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FACULDADES EST
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃOPPG
ERLI MANSK
A RITUALIZAÇÃO DAS PASSAGENS DA VIDA
DESAFIOS PARA A PRÁTICA LITÚRGICA DA IGREJA
São Leopoldo, 23 de março de 2009.
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ERLI MANSK
A RITUALIZAÇÃO DAS PASSAGENS DA VIDA: DESAFIOS PARA A PRÁTICA
LITÚRGICA DA IGREJA
Tese de Doutorado
Para obtenção do grau de Doutora
em Teologia
Faculdades EST
Programa de Pós-Graduação
Área: Teologia Prática
Professor orientador: Dr. Nelson Kirst
São Leopoldo, 23 de março de 2009.
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Ficha elaborada pela Biblioteca da EST
M288r Mansk, Erli
A ritualização das passagens da vida : desafios para a
prática litúrgica da Igreja / Erli Mansk ; orientador Nelson
Kirst. – São Leopoldo : EST/PPG, 2009.
347 f. ; 31 cm
Tese (doutorado) – Escola Superior de Teologia.
Programa de Pós-Graduação. Doutorado em Teologia. São
Leopoldo, 2009.
Bibliografia p. 333-347.
1. Ritos e cerimônias. 2. Ritual. 3. Liturgias. 4. Igreja
Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – Liturgia. 5.
Liturgias cristãs primitivas. I. Kirst, Nelson. III. Título.
B A N C A E X A M I N A D O R A
1º Examinador: ___________________________________________________
Prof. Dr. Nelson Kirst (Presidente)
2º Examinador: ____________________________________________________
Prof. Dr. Júliozar Adam (EST PPG)
3º Examinador: ____________________________________________________
Prof. Dr. Oneide Bobsin (EST - PPG)
4º Examinador: ____________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Alberto Steil (UFRGS)
5º Examinador: ____________________________________________________
Prof. Dr. José Ivo Follmann (UNISINOS)
Dedicatória
Ao Rodolfo!
Por tudo que vivenciamos nos 26 anos de vida juntos.
Pela passagem, há um ano, das nossas Bodas de Prata.
Às filhas, Eva e Sara!
Que me ensinam a ser mãe a cada dia.
AGRADECIMENTOS
Ao meu pai e à minha mãe! Em sua simplicidade e na pobreza, me ensinaram as coisas mais
importantes da vida: respeito mútuo, compaixão, justiça, dignidade.
Às minhas irmãs e ao meu irmão! Em especial, pelo tempo marcante da nossa inncia, em
Jatibocas, ES. Brincamos, trabalhamos na roça, sonhamos. Hoje, mesmo distantes,
permanecemos juntos.
À nossa família do Sul: Marlene, Zeca, Míriam, Mateus, Bianca e Tati! Por tudo o que
vivemos e aprendemos com vocês.
Ao grupo “Lobas”! Pela amizade sincera. Pelos nossos encontros. Por me ensinarem que “ser
amiga é aceitar uma a outra como cada qual é”.
Às pessoas que me concederam entrevista, para a pesquisa! Obrigada pela colaboração,
abertura e confiança.
Ao Walmor, da secretaria acadêmica da EST: sempre prestativo e atencioso!
Ao professor orientador, Nelson Kirst! Obrigada pela paciência, pelos estímulos, pela
orientação cuidadosa e pela amizade.
Ao CNPq! Pela conceso da bolsa, sem a qual esta minha pesquisa não teria sido possível.
MANSK, Erli. A ritualização das passagens da vida: desafios para a prática litúrgica da Igreja.
Tese de Doutorado. São Leopoldo: Faculdades EST / PPG, 2009.
SINOPSE
A ritualização das passagens da vida na perspectiva da prática lirgica da Igreja é o assunto
aqui pesquisado. Os ritos de passagem estão presentes em todas as culturas. Eles marcam
transições idênticas da vida humana e ajudam as pessoas e os grupos a vivenciarem mudanças
importantes do ciclo bio-psico-social e a enfrentarem as tensões provocadas pelas passagens.
Os ritos de passagem funcionam como uma costura” entre as diferentes fases ou etapas da
vida. Quais são as passagens relevantes da vida na atualidade e como as igrejas lidam ou
poderiam lidar com as passagens da vida, o perguntas que norteiam a investigão do
assunto.
Tendo como principal referência o teórico Arnold van Gennep, o primeiro capítulo investiga
os fundamentos antropológicos da compreensão dos ritos de passagem. Esse autor estuda
exaustivamente os rituais que acompanham passagens da vida como gravidez e parto,
nascimento e infância, iniciação ou entrada na vida adulta, casamento e morte, e define um
princípio universal que ajuda a compreender as passagens individuais e coletivas. Esse
capítulo também pergunta pelos tradicionais ritos de passagem que persistem na sociedade
atual e reflete sobre as mudanças da sociedade moderna e s-moderna e suas conseqüências
para os ritos de passagem.
O segundo capítulo estuda as passagens e a ritualização das passagens da vida na atualidade.
Para o estudo desse tema foi utilizado o método da pesquisa social qualitativa, aplicando-se a
técnica da entrevista individual a dez pessoas escolhidas pela pesquisadora. O resultado dessa
pesquisa acentua a necessidade humana de ritualização das passagens da vida. No final do
segundo capítulo o apresentados os desafios que a ritualização das passagens da vida na
atualidade representam para a liturgia cristã.
O terceiro capítulo estuda a ritualização das passagens na Igreja. Na sua primeira secção o
assunto é examinado a partir da prática lirgica atual dos ritos de passagem, tendo por
referência o exemplo da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Na
segunda secção, o tema é investigado a partir de práticas litúrgicas selecionadas da Igreja
crisdos primórdios e de práticas rituais no seu entorno. Na conclusão desse capítulo são
extraídas conseqüências para a ritualização das passagens da vida na prática lirgica atual.
Tendo como ponto de partida os métodos de inculturação litúrgica desenvolvidos pelo
liturgista Anscar Chupungco, o quarto capítulo apresenta a proposta de um método para a
ritualização das passagens da vida na Igreja da atualidade e o aplica a algumas passagens
selecionadas. Trata-se de um método que pode ser utilizado para qualquer passagem, em
qualquer circunstância.
A ritualização das passagens da vida traz muitos desafios à Igreja na atualidade. diversas
passagens da vida na atualidade que carecem de ritos de passagem. Ao ritualizar as passagens
da vida, a Igreja atende a uma necessidade humana fundamental; vai ao encontro de
necessidades urgentes da vida e responde a perguntas humanas inquietantes.
MANSK, Erli. Ritualizing life passages: challenges to the liturgical practices of the Church.
Ph.D. Dissertation. São Leopoldo: Faculdades EST / PPG, 2009.
ABSTRACT
The ritualizing of life passages from the perspective of the liturgical practices of the Church is
the subject of this dissertation. Rites of passage are present in every culture. They mark
identical transitions in human life and help people and groups to go through important
changes in the bio-psycho-social cycle and to cope with the tensions caused by the passages.
The rites of passage work as a seam between the different phases of life. What are the relevant
passages in today’s life and how the churches deal or could deal with them are leading
questions in the investigation of the subject.
Having as principal reference the theorist Arnold van Gennep, the first chapter investigates
the anthropological fundaments of the rites of passage. This author studies in exhaustion the
rituals that come with life passages as pregnancy and birth giving, birth and childhood,
initiation or entrance in adult life, marriage and death, and defines an universal principle that
helps to understand the individual and collective passages. This chapter also inquires about
traditional rituals of passage still present in modern society and reflects about the changes in
the modern and post-modern society and the consequences of those changes to the rituals of
passage.
The second chapter studies the passages and the ritualizing of life passages in our days. The
method of qualitative social research was used for this study, applying an individual interview
to ten people chosen by the researcher. The results of this research accentuate the human need
for ritualizing life passages. At the end of the second chapter are presented the challenges that
the ritualizing of life passages brings to Christian liturgy today.
The third chapter studies the ritualizing of passages in the Church. In the first section the
subject is examined from the current liturgical practice of the rituals of passage, having as
reference the example of the Evangelical Church of the Lutheran Confession in Brazil
(IECLB). In the second section, the theme is investigated from the liturgical practices selected
from the origins of the Christian Church and the ritual practices that surrounded them. In this
chapter’s conclusion are collected consequences for the ritualizing of life passages in the
current liturgical practice.
Having as a starting point the methods of liturgical inculturation developed by liturgist Anscar
Chupungco, the fourth chapter proposes a method for the ritualizing of life passages in the
Church in modern times and applies this method to some chosen passages. It is a method that
can be used to any passage, in any circumstance.
The ritualizing of life passages brings many challenges to the Church in modern times. There
are many life passages today that need rituals. By ritualizing life passages, the Church
responds to a fundamental human need: it meets the most urgent needs in life and answers
disquieting human questions.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................................................................09
I RITOS DE PASSAGEM: FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS...........................................................18
1.1 Introdução..................................................................................................................................................18
1.2 Conceituação de rito..................................................................................................................................18
1.3 Os ritos de passagem na perspectiva de Arnold van Gennep ...................................................................23
1.3.1 Contextualização e primeiras conceituações ..........................................................................................23
1.3.2 Ritos de passagem: um “esquema heurístico poderoso”..........................................................................29
1.3.3 A gravidez e o parto .............................................................................................................................31
1.3.4 O nascimento e a infância .....................................................................................................................34
1.3.5 A iniciação ...........................................................................................................................................36
1.3.6 O noivado e o casamento ......................................................................................................................41
1.3.7 Os funerais ...........................................................................................................................................44
1.3.8 Breve explicação de Van Gennep referente a alguns ritos de passagem por ele considerados
isoladamente .......................................................................................................................................46
1.3.9 Observações finais ................................................................................................................................48
1.3.10 A noção de liminaridade proveniente de Van Gennep na pesquisa de Turner..........................................49
1.3.11 O esquema dos ritos de passagem de Van Gennep na opinião de outros autores......................................54
1.4 Aspectos gerais dos ritos de passagem na sociedade atual, com ênfase no contexto brasileiro ................57
1.4.1 Ritos de passagem tradicionais que persistem na sociedade brasileira atual: breves traços ......................57
1.4.2 A modernidade e a pós-modernidade: uma mudança de época ...............................................................71
1.4.3 Os ritos de passagem estão em crise? ...................................................................................................77
1.4.4 A ritualização das passagens da vida: uma necessidade humana fundamental ........................................82
1.5 Concluo...................................................................................................................................................84
II PASSAGENS E RITUALIZAÇÕES NA ATUALIDADE À LUZ DE UMA PESQUISA SOCIAL ...........86
2.1 Introdução..................................................................................................................................................86
2.2 Passagens relevantes da vida .....................................................................................................................89
2.2.1 Introdução ............................................................................................................................................89
2.2.2 Laços familiares....................................................................................................................................92
2.2.3 Estudo..................................................................................................................................................98
2.2.4 Lugar ..................................................................................................................................................101
2.2.5 Laços sociais.........................................................................................................................................104
2.2.6 Vivência religiosa.................................................................................................................................107
2.2.7 Trabalho...............................................................................................................................................108
2.2.8 Doença .................................................................................................................................................110
2.2.9 Laços conjugais ....................................................................................................................................112
2.2.10 Morte....................................................................................................................................................114
2.2.11 Tornar-se mãe, tornar-se pai..................................................................................................................117
2.2.12 Sistematização dos resultados................................................................................................................119
2.3 Ritualizações nas passagens: aspectos que se destacam na pesquisa social...............................................126
2.3.1 Introdução ...........................................................................................................................................126
2.3.2 Ritualização na saída de casa e ingresso em outro contexto....................................................................127
2.3.3 Ritualização no ingresso a um lar de idosos...........................................................................................132
2.3.4 Ritualização na união conjugal..............................................................................................................133
2.3.5 Ritualização na gravidez e no nascimento .............................................................................................136
2.3.6 Ritualização no ingresso e na conclusão do estudo.................................................................................138
2.3.7 Ritualização no ingresso ao mundo do trabalho......................................................................................141
2.3.8 Ritualização na separação de casal e na separação de pai e mãe .............................................................144
8
2.3.9 Ritualização na doença..........................................................................................................................146
2.3.10 Ritualização na morte............................................................................................................................148
2.3.11 Ritualização de ingresso à nova comunidade religiosa ...........................................................................150
2.3.12 Ritualização na iniciação religiosa.........................................................................................................152
2.3.13 Sistematização dos resultados................................................................................................................155
2.4 Considerações finais: desafios para a liturgia cristã ................................................................................166
III OS RITOS DE PASSAGEM NA IGREJA: O EXEMPLO DA IECLB E A REFERÊNCIA DA
IGREJA DOS PRIMÓRDIOS E DO SEU ENTORNO ............................................................................170
3.1 Introdução..................................................................................................................................................170
3.2 Ritos de passagem na IECLB ....................................................................................................................171
3.2.1 As fontes de recursos litúrgicos para a celebração das passagens na IECLB ...........................................171
3.2.2 As liturgias de passagens e seus elementos ............................................................................................175
3.2.3 Considerações intermediárias................................................................................................................195
3.3 Ritos de passagem em práticas selecionadas dos primórdios da tradição crise do seu entorno...........197
3.3.1 Breves considerações sobre o contexto de origem da Igreja cristã ..........................................................197
3.3.2 Rito de iniciação cris..........................................................................................................................200
3.3.3 Rito de matrimônio...............................................................................................................................205
3.3.4 Rito de nascimento e de maternidade.....................................................................................................209
3.3.5 Rito de sepultamento.............................................................................................................................214
3.3.6 Rito de cura .........................................................................................................................................218
3.3.7 Outros ritos...........................................................................................................................................222
3.3.8 Aspectos rituais relevantes dos ritos de passagem selecionados dos primórdios da tradição cristã e do
seu entorno.........................................................................................................................................226
3.4 Considerações finais: conseqüências para a prática dos ritos de passagem na liturgia cristã da
atualidade.................................................................................................................................................242
IV PROPOSTA DE UM MÉTODO PARA A RITUALIZAÇÃO DE PASSAGENS NA IGREJA E O
EXERCÍCIO DE SUA APLICAÇÃO A ALGUMAS PASSAGENS SELECIONADAS.........................247
4.1 Introdução..................................................................................................................................................247
4.2 Inculturação litúrgica: um método para a ritualização das passagens na igreja......................................248
4.2.1 Definição de inculturação......................................................................................................................248
4.2.2 Inculturação litúrgica ............................................................................................................................250
4.2.3 Dois métodos de inculturação litúrgica..................................................................................................255
4.2.4 O método de inculturação litúrgica de Chupungco e sua adaptação à ritualização das passagens ............257
4.3 Exercício de aplicão do todo de inculturação litúrgica à passagem da gravidez na adolescência ...261
4.3.1 O caso .................................................................................................................................................261
4.3.2 Os passos metodológicos.......................................................................................................................264
4.3.3 O rito litúrgico, passo a passo ...............................................................................................................279
4.4 Exercício de aplicão do método de inculturação litúrgica à passagem de ingresso num lar de idosos .282
4.4.1 O caso ..................................................................................................................................................282
4.4.2 Os passos metodológicos.......................................................................................................................286
4.4.3 O rito litúrgico, passo a passo................................................................................................................299
4.5 Exercício de aplicão do todo de inculturação litúrgica à despedida de pessoas na iminência da
morte ..........................................................................................................................................................303
4.5.1 O caso ..................................................................................................................................................303
4.5.2 Os passos metodológicos.......................................................................................................................306
4.5.3 O rito litúrgico, passo a passo................................................................................................................318
4.6 Considerações finais...................................................................................................................................320
CONCLUSÃO...................................................................................................................................................323
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..............................................................................................................333
INTRODUÇÃO
A ritualização das passagens da vida na perspectiva da prática lirgica da igreja é o
objeto dessa pesquisa. Os impulsos para o estudo desse tema são provenientes das reflexões
feitas, sobretudo, a partir do meu estudo em liturgia. Ao participar do curso do “Mestrado
Profissionalizante em Teologia – Área de concentração: Liturgia”, realizado entre 2001 e
2003, na Escola Superior de Teologia, São Leopoldo, RS, percebi a importância do rito na
vida das pessoas. O rito
1
, como ação simbólica, repetitiva, ocupa um lugar determinante na
vida cotidiana, marcando momentos especiais da vida. As histórias de vida de muitas pessoas,
dentre essas a minha própria, de famílias, grupos e comunidades são assinaladas fortemente
por ritos: aniversários, encontros de família, festas de fim de ano, casamentos, formaturas; o
próprio culto comunitário e eventos litúrgicos especiais do calendário eclesiástico como Natal
e Páscoa, são alguns exemplos. Tomar consciência de que a vida é ritualizada e os ritos
marcam momentos importantes da vida foi um passo determinante para transformar a
ritualização da vida em um tema de interesse e de pesquisa.
A delimitação do tema à “ritualização das passagens da vida na perspectiva da
prática litúrgica da igreja”, por sua vez, está ligada à seguinte reflexão. No âmbito da Escola
Superior de Teologia cresceu, nos últimos anos, o interesse pela pesquisa lirgica a partir de
uma perspectiva antropológica, ou seja, pergunta-se mais e mais sobre a experiência do
humano na liturgia. Nesse sentido, as pessoas que estudam essa área da teologia têm buscado
aprender o só de obras bibliográficas, mas também de pesquisas que olham para o culto
cristão sob a perspectiva das pessoas que nele participam. Uma investigação deveras
significativa, que impulsionou diversas pesquisas ligadas à temática sobre o humano na
liturgia e ajudou a despertar o interesse pelo assunto aqui pesquisado, é Culto e cultura em
Vale da Pitanga”
2
. Entre tantas descobertas ali mencionadas, esta pesquisa constata que as
1
Uma conceituação de rito encontra-se na primeira parte do primeiro capítulo. Cf. 1.2.
2
Culto e cultura em Vale da Pitanga é o título dado a uma pesquisa coordenada pelo professor Dr. Nelson Kirst,
nos anos de 1994/95 e realizada por um grupo formado por cinco estudantes do curso de graduação e cinco
estudantes do curso de pós-graduação em Teologia, da Escola Superior de Teologia, São Leopoldo, RS. Trata-se
de uma investigação que veio a se tornar um marco referencial na pesquisa litúrgica no âmbito da Escola
Superior de Teologia. A pesquisa Culto e cultura em Vale da Pitanga estudou a relação entre culto e cultura
numa determinada localidade do Sul do Brasil, denominada, ficticiamente, Vale da Pitanga.
10
pessoas compreendem Deus como aquele que “orienta, ajuda, cuida e protege, tanto nos
momentos limítrofes da vida quanto nas tensões do cotidiano
3
. Essa pesquisa diz,
conclusivamente, que as pessoas acentuam o lado afetivo e cuidador de Deus em nível bem
concreto e pessoale que Deus está presente na gravidez e no nascimento, na doença, no
sofrimento e na morte”
4
. Em outras palavras, essas pessoas dizem que a presença de Deus,
para elas, está associada aos momentos especiais da vida ou às passagens da vida. Passagens
ou transições causam mudanças na vida e estas estão ligadas a diversas situações, seja a de
solteiro para casado ou a de casado para separado, seja a de um profissional ativo para a de
aposentado, seja a de tornar-se pai ou mãe, seja a de mudar de um lugar para outro, seja a de
nascer, seja a de morrer. A passagem de uma situão a outra ou as mudanças que ocorrem na
vida, em geral, geram tenes, são carregadas de ansiedades
5
. É aos “momentos limítrofes”,
às “tensões do cotidiano” que as pessoas relacionam o cuidado, a proteção e a ajuda de Deus.
As pessoas se apegam a Deus em momentos de perigo e de ameaças à vida. É nesse sentido
que também se compreende a necessidade que as pessoas têm de ritualização da vida, pois os
ritos são meios que ajudam a fazer a passagem; em se tratando de ritualizações litúrgicas, elas
facilitam o encontro, a proximidade e a comunicação entre Deus e as pessoas
6
.
Nas igrejas, em geral, assim como no exemplo da Igreja Evangélica de Confissão
Luterana no Brasil, doravante denominada IECLB, passagens como nascimento, casamento e
morte, normalmente, o ritualizadas. Mas, os ritos litúrgicos devem limitar-se a essas poucas
passagens? E as demais passagens, como a gravidez, a doença, aposentadoria, desemprego e
outras situações que geram sofrimento, que estão ligadas aos “momentos limítrofes” e às
“tensões do cotidiano”?
A igreja cristã, como corpo de Cristo no mundo, formado de pessoas que foram
recebidas nesse corpo como irmãos e irmãs, pelo batismo, é aquela que acompanha os seus
membros em todas as situões da vida. Em outras palavras, ela carrega os membros do seu
corpo em amor, através das passagens da vida, dando suporte a eles, através da liturgia, para
3
KIRST, Nelson (Org.). Culto e cultura em Vale da Pitanga. São Leopoldo: IEPG / EST, 1995. p. 39.
4
KIRST, 1995, p. 39.
5
Cf. FOUREZ, rard. Os sacramentos celebram a vida: celebrar as tensões e as alegrias da vida. Petrópolis:
Vozes, 1984. p. 15. Cf. também CARTER, Betty; MCGOLDRICK, Mônica. As mudanças no ciclo de vida
familiar: uma estrutura para a terapia familiar. In: CARTER, Betty; MCGOLDRICK, Monica (Orgs.). As
mudanças no ciclo de vida familiar: uma estrutura para a terapia familiar. 2.ed. Porto Alegre: Artes Médicas,
1995. p. 7-13.
6
MANSK, Erli. A relevância do rito na relação entre Deus e as pessoas: uma perspectiva bíblica a partir dos
salmos do indivíduo. São Leopoldo: EST / IEPG, 2006. (Monografia do curso de Doutorado).
11
que eles possam vivenciar os momentos de altos” e baixos”, alegres e tristes, com
equilíbrio, experimentando nessas situações o amor e a misericórdia de Deus
7
.
A liturgia
8
cristã é um meio concreto de a igreja viabilizar a reunião das pessoas na
presença de Deus (Mateus 18.20; 1Coríntios 11.23-26). Através da liturgia, a Palavra de Deus
é anunciada e atualizada; por meio dela acontece a comunhão de Deus com as pessoas e das
pessoas entre si; a liturgia é o meio através do qual as pessoas externam os seus louvores e
clamores diante de Deus. Enfim, a liturgia é um instrumento através do qual a igreja anuncia o
amor de Deus às pessoas e ao mundo e, por meio dela, as pessoas se colocam diante de Deus
com todas as suas ansiedades, esperanças e fé. A ação litúrgica da igreja não se limita ao culto
dominical (eucarístico e batismal) e a alguns ofícios como o do sepultamento, do casamento,
da confirmação e ordenação. A vida do dia-a-dia oferece muitas outras situões que
necessitam do acompanhamento litúrgico da igreja.
Considerando a afirmação de que as pessoas compreendem Deus como aquele que
espresente nos momentos limítrofes da vida; considerando que as passagens dizem respeito
aos momentos significativos da vida, entre estes, as situações limítrofes; considerando que os
ritos marcam momentos especiais da vida; considerando que os ritos litúrgicos da igreja são
meios concretos de Deus se fazer presente na vida das pessoas e manifestar o seu amor, e
levando em conta que os ritos de passagem da igreja, a exemplo da IECLB, não contemplam
todas as passagens relevantes da vida, levanta-se a pergunta: como pode a igreja responder à
necessidade que as pessoas têm de ritualizão das passagens da vida? Esta é a pergunta
principal que orienta a investigação do assunto proposto para esta pesquisa.
Além do exposto, há que considerar ainda o seguinte: as pesquisas e publicações
recentes do campo da liturgia, no meio onde se situa esta pesquisa, priorizaram temáticas
como culto eucarístico, batismo, culto e diaconia, liturgia e ensino, crianças no culto.
Observa-se, portanto, uma lacuna na pesquisa sobre liturgia e passagens.
Esta pesquisa, sobre a ritualização das passagens da vida na perspectiva da liturgia
cristã, tem, neste sentido, o propósito de oferecer subdios teóricos e metodológicos, que
contribuam tanto para a pesquisa teórica no campo da liturgia quanto para a ritualização das
passagens da vida na igreja. E, para alcançar esse objetivo geral, esta pesquisa estabelece os
7
WHITE, James F. Introdução ao culto cristão. São Leopoldo: Sinodal / IEPG, 1997. p. 205.
8
Por liturgia entende-se tanto o conjunto de elementos e formas que proporciona o desenvolvimento do culto
cristão quanto a própria ação comunitária que acontece durante o encontro entre a comunidade e Deus. A
liturgia, como conjunto de elementos e formas, é o meio através do qual se dá o encontro entre Deus e as
pessoas/comunidade.
12
seguintes objetivos específicos: a) definir fundamentos teóricos antropológicos para a
compreensão dos ritos de passagem; b) identificar as diversas passagens da vida que são
ritualizadas pelas pessoas na atualidade; c) destacar os novos momentos de passagens da vida
que requerem ritualização; d) descrever como a igreja, tendo como exemplo a IECLB, lida
com as passagens da vida; e) verificar como a tradição da igreja, no exemplo da igreja das
origens, lida com os ritos de passagem; f) descobrir a potencialidade de elementos rituais
existentes na tradição lirgica da igreja que favoreça a ritualização das passagens da vida; g)
propor um método de trabalho para a ritualização das passagens da vida na igreja; h) aplicar o
método de ritualização das passagens da vida na igreja a algumas passagens selecionadas.
Para sintetizar a formulação do problema que está na base do assunto aqui proposto
para a pesquisa, o elaboradas as seguintes perguntas: 1) Qual é a contribuição da ciência
antropológica para a compreensão do tema sobre a ritualização das passagens da vida? 2)
Além das passagens tradicionalmente ritualizadas, outras passagens relevantes na vida? 3)
O que as pessoas fazem para ritualizar as diversas passagens em suas vidas? 4) Como a igreja
cristã lida (ou não lida) com a ritualização das passagens da vida dos seus fiéis? 5) Que
recursos oferecem as ciências humanas, a teologia e a liturgia para lidar com as passagens da
vida? 6) Quais são os referenciais lirgicos da tradição cristã para a ritualização das
passagens da vida? 7) Que recursos podem ser oferecidos aos/às agentes de liturgias para que
a tarefa lirgica da igreja seja mais satisfatória no seu jeito de lidar com a ritualização das
passagens da vida?
Diante das questões que se levantam em relação ao tema da pesquisa, propõe-se as
seguintes hipóteses:
1) A antropologia, cujo interesse é o estudo do ser humano e das sociedades
humanas, oferece dados importantes sobre a ritualização das passagens da vida. É no diálogo
com esta área do conhecimento humano que a ciência lirgica encontra subsídios relevantes
para fundamentar a sua pesquisa, sobretudo, quando esta ciência busca compreender o
humano na perspectiva de poder melhor responder às suas inquietações diante da vida e do
divino.
13
2) Tradicionalmente, as pessoas ritualizam passagens como nascimento, iniciação
religiosa, casamento e morte. Porém, é possível dizer que a vida é marcada por diversas outras
passagens, as quais carecem de ritualização.
3) Existem passagens para as quais não ritos elaborados. E diante dessa carência,
é posvel suspeitar que há passagens sendo ritualizadas junto com outras passagens. São ritos
agregados. Por exemplo, o nascimento e a maternidade, nos ritos litúrgicos, normalmente são
ritualizados em conexão com o rito de iniciação cris ou batismo. Também é possível
suspeitar que a falta de ritualização para determinadas passagens críticas leva as pessoas a
buscarem recursos em outras áreas que as ajudem a encaminhar seus conflitos. Por exemplo,
nos consulrios psicoterápicos, no aconselhamento pastoral, no esporte.
4) As igrejas cristãs, em geral, e a IECLB, em particular, oferecem ritos que
preenchem a necessidade humana de ritualização das passagens da vida, porém, ao verificar, a
título de exemplo, os manuais de ofício da IECLB, percebe-se que esses ritos são reduzidos a
algumas passagens apenas e, em muitas dessas passagens, os ritos são minimizados. Suspeita-
se que a igreja o está suficientemente consciente da necessidade de ritualização das
passagens da vida e o pergunta quais são as passagens relevantes da vida nos tempos atuais
que carecem de ritualização.
5) As ciências humanas, em especial a antropologia e a sociologia, assim como a
teologia e a liturgia, possuem referenciais teóricos e metodológicos que ajudam a interpretar
temas relevantes da vida humana. Também os relacionados à vida de fé. Através de
metodologias de pesquisa social e bibliográfica, por exemplo, é possível estudar um tema
como o da ritualização das passagens da vida na perspectiva da prática litúrgica da igreja,
oferecer respostas às perguntas levantadas e contribuir com recursos litúrgicos diversos para a
ritualização das passagens da vida na igreja.
6) A igreja cristã possui um tesouro em termos de ritos e símbolos lirgicos, dos
quais muitos se perderam ou foram esquecidos no decorrer da sua história, mas conservam
significados que valem ser resgatados. E muitos desses ritos fornecem elementos que servem
de base para a ritualização das passagens da vida ainda hoje. Exemplos desses antigos ritos
o: unção, imposição de os, bênção, oração, absolvição. O próprio culto cristão, com suas
estruturas, elementos e formas, é uma referência básica para a busca de recursos litúrgicos
teóricos e práticos que visem responder à demanda de ritualização das passagens da vida na
igreja.
14
7) Através da pesquisa solidamente embasada, é possível oferecer subsídios teóricos
e práticos para a ritualização de passagens na igreja, como, por exemplo, um método para a
ritualização das passagens na igreja e, assim, contribuir com as igrejas, com os obreiros e as
obreiras que lidam com as pessoas e suas necessidades de ritualização das passagens da vida.
A realização desta pesquisa se apóia no seguinte quatro teórico:
Tendo como principal conceito a ritualizão das passagens, e considerando os
aspectos específicos das diferentes áreas envolvidas nesta pesquisa, a antropológica e a
lirgico-teogica, buscam-se fundamentos antropológicos e litúrgico-teológicos para a
definição do tema e para nortear a pesquisa como um todo.
1) No campo da antropologia, a pesquisa toma como referencial teórico básico o
estudo sistemático de Arnold van Gennep sobre os ritos de passagem (Gennep, 1978). Além
disso, busca-se dialogar com autores que estudam este tema na atualidade como se pode
verificar, em especial, no primeiro capítulo
9
.
O estudo de Van Gennep sobre os ritos de passagem representa um marco na história
das pesquisas antropológicas. Les rites de passage, (Gennep, Paris, Nourry, 1909) surge numa
época em que o rito ainda não tinha sido tomado como objeto de estudo independente, mas
era um dado secundário, associado ao universo mágico ou religioso. Conforme Da Matta,
depois de muitos anos da publicação da obra de Van Gennep, ela ainda é amplamente
utilizada, ou como base bibliográfica ou como inspiração teórica para o problema básico da
natureza sociológica dos ritos
10
. Depois de Van Gennep, um estudo relevante é o de Victor
Turner sobre o processo ritual. Ele desdobra um aspecto importante dos ritos de passagem, o
qual é resgatado do estudo de Van Gennep, a saber, a fase liminar, ou margem, dos ritos de
passagem. Essas são, portanto, as obras básicas que servem de fundamento ao tema em
questão na pesquisa proposta. Obras mais recentes, de acordo com o que se observa nas notas
de rodapé do primeiro capítulo, as quais tematizam os ritos e rituais, servem de apoio ao
desdobramento e à reflexão atual do assunto.
9
Alguns desses autores o: Victor Turner (TURNER, 1974), Roberto Da Matta (DA MATTA, 1978), Martine
Segalen (SEGALEN, 2002), Mariza Peirano (PEIRANO, 2003), Maria Ângela Vilhena (VILHENA, 2005),
Claude Rivière (RIVIÈRE, 1997), Jean Cazeneuve (CAZENEUVE, s.d.), Émile Durkheim (DURKHEIM, 1989),
Thales de Azevedo (AZEVEDO, 1987), Nathan Mitchell (MITCHELL, 1995).
10
DA MATTA, Roberto. Apresentação. In: GENNEP, Arnold van. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes,
1978. p. 11.
15
2) No que diz respeito ao campo teórico e prático da teologia e liturgia, a pesquisa se
baseia em estudos de obras diversas. Trata-se de pesquisadores atuais que investigam as
origens do culto cristão e se inserem na linha da pesquisa da antropologia litúrgica e obras
clássicas da atualidade que enfocam os principais temas da liturgia
11
. Além disso, a pesquisa
lirgica sobre o culto cristão nas suas origens busca, à medida do necessário, subsídios
bibliográficos em documentos da igreja antiga, nos escritos dos assim chamados pais da
igreja, os quais fornecem informações preciosas sobre a vida dos primeiros cristãos
12
.
A partir da década de 1970, a teologia incluiu em seu método de investigação o
interesse pela experiência humana nas queses de fé. Surge, assim, um dlogo da teologia
com as demais áreas das ciências humanas. no final da década de setenta (1978), Seasoltz
afirmou que uma das áreas mais importantes de investigação teológica é a antropologia
teológica, a qual estuda os seres humanos enquanto relacionados a Deus. “Procura explicar a
pessoa humana à luz da revelão, particularmente da revelação de Deus na humanidade de
Jesus Cristo. Indaga como podem as pessoas relacionar-se com a palavra de Deus e sua obra
no mundo; indaga também, por isso, acerca da natureza do próprio mundo
13
. Disso resulta
que a liturgia, para lidar melhor com o ser humano no culto, considera importante
compreender o humano à luz da sociologia, da psicologia e da antropologia. “Se a liturgia é a
expressão da vida da Igreja no mundo, deve a vida cultural e social do mundo refletir-se nessa
liturgia. Além disso, deve o mundo acerto ponto moldar a vida da Igreja e sua liturgia.”
14
Neste sentido, boa parte da bibliografia litúrgico-teológica utilizada nesta pesquisa, leva em
conta esta preocupação. Seus autores têm em comum uma reflexão teológica e lirgica que
leva em conta a experiência da comunidade e, por isso, inclui em seu método de investigação
o diálogo com as ciências humanas em geral. Dessa forma, busca-se conhecer o humano para
melhor compreender a relação entre o humano e o divino/sagrado, o finito e o infinito.
11
Alguns desses nomes são: Juan JoTamayo-Acosta (TAMAYO-ACOSTA, 1995), Gérard Fourez (FOUREZ,
1984), Ione Buyst (BUYST, 2003 e 2002), S. Anita Stauffer (STAUFFER, 1994 e 1998), Julián López Martín
(MARTÍN, 1997), José María Mardones (MARDONES, 2006), Kevin Sealsoltz (SEALSOLTZ, 1978), Anscar
Chupungco (CHUPUNGCO, 1994, 2000), Nelson Kirst (KIRST, 1995 e 2000). Dentre as obras clássicas em
liturgia, citam-se: Aimé Georges Martimort (MARTIMORT, 1991), Dionísio Boróbio (BORÓBIO, 1991),
Adrien Nocent (NOCENT, 1989), James F. White (WHITE, 1997), além de dicionários como Domenico Sartore
e Achille M. Triacca (SARTORE; TRIACCA, 1992), Paul F. Bradshaw (BRADSHAW, 2002).
12
Dos escritos dos Pais da Igreja, encontram-se: Hipólito de Roma (HIPÓLITO, 1971), Tertuliano
(TERTULIANO, 1975), Cirilo de Jerusalém (CIRILO, 1977), A carta a Diogneto (DIOGNETO, 1976),
Ambrósio de Milão (AMBRÓSIO, 1972).
13
SEASOLTZ, Kevin. Antropologia e teologia litúrgica. Concilium: ritos de passagem e cristianismo:
fundamentos antropológicos e psicogicos, [s.l.], n. 132, 1978/2. p. 7.
14
SEALSOLTZ, 1978, p. 9.
16
3) Além da pesquisa bibliográfica antropológica, teológica e litúrgica, inclui-se neste
estudo, a pesquisa social qualitativa. Esta tem como fundamentos teórico-metodológicos os
estudos de autores como Sari Knopp Biklen e Robert C. Bogdan (Biklen; Bogdan, 1994),
Raymond Quivy e Luc van Campenhoudt (Quivy; Campenhoudt, 1998) e Marina de Andrade
Marconi; Eva Maria Lakatos (Marconi; Lakatos, 1990).
Segundo Biklen e Bogdan, a designação “investigação qualitativa” é utilizada como
um termo genérico “que agrupa diversas estratégias de investigão que partilham
determinadas características”
15
. A expressão “qualitativa” significa que os dados recolhidos
em tal investigação o ricos em pormenores descritivos relativamente a pessoas, locais e
conversas, e de complexo tratamento estatístico
16
. A investigação qualitativa utiliza a
observação participante e a entrevista em profundidade como suas estratégias mais
representativas. Mas, a principal técnica a ser empregada na investigação do assunto da
pesquisa social com vistas ao presente trabalho é a entrevista individual do tipo “estruturada”.
Uma definição e explicão sobre essa técnica, assim como dos demais elementos que
envolvem a pesquisa social qualitativa (universo e amostragem, levantamento de dados e
interpretação dos dados) encontram-se explicitados no início do segundo capítulo, pois este é
o capítulo que apresenta o relario com os resultados da pesquisa social.
De acordo com a proposta de pesquisa aqui apresentada, o presente trabalho será
desdobrado em quatro capítulos, conforme segue.
a) O primeiro capítulo estuda os fundamentos teóricos antropológicos sobre os ritos
de passagem, com base em Arnold van Gennep e em diálogo com autores contemporâneos, da
área da antropologia. Com base na bibliografia, também se busca verificar os ritos de
passagem tradicionais que persistem na sociedade atual e se reflete sobre as mudanças da
sociedade moderna e pós-moderna e suas conseências para os ritos de passagem. Para
concluir, aponta para a necessidade humana de ritualização das passagens e pergunta-se pelas
novas situações de vida que requerem ritualização.
b) O segundo capítulo apresenta o relatório de uma pesquisa social qualitativa cujo
objetivo é verificar quais são as passagens relevantes da vida e como as pessoas estão
ritualizando (ou o) as passagens da vida. Com a finalidade de estudar as passagens e as
15
BOGDAN, Robert C.; BIKLEN, Sari Knopp. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria
e aos métodos. Portugal: Porto Editora, 1994. p. 16.
16
BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 16.
17
ritualizações da vida na atualidade, os dados da pesquisa social qualitativa são recolhidos
mediante entrevistas individuais aplicadas a dez pessoas contatadas pela pesquisadora. Na
concluo do capítulo, a pesquisadora apresenta os desafios que o resultado da pesquisa social
sobre passagens e ritualizações representa para a liturgia cristã.
c) O terceiro capítulo visa estudar os ritos de passagem na igreja. Para tanto, o
capítulo encontra-se dividido em duas secções. A primeira faz um levantamento da prática
lirgica dos ritos de passagem na igreja da atualidade. Com vistas a uma delimitação do
estudo desse assunto, busca-se realizá-lo com base no exemplo da IECLB. Para tanto,
utilizam-se os manuais litúrgicos dessa igreja e documentos relevantes dessa instituão
eclesiástica que auxiliam na complementação dos dados dos manuais. A segunda secção do
terceiro capítulo investiga o tema a partir de práticas litúrgicas selecionadas da tradição cristã
da igreja em seus primórdios e, na medida do possível, das práticas rituais desenvolvidas no
entorno da comunidade cristã das origens. Com base nos resultados obtidos do estudo dos
ritos de passagem na IECLB e na Igreja Antiga, anotados na conclusão do capítulo três, a
autora extrai conseqüências para a prática dos ritos de passagem na liturgia cristã da
atualidade.
d) O quarto capítulo, levando em conta os resultados obtidos nos capítulos
precedentes e com base em bibliografia específica sobre o assunto em questão, oferece a
proposta de um método para a ritualização de passagens na igreja, aplicando-o a algumas
passagens selecionadas dos relatos da pesquisa social. Desta maneira, ao invés de oferecer
liturgias prontas e fechadas, a pesquisa visa contribuir com um instrumento que ajude as
pessoas que atuam na área litúrgica a desenvolverem liturgias para as passagens da vida à
medida que a necessidade e o contexto o exigem.
Espera-se, enfim, que a pesquisa aqui desenvolvida, encontre respostas satisfatórias
às questões levantadas e que o esforço e o empenho a ela dedicados possam trazer
contribuições para o enriquecimento da vida lirgica na igreja e para a pesquisa no campo da
liturgia.
I RITOS DE PASSAGEM: FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS
1.1 Introdução
Este primeiro capítulo tem por finalidade principal estudar os fundamentos teóricos
antropológicos para a compreensão dos ritos de passagem. Para tanto, busca-se conhecer o
assunto a partir de Arnold van Gennep, o primeiro a dedicar-se ao estudo do tema, cujo livro,
o original francês Les rites de passage, publicado em 1909, continua relevante até os dias
atuais, como assinalam os autores abaixo mencionados. O estudo do tema deste capítulo toma
como base a edição em português do livro de Van Gennep, de 1978. Sendo o tema “rito” uma
parte importante do assunto aqui tratado, o capítulo inicia com uma conceituação de rito.
Contudo, não se pretende esgotar, nessas poucas páginas iniciais do capítulo um, um assunto
tão complexo e abrangente.
Tendo como base o fundamento teórico dos ritos de passagem oferecido por Van
Gennep, busca-se ainda, neste capítulo, perguntar pela presença dos ritos de passagem na
sociedade atual, tendo como referência o contexto brasileiro. A partir disso, serão feitas
reflexões pertinentes à ritualização das passagens na atualidade, considerando as seguintes
perguntas: os ritos de passagem são necessários para a vida das pessoas na atualidade? Eles
têm lugar e função na sociedade atual? Qual a relevância dos ritos de passagem hoje? Por que
as pessoas ritualizam as passagens?
1.2 Conceituação de rito
Conceituar rito é uma tarefa complexa, uma aventura arriscada. Sem pretender
esgotar um assunto que possui dimensões tão amplas, com interpretações de campos tão
diversos (antropologia, história, religião, lingüística, psicologia, sociologia, teologia, etc.),
busca-se, neste curto espaço, oferecer algumas idéias básicas que orientem a compreensão do
tema.
19
Etimologicamente, a palavra rito vem do latim ritus que significa “ordem prescrita”
ou ordem estabelecida”
17
. No grego, esse termo está ligado a artýs ou artus, que também
significa “prescrição”. A raiz ar, mais antiga e original, “modo de ser, disposição organizada
e harmônica das partes no todo
18
, encontra-se na palavra rta, do sânscrito védico, cujo
significado remete a uma força de ordem cósmica, mental
19
e de relação das pessoas entre si
20
,
e em arta (arte), do iraniano, que idéia de “harmonia restauradora”
21
. A etimologia do
termo rito indica que há uma idéia de ordem, organização, estabilidade e restauração presente
no significado da palavra rito. A partir da etimologia do rito, Terrin afirma que:
O rito coloca ordem, classifica, estabelece as prioridades, dá sentido do que é
importante e do que é secundário. O rito nos permite viver num mundo organizado e
não-caótico, permite-nos sentir em casa, num mundo que, do contrário, apresentar-
se-ia a nós como hostil, violento, impossível. Se é verdade que o cosmo tem a força
de opor-se ao caos, isso se deve ao rito e à sua força organizadora.
22
Na maioria das definições de rito espresente essa idéia de ordem, organização e
estabilidade. As definições, em geral, acentuam o caráter repetitivo e a fidelidade a certas
regras da ação ritual. Cazeneuve, por exemplo, diz que o rito é uma ação que pode ser
individual ou coletiva, mas que sempre permanece fiel a certas regras. Entretanto, conforme o
autor, isto não significa que o rito seja inflexível e não comporte uma margem de
improvisação
23
. Esse autor diz que “os ritos constituem o fundamento mais estável sobre o
qual se pode apoiar o observador, em particular o etnógrafo, para descrever e reconstituir um
fenômeno social total sob o seu aspecto mais estático, de maneira a que os ritos se apresentem
como documentos indiscutíveis.”
24
Certamente, os ritos evoluem, complementa Cazeneuve,
mas “em geral é de uma maneira lenta e imperceptível
25
. Mudanças também ocorrem no rito,
porém, estas são introduzidas com extrema prudência. “A repetição é dada na própria essência
do rito”, afirma Cazeneuve
26
.
17
SEGALEN, Martine. Ritos e rituais contemporâneos. Rio de Janeiro: FGV, 2002. p. 17; RIVIÈRE, Claude,
Os ritos profanos. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 29; TERRIN, Aldo Natale. O rito: antropologia e fenomenologia
da ritualidade. São Paulo: Paulus, 2004. (Coleção estudos antropológicos). p. 18.
18
TERRIN, 2004, p. 18.
19
VIDAL, Jacques. Rito. In: POUPARD, Cardenal Paul (Org.). Diccionario de las religiones. Barcelona:
Herder, 1987. p. 1527.
20
SEGALEN, 2002, p. 17; RIVIÈRE, 1997, p. 29.
21
TERRIN, 2004, p. 18.
22
TERRIN, 2004, p. 19.
23
CAZENEUVE, Jean. Sociologia do rito. Porto: Rés Editora Ltda, [s.d.]. p. 10.
24
CAZENEUVE, [s.d.], p. 11.
25
CAZENEUVE, [s.d.], p. 10.
26
CAZENEUVE, [s.d.], p. 11.
20
Durkheim, na busca dos elementos mais característicos da vida religiosa, identificou
o caráter sagrado do rito. Para ele “os fenômenos religiosos ordenam-se naturalmente em duas
categorias fundamentais: as crenças e os ritos”
27
. As crenças, por seu lado, o estados da
opinião, consistem em representações. Elas exprimem a natureza das coisas sagradas, as
virtudes e os poderes que lhes são atribuídos, sua hisria, suas relações entre si e com as
coisas profanas.”
28
Os ritos, por sua vez, “são modos de ão determinados”
29
, diferenciados
de outras pticas humanas através da natureza especial do seu objeto, ou seja, as coisas
sagradas. Em suma, “os ritos são regras de comportamento que prescrevem como o homem
deve se comportar com as coisas sagradas.”
30
Na explicação de Durkheim, o pensamento
religioso supõe uma classificação das coisas, reais ou ideais, as quais representam dois
gêneros opostos, ou seja, a divisão do mundo em dois domínios, um que compreende o
sagrado e o outro, o profano
31
. As coisas, sagradas, portanto, se distinguem das coisas
profanas. Como diz o autor: “Não existe na história do pensamento humano outro exemplo de
duas categorias de coisas tão profundamente diferenciadas, o radicalmente opostas uma à
outra.
32
A oposição tradicional entre o bem e o mal até desaparece diante dessas duas
categorias, complementa o autor. Isso, no entanto, não significa, “que um ser não possa jamais
passar de um desses mundos para o outro”
33
. É que entram os ritos, como demonstram,
sobretudo, os ritos de iniciação, cujo objetivo é introduzir o jovem na vida religiosa, fazendo
sair do mundo profano para entrar no âmbito das coisas sagradas
34
.
As coisas sagradas, acrescenta Durkheim, não se limitam aos deuses ou espíritos:
um rochedo, uma árvore, uma fonte, uma pedra uma peça de madeira, uma casa,
enfim, qualquer coisa pode ser sagrada. Um rito pode ter esse caráter; sequer existe
rito que não o tenha em algum grau. Há palavras, termos, fórmulas, que podem
ser pronunciadas pela boca de personagens consagradas; gestos, movimentos que
não podem ser executados por todos.
35
É importante salientar que no entender de Durkheim, religião e sociedade são
interligados. A sociedade é concebida como “sagrada”, pois como afirma o autor, quase
todas as instituições sociais nasceram da religião”
36
. E, neste sentido, o rito é entendido como
27
DURKHEIM, Émile. As formas elementares de vida religiosa. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1989. p. 67.
28
DURKHEIM, 1989, p. 67 e 68.
29
DURKHEIM, 1989, p. 67.
30
DURKHEIM, 1989, p. 72.
31
DURKHEIM, 1989, p. 68.
32
DURKHEIM, 1989, p. 70.
33
DURKHEIM, 1989, p. 70.
34
DURKHEIM, 1989, p. 70-71.
35
DURKHEIM, 1989, p. 68.
36
DURKHEIM, 1989, p. 496.
21
ato necessário à renovação da sociedade, ou seja, através dos ritos, a sociedade se cria e se
recria periodicamente. Assim, explica o autor:
a sociedade só pode fazer sua influência, se ela for ato, e ela é ato se os
indivíduos que a compõem estão reunidos e agem em comum. É pela ação comum
que ela toma consciência de si e se impõe; ela é antes de tudo, uma cooperação
ativa. Até as idéias e os sentimentos coletivos são possíveis graças a movimentos
exteriores que os simbolizam, conforme estabelecemos. Portanto, é a ação que
domina a vida religiosa pelo simples fato de que ela tem por fonte a sociedade.
37
O estudo do rito foi tradicionalmente associado à religião. Com base nas idéias de
Durkheim, Rivière amplia a visão sobre os ritos. Ele diz que “existem formas de sacralidade
fora da religião, nas quais se inscrevem vários de nossos ritos cotidianos”
38
. Rivière conclui, a
partir de Durkheim, que o rito constituiria uma expressão simbólica dos valores
fundamentais que unificam os membros de uma sociedade”, sendo assim reconhecido como
forma geral de expressão da sociedade e da cultura”
39
. Ao estudar o rito, esse autor leva em
conta o contexto de secularização em que ele vive. Por isso, diz:
O campo do sagrado transborda bastante o campo do religioso, a fortiori
institucionalizado, sem abranger toda a experiência social. A religiosidade tende,
assim, a passar por um processo de deslocamento em um mundo secularizado (...). A
essa força fascinante e terrificante chamada por R. Otto de sagrado, os povos
atribuem diversos conteúdos: gênios, Deus, Augusto, valores metafísicos, poderes
superiores mitificados pertencentes ao domínio do indizível, inatingível e
informulável, do imperativo categórico, do inquestionável instituído, do arbitrário
postulado, mas, na realidade, referindo ao invisível as razões de ordem social e
cósmica.
40
O rito, portanto, conforme Rivière, pode ser encontrado no ritmo cotidiano da vida
social, como, por exemplo, nos trotes estudantis, nos grandes espetáculos musicais, na prática
do esporte, loterias, caças, espetáculos teatrais, ritos do judiciário, na refeição e também na
apresentação regulada do corpo. O autor menciona ainda os microrituais da vida diária da
criança, dos quais ela adquire hábitos e valores e é educada. Em seu estudo dos ritos, Rivière
se baseia na seguinte definição:
Os ritos devem ser sempre considerados como conjunto de condutas individuais ou
coletivas, relativamente codificadas, com um suporte corporal (verbal, gestual, ou de
postura), com caráter mais ou menos repetitivo e forte carga simbólica para seus
atores e, habitualmente, para suas testemunhas, baseadas em uma adesão mental,
eventualmente não conscientizada, a valores relativos a escolhas sociais julgadas
importantes e cuja eficácia esperada não depende de uma lógica puramente empírica
que se esgotaria na instrumentalidade técnica do elo causa-efeito.
41
37
DURKHEIM, 1989, p. 494 e 495.
38
RIVIÈRE, 1997, p. 36.
39
RIVIÈRE, 1997, p. 45.
40
RIVIÈRE, 1997, p. 36.
41
RIVIÈRE, 1997, p. 30.
22
Alguns autores chamam atenção para o aspecto performativo do rito como elemento
fundamental na conceituação de rito na atualidade
42
. Segundo Langdon, o tema da
performance vem sendo desenvolvido na antropologia dos últimos vinte anos que mais e mais
trata o mundo s-moderno, “o qual é caracterizado pelo imprevisto ou indeterminado, a
heterogeneidade, a polifonia, relações de poder, a subjetividade e a transformação contínua”
43
.
De acordo com a autora, o conceito de performance surge “das preocupões com o papel do
simbólico na vida humana e a construção de um conceito de cultura
44
. Na visão tradicional, a
cultura é pensada como normativa e homogênea. O comportamento das pessoas é visto como
resultado de um modelo ideal, fixo, padronizado. Outra visão de cultura é a emergente,
“estando o seu enfoque no ator social como agente consciente, interpretativo e subjetivo
45
.
Nessa nova visão de cultura, as pessoas do mesmo grupo também “compartilham certos
valores, símbolos e preocupões que podem ser caracterizados como ‘tradição’, mas o
enfoque está na práxis, na interpretação dos atores sociais que estão produzindo cultura a todo
momento”
46
. A cultura, portanto, emerge em meio à interpretação social das experiências da
vida. Nesse sentido, afirma a autora, o ser humano simbólico é um ator, “cuja ão não é
motivada pela razão, mas também pelas experiências passadas, pelos desejos, pelas
necessidades de expressar e criar, e pela vontade”
47
. É dentro dessa perspectiva de cultura que
o rito recebe ênfase como ação simbólica e performática. “Rito não é conceituado como uma
mera repetição de atos em seqüência, mas como ato performático com o poder de transformar
o indivíduo e a sociedade.”
48
A autora faz referência ao estudo de Turner, o qual destaca o
papel dinâmico do rito na vida social. A vida social é marcada por conflitos e crises e o rito
assume papel relevante nas tentativas de resoluções desses conflitos e crises, pelas pessoas
envolvidas
49
.
Langdon define performance como um ato de comunicação que se distingue,
principalmente do ato da fala, por sua função expressiva ou poética. “A função poética
ressalta o modo de expressar a mensagem e não o conteúdo da mensagem.”
50
Performance
está relacionada a uma experiência humana contextualizada e a análise performática visa
42
PEIRANO, Mariza. Rituais ontem e hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. (Coleção Passo-a-passo,
24). p. 39-40.
43
LANGDON, Esther Jean. Performance e preocupações pós-modernas na antropologia. In: TEIXEIRA, João
Gabriel (Org.). Performáticos, performance e sociedade. Brasília: UNB, 1996. p. 23.
44
LANGDON, 1998, p. 24.
45
LANGDON, 1998, p. 24.
46
LANGDON, 1998, p. 24.
47
LANGDON, 1998, p. 24.
48
LANGDON, 1998, p. 24.
49
LANGDON, 1998, p. 24.
50
LANGDON, 1998, p. 26.
23
explorar a dinâmica da expressão poética do evento. A relevância do evento es na
dramaticidade do ato. Por exemplo, é o uso da voz e do corpo, entre outros mecanismos, que
transforma uma narração em momento dramático e divertido para os seus participantes.
Estudar o ritual e, em geral, os ritos como ação dramática é uma tarefa fascinante, diz
Terrin. Conforme o autor, as novas possibilidades oferecidas pela linguística, e por outras
disciplinas da antropologia abrem novas janelas para a compreensão do rito e sua
interpretação. Mas, o autor observa que essas possibilidades ainda não foram verificadas pelos
liturgistas e teólogos, a não ser de maneira tímida e pouco profunda, que não prestaram
atenção às novas disciplinas ou não quiseram gastar energias com a “profanidade” das
ciências humanas, perdendo, assim, uma boa oportunidade para repensar o discurso ritual-
lirgico e renovar a vida da igreja a partir da liturgia
51
. Lembrando Turner, Terrin diz que o
ritual cristão
se fragmentou em “migalhas de palavras”, foi “desidratado” com o objetivo prático
de torná-lo um fato cognitivista que deveria ser imediatamente funcional à pastoral.
O ritual na trilha de uma racionalidade cada vez mais invasiva foi se tornando
pregação, didascália, parênese, leitura bíblica e, em última instância, um repetido
convite à edificação, e nada mais.
52
A ação ritual enquanto performance é, para Terrin, a característica mais original do
rito, pois se refere a uma ação comunicativa que manifesta os próprios sentimentos e as
próprias modalidades existenciais. E essa comunicação é expressão viva, real e intersubjetiva.
É a própria vida que se manifesta através do rito, onde gesto, palavra, movimento, ão se
entrelaçam e se conjugam de maneira complementar e holística
53
.
1. 3 Os ritos de passagem na perspectiva de Arnold van Gennep
1.3.1 Contextualização e primeiras conceituações
A expressão ritos de passagem é imediatamente associada ao nome de Arnold van
Gennep (1873-1957). Não seria possível estudar o assunto dos ritos de passagem sem
considerar esse autor. Foi ele que utilizou a expressão “ritos de passagem” pela primeira vez
para descrever “dois tipos de ritos: os que acompanham a passagem de um indivíduo de um
status social para outro, no decorrer de sua vida, e os que marcam pontos determinados na
51
TERRIN, 2004, p. 315.
52
TERRIN, 2004, p. 315.
53
TERRIN, 2004, p. 319. Grifo do autor.
24
passagem do tempo (ano novo, lua nova, solstício ou equinócio)”
54
. Segundo Da Matta, o
livro de Van Gennep, [Les rites de passage, Paris, Nourry, 1909]
55
, é, talvez, dentre os
escritos clássicos ou inspirados pela chamada ‘escola sociológica francesa”, um dos mais
famosos e discutidos
56
. Ao escrever a “apresentação” deste livro em sua versão para a língua
portuguesa, em 1977, Da Matta diz que, passados quase setenta anos de sua publicação, esta
obra é largamente utilizada e estudada, “seja como base bibliográfica para análise dos
cerimoniais, seja como ponto de partida para uma reflexão sobre o universo das relações
sociais (...), seja como uma fonte de inspiração trica para o problema básico da natureza
sociológica dos ritos e atos teatrais (...)”
57
.
Segundo Rivière, o rito tornou-se um objeto social de estudo independente pouco
tempo, sendo concebido durante séculos, exclusivamente, “como elemento de uma religião da
mesma forma que as creas e a organização”
58
. O rito era tomado como um produto de atos
estranhos, um dado secundário ou “apêndice do mundo mágico ou religioso”
59
. É, sobretudo
com Jean Cazeneuve, na Fraa, em 1958, que o rito se torna o objeto de um tratamento
consistente de 500 páginas”
60
. Isto revela o ineditismo de Van Gennep que cinqüenta anos
antes publicou o livro sobre os ritos de passagem, sobressaindo-se como aquele que estudou o
rito como fenômeno independente
61
. Van Gennep estuda esse objeto “como algo em si mesmo
(...), um fenômeno dotado de certos mecanismos recorrentes (no tempo e no espaço), e
também de certo conjunto de significados
62
, sendo que o principal significado do rito, para
Van Gennep, é “realizar uma espécie de costura entre posições e domínios”
63
na vida social.
Desde o nascimento até à morte, o indivíduo se submete a cerimônias que o ajudam a passar
de um lugar a outro, de um status a outro, de uma idade a outra, e assim sucessivamente.
Para entender a importância do movimento feito por Van Gennep ao tomar o rito
como objeto de estudo autônomo, é necessário levar em conta o contexto em que surge esse
seu estudo.
54
MAIR, L. P. Ritos de passagem. In: SILVA, Benedicto (Coord.). Dicionário de Ciências Sociais. Rio de
Janeiro: FGV, 1986. p. 1081.
55
DA MATTA, Roberto. Apresentação. In: GENNEP, Arnold van. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes,
1978. p. 11.
56
DA MATTA, 1978, p. 11.
57
DA MATTA, 1978, p. 11.
58
RIVIÈRE, 1997, p. 41.
59
DA MATTA, 1978, p. 16.
60
RIVIÈRE, 1997, p. 41.
61
PEIRANO, 2003, p. 22.
62
DA MATTA, 1978, p. 16.
63
DA MATTA, 1978, p. 16.
25
A antropologia se configura como disciplina autônoma durante o século XIX. Esse é
o século da conquista colonial. E, como expressa Laplantine,
é no movimento dessa conquista que se constitui a antropologia moderna, o
antropólogo acompanhando de perto, [...], os passos do colono. Nessa época, a
África, a Índia, a Austrália, a Nova Zelândia passam a ser povoadas de um mero
considerável de imigrantes europeus; não se trata de missionários apenas, e sim de
administradores. Uma rede de informações se instala. São questionários enviados
por pesquisadores das metrópoles (em especial da Grã-Bretanha) para os quatro
cantos do mundo e cujas respostas constituem os materiais de reflexão das primeiras
grandes obras de antropologia que se sucederão em ritmo regular durante toda a
segunda metade do século.
64
O pensamento teórico da antropologia dessa época é qualificado como evolucionista,
segundo o qual se considera as formas simples de organização social e de mentalidade do
“primitivo” como algo que evolui para as formas mais complexas das nossas sociedades
65
.
Conforme Laplantine, uma característica da antropologia desse século é a atenção
considerável que ela aos povos aborígines australianos, os quais aparecem como os mais
arcaicos do mundo. E as duas grandes áreas da antropologia que dão acesso ao conhecimento
dessas sociedades, não ocidentais, são as que estudam o parentesco e a religião
66
.
Refletindo sobre as diferenciações do pensamento antropológico dessa época, Da
Matta afirma que para os evolucionistas, o ritual não era tido como algo socialmente
relevante, pois, até então, o próprio social não existia como algo independente e autônomo ou
como área apropriada para a reflexão
67
.
Assim é que nos estudos sociológicos (ou antropológicos) desta fase, os padrões de
comportamento social, valores e ideologias, eram explicados tendo por base duas
reduções muito importantes. De um lado, reduzia-se o social (e/ou cultural) a uma
aparência de um jogo de foas biológicas, de modo que os fenômenos da sociedade
eram vistos como resultantes fracos (e, às vezes, inexpressivos) de tensões e
caracteres raciais (ou biogicos) estabelecidos, dos quais pouco adiantava fugir.
O social, então, submergia no biológico do mesmo modo que o diferente (o outro)
desaparecia na sua história natural.
68
64
LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2005. p. 64-65.
65
LAPLANTINE, 2005, p. 65.
“O evolucionismo encontra sua formulação mais sistemática e mais elaborada na obra de Morgan e
particularmente em Ancient Society, que se tornao documento de referência adotado pela imensa maioria dos
antropólogos do final do século XIX”. (LAPLANTINE, 2005, p. 65-66). Conforme Laplantine, Morgan escreve
que “todas as religiões primitivas são grotescas e de alguma forma ininteligíveis” (LAPLANTINE, 2005, p. 67).
Uma das obras mais célebres de toda a literatura antropologica é O Ramo de Ouro”, de Frazer. Ele retraça o
processo universal que conduz, por etapas sucessivas, da magia à religião, e depois, da religião à ciência”. No
seu entender a magia representa, na história do espírito humano, um estágio anterior e grosseiro, pelo qual todas
as raças da humanidade passam, para, então, dirigir-se à religião e à ciência. (LAPLANTINE, 2005, p. 68).
66
LAPLANTINE, 2005, p. 66.
67
DA MATTA, 1978, p. 12.
68
DA MATTA, 1978, p. 12-13. Conforme Da Matta, os evolucionistas eram “mais ou menos convencidos da
superioridade integral (biológica e cultural) dos europeus da segunda metade de séc. XIX sobre os chamados
‘selvagens’ ou ‘primitivos’ “. DA MATTA, 1978, p. 12.
26
Uma segunda vertente da antropologia do século XIX é chamada de interpretação
intelectualista ou psicológica do fenômeno social, de modo que o social é reduzido à vontade
de agentes individuais, diz Da Matta. Conforme esse autor, um exemplo desta posição é
Tylor. “Ele explica a origem da religião como uma especulação na crença da alma,
especulação que nasce dos sonhos dos primitivos.“
69
Daí surge o nome “animismo” para
designar essa forma de religiosidade. Para Tylor, a religião, centrada na crença em seres
espirituais, era produto de uma evolução natural, regular, contínua e progressiva das
capacidades mentais humanas no estado social”
70
. O “animismo(que designa a crença nos
espíritos) teria sido a forma mais primitiva de religião (do animismo a humanidade teria
progredido para o politeísmo e deste para o monoteísmo)
71
. Segundo Da Matta, os estudiosos
da perspectiva intelectualista e psicológica discutem o religioso em suas formas mais
primitivas e fazem um corte entre as religiões com tradição escrita (do ocidente e das grandes
civilizações) e a magia (de grupos tribais, “selvagens” e primitivos). Mas, ressalta esse autor,
“tanto na redução biológica, quanto na redução psicológica, o fato social deixa de existir
enquanto algo autônomo e independente”
72
. Da Matta ainda menciona outra vertente da
mesma época, chamada de redução ecológica ou geográfica, a qual igualmente reduzia o
mundo social à dinâmica de climas, solos, vegetações, regime de chuvas e de ventos
73
. É,
sobretudo, com Émile Durkheim, na tradição francesa de Comte, que se estuda o fato social
como uma totalidade e não como fenômeno individualizado ou redutível a uma de suas partes.
O social, assim, a partir dos trabalhos de Durkheim e seus seguidores, adquire
aquelas características que ele próprio descobriu como fundamentais: são fatos
capazes de coagir e, sobretudo, de não serem redutíveis nem à geografia, nem à
biologia, nem à psicologia (ou ao indivíduo). [...] O social, assim, não se reduz a
nenhum fenômeno individual, mas adota sempre a perspectiva da totalidade onde
rios elementos podem tornar-se ou não socialmente significativos.
74
Nessa época, quando Van Gennep escreve o livro sobre ritos de passagem, a religião
é considerada um fato socialmente significativo, explica Da Matta. Na França, o estudo da
religião se estabelece como o coração da sociedade e diversos temas especiais, relacionados a
ela, o tomados como objetos de estudos. Por exemplo: magia, prece, reciprocidade (Marcel
Mauss, Hubert), magia e religião e religião elementar (Durkheim), entre outros. Nenhum
69
Sonhando com tudo e principalmente com os mortos, os homens primitivos descobrem - diz Tylor - a noção
de alma, de imagem, de duplo e assim constroem o domínio do outro mundo’, o domínio do sagrado e do
sobrenatural.” DA MATTA, 1978, p. 13.
70
PEIRANO, 2003, p. 20.
71
PEIRANO, 2003, p. 20.
72
DA MATTA, 1978, p. 13.
73
DA MATTA, 1978, p. 13.
74
DA MATTA, 1978, p. 14.
27
desses autores toma o rito como objeto básico de estudo. Ereside a importância da
contribuição da pesquisa de Van Gennep, frisa Da Matta
75
.
Neste contexto, é importante ter presente que Van Gennep concebe a sociedade como
uma totalidade internamente dividida. No entender de Da Matta, Van Gennep tem uma
concepção de sociedade bastante poderosa, embora sua teoria não fosse completa ou
sofisticada
76
. Ele compara a sociedade geral a uma casa dividida em quartos e corredores, ou
seja, em diversos compartimentos, “com paredes tanto menos espessas e portas de
comunicação tanto mais largas e menos fechadas quanto mais esta sociedade se aproxima das
nossas pela forma de sua civilização”
77
. Entre os “semicivilizados”
78
, diz Van Gennep, “estes
compartimentos são cuidadosamente isolados uns dos outros, e para passar de um ao outro são
necessárias formalidades e cerimônias que apresentam a maior analogia com os ritos de
passagem material
79
.
O que são os ritos de passagem material? De acordo com Van Gennep, são
procedimentos aplicados às passagens de um lugar ao outro, seja de país, província ou
domínio ou mesmo de aldeias, cidades, quarteies, ruas, templos ou casas e até quartos. De
acordo com o autor, em sociedades de épocas diferentes das nossas, havia diversas
formalidades (de ordem política, jurídica e econômica) que acompanhavam as passagens de
um lugar para outro. Van Gennep destaca, em especial, a existência de uma formalidade de
ordem mágico-religiosa. Os habitantes e vizinhos de tribos “semicivilizadas”, cujo terririo é
definido por acidentes naturais (por exemplo, pedras, árvores, rios, lagos), sabem que ao
atravessar os limites territoriais, correm o risco de sofrer penas ou sanções sobrenaturais.
Assim explica esse autor:
Pela colocação ou fixação cerimonial dos marcos ou dos limites (charrua, pele de
animal cortada em correias, fosso, etc.), um espaço determinado do solo é
apropriado por determinado grupo, de tal maneira que, sendo estrangeiro, penetrar
neste espaço reservado é cometer um sacrilégio, do mesmo modo que, sendo
profano, penetrar em um bosque sagrado, em um templo, etc.
80
Marcos, muros, estátuas, postes, entre outros, que ao serem colocados em seus
lugares são acompanhados, frequentemente, por ritos de consagração, representam uma
espécie de interdição mágico-religiosa.
75
DA MATTA, 1978, p. 16.
76
DA MATTA, 1978, p. 16.
77
GENNEP, Arnold van. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1978. p. 41.
78
Termo utilizado pelo próprio autor.
79
GENNEP, 1978, p. 41.
80
GENNEP, 1978, p. 34-35.
28
Van Gennep, ao destacar os ritos de passagem material, mostra que o espaço físico
tem uma enorme importância na vida social e, por isso, ele é demarcado simbolicamente,
apontando, desta maneira, para seus significados e funções. (Ainda hoje, os novos espaços
habitacionais ou institucionais são marcados por cerimônias de inauguração. E, em geral,
essas cerinias têm início diante da porta, seguidos de discursos sobre a função do lugar e
normalmente concluídas com um coquetel de “comes e bebes”).
Ao tratar os ritos de passagem material, Van Gennep um destaque especial ao
aspecto da margem. Para compreender, é necessário imaginar a existência de uma
determinada zona territorial neutra, um deserto, um pântano e, sobretudo uma floresta virgem,
onde qualquer pessoa pode viajar e caçar de pleno direito. Tal local é considerado sagrado
para os habitantes dos terririos vizinhos, assim como o território vizinho é considerado
sagrado para as pessoas que estão na zona neutra. “Qualquer pessoa que passe de um para
outro acha-se, assim, material e mágico-religiosamente, durante um tempo mais ou menos
longo em uma situação especial, uma vez que flutua entre dois mundos.
81
A esta situação
Van Gennep chama de “margem” e, conforme o autor, um dos objetivos do seu livro é
demonstrar que “esta margem, simultaneamente ideal e material, encontra-se, mais ou menos
pronunciada, em todas as cerinias que acompanham a passagem de uma situação mágico-
religiosa ou social para outra”
82
.
Ao desenvolver a sua idéia de sociedade, em analogia a uma casa - dividida em
diversos compartimentos, Van Gennep diz que todo indivíduo ou grupo, por seu nascimento
ou qualidades especiais adquiridas, não tem o direito imediato de entrar numa casa
determinada e instalar-se em qualquer uma de suas subdivisões. Ele se encontra em estado de
isolamento. Por isso, observando as sociedades, independentemente dos seus tipos de
organização, Van Gennep descreve:
é o próprio ato de viver que exige as passagens sucessivas de uma sociedade
especial à outra e de uma situação social a outra, de tal modo que a vida individual
consiste em uma sucessão de etapas, tendo por término e começo conjuntos da
mesma natureza, a saber, nascimento, puberdade social, casamento, paternidade,
progressão de classe, especialização de ocupação, morte.
83
Para cada um desses conjuntos mencionados (nascimento, puberdade social,
casamento, paternidade, progressão de classe, especialização de ocupação, morte) existem
cerimônias cujo objeto idêntico é “fazer passar um indivíduo de uma situação determinada a
81
GENNEP, 1978, p. 36.
82
GENNEP, 1978, p. 36.
83
GENNEP, 1978, p. 26-27.
29
outra situação igualmente determinada”
84
. Quando os meios para atingir o mesmo objetivo
não são idênticos nos detalhes, é de todo necessário que ao menos sejam análogos, afirma o
autor. “O indivíduo modificou-se, porque tem atrás de si várias etapas e atravessou diversas
fronteiras.
85
Desta maneira, Van Gennep explica a semelhança geral das cerimônias que vão
do nascimento à morte e, por isso, ele acha “racional agrupar todas estas cerimônias de acordo
com um esquema”
86
.
1.3.2 Ritos de passagem: um “esquema heurístico poderoso
87
Os ritos de passagem referem-se aos momentos de mudança e de transição na vida de
pessoas e de grupos sociais para novas etapas de vida e de status
88
. Os exemplos clássicos
desses ritos, os quais são descritos no livro de Van Gennep, o: a gravidez e o parto, o
nascimento e a inncia, a iniciação, o noivado e o casamento e os funerais.
Van Gennep tentou agrupar todas as seências cerimoniais referentes à passagem de
uma situação a outra, de um mundo ao outro (cósmico ou social) e achou legítimo distinguir
uma categoria especial de ritos que, ao serem analisados, se decompõem basicamente em ritos
de separação, ritos de margem e ritos de agregação. Essas três categorias, entretanto, o se
desenvolvem igualmente numa mesma população ou nos mesmos conjuntos cerimoniais,
acrescenta Van Gennep, explicando:
Os ritos de separação são mais desenvolvidos nas cerimônias dos funerais, os ritos
de agregação, nas do casamento. Quanto aos ritos de margem, podem constituir uma
secção importante, por exemplo, na gravidez, no noivado, na iniciação, ou se
reduzirem ao mínimo na adoção, no segundo parto, no novo casamento, na
passagem da segunda para a terceira classe de idade, etc.
89
É interessante também observar que em certos casos, como informa o autor, o
esquema se desdobra. Isso se quando a margem é bastante desenvolvida, representando
uma etapa autônoma, como acontece com o noivado, que constitui num período de margem
entre a adolescência e a fase adulta (casamento). Mas a passagem da adolesncia ao
84
GENNEP, 1978, p. 27.
85
GENNEP, 1978, p. 27.
86
GENNEP, 1978, p. 27.
87
Esta expressão é emprestada de Martine Segalen, cf. SEGALEN, 2002, p. 39.
88
No estudo dos ritos de passagem o significado do termo “status” relaciona-se ao estado ou situação em que
uma pessoa se encontra num determinado momento de sua vida, seja em relação à posição de adulto, ou de
casado, ou de maternidade, ou de paternidade, etc. No latim, a palavra “status” significa, entre outros, posição,
estado, situação. FARIA, Ernesto (Org.). Dicionário escolar latino-português. 3. ed. Rio de Janeiro: Ministério
da Educação e Cultura, 1962. p. 942.
89
GENNEP, 1978, p. 31.
30
noivado comporta uma rie especial de ritos de separação, de margem e de agregação à
margem”
90
, isto é, ao noivado. E a passagem do noivado ao casamento, por sua vez, supõe
separação da margem (noivado), margem e agregação ao casamento. Essa combinação
também pode ser verificada em outros conjuntos de ritos, diz Van Gennep, como, por
exemplo, nos de gravidez, parto e nascimento. Esse autor faz o alerta de que a classificão
dos ritos de passagem o seja vista de forma rígida. E esclarece também não ter a pretensão
de estabelecer que os ritos de nascimento, iniciação e casamento, etc., sejam apenas ritos de
passagem”
91
, pois essas cerimônias têm, cada qual, sua finalidade própria e especial. Elas se
justapõem e se combinam com os ritos de passagem
92
. Como diz Peirano, Van Gennep, tem
seu interesse voltado para a dinâmica da mudança que o ritual favorecia
93
; por isso, a fase
liminar (de margem) dos rituais era o importante para ele, pois se referia àquele estado
social em que os indivíduos ou grupos se separam da vida cotidiana, mas ainda não
incorporaram um novo estado. E nesse processo, os ritos de passagem têm a importante
função de reduzir os efeitos nocivos causados pelas mudanças de estado que perturbam a vida
social e individual
94
, justifica Van Gennep.
Segundo Segalen, Van Gennep procurou um princípio universal que ajudasse a
compreender as passagens individuais e coletivas no tempo e no espaço. A tese dos ritos de
passagem de Van Gennep é revolucioria, diz essa autora, sendo que ele não faz dela uma
base classificatória nem predefine suas funções. “As sociedades são caracterizadas por sua
descontinuidade, e o rito de passagem procura recompor a ordem social que é questionada a
cada etapa do ciclo biológico do homem.”
95
Não foram os ritos de passagem que interessaram
a Van Gennep, “mas antes o seu significado essencial e suas situações relativas nos conjuntos
cerimoniais”
96
. Segalen explica que, para Van Gennep, os ritos podem ter muitas formas, mas
sempre se encontrará neles uma “seqüência-tipo”, ou seja, o esquema seqüencial dos ritos de
passagem. É esse método das seqüências que Van Gennep considera capaz de dar sentido aos
ritos. Por isso, para Segalen, a estrutura dos ritos de passagem representa um “esquema
90
GENNEP, 1978, p. 31.
91
GENNEP, 1978, p. 32.
92
GENNEP, 1978, p. 32. Por exemplo, “as cerimônias de casamento admitem ritos de fecundação, as do
nascimento comportam ritos de proteção e de previsão, as dos funerais, ritos de defesa, as da iniciação, ritos de
propiciação, as da ordenação, ritos de apropriação pela divindade, etc. Todos esses ritos, que possuem uma
finalidade especial e atual, justapõem-se aos ritos de passagem ou se combinam com estes, às vezes de maneira
tão íntima que não se sabe se tal rito de detalhe é, por exemplo, um rito de proteção ou um rito de separação”.
GENNEP, 1978, p. 32.
93
PEIRANO, 2003, p. 23.
94
GENNEP, 1978, p. 32-33.
95
SEGALEN, 2002, p. 42.
96
SEGALEN, 2002, p. 42.
31
heurístico poderoso”
97
. Para ela, a teoria de Van Gennep é um método de trabalho que produz
sentido e essa é a grande contribuição desse estudioso.
1.3.3 A gravidez e o parto
98
As cerinias de gravidez e de parto formam uma totalidade. Levando-se em conta
que, para a maioria dos povos pesquisados, a mulher em estado de gravidez deve ser
considerada impura e perigosa
99
ou se encontra em um estado fisiológico e social
temporariamente anormal
100
, estabeleceu-se que “nesse momento a mulher é colocada em
estado de isolamento”
101
. Assim sendo, os primeiros ritos aplicados são os de separação com a
finalidade de retirar a mulher da sociedade geral, familiar e, em alguns casos, também da
sociedade sexual (termo que faz referência ao grupo do mesmo sexo)
102
. Após a separação,
inicia-se o período de margem, com ritos de gravidez propriamente ditos. Das cerimônias
entre os Toda, na Índia, Van Gennep descreve a seqüência dos ritos de gravidez e de parto e
observa os vários procedimentos que visam separar a mulher gvida do seu ambiente. Uma
mulher grávida deve ficar afastada da aldeia e lugares sagrados, ou seja, do centro da vida
social. Para tanto, ela é ritualmente separada. No quinto mês de gravidez, a mulher é
conduzida a uma cabana especial, mediante “uma cerimônia chamada ‘abandonamos a
aldeia’
103
. Ali acontecem diversos procedimentos rituais. Ao sair da cabana, a mulher bebe o
leite sagrado e retorna ao seu domicílio, permanecendo nele até o sétimo mês. Neste mês se
a cerimônia do “arco e flecha”, que consiste em assegurar um pai social para o filho. A
partir daí, pelo que o autor nos dá a entender, a mulher permanece em casa, até o parto.
97
SEGALEN, 2002, p. 39 e 42.
98
GENNEP, 1978, p. 52-58. O estudo de Arnoldo van Gennep sobre os ritos de passagem basea-se na análise de
documentos de diversos autores que pesquisaram a vida de povos, denominados pelo autor de
“semicivilizados”, dentre os quais são citados grupos indígenas australianos, africanos, norte americanos e
indianos. Como visto no ”item 1.3.1”, durante o século XIX, época em que a antropologia se configura como
disciplina autônoma, a atenção dos estudiosos dessa área está voltada aos povos aborígenes australianos,
considerados os mais arcaicos do mundo. O estudo de Van Gennep também se encontra no contexto de tais
pesquisas.
99
GENNEP, 1978, p. 52. Douglas explica o sentido dos ritos de purificação. Veja comentários acima, capítulo
três, item 3.3.7, número 1. Cf. DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1976. p. 12-
13.
100
GENNEP, 1978, p. 52.
101
GENNEP, 1978, p. 52.
102
GENNEP, 1978, p. 52.
103
GENNEP, 1978, p. 53.
32
O parto acontece em casa, na presença de qualquer pessoa e sem cerimônias
especiais”
104
. Logo após o nascimento um período de margem. Mãe e criança passam a
viver numa cabana especial, sendo que a partida da casa, da cabana e o retorno à casa são
igualmente acompanhados de ritos, cujas etapas são análogas às da gravidez. O marido
acompanha a mulher e a criança e também é submetido a ritos na cabana. “O retorno à vida
comum é feito bebendo o leite sagrado.
105
Ao estudar esses ritos, Van Gennep observa que
eles enfatizam a separação e, sobretudo, o período de margem que constitui a gravidez.
Assim diz o autor:
Lendo a detalhada descrição destes ritos feita por Rivers, vê-se que o objetivo deles
consiste em separar a mulher de seu ambiente, mantê-la em uma margem mais ou
menos longa por três vezes e só reinteg-la no ambiente comum por etapas,
vivendo, por exemplo, em duas casas intermediárias entre a cabana que é tabu e o
domicílio habitual.
106
O parto não conclui o tempo de margem. Conforme o costume de diversas
populações, este tempo pode ser mais ou menos longo para a mãe, inserindo-se no primeiro
período de margem da infância
107
.
Analisando documentos de tribos indígenas norte-americanas, Van Gennep destaca
algumas de suas peculiaridades. Entre os Oraibi do Arizona, “o parto é um ‘momento
sagrado’ para a mulher”
108
. A mãe dá assistência à jovem filha sem, contudo, poder assistir ao
parto, assim como também o marido, os filhos ou qualquer outra pessoa (uma atitude
diferente do povo indiano Toda, por exemplo). Assim que a criança nasce, a mãe se aproxima,
“tira a placenta e vai enterrá-la, juntamente com o tapete, a areia, etc., ensangüentados, em um
lugar sagrado, ‘a colina das placentas’
109
. A jovem mãe, por vinte dias, observa tabus
alimentares, tem restrições de comportamento e segue rituais de lavagem do corpo e da
cabeça, sendo estes também observados, no vigésimo dia, pelo filho, mãe, marido e
aparentados
110
. A essa cerinia segue-se o rito de dar nome à criança, que é realizado pelas
mulheres do clã e de ser apresentada ao sol. A cerimônia é concluída com um banquete, com
toda a família e os “habitantes do pueblo, os quais são convidados por um arauto especial
111
.
A partir desse momento tudo e todos voltam à rotina normal. A seqüência, portanto, é a
104
GENNEP, 1978, p. 53.
105
GENNEP, 1978, p. 53.
106
GENNEP, 1978, p. 53.
107
GENNEP, 1978, p. 54.
108
GENNEP, 1978, p. 54.
109
GENNEP, 1978, p. 54.
110
GENNEP, 1978, p. 54.
111
GENNEP, 1978, p. 54.
33
seguinte: “1
o
) separação; 2
o
) período de margem com progressiva supressão de barreiras; 3
o
)
reintegração na vida ordinária
112
.
Van Gennep descreve cerimônias de outras tribos, observando algumas variações nos
rituais. Umas dão ênfase à separação da mulher gvida de outras mulheres (sociedade
sexual). Na maioria desses casos, o autor diz tratar-se de uma mistura de ritos de passagem
com ritos de proteção. Entre alguns povos, é possível notar com mais nitidez os ritos de
separação, margem e reintegração, enquanto em outros se consegue discernir apenas uma
parte deles.
O autor considera importante assinalar que, em seus detalhes, os ritos de gravidez e
parto apresentam analogias às demais cerimônias de passagens (iniciação, noivado,
casamento, etc.), as quais são mencionadas mais adiante. Os diversos procedimentos rituais,
como os que acontecem nas fases intermediárias – de margem (por exemplo, quando a mulher
encontra-se na cabana especial, seja grávida ou com a criança recém-nascida), “têm por
finalidade não apenas neutralizar a impureza ou atrair sobre si os malefícios, mas também
servir realmente de ponte, de cadeia, de vínculo, em suma, facilitar as mudanças de estado
sem abalos sociais violentos nem paradas bruscas da vida individual e coletiva
113
. Os ritos de
gravidez e parto m enorme alcance individual e social, diz Van Gennep e isto se expressa de
diferentes maneiras nos diversos povos. Para alguns, a moça chega a casar após o
nascimento de um filho, provando, desta maneira sua competência reprodutora. Entre os
Toda, o casamento se torna válido com o nascimento de uma criança; “os ritos de gravidez
e do parto constituem os últimos atos das cerimônias do casamento (...), e o período de
margem estende-se para a mulher desde o começo do noivado até o nascimento do primeiro
filho!
114
. A situação social e moral da mulher aumentam quando ela se torna mãe. Não se
trata apenas de uma mudança na vida individual, mas também de uma condição social. Nos
termos de Van Gennep, a mulher mãe, e o homem pai, passam para um compartimento
especial da casa da vida social, “e que representa de certo modo o núcleo permanente da
sociedade”
115
, e os ritos de passagem os conduzem em suas saídas e entradas.
112
GENNEP, 1978, p. 54.
113
GENNEP, 1978, p. 57.
114
GENNEP, 1978, p. 57.
115
GENNEP, 1978, p. 58.
34
1.3.4 O nascimento e a infância
116
Os primeiros ritos de nascimento estão, de certa forma, conectados aos de gravidez e
de parto. Van Gennep lembra, por exemplo, que nas “populações em que a mulher grávida é
considerada impura esta impureza transmite-se ao filho, o qual, por conseguinte, é submetido
a um certo número de tabus”
117
. Neste sentido, o primeiro período de margem do filho
coincide com o último período de margem da e até o seu retorno social do parto. Esse
período (impurezas) pode variar, conforme as populações, de 10 a 40 dias. O principal rito
consiste em banhos da mãe e da criança.
Entre os Rehamma, do Marrocos, observou o pesquisador que, em relação à criança,
toma-se atitude análoga àquela que se tem em relação ao estrangeiro. Assim, “a criança deve
primeiramente ser separada do seu meio anterior”
118
, isto é, de sua mãe (o que para Van
Gennep pode ser a prática de confiar a criança a uma outra mulher, nos primeiros dias de
nascimento). O principal rito de separação exprime-se pela cerinia do cordão umbilical
(cujo procedimento difere em caso de menino e de menina) e inclui os ritos relativos ao
pedaço do cordão (que estando seco cai por si). Em diversos casos, o corte do cordão dá
motivos a refeições em comuns, festas de família, sendo neste caso claramente um rito de
finalidade não somente individual, mas coletiva”
119
. É interessante observar o destino dado ao
cordão umbilical. o costume de a própria criança conservar o cordão, assim como também
os cabelos e as unhas cortados. Este cuidado relaciona-se à proteção de sua personalidade para
que ninguém se apodere dela. Também é possível que algum parente (chamado guardião do
cordão) se encarregue do cordão, tendo a mesma finalidade de proteger a personalidade da
criança. Há casos em que o cordão é enterrado longe do alcance de todos. Também a
placenta, assim como o prepúcio circuncidado, possui tratamento idêntico. Segundo Van
Gennep, foi constatado que rios desses ritos, além de outras finalidades, têm caráter de
separação (“com relação ao mundo assexuado ou ao mundo anterior à sociedade humana”
120
)
e de agregação (“à sociedade sexual e à família, restrita ou ampla, ao clã ou à tribo”
121
).
Alguns ritos, interpretados como de purificação, tais como primeiro banho, lavagem da
cabeça, ato de friccionar a criança, se incluem na categoria dos ritos de separação da mãe,
assinala Van Gennep. Além desses, há outros que indicam separação, inclusive, da terra. Isto
116
GENNEP, 1978, p. 59-69.
117
GENNEP, 1978, p. 59.
118
GENNEP, 1978, p. 59.
119
GENNEP, 1978, p. 60.
120
GENNEP, 1978, p. 60.
121
GENNEP, 1978, p. 60.
35
se explica pela iia de que a terra “é a moradia das crianças antes do nascimento, não
simbolicamente, enquanto Mãe, mas no sentido material, da mesma maneira como é a
moradia dos mortos”
122
. A partir disso se explicam certas semelhanças existentes entre alguns
ritos de nascimento e de funerais, observa Van Gennep.
Van Gennep considera “ritos de passagem todos os que têm por objetivo fazer a
criança entrar no período liminar, que dura, segundo os povos, de 20 a 40 dias e mais”
123
. No
caso dos Aino
124
, logo após os primeiros dias de nascimento, o pai, a mãe e a criança vivem
juntos o período liminar. Sobre esse fato se explica o seguinte:
é a mãe que à criança o corpo, enquanto o pai -lhe a alma, mas isto se faz
progressivamente, para o corpo durante a gravidez, para a alma durante os seis dias
consecutivos ao nascimento. Nesse período o pai vai viver na cabana de um amigo e
depois, durante os seis dias consecutivos à sua volta, na própria cabana. no
décimo segundo dia a criança é considerada um indivíduo completo e autônomo.
125
Segundo Van Gennep, é possível que na base de alguns ritos de reclusão e de
proteção da criança recém-nascida, os quais representam o período liminar, “se encontre a
idéia de que a criança precisa de vários dias de vida real para se individualizar”
126
.
Eis alguns exemplos de ritos que indicam separação e agregação. Os ritos de
separação têm a característica do corte: primeiro corte de cabelo, ato de raspar a cabeça, vestir
pela primeira vez, andar pela primeira vez. Os ritos de agregação têm a finalidade de
“introduzir a criança no mundo(expressão dos Wayao, África Oriental) ou de “lançar no
mundo” - como um barco na água (expressão dos Dajake de Bakarang). Exemplos típicos são:
amamentação ritual, nascimento do primeiro dente, batismo, etc. Dentre os ritos de separação
e agregação na Índia dica, Van Gennep cita, entre outros, a apresentação da criança, pelo
pai, à lua (lua crescente), um rito que o autor considera ser uma agregação cósmica
127
. É
interessante observar que entre esse povo, as famílias são reconhecidas pelo modo particular
de se pentear e isto é imposto à criança, sendo ao mesmo tempo um rito de agregação à
família. Na Índia dica, a infância é concluída com o rito de entrada na escola (8, 10 ou 12
122
GENNEP, 1978, p. 61.
123
GENNEP, 1978, p. 61.
124
Povo que vive no Norte do Japão (Hokkaido) e Sul da ilha de Sakhalina (Rússia).” Cf. HOUAISS, Antônio
et al. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. p. 129.
125
GENNEP, 1978, p. 61.
126
GENNEP, 1978, p. 62.
127
GENNEP, 1978, p. 62.
36
anos), iniciando, assim, a adolescência
128
. Essa idade varia, sendo que, para outros, o décimo
sexto ano marca o começo da “idade da maturidade”
129
.
A saída da infância assemelha-se à cerimônia de passagem pela porta. Van Gennep é
da teoria de que a porta representa o “limite entre dois períodos da existência, de tal sorte que
passar por debaixo dela significa sair do mundo da infância para entrar no mundo da
adolescência”
130
. A passagem pela porta, aliás, está presente em diversas cerimônias desde o
nascimento até à morte. Uma regra absoluta entre numerosas tribos é o aparecimento da
segunda dentição como marca de uma mudança completa da existência para a criança,
momento em que ela é retirada da sociedade feminina e infantil e é agregada a um novo grupo
(de adolescentes, mediante cerimônias de iniciação, e de adulto, mediante cerimônia de
casamento, por exemplo).
Conforme Van Gennep, o rito de nominação (“dar nome”) representa um momento
especial de agregação à sociedade como um todo. Em primeiro lugar, pela nominação, a
criança é individualizada e, em segundo lugar, ela é agregada ao meio social. Esse momento é
acompanhado de uma festa pública, com a participação de toda a aldeia. Há variações nos
detalhes de nomeação. De acordo com a categoria de idade, muda-se o nome da criança na
infância. Ela “recebe freqüentemente primeiro uma denominação vaga, depois um nome
pessoal conhecido, depois um nome pessoal secreto, depois um nome de família, de clã, de
sociedade secreta, etc.”
131
.
Para resumir, Van Gennep apresenta um esquema que compreende os seguintes ritos
que marcam o nascimento e a infância: corte do cordão, aspersões e banhos, queda do resto
do cordão, denominação, primeiro corte de cabelo, primeira refeição em família, primeira
dentição, primeira marcha, primeira saída, circuncio, primeiro vestuário sexual, etc.”
132
.
1.3.5 A iniciação
133
Van Gennep insiste em distinguir a puberdade fisiológica da puberdade social. Elas
o coisas essencialmente diferentes, diz ele, embora muitos autores as confundam. É difícil
datar a puberdade física. Existem variações étnicas e individuais de idade. Em algumas
128
GENNEP, 1978, p. 62.
129
GENNEP, 1978, p. 66.
130
GENNEP, 1978, p. 66.
131
GENNEP, 1978, p. 68.
132
GENNEP, 1978, p. 68.
133
GENNEP, 1978, p. 70-103.
37
regiões a puberdade social é bem anterior à puberdade física. Por isso, Van Gennep prefere
não dar aos ritos de iniciação o nome de ritos de puberdade. Contudo, o autor não nega que
existam ritos de puberdade e que, inclusive, em alguns casos raros, estes coincidam com os
ritos de iniciação. Em todo caso, o processo de mudança na vida social é diferente e as
alterações de ordem fisiológicas não marcam as passagens da infância à adolescência.
casos, por exemplo, em que as moças são dadas como noivas quando crianças, mas estarão
prontas para casar quando terminarem as cerimônias de puberdade, isto é, no décimo sétimo
ou no décimo oitavo ano ou ainda no vigésimo terceiro.
A circuncisão é um claro exemplo da diferenciação entre puberdades física e social.
Trata-se de um rito de iniciação que assinala, em alguns casos, a entrada na infância, e em
outros, a entrada na adolescência. Em numerosos povos, mesmo em regiões com a mesma
população étnica, a circuncisão é praticada em crianças independentemente do
desenvolvimento físico sexual. A circuncisão tem, portanto, clara significação social.
Conforme Van Gennep, ela está na categoria de práticas que “pela ablação, seccionamento,
mutilação de qualquer parte do corpo modificam de maneira vivel para todos a
personalidade de um indivíduo”
134
. A circuncisão, por exemplo, foi associada, por alguns
autores, ao primeiro corte de cabelo, à cerimônia da primeira dentição e de outras mutilações
corporais.
Com estas práticas retira-se o indivíduo mutilado da humanidade comum mediante
um rito de separação (idéia de secção, de perfuração, etc.) que automaticamente o
agrega a um grupo determinado, e de tal maneira que a operação, deixando traços
indeléveis, torna a agregação definitiva.
135
Van Gennep lembra que a circuncisão judaica é sinal de uma aliança, uma inclusão
numa comunidade de fiéis. Essa prática, portanto, não deve ser relacionada à procriação
136
. As
mutilações, conforme Van Gennep, são um meio de diferenciação definitiva. Existem também
as diferenciações temporárias como, por exemplo, o uso de um vestuário especial, de uma
máscara, de pinturas no corpo, etc. Estas desempenham “considerável papel nos ritos de
passagem porque se repetem a cada mudança na vida do indivíduo
137
.
Ao estudar as cerimônias de iniciação, Van Gennep compara os ritos do ponto de
vista de suas seqüências. Diversos ritos são analisados: os que dão acesso às classes de idade e
às sociedades secretas, e tamm as cerimônias que acompanham a ordenação do padre, do
134
GENNEP, 1978, p. 74.
135
GENNEP, 1978, p. 75.
136
GENNEP, 1978, p. 75.
137
GENNEP, 1978, p. 76.
38
mago e das prostitutas sagradas. Não se entrará nos detalhes de cada uma dessas cerimônias,
apenas se assinalará as questões que ajudam a visualizar mais claramente o esquema
seqüencial dos ritos.
Nas cerinias de iniciação ao grupo totêmico, dentre as diversas tribos australianas,
Van Gennep observa que “o primeiro ato consiste em separar o indivíduo do meio anterior,
mundo das mulheres e crianças”
138
. Assim como acontece à mulher grávida, o noviço fica
numa cabana especial, em reclusão, no mato. Diversos tabus são observados, sobretudo,
alimentares. uma separação brusca do noviço de sua mãe. Ele, a partir de então,
permanece ligado aos homens. Brinquedos e esportes de criança são abandonados, assim
como todos os antigos vínculos, ligados à sociedade feminina e infantil. O noviço é instruído
e conscientizado dos seus deveres como membro de uma nova sociedade. Em algumas tribos,
ele é considerado morto durante o tempo do noviciado, quando acontece um enfraquecimento
corporal e mental (o que significa perder a memória do tempo infantil). Em seguida (o que
para alguns é considerado o momento do ressuscitado) se dá o ensino do código de
costumes, a educação progressiva pela execução diante do noviço das cerinias totêmicas, a
recitação dos mitos, etc.”
139
. Por fim, acontece uma cerimônia religiosa da qual faz parte uma
mutilação especial que torna o noviço “idêntico para sempre aos membros adultos do clã”
140
.
A separação da mãe, das mulheres e do mundo infantil assinala o abandono do mundo
anterior. Entre os Kwakiutle esta separação é personificada por um ‘espíritoque se trata de
exorcizar, ponto de vista idêntico ao dos cristãos que exorcizam satanás por ocasião do
batismo”
141
.
Nas descrições das cerinias de iniciação é mencionada, em algumas tribos, a
presença de padrinhos e madrinhas. Eles e elas, juntamente com o pai, acompanham o noviço
em diversos momentos das cerimônias (na apresentação do filho ao chefe-padre-mago, em
danças e procises e em refeições comuns). Independentemente das variações e detalhes das
cerimônias, Van Gennep diz que “chega sempre a distinguir uma seqüência conforme o
esquema geral”
142
. Ele faz uma analogia destes ritos com os do batismo cristão, como ritos de
agregação à comunidade.
138
GENNEP, 1978, p. 76.
139
GENNEP, 1978, p. 77.
140
GENNEP, 1978, p. 77.
141
GENNEP, 1978, p. 77.
142
GENNEP, 1978, p. 77.
39
Nas cerimônias de iniciação às sociedades secretas
143
em populações do Congo,
golfo da Guiné, Van Gennep encontra o que ele chama de dupla encenação: ritos de
separação do meio comum, ritos de agregação ao meio sagrado; margem; ritos de separação
do meio sagrado local; ritos de reintegração no meio comum”
144
. Dentre as práticas desses
ritos ressaltam-se: reclusão do novo na floresta (separação), lustração, flagelação,
intoxicação anestesia, morte (agregação ao local sagrado), mutilações corporais
circuncisão, pinturas corporais, nudez, instrução, língua especial, tabus alimentares (margem).
