3.2 FRANCISCO SOLANO ANTUÑA, BLANCO Y DOCTOR....................................................... 167
3.2.1 Encontro com um doctor e a necessidade de abandonar Montevidéu....................................... 172
3.2.2 A permeabilidade relativa do cerco / Crimes e punições.......................................................... 179
3.2.3 Pátria, nação e apropriação da história / Civilização e barbárie................................................ 187
3.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................................... 203
4 CONCLUSÃO ............................................................................................................................... 207
REFERÊNCIAS............................................................................................................................... 212
ANEXOS........................................................................................................................................... 217
1
INTRODUÇÃO
Em 1847, Manuel Herrera y Obes publicou no periódico El Conservador de
Montevidéu uma das primeiras versões uruguaias dedicadas à análise da recente
história daquele jovem Estado. Não se limitando a uma mera descrição cronológica
dos fatos, construiu uma interpretação que pretendia unificar toda sua história em um
sentido caracterizado por um progresso civilizador universal. De modo algum um texto
imparcial, sua intenção era atacar o partido rival blanco, posicionando-o
negativamente no interior desta mesma história, identificando-o como inimigo contra-
revolucionário e conservador frente aos avanços da civilização européia. Bernardo
Prudencio Berro tomaria para si a tarefa de refutar a versão colorada de Herrera y
Obes. Publicando no El Defensor de la Independencia Americana, ironizou a
arrogância dos seus opositores, querendo demonstrar a legitimidade do seu partido na
guerra civil que enfrentava.
O período que se seguiu à independência foi rico em projetos de organização
social e estatal. Especificamente para década de 1840, as guerras entre unitários e
federais, colorados e blancos, desencadeadas na Argentina e no Uruguai, deram um
tom particular às interpretações e projetos de cada um. Na mesma medida em que se
militarizavam pelo poder estatal, lutavam pelo privilégio de estabelecer uma versão
hegemônica que não apenas explicasse a situação social do Prata, mas que também
apresentasse as soluções que os livrariam daquela conjuntura bélica e “anárquica”.
1
Nos dois autores acima citados, encontra-se a continuação de uma discussão
que colocava o caudilhismo no centro da problemática platina. O caudilhismo seria, e
ainda é, um tema central para o século XIX. Por este motivo, é possível encontrar
diversos vestígios deste tema “fundador” desencadeado no Prata por personalidades
como a de Sarmiento e Alberdi, retomado no Uruguai por Herrera y Obes e Bernardo
1
Esta “anarquia” era atribuída à ausência de um Estado estável e legítimo, ou aos que desobedeciam a
um poder constituído.
2
Berro, em trabalhos historiográficos recentes. A importância do debate entre Berro e
Herrera y Obes simboliza uma disputa secular entre os tradicionais partidos uruguaios,
a ponto de ser reeditada em uma compilação em formato de livro na década de 1960
em uma coleção patrocinada pelo governo uruguaio.
José Encarnación de Zás e Francisco Solano Antuña oferecem uma
oportunidade bastante diferente da anterior. O primeiro, escrevendo em 1851,
desenvolveu uma autobiografia, narrando sua participação em eventos históricos que
acreditava importantes. O segundo escreveu um diário durante o cerco a Montevidéu
da ‘Guerra Grande’ para o intervalo de 1843 a 1848, atendo-se principalmente ao
teatro de guerra com que se forçava a conviver. Menos preocupados em dar um
sentido histórico, os eventos narrados permitem a análise de algumas práticas destes
dois indivíduos e dos demais com quem interagiram. Principalmente para o caso de
Zás, seu trabalho de empleado em instâncias estatais artiguistas e coloradas garantem
boas oportunidades de comparação entre suas descrições e as propostas de Herrera y
Obes formuladas alguns poucos anos antes. Veremos como compartilharam de uma
série de valores comuns, mas a forma como estes foram aplicados em suas ações e
tomadas de posição diferem consideravelmente em vista de suas trajetórias
particulares. Por outro lado, Antuña abre espaço para uma versão blanca do cotidiano
da guerra, mas também oferece uma versão diferente de um caudilhismo que, se não
teorizado, é aplicado como categoria na avaliação de outros indivíduos. Doutor em
direito pela Universidade de Buenos Aires, Antuña se afasta da tradicional imagem do
caudilho blanco que fora construída ao longo da segunda metade do século XIX, e,
assim como seu colega de partido Bernardo Berro, questionará a auto-atribuição
civilizadora colorada enunciando suas contradições quando comparadas às práticas do
governo instalado e sitiado de Montevidéu.
Incluindo esta introdução, a dissertação está dividida em quatro partes. Nas
próximas páginas, encontra-se primeiramente um breve contexto que apresenta alguns
dos principais eventos levados em conta por Herrera y Obes e Berro para fundamentar
3
suas posições. Neste mesmo sentido, o entendimento da ‘Guerra Grande’, ainda que
superficial, atende à necessidade de demonstrar como este conflito, estendido ao
território argentino, gerou um campo de discussão política em que se buscava a
legitimidade por intermédio da construção de concepções acerca da História da Banda
Oriental, principalmente para o período desencadeado pela Revolução de Maio de
1810. Apesar do seu inicial enfoque legitimista de 1808, data da abdicação forçada de
Fernando VII, o movimento de independência se radicalizou a partir de 1810, partindo
para um esforço de guerra cuja dinâmica marcou profundamente a formação da
sociedade platina para as décadas que se seguiram. Halperín Donghi já escrevia como
a guerra alterou profundamente a própria constituição das elites platinas, mas o
conflito armado não terminou com a independência proclamada pelo Congresso de
Tucumán de 1816, nem mesmo com a definitiva derrota espanhola no continente.
2
A
questão a ser resolvida estava na legitimação de um governo que substituísse a
monarquia espanhola. As dificuldades em conciliar as lideranças provinciais, ou
mesmo em alcançar um consenso a respeito da forma de governo a ser adotado,
instituiu um clima de instabilidade que, aos olhos dos contemporâneos, parecia não ter
fim. Golpes de Estado e guerras civis se seguiram por todo o Rio da Prata do século
XIX. Ainda na década de 1840, com o conflito entre unitários e federais na Argentina,
e com a ‘Guerra Grande’ no Uruguai, as primeiras versões de explicação social e
histórica escritas no e para o Prata estão profundamente marcadas pela guerra que
insistia em se prolongar.
O primeiro capítulo conta com uma revisão de algumas das principais obras
historiográficas argentinas e uruguaias. Os temas abordados foram escolhidos pela
relevância que têm tanto para o período estudado, como para entender aquele passado
já analisado e julgado por Herrera y Obes e Bernardo Berro. Além do corte
cronológico, privilegiou-se compreender o uso consagrado de certas categorias, como
a de civilização e barbárie, e, principalmente, a do caudilhismo. Este foi considerado
2
HALPERÍN DONGHI, Tulio. Revolución y guerra. Buenos Aires : Siglo XXI, 1994.
4
um fenômeno chave para o entendimento do século XIX. Explicaria tanto a política e a
guerra como as relações sociais e hierárquicas entre os platinos. Utilizado de formas
diferentes de acordo com a época da obra, o caudilhismo é um dos temas fundadores
para a historiografia daquela região.
Para o segundo capítulo, este trabalho dirige sua atenção para o debate
publicado por periódicos locais entre o final de 1847 e o início de 1848 entre Manuel
Herrera y Obes e Bernardo Prudencio Berro. Escrevendo sob a égide da ‘Guerra
Grande’, Herrera y Obes expôs uma versão colorada para o caudilhismo e para o
sentido da guerra, incluindo nesta a independência e a guerra civil que a seguiu.
Buscando apontar os erros desta versão colorada, o blanco Bernardo Berro respondeu
indicando contradições e reinterpretando o significado da guerra e da organização
social uruguaia. Enquanto o primeiro, profundamente influenciado por Sarmiento,
procurou construir uma versão acabada de ‘civilização e barbárie’ para o Uruguai, o
segundo, menos ambicioso, dedicou-se mais a atacar o texto adversário do que
propriamente elaborar uma interpretação própria. Porém, com a ajuda de outros textos
auxiliares de Berro, é possível entender um pouco do que seria uma versão blanca da
guerra e da independência. Assim, podemos traçar alguns elementos do campo político
de discussão gerado por facções inimigas em conflito.
No terceiro e último capítulo, partimos para a análise de práticas políticas. Em
José Encarnación de Zás, encontramos os Apuntes curiosos para mis hijos, memórias
que, escritas em 1851, narravam algumas “aventuras” vividas por este indivíduo,
interessado em contar um pouco da sua atuação de empleado, ou “pequeno burocrata”,
no interior de algumas versões ou tentativas de Estado no território do atual Uruguai.
Trata-se de uma obra dedicada à família, sem intenção de publicação. Contudo, escrita
ainda durante a ‘Guerra Grande’, e, mais do que isso, em boa parte interessando-se por
um corte cronológico bastante próximo ao de Herrera y Obes (da independência até
esta mesma ‘Guerra Grande’), cria a oportunidade de ultrapassar a propaganda política
do primeiro e entender como suas idéias aparecem ou não no interior da vida “prática”
5
de um servidor do Estado. Questões como a do caudilhismo reaparecem em Zás não
como teorias sociais, mas como situações de enfrentamento pessoal. Enquanto Herrera
y Obes interpreta o artiguismo, Zás narra sua participação no interior deste
movimento, relembrando suas funções e os demais indivíduos que o acompanhavam.
Na seqüência, seu padrinho de casamento Francisco Solano Antuña oferece mais
algumas oportunidades para o estudo de um indivíduo e suas relações pessoais, mas
desta vez concentradas em um diário que descreve alguns acontecimentos da ‘Guerra
Grande’, escritos tanto dentro quanto fora da cidade sitiada de Montevidéu.
Por fim, ao término da leitura desta dissertação, será possível compreender
alguns aspectos da história da primeira metade do século XIX uruguaio, com ênfase
para a ‘Guerra Grande’, privilegiando a análise de um campo de disputa pela
legitimidade de uma versão histórica e social para um Uruguai recém independente.
Além disso, Zás e Antuña se colocam como dois indivíduos que participaram
ativamente de todo este período, possibilitando o aprofundamento das questões
levantadas pelo campo das idéias no estudo de práticas políticas. Nestas práticas, tanto
um como o outro apresentarão algumas possibilidades estratégicas de indivíduos e
“Estados” (projetos ou instâncias burocráticas e estatais). Seguindo caminhos
“modernizadores” ou típicos de Antigo Regime, o repertório de opções para a
construção de alianças, legitimidades e administração estatal estaria formado por uma
base muito mais ampla e híbrida do que a oposição maniqueísta de ‘civilização e
barbárie’, ou de ‘doctores y caudillos’, poderia supor. O fenômeno do caudilhismo e
da organização estatal uruguaia estarão passando por uma revisão que não os coloca
como necessariamente antagônicos, mas como integrantes de um momento específico
da história uruguaia, convivendo em co-participação ou não de acordo com a
percepção de cada indivíduo e de cada idéia de Estado elaborada por aquele contexto.
6
Contexto histórico.
3
1 – A ‘Guerra Grande’
Para entender o campo de discussão em que se inserem Manuel Herrera y
Obes, Bernardo Prudencio Berro, José Encarnación de Zás e Francisco Solano Antuña,
é vital avaliar alguns dos principais aspectos da chamada ‘Guerra Grande’. Neste
sentido, o espaço deste primeiro subtítulo tem como objetivo identificar algumas das
questões políticas e sociais que envolveram tanto as idéias contidas na discussão entre
os dois primeiros como o ambiente no qual se desenvolveu a trajetória de Zás e o
diário de Antuña. Por um lado, este breve contexto procura enunciar acontecimentos,
situações ou mesmo organizações daquela sociedade platina que receberam destes
indivíduos uma atenção diferenciada. Da mesma forma, serve como respaldo para o
entendimento da revisão historiográfica uruguaia e argentina que, na seqüência,
pretende apontar algumas interpretações relevantes para o tema desta dissertação.
Ao discutir em um tom de polêmica questões da controvérsia política do
período, Berro e Herrera y Obes são capazes de indicar alguns elementos de uma
polêmica que se ampliava para além do Uruguai do intervalo temporal indicado. Este
ambiente de reflexão política não pode ser encarado como marcado pela
preponderância de uma idéia, mas deve ser compreendido como um jogo legitimado
de tomadas de posição em confronto e, portanto, em relação. É na interação e no
choque político que surgiram, através destas controvérsias, as primeiras interpretações
sociais e históricas para o Rio da Prata recém independente.
Por outro lado, a finalidade de usar Zás e Antuña no último capítulo é a de
rastrear a inserção das questões fundantes da controvérsia política captadas na dupla
Berro e Herrera na trajetória de quem se vinculava à construção do estado. É isto o que
3
Este contexto não tem a intenção de retomar algum debate, mas apenas apresentar alguns
acontecimentos que serão relevantes para o melhor entendimento dos próximos capítulos.
7
justifica o aprofundamento nas fontes de Zás e Antuña. Um caminho possível é aquele
que atenta para os aspectos institucionais daquele contexto. Desta forma, mais do que
olhar para indivíduos que refletiam sobre o Estado e a política no Uruguai do período,
é importante observar as instituições que davam margem àquelas reflexões. A fim de
não produzir uma versão homogênea desse processo (a disputa, a controvérsia, o
relacional, enfim, são decisivos), parte-se para a leitura de fontes que apontem para
práticas como as de Zás e Antuña, encontrados em lados opostos do conflito durante a
‘Guerra Grande’.
A ‘Guerra Grande’, travada entre 1839 e 1851, inicialmente uma guerra civil
entre duas facções uruguaias que se organizaram logo após a independência de 1828,
teve grande impacto na interpretação que aquele mesmo período desenvolveu sobre si
mesmo, sua própria história e sociedade. Ela pode ser vista como o ápice de um longo
enfrentamento social que deixou profundas marcas na organização e na divisão do
poder estatal no Uruguai. O bipartidarismo que predominou até as últimas décadas do
século XX, e que somente encontrou seu declínio após o golpe militar de 1974, tem
suas raízes no acirramento das lutas entre colorados e blancos no século XIX e a
subseqüente necessidade de coexistência e co-participação que se seguiu. Segundo
aponta Pivel Devoto
4
(cuja obra pertinente será analisada mais adiante), recém
promulgada a constituição de 1830, esta divisão partidária se deu entre aqueles que
foram perseguidos e combateram o governo luso-brasileiro que ali esteve entre 1817 e
1828 e aqueles que aderiram, mesmo que momentaneamente, à sua presença. Os
denominados “abrasilerados”, unidos em torno a Rivera, formariam o futuro partido
colorado, em cujos quadros encontraremos Herrera y Obes e Zás. Os “Defensores de
las Leyes”, batizados e liderados por Manuel Oribe
5
a partir de 1836, estavam
4
PIVEL DEVOTO, J. E. Historia de los partidos políticos, la formación de los bandos (1829-
1838). Montevidéu : Editorial Medina, 1956.
5
Manuel Oribe (1792-1857)
8
formados por lavallejistas
6
, aporteñados
7
e demais inimigos políticos de Fructuoso
Rivera, incluindo Berro e Antuña.
Tanto Rivera como Juan Antonio Lavalleja estiveram ao lado de Artigas na
formação da “Liga Federal” que, unindo a Banda Oriental
8
a outras províncias
argentinas, opunha-se ao centralismo porteño. Também participaram da resistência à
invasão portuguesa iniciada em 1816. Contudo, enquanto o grupo mais próximo a
Lavalleja foi perseguido e se exilou na Argentina, Rivera logo se acertou com o
governo português. O mesmo ocorreu com a administração brasileira que se instalou a
partir de 1822, pois o grupo riverista se manteve ao lado dos imperiais. Três anos mais
tarde, com a já presente força lavallejista vinda e financiada desde Buenos Aires,
Rivera romperia com os representantes do Império para unir-se novamente aos antigos
colegas artiguistas.
As lutas entre as Províncias Unidas e o Império se estenderam por mais três
anos a partir de 1825. Após o tratado de paz de 1828 e acordada a criação de um novo
Estado, que logo receberia o nome de República Oriental del Uruguay, iniciaram-se os
trabalhos para a redação de uma Constituição que somente estaria pronta em 1830.
Assim que aprovada, foram promovidas as primeiras eleições departamentais de
representantes legislativos. Em 24 de outubro de 1830, tendo os riveristas obtido a
maioria das cadeiras da câmara, Rivera foi eleito, indiretamente, presidente da
república com 27 votos contra cinco de Lavalleja. Neste mandato, Rivera enfrentou as
primeiras revoltas dos seus opositores, lideradas pelo contrariado Lavalleja e seu bloco
6
Seguidores de Juan Antonio Lavalleja, líder da “Cruzada Libertadora” de 1825 que promoveu a luta
contra o Império do Brasil para a “libertação” da antiga Banda Oriental, procurando, de início,
reincorpora-la às Províncias Unidas do Rio da Prata (atual Argentina), mas resultando, posteriormente,
na independência em 1828.
7
Ligados à elite de Buenos Aires e, em geral, adeptos da reincorporação ao Estado vizinho.
8
Este era o nome dado à região que aproximadamente ocupa o território do Uruguai atualmente. A
Banda Oriental em si não estava de forma alguma unificada, e nem sequer constituía o território de
uma instituição em particular, uma vez que se encontrava divida por jurisdições diversas. Seu nome
apenas significava “o lado de lá”, ou seja, as terras ao leste do rio Uruguai para o ponto de vista de
Buenos Aires. A idéia de “povo oriental” começa a surgir durante as primeiras décadas do XIX,
porém, como veremos adiante, tem inicialmente pouco a ver com um nacionalismo para a região.
9
derrotado nas eleições anteriores. Apesar dos transtornos, seu mandato foi mantido por
todo o período regulamentar.
Em 1835, como resultado de uma nova distribuição de poder na Câmara de
Representantes, assumiu a presidência o também militar Manuel Oribe.
9
Para manter o
equilíbrio do poder, é criado especialmente para Rivera o cargo de Comandancia
General de la Campaña, o que é visto por muitos como uma divisão de poder entre
“dois presidentes”, o da cidade e o do campo. Todavia, Oribe extingue este posto em
19 de fevereiro de 1836, desencadeando uma revolta liderada por Rivera que terminará
com a renúncia do primeiro em 1838. É justamente nesta revolta desencadeada em
1836 que se dão nome aos partidos que estão presentes na política uruguaia até hoje.
A tradição conta que os nomes dos partidos têm origem nas cores das divisas
que utilizaram em batalha para diferenciar-se uns dos outros. Aqueles que pretendiam
manter a presidência e a ordem constitucional, os Defensores de las leyes, escolheram
a cor branca. Seus opositores inicialmente tomaram o celeste, e posteriormente
adotaram o vermelho, sendo conhecidos, a partir de então, como colorados.
A renúncia forçada do presidente blanco em 1838 não pôs fim ao conflito.
Oribe emigrou para Buenos Aires, onde lutou sob a bandeira federalista de Rosas
contra os unitários. Comandou os exércitos federais contra a Liga do Norte (união de
províncias do noroeste argentino), e igualmente venceu as tropas do General Lavalle
na região do Litoral
10
. Ainda em 1839, e desencadeando a ‘Guerra Grande’, Fructuoso
Rivera declarava-se hostil ao governador Juan Manuel de Rosas. Contudo, Oribe
obteve a importante vitória de Arroyo Grande em Entre Rios, desarticulando as forças
da aliança de correntinos e colorados. Com o apoio do governador da Província de
Buenos Aires, e momentaneamente pacificada a Confederação Argentina, Oribe
9
Para este indivíduo, existe uma interessante disputa de palavras entre os historiadores que ou o
consideram caudilho ou apenas o classificam de militar. Mais adiante, veremos a importância que esta
escolha tem para a interpretação histórica.
10
Para aquele contexto, incluem-se no ‘Litoral’ as províncias de Buenos Aires, Santa Fé, Entre Rios,
Corrientes.
10
retornou à Banda Oriental para retomar sua luta contra Rivera e os colorados. Em 16
de fevereiro de 1843, os habitantes de Montevidéu já podiam avistar a chegada dos
blancos ao Cerrito, dando início ao mais longo sítio que conheceu a cidade de
Montevidéu (nove anos).
A ‘Guerra Grande’ foi a expansão de um conflito inicialmente interno,
atraindo unitários e federais argentinos ao território do Uruguai. Não deixaram de
intervir também as potências européias – França e Inglaterra participaram ativamente.
Indo além da condição de mediadores, estes serão os responsáveis por um bloqueio aos
portos controlados por federais e blancos, e proporcionarão apoio naval na
movimentação de tropas coloradas pelo litoral.
11
Além disso, a formação das
chamadas Legiões Estrangeiras que contavam com uma importante população
imigrante de franceses, italianos e espanhóis, deu aos colorados um contingente extra
à organização da defesa da capital. O Império do Brasil entrará no conflito já nos
últimos anos desta guerra, aliando-se a uma força conjunta de colorados e unitários
liderada por Justo Urquiza que conduzia uma facção federal que já retirara seu apoio
ao governador de Buenos Aires, Juan Manuel de Rosas.
Dentre as histórias que podem ser escritas sobre a Bacia do Prata, seguramente
está entre as menos adequadas a mera adição de histórias nacionais ou regionais. Se ao
Brasil e à historiografia brasileira esta integração é na maioria das vezes apresentada
como um problema de política externa (com a exceção do que corresponde ao Rio
Grande do Sul), para a Banda Oriental colonial e da primeira metade do século XIX
não existe separação nítida entre assunto interno e externo sob múltiplos aspectos,
principalmente quando relacionados às outras partes do antigo vice-reinado. A própria
historiografia carrega em seus títulos uma união histórica para o Prata. “História do
cone sul” ou “As Repúblicas do Prata” são freqüentes exemplos desta interpretação.
Os acontecimentos econômicos, sociais e políticos são constantemente
sentidos em ambas margens deste estuário, mesmo que com desdobramentos
11
Solitariamente, a França realizaria um bloqueio anterior em 1838.
11
particulares. Tanto para Buenos Aires como para Montevidéu, existe uma constante
troca de posições e alianças que variam de acordo com a conjuntura. Especificamente
para a ‘Guerra Grande’, Oribe e os blancos receberão franco apoio rosista e federal,
deixando aos colorados a opção por uma aliança com os unitários, muitos já exilados
no Uruguai.
12
A ‘Guerra Grande’ não termina com um nítido vencedor, mas com um acordo
de paz. Ao longo de todo o conflito, os blancos não conseguiram tomar Montevidéu,
porém detinham o poder em praticamente todo o interior. Da mesma forma, aos
colorados faltavam recursos para derrotar seus adversários. A paz foi somente
conquistada em 1851, mas este foi um tratado bilateral entre os partidos uruguaios,
mantendo-se o conflito em relação a Rosas, que seria derrubado no ano seguinte.
As divisões partidárias serão apaziguadas durante a década de 1850 com a
‘Política da Fusão’. Ambicionando a dissolução dos partidos, essa foi uma primeira
tentativa de união entre as facções inimigas que se consolidaram em 1836. Porém, os
rancores renascem e são novamente alimentados por conflitos que somente
terminariam às vésperas da Guerra da Tríplice Aliança, contando, novamente, com a
intervenção externa vinda do Império do Brasil. A partir de então, o partido colorado
solidifica sua liderança, deixando aos blancos uma participação coadjuvante. Será
apenas em 1958, após 93 anos de “ostracismo”, que o cargo de presidente da república
encontrar-se-á mais uma vez ocupado por um membro do Partido Nacional (atual
nome do Partido Blanco).
Uma outra questão deve ser abordada. Não se deve esperar destes partidos
uma composição homogênea. Os indivíduos que neles se associavam também
construíram suas facções internas. No que diz respeito aos colorados durante a ‘Guerra
Grande’, seus próprios integrantes reconheciam a existência de três ou mais grupos
que disputavam internamente o poder do partido. O próprio texto de Manuel Herrera y
12
Alguns federais também foram exilados, os ‘lomos negros’ defendiam a existência de uma
Constituição para a Confederação, ao que se opunha a política de Rosas.
12
Obes, ao mesmo tempo em que se dedica a legitimar uma certa superioridade histórica
e intelectual colorada frente aos blancos, justifica a expulsão de um grupo colorado
rival, representado pela figura de Fructuoso Rivera. Por vezes, os defensores de
Montevidéu temeram mais uma sublevação interna do que a capacidade blanca de
triunfar sobre a Capital.
2 – Das independências à ‘Guerra Grande’
O que marca a produção intelectual “historiográfica” platina entre as décadas
de 1830 e 1850 é uma revisão profundamente politizada do processo de independência
local. Como veremos na disputa entre Manuel Herrera y Obes e Bernardo Prudencio
Berro, o caminho que se inicia com as lutas contra a metrópole espanhola é aquele que
culminaria com a formação de “partidos de princípios” (o blanco e o colorado).
Principalmente em Herrera y Obes, a independência é entendida como uma
Revolução, e esta Revolução não termina com a libertação das colônias, mas com uma
total reformulação social civilizadora que se caracteriza por um forte preconceito em
relação à herança ibérica.
Neste subtítulo, escreve-se “das independências”, no plural, pois a região do
atual Uruguai enfrentou três movimentos que se enquadram neste termo. O primeiro é
a independência da Argentina, cujo marco fundamental, a Revolução de 25 de Maio de
1810, não só foi comemorada por algum tempo no Uruguai, mas também foi
interpretada como precursora de um “princípio revolucionário civilizador” platino e
mesmo americano por Herrera y Obes. Na década seguinte, em 1822, a Província
Cisplatina viu sua jurisdição se transformar de colônia portuguesa para território
integrante do novo Império do Brasil. Três anos depois, a tradicionalmente chamada
Cruzada libertadora de los treinta y tres orientales”, que inicialmente nada mais era
do que uma tentativa de retorno da Banda Oriental à Argentina, acabou gerando mais
um Estado independente para a região.
13
Progressivamente, a historiografia uruguaia abandonará os movimentos
resultantes de maio de 1810 e sua influência para os “primeiros uruguaios”,
identificando-os como pertencentes apenas ao Estado vizinho. Isto ocorre
principalmente na medida em que se deposita em Artigas um certo nacionalismo
oriental. Atualmente, pesquisas como a da historiadora Ana Frega vêm aprofundando
o conhecimento acerca da personagem Artigas, entendendo sua atuação e seu
movimento como menos autonomista e mais interessado em manter os laços com as
províncias vizinhas, ressaltando, assim, a idéia de “patria grande”.
13
Para melhor entender estas questões, e para compreender com maior exatidão
as palavras de Herrera y Obes e Berro, torna-se necessário repassar rapidamente o
caminho entre as independências e a ‘Guerra Grande’. Como veremos ao longo do
segundo capítulo deste trabalho, a interpretação dada ao processo de independência e à
formação do Estado uruguaio foi transformada em argumento explicativo para as
causas da guerra civil que enfrentavam. Neste sentido, revestem seus partidos de um
sentido histórico e, para a versão de Herrera y Obes, herdeiros ou inimigos de uma
“Revolução Americana”.
Inicialmente aliada à França, a Espanha se posicionou contra os britânicos nas
guerras napoleônicas. Com sua superioridade naval, os ingleses pretendiam
comprometer as comunicações entre a América e as metrópoles inimigas, impedindo,
assim, a chegada de novos recursos à Europa em guerra. Mais do que isso, os ingleses
empreenderam duas invasões ao rio da Prata, ocupando Buenos Aires e Montevidéu
em 1806 e 1807. Em ambas ocasiões, o governo espanhol foi incapaz de organizar
uma força contra esta ocupação, cabendo aos próprios criollos
14
a tarefa de combater a
expedição inglesa. Neste esforço de reconquista, os hispano-americanos estavam pela
primeira vez compondo instituições de administração sem responder diretamente ao
trono espanhol. Com este acontecimento, reconhece-se um importante impulso
13
FREGA, A. e ISLAS, A. Nuevas miradas en torno al artguismo. Montevidéu : Universidad de la
República., 2001.
14
Criollos são os espanhóis já nascidos em território americano.
14
institucional que rendeu aos locais uma primeira experiência de auto-gestão, além da
possibilidade de comerciar diretamente com um Estado estrangeiro e não apenas com a
monopolista Espanha.
15
Com a intervenção de Napoleão no trono espanhol que culminou com a
coroação do seu irmão José Bonaparte, forçando a abdicação de Fernando VII em
1808, ocorreu uma disputa pela legitimidade do poder. Tanto na Espanha como nas
Américas, o novo rei francês foi considerado um usurpador. Os poderes locais
americanos se organizaram e muitas vezes se negaram a aceitar os novos vice-reis
enviados da Europa pelos representantes de Napoleão. Desta forma, inspirados em
movimentos análogos que já estavam se desdobrando na própria Espanha,
constituíram-se as juntas nas capitais coloniais, que inicialmente se declaravam de
administração provisória até o retorno do legítimo monarca ao trono. Estas juntas
pretendiam representar o poder de fato, pois o rei considerado legítimo fora deposto
pelo imperador francês. Ainda em 1808, formou-se em Montevidéu a primeira junta
autônoma na América espanhola, o que a conduziu a um rompimento com o vice-rei
de Buenos Aires. Em 1809, os portenhos tentaram o mesmo, mas ali o vice-rei
Santiago Liniers, de origem francesa, derrotou os revoltosos. Foi somente um ano
depois, a 25 de maio, que Buenos Aires conseguiu expulsar o vice-rei definitivamente.
Fernando VII recuperou o trono em 1814, e a nova constituição espanhola de
1812 já havia sido rejeitada na América por negar a autonomia até então adquirida
pelas juntas, pois objetivava retornar a região à antiga condição do vice-reinado. Em
tais circunstâncias, sob a hegemonia de Buenos Aires, reuniu-se um congresso que
declarava formalmente a independência em 1816, porém, sem representantes de Santa
Fé, Corrientes, Entre Ríos, Banda Oriental e Paraguai, todos rivalizando com o
15
HALPERÌN DONGUI, T. op. cit. Ao final do século XVIII, a Espanha já não conseguia
acompanhar as necessidades comerciais do Prata. Por este motivo, eram concedidas permissões
provisórias a navios de nações aliadas ou neutras para o transporte atlântico de mercadorias. Um
exemplo estaria na concessão cedida a portugueses para o comércio entre a África e o Brasil,
principalmente dedicado ao tráfico de escravos.
15
centralismo de Buenos Aires. Das idéias deste congresso, redigiu-se uma Constituição,
aprovada em 1819. Assim, compreendendo parcialmente a atual Argentina, as
Províncias Unidas do Rio da Prata se organizam com os poderes legislativo, judiciário
e executivo na pretensão de unir todo o antigo vice-reinado.
Com a exceção do Paraguai, as demais províncias platinas que faltaram ao
Congresso de Tucumán estavam unidas pela ‘Liga Federal’. Tendo como chefe
supremo o oriental José Artigas, esta união, que no seu auge chegou a contar ainda
com Córdoba, representava uma forte oposição às ambições da cidade de Buenos
Aires. Aproveitando-se da instabilidade regional, tropas portuguesas invadiram a
Banda Oriental em 1816, ocupando Montevidéu em 1817 (com certa simpatia de
Buenos Aires por derrotar as pretensões de Artigas, o que esfriava as aspirações das
demais províncias). Contrário ao centralismo, Artigas concorreu contra Buenos Aires
por apoiar uma maior autonomia para o interior. Seu apoio pôde ser sentido com maior
intensidade no ambiente rural da Banda Oriental e nas províncias do Nordeste
argentino. Artigas perdeu suas últimas batalhas em 1820, exilando-se no Paraguai,
onde viveu até a morte.
As lutas contra a presença portuguesa persistiram, mas algumas das
administrações regionais já a haviam reconhecido em condição de autonomia
administrativa nos moldes das negociações acordadas entre Lecor
16
e o cabildo de
Montevidéu. Solicitou-se a manutenção dos fueros, privilégios, leis, usos e costumes,
foi mantido o padrão de administração espanhola, os cabildos não tomaram a forma
municipal portuguesa, nem dos tribunais ou demais instituições foi exigido fato
semelhante. Entretanto, substituíram-se os ocupantes dos cargos por simpatizantes do
regime. Estes não foram poucos, mesmo que num primeiro momento, pois Lecor
contou com uma adesão significativa da oligarquia montevideana, contrariada pelos
levantes artiguistas vindos do interior.
16
Carlos Federico Lecor, nomeado Governador e Capitão Geral da província sob mando português.
16
O comércio foi severamente prejudicado pelos diversos conflitos envolvendo
Artigas, centralistas de Buenos Aires e portugueses que desconectaram Montevidéu do
interior. A extração dos artigos de couro e carne não ressurgiu significativamente até a
consolidação temporária que possibilitou a reabertura das casas de comércio e a
reorganização dos portos em 1818. Gradativamente, o apoio obtido por Lecor retraiu
pela dificuldade de se restaurar a situação econômica e política após os quase dez anos
de conflito (1810-1820). Some-se a isso o favorecimento aos portugueses e brasileiros
que provocou descontentamento aos que possuíam iguais favores anteriores a este
regime.
17
A independência do Brasil gerou mais uma divisão nas forças políticas. A
maioria das tropas, de origem brasileira, estava com Lecor, que se declarou favorável à
independência. Nesse momento, surgiu uma oportunidade de reatar os laços políticos
com Buenos Aires. Contudo, Lecor obteve confirmações públicas de juramentos ao
Brasil, como a de Rivera, enquanto que outros, a exemplo de Lavalleja, foram presos.
O cabildo eleito em 1823 declarou nula a união com Portugal e Brasil, alegando que a
única legítima seria com as Províncias Unidas. Esta decisão fracassou por falta total de
apoio. Lecor sitiou Montevidéu até que os últimos resistentes contrários à
incorporação ao Império do Brasil cederam. Esta nova entrada militar foi causa da
emigração de muitos orientais para Buenos Aires e para outras províncias do litoral
argentino.
Lecor passou a reorganizar suas influências, reconstruindo a ordem anterior
aos conflitos da independência brasileira e atendendo às novas normas institucionais
vindas do Império. A constituição brasileira previa um presidente para a província, um
conselho assessor de dez membros e câmaras municipais. Destes, somente o presidente
apareceu nomeado por D. Pedro I. Além disso, a Banda Oriental teve direito a um
senador e dois deputados no Rio de Janeiro.
17
CASTELLANOS, A. História uruguaya, la cisplatina, la independencia y la república
caudillesca – 1820-1838. Montevidéu : Banda Oriental, 1980.
17
Em 1825, vindos e financiados por Buenos Aires, penetraram no território da
então província Cisplatina os chamados Treinta y Tres Orientales
18
na tentativa
armada de recuperar a Banda Oriental. Um governo provisório foi instalado na cidade
de Florida por Lavalleja, e apoiado por Rivera, seus seguidores votaram pela
incorporação às Províncias Unidas em 25 de agosto do mesmo ano. Aceita esta
votação por Buenos Aires, desencadeou-se uma guerra destes contra o Brasil,
mantendo uma rivalidade que as metrópoles européias construíram sobre a região.
Uma reviravolta na idéia de unir-se novamente aos antigos colegas de vice-
reinado aconteceu quando foi eleito presidente dos argentinos Bernardino Rivadavia
19
,
conhecido como unitário e centralista, justamente o que os artiguistas e autonomistas
provinciais, representados pelos Treinta y Tres Orientales que agora governavam a
Banda Oriental, recusavam-se a aceitar. A isto se sucede a substituição da sala de
representantes de unitários por federais, assim como a posterior dissolução desta sala
por Lavalleja. Além disso, ocorre uma ampla troca de funcionários da administração
provincial. Já em 1827, os contrários ao centralismo portenho conseguiram ir ainda
mais além, uma vez que se abandonou a idéia de união às demais províncias, e, no ano
seguinte, um acordo entre os países beligerantes e a Inglaterra criou a República
Oriental do Uruguai.
O resultado da guerra contra o Brasil fora entendido em Buenos Aires como
um fracasso unitário. Somando-se a isto a resistência das elites às reformas
“modernizantes” promovidas por aquele governo, Rivadavia foi deposto em 1827. A
derrota unitária não cessou com esta destituição, já que o próprio cargo de presidente
fora suprimido, e todas as tentativas de aprovação de uma Constituição foram
fracassadas, sendo que outra somente seria aprovada em 1853. Entre essas datas,
18
Este título foi concedido na construção de heróis nacionais. Os Treinta y Tres Orientales
desembarcaram na Banda Oriental e, em peregrinação, foram progressivamente encontrando
seguidores até que conseguiram formar um exército para lutar contra o Império do Brasil.
19
Bernardino Rivadavia (1780-1845), unitário e primeiro presidente das Províncias Unidas do Rio da
Prata (1826-1827). Entre 1827 e 1853, não existirá o cargo de presidente da república. Durante este
período, um pacto inter-provincial manterá uma frágil união entre as províncias argentinas.
18
prevalecerá uma aliança entre as províncias, em geral sob a hegemonia da capital
portenha, mas a tentativa de erguer um Estado central para todo o território será
abandonada sob o ensejo de defesa das autonomias locais. Em boa parte deste período,
Juan Manuel de Rosas será seguidamente reeleito governador da Província de Buenos
Aires, apoiado nas “faculdades extraordinárias”, e atuando como representante da
Confederação Argentina para assuntos de política internacional. Rosas apenas se
afastará deste cargo por um breve intervalo, do qual retornará em 1835 até sua caída
em 1852. Uma das suas principais preocupações será a sempre inacabada guerra contra
os unitários, iniciada por estes pela deposição e fuzilamento do governador federal
Manuel Dorrego em 1829.
Com o enfraquecimento da causa unitária no Uruguai, os partidários dessa
política foram tomando parte dos grupos que se estabeleciam no Estado agora criado.
Apesar do prestígio de Rivera no interior, os Montevideanos que tanto temiam a
anarquia do campo passaram a preferencialmente apoiá-lo. Reunindo, assim, a adesão
de grupos da campanha e do meio urbano, Rivera se elege presidente da república pelo
voto de uma Sala de Representantes recém eleita.
Os primeiros anos de independência se caracterizam por uma frágil
configuração externa que sustentava a existência desse novo Estado. O rio Uruguai e
seu estuário são as fronteiras naturais com Buenos Aires e as demais províncias, suas
margens ao sul do entroncamento com o rio Negro estão povoadas e vinculadas à
capital. Por outro lado, os limites ao norte com o Brasil não foram demarcados, e a
própria volatilidade da fronteira no pampa dificulta um acerto definitivo. Com a difícil
fiscalização dos seus limites, o livre trânsito de pessoas e gado, mesmo que pouco
desejado aos olhos de Montevidéu, é repetidamente executado, escapando do regime
fiscal que poderia ser imposto pela alfândega portuária da capital. Além disso, o
tratado assinado para a criação da nova República deu pouca voz às elites da Banda
Oriental, e estava condicionado a uma nova reunião e ratificação brasileira e argentina.
19
A interferência destas duas partes não terminaria nesta confirmação, continuando ativa
e decisiva na política oriental.
Outro quadro que passa a se formar politicamente é o que corresponde aos
partidos uruguaios. Anteriormente, a ambição de Artigas não se restringia à Banda
Oriental, conseguindo apoio expressivo das províncias mais próximas, porém, agora
limitados ao território oriental, os Treinta y Tres Orientales resultaram em uma união
provisória de diferentes grupos de poder por um mesmo objetivo. Estes logo
romperam e externaram suas diferenças na disputa pelos recursos do Estado.
O primeiro mandato, que foi exercido por Rivera, terminou no prazo
determinado, o que não significa que não tenha conhecido uma oposição. Lavalleja
empreendeu uma série de levantes que pretendiam derrubar o governo. Posteriormente,
com a ascensão de Oribe como segundo presidente, são os colorados que levantam as
armas até a renúncia e exílio deste presidente em Buenos Aires a partir de 1838. Mas a
luta entre estes dois grupos não está ainda terminada, uma vez que a “Guerra Grande”
assola o Uruguai entre 1839 e 1852, precisamente um ano depois de findarem os
escritos de José Encarnación Zás, personagem que será estudado no terceiro capítulo.
20
1 DEBATES ARGENTINOS E URUGUAIOS ACERCA DO CAUDILHISMO
1.1 HISTORIOGRAFIA URUGUAIA EM SEUS ASPECTOS GERAIS
A historiografia uruguaia, ao contrário da porteña ou da brasileira, tem tido
grande dificuldade em colocar-se como “história nacional”. Enquanto a porteña
reclamou para si a escrita de uma “história da Argentina”, deixando para as províncias
um árduo e ainda incompleto caminho de reivindicação perante sua capital, alguns
historiadores uruguaios dirigiram seus esforços para uma tentativa de autonomizar sua
versão, cujo maior trabalho de construção da nacionalidade esteve permanentemente
ligado a um inacabado e pouco fundamentado empenho de distanciamento da história
vivida e escrita pela margem oeste do rio Uruguai. O próprio nome deste Estado,
República Oriental del Uruguay, aparenta manifestar o desejo de construção de uma
identidade diferenciada de uma imaginada “República Ocidental del Uruguay”, mais
conhecida por Argentina. Essencial será a “no segregación de la historia del naciente
Uruguay de la de sus vecinos, a un nivel tal, que de hecho se trata de una historia
común de la región platense”.
1
A respeito da construção de uma nova nação, ainda que a viabilidade deste
projeto tenha sido amplamente discutida (inclusive pelo próprio Presidente da
República Bernardo Prudencio Berro – 1860-1864), esta se converteu em meta para
boa parte dos políticos e intelectuais desde o acordo de paz entre o Império de Brasil e
as Províncias Unidas do Rio da Prata de 1828, momento em que a até então defendida
re-incorporação aos vizinhos ocidentais é descartada por um acordo que, intermediado
pela Inglaterra, defendeu os interesses geopolíticos brasileiros na região. A idéia de
nação que se queria construir deve ser matizada, pois esta própria palavra depende do
momento em que é enunciada. Como veremos mais adiante, mas já adiantando um
1
SALA DE TOURON, Lucia; ALONSO ELOY, Rosa. El Uruguay comercial, pastoril y
caudillesco. Tomo II: Sociedad, política e ideología. Montevidéu : Banda Oriental, 1991. p. 7.
21
pouco da contribuição de Chiaramonte a este respeito, a nação, na sua acepção atual
identificada com o nacionalismo e com o Estado-Nação somente será pensada a partir
da segunda metade do século XIX
2
. Até então, prevalecem dois sentidos: o primeiro,
que Chiaramonte denomina de “antigo”, seria uma forma de identificação étnica, mas
totalmente desvinculado da idéia de pacto social ou constituição de um corpo político
chamado Estado; a segunda, que predominou no pensamento político de então, refere-
se especificamente a um Estado formado pelo pacto social, constituído por indivíduos
que não necessariamente compartilham de uma vinculação étnica.
Nem toda a historiografia uruguaia esteve cega a estas questões, não aceitando
sem discussão a construção de uma nacionalidade. Por vezes, historiadores e demais
intelectuais consideraram esta construção mais como um dever necessário ao Estado
do que necessariamente algo baseado em árduos estudos de uma “realidade”. Este foi o
caso do pintor Zorrila de San Martín, que demonstrava consciência do papel que
Artigas e outros heróis tinham enquanto mitos, considerados mais importantes como
lendas do que como atores históricos.
3
Assim, ao fim do século XIX, lentamente se
cria a necessidade de legitimar uma nação. Constroem-se mitos fundacionais dos mais
variados tipos. Mitos nacionais como o dos Charruas, desenvolvido a partir da década
de 1880, que entende a nação como preexistente nesta etnia indígena;
4
o da Rivalidade
Portuária como origem para a divisão entre Montevidéu e Buenos Aires; e,
principalmente, o mito de Artigas como herói nacional, discutindo-se se ele seria um
fundador ou precursor da “Nação uruguaia”. Nestes mitos, o território do atual
Uruguai é visto por alguns como geograficamente predestinado desde a colônia a
formar um corpo político unificado e autônomo.
2
CHIARAMONTE, José Carlos. Nación y estado en iberoamérica: el lenguaje político en tiempos
de las independencias. Buenos Aires : Sudamericana, 2004.
3
TRIGO, A. Caudillo, Estado, Nación. Literatura, historia e ideología en el Uruguay.
Gaithersburg : Ediciones Hispanoamérica, 1990. pp. 31-71
4
RIBEIRO, A. Historia e historiadores nacionales (1940-1990), del ensayo sociológico a la
historia de las mentalidades. Montevidéu : de la Plaza, 1991. pp. 27-28. Ver também VIDART, D.
El Uruguay visto por los viajeros. v. 3. Montevidéu, Banda Oriental, 2000.
22
A nacionalidade, no entanto, como já exposto, não é aceita por todos.
Existiram também os chamados “unionistas”, aqueles que classificam como débil um
suposto desejo independentista para os eventos de 1811 (revolução artiguista) e 1825
(treinta y tres orientales). Acreditam que estes dois movimentos não pretendiam a
independência, mas mantinham a união com as demais províncias do antigo vice-
reinado
5
. Segundo esta corrente interpretativa, o que determinou a independência não
foram os movimentos internos por autonomia, mas a intervenção externa de luso-
brasileiros e a seguinte influência britânica nas negociações de paz entre as Províncias
Unidas e o Império do Brasil.
6
Se a História como disciplina é algo que se estabelece neste mesmo período de
afirmação de identidades nacionais, alguns temas que percorreram e ainda percorrem a
historiografia uruguaia têm sua origem em discussões mais antigas. Surgem, então, as
“Polêmicas fundadoras”, ou marcos de uma série de problemas teóricos que também
delimitaram campos e objetivos de investigação. A primeira, tema central do segundo
capítulo deste trabalho, seria aquela entre Manuel Herrera y Obes e Bernardo
Prudencio Berro: um enfrentamento político, mas também de interpretação social e
histórica.
7
Porém, esta controvérsia se insere num contexto de guerra e discussão mais
amplo, alcançando também a Argentina. Herrera y Obes constrói para o Uruguai uma
interpretação dedicada à Revolução de Maio (desencadeada por Buenos Aires, mas
contando com adesões decisivas na Banda Oriental) que mantém as linhas gerais já
escritas pela chamada Geração de ’37 (alguns destes exilados em Montevidéu ou em
Colônia do Sacramento) e por Faustino Sarmiento.
5
Ibid., p. 39.
6
Ibid., p. 40.
7
TORRES WILSON, J. de. Quiénes escribieron nuestra historia? (1940/1990). Montevidéu : de la
Planta, 1992. p. 11-13. Este autor coloca ainda duas outras polêmicas “fundadoras”. O segundo grande
enfrentamento constitutivo da história uruguaia é o encontrado em 1882 entre Carlos Maria Ramírez e
Francisco Antonio Berra a respeito da reivindicação da figura de Artigas. A terceira grande polêmica
corresponde à publicação de Pablo Blanco Acevedo, legislador colorado riverista, a respeito da
necessidade de datar o dia em que deveria ser celebrado o centenário da independência.
23
Principalmente na primeira metade do XIX, os orientais seguem o mesmo
padrão interpretativo dos vizinhos. Por toda sua recente história, os uruguaios estarão
integrados a discussões platinas. Mesmo mais adiante, na medida em que o
nacionalismo e a nação vão se afirmando, o campo intelectual e acadêmico em que se
pensa o caudilhismo, por exemplo, ultrapassa as fronteiras dos Estados. Enquanto que
para os argentinos o regime de Rosas é o que melhor se enquadraria em estudos de
caudilhismos, Artigas e blancos, estão entre os preferidos entre os uruguaios.
Fazendo uma breve retrospectiva da tradição uruguaia de escrever e interpretar
a história, é difícil encontrar um ponto em comum para iniciar sua trajetória. Letícia
Soler encontra a origem dos estudos de história apenas com Francisco Bauzá no fim do
século XIX.
8
Isto porque ela pretende estudar a história a partir do momento em que
esta começa a se instaurar em solo uruguaio como uma disciplina específica e
delimitada. Já Abril Trigo, que classifica o intervalo imediatamente anterior à sua
organização disciplinar como proto-história, resolve iniciar seu trabalho com um
período anterior, pois acertadamente percebe como muitos dos temas e categorias
usadas pelos historiadores dessa disciplina ainda dialogam com algumas abordagens
fundadas por homens da primeira metade do século XIX.
9
A história “tradicional” uruguaia, formulada a partir de 1880 e conhecida
como “vieja historia”, tem uma concepção nacionalista que costuma reduzir sua
cronologia ao período colonial e às lutas de independência. Em geral, seria uma
história
política, administrativa, constitucionalista y personalista, sin espacio para lo social, lo
económico y lo cultural en un nivel que fuese más profundo que en el de la mera crónica. Las
masas se excluyen como posibles protagonistas y solo hay lugar para los grandes personajes,
ya sean ‘próceres impecables’ o sus necesarios contendientes: ‘los antihéroes aborrecibles’.
10
8
SOLER, L. La historiografia uruguaya contemporánea, aproximación a su estudio. Montevidéu
: Banda Oriental, 1993. pp. 7-10.
9
TRIGO, op. cit., pp. 9-29.
10
RIBEIRO, op. cit., pp. 31-32.
24
Do ponto de vista disciplinar, Francisco Bauzá (1849-1899), forjador de um
“fatalismo de nuestra autonomía de raiz romântica”,
11
aparece como o ponto de
partida, pois Soler está convencida de que antes deste autor
no había historia uruguaya propiamente dicha, en el sentido que la producción existente no
reunía las condiciones de lo que hemos definido como Historia. Existían sí, intentos de valor
desigual que tienen por tema central el surgimiento de la vida independiente y en particular
de la gesta revolucionaria (...). En general es una producción literaria, a veces filosofante,
casi siempre erudita, pero poco rigurosa en sus enfoques que podríamos definir como una
‘protohistoriografía’. Su valor estriba fundamentalmente en la frecuentación de una temática,
el abordaje de ciertos tópicos e incluso de definición de una terminología de presencia
permanente en la historiografía posterior.
12
Bauzá seria o primeiro a combinar “investigação” a um “manejo de fontes”.
13
Em sua obra, surgem claramente as idéias de província-nação autônoma, de Artigas
caudilho, e de uma nacionalidade romântica “fatalista”, como se as principais
características da nação uruguaia se encontrassem predestinadas desde o período
colonial.
14
Seus escritos são considerados colorados e católicos, revestidos de
otimismo militante, pois contêm um projeto social explícito, entendendo a história
como instrumento de consolidação desta nacionalidade.
15
A historiografia que se extende desde Bauzá até meados do século XX seria
aquela que “desconoce lo precolombino, idealiza el período colonial, abona
sistemáticamente el mito del héroe de la provincia-nación, que confundiéndose con
ella misma va civilizando su imagen, va perdiendo facetas bárbaras, va incorporándose
a una institucionalidad constituyente”.
16
A interpretação histórica do XIX uruguaio se
alterna entre um gradual processo de civilização, no qual se inclui a lenta centralização
e organização estatal associada à “domesticação” de um povo gaúcho e bárbaro, para
uma idealização da ordem colonial e da herança ibérica (e católica), transformando os
11
Ibid., p. 32.
12
SOLER, op. cit., pp. 10-11.
13
Ibid, p. 11.
14
Id.
15
Ibid, p. 12.
16
Ibid, p. 19.
25
caudilhos em exemplos cívicos de heróis. Além disso, paralelamente ao que acontece
na Argentina na relação entre Buenos Aires e as demais províncias durante o século
XX, a história uruguaia vagarosamente se tornou mais “nacional” e menos
“montevideana”, incluindo cada vez mais a campaña em seus estudos.
17
Um dos momentos decisivos para a disciplina História está na fundação da
Facultad de Humanidades y Ciencias, na qual é criado o curso de Licenciatura em
História. Convidado para sua direção o historiador argentino Emilio Ravignani, este
evento foi responsável pelo fortalecimento da história no interior do meio acadêmico.
18
Mas o grande nome da historiografia moderna uruguaia seria o de Pivel
Devoto.
19
De família colorada, mas convertido ao Partido Nacional (blanco), teve
importante atuação também como político, tornando-se Ministro de Instrução
Pública.
20
Em 1942, assumiria a Direção do Museo Histórico Nacional.
21
Este autor
ainda se apoiava em conceitos interpretativos como os de “orientalismo, extranjerismo,
oposición campo-ciudad, caudillo-doctor” que já estavam presentes desde Bauzá, mas
também em Alberto Zum Felde e Luis Alberto de Herrera.
22
Enfatizando o político,
suas obras centrais são Raíces coloniales de la revolución artiguista e Historia de los
partidos políticos en el Uruguay.
23
Pivel Devoto também concebe a Banda Oriental como naturalmente autônoma,
vinculada
laxamente a Buenos Aires por apenas treita y dos años de virreinato; la experiência artiguista
de la federación nunca fue concretada y la Misión García es el ejemplo del deseo de Buenos
Aires de ‘amputar’ esa Banda Oriental – centro de oposición. Lavalleja al concretar la
independencia es un continuador del artiguismo en lo que éste tiene de intransigente cuando
defiende la autonomía de los derechos provinciales.
24
17
RIBEIRO, op. cit., p. 34.
18
Id.
19
SOLER, op. cit., p. 20.
20
TORRES WILSON, op. cit., p. 31.
21
Ibid., p. 35.
22
SOLER, op. cit., p. 20.
23
RIBEIRO, op. cit., p. 37.
24
Ibid., pp. 37-38.
26
Ao estudar o movimento artiguista, Pivel o considera uma “insurrección
campesina”, entendendo sua revolução como um esforço do “papel dirigente de los
caudillos en la conquista de la nacionalidad”.
25
De certa forma, no livro Raíces
económicas de la revolución oriental, Pivel Devoto “es un preocupado por el tema de
cómo la antigua Banda Oriental y, más tarde, en Provincia Cisplatina, logra culminar
su destino como Estado Oriental, convirtiéndose en un país independiente”.
26
Contrariando a idéia predominante do século XIX que culpa os caudilhos e as
disputas partidárias pelas mazelas do Uruguai, Pivel Devoto deposita-lhes a função de
construtores do Estado. Por um lado, o partido colorado é identificado com um
princípio revolucionário, enquanto que o blanco aparece no anseio de retorno à ordem
perdida. Estas duas facções, na medida em que iniciam suas guerras, de alguma forma
são portadoras destas duas essências uruguaias e, portanto, co-participantes na
construção do Estado, uma vez que a revolução cria as condições para a
independência, e o retorno à ordem estabelece os fundamentos para a um governo
estável.
Durante la segunda mitad del siglo XIX privó la idea de la ‘acción funesta’ de los partidos,
terminología aportada por Melián Lafinur. Eduardo Acevedo, luge Herrera, pero
fundamentalmente Pivel Devoto, va dando lugar a la aceptación de la idea de los partidos
como aquellos que forjaron la nación, puesto que ellos se identifican con todo el proceso
histórico del país desde su surgimiento mismo.
27
Um outro movimento historiográfico muito importante para a região platina é
o Revisionismo do século XX.
28
Sua versão argentina desenvolve uma reivindicação
da figura de Rosas, defendendo neste antigo governador de Buenos Aires um
25
Ibid., p. 38.
26
TORRES WILSON, op. cit., p. 39.
27
RIBEIRO, op. cit., p. 39.
28
Para o revisionismo argentino, ver também CHIARAMONTE, J. C. En torno a los orígenes del
revisionismo histórico argentino. In: FREGA, A.; ISLAS, A. (coords.) Nuevas miradas en torno al
artiguismo. Montevidéu : Universidad de la República, 2001.
27
nacionalismo de raiz hispânica, e propondo uma certa unidade latino-americana
católica e ibérica.
29
Mas, para o Uruguai, Soler opta por discorrer sobre revisionistas e
não sobre o Revisionismo, pois, ao contrário do que aconteceria com seus vizinhos,
este termo não seria totalmente aplicável ao caso oriental.
30
O primeiro problema seria
que Artigas, ao contrário de Rosas, ainda que caudilho, já há algum tempo gerava
unanimidades no Uruguai, não repercutindo um mesmo tipo de debate. E até mesmo
Oribe, “tan identificado con el ‘legalismo’, (...) tampoco dejaba ya mucho más espacio
para la polémica”.
31
Além disso, “elementos caudillescos y doctorales integraron por
igual los partidos tradicionales. Todo esto limaba las aristas más polémicas que
planteó el revisionismo argentino”.
32
Por outro lado, para Ana Ribeiro, o revisionismo em sua versão uruguaia é um
esfuerzo por reexaminar los temas abordados, lo que conlleva una tarea de desautorización y
crítica de las interpretaciones tradicionalmente aceptadas. Está muy ligada al nacionalismo
latinoamericano, que surge como respuesta a la crisis y que vivirán como ‘el único posible’,
tildando a lo contrario de ‘uruguayismo’.
O Revisionismo uruguaio seria fundamentalmente blanco e,
conseqüentemente, federal, uma vez que nasce ligado ao argentino, apresentando-se
como uma crítica à “história oficial colorada”.
33
Em geral, são obras ensaísticas
34
de
pouco apego metodológico.
35
Dedicam-se principalmente ao processo de
modernização e ao fenômeno caudilhista.
36
Dentre suas características, está a tentativa
de demonstrar uma superioridade do modelo colonial espanhol frente ao inglês ou
francês, uma forma de reabilitar a herança ibérica frente aos “civilizados” que
conferiam superioridade à civilização anglo-saxã. Os revisionistas classificavam de
29
RIBEIRO, op. cit., pp. 42/44.
30
SOLER, op. cit., p. 29.
31
Id.
32
Id.
33
RIBEIRO, op. cit., p. 41.
34
RIBEIRO, op. cit., p. 48.
35
SOLER, op. cit., p. 31.
36
RIBEIRO, op. cit., p. 48.
28
história “acadêmica”, ou “falsificada” aquela que elaborou a dicotomia “civilização e
barbárie”, cuja clivagem de cidade versus campaña, elaborando a figura negativa de
Artigas e Rosas, destacou os textos de Bartolomé Mitre, Sarmiento e Vicente Fidel
López. Outra das suas características é o mito gauchesco, que esta intimamente
relacionada à re-interpretação do caudilho. O gaúcho é um ser “metafísico” que
acompanha o caudilho, protagonista da luta da nação contra o imperialismo britânico e
fiel representante de uma identidade nacional atacada pelas potências estrangeiras.
Citando Carlos Rama, Ana Ribeiro afirma que
Mucho antes que los argentinos, estos autores [uruguaios] han defendido a Rosas y Oribe
como representantes del tradicionalismo, del autoctonismo, de los ‘valores morales’, del
catolicismo [lembrando que o Uruguai já havia passado pela forte laicização promovida pelo
colorado Batlle], de la campaña, del ‘orden y la familia’, del americanismo, de la propiedad
terrateniente, de las ‘viejas familias patricias’, expresiones de la definición ideológica de
derecha que representa históricamente el Partido Nacional o blanco en la vida política
uruguaya.
Estes enfrentam a história “progressista” do Partido Colorado e da burguesia
comercial e industrial de Montevidéu que o compõe ou apóia.
37
Desta forma, o
principal revisionista uruguaio aparece no nome do político blanco Luis Alberto de
Herrera, “mezcla de caudillo y doctor”,
38
autor de “Los orígenes de la Guerra
Grande”
39
e, de acordo com Soler, próximo ao Alberdi tardio.
40
Nos anos 60, o
movimento revisionista se direcionou um pouco rumo à esquerda em argumentos que
combatiam a “dominação externa”, o imperialismo das grandes potências. Em Vivian
Trias (1922-1980), o imperialismo britânico aparece como integrante da explicação do
surgimento do Uruguai, enquanto que seu equivalente norte-americano é empregado
para explicar seu presente. O federalismo artiguista, a “Pátria Grande” (Antigo Vice-
Reinado) e o fenômeno Rosas seriam uma resposta latino-americana ao imperialismo.
37
Ibid., p. 43.
38
TORRES WILSON, op. cit., p. 111.
39
HERRERA, L. A. Los orígenes de la guerra grande. 2 v. Montevidéu : Câmara de Representantes
da R.O.U., 1989.