A iniciação às classes de idade é comentada a partir da observação das cerinias de
idade entre os Masai. A puberdade se em torno dos 12 anos. A circuncisão nos rapazes
acontece entre 12 e 16 anos, à qual segue uma série de nove atos para os rapazes e de quatro a
seis para as moças. Ao final, realiza-se o casamento. Observe-se que a operação (circuncisão,
perfuração), tanto nos rapazes quanto nas moças, tem por finalidade o casamento, sendo que
este representa uma instituição social e não a união dos sexos, a qual acontece em fase
anterior. A próxima classe de idade para as moças é a das mulheres casadas e a última é
marcada pelos cabelos grisalhos e a menopausa. Um resumo das classes de idade é assim
descrita por Van Gennep:
Os rapazes foram primeiramente rapazes (...), depois candidatos. Durante dois anos,
como guerreiros, são noviços ou aprendizes (...), depois do que tornam-se guerreiros
propriamente dito (..). Assim permanecem até os 28 ou 30 anos, em seguida casam-
se e tornam-se adultos (...). Deste modo, as cerimônias de casamento neste caso,
como em muitos outros povos, têm o caráter de rito de passagem de uma classe de
idade a outra.
145
Van Gennep também analisa os ritos de entrada no cristianismo, no islã e nos
mistérios antigos. Na iniciação aos mistérios de Eleusis, por exemplo, Van Gennep vê, em
seus traços gerais, a mesma seqüência das que aparecem nos ritos das cerimônias de mesma
categoria. Para que um novo indivíduo se forme ele é submetido a rituais que o levam a
experimentar a morte (para o mundo profano) e o renascimento (no mundo sagrado). Van
Gennep lembra que essa mesma idéia encontra-se nos ritos de iniciação ao culto de Atis, de
sociedades com finalidade agria: as divindades da vegetação, Atis e Adônis, morrem no
outono e renascem na primavera
146
. E Van Gennep conclui essa observação, dizendo: “Assim
é que a morte, a margem e a ressurreição são também um elemento das cerinias da
143
As sociedades secretas, diferentemente dos clãs totêmicos, têm objetivos políticos e econômicos. Nem todos
são admitidos nesses grupos, conforme GENNEP, 1978, p. 80.
144
GENNEP, 1978, p. 81.
145
GENNEP, 1978, p. 84-85.
146
GENNEP, 1978, p. 88.
40
gravidez, do parto, da iniciação a sociedades sem finalidade agrária, do noivado, do
casamento e dos funerais.”
147
Com base no Ritual Romano e Ritual Galicano, de época posterior ao cristianismo
dos primeiros séculos, (isto é, dos começos do século XI), Van Gennep descreve a seqüência
do batismo cristão, destacando a primeira fase, a dos catecúmenos, cuja entrada consistia de:
1
o
. exsuflação, com uma fórmula de exorcismo (classificado por Van Gennep como um rito
de separação); 2
o
. o sinal da cruz na testa (rito que separa e agrega, “equivalendo à marcação
[...] dos mistérios gregos e do cristianismo primitivo”
148
); 3
o
. a administração do sal
exorcizado (rito de agregação, de acordo com a prece que o acompanha). Concluída a etapa de
entrada, segue o período de margem. O catecúmeno participa da assembléia religiosa, mas se
retira antes do começo dos verdadeiros mistérios (missa)”.
149
Periodicamente, o catecúmeno
era submetido a exorcismos (com a finalidade de separá-lo do mundo anterior); passava por
uma instrução, cujo período era acompanhado de diversos ritos. O fim do período de margem
é assinalado pela recitação do Credo. Inicia-se o período de agregação, propriamente dito,
com o rito de bênção da água, seguido do batismo e a admissão à comunhão. Por fim, aos
iniciados era dada a bebida consagrada, uma mistura de leite, mel e água, a bebida dos recém-
nascidos. Van Gennep conclui: “O renascimento era marcado finalmente por uma procissão
dos batizados, que levavam círios acesos, a Grande Luz, que lembrava a dos mistérios gregos
e em todo caso indicava que os ‘mortostinham nascido para a luz do ‘verdadeiro dia’.
150
A admissão ao isé assinalada pela circuncisão e recitação da fatiha
151
e a mesma
seqüência das passagens de uma religião para outra é encontrada, diz Van Gennep. Dá-se
forte ênfase ao rito de separação do mundo profano, mais do que a dos catecúmenos do rito
cristão. A iniciação inclui: instrução, exames, exercícios ascéticos, imposição de os, feita
pelo bispo, confissão pública do penitente, separão em um convento e reagregação à
comunidade dos fiéis com admoestação e oração de reconcilião
152
.
Para finalizar, serão citados brevemente outros tipos de grupos que passam por um
processo de iniciação, os quais são mencionados por Van Gennep. As cerinias de
consagração das virgens e prostitutas sagradas reforçam a separação em relação ao mundo
profano e se assemelham às cerimônias de núpcias ordinárias, diferindo-se em pequenos
147
GENNEP, 1978, p. 88.
148
GENNEP, 1978, p. 89.
149
GENNEP, 1978, p. 89.
150
GENNEP, 1978, p. 90.
151
GENNEP, 1978, p. 90.
152
GENNEP, 1978, p. 90-91.
41
detalhes. A pertença a determinada classe ou casta é assinalada por cerinias que se
distinguem das que foram mencionadas até aqui, porque nelas o elemento mágico-religioso é
menor, enquanto o elemento político-jurídico e social geral é mais importante. A entrada nas
profissões, que conforme Van Gennep, em sua época supunha “cerimônias especiais, que
compreendiam alguns ritos pelo menos de natureza religiosa”
153
, é marcada, no término do
aprendizado, com um rito de agregação, por exemplo, uma refeição comum. Nas cerimônias
de noviciado e de ordenação de padres católicos e ortodoxos, Van Gennep reconhece a mesma
seqüência de ritos de separação, margem e agregação que o sistematizados segundo
diretrizes próprias. O rito de tonsura indica separação e agregação. Tendo sido ordenado, o ato
da primeira missa assume a forma de um casamento. Nesta ocaso, em certas comunas do
Tirol, por exemplo, havia uma verdadeira dramatização de pcias. Os magos, que formam
uma espécie de classe ou casta, “não são submetidos a ritos de união a determinado grupo
humano. Mas têm de agregar-se ao mundo sagrado, o que só se pode fazer pondo em ão o
esquema dos ritos de passagem”
154
. O que é dito em relação aos sacerdotes e magos também
se aplica aos chefes e reis, sendo que as cerinias de entronização ou de convocação têm
semelhanças essenciais às cerimônias de ordenação. Correspondentemente aos ritos de
iniciação “encontram-se os ritos de banimento, expulsão e excomunhão, que são por essência
ritos de separação e de dessacralização
155
. Excomunhão e consagração seguem o mesmo
princípio, a saber, “pôr de lado um objeto ou um ser determinado
156
.
1.3.6 O noivado e o casamento
157
A idade madura, caracterizada pela fundação de uma família, significa uma mudança
de categoria social extremamente importante. Pelo menos um dos njuges muda de família,
clã, aldeia ou tribo ou os dois mudam-se para uma casa nova. “Esta mudança de domicílio é
marcada nas cerimônias de tal maneira que os ritos de separação referem-se sempre
essencialmente a esta passagem material.
158
O noivado, em muitos povos, se torna uma
secção especial e até autônoma porque afeta os grupos (famílias envolvidas) e não apenas dois
indivíduos. Por esse fato, esse período de margem tem uma considerável importância. O
noivado compreende “ritos de separação e ritos de margem e termina por ritos de agregação
153
GENNEP, 1978, p. 95.
154
GENNEP, 1978, p. 98.
155
GENNEP, 1978, p. 102.
156
GENNEP, 1978, p. 102.
157
GENNEP, 1978, p. 104-125.
158
GENNEP, 1978, p. 104.
42
preliminar ao novo meio ou de separação da margem considerada como meio autônomo”
159
.
Os ritos de casamento, que seguem o noivado, são ritos de agregação definitiva ao novo meio.
No ato de união de duas pessoas, uma coletividade envolvida e interessada. Essas
coletividades são: as sociedades sexuais (rapazes e damas de honra); os grupos dos
ascendentes (família paterna, materna e aparentados); as sociedades especiais (clã totêmico,
classes especiais, comunidade de fiéis, corporação profissional, etc.); o grupo local (aldeia,
povoado, bairro, cidade, etc.). Van Gennep assinala o aspecto econômico do casamento,
fortemente acentuado pelos ritos de dote e de presentes. O autor explica:
Se a família, a aldeia, o clã m de perder uma força viva de produção, moça ou
rapaz, que ao menos haja alguma compensação! Das distribuições de víveres, de
vestidos, de jóias, e sobretudo os numerosos ritos nos quais se compra” alguma
coisa, sobretudo a livre passagem para a nova residência. Estas “compras”
coincidem sempre com ritos de separação, a tal ponto que é possível considerá-las
como sendo, ao menos parcialmente, ritos de separação propriamente ditos.
160
O elemento econômico é tão importante que, em alguns casos, o rito do casamento
é completamente concluído, quando tudo o que envolve a questão econômica é inteiramente
resolvido. Neste caso, o período de margem se estende, mas a relação sexual entre os
cônjuges não é afetada. O noivado, diz Van Gennep, “compreende a união sexual, mas o
casamento enquanto ato social se conclui depois da liquidação das estipulações
econômicas”
161
. Van Gennep explica que o casamento implica a passagem “da sociedade
infantil ou adolescente para a sociedade madura, de certo clã para outro, de uma família para
outra, e muitas vezes de uma aldeia para outra”
162
. A separação de um grupo e a entrada
noutro grupo, implica enfraquecimento de um lado e reforço de outro. A resistência oposta
pelo grupo afetado é expressa por meio de ritos, chamados de rapto. Este consiste de diversos
atos em que se sobressai o elemento da resistência (às vezes, em atitudes por parte da noiva,
às vezes, por parte dos seus irmãos, amigas ou outros familiares).
Além dos ritos de rapto, Van Gennep cita diversos ritos de separação, tais como,
mudanças de vestuário, quebrar algo relacionado à infância, desfazer o cabelo, cortar, raspar
os cabelos, a barba, dedicar os brinquedos, jóias e roupa de criança a uma divindade ou
distribuí-los entre os amigos de inncia, mutilações, tabus alimentares temporários, entre
outros
163
.
159
GENNEP, 1978, p. 104-105.
160
GENNEP, 1978, p. 106.
161
GENNEP, 1978, p. 107.
162
GENNEP, 1978, p. 109-110.
163
GENNEP, 1978, p. 114.
43
Dentre os ritos de agregação foi percebido por diversos observadores que,
habitualmente, o rito de maior alcance é a refeição comum. ritos de agregação de alcance
individual, que unem uma pessoa à outra, tais como: donativo ou troca de cintos, pulseira,
anéis, roupas usadas, amarrar-se uma a outra, comer juntas, oferecer à outra algo para beber
ou comer, darem-se massagens, untarem-se, entrar na nova casa, etc. também ritos de
agregação com significação coletiva: troca de presentes, troca de irmãs, danças rituais,
banquetes de noivado e de núpcias, vestir roupas de mulher e de homens adultos, estar grávida
ou dar à luz. Dos ritos de agregação, Van Gennep chama atenção para aqueles relativos à
soleira e à porta, os quais devem ser tomados em sentido estritamente material e os que
envolvem corda, anel, pulseira, coroa, etc.
164
. Todos esses atos consistem em uma ação real,
coercitiva. A porta assinala separão do antigo meio e agregão ao novo. Diversas
cerimônias acontecem diante da porta e na passagem por ela.
O período de margem, observa Van Gennep, pode ter significação sexual ou não
165
.
Há exemplos em que o noivo coabita com a noiva e os filhos concebidos são considerados
legítimos. Também há casos em que deve haver absoluta separação entre os jovens, caso
contrário, se nascem filhos, esses são recusados e desprezados pela família e sociedade. É
interessante observar que em algumas tribos o período de margem inclui aprendizado. O
jovem é instruído pelo pai e sogro e a jovem pela mãe ou sogra e o final do período é
concluído com uma festa
166
.
Van Gennep também faz referência às cerimônias de viuvez e divórcio. Tendo em
vista a literatura etnográfica, o autor conclui que os observadores o deram a devida atenção
a esse assunto, pois eles reduziram a separação dos corpos e o divórcio a uma questão jurídica
e econômica. Na opinião do autor, o é normal “que um vínculo, individual ou coletivo, que
foi estabelecido com tantos cuidados e complicações (...) possa ser rompido um belo dia por
um gesto único
167
. Os judeus, por exemplo, elaboraram um complicado cerimonial de
divórcio, com a intenção de não facilitá-lo. A carta de divórcio é entregue à mulher de
maneira ritualizada, tendo sido escrita com um cuidado tão especial como se escreve um texto
sagrado. “O rabino joga esta carta para o ar e uma das testemunhas da mulher deve apanhá-la
antes de cair no chão, do contrário é preciso recomeçar tudo.
168
Alguns ritos de separação
consistem em: rasgar o véu, cortar a corda do casamento ou outro objeto, rapto da mulher pelo
164
GENNEP, 1978, p. 116.
165
GENNEP, 1978, p. 117.
166
GENNEP, 1978, p. 118.
167
GENNEP, 1978, p. 123.
168
GENNEP, 1978, p. 123.
44
irmão. Em geral, a separação de cônjuges o significa rompimento dos vínculos criados entre
as famílias. Os vínculos coletivos subsistem, sobretudo, nos casos em que há filhos; povos
que não permitem, então, a separação. Nos casos de viuvez, as cerimônias diferem das de
luto, observa Van Gennep. No rito Hupa, a viúva passa entre as pernas do marido falecido,
antes que este seja retirado de casa, representando, assim, a liberdade dela. As cerimônias de
novo casamento são mais simples, tanto para viúvos quanto para divorciados. Van Gennep diz
que parece não haver ritos de menopausa ou embranquecimento dos cabelos, mas estes são
marcas importantes de entrada em uma nova fase da vida entre os “semicivilizados”.
1.3.7 Os funerais
169
A primeira observação importante que Van Gennep faz é a constatação de que os
ritos de margem têm lugar proeminente nas cerinias de funerais. A primeira impressão é de
que os ritos de separação têm maior expressão, mas estes o mais simples e pouco
numerosos, enquanto isso, os ritos de margem são mais complexos e de maior duração,
recebendo, às vezes, uma espécie de autonomia. Neste sentido, Van Gennep expressa: “de
todos os ritos funerários aqueles que agregam o morto ao mundo dos mortos são os mais
elaborados e a eles é que se atribui a maior importância”
170
. A partir do seu estudo, o luto
aparece para o autor como um fenômeno mais complexo. Trata-se de um estado de margem
para os sobreviventes, “no qual entram mediante ritos de separação e do qual saem por ritos
de reintegração na sociedade geral (ritos de suspensão do luto)”
171
. Às vezes, o período dos
ritos de margem relativos ao sobrevivente corresponde ao período dos ritos de margem
relativos à pessoa falecida. O tempo de luto está relacionado ao grau de parentesco entre o
vivo e o morto. Os ritos de suspensão (vestuário especial, entre outros) são ritos de agregação
à vida social, sendo que durante o luto a vida social das pessoas atingidas fica suspensa
172
.
Entre diversos povos, o período de margem se constitui numa série de ritos que inicia
com a estadia do caixão na casa mortuária ou vesbulo da casa, durante um tempo mais ou
menos longo. Para muitos, esse primeiro tempo é necessário para a decomposição do corpo,
pois acredita-se que a passagem para o país das almas se dá apenas quando o há mais carne
no corpo
173
. Em alguns casos, acelera-se o processo de putrefação e enterra-se apenas o
169
GENNEP, 1978, p. 126-140.
170
GENNEP, 1978, p. 126.
171
GENNEP, 1978, p. 127.
172
GENNEP, 1978, p. 127.
173
GENNEP, 1978, p. 128.
45
esqueleto. Entre os Toda, o rito de sepultamento dura meses (cinco para um homem, quatro
para uma mulher) e inclui: “incineração, conservação das relíquias e ritos de margem muito
complicados. Em seguida, incineração das relíquias e enterramento das cinzas, com plantação
de um círculo de pedras em pé”
174
. Durante esse tempo, o morto faz uma peregrinação ao país
dos mortos e volta à terra. Novos rituais de despedida são feitos, incluindo uma refeição.
Considera-se que o morto percorrerá um longo caminho até chegar ao lugar definitivo. Para
tanto ritos (preliminares, de margem e agregação) que o acompanham em todo o trajeto.
Vários objetos materiais “(roupas, alimentos, armas, utensílios) ou gico-religiosos
(amuletos, signos e senhas, etc.)”
175
são enviados com a pessoa falecida, para auxiliá-la na
viagem ao mundo dos mortos. A viagem podia durar semanas ou até meses. Um dos ritos que
marcam essa passagem é o do “óbulo a Carontes”. Esse consiste em depositar uma moeda na
boca da pessoa falecida para que ela possa pagar as despesas de viagem no mundo pós-
mortem
176
. Muitas são as idéias, entre os povos, sobre o outro mundo” e diversos são os ritos
mortuários, de margem, que representam esses pensamentos. Observa-se que durante o
período de margem estabelece-se um vínculo entre os vivos e a pessoa falecida. Tal vínculo se
dá, por exemplo, através de refeições (alimenta-se a pessoa falecida, fazendo um buraco na
terra, no ataúde, entre outros) e visitas. “Mas chega sempre um momento em que este vínculo
se rompe, depois de se ter relaxado pouco a pouco.
177
A última visita ou a última
comemoração representam a separação entre vivos e mortos, assim como a reagregação dos
vivos à sociedade.
Em resumo, nos rituais fúnebres, incluem-se como ritos de separação, o transporte do
cadáver para fora e, em geral, os ritos de purificão (atos de queima de objetos relacionados
à pessoa falecida, assim como lavagens e unções) como também os procedimentos materiais
de separação (caixão, cemitério, grade, árvores, pedras amontoadas ritualmente e o
fechamento ritual do caio e da tumba). Os ritos de agregação consistem, sobretudo, em
refeições após o funeral e festas comemorativas
178
.
174
GENNEP, 1978, p. 128.
175
GENNEP, 1978, p. 131.
176
GENNEP, 1978, p. 132.
177
GENNEP, 1978, p. 138.
178
GENNEP, 1978, p. 138-139.
46
1.3.8 Breve explicação de Van Gennep referente a alguns ritos de passagem por ele
considerados isoladamente
179
Van Gennep explica o sentido de alguns ritos de passagem que ele considera
isoladamente, os quais ele denomina “outros grupos de ritos de passagem”. São ritos que
aparecem nas diversas passagens e são classificados como ritos específicos de separação, de
margem ou de agregação. O primeiro desses ritos diz respeito aos cabelos e a forma de
tratamento dado a eles. O corte de cabelos indica separação do mundo anterior e a dedicação
dos cabelos a uma divindade ou a um demônio, por exemplo, significa ligar-se ao mundo
sagrado. No cabelo reside uma parte da personalidade do indivíduo (assim como no prepúcio
ou nas unhas cortadas).
O rito de cortar os cabelos ou uma parte da cabeleira (tonsura) é utilizado em muitas
circunstâncias diferentes. Raspa-se a cabeça da criança para indicar que entra em
outro estágio, à vida. Raspa-se a cabeça da moça no momento de casar-se para fazê-
la mudar de classe de idade. Assim também as vvas cortam os cabelos para
quebrar o vínculo criado pelo casamento, sendo o depósito da cabeleira sobre o
túmulo um refoo do rito. Às vezes, cortam-se os cabelos do morto, sempre com a
mesma idéia.
180
Conforme Van Gennep, o rito de separação inclui os cabelos porque estes são, pela
forma, cor, comprimento e modo de arranjo, um caráter distintivo facilmente reconhecível,
individual ou coletivo”
181
.
O véu também é classificado como parte do rito de separação. O seu uso assinala
separação do profano. Na adoração, no sacrifício, nos ritos do casamento, etc., o ‘uso do véu’
é temporário. Mas em outros casos, na separação ou na agregação ou em ambas, é
definitivo.
182
É o caso, por exemplo, de certos povos, em que as mulheres usam um véu
durante todo o período do luto.
Uma boa parte das cerimônias de passagem recorre ao uso de línguas especiais,
sobretudo, no período de margem, diz o autor. A língua especial pode incluir um vocabulário
inteiramente desconhecido, não usual na sociedade geral, e às vezes consiste apenas na
proibão de empregar certas palavras da língua comum”
183
. O uso de uma língua especial
deve ser visto como um procedimento de diferenciação, diz Van Gennep, e pode ser igualado
a outros fenômenos como mudança de vestuário, mutilações, alimentação especial, etc.
179
GENNEP, 1978, p. 141-156.
180
GENNEP, 1978, p. 142.
181
GENNEP, 1978, p. 142.
182
GENNEP, 1978, p. 142.
183
GENNEP, 1978, p. 143.
47
Assim como o uso de línguas especiais também a proibição de atos sexuais é parte de
um conjunto de determinadas cerimônias e não deve ser classificada como elemento à parte.
Assim, conforme Van Gennep:
Entre povos para os quais o coito não implica nem impureza nem perigo mágico-
religioso, não se encontra o tabu em questão. Mas nos lugares onde esta opinião
existe é natural que o indivíduo desejoso de entrar no mundo sagrado e, uma vez
entrado nele, esteja disposto a agir, deva colocar-se em estado de pureza”,
conservando-se assim.
184
Se há, em alguns casos, proibição de atos sexuais, em outros, se observa a liberdade
sexual. É o caso de consecutivas cerimônias de iniciação, nas quais, homens e mulheres se
unem em ato sexual. Van Gennep, longe de interpretar esses atos comopromiscuidade
primitiva”, vê neles uma expressão dos ritos de agregação
185
. “Quanto às mutilações dos
órgãos sexuais, e mesmo no caso da perfuração do hímen por um coito preliminar ao
casamento, não têm nenhuma significação sexual propriamente dita”
186
, afirma Van Gennep.
A flagelação ritual possui rias interpretações. Contudo, nosso autor a vê como um
rito importante na iniciação. Em Nova Guiné, esse rito equivale ao de “dar um golpe com
maça na cabeça para agregar o indivíduo ao clã totêmico, à família, ao mundo dos mortos”
187
.
O bater também pode indicar separação, sendo equivalente ao cortar ou quebrar, explica Van
Gennep.
“A ‘primeira vez’ é que tem valor” é um dito popular, lembra Van Gennep, que
expressa uma idéia propriamente universal e é traduzida, em toda parte, por meio de ritos
especiais. Neste sentido, o autor observa que “os ritos de passagem não se apresentam em sua
forma completa, ou não se acentuam mais, ou mesmo o existem a não ser por ocasião da
primeira passagem de uma categoria social ou mesmo de uma situação a outra
188
. Incluem-
se, na categoria da primeira vez, todos os ritos de fundação e de inauguração. A primeira
gravidez e o primeiro parto o ritualmente importantes, assim como, o primeiro noivado e o
primeiro casamento. Da mesma forma, rituais para o primeiro corte de cabelo, o primeiro
dente, a primeira alimentação lida, a primeira marcha, as primeiras regras, etc. Nesta
categoria cabem, da mesma forma, os próprios ritos de iniciação. Por exemplo, nas cerimônias
dos mistérios se vê, pela primeira vez, um objeto sagrado. A celebração da primeira missa do
184
GENNEP, 1978, p. 143.
185
GENNEP, 1978, p. 144.
186
GENNEP, 1978, p. 144.
187
GENNEP, 1978, p. 147.
188
GENNEP, 1978, p. 147.
48
padre e o primeiro sacrifício brâmane são igualmente momentos especiais, expressos por ritos
especiais.
Van Gennep também destaca as passagens das estações como ritos especiais que
assinalam mudanças. As cerimônias de fim de ano, por exemplo, onde ocorrem encontros
familiares, mediante uma refeição, são momentos propícios para ritos de reconciliação. A
virada do ano compreende um período de margem, cujo intervalo varia conforme os povos.
As fases da lua são classificadas dentro da categoria de ritos de passagem, embora tenham
recebido várias interpretações, por outros autores. As cerimônias associadas às fases da lua
contêm sempre a idéia da renovação (morte e renascimento)
189
. Finalizando, nosso autor
mostra, brevemente, que nos ritos de vingança, de apropriação, de trasladação das relíquias
igualmente podem ser encontrados o esquema dos ritos de passagem.
1.3.9 Observações finais
Na conclusão do livro “os ritos de passagem”, Van Gennep, acentua, mais uma vez,
o postulado de que a vida do indivíduo é marcada por mudanças, de uma situação a outra, de
um status ao outro. E para mudar de situação, status ou lugar, o indivíduo é obrigado a se
submeter a determinadas cerimônias, - frequentemente diversas pelas formas, mas
semelhantes pelo mecanismo
190
-, desde o dia em que nasce até o dia da sua morte. Segundo o
autor, essas cerimônias marcam todas as circunstâncias graves da vida do indivíduo
191
. Tendo
estudado o complexo mundo dos ciclos cerimoniais que envolvem as passagens, e tendo
observado o jeito como as diversas sociedades se estruturam a fim de possibilitar as diferentes
transições que a vida impõe, sem maiores danos tanto ao indivíduo quanto à sociedade, Van
Gennep conclui:
Para os grupos, assim como para os indivíduos, viver é continuamente desagregar-se
e reconstituir-se, mudar de estado e de forma, morrer e renascer. É agir e depois
parar, esperar e repousar, para recomeçar em seguida a agir, porém de modo
diferente. E sempre há novos limiares a atravessar, limiares do veo ou do inverno,
da estação ou do ano, do s ou da noite, limiar do nascimento, da adolescência ou
da idade madura, limiar da velhice, limiar da morte e limiar da outra vida para os
que acreditam nela.
192
189
GENNEP, 1978, p. 151.
190
GENNEP, 1978, p. 158.
191
GENNEP, 1978, p. 157.
192
GENNEP, 1978, p. 157-158.
49
Na análise dos ritos de passagem, Van Gennep se interessou, em especial, pela “sua
significação essencial e sua situação relativa nos conjuntos cerimoniais, sua seqüência
193
.
Independentemente dos detalhes e das variações dos ritos de acordo com cada tipo de
passagem, Van Gennep sempre encontrou uma seqüência pica que ele chamou de “o
esquema dos ritos de passagem”
194
. Além desse aspecto, como sendo o mais relevante no
estudo dos ritos de passagem, o autor chama atenção especial para a exisncia da margem, a
qual adquire, em alguns casos, uma autonomia, como, por exemplo, no noviciado e no
noivado. Um outro ponto fortemente assinalado pelo autor “é a identidade da passagem
através das diversas situações sociais com a passagem material a entrada numa aldeia ou
numa casa, a passagem de um quarto para outro ou através das ruas e das praças
195
. Passar de
uma idade a outra, ou de uma classe, etc., se exprime ritualmente por meio da passagem por
um pórtico ou portas, lembra o autor.
1.3.10 A noção de liminaridade proveniente de Van Gennep na pesquisa de Turner
Estudioso dos rituais, Victor Turner, (1920-1983) “fez pesquisa de campo entre os
ndembo da antiga Rodésia (hoje Zimbabwe)”
196
, durante dois anos e meio. Na sua pesquisa
sobre os rituais, Turner priorizou o que Van Gennep chamou de “fase liminar” dos ritos de
passagem. Conforme Van Gennep, os ritos de passagem se caracterizam pelas fases de
separação, margem (“limen”, “limiar”) e agregação. No dizer de Peirano, “Turner é o
antrologo que vai recuperar e tornar mais produtiva a noção de liminaridade vinda de Van
Gennep
197
. Turner descobre esse “estadocomo sendo particularmente rico. Inicialmente,
Turner retoma a formulação das três fases do rito de passagem desenvolvidas por Van
Gennep, explicando:
A primeira fase (de separação) abrange o comportamento simbólico que significa o
afastamento do indivíduo ou de um grupo, quer de um ponto fixo anterior na
estrutura social, quer de um conjunto de condições culturais (um estado”), ou ainda
de ambos. Durante o período “limiar” intermédio, as características do sujeito ritual
(o “transitante”) são ambíguas; passa através de um domínio cultural que tem
poucos, ou quase nenhum, dos atributos do passado ou do estado do futuro. Na
terceira fase (reagregação ou reincorporação), consuma-se a passagem. O sujeito
ritual, seja ele individual ou coletivo, permanece num estado relativamente estável
mais uma vez, (...).
198
193
GENNEP, 1978, p. 159.
194
GENNEP, 1978, p. 159.
195
GENNEP, 1978, p. 159.
196
PEIRANO, 2003, p. 30.
197
PEIRANO, 2003, p. 31.
198
TURNER, Victor. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Vozes, 1974. (Coleção
Antropologia, 7). p. 116.
50
Tendo como base a formulação acima, Turner chama atenção para a característica
ambígua das pessoas durante o período liminar, “uma vez que esta condição e estas pessoas
furtam-se ou escapam à rede de classificações que normalmente determinam a localização de
estados e posições num espaço cultural”
199
. As pessoas em estado liminar não estão aqui nem
lá; vivem um grau intermediário, “entre as posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos
costumes, convenções e cerimonial
200
. Conforme Turner, naquelas sociedades que
ritualizam as transições sociais e culturais, esses atributos ambíguos e indeterminados das
entidades liminares exprimem-se por uma rica variedade de símbolos.
201
“Assim, a
liminaridade freqüentemente é comparada à morte, ao estar no útero, à invisibilidade, à
escuridão, à bissexualidade, às regiões selvagens e a um eclipse do sol ou da lua.
202
As
entidades liminares, diz Turner, podem ser representadas como se nada possuíssem, como por
exemplo, os nfitos nos ritos de iniciação ou de puberdade. Nestes casos, elas podem se
apresentar como monstros, usar como vestimenta apenas uma tira de pano ou simplesmente
ficar nuas. Desta forma, elas demonstram que, “como seres liminares não possuem ‘status’,
propriedade, ingnias, roupa mundana indicativa de classe ou papel social, posição em um
sistema de parentesco”
203
, ou seja, elas não possuem nada que as possa distinguir dos colegas
que estão em processo de inicião. O comportamento dos neófitos é normalmente passivo e
humilde, diz Turner. Devem obediência aos instrutores. Eles são levados a uma condição
uniforme para, então, a partir dela serem modelados de novo e “dotados de outros poderes,
para se capacitarem a enfrentar sua nova situação de vida”
204
. Nesse período, desaparecem as
distinções de classe entre os neófitos, predominando o igualitarismo, a homogeneidade. Neste
sentido, Langdon complementa: na fase liminar “estão ausentes a estrutura social e as regras
que normalmente ordenam as interões sociais dos membros de uma sociedade”
205
. A fase
liminar parece ser especialmente rica, opina a autora, pois ela representa um momento de
reflexividade para os seus participantes, sobre si mesmos, sobre o grupo e sobre a sociedade,
possibilitando a criatividade, a expressão e a transformação
206
.
199
TURNER, 1974, p. 117.
200
TURNER, 1974, p. 117.
201
TURNER, 1974, p. 117.
202
TURNER, 1974, p. 117.
203
TURNER, 1974, p. 117.
204
TURNER, 1974, p. 118.
205
LANGDON, 1998, p. 24.
206
LANGDON, 1998, p. 24.
51
Conforme Turner, a fase da liminaridade dos ritos de passagem é um momento que
se situa “dentro e fora do tempo, dentro e fora da estrutura social e profana”
207
. Esse momento
de margem, marcada pela ausência de uma estrutura social, ou também chamada
“antiestrutura” social, é denominada por Turner de communitas. Esse termo é usado para
designar aquela sociedade ou grupo que surge de maneira evidente no período liminar, a qual
é não-estruturada ou rudimentarmente estruturada. Communitas refere-se, portanto, a uma
comunidade, ou comunhão, de indivíduos iguais que se submetem em conjunto à autoridade
geral dos anciãos rituais”
208
; refere-se a um tipo de relão social entre pessoas que estão em
uma área de vida em comum. Segalen, lembrando Douglas, diz que nos estados de transição,
na fase liminar, mora o perigo e o rito “exorciza o perigo, na medida em que separa o
indivíduo de seu antigo estatuto durante algum tempo para em seguida fazê-lo entrar
publicamente no quadro de sua nova condição”
209
.
Para Turner, “toda posição social tem características sagradas”
210
e este componente
“sagradoé “adquirido pelos beneficiários das posições durante os ‘rites de passage’, graças
aos quais mudam de posição
211
. Turner diz que isto o significa legitimar as posições na
sociedade. “É antes uma questão de reconhecer um laço humano essencial e genérico, sem o
qual não poderia haver sociedade. A liminaridade implica que o alto não poderia ser alto sem
que o baixo existisse, e quem está no alto deve experimentar o que significa estar em
baixo.”
212
Nesse sentido, Turner conclui que “a vida social é um processo dialético que
abrange a experiência sucessiva do alto e do baixo, de communitas e estrutura,
homogeneidade e diferenciação, igualdade e desigualdade”
213
. Por isso, na liminaridade,
momento de passagem de uma posição a outra, não status. “Em tal processo, os opostos,
por assim dizer, constituem-se uns aos outros e o mutuamente indispensáveis.”
214
Estrutura
e communitaso experiências alternadas que o indivíduo faz durante a vida
215
.
207
TURNER, 1974, p. 118.
208
TURNER, 1974, p. 119.
209
SEGALEN, 2002, p. 48.
210
TURNER, 1974, p. 119.
211
TURNER, 1974, p. 119.
212
TURNER, 1974, p. 119.
213
TURNER, 1974, p. 120.
214
TURNER, 1974, p. 120.
215
TURNER, 1974, p. 120.
52
Um exemplo da fase liminar nos ritos de passagem pode ser verificado no rito de
investidura do chefe supremo (kanongesha) do povo ndembo
216
, descrito pelo autor, do qual
ressaltam-se, em seguida, os principais aspectos.
O chefe supremo do povo ndembo possui uma posição paradoxal, diz Turner, pois
ele representa tanto o ápice da hierarquia estruturalmente organizada quanto a comunidade
total enquanto unidade não estruturada. Ele também representa o próprio território tribal. O
rito de investidura começa com a construção de um pequeno abrigo de folhas, distante, mais
ou menos, um quilômetro e meio da aldeia principal. O nome dessa cabana deriva de um
termo cujo significado é “morrer”, indicando, desta forma, que ali o chefe eleito morre para o
seu estado de homem comum. Assim também, o lugar secreto onde os noviços são
circuncidados recebe um nome que deriva do mesmo verbo. “As imagens da morte proliferam
na liminaridade dos ndembos.”
217
O chefe eleito veste-se com um pano esfarrapado na
cintura, assim como também a esposa ritual que o acompanha. Os dois são conduzidos à
cabana como se fossem inválidos. Lá eles se sentam numa postura de recato e são lavados
com remédios misturados a uma água tirada de um rio que lembra os chefes ancestrais. Em
seguida é dado início ao rito “O Insulto ao Chefe Eleito”
218
. Trata-se de uma homilia feita
pelo chefe ritual, que diz:
Silêncio! Tu és um tolo egoísta e desprezível, além de ter mau gênio! Não amas teus
companheiros, te zangas com eles! Baixeza e ladroeira é tudo o que tens! No
entanto, chamamos-te aqui e te dizemos que deves ser o sucessor na chefia. Põe de
lado a mesquinhez, põe de lado a cólera, renuncia às relações adúlteras, renuncia a
elas imediatamente! Nós te outorgamos a chefia! Deves comer junto com teus
companheiros, deves viver bem com eles. (...).
219
O discurso segue e no final, as pessoas o convidadas a expressar diante do chefe
qualquer ressentimento que tenham, podendo insultá-lo. Enquanto isso, o chefe permanece
sentado, de cabeça reclinada, em sincio; ‘o modelo de paciência’ e de humildade
220
.
Conforme Turner, para os ndembos, “um chefe é como um escravo (...) na noite antes de subir
ao trono“
221
. No dia seguinte, a investidura pública do chefe, que compreende a fase de
reagregação, é feita com toda pompa e cerimônia.
216
Conforme TURNER, 1974, p. 120-125. Por se tratar de um relato mais extenso, não são assinaladas, neste
texto, todas as partes diretamente citadas, exceto as citações mais extensas.
217
TURNER, 1974, p. 123.
218
TURNER, 1974, p. 124.
219
TURNER, 1974, p. 124.
220
TURNER, 1974, p. 125.
221
TURNER, 1974, p. 125.
53
Turner, a partir do rito de investidura do chefe supremo dos ndembo, avalia a questão
da liminaridade e dos poderes rituais dos fracos, destacando dois aspectos: primeiro, o
privilégio que as pessoas comuns do povo e o chefe ritual têm “ao exercer autoridade sobre a
figura da suprema figura da tribo”
222
. O segundo aspecto apontado por Turner é o fato de a
“suprema autoridade ser tratada ‘como um escravo
223
, destacando-se aí, o papel de “estar à
serviço”. O tema da humilhação, segundo Turner, é algo que se repete nas situações liminares.
“Este tema consiste no despojamento dos atributos pré-liminares es-liminares.”
224
Como já
explicado anteriormente, os atributos da liminaridade indicam a ausência de status, “os
neófitos são meramente entidades em transição, o tendo ainda lugar e posição”
225
. A
submissão e o silêncio, assim como aparecem no rito de investidura do chefe ndembo,
também são partes dos ritos de iniciação, lembra Turner, pois os nfitos devem se submeter a
uma autoridade que, aliás, representa a comunidade total. Esta comunidade, diz Turner, “é a
depositária da gama completa dos valores da cultura, normas, atitudes, sentimentos e
relações”
226
. Isto significa que os representantes da comunidade nos rituais representam a
“autoridade genérica da tradição”
227
. Assim sendo, “a sabedoria transmitida na liminaridade
sagrada não consiste somente num aglomerado de palavras e de sentenças; tem valor
ontológico, remodela o ser do neófito
228
. Por exemplo, nos ritos Chisungu dos bembas, diz
Turner, “as mulheres mais velhas dizem que a moça reclusa ‘cresceu e se tornou mulher’
229
.
E tudo isto aconteceu mediante preceitos, símbolos, instruções verbais e não-verbais e
revelações. O neófito é encarado como “tabula rasa”, “lousa em branco”, diz o autor, pois nele
o inscritos os conhecimentos e a sabedoria do grupo, aspectos que dizem respeito ao seu
novo status
230
. A continência sexual também é tema da liminaridade nos ritos de investidura
dos ndembo e o reatamento das relações sexuais é parte do cerimonial de retorno à sociedade,
como estrutura de posições, ou seja, é rito de agregação. Um aspecto importante do que
acontece na liminaridade é o do poder místico, relacionado à crença nos poderes protetores e
punitivos. “Os poderes que modelam os neófitos na liminaridade (...) são considerados
222
TURNER, 1974, p. 126.
223
TURNER, 1974, p. 126.
224
TURNER, 1974, p. 126.
225
TURNER, 1974, p. 126.
226
TURNER, 1974, p. 127.
227
TURNER, 1974, p. 127.
228
TURNER, 1974, p. 127.
229
TURNER, 1974, p. 127.
230
TURNER, 1974, p. 127.
54
poderes sobre-humanos, embora sejam invocados e canalizados pelos representantes da
comunidade.”
231
Para concluir, mesmo sem esgotar um assunto tão complexo que Turner tratou
profundamente, é importante dizer que, segundo o autor, a experiência da communitas, a qual
é particularmente acentuada nos ritos de passagem, existe em todo tipo de sociedade como
uma dimensão que se contrapõe à estrutura institucionalizada. Ela irrompe nos intermédios da
estrutura, na marginalidade, na inferioridade. Exemplos de manifestações da communitas são,
entre outros, os movimentos religiosos milenaristas”, explica Turner, ‘massas
desarraigadas e desesperadas, na cidade e no campo ... vivendo às margens da sociedade’ “
232
.
Turner chama estes movimentos de fenômenos de transição, sendo que eles apresentam
símbolos e mitos que lembram os tradicionais ritos de passagem
233
. Os valores da communitas
também estão presentes, na moderna sociedade ocidental, na literatura e no comportamento de
grupos, tais como a “geração beats” que sucedeu a dos “hippies”, exemplifica Turner. O autor
explica: “a acentuação dada pelos ‘hippies’ à espontaneidade, ao imediatismo e à ‘existência’
põe em relevo um dos sentidos em que communitas’ contrasta com a estrutura”
234
.
1.3.11 O esquema dos ritos de passagem de Van Gennep na opinião de outros autores
Segalen, ao estudar os ritos e rituais na sociedade contemporânea, re-visita o clássico
Van Gennep. Segundo ela, o esquema dos ritos de passagem proposto por Van Gennep possui
um valor heurístico que “continua pertinente até os dias de hoje
235
. Segalen critica a posição
de Gluckman que ressalta a contribuição teórica de Van Gennep, mas diz que sua teoria está
ultrapassada. Esse autor desenvolve a hipótese “segundo a qual quanto mais as sociedades se
tornam complexas, menos ritualizadas elas são uma opinião corrente em meados dos anos
1970”
236
. Para Segalen, concordar com Gluckman é abandonar a idéia de que nossas
sociedades o capazes de desenvolver ações e pensamentos simbólicos. Ela diz: “preferimos
pensar que os símbolos existem, mesmo não sendo partilhados por toda uma coletividade nem
estando mais vestidos apenas com roupagem religiosa.”
237
Segalen faz referência a Pitt-Rivers
que, em 1986, chamou as teses de Gluckman de absurdas e apresentou um exemplo de rito de
231
TURNER, 1974, p. 129.
232
TURNER, 1974, p. 136.
233
TURNER, 1974, p. 137.
234
TURNER, 1974, p. 137.
235
SEGALEN, 2002, p. 39.
236
SEGALEN, 2002, p. 47.
237
SEGALEN, 2002, p. 47.
55
passagem moderno, referindo-se às primeiras viagens aéreas, nas quais ele identificou os
estados de separação, margem e reintegrão. Bourdieu (1930-2001) é da opinião de que Van
Gennep apenas nomeou o rito sem se perguntar sobre a função social da passagem, assinala
Segalen. Para esse autor, a teoria de Van Gennep, ao insistir demais nos “efeitos temporais do
rito por exemplo, a passagem da infância à adolescência -, mascara uma de suas fuões,
que é separar aqueles que passaram por ele não daqueles que não passaram, mas daqueles que
não passarão jamais”
238
. Bourdieu enfatiza a linha da diferença que separa os grupos e não a
passagem de um estado a outro. Para ele, os ritos de passagem poderiam ser substituídos por
ritos de instituiçãoou de “legitimaçãoou ainda de “consagração “. Segalen pergunta se o
rito de instituão realmente supera a problemática dos ritos de passagem. Para ela, Van
Gennep não pretendeu que todas as formas rituais estivessem ligadas às passagens,
ressaltando o cater multiforme e complexo das cerimônias. “Assim, os ritos de passagem e
de instituição não se excluem mutuamente, eles existem uns nos outros, especialmente quanto
aos efeitos agregativos.”
239
No entender de Segalen, Bourdieu, ao ressaltar os aspectos
instituintes do rito, acentua mais os personagens centrais da cerimônia, ou seja, os que são
instituídos e os que instituem, e elimina o resto das seências cerimoniais
240
.
Rivière, autor de Os ritos profanos, lembra que os dados de Van Gennep sobre os
ritos de passagem, “já passaram ao domínio do patrimônio corrente ou, pelo menos,
encontram-se entre as banalidades da etnologia”
241
. A partir do esquema de Van Gennep,
vários autores, de áreas da psicologia, sociologia e antropologia, fizeram suas interpretações,
a exemplo de autores contemporâneos como Bourdieu e Turner.
Na análise de Da Matta, a grande descoberta de Van Gennep é que os ritos, como o
teatro, têm fases invariantes, que mudam de acordo com o tipo de transição que o grupo
pretende realizar”
242
(funeral - separação, casamento agregação, iniciação margem, por
exemplo). Para Da Matta, a posição que Van Gennep tomou em relação aos ritos, é muito
importante, pois ele encarou os ritos não como um objeto reificado, mas procurou discernir os
seus mecanismos básicos, ou seja, os seus elementos constituintes
243
. Desta forma, ele
mostrou que “era possível dar sentido a um conjunto enorme de materiais etnográficos
relativos a rias áreas culturais do globo e, ainda, de civilizações do passado e do presente,
238
SEGALEN, 2002, p. 50.
239
SEGALEN, 2002, p. 52.
240
SEGALEN, 2002, p. 52.
241
RIVIÈRE, 1997, p. 43.
242
DA MATTA, 1978, p. 18.
243
DA MATTA, 1978, p 18.
56
tomando os rituais numa seqüência”
244
. Van Genepp não privilegiou apenas o momento
culminante do rito, como faziam os seus contemporâneos; para ele, “o momento culminante
nada mais é do que uma fase de uma seqüência que sistematicamente comporta outros
elementos e movimentos.”
245
Isto quer dizer que, para o entendimento de um ritual, é
fundamental o estudo do momento anterior e do momento posterior do rito, diz Da Matta. A
interpretação só de uma fase é parcial, podendo ser enganadora, observa ele
246
. A combinação
das fases dá, não somente uma visão globalizada do ritual, como tamm faz perceber o ponto
em que ele é mais dramatizado, sendo que este ponto ctico forneceria, teoricamente, os
elementos chaves para o significado do rito
247
.
Da Matta diz que hoje o estudo comparativo dos rituais é igualmente básico e que é
possível chegar a dimensões mais precisas do movimento ritual, tomando cerimônias de uma
mesma sociedade e comparando-as entre si por meio dos seus objetivos simbólicos
contrastantes. Conforme explica o autor, ele fez essa relação em seu trabalho “Carnavais,
Paradas e Procissões” ao comparar o carnaval com as paradas de Sete de Setembro, momentos
ritualizados contrastantes na sociedade brasileira
248
. Da Matta critica em Van Gennep o fato
de que ele, conforme Gluckman o observara, “optou por uma demonstração horizontal de
sua tese, preferindo a quantidade à qualidade que certamente obteria, se tivesse realizado uma
análise profunda de uns poucos rituais”
249
. Com isso, afirma Da Matta, o autor conclui o livro
sem fazer uma “verdadeira elaboração teórica relativa ao significado profundo dos ‘ritos de
passagem’
250
. Esta tarefa permaneceu para ser efetuada pelos estudiosos atuais, reforça o
autor. Vários autores buscaram esta resposta, contudo, Da Matta acredita que “o problema
do ‘porquê’ dos ritos de passagem ainda está longe de ser resolvido, que o pprio termo
ritual precisa de uma melhor conceituação.
251
Mas, na opinião de Da Matta, com o estudo
dos ritos de passagem, Van Gennep deixou a importante lição de que “viver socialmente é
passar, passar é ritualizar”
252
. Em outras palavras, o autor quer dizer que uma relação
intrínseca entre passagens e ritualizações.
244
DA MATTA, 1978, p 18.
245
DA MATTA, 1978, p. 18.
246
DA MATTA, 1978, p. 18.
247
DA MATTA, 1978, p. 18.
248
DA MATTA, 1978, p. 18; DA MATTA, Roberto. Carnavais, paradas e procissões. Religião e sociedade, São
Paulo, n. 1, p. 3-30, maio, 1977.
249
DA MATTA, 1978, p. 20.
250
DA MATTA, 1978, p. 20.
251
DA MATTA, 1978, p. 21.
252
DA MATTA, 1978, p. 21.
57
1.4 Aspectos gerais dos ritos de passagem na sociedade atual, com ênfase no contexto
brasileiro
1.4.1 Ritos de passagem tradicionais que persistem na sociedade brasileira atual: breves traços
Com base no estudo dos ritos de passagem em Van Gennep, Azevedo e Junqueira
lembram que em qualquer sociedade a vida é marcada por algum tipo de passagem
253
e as
passagens o acompanhadas por atos cerimoniais, sejam eles muito ou pouco elaborados
254
.
De qualquer forma, “o reconhecimento da passagem implica a idéia de que o trânsito de uma
situação a outra é coisa importante, ato grave que deve ser cercado de cuidados especiais”
255
.
Considerando que as passagens de uma situação a outra o momentos importantes na vida
dos indivíduos e como tais carecem de cuidados especiais e, considerando, que os ritos de
passagem estão presentes em todas as sociedades, cabe perguntar quais os ritos de passagem
que caracterizam a vida na atualidade. Van Gennep viu no estudo dos ritos de passagem que
os principais momentos de transição da vida acontecem em torno de: gravidez, parto,
nascimento, infância, adolescência, vida adulta, casamento e morte. Pode-se dizer, portanto,
que essas passagens representam o ponto de partida inicial para se verificar ritos de passagem
em qualquer sociedade. Neste sentido, para verificar os ritos de passagem tradicionais que
persistem na sociedade atual busca-se olhar para essas transições da vida e perceber como a
sociedade lida com elas em termos rituais.
No entender de Azevedo, dentre as etapas que assinalam o crescimento e as
mudanças no ciclo vital, o nascimento e a morte são os mais acentuados por atos cerimoniais.
O autor considera que, de acordo com cada sociedade, os sinais referentes aos diversos
estados da vida podem variar. A velhice, por exemplo, pode iniciar aos quarenta ou aos
oitenta anos
256
. Conforme Vilhena, os ritos de passagem nos acompanham durante toda a
vida, tenham eles acentuações seculares ou religiosas. Por exemplo, são os ritos que nos
ensinam a receber uma criança recém-nascida, a fortalecer pai e e e a introduzir a criança
em uma comunidade, conferindo a ela uma identidade familiar e social
257
.
253
AZEVEDO, Thales de. Ciclos da vida: ritos e ritmos. São Paulo: Ática, 1987. (Série Princípios). p. 21.
254
JUNQUEIRA, Carmen. Em trânsito: preparando a mudança. In: ABRAMOVITCH, Fanny (Org.). Ritos de
passagem de nossa inncia e adolescência: antologia. 3. ed. São Paulo: Summus, 1985. (Novas buscas em
educação, 24). p. 176.
255
JUNQUEIRA, 1985, p. 176.
256
JUNQUEIRA, 1985, p. 176.
257
VILHENA, Maria Ângela. Ritos: expressões e propriedades. São Paulo: Paulinas, 2005. (Temas do Ensino
Religioso). p. 138.
58
Considerando que o estudo dos ritos de passagem abrange um vasto campo de grupos
sociais e geográficos e de diferentes contextos culturais, para nossa delimitação, em seguida
levar-se-á em conta exemplos generalizados do contexto brasileiro
258
. Dentro desse contexto,
buscar-se-á, na medida do possível, algumas referências a práticas rituais de um grupo
cultural ligado à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), tendo em vista
os objetivos específicos dessa pesquisa e as fontes bibliográficas encontradas. Nesse primeiro
momento não se levará em conta as diferenciações dos contextos culturais modernos e s-
modernos. Essa é uma questão que se tratará mais adiante.
a) Gravidez, parto, nascimento e infância
Um costume praticado no tempo da gravidez e que pode ser observado em diversos
grupos e lugares do contexto brasileiro é o conhecido Chá-de-bebê”. O Chá-de-bebê é um
evento social em que as amigas daquela que se tornará mãe se reúnem de uma forma
descontraída para ajudar a montar o enxoval do bebê. Em geral, esse evento é organizado pela
melhor amiga da mãe gvida. Conforme informações obtidas, o melhor período para realizar
esse chá é o do sétimo mês de gravidez
259
. (Diversos sites na internet exibem listas dos
objetos considerados indispenveis ao enxoval de bebê e servem de auxílio às pessoas que
organizam tal evento
260
). Em relação à gravidez, é interessante lembrar que a Constituição
Brasileira garante à mulher que deu à luz, uma licença maternidade ou licença gestante, com
remuneração mantida. A lei, número 11.770, aprovada recentemente, em 09 de setembro de
2008, amplia a licença, anteriormente concedida, de 120 para 180 dias
261
. Esse “tempo de
repouso”, em que a mulher sai do seu meio profissional e se dedica exclusivamente ao bebê
recém-nascido, não poderia ser compreendido como um exemplo, dos tempos atuais, daquilo
que Van Gennep chamou de período de margem do rito de passagem?
Em relação ao nascimento, Vilhena considera as visitas de familiares e amigos à
mãe, ao pai e à criança rem-nascida, verdadeiros exemplos de gestos rituais. Durante essas
visitas, as pessoas oferecem ajuda, dão conselhos, ensinam receitas, trocam experiências, etc.
Com isso, elas demonstram o reconhecimento de que mais uma pessoa está integrando o
258
Entendemos que o contexto brasileiro tem como característica sica a multiculturalidade e a diversidade
religiosa.
259
EQUIPE Sabido. Como organizar um Chá-de-bebê. Disponível em:
<http//www.sabido.com.br/modules.php>. Acesso em: 29 mar. 2007.
260
GRAVIDEZ Tranqüila. Chá-de-bebê. Dispovel em:
<http://www.gravidas.hpg.ig.com.br/chadebebe.html>; EQUIPE do Clube do bebê. Lista do Chá-de-bebê.
Dispovel em: <http//www.clubedobebe.com.br/listadechadebebe.htm>. Acesso em: 29 mar. 2007.
261
Lei N. 11.770, de 09 de setembro de 2008. Dispovel em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11770.htm>. Acesso em: 05 fev. 2009.
59
grupo
262
. No ambiente religioso católico, segundo a autora, o rito batismal agrega a essas
funções sociais profanas a introdução do novo membro à comunidade religiosa, lembrando
responsabilidades, fortalecendo a criança, seus pais e a própria comunidade por meio de
palavras, gestos e objetos, todos eles simlicos”
263
. Tudo indica que um dos ritos mais
significativos do nascimento e inncia é o batismo
264
(com a ressalva de que igrejas que
praticam o batismo de adultos); em geral, esse rito é realizado nos primeiros dias, meses ou
anos de vida, sendo uma passagem que atesta o reconhecimento de um novo ente como
participante de uma comunidade eclesial. “O batismo eclesializa
265
, diz Azevedo. Tendo
como referência os costumes da igreja cristã no contexto brasileiro [e, sobretudo, os da igreja
Católica Apostólica Romana], esse autor lembra que os “vigários das paróquias emitem
diplomas da cerimônia, com estampas alusivas”
266
ao evento. Em muitos lares, esse
documento é emoldurado e exposto na parede de algum aposento determinado da casa, em
muitos casos, no quarto de dormir, por exemplo. Este também é o caso da IECLB que, tendo
como prática geral o batismo de criança, emite um documento chamado “Lembrança ou
Certidão de Batismo”. Azevedo lembra que, no Brasil, até à proclamação da República fato
que, entre outros, marcou a separação entre igreja e estado -, a certidão de batismo, ou
batistério, era utilizada como documento indispensável para que se provasse a cidadania e a
idade”
267
.
Droogers, no relatório de uma pesquisa sobre a “religiosidade popular luterana”,
realizada com imigrantes pomeranos
268
, no estado do Espírito Santo, em julho de 1982, inclui
a temática dos ritos de passagem. E, conforme ele observa, “o batismo é o primeiro de uma
rie de ritos eclesiásticos que acompanham as transições na vida das pessoas”
269
. O batismo,
para o povo pomerano, é um rito que ajuda a integrar definitivamente a criança na vida
normal, sendo o período entre o nascimento e o batismo, uma fase de transição. Um fato que
262
VILHENA, 2005, p. 139.
263
VILHENA, 2005, p. 139.
264
Essa prática é equivalente à circuncisão judaica que acontece no fim da primeira semana depois do
nascimento. Cf. AZEVEDO, 1987, p. 25.
265
AZEVEDO, 1987, p. 24.
266
AZEVEDO, 1987, p. 25.
267
AZEVEDO, 1987, p. 25.
268
Originários da antiga região conhecida como Pomerânia, hoje integrada à Polônia, os imigrantes pomeranos
(tamm denominados de povo pomerano), que chegaram ao Brasil, desembarcaram no porto de Vitória, no
estado do Espírito Santo, no ano de 1859. Quando chegaram às terras capixabas, os imigrantes pomeranos se
estabeleceram em municípios da região montanhosa do estado, em áreas rurais, onde boa parte dos seus
descendentes vive ainda hoje. ROELKE, Helmar Reinhard. Descobrindo raízes: aspectos geográficos, históricos
e culturais da Pomerânia. Vitória: UFES / Secretaria de produção e difusão cultural, 1996. (Projeto: Resgate da
história e da cultura alemã). p. 3, 34 e 39.
269
DROOGERS, André. Religiosidade popular luterana: relatório sobre uma pesquisa no Espírito Santo, em
julho de 1982. São Leopoldo: Sinodal, 1984. p. 53.
60
marca essa transição é a mãe e a criaa ficarem em casa, durante certo período, não saindo
do terreno de sua moradia. O batismo, neste sentido, põe fim ao período de transição. Junto do
batismo da criança acontece a bênção da mãe. Droogers suspeita que a essa bênção esteja
ligada uma interpretação das noções de pureza
270
. Conforme Roelke, para o povo pomerano, a
gravidez e as primeiras semanas de vida de uma criança, envolvem preocupões especiais.
Diante disso, na história pregressa desse povo, diversos costumes eram observados por causa
dos perigos, aos quais as crianças estavam expostas - mau olhado, por exemplo. Para tanto,
era comum as mães recorrerem ao “uso de simpatias”. Por exemplo: o deixar molhar o
rosto da criança com os pingos de chuva, os quais podiam provocar sardas
271
. A primeira ida
ao culto, da criança com a mãe, significava encerrar esse tempo de perigo, o que acontecia
seis semanas após o nascimento
272
.) Segundo o relato de Droogers, a integração da criança na
vida normal é, ao mesmo tempo, uma integração à estrutura social. “Na hora do batismo, os
padrinhos representam esta estrutura social.”
273
Os padrinhos e as madrinhas, na maioria das
vezes, são parentes, mas não necessariamente. Sua escolha reforça a rede de relações sociais.
Um costume relacionado ao batismo é a entrega do “cartão de batismo(do original alemão
“Patenzettel’ ou “Patenbrief)
274
, dado pelo padrinho e a madrinha como lembrança do
batismo. Junto desse cartão havia o costume de colocar alguns objetos, através dos quais se
expressavam os desejos de sorte e felicidade aos afilhados e às afilhadas (agulha de costura
com fio de linha, sementes, terra, pena de aves, fios de rabo de cavalo ou burro, pele de vaca
ou porco, etc., e também dinheiro)
275
. outras ações realizadas em torno do “Patenzettel”
276
.
Paralelamente ao batismo e como rito de transição, o autor observa a prática de benzimento.
Para Droogers, o batismo e o benzimento encerram a perigosa fase de transão do
nascimento, tendo a função de proteger a vida em meio às situações de vulnerabilidade
277
.
270
DROOGERS, 1984, p. 54. O autor lembra o texto bíblico de Levítico 12 como uma possível influência para
tal interpretação.
271
ROELKE, 1996, p. 47.
272
ROELKE, 1996, p. 47.
273
DROOGERS, 1984, p. 54.
274
DROOGERS, 1984, p. 55.
275
Conforme Roelke, “a crina de cavalo deveria assegurar sorte no trato dos cavalos, quando a criança fosse
adulta. A agulha, por exemplo, significava o desejo, de que a criança/menina, quando adulta, fosse uma boa
costureira. Tudo que se colocava dentro das cartas de batismo, eram objetos que deveriam garantir a sorte no
futuro das crianças”. ROELKE, 1996, p. 48.
276
DROOGERS, 1984, p. 55. Droogers observa que esse costume foi, muitas vezes, interpretado por alguns
representantes religiosos como superstição ou ato mágico, e, como tal, condenado. Mas, no entender de
Droogers, as práticas ao redor do “Patenzettel” o frutos da religiosidade popular desse povo. DROOGERS,
1984, p. 57.
277
DROOGERS, 1984, p. 57.
61
b) Adolesncia e iniciação
Conforme Azevedo, a adolescência, iniciando entre doze e quatorze anos, “é uma
idade ao mesmo tempo biológica e social (...). É um tempo de mudanças corpóreas e
psicológicas que se prolonga até perto da idade adulta”
278
. As culturas modernas do mundo
ocidental, de tradição judaico-cristã, têm na prática da confirmação ou crisma - quando se faz
“a renovação das promessas do batismo
279
-, uma cerimônia que acontece durante a
adolescência. Essa cerimônia tem o seu equivalente, entre os judeus, no “Bar-Mitzvá”, para os
meninos, e “Bat-Mitzvá”, para as meninas. Ambas as cerimônias, confirmação (ou crisma) e
Bar e Bat-Mitzvá, marcam a maturidade religiosa
280
. No entanto, conforme o relato de
Droogers, sobre os ritos de passagem na religiosidade do povo pomerano, percebe-se que,
além de marcar a maturidade religiosa, a confirmação é um rito que marca a passagem para a
vida adulta. Na visão dos pais e das mães dos adolescentes, segundo o relato de Droogers, a
confirmação deve preceder a fase do namoro. Depois da confirmação, sim, os jovens podem
participar de bailes, namorar, engravidar e casar
281
.
Conforme Azevedo, durante muito tempo, na sociedade urbana brasileira, de classes
média e alta, os quinze anos de vida de uma adolescente foram marcados pela “noite de
debutantes”. O termo “debutante”, segundo o autor, origina-se do francês “début” e expressa
“começo”, “iniciação”. Conforme esse autor, a “noite de debutantes
consiste numa aparatosa festa especialmente programada que não se confunde com
qualquer outra, na qual as meninas-moças, ou as mocinhas, em vestuário de baile,
longo, decotado, de tecido fino, em geral branco, maquiadas e penteadas como as de
mais idade, dançam no salão de um clube ou lugar público. A primeira valsa,
digamos, é com os pais ou um parente mais velho, que ‘as apresenta ou introduz na
sociedade por esse modo. Daí por diante têm o privilégio de freqüentar festas e
recepções de adultos (...). Os meninos, ou rapazinhos, do mesmo grupo de idade não
passam por uma iniciação assim formal, mas nessas festas participam, também, com
indumentária que tem a mesma função simbólica.
282
Para enfatizar a importância da indumentária que é referida por esse autor na
descrição acima, cabe aqui fazer uma menção ao que é dito por Abramovich. Relembrando os
diferentes períodos de sua vida, desde a infância até a fase adulta, quando já tinha uma
278
A idade que marca o início da adolescência pode variar conforme os costumes de diferentes grupos culturais e
de épocas. AZEVEDO, 1987, p. 29.
279
AZEVEDO, 1987, p. 30.
280
AZEVEDO, 1987, p. 30.
281
DROOGERS, 1984, p. 58-59. No entender do autor, a interpretação da confirmação como rito que marca a
maturidade religiosa é acentuada pelos representantes da visão da religiosidade oficial.
282
AZEVEDO, 1987, p. 32-33.
62
profissão, ela conta como cada etapa da vida era assinalada pelo uso de diferentes
vestimentas, penteados e cortes de cabelo, uniformes, sapatos e acessórios (entre esses, cintos,
perfumes, maquiagem, meias, etc.). “O mundo ficava sabendo sobre cada passagem nossa, a
partir de cada marco incorporado ou retirado da vestimenta.”
283
Azevedo classifica a adolescência como um “agudo tempo de transição pela prova
severa e angustiante do vestibular”
284
. diversos concursos pelos quais as pessoas devem
passar, ao longo da vida, para o ingresso a um emprego (em serviços públicos, empresas
estatais, bancos, etc.), contudo, o vestibular é um desses ritos de passagem caracterizado, por
esse autor, como o mais espetacular e perturbador, “pelo que exige dos que se submetem às
provas e pela sua repercussão em todo o país”
285
. Passar no vestibular e ingressar numa
universidade é, sem dúvida, um passo importante e uma mudança significativa na vida de um
jovem, rumo à maturidade.
A entrada na universidade é assinalada pelo trote que, segundo os autores, é um
autêntico rito de passagem. O jovem passa a ser calouro, categoria essa que se caracteriza pela
submissão aos veteranos, por provas de resistência física, por mudanças no corpo como, por
exemplo, raspar os cabelos ou pintar a pele, pelo pronunciamento de discursos bestialógicos,
desfiles caracterizados como ridículos, etc.
286
. Na avaliação de Vilhena, o jovem, em geral, é
cheio de si, prepotente e dono da verdade e, assim que entra na universidade, ele é submetido
a provas de humildade, coragem, obediência e capacidade de cooperação
287
. Nesse período, o
jovem é chamado de “bicho”, tem os cabelos raspados, é alvo de brincadeiras e caçoadas. No
trote, ele é submetido a ordens, as quais não deve contestar. Na visão dessa autora, o trote é
um ritual que se desenvolve na forma de drama. Através de brincadeiras, ele visa enfatizar
“como é difícil ser estudante universitário, quais virtudes ele deve desenvolver, quais
comportamentos são dele esperados, bem como o que pode e deve esperar dos colegas mais
experientes”
288
. No final do curso universitário, o jovem passa pelo rito de formatura, sendo
este, desta vez, menos dramático, afirma Vilhena. A formatura é hora formal de despedir-se
do tempo da juventude e entrar na maturidade. Além de despedir-se dos colegas e professores,
o jovem se despede de um estilo de vida. A partir daí, ele deve enfrentar o mercado de
trabalho e r em prova os conhecimentos adquiridos, deve garantir a própria subsisncia e
283
ABRAMOVICH, Fanny. Do laço de fita ao pretinho. In: ABRAMOVICH, 1985, p. 132.
284
AZEVEDO, 1987, p. 31.
285
AZEVEDO, 1987, p. 43.
286
AZEVEDO, 1987, p. 31-32.
287
VILHENA, 2005, p. 139.
288
VILHENA, 2005, p. 139.
63
assumir novas responsabilidades, testando suas convicções e princípios na vida profissional.
Desta forma, ”o rito de formatura ou colação de grau marca, no tempo da vida, um fim e um
início, atestando publicamente a exisncia, a identidade e a competência de um novo
profissional
289
.
O trote nas universidades tem sido alvo de muitas críticas, em conseqüência de
algumas práticas consideradas demasiadamente violentas que, em alguns casos, levam até à
morte de jovens. Observa-se, no entanto, formas alternativas de ritualizar a entrada numa
universidade. É o caso da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC) que através do
seu Programa de Humanização e com o intuito de promover uma cultura de paz e não-
violência, concebeu um “Rito de Passagem para Calouros”. Através desse rito, o Programa de
Humanização da UNESC visa cumprir as exigências do novo ciclo da vida dos jovens que
entram na universidade, “com consciência, firmeza e alegria proporcionando o crescimento
integral (físico, mental e espiritual) de cada um e de todos.”
290
Esse rito de passagem “é
realizado por um facilitador da equipe do Programa de Humanização, com auxílio de um
acadêmico, durante um período de quatro aulas com cada turma, nos primeiros 40 dias letivos
de cada semestre
291
.
No entender de Azevedo, “os ritos de passagem, especialmente os de iniciação,
funcionam como meios indispenveis à perfeita integração social do indivíduo na sociedade
tribal e, em certa medida, na sociedade moderna”
292
. Mas, a sociedade moderna,
aparentemente, dispensou o recurso a tais ritos, diz o autor, e os substituiu por diversas
provas, às quais o indivíduo é submetido a cada dia para dominar as novas e sofisticadas
técnicas, para a obtenção de novos certificados, etc. Dessa maneira, o rito de iniciação, de
entrada à escola, cuja dramatização mais intensa se expressa no vestibular, se repete por
vários anos, estendendo-se quase por toda a vida. Somente a aposentadoria alivia a pessoa da
necessidade cansativa de provar suas capacidades
293
.
Dos ritos que assinalam mudanças na vida do indivíduo, Azevedo lembra o serviço
militar como o mais importante rito cívico. Através dele, “o jovem completa sua passagem ao
289
VILHENA, 2005, p. 140.
290
UNESC Humanização. Rito de passagem. Disponível em: <http://www.unesc.net/humanizacao/>. Acesso
em: 17 mar. 2007.
291
UNESC Humanização, 2007.
292
AZEVEDO, 1987, p. 72.
293
AZEVEDO, 1987, p. 72-73.
64
estado de cidadão, que no digo civil é fixado, para todos os efeitos, nos 21 anos de idade
quando, então, atinge-se a maioridade”
294
.
c) Casamento
Uma passagem do ciclo da vida que, na maioria dos casos, coincide com a idade
adulta, é o matrimônio
295
. Para Azevedo, nenhum outro passo de crescimento e da realização
humanos é cercado e ativado mais que o casamento, por ações rituais e cerimoniais
significativas, solenes, envolventes
296
, sendo tal fato observado em todas as culturas e
sociedades. No Brasil, com a separação entre igreja e estado, em 1889, foi estabelecida, por
lei, a obrigatoriedade do casamento civil antes do religioso. Entretanto, no decorrer dos anos,
este dispositivo legal cedeu, tornando-se freqüente, sobretudo nas classes altas, a realização de
uma cerimônia única de caráter religioso. Azevedo explica que a “preferência pela cerimônia
religiosa está justamente no aspecto ritual solene, formal, em ambiente igualmente
impressionante (...)”
297
. O autor destaca algumas ações rituais, carregadas de significados
simbólicos, que acompanham o rito do casamento, a saber, a aspersão de grãos de arroz sobre
os noivos, o bolo de noivos e o seu corte, o buquê de flores da noiva jogado ao ar e a refeição
festiva. Em relação ao matrimônio, o autor lembra que nos últimos tempos surgiram diversas
situações que ele denomina de “uniões livres ou consensuais” e “novas uniões”
298
, as quais
fogem ao padrão tradicional dos ritos de passagem e, portanto, carecem de novas formas
rituais.
Namoro, pedido e noivado são fases que tradicionalmente acompanharam o
matrinio. O noivado oficial (com pedido formal ao pai da namorada, etc.), conforme
Azevedo, é menos freqüente na sociedade atual. É possível observar mudanças em relão às
fases que antecedem o casamento, porém, sustenta o autor, embora mudem os costumes,
“ainda persistem de algum modo os antigos padrões de aproximação e escolha em sua
inteireza ou em novos estilos”
299
. Uma prática que pertence à fase preparatória do casamento,
ainda comum aos dias atuais, é a do Chá-de-panela, evento organizado pelas amigas da noiva,
marcado para alguns dias antes do casamento, que simboliza a despedida de solteira. É
também uma ocasião em que as amigas ajudam a noiva a montar a cozinha da sua nova casa –
294
AZEVEDO, 1987, p. 31.
295
AZEVEDO, 1987, p. 48.
296
AZEVEDO, 1987, p. 48.
297
AZEVEDO, 1987, p. 49.
298
AZEVEDO, 1987, p. 50.
299
AZEVEDO, 1987, p. 54.
65
conforme o costume, as listas de presentes se compõem de objetos básicos de cozinha
300
. O
Chá-de-panela, com as brincadeiras e jogos que o envolvem, mostra, na análise dos
antrologos, segundo Azevedo, que esse rito social reproduz, em suas fases, as etapas de
separação, transição ou marginalidade e integração que, no clássico estudo de Van Gennep,
caracterizam os ritos de passagem”
301
. Como rito paralelo acontece a despedida de solteiro
para os rapazes, consistindo de uma reunião com amigos para uma última “farra” antes do
compromisso que fará do rapaz um “homem sério
302
.
Entre os pomeranos, conforme Droogers, o casamento é a festa de maior
acontecimento social e a mais característica desse povo. “A maior parte do ritual é do domínio
dos leigos e tem caráter secular”
303
, diz o autor. A festa envolve semanas de preparo e
acontece, preferencialmente, na primavera ou no outono, épocas de entressafra
304
. O dia da
semana tradicionalmente utilizado para a festa é o de sexta-feira
305
. Conforme Roelke, o
processo de casamento é longo. O anúncio é feito na igreja, em culto, e o convite pessoal para
a festa é feito por alguém que visita casa por casa - conhecido como “Hochtiedsbirrer”. Essa
função de convidar, normalmente, é assumida por um irmão solteiro da noiva e para essa
ocasião há uma maneira especial de se vestir. Na casa visitada, ele recita um convite em
pomerano (ou em alemão) em ou caminhando em círculo (atualmente existe uma versão
traduzida e, em alguns casos, é proferido em português)
306
. Na igreja acontece a bênção
matrimonial, mas nem todos os convidados e familiares acompanham os noivos. A maioria
das pessoas espera na casa. É ali que acontece a festa principal (com comida, bebida, música,
sessão de fotos e danças)
307
. A festa termina no amanhecer do dia seguinte e, conforme os
costumes antigos (os quais ainda são praticados por esse povo, sobretudo nas comunidades
rurais do estado do Espírito Santo), as danças marcam diversos momentos da festa. Um desses
momentos é o “Brutdanz”, conhecido como “dança da noiva” que consiste em noivos
300
GUIA de casamento. Lista de Chá-de-cozinha. Disponível em:
<http://www.guiadecasamento.com.br/noiva_lista_de_cha_de_cozinha.php>. Acesso em: 01 abr. 2007.
Conforme as informações contidas nesse site, “o costume do chá de cozinha nasceu nos Estados Unidos com o
nome de kitchen shower, aqui [no Brasil, sic] o famoso chá de cozinha já se tornou uma tradição entre as noivas.
O encontro é organizado por uma amiga íntima ou madrinha da noiva que oferece a casa, escolhe as
brincadeiras, distribui o que cada uma deve trazer (através de listas em lojas especializadas ou colocando as
sugestões no convite) e marcam a data (geralmente quinze dias antes do casamento).Outras informações em:
http://www.noivasonline.com/cha_de_cozinha.htm.
301
AZEVEDO, 1987, p. 55.
302
AZEVEDO, 1987, p. 55.
303
DROOGERS, 1984, p. 60.
304
ROELKE, 1996, p. 66.
305
Existem diferentes interpretações para a escolha desse dia, conforme DROOGERS, 1984, p. 60 e ROELKE,
1996, p. 66.
306
ROELKE, 1996, p. 66-68.
307
DROOGERS, 1984, p. 60-61.
66
dançarem com todos os convidados. Segundo os meus conhecimentos, essa dança tem a
função de abrir o grande baile que inicia após o café da tarde e segue noite adentro, sendo
interrompido para a “dança da grinalda” ou “dança do tira grinalda”
308
, a qual se dá ao redor
da meia-noite. Nesta dança, conhecida como “kranzafdanz”, o noivo e a noiva dançam com
todas as moças e todos os rapazes, respectivamente, despedindo-se, desta forma, da vida de
solteiros, assim como dos seus amigos e amigas (uma parte dessa dança, que hoje não se
observa mais, consiste no seguinte: na última rodada, todos e todas tentam tirar a grinalda da
noiva ou um pedo do véu, enquanto o noivo protege a noiva. A moça que conseguisse
tomar a grinalda da noiva, seria a próxima a marcar casamento.”
309
).
d) Funerais
Azevedo diz que, como última baliza do ciclo da vida, a morte é “assinalada pelos
mais dramáticos ritos”
310
, equiparado somente ao casamento em termos de ritualização.
Tradicionalmente, uma série de cerimônias faz parte do evento “morte”. No Brasil, na opinião
do autor, havia o costume de parentes e amigos acompanharem o doente quando ele se
encontrava à beira da morte, inclusive com práticas devocionais (recitação de orações, em
especial). Azevedo lembra que aplicar a “extrema-unção”, colocar uma vela acesa nas mãos
do moribundo “eram os primeiros gestos desse verdadeiro rito de passagem”
311
. Além disso,
fechar os olhos do recém-falecido, juntar-lhe as mãos segurando um crucifixo ou
rosário, estender-lhe as pernas, vesti-lo com uma roupa formal, preta ou escura,
cobrir-lhe o rosto com um lenço eram outros gestos desse rito de passagem. Antes de
ser colocado no caixão, o defunto era exposto de pés voltados para a porta da casa,
em cima de um sofá ou de uma mesa na sala de frente, rodeado de candelabros com
velas acesas, tudo presidido por um crucifixo. Abriam-se as portas e janelas para
“facilitar a saída da alma”. Em torno do morto começavam as orações e
imprecações, por meio de ladainhas e do cântico de Miserere ou do Senhor Deus,
misericórdia, em tom plangente, a pedir a Deus compaixão pelo morto,
acompanhando-se o sentimento de perda e pesar expresso pelo choro das mulheres.
Começava, com o cair da noite, o velório, ou sentinela, durante o qual, além da
continuação da reza, de vez em quando serviam-se bolachas e biscoitos com café aos
circunstantes reunidos em animados grupos de conversa.
312
A saída para o cemitério e o enterro igualmente eram momentos preenchidos por
ações rituais significativas e ricas em detalhes, conforme a descrição dada por esse autor
313
.
Ele também fala sobre a fase do luto, descrevendo o comportamento das pessoas envolvidas e
o uso de sinais exteriores, lembrando que tais práticas são, hoje, mais restritas.
308
ROELKE, 1996, p. 73.
309
ROELKE, 1996, p. 74.
310
AZEVEDO, 1987, p. 60.
311
AZEVEDO, 1987, p. 61.
312
AZEVEDO, 1987, p. 61-62
313
AZEVEDO, 1987, p. 62-63.
67
Sobre esse rito de passagem em meio ao povo pomerano, Droogers não nos oferece
uma descrição detalhada
314
. Porém, ele chama atenção para alguns costumes observados por
esse povo ao lidar com a morte, indicando que se trata de um momento muito significativo da
sua vida e religiosidade. Droogers chama atenção para o fato de que a questão da salvação se
apresenta de maneira muito mais intensa nessa transição do que nas outras passagens por ele
descritas, a saber, batismo, confirmão e casamento. Para o autor, “num certo sentido,
batismo e confirmação são preparações para esta última transição”
315
, a saber, a morte. O
autor não descreve o ritual da morte e enterro, mas indica para algumas práticas a ele
relacionadas, em especial aquelas que acontecem ao lado do rito oficial executado pelo
ministro religioso. Por exemplo, “derrubar as cadeiras ou os cavaletes sobre os quais o caixão
tinha sido colocado”
316
para que o espírito do falecido não volte mais à casa. Desta maneira,
segundo o autor, se marca a transição como algo definitivo, encerrando uma fase [que,
conforme Van Gennep, seria um rito de separação sic]. Neste sentido, o autor também
interpreta a prática de alguém limpar a casa inteira da família da pessoa falecida durante o
tempo em que todos estão no cemitério.
317
Ritos de separação também se expressam na
despedida ao falecido, quando se coloca as próprias mãos sobre as mãos da pessoa falecida [e
no mesmo sentido, quando se joga três punhados de terra sobre o caixão já baixado na
sepultura - sic], bem como de ajoelhar-se ao redor da sepultura antes de voltar para casa
318
.
Em sua reflexão sobre as cerimônias que acompanham o evento morte, Azevedo
constata o seguinte:
diversas mudanças na sociedade moderna afetam tais celebrações, sob a influência
da urbanização e da secularização dos valores, dos costumes, dos sentimentos e,
também, do caráter da morbidade e da mortalidade, com a redução da incidência de
doenças que prolongavam agonia e prenunciavam o desenlace e com o sistema de
hospitalização dos casos graves, em vez do acompanhamento em casa.
319
Essas mudanças que Azevedo aponta são, na opinião do autor, menos acentuadas
nos meios mais conservadores das zonas rurais e das camadas modestas e menos
modernizadas das populações
320
.
314
Uma descrição mais minuciosa do que acontece quando alguém morre no meio pomerano é encontrada em
ROELKE, 1996, p. 78–84. Muitos dos costumes antigos relatados por esse autor ainda são observados hoje no
meio pomerano.
315
DROOGERS, 1984, p. 62.
316
DROOGERS, 1984, p. 62.
317
DROOGERS, 1984, p. 63.
318
DROOGERS, 1984, p. 63.
319
AZEVEDO, 1987, p. 60.
320
AZEVEDO, 1987, p. 61.
68
e) Outras passagens
Azevedo ainda assinala que os aniversários são festividades caracteristicamente de
passagens. “Aniversários celebrados com variada solenidade são os cinqüentenários ou
centenários e até sesquicentenários de nascimento e morte de celebridades na política, nas
letras, nas artes.”
321
Outros tipos de aniversários muito festejados no ciclo da vida, porque
“marcam virias sobre o tempo e a morte
322
, são os de setenta, oitenta ou até cem anos.
Passagens, especialmente comemoradas, são as que recordam as datas do casamento,
principalmente, as chamadas bodas de prata (para os vinte cinco anos), bodas de ouro (para os
cinqüenta anos), bodas de diamante (para os sessenta anos), etc. Na opinião do autor, no
Brasil, essas datas têm “uma importância crescente como que a aplaudir a consncia no amor,
na convivência, na reciprocidade entre os nubentes por tempos tão prolongados”
323
.
Entre os ritos de passagem assinalados por Azevedo, os quais podem ser verificados
em nosso contexto, em diversas congregações religiosas está o de ordenação para o
sacerdócio, o qual inclui: aprovação no curso, graus preparatórios, consagração, uão, votos
de castidade, obediência e pobreza, prostração, tonsura e uso de vestes litúrgicas
324
. Na
mesma categoria e com procedimentos idênticos encontram-se os ingressos às ordens
religiosas femininas e aos noviciados (o noviciado corresponde ao “tempo de experiência e
provação moral que precede a profissão nas ordens e congregações”
325
).
f) Observações finais
Conforme Azevedo, os rios procedimentos adotados para marcar o
desenvolvimento humano, biológico e social, mostram que o ciclo da vida
é um suceder quase ininterrupto de ritualizações de seus momentos mais relevantes
para a solidariedade social, acentuando seu caráter litúrgico pela exincia de
determinados uniformes para os militares, de traje a rigor para os civis vestido de
baile, duque ou terno de cor sóbria, tendente à escura – traje de passeio com gravata;
em nossos dias, camisa esporte discreta e, conforme a importância do ato, o uso de
paramentos sacros dos padres, ministros, rabinos, pais e mães-de-santo etc.
326
Com base no que foi visto até aqui, pode-se verificar a persistência de diversos ritos
de passagem tradicionais na sociedade atual, sendo os principais momentos de transição da
vida cercados por rituais. No entanto, ainda que de forma breve, foi apontado para o fato de
321
AZEVEDO, 1987, p. 34.
322
AZEVEDO, 1987, p. 34.
323
AZEVEDO, 1987, p. 35.
324
AZEVEDO, 1987, p. 44.
325
AZEVEDO, 1987, p. 45.
326
AZEVEDO, 1987, p. 35.
69
que mudanças na sociedade atual afetam as celebrações dos ritos de passagem. Azevedo, por
exemplo, fala da influência da urbanização e secularização da sociedade moderna sobre os
ritos da morte e lembra que, em relação ao casamento, os novos tipos de uniões fogem ao
padrão tradicional e carecem de novas formas rituais. Neste sentido, é útil acrescentar o que
Borchardt tem observado no meio pomerano. Ele afirma que muito da cultura pomerana ainda
é preservada na região da Mata Fria
327
, Espírito Santo. Contudo, o que se na vida diária
desse povo, dos dias atuais, é a absorção gradativa de elementos do mundo globalizado, sob
influência do capitalismo consumista
328
. Em seu trabalho pastoral junto a esse povo,
Borchardt diz ter acompanhado muitas transformações na vida dos pomeranos. “Alguns
aspectos da cultura pomerana se perderam ou sofreram modificões. Outros, no entanto,
resistem e permanecem vivos.”
329
Em relão aos cultos de confirmação, por exemplo, os
rapazes e as moças trocaram as tradicionais vestes de confirmação por roupas da moda dos
tempos atuais. O casamento, por sua vez, embora continue sendo uma festa de grande
imporncia social no meio pomerano, sofre alterações em sua forma. Por exemplo, muitos
começam a utilizar o convite impresso; ao invés de receber os tradicionais presentes dos
convidados, os noivos preferem dinheiro; a sica de concertina é trocada pela eletrônica,
entre outros.
Para aprofundar o assunto sobre as mudanças que se observam nos ritos de passagem
tradicionais, é útil incluir algumas reflexões de Segalen que, a partir de um outro contexto, o
europeu, faz observações pertinentes.
Tomando como eixo cronológico “do berço ao túmulo”, Segalen diz que hoje a
entrada no mundo é pouco ritualizada
330
, pois o batismo, segunda ela, está em franca
regressão. A ausência de ritualizão dessa passagem pode ser constatada ao se observar que
outras formas substituem o registro de momentos importantes do nascimento, como por
exemplo, a prática de as mães anotarem no “Livro do Bebê” as “primeiras” vezes da criança
(primeiro sorriso, primeiro dente, etc)
331
. A autora é da opinião de que novos ritos se
desenvolvem no círculo familiar para celebrar a maturação do indivíduo. As festas de
327
Mata Fria ou Distrito Mata Fria é o nome dado à área geográfica que inclui a região de Três Pontões, a bacia
do Córrego Francisco Correia e a Cabeceira do Rio Santa Joana, no estado do Espírito Santo. Cf.
BORCHARDT, Joaninho. A influência do avanço tecnológico na vida dos pomeranos da região da Mata
Fria e sinais da prática da ética e da solidariedade. Vitória: EST / IEPG, 2006. (Trabalho de conclusão de
Curso de Especialização em Ética, Cidadania e Subjetividade). p. 5.
328
BORCHARDT, 2006, p. 16.
329
BORCHARDT, 2006, p. 16.
330
SEGALEN, 2002, p. 57.
331
SEGALEN, 2002, p. 57.
70
aniversário das crianças o cada vez mais desenvolvidas e incrementadas. O casamento, por
sua vez, continua sendo celebrado sem, contudo, marcar as tradicionais passagens. Os ritos do
casamento “adquirem outro sentido e, sob uma forma aparentemente intocada, conferem
publicidade a um ato de compromisso que foi estabelecido muito tempo através de
pequenas etapas, na prática das relações do casal.”
332
A mesma evolução se observa nos ritos
mortuários. “A última passagem é agora celebrada de maneira bastante modesta, sobretudo, se
comparada às maneiras de tratar a morte nas comunidades rurais ou nas pompas funerárias
das burguesias ao final do século XIX.”
333
O tempo de luto diminui, não mais sinais
públicos, a exemplo do vestir-se de negro. O rito reduz-se a uma expreso mais simples,
“sem cerimônia religiosa ou até mesmo sem palavras junto ao túmulo que permitiriam a
manifestação da dor”
334
. A coletividade, que participa de uma emoção comum, não está mais
presente no enterro. Segundo Segalen, o desmoronamento do ritual está diretamente ligado à
quebra da crença na vida além da morte
335
. A autora diz:
Tanto o retraimento dos sinais exteriores da morte quanto o desenvolvimento da
descrença num além atrapalham o trabalho do luto, de modo que novas práticas,
como incineração, cada vez mais difundidas, deixam todos pouco à vontade, sem
referências para realizar gestos que acalmam a tristeza dos vivos e fazem o defunto
assumir o seu lugar entre os mortos, a começar por um lugar físico. De fato, como
materializar a presença de um ser querido, se as suas cinzas foram dispersas num
bosque sem deixar vestígios? Como honrar e pensar “nossos” mortos nos
cemitérios-jardins, se neles é proibida a oferta pessoal de flores?
336
A morte gera desordem e, por isso, os gestos que a acompanham, os quais são
manifestados em todas as culturas, ajudam as pessoas a retomarem o curso normal da vida.
Enterros desritualizados deixam os sobreviventes desamparados, diz Segalen.
337
Mas,
conforme essa autora, novos rituais estão sendo gestados. Hoje os novos ritos focalizam mais
a individualidade do defunto, as cerimônias estão mais personificadas. Nesse sentido, a autora
afirma que o rito não foi erradicado, mas transformado. Ela fala de uma “privatização dos
ritos da morte inscrita nos valores do individualismo do final do século XX”
338
. Entre nós, diz
Segalen, ainda se observam ritos de festa aos mortos, com missas e visitas aos cemitérios no
dia de Todos os Santos [e Finados]. Assim, a morte continua sendo celebrada ritualmente, nos
dias de hoje, mesmo que de forma intimista e solitária.
332
SEGALEN, 2002, p. 58.
333
SEGALEN, 2002, p. 58.
334
SEGALEN, 2002, p. 58.
335
SEGALEN, 2002, p. 59.
336
SEGALEN, 2002, p. 59.
337
SEGALEN, 2002, p. 59.
338
SEGALEN, 2002, p. 61.
71
Em resumo, constata-se, no estudo acima, que há ritos de passagem tradicionais que
persistem na sociedade atual
339
, mas chama-se ateão para as mudanças que se observam no
tempo atual e suas conseqüências para os ritos de passagem. Para uma melhor compreensão
sobre o teor dessas mudanças e as alterações que elas causam nos ritos, cabe, neste momento,
olhar mais de perto para a sociedade atual e perguntar: quê mudanças são essas?
1.4.2 A modernidade e a pós-modernidade: uma mudança de época
A pergunta pelas mudanças que caracterizam a sociedade atual conduz
necessariamente o nosso olhar para a passagem do novo milênio, um momento histórico
relevante que assinala mudanças sociais e culturais significativas, as quais dão novos
contornos à sociedade dos tempos atuais. No dizer de Queiroz, essas mudanças são saudadas
por muitos como “o despontar da era s-moderna, cujos paradigmas estariam sepultando a
Modernidade”
340
. Para Lyon, o s-moderno se refere, acima de tudo, ao “esgotamento da
modernidade”
341
. Ao utilizar a expressão “pós-moderna”
342
, os autores visam assinalar
diferenças relevantes em relação à cultura moderna, a qual caracteriza o período histórico do
modernismo, cujas refencias fundamentais são o renascimento, o iluminismo e a revolução
francesa
343
. Como diz Lyon, “o pós-modernismo questiona as premissas básicas do
Iluminismo
344
. Com base em Lyotard, Feitosa assinala que a característica fundamental do
pensamento pós-moderno é a afirmão da diferença e do pluralismo; questiona-se um
339
Antes de finalizar o assunto desta seção, cabe mencionar que a reflexão sobre os ritos de passagem
tradicionais é tema de uma edição da revista Life, de título: BIRTH, adolescence, marriage, death: the journey of
our lives: a special issue in pictures celebrating the most important moments in every lifetime. Life, New York,
outubro, 1991. Nesta edição, rica em imagens de momentos rituais, a revista enfoca aspectos dos ritos de
nascimento, adolesncia, casamento e morte, englobando diferentes contextos culturais, religiosos e geográficos
de épocas distintas. Trata-se de uma visão geral do que existe em termos de ritos de passagens tradicionais, de
ontem e de hoje.
340
QUEIROZ, José J. As religiões e o sagrado nas encruzilhadas da pós-modernidade. In: QUEIROZ, José J. et
al. Interfaces do sagrado: em véspera de milênio. São Paulo: CRE PUC / Olho d‘Água, 1996. p. 9.
341
LYON, David. Pós-modernidade. São Paulo, Paulus, 1998. p. 16. Esse autor chama atenção para a seguinte
questão: o pós-moderno pode-se referir à exaustão da modernidade, contudo, isto não significa simplesmente
anunciar o seu fim. Desta forma, não estaria ele abrindo espaços para uma avaliação da modernidade? Cf.
LYON, 1998, p. 33.
342
O termo pós-moderno” começou a ser usado a partir da década de 1960, na literatura, pintura, música e
arquitetura. Na filosofia, o termo ganha significado a partir de 1979 com o filósofo francês Jean-François
Lyotard (1924-1998), segundo o qual a modernidade “era marcada por uma vontade de instauração de uma
unidade de sentido para os fenômenos da realidade”, sendo o momento histórico [do pós-modernismo] marcado
“pela perda de credibilidade na idéia de unidades totalizantes”. FEITOSA, Charles. Pós-Moderno (pensamento).
In: TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos (Coord.). Enciclopédia de guerras e revoluções do século XX: as
grandes transformações do mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 702-703.
343
BARRACLOUGH, G. Introdução à história contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 1966. p. 12-13.
344
LYON, 1998, p. 17.
72
discurso único e definitivo sobre o que é bom, justo e verdadeiro
345
. Conforme o autor, para
Lyotard o projeto dos modernos, baseado no discurso da unidade de sentido para os
fenômenos da realidade, era liberar a humanidade da ignorância e da miséria, no entanto, tal
projeto resultou numa sociedade que permitiu o imperialismo, a guerra, o desemprego e o
desrespeito à vida
346
.
Segundo Queiroz, essa época pode ser descrita da seguinte forma: o avanço
extraordinário da tecnologia deu à pós-modernidade a caractestica de era pós-industrial. “É
inegável que o sistema produtivo atual marca longa distância com relação ao do século
passado, que se estendeu até a primeira metade do século XX.”
347
O mundo, hoje, é visto
como um supermercado global, cujos produtos sustentam a marca da “descartabilidade”
(capitalismo de consumo). Isto se deve à conquista s-moderna da memória eletrônica o
computador, a qual facilitou uma aceleração no ritmo de produção (assim como na oferta e
venda do produto). Tornou-se muito curto o tempo entre a descoberta de um produto e a sua
circulação no mercado de consumo. A descartabilidade dos produtos impõe-se como uma
necessidade do mercado para que os novos lançamentos tenham lugar garantido. Mercado e
consumo, portanto, “são fatores fundamentais da sociedade s-industrial”
348
. A atual
sociedade funda-se sobre alta tecnologia e informatização, com abundante oferta de bens e
serviços. Uma das conseqüências graves desse sistema é que, com a automatização da
produção, a o-de-obra tende a ser excluída; “trabalhador e trabalho tornam-se fatores cada
vez mais desvalorizados enquanto o mercado se erige como o centro nevrálgico, o coração do
novo sistema”
349
. Cresce o desemprego, assim como o setor informal da economia. No dizer
de Andrade, a exclusão que surge nesse contexto é um fenômeno novo em sua forma e
extensão. “Diversos grupos humanos não têm, por diferentes razões, suas necessidades
atendidas pelo mercado que se alarga. São colocados à sua margem ou fora dele, fazendo
emergir uma nova forma de pobreza, em muitos casos, absoluta.”
350
A produção s-
345
FEITOSA, 2004, p. 703.
346
FEITOSA, 2004, p. 703.
347
QUEIROZ, 1996, p. 9.
348
QUEIROZ, 1996, p. 10. Com uma produção sustentada por uma tecnologia super-avançada, novos mercados
necessitam ser conquistados, o que implica a superação de antigas barreiras. No entanto, as políticas
protecionistas adotadas, sobretudo, pelos países ricos, coíbem a importação de produtos dos países pobres,
contribuindo com a manutenção da distância entre estes.
349
QUEIROZ, 1996, p. 9.
350
ANDRADE, Paulo Fernando Carneiro de. Novos paradigmas e teologia latinoamericana. In: ANJOS, rcio
Fabri dos (Org.). Teologia e novos paradigmas. São Paulo: Loyola / SOTER, 1996. p. 54.
73
moderna, portanto, é um aspecto que introduz marcas profundas na vida do ser humano
contemporâneo
351
.
Além das transformações no âmbito econômico da vida social, os autores vêem
emergir uma profunda crise da cultura. À medida que a sociedade industrial é superada,
simultaneamente esgota-se a cultura a ela relacionada. Nesse sentido, diz Andrade: “A crise
da modernidade é a crise de seu paradigma e dos projetos a ela associados.”
352
A
modernidade iluminista avançou em seu projeto libertário, diz Andrade, mas não plenamente.
Toda a verdade encontrava-se subordinada à razão, mas nem tudo se resolveu pela via da
racionalidade. Algumas queses, hoje consideradas cruciais, não foram encaradas pela
modernidade como necessidades vitais, como por exemplo, a questão ecológica e a
subjetividade. A busca do progresso e a afirmação do valor do indivíduo acabam por levar “à
desvalorização da natureza e de outras formas de vida, gerando a idéia de um pretenso direito
de a humanidade racional dominar e subjugar sem limites o que não é racional”
353
. Hoje, os
resultados desse modelo de desenvolvimento industrial, da sociedade moderna, no que diz
respeito à ecologia, se apresentam como uma ameaça à vida global planetária (aquecimento
da terra, desequilíbrio climático, poluição das águas, etc.). Embora o indivíduo esteja no
centro da cultura moderna, ele é reduzido à dimensão racional e, conseqüentemente, a
subjetividade lhe é negada. Afetividade, mística, espiritualidade, paixão, estão subjugadas à
razão, em nome da própria felicidade humana. O que foge ao controle da razão é considerado
falso ou inferior. “O processo civilizatório passou então a ser entendido como um processo de
progressiva racionalização, em que homens e mulheres tornam-se cada vez mais humanos ao
clarificarem-se por meio da crítica da razão e do controle de sua subjetividade.
354
Com a
crise da modernidade, a crítica que surge em relação a ela, na pós-modernidade, pode ser
representada por três grandes tendências, indica Andrade.
A primeira tendência é encontrada nos movimentos neofascistas e fundamentalistas,
os quais assumem uma posição de recuo diante da modernidade, por causa dos resultados
apresentados e das frustrações experimentadas.
A segunda tendência é identificada como a de uma cultura hedonista e niilista. Essa
se constitui numa reação à modernidade ao tentar esboçar um avanço nos valores por ela
enfatizados, através de uma troca da razão pela subjetividade.
351
QUEIROZ, 1996, p. 10.
352
ANDRADE, 1996, p. 55.
353
ANDRADE, 1996, p. 55.
354
ANDRADE, 1996, p. 56.
74
Nega-se, nesta tendência, a possibilidade de a razão moderna levar homens e
mulheres à felicidade. Caminha-se então rumo ao mais radical individualismo, no
qual a pessoa se dobra sobre si mesma que fora de si nada é seguro, objetivo ou
não ambíguo. A exacerbação da subjetividade em detrimento da objetividade leva
em alguns casos a uma dissociação total entre esfera pública e privada com a
atribuição de valor somente a esta última e o desprestígio da política e da noção de
representatividade. Este individualismo radical e a negação do valor da
racionalidade moderna acabam por produzir uma identidade fragmentada e a
percepção da sociedade como desprovida de qualquer historicidade, não
interessando mais nem o passado nem o futuro, só o presente.
355
Nesta tendência há uma relativização dos valores e das idéias. Indiferentismo,
descrédito ao saber científico, desprestígio da educação formal e das instituições clássicas,
falta de sentido na vida e degradação existencial, perda da capacidade de produzir sentimentos
e, ao mesmo tempo, busca de sensações cada vez mais fortes, são aspectos dessa segunda
tendência. Também se observa um esvaziamento do significado de duas instituições típicas da
modernidade, o matrinio e o trabalho. O trabalho perde a dimensão de vocação. “O amor e
o casamento passam a ser concebidos tão-somente como fonte de gratificação pessoal e,
dissociados da idéia de família e filhos, deixam de ser vividos como matriz de relações
sociais”
356
.
A terceira tendência, sintetizada por Andrade, diz respeito à “emergência de uma
nova cultura que procura superar a primeira Modernidade”
357
. Nessa nova cultura busca-se
traçar uma nova forma de subjetividade.
Esta cultura tem como base antropológica uma compreensão da pessoa humana
como ser racional, mas também como ser de sentimentos, afetos, paixões, intuições
e mística, em suma um ser pluridimensional. A subjetividade humana é considerada
como um valor em si, não devendo ser reduzida e dominada pela racionalidade
objetiva. A razão moderna não é mais compreendida de modo exclusivo como fonte
e caminho de felicidade. Esta deve ser buscada também na satisfação de dimensões
humanas que se colocam para além da razão científica, vista agora como uma
“razão” entre outras.
358
Nesta nova cultura, as diferenças são valorizadas; surge uma nova sensibilidade com
respeito à liberdade; a visão pluridimensional da pessoa é concebida em termos de unidade e
não como fragmento, novas sínteses do saber e das experiências humanas são construídas e a
interdisciplinaridade recebe nova ênfase. A globalização, nesta tendência, não é concebida
como uniformização, mas é vista também como “possibilidade de afirmação e divulgação da
355
ANDRADE, 1996, p. 57.
356
ANDRADE, 1996, p. 58-59.
357
ANDRADE, 1996, p. 59.
358
ANDRADE, 1996, p. 59.
75
cultura local
359
. Questões como solidariedade, responsabilidade perante a natureza,
cidadania, o valores sustentados por essa nova cultura.
Todas essas tendências são consideradas por Andrade como possibilidades culturais
que emergem no mundo atual diante da crise da modernidade. Elas, contudo, o esgotam os
caminhos alternativos, diz ele.
Outra questão discutida pelos autores sobre as mudanças que se percebem na
sociedade pós-moderna diz respeito ao campo das religiões. Na avaliação de Queiroz, alguns
teóricos vêem a pós-modernidade como uma época em que se proclama o fim dos valores, dos
ideais e de instituições tradicionais (como por exemplo, família, revolução, Estado, produção,
consciência, sujeito, razão, Deus, etc.)
360
e, em seu lugar, outros elementos estariam surgindo,
voltando-se estes mais para o indivíduo e o seu cotidiano.
Lê-se, com muita freqüência, que o homem pós-moderno não é religioso. Como
maioria silenciosa, ele foge do social, abandona o futuro e as utopias, torna-se
apático frente à política e deserta da religião. Para alguns, o pós-moderno é o túmulo
da . Para outros instaura uma sem Deus. A crença se transforma em uma busca
psicológica, que não desemboca em nenhum Ser transcendente. A salvação está na
mente, na iluminação, o mais na alma a caminho da condenação ou do paraíso.
361
Na avaliação de Prandi, ainda o existe uma teoria sobre o lugar da religião na
“sociedade do planeta global
362
. Ele expressa esse seu pensamento da seguinte forma:
A melhor orientação teórica à mão está na definição da própria modernidade; é uma
teoria “antiga” e ainda nos ensina que o mundo contemporâneo é um mundo
desencantado. Por ela sabemos que vivemos numa época em que a sociedade se
descartou em grande parte da religo e a religião, da magia.
363
Mas, observa o autor, parece contraditório falar em desencantamento da religião se
estamos numa época de grande vigor religioso; crenças novas e velhas se propagam e se
multiplicam mundo afora
364
. Os cientistas da religião, na opinião de Queiroz, têm como
grande desafio interpretar as inúmeras manifestações do sagrado que explodem em todos os
cantos da terra, sem tachá-las superficialmente. Sem dúvida, diz esse autor, “desponta um
novo caminho da religião que, em muitos aspectos, se afasta dos moldes tradicionais.”
365
Se,
por um lado, instituições religiosas sendo esvaziadas, por outro, surgem novas formas de
359
ANDRADE, 1996, p. 60.
360
QUEIROZ, 1996, p. 13.
361
QUEIROZ, 1996, p. 14.
362
PRANDI, Reginaldo. A religião do planeta global. In: Ari Pedro ORO e Carlos Alberto STEIL (Orgs.).
Globalização e religião. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 63-70.
363
PRANDI, 1997, p. 63.
364
PRANDI, 1997, p. 63.
365
QUEIROZ, 1996, p. 15.
76
expressar o sagrado. “Observa-se, também, que nem todas as instituições religiosas
tradicionais passam pela ‘crise demográfica’.“
366
Entre estas se encontram o islamismo, o
hinduísmo, o budismo. Nunca se inventaram tantas religiões como hoje, o que tem levado
muitos observadores a acreditarem numa espécie de reencantamento do mundo.”
367
Segundo Paleari, a modernidade quis eliminar a religião, negando a sua validade,
chamando-a de alienão, ideologia ou ignorância. Ela é vista como uma era em que se travou
uma batalha contra a explicação religiosa da vida. “Enraizada no princípio da razão
instrumental e do cientificismo, relegou o fenômeno religioso a um segundo plano. Somente
as explicações racionais e a aplicação do método experimental podiam representar a
verdadeira resposta do conhecimento, e não as crenças religiosas.”
368
Esta idéia encontra-se
na base da teoria da secularizão. Berger avalia tal teoria e aponta para os seus equívocos. A
expressão “teoria da secularização”, explica esse autor, refere-se a trabalhos dos anos 1950 e
60, mas a sua idéia central pode ser encontrada no iluminismo. Ela se baseia no seguinte: a
modernização leva necessariamente a um declínio da religião, tanto na sociedade como na
mentalidade das pessoas”
369
. Essa idéia central, diz Berger, se mostrou estar errada. A
secularização teve efeitos secularizantes, mas “ela também provocou o surgimento de
poderosos movimentos de contra-secularização”
370
e, assim, fez com que crenças e práticas
religiosas antigas ou novas permanecessem na vida das pessoas
371
. Na visão de Paleari, a
modernidade “não não eliminou o fenômeno religioso, mas multiplicou as formas
religiosas, não mais controladas exclusivamente pelas religiões estabelecidas”
372
. As formas
religiosas subsistiram nas camadas populares e surgiram novas formas de ritos nas camadas
mais intelectualizadas, sendo que estes foram adquirindo características mais profanas
373
.
No entender de Queiroz, um fenômeno do pós-moderno, que acontece no campo
religioso, é o do “nomadismo místico
374
. Assim ele explica:
Mesmo permanecendo nominalmente vinculado a uma forma tradicional de culto,
que em geral herdou do berço materno, a tendência religiosa do homem s-
366
QUEIROZ, 1996, p. 16.
367
PRANDI, 1997, p. 63.
368
PALEARI, 2000, p. 28.
369
BERGER, Peter. A dessecularização do mundo: uma visão global. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v.
21, n. 1, p. 9-24, 2001. p. 10.
370
BERGER, 2001, p. 10.
371
BERGER, 2001, p. 10.
372
PALEARI, 2000, p. 28.
373
PALEARI, 2000, p. 27-28.
374
QUEIROZ, 1996, p. 16-17.
77
moderno é um trânsito constante pela constelação religiosa, compondo, nessas
inúmeras viagens, um sentido para a existência.
375
Uma das conseqüências dessa forma de religião é, sem dúvida, a ênfase no indivíduo
e na objetificação da religião enquanto produto de consumo. Prandi diz que a cultura do
consumo no mundo globalizado é muito condizente a um tipo de religião que reforça o
individualismo
376
, até porque os principais meios de comunicação desse tipo de religião (a
televisão e a internet) dispensam a presença da comunidade.
Muitas são as características do contexto atual que marcam não uma época de
mudanças, mas uma mudança de época
377
, ou seja, a passagem da modernidade para a pós-
modernidade. E diante das mudanças que caracterizam essa “mudança de época”, surgem
perguntas que se relacionam, em especial, com os ritos de passagem. Quê conseqüências essas
mudanças têm sobre os ritos de passagem? Os ritos de passagem têm lugar e função na
sociedade pós-moderna ou estariam eles em crise?
1.4.3 Os ritos de passagem estão em crise?
O autor do artigo “Rituais emergentes na cultura contemporânea”, inicia com o
subtítulo “Guerra contra o rito?”. Segundo Mitchell, existe uma opinião, entre especialistas da
América do Norte, de que está sendo travada uma guerra contra o rito na sociedade e na igreja
contemporâneas
378
. Por exemplo, esses especialistas constatam que a liturgia dominical típica
das paróquias católico-romanas nos Estados Unidos “se caracteriza por um ‘minimalismo
ritual’, com ‘poucos indícios de cerimônia e esplendor ritual
379
. Na análise dos
especialistas, os católicos romanos americanos absorveram a cultura americana dominante e
desenvolveram liturgias mais pragmáticas do que simbólicas, mais individualistas do que
comunitárias. Na opinião deles, a autonomia pessoal passou a determinar o valor ético em
detrimento da vida comunitária.
A conseqüência, como se queixam o sociólogo Robert Bellah e seus colegas, é uma
cultura (e uma Igreja) que acreditam na inviolável sacralidade do indivíduo solitário.
(...) Esse rígido individualismo, afirma Bellah, desemboca numa radical
incapacidade para a comunidade. A pertença à comunidade é buscada apenas como
375
QUEIROZ, 1996, p. 17.
376
PRANDI, 1997, p. 68.
377
Essa formulação é extraída do livro: DE MASI, Domenico et al. Diálogos criativos. Rio de Janeiro: Sextante,
2008. p. 16.
378
MITCHELL, Nathan. Rituais emergentes na cultura contemporânea. Concilium: a liturgia e o corpo,
Petrópolis: Vozes, n. 259, p. 160-171, 1995. p. 162.
379
MITCHELL, 1995, p. 162.
78
meio de auto-realização, e por isso os ritos públicos que são os meios para manter
a coesão social, a identidade, os sentidos e valores – tornaram-se ocasiões para
celebrar opções de estilo de vida” pessoais, ou para fazer pressão em favor de
“interesses particulares”.
380
Para esses especialistas, que vêem a cultura norte-americana desprovida de ritos
públicos convincentes ou mesmo “sem ritos”, os jovens, em tal contexto, o impedidos de
“fazerem uma transição satisfaria para a idade adulta”
381
, podendo esta situação ser a
responsável por uma enorme quantidade de problemas sociais, tais como o envolvimento com
drogas, a formação de gangues, a teno racial e o crime violento
382
. Levando em conta essas
análises, Mitchell pergunta se tais queixas se justificam e se esta sociedade é realmente uma
sociedade “sem ritos” ou está “travando guerra contra os ritos”
383
. Sobre esse assunto Mitchell
se apóia num estudo de Kertzer, que defende a tese de que os ritos de transição, na sociedade
americana de hoje, continuam desempenhando papel central. Ele cita o rito de formatura do
colégio como um exemplo de rito que proporciona um ponto de referência muito importante
para os jovens daquele país. Esse rito assinala, publicamente, uma mudança de status e
celebra uma diversidade de valores
384
. Para Kertzer, confirma Mitchell, os ritos públicos
tornaram-se concretamente mais apurados à medida que a cultura americana se tornou mais
ampla e mais complexa
385
. Um exemplo é o Dia de Ação de Graças uma estação festiva
altamente ritualizada. O autor os ritos como instrumentos muito importantes para manter a
solidariedade entre grupos de parentes em sociedades que se tornam cada vez mais móveis,
onde os membros de uma família, por exemplo, não residem mais no mesmo lugar. Numa
sociedade onde “a família ‘nuclear’ tradicional estável parece estar se desintegrando, lares
desfeitos e lares monoparentais são cada vez mais comuns”
386
, os rituais, tais como o
casamento, batizados, aniverrios, funerais, natal, etc., são ricas oportunidades para a
convocação da família. Neste sentido, assinala Mitchell, os eventos rituais que reúnem as
pessoas se tornam um marco referencial de pertença a uma família. Ironicamente, observa o
autor, “numa sociedade americana contemporânea supostamente ‘sem ritos’, os laços rituais
tornaram-se mais fortes do que o sangue!”
387
.
380
MITCHELL, 1995, p. 162–163.
381
MITCHELL, 1995, p. 163.
382
MITCHELL, 1995, p. 163.
383
MITCHELL, 1995, p. 163.
384
MITCHELL, 1995, p. 163.
385
MITCHELL, 1995, p. 163. Grifo do autor.
386
MITCHELL, 1995, p. 164.
387
MITCHELL, 1995, p. 164. Grifo do autor.
79
Kertzer, no dizer de Mitchell, conclui que a sociedade contemporânea é uma
sociedade “sem ritos” somente para aqueles que têm uma definição restrita de rito que, para
ele, não é um conjunto limitado de características “(por exemplo: rito como algo ligado à
tradão, repetitivo, formal, refratário a mudanças, pré-crítico, não-autoconsciente, coletivo
e referencial)”
388
. O autor explica que os dados etnográficos e psicológicos “comprovam a
atual proliferação de rituais, especialmente entre grupos de mulheres, famílias em terapias, e
indivíduos ou grupos que enfrentam transições intergeracionais ou interculturais”
389
. Assim
sendo, “o rito está vivo e forte onde quer que as pessoas busquem respostas críticas e originais
‘a configurações sociais radicalmente mudadas’ ”
390
. Portanto, o surgimento de novos rituais
é resultado de uma nova compreensão das condições e pressões sociais, diz Mitchell
391
.
O que acontece na cultura contemporânea, na análise de Mitchell, é o que Grimes
chama de “ritual emergente”. Segundo Grimes, as tradições rituais podem ser inventadas ou
reinventadas, conforme as necessidades dos grupos sociais existentes e as novas condições a
eles impostas
392
. Os rituais emergentes crescem na vida familiar americana e irrompem
especialmente nas margens da sociedade, entre aqueles setores “muitas vezes estigmatizados
como ‘moralmente’ degenerados”
393
, a exemplo de alcoólatras e doentes com AIDS, sustenta
Mitchell. Exemplos desses rituais, conforme destaca o autor, encontram-se na associação dos
Alcoólicos Anônimos (AA), os quais são classificados como “rituais de reconciliação e
recuperação
394
. Mitchell conclui que
não se pode sustentar a tese de uma cultura moderna sem ritos”. Na sociedade
americana, tanto os rituais “tradicionais” como os “emergentes” estão em evidência
por toda a parte, quer se olhe para o nível micro” (indivíduo, família, pequeno
grupo) ou para ovel “macro” (cultura, instituição).
395
Levando-se em conta a conclusão desse autor sobre a presença marcante do rito na
cultura contemporânea, seja sob forma tradicional ou emergente, considera-se que dentre estes
ritos estão os de passagem; sim, porque em toda cultura, em qualquer tempo e lugar, as
pessoas continuam vivendo, passando e ritualizando os momentos de transição na vida. Como
388
MITCHELL, 1995, p. 164. Grifo do autor.
389
MITCHELL, 1995, p. 164.
390
MITCHELL, 1995, p. 164.
391
MITCHELL, 1995, p. 164-165.
392
MITCHELL, 1995, p. 166; GRIMES, Ronald. Reading, writing, and ritualizing: ritual in fictive, liturgical,
and public places. Washington, DC: The Pastoral Press, 1993. p. 5-7; 23-24.
393
MITCHELL, 1995, p. 167-168.
394
MITCHELL, 1995, p. 168. Nas páginas 168 a 171, o autor descreve como se desenvolve os rituais de
reconciliação e recuperação.
395
MITCHELL, 1995, p. 171.
80
bem expressa Boróbio: “Falta alguma coisa, algo não está em ordem quando, ao nascer, ao
casar-se ou ao morrer não ‘se fazem os ritos’.”
396
Na seção anterior foram apontadas questões que caracterizam o momento atual, da
sociedade s-moderna, e dentre essas se destacam as mudanças que se observam no campo
das religiões. Frisou-se que a modernidade sustentou a tese do declínio da religião e da crise
das instituições religiosas tradicionais e que a pós-modernidade assiste a uma multiplicação
de formas religiosas e o fortalecimento de algumas religiões tradicionais. Berger, em sua
reavaliação da “teoria da secularização”, conclui que ela fracassou e, ao refletir sobre a
dessecularização do mundo, ele faz a importante afirmação de que: “O impulso religioso, a
busca de um sentido que transcenda o espaço limitado da existência empírica neste mundo,
tem sido uma característica perene da humanidade.”
397
Para o autor, esta é uma tese
antropológica eo teológica! Considerando esta tese de Berger e o fato de que ritos e
religião se associam
398
, pode-se afirmar que enquanto houver religião, haverá formas rituais
que expressem o sentimento religioso e a busca pelo sagrado e transcendente e, nesse sentido,
assim como mudam as formas religiosas, concomitantemente as formas rituais se renovam.
Pagliari, considerando o pluralismo cultural e religioso como característica da
sociedade pós-moderna, compreende a nova configuração ritual-religiosa da seguinte forma:
Não existe mais um único sistema ritual que possibilite às pessoas se iniciarem num
contexto homogêneo de coesão e de pertença, mas isso não significa que,
naturalmente, desapareceriam os espaços de ritualização da vida. Antes de tudo, a
“tradição é substituída pela opção” dentro de uma variedade de ofertas
religiosas” e de “agências de sentido”. O mistério da vida, desde o nascimento até a
morte, continua envolvendo as pessoas também na época pós-moderna. Só que hoje
não mais uma única agência religiosa que capte e desenvolva o sentido e as
aspirações da vida. Estamos diante de uma multiplicidade de agências e cada
indivíduo, dentro dos parâmetros de sua história de vida, vai escolhendo e optando.
Um pode ser batizado no ritual católico, aceita, mais tarde, o batismo no Espírito
numa das igrejas pentecostais, casa-se, sucessivamente, num terreiro de candombe
é enterrado de acordo com as tradições budistas.
399
Esta seção foi aberta com a pergunta sobre a crise dos ritos. Para Mitchell, os ritos
estão em evidência por toda a parte, seja na forma tradicional ou emergente. pessoas e
grupos buscando respostas críticas, por meio dos ritos, para situações socialmente novas.
396
BOROBIO, Dionísio. Os “quatro sacramentos” da religiosidade popular. Concilium: ritos de passagem e
cristianismo: fundamentos antropológicos e psicológicos, [s.l.], n.132, p. 76-101, 1978. p. 91.
397
BERGER, 2001, p. 9-24.
398
Lembrando o que foi verificado no início deste capítulo, é Durkheim quem associa religião e rito. Como já
observado por esse autor, o pensamento religioso inclui dois elementos: as crenças e os ritos. As crenças
religiosas são representações que expressam a natureza das coisas sagradas e os ritos são regras de conduta que
prescrevem como a pessoa deve se comportar em relação às coisas sagradas.
399
PALEARI, 2000, p. 29.
81
Pagliari sustenta a tese de que os espaços de ritualização da vida não desaparecem na
sociedade pós-moderna, antes, ao contrário, eles se multiplicam e as pessoas fazem uso
daqueles rituais que lhes parecem úteis. O fato é que, no mundo s-moderno, as pessoas ou
grupos continuam a buscar respostas às crises existenciais. Esse parece ser o foco da questão.
E, portanto, onde há possíveis respostas, para as pessoas correm, atrás dessas respostas. É
nesse sentido que se pode entender a situão de trânsito religioso em que se movimentam as
pessoas no mundo pós-moderno e a existência de uma multiplicidade de agências rituais-
religiosas.
A questão aqui colocada pode ser ilustrada, em parte, com um relato de caso tratado
por Bobsin
400
. O autor conta a estória de Wanise
401
, moradora de um dos municípios da
Grande Porto Alegre e filiada à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).
Seu marido, Alberto, morre, em decorrência de uma pneumonia. Ele era aposentado, mas
auxiliava o filho em sua oficina mecânica. O marido de Wanise era católico e os filhos,
embora batizados na IECLB, não participavam da igreja. A encomendação do corpo de
Alberto foi ecumênica (uma parte foi realizada pelo padre calico e a outra pelo pastor
luterano). Dias após a morte de Alberto, o pastor e um grupo de mulheres da OASE
402
visitaram Wanise. Esta e toda a família, durante a conversa, responsabilizavam o hospital e os
médicos pela morte do marido. Meses mais tarde, o pastor visita novamente a Wanise. Ela
continua se queixando dos médicos pela morte de marido. Tempos depois, o pastor soube por
outras pessoas da comunidade, que Wanise procurara apoio num centro espírita ou terreiro de
umbanda porque o morto havia aparecido para ela e os filhos, em casa e na oficina. A viúva
queria que o marido a deixasse em paz. A partir de certo tempo, Wanise, ao participar de um
estudo bíblico em sua comunidade, começou a falar de sua vida, do seu passado, das queixas
que tinha contra seu falecido marido. Aos poucos, ela expressa o desejo de uma nova vida. Os
diversos encontros que seguem são oportunidades para Wanise abrir seu coração e falar do
seu futuro e das novas possibilidades de sua vida. Ela chegou a dizer que desejava sepultar o
passado, assim como havia sepultado o marido. Mais tarde, o pastor soube que Wanise estava
namorando alguém e, numa visita, ela disse ao pastor que havia decidido viver junto com seu
novo companheiro e que desejava a sua bênção.
400
BOBSIN, Oneide. O subterrâneo religioso da vida eclesial. Estudos Teológicos, São Leopoldo, v.37, n.3, p.
261-280, 1997.
401
Os nomes que aparecem na estória são pseudônimos.
402
Ordem Auxiliadora de Senhoras Evangélicas – uma organização de mulheres na IECLB.
82
Ao relatar esse caso, Bobsin chama atenção para a existência daquilo que ele designa
subterrâneo religioso na vida eclesial, referindo-se às fontes clandestinas onde as pessoas vão
buscar sentido para a vida e respostas para os mistérios. O autor não descarta, contudo, que,
nesse subterrâneo, a voz oficial da religião também se faz presente.
A partir do relato desse caso, que aponta para a existência de um subterrâneo
religioso na vida eclesial, e do que os autores colocam acima sobre a presença dos rituais por
toda parte, na sociedade atual, e de agências religiosas e rituais que se multiplicam, é possível
tirar algumas conclusões tendo em vista a pergunta inicial, se os ritos de passagem estão em
crise. Tudo indica que a pergunta não está formulada corretamente, pois o objeto da crise não
o os ritos, mas, provavelmente, as agências rituais que não acompanham as mudanças
sócio-culturais que afetam a vida das pessoas e geram novas situações de passagens e exigem
novas modalidades de ritualização.
1.4.4 A ritualização das passagens da vida: uma necessidade humana fundamental
Como já assinalado ao longo deste capítulo, os ritos de passagem estão presentes em
todas as culturas humanas, marcando transições idênticas e atuando no sentido de dar
sustentação às pessoas nos momentos de mudaa. Ullmann sustenta que a verificação dos
ritos de passagem em todas as culturas não constitui um fenômeno de difusão, mas de
paralelismo cultural ou invenção independente
403
. Os ritos de passagem atendem “a uma
necessidade básica e psicológica do ser humano, como indivíduo e membro de uma
comunidade”
404
. Esse é, portanto, o fato fundamental que o torna um fenômeno cultural, pois
todo ser humano enfrenta, em alguma fase marcante de sua vida, o novo, o desconhecido e se
utiliza do rito para fazer a passagem. Essa necessidade básica é universal, no espaço e no
tempo
405
.
Portanto, as sociedades sofrem mudanças, alteram suas formas de organização, novas
tecnologias são descobertas, as relações entre as culturas o modificadas, mas a necessidade
de ritualização permanece sempre, sendo que as transições da vida, seja qual for o tipo de
sociedade, sempre acontecerão, e os ritos, pela função social que eles desempenham e pelo
sentido que eles conferem à vida, sempre serão necessários. O rito, enquanto tal, é
fundamental ao ser humano. Ele está na própria essência humana. Aliás, entre tantas
403
ULLMANN, Reinholdo Aloysio. Antropologia: o homem e a cultura. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 158.
404
ULLMANN, 1991, p. 158.
405
ULLMANN, 1991, p. 158.
83
explicações do que é o ser humano há uma que o define como um ser ritual: “O ser humano
sempre se comportou ritualmente, a tal ponto que não é exagero afirmar que o rito é um
elemento constitutivo da existência humana. O ser humano, social como é, precisa de
manifestações externas para se relacionar com o mundo e com os seus semelhantes.
406
Os ritos de passagem, portanto, levando em conta que o rito está na própria essência
humana, continuam sendo importantes para as pessoas. Eles existem para auxiliá-las a
enfrentarem crises existenciais. Evidentemente muitas outras formas, cienficas e técnicas,
de se resolver uma crise. Por que, então o rito é importante? Fourez afirma que os ritos
ajudam as pessoas “a se aproximarem dos acontecimentos e das passagens da vida que
resistem à linguagem unívoca e fria da razão. [...], os ritos ultrapassam os discursos racionais
e moralizantes. Eles levam às profundezas da vida que só se experimentam através dos
rituais”
407
. Para Fourez, portanto, uma pessoa o vive ou resolve a tensão existencial,
provocada pelas transições, apenas pela linguagem da razão. Por isso, ela se vale de rituais.
“Os ritos tocam, pois, as tensões mais profundas da existência e evocam sempre as últimas
dimenes; o transcendente sob uma forma ou outra. Os ritos não falam só do que se faz ou do
que se tem: diante dos momentos críticos da vida eles se referem ao que chegaremos a ser.”
408
O significado etimológico do rito mostra que o rito é algo que ajuda o ser humano a
lidar com as “desordensda vida ou, em outras palavras, com as tensões existenciais. O rito
“restaura”, ajuda a r “ordem no caos”, ou seja, eles
constituem um importante canal para superar, ou pelo menos, desdramatizar as
tensões entre os membros do mesmo grupo humano. (...) o uma resposta à
angústia que produz no ser humano a realidade que se impõe a ele e que nem sempre
ele pode controlar. Representam, por sua vez, um bom antídoto diante da rotina da
vida, ao romper a uniformidade e a monotonia em que se desenrola a existência
humana.
409
A tendência do ser humano, segundo Tamayo-Acosta, é transcender a si mesmo e ao
mundo. Esse é um dado da antropologia não reducionista, frisa o autor, e os ritos ajudam o ser
humano na busca de realização do seu ser. De acordo com o autor, o ser humano tem
necessidade “de encontrar uma explicação última da realidade, à qual confiar toda a sua
pessoa mente, corpo, sentimentos e a uma ética que regule a sua vida”
410
. Para
406
TAMAYO-ACOSTA, Juan José. Os sacramentos: liturgia do próximo. o Paulo: Paulus, 1998. (Coleção
Sacramentos hoje). p. 68.
407
FOUREZ, Gérard. Os sacramentos celebram a vida: celebrar as tensões e as alegrias da vida. Petrópolis:
Vozes, 1984. p. 14.
408
FOUREZ, 1984, p. 16.
409
TAMAYO-ACOSTA, 1998, p. 69.
410
TAMAYO-ACOSTA, 1998, p. 70. Grifo do autor.
84
compreender o mundo em que vive e conferir sentido à sua existência, o ser humano celebra
ritualmente os acontecimentos mais relevantes da vida. A ação humana, diz o autor, o se
esgota nas atividades mercantis, científicas e técnicas
411
.
Essa refleo sobre o rito lembra Cazeneuve que, ao estudar o rito na vida do ser
humano primitivo, percebe que na origem do rito um desejo de o ser humano se preservar
contra a angústia
412
. Angústia contra o insólito, o devir, o anormal, o perigo, ou seja, tudo
aquilo que ameaça a sua estabilidade, a sua vida. Enfim, a consciência do limite como
condição humana leva à angústia. E o rito é a possibilidade de ultrapassar essa condição, indo
além dela própria. Por meio dos ritos o ser humano participa de uma realidade
transcendente
413
.
1.5 Conclusão
Van Gennep definiu os ritos de passagem como atos cerimoniais que têm por
objetivo ajudar as pessoas a viverem uma transição em sua vida ou a fazerem passar de uma
situação determinada a outra, igualmente determinada. Os ritos de passagem assinalam
mudanças e relacionam-se aos momentos mais significativos da vida das pessoas e, por assim
dizer, aos mais críticos do ciclo vital, a saber: nascimento, gravidez e parto, iniciação ou
entrada na vida adulta, casamento e morte. Ullmann usa uma metáfora significativa ao
comparar os ritos de passagem aos “arcos de ponte que lançam o homem para um reino
desconhecido. De um lado, cerra-se uma porta, a da fase da vida que passou ou está findando;
de outro lado, entreabre-se outra porta sobre novo horizonte existencial
414
.
No estudo dos ritos de passagem deve-se a Van Gennep a descoberta da existência de
um esquema seqüencial em todos os ritos de passagem, a saber, ritos de separação, ritos de
margem e ritos de agregação. O autor destaca a fase liminar dos ritos de passagem como
sendo um estado muito importante dentro da ritualizão, a qual merece atenção especial. A
teoria dos ritos de passagem de Van Gennep e a descoberta de um esquema seqüencial
contribuem, em especial, para o estudo de novas passagens e a criação de novos ritos quando
estes se tornam necessários.
411
TAMAYO-ACOSTA, 1998, p. 70.
412
CAZENEUVE, [s.d.], p. 29.
413
CAZENEUVE, [s.d.], p. 32. A relação entre rito e angústia suscita reflexões vindas da psicologia, assim como
na própria teologia. Trata-se, pois, de um tema complexo que carece de aprofundamento que, neste momento e
neste espaço não é possível fazê-lo. Na teologia este assunto é tratado em profundidade pelo teólogo Paul Tillich.
Uma indicação é: TILLICH, Paul. Teologia sistemática. 5. ed. São Leopoldo: Sinodal / EST, 2005. p. 173-218.
414
ULLMANN, 1991, p. 146.
85
Além desses aspectos, aqui destacados, observa-se que em seu estudo Van Gennep
enfatizou, sobretudo, a função social do rito de passagem. A passagem na vida de um
indivíduo gera mudanças significativas o para o indivíduo, como também para o grupo
de sua relação e o rito é meio através do qual as novas configurações sociais e identitárias se
legitimam. Por exemplo, o casamento implica novos relacionamentos, não só do casal entre si,
mas deste com suas famílias de origem e destas entre si. O rito, entre outros aspectos, tem a
função de confirmar a mudança, de legitimar a formação de uma nova falia e de estabelecer
relações entre novos grupos. Portanto, Van Gennep mostrou que o rito de passagem é bom
para estabelecer redes de relacionamentos e ajudar as pessoas a assumirem a sua nova
identidade individual e social.
Na base do estudo dos ritos de passagem encontra-se o sentido próprio do que é um
rito. A busca por esse sentido leva a compreender que o ser humano é essencialmente ritual;
o rito expressa valores e sentimentos humanos profundos ou aquilo que toca as pessoas mais
intensamente. As passagens da vida geram angústia no ser humano, causam tensões e o ser
humano busca, atras dos ritos, respostas substanciais às questões existenciais. Portanto,
falar da ritualização das passagens da vida como uma necessidade humana fundamental é, em
última análise, levar em conta as reais crises que geram as transições da vida, tanto no nível
individual quanto no social.
Ao encerrar esse capítulo permanecem perguntas que devem ser levadas em conta no
capítulo que segue. São elas: a sociedade atual, pós-moderna, coloca as pessoas diante de
novas situações de vida, as quais geram novos tipos de transões. Quais são essas transições e
como as pessoas estão ritualizando as passagens que marcam a sua vida nos tempos atuais?
Quais são as novas situões, criadas pela sociedade s-moderna, que carecem de
ritualização?
II PASSAGENS E RITUALIZAÇÕES NA ATUALIDADE À LUZ DE UMA
PESQUISA SOCIAL
2.1 Introdução
O relatório de pesquisa apresentado, neste capítulo, estuda as passagens e as
ritualizações na vida dos tempos atuais. Levando-se em conta um dos objetivos gerais do
trabalho, que é contribuir para o aprimoramento do trabalho lirgico-pastoral na Igreja, os
dados recolhidos mediante a pesquisa social qualitativa são subdios que auxiliam na
reflexão sobre o tema da ritualização das passagens da vida na perspectiva da prática litúrgica
cristã, tendo como referência o caso da IECLB, objeto de estudo nos capítulos subseqüentes.
Além dos resultados obtidos com a pesquisa bibliográfica sobre o tema da
ritualização das passagens, optou-se pela pesquisa social qualitativa como uma forma de
investigar o tema sob outra perspectiva, a qual inclui outros sentidos, a saber, o do ver, do
ouvir e do sentir as pessoas que relatam e interpretam as suas experiências de vida. Ao ver e
sentir as pessoas e ouvir e interpretar o que elas dizem sobre as suas experiências de vida, a
pessoa que pesquisa, além de aprofundar o conhecimento científico, preenche de sentido
humano o tema estudado, pois, nesse tipo de pesquisa, fala não a letra fria do texto, mas a
palavra viva, carregada de vivências. Isso não quer dizer que a pesquisa social qualitativa se
caracterize pela visão subjetiva dos sujeitos e objetos pesquisados. A pessoa que faz
investigação qualitativa tem consciência dos riscos da subjetividade, por isso, ao mesmo
tempo em que esatenta aos seus próprios sentimentos e interesses e leva em conta o estado
subjetivo dos sujeitos pesquisados, tenta encarar objetivamente os dados com que trabalha.
“Ainda que a idéia de que os investigadores sejam capazes de ultrapassar alguns dos seus
enviesamentos possa, inicialmente, ser difícil de aceitar, os todos que eles utilizam
auxiliam nesse processo.”
415
A investigação qualitativa, orienta-se por uma metodologia que “enfatiza a descrição,
a indução, a teoria fundamentada e o estudo das percepções pessoais
416
e as estratégias mais
415
BOGDAN, Robert C., BIKLEN, Sari Knopp. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à
teoria e aos métodos, 12. Portugal: Porto Editora, Ltda., 1994. (Colecção Ciências da Educação). p. 67.
416
BOGDAN, BIKLEN, 1994, p. 11.
87
representativas desse tipo de pesquisa são a observação participante e a entrevista em
profundidade
417
. Para o levantamento de dados desta pesquisa optou-se por utilizar a
entrevista em profundidade, individual e do tipo “estruturada”. Este tipo é aquele em que a
pessoa que entrevista segue um roteiro previamente elaborado. Segundo Marconi e Lakatos, o
“motivo da padronização é obter, dos entrevistados, respostas às mesmas perguntas,
permitindo que todas elas sejam comparadas com o mesmo conjunto de perguntas, e que as
diferenças devem refletir diferenças entre respondentes e não diferenças nas perguntas
418
.
Na preparação da entrevista, buscou-se elaborar poucas perguntas, mas que fossem abertas e
oferecessem ampla possibilidade de desdobramento do assunto, evitando-se equívocos,
indução ou contaminação de respostas.
O universo pesquisado é amplo, inclui homens e mulheres, de faixas etárias diversas,
independentemente da situão cultural, religiosa, social e econômica. A amostragem é de
caráter “estratificado, sendo que a própria pesquisadora constituiu o grupo de pessoas
pesquisado, de acordo com a necessidade do seu estudo
419
. Levou-se em conta um número
equivalente de homens e mulheres, de diferentes idades e formação e buscou-se incluir
pessoas casadas, solteiras, viúvas, separadas e aposentadas. A amostragem também seguiu o
padrão de “conveniência”, ou seja, contatou-se pessoas preferencialmente de uma mesma
região geogfica, facilitando o acesso da pesquisadora às pessoas entrevistadas. A
amostragem é não-probabilista”, pois não se aplica fórmulas estatísticas, mas busca-se a
opinião de determinadas pessoas da população, sem a preocupação de que estas sejam
representativas
420
.
Dez pessoas foram entrevistadas, cada uma individualmente. As entrevistas,
realizadas pela ppria pesquisadora, foram gravadas e transcritas para o papel, imediatamente
após cada entrevista. Cada entrevista durou, em média, uma hora e trinta minutos. Na
transcrição, optou-se por um texto fiel, respeitando a forma de expressar de cada pessoa. Com
o texto transcrito das entrevistas passou-se ao estudo e à interpretação dos dados; a
metodologia para esse procedimento encontra-se descrita nas introduções das seções 2.2 e 2.3.
As entrevistas transcritas encontram-se numeradas por linhas, e as referências às entrevistas,
neste capítulo, sempre são indicadas de acordo com os nomes fictícios dados às pessoas
entrevistadas e as linhas da citação. Para fins de consulta, o volume com as transcrições
417
BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 16.
418
MARCONI, Marina de Andrade; Eva Maria LAKATOS. Técnicas de pesquisa. 2. ed. São Paulo: Atlas S.A.,
1990. p. 85.
419
MARCONI; LAKATOS, 1990, p. 43.
420
MARCONI; LAKATOS, 1990, p. 47.
88
dessas entrevistas encontra-se encadernado e à deiposição na secretaria do PPG da EST e no
CD, anexo.
As pessoas entrevistadas estão resguardadas em sua identidade e os nomes utilizados
na transcrição de cada entrevista e neste relatório de pesquisa são fictícios. Os nomes de
lugares geogficos, instituições e de outras pessoas, citados nas entrevistas, foram omitidos
(entre parêntesis), assim como a referência a qualquer dado que possa levar à identificação da
pessoa entrevistada.
Segue o perfil das pessoas entrevistadas:
Emílio, 16 anos, solteiro, cursando a 7ª série do Ensino Fundamental, é o filho mais
novo de um casal separado. Ele mora com a mãe.
Angélica, 21 anos, casada (não legalmente), mãe de uma filha, cursou até a 8ª série.
Está desempregada.
Geraldo, 29 anos, é pai de uma filha, casado (não legalmente), trabalha, cursou até a
7ª série.
Janete, 31 anos, casada, não tem filhos, trabalha e pretende fazer o curso cnico em
enfermagem.
João Carlos, 33 anos, solteiro, fez o Supletivo para concluir o Ensino Fundamental.
Está concluindo o curso de graduação.
Solange, 38 anos, casada, mãe de dois filhos, cuida dos filhos e da casa, concluiu o
Ensino dio por meio do Supletivo, deseja fazer curso superior.
Guilherme, 44 anos, casado, pai de uma filha, trabalha e faz curso de graduação.
Liana, 54 anos, solteira, fez curso superior, está desempregada.
Henrique, 56 anos, separado, trabalha, fez curso de graduação e especialização, é pai
de quatro filhos.
Francisca, 84 anos, viúva, fez curso fundamental, mora num lar de idosos, mãe de
duas filhas e um filho, é avó e bisavó.
Esta pesquisa social qualitativa tem como objetivo principal investigar as passagens
da vida e as ritualizações que acompanham as passagens. Para se alcançar tal objetivo,
elaborou-se cinco questões para o questionário da entrevista, sendo a primeira pergunta de
acento biográfico, a segunda, terceira e quarta perguntas de acercamento ao assunto principal
e a quinta, uma pergunta de complementação. São elas: 1) Convite informal à pessoa a
apresentar-se; 2) Quais os momentos que você considera mais marcantes em sua vida
(levando em conta a sua infância, a sua juventude, a sua vida adulta e o momento atual da sua
89
vida)? 3) Quais foram as transições ou mudanças mais marcantes da sua vida (levando em
conta a sua infância, a sua juventude, a sua vida adulta e o momento atual da sua vida)?
4) Conte, bem direitinho, como foi cada uma dessas transições na sua vida. Como foi antes,
durante e depois de cada transição que vomencionou? 5) Depois de uma breve explicação
sobre ritos de passagem, dada pela pesquisadora, perguntou-se: você falou acima de
transições marcantes da sua vida. Você poderia identificar ritos que acompanharam essas
transições?
Apresentando o relario com os resultados da pesquisa social qualitativa, este
segundo capítulo traz duas partes principais, a saber, uma sobre as passagens e outra sobre as
ritualizações.
2.2 Passagens relevantes da vida
2.2.1 Introdução
O objetivo desta seção é averiguar as passagens que sobressaem nos relatos das
pessoas entrevistadas. Desta forma, busca-se caminhar ao encontro do objetivo traçado para a
pesquisa social qualitativa.
Após as entrevistas realizadas, transcritas e numeradas por linhas, passou-se a ler e
reler as respostas das pessoas entrevistadas. Desta maneira, percebeu-se que, de acordo com
os assuntos levantados pelas pessoas, certos temas foram surgindo, espontaneamente, com
maior ou menor insistência em diferentes partes dos relatos. Diante disso, fez-se,
primeiramente, um levantamento dos temas que mais apareciam em cada relato e, por fim,
estudando-se o conjunto de todos, fez-se uma lista dos temas mais comuns. São eles: laços
familiares, estudo, lugar, laços sociais, vivência religiosa, trabalho, doença, laços conjugais,
morte e tornar-se mãe, tornar-se pai. A esses temas comuns, mais destacados, encontrados no
conjunto das respostas dadas, deu-se o nome de componentes culturais.
Ao realizar esse exercício que resultou no levantamento dos componentes culturais,
percebeu-se que as pessoas entrevistadas estavam lidando com elementos importantes de suas
vidas, os quais pode-se chamar, conforme Chupungco, de padrões, valores e instituões
421
.
421
“Los valores son principios que influyen y dan dirección a la vida y actividades de una comunidad y sus
integrantes. Son formativos de la actitud o conducta de la comunidad con respecto a las realidades sociales,
religiosas, políticas y éticas”. Como exemplos, o autor cita valores como “hospitalidade”, “laços familiares” e
90
Foi através da organização e sistematização dos componentes culturais que se chegou às
passagens e ritualizações. Salienta-se que os componentes culturais não estavam presentes nas
perguntas aplicadas no questionário das entrevistas nem foram utilizadas, preliminarmente,
pela pesquisadora para estudar as respostas dadas. As próprias respostas das pessoas
entrevistadas conduziram aos temas ou aos componentes culturais.
Para uma melhor compreensão sobre o modo de como se chegou aos componentes
culturais e de como se lidou com eles, segue a descrição do procedimento utilizado. Primeiro
passo - codificar: a) ler todas as entrevistas; b) identificar os elementos comuns que aparecem,
com maior ou menor insistência, nas respostas das pessoas entrevistadas e que foram
designados “componentes culturais”; c) dar um título para cada componente cultural; d) fazer
uma lista e dar um número [símbolo] a cada componente cultural. Segundo passo -
sistematizar os componentes culturais: a) ler cada entrevista; b) assinalar na lateral do texto de
cada entrevista o símbolo correspondente ao componente ali verificado; c) copiar e agrupar os
trechos correspondentes a cada componente. Terceiro passo fazer uma tabela de
quantificação dos componentes culturais
422
: a) contar as unidades de informações
423
referentes
a cada componente cultural e de acordo com cada pessoa entrevistada (essa contagem é
facilitada pelos números [símbolos] de cada componente que foram assinalados na margem
lateral do texto de cada entrevista); b) listar o resultado numérico de cada componente ao lado
do nome de cada entrevistado; c) totalizar os resultados. Quarto passo - interpretar: a) ler os
textos referentes a cada componente cultural, conforme os trechos que foram copiados e
agrupados; b) interpretar os dados, por meio de relações cruzadas: sujeitos, conteúdos,
quantificação.
“liderança”. CHUPUNGCO, Anscar J. La liturgia y los componentes de la cultura. In: STAUFFER, S. Anita
(Ed.). Dialogo entre culto y cultura. Ginebra: FLM, 1994. p. 156.
Por padrões culturais” (pautas culturales), o autor entende o “modo típico en que los integrantes de uma
sociedad piensan o forman conceptos, expresan sus pensamientos mediante el lenguaje, ritualizan aspectos de su
vida y crean formas de arte”. Conforme o autor, os padrões culturais atingem áreas como pensamentos, línguas,
ritos e símbolos, literatura, música, arquitetura e todas as demais expressões de arte. O padrão cultural diz
respeito ao modo típico de um grupo cultural expressar seus valores e conceitos. CHUPUNGCO, 1994, p. 158.
As “instituições”, como componente cultural, são, conforme o autor, “los ritos tradicionales de la sociedad
mediante los cuales celebra las diferentes fases de la vida humana, desde el nacimiento hasta la muerte. (...)
Otras instituciones son las celebraciones de la sociedad para señalar el comienzo de las estaciones del año,
especialmente la primavera y el verano, para pastores y agricultores respectivamente, y para conmemorar
leyendas de su mitologia o memorables sucesos de su historia.Tais ritos envolvem famílias, vizinhanças ou
toda a comunidade. CHUPUNGCO, 1994, p. 164.
422
Esta tabela encontra-se na próxima página.
423
Uma unidade corresponde, em média, a cada nova informação acrescentada ao assunto que essendo
abordado.
91
Tabela de quantificação por unidades de informação de acordo com os componentes culturais
Laços
familiares
Estudo
Lugar
Laços
sociais
Vivência
religiosa
Trabalho
Doença
Laços
conjugais
Morte
Tornar-
se mãe
ou pai
Total
por
pessoa
Emílio
16 anos
48 (42)
1
2
2
-
10
-
-
3
-
66
Angélica
21 anos
29 (23)
1
11
28
-
1
-
2
1
20
93
Geraldo
29 anos
39 (25)
-
24
5
-
9
-
6
17
10
110
Janete
31 anos
96 (41)
36
34
38
20
70
55
4
8
2
363
J. Carlos
33 anos
47 (39)
51
29
15
48
-
1
-
-
-
191
Solange
38 anos
57 (50) 21 6 17 35 4 9 5 1 17 172
Guilherme
44 anos
50 (23)
31
2
26
14
9
-
7
6
10
155
Liana
54 anos
47 (19)
49
32
39
14
28
2
4
9
-
224
Henrique
56 anos
78 (50)
38
14
13
8
16
44
46 (44)
10
3
270
Francisca
84 anos
125 (79)
4
39
3
17
-
28
5
22
-
243
Total por
componen-
te cultural
616 (391)
232
191
186
156
147
139
79 (44 )
77
62
Total
geral
1887
Obs.: Os números entre parêntesis, na parte do componente cultural “laços familiares”, representam as unidades de
informações referentes a pais/mães e filhos/filhas, unidades essas extraídas do número que está fora do parêntesis. E
na parte do componente cultural “laços conjugais”, eles representam as unidades de informações referentes à
separação conjugal.
92
A referência ao termo “passagem”, neste capítulo, é feita no sentido como o termo
foi utilizado no primeiro catulo, de acordo com o estudo de Van Gennep sobre os ritos de
passagem
424
. Conforme o autor, a vida individual consiste em uma sucessão de etapas, pois
desde o nascimento até à morte, o indivíduo passa por mudanças, seja em nível biológico, seja
em nível psicológico e social. A vida humana, portanto, se caracteriza pela descontinuidade e
recomeço. O ser humano vive da transição de uma situação a outra, de um status cio-
cultural a outro, de um ciclo biológico a outro, de um ambiente social e cultural a outro, de
uma religião a outra, também de uma profissão a outra. As passagens da vida humana
revelam, pois, o processo dinâmico e ininterrupto da vida.
A seguir, tendo como ponto de partida os componentes culturais, elencados pela
ordem de importância, busca-se descobrir o que as pessoas entrevistadas estão revelando
sobre as passagens; busca-se captar quais o as passagens mencionadas por elas e busca-se
perceber o que, nessas passagens, aparece como questões fundamentais.
2.2.2 Laços familiares
Ao ler as respostas das pessoas entrevistadas, percebe-se que o tema família é
comum a todas elas, seja qual for a pergunta. Família é um assunto que perpassa o todo. Essa
temática é como um pano de fundo diante do qual sobressaem outros aspectos relevantes. As
respostas às perguntas “quais os momentos que você considera mais marcantes em sua vida?”
e quais foram as transições (mudanças) mais marcantes da sua vida?” sempre se relacionam
a uma ou mais situações familiares (morte de pai, mãe, avô ou irmão, separação de pai e mãe
ou separão de cônjuges, saída de casa para estudar ou trabalhar, nascimento de filhos,
gravidez, doença própria ou de familiar, desentendimento na família, mudança de lugar,
formaturas, etc.). Essas situões retratam alguma relação entre os membros da família. Foi
observando essas situações e as repetidas referências à família que se chegou ao componente
cultural “laços familiares”. Esse componente cultural inclui todas as menções que as pessoas
fazem a pai, mãe, filhos, filhas, irmãos, irmãs, avô, avó, cônjuges, netos, bisnetos, sobrinhos,
tios, padrasto, genros e sogras. E a partir do levantamento das unidades de informações do
código “laços familiares”, confirma-se que o tema “família“ é um foco muito importante, não
no resultado geral, mas também para cada pessoa individualmente, como se pode observar
na tabela acima.
424
Veja, acima, item 1.3.
93
Conforme a tabela acima, o componente cultural “laços familiares” representa um
terço do total dos componentes culturais identificados, ou seja, 616/1887
425
unidades de
informações dizem respeito a laços familiares”. Entretanto, olhando o componente cultural
“laços familiares” mais de perto, se percebe que as referências a pai, mãe, filhas e filhos são
as mais frequentes! Ou seja, essa ênfase aponta para o formato básico de família chamado
“falia nuclear”, a qual é constituída pelo tripé pai-mãe-filhos”
426
. A partir do dado
apresentado, é possível estabelecer a seguinte ordem seqüencial de referências a familiares:
em primeiro lugar, pai, mãe, filhos e filhas, em segundo lugar, avós, irmãos, marido, esposa,
e, por último, sobrinhos, netos, bisnetos, tios, sogra e padrasto. A relação pai, mãe, filho ou
filha ocupa lugar central.
Como se acima, o componente cultural laços familiares” tem 616 unidades de
informações. Metade dessas unidades de informações, ou seja, 391/616 dizem respeito,
especificamente, a pai, mãe, filhos ou filhas. Todas as dez pessoas entrevistadas fazem
referência ao pai e à mãe. Todas as que têm filhos (seis de dez) fazem referências a eles,
sendo que essas mesmas pessoas também falam do marido ou da esposa. Todas se referem aos
irmãos, sendo que cinco o fazem com mais ênfase e as cinco demais os mencionam, uns
menos e outros mais superficialmente. Também menção aos avôs e às avós por parte das
dez pessoas entrevistadas. Mas, das menções feitas aos irmãos, irmãs, marido, esposa, avô e
avó, nenhuma é tão expressiva como a de pai e mãe, filhos e filhas.
Extraindo do componente cultural “laços familiares” as unidades de informações que
se referem a pai, mãe e filhos, por pessoa entrevistada, tem-se o seguinte quadro:
Emílio 42/48
427
Solange 50/57
Angélica 23/29 Guilherme 23/50
Geraldo 25/39 Liana 19/47
Janete 41/96 Henrique 50/78
João Carlos 39/47 Francisca 79/125
425
616/1887 lê-se 616 de 1887. Esse esquema de leitura vale para todos os meros seguintes, apresentados na
mesma forma.
426
OSORIO, Luiz Carlos. Casais e famílias: uma visão contemporânea. Porto Alegre: Artmed, 2002. p. 15.
Esse autor distingue a família nuclear de dois outros formatos, a família extensa, composta por quaisquer
membros que tenham laços de parentesco e a família abrangente, a qual inclui membros não parentes. OSORIO,
2002, p. 15.
427
Neste quadro, o mero do lado esquerdo da barra refere-se sempre às unidades de informaçõespai/mãe ou
filho/filha” e o do lado direito, ao componente cultural “laços familiares” de cada entrevistada/o.
94
Dado este quadro de valor numérico, que aponta para uma ênfase significativa nas
relações entre pai/mãe e filhos/filhas, vejamos, em seguida, alguns relatos que envolvem essa
temática, observando as situações, nas quais ela aparece.
a) Situação de morte
Para Henrique, foi importante estar ao lado do pai e da mãe quando estes faleceram:
... e, por uma graça muito especial, o pai faleceu quando eu tava junto e, é, eu acho
que isso foi uma coisa especial porque se ele queria alguém que tivesse com ele
nesse momento era o filho dele, . É, isso marcou muito nessa fase do pai. Da
mesma forma com a e. [Henrique, 252-255]
Francisca ficou órfã aos nove anos. Ela perdeu a mãe que estava doente e, em
seguida, o pai morre tragicamente. Ela conta que a mãe, quando doente, procurou sua tia,
pedindo que ela “criasse a criança que ficaria órfã”. Hoje, aos 84 anos, ela recorda:
... quando os meus pais faleceram, eu fiquei, pequena, com nove anos. Faleceram
dois meses de diferença um do outro. A minha mãe faleceu, dali a dois meses e vinte
dias, dois bandidos, lá, à procura de dinheiro, mataram o meu pai. Nós éramos cinco
irmãos, 4 homens e eu; filha mulher, só eu. Aí, quando a minha mãe tava doente, ela
foi consultar em (...................) e tinha uma cunhada, irmã do meu pai que morava lá,
e ela disse assim pra ela: “olha, eu sei que vou morrer, mas tu vais, eu só tenho uma
filha, e tu vais criar, pra mim, a criança; com nove anos é órfã, pequena”. [Francisca,
12-18]
Liana também conta que ficou órfã de pai aos três anos. A mãe casou-se novamente,
mas ela diz que o padrasto “não foi um pai”. Pai, para ela, foi o avô
428
.
Janete, que acompanhou e ajudou o pai doente, por longo tempo, diz: “o dia em que
tiver que a minha mãe partir, que seja sem sofrimento ou que não seja sofrimento
prolongado”
429
.
b) Situação de doença
Janete discorre longamente sobre a doença de seu pai. Enfatiza o seu empenho, com
a ajuda dos irmãos e do marido, para que não faltassem remédios para o pai. Ela lembra que o
pai não foi ao seu casamento por causa da doença.
E ele não pôde me levar ao altar, porque ele teve um AVC e não podia caminhar e,
também, ele não foi no meu casamento. [Janete, 54-56]
... no início a gente teve que comprar remédios, porque ele não podia ficar sem
medicações. Então, alguns filhos ajudavam, outros não podiam porque tinham a
família, né. [Janete, 154-156]
428
Liana, 4-10.
429
Janete, 62-63.
95
Para Henrique, o tempo de doença do pai foi uma época de muita aproximação entre
eles.
Foi uma época onde aconteceram coisas bem bacanas, (...) - eu passava todos os dias
lá, (...), do trabalho pra casa, passava (...). Então, foi uma época muito legal, por
esse negócio, por eu ta com o pai ali. [Henrique, 228-249]
c) Situação de saída de casa.
Sair de casa, deixar pai e mãe. Geraldo, João Carlos, Solange e Liana falam sobre
esse processo. A saída de casa é momento de intensa relação entre pai/mãe e filho/filha. Liana
e João Carlos saem de casa para estudar num internato; Solange e Geraldo saem de casa para
trabalhar. Geraldo enfrenta a resisncia de pai e mãe e João Carlos depende do consentimento
do pai e da e para sair e estudar. Liana e a mãe se envolvem numa intensa preparação da
roupa e dos demais materiais para sua ida ao internato. Solange se lembra da saudade que
tinha, longe de casa, do chazinho e do carinho da mãe.
... tinha saído a primeira vez de perto deles [pai e e], assim, foi um choque pra
eles, né, eles não queriam e eu tive que explicar, que o tinha emprego e eu
queria fazer a minha vida, sabe, ficar sem recursos, não tinha futuro e sei que,
bah, eles lutaram, lutaram pra mim não vir. [Geraldo, 31-34]
... eu teria que convencer os meus pais, porque não era o meu querer, apesar de
ter 22 anos. Se meus pais, minha mãe e meu pai, dissessem “não, nós não vamos
deixar”, isso seria assim, eu não teria como fazer o curso mesmo. Muitas questões de
casa, de que os pais tinham a última palavra, queso de respeito, era assim que
funcionava, né! (...). [João Carlos, 158-162]
d) Situação de separação conjugal
Do ponto de vista de um filho a separação conjugal acarreta perdas no
relacionamento entre pai, filho e mãe. Emílio diz que antes da separação, a família vivia toda
reunida.
Teve aquela da separação, né, que nós vivíamos sempre juntos, saíamos todo mundo
junto, prá certos tipos de lugar, se divertia, (...) ah, tava sempre aquela família toda
reunida, né; daí, depois de uns quatro anos pra cá teve aquela mudaa, né, (...). Daí,
não tem mais aquela convincia tudo junto, almoçar tudo junto, jantar todo mundo
junto. [Emílio, 49-54]
Henrique o queria separar-se de sua esposa. Como último recurso para demovê-la
da idéia, ele decide reunir todos os filhos e criar um clima de família.
Aí, eu tive uma idéia, (...), então, vamos reunir de novo os quatro filhos na casa e
os dois velhos e vamos ver se nós não criamos aquele clima, se ela não muda de
idéia”. [Henrique, 301-305]
96
e) Situação de gravidez na adolescência
O relacionamento da filha adolescente com o pai e a mãe é duramente afetado, diante
de uma gravidez o esperada. Medo, desentendimento, ameaça, proibição, o marcas de um
relacionamento familiar num momento como esse, novo e inesperado.
... deu que eu estava grávida, né. Na verdade, eu tinha medo de contar, contar em
casa, assim, e daí, naquela parte ali foi muito difícil, (...) a mãe propôs isso também
pra mim, que era pra mim tirar. (...) Se ela quisesse eu saía de casa, mas não tirava.
(...) a minha mãe, ela me proibiu, eu fiquei um s sem ver meu marido, eu fiquei
um s sem ver ele, eles me proibiram porque eles falaram que se eu voltasse né,
eu, eu não podia voltar com ele, eu tinha que ficar com eles, que eles iam me ajudar,
iam me sustentar, sustentar minha filha, então, eu aceitei aquilo ali, porque eu o
tinha alternativa. (...) Aí, minha mãe também ficou de mal, o pai também ficou de
mal comigo. [Angélica, 16-22, 83-89]
f) Outras situações de relacionamento entre pais/mães e filhos/filhas
De um lado, pais e mães falam do relacionamento com seus filhos e de outro, filhos e
filhas enfatizam a sua relação com os pais.
Como já assinalado, das dez pessoas entrevistadas, seis têm filhos e todas essas
mencionam esse fato; além delas, uma, casada, que não têm filhos, diz que um dia os terá e
outra, solteira, menciona os sobrinhos, revelando o seu carinho de tia-mãe.
Pais e mães, quando se referem aos filhos e filhas, enfatizam fatos como: -
nascimento: “como é que a gente podia viver antes sem ter?, é uma bênção que Deus
mandou lá, é uma maravilha”
430
; cuidado: “ter um tempo maior” para os filhos, “criar os
filhos longe da televisão, da cidade, do apartamento, do barulho, tudo
431
, - educação:
esforçar-se para as filhas estudarem e se formarem; que cresçam “tanto físico como ser
humano”
432
, - relação com os avós: manter um “vínculo” dos filhos com os avós
433
.
Filhos e filhas, quando se referem aos pais e mães, destacam o seguinte: - ajuda:
Janete, por exemplo, conta que ela trabalhou, desde cedo, ajudando a sua família a adquirir
terreno, construindo casa e lutando para proporcionar uma vida mais digna para o pai e a
mãe
434
; nesse relato, ela utiliza 60/363 unidades de informações; - reconhecimento:
Guilherme diz que sua infância foi difícil, teve uma vida dura, mas foi feliz também; seus pais
430
Solange, 111; Geraldo, 131-132.
431
Solange, 12-14; Henrique, 32-33.
432
Guilherme, 64-65; Francisca, 72.
433
Guilherme, 257-258.
434
Janete, 90-182.
97
foram maravilhosos
435
; e também, - conflito de geração: Henrique lembra episódios de sua
juventude e de como seus interesses divergiam em relação aos do pai.
... o gostava de fazer exercícios e fumar ainda por cima, bah, era uma decepção
[para o pai, sic], o gostava da música que deveria gostar, o pai era chegado em
sica clássica e eu só rock paulera, (risos), não queria saber daquelas músicas.
(...), a mãe que contou pra mim, que o pai tava muito indeciso entre fazer o que era
certo pra mim, que era estudar nguas, né, quer dizer, ele queria que eu ficasse na
linha humanista, e eu queria a linha tecnologia”, né, (...), ele perguntou pra um
professor, que tinha seis filhos, e se aconselhou com ele. [Henrique, 396-399, 402-
406]
Há também situações de conflitos familiares, de difícil solução, envolvendo pais,
mães e filhos. Francisca, por exemplo, dedica 36/243 unidades de informações para relatar um
triste episódio acontecido na ocasião da partilha da herança que resultou em violência do seu
filho contra ela e suas filhas. Ela sofre porque esse conflito ainda pesa nas relações entre
eles
436
.
h) Situações que envolvem relacionamentos com outros familiares, além de mãe, pai
e filhos
Todas as dez pessoas entrevistadas mencionam a e avó. Para Liana, órfã de pai, o
avô assumiu a sua paternidade
437
. Henrique se lembra de fatos marcantes da infância ligados
às histórias que sua avó contava
438
. Janete diz que um momento marcante da sua infância foi
quando a avó foi morar perto
439
. Guilherme acha importante que sua filha mantenha o vínculo
com os avôs
440
e Solange conta que os filhos adoram passar as férias com os avôs
441
. Angélica
e Emílio destacam como fatos marcantes o falecimento dos avôs e Geraldo diz que a sua filha
(de quatro anos) “é uma maravilha” para a avó e o avô
442
. Francisca, em rios momentos,
lembra os netos e conta do nascimento recente de um bisneto
443
. João Carlos, ao relatar sobre
uma de suas formaturas, lembra que o avô esteve presente junto com o pai
444
.
Assim como os avôs, também os irmãos recebem refencias em todas as entrevistas,
como foi observado acima. Entretanto, as unidades de informações em relação aos
435
Guilherme, 8, 20.
436
Francisca, 220-300.
437
Liana, 7-10.
438
Henrique, 126.
439
Janete, 20.
440
Guilherme, 256ss.
441
Solange, 263ss.
442
Geraldo, 132.
443
Francisca, 175-177.
444
João Carlos, 388.
98
avôs/avós e irmãos/irmãs, comparativamente a pai/mãe, filhos/filhas, são quantitativamente
menores.
Como se observa, o componente cultural “laços familiares” tem como referência
principal pais e mães ou filhos e filhas. Avôs, avós, irmãos e irmãs também são referências
importantes, porém, menos enfatizados.
Destacar as transições ou os momentos marcantes da vida significa realçar os laços
familiares, sobretudo, do núcleo primário de relações. É nesse núcleo e com as pessoas desse
grupo que o indivíduo vive as suas primeiras mudanças e as mais significativas ao longo da
vida. Na família, ele experimenta as primeiras transições ou passagens. Ali ele nasce, os
primeiros passos, cresce e se desenvolve. Dali ele parte para o mundo da sociedade. Em
momentos críticos da vida, na doença, por exemplo, ele necessita do amparo da família.
volta para o colo familiar (e, pai ou filhos). Também na hora última, a família é o refúgio,
o lugar da despedida. Portanto, as passagens estão intimamente relacionadas à família. Não é
possível separar essas duas dimensões. A família, o núcleo primário de relações, é o lugar
primordial de vivência das passagens da vida! Por isso, o componente cultural “laços
familiares” é tão expressivo.
As passagens que acontecem ao longo da vida do indivíduo são momentos de grande
instabilidade emocional, pois a pessoa enfrenta uma nova situação, até então desconhecida, e
isto gera crise, insegurança, medo. À medida que a pessoa vai mudando, ela também vai
reajustando a sua identidade (por exemplo, uma mulher que passa a ser mãe ou um homem
que se torna pai, alguém que, com o casamento, muda de estado civil, outros que, ao
especializarem-se por meio do estudo, tornam-se engenheiro ou enfermeira ou professora,
etc.). Além de outros motivos, talvez essa seja uma razão porque a família (filiação), assim
como o lugar das origens, o referências tão importantes nas passagens. Esses elementos
fixos da identidade (filiação e origem geográfica) ajudam o indivíduo naqueles momentos em
que ele necessita reajustar a sua nova identidade.
2.2.3 Estudo
Estudar, formar-se ou empenhar-se em prol de conhecimento é um tema muito
presente no relato das pessoas entrevistadas. De dez, apenas uma pessoa não faz referência
alguma a esse assunto. São 232/1887 unidades de informações que encontram-se sob o
componente cultural “estudo”; isso mostra que este é o segundo tema mais reforçado. Das
99
nove pessoas que discorrem sobre o assunto, seis o fazem com mais ênfase. Dessas seis,
quatro pessoas apontam a retomada dos estudos como algo muito importante para elas. Essas
pessoas haviam interrompido o estudo em determinado momento da vida porque precisaram
trabalhar e não tiveram chance de continuar o estudo ou porque o havia recursos escolares
no lugar onde moravam. Conforme se pode constatar na tabela de quantificação acima
445
, para
duas pessoas o componente cultural “estudo” é o que recebe mais unidades de informações
(Liana, com 49/224, e João Carlos, com 51/191). Liana esperou ansiosamente a conclusão do
seu curso para que ela, finalmente, alcançasse uma profissão e, desta forma, a sua autonomia
financeira e sua saída definitiva de casa. Para João Carlos, o estudo é muito importante, é um
assunto recorrente em suas respostas. Está presente no início, no meio e no fim do seu
depoimento. No início, ele diz: “Eu sou o filho mais velho, e sou o único que, por enquanto,
saiu da roça, do contexto da roça, pra estudar, e ir atrás, talvez um pouco dos meus sonhos,
assim, fazer uma coisa diferente, trabalhar mais com pessoas, (...).”
446
Através do estudo,
portanto, João Carlos pôde investir na sua vocação. Ele conclui o seu depoimento contando
sobre a sua formatura na graduação e fala da sua grande expectativa em iniciar uma atividade
na área que ele escolheu para sua profissão.
A partir do que as pessoas dizem em seus depoimentos, é importante esclarecer o
seguinte: falar de “estudo” não significa referir-se a apenas uma etapa na vida. O estudo pode
acontecer em diversos momentos ou idades; pode referir-se a um curso com tempo de durão
maior ou menor; a pessoa pode realizar diversos cursos ao longo da vida. Por exemplo,
Guilherme, de 44 anos, diz que fez diversos cursos, mas a graduação foi concluída
recentemente. Henrique fez graduação, mestrado e cursos de especilizão. João Carlos e
Solange fizeram o curso fundamental básico, interromperam, por diferentes motivos, e mais
tarde fizeram o Supletivo para, então, continuar com outros cursos. Janete, aos 31 anos, após
trabalhar vários anos com serviços gerais e estando agora, atuando como assistente de
gerontologia, descobriu sua vocação através do seu atual emprego e diz, então, que quer
aperfeiçoar-se nessa área, fazendo o técnico em enfermagem.
Uma questão que aparece nos depoimentos de três pessoas no tocante ao estudo é o
aspecto da mudança, da transformação que o estudo causa nas pessoas. Quer dizer, o estudo
transforma! As pessoas percebem mudanças em si próprias, proporcionadas pelo estudo.
445
Cf. página 91.
446
João Carlos, 7-10.
100
Talvez este seja um motivo porque esse assunto é apontado como uma transição importante
na vida! Como essas pessoas explicam este aspecto da mudança?
Elas dizem:
estudar te abre muito a tua mente, o teu conhecimento, o teu modo de ver a vida, de
ver os problemas, de ver a sociedade, como um todo; é estudando que tu tem muito
mais chance de tu conversar com alguém (...). [Janete, 321-323]
a gente começa a enxergar as coisas de outra forma, começa a entender melhor
certas coisas; (...) eu mudei bastante como pessoa, né; (...).
A gente tem que aprender a lidar com pessoas, né; então acho, assim, que foi muito
bom pra mim, como pessoa, comecei a ver melhor, a entender melhor as pessoas,
sabe; a ver melhor o outro, não pensar na gente e não olhar muito pro lado, né;
[Solange, 61-61; 174-178]
Então, é, eu tinha uma visão de mundo, assim, não que diferisse do que penso hoje,
nas suas linhas principais, né, mas a formação acadêmica, creio que me trouxe
algumas melhorias, né, [Guilherme, 187-189]
A mudança que o estudo causa não se relaciona apenas com o crescimento pessoal,
mas também com o profissional. Quer dizer, investir em formação significa abrir portas para
mudanças na vida profissional. Janete e Solange entendem que a formação é uma exigência da
sociedade atual e por isso vêem a retomada dos estudos ou a conclusão de um curso como
uma transição significativa em suas vidas
447
.
É sempre era aquela vontade, aquela vontade de, né, de estudar, de ter uma vida um
pouco mais fácil, porque quem não estuda não é fácil de conseguir emprego, de
trabalhar, né. [Solange, 159-161]
Guilherme, que só conseguiu fazer a sua graduação com quase quarenta anos, vê o
estudo como uma maneira de acompanhar o mundo atual que exige um ser humano que sabe e
faz de tudo um pouco.
... uma coisa que me marca, né, essa, essa vida agitada, né, essa, essa, como se diz, -
Bauman gosta de usar -, a “modernidade líquida”, né; tem que ta em tudo que lugar,
fazendo de tudo, um pouco de tudo, sabendo um pouco de tudo, né, isso me marca,
isso está muito presente na minha vida hoje. Eu até estou estudando sobre isto
também porque, enfim, pra dar conta disso, né. [Guilherme, 44-48]
447
Confira o depoimento de Janete sobre o seu estudo: “Então quando eu vim pra cidade e os meus irmãos, o
todos, mas a maioria, se formaram, fizeram o segundo grau, - um até vai se formar agora, no fim do ano, né. Isso
tudo são mudanças, são coisas que vão mudando até seu ambiente, né, do interior pra cidade, tu vê a grande
necessidade de tu ter o estudo, o conhecimento, os cursos, tu crescer em termos de conhecimento, também,
porque isso, é, no período que eu fiquei desempregada e chegava num lugar pra entregar currículo, eles já
perguntavam qual era o teu grau de escolaridade e uma das coisas que me fez muito, ... foi essa senhora onde
fiquei sete anos trabalhando. Ela foi uma das pessoas que, eu o digo que me abriu os olhos, porque eu já tinha
uma vontade de voltar e retomar os estudos, né, mas ela foi uma grande incentivadora, assim, sabe. Até porque a
minha mãe era analfabeta, né. Então, ela não tinha assim noção de como faz falta saber, ter conhecimento, ter
uma formação, na escola, tudo assim. Então isso foi uma mudança, e foi ainda uma das barreiras que se
encontrou nos primeiros momentos, a falta de estudo, de não se ter o primeiro grau ou de não estar estudando,
sabe. Então, quando eu comecei a trabalhar aqui, eu estudava à noite. [Janete, 302-317]
101
Das dez pessoas entrevistadas, três delas enfatizam não a própria formação, mas
também a de seus familiares. Francisca, 84 anos, diz que lutou para que suas filhas
estudassem e se formassem, pois “essa felicidade [estudar] lhe foi tirada quando ainda
jovem. Ela fala da emoção que sentiu quando participou das formaturas das filhas, dos netos e
dos genros. Henrique deixou um bom emprego no Brasil para acompanhar a esposa em sua
pós-graduação no exterior e Guilherme conta que apoiou sua esposa a investir na formação
acadêmica e ficava feliz em vê-la estudando.
Enfim, o estudo é importante porque ajuda as pessoas a crescerem pessoal e
profissionalmente e porque é uma exigência do mundo atual, tanto em termos de trabalho
quanto para “entender melhor o mundo em que se vive”. O estudo é caminho para a
profissionalização; mesmo as pessoas que conseguem um emprego sem ter uma formação
concluída, tentam retomar os estudos, com o passar do tempo, ou fazem cursos específicos,
pois entendem que sem o estudo não como manter-se na profissão e atualizadas com o
mundo. Por tudo isso, o estudo marca uma etapa ou diversas etapas da vida, representando,
assim, um ou mais momentos de passagem. O estudo marca, sobretudo, a fase jovem. O
estudo acadêmico, em especial, sinaliza uma passagem importante, a preparação para a vida
adulta, justamente porque aí o jovem se prepara para uma profissão e já inicia a realização de
esgios no mercado de trabalho. O final do curso acadêmico, neste sentido, é um momento de
grande apreensão, pela expectativa de assumir uma profissão.
2.2.4 Lugar
O componente cultural “lugar” representa o que as pessoas dizem em relação ao
lugar onde elas moram, ao lugar de sua origem, de suas raízes ou onde residem pais e mães,
ao contexto urbano ou rural, à mudança de lugar geográfico ou de uma casa para outra, à
aquisição de casa ppria. Sob “lugar”, portanto, foram incluídas referências como “sair de
casa”, da casa dos pais e mães, mudar de casa, cidade, estado ou país, ter um lugar para
morar, comprar uma casa ou apartamento, ter nascido no interior ou na cidade.
O componente cultural lugar” está presente nas respostas de todas as pessoas
entrevistadas. Algumas discorrem sobre ele com mais ênfase, outras menos. Há 191/1887
unidades de informação sobre lugar”. Isto significa que ele é o terceiro que apresenta mais
unidades de informações.
102
O que as pessoas dizem sobre as situações codificadas como componente cultural
“lugar”? Em que momento de suas vidas a questão do “lugar” tornou-se relevante?
a) Sair de casa
A saída de casa, da casa de pai e mãe, é destacada como um momento significativo.
Das dez pessoas entrevistadas, sete fazem referência ao “sair de casa”. Em alguns
depoimentos, esse momento é narrado como um verdadeiro drama. A saída de casa se dá, para
a maioria dessas pessoas, ao redor dos dezoito anos de idade e se relaciona a trabalho (três
pessoas), estudo (três pessoas) e “casamento”
448
(uma pessoa). Pode-se dizer que a saída de
casa assinala a passagem para a vida adulta.
Ah, momento marcante, assim, que eu acho, foi quando eu saí de casa. Sde casa
lá, tinha dezoito anos e lá no município onde que eu tava não tinha emprego. Eu
queria trabalhar, , meus pais trabalhavam na roça e eu, bah, aquilo ali foi um
aperto pra eu saí de junto dos pais, pra procurar um emprego longe. Eu vim pra cá, e
esse momento foi um dos marcantes ... [Geraldo, 19-23]
... conseguir estudo, de repente, a (.......), que foi um grande passo no sentido, assim,
“eu vou sair de casa agora”, né, aquilo foi, assim, bem um rompimento, digamos,
longe e o primeiro passo a sair da família; enfim, ir pra um internato. E, depois, vir
pra (.....), foi uma mudança bem grande, assim, “eu vou sair de casa agora, mudar de
região, de estado, ir para o outro canto do Brasil”. Então, eu acho, assim, que esses
foram os momentos cruciais, bem marcados na vida. [Jo Carlos, 115-120]
b) Mudar
Todas as dez pessoas fazem alguma referência à questão do “mudar, seja mudar de
casa (seis pessoas), de cidade (cinco pessoas), de estado (uma pessoa) ou de país (uma
pessoa). Esse assunto é mencionado por pessoas de diferentes faixas etárias e em situações
bem diversas. Alguns exemplos: Angélica, 21 anos, fala do momento em que ela e o “marido
tentam construir o próprio lar e mudam de um lugar para outro até construir a própria casa
449
;
Henrique, 56 anos, destaca a sua mudança de país para acompanhar a esposa no seu estudo de
pós-graduação e conclui dizendo que foi uma época bastante difícil para ele em termos de
profissão
450
; Guilherme conta que, em decorrência de uma crise na agricultura, no final da
década de setenta e início de oitenta, ele saiu da roça e foi para uma fábrica de calçados
451
. O
componente cultural “lugar” é bastante acentuado no depoimento de Francisca. São 39/243
unidades de informações sobre “morar”. É o segundo componente cultural mais destacado em
seu relato. Francisca, 84 anos, desde criança, quando se tornou órfã de pai e mãe, ficou à
448
A palavra “casamento”, entre aspas, quer dizer que a união do casal não tem vínculo legal.
449
Angélica, 111-128.
450
Henrique, 38ss.
451
Guilherme, 23-25.
103
mercê do acolhimento de terceiros (tios e irmãos). Quando casou, morou na casa da sogra.
Quando o marido faleceu, ela mudou de cidade, morou sozinha, mas ao adoecer, foi morar
com a filha e agora, com a filha doente, ela está morando num lar de pessoas idosas. Francisca
sonha em voltar para a casa da filha. Ela reza para que a filha sare logo e, assim, ela possa
“voltar pra casa”
452
.
c) O “lugar” das origens
Observa-se que, das dez pessoas entrevistadas, todas morando no contexto da cidade,
sete são oriundas do interior e todas elas mencionam o fato de “ser do interior”: “eu vim do
interior” (Geraldo); “porque a gente vivia, assim, no interior, né” (Janete); “sou do interior
(...), meus pais continuam lá” (João Carlos); “me criei no interior” (Solange); “nasci no
interior” (Liana); “sou filho de agricultor(Guilherme); “isso tudo é no interior(Francisca).
As outras três pessoas o dizem o lugar de nascimento, nem que são da cidade. No entanto,
Henrique diz que ele e a esposa decidiram morar numa ccara, fora da cidade, para criar os
filhos longe da televisão, da cidade, do barulho
453
. Emílio diz que o pai e a mãe são separados,
mas eles moram um em frente ao outro, na mesma rua
454
; e Angélica diz que ficou marcado o
fato de ela ter saído da casa da mãe. Quer dizer, também as pessoas da cidade falam de um
lugar” referencial. Este lugar é o que está ligado à casa do pai e da mãe, ou aos filhos.
Portanto, tanto as que nasceram na cidade, quanto as que nasceram no interior, têm em
comum que o “seu lugar” está relacionado às suas famílias, às suas raízes. O lugar das
origens, das raízes e da família é tão importante que Francisca, por exemplo, mesmo morando
atualmente na cidade, mostra, em seu relato, que já tem o seu “lugar definitivo” pronto. Ela
quer ser sepultada no lugar de onde saiu, na cidade onde criou a sua família.
Esses dias eu disse pra ela, mas se eu morro aqui, como é que eles vão fazer?
(Risos). “Mãe, não pensa isso, isso não acontece!”. Ah, claro que um dia a gente tem
que morrer, mas eu não quero ficar aqui abandonada, eu quero ir pra lá, porque eu
tenho em (.............) um jazido muito bom, de granito natural, eu tenho minha
casinha lá. Então, o dia que eu morrer eu sei pra onde é que eu vou. Daí, eu o
vou rolar mais, porque até agora, eu sempre fui mudando, pra lá, pra uma casa, pra
outra. [Francisca, 109-114]
d) Aquisição de casa própria
Quatro pessoas se referem à questão da casa própria. Angélica fala de como ela e o
marido, com a ajuda do seu pai e da sua mãe, se “viraram” até conseguir um espaço próprio
452
Francisca, 106-109.
453
Henrique, 30-33.
454
Emílio, 10-12.
104
para morar. Liana diz que o avô a ajudou a comprar o seu apartamento e que isso foi uma
transição muito importante. Francisca, quando casou, queria saber do marido, se ela ia ter a
própria casa e Janete conta, com muitos detalhes, como ela ajudou, com seu trabalho, a
comprar parte da casa do pai e da mãe.
E, depois dali eu trabalhei, né, fiz as minhas economias, ajudei a comprar a nossa
casa que, agora, a minha mãe mora, né, parte da casa, eu trabalhei pra pagar. Então,
isso foi uma coisa, assim, que também marcou, né, pelo fato de tu poder ajudar a
adquirir uma coisa que, até eno, nunca nhamos, né, e tu ter uma parcela de
contribuição, porque os outros irmãos já tinham casado, então só tinha três em casa,
né, além de eu trabalhando fora, fora que eu digo é assim, fora da cidade, né, lá
pras fronteiras, assim. Eu deixei eles, eles ficaram no interior, e fui trabalhar nessa
casa da minha tia. [Janete, 110-116]
O componente “lugar” indica, na fala das pessoas, uma importante relação com as
mudanças que as pessoas experimentam em suas vidas, ou seja, as questões referidas ao
“lugar” apontam para diversas situações de passagem: sair da casa do pai e da mãe, mudar de
casa, cidade, estado ou país, adquirir casa própria. Como visto acima, um aspecto relacionado
ao “lugar” é a indicação do lugar das origens. A origem está ligada à identidade da pessoa.
Portanto, lembrar-se do lugar das origens (das raízes) torna-se fator relevante em situações de
passagens. Transições são momentos que geram insegurança, por isso os elementos de
identidade são referências tão importantes. A família, o lugar de origem, são estruturas que
asseguram identidade ao indivíduo.
2.2.5 Laços sociais
De todos os componentes culturais identificados nas entrevistas, apenas três estão
presentes em todas elas, sendo “laços sociaisum deles. Este tema representa o quarto mais
enfatizado, com 186/1887 unidades de informações.
De que maneira o assunto “laços sociais” se relaciona às passagens? O que dizem as
pessoas sobre os laços sociais?
Vimos acima que as passagens estão diretamente ligadas à família, mas há passagens
na vida que também envolvem as relações de amizade, de colegas ou de outras pessoas que se
tornam referenciais nesses momentos. passagens na vida em que a presença de amigos ou
amigas é fundamental.
105
Amigos e colegas são de fundamental importância quando se sai de casa para
ingressar num ambiente de vida completamente novo, como numa faculdade, numa nova
cidade, num novo ambiente de trabalho, num lar de idosos.
Por exemplo, João Carlos, saiu de casa para estudar e encontrou apoio no grupo de
colegas da mesma turma da faculdade.
Chegando na faculdade, o meu apoio fundamental foi o dos colegas que vieram
comigo do internato. Pelo menos, no primeiro semestre, a gente se reunia, quase
todo dia; íamos no quarto um do outro, conversávamos; era interessante, a gente
sempre se reportava pro passado; era importante lembrar aquilo que a gente tinha
vivido, falar dos pais, falar dos irmãos, é, a gente não falava que estava com
saudade, mas o próprio assunto indicava; falávamos que estávamos com saudade da
família, dos pais. Pra nós era um consolo conversar sobre isso. Esses colegas que
vieram foram fundamentais nesse primeiro momento, nesse primeiro semestre de
vida, de faculdade. Depois fui me estruturando mais. Hoje a gente tem uma
relação de amizade, mas cada um seguiu uma vida um pouco diferente, mas foi
importante ter pessoas, que estavam passando por aquele mesmo processo e que,
naquele momento, era a minha nova família, os meus amigos. (Pausa). Isso foi
importantíssimo, mas foi um processo, assim, que, com certeza, marcou pelo lado
emocional, psicogico. (Pausa). [João Carlos, 280-293]
Geraldo saiu de casa para trabalhar. Ele morou um tempo com a tia; em seguida,
decidiu alugar uma casa e morar com amigos.
E eu aluguei uma casa e saí lá da minha tia e vim morar sozinho. Daí depois daquilo
ali, veio mais dois amigos meus morar junto comigo, daí foi mais fácil, nois, esses
dois amigo nois se conhecemo, acho que foi trabalhando com o (..........). Daí, foi
ficando cada vez mais fácil, não as primeira vez porque eu que convidei eles pra vim
morar comigo por causa de aluguel, , pagar aluguel sozinho e depois daquilo ali
eu, conheci eles, e foi, nóis tava entre quatro morando numa casinha, aqui pertinho
aqui. [Geraldo, 177-182]
Francisca saiu da própria casa quando doente, foi morar com a filha e, em seguida,
ingressou num lar de idosos. Trata-se de uma mudança com fortes impactos para a vida
emocional. Ela conta como foi importante encontrar pessoas boas e amigas neste seu novo lar.
Daí, vim conhecer primeiro. Cheguei aqui, senhor (.........) muito educado, a esposa
também, gente muito boa, qualquer um dos dois me tratam como filha. Eu sou muito
bem tratada, as enfermeiras, também, são todas minhas amigas. Eu tenho muita
prática de morar junto! Por isso, aonde eu vou, onde eu estou, estou bem. Porque eu
também sei tratar as pessoas. faz cinco meses que eu estou aqui. [Francisca, 98-
102]
Sair de casa significa não deixar a família para trás, mas também amigos. O novo
lugar de moradia e o trabalho o espaços para novas amizades nascerem.
... foi também difícil no começo, né, morar longe da família, dos amigos, né. Tem
que começar de novo, fazer outras amizades, , ficar longe, longe de casa, mas,
com isso, a gente vai crescendo, , fiz muitas amizades aqui, na churrascaria, têm
muitas pessoas que saem do interior, né, pra trabalhar aqui, né. A gente fez muitas
106
amizades, com pessoas que agora a gente nem mais, . Então, cada uma vai pra
um lado, trabalham uns anos, depois vai embora, casam, né. Fizemos muitas
amizades bonitas, às vezes a gente consegue se ainda. [Solange, 192-207]
A presença de amigos e amigas pode ser fundamental também em situações de
fragilidade, como a doença e na internação para uma cirurgia. Janete, por exemplo, conta que
ela recebeu palavras de apoio e abraços das colegas de trabalho no momento em que ela se
encaminhava para o hospital para realização de uma cirurgia
455
.
Em momentos decisivos na vida, pessoas que se tornam referência-chave, que
ajudam a abrir caminhos para outras. João Carlos, por exemplo, conta que o pastor da sua
comunidade e suas professoras foram pessoas que o ajudaram a refletir sobre a sua retomada
dos estudos
456
. Da mesma forma, Liana conta que ela e sua mãe tiveram o apoio de um
professor quando decidiu estudar num internato
457
.
A falta de apoio de amigos ou amigas em momentos de mudança também pode
tornar uma passagem mais difícil e dolorosa, principalmente quando nesses momentos as
relações familiares são conflituosas. Angélica, por exemplo, conta que suas amigas a
abandonaram quando souberam da sua gravidez e isto lhe causou grande sofrimento. Ela
sentiu falta delas, inclusive, no “Chá-de-fraldas” que ela ppria organizou. Anlica registra
28/93 unidades de informações para o código “laços sociais”, sendo todas elas refencias às
amigas. Essa quantidade de informação mostra o quanto o afastamento das amigas
representou para Angélica no momento da sua gravidez.
que todos, todos saíram, na verdade, saíram de perto, de perto de mim, depois que
engravidei; eu perdi todos, então, isso aí foi uma, todo mundo me deixou de lado. Eu
fiquei no mundo distante do deles, né. Como eu engravidei, eles podiam sair, se
divertir, eu não, eu tinha que ficar em casa, né. Então, isso aí, eu acho que foi uma
transição, ter abandonado uma parte, uma parte de um divertimento, né, eu podia
sair com elas, podia pra qualquer lugar, né, depois aquilo ali foi abandonado.
[Angélica, 66-71]
Em suma, os laços sociais, sobretudo de amizade, são importantes em passagens
como sair de casa, gravidez, ingressar em contextos novos (lar de idosos) e em situões de
fragilidade como cirurgia. Os amigos são referenciais, em especial, quando a família está
ausente, seja porque a família está longe ou porque ela falha em sua função de apoiar o seu
membro numa situação de crise.
455
Janete, 521-523; 568-573.
456
João Carlos, 21-24; 28-33.
457
Liana, 329-338.
107
2.2.6 Vivência religiosa
O que, das entrevistas, foi codificado como “vivência religiosa”? E qual a relação
dessa temática com a das passagens?
O componente cultural vivência religiosarepresenta aquelas situões, nas quais as
pessoas entrevistadas fazem alguma referência à experiência com Deus (pessoal ou
comunitária) ou à comunidade religiosa. Das dez, sete pessoas fazem referências a uma ou
mais situações denominadas “vivência religiosa”. São 156/1887 unidades de informações,
representando, dessa forma, o quinto componente cultural com mais unidades de informações.
Curiosamente, as três pessoas que não registram nada desse componente cultural são as mais
jovens (16, 21 e 29 anos de idade).
As referências, designadas de vivências religiosas”, relacionam-se, em especial,
com as situações limítrofes (doença e morte). Cinco pessoas fazem referência a Deus em
situação de morte, sendo que duas delas também o fazem em situação de doença. As pessoas
não enfatizam qualquer doença, mas as doenças prolongadas ou aquelas associadas ao medo
da morte. Nos dois casos que envolvem doença, as duas pessoas oram a Deus por cura da
própria doença ou da de um familiar.
Em relação à morte, as pessoas manifestam diferentes sentimentos: medo, angústia,
protesto, mas também certeza da morte e sua aceitação. Com esses sentimentos, as pessoas
chegam a Deus de alguma forma. Henrique, quando conta da morte da irmã, cita uma palavra
bíblica que lhe serve de consolo; Janete, quando se preparava para uma cirurgia (e com medo
da morte) orou junto com o marido; Liana, diante da morte inaceitável do irmão, numa
conversa pastoral, manifesta o seu protesto a Deus; Francisca, diante da certeza da morte,
entrega seus dias nas mãos de Deus; e Solange, após uma hemorragia que sofreu logo depois
do parto, passou a encarar a vida, a morte e Deus de um jeito diferente.
Além das experiências com Deus na doença e na morte, encontra-se sob o
componente cultural vivências religiosas” a experiência de duas pessoas em relão à
mudança de comunidade religiosa. Para Janete, a mudança de comunidade religiosa é vista
por outros através da forma de como ela se veste e fala. Ela diz: “eu era luterana, né, agora
sou da Assembléia de Deus. Então isso foi um momento marcante, uma mudança na minha
vida e muitas vezes, as pessoas questionam, ‘ah, porque tu anda assim’, ‘porque tu fala
108
assim
458
. Solange também relata a sua experiência com uma nova comunidade religiosa.
Depois de casada, ela assumiu areligião” do marido.
Outras situações denominadas vivências religiosas”, relacionadas à comunidade
religiosa referem-se à participações em cultos. Quatro pessoas destacam a participação em
cultos especiais
459
como algo que lhes foi marcante. Desses cultos, sobressai a meão ao
culto de confirmação ou crisma (quatro pessoas) e ao de bênção matrimonial (uma pessoa).
Duas pessoas falam do gesto da bênção, com imposição de os, sobre elas, como algo muito
especial, uma que o experimentou no culto de confirmação
460
e outra, no de bênção
matrimonial.
Conforme o relato de duas pessoas, o componente cultural vivência religiosa”
encontra-se relacionado a situações de crise, uma em caso de conflito conjugal e outra de
conflito entre irmãos. Henrique relata que ele e a esposa enfrentaram uma forte crise conjugal
(que, mais tarde, resultou em separação) e que, então, num determinado momento encontrou
amparo numa terapia pastoral, a qual incluía conversação e oração. Francisca acompanha um
conflito entre o filho e as filhas, o que se estende por anos, desde a partilha da herança. Ela
sofre muito com isso e sempre ora, pedindo a Deus pelo filho, para que ele mude de atitude e
se reconcilie com as irmãs.
A partir do que foi descrito, o componente cultural vivências religiosas”, no relato
das pessoas entrevistadas, encontra-se relacionado a diversas passagens da vida, em especial,
à morte e doença, mas também a casamento, mudança de comunidade religiosa, maturidade e
a conflitos e crises profundas. O apelo a Deus é, sobretudo, uma forma de encarar e enfrentar
as crises existenciais.
2.2.7 Trabalho
Oito das dez pessoas entrevistadas dão destaque ao componente cultural “trabalho”.
Registram-se 147/1887 unidades de informações para esse componente cultural, sendo,
portanto, o sexto mais destacado. Quase a metade dessas unidades de informações (70/147) é
decorrente do relato de uma só pessoa.
458
Janete, 39-42.
459
Cultos especiais, neste caso, são aqueles cultos que acontecem em momentos ocasionais, diferentes dos cultos
dominicais.
460
Para a teologia cristã, o culto de confirmação marca uma passagem importante da vida cristã, assinalando a
maturidade da pessoa crente, e antropologicamente, devido a idade em que ela acontece (por volta de 15 anos), a
confirmação é associada à transição da adolescência para a vida adulta.
109
Acento especial é dado ao primeiro emprego, o qual é associado ao “sair de casa”.
Quatro pessoas lembram que saíram de casa em busca de emprego e todas elas recordam que
isto aconteceu aos dezesseis (três pessoas) e aos dezoito anos (uma pessoa). Além dessas, uma
quinta pessoa menciona a idade de dezesseis anos como o momento em que teve o seu
primeiro emprego. Neste sentido, é possível dizer que o trabalho, sobretudo o primeiro
emprego, assinala uma mudança significativa na vida e isto ocorre a partir dos dezesseis anos
de idade. Assumir um emprego significa que uma nova fase na vida está iniciando e com ela
as responsabilidades da vida adulta começam a ser encaradas: autonomia financeira,
administração de horário e dinheiro, planejamento financeiro, preocupação com as contas da
família, etc. Isto se depreende de depoimentos como o abaixo
461
:
No início, eu fui com dezesseis anos, - nós morávamos no interior, né, mas nós
nunca tinha a nossa propriedade, nós sempre trabalhávamos para os outros. Eu
nunca tive, até os dezesseis anos, a possibilidade de ir na loja, de ir no mercado, e eu
comprar aquilo que via, porque eu nunca tive dinheiro, até então, -. eu fui
morar com a minha tia, fui trabalhar na casa dela; então isso foi uma coisa, assim,
que marcou, foi uma mudança. Eu comecei a trabalhar, a ter o meu dinheiro, do meu
trabalho, né. Então, isso foi uma mudança que ocorreu, pelos dezesseis anos, né.
Aí, comecei a economizar, fiz uma poupança, coisas que, até então,o tinha como
..., nunca ia acontecer, um dia ter o meu dinheiro. [Janete, 90-98]
No relato de Janete, o componente cultural “trabalhoé o segundo mais acentuado.
Ele recebe 70/363 unidades de informações. Janete é uma das que destacam o primeiro
emprego e a sua saída de casa, aos dezesseis anos, para trabalhar. Mas, em seu depoimento,
ela discorre longamente sobre o seu atual emprego, de assistente gerontológico,
possivelmente, porque nesse emprego ela descobriu a sua verdadeira vocação e decidiu, aos
trinta e três anos de idade, investir na sua formação com vistas ao aperfeiçoamento na área em
que atua. Ela deseja fazer o curso cnico em enfermagem. Por isso, Janete tanta ênfase a
esse trabalho, em suas respostas. Esse emprego, em especial, marca uma mudança muito
significativa em sua vida: a escolha da sua profissão!
Mas, o importante é que tu escolhe aquilo, aquela profissão porque tu realmente
gosta, porque tu realmente tem amor por aquilo que tu vai fazer, porque não adianta
tu ter uma profissão e tu não saber porque a escolheu. Eu penso assim comigo,
porque, às vezes, as pessoas querem, pensam na parte material e não pensam
assim o quanto elas podem ajudar ou o que elas estão fazendo ali, realmente, para
quê elas foram escolher essa profissão. [Janete, 414-419]
Das oito pessoas que discorrem sobre o componente cultural trabalho”, três fazem
referências ao “desemprego”. Duas delas apenas mencionam o assunto superficialmente, mas
a terceira pessoa fala sobre a questão como algo que a toca profundamente. Trata-se de Liana.
461
Outros exemplos podem ser conferidos nos depoimentos de Emílio, 92-101 e Geraldo, 20-22.
110
Ela discorre rapidamente sobre a sua saída do emprego, que para ela ainda é recente, e como
ela expressa é uma coisa que eu estou resolvendo ..., ainda, não tá ... Tem hora que eu estou
super bem, tem hora que eu não to bem, mas no mais, assim, ...”
462
. Em relação ao
desemprego, Liana chama atenção para a questão do “sair de repente”. Sair do emprego, de
repente, sem estar preparada, causa choque, desestabiliza.
Tem também aqueles momentos de tristeza, assim, o mais recente é ..., que eu saí do
meu trabalho. Talvez, se fosse .... Eu não estava preparada, pra sair, de repente.
Vamos dizer assim, se, aos poucos, oh”, tem que sair”, assim, tudo bem. Mas,
assim, cortar uma árvore, né, e isso abalou toda a minha estrutura. [Liana, 110-113]
“Trabalho” é um tema relacionado a momentos especiais na vida porque assinala
mudanças importantes. Em relação a esse componente cultural, as pessoas entrevistadas
destacam passagens importantes como primeiro emprego, saída de casa, descoberta da
vocação e mudança de setor de trabalho. Além disso, destaca-se o desemprego como uma
mudança ocorrida na vida, que intensifica a crise.
2.2.8 Doença
No relato das pessoas entrevistadas o componente cultural “doença” encontra-se
relacionado às situações de doença própria, de pai e mãe, marido e irmãos. Mais
especificamente, a doença como fato marcante é aquela que está ligada à morte de alguém da
família ou aqueles casos de doença própria que lembram a morte ou provocam seqüelas
físicas, assim como os casos de doença de tempo prolongado. Ao todo, seis pessoas
mencionam a doença em seus depoimentos, mas três delas enfocam-na com mais insistência.
Registram-se 139/1887 unidades de informações, sendo que 128/139 pertencem as essas três
pessoas. Duas, dessas três, dedicam um bom tempo da entrevista para discorrer sobre a
doença de pai e mãe. Cinco, das seis pessoas, falam de doença própria e para quatro dessas, a
doença está relacionada à morte (morte de pai, e, marido e irmão) ou ao medo da morte.
Alguns exemplos:
Janete, quando constatado que deveria fazer uma cirurgia por causa de uma lesão no
rosto, com o prognóstico de câncer, além da preocupação com uma possível deformação
muito vivel, ela teve medo, pois se lembrou do pai que morrera de câncer
463
.
462
Liana, 114-115.
463
Janete, 46-51, 447ss, 552-557.