40
SOLER, op. cit., p. 30.
29
Artigas, “como caudillo popular agrario será glorificado y estudiado por los sectores
de izquierda.”
41
Apesar de ser uma corrente que aparece na França nos anos 20, é a partir de 55
que, sob o nome de “Nova História”, a Escola dos Annales inicia seus trabalhos no Rio
da Prata. Mediada pelo historiador espanhol Jaime Vicens Vives, alcança os latino-
americanos, principalmente José Luis Romero e Túlio Halperín Donghi.
42
Seria uma
corrente essencialmente universitária, de uma preocupação mais econômica e social, e
com um tom monográfico. Admitindo também o provisório da verdade histórica,
supera o “urbano para ir a lo nacional (...) por contrabalancear el macrocefalismo
montevideano, que también aqueja a la historiografia”.
43
Segundo Soler, a corrente marxista no Uruguai tem certa aproximação com a
história colorada ou mitrista, pelo menos para obra de Francisco R. Pintos.
44
É um
marxismo que de início adota a seqüência feudalismo-burguesia-proletariado,
discorrendo a respeito de “rasgos feudales” ou “feudatarios”.
45
Na representativa
equipe de Lucía Sala de Touron, vinculada ao Partido Comunista, o latifúndio é
encarado como a origem de todos os males em um estudo do processo de formação
dos modos de produção.
46
Nestas obras marxistas de empreitada militante, a população
aparece menos maleável frente ao caudilho, e levanta a questão de até que ponto ela é
manipulada pelo caudilho ou este é manejado pelo povo.
47
Sala de Touron, escrevendo a duas mãos com Rosa Alonso Eloy, observa o
Uruguai “comercial, pastoril y caudillesco” como uma “formación social de
transición” em que “predominan relaciones sociales de producción precapitalistas”.
48
Suas referências teóricas a conduzem a comparar a revolução de independência local
41
RIBEIRO, op. cit., p. 49.
42
Id.
43
RIBEIRO, op. cit., pp. 50/52.
44
SOLER, op. cit., p. 39.
45
RIBEIRO, op. cit., p. 54.
46
SOLER, op. cit., p. 41.
47
Ibid., p. 46.
48
SALA DE TOURON, L.; ALONSO ELOY, R. op. cit., pp. 7/27/323.
30
às revoluções burguesas européias. Porém, se estas autoras não incorrem no erro de
simplesmente aplicar um modelo marxista ao contexto platino, uma vez que não
encontram no movimento de independência uma luta da burguesia contra o Antigo
Regime, mantêm uma concepção processual marxista, acreditando que a Banda
Oriental se encontraria em um estágio anterior se comparada à Europa “donde el
proceso histórico estaba en cierto modo más avanzado (...)”.
49
Neste caso, as
diferenças e a consciência de classe não estariam ainda completamente formadas, o
que não implica em uma sociedade sem hierarquias:
Conformó igualmente una estructura piramidal de ancha base y en cuya cúspide se encuentra
una oligarquía mercantil-agraria con sus categorías esenciales de “doctores” y “caudillos”,
estos últimos dueños del efectivo poder durante la etapa, (...). Más allá de contradicciones a
veces muy fuertes en su interior, no se enfrentó en el país la burguesía con los terratenientes
“feudales”, sino en facciones no demasiado diferentes, ni por su papel en la economía ni por
su concepción del mundo, pese a los elementos ideológicos distintos que esgrimirían las
divisas blancas y coloradas, em que se escindió la entera población del país.
50
Sua análise aponta para uma sociedade que carecia de classes dominantes
totalmente constituídas, incapazes, assim, de estabelecer um sistema estável de poder.
“Coexistían clases capitalistas y protocapitalistas”, e juntamente a “elementos
ideológicos modernos, provenientes del arsenal del liberalismo político (...) coexistían
relaciones de tipo paterno-clientelista, que eran la base de sustentación del caudillismo
predominante”. Esta inexistência de uma força hegemônica capaz de impor sua
vontade frente aos demais, produto de uma elite dividida, provocaria a instabilidade
das suas instituições, contrastando com a relativa estabilidade de Buenos Aires de
Rosas, representante de “clases dominantes mejor constituidas”, uma classe de grandes
proprietários rurais, da qual ele mesmo faria parte.
51
Ainda na década de 70, e apesar de todas as mudanças, o chamado “ciclo
artiguista” manterá sua posição de grande tema da historiografia uruguaia.
52
Em José
49
Ibid., p. 43.
50
Ibid., p. 28.
51
Ibid., pp. 112-113/310.
52
SOLER, op. cit., p. 28.
31
Pedro Barrán, tanto abordando Batlle como na recente “História de la Sensibilidad”,
existe um estudo de como a sociedade uruguaia, rural ou urbana, resiste aos avanços
modernizadores. As mudanças apareceriam com o objetivo de conservação de um
“establishment”, ou, em outras palavras, pretenderiam transformar a sociedade para
readequá-la às novas exigências e expectativas de uma elite dominante. Esta é a
interpretação dada para o levantamento de Aparício Saravia de 1904, uma última
resistência caudilha frente à modernização a que tanto aspiravam os colorados,
simbolizados aqui pelo batllismo.
53
Percebe-se, mais uma vez, que a dicotomia
civilização e barbárie, assim como “caudilhos e doctores”, é preservada como fonte
principal de explicação.
1.2 DUALISMOS: CAUDILHOS E DOCTORES; CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE.
CONSTRUÇÃO E USO PARA O CASO PLATINO.
Na tradição castelhana, a acepção da palavra ‘caudilho’ recebeu sentido
diverso do conceito consagrado pela Geração de ’37 e, posteriormente, propagado por
Sarmiento. Caudilho vem do latim capitellum, diminutivo de caput, cabeça.
54
O
caudilho era o líder de um movimento armado que, na península ibérica, estava
intimamente relacionado à reconquista e suas guerras contra os mouros ao sul. O
caudilho era o homem, de preferência fidalgo, que detinha o poder de reunir forças
para determinada empresa. Era capaz de reunir homens e, com um poder ao mesmo
tempo militar e carismático, liderava um grupo de pessoas para a guerra. Assim sendo,
o caudilho teria um valor positivo, capaz de unir indivíduos em prol de um objetivo
legitimado.
55
53
Ibid., p. 62.
54
TRIGO, op. cit., p. 15.
55
Ver também prefácio de Pivel Devoto em HERRERA Y OBES, M. e BERRO, B. P. El caudillismo
y la revolución americana. Montevidéu : Ministerio de Instrucción Pública y Previsión Social, 1966.
32
Contudo, o campo político das primeiras décadas do pós-independência
platino reposiciona esta categoria. Não por transformar seu significado, mas por
deslegitimar os objetivos que o impulsionavam. Este campo político, no qual se
destaca Sarmiento e a Geração de ’37, inicia uma temática fundadora. O caudilhismo
foi para o XIX o que foi o populismo para o XX, uma palavra que identifica uma
forma de organização e mobilização política.
56
No século XIX, o caudilho se torna um
tipo negativo, para alguns, típico da região platina, para outros, característico da
América ibero-americana. E perdendo sua especificidade castelhana, o caudilho se
torna um híbrido social, uma mescla de tradição ibérica e condicionamento geográfico
americano, ou ainda, um mestiço, índio e branco. A forma como a palavra será
empregada para descrever e explicar a sociedade, a população e a história platina terá
certa variação, mas a idéia de caudilho que se manterá como base a partir da qual se
desenvolve uma discussão será a fundada pela Geração de ’37.
Esta Geração de ’37 foi formada, basicamente, mas não exclusivamente, por
simpatizantes da causa unitária. Boa parte deles esteve exilada em Santiago ou em
Montevidéu. Fugindo da perseguição rosista e federal, e profundamente influenciados
pelo movimento romântico, desenvolvem, com pioneirismo, uma forma de entender e
explicar a sociedade em que vivem, sua história recente, da colônia, passando pela
independência até o Governo Rosas e as guerras civis partidárias. Ainda que formada
por indivíduos oriundos das províncias argentinas, suas teorias encontram ouvintes,
leitores e até mesmo continuadores nos territórios vizinhos. Para o caso uruguaio, certa
facção do Partido Colorado logo adotará a linguagem desta geração, adaptando este
discurso político e “sociológico” para a história daquela antiga província recém
emancipada.
Contudo, a grande obra que marca o sentido que se estava construindo para a
palavra “caudilho” é a escrita por Sarmiento: Facundo, ou civilização e barbárie. Parte
56
SVAMPA, M. La dialéctica entre lo nuevo y lo viejo: sobre los usos y nociones del caudillismo en
la Argentina durante el siglo XIX. In: GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. Caudillismos rioplatenses,
nuevas miradas a un Viejo problema. Buenos Aires : Universidad de Buenos Aires, 1998. p. 51.
33
biografia, parte história e ficção, publicada inicialmente como folhetim para um
periódico de Santiago, foi dividida em duas partes. Na primeira, descreve o meio
ambiente platino, ressaltando o pampa, um território de planícies desertas, longas
extensões planas e pouco povoadas. Esta característica impõe ao homem que ali vive
um condicionamento social e natural. O gaúcho, palavra intimamente relacionada ao
fenômeno do caudilhismo, seria fruto daquela “realidade” descrita. A partir disto,
surgem “tipos ideais” de habitantes: o gaucho malo, o rastreador, o baqueano e o
cantor. Tipos que, mesclados em diferentes proporções, poderiam ser encontrados no
homem platino; e em todos, ainda que escondidos sob o fraque da civilização. Um
terreno como o argentino proporcionaria a este gaúcho a oportunidade de sobreviver
com pouco trabalho, apenas explorando o gado solto para obtenção de carne e couro
para a venda. Soma-se a isto uma rarefeita população que resultaria em frouxos laços
sociais. Como conseqüência deste deserto, o gaúcho estaria condicionado a um estilo
de vida que, para Sarmiento, é definido como bárbaro. Inicia-se, então, a construção de
um dualismo maniqueísta. De um lado, a civilização, do outro, a barbárie. São dois
conceitos que se distribuem pelo território platino e, ainda que muitas vezes
encontrados em um mesmo indivíduo, constituiriam adversários implacáveis.
Na segunda parte do livro, encontra-se uma biografia de Facundo Quiroga,
caudilho de La Rioja. Sarmiento o aponta como um modelo de caudilho “ingênuo”,
oposto ao caudilho “inteligente” que estaria em Rosas. A descrição de Quiroga, sua
vida e sua pessoa, seriam exemplos de uma vida bárbara, não civilizada, uma vida de
crimes e violências, abusos de poder pessoal que constroem a imagem típica de um
caudilho, de um gaúcho líder de outros gaúchos. Para além disto, Sarmiento
desenvolve uma interpretação da história platina pós-independência. A Revolução de
Maio é revestida por um princípio civilizador. A Revolução teria duas fases. Na
primeira, Buenos Aires inicia sua luta contra os espanhóis, e progressivamente recebe
o apoio de outras cidades provinciais. Mas a segunda parte da Revolução se caracteriza
34
por uma luta interna das cidades contra o campo.
57
A princípio, as cidades se dedicam
a libertar politicamente o Vice-Reinado do Prata do domínio metropolitano espanhol,
mas apesar de concretizada a independência política, a Revolução ainda estaria
incompleta e, necessariamente liderada por uma elite urbana, deveria enfrentar o
núcleo de uma resistência cultural ibérica e bárbara localizado na campaña. O
princípio civilizador da revolução volta sua atenção para o interior, e é o início da luta
entre a cidade e o campo, respectivamente, civilização e barbárie. A natureza essencial
de maio de 1810 seria a de representar esta “dupla” revolução.
58
No Sarmiento de Facundo, o caudilhismo tem algo de excepcional por ser
tipicamente americano; é um vício constitutivo das circunstâncias históricas deste
continente.
59
Assim, Rosas é visto como o resultado do conflito dialético entre a
civilização e a barbárie.
60
Entretanto, ao invés da crueldade espontânea e instintiva de
Quiroga, Rosas institui a crueldade e o caudilhismo premeditado e sistematizado. Ao
final do seu texto, este autor elabora uma interpretação “caudilhocêntrica” da
história,
61
e acaba ajudando a erguer o caudilhismo ao centro das discussões políticas e
sociais da formação dos Estados platinos. O caudilhismo se torna, ao mesmo tempo,
um termo descritivo negativo e uma categoria de análise. Esta nova interpretação
recoloca o valor desta palavra, que do tradicional sentido de “líder” ou de “capitão”
passa a implicar em “governador personalista”, “autoritário” e imbuído pela força
bárbara da campaña, um inimigo da civilização.
62
A partir de Sarmiento e de sua tentativa de explicar os Estados e a sociedade
do Rio da Prata, inicia-se uma tradição que coloca o caudilhismo como um elemento
descritivo e explicativo. Contradizendo, denunciando, revisando, invertendo ou
57
BUCHBINDER, P. Caudillos y caudillismo: una perspectiva historiográfica. In: GOLDMAN, N.;
SALVATORE, R. op. cit., p. 33.
58
MYERS, J. Las formas complejas del poder. In: GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. op. cit., p. 84.
59
SVAMPA, op. cit., p. 53.
60
MYERS, op. cit., p. 89.
61
Id.
62
Ibid., pp. 83-84.
35
mantendo, as gerações seguintes continuarão estas discussões iniciadas na primeira
metade do século XIX acerca do caudilhismo. E, como regra, estarão, com raras
exceções, sempre dialogando com Sarmiento. E é o regime de Rosas que desempenhou
ao longo dos séculos XIX e XX, tanto no “imaginário” popular quanto no universo
acadêmico, o melhor exemplo de caudilhismo.
63
O caudilhismo se torna uma categoria. O chamado “caudilhismo clássico”
formulado pela Geração de ’37 estabelece algumas das suas características básicas,
como a ruralização do poder, o mito do vazio institucional que se estabelece após 1820
e que será ocupado pelo caudilhismo, e a violência como o modo de resolução de
conflitos e disputas políticas. Em Sarmiento, o caudilhismo aparece como uma
patologia social pós-revolucionária, resultado histórico “natural” da experiência
revolucionária.
64
Uma outra questão bastante abordada, que se justifica por se tratar de
obras de conteúdo político predominantemente unitário, é a construção de uma grande
vinculação entre caudilhismo e federalismo. A origens e o desenvolvimento do sistema
federal estariam interligados a este fenômeno social.
65
Tanto para Sarmiento como para Alberdi, a suposta anarquia de 1820 era vista
como uma queda a um estado de natureza.
66
Além da geografia determinista, o
caudilhismo emerge também de uma contingência de eventos históricos específicos
que ocorreram após a independência, destacando-se a “anarquia” da década de 1820.
67
Esta vem sendo questionada, uma vez que
a la caída del poder central en 1820, el ex Virreinato no se encontró ante un vacío
institucional. Lejos de ello, los años 1820 y 1830 asistieron a un proceso de construcción,
sobre la base de la ciudad-provincia – la única unidad político-social relevante en el período -
, de Estados autónomos como punto de partida para una organización político-institucional
del país. Las provincias fueron paulatinamente adoptando ciertas formas ‘republicanas
representativas’ fundadas, en su mayoría, en rudimentarios textos constitucionales. Los
63
Ibid., p. 83.
64
GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. Introducción. In: GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. op. cit.,
pp. 8-9.
65
BUCHBINDER, op. cit., p. 32.
66
GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. op. cit., p. 21.
67
SVAMPA, op. cit., p. 55.
36
regímenes de caudillo no escaparon a esta solución provisional para legitimar, en el marco
inestable de los pactos interprovinciales, los esfuerzos por lograr un nuevo orden social y
político y, también para resistir a las tendencias hegemónicas de Buenos Aires.
68
Contudo, ainda que esta anarquia possa ser matizada pelos historiadores mais
recentes, ela parecia suficientemente real para o século XIX, a ponto de justificar uma
série de atitudes políticas, inclusive as mais autoritárias. Mais do que isso, a crença de
que ela havia existido e que suas conseqüências - o caudilhismo - eram concretas,
mobilizou pensadores, mas também armas. Para Alberdi, o caudilhismo, fruto da
anarquia, seria um governo sem lei em um contexto de debilidade do Estado.
69
A
província de Buenos Aires estaria se apropriando dos recursos da aduana portuária,
enfraquecendo as demais províncias e a “nação” como um todo.
70
Esta apropriação
minaria o poder de organização institucional das províncias, o que fortaleceria e daria
espaço para manifestações caudilhescas. Além disso, criava uma rivalidade entre a
cidade de Buenos Aires e o interior, impossibilitando que um Estado central
aparecesse.
Alberdi e a Geração de 37 enfatizam o caráter americano do caudilhismo.
71
Como Sarmiento, Alberdi constrói um dualismo, mas apontando um país “real”: a
ditadura, o caudilhismo e o retrógrado legado espanhol e indígena versus o país
“legal”: um constitucionalismo “cego” associado a um formalismo e uma
artificialidade teórica fracassada (Sarmientiana). Apesar da força da elaboração teórica
de Sarmiento, Alberdi é um exemplo de como esta nunca chegou a ser uma
68
GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. op. cit., pp. 22-23.
69
A constituição era a lei que ele defendia para a Argentina. Seu livro Las Bases... era uma proposta
para a constituinte reunida em 1852. ALBERDI, J. B. Fundamentos da organização política da
Argentina. Campinas : Editora da UNICAMP, 1994. Na língua espanhola, recebeu o apelido de Las
Bases... por seu título original Bases y puntos de partida para la organización política de la República
Argentina.
70
GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. op. cit., p. 9.
71
SVAMPA, op. cit., p. 56.
37
unanimidade, coexistindo com diversas críticas à versão unitária de civilização e
barbárie.
72
Caudilhismo é um conceito “cambiante”, e já na segunda metade do século
XIX, “V. F. López y B. Mitre, considerados constructores de la historia nacional,
reconocen en la anarquía del año ’20 como el origen del fenómeno caudillista”.
73
Naquele momento, ocorreu uma “disolución del ejército regular - reemplazo por
fuerzas informales o milicias, colapso del poder central como precondición de la
emergencia del caudillismo”.
74
Mitre faz uma interpretação negativa do caudilho.
Interessado em construir uma nacionalidade para a Argentina, os caudilhos seriam os
inimigos da união nacional. Artigas é visto com o primeiro segregacionista, um dos
responsáveis pela perda de uma das províncias, a Banda Oriental: “El caudillo oriental
era el prototipo del líder segregacionista que había procurado a partir de su accionar
conformar un estado independiente y al margen del que configuraban las llamadas
Provincias Unidas.”
75
Em Mitre, “mientras los héroes de la revolución estaban
asociados a la defensa de la nación en su conjunto, los caudillos estaban ligados a la
defensa de los intereses locales.”
76
A noção política de federação, como uma das que
animavam as massas populares, era entendida, por Mitre, como sinônimo de barbárie,
tirania, antinacionalismo e liga de caudilhos contra povos e governos. Por outro lado,
para López, os caudilhos são equiparados a delinqüentes, mantendo a imagem clássica
que os coloca como ladrões, vândalos, sem respeito às coisas “civilizadas”, como
propriedade privada, família, trabalho e instituições.
77
Outros pensadores reavaliaram a categoria caudilhismo ao longo do século
XIX e início do XX. Correntes de pensamento que chegaram a incluir nesta categoria
questões étnicas evolucionistas, em que enquadravam os gaúchos como miscigenados
72
Ibid., p. 58.
73
GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. op. cit., p. 18.
74
GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. op. cit., p. 9.
75
BUCHBINDER, op. cit., p. 35.
76
Ibid., p. 36.
77
Ibid., p. 37.
38
– uma raça degenerada – de onde, fatalmente, sairia o caudilho. No final do século
XIX, para os chamados positivistas, caudilhismo representaria o atraso. E, em alguns
casos, o atraso seria equivalente a inferioridade étnica.
78
Ou ainda, como já havia
iniciado López, os caudilhos provinciais passaram a ser considerados agentes que
contribuíram na construção do Estado. Principalmente historiadores provinciais
reivindicaram para suas localidades um papel mais ativo na “formação da Argentina”,
retirando de Buenos Aires o privilégio de única província fundadora, como se esta
tivesse que “conquistar” ou “impor a paz e a ordem” ao interior com seu próprio e
único esforço. A partir do início século XX, estas províncias até então tidas como
coadjuvantes passam a ter seu papel revalorizado como também colaboradoras da
formação do Estado e da nação. O papel das províncias é revisto, removendo o
protagonismo exclusivo de Buenos Aires. Contudo, até então, construía-se um íntimo
relacionamento entre o caudilhismo e as províncias.
79
Nas primeiras décadas do século XX, a história se estabeleceu como uma
“ciência”, com método de pesquisa. A personalidade mais lembrada para este
movimento é a de Emilio Ravignani, mas estão também Luis V. Varela e Juan A.
González Calderón. Ravignani viu em Artigas o papel de “fundador del federalismo
republicano en la Argentina destacando además su patriotismo, valentía y su
contribución a la lucha por la independencia.”
80
Em 1947, Ravignani é convidado para
dirigir a recém fundada Facultad de Humanidades y Ciencias da Universidad de la
República em Montevidéu (na qual logo se encontrariam o curso de Licenciatura em
História e o Instituto de Investigaciones Históricas), trazendo consigo a “racionalidade
desta nova ciência”.
Também na primeira metade do XX, aparece o Revisionismo, reclamando aos
caudilhos o papel de construtores do Estado e defensores da nação. Neste momento,
existe uma reivindicação da herança hispânica e da figura “demonizada” de Juan
78
Ibid., p. 41.
79
Ibid., p. 44.
80
Ibid., p. 48.
39
Manuel de Rosas. Caracterizado por interpretação conservadora, este caudilhismo é
visto como uma salvação para uma nacionalidade sempre ameaçada.
81
1.3 ESTADO, CIVILIZAÇÃO E CAUDILHISMO EM ALGUNS AUTORES
URUGUAIOS.
O objetivo aqui é discutir algumas interpretações que inter-relacionam os
temas da construção e papel do Estado uruguaio com o caudilhismo e com os
conceitos de civilização utilizados pelo século XIX para legitimar e explicar suas
“realidades”. Para isto, o foco estará em dois autores e algumas das suas obras mais
representativas no que se refere ao tema aqui tratado. Primeiramente está Juan E. Pivel
Devoto, com seus livros da década de 1950 Raíces coloniales de la revolución
artiguista e Historia de los partidos políticos en el Uruguay – Tomo II: la definición
de los bandos (1829-1838),
82
este um segundo volume de uma coleção não
inteiramente publicada. Na seqüência, encontramos o professor de Literatura e Cultura
latinoamericana Abril Trigo com Caudillo, Estado, Nación. Literatura, historia e
ideologia en el Uruguay de 1990.
83
Como terceiro autor, esta dissertação contará com
a ajuda de José Pedro Barrán, professor de história na Universidad de la República
Montevidéu, em duas de suas obras de conteúdos e datas de publicação diversas. As
Bases económicas de la revolución artiguista escrita juntamente a Benjamin Nahum,
cuja primeira edição data de 1964, e Historia de la Sensibilidad, em dois volumes,
publicada na década de 1990, estarão dialogando com Herrera y Obes, Berro, Zás e
Antuña nos dois próximos capítulos. Estes autores ocupam posições diversas no
interior do campo acadêmico, o que nos ajudará em uma sempre limitada construção
de um ambiente diversificado de estudo da história.
81
SVAMPA, op. cit., p. 81.
82
PIVEL DEVOTO, J. E. Raíces coloniales de la revolución oriental de 1811. Montevidéu :
Editorial Medina, 1957.
83
No momento da publicação do seu livro, lecionava na Ohio State University.
40
1.3.1 – Pivel Devoto
Pivel Devoto, apesar de membro do Partido Nacional (blanco), mantém boa
parte das discussões e oposições “fundadoras” tão caracterizadas como coloradas,
todavia, matizando a barbárie caudilhesca, não a entende como necessariamente
blanca e ausente do partido oposto, observando que em ambos os partidos circulam
indivíduos doctores e caudilhos, vindos da cidade ou da campaña.
Na primeira de suas obras a serem analisadas, Raíces coloniales de la
revolución artiguista, o objetivo do autor está em encontrar no período colonial,
principalmente em suas últimas décadas, elementos que ao mesmo tempo estiveram
presentes, sejam como reivindicações ou “causas” da revolução ou até mesmo de
resistência a esta. Também é possível observar o interesse deste autor, ao separar a
revolução artiguista da contemporânea porteña Revolução de Maio. Percebe-se, ao
longo do livro, a intenção de demonstrar como, durante o período colonial, mas
também ao longo do próprio processo revolucionário, a rivalidade e a competição
entre as cidades de Buenos Aires e Montevidéu resultaram, ou melhor, criaram
condições ou motivos para que a segunda se tornasse, algumas décadas depois,
independente. Esta afirmação se baseia nos seguintes pressupostos: na concorrência
por privilégios portuários;
84
na competição pelo território de jurisdição de cada cidade,
em que Montevidéu gradualmente tenta conquistar uma parcela da Banda Oriental
ainda dependente da capital porteña; e, finalmente, na rivalidade de Artigas, tido como
representante e defensor da “vontade da província oriental”, e em seu derrotado
projeto de Confederação que aspirava a formulação de uma aliança entre as províncias
84
Pivel Devoto sublinha as disputas comerciais entre os portos de Montevidéu e Buenos Aires como
raiz de uma “tendencia autonomista de Montevideo”, destacando uma “clara vocación autonómica del
puerto”. PIVEL DEVOTO, op. cit., p. 96/124/193.
41
do antigo vice-reinado como uma defesa contra o poder centralizador de Buenos
Aires.
85
Ao observar o relacionamento entre Montevidéu e Buenos Aires, é possível
dizer que essa rivalidade realmente existiu. Por outro lado, Pivel Devoto segue a
tendência, bastante comum em sua época, de colocá-la como uma afirmação de uma
nacionalidade uruguaia já assentada, ou que estaria já em formação desde o fim do
período colonial. A Banda Oriental teria uma nacionalidade natural: “Allí donde la
geografía se caracterizaba por una conjunción armoniosa de los accidentes naturales,
donde la ganadería imponía una misma actividad industrial y una uniformidad de
costumbres, las subdivisiones políticas obstaban para que se alcanzara la unidad
determinada por factores más poderosos que las delimitaciones artificiales”.
86
Nesta
última citação, o autor comenta a inadequação da jurisdição porteña, cobrindo boa
parte do território oeste da Banda Oriental.
Contudo, melhor seria posicionar esta rivalidade na interpretação dada por
Chiaramonte em que, assim como ocorreu em várias outras províncias argentinas, a
legitimação de Buenos Aires para comandar a Revolução e uma nova organização
estatal não estava suficientemente assentada. Todo o processo de independência, e
mesmo boa parte do século XIX, foi um período de costura de alianças entre “cidades-
estado” e suas áreas de influência direta, as províncias. Não apenas as elites
provinciais demonstravam cautela em abrir mão de um poder em prol de Buenos
Aires, mas também não existia um consenso acerca da organização de um Estado.
Inclusive, a princípio, cada província, ou cada “pueblo”, como se costumava dizer,
seria livre e soberano. Através de preceitos do jusnaturalismo e do pacto social, cada
um desses “pueblos” soberanos, por menor que fosse, somente entraria em uma
Confederação ou Federação por livre vontade. Como vemos, mesmo nas demais
85
Era uma “tendência localista” dos cabildos, em especial a de Montevidéu. Isto contrariando a
influência em favor da unidade que poderia ter exercido o vice-reinado e a Real Audiência. Ibid., p.
193.
86
Ibid., p. 133.
42
províncias, a união de todo o vice-reinado em um único novo Estado não era tida como
algo óbvio ou necessariamente indispensável. Desta forma, a rivalidade entre
Montevidéu e Buenos Aires tende a seguir o mesmo padrão da de Buenos Aires com
suas demais províncias, e pouco tem a ver com um proto-nacionalismo, mas sim com
as noções contratualistas de organização de corpos políticos que circulavam naquela
época.
Mas, além destes objetivos gerais do livro, Pivel Devoto nos traz descrições
econômicas, geográficas e sociais da Banda Oriental. As estâncias e as “vaquerias”
“constituyeron la fuente única de nuestra riqueza colonial, e imprimieron un sello
propio a la vida que se desarrolló en ese escenario, a los hábitos y costumbres de sus
pobladores”.
87
Nesta única citação, existe uma forte identificação entre o gaúcho, seus
hábitos e costumes com o cenário econômico da caça ao gado solto. Além disso, a
estância é classificada de latifúndio,
88
uma grande extensão de terra, parcamente
utilizada, onde se caça gado para venda de couro e outros frutos destes animais. “Con
frecuencia se daba el caso de que el denunciante, beneficiado luego con la adquisición
de dilatadas extensiones de tierras [...], permanecía radicado en la ciudad, no realizaba
obra alguna en el campo, no lo poblaba con rodeos ni levantaba un rancho”.
89
Seguindo a esteira sarmientiana, este é o tipo de lugar que fomentaria a barbárie.
Mas, como bem caracteriza a historiografia uruguaia o professor Jorge
Gelman,
90
ao contrário da argentina, os historiadores uruguaios, ainda que mantendo a
supremacia e a representatividade do latifúndio e da caça ao gado, não desconhecem a
existência de outras formas de exploração. Assim sendo, “el hacendado civilizador del
medio rural se afinco en él con su familia, levantó su vivienda [...], pobló la estancia
87
Ibid., p. 10.
88
E chega a comparar a estância platina com um feudo medieval. Ibid., p. 17.
89
Ibid., p. 11.
90
GELMAN, Jorge. Campesinos y estancieros: una region del rio de la plata a fines de la epoca
colonial. Buenos Aires : Editorial Los Libros del Riel, s/d.
43
con rodeo de ganado manso [...].
91
A este tipo de empreendimento ele chama de
“racional”.
92
Esta seria a “Explotación civilizadora”, a exploração racional do campo.
93
Retornando ao gaúcho, “la empresa en la que se perseguía un fin de lucro,
lindaba por sus riesgos con la aventura y, por la aptitud para dominar las fuerzas
salvajes que revelaban quienes la acometían, denunciaba la existencia de un tipo
humano realmente singular [o gaúcho].”
94
Esta economia também se converteu em um
“medio de vida de una clase social formada por el changador gaucho que en esa
actividad desarrolló sus instintos semisalvajes y modeló sus costumbres”.
95
Mais uma vez, este ser bárbaro surge sem vontade ou sem intenção maior do
que a de satisfazer seus instintos básicos de sobrevivência ou suas ambições
“inferiores”. É com o caudilho que o gaúcho é conduzido, ainda que aparentemente
“sem saber por que”, rumo a uma participação política “indireta”. Visto como um
integrante de uma força de manobra, a historiografia costumava encontrá-lo “durante
las guerras civiles del siglo XIX, (...) [no] espectáculo de la peonada con el patrón al
frente, alistada en las filas de la revolución o en las del gobierno, sin más lema que el
del dueño, sin más odio que el del estanciero, amo y protector a la vez.”
96
Herói nacional, Artigas também é um caudilho, mas está comparado a “El
Cid”: “Como un Cid, al frente de la mesnada propia, reconquistador de tierras,
defensor de derechos ultrajados, amparo de débiles.”
97
Pivel Devoto reaproxima
Artigas do caudilho da reconquista, resgatando nele a virtude da liderança carismática.
Mas não apenas caudilho, ele próprio um gaúcho “persiguiendo ganado alzado para
hacer tropas, parando rodeo en las estancias o haciendo corambres en compañía de
hombres de rudo aspecto y alma simple, había penetrado en los secretos del gaucho,
91
PIVEL DEVOTO, op. cit., p. 14.
92
Ibid., p. 15.
93
Ibid., p. 17.
94
Ibid., p. 15.
95
Ibid., p. 17.
96
Id.
97
Ibid., p. 58.
44
del changador y del indio, en la solidaridad que crea el peligro y las fatigas, en las
charlas y confidencias del fogón.”
98
Artigas não apenas esta à frente da população do
campo, mas, de alguma forma, faz parte dela. Por dominar tanto sua linguagem como
seus costumes, é tido como um gaúcho “superior” entre os seus “iguais”, de quem o
respeito é conquistado segundo seus próprios valores. Artigas seria o grande
conhecedor da campaña em toda sua hierarquia e diversidade, vivendo “de manera tan
intensa en el medio rural, Artigas había adquirido un dominio del escenario geográfico
y un conocimiento de sus moradores: el rico propietario, el estanciero, el peón, el
gaucho y el indio, que lo convertían en la fuerza catalizadora de la conciencia
nacional”.
99
Ele reúne em si vários elementos que, em seu conjunto, comporiam uma
nacionalidade uruguaia, incluindo habitantes do campo e da cidade.
A civilização da campaña, onde viveria a grande maioria da população
oriental, estaria intimamente ligada à reforma do sistema de propriedades. Desta
forma, Pivel Devoto faz uma relação direta entre Revolução artiguista e o chamado
arreglo de los campos,
100
um conjunto de medidas que já se acreditavam necessárias
durante o regime colonial, mas que Artigas procurava impulsionar com seu reglamento
de 1815. Por outro lado, Barrán, mais densamente abordado no capítulo seguinte, ao
invés de considerá-la uma “raiz”, como consta no título de Pivel, a coloca como uma
“Base económica”. É menos uma “causa” e mais uma “característica”. No enfoque, os
dois livros se aproximam, mas diferem na interpretação entre causa e efeito.
O arreglo de los campos, ao reorganizar a campaña, pretendia a
“transformación de las costumbres bárbaras del medio rural (...)”.
101
Em que consistia
este projeto? “Fundación de capillas (...), civilización de sus habitantes, organización
de las estancias, y adjudicación regular de las tierras para evitar que continuase la
98
Ibid., p. 42.
99
Mas é importante fazer uma ressalva, Pivel Devoto também utiliza a palavra caudilho no seu sentido
“antigo”. Como exemplo, seu uso para Elío, caudilho que “interpretaba la voluntad popular” em 1808.
Ibid., pp. 95/193/238.
100
Ibid., p. 59.
101
Ibid., p. 60.
45
posesión ilegal de las mismas.”
102
Além da “posesión ilegal”, poderíamos incluir
também a exploração ilegal, uma “tradição” contrabandista cuja prática remonta à
fundação da Colônia do Sacramento pelos portugueses no século XVII.
Felix Azara, que no período colonial elaborara um destes primeiros projetos
reformistas, afirmava que, com o arreglo de los campos, a população da Banda
Oriental passaria a ser composta de “civiles y cristianos”.
103
Como podemos observar,
mesmo no fim do período colonial, suas autoridades já consideravam a campaña como
um lugar não civilizado. Este tipo de avaliação aparece em relatos e análises de
contemporâneos: “La campaña se halla en el mismo estado que los países salvajes en
que solo mandan la fuerza y las pasiones”.
104
É interessante ressaltar como as
“pasiones” são vistas como anti-civilizadas, aproximando-se do sentido de processo
civilizador desenvolvido por Norbert Elias.
105
A idéia de indivíduo civilizado de Azara
encontra seu significado em um uso de antigo-regime, porém, em transição. Estaria
ainda identificado à noção de educação e polidez, aos modos e costumes no
relacionamento com os demais indivíduos – uma questão de etiqueta. Todavia, o
simples fato de Azara pretender civilizar uma população subalterna contrasta com a
exclusividade aristocrática articulada pela nobreza como forma de legitimar sua
posição no interior de uma hierarquia social. Azara já contém alguns indícios do que
viria a representar o ideal de civilização burguês, algo contraditório por não abandonar
totalmente sua função de diferenciação social, alternando a necessidade de
manutenção hierárquica com um projeto de transformação social, uma intenção já
102
Id.
103
Civiles é uma palavra cujo sentido é típico de antigo regime, mas já se encontra em uso diferente
daquele estabelecido por Elias que se aproxima da noção de educação e polidez dos costumes. Existe
uma passagem do sentido civilizado aristocrático para o burguês, este mais relacionado a ideais de
progresso e uma educação adequada a este fim. Durante os séculos XVII e XVIII, a burguesia tenta
copiar os hábitos civis dos aristocratas; ao longo do XIX, tomam o conceito e o transformam,
adaptando-o a uma visão particular. Isto será tratado adiante durante os capítulos 2 e 3. ELIAS, N. O
processo civilizador. 2 v. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 1994.
104
Exposição ao Cabildo de Montevidéu em 23/08/1803 citada por PIVEL DEVOTO, op. cit., 76.
105
ELIAS, op. cit.
46
presente no particular reformismo dos Bourbons hispânicos do século XVIII.
106
Mesmo anteriormente à ascensão burguesa do século XIX, esta camada social já havia
absorvido o ideal civilizador aristocrático, entrando em um jogo cujas regras sempre a
obrigavam a perder. Entretanto, a burguesia passaria a adaptar seu significado, e,
contando com futuras teorias de progresso e transformação social, iria direcionar seus
esforços a uma adequação da sociedade aos seus valores de civilização.
Uma característica importante que se atribuía à campaña corresponde à sua
imagem de permanente violência. O que pode ser observado em Sarmiento, mas
também nas versões federais, e mesmo em Rosas,
107
é o entendimento de que o campo
se encontrava próximo ao estado de natureza de Hobbes. Neste sentido, a reforma
significa também “pacificar la campaña”, impor-lhe ordem.
108
Esta violência se
relaciona ao estilo de vida do gaúcho, “el tipo social más representativo del ambiente
en el que había modelado su fisonomía.”
109
O gaúcho é a “anarquía del medio
rural”.
110
Ao arreglo de os campos igualmente se incluía um empenho de “persecución
de los vagos”.
111
“Los [indios] minuanes y charrúas con el gaucho vagabundo,
representaban la parte anárquica y tumultuosa de la sociedad colonial, a la que no les
vinculó lazo alguno.”
112
Estes setores, indígenas e gaúchos, eram colocados à margem
da sociedade, como que não adequadamente integrados.
A má fama do gaúcho não fora totalmente elaborada pela Geração de ’37 e
seus continuadores, estando presente já no período colonial. Não foram os
“civilizados” pós Geração de ’37 os que inventaram o mito da barbárie gaúcha, uma
vez que apenas deram a esta uma outra conotação, politizando muito sua utilização e
106
RUIBAL, B. C. Cultura y política em uma sociedad de Antiguo Régimen. In: TANDER, E. (org.).
Nueva historia argentina: la sociedad colonial. Tomo II. Buenos Aires : Editorial Sudamericana,
2000.
107
LYNCH, J. Juan Manuel de Rosas. Buenos Aires : Emecé, 1984.
108
PIVEL DEVOTO, op. cit., p. 77.
109
Ibid., p. 95.
110
Ibid., p. 135.
111
Ibid., p. 188.
112
Ibid., p. 218.
47
criando soluções diferentes, como a imigração européia. Os “civilizados” pós Geração
de ’37 embasavam seus argumentos em um senso comum sobre o campo que já estava
sendo construído desde o período colonial. De certa forma, uma “herança ibérica”.
Mas é importante frisar que Pivel não concorda totalmente com essa má reputação do
homem do campo.
113
Não que o Antigo Regime esteja já pretendendo “civilizar” o
campo com um projeto igual ao posterior proposto por personagens como Sarmiento.
Mas, já no período colonial, nas reclamações ou petições de Montevidéu, fala-se muito
em “progresso” da cidade, e que fatores resultariam em promoção ou trava da
“prosperidade pública”.
114
Contudo, em relação à revolução artiguista, Pivel Devoto a
relaciona mais a uma continuação de uma tradição política ibérica e às reformas que
estavam acontecendo na Espanha desde a formação das Cortes de Cádiz do que a um
iluminismo francês. É a “ penetración de las nuevas ideas, entre las que incluimos las
provenientes del movimiento revolucionario peninsular”, dando maior destaque a este
“reformismo” ibérico.
115
Esta interpretação se aproxima um pouco do livro de
Halperín Donghi, publicado aproximadamente 10 anos depois, em que a Revolução de
Maio se coloca muito mais articulada à tradição política espanhola e à história da sua
monarquia, sua ascensão e queda, retirando-lhe a influência revolucionária francesa
que fora defendida pela Geração de ’37. Por outro lado, Pivel Devoto ressalta as
Cortes de Cádiz em seu conteúdo de novidade, como uma reação das “novas idéias” ao
antigo regime absolutista.
***
A Historia de los partidos políticos y de las ideas políticas en el Uruguay, la
definición de los bandos (1829-1838) é, provavelmente, a obra mais conhecida de Juan
Pivel Devoto. Esta seria parte de um projeto muito mais ambicioso, contendo dez
volumes, abrangendo a história das divisões políticas uruguaias desde 1810 até 1933.
Todavia, apenas o segundo volume foi publicado. Este segundo tomo de uma coleção
113
Ibid., p. 95.
114
Ibid., p. 169.
115
Ibid., p. 233.
48
incompleta é justamente aquele em que os partidos tradicionais, o blanco e o colorado,
tomam forma. O livro está divido em cinco capítulos. Ao longo dos três primeiros,
Devoto desenvolve a história das facções que dominaram o cenário político do
intervalo estudado; privilegiando as alianças, estratégias, vitórias e derrotas de cada
um. No quarto capítulo, analisa a aplicabilidade de alguns itens da Constituição de
1830, mas também destaca algumas controvérsias geradas por alguns dos seus artigos.
Questões como a da independência dos Poderes e a das Faculdades Extraordinárias do
Executivo (a serem utilizadas em momentos de extrema necessidade para o Uruguai,
mas temidas pelo exemplo argentino em que se tornaram praticamente permanentes
nas mãos de Rosas) criaram ocasiões para interessantes discursos e publicações que
pretendiam melhor entender e organizar as instituições daquele Estado recém
formado.
116
No último capítulo, intitulado Ideologia Social y Política, o autor aborda
alguns temas considerados importantes para e pelo período, principalmente no que diz
respeito ao entendimento que os indivíduos daquele momento formularam acerca do
caudilhismo.
Do ponto de vista formal, é difícil afirmar que existiam verdadeiros partidos
entre 1830 e 1838. As facções se diferenciavam simplesmente entre “oposição” e
“ministerial”.
117
Esta divisão não era considerada de todo negativa, pois era vista como
parte importante do sistema republicano.
118
Por volta de 1830, apesar de um periódico
local rogar aos orientais o abandono da sombra dos partidos argentinos, federal e
unitário,
119
chegou-se a acreditar que os partidos uruguaios seriam diferentes, pois não
contavam com divergências tão intensas de organização institucional, o que os livraria
de conflitos similares aos do Estado vizinho.
116
Ver também para esta questão SALA DE TOURON, L.; ALONSO ELOY, R. op. cit.
117
PIVEL DEVOTO, J. E. Historia de los partidos políticos, la formación de los bandos (1829-
1838). Montevidéu : Editorial Medina, 1956. p. 229.
118
Ibid., p. 230.
119
Ibid., p. 55.
49
A formação dos partidos de Pivel Devoto aparece relacionada à dinâmica
política e à disputa pelo poder entre os caudillos e suas facções. É uma luta que opõe
duas essências do pós-independência: a revolução e a restauração da ordem. Por um
lado, esta oposição está próxima do proposto por Herrera y Obes em 1847,
120
porém,
possui uma diferença fundamental: além de afastar a mancha da barbárie dos blancos,
relevando a ordem colonial perdida e a importância de figuras como a de Manuel
Oribe, valorizando neste o papel de administrador espanhol de antigo-regime, Pivel
Devoto não constrói esta oposição em termos de ideais teóricos, ainda que contidos em
princípios, mas como algo inerente à própria personalidade dos partidos. E uma vez
que a personalidade destes é escrita como profundamente ligada a dos seus líderes – o
partido à imagem do caudilho, a psicologia de Rivera e Oribe se transforma em via de
acesso para a compreensão do contexto de organização estatal uruguaio. Para Herrera
y Obes, os colorados representavam o impulso civilizador da revolução americana.
Este movimento não se encontraria na personalidade de Rivera, mas sim em um grupo
de indivíduos que, imbuídos de princípios universais, pretendiam conduzir o Uruguai a
uma cruzada contra o atraso bárbaro representado por Rosas e pelos blancos. Por outro
lado, a revolução entendida por Pivel Devoto contém o terrível risco da desordem.
Uma forte desestabilização da região também era temida no século XIX, e o risco da
“anarquia” era freqüentemente lançado como um alerta contra os “excessos
revolucionários”. Não é por acaso que Rosas, em Buenos Aires, recebia o título de
Restaurador de las Leyes’, enquanto que os blancos se auto-proclamavam os
‘Defensores de las Leyes’, como se seus inimigos, colorados e unitários, carregassem
consigo este germe da desordem.
A organização partidaria uruguaia é gerada pela própria dinâmica do conflito
entre estas duas essências do pós-independência: “una de ellas, imposición de la
realidad, reflejada en la existencia del caudillo y su sistema; la otra, trasunto de un
120
Uma de suas publicações ocupa posição central adiante no segundo capítulo, e contém diversos
elementos em comum com esta obra de Pivel Devoto.
50
anhelo de orden y disciplina en el gobierno (…)”.
121
Com isto, este autor se transforma
em uma espécie de herdeiro alberdista.
122
Mas se Alberdi se contrapunha às “utopias”
civilizadoras unitárias, impondo-lhes uma suposta “realidade” social argentina pouco
fecunda a tais aspirações, Pivel Devoto acredita que o “real” Uruguai, no que diz
respeito à sua composição social, era determinado pelo caudilhismo, e, portanto, pela
revolução. Assim sendo, e por estarem organizados em torno de Rivera, os colorados
são ao mesmo tempo um impulso ao caudilhismo e à revolução. Porém, é necessário
que se tomem algumas precauções para não classificar Pivel Devoto como um inimigo
desta revolução. Ainda que membro do partido blanco e crítico aos excessos
“jacobinistas”, pode-se perceber que este autor coloca ambos os partidos como
complementares à formação do Uruguai. Esta “definición de los bandos” está
intimamente ligada às personalidades de Rivera e Oribe, conectadas aos princípios de
liberdade e revolução, ordem e herança espanhola, respectivamente. É no conflito
entre estas duas essências que se formam os partidos uruguaios.
Blancos y Colorados sin llegar a constituir aún partidos orgánicos, definen
sus tendencias a raíz de la guerra civil de 1836, sustentando, unos el principio de la
autoridad identificado con la nación, y otros el de la revolución personificada en la
figura del caudillo”.
123
A revolução surge no próprio caudilho. Não foram os
intelectuais que dirigiram a independência. Ao contrário de Buenos Aires, a elite de
comerciantes de Montevidéu resistiu à Revolução de Maio. Por este motivo, foram
sitiados pelas forças do caudilho Artigas, símbolo da revolução oriental. Da mesma
forma, fora o caudilho Lavalleja o comandante da expedição que teria libertado a
Província Cisplatina do domínio imperial. Desta forma, a revolução está ligada à
psicologia do caudilho e dos seus seguidores. Seria um estilo de vida inquieto e
inerentemente revolucionário. Não seria uma revolução teoricamente fundamentada
121
PIVEL DEVOTO, Historia de los partidos..., p. 131.
122
ALBERDI, op. cit.
123
PIVEL DEVOTO, Historia de los partidos..., p. 154.
51
em livros e estudos, mas algo que poderia ser encontrado também na essência do
homem platino, principalmente naquele habituado à vida da campaña.
Rivera, “más caudillo que militar”,
124
comandava a campaña com recursos
políticos próprios, respaldado por um exército pessoal, feito à sua “imagen y
semejanza”.
125
Este tipo de liderança representava uma importante força para aquele
cenário político, impondo a um Estado ainda instável a necessidade de um permanente
pacto de co-participação.
126
Tipificando-os como líderes rurais, “cifraban todo su
poderío en el prestigio que les rodeaba en la campaña”; estrangeiros quando em
cidades, “a cuya psicología eran extraños (…)”.
127
Filho da revolução, Rivera seria “el primer baqueano del país”.
128
Carismático,
teria um “extraordinario don de simpatía y de atracción personal”.
129
Hábil na
“destreza en dominar el caballo”,
130
aproximar-se-ia dos seus subordinados gaúchos no
que se refere à perícia nos desafios da campaña. E vendo seus seguidores como “sus
hijos”,
131
alimentava a imagem do patriarcalismo ibero-americano.
132
Herrera y Obes
também tem em Rivera um exemplo de caudilho. E é justamente quando este é
expulso que os colorados podem vangloriar-se de aparecer na vanguarda da
civilização. Os objetivos de cada um são diversos, mas a descrição de Rivera
formulada por Pivel Devoto é muito semelhante àquela idealizada por Herrera y Obes
no século anterior. Dentre os diversos pontos de intersecção, encontram-se as forças
124
Ibid., p. 10.
125
Ibid., p. 9.
126
Ibid., p. 145. A oposição entre a “autoridad legal del gobierno y la autoridad real del caudillo”.
127
Ibid., p. 16.
128
Ibid., p. 76. Baqueano é o conhecedor dos caminhos da campaña. Uma espécie de topógrafo
gaúcho. Sarmiento o tipifica socialmente como um dos habitantes encontrados no pampa.
SARMIENTO, D. F. Facundo, civilización y barbarie. Buenos Aires : COLIHUE, 1990. p. 68-70.
129
Ibid., p. 77.
130
Id.
131
Ibid., p. 80.
132
Seguindo as considerações de Richard Morse em O Espelho de Próspero, creio ser mais adequado
o uso de “ibero” ao invés de “latino” pela especificidade ibérica em relação aos demais, deixando de
lado hipóteses centradas em mentalidades “católicas”, “sul-européias” ou latinas em vista das
diferenças históricas e sociais que os distanciam de italianos e franceses. MORSE, Richard. O espelho
de próspero: Cultura e idéias nas Américas. São Paulo : Schwarcz, 1995.
52
que cimentavam seu poder, “el paisano y su familia, los gauchos e indios sueltos”.
133
Rivera era o “elemento vivificador de las masas que le reconocían por caudillo”.
134
Excluídas do direito à cidadania pela constituição de 1830, com um sistema
representativo com o qual não podiam contar, as reivindicações destas “massas” são
levadas ao caudilho, em quem buscam “protección para su desamparo”:
135
Esas partidas numerosas de hombres sueltos y sin residencia fija, a quienes la autoridad
podía calificar de vagos, que constituían el sector más modesto de la población, y eran una
supervivencia del movimiento revolucionario y una expresión instintiva de la idea de libertad
que lo había inspirado, estaban llamadas a convertirse en factores decisivos para la acción
política de los caudillos.
136
O movimento de independência platino e as guerras que o sucederam, em
especial para o caso uruguaio, resultaram em um ambiente favorável à ascensão dos
caudilhos.
137
Em um contexto marcado pelo desejo de transformação, mas ainda
carregando consigo elementos coloniais, acreditava-se que a população subordinada ao
caudilho, acostumada à opressão ibérica, não estava preparada para a República, o que
legitimava a limitação da concessão da cidadania.
138
Existia um certo consenso a
respeito da grande distância entre o sistema implantado e os hábitos da população. E
esta era uma opinião que poderia ser encontrada também em Sarmiento ou em Alberdi.
É nesta distância entre um Uruguai “real” e um “desejado” que nasceria a guerra, uma
vez que “(…) la lucha armada estaba llamada a ser el corolario fatal, el único
conciliable, en un ambiente donde no existían otros hábitos que el de la violencia
como medio de hacer triunfar las ideas”.
139
Além dos gauchos sueltos, grupos
133
PIVEL DEVOTO, Historia de los partidos..., p. 80.
134
Ibid., p. 176.
135
Além disso, Pivel Devoto supõe que o caudilho poderia infundir nos seus subordinados algo como
um nacionalismo uruguaio: “Identificado con ellas, el caudillo supo infundirles la pasión de un
sentimiento colectivo, que se confundía con el de la nacionalidad.” PIVEL DEVOTO, Historia de los
partidos..., pp. 67/75.
136
Ibid., p. 72.
137
Ibid., p. 74. “La independencia del país consagro en los hechos el triunfo de los caudillos a cuyo
principal esfuerzo aquella era debida”.
138
Ibid., p. 232.
139
Ibid., pp. 90-91.
53
indígenas que se organizavam em torno ao caudilho eram também seguidamente
acusados de depredar a campaña,
los indios del Cuareim
140
resultaban auxiliares codiciados por los caudillos que programaban
empresas sobre Misiones y Corrientes ya fuera para alterar el orden, extraer ganados, o dar
rienda suelta a los planes quiméricos que en sus espíritus inquietos suscitaban aquellos
vastos desiertos sin límites definidos.
141
Toda esta violência creditada ao caudilhismo era vista como uma
“manifestación de nuestra realidad política y social, (...) [uma] influencia personal de
los caudillos alrededor de quienes se congregaban las masas populares que habían
hecho la revolución (…)”.
142
De modo geral, não apenas Pivel Devoto, mas também a
historiografia uruguaia confere às guerras civis o aparecimento de uma cultura de
violência e de retrocesso econômico, pois “veinte años de guerras habían cegado casi
las fuentes de riqueza del país, confundido los ganados, desmejorado los
establecimientos de campo, alterado la estructura social y económica del medio rural y
relajado los hábitos de trabajo de sus pobladores”.
143
Não obstante esta “ruralização do poder”, parte da elite de Montevidéu
permaneceu ativa, alguns formando blocos de oposição, outros aderindo aos caudilhos
e ocupando posições administrativas no interior dos partidos, do próprio Estado ou em
outras “burocracias caudilhescas”. A historiografia uruguaia os chama de ‘doctores’¸
indivíduos que se sentiam repelidos pelos caudilhos “por el antagonismo que
trasuntaban y por ser psicológicamente extraños”.
144
Realizando esta aproximação com
140
Rio Cuareim, ou Quaraí em português. É um dos rios que assinalam os limites entre Brasil e
Uruguai.
141
PIVEL DEVOTO, Historia de los partidos..., p. 12 A idéia de “vastos desertos” como
determinantes na formação social platina também está contida em Sarmiento e em outros
contemporâneos. SARMIENTO, op. cit., pp. 49-61.
142
Ibid., p. 67.
143
Ibid., p. 72.
144
Continuando, “Pero debía ser ésa una norma en nuestra historia política. Los ‘caudillos’
armonizando con los ‘doctores’, sin quererse unos y otros, como medio de mantener el equilibrio y la
paz; o distanciados radicalmente, y unidos los caudillos de uno y otro partido para combatir la
tendencia principista que agrupaba también a ciudadanos de bandos opuestos, pero ligados por ideas
comunes.” Ibid., p. 24.
54
vistas a uma maior participação política, este setor de intelectuais revestiria a
“intuição” caudilhesca “de formas cultas con la pluma de los doctores”.
145
Já a partir da constituinte que deu origem à carta magna de 1830, existiu uma
tendência a limitar o poder dos caudilhos, ou militares, no interior do Estado.
“Dominados por una indisimulada prevención contra el caudillismo”,
146
aquela
primeira Constituição pretendia restringir sua participação, chegando a proibir a
eleição de militares, mas também de empregados civis, para a Câmara de
Representantes.
147
Preocupados constantemente com dois extremos, a anarquia e o
absolutismo, pretendiam organizar um Estado capaz de manter a ordem, defendendo o
que acreditavam ser um sistema republicano.
148
Dentre outras prevenções, foi
determinada a proibição do porte de armas em seções eleitorais,
149
e estudou-se o
impedimento do sufrágio para os soldados de baixa graduação, pois eram considerados
demasiadamente influenciáveis por seus oficiais.
150
Comerciantes, advogados e
grandes proprietários, principalmente os sediados em Montevidéu, trataram de “tomar
o poder” através desta Assembléia Constituinte, porém tiveram pouco sucesso, e logo
foram obrigados a cooperar com Rivera, primeiro presidente eleito.
151
Na medida em que Pivel Devoto caracteriza esta divisão entre doctores e
caudillos, ele transcreve uma oposição consagrada do imaginário político do século
XIX. Este autor reforça determinados antagonismos: cidade contra a campaña; “clase
145
Ibid., p. 67.
146
Ibid., p. 39.
147
Ibid., p. 44. Esta prevenção em relação à influência das armas não era uma novidade. Com a Banda
Oriental tomada pelo artiguismo, o padre Perez Castellanos já reclamava da presença desconfortável
de militares em assembléias ou votações. PEREZ CASTELLANO, J. M. Selección de escritos:
crónicas históricas (1787-1814). Montevidéu : Ministério da Cultura, Biblioteca Artigas, 1968. pp.
149-181.
148
Ibid., p. 53.
149
Ibid., p. 58.
150
Ibid., pp. 68-69. A propósito, prática ainda adotada para o Brasil deste início de século XXI, onde
os recrutas do serviço militar têm seus títulos eleitorais confiscados pelas forças armadas, sendo
proibidos de votar.
151
Ibid., p. 75.
55
doctoral” versus caudilhos.
152
Herrera y Obes, em 1847, sustentava sua argumentação
justamente nestas oposições. Estando os doctores e a cidade supostamente ao seu lado,
estes representariam a intectualidade e a civilização num embate histórico contra a
barbárie caudilhesca, esta apoiada pelo ambiente rural. Pivel Devoto não utiliza estes
termos sarmientianos para hierarquizar estes extremos sociais, mas mantém a
construção destas categorias rivais como geradoras de duas essências constituintes da
sociedade uruguaia. Enquanto a maioria dos “doctores y ilustrados” ou apoiaram a
presença do Império do Brasil, ou simplesmente não adotaram uma posição
definida,
153
a parcela da população responsável pela independência então dependeria
da presença dos caudilhos para ter alguma participação política, mesmo que
gritantemente subalterna. Subsistiriam, então, dois governos: “el de la campaña
ejercido por el caudillo y el de la ciudad a cargo de los doctores”.
154
A dualidade do
poder uruguaio seria ainda reforçada pela criação do cargo de Comandancia General
de la Campaña, especialmente criado para Rivera no início da presidência de Manuel
Oribe.
Como argumento para explicar o surgimento dos partidos blanco e colorado, é
nesta dualidade entre a campaña e a cidade, entre o caudilho e o cargo institucional da
presidência da república, entre a revolução e o desejo pelo retorno da ordem, entre
Rivera e Oribe, que Pivel Devoto pretende amparar seu livro. “Señalar el año 1830
como término concreto de período revolucionario, es hacer esa clausura artificiosa y
estéril que cierra el camino de lo real en el estudio de los procesos históricos”.
155
Fructuoso Rivera representaria uma teimosa revolução; Manuel Oribe apareceria no
anseio de volta à ordem e à paz. Esta restauração de uma ordem colonial tradicional
espanhola entraria em choque com estes homens “filhos da revolução”. Os anos de
guerra que transcorreram entre a primeira invasão inglesa de 1806 e o acordo de paz
152
Id.
153
Ibid., p. 74.
154
Ibid., p. 80.
155
Ibid., p. 154.
56
de 1828 transformaram a sociedade platina, conduzindo-a de uma estabilidade colonial
para uma instabilidade caudilhesca. A presença de Oribe, e para Pivel Devoto, sua
psicologia, teria como rival “el estado social de nuestro medio, reflejado en el prestigio
y la influencia del caudillo, [que] se opuso a la realización de eses propósitos de
política orgánica y disciplinada”.
156
A temática fundadora do caudilhismo, cuja construção se define
principalmente ao longo das décadas de 1830 e 1840, introduziu àquelas sociedades
uma pioneira versão interpretativa da sua história. Não que esta fosse totalmente nova,
visto que dava continuidade a uma leitura social da campaña já parcialmente elaborada
durante o período colonial, mas constituía um novo arranjo para estas questões agora
adaptadas aos desafios intelectuais enfrentados pelas personagens das guerras entre
federais e unitários, blancos e colorados. Para as gerações posteriores, as formulações
“clássicas” dedicadas ao caudilhismo representavam um ponto de partida para novas
interpretações. Indivíduos como Sarmiento se tornaram referências quase que
obrigatórias de citação, não importando se para refutar ou reforçar algum argumento.