111
eu achava que não estava preparada [para a cirurgia, sic.] (...) pelo fato do meu pai
ter falecido, , porque o meu pai faleceu por causa do câncer, né, não foi por causa
do AVC, porque o médico disse que, pelo AVC ele teria muitos anos, muito bem;
então aquilo ali, no primeiro instante, aquilo veio na mente, né, e também tem esse
fato de eu fazer todo aquele tratamento pós, ... [Janete, 552-557]
Liana ficou doente logo as o enterro do irmão:
Depois que passou, todo o ritual, enterro, porque velório a gente nem fez, a gente
ficou alguns ..., com o caixão, porque a gente não podia abrir e ver nada. Daí eu
fiquei sem poder caminhar, o sistema nervoso bateu todo em minha coluna e eu o
podia levantar, se ficasse deitada eu o podia levantar, se eu ficasse sentada, o
podia caminhar; então eu tive que ..., nós fomos ao médico; foi, é, ... uma contração
que deu. E isso foi muito dolorido, porque a gente se dava muito bem. A gente
sempre tem um irmão com quem a gente se dá, a gente tem uma afinidade maior. E
eu tinha muita afinidade, nós dois éramos muito, assim, afinadinhos, né. [Liana.
143-150]
Outro enfoque sobre esse componente cultural é dado ao caso de doença prolongada
e impossibilidade da pessoa viver sozinha, passando a depender de outras. Pessoas idosas que
se encontram nessas condições são, normalmente, encaminhadas a lares de serviços
especializados. Uma das pessoas entrevistadas (Francisca) se encontra em tal situão. Ela
fala de sua doença, mas sempre com a perspectiva de curar-se e poder voltar para a casa da
filha. A doença, neste caso, representa um tempo intermediário na vida de Francisca, um
período de transição que ela espera “passar” para, então, curada, retornar à vida normal. Neste
sentido, a doença pode ser encarada como uma passagem ou transição, especialmente aqueles
casos de doenças que implicam em parada no ritmo normal da vida, impossibilitando o
trabalho ou qualquer atividade que a pessoa exerça. Essa representação da doença como uma
passagem também pode ser vista no caso de Janete, que relata sobre sua cirurgia. Ela necessita
interromper o seu cotidiano para investir na sua cura e, depois, retornar à vida normal.
E as doenças que são seguidas de morte? Elas também podem ser encaradas como
um tempo intermediário que separa a vida da morte, tornando-se um tempo de despedida entre
as pessoas, mesmo que isso não seja tão evidente. Num dos relatos, esta questão aparece
assim: Henrique conta que seu pai tinha 97 anos quando desenvolveu um câncer e entrou em
processo de radioterapia. Henrique acompanhou o pai durante todo o seu tratamento. Por fim,
o pai, ainda em tratamento, ficou internato numa casa especializada para pessoas idosas e
Henrique o visitava diariamente. Assim foi até o falecimento do pai. Henrique, ao descrever
detalhadamente esta experiência de acompanhamento do pai no período de sua doença,
112
constata que esse foi um tempo de uma relação muito proveitosa com o pai, assim como de
despedida
464
.
A doença, em especial, os casos de doenças prolongadas e as doenças que levam a
internações hospitalares, é uma passagem marcante, pois implica mudanças na vida. As
mudanças provocadas pela doença acontecem em vel de trabalho ou profiso (interrupção,
licença), mas também em nível psicológico (expectativa de cura, medo da morte ou medo de
alterações no aspecto físico, por exemplo). O destaque das pessoas dado à doença também
encontra-se, muitas vezes, associado a outra passagem, a morte.
2.2.9 Laços conjugais
Sob o componente cultural “laços conjugais” encontram-se referências a três itens, a
saber, namoro, casamento (este inclui a união oficial legalizada e a não oficial -
popularmente conhecida como “morar juntos”) e separação. Oito pessoas, das dez
entrevistadas, fazem menção ao assunto e reúnem 79/1887 unidades de informações. Porém,
dentre os três itens do componente cultural “laços conjugais”, um acento maior em
“separação”. Este, sozinho, contém 44/79 unidades de informações, sendo elas partes de um
só depoimento.
a) Namoro e casamento
Do componente cultural “laços conjugais”, 35/79 unidades de informações se
referem aos itens namoro e casamento”. Namoro e casamento estão intimamente
relacionados, ou seja, não se fala de namoro como fase independente a não ser um caso. Das
oito pessoas que tratam do componente cultural laços conjugais”, três discorrem mais
detalhadamente sobre namoro. Duas delas o fazem, possivelmente, porque o namoro ao qual
se referem resultou em gravidez. Do namoro com gravidez, passa-se ao “morar juntos”. Em
nenhum desses dois casos aparece a palavra “casamento”; uma delas fala de um momento em
que “começaram a morar juntos”. Outra referência a namoro que recebe um pouco mais de
destaque é dada por Liana. Ela tem 54 anos e o casou, mas faz referência a um namoro, em
especial. Ela diz que gostava muito do namorado, mas ele foi embora para outro país e ela
464
Detalhes da experiência de Henrique com o pai, podem ser conferidos em: Henrique, 191-195; 237-249.
113
não quis ir junto e perder a independência, ter que começar do zero ou ir para uma coisa bem
nova
465
.
Das pessoas entrevistadas, cinco são casadas
466
, uma é separada, uma é viúva e três
o solteiras. O item “casamentoé abordado por cinco pessoas (nessas cinco pessoas estão
incluídas a viúva e a separada).
Duas pessoas destacam o casamento como um fator de mudança concreta na vida,
porém, não se entra em muitos detalhes. Uma delas explica que a mudança de solteiro para
casado lhe imputou novas responsabilidades: oferecer segurança e manter o sustento de uma
família. Casar, para ele, significou criar um novo núcleo ou um pequeno clã”.
Então, vamos dizer assim, a transição de solteiro pra casado ela me trouxe uma
certa, é, - preocupação eu o digo -, mas, é, ela fez com que eu, evidentemente,
mudasse os meus hábitos, né, ou então buscasse algo a mais, mas com o intuito de
conforto, de segurança, acho que nem tanto de conforto, mais de segurança para esse
novo núcleo que eu criei, porque, na verdade, o que acontece? Na medida em que,
com o casamento você cria um pequeno clã, né, e, a partir daí você, querendo ou
não, nós vivemos numa sociedade machista, né, vivemos nela e onde o homem ainda
é considerado como chefe e cabeça de família ou chefe de casa e busca, tem que
buscar o sustento e tem que prover toda a, né, então, isso realmente me causou uma
certa, o digo, o posso encarar isso como angústia, mas eu creio que um buscar
permanente para promover isto, né, e até já pensando em filhos enfim. [Guilherme,
102-113]
b) Separação
O item “separação” do código laços conjugais” é um assunto tratado com muita
ênfase por Henrique. Ele fala da própria separação. Duas outras pessoas mencionam o
assunto, apenas superficialmente. Uma delas é Francisca, dizendo que sua filha se separou e
outra é Janete, dizendo que os irmãos são separados. Para elas, a menção da separação de
alguém na família parece apenas indicar que esse é um fato presente nas famílias de hoje. Para
Henrique, contudo, a separação é crise, é um processo que traz implicações para a vida.
Henrique tem 46/79 unidades de informações do código “laços conjugais”, sendo
essas informações quase totalmente dirigidas ao assunto “separação(44 de 46). Trata-se de
algo marcante em seu relato. Ao discorrer sobre o assunto, ele se refere à separação como um
fato traumático em sua vida. E, no entender de Henrique, enquanto processo traumático, a
separação necessita de meios para sua superação. Ele diz que buscou o apoio na terapia, na
família (filhos) e no esporte, sendo que foi o esporte que lhe rendeu bons resultados.
465
Liana, 104-109.
466
Dessas cinco pessoas, duas não são casadas oficialmente, mas adotaram o sistema de “morar junto”.
114
... essa bicicleta me ajudou muito a sair disso, porque digo que, nessa situação de
separação alguns homens comam a beber, caem na bebida, outros se esfolam
trabalhando e outros se atiram com mulheres e diversão e tudo, e eu me atirei na
bicicleta, né. Então, essas provas de longa duração têm feito muito bem pra cabeça,
tem me aliviado e tudo e tem sido muito bom isso aí. [Henrique, 72-77]
467
O componente cultural laços conjugais” traz à tona passagens importantes da vida
como namoro, casamento e separação. O casamento e a separação, em especial, são situações
que acarretam mudanças significativas na vida pessoal e familiar e alteram o status social (de
solteiro para casado ou de casado para separado). Trata-se de passagens que dão início a
novos momentos no ciclo da vida. Como toda passagem, elas são seguidas por grandes
expectativas, entre elas também a da insegurança em relação à nova e desconhecida situação.
A separação, além da crise que acompanha qualquer mudança, é uma passagem, sobretudo,
traumática. O sentimento de perda e de um relacionamento fracassado sobrecarrega a crise a
ponto de tornar essa passagem mais difícil e temerosa.
2.2.10 Morte
Nove pessoas das dez entrevistadas referem-se a algum caso de morte e todas as
referências estão ligadas a familiares (pai, mãe, avô, avó, irmãos, irmã, marido). Três delas
abordam o assunto mais superficialmente; as demais, porém, o mais enfáticas. 77/1887
unidades de informações sobre esse componente cultural e apenas uma pessoa não faz menção
alguma ao tema.
Duas pessoas, as mais jovens (16 e 21 anos), falam da morte dos avôs como algo que
os marcou: “o falecimento do meu avô (...) foi uma perda grande na falia”, diz Emílio
468
.
Quatro pessoas se referem à morte de familiares como perdas traumáticas: morte de irmão por
afogamento; de irmão por suidio; de jovem irpor doença; de mãe, ainda jovem, por
doença e de pai como vítima de assalto. O tempo de luto é necesrio para que as pessoas
“elaborem” a perda sofrida. Esse tempo, em alguns casos, sobretudo naqueles de mortes
467
Confira outros detalhes do depoimento de Henrique:
“Bem, depois disso, veio o terceiro trauma de adulto, né. Foi a separação da minha mulher, uma mulher de quem
eu gosto, gosto até hoje, não é nenhum segredo e, digamos, não entendi o que aconteceu, por que nos separamos,
tudo. Primeiro, eu fui primeiro muito pro lado de buscar terapia, buscar apoio, de profissionais. Nós contratamos,
fomos logo numa psicóloga em (.............................), especializada nisso, e tal; uma baita picareta, assim,
pensando bem. Não resolvemos nada, não conseguimos dar a volta, até agora, o sei o que houve direito, mas
nós acabamos nos separando. Aí, eu tive uma idéia, (...), então, “vamos reunir de novo os quatro filhos na casa e
os dois velhos e vamos ver se nós não criamos aquele clima, se ela não muda de idéia”. Não mudou! Isso era a
última chance. Bem, depois disso, nós nos separamos. Foi uma época bem difícil, onde eu me atirei na bicicleta,
, ... “[Henrique, 294-306]
468
Emílio, 27-29.
115
traumáticas, pode ser muito longo. Francisca, por exemplo, com 84 anos e órfã aos nove anos,
diz que sente ainda hoje a tristeza da morte do pai e da mãe. O pai foi vítima de assalto e sua
mãe morreu em conseqüência de doença. Quando perguntada pelos momentos marcantes, ela
afirma:
Os momentos que eu mais marquei, claro que foi a morte dos meus pais. Que a
minha mãe morreu dia quatro de novembro; dia dezessete de fevereiro mataram o
meu pai. Daí isso foi um choque pra mim, o dia mais triste. Porque, já pensou? Ficar
cinco crianças desamparadas. O meu irmão mais velho tinha 15 anos, depois os
outros todos eram pequenos. Foram muito marcantes, que eu fui pra
(....................), tal, como eu já te contei. Foi o momento mais triste, demais, até hoje,
eu sinto. [Francisca, 128-133]
Geraldo tem vinte e nove anos e aos dezesseis perdeu o irmão mais velho, que
praticou o suicídio em razão do abandono da namorada. Treze anos se passaram e, conforme o
que ele relata, a falia, até hoje, não conseguiu superar o luto. A mãe e o pai, por exemplo,
não conseguem sair de onde moravam porque o filho está sepultado lá, conta Geraldo. As
fotos do irmão estão guardadas porque eles o conseguem olhá-las. Também ele, Geraldo,
não gosta de ver as fotos do iro.
E d, depois daquilo ali, dentro de uns cinco mês, minha mãe e meu pai
envelheceram uns quatro, cinco anos. Isso aí, olha, depois daquilo ali ... . Nessa
parte, eu queria que o meu pai e a minha e viessem embora pra cá, também. Só
que eles não conseguiram sair de lá. Meu irmão ta enterrado lá. Daí ela diz que de lá,
de perto dele, ela o queria sair. E daí, olha que eu lutei, lutei pra eles vim morar
pra , todo mundo, mas não tem jeito, eles não largam, de lá eles não saem; eles
têm a terrinha deles lá, agora. Pra cá, é difícil. Difícil, difícil, trazer eles. Isso aí é até
hoje, foto dele sempre, as foto dele tão tudo guardado, não consegue ver as foto dele.
Imagine pro pai e pra mãe, pra mim, assim, iro, não gosto. Quando eu vou pra lá,
eu tento desviar das fotos do meu irmão, porque, ta loco. Esse momento aí, foi cruel.
[Geraldo, 106-115]
Um sinal de mudança, ligado à passagem “morte”, entre outros, é o que aparece no
depoimento de Geraldo quando ele diz: até os meus dezesseis anos, nós era entre seis irmãos.
Daí tava tudo bem com a nossa família e tudo (...)”
469
. Quer dizer, a morte é uma passagem
que também implica mudanças na identidade de uma família (antes eles eram seis irmãos,
depois são cinco).
A morte sempre causa impacto, mas as mortes prematuras, provocadas por acidentes,
por exemplo, são, sobretudo, traumáticas. Os traumas causados pela morte podem se
manifestar de muitas maneiras; uma delas é a manifestação sica da dor. Assim foi com
469
Geraldo, 46-47.
116
Liana. Ela, ao lembrar a morte do irmão, por afogamento, diz que, após o enterro, ficou
imobilizada por uma contração (se deitada,o podia levantar-se)
470
.
foi feito referência, no componente cultural “doença”, aos casos em que a doença,
como tempo intermediário entre a vida e a morte, é também um tempo de despedida das
pessoas que convivem mais proximamente. E, conforme o depoimento de Henrique, já
observado acima, essa pode ser uma experiência salutar. Henrique, como parte de sua
experiência, destaca a importância de estar junto com o pai e a mãe na hora da morte.
(...) por uma graça muito especial, o pai faleceu quando eu tava junto e, é, eu acho
que isso foi uma coisa especial porque se ele queria alguém que tivesse com ele
nesse momento era o filho dele, né. É, isso marcou muito nessa fase do pai. Da
mesma forma com a e. [Henrique, 252-255]
Vimos acima, no item “vivência religiosa”, que aparece a questão do medo da morte
e, conforme o depoimento de Solange, a sua experiência de confronto com a morte a ajudou a
encarar tal situação com menos sofrimento. Num outro depoimento, esse aspecto também é
trazido à tona. Francisca se reporta à idéia de que ela vai morrer, revelando aceitação da
morte. Ela diz, por exemplo, Eu, agora, estou esperando chegar o dia”
471
. Ela diz isso com
muita naturalidade, tanto que numa conversa com a filha, ela manifestou o desejo de quando
morrer, ser conduzida ao lugar de onde veio, pois lá ela já tem jazigo. E complementa:
“Então, o dia que eu morrer eu já sei pra onde é que eu vou
472
.
A morte, como outras passagens, é acompanhada de crise, mas, diferentemente das
outras passagens, ela gera um sentimento de perda irreparável. A aceitão da morte é um
sentimento pertinente ao ser humano, pois sabe-se que a morte é o destino natural de cada ser
vivo; ela é parte do ciclo da vida; mas, este não é o caso da morte prematura que, por isso,
causa traumas tão profundos. Há situações de morte em que o luto acontece dentro de um
tempo ou limite considerado normal. Em outros, porém, como nos casos de mortes
traumáticas, o processo é mais demorado e, muitas vezes, prolonga-se pela vida afora. Para
Geraldo, por exemplo, a ferida, causada pela morte do irmão, treze anos, ainda permanece
aberta.
470
Liana, 143-147.
471
Francisca, 207.
472
Francisca, 113.
117
2.2.11 Tornar-se mãe, tornar-se pai
De dez pessoas entrevistadas, cinco fazem menção à experiência de ter filhos/filhas;
uma mulher, casada e não tendo filhos, fala dos filhos que ainda terá. As outras cinco pessoas
não falam da experiência de tornar-se pai ou mãe porque nãoo mães ou pais, mas é
interessante observar que Liana, de 54 anos, não sendo mãe, fala do nascimento dos sobrinhos
como algo marcante para ela. Francisca, 84 anos, sendo mãe, não menciona especificamente
o fato de tornar-se mãe. Pode-se entender isso pelo fato de que a sua fase de vida atual é outra.
Ela fala dos netos e bisnetos! Ao todo, 62/1887 unidades de informações sobre o
componente cultural “tornar-se pai, tornar-se mãe”. De todos os componentes culturais, esse é
o que apresenta o menor índice por unidades de informações.
O que dizem as pessoas sobre o “tornar-se mãe ou pai”?
O tornar-se mãe ou pai é destacado como uma experiência muito marcante na vida.
Trata-se de uma passagem com sinais de mudanças muito concretos. A partir do momento em
que os filhos nascem, o dia-a-dia da vida muda radicalmente. Solange e Angélica explicam
bem o significado dessa mudança. Considerando o que elas dizem, “tornar-se mãe” implica
mudar totalmente o foco de atenção de si para o outro. Solange, por exemplo, deixou de
trabalhar fora para dedicar-se ao cuidado dos dois filhos
473
e Angélica diz que a filha é tudo o
que ela tem no pensamento:
Eu só penso nela, eu só pensava nela e me marcou muito, assim, me marcou desde o
começo até hoje, o que me marca sempre. É difícil de dizer, assim, mas pra mim, no
meu, no meu, no caso, no meu pensamento, tudo é ela, se ela ta bem, ta ruim. Eu
também fico ruim, se ela ta ruim. Acho que é isso. [Angélica, 47-51]
Pais e mães falam da alegria e da emoção que sentem com o nascimento dos filhos,
ao mesmo tempo, eles e elas também falam das responsabilidades que esse novo status
acarreta. Filhos dão trabalho, mas é compensador. Guilherme diz que sua filha o “fez muito
feliz” e lhe “trouxe uma energia muito grande”
474
. Geraldo não tem palavras para definir seu
sentimento. Ele diz: “A primeira vez, ser pai a primeira vez, assim, é um dos momentos que
mais marca a vida dum pai e duma mãe, a primeira vez, assim. (...). Ela é um brinquedo pra
nóis, ela é assim, bah.
475
.
473
Solange, 11-14.
474
Guilherme, 59-60.
475
Geraldo, 129-133.
118
Conforme Solange, pensar na vida antes de ter os filhos, é ver um “vazio muito
grande”.
Eu falei antes do nascimento dos meus filhos, né; é uma diferença bem grande, né,
na vida da gente; uma alegria muito grande sentir aquele bebezinho ali, né, junto da
gente e a responsabilidade, tem que cuidar e ficar, praticamente, o tempo inteiro
junto do bebezinho; exige bastante da gente, né, período integral, né, dia e noite, mas
muito, muito bom. Até, depois que a gente tem o primeiro filho, às vezes eu
comentava com meu marido, “como é que a gente podia viver antes sem ter?”. Que
ter um bebezinho em casa, né, a diferença; a diferença que é muito grande né; não dá
nem pra imaginar o que é ter uma criança dentro de casa. É muito bom. bastante
trabalho, né, filhos dão muito trabalho, mas é uma coisa maravilhosa, né. Sem eles
não sei, é um vazio muito grande, né, pensar antes de ter eles é como se fosse um
vazio. Ter meus dois filhos foi uma coisa muito boa. [Solange, 106-116]
Outro aspecto ligado ao tema tornar-se pai e mãe” é trazido por uma das
entrevistadas, Angélica. Conforme ela, a gravidez, o nascimento, sobretudo do primeiro filho,
implica perdas. E no seu caso, cuja gravidez não foi planejada e aconteceu na sua
adolescência, essas “perdasse tornam ainda mais marcantes. É necessário frisar que toda a
entrevista de Angélica gira em torno dessa gravidez, dos conflitos familiares daí decorrentes e
das perdas que ela sofreu. o 67/93 unidades de informações para assuntos que envolvem a
sua gravidez. Conforme enfatiza Angélica, a gravidez aos dezesseis anos significou, para ela,
“largar” a adolescência, “perder toda uma etapa”, “ter que parar os estudos”, “deixar as
amizades de lado”. Além de tudo, Angélica experimentou muitos conflitos em casa, com a
mãe, em especial, e com o pai e diz que perdeu os seus direitos em casa.
Em torno de três meses, assim, se resumiu essas duas transições, que foi no
momento que engravidei e que perdi tudo que eu tinha, que eu tinha de amigos, que
eu tinha de companheiros, assim, e depois, da, dos direitos que eu tinha em casa, né.
Que daí eu tive que construir os meus direitos dentro da minha casa, né, das minhas
coisas, de lutar pelas minhas coisas. (Silêncio) [Angélica, 99-103]
476
Tornar-se mãe e pai é passar para um status totalmente novo (e irrevogável). Como
diz Solange: “é uma diferença bem grande, né, na vida da gente”. Exige dedicação, tempo
integral, responsabilidade, “mas é muito bom”. Tornar-se mãe e pai é uma passagem na vida
que implica mudanças significativas, traz satisfações e alegrias, mas também perdas, como
476
Detalhes do depoimento de Angélica sobre a sua gravidez, podem ser conferidos no texto que segue:
“Também por causa da minha gravidez, né, que foi, tive que largar minha adolescência, né, com dezesseis anos
engravidar, perder toda uma etapa, né, na verdade, eu perdi uma etapa, podia ta lá, né, ter feito outras coisas,
parei de estudar, né, isso daí tamm foi; daí eu tive que parar meus estudos, daí pra seguir outro lado, né,
deixar, deixar as amizades, no caso, de um lado; que todos, todos saíram, na verdade, saíram de perto, de perto
de mim, depois que engravidei; eu perdi todos, então, isso foi uma, todo mundo me deixou de lado. Eu fiquei
no mundo distante do deles, né. Como eu engravidei, eles podiam sair, se divertir, eu não, eu tinha que ficar em
casa, né. Então, isso aí, eu acho que foi uma transição, ter abandonado uma parte, uma parte de um divertimento,
, eu podia sair com elas, podia pra qualquer lugar, né, depois aquilo ali foi abandonado.” [Angélica, 62-71]
119
acentuou Anlica. No seu caso, a crise da passagem foi acentuada pela não aceitação da sua
nova condição, na família e no grupo de amigas. Também aqui se constata uma ênfase numa
passagem cuja crise parece não ter sido resolvida satisfatoriamente. Enquanto as demais mães
e pais falam da sua experncia de tornar-se mãe ou pai enfatizando a alegria e a satisfação,
Angélica enfatiza a sua experiência de perda e frustração.
2.2.12 Sistematização dos resultados
O objetivo desta seção foi estudar as passagens que sobressaem nos relatos das
pessoas entrevistadas. Para se chegar a esse resultado, a seção foi organizada de acordo com
os dez componentes culturais que foram identificados no conjunto das respostas das pessoas
entrevistadas, como temas comuns, mais destacados. Lendo os textos referentes a cada
componente cultural, conforme os trechos que foram copiados das respostas de cada pessoa, e
interpretando os dados por meio de relações cruzadas, foi possível perceber que as pessoas
destacam fatos importantes da sua vida, ressaltando sempre de novo os conflitos ou as crises
por elas vividos. Constatou-se que, ao falar das dores, dos sofrimentos, das anstias, assim
como também das alegrias, satisfações e realizações, as pessoas entrevistadas estavam, na
verdade, descrevendo passagens significativas das suas vidas. Portanto, a partir do estudo
minucioso dos componentes culturais chegou-se a passagens relevantes como as que seguem
descritas abaixo.
Saída de casa e ingresso em outro contexto: a saída de casa para estudar e trabalhar
(transferindo-se para outra cidade ou estado), para morar junto ou casar-se implica, tanto para
quem sai quanto para quem fica, vivenciar um processo emocional novo (novas
responsabilidades psicológicas e financeiras, novos papéis familiares e sociais, novos
relacionamentos familiares e sociais, reconfigurações familiares). Não dúvida de que a
saída de casa e o ingresso em outro contexto sejam passagens relevantes na vida. Na vida de
jovens, a saída de casa marca, em especial, a passagem para a vida adulta. Pais e mães
também vivem mudanças em suas vidas com a saída dos filhos. Essa mudança pode lhes
trazer um forte sentimento de perda, de “ninho vazio”, depressão, mas também pode ser um
momento em que se dão novos rumos para as suas vidas
477
. Quer dizer, uma passagem na vida
oscila entre passado e futuro, ontem e hoje, perdas e ganhos, parada e recomeço, morte e vida!
477
CARTER, Betty; MCGOLDRICK, Mônica. As mudanças no ciclo de vida familiar: uma estrutura para a
terapia familiar. In: CARTER, Betty; MCGOLDRICK, Mônica (Orgs.). As mudanças no ciclo de vida
familiar: uma estrutura para a terapia familiar. 2. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. p. 21.
120
Namoro, noivado, casamento e morar juntos: conhecidos como passagens
tradicionais em diversas sociedades, namoro, noivado e casamento também recebem destaque
nos relatos das pessoas entrevistadas, embora o noivado pareça o ser o relevante. Em seu
lugar aparece o “morar juntos”, como uma nova modalidade de união conjugal.
Gravidez e nascimento: a gravidez e o nascimento, igualmente vistos como
passagens tradicionais, são apontados pelas pessoas entrevistadas como um marco muito
importante de suas vidas, em especial quando se trata da primeira gravidez ou do nascimento
do primeiro filho ou primeira filha. São passagens rodeadas de expectativas diante do mundo
totalmente novo que se abre. As pessoas entrevistadas falam dos sentimentos de alegria e
satisfação que as acompanham nessa nova fase da vida, assim como também das
responsabilidades e preocupações. Ao contar sobre o nascimento dos filhos, pais e mães
deixam transparecer em seus relatos que a partir do nascimento dos filhos, deixa-se um
mundo bem diferente para trás e recomeça-se uma nova etapa na vida (fala-se em perdas e
ganhos). No relato de uma das entrevistadas, a gravidez na adolescência é destacada como
uma passagem cuja crise é redobrada, pois, além de enfrentar as mudanças psicológicas
decorrentes da própria gravidez, a jovem necessita elaborar as perdas inerentes à sua
adolescência. Por isso, pode-se dizer que as passagens geram graus de ansiedades diferentes.
Ingresso e conclusão de estudo: o estudo também é caracterizado por diversos
momentos de passagem, tais como, a entrada no mundo do estudo, a retomada aos estudos, os
esgios intermediários, mas, sobretudo, a conclusão dos estudos é referida como momento de
grande ansiedade, especialmente quando se trata da conclusão final do estudo, pois, aí é
também momento de iniciar a carreira profissional. Para os jovens, entra em jogo, por
exemplo, a tarefa do reconhecimento do seu estado de adulto, tanto por parte da família, como
de outros grupos de relacionamento social, da sua independência e autonomia.
Ingresso e mudança na vida profissional e desemprego: no mundo do trabalho, as
pessoas entrevistadas apontam para passagens importantes como entrada numa profissão ou
primeiro emprego, mudança de emprego e também desemprego. Fala-se da expectativa de
iniciar uma carreira profissional, alcançar independência e ser reconhecido como pessoa
adulta (Liana, por exemplo, falou da sua ansiedade em conseguir seu primeiro emprego para,
finalmente, sair de casa e se libertar do controle do padrasto); mudar de emprego significa, às
vezes, abandonar algo e recomeçar coisas novas, como por exemplo, deixar um círculo de
amizades para trás e estabelecer novas redes de relacionamentos. Na área do trabalho, o
desemprego também pode representar uma passagem muito significativa, visto que a pessoa
121
muda de condição social (empregado versus desempregado). E essa passagem é acompanhada
de grande instabilidade emocional, crises e traumas, a exemplo de Liana que, ao passar pela
experiência de perder o emprego, sentiu-se como uma “árvore cortada”.
Separação conjugal e separação de pai e e (na perspectiva de um filho): a
separação conjugal, uma ocorrência cada vez mais presente nos dias atuais, é uma passagem
cujo processo traz implicações para a vida o dos cônjuges que se separam, mas de toda a
família, principalmente dos filhos. Os/as filhos/as também enfrentam crises próprias
decorrentes da separão de pai e de mãe. Como se referiu Emílio, um entrevistado, ao optar
em morar com a mãe, sentiu medo de perder o amor do pai.
Ingresso em um lar de idosos: pelo que se percebeu no relato de uma entrevistada, o
ingresso em um lar de idosos é uma passagem de elevado grau de ansiedade. Relembrando o
relato de Francisca, ao contar sobre o dia em que se transferiu para o lar, afirma: “Foi muito
dolorido. (...), aquele dia o meu coração, se é que fica preto, ficou
478
. Dor e morte são os
sentimentos que a marcaram nessa hora, além do medo de abandono que a acompanha no dia
a dia.
Doença e saída para o hospital: conforme o que as pessoas entrevistadas
enfatizaram, a enfermidade é uma experiência importante na jornada da vida das pessoas,
caracterizando-se como uma passagem significativa, em especial, nas situações em que a
pessoa interrompe o ritmo normal cotidiano por causa da doença e se afasta de funções, como
o emprego. A crise causada pela doença é intensificada quando a pessoa se diante da
necessidade de internação hospitalar. A saída para o hospital, portanto, é um momento de
elevado grau de estresse emocional.
Morte: a morte consta como um dos eventos mais citados entre as passagens da vida,
em geral, e também o é para as pessoas entrevistadas. Trata-se de um acontecimento único e
irrevovel. É passagem que exige elaboração de perdas, às vezes, muito traumáticas, como
nos exemplos trazidos pelas pessoas entrevistadas: suicídio de um jovem (Geraldo),
assassinato de pai e morte prematura de mãe (Francisca), morte de irmão por afogamento
(Liana), morte prematura de irmã (Henrique).
Mudança de comunidade religiosa: como parte da experiência de vida das pessoas
entrevistadas a mudança de comunidade religiosa também é identificada como uma passagem
significativa para as pessoas. Mudar de comunidade requer das pessoas envolvidas a
478
Francisca, 370-371.
122
integração em novos grupos com valores eventualmente diferentes, com novo corpo de
doutrina e ritos, com novos símbolos de fé, etc. Lidar com tudo isto exige da pessoa equilíbrio
emocional para enfrentar situações adversas.
Iniciação religiosa: a fase adolescente é, sobretudo, um estágio de crises. Entre as
pessoas entrevistadas destaca-se a passagem para a maturidade crisou a iniciação religiosa
como algo que está relacionado a essa fase.
Mudança de lugar geográfico e aquisição de casa própria: entre as situações de vida
que se caracterizam como passagens, encontra-se também a mudança de lugar geográfico e a
aquisição de casa própria. Ambas situações apontam para uma passagem relacionada à
categoria lugar”. Mudar de lugar geográfico, por exemplo, exige o enfrentamento do novo e
desconhecido, o que gera insegurança e expectativas (“outro tipo de vida, outra casa, tem que
se adaptar. (...) todo mundo desconhecido, o que a gente vai viver, com quem tu vai
conviver”
479
). Mudar para casa própria, como diz uma das entrevistadas, é mudar de status, é
passar de moradora de aluguel para proprietária! Essa passagem traz consigo um sentimento
de libertação e autonomia muito grande (“agora essa parede aqui eu posso pintar ou não
pintar”
480
).
Resumindo, as pessoas entrevistadas deixam transparecer em seus relatos passagens
muito significativas da vida, algumas das quais são tradicionalmente classificadas como
passagens do ciclo da vida e outras comumente não reconhecidas como tal. Nesta pesquisa,
portanto, aparecem as seguintes passagens: nascimento, gravidez, namoro, noivado,
casamento, iniciação religiosa, morte, ingresso e conclusão de estudo, saída de casa e ingresso
em outros contextos, doença, saída para o hospital, morar juntos, separação conjugal,
separação de pai e mãe (na perspectiva de um filho), ingresso na vida profissional, mudança
de vida profissional e desemprego, ingresso em um lar de idosos, mudança de comunidade
religiosa, mudança de lugar e aquisição de casa ppria.
É necessário ressaltar que essas são passagens identificadas a partir do que as pessoas
relataram de suas experiências, não significando, porém, que essas sejam as únicas passagens
existentes na vida das pessoas na atualidade. As passagens que aqui aparecemo importantes
para a vida das pessoas entrevistadas. Outras pessoas, com experiências diferentes podem
fazer referência a essas ou a outras passagens relevantes da vida. Importa que as passagens
o partes da vida, pois a vida humana é cheia de descontinuidades e recomeços. A vida
479
Liana, 159-161.
480
Liana, 233-234.
123
humana se caracteriza por um processo rítmico-biogico e social, de nascimento, crescimento
e morte e as passagens são inerentes ao ciclo da vida humana. Neste sentido, é interessante
ressaltar que estudiosos da área das ciências humanas têm elaborado esquemas referentes ao
ciclo da vida tentando estabelecer padrões de um ciclo de vida “normal”
481
. Destaca-se,
segundo Hoffman, como estudo de importância maior dessa área, a obra de Erikson sobre os
oito estágios de vida individuais
482
. Outras contagens sobre as fases da vida foram propostas
pelos pesquisadores, porém jamais se chegou a um consenso sobre um número de estágios,
diz Hoffman
483
. Questiona-se, inclusive, até que ponto pode-se falar de um ciclo de vida
normal, pois fatores sócio-culturais devem ser considerados nesse estudo
484
. Exemplo disso,
assinalam Schneider-Harprecht e Streck, é que “há uma diferença significativa entre o ciclo
de vida de família de classe média e falias pobres, o que exige que a abordagem de cada
fase considere as mudanças no ciclo da vida causadas pela pobreza”
485
. De modo geral, diz
Hoffman, “o namoro, o casamento, a chegada dos filhos, a adolescência, a partida dos filhos,
o reajustamento do casal, o envelhecimento e o enfrentamento da morte são as maiores
categorias”
486
presentes nas fases do ciclo da vida de um indivíduo. Como se percebe, em
comparação com as passagens mencionadas na pesquisa social, a maior parte das passagens
estudadas, nesta pesquisa, coincide com as principais categorias dos estágios do ciclo da vida,
arrolados por Hoffman.
Chama atenção, no contexto da presente pesquisa social, que dentre os componentes
culturais identificados no conjunto das respostas das pessoas entrevistadas, “laços familiares”
recebe maior destaque. Esse fato é um indicativo para a íntima relação entre família e
passagens. Essas são duas dimensões que se entrelaçam. A vivência das passagens está
diretamente relacionada à família, pois a família acompanha o indivíduo em sua trajetória de
vida e nas mudanças. Nesse sentido, cabe lembrar, conforme Orio, que entre outras, a
função pquica da família é:
servir de continente para as ansiedades existenciais dos seres humanos durante seu
processo evolutivo. A superação das chamadas “crises vitais” ao longo do périplo
existencial de cada indivíduo é indubitavelmente favorecida por um adequado
suporte familiar à desestabilização que tais crises acarretam.
487
481
SCHNEIDER-HARPPRECHT, Christoph; STRECK, Valburga Schmiedt. Imagens da família: dinâmica,
conflitos e terapia do processo familiar. São Leopoldo: Sinodal, 1996. p. 63.
482
HOFFMAN, Lynn. O ciclo de vida familiar e as mudanças descontínuas. In: CARTER; MCGOLDRICK,
1995, p. 87. ERIKSON, Erik H. O ciclo de vida completo. Porto Alegre: Artes dicas, 1998.
483
HOFFMAN, 1995, p. 88.
484
SCHNEIDER-HARPPRECHT; STRECK, 1996, p.63-64.
485
SCHNEIDER-HARPPRECHT; STRECK, 1996, p.64.
486
HOFFMAN, 1995, p. 88.
487
OSORIO, 2002, p. 20.
124
Também é importante assinalar que as passagens têm implicações existenciais não
para o indivíduo, mas para toda a família. A família, às vezes, nega a passagem de um dos
seus membros, pois tem dificuldade de “negociar” uma determinada transição, assim como
ela aceita, participa e festeja alegremente outra determinada passagem; situações em que
toda a família sofre com perdas ocasionadas por uma passagem. Exemplos: a saída de um
jovem de casa pode significar perda não só para quem sai, mas também para quem fica; a
concluo de um curso, no processo de formação, não é o encerramento de uma etapa
importante na vida de um indivíduo, mas também é superação de uma fase de intensa
participação da família nesse mesmo processo (inclusive, financeira); a gravidez na
adolescência acarreta forte crise para a família a ponto de esta recusar-se a aceitar à filha em
sua nova condição (maternidade) ou ao filho (paternidade). O casamento implica, entre
outros, um entrelaçamento de famílias, não dos njuges entre si, mas das famílias destes,
entre si. Doença, morte, separação conjugal são passagens que envolvem não o indivíduo
que enfrenta tais situações, mas implicam mudanças na vida dos familiares. O desemprego de
um membro da família traz implicações para toda a família, exigindo adaptações a uma nova
situação, e assim por diante.
A família, portanto, ocupa papel o central nos processos de passagens, quanto o
próprio sujeito que está implicado na transição. Pode-se afirmar que uma passagem significa
não a mudança para outro estágio de vida individual, mas também de vida familiar.
Exemplo disso aparece claramente descrito no relato da entrevista dada por Emílio. Tudo
mudou na vida de sua família, diz ele, após a separação dos seus pais (o almoço em família, as
brincadeiras, os passeios, as comemorões de eventos familiares, como aniversário, por
exemplo). Na nova realidade, configurada após a separação dos seus pais, Emílio assume a
responsabilidade de ajudar a mãe e faz sua primeira experiência de trabalho, alterando, desta
forma, a sua posição de apenas filho dependente.
Foi afirmado acima que as passagens apontadas nessa pesquisa coincidem, em boa
medida, com os estágios de vida de um indivíduo. É interessante observar que assim como o
indivíduo, também a família possui um ciclo vital, sendo que os dois ciclos coincidem em
seus esgios. Conforme Osório, os estágios ou momentos críticos de uma família podem ser
resumidos da seguinte forma: “1. Formação do casal para a construção de uma nova família.
2. Nascimento dos filhos. 3. Adolescência dos filhos. 4. Saída dos filhos da casa paterna. 5.
125
Morte dos avós. 6. Envelhecimento, doença e morte dos pais.”
488
Portanto, a semelhança entre
os ciclos de vida do indivíduo e da família é mais um indício de que a passagem de um
esgio a outro na vida de uma pessoa não deve ser vista fora do contexto de sua família.
Como constatado na pesquisa social, nos exemplos de João Carlos, Geraldo e Angélica, a
saída de casa de um jovem envolve toda a família, causando estresse emocional nos que saem
e nos que ficam. Conforme João Carlos e Geraldo, a sua saída de casa provocou um intenso
diálogo (negociação) entre eles e seus pais e mães. Tanto as pessoas que saem quanto as que
ficam necessitam de tempo para adaptar-se à nova situação ou realidade. Afinal, uma família
é uma unidade social onde se desenvolvem diferentes tipos de relações (de casal, de filhos e
de irmãos, ou seja, de aliança, de filiação e de consangüinidade, respectivamente
489
), onde
cada qual assume papéis determinados (papel materno e paterno de nutrição, proteção e
orientação; papel fraterno – de rivalidade, de solidariedade; papel filial – de dependência).
É importante esclarecer que, conforme Osório, os papéis familiares nem sempre
correspondem aos personagens que convencionalmente são designados como seus
depositários. Por exemplo, o papel fraterno pode, às vezes, ser acoplado ao papel do avô ou da
avó que se tornam confidentes de um neto ou neta; o papel nutrício de uma mãe pode ser
desempenhado pelo pai ou pela a
490
. Enfim, “um mesmo membro da família pode assumir,
simultaneamente ou em tempos alternados, papéis diferentes”
491
. Portanto, quando
alteração no quadro familiar, provocada pela mudança na vida de um dos seus membros por
exemplo, na saída de casa para estudar, trabalhar, casar ou mesmo pela morte -, todo o grupo
familiar é afetado, pois a pessoa, de acordo com o papel desempenhado no grupo, deixa uma
lacuna que será ou não preenchida por outra pessoa. De outro lado, ao encontrar-se fora do
ambiente familiar e deixar de lado uma função exercida na família, a pessoa que sai também
necessita reestruturar a sua identidade e firmar-se diante dos novos grupos nos quais ele se
integrará. Por isso, as passagens geram ansiedades existenciais nos indivíduos e nas suas
famílias, pois as passagens provocam situações que levam à redefinição de papéis nas
relações familiares e fora dela e reestruturação de identidades, e essas situações nem sempre
o fáceis de serem encaradas.
488
OSORIO, 2002, p. 22. O autor ressalva que o “ciclo vital da família é algo dinâmico e que o pode estar
rigidamente contido num esquema descritivo como os acima referidos”. Como exemplo, ele cita o divórcio, uma
ocorrência freqüente hoje em dia, o qual promove alterações significativas no ciclo vital de uma família.
OSORIO, 2002, p. 22-23.
489
OSORIO, 2002, p. 15.
490
OSORIO, 2002, p. 16. A definição dos papéis familiares (conjugal, parental, fraternal e filial) encontra-se às
ginas 16-19.
491
OSORIO, 2002, p. 19.
126
Ao relatarem sobre fatos significativos de suas vidas os quais envolvem as
passagens, as pessoas entrevistadas sempre apontam para o aspecto da crise gerada pela
mudança. Seja na saída de casa para trabalhar ou estudar, seja no ingresso a um lar de idosos,
seja na gravidez e no tornar-se mãe e pai, seja no casamento, no ato de “morar juntosou na
separação conjugal, seja na doença ou na morte, a passagem de uma situação a outra sempre
gera inquietação, tensão, angústia, temor, pois uma passagem implica a entrada em um mundo
novo e desconhecido; significa encerrar uma etapa e iniciar outra. Diante disso, as pessoas,
individualmente ou em família, são assaltadas por sentimentos mesclados de curiosidade e
medo pelo que acontecerá. Em meio a isso, surge a pergunta, se existem mecanismos sociais e
culturais que ajudam as pessoas a enfrentarem as crises geradas pelas passagens. O que dizem
as pessoas entrevistadas a esse respeito?
Assim, tendo em vista o resultado sobre as passagens, obtido nesta parte do segundo
capítulo, seguir-se perguntando pelos resultados que a pesquisa social qualitativa oferece
em relação às ritualizações que acompanham as passagens.
2.3 Ritualizações nas passagens: aspectos que se destacam na pesquisa social
2.3.1 Introdução
Na continuação dos trabalhos, objetiva-se fazer referência aos rituais mencionados
pelas pessoas entrevistadas no contexto das passagens por elas vivenciadas ou, na falta deles,
ressaltar a importância atribuída a eles.
Tendo como base de orientação o resultado da primeira seção deste segundo capítulo,
fez-se uma nova leitura das respostas das pessoas entrevistadas, verificando se há indicação
de ritos que acompanham as passagens; nos casos onde eles são identificados, busca-se
perceber a função que eles exercem. É importante relembrar que os componentes culturais
que aparecem na primeira seção, os quais foram extraídos do conjunto das respostas das
pessoas entrevistadas, são padrões a partir dos quais se conseguiu identificar e definir as
passagens. Agora, com as passagens definidas, volta-se aos textos das entrevistas em busca de
indícios de ritualizações dessas passagens, tentando, por fim, alcançar o objetivo traçado pela
pesquisa social qualitativa, que é investigar as passagens e as ritualizações da vida.
Nesta seção não se observará a seqüência hierárquica das passagens, tal como estão
organizadas na primeira parte do capítulo.
127
Tendo a ritualização das passagens como objeto de verificação nesta seção, convém
lembrar aspectos relevantes da definição de rito e, mais especificamente, rito de passagem, os
quais foram tratados no primeiro capítulo. Conforme Claude Rivière, “os ritos devem ser
sempre considerados como conjuntos de condutas individuais ou coletivas, relativamente
codificadas, com um suporte corporal (verbal, gestual, ou de postura), com caráter mais ou
menos repetitivo e forte carga simbólica para seus atores (...)”
492
. Eles estão presentes no
cotidiano da vida, marcando e celebrando momentos especiais e significativos. Ritos de
passagem, conforme Van Gennep, o atos cerimoniais que marcam as transições vividas pelo
indivíduo ao longo da vida. Eles assinalam as mudanças que acontecem na vida de indivíduos
quando estes passam de um estado a outro
493
. Os ritos ajudam as pessoas a vivenciarem,
estruturarem ou a organizarem
494
a sua vida diante de um novo momento ou de uma nova
etapa a ser cumprida, tendo em vista o contexto social onde elas se encontram inseridas.
2.3.2 Ritualização na saída de casa e ingresso em outro contexto
A saída de casa, como observado anteriormente, é um momento que gera forte
estresse emocional familiar. Trata-se de uma passagem que marca, em especial, a fase jovem.
Jovens saem da casa dos pais para estudar ou trabalhar ou para formar uma nova unidade
familiar através da união conjugal. Nestes casos está em jogo a passagem de uma vida de
dependência para uma vida de emancipação da pessoa. Há duas necessidades básicas nessa
passagem. É preciso separar-se, de casa, da família e, em alguns casos, do círculo de amizades
ou a mesmo do lugar onde se vive. De outro lado, é necessário agregar-se a um novo grupo
e adaptar-se a um novo contexto. Insegurança, angústia, medo, expectativa, o sentimentos
com os quais as pessoas lidam em tal passagem.
Geraldo conta que sair de casa foi dicil. Ele decidiu ir em busca de emprego numa
outra cidade e seus pais lutaram contra essa decisão. Muita conversa foi necessária entre eles
até seu pai e sua mãe concordarem. Além de destacar o intenso diálogo com o pai e a mãe,
Geraldo o menciona nada a respeito de algo que marcasse a sua saída de casa. Sobre a sua
492
RIVIÈRE, 1997, p. 30. Com base na obra de Rivière, Motta diz que os ritos se encontram nas seitas, igrejas e
movimentos, mas também nos ritmos do cotidiano da vida social. Neste sentido, podem ser encontrados
microrrituais na vida diária da criança, dos quais ela adquire bitos e valores e é educada. A ritualidade também
pode ser reconhecida nos trotes estudantis e nos grandes espetáculos musicais; ela encontra-se associada à
prática do esporte, loterias, caças, espetáculos teatrais, ritos do judiciário e a refeição e apresentação regulada do
corpo. Cf. MOTTA, Roberto. Prefácio à edição brasileira. In: RIVIÉRE, 1997, p. 7-10.
493
GENNEP, 1978, p. 26-27.
494
Este pensamento está ligado ao sentido etimológico do rito, já mencionado, conforme capítulo um, página 19.
128
chegada ao novo contexto, ele explica que foi muito importante ser bem recebido pela sua tia,
com quem morou por um tempo, e receber dela apoio. Mas, Geraldo conta que não foi fácil
chegar e conviver com o tio. Levou tempo até se acostumar, mesmo porque ele não o
conhecia até então. Com o passar do tempo, conta ele, o seu tio foi “ficando chato, chato”,
queria controlá-lo; então, Geraldo saiu de lá e foi morar com outra tia, a ela também
começar a complicar, diz ele. Então ele alugou uma casa para morar sozinho e, em seguida,
convidou uns amigos para morarem com ele. Geraldo morou com os amigos até ter sua
própria família (filha e companheira) e formar uma nova unidade residencial e familiar.
Conforme João Carlos, a saída de casa para cursar faculdade foi o momento em que
ele sentiu mais forte o corte dos laços familiares, pois ele se transferiu para outra região do
país e viveria longe de sua família. Na saída, ele abraça o pai, a mãe e os irmãos; “deu
vontade de chorar”, diz ele. Enquanto seu pai o levava para a rodoviária, ele ficou um bom
trecho em silêncio, refletindo. Ele diz que foi muito dolorido interromper esses laços e sair do
seio da família. O abraço da família marcou a sua saída, conta João Carlos. Entretanto, ao
chegar à faculdade
495
, seu novo local de moradia, a recepção foi muito fria. Foi-lhe dito “aqui
sua chave, é o seu quarto”
496
. João Carlos enfatiza que o acolhimento, num ambiente
novo, desconhecido, é muito importante, pois ajuda a pessoa a encarar a nova realidade com
mais firmeza
497
. Além dos gestos calorosos de despedida, na saída de casa, João Carlos
menciona algo que lhe foi muito significativo no primeiro semestre na faculdade. Ele afirma:
Chegando na faculdade, o meu apoio fundamental foi o dos colegas que vieram
comigo do internato. Pelo menos, no primeiro semestre, a gente se reunia, quase
todo dia; íamos no quarto um do outro, conversávamos; era interessante, a gente
sempre se reportava pro passado; era importante lembrar aquilo que a gente tinha
vivido, falar dos pais, falar dos irmãos, (...). Pra nós era um consolo conversar sobre
isso. Esses colegas que vieram foram fundamentais nesse primeiro momento, nesse
primeiro semestre de vida, de faculdade. Depois já fui me estruturando mais (...),
mas foi importante ter pessoas, que estavam passando por aquele mesmo processo e
que, naquele momento, era a minha nova família, os meus amigos. [João Carlos,
280-291]
É possível que João Carlos, assim como seus colegas (novos estudantes), tenham
sido apresentados à comunidade acadêmica em algum momento formal, com gestos de
acolhimento, mas é interessante observar, conforme o relato de João Carlos, que o processo de
ritualização de saída de casa e ingresso num novo contexto não se encerrou com a despedida
495
“Chegar na faculdade” pra João Carlos significa chegar a um local que, além de ser um ambiente de estudo,
tamm é um lugar de moradia, pois a faculdade à qual ele se refere oferece quartos de locação para alunos que
m de outras localidades.
496
João Carlos, 360.
497
João Carlos, 367-368.
129
de casa e da família e com a recepção no novo ambiente. João Carlos levou um semestre para,
segundo ele, se estruturar, se organizar. Sua experiência mostra que as pessoas que estão
vivenciando um processo de mudança necessitam de espaços para se expressarem, elaborarem
suas perdas para, então, formularem uma nova identidade (falar de si, da sua história, da sua
família, sua saudade e suas expectativas). Nesses espaços, a identificação com outras pessoas,
que vivem situações semelhantes, faz brotar um sentimento de comunhão, solidariedade,
criando novos laços. Reunir-se todo dia, durante um semestre, conversar, falar dos pais,
irmãos, talvez até, fazer uma refeição em conjunto. Esse ato de reunir-se, com um grupo de
pares, parece indicar para a necessidade de um rito complementar, que complete o processo
que inicia com a separação (da família, do estado anterior) e encerra-se com a reagregação (à
comunidade acadêmica, ao novo estado). Esse rito identifica-se com o da fase intermediária
dos ritos de passagem, o qual Van Gennep chama de ritos de margem. No caso de João
Carlos, um rito de margem foi forjado pelos estudantes que viviam uma mesma situação.
A comunidade do mundo acadêmico, em geral, atribui ao grupo dos novos estudantes
o nome de “novatos”. É um termo que caracteriza a condição desses estudantes nessa nova
comunidade. Os estudantes recém-chegados ainda não conhecem bem as regras do mundo
acadêmico e devem se adequar ao novo contexto e ao seu novo papel, o de um estudante
universitário, livre e independente e com novas responsabilidades; uma delas é dar conta de
suas tarefas, sozinho, sem monitoramento. Por isso, é forte a necessidade, dessas pessoas, de
se despedirem do seu passado e da sua condição anterior, de dependência e tutela, e
formularem a sua nova identidade. Muitos jovens, ao saírem de casa passam a viver em
repúblicas, sobretudo quando ingressam em contextos universitários. Essa é, sem dúvida, uma
fase transitória da vida, um tempo para o jovem se formar ou se estruturar na vida profissional
e estabelecer relações afetivas e de intimidade. Nessa fase, o jovem deseja autonomia, vida
própria e independente e é comum que ele se junte a outros que vivem situações semelhantes.
Turner chamou os grupos que surgem no período liminar de communitas; formados por
pessoas que vivem uma situação de vida em comum, à margem da sociedade
498
.
Geraldo também viveu um processo semelhante ao de João Carlos, embora o período
de transição vivido por ele fosse mais demorado. Ele saiu da casa dos pais para a casa das tias
e d para uma república, com amigos. Ele também necessitava se separar do seu estado
anterior (desprender-se da “barra da saia da mãe”, diz ele); porém, as tias e os tios
substituíram a autoridade dos pais, ao tentarem contro-lo. Na realidade, a sua separação de
498
TURNER, 1974, p. 119.
130
casa não ocorre tão facilmente. Ele tem que lutar para efetuar esse corte; em primeiro lugar,
de seu pai e sua mãe e, em segundo lugar, de suas tias e seus tios. Isso acontece quando ele
decide morar sozinho. ocorre, de fato, a separação. Semelhantemente a João Carlos, na
nova moradia, Geraldo e os amigos formam um grupo de apoio e solidariedade. Ali eles
criam um espaço livre e podem elaborar a nova identidade, a de jovens independentes, em
busca de auto-sustentação.
Outro exemplo de saída de casa é o de Angélica, porém, sua motivação é outra.
Grávida, ela e o namorado decidiram morar juntos. Como visto acima, no item sobre as
passagens, a gravidez de Angélica foi motivo de fortes conflitos na família, com o pai e a
mãe. Num primeiro momento, em reação à repreensão da mãe à sua gravidez, ela sai de casa,
mas por uma pressão do pai, retorna, logo em seguida. Eles a obrigam a ficar em casa, mas
sem ter contato com o namorado. Depois de um mês, diz ela, o namorado consegue se
aproximar da sua família e conversar com seu pai e sua mãe. Eles combinam que irão morar
juntos a partir do momento em que a criança nascesse. Mas, Angélica diz que com seis meses
eles se juntaram. Para ela, o “morar com ele” significou uma passagem e um corte com a sua
vida anterior. Ela não menciona nenhuma cerimônia especial que marcasse essa passagem,
mas acentua o fato de eles planejarem a construção da casa, de colocarem as coisas no lugar e
de toda a família se unir em torno da arrumação do lugar de sua nova moradia. Talvez esse
também tenha sido um momento em que ela sentiu-se aceita por seu pai e sua e em sua
nova condição (não mais como apenas filha adolescente, mas como mulher grávida e adulta).
Angélica não menciona um rito propriamente dito que tivesse marcado a sua sda de casa
para formar uma nova família, a não ser a ppria construção da sua nova residência, o
envolvimento de todos em torno disso e a mudança para esse espaço. Esse foi, na verdade, o
ritual que marcou a sua saída de casa e, ao mesmo tempo, foi isso que simbolizou a sua união
conjugal e a formação de um novo núcleo familiar
499
. Van Gennep garante que diversas
situações sociais em que a identidade da passagem se dá através da passagem material, entre
outros, a entrada numa casa. Isso acontece, por exemplo, na ocasião do casamento, quando
um dos cônjuges ou os dois mudam de residência
500
.
499
Na verdade, a construção da casa de Anlica aconteceu mais recentemente, depois de cinco anos de vida
conjunta com o seu parceiro. No início, seus pais, num primeiro momento, dividiram a própria casa em dois
compartimentos, ficando um deles para a filha. Mais tarde, Angélica e seu parceiro se transferiram para um lugar
aos fundos da casa dos pais. Num outro momento, eles viveram de aluguel, longe da casa dos pais e agora os
pais aumentaram o prédio da casa onde moram e fizeram uma moradia para a filha.
500
GENNEP, 1978, p. 159-160.
131
Portanto, na situação de saída de casa e no ingresso a um novo contexto, percebe-se
uma forte necessidade de as pessoas realizarem ações que representem a separão de um
estado anterior e a agregação a uma nova condição social. Porém, como se observa, os ritos
que acompanham as pessoas em suas despedidas de casa e no ingresso aos novos contextos
parecem insuficientes. Percebe-se uma lacuna, em especial, na fase intermediária, ou seja, não
existem ritos de margem que ajudem as pessoas a elaborarem suas perdas e construírem sua
nova identidade. Esse é, efetivamente, um tempo de angústia e crise, pois o jovem tem diante
de si um mundo desconhecido o qual precisa enfrentar sozinho. João Carlos apontou para a
imporncia da reunião do grupo de colegas durante o primeiro semestre de faculdade. Quer
dizer, à medida que o jovem tem espaços ou grupos que o ajudam a olhar para trás, para sua
família, para sua comunidade de origem, para as experiências que deram certo em sua vida,
ele vai identificando valores, aprendidos até então, os quais lhe são referenciais importantes
diante das novas situações que surgem no seu novo mundo.
Geraldo, por exemplo, afirma que ele vem do interior e o sabe fazer mal a
ninguém; tem muita coisa na cidade, diz ele, que gente como ele, no interior, não faz. Ao
mencionar isso, Geraldo faz refencia a valores que ele aprendeu com sua família e com sua
gente, do interior. João Carlos conta que aprendeu muitos valores em casa com o pai e que
estão presentes em sua vida: ter respeito, ser justo para com os outros, não roubar, não ser
falso. Elaborando as perdas, o jovem também percebe o quanto a família ou outros grupos de
sua referência anterior, de quem ele se separou, estão presentes em sua vida e o acompanham
e que, por isso, a separação o é, definitivamente, uma separação. A separação também pode
representar aproximação. Portanto, um rito de saída de casa e ingresso em outro contexto é
muito mais do que uma simples despedida e um simples acolhimento ou anúncio de boas
vindas. Essas ações são importantes, sim, mas não completam o ciclo necessário de
ritualização dessa passagem que inclui separação, margem e agregação e, como enfatizado, é
preciso forjar ritos que valorizem, sobretudo, o período de margem ou liminaridade.
Como ficou flagrante, no caso de Angélica, a falta de ritos que a ajudassem a
enfrentar a difícil transição da vida de adolescente para a vida de adulta, fez com que ela se
apegasse a um rito de passagem material (construção e arrumação da moradia). A entrada
numa república de jovens igualmente pode representar uma passagem material e,
consequentemente, funcionar como rito de agregação. É muito comum, inclusive, os jovens
fazerem festas de inauguração de repúblicas ou realizarem o “batismo” de novos integrantes,
praticando, assim, ritos de agregação.
132
2.3.3 Ritualização no ingresso em um lar de idosos
O ingresso em uma instituição de cuidado ou um lar de idosos é resultado de um
processo que a pessoa enfrenta: a passagem de uma vida autônoma para uma vida de
dependência. É momento de se lidar com grandes perdas: deixar para trás a própria casa, os
móveis e as coisas pessoais, enfim, abandonar um ambiente familiar e particular. Essa
passagem exige o adaptação a um novo contexto, mas aceitação de um estágio
caracterizado como sendo o último da vida. Sem vida, é uma transição que gera forte crise
existencial.
Francisca, uma das pessoas entrevistadas, que está num lar de idosos há três meses,
diz que uma de suas grandes preocupações é morrer ali e ficar abandonada. O abandono é um
sentimento que acompanha essas pessoas, mesmo que a família esteja presente, fazendo
visitas e acompanhando-as de perto.
Francisca lembra que o dia da sua chegada ao lar não foi fácil. As filhas a levaram ao
lar, com todas as suas coisas, arrumaram o seu quarto, mas ela se sentiu muito mal naquele
dia, embora não o tivesse demonstrado. Após o jantar, sozinha no quarto, Francisca diz ter
chorado e desabafado “até não poder mais”. Visitar as filhas nos finais de semana significa,
para Francisca, voltar chorando para o lar. No lar, diz ela, não falta cuidado, atenção e
carinho. Todos a tratam bem. Também por parte das filhas, ela recebe o que necessita: visita,
remédios, alimentos; mas, ela enfatiza: “o tem agrado que chega”.
No seu dia-a-dia, Francisca se apóia, sobretudo, no rito da oração. Na mudança para
o lar, ela levou diversos rosários e imagens sacras; mais tarde, sua neta lhe trouxe o oratório
que havia ficado na casa da filha. Sobre o orario, Francisca conta que o senhor que
administra o lar a ajudou a arrumá-lo. Ela informa: “ele arrumou tão bonitinho, e de noite,
fico horas rezando
501
. Uma das coisas importantes para Francisca é o seu apego a Deus,
pela oração, através dos rosários e imagens sacras. Mesmo que, para ela, a sua estadia ali seja
temporária, percebe-se que o fato de o administrador do lar ter arrumado o seu oratório, num
aposento da casa, foi um rito de agregação muito especial para Francisca. O seu oratório
também serve a outros moradores da casa. Ele não ficou em seu quarto particular, mas num
espaço coletivo. Isso mostra que Francisca foi recebida no lar também com o seu modo
específico de expressar a e de se dirigir a Deus. A separação de casa, das filhas, netos e
netas foi difícil, dolorida, com choro, mas, ao menos, Francisca está no lar com algo que para
501
Francisca, 326-327.
133
ela é muito precioso, ou seja, ela tem seus instrumentos de devoção e um espaço para orar e se
consolar.
Na verdade, o administrador do lar soube transformar os instrumentos da devoção
particular de Francisca em elementos de agregação dela ao lar. Porém, levando em conta que
Francisca espera ansiosamente a sua recuperação e, consequentemente, a sua volta à casa da
filha, demonstra que ela ainda não aceitou, efetivamente, aquele lugar como seu novo lar e as
pessoas de lá como sua nova família. Tudo indica que a separação (do estado anterior)
permanece um fato em aberto. Talvez o tempo que Francisca está no novo lar ainda o foi
suficiente para que ela aceitasse a sua nova condição, mas isto é um indício de que a
separação é um ponto crucial a ser trabalhado nesse tipo de passagem. Aliás, a separação é
algo que inicia no lar anterior, com a falia. Isso mostra que essa passagem tem espaços
diferentes de ritualização. No lar de idosos a ênfase deve estar na agregação. Esses elementos
não são suficientes para perceber que, na transição de um lar a outro, deve-se investir em ritos
de margem? As visitas da família, nesse sentido, são muito importantes. Francisca acentuou
isto. Ela falou, principalmente, das visitas que ela fez às filhas. O trajeto de volta dessas
visitas era sempre um momento para ela chorar. Não estaria o choro representando o luto e as
perdas de Francisca? Am das visitas, Francisca valoriza muito os momentos em que fica no
quarto orando (rosários), cantando (cantando baixinho, diz ela) e ouvindo música.
Como se vê no exemplo de Francisca, a ritualização de ingresso em um lar de idosos
também requer atenção especial ao rito de margem, uma fase de luto e de elaboração das
perdas e, consequentemente, de preparo para aceitar a nova condição. Nesta fase, que se
valorizar elementos da vida individual anterior, que no caso de Francisca pode ser
representado pela experiência do oratório, dos rosários, da religiosidade própria, da música
(aparelhos para ouvir música) e a relação com a família. Esses elementos podem ser bem
aproveitados pelas pessoas que administram tais lares, incorporando-os em ritos de agregação,
tal como demonstra a experiência de Francisca com o seu oratório.
2.3.4 Ritualização na união conjugal
A união conjugal, nessa pesquisa, é caracterizada por três situações, a saber, namoro,
morar juntos e casamento.
a) Namoro
134
O namoro é pouco destacado pelas pessoas entrevistadas, mas ele se torna relevante
em situações como a de Geraldo. Seu namoro leva à gravidez. A gravidez leva à formação de
um núcleo familiar através do “morar juntos”. Neste caso, passar de uma vida independente
para uma vida comprometida com outra pessoa e formar uma nova família, passa por três
momentos: namoro, gravidez e morar juntos. Essa é uma modalidade muito presente na
sociedade atual, que substitui o tradicional ciclo “namoro, noivado e casamento ou ocorre
paralelamente a ele.
Geraldo conta que o namoro começou “meio escondido”. Mas, provavelmente, o pai
e a mãe da namorada sabiam, diz Geraldo, apenas não o revelaram. Ao suspeitar que Geraldo
poderia estar enganando a filha, o pai da sua namorada resolveu intimá-lo para uma conversa.
Imediatamente, Geraldo foi à casa do pai da namorada. Ele conta: “ele me apertou, né, ele
disse assim que era pra eu namorar a (...) [a filha] ou essa guria [uma amiga do trabalho], (...).
Daí eu peguei, desde aquele dia, eu comecei a namorar a (...) em casa
502
. A partir da
conversa, na casa da namorada, com o futuro sogro, o namoro ficou oficializado. Concluindo,
Geraldo diz: “Daí, pra mim, foi uma maravilha, pra mim, começar a namorar ela em casa”
503
.
A oficialização do namoro para Geraldo lhe trouxe estabilidade no relacionamento, não
com a namorada, mas também com a família dela. Sem vida, foi um rito que ajudou a
atenuar as tensões no relacionamento, em especial, com a família da namorada. “Para mim,
foi uma maravilha”, diz Geraldo; em outras palavras, ele quer expressar que dali em diante foi
tudo bem, tudo tranqüilo. No caso de Geraldo, que estava vivendo uma fase de vida instável
(em termos de afirmação na vida profissional, adaptação a um novo contexto, saída de casa
dos pais, morar com as tias), o namoro, enquanto relacionamento afetivo e afirmação da
identidade, também lhe significou estabilidade emocional. Através da oficialização do namoro
e a possibilidade de freqüentar a casa da namorada, Geraldo vislumbrava uma nova
perspectiva de vida familiar, ou seja, ele estava se integrando a uma nova família. Neste caso,
o namoro também preenche a função de rito de agregação (ser acolhido numa nova família).
b) Morar juntos
Das pessoas entrevistadas que constituíram famílias, ao todo sete, duas não
mencionam nenhum ato de oficialização da união matrimonial, seja civil ou religioso. Uma
delas é Geraldo, que, como vimos, destaca a oficialização do namoro como momento
significativo, seguido de gravidez. Ele vive com a filha e a mulher, mas não descreve nenhum
502
Geraldo, 81-84.
503
Geraldo, 85-86.
135
rito de passagem para a sua união matrimonial. Para Angélica, a gravidez foi o impulso para
“morar junto” com o pai da criança. Ao tomar conhecimento da gravidez de Anlica, os pais
a proibiram de encontrar-se com o namorado. Depois de um mês, no entanto, ele se aproxima
da família de Angélica. Então, eles conversam, acertam as coisas e combinam morar juntos
depois que a criança nascesse. Entretanto, com seis meses eles passam a viver juntos. Como
Geraldo, também Angélica não menciona um ato de oficialização de união matrimonial.
c) Casamento
Cinco, das dez pessoas entrevistadas, são casadas oficialmente e passaram pelo rito
tradicional do casamento civil e religioso. Eles mencionam que esse foi um ritual importante,
que marcou a sua transição de solteiro para casado. Janete lamenta que seu pai, por motivo de
doença, não esteve presente no dia do seu casamento. Para ela, o casamento é um rito de
separação, em especial da mãe. No início de vida matrimonial, diz Janete, quando visitava a
mãe, ao se despedir, tinha muita vontade de chorar; parecia que nunca mais ia ver a mãe. Para
Solange, o ritual do casamento religioso foi muito significativo. Ela dá um destaque especial à
bênção dada pelo pastor. Ela diz o seguinte:
(...) aquela “bênção”, , que o pastor dá; acho que é, até eu acho que deveria de
acontecer mais vezes, eu sempre digo pro meu marido que esse ritual, assim do
casamento, aquela bênção, é uma coisao gostosa, né; eu acho que a gente deveria
fazer isso mais vezes. [Solange, 325-328]
Ao enfatizar o desejo de ter mais ritualizações na vida matrimonial e receber a
“bênçãomais vezes, Solange lembra que o aniversário de vinte e cinco anos de casamento
(Bodas de Prata) é uma boa oportunidade de o casal receber a bênção divina, mas o seu desejo
é que essa bênção aconteça mais frequentemente e não só nessas datas especiais.
Francisca, ao relembrar fatos marcantes da sua vida, também destaca a fase do seu
namoro, noivado e casamento. Dentre as pessoas entrevistadas, ela representa a geração mais
antiga, sendo uma das que passou pelo tradicional rito de casamento ou, como se costuma
dizer, “casamento à moda antiga”. Eis, a seguir, a descrição que ela faz do rito do seu
casamento.
(...) eu conheci meu esposo, namorei, namorei. Um dia, ele comentou, “vamos
noivar?”, “vamos se casar?”, “vamos!”. Daí, vamos, ta, ele foi fazer pergunta, assim,
pedir licença pro meu irmão. Quer casar-se comigo?” Daí, marcamos o prazo.
Casei. Mas, antes do casamento, eu perguntei pra ele aonde que eu ia morar, porque
eu já tava, assim, enjoada de morar em diversas casas, mas aí ele disse, “nós vamos
morar com a minha mãe”, porque a mãe dele era viúva, e eu disse, “gostaria de ter
uma casa”, “não, lá vai ser tu, a dona da casa, tu vai morar com a mãe, porque ela ta
velha e, bem, o tem quem faz o trabalho da casa”. Daí, eu vi que tava perdida
[risos]. Fui. Daí marcamos o prazo, foi aquela festa de casamento e tal; daí, no dia
136
do casamento eu fui pra lá, de manhã fomos pra lá. Daí chegamos por lá, foi
aquela festa, tinha bastante gente em casa, me esperando [risos] e eu bem
encabulada. [Francisca, 38-49]
Algo que chama ateão no processo do casamento, destacado pelas pessoas
entrevistadas e relacionado ao rito que acontece em torno dessa passagem, é a menção da casa
ou moradia do novo casal. Francisca, por exemplo, quando o marido a pede em casamento,
pergunta a ele “onde vamos morar”? Para Angélica, uma das marcas de sua passagem para a
vida de casada foi a construção da sua ppria casa. Janete diz que ela e seu noivo se uniram
na compra do terreno e construção da casa. “Quem casa, quer casa”, diz o ditado popular. A
casa, a moradia do novo casal é, sem dúvida, um dos símbolos centrais do casamento. A casa
marca o início de uma nova fase, de um novo status. Em muitos casos, a construção da casa
ou a compra de um apartamento dá início ao processo de casamento. Nos rituais religiosos de
bênção matrimonial pouca atenção é dada a esse elemento de passagem material, embora a
bênção ou inauguração de um novo lar seja expectativa de muitas famílias.
Enquanto a tradicional seqüência namoro-noivado-casamento se conserva como
modalidade ritual que marca a união conjugal de uma parte significativa das pessoas
entrevistadas, ao seu lado se configura outra seqüência, a saber, namoro-gravidez-morar
juntos. E para essa modalidade nenhuma ritualização, além da organização de uma moradia
para a nova família, foi descrita como significativa. Em conversa informal com a mãe de
Angélica obtive a informação de que, as cinco anos passados, Angélica ainda conserva o
sonho de casar-se oficialmente, no civil e no religioso. Isso mostra que não houve uma
ritualização que marcasse satisfatoriamente a sua união conjugal.
2.3.5 Ritualização na gravidez e no nascimento
As pessoas entrevistadas que se tornaram pais e mães (ao todo seis) mencionam o
nascimento de filhos ou filhas ou a gravidez como algo marcante em suas vidas. Elas
destacam a mudança que esse evento acarretou para elas. Ter filhos ou filhas, além da alegria
e satisfação que traz, também implica perdas. Em alguns casos, a mulher abandona ou adia a
atividade profissional, assim como o estudo. A mudança no ritmo diário do casal exige
adaptações. Nas situações de gravidez na adolescência, a crise é dupla. Aos conflitos próprios
da adolescência, acrescentam-se os da gravidez, e não raro, geram-se fortes atritos entre filhos
pais e mães.
137
Mesmo que o nascimento dos filhos implique fortes mudanças na vida de um casal e
provoque inseguranças diante do novo momento a ser enfrentado, percebe-se, pelo
depoimento das pessoas entrevistadas, que as crises relacionadas a essa mudança são menos
impactantes para uns e mais fortes para outras. Por exemplo, Guilherme relata que o
nascimento da filha foi muito esperado. Ele destaca o fato de que, além dele e da esposa, avôs
e avós também se reuniram em torno da filha esperada, a única neta, do lado paterno. Ele
menciona o rito do batismo da filha como um momento especial em que a família se uniu para
festejar o nascimento. Solange conta que no nascimento do segundo filho ela deixou o
trabalho fora de casa para dedicar-se exclusivamente ao cuidado dos filhos, mas isso foi uma
opção dela e do marido. Para ela, um bebezinho exige tempo integral e no seu entender foi
mais importante dedicar-se à maternidade. Como Guilherme, ela também ressalta o batismo
das crianças, assinalando o fato de que, pelo batismo, a criança está mais próxima de Deus e é
mais abençoada.
Guilherme e Solange, assim como Henrique e Francisca, vivenciaram mudanças que
marcam a vida adulta - tais como namoro e casamento -, com ritualizações reconhecidamente
tradicionais. Essas ritualizações, suficientes ou não, mais significativas para uns e menos para
outros, assinalam fases e mudanças importantes da vida das pessoas e, desta forma, pode-se
dizer, ajudam a tornar menos impactantes as novas mudanças que irão se apresentar mais
adiante, como, por exemplo, tornar-se pai e mãe.
As crises decorrentes das mudanças de estado ou condição social, na falta de ritos,
podem se prolongar e tornar mais sofrida uma passagem. Isso se demonstrou na experiência
de Angélica que teve medo de contar em casa sobre a sua gravidez e manteve o assunto em
segredo. Tentou o aborto; escondeu a barriga, viveu um tempo de isolamento, sofreu o
abandono das amigas. Ao invés de viver a gravidez como tempo gradativo de despedida do
seu estado anterior, de adolescente, ela representou um corte muito forte com o seu passado,
um rompimento brusco e violento, pode-se dizer.
Diante dessa mudança em sua vida e da necessidade de elaborar a sua nova
identidade, Angélica se agarra ao rito do Chá-de-fraldas que ela mesma organizou. Foi no
colégio e todos os colegas participaram, “menos elas, que eram minhas amigas desde, desde
que vim morar aqui, desde meus cinco anos”
504
, enfatiza ela. É interessante notar que o Chá-
de-fraldas, normalmente, é organizado pela melhor amiga da mulher grávida. Neste caso, na
omissão e ausência das amigas, a própria Angélica trata de preencher o vazio no qual ela se
504
Angélica, 45-47.
138
encontra e se apega ao único rito que lhe resta. Desta forma, o rito do Chá-de-fraldas foi a
forma que Angélica encontrou para afirmar a sua nova identidade num grupo social de sua
referência e obter ajuda para realizar a difícil travessia. Através dos e das colegas de turma do
colégio ela recebe o atestado de reconhecimento social, o de uma jovem que se prepara para a
difícil tarefa de ser mãe. Sua família falhou, suas amigas falharam, mas outro grupo surge
para ajudar Angélica a lidar com as crises da sua mudança. se a importância e o papel
do grupo social nos ritos de transições ou passagens.
Angélica também destaca como uma parte muito significativa da sua gravidez o fato
de ela ter arrumado tudo para a sua filha. Isso indica que arrumar as roupas do bebê, o quarto,
o berço, assim como o preparo para o parto através dos exames p-natal, o ações
significativas que marcam o período que antecede ao nascimento. São ões que também
ajudam a pessoa a se despedir da condição anterior e preparar-se para o próximo estágio. Ao
mesmo tempo em que a futura e prepara as roupas do bebê ela também se prepara
emocionalmente para ser mãe. A mesma função têm os cursos de preparação para o parto e
primeiros cuidados do bebê, onde futuros pais e futuras mães aprendem a dar banho no bebê,
trocar fraldas, segurar o bebê, entre outros.
No caso de Guilherme e Solange, o tornar-se pai e mãe aconteceu dentro de um
clima de festa: diálogo, preparo, espera e envolvimento da família, inclusive avós. Angélica
ficou sozinha num momento de grande crise. A sua mudança para a vida adulta é forçada pela
gravidez e os grupos de apoio mais próximos a ela, família e amigas, falharam no momento
em que ela mais necessitou. Com o uso de recursos rituais existentes e reconhecidos pelo seu
mundo cultural, no caso o Chá-de-fraldas, Angélica tem a possibilidade de ritualizar a sua
gravidez e, assim, amenizar os impactos da crise vivenciada.
2.3.6 Ritualização no ingresso e na conclusão do estudo
Como visto acima, o estudo é um tema muito presente no depoimento das pessoas
entrevistadas. Ele marca, em especial, um estágio da vida, mas também acompanha as pessoas
ao longo da vida, assinalando outras etapas de formação. O estudo, enquanto atividade que
prepara a pessoa para alcançar uma profissão, é um estágio preliminar da vida profissional e
adulta, mas como atividade que especializa um profissional ou aperfeiçoa uma profissão, ele
funciona como estágio intermediário à atividade profissional ou acontece paralelamente a ela.
Evidentemente, há fases mais marcantes no estudo do que outras. Por exemplo, o final do
139
ensino médio e a entrada na universidade. Esta é uma fase que coincide com o fim da
adolescência e início da juventude
505
. Nesta fase, estão em jogo elementos muito importantes
da identidade, sendo a vocação ou escolha da atividade profissional um fato dos mais
estressantes para o jovem e sua família. Como já referido acima, esse é também, para muitos,
o momento marcante da saída de casa e busca de autonomia.
De acordo com as pessoas entrevistadas, é possível destacar alguns momentos chaves
dentro do estudo que assinalam essa etapa marcante da vida, período esse no qual a pessoa é
preparada para entrar no mundo adulto através da profissionalização. São os exames de
entrada em cursos (de nível médio, supletivo e superior), sendo o vestibular o mais dramático,
pela forte concorrência que ele representa, em especial, nas universidades federais; são os
exames finais dos cursos, principalmente nas graduações e, finalmente, as formaturas, como
festas solenes que marcam a conclusão e o coroamento de fases importantes do estudo.
Também os estágios representam momentos especiais dentro do estudo, pois ajudam o
estudante a se defrontar com o mundo do trabalho.
Exames e vestibulares possuem características de ritos de margem, pois situam-se
entre um mundo e outro, entre uma condição social e outra (passagem do ensino fundamental
para o dio, do médio para curso superior, por exemplo). Apenas com o resultado de um
exame e de um vestibular, e após a matrícula e entrada em determinado curso ou
universidade, a pessoa, de fato, recebe seu novo status, como por exemplo, o de estudante
universitário. João Carlos, por exemplo, diz que ter passado no vestibular foi um indício de
que uma nova fase estava iniciando em sua vida. Daí ele fez as malas e saiu definitivamente
de casa (seus pais moram no interior e para fazer faculdade ele muda-se para outra cidade).
As provas, exames, bem como a preparação para o vestibular, possuem semelhanças
às provas a que o submetidos os neófitos nos ritos de iniciação das sociedades que Van
Gennep denominou “semicivilizadas”. Essas iniciações são realizadas longe do grupo social
geral, em cabanas, nas florestas, por exemplo, e nesses rituais de iniciações há forte ênfase no
aprendizado. O cursinho, como preparação para o vestibular, é um típico exemplo de rito de
iniciação da sociedade moderna e pós-moderna ocidental. É um tempo de preparação, de
505
As classificações das idades são complexas. Conforme Griffa e Moreno, a idade de 18 a 25 anos é distinguida
como juventude ou segunda adolescência e 25 a 30 anos eles identificam como vida adulta jovem ou precoce.
GRIFA, Maria Cristina; MORENO, JoEduardo. Chaves para a psicologia do desenvolvimento, tomo 2:
adolescência, vida adulta, velhice. São Paulo: Paulinas, 2001. p. 75. Conforme Teixeira França, pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente, a puberdade e o fim da adolescência vai de 12 a 19 anos. FRANÇA, Maria Ignez
Teixeira. Ritos de passagem: como é difícil virar adulto. Planeta, edição 403, ano 33, abril, p. 78-82, 2006. p.
80.
140
estudo intensivo que, aliás, é encarado pelos estudantes, e por seus familiares, como uma
época de muito sacrifício, pois muitos deles se privam, neste período, de festas, de rias, e de
outros programas da vida dos jovens, e se dedicam exclusivamente ao estudo para o
vestibular. O rapaz que passa no vestibular logo é reconhecido pela raspagem da cabeça, ação
típica de um rito de passagem, conforme Van Gennep. Além da marca física, os termos
“novato” e “calouro” simbolizam a situão daqueles que entram na universidade e o trote,
em muitos locais, ainda é um rito marcante nesta fase.
A finalização de um curso, qualquer que seja o nível, é marcada pela formatura.
Contudo, a formatura que acontece no final do curso universitário é a mais relevante, pois ela
também coincide com o fim da juventude e entrada para a maturidade. É momento de o jovem
não só despedir-se de colegas, professores e da sua condição de estudante, mas, sobretudo, é
deparar-se com um novo e estranho status, o de adulto, sendo a colocação profissional e início
de carreira uma das principais preocupações. O rito de formatura é um dos mais lembrados
pelas pessoas entrevistadas, talvez porque, além de preencher a função de ritualização da
concluo de um curso, ele também coroa solenemente a passagem da juventude para a
maturidade. É interessante observar que, em geral, os rituais de formaturas são longos, com
algumas partes mais solenes e outras mais festivas e menos formais. Em muitos casos as
etapas até se dividem em dias diferentes. Isso demonstra o quanto a ritualização dessa
passagem é dramática, pois, afinal de contas, não é fácil encerrar uma etapa da vida, como a
da juventude, e iniciar outra, como a da vida adulta, ou despedir-se de uma condição tão
familiar e assumir outra tão desconhecida.
João Carlos destaca a formatura do ensino médio e saída do internato como a mais
emocionante que ele viveu. Ele diz assim:
No internato, também, foi muito,..., no dia da formatura, assim, foi a mais
emocionante que eu tenho vivido, pois lá, como eu era interno, a gente convivia
24 horas com os colegas da turma, então, de repente .... No dia da formatura a gente
chorava bastante, a gente tinha necessidade de ficar se abraçando e dizer assim: “ai,
tudo de bom contigo, escreve, liga, né!” [João Carlos, 379-383]
Francisca discorre longamente sobre as formaturas de suas filhas, genros e netos. Ela
até lembra (e repete) as palavras ditas pelo diretor do curso no momento da colação de grau
(“confirmo sua vocação”) e conclui, dizendo: “Mas aquilo, pra mim, foi muito emocionante,
foi muito feliz, era uma emoção feliz!”.
É importante enfatizar que o estudo, com suas diversas fases, seja marcado por
rituais, a exemplo do vestibular, do trote e da formatura. Tais ritos parecem substituir os
141
antigos ritos de iniciação. Hoje, as crianças, desde tenra idade, iniciam a jornada escolar e
vivenciam passagens de um grau a outro, sendo cada grau, geralmente, marcado por
formaturas. Escolas e universidades são, portanto, espaços privilegiados para a promoção de
ritos de passagem e, nesse sentido, enquanto instituições que lidam intensivamente com esses
grupos num período tão extenso, elas poderiam assumir o objetivo de ajudar crianças,
adolescentes e jovens a enfrentarem as crises decorrentes de suas faixas etárias. Para tanto,
faz-se necessário um debate multidisciplinar nessas instâncias educativas com o objetivo de
orientar a criação de ritos que respondam às reais necessidades desses grupos na sociedade
atual.
2.3.7 Ritualização no ingresso ao mundo do trabalho
Constatou-se na pesquisa social que as pessoas entrevistadas, ao fazerem referência
ao trabalho, apontam para queses como: primeiras experiências de trabalho, vocação
profissional, promoção dentro do setor de trabalho e também saída do trabalho e ingresso em
um novo trabalho. Essas referências ressaltam momentos significativos de mudança na vida
pessoal. Qualquer que seja a situação, por tratar-se de um momento novo e diferente, a
mudança gera expectativas, tenes, alegrias e também conflitos.
Liana, por exemplo, ao encaminhar-se para o estágio de professora, para um lugar
totalmente novo, fala de suas expectativas: como chegar lá? Como são as pessoas de lá? Em
que casa ficará? Como será a família? Como vai ser o relacionamento? Como será a escola? E
os alunos, sua turma? Irá conseguir realizar um bom estágio? Ao tomar o ônibus e partir para
o seu local de estágio, Liana diz que sentiu-se totalmente perdida, mas, para sua alegria,
chegando ao local, ela é recebida, ainda na rodoviária, por uma professora que, inclusive,
tinha estudado na mesma instituição que ela. Como se vê, a tensão da chegada a um novo
lugar é aliviada mediante a recepção dada por alguém do lugar e do grupo social ao qual
Liana iria se integrar. Sem dúvida, reconhece-se um gesto de um rito de agregação. Não
novidade nesse gesto de acolhida, pois ele, normalmente, é repetido em situões como esta.
Dar as boas-vindas a alguém é um gesto muito comum, mas a iniciativa do grupo da escola,
onde Liana estava se integrando, ao planejar uma recepção de boas vindas, na própria
rodoviária, demonstra que os ritos podem ajudar a criar solidariedade entre as pessoas num
momento de fragilidade e insegurança.
142
A partir do que descrevem as pessoas entrevistadas e do que se conhece do mundo do
trabalho, a entrada para esse setor da vida social é assinalada por certas regras e requisitos
pré-estabelecidos, tais como: procura de vagas, envio de currículo, espera de seleção,
chamado para entrevista, entrevista, resultado da seleção, anúncio do resultado para as
pessoas aprovadas, apresentação das pessoas ao local de trabalho, exames médicos,
encaminhamento de documentação para a efetivação do contrato empregatício, contrato de
trabalho, encaminhamento da carteira de trabalho (documento símbolo da pessoa empregada),
início do trabalho (primeiro dia!), apresentação aos colegas, conhecimento das tarefas a serem
realizadas. Esse é um esquema básico de ingresso ao trabalho, o qual é conhecido e seguido
por qualquer pessoa que deseja empregar-se; por isso e pelas características que tal esquema
apresenta, pode ser chamado de rito de ingresso ao mundo do trabalho. É possível identificar
esse conjunto de ações como um rito, pois trata-se de ações que envolvem um ou mais
indivíduos, é repetitivo, seguindo sempre o mesmo esquema, possui símbolos e gestos
determinados, tipo de linguagem específico, perguntas e respostas, papéis definidos. O
ambiente de reunião das pessoas que se apresentam para concorrer a uma vaga de emprego e
o desenvolvimento das ações ali ocorridas também contêm elementos típicos e comuns a
outros locais. São eles: chegar, cumprimentar, apresentar-se à recepção, fazer perguntas e
receber respostas alusivas ao momento, receber informações, sentar, esperar, olhar com
desconfiança e curiosidade para as outras candidatas ou candidatos, conversar sobre as
expectativas, quem sabe, sobre as dificuldades de empregar-se ou, simplesmente, silenciar-se.
Levando em conta o esquema dos ritos de passagem, pode-se reconhecer nas ões
do rito de ingresso ao mundo do trabalho elementos de separação, margem e agregação.
Procurar vagas, enviar currículo e esperar por seleção, ser selecionada e ser chamada para
entrevista o características de transição ou margem; ser aprovada e ser chamada para se
apresentar e encaminhar a documentação para o contrato, fazer exames médicos e assinar
contrato de trabalho, indicam separação; primeiro dia de trabalho, apresentação aos colegas de
trabalho, conhecer o local de trabalho e as funções, iniciar o trabalho, são ações de agregação.
Esse esquema de rito de ingresso ao mundo do trabalho pode ser percebido no relato
de Janete. Porém, Janete, após ingressar no seu novo emprego, mudou de setor dentro da
própria instituição onde atuava. Ao relatar essa experiência, ela faz referência a uma questão
muito importante do rito. Vejamos.
Janete fazia faxina em residências particulares, mas procurava um emprego fixo.
Tomando conhecimento de uma vaga em serviços gerais, numa determinada instituição, ela
143
enviou seu currículo. Aguardou e foi chamada para uma entrevista. Ela se apresentou no dia
marcado. Conversando com uma das candidatas, Janete soube que ela tinha experiência em
lugares como aquele. Fez a entrevista e foi para casa pensando que, diante de concorrentes
com mais experiência, suas chances seriam mínimas. À tarde retornou para uma nova etapa da
entrevista. Na certeza de que fizera tudo direitinho, foi para casa aguardar. Continuou em sua
rotina, com suas faxinas diárias. Para sua alegria, ela foi selecionada e chamada para se
apresentar ao local de trabalho. Apresentou-se, fez todos os exames solicitados e começou a
trabalhar. Passado algum tempo, Janete foi convidada por uma das coordenadoras da
instituão a mudar de setor, ou seja, sair dos serviços gerais e passar para o atendimento
gerontológico. Janete confessa:Na hora, assim, me deu aquele choque. Pensei, “mas eu?” “E
se que eu vou conseguir?”
506
. Conta que a sua passagem de um setor a outro foi muito
difícil porque ela não recebeu apoio das suas colegas, nem da chefa, do setor onde estava
trabalhando. Suas colegas se revoltaram contra ela, pois, segundo Janete, elas sempre
desejaram fazer essa mudança e concluíram que Janete havia articulado, silenciosamente, a
sua promoção. Após um tempo de negociação entre os setores, Janete, finalmente transferiu-
se de área. Mas, nessa transição, conta Janete, muitas perguntas e dúvidas a acompanhavam,
como por exemplo, “se eu não fizer a coisa certa, será que vou voltar pro meu lugar”
507
. Certo
dia, a coordenadora lhe deu o seu novo uniforme e lhe disse que começaria no dia seguinte.
Ao dirigir-se ao seu novo local de trabalho, no primeiro dia, o coração batia diferente, mas ao
chegar e ver a alegria das novas colegas, tudo mudou. Ela foi saudada pelas colegas, que
diziam: “seja bem-vinda, nós realmente te queríamos aqui”. Janete diz que isso foi
realmente diferente do que aconteceu no setor anterior. De lá ela saiu triste, sem, ao menos,
conversar com as colegas.
Ao ressaltar a alegria das colegas do novo setor, em contraposição à tristeza
provocada pelo desprezo das colegas do antigo setor de trabalho, Janete, na verdade, está
apontando para um elemento muito importante do rito, o celebrativo, o festivo ou
comemorativo; em outros termos, trata-se do aspecto transcendental contido no rito. Esse
aspecto, aliás, assinala uma das funções relevantes do rito: revelar simbolicamente o oculto,
apontar para o mistério ou para uma realidade diferente da que se apresenta, confirmar
valores. Por exemplo, o abraço de “boas-vindas” ou a frase “nós realmente te queríamos aqui”
o gestos e palavras que revelam uma infinidade de coisas, tais como, amizade,
solidariedade, respeito, dignidade, justiça; são palavras e gestos que apontam para um mundo
506
Janete, 372-373.
507
Janete, 628-629.
144
onde as relações entre as pessoas são diferentes; elas dizem que a realidade da vida pode ser
outra. O mesmo pode-se dizer da experiência de Liana, que foi bem recebida na rodoviária, no
seu ingresso a uma escola. A falta de um rito de despedida entre as colegas do antigo setor
deixou um vazio que, aos poucos, com o tempo, talvez até seja preenchido, mas,
possivelmente, com seelas e mágoas não resolvidas.
Portanto, não basta observar friamente um rito com seus passos e regras. As pessoas
o partes do rito; elas o as protagonistas principais. É em função delas que o rito é
executado. Assim, que se levar em conta a dimensão subjetiva do rito como um aspecto
subjacente. A dimensão subjetiva do rito, por sua vez, esintimamente relacionada ao social.
É a necessidade da pessoa de ser aceita e reconhecida socialmente, em sua nova condição, que
esem jogo. Dito de outra forma, aceitar uma pessoa e reconhecê-la em seu novo status é
alegrar-se com ela, é festejar!
2.3.8 Ritualização na separação de casal e na separação de pai e mãe
A questão da separação de casal, trazida à tona na pesquisa social por duas pessoas,
de dez entrevistadas, é tratada sob pontos de vista diferentes, a de um filho que sofre com a
separação do pai e da mãe e a de um marido que se separa da mulher. Segue, em primeiro
lugar, a descrição da experiência do filho e, depois, a do marido. No fim, verficar-se-á se
pontos em comum.
a) Emílio, um rapaz de 16 anos, mostra, em seu depoimento, o quanto a separação de
seus pais o afeta. Ele descreve a vida familiar antes e depois da separão de seus pais e
aponta para diversas perdas. São perdas, em especial, no nível da convivência familiar. São
elas: sair juntos, divertir-se juntos, brincar juntos, comemorar o aniversário juntos, comemorar
o Dia dos Pais juntos, comemorar o Natal e Ano Novo juntos, fazer férias juntos e também
almoçar e jantar todos juntos. Emílio lembra tanto os eventos que unem a família no dia-a-dia,
tais como almoçar e jantar juntos, quanto os que marcam datas e momentos especiais. É digno
de nota que Emílio, ao destacar as suas perdas, menciona justamente os ritos que marcam a
vida familiar, ou seja, ele assinala aqueles momentos, os quais o ritualizados, que conferem
sentido à vida, ao dia-a-dia. Todos os momentos e os eventos que ele realça podem ser
chamados de ritos familiares, porque unem e reúnem a falia em torno de momentos e datas
especiais da vida e, entre esses ritos, encontram-se também ritos de passagem, como, por
exemplo, o aniversário e o Dia dos Pais.
145
Também vale a pena registrar que, ao falar do processo de separação do pai e da
mãe, Emílio menciona um ato de reunião da família. Ele conta que o pai e a mãe, tendo se
decidido pela separação, reuniram os filhos, sentaram ao redor da mesa e contaram a eles
sobre a decisão que haviam tomado. Após isso, vieram a mudança de casa (Emílio e a mãe
ficam juntos, numa moradia e o pai noutra) e a separação de bens. Por meio de advogado, a
mãe conseguiu que o pai dividisse tudo certinho, explica Emílio. Ao discorrer sobre a nova
fase de vida, Emílio volta a lembrar eventos e datas especiais. Ele diz que todo final de ano o
pai o leva para um lugar que eles gostam, mas o Natal ele passa com a mãe. Entretanto,
lamenta que o pai e a mãe não festejem juntos o seu aniversário. A partir dessa opinião de
Emílio, é possível dizer que eventos de passagens, enquanto ritualizados, são boas
oportunidades para pais, mães e filhos, em situação de separação, buscarem uma convivência
harmoniosa. Pais e mães separados podem se orientar por essa experiência de Emílio.
b) Henrique, com 56 anos, depois de trinta anos de casado, enfrenta a separação da
sua mulher. Segundo ele, foi sua mulher quem tomou a iniciativa e afirma: “uma mulher de
quem eu gosto, gosto até hoje, (...), não entendi o que aconteceu, por que nos separamos”
508
.
Henrique conta que, ao instalar-se a crise no casamento, a primeira providência do casal foi
procurar apoio de profissionais da área psicoterápica, mas isso não ajudou. Eles acabaram se
separando e ele não entendeu bem o que houve. Mesmo com a separação já consumada diante
do juiz, Henrique fez mais uma tentativa de reconciliação. A separação oficial saiu e no s
seguinte, o casal completaria trinta anos de casados. Na ocasião, Henrique reuniu todos os
filhos e tentou se aproximar da mulher novamente
509
. Mesmo tendo acontecido a separação,
eles comemoraram os trinta anos de casados. Eno, estando todos ali reunidos, Henrique
perguntou para a mulher: ‘escuta, ...., o que tu acha?. ‘Não, o tem volta’. Então tá”
510
.
Diante daquele “não”, Henrique entendeu que aquela tinha sido a última chance e que, a partir
dali, a separão era definitiva. Ele entende que não foi a separação diante do juiz que valeu,
de fato, mas o “não definitivo dela, na reunião da família, que marcou a separação.
Nota-se que, tanto na experiência de Emílio quanto na de Henrique, a reunião da
família é destacada como um elemento de junção antes da separação definitiva.
A experiência de Henrique na separação de sua mulher mostra um fato curioso. Por
que a separação oficial, legal, o significou a separação definitiva? É interessante observar
508
Henrique, 295-296.
509
Henrique, 301-305.
510
Henrique, 310-311.
146
que Henrique criou uma situação semelhante àquela que tradicionalmente ocorre no momento
do casamento (um grupo social está reunido para a cerinia, um clima especial,
testemunhas, pergunta e resposta são feitas ao casal) para, então, definir ou não a separação
do casal. A separação tem etapas. Tudo indica que a etapa da separação diante da família, ou
do grupo social mais importante para o casal em separação, seja uma das principais. O
casamento, a união do casal, também foi um processo de rias etapas. Por que o fazer o
caminho inverso na hora da separação?
2.3.9 Ritualização na doença
A doença é uma realidade que ameaça a vida. Ela representa uma desorganização da
estrutura de vida do ser humano, afetando a pessoa não só fisicamente, mas também
psiquicamente. A doença é um acontecimento que sacode a vida, alerta para o perigo que
rodeia a pessoa, por isso, desestrutura e causa inquietação, desordena o ritmo regular diário e
gera insegurança. Como constatado nessa pesquisa, esse estado de insegurança é
aumentado nos casos em que a doença está muito próxima à realidade da morte, ou seja,
quando uma pessoa é acometida por uma doença que ameaça muito concretamente a vida ou
que põe o indivíduo em estado de dependência total ou parcial. Dependendo do caso, a pessoa
é tirada do seu ambiente familiar e ritmo cotidiano e submetida a tratamentos em hospitais ou
é transferida para instituões ou casas de cuidado. Não a pessoa doente sofre alteração no
seu estado de vida, mas a família também é afetada quando há pessoas doentes em seu meio e,
conforme os casos, toda a rotina familiar é modificada.
No caso das pessoas entrevistadas, cabe perguntar pelo modo como elas lidam com
essa passagem e se elas apontam para algum tipo de rito que acompanha as pessoas em
situações de doença.
Henrique, por exemplo, traz à memória o acompanhamento sistemático dado
primeiro ao pai e, posteriormente, à mãe, quando, em idade avançada, encontram-se doentes.
Janete também discorre, em seu depoimento, sobre a doença do pai e fala da dedicação dela e
dos irmãos para ajudá-lo. Além disso, ela menciona a cirurgia a que ela se submeteu, ainda
recentemente. Francisca conta sobre a sua doença, da filha e a de um irmão que recentemente
sofreu um AVC, além de lembrar a doença que precedeu à morte do marido.
Henrique manifesta sua convicção a respeito da importância das visitas que
diariamente fazia ao pai, internado numa instituição de cuidado a pessoas idosas e, em época
147
posterior, do revezamento que a família fazia para acompanhar a mãe debilitada, em casa.
Estar junto com o pai e, posteriormente, com a e, na doença que precedeu a morte deles,
foi gratificante e até uma forma de despedida, diz Henrique.
Francisca, vivendo num lar de pessoas idosas, frisa que se apóia na oração para se
aliviar das angústias que lhe sobrevêm. Em seu quarto, diariamente, utilizando-se de diversos
rosários, ela ora, intercedendo, entre outros, pela cura da sua própria doença, assim como pela
cura da filha. De acordo com a necessidade da pessoa para quem ela ora, ela usa um rosário
específico; além dos rosários, ela também se utiliza do seu oratório, localizado num espaço
coletivo do lar de idosos. A oração é uma forma de ela manter acesa a esperança da cura e, ao
mesmo tempo, de retorno ao lar da família. Na oração, Francisca encontra apoio e força para
resistir à nova realidade que se lhe apresenta: estar doente e impossibilitada de viver sozinha;
de afastar-se do lar da família e viver num lar de pessoas idosas. Francisca sabe que, no atual
momento, ela não tem como mudar sua situação e que é necessário aceitar e esperar
pacientemente. Neste sentido, a oração é uma forma de ela sobreviver dentro de uma
realidade adversa. Pela oração, ela se apóia numa força superior, que transcende a realidade
presente.
Janete também se apoiou na oração como meio de preparação para uma cirurgia.
Após a realização de diversos exames, um possível diagnóstico de câncer lhe causou medo.
Ela se lembrou do pai, da sua morte e de tudo o que ele sofreu por causa do câncer. Quando
soube da necessidade de cirurgia, as primeiras noites foram de insônia. Então, ela e o marido
iniciaram um processo de oração e, aos poucos, Janete foi se acalmando e se enchendo de
confiança. Além da oração, Janete destaca a importância do apoio que recebeu dos colegas de
trabalho. Ao sair para o hospital, os e as colegas de trabalho lhe deram um abraço de
despedida; das pessoas que não estavam na despedida, ela recebeu bilhetes com mensagens de
encorajamento, os quais ela ainda mantém guardados. Também da família, sobretudo da mãe,
ela recebeu o cuidado e acompanhamento necessários. Tudo isso lhe foi de grande ajuda num
momento de muita fragilidade e insegurança, conta Janete.
A experiência de Janete aponta para a importância de um rito que assinale a ida para
o hospital. O rito assumido pelos colegas de trabalho de Janete, o qual inclui palavras, gestos
e símbolos, ao mesmo tempo em que representa a solidariedade de um grupo social de sua
referência, marca uma fase importante dos ritos de passagem, a separação. Ao encaminhar-se
para o hospital, a pessoa sai de um mundo conhecido e familiar para entrar num ambiente
totalmente estranho, inclusive com linguagem e vestes próprias (a linguagem médica é
148
diferente da comum, os uniformes são específicos, os aparelhos de uso médico não são de uso
comum, a rotina hospitalar é diferente e assim por diante). Entrar num hospital é entrar num
espaço de domínios estranhos. Na verdade, o tempo de estadia num hospital para o doente é
um tempo de transição, margem ou liminaridade. Não se vive num hospital, apenas se passa
por ele. E essa passagem é rodeada de perigos. Para uns ela representa a cura, para outros, a
morte. Por isso, a entrada num hospital é atormentada pelo medo. Henrique, ao lidar com o
pai em sua fase terminal, descobriu que havia um trato entre ele e a mãe de, caso acontecesse
algo com um deles, deixá-lo (ou dei-la) morrer em casa. Esse parece ser um medo peculiar
às pessoas de idade avançada, o de morrer abandonado num hospital, longe de casa e dos
seus, presos a aparelhos. Francisca também manifestou medo de morrer abandonada no lar de
idosos. Nestes casos, não se trata de medo da morte, mas de abandono na morte. Tudo indica
que na doença, em termos de ritos de passagem, o momento mais importante é o da separação
da pessoa do seu ambiente e a entrada num hospital tendo em vista os perigos que tal fato
representa. Nenhuma das pessoas acentuou a saída do hospital ou reagregação ao ambiente da
família ou do trabalho como algo que lhes fosse sumamente relevante. È possível que gestos e
palavras especiais sejam dirigidos à pessoa quando ela novamente é incorporada ao seu meio,
porém, é a ida para o hospital o momento existencialmente mais crítico. Das experiências
mencionadas, vale registrar a oração, em casa, com a família, e as palavras de encorajamento,
de amigos e colegas de trabalho, como recursos rituais relevantes tanto para a preparação e
ida para um hospital quanto para manter-se em tratamento.
2.3.10 Ritualização na morte
O assunto “morte” é trazido pela maioria das pessoas entrevistadas como uma
questão íntima, algo com que elas lidaram, principalmente, no círculo familiar. Ao falarem
da morte de algum familiar, as pessoas entrevistadas expressam sentimentos seus, tais como:
perda, dor, sofrimento, abandono, inconformidade, inquietação, medo, despedida. Para
algumas pessoas, muitos desses sentimentos fazem-se novamente presentes, no momento da
entrevista, ao recontar sobre a morte de seu ser querido.
De acordo com o relato das pessoas entrevistadas, a experiência de morte com que a
maioria delas se defrontou, aponta para diferentes aspectos.
Conforme Henrique, o tempo de acompanhamento ao pai e à mãe na doença, foi
muito significativo. Esse tempo, segundo ele, foi uma fase de despedida, mesmo não sendo
149
consciente. Janete também acompanhou por longo tempo o seu pai na doença. Ela dá mais
destaque a esse tempo de acompanhamento ao pai na doença que antecedeu a morte do que
propriamente à fase de morte, sepultamento e luto. Nestes casos, a doença grave tempo às
pessoas de se despedirem de seus entes queridos e de se prepararem para a realidade que as
espera. Muitas vezes, esse tempo é também oportunidade de encaminhar questões pendentes,
seja no nível das relações, seja em questões de bens familiares. Pode-se dizer que, desta
forma, já se inicia a fase da separação, a qual é parte dos ritos de morte.
Na verdade, a preparação para a morte e o espaço para a despedida em vida são fatos
raros. Muitas são as mortes inesperadas e muitos são os casos em que as pessoas, na hora da
morte estão encerradas em hospitais e cercadas de aparelhos e de pessoas desconhecidas. E
devido a uma cultura que não permite falar da morte com naturalidade, muitas são as
situações em que a hora final é enfrentada no silêncio e na intimidade individual. Como foi
observado acima
511
, não é o medo da morte que mais atemoriza as pessoas, mas o medo do
abandono na morte, o de morrer só, abandonada num hospital, num lar de idosos, longe de
casa e da família. O mesmo abandono pode acontecer em casa, quando a família não
acompanha a pessoa em seu momento de profunda angústia. Neste sentido, faltam ritos que
amparem as pessoas na hora da morte, seja em casa ou num hospital. Ritos são como pontes e
em situações de morte, os ritos funcionam como pontes sobre o abismo; a falta deles pode
tornar a travessia muito penosa, transformando a vida numa peregrinação por caminhos
áridos.
Mas, mesmo que os ritos acompanhem as pessoas nas passagens, parece que eles
nem sempre preenchem a função fundamental de ajudar as pessoas em momentos de angústia
existencial. Por exemplo, Liana diz que o velório do seu irmão foi rápido e o caixão não pôde
ser aberto, pois devido à morte por afogamento, o corpo demorou a ser encontrado e liberado.
Liana conta que as o enterro, ela ficou imobilizada, teve contração muscular e foi
medicada. Se o velório foi rápido, que espaços Liana teve para externar a sua dor? Ela e o
irmão se davam muito bem, como ela diz, eram “muito afinadinhos”. Será que Liana teve
tempo suficiente para despedir-se do irmão a quem amava? Segundo Liana, o que a ajudou
nessa fase de sofrimento foi a conversa que teve com um pastor. Nesse encontro, ela pode
falar da sua raiva de Deus e da sua inconformidade com a morte do irmão. É possível que a
falta de tempo e de espaço no velório e enterro tenha sido preenchida com a conversa pastoral
e apoiado Liana em seu processo de luto. Mas, e no caso de Geraldo, que, ao falar sobre a
511
Cf. acima, página 148.
150
morte do irmão na entrevista, ainda parece carregar o peso da perda? Os seus sentimentos de
dor e inconformidade ainda parecem não ter encontrado espaços suficientes para se
manifestarem e se transformarem. Geraldo, em seu depoimento, conta da morte do irmão e da
dor que ela representa para ele e sua família, mas ele não menciona nada sobre os ritos que os
acompanharam. Se após treze anos, a dor da morte do irmão ainda angustia, se os sinais da
presença do irmão ainda fazem sofrer, significa que o luto ainda não foi encerrado e que o
irmão, ou filho, ainda não foi totalmente entregue à morte. Para a família, o sentido da morte
do irmão permanece incógnito.
Parece que os rituais de morte, da cultura contemporânea do contexto ocidental, são
insuficientes para completar o ciclo desse rito de passagem. Verifica-se, em especial, uma
insuficiência de ritos de luto. As pessoas ficam entregues à ppria dor na esperança de que o
tempo resolva tudo. Pouco se fala em luto, não sinais viveis para o luto. Em casos de
sepultamento, e não incineração do corpo, ainda resta o cemitério como lugar de cultivar uma
relação com a pessoa falecida. O cemitério, enquanto presença materializada de um ser
querido, torna-se o único espaço, socialmente reconhecido, para elaborar o luto, assim como
de cultivo da memória daqueles que jamais serão esquecidos. Francisca, por exemplo, conta
que pouco tempo seu irmão faleceu. Na ocasião, ela queria ir ao sepultamento, mas as
filhas não a deixaram, pois ela não podia caminhar e estava fraca para viajar; ela diz que
chorava todo dia. Completado um mês, ela implorou novamente à filha que a levasse para a
cidade onde viviam seus familiares e onde seu irmão encontrava-se sepultado. Ela, então, foi
ao cemitério, também visitou a sua cunhada (esposa do irmão falecido) e voltou para casa. E
aí, tudo estava bem, conclui Francisca.
É importante lembrar que, segundo Van Gennep, nas cerimônias funerais, os ritos de
margem são mais acentuados do que os de separação
512
. O luto é um estado de margem, mas
como se percebe, uma fase tão relevante dentro dos ritos nebres tornou-se esvaziada de
rituais e, desta forma, as pessoas ficam abandonadas em suas angústias e dores.
2.3.11 Ritualização de ingresso à nova comunidade religiosa
Dentre as passagens identificadas acima, destaca-se, na experiência de duas das
pessoas entrevistadas, a mudança de comunidade religiosa. Para uma delas esta mudança é
fruto de uma decisão pessoal. É o que afirma Janete: “é uma decisão que eu tomei”. Muitas
512
GENNEP, 1978, p. 126.
151
vezes as pessoas a questionam, dizendo: ah, porque tu anda assim”, “porque tu pensa assim”,
“porque tu fala assim”. Mas, Janete diz que se sente bem, fazendo o que faz. Percebe-se que a
mudança de comunidade religiosa é assinalada, em especial, pela maneira de Janete se vestir,
falar e agir. O corpo e o comportamento de Janete falam, exprimem e explicam; ou seja, a
identidade religiosa dela é marcada por sinais exteriores. Esses sinais, ao mesmo tempo,
representam a identidade religiosa dela no mundo que a rodeia, representam a separação de
Janete do seu mundo religioso anterior, assim como a agregão ao novo grupo, pois, por
meio de sinais comuns, Janete é reconhecida pelos demais membros da mesma congregação
religiosa. Isso demonstra quão forte são os sinais simbólicos num mundo de diversidade
cultural e religiosa. Portanto, no caso de Janete, o rito de passagem que marca a mudança de
comunidade religiosa é fortemente caracterizado por sinais viveis através de veste e
comportamento pessoal. É interessante notar que esses sinais simbólicos, além de identificar a
pessoa com a sua comunidade religiosa, também assinalam a separação com o mundo social
circundante, ou seja, são símbolos rituais que separam e agregam simultaneamente.
Outro caso de mudaa de comunidade religiosa é relatado por Solange. Sua
motivação para mudar de comunidade religiosa é o casamento. O casamento religioso foi
realizado na comunidade de do marido e, desta forma, Solange assume a mesma
confessionalidade dele. Os dois filhos também foram batizados nessa mesma comunidade.
É interessante, no entanto, perceber o caminho percorrido por Solange nessa sua
mudança de comunidade religiosa. Ela entra numa nova comunidade pelo rito do casamento.
Mas, na prática, Solange ainda se sente pertencente à sua antiga comunidade religiosa e
continua participando das suas atividades. Na verdade, ela não assumiu a nova comunidade
como sua. Só com o tempo, diz ela, à medida que leva os filhos para a comunidade onde eles
foram batizados e ela participa dos cultos, conhece melhor a nova comunidade, Solange passa
a gostar e a assumir a comunidade do marido também como sua. Quer dizer, o rito do
casamento o foi suficiente para agregar Solange à nova comunidade. O rito do casamento
assinalou a separação da antiga comunidade, mas, mesmo assim, Solange voltou para o seu
antigo ninho. Vários anos se passaram até ela sentir-se realmente participante e membro da
nova comunidade. Faltou algo?
Considerando as três fases do rito de passagem, percebe-se que num processo de
mudança de comunidade, a fase de agregação é de fundamental importância. Aos poucos,
Solange se sente integrante da sua nova comunidade.
152
A pergunta que se levanta, neste contexto, é se o rito do casamento também deva ser
utilizado para marcar a mudança de comunidade religiosa. Por que mesclar ritos que possuem
acentos e expectativas tão diferentes? Mesmo que o rito de casamento assinale a separação da
antiga comunidade, seria de fundamental importância investir num rito de agregação à
comunidade, num momento especial, independente do rito de casamento. E como a própria
Solange indica, conhecer a nova comunidade, os seus grupos, aprender os credos,
familiarizar-se com o culto, saber como é a dinâmica de funcionamento da comunidade, são
tarefas que podem ser parte do rito de margem ou transição. De acordo com Van Gennep, o
“aprendizadoé uma característica dos ritos de margem. É para isto que a experiência de
Solange também indica. É importante dar tempo e espaço para que as pessoas que integram
uma nova comunidade conheçam o corpo para o qual elas estão se integrando. Neste caso, o
rito de casamento até pode servir como rito de separação da antiga comunidade religiosa, mas,
além desse, é necessário investir muito mais em ritos de margem e de agregação.
2.3.12 Ritualização na iniciação religiosa
Quatro pessoas, de dez entrevistadas, mencionam o rito da confirmação ou crisma
como algo que lhes foi significativo. A confirmação ou crisma é um rito da igreja cristã e,
originalmente, esligada à iniciação à vida cristã, cujo núcleo é o batismo.
Segundo a compreensão de igrejas do protestantismo histórico, a confirmão é uma
resposta consciente do jovem à dádiva da recebida no batismo quando criança. Para tanto,
as comunidades cristãs organizam cursos que visam à educação dos jovens na cristã. Esse
curso acontece, em geral, entre 11 e 15 anos e pode variar de um a três anos, de acordo com
os costumes pprios de cada comunidade ou confissão religiosa, culminando com o culto de
confirmação. As o período de preparação e ensino sobre os fundamentos da cristã, os
jovens cristãos são apresentados à comunidade, reunida em culto, e fazem a confissão pública
e pessoal da fé, recebem a imposição de mãos, selando, desta forma, um compromisso com a
comunidade cristã. Com a confirmação o jovem assume participação responvel na vida
comunitária e torna-se membro ativo, podendo assumir atividades e serviços de cargos na
comunidade (participante das assembléias, padrinho ou madrinha no batismo, testemunha em
bênçãos matrimoniais, contribuinte financeiro, liderança de grupos, integrante do presbitério,
o alguns exemplos).
153
O rito da confirmação, portanto, é interpretado como um ato que encerra uma das
etapas mais relevantes da formação cristã a qual acontece durante a fase adolescente
513
. Por
tudo isso, a confirmação sela a passagem para a maturidade cristã, uma mudança de status
muito significativa dentro da comunidade; mas além de assinalar uma mudança na vida cristã,
a confirmação, em alguns contextos, também é interpretada como um importante rito de
passagem da adolescência. Na IECLB, por exemplo, nas comunidades rurais tradicionais, a
confirmação marca uma passagem não só religiosa como também social. Por exemplo, um
jovem ou uma jovem confirmada pode ir a bailes, namorar e casar.
A partir do relato de algumas das pessoas que acentuam a confirmação como algo
especial para elas, é possível perceber a relevância de tal rito pelos aspectos simlicos e
rituais presentes. Por exemplo:
Para João Carlos, o culto da confirmação foi muito significativo. Ele usa expressões
como “aquela cena” e “aquela emoção” para qualificar esse dia que lhe foi tão marcante. O
relato de João Carlos sobre o ritual da confirmação é cheio de detalhes. Ele descreve várias
cenas. Uma delas se refere ao ambiente da família. Ele conta que na manhã do dia de sua
confirmação, sua mãe entrou em seu quarto com um livro de oração nas mãos e disse: “ ‘você
vai se confirmar, você vai participar da Ceia, e, então, toda vez que vovai pra Ceia, agora,
vovai fazer essas orações’
514
. E, então, a mãe lhe mostrou as páginas do livro, indicando
as orões específicas para a Ceia. João diz que aquele gesto da mãe lhe revelou que, naquele
momento, algo estava mudando. Foi um momento “tão diferente” e “tão estranho”, e, ao
mesmo tempo, “muito bonito”, diz ele. Esse gesto da mãe lhe ficou gravado na memória.
Outra cena que ele descreve diz respeito ao culto de confirmação na igreja da sua
comunidade. No dia, ele acorda cedo, meio nervoso. Aos poucos chegam os padrinhos e todos
juntos vão ao culto. O culto inicia com a procissão de entrada do grupo de confirmandos,
enquanto a comunidade se levanta e canta, recebendo-os. Aquele foi um momento solene e
especial, conta ele. Outro momento especial foi o da bênção e imposição de mãos, dados pelo
pastor, a cada jovem. Esse gesto significou muito para João Carlos. Ele expressa: “era como
513
Essa visão é apenas uma interpretação da confirmação. Reflexões recentes interpretam a confirmação não
como ato que encerra a educação na fé, mas como um período espefico de educação cristã para adolescentes ou
como uma parte do processo de educação continuada que se estende por toda a vida. Neste caso, a confirmação
o tem o sentido de confirmar o batismo, mas de recordar o batismo. Nessa interpretação, o batismo é
compreendido como um rito único que inclui a imposição de os e unção sobre a fronte (parte que
originalmente pertencia ao batismo, mas que se desprendeu, tornando-se um ato litúrgico, e sacramental,
independente).
514
João Carlos, 338-339.
154
se eu tivesse, naquele momento, um contato diretamente com Deus, assim, fisicamente”
515
.
Após o culto, a família de Jo se reuniu com os padrinhos e madrinhas, tios e tias, em casa,
para um almoço festivo. João Carlos também conta sobre os preparativos para esse dia. Ele
destaca tanto os preparativos na falia quanto os na comunidade. Em casa, seu pai e sua mãe
começaram a falar em fazer uma festa, a primeira de sua vida, em convidar padrinhos e
madrinhas, tios e tias, comprar a roupa da confirmação. O preparo foi algo especial, diz ele. E
na comunidade, tinha o momento de enfeitar a igreja, com flores, e deixá-la bem bonita. Tudo
isso trouxe muita satisfação a João Carlos. Como parte da confirmação, João Carlos também
conta sobre a trajetória do ensino confirmatório, de dois ou três anos de preparação, encontro,
para aprender o Catecismo Menor, aprender textos bíblicos e temas da cristã. No final, eles
tinham que prestar uma espécie de exame diante da comunidade.
Como João Carlos, Solange e Liana também destacam elementos significativos desse
ritual, que para elas também foi muito marcante. No dizer de Solange, essa etapa de sua vida
foi uma “preparação para entrar na vida religiosa”
516
. Tanto Liana quanto Solange acentuam a
fase do ensinamento, ou catequese, como um elemento desse processo. Para Solange, a
catequese, com duração de dois anos, foi o lugar onde ela mais aprendeu sobre religião, pois,
em casa, sua mãe lhe ensinara apenas a rezar. Foi uma época em que ela aprendeu a “ir à
missa” com mais regularidade. Liana, que foi quatro anos no ensino confirmatório, destaca os
preparativos para o dia da confirmação: comprar vestido, sapatos e preparar a festa, convidar
padrinhos e madrinhas. No dia da confirmação choveu e ela foi carregada no colo para não
molhar os sapatos e sujar o vestido. Depois do culto, a festa em família. Foi tudo muito
bonito, diz Liana.
O rito de confirmação, conforme a experiência descrita por essas pessoas, leva em
conta as fases fundamentais do rito de passagem. O ensino confirmatório, também
denominado catequese, é uma característica bem própria da fase liminar ou ritos de margem.
Como em todo rito de iniciação, a aprendizagem, acompanhada de rica simbologia e gestos
rituais, é uma marca singular da liminaridade. O ensino confirmario ou a catequese
representam esta fase, a qual é concluída mediante o exame na comunidade. Essa
apresentação dos candidatos à comunidade, mediante exame, já é uma espécie de agregação, a
qual é completada com o culto de confirmação. O culto de confirmação está cheio de ões
que visam a agregação: os jovens entram em procissão e a comunidade os acolhe se
515
João Carlos, 72-73.
516
Solange, 307.
155
levantando e cantando, a participação na Ceia é um dos mais ricos sinais de agregação e, por
fim, a festa em família.
A confirmação foi o único rito mencionado pelas pessoas entrevistadas como ato
marcante na idade adolescente. A ênfase nesse rito pode estar indicando duas questões. Ou a
fase adolescente carece de rituais ou os rituais existentes não preenchem as reais necessidades
dos jovens e de suas famílias numa fase tão marcada por transformações bio-psico-sociais.
Como visto, a confirmação, enquanto rito de passagem, é plena de sentido, com ritos que
marcam a separação, margem e agregação, além de possuir elementos simbólicos
significativos ao ato em questão. Observou-se acima que a confirmação é um rito de caráter
religioso e não deve ser confundido com o rito de puberdade, mas o fato de muitos o
confundirem com um rito de puberdade indica uma carência de ritos nessa fase da vida.
2.3.13 Sistematização dos resultados
Esta terceira seção do capítulo dois foi iniciada com base nas passagens identificadas
na pesquisa social a partir da interpretação que se fez dos dez componentes culturais extraídos
das respostas das pessoas entrevistadas. Estudando minuciosamente os dez componentes
culturais, foi possível perceber no relato das pessoas pesquisadas quais passagens foram
relevantes na sua trajetória de vida e o quanto as passagens estão imbricadas na vida das
pessoas, trazendo alegria e satisfação, mas também angústia e tensão existencial. Tendo sido
identificadas as passagens, o objetivo desta seção foi verificar se rituais acompanhando ou
não as passagens, quais rituais são mencionados e qual a sua importância, chegando-se ao
resultado que segue:
Há ritos que acompanham as passagens.
Pode-se dizer que batismo, confirmação ou crisma, namoro, casamento e funerais são
rituais da sociedade tradicional que continuam acompanhando as pessoas em passagens
relevantes como nascimento, iniciação religiosa, união conjugal e morte. Chama atenção que
esses ritos são, em sua maioria, ritos tradicionais da igreja cristã. Além dos ritos religiosos,
não se verificou ritos da sociedade civil para essas passagens entre as pessoas entrevistadas,
ressalvando-se que o casamento, em geral, seja acompanhado de um rito civil. E conforme o
caso relatado por Geraldo, mostra-se a necessidade e uma tentativa de ritualizão do namoro.
Geraldo foi “intimado” pelo pai de sua namorada para conversar sobre as suas reais intenções
em relação ao namoro. Após a conversa com o pai, Geraldo sentiu-se autorizado a namorar a
156
filha “em casa”. Antes, diz ele, eles namoravam “meio escondidos”. Depois, conclui, “tinha
liberdade” com a namorada
517
. Vêem-se aí resquícios do tempo em que o namoro, como passo
que precedia o noivado e o casamento, era controlado pela falia, especialmente por parte da
família da moça
518
. O namoro continua sendo, nos tempos atuais, uma instituição que regula
relacionamentos que visam a união conjugal, embora, de acordo com as mudanças culturais
que marcam a sociedade contemporânea, o namoro tenha hoje regras diferentes das de cinco
décadas atrás, por exemplo
519
.
Foi visto acima a intrínseca relação entre a família e as passagens, sendo que uma
função pquica da família é dar suporte aos seus membros nas ansiedades existenciais. Em
relação ao namoro, no exemplo de Geraldo, coube ao pai da namorada o papel de articular um
rito de oficialização do namoro. Pode-se dizer, a partir desse exemplo, que, assim como a
família é um suporte importante para os seus membros durante as passagens, ela também tem
papel crucial na promoção de ritos no âmbito da falia. Nesse sentido, é importante frisar,
em primeiro lugar, que é fundamental a família perceber e aceitar que seus membros estão
vivenciando mudanças significativas em suas vidas; em segundo lugar, é importante a família
entender que ela pode ajudar os seus membros a vivenciarem as transições através de ritos.
Evidentemente, a família não está sozinha nesta tarefa e o precisa inventar ritos; ela se vale
de elementos rituais presentes na cultura, na religião, por exemplo. Em suma, a família é uma
agência social promotora de ritos de passagens. Ela é a primeira a prestar auxílio aos seus
membros em momentos existencialmente sensíveis. Cabe lembrar o caso de Janete que, diante
da necessidade de realizar uma cirurgia, uniu-se com o marido em orações diárias, durante
vários dias, para se preparar e enfrentar o medo que a assaltava
520
. Neste caso, a sua
experiência religiosa lhe favoreceu.
Conforme constatado acima
521
, assim como o ciclo de vida de um indivíduo é
semelhante ao ciclo de vida da família e, consequentemente, a passagem na vida de um
517
Geraldo, 74-87.
518
Sobre as regras do namoro à antiga conferir a obra: AZEVEDO, Thales de. O cotidiano e seus ritos: praia,
namoro e ciclos da vida. Recife: Editora Massangana, 2004. p. 69-246.
519
De acordo com Tessari, O namoro da atualidade é mais aberto, as pessoas dormem juntas, viajam juntas,
conversam muito e este convívio propicia um conhecimento mútuo muito mais profundo o que pode levar a
casamentos mais estáveis.” Enquanto isso, na década de 50, do século passado, os casais não podiam ficar a sós,
a não ser as o casamento, diz Tessari. De modo geral, afirma a autora, as pessoas hoje pensam em casar-se à
medida que o namoro evolui, mas existem casos, sobretudo de pessoas divorciadas que preferem namorar, pom
sem o objetivo de casar. TESSARI, Olga Inês. Namoro atual: entrevista para o Jornal Rudge Ramos, mai/05.
Dispovel em: <
http://ajudaemocional.tripod.com/rep/id129.html>. Acesso em 26 fev. 2008.
520
Cf. acima, página 147.
521
Conforme item 2.2.12.
157
indivíduo é também passagem na vida da família, um rito de passagem não é vivido pelo
indivíduo, mas por toda a sua família. Segundo Friedman, a ciência social convencionou
colocar o foco pririo na cultura que proporciona os ritos ou nos indivíduos que
estão sendo passados para um novo estágio em seu ciclo de vida. O papel da família
em tais ocasiões tendia a ser visto como secundário, como ocupando uma posição
intermediária entre os membros individuais a serem passados e a sociedade. Dessa
perspectiva, a família participa nos costumes proporcionados por uma cultura como
uma maneira de ajudar seus membros a assumirem sua nova posição naquela
cultura.
522
Entretanto, a sua experiência, diz Friedman, é de que a família atua não como
intermediária, mas como força primária nos ritos de passagem, pois é ela, e não a cultura, que
determina a qualidade emocional dessas ocasiões, assim como, é ela que acaba determinando
quais os ritos a serem cumpridos. Friedman afirma que, “tão central é o papel do processo
familiar nos ritos de passagem, que provavelmente seria correto dizer que a família é que está
fazendo a transição para um novo estágio de vida naquele momento, em vez de algum
‘membro identificadoposto em evidência durante a ocasião”
523
. A visão desse autor sobre o
papel crucial da família nos ritos de passagem reforça, portanto, a concluo a que se chegou
nesta pesquisa social sobre a relação intrínseca entre família e ritos de passagem
524
.
Dentre os ritos que acompanham as passagens, os quais aparecem nesta pesquisa
social, aqueles relacionados ao estudo. Por exemplo, as pessoas entrevistadas destacam o
vestibular e o trote de calouros para marcar a entrada numa faculdade ou mundo acadêmico e
a formatura para coroar a conclusão de um curso. A formatura mostra-se como um ritual
muito importante para assinalar, em especial, o término da faculdade e, ao mesmo tempo, a
entrada para o mundo profissional e adulto.
Pode-se acrescentar que, além da família, também os centros educacionais são
instâncias promotoras de ritos de passagem. Os centros educacionais têm o privilégio de lidar
com crianças e jovens durante um tempo especial de suas vidas. Esses, portanto, são espaços
singulares para a crião e prática de ritos de passagem, especialmente numa fase da vida em
que as crises são tão marcantes e numa sociedade que carece de rituais de passagem,
522
FRIEDMAN, Edwin H. Sistemas e cerimônias: uma visão familiar dos ritos de passagem. In: CARTER;
MCGOLDRICK, 1995, p. 106.
523
FRIEDMAN, 1995, p. 106.
524
Friedman, com base na sua experiência de clérigo e terapeuta familiar, sustenta que “os períodos que cercam
os ritos de passagem funcionam como ‘dobradiças do tempo “, ou seja, o momento imediatamente anterior e
posterior a eventos de ciclo de vida, são especialmente propícios a intervenções terapêuticas às crises familiares
naturais. “Todos os sistemas familiares de relacionamento familiar parecem destrancar-se nos meses que
antecedem e seguem a tais eventos [do ciclo de vida], e muitas vezes é possível abrir portas (ou fechá-las) entre
os vários membros da família, com menor esforço, durante esses períodos intensivos do que comumente
conseguiríamos com anos de extenuantes esfoos”. FRIEDMAN, 1995, p. 106.
158
especialmente para os e as adolescentes. diversas situações em que as escolas e as
universidades podem atuar, criativamente, através de ritos de passagem. Um exemplo de
criação de ritos de passagem é, segundo Fraa, o que fazem algumas escolas particulares da
cidade de São Paulo que adotaram medidas para ajudar alunos num período de mudanças e
transformações. Às crianças que irão trocar de escola pequena para um prédio grande são
oferecidas uma série de visitas ao novo local, antecipando a convivência com os futuros
colegas mais velhos, assim como, para quem está acostumado a ter um só professor ou
professora, no final do semestre introduz-se mais um ou dois professores no grupo para, desta
forma, amenizar os impactos das mudanças que em breve ocorrerão
525
. Outro exemplo é a
proposta denominada Grupos de Apoio e Convivência, implementada em 2006, na Faculdades
EST, em o Leopoldo, Rio Grande do Sul, no curso de bacharelado em Teologia. Os
estudantes que ingressam no curso se reúnem em pequenos grupos, de 10 a 12 pessoas, duas
vezes por mês, durante os dois primeiros anos, para vivenciar a amizade, a comunhão, a
espiritualidade, fortalecer a fé, o amor, amadurecer e consolidar a vocação, além de trabalhar
questões pessoais e discutir questões pertinentes ao grupo
526
. Para estudantes que, ao ingressar
no curso do bacharelado em Teologia, “perdem ou enfraquecem o contato com os grupos de
sua origem”
527
(família, comunidade, grupos de jovens, círculo de amigos) e levam um bom
tempo até criar novos grupos de referência, os Grupos de Apoio e Convivência tornam-se um
espaço significativo para o estabelecimento de novas relações e o fortalecimento da
personalidade num novo contexto comunitário e educacional
528
.
Assim como a família e os centros educacionais, também as instituições de trabalho
o espos especiais de promoção de ritos de passagens. Como descreve a pesquisa social, a
própria entrada para o mundo do trabalho é assinalada por uma ritualização a qual pode ser
caracterizada pelo envio de currículo, inscrição, testes, exames médicos, sendo a recepção e
acolhida no ambiente de trabalho elementos rituais muito importantes, pois reforçam os laços
sociais. A experiência narrada por Janete, uma das entrevistadas, assinalou a importância dos
ritos no ambiente de trabalho. Ela explicou o quanto foi importante ser acolhida em sua nova
função pelas colegas do setor de trabalho em que ela ingressava e lamentou que a sua saída do
antigo setor tivesse sido marcada pela incompreensão das suas ex-colegas. O rito de
525
FRANÇA, 2006, p. 78.
526
ESCOLA Superior de Teologia. Grupos de Apoio e Convivência. São Leopoldo: Escola Superior de
Teologia, 2005. (Documento redigido por Verner Hoefelmann).
527
ESCOLA Superior de Teologia, 2005.
528
A proposta do Grupo de Apoio e Convivência, embora não seja definida, a priori, como um rito de passagem,
contribui significativamente para vivenciar a passagem dos estudantes no mundo teológico-acadêmico, que
chegam a um novo contexto e iniciam uma nova jornada no seu ciclo de vida.
159
acolhimento no novo lugar de trabalho ajudou Janete a sentir-se bem e aceita em sua nova
função, assim como a falta dele na saída do setor anterior deixou um espo vazio para
mágoas e ressentimentos.
Mesmo que as pessoas tenham apontado, em seus relatos, para rituais que
acompanham as passagens, religiosos e civis, conforme aqui destacados, os seus relatos
também não deixam de revelar, como se verificará em seguida, que os ritos nem sempre
atendem às reais necessidades humanas implicadas nas passagens. Por isso, pode-se dizer que:
Há ritualizações que não preenchem as reais necessidades das pessoas nas passagens
Em diversas passagens estudadas, tais como saída de casa e ingresso em outro
contexto, ingresso num lar de idosos, separação conjugal, doença, luto, ingresso à nova
comunidade religiosa, percebeu-se a importância de se observar as diferentes fases dos ritos,
as quais Van Gennep considera elementares, tais como separação, margem e agregação.
Constatou-se, em muitos dos casos indicados nos relatos das pessoas entrevistadas, que o rito
não preenche a sua principal fuão, seja de separação, seja de margem ou de agregação. É
fundamental, portanto, perceber a ênfase que determinada passagem exige para que o rito seja
significativo em sua função de acompanhar as pessoas na vivência das passagens.
Das passagens citadas acima, observou-se que ritos de agregação são especialmente
marcantes no ingresso à nova comunidade; ritos de separação o marcantes na separação
conjugal e ida para o hospital; e ritos de margem se demonstram essenciais na saída de casa e
ingresso em novo contexto ou em novo estado, assim como, no luto e no ingresso ao lar de
idosos. E, conforme demonstrado na pesquisa, os ritos de margem encontram forte eco em
grupos de iguais, ou seja, de pessoas que vivem situões inticas, que se juntam para
elaborar as perdas e a nova identidade (seja na morte ou na saída de casa) e, assim, se preparar
para o novo momento de sua vida. Esta questão foi especialmente evidenciada na experiência
de saída de casa e ingresso em outro contexto, conforme relato de Geraldo e de João Carlos.
Entre as fases de separão da família e incorporação aos novos grupos, a experiência desses
jovens revela a importância da fase intermediária (de margem) como sendo um período de
adaptação aos novos papéis e elaboração da nova identidade. Conforme João Carlos, a sua
adaptação ao novo ambiente, o da faculdade, foi facilitada pelos encontros promovidos pelos
próprios colegas de turma, os quais passavam pela mesma situação, durante o primeiro
semestre. Nas reuniões do grupo, enquanto eles rememoravam o seu passado e lembravam a
sua família, eles construíam sentido para o seu presente momento, consolidando a sua nova
160
identidade. A experiência desse grupo indica para a função de um rito de margem na situação
de passagem de saída de casa e ingresso em outro contexto.
Ás vezes, o que é mais importante num rito, como a fase intermediária nos ritos de
saída de casa e ingresso em novo contexto, acaba sendo ignorado pelas instituições
promotoras de ritos de passagem. Conforme indicado acima, parece que a proposta dos
Grupos de Apoio e Convivência da Faculdades EST visa oferecer algo que preencha a
necessidade apontada por João Carlos.
Nos ritos de ritualização da morte, também foi constatado que a fase intermediária, a
do luto, carece de ritualização. As instituições sociais cuidam para que os mortos sejam
enterrados, mas elas ignoram a necessidade de amparo que os vivos necessitam após a entrega
de seus entes queridos. No caso de Geraldo, por exemplo, que perdeu o irmão treze anos,
percebe-se o quanto essa morte o faz sofrer, ainda hoje, assim como a sua família. Isto gerou a
pergunta se o luto dele e de sua família foi realmente encerrado ou suficientemente vivido.
Quais o os ritos de luto presentes em nossa sociedade que ajudam as pessoas nessa difícil
fase da vida? Ignorar rituais de luto é interromper o processo de ritualização da morte.
Algo semelhante está presente no relato de Solange que conta sobre sua experiência
de passagem de uma comunidade religiosa para outra. Através do casamento religioso, ela
passou a pertencer à comunidade do marido. Porém, depois do casamento realizado, ela
continuou a freqüentar sua antiga comunidade, pois sentia falta dela. Com o passar do tempo,
tentando proteger os filhos de possíveis confusões entre uma e outra confissão religiosa, ela
decidiu levá-los e acompanhà-los à comunidade nova, pois ali eles haviam sido batizados.
Esse tempo de aproximação à nova comunidade foi suficiente para Solange conhecer e passar
a gostar do seu novo grupo de e, conforme ela, dali em diante o sentir mais necessidade
de voltar à antiga comunidade. Para Solange, o rito de separação da antiga comunidade,
efetuado através do casamento religioso não foi suficiente para que ela se sentisse integrada à
nova comunidade. A igreja, enquanto instituição promotora de ritos de passagem, não levou
em conta a necessidade de Solange de passar por um rito de agregação e de considerar a fase
intermediária como momento importante para desenvolver um rito que inclui conhecimento
(aprendizagem) da comunidade onde ela estava sendo integrada (por exemplo, sobre a
organização da comunidade, sobre os seus cultos e sua liturgia, sobre seus credos, etc.). É
preciso familiarizar-se com o novo para sentir-se integrante do novo. Também o rito não
completou o seu ciclo de separação, margem e agregação.
161
No caso de Francisca que ingressou no lar de idosos, esse ciclo também parece
incompleto. Ela é recebida no lar, com gestos de boas-vindas por parte das pessoas
responsáveis pela instituição, mas, se percebe, em seu relato, a necessidade de ritos que
marquem efetivamente a separação do antigo lar e a agregação ao novo. Observou-se que a
colocação do oratório de Francisca num espaço coletivo da casa, pelo administrador do lar, foi
um gesto de acolhimento significativo. Porém, Francisca se mostra, em seu relato, muito
apegada à idéia de volta ao lar da filha, de onde veio. A pergunta levantada é se, em seu caso,
a fase intermedria foi suficientemente marcada por um rito de margem para que ela pudesse
sentir-se totalmente incorporada ao lar onde vive atualmente. Não é possível avaliar
satisfatoriamente essa questão com os dados obtidos. Talvez Francisca ainda precise de tempo
para adaptar-se ou de ritos que a ajudem a superar mais rapidamente as perdas implicadas na
separação do seu antigo lar e da sua família. As visitas familiares se mostram muito
significativas na fase intermediária. Observa-se que para se sustentar na situação em que se
encontra, Francisca pratica meditações diárias individuais, utilizando os rosários que trouxe
de casa, o seu oratório e asica.
Para os casos de separação conjugal, as pessoas entrevistadas, envolvidas por essa
questão, apontam para um elemento importante da ritualização. Assim como os filhos são
diretamente envolvidos com essa passagem e sofrem as conseqüências da separação de pai e
de mãe, eles também devem ser incluídos no processo de ritualização. Conforme Henrique, a
separação da sua mulher teve efeito consolidativo quando o “não” dela foi pronunciado no
espaço de reunião da família e não diante do juiz. Essa parte do rito, no entanto, não é
considerada pelos óros responsáveis pela separação judicial, mas, diante de uma
necessidade sentida por Henrique, foi valorizada e transformada em rito por ele próprio.
Com relação à doença, cabe lembrar a importância dada pelas pessoas entrevistadas à
saída para o hospital, sendo, portanto, a fase da separação um momento importante da
ritualização dessa passagem. Janete demonstrou isto quando fala de quão fundamental foi a
prática da oração, em casa, com a família, como preparação para a sua cirurgia e do apoio que
recebeu dos colegas de trabalho, através de palavras, gestos e símbolos na despedida e saída
para o hospital. E Henrique destacou que o acompanhamento dado ao pai, através de visitas
diárias, na instituição onde ele se encontrava internado e, posteriormente, o acompanhamento
dado à mãe, em casa, também debilitada pela enfermidade, foi uma oportunidade ímpar de
vivenciar a despedida deles, antes da morte.
162
Como se observa através dos exemplos arrolados, a ritualização tem diferentes fases,
de acordo com necessidades humanas específicas que caracterizam cada passagem e essas
fases nem sempre são levadas em conta numa ritualização. Por isso, conclui-se que o ciclo da
ritualização, nos casos verificados, o se completa. Além desses casos de ritualização,
constata-se também, a partir do que se levantou na pesquisa social que:
Há passagens para as quais não houve ritualização.
Não se evidenciou, na pesquisa social, um rito que marcasse a passagem para a casa
própria, assim como a mudança de lugar ou um rito que acompanhasse um casal em situão
de união conjugal sem oficialização legal, que opta por “morar junto”.
Angélica, uma das entrevistadas que mora junto com o companheiro sem vínculo
legal, ainda cultiva o sonho de casar “no civil e “no religioso”. O “morar juntos” é uma
modalidade de união conjugal cada vez mais comum. A tendência na atualidade, sobretudo
entre os jovens, é que as pessoas morem com seus companheiros ou companheiras antes de
comprometer-se definitivamente por meio do registro oficial de casamento. Segundo Pinheiro,
o censo de 2000 registrou um aumento de unes consensuais (casamentos sem registro
oficial), sendo que essa modalidade dobrou em apenas uma década
529
. Entretanto, o
casamento civil e religioso continua no horizonte dos casais e muitos casamentos são
oficialmente efetivados após anos de união consensual, sendo o casamento à moda antiga, no
civil e no religioso, uma busca constante, com direito a vestido de noiva, festa e pompa
530
. E
para perceber o quanto o casamento continua em voga, basta conferir os sites especializados
em orientar noivos
531
, as revistas com modas para noivas, as novelas, e buscar, via internet,
por assessorias especializadas em festas de casamento e personal trainer de noivos. Em todo
caso, apesar do modelo de ritualcasamento civil e religioso” ser o mais propagado, o “morar
juntos”, mesmo sendo uma fase intermediária entre o namoro e o casamento oficializado, é
uma passagem importante na vida de um casal e merece uma ritualização própria à
semelhança do antigo ritual de noivado.
A aquisição da casa própria consta no relato de duas pessoas entrevistadas como algo
sumamente valorizado. Janete descreve, com muita ênfase, o quanto ela e os seus irmãos se
empenharam para construir uma casa para seu pai e sua mãe, assim como ela e o marido
529
PINHEIRO, Angélica. O casamento dos novos tempos. Disponível em:
<http://ultimosegundo.ig.com.br/paginas/cadernoi/materias/175001-175500/175220/175220_1.html>. Acesso
em: 28 de fev. 2008.
530
PINHEIRO, 2008.
531
Um exemplo é: < www.noivasonline.com>.
163
planejaram a sua vida em função da construção da sua própria casa. Da mesma forma, Liana
recorda o quão importante foi adquirir seu apartamento. Mas, não menção de um rito que
marcasse a entrada para a própria casa. Da mesma forma, fala-se das implicações de uma
mudança de lugar geográfico, acentuando-se as expectativas e inseguranças geradas por tal
passagem, porém, sem fazer referência a algo que indicasse a ritualização dessa passagem
igualmente relevante.
É importante e necessário que os indivíduos de uma sociedade sintam-se amparados
e aceitos em seus novos papéis e identidades. É por isso que as sociedades, em todos os
tempos e lugares criaram os ritos de passagem para acompanhar e proteger as pessoas em
momentos existencialmente dramáticos. Ritos, por mais simples que sejam, podem ajudar as
pessoas a resolverem situações dramáticas, aparentemente, de difícil solução. O rito, pela
capacidade simbólica que possui, atua sobre as pessoas, colocando-as em contato com outra
realidade e outra força, invisível e transcendental. Pelo rito, ou pela força misteriosa que ele
representa, a pessoa se sente assegurada, apoiada, diante das vicissitudes que a nova situação
lhe ime. Através do rito a pessoa tem o aval da sociedade para usufruir dos direitos da
função que lhe é atribuída ou para enfrentar as tensões do novo e desconhecido. Lembrando
Mardones, o rito estabelece o real, reconhecendo o que é, pois “os acontecimentos não são
plenamente reais enquanto não são reconhecidos e celebrados como tais.”
532
. Como exemplo
do que representa o rito, é interessante lembrar o caso relatado por Angélica, uma das
entrevistadas. Ela, ao engravidar, ainda na adolescência, lutou muito para ser reconhecida e
aceita em seu novo papel, de mãe e adulta. As pessoas mais próximas, de quem ela esperava
apoio, a família e as amigas, lhe faltaram. Ela sentiu-se desamparada, perdida e em meio a
isso, ela própria organizou um Chá-de-fraldas na escola. Os colegas de escola, neste caso, ao
participarem desse ritual, representaram o “sim” da sociedade à Angélica para que ela pudesse
levar adiante a sua gravidez e encarar aqueles e aquelas que a condenavam. Além disso, nesse
“sim” da sociedade também está implícito um compromisso de Angélica, ou seja, de aceitar a
sua nova condição e de seguir o comportamento social que se espera de uma mãe. Neste
sentido, o rito assegura estabilidade emocional e social ao indivíduo, ajudando-o a definir a
sua identidade perante o grupo social e, ao mesmo tempo, contribui para a estabilização das
estruturas sociais
533
.
532
MARDONES, José Maria. A vida do símbolo: a dimensão simbólica da religião. São Paulo: Paulinas, 2006.
(Coleção espaço filosófico). p. 164.
533
“Deve-se ter em vista, porém, que a força integradora do rito e confirmadora do rito de passagem não visa
simplesmente o sistema social dominante. A sociedade global se compõe de subsistemas e subculturas, dos quais
todos têm os seus próprios ritos. Assim, a integração promovida pelo rito pode ser dirigida contra a sociedade
164
Partindo do princípio de que os ritos de passagem são fundamentalmente essenciais
ao ser humano porque acompanham os momentos críticos do ciclo bio-psico-social da vida
humana, constata-se, a partir da pesquisa social, uma perda de qualidade dos ritos de
passagem, no sentido de que, por um lado, a sociedade não cria ritos para as novas situações
de passagens, por outro lado, os ritos, em muitos casos, são ineficazes, pois não correspondem
às necessidades que as passagens exigem, de separação, margem e agregação. Disso resulta
que as pessoas ficam perdidas, desorientadas diante das crises decorrentes das passagens e
tentam, cada qual a seu modo, encontrar saídas e dar sentido à vida. Por exemplo, no caso de
Geraldo, cujo irmão se suicidou, a ferida causada por essa morte, há treze anos passados,
ainda permanece aberta. O que falta a Geraldo e à sua família para que eles encerrem o luto?
Ou, no caso de Angélica que, passados cinco anos, ao recontar a sua gravidez acontecida aos
dezesseis anos e lembrar que não recebeu apoio da família nem das amigas, revela muita
tristeza no olhar. Terá ela superado as angústias e mágoas sofridas nessa passagem? Ou de
Francisca que a sua estadia no lar de idosos como uma mera passagem, um tempo para
curar-se e poder retornar novamente à casa da filha. Será que algum dia ela assumirá o lar de
idosos como seu verdadeiro lar? Ou de outras Solanges que, ao mudarem de comunidade
religiosa, terão que passar por um longo processo até descobrirem sozinhas que a nova
comunidade também tem algo de bom para lhes oferecer?
Por fim, resta a pergunta: o que se pode aprender a partir da pesquisa social ou
confirmar a partir de resultados da pesquisa bibliográfica, sobre as características de um rito
de passagem? Segue um breve exercício de sistematização.
- Um rito de passagem, sempre fortemente ligado à vivência das pessoas, faz
sentido quando ajuda os indivíduos e os grupos a enfrentarem as tensões provocadas pelas
passagens.
Esse sentido pode ser verificado no exemplo de Angélica, a adolescente grávida que,
diante de seu estado, enfrentou a resistência da própria família e das amigas mais íntimas. Um
rito como o “Chá-de-fraldas”, aparentemente simples, foi muito significativo para ela, pois ali
ela de, finalmente, receber o apoio de um grupo social, confirmando assim a sua nova
identidade (passagem para o estado de mãe e adulta), e aliviando as tensões que tal mudança
lhe trouxe no meio social onde vivia, inclusive, nos conflitos com a própria família. Não
importa se o rito é simples ou complexo. O importante é que ele confira sentido àquilo que as
global, pode ser entendida como separação, como protesto contra esta”. KLIEWER, Gerd Uwe. O sacramento:
passagem para outro mundo. Estudos Teológicos, São Leopoldo, v. 20, n. 3, p. 163-174, 1980. p. 168.
165
pessoas experimentam na passagem. O rito é um veículo que possibilita a expressão e a
canalização das ansiedades humanas que emergem nas passagens da vida, encaminhando-as
para a superação.
- Um rito de passagem está vinculado a algum tipo de grupo, preferencialmente um
grupo que se identifica com a experiência vivida na passagem.
Isto se pode constatar no relato de João Carlos, que fala da importância dos
encontros, mesmo que espontâneos, mas regulares, do grupo de estudantes cujos componentes
saíram de casa para ingressar na faculdade e viver longe da família. As pessoas daquele grupo
tinham uma experiência comum e isto os mantinha unidos, os ajudava a aliviar a saudade da
família e a enfrentar as tensões geradas pela nova situação e pelo novo contexto, inclusive
novo contexto cultural. Esse grupo, denominado nesta pesquisa de grupo de iguais, pode ser
identificado em diversas situações de passagens, como por exemplo, grupo de enlutados,
grupo de alcoólicos anônimos, grupo de mulheres, grupo de jovens, grupos de terceira idade.
- Um rito de passagem reforça e consolida a identidade pessoal num grupo social.
Henrique, por exemplo, necessitou promover um rito especial de separação da
mulher com a família reunida, mesmo que a separação oficial e legal já tivesse ocorrido. Ali,
então, no grupo familiar, se consolidou a nova identidade do casal, de pai ee, enfim,
separados.
- Um rito de passagem facilita o inter-relacionamento social.
Exemplo desse inter-relacionamento pode ser visto no relato de Geraldo sobre o
namoro. Até o momento em que o namoro foi oficializado, através da conversa com o pai da
namorada, ele acontecia às escondidas. A partir da sua oficialização, Geraldo teve trânsito
livre não para namorar, mas também para se relacionar com a família dela, possivelmente
com os vizinhos e assim por diante. E, a partir do que Janete contou sobre a sua experncia
no trabalho (de ser bem acolhida no novo setor de trabalho e o se despedir das colegas no
antigo setor), o rito de passagem facilita o inter-relacionamento social bem como a sua falta
pode prejudicar o bom relacionamento entre as pessoas.
- Um rito de passagem ajuda a reforçar os laços de pertença a um grupo social
determinado (na falia, no trabalho, na faculdade, num círculo de amigos, numa
comunidade, numa associação).
166
Emílio, por exemplo, jovem entrevistado, de dezesseis anos, destacou diversos ritos
que aconteciam no âmbito de sua família, entre os quais o seu aniversário, e que, com a
separação do seu pai e da sua mãe, perderam valor em termos de eventos familiares. Afinal, a
existência da família é fortemente celebrada em eventos de passagem. Ao reunir-se, a família
reconstrói a sua memória histórica, fortalece os laços afetivos e de identidade e solidifica
valores. Também para as pessoas, individualmente, o fortalecimento da identidade e do
sentimento de pertença a um grupo, assim como a solidificação de valores são sumamente
importantes. O sentimento de pertença, o fortalecimento da identidade e a solidificação de
valores estão presentes até mesmo na prática individual de um rito como o que aparece no
relato de Francisca. Ao orar, dia-a-dia, sozinha, no silêncio do seu quarto, com seus rosários
em mãos ou meditar no espaço do seu oratório, ela recorda que pertence a uma comunidade
religiosa a qual se espalha mundo afora, indo além daquele seu espaço privativo. Mais do que
isso, ela renova ali a num Deus que ela aprendeu a conhecer, provavelmente, na família e
numa comunidade bem concreta.
Também grupos determinados, comunidades religiosas, associações, entre outros,
reforçam os laços, a solidariedade grupal, a pertença, assim como o próprio sentido de sua
união, quando se encontram e ritualizam momentos marcantes da sua exisncia (aniversários
de fundação do grupo, da comunidade, por exemplo).
- Um rito de passagem possui o potencial de enfrentamento e superação das crises
existenciais e assim de ser um instrumento de libertação, de cuidado e de cura das pessoas
fragilizadas.
Esse potencial fica manifesto no relato da experiência de Janete ao enfatizar a
imporncia da oração familiar nos dias que precediam à sua cirurgia e no acolhimento de
suas colegas de trabalho quando ela mudou de função na área profissional.
2.4 Considerações finais: desafios para a liturgia cristã
A constatação, a partir do que se observou nos relatos das pessoas entrevistadas, de
que passagens para as quais não houve ritos ou para as quais os ritos foram insuficientes,
leva a afirmar que a sociedade atual o está suprindo a contento essa necessidade tão básica
e humana. Por um lado, a sociedade dos tempos atuais, pós-moderna ocidental, cria rituais
riquíssimos como os das aberturas dos Jogos Olímpicos e Copa Mundial de Futebol, e se
especializa cada vez mais em rituais como o carnaval brasileiro, demonstrando o seu poder
167
criativo de ritos, mas, de outro lado, ela oferece poucos recursos rituais para as passagens.
Estaria a sociedade pós-moderna ocidental interessada apenas em rituais de massa e geradores
de capital financeiro? Os principais ritos de passagem, como visto na pesquisa social,
continuam sendo os da sociedade tradicional que, por sua vez, são basicamente ritos da igreja
cris(batismo, casamento religioso, crisma ou confirmão e funerais).
Ao iniciar a pesquisa sobre a ritualização das passagens da vida, colocou-se como
objetivo, entre outros, oferecer subsídios teóricos e metodológicos para a ritualização das
passagens na Igreja. Tendo verificado as diversas situações da vida que envolvem as
passagens e tendo constatado uma perda de qualidade dos ritos de passagem nos tempos
atuais e, inclusive, ausência de ritos para determinadas passagens, é necessário perguntar,
como a igreja, tendo como referência o caso específico da IECLB, lida com a ritualização das
passagens? Quais são os ritos oferecidos às pessoas em situações de passagens? Que
passagens são contempladas nos ritos oferecidos pela igreja?
Como observado, os principais ritos de passagem praticados no atual contexto
cultural são também os tradicionalmente praticados pela igreja cristã (batismo, casamento
religioso, crisma ou confirmação e funeral), também no caso da IECLB. Por isso, um desafio
para esta igreja é olhar para outras situações de passagens, tais como a saída de casa (dos
jovens) e ingresso em outro contexto, o ingresso em um lar de idosos, a gravidez inesperada
na adolescência, a união conjugal através do “morar juntos”, a mudança de lugar geográfico
ou de casa e o ingresso na casa própria, o ingresso em uma profissão, a separação de casal (ou
separação de pai e mãe, conforme os filhos), a doença e a morte, sobretudo a fase do luto.
Outro desafio para a igreja é avaliar a eficácia dos ritos de passagens por ela praticados,
perguntando se eles correspondem às necessidades que as passagens exigem, de separação,
margem e agregação. Por exemplo, os rituais de sepultamento previstos pela igreja incluem
ritos de luto? O ingresso de pessoas na comunidade, mediante o casamento, é acompanhado
por ritos de margem e agregação?
Como constatado na primeira parte deste capítulo, sobre o lugar determinante da
família nas passagens da vida, cabe a qualquer instituição ou grupo que se ocupe com a
avaliação ou elaboração de ritos de passagem, levar em conta o papel da família nos ritos de
passagem. Por exemplo, o que uma comunidade cristã, como aquela que acompanha os seus
membros em amor, pode fazer em termos rituais para apoiar uma família que está em luto?
Ou que ritos podem ser oferecidos pela comunidade cristã a uma família quando esta se
separa do filho ou da filha na saída de casa para estudar, trabalhar ou morar em outra
168
localidade? Ou que recursos rituais a comunidade cristã oferece às famílias para que elas
acompanhem os seus membros doentes em casa ou nos hospitais? E as pessoas que vivem em
lares de idosos? De que maneira a comunidade crisacompanha essas pessoas que estão fora
do seu ambiente familiar? A igreja oferece ritos de despedida às pessoas ou às famílias que
mudam de lugar geográfico, ou ritos de acolhida quando elas chegam a um novo lugar? A
igreja se faz portadora da bênção de Deus na entrada de uma família em seu novo lar?
Os desafios o muitos. A igreja cristã tem a missão evangélica de manifestar, por
meio de ritos pastorais, “a solicitude amorosa da comunidade cristã para com seus membros à
medida que prosseguem em sua contínua jornada ao longo da vida ou quando passam por
experiências novas e irrevogáveis
534
. A comunidade cristã, por sua ppria natureza, é aquela
que apóia, abraça, cerca de amor e cuida das pessoas tanto nas alegrias quanto na dor.
Ao perguntar pelas necessidades das pessoas e suas famílias em suas passagens na
contínua jornada ao longo da vida, a igreja não deve ignorar as mudanças que caracterizam a
estrutura familiar no mundo contemporâneo. A separação conjugal não é mais uma exceção,
mas uma ocorrência freqüente na trajetória dos casamentos contemporâneos, lembra Osório. E
ela está sendo responvel “pela emergência de uma mutação familiar de transcendental
imporncia nestas últimas décadas”
535
. O autor se refere ao surgimento das “famílias
reconstruídas” que são formadas a partir de remanescentes de casamentos anteriores
536
.
Casamentos desfeitos e novas composições matrimoniais levam à formação de novas
configurações familiares. Um exemplo é a formação de uma família cujos cônjuges vêm de
casamentos anteriores, sendo que cada um deles traz um ou mais filhos/filhas da união
matrimonial anterior; além disso, da nova união podem nasçer novos filhos. Outra formação
de família pode surgir da união de um casal cujo cônjuge masculino tem filhos ou filhas de
dois casamentos anteriores, sendo cada filho ou filha de cônjuges femininos diferentes. Quer
dizer, a relação dessas falias não se dá por consangüinidade entre todos os membros e,
assim, as composições familiares são ilimitadas. É essa circunstância que está dando origem
ao novo perfil da família contemporânea, conclui Osório
537
.
Essas famílias reconstituídas trazem uma nova realidade vivencial e o
estabelecimento de vínculos que não estão prefigurados na família de corte
tradicional, seja ela nuclear, extensa ou abrangente.
As reconstruções familiares acarretam, obviamente, mudanças significativas no
campo relacional familiar, provocando mudanças significativas no campo relacional
534
WHITE, James F. Introdução ao culto cristão. São Leopoldo: IEPG / Sinodal, 1997. p. 204.
535
OSORIO, 2002, p.70.
536
OSORIO, 2002, p.70.
537
OSÓRIO, 2002, p. 69.
169
familiar, provocando a emergência de situações sem precedentes, para as quais o
há experiências prévias na evolução da família que possam servir de referência para
balizar o processo de assentamento sociocultural dessas novas formas de convívio
familiar.
538
Conforme Osório, observa-se na família do século XXI uma tendência à
universalização dos hábitos e costumes através da miscigenação cultural propiciada pelo
avanço extraordinário dos meios de comunicação”
539
e, pela primeira vez na história da
civilização humana pode-se cogitar “a emergência de um mesmo modelo familiar do futuro
no planeta em que habitamos”
540
. Mas, mesmo com as mudanças profundas que estão
ocorrendo no perfil da família do presente século, o autor entende que o papel histórico da
família no processo civilizatório o deve ser questionado. A família não está ameaçada de
extinção, como apregoam alguns. A crise da família, à qual muitos se referem, deve ser
entendida no sentido de uma transformação em seu ciclo evolutivo, sustenta Osório, que
assim afirma:
a família é e continuará sendo, a par de seu papel na preservação da escie, um
laboratório de relações humanas onde se testam e aprimoram os modelos de
convivência que ensejem o melhor aproveitamento dos potenciais humanos para a
criação de uma sociedade mais harmônica e promotora de bem-estar coletivo.
541
A constatação de mudanças tão significativas no ciclo de evolução da família deve
levar a igreja a considerar as novas necessidades, surgidas em decorrência das novas
configurações familiares, nos ritos de passagem por ela praticados.
538
OSORIO, 2002, p. 70.
539
OSORIO, 2002, p. 64.
540
OSORIO, 2002, p. 64.
541
OSORIO, 2002, p. 64.
III OS RITOS DE PASSAGEM NA IGREJA: O EXEMPLO DA IECLB E A
REFERÊNCIA DA IGREJA DOS PRIMÓRDIOS E DO SEU ENTORNO
3.1 Introdução
No capítulo anterior se constatou que os ritos são meios que ajudam as pessoas a
vivenciarem as tensões e as angústias causadas pelas passagens da vida. Constatou-se que as
passagens não se reduzem ao nascimento, casamento e morte. A pesquisa social apontou para
diversas outras passagens relevantes na vida, além de concluir que há passagens para as quais
não ritos ou para os quais os ritos existentes o insuficientes. No presente capítulo, a
pesquisa se concentra em duas partes principais. A primeira trata dos ritos de passagem na
prática litúrgica da IECLB e a segunda investiga os ritos de passagem em práticas
selecionadas da tradição cristã na igreja em seus primórdios e leva em conta algumas práticas
desenvolvidas no entorno das primeiras comunidades cristãs que, de alguma forma, exerceram
influência sobre elas.
A pesquisa sobre os ritos de passagem na IECLB é bibliográfica e tem como
referência básica os manuais litúrgicos em uso nesta igreja. Para complementar a descrão
dos ritos apresentados nos manuais litúrgicos da IECLB, a autora faz observações próprias
baseadas em sua vivência e atuão prática em comunidades da IECLB, apoiadas em
reflexões teóricas do seu estudo em liturgia. Tendo em vista que um dos objetivos gerais da
pesquisa é oferecer subdios teóricos e metodológicos para os ritos de passagem na prática
lirgica da IECLB, busca-se, na primeira parte deste capítulo verificar como esta igreja está
lidando com os ritos de passagem. Para tanto, esta parte do capítulo visa responder às
questões levantadas no final do capítulo anterior, que o: como a IECLB lida com a
ritualização das passagens? Quais o os ritos oferecidos às pessoas em situação de
passagens? Que passagens são contempladas nos ritos oferecidos pela igreja?
Na segunda parte do capítulo, ao olhar para a tradição cristã, em especial para a
igreja cristã dos primórdios, buscar-se-á verificar como a tradição cristã, no exemplo da igreja
das origens, lidou com os ritos de passagem. Não se objetiva investigar todos os ritos de
passagens encontrados na tradição da Igreja, pois esta pesquisa se limita às passagens
171
destacadas na pesquisa social do capítulo anterior. Evidentemente, boa parte das passagens
levantadas pela pesquisa social é decorrente da vida do mundo atual, moderno e pós-moderno
e não pertence ao mundo da Igreja Antiga dos primórdios. De qualquer maneira, tendo como
parâmetro uma lista de passagens da atualidade e a necessidade de ritualização dessas
passagens, busca-se olhar para os ritos de passagem praticados pela igreja cristã das origens
com a intenção de levantar refencias úteis para a prática litúrgica atual com vistas à
ritualização das passagens da vida.
A refencia à igreja das origens ou igreja dos primórdios, diz respeito, sobretudo, à
igreja nascente e aos primeiros culos de seu desenvolvimento (séculos 1 a 4). Este é o
período em foco. Entretanto, isto não significa que o se faça comentários pertinentes sobre
os ritos de passagem de outros períodos quando estes se julgarem convenientes.
Os ritos de passagem são práticas arraigadas na cultura e, por isso, não se limitam às
práticas religiosas institucionais. Levando isso em conta, estabelece-se a necessidade de não
fixar o olhar apenas nos ritos de passagem do intra-muros da igreja das origens; mas ampliar-
se-á a visão para o contexto onde essa igreja encontra-se inserida. Alguns delineamentos
desse contexto serão desdobrados no início da segunda parte deste capítulo. As perguntas que
norteiam a pesquisa do assunto em questão são: como a igreja das origens lidou com
determinados ritos de passagem? O que se observa sobre os ritos de passagem no contexto da
tradição cristã das origens? A experiência das comunidades cristãs das origens com os ritos de
passagem são referências importantes para a prática dos ritos de passagem nas comunidades
cristãs atuais e na IECLB, em específico?
3.2 Ritos de passagem na IECLB
3.2.1 As fontes de recursos litúrgicos para a celebração das passagens na IECLB
A principal fonte de recursos litúrgicos para os ritos de passagem na IECLB é o
“Manual de Ofícios da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil”, publicado em
1964. Observando-se a sua estrutura interna e as liturgias em seus detalhes, tudo indica que
ele origina-se do Manual do Culto Evangélico
542
, de 1952, o qual contém a seguinte estrutura:
o culto dominical; confissão e Santa Ceia; o santo batismo; confirmação; admissão de cristãos
adultos na Igreja Evangélica; matrimônio; bodas; enterro, na casa e no cemitério; enterro de
542
MANUAL do culto evangélico. São Leopoldo: Sínodo Riograndense, 1952.
172
suicida. O Manual de Ofícios, por sua vez, apresenta a seguinte estrutura: confissão e Santa
Ceia; Santa Ceia para doentes, o santo batismo; confirmação; admissão de cristãos adultos;
matrinio; bodas de jubileu; enterro; enterro de criança, sepultamento de suicidas. Nota-se
que o Manual de Ofícios, de 1964, traz as liturgias relativas aos ofícios de passagem do
Manual do Culto Evangélico, de 1952, com o acréscimo de duas novas liturgias, a “Santa
Ceia para doentes” e a “enterro de criança”. Provavelmente, houve uma divisão do Manual
do Culto Evangélico. Em 1964 surge o “Manual do Culto para uso nas comunidades da Igreja
Evangélica de Confissão Luterana no Brasil”, com liturgias para o culto dominical regular da
comunidade
543
, e o Manual de Ofícios, com liturgias para situações de passagens. O Manual
de Ofícios foi reeditado em 1977 e, tendo esgotado esta segunda edição em 1982, ele não foi
mais reeditado, nem revisado; entretanto, continuou a ser reproduzido, tendo sido a última
impressão feita em 2006
544
.
As agendas litúrgicas para os ofícios de passagem da IECLB, assim como as agendas
de culto, são, em grande parte, traduções de antigas agendas litúrgicas da Alemanha
545
. Os
pastores que deram assistência às comunidades de imigrantes alemães no Brasil, vieram em
sua maioria - da Alemanha e trouxeram consigo as agendas litúrgicas das igrejas de sua
região. Cada pastor trazia a sua liturgia e adaptava-a às condões das comunidades aqui
constituídas
546
. Os cultos, nos inícios das comunidades luteranas no Brasil, eram realizados
543
Segundo informações do pastor Rolf Droste, foi nomeada uma comissão para formular o Manual do Culto.
Esta comissão, conta Droste, sob a coordenação do Pastor Alfred Simon, de Pelotas, RS, “se reunia na antiga
Casa Sinodal (hoje, centro administrativo da EST) para apresentar e discutir o ‘tema de casa’. Cada qual recebia
determinado número de liturgias dominicais (ou especiais) a elaborar. Compúnhamos as liturgias de acordo com
a ordem litúrgica e do ano eclesiástico. As orações ou eram de autoria própria, ou podiam surgir ‘encostadas’ a
textos de ‘Agendas’ de igrejas alemãs. Quanto a essas ‘Agendas’, tenho certeza do uso de pelo menos duas: Uma
era a da VELKD, portanto luterana, a outra era o ‘Buch der Gottesdienste im Anschluß an die altpreußische
Agende 1894 der Bekennenden Kirche’, 1952.” (Informações gentilmente fornecidas pelo pastor Rolf Droste,
por email, no dia 19 de maio de 2008.)
544
Informações obtidas junto à Editora Sinodal, em São Leopoldo, responsável pela publicação e reprodução do
Manual de Ofícios da IECLB.
545
WEHRMANN, Guenter K. F. Chances e perigos da celebração de ofícios na comunidade. In: MOLZ,
Cláudio, WEHRMANN, Guenter K. F. (Orgs.). Ofícios: Proclamar Libertação, suplemento 2. São Leopoldo:
Sinodal, 1988. p. 31.
546
HAHN, Carl Joseph. História do culto protestante no Brasil.o Paulo: ASTE, 1989. p. 85-88. “A primeira
onda de imigrantes alemães estabeleceu uma conia em Nova Friburgo, em 1824. Com eles veio o seu pastor, o
Rev. Frederico O. Sauerbronn, graduado pela Universidade de Heidelberg. Em 3 de maio de 1824 foi organizada
ali uma Igreja Luterana. (...) O culto era feito em alemão segundo os ritos da região de Heidelberg, na
Alemanha, adaptados à situação pioneira. O Rev. Sauerbronn foi substituído pelo Rev. João Gaspar Meyer, um
suíço-alemão de Zurique que serviu à Igreja por longos anos, morrendo em 1906. Sua liturgia era aproximada à
da Igreja Reformada da Suíça”. Cf. HAHN, 1989, p. 85. O Pastor João Jorge Ehlers, de Hamburgo, acompanhou
a segunda onda de imigrantes alees, estabelecendo-se estes no sul do Brasil. Ele serviu como pastor durante
vinte anos, de 1824 a 1843, quando então foi substituído pelo Rev. August Wilhelm Klenze. Cf. HAHN, 1989, p.
85-86. Parece que Ehlers “adaptou o ritual da Igreja de Hamburgo ao edifício improvisado e à assistência
irregular ao culto”. Cf. HAHN, 1989, p. 86. Conforme Wanke, na maior parte das comunidades da IECLB foi
adotada a Agende der Evangelischen Landeskirche in Preussen (“Agenda Litúrgica da Igreja Evangélica na
173
em língua alemã. Mas, já em 1839, segundo Hahn, foi publicado um manual de culto luterano
em português
547
, sinal de que a necessidade de um culto em língua portuguesa se impunha
em algumas localidades. As agendas em português mais conhecidas são, por exemplo, a
Portugiesische Agende, editada pelo pastor Hoepffner, em 1915, no Rio de Janeiro; o Manual
de Culto, editado pelo pastor Hohl, em 1932, em Petrópolis, Rio de Janeiro e o Manual do
Culto, editado pelo pastor Fugmann, em 1939, em Ponta Grossa, Paraná
548
. Além de uma
liturgia para o culto dominical, , nessas agendas, liturgias para batismo, confirmação,
casamento e enterro. Foi, sobretudo, a situação decorrente da Segunda Guerra com a
conseqüente proibição do uso da ngua alemã no país, tanto falada quanto escrita
549
, que
forçou a igreja a traduzir as agendas para o portugs. Dreher explica que, tendo em vista o
contexto da Guerra, o pastor Dohms, então presidente do Sínodo Rio-Grandense, anunciou em
carta dirigida às comunidades e aos pastores, a elaboração de um “livro eclesiástico para as
comunidades” do qual deveriam ser lidas meditações em português a fim de não infringirem-
se as leis vigentes, pois os pastores estavam proibidos de ler meditações próprias em
alemão
550
. Diante dessa situação emergencial, o pastor-presidente Dohms providenciou uma
agenda, hinários e prédicas em língua portuguesa para que o trabalho sinodal pudesse ser
mantido durante a Guerra
551
. Desse material litúrgico também fazia parte um manual de
ofícios para batismo, confirmação, casamento e enterro.
Em 1975
552
, a IECLB lança o Manual de Ofícios Especiais com liturgias para a
ordenação ao ministério pastoral, instalação de pastores, inaugurações de templos, capelas e
Prússia – uma Igreja resultante da união de comunidades reformadas e luteranas)”. WANKE, Siegmund.
Questões litúrgicas. São Leopoldo: Sinodal, 1996. p. 16. “As comunidades da Igreja Luterana no Espírito Santo,
em 1955, adotaram o bilíngüe Prontuário do Culto Luterano / Handreichung für den Gottesdienst (...), uma
adaptação da Agende für Evangelisch-Lutherische Kirchen und Gemeinden (= Agenda Litúrgica para as Igrejas e
Comunidades Evangélico-Luteranas), publicada em 1954 pela Vereinigte Evangelisch-Lutherische Kirche
Deutschlands. WANKE, 1996, p. 16-17.
547
HAHN, 1989, p. 88.
548
HOEPFFNER, Fr. L. Portugiesische Agende: zum Gebrauch in den deutsch – evangelischen Gemeinden
Brasiliens. Rio de Janeiro: Buchdrukerei Ernst Schneider, 1915; HOHL, Joseph. Manual de Culto para
Egrejas Evangélicas Allemães no Brasil. Petrópolis: Papelaria Império, 1932; FUGMANN, W. Manual do
Culto: formas compiladas ao uso da Igreja Lutherana no Brasil. Paraná: Typograhia G. Artur Koehler de
Blumenau, SC, 1939.
549
DREHER, Martin Norberto. Igreja e Germanidade. 2. ed. rev. e amp. São Leopoldo: Sinodal, 2003. p. 150.
550
DREHER, 2003, p. 151.
551
DREHER, 2003, p. 151.
552
A data do ano de publicação do Manual de Ofícios Especiais não se encontra registrado no material
publicado, mas o Boletim Informativo da IECLB do ano de 1975 faz referência a este Manual, informando, no
s de abril, o seguinte: “Estão sendo dados os últimos retoques no Manual de Ofícios Especiais, elaborado por
uma comissão sob à presidência do P. Reg. H. Ehlert. Em breve será feita a distribuição do Manual. Cf.
CONSELHO Diretor da IECLB. Boletim Informativo, n. 33, 18 de abril de 1975. p. 5. A partir dessa
informação deduz-se que o ano de publicação desse material seja 1975.
174
dedicação de objetos litúrgicos. Esse manual foi elaborado por uma comissão
553
, incumbida
para esta tarefa pelo então Conselho Diretor da IECLB. Em 1985, segundo Ehlert, foi
preparada uma nova edição da primeira já existente, sem alterações
554
.
Como resultado de um processo de busca e ensaio de novas liturgias, em sintonia
com o movimento de renovação lirgica da Igreja Católica Apostólica Romana e das igrejas
luteranas filiadas à Federação Luterana Mundial, a IECLB, numa tentativa de enriquecer e
renovar a sua vida lirgica, publica, sob a coordenação do seu Conselho de Liturgia, o
prontuário litúrgico “Celebrões do Povo de Deus” (CPD), em 1991, como edição
provisória
555
. Além de modelos de liturgia para o culto eucarístico regular, orações drias (ou
liturgia das horas) e cantos litúrgicos, o CPD contém ritos de batismo, confirmação,
ordenação, bênção matrimonial, assistência a agonizantes, guardamento ou velório,
sepultamento e apoio a enlutados
556
. Mesmo tendo sido uma proposta elaborada pelo
Conselho de Liturgia da IECLB, o CPD não recebeu a aceitação devida, talvez pela forma de
como foi implantado, e, portanto, o é considerado uma fonte de uso comum na igreja.
Mesmo assim, exerceu um papel; como diz Martini, “mais do que influenciar e delinear o
empenho por unidade lirgica na Igreja (...), o CPD tornou-se componente de um intenso
processo de busca litúrgica em vários níveis”
557
. Essa busca, pode-se dizer, culminou na
publicão, em 2003, do novo livro de culto da IECLB
558
.
O livro de culto da IECLB não inclui liturgias para as passagens da vida, contudo o
processo de elaboração de material lirgico continua em andamento. O livro de batismo da
IECLB, publicado inicialmente como edição de estudos, foi lançado formalmente pelo
Concílio da IECLB, em outubro de 2008. Esse livro traz novos subsídios para a prática
comunitária do batismo, mas devido à sua recente publicação o se o considera ainda uma
553
Esta comissão foi composta pelos pastores, da então Região Eclesiástica II, Lindolfo Weingärtner, Helmut
Burger e Heinz Ehlert (cf. informações gentilmente fornecidas, por email, pelo pastor. em. Heinz Ehlert, em 23
de maio de 2008). Segundo Ehlert, a comissão do Manual de Ofícios Especiais baseou-se em modelos de
manuais semelhantes em alemão, em uso na Igreja Evangélica na Alemanha. “A comissão tomou como princípio
observar a base confessional da Igreja e coerência com a tradição da Igreja na Alemanha que por sua vez
guardava a tradição da Reforma e, por extensão, da una santa Igreja cristã”, informa Ehlert. Na prática, o
trabalho da comissão o se ateve à mera tradução dos modelos alemães. Em muitos casos, ela criou
formulações próprias “adequadas ao nosso meio e linguajar, obedecidas as normas e documentos aprovados e
observada a estrutura da Igreja à época”. (Cf. informações gentilmente fornecidas, por email, pelo pastor. em.
Heinz Ehlert, em 23 de maio de 2008.)
554
(Cf. informações gentilmente fornecidas, por email, pelo pastor em. Heinz Ehlert, em 23 de maio de 2008.)
555
MARTINI, Romeu R. O novo livro de culto da IECLB. TEAR: Liturgia em Revista, São Leopoldo, n.10,
maio, p. 10-12, 2003.
556
CONSELHO de Liturgia da IECLB. Celebrações do Povo de Deus: prontuário litúrgico da Igreja Evangélica
de Confissão Luterana no Brasil. Edição provisória. São Leopoldo: Sinodal, 1991. p. 25-29, 55-78.
557
MARTINI, 2003, p. 11.
558
MARTINI, Romeu R. Livro de culto. São Leopoldo: Sinodal, 2003.
175
fonte em uso. Contudo, neste estudo, ele será citado à medida que aponta para as novas
propostas lirgicas para o batismo na IECLB
559
.
Apesar de o CPD oferecer, entre outros modelos de cultos, recursos lirgicos para
as principais passagens e ser uma fonte de consulta para obreiros e obreiras, sobretudo aqueles
que desejam adaptar ou elaborar novas liturgias, no estudo a seguir levar-se-á em conta que o
Manual de Ofícios, sendo a principal fonte de recursos litúrgicos para as passagens na IECLB,
é o livro que representa a prática litúrgica unificada e oficial. Como vimos acima, o Manual
de Ofícios continua sendo multiplicado pela igreja e, conforme informações obtidas junto à
editora responvel pela reprodução desse material, continua sendo adquirido por obreiros e
obreiras que ingressam no ministério pastoral dessa igreja.
3.2.2 As liturgias de passagens e seus elementos
O Manual de Ofícios da IECLB oferece liturgias para as seguintes situações:
batismo, confirmação, admissão de cristãos adultos, matrinio, bodas de jubileu, santa ceia
para doentes, enterro, enterro de criança, sepultamento de suicidas
560
.
Considerando que a liturgia de admissão de cristãos adultos e a confirmão se
referem às situações de iniciação cristã; que a santa ceia para doentes é prevista, em geral,
para as situações de morte iminente e que as liturgias de bodas de jubileu e de bênção
matrimonial visam celebrar o matrimônio, pode-se concluir que as liturgias de passagem na
IECLB centram-se em três momentos especiais da vida humana: iniciação, casamento e
morte. Isso dá a entender que o serviço ministerial na IECLB dá ênfase a essas passagens
mencionadas. O documento “Nossa , Nossa Vida: guia da vida comunitária na IECLB”
confirma a ênfase nesse serviço básico. Visando orientar a vida e a missão dos membros e
comunidades da IECLB, o documento referido cita, entre as responsabilidades ministeriais do
serviço comunitário, o batismo e a confirmação, a bênção matrimonial e o sepultamento
561
.
Aliás, nas antigas agendas de culto, de 1915, 1932, 1939 e 1952, liturgias previstas para
essas mesmas situões. Pode-se dizer que o serviço litúrgico para essas passagens é
imprescinvel às comunidades no âmbito da IECLB. Mesmo aquelas pessoas mais afastadas
559
KIRST, Nelson (Org.). Livro de batismo. São Leopoldo: Oikos, 2008.
560
MANUAL de Ofícios da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. 2. ed. o Leopoldo: Editora
Sinodal, 1977. p. 12-50.
561
NOSSA fé, Nossa vida: guia da vida comunitária na IECLB. 4. ed. rev. e ampl. São Leopoldo: Sinodal, 2005.
p. 19-23, 30-33, 34-38, 38-40.
176
do dia-a-dia da vida comunitária buscam esse serviço da igreja. Essa realidade, por sua vez, é
válida também para a vida litúrgica das igrejas hisricas, em geral, nos mais diversos
contextos. Por exemplo, conforme Parmentier, a procura pelo casamento religioso vem não
de crentes praticantes, mas de pessoas que a autora identifica como distanciadas ou até
mesmo as que se identificam como “sem religião”
562
. Num mundo desestruturado onde o
individual desaparece, as igrejas ainda são uma referência para os indivíduos ou as famílias,
na sua busca por cuidado personalizado e reconhecimento social, pois, do contrário, pouca
forma de reconhecimento na sociedade
563
.
A seguir, de forma breve e sucinta, serão descritos os ritos de acordo com o Manual
de Ofícios. A autora, a partir da sua própria experiência e contato com o trabalho ministerial
lirgico nas comunidades da IECLB, à medida que o achar necessário, fará comentários e
complementações às descrições dos ritos abaixo tratados. Outra fonte importante de
informações adicionais da qual se lançará mão, é o documento Nossa fé, Nossa vida”, guia
da vida comunitária na IECLB. Trata-se de um documento que orienta a vida e missão da
dessa igreja, dos seus membros e das suas comunidades.
1. O rito do batismo
O batismo é, em geral, praticado na inncia, algumas semanas após o nascimento.
Porém, mesmo praticando o batismo de crianças, a IECLB, assim como outras igrejas
hisricas, também batiza pessoas adultas. Assim o confirma o documento “Nossa Fé, Nossa
Vida”, expressando claramente que na IECLB são batizadas tanto crianças quanto pessoas
adultas
564
. E de acordo com as orientações contidas nesse documento, é necessário um
preparo para o batismo. Para tanto, acontece um diálogo pré-batismal com pais, mães,
padrinhos e madrinhas, para que se conscientizem de que com o batismo de crianças eles e
elas assumem o compromisso de educarem as criaas batizadas na fé cristã e as auxiliarem a
viver segundo os preceitos desta mesma fé
565
.
a) Descrição do rito
O ordo do batismo, conforme o Manual de Ofícios, é composto dos seguintes
elementos: hino, saudação trinitária, versículo bíblico, alocução ou sentenças bíblicas,
562
PARMENTIER, Elisabeth. The ritualization of marriage in the churches of de reformation: a language to
express the encounter of human and divine love. Studia Liturgica: an internacional ecumenical review for
liturgical research and renewal. Societas Liturgica, v. 32, n. 1, p. 29-47, 2002. p. 33-34.
563
PARMENTIER, 2002, p. 34.
564
NOSSA fé, Nossa vida, 2005, p. 20.
565
NOSSA fé, Nossa vida, 2005, p. 22.
177
oração, Pai-Nosso, Credo Apostólico, pergunta e compromisso de pai, mãe, padrinhos e
madrinhas, ato de batismo (nome, batismo, palavras de bênção), oração, bênção àe e
hino
566
.
O batismo acontece na igreja, durante o culto regular da comunidade ou,
excepcionalmente, em qualquer outro lugar, “mas sempre na reunião com irmãos e irmãs”, diz
o documento Nossa , Nossa vida
567
. O batismo pode ocorrer em qualquer época do ano
lirgico, desde que pais e es o solicitem e passem pelo devido preparo. Um sinal de que
have batismo num determinado culto é dado pela ornamentação da pia batismal. A pia
batismal se localiza à frente da comunidade, num dos lados do altar. Em geral, ela tem o
formato de uma coluna arredondada, construída de concreto, com uma parte superior plana,
levemente afundada, onde cabe um prato, geralmente, inoxidável, ou de cerâmica, de formato
adequado. Nos cultos de batismo a pia é adornada com um pano branco e sobre ele, na parte
levemente afundada, é colocado o prato com água. Quandoo há cultos de batismo, o prato é
guardado na sacristia e a pia não recebe adorno (tão forte é o simbolismo da pia que, quando
criança, ao chegar à igreja e perceber a pia arrumada, eu imediatamente entendia que naquele
culto haveria batismo.)
Durante o culto, após a prédica, dá-se início ao rito do batismo. Enquanto a
comunidade canta um hino alusivo ao batismo, pais, mães com as crianças no colo, padrinhos
e madrinhas se dirigem para a frente do altar, onde se encontra o ou a oficiante. Ele ou ela está
de pé voltado para a comunidade e para a comitiva batismal que está à sua frente. Dali ele ou
ela inicia a cerinia com a saudação trinitária, seguido de um versículo bíblico de louvor e
de graças. Segue uma alocução dirigida aos pais, às mães, padrinhos e madrinhas, com
566
Diferentemente do rito de batismo do Manual de Ofícios, o CPD propõe um culto especial de batismo,
realizado na comunidade e não ato à parte. Cf. CONSELHO de Liturgia da IECLB, 1991, p. 25-29. Na proposta
do CPD, a liturgia como um todo centra-se no batismo e, em relação à liturgia do Manual de Ofícios, ela conm
outros elementos litúrgicos como, por exemplo, a oração das águas, imposição de mãos, selo (com sinal da cruz
feito com o polegar, com água ou óleo, na fronte da pessoa batizada), vela batismal e a recepção da comunidade
através de um presbítero. Essa liturgia inclui uma participação mais ativa de pais e mães, padrinhos e madrinhas
e envolve a comunidade em três elementos do rito (na entrega da vela, na recepção aos novos batizados e na ação
de graças pós-parto). O rito do batismo pressupõe o batismo de crianças assim como de adultos. Observa-se,
porém, que esta liturgia não pre a Ceia do Senhor, nem a oração de intercessão, parte e elemento
imprescindíveis do culto cristão, conforme: KIRST, Nelson. Nossa liturgia: das origens até hoje. 1. ed. rev. e
atual. São Leopoldo: Sinodal, 2000. (Série Colméia, fascículo 1). p. 23-28. A nova proposta litúrgica do batismo,
de acordo com o Livro de batismo, recentemente aprovado e lançado na IECLB, recupera elementos litúrgicos
relevantes da tradição batismal da igreja cristã antiga, os quais são imprescindíveis a um desenvolvimento
litúrgico que esteja de acordo com o pleno significado do batismo. Cf. KIRST, 2008, p. 50-63, 66-78.
567
NOSSA fé, Nossa vida, 2005, p. 20. De acordo com o que transparece numa observação inicial da liturgia do
Manual de Ofícios, o batismo pode ser realizado durante o culto regular da comunidade ou não. Isto significa
que na proposta do Manual, o batismo é visto como um ato independente do culto da comunidade, podendo este
ser inserido num culto regular ou ser realizado à parte. Mas, na prática, em geral, das comunidades e conforme
prescreve o documento citado, o batismo é ato que acontece no culto regular da comunidade.
178
palavras de exortação sobre a responsabilidade assumida por eles no batismo de suas crianças
ou em lugar da exortação lêem-se apenas sentenças bíblicas batismais, tais como Mateus 28.
18-20; Marcos 16.15 ou Marcos 10.13-16. Após as leituras dos textos bíblicos batismais,
todos juntos oram o Pai-Nosso e confessam a fé, conforme o Credo Apostólico. Em seguida, o
pastor ou a pastora pergunta aos pais e padrinhos e às mães e madrinhas se eles e elas
confirmam o desejo de que as suas crianças sejam batizadas em nome do triúno Deus e se
prometem fazer tudo para educá-las na fé cristã. Eles e elas respondem juntos: “sim” ou “sim,
com o auxílio de Deus”. A comitiva, então, se dirige à pia batismal e as crianças, uma a uma,
o batizadas. A criança a ser batizada é geralmente segurada por uma madrinha, com a
cabeça voltada para a pia. A pessoa que oficia diz o nome da criança, molha a sua cabeça, por
três vezes, enquanto profere a fórmula “eu te batizo em nome do Pai e do Filho e do Espírito
Santo. A paz de Deus seja contigo e te acompanhe em todos os teus caminhos”. Em seguida,
com a comitiva batismal ainda reunida ao redor da pia batismal, o pastor ou a pastora
intercede pelas crianças batizadas, pelos pais, mães, padrinhos e madrinhas e pelas pessoas da
comunidade, batizadas. Finalizando, a comunidade é convidada a entoar um hino, enquanto
(pais), padrinhos e madrinhas retornam aos seus lugares. As mães e as crianças permanecem
ali no altar para receberem a bênção à mãe ou bênção pós-parto. Assim o prevê o Manual de
Ofícios, mas, na prática atual essa bênção inclui pais, mães e crianças. O pastor ou a pastora
lhes dirige algumas palavras, seguidas de um versículo bíblico de louvor, orações de súplicas
e encerra com a imposição de mãos e bênção. A comunidade canta enquanto pais, mães e
crianças retornam aos seus lugares. O culto retoma o seu curso regular, iniciando a liturgia de
despedida.
c) Apreciação
O batismo, enquanto rito praticado na infância, é interpretado, pela maioria das
pessoas, como um rito de nascimento. E o fato de o batismo ser realizado logo após o
nascimento corrobora esta iia. O batismo, no entanto, assinala o ingresso ao Corpo de
Cristo, à Igreja. Teologicamente, pode-se dizer que o batismo é o rito do novo nascimento
568
,
pois ele marca a passagem para a nova vida em Cristo, experimentada e desenvolvida na e a
partir da comunidade cristã. Por isso, na preparação para o batismo e no ato do rito batismal
se enfatiza o compromisso e a promessa que pais, mães, padrinhos e madrinhas assumem de
educarem as crianças batizadas na cristã para que elas próprias possam assumir a sua
filiação à comunidade de fiéis e, consequentemente a sua identidade cristã. O batismo,
568
Cf. João 3. 3-7.
179
portanto, numa perspectiva antropológica, é um rito de passagem ou, especificamente, um rito
de iniciação cristã. Esta passagem, na verdade, independe de idade e o se define pela idade.
Na prática da igreja antiga, o batismo era dirigido, em especial, às pessoas adultas, e incluía-
se um tempo de preparação para o batismo, com instruções sobre a e vida cristãs, assim
como o testemunho e a vivência da
569
. Contudo, conforme o testemunho de pais
apostólicos, a igreja dos primórdios também admitia a possibilidade de batizar crianças. Mas,
parece que essas crianças não eram recém-nascidas e elas eram batizadas como os adultos e,
com eles e como eles, elas recebiam a confirmação e a eucaristia
570
. “A proporção de adultos
e criaas que se apresentam ao batismo se inverte progressivamente com a cristianização da
sociedade”
571
e no culo XII a celebração do batismo chegou a ser praticada logo após o
nascimento da criança. Uma grande preocupação, nessa época, foi a mortalidade infantil, mas
além disso, desenvolvia-se uma “renovação da teologia, cujas investigações se orientavam,
então, para a questão do pecado original e para a doutrina da salvação
572
.
A forma como se desenvolve o rito do batismo de crianças recém-nascidas na IECLB
contribui para uma compreensão confusa sobre a função do batismo enquanto rito de
nascimento, por um lado, e rito de iniciação à comunidade cristã, de outro lado. No rito de
batismo o acoplados ritos de nascimento e de maternidade (e em algumas práticas também
de paternidade). Por exemplo, a inclusão de Marcos 10. 13-16
573
como uma das leituras nas
liturgias batismais é um desses sinais, pois esse texto não se refere ao batismo, mas é um texto
próprio para bênção de crianças
574
; outro exemplo diz respeito à parte que na liturgia de
batismo é conhecida como bênção à mãe” ou “ação de graças pós-parto”. A bênção à mãe é
um resquício de uma antiga prática ritual da igreja do século XI que, sob influência das leis de
impureza cultual do Antigo Testamento, sobretudo de Levítico 12. 1-8, consistia na
apresentação da mãe à igreja, depois do parto, para a purificação. Sobre a época de
surgimento do ritual da bênção da mãe, Arx diz o seguinte:
Parece certa a afirmação de A. Franz que coloca o aparecimento dos primeiros
formulários no fim do século XI. (...) Que os formulários datem oficialmente do
século XI pode parecer estranho, pois as parturientes já nos primeiros séculos
569
Cf. KALMBACH, Pedro. Bautismo y educación: contribuciones para el actuar pedagógico comunitário. 1.
ed. Buenos Aires: el autor, 2005. p. 27ss; HIPÓLITO. Tradição apostólica: liturgia e catequese em Roma no
século III. Tradução e notas de Maria da Glória Novak. Petrópolis: Vozes, 1971. p. 50.
570
HIPÓLITO, 1971, p. 51; CABIÉ, R. A iniciação cristã. In: MARTIMORT, A. G. Os sacramentos: a igreja
em oração: os sacramentos, v, 3. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 66.
571
CABIÉ, 1991, p. 67.
572
CABIÉ, 1991, p. 73.
573
Deixai vir a mim os pequeninos, não os embaraceis, porque dos tais é o reino de Deus ”, cf. Marcos 10.14.
574
KIRST, 2008, p. 36-37.
180
mantinham um certo prazo para reaparecer na igreja depois do parto. Parece-nos, no
entanto, que não eram reintroduzidas na igreja com ritual específico.
575
Conforme Arx, com o intuito de tirar o caráter de purificação da bênção da e, o
Rituale Romanum, editado pelo papa Paulo V, no ano de 1614, traz mudanças na formulação
lirgica dessa bênção e cria “um tipo de ritual neotestamentário no qual muito pouco resta da
influência das normas de purificação do Antigo Testamento, ou de alusão às mesmas”
576
.
Contudo, essa formulação não exerceu maior influência sobre os ritos particulares dos rituais
diocesanos e a idéia de purificação continuou a prevalecer nas liturgias e desaparece depois
do Concílio Vaticano II. A partir desse Concílio, a bênção da mãe foi abolida pelos
organizadores do ritual de batismo e condensada a uma única oração, incluída no fim da
cerimônia do batismo.
Arx diz que no Iluminismo (sobretudo na primeira metade do século XIX), a bênção
da mãe depois do parto, mesmo tendo sido “alvo de críticas dos reformadores
577
, foi
conservada nos rituais. O motivo dessa manutenção, diz Arx, “encontra-se no fato de estar
este costume profundamente arraigado no povo, de tal forma que os reformadores não
ousaram aboli-lo”
578
. No entanto, nos rituais da Renascença, esses ritos se limitam à ação de
graças e aos pedidos.
O fato de a bênção s-parto, ou bênção à e, permanecer com força ao longo da
hisria da igreja cristã nas liturgias de batismo de crianças, sugere a importância que esse rito
tem para as pessoas. Isso é um sinal evidente da necessidade antropológica de ritos de
nascimento, de maternidade e de paternidade. Nesse sentido, cabe à igreja a responsabilidade
teológica de zelar pelo rito de batismo, fazendo uma revisão da sua prática ritual do batismo e,
ao mesmo tempo, levando em conta as necessidades antropológicas, cabe a ela repensar a sua
prática em relação aos ritos de nascimento, de maternidade e paternidade. O novo livro de
batismo da IECLB oferece subdios suficientes para auxiliar obreiros, obreiras e
comunidades a uma revisão da prática batismal nesta igreja e sugere modelos litúrgicos com
vistas a uma nova prática lirgica do batismo.
575
ARX, Walter von. A bênção da mãe depois do parto: história e sentido. Concilum: ritos de passagem e
cristianismo: fundamentos antropológicos e psicológicos, [s.l.], n. 132, p. 66-85, 1978/2. p. 68-69.
576
ARX, 1978, p. 69.
577
ARX, 1978, p. 70-71.
578
ARX, 1978, p. 71.
181
2. O rito da confirmação
Na IECLB, a confirmação é o ponto culminante de um processo de ensino na
cristã. Conforme prescreve o documento Nossa fé, Nossa vida, os jovens confirmandos
participam do ensino confirmatório “a partir dos onze anos, em encontros e, cursos,
seminários e retiros, com duração mínima de 50 horas”
579
, a finalidade desses encontros é o
ensino, de acordo com as bases da e a mensagem bíblica, a confissão da igreja, o
testemunho do Catecismo Menor e o ensaio da vivência na
580
. O culto de confirmação
marca o encerramento dessa etapa de instrução na fé cristã e, complementando, pode-se dizer,
é a passagem para uma nova etapa, a que inicia a fase adulta na vida da comunidade cristã.
Tradicionalmente, a confirmação habilita as pessoas a participarem da Ceia e da tarefa de
testemunhas cristãs.
a) Descrição do rito
O ordo da confirmação, conforme o Manual de Ofícios consta do seguinte: hino;
saudação trinitária; versículo bíblico; oração; leitura bíblica (Salmo 100; Salmo 103; Mateus
10.26-33; Lucas 14.16-24; João 6. 60-69; Romanos 10.9-17; 1 Timóteo 6.12-16); alocução;
confissão de (Credo); pergunta e compromisso; oração; ato de confirmação; declaração
aos/às confirmados/as sobre os direitos eclesiais adquiridos com a confirmação; palavras à
comunidade sobre o compromisso de receber e acompanhar os jovens confirmados na fé;
oração; Pai-Nosso, bênção final.
O culto de confirmação acontece uma vez por ano em cada comunidade da IECLB.
Trata-se de um culto festivo que ocorre numa data especial do ano lirgico, sendo que esta
varia de acordo com os costumes locais (Semana Santa e Páscoa ou Pentecostes ou Reforma).
Esse evento, portanto, possui uma data fixa no calendário de cada comunidade.