Mais do que isso, uma vez que Sarmiento apenas desenvolveu uma versão própria de
algumas idéias que já circulavam há algum tempo, todo um campo intelectual se
encontrava subentendido em boa parte dos textos cuja intenção seria analisar a
sociedade platina. Em especial para o caso uruguaio, a existência continuada dos
partidos blanco e colorado estava sempre disposta a reavivar sua história de disputas,
trazendo consigo estas “clássicas” teorias que davam sentido à sua atuação política.
Os dualismos definidos pelos contrastes entre a campaña e a cidade, entre o
caudilho e o Estado, entre blancos e colorados, foram diversas vezes reposicionados
por posteriores pensadores. Como veremos adiante, estas oposições seriam muito mais
utilizadas por unitários e colorados, mas mesmo futuros autores blancos as
reconheceriam como abertura de novos trabalhos. Lendo o trabalho de Pivel Devoto, é
156
Ibid., p. 176. “Oribe, cuyas actitudes e ideas trasuntan el estilo de la vida colonial personificó aquel
anhelo. Pero a su honrada vocación de gobernante a la española, amigo del orden y de buena
administración (…)”.
57
possível perceber a força destes dualismos que, neste caso, comportariam a essência
psicológica das forças que dinamizaram a sociedade uruguaia. Definidos pelas
personalidades de Fructuoso Rivera e Manuel Oribe, estes dualismos ao mesmo tempo
definem o caudilhismo e a necessidade de derrotá-lo, representando tanto a revolução
e a independência quanto o anseio pelo retorno à ordem e à organização de um Estado-
nação. Enfim, Pivel Devoto reposiciona, porém mantém os elementos básicos que
caracterizam as interpretações “clássicas” que o precederam.
1.3.2 Abril Trigo
Através de um interessante livro de Abril Trigo, Caudillo, Estado, Nación.
Literatura, historia e ideologia en el Uruguay,
157
podemos ao mesmo tempo mapear
um pouco da utilização das oposições doctores-caudillos/gauchos, cidade-campaña,
civilização-barbárie, assim como a construção e a utilização do mito de Artigas desde
o fim do século XIX até as últimas décadas do XX. Além disso, analisando o próprio
autor, podemos perceber que, ainda que retirando o julgamento prévio, depreciativo e
preconceituoso normalmente encontrado no pensamento do século XIX, este autor
mantém alguns dos seus temas como pontos de partida de discussão.
Principalmente no que se refere à primeira metade do XIX, presente em seu
primeiro capítulo, Abril Trigo mantém uma imagem histórica muito próxima àquela
desenhada por indivíduos como Sarmiento ou Manuel Herrera y Obes, e ainda utiliza
termos como “civilizado” ou “bárbaro”, identificando o primeiro ao europeu habitante
na cidade, e o segundo ao gaúcho, visto como tipo social predominante da campaña.
Desta forma, “Montevideo, producto de la política borbónica, no sería ciudad letrada
ni monacal, sino bastión militar, ciudad puerto, enclave mercantil, cuña civilizadora
empotrada en la entraña de la frontera bárbara, dibujada a las orillas del río como mar
157
TRIGO, op. cit.
58
según la minuciosa preceptiva de las leyes de Indias.”
158
Tomando como verdadeiras
impressões profundamente politizadas como a de Andrés Lamas, membro do partido
colorado extremamente envolvido com a Guerra Grande, Abril Trigo coloca os
gaúchos como indivíduos socialmente determinados pela extração do gado cimarrón,
pelas grandes distancias geográficas do pampa e pela “rebarbarização” do europeu em
contado com o Novo Mundo.
159
Na seqüência, esta sociedade bárbara
determina que el caudillo, primus inter pares, ha de ser un desprendimiento de la masa que le
sigue, capaz de interpretar las vibraciones de ese cuerpo social que, bajo circunstancias de
crisis o peligro, se identifica en él. (...) Ese es el rol del Artigas de la Redota: una masa
fragmentaria, informe, indefinida, acorralada por enemigos múltiples, acude al caudillo en
busca de amparo y conducción, porque él es la llave, el freno y el maestro; él, no la tierra de
horizontes abiertos, es el núcleo de la nación en cierne; en él reside, por delegación
voluntaria de sus miembros en un pacto escrito a punta de tacuara, la soberanía de la tribu
emergente de la nebulosa original.
160
O caudilho é aquele que acolhe e recolhe para si as reivindicações e as
expectativas da população gaúcha, tornando-se seu líder e porta-voz. Não é o pampa e
seu deserto, não é a geografia sarmientiana de “horizontes abiertos”, mas é o caudilho
o que define “el núcleo de la nación en cierne”.
A oposição entre caudilhos bárbaros, estes identificados com a “realidade
nacional”, e doctores idealistas e civilizados fica também evidente na medida em que
os coloca como representantes “de dos culturas distintas de las que son expresión
característica: el caudillo popular e indisciplinado, identificado con el espíritu
localista, y el elemento doctoral de la ciudad, con frecuencia alejado de la realidad
nacional, unas veces por su desconocimiento del medio y otras por la influencia de una
formación cargada de doctrinarismo.”
161
Abril Trigo coloca no caudilho um
“conhecimento instintivo e prático” de uma suposta “realidade nacional”, o que
158
Ibid., pp. 10-11.
159
Ibid., p. 13.
160
Ibid., p. 17.
161
Ibid., p. 19.
59
poderíamos entender como um conhecimento profundo da sua geografia e da sua gente
(os gaúchos), em oposição a um setor de intelectuais clausulados, ou pela guerra ou
por falta de interesse pela campaña, em Montevidéu. Mantendo uma interpretação já
exposta por Alberdi e invertida por Pivel Devoto,
162
a autora aponta que estes doctores
construiriam seus ideais não pela análise da “realidade”, mas por teorias importadas do
contexto europeu que pouco poderiam fazer pela América. Suas teorias, elaboradas
conjuntamente aos exilados vindos de Buenos Aires, seriam
la iniciativa más audaz y definitiva contra la ‘gauchocracia’. En la atmósfera cosmopolita y
romántica del Montevideo sitiado (‘...Pero, ¿qué ciudad es ésa?, ¿es la ciudad de América, es
la ciudad oriental? No; es la ciudad de los europeos...’ [citando Berro, responsável pela
réplica blanca a Herrea y Obes]) se diseña el más refinado montaje ideológico que conociera
esta parte del mundo, al racionalizar maniqueamente la dialéctica geopolítica, otorgándole
fundamento de axioma moral. La irrupción del romanticismo liberal, teñido con los
balbuceos del utopismo social importado por Esteban Echeverría (...), les proporciona un
juvenil empuje mesiánico y misionario, no exento de soberbia.
163
Para o Uruguai, já que para a recente historiografia argentina os caudillos são
considerados também construtores do Estado, Abril Trigo ainda reserva a estes líderes
gaúchos um papel anarquizante e destabilizador. E será justamente o fortalecimento do
Estado aquele que aniquilará o caudilho como “categoría histórica”.
164
Apesar desta
afirmação, a autora ainda encontra no caudilhismo um longo processo de agonia, mas
também elabora a idéia de caudilho urbano – uma espécie de líder populista das
massas, cujo exemplo, no século XX, estaria na figura do blanco Luís Alberto de
Herrera.
Também em Abril Trigo, o caudilhismo é um elemento fundador para a
historiografia uruguaia: “Pues todos los proyectos estatales que cruzan nuestra historia,
así como las diversas concepciones de nación en que se engarzan, son partes de un
mismo y único discurso, permanentemente reiniciado, vertebrando en el imaginema
162
Invertida, pois ele coloca os blancos ao lado das idéias e Rivera ao lado da “realidade caudilhesca”.
163
TRIGO, op. cit., p. 19.
164
Ibid., p. 26.
60
caudillo.”
165
É um ponto de partida para medir e classificar o Estado segundo uma
gradação da interferência do personalismo do líder rural. O Estado “melhor formado”
é o menos caudilhesco, ou, segundo o padrão do século XIX, ao menos aquele em que
o caudilho urbano se adapta ao seu funcionamento. É por este motivo que tanto Abril
Trigo como a historiografia uruguaia em geral identificam a formação de um
“verdadeiro” Estado com a ascensão do Coronel Latorre,
166
pois seria aí, a partir da
década de 1870, que o Estado se tornaria mais poderoso do que as forças particulares
do caudilho que até então o detinham como permanente refém de milícias gaúchas
vindas do interior. A partir de Latorre, mas principalmente com a presidência de
Batlle, as mudanças sofridas pelo “aparato estatal (que oficia ahora realmente como
‘nacional’) crece en tamaño y funciones e interviene en todas las instancias de la vida
nacional”.
167
Com isto observamos também a existência de uma forte identificação
entre Estado e Montevidéu, mantendo, como sempre, a oposição cidade-civilização
versus campo-barbárie.
Assim como se costuma dizer a respeito do Brasil, é também com a Guerra da
Tríplice Aliança contra o Paraguai que se organiza o exército profissional no Uruguai,
um elemento classificado como “iniciación a la modernidad”.
168
Surge o militarismo
como “una reiteración, aumentada, del caudillaje”.
169
Curioso, porém, que este
fortalecimento do exército em detrimento ao enfraquecimento de forças milicianas
165
Ibid., p. 29.
166
Os governos colorados de Lorenzo Latorre (1876- 1880), Máximo Santos (1882-1886) e Máximo
Tajes (1886-1890) foram capazes de centralizar o Estado, tornando cada vez mais raros e pouco
frutíferos os levantes de caudilhos. O último grande levante blanco foi o protagonizado por Aparício
Saravia (Seu sobrenome se alterna de Saraiva para Saravia. Aparício era irmão de Gumercino Saravia,
caudilho que participou da Revolução Federalista no Brasil, inclusive tomando parte do cerco da
Lapa). Este último levante caudilhista foi sufocado pelo governo colorado de José Batlle y Ordoñes,
presidente identificado com a entrada do Uruguai na “modernidade”. Sala de Touron e Alonso Eloy
sustentam este mesmo raciocínio sobre o Estado, identificando a sociedade em que predominam o
caudilho e relações protocapitalisas de produção e trabalho como um período de transição. SALA DE
TOURON, L.; ALONSO ELOY, R. op. cit. p. 7.
167
RIBEIRO, op. cit., p. 28.
168
TRIGO, op. cit., p. 32.
169
Ibid., p. 35.
61
irregulares fosse defendido por aqueles doctores que não temiam a violência em si,
mas a violência desorganizada e não “racionalizada”. Ainda sim, a influência do
militar na política, já era temida e tida como nefasta desde a organização da
constituinte de 1830, em que se procura proibir a eleição de militares para a Câmara de
Representantes.
Neste final de século XIX, a presença de Facundo: civilización y barbárie
ainda é marcante; mesmo que em caso de discórdia, ainda é necessário escrever a
partir dos seus preceitos: “tanto Ordaña como Varela critiquen la falacia sarmientina,
no obstante propiciar un embate frontal contra las fuerzas anárquicas de la barbarie.”
170
José Pedro Varela, intelectual responsável pela redação de uma lei de reforma do
ensino público, afirmava que a idéia de barbárie seria “relativa”, e a prefere como um
estado de ignorância a ser sanado por um sistema educacional eficiente orientado pelo
Estado.
171
Citando Ordaña: “Aquí no existe el desierto como desierto: aquí existe la
soledad, el apartamento de las poblaciones, pero no hay pampas, ni chacos, ni ninguna
de aquellas extensiones en que las otras Repúblicas del continente se van gradualmente
ensanchando, haciendo retroceder á los aborígenes al desierto.”
Ao contrário da vizinha Argentina, no Uruguai não haveria mais o deserto
sarmientiano. As fronteiras, ao final do XIX, estavam demarcadas e ao alcance do
Estado. As estâncias já estavam cercadas por quilômetros de arame, e o gaucho suelto
se encontrava em extinção. O problema do Uruguai não seria a grande extensão, mas a
capacidade desta sociedade concentrar uma população esparzida.
172
O Uruguai já não
tem um território reserva a conquistar, e os últimos indígenas infiéis e indomados
haviam sido aniquilados por Rivera a partir da década de 1830. Neste sentido, aquilo
170
Ibid., p. 43.
171
É interessante salientar que Sarmiento também depositava suas esperanças na educação pública
como caminho para a civilização da Argentina. Mais do que isso, Sarmiento escreveu métodos de
ensino para uso escolar, é, até hoje, visto também como um “educador”, um “pré-pedagogo”. Mais
adiante, poderemos perceber que este era um desejo já presente em ambas as margens do Prata ainda
na primeira metade do século XIX. Contudo, essas idéias somente seria postas em prática de forma
mais intensa ao final daquele mesmo século.
172
TRIGO, op. cit., p. 45.
62
que deu significado à Banda Oriental colonial e aos primeiros anos de sua
independência – a região essencialmente marcada pela fronteira – já havia
desaparecido. Tanto a luta entre os impérios ibéricos, depois continuada por Brasil e
Argentina, como a própria conquista da campaña pela cidade e pelo Estado, já
estavam terminadas. O país-fronteira já havia desaparecido,
173
e a “dupla revolução”
detectada por Pivel Devoto e ressaltada por Herrera y Obes já estaria praticamente
concluída.
1.4 QUESTÕES ATUAIS ACERCA DO “CAUDILHISMO CLÁSSICO”
Esta seção não pretende esgotar as discussões e sentidos usados para o
caudilhismo, mas apenas indicar algumas novas abordagens que vêm matizando o seu
uso “clássico” instaurado pela primeira metade do século XIX e reutilizado pelas
gerações platinas posteriores.
1.4.1 Dualismos: poder institucional e personalizado; civilização e barbárie; rural e
urbano.
Para sua formulação clássica, o decisivo argumento que explicaria o
surgimento do fenômeno caudilhista encontra-se na especificidade histórica platina. A
própria dinâmica história que teria provocado a suposta “anarquia” de 1820, associada
a uma tradição ibérica condicionada por uma geografia determinista e por uma
sociedade “gaúcha” e rural de frouxos laços sociais seria a geradora do caudilhismo.
Este é encarado como produto de uma conjugação destes diversos fatores. Para
Sarmiento, é o fruto platino da barbárie, mas, também, seu principal agente. Ao
mesmo tempo, é causa e sintoma.
173
Ibid., pp. 45-46.
63
Todavia, esta “anarquia” vem sendo matizada por novas abordagens. O vazio
institucional que a provocara não existiria, uma vez que o vice-rei fora substituído por
uma série de instituições autônomas provinciais. A província surge como entidade
política nova a partir de 1820.
174
Após o fracasso das tentativas centralizadoras –
temporariamente abandonadas com a deposição de Bernardino Rivadavia, são os
Estados Provinciais aqueles que se organizam e se desenvolvem ao longo da primeira
metade do século XIX. Para a província de Buenos Aires do governo Rosas, recentes
estudos de Juan Carlos Garavaglia vêm demonstrando um admirável crescimento do
aparato estatal. Amparado em dados orçamentários, evidenciam-se seus ascendentes
investimentos, e, estimando-se o erário disponível para cada uma das suas repartições,
é possível imaginar até que ponto poderia ter chegado o poder de intervenção e
influência do governo de Rosas em seu território.
175
En el Río de la Plata, las etapas iniciales del proceso de independencia fueron protagonizadas
institucionalmente por las ciudades o ‘pueblos’ y sus organizaciones capitulares, compuestas
de representaciones tanto sociales como territoriales, no así étnicas como es el caso de otras
regiones de Hispanoamérica, por ejemplo, los Andes o Nueva España. Hacia 1820, estas
ciudades junto a sus campañas, se convirtieron en ‘soberanas’ bajo la forma de Estados
provinciales, con distintos grados de desarrollo institucional y firmaron un pacto de
confederación en 1831. Durante el período coexistieron así Estados autónomos junto a
proyectos constitucionales de unidad mayor, que no lograron consolidarse antes de la
proclamación de la constitución federal de 1853
176
.
Nisto concorda Silvia Ratto que, em nota de citação a Chiaramonte, entende
que os Estados provinciais da década de 1820 não são uma fragmentação de uma
nação supostamente preexistente, mas, sim, um ponto de partida para uma organização
político-estatal pós-independência.
177
De certa forma, ao longo do território argentino,
surgem uma série de cidades-estado que, em torno a suas áreas rurais de influência,
formaram as províncias. Assim, as elites locais defenderam seus interesses em um
174
GOLDMAN, N.; TEDESCHI, S. op. cit., p. 138.
175
GARAVAGLIA, Juan Carlos. La apoteósis del Leviathán: el estado em Buenos Aires durante la
primera mitad del siglo XIX. Latin American Research Review, v. 38. 1, fev. 2003.
176
GOLDMAN, N.; TEDESCHI, S. op. cit., p. 137.
177
RATTO, op. cit., p. 242.
64
ambíguo jogo entre a manutenção dos laços de união com os ex-colegas de um mesmo
vice-reinado e o resguardo das soberanias locais. Amparados em uma noção de direito
natural que afirmava o caráter de livre adesão a um pacto social, logo transformado em
pacto de sujeição, legitimavam suas ações na defesa das soberanias regionais.
Com acerto, Chiaramonte faz uma transposição entre a noção de indivíduo e a
noção de “povo”.
178
Este “povo”, sem um contorno étnico definido, e que se
materializa na cidade, torna-se um indivíduo que, junto aos demais “povos” das
demais províncias, teria a escolha de aderir ou não a um Estado Central. Isto não pode
ser confundido com uma democracia contemporânea, mas deve ser entendido como
algo próximo a um pluralismo de Antigo Regime em que unidades diferentes
concorrem ou se associam na formação de Estados. A linguagem utilizada nas
primeiras décadas do XIX evidencia esta particularidade da idéia de indivíduo e de
povo. A “liberdade dos povos”, exaustivamente repetida por lideranças das campanhas
de independência, expõe a própria pluralidade de povos que poderiam ser libertados do
julgo espanhol. E mesmo em eleições representativas, era muito forte a idéia de que
cada grupamento urbano, por menor que fosse, representava um indivíduo do ponto de
vista jurídico e, o mais importante, em igualdade de direitos em relação a outros
centros urbanos maiores. Desta forma, apesar da liderança herdada por Buenos Aires
do período colonial, uma organização estatal central com a cidade porteña como
capital não era tida como totalmente óbvia ou legitimada. E seguindo o mesmo
raciocínio, a independência conquistada contra a metrópole européia não
necessariamente significaria uma transposição automática do centro político para
Buenos Aires, pois, como se argumentava na época, as províncias poderiam se tornar
apenas colônias desta capital. Ainda que a sede do Vice-reinado do Prata se
encontrasse em Buenos Aires, esta seria apenas uma instância administrativa
representante do monarca espanhol; a partir deste soberano estariam ligados todos os
espanhóis, tanto os europeus como os americanos. Vazio o trono espanhol, ou
178
CHIARAMONTE, José Carlos. Nación y estado en iberoamérica....
65
quebrado este pacto que os unia, caberia a cada “povo”, ou a cada localidade, a livre
decisão de aderir ou não a um novo pacto social. Enquanto foi hegemônico o Partido
Federal, principalmente sob a liderança de Rosas, o poder central formalmente
estabelecido simplesmente não existia. Sendo apenas governador da província de
Buenos Aires, Rosas adquiriu legalmente uma primazia em relação aos demais
governadores com o pacto da confederação de 1831. Este pacto lhe deu a posição de
porta-voz para os assuntos internacionais da Confederação Argentina. Desde a
derrocada unitária de Rivadavia em 1827 até a Constituição escrita sob o poder de
Urquiza em 1853, fora o pacto confederativo o responsável jurídico pela manutenção
da união entre as províncias argentinas.
A Banda Oriental não escapou a estas questões do parágrafo precedente.
Proclamando-se Artigas protetor do “povo oriental”, ele pretendia não somente
defender este “povo” do colonialismo europeu, mas faria o mesmo em relação à
opressão vinda da cidade vizinha de Buenos Aires. Assim sendo, não enviou
representantes para o Congresso de Tucumán de 1816. Em uma fonte muito
interessante para este período, o padre José Manuel Perez Castellano, escolhido
“diputado elector” do “pueblo de Concepción de Minas” em 1813, questiona a
submissão da Banda Oriental a Buenos Aires, pois, no seu entendimento,
el mismo derecho que tuvo Buenos Aires para sustraerse al gobierno de la metrópoli en
España, tiene esta Banda Oriental para sustraerse al gobierno de Buenos Aires. Desde que
faltó la persona del rey que era el vínculo que a todos nos unía y subordinaba, han quedado
los pueblos acéfalos y con derecho a gobernarse por sí mismos
179
.
Ainda que caudilhescas, as elites regionais ergueram e se aproveitaram destas
instâncias estatais. Estudando o “mítico” Juan Facundo Quiroga, Noemi Goldman e
Sonia Tedeschi encontraram uma coexistência do poder político destas lideranças
personalizadas junto a poderes provinciais legais.
180
Estas autoras questionam a
dicotomia tradicional da oposição entre campo-cidade, algo intensamente explorado
179
PEREZ CASTELLANO, J. M. op. cit., pp. 171-172.
180
GOLDMAN, N.; TEDESCHI, S. op. cit., p. 135.
66
pelas versões sarmientianas de construção de uma interpretação social para o Prata.
Durante a ‘Guerra Grande’, Montevidéu surge como um exemplo que corroboraria
esta oposição, contudo, aquela divisão imposta pela guerra aos uruguaios estava mais
articulada ao território que cada partido conseguia controlar do que a um choque de
populações totalmente identificadas ao urbano ou ao rural. Porém, e inclusive para
Sarmiento, Montevidéu aparecia como uma justa defensora da civilização; protetora de
valores universais em guerra contra a barbárie da campaña, vinda de Rosas e dos
blancos. Por outro lado, é ainda mais difícil encontrar um exemplo propriamente
argentino que valide esta divisão entre a cidade e o campo. Outro elemento clássico do
caudilhismo se define pelo excessivo valor atribuído ao poder personalizado e
supostamente livre de qualquer revestimento legal ou institucional que este fenômeno
poderia possuir. Mantendo uma construída característica “bárbara”, a voz do caudilho
se confunde totalmente com a da lei, libertando-o da necessidade de legitimar
legalmente seus atos ou decisões.
Goldman e Tedeschi comparam o governo de Estanislao López em Santa Fé
ao de Quiroga em La Rioja. Ambos classificados de caudilhos, estas autoras apontam
como suas atuações não seguiram um mesmo caminho, tomando decisões diversas do
que um caudilhismo clássico pareceria prever. López chega a formar um exército
praticamente profissional, algo que não se costuma atribuir aos caudilhos, geralmente
confiantes na força das milícias informais que comandavam. Porém, para ambos os
casos, “necesitaron articular su capacidad de mando con una estructura militar de
herencia colonial, reorganizada en el nuevo espacio de la soberanía provincial luego de
1820”.
181
Nas conclusões do seu artigo, as autoras procuraram advertir seus leitores
“sobre la existencia de un conjunto de prácticas consuetudinarias y vínculos formales
que articularon las relaciones de los caudillos con el ámbito institucional provincial,
las milicias y otros agentes económicos”.
182
Os caudilhos não seguiam totalmente a
181
Ibid., p. 145.
182
Ibid., p. 155.
67
cartilha de conduta a eles escrita pelos unitários, mas adequavam suas ações a práticas
locais já bem assentadas, articulando-as às necessidades do momento. E para
demonstrar como o caudilho também dominava os métodos urbanos de se “ganhar a
vida”, Goldman e Tedeschi examinaram os negócios particulares de Quiroga. Este
diversificou seus interesses não apenas nas tradicionais estâncias ou propriedades
rurais, mas também em empreendimentos comerciais, inclusive direcionados para uma
economia interprovincial.
183
Além disso, também obtinham importantes dividendos
como provedores do Estado provincial, como, por exemplo, garantindo seu suprimento
bélico.
184
Rosas e Artigas também enfrentaram costumes tradicionais ibéricos e se
obrigaram a lidar com aspirações e legitimações diversas daquelas costumeiramente
colocadas pelo caudilhismo “clássico”. Rosas, como igualmente o fizeram os
unitários, apropriou-se da Revolução de Maio, e proclamando-se seu defensor,
revestiu seu discurso de uma legitimação republicana. Não ignorou a “vontade
popular”, apoiou eleições e plebiscitos (por ele controlados) que investiam legalmente
seu poder, mas mantendo uma herança de incorporação política e de inclusão
subordinada de Antigo Regime. Combatia os “anarquistas” unitários e seus aliados
europeus (em especial franceses) em favor de uma idealmente elaborada
“independência americana”, em prol da “liberdade de los pueblos” (o que se confunde
com federalismo) e lutou pela conservação da “Confederação”. Alguns anos antes,
Artigas ambicionava a formação de “cidadãos”, harmonizando a construção da
república com uma “soberania popular” emanada desde os governos locais dos
cabildos. Para isto, Artigas intermediou aspirações de grupos sociais heterogêneos: a
elite de Montevidéu, os vizinhos dos pequenos povoados e seu próprio exército.
Conclui-se que o poder de Artigas – para alguns “herói fundador da nacionalidade
uruguaia”, e para outros “chefe de bandidos”
185
- não se encontraria exclusivamente
183
Ibid., p. 152.
184
Ibid., p. 153.
185
GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. op. cit., p. 23.
68
assentando no ambiente rural, e que, se possível, este também buscaria apoio e
legitimação entre a população urbana, e, conseqüentemente, “formas urbanas” de
legitimação.
Retornando ao artigo de Silvia Ratto, observamos como os caudilhos se
vincularam às instâncias estatais provinciais a partir de 1820, reforçando uma
coexistência entre o poder pessoal do caudilho e determinadas estruturas legais.
186
Os
caudilhos tinham grande preocupação na institucionalização do seu poder.
187
Desta
forma, o caudilhismo até então demasiadamente explicado como uma “luta histórica
entre a sociedade e suas instituições” aparece articulando-se a instâncias que a
princípio deveria combater.
188
A importância destas considerações decorre de um
consenso que, por muito tempo, culpou os caudilhos pelas dificuldades enfrentadas na
construção de um Estado Central para o século XIX.
Na medida em que organizavam seus “governos”, estas lideranças rurais
“bárbaras” seguiam práticas costumeiras, inclusive utilizando-se da burocracia.
Portanto, dúvidas emergem a respeito da dualidade clássica de oposição entre
instituições e poder personalizado ou informal, demonstrando como coexistiam
métodos diversos de acumulação de poder, com diferentes formas de legitimação.
Mais do que isso, os caudilhos buscavam toda esta diversificação, uma vez que lhes
assegurava uma base de apoio muito mais ampla, justificando seu domínio a públicos
com diferentes necessidades de legitimação.
189
Porém, este fenômeno social pode aparecer como uma possibilidade de
inclusão “del ámbito rural a la vida política local. Relación de la cual las zonas rurales
186
RATTO, op. cit., p. 242.
187
GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. op. cit., p. 24.
188
SVAMPA, op. cit., p. 69.
189
Curioso notar que Zás trabalha numa instituição, a Aduana, que está a serviço de um caudilho,
Artigas, e lá ele combate a arrecadação de impostos feita por outro caudilho, o Encarnación. Em
última instância, é um caudilho contra outro. Mas é o “tradicional malvado” que Zás critica. Zás nem
comenta Artigas como caudilho, e está ali, defendendo uma burocracia que está, na verdade, a serviço
de outro caudilho (pelo menos do ponto de vista tradicional, já que Artigas é visto como O caudilho).
Talvez Zás não considere aquilo um caudilhismo. Ver terceiro capítulo.
69
surgieron como algo más que espacios de reclutamiento de hombres y campos de
batallas”.
190
O caudilho apareceria como uma ligação entre diferentes posições sociais,
conduzindo e filtrando reivindicações dos seus seguidores. Mais e mais, compreende-
se como as relações entre este líder e seus subalternos incluíam uma densa negociação.
O caudilho não poderia ignorar as práticas e costumes de um campesinato
suficientemente ciente de seus (limitados) direitos. No que concerne a exploração da
terra, o gaúcho camponês confiou ao seu superior a aquisição ou a segurança de uma
propriedade rural, ou ainda o direito a algum posto de trabalho. Desta forma trabalhou
Artigas na elaboração do “Reglamento de 1815”, responsável por uma reorganização
fundiária para a Banda Oriental. Assim sendo, “los caudillos sustentaron su poder – es
decir, movilizaron recursos, milicias y electores – sobre un conjunto de complejas
relaciones basadas, en parte, en antiguos derechos consuetudinarios y formales”.
191
Mas o próprio Rosas, que, a princípio seria o indivíduo mais poderoso do Rio da Prata,
deveria se submeter às práticas camponesas ao negociar os termos de ocupação das
suas próprias estâncias com os trabalhadores locais.
Todos estes dualismos ou oposições estão, de início, ligados a um confronto
político: unitários e federais. Mas, ainda durante o século XIX, Alberdi já expunha
uma das primeiras críticas a estas oposições “forçadas”. Nem todos os unitários são da
cidade, e nem todos os federais são do interior. O próprio Sarmiento era um indivíduo
do interior, e de uma das partes mais pobres da futura Argentina, a província de San
Juan. No início do século XX, Ayarragary, comentado por Maristella Svampa,
escrevia que,
en primer lugar, lo positivo es lo que efectivamente existe, como tal, la cuestión remite a la
oposición que la generación del ’37 había planteado entre ‘país legal’ y ‘país real’. En
segundo lugar, la identificación de lo positivo con la realidad niega el carácter dual de esta
última: hay un solo “temperamento”, una sola realidad, en definitiva, contrariamente a lo que
afirmaba Sarmiento, una sola Argentina.
192
190
GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. op. cit., p. 24.
191
Ibid., p. 29.
192
SVAMPA, op. cit., p. 79.
70
Negam-se, assim, estas duas Argentinas, a bárbara e a civilizada. Esta
oposição perde seu caráter de dupla realidade em conflito. A barbárie se torna a
“realidade” e a civilização apenas um “princípio”, projeto ou intenção. Porém, ela é
“realidade” enquanto abstração ou leitura do real. É real na medida em que, constituída
como projeto e conteúdo a partir do qual se julga o “real”, gera efeitos bastante reais
no mundo “material”. Além disso, é preciso advertir que a afirmação de “uma só
Argentina” contém um sensível nacionalismo. A exemplo de outros “povos”, os
argentinos não formavam um povo homogêneo (a própria idéia de “argentinos” é
construída). A cultura se distribui de formas diferentes por diversos indivíduos e
localidades, dependendo da posição que esses ocupam no interior do campo social.
1.4.2 Um tipo social e seu fenômeno: o gaúcho e as montoneras
Para Bartolomé Mitre, em 1863, “gente del campo” era sinônimo de gaúcho.
Gaúchos seriam todos os habitantes da campaña. Enquanto isso, no interior argentino,
principalmente para a área noroeste de maior presença indígena, “índios” e “gaúchos”
apresentavam acepções semelhantes. Analisando a população de La Rioja, o
historiador Ariel de la Fuente encontra o líder de uma montonera. Chamado “El
Chacho”, definia a si mesmo como um gaúcho, e considerava seus seguidores “gente
de mi clase”.
193
A palavra “paisano” era também comum e, costumeiramente, próxima
à noção de “gaúcho” para essa província.
Entretanto, “gaúcho” também aparecia como sinônimo de criminoso ou
vagabundo. “Gauchar un animal” seria o equivalente de “roubar um animal”. Para a
década de 1860 estudada por de la Fuente, esta palavra detinha um forte caráter
negativo, mas esta estigmatização poderia ser encontrada já na primeira metade do
século XIX. Eram também chamados de “gaúchos” os rebeldes federais, uma
193
FUENTE, A. de la. “Gauchos”, “Montoneros” y “Montoneras”. In: GOLDMAN, N.;
SALVATORE, R. op. cit., p. 271.
71
estratégia utilizada pelos unitários para recriminá-los.
194
Para além das origens destas
rivalidades partidárias, em geral, a historiografia platina manteve esta afinidade entre
caudilhismo e federalismo.
Trabalhos recentes têm se dedicado a rever a construção desta imagem
“clássica” do gaúcho. Em alguns autores, como Gelman e Garavaglia, evita-se o uso
da “palabra gaucho o diferencian a este de los habitantes más pobres de la campaña, a
quienes definen según su inserción en la economía – campesinos, peones, pastores,
etc...”
195
Existe um forte empenho em desconstruir a tradicional imagem bipolar do
ambiente rural, formada quase que exclusivamente por estancieiros e gaúchos. Para
além desta simplificação, surge um mundo rural muito mais diversificado do que
aquele proposto pela imagem “clássica”, mais complexo do que a geografia física e
social que Sarmiento supunha e defendia.
196
Para o século XIX, contudo, o decisivo é que o “gaúcho” aparece como o mais
representativo “tipo social” da campaña, ainda que possa ser apenas uma minoria,
como defende Gelman. A sociedade platina daquele momento histórico tem
demonstrado classificar hierarquicamente seus integrantes de formas diferentes das
atualmente utilizadas pelos historiadores. A inserção que cada indivíduo tinha no
interior da economia não parece ter sido nem a única nem a principal, isto pelo menos
se analisamos o ponto de vista dos “intelectuais” doctores que observavam os
“inferiores” com quem conviviam. Lembrando o trabalho de Norbert Elias Os
Estabelecidos e os Outsiders, este estudo demonstra como uma minoria “arruaceira”
era mais representativa no interior de um bairro proletário na construção de uma
opinião ou visão geral acerca deste mesmo bairro. Os vizinhos de outros bairros,
membros das famílias “estabelecidas”, mais antigas da cidade, construíram uma
opinião sobre os recentemente chegados que ocuparam esse outro bairro. Ainda que a
maior parte da população fosse “ordeira”, uma minoria “arruaceira” contaminava a
194
Ibid., p. 272.
195
Ibid., p. 267.
196
GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. op. cit., p. 26.
72
região, estigmatizando a todos seus habitantes. E talvez o mais interessante seja que a
própria população deste bairro alvo de preconceitos em parte concordava com tal
opinião geral.
197
Como indica Elias, dados estatísticos revelam detalhes interessantes. Porém,
sozinhos, não dão conta de entender o conjunto das relações que são passíveis de
desenvolvimento em determinada sociedade. Neste sentido, não se deve abandonar
totalmente o sentido dado à palavra “gaúcho” para o século XIX. Ainda que sejam
vitais estudos como os de Garavaglia e Gelman, desmistificando uma construção
profundamente arraigada na “mentalidade” platina, não se deve esquecer a importância
e os resultados bastante “reais” que tal crença e construção tiveram acerca do gaúcho e
da população da campaña. Para a organização social platina daquele período, e como
instrumentos utilizados por seus indivíduos na tentativa de justificar ou reorganizar
suas próprias hierarquizações, tais contribuições “mitificadoras”, como a da
construção do tipo social do gaúcho, são capazes de definir o lugar correspondente de
cada um no interior do campo social disponível. Esta “mitificação” do gaúcho constrói
um sentido para a hierarquia social; justifica uma permanência ou, para o caso
unitário, uma defendida transformação.
O fenômeno caudilhista e gauchesco “típico” para a guerra é a montonera.
La palabra ‘montonera’ tuvo su origen en la Banda Oriental durante las guerras de la
Independencia. De acuerdo con una versión, los grupos de gauchos entre quienes vivía el
caudillo oriental José Gervasio Artigas se llamaban ‘montones’ y de allí vendría el nombre
de ‘montonera’ con que se designaba a los grupos de caballería que lo seguían. Otra versión
dice que la palabra proviene de ‘montón’ porque ‘...las guerrillas o bandoleros formaban
montones o grupos’.
198
A organização das montoneras seria similar à das milícias provinciais
(reproduzindo ou adaptando a experiência que tinham de organização militar), estas
que passaram a ser conhecidas pelo nome de ‘guardas nacionais’ a partir de 1853.
197
ELIAS, N; SCOTSON, J. L. Estabelecidos e outsiders. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1994.
198
FUENTE, op. cit., p. 276.
73
Seguindo o exemplo das demais organizações militares, contava com vários escalões
hierárquicos que condiziam com a posição que cada um ocupava socialmente em
determinada localidade.
199
Esta organização contava até mesmo com uma certa
burocracia, e, em geral, ainda que analfabetos, os escalões inferiores tinham o hábito
de pressionar seus superiores para que estes enviassem suas ordens e leis por escrito
(documento que os redimiria de uma futura culpa).
200
A hierarquia era complexa
também para o interior destas montoneras. Um igualitarismo de fachada, como
também aponta Salvatore em seu artigo acerca das “expressões federais”,
201
mas um
igualitarismo abertamente defendido, e até certo ponto buscado por alguns. E mesmo
alguns unitários chegavam a acreditar nesse igualitarismo, ainda que o considerassem
negativo. De qualquer forma, o igualitarismo gaúcho se tornou um mito, e, mesmo em
obras recentes, alguns autores o acabam repetindo. Barrán, por exemplo, parece
reprovar a transformação social que “civilizou” os uruguaios durante o século XIX.
Em seu livro, História de la Sensibilidad, descreve o período “bárbaro” do início
daquele século como o de uma espontaneidade perdida e reposta por uma
“artificialidade” moderna. Muito do que foi construído por indivíduos como Sarmiento
e Herrera y Obes foi mantido por Barrán, com a diferença de que este inverte o
julgamento de valor.
202
Porém, ao contrário do que se defendia na construção clássica, e indo de
encontro aos trabalhos de Gelman e Garavaglia, Ariel de la Fuente indica que a maior
parte dos participantes destas montoneras não estaria composta apenas por gaúchos
vagabundos e salteadores, mas contaria também com pequenos lavradores ocupados
principalmente com uma agricultura de subsistência. O segundo maior grupo
corresponderia ao dos artesãos, sendo que apenas uma minoria dos indivíduos
encontrados se declarava ‘sem ocupação’. Além do mais, a maioria se declarava
199
Ibid., op. cit., p. 277.
200
Ibid., op. cit., p. 278.
201
SALVATORE, R. “Expresiones Federales”. In: GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. op. cit.
202
BARRÁN, J. P. Historia de la sensibilidad en el Uruguay. 2 v. Montevidéu : Banda Oriental, s/d.
74
casado, e, presumivelmente, possuía família.
203
“La presencia de labradores, artesanos
y trabajadores que llevaban una vida estable sugiere que la montonera era una de las
formas que tomaban las luchas partidarias y uno de los modos en que los gauchos
participaban en política.”
204
Mais do que um movimento de baderna e destruição, a
montonera é entendida como uma estratégia a mais de participação política, uma das
poucas disponíveis para a população pobre da campaña.
Mas o gaúcho não contou sempre com um valor negativo. Para os federais, ele
estava vinculado a um ‘americanismo’. Seus hábitos e costumes eram valorizados
como autênticos e patriotas. Nisto se encaixa não apenas o gaúcho, mas também o
indígena. Para los unitarios, este “era un ‘salvaje’ sin valor alguno”, mas, “ya en 1830,
los federales estaban identificados con el indio abstracto como símbolo de la
nacionalidad que se estaba construyendo”.
205
Mais tarde, já nas últimas décadas do
século XIX, mas com seu ápice no centenário da independência, ocorre uma espécie
de “invenção da tradição”, em que a figura do gaúcho é reformulada e recolocada
como ícone nacional.
206
Por outro lado, para os unitários, denegrir a imagem do
indígena e do gaúcho ia ao encontra da necessidade de atacar o inimigo federal.
1.4.3 Clientelismo
Criticando a obra Juan Manuel de Rosas, Noemí Goldman e Ricardo Salvatore
afirmam que “el caudillismo que pintó Lynch operaba en un contexto político-social
caracterizado por la ausencia de instituciones, por la hegemonía de la clase
terrateniente, y por la prevalencia de relaciones de dependencia personal.”
207
O
conjunto de relações entre os gaúchos e os caudilhos é freqüentemente tratado como
203
FUENTE, op. cit., p. 275.
204
Ibid., p. 287.
205
BECHIS, M. Fuerzas indígenas. In: GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. op. cit., p. 303.
206
SVAMPA, op. cit., p. 72.
207
GOLDMAN, N.; SALVATORE, R. op. cit., p. 17.
75
um modelo particular de clientelismo.
208
Não podendo apelar para uma instituição
forte, o gaúcho buscaria a proteção privada de um caudilho, e a ele confiaria suas
demandas. São erguidas relações de reciprocidade em um contexto em que o
personalismo “reemplaza a la ley y a las instituciones, la violencia se torna en la forma
aceptada de dirimir conflictos políticos, y la estructura social se mantiene sin cambios,
protegida por el caudillo.”
209
Este clientelismo representaria a fonte primordial de
poder caudilhesco. Justamente por sua capacidade de suprir um Estado pouco presente,
uma liderança local congregaria em torno de si um número significativo de seguidores
que, em geral, seriam seus dependentes econômicos. Soma-se a isto a imagem
tradicional de carisma que atrairia gaúchos facilmente condutíveis à guerra por um
discurso paternalista de pouco significado político, e se estabelece a explicação
hegemônica acerca do poder de um caudilho.
As guerras de independência teriam sido as responsáveis por criar as
condições necessárias ao surgimento deste estado extremo de militarização e des-
institucionalização da sociedade platina. Conforme questionam Noemí Goldman e
Ricardo Salvatore, para uma transição pouco pacífica entre regimes políticos tão
diferentes, a equação final teria sido simples: “en un Estado posindependiente con
débiles finanzas, solo los propietarios de tierras estaban en condiciones de financiar
guerras y sólo ellos contaban con una clientela cautiva – los peones – para organizar
bandas armadas – montoneras o milicias.”
210
Os gaúchos seriam integrantes de uma massa rural homogênea de franco
predomínio numérico masculino, ou são vistos como peões diretamente ligados ao
proprietário rural, ou aparecem em grupos de changadores
211
livres, sem residência
fixa ou família. De la Fuente afirma que estes tradicionalmente aparecem como
incapazes de negociar sua participação e de compreender os processos políticos que os
208
Ibid., p. 14.
209
Ibid., p. 15.
210
Ibid., p. 16.
211
Changadores: pessoas ocupadas em postos de trabalho temporários.
76
rodeiam.
212
Porém, análises mais recentes apontam uma campaña muito diferente da
desenhada até então. Como foi indicado anteriormente e como reforçam os trabalhos
de Gelman e de la Fuente, não somente a presença de pequenos lavradores seria muito
mais comum do que se imaginava, mas também sua presença nas montoneras era
muito mais significativa do que a propaganda anti-caudilhista costumava propor. Em
geral, ainda que vagando em busca de algum contrato temporário de trabalho, sempre
que possível este gaúcho buscava conseguir para si um pedaço de terra. Se não tinha
condições de pagar todos os custos burocráticos para a aquisição do terreno (em geral
mais dispendiosos do que o terreno em si), poderia arrendar um pedaço não explorado
da fazenda em que já trabalhava.
213
Isto não apenas trazia uma vantagem econômica
direta ao estancieiro que poderia ficar com parte da produção, mas também prendia o
peão àquela terra, algo vantajoso se pensarmos em um mercado volúvel de mão-de-
obra como o da região do litoral platino.
214
Esta reformulada imagem que recebe a campaña altera profundamente a
posição social do gaúcho. Transformado também em plantador de trigo, ao seu redor
criam-se articulações sociais muito mais complexas do que aquelas atribuídas às
interações de meros grupos de caçadores seminômades de gado. Analisando o
relacionamento entre o administrador da estância e seus subordinados, encontra-se um
espaço importante de negociação em uma relação de interdependência que, se ainda
favorável a um dos lados, não seria tão desequilibrada quanto se costumava supor. A
relativa escassez de mão-de-obra para o mercado estudado por Salvatore aparece como
uma possível explicação para as concessões que vêm sendo encontradas em favor das
reivindicações desses peões.
215
212
FUENTE, op. cit., p. 269.
213
GELMAN, op. cit.
214
A região do Litoral não diz respeito às províncias banhadas pelo Atlântico, mas àquelas banhadas
pelos rios Paraná e Uruguai. E estas seriam Buenos Aires, Corrientes (que incluía o que hoje é também
Missiones), Entre Rios, Santa Fé, mas também a Banda Oriental.
215
SALVATORE, op. cit.
77
1.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o objetivo de auxiliar o leitor, algumas conclusões já podem ser adiantas,
o que o ajudará na compreensão dos temas abordados na análise das discussões entre
Herrera y Obes e Berro, e nas práticas de Antuña e Zás.
É perigoso querer sustentar um trabalho acadêmico nesta oposição implacável
entre caudilhismo e Estado. A historiografia costuma considerar “O Estado” aquele
unificado e identificado com a “Nação”. Carregando consigo uma boa dose de
anacronismo, o Estado-Nação costumava aparecer como referência para a existência
ou não de um Estado. Se em nada alteramos esta visão do que consiste um Estado,
então sim ele apenas pode ser encontrado a partir de 1870. Deste modo, tratados como
inimigos irreconciliáveis, esta historiografia identifica a ascensão do Estado com a
decadência do fenômeno caudilho. Porém, “instâncias” estatais, ou projetos de Estados
fracassados existiram desde o início da Revolução de independência. Mesmo Artigas,
ainda que erroneamente identificado como precursor de uma nação, iniciou uma
organização burocrática local, algo que também estava ocorrendo nas demais
províncias da região. Em sua tentativa de costurar uma união entre essas províncias em
oposição àquela pregada desde Buenos Aires, encontraremos José Encarnación de Zás
em seu trabalho na Aduana de Colônia, apresentando-se como um exemplo particular
dessa organização burocrática. Da mesma forma, os caudilhos Rivera, Oribe e
Lavalleja não desdenharam a importância do Estado e da legitimação que este
oferecia. A primeira eleição para a Câmara de Representantes, que resultaria
indiretamente na eleição do Presidente, ocorreu com relativa paz. Para Pivel Devoto,
ainda que este discuta a ética de Rivera, não aponta nada de ilegal que este tenha feito
para vencer o pleito. A princípio, Rivera e Lavalleja declaram-se interessados em
respeitar este incipiente trâmite institucional. Inicialmente, a sucessão de Rivera em
que ascende Manuel Oribe também ocorreu pacificamente. Além disso, quando estes
dois iniciam a ‘Guerra Grande’, ambos os governos, colorado e blanco, criam seus
78
respectivos Estados, com seus cargos, funções e burocracias próprias. Sala de Touron
e Alonso Eloy defendem que o caudilhismo uruguaio obteve maior êxito quando
combinado a formas legais, e não como um poder independente ao Estado.
216
A problemática que envolve Rivera e Oribe não se apresenta na vontade
caudilhesca de construir ou não um Estado, mas na questão de um Uruguai recém
independente que não encontra um equilíbrio de poder suficientemente estável e
duradouro.
217
O Estado que se encaixa no molde da década de 1870 surge porque o
equilíbrio de poder pende de tal forma para um lado que um golpe de Estado é capaz
de estabilizar a situação com a derrota praticamente definitiva de uma das facções.
Mas, até este momento, os processos de construção de novas formas estatais são
marcados pela instabilidade e por sua dependência frente aos partidos (justamente pelo
desequilíbrio). Pivel Devoto mostra que se no início houve relativa paz entre Rivera e
Lavalleja, foi porque existiu uma tentativa de co-participação. Porém, quando Rivera
força a renúncia de Oribe, é porque o primeiro sente que disto depende a permanência
do seu grupo na participação do poder, seriamente desafiado pela extinção do cargo da
Comandancia General de la Campaña.
Os caudilhos não estavam contra o Estado, e, como o tornam claro Rosas e
Latorre, de bom grado poderiam utilizar a legitimação e a força Estatal. Tanto é assim
que, quando entram em confronto bélico, os caudilhos o fazem justamente para
dominar o Estado. O objetivo final é o Estado e a legitimidade que ele representa,
ainda que sejam utilizadas forças irregulares vindas de um poder personalizado. Os
caudilhos podem não dispensar as tropas milicianas, pois dependem delas, mas
dificilmente deixariam de utilizar as regulares caso estivessem à disposição. E se os
doctores querem que apenas existam as regulares, é porque nestas eles podem ter
alguma influência através do aparato estatal, já que não têm como formar forças como
as milícias de gaúchos rurais.
216
SALA DE TOURON, L.; ALONSO ELOY, R. op. cit. p. 40.
217
Ibid., p. 219.
79
Na visão clientelista, o caudilhismo aparece como uma forma de manipulação
das massas,
218
mas, para Sarmiento, ele é muito mais do que isso, ele é uma forma de
sentir e agir própria dos gaúchos. Enfatizando heranças ibéricas, Sarmiento estava
mais interessado nas raízes sociais e culturais que identificavam o caudilhismo.
Contudo, o resultado é mais ou menos o mesmo: o caudilhismo é uma ausência de
Estado, uma barbárie quase inevitável, pois deita raízes nas características mais
íntimas da constituição e da dinâmica social platina. Mas um outro ponto vem sendo
abordado, aquele que chama a atenção para diversas fórmulas políticas interagindo e
competindo em um ambiente no qual está sendo montada uma outra estrutura social e
estatal, organizada a partir de inspirações e legados diversos. O processo de
independência, mais do que simplesmente “libertar” uma região, gerou uma série de
discussões dedicadas a modelos de Estado e legitimidade de instituições. Para o
período estudado por esta dissertação, estas discussões não haviam ainda encontrado
um fim, e se prolongavam por guerras civis entre partidos locais.
De modo geral, a historiografia recente vem desmistificando a construção
tradicional da campaña e seus habitantes. Primeiramente, a compreensão das
principais questões que afligiam determinados autores “clássicos” iluminou uma parte
do caminho interpretativo que definiu a imagem que os platinos desenvolveram sobre
si mesmos. A partir disto, foi possível reavaliar certas proposições e colocá-las frente a
novas fontes e trabalhos. A despeito desta “nova história” estar aparentemente
desviando sua atenção para outros temas além dos meramente políticos, ela acaba
retornando a estes ao avaliar os pressupostos sociais e econômicos que os
fundamentaram. O conjunto dessas recentes pesquisas colabora na elucidação de uma
sociedade mais complexa do que àquela tipificada pela história sarmientiana e mitrista.
218
O leitor brasileiro já deve ter notado alguma semelhança entre o caudilhismo e o coronelismo.
Ambos têm em comum um tipo de clientelismo e uma certa resistência a avanços “liberais”
modernizadores. Contudo, é importante ressaltar que o caudilho hispânico, ao contrário do coronel
brasileiro, está principalmente relacionado à guerra e sua dinâmica particular.
80
Contudo, é importante alertar contra o risco de se opor uma história politizada,
tida como “falsa”, contra uma científica e “real”. Por mais pobres que fossem os
argumentos unitários e colorados acerca da campaña, e ainda que seus fundamentos
possam ser facilmente questionados atualmente, vale lembrar que os efeitos daquela
construção politizada foram suficientemente “reais” a ponto de não serem
desconsiderados. E ainda que os sentidos dados às revoluções de independência sejam
diversos entre seus atores originais e a geração que os sucederam, esta envolvida na
‘Guerra Grande’, foram esses os maiores responsáveis pela cunhagem de boa parte dos
pressupostos legitimadores que se ocuparam em construir um Estado-Nação ao final
do século XIX.
81
2 AS CATEGORIAS “CIVILIZAÇÃO”, “CAUDILHISMO” E “REVOLUÇÃO”
EM ALGUNS AUTORES PLATINOS DA PRIMEIRA METADE DO
SÉCULO XIX
2.1 A GERAÇÃO DE 1837 E SUA PRESENÇA EM MONTEVIDÉU
Em 1837, já se haviam passado dois anos desde a segunda chegada de Rosas
ao poder da província de Buenos Aires, e sua vitória parecia “un hecho irreversible y
destinado a gravitar durante décadas sobre la vida de la entera nación”.
1
Mas um grupo
de jovens, alguns vindos do interior, outros da capital, tendo como objetivo comum
criar um ambiente de discussão político e literário, passou a reunir-se com certa
freqüência como meio de externar suas expectativas. Estes encontros permitiam aos
seus integrantes a exposição de análises dedicadas à arte e a assuntos correspondentes
ao futuro das províncias platinas. Contando entre seus membros personalidades que
futuramente se destacariam no cenário regional argentino, dentre elas Juan Bautista
Alberdi e Esteban Echeverría, este grupo seria, no futuro, conhecido como a Geração
de 1837.
Para Halperín Dongui, estes jovens buscavam mais do que suceder, mas
também suplantar o grupo político unitário original em sua fracassada tentativa de
organização estatal realizada entre 1824 e 1827. A grande medida da derrota unitária
estaria dada pelo triunfo dos “toscos jefes federales” que então ocupavam as principais
posições de poder.
2
Além disso, esta retomada representava a busca por uma nova
hegemonia letrada para a ordem política, algo perdido frente aos mais enriquecidos,
porém “menos esclarecidos, jefes del federalismo”.
3
Esta Geração de ’37 pretendia
evitar todos os erros unitários anteriores, em geral provocados pela arrogância e pelo
1
HALPERIN DONGUI, T. Una nación para el desierto argentino. Buenos Aires : Centro Editor de
America Latina, 1982. p. 11.
2
Id.
3
Ibid., p. 12.
82
idealismo exagerado e, inicialmente, chegaram a pensar em uma união com alguns
preceitos federais como abertura para uma fusão partidária que poria fim às guerras
fratricidas que assolavam o Prata. Ainda que potencialmente mais próximos a esta
“arrogância cultural” do unitarismo, diferenciavam-se dos contemporâneos de
Rivadavia, cuja inspiração decorria de um ainda sobrevivente Iluminismo, por
colocarem-se sob o signo de um movimento que estava recém desembarcando, o
Romantismo.
4
Para os militantes de ‘37, a Revolução de Maio era “un período
mistificado de elevados ideales y nobles acciones”,
5
algo que viria a ser destruído pela
“realidade” local após a queda de Rivadavia. Esta destruição tinha como principal
causa uma terrível falha na articulação de propostas européias idealizadas e pouco
efetivas para o entorno americano em que se encontravam.
6
Por outro lado, a visão que a Geração de ’37 possuía sobre os federais era
muito diferente e contaminada por memórias de infância. Além da pré-definida
inferioridade intelectual, suas incursões montoneras eram associadas à violação de
uma sociedade civilizada. Sarmiento, em suas lembranças sobre a entrada de Facundo
Quiroga em San Juan, ou Vicente Fidel López e seu medo em vista da presença de
forças artiguistas próximas a Buenos Aires em 1820, tinham em mente uma população
rural pobre e rebelde, saqueando e perturbando as províncias.
7
O que aparentava ser uma derrota definitiva para o Partido Unitário gerava
esperança para um segundo governo rosista de paz e ordem. Esta relativa paz, a ser
desmistificada com a crescente repressão desencadeada a partir de 1838, deu
oportunidade para um certo desenvolvimento do mercado literário portenho. De cinco
livrarias em 1830, a capital já contaria com ao menos dez em 1836. E não só a
4
Id.
5
KATRA, W. H. La generación de 1837: los hombres que hicieron el país. Buenos Aires : Emecé,
2000. p. 20.
6
Ibid., p. 22.
7
Ibid., pp. 30-31.
83
imprensa local já dava importantes passos, mas a presença de publicações européias,
principalmente francesas, fazia-se notar com certa intensidade.
8
Uma dessas livrarias era de propriedade de Marcos Sastre, uruguaio que
aportara em Buenos Aires em 1833 para logo se tornar o maior provedor de livros da
cidade. Por sua iniciativa, mas também contando com a presença de Echeverría e
Alberdi, formou o Salón Literário em 1837, ponto de encontro e discussão de “novas
idéias”.
9
Apesar de durar alguns poucos meses, foi sua organização a responsável por
batizar e propor as idéias iniciais da Geração de ’37. O Salón contou com discursos
inaugurais de Alberdi, Sastre e Juan Maria Gutiérrez. Estes defendiam a tese de que o
aprofundamento e aplicação de estudos filosóficos conformariam um método de
melhoramento moral e progresso para a sociedade.
10
Suas leituras privilegiavam
autores europeus, mas seu uso deveria convergir à necessidade de compreender melhor
seu próprio país, livrando-o de uma herança negativa da cultura espanhola.
11
Os escritores de ’37 não podem ser unificados em uma única proposta
definida e sistematizada. Seus integrantes detinham uma ampla liberdade de ação, o
que os conduziu a versões específicas de escrita e militância. Enquanto Rosas
permanecesse à frente de Buenos Aires, suas diferenças seriam apaziguadas pelo
sentimento de dever que compartilhavam, mas tão logo o “tirano” foi derrotado, suas
subdivisões internas emergiram, evidenciando rivalidades até então parcialmente
controladas.
12
De modo geral, existem dois momentos específicos para a configuração das
idéias da Geração de ’37. O primeiro, em que se destaca a liderança de Echeverría,
estaria mais preocupado em estabelecer bases morais e filosóficas para o movimento,
ao passo que o segundo, cujo comando passa a ser dividido por Sarmiento e Alberdi,
8
Ibid., p. 50.
9
Ibid., p. 54.
10
Ibid., p. 55.
11
Ibid., p. 56.
12
HALPERÍN DONGHI, op. cit., p. 17.
84
lentamente abandona os idealismos iniciais, partindo para análises mais cínicas e
práticas. De qualquer forma, a Razão deveria modelar seu pensamento político.
13
Echeverría voltou, em 1830, de uma viagem de cinco anos à Europa.
Enquanto foi reconhecido como membro mais influente, transmitiu aos companheiros
a experiência intelectual que tinha absorvido em sua estada em Paris, adaptando-a a
uma militância local que evidenciaria em seu grupo uma esperança de densa reforma
social. Queria impor à Argentina uma estrutura contrária ao resultado “de la
experiencia histórica atravesada por la entera nación en esas décadas atormentadas”,
pretendendo “implantar un modelo previamente definido por quienes toman a su cargo
la tarea de conducción política”.
14
Acreditavam firmemente na superioridade
intelectual como legitimação do controle do processo político.
Os assuntos pertinentes às suas ambições eram a continuação de um
movimento de independência inacabado; a promoção de um distanciamento cada vez
maior do colonial, cultivando a cultura local e o progresso material e social.
15
“Las
sociedades occidentales participaban en un proceso histórico, guiadas por la
Providencia, que evidenciaba una mejoría continua en tecnología, bienestar material e
instituciones sociales, políticas y culturales.”
16
Logo, não estariam imunes ao risco de
encontrar uma solução amparada em um destino final para humanidade.
17
Seus
instrumentos de ação seriam, inicialmente, a imprensa e a tribuna como meios de
comoção da opinião pública.
18
Até 1838, tentaram conviver com o federalismo, mas é a
inesperada agudización de los conflictos políticos á partir de 1838, con el entrelazamiento
de la crisis uruguaya y argentina y los comienzos de la intervención francesa, la que lanza a
13
Ibid., p. 13.
14
Ibid., pp. 17-18.
15
KATRA, op. cit., p. 68.
16
Ibid., p. 102.
17
HAPERÍN DONGHI, op. cit., p. 38.
18
KATRA, op. cit., p. 79.
85
una acción más militante a un grupo que se había creído hasta entonces desprovisto de la
posibilidad de influir de modo directo en un desarrollo político sólidamente estabilizado.
19
Na medida em que não se sentiam suficientemente seguros em relação ao
rosismo, partiram para o exílio indivíduos que de alguma forma estavam ameaçados
por suas posições. No Chile, mas principalmente em Montevidéu, encontraram não
apenas membros antigos do Partido Unitário que já haviam fugido do então vitorioso
federalismo, mas também um governo local bastante receptivo. O Partido Colorado já
controlava a capital oriental após uma bem sucedida revolta que forçara o presidente
blanco Manuel Oribe à renúncia. Enquanto Oribe partira para o berço do rosismo,
onde combateu a ameaça unitária sob a bandeira de Rosas, os colorados recebiam os
exilados unitários como um reforço para a luta civil que insistia em se prolongar
contra os blancos.
Alberdi, por exemplo, esteve em Montevidéu entre 1838 e 1843. Echeverría
primeiramente buscou refúgio na estância de seu irmão ao norte de Buenos Aires, mas
partiu para Colônia do Sacramento em 1841, onde esteve por alguns meses antes de se
estabelecer na capital, onde morreria em 19 de janeiro de 1851 aos 45 anos. O futuro
presidente argentino Bartolomé Mitre (1862-1868), que logo se juntaria ao grupo, era
o mais jovem de todos, nascido em 1821. Em 1833, membro de uma antiga família
unitária, fugiu com seus pais para Montevidéu, de onde saiu em 1846 para circular
entre os Estados andinos até se estabelecer provisoriamente no Chile. Ainda no
Uruguai, cursou a Academia Militar de Montevidéu, e atuou como tenente de artilharia
em uma companhia colorada de Fructuoso Rivera. Sarmiento, cujas publicações já lhe
dariam suficiente reconhecimento entre os demais, fez apenas uma breve visita a
Montevidéu em 1846, enquanto que Félix Frias, outro membro do grupo, ali esteve
entre 1838 e 1839.
Não apenas sua presença física, mas seus mais importantes textos políticos
foram publicados durante o exílio. Se a imprensa argentina sofria com o controle de
19
HALPERÍN DONGHI, op. cit., p. 14.
86
Rosas, suas vizinhas uruguaias e chilenas conheceram as primeiras edições de suas
obras mais significativas. La Creencia, texto de Echeverría que serviu como manual
básico para o ativismo destes escritores foi escrito ainda em Buenos Aires, mas sua
primeira versão impressa oficial saiu pelo periódico controlado pelo colorado Andrés
Lamas El Iniciador de Montevidéu em janeiro de 1839 e, um mês depois, seria
relançada em um fascículo do El Nacional daquela mesma cidade. Além disso,
panfletos com cópias do manifesto circulavam também pela Argentina, contando com
uma notória difusão em Córdoba, San Juan e Tucumán.
20
Em 1846, seu conteúdo
receberia algumas revisões, e seria republicado sob o título de El Dogma Socialista,
precedido de uma extensa introdução intitulada Ojeada retrospectiva sobre el
movimiento intelectual en el Plata desde el año 37.
21
Em 1839, alguns membros de ’37 ajudaram na organização de um novo
levante armado contra Rosas que, sob a liderança de Lavalle, seria derrotado em
1841.
22
A partir de então, decepcionados com os revezes militares, optaram por
reacender uma cruzada literária contra Rosas. José Rivera Idarte, em 1843, publica
Rosas y sus opositores com um apêndice intitulado Es guerra santa matar a Rosas,
incluindo um convite à filha de Rosas a matar seu próprio pai. No Chile de 1845,
Sarmiento publica pela primeira vez Facundo, e alguns de seus trechos poderiam ser
encontrados no El Nacional de Montevidéu ainda naquele mesmo ano. Este periódico
também publicaria várias poesias de Mitre e Echeverría.
Mas o jornal mais atuante e estável seria o editado por Florencio Varela. Este
unitário de uma geração anterior, mais apegado aos idealismos rivadavianos atacados
pelos escritores de ’37, era responsável pelo El Comercio del Plata, também de
Montevidéu. Muito respeitado entre os uruguaios, recebeu o título de doutor em direito
20
KATRA, op. cit., p. 80.
21
Ibid., p. 67.
22
Ibid., p. 90. “Lavalle, razonaba Alberdi, estará... siempre donde el arte, las ideas y la civilización
han adquirido un progresso mayor...” O levante foi um fracasso e Lavalle foi morto no caminho de
fuga para a Bolívia.
87
pela Universidade de Buenos Aires em 1827, e foi empurrado ao exílio pela
conspiração que assassinou o federal Manuel Dorrego em 1828. Em 1835, foi
admitido na Suprema Corte uruguaia, mas foi expulso por Manuel Oribe em 1838,
retornando um ano depois com a vitória de Rivera sobre este seu opositor, ali
permanecendo até seu assassinato em 20 de março de 1848. Varela seria o primeiro a
sugerir uma das contradições internas do rosismo que resultariam na queda de 1852. O
monopólio portuário e o fechamento do acesso aos rios para os demais Estados fariam
dele um potencial inimigo das províncias do interior, do ainda não reconhecido
Paraguai e do Império do Brasil.
23
Juntamente a Alberdi, Varela reorganizou a luta
armada que, contando com o apoio de Andrés Lamas e dos generais Lavalle, Gregório
Lamadrid e José Maria Paz, seria derrotada em 1841.
24
Andrés Lamas, exilado no Brasil durante a presidência de Oribe, foi uma
influente liderança na cidade sitiada entre 1841 e 1852, e também um dos uruguaios
que mais participaram ao lado dos membros da Geração de ‘37. Em seu El Nacional,
escreve um texto muito semelhante ao primeiro capítulo do Facundo. São os Apuntes
sobre las agresiones del dictador argentino D. Juan Manuel de Rosas, adaptando os
escritos de Sarmiento ao caso uruguaio:
25
Los abusos de Rosas giraban en torno de la conversión del Estado argentino en una máquina
de guerra; su uso de poderes administrativos ‘extraordinarios’ acarreaba notorias violaciones
de la confianza pública y sus insurgentes armados desestabilizaban las autoridades
legítimamente constituidas de Uruguay. Igual que Sarmiento, Lamas describía una lucha
épica que ubicaba a la civilización de las ciudades a merced del resurgimiento del
barbarismo en el campo.
26
Com o auxílio de Echeverría, Lamas fundou o Instituto Histórico y Geográfico
del Uruguay. Além disso, foi um dos articuladores da aliança internacional que
derrubaria Rosas. Para alcançar esta meta, retornou ao Rio de Janeiro em 1848 com o
23
HALPERÍN DONGHI, op. cit., p. 24. Até a década de 1840, a Confederação Argentina ainda não
havia reconhecido a independência do Paraguai, tratando-o como província rebelde.
24
KATRA, op. cit., p. 90-92.
25
Ibid., pp. 117-119.
26
Ibid., p. 121.
88
objetivo de solicitar o apoio do Império contra aquele governador e os blancos. Em
1852, refez esta mesma viagem, desta vez regressando com sucesso.
A influência de Echeverría entraria em decadência ao longo da década de
1840. Ainda que mantendo sua relevância de poeta, seus ideais políticos foram
progressivamente abandonados e suplantados pelas novas interpretações de seus
seguidores. Echeverría seria o único a se emocionar positivamente com as revoluções
européias de 1848. E se seus comentários acerca deste tema introduziram a palavra
“proletário” no vocabulário da região, suas idéias já não tinham o mesmo efeito, e os
demais integrantes da sua geração já estavam excluindo a palavra “socialismo” de seus
textos.
27
Com a ascensão de Sarmiento e Alberdi frente aos demais, as propostas até
então parcialmente harmonizadas do grupo partiram para um distanciamento cada vez
maior. Ainda em 1845, Alberdi e Vicente Fidel López manifestaram seu desgosto
frente a Facundo, pois o consideraram pouco atento à Razão e aos fatos, mais
interessado na propaganda e na difamação do que propriamente em entender a
sociedade argentina. A ressalva que colocava Alberdi correspondia à tendência ao
exagero de Sarmiento, que abusava da dicotomia ‘civilização e barbárie’ e da ameaça
dos montoneros, mitos já consagrados desde suas infâncias, mas que se manteriam no
pensamento “maduro” destes indivíduos.
28
Todavia, Echeverría e Mitre teceram consideráveis elogios àquela obra.
29
Sarmiento estava se afastando da posição conciliadora original de ’37. Cada vez mais
unitário, contou com a aproximação de Mitre e Lamas, formando um grupo que
William Katra chama de neo-unitário.
30
Enquanto Sarmiento se tornava cada vez mais intolerante em relação a Rosas,
Alberdi ainda sustentava uma possível fusão partidária, o que vinha acompanhado de
27
Ibid., p. 151.
28
Ibid., p. 26.
29
Ibid., pp. 114-115.
30
Ibid., pp. 116/121.
89
um aproveitamento de algumas “conquistas” do governo federal. Este pensamento
estaria já presente em 1837, sendo reiterado em 1847 e ainda em Las Bases em 1852,
sua obra mais influente.
31
Por “ensinar os argentinos a obedecer”, “Alberdi había visto
como principal mérito de Rosas, su reconstrucción de la autoridad política”.
32
Las
Bases, representava a defesa de uma República “Possível”, autoritária e liberal apenas
no relativo ao econômico (aberta ao comércio europeu), com o objetivo posterior de
organizar uma República “Real”, que oferecesse liberdade política à população.
33
Alberdi já estava abandonando a idéia da primazia de uma elite letrada na
política, entendendo que apenas uma co-participação desta com a elite econômica,
representada por Urquiza (caudilho e estancieiro exportador), poderia conduzir a
Argentina ao caminho do progresso.
34
O econômico ocupa neste Alberdi um papel
decisivo, pois, se direcionado ao mercado externo, traria consigo os avanços europeus
tão desejados ao Prata. “Entregándose confiadamente a las fuerzas cada vez más
pujantes de una economía capitalista en expansión, el país conocerá un progreso cuya
unilateralidad Alberdi subraya complacido.”
35
Esta superioridade do econômico
resultaria até mesmo em uma futura inutilidade do pensamento ilustrado:
Esa imagen [de primazia do letrado] – que Alberdi ahora recusa – propone una estilización
de su lugar y su función en el país que constituye una autoadulación, pero también un
autoengaño, de la elite letrada. La superioridad de los letrados, supuestamente derivada de
su apertura a las novedades ideológicas que los transforma en inspiradores de las necesarias
renovaciones de la realidad local, vista más sobriamente, es legado de la etapa más arcaica
del pasado hispanoamericano, se nutre del desprecio pre-moderno de la España
conquistadora por el trabajo productivo.
36
Las Bases são uma síntese do pensamento de Alberdi daquele momento. Seu
livro representava um programa dos mais precisos acerca de como manter as
conquistas de Rosas referentes à ordem e à subordinação da população somadas à
31
HALPERÍN DONGHI, op. cit., p. 20.
32
Ibid., p. 37. Uma ordem ruim seria melhor do que uma revolução incompleta
33
Ibid., p. 41.
34
Ibid., p. 38.
35
Ibid., p. 39.
36
Ibid., p. 42.
90
abertura dos portos à influência benéfica do comércio europeu. Suas linhas são “tan
sencillas, tan precisas y coherentes, que es comprensible que se haya visto en él sin
más el de la nueva nación que comienza a hacerse en 1852”.
37
Alberdi e Sarmiento compartilham de algumas idéias em comum. Dentre
outros possíveis exemplos, são favoráveis à queda de Rosas, à troca da referência da
França pela dos Estados Unidos, à imigração em massa de europeus e ao progresso
civilizador que estes poderiam trazer. Mas se em Alberdi o progresso econômico
antecede e conduz ao social, em Sarmiento, é o contrário.
38
O desenvolvimento social
é uma condição para progresso. Opondo-se a Alberdi, a educação da população
defendida por Sarmiento não terminaria por inspirá-la em idéias “perigosas” de
transformação social, mas a impulsionaria ao desenvolvimento de necessidades
econômicas controladas por determinados limites socialmente aceitos (como seria o
caso dos Estados Unidos). O desejo da plebe de acender socialmente não seria uma
ameaça, mas um veículo de progresso material.
39
É importantíssimo entender como as idéias desta Geração de ’37 se
desenvolveram e alcançaram o território uruguaio. Como podemos observar com
Sastre e Lamas, a influência deste movimento foi levada também para o Chile e para o
Uruguai. Especificamente para o caso deste último, os conflitos partidários entre
blancos e colorados, que logo se entrelaçaram aos pré-existentes federais e unitários,
geraram um rico ambiente de publicações e troca de idéias. Como poderá ser analisado
no decorrer deste segundo capítulo, muito do pensamento desta Geração estará
desenvolvido no texto de Manuel Herrera y Obes. Membro de uma facção colorada
bastante próxima a Andrés Lamas, escrevendo dois anos após a publicação do
Facundo (e apenas um ano após a visita de Sarmiento), Herrera y Obes traz em si uma
obra alinhada aos chamados neo-unitários, ou seja, aproxima seu conteúdo daquele
momento em que os escritores ’37 já estavam se dividindo entre as correntes propostas
37
Ibid., p. 44.
38
Ibid., p. 45.
39
Ibid., p. 48.
91
por Alberdi e Sarmiento, na mesma medida em que abandonavam a liderança de
Echeverría.
2.1.1 A categoria “civilização” em Alberdi
Ao final da batalha de Monte Caseros, recém derrotado Juan Manuel Rosas,
governador da província de Buenos Aires, reuniu-se um Congresso de representantes
com o objetivo de organizar uma Constituição para a Confederação Argentina. Carente
de uma lei geral unificadora, a integração provincial fora até então estabelecida por
acordos políticos entre os governadores, cada um representando um Estado que
desfrutava de ampla autonomia interna. Rompidos estes pactos interprovinciais, Juan
Bautista Alberdi acreditou poder contribuir nas discussões que buscavam dar um novo
sentido à união política das diversas regiões das Províncias Unidas do Rio da Prata,
escrevendo, assim, os Fundamentos da organização política da Argentina em 1852.
Apelidada pelos argentinos de Las Bases, esta obra pretendia realçar e
defender duas grandes questões: a constituição de um governo central, até então
inexistente, e a implantação de um regime liberal capaz de promover o que Alberdi
entendia por progresso. Para concluir seu trabalho, obrigou-se a enfrentar a
contradição entre seus valores políticos liberais e a necessidade de consolidar uma
autoridade estatal.
40
A extrema debilidade das instituições argentinas exigia um Estado
central forte e capaz, mas as intervenções deste na sociedade civil poderiam ser, do
ponto de vista liberal, um obstáculo para o desenvolvimento e o progresso. Por este
motivo, a consolidação de um poder institucional estável somente se legitimaria se
proporcionasse condições de segurança e previsibilidade ao liberal, dando ao
empreendedor do progresso a tranqüilidade de desenvolver seus negócios sem mais
40
PALERMO, Vicente. Pensamento político progressista no liberalismo argentino e mexicano do
século XIX: Juan Bautista Alberdi e Justo Sierra. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 20, 1997. p.
1.
92
temer as injustiças dos caudilhos e suas facções armadas.
41
Por um lado, Rosas fora
capaz de impor a ordem, ainda que no emprego de uma ditadura. Mas mesmo
“acostumando os argentinos a obedecer”, o que na opinião de Alberdi fora um ponto
positivo daquela gestão autoritária, as guerras e perseguições entre partidos
continuaram, assim como se manteve o predomínio da vontade pessoal e partidária do
caudilho na deficiência de uma ordem legal burocrática. Desta forma, na Constituição
da “nova” Argentina, a paz e a lei deveriam reinar como garantias de consolidação das
condições necessárias que tornariam possível o curso do defendido progresso aos
agentes econômicos privados.
Veremos adiante como Alberdi acreditou descrever um processo, mas, por
fim, escreveu um projeto político de civilização. Ele pretendia apenas apresentar o
leitor a uma ordem natural, associando suas idéias a uma lógica processual da história
humana. Atribuiu aos seus estudos uma imparcialidade científica e interpretativa
aplicada ao estudo das adequadas leis que melhor serviriam à causa de um progresso
“natural”. Mas que progresso era esse?
Progresso significava caminhar na direção de um ideal de civilização, uma
expressão da “(...) consciência que o Ocidente tem de si mesmo”.
42
O conceito de
civilização descreve a forma como a sociedade julga tanto a si mesma como as demais,
assim como indica quais parâmetros dispõe e utiliza na efetivação de tal julgamento.
Ainda que o argumento central de diferenciação entre os povos europeus e americanos
se localizasse, conforme a época, vagando entre a oposição ‘cristãos e pagãos’ e, mais
tarde, na de ‘industrialmente e comercialmente atrasados ou adiantados’, e mais além
até acrescentada por elementos evolucionistas e raciais de explicação, as referências
européias trazidas pelos conquistadores e povoadores foram consideradas superiores
aos elementos encontrados na América, pelo menos para a interpretação da Geração de
‘37. Por maiores que fossem as forças que impeliam o espanhol a se adaptar ao
41
Ibid., p. 3.
42
ELIAS, N. O processo civilizador. Vol 1. Uma história dos costumes. Rio de Janeiro : Jorge
Zahar Ed., 1994. p. 23.
93
ambiente sul-americano, esses valores europeus predominaram não apenas por estarem
interiorizadas desde o princípio, mas também pelo incessante fluxo cultural entre os
dois continentes que permanentemente foi capaz de revalidar tais valores de
civilização.
Em Alberdi, progresso e processo civilizador são a mesma coisa. Se a idéia de
que a humanidade segue um caminho de melhora e aperfeiçoamento constante é
evitada por Elias, para o autor argentino, ela é qualidade natural das sociedades
civilizadas. Assim sendo, a civilização se enriqueceria pelo contato entre diferentes
sociedades, disseminando-se cada vez mais por territórios bárbaros, abrigando seus
homens da selvageria e inserindo-os nos hábitos e costumes do progresso.
Primeiramente, a civilização tomara o continente europeu, e com a expansão marítima
e territorial iniciada a partir do século XVI, ela descobriu, conquistou e povoou a
América com “(...) raças civilizadas da Europa através de impulsos inerentes à mesma
lei que separou os povos do Egito de seu solo primitivo e os atraiu para a Grécia; mais
tarde, os habitantes moradores da Germânia para trocar com o resto do mundo romano
a virilidade de seu sangue pela luz do cristianismo.”
43
A verdadeira lei da natureza
seria a do “aprimoramento indefinido da espécie humana”, uma lei de expansão
civilizadora.
44
Todavia, seguindo o raciocínio de Alberdi, ainda que inicialmente civilizadora
frente aos barbarismos indígenas, a política estatal proposta pela coroa espanhola foi
lentamente se transformando em limitação do progresso. Por interesse espanhol, o
regime de monopólio e isolamento do território contra as demais nações européias
criou um sistema de exclusão que, durante três séculos, isolou o extenso solo
americano, tornando-o ambiente deserto e estéril. Assim, a grande conquista da
independência das novas repúblicas latino-americanas não estaria localizada apenas na
autodeterminação política, mas também na liberação dos entraves do progresso,
43
ALBERDI, J. B. Fundamentos da organização política da Argentina. Campinas : Editora da
UNICAMP, 1994.. op. cit. p. 19.
44
Id.
94
possibilitando a abertura dos portos à entrada da civilização vinda das nações
consideradas mais adiantadas do norte da Europa. Se a tarefa fora até aquele momento
colocada em mãos espanholas, caberia, então, aos americanos perpetuar a expansão
civilizadora no Novo Mundo.
Por outro lado, criticando a oposição sarmientiana que localiza
geograficamente a civilização na cidade e o barbarismo na campaña, Alberdi
argumenta que a única subdivisão que admite é a do homem do litoral e o de terra
adentro. Os principais unitários, ironicamente chamados por Alberdi de membros do
partido “inteligente”, seriam homens do campo; e os homens de Rosas, responsáveis
pela barbárie, teriam sido predominantemente educados na cidade. O homem litorâneo
receberia a ação civilizadora do comércio e da imigração, este é o que sente maior
proximidade com a Europa, enquanto que o de terra adentro, fruto da “Europa do
século XVI”, está isolado e atrasado.
45
Em Alberdi, a civilização se desenvolve independentemente da vontade do
Estado. Ele possui uma “(...) fé inabalável na evolução que responde a leis
independentes da vontade dos homens”.
46
Ao contrário do que pensam alguns de seus
contemporâneos, excitados pela atuação dos homens no processo de independência e
crentes na capacidade dos indivíduos de interferir na história, Alberdi entende que o
caminho do progresso corresponde a uma evolução natural. Assim sendo, a
Constituição a ser escrita, bem como todas as demais leis a serem aprovadas, não
podem ser consideradas uma conquista humana, mas apenas uma adequada
interpretação de um momento evolutivo particular de uma sociedade. As leis não
devem almejar a transformação, mas, sim, a garantia de que as necessidades dessa
sociedade, necessidades de progresso, serão correspondidas. Portanto, o direito nada
mais é do que um instrumento que deve conduzir “à reconciliação do indivíduo com a
ordem natural”.
47
45
Ibid., pp. 70-71.
46
PALERMO, op. cit. p. 16.
47
Ibid., p. 16.
95
Como podemos observar, o papel da transmissão de conhecimentos
civilizadores está depositado na sociedade civil, não no Estado. O estado pode criar
escolas e universidades, e estas existiam já no período colonial, mas a educação que a
Argentina precisa não é a dos filósofos ou advogados, simbolizados pelos inúteis
padres da retrógrada Córdoba, mas é a dos anglo-saxões em sua educação industrial e
comercial prática. O que Alberdi defende é uma moral liberal burguesa transmitida de
indivíduo para indivíduo. O homem não aprende a civilização com a alfabetização,
nem com a etiqueta ou com o conhecimento de curiosidades que apenas servem para
alegrar salões e festas. A civilização está no trabalho, na indústria e no comércio, não
em círculos de pedantes ilustrados.
Desta forma, são os homens em contato uns com os outros que se educam e,
uma vez que o tipo de educação como a alfabetização não é necessária para todos,
percebermos como Alberdi faz uma distinção entre liberdade política e liberdade civil.
Esta última é considerada mais importante, uma vez que é a liberdade de comerciar e
de ter propriedades, é aquela que aciona os interesses materiais que animam os meios
econômicos capazes de impulsionar a sociedade rumo ao progresso. A liberdade
política é apenas uma fonte de agitação, e nada desejável nem para nativos, nem para
estrangeiros imigrantes.
48
A liberdade política, assim como o sufrágio universal, será
algum dia possível, mas somente será alcançada se primeiramente a Argentina
aprender a obedecer a instituições estáveis, legítimas e regidas por um estado de
direito. Para além desse estágio, sua população deve habituar-se à idéia e uso da
liberdade civil para, depois, ser introduzida à política. Desta forma, o Estado deve
limitar-se a escrever a Constituição adequada para o estágio em que se encontra a
Confederação, reservando aos indivíduos a tarefa de civilizar-se, pois o “(...) caminho
do governo de si mesmo é a educação de si mesmo”, e “educar-se a si mesmo é o
caminho para chegar a governar-se a si mesmo”.
48
Ibid., p. 15.
96
Compete ao Estado garantir a ordem e a previsibilidade, intervindo somente
no fomento do que a sociedade civil demanda. Ainda que o exemplo colonial coloque
o Estado como um obstáculo interventor e monopolizador, este poderia ser usado para
“adiantar” o processo civilizador, acelerando movimentos que sozinhos demorariam
muito mais a se concretizar. Segundo Alberdi, o grande foco de incentivo deveria ser a
imigração, porque “países que não tem população própria, precisam da alheia”.
49
Com
a vinda de europeus, principalmente anglo-saxões, a Argentina entraria em contato
com um povo mais civilizado capaz de transmitir os costumes da indústria e do
comércio. Da mesma forma que o espanhol pôde trazer um pouco de civilização ao
indígena, o inglês deve conduzir o argentino a um próximo estágio de
desenvolvimento. Se o governo colonial impedia a vinda de imigrantes não ibéricos, o
Estado argentino deve não apenas garantir, mas incentivar a vinda de homens do norte
europeu.
Em Las Bases, Europa e América padecem de problemas opostos, ambos
violações feitas ao “curso natural das coisas”. Ao norte do hemisfério existe uma
abundância de população, um mal excedente necessário e vital para a Argentina. Se na
Europa existe um crescente desalojamento dos homens do campo e um inchaço das
cidades com indivíduos desocupados, a América lhes oferece um território desabitado
e ansioso por progresso. “Os Estados do outro continente devem estar propensos a
enviar-nos, por meio de imigrações pacíficas, as populações que os nossos devem
saber atrair através de uma política e de instituições análogas”.
50
Com isso, Alberdi não pretende apenas “trocar” de povo, mas expor os
argentinos à civilização. Ele não quer uma nação de ingleses, mas uma nação de
argentinos civilizados. Por este motivo, assim como o nativo deve apreender com o
trabalho do imigrante, este deve tornar-se argentino. O estrangeiro não pode ser um
perigo para a sustentação da nacionalidade local.
51
O Estado deve não apenas atrair,
49
ALBERDI, op. cit., p. 48.
50
Ibid., p. 20.
51
Ibid., p. 46.
97
mas igualmente fixar o imigrante, e, para isso, deve assegurar-lhe a cidadania, deve
torná-lo argentino. Porém, como aponta Halperín Donghi, nas décadas que se seguiram
ao livro, os imigrantes desembarcaram, mas não necessariamente corresponderam aos
anseios de Alberdi.
52
Os traços negativos do estrangeiro se acentuaram ao longo de
três décadas de imigração. A visão que existia sobre a imigração muda e ela passa ser
vista como elemento de dissociação. O problema de “nacionalizar” essa população
estrangeira se mostrava mais complexo, uma vez que, inicialmente, nem lhes conviria
adquirir a cidadania, pois como estrangeiros contavam com uma proteção maior do
Estado. Ao invés de liderar a civilização e fazer a Argentina avançar, esses europeus
teriam aceitado o “primitivismo” local e nele exploravam suas vantagens e
possibilidades. Foram acusados de parasitar o Estado ao invés de reformá-lo.
Finalmente, chega-se à conclusão de que não se pode esperar do pai italiano uma
educação que transforme seu filho em argentino. A tarefa de nacionalizar, ou seja, de
educar o estrangeiro é devolvida ao Estado, é retirada do núcleo familiar.
53
Em 1914, a Argentina já havia passado por uma intensa reorganização das
suas redes de interdependência, uma vez que um terço da sua população era já
estrangeira.
54
Entretanto, a civilização européia, “civilizada e civilizante”,
55
não se
assentou em território americano sem sofrer também suas transformações. Desta
forma, tanto o espanhol foi obrigado a se adaptar às exigências da região platina, como
os imigrantes italianos, ingleses e franceses acabaram por se deixar influenciar pelo
ambiente em que desembarcaram. O Estado conseguiu incentivar a vinda de
estrangeiros, mas estes não corresponderam ao curso natural da civilização como
pretendia Alberdi. No entanto, com isso, podemos observar como um indivíduo
pensou poder aproveitar a máquina Estatal para influir em um processo que acreditava
52
HALPERIN DONGHI, T. ¿Para qué la inmigración? Ideología y política inmigratoria en la
Argentina (1810-1914) In: El espejo de la historia: problemas argentinos y perspectivas
latinoamericanas. Buenos Aires : Editorial Sudamericana, 1987.
53
Ibid., pp. 212-227.
54
Ibid., p. 228.
55
ALBERDI., op. cit., p. 104.
98
natural, e que logo fugiu ao seu total controle. Alberdi faleceu na década de 1880,
impedido de conhecer os resultados do seu projeto civilizador, um projeto que foi
absorvido por uma lógica de transformações não programadas daquela sociedade.
2.2 UM SARMIENTIANO: MANUEL HERRERA Y OBES. REVOLUÇÃO E
CIVILIZAÇÃO
Intensificados a partir da renúncia forçada do presidente Manuel Oribe em
1838, os conflitos políticos do Uruguai recém independente logo alcançariam a
margem ocidental do Prata. Desde sua substituição por Fructuoso Rivera, Oribe se
transferira para a Argentina, onde combateu sob a bandeira federalista de Juan Manuel
de Rosas nas lutas contra o partido unitário. Relativamente pacificado o ambiente
argentino, e contando com forte apoio rosista, Oribe retornou à Banda Oriental para
reclamar pela nulidade da sua anterior renúncia imposta pelo partido colorado então
liderado por Rivera. Após alguns confrontos, Oribe conseguiu impor um cerco à
capital Montevidéu em 1843, somente desfeito em 1851 com um acordo de paz entre
as partes beligerantes. Com a derrota da resistência colorada na campaña, restou a
Montevidéu a posição de último reduto fortificado de uma resistência ao mesmo tempo
colorada e unitária.
Separadas por muros e trincheiras, tanto a campaña como a cidade
conheceram suas próprias instituições de governo, cada uma acreditando ser a legítima
defensora do Estado uruguaio. Dentre as causas do sucesso da resistência do “Governo
de la Defensa”, podemos destacar a incapacidade das forças opositoras do “Governo
del Cerrito” de organizar um bloqueio naval eficiente ao porto de Montevidéu, ao que
colaborou o apoio, de início velado, das potências marítimas européias à facção
colorado-unitária. Contribuiu igualmente para esta situação a precariedade técnica dos
exércitos de então, formados em sua maioria por forças irregulares raramente
portadoras de armas de fogo e inaptas para a empreitada de enfrentar uma cidade
99
fortificada. Entretanto, como será exposto mais adiante, o decisivo desta separação
forçada entre o meio urbano e o rural está na forma como os olhos unitários e
colorados a ressaltaram como uma rivalidade entre duas grandes forças opostas: a
civilização e a barbárie, ou a cidade e a campaña.
Não se restringindo a um mero enfrentamento de campos de batalha, os
periódicos do período estiveram recheados por combates explícitos de propaganda e
contra-propaganda. Aqueles dois “Estados rivais”, simbolicamente o da cidade e o da
campaña, buscaram legitimar sua causa na mesma medida em que lutavam por
denegrir as idéias da oposição. Contudo, não foram publicadas apenas pequenas notas
de denúncia, palavras inflamatórias de adesão ou breves informativos da conjuntura
bélica. Existiram também textos mais elaborados que se distribuíram por semanas de
publicações e que se preocupavam por questões mais amplas e complexas. Alguns
autores chegaram a discorrer por interpretações que alcançavam o próprio processo
revolucionário e independentista que culminara na construção do Estado uruguaio.
Estes textos foram publicados por ambas as partes, cada uma com seu veículo próprio
de divulgação, construindo interpretações particulares de todo um processo que
abrangia as quatro primeiras décadas do século XIX e que culminaria com a criação
dos partidos que eles mesmos integravam. Na elaboração de um sentido histórico para
o processo de independência platino, cada partido construiu também um suporte
legitimador particular. Desta forma, não temos apenas duas linhas trocando tiros ou
apresentando espadas, mas um confronto entre interpretações da história e da
sociedade, nas quais se acrescentou a apresentação de conceitos como revolução e
civilização.
Discutindo estas questões, o colorado Manuel Herrera y Obes (1806-1890)
publicou os Estudios sobre la situación no jornal El Conservador entre 20 de
novembro de 1847 e 9 de dezembro do mesmo ano.
56
Durante o cerco a Montevidéu,
56
HERRERA Y OBES, Manuel e BERRO, Bernardo Prudencio. El caudillismo y la revolución
americana. Montevidéu : Ministerio de Instrucción Pública y Previsión Social, 1966. pp. 3-65.
100
ele desempenhou o cargo de Juez Letrado de Comercio y Hacienda, tomou parte da
Asamblea de Notables e, em 1847, foi nomeado Ministro de Gobierno y Relaciones
Exteriores. Seu texto tem como principal objetivo analisar as mudanças estratégicas
provocadas pela expulsão do General Rivera do partido colorado. Esta ausência
forçada implicava não somente em uma reestruturação do partido, mas também em
uma nova justificativa para a defesa da capital frente à ofensiva blanca. Se as
desavenças que deram origem ao conflito entre as lideranças de Rivera e Oribe não
mais explicavam a manutenção da resistência em Montevidéu, restava aos
remanescentes uma nova legitimação para a guerra. Seguindo o discurso neo-unitário e
sarmientiano de oposição entre civilização e barbárie, Herrera y Obes coloca os
colorados ao lado da civilização, e, conseqüentemente, ao lado de uma “verdadeira”
revolução americana. Nesta interpretação, blancos e federais são considerados
inimigos da Revolução de Maio de 1810 e de todo o movimento de emancipação
americana que seria, enfim, mais um capítulo de uma história de um suposto progresso
civilizador.
57
Domingo Faustino Sarmiento é o autor de Facundo: Civilización y Barbárie.
É desaconselhável ignorar esta obra quando se procura entender o jogo de
representações políticas que circulava na região platina naquele contexto de guerra
civil, e é inevitável encontrar diversos pontos em comum entre sua interpretação e a
realizada pela defesa colorada de Montevidéu.
58
Por estes motivos, os textos de ambos
autores estarão em constante relacionamento ao longo desta seção deste capítulo.
Exilado no Chile, Sarmiento publicou sua obra como folhetim no jornal El Progreso
de Santiago a partir de 2 de maio de 1845. Seu título teve como inspiração a entrada da
barbárie de Juan Facundo Quiroga na província de San Juan em 1827. Parte ficção,
57
É extremamente provável que Herrera y Obes tenha tomado conhecimento acerca do conteúdo de
Facundo, uma vez que seu texto foi publicado dois anos após a impressão de Civilizacion y barbárie,
e apenas um ano após a visita de Sarmiento em 1846. Além disso, suas conexões com Andrés Lamas o
aproximam ainda mais do grupo neo-unitário de Sarmiento.
58
SARMIENTO, D. F. Facundo, civilización y barbarie. Buenos Aires : COLIHUE, 1990.
101
parte biografia e história, sua escrita se inicia por uma descrição geográfica e social
das Províncias Unidas do Rio da Prata. Nesta primeira parte, Sarmiento constrói tipos
sociais ideais cujos elementos básicos estão, em conjunto, em partes desiguais
distribuídos por todos os habitantes daquela região.
59
El Rastreador, el Gaucho Malo,
el Baqueano e el Cantor são frutos do deserto e do pampa. A imensidão do terreno
aliada à escassez de homens tem como resultado o enfraquecimento da associação
entre os indivíduos. As grandes distâncias e a solidão do pampa não são capazes de
impor laços sociais fortes e estáveis. Acostumado a viver sozinho ou em pequenos
grupos, o gaúcho idealizado de Sarmiento é um ser egoísta e insensível por
condicionamento social e geográfico. Seu estilo de vida seminômade, no qual a
abundante oferta de carne a este caçador de gado cimarrón dá oportunidade a um meio
de vida que dispensaria a necessidade do trabalho, torna-o resistente à experiência
sedentária do lar e da família. Poder-se-ia dizer que, mais do que desinteresse, este
autor enxerga no gaúcho uma inaptidão à vida considerada civilizada.
Sarmiento não foi o único nem o primeiro a elaborar teorias que explicavam a
“natureza” ou o comportamento dos homens, separando-os entre sujeitos ideais, sejam
estes urbanos, camponeses, caçadores ou agricultores. Montesquieu, por exemplo,
discutindo a necessidade e a aplicabilidade das leis para cada circunstância política que
poderia ser encontrada em populações diversas, escreve sobre uma suposta natureza
dos povos e como esta é influenciada pelo clima, pelo modo de subsistência, pelas
características geográficas do terreno, pelos costumes e pela religião. O conjunto
destes elementos determinaria a formação de uma sociedade, tornando-a bárbara ou
civilizada. Ao contrário da Europa, “o que faz com que haja tantos povos selvagens na
América é o fato de seu solo produzir por si próprio muitos frutos com os quais
podemos nos alimentar”.
60
Estas teorias procuravam explicar porque certos povos
seriam bárbaros ou civilizados, ou, ainda, como foi possível que alguns deles se
59
“(...) si solevantáis un poco las solapas del frac con que el argentino se disfraza, hallaréis siempre el
gaucho más o menos civilizado, pero siempre gaucho”. Ibid., p. 161.
60
MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo : Abril Cultural, 1985. p. 250.
102
tornassem civilizados. Não pretendo afirmar aqui que Sarmiento seja um discípulo de
Montesquieu, mas apenas colocá-lo como mais um entre muitos adeptos de teorias
mecanicistas que acreditavam em certos modelos de determinismo natural ou social.
Na segunda parte do seu livro, Sarmiento tem na trajetória do já lendário
Facundo Quiroga um bom exemplo do que a Argentina teria de pior. Este gaúcho
bárbaro representa o atraso platino. Contra a barbárie, Sarmiento ergue uma
civilização européia que repousaria nas mãos de um dos partidos, o unitário. Para este
autor, a guerra civil que travam os unitários contra os federais é a guerra entre um
progresso civilizador europeu e um retrocesso identificado por vezes como americano
ou até mesmo ibérico.
61
É uma guerra entre a ‘matéria’, mecanicamente construída
pelo ambiente geográfico e social americano, e as ‘idéias’, estas vindas do intelecto e
inspiradas pela civilização européia.
Para o século XIX, “a história, a reflexão do historiador, conjeturais ou
empíricas, põe mãos à obra para chegar a um ‘quadro dos progressos do espírito
humano’, a uma representação da marcha da civilização por meio de diversos estados
de aperfeiçoamento sucessivos”.
62
Buscando suas origens na Grécia antiga ou no
resultado da união entre germânicos e romanos, o progresso, no século XIX, é
comumente entendido como um caminho de transformações que conduziram as
sociedades ocidentais rumo à cristianização e à industrialização. A Europa de então era
a referência de um estado civilizado. Seu desenvolvimento “material e espiritual” a
erguia como modelo de civilização, e sua trajetória histórica como exemplo de como
civilizar-se. A Europa é ao mesmo tempo um fim e um exemplo de um meio.
Escrevendo em 1852, Juan Bautista Alberdi evitava construir uma civilização
platina culturalmente autônoma. A história Argentina seria apenas parte de uma
61
Quando Sarmiento se refere a uma civilização européia, seu significado está vinculado ao norte da
Europa. A Espanha e sua herança ibérica deixada na Argentina, ainda que não merecedoras da alcunha
direta de bárbaras, são consideradas atrasadas e reacionárias frente aos progressos de uma civilização
anglo-saxônica entendida como superior.
62
STAROBINSKI, Jean. A palavra “civilização”. In: As máscaras da Civilização. São Paulo :
Companhia das Letras, 2001. p. 15.
103
narrativa maior que corresponderia à da civilização européia. Não rejeitando
totalmente a herança espanhola (ainda que a considere inferior à anglo-saxônica),
63
Alberdi pergunta: quem são os argentinos senão descendentes de espanhóis? Mais do
que herdeiros de sangue, seriam herdeiros da civilização espanhola, e, deste modo,
encarregados de garantir sua continuidade.
64
Discutindo com Sarmiento, Alberdi
acrescenta que “(...) tudo o que não é europeu é bárbaro; não há outra divisão que esta:
o indígena, ou seja, o selvagem; o europeu, ou seja, nós que nascemos na América e
falamos espanhol, cremos em Jesus Cristo e não em Pillán, deus dos indígenas.”
65
Como poderemos observar, o conceito de civilização não conhece um total consenso.
Mas, em todo caso, fica claro como a noção de o que é civilização e o que é barbárie
está colocada a partir da construção de uma imagem vinda da Europa e constantemente
renovada e reproduzida pelas trocas entre os dois continentes, ainda que readaptada às
condições sociais enfrentadas pela região platina.
Poucos anos antes de Alberdi, Bernardo Berro já afirmava que
La civilización de la Europa y la de América es la misma. Los elementos, los principios que
las constituyen son también los mismos, salvo aquellos accidentes especiales que distinguen
social y políticamente a los pueblos en que se hallan fraccionadas esas dos importantes
secciones del globo. La civilización cristiano-romano combinada con la civilización
germana, que pone en movimiento a las naciones europeas es la misma que impulsa a
nuestros pueblos, y tanto es de la América como de la Europa. No hay principio ninguno
importante de ella que no esté contenido en las sociedades modernas de América
66
.
63
Alberdi mudará de opinião mais tarde, já na década de 1860 quando reavalia a importância da
herança ibérica. ALBERDI, Juan. Bautista. Proceso a Sarmiento. Buenos Aires : Ediciones Caldén,
1967.
64
Vejamos como Alberdi desconsidera a mestiçagem racial e o hibridismo cultural: “As repúblicas da
América do Sul são produto e testemunho vivo da ação da Europa na América.” “Tudo na civilização
de nosso solo é europeu; a própria América é um descobrimento europeu.” “Nós, que nos designamos
americanos, não somos outra coisa do que europeus nascidos na América. Crânio, sangue, cor, tudo é
de fora”. “O indígena nos faz justiça quando nos chama de espanhóis (...).” “O idioma que falamos é
da Europa.” “E que são nossas constituições políticas senão adoção de sistemas europeus de
governo?” ALBERDI, Juan Bautista. Fundamentos da organização política da Argentina. Campinas :
Editora da UNICAMP, 1994. pp. 69-70.
65
Id.
66
HERRERA Y OBES, M. e BERRO, B. P. op. cit. pp. 118-119.
104
Para Berro, a América e a Europa compartilham de uma mesma civilização.
Porém, neste enfoque, sua versão americana antecipa a de Alberdi por considerá-la
uma expansão da civilização européia iniciada nos tempos da conquista espanhola do
século XVI. De certa forma, a América hispânica também é européia, o que a afasta da
barbárie descrita por Sarmiento. Todavia, Berro e Alberdi dão margem ao
entendimento de que existem ao menos duas Américas, a “nativa” e a construída por
europeus. Em nenhum momento, Berro ou blancos iniciarão uma defesa pela América
“nativa”,
67
mas a possibilidade de que a “América Blanca” seja uma expansão da
civilização espanhola conseguiria salvá-la da alcunha de bárbara.
Originalmente, o texto de Berro fora uma resposta a Manuel Herrera y Obes,
uma vez que este também acreditava que a Europa seria necessariamente civilizada,
enquanto que a América representaria sua infeliz oposição bárbara. Este autor
colorado se manteve na esteira sarmientiana de separação nítida entre dois modelos
ideais de sociedade, o bárbaro e o civilizado. Ainda que esses dois elementos
contrários possam coexistir, seriam necessariamente antagônicos, categorias inimigas
que escolheram o Prata como palco para a resolução dos seus conflitos. Na versão
unitária e colorada, a civilização deve erguer uma guerra sem tréguas aos bárbaros, e
já veremos como não apenas os indígenas foram incluídos nessa categoria, mas
também receberam essa classificação os federais e os blancos.
A consagração da palavra civilização na literatura tida como científica é
acompanhada por um uso cada vez mais indiscriminado da sua acepção na política e
na legitimação de certas ações. A civilização adquire uma autoridade apta a exercer
um poder mobilizador capaz de acender conflitos entre grupos políticos ou intelectuais
rivais. O civilizado demoniza o bárbaro, e, assim, alguns indivíduos pretendem se
67
Os federais valorizavam a figura do gaúcho como parte de um “americanismo”. Mas ainda que o
hibridismo cultural do gaúcho - uma mistura de indígenas e espanhóis - exista, este estava incluído no
que se considerava “civilização”, ao contrário das tribos nômades que eram combatidas, colocadas
entre os bárbaros. Em uma empresa que engrandeceu seu prestígio, Rosas será responsável pela
expansão das fronteiras argentinas em guerras contra os indígenas ao sul da Província de Buenos
Aires.
105
apresentar como os legítimos detentores do monopólio da sua propagação.
68
A
civilização é o critério pelo qual se julgarão os demais, e sua defesa poderá, inclusive,
legitimar o uso da violência. No caso francês, “a linguagem pós-revolucionária
consagrava-se a identificar os valores sagrados da Revolução com os da civilização e,
em conseqüência, consagrava-se igualmente a reivindicar para a França, país da
Revolução, o privilégio de ser a vanguarda (ou o farol) da civilização”.
69
Na
Argentina, membros do Partido Unitário e da Geração de ‘37 adotarão atitudes
semelhantes, reivindicando para si a posição de revolucionários condutores da
civilização, relegando seus inimigos ao papel de bárbaros reacionários.
Voltando à segunda parte do Facundo, repleta de ataques sutis ou abertos a
Rosas, a biografia de Quiroga emerge como porta de entrada para a explicação de uma
“natureza” e de uma história para o Prata. Principalmente através de Quiroga, mas
também por outras personagens, os tipos ideais do homem platino estarão presentes
nas personalidades de indivíduos como Artigas e Rivera. Este é o baqueano típico,
conhecedor dos caminhos e segredos do pampa, enquanto que, “si el lector no se ha
olvidado el baqueano y de las cualidades generales que constituyen el candidato para
la comandancia de campaña, comprenderá fácilmente el carácter e instintos de
Artigas”.
70
Todavia, a biografia de Quiroga, homem que conhece a ascensão através da
revolução, da independência e dos conflitos entre unitários e federais, é um caminho
em que se acompanha a própria história da Argentina das primeiras décadas do século
XIX. Quiroga fornece um exemplo e um sentido, pois seria o “produto natural da
sociedade argentina num determinado ponto de sua evolução”.
71
É na natureza de
Facundo e de Rosas, exemplos máximos da barbárie platina
72
que se encontram as
68
STAROBINSKI, Jean. op. cit. p. 32.
69
Ibid. p. 35.
70
SARMIENTO, op. cit., pp. 70/81.
71
COELHO PRADO, Maria Lígia. Para ler o Facundo de Sarmiento. In: América latina no século
XIX: tramas, telas e textos. São Paulo : Editora da USP, 1999. p. 162.
72
Sarmiento confere a Facundo a categoria de “bárbaro ingênuo”, enquanto que Rosas é transforma a
barbárie em sistema de governo, racionalizando-a. “Rosas no ha inventado nada; su talento ha
106
origens das guerras civis que tanto assolam o Prata, preocupam seus habitantes e
atrasam seu progresso rumo à civilização.
No Uruguai, Manuel Herrera y Obes publicou uma interpretação semelhante
apenas dois anos depois. Não é possível afirmar que este tenha lido o Facundo, uma
vez que em nenhum momento faz menção a esta obra, mas é pertinente observar que
as idéias de ambos estavam inseridas em um campo de idéias que abrangia ambas as
margens do Rio da Prata. Sarmiento, ainda que grande difusor, não inventou a
oposição entre civilização e barbárie. Tanto Herrera y Obes como Sarmiento estavam
sujeitos a um mesmo contexto de idéias e desafios, além de compartilharem os
mesmos inimigos. Mas, sem dúvida, o segundo não contradiz o primeiro; ao contrário,
conduzem seus esforços de guerra para a mesma direção. Porém, a versão de Herrera y
Obes está adaptada à história da antiga Banda Oriental. Por este motivo, a história que
é contada se concentra mais em Rivera e em Oribe, antigos seguidores de Artigas e,
em seguida, líderes dos partidos em conflito da ‘Guerra Grande’. Mais do que isso, seu
texto se posiciona num ponto específico da história do partido colorado: a quebra
formal entre o Governo de la Defensa de Montevidéu e seu antigo líder, Fructuoso
Rivera.
Qual o significado atribuído a este rompimento? Herrera y Obes o transforma
na expurgação definitiva dos resquícios de barbárie que ainda infectavam o Partido
Colorado. A expulsão de Rivera seria também uma transformação total de sentido para
a ‘Guerra Grande’. Esta deixaria de ser uma mera disputa entre caudilhos pela
presidência da república para se tornar uma guerra aberta entre a civilização e a
barbárie. Nesta interpretação, os paladinos do progresso e da civilização se
encontravam na defesa de Montevidéu.
O blanco Francisco Solano Antuña, nos seus diários do sítio da capital,
descreve as tropas que, além das formadas por homens colorados, defendiam a cidade:
consistido sólo en plagiar a sus antecesores y hacer de los instintos brutales de las masas ignorantes un
sistema reeditado y coordinado fríamente”. SARMIENTO, op. cit., p. 82.
107
“Un vice-almirante frances imbecil ó chocho llegó para tolerar y animar con su
aquiesciencia el armamento de dos mil franceses que uniformados y con sus banderas
y escarapelas francesas forman alineados con los negros y unitarios argentinos”.
73
Todos esses grupos, inclusive com a contradição dos batalhões formados por libertos
(escravos até a abolição de 1842 e imediatamente armados e incorporados à guerra),
apareciam, para os colorados, como defensores da civilização. Estes eram comandados
pelo núcleo do partido colorado, associado a exilados unitários e a europeus
imigrantes.
74
Assim, nas palavras de Herrera y Obes, a separação entre a campaña e a
cidade já anunciada por Sarmiento estava, mais do que nunca, comprovada pelo cerco
a Montevidéu:
Se armaron hombres para resistir (...); y, sin saberlo, se armaron con ellos las ideas para
resistir a la fuerza; la Ciudad para resistir al Campo.
Hace apenas 6 años que cualquier caudillo de departamento, se habría reído si le hubiesen
dicho que la Capital se había convertido en arsenal, y sus habitantes de frac en soldados.
Hoy es un echo, y no se ríe de él todo un ejército imponente.
75
Nas palavras irônicas de Alberdi, o partido unitário é o “partido inteligente”.
76
E repetindo, “las ideas para resistir a la fuerza”. Tanto o partido unitário como o
colorado, já sem Rivera, conferem a si próprios a nobreza das “idéias”, atribuem aos
federais e blancos o papel de bárbaros, cujas discutíveis qualidades estariam
73
ANTUÑA, Francisco Solano. Escritos históricos, políticos y jurídicos Del Dr. Francisco Solano
Antuña: Nº 3 – Diario llevado por el Dr. Francisco Solano Antuña sobre los sucesos ocurridos en la
República durante el año 1843. Revista Histórica. Montevidéu : Publicación del Museo Nacional,
1974. p. 486.
74
Sala de Touron e Alonso Eloy apontam uma estimativa de 42.000 habitantes para Montevidéu em
1842. Destes, 2000 franceses formavam a Legião Francesa comandada pelo “bonapartista Thiebaut”;
600 italianos sob ordens de Giuseppe Garibaldi (aqui ali esteve entre 1842-1848); 500 emigrados
argentinos e 700 espanhóis. Citando Mitre, estas autoras escrevem que o batalhão de libertos contava
com 11.000 soldados, respondendo à metade dos “nacionais” armados, o que conduz a uma estimativa
de 25.800 para o total das forças da defesa, correspondendo a aproximadamente 61,4% do total da
população da capital. SALA DE TOURON, Lucia; ALONSO ELOY, Rosa. El Uruguay comercial,
pastoril y caudillesco. Tomo II: Sociedad, política e ideología. Montevidéu : Banda Oriental, 1991.
pp. 24/64/317.
75
HERRERA Y OBES; BERRO, op. cit., p. 16.
76
ALBERDI, Fundamentos... op. cit., p. 201.
108
localizadas na força bruta e na sua capacidade de mobilizar uma população gaúcha
ainda mais selvagem do que seus líderes. Incapazes estes “intelectuais” de
organizarem forças semelhantes àquelas dos caudilhos, sustentavam suas ambições na
legitimidade intelectual.
É importante entender que o pensamento colorado e unitário tem pouco
interesse em aumentar o alcance da participação política para toda a população. Ao
contrário do que se poderia supor, se os blancos e federais conferem a si mesmos o
apoio da maioria da população, seus inimigos, que parecem não discordar deste fato,
declaram que essa população não passa de um amontoado de gaúchos selvagens
segundo o modelo sarmientiano. Desta forma, o argumento blanco de que o ‘Governo
del Cerrito’ seria o verdadeiro nacional por ter ao seu lado uma construída vontade
popular é desconsiderado por um rótulo de incapacidade colocado na sua população. O
‘Governo de la Defensa’, que se conforma em contar com uma minoria de orientais
ajudados por batalhões de libertos excluídos da condição de nacionais e estrangeiros
europeus, pretende estabelecer sua legitimidade em uma missão civilizadora para o
Prata. Mas que missão é essa?
Retomando as idéias de Alberdi, que em momento algum se declarou
unitário, mas propunha a fusão das idéias dos dois partidos, a civilização ocidental
teria percorrido um longo caminho de civilizar-se que pode ser traçado desde a Grécia
Clássica. Em determinado momento, já estabilizada, ela passou a expandir-se pelo
resto do globo, alcançando as Américas. Assim, a Espanha aparece como uma
condutora da civilização, carregando-a consigo através da conquista. Porém, com o
gradual declínio espanhol, perdendo seu espaço de potência européia para a Inglaterra,
ao invés de manter sua empreitada civilizadora, a metrópole ibérica estaria então
embaraçando o desenvolvimento das Américas com seu monopólio e isolamento
colonial. É neste ponto que a Revolução de Maio e a independência encontram um
significado civilizador. A Revolução detém um papel decisivo para este contexto.
109
Como afirmou Antuña em seu diário, o mês de maio é “el mes de America”.
77
A
revolução se torna uma revolta em prol do progresso e da modernidade contra um
antigo regime colonial. A Espanha torna-se, senão bárbara, uma civilização atrasada
ou decadente. Por esta razão, a atitude mais acertada teria sido a da independência,
acompanhada de uma conseqüente liberação dos entraves coloniais que, do ponto de
vista liberal, conduziriam o antigo vice-reinado do Prata a uma condição de atraso
econômico e social.
A importância dada à Revolução, mitificada e percebida como um momento
crucial de impulso de um progresso civilizador, já era aceita por colorados e unitários
da década de 1840. Herrera y Obes, em suas publicações de 1847, já explicava as
guerras civis platinas como prolongamentos do movimento revolucionário das idéias
de Maio de 1810:
Una organización social inveterada por tres siglos, no se aniquila en los combates como el
poder militar; y una revolución como la revolución americana no limita su empresa en el
triunfo de la independencia política. La lucha de una y otra debía proseguir más allá de la
guerra de la emancipación material, pasando del campo de los combates con la España, al de
las resistencias morales entre nosotros mismos.
Em relação ao papel do reino espanhol na América e a estes embates “morales
entre nosotros mismos” que a herança ibérica impunha, Sarmiento se aproxima apenas
levemente da explicação de Alberdi ao opor as cidades de Córdoba e Buenos Aires.
78
A primeira é a representação do mundo colonial fechado a inovações e contaminado
pelo poder eclesiástico. A segunda é a cidade aberta ao comércio e às idéias, onde os
intelectuais discutem livremente suas opiniões sem temer a intervenção da igreja ou da
metrópole. Contudo, pouco interessado em valorizar algum papel civilizador que o
mundo ibérico possa ter desempenhado na América colonial, Sarmiento se preocupa
mais em afirmar que, em 1845, a herança espanhola é um atraso e, nas mãos dos
federais, um instrumento de retrocesso. No Uruguai, Herrera y Obes dá à cultura
77
ANTUÑA, op. cit., p. 472.
78
SARMIENTO, op. cit., pp. 113-125.
110
ibérica um caráter autodestrutivo fortemente associado à suposta barbárie blanca e
federal: “Fuimos educados por la España. Por la España que con la punta de su espada
ha escrito las páginas de su historia; el pueblo guerrero por excelencia, que cuando no
ha tenido pueblos extraños con quienes combatir, se ha puesto un sable en cada mano
y se ha hecho pedazos sus miembros, por no perder la costumbre de batirse.”
79
A
cultura ibérica e a barbárie americana são responsáveis pela manutenção das guerras
civis que tanto destroem os estados platinos.
A partir desta visão, os blancos e federais são colocados como reacionários ou
contra-revolucionários, inimigos da revolução civilizadora de Maio. Marchando contra
as idéias unitárias e coloradas, que por lógica seriam as da civilização e da revolução,
são enquadrados como uma reação de um mundo colonial que resiste às
transformações do progresso. A partir desta interpretação, unitários e colorados
desenham um espaço social e procuram adequar cada ator dentro de um esquema de
pensamento que dá sentido a esta sua história: “Bustos, López, Quiroga, Ibarra, y por
último Rosas en la República Argentina, no han sido otra cosa que los delegados del
pueblo esclavo de las colonias que se reaccionaba contra el pueblo libre de la
revolución.”
80
Neste trecho, Herrera y Obes coloca claramente dois grupos em
conflito. Existe um povo que é escravo do atraso, preso a um passado colonial tanto
pelas idéias como pela força. Mas existe outro que é o livre, o da revolução. A este
compete a tarefa de combater a barbárie, mantendo a civilização no seu curso natural
de desenvolvimento. Desta forma, temos um nítido sentido dado à revolução como um
episódio a mais de um progresso da civilização européia que se prolonga pela
América. Temos um discurso político, um projeto civilizador, que se considera
condutor de um progresso civilizador natural e inerente à sociedade européia. Com
essa versão maniqueísta em que de um lado existem bárbaros e, do outro, civilizados,
79
HERRERA Y OBES; BERRO, op. cit., p. 8.
80
Grifo meu. Ibid., p. 34.
111
os adversários são posicionados contra o encaminhamento natural da história, e, assim,
contra a Revolução de 25 de Maio 1810.
Descrevendo a origem do desvirtuamento original da revolução, Herrera y
Obes segue o seguinte raciocínio. Nas suas origens, em Buenos Aires, a Revolução de
Maio fora idealizada por uma elite criolla. Mas esta não era capaz de conduzir a guerra
sozinha, pois não detinha a força física necessária para combater os exércitos
espanhóis na guerra de independência. Como então mobilizar os gaúchos da campaña?
Estes seriam conduzidos por uma simplificação dos ideais revolucionários, apelando
para uma ideal liberdade, um ideal patriotismo. E, então, aparecem os caudilhos, os
homens que conseguirão, com seu poder pessoal, conduzir os gaúchos até a guerra.
Assim, o que poderia ser uma continuidade entre revolução e guerra, para Herrera y
Obes, aparece como uma nítida separação entre estas duas. A revolução pertence às
idéias e à elite. A guerra pertence aos caudilhos e aos gaúchos. Os gaúchos se armam
por uma questão de necessidade prática; é um efeito secundário não desejado, mas
necessário. E é justamente neste ponto que surge a figura de Artigas, pois, ao contrário
do que ocorre em Buenos Aires, este caudilho oriental tem como núcleo de seu poder a
campaña. E ainda mais contraditoriamente, Montevidéu se torna um baluarte realista
de resistência à revolução. Assim, esta conhecera seu primeiro sítio em 1812 por uma
força conjunta de artiguistas e expedicionários porteños.
Mas a origem do desvirtuamento da revolução está no problema de que, tanto
durante o processo revolucionário como mesmo após a vitória dos criollos sobre os
espanhóis por todo o continente, os civilizados não conseguiram desarmar a
população. Assim, caudilhos diferentes de partidos rivais carregaram consigo as armas
desses selvagens gaúchos e, por interesses pessoais, assolaram o território dos novos
estados independentes com uma guerra civil que parecia não ter fim. A elite de Buenos
Aires teve sérias dificuldades em controlar seus grupamentos armados, assim como
encontrou graves problemas na tentativa de impor uma versão unificada para a
112
revolução. Por este motivo, Artigas aparece como uma das primeiras e mais fortes
dissidências da Revolução de Maio.
Na década de 1840, para a interpretação unitária e colorada, os caudilhos são
os grandes culpados pelo desvirtuamento da revolução. Mais do que isso, eles se
tornaram uma força reacionária que procurava manter diversos elementos coloniais nas
novas repúblicas. O produto desejado da revolução não deveria se limitar apenas a
derrubar o poder do rei espanhol na América, mas sim implantar um Estado
“moderno” e diverso do colonial. O território que depois se transformaria no atual
Uruguai também vivera a Revolução de Maio e, de certa forma, sentia-se parte dela.
Maio faria parte de um processo revolucionário que encontrava seu início na deposição
do último vice-rei, mas que ainda se prolongava pela ‘Guerra Grande’ no Uruguai,
pela luta contra Rosas na Argentina. Para Manuel Herrera y Obes, a revolução ainda
estava incompleta em 1847:
Una Ciudad Capital que se hace guerrera; resiste cinco años a un ejército formado de todos
los elementos acostumbrados a ser vencedores entre nosotros; que para esa resistencia se
crea hombres y principios nuevos; y establece de más cerca relaciones con la Europa, no es
un hecho en la América que puede tener un carácter vago y de transición; todo eso es
colocarse ciertamente sobre las bases mismas de la revolución americana.
81
Para além da simples propaganda política, como o artiguismo e o federalismo
podem aparecer como forças reacionárias? Primeiramente, é preciso observar que, para
a interpretação colorada, estes dois movimentos podem ser facilmente entrelaçados.
Artigas é o principal articulador da ‘Liga Federal’, projeto de constituição argentina
rival à inicial política centralizadora da Buenos Aires revolucionária. Enquanto o
artiguismo existiu, para as chamadas províncias do Litoral, ele foi praticamente um
sinônimo de federalismo. Como Halperín Donghi indica, afetada a Banda Oriental pela
invasão portuguesa de D. João VI iniciada em 1816, a decadência do artiguismo
conduziu seus aliados das demais províncias a utilizarem a nome de liberales para
81
Ibid., p. 60.
113
designar os grupamentos políticos que compunham.