Para o culto de confirmação a igreja é ornamentada de forma especial. Geralmente,
pais, mães e confirmandos se ocupam desta tarefa no dia anterior. As vestes dos confirmandos
e das confirmandas são especiais. Em algumas comunidades tradicionais, as meninas usam
vestido e calçados brancos e algum adereço nos cabelos e os meninos, calça e sapatos pretos
com camisa branca. Em alguns grupos, os jovens preferem roupas de estilo jovem (jeans,
579
NOSSA fé, Nossa vida, 2005, p. 31.
580
NOSSA fé, Nossa vida, 2005, p. 32. Nas páginas 52-69, do livro O ministério da confirmação, o autor faz
uma retrospectiva histórica da confirmação na IECLB e um levantamento amplo dos materiais didáticos
utilizados nesta igreja, descrevendo as ênfases da formação cristã de cada época da história da IECLB. WACHS,
Manfredo Carlos. O ministério da confirmação: contribuição para um método. São Leopoldo: Sinodal, IEPG,
1998. (rie Teses e Dissertações, 12). p. 52-69.
182
camiseta, por exemplo). Fato é que o traje a ser usado neste dia é tema importante, sendo
tratado pelos jovens com seu orientador ou orientadora.
Os padrinhos e as madrinhas dos jovens e os demais familiares (avó, avô, tios,
irmãos) o especialmente convidados para este culto festivo e, em geral, se reúnem, após o
culto, para o almoço e confraternização familiar.
Ao contrário do batismo, o culto de confirmação está todo ele centrado no tema da
confirmação. Em muitos casos os jovens participam ativamente do culto, fazendo leituras,
cantando, ajudando a distribuir a Ceia e, em algumas comunidades, também pais e mães têm
uma participação especial (na confirmação de minhas filhas, por exemplo, pais e mães foram
convidados para uma reunião de preparação do culto e ali se escolhia um pai ou uma mãe
como representante do grupo para dirigir uma mensagem aos filhos e filhas no dia do culto de
confirmação).
Segundo o costume, o culto de confirmação inicia com o badalar dos sinos e os
jovens entram na igreja, em procissão, acompanhados do pastor ou da pastora e da pessoa que
orientou o grupo de jovens no ensino confirmatório (catequista, dcono/a ou outra pessoa
designada para esta função). A comunidade se levanta para recebê-los. Os e as jovens têm
lugares especiais reservados à frente do altar. O culto segue de acordo com as principais
partes da liturgia do culto eucarístico regular, liturgia de entrada, liturgia da palavra, liturgia
da ceia e liturgia de despedida. O rito da confirmação, propriamente dito, é inserido no fim da
liturgia da palavra, antecedendo a liturgia da ceia. Após a prédica, canta-se um hino e em
seguida o pastor ou a pastora se dirige especificamente aos jovens confirmandos, iniciando o
ato da confirmação. Os confirmandos se em de pé. Faz-se a saudação trinitária, seguido de
uma oração. Logo após o proferidas leituras bíblicas e uma breve alocução é dirigida aos
jovens. Em seguida os jovens são convidados a confessar a cristã, mediante palavras do
Credo Apostólico (a comunidade os acompanha apenas ouvindo a confissão). Após a
confissão da fé, é dirigida a seguinte pergunta aos jovens: “É vosso desejo e vontade ser
membros desta comunidade que confessa esta fé, que vos mandou instruir nesta fé e que
também no futuro vos quer testemunhar salvação em Jesus Cristo? Então respondei: Sim, com
o auxílio de Deus.”
581
Depois da confiso e promessa dos confirmandos, o pastor ou a
pastora faz uma oração e, em seguida, convida os jovens para que um a um se aproxime, se
ajoelhe (gesto opcional), dê a mão direita ao oficiante, confirmando assim o que acabaram de
581
MANUAL de Ofícios, 1977, p. 20. O Manual apresenta duas versões para a confissão de fé e para a pergunta
de compromisso. A apresentada acima é a primeira delas.
183
prometer e para receber a bênção de Deus. É dito o nome de cada jovem e uma palavra de
recordação (um versículo bíblico escolhido para cada jovem que consta no documento
“certidão de confirmaçãoque cada qual recebe neste momento) e, impondo as mãos sobre a
cabeça, o/a pastor/a diz: “A bênção de Deus, do Pai e do Filho e do Espírito Santo venha
sobre vós (sic. sobre ti) e permaneça convosco (sic. contigo) agora e sempre. Amém.”
582
. Ao
final, o pastor ou a pastora se dirige aos confirmandos, anunciando-lhes que o ato de
confirmação lhes permite participar na mesa da comunhão, servir de padrinhos e madrinhas e
testemunhas cristãs. E voltando-se para a comunidade, lembra-a de que os jovens confirmados
estão unidos a ela num Senhor, num só batismo e numa fé e que cabe à comunidade
recebê-los e ajudá-los para que cresçam em Cristo e permaneçam na fé. No Manual de Ofícios
consta como finalização do ato da confirmação uma oração, o Pai-Nosso e a bênção final.
Contudo, em seguida inicia a liturgia da Ceia do Senhor, da qual participam os confirmandos
com seus familiares e toda a comunidade. No final do culto, o pastor ou a pastora sai
novamente em procissão com os jovens, agora confirmados. Segue uma sessão de fotos dentro
da igreja com o grupo e com cada família, individualmente.
b) Apreciação
A confirmação é, sem vida, um evento marcante e um dia especial na vida dos e
das jovens, de suas famílias e também da comunidade. O culto de confirmação é a
representação de uma passagem. Ele sinaliza o fim de uma etapa de instrução na cristã,
mas, sobretudo, marca uma mudança de status do jovem dentro da comunidade. Isto está
claramente expresso no ato da confirmação quando se diz que os jovens, com a confirmação,
adquirem direitos na comunidade eclesial de tornarem-se padrinhos, madrinhas, testemunhas
cristãs e de estarem habilitados à participação na Ceia do Senhor. Como refere Kliewer, “a
confirmação é vista como o momento em que a criaa transpõe a soleira para a juventude”,
sendo, portanto, o rito de passagem que marca esse momento
583
. A confirmação marca tanto
a passagem para a maturidade cristã quanto para a maturidade psico-social, pois também para
a sociedade (família, parentes e grupos próximos) o jovem, após a confirmação, é recebido
como pessoa que adquiriu mais autonomia e direitos (em comunidades rurais, por exemplo, o
jovem, após a confirmação, está liberado para namorar, ir a bailes, entre outros). A
confirmação, neste sentido, recebe também a conotação de rito de puberdade. E pode-se dizer
que essa compreensão tem sido muito importante para as comunidades tradicionais da
582
MANUAL de Ofícios, 1977, p. 21.
583
KLIEWER, Gerd Uwe. Uma passagem importante. Revista do CEM: em busca de espaço: o jovem na
comunidade, São Leopoldo: Sinodal, ano VII, n.1, p. 14-17, 1985. p. 15.
184
IECLB
584
. A valorização da confirmação como rito de puberdade, para os jovens e suas
famílias, talvez se deva ao fato de que há poucos ritos de passagem que marquem essa fase da
vida.
Do ponto de vista da igreja, a confirmação tem sido motivo de reflexões sobre o
sentido teológico dessa passagem. E essa é uma discussão que remete para as origens da
iniciação na igreja cristã. A confirmação se origina do contexto do batismo, sendo o batismo o
rito fundamental da iniciação cris na igreja dos primórdios
585
. Segundo a Tradição
Apostólica de Hipólito, escrita em Roma por volta de 225
586
, o batismo era precedido de um
longo catecumenato, que podia durar dois a três anos
587
. O ponto culminante do processo de
iniciação cris ocorria na man da Páscoa
588
, quando, então acontecia o ato litúrgico do
batismo. O ato do batismo se compunha de diversas etapas; a primeira se dava ao redor da
piscina batismal, em local separado da congregação, onde acontecia o banho por imersão,
acompanhado de ações como unção do corpo, confissão, troca de vestes, oração e imposição
de mãos; a segunda etapa se desenvolvia dentro da igreja, diante do bispo, que fazia a
imposição de os com invocação do Espírito, unção da fronte com sinal da cruz e o ósculo
santo, seguindo-se a recepção dos batizados pela comunidade e a participação na Ceia da
comunhão.
589
Pode-se dizer que o processo de inicião cristã, o qual inclui etapas de
instrução e o ato litúrgico do batismo com uma variedade de ações, é característica da igreja
dos primeiros quatro séculos. Portanto, “não se pode falar de confirmação pelo menos até o
culo IV”
590
, pois o banho batismal, a imposição de mãos, as unções, a selagem, a recepção
pela comunidade e a eucaristia eram parte de um único rito. A parte do ato do batismo
realizada pelo bispo, após a entrada dos batizandos na igreja, que consistia de imposição de
mãos, uão da fronte com sinal da cruz (conforme Hipólito), conhecido como crisma, foi se
584
Conforme, por exemplo, mostra a pesquisa em: DROOGERS, 1984, p. 58.
585
CABIÉ, 1991, p. 29-66.
586
CABIÉ, 1991, p. 33.
587
HIPÓLITO, 1971, p. 49.
588
Durante a noite, na Vigília Pascal, o grupo a ser batizado se reunia para leitura da Bíblia e instrução. Cf.
WHITE, 1997, p. 158.
589
HILITO, 1971, p. 51-54. Segundo Hipólito, na manhã da Páscoa, ao cantar do galo, dá-se início ao ato
litúrgico do batismo. Primeiro, ora-se sobre a água; os que irão ser batizados se despem, o bispo dá graças sobre
o óleo de ação de graças e de exorcismo, seguindo a renúncia a Satã, a unção completa com óleo e o banho
batismal. Com uma imposição de os, a pessoa é imersa por três vezes na água, seguido, cada vez, por uma
pergunta de confissão (alusiva ao Credo Apostólico); em seguida, a pessoa sobe da água e recebe nova unção
com óleo; ela se veste (com vestimenta branca) e entra na igreja. Então, o bispo impõe as mãos e faz uma
invocação e, derramando óleo, unge a pessoa e marca a sua fronte com o sinal da cruz e oferece o ósculo santo.
Os batizados, então, se reúnem com a comunidade para a primeira oração dos fiéis, para o ósculo da paz e para a
primeira eucaristia.
590
KALMBACH, Pedro. Batismo e confirmação nos primeiros cinco séculos da Igreja Cristã: aproximações.
Estudos Teológicos, São Leopoldo, ano 42, n. 3, p. 17-28, 2002. p.26.
185
tornando, aos poucos, um rito realizado a posteriori. Quando o bispo não estava presente na
celebração do batismo, adiava-se a parte relativa ao crisma para a primeira ocasião em que ele
pudesse realizá-la. Esse costume se percebe no Ocidente, a partir do século V, conforme
Cab
591
. Em resumo, diz White: “o Ocidente presenciou um lento movimento em direção à
fragmentação e privatização de todo o processo. A desintegração da unidade do rito foi longa
e inconsciente, o se completando efetivamente até o final da Idade Média
592
. O termo
“confirmar” passou a designar a parte separada do rito do batismo no século 9 e lentamente o
seu significado passou de “completar” para “reforçar”, afirma White
593
. Em relação à
confirmação na prática dos luteranos em geral, Brand explica que ela o ficou reservada ao
bispo e também não foi interpretada teologicamente como complemento ao batismo. A
confirmação não tem valor sacramental na igreja luterana
594
. O batismo continuou tendo
primazia entre os luteranos, sendo suficiente como rito de iniciação na comunidade dos
crentes e tendo íntima relação com o recebimento do Espírito e seus dons. Contudo, “a
experiência não apoiou a teologia”, diz Brand. Pelo fato de não relacionarem a admissão à
Ceia do Senhor com a iniciação batismal, “os luteranoso interpretaram a comunidade
eucarística como sendo igual à comunidade dos crentes”
595
. Desta forma, a confirmação
passou a ser experimentada como um meio que supre algo que faltou no batismo, ou seja, a
filiação à comunidade eucarística
596
.
Teologicamente, a confirmação não é um ato que complementa ou ratifica o batismo,
mas ela marca um momento significativo da educação cristã daqueles e daquelas que foram
batizados. O batismo sempre é acompanhado de instrução na fé, pois o seu significado
necessita ser apreendido e apropriado pelas pessoas batizadas para ser desdobrado e
assimilado na vida diária e durante toda a vida
597
. Sendo praticado o batismo de infantes a
instrução na fé cristã inicia depois do batismo, levando-se em conta as diversas fases do
desenvolvimento humano e cognitivo. Portanto, a confirmação marca uma fase importante do
crescimento e desenvolvimento na dos jovens batizados e, como tal, deve ser valorizada,
celebrada e ritualizada. Considerando a importância que a confirmação representa na vida das
591
CABIÉ, 1991, p. 66. “O Concílio de Sevilha de 619 elenca este rito entre os que são reservados ao bispo e
Isidoro o justificará, evocando os Atos dos Apóstolos, depois de constatar que ‘após o batismo, o Espírito Santo é
conferido pelos bispos através da imposição das mãos‘.“ Cf. CABIÉ, 1991, p. 61.
592
WHITE, 1997, p. 160.
593
WHITE, 1997, p. 160.
594
Isto é atestado pelo próprio Lutero que fala da confirmação como um rito eclesiástico. LUTERO, Martinho.
Do cativeiro babilônico da igreja: um prelúdio de Martinho Lutero. In: Obras selecionadas: o programa da
Reforma: escritos de 1520, v.2. o Leopoldo / Porto Alegre: Sinodal / Concórdia, 1989. p. 399-400.
595
BRAND, Eugene L. Batismo: uma perspectiva pastoral. São Leopoldo: Sinodal, 1982. p. 70.
596
BRAND, 1982, p. 71.
597
Para aprofundar este assunto indico o livro: KALMBACH, 2005.
186
comunidades na IECLB, como rito de passagem que acontece na puberdade, cabe à igreja
redefinir o significado desse rito, adequando teologia e prática litúrgica. O livro de batismo da
IECLB, recentemente lançado, vai ao encontro dessa necessidade e, entre outros subdios,
propõe, em substituição ao atual culto de confirmação, um “Culto de recordação do batismo
com pessoas ou grupos que celebram um estágio especial na sua vida de fé”
598
. Essa proposta
considera o ensino confirmatório um período especial de instrução crise parte da formação
decorrente do batismo, “dentro de um contexto abrangente de uma educação cristã continuada
que se estende por toda a vida”
599
.
3. O rito do matrimônio
Conforme Nossa , Nossa vida, a IECLB realiza a bênção matrimonial de pessoas
que foram habilitadas pela lei civil. Quando não for este o caso, devem ser tomadas as
providências necessárias para que a união seja registrada conforme a lei
600
. Tendo, portanto, o
casal realizado a sua união perante a lei civil, ao solicitar o ofício da bênção matrimonial, ele
objetiva colocar seu matrimônio sob a orientação da palavra e da bênção de Deus, atestando
comunitariamente a sua união conjugal e comprometendo-se a levar uma vida matrimonial em
e amor, indissolúvel, conforme a vontade de Deus
601
. A bênção matrimonial, portanto,
segundo a concepção luterana, o é um sacramento, mas um rito eclesiástico
602
. A igreja, em
nome de Deus, abençoa o casal que chegou ao consenso de se unir em matrimônio.
b) Descrição do rito
Conforme o Manual de Ofícios, o ordo do matrimônio consta de: saudação trinitária;
versículo bíblico; salmo; oração; alocução; compromisso conjugal (pergunta e resposta); troca
de alianças; imposição de os e bênção ao casal (casal une as mãos direitas e ajoelha-se);
oração; Pai-Nosso; voto de despedida.
O rito de bênção matrimonial é a principal parte do ritual de casamento religioso,
contudo o é o único. Inicialmente, o casal solicita ao pastor ou à pastora marcar uma data
para a bênção matrimonial. Em seguida, os “proclamas do matrimônio são realizados
solenemente em um culto da comunidade ou anunciado em seus boletins, ocasião esta em que
o casal é recomendado às intercessões da comunidade. A partir daí, o casal participa de um
598
KIRST, 2008, p. 114.
599
KIRST, 2008, p. 39 e 114.
600
NOSSA fé, Nossa vida, 2005, p. 34.
601
NOSSA fé, Nossa vida, 2005, p. 34.
602
LUTERO, Martinho. Do cativeiro babilônico da igreja: um prelúdio de Martinho Lutero. In: Obras
selecionadas: o programa da Reforma: escritos de 1520, v.2. São Leopoldo / Porto Alegre: Sinodal / Concórdia,
1989. p. 400.
187
curso de noivos ou diálogo pré-nupcial, conforme o costume de cada comunidade, momento
este em que os noivos se inteiram “do significado e do desenrolar do rito da bênção
matrimonial”
603
. A bênção matrimonial tem caráter de culto e realiza-se na presença de
irmãos e irmãs
604
.
A forma mais antiga e comum de iniciar o rito do matrimônio na IECLB é a recepção
do casal, com as testemunhas, pais e mães, na porta da igreja. Ali, o pastor ou a pastora os
cumprimenta e os saúda “em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo(ou saudações
semelhantes), convidando-os a entrar. Badalam os sinos e a comunidade reunida dentro da
igreja inicia um canto de louvor, enquanto a procissão nupcial, precedida pelo pastor ou
pastora, segue a o altar, onde o casal se põe de pé e de onde o pastor ou a pastora prossegue
com a cerinia. Faz-se a leitura de um Salmo, segue uma oração e uma alocução a partir de
um texto bíblico escolhido pelo pastor ou pastora para a ocasião ou indicado, previamente,
pelo casal. Concluindo a alocução, canta-se um hino e logo após inicia o ato da bênção. As
testemunhas são convidadas a se aproximar do casal que está no altar. O pastor ou a pastora
dirige ao casal, a cada qual, individualmente, a pergunta de aceitação e compromisso mútuos,
diante de Deus e das testemunhas, seguindo-se a troca das alianças as quais lhes são
oferecidas “como símbolo do amor que não termina e da fidelidade que não tem fim”
605
. Em
seguida, unindo as mãos direitas, o casal se ajoelha e, impondo as mãos sobre eles, o pastor ou
a pastora lhes profere a bênção, de acordo com as seguintes palavras: “Em conformidade com
vossa declaração solene perante Deus e estas testemunhas, confirmada pelas vossas os
dadas, abençôo como ministro ordenado da Igreja – a vossa união matrimonial em nome do
Pai e do Filho e do Espírito Santo”
606
. E de acordo com Mateus 19.6, lhes é anunciado: “e o
que Deus ajuntou não o separe o homem”. O casal é convidado a colocar-se de pé e finaliza-
se a bênção matrimonial com uma oração de intercessão e o Pai-Nosso. Faz-se o envio,
desejando-se a paz de Deus. O casal é cumprimentado pela pessoa que oficia e lhes é entregue
a “certidão ou lembrança de casamento”. De acordo com o desejo do casal, inclui-se a Ceia do
Senhor, porém, raramente isto acontece. O casal sai em procissão, acompanhado ou não de
música, seguido da comunidade. Na saída o casal recebe os cumprimentos.
Os principais símbolos e gestos que comem o rito da bênção são: vestimenta do
casal, a critério deles (em geral, a noiva usa o tradicional vestido de noiva, branco, com véu
603
NOSSA fé, Nossa vida, 2005, p. 35.
604
NOSSA fé, Nossa vida, 2005, p. 35.
605
MANUAL de Ofícios, 1977, p. 28.
606
MANUAL de Ofícios, 1977, p. 28.
188
ou outro adorno na cabeça e o buquê e o noivo veste o tradicional conjunto de terno e gravata,
na cor desejada), aliança, ornamentação da igreja com flores e paramentos lirgicos especiais
– na cor branca -, agente religioso vestido de talar ou alba, com estola branca, união das mãos
direita e a bênção com imposição de mãos.
b) Apreciação
A forma de recepcionar o casal na porta da igreja e não em separado (com o pai
entrando com a noiva e a entregando ao noivo na frente do altar) está relacionada ao fato de
que o casamento foi oficializado no cartório e o casal foi declarado esposo e esposa. E
como tal, eles comparecem à igreja juntos, como casal, para pedir a bênção de Deus para o
seu matrimônio e também para testemunhar publicamente que desejam viver uma vida
matrimonial e familiar como pessoas cristãs. Essa forma ritual (de o casal entrar juntos na
igreja e não em separado) é condizente com a compreensão da igreja luterana em relação ao
sentido do rito religioso do matrimônio. E de acordo com este sentido, os elementos litúrgicos
que formam o rito de bênção matrimonial, são recheados de conteúdos que visam: 1) orientar
o casal para a vivência cris mediante a palavra de Deus (leituras bíblicas e homilia ou
alocução); 2) interceder a Deus por acompanhamento e auxílio ao novo casal (orações); 3)
ouvir a promessa de amor e fidelidade do casal diante de testemunhas e da comunidade
presente, (declaração solene e troca de alianças) e 4) abençoar a união matrimonial em nome
de Deus (imposição de os e bênção).
A bênção matrimonial é um rito religioso que não só completa o ritual que inicia com
o ato civil, mas diferentemente deste, o rito religioso reúne elementos significativos de um
rito de passagem. Ele é rico em simbologia e gestos (vestes, flores, sinos, procissão, música,
alianças, imposição de mãos, orações, bênção e agente religioso devidamente paramentado);
ele é acompanhado por um grupo social representativo (envolve não a família e parentes,
mas convidados que representam o grupo social maior); além disso, a cerimônia religiosa está
inserida nas atividades da comunidade como um todo (através dos proclamas realizados nos
cultos, dos cursos de preparação, das intercessões e do próprio ambiente, a igreja, como um
espaço comunitário). E um aspecto muito importante é a realização de um ato dirigido por
um agente religioso que claramente representa o divino e transcendente. O pastor ou a pastora
é portador ou portadora da bênção de Deus sobre o matrinio, legitimando a união.
Conforme Kliewer, o casamento religioso cabe muito bem na categoria de ritos de passagem
no contexto da IECLB e, na análise do autor, a representação desse rito de passagem é até
bem feita na cerinia de bênção matrimonial. Na igreja, os noivos se põem num lugar
189
especial, o altar, um lugar santo e de manifestam publicamente a aceitão do seu novo
status”
607
.
A oração e nção do oficiante confirmam e declaram publicamente que a passagem
não essomente em conformidade com a ordem da sociedade, mas também com a
ordem divina. O casal volta do altar, já investido do novo status, e é cumprimentado
e saudado pelo seu novo grupo de referência, a turma dos casados. Todos têm a
sensação de estarem agindo em harmonia com a ordem do cosmos que une Deus e
os homens. Parece brincadeira, mas de fato é um ato importante para a constituição e
a vivência do matrimônio, e sem vida contribui para o seu sucesso e sua
estabilidade.
608
De acordo com o “guia da vida comunitária na IECLB, Nossa fé, Nossa vida, o
casamento, conforme a vontade de Deus, é indissolúvel. Entretanto, reconhecendo que as
pessoas podem falhar no cumprimento da vontade divina, a igreja manifesta-se em favor do
perdão concedido a elas pelo amor de Cristo. Neste caso, a “realizão da bênção matrimonial
pode ser concedida a pessoas divorciadas, quando confessada a culpa, assumidas as
conseqüências do vínculo desfeito e quando constatada a seriedade de um novo compromisso
matrimonial”
609
. A IECLB, no entanto, o concede bênção matrimonial a pessoas separadas
não habilitadas ao casamento civil, mas, por causa do amor de Cristo, a igreja leva a sério a
decisão de elas buscarem um novo compromisso matrimonial e, por isso, ela os orienta no
sentido de procurarem a legalização de sua união
610
.
4. O rito de sepultamento
Assim define o documento Nossa fé, Nossa vida:
O sepultamento eclesiástico tem caráter de culto. Nele a comunidade cristã se
irmana com as pessoas enlutadas. Na despedida de seu ente falecido, proclama a
vitória de Cristo sobre a morte e seus temores. A comunidade consola as pessoas
enlutadas, ora confiante em Cristo, o Senhor ressuscitado e vivo, que nos dá a
esperança da vida eterna. Agradece a Deus por todo bem que tem feito à pessoa
falecida e, por meio dela, aos seus.
611
a) Descrição do rito
De acordo com o Manual de Ofícios, o ordo do sepultamento consta dos seguintes
elementos: Na casa: hino, saudação trinitária, intito, Salmo 130 (De Profundis, ou outro
salmo), kyrie ou hino, texto bíblico, gloria in excelsis ou hino, alocução, oração, hino, Pai-
Nosso, encomendação. No cemirio: hino (enquanto o ataúde é baixado à sepultura),
607
KLIEWER, Gerd, Uwe. Aspectos sociológicos do matrimônio. In: MOLZ, Cláudio; WEHRMANN, Guenter
K. F. (Orgs.). Ofícios: Proclamar Libertão, suplemento 2. São Leopoldo: Sinodal, 1988. p. 41.
608
KLIEWER, 1988, p. 41.
609
NOSSA fé, Nossa vida, 2005, p. 37.
610
NOSSA fé, Nossa vida, 2005, p. 37.
611
NOSSA fé, Nossa vida, 2005, p. 38-39.
190
saudação, versículo bíblico, alocução (caso não foi proferida antes, na casa), dados de vida da
pessoa falecida, consignação, versículo bíblico, oração, hino (enquanto se fecha a sepultura),
Pai-Nosso, bênção final.
Tão logo o falecimento ocorre, a família comunica e solicita o sepultamento ao
pastor ou à pastora da sua comunidade. O rito, em geral, acontece em dois estágios, na casa
(casa da família ou na casa mortuária) e no cemitério. Nos dois estágios, o rito é oficiado pelo
pastor ou pastora e, em casos excepcionais, por uma pessoa incumbida pela realização do
mesmo.
No primeiro estágio do rito, na casa, o esquife permanece aberto durante toda a
cerimônia. A pessoa que oficia se põe de defronte ao esquife e a cerimônia inicia com a
invocação da presença de Deus, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo(ou outra
saudação semelhante). A primeira parte desse rito centra-se no anúncio da palavra de Deus,
através de leituras bíblicas e da homilia ou alocução, intercalando-se orações de louvor e de
súplica e hinos. O estágio na casa é finalizado com a encomendação da pessoa falecida, de
acordo com as seguintes palavras: - “Vamos, pois, em paz e acompanhemos ao derradeiro
repouso o corpo do(a) irmão(ã) falecido(a)”; ”Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus
Cristo que, segundo a sua muita misericórdia, nos regenerou para uma viva esperança
mediante a ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos”. Segue, logo após, a bênção: “O
Senhor guardará a tua alma. O Senhor guardará a tua saída e a tua entrada, desde agora e para
sempre. Paz seja contigo. Amém.
612
O pastor ou a pastora se retira e os familiares
permanecem junto da pessoa falecida para despedir-se, assim como outras pessoas que o
desejarem. Por fim, fecha-se o esquife e inicia-se a procissão comunitária até o cemitério.
Chegando ao cemitério, a comunidade é convidada a cantar enquanto o esquife é baixado à
sepultura. A pessoa que oficia, saúda a comunidade presente desejando a paz de Deus. Após
leituras bíblicas e dados da pessoa falecida, chega o momento da entrega final à terra. O/a
oficiante diz: Visto que Deus, o Onipotente, foi servido em Sua providência, chamar para Si
nosso(a) irmão(ã) falecido(a), entregamos seu corpo à terra: Terra à terra, cinza às cinzas e pó
ao pó – na segura e certa esperança da ressurreição para a vida eterna, mediante nosso Senhor
Jesus Cristo
613
e enquanto pronuncia, joga três vezes um punhado de terra para dentro da
sepultura; finalizando, proclama-se o texto de 1 Coríntios 15.53ss.
614
. Em seguida, os
612
MANUAL de Ofícios, 1977, p. 39.
613
MANUAL de Ofícios, 1977, p. 41.
614
1 Coríntios 15.53 ss: Tragada foi a morte pela vitória. Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Onde está, ó
morte, a tua vitória? Graças a Deus que nos a vitória por intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo.”
191
familiares repetem o mesmo gesto, como despedida final, jogando três punhados de terra na
sepultura e flores, conforme o costume local; por fim, enquanto a comunidade canta, a
sepultura é fechada completamente e adornada com flores. Encerra-se o ato de sepultamento
com a oração conjunta do Pai-Nosso, seguido da bênção e envio dados pelo pastor à
comunidade.
O Manual de Ofícios ainda oferece uma liturgia de sepultamento para crianças e
outra para suicidas. A liturgia de sepultamento de crianças também pre um momento
inicial na casa, seguido de outro no cemitério e possui os seguintes elementos: na casa hino,
saudação trinitária, intróito, oração com responsório (kyrie eleison), palavra bíblica, oração,
bênção, hino. No cemitério saudação, intito, palavra bíblica, alocução, encomendação,
consignação, confissão de fé, oração, Pai-Nosso, bênção. A liturgia de sepultamento de
suicidas prevê, da mesma forma, um momento na casa, seguido de outro, no cemitério e
contém os seguintes elementos: na casa hino recitado pelo pastor, saudação trinitária,
intróito, palavra bíblica, oração, alocução, oração, despedida à comunidade. No cemitério
hino recitado pelo pastor, saudação, intito, palavra bíblica, curriculum vitae, encomendão
e consignação, oração, Pai-Nosso e bênção final. Observa-se que no sepultamento de suicidas,
a liturgia do Manual de Ofícios omite o canto (os hinos previstos são recitados pelo pastor).
b) Apreciação
De acordo com o conteúdo e as partes da liturgia do Manual de Ofícios, pode-se
dizer que, em qualquer dos estágios, os elementos lirgicos que formam o rito expressam, de
um lado, a voz de Deus dirigida ao ser humano que experimenta na morte a extrema
fragilidade, e de outro, a voz humana que apresenta a Deus o seu clamor e sofrimento. A
palavra e a voz de Deus se manifestam claramente nas leituras bíblicas, na alocução, nos
hinos e em gestos como bênção; a voz humana se manifesta, em especial, nas orações e hinos.
Pode-se dizer que o rito possui um ritmo crescente. Prepara-se, na casa, a despedida
com o fechamento do esquife. No cemitério o esquife não é mais aberto, e da mesma forma
que no primeiro estágio, no cemitério, também se percebe um ritmo crescente na liturgia que
culmina com a despedida no momento do fechamento da sepultura.
A igreja luterana acentua o elemento da pregação no rito de sepultamento, sendo um
momento oportuno para o testemunho público da fé na ressurreição e o consolo aos enlutados.
O sepultamento, na compreensão da igreja, também representa um ato de respeito à pessoa
que, mesmo falecida, é criatura de Deus. O sepultamento é um ato comunitário e como tal a
192
comunidade tem a responsabilidade evangélica de sepultar os seus mortos e acompanhar as
pessoas enlutadas
615
. A liturgia de sepultamento do Manual de Ofícios não faz nenhuma
relação direta com o batismo. Mas, o batismo, enquanto sacramento, sinal visível da graça
divina, é um grande consolo que deveria ser mencionado no sepultamento, assim como em
outros momentos de sofrimento e medo. Lutero diz que os sacramentos são como “um bom
cajadoou “uma lanterna e ajudam as pessoas de fé a trilharem por caminhos obscuros,
como na morte
616
.
O rito de sepultamento na IECLB, conforme acima exposto, preenche liturgicamente
a necessidade antropológica de despedir-se e separar-se da pessoa falecida. Por meio dele,
com a presença da comunidade, a igreja ajuda as pessoas enlutadas a enfrentarem a despedida
do seu ente querido e prosseguir na rotina do dia-a-dia
617
. Contudo, a pergunta que permanece
é justamente como prosseguir no dia-a-dia, como enfrentar a fase seguinte? De que forma a
IECLB desenvolve a assistência lirgica às pessoas enlutadas? A “Oração Memorial” é a
principal forma ritual prevista para as pessoas enlutadas, mas é insuficiente. Essa consiste em
comunicar o falecimento num culto, cuja data é combinada com a família, e de interceder em
favor das pessoas enlutadas, confiando a pessoa falecida à graça de Deus
618
. Essa
comunicação de falecimento que acontece no culto tem um aspecto poimênico inerente, mas é
necessário refletir sobre a modalidade de como se realiza esse ato de comunicação. Além da
Oração Memorial, no culto anual em memória dos mortos, que acontece no Dia de Finados ou
no Domingo da Eternidade (também conhecido como Último Domingo do Ano Eclesiástico),
o nome das pessoas falecidas do ano em transcurso é mencionado. Na IECLB, o se pratica
o “culto pelo/a falecido/a” embora pessoas o solicitem
619
. Mesmo assim, não se pode ignorar
a necessidade de ritos que ajudem as pessoas a enfrentarem os dias que sucedem à morte de
um familiar. A comunidade está presente no sepultamento, mas raramente faz visitas à família
enlutada nos dias subseqüentes ao falecimento, quando, então, passam as fases iniciais do luto
e as pessoas enlutadas comam a sentir a realidade crua e nua da perda. Baseado em estudos
de Spiegel e Lindner, Hoch descreve quatro fases do luto: fase de choque, fase controlada,
fase do vazio existencial e fase de readaptação. A fase do vazio existencial é a mais
615
O SEPULTAMENTO eclesiástico: um posicionamento da IECLB referente a enterro e cremação. Boletim
Informativo 157. Porto Alegre, 1997. (Anexo 4).
616
LUTERO, Martinho. Um sermão sobre a preparação para a morte. In: Obras selecionadas: os Primórdios:
escritos de 1517 a 1519, v.1. São Leopoldo / Porto Alegre: Sinodal / Concórdia, 1987. p. 395-396.
617
JOSUTTIS, Manfred. Prática do Evangelho entre potica e religião: problemas sicos da teologia prática.
2. ed. São Leopoldo: Sinodal, 1982.
618
NOSSA fé, Nossa vida, 2005, p. 40.
619
FISCHER, Joachim. Cultos em memória dos mortos? Estudos Teogicos, São Leopoldo, ano 25, n. 2, 198-
210, 1985. p. 198.
193
importante, a mais prolongada e a mais dramática no processo de luto. “Ela inicia quando
cessa a agitação, os familiares e amigos se foram e quando retorna a rotina do dia-a-dia”
620
.
Nessa fase, a pessoa enlutada se dá conta do que realmente aconteceu e, geralmente, lhe
sobrevém o sentimento de perda do sentido da vida, sendo freentes os sentimentos de
depressão
621
. A IECLB, conforme seus documentos normativos, está ciente da necessidade de
acompanhamento às pessoas enlutadas e orienta a comunidade a praticar, nestes casos, a
visitação
622
, contudo verifica-se uma carência de ritos, nesta igreja, que estimulem e auxiliem
as pessoas no desempenho desta tarefa.
5. Outros ritos de passagens do Manual de Ocios
Santa Ceia para doentes esse é o único rito previsto no Manual de Ofícios para
situações que envolvem doença. E, de acordo com o que se observa na prática, esta liturgia é
utilizada em situações de doença extrema quando a pessoa está acamada por vários dias em
casa ou no hospital. Em tais momentos, o pastor, ou a pastora, é solicitado pela família para
oficiar a Ceia. Os elementos desse rito, conforme o Manual de Ofícios o os seguintes:
saudação, versículo bíblico, confiso de pecados, absolvição, narrativa da Ceia, oração, Pai-
Nosso, convite para a comunhão, distribuição da ceia, versículo bíblico, oração pós-comunhão
e bênção. Quando este rito é realizado na casa, todas as pessoas presentes são convidadas a
participarem da Ceia, em conjunto com a pessoa doente e em comunidades interioranas,
pessoas vizinhas da família onde ocorre a “Santa Ceia para doentes” são convidadas a
participarem do evento.
- Admissão de cristãos adultos os elementos dessa liturgia são: saudação trinitária,
palavra blica, acolhida à pessoa ingressante, oração, breve alocução, compromisso,
confirmação com aperto de o e admissão, oração, Pai-Nosso e bênção. Trata-se de uma
liturgia direcionada às pessoas que desejam ser admitidas na comunhão da igreja evangélica.
Por meio dessa liturgia a pessoa ingressante faz a sua profissão de fé. Para tanto,
preliminarmente, o/a candidato/a passa por uma instrução na fé, de acordo com os
regulamentos próprios de cada comunidade e, concluindo o processo, a pessoa é apresentada
num culto regular da comunidade e, diante de testemunhas, membros da comunidade, ele ou
ela responde a três perguntas, feitas pela pessoa oficiante, referentes ao seu compromisso para
620
HOCH, Lothar Carlos. Acompanhamento pastoral a moribundos e enlutados. In: MOLZ, Cláudio;
WEHRMANN, Guenter K. F. (Orgs.). Ofícios: Proclamar Libertação, suplemento 2. São Leopoldo: Sinodal,
1988. p. 75-76.
621
HOCH, 1988, p. 76.
622
NOSSA fé, Nossa vida, 2005, p. 40.
194
com a revelada na Sagrada Escritura, para com Jesus Cristo, único salvador, e para com a
que vem pela graça de Deus e não por obras. Em virtude da profissão de e da promessa
feitas pela pessoa, o/a oficiante, mediante um aperto de mão confirma o ato, dizendo: eu te
admito na comunhão da Igreja evangélica. Deus, o Senhor, complete a boa obra que Ele
iniciou em ti”
623
. Segue uma oração do pastor e o Pai-Nosso, em conjunto com a comunidade,
concluindo-se com a bênção final.
- Bodas de jubileu é comum, na IECLB, que casais, ao completarem 25 ou 50 anos
de casados, desejem celebrar as bodas de prata ou ouro. O Jornal Evangélico Luterano, da
IECLB, com sua página de “anúncios comunitários” é igualmente utilizado por diversas
famílias para comunicarem tais eventos. A celebração dessa data pode ocorrer num culto
especialmente programado, de acordo com a data de aniversário do matrinio ou também
pode ser realizado num culto regular da comunidade. A liturgia de bodas de jubileu do
Manual de Ofícios tem semelhanças com a do matrimônio. Nos casos de uma cerimônia que
ocorre numa data especialmente programada para as bodas de jubileu, o casal entra em
procissão, acompanhado do pastor ou da pastora, dos filhos, das filhas, genros e noras, netos e
netas, e das testemunhas que assistiram à bênção matrimonial de 25 ou 50 anos atrás. O casal
se senta à frente do altar, em lugar especialmente reservado e o ato de bênção se desenvolve
de acordo com os elementos que seguem: hino, saudação triniria, versículo bíblico, leitura
bíblica, alocução, bênção ao casal, orão, Pai-Nosso, bênção final e envio. No momento da
bênção, o casal se põe de pé, diante do pastor ou da pastora, que após relembrar o casamento
realizado anos atrás, diante de Deus, diz ao casal: E agora, juntai as vossas mãos direitas,
como o fizestes 25 (50) anos. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes
três: porém o maior destes é o amor (1 Cor. 13,13).”
624
Segue orão de louvor e de
intercessão pelo casal, o Pai-Nosso e a bênção final.
6. Outros ritos de passagem conforme o Manual de Ofícios Especiais da IECLB
Como já descrito acima, o Manual de Ofícios Especiais foi elaborado para atender a
uma demanda de liturgias para situações específicas da comunidade religiosa, a saber, 1)
ordenação ao ministério pastoral
625
; 2) “instalações” - a) instalação de um pastor; b)
623
MANUAL de Ofícios, 1977, p. 24.
624
MANUAL de Ofícios, 1977, p. 31.
625
Essa foi escrita tendo em vista a ordenação ao ministério pastoral. No entanto, conforme a atual constituição
da IECLB, quatro ministérios específicos com ordenação. São eles: o pastoral, o catequético, o diaconal e o
missionário. Diante disso, a liturgia de ordenação vem sendo adequada aos ministérios espeficos e,
entrementes, o Conselho de Liturgia da IECLB está elaborando recursos litúrgicos, entre outros, para a
195
apresentação de um pastor colaborador ou um professor catequista com funções pastorais ou
um estudante (de teologia) estagiário; c) instalação de conselho distrital; d) instalação de
diretorias e outros cargos; 3) “inaugurações” - a) inauguração de uma igreja (capela); b)
inauguração de um centro comunitário (casa da comunidade, casa paroquial); c) inauguração
de sino(s); d) inauguração de um órgão; 3. “lançamento da pedra fundamental” de um
templo, capela, centro comunitário, casa pastoral.
3.2.3 Considerações intermediárias
Os ritos de passagem oferecidos pela IECLB dizem respeito a momentos relevantes
da vida humana, tais como nascimento, iniciação religiosa, casamento e morte. Esses ritos são
tão importantes para as comunidades, que se encontram regulados pela igreja e fazem parte da
prática litúrgica dessa igreja desde a sua origem.
Entretanto, como se observou acima, o batismo, como rito de iniciação à cristã, é
prejudicado em seu significado pelo fato de agregar outros ritos especificamente de
maternidade, como a bênção pós-parto ou bênção à mãe. O nascimento, como passagem
carregada de sentido na vida humana, carece de ritos, mas esses independem do batismo e
podem se desenvolver a parte. Desmembrando o rito do batismo do rito de maternidade e, ao
mesmo tempo, propondo ritos adequados ao nascimento, a igreja poderá tratar o batismo de
forma autônoma e aprofundada dando a ele um rito digno do seu conteúdo e significado e da
mesma forma, ela poderá favorecer passagens como nascimento, maternidade e paternidade
com ritos devidos.
A confirmação é um rito que marca significativamente a conclusão de uma etapa na
formação cristã, lembrando que as pessoas batizadas necessitam de contínuo crescimento e
aprofundamento na fé. Nesse sentido, a confirmação, de certa forma, assinala a passagem para
a maturidade tanto religiosa quanto social (melhor seria dizer, passagem para uma nova etapa
da vida religiosa e social-comunitária). Contudo, o significado teológico da confirmação não
se coaduna com a sua prática litúrgica, sobretudo, quando a igreja interpreta a confirmação
como ato de complementação ao batismo, reservando para esse momento a primeira
participação à mesa da ceia eucarística. Nesse sentido, caberia à igreja redefinir a função do
rito da confirmação por ela praticado.
ordenação ao ministério, levando em conta a atual disposição ministerial nesta igreja. Cf. ESTATUTO do
Ministério com Ordenão: EMO. 3. ed. Porto Alegre: IECLB, 2005. p. 2.
196
O rito do matrimônio, conforme observado acima, marca significativamente a
passagem para um novo status e, mais do que o rito civil, o rito religioso do matrimônio é
carregado de sentido simbólico, conferindo à união matrimonial uma santa ordem, abençoada
por Deus. Embora a IECLB se pronuncie favoravelmente à bênção matrimonial de pessoas
divorciadas, ela não oferece um rito específico. Quanto ao tipo de união conjugal sem base
legal, a igreja se nega a realizar a bênção matrimonial. Mesmo assim, permanece a pergunta,
como a igreja pode apoiar liturgicamente as pessoas que decidem viver juntas sem união
legal?
Na passagem da morte, a IECLB, através do pastor ou da pastora e da comunidade,
acompanha ritualmente os seus membros, exercendo a função social de sepultar os mortos e a
função teológico-pastoral de anunciar a esperança cristã para o consolo das pessoas enlutadas.
O rito ajuda a demarcar a separação entre vivos e mortos, sem, contudo, separá-los do amor
de Deus que a todos abriga. O rito favorece a separação necessária, promovendo a despedida e
o retorno ritual à rotina. Trata-se de um rito necessário à vida humana e especialmente
relevante para a fase inicial do processo do luto; contudo, como observado acima, o luto
vivido no dia-a-dia é o existencialmente mais difícil, sendo uma fase em que as pessoas
enlutadas necessitam de muito apoio e solidariedade. Para ir ao encontro da necessidade das
pessoas enlutadas, a IECLB necessita enriquecer-se de recursos rituais, colocando-os a
serviço da comunidade.
Para as situações de doença, é comum, na IECLB, recorrer à “Santa Ceia para
doentes”. Porém, como visto acima, esta prática ritual está associada às pessoas doentes em
vista do seu fim iminente. E, neste sentido, a “Santa Ceia para doentes” é interpretada nas
comunidades da IECLB como uma espécie de extrema-uão. Essa compreensão, ao mesmo
tempo em que limita o significado da Ceia, reduz tal rito às situações de doenças extremas e
fim iminente. Desta maneira, a igreja permanece em débito com ritos que visem acompanhar
as pessoas doentes com vistas ao restabelecimento da saúde e não como passagem para a
morte.
Finalizando, o estudo realizado nesta primeira parte deste capítulo forneceu uma
visão sobre os ritos de passagem praticados na IECLB, sendo possível constatar que ritos
significativos para passagens importantes da vida, assim como também se percebem lacunas
existentes nesses mesmos ritos como, por exemplo, a constatação da necessidade de realizar
ritos de nascimento, maternidade e paternidade, separados do batismo; de clarear a função do
rito de confirmação; da ausência de um rito específico para bênção matrimonial de
197
divorciados, assim como para a união conjugal sem vínculo legal; da falta de ritos para
situações de doença com vistas ao restabelecimento da saúde e não passagem para a morte
e da necessidade de ritos de acompanhamento às pessoas enlutadas. Além do que aqui foi
considerado sobre as passagens para as quais a IECLB oferece serviço litúrgico, que se
perguntar de que maneira a igreja pode estar presente em outras passagens relevantes da vida
humana, que o aparecem no corpo lirgico do serviço ministerial da IECLB, semelhantes
àquelas situações levantadas na pesquisa social, como: saída de casa e ingresso em outros
contextos, ingresso a um lar de idosos, ingresso e conclusão de estudo, separação de casal (e,
ao mesmo tempo, separação de pai e mãe), ingresso no mundo do trabalho, entre outros que
não aparecem na pesquisa, a exemplo da aposentadoria.
3.3 Ritos de passagem em práticas selecionadas dos primórdios da tradição cristã e do
seu entorno
3.3.1 Breves considerações sobre o contexto de origem da Igreja cristã
Jesus de Nazaré, nascido por volta do ano 4 a.C., no seio de uma família judaica,
desenvolve sua atividade essencialmente em meio ao judaísmo da Palestina, voltado para o
povo de Israel
626
. Durante os primeiros anos após a morte de Jesus, seus seguidores e
seguidoras permanecem em Jerusalém, investindo na miso interna, junto do povo judeu
627
.
Jerusalém é berço do cristianismo primitivo, um cristianismo de influência judaica
628
. É ali
que ocorre o evento de Pentecostes, narrado em Atos dos Apóstolos, no capítulo dois,
marcando o início da comunidade cristã e da sua missão. Aos poucos, a missão cristã, que
anuncia a mensagem de Jesus, alcança o mundo helenístico, através da missão itinerante
espontânea. Surge, em pouco tempo, a comunidade de Antioquia, “uma metrópole helenista
que na época tinha cerca de 300 mil habitantes”
629
, que, segundo Goppelt, é a comunidade-
mãe do cristianismo gentílico. O livro de Atos dos Apóstolos narra inúmeras viagens de
seguidores e seguidoras de Jesus, sobretudo de Paulo, por todo o Império Romano,
divulgando a mensagem da fé cristã, visitando e constituindo comunidades. “Na época em que
os primeiros missionários cristãos estavam começando a percorrer as estradas do Império
626
DRANE, John. A vida da igreja primitiva: um documentário ilustrado. São Paulo: Paulinas, 1985. (Coleção
entender a Bíblia). p. 10; GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento: Jesus e a comunidade
primitiva, v.1. Petrópolis /o Leopoldo: Vozes / Sinodal, 1976. p. 63.
627
GOPPELT, 1976, p. 269.
628
DREHER, Martin N. A igreja no Império Romano, v. 1. São Leopoldo: Sinodal, 1993. (Coleção História da
Igreja). p. 19.
629
GOPPELT, 1976, p. 269.
198
Romano, levando a Boa-nova sobre Jesus, havia uma extensa rede de sinagogas judaicas
espalhadas de uma extremidade à outra em todo o império.”
630
Muitas comunidades cristãs se
constituem a partir das sinagogas, além das casas particulares que se tornaram ponto de
reunião dos cristãos e das cristãs. Baseado no dom do Espírito, as lideranças dessas
comunidades são carismáticas, dentre as quais se destacam a função de apóstolos, profetas e
mestres, sendo que as mulheres têm uma participação efetiva no trabalho diretivo das
comunidades
631
. É preciso considerar que no movimento cristão primitivo todas as pessoas
eram dotadas dos dons do Espírito Santo e participavam na edificação da comunidade. O dom
e a eleição de Deus não dependiam da experiência religiosa de alguém, do papel social, sexual
ou da raça. “Diversos membros da comunidade podem receber dons diferentes e exercer
diferentes funções de liderança, mas em princípio todos os membros da comunidade têm
acesso ao poder espiritual e aos papéis comunitários de liderança.”
632
A partir do trabalho desenvolvido por pequenos grupos, nas igrejas domésticas, a
mensagem cristã se espalha. Hamman atesta que até o século 2, a geografia cristã é
mediterrânea e marítima. No fim da época apostólica, as igrejas estão dispostas “como um
colar de pérolas” ao longo da costa do Mediterrâneo e na metade do século 2, elas chegam aos
lugarejos e às aldeias obscuras, entre as populações romanizadas
633
. Salienta-se que o domínio
do Império Romano abrangia toda a região “desde as Colunas de Hércules, o atual Gibraltar,
até os rios Tigre e Eufrates, da Britânia até o Reno, o Norte da África, (...) e mais a região do
Danúbio”
634
. Por essa dimensão do império já se percebe que ele abrangia uma infinidade de
povos, raças e culturas”
635
. Observa-se que o Império Romano desenvolveu, através do seu
sistema administrativo, um projeto de uniformizão da cultura, cujo movimento responsável
é chamado de helenismo. Trata-se da
cultura da era de Alexandre Magno (356-323 a.C.), quando língua, costumes,
utensílios, arte, literatura, filosofia e religião dos gregos se espalharam por todo o
Oriente, Índia e regiões do Danúbio. As principais características deste movimento
foram a penetração e a mistura das tradições dos diversos povos e culturas, sob a
liderança da cultura grega.
636
630
DRANE, 1985, p. 22.
631
DRANE, 1976, p. 69-72. SCHOTTROFF, Luise. A caminho para a reconstrução feminista da história do
cristianismo primitivo. In: SCHOTTROFF, Luise et al. (Orgs.). Exegese feminista: resultados de pesquisas
bíblicas a partir da perspectiva de mulheres. São Leopoldo: Sinodal / EST / CEBI; o Paulo: ASTE, 2008. p.
175-178.
632
FIORENZA, Elisabeth Schüssler. As origens cristãs a partir da mulher: uma nova hermenêutica. o
Paulo: Paulinas, 1992. p. 323.
633
HAMMAN, 1997, p. 12, 19 e 20.
634
DREHER, 1993, p. 10.
635
DREHER, 1993, p. 10.
636
DREHER, 1993, p. 10-11.
199
O desenvolvimento e a afirmação da fé cristã em meio a um mundo marcado pela
diversidade cultural e religiosa não foram ceis para o cristianismo e certamente não
ocorreram sem conflitos e tensões, interna e externamente. Internamente, uma das questões
que vêm à tona na relação entre judeus e gentios, a qual é relatada em Atos dos Apóstolos,
capítulos 10 e 11 e que Paulo discute na carta aos latas e Romanos, diz respeito à
circuncisão, uma observância judaica. Havia pessoas afirmando que para ser cristão também
era necessário aceitar a circuncisão, além de observar outros preceitos. Em meio a tal questão,
Paulo enfatiza que o relacionamento com o Deus vivo se dá mediante a em Jesus Cristo,
sendo o batismo o sinal da nova aliança
637
. Além de lidar com as diferenças internas,
causadoras de conflitos e tensões, os cristãos e as cristãs enfrentaram, em determinados
períodos, hostilidades e perseguições por parte de grupos e do poder político romano. Nesse
confronto, muitos homens e mulheres, na defesa da fé cristã, se tornaram mártires
638
.
Antes de concluir estas breves considerações, convém assinalar que após os
primeiros anos de desenvolvimento e formação de comunidades gentílico-cristãs, de liderança
carismática, a igreja cristã inicia um processo de institucionalização, surgindo formas mais
rígidas na organização das comunidades. Assim o descreve Dreher:
Até o ano 140, há uma imagem bastante heterogênea no que tange à liderança na
comunidade cristã. Também houve acentuadas diferenças entre uma comunidade e
outra. Parece que já na era apostólica aqueles que presidiam a comunidade, os
proistámenoi, se dividiam em epískopoi (supervisores) e diákonoi (executores). Em
Roma, os epískopoi eram eleitos entre os presbyteroi (anciãos). Esses presbíteros
eram pessoas honradas dentro da comunidade e que se assentavam em semicírculo,
em lugares de honra, de frente para a comunidade, quando esta estava reunida para o
culto. Mais tarde, um dos epískopoi assumiu as principais funções deste ministério.
A evolução final levou a que, finalmente, o título epískopos (bispo) fosse reservado
apenas a ele.
639
Por volta de 130 d.C. existe um episcopado na Síria; pouco depois, na Ásia Menor
e em Roma, ele aparece em 140. O clero da comunidade se constitui pelo trinômio bispo,
presbítero e diácono, e em algumas comunidades as viúvas contam entre o clero
640
. “Durante
um certo tempo, continuaram a existir as funções carismáticas dos apóstolos, profetas e
637
Gálatas 3. 23-29; 4. 4-7; Romanos 5.1; 8.1-11
638
Assim explica Hamman: Inteiramente aberta às contribuições externas, disposta a naturalizar as divindades
estrangeiras dos territórios conquistados, a religião romana era fundamentalmente hertica a toda evolução
espiritual. Subtrair-se aos seus ritos seria faltar ao patriotismo, à cidade.” Quanto mais o império acentuava a
unidade política e a centralização administrativa, mais inevitável se tornava o confronto entre cristãos e força
imperial. “O cristianismo se apresentava como fermento perturbador e refratário. Contestar a religião era
contestar o Estado e, portanto, figurar como revolucionário.” HAMMAN, 1997, p 82.
639
DREHER, 1993, p. 26-27.
640
DREHER, 1993, p. 27.
200
mestres. Eram, agora, forças rivalizantes com o clero estabelecido.”
641
Dentro do processo de
institucionalização e hierarquização da igreja, as mulheres foram marginalizadas das funções
de liderança ministerial. Conforme Fiorenza,
Muito embora o movimento missionário cristão fosse uma subsociedade no mundo
greco-romano com visão e estruturas sociais alternativas, sua adaptação progressiva
à ordem patriarcal vigente na sociedade greco-romana privou a igreja de fronteiras
sociais bem delineadas defronte das normas e do ambiente cultural-religioso
patriarcal. (...) o cristianismo primitivo traçou suas fronteiras sociais em termos de
submissão ao episcopado que controlava os sistemas de crença doutrinal. (...) A
autoridade do mono-episcopado, definida patriarcalmente, tornou-se, assim, o centro
social simbólico da unidade para o cristianismo patrístico.
642
3.3.2 Rito de iniciação cristã
O termo iniciação” deriva do verbo latino “in-ire” e significa “entrar dentro”
643
.
Procede da linguagem religiosa, especialmente das religiões de mistérios e foi introduzido na
igreja cristã pelos Padres da Igreja
644
. A iniciação “equivale ao processo de maturação
desenvolvido durante um certo tempo, para chegar à identificação de uma pessoa com um
grupo concreto ou uma determinada comunidade”
645
. A comunidade cristã, desde as suas
origens, desenvolveu um processo através do qual a pessoa se torna cristã. O Novo
Testamento oferece alguns exemplos de práticas de iniciação. Mas, textos antigos, de
testemunhas de diferentes locais, que participaram da experiência das primeiras comunidades,
dão detalhes importantes do desenvolvimento da vida cristã
646
.
Observa-se, de acordo com o testemunho do Novo Testamento, que o batismo surge
lado a lado com a comunidade cristã. Assim diz Cabié, é através de um rito de água que
alguém entra na Igreja”
647
. Banhos rituais, de purificação, fazem parte do contexto religioso
em que nasce a comunidade cristã
648
e exercem influência sobre a prática do batismo, mas,
641
DREHER, 1993, p. 27.
642
FIORENZA, 1992, p. 345.
643
FLORISTÁN, Casiano. Catecumenato: história e pastoral da iniciação. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 15.
644
BORÓBIO, Dionísio; TENA, P. Sacramentos da iniciação cristã: batismo e confirmação. In: BORÓBIO,
Dionísio (Org.). A celebrão na igreja, 2: sacramentos. São Paulo: Loyola, 1993. p. 23-24.
645
FLORISTÁN, 1995, p. 15.
646
Por exemplo: Didac(final do século 1 ou início do século 2), Apologia I de Justino (metade do século 2),
Tradição Apostólica de Hipólito de Roma (cerca de 225 d. C.), De Baptisma de Tertuliano (fim do século 2) Cf.
CABIÉ, Robert. A iniciação cristã. In: MARTIMORT, A. G. (Org.). Os sacramentos: a igreja em oração: os
sacramentos, v. 3. São Petrópolis: Vozes, 1991. p. 31-35.
647
CABIÉ, 1991, p. 29.
648
No tratado sobre Batismo, Tertuliano escreve sobre o uso da água em rituais de purificação nos cultos de
mistérios como o de Isis ou de Mitra. TERTULIANO. O sacramento do batismo nas fontes cristãs: teologia e
pastoral do batismo. Introdução, tradução e comentários de Urbano Zilles. Petrópolis / Porto Alegre: Vozes /
EST, 1975. p. 21.
201
segundo Cab, este conserva a sua originalidade. A especificidade do batismo cristão é
assinalada no livro dos Atos dos Apóstolos, segundo o qual o batismo da comunidade crisé
sempre celebrado “em nome de Jesus”
649
e, diferentemente dos costumes religiosos, vigentes
na época, de banhar-se a si mesmo, no rito cristão há sempre uma pessoa que dá o batismo. O
próprio Jesus foi batizado por João Batista
650
. O Novo Testamento não oferece indicações
precisas sobre os detalhes de um cerimonial do batismo, mas é possível identificar um núcleo
que conforme Atos 8.35-38 pode-se resumir em: catequese, declaração de e batismo na
água. Esse núcleo básico do batismo será amplamente desenvolvido pelas comunidades, com
ênfases específicas de acordo com a época e os lugares, conforme atestam documentos
antigos. Justino, por exemplo, por volta de 150 d.C., confirma a necessidade de dois
elementos básicos no processo batismal, a catequese de um lado e a oração e o jejum, de
outro
651
. Nocent explica que a preparação para o batismo, através de uma instrução pré-
batismal, tinha como finalidade a e as suas conseqüências morais ou a promessa de “viver
de acordo
652
. Dados muito mais precisos sobre o batismo tornam-se evidentes no século 3.
Uma rigorosa disciplina é imposta aos que serão batizados: orações assíduas, jejum,
genuflexões e vigílias
653
. Hipólito de Roma, na Tradição Apostólica, escrito por volta de 225
d. C., prevê um período de três anos de preparação batismal
654
. Durante este tempo, os
catecúmenos ouvem a Palavra, fazem orações e recebem imposição de mãos dos seus
instrutores, depois da catequese ou em momentos de crise
655
. De acordo com a descrição de
Hipólito, ao chegar o tempo próximo ao batismo, os que são escolhidos têm a sua vida
examinada: “se viveram com dignidade, enquanto catemenos, se honraram as viúvas, se
visitaram os enfermos, se praticaram boas ações
656
. Os que são separados para o batismo
recebem a imposição de mãos diariamente e são exorcizados
657
. O batismo acontece na aurora
da Páscoa. Na véspera do bado santo, os candidatos e as candidatas se reúnem em um
local para rezar. Ajoelhados, eles e elas recebem a imposição das os pelo bispo que os
exorciza. Em seguida, ele sopra-lhes sobre o rosto e traça o sinal da cruz sobre a fronte, os
ouvidos e as narinas. Eles permanecem em vigília por toda a noite, ouvindo leituras e
649
CABIÉ, 1991, p. 30.
650
Marcos 1. 9-11 e paralelos.
651
NOCENT, Adrien. Iniciação Cristã. In: SARTORE, Domenico; TRIACCA, Achille M. (Orgs.). Diciorio
de liturgia. São Paulo: Paulus, 1992. p. 595.
652
NOCENT, 1992, p. 595; WHITE, 1997, p. 157.
653
WHITE, 1997, p. 157.
654
HIPÓLITO, 1971, p. 49.
655
NOCENT, 1992, p. 596.
656
HIPÓLITO, 1971, p. 50.
657
HIPÓLITO, 1971, p. 50.
202
recebendo ensinamentos. Ao cantar do galo, inicia a oração sobre a água e realiza-se o
batismo na fonte, a qual se encontra em lugar separado da congregão. Inicialmente cada
candidato faz a renúncia, sendo ungido com o óleo do exorcismo
658
. Entrando na água cada
qual é batizado através de três imersões, acompanhadas de perguntas referentes à em cada
pessoa da trindade
659
. Saindo da água cada qual é ungido com o óleo santificado, é enxugado
e vestido
660
. Em seguida, entram na igreja onde são recebidos pelo bispo que, impondo as
mãos e fazendo a invocação do Espírito, derrama óleo santificado sobre a cabeça, ungindo a
cada qual e marcando-os na fronte com o sinal da cruz. Por fim, oferece-lhes o ósculo
sagrado. Em seguida, eles rezam junto com toda a comunidade a oração dos fiéis, oferecem o
ósculo
661
e participam pela primeira vez da eucaristia. No dizer de Nocent, a substância do
rito de Hilito “durará até hoje e receberá importante desenvolvimento”
662
. Assinala-se,
conforme Taborda, que não existe, no começo da igreja cristã uma forma única de celebrar o
batismo. O modelo de Hipólito é o que marca a liturgia do ocidente
663
. Mas, mesmo em meio
à diversidade ritual, a igreja mantém uma unidade do batismo cristão, afirma o autor
664
.
De acordo com textos patrísticos, datados do fim do culo 4
665
, após a celebração do
batismo ocorriam as catequeses mistagógicas, que consistiam em explicar o significado dos
ritos sacramentais, o qual ainda não era conhecido pelos neófitos nos detalhes do seu
conteúdo
666
, devido à disciplina do arcano
667
. Tanto as catequeses pré-batismais quanto as
658
No início do batismo, o bispo prepara o óleo, exorciza-o e o põe num vaso, chamando-o “óleo do exorcismo”.
“O diácono trará o óleo do exorcismo e colocar-se-á à esquerda do presbítero; (...). Acolhendo este cada um dos
que recebem o Batismo, ordene-lhe renunciar, dizendo: Renuncio a ti, Satanás, a todo o teu serviço e a todas as
tuas obras. Após a renúncia de cada um, unja-o com óleo de exorcismo, dizendo-lhe: Afaste-se de ti todo espírito
impuro”. HIPÓLITO, 1971, p. 51-52.
659
E, assim, entregue-o nu ao bispo ou ao presbítero que se mantém junto d’água e batiza. Desça também com
ele o diácono, desta forma: Assim que desce à água o que é batizado, diga-lhe o que batiza, impondo sobre ele a
mão: Crês em Deus Pai Todo Poderosos? E o que é batizado responda: Creio. (...)”. HILITO, 1971, p. 52.
660
“Depois de subir da água, seja ungido com o óleo santificado, pelo presbítero, que diz: Unjo-te com o óleo
santo, em nome de Jesus Cristo’. Depois, um por um, enxuguem-se, vistam-se e entrem na igreja.” HIPÓLITO,
1971, p. 53.
661
“O bispo, impondo sobre eles a mão, faça a invocação, (...). Depois, derramando óleo santificado na mão e
pondo-a sobre sua cabeça, diga: Eu te unjo com o óleo santo, (...). Marcando-o na fronte com o sinal da cruz,
ofereça-lhe o ósculo (...). Assim proceda com cada um. A seguir, rezem junto com todo o povo (...). Após a
oração ofereçam o ósculo da paz.” HIPÓLITO, 1971, p. 51-53.
662
NOCENT, 1992, p. 596.
663
Além do modelo de Hipólito, o autor destaca o modelo hierosolimitana, o qual é representado pela Didaché
(fins do século 1) e a tradição siríaca, modelo que se encontra nos Atos de Tomé (apócrifo oriundo da Síria, da
primeira metade do século 3). Cada tradição tem suas raízes nas Escrituras, enfatiza Taborda. TABORDA,
Francisco. Crisma, sacramento do Espírito Santo? Para uma identificação da crisma a partir de sua unidade com
o batismo. Perspectiva Teogica, ano 30, n. 81, maio/agosto, p. 183- 210, 1998. p. 186-187.
664
TABORDA, 1998, p.189.
665
Ambrósio de Milão (339-397) e Agostinho (354-430), para o Ocidente, Cirilo de Jerusalém (315-386) ou seu
sucessor João, Teodoro de Mopsuéstia (350-428), João Crisóstomo, de Antioquia (354-407), para o Oriente. Cf.
CABIÉ, 1991, p. 33-34; HAMMAN, Adalbert-G. Para ler os padres da igreja. São Paulo: Paulus, 1995. p. 108.
666
CABIÉ, 1991, p. 33.
203
mistagógicas, s-batismais, eram abertas à participação da comunidade. Padrinhos ou
madrinhas dos candidatos ou das candidatas ao batismo também acompanhavam todo o
processo de iniciação
668
.
A partir do século 6, modificações importantes são introduzidas no ritual de iniciação
cujo processo torna-se reduzido. Com a cristianização da sociedade, a igreja chega a acolher
somente pessoas jovens e aumenta o número de batismo de crianças em relação ao de
adultos
669
. E já no século 6 a comunidade não vê mais necessidade de celebrar o batismo em
meio à sua assembléia, pois ela não sente compromisso com os batizados. Mas, a alteração
mais importante do processo iniciatório, no ocidente, se dá em relação à desintegração da
unidade do rito, com a protelação da unção final (conhecida como crisma), parte do rito
reservada unicamente ao bispo. Quando este não podia estar presente na cerinia, o batismo
não era concluído e dependia de ser completado posteriormente. Dessa prática surge
gradativamente a “confirmação
670
como um ato separado do banho batismal. Atesta-se que
até o século 12 “a comunhão batismal das crianças de colo era prática generalizada no
Ocidente
671
. Nos primeiros anos do século 13 difunde-se o adiamento da primeira
comunhão
672
. Nessa época pratica-se o batismo de crianças logo após o nascimento, em
cerimônia privada. A confirmação deveria acontecer após os sete anos, também em cerimônia
privada, e nesta idade as crianças também podiam receber a comuno, confirmadas ou não.
White conclui que na Idade dia tardia “todo o caráter comunitário e pascal da iniciação
fora destroçado juntamente com sua unidade”
673
. Na igreja do Oriente, este desenvolvimento
se deu de forma diferente, conservando-se a unidade do rito de iniciação
674
.
Concluindo, pode-se dizer que o batismo é o rito fundamental da iniciação cristã
desde as origens da igreja e consiste de um processo que inclui diversas etapas. Para que a
iniciação fosse levada a efeito, as suas diversas etapas foram desenvolvidas com vistas ao seu
667
Trata-se de informações que eram dadas em segredo apenas aos considerados “fiéis”, aos que já tinham
recebido os sacramentos da iniciação. NOCENT, Adrien. Os três sacramentos da iniciação cristã. In: NOCENT,
Adrien et al. Os sacramentos: teologia e história da celebração. São Paulo: Paulinas, 1989. (Anámnesis, 4). p.
36.
668
Sobre o papel exercido pelos padrinhos, Cabié explica: “O catecúmeno é assistido, ao longo de toda a sua
preparação, por um cristão experimentado que partilhará com ele sua experiência de vida cristã. Este cristão será
tamm responsável pela fidelidade do caminho do catecúmeno diante dos responsáveis da igreja. (...) Não raro
o padrinho é aquele que despertou a fé naquele que conquistou para a Igreja.“ CABIÉ, 1991, p. 36-37.
669
CABIÉ, 1991, p. 67.
670
Conforme White, as origens da confirmação são problemáticas. “No séc. 5 ‘confirmar’ se referia à unção pós-
batismal e imposição das mãos pelo bispo, mas somente no séc. 9 é que veio a ‘se tornar o termo normal a ser
usado para designar esta parte do rito iniciatório’ . WHITE, 1997, p. 160.
671
TABORDA, 1998, p. 193.
672
CABIÉ, 1991, p. 75.
673
WHITE, 1997, p. 161.
674
WHITE, 1997, p. 159.
204
conjunto. O processo de iniciação que visa tornar uma pessoa cristã teve um desdobramento
muito importante no surgimento da igreja cristã, acompanhando-a em seu desenvolvimento,
até o século 6 quando, então, sofre modificações significativas. O rito de iniciação cristã,
originalmente, não está ligado ao nascimento da pessoa. Ele é, sobretudo, um rito que assinala
uma mudança de vida, uma conversão e o ingresso do indivíduo numa comunidade a qual se
caracteriza por um estilo de vida, com valores e próprios, diferentes do mundo circundante
ao qual a pessoa cristã renuncia. O rito de iniciação desenvolvido pela comunidade cristã das
origens contribuiu para dar significado ao sentido que a vida e a fé representavam no contexto
em que a igreja cristã se desenvolvia. A iniciação, mediante etapas rituais, representa um
processo gradual de crescimento na e de adesão à vida cristã, com o objetivo de ajudar a
pessoa a tornar-se consciente do que significa ser cristão ou cristã no mundo em que ele ou ela
vive. O rito de iniciação inclui aprendizagem, ações simlicas e testemunho ético, visando,
desta forma, preparar a pessoa para assumir o compromisso que a vida cristã exige e a
mudança que ela implica.
O processo de iniciação é marcado por estágios, os quais são claramente delineados
por ritos de separação, transição e incorporação, conforme a definição dada por Van Gennep
sobre os ritos de passagem. Tomando por base o exemplo de iniciação descrito por Hipólito,
pode-se dizer que a separação consiste no rito de admissão ao catecumenato. A pessoa, tendo
sido tocada pela mensagem da fé cristã, acompanhada de um padrinho ou madrinha, é
apresentada à comunidade, como candidata ao batismo e, mediante exame
675
, é aceita ou não
para a etapa seguinte, a do catecumenato ou ensino.
O catecumenato representa o período de transição. Este é o mais longo estágio e
consiste de aprendizagem na fé, o qual inclui o ouvir da Palavra de Deus e o conhecimento da
hisria da salvação, além do testemunho prático. Os candidatos e as candidatas participam
das assembléias dominicais, no entanto, eles e elas não podem permanecer na segunda parte
da reunião comunitária, referente à oração dos fiéis e à eucaristia, permitida aos batizados.
Eles e elas são recomendados ao Senhor através da oração dos fiéis. As pessoas que os
ensinam (catequistas, clérigos ou leigos) também oram com eles, impondo-lhes as mãos. Ritos
de exorcismo o freqüentes. O exorcismo visa fortalecer as pessoas em sua luta diária contra
o mal e o pecado. Esse rito indica que a vida cristã é um combate contra o mal e exige
renúncia; como tal, a pessoa necessita da força de Deus para entrar “no combate vitorioso do
675
O exame das pessoas candidatas a tornar-se cristão e cristã, consiste de um interrogatório sobre a vida delas,
sobre a sua profissão, pois haviam profissões que não eram aceitas pela cristã. As pessoas que as conduziam
ou as apresentavam (padrinhos ou madrinhas) deviam dar testemunho sobre elas. HIPÓLITO, 1971, p. 46-49.
205
Cristo em sua paixão”
676
, passar pela morte (abandonar o velho ser humano) e ressuscitar para
uma nova vida.
O rito de incorporação à comunidade dos fiéis se dá no dia do batismo. O início da
cerimônia batismal ainda se em separado da comunidade. Os candidatos se reúnem ao
redor da fonte batismal, onde acontece o banho batismal, antecedido de orações, unções,
renúncia e confissão de fé, tudo isso acompanhado de gestos significativos. Após esse ato,
inicia-se o rito de incorporação, com a entrada na igreja, com a unção final dada pelo bispo,
com a recepção da comunidade através do beijo da paz e da oração dos fiéis
677
e com a
eucaristia. As instruções pós-batismais, com as chamadas catequeses mistagógicas, também
representam incorporação à comunidade, pois, nessas catequeses, os recém-batizados tinham
acesso aos conhecimentos que eram reservados apenas aos iniciados, os filhos da luz ou
iluminados.
3.3.3 Rito de matrimônio
Até o século 4, não há textos que evidenciem uma liturgia cristã do matrimônio. Os
autores são unânimes em dizer que os cristãos seguem os ritos locais de matrimônio. A Carta
a Diogneto, da segunda metade do século 2, assim o indica: Não se distinguem os cristãos
dos demais, nem pela região, nem pela língua, nem pelos costumes. (...) Casam-se como todos
os homens (...).”
678
Segundo Bradshaw, um dos primeiros sinais de um envolvimento da
igreja no casamento dos seus fiéis vem de Inácio de Antioquia, do século 2. Ele alerta aos
casais que procurem a recomendação do bispo, antes de contrair matrimônio, para que este
seja realizado “no Senhor
679
. Possivelmente, o casal deveria consultar o bispo para que ele
aprovasse os procedimentos relativos ao rito de casamento da cultura local
680
. Segundo esse
autor, no fim do século 2 surgem as primeiras evidências de uma liturgia especificamente
676
CABIÉ, 1991, p. 40.
677
A oração dos fiéis consiste de intercessões, conhecida por nós como oração geral da igreja, e do Pai-Nosso.
Essas orões estão inseridas dentro da grande oração eucarística. CIRILO de Jerusalém. Catequeses
mistagógicas. Tradução, introdução e notas de Frederico Vier e Fernando Figueiredo. São. Petrópolis: Vozes,
1977. (Fontes da catequese, 12). p. 38.
678
A CARTA a Diogneto. Tradução e notas de Fernando Figueiredo. Petrópolis: Vozes, 1976. (Fontes da
catequese, 10). p. 22.
679
„(...) so that their marriage is made in the Lord”. BRADSHAW, Paul F. Christian marriage rituals. In:
BRADSHAW, Paul F.; HOFFMAN Lawrence A. (Eds.). Life cycles in jewish and christian worship. London:
University of Notre Dame Press, 1996. (Two liturgical traditions, 4). p. 112.
680
BRADSHAW, 1996, p. 112.
206
crisdo casamento. Esta é encontrada nos escritos de Tertuliano, no Norte da África. Aliás,
Tertuliano insistiu que o casamento ocorresse na igreja na presença de ministros cristãos
681
.
Não havendo ainda ritos fixos na Igreja cristã, a comunidade cristã lança mão de ritos
seculares. Existe, segundo Evenou, uma unanimidade fundamental na idéia que se fazia do
casamento e na maneira de celebrá-lo em toda a bacia do Mediterrâneo”
682
. Para conhecer os
costumes cristãos referentes ao casamento é necessário, portanto, observar como se
desenvolve o matrimônio entre os habitantes da área do Mediterrâneo, no período referente
aos primeiros séculos do surgimento das comunidades cristãs.
Entre os gregos e os romanos distinguem-se o momento e o tempo do noivado e do
casamento. O noivado, segundo os gregos, consistia num encontro entre o pretendente e o
pai da moça para chegar ao acordo sobre o matrimônio e de modo especial sobre o dote
683
,
que ficava propriedade da mulher: espécie de antecipação da sua herança”
684
. Portanto, o
noivado, para os gregos, significa fazer um contrato de casamento, sendo o dote um elemento
importante do noivado. Entre os romanos, o noivado possui rmula jurídica muito rígida,
explica Nocent; realiza-se uma espécie de contrato pelos dois chefes de família. Entre as
famílias nobres, o noivado é celebrado mediante um banquete, entre amigos e parentes. Do
noivado faz parte a promessa formal, de acordo com uma rmula do tipo “Prometes?
Prometo!”
685
. Segundo Florenzano, entre os gregos, a promessa, um contrato de esponsais,
provavelmente, era realizada ao lado do altar doméstico
686
. E desse ato participavam somente
o pai da noiva (kyrios), o noivo e as testemunhas de ambos os lados
687
. Desse rito fazia parte
um aperto de mãos entre o pai da noiva e o noivo e o pronunciamento de algumas rmulas
próprias
688
.
Depois de um intervalo do noivado, celebrava-se o casamento. Dos preparativos
faziam parte diversos rituais. No dia anterior ao casamento, a noiva, em sinal de despedida da
sua vida de inncia, consagrava seus brinquedos e objetos familiares a deuses e deusas do
681
BRADSHAW, 1996, p. 113.
682
EVENOU, J. O matrimônio. In: MARTIMORT, Aimé Georges (Org.). A igreja em oração: introdução à
liturgia, v.3: os sacramentos. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 164.
683
“Os dotes eram constituídos por dinheiro ou por bens imóveis avaliados em dinheiro”. Cf. FLORENZANO,
Maria Beatriz Borba. Nascer, viver e morrer na Grécia antiga. São Paulo: Atual Editora, 1996. (Discutindo a
História). p. 43.
684
NOCENT, Adrien. O matrinio cristão. In: NOCENT, Adrien, et al. Os sacramentos: teologia e história da
celebração. São Paulo: Paulinas, 1989. (Anamnésis, 4). p. 338.
685
NOCENT, 1989, p. 339.
686
FLORENZANO, 1996, p. 43.
687
FLORENZANO, 1996, p. 43.
688
FLORENZANO, 1996, p. 44.
207
casamento
689
. Indispensável aos preparativos do casamento grego era o banho ritual dos
noivos. Antes da cerimônia de casamento, a noiva recebia, dentre outros presentes, um vaso
especialmente fabricado para conter a água do banho nupcial que era trazida de um lugar
especial. Buscava-se a água mediante um cortejo do qual eram incluídos parentes dos noivos,
tocadores de flautas e pessoas carregando tochas.
Para a cerimônia do casamento, o noivo vestia uma nica tecida de lã e usava uma
coroa trançada com folhas adequadas e se perfumava com óleo de mirra. A noiva também se
perfumava com mirra e outros óleos e se adornava ao máximo. Ela usava vestido bordado,
sandálias especiais e penteados sofisticados, com redes finas no cabelo e coroa de metal
nobre, além de colar, cintos e um véu. Tanto a casa da noiva quanto a do noivo eram
enfeitadas. Havia festa em ambas as casas, com sacrifícios e banquetes, os quais eram
acompanhados de música e dança
690
. “A parte principal do rito de casamento era o cortejo
nupcial, quando a noiva ia da casa de seu pai para a do noivo. Esse era o momento mais
marcante da ‘passagem’, da transição que os dois noivos vivenciavam.”
691
Depois do
banquete nupcial na casa da noiva, a altas horas da noite, iniciava-se o cortejo que conduzia o
casal à casa do marido com músicas, cânticos e tochas.
Antes de deixar a própria casa, a esposa era entregue pelo pai ao seu marido
(ékdosis). No momento da ékdosis os esposos eram coroados. Chegados à casa do
esposo, a esposa era recebida na entrada pelos sogros, era coroada com frutos,
tâmaras, figos e nozes, símbolos de fecundidade e de prosperidade. Os dois esposos
davam a volta ao redor da casa de os dadas e a seguir eram conduzidos pelos
parentes e amigos ao quarto do casal. Comiam no tálamo
692
um marmelo, símbolo
de fecundidade, depois o esposo desatava a cinta da esposa. Os convidados se
retiravam soltando gritos para afastar os espíritos malignos.
693
Entre os romanos os costumes o semelhantes, acentuando-se, porém, sua
característica jurídica própria. Segundo Hamman, em Roma, dez testemunhas assinavam o
contrato de casamento
694
.
Esses eram os costumes que, em geral, os cristãos estavam familiarizados. Os ritos
matrimoniais eram domésticos e os cristãos evitavam os elementos dos ritos locais que se
relacionavam a idolatria, tais como consulta aos adivinhos e o sacrifício, bem como aspectos
689
FLORENZANO, 1996, p. 47.
690
FLORENZANO, 1996, p. 46-52.
691
FLORENZANO, 1996, p. 54.
692
Thalamus, do latim, significa “quarto nupcial”. FARIA, Ernesto (Org.). Dicionário escolar latino-
português. 3. ed. Rio de Janeiro: Campanha Nacional de Material e Ensino, 1962. p. 995.
693
NOCENT, 1989, p. 339.
694
HAMMAN, A.-G. A vida cotidiana dos primeiros cristãos (95-197). São Paulo: Paulus, 1997. p. 199.
208
licenciosos do banquete de núpcias e do cortejo
695
. Mas, segundo Hamman, o divertimento
era parte das festividades do casamento dos cristãos
696
. Ritos como os de sacrifício foram
imediatamente substituídos, talvez pela eucaristia, diz Hamman
697
.
Até o século 4 o se comprova a existência de uma bênção litúrgica ou a
intervenção de um sacerdote nos ritos nupciais. Mas, para os fiéis, os costumes nupciais
adotados das suas regiões são, por eles, transfigurados por seu batismo, e representam a sua
união com Cristo. Esta convicção vem atestada claramente pela iconografia. Em sarcófagos,
em fundos de cálice, Cristo aparece como pessoa coroando os dois esposos e presidindo a
junção das suas mãos, sendo estas colocadas sobre o livro dos evangelhos
698
. A iconografia
permite observar diversos detalhes da forma como se realizava o matrimônio entre os cristãos
dos primeiros séculos. Giuntella percebe através da iconografia cristã que o matrimônio
cristão continua invariável em relação ao costume romano: os noivos se voltam um para o
outro, se dão a o direita; o noivo quase sempre tem um rolo na mão esquerda, sinal do ato
oficial do matrimônio; às vezes, a mulher aparece com o braço ao redor dos ombros do
marido. Trata-se de uma representação da concórdia conjugal e da fidelidade até a morte.
Essas cenas também reproduzem histórias bíblicas, em substituição aos motivos mitológicos
de outras religiões
699
.
A elaboração da liturgia nupcial cristã inicia no final do século 4. Do início do século
5 o seguinte rito descrito por Paulino de Nola: “os noivos recebem na igreja a bênção do
bispo, que une suas cabeças sob o vínculo conjugal e estende sobre elas o véu, santificando-os
com a oração
700
. Nessa mesma época, informa Colombo, a bênção nupcial, que acompanha a
entrega do u, é realizada durante a eucaristia. Não se trata do flammeum
701
, de Roma, que
cobre a cabeça da noiva desde o início da cerimônia na casa paterna, mas é o véu estendido
pelo bispo (velamen sacerdotal), que cobre a noiva completamente e os ombros do noivo, cuja
cabeça fica descoberta
702
. Pelo que se deduz dos autores, esse rito acontece após o rito
doméstico, conforme os costumes já descritos. Contraído o matrinio, os esposos se
695
EVENOU, 1991, p. 165.
696
HAMMAN, 1997, p. 198.
697
HAMMAN, 1997, p. 199.
698
EVENOU, 1991, p. 166.
699
GIUNTELLA, A. M. Matrimônio: iconografia. In: BERARDINO, Ângelo Di (Org.). Dicionário patrístico e
de antigüidades cristãs. Petrópolis / São Paulo: Vozes / Paulus, 2002. p. 909.
700
TIBILETTI, C. Matrimônio: ritos litúrgicos. In: BERARDINO, Ângelo Di (Org.). Dicionário patrístico e de
antigüidades cristãs. Petrópolis / São Paulo: Vozes / Paulus, 2002. p. 909.
701
Véu nupcial, vermelho-ígneo, usado pela noiva. Cf. NOCENT, 1989, p. 340.
702
COLOMBO, G. Matrimônio. In: SARTORE, Domenico; TRIACCA, Achille M. (Orgs.). Diciorio de
liturgia. São Paulo: Paulus, 1992. p. 711.
209
apresentam à comunidade, participam da eucaristia e se unem às orações da comunidade e
obtêm uma bênção particular, a bênção nupcial
703
. O bispo também era convidado para o
banquete nupcial que acontecia em casa, assim como outras pessoas da comunidade. Ele,
inclusive, assinava, como testemunha, o contrato nupcial
704
. Entre os séculos 9 e 10, a igreja
reivindica a competência jurídica sobre o matrimônio, exigindo que o consentimento e a
entrega do penhor nupcial, originalmente ocorridos na casa, sejam expressamente declarados
na presença do sacerdote, na igreja ou diante das portas da igreja, como indicam os rituais dos
culos 11 a 14
705
.
3.3.4 Rito de nascimento e de maternidade
O único rito ligado à maternidade que aparece nos livros litúrgicos data do fim do
culo 11. Trata-se da bênção da mãe que, após o parto, entra pela primeira vez na igreja
706
.
Embora o rito de bênção às mães apareça nos livros litúrgicos do século 11, o costume da
purificação da mulher ligado ao nascimento e ao parto é antigo. Arx indica, inclusive, que as
parturientes mantinham certo prazo para reaparecer na igreja, depois do parto, nos
primeiros séculos, embora não houvesse um ritual específico que reintroduzia a mulher na
igreja
707
. De acordo com Bradshaw, uma evidência desse rito é encontrada no século 4 nos
Cânones de Hipólito, no Egito, segundo o qual a mulher que dera à luz uma criança, assim
como a sua parteira, durante o período da purificação, deveriam sentar-se junto com os
catecúmenos (aqueles que na reunião da comunidade participavam apenas da liturgia da
Palavra) e não recebiam a ceia da comunhão
708
.
Uma forte influência desse costume vem do código de purificação do Antigo
Testamento. De acordo com Levítico 12. 1-8, a mulher depois do parto era considerada
impura e necessitava cumprir o que prescrevia a lei judaica: apresentar-se ao templo para o
ritual de purificação 33 dias após o nascimento, no caso de um menino, ou 66 dias, no caso de
uma menina, e entregar ao sacerdote a sua oferta para que ele fizesse o sacrifício ao Senhor,
em seu favor. Essa idéia tamm é favorecida pela referência a Lucas 2.22, sobre a
703
TIBILETTI, 2002, p. 909; COLOMBO, 1992, p. 710.
704
TIBILETTI, 2002, p. 909; HAMMAN, 1997, p. 200.
705
COLOMBO, 1992, p. 710-711.
706
ARX, 1978, p. 66.
707
ARX, 1978, p. 69.
708
BRADSHAW, Paul F. Christian rites related to birth. In: BRADSHAW, Paul F.; HOFFMAN Lawrence A.
(Eds.). Life cycles in jewish and christian worship. London: University of Notre Dame Press, 1996. (Two
liturgical traditions, 4). p. 13.
210
purificação de Maria, mãe de Jesus
709
. Tal mentalidade dos judeus se impôs na igreja oriental
e as parturientes se apresentavam à igreja depois do parto para cumprir o ritual de purificação.
Esse costume também influenciou a igreja ocidental, sendo divulgado, sobretudo, pelos livros
penitenciais marcados pela mentalidade greco-irlandesa, a qual tinha pouco apreço às
atividades corporais. O rito de purificação, no entanto, não é prescrito pela lei canônica
710
.
Mesmo assim, o costume de a mulher ir à igreja depois do parto foi mantido. Diversos títulos,
utilizados nos livros rituais, indicam esse rito: “Benedictio mulieris post partum” e
“Introductio mulieris post partum in Ecclesiam” são os mais comuns
711
. Conforme o autor, a
primeira designação era utilizada tanto para a bênção em casa quanto na igreja
712
.
O Rituale Romanum, editado pelo papa Paulo V, no ano de 1614, mudou a
formulação litúrgica da bênção da mãe, tirando o caráter de purificação influenciado pelas
normas do Antigo Testamento e criou um tipo de ritual neotestamentário, enfatizando a idéia
de ação de graças
713
. Em síntese, esse rito consta do seguinte: a mãe está ajoelhada na porta da
igreja com uma vela acesa na mão; ela é recebida pelo sacerdote que a asperge, dizendo
‘Adjutorium ...’, a Antífona Haec accipiet’ e o Salmo 23 (...) ”. Com as palavras de apelo
Ingredere in templum Dei, adora Filium Beatae Mariae Virginis; qui tibi foecunditatem tribuit
prolis’ “, a mãe é introduzida na igreja, com a mão envolvida na estola do sacerdote. Ela se
ajoelha diante do altar. “Reza-se o Kyrie, Pater noster, versículos e uma oração. Depois o
padre asperge mais uma vez a mãe com água benta e a benze.”
714
Apesar dos esforços de
alteração proposto pelo Rituale Romanum, Arx diz que a idéia de purificação continuou a
prevalecer nas liturgias e só desaparece depois do Concílio Vaticano II. Até mesmo no rito do
Rituale Romanum a idéia da purificação continua presente através do gesto no qual o
sacerdote mantém a mão da mãe sob a estola. “O contato com a estola significa para a mãe
entrante uma proteção contra as forças do demônio. Ao mesmo tempo torna-se também digna
de entrar na casa de Deus. Também as orações correspondentes contêm alusões à
purificação.
715
709
BRADSHAW, 1996, p. 13.
710
ARX, 1978, p. 67.
711
ARX, 1978, p. 68.
712
Na língua alemã se tornou comum a denominação “Muttersegen(bênção da mãe) e “Aussegnung”, na gíria
popular (tirar o quebranto). Outras expressões utilizadas também são: “Hervorsegnung”, “Vorsegnung”,
“Fürsegnung” (em alemão), relevailles” (em francês) e churching” (em inglês). A igreja evangélica ainda
adota “Kirchgang” e “Einsegnung”. ARX, 1978, p. 68.
713
ARX, 1978, p. 69, 71.
714
ARX, 1978, p. 69.
715
ARX, 1978, p. 72.
211
Conforme Arx, do ponto de vista histórico e litúrgico, “a bênção depois do parto
sempre foi considerada como uma purificação da mulher”
716
e, visando uma ênfase diferente
para esta bênção, o autor chama atenção para os conceitos que partem da temática da visita
de Maria ao templo, depois do nascimento de Jesus, os quais podem ser: “ação de graças,
apresentação da criança, súplica pela bênção de Deus”.
717
Arx, mesmo sem entrar em detalhes, afirma que o costume de manter certo prazo
para as mulheres reaparecerem à igreja, após o parto, era antigo. Ele afirma ainda que a
designação “Benedictio mulieris post partum”, utilizada nos livros litúrgicos a partir do século
11, também se referia a uma bênção que ocorria na casa. Bradshaw, referindo-se a essa época,
também aponta para a existência de ritos que ocorriam na casa, pois os livros lirgicos das
igrejas do Ocidente, assim como da Igreja Ortodoxa Oriental, continham orações para serem
utilizadas imediatamente antes e no dia do nascimento e uma bênção à mãe, na casa, depois
do nascimento, além de um rito de retorno da mãe à igreja. Conforme o costume da Igreja
Ortodoxa Oriental, as orões que ocorriam na casa eram proferidas pelo sacerdote
718
. Essas
observações, levam à suspeita de que as famílias cristãs mantinham ritos domésticos de
nascimento e de maternidade desde tempos mais antigos, embora estes não se encontrem
documentados. Utilizando a mesma linha de argumentação dos pesquisadores em relação aos
ritos matrimoniais, de que a comunidade cristã seguia os costumes locais, pode-se levantar a
hipótese de que as famílias cristãs sempre mantiveram ritos locais de nascimento e
maternidade. A Carta de Diogneto, utilizada na argumentação dos pesquisadores em relação
ao casamento dos cristãos, conforme citação acima
719
, também é válida para suspeitar que
possivelmente houvessem práticas de ritos de nascimento e maternidade entre eles, assim
como havia entre os povos vizinhos e na tradição judaica
720
. Portanto, o havendo registros
específicos sobre ritos de nascimento e maternidade entre os cristãos dos primeiros séculos,
cabe verificar como eram os costumes entre os povos com quem eles conviviam ou dos quais
eles têm uma herança cultural e religiosa. Como verificado, as comunidades cristãs dos
primeiros séculos, assim como mais tarde, no culo 11, foram influenciadas pelo rito de
purificação da mulher, uma antiga prática judaica. Desta forma, pode-se suspeitar que elas
716
ARX, 1978, p. 73.
717
ARX, 1978, p. 74.
718
BRADSHAW, 1996, p. 14.
719
Conferir, acima, no início da secção 3.3.3.
720
Relembrando o texto citado, mas complementando o que diz a Carta: “Não se distinguem os cristãos dos
demais, nem pela região, nem pela língua, nem pelos costumes. (...); seguem os costumes locais relativamente ao
vestrio, à alimentação e ao restante estilo de viver, (...). Casam-se como todos os homens e como todos
procriam, maso rejeitam os filhos.” Cf. A CARTA a Diogneto, 1976, p. 22.
212
também tenham mantido a prática de outros ritos judaicos, especialmente de ritos de
passagem, cujo lugar vivencial é o espaço doméstico, conforme esclarecem os autores a
seguir.
De acordo com Gerstenberger,
Pode-se comprovar que havia, no antigo Israel, um amplo culto doméstico que tinha
por objetivo o bem-estar da comunidade familial. Até a época do exílio, as famílias
provavelmente mantinham, em suas casas ou em suas proximidades, um pequeno
nicho cultual onde veneravam uma divindade guardiã. Talvez, na origem, as
mulheres ou a mulher principal eram responsáveis por esse culto doméstico. Os ritos
de passagem nascimento e circuncisão, puberdade, casamento, transmissão da
nção da família, sepultamento faziam parte das principais celebrações cultuais
mais amplas.
721
Segundo Neuenfeldt, em Israel, as parteiras, ajudadas por outras mulheres, talvez
parentes das parturientes, comandavam os ritos do recém-nascido, dos quais faziam parte o
ato de lavar, untar, e, às vezes, passar sal. Como indica a autora, o texto de Ezequiel 16.4-6
faz referências aos componentes de um ritual de nascimento: “cortar o cordão umbilical, lavar
com água, esfregar com sal, envolver em faixas”
722
. Segundo a autora, um hino de
agradecimento era entoado pela mãe, pois a experiência do parto podia significar uma luta
entre a vida e a morte
723
. Como indicado acima, de acordo com Levíticos 12. 1-8, ritos de
purificação da mulher eram praticados depois do parto.
Além de Israel, na cultura greco-romana as mulheres praticavam o rituais de
purificação após o parto, mas também rituais de preparação para o parto, assim como também
outros ritos após o nascimento.
Descrições sobre a vida na Grécia antiga, referentes ao período que abrange o século
6 ao culo 1 a. C.
724
, apontam para a existência de diversos rituais acompanhando as pessoas
nos principais momentos da vida humana. Ritos de purificação eram muito praticados em
momentos de passagem.
As transições, mais especificamente por serem momentos de muita sensibilidade e
fragilidade, por envolverem pessoas que em determinado momento da vida não
possuem uma condição social definida e, portanto, são muito vulneráveis, podiam
atrair as impurezas e os espíritos indesejados. Para que isso não ocorresse, os
participantes dos rituais de transição eram purificados antes e depois.
725
721
GERSTENBERGER, Erhard S. Teologias no Antigo Testamento: pluralidade e sincretismo da em Deus
no Antigo Testamento. São Leopoldo: EST / Sinodal / CEBI, 2007. p. 65.
722
NEUENFELDT, Elaine Gleci. Práticas e experiências religiosas de mulheres no antigo Israel: um estudo
a partir de Ez. 8.14-15 e 13.17-23. São Leopoldo: EST / IEPG, 2004. (Tese de Doutorado). p. 197.
723
NEUENFELLDT, 2004, p. 197.
724
Cf. FLORENZANO, Maria Beatriz Borba. Nascer, viver e morrer na Grécia antiga. São Paulo: Atual
Editora, 1996. (Discutindo a História). p. 8-10.
725
FLORENZANO, 1996, p. 14.
213
Antes do nascimento, por exemplo, a casa da futura mãe era purificada com pez, uma
substância betuminosa, com o poder de afastar impurezas. O nascimento era assistido pelas
mulheres: parteira, vizinhas ou amigas. Ao pai cabia o reconhecimento social da criança
726
.
As mulheres eram responsáveis pela preparação da parturiente e pela assistência ao recém-
nascido, cortando-lhe o umbigo, lavando-o e o vestindo
727
. Na casa, o nascimento de um
menino era sinalizado pelo costume de pendurar em cima da porta um ramo de oliveira e no
caso de uma menina, uma fita de lã. Nos dias que se seguiam ao nascimento executavam-se
ritos de integração da criança na casa paterna, denominada oikos. O primeiro rito era realizado
no quinto ou no sétimo dia após o nascimento. A festa começava por um sacrifício de um
animal às divindades familiares. Em seguida, o pai, nu, carregava a criança, coberta de
amuletos mágicos, em torno do altar familiar. Derramava-se água lustral sobre o bebê,
destinada à purificação, e eram recitadas fórmulas mágicas. Com esse ritual, o pai, autoridade
máxima da casa, reconhecia a criança como seu filho, aceitando-a no seio da família. Desta
maneira, ele se tornava o kyrios (senhor) da criança
728
. Segundo Zaidman, o pai colocava a
criança no chão, sinal de que inicia a vida social da criança. O contato com o solo do oikos é
um rito de integração que faz do filho um ser humano”
729
, podendo representar o segundo
nascimento, pois, do contrário, a criança poderia ser abandonada. Aqui é importante lembrar a
observação contida na Carta de Diogneto, dizendo que os cristãos “não rejeitam os filhos”
730
.
No decorrer das cerimônias do quinto ou sétimo dia, as mulheres que assistiram ao parto se
purificavam. Essa era uma festa privativa da família, mas parentes e amigos enviavam
presentes tradicionais
731
. No décimo dia havia uma cerimônia mais aberta. Era o Decate. Toda
a família e os amigos podiam participar. Era uma festa marcada pela alegria da nova criança,
comemorada com danças e refeão
732
. Nesse ritual, a criança também recebia o nome
733
.
Uma oferenda aos deuses marcava o final do período de impureza relacionado ao nascimento
e parto
734
. Zaidman explica que depois do nascimento de uma criança, a mulher está impura e,
acompanhada das mulheres que a assistem no parto, ela mantém-se afastada do marido até a
726
ZAIDMAN, Louise Bruit. As filhas de Pandora: mulheres e rituais nas cidades. In: DUBY, Georges;
PERROT, Michelle (Org.). História das mulheres no ocidente, v. 1: a antiguidade. São Paulo / Porto:
EBRADIL / Edições Afrontamento, 1990. p. 448 e 449.