82
Mais tarde, contudo, o
federalismo surgiu com maior intensidade como uma resistência ao movimento
unitário que também crescia e que se desenhava através de personalidades como a de
Bernardino Rivadavia. No mínimo, seria muito arriscado afirmar que o federalismo de
Rosas e o de Artigas tinham em comum algo além de se oporem a projetos
centralizadores como os dos unitários. Mas é correto dizer que, do ponto de vista do
‘partido inteligente’, Rosas e Artigas eram integrantes de um mesmo grupo: o da
barbárie da campaña.
Em uma publicação póstuma de crítica ao já presidente Sarmiento, Alberdi
anuncia que Artigas é o “baqueano, contrabandista (...), caudillo de las masas de a
caballo, es el mismo tipo que con ligeras variantes continúa reproduciéndose en cada
comandante de campaña que ha llegado a hacerse caudillo”.
83
E ele coloca o líder
oriental como inventor da montonera, um dos grandes males que atingiriam o Prata:
“Artigas y su sistema de guerra – la montonera –, surgió de la revolución de la
independencia. No podía tener una forma más natural y normal, la guerra de la
revolución sudamericana (...)”.
84
Assim, se tomarmos como referência os escritos de
Sarmiento, Herrera y Obes e Alberdi, ainda que este discorde com freqüência do
primeiro, Artigas é identificado como um dos pioneiros da mesma barbárie que,
depois, acolherá o governador Rosas; ele é também um dos primeiros caudilhos a se
aventurarem por uma guerra entre a campaña e a cidade.
Ao estudar as Bases economicas de la revolución artiguista, José Pedro
Barrán e Benjamin Nahum extraem de Artigas uma combinação de tradição e
revolução.
85
Mesmo antes de concluído o período colonial, a presença espanhola já
preparava uma reorganização do sistema de propriedades agrárias da região. O
82
HALPERÍN DONGHI, T. Revolución y guerra. Buenos Aires : Siglo XXI, 1994. p. 318.
83
ALBERDI, Proceso... p. 43.
84
Id.
85
BARRÁN, J. P.; NAHUM, B. Bases económicas de la revolución artiguista. Montevidéu : Banda
Oriental, 1972. p. 84.
114
chamado arreglo de los campos tinha como principal objetivo promover uma nova
repartição de terras sob o argumento de que uma efetiva ocupação não apenas
contribuiria economicamente à colônia, mas também ergueria um obstáculo ao avanço
português vindo do norte. Este projeto pretendia repartir terras que ainda restavam sob
propriedade do estado, assim como as mal aproveitadas estâncias de longa extensão.
Artigas acompanhou o Capitán de Navío Félix Azara em uma viagem à
campaña cujo objetivo era a fundação do povoado de Batoví em 1800. Azara escreveu
a Memória sobre el Estado Rural del Rio de la Plata, obra que, analisando a situação
da campaña, reafirmava a necessidade de retomar o arreglo de los campos. É possível
conceber que, neste contato, Artigas tenha tido a oportunidade de discutir os termos
daquele esforço reformista. Mas está no Reglamento Provisorio de la Provincia
Oriental para el fomento de su Campaña y Seguridad de sus Hacendados de 10 de
setembro de 1815 a marca de que Artigas manteve o interesse em realizar uma
“reforma agrária”. Desta forma, é retomada a tradição espanhola de direito fundiário,
sobre a propriedade de terras e seu aproveitamento. A terra é uma concessão do
Estado, cedida ao súdito como uma permissão de uso que pode ser perdida caso o
favorecido não atenda a suas obrigações de exploração. Artigas tentou aplicar essa
tradição em 1815, mas, como argumentam Barrán, Nahum e Donghi, este esforço não
foi muito bem sucedido. As poucas terras desapropriadas e redistribuídas pertenciam
aos considerados inimigos da Revolução, e o resultado deste projeto foi se apagando
com a decadência do artiguismo frente à entrada portuguesa de 1816.
É interessante perceber como o artiguismo surge na historiografia uruguaia
como uma revolução em separado da contemporânea argentina. Os títulos dos livros
dedicados ao seu estudo o comprovam: temos o já citado Bases econômicas de la
Revolución Artiguista, mas também o Raíces coloniales de la Revolución Oriental de
1811 de Pivel Devoto, e os trabalhos da equipe formada por Lucia Sala de Touron,
115
Nelson de La Torre e Julio Rodríguez, como o livro Artigas y su revolución agrária.
86
Mesmo em historiadores argentinos, a adesão de Artigas à Revolução de Maio logo se
torna uma revolução com características próprias, como fica exposto pelo capítulo da
obra Revolución y Guerra de Halperín Dongui, La otra revolución: Artigas y el
Litoral.
87
Neste último exemplo, a Revolución do título é a Revolução de Maio, a do
capítulo, é a artiguista.
Primeiramente, a diferença entre os dois casos está na origem dos indivíduos
que os compõem. Na versão da Banda Oriental, temos uma “revolución de multitudes
campesinas, no de minorías ilustradas urbanas como el golpe del 25 de Mayo de 1810
en Buenos Aires”.
88
Nesta historiografia uruguaia, Artigas carrega esse charme de
apelo popular que logo o tornaria irresistível à corrente marxista, não muito adequada
para classificar Barrán e Nahum, mas mais correta para o caso da equipe de Sala de
Touron. Neste caso, a revolução de Artigas é a revolução camponesa da Banda
Oriental, e a reforma do arreglo de los campos recebe o sentido de reforma agrária
defendido pela esquerda do século XX. Barrán e Nahum, mas também Gélman
89
e
Donghi, atenuam essa carga revolucionária ao observar como a reforma da campaña
está mais ligada a uma tradição colonial espanhola do que à própria revolução. Mas,
para além desta adesão popular, Artigas e sua ‘Liga Federal’ representam, acima de
tudo, um projeto revolucionário rival ao porteño.
Por outro lado, para o Herrera y Obes de 1847, são justamente as
características acima colocadas as responsáveis por fazer da Revolução Artiguista um
projeto não revolucionário, enfatizando seu caráter ibérico de antigo regime. Como já
foi visto, a adesão popular não conseguiria legitimar aquele movimento, uma vez que
86
PIVEL DEVOTO, J. Raíces coloniales de la Revolución Oriental de 1811. Montevidéu : Editorial
Medina, 1957. SALA DE TOURON, L.; TORRE, N de la; RODRÍGUEZ, J. Artigas y su revolución
agraria. Cidade do México : Siglo XXI, 1978.
87
HALPERÍN DONGHI, Tulio. Revolución... pp. 279-315.
88
BARRÁN; NAHUM, op. cit., p. 89.
89
GELMAN, Jorge. Campesinos y estancieros: una region del rio de la plata a fines de la epoca
colonial. Buenos Aires : Editorial Los Libros del Riel, s/d.
116
o gaúcho, o homem do campo, não passaria de um bárbaro, um selvagem. E Barrán e
Nahum parecem concordar com essa imagem, ainda que retirem todo o julgamento
negativo construído por Herrera y Obes e seus contemporâneos, pois se referem a um
suposto “obstáculo cultural” de “indole nomádica del gaucho” que o tornaria
incompatível a uma suposta vida civilizada e sedentária.
90
Mas, para entender como a
elite montevideana entendeu o levantamento das massas artiguistas, se nos for
permitido utilizar a palavra massas, Barrán e Nahum escrevem que na “medida que la
Revolución comenzó a avanzar, y por su misma dinámica, a escapar del control de sus
primeros creadores, a medida que las multitudes urbanas y luego campesinas
empezaron a interesarse y a vivir el proceso revolucionario, los patriciados temieron el
resultado final de un cambio que habían iniciado y escapaba rápidamente a su
control”.
91
E é esta a conclusão de Herrera y Obes. A Revolução de Maio fez a guerra,
pois a necessitava para expulsar o inimigo espanhol. Mas a própria dinâmica da guerra
deu poder a caudilhos que a desvirtuaram, tornando-a uma batalha de interesses
pessoais na busca pelo poder.
Donghi, em Revolución y Guerra, aponta como a guerra criou diversas
oportunidades de ascensão social, elevando diversos indivíduos a posições de
liderança. O autor também indica como, naquele contexto, o poder seria mais
acertadamente medido pela quantidade de homens que determinada posição poderia
mobilizar.
92
Entre outros possíveis exemplos, foi assim que Artigas pôde ascender à
posição de líder regional. Abandonando um modesto cargo burocrático de
Montevidéu, Artigas lançou-se à revolução, na qual foi elevado ao título de ‘Protector
de los Pueblos Libres’.
93
E a carreira da revolução igualmente conduziu Manuel Oribe
90
BARRÁN; NAHUM, op. cit., p. 107.
91
Ibid., p. 90.
92
HALPERÍN DONGHI, Tulio. Revolución...
93
BETANCUR, Arturo Ariel. En busca del personaje histórico José Artigas: breve análisis de su
relacionamiento con el núcleo español de Montevideo. In: FREGA, Ana e ISLAS, Ariadna. Nuevas
miradas en torno al artiguismo. Montevidéu : Faculdad de Humanidades y Ciencias de la
Educación, 2001. pp. 247-260.
117
e Fructuoso Rivera para posições de destaque. Já na década de 1830, com um Uruguai
recentemente independente, estes serão, respectivamente, os principais condutores dos
partidos blanco e colorado que iniciam o conflito civil conhecido por ‘Guerra
Grande’. Herrera y Obes escreve justamente quando os colorados expulsam das suas
filas o caudilho Rivera. É neste ponto, então, que o conflito entre poderes pessoais
caudilhescos se transforma, enfim, em uma luta entre a revolução e a contra-revolução,
entre a civilização e a barbárie:
Bien, pues, colocado el General Rivera, al frente de nuestras masas; constituido en su
órgano, y en su representante inamovible; dueño del país desde el gobierno hasta el último
peón de estancia; con ese carácter inconsecuente y desarreglado; con ese corazón sin fe, y
con esa inteligencia desilustrada; con todas sus habitudes indolentes, y todos sus celos y
susceptibilidades, ¿qué podría ser, decimos, el General Rivera, sino el disolvente más eficaz
en la organización social?
(...)
Ausente del país el General Rivera, queda perfectamente definido el principio de cada uno
de los dos contrarios en la presente guerra: Rosas por una parte invadiendo con el principio
bárbaro; el gobierno de la República resistiendo, por otra, con el principio civilizador.
94
Assim como a Geração de ’37 em geral, Herrera y Obes constrói uma versão
própria para o movimento de independência e para a Revolução. Como foi apontado
ao início deste capítulo, este grupo considerava a si mesmo um avanço intelectual
frente aos antigos unitários e demais atores originais da Revolução de Maio e da
inócua organização estatal da década de 1820. Sua versão, já distante dos termos
iluministas que legitimaram os primeiros unitários, conferiu um sentido histórico tanto
para o Prata quanto para seus próprios idealizadores, erguendo uma hierarquia social
baseada em preceitos intelectuais altamente excludentes. Com a purificação política do
Partido Colorado, este receberia a missão de eliminar os caudilhos da cena platina,
conduzindo sua sociedade a um próximo estágio rumo ao progresso:
Rivera, Lavalleja, Oribe, Rosas, todos estos nombres en quienes está el pueblo acostumbrado
a ver personificadas las guerras que lo despedazan, no son sin embargo sino la expresión
inmediata de la época y de la sociedad en que figuran. Así, pasada la época, y purificada la
sociedad, ninguno de esos nombres podrían reproducirse en ella. Así también, la
94
HERRERA Y OBES; BERRO, op. cit., pp. 42/54.
118
desaparición de uno de esos hombres en la escena política (...) es un gran paso que da, sin
saberlo, la sociedad entera al término de su situación (...).
95
2.4 A RESPOSTA BLANCA DE BERNARDO PRUDENCIO BERRO
Em resposta ao texto de Herrera y Obes, Bernardo Prudencio Berro (1803-
1868) publicou seu revide no El Defensor de la Independencia Americana entre 20 de
dezembro de 1847 e 17 de março de 1848.
96
Se fizermos uma breve revisão da sua
trajetória, já o encontraremos integrando a redação do La Diablada, uma publicação
anti-riverista, em 1832. Desde o início, esteve ao lado de Oribe e, representando o
partido blanco, ingressou na Cámara de Representantes em 1837.
97
Morou do Rio de
Janeiro entre 1842 e 1844, ano em que retornou ao Uruguai para unir-se mais uma vez
a Oribe no ‘Governo del Cerrito’, desempenhando o cargo de Ministro de Gobierno
desde 1845. Será presidente da república entre 1860 e 1864. Terminará sua vida na
prisão do cabildo da capital, assassinado em 1868 após uma mal-sucedida tentativa de
golpe de Estado.
Enquanto se ateve a contra-argumentar o artigo colorado, Berro deu às
palavras revolução e civilização um sentido diverso da interpretação colorada,
iniciando uma competição estratégica de conceitos e história. Uma análise atenta à
versão blanca de civilização percebe que Berro não se destinava a delimitar uma idéia
acabada ou sistematizada, seu objetivo era muito mais modesto, concentrava-se apenas
em refutar ponto a ponto os argumentos de Herrera y Obes.
Ao ler essa precedente publicação colorada no jornal El Conservador, de que
forma poderia Bernardo Berro defender a posição do seu partido? Atribuindo a missão
civilizadora aos blancos e a si mesmo, declara: “¿Cómo podrían ellos, si obrasen de
buena fe, arrogarse una misión que nos pertenece evidentemente y creerse con una
95
HERRERA Y OBES (5)
96
Ibid., pp. 67-155.
97
Equivalente à Câmara dos Deputados.
119
actitud que por precisión han de ver que no tienen?”, “¿cómo se puden comparar con
nosotros en poder y en justicia?”
98
Mas é importante frisar que Berro tem uma outra
versão para a civilização. Aqui, ela enfatiza um sentido de coesão social (justamente o
que, na opinião de Sarmiento, falta aos gaúchos), algo que mantém as pessoas unidas
em torno de objetivos ou interesses comuns. Assim, como veremos no parágrafo
seguinte, qualquer sociedade que atenda a esta qualidade, mesmo que considerada
tecnologicamente ou socialmente atrasada, é uma civilização.
No siempre han estado de acuerdo los filósofos, los políticos, acerca de lo que debía
entenderse por civilización. Algunos la han hecho consistir toda en la cultura del
entendimiento, y otros en la perfección del estado social. (...). Pero cualquiera que haya sido
la diversidad de modo de entender la civilización, hoy parece ya convenido que ella abraza
ambos desarrollos, el social y el intelectual. En este concepto diremos que la civilización no
es formada de la superabundancia de sabios y artistas y del exceso de establecimientos
literarios, sino de aquella suma de conocimientos, de instituciones y de costumbres propias
para llenar los altos fines del progreso y de la felicidad de las naciones
99
.
Uma civilização deve ser julgada
por aquel modo de ser social en que están constituidos, aquel conjunto de ideas y creencias
arraigadas en la generalidad, y aquellos hábitos y movimientos que forman la vida social.
Donde esos conocimientos, esas instituciones y esas costumbres correspondan a los fines
que más arriba hemos expresado, allí habrá verdadera civilización.
100
Esta interpretação de civilização admite uma certa diversidade de formas, pois
é um modo de ‘ser social’ até certo ponto genérico, no qual é possível se organizar um
grupo de pessoas. Civilização é coesão social. Barbárie é dissociação, o que lembra um
pouco as idéias do seu inimigo Sarmiento a respeito do deserto: grandes distâncias e
pouca população como causas da baixa associação entre os homens, o que os conduz a
um individualismo egoísta e bárbaro. Ainda que se deva ter cuidado nesta
aproximação, Berro não discorda totalmente a respeito do entendimento do que seria
uma civilização ocidental:
98
Ibid., p. 102.
99
Ibid., p. 128.
100
Id.
120
El mediodía de la Europa, en que la civilización se hallaba domiciliada con el Imperio
Romano, después de la irrupción de los pueblos del Norte se vio sujeto a una larga lucha
social con la barbarie, que éstos habían introducido. Al cabo terminó la lucha por una
combinación de elementos en que figuraban, de una parte los suministrados por el
cristianismo, de otra los que quedaron de la sociabilidad romana, y de otra los que trajeron
los bárbaros y permanecieron después del choque. Verificada esta fusión, cesó la pugna, y la
civilización con el complejo de los elementos nuevamente combinados empezó a
desarrollarse, y a avanzar en su carrera más o menos rápidamente, según las circunstancias
de los pueblos en que había definitivamente prevalecido. Desde entonces en la Europa dejó
de existir la barbarie; puesto que como hemos dicho los mismos elementos introducidos por
ésta que habían quedado, se amalgamaron con los demás elementos que entraron a servir
para el nuevo desenvolvimiento de la civilización.
101
Na opinião de Berro, a civilização européia já estaria consolidada. A luta que
nela persiste não é a que se trava contra a barbárie, mas a do saber contra a ignorância,
pois
esta lucha es inseparable de la existencia de las sociedades humanas; porque siempre ha de
haber preocupados e ignorantes en abundancia aun en las naciones que más lleguen a
civilizarse, y por bien organizadas que estén, aquellos han de lograr alguna influencia y han
de oponerse muchas veces a los que más saben (...) No se puede, pues, decir que una nación
de las de Europa es bárbara porque reine en ella más que en otra la ignorancia y las
preocupaciones. Se dirá que es atrasada, poco culta; pero de ahí no se puede pasar.
102
A barbárie, para Berro, está extinta entre os europeus ocidentais. Nem estes,
nem os americanos descendentes de espanhóis podem regredir ao passado. A
civilização existe, visto que a coesão social, aquilo que torna a vida em sociedade
possível, está consolidada pelo interesse comum. E por mais ignorantes que possam
ser os criollos, isto não os torna menos civilizados, pois, como imigrantes, trouxeram
consigo os mesmos princípios de organização social que davam sentido à civilização
do velho continente:
Nuestros padres vinieron de la Europa, trajeron consigo esa misma civilización que hay en
aquella parte del mundo. Que fuesen más ignorantes que otros europeos no lo negamos; y
que sujetos con su generación al régimen colonial, participase la sociedad que fundaron de
todas aquellas cualidades que son propias de semejante modo social de existir, tampoco lo
hemos de dar por incierto: pero sí nos opondremos a pasar porque perteneciesen ellos y esa
sociedad a la barbarie.
101
Ibid., p. 129.
102
Ibid., p. 130.
121
¿Dónde está pues esa barbarie hacia la cual dicen los salvajes unitarios que queremos
volver? (...) ¿No somos cristianos como los europeos, no tenemos un idioma europeo, no
pertenecemos al mismo tipo que los europeos, no es en fin nuestra civilización lo mismo que
la de ellos?
103
E é a partir daqui que Berro se opõe com maior intensidade à versão
colorado-unitária, pois mesmo que sejam civilizadas ambas as partes em conflito, em
apenas uma está a inteligência e a justiça. Destarte, os blancos nada estariam fazendo
além de defender a ilegalidade da renúncia de Manuel Oribe, forçado a tal ato por um
golpe de estado colorado. Neste sentido, os blancos se consideram os ‘Defensores de
las Leyes’, título utilizado na luta por um estado de direito e de ordem social. Este
título se identifica também com o recebido por Rosas anos antes, o de ‘Restaurador de
las Leyes’. Como já frisava Pivel Devoto, blancos e federais consideravam-se
protetores da ordem, representando um anseio à antiga paz e estabilidade colonial.
Mas atribui-se o barbarismo da campaña aos excessos violentos dos gaúchos?
A isto ele pergunta se não seria igualmente bárbara, então, a França revolucionária?
Existiram excessos durante o Regime do Terror, mas isso não significaria que a França
fosse bárbara. Nela, como em tantos outros lugares, também conviveriam elementos
ignorantes, violentos, sábios e civilizados. A Europa não é um exemplo de perfeição
civilizada, como querem os unitários, nela também haveria um “pouco de barbárie”.
Berro defende que, ao não se darem conta disso, os unitários e colorados imaginam
ser possível copiar modelos europeus e transportá-los ao caso americano.
A escolha da França como exemplo tem um duplo sentido. O primeiro, por
sua revolução servir de inicial modelo europeu às ambições unitárias e coloradas;
segundo, por este Estado europeu anteriormente organizar dois bloqueios navais ao
porto de Buenos Aires, e, depois, por se posicionar ao lado de Montevidéu na guerra
civil. Mas, além disso, a existência de um grande número de imigrantes franceses,
estimados em 13922 para o intervalo entre 1833 e 1842,
104
muitos armados em defesa
103
Ibid., p. 131.
104
OTERO, H. A imigração francesa na Argentina: uma história aberta. In: FAUSTO, B. (org.). Fazer
a América. São Paulo : Editora da Universidade de São Paulo, 2000. p. 134.
122
de Montevidéu contra as forças de Rosas e Oribe, igualmente gerava preocupações no
lado blanco da questão. Desta forma, ao atacar a França, Berro estava minando a
sustentação da legitimidade do ‘Governo de la Defensa’. Segundo ele, o erro dos
unitários estaria em transpor para a América um modelo de revolução que seria
inadequado até mesmo para a Europa. A extremamente condenável centralização de
poder em que teria caído a França seria uma terrível inspiração para os igualmente
centralizadores unitários.
Perseguindo este mesmo objetivo de delatar as falhas do inimigo, mas neste
caso em correspondência particular, Berro chega a condenar o romantismo como
movimento estético, mas também como uma eventual versão política. Os românticos,
igualmente identificados com a França, são acusados por seu ar “afetado” de pouca
racionalidade, pois abusam da estética das emoções, tornando-se pouco lúcidos na
administração do estado e das idéias. Este blanco que prega um frio cálculo e
raciocínio nas ações, escreve sobre o “uso frecuente e inmoderado que hacen de la
poesía y de los arbitrios oratorios los escritores salvajes unitarios, en las discusiones
más graves, y en las materias que piden una reflexión más fría y reposada.”
105
Colorados e unitários costumavam trazer para si a autoridade civilizadora da
arte.
106
Sarmiento denuncia que Rosas não teria nenhum escritor ou poeta ao seu lado,
e que boa parte destes artistas haviam fugido da opressão, cruzando o Prata em direção
ao refúgio de Montevidéu.
107
“Desde 1836 empezaron a llegar a Montevideo de
emigrados, y mientras Rosas dispersaba la población natural de la República con sus
atrocidades, Montevideo se agrandaba en un año hasta hacerse una ciudad floreciente
y rica, más bella que Buenos Aires y más llena de movimiento y comercio”.
108
De
certa forma, é “bonito” ou “esteticamente bem definido” ser inimigo Rosas. Os
105
HERRERA Y OBES; BERRO, op. cit., pp. 67-68.
106
O maior destaque era dado à literatura, mas, de forma mais modesta, poderia aparecer em outros
campos. Alberdi era também um aclamado pianista. KATRA, op. cit., p. 73.
107
SARMIENTO, op. cit., p. 231.
108
Ibid., p. 236.
123
blancos não ignoram esta argumentação unitária, e não abdicam da tentativa de
enfraquecê-la. Vejamos como Berro descreve um romântico, em geral visto como
colorado ou unitário:
Observemos a un romántico. Va por la calle, es decir, por un paraje público: lleva la vista
baja, distraída y lánguida; sus pasos son flojos, su andar lento, su cuerpo caído y como
abandonado a sí mismo; el sombrero echado para atrás tapando bien la nuca y descubriendo
la frente vaporosa y ancha; el pelo partido y arrojado hacia abajo por entrambas sienes, bien
alisado, bien largo y pendiente a manera de sauce llorón y en la punta doblado para adentro
contra lo natural, y contra la hermosura, una buena barba unida, y espesa, bigotes y pera, el
cuello de la camisa también doblado para abajo; el traje bien escurrido; todo manifestando
un abandono, un desaliño, una melancolía mística que da lástima. Y bien, este romántico
será algún profundo varón, algún nuevo Rousseau, algún nuevo Young. Pues, no, señor, es
un mozalbete en cuya alma rebosa la travesura y la vivacidad, es un estudiante desaplicado y
botafuego que va a una diligencia de prisa; pero es preciso afectar ese exterior de
negligencia, esa falta de compostura y arte, aunque bien sabe él que esa afectación es toda
puro arte, y pura compostura. Finge pues, lo que no es; y he aquí el principio de la
hipocresía.
109
O movimento literário romântico tinha como tarefa demolir a “decrépita”
tradição espanhola. A luta entre romantismo e o classicismo eram uma continuação do
movimento de independência. Seus integrantes defendiam o romantismo como o
liberalismo na literatura e, por este motivo, costumavam denominar-se ‘liberales’.
Seus projetos literários e políticos andavam juntos e se confundiam. A Crítica de
Buenos Aires os chamava de ‘romanticistas’, mas eles preferiam reconhecer-se por
socialistas’ ou ‘ecléticos’.
110
Sua maior influência era a França, mas após as
revoluções de 1848, não apenas abandonaram a palavra “socialismo”, como ainda
defendiam uma limitação dos exageros literários e do pensamento político do início da
Revolução Francesa. Desta forma, a referência principal também é transferida da
França para o modelo Norte-Americano.
Esteban Echeverría publicou sua primeira obra, Elvira o la novia del Plata em
1832. Dois anos depois, lançaria a primeira poesia de clara orientação romântica da
109
BERRO, B. P. Escritos selectos. Montevidéu : Ministério de Instrucción Pública y Previsión
Social, 1966. p. 82.
110
KATRA, op. cit., p. 102.
124
região: Los consuelos. Bartolomé Mitre, que igualmente se destacava como poeta,
afirmava que a obra de Echeverría representava uma “Revolução Literária”.
111
Echeverría, introdutor do romantismo no Prata, também recebia uma descrição
estereotipada dos demais:
Contrastando con esta imagen de cantor para los gauchos estaba la perspectiva opuesta de
Echeverría como un poeta refinado y melancólico con un marcado sentimiento de
superioridad y aun de esnobismo. Los observadores contemporáneos lo calificaban de
meditabundo y altanero. Esta actitud derivaba en parte de los malestares físicos que lo
debilitaban y de sus tendencias neurasténicas. Según la amable descripción de Gutiérrez,
Echeverría proyectaba una imagen refinada de sí mismo, por su elegante vestimenta, traída
de París, y por su reiterado gesto de colocarse un monóculo sobre el ojo para reconocer a las
personas con quienes se cruzaba por la calle. En muchos aspectos era el poeta
latinoamericano paradigmático cuyos gustos refinados y modos de ser sensitivos chocaban
contra un entorno subdesarrollado.
112
Ao contrário de Buenos Aires, Montevidéu parecia ser o lugar ideal para a
poesia, e, incentivando sua produção, ali foram organizados dois importantes
concursos que mobilizaram boa parte da intelectualidade desta cidade em 1841 e
1844.
113
Um dos jurados destes concursos foi Florencio Varela que, membro de uma
geração anterior de unitários, ainda se apegava à estética neo-classicista. Mais do que
isso, Varela se declarava anti-romântico, julgando o valor das poesias mais por seu
conteúdo político militante do que por regras estéticas para ele um tanto duvidosas.
114
Isto explica uma certa aproximação literária entre o unitário Varela e o blanco-federal
Berro. Este último escreve uma poesia especialmente dirigida ao amigo. Sua intenção
seria alertar Varela contra os perigos das idéias unitárias, e, para isto, recorre ao estilo
neoclássico para se expressar. A resposta não apenas contém uma reafirmação destas
idéias, como ainda vem acompanhada de sugestões ou reparos estéticos à poesia do
colega.
115
111
Ibid., p. 53.
112
Ibid., p. 61.
113
Ibid., pp. 110-111.
114
Ibid., p. 110.
115
BERRO, op. cit., pp. 7-27/341-345.
125
Como foi exposto anteriormente, Varela representava um tipo de unitário que
a Geração de ’37 pretendia suplantar. O unitarismo não era originalmente apegado ao
romantismo, ingrediente apenas adicionado durante a segunda metade da década de
1830. Querendo romper com esta figura ultrapassada, Sarmiento também descreve um
destes típicos unitários antigos:
Tiene tal fe en la superioridad de su causa, y tanta constancia y abnegación para consagrarle
su vida, que el destierro, la pobreza ni el lapso de los años entibiarán en un ápice su ardor.
En cuanto a temple de alma y energía, son infinitamente superiores a la generación que les
ha sucedido. Sobre todo, lo que más les distingue de nosotros son los modales finos, su
política ceremoniosa y sus ademanes pomposamente cultos. En los estrados no tienen rival y
no obstante que ya están desmontados por la edad son más galanes, más bulliciosos y
alegres con las damas que sus hijos.
116
Em Santiago, Sarmiento se envolveu em uma disputa estética nos periódicos
locais, uma acalorada discussão pela defesa do movimento romântico contra o
neoclassicismo do venezuelano Andrés Bello, então morador desta cidade.
117
Este
enfrentamento misturava constantemente a arte com a política. Mas ainda em 1837,
Echeverría já tentava internalizar sua sede romântica
por el enfrentamiento y compartían el idealismo en su disposición a desafiar a cualquier
aspecto de la realidad que no se elevara a la altura de sus altas expectativas. Compartían su
conciencia de que ellos, la juventud enérgica del país, tenían la obligación de rebelarse
contra los esquemas arcaicos. En pocas palabras, Echeverría había logrado instilar en ellos
la indignación frente a las injusticias y el compromiso de luchar a favor del cambio social,
económico y político.
118
Invertendo mais uma vez a versão colorada, Berro atribui ao romantismo um
germe de manutenção do caudilhismo. Ainda em 1838, já alertava seu irmão Adolfo
sobre a adoção das “exterioridades del romantismo” pelos “escritores y trompeteros”
colorados.
119
“¿Qué extraño es pues que propendiendo a la anarquía literaria, se
116
SARMIENTO, op. cit., p. 122.
117
KATRA, op. cit., p. 118.
118
Ibid., p. 64.
119
BERRO, op. cit., p. 68
126
convierta ahora a la [anarquia] política?”
120
A versão do “herói romântico” estaria,
para Berro, alimentando o poder carismático do caudilho, sendo
muy propia para deleitar la imaginación y cautivar la voluntad de los que suspiran por los
extremos, que en todo buscan la hipérbole; de los que desechan el análisis, para regirse por
las impresiones, que creen en las misiones, en los profetas, que se abstraen, se remontan y
abren tamaños ojos para saciarse en la contemplación de las grandezas materiales y
espirituales, sean buenas o sean malas.
La gloria, la brillantez, las dimensiones colosales de un hombre de esa especia; la grandeza
de sus hechos, por la extensión que abarcan, puede arrebatar la mente de muchos jóvenes, e
inducirlos a pretender figurar en el grande espectáculo que los deslumbra. Un hombre como
Rivera, (...) que se rodea Del aparato de un misionero regenerador, un hombre así, puede
muy bien ser el ídolo de un romántico.
121
Se os colorados têm na Europa um modelo de arte, civilização e revolução,
nada melhor do que tê-los ao seu lado lutando em Montevidéu. Não é à toa que
Sarmiento considera os unitários e colorados como membros de um “partido
europeu”, pois estes se sentem condutores de uma civilização e de uma revolução
européia na América. Mas esta aliança entre americanos e europeus tem outros
desdobramentos. O já citado blanco Antuña denuncia em seu diário os métodos de
arrecadação de fundos do ‘Governo de la Defensa’, vendendo ou arrendando
propriedades ou permissões de exploração aos imigrantes europeus:
El Gobierno este, vendió últimamente el Fuerte á D. Francisco Hocquard (ingles) en ochenta
mil pesos, (...) Está de antes vendida la Aduana a Lafone en sesenta mil pesos plata y 150
pesos creditos contra el Gobierno (corren hasta el 5 y 6 p%) con parte de retrovendendo en
dos anõs...
Nose quanto se pagará de alquiler á Mr. Purvis por el alquiler del antiguo Parque de Ings.
Donde está Policia y por el de la plazoleta que alguna renta há de producir. El hospital del
Rey lo compraron unos panaderos franceses; y és notable que estos y Pernin, panadero
tambien, fueron los que mas hicieron por el armamiento de los franceses; acaso por que lo
que habían de entregar á plazos les hacía mas cuenta pagarlo en el pan de raciones para sus
paisanos, pues aquellos son los proveedores.
El teatro lo vendió el Gobierno á Domº Correa (oriental) y al portugues Figueira, que
revendieron á unos franceses. La plaza no se ha vendido todavía; pues dicen que Lafone que
remató la Isla de Lobos por quince años y el Mercado, ó los Mercados, por el mismo
tiempo, ó poco menos, compró la Isla de Gorriti en... doscientos patacones!!!
122
120
Id.
121
Ibid., pp. 70-71.
122
ANTUÑA, op. cit., p. 492. Grifo do original.
127
Assim, se acreditarmos na descrição blanca, temos um ‘Governo de la
Defensa’ sustentado economicamente por estrangeiros. A isto somamos não somente
os batalhões armados de franceses, mas a crença unitária e colorada de representarem
na América a revolução e a civilização européia: “¡La sola manía en que tantos dieron
de modelar nuestra revolución emancipadora por la revolución francesa, adoptando sus
principios impíos y antisociales, cuando tanto bueno había que imitar en la patria
americana de Washington!”.
123
Em oposição ao “partido europeu”, o “partido americano” buscava
legitimação em um certo “americanismo” cujos traços farão, mais tarde, a alegria dos
historiadores revisionistas platinos.
124
Berro acredita que os estados europeus abusam
da civilização, escondendo nesta palavra uma série de preconceitos contra os países
latino-americanos.
125
Num curioso “anti-imperialismo” da primeira metade do século
XIX, este blanco pergunta: “¿Ignoraría sobre todo que la civilización y el cristianismo
en manos de poderes ambiciosos, se han convertido siempre en medios humanos de
conquista y opresión? No, la India y el África, la Oceanía y la América le han de haber
mostrado precisamente cómo se ha hecho servir a la civilización y al cristianismo de
instrumentos de iniquidad, y de vehículos de esclavitud”.
126
A “influencia civilizadora
de los cañones europeos”
127
é colocada contra uma resistência americana a ser
valorizada pelos revisionistas, momento em que se faz um reposicionamento das
figuras de Rosas, Oribe, Artigas, entre outros caudilhos, até então consagradas
negativamente por uma espécie de “história oficial” mitrista e sarmientiana que se
consolidara nas últimas décadas do XIX.
128
123
HERRERA Y OBES; BERRO, op. cit., p. 119.
124
CHIARAMONTE, J. C. En torno a los orígenes del revisionismo histórico argentino. In: FREGA,
Ana e ISLAS, Ariadna. Nuevas miradas en torno al artiguismo. Montevidéu : Universidad de la
República, 2001. p. 29-61.
125
HERRERA Y OBES; BERRO, op. cit., pp. 110-111.
126
Ibid., p. 116. Grifo do original.
127
Ibid., p. 118.
128
CHIARAMONTE, op. cit.
128
Após matizar a oposição entre civilização e barbárie, Berro continua sua
argumentação tentando demonstrar como a separação extrema entre a campaña e a
cidade é uma premissa falsa. Ao contrário do que poderiam representar os cercos a
Montevidéu, Berro encontraria uma permeável fronteira entre esses dois modelos
opostos:
Es tanta la relación y la mezcla entre campo y ciudad, que muchas veces una misma familia
abraza hombres de una y otra clase, viéndose con frecuencia abrazarse al hermano de
poncho y chiripá con el hermano de frac y corbatín; ni es raro sino muy común también que
un mismo individuo aparezca ejerciendo ambas profesiones, y siguiendo ambas vidas;
viéndosele ya con el lazo en la mano y en traje de ganadero, correr tras el animal que quiere
sujetar, ya en medio de los círculos más cultos de la sociedad presentarse vestido con
elegancia cortesana, y mostrar unas maneras y una expresión propias de un fino trato de
gente y de un entendimiento bien cultivado por la educación y el estudio.
129
Com isto, Berro nos traz algumas imagens da diversidade de opções que uma
mesma família poderia ter naquela sociedade, ou como seus laços de aliança
ultrapassavam a divisão construída entre os modelos civilizado e bárbaro. Entretanto,
isso não se dava apenas na fluidez dos grupos humanos, o indivíduo também recebia
seu destaque ao ser mostrado como um hábil transgressor de fronteiras. Nas palavras
do seu adversario, Manuel Herrera y Obes, Rivera era o “mejor jinete de la República
(...) el mejor baqueano (...) el de más sangre fría en la pelea, (...) el más generoso y el
mejor patriota”.
130
O caudilho, perante os homens do campo, aparece como o “melhor
gaúcho”. Mas, reservando a etiqueta e as boas maneiras a determinados interlocutores,
Rivera também conseguia ser “de buen personal, carirredondo y de bastante
desembarazo y urbanidad (...)”.
131
No exemplo de Artigas,
132
os “contrabandistas de
129
HERRERA Y OBES; BERRO, op. cit., pp. 137-138.
130
Ibid., p. 38.
131
LARRAÑAGA, D. A. Diario del Viaje de Montevideo a Paysandú. Montevidéu : Ministerio de
Transporte y Obras Publicas e Instituto Nacional del Libro, 1994. p. 84.
132
Artigas “conoce mucho el corazón humano, principalmente el de nuestros paisanos, y así no hay
quien le iguale en el arte de manejarlos”. Ibid., p. 78.
129
culturas” eram os capazes de construir gestos e discursos diferentes de acordo com o
público que os ouvia.
133
Por fim, Berro conclui que seus rivais pretendem tomar para si o papel de
revolucionários. Neste projeto civilizador unitário e colorado estão a arte, a revolução
e a Europa:
Los salvajes unitarios al instante formalizan su programa. El 25 de mayo es convertido en
una deidad a la que dan atributos de su invención. Esa deidad es menospreciada, injuriada
por los federales. Ellos son los sacerdotes de su culto, sus fieles servidores y los encargados
de vengarla. La poesía y la prosa se encargan de embellecer esta ficción. El lábaro sagrado
de Mayo tremola por los aires, y bajo el pabellón dominante del extranjero que invade el
suelo americano, va a estimular con su vista las hazañas de los auxiliares de la Francia.
134
2.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por fim, foram acima brevemente expostas algumas idéias dos Estudios sobre la
situación de Manuel Herrera y Obes vindos das páginas do El Conservador,
relacionando suas idéias com outros autores em suas preocupações em comum. Como
resposta, estivemos com o blanco Bernardo Prudencio Berro e seu texto de réplica
encontrado no El Defensor de la Independencia Americana. Do conflito de idéias entre
estes dois indivíduos representativos dos grupos políticos que integram, foram
apresentadas interpretações opostas dedicadas à Civilização e ao conseqüente papel
adquirido nesta pela Revolução, dando uma amostra de como estas poderiam ser
entendidas naquele contexto.
Manuel Herrera y Obes se encontrava mais alinhado à tendência neo-unitária de
Sarmiento. Distanciando-se da tendência de Alberdi de fusão partidária, atacou
blancos e federais como reacionários, entendendo-os como caudilhos que perpetuavam
a cultura nefasta do antigo-regime espanhol. A essência do movimento de
133
DE TORRES, M. I. Discursos fundacionales: nación y ciudadania. In: ACHUGAR, H.; MORAÑA,
M. (org). Uruguay: imaginarios culturales. Montevidéu : Editora Trilce, 1998. p. 133.
134
HERRERA Y OBES; BERRO, op. cit., pp. 85-86.
130
independência se encontraria na Revolução, algo inacabado e reivindicado por
unitários e colorados. Berro, ao contrário, procurou alertar seus leitores contra o
pouco apego à Razão contida no texto colorado, enquadrando-o em uma corrente
“afetada” do romantismo. Contrariando a afirmação de Herrera y Obes que relacionava
o Partido Blanco ao caudilhismo e à desordem, Berro respondeu com a idéia de que os
blancos também buscavam a paz e a ordem, mas uma ordem diversa da colorada. Os
Defensores de las leyes’ não cogitavam um retorno ao período colonial, mas não
construíam uma ruptura tão drástica quanto a desenvolvida por seus rivais.
A aliança entre federais e blancos seria desfeita a partir do reaquecimento dos
conflitos internos argentinos que resultaram no enfraquecimento do governador Rosas,
posteriormente derrubado por Justo José de Urquiza em 1852. Nesta data, Urquiza
aparecera com uma proposta, depois fracassada, de união entre os partidos. E, ainda no
ano anterior e com a paz já celebrada na Banda Oriental, blancos e colorados já se
esforçavam por arquitetar a chamada ‘Política da Fusão’, uma tentativa que tinha
como objetivo apaziguar as desavenças das décadas anteriores, propondo uma
reorganização da política para o Uruguai. Berro seria um dos principais articuladores
deste movimento, chegando até mesmo a propor a extinção dos partidos e a proibição
do uso das suas divisas.
“O que é nossa grande revolução, quanto a idéias, senão uma face da revolução
da França?”
135
Não foi o objetivo deste capítulo determinar a exatidão da frase anterior
de Alberdi, mas apenas enquadrá-la no interior de um discurso legitimador vinculado a
um contexto de conflitos civis, observando como estas discussões ocuparam um
destacado espaço na imprensa daquele período. Porém, para desgosto blanco, a versão
colorada se consolidará na segunda metade do século XIX. Após uma série de vitórias
decisivas do partido colorado, os blancos serão rebaixados a um segundo plano de
política local. Este partido apenas reassumirá a presidência da república em 1958, já
convivendo com o chamado revisionismo historiográfico platino. Assim como
135
ALBERDI, Fundamentos... op. cit., p. 70.
131
ocorrerá na vizinha Argentina em relação aos unitários, a disciplina História estará
inicialmente tomada por membros do Partido Colorado, cuja versão predominará até
meados do século XX.
132
3 ENCONTROS DE (E COM) JOSÉ ENCARNACIÓN DE ZÁS E FRANCISCO
SOLANO ANTUÑA
Este terceiro capítulo trabalha, principalmente, duas fontes, os Apuntes
curiosos para mis hijos do colorado José Encarnación de Zás, e o diário do sítio a
Montevidéu escrito pelo blanco Francisco Solano Antunã. Doutor em direito pela
Universidade de Buenos Aires e Senador no Uruguai, este último teve participação
política ativa e influente, mas, assim como para a fonte em que encontramos Zás, seu
texto não pretendia participar do campo de discussão que foi explorado no capítulo
anterior. Assim sendo, o tipo de informação que dele se extrai acaba gerando um outro
tipo de abordagem, em que se encontram menos idéias ou propostas, mas encontros
entre indivíduos que expõe ou contradizem muito do que fora escrito anteriormente
por Herrera y Obes. Não é o caso de encontrar naqueles dois indivíduos exemplos
planos de uma mentalidade platina, mas entendê-los como pessoas que
compartilhavam certos elementos culturais que circulavam no Prata, construindo em si
versões particulares de interpretação. E enquanto Herrera y Obes interpretava a
história platina da Revolução de Maio até a expulsão de Rivera do Partido Colorado
durante a ‘Guerra Grande’, Zás, que escreveu suas memórias em 1851, narra alguns
eventos do artiguismo e do início das lutas partidárias a partir da sua própria
experiência, destacando seu envolvimento em acontecimentos que considerou
importantes. São textos diferentes, mas que dialogam com uma mesma conjuntura
histórica. Entretanto, Antuña está diretamente envolvido com o cerco a Montevidéu
que se iniciou em 16 de fevereiro de 1843. Ao longo de mais de quatro anos de
registro, este doctor blanco se empenha em apresentar o que considerava importante
em cada um dos seus dias vividos em torno à ‘Guerra Grande’, da qual se extrai a
construção de uma imagem de Fructuoso Rivera não muito diferente da apresentada
por Herrera y Obes. Antuña também nos proporciona uma versão do próprio sítio à
capital uruguaia, nem tão rígido quanto se poderia supor à primeira vista.
133
3.1 – A TRAJETÓRIA DE JOSÉ ENCARNACIÓN DE ZÁS
Por volta de 1851, José Encarnación de Zás concluiu seus Apuntes Curiosos
para mis Hijos, texto em que narra alguns acontecimentos que acreditava
interessantes, ocorridos desde suas memórias de infância até seus últimos anos de
serviços prestados ao Estado uruguaio. Nascido em 30 de maio de 1797, José
Encarnación de Zás foi batizado em Las Piedras, pouco ao norte de Montevidéu, no
atual departamento de Canelones, Republica Oriental del Uruguay. Era ainda criança
quando os ingleses desembarcaram pelo porto do Buceo (1807) em uma das duas
tentativas de controlar o estuário do Prata. Desde então, parece não ter se esquivado
dos desdobramentos políticos e militares que resultaram na independência do Uruguai
em 1828. Viveu as intensas disputas que se seguiram entre blancos e colorados, assim
como o prolongamento da rivalidade entre federais e unitários. Dentre os muitos com
quem cruzou, esteve com Artigas, Lavalleja, Rivera e Oribe.
Nos Apuntes existe um intervalo considerável de tempo entre os eventos
narrados e a escrita do texto. A interpretação de 1851 tende a prevalecer frente ao
vivido nas décadas anteriores. Nas suas memórias, Zás analisa condutas passadas
segundo valores construídos através de uma trajetória de vida narrada e revista. Esta
fonte nos permite discutir alguns dos elementos de que ele dispunha na avaliação
hierárquica dos demais e de si mesmo, atendendo, principalmente, àqueles
relacionados à sua participação e compreensão acerca de instâncias estatais e da
dinâmica da guerra em alguns momentos da história da Banda Oriental, transitando
entre os anos que se desenvolveram entre o artiguismo e o fim da ‘Guerra Grande’.
Ainda que este contexto inclinasse a população local a uma crescente divisão entre
facções políticas, sua narrativa escapa da propaganda abertamente partidária,
contrastando com a que fora anteriormente publicada por Manuel Herrera y Obes.
Assim como este, Zás também era colorado, e manteve-se fiel ao seu partido durante a
134
guerra civil. Porém, seu texto era dedicado a seus filhos, e não a uma publicação
qualquer. Desta forma, apesar de ambos tratarem de espaços temporais semelhantes,
do início do processo de independência até o contexto da ‘Guerra Grande’, Zás oferece
uma oportunidade diferenciada de abordagem.
Filho de pai e mãe espanhóis que desembarcaram na América vindos da Galícia
em 1794, José era o mais novo de sete filhos, o único nascido na América. Sua irmã
Manuela morreu ainda jovem antes do pai, mas as outras duas filhas contraíram
matrimônio. Maria Antonia casou-se com um espanhol proprietário de uma olaria em
1805, enquanto que Josefa o faz com um brasileiro durante a ocupação portuguesa na
Província Cisplatina em 1822. Felipe tornou-se frade franciscano, enquanto que
Gabriel e Francisco constituíram novos ramos familiares com outros imigrantes e
descendentes da Galícia. Francisco, o mais velho, morreu sem filhos herdeiros apenas
três meses após o falecimento de Buenaventura, seu pai, deixando sua parte para seu
irmão mais novo José.
1
Em 1807, José passou a estudar gramática latina. Três anos depois, foi admitido
por um curso de filosofia oferecido por uma ordem religiosa, caminho que abandonou
para tornar-se soldado nas lutas de 1811. Por orientação de seus irmãos e de seu pai,
largou as armas e tratou de aprender algum oficio, sendo aprendiz de Carpinteiro “de
fino” por nove meses.
2
Logo retomou as armas e serviu como Auxiliar de Artilharia.
Posteriormente, aderindo ao esforço de guerra artiguista, conseguiu o que ele próprio
chamou de "primeiro emprego" em 1814, sendo responsável pela arrecadação de
impostos sobre as reses que entravam no mercado. Após onze meses nesta ocupação,
passou a desempenhar outras funções provisoriamente até que pela primeira vez se
ausentou da capital ao apresentar-se como voluntário ao destacamento de Colônia do
1
GALDARACENA, R. El libro de los linajes. Montevidéu : Editora Arca, 1978.
2
Para todos os trechos citados da fonte, manteve-se a grafia segundo a edição da Revista del Museo de
Montevideo. “De fino” indica um serviço de carpintaria mais requintado, provavelmente para artigos
de luxo. ZÁS, J. E. Memória autobiográfica de José Encarnación de Zás. Revista Histórica,
publicación del Museo Historico Nacional:, Montevidéu : A. Monteverde & Cia, 1951. p. 125.
135
Sacramento, porém continuou lidando com tarefas de arrecadação e envio de fundos e
rendas, desempenhando as funções de terra e do porto. Tornou-se Oficial da Aduana
(espécie de secretário) em Colônia e, já na época da invasão portuguesa desencadeada
pelo exilado D. João VI, ocupou-se em combater o contrabando. Foi demitido em
1817. Contando com apoio de amigos, tratou de unir-se às forças de Rivera que
estavam em luta contra os portugueses ainda sob o comando de Artigas. Foi designado
Administrador de Aduana em Maldonado, na costa leste, de onde foi novamente
deposto em dezembro de 1818 após a efetivação do controle português na região.
Desiludido, emigrou para Buenos Aires em 1819. Após pouco mais de oito meses,
retornou primeiramente à Colônia e, depois, rumou para Maldonado, onde iniciou uma
sociedade que estabeleceu uma loja de pulperia (espécie de mercearia) e um Cafe y
Cancha de Bochas, negócio que declinou após a retirada das tropas portuguesas e um
sucessível enfraquecimento das vendas. Com a independência brasileira, uniu-se aos
que viam neste episódio mais uma oportunidade de independência local. Ocupou
cargos na administração até março de 1824, mês da "entrada de los Ymperiales",
momento em que foi novamente afastado por ser "patriota", ou na sua pessoal
definição, um defensor da autonomia. Quatro meses depois, voltou a ser admitido,
retomando um combate ao contrabando. Com a passagem dos Treinta y Tres
Orientales, mais uma vez incorporou-se aos esforços de guerra. Desde esse
acontecimento, seguiu prestando serviços ao Estado até sua jubilación. Neste período
que se estende de 1825 até 1839, tomou parte das rivalidades entre Rivera, Lavalleja e
Oribe, e das lutas internas que ocorreram nas primeiras décadas desde a
independência. Sofreu represálias administrativas de uns e favores de outros,
dependendo de quem está no governo e de quem apóia. No interior destas disputas,
teve certa ascendência administrativa, foi chefe dos arquivos do Estado, mencionando
a existência de subordinados seus. Durante a presidência republicana ocupada pelos
blancos, estes não esquecem o vigor das alianças partidárias, e perseguem Zás
administrativamente. Se por um lado temos um homem inserido nas políticas
136
partidárias e na hierarquia de alianças dos caudilhos, existe a construção da figura do
empleado, um tipo de burocrata, à qual Zás demonstra apegar-se no decorrer do texto,
chegando a mesmo a defender-se como um indivíduo fiel às suas funções, isento de
opções políticas que desvirtuariam seus serviços ao Estado. Defende-se dos que o
acusam de partidário colorado, mas ele mesmo desarma este seu argumento ao
defender Montevidéu do cerco contra os blancos durante a ‘Guerra Grande’ na década
de 1840.
José Encarnación de Zás segue ocupando-se de atividades públicas, mas, a
partir da sua jubilación
3
de 1839, passa a ser menos detalhista, apenas citando outros
cargos que ocupou. Permaneceu ao lado dos colorados na Montevidéu sitiada da
‘Guerra Grande’. Foi Alcalde, primeiro como suplente e depois eleito em 1842, na
seqüência nomeado suplente de Representante pelo seu departamento, cargo que
ocupou em 1843 devido ao falecimento do titular. Seus relatos terminam em 1851.
Família, religião e tantos outros aspectos que consideramos cotidianos são raramente
citados, direcionando sempre seu texto a atos públicos. Casou-se em 27 de setembro
de 1826, morando dez meses em casa emprestada por um amigo. Sua primeira filha
morreu com apenas sete dias, e apenas outra é citada nas suas memórias.
Nas últimas páginas dos Apuntes, Zás faz um resumo da sua vida pública,
enumerando tanto os cargos quanto os valores por ele manejados que pertenceriam ao
que chama de Estado, no qual enfatiza um caráter público. Este “Resumen de mi vida
publica” parece ter sido retirado de algum documento anterior, pois indica que as
anotações acerca dos valores têm origem na sua documentação para a jubilación que
solicitou em 1839.
4
O interessante é que, para este pedido, não um direito adquirido,
mas uma mercê requerida por serviços prestados, Zás reclama ao Estado uruguaio uma
3
Esta palavra em espanhol pode ser atualmente traduzida para aposentadoria, sendo utilizada com
este sentido no Uruguai. Todavia, no momento em que está fora requerida por Zás, não carregava o
sentido de seguridade social que recebe agora, mantendo, assim, um relacionamento maior com a idéia
de ‘graça’ ou ‘recompensa’ de Antigo Regime.
4
ZÁS. op. cit., pp. 172-173.
137
recompensa por uma atuação “pública” que se transcorrera a partir de 1827. Toda sua
atuação entre 1814 e 1818, sob o comando de Artigas, também esta incluída em sua
carreira de serviço público, mas o Estado criado em 1828 não teria o dever de
recompensá-lo por seus esforços realizados durante os governos anteriores à entrada
de Lavalleja e dos Treinta y Tres Orientales. Zás igualmente exclui desta sua lista suas
efêmeras empresas comerciais em Buenos Aires, quando alugava barcos para o
transporte e venda de lenha. Também omite os artigos que uma vez importou desde a
capital portenha para a venda na Banda Oriental, e assim o faz em relação à sociedade
que montou para erguer a pulpería de Maldonado. Estas omissões tendem a enfatizar o
caráter público da sua relação, destacando o que Zás entendia por empleado de
instâncias Estatais, o que, ao mesmo tempo, demonstra uma certa continuidade de
costumes patrimonialistas que carregam consigo noções de privilégios e recompensas
por serviços prestados.
Na seqüência, Zás será uma porta de entrada para compreender melhor como
um indivíduo poderia atuar no interior de instâncias burocráticas que pretendiam se
revestir de uma legitimação institucional. Será possível cruzar sua versão particular de
caudilho com a de Estado, relacionando-o com a tradição historiográfica apresentada
durante o primeiro capítulo e com o manifesto colorado de Herrera y Obes exposto no
segundo.
3.1.1 – ENCONTROS COM UM EMPLEADO
Em dezembro de 1815, José Encarnación de Zás se ausentava pela primeira
vez da capital. Como voluntário, ocuparia uma das duas vagas disponíveis no
destacamento de Colônia do Sacramento. Ao passo que crescia a admiração e
confiança do Administrador pelo trabalho de Zás, que era “bastante activo”, este
recebeu algumas missões consideradas arriscadas, como transporte de prisioneiros e
valores. Após três trimestres de atividades, seu superior lhe perguntou se poderia
138
arrecadar os direitos de “alcavala de pulperías y de cabezon que pagava las tiendas”
pela região daquele departamento de Colônia e Soriano, ao longo da costa do Rio
Uruguai. Zás aceitou o desafio, apesar dos avisos do Administrador sobre o mulato
Encarnación, que lhe “opondría obstaculos para aquel fin”. Ao partir, Zás estará
tomando parte em uma luta desenvolvida no interior do movimento artiguista entre a
Aduana de Colônia e o caudilho Encarnación pelo direito de coleta de impostos pela
região. Fragmento de suas memórias que será abordado logo mais, este encontro entre
um empleado e um caudilho opõe duas formas de arrecadação, assim como alguns dos
dualismos tão freqüentemente colocados pela historiografia platina desde as primeiras
formulações da Geração de ’37. Uma das principais características do caudilhismo,
que se poderia encontrar em indivíduos como o mulato Encarnación, está justamente
nesta competição entre poder pessoal e poder institucional. Se compararmos esta
interação entre Zás e o mulato Encarnación ao modelo clássico de caudilhismo e suas
revisões apresentadas ao longo do primeiro capítulo desta dissertação, encontraremos
o caudilhismo menos como um tipo social do que como um caminho estratégico de
acumulação de poder, seja de acumulação de capital material ou humano.
Em carta a Andrés Lamas de 13 de julho 1844, um dos líderes da Montevidéu
sitiada, Zás se declara “puro patriota, y sobre todo colorado”.
5
Seria de se esperar que
defendesse boa parte das idéias tidas como coloradas, como as propostas por Herrera y
Obes que, contando também com Lamas, faria parte da facção “porteña” dos
colorados, ou seja, os que se afastavam de Rivera na medida em que se aproximavam
dos emigrados argentinos. Porém, de uma geração anterior e com uma trajetória de
participação que se iniciara ainda com o movimento artiguista em pleno
funcionamento, seu ponto de vista difere substancialmente daquele proposto por
Herrera y Obes que, vale lembrar, apenas representava a voz de uma das facções
5
Carta de José Encarnación de Zás para Andrés Lamas. Grifo meu. Nas suas memórias, terminadas
em 1851, é possível perceber que Zás é colorado, mas em nenhum momento ele se declara de tal
forma, talvez influenciado pelo clima de “fusão” que pairava sobre a Banda Oriental com o término da
‘Guerra Grande’.
139
coloradas, a mais articulada com os valores unitários, cujos principais representantes
seriam Santiago Vázquez, Melchor Pacheco y Obes, Andrés Lamas e o próprio
Herrera y Obes.
6
Uma primeira diferença importante, é que Zás manteve uma certa
admiração e gratidão por Rivera. Ainda que visto como caudilho, o discurso anti-
barbárie erguido por Herrera y Obes não chega a anular o sentimento de Zás pelo
fundador do Partido Colorado:
(...) á los balcones dela Sala de Representantes, de donde tuvimos el gozo de presenciar la
gran parada de dos mil hombres regimentados bien vestidos y armados que desfilavan á
nuestro frente en buenos y escogidos caballos de un pelo cada Cuerpo – Nos parecía obra de
encanto; pero es uno de los tantos hechos que la historia encomiará en honor del referido
Gral [Rivera].
7
Andrés Lamas nasceu em 10 de novembro de 1817, entrou como auxiliar no
Ministério de Relações Exteriores em 1834, sua primeira função política. Melchor
Pacheco y Obes nasceu em 1809, iniciando sua carreira apenas em 1825 com a adesão
aos Treinta y Tres Orientales de Lavalleja. Manuel Herrera y Obes, o mais velho,
nascido em 1806, era pelo menos nove anos mais novo do que Zás, e, até a década de
1840, esteve mais dedicado aos estudos do que à atividade política. Ao contrário de
Zás, nenhum dos colorados acima citados, que constituíam uma facção em particular
que assumiria o poder de Montevidéu a partir do segundo semestre de 1847, teve
participação ativa durante o artiguismo. A ascensão deste grupo coincide com o
amadurecimento das idéias da Geração de ’37, contribuindo para a divulgação de um
projeto político civilizador descolado da trajetória daqueles que viveram o início do
processo de independência desencadeado pela Revolução de 25 de maio de 1810. Não
é uma simples diferença de idade, mas de trajetórias entre aqueles que acenderam
politicamente durante a ‘Guerra Grande’ e Zás, cuja experiência de guerra se
desenvolve desde suas recordações das invasões inglesas, até sua participação durante
6
PIVEL DEVOTO, J. Introducción: Memoria del General Melchor Pacheco y Obes sobre su
actuación en la Defensa de Montevideo durante los años 1843-1846. In: Revista Histórica.
Montevidéu. N. 148-150, ano LXXI. Dez. 1977. Monteverde y Cia. S. A.
7
ZÁS. op. cit., p. 160.
140
o artiguismo. Apesar de ser finalizado em 1851, é importante salientar que os Apuntes
curiosos para mis hijos dão um destaque muito maior ao serviço de empleado de Zás
em instâncias estatais que existiram entre a segunda metade da década de 1810 e 1840,
dando uma atenção menor à ‘Guerra Grande’ que se iniciou em 1839.
Embora tivesse presenciado diversas batalhas, Zás não se considerava um
militar. Em suas palavras, entende-se por empleado
8
de uma máquina administrativa
relativamente precária que se organiza em torno de um conjunto de milícias locais que
alternadamente combate espanhóis, portugueses, brasileiros e rivais regionais. Se
acuado por uma situação de improviso, pode pegar em armas, mas não é esse o tipo de
função que costumava exercer, uma vez que “esta de infanteria no es la mia”.
9
E,
decepcionado com os homens da guerra, reclama da falta de reconhecimento que
recebe, e o faz separando nitidamente os militares dos empleados: “Tal impresión
desfavorable recibi, que áno ser tanta mi decisión por la causa, me huviera pesado mi
ligeresa, mas lo atribuy al motivo unico que después la esperiencia me ha enseñado.
Este, es, que los militares, conpocas escepciones, [no]
10
savem apreciar los servicios
delos empleados, aun en campaña, nivalorarlos por nada”.
11
Este desabafo em especial foi direcionado a Manuel Oribe, pois seu
recivimiento fue sumamente serio, jamas lo hé podido disculpar – Dos jovenes decentes que
ardiendo en patriotismo abandonavan su empleo, familia y comodidades, por ser útiles á la
causa de su Patria, asi, pero tan á los principios de un grito sin eco, y de una empresa, hasta
entonces muy aventurada; merecian de cierto, que cada un de aquellos caudillos se
8
Como veremos, Zás utiliza a palavra empleados, referindo-se aos empregados do Estado ou aos que
acompanham administrativamente as milícias mobilizadas para a guerra. A idéia de funcionário
público é perigosa, e mais adequado seria tratá-lo como um burocrata cujos interesses chegam até
mesmo a uma defesa corporativa da sua função, pregando uma suposta imparcialidade de desempenho
administrativo.
9
ZÁS. op. cit., p. 128.
10
Esta palavra incluída pode dar a impressão de uma inversão de sentido. Porém, atendendo ao
contexto e à seqüência das frases, acreditamos que ela corrige um erro do autor ou, talvez, uma falha
na transcrição do documento. O final “nivalorarlos por nada” (nem valorizá-los por nada) denuncia
uma incoerência de sentido provocada pela ausência da palavra “no”.
11
ZÁS. op. cit., p. 141.
141
mostrasen tan obscequiosos, como correspondia á ganar proselitos. Tanto mas, cuanto que
Oribe era sabedor de anteriores servicios prestados por mi.
12
Neste trecho, ao invés de militares, Zás os chama de caudilhos. Caudilho é
uma palavra não apenas descritiva de um tipo social, mas traz um juízo de valor. Do
ponto de vista de Zás e dos doctores da ‘Defesa de Montevidéu’ mobilizada contra os
blancos durante o sítio a esta cidade na ‘Guerra Grande’ (1843-1851), a palavra
caudilho carrega um estigma: um valor negativo sobre um tipo de pessoa, um tipo de
política, uma forma de arregimentar seguidores, assim como uma forma de
organização da sociedade e do Estado. A palavra caudilho é saturada de barbárie.
Classificado de caudilho, Oribe recebeu de Zás não apenas uma avaliação severa em
relação ao seu comportamento “sério”, mas uma significativa diminuição da sua
capacidade de governar, seja governar um exército ou um Estado. Neste sentido, Zás
“veia que la animosidad que existia arraigada en ambos [Rivera e Oribe] con tan
hondas raices fuese capaz de posponerse por la Patria y conservacion del orden
publico”.
13
Assim, vemos como o empleado observava a interferência das rivalidades e
personalidades caudilhescas nos assuntos de Estado.
Contudo, para além dos caudilhos que disputavam a presidência da república,
Zás sentirá na própria pele o tão alardeado barbarismo da campaña. Por volta de 1817,
desde a Aduana de Colônia do Sacramento e apoiando a resistência de Artigas contra
os portugueses e rivais portenhos que já haviam declarado traidor o líder da ‘Liga
Federal’, Zás partiu para cobrar alguns impostos pelo departamento de Colônia e
Soriano, no qual “infestava con su divición de 300 hombres el mulato Encarnación”.
14
Zás já fora avisado pelo seu superior, o Administrador da Aduana, que seu “tocayo
Encarnacion se decia dueño de vidas y haciendas, y creia queme opondría obstaculos
para aquelfin, quien savia de cuanto era capaz, ese mulato asesino”,
15
mas não
12
Ibid., p. 140.
13
ZÁS. op. cit., p. 162.
14
Ibid., p. 126.
15
Ibid., p. 127.
142
encontrou grandes obstáculos nas primeiras vilas que visitou. Em Las Víboras e Las
Vacas, os pulperos lhe apresentaram “recibos de un Comisionado de Encarnación que
havia cobrado el 1er trimestre y que tuve que respetar segúnmis instrucciones”.
16
Todavia, ao partir da Vila de San Salvador,
“uno que era sobrino de d Joaquin Fuentes Secretario del referido Encarnacion, le mando un
aviso de que se estavan usurpando sus derechos por mi pues me nombró, (...) A esto contestó
enviando tres partidas de cinco hombres cada una mandada por un cabo delos mas asesinos
para que me tomasen vivo ó muerto y le diesen cuenta”.
17
Zás fora avisado do perigo que corria e, assim que possível, retornou à
Colônia. Nesta cidade, dois meses depois, o mulato Encarnación entregou ao
Administrador um “Oficio que dió á leer, pues el no savia”, em reclamação à suposta
usurpação dos seus direitos de cobrança
18
:
Que con arreglo á instrucciones que el [Encarnación] no presentó tomase todas y cualesqª
medidas, que con presencia de las circunstan[cias] y de otras comunicaciones, que tampoco
mostró, se le tenia recomendado y de lo que le dictase y su celo y patriotismo; tuviese ábien
adoptar en vien de la causa que sostenian los pueblos libres dela provincia, para sacudir el
yugo del invasor Lucitano, de muchos intrigantes porteños y godos solapados, que
abundavan en aquella costa del Uruguay, desde Paysandú, hasta la Colonia.
19
O caudilho argumentou que “estava plenamente autorizado por el Capitan
Gral [Artigas] como Preboste de toda aquella Costa”
20
. Ao ver negada sua
reivindicação, Encarnación “dió una carcajada levantandose en seguida manifesto, a
sumodo las medidas que le havian crusado entre las que apuntó, recaudacion que yo
havia hecho, & y despues pegando una patada en el suelo y unpuñetaso enla mesa que
desvarató cuanto haviaen élla dijo: pues bien hágalo yo [Zás] y que lo desagael
Diablo”.
21
16
Id.
17
Grifo da Revista. Ibid., p. 128.
18
Id.
19
Id.
20
Id.
21
Id.
143
Por “a sumodo” podemos entender um conjunto de atitudes e defeitos
atribuídos por Zás àquele “mulato asesino”. O murro na mesa e o modo de falar são
lembrados para distanciar os dois homens, uma distância já bem assentada no aviso de
Zás sobre o analfabetismo do caudilho. Mas suas diferenças vão além da etiqueta que
separaria o civilizado urbano da brutalidade rural. A palavra caudilho não é apenas
colocada na direção do “bruto do campo”, mas indica toda uma forma de organização
política. Na mesma medida em que legitima o seu posto e missão de arrecadar
impostos, desqualifica as funções neste sentido exercidas por Encarnación. Porém, os
gestos agressivos e a violência das palavras do caudilho sublinham os valores tidos
como civilizados pertencentes ao Zás que escreve em 1851. A brutalidade das suas
maneiras e a violência do que reclama, um direito privado que de alguma forma seria
uma usurpação de um dever e de um direito da Aduana, fazem parte da descrição que
diminui o status do caudilho. A marcação oral dos encontros entre indivíduos aparece
na escolha do que e como pode ou não ser dito em determinadas situações e com
determinadas pessoas
22
. As gargalhadas, assim como os gestos burlescos ou violentos,
típicos de um momento bárbaro, eram impróprias para os homens respeitáveis,
civilizados e aptos a desempenhar a correta gestão do Estado, ainda que isto possa ser
ampliado à administração de praticamente todas as instituições, incluindo a família
23
.
O caudilho Encarnación não apresentava um padrão de conduta compatível com
funções que poderiam ser melhor administradas pela instituição da Aduana. O mulato
Encarnación, ao apresentar-se em Colônia, teria demonstrado a Zás uma não
capacidade para assumir responsabilidades tão importantes como as que estavam em
querela.
22
Em outro exemplo, no Cabildo pós-independência, foi estabelecida uma norma que proibia seus
integrantes de gritar e levantarem-se da cadeira: “(...) estando los Capitulares en esta Sala en sus
asientos, cuando se ofreciere votar o dar cada uno su parecer lo hagan sin altercar voces ni levantarse
de sus asientos, pena de diez pesos a cada cual que lo contrario hiciese por cada vez”. Apud MILÁN J.
G. “Letra “oscura” contra habla “transparente”: los valores de la palabra oral y la palabra escrita en el
Montevideo colonial”. In: ACHUGAR, H.; MORAÑA, M. (org). Uruguay: imaginarios culturales.
Montevidéu : Editora Trilce, 1998. p. 82.
23
BARRÁN, J. P. (s/d).
144
A Aduana, por intermédio de seu Administrador e Lavalleja, disputa
diretamente o recolhimento dos impostos daquela região com Encarnación. No
enfrentamento daquela mobilização contra os portugueses (ou luso-brasileiros), existe
também uma disputa por poder no interior do artiguismo. A mobilização oriental para
a guerra, na qual se encontrava Zás, mostrava-se incapaz de levar sua administração a
todos os pontos do território uruguaio sem o auxílio de lideranças regionais. Desta
forma, estas duas instâncias construíram pactos em que o direito de cobrar impostos
era delegado, vendido ou arrendado pela instituição central a poderes locais. Ao que
tudo indica, a missão de Zás faria parte de um esforço da Aduana de retomar esses
direitos para si. É significativo salientar que Zás fora instruído para não cobrar duas
vezes o mesmo imposto caso algum enviado do mulato Encarnación já o tivesse
arrecadado. Apenas para o caso do pulpero não apresentar algum recibo (documento
que, de fato, apareceu), Zás deveria efetuar a cobrança, oferecendo um recibo próprio
da Aduana. Este respeito à cobrança anterior não pode ser somente interpretado como
um receio contra a revolta da população local sobre uma dupla taxação, mas também
por um certo reconhecimento de algumas práticas que, aparentemente, já se haviam
tornado comuns na região. Não é à toa que Encarnación saiu livremente de Colônia.
Deste modo, divergências práticas, como o método de recolher impostos,
desdobram-se, aos olhos do Zás de 1851, em classificações mais amplas de indivíduos.
Cada uma dessas forças tem seus próprios mecanismos de acumulação de poder, e
Encarnación traz consigo seus homens, e, de certa forma, suas terras até Colônia, onde
encontra uma outra fonte de poder, a Aduana. Dá-se, a partir de um conflito que
corresponde à clássica noção de monopólio da tributação do Estado, um confronto
entre a violência declaradamente física de Encarnación e a violência “intelectual”,
mais impessoal e escondida pela instituição.
Nos Apuntes de Zás, a associação entre caudilhos, violência e desordem
continua, pois “se havian cometido siete asecinatos en aquella Ciudad por la gente de
145
Encarnación y asi lo publicaron aquellos periódicos”.
24
Da mesma forma, persiste a
avaliação das relações profundamente personalizadas, uma vez que Encarnación
“quiso conocerme por el viage de S. Salvador y haver visto como me le escapé
teniendo presente que yo tambien llevava su segundo nombre, por los recivos que le
havían leído, me dijo ‘quehavia handado vivo, que sino, huviera cahido que por serlo
me regalava un caballo’ que nunca, y que contase con su amistad”.
25
Este último
trecho nos revela duas surpresas. Na primeira, apesar da tentativa de homicídio,
Encarnación saiu livremente de Colônia; na segunda, a tentativa de ganhar a amizade e
o favorecimento de Zás. Este não nos indica o destino do presente, se o recebeu ou
não, mas o decisivo está, mais uma vez, no personalismo do caudilho sempre
carregado pelo estigma da barbárie. E, como podemos observar, as diferenças de renda
econômica não são as únicas que separam Encarnación e Zás. É o caudilho quem o
trata de subornar. É o “inferior” abastado quem oferece o presente de valor econômico.
Para cada encontro entre dois homens, existe uma relação específica, que é
uma combinação particular dos elementos socialmente relevantes de cada indivíduo.
Uma vez que Encarnación pode ser ao mesmo tempo caudilho, mulato, bruto e homem
do campo, enfim uma soma de qualidades que o inclui entre os bárbaros, Zás, o branco
civilizado, o classificará socialmente segundo os conceitos com que está familiarizado.
Certas crenças fazem com que o indivíduo desenvolva um julgamento ao mesmo
tempo coercitivo e repressor de si mesmo e dos outros. De acordo com seus valores, o
indivíduo cria um repertório de palavras e movimentos adequados para cada ocasião e
pessoa com quem tem que se comunicar. Assim sendo, observando o outro, os
indivíduos se reconhecem, classificam, hierarquizam e se definem. Ao invés de
entender que o indivíduo tem relações, mais do que isso, ele pode ser encontrado na
própria relação, pois a definição de “quem sou eu e quem é a outra pessoa”, revestida
por uma névoa de verdade, é exteriorizada justamente nesse momento de mútua
24
ZÁS, op. cit., p. 129.
25
Id.
146
avaliação de gestos e palavras.
26
Cada indivíduo se torna uma espécie de policial da
boa conduta, o que não o exclui como provável alvo da observação dos demais.
Métodos coercitivos são comumente expressados em estratégias de dominação
entre dois indivíduos ou grupos. A posição de um indivíduo ou grupo que detém
condições para exercer preponderância sobre outros na defesa de seus interesses
expressa a idéia de dominação. Entretanto, a dominação pode dar a falsa impressão de
supremo livre-arbítrio para uma das partes, escondendo uma relação entre poder e
resistência, ou ainda uma relação de forças relativas, na qual podemos encontrar uma
incessante negociação e ajuste de condições.
27
Para Ricardo Salvatore, a formação de
uma “cultura de mercado”, caracterizada por negociações entre empregador e
empregado, estabelece uma série de condições que limitam o exercício da violência.
28
Em casos em que a diferenciação social não é tão óbvia, como no interior de uma
mesma classe social, o ajuste de poderes é igualmente observável. Dois membros da
elite, enquanto se cumprimentam e trocam palavras de polidez, estão avaliando um ao
outro no correto controle de gestos e palavras. A falta e o erro comprometem o status
dos envolvidos, hierarquizados não somente por suas posições econômicas e sociais ou
pelo poder físico que dispõem na coerção dos demais, mas também pelo domínio que
detêm do próprio corpo.
Fisicamente, as opções coercitivas são muitas,
29
porém, o controle do
“espírito”, nas palavras de José Pedro Barrán, costuma ser mais efetivo
30
. Em um texto
26
DUMONT, Louis. La civilizaçción índia y nosotros. Madrid : Alianza Editorial, 1989. p. 29.
27
ELIAS, Norbert. Introdução à sociologia. Lisboa : Edições 70, 1980. Relação de forças relativas: a
força de um indivíduo somente pode ser medida comparativamente em relação à força do seu opositor.
28
SALVATORE, Ricardo D., op. cit., A escassa mão-de-obra associada ao predomínio do trabalho
assalariado, assim como a grande mobilidade espacial e o precário alcance territorial do controle
estatal, entre outras razões, tornam possível ao trabalhador o estabelecimento de algumas condições
para seu emprego. Sua abordagem também valoriza as inter-relações como “produtoras” de uma
sociedade.
29
Id. Para coerção física, Ricardo Salvatore emprega o termo “repertoires of coercion” para ordenar as
complexas formas do seu emprego.
30
BARRÁN, J. P. Historia de la sensibilidad en el Uruguay. Tomo 1: La cultura “bárbara”
(1800-1860). Montevidéu : Banda Oriental, s/d.
147
marcado pela abundância de fontes e extensa pesquisa, este autor descreveu a transição
entre dois momentos distintos de coerção social separados simbolicamente pelo ano de
1860. Nesta data, o caso uruguaio já apontava para o predomínio da incursão dos
ideais civilizados de coerção e autocoerção nos indivíduos, resultando também na
crescente condenação de determinadas formas de violência, decididamente das não
aplicadas pela ação “racional” do Estado, mas por poderes privados
31
. Barrán constrói
seu texto enfatizando a dominação de classe que pressiona os extratos inferiores da
sociedade uruguaia para um disciplinamento mental e corporal que poderíamos colocar
como hegemonicamente burguês. A pressão econômica de uma classe contra a outra,
além da coerção empregada por intermédio do Estado, com suas leis, polícia e
exército, são alguns dos instrumentos utilizados nesse disciplinamento da população.
Este tipo de abordagem ressalta as relações de classe no movimento de crescente
desuso da violência física, identificada pelos contemporâneos como bárbara. Ao
contrário de Ricardo Salvatore, esse enfoque se arrisca amorter a contribuição e o
poder de negociação dos estratos subalternos na construção de valores que repudiam
certos tipos de violência. Barrán reconhece que a grande reedição de leis que limitam a
barbárie torna-se necessária justamente porque seu cumprimento é limitado.
Entretanto, as relações de classe não são o único lugar em que a oposição entre
civilização e barbárie é encontrada. Uma vez que a civilização é parte da auto-imagem
de certos indivíduos (para o sentido utilizado por Elias), eles a colocam em todas e
quaisquer situações em que se relacionam com outras pessoas. As situações em que a
civilização é contraposta à barbárie vão muito além das de trabalho, em cujo objetivo
residiria a necessidade de disciplinar a mão-de-obra adequando-a a um regime burguês
mais “racionalizado” de trabalho industrial (com as ressalvas que o termo industrial
pode ter para o Uruguai do século XIX). A civilização aparece também no estilo da
fala, na exploração ou não exploração do recurso da violência em todos os momentos
31
Além da legitimação do monopólio da violência pelo Estado, o seu emprego tende a se tornar menos
“espetacular”. As execuções públicas por enforcamento, assim como a degola dos inimigos vencidos
nas batalhas civis, foram lentamente substituídas por fuzilamentos.
148
em que ela seria possível. Assim, não é apenas a dominação de classe que pressiona o
bárbaro a civilizar-se, pois entre pessoas de uma mesma classe encontramos também
esta expressão de coerção social.
Os ideais de civilização são mais fortes quando interiorizados. A repressão
exterior, bater no filho, por exemplo, diminui gradualmente na mesma medida em que
a repressão interior é passível de absorção, ou seja, tão logo a vítima acredite em
determinados valores. Não é um desenvolvimento por etapas, como se a repressão
exterior ocorresse antes e a interior depois. O controle dos atos violentos não é
somente dado pelas relações de poder mais óbvias, como a de pai para filho e esposa
ou a de estancieiro para peões e escravos, mas entre todas as relações humanas. No
contato com qualquer indivíduo, mesmo entre os da mesma classe, a civilização e seu
poder coercitivo aparecem moldando os possíveis atos a serem praticados, que variam
de acordo com as partes envolvidas e situação em que se encontram. A civilização é
interiorizada por observação das atitudes dos demais, não necessariamente em
declarada repressão, mas no entendimento do próprio indivíduo da importância de
determinadas atitudes características que todos deveriam obedecer e que são
indispensáveis para uma auto-imagem, o que abre um importante espaço para
pensarmos também em apropriação destes valores em conjunção às já tão estudadas
tentativas forçadas de introdução. A observação dos demais e o sentimento de ser
observado são acompanhados de permanente avaliação de status dos outros e de si
próprio. Este julgamento de valores é tão ou mais importante do que o perigo de
infringir uma lei escrita ou de sofrer uma pena corporal (em alguns casos, infringir a
lei é até um estímulo).
Mas os valores civilizadores não estão uniformemente distribuídos em todo o
território da Banda Oriental, e nem por todos seus indivíduos, variando de acordo com
a posição de cada um no espaço social estudado. Por outro lado, organizada a
civilização menos como um processo do que como projeto, constituindo, assim, uma
arma de discurso político, estes valores podem ou não ser encontrados em alguém de
149
acordo com quem é o enunciador. Na conjuntura platina da primeira metade do século
XIX, o território do atual Uruguai está envolvido em uma série de disputas regionais
de poder, marcado por guerras entre “Estados competidores” blancos e colorados,
sendo que suas instituições estiveram subordinadas às estratégias daqueles partidos
políticos. Após a independência de 1828, grupamentos rivais passaram a lutar na
medida em que buscavam reorganizar aquela sociedade. Segundo consta no artigo de
David Rock e Lóez-Alvez, os agentes desses partidos formavam uma rede de alianças,
mediando trocas e ligações, servindo mesmo como agências de coleta de impostos e
burocracia informal. Ambos os partidos tornaram-se órgãos governamentais, forçados
a negociar um com o outro na participação política e na exploração dos recursos. Deste
sistema de rivalidades, e apesar do seu tamanho territorial limitado, resultaram
ligações inter-regionais fracas, assim como se tornaram tênues as comunicações entre
Montevidéu e a campaña.
32
O caráter governamental destes partidos, principalmente
para o intervalo em que coexistiram o ‘Governo de la Defensa’ e o ‘Governo del
Cerrito’, cresceu a ponto de ambos se considerarem os legítimos representantes do
Estado uruguaio. Porém, a idéia de “burocracia informal” aparece de uma forma um
tanto contraditória. Rock e Lóez-Alvez defendem que o Uruguai apenas conseguiu
construir um Estado forte e central na segunda metade do século XIX. Porém, o que
chamo de instâncias estatais, ainda que não tivessem um efetivo controle nem sobre o
território nem sobre o total da população, apoiavam-se em organizações burocráticas
que, para seus agentes, certamente possuíam alguma formalidade. Do contrário, não
seriam levadas em conta.
Negociando com esses grupos, cada ator envolvido por aquele contexto
buscou legitimar ou denegrir algumas estratégias e caminhos possíveis. Pregando a
civilização, alguns indivíduos elaboraram um julgamento sobre quais seriam as formas
corretas ou não de construção do Estado, resultando em visões alternativas do uso da
32
ROCK, D.; LÓEZ-ALVEZ, F. “State-building and political systems in nineteenth-century Argentina
and Uruguay”. Past & Present, 2000, nº. 167, pp. 176-202.
150
violência e tributação. Esta oposição entre campo bárbaro e cidade civilizada não foi
criada por um indivíduo, mas transmite uma imagem que se encontraria difundida pelo
território platino. Com habilidade, Domingo Faustino Sarmiento filtrou alguns
fragmentos desse pensamento coletivo que, redigidos através de uma interpretação
individual, resultaram na obra Facundo, Civilización y Barbárie
33
. A oposição
civilização-barbárie não é exclusivamente sarmientiana, mas corresponde a uma auto-
imagem ocidental, ainda que revestida por sentidos diversos dependendo do momento
e lugar em que é reformulada. Sarmiento dá voz a um sentido local e adaptado, mas
em muito ainda unido a um conceito “genérico” de civilização cuja origem é
européia
34
. Por este motivo, enfatizamos não a invenção, mas a circulação de idéias.
Ressalte-se, entretanto, que a palavra civilização não obteve total consenso
quanto ao seu significado. Assim como Rosas disputou aos unitários a autoridade de
afirmar qual partido seria o verdadeiro selvagem, Bernardo Berro e Manuel Herrera y
Obes
35
, Alberdi
36
e Sarmiento, entre outros, lutaram pelo poder de decidir quem e
como seria o homem civilizado. Porém, podemos dizer que, em geral, unitários e
colorados concordavam em afirmar que a civilização era a Europa do século XIX
(industrial, comercial, branca, com grandes centros urbanos, educada nos “bons
constumes”), e a barbárie era a América pré-colombiana (selvagem e indígena)
37
.
Ainda que o argumento central de diferenciação entre os povos europeus e americanos
se localizasse, conforme a época, vagando entre a oposição entre cristãos e pagãos e,
mais tarde, na de industrialmente e comercialmente adiantados ou atrasados, e mais
além até acrescentada de elementos evolucionistas e raciais de explicação, as
referências européias, trazidas pelos conquistadores e povoadores, foram consideradas
33
SARMIENTO, D. F. Facundo, civilización y barbárie. Buenos Aires : COLIHUE, 1990.
34
ELIAS, N. O processo civilizador. Vol 1. Uma história dos costumes. Rio de Janeiro : Jorge
Zahar Ed., 1994.
35
HERRERA Y OBES, Manuel; BERRO, Bernardo Prudencio. El caudillismo y la revolución
americana. Montevidéu : Ministerio de Instrucción Pública y Previsión Social, 1966.
36
ALBERDI, Juan Bautista. Fundamentos da organização política da Argentina. Campinas :
Unicamp, 1994. e ALBERDI, J. B. Proceso a Sarmiento. Buenos Aires : Ediciones Caldén, 1967.
37
Ou a Córdoba de herança colonial.
151
superiores aos elementos encontrados na América. Por outro lado, blancos e federais
valorizaram um “americanismo” que incluía gaúchos e seus costumes, desde que
enquadrados a uma disciplina de trabalho e de serviços ao Estado.
Como foi possível observar no segundo capítulo desta dissertação, o conceito
de ‘civilização’ empregado por unitários e colorados tem alguns elementos em
comum com o estudado por Norbert Elias para o antigo-regime europeu, mas sua
utilização e significado sofreram importantes alterações de sentido nestes americanos
do pós-independência. O principal diferenciador poderia ser colocado no ideal de
progresso que se fortalece durante do século XIX. Para a aristocracia francesa, os
manuais de etiqueta não tinham como objetivo a melhoria da sociedade como um todo,
mas garantir à nobreza um padrão de comportamento tido como superior que
legitimasse sua posição na hierarquia social. O “processo civilizador” ocorreria na
medida em que a competição por status impelisse os indivíduos daquela configuração
a uma exigência cada vez maior de civilidade. Ao que tudo indica, no início do
processo revolucionário, alguns indivíduos mais radicais chegaram a defender uma
ruptura mais abrupta em relação aos costumes aristocráticos. Mesmo o nada radical
San Martín, em recomendações à sua filha, sugeriria o “amor ao asseio e o desprezo ao
luxo”, mas também deixava clara a importância de se falar o “pouco e o necessário”,
além de atentar para a formalidade à mesa.
38
Sarmiento colocaria na educação um
decisivo caminho para o progresso civilizador, mas Alberdi entendia esta educação
não como a dos ilustrados, poetas ou pensadores, mas a das artes “práticas” ou
“técnicas” que seriam as exigidas por um tipo de sociedade diverso daquele dos salões,
das festas ou recepções. Ao longo do século XIX, o ideal de civilização se torna cada
vez mais “burguês” e “liberal”, um progresso social que se determinaria pela ciência
da economia. Mas persistirá uma dúvida, para ficar no exemplo de Alberdi, entre a
possibilidade do Estado intervir (seja diretamente na população “trocando-a” por
imigrantes europeus anglo-saxões, seja por “omissão”, retirando os entraves
38
MARTÍN, S. Escritos políticos. Petrópolis : Vozes, 1990.
152
comerciais que impediriam o curso natural que o progresso teria para a doutrina
liberal) ou na ação “natural” da própria sociedade que, através do contato com
indivíduos “superiores” do norte europeu, educa-se nas práticas do empreendorismo
liberal para que ela mesma seja uma agente do desenvolvimento.
A descrição que Zás desenvolve sobre seu rival Encarnación pode conduzir a
conclusões precipitadas em relação à questão do autocontrole, tão vital para o
entendimento do Processo Civilizador de Norbert Elias. Seria uma conclusão
apressada e duvidosa. A atitude rude e violenta do caudilho poderia ser colocada como
uma falha em seu autocontrole, mas este entendimento esconderia outras
interpretações possíveis para esta ação social. Ao invés de entendê-la como um
exemplo de descontrole, ela poderia representar uma outra conformação de
autocontrole que permitiria esse estilo de explícito caudilhismo. Mais do que isso, ela
pode ser vista como uma estratégia, não necessariamente deliberada ou racionalizada,
mas, por que não, um tipo de ação social recheada de finalidade. Encarnación estaria
estabelecendo um tipo de negociação sobre sua inserção social no artiguismo. Na
melhor das hipóteses, Encarnación sairia da Aduana com seus direitos de arrecadação
recuperados, mas, não atingindo este fim, ao menos teve a oportunidade de montar no
palco de Colônia e da Aduana uma cena em que reafirmou sua posição na conjuntura
local. Neste caso, todo o evento aparece como uma demonstração para o caudilho.
Leva consigo seus homens e praticamente "ocupa" a cidade por dois dias. Faz sua
encenação na Aduana, sai livremente, dono de si, e, apesar de tudo o que fez e disse
sobre Zás, em uma viajem de barco acaba trocando com este algumas palavras
amistosas, tratando de construir algum laço social de cooperação.
Escapando da armadilha Sarmientiana, o caudilho bárbaro seria muito mais
astuto e muito menos ingênuo do que os intelectuais da Geração de ’37 costumavam
defender. Seguindo este mesmo raciocínio, não seria adequado pensar no caudilho
como alguém incapaz se governar (nos termos de Foucault)
39
, mas apenas que
39
FOUCAULT, M. A governamentalidade. In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro : Graal, 1979.
153
condensa uma capacidade de governo diversa daquela esperada pelo Zás que escreve
em 1851. Neste caso, a questão que se apresenta não é a do autocontrole, mas de
estilos diferentes e rivais (e não falhas) de autogoverno que subentendem contornos
distintos de governo, agência e prestação de serviços ao Estado. Zás estaria, então,
diferenciando-se de Encarnación, legitimando-se e deslegitimando o caudilho. Esta
falta de legitimidade passa não por sua capacidade de governar, mas pela incapacidade
de governar de uma forma tida como correta e esperada por Zás para seus colegas e
superiores. O governo ou a atuação atribuída ao caudilho seria inadequada, e deveria
ser substituída por outra forma de atuação, ou de prestação de serviços, justamente a
de Zás e a da Aduana.
Uma outra questão deve ser sublinhada. Encarnación não é o único caudilho
que participa do evento da Aduana de Colônia. Lavalleja ali estava ouvindo as
reclamações do mulato ao lado do Administrador, com quem se posicionava na defesa
daquela instituição aduaneira. Além disso, a Aduana estava sob comando de um
“caudilho de caudilhos”. Em um movimento liderado por Artigas, tido como inventor
da montonera e do caudilhismo típico do pós-independência, encontrava-se uma
instituição alfandegária, a Aduana, que já existia desde o período colonial, mas que
fora mantida pela necessidade de obter fundos para o esforço de guerra. A visão
clássica do caudilho entra em contradição com um Artigas muito mais permeável,
podendo transitar entre métodos de arrecadação tidos como opostos, como aquele
delegado ao caudilho local Encarnación e a própria Aduana, revestida por uma
legitimidade tradicional e institucional. A própria exigência por parte do
Administrador para que seu rival apresentasse “las instrucciones”, ou mesmo os
recibos que tanto Encarnación quanto Zás entregavam aos pulperos, são uma amostra
de uma certa “legalidade burocrática” que, apesar de simples, fazia-se necessária,
contradizendo a suposta informalidade atribuída por Rock e Lóez-Alvez.
40
Muito já se
tem avançado neste sentido, demonstrando como Artigas pretendia construir uma base
40
ZÁS. op. cit., pp. 128-129.
154
de apoio muito mais ampla do que os limites da campaña poderiam proporcionar.
Ainda que sua relação com a elite de Montevidéu tenha sido permanentemente tensa e
volúvel, Artigas não abandonou a esperança de contar com seu apoio. Mesmo o
Reglamento Provisorio de 1815 teve sua aplicação praticamente limitada aos inimigos
da Revolução, conservando as propriedades daqueles que a apoiavam. A conduta do
nuevo Atila”¸ alcunha que recebeu em 1818, recebeu da historiografia tradicional uma
impossibilidade de conciliação com Montevidéu. Visto como mais um exemplo de
oposição entre o campo e a cidade, entre poder pessoal e institucional, sua atuação
parecia caricaturada por um modelo pré-fabricado de caudilho. Suas relações com o
núcleo da elite portuária da capital tiveram um início difícil, no qual se inclui um cerco
à cidade, mas logo passaria a “recibir delegados, aceptar intermediaciones familiares y
aún introducir afinidades de carácter personal (...)”.
41
Ao final, esta aproximação
esteve longe de ser um sucesso. Se o sentimento antibonaerense que compartilhavam
fora motivo para algumas conversações, suas diferenças foram mais fortes, e boa parte
da elite montevideana não teria dificuldades em conviver com os vitoriosos
portugueses que ali se assentaram a partir de 1817. Por outro lado, o exemplo de
conflito entre o caudilho e a Aduana de Colônia demonstra a existência de outras
divisões internas para além da clássica “cidade” em oposição ao “campo”.
Tanto Artigas quanto Lavalleja e Encarnación são vistos como caudilhos.
Todavia, eles não estão unificados em suas posições acerca da disputa pelos impostos
de Colônia e Soriano. Ao invés de pensarmos em caudilhos tipificados, como se suas
ações estivessem rigorosamente tendendo a uma adequação a um modelo pré-
determinado de caudilho, seria mais interessante entender o caudilhismo como uma
opção estratégica de acumulação de poder. Não configurando a única forma de
acumulação, convivendo com outras como a intelectual ou a legal (legitimada por
instituições burocráticas), cada uma destas estratégias possíveis renderiam ao
41
BENTANCUR, A. A. En busca del personaje histórico José Artigas: breve análisis de su
relacionamento con el núcleo español de Montevideo. In : FREGA, A,; ISLAS, A. Nuevas miradas
en torno al artiguismo. Montevidéu : Universidad de la República, 2001. p. 253.
155
indivíduo o alcance a um determinado público. Portanto, sua diversificação poderia
implicar em uma base de poder mais abrangente e sólida (ou em uma série de
contradições internas). Como nem todos os caudilhos eram iguais, as opções de
Artigas teriam sido muito mais vastas do que as do mulato Encarnación, ampliando
suas possibilidades de atuação para o cenário da Banda Oriental em guerra.
3.1.2 INSTÂNCIAS ESTATAIS EM UM DE SEUS EMPLEADOS
No que se refere ao modelo de Estado pré-independência, até fins do século
XVIII, o Antigo Regime ainda recorria ao monopólio colonial, ao patriarcalismo
político e ao patrimonialismo dos cargos públicos. Este quadro foi gradativamente
combinado com um novo modelo administrativo desde a ascensão da casa dos
Bourbons ao trono espanhol que se corporificou no território do atual Uruguai pela
constituição do vice-reinado do Prata. Neste período, não só reconhecemos um
direcionamento intelectual que distanciou o Estado da influência religiosa, como
também uma crescente burocratização e expansão do governo secular que se mostrou
ainda mais atuante, o que por vezes significou maior controle e fiscalização.
42
O ensino e língua escrita são desejados para a formação do corpo de
funcionários do Estado Burocrático moderno que vem sendo construído.
43
Em muitos
casos, os agentes do Estado passam a constituir o maior corpo de empregos que
requeriam educação. A máquina administrativa composta por um numeroso corpo de
agentes passa a permitir e mesmo a buscar servidores e agentes entre letrados que eram
até então excluídos pelo patrimonialismo e distribuição de privilégios derivados do
42
RUIBAL, B. C. Cultura y política em uma sociedad de Antiguo Régimen. In: TANDER, E. (org.).
Nueva historia argentina: la sociedad colonial. Tomo II. Buenos Aires : Editorial Sudamericana,
2000.
43
Antes da alfabetização em massa, a língua na forma literária padronizada interessava
preferencialmente a uma elite minoritária como um meio prático de comunicação administrativa e
intelectual. Com a formação do Estado moderno, a abrangência desta elite e seu idioma terminariam
por coincidir com uma área territorial pré-determinada. No território repousaria o limite imposto ao
desempenho das funções do Estado, estando todos os habitantes sujeitos às suas leis e ordem.
156
arranjo social ou da recompensa a serviços prestados à coroa. Os altos cargos do
regime colonial estavam reservados quase que exclusivamente aos godos e enviados
do rei, deixando aos hispano-americanos algumas posições menores, mas, após a
formação das juntas, a possibilidade de ocupar as responsabilidades do Estado
conduziu os criollos de posição social e educação privilegiada ao alcance de posições
de maior influência.
O Estado tornou suas intervenções cada vez mais universais e rotinizadas.
Cada vez mais este possui informações sobre cada um dos indivíduos e cidadãos, o
que se revela no grande interesse pelos censos. “Como nunca até então, o governo e os
indivíduos e cidadãos estavam inevitavelmente ligados por laços diários”
44
. O Estado é
visto, no século XIX, como o instrumento da racionalização. A administração racional
se baseia em regulamentos explícitos que lhe permitem intervir nos domínios mais
diversos, desde educação até saúde, economia e cultura, e dispõe da força de polícia e
militar em forma permanente. A sustentação do racional está no domínio legal que se
justifica por um procedimento que constitui regras de um mundo abstrato de normas.
A justiça consiste na aplicação dessas regras aos casos particulares, protegendo através
dos órgãos para tal fim instituídos os interesses nos limites das regras estabelecidas.
A aplicação desses inúmeros regulamentos exige uma equipe de agentes
qualificados, que não são donos dos seus cargos, nem tampouco dos meios da
administração, mas são protegidos em suas funções pelas regras do Estado. Tudo o que
decidem ou fazem os agentes o deveriam fazer por escrito, arquivando e
documentando. Surge então a idéia de burocracia. A burocracia tem serviços definidos
e competências rigorosamente determinadas pelas leis. Existem poderes de decisão
definidos na execução das tarefas correspondentes e uma proteção aos agentes no
exercício das funções. A hierarquia é fortemente estruturada em serviços subalternos e
em cargos de direção, com possibilidade de recurso da instância inferior à instância
44
HOBSBAWM, E. J. Nações e Nacionalismos deste 1780. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1990. p.
102. Ver também BOURDIEU, P. Razões práticas para a teoria da ação. Campinas : Papirus
Editora, 1996.
157
superior, o que conduz à tendência de centralização. A remuneração seria regular sob
forma de um salário fixo e, principalmente a partir do século XX, de uma
aposentadoria quando deixasse o serviço. Os tratamentos são hierarquizados em
função das categorias internas da administração e das responsabilidades exercidas. As
autoridades têm direito a alguma comissão de disciplina para seus subordinados.
Existe ainda uma tendência à separação completa entre a função e o homem que a
ocupa, pois nenhum funcionário poderia ser dono de seu cargo ou dos meios da
administração. A burocracia deveria ser impessoal, ou seja, racional pela função do
cargo, técnica e esclarecida.
Apesar de uma certa antecipação da secularização e centralização pelos
movimentos dos séculos XVI e XVII e posteriores reformas dos Bourbons para o caso
espanhol, o Estado moderno pós-revolução francesa era uma novidade em muitos
aspectos
45
. No sentido mais idealizado, deveria possuir um território definido,
preferencialmente contínuo e inteiro, dominando a totalidade de seus habitantes e
conduzindo a intervenção estatal aos mais diversos domínios da atividade humana.
Politicamente, o domínio e a administração do Estado ideal sobre os habitantes seriam
exercidos diretamente e não através de sistemas intermediários de dominação.
Porém, a burocracia não é exclusiva do Estado moderno. A burocracia
moderna desenvolveu-se sob a proteção do absolutismo real desde o começo da era
moderna. Aos Bourbons já interessava incrementar a fiscalização e controle,
ampliando a burocracia como forma de dominação e eliminando a concorrência
interna pelo poder. As antigas burocracias tendiam ao patrimonial, ou seja, os
funcionários não tinham garantias de estatuto legal, mas suas funções estavam
definidas pela tradição.
Para o patrimonial, não existe distinção entre a pessoa e o cargo. A distinção
entre público e o privado não faz sentido quando a função exercida faz parte da
propriedade individual ou familiar. O cargo pode ser herdado, vendido ou arrendado
45
Ibid., p. 101.
158
de acordo com a conveniência do seu proprietário e no limite da tradição. Também o
tesouro pessoal, investimentos, perdas e lucros se confundem aos da atividade
exercida. Essas características tanto faziam parte da tradição e da conveniência em
formar alianças na hierarquia social, como eram necessárias em vista da dificuldade do
Estado em alcançar fisicamente todo seu território se não por meios intermediários e
delegações de poder. Também a dificuldade em reunir fundos suficientes sujeitou os
governos ao auxílio de setores capazes de reunir investimentos e fazer cumprir os
interesses do Estado. Desta forma, recebem uma série de privilégios que os incentiva a
trabalhar em atividades que ao governo central se apresentariam inviáveis.
O consentimento prático que esta forma de dominação requer depende da
aceitação de uma tradição que poderia ser justificada pela antiguidade do costume. No
domínio tradicional, a autoridade não é escolhida pelos cidadãos, mas por algum
costume como a primogenitura, ou o mais antigo membro de uma família. Os
governados não são cidadãos, mas sim pares ou súditos que obedecem a uma tradição.
Segundo o estado de espírito do monarca, podem conseguir favores ou desgraça. Mas
as decisões estão fundamentadas na sabedoria e não no livre arbítrio, pois isto poderia
causar uma desordem no sistema.
O patrimonialismo, assim como a dominação legal, também é durável e
contínuo na recusa o excepcional. Baseia-se num costume considerado inviolável em
razão da santidade de ter sempre sido assim, no soberano que representa o “eterno
ontem”. A autoridade, nesse caso, é altamente pessoal. O soberano recruta seus
auxiliares entre seus servidores, não racionalmente por qualidades técnicas, mas por
fidelidade. Eram proprietários dos cargos e o exerciam em nome do rei. Não existe
separação entre esfera privada e pública ou oficial. Não há distinção entre os interesses
pessoais do administrador e os interesses públicos ligados ao cargo. O critério para
seleção é a confiança. Muitas vezes a administração não era mantida às custas de um
dinheiro público, mas de um tesouro particular e, assim como o direito, era dirigido
pelo costume.
159
Na América espanhola, ocorre uma crise na legitimação da dominação
tradicional do trono espanhol. Assim que Fernando VII é deposto em favor do irmão
de Napoleão Bonaparte, a tradição projetada no monarca sofre um severo revés. É
nessa crise que se desenvolvem as independências na América. É um conflito que
conduz ao Estado grupos que não poderiam legitimar seu poder pelo mesmo padrão do
rei espanhol, devendo encontrar outras opções. A substituição dos godos e da
dominação espanhola provocou uma intensa reforma no sistema de legitimação do
poder e modelo de Estado. No vice-reinado do Prata, a elite da revolução de 1810 era
composta por comerciantes e burocratas. Mas a crise criou revolucionários de carreira,
políticos profissionais, funcionários do governo e um novo grupo militar, homens que
viviam do serviço ao Estado e das rendas governamentais. Para o Uruguai, o
direcionamento do Estado colonial patrimonialista para o independente burocratizado
e racionalizado não poderia ocorrer de imediato, visto que tal fenômeno é gradual, e
vinha em desenvolvimento desde os séculos anteriores. A historiografia tem indicado a
coexistência de ambos os estilos de administração para a inconstante primeira metade
do século XIX, caracterizando uma forma particular de organização do poder.
Sustentado na instabilidade, surge um Estado híbrido pela oscilação entre as
obrigações e acertos partidários e individuais e a intenção de alguns em construir um
governo central. Conforme aponta Halperín Donghi em seu livro Revolución y Guerra,
a racionalização e a burocratização do Prata não foram somente produtos de um
projeto das elites revolucionárias para o Estado, chamando a atenção para o papel
fundador da dinâmica da guerra, tanto constituindo novas elites (ou reformando as
antigas), mas também dando um desenvolvimento particular às instituições
administrativas.
46
Juan Carlos Garavaglia também reforça esta percepção ao estudar o
Estado Rosista para a província de Buenos Aires, encontrando no esforço de guerra
46
HALPERÍN DONGUI, T. Revolución y guerra. Buenos Aires : Siglo XXI, 1994.
160
uma correspondente necessidade de incremento fiscal e administrativo que provocou
um considerável crescimento ao ‘Leviatã’.
47
Com este processo de combinação de estilos administrativos, passamos a
identificar uma gradativa transformação na figura dos agentes do Estado, cuja
instrução e educação os permitiram interferir ativamente nas relações sociais e na vida
pública. Direcionando-se para as formas mais burocratizadas, lentamente prevalece
uma intenção de racionalização. Entretanto, isto não significa que as antigas tradições
foram totalmente eliminadas, pois um Estado instável não tem condições de impor
uma normal legal a todos, reservando boa parte das decisões ao costume que, em
grande parte, ainda está relacionado à ordem anterior.
Um exemplo que, melhor do que de coexistência seria de adaptação aos
rigores da guerra, está no já tratado encontro entre Zás e o caudilho Encarnación. O
pensamento que, a partir da Geração de ’37, predominou pelo século XIX, é o que
entende o caudilho e seu sistema (relacionado à causa federal) como inimigos da
construção de um Estado central, racional, burocratizado, constitucional e moderno.
Mas é importante colocar que a atuação do mulato Encarnación não deve ser entendida
como uma simples resistência de costumes tradicionais frente ao avanço do Estado. Ao
contrário, o papel adquirido pelos caudilhos a partir dos movimentos de independência
são muito mais “novidade” do que a Aduana, já que fora a guerra a responsável pelas
condições de ação para esse tipo de caudilho, oferecendo-lhe oportunidade de
ascensão. Freqüentemente funcionando mediante mecanismos de arrematação, ou seja,
de arrendamento da cobrança de tributos a comerciantes particulares, a Aduana era um
estabelecimento que já existia no período colonial, enquanto que o caudilho e sua
ascensão política e militar representavam um ator social que, apesar de presente
durante a colônia, ganhava um novo significado. A apropriação ou intermediação de
arrecadação das rendas também pode ser vista como uma estratégia a mais de
47
GARAVAGLIA, Juan Carlos. La apoteósis del Leviathán: el estado en Buenos Aires durante la
primera mitad del siglo XIX. Latin American Research Review, v. 38. n. 1, fev. 2003.
161
acumulação de poder. Neste sentido, um Zás "burocrático ou funcionário de tipo novo"
também desaparece, revestindo-se mais do papel de um burocrata agente de um
Estado, ou instituição da Aduana, ligada mais ao Antigo Regime do que a um modelo
de Estado defendido pelos movimento romântico e desenvolvido como projeto quase
três décadas depois. Seguramente, a oposição entre Zás e Encarnación não é aquela
entre o funcionário público moderno e o caudilho bárbaro de Sarmiento, mas entre um
caudilho que representa uma novidade da revolução, ou pelo menos o
reposicionamento social de um tipo de liderança, frente a um tipo de burocracia e
instituição de Antigo Regime, esta também sob domínio de um outro caudilho, o
General Artigas (remeto-me à idéia de diversidade estratégica e não à tipificação de
indivíduos). Porém, não se pode abandonar a constatação de que Zás está escrevendo
em 1851, momento que a avaliação da figura do caudilho já conta com a
estigmatização desenvolvida pela Geração de ’37. É provável que Zás esteja
combinando percepções carregadas consigo ao longo da sua trajetória, misturando a
rivalidade de instituição burocrática de Antigo Regime com a novidade do caudilho
trazida pela revolução, mas atribuindo ao seu rival o estigma já elaborado por seus
colegas do partido colorado em união aos emigrados unitários.
Ao finalizar seu texto, em um breve trecho intitulado de “Resumen de mi vida
publica”, Zás considera seu trabalho durante o período artiguista como um “serviço
público”.
48
Em destaque, atribui à sua posição de voluntário no primeiro sítio de 1811
a denominação de “empleado de la patria”. Sua atuação em instâncias burocráticas
artiguistas é vista com o início de uma carreira de empleado que se concluiria nessa
data de requisição aos 26 anos e meio de vida pública
49
. Enquanto o pensamento da
Geração de ’37, refletido no Uruguai pelo texto de Manuel Herrera y Obres, constrói
uma forte oposição entre Estado e Caudilho, Zás, também colorado, não entende o
artiguismo desta mesma forma, elaborando uma continuidade entre seu serviço de
48
ZÁS. op. cit., p. 172.
49
Ibid., pp.167-168.
162
empleado de instâncias burocráticas e estatais ao longo destes diferentes momentos da
história local. É a trajetória de um empleado que se insere em uma trajetória de
prestações de serviços a estas instâncias estatais.
A forma como Zás entende a categoria de empleado revela uma transição entre
dois modelos de atuação do Estado, caracterizados por dois modos de dominação
diferentes, o tradicional (patrimonial) e o legal (burocrático). Além dos salários, ele
menciona a persistência de ‘comissões’ para algumas tarefas, como na arrecadação de
impostos, apreensão de mercadorias contrabandeadas ou “venta de papel sellado”
como “Ynterventor de Correos”.
50
Em 1851, Zás mantém em suas memórias a idéia de
que as comissões não eram seu principal incentivo, chegando a ceder parte das suas
cotas “áfavor del Estado” na apreensão da carga ilegal de contrabando de um barco no
Rio Uruguai.
51
Zás parecia já se sentir empleado e com merecimento a alguma estabilidade
durante os mandatos dos primeiros dois presidentes, Rivera e Oribe.
52
Ao segundo ano
da presidência de Oribe, o recém empossado ministro “D. Juan B. Blanco havía dicho
que yo no permaneceria, pues seria separado por que savia mis opiniones”.
53
Mas um
amigo em comum conseguiu convencer o ministro de que as aptidões de Zás eram bem
conhecidas e que tinha a vantagem de ser “un archivo ambulante (...) Que á demas era
muy lavorioso, y le constava que yo havía formado á ratos desocupados todos los
Yndices de aquel archivo, trabajo que era impagable.”
54
De fato, Zás se manteve no
emprego, mas, ainda em 1836, Rivera declarou-se hostil ao presidente Oribe, que já
havia extinto o cargo da Comandancia General de la Campaña. Com isso, Zás foi
mas y mas malmirado por elGral Presidente – A punto deque creada una
guardiallamadadehonor pª custodia desu persona; no obstante que fueron llamados á
50
Ibid., pp. 127/130/150.
51
Ibid., p.131.
52
É importante ressaltar a idéia de merecimento e não a de direito, visto que não se tratam de direitos
formalmente garantidos pelo Estado.
53
ZÁS. op. cit., p.164.
54
Id.
163
èllatodos los empleados de los otros Ministérios á mi y mis subalternos, no se nos quiso
incorporar, por sospechosos.
Asi fuy pasando ratos y desaires muy amargos; sin embargo deno haver dado jamas la mas
leve causa para éllo – Nunca cometi falta de fidelidad de respeto, ni dellenarmi dever; mas la
animosidad contra mi persona crecío tanto que se vigilava mi casa y mis pasos, aun los mas
insignificantes.
55
Em seu texto, Zás garante que se manteve fiel ao Estado, apesar de suas
simpatias por Rivera e críticas negativas a Oribe. Ainda sim, com o já presente conflito
entre os dois caudilhos, sua má fama de suspeito foi acompanhada por um tratamento
severo por parte do líder blanco, que pessoalmente o ameaçou de ser jogado ao fosso
das muralhas de Montevidéu caso faltasse a algum dia de serviço.
56
Com a renúncia forçada de Manuel Oribe, “el Gral Rivera traíaconsigo unos
predilectos paraocupar las mayorias de los Ministérios”. Apesar disso, Zás foi mantido
como empleado no Arquivo, no que se pode observar alguma merecida estabilidade
para um emprego que não se perde ao longo da troca de governos entre dois partidos
que se alternam no poder pela via da guerra.
57
Poucos dias depois, Zás foi chamado ao
encontro de Rivera. Este estava distribuindo prêmios a alguns subordinados, “catorce
mil pesos áfavor de cadauno de sus Secretaríos, Vazquez, y Martinez”.
58
Especificamente para Zás, o general teria dito que
Hoy estoy para dispensar gracia á los buenos y antíguos servidores dela Pátria – Usted es
uno de éllos y quiero, por que hoy lo puedo, demonstrarselo – Conosco deoidas, de mucho
tiempo á V. De cerca desde que fuy presidente Y me consta que su constancia además por la
causa delorden y Autoridad legal, hásido siempre-una misma Pidame pues con sinceridad
deceo servirle.
59
55
Ibid., p. 165.
56
Id.
57
Esta estabilidade é informal. Não existe uma carreira estável de empleado.
58
ZÁS. op. cit., p. 166. Ver também Archivo General de la Nación. REGISTRO RIVERA.
Montevidéu, 1941. pp. 55-56. Zás se equivocou no valor, que seria um pouco maior: “Señalo á mis
Secretarios D. Santiago Vázquez, y Brigadier Gral D. Enrique Martinez á nombre de la República y
del mio, como una indemnizacion de sus quebrantos, la suma de diez y seis mil pesos á cada uno”.
59
ZÁS. op. cit., p.165.
164
É possível observar como Rivera também vê uma continuidade entre o
processo de independência e o da organização estatal do Uruguai independente. A
palavra Pátria é aplicada para todos esses momentos, mas, como já foi colocado
anteriormente, não pode ser confundida com um sentimento nacionalista. Ainda sim, a
continuidade de uma Pátria, cujo sentido pode ter sido alterado no decorrer do tempo,
e a continuidade de uma carreira de empleado em instâncias estatais é valorizada,
principalmente para aquele que sempre foi fiel em seus serviços ao Estado e à ordem
legal.
Este encontro com Rivera resultou no primeiro pedido de jubilación
60
de Zás,
mas não fora a primeira vez que pedia algum reconhecimento frente ao Estado. Ainda
com Manuel Oribe na presidência, Zás assinou um pedido coletivo de recompensa por
serviços prestados para os “Empleados que haviamos estado en campaña durante la
guerra de la Yndependencia.” A resposta do Ministro responsável Llambi foi
más ó menos en los términos Sig
tes
: ‘Vistas por el Gob
no
las razones en que se fundan los
empleados en campaña durante la ultima guerra nacional (...), há acordado se les diga: - Que
el P.E. [Poder Executivo] no las considera por bastantes, desde que todos
hansidocompensados consus respectivos sueldos: que en la actualidad están empleados los
mas y si alguno no lo está, es por haber hecho renuncia de sudestino Y últimamente que
depremiarse á éstos empleados; sería necesario hacer lo mismo con todas las milicias
departamentales que han estado frente al enemigo y hallándose en todos los convates á
quienes no obstante ni las gracias se les ha dado, al tiempo de retirarlas Hágaselesaver y
archivese’.
61
O encontro anteriormente descrito com Rivera deu a Zás mais uma
oportunidade de ter recompensados seus serviços desempenhados durante a guerra de
independência, esta que, neste momento, parece estar entendida apenas como a
empresa dos Treinta y Tres Orientales, desencadeada pela liderança de Lavalleja em
1825.
62
Ainda sim, a continuidade entre a carreira de empleado de instâncias estatais
60
Ver nota de rodapé número 03 deste capítulo.
61
ZÁS. op. cit., p. 163.
62
Ibid., p. 164.
165
desde o artiguismo aparece durante o já citado resumo da sua vida pública. De
qualquer forma, três dias depois da conversa com Rivera, Zás apresentou
un memorial corto solicitanto mi juvilación y retiro del Empleo que havia desempeñado por
el espacio de diez y siete años contados los tres de la guerra dobles – Oficial 1º efectivo y
hecho las veces de mor.1º acompañando al Sr. Gobernador Suarez en el año 27 á campaña =
2º desde Enero del 29 hasta Abril en la Aguada (...) 3ª desde Setiembre delmismo año en que
Araucho y [Francisco Solano] Antuña sefueron á sus casas (...)
e assim segue a enumeração dos cargos pelos quais pretendia ser
recompensado até a data de “8 de Febrero del 39 en que presente la referida solicitud”.
Para este caso, a continuidade entre os empleos parece estar cortada, uma vez que a
solicitação somente incluiu os serviços prestados a partir da entrada dos Treinta y Tres.
Assim, existe uma diferença importante entre a continuidade da prestação de serviços
e a do Estado propriamente dito, como se as instâncias burocráticas e estatais de
Artigas não lhe garantissem prêmios ou compensações frente à nova República
fundada pelo acordo de paz de 1828. Na sua trajetória individual, seu “primer empleo”
é colocado para Agosto de 1814, “Recaudador del impuesto de 2 r.
s
por res del abasto
á las ordenenes del Fiel Egecutor (...)”
63
, mas o pedido de aposentadoria somente se
refere aos trabalhos desempenhados a partir de 1827.
Ao tomar conhecimento da solicitação de jubilación, o General Rivera, a
aceitou com desagrado, mas o Ministro encarregado do assunto “se opuso
grandemente á ella dijo que era estemporanea, é ilegal (...) por que yo no me havia
invalidado en elservicio, no se suprimia laplaza, como lo exigia la Ley – A lo que
constesté que por (eso) lo pedia por gracia (...)”, o que foi aceito após a notícia de que
o próprio Rivera o havia consentido.
64
Em uma graça praticamente exclusiva para
funcionários do Estado
65
, Zás passou a receber 75 pesos mensais.
63
Ibid., p. 172.
64
Ibid., p. 168. A lei de jubilación de 2 de janeiro de 1839: “El General en Gefe del Ejército
Constitucional. Siendo indispensable reglamentar la ley de retiro, jubilación y montepio de empleados
civiles, p.ª que haya orden y uniformidad en las pretensiones que se entablen p.ª optar á los goces que
ella les designa, he venido en acordar y decreto: Art.º 1º Para solicitar cualquiera empleado civil, el
retiro de la Ley, se necesita: 1º que se suprima la Plaza efectiva que estuviese desempeñando. 2º: que
166
Neste exemplo, existe uma descontinuidade entre instâncias burocráticas
(artiguismo e República Oriental do Uruguai) e continuidade entre Pátria e carreira de
empleado (trajetória individual de prestação de serviços a algum Estado). Como já
apontou Chiaramonte, a idéia de Pátria está desligada da de Estado-Nação. Em Zás, a
palavra ‘pátria’ é usada para a Banda Oriental, seja artiguista ou independente, seja
ligada às demais províncias do antigo vice-reinado, seja a de um Estado totalmente
autônomo – a organização do Estado ocorre em separado da noção de pátria. Em sua
curta carreira de soldado, antes do “primeiro emprego” e recém iniciada a campanha
artiguista, seu comandante lhe perguntava “si era patriota como se me conceptuava”.
66
Patriotismo que também impulsionaria o mulato Encarnación, segundo suas
instrucciones.
67
Zás também afirma que não podia “soportar lavista delos Portugueses
como dueños de mi Patria”.
68
Mesmo o 25 de Maio de 1810, revolução tida como
portenha, elevou o entusiasmo de Zás “al ver alguna de aquélla gente en el Cerrito con
el pabellon de la Pátria enarbolado”. Em 1825, o governo provisório dos Treita y Tres
Orientales em Florida representava a esperança pelo “voto libre y espreso de los
Pueblos”, uma passo “esencialmente patriotico” desta autoridade recém constituída.
69
Zás colocou a palavra ‘pátria’ para acontecimentos distantes em até 15 anos, porém,
relembrados em 1851, momento em que esta palavra parece ter conservado seu
tenga diez años, al menos, cumplidos de servicio. 3º que no sea de los empleados amovibles á la
voluntad del P. E. 4º que su separación, aun cuando se suprima el empleo, no se funde en su ineptitud,
omisión ó delito. (...)” Archivo General de la Nación. REGISTRO RIVERA. Montevidéu, 1941. pp
59-61.
65
SALA DE TOURON, L.; ALONSO ELOY, R. El Uruguay comercial, pastoril y caudillesco.
Tomo II: Sociedad, política e ideología. Montevidéu : Banda Oriental, 1991. p. 79. Estas autoras
ainda ressaltam o hábito tido como caudilhesco, mas comum em se tratando de um costume de Antigo
Regime, de “dispensar gracias”: “Era costumbre inveterada de Rivera compensar los suyos, y como
éstos y otros políticos y militares estaban en los niveles más elevados para su gratitud en el momento,
recibían donaciones de monto significativo, el cual se reducía hasta llegar en el caso de las gentes
comunes, a la aceptación de amparos de poco monto tal vez, pero no para quienes la recibían.
66
ZÁS. op. cit., p. 125.
67
Ibid., p. 128.
68
Ibid., p. 136.
69
Ibid., p. 141.
167
significado.
70
Contudo, como visto acima, serviços prestados à ‘Pátria’ durante o
artiguismo não garantiam compensações frente ao Estado já independente em 1839,
distanciando estas duas categorias de uma pretensa unidade.