727
FLORENZANO, 1996, p. 14.
728
FLORENZANO, 1996, p. 15.
729
ZAIDMAN, 1990, p. 450.
730
Conforme acima, nota de rodapé número 720, de acordo com informações acima, na nota 736.
731
FLORENZANO, 1996, p. 15.
732
FLORENZANO, 1996, p. 15.
733
ZAIDMAN, 1990, p. 450.
734
FLORENZANO, 1996, p. 14.
214
cerimônia de purificação. O ritual de purificação consiste de um sacrifício, “oferecido por
aquela que a ajudou a dar à luz”
735
.
Se de acordo com a Carta de Diogneto, os crisos têm um estilo de vida como os
demais e mantêm costumes locais, e, conforme Arx e Bradshaw, se o rito de purificação da
mulher é uma realidade presente na vida dos cristãos dos primeiros séculos, além de ser uma
prática resgatada pela igreja do século 11 em diante, sob influência dos ritos de purificação do
Antigo Testamento, pode-se dizer, com boa probabilidade, que as famílias cristãs da igreja
dos primórdios mantinham práticas rituais de nascimento e de maternidade assim como
mostra o costume dos povos de seu convívio. No entanto, deve-se levar em conta que os
supostos ritos, assim como é demonstrado na prática dos ritos matrimoniais, eram observados
a partir de uma ótica cristã ou do espírito cristão. A Carta de Diogneto, diz, por exemplo, que
os cristãos “não rejeitam os filhos”, tal como a prática dos gregos
736
.
3.3.5 Rito de sepultamento
Há poucas informações sobre o sepultamento cristão no Novo Testamento e nos três
primeiros séculos do cristianismo
737
. Como em outras “passagens”, os ritos de sepultamento
cristão originam-se de tradições locais e costumes judaicos. A comunidade cristã reinterpretou
os ritos recebidos, rejeitando práticas contrárias à sua e acrescentando aos ritos temas
importantes da sua teologia
738
. A diversidade de costumes locais dificulta recuperar uma
imagem completa dos ritos cristãos de sepultamento, sobretudo, da época pré-
constantiniana
739
. Mas, é possível perceber acentos teológicos comuns nas práticas rituais das
diversas comunidades cristãs desse período. O sepultamento cristão era totalmente envolvido
735
ZAIDMAN, 1990, p. 449. Várias divindades gregas estão relacionadas ao nascimento e parto. Ilitiia é
invocada por um parto feliz, socorrendo a mãe nas dores e no sofrimento; Ártemis é a deusa do parto e também
da criança recém-nascida. Ela recebe as vestes da parturiente como oferenda em sinal de um parto bem sucedido.
Uma divindade, espécie de negativo de Ártemis, recebe as veste das mulheres mortas depois do parto.
ZAIDMAN, 1990, p. 448-449.
736
De acordo com Florenzano, entre os gregos “um dos aspectos mais importantes no nascimento de uma criança
era a decisão paterna de criá-la ou não”. As mulheres espartanas, por exemplo, banhavam as crianças com vinho
para testar a sua resistência, pois em Esparta, na época clássica, desejava-se criar apenas crianças fortes. Mas, em
toda a Grécia, o pai decidia se iria ou não criar a criança. Só após essa decisão é que se praticavam os rituais de
nascimento (de reconhecimento paterno e de dar nome). “A prática de ‘exposição’ de recém-nascidos era comum
entre os gregos. Se um pai decidia que não iria criar uma criança, quando esta nascia era colocada em um pote de
argila e abandonada no campo, para morrer de fome, frio ou devorada pelos animais. Em Esparta, era jogada em
um precipício, onde se depositava o lixo...”. FLORENZANO, 1996, p. 18.
737
WHITE, 1997, p. 234.
738
HAMMAN, 1997, p. 210; WHITE, 1997, p. 235; CHUPUNGCO, 2000, p. 83; PHILLIPS, Edward L. verbete
Funerals (Early christianity). In: BRADSHAW, Paul F. (Ed.). The new westminster dictionary of liturgy and
worship. Louisville, Kentucky: Westminster John Knox Press, 2002. p. 214.
739
PHILLIPS, 2002, p. 214.
215
por um clima de esperança na ressurreição. Essa esperança é retratada nas inscrições e
imagens fúnebres encontradas nas catacumbas romanas, tais como, a ceia eucarística (símbolo
do banquete celestial) e o Bom Pastor conduzindo cordeiros em pastos verdejantes
740
. O
costume de fazer tais inscrições era comum aos povos circunvizinhos. Evidentemente, cada
qual reproduziu a ppria vio que tinha do mundo e da vida no além
741
.
Os gregos da época clássica e helenística praticavam tanto a inumação quanto a
cremação. Assim também o era entre os romanos
742
. Segundo Florenzano, o ritual nebre
grego pode ser dividido nos seguintes momentos: exposição da pessoa falecida, deposição do
corpo no túmulo, descida aos infernos e culto aos mortos. Esses momentos correspondem às
fases que caracterizam os ritos de passagem em geral: separação do grupo é a morte em si;
transição - é o ato de velar e o transporte para o cemitério (cortejo nebre); incorporação é
o acomodamento da pessoa falecida no mundo subterrâneo, o enterro do corpo ou das
cinzas
743
. Logo após a morte, o corpo da pessoa falecida era cuidadosamente preparado pelas
mulheres com mais de 60 anos. As parentas mais próximas também podiam participar desse
ritual. Zaidman ressalva que as mulheres, familiarizadas com os ritos de impureza do
nascimento e do parto, representam um papel específico nos rituais que acompanham a morte.
Antes de devolverem o corpo da pessoa falecida aos olhares dos parentes e amigos, elas o
preparavam, realizando os rituais de purificação. “Significativamente, é a mesma mulher que
ajuda aos nascimentos quem zela por estes últimos preparativos.”
744
Os rituais de purificação
consistiam de banho, unção com óleos perfumados e ato de vestir. Depois de preparada, a
pessoa falecida ficava exposta por um ou dois dias na própria casa, sobre um leito. Cenas
pintadas em vasos de cerâmica mostram homens, mulheres e carpideiras, ao redor da pessoa
falecida, em gestos de lamentação
745
. Nessas cenas pintadas, às vezes, a pessoa falecida
aparece coroada por uma guirlanda de flores ou folhas, em alguns casos, por diademas, com
folhas de ouro (nestes casos, tratavam-se, provavelmente, de monarcas, sendo o diadema um
atributo dos deuses)
746
. “Nas cenas de velório, as carpideiras ou assistentes nunca se vestem
de negro ou vermelho, que, de acordo com a documentação textual, seriam as cores do luto,
740
CHUPUNGCO, 2000, p. 83.
741
HAMMAN, 1997, p. 210.
742
FLORENZANO, 1996, p. 66.
743
FLORENZANO, 1996, p. 68.
744
ZAIDMAN, 1990, p. 450.
745
FLORENZANO, 1996, p. 69. Segundo Zaidman, são as mulheres as responsáveis pelas lamentações rituais e
canto fúnebre. ZAIDMAN, 1990, p. 451.
746
FLORENZANO, 1996, p. 70-71.
216
mas sim de violeta, verde-claro, marrom ou lilás.”
747
Devido à relação entre morte e
impureza, encontrava-se, do lado de fora da casa da pessoa falecida, um vaso com água
lustral, pura, trazida da casa dos vizinhos ou de uma fonte externa, para que as pessoas que
visitassem a pessoa falecida pudessem, ao sair dali, se purificar.
A purificação é também um elemento próprio dos ritos de passagem e de muitos
ritos gregos. No nascimento, na exposição dos recém-nascidos, nas iniciações e nos
casamentos, de uma maneira ou outra, a limpeza, a purificação, é um elemento
indispensável para agradar as divindades. (...) Nos momentos de transição, que eram
considerados perigosos, nada mais adequado do que as purificações.
748
Terminado o tempo de exposição em casa, iniciava-se o cortejo fúnebre em direção
ao local do sepultamento ou cremação. Este, entre os gregos, era realizado antes do raiar do
dia, à luz de tochas
749
. Os romanos, no dizer de Hamman, o realizavam de dia, mas os
enterros de crianças, pobres e escravos era à noite
750
. Tudo indica que o sepultamento era uma
cerimônia estritamente familiar, sendo acompanhada de alguns homens mas, principalmente
pelas mulheres da família
751
. No cemitério, a deposição do corpo incluía libações, bebidas
rituais e até mesmo sacrifícios de animais
752
.
Segundo o pensamento grego, a pessoa falecida, depois de velada e depositada no
túmulo, iniciava uma viagem no mundo subterrâneo, o Hades. Os vivos esperavam que essa
viagem fosse bem sucedida para que a pessoa falecida o voltasse para incomodá-los.
Caronte, o barqueiro infernal, conduzia os falecidos ao Hades. Havia a prática do óbulo,
uma pequena moeda de prata colocada na boca do morto, para pagar a viagem a Caronte
753
.
Após o enterro, na volta para casa, outras cerimônias eram praticadas. Primeiro, fazia-se uma
purificação do local e, em seguida, se servia um banquete nebre. Segundo Florenzano, o
período formal do luto encerrava-se no nono dia quando, então, amigos e familiares se
reuniam no túmulo para executar “ritos ‘costumeiros’ ; há documentos, porém, que registram
o trigésimo dia como fim do luto, diz a autora. Havia ainda o culto aos mortos, realizados
anualmente, de modo que todas as pessoas falecidas eram homenageadas numa grande festa
pública. É possível que esse fosse o momento do reconhecimento social da morte de alguém
(ou registro oficial), pois as cerinias fúnebres eram restritas aos familiares. Além disso,
também no aniversário da morte, a pessoa falecida recebia um culto especial. Não se sabe,
747
FLORENZANO, 1996, p. 71.
748
FLORENZANO, 1996, p. 72.
749
FLORENZANO, 1996, p. 72; ZAIDMAN, 1990, p. 450.
750
HAMMAN, 1996, p. 210.
751
FLORENZANO, 1996, p. 72.
752
FLORENZANO, 1996, p. 72.
753
FLORENZANO, 1996, p. 74.
217
porém, se este era realizado no túmulo ou no altar doméstico
754
. Segundo Neuenfeldt, no
antigo Israel, os rituais de morte também estão sob o cuidado das mulheres e pertencem ao
âmbito doméstico, espaço onde se desenvolvem diversos rituais decorrentes de uma religião
familiar, onde as mulheres exercem funções determinantes
755
.
Observações gericas sobre as práticas de sepultamento no cristianismo incipiente
permitem destacar o seguinte: o ritual de preparação do corpo da pessoa falecida também
ocorria em casa, consistindo de lavagem, unção e envolvimento em tecido de linho, enquanto
se proferiam orões
756
. Os cemitérios encontravam-se fora dos muros da cidade
757
, sendo o
cortejo fúnebre uma parte significativa do rito, durante o qual, se cantavam salmos de
esperança e louvor e aleluias de vitória
758
. “Trajavam-se vestes brancas, carregavam-se folhas
de palmeira e velas, queimando-se incenso à medida que a comunidade avançava rumo ao
cemitério em plena luz do dia.
759
Tudo isto visava expressar a idéia de viria sobre a
morte
760
. Enquanto os romanos e os gregos praticavam a inumação e a cremação, a igreja
cristã era contrária à cremação e adepta da inumação, provavelmente porque essa prática
reflete a crença crisda ressurreição do corpo, como indicava o uso cristão da palavra grega
koimeterion, para cemitério ou catacumba, que significa literalmente “lugar de dormir”
761
.
Possivelmente, a inumação também pode representar uma imitão do sepultamento de
Jesus
762
. Junto do sepulcro, orava-se, fazia-se leitura bíblica, recitavam-se salmos e celebrava-
se a eucaristia, sinal da comunhão que ainda existe entre os vivos e os mortos
763
. A pessoa
falecida recebia o ósculo final da paz e era sepultada com os pés voltados para o sol nascente,
um sinal da esperança na volta de Cristo, o “sol da justiça”, para ressuscitar os mortos
764
.
Logo após o sepultamento, podia ocorrer um ágape (refeição). No 3º, e 40º dias depois,
amigos e parentes se reuniam para orar, entoar hinos e recitar salmos
765
. Parece que
originalmente, de acordo com a liturgia judaica, nos dias que seguiam ao sepultamento, a
754
FLORENZANO, 1996, p. 76.
755
NEUENFELDT, 2004, p. 46ss e 202ss. De acordo com o que observa Gerstenberger, não se conhecem
detalhes de como se realizavam os cultos domésticos. O Antigo Testamento menciona aqui e ali objetos de
cultos familiares, como se pode depreender de diversos textos. Indicações sobre estes textos podem ser
conferidos em: GERSTENBERGER, 2007, p. 49ss.
756
WHITE, 1997, p. 234; DAVIES, J. G. Burial. In: DAVIES, J. G (Ed.). A new dictionary of liturgy and
worship. London: SCM Press, 1986. p. 117.
757
A legislação romana não permitia enterros no recinto da cidade. HAMMAN, 1997, p. 211.
758
WHITE, 1997, p. 234; DAVIES, 1986. p. 117.
759
WHITE, 1997, p. 234.
760
DAVIES, 1986, p.117.
761
sleeping place“, cf. PHILLIPS, 2002, p. 214.
762
HAMMAN, 1997, p. 211.
763
DAVIES, 1986, p. 117.
764
WHITE, 1997, p. 234; CHUPUNGCO, 2000, p. 83; DAVIES, 1986, p. 117.
765
DAVIES, 1986, p. 117; PHILLIPS, 2002, p. 215.
218
principal cerimônia fúnebre consistia na lamentação, momento em que as pessoas
manifestavam a sua dor e o seu sofrimento
766
. Outros ofícios ocorriam por ocasião do
aniversário do falecimento. Lembrar o dia da morte da pessoa cristã era mais importante do
que o dia do seu nascimento, pois a morte era entendida como passagem para a outra vida; era
o “natalício celestial” ou nascimento para a eternidade
767
. É difícil reproduzir um rito de
sepultamento das comunidades cristãs dos primeiros três séculos. Mas, a partir dos elementos
mais comuns encontrados, é possível, de acordo com Davies, apresentar o seguinte resumo: o
rito de sepultamento das primeiras comunidades consistia de cinco partes principais: oração
em casa (preparação do corpo com lavagem e unção e orões), procissão (com vestes
brancas, velas, incenso, palmeiras e cantos), ofício de louvor e ação de graças (leitura bíblica,
salmos), eucaristia (último beijo da paz), enterro (com os pés voltados para o oriente)
768
.
Cabe, por fim destacar o cuidado que a comunidade cristinha para com os mortos
ao se colocar a serviço do sepultamento dos pobres e estrangeiros. Havia uma grande
preocupação, na Antiguidade, em relação ao sepultamento e as pessoas costumavam tomar
providências em relação a ele. A sepultura assumia sentido religioso, era um lugar de repouso
e de culto aos mortos
769
. Cabia às famílias sepultarem os seus mortos e era uma impiedade
deixar alguém sem sepultura. A comunidade cristã enterrava os pobres e estrangeiros
deixados à sua própria sorte, assumindo as despesas de tais sepultamentos
770
.
3.3.6 Rito de cura
Doença e cura o realidades presentes no mundo bíblico e fora dele. Fala-se de
doenças e curas no Antigo e no Novo Testamento, nas práticas de Jesus, dos apóstolos e na
vida da igreja desde os seus inícios.
Tanto no mundo cultural bíblico como fora dele, é comum relacionar a doença com
as forças do mal, com o pecado; e, igualmente era comum, utilizar ritos mágicos de cura e
exorcismos
771
. A enfermidade, de acordo com o pensamento bíblico, o é algo isolado, mas
766
PORTO, Humberto. Liturgia judaica e liturgia cristã. São Paulo: Paulinas, 1977. p. 269.
767
WHITE, 1997, p. 235.
768
DAVIES, 1986, p. 117.
769
HAMMAN, 1997, p. 139-140.
770
HAMMAN, 1997, p. 140. Mais detalhes conferir em: GEORG, Sissi. Diaconia e culto cristão: o resgate de
uma unidade. São Leopoldo: Escola Superior de Teologia / Centro de Recursos Litúrgicos, 2006. (Teses e
Dissertações, v. 32). p. 96-102.
771
Cf. BORÓBIO, Dionísio. Unção dos enfermos. In: BORÓBIO, Dionísio (Org.). A celebração na igreja:
sacramentos, v.2. São Paulo: Loyola, 1993. p. 562.
219
encontra-se “no interior de um vasto mundo que abarca o mal em geral, as injustiças, as
desgraças, o sofrimento”
772
. Interessar-se por uma doença, enquanto tal, na Bíblia, é interrogar
pela experiência de fé que a doença suscita, diz Boróbio. A enfermidade, no sentido bíblico, é
algo que afeta a pessoa por inteiro e abala a vida na sua totalidade
773
. Para o ser humano
bíblico, na doença, deve-se recorrer, sobretudo, a Deus, Senhor da vida e da morte. Neste
sentido, as pessoas doentes se dirigem aos sacerdotes e profetas, na esperança de uma
intervenção divina
774
. É interessante observar, além disso, que a blia faz referências ao uso
de recursos terapêuticos domésticos, tais como, plantas e óleos
775
. O uso do óleo é antigo e
está presente nas práticas das grandes religiões, e não só nas do Mediterrâneo
776
.
No Novo Testamento, Jesus, em seu ministério, deu atenção especial à questão da
cura. Nos evangelhos
777
, Jesus é apresentado como aquele que, junto com a pregação e o
ensino, cura toda sorte de doenças e enfermidades. Diversos são os tipos de doenças que
aparecem nos textos do Novo Testamento: febre, doenças de pele, úlcera, gangrena,
reumatismo, hemorragias, hidropisia, desinteria, dores de estômago, doenças nervosas de
lunáticos, com convulsões e manifestações demoníacas
778
. Conforme os textos, os meios
empregados para as doenças são: óleo, vinho como desinfetante, colírio para os olhos, águas
termais, saliva, barro
779
. Em meio a esse contexto, Jesus exerce o seu ministério que inclui a
cura como uma das suas importantes realizações. Conforme Boróbio, não consta que Jesus
tenha utilizado remédios concretos. Jesus ora e escuta a oração dos doentes. Ele acolhe
pessoas doentes com o gesto de imposição de mãos, toca-os com saliva, ou unge-os com
óleo
780
. As curas visam dar sinais concretos da chegada da salvação. Através delas, Jesus
anuncia a presença do reino de Deus no mundo. Ressalta-se que a cura de enfermidades visa o
ser humano como um todo. A pessoa curada é, ao mesmo tempo, integrada à sociedade e, em
especial ao culto, visto que a doença exclui do templo e da convivência social. Portanto, a
cura significa o restabelecimento físico, social e religioso
781
. Na atividade de cura de Jesus
está em jogo a luta contra outros poderes, sendo que a doença, no Antigo e Novo Testamento,
772
BORÓBIO, 1993, p. 562.
773
BORÓBIO, 1993, p. 563.
774
BORÓBIO, 1993, p. 565.
775
Isaías 1.6; 7.20; Ezequiel 16.9; Levítico 14.10ss; Lucas 10.34.
776
CRICHTON, J. D. Unction. In: DAVIES, J. G (Ed.). A new dictionary of liturgy and worship. London:
SCM Press, 1986. p. 511.
777
Mateus 4. 23s; Lucas 6.17-19; Marcos 1.21ss.
778
Lucas 13.11; Mateus 9.20; Lucas 14,2; Atos 28.8; 1 Timóteo 5.23; Mateus 4.24; Marcos 1.26; 9.18, 20, 26.
779
Marcos 6.13; Lucas 10.34; Tiago 5.14; Apocalipse 3.28; João 5.2ss; Marcos 7.33; João 9.6ss.
780
BORÓBIO, 1993, p. 567.
781
DOBBERAHN, Friedrich E. Estudos bíblicos sobre cura e salvação. Estudos Teológicos, São Leopoldo, ano
33, n. 3, p. 278-293, 1993. p. 289.
220
é algo que pertence à morte e às influências de forças demoníacas. A cura é expressão da
vitória de Deus sobre a morte, sobre o mal e as forças que os produzem
782
. O ministério da
cura de Jesus também é transmitido aos apóstolos. Um texto referencial é o de Marcos 16. 14-
18. Jesus dá aos seus discípulos a incumbência de continuar a sua obra na qual está incluída a
cura aos doentes
783
. Neste texto aparece uma conexão direta e clara entre o rito de imposição
das mãos e a cura dos doentes. o texto de Marcos 6. 12-13, a cura se relaciona ao rito de
unção. “Ambos os ritos, unção com óleo e imposição das mãos parecem ter a mesma função e
força significante terapêutico-curativa, dentro de um contexto de missão e de evangelização
libertadora”, diz Boróbio
784
, acrescentando que a unção realça mais significativamente o
aspecto curativo e a imposição das mãos expressa mais a autoridade de Cristo. Assim, na
opinião do autor, os dois ritos são complementares, atuando na mesma direção
785
.
Atos dos Astolos dão testemunho de que a experiência de Cristo na cura dos
enfermos continua sendo a experiência da igreja
786
; Paulo inclui o dom da cura como parte
significativa do serviço de edificação da comunidade
787
. Contudo, é o texto de Tiago 5.14-
16
788
que ocupa o centro da reflexão em torno da atitude da igreja em relação aos enfermos,
sendo referencial na atividade de atendimento eclesial aos doentes durante muitos séculos.
Segundo Colombo, esse texto “apresenta uma praxe institucionalizada e descreve, com
multiplicidade e variedade de termos, capazes de exprimir a complexidade existencial da
situação do doente, a ação pastoral da comunidade: oração, unção, conforto e alívio, cura,
perdão dos pecados”
789
. Em outras palavras, pode-se dizer que Tiago apresenta uma linha
mais ritualista da atividade em torno da cura de pessoas doentes. O destaque dado aos
presbíteros
790
indica que há pessoas responsáveis pelo cuidado aos doentes da comunidade;
além disso, são dadas instruções sobre o procedimento a ser tomado diante da pessoa doente:
782
DOBBERAHN, 1993, p. 282-283, 290-291.
783
BORÓBIO, Dionísio. Aproximação à unção curativa na igreja primitiva. Concilium, [s.l], n. 234, p. 46-58,
1991. p. 48.
784
BORÓBIO, 1991, p. 50.
785
BORÓBIO, 1991, p. 50.
786
Atos 2.43; 5.12; 5.5-16; 9.34-40.
787
1Coríntios 12.9-28.
788
“Está alguém entre vós doente? Chame os presbíteros da igreja, e estes façam oração sobre ele, ungindo-o
com óleo em nome do Senhor. E a oração da fé salvao enfermo, e o Senhor o levantará; e, se houver cometido
pecados, ser-lhe-ão perdoados. Confessai, pois, os vossos pecados uns aos outros, e orai uns pelos outros, para
serdes curados. Muito pode, por sua eficácia, a súplica do justo.” Cf. Tiago 5.14-16.
789
COLOMBO, G. Unção dos enfermos. In: SARTORE; TRIACCA, 1992, p. 1205.
790
Os presbíteros, conforme diz o pprio texto de Tiago, são pessoas responsáveis pela comunidade.
221
orar sobre o doente (a expressão “sobre o doente” pode estar sugerindo uma imposição de
mãos), ungir com óleo e invocar o nome do Senhor, dar o perdão dos pecados
791
.
A ritualização da atividade terapêutica da igreja pode ser igualmente reconhecida em
textos patrísticos como o de Hipólito, na Tradição Apostólica. Nesse escrito apresenta-se uma
bênção do óleo, dada pelo bispo. Após a oração eucarística, se alguém oferecer óleo, este é
consagrado. O bispo dá graças, dizendo: “Assim como, santificando este óleo, com o qual
ungiste reis, sacerdotes e profetas, concedes, ó Deus, a santidade aos que são com ele ungidos
e aos que o recebem, assim proporcione ele consolo aos que o provam e saúde aos que dele se
servem.”
792
Como se percebe, a bênção do óleo é situada junto à eucaristia. O óleo abençoado
pode ser utilizado como bebida (uso interno) e como aplicação no corpo (uso externo). Os
próprios fiéis guardavam o óleo abençoado e, nos casos de doença, o utilizavam para si
próprios ou em favor dos outros
793
. Na Tradição Apostólica de Hipólito ressalta-se que ao
bispo é recomendado que visite pessoalmente as pessoas doentes, as quais o indicadas pelo
diácono
794
. Na verdade, o uso do óleo para fins terapêuticos é uma prática dos povos do
Mediterrâneo. A igreja, por sua vez, valoriza o uso e a confiança que esses povos têm “nas
virtudes curativas do óleo da oliveira e abençoa, assim, o óleo que é usado para os doentes
(caracterizada pela solene epiclese), que os leigos podem aplicar aos doentes e que os fiéis
enfermos usarão evidentemente no caso de doença -, em comunhão com a igreja”
795
. Outros
detalhes de uma bênção do óleo aparecem em Serapião, no século 5 ou mesmo 4
796
. Após a
oração eucarística, ele inclui uma bênção sobre o óleo, dizendo: ‘ que toda febre e todo mau
espírito e toda enfermidade desapareçam pelo beber e pelo ungir’
797
. Boróbio ressalta que a
unção não é o único rito utilizado na cura de enfermos. Ireneu, Santo Eutíquio e Santo
Ambrósio fazem referência à imposição de mãos e orações
798
.
Ao destacar pontos relevantes do seu estudo sobre a unção dos enfermos, Boróbio
afirma que a diferença da unção judaica bem como da unção praticada por outras religiões em
relação à prática cristã da unção não se pela ritualidade que a cerca, nem pela forma como
791
LANGELLA, Alfonso. A função terapêutica da salvação na experiência da igreja visão diacrônica e refleo
sistemática. In: DAL PINO, F. et al. Liturgia e terapia: a sacramentalidade a serviço do homem na sua
totalidade. São Paulo: Paulinas, 1998. (Série Liturgia e Participação). p. 125.
792
HIPÓLITO, 1971, p. 42.
793
COLOMBO, 1992, p. 1206; BORÓBIO, 1991, p. 51
794
COLOMBO, 1992, p. 1206; HILITO, 1971, p. 61.
795
COLOMBO, 1992, p. 1207.
796
Cf. MARTIMORT, A. G. Oração pelos doentes e unção sacramental. In: MARTIMORT, Aimé Georges
(Org.). A igreja em oração: introdução à liturgia, v.3: os sacramentos. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 111.
797
WHITE, 1997, p. 211.
798
BORÓBIO, 1991, p. 53.
222
ela é aplicada, mas pela bênção consecratória que se supõe. “Por esta bênção, o Espírito
desce, se apossa, transforma, fecunda... o óleo, de maneira que sua aplicação implica já uma
força e um poder novo de presea e santificação, de virtude sanadora e cura integral, de
salvação plena e perdão.”
799
Ele ainda destaca que esta nção é realizada no momento da
eucaristia, sendo da competência do bispo fazê-la. O autor ressalta que a partir do culo 10, o
momento mais indicado para esta bênção é a Quinta-feira Santa. A aplicação do óleo pode ser
realizada tanto pelos ministros ordenados quanto pelos pprios fiéis e o efeito esperado é da
cura, unido ao perdão e à salvação. Isto a entender que a igreja primitiva praticou a unção
como um rito de cura integral, física e espiritual
800
. Boróbio ainda acrescenta que além da
unção, tanto o Novo Testamento quanto os textos patrísticos falam da visita como a prática
mais importante para a ateão e cura do enfermo”
801
. Hipólito, por exemplo, ao dizer para os
diáconos que notifiquem o bispo sobre quem está doente, a fim de que seja visitado pelo
bispo, afirma que a pessoa doente se alegrará grandemente se o chefe dos sacerdotes se
lembrar dele
802
. Policarpo de Esmirna, no século 2, também recomenda a visita aos doentes
pelo bispo ou por seus sacerdotes. Sobre isto, Martimort lembra que nos nones de Hipólito
é acrescentado que na visita ao doente, o bispo “reza sobre ele”, expressão que lembra o texto
de Tiago e sugere a imposição de mãos. Para Martimort, esse é, “sem dúvida, o primeiro
testemunho de uma liturgia de visita aos doentes”
803
.
3.3.7 Outros ritos
O estudo dos ritos de passagem leva à confirmação de que em todas as civilizações o
nascimento, a puberdade, o casamento e a morte são marcados por celebrações e ritos. No
cristianismo, o batismo e a confirmação ou crisma, embora com sentido original diferente,
acabaram por substituir, a partir da Idade Média, os ritos de nascimento, maternidade e
puberdade. De acordo com algumas analogias feitas com ritos de passagem dos povos
contemporâneos das comunidades cristãs das origens, no estudo dos ritos acima, pôde-se
perceber que os ritos de passagem dos cristãos e das cristãs assumem, em geral, características
idênticas aos costumes dos seus conterrâneos. Foi visto, por exemplo, que gestos familiares e
sociais do casamento greco-romano e judaico fornecem os elementos básicos para a
799
BORÓBIO, 1991, p. 54.
800
BORÓBIO, 1991, p. 54-55.
801
BORÓBIO, 1991, p. 56.
802
HIPÓLITO, 1971, p. 61.
803
MARTIMORT, 1991, p. 113.
223
elaboração de um ritual cristão e o sepultamento, praticado pelos primeiros cristãos de acordo
com os costumes locais herdados, recebe interpretação cristã à luz da ressurreição de Jesus.
Levando em conta que originalmente o rito de batismo não é um rito de nascimento do ciclo
biológico e, como se conjeturou acima, é possível suspeitar que as famílias cristãs tenham
conservado práticas rituais de nascimento e maternidade de seus antepassados ou mantido
costumes semelhantes aos povos vizinhos, pode-se imaginar que elas também tenham
praticado ritos de puberdade. Neste sentido, é digno de registro o que diz Florenzano,
Os rituais de iniciação são extremamente comuns em todas as culturas. Tão comuns
que os especialistas em estudos religiosos acreditam que sejam uma parte essencial
da própria natureza humana. Por muitos motivos, a mudança mais importante no
indivíduo é aquela entre infância e idade adulta, entre um estado de dependência e
um de responsabilidade. Os ritos iniciatórios reconhecem essa transição e a
formalizam.
804
Não havendo referência a esses ritos nos livros que descrevem a vida litúrgica das
comunidades primitivas, é interessante dar uma olhada nos ritos de puberdade praticados na
sociedade grega e perguntar se indícios desses ritos em textos do Antigo Testamento,
levando em conta que essas são as sociedades de onde a maioria dos cristãos e das cristãs tem
suas heranças culturais.
Na sociedade grega antiga os ritos de iniciação associados à infância e adolescência
o diferentes para meninos e meninas. Esses rituais reforçam a distinção das funções que
cada sexo desempenha na sociedade. Assim, na sociedade grega, os rituais masculinos
centram-se na admissão do menino como membro da fratria, o grupo de parentesco paterno,
cujo ritual se denomina coureion. Através do ritual efebia, “o jovem passava por um
treinamento militar preliminar à adoção dos plenos direitos políticos”
805
. Esses rituais, com
funções pública e política, preparam o jovem menino para assumir seu papel de cidadão na
sociedade grega. Enquanto isso, as meninas passam pelo ritual da arctéia, uma cerimônia de
iniciação aos mistérios de Ártemis, que as preparam para assumir sua principal função
naquela sociedade, a maternidade
806
. Os rituais masculinos aconteciam nas reuniões anuais da
fratria; as meninas se recolhiam no santuário da deusa Ártemis, num local fora da cidade
(pólis) e o ritual delas, provavelmente, era assistido por mulheres encarregadas da sua
orientação
807
. Durante o ritual, as meninas usavam um vestido côr de afrão e imitavam
ursos (arctos), animal associado à sacerdotisa da deusa Ártemis. As meninas daavam,
804
FLORENZANO, 1996, p. 21.
805
FLORENZANO, 1996, p. 22.
806
FLORENZANO, 1996, p. 22-23.
807
FLORENZANO, 1996, p. 22.
224
realizavam sacrifícios e libões (derramamento de algum líquido em homenagem à
divindade).
808
Uma característica da arctéia é o isolamento e a inversão, presentes em muitos
ritos de passagem. Trata-se de um processo em que as pessoas iniciantes ficam à margem da
sociedade e praticam atos contrários aos que normalmente se aceitam
809
.
A transformação das meninas em ursas na arctéia torna-as animais selvagens, o que
as faz assumir, portanto, um papel contrário àquele que lhes será atribuído como
esposas e mães na sociedade grega. Durante o isolamento as meninas se recolhem
para o santuário de Ártemis, numa área fora da pólis, onde passam por um período
de experimentação. Além disso, dançam nuas e de noite, contrariando o que
normalmente deveriam fazer.
810
A arctéia marcava o início de um período de transição que começava entre 5 e 10
anos e terminava com a primeira menstruação da menina. Durante a arctéia as meninas
começavam a fase de amadurecimento. As jovens prestavam serviço à Ártemis, no seu
santuário, durante um ano e no final do ano ocorria a cerimônia de iniciação
811
. Com a
execução dos rituais no santuário de Ártemis significava que as meninas estavam sob a
proteção da deusa num período de transição perigoso. A virgindade das meninas devia ser
protegida até o casamento. Sem a proteção da deusa, os demônios podiam abater-se,
enfurecidos, sobre a pessoa. A proteção de Ártemis era assim invocada para acompanhar a
menina no caminho que deveria prosseguir até completar o seu processo de amadurecimento e
poder executar plenamente as funções a ela reservadas pela comunidade, o casamento e o
parto.”
812
Há outros rituais de iniciação encontrados entre os gregos, mas a arctéia, segundo
Florenzano, é o mais difundido.
O período de iniciação dos rapazes era longo. Eles se preparavam para exercer o
papel de cidadãos e pais de família. Aos dezesseis anos eles eram apresentados à fratria
paterna numa cerinia festiva que ocorria uma vez ao ano
813
. O ritual incluía um
808
FLORENZANO, 1996, p. 23.
809
FLORENZANO, 1996, p. 26. Esse processo lembra o que Victor Turner chama de communitas. Conforme
acima, primeiro capítulo, página 51.
810
FLORENZANO, 1996, p. 26-27.
811
Em Atenas, essa cerimônia ocorria a cada cinco anos, mas havia locais em que elas se realizavam cada ano.
FLORENZANO, 1996, p. 28.
812
FLORENZANO, 1996, p.28-29. A deusa Ártemis não está ligada aos rituais das meninas, mas também
está envolvida em alguns rituais de iniciação dos meninos. Ela é a protetora dos bosques, dos animais selvagens,
assim como dos nascimentos e das crianças. FLORENZANO, 1996, p. 38.
813
Essa festa ocorria no s de Pianepsión (outubro). “No mesmo dia em que se registravam os bebês nascidos
naquele ano, se registravam os adolescentes que estavam próximos dos 16 anos, o que reforça a importância
dessa data para aquela sociedade”. FLORENZANO, 1996, p. 30.
225
sacrifício
814
oferecido pelo pai aos deuses da fratria e um pagamento ao sacerdote que
realizava o sacrifício. Após o coureion o jovem estava pronto para assumir suas funções
sociais. A essa transição seguia o ritual efebia, serviço militar prestado aos dezoito anos. Após
passarem por treinamentos diversos, ao final de um ano ocorria um juramento solene dos
jovens diante da comunidade, no contexto de uma festa. Outros rituais festivos eram
realizados e, de acordo com os costumes pprios de cada cidade, os ritos assumem
características locais
815
. A autora chama ateão para o fato de que também nos diversos ritos
de iniciação dos meninos, assim como nas iniciações femininas, os elementos do isolamento
e da inversão, característicos dos ritos de passagem, são bem marcantes. Há cortejos festivos
em que os rapazes se afastam da cidade para algum santuário (sobressaindo-se o aspecto da
marginalidade); “meninos se disfarçam de meninas, mulheres banqueteiam com homens,
cantos denotam alegria e tristeza ao mesmo tempo, e assim por diante” (sobressaindo-se o
aspecto da inversão)
816
.
No Antigo Testamento as informações sobre ritos que celebram as transições da vida
do indivíduo são esporádicas e fragmentárias, conforme Gerstenberger
817
. O ingresso na vida
adulta, para os rapazes, se dá aos doze anos, sendo comemorada festivamente. No Israel pré-
exílico, a circuncisão, que consiste na remoção do prepúcio, pertencia aos ritos de iniciação à
vida adulta ou ao casamento. Era uma parte importante dos ritos de iniciação. “Ela valia
principalmente como preparação (mágico-religiosa!) e premissa para o casamento.
818
De
acordo com Vaux, parece que os israelitas adotaram a prática da circuncisão quando se
instalaram na Palestina, seguindo o costume da população semita que eles ali substituíram e
com a qual se misturaram. No período exílico e pós-exílico, a circuncisão passou a ser
realizada no oitavo dia do nascimento, conforme prescreve a lei de Levítico 12.3 e Gênesis
17.12. O rito assumiu entre os israelitas um sentido religioso e se tornara um símbolo da
comunidade judaica. “Indicava a agregação à vida do grupo, à comunidade de Israel, (...)
prescrito como uma obrigação e como sinal da aliança que Deus conclui com Abraão e seus
descendentes, (...).
819
Sobre ritos de puberdade feminina na sociedade do Antigo Israel
apenas indícios nos textos do Antigo Testamento. Gerstenberger afirma, por exemplo, que
814
O sacrifício é denominado coureion. A etimologia desse termo vem do verbo keiro, significando, cortar os
cabelos. Isso “sugere que os jovens cortavam ritualmente a cabeleira e a ofertavam aos deuses protetores (...)”.
FLORENZANO, 1996, p. 30.
815
Para aprofundar o assunto, confira FLORENZANO, 1996, p. 34-37.
816
FLORENZANO, 1996, p. 38.
817
GERSTENBERGER, 2007, p. 61.
818
GERSTENBERGER, Erhard; SCHRAGE, Wolfgang. Mulher e homem. São Leopoldo: Sinodal, 1981. p. 24.
819
VAUX, Roland de. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Paulus / Editora Teológica,
2003. p. 71; GERSTENBERGER; SCHRAGE, 1981, p. 24.
226
provavelmente as moças “celebram festas exclusivamente relacionadas ao gênero ‘nas
montanhas’ ou ‘nas vinhas’ (Jz 11.38-40; 21.19-23)”
820
. Essas festas, no entender do autor,
podem ser entendidas como ritos de puberdade.
Além desses poucos indícios sobre ritos de puberdade no contexto do Antigo
Testamento, Gerstenberger menciona ritos de passagem ligados à mudança de lugar. Ele diz:
“É possível que grupos nômades realizavam cerimônias religiosas anualmente quando partiam
em busca de novas pastagens (cf. Ex 12). Certamente também a construção de uma casa era
ensejo para uma festa no âmbito da família e no círculo de amigos (cf. Sl 127).”
821
O autor
ainda destaca o rito da bênção dada pelo pai ao filho primogênito (eventualmente
intermediado pela e) em sinal da transferência da suprema autoridade sobre a família,
conforme os textos de Gênesis 27. 23-29; 48.13-20
822
.
3.3.8 Aspectos rituais relevantes dos ritos de passagem selecionados dos primórdios da
tradição cristã e do seu entorno
1) No estudo realizado nesta segunda parte deste capítulo, um aspecto que chama
atenção é que os ritos de passagem são práticas culturais herdadas pelos cristãos e cristãs.
Chama atenção também que naquela época, de acordo com a cultura local, ritos importantes
do ciclo da vida, tais como, nascimento, parto, maternidade, casamento e sepultamento estão
diretamente relacionados ao espaço do doméstico. Salienta-se que a ênfase no espaço do
doméstico o significa que tais ritos de passagem tenham caráter particular. Os ritos de
passagem que acontecem nas casas são ritos que envolvem tanto o grupo familiar mais restrito
quanto o grupo de parentes e amigos. Quer dizer, eles têm caráter particular e público, ao
mesmo tempo. O rito contempla o particular e o público. Nos ritos que se desenvolvem na
casa, sobressai que as mulheres exercem um papel fundamental. Elas estão diretamente
envolvidas com o nascimento, parto, maternidade, casamento e sepultamento. As mulheres
o as responsáveis, em última análise, pelos ritos que marcam os momentos especiais do
ciclo da vida humana. O fato de que os ritos de passagem estivessem, em boa parte, ligados às
práticas domésticas, sob a responsabilidade das mulheres, talvez explique por que tais ritos
820
GERSTENBERGER, 2007, p. 62. A idade das meninas que participam dos ritos judaicos de puberdade deve
ser, segundo o autor, entre 10 e 14 anos. GERSTENBERGER, 1981, p. 21.
821
GERSTENBERGER, 2007, p.63.
822
GERSTENBERGER, 2007, p. 63. Detalhes sobre o sentido dessa bênção podem ser conferidos á página 64
da mesma obra citada.
227
não apareçam nas fontes lirgicas oficiais. Os escritos neotestamentários são atribdos a
homens e foram formulados dentro de um contexto de cultura e cosmovisão androcêntricas,
afirma Fiorenza
823
. Evidentemente, num tal contexto, as experiências das mulheres, se
relatadas ou escritas, foram suprimidas ou reinterpretadas segundo a vio androcêntrica.
Fiorenza defende que
Uma grande parte de informação e tradições sobre a ação das mulheres nos
primórdios do cristianismo não mais se pode encontrar porque o processo patriarcal
de transmissão e redação considerou semelhantes episódios e informação ou como
insignificantes, ou como ameaça à gradual patriarcalização do movimento cristão.
824
Os ritos de passagem que ocorrem na casa e eso sob a competência das mulheres
envolvem aspectos de natureza impura. Tanto o nascimento quanto o parto e maternidade, o
casamento e a morte exigem ritos de purificação, para os quais normalmente são utilizados
banhos e unções. Pureza e impureza são categorias conhecidas em todas as religiões e culturas
e pertencem à cosmovisão mágica, tendo suas raízes em tabus. Tudo quanto é tabu carrega
consigo um poder sagrado, que pode ser destrutivo (impuro) quanto criativo (puro).”
825
Religiões da Antigüidade “são unânimes em considerar a morte, a doença, a menstruação, a
ejaculação, as relações sexuais e o nascimento como fontes de impureza”
826
. Tais realidades
estão ligadas à dimensão misteriosa da vida. Fertilidade e morte representam ameaças à
existência. São realidades perigosas que são manipuladas mediante intervenção gica.
Douglas, ao discutir a questão da pureza e perigo, mostra “que rituais de pureza e impureza
criam unidade na experiência”
827
. Purificar, assim como separar ou demarcar, recebe a função
de sistematizar uma experiência inerentemente desordenada. Conforme a autora, “a sujeira é,
823
“As inconsistências nas nossas fontes do Novo Testamento estão a indicar que o processo de tradição e
redação do cristianismo primitivo, seguiu determinados interesses e perspectivas androcêntricos. Por isso, a
seleção e transmissão androcêntricas de tradições primitivas cristãs, produziu a marginalidade histórica das
mulheres, mas não são reflexos da realidade histórica de liderança e participação de mulheres no movimento
cristão primitivo. Importa notar que a redação dos evangelhos e dos Atos ocorreu na época em que o processo de
patriarcalização da igreja primitiva já estava bem a caminho.” FIORENZA, 1992, p. 78-79.
824
FIORENZA, 1992, p. 79. É interessante observar que um dos principais ritos de passagem praticado pela
igreja desde a sua origem, e amplamente desenvolvido nos séculos posteriores, é o rito de iniciação cristã, o
batismo. E este é justamente o rito que igualdade de participação na comunidade a todas as pessoas que
ingressam na igreja cristã, conforme o atesta o apóstolo Paulo em Gálatas 3.26-28: “Pois todos vós sois filhos de
Deus mediante a em Jesus Cristo; porque todos quantos fôstes batizados em Cristo, de Cristo vos revestistes.
Dessarte não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós
sois um em Cristo Jesus.A mesma igreja que ofereceu uma visão de sociedade com estruturas alternativas aos
grupos marginalizados e ofereceu um rito de iniciação cristã que assinalou a igualdade entre as pessoas, torna-se,
mais tarde, aquela que impede (através de um novo rito, o da ordenação ao ministério eclesiático) as mulheres de
assumirem o sacerdócio.
825
FANDER, Monika. Pureza e impureza. In: GÖSSMANN, Elisabeth, et al. Dicionário de teologia feminista.
Petrópolis: Vozes, 1997. p. 414.
826
FANDER, 1997, p. 414.
827
DOUGLAS, 1966, p. 13.
228
essencialmente, desordem. (...) A sujeira ofende a ordem. Eliminá-la não é um movimento
negativo, mas um esfoo positivo para organizar o ambiente”
828
. Evitar a sujeira não significa
agir irracionalmente contra algo ameaçador, mas é fazer um movimento criativo, relacionando
forma e fuão para fazer da experiência uma unidade
829
. Ritos de purificação, portanto, não
devem ser entendidos, a priori, como negativos ou excludentes. Eles visam dar sentido ou
significado a uma realidade aparentemente inexplicável. Fander, ao examinar as leis de pureza
e impureza no Antigo Testamento garante, por exemplo, que as prescrições, conforme
Levítico 15. 19-28 e 12. 1-8, “sobre menstruação, relações sexuais e puerpério mostram que
também na Torah a esfera da transmissão da vida é ritualizada”
830
. Mas, segundo a autora, o
Levítico trata de situações que atingem muito mais as mulheres do que os homens. O conceito
de niddah aplicado ao estado de menstruada” é usado em Esdras 9.10s no sentido de delito
moral sendo identificado com os conceitos de pureza e impureza. Segundo Fander há uma
apropriação negativa do conceito de impureza que tende a associar a impureza com a
condição feminina
831
. E esta tendência parece estar presente na interpretação dos ritos de
purificaçãos-parto na Igreja da Idade Média.
Percebe-se, segundo observações de Bradshaw e Hoffman, que a igreja cristã se
preocupou em adotar mais cedo certos ritos de passagem em seu corpo litúrgico, enquanto
outros foram sendo agregados, gradativamente, ao longo do seu desenvolvimento, na era pós-
constantiniana, com a estruturação oficial da igreja. E, segundo os autores, a incorporação
dos ritos de passagem pela igreja segue um critério teológico, não havendo, em princípio, uma
preocupação com uma ritualização das passagens da vida, segundo o ciclo biológico. Por
exemplo, exceto o rito de iniciação cristã que nasce com a própria igreja, ela assumiu desde
828
DOUGLAS, 1966, p. 12.
829
DOUGLAS, 1966, p. 13.
830
FANDER, 1997, p. 415.
831
FANDER, 1997, p. 415. Segundo Neuenfeldt, “O culto oficial israelita institucionalizado no pós-exílio é
exclusivamente masculino. Nesse sentido, alguns homens tinham o poder de incorporar e legitimar suas crenças,
enquanto mulheres e homens não habilitados de poder oficial no mundo patriarcal permaneciam no âmbito da
ilegalidade, do ilegítimo e subversivo. Muitas das práticas populares, não-oficiais se dão no âmbito da casa
espaço determinado às mulheres – e estão relacionados aos momentos especiais da vida familiar, portanto
quando são mencionadas estão vinculadas às mulheres ou são perpetradas por elas. Neste sentido, ritos e
costumes antigos de purificação, com conseqüências diretas nos corpos das mulheres, são rejeitados ou relegados
para o âmbito da impureza, do idolátrico pelo corpo oficial especializado masculino, detentor dos meios de
produção simbólico-religiosa. Esse movimento tem o propósito de demarcar fronteiras, de prevenir contra a
assimilação e definir uma identidade própria de um povo em crise na época do exílio/pós-exílio.
NEUENFELDT, Elaine G. Sangue e fluxos: poderes e perigos demarcando fronteiras nos corpos de mulheres.
In: STHER, Marga J. et al. (Orgs.) À flor da pele: ensaios sobre gênero e corporeidade. São Leopoldo:
Sinodal / EST / CEBI, 2004. p. 92.
Um estudo exegético sobre este assunto é apresentado pela autora em: NEUENFELDT, Elaine G. Sangue,
fluxos e poderes: ditos e interditos em torno do parto e da menstruação a partir de Levítico 12 e 15.19-30. São
Leopoldo: EST / IEPG, 2001. (Dissertação de Mestrado).
229
cedo ritos de cura, em seguimento à prática de Jesus. Dos demais ritos, a igreja se preocupou,
em primeiro lugar, com o de sepultamento. De acordo com o que Bradshaw e Hoffman
constatam, a realidade da doença e da morte está diretamente ligada ao núcleo da mensagem
cristã. Eles explicam que, de acordo com a convicção teológica da comunidade cristã, ela
procurou expressar ritualmente essas duas realidades pelos seguintes motivos. Em relação à
morte, por causa da na firme proclamação de que Jesus voltaria em breve para a
consumação do reino de Deus. Diante disso, havia a preocupação com os cristãos que
morriam antes que tal evento ocorresse. O que aconteceria a eles? Essa resposta é encontrada
no Novo Testamento, que afirma a ressurreição dos mortos e a participação de todos no reino
de Deus, mortos e vivos. Neste sentido, conforme 1 Tessalonicense 4.13, os cristãos não
deveriam se entristecer, diante da morte, como os outros que não têm esperança. O
cristianismo, portanto, tratou de assumir os ritos de sepultamento e expressar essa verdade da
fé, a esperança na ressurreição. Em relação à realidade da doea, a comunidade crisviu
Jesus não apenas como um mestre, mas também como alguém que curava os doentes. Dessa
forma, o poder de cura do cristianismo era considerado algo intrínseco à mensagem central da
e essa convicção não poderia resultar noutra forma do que a de um ministério pastoral e
lirgico cristão com pessoas doentes
832
.
De acordo com esses autores, o rito do matrinio só foi assumido pela igreja cristã,
no período pós-constantiniano, por motivos legais e necessidade social, sem qualquer razão
teológica ou antropológica.
Como se percebe, ritos de nascimento, parto e maternidade, mais estritamente
ligados à experiência das mulheres, foram deixados fora da preocupação litúrgica da igreja e,
quando incorporados tardiamente, no século 11, eles tiveram uma forte inclinação para uma
interpretação negativa da condição feminina.
2) Um segundo aspecto que se sobressai nos ritos de passagem, conforme o estudo da
segunda parte deste capítulo, é o uso de determinados elementos rituais. Os banhos ou atos de
purificação por meio da água, a uão com óleo, as vestes especiais e os sacrifícios e
refeições são comuns aos ritos de passagem nas diversas culturas. Nas práticas lirgicas
cristãs, além destes elementos, acrescentam-se nos diversos ritos de passagem outras ações,
832
BRADSHAW, Paul F.; HOFFMAN, Lawrence A. Life cycle as theology. In: BRADSHAW; HOFFMAN
1996, p. 286-287.
230
tais como, orações, imposição de mãos e nção, entre outros gestos específicos de cada rito
de passagem.
a) Banhos rituais ou atos de purificação - os banhos rituais ou atos de purificação
remetem ao poder simbólico da água. A água é o símbolo da vida e da fecundidade. No dizer
de Eliade, “as águas simbolizam a totalidade das virtualidades; elas o fons et origo
833
, a
matriz de todas as possibilidades de existência. (...) são a esncia da vegetação, o elixir da
imortalidade; (...) asseguram longa vida, força criadora e são o princípio de toda cura”
834
. O
campo de simbolização da água é vasto. Seus significados vão da vida à morte
835
. A água
possui caráter vivificador e destruidor. A submersão esligada ao sentido de decomposição
das formas, enquanto a emersão é recomposição, fazendo existir de novo.
A imersão na água simboliza o regresso ao pré-formal, a regeneração total, um novo
nascimento, porque uma imersão equivale a uma dissolução das formas, a uma
reintegração no modo indiferenciado da preexistência; e a emersão das águas repete
o gesto cosmogônico da manifestação formal. O contato com a água implica sempre
a regeneração; por um lado, porque à dissolução se segue um “novo nascimento;
por outro, porque a imersão fertiliza e aumenta o potencial de vida e de criação. A
água confere um “novo nascimento” por um ritual iniciático, ela cura por um ritual
mágico, ela assegura o renascimento post-mortem por rituais funerários.
836
A água, enquanto símbolo da vida, que cura, rejuvenesce, dá vigor e purifica, “não é,
naturalmente, acessível a toda a gente, nem de qualquer maneira. Está guardada por monstros.
(...), na posse de demônios ou de divindades
837
. Existem crenças de que espíritos e demônios
habitam as fontes, rios e lagos e a obtenção dessa água implica consagração, explica Eliade.
Enfim, a água, em todas as religiões e culturas, é um elemento de impressionante simbolismo,
fato esse que realça o seu valor antropogico universal. A água está intimamente relacionada
à fecundidade (vegetativa e animal), torna-se meio de purificação e símbolo cúltico de pureza
e renovação.
Segundo Kornfeld, no Antigo Testamento, o javismo monoteísta “não reconhece
nenhum espírito das águas (...), mas na Bíblia a água, devido à sua importância para a vida e a
seus variados aspectos simbólicos no campo profano e religioso, ocupa um grande lugar
838
.
A Bíblia utiliza a água no sentido soteriológico. Israel a manifestação da ação de Deus
833
Fons, do latim, significa, fonte, nascente (sentido próprio), origem, causa, princípio (sentido figurado); origo,
do latim, significa,fonte, origem, nascimento (sentido próprio), origem, causa, fonte princípio (sentido figurado).
FARIA, 1962, p. 406 e 687.
834
ELIADE, Mircea. Tratado de história das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 153.
835
ROSSO, S. Elementos naturais. In: SARTORE; TRIACCA, 1992, p. 335.
836
ELIADE, 1993, p. 153-154.
837
ELIADE, 1993, p. 157.
838
KORNFELD W. Água. In: BAUER, Johannes B. Dicionário de teologia bíblica, São Paulo: Loyola, v. 1,
1973. p. 22.
231
através da água. O dilúvio e a travessia do mar dos Juncos (Gênesis 6-8 e Êxodo 14), são
exemplos típicos da ‘maldição (castigo salvífico) e da ão por meio da água”
839
. A água
que cai sobre a terra árida é sinal de fertilidade, benevoncia e bênção divinas. As águas
correntes são imagem da “água viva, que purifica das impurezas
840
. No Novo Testamento, o
simbolismo da água também é significativo. Jesus utiliza a água como metáfora para falar de
si como “água viva e “fonte da vida eterna”; a água também é utilizada como meio de
manifestação do poder de Deus, em Jesus, como mostra o milagre da transformação da água
em vinho, nas bodas de Ca
841
. Mas, o maior símbolo da água no Novo Testamento
encontra-se nas águas do batismo. Por meio dessa água manifesta-se a salvação que Jesus
Cristo conquistou com a sua morte e ressurreição. Pelo batismo, a imersão na água representa
a morte e o sepultamento do ser humano, com os seus pecados e maus desejos, e a emersão
representa a ressurreição do ser humano para viver uma nova vida
842
. Assim escreve Paulo em
Romanos 6.4: “Fomos, pois, sepultados com ele na morte pelo batismo; para que, como Cristo
foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós em novidade
de vida.” A liturgia do batismo tem na água um dos seus maiores símbolos e a oração sobre a
água, um elemento que precede o ato do batismo, é significativa no sentido de que ela
relembra (reatualizando) os atos salvíficos de Deus, manifestados ao seu povo, por meio da
água, desde a criação do mundo aJesus Cristo e no batismo de cada pessoa. Além desse
caráter anamnético, a oração das águas tem sentido de epiclese, ou seja, ela é uma súplica a
Deus para que o Espírito Santo seja derramado sobre a água para que o batismo realize a
purificação dos pecados, dê vida nova e salvação
843
.
Entre outras práticas litúrgicas cristãs que incluem água está o lava-pés, rito especial
da festa do Tríduo Pascal, do culto da Quinta-feira Santa, relembrando o ato de Jesus que
lavou os pés dos discípulos, antes da sua morte
844
.
b) Unção com óleo – a unção está diretamente relacionada ao uso do óleo da oliveira,
uma árvore típica do Mediterrâneo cujo valor religioso corresponde à importância alimentar
que tal produto possui para os povos daquela localidade, sendo utilizado de diversas
839
ROSSO, 1992, p. 335.
840
Ezequiel 36.25-29, cf. ROSSO, 1992, p. 336.
841
João 4.14; 2.1-12.
842
Explicação de Lutero no terceiro artigo do catecismo menor. LUTERO, Martim. Catecismo Menor. 1. ed.
atual. São Leopoldo: Sinodal, 1995. p. 18.
843
KIRST, 2008, p. 54-56.
844
GEORG, Sissi. Tríduo pascal. São Leopoldo: EST / Centro de Recursos Litúrgicos, 2001. (Estudos de
Liturgia, 1). p. 18.
232
formas
845
. O óleo é a seiva (ou o suco) vital da oliveira, a qual contém todas as virtudes.”
846
Trata-se de um dos produtos mais necessários às pessoas que vivem na região do
Mediterrâneo, usada tanto na vida doméstica quanto em outros setores do trabalho. As
múltiplas propriedades do óleo conferem-lhe um simbolismo polivalente:
viscoso, [o óleo] penetra e impregna profundamente, sem mais se evaporar;
lubrifica, tem consistência ‘oleosa’; melhora as qualidades dos alimentos, passados
sobre a pele, por causa da sua cor solar, confere-lhe beleza, brilho e agilidade;
misturado às essências, transforma-se em perfume.
847
Além do óleo, em diferentes épocas e lugares, outras substâncias como gordura,
sangue, água e saliva também eram utilizadas na unção, de acordo com significados variados,
diz Crichton
848
. Embora se utilizasse outras substâncias, o óleo da oliveira era a forma mais
comum empregada no mundo antigo. “Uma aplicação importante na Grécia era como
ungüento para o corpo depois do banho, e antes da luta livre e outros esportes.”
849
Os
ungüentos e óleos estão presentes desde cedo na história humana, sendo aplicados com
propósitos de purificação, higiene do corpo, embelezamento, tratamento de feridas e cura de
doenças
850
.
A abundância da oliveira nas terras da Palestina tornou o óleo um sinal de bênção
divina, segundo a expressão bíblica, assim como sinal de prosperidade, vida pacífica, alegria e
honra
851
. Derrama-se óleo perfumado sobre a cabeça de alguém em sinal de honra e de festa.
Cadáveres “são ungidos com aromas para que sejam preservados da corrupção
852
.
No Antigo Testamento, o óleo é utilizado para consagrar altares, reis e sumos
sacerdotes. Neste sentido, a uão com óleo “veio a ser símbolo de investir de autoridade”
853
,
indicando obrigão e honra, assim como proteção para aquele que é ungido
854
. Fala-se
também dos profetas como ungidos de Deus, embora não se mencione a unção física deles
855
.
De acordo com Vaux, a unção no Antigo Testamento é parte essencial da cerimônia de
escolha de um rei. Antes do exílio, somente reis eram ungidos. A unção real não é um ato
845
ROSSO, 1992, p. 340-341.
846
ROSSO, 1992, p. 341.
847
ROSSO, 1992, p. 341.
848
CRICHTON, 1986, p. 511.
849
FRANCE, R. T. verbetes Óleo, Azeite, Getsêmane. In: COENEN, Lothar; BROWN, Colin. (Orgs.).
Dicionário internacional de teologia do Novo Testamento. 2. ed. o Paulo: Vida Nova, 2000. p. 1432.
850
BRUNOTTE, W. verbete Ungir. In: COENEN; BROWN, 2000, p. 2568.
851
SCICOLONE, Hildebrando. Unção dos enfermos. In: NOCENT, Adrien et al. Os sacramentos: teologia e
história da celebração. São Paulo: Paulinas, 1989. p. 230.
852
ROSSO, 1992, p. 341.
853
FRANCE, 2000, p. 1432.
854
BRUNOTTE, 2000, p. 2568.
855
ROSSO, 1992, p. 341; SCICOLONE, 1989, p. 231.
233
exclusivo de Israel. Esse rito “existia em Canaã antes do estabelecimento da monarquia
israelita”
856
. Testemunhos extra bíblicos comprovam a existência da unção dos reis na Síria,
Palestina e no Egito, por exemplo.
A unção do rei, em Israel, “tornou-se um ato sagrado que formava parte da cerimônia
de entronização, que acontecia num lugar santo ‘diante de Javé’
857
. Para tanto utilizava-se
um vaso especial, de chifre, que era guardado no templo. Empregava-se azeite misturado com
especiarias (mirra, canela, câlamo). Essa mistura era derramada sobre a cabeça do rei sendo
acompanhada de uma forma estabelecida de palavras. “A unção formava a primeira parte da
cerimônia de coroão no templo
858
. Através da unção o rei tornava-se portador de uma
autoridade especial. Essa unção, portanto, tinha o significado de dádiva da autoridade, força e
honra
859
. A unção habilita o rei para certos atos religiosos. “Com a uão, uma pessoa é
introduzida na esfera do divino para um serviço extraordinário e sagrado.”
860
A pessoa ungida
por Deus recebe o dom do Espírito, uma proteção especial e é considerada inviolável
861
.
Sobre a unção do sumo sacerdote e dos sacerdotes em Israel, Vaux explica que é
difícil determinar o período exato em que estes receberam a unção, mas certo é que não foi
durante a monarquia. “É, pois, possível que a função real tenha sido transferida ao sumo
sacerdote, chefe do povo depois da monarquia ter desaparecido, e logo se estendesse a todos
os sacerdotes”
862
.
É interessante observar que o Novo Testamento faz uso de dois termos diferentes
para uão ou ungir. A palavra aleipho - ungir é utilizada no sentido literal, não figurado;
enquanto isso, os termos chrio e chrisma são empregados exclusivamente no sentido religioso
e simbólico
863
. Aleipho refere-se consistentemente à ação física de ungir, praticada
exclusivamente sobre pessoas: para o cuidado do corpo (...); como sinal de honra a um
hóspede (...); honrar os mortos (...) e curar os enfermos”
864
e os ungüentos usados são azeite
(óleo), mirra (mais cara) e bálsamo
865
. Diferentemente de aleipho, a palavra chrio é
empregada para uma uão ritual, a exemplo da unção dos reis no Antigo Testamento
866
. No
856
VAUX, 2003, p. 131-132.
857
MÜLLER, D. verbetes Ungir, Unção. In: COENEN; BROWN, 2000, p. 2570.
858
MÜLLER, 2000, p. 2570.
859
MÜLLER, 2000, p. 2570.
860
ROSSO, 1992, p. 341.
861
MÜLLER, 2000, p. 2570.
862
VAUX, 2003, p. 132-133.
863
BRUNOTTE, 2000, p. 2568.
864
BRUNOTTE, 2000, p. 2569.
865
BRUNOTTE, 2000, p. 2569.
866
MÜLLER, 2000, p. 2569-2570.
234
Novo Testamento os termos chrio e chrisma ungir e unção são utilizados como metáfora
para a outorga do Espírito Santo, um poder especial ou uma comissão divina
867
. Esses termos,
no hebraico, são da mesma raiz de masah
868
- ungir - de onde se origina a palavra messias. “O
‘ungido’ por excelência em hebraico é o Messias, que em grego se traduz por Cristo: nele se
concentrarão os poderes régios, sacerdotais e proféticos.”
869
Jesus, como ungido de Deus se
torna a fonte do Esrito Santo. Essa unção pelo Espírito Santo lembra o batismo de Jesus. No
seu batismo, Jesus recebeu a unção real e sacerdotal que fez dEle o Christos, o Messias”
870
.
Os relatos dos evangelistas o incluem uma unção física no batismo de Jesus, mas
relacionam o batismo diretamente com a recepção do Espírito, que desce sobre Jesus sob a
forma de uma pomba
871
. Conforme Lucas 4.18, o Espírito do Senhor está sobre Jesus pelo que
o ungiu para evangelizar os pobres, proclamar libertação aos cativos e restaurar a vista aos
cegos.
Jesus, como fonte do Espírito, após a sua morte e ressurreição envia o Espírito Santo
à igreja. Na igreja cristã a concessão do Espírito Santo está diretamente associada ao rito do
batismo. Cada pessoa batizada recebeo Espírito de Cristo o qual encontra representado pela
imposição de mãos e pela unção
872
. Pela dádiva do Espírito, no batismo, atestada pela unção e
imposição deos, as pessoas batizadas participam do sacerdócio real, tornando-se cada qual
um sacerdote ou uma sacerdotisa de Cristo, um christo, conforme Cirilo de Jerusalém
873
. O
uso do óleo no batismo é atestado nas liturgias a partir do século 3. Algumas igrejas só
conhecem o óleo do chrisma, outras, tais como o que aparece atestado na Tradição Apostólica
de Hipólito, fazem uso do óleo do exorcismo, além do óleo de ação de graças. Os que o ser
batizados, antes de entrarem na piscina, para o banho de imersão, são ungidos com óleo
exorcizado, por todo o corpo. Ambrósio, na explicação das catequeses s-batismais, compara
esta unção com a dos gregos que se ungem como preparação para as lutas e competições.
Através do batismo a pessoa se prepara para uma luta neste mundo. “Foste ungido como atleta
867
MÜLLER, 2000, p. 2571.
868
BRUNOTTE, 2000, p. 2568.
869
ROSSO, 1992, p. 341.
870
MÜLLER, 2000, p. 2571.
871
Marcos 1.9-11; Mateus 3.13-17; Lucas 3.21-22; João 1.19-28. Pomba, do hebraico “ioná”, tornou-se símbolo
de paz, inocência. “Para os judeus a pomba simboliza o povo de Israel, pois é a mais perseguida das aves, como
Israel é perseguido pelas nações do mundo. (...). Usa-se também a pomba como imagem da Presença Divina, ou
Shechiná, e pombas jovens e rolas eram as únicas aves oferecidas como sacrifício no ritual do Templo.”
UNTERMAN, Alan. Dicionário judaico de lendas e tradições. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1992. p. 209.
872
CRICHTON, 1986, p. 511.
873
1 Pedro 2.9; CIRILO de Jerusalém, 1977, p. 30-31.
235
de Cristo”, ele comenta
874
. O óleo do exorcismo acompanha a idéia de combate contra o
demônio ou as forças inimigas. A unção total, mais do que realçar o aspecto da agilidade dos
atletas, ela evoca a proteção que dá a invulnerabilidade”
875
. De acordo com os diferentes
locais, os pais da igreja dos séculos 3 a 6 acentuam aspectos diversos sobre o significado
desse óleo. Cabié acredita que o óleo do chrisma, usado sobre a cabeça, durante o batismo,
representa o aspecto mais antigo do rito da unção, “evocando a inauguração da missão dos
profetas e dos reis do Antigo Testamento”
876
; o fato de espalhar o óleo em todo o corpo
significa a introdução de novos simbolismos, fazendo com que o óleo do chrisma (mais
original) se transforme num gesto reiterado as o batismo. Parece que em algumas
localidades, os batismos possuíam um esquema diferente: unção na cabeça, imersão em nome
da trindade e eucaristia
877
.
c) Vestes especiais as vestes, bem como o ato de despir e revestir-se de novo, são
temas que podem ser situados no campo da comunicação simbólica. A roupa é um tipo de
linguagem. Ela revela algo sobre a pessoa, às vezes, a profissão, a identificação com o colégio
onde se estuda, alguma ocasião especial, como um momento festivo, o luto. O jeito de se
vestir também pode indicar a origem cultural, o país ou o povo a que se pertence, assim como
a identificação com um grupo social. As expressões vestir a camisa” ou “vestir a camiseta
representam, em geral, uma causa ou um compromisso assumido com um grupo, um partido
ou com o futebol. E em épocas de campanha política ou nos dias do jogo do time do coração,
tais expressões se transformam em vestes concretas.
A simbologia da veste ou do ato de vestir, despir ou revestir está presente nos
principais ritos de passagem, conforme já destacado acima. As vestes sinalizam uma mudança
na vida; simbolizam o ingresso em uma nova fase da vida ou a pertença a uma nova
comunidade. Em seu caráter simbólico, a veste é a forma vivel da pessoa em seu interior.
Segundo os gnósticos, a veste é símbolo do próprio ser da pessoa. “Em geral, a veste visibiliza
uma função ou um estado de vida (...).”
878
A Bíblia, por exemplo, demonstra através das
vestes, estados de tristeza, de luto, temor, enfurecimento, arrependimento. Nestas situações,
874
AMBRÓSIO. Os sacramentos e os mistérios. Introdução e tradução de Paulo Evaristo Arns. Petrópolis:
Vozes, 1972. (Fontes da catequese, 5). p. 22-23.
875
CABIÉ, 1991, p. 50.
876
CABIÉ, 1991, p. 50.
877
CABIÉ, 1991, p. 50, conforme informações contidas na nota de rodapé 118, da mesma página dessa mesma
fonte.
878
SCHLESINGER, Hugo; PORTO, Humberto. Dicionário enciclopédico das religiões, v. 2. Petrópolis:
Vozes, 1995. p. 2621-2622.
236
demonstrando o que se sente, as pessoas rasgam as suas vestes
879
. Para a Bíblia, como para o
ser humano antigo, em geral, diz Allmen, “as vestes fazem parte da personalidade daquele que
as usa
880
e a unidade entre vestimenta e pessoa manifesta-se na relação que se estabelece,
por exemplo, entre o lavar as vestes e o purificar-se a si mesmo ou o sujar a roupa e o tornar-
se imundo
881
. Dada a importância das vestes no pensamento bíblico, os verbos despojar ou
desvestir e revestir recebem destaque em situões que tratam de eleição, vocação, batismo,
salvação e vida eterna
882
. A nudez do ser humano diante de Deus remete à situação
paradisíaca, ao Jardim do Éden
883
. Porém, diante da culpa, Adão e Eva se revestem na
tentativa de cobrir-se do olhar de Deus, se escondem
884
. Segundo nesis 3.21, o pprio
Deus fez vestimenta de pele e vestiu Adão e Eva. Na interpretação de Allmen, o ser humano
necessita receber de Deus a vestimenta da salvação; sinal de sua recriação
885
. No Novo
Testamento, Jesus é chamado de novo Ao, ou seja, ele é o ser humano recriado, que
representa em si mesmo a salvação. E ele próprio reveste o ser humano, recriando-o no
batismo, conforme o apóstolo Paulo
886
.
Na Bíblia e nos ritos de passagem há um destaque para as vestes brancas. “O branco,
em hebraico laban, é símbolo da alegria (...) e da inocência (...). O judaísmo tradicional
mantém o uso da veste branca por ocasião das grandes festas religiosas
887
e no Novo
Testamento, a expressão “vestes brancas” passou a significar “as vestes festivas puras e
próprias da glória celeste”
888
. O branco é cor escatológica. Segundo o livro do Apocalipse, as
vestes brancas, símbolo da justiça, foram lavadas no sangue do cordeiro
889
. As vestes brancas
encontram-se presentes no batismo, como símbolo da nova vida e do revestimento em Cristo.
“Revestir-se de Cristo é uma figura utilizada por Paulo em Gálatas 3.27. O emprego dessa
terminologia lembra, igualmente, os rituais das religiões místicas. “Nelas os iniciados
procuravam identificar-se com os deuses ao se vestirem das roupas ou máscaras rituais dos
879
Gênesis 37. 34; 2 Reis 22.11; Mateus 26.65; Atos 14.14; Joel 2.13. Cf. ALLMEN, J.-J von. Vestimenta. In:
ALLMEN, J.-J von. Vocabulário bíblico. 3. ed. São Paulo: ASTE, 2001. p. 602.
880
ALLMEN, 2001, p. 602.
881
ALLMEN, 2001, p. 602. Cf. Êxodo 19.10; Levítico 11.25 e 40; 14.18 e 47; 15.8; 16.26 e 28; Apocalipse 3.4;
7.14-22 e 24; 16.15.
882
ALLMEN, 2001, p. 602-603.
883
ALLMEN, 2001, p. 603.
884
Gênesis 3.7.
885
ALLMEN, 2001, p. 603.
886
Gálatas 3.27; Romanos 6. 1ss; 13.11-14.
887
SCHLESINGER; PORTO, 1995, p. 2622.
888
SCHLESINGER; PORTO, 1995, p. 2622.
889
WEIGELT, H. verbete Roupa. . In: COENEN; BROWN, 2000, p. 2641.
237
mesmos.”
890
Para Paulo, vestir-se de Cristo é participar da natureza de Cristo, é identificar-se
com ele e com as suas obras
891
.
Ligado à simbologia da veste, no batismo também aparece a questão da nudez, a qual
é acentuada nas liturgias da igreja a partir do século 3. A unção completa do corpo, antes do
batismo, sue a nudez que é seguida pela imersão. Segundo Cabié, a nudez das pessoas
batizadas é explicada pelos pais da igreja antiga de diversas maneiras: “abandono da vida
passada e renúncia ao velho homem em sua condição mortal, assimilação ao Senhor na cruz,
igualdade de todos diante do mistério da regeneração”
892
. Essa nudez também é explicada a
partir da imagem do paraíso”: “a veste da corrupção, que o batizado depõe no seguimento de
Cristo, é a que Adão teve que usar quando experimentou vergonha, depois da sua
desobediência. É a condição na qual foi precipitado pela queda. O despojamento da
mortalidade é também volta à inocência
893
.
d) Sacrifícios e refeições para a ciência das religiões o sacrifício é definido como
“uma ação ritual na qual se oferece uma dádiva a seres sobre-humanos”
894
. O ser humano,
desta forma, busca entabular relações com as entidades sobre-humanas, seja para reagir à
atuação desses poderes, seja para provocar a atuação deles
895
. Sacrifícios rituais se
encontram em quase todas as culturas da humanidade e “fazem parte das mais importantes
formas de entrar em contato ltico com a esfera sobre-humana”
896
. O termo sacrifício
provém do latim sacrificium, da junção de sacer e facere, cujo significado é tornar santo,
santificação
897
. Via de regra, os sacrifícios são oferecidos por uma pessoa incumbida ou como
representante de um grupo; o objeto do sacrifício representa um valor, real ou simbólico; os
sacrifícios podem ser regulares ou extraordinários e um lugar específico para a sua
realização; a forma de realização do sacrifício depende de fatores como matéria, recebedor e
intenção do sacrifício; os recebedores do sacrifício o seres e poderes sobre-humanos,
considerados seres pessoais ou um coletivo impessoal; os sacrifícios podem ser do tipo de
louvor, de petição, de agradecimento ou de expião
898
.
890
WEIGELT, H. verbete Vestir. In: In: COENEN; BROWN, 2000, p. 2639.
891
WEIGELT, 2000, p. 2639.
892
CABIÉ, 1991, p. 50.
893
CABIÉ, 1991, p. 50.
894
QUACK, A. verbete Sacrifício. In: KÖNIG, Franz (Org.). Léxico das religiões. Petrópolis: Vozes, 1998. p.
511.
895
QUACK, 1998, p. 511.
896
QUACK, 1998, p. 511.
897
QUACK, 1998, p. 511.
898
QUACK, 1998, p. 511-512.
238
Para o Antigo Testamento, o sacrifício é uma prática muito comum, natural até.
Israel segue o costume dos cananeus que, como outros povos, observavam esse ritual.
Constata-se, entre os israelitas, a coexistência de sacrifícios muito variados. Conforme Nagel,
os sacrifícios são realizados em todas as circunstâncias da vida cotidiana, sejam elas de
tristeza ou de alegria. Na ocasião de uma colheita, no desmame de uma criança, na celebração
das bodas, na visita de um hóspede ilustre, “um banquete festivo congrega a gente e o
cerimonial principia com um sacrifício (...): o sacrifício é parte integrante da festa
899
. Essas
situações mostram que os sacricios estão integrados na vida individual e familiar/clânica, na
qual encontram-se as passagens da vida. Conforme Fabry, todos podiam sacrificar, mas a
preferência era do pai de família
900
. Contudo, com a consolidação estatal e crescente
centralização do culto em Jerusalém e o esforço por uma uniformização ritual, o sacrifício
individual e familiar torna-se parte integrante do culto do templo, tornando-se, no pós-exílio,
responsabilidade exclusiva dos sacerdotes
901
.
Entre as várias interpretações que são dadas para o sacrifício no Antigo Testamento,
Vaux destaca três idéias básicas: o dom (dádiva), a comunhão (salvação) e a expiação
(reconciliação/redenção). O dom se manifesta nos sacrifícios de colheita, na oferta das
primícias, e na lei dos primogênitos. Partindo da compreensão de que tudo pertence a Deus, é
justo que o ser humano pague um tributo ou devolva a parte do seu proprietário. Trata-se de
um tipo de desconsagração” que permite ao ser humano usar do resto para objetivos
profanos, diz Vaux
902
. A comunhão se manifesta nos sacrifícios em que tendo Deus “se
agradado do sacrifício e recebido sua parte sobre o altar, os ofertantes comem o restante numa
refeição religiosa” e participam do sacrifício
903
. Esse sacricio, também conhecido como
sacrifício de salvação
904
, representa a união com Deus através da partilha dos mesmos bens.
Trata-se de um sacrifício alegre que junta dádiva e comunhão e esse parece ter sido o mais
completo e o mais freqüente no princípio da história de Israel, diz o autor
905
. A expiação, em
princípio, é um valor presente em todo sacrifício, mas há casos onde essa necessidade se faz
sentir mais forte. Aí, os ritos de sangue são importantes e não a refeição sacrificial, sendo a
comunhão possível somente quando a aliança já se estabeleceu
906
. Esses sacrifícios são
899
NAGEL, G. verbete Sacrifícios. In: ALLMEN, 2001, p. 523.
900
FABRY, H.-J. verbete Sacrifício. In: KÖNIG, 1998, p. 515.
901
FABRY, 1998, p. 515.
902
VAUX, 2003, p. 489.
903
VAUX, 2003, p. 491.
904
FABRY, 1998, p. 515.
905
VAUX, 2003, p. 491.
906
VAUX, 2003, p. 491.
239
conhecidos como sacrifícios de ações de graças (pelo pecado, pela culpa), tendo efeito
expiatório. Em tais sacrifícios o rito de sangue era realizado nas pontas do altar e a carne era
queimada fora do santuário, por causa da contaminação
907
.
O culto sacrificial no templo de Jerusalém na época do Novo Testamento não é
simplesmente rejeitado por Jesus nem por Paulo, mas, seguindo a mesma linha dos profetas
do Antigo Testamento que criticaram esse culto, “exige-se para a sua realização a atitude ética
da sinceridade e disposição para se reconciliar”
908
. No Novo Testamento, em geral, o culto
sacrificial é deslocado e reinterpretado a partir da entrega e da morte de Jesus na cruz. A
antiga aliança, estabelecida através de diversos tipos de sacrifícios, é substituída pela nova
aliança realizada no sangue de Jesus, na sua morte na cruz, sacrifício único e definitivo e de
caráter salvífico
909
. Para os cristãos surge aos poucos a conscncia de um novo culto,
diferente do culto sacrificial judaico, mesmo que suas raízes se encontrem. Esse culto,
chamado de eucaristia, nasce da prática da reunião comunitária de cristãos e cristãs em torno
da mesa para celebrar a morte e a ressurreição de Jesus, ou seja, o novo culto, praticado pela
comunidade cristã, é “uma refeição sagrada baseada nos atos de Jesus na última ceia”
910
. A
eucaristia, mesmo com fortes raízes judaicas, torna-se a marca distintiva do culto cristão
911
e
seela a refeição, por excelência, que marcará a reunião dos cristãos e cristãs na ritualização
das suas principais passagens.
3) O terceiro aspecto diz respeito ao método, por assim dizer, utilizado pela igreja
cris dos primórdios para lidar com os ritos de passagem no contexto no qual ela estava
inserida, no mundo greco-romano, um ambiente de cultura diferente daquela de sua origem, a
do judaísmo palestinense. Seja lembrado que Jesus e seus discípulos eram de famílias judaicas
e praticavam ritos judaicos como, por exemplo, freqüentar a sinagoga e observar festas
tradicionais judaicas, como a da Páscoa
912
. A própria liturgia cristã tem fortes raízes judaicas,
a exemplo da liturgia da palavra que prom do culto sinagogal
913
. Os primeiros cristãos, a
maioria judeus, estavam familiarizados com o culto da sinagoga, cujo cerne é a palavra falada,
907
FABRY, 1998, p. 515.
908
HÄUSSLING, A. verbete Sacrifício. In: KÖNIG, 1998, p. 517.
909
Hebreus 8 e 9. Cf. também SCHNACKENBURG, R. verbete Sacrifício. In: BAUER, 1973, p. 1030-1031.
910
WHITE, 1997, p. 175.
911
WHITE, 1997, p. 175.
912
Mateus 5. 23 e par., Mateus 26. 17-19 e par.
913
WHITE, 1997, p. 111ss. BECKWITH, R.T. The jewish background to christian worship. In: JONES, C.;
WAINWRIGHT, G.; YARNOLD, E. (Eds.). The study of liturgy. New York: Oxford University Press, 1978. p.
39.
240
por meio de leituras, ensino, cantos e orões
914
. Tratava-se de um estilo de culto
profundamente familiar aos primeiros cristãos; seu Senhor o havia sancionado ao freqüentá-lo
com regularidade (Lc 4.16), e os apóstolos o tinham utilizado plenamente.
915
É importante
salientar que o culto judaico, praticado pelos cristãos e cristãs não ficou imune a
transformações.
Impregnados pela experiência do evento Cristo, os discípulos infundiram
progressivamente um significado cristão no culto judaico. Liam as Escrituras,
especialmente os salmos, à luz do mistério cristão que eles proclamavam como
cumprimento da promessa de Deus a Israel. De modo semelhante, certos ritos
judaicos, como a imposição das mãos, a unção dos enfermos (...) e as festas judaicas
de Páscoa e Pentecostes (...) acabaram sendo encaradas dentro do contexto da nova
religião.
916
O cristianismo nascente não conviveu apenas com o culto judaico, desenvolvendo a
partir dele a sua ppria teologia do culto, fundamentada no evento de Cristo, mas à medida
que se espalha pelo mundo greco-romano, ele se depara com outras formas de religião e
cultura. Nesse sentido, conforme Chupungco, “foi obrigado a se adaptar e a transformar o que
havia de bom e de nobre na religião do lugar”
917
. De acordo com o autor, no período em que a
igreja cristã sofre as perseguições do Império Romano, ela manteve um vínculo com o
judaísmo. É o que se percebe nas bênçãos e orações, compostas nessa época, no que diz
respeito às formas; o foco, entretanto, permanece sendo Jesus, o Cristo. Tertuliano, por
exemplo, explica o significado do batismo utilizando a tipologia véterotestamentária: água da
criação, águas do dilúvio, a passagem pelo Mar Vermelho, água no deserto
918
. Chupungco
observa que na época das perseguições, a igreja se manteve intransigente frente às religiões do
Império, consideradas idolátricas, cujos rituais, templos e ídolos eram vistos como criações
diabólicas. Entretanto, tal atitude não se verifica quando se trata de elementos culturais ou
rituais não religiosos. Pelo contrário, os cristãos interagem com a cultura local e buscam
elementos rituais que ajudam a exprimir o significado das suas práticas rituais. Por exemplo,
Tertuliano descreve a renúncia batismal, utilizando a palavra eieratio, “termo legal que
significa desligar-se de um contrato de serviço ou de associação. Ingressando na dependência
de Cristo, o candidato se retira da escravidão de satanás, a que renuncia com toda a força de
914
Fragmentos do culto sinagogal podem ser encontrados em textos como o de Lucas 4. 16-28; Atos 13.15.
915
WHITE, 1997, p. 113. Além do culto sinagogal, público, os cristãos também celebravam a eucaristia em
casas particulares, conforme Atos 2.46. Mas, em meados do século 2, constata-se que ocorre uma fusão dos dois
tipos de culto, a palavra falada e o sinal executado, formando, assim, o principal núcleo do culto cristão: a
liturgia da palavra e a eucaristia. WHITE, 1997, p. 114.
916
CHUPUNGCO, Anscar. verbete Adaptação. In: SARTORE; TRIACCA, 1992, p. 2.
917
CHUPUNGCO, 1992, p. 2.
918
TERTULIANO, 1975, p. 15, 33.
241
um compromisso legal
919
. Termos como sacramenti, testatio ou signaculum fidei,
concebidas, em geral, como genuinamente cristãs, foram utilizados por Tertuliano na
profissão batismal para referir-se à fidelidade a Cristo, mas eram termos técnicos usados pelos
soldados para prestarem juramento de fidelidade ao imperador. Também a unção é utilizada
no batismo a partir do seu uso e significado cultural, recebendo uma interpretação segundo a
tipologia bíblica. Assim explica Chupungco:
A uão devia ser feita com grande abundância de óleo que se deixava escorrer por
todo o corpo nu do neófito, de acordo com a viva descrição de Tertuliano: in nobis
carnaliter currit unctio. Qual é o significado de tal rito? Tertuliano encontra
vestígios disto na prática terotestamentária de ungir os sacerdotes no alto da
cabeça, como fez Moisés com Arão. Ele insinua que o batismo confere ao cristão o
que no AT a unção conferia ao israelita: o sacerdócio. Sabemos, pom, que gregos e
romanos ungiam o corpo por diversos motivos: com fins terapêuticos, para ficar
fisicamente em forma ou por outras razões referentes ao esporte. Ambrósio de Milão
conservou o significado sacerdotal da uão s-batismal, ao mesmo tempo que
descreveu com termos mais culturais a unção pré-batismal: unctus est quase athleta
Christi.
920
Hipólito menciona, na Tradição Apostólica, o uso da mistura de leite e mel como
bebida dada aos neófitos depois da comunhão para lembrar a plenitude da promessa feita aos
antepassados de que Deus conduziu o seu povo a uma terra onde correm leite e mel
921
. O leite
com mel era uma bebida que os romanos “davam aos seus recém-nascidos como sinal de
boas-vindas na família e para protegê-los dos espíritos malignos
922
. Hilito, tendo
conhecimento do uso desta bebida, provavelmente o adotou revestindo-o de interpretação
bíblica
923
.
A partir dos exemplos mencionados, fica claro que a comunidade cristã adotou um
método lirgico que visava assimilar elementos da cultura local, que tinham certa
“conaturalidade” para poder exprimir a mensagem salvífica, e os reinterpretar a luz de Cristo.
Evidentemente, para que não houvesse interpretações inadequadas e teologicamente
desvirtuadas no uso ritual de elementos culturais, as catequeses pré e s-batismais se
tornaram instrumentos imprescindíveis ao processo de assimilação litúrgico-cultural. Em
especial, nas catequeses mistagógicas cada rito da iniciação cristã era desdobrado em seu
significado
924
. Esse método de assimilação e reinterpretação aplicado na liturgia não é apenas
919
CHUPUNGCO, 1992, p. 3.
920
CHUPUNGCO, 1992, p. 3-4.
921
HIPÓLITO, 1971, p. 54.
922
CHUPUNGCO, 1992, p. 4.
923
CHUPUNGCO, 1992, p. 4.
924
Ambrósio, referindo-se às catequeses mistagógicas, diz: “Nesta hora, daremos icio à explicação dos
Sacramentos que acabais de receber. Não convinha antecipá-la, pois, para os cristãos, a fé antecede todo o mais”.
AMBRÓSIO, 1972, p. 21.
242
uma característica da igreja cristã dos dois primeiros séculos. Mais tarde, no período
constantiniano, a igreja continuou a incorporar elementos culturais na sua liturgia. Nesta
época, inclusive, também são utilizados no rito cristão elementos e termos de religiões,
consideradas pelos cristãos, pagãs. Por exemplo, os termos memneménoi (pessoas iniciadas
nos mistérios cristãos), mystagogós (quem ensina) e mystagogía (a doutrina deste sobre o
mistério cristão)”
925
são assimilações dos cultos das religiões de mistério. De diversas
religiões extraíram-se elementos ilustrativos para o rito cristão:
A veste branca, dada aos neófitos nas religes mistéricas, se tornou sinal distintivo
da nova dignidade conferida pelo batismo ao iniciado cristão. As velas batismais, a
que aludem Gregório Nazianzeno e Gregório de Nissa nas suas homilias pascais,
eram tomadas da religião pagã. A prática de se voltar para o oriente começou sob a
influência das religiões solares mediterrâneas.
926
Esse procedimento dos cristãos de interagir com a cultura local, reinterpretando ou
transformando os seus ritos, pôde ser verificado acima quando se constatou que a comunidade
crisadotou ritos de passagem da cultura local como de casamento, de sepultamento e, por
suposto, manteve práticas locais de nascimento, parto e maternidade. Além disso, ela
incorporou diversos elementos da cultura, assim como de outras religiões, nos ritos de cura e
de iniciação cristã. Sem descuidar da teologia dos seus ritos, cujo critério era claramente
cristológico, a igreja cristã das origens procurou dar sentido contextual aos seus ritos, ou seja,
ela assumiu liturgicamente o contexto no qual ela estava inserida.
3.4 Considerações finais: conseqüências para a prática dos ritos de passagem na
liturgia cristã da atualidade
Do estudo dos ritos de passagem no exemplo da IECLB e das práticas selecionadas
da tradição cristã dos primórdios da igreja e do seu entorno sobressaem as seguintes questões:
1) Importa frisar que passagens significativas da vida dos cristãos e das cristãs, na
igreja das origens, não ocorreram sem ritualização. Seja no âmbito da família, por influência
da cultura, ou no seio da comunidade eclesial, os indivíduos foram acompanhados por meio
de ritos na hora do nascimento e do parto, na iniciação religiosa, no matrimônio, na doença,
na morte, no sepultamento e no luto, quiçá também na puberdade. Os ritos de nascimento e
925
CHUPUNGCO, 1992, p. 5.
926
CHUPUNGCO, 1992, p. 5.
243
parto, de casamento e cura e uma parte dos ritos funerais, nos primórdios da igreja cristã, têm
como lugar o espaço doméstico. Esses ritos são praticados a partir dos costumes locais que,
em geral, ocorrem no âmbito da família, sendo as mulheres diretamente envolvidas com eles.
A igreja cristã das origens, por um lado, conviveu com a prática de ritos de passagem das
culturas locais, assimilando e reinterpretando-os e, por outro lado, desenvolveu e enfatizou o
rito de passagem que lhe é específico, o da iniciação cristã, além de dar continuidade às
práticas rituais de cura, em seguimento a Jesus. A comunidade cris desenvolveu um
processo de ressignificação dos ritos de passagem das culturas circundantes ou herdados dos
seus antepassados e, de acordo com os fundamentos da cristã, o evento de Cristo, ela os
reinterpretou. Desta forma, pode-se dizer que a igreja cristã das origens estabeleceu um
diálogo com a cultura local e herdada, respeitando as práticas independentes e, ao mesmo
tempo, mantendo-se ligada a elas através do uso de símbolos cujo sentido é transformado,
tendo como referência o critério cristológico. Ao assimilar ritos de passagem e elementos
culturais e religiosos do seu contexto e submetê-los a uma transformação através do crivo
cristológico, a igreja cristã das origens desenvolveu um método que pode ser identificado com
o que hoje é chamado de inculturão litúrgica
927
. Esse método é um caminho a ser
considerado pelas igrejas cristãs em seu fazer lirgico atual.
2) Na pesquisa sobre os ritos de passagem na prática da Igreja Antiga, chama atenção
que a iniciação cristã é o rito que recebe maior destaque no corpo litúrgico da igreja. Pode-se
dizer que a iniciação cristã é o rito de passagem primordial da comunidade cristã. Trata-se de
um rito original e essencial que surge lado a lado com a igreja cristã
928
. É através do rito de
iniciação cristã, cujo ápice é o batismo e a participação pela primeira vez na eucaristia, que
alguém ingressa na igreja e se torna pessoa cristã. A iniciação cristã é o rito que assinala não
a entrada para a vida cristã, mas através dele a pessoa recebe os valores e ensinos
fundamentais para tornar-se cristão e cristã. Por isso, a iniciação cristã é definida como
processo de tornar-se cristão ou cristã. E, à medida que nos primeiros séculos a igreja cresce,
a iniciação, enquanto processo que ajuda a pessoa a tornar-se cristã, se desenvolve de forma
gradativa através de ritos de separação, transição e incorporação
929
. É importante frisar que o
927
Cf. CHUPUNGCO, Anscar. Dos todos de aculturación litúrgica. In: STAUFFER, Anita (Ed.). Relación
entre culto e cultura: FLM Estudios. Ginebra: Federación Luterana Mundial, 2000. p. 53-67.
928
Dois ritos foram fundamentais no surgimento da igreja cristã: a eucaristia e o batismo. Cf. Atos 2.37-47 e 1
Coríntios 11.17-34.
929
Relembrando, os ritos de separação são marcados pela decisão de tornar-se cristão ou cristã e pelo ingresso na
etapa intermediária que consiste de ensino sobre a fé cristã (catequeses pré-batismais) e de testemunho dessa
244
rito de iniciação cristã, mesmo sendo o rito primordial, essencial e específico da comunidade
cristã, não está dissociado dos demais ritos de passagem, mas encontra-se diretamente
relacionado a eles. Isso pode ser observado a partir do fato de que ele incorpora elementos
simbólicos típicos de todos os ritos de passagem, sejam esses elementos oriundos de outras
culturas ou parte das próprias raízes culturais dos cristãos e das cristãs (como por exemplo, o
que foi destacado acima sobre a unção com óleo, a utilização da água, as vestes e o sacrifício
ou a refeição). A simbologia dos ritos de passagem é universal, ultrapassa as fronteiras
culturais. Porém, a significação desses símbolos é enriquecida de acordo com os valores, a fé
e a cosmovisão próprios de cada cultura e religião. E neste sentido, o rito de iniciação cris
assume papel relevante na comunidade cris das origens. Sendo um rito fundamental da
igreja cristã, a iniciação tornou-se referencial para os demais ritos de passagem, em especial,
porque, através dele, as pessoas recebem e conhecem os principais símbolos da (orações,
credos ou confises) e, desta forma, esse rito ajuda as pessoas a interpretarem e a darem
testemunho dessa em outras áreas da vida, incluindo os ritos que acompanham as demais
passagens. Pode-se dizer que na comunidade cristã das origens, o rito de iniciação cristã é
uma chave de leitura para os ritos de matrimônio, de sepultamento, parto, nascimento e curas,
e talvez outros, por nós desconhecidos. O espírito e o dinamismo do rito de iniciação cristã se
fazem presentes em outros ritos de passagem, renovando-os, recriando-os. Por exemplo, a
união com Cristo realizada no batismo tornou-se o símbolo para a união matrimonial; o gesto
de voltar-se para o oriente (para o Cristo, o sol da justiça) no momento da confissão de fé,
antes do banho batismal, também era utilizado no sepultamento, de modo que a pessoa era
sepultada com os pés voltados para o sol nascente, em sinal da espera da volta de Cristo para a
ressurreição dos mortos; os sacrifícios e as refeições típicas dos ritos de passagem são
substituídos pela eucaristia.
Resta à igreja cristã da atualidade, à IECLB, em especial, o desafio de estabelecer em
sua prática litúrgica a íntima ligação entre o rito de iniciação cristã e os demais ritos de
passagem. Como realizá-lo? Eis alguns indicativos: - revisar o rito de iniciação praticado na
atualidade. Como observado na primeira parte deste capítulo, esse rito, na prática litúrgica da
mesma (comportamento ético). Os ritos de incorporação são marcados pelo batismo, pela recepção das
pessoas recém-batizadas na comunidade de crentes, pela participação na oração dos fiéis e na eucaristia e é
concluído mediante uma nova etapa de formação para conhecer os mistérios da (catequeses mistagógicas).
Ressalva-se que esse esquema de iniciação é característico da igreja cristã dos séculos dois ao cinco. Nos
primeiros tempos da igreja, o se fala de um esquema rígido de iniciação.
Conforme Drane, originalmente o batismo era uma expressão espontânea da em Jesus; mais tarde, a igreja
exige a admissão do candidato e o batismo torna-se “o ápice de um período mais ou menos extenso de ensino e
instrução formais da fé cristã”. DRANE, John. A vida da igreja primitiva: um documentário ilustrado. São
Paulo: Paulinas, 1985. (Coleção Como entender a Bíblia). p. 75.
245
IECLB, encontra-se mesclado com ritos de nascimento e maternidade e desmembrado de dois
dos seus ritos mais significativos, o rito de transição, ou seja, o da formação ou catecumenato,
e o rito que marca definitivamente a incorporação da pessoa iniciada à comunidade dos fiéis,
ou seja, a eucaristia ou Ceia do Senhor; - respeitar a unidade simbólica que envolve os ritos de
passagem em geral. Como observado no estudo acima, os ritos de passagem são
caracterizados por elementos simlicos comuns. Para tanto, como ponto de partida, há que se
valorizar a simbologia dos ritos iniciatórios (uso da água, uso da unção e imposição de mãos,
da veste, da comunhão eucarística, são exemplos aplicados à tradição cristã) para, em seguida,
estender esses mesmos símbolos a outras passagens. A linguagem da unidade simbólica dos
ritos de passagens é uma forma de estabelecer a íntima ligação entre os ritos de passagem.
Além disso, o uso de símbolos ou elementos comuns contribui para a elaboração de novos
ritos de passagem.