Semelhante descontinuidade ocorre em relação aos títulos de propriedade dos
donatários artiguistas do Reglamento de 1815. No interesse do governo da já
independente república em organizar o confuso sistema de propriedades, “se excluían
especificamente a los donatarios artiguistas”.
71
Isto não significou uma expulsão
imediata, já que a antiguidade das suas ocupações tinha certo reconhecimento, mas não
foram legalmente aceitos como proprietários, vistos apenas como ocupantes
(poseedores). A estes foi igualmente imposta a necessidade de pleitear e disputar suas
terras contra outros interessados ou antigos proprietários desapropriados por Artigas.
3.2 – FRANCISCO SOLANO ANTUÑA, BLANCO Y DOCTOR
José Encarnación de Zás se casou em 1826, teve como padrinho de casamento
a Francisco Solano Antuña. Nascido em 23 de julho de 1793, Antuña elaborou um
extenso diário descrevendo os anos em que esteve sitiada Montevidéu. Entre 1843 e
1850, diariamente, registrou os acontecimentos que julgou importantes para aquele
período em que o Uruguai esteve dividido por dois governos inimigos que se
consideravam os legítimos da República, um limitado a Montevidéu, outro governando
o interior. Em conjunto a alguns panfletos políticos e a um diário de foro íntimo e
familiar, este esporadicamente escrito entre 1818 e 1858, o Museu Histórico Nacional
publicou os escritos de Antuña entre 1974 e 1977. Pela natureza diversa do seu texto, o
70
Zás não constrói um significado explícito para a palavra ‘Pátria’, mas nela é possível observar que
se incluem noções um tanto quanto vagas de apego a um determinado território que, para a Banda
Oriental, era chamada naquele contexto de ‘Pátria Chica’, mas também existia a ‘Pátria Grande’,
englobando o antigo Vice-Reiando.
71
SALA DE TOURON, L.; ALONSO ELOY, R. op. cit., pp. 144/210. Outra descontinuidade está na
diferença entre patriotas e cidadãos, sendo a primeira categoria muito mais utilizada nas palavras de
ordem que pretendiam mobilizar a população à guerra. Era uma palavra que encontrava um número
maior de ouvintes, uma vez que era mais abrangente do que a de cidadãos.
168
blanco Antuña nos deixa registros abertamente partidários. Seus Apuntes y reflexiones
sobre los sucesos del Rio de la Plata ocurridos desde 1826 hasta 1842 atacam
vigorosamente os unitários argentinos e procura ridicularizar o general Rivera,
apontado de “prostituta traidora”.
Os volumes que contribuíram documentalmente com os escritos de Antuña
vêm acompanhados de uma breve biografia que resume sua trajetória pública e
familiar. Escrita por Elisa Silva Cazet, esteve respaldada por outras fontes não
publicadas do Museu Histórico Nacional, mas guiada principalmente pelas Memórias
Domésticas de Antuña, deixando “a quien los lea y estudie con sereno espíritu crítico”
a tarefa de “extraer de ellos cuanto contienen como elemento de juicio valedero para
escribir la historia del Uruguay”
72
.
Sua primeira publicação na Revista Histórica é a “Memoria domestica escrita
por el Dr. Francisco Solano Antuña”, feita entre 7 de janeiro de 1818 e 3 de março de
1858. Nesta, apenas os nascimentos, batismos e casamentos dos seus filhos, netos e
escravos, além de algumas mudanças de emprego e função, são mencionados. A
próxima foi o “Borrador de una memoria pedida desde Buenos Aires por unos jovenes
orientales y que los sucesos dela guerra impidieron de continuarlo – sitio de
Montevideo”, um texto político contra unitários e riveristas. O terceiro é o “Diário
llevado por el Dr. Francisco Solano Antuña sobre los sucesos ocurridos en la
República durante el año 1843”. O último é o “Diário llevado por el Dr. Francisco
Solano Antuña en el campo sitiador”. Este é o mais longo, estendendo-se desde 4 de
novembro de 1844 até 25 de agosto de 1850, e, assim como os dois anteriores, trata do
sítio de Montevidéu durante a “Guerra Grande”.
As trajetórias pessoais de Zás e Antuña têm alguns pontos em comum, como o
serviço às armas enquanto jovens. Ambos são nascidos na América e filhos de
espanhóis. A família Zás vem da Galícia e a Antuña, de Astúrias. Desde os treze anos,
72
CAZET, E. S. Escritos Históricos, Políticos y Jurídicos del Dr. Francisco Solano Antuña, In:
Revista Histórica, publicación Del Museo Historico Nacional. Montevidéu : A. Monteverde & Cia.,
1974. p. 421.
169
Antuña prestava serviços de escribiente de numero a uma divisão de Artilharia. Em
1815, já servia de escrivão do governo em Montevidéu, transferindo-se para o
secretariado do Cabildo em 1817. Divergindo da opção de Zás quanto ao apoio a
Artigas, Antuña, então pró Buenos Aires, o considera um “caudilho anarquista”.
Porém, ambos apoiaram o retorno de Lavalleja à Banda Oriental em 1825, movimento
que resultou na independência de 1828. Entretanto, pretendendo fugir da “anarquia”
causada pelo general Lavalleja, que dissolvera o poder legislativo provisório instalado
em Florida, Antuña deixou a Banda Oriental em 1827, retornando dois anos depois.
Ele chega a trabalhar no Estado que se organizava na capital vizinha e está entre os
enviados de Buenos Aires para as negociações de Paz entre o Império do Brasil e as
Províncias Unidas, mediadas pela Inglaterra, em 1828. Anos mais tarde, durante o sítio
de Montevidéu da ‘Guerra Grande’, esteve mais uma vez separado de Zás. Enquanto
este permaneceu junto ao “Governo da Defesa” colorado na capital, Antuña
abandonou a cidade para unir-se ao exército sitiador comandando por Manuel Oribe.
Antuña também fez carreira no serviço público, intercalando-a ao trabalho de
advogado, atividade que lhe rendeu título de Doutor ao defender sua tese na
Universidade de Buenos Aires em 1834
73
. Além disso, fez parte da Assembléia
Constituinte de 1830, e, posteriormente, foi Senador. Abandonou as atividades
públicas em 1855 para confinar-se ao serviço jurídico privado.
A principal finalidade da sua escrita é a de apontar o que ocorria de relevante
no desenvolvimento diário da ‘Guerra Grande’. Pouquíssimas questões não
relacionadas à guerra são mencionadas, atendo-se, principalmente, aos movimentos
bélicos e diplomáticos dos grupos políticos que se enfrentavam. Na primeira e mais
curta parte do diário, está ainda na Montevidéu controlada pelo ‘Governo da Defesa’
73
Antuña leva a sério seu título..... “(...) Min.º plenipotenciario salvage unit.º D.or (q.e no lo és) José
Ellauri (...)”. ANTUÑA, F. S. Escritos históricos, políticos y jurídicos del Dr. Francisco Solano
Antuña: Nº 3 – Diario llevado por el Dr. Francisco Solano Antuña sobre los sucesos ocurridos en la
República durante el año 1843. Revista Histórica. Montevidéu : v. XLV–XLIX, n.133-147.
Publicación del Museo Nacional, 1974-1977. p. 436. Para este e todos os demais trechos de Antuña, é
mantida a grafia original, com a exceção de algumas abreviações.
170
colorado. A partir de novembro 1844, passa a escrever junto ao exército do campo
sitiador, já entre seus colegas blancos. Com a exceção do intervalo que marcou sua
fuga da capital, mantém seu diário com rigorosidade, e, mesmo que nada tenha a
escrever, informa o leitor da sua falta de novidades. Infelizmente, em vista das funções
que exerceu, não tinha acesso a todos os níveis de informação, em geral, reservadas
aos militares.
74
Boa parte do que noticia em suas anotações decorre de leituras de
periódicos, simples boatos, ou ainda de deduções acerca do estado de humor do – para
os blancos – Presidente Manuel Oribe e seus subordinados mais próximos, de modo
que sorrisos significariam futuras boas novas, enquanto que uma expressão fechada do
seu rosto, uma possível aflição.
Assim como Zás, Antuña parece atribuir ao seu contexto um significado
histórico de grande importância, e merecedor de um registro atento e dedicado. Porém,
em vista do marasmo em que por vezes se sentiu, chegou a duvidar da utilidade desta
sua atividade:
[27/06/1845] – Hay hombres que son consecuentes consigo mismos hasta en los propósitos
mas insignificantes, y á esto se debe que se continue todavia este diário estéril y que para
maldita la cosa puede servir, sino para recrearse el autor leyendolo, quando llegue un dia á
ver libre y feliz á su Pátria – y esto por que pasados los dias dela adversidad, se goza de un
Consuelo, de un cierto genero de placer recordandolos.
75
[04/09/1847] – Así vamos viviendo, envejeciendo y muriendonos, sin hacer nada de nuebo,
sin movernos y naturalmente resfriandonos; por que nada debemos esperar de Europa, y por
que nada hacemos, ni pensamos para poner termino á este maldito modo de ser y de
consumirnos.
76
Contudo, são raras as reflexões mais demoradas sobre o significado global do
seu contexto. Pela própria natureza do seu diário, dificilmente se atém a comentários
mais extensos do que o que se segue logo abaixo:
[16/02/1847] - ¡Cuatro años se cumplen hoy de sitio á Montevideo! Y los que allí se
apoderaron del mando lo celebraron con salva general, como si tan prolongada resistencia á
74
Assim como Zás, também se difere dos militares: [24/04/1847] – (...) nosotros los no militares (...)
Ibid., p. 324.
75
Ibid., p. 452
76
Ibid., p. 370.
171
la voluntad nacional fuese un efecto dela constancia del miserable grupo de americanos
traydores, que encierran aquellos traydores!... Es la Inglaterra, és la Francia con sus
esquadras, sus soldados, sus armamentos y su dinero, que conservan aquella Ciudad en que
dominan, bajo el nombre de Gobierno oriental que les prestan quatro malvados. Sus soldados
son los negros que fueron nuestros esclavos, que ellos nos arrebataron, y toda la canalla que
la Policia francesa arrojo de diversos Departamentos dela Francia, así como los lanzaron
itália, la chusma mas pobre y degradada dela pobre Cerdeña; y en fin los hombres de todas
las Naciones, que aborreciendo el trabajo estan siempre prontos para hacer el corso en
nuestros rios, y para depradar nuestras costas, matando sin piedad á todos nuestros
compatriotas, sin distincion de sexo, ni edad. Esa és la obra humanitária y civilizadora de los
Ministros y Comodoros de las dos mas grandes Naciones del Universo. Esto és lo que
celebran los execrables que todavia no se avergüenzan en Montevideo de llamarse orientales
y argentinos. ¡Maldicion sobre ellos!
77
Mas este “resumo” já nos indica um tipo de interpretação que poderá ser
encontrada em outros trechos. Seus inimigos são classificados: os traidores, também
uruguaios; os estrangeiros, ingleses, franceses e italianos. Seus soldados são o que de
pior existe em ambos continentes: negros que foram seus escravos em território
americano, ladrões e canalhas repudiados pela Europa, indivíduos de todas as
Naciones que por não quererem trabalhar, dedicam-se ao roubo, à depredação e ao
assassinato. E, além disso, todos estes oponentes estão em Montevidéu, legitimando-se
por uma missão civilizadora e humanitária. A deslegitimação que este elabora em
relação aos seus oponentes é pensada no terreno das atitudes e comportamentos,
incluindo o fenômeno do corso tão empregado pelo “pirata” Garibaldi. Importante é
idéia de “vontade nacional” (bastante diferente da imagem de poder pessoal
caudilhesco) atribuída ao seu lado da disputa, o que curiosamente revela uma visão
hierarquizada de uma sociedade ao colocar os negros libertos no lado oposto, no dos
“não nacionais”, traidores e criminosos comuns.
Em Antuña, poderemos encontrar algumas das questões já levantadas nos
capítulos anteriores e na análise das memórias de José Encarnación de Zás. A
civilização e a barbárie estão distribuídas pelo diário de Francisco Solano Antuña de
um modo bastante particular se o compararmos com as fontes trabalhadas
anteriormente. Será possível encontrar também mais um exemplo de concessão dos
77
Ibid., p. 302.
172
direitos de Aduana, desta vez cedida em Montevidéu aos estrangeiros inimigos dos
blancos. Na relativa permeabilidade de um sítio não muito eficaz, encontrar-se-ão uma
variabilidade de penas criminais, dependentes não só da tipificação da infração, mas
igualmente do indivíduo infrator, resultando em castigos diferentes para negros,
brancos, estrangeiros, jovens, adultos e mulheres. Além disso, um encontro muito
diferente daquele entre Zás e Encarnación se dará entre Antuña e Andrés Lamas. Já
não será um caudilho contra um civilizado, mas dois doctores de partidos rivais e em
guerra, resultando em uma interação específica entre esses dois indivíduos.
3.2.1 – Encontro com um doctor e a necessidade de abandonar Montevidéu
Quando o sítio a Montevidéu se tornou efetivo em 16/02/1843, Antuña optou
por permanecer na cidade, ainda que junto aos seus desafetos. Ao que tudo indica, sua
esperança era de que aquela conjuntura seria de rápida resolução. Afastou-se o quanto
pôde do governo colorado, não exercendo nenhuma função pública, e resistiu com
relativa prudência a todas as contribuições, espontâneas ou não, requeridas à
população da capital para o esforço de guerra (Método pouco formal e menos violento
do que o de Rosas para “purificar politicamente” uma cidade).
Em abril daquele primeiro ano, Antuña recebeu um “convite”, vindo de Andrés
Lamas (colorado dos mais próximos aos emigrados unitários) para uma contribuição
ou ajuda à compra de armas:
[26/04/1843] - Recibí una invitación del Gefe de Policia Andrés Lamas para que me
suscribiera á la compra de un armamento que deseaba ofrecer al Gobierno.
[27/04/1843] – Conteste á la invitación de Lamas, que no teia que donar; pero que aun
quando tuviese jamas contribuiría a poner armas en las manos de los europeos para que
derramasen sangre americana.
78
Sua recusa, ainda que não abertamente contrária à causa colorada, apelando
apenas a algum comprometimento de não colaboração a um conflito fratricida, não foi
78
Ibid., p. 457.
173
entendida como uma declinação qualquer. O prestígio de Antuña é comprovado pelo
interesse de Lamas em visitá-lo e, como se vê abaixo, de protegê-lo.
[08/05/1843] – Recibi una carta del Gefe político D. Andrés Lamas en que me avisa que a
las 9 de esta noche vendrá á contestar verbalmente mi carta del 27 – venga enhorabuena –
oirá lo que no habrá oido hasta ahora ni cosa parecida.
Vino S S á las 9 y conferenciamos hasta las 11:30 – Empezó aplaudiendo los sentimientos de
mi carta y devolviéndomela como peligrosa: me reí interiormente de esta abertura
protectora, quando creía no equivocarme en el obgeto de la visita. En resumen quiso
averiguar que datos tenía yo para esperar que el General Oribe ajustára una transacción
prescindiendo de Rosas, ó mas bien asegurando la independencia dela República y sus
instituciones. Me atrevi á decirle, que no creía yo que el Señor Lamas huviera dudado de
alcanzar sus deseos; pero que si en efecto la duda, ó la desesperación había sido la razon para
que habia hecho causa comun con los abyectos Riberistas, ó imprudentes ladrones, yo
contaba con el patriotismo de Oribe, que hacia alarde de conocer, y con el inters que el
tendría hoy de evitar efusión de sangre y de mostrarse oriental virtuoso y no asesino y
sanguinario, como lo habian pintado años antes sus encarnizados enemigos. Me confesó
Lamas los desmanes de los franceses armados; me confeso que el Ministro Pacheco había
aborrecido siempre este armamento; y concluyó ofreciéndome que iba á trabajar
empeñosamente por la paz. Yo lo creo; mas no por nada delo que él dijo, sino por que el
Cónsul y Vicealmirante frances han exigido de este que se llama Gobierno (y que no lo és
como lo probé á Lamas) que para el 10 del corriente recoja todas las papeletas que
acreditaban la ciudadanía de los franceses hoy armados: Por que estos han significado con
otro motibo al Ministro Vasquez que sino son necesarios sus servicios, renunciarán las
raciones y demas; pero que no dejarán las armas – por que no aprobándose el convenio
ajustado entre el Comodro ingles y Almirante Brown, naturalmente el inglés será neutral en
adelante – y lo creo últimamente por que verdaderamente Rivera Fue batido cerca de San
José estos dias. Veremos: no parece que vamos mal.
79
Estas duas horas e meia de conferência, seguramente, estenderam-se para além
do que o trecho acima enuncia. Uma frase que chama muito a atenção é a que indica
um Antuña discutindo a legitimidade “de este que se llama Gobierno”, “y que nó lo és
como lo probé á Lamas”. E se acreditarmos que Antuña “venceu” esta discussão,
como ele dá a entender com o uso do verbo “probar”, observamos um Lamas bastante
propenso a escutar as lamentações do seu interlocutor, o que se reforça pelas primeiras
palavras deste encontro, com a devolução da carta “perigosa” e os cumprimentos pelos
nobres sentimentos compartilhados quanto à vida dos compatriotas americanos. Esta
“abertura protectora” do chefe colorado deu confiança ao doctor blanco,
79
Ibid., p. 464.
174
proporcionando-lhe uma ocasião para expor suas opiniões frente a um adversário
político, algo possível somente em vista do carácter não público desta entrevista. Mais
do que esta compreensão, Andrés Lamas trata de se aproximar de Antuña, apontando
um relacionamento tenso entre ele e Rivera (o que se tornaria conflito aberto em 1847
– ver publicação de Herrera y Obes). O próprio Antuña coloca Lamas em um grupo
distinto ao dos “Riberistas”, com o qual viera a se aliar. Esta diferenciação entre
categorias de inimigos, de certa forma, constrói uma aproximação entre os dois.
80
São
dois homens das letras que, por motivações opostas, aliaram-se a grupos políticos
contrários: “Y cuidado que este caballerete és de las principales piezas liberales,
romanticas, y bases del porvenir”
81
. Contudo, apesar do suposto interesse de Lamas
em acertar a paz o mais rápido possível, Antuña termina seu texto demonstrando maior
confiança na força das armas blancas do que no compromisso da sua visita colorada
nem tão visita, estando mais para um estudo ou inspeção colorada frente a um blanco.
Não resta dúvida de que a posição social de Antuña lhe garantiu esta proteção
oferecida por Lamas. Mas, mesmo para uma figura respeitada, existiriam limites.
Apenas sete dias após esse encontro, a casa de Antuña recebeu mais uma carta com
requisições do governo colorado:
[15/5/1843] – Este Gobierno ha pasado nuebas circulares apelando, dice, al patriotismo para
reclutar gente para las cañoneras (...). También apelo á las Señoras diciendoles en carta el
Ministro Pacheco que há tenido que imponerles la obligacion de coser ponchos de Oficiales
poniendo la costurera los avíos. A casa vinieron ocho ponchos con la carta y fue preciso
recibirlos, por que camas y dinero todo se habia negado hasta ahora y no era prudente tentar
otra vez la delicadeza de S. E.
82
Desta vez, os ponchos foram aceitos, mas este tipo de requerimento veio a se
repetir no mês seguinte, quando,
80
Ao longo do seu diário, Antuña sabe algo do que acontece entre os colorados em Montevidéu, e
consegue acompanhar um pouco das richas intrapartidárias do Governo da Defesa. Ele separa
nitidamente os que ele chama de Riberistas dos do partido “porteño”, estes os mais ligados aos
unitários emigrados.
81
[27/07/1843] Além de “caballerete”, Antuña também o chama pelo diminutivo “Lamitas” em outros
trechos, provavelmente em vista da diferença de idade entre os dois. Ibid., p. 516.
82
Ibid., p. 467.
175
[18/06/1843] – Para completar el dia se presentó en mi casa un oficial con un papel simple
sin firma ni sobre con membrete del Ministerio dela guerra á efecto que se cosieran gratis
quatro ponchos que traía un soldado. Le contestaron las niñas que estaba la Madre ausente y
era verdad; pero que no recibian los ponchos por que no podían coserlos estando la familia
enferma, y por que no podian pagar á quien los cosiese fuerra de casa. Inmediatamente
volvío el Oficial con su soldado y los ponchos diciendo que traía ordenes del Minstro
Pacheco para dejarlos tirados en la puerta de la calle. Una niña le contestó que ignoraba que
S. E. pudiera hacerlas trabajar á la fuerza. ¡Y creerá este picaro muñeco que mi familia és su
esclava! Y creerá que se le han de devolver los ponchos! Miserable! Que equivocado está si
piensa que no hay todavía dentro de sus trincheras mas que seres degradados; ciudadanos
indignos de serlo... ¡Ojalá viniese el solo á buscar sus ponchos, ó reconvenirme. Bien puede
esperar para este invierno estos ponchos, sin taparse con otros!
83
Enquanto a alguns habitantes seria exigido o serviço militar, a outros, as
contribuições teriam outra natureza. No caso, às mulheres são reclamados serviços
entendidos como típicos de atividades femininas, porém escusados por Pilar Antuña na
alegação de enfermidade da família. Para os detentores de maiores fortunas, as
demandas poderiam adquirir a forma de contribuições financeiras ou de suprimentos:
[08/06/1843] – El Ministro Pacheco vuelve á ejercer las violencias con que señaló el
principio de su Ministério: siempre continuó mandando con el major despotismo; pero ahora
de nuebo lo ha redoblado de diversos modos. Por ejemplo despues de varias esacciones á D.
Manuel Ocampo, le exigió recientemente treinta pipas de aguardiente, y acto continuo lo
puso en el conflicto de aceptar um vale por siete mil patacones ó marchar de soldado á la
línea. Por supuesto, eligió el primer medio.
84
Seguindo uma prática relativamente comum daquele contexto, e até mesmo
abordada por Antuña em sua tese de doutorado, os ausentes da cidade,
presumidamente aliados com o inimigo, tinham suas propriedades apreendidas.
Antuña menciona, por exemplo, dois armazéns apreendidos, cujos produtos mais
valiosos foram carregados em carretas e levados pela Polícia, enquanto que aos
83
(486-487) Mais sobre as roupas: 22/6/1843 – Ayer no ha comido la guarda nacional dela trinchera,
como otras varias veces le ha sucedido; por que á esta gente de la tierra, aunque los mas son españoles
se le trata con el mayor desprecio, y tanto que habiéndose vestido de pies á cabeza á los negros, los
franceses y los italianos, para los nacionales se ha adoptado el arbitrio de mandar á los Tenientes
Alcaldes que andan de casa en casa pidiendo ropa de desecho con que vestirlos. Ibid., pp. 486-
487/489-490.
84
Ibid., p. 481.
176
“objetos pequeños lo puso á discreción de los muchachos, negros y changadores, de
manera que el pillaje presentó ál Pueblo el espectáculo mas inmoral y repugnante”.
85
Mas a família de Antuña ainda não estava livre de receber mais algumas
camisetas para costura:
[29/06/1843] – Amedio dia se presentó en casa un militar trayendo tres veces seis camisetas
cortadas para oficiales, y tres papeletas sin firma con membrete del Ministério dela Guerra y
entre pidiendo y mandando que cosiese cada una su media docena. Mi hija Pilar, la mas
resuelta de todas puso en el acto debajo del papel que la nombraba. “Si este simple papel és
del Señor Ministro dela Guerra, Pilar Antuña responde por si y sus hermanas, que estando su
familia en indigencia tienen que trabajar para ganar el sustento; y que por esto no podía coser
las camisetas que devolvia; y firmó. Bien poco después vino otro oficial argentino tuerto, ó
vizco (que yo no lo vi) y en la puerta de la sala á presencia de D. Manuel Frias preguntó por
Doña Pilar Antuña. Respondió esta – Servidora de V. - ¿Escribió V. este papel? Si Señor.
“Pues el Señor ministro manda decir á V. que se apronte para salir con todos sus muebles
fuera de lineas mañana á las diez; por que no debe vivir entre los libres quien se niega á
coser ropa para los defensores de la Patria”. Pilar corrida, ó mas bien asustada, pudo apenas
decirle – espere V. voy á contestarle; por que el oficial le replicó no tengo que esperarme;
dio la espalda y marchó; bien que sin que dexase de decirle Dolores mi hija casada, “diga V.
al Señor Ministro, que está bien, que se cumplirá su orden y con mucho gusto” Y aquí dío fin
al saynete, pudonaid &.
86
Estes conflitos acerca das costuras não foram privilégio das filhas de Antuña,
e este escreve que também outras famílias teriam recebido as mesmas ameaças. À
família Platero:
[08/07/1843] – Ya no fue á mi Pilar sola que intimaron la salida – Dicen que la Señora de
Platero dijo tambien muy suelta de curpo, que no cosía camisetas, por que no sabía, ó no
podiá – Que le dixeron pues afuera todas las Plateros, y que dixo Maria Luisa , pues que me
dén las camisas: Hízolas, las hicieron ellas (mis hijas); y las hará el gran demonio que no
tenga gusto de írse al campo y abandonar su casa para que se la robe [o Ministro] Pacheco.
87
85
[30/06/1843] Ibid., p. 496.
86
Ibid., p. 494.
87
Outra passagem sobreo mesmo assunto: [14/7/1843] – Anuncia el Diario de hoy una revista general
muy lucida, por que todas las tropas, que es decir todos los habitantes americanos, ó españoles, irán de
uniforme nuevo. Aplaude por esto el diarista el zelo y actividad del Ministerio de la Guerra; y por
cierto que nada tiene de meritorio el que se saquen piezas de paño y de bayetas á los tenderos, el que
se hagan cortar gratis los uniformes, y que se obligue á las familias á coserlos y poder los avíos. Ibid.,
p. 501/507.
177
A pressão do ‘Governo da Defesa’ cresceu ainda mais durante os dias que se
seguiram à “rebeldia das costureiras”. Em uma ação que atingiu mais uma vez a
família Platero, e desta vez sob ordem direta do Chefe da Polícia Andrés Lamas,
oficiais executaram buscas e apreensões em domicílios considerados suspeitos,
abrindo “comodas, ó papeleras, y substrajeron todos los papeles. Lo mismo se hizo en
la casa de Furriol; y, quien sabe, si en otras partes. Viva la libertad y sus defensores de
aquí”.
88
Não se deve desprezar a proteção de Lamas a Antuña este ocorrido, visto que
ele mesmo poderia ter enviado oficiais à sua casa, e teria mais do que suspeitas para
agir neste sentido.
Ainda em julho, desta vez por iniciativa de um famoso unitário argentino
exilado, recebeu “una carta en que el General Paz me citaba para hoy á su Cuartel
general, adonde iba á tratar de crear una sociedad de hombres que asistiese y por
supuesto pagase la cura de los heridos. Le respondí hoy atentamente que estaba
enfermo”.
89
Por quantas vezes mais algum membro da família Antuña poderia se
eximir de suas obrigações pela alegação de enfermidade? Com um pouco de bom-
senso, Antuña certamente perceberia que esta desculpa já não teria o mesmo efeito, o
logo se decidiu por sequer responder às cartas que recebia vindas do governo.
Mas a situação se tornou ainda mais crítica com a publicação de um
alistamento compulsório de “todos los empleados de la Nación, á los Medicos,
Abogados, Procuradores y panaderos”
90
com prazo de apresentação dos convocados
para o dia 26, apenas seis dias após a publicação. Chegada esta data, Antuña escreveu:
“Yo no fui ¿qué vendrá?”
91
Cada vez mais, o cerco se fechava ao redor de Antuña. Sentindo-se cada vez
mais ameaçado, uma vez que “Todo, todo, todo se invade y atropella ningun respeto
88
[12/7/1843] Ibid., p. 505.
89
[20/7/1843] Ibid., p. 512.
90
[22/7/1843] Ibid., p. 512.
91
[26/07/1843] – Antuña também inclui depois aos “boticarios, empleados, Profesores (...) para a
convocação. Outro caso de recrutamento obrigatório: [04/08/1843] – “Hoy se presentan todos los
hombres de color en la Policia”. Ibid., p. 515.
178
humano contiene ya á esta gente”, concluiu que “és indispensable huirla.”
92
Em seu
diário, não aponta como fez para abandonar Montevidéu, apenas fica registrado que
seu último dia de anotação foi 12 de agosto de 1843, somente retornando às suas
anotações diárias mais de um ano depois, no dia 4 de novembro de 1844, já presente
junto aos colegas blancos no “campo sitiador”.
O número de “pasados”, indivíduos que conseguiam passar de um lado a outro
das linhas de combate, parece ter sido consideravelmente alto. Seria uma empresa
arriscada, mas perfeitamente possível e comum, já que Antuña os menciona com
grande freqüência. Em geral, estes “pasados” não eram aprisionados pelo outro lado,
já que os viam como desertores do inimigo. Antuña não menciona a existência de
homens expulsos, mas apenas mulheres, recebendo estas penas mais “humanitárias” do
que a morte ou a prisão. Dois anos transcorridos desde a ameaça sofrida por sua filha
Pilar, Antuña menciona outros casos, como as das “ocho mugeres echadas dela Plaza”
de Montevidéu em agosto de 1845.
93
O ‘Governo da Defesa’ de Montevidéu empreendeu um esforço pela limpeza
política da cidade. Através de um método muito menos deliberado e sangrento que o
de Rosas, os colorados-unitários da capital sitiada conseguiram se livrar de algumas
figuras incômodas contra as quais não podiam simplesmente enviar soldados, porque
não teriam provas ou argumentos suficientes para encarceramento ou julgamento
público. Os excessos de que reclama Antuña não eram os da aberta violência física
(castigos corporais ou prisão), e para o caso do alistamento de advogados, que o
incluía, ninguém apareceu em sua casa para perguntar o porquê do seu não
comparecimento. Mas seria prudente não abusar da boa vontade de indivíduos como
Andrés Lamas. Antuña abandonou Montevidéu, mas não sem levar consigo uma forte
amargura contra os que o teriam desrespeitado e abusado:
92
[03/08/1843] Ibid., p. 519.
93
[11/07/1845] Ibid., p. 455.
179
[24/07/1843] - ¡Malvado tirano, desvergonzado ladron [Ministro Pacheco]! Como abusa de
su posición tiranica, porque sabe que nadie le ha de observar, ni nadie tendría valor de
imprimir estas solas preguntas. ¿De adonde sacaste los paños y bayetas, sino de las tiendas
de los Americanos y españoles por medio dela fuerza y la amenaza? Quien te cortó esos
uniformes, sino vecinos que lo hacen por tu mandado y voluntariamente, á trueque de no
tomar un fusil para defenderte á ti? ¿Quién ha cosido esos vestuarios, sino las desgraciadas
familias á la fuerza, puesto que á las que lo resisten, les doblan la cantidad de costuras como
á la de Platero, y á la de Piñeyro Mesao – frio, ó las mandas salir de la Plaza [Montevidéu],
como á la niña Pilar Antuña, dando para ello un recado atrevido, insolente, é impúdico,
delante de diez, ó doce miserables oficiales tuyos, por el que no ha de faltar canalla quien te
arranque la lengua? Ah! Testa és esta que no puedo tocar...
94
3.2.2 A permeabilidade relativa do cerco / Crimes e punições
O sítio à cidade alternou-se entre períodos de maior ou menor intensidade.
Diante da possibilidade de um acordo de paz em agosto de 1846, por exemplo,
chegou-se a um armistício informal, no qual soldados de ambos os lados
confraternizavam ao longo das linhas de defesa, conversando e trocando algumas
gentilezas. O fluxo de mulheres e crianças também existiu durante boa parte do cerco.
Autorizadas por passaportes, obtinham permissão para visitar familiares que
estivessem do outro lado do conflito. Apesar das tentativas de bloqueio, o comércio
entre Montevidéu e o resto do Uruguai pôde ser mantido, e o mesmo pode ser dito em
relação ao comércio exterior.
Antuña descreve os dias de armistício que se iniciaram ao final de agosto de
1846, emocionando-se com o reencontro de familiares e amigos:
[26/08/1846] – Es verdaderamente tierno el ver la confianza con que desarmados, se vienen
los Americanos dela Plaza á abrazarse con nuestros Guardas Nacionales. Tambien se acercan
con confianza los extrangeros; y és notable, que por mas bien que los reciban los nuestros,
estos jamas aceptan el aguardiente y otras cosas con que les brindan los extrangeros. Malo es
que la lluvia dificultará la concurrencia delas famílias á la linea. En las circunstancias, esta
comunicacion necesariamente ha de traernos bien, sin exponermos á ningun mal – Hoy se
fueron para la Plaza las Senhoras de D Xavier Alvez y D Agn Viana – las aconpaño nuestro
Presidente hasta el Puerto de Seco, muy cerca de los salvajes; y mando decir á estos por las
Senhoras que no volvieran á dejarse engañar por los unitários; y que contansen con que aqui
94
Ibid., p. 514.
180
entre nosotros, no hallarían mas que Orientales, amigos, hermanos, olvidados de todo lo
pasado & &.
95
[27/08/1846] – Los Gefes delos Cantones y sus Ayudantes no podían regularizar la
comunicacion; por que los de adentro se adelantaban corriendo á abrazar los conocidos suyos
que distinguian muy aca; y nuestros Guardas Nacionales hacían lo mismo y del brazo se iban
á la Plaza.
Como é possível observar no trecho anterior, mesmo soldados blancos
chegaram a entrar livremente em Montevidéu durante estes breves dias de trégua. E até
mesmo Rivera arriscou-se a vistoriar as tropas, ainda que escoltado por legionários
franceses:
[29/08/1846] – Hoy fue la comunicación por la Figurita, (el Puerto Seco): la afluencia de
gente dela Plaza y de la del campo sitiador, fué inmensa – el quadro era sorprendente,
admirable, indescritible. Millares de almas se cruzaban mezcladas, alegres, abrazandose –
universal era el sentimiento fraternal. Todo no obstante tuvimos disgustos – el Pardejon
[Rivera] sentado al pie dela trinchera nos insultaba con su presencia. Centenares de
franceses, con armas cargadas lo escoltaban, y muchos guardas nacionales delos nuestros los
miraban pintando en sus semblantes la rabia de la impotencia; la rabia de la fuerza del deber.
¡Quanto ansiaban por arrojarse sobre aquel foragido, mil veces traydor, para despedazarlo!
Pero estabamos en armistício; y aunque no era escrito, ni publicado, todo el mundo estaba
dispuesto á no violar sus reglas, y dar así, como en realidad estamos dando la prueba más
elocuente de nuestra civilización á la culta y vieja Europa. (...). Hasta três léguas adentro de
nuestro campo han penetrado indefensos los soldados enemigos con sus divisas – y en la
Plaza, no se dejó hoy entrar á ningun hombre con divisa blanca.
96
Este armistício foi de pouca duração. Aos poucos dias, a comunicação entre as
duas partes foi proibida novamente, e todos se apressavam em retornar. E em todo este
evento, Antuña trata de ressaltar a “civilização” dos uruguaios, tão questionada por
seus inimigos:
[31/08/1846] – Como se dijo ayer há cesado desde hoy la comunicacion dela Plaza, y se
permite solamente el regreso de las personas de adentro, sin distincion de hombres, mugeres
y edades, así como Allá se permite la vuelta de todos los nuestros. Hasta oficiales se habían
quedado á dormir en la Plaza, y son muchos los guardas nacionales, vascos y extrangeros
que están volviendo.
97
[01/09/1846] – Los guardas nacionales, unos de ellos oficiales, (Bruno Garcia) que se decía
haber sido muertos enla Plaza, han regresado anoche á nuestro campo. Es muy notable que
95
Ibid., p. 299.
96
Ibid., p. 301.
97
Ibid., p. 302.
181
habiendose medito Allá innumerables orientales y argentinos, todas han regresado; y lo és
aún mas, que los prisioneros del Paso del Molino en Maldonado, que sirven en la Guarda
Nacional, han estado tambien en la Plaza, y han vuelto todos, sin faltar ninguno. Admirables
cosas hemos visto estos dias, que dan testimonio de nuestra grande civilizacion.
98
Com a esperança de paz rapidamente desaparecendo, finalmente, no dia 15 de
setembro, Manuel Oribe reafirma a proibição de trânsito entre a Plaza e o campo
sitiador.
99
Todavia, isto não significou um total isolamento entre os dois lados. Além
das missões diplomáticas, mulheres e crianças ainda conseguiam ultrapassar o sistema
de trincheiras, desde que devidamente autorizadas por uma licença especial.
Anteriormente ao armistício, Antuña aponta alguns exemplos destes ocorridos, em um
dos quais, elas não passariam impunemente pelos soldados estrangeiros:
[25/01/1846] – S.E. el Sr Presidente recibió con ternura paternal á algunas mugeres de
Montevideo, madres de prisioneros – les dió licencia para que fueran á verlos á Pando, pues
parece que de allí los llevarán al Durazno; y mando decir á aquellos, que escriban á sus
famílias, todos, si lo desean.
100
[06/06/1846] – En Montevideo hay suma dificultad para conceder pasaportes á las mujeres
que fueron de aca. A todas las insultan groseramente los extrangeros armados, y á muchas
las han saqueado al pasar la línea. Sabido és allí, que quando estan los extrangeros de línea,
no se obedece absolutamente al gobierno, contra el que vomitan injurias – se desprecia el
pasaporte, no se deja pasar las mujeres, y si se les permiete venir, és despues de haberles
quitado quantos gerenos traen. Así que ya se cuidan de hacer uso del páse el dia que estén de
servicio los negros.
101
Parece existir algum acordo tácito entre os dois governos, já que os
passaportes são (relativamente) aceitos por ambos. E essa permeabilidade se estende
ainda ao pequeno comércio, no que, inusitadamente, Antuña escreve a respeito de
mulheres partindo de fora do cerco em direção à cidade para comprar algumas roupas,
“cerca de doscientas que han ido sucesivamente á la Plaza á comprar ropa. Les costó
98
Ibid., p. 303. Antuña não chega a desenvolver ou apresentar a civilização como uma categoria, mas
ela está seguramente colocada como oposta a um tipo de violência bárbara e de desordem social aos
blancos atribuídas por seus inimigos de Montevidéu.
99
[15/09/1846] – El Presidente que había prohibido absolutamente pasar á la Plaza, hoy dicen que las
concede á todas las famílias que la piden – otros dicen, que es solamente para las que son de adentro y
regresan. Notase que desde ayer parece el Presidente muy contento. Ibid., p. 309.
100
Ibid., p. 219.
101
Ibid., p. 270.
182
ocho patacones á cada una su pasaporte (...)”.
102
Além de ter a permissão de entrar em
Montevidéu, os comerciantes da capital deveriam ter também a permissão de atender a
este tipo de necessidade dos que habitavam o exterior das trincheiras.
103
Antuña
lamenta esse tipo de situação, que um ano após o armistício, insistia em prosseguir.
[12/09/1847] – Es un furor el que há entrado aqui en las famílias de ir y venir. Por supuesto,
todas lo hacen con necesidad de proveerse á bajos precios delo que necesitan – todas llevan
con licencia aves y huevos – y muchas venden estos articulos para comprar lo que les hace
falta. Es un escandalo y no puede evitarse. ¿Como negar el Presidente permiso á un Guardia
nacional para que su muger vaya á ver la madre, el Padre, la hermana? Como negarle el que
á obgetos tan queridos se les lleve aves para puchero, si están enfermos &&? Entretanto, el
enemigo gana – el sistema nacional se relaja (...)”.
104
Em um outro ocorrido, após a tomada de Maldonado pelas tropas coloradas,
familiares de prisioneiros foram conduzidos até Montevidéu, para, depois, serem
libertados. Vindas “por tiera algunas mugeres, hasta el numero de 20. Todas, ó las mas
son famílias delas sacadas violentamente de Maldonado por los salvajes unitários.”
105
Uma rápida conclusão a se tomar é a de que o tratamento dado aos homens diferia
muito do oferecido às mulheres e crianças. Uma outra questão, relembrando o
desrespeito dos estrangeiros às mulheres que passavam pelas linhas de defesa de uma
citação anterior, está no amparo à família e na preservação de hierarquias sociais. O
tratamento reservado às mulheres corresponde à sua posição no interior do campo
social, uma posição considerada inferior, não diretamente envolvida com as armas,
menos perigosa e, por este motivo, receptora de um tipo específico de tratamento e
controle.
106
102
[24/05/1846] Ibid., p. 266.
103
Além desses casos, os estrangeiros, desde que não envolvidos na guerra, tinham trânsito bastante
facilitado. [11/04/1846] – Tenemos Allá algunas señoras extrangeras, que tienen aquí sus maridos y
sus hijos; y creemos, que quando no pueden regresar, los enemigos tienen algun grande interes en
incomunicarnos.
103
104
Ibid., p. 372.
105
[20/02/1846] – Ibid., p. 230.
106
SALA DE TOURON, nestas autoras, as mulheres também participam da política, mas como
conspiradoras, ou em arranjos políticos de bastidores. Ibid., pp. 94-100.
183
As penas e castigos aos criminosos e prisioneiros de guerra poderiam variar de
acordo com a posição social e o tipo do delito. O mais grave seria a traição, mas
simples tentativas de deserção também podiam ser duramente castigadas,
principalmente se nestas o implicado escapasse em direção ao inimigo. Antuña narra
diversos exemplos de penas para os traydores, fusilamentos e degolas eram seus fins
mais comuns:
[25/01/1845] – Fueron fusilados dos oficiales hoy, pasados de los salvages y que trataban de
volverse á la Plaza.
107
[10/12/1847] – (...) ayer fué fusilado el Oficial oriental Rufino Gonzáles, que estaba
proveyendo de ganado á la Plaza por la costa del Uruguay, había introducido ya sobre mil
reses – los soldados que lo servían, presenciaron la ejecucion.
108
[02/08/1847] – Gran cañoneo huvo esta mañana por parte delos viscaynos y los de la Plaza,
que nos tiraron granadas – de ellos se vieron caer quatro hombres y anoche, fué decapitado
un Vasco que habia servido aqui, pasandose y siendo oficial delos vascos franceses dela
Plaza. Vino ayer pasado con nombre supuesto y fué naturalmente conocido, confesando
despues que venia en comision traydora.
109
[12/01/1847] – Dícese que el bandido Tabares y otros pirioneros mas hasta veinte fueron
degollados anoche en represália de los nuestros degollados por el Pardejon despues de
rendidos bajo de capitulacion. ¡Venganza horrible; é inútil, haciendose en secreto! Si los
muertos son como Tabares, habrá sido justa la pena; pero las penas son para escarmiento, y
esto no puede esperarse sin formas y sin publicidad!
110
[13/01/1847] – (...) Reprobamos el modo (...) [das execuções do dia anterior].
[09/02/1845] – En efecto llegó Tabares, y és probable que esta noche sea ejecutado, muy
merecidamente, no tan solo por traydor, sino por los muchos asesinatos que hizo y que
ordeno, quando fué Comandante de San José.
111
[18/10/1846] – Anoche iban pasandose á la Plaza quatro ingleses del Batallon Libd
argentino, un Teniente y tres soldados – fueron tomados por denuncia de un argentino que
habla ingles y á quien aquellos trataron de seducir para que los acompañase – los quatro
fueron ejecutados, degollados, al instante.
112
[09/06/1846] – Diez negros infantes habían caído prisioneros del Pardejon [Rivera] – los
pusieron aquella noche en cepo de lazo, y como los salvages victoriosos se embriagaron,
aprovecharon de su descuido los prisioneros, sirviendo del cuchillo que tenia uno de ellos y
todos regresaron á nuestro campo.
113
107
Ibid., p. 432.
108
Ibid., p. 400.
109
Ibid., p. 361.
110
Ibid., p. 282.
111
Ibid., p. 437.
112
Ibid., p. 331. Nem todos os ingleses eram pró-colorados.
113
Outros tipos de crimes e penas, mas dentro da cidade: [26/09/1846] – Cuenta este hombre [Faustino
Mendez] que un guarda nacional Calo, que se introdujo en la Plaza por negocio particular y con
184
Nesta última citação, Antuña comenta castigos dados pelos colorados,
específicos para prisioneiros negros. Ele não informa se estes eram libertos ou
escravos alistados, mas, de qualquer forma, por parte de Rivera e seus homens,
receberam um tipo de castigo considerado adequado à sua posição no interior da
hierarquia social uruguaia, um tipo de tortura com menores chances de aplicação para
cativos brancos. Este caso ressalta uma hierarquização social muito diversa da
moderna idéia de igualdade republicana. Porém, estes não eram criminosos ou
traydores, mas prisioneiros de guerra. Aos quatro ingleses denunciados no trecho
anterior, a degola foi “al instante”, o que nos conduz a pensar que nem a um
julgamento tiveram direito. Antuña coloca outras ocasiões em que não somente as
penas, mas também os perdões eram concedidos não pelo cumprimento da lei, mas
pela graça de Manuel Oribe (um retorno ao personalismo de um líder, e não um
cumprimento legal): “Algunos jovencitos de 14 á 16 años, que lo son los mas de esos
prisioneros llamados Guardias Nacionales salvajes unitarios, los ha puesto el
Presidente en libertad á peticion de sus deudos, que sirven aqui.”
114
Em outra duas
datas, alguns inimigos são libertados. Na primeira, Manuel Oribe perdoa todos os
crimes de um jovem prisioneiro; na segunda, coube ao Coronel Barrios dar a liberdade
a alguns detentos (Antuña não tem certeza se seriam 25 ou 76 ou libertados):
[30/01/1847] – A un joven, Falson, oficial dela escolta del Pardejon que cayó prisionero enla
Sierra, herido, el Presidente en contemplacion del patriotismo del difunto Padre de aquel, lo
mando asistir cuidadosamente en el hospital, y que quedeara en libertad completa. Mucho
celebramos este rasgo de generosidad, por que los antecedentes de aquel joven nos hacían
creer, que sería ejecutado.
115
[29/01/1847] – Llegaron hoy los prisioneros dela Sierra delas Animas – son 101, y el
Coronel Barrios dió libertad, ó retuvo 25 – Entre aquellos viene un tapecito, pasado de aquí,
que se llama Mensada, y fué el que degolló al Sargento encargado dela caballada de
licencia, fué conocido no obstante su disfraz, preso y puesto en grillos por atribuirsele que llevó el
obgeto de asesinar al Pardejón. Ridícula y miserable invencion!
[10/02/1846] – Llegó esta tarde de Mont.o Mr Goddefroy, qe habia estado preso muchos dias por
comunicarse con nosotros. Creese, q e vendrá echado, ó profugo. Ibid., p. 225/314.
114
[29/01/1846] Ibid., p. 221.
115
Ibid., p. 294.
185
Piñeyrua. Preguntado por el Presidente, por que se había pasado á la Plaza y muerto áquel
hombre á sangre fria, respondío – que había degollado al Sargento, por que la habia dado la
gana y por que se lo mandaron. Es probable que este desventurado muera hoy con dos mas
muy recomendados por sus proezas anteriores. Entre estos prisioneros venían como treinta
de los nuestros, que lo habían sido del Pardejon – fueron libertados, vestidos y socorridos.
116
Antuña, em nenhum desses casos, escreve sobre leis ou julgamentos, uma
ausência que não deve ser desprezada, pois ele mesmo exercia a carreira jurídica como
advogado. Acompanhando a citação anterior, o mais próximo de julgamento que o
pequeno indígena recebeu foi uma conversa com o Presidente Oribe (provavelmente
uma espécie de última instância ou recurso). Em prevenção a roubos “en a huertas, ó
caballos y otros obgetos”, ele escreve sobre uma “ordem general”, uma espécie de
determinação vinda do comando do ‘Governo do Cerrito’, algo que substituiria um
código ou decreto de lei, ameaçando seus infratores de “severisimas penas a la tropa
que robe.”
117
Assaltos a recursos inimigos não eram, evidentemente, castigados. O roubo de
cavalos, vacas, alimentos e armamentos não eram incomuns. Até mesmo verduras e
utensílios para o preparo do chimarrão eram apreendidos, e Antuña não os esquece de
mencionar:
[22/04/1847] – Anoche entró una compañia de vascos y corrió las escuchas y abanzadas
enemigas, trayendoles sus muebles, calderas, mates y mucha verdura.
118
[17/03/1846] – Los de Maza arrebataron á los enemigos 25 bacas lecheras; pero no pudieron
arrearlas, sin las crias que dejaban, trajeron solamente dos.
119
[30/06/1846] – (...) llevaronse 15 caballos y una Baca (...)
120
[01/08/1846] – Anoche pusieron los nuestros una emboscada en el Cerro – sacaron del corral
delos salvajes 43 caballos – 13 mulas y 2 carretas (...).
121
[14/06/1845] – Nada se sabe del vivisimo fuego de anoche mas que se han destruído en
mucha parte las huertas delos salvages, delas que trageron los Guadias nacionales viscainos
mucha verdura.
122
116
Ibid., p. 293.
117
[17/02/1846] Ibid., p. 228.
118
Ibid., p. 323.
119
Ibid., p. 238.
120
Ibid., p. 281.
121
Ibid., p. 291.
122
Ibid., p. 449.
186
Sitiada, Montevidéu enfrentava problemas de abastecimento, mas a área que
dominava, ainda que predominantemente urbana, reservava algum espaço para hortas e
currais na criação de vacas e cavalos, o que seria freqüentemente incrementado com o
desembarque de gado e carne pelo porto da cidade e, como citado acima, por um
pequeno comércio conduzidos pelas mulheres que recebiam seus respectivos
passaportes.
Esta relativa permeabilidade do sistema de trincheiras deve ser entendida em
um conflito muito diverso da experiência posterior do século XX de “Guerra Total”, a
exemplo das duas Guerras Mundiais. O esforço de guerra, que nestes conflitos
europeus mais recentes pretendiam mobilizar a totalidade da população, não seria tão
intenso para a experiência da ‘Guerra Grande’. A indecisão blanca sobre assaltar ou
não a cidade, aliada a uma permanente esperança pela paz, assim como pela
incapacidade colorada de romper o cerco, estenderam o conflito por longos anos que,
como já foi visto em Antuña, provocaram um entediante cotidiano de pequenas
escaramuças e bombardeios pouco produtivos. As principais batalhas não eram
travadas no campo sitiador, mas na campaña, onde se enfrentavam Rivera e seus
seguidores contra generais blancos, como Ignácio Oribe (irmão de Manuel Oribe), e
generais federais argentinos, como Urquiza, vencedor de India Muerta, palco de uma
importante derrota para os colorados. Além disso, ocasionalmente auxiliados por
embarcações interventoras inglesas e francesas, os colorados conseguiam atacar
alguns povoados do litoral, como Colônia e Maldonado.
A área urbana de Montevidéu havia crescido para além das muralhas coloniais
mesmo antes de instalado o cerco de Oribe. A ‘Ciudadela’ colonial já não atendia às
necessidades de defesa da capital, de modo que uma linha de trincheiras foi construída
com o objetivo de ocupar totalmente a extensão da península em que se encontrava
Montevidéu. As tropas da defesa, incluindo as locais e as legiões estrangeiras,
montaram seus acampamentos entre estas duas linhas, a da ‘Ciudadela’ e a das
trincheiras. O ‘Governo da Defesa’ contava uma superior infraestrutura portuária e
187
edilícia, mas aos sitiadores restou a tarefa de montar um outro governo, duplicando
boa parte das instituições e seus respectivos espaços de instalação. Seus limites com
Montevidéu estavam também assentados por uma linha de trincheiras, ante as quais
ergueram novas edificações, como as que serviam ao Porto do Buceo, organizado
pouco ao leste da península. Ali são construídas uma nova Aduana, barracas de
armazenamento, um edifício para o Tribunal do Comércio e um cais de embarque e
desembarque.
123
Para os diretamente envolvidos com o sítio, o principal embate foi o de
recursos. Neste caso, os blancos não foram capazes de isolar a capital. Sua maior
fraqueza residia na dificuldade em bloquear o porto de Montevidéu, ainda que com o
apoio vindo de Buenos Aires. Mas foram as intervenções anglo-francesas as
responsáveis por seu total fracasso, pois, além de fecharem o acesso aos portos
portenho e do Buceo, ainda garantiram o livre comércio para Montevidéu, tornado-se
esta uma praça bastante lucrativa para especuladores que ganhavam com o privilégio
de se encontrarem com o monopólio temporário e afiançado do único porto aberto do
Rio da Prata.
3.2.3 – Pátria, nação e apropriação da história / Civilização e barbárie
As datas comemorativas relacionadas por Antuña são, em geral, as que contam
os anos de eventos relacionados às independências e organização republicana do
Uruguai. Vitórias em batalhas importantes, incluindo tanto as da independência quanto
as civis entre orientais, são igualmente relembradas e, por vezes, acompanhadas por
bailes, salvas de tiro e enfeites pela cidade
124
. Dois dos aniversários mais valorizados
123
ALTEZOR, C.; BARACCHINI, H. Historia urbanística y edilícia de la ciudadde Montevideo.
Montevidéu : Junta departamental, 1971. pp. 79-83.
124
[16/02/1846] – Aniversario del sitio actual de Montevideo. Los salvajes unitarios que tiene dentro
celebraron como un triunfo la duración extraordinaria de este sitio, é hicieron bien en poner sobre sus
trincheras las banderas francesa é inglesa (esta era la mas elevada) al lado de la oriental, puesto que és
188
por Antuña correspondem à ‘Pátria Grande’, o 25 de maio de 1810, Revolução de
Maio em Buenos Aires (Dia en que lució la Aurora dela Liberdad en 1810 – Dia de
gloriosos recuerdos – dia delos Libres, cuyo Sol inflama todo corazon verdaderamente
Americano!),
125
e 9 de julho de 1816, declaração da Independência em Tucumán
(Gloria honor sempiterno a la memoria delos ilustres varones, que quando en mas
peligro estaba la Patria hicieron invocando á Dios aquella proclamación, que admiró al
mundo, y enardeció el entusiasmo y ardor patriótico desus hijos hasta triunfar en todas
partes y finalmente en Ayacucho).
126
Mas também são lembrados os movimentos
posteriores aos dos Treinta y Tres Orientales de 1825, como, por exemplo, o tratado
de paz de 1828 e a promulgação da Constituição de 1830. Em geral, tanto blancos
quanto colorados mantinham o costume de exaltar todas essas datas:
[09/07/1843] – Salva general por el aniversario de la declaración de nuestra Independencia
en Tucuman el año de 1816 – Salvas lo sitiados, el Cerro y la Isla de Ratas, asi como las
cañoneras de Garibaldi y salvas en el campo sitiador, adonde ademas se veían cubiertos de
banderas los quarteles.
[09/07/1846] – Aniversario de nuestra Declaración de Independencia – los salvajes unitarios
ni banderas pusieron hoy, y han hecho bien – debe ser consecuentes con sus actos.
127
Para Antuña, a declaração de Tucumán era “nuestra”, ou seja, também incluía
os uruguaios. Mas nem todos poderiam orgulhar-se dela em 1846, e seriam
“consecuentes con sus actos” os “salvajes unitarios” (no qual se incluem os colorados,
para Antuña) ao não enfeitarem Montevidéu para esta data. O que este blanco quer
dizer é que o seu partido, em união aos federais, é o que estaria honrando o Congresso
de 1816, defendendo os princípios republicanos frente à intervenção anglo-francesa.
y fue por el poderoso ausilio, ó mejor dicho, alianza de aquellas dos potencias. ANTUÑA. op. cit. p.
228.
125
[25/05/1847] Ibid., p. 330.
126
[09/07/1847] – Aniversario de nuestra Independencia. Ibid., p. 348.
127
Ibid., p. 285. Outra data: [09/07/1845] – Aniversario dela Independencia de las Provincias Unidas
del Río dela Plata declarada en 1816 en Tucuman – Los ingleses y franceses saludaron este dia,
enmendando así el desayre que hicieron en 25 de mayo. Ibid., p. 454.
189
Em referência ao 25 de maio, Antuña também indica uma tentativa de
apropriação de uma data comemorativa, desta vez, porém, por parte dos colorados,
apesar do esforço blanco em festejá-lo:
[25/05/1845] – El bayle estuvo magnifico á pesar del tiempo – habia 142 damas de bayle
extra matronas, buena musica, iluminación y lindos adornos en el salon de 35 varas de largo
y de 20 de ancho. No huvo la menor perdida, ni el menor desorden.
128
[25/05/1846] – Aniversario trigésimo sexto de nuestra gloriosa revolución. (...) No hizo salva
nuestra fortaleza, no sabemos porque – la hicieron á nuestro pabellón todos los buques de
guerra que en Montevideo estuvieron empavesados todo el dia, menos la fragata española,
y... con razon. Lo mismo que esta hizo la corveta brasilera (...) ó por que no considera digna
de festejo la libertad que en parte nos han quitado la intervención anglo-francesa, ó por que
está indispuesto el Brasil con el Gobierno salvaje unitario; pues que efectivamente és á él á
quien las Naciones extranjeras cumplimentaron y no á nosotros.
129
Mais uma vez, Antuña escreve sobre uma “nuestra” revolução, tomando posse
de um evento que, atualmente, seria visto como propriamente “argentino”.
Esquivando-se os brasileiros e espanhóis,
130
as salvas vindas dos demais barcos
estrangeiros ancorados em Montevidéu foram dirigidas ao ‘Governo da Defesa’,
legitimando-os, assim, como verdadeiros representantes da República e da Revolução
de 1810.
Enquanto Artigas era desprezado pela facção colorada de Herrera y Obes e
Lamas, entre os blancos, as vitórias deste “inventor das montoneras” eram erguidas ao
rol de conquistas da “Pátria”. Além de possuírem uma bateria de artilharia batizada de
“Artigas”, os blancos relembravam o primeiro cerco à Montevidéu realista, com o
128
Ibid., p. 443.
129
Ibid., p. 267.
130
Os espanhóis não apreciavam muito estes festejos republicanos. E algumas vezes eram provocados
pelos locais: [07/10/1845] – Hemos sabido con certidumbre, que el fuego de anoche lo causo un motín
de los españoles; por que en la gran fiesta cívica, que és de lo que se ocupan estos dias los salvages,
pusieron una bandera española, que contenia un leon, rendido y pisado por un indio – que los
españoles manifestaron desde días atrás su disgusto; y que menospreciados, se reunieron muchos y
armados de puñales y pistolas cercaron la pirámide, y en medio dela fista, arrancaron todas las
banderas de la Pirámide y quantas habia en la Plaza – que esto produjo un gran desorden entre mas de
cinco mil espectadores, y muchas resistencias, que dieron lugar á que fuera el General Flores con
trescientos hombres y acabára todo á balazos, causando algunas mueros. En otro tiempo, esto
produciría grandes resultados; pero ahora alli todo lo arregla y concentra el poder europeo. Ibid., p.
476.
190
qual poderiam facilmente comparar-se, uma vez que também fora organizado por
forças conjuntas de porteños e orientais:
[18/05/1847] – Anniversario de la primera gloria americana en est[...] Oriental del Uruguay
– y aniversario del ataque y vencimi[ento] de una Division española de las tres armas por los
Orientales in[depen]dientes al mando de D José Artigas en las Piedras el a[ño] 1811 – Viva,
viva, viva la Patria! Viva la Libertad [In]dependencia Americana – Vivan los Defensores
delas Leyes Viva el ilustre y grande americano D. Juan Manuel de Rosas, el valiente General
D Manuel Oribe.
131
[01/06/1847] – En 23 de este mes de 1814 ocuparon la Plaza de Montevideo las armas dela
Patria vencedoras de los españoles.
132
Esta associação entre passado e presente, na qual argentinos e orientais se
unem frente ao inimigo, persiste em outras passagens, como as que celebram as
vitórias dos Treinta y Tres Orientales, tanto as que ainda ambicionavam o retorno da
Banda Oriental à união com as demais províncias, quanto às relacionadas ao acordo de
paz de 1828 entre o Império de Brasil e as Províncias Unidas do Rio da Prata:
[20/02/1846] – Aniversario dela gloriosa batalla de orientales y argentinos contra el ejercito
imperial en Ituzaingó, el año de 1827.
133
[04/10/1847] – Aniversario del cange dela ratificacion dela paz con el Brasil en 1828 – Es
dia de gran fiesta cívica – embanderamiento gral – y no sabemos, por que tanta importancia á
este dia, en el qual tuve mi parte como Secretario (especie de Asesor, directo del decrepito
General Azcuenaga, á quien el Sr Gobernador Dorrego quiso honrar con esta misión). Por
parte del Emperador fue comisionado o Barao do Rio da Prata, europeo General de la
Marina brasilera, y.... maldita la cosa que tiene q.e ver esto con la toma de razon de los
rumores del dia.
134
Não é difícil perceber a classificação hierárquica elaborada por Antuña para
estes acontecimentos, colocando a ratificação do tratado de 1828 como um evento
menor se comparado ao 25 de maio ou ao Congresso de Tucumán. Contudo, as
relações “cívicas” com Buenos Aires seguem adiante, e datas relativas ao conflito
131
Ibid., p. 327.
132
Ibid., p. 332.
133
Ibid., p. 230.
134
[04/10/1846] – Anniversario del canje de las ratificaciones dela Paz entre el Brasil y la Republica
Argentina en 1828 – fuimos actores con el finado General Azcuenaga; y por extremada modestia
dejamos de firmar aquel acto los dos secretarios imperial y argentino. Ibid., p. 318.
191
entre federais e unitarios, ou simplesmente atribuídas a Rosas, ganham destaque em
seu diário:
[30/03/1847] – Aniversario del nacimiento del grande é ilustre Americano D. Juan Manuel
de Rosas.
135
[19/09/1847] – Aniversario dela batalla del Montegrande en Tucuman ganada por el
Presidente Oribe al mando de argentinos y orientales contra Lavalle.
[05/10/1847] – Enbanderamiento como ayer – y és por que el año 20 destruyó el Sr Rosas la
anarquia en Buenos aires.
136
[01/12/1847] – Aniversario de la sublevación de los unitarios contra el Gobierno legal de
Buenos aires que ejercía el Coronel D. Manuel Dorrego – principio de la larga y sangrienta
guerra civil, que aún nos aniquila y consume.
137
[13/12/1844] – Aniversario del fusilamiento de Dorrego – todo el ejercito trae hoy lazo de
luto en el brazo.
138
[17/01/1846] – (...) al grito de Viva Rosas, que armonizaba con el nuestro de Viva Oribe.
139
[12/10/1845] – (...) principio americano (...) [princípio presente no discurso rosista].
140
[24/06/1847] – (...) confiando en que el Gobernador Rosas se expidiría representándonos,
mejor que ningun otro.
141
“Mejor que ningun otro”, Rosas representaria os interesses da aliança apoiada
por Antuña entre argentinos federais e orientais blancos (o que, na interpretação
colorada, aparecia como invasão portenha ao Uruguai).
142
É compreensível seu apego
ao Governador Dorrego, uma vez que Antuña estava a serviço da Província de Buenos
Aires durante seu mandato, mas deve-se destacar o comprometimento de todos os
blancos ao usar uma marca de luto em suas vestimentas. É igualmente notável a
extensão da popularidade de Rosas, alcançando a margem leste do Prata; seu
nascimento e suas conquistas federais não poderiam passar em branco entre seus
135
Ibid., p. 318.
136
Ibid., p. 380.
137
Ibid., p. 398.
138
[13/12/1845] – Aniversario de la indigna muerte Del Gobernador de Buenos aires Coronel Dorrego.
Ibid., p. 493.
139
Ibid., p. 216.
140
Ibid., p. 477. Linguagem rosista.
141
Ibid., p. 339.
142
Para franceses e colorados, Oribe aparecia como um marionete nas mãos de Rosas[04/08/1847] – el
Conde [Francês] se había certificado de que Oribe fueran un Teniente de Rosas: y que si á su llegada á
Francia estuviese quebrada la inteligencia cordial con la Inglaterra, era de esperar que vinieran veinte
mil franceses á enderezarnos. Ibid., p. 362.
192
aliados uruguaios.
143
Além da divisa blanca, Antuña chega a mencionar uma
obrigatoriedade para o uso da divisa punzó, símbolo do Partido Federal em um trecho
em que “El comandante D Francisco Oribe lo insulto publicamente, por que no llevaba
la divisa punzó al pecho (...)”.
144
A melhor constatação acerca do entrevero das
rivalidades de ambos Estados está no fato de Antuña muito raramente dirigir-se aos
seus inimigos pela cor do seu partido. Ao invés de colorados, ele os prefere chamar
pelo nome completo de “selvajes unitarios”, ocasionalmente acompanhados de outros
elogios, como “imundos” ou “locos”.
145
As qualidades que Antuña atribui aos seus
desafetos são muito variadas, algumas apelando a questões étnicas, patriotas, políticas
ou até mesmo morais:
[26/12/1844] – El mulatillo engreido salvage Venancio Flores.
146
[29/12/1844] – [O] mulato Flores, pater del mulato Luna, y filius del mulato ladron
Rivera.
147
[06/01/1845] – Pícaro mulato traydor – Rivera.
148
[03/09/1846] – (...) oriental godo [realista, resistente à independência]; imperial, traydor,
salvaje unitário, y por añadidura ciudadano brasilero; calidad esta ultima que sola, en un
hijo del País, basta para darlo á conocer, así como el grado de certidumbre en que pueden
apreciarse sus noticias [de que uma suposta expedição brasileira partiria do Rio de Janeiro
em direção ao Prata em apoio aos unitários e colorados].
149
[09/10/1847] – (...) el celebre salvaje unitário loco y ladron Melchor Pacheco y Obes (...).
150
[19/10/1847] – (...) Gobierno salvaje unitario, traydor, abyecto, ruin, y malo, infernalmente
malo (...).
151
[07/09/1845] – [Garibaldi], Gefe digníssimo de aquella anglo-galo-salvage expedicion.
Em especial, Fructuoso Rivera é praticamento um anti-cristo que assombra o
Prata. Muito do que é atribuído ao caudilho tipificado construído pela Geração de ’37
143
Um exemplo de apoio, para além do envio de tropas: [16/02/1846] – Siete balleneras llegaron de Bs
as con vestuarios para el Ejercito. Ibid., p. 228.
144
[21/11/1847] Ibid., pp. 394-395.
145
Fala de colorados, mas apenas enquanto está em Montevidéu: [02/08/1843] – “los colorados” Ibid.,
p. 518. [07/08/1843] – “colorado”. Ibid., p. 523.
146
Ibid., p. 423.
147
Ibid., p. 424.
148
Ibid., p. 426.
149
Ibid., p. 306.
150
Ibid., p. 383.
151
Ibid., p. 385.
193
está presente nas considerações de Antuña sobre o líder colorado. As opiniões
publicadas por Herrera y Obes acerca de Rivera não diferem muito do que escreve
Antuña. Em Facundo, Sarmiento tem em Rivera um exemplo tanto de caudilho como
de gaúcho; além do tipo idealizado de ‘gaucho malo’, também o ‘baqueano’ de
Sarmiento está presente em Rivera no diário de Antuña, este que raramente cita o
nome do caudilho, dirigindo-se a ele diretamente como “Pardejon”. A animosidade
entre os dois era antiga, em 1838, cinco anos antes do início do sítio, “Dn. Frutos
Rivera me maltrato de palabra llamandome de insultos, por que me conoce inflexible y
por que le respondí con la energía á que no está acostumbrado”.
152
Mas a presença de
Rivera seria uma ameaça à população oriental como um todo, uma vez que
[01/09/1846] – No hay uno entre nosotros que no haya sufrido directa, ó indirectamente de
aquel hombre malvado [Rivera], ladron y eterno traydor – no hay uno que ignore, que van
cumplidos diez años que aquel hombre funesto está arruinando el País, y haciendo derramar
la sangre de sus hijos por manos extrangeras; y sin embargo no huvo uno que le disparase un
fusil, ó una pistola para libarnos de tal monstruo!
153
Fructuoso Rivera, “como prototipo dela picardia y la vileza”,
154
teria como
principal espaço para o exercício do poder a campaña, para onde freqüentemente se
dirigia a “saquear los Pueblos indefensos é incendiar de nuebo todo el País”
155
. Mesmo
entre os blancos (como o era também entre os colorados e unitários), o ‘Pardejon’
construiu a fama de homem forte da campaña, hábil gaúcho, que em Antuña aparece
como “empreendedor y baqueano como el que mas, sagas astuto, perno no valiente;
pues que nuncapelea él, y siempre el primero que huye (...)”.
156
A idéia de um caudilho
clientelista está nas críticas que recebe sobre suas relações com os indígenas e suas
tentativas de organizar colônias para estes ao norte do Uruguai, pois
152
[19/11/1838] Ibid., p. 437.
153
[03/10/1846] – A Assembléia de Notáveis de Montevidéu nomeou Rivera “Gran Mariscal”, “(...) y
acabaron haciendolo Mariscal con el mismo poder con que pudieron hacerlo Sumo Pontífice”. Ibid.,
pp. 304/317.
154
[28/07/1846] Ibid., p. 291.
155
[02/01/1847] Ibid., p. 276.
156
[24/01/1847] Ibid., p. 288.
194
“(...) verdad es que necesitábamos brazos, pobladores industriosos, ó agricultores; pero no
indios semi-salvages como aquellos, por que no eran ni fueron nunca utiles para nadie mas
que para Rivera, por que á pretesto de poblarlos y mantenerlos, nos robó inmensas sumas del
tesoro nacional; y después por que haciendo soldados suyos á todos los varones aptos para
las armas, conduce constantemente con ellos á sus mugeres é hijos conservando aí un
semillero exclusivamente suyo, que forma la base principal desu poder, que le ha servido en
todos tiempos para imponer á la Autoridad y que será mientras no se extinga [os índios] una
verdadera plaga de los estancieros Orientales.”
157
Assim como em Sarmiento, o indígena é um bárbaro (ou quase, um ‘semi-
selvagem’). Rivera constrói uma base de apoio, neste caso não com seus peões e
dependentes de estâncias, mas através da construção de pequenos povoados indígenas,
obtendo, assim, uma fonte importante de homens e de poder.
Antuña ressalta ainda mais as aptidões campeiras de Rivera ao questionar o
porquê das tentativas da facção unitário-colorada de expulsá-lo do país:
[26/03/1846] – Ningun caudillo delos dela rebelion és mas importante – ninguno pudiera
servirles mejor en la campaña por el prestigio que todavia conserva entre sus antiguos
partidarios, por su vaquia enla campaña y por sus aptitudes innegables para conservar por
años la anarquia, y regularizar las montoneras. No és el temor de que se volviese contra ellos
el que puede detener á los Ministros extrangeros; por que deben saber el precio en que el
Portugal y el Brasil compraron sucesibamente á aquel traydor – mas plata, mas encomiendas
lo harían sin Duda para toda su vida el esclavo mas fiel dela Inglaterra y la Francia ¿por que
no lo acojen, por que lo rechazan y lo expulsan, quando no hay caudillo alguno del Pais, que
pudiera servirles, ni la mitad que aquel? Es que no estarán resueltos á dominar en nuestra
campaña? Así és de presumirse.
158
O ‘caudilho’ e a ‘montonera’ são totalmente atribuídos a Rivera, deixando
Oribe e Rosas em imunidade de tais qualidades. E não apenas seu líder, mas
seguidores e aliados (até mesmo ingleses) recebem também esta classificação. São os
blancos, ‘Defensores de las Leyes’ e da Ordem os que invertem a construção colorada
de Herrera y Obes.
[20/05/1843] – (...) Faustino Lopez caudillo delos de Rivera (...).
159
[25/11/1844] – (...) salvage caudillo J.º Ant.º Mendes (...).
157
Ibid., p. 448.
158
Ibid., p. 242.
159
Ibid., p. 470.
195
[03/03/1845] – Que en Corrientes hay montoneras, desorden, anarquia y muy poca fuerza
efectiva.
160
[03/03/1846] – Un picaro ingles llamado Mundell, que de estanciero se ha convertido en
caudillo bajo el estandarte anglo-frances, ha sido batido en la costa del Uruguay,
matandosele 24 hombres, por el Comandante Bergara.
161
[06/06/1846] – (...) en todos los Departamentos (...) á cada instante aparecen y desaparecn
montoneros que cometen las mas inauditas crueldades. El Defensor del 4 refiere algunas
verdaderamente horrorosas, y por desgracia ciertísimas.
162
[01/08/1846] – “montoneras salvajes”.
163
E não seria apenas no estilo caudilhesco do manejo do político que Rivera
emerge em Antuña, mas em sua própria personalidade, associada à imoralidade, à
bebida e ao jogo. Este tipo de comentário, boato ou não, deve ser entendido como uma
circulação política de informações ou contra-informações.
[03/04/1847] – De Maldonado aseguran, que el Pardejon se está comiendo los caballos – que
no podrá salir, ni para embarcarse – que se han pasado nuebe delos sitiados, y que uno que
era sirviente del Pardejon afirma, que se ha dado su Señoria á la bebida – que está lo mas del
tiempo embriagado.
164
Rivera metido como siempre en el Durazno, por que és hombre que no vive á gusto sino en
el campo jugando, mintiendo y prostituyendo, seguía en sus robos y sucios manejos,
vendiendo á dos, ó tres á la vez terrenos del Estado, ó de particulares que se había encargado
de desalojar los intrusos, por precio (...).
165
Infelizmente, Antuña não comenta nada sobre as publicações analisadas no
segundo capítulo desta dissertação. Entretanto, escreve sobre um texto anterior,
também de Manuel Herrera y Obes, que, intitulado Breve explicación, apareceu em
cópia no periódico blancoEl Defensor de la Independencia Americana’, do qual
Antuña era assíduo leitor. Este anterior ataque de Herrera y Obes a Fructuoso Rivera
160
Ibid., p. 445.
161
Ibid., p. 232.
162
Ibid., p. 270.
163
Ibid., p. 291.
164
Ibid., p. 320. Outro caso parecido: [21/09/1846] Sobre Ignácio Oribe, General e irmão de Manuel
Oribe: “(...) nos dicen al oído, que este Gefe tan valiente y tan Caballero como és, está actualmente
entregado á los vícios – la embriaguez, el juego &.!! Ibid., p. 312. / Um inglês: [28/06/1846] – Ahora
de dice tambien que los oficiales delos Regimentos ingleses en Montevideo, están pronunciados contra
la Intervencion – que murmuran altamente que Ousley, cuya casa dicen que es un burdel, un garito
adonde diariamente se pierden muchas fortunas. Ibid., p. 280.
165
Ibid., p. 451.
196
mostra uma empreitada da ala unitária dos colorados em expulsar o incômodo
caudilho. O texto trabalhado no segundo capítulo, juntamente ao de Bernardo Berro,
não fora um caso isolado, mas integrante desta tentativa de legitimar a substituição do
comando colorado por seu grupo.
[21/10/1847] – Se enojaron los compadres – se dijeron las verdades. El Defensor de hoy
contiene un compendio histórico de la inmunda vida del incendiário Fructuoso Rivera, que
bajo el nombre de Breve explicacion redactó (y firmo) Manuel Herrera y Obes Ministro de
Gobierno y Relaciones exteriores del que se llama Gobierno en Montevideo, al dar cuenta á
la Asamblea de Notables dela destitucion y destierro de aquel bribon. Este mozo, para quien
era Rivera un ídolo antes y especialmente quando despues de su quiebra, e dió – tel tesoro
publico, por supuesto, cincuenta mil pesos por via de socorro – pinta al natural al Pardejon,
calificandolo de rebelde, tirano y ladron; y no como cosas de ahora, sino como vícios
dominantes en Rivera de treinta años atrás. Este salvaje unitário, que poco le habrá costado
vencer la repugnancia que pudo haber mostrado el tilingo Joaquin Suarez, compadre del
Pardejon, nos há hecho un gran servicio nos há ahorrado el trabajo de manifestar á Rivera
qual és ante todo el mundo: y lo que és mas, nos há relevado de toda prueba, por que ademas
de ser la suya autentica, como oficial, robustece la testimonial que voluntariamente dieron
Francisco J. Muñoz, y el ingles Mundell. Muy poco talento acaba de demostrar Herrera
vendiendo así su causa, exponiendola en toda su horrible fealdad – El pretesto és justificar la
medida tomada con Rivera – el obgeto puede ser calmar los espíritus; y si tan agitados é
inquietos están, como algunos lo pretenden, y prometiendose resultados, que absolutamente
esperamos – grande debe ser el miedo de Herrera Obes – Herrera – D Nicolas, y Obes, D
Lucas, padre y tio de nuestro historiógrafo, fueron muchas veces traydores á la Pátria; ¿como
no habrá de serlo Manuelito á la Pátria, y á la amistad?
166
[22/10/1847] – De nada se habla hoy mas que dela breve esposicion relativa al Pardejon.
167
Por pelo menos dois dias, o principal assunto entre os que estavam no campo
sitiador foi o relativo ao ‘Pardejon’. O texto do “historiógrafo” Herrera y Obes deve
ter causado um grande impacto entre ambos os partidos. Antuña não questiona seu
conteúdo, o qual diz ter poupado aos blancos a necessidade de provar tais acusações,
mas duvida das intenções de “Manuelito”, que, até poucos anos antes, teria no líder
colorado um ídolo, cujos defeitos teriam sido sempre os mesmos, desde o princípio.
Não somente Herrera y Obes, mas a todos os uruguaios competira o dever de destruir a
influência de Rivera na sociedade uruguaia: “Execracion eterna al Pardejon
166
Ibid., pp. 386-387.
167
Ibid., p. 387.
197
incendiário, y a la canalla europea que lo acompaña! (...) Maldicion al americano que
olvide tantos agravios!”
168
Após o exílio forçado de Rivera, e com o ‘Governo da Defesa’ controlado
pelos “Pachequistas, ó partidários dela emigracion argentina”,
169
a legitimidade na
qual se baseavam os defensores de Montevidéu foi conduzida a uma aproximação dos
ideais da Geração de ’37. Antuña demonstra em seu texto uma preocupação em
relação ao modelo de ‘Civilização e Barbárie’ composto por seus rivais. Não que ele
se detenha a desmistificá-lo em profundidade, mas se utiliza desses termos com o
objetivo de comprovar que a civilização prevaleceria entre os orientais na mesma
medida em que denuncia barbarismos provocados pela intervenção anglo-francesa e
pela aliança unitário-colorada. A política “civilizadora” francesa e inglesa, “sino es
original, és filantropa y humanitária como si la dictaran y ejecutaran los demonios”.
170
“Y viva la civilizacion de los salvages unitários”,
171
que, em boatos ou não (...se
dice...), aparecem cometendo crimes comumente associados aos bárbaros gaúchos e
caudilhos:
[08/01/1847] – Se dice que los estragos hechos en los edifícios y la poblacion de [Pay]Sandú
son horrorosos, e innumerables las mutilaciones en niños, mujeres y ancianos. ¡Gloria al
168
[03/01/1847] Ibid., p. 277.
169
[06/07/1847] Ibid., p. 346. – Pachequistas: grupo de Melchor Pacheco y Obes (o mesmo do
episódio das costureiras). Emigracion Argentina: unitários exilados.
Outras citações: [12/08/1847] – Dicen que renuncio G. Per.ª y Barreyro – y que el Ministério se
compone ahora de Manuel Herrera de Gobierno – Bejar de Hacienda y (risum teneatis) Lorenzo Batlle
de Guerra - ¡Que cosas se vén! Por supuesto el partido vencido en abril de 1846 se há sobrepuesto, ¿Y
que hará Flores? Ibid., p. 365.
[13/08/1847] – Se dá por renovado el Ministério salvaje unitário con Manuel Herrera Obes de
Gobierno – Bejar de Hacienda y Lorenzo Batlle de Guerra – No hay Duda de que se sobrepuso el
partido salvaje unitario argentino derrotado en abril del año pasado. Id.
[10/10/1847] – Verdad es que ahora está en boga su partido, llamado porteño, por que lo compenen los
mas encarnizados enemigos del enjaulado Pardejon Rivera. Ibid., p. 383.
170
[13/09/1845] – Os soldados também não gostavam muito dos estrangeiros: [10/08/1845] – Los
soldados nuestros se divierten con los salvages llamandolos Misters, Monsieurs, y hablandoles en
ambos idiomas. Se nota que esto les causa grande indignacion. Ibid., pp. 463/471.
171
[13/12/1844] Ibid., p. 419.
198
pabellon frances! La hazaña há de ocupar un lugar en la historia para vergüenza é infamia
eterna (...).
172
[11/01/1847] – (...) se dice, que los franceses legionarios jugaban en la Plaza con seis
cabezas de Gefes muertos (...).
173
[19/03/1846] – La Europa parece que ha traducido mal nuestra moderacion – ha confundido,
ha equivocado nuestra prudencia con el miedo – y quando se desengañe, ha de extremecerse
– ha de pesarle habernos provocado, y nos há de proclamar por todo el Universo –
Barbaros.
174
[21/08/1846] – Pícaros y bajos son estos caballeros de la cultísima Europa.
175
[29/03/1847] – ¡Pobres Americanos! Con que desprecio con que calma, con que iniquidad,
se ocupa de nosotros la cultisima Europa! Oh! Se rien de nosotros – no podemos aspirar a su
magnitud – pero podemos aguardar y aguardamos, que nos há de llegar el turno de reírnos de
ella, y mofarnos de sus lamentaciones, quando por efecto de su propia ambicion y desus
errores adolecera de los mismos males, que hoy nos infiere.
176
Por vezes, não é a ambição dos Estados europeus, ou sua missão civilizadora,
o que impulsionaria a intervenção estrangeira, mas sim os interesses individuais de
seus cidadãos que ali fazem seus negócios. Antuña constrói em seu diário uma teia de
interesses que enlaça o Estado colorado a comerciantes ingleses e franceses.
Principalmente em relação à Aduana e ao porto de Montevidéu, os negócios dos
estrangeiros estão intimamente ligados ao governo que os apóia, tornando-os, assim,
dependentes à dinâmica da guerra e seu possível fim. Sustentada a capital por
“extrangeros y agiotistas”,
177
Antuña não enxerga nesta interdependência política e
comercial um elemento normal da guerra, encarando-a como um ataque contra a
própria independência da Banda Oriental. Ainda em Montevidéu, Antuña acompanha
atentamente o arremate dos direitos da Aduana:
[04/08/1843] – Se omitió hacer constar en el dia de ayer dos cosas – 1ª que en la reunion de
accionistas forzados para el remate delos derechos de Aduana, propuso [Samuel] Lafone y
172
Ibid., pp. 280-281. Como era de se esperar, a acusação contrária também existia: [24/05/1843] – A
la noche (...) se dice, que en efecto fue ahora ha tres dias corrido hasta Santa Lucia y acuchillado
Rivera, degollandole (jamas omiten los enemigos de Oribe esta expresión) discientos hombres y
tomándole algunos prisioneros. (...) “Muera el Corta cabezas Oribe – muera el tirano Rosas...” Ibid., p.
472.
173
Ibid., p. 281.
174
Ibid., p. 239.
175
Ibid., p. 297.
176
Ibid., p. 325.
177
[17/07/1847] Ibid., p. 353.
199
D. Juan Zufriategui que se firmaran ya los vales por el valor de las acciones. Los resistió
como prematuro el famoso canonigo D.r Vidal y lo siguieron los mas, ó sean los no ingleses
– 2ª Que el diario de ayer tarde pondera y aplaude la voluntad y patriotismo con que todo el
vecindario corrió á subscribirse á aquel remate para salvar la Patria!... Es hasta donde puede
llevarse la desvergonzada audacia! Robar y decirle en sus barbas al robado que era meritorio
por su desapropiación voluntaria, és lo no sé que se haya visto en Gobierno alguno
republicano.
178
Sala de Touron e Alonso Eloy dão maiores detalhes a este arrendamento.
Samuel Lafone, “poderoso mercader británico”, fora também dono de Saladeros e
participou em contratos com o Estado para a promoção da imigração. Este também
fora sócio do Comodoro Purvis, representante da coroa inglesa a quem muito
interessava impedir um bloqueio rosista a Montevidéu. “Al iniciarse el Sitio de
Montevideo, comerciantes-prestamistas dominaban ya en gran medida el tráfico y las
finanzas”. As dificuldades financeiras do governo da capital obrigaram seus
administradores a “entregar la administración de la Aduana a los prestamistas”. Em
1843, tomou forma a “Sociedad compradora de los derechos de Aduana”, composta
por 86 acionistas franceses; 76 ingleses; 64 espanhóis; 35 alemães e 89 orientais.
179
Aos poucos meses de iniciado o sítio, a Aduana já se encontrava entre as
ofertas do ‘Governo da Defesa’, ao que o ‘Governo do Cerrito’ respondeu com a
habilitação do Porto do Buceo. Com a intervenção anglo-francesa, este porto fora
bloqueado, mas, curiosamente, aos produtos e comerciantes de fora do sítio estavam
sendo permitidos negócios e embarques via porto de Montevidéu, ou seja, pagando
impostos aos detentores dos direitos alfandegários, engordando os cofres da capital
colorada. A idéia inicial da aliança seria a de fazer justamente o contrário, bloqueando
Montevidéu com o auxílio da esquadra de Rosas, mas o apoio das potências européias
inverteu a relação de forças nesta questão comercial e de acesso a suprimentos.
[19/07/1847] – los rematadores de la Aduana – bloqueo dicho redundaba en beneficio de
algunos comerciantes.
180
178
Ibid., p. 521.
179
SALA; ALONSO. op. cit. pp. 12/15/35.
180
ANTUÑA. op. cit. p. 355.
200
[30/07/1847] – En el Buceo corrió que era de esperar estos dias el bloqueo mas riguroso –
voces que pueden ser de los introductores interesados en hacer buenos negócios.
181
[03/09/1847] – Solamente en América podrán las Naciones tolerar tal abuso, tal
desvergüenza; pues que siendo formalmente notificado y establecido el bloqueo dela Francia
á este Puerto y los argentinos, no és para outro fin que el de impedir que los buques de
ultramar dejen de entrar en Montevideo todos sus cargamentos viniendo de allí, pagando
allí derechos, podemos llibremente recibirlos así como retornar nuestros frutos por aquella
via para que paguen igualmente los derechos – és absolutamente forzarnos, no á sufir los
efectos las privaciones de un bloqueo, sino á proporcionar á los extrangeros compradores (de
los Derechos) de Aduana fondos que embolsar, y con que seguir costeando los gastos dela
guerra. No puede verse, ni imagirnarse mas desvergonzada audacia.
182
[18/09/1847] – (...) al mismo tiempo que los Periódicos salvajes unitários ponderan las
ventajas que tienen de comerciar con nosotros – ventajas que figuran en grande escala para
las Provincias argentinas, para excitarlas á resistir la medida de cerrarse aquellos puertos y
los nuestros á la compa.ª estrangera dueña delas rentas publicas de Montevideo.
Antuña entende que o bloqueio estrangeiro não tinha como objetivo atingir o
comércio blanco, mas obrigá-lo a passar por Montevidéu, uma vez que o comércio
entre as duas partes estaria sendo relativamente permitido. Muito já se escreveu sobre
os graves prejuízos que as guerras trouxeram à Banda Oriental, mas deve-se prestar
atenção a alguns indivíduos que, ocupando posições privilegiadas, conseguem lucrar
com a especulação e o monopólio relativo que situações de conflito podem oferecer.
Além disso, é possível comparar esta venda dos direitos da Aduana de
Montevidéu com o conflito entre a Aduana de Colônia do Sacramento e Encarnación
narrada por José Encarnación de Zás. Ambos estão em contextos de conflito armado,
empenhados pela necessidade de reunir fundos para a manutenção da guerra – Zás ao
lado de Artigas contra os invasores luso-brasileiros; Antuña apontando a aliança entre
colorados e estrangeiros. Este tipo de intermediação, que no caso do caudilho mulato
Encarnación estava sendo contestada, é geralmente vista como uma limitação de um
Estado ainda fraco ou embrionário, impossibilitado de alcançar a todo seu território
sem a assistência destas forças auxiliares. Desta forma, um Estado fraco que delega,
vende ou arrenda suas funções pode ser atribuído a uma situação “bárbara” de
dependência das forças irregulares dos caudilhos. Contudo, para o exemplo de Antuña
181
Ibid., p. 359.
182
Ibid., p. 370.
201
e Montevidéu, são os europeus civilizados e seus “discípulos” unitários e colorados os
que se utilizam destes recursos para o esforço de guerra não apenas como uma forma a
mais de conseguir dinheiro, mas igualmente com o resultado de aproximar os
interesses comerciais destes estrangeiros aos políticos do ‘Governo da Defesa’.
Durante as várias negociações de paz, tanto o Estado colorado quanto as missões
diplomáticas européias tiveram como exigência o respeito aos acordos realizados entre
seus súditos e o governo de Montevidéu.
183
[07/07/1846] – Recordamos, que huvo un tiempo en que reflexionando sobre la compra que
los extrangeros hicieron á los salvajes delos Derechos de Aduana de Montevideo, se decía,
que en tal caso, y hecha la paz, habilitaríamos el Buceo, prohibiendo la entrada delos frutos
del Pais á la Plaza.
184
[29/08/1846] – (...) el circulo traydor de Varela, anglo-frances unitário, se empeña en
prolongar la situacion para realizar negociospendientes – apropiarse mas derechos de
Aduana &.
185
[16/08/1845] – Y el comercio que hacía toda la Europa con nosotros está paralizado!.. Y lo
está por que Lafone y otros ingleses y franceses de Montevideo se han apropiado todos los
bienes y rentas publicas, y se quiere que las conserven!! Esto és lo que se llama Civilización
– humanidad!!!
Encontrado na Colônia do Sacramento artiguista e na Montevidéu da Defesa,
este tipo de remate não fora uma solução exclusiva para a guerra. Apesar do temor
causado pela ameaça de Lavalleja, o período da presidência anterior de Rivera não
sofrera nada parecido ao ‘Sitio Grande’. Contudo, em uma permanente dificuldade
orçamentária, se não foram diretamente vendidos determinados direitos de
arrecadação, foi comum sua colocação como garantia ao pagamento de
empréstimos.
186
Além das Aduanas, eram também arrematados os direitos ao
“reconhecimento de couros”, ao que Samuel Lafone fora acusado pela imprensa local
183
Muito do que os colorados arrecadavam acabava voltando aos estrangeiros, principalmente aos
legionários franceses. [21/09/1847] – Vimos el Comercio de Varela y en él el presupuesto de solo el
Ministerio dela guerra salvaje unitario (el celebre Batlle) que asciende mensualmente á 159494 – ps 1
r.l – Las raciones de la Legión francesa, vascos franceses é italianos (allí todo tiene su verdadero
nombre) importa cada mes sesenta mil pesos sin incluir vestuario ní calzado. Ibid., p. 374.
184
Ibid., p. 284.
185
Ibid., p. 301.
186
SALA; ALONSO. op. cit. pp. 184-189.
202
de monopólio deste comércio.
187
Este costume de Antigo Regime, tão (mas não
exclusivamente) ibérico, era praticado por aqueles se colocavam como inimigos dos
costumes coloniais de economia e sociedade.
Porém, após quatro anos de sítio, Antuña começa a duvidar das intenções
blancas. Com a confiscação de propriedades inimigas, alguns estariam enriquecendo
às custas da situação, e a paz poderia significar uma restituição aos colorados
perdoados. Em 1845, “(...) la campaña fue ‘blanqueada’ con la entrega de tierras
embargadas a los ‘colorados’, a la vez que el gobierno de Montevideo vendía
supuestos derechos, lo que daría lugar posteriormente a los pleitos por reivindicación
de tierras que no habían finalizado cuando la invasión de Flores en 1863”.
188
[11/09/1847] – De temer és, aunque no nos atrevamos á creerlo, que el interes personal, pese
mucho en la balanza del juicio de los Senhores Ministros & Agregase á esto, que todos los
Gefes de línea, ganan con la guerra – lucran – se enriquecen, si és cierto, lo que todos
afirman - ¿Como han de aconsejar medios eficaces de terminar la guerra?
189
[14/09/1847] – Vimos hoy al Presidente [Oribe], cuyo semblante revela estar gravemente
enfermo. Dice él que estuvo malo, pero que ya está mejor. Nunca lo hemos visto mas debil i
con mas señales de estar sufriendo mucho. El desenlace de la ultima misión europea lo
afectó en extremo; y se cree, que esta enfermedad moral se la agravan diariamente unos
intandole á que ataque la Plaza – otros á que lo difiera. Estos obedeciendo á los preceptos de
su conveniencia, desu bien estar – de la seguridad de aumentar su fortuna – aquellos por que
están mal, y por que oyen los lamentos, las quejas de tantos centenares de vecinos que están
fuera de sus casas, sin sus familias, ó con ellas, y en la major necesidad, sin poder trabajar,
por que el fusil y la linea absorven toda su atención.
190
[25/09/1847] – No hay un ciudadano de buen juicio que haya aprobado la repartición delas
propiedades delos salvajes unitarios, sin la previa sancion de una Ley, su publicación y
conminacion; y presentemente sigue el Presidente haciendo estas donaciones, y esto después
de haber hecho entender á todo el mundo, que devolverá sus bienes á todos los salvajes
unitarios que se sometan. (...) y aprovechándose dela major parte muchos que la guerra
enriquece (...) Gefes con sus soldados se ocupan en correr y faenar aquellas aciendas con
notorio escandalo.
191
[19/10/1847] – Nuestro Presidente, se vá haciendo cada dia mas absoluto – no guarda ningun
respecto á los antiguos y buenos patriotas (...). Ni audiencia dá; y esto és... tiranico. Asi se
llama.
192
187
Ibid., pp. 36/158.
188
Ibid., p. 39.
189
ANTUÑA. op. cit. p. 371.
190
Ibid., p. 372.
191
Ibid., p. 376.
192
Ibid., p. 385.
203
[31/12/1847] – No hay remedio, sino se quiere algo malo, és menester confesar, que el
Presidente y los que lo rodean son muy rudos – Quien sabe? Muchos de ellos tienen
estancias de salvajes que han de devolver, y cuyos ganados se apuran en llevarlo al Brasil.
Vamos á quedar arruinados y tiranizados, sin plata sin juventud y sin libertad, si Dios no lo
remedia.
193
O título da tese de doutorado de Antuña, de 1834, era Confiscación de los
bienes en los crímenes de lesa-patria, o que reafirma seu interesse pelas doações de
propriedades “salvajes” realizadas por Manuel Oribe. É também mencionado um
subterfúgio que procurava evitar a total devolução do que fora confiscado com a
denúncia de transporte do gado ao Brasil. Para o Presidente blanco, estas doações não
juridicamente regulamentadas - mais uma vez, uma ‘graça’ de um governante aos seus
seguidores - eram um caminho de fortalecimento das suas alianças ao também
entrelaçar a questão econômica à política. Contudo, isto não significa que os “partidos
de princípios”, como argumentava Pivel Devoto, tenham perdido seus ideais,
tornando-se apenas instrumentos de poder em apoio a interesses individuais. Estas
questões de comércio e propriedades de ambos os partidos devem ser entendidas como
uma estratégia de acumulação e construção de alianças que, em comunhão aos
discursos legitimadores, como o da continuidade da Revolução ou o da restauração e
defesa da lei e da ordem, ampliam o capital de poder de cada uma das facções rivais.
Estas estratégias se tornavam mais confiáveis na medida em que multiplicavam suas
bases de poder, estas assentadas tanto em questões de ideais como nas materiais.
3.3 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos “encontros” discutidos de Zás e Antuña, estes se defrontam com sujeitos
provenientes de distintas posições do espaço social, unidos em confronto ao inimigo
externo luso-brasileiro ou separados pela guerra civil entre os partidos uruguaios. As
categorias ‘civilização’ e ‘barbárie’ estiveram rodeadas nestes dois indivíduos por
questões relacionadas à política, aos atores políticos (caudillos ou doctores), ao Estado
193
Ibid., p. 408.
204
e suas instituições, e também presentes em suas relações interpessoais e na visão que
possuíam a respeito do Prata e do Uruguai.
A comparação desenvolvida entre as questões relacionadas às duas Aduanas,
se associada à distância entre as datas de efetivação e legitimação das alianças entre
colorados e estrangeiros, demonstra como a dinâmica da guerra orientou os principais
passos de cada partido ou facção em guerra. A questão da legitimação, que em Herrera
y Obes está afastada em quase cinco anos da formação da Legião Francesa de
Montevidéu, seria um esforço posterior. Além disso, a este esforço foi necessária uma
reformulação em vista das alterações provocadas pela expulsão de Rivera do Partido
Colorado (partido que ele mesmo havia liderado e ajudado a formar).
Antes do início da ‘Guerra Grande’, Zás e Antuña não foram inimigos. O
segundo foi padrinho de casamento do primeiro em 1826, e também estiveram
próximos em seus serviços ao Estado nesse mesmo ano, quando foram demitidos
juntos por um decreto “Araucho, Antuña, los dos Marariños, Berro-Gonzales y yo”.
194
Durante as revoltas promovidas por Lavalleja a partir de 1832, Zás e Antuña foram
nomeados a uma comissão que tinha por objetivo mediar o fim dos conflitos entre
algumas forças inimigas em Montevidéu.
195
Anteriormente à existência dos partidos
blanco e colorado, construíram laços entre suas famílias e ainda laços de amizade no
interior do Estado. Infelizmente, não é possível afirmar o alcance da separação que
ocorreu a partir de 1836, quando tomaram caminhos opostos em relação a Rivera e
Oribe, a mesma dúvida aparece para alguma reaproximação após o acordo de paz de
1851.
Para um outro caso, Antuña menciona em seu diário um parente próximo que
havia escolhido lutar por seus inimigos. Ele não indica com precisão qual relação
194
“Se corrieronlas proclamas y siendo nuestros Padrinos el Doctor Antuña y la Esposa de [Francisco]
Araucho por tener aquel la suya en Santa Lucía nos desposo á las cinco de lamañana el dia 27 de
Setiembre de 1826 – D-Lorenzo Fernandez, hoy Vicaria Apostolico gral.” ZÁS. op. cit. pp. 146-147.
Para a fonte de Antuña, infelizmente, não existe qualquer menção a Zás.
195
“Fuymos nombrados para componerla, el Oficial mor dehacienda entoces d. Francisco Antuña, el
Ynspector del Resguardo d. Carlos S. Vicente y yo (...)” Ibid., p. 152.
205
familiar existe entre os dois, mas, não apenas pelo tratamento que lhe dá, mas
igualmente pelo sobrenome ‘Labandera’, o mesmo da família de sua esposa,
percebemos até mesmo um certo temor de Antuña pela vida deste seu ‘parente
inimigo’:
[06/01/1847] – Asegurase que uno de los muertos delos salvajes unitarios en Paysandú fue el
Coronel Sant.º Labandera. Este és el fin infame que debía tener este mozo valiente y honrado
por haber dado oídos en mucho tiempo atrás al Traydor Fructuoso Rivera, antes que á sus
Parientes que lo formaron y pusieron en carrera honorable.
196
Além de possuírem amigos e parentes em ambos os lados da guerra, observa-
se que as categorias utilizadas por Zás e Antuña não contêm um conteúdo
profundamente diferente entre si, como o encontrado na comparação que se faz entre
os textos de Herrera y Obes e Berro. Principalmente em Zás, a utilização da palavra
‘caudilho’ obedece muito mais a um senso comum não tão partidário quando colocada
ao lado do sentido instrumentalizado por seu colega colorado Herrera y Obes. Por
outro lado, enquanto em Antuña a categoria ‘civilização’ aparece como um ingrediente
para suas ironias, a idéia de caudilho também não difere muito da apresentada pelos
textos dos demais. É somente em Berro que se encontra uma proposta rival de
‘civilização e barbárie’.
Não apenas a venda dos direitos da Aduana de Montevidéu serve como
exemplo de continuidade para um estilo de administração estatal de Antigo Regime,
mas o mesmo pode ser encontrado nas ‘graças’ concedidas a Zás em sua jubilación e
em alguns criminosos ou prisioneiros libertados por Oribe citados por Antuña. Estas
‘graças’ concedidas por um poder pessoal não são exclusivas do caudilhismo, mas
próprias de costumes que remontam ao período colonial. A legitimação institucional
de Manuel Oribe ao colocar-se como defensor das leis e da Constituição é combinada
ao exercício de um poder personalizado, na concessão de graças ou privilégios aos
seus subordinados que receberam a permissão de uso de propriedades confiscadas de
196
Ibid., p. 279.
206
colorados, garantindo-lhe uma abrangência maior na construção de alianças e na
acumulação de capitais simbólicos e materiais.
Para o caso da distribuição de terras confiscadas, Antuña reclama da falta de
uma legislação e de um processo jurídico formal para sua efetivação. Para a requisição
de jubilaciónes, existia um decreto de regulamentação formulado pelo próprio Rivera,
a quem caberia o descumprimento dessa mesma norma na concessão da graça ao
requerente Zás. Assim como Oribe, Rivera percorreria o mesmo caminho estratégico
de diversificação das fontes de legitimação e construção de laços de aliança.
207
4 CONCLUSÃO
Ao longo desta dissertação, foi possível revisar a construção da categoria
caudilho e observar como sua imagem se transforma e perde sua homogeneidade
“clássica”. Atendo-se às formas ideais de dominação weberianas, a legal, a tradicional
e a carismática estavam disponíveis ao repertório de possíveis estratégias dos atores
sociais platinos, contudo, não uniformemente distribuídas, estando mais ou menos
disponíveis de acordo com a posição e formação social de cada um. Para alguns, como
para o analfabeto e mulato Encarnación, o caudilhismo seria uma opção viável de
acumulação de poder. Para Rivera ou Artigas, o caudilhismo seria apenas uma opção a
mais; talvez a mais importante, mas seguramente não a única. Para Antuña, seu pouco
contato com a “massa de manobra” gauchesca seria substituído por sua bagagem
intelectual, por seu título de doutor em direito e por sua carreira política não
caudilhesca.
1
Desta forma, apresentam-se aos contemporâneos de Zás e Antuña um
vasto repertório de opções estratégicas que se mantém em instituições ou costumes de
Antigo Regime, passando por alternativas criadas pela própria dinâmica da guerra, ou
ainda relacionadas a uma legitimação intelectual “moderna” do pós-revolução
francesa. Em seu conjunto, estas legitimações pretendiam alcançar praticamente todos
os indivíduos que de alguma forma poderiam ser mobilizados, de gaúchos a empleados
e doctores, ao longo de toda a cadeia hierárquica platina.
A oposição tradicional entre caudilhismo e construção estatal não tem apenas
como fundamento uma determinada concepção de caudilho, mas também constrói um
modelo de Estado intimamente ligado à idéia de Estado-Nação. Partindo do princípio
de que somente o altamente centralizado e interventor corresponderia a uma
“unificação do nacional”, ou ainda de que somente neste modelo se encontraria um
Estado “moderno”, os Estados provinciais e suas instituições, comumente ligadas à
1
Estando limitada a cidadania a alguns poucos, o suporte das “massas” tinha pouco impacto em
resultados eleitorais.
208
noção de federalismo e autonomia local, aparecem ou como desvirtuamentos de uma
ordem “natural” de um progresso social (ou civilizador), ou como meros momentos de
transição entre dois sistemas propriamente ditos de sociedade, o da ordem colonial e o
que se constituiria ao final do século XIX com o definitivo fortalecimento estatal.
2
Uma concepção mais flexível acerca da experiência estatal e política daquela primeira
metade do século XIX colocaria as estratégias e escolhas dos seus contemporâneos
como alternativas possíveis de aplicação para aquele período. Em um misto de
necessidades práticas e concepções de construção e legitimação de Estados e
hierarquias sociais, os atores sociais daquele contexto interagiam apoiando-se em
idéias e experiências compartilhadas entre a ordem colonial e a dinâmica dos
movimentos de independência e formação de novas instituições.
Desta forma, o caudilho não surge como uma patologia social, mas como uma
posição possível de legitimação e acumulação de poder a ser amparada por certos
setores sociais e que pode ser combinada ou contraposta a outras estratégias de
dominação. O caudilho não seria um tipo social, rígido e invariável, mas uma posição
social passível de ocupação para alguns indivíduos. Como em outras sociedades, a
platina oferecia aos seus indivíduos vários caminhos possíveis de legitimação e
acumulação, alguns mais eficientes que outros, porém não necessariamente
excludentes entre si, podendo um mesmo indivíduo ocupar duas ou mais posições com
o objetivo de ampliar sua base de poder, o que pôde ser observado nos capítulos
anteriores em Artigas, Rivera e Oribe.
Não é incomum encontrar textos que apresentam uma sociedade de baixa
diferenciação social para o Uruguai
3
. Por outro lado, é coerente ressaltar que a
2
Em Sala de Touron, entre pré-capitalistas e capitalistas. SALA DE TOURON, L; ALONSO ELOY,
R. El Uruguay comercial, pastoril y caudillesco. Tomo II: Sociedad, política e ideología.
Montevidéu : Banda Oriental, 1991.
3
BARRÁN, J. P. Historia de la sensibilidad en el Uruguay. 2 v. Montevidéu : Banda Oriental, s/d..
Em geral, essa igualdade é projetada apenas para as relações entre os homens da campaña, e não para
a sociedade como um todo. Ainda sim, alguns autores costumam atribuir aos orientais daquela época
209
exteriorização de alguns signos de poder daquela sociedade recém independente não
era tão evidente entre algumas parcelas da população, pois o sotaque, maneiras e
hábitos eram elementos que tendiam a uniformizar. Por este motivo, Rivera e seus
oficiais, segundo Damaso Antonio Larrañaga, “en todo guardan una perfecta igualdad
(...), y solo se distinguen por la grandeza de sus acciones, y por las que solamente se
hacen respetar de sus subalternos. Detestan todo lujo, y todo cuanto pueda
afeminarlos”
4
. E no olhar de um visitante inglês, “el dueño de muchas leguas de tierras
y de innumerables ganados se sienta a hablar con el pastor a sueldo, un pobre tipo
descalzo, en su rancho lleno de humo, y ninguna diferencia de casta o de clase los
separa”.
5
Essa aparência externa pode aproximar alguns indivíduos reunidos em uma
pequena população se seus costumes não se diferenciarem muito, mas ela esconde
outras formas de hierarquização, como a ocupação de importantes cargos militares e
burocráticos, assim como o acúmulo de riquezas, pois ser “dueño de muchas tierras” já
é um distanciamento considerável de quem tem pouca ou nenhuma. O protagonista e
viajante inglês da ficção de William Hudson estava acostumado a uma diferenciação
externa mais óbvia segundo os moldes europeus. Porém, signos exteriores de
diferenciação poderiam ser encontrados em eventos públicos, seguindo regras de
cerimonial religioso ou cívico.
6
Entretanto, na medida em que alguns autores
distanciam o urbano e o rural como ambientes antagônicos de populações
um sentimento de igualdade que deve ser matizado. Isto, antes de tudo, por ser uma igualdade pensada
apenas em oposição a divisões de classe e, como podemos observar, existem outras formas de
hierarquização social. Os contemporâneos de Zás tinham como referência de estratificação social o
antigo regime europeu. A consciência de que o “terceiro estado” pode ser dividido entre burgueses e
proletários apenas ganha força para o Uruguai das últimas décadas do século XIX, principalmente com
a chegada dos imigrantes e dos ideais socialistas.
4
LARRAÑAGA, D. A. Diario del viaje de Montevideo a Paysandú. Montevidéu : Ministerio de
transporte y obras publicas, Instituto Nacional del Libro, 1994. p. 64. O texto original data de 1815.
5
HUDSON, W.A. La tierra purpurea. Montevidéu : Banda Oriental, 1992. p. 191. Esta obra foi
publicada na Inglaterra pela primeira vez em 1885, mas sua história teve como cenário os conflitos
partidários que ainda existiam na década de 1860.
6
IRIGOYEN. E. “La ciudad como escenario. Poder y representación hasta 1830”. In: ACHUGAR, H.;
MORAÑA, M. (org). Uruguay: imaginarios culturales. Montevidéu : Editora Trilce, 1998.
210
“psicologicamente” diferentes, reforçam o afastamento simbólico entre o chiripá e o
fraque, entre os costumes “civis” da cidade e os “bárbaros” do campo.
Todavia, a etiqueta não era uma qualidade que todos deveriam possuir e
demonstrar. E mesmo aquele que se constrangia a dominá-la, nem sempre a
necessitava, assim como não era obrigatória ou tão significativa de demonstração para
alguns setores. No caso dos caudilhos, sua superioridade simbólica frente aos gaúchos
poderia ser comprovada por outros caminhos. Muitos tinham uma formação
intelectual, mas seu método de dominação e mobilização da campaña seguia por outra
direção: o caudilho seria o “melhor gaúcho”. Com os gaúchos, eles se portavam
exteriormente como gaúchos; com as elites, muitos conseguiam agir como elite, ou
seja, as “boas maneiras” são reservadas a determinados interlocutores
7
.
O mundo das letras, suporte legitimador dos doctores da ‘Política da Fusão’
que se organizaria ao fim da ‘Guerra Grande’ não encontraria grande respaldo durante
o predomínio da comunicação oral que, apenas progressivamente, cederá espaço à
escrita (tendência de fortalecimento do arquivo em detrimento da memória). Mas a
posição dos doctores é de confronto a essas formas de legitimação e acumulação de
poder dos caudilhos. Nas críticas que se apresentam, desenvolve-se uma
estigmatização da figura caudilhesca, homogeneizada em torno de uma série de pré-
conceitos a eles atribuídos pelos doctores. Incapazes estes de mobilizar forças
semelhantes àquelas dos caudilhos, organizaram a ‘política da fusão’ na tentativa de os
excluir do controle do Estado. Desta forma, sustentavam suas ambições na
legitimidade intelectual e em um Estado reformado e adaptado a um estilo de
dominação que os favorecesse.
Estando a barbárie projetada nos caudilhos, rivais não apenas políticos, mas de
um “estilo de vida”, contra estes existirá um incremento gradual de repúdio durante o
século XIX. Após 1860, data simbólica fixada por Barrán, mas com maior ênfase para
7
Ainda que por fontes dúbias, Sarmiento conta como Facundo Quiroga propositadamente rejeitava o
uso de roupas e modos urbanos com o objetivo de afrontar homens civilizados (uma ação social).
SARMIENTO, D. F. Facundo, civilización y barbarie. Buenos Aires : COLIHUE, 1990. p. 110.
211
a década de 1870, os caudilhos serão atingidos pelo crescimento do Estado. O que não
quer dizer que eles tenham desaparecido, pois, como Rosas
8
, foram capazes de
contribuir na constituição do Estado. Muitos foram capazes de se ajustar ao novo
modelo burocrático, trocando o chiripá pelo fraque, e os doctores da ‘fusão’ logo
descobririam que os caudilhos também saberiam desfrutar das vantagens de um Estado
forte e centralizado.
8
GARAVAGLIA, J. C. “La apoteósis del Leviathán: el estado en Buenos Aires durante la primera
mitad del siglo XIX”. Latin American Research Review, 2003, v. 38. n.1, pp. 135-168.
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217
Anexo 1: Trechos das Memórias do General Melchor Pacheco y Obes que tratam de
Francisco Solano Antuña e comentam o caso da “revolta das costureiras” abordado no
item 3.2.1
Propuso el ministerio de gobierno arrojar de Montevideo algunas mugeres conocidas por inquietas; me
opuse á ello con exaltacion por que no creía conveniente la medida, y sin embargo fue adoptada.
Propuso el mismo arrojar todo lo que se llamaba Blanquillo.
1
Creo poder recordar las personas á quienes de lo alto de mi posición dirijí palabras acervas – Son D.
José Costa, la familia de Antuña, (...).
2
A las Señoras de Antuña mandé un recado fuerte y despotico: era cuando se empezaban á repartir
costuras para el egército; esas Señoras no recibieron las que le envié, y yo procedí asi para que sabido
eso en la ciudad no se me devolviesen otras costuras, pues si cedía un ocacion era claro que ese
recurso me fallaba, no teniendo yo otro medio de confeccionar la ropa de los que defendían a la Patria
– Ahora bien, cuando se exijia del hombre el morir al frente de la trinchera, ¿habia injusticia en pedir á
la muger algunas horas de trabajo en pró de la defensa? Yo me resolví esta cuestion por la negativa; y
procedí en consecuencia, tanto mas cuanto que creía y creo que una ves desobedecido el prestigio de
mi autoridad se quebraba, y los prodigios realizados en los primeros tiempos del sitio de Montevideo
eran imposibles.
3
Los coroneles Antuña, Velasco (D. Gabriel), y Quinteros se ostentaban (en) pugna con el general Paz
y sus amigos: mandando la principal fuerza de la capital, contrariaban toda medida de defensa, y se
mostraban por todos sus actos de acuerdo con el enemigo. El pueblo lo creia asi, y los sucesos que
vinieron después no lo desmienten. Antuña, dos tenientes coroneles, y la mayor parte de la legión de
policia á sus ordenes se fueron al enemigo (...).
4
1
PACHECO Y OBES, M. Memoria del General Melchor.Pacheco y Obes sobre su actuación en la
Defensa de Montevideo durante los anõs 1843-1846. Revista Histórica. Montevidéu: v. XLIX, n.
148-150, 1977.
p. 771.
2
Ibid., p. 773.
3
Ibid., pp. 773-774.
4
Ibid., pp. 790-791.
218
Anexo 2: Breve biografia de algumas personalidades platinas.
Alberdi, Juan B. (1810/1884) Nascido em Tucumán, noroeste argentino, ainda jovem, chegou a
Buenos Aires para estudar. Fez parte do movimento que deu origem à Geração de 1837. Exilado em
Montevidéu, nesta cidade terminou seus estudos de direito em 1840. Após uma viagem pela Europa,
estabeleceu-se no Chile. Posteriormente à queda de Rosas, foi nomeado conselheiro do governo de
Justo José de Urquiza em 1855 e, depois, representante argentino na França. Após a derrota de
Urquiza frente a Mitre em 1861, viu-se obrigado a permanecer em Paris. Esteve na Argentina mais
uma vez, mas logo retornou à França, onde viria a falecer.
Artigas, José G. (1764/1850) Discute-se se nasceu em Montevidéu ou na Villa del Sauce (Canelones).
Em 1797, ingressou no Corpo de Blandengues para policiar a campaña. Aderiu à Revolução de 25
Maio em 1811, quando partiu para Buenos Aires. Retornando à Banda Oriental, derrotou uma força
espanhola em Las Piedras e iniciou um sítio a Montevidéu em 21 de maio de 1811, levantado logo em
seguida. Um segundo sítio foi iniciado em fins de 1812 sob comando de José Rondeau com as forças
expedicionárias do Segundo Triunvirato de Buenos Aires. Artigas abandonou este segundo sítio em
1814, rumando para o Litoral argentino. Com o abandono de Montevidéu por parte do Diretório
revolucionário, Artigas recebeu o comando de toda a Banda Oriental. Formou a Liga Federal, uma
união entre a atual República Oriental del Uruguay, Entre Rios, Corrientes, Santa Fé e, por algum
tempo, Córdoba. Em 1816, tropas portuguesas invadiram a Banda Oriental, derrotando a Artigas em
1820.
Dorrego, Manuel. (1787/1828) Federal nascido em Buenos Aires, assumiu o cargo de Governador da
Província de Buenos Aires após a deposição de Rivadavia e o desaparecimento do cargo de Presidente
da República em 1827. Foi deposto em 1828 por um golpe unitário. Foi preso por Juan Lavalle e
condenado à morte por fuzilamento naquele mesmo ano. Este evento pode ser considerado como o
principal estopim das guerras que se seguiram entre os partidos unitário e federalista.
Lavalle, Juan. (1797/1841) Combateu durante o movimento de independência argentino no exército
dos Andes de San Martin entre 1817 e 1822, e na guerra contra o Brasil entre 1825 e 1828. Em 1828,
dirigiu o levante unitário que derrubou e executou o Governador Dorrego, sendo vencido pelo federal
Estanislao López em 1829. Em 1841, partindo de Montevidéu, onde apoiava o Partido Colorado,
sublevou-se contra Rosas, morrendo em combate.
Lavalleja, Juan A. (1784/1853) Nascido em Minas, Banda Oriental. Uniu-se ao movimento artiguista
desde seu início até 1818, quando foi feito prisioneiro pelas tropas luso-brasileiras e enviado como
prisioneiro para o Rio de Janeiro, de onde saiu em 1821. A partir de Buenos Aires, retornou à Banda
Oriental em 1825 em um movimento que ficou conhecido como o dos Treinta y Tres Orientales. Após
a independência do Uruguai, não conseguiu se eleger presidente, iniciando uma revolta contra
Fructuoso Rivera em 1832. Derrotado, exilou-se em Buenos Aires, onde combateu junto aos federais.
Apoiou o Partido Blanco de Manuel Oribe, mas faleceu logo depois de acabada a ‘Guerra Grande’.
Paz, José Maria. (1791/1854) Nascido em Córdoba, lutou durante as campanhas da independência e
contra o Brasil. De tendência unitária, lutou ao lado de Lavalle contra Rosas e os federais. Defendeu
Montevidéu durante a ‘Guerra Grande’.
219
Oribe, Manuel. (1892/1857) Nascido em Montevidéu, foi o segundo Presidente do Uruguai
independente, em 1835. Em 1836, fundou o Partido Blanco, na guerra contra a revolta de Rivera. Foi
deposto em 1838, exilando-se em Buenos Aires, onde comandou os exércitos de federais de Rosas e
derrotou os unitários da Liga do Norte e na Entre Rios ocupada por Lavalle. Retornou à Banda
Oriental em 1843, quando iniciou o “Sítio Grande” a Montevidéu. Exilou-se em Barcelona, Espanha,
em 1853, retornando ao Uruguai em 1855.
Rivadavia, Bernardino. (1780/1845) Nascido em Buenos Aires, assumiu a Presidência da Argentina
em 1826, deposto no ano seguinte. Reconhecido como um dos principais indivíduos da primeira
geração de unitários. Sentenciado ao exílio em 1834, faleceu em Cádiz, Espanha.
Rivera, José Fructuoso. (1786/1854) Lutou ao lado de Artigas, mas, após a derrota do caudilho
oriental, colaborou com a ocupação luso-brasileira. Com a entrada dos Treinta y Tres Orientales, uniu-
se a Lavalleja até a independência em 1828. Foi eleito primeiro Presidente da República, mas, em
1836, levantou-se contra Manuel Oribe, fundando o Partido Colorado. Foi expulso deste em 1847
pelos dirigentes da defesa de Montevidéu. Tratou de retornar à política, mas faleceu pouco após o fim
da ‘Guerra Grande’.
Rosas, Juan M. (1793/1877) Federal nascido em Buenos Aires. Iniciou seu primeiro mandato de
Governador de Buenos Aires em 6 de dezembro de 1829, mas abandonou o cargo em 1832, para
retornar em 1835, sob a condição de obter da Câmara de Representantes da capital as “Faculdades
Extraordinárias”. Foi derrotado em 1852 por Urquiza em Monte Caseros, partindo para a Inglaterra em
exílio, onde veio a falecer.
Sarmiento, Domingo F. (1811/1888) Nascido em San Juan, no Cuyo argentino. Inimigos dos federais
Rosas e Facundo Quiroga, exilou-se no Chile. Combateu o governo Rosas e o sistema federal através
de diversas publicações. Retornou à Argentina em 1851 como “correspondente de guerra”, seguindo
ao exército de Urquiza, que viria a vencer Rosas logo em seguida. Foi eleito Presidente da República
em 1868, deixando o cargo em 1874. Durante seu mandato, foi concluída a Guerra do Paraguai.
Urquiza, Justo J. de. (1801/1870) Nascido em Concepción. Federal, lutou ao lado de Rosas até 1851,
quando se declarou hostil ao seu antigo líder, derrotando-o em 1852. Aos quarenta anos de idade, foi
Governador de Entre Rios. Em 1853, foi eleito Presidente da Confederação Argentina. Derrotado por
Bartolomé Mitre na batalha de Pavón em 1862, foi gradualmente retirando-se da cena política.
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