3) Na pesquisa sobre os ritos de passagem no exemplo da prática da IECLB foi
destacado que essa igreja oferece ritos para passagens importantes da vida humana como
iniciação religiosa, casamento, doença e morte. Mas, foi constatado que a IECLB necessita
revisar a sua prática litúrgica de iniciação cris(batismo e confirmação); necessita formular
um rito adequado ao acompanhamento de pessoas doentes com vistas ao restabelecimento da
saúde e não como passagem para a morte; necessita de recursos rituais para o
acompanhamento às pessoas enlutadas. Além disso, observou-se que a IECLB carece de
formular ritos para outras passagens apontadas como relevantes pela pesquisa social, tais
como, nascimento, maternidade e paternidade, divórcio, saída de casa, ingresso em lar de
idosos, separação de casal (e, consequentemente, separação de pais/mães dos filhos ou filhas),
ingresso no mundo do trabalho e no estudo. Uma questão importante a ser considerada ao se
propor ritos de passagem é a pergunta pelo lugar do rito. Foi destacado acima que o espaço do
doméstico sobressai como ambiente importante da ritualização das passagens da vida, embora
ele não apareça como único lugar das passagens. Há também locais públicos como cemitérios,
assim como o próprio ambiente da reunião da comunidade onde ela celebra, em especial, o
rito de iniciação. A ênfase do doméstico como ambiente marcante de boa parte dos ritos de
passagem na cultura do cristianismo dos primórdios indica que o rito de passagem acontece
primordialmente no lugar da passagem. Ou seja, naquela cultura, o nascimento, o parto, o
casamento, a doença, a morte ocorriam em casa, por isso, a casa, o doméstico se torna o lugar
de ritualização dessas passagens. Disso decorre que o rito não pode ser abstraído do lugar
246
vivencial da passagem (Sitz im Leben). Em outras palavras, não é o rito que determina o lugar
da passagem, mas é a passagem que determina o lugar do rito! Hoje, portanto, é fundamental
perguntar qual o lugar de determinada passagem e desenvolver um rito ligado ao seu lugar
vivencial. Importa ainda assinalar que uma passagem não possui necessariamente um
lugar. Na morte, por exemplo, o primeiro lugar da passagem, na maioria dos casos, é o
hospital, em seguida, a casa mortuária e depois o local do sepultamento. No caso da morte,
mais clareza em relação aos ritos que ocorrem na casa mortuária e no cemitério. E no
hospital? Como se dá o encontro dos familiares com o seu ente querido? Há um espaço
dignamente preparado para a exposição da pessoa falecida ou ela fica confinada a um
depósito à espera dos funcionários da casa funerária, sendo muitas vezes, este o primeiro
lugar de encontro com os familiares? Qual o papel da capelania dos hospitais bem como dos
demais funcionários no acompanhamento ritual à pessoa falecida? Note-se que no caso de
partos, nascimentos e maternidade no contexto do cristianismo dos primórdios, conforme
estudo acima, as mulheres e as parteiras lidavam ritualmente com as pessoas e situações nas
quais elas estavam envolvidas.
Nas sociedades contemporâneas, o lugar das passagens varia muito. A casa ainda é
um espaço importante de ritualização que não pode ser menosprezado, a exemplo, da
mudança de casa, doença e saída para internação hospitalar, saída de casa (para estudar,
trabalhar e transferir-se para um lar de idosos), mas ela não é mais a refencia primordial. Há
ritos que acontecem no ambiente do trabalho, da escola e da própria comunidade religiosa,
entre outros espaços públicos. Importa que a comunidade cristã vá ao encontro das pessoas no
lugar determinante para a sua passagem, pois como se refere White,
Os picos e vales da vida são ocasiões para culto cristão tão certamente quanto o o
as planícies da vida cotidiana. Os pontos de crise da vida são marcados quando a
comunidade de se reúne em torno de indivíduos para expressar seu amor quando
estes atravessam diversos estágios (...).
930
930
WHITE, 1997, p. 205.
IV PROPOSTA DE UM MÉTODO PARA A RITUALIZÃO DE PASSAGENS NA
IGREJA E O EXERCÍCIO DE SUA APLICAÇÃO A ALGUMAS PASSAGENS
SELECIONADAS
4.1 Introdução
A pesquisa até aqui desenvolvida constatou a necessidade de ritualização das
passagens da vida; mostrou que diversas passagens importantes da vida não estão recebendo a
devida atenção da igreja; descobriu que os ritos de passagem da igreja cristã dos prirdios
o referências fundamentais para a prática dos ritos de passagem na igreja dos tempos atuais.
Com base nos resultados obtidos e considerando que um dos objetivos desta pesquisa
é oferecer recursos teóricos e metodológicos para a ritualização das passagens da vida na
igreja, este capítulo estuda e elabora a proposta de um método para a ritualização de
passagens na igreja e apresenta um exercício de aplicação do método a algumas passagens
selecionadas. Desta maneira, ao invés de oferecer liturgias prontas e fechadas, esta pesquisa
busca contribuir com um instrumento de trabalho para as igrejas equiparem seus obreiros e
suas obreiras a lidarem de modo liturgicamente adequado com passagens que não estão sendo
contempladas pelos seus ritos litúrgicos.
A proposta de um método para a ritualização das passagens, nesta pesquisa, toma
como referência a reflexão sobre a inculturação lirgica, um processo que visa adaptar a
liturgia do culto cristão às culturas locais. Tal reflexão é fruto da preocupação das igrejas, do
contexto ecumênico mundial, em compreender como o evangelho se relaciona com a cultura.
O estudo da relação entre culto e cultura recebeu especial importância por parte da Federação
Luterana Mundial (FLM), sobretudo nas décadas próximas ao final do século vinte
931
. No
âmbito da Igreja Católica Apostólica Romana, Anscar Chupungco, filipino, professor de
liturgia no Ponticio Instituto Litúrgico Santo Anselmo, Roma, e diretor no mesmo
Instituto
932
, realizou amplas pesquisas sobre a inculturação litúrgica e desenvolveu os
métodos denominados de “assimilação criativa e equivalência dinâmica”. O estudo e a
elaboração da proposta de um método para a ritualização de passagens na igreja, neste
931
MORTENSEN, Viggo. Prefácio. In: STAUFFER, 2000, p. 7.
932
Conforme informações obtidas em: SARTORE; TRIACCA, 1992. (Lista de colaboradores).
248
capítulo, leva em consideração a pesquisa desse especialista em inculturação lirgica e faz
uma adaptação dos métodos de equivalência dinâmica e assimilação criativa, por ele criados,
à ritualização das passagens.
De acordo com o objetivo proposto e as questões colocadas acima, o quarto capítulo
visa, em primeiro lugar, definir e descrever o método para a ritualização das passagens e, em
segundo lugar aplicar o método, na tentativa de demonstrar sua a viabilidade, a algumas
passagens selecionadas. Salienta-se que, ao realizar o exercício de aplicão do método de
ritualização a algumas passagens selecionadas, leva-se em conta as passagens que constam na
lista do resultado da pesquisa social, conforme o segundo capítulo, observando-se aquelas
situações para as quais existem poucos recursos rituais na igreja. Sempre que possível, serão
feitas referências aos casos relatados nas entrevistas da pesquisa social, além de se utilizar o
recurso às fontes bibliogficas específicas.
4.2 Inculturação litúrgica: um método para a ritualização das passagens na igreja
4.2.1 Definição de inculturação
A expressão “inculturão é um neologismo utilizado no contexto da linguagem
teológica cristã. Seu uso é recente e nasceu da reflexão sobre a relação entre Evangelho e
cultura(s). Pode-se dizer que inculturação “é um termo teológico, com uma conotação
antropológico-cultural
933
; porém, ele se distingue das noções antropológicas de aculturação,
enculturação, transculturação. Distingue-se ainda do conceito de adaptação, termo utilizado
também em âmbito teológico
934
. O termo inculturação quer designar um processo dimico
que ocorre no encontro de duas realidades diferentes, a da fé crisou do Evangelho com a da
cultura. Nesse encontro, o Evangelho é compreendido e traduzido mediante os sinais da
cultura de determinado grupo.
Para um estudo do significado de “inculturação”, torna-se necessário clarear,
inicialmente, uma definição de cultura. De acordo com Azevedo, cultura é “o conjunto de
sentidos e significações, de valores e modelos, subjacentes ou incorporados à ação e
comunicação de um grupo humano ou sociedade concreta e por eles considerados expressões
933
AZEVEDO, Marcelo de C. Inculturação. In: LATOURELLE, René; FISICHELLA, Rino (Orgs.). Dicionário
de teologia fundamental. Petrópolis / Aparecida: Vozes / Santuário, 1994. p. 464.
934
Para a distinção de tais termos, cf. AZEVEDO, 1994, p. 464. Observa-se que no Dicionário de liturgia o
assunto referente à “inculturação” aparece sob o verbete “adaptação”. Cf. CHUPUNGCO, Anscar. verbete
Adaptação. In: SARTORE; TRIACCA, 1992, p. 1ss.
249
próprias e distintivas de sua realidade humana”
935
. O conceito de cultura, de acordo com a
moderna antropologia, abarca um sentido abrangente da vida humana e não diz respeito
apenas ao racional, como pretendiam algumas de suas definições
936
. A cultura envolve
dimenes do saber humano cognitivo e prático e, pode-se assim dizer, do espiritual e do
relacional. Assim sendo, a liturgia também é um fenômeno cultural
937
. Conforme Suess,
O conceito cultura designa a diferença específica de cada grupo/povo. Tudo o que é
humano é culturalmente determinado: as construções materiais para fazer este
mundo mais habitável e a agricultura (...); a maneira de fazer potica, as pprias
estruturas do exercício de poder, a defesa contra os inimigos e as estruturas de
parentesco (...); a educação, os ensinamentos, a arte e a religião (...). Os diferentes
povos e grupos sociais constroem, através de suas atividades culturais, um segundo
meio ambiente, um ecossistema humano.
938
No capítulo anterior, foi visto que a comunidade cristã das origens, ao assumir ritos
de passagem locais e interpretá-los à luz de Cristo, contextualizou o Evangelho através da sua
prática lirgica. Esse movimento de diálogo com a cultura local realizado pelos primeiros
cristãos é identificado hoje, nas igrejas hisricas, pelo termo “inculturação do evangelho ou
“inculturação da fé”. Diversas palavras foram buscadas pelas igrejas atuais para expressar o
encontro da cristã com as culturas. O primeiro termo utilizado foi aculturação
939
, porém, a
expressão que explicita mais adequadamente o significado da relação entre e cultura é o
termo “inculturão”. Outros termos como adaptação, acomodão, contextualização,
indigenização e encarnão, também foram introduzidos pelo Vaticano II e pelo Conselho
Mundial de Igrejas
940
. Conforme Azevedo, a inculturação “não é um modismo teológico,
missionário ou pastoral, mas uma qualificação indispensável da revelação, da evangelização e
da reflexão teológica. A revelação se fez efetivamente no contexto de um povo e no quadro
evolutivo de sua formação sócio-cultural (Hb 1,1-2)”
941
. De outra forma, pode-se dizer que a
935
AZEVEDO, 1994, p. 465.
936
SUESS, Paulo. Evangelização e inculturação: conceitos, questionamentos, perspectivas. In: ANJOS, Márcio
Fabri dos (Org.). Inculturação: desafios hoje. Petrópolis / Rio de Janeiro: Vozes / SOTER, 1994. p. 21ss.
LARAIA, Roque de Barros. O conceito antropológico de cultura. In: SUESS, Paulo (Org.). Culturas e
evangelização. A unidade da razão evangélica na multiplicidade de suas vozes: pressupostos, desafios e
compromissos. São Paulo: Loyola, 1991. p. 14
937
SANTE, Carmine Di. Cultura e liturgia. In: SARTORE; TRIACCA, 1992, p. 277.
938
SUESS, 1994, p.28. Grifo do autor.
939
Aculturação compreende um “processo de transformações de uma pessoa ou grupo humano, resultantes de
seu contato com uma cultura que não é a sua”. AZEVEDO, 1994, p. 464. De acordo com Queiruga, as igrejas
evitam o uso do termo aculturação porque ele pressupõe, de certo modo, a identificação da fé com uma
determinada cultura que chega a outras culturas, muitas vezes, de modo avassalador (como, por exemplo, a
cultura ocidental de colonização). QUEIRUGA, Andrés Torres. verbete Inculturação da . In: SAMANES,
Cassiano Floristán; TAMAYO-ACOSTA, Juan-José (Orgs.). Dicionário de conceitos fundamentais do
cristianismo. São Paulo: Paulus, 1999. p. 371.
940
QUEIRUGA, 1999, p. 371. CHUPUNGCO, Anscar J. verbete Inculturation. In: BRADSHAW, 2002, p. 244.
941
AZEVEDO, 1994, p. 464. Grifo do autor.
250
inculturação é parte constitutiva do próprio Evangelho que chega a este mundo pela
encarnação do filho de Deus
942
. Deus, em Jesus Cristo, assume a natureza humana, dentro de
uma cultura determinada (a judaica), num tempo e num lugar histórico específico. Portanto, o
paradigma mais importante da inculturação da é a encarnão de Deus, realizada por meio
de Jesus Cristo. “Uma vez que a salvação de Deus é para a humanidade, a inculturação se
torna uma necessidade, pois a cultura é uma condição humana, e por isso a revelação de Deus
se dá necessariamente dentro da cultura.
943
diversas áreas na vida da igreja em que a
inculturação recebe seus contornos. Uma delas é a liturgia.
4.2.2 Inculturação lirgica
De acordo com Chupungco, a igreja, tanto do Oriente quanto do Ocidente, tem
estabelecido um diálogo constante com a cultura de todas as raças e nações e, como
conseqüência desse diálogo, ela tem assimilado, com freqüência, diferentes componentes da
cultura, introduzindo-os na liturgia. A liturgia, desse modo, se tornou um dos meios pelos
quais a igreja encarnou o Evangelho na vida e história dos povos
944
. Embora a expressão
inculturação lirgica também seja um neologismo, Chupungco lembra que a prática da
inculturação lirgica remonta a Cristo, a seus discípulos e seguiu-se na história da igreja dos
primeiros séculos
945
. Esta questão foi demonstrada acima, no capítulo anterior. Segundo o
autor, a inculturação litúrgica pode ser descrita como
processo pelo qual os textos de ritos usados no culto pela igreja local estão de tal
modo inseridos na estrutura da cultura, que absorvem seu pensamento, sua
linguagem e seus modelos rituais. A inculturação litúrgica opera de acordo com a
dinâmica de inserção em determinada cultura e com a assimilação interior de
elementos culturais. De um ponto de vista puramente antropológico podemos dizer
que a inculturação permite às pessoas de um povo experimentarem em celebrações
litúrgicas um “evento cultural” cuja linguagem e cujas formas elas são capazes de
identificar como elementos de sua cultura.
946
942
Conforme expressa João 1.14: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e
vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai”.
943
ANJOS, Márcio Fabri dos. Evangelização e inculturão: introduzindo as questões. In: ANJOS, 1994, p. 14.
944
CHUPUNGCO, Anscar. La liturgia y los componentes da la cultura. In: STAUFFER, S. Anita (Ed.). Dialogo
entre culto y cultura: informes de las consultas internacionales Cartigny, Suiza, 1993, Hong Kong, 1994.
Ginebra: Federación Luterana Mundial, 1994. p. 153.
945
CHUPUNGCO, Anscar J. Liturgias do futuro: processos e métodos de inculturação. São Paulo: Paulinas,
1992. p. 37.
946
CHUPUNGCO, 1992, p. 38.
251
O exercício da inculturação lirgica exige sensibilidade cultural, um requisito do
qual não se pode prescindir em hipótese alguma, sustenta Chupungco
947
. O autor chama
atenção para o fato de que assim como a liturgia tem sua natureza, seus componentes e suas
leis, também a cultura os possui. Assim sendo, o processo de inculturação exige um estudo
cuidadoso de ambas as realidades, a da liturgia e a da cultura a fim de conhecer suas leis, seus
componentes e suas naturezas. Nem tudo que é cultural é assimilado pela liturgia e o que é
assimilado passa por uma avaliação crítica, diz o autor. Não se deve brincar com a cultura,
nem violentá-la; deve-se respeitá-la. Por exemplo, o uso de um determinado componente
cultural na liturgia sem a devida atenção ao seu significado ou à sua finalidade original é uma
ofensa à sensibilidade cultural
948
. De acordo com Suess, o Evangelho não se identifica com
nenhuma cultura, mas se incultura em todas. E as pessoas que evangelizam “respeitam a
alteridade e preservam a identidade da mensagem e das culturas. A inculturação visa uma
proximidade respeitosa em face da alteridade, crítica frente ao pecado e solidária no
sofrimento.”
949
Não se pode dizer que existe revelação de Deus fora da cultura como se, num
ato segundo, ela se inculturasse. Por exemplo, a eucaristia “já nasceu na ceia pascal judaica,
que tem suas origens em sacrifícios agrários e pastoris dos antigos povos do Oriente. (...) O
ano litúrgico (...) nasceu inculturado e se desenvolve num processo permanente de
adaptação aos tempos e aos povos que o celebram.”
950
Portanto, falar de inculturação lirgica
significa estabelecer uma profunda interação entre liturgia e cultura e um diálogo constante.
Segundo a Declaração de Nairóbi
951
, a relação dinâmica entre culto cristão e cultura
é, no mínimo, transcultural, contextual, contracultural e intercultural
952
.
O culto cristão é transcultural porque Cristo, o ressuscitado, é a fonte original e a
mensagem central do culto em todas as culturas. Além disso, todo culto cristão tem como base
o batismo e a eucaristia como sacramentos da morte e ressurreição de Jesus Cristo; todo culto
cristão se desenvolve de acordo com uma estrutura básica e possui elementos transculturais
específicos como, por exemplo, a leitura da Bíblia, os credos ecumênicos, a oração do Pai-
947
CHUPUNGCO, 1994, p. 154.
948
CHUPUNGCO, 1994, p. 154.
949
SUESS, 1994, p. 34.
950
SOUZA, Marcelo de Barros. Celebrar o Deus da vida: tradição litúrgica e inculturação. São Paulo: Loyola,
1992. p. 113.
951
A Declaração de Nairóbi é resultado da terceira Consulta Internacional da Equipe de Estudo sobre culto e
cultura da Federação Luterana Mundial, realizada em Nairóbi, nia, em janeiro de 1996. Cf. DECLARACIÓN
de Nairóbi sobre culto y cultura: desafios y oportunidades contemporâneas. In: STAUFFER, 2000, p. 21.
952
DECLARACN de Nairóbi sobre culto y cultura, 2000, p. 21.
252
nosso; todo culto cristão se desenvolve de acordo com a estrutura do ano eclesiástico. Todos
esses elementos são expressões da unidade cristã que perpassa culturas e confissões.
O culto cristão é contextual, pois o Evangelho nasceu numa cultura determinada e
necessita ser revelado, traduzido, interpretado e expressado de acordo com os valores e
padrões culturais de cada grupo, num tempo e num espaço determinados. O Evangelho
necessita enraizar-se na diferentes culturas.
O culto cristão é contracultural, pois o Evangelho contém uma mensagem
transformadora que questiona os valores culturais contradirios aos valores do Reino de
Deus.
O culto cristão é intercultural, pois há um batismo e somente uma Igreja de Jesus
Cristo no mundo; como sinal da unidade, a igreja no mundo compartilha elementos do culto
das igrejas locais, de culturas diferentes, como, por exemplo, hinos, obras de artes
953
.
O fato de o culto cristão ser celebrado dentro de marcos culturais determinados e de
haver uma relação dinâmica entre culto e cultura exige uma aproximação local entre liturgia e
cultura. Com a finalidade de conhecer melhor a realidade da cultura e da liturgia, Chupungco
propõe examinar os traços fundamentais da cultura e compa-los com as características
culturais da liturgia. A cultura, conforme o autor, pode ser definida a partir dos seguintes
componentes: valores, padrões e instituões.
“Os valores são princípios que influenciam e dão direção à vida e atividades de uma
comunidade e dos seus integrantes.”
954
Eles têm função formativa. Estabelecem a atitude ou
conduta da comunidade em relão às realidades sociais, religiosas, políticas e éticas.
Tomando-se por referência, valores como “hospitalidade”, “laços familiares” e liderança”,
Chupungco pergunta como esses valores se expressam na vida cultural de um determinado
grupo e como eles se expressam na liturgia. Por exemplo, o valor hospitalidade se expressa
através de ritos de acolhimento, entretenimento e despedida de hóspedes; laços familiares são
realçados em reuniões familiares e eventos comemorativos; e liderança se manifesta quando
uma comunidade oferece títulos honoríficos a alguém e, correspondentemente, através das
promessas dessa pessoa em cumprir serviços em favor da comunidade. Na liturgia, o valor
hospitalidade adquire um significado distintivamente cristão na celebração batismal, quando a
953
DECLARACN de Nairóbi sobre culto y cultura, 2000, p. 21-24.
954
“Los valores son principios que influyen y dan dirección a la vida y actividades de uma comunidad y sus
integrantes”. CHUPUNGCO, 1994, p. 156.
253
comunidade recebe o recém-batizado
955
. Da mesma forma, esse valor se expressa quando uma
comunidade recebe muito bem as pessoas estranhas na mesa eucastica. Aliás, a
hospitalidade cristã é um exercício que se aplica a cada domingo a todas as pessoas da
comunidade através de saudações e despedidas à porta do templo. De acordo com Chupungco,
o “espírito comunitário” é outro valor lirgico importante. Trata-se de uma versão ampliada
do valor “laços familiares”. Se a liturgia é desenvolvida dentro do valor de “espírito
comunitário”, provavelmente o culto é entendido como uma reunião dominical da família
cristã. O valor liderança” é inerente à própria natureza do culto comunitário, assim como o é
em toda assembléia ou instituição secular, afirma Chupungco. o existem celebrações
lirgicas acéfalas. Sempre será necessário alguém que as presida
956
.
Os padrões culturais são o segundo componente da cultura. Eles revelam o modo
típico de um grupo cultural pensar, articular o seu pensamento e expressar os seus valores nas
mais diversas formas de comunicação. Enfim, cada grupo cultural possui padrões
estabelecidos de pensamento, linguagem e ritos e por meio deles articulam valores como
hospitalidade, espírito comunitário e liderança. Em resumo, conforme Chupungco, padrões
culturais são
o modo típico pelo qual os integrantes de uma sociedade pensam ou formam
conceitos, expressam seus pensamentos mediante a linguagem, ritualizam aspectos
de sua vida e criam formas de arte. Os aspectos que abrangem os padrões culturais
são, portanto: pensamentos,ngua, ritos e símbolos, literatura, música, arquitetura, e
qualquer expressão de arte. Denominamo-los padrões culturais, porque são, de certo
modo, previsíveis, no sentido de que seguem um curso estabelecido. As coisas são
pensadas, ditas e feitas conforme um certo padrão, mais ou menos assim como
esperamos que as cerejeiras floresçam na primavera. Assim pois, cada grupo cultural
tem a sua maneira pica de pensar, de verbalizar conceitos, de expressar valores, e
assim sucessivamente.
957
Também a liturgia, sendo encarada como uma realidade cultural, embora com um
componente divino, segue um sistema de padrão cultural para expressar valores cristãos, tais
como, hospitalidade, espírito comunitário e liderança
958
. O pprio ordo litúrgico estabelece
um determinado padrão de linguagem, palavras, gestos e símbolos no qual se transmite os
valores cristãos.
As “instituições” são o terceiro componente da cultura. Por instituições compreende-
se, por exemplo, os ritos tradicionais de uma sociedade, mediante os quais se celebram as
955
“Por ejemplo, la hospitalidad adquiere un significado distintivamente cristiano en la celebración bautismal,
cuando la comunidad recibe al recién bautizado.” CHUPUNGCO, 1994, p. 156.
956
CHUPUNGCO, 1994, p. 157.
957
CHUPUNGCO, 1994, p. 158.
958
CHUPUNGCO, 1994, p. 161.
254
diferentes fases da vida humana, do nascimento à morte
959
. São os ritos de iniciação, de
casamento, de paternidade, de instalação de cargos de liderança, ritos relacionados à doença, à
morte e ao sepultamento. Outras instituições são os ritos que marcam as estações do ano e os
eventos históricos e vicos de um povo, bem como os ritos que marcam os convívios do
cotidiano, tais como festas de aniversário, almoço entre amigos, entre outros. A liturgia, por
sua vez, é estruturada de acordo com diversas instituições: o pprio encontro regular do culto
dominical, os ritos de passagem tradicionais, as diferentes festas previstas no calendário do
ano lirgico, os encontros regulares de grupos diversos da comunidade. Enfim, salienta
Chupungco, “a liturgia não é celebrada dentro de um vazio cultural, mas no meio das
expressões culturais vivas da assembléia cultual”
960
. Uma liturgia inculturada fixa de tal modo
as suas raízes no chão da vida de um povo que as pessoas a assumem como parte de sua
própria cultura.
A proposta de Chupungco, de traçar a cultura de um grupo através dos seus
componentes culturais, conforme a descrição acima, não é o único caminho para conhecer e
descrever a cultura de um grupo. Outra possibilidade é apontada por Suess. Ele sugere
“levantar o inventário histórico-cultural do grupo com quem trabalha
961
. Para realizar o
levantamento do inventário histórico-cultural de um grupo, esse autor sugere o seguinte
questionário: “De onde veio? O que trabalha? De que vive? O que come? Onde dorme? Como
se locomove? Como descansa, sonha e se diverte? Como é a relação entre pais, filhos e
vizinhos? A quem invocam nos apuros da vida? Em quem confiam? Quais são as suas razões
para viver?”
962
Essas perguntas ajudam a fornecer o perfil do “segundo meio-ambiente”
963
de
determinado grupo, ou seja, elas oferecem pistas para se definir a cultura de um grupo. Dessas
perguntas, entre outros, surgem balizas para a celebração dos mistérios da fé”
964
.
A inculturação litúrgica visa criar um tipo de culto que esteja diretamente
relacionado à cultura local do grupo celebrante e quanto mais se conhecer o grupo tanto mais
possibilidade se terá de elaborar uma liturgia contextualizada. Uma inculturão litúrgica,
entendida e executada corretamente, deveria levar um grupo celebrante a fazer uma
959
CHUPUNGCO, 1994, p. 164.
960
CHUPUNGCO, 1994, p. 165.
961
SUESS, 1994, p. 45.
962
SUESS, 1994, p. 45.
963
Conforme definido acima, Suess chama a cultura de segundo meio ambiente, um ecossitema humano.
SUESS, 1994, p. 28.
964
SUESS, 1994, p. 45.
255
experiência profunda de Cristo o qual se revela através da língua, dos ritos, da arte e dos
símbolos do próprio grupo
965
.
Ao aplicar o método de inculturação litúrgica aos ritos de passagem, a partir do item
4.3 deste capítulo, a cultura do grupo será descrita a partir do instrumental apresentado por
Chupungco.
4.2.3 Dois métodos de inculturação lirgica
966
Segundo Chupungco o exame de modelos hisricos e contemponeos de
inculturação leva a concluir que há vários métodos possíveis de serem aplicados na liturgia.
Dois desses métodos são o que ele denomina de equivalência dinâmica e assimilação
criativa.
1. Método de assimilação criativa
O modelo da assimilação criativa se depreende da experiência realizada pela igreja
da época da patstica. Escritores como Tertuliano, Hipólito e Ambrósio integraram ritos,
símbolos e expressões lingüísticas, religiosas ou não, na liturgia, como, por exemplo, a unção
batismal, a bebida de leite com mel na comunhão pós-batismal, a lavagem dos pés dos
neófitos, na iniciação cristã. Esses ritos, incorporados aos ritos cristãos, tinham uso
correspondente em ritos domésticos ou religiosos, como os cultos de mistério, praticados por
gregos e romanos durante os primeiros quatro séculos. Através do método de assimilação
criativa praticado pela igreja cristã, esses ritos tornaram-se parte do culto cristão. O núcleo
original do rito lirgico foi enriquecido e sua forma foi desenvolvida. Relembrando o que
foi visto acima, no capítulo anterior, o rito do batismo, originalmente, um simples lavar com
água acompanhado da Palavra, torna-se, no século 4, uma celebração litúrgica que inclui
diversos ritos: unção pré-batismal, renúncia ao mal com o rosto virado para o Ocidente e uma
profissão de com o rosto virado para o Oriente, bênção da água e ritos pós-batismais, tais
como, o lavamento dos pés, a unção com o óleo do crisma, o vestir-se com roupas brancas e a
entrega de uma vela acesa aos neófitos. Na aplicação do método de assimilação criativa, na
época da patrística recorria-se com freqüência à tipologia bíblica. Desta forma, buscava-se
reinterpretar os elementos culturais tais como ritos, símbolos e instituições do povo, no
965
CHUPUNGCO, Anscar J. Dostodos de aculturación litúrgica. In: STAUFFER, 2000, p. 53.
966
O texto deste item está todo ele baseado na exposição de Chupungco, conforme, CHUPUNGCO, 2000, p. 53-
67.
256
contexto de personagens e eventos blicos
967
. Como diz Chupungco, o método de
assimilação criativa oferece uma ampla gama de possibilidades e alcances inesperados. Exige-
se pouco esforço para descobrir semelhanças entre ritos litúrgicos e ritos da ppria cultura,
entre o simbolismo lirgico e o sistema autóctone de símbolos, entre a linguagem litúrgica e
a linguagem ritual de um povo. Em resumo, tendo sido identificados elementos culturais e
lirgicos semelhantes, recorre-se à tipologia bíblica e incorpora-se os elementos culturais na
hisria da salvação. Mas, adverte o autor, é preciso interrogar se os elementos culturais
apurados possuem uma “conaturalidade” com a liturgia cristã; se os tipos bíblicos são
utilizados corretamente; se os elementos locais ajudam a clarear o sentido teológico do rito
cristão; se harmonia e integração entre todos os elementos do rito e, não por último, se o
grupo local concorda que determinados elementos da sua cultura contribuem para o
enriquecimento do rito cristão.
2. Método de equivalência dinâmica
Enquanto a assimilação criativa incorpora elementos da cultura na liturgia, o método
de equivalência dinâmica parte daquilo que existe na liturgia cristã e pergunta como a cultura
pode desenvolver ainda mais o ordo litúrgico
968
. A equivalência dinâmica é uma espécie de
tradução. Ela re-expressa o ordo litúrgico na linguagem, ritos e símbolos da cultura local. Esse
método, em outras palavras, consiste em substituir elementos do ordo litúrgico por elementos
da cultura que possuem significado ou valor equivalente, de maneira que eles possam
exprimir a mensagem do ordo com a mesma propriedade. Ao extrair da cultura os elementos
do seu ordo, a liturgia é capaz de evocar experiências significativas que estão arraigadas na
hisria, tradões e valores de um povo. O método da equivalência dinâmica exige conhecer
bem os componentes da cultura, ou seja, seus valores, padrões e instituições, assim como os
próprios componentes culturais da liturgia. Esse método opera com a premissa de que existem
elementos culturais que possuem conaturalidade com os elementos da liturgia cristã.
Adverte-se que a equivalência dinâmica não deve ser confundida com
“correspondência formal”, a qual conserva a aparência externa dos elementos utilizados, sem
levar em conta os padrões culturais, a história e a vivência local de um grupo. Por exemplo, a
correspondência formal no campo do idioma significa que a tradução de um texto seja literal,
967
Exemplos de tipologia bíblica podem ser conferidos acima, no capítulo três, item 3.3.8, número 3).
968
“Ordo litúrgico” na definição de Chupungco é o termo tradicional utilizado nos documentos litúrgicos para
referir-se à forma ou configuração exterior de um rito. Diz respeito aos elementos fundamentais que compõem o
culto cristão. Cf. CHUPUNGCO, Anscar, J. Bautismo, casamiento, curación y funerales: princípios y critérios
para la aculturación. In: STAUFFER, 2000, p. 71.
257
omitindo-se as caractesticas lingüísticas do público receptor. Desta forma, manter a pureza
original do texto implica prejuízos na comunicão de sua mensagem. Ao contrário da
correspondência formal, a equivalência dinâmica implica que a liturgia dialogue com a
cultura, conhecendo profundamente seus valores, padrões e instituições a fim de encontrar
elementos que possam comunicar a sua mensagem, contextualizando-a. É importante lembrar
que a liturgia, em sua forma ocidental, também conta com componentes culturais, herdados
pela igreja ao longo do seu desenvolvimento. O método de equivalência dinâmica estuda,
pois, os componentes culturais da liturgia e examina a possibilidade de esta se re-expressar de
acordo com os componentes culturais de uma igreja local.
De acordo com Chupungco, os todos de equivalência dinâmica e assimilação
criativa têm pontos de partida diferentes, porém, não divergem entre si. Num processo de
inculturação lirgica, esses métodos se sobrepõem, sendo complementares. A assimilação
criativa parte daquilo que na cultura, enquanto a equivalência dinâmica parte da liturgia.
Stauffer define esta relação como ação reproca que resulta numa transformação tanto da
liturgia quanto da cultura
969
. Em suma, a assimilação criativa tende a introduzir novos
elementos na liturgia, enquanto a equivalência dinâmica funciona como uma espécie de
transferência, ou seja, ela se limita a transmitir o conteúdo de um rito numa forma cultural
correspondente
970
.
4.2.4 O método de inculturação lirgica de Chupungco e sua adaptação à ritualização das
passagens
A inculturação litúrgica, como já observado anteriormente, não é uma novidade.
Trata-se de uma prática que remonta às origens da igreja cristã. No que diz respeito aos ritos
de passagem, a igreja cristã das origens manteve, em boa medida, as práticas locais de seus
adeptos e integrou diversos componentes culturais aos seus ritos. Na verdade, a prática
lirgica da igreja cristã das origens é a grande inspiradora da inculturação na reflexão das
igrejas da atualidade. Os métodos de assimilação criativa e equivalência dinâmica também são
resgates da forma como a igreja dessa época desenvolveu o seu projeto litúrgico.
A inculturação é uma prática muito adequada aos ritos de passagem, pois estes, por
sua natureza antropológica, o parte do patrinio cultural dos povos, ou seja, estão
969
STAUFFER, S. Anita. Culto: núcleo ecumênico y contexto cultural. In: STAUFFER, 2000, p. 11.
970
CHUPUNGCO, 2000, p. 66.
258
arraigados nas diversas culturas. Neste sentido, os todos de assimilação criativa e
equivalência dinâmica podem ser instrumentos proveitosos para se lidar com os ritos de
passagem no campo da liturgia. Devido à sua natureza antropológico-cultural, o método mais
indicado para os ritos de passagem é o de assimilação criativa. A equivalência dinâmica
funciona como um método complementar, sobretudo, naqueles ritos que possuem um ordo
lirgico definido. Como constatado na pesquisa social, apresentada no capítulo dois, há
outras passagens da vida a serem ritualizadas, além dos tradicionais ritos de passagem
praticados pelas igrejas. E o método de assimilação criativa é um instrumento muito útil para
a incorporação de novos ritos, ou mesmo para assimilar elementos novos aos ritos
existentes. Enquanto isso, através da equivalência dinâmica, a igreja pode contextualizar os
seus próprios ritos de passagem, tornando-os mais próximos ao grupo local.
De acordo com Chupungco, a tarefa de inculturação litúrgica compreende certos
passos metodológicos. Os passos elaborados pelo autor visam a inculturação do principal
culto da igreja cristã, o culto eucarístico. Uma aplicação dessa metodologia aos ritos de
passagem carece, portanto, de uma adaptação. Essa é a tentativa que se fará em seguida,
conforme a descrição dos passos abaixo apresentados.
Em primeiro lugar, é preciso descrever o caso que envolve a passagem, observando-
se e destacando-se aspectos relevantes que podem ajudar na descrição da cultura da passagem
e, consequentemente, na elaboração do rito de passagem. Após a descrição do caso,
observam-se os seguintes passos:
Primeiro passo
O objetivo do primeiro passo é definir a cultura da passagem no respectivo grupo.
Para tanto, observam-se dois momentos.
a) Primeiro, de acordo com o instrumental proposto por Chupungco, a cultura pode
ser definida pelos seus componentes, dos quais o autor menciona os valores, os padrões e as
instituões. Cabe, portanto, neste momento, investigar quais são os valores presentes na vida
do grupo em relação à passagem determinada e perguntar como esses valores se manifestam
na vida dos seus integrantes (padrões) através das suas atitudes, dos seus pensamentos, da sua
linguagem, do seu comportamento, das suas manifestações culturais e das instituições
culturais que lhes o fundamentais. Enfim, é importante identificar elementos como,
palavras, pensamentos, frases, expressões lingüísticas e artísticas, provérbios, ritos, símbolos,
259
gestos, imagens, a fim de familiarizar-se o melhor possível com a cultura da passagem no
grupo em questão.
b) O segundo momento na definição da cultura da passagem consiste em identificar o
esquema dos ritos de passagem que, segundo Van Gennep, caracteriza-se por ritos de
separação (pré-liminar), ritos de transição ou margem (liminar) e ritos de agregação (pós-
liminar). Portanto, ao estudar a cultura de uma passagem é importante perguntar quais
elementos dos ritos de passagem da tradição local se definem como ritos de separação, de
transição e de incorporação. A definição desses elementos serve como suporte para a
composição do ordo do respectivo rito.
Segundo passo
O objetivo do segundo passo é realizar um diálogo da cultura com o Evangelho e
com a tradição lirgica da igreja. Para uma melhor sistematização deste passo, ele pode ser
separado em três momentos:
a) Após estabelecer os elementos culturais que caracterizam o grupo envolvido numa
determinada passagem, define-se, em primeiro lugar, os referenciais bíblico-teológicos que
fundamentam o diálogo do Evangelho com a cultura naquele âmbito específico;
b) em segundo lugar, extraem-se da tradição litúrgica da igreja possíveis elementos
que, a partir da sua função litúrgica, contribuem para a constituição de um ordo do rito de
passagem em estudo;
c) em terceiro lugar, realiza-se o processo de interação entre os elementos culturais e
lirgicos mediante o método de assimilação criativa (e equivalência dinâmica, se for
adequado).
O processo de diálogo do Evangelho e da liturgia com a cultura exige realizar a
crítica evangélica, de acordo com o critério cristológico, por assim dizer. Trata-se do aspecto
contracultural da liturgia cristã. É importante salientar que o processo de diálogo, por si, não é
contracultural. Ele o é na medida em que determinados elementos da cultura entram em
contradição com os valores do Evangelho. A contextualização da fé e do culto cristão também
implica encontrar formas litúrgicas que expressam juízo à opressão e à injustiça social onde
quer que elas existam
971
.
971
DECLARACN de Nairóbi sobre culto y cultura, 2000, p. 24.
260
Um critério teológico-lirgico fundamental a ser considerado em qualquer rito de
passagem é o batismo. Cada rito de passagem permeia-se pela teologia do batismo. Afinal, a
igreja cristã, em cada rito de passagem, reatualiza o amor de Deus revelado no batismo. O
batismo é especialmente relevante para as passagens porque é um sacramento dirigido ao
indivíduo no âmbito da comunidade. Por meio do batismo, Deus age em cada pessoa e realiza
com ela uma aliança de amor, torna-a membro do corpo de Cristo. O batismo confere a
identidade cristã. A presença da igreja cristã ao lado das pessoas nas suas passagens é um
sinal da renovação da aliança de amor realizada por Deus no batismo e o reconhecimento da
identidade cris.
Terceiro Passo
O terceiro passo consiste em definir uma proposta lirgica para a passagem em
questão com base nos resultados que foram obtidos na aplicação dos dois primeiros passos.
Para definir uma proposta litúrgica é importante responder as seguintes perguntas:
- Qual a função do rito? - com esta pergunta busca-se definir o que se pretende com
determinado rito de passagem. A resposta irá orientar a elaboração do rito litúrgico e a
proposta lirgica deve conduzir ao objetivo proposto.
- Que grupo está envolvido no rito? é a comunidade como um todo? É a família
com os amigos e vizinhos? Ou um grupo específico da comunidade? Entre outros aspectos, a
moldagem
972
de uma liturgia sempre leva em conta o grupo ou as pessoas que vão se reunir.
- Onde ocorreo rito? senuma escola? Numa casa? No hospital? Num salão da
comunidade ou na igreja? O espaço onde ocorre o evento influencia na composição do rito,
seja na escolha dos seus elementos, seja na forma do seu desenvolvimento. O espaço, por
assim dizer, é um dos elementos da liturgia e a organização do espaço litúrgico é um fator de
comunicação na liturgia qualquer que seja o local definido para a reunião do povo de Deus
973
.
- Quando será realizado o rito e qual a sua duração? são duas perguntas diferentes.
Uma visa definir a época do ano litúrgico e outra o tempo de duração do evento. Um rito de
passagem, em princípio, o é determinado pelo ano litúrgico, mas a pergunta procede à
medida que é possível traçar algum paralelo entre o rito e o evento do ano litúrgico em
972
Por moldagem litúrgica entende-se todo o processo de composição e de elaboração de uma liturgia, desde a
escolha dos elementos que irão compor a liturgia, bem como a elaboração de cada parte ou elemento litúrgico. A
moldagem litúrgica leva em conta o motivo especial da celebração, o lugar onde ela se realiza, o tempo que se
tem à disposição para o evento e as pessoas que irão participar. Cf. KIRST, 2000, p. 17.
973
Cf. WHITE, 1997, p. 67.
261
questão. A definição do tempo de duração do evento, por sua vez, está diretamente
relacionada com a moldagem da liturgia e a situação em que ele está envolvido.
- Quais os elementos litúrgicos do rito e como eles seo desenvolvidos? essa
pergunta leva a definir cada elemento que irá compor a liturgia e a determinar cada passo a ser
dado. A escolha dos elementos do rito leva em conta o resultado obtido com as perguntas
levantadas acima. Em especial, não se deve perder de vista a função do rito para a passagem
respectiva. A liturgia é o resultado da combinação dos diversos elementos que, em seu
conjunto, expressam o significado do rito.
- Há outros aspectos a serem observados?
4.3 Exercício de aplicação do método de inculturação litúrgica à passagem da gravidez
na adolescência
4.3.1 O caso
A descrição do caso de gravidez na adolescência, aqui apresentada, toma por
referência principal a realidade vivida por uma das pessoas entrevistadas na pesquisa social
974
.
A jovem, ali denominada “Angélica”, ficou grávida aos dezesseis anos. Na época, ela cursava
a última série do ensino fundamental da escola do lugar onde reside, um bairro popular da
periferia de um centro urbano. Sua família, de origem de imigrantes italianos e alemães, é
oriunda da zona rural que migrou para a cidade em busca de trabalho e melhores condições de
vida. A jovem mora com sua família no atual bairro desde os seus quatro anos de idade. Seu
pai faz serviços gerais na área da construção civil e sua e realiza serviços domésticos, em
casas particulares. Angélica tem um irmão mais novo. Ela conta que até os seus dezesseis
anos ela tinha um grupo de amigas que se encontrava todos os dias na casa de uma delas,
sempre no mesmo lugar, para conversar. Os assuntos eram os da sua idade: assuntos de
adolescente, de namorado, de escola. Elas também saíam juntas para se divertir. Elas eram
amigas desde a infância. Angélica relembra a sua infância como um tempo em que foi uma
menina muito feliz. Teve carinho em casa, do pai, da mãe. Lembra-se das suas brincadeiras.
Angélica conta como sua vida mudou depois que engravidou do seu namorado, um
jovem que veio do interior em busca de trabalho na cidade e que se estabelecera naquele
bairro. Havia dois anos que ela e ele namoravam. Foi uma gravidez inesperada, diz ela.
974
O relatório da pesquisa social é apresentado, acima, no capítulo dois.
262
Desconfiada, ela fez os exames e constatou o fato. Teve muito medo, principalmente, medo
de contar em casa. Ela diz que ficou um bom tempo guardando isso para ela. Até fez
tentativas de aborto. Sua mãe desconfiou, procurou saber e descobriu tudo. Foi um tempo
muito difícil. Sua mãe não aceitou e exigiu que ela abortasse, caso contrário, ela deveria sair
de casa. Angélica disse que o abortaria e que, portanto, sairia de casa. Ela arrumou suas
coisas e foi para a casa do namorado, mas seu pai foi bus-la de volta, ameaçando-a de
acionar a polícia caso ela insistisse em permanecer ali. Ela decidiu voltar. De volta, em casa,
foi proibida de ver o namorado. O pai e a mãe prometeram cuidar dela e da criança desde que
ela ficasse longe do namorado. Angélica, sentindo-se pressionada e não vendo outra saída,
aceitou a situação.
Quando Angélica contou para suas amigas sobre sua gravidez, elas se chocaram, diz
ela e, aos poucos, Angélica sentiu-se abandonada por elas. Uma a uma foram se afastando.
Angélica conta que organizou seu Chá-de-fraldas, com a turma do colégio, mas as amigas não
participaram. Ela sentiu-se muito frustrada com as amigas de quem ela esperava apoio
naquela hora tão difícil. Sozinha, sem as amigas e com o desprezo da e e do pai, Angélica
se fechou em casa, envergonhada. A jovem diz que a gravidez lhe trouxe diversas perdas: as
amigas e os companheiros, o carinho da mãe e do pai, os privilégios que tinha em casa, o
estudo, a divero e a ppria adolescência. A partir dali, ela teve que reconstruir tudo. Uma
das alegrias da sua gravidez foi, segundo ela, pensar na filha que estava ali, esperá-la e
arrumar tudo para ela. Angélica conta que, aos poucos, com o avançar da gravidez, sua mãe
foi se reaproximando e demonstrando preocupação por ela, sobretudo, quando ela iniciou os
exames pré-natais. Sobre o seu namorado, ela diz que um mês depois seus pais aceitaram
conversar com ele. Decidiu-se que eles morariam juntos depois que a criaa nascesse.
Contudo, eles começaram a morar juntos seis meses depois.
O caso de Angélica retrata a situação de muitas adolescentes que engravidam e
tornam-se mães prematuramente. É uma situação conflitante: adolescer e engravidar! A jovem
necessita lidar ao mesmo tempo com duas realidades difíceis. A adolescência, por seu lado,
caracteriza-se por transformações físicas e emocionais; é um período de transição da fase
infantil para a fase adulta. É tempo de vivenciar novas experiências e de reformular a idéia
que se tem a respeito de si mesmo (quem sou e o que quero ser?); é um tempo de busca de
afirmação da identidade e também de confrontos e atritos com a família e na escola. A
gravidez, por seu lado, também é um tempo de transformações e angústias. Um turbilhão de
sentimentos invade a pessoa: medo do novo papel (“serei uma boa mãe?”), um misto de
263
tristeza e euforia, mudanças corporais. Por isso, engravidar na adolescência significa enfrentar
uma dose dupla de crise. o é fácil lidar com mudanças tão radicais na vida. A gravidez na
adolescência significa uma pida passagem da situação de filha para mãe, do ‘querer colo’
para o ‘dar colo; nesta transição abrupta do seu papel de mulher ainda em formação para o de
mulher-mãe, vive uma situação conflitiva e, em grande parte dos casos, penosa.”
975
A
gravidez na adolescência, em grande parte dos casos, é marcada pela solidão. Sozinha, ela
descobre a gravidez e teme assumi-la. Ela tem medo de enfrentar pai e mãe, tios e tias, medo
de enfrentar os vizinhos, amigos e amigas e o próprio namorado
976
. A vida cotidiana das
adolescentes grávidas transforma-se, restringindo-se, em geral, ao ambiente familiar. O
contato com o mundo extra-familiar diminui gradativamente e surgem novas relações: mãe-
filho, profissionais obstetras
977
. Quando o pai da criança assume, também entre eles surge um
novo relacionamento. Pais e es da adolescente grávida também têm medo e vergonha de
enfrentar a opinião alheia. Eles se sentem traídos pela filha e sua primeira reação é de
repressão e cobrança, como bem demonstra o caso de Angélica. Pais e mães costumam dizer:
“não foi isso que sonhei para minha filha”. Eles desejam um futuro seguro para seus filhos e
filhas, através do estudo, da profissão, da constituição familiar, através do casamento. Além
das dificuldades em casa, com a família, a adolescente grávida, na maioria dos casos, solteira,
enfrenta a discriminação social, pois ela exibe um modelo não esperado pela sociedade,
provocando um conflito de valores
978
. No caso de Angélica, essa desaprovação é representada
pela rejeição das suas amigas. Muitos são os casos em que mães e pais proíbem suas filhas de
andarem ou conversarem com uma adolescente grávida, colocando em risco a sua reputação.
Mas, segundo Luz, há casos de identificação com o grupo e quando se é parte de um mesmo
grupo, as “colegas e amigas adolescentes burlam as ordens familiares que restringem a
convivência, portanto aceitam o fato de a amiga estar grávida”
979
. Cria-se um clima de
comprometimento com a gestante, inclusive por parte das professoras e dos professores da
escola. A própria Angélica conta que teve o apoio de colegas da escola quando ela organizou
o Chá-de-fraldas.
975
TAKIUTI, Albertina. A adolescente está ligeiramente grávida. E agora? Gravidez na adolescência. São
Paulo: Iglu Editora, [s.d.]. (Colão “A sociedade precisa saber”). p. 74.
976
LUZ, Anna Maria Hecker. Mulher adolescente: sexualidade, gravidez e maternidade. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1999. p. 134-135.
977
LUZ, 1999, p. 178.
978
LUZ, 1999, p. 142.
979
LUZ, 1999, p. 143.
264
4.3.2 Os passos metodológicos
O exercício metodológico a seguir é uma aplicação dos passos definidos acima,
conforme o item 4.2, e tem por finalidade a elaboração de um rito de passagem para a
gravidez na adolescência.
Primeiro passo
a) Componentes culturais: valores, pades e instituições
A partir do caso descrito sobre a gravidez na adolescência, podem-se depreender
valores como, sexualidade, autonomia, afirmação da identidade, afetividade, laços familiares,
ética, moral familiar, amizade, fidelidade, cumplicidade, companheirismo, carinho, perdão,
solidariedade, maternidade e paternidade, educação dos filhos, casamento, doação.
Os valores aqui identificados, se expressam de diferentes maneiras, de acordo com os
grupos que se encontram envolvidos nessa passagem. Como se depreende do caso de
“Angélica” e observa Luz, a gravidez na adolescência é uma realidade que revela valores
conflitantes. De um lado, os jovens buscam afirmar a sua autonomia no campo sexual e na
maternidade fora do padrão idealizado de família, bem como de casamento e, de outro, pais,
mães, tios e tias - da ppria adolescente grávida e das amigas - defendem valores referentes à
preservação da família, do casamento, da sexualidade controlada, principalmente da mulher.
Enquanto os jovens defendem valores típicos da adolescência, tais como, autonomia,
afirmação da identidade, sexualidade, amor, afetividade, fidelidade e amizade, os pais e as
mães, os tios e tias buscam preservar valores como: moral e boa reputação da família,
educação dos filhos, casamento dos filhos, maternidade e paternidade. A defesa de tais
valores, mesmo não sendo eles contradirios entre si, provoca atitudes conflituosas entre os
jovens e suas famílias, sobretudo, diante da realidade da gravidez na adolescência. Disso
resulta um aumento da crise da adolescente grávida, pois, ela, no momento em que constata a
gravidez, carece, em primeiro lugar, de apoio, aceitação incondicional, perdão, solidariedade e
ajuda, mas, ao contrário, devido à ênfase diferenciada dos valores de cada grupo, ela é
julgada, condenada e reprimida.
Os padrões culturais de linguagem e de pensamento podem ser identificados a partir
do ponto de vista de diferentes grupos. Por exemplo:
265
Do lado da adolescente grávida, os valores mencionados encontram-se embutidos nas
seguintes expreses:se eu tivesse tirado, acho que estaria muito arrependida
980
(ética,
restrões ao aborto), “eu me acho muito amiga, quando conheço alguém, ela faz parte do meu
cotidiano, eu gosto de ver, de conversar
981
(amizade, cumplicidade), “perdi tudo que tinha:
amigos, companheiros, direitos em casa”
982
(amizade, laços familiares, fidelidade,
companheirismo), “me proibiram de ver ele”
983
(afetividade, sexualidade, autonomia”), “ela
[a mãe] me aceitou de volta”
984
(perdão, los familiares), vamos assumir, vamos morar
juntos”
985
(autonomia, sexualidade), “a melhor parte foi ter esperado ela, ter arrumado tudo
aqui pra ela, (...) eu só pensava nela, (...) no meu pensamento, tudo é ela, (...) se ela ta bem ou
ta ruim, (...) se ela ta ruim, eu também fico ruim”
986
(maternidade).
Do lado dos pais e mães: “onde foi que eu falhei?”
987
(educação dos filhos), “a culpa
é sua [mãe ou pai] que sempre a acobertou”
988
(educação dos filhos), “eu que ensinei tudo pra
você”
989
, eu fiz tudo por essas gurias
990
(doação, educação dos filhos), o que é que os
vizinhos vão falar?”
991
(moral familiar).
Do lado social (vizinhos)
992
: “ela deixa a filha largada” (educação dos filhos), “não
ande com ela” (moral familiar), “uma mãe solteira” (casamento, moral familiar), não quero
isso pra minha filha” (moral familiar, casamento), “ela vai te colocar no mau caminho ou
“ela o é um bom exemplo” (moral familiar).
Os valores mencionados também se expressam em padrões culturais, tais como, os
rituais de encontro diário das amigas (amizade, cumplicidade, identidade, fidelidade), o
próprio Chá-de-fraldas (maternidade, solidariedade, amizade), assim como as visitas regulares
ao obstetra para o cuidado pré-natal (saúde, maternidade).
Formas de comportamento também revelam valores. Por exemplo, em defesa da
moral familiar e da boa reputação, as amigas são proibidas [por suas famílias] de andarem
980
Angélica, 30.
981
Angélica, 4-5.
982
Angélica, 100-102.
983
Angélica, 84-85.
984
Angélica, 233.
985
TAKIUTI, [s.d.], p. 85.
986
Angélica, 45-46.
987
TAKIUTI, [s.d.], p. 79.
988
TAKIUTI, [s.d.], p. 79.
989
TAKIUTI, [s.d.], p. 79.
990
LUZ, 1999, p. 135.
991
TAKIUTI, [s.d.], p. 78.
992
LUZ, 1999, p. 142.
266
com a adolescente gvida”
993
; de outro, a participação dos e das colegas do colégio no Chá-
de-fraldas de uma adolescente grávida revela amizade, cumplicidade, solidariedade e
autonomia. “Ficar em casa”, “não sair para festinhas com os amigos”
994
são igualmente
formas de comportamento que expressam valores relacionados à maternidade, aos laços
familiares. “Conversar com o pai da criança”, “acertar as coisas”
995
são atitudes ou
comportamentos que visam resgatar o valor “moral da família”, assim como a decisão pelo
“morar junto”
996
ou “casar”.
As instituições culturais que mais se destacam na cultura dessa passagem são: a
família, “pai e mãe”, grupo de amigas, turma do colégio, exame p-natal, casamento ou
“morar junto”, o Chá-de-fraldas, enxoval do bebê.
Dentre as instituições destacadas, o tradicional costume do Chá-de-fraldas assumiu
função relevante no caso mencionado de Angélica. É possível que na falta de um ritual que
marcasse a sua gravidez e diante de uma busca por aceitação social, apoio e solidariedade,
essa jovem adolescente grávida encontrasse no Chá-de-fraldas o suporte que procurava.
Um costume tradicional da cultura brasileira e de alguns outros países como, por
exemplo, Estados Unidos da América e Canadá, o Chá-de-fraldas é um evento que marca o
período da gravidez.
Conhecido por diversos nomes, tais como, Chá-de-bebê, Chá-de-cegonha, Chá-de-
berço ou Chá-de-fraldas, o principal objetivo desse evento
é proporcionar um apoio emocional dos amigos à futura mae e presentear a futura
mamãe com os itens que ainda faltam para o enxoval do bebê, mesmo que ela pode
não ser a mãe de primeira viagem. Inicialmente, somente as mães de primeira
viagem organizavam este evento, mas atualmente, cada novo começo de vida pode
ser comemorado com este evento tão especial.
997
Desconhecidos o lugar e a época em que surgiu a tradição do Chá-de-fraldas, esse
evento mantém as características de um encontro descontraído de mulheres que se reúnem
para tomar chá e conversar. O C-de-fraldas é marcado pela conversa informal, pelos
presentes para o enxoval do bebê, pelas brincadeiras e pela refeição. Recentemente, os futuros
pais e amigos também estão sendo incluídos nesse evento. Um dos pontos altos do encontro é
993
LUZ, 1999, p. 142.
994
Angélica, 68-71.
995
Angélica, p. 249-251.
996
Angélica, 251.
997
Como surgiu a tradição de faze r a festa do Chá -de-bebê. Disponível em:
<http://chadebebe.bnx.com.br/Historia.php>. Acesso em 27 de out. 2008.
267
o momento das brincadeiras. A principal delas consiste em que a gestante adivinhe cada
presente doado e quando erra, ela paga uma “prenda”, definida pelo grupo ou pessoa que
organiza (por exemplo, pintar uma parte do corpo, de preferência a barriga, cantar, dançar,
imitar algo ou alguém, um bebê, por exemplo, etc.). Outras brincadeiras são opcionais. Em
geral, a organização do Chá-de-fraldas é assumida pela amiga mais íntima da gestante. A
gestante oferece a lista de convidados e a lista de presentes. Mães, sogras, cunhadas e irmãs
também são envolvidas na organização do evento. Do evento também faz parte o tradicional
“comes e bebes”. O local é escolhido de acordo com as características do grupo (em casa,
num bar, num centro comunitário, numa escola, ou outro local) e é ornamento de acordo com
o simbolismo do evento. Em resumo, podem-se destacar os seguintes elementos do Chá-de-
fraldas: organização do evento, preparação do ambiente, acolhida aos convidados, tomada dos
lugares, conversa informal inicial, brincadeira de adivinhar os presentes e “comes e bebes”.
b) Ritos de separão, transição e agregação
Van Gennep identificou um esquema universal dos ritos de passagem os quais ele
denominou ritos de separão (pré-liminar), ritos de transição ou margem (liminar) e ritos de
agregação (pós-liminar). E mais, ele notou que um rito pode ser mais desenvolvido numa
passagem do que em outra como, por exemplo, os ritos de separação nos funerais e os de
agregação nos casamentos. Na gravidez, conforme Van Gennep, os ritos de margem
constituem uma secção muito importante. Cabe lembrar que os ritos de margem (ou
liminaridade) se referem àquele estado em que a pessoa se separa da fase anterior, mas ainda
não se integrou em seu novo estado. É necessário dar-se conta que a gravidez de uma
adolescente não é apenas um estado de transição para a maternidade, mas também uma
separação brusca da própria adolescência. Portanto, um rito de gravidez na adolescência
necessita enfatizar não a gravidez como transição para maternidade, mas, antes disso, e
talvez o mais importante seja enfatizar a gravidez como separação da adolescência. Para a
adolescente grávida, a gravidez significa perder a sua adolescência e consiste em assumir,
gradativamente, as responsabilidades de uma vida adulta (maternidade). A gravidez exige que
a adolescente se prepare para ser mãe. Daí que, no período de transição, ou seja, durante a
gravidez, acontecem ritos que visam à preparão para o parto (nascimento) e para a
maternidade. Exemplos desses rituais são: exame p-natal, cursos de cuidados com o bebê
(como dar banho, como vestir, como trocar fraldas, como amamentar, como preparar a
mamadeira, como deitar no berço, etc.), leituras de livros sobre a vida do bebê, sobre a
268
maternidade, conversas com mães, avós, tias, amigas que já o mães, sobre cuidados com o
bebê, sobre receitas caseiras, “chás”, cuidados com a amamentação, o que a mãe não deve
comer ou beber, fazer tri ou crochê, preparar o enxoval do bebê e da mãe, etc. Relembrando
Van Gennep, a fase liminar se caracteriza, em especial, como um tempo de preparação, ensino
e aprendizagem (as pessoas “mais velhas” passam a sua sabedoria aos “mais novos” –
iniciandos ou neófitos). O Chá-de-fraldas também é um rito típico da fase liminar. As
“brincadeiras” feitas com a mãe, de adivinhar os presentes, nesse evento, é uma forma de
“testar” os conhecimentos da futura mamãe” e do “futuro papai” sobre os cuidados com o
bebê.
É interessante observar que alguns ritos de margem (ou liminares) que visam
preparação para a próxima passagem - a maternidade - são, ao mesmo tempo, ritos de
agregação à gravidez. Por exemplo, o Chá-de-fraldas. Através dele, a adolescente é aceita e
acolhida como mulher-grávida. A adolescente necessita ser reconhecida em seu novo estado e
ser tratada de acordo com sua nova condição. A mãe de Angélica provavelmente aceitou a
filha grávida quando assumiu com ela o exame pré-natal. Portanto, o exame pré-natal também
se configura como um rito de agregação ao estado de mulher-gvida, assim como o presente
dado por alguém para o enxoval do bebê.
Mesmo não havendo um rito pico de separação para a adolescente gvida tal como
os ritos de transição e de agregão, é possível identificar diversas ações que caracterizam
“separação” na passagem do estado de adolescente para o estado de grávida: o primeiro sinal
dessa separação é físico ou corporal - a ausência da menstruação, seguido do exame de
gravidez que confirma: “estou grávida”; outros sinais são de nível social: ruptura com o grupo
de amigas, não sair para festas ou “baladas”, ficar em casa, não ver o namorado, parar de
estudar. Note-se que todas essas ações de separação que acontecem no vel social
representam, ao mesmo tempo, repressão, castigo, condenação. Resta, quiçá à comunidade
cristã, elaborar ritos de separação que manifestem apoio, aceitação, solidariedade, perdão e
ajuda.
Segundo passo
a) Diálogo do Evangelho com a cultura na passagem da gravidez na adolescência
Qual o referencial ou quais os referenciais bíblicos que fundamentam o diálogo do
Evangelho com a cultura no caso descrito sobre a gravidez na adolescência?
269
Como visto acima, as necessidades mais prementes das pessoas que se acham
envolvidas com a gravidez na adolescência são: aceitação incondicional, amor, solidariedade
e ajuda.
Um dos significados mais importantes da obra salvífica de Deus na Bíblia pode ser
encontrado, sem dúvida, na palavra amor (agape)
998
. A primeira manifestação do amor de
Deus na Bíblia aparece na criação, obra da bondade divina
999
. E uma das expressões dessa
bondade é a criação do ser humano “à imagem de Deus”
1000
. O amor incomparável de Deus
no Antigo Testamento se verifica fundamentalmente na libertação do povo de Israel da
escravidão no Egito, fato esse lembrado por Israel repetidas vezes, em narrações, cantos,
confissões e celebrações
1001
. A atitude amorosa de Deus é descrita, no Antigo Testamento, por
outros termos afins, tais como, simpatia, favor (graça), ser benevolente, benevolência
(bondade), doar, perdoar, compadecer-se ou misericórdia
1002
. Uma das figuras do Antigo
Testamento que revelam o profundo amor de Deus é a do Messias sofredor que a si por
sacrifício em lugar do povo infiel
1003
. A revelação do amor de Deus alcança o seu ponto
máximo na encarnação de Deus no Filho Jesus Cristo e, principalmente, no sacrifício da cruz,
através do qual se demonstrou que a salvação é oferecida unicamente por causa do amor de
Deus e não pelos méritos do ser humano. Ali Deus mostrou a grandeza do seu amor: doação e
graça! Assim diz o apóstolo Paulo em Romanos 5.8: “Mas Deus prova o seu pprio amor
para conosco, pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores.” O Deus do
Novo Testamento é simplesmente o “Deus do amor”. Ele “cuida bondosamente dos seus
‘filhos amados’“
1004
, assim como de todas as criaturas
1005
. O amor de Deus é um “amor
perdoador”
1006
. Esse amor é exemplificado, no Novo Testamento, em parábolas como a do
filho pródigo (Lucas 15.11-32) e da ovelha perdida (Lucas 15. 4-7). O amor de Deus - ágape
conforme o Novo Testamento, se revela onde não direito ou mérito, mas onde se
encontra uma necessidade”
1007
. Deus, como fonte de amor, é a origem do amor das pessoas
entre si. Este, nos evangelhos é chamado de “amor ao próximo e “es estreitamente
998
A tradução do termo hebraico ‘âhab empregado para falar do amor de Deus pelo seu povo foi traduzido pela
LXX pelo termo grego do Novo Testamento ágape. WARNACH, V. verbete Amor. In: BAUER, 1973, p. 39.
999
WARNACH, 1973, p. 39.
1000
Gênesis 1.26s.
1001
Êxodo 15. 1-18, 20-21; Deuteronômio 26. 1-11; Josué 24, por exemplo.
1002
WARNACH, 1973, p. 39-40.
1003
WARNACH, 1973, p. 41.
1004
WARNACH, 1973, p. 48.
1005
Efésios 5.1; Mateus 6.8, 25-32; 7.11; Lucas 12.22-32.
1006
WARNACH, 1973, p. 48. Marcos 11.25s.
1007
WARNACH, 1973, p. 54.
270
relacionado com o amor a Deus”
1008
. O próximo, segundo Novo Testamento, não é apenas o
membro do mesmo povo, mas também o estranho, o pecador e até o inimigo
1009
. Sim, pois o
amor das pessoas cristãs é como o amor de Deus, dado sem exigências prévias, sem trocas,
sem méritos. Ele é gratuito, é serviço, solidariedade e compaixão com o outro necessitado.
Um sinal distintivo sumamente importante do amor de Deus para a comunidade
crisé o batismo. Assim como a cruz é o sinal da salvação dada por Deus à humanidade
inteira, o batismo é o sinal de que Deus ama e dá a salvação a cada pessoa, individualmente,
tornando-a filha e membro do Corpo de Cristo. No batismo, Deus diz “sim, tu és meu”, “tu és
minha
1010
o que, em outras palavras, equivale a dizer “eu te amo”. Comunidade crisé a
reunião de pessoas batizadas, de pessoas seladas pelo amor de Deus, que praticam o amor
entre si e com os outros, não batizados e não pertencentes ao Corpo de Cristo. Sendo fruto do
amor, a comunidade cristã é a continuadora da obra salvífica de Deus no mundo, “sal da
terra” e “luz do mundo”, testemunha do amor de Deus, da solidariedade, da compaixão.
O diálogo do Evangelho com a cultura no caso estudado sobre a gravidez na
adolescência, encontra no significado do amor de Deus, testemunhado na Bíblia, um elemento
de máxima relevância. O amor de Deus visa uma proposta de vida que se confronta
radicalmente com aqueles valores da cultura que se expressam por meio de preconceito,
condenação, exclusão. A condenação, o preconceito e a exclusão sofridos pelas adolescentes
gvidas são sinais da justiça humana que julga o ser humano pelo critério do merecimento,
do comportamento, do papel social que ele desempenha e não prioritariamente pela dignidade
inerente ao ser humano. Para a comunidade crisé o valor do ser humano que esem jogo.
E este valor se fundamenta no fato de que o ser humano é, acima de tudo, “criatura de Deus”,
“imagem de Deus” ou, mais precisamente porque é filho batizado ou filha batizada, selados
pelo amor divino, perdoados e aceitos. Esses são os critérios evangélicos com que se avaliam
quaisquer culpa e erro humanos. A gravidez na adolescência, na maioria dos casos não é
planejada e quando ela acontece é recebida como um fardo a ser enfrentado pela jovem.
Portanto, o que ela necessita, em primeiro lugar, é apoio, é aceitação, é solidariedade. É amor
incondicional. Neste sentido, o Evangelho reforça instituições culturais do tipo Chá-de-fraldas
através das quais as pessoas experimentam a solidariedade social.
1008
WARNACH, 1973, p. 50.
1009
2 Contios 2.8; Lucas 10.30-34; 6.32-36.
1010
Cf. Isaías 43.1.
271
b) Processo de equivalência dinâmica
Como constatado, o existe um ordo litúrgico específico dos ritos de passagem.
Esse necessita ser formado a partir da tradição litúrgica da igreja, incluídos os elementos
próprios do culto cristão e dos ritos de passagem tradicionais da igreja cristã. No diálogo da
liturgia com a cultura, além de definir os elementos litúrgicos que podem compor um ordo,
cabe perguntar pelos elementos da cultura que são compatíveis com o rito litúrgico,
aplicando-se o método de assimilação criativa e de equivalência dinâmica.
Dentre os ritos de passagem tradicionais na igreja dos primórdios, não se verificam
liturgias para a celebração da gravidez, tampouco na igreja dos séculos posteriores. O único
rito presente na tradição lirgica da igreja, como foi indicado no capítulo anterior, é o rito de
“bênção da mulher após o partoou rito de entrada da mulher na igreja após o partoque
incluía, em certas igrejas, um rito de bênção antes do parto e imediatamente após o
nascimento da criança, na casa da parturiente. A ênfase desses ritos, por sua vez, não é a
gravidez propriamente dita, mas o nascimento e o parto. Não há, portanto, na tradição da
igreja um rito de gravidez. Das buscas realizadas nos livros litúrgicos das igrejas da ecumene
da atualidade, foi encontrada uma única liturgia intitulada “bênção a uma mulher grávida”, da
Igreja Episcopal dos Estados Unidos da América
1011
.
O ordo do culto cristão oferece uma série de elementos que combinados entre si
possibilitam formar ritos para diversas ocasiões. Não cabe fazer, neste momento, a descrição
de todos os elementos do culto, mas, tendo em vista a elaboração de um rito para a gravidez
na adolescência, apresenta-se, em seguida, possíveis caminhos.
1) Acolhida no culto, a acolhida é um momento informal em que a comunidade
manifesta a alegria de estar reunida como família de Deus. A acolhida propicia a criação de
um clima de amizade, amor, simplicidade, espontaneidade. Ela visa a todos e, em especial, as
pessoas que visitam a comunidade reunida. A acolhida é sinal de aceitação, incluo no corpo
que se reúne em nome de Jesus. Num rito de gravidez na adolescência a acolhida é uma rica
oportunidade de se criar um clima de aceitação, amizade e amor.
2) Confissão de pecados a confissão de pecados no culto cristão dá ao ser humano
a oportunidade de se apresentar a Deus como ele é: com seus limites, pecados, falhas,
fraquezas e impotência. Pela confiso a pessoa reconhece os seus pecados e pede o perdão e
1011
(“Blessing of a pregnant woman”). In: EVANS, Abigail Rian. Healing liturgies for the seasons of life.
London, Louisville: Westminster John Knox Press, 2004. p. 58. A liturgia indicada se compõe dos seguintes
elementos litúrgicos: acolhida, hino, leitura bíblica, oração, resposta ou responsório,nção e envio.
272
a aceitação de Deus. À confissão segue a absolvição de Deus. Não são raras as situações em
que as adolescentes sentem-se culpadas por sua gravidez e por representarem um peso ou uma
vergonha para suas famílias. A possibilidade do aborto e as tentativas de aborto igualmente
levam-nas ao sentimento de culpa. A confissão de pecados num rito de gravidez na
adolescência não se aplica apenas à adolescente grávida, mas é estendida ao grupo ou
comunidade como um todo. Diante de Deus, as falhas, as fraquezas e os erros atingem todas
as pessoas. Seja em nível familiar, comunitário ou individual, ninguém se isenta de culpa e
responsabilidade, pessoal ou social.
3) Kyrie eleison significa “Senhor, tem piedade”. Esse é um elemento da liturgia de
entrada do culto. Por meio dele, a comunidade reunida lembra-se das pessoas que sofrem
mundo afora e clama pela misericórdia de Deus. Num rito litúrgico para a gravidez na
adolescência, o kyrie eleison dá à comunidade a oportunidade de apresentar diante de Deus as
dores e os clamores das adolescentes grávidas, tanto das que são membros da comunidade
como das que estão fora dela, que vivem as mais diferentes situões na sociedade como um
todo. O kyrie pode ser utilizado dentro de uma liturgia em combinação com outros elementos
lirgicos, bem como, pode ser o elemento principal do rito.
4) Leituras bíblicas um dos objetivos principais das pessoas que se reúnem no culto
é ouvir a palavra de Deus. É na Bíblia, no testemunho do povo de Deus, que a comunidade
cris fundamenta a sua fé e busca referenciais para a sua vida. A leitura bíblica é um
elemento essencial do culto cristão e está dentro da ppria tradão de culto de Jesus. O
evangelho de Lucas conta, por exemplo, que Jesus entrou, num sábado, na sinagoga, segundo
o seu costume, “e levantou-se para ler”
1012
. A blia assume função relevante num rito de
gravidez na adolescência à medida em que ajuda a comunidade crisa entender a realidade
em sua volta à luz do amor de Deus, do seu perdão e da sua aceitação.
5) Pregação baseada nos textos bíblicos lidos durante o culto na liturgia da palavra,
a pregação consiste no anúncio do Evangelho de Jesus Cristo e na interpretação da mensagem
evangélica no contexto em que vive a comunidade cristã atual. Este também é um elemento
que pode compor o rito de gravidez na adolescência, por exemplo, para anunciar o amor
incondicional de Deus pelas suas criaturas e ao mesmo tempo para denunciar situações de
opressão ou atitudes que contrariam o espírito do Evangelho.
1012
Lucas 4.16.
273
6) Oração segundo o testemunho de Atos dos Apóstolos, a oração é um elemento
característico do culto cristão
1013
. Oração é uma das formas de comunicação mais simples
entre as pessoas e Deus e caracteriza atitudes fundamentais do cristão e da cristã, diante de
Deus. Ela é sinal de fé, de entrega, de proximidade e de comunhão com o Senhor. Por meio da
oração, o ser humano tem a oportunidade de dizer a Deus o que o preocupa profundamente. A
oração tem uma função tão determinante na vida da comunidade cristã a ponto de tornar-se
uma estrutura autônoma do culto cristão. Trata-se da oração diária, conhecida como “liturgia
das horas”, “oração pública diária”, “ofício das catedrais” ou ofício do povo”
1014
. Esse ofício
segue o preceito “orai sem cessar”, expresso em 1Tessalonicenses 5.17. A comunidade cristã,
desde a sua origem, tinha o costume de orar em determinadas horas do dia, criando assim, a
liturgia das horas. Os elementos principais desse ofício são: leitura bíblica, cantos, salmos e,
principalmente, a oração que assume muitas formas: invocação, súplica, confissão, louvor,
agradecimento, intercessão, e outras. Sua estrutura é bastante eclética. Ritos de passagem
podem se inspirar no modelo da liturgia das horas pela sua forma breve, flexível, adaptada às
mais diferentes situações. Ritos como de gravidez na adolescência encontram na oração uma
forma muito rica de expressão das necessidades existenciais das adolescentes e dos seus
familiares diante de Deus. Pela oração, a adolescente grávida chega a Deus com seus anseios
e angústias, assim como a comunidade se faz portadora dos anseios das adolescentes e dos
seus familiares, dando voz aos seus clamores.
7) Ceia do Senhor ou eucaristia – trata-se do elemento primordial do culto cristão. Na
ceia está o cerne do Evangelho. Ela é o memorial da salvação. Nela a comunidade cristã
rememora tudo o que Deus fez pela humanidade na vida, na morte e na ressurreição de Jesus.
Na mesa da comunhão, Deus revela tudo o que ele faz e dá pelas suas criaturas: amor, perdão,
vida, salvação, aceitação, graça, fé. Portanto, um rito de gravidez na adolescência pode ser
desenvolvido apenas em torno da ceia do Senhor ou em combinação desta parte com outros
elementos lirgicos. É importante lembrar que a ceia também é um componente do batismo e
representa a incorporação dos membros do Corpo de Cristo (comunhão). Na prática da ceia, a
comunidade criso testemunho de que ninguém é excluído por preconceito ou castigo ou
qualquer outro motivo, pois toda pessoa, sendo batizada, pertence ao corpo de Cristo. Ligado
ao ato de comunhão, a refeição como tal também é parte do culto cristão. Trata-se do ágape, a
refeição comunitária cristã que nos tempos primórdios da comunidade crisestava ligada à
1013
Atos 2.42.
1014
Para aprofundar o assunto, veja: WHITE, 1997, p. 95ss.
274
eucaristia
1015
. O ágape também é conhecido como “festa do amor”. Essa refeição tinha um
caráter diaconal, pois parte dos alimentos ou outros bens trazidos como oferta eram
destinados aos pobres. Assim se expressa Georg: “Os ágapes eram provavelmente celebrados
todos os dias, ao entardecer. As pessoas traziam alimentos e outros bens para partilhar com os
demais, com o objetivo de suprir os irmãos necessitados.”
1016
8) Bênção unida ao gesto de imposição das os, a bênção é uma parte da liturgia
de despedida do culto eucastico. O significado mais comum no uso e na linguagem da igreja,
pelo menos durante certo período da sua hisria, a bênção é “a ação de Deus que mostra o
seu favor, que concede especial proteção”
1017
. Na bênção está presente uma potência que age,
uma força que pode transmitir salvação
1018
. Quando Deus é o sujeito, o termo abençoar, no
Antigo e no Novo Testamento indica que Deus continua a comunicar salvão pelo dom do
seu amor, da sua misericórdia e da sua paz
1019
. O conteúdo da bênção é comunicado mediante
dois elementos: palavra (invocação da força divina) e gesto (imposição das mãos). A bênção,
com imposição das os, dada a pessoas que vivem tensões existenciais, em ritos como o de
gravidez na adolescência, é um sinal muito concreto da presença fortalecedora e consoladora
de Deus.
10) Unção com óleo e ato de selar são gestos pertencentes ao ordo do batismo e
estão ligados à recepção dos dons do Espírito Santo. Pela dádiva do Espírito Santo, as pessoas
batizadas participam do sacerdócio de Cristo. Portanto, esses gestos, em ritos de passagem,
remetem a tudo o que uma pessoa batizada recebe de Deus: graça, perdão, aceitação, amor,
vida e salvação. Além disso, a unção com óleo pertence ao rito de cura e remete ao aspecto
curativo do Evangelho.
11) É importante lembrar que o culto cristão possui estruturas como o tempo e o
espaço lirgicos. Todo rito, seja qual for sua natureza, é desenvolvido dentro de um tempo
lirgico determinado, seja, advento, natal, páscoa, pentecostes ou outra festa do ano
eclesiástico e dentro de um espo limitado. O tempo litúrgico possibilita dar uma entonação
diferente a um rito de acordo com a ocasião em que ele é realizado (advento preparação,
natal vida nova, quaresma contrição, páscoa libertação e ressurreição, pentecostes
presença vivificadora de Deus, o alguns exemplos). O espaço na liturgia aponta para o
1015
WHITE, 1997, p. 180.
1016
GEORG. Sissi. Diaconia e culto cristão: o resgate de uma unidade. São Leopoldo: EST / CRL, 2006. (Série
Teses e Dissertações, v. 32). p. 48.
1017
SODI, M. verbete Bênção. In: SARTORE; TRIACCA, 1992, p. 123.
1018
SODI, 1992, p. 124.
1019
SODI, 1992, p. 127.
275
aspecto simbólico do culto e está ligado ao significado do evento que ocorre em um lugar
determinado. Em princípio, qualquer lugar serve para a comunidade cristã desenvolver um
rito lirgico, mas esse lugar não deve ser arrumado de qualquer maneira. Buyst diz que
objetivos a serem alcançados; princípios fundamentais a serem levados em
conta. Um dos princípios fundamentais é de que o local não seja apenas funcional,
mas expresse o mistério: o mistério de Deus, de Jesus Cristo, do Espírito Santo, da
Igreja-comunidade, da liturgia, de nossa vida, da sociedade, do mundo, do
cosmo.
1020
c) Processo de assimilação criativa
Considerando que os componentes da cultura também interagem com os da liturgia,
destaca-se que, de acordo com sua natureza, o Chá-de-fraldas é um evento social que
promove apoio e solidariedade à mulher gvida e, neste sentido ele é um rito condizente com
os valores do Evangelho. Os próprios elementos desse rito servem de moldura para um rito
lirgico de gravidez na adolescência. Por exemplo, a preparação, a escolha de um ambiente, a
ornamentação do ambiente, a época (tempo) do rito, o grupo reunido, a acolhida, os presentes,
a entrega dos presentes e a refeição.
De acordo com o método de assimilação criativa o primeiro elemento a ser
considerado diz respeito ao grupo celebrante. Na adolescência o grupo de afinidade é uma
referência importante para o exercício da amizade, do companheirismo, do apoio tuo. No
tradicional Chá-de-fraldas, o grupo de amigos e amigas se reúne com a mulher gvida para
apoiá-la, material e emocionalmente. Esse parece ser um elemento interessante a ser
assimilado na liturgia. Nas comunidades da IECLB, por exemplo, existem diversos grupos: de
mulheres, de jovens, de casais, corais e outros. Devido às semelhanças de idade e
características grupais de identidade, o grupo de jovem parece ser um grupo indicado para
organizar e desenvolver um rito de passagem com adolescentes grávidas. Mas, isso o quer
dizer que necessita limitar-se a esse grupo. Outros grupos como o de mulheres podem assumi-
lo. O segundo elemento de assimilação criativa relaciona-se com um dos aspectos centrais do
Chá-de-fraldas, a doação de um presente de cada amiga para ajudar a gestante a compor o
enxoval do seu bebê. A oferta está presente tanto no culto eucarístico dominical como faz
parte da antiga forma de culto, o ágape. Portanto, a doação na forma do presente”, um dos
principais elementos do Chá-de-fraldas encontra referências fundamentais no culto cristão,
podendo ser assimilado criativamente num rito de gravidez na adolescência. Da mesma
1020
BUYST, Ione. Prefácio do livro: MACHADO, Regina Céli de Albuquerque. O local da celebração:
arquitetura e liturgia. São Paulo: Paulinas, 2001. p. 7.
276
forma, no Chá-de-fraldas ainda há o elemento do “comes e bebes” como algo que se relaciona
diretamente com a refeição “ágape”. O método de assimilão criativa também se aplica à
“acolhida”. No Chá-de-fraldas, cada pessoa é recebida na chegada, pelas pessoas que
coordenam o evento e, por sua vez, cada participante cumprimenta, em especial, a gestante. O
rito lirgico, portanto, pode integrar em sua “acolhida” o aspecto pessoal da acolhida dirigida
a cada pessoa e à gestante, em especial.
Terceiro passo: considerações litúrgicas sobre o rito de gravidez na adolescência
a) Função do rito
Proporcionar a vivência ritual da passagem de uma adolescente grávida. Oferecer um
rito de separação da adolescência e um rito de incorporação no estado de gravidez. Exercitar o
testemunho cristão de solidariedade, aceitação, amizade, acolhimento e amor.
b) Grupo envolvido no rito
O rito em estudo visa ser exercitado no seio de uma comunidade da IECLB e tem
como referência o grupo de jovens de mais ou menos 15 pessoas. Leva-se em conta que a
adolescente grávida participa das atividades do grupo de jovens de sua comunidade. Por isso,
o grupo decidiu celebrar a passagem que ela está vivendo. É importante dizer que a situação
aqui apresentada é uma possível realidade. situações em que a adolescente grávida não
freenta o grupo de jovens e até mesmo se afasta da comunidade quando se vê diante de uma
gravidez inesperada. Diante de casos assim, é necessário refletir sobre a melhor forma de ir ao
encontro dessas pessoas. É fundamental que os obreiros e as obreiras da igreja, cientes da
imporncia da ritualização de outras passagens da vida, além daquelas tradicionalmente
assistidas, perguntem qual o grupo mais adequado para assumir a realização do rito e o local
onde ele vai ocorrer. Caso a comunidade, como um todo, esteja preparada para assumir um
rito de gravidez na adolescência, essa passagem pode ser ritualizada dentro do pprio culto
dominical, na forma de uma bênção, com oração e imposição das mãos, por exemplo.
Considerando que a própria cultura oferece o padrão ritual do Chá-de-fraldas para uma
mulher grávida, as amigas e amigos de uma adolescente grávida podem preparar um Chá-de-
fraldas, incluindo nele aspectos litúrgicos relevantes
1021
. Por exemplo, antes de abrir os
1021
Evidentemente, o é qualquer grupo de amigos e amigas que se interessa em incluir aspectos litúrgicos num
Chá-de-fraldas. Tal atitude é resultado de um trabalho pastoral e educativo desenvolvido com os membros da
comunidade como, por exemplo, no ensino confirmatório, no grupo de jovens, no grupo de mulheres, entre
outros. É necessário educar para a ritualidade e para a liturgia. A vivência ritual da é fruto da educação
contínua que inicia com o batismo. Ela não surge espontaneamente. Faz parte da vivência comunitária e da
educação cristã.
277
presentes pode-se incluir uma oração, cantos, leitura blica e amesmo uma bênção com
imposição das mãos sobre a gestante.
Supõe-se que o grupo de jovens que assumirá o desenvolvimento do rito de gravidez
na adolescência, aqui em estudo e abaixo descrito, esteja familiarizado com atividades
celebrativas. Ao decidir oferecer um rito de gravidez na adolescência, o grupo pode incluir e
convidar outras jovens que vivem esta passagem, mesmo que elas não participem ativamente
do grupo. O rito exige ser preparado, seja por uma equipe de jovens assessorada pelo/a
pastor/a ou o/a catequista ou o/a diácono/a, seja pelo próprio obreiro ou obreira. Espera-se que
a equipe, ou a pessoa que prepara a liturgia, estude cuidadosamente a cultura dessa passagem.
Para tanto, os assessores devem munir-se dos subsídios necessários. O roteiro abaixo
apresentado é uma das muitas formas que o rito pode adquirir.
c) Local do rito
O rito é desenvolvido no próprio ambiente em que o grupo de jovens se reúne, no
salão da comunidade, pois ele é o local dos encontros regulares do grupo. O salão é amplo,
podendo ser utilizado em seu todo ou apenas parcialmente. cadeiras e mesas. No caso da
presente proposta, todo o sao é utilizado, bem como cadeiras suficientes para o grupo e
mesas para uma refeição em conjunto. O salão é organizado de acordo com diversos
ambientes, conforme a descrição abaixo.
d) Tempo e duração do rito
O grupo de jovens tem o costume de se reunir aos sábados, no fim da tarde. É
momento de relaxamento das atividades da semana. Os encontros do grupo duram, em média,
duas horas, das quais meia hora é dedicada à celebração. Levando-se em conta que este rito
inclui uma refeição conjunta, o tempo dedicado ao rito será, em seu conjunto, de uma hora e
trinta minutos. É importante que o rito de gravidez na adolescência ocorra nos primeiros
meses de gravidez, pois o rito visa não somente ritualizar a passagem para o estado de
gestante, mas a separação da adolescência, por isso, a importância da ritualização ocorrer
ainda no início da gravidez.
e) Símbolos
Os seguintes elementos simbólicos estão incluídos no rito: água, representação de um
caminho, estações com objetos que lembrem os diferentes estágios da vida (nascimento,
infância e adolescência), uma caixa de presentes, velas e Bíblia, óleo (do tipo que se usa para
os bebês).
278
f) Observações
Incluem-se no rito os presentes que cada participante traz para compor o enxoval do
bebê. A adolescente grávida (ou as adolescentes, se for o caso) traz, por solicitação prévia, um
ou mais objetos que representem a sua adolescência.
g) Roteiro lirgico
- O ambiente
O salão comunitário é arrumado como um caminho e, dentro dele, são demarcados
pontos específicos, aqui denominados de estações, separados um do outro por certa distância.
As três primeiras estações representam os estágios da vida vividos pelo grupo celebrante
(nascimento, infância e adolescência) e a quarta representa o momento atual do grupo. O
caminho é demarcado com figuras de pés colados no chão apontando sempre para frente,
indicando o movimento dos passos. A primeira estação, do nascimento, é representada por
uma banheira com água, sabonete, toalha, e outros elementos afins. A água representa tanto o
nascimento natural quanto o espiritual (batismo). A segunda estação representa a infância e a
terceira, a adolesncia (estágio marcante para a adolescente grávida). Essas estações também
o decoradas de acordo com objetos, figuras ou simbologias do estágio da vida que
representa. Na quarta estação há um círculo com cadeiras suficientes para cada um/a do
grupo. No centro, há uma mesa adornada com uma toalha; sobre ela uma vela acesa, uma
vasilha com óleo e uma Bíblia aberta. Ao lado, numa mesinha auxiliar, há uma vasilha com
areia e, ao lado, diversas velas apagadas. A vasilha com areia servirá de suporte para as velas
que serão acesas durante a oração. Os pés que demarcam o caminho o param na quarta
estação, eles continuam apontando para adiante. Num outro ponto adequado do salão uma
mesa, com cadeiras, arrumada com as comidas e bebidas que cada qual trouxe e uma caixa
com os presentes doados pelos participantes para o enxoval do bebê.
- O decorrer do rito
O rito inicia dentro do salão, próximo à porta de entrada, no lugar demarcado, antes
da primeira estação. Ali se dá a acolhida. A liturgia se desenvolve na forma de uma procissão,
passando pelas estações que representam os estágios iniciais da vida (nascimento, infância e
adolescência) e segue até a quarta estação que representa o lugar da palavra de Deus, aquela
que ilumina a vida e as passagens da vida, no presente, no passado e no futuro. A procissão
segue acompanhada de cantos. A cada estação o grupo faz uma parada. Nas três primeiras se
faz a rememoração das passagens vividas. Na quarta, o grupo pára, senta-se para ouvir a
279
palavra, meditar e orar. Ali também é dada a bênção à gestante. Depois da última estação, o
grupo se dirige à mesa da refeição para a entrega dos presentes e a partilha dos alimentos.
Após isso, encerra-se o rito.
4.3.3 O rito litúrgico, passo a passo
Acolhida
(O grupo está de pé, próximo à entrada do salão, no ponto inicial do caminho
demarcado).
L. Bem-vindos, irmãos! Bem-vindas, irmãs. Hoje temos um motivo muito especial
para este encontro celebrativo. N. es vivendo um momento importante da sua vida, a sua
gravidez, e es aqui para celebrar conosco esta passagem tão significativa. Seja bem-vinda,
N. Você pertence a este grupo e estamos aqui para juntos nos colocarmos diante de Deus
assim como somos e assim como estamos. Paz seja contigo e paz seja com todos e todas vocês
que aqui estão. Demos uns aos outros um abraço de paz e de boas-vindas.
L. Assim diz o livro de Eclesiastes: “Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo
para todo propósito debaixo do céu: tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de
plantar, e tempo de arrancar o que plantou: (...).” Hoje, Deus nos deu um tempo especial,
um tempo para refletirmos sobre as passagens da nossa vida e colocarmos as nossas
alegrias, preocupações, sofrimentos e esperanças sob a sua palavra e a sua bênção. Convido
vocês para caminharmos por este salão, realizando uma parada em torno de cada uma das
estações aqui montadas. Enquanto caminhamos, cantamos:
C. (canta): “Caminhamos pela luz de Deus, caminhamos pela luz de Deus
1022
Primeira estação – nascimento: (todos se põem em torno da estação do nascimento).
L. Olhemos para os objetos e os elementos aqui dispostos e recordemos o nosso
nascimento. Mesmo que ele não seja tão consciente para nós, vamos imaginá-lo. Deixemos
livre a nossa fantasia. (Prever um tempo para o exercício).
L. Para a maioria de nós, a entrada no mundo coincide com a entrada na
comunidade cristã, pois quando éramos bebês, fomos batizados. Pelo batismo tornamo-nos
pertencentes ao corpo de Cristo. Vamos tocar nessa água, lembrando que desde o nosso
1022
HINOS do Povo de Deus, volume 2: Hinário da Igreja Evanlica de Confissão Luterana no Brasil. 6.ed. rev.
Porto Alegre: Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, 2005. Hino 463.
280
nascimento fomos chamados de filhos amados e filhas amadas de Deus. (Enquanto cada um/a
toca a água, o grupo canta):
C. (canta): “Banhados em Cristo, somos uma nova criatura, as coisas antigas se
passaram, somos nascidos de novo
1023
.
(O grupo retoma a procissão, cantando)
C. (canta): “Caminhamos pela luz de Deus, caminhamos pela luz de Deus”
Segunda estação – infância (todos se em em torno da estação da infância).
L. Certamente, a infância nos traz recordações ainda muito vivas. Tenhamos um
tempo para relembrarmos momentos desse período que ficaram registrados em nossa
memória. (Prever um tempo para o exercício).
L. Se alguém o desejar, partilhe com o grupo algum fato que tenha sido marcante na
sua infância.
(O grupo retoma a procissão, cantando)
C. (canta): “Caminhamos pela luz de Deus, caminhamos pela luz de Deus
Terceira estação adolescência (todos se põem em torno da estação da
adolescência).
L. Estamos agora na estação da nossa adolescência. Para a maioria de s este
esgio ainda é marcante. Para uns a adolescência está em pleno desenvolvimento. Para
outros ela está chegando ao fim. Para uns, as descobertas da adolescência estão apenas
começando. Para outros, a responsabilidade de uma vida adulta está chegando. Para uns,
a adolescência dura longos anos. Para outros, ela é mais breve. (Silêncio!).
Convido vocês a voltarmos a nossa atenção e carinho para a nossa amiga N. Ela
es grávida. Em poucos meses terá em seus braços uma criança para cuidar. Enquanto ela
se prepara para receber a sua criança, ela também vai deixando, aos poucos, a sua vida de
adolescente para trás. Queremos ajudá-la nesse processo. Quando passamos de um estágio a
outro em nossas vidas, sempre perdemos algo e ganhamos algo. Como sinal de que N., ao
entrar no período da gravidez deixa algo para trás, s a convidamos a deixar aqui neste
1023
“Banhados em Cristo”. In: KIRST, Nelson (Org.). Coleção Miriã (Colección Miriam): Cantos litúrgicos da
América Latina (Cantos litúrgicos de América Latina), número 2. São Leopoldo: Centro de Recursos Litúrgicos /
Escola Superior de Teologia, 2006. p. 40.
281
local algum objeto que represente a sua adolescência. E se ela o desejar, poderá dizer o que
significa para ela deixar aqui esse objeto. (Tempo)
C. (canta): “Caminhamos pela luz de Deus, caminhamos pela luz de Deus”
Quarta estação – leitura bíblica, orações e bênção (as pessoas sentam-se).
Leitura bíblica: Lucas 15. 11-24 (silêncio, meditação e partilha da palavra)
Oração
L. Eu convido todos e todas para orarmos, agradecendo e intercedendo a Deus, seja
pelas boas dádivas a nós concedidas ao longo de nossas jornadas, seja pelas dores,
preocupações e ansiedades que experimentamos no momento atual. Cada qual apresente o
seu pedido de oração, acendendo uma vela. (Tempo).
L. (Orão pela gestante): Deus, fonte da vida! Recebe as orações que aqui te
apresentamos. Te pedimos, em especial, por N. Acompanha-a nos meses de sua gravidez para
que a criança por ela gerada se desenvolva saudavelmente e N. possa se preparar para a
maternidade num ambiente de paz e harmonia familiar. Cuida bem dela e do novo ser que
brota em seu ventre. Por Jesus Cristo, teu filho amado!
Bêão à gestante (N. é convidada a colocar-se, de pé, no centro e todo o grupo
estende as mãos sobre ela).
L. Que Deus caminhe ao teu lado, como uma amiga fiel.
Que Deus te abrace e te console, como uma mãe amorosa.
Que Deus te ampare e te fortaleça, como um pai protetor.
Abençoe-te Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. Amém.
Envio
L. (Com o óleo traça-se o sinal da cruz na testa da gestante): Vai em paz. O mesmo
Deus que, por amor, te recebeu como filha no batismo, esteve presente contigo ao longo da
sua vida, agora te acompanhe e te fortaleça na sua nova jornada. Não tenhas medo.
(Todos dão um abraço em N. e, em seguida, se dirigem para a mesa da partilha dos
alimentos)
Entrega dos presentes para a gestante
(Um/a representante do grupo entrega a caixa com os presentes do enxoval do bebê)
282
L. (convida para um canto de comunhão)
C. (canta): “Esta mesa de teus filhos, vem Senhor, abençoar
1024
.
Partilha dos alimentos, despedida e bênção final.
4.4 Exercício de aplicação do método de inculturação litúrgica à passagem de ingresso
num lar de idosos
4.4.1 O caso
Antes de descrever o caso específico de entrada num lar de idosos, cabe fazer algumas
considerações sobre o tema do envelhecimento. A pesquisa sobre o envelhecimento tem sido
ampliada no Brasil, nas últimas décadas
1025
, uma decorrência das mudanças sociais e culturais
e do aumento da expectativa de vida no Brasil, nos últimos anos. “O Brasil dobrou o nível de
esperança de vida ao nascer em relativamente poucas décadas, numa velocidade muito maior
que os países europeus, os quais levaram 140 anos para envelhecer.”
1026
Ao estudar este grupo
socioetário que, no ano de 2020, colocará o Brasil como a sexta população mais velha do
planeta, Minayo e Coimbra Jr. constatam que “quase sempre outros atores têm falado pelos
idosos”
1027
e estes adotam uma perspectiva diferente daquela que o próprio grupo de idosos
revela sobre a sua realidade. Existe uma visão pessimista e negativa sobre a vida dessa
camada da população brasileira, imposta pela sociedade. Por sua vez, as pesquisas que dão
voz aos próprios idosos são capazes de produzir uma compreensão mais real e mais positiva
das vivências desse grupo e da avaliação da situação que eles fazem de si mesmos
1028
. Nesse
sentido, os resultados de pesquisa apreendidos através das histórias de vida permitem
compreender o envelhecimento como uma experiência diversificada e sujeita às influências
de diferentes contextos sociais, históricos e culturais
1029
. O envelhecimento, comumente é
associado à doença, privão, dependência, tristeza e frustração. Mas, o envelhecimento
também pode ser visto como um tempo produtivo específico da vida, emocional, intelectual
1024
Do repertório pessoal da autora, “Esta mesa de teus filhos vem, Senhor, abençoar. Esta mesa de tuas filhas
vem, Senhor, abençoar”, é cantado conforme a melodia da música do folclore popular “Peixe Vivo”.
1025
Veja dados da produção científica brasileira sobre o tema terceira idade em: VERAS, Renato. Prefácio. In:
MINAYO, Maria Cecília de Souza; COIMBRA JR. Carlos E.A. (Orgs.). Antropologia, saúde e
envelhecimento. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2002. p. 9.
1026
MINAYO, Maria Cecília de Souza; COIMBRA JR. Carlos E.A. Entre a liberdade e a dependência: reflees
sobre o fenômeno social do envelhecimento. In: MINAYO; COIMBRA JR, 2002, p. 12.
1027
MINAYO; COIMBRA JR., 2002, p. 12.
1028
MINAYO; COIMBRA JR., 2002, p. 12.
1029
BASSIT, Ana Zahira. Histórias de mulheres: reflexões sobre a maturidade e a velhice. In: MINAYO;
COIMBRA JR, 2002, p. 175.
283
e social, superando assim os estigmas da discriminação”
1030
. Positivar a identidade da pessoa
idosa significa, por um lado, reconhecer o que é importante e específico para a pessoa
desfrutar nessa etapa da vida; por outro, é preciso compreender, do ponto de vista da própria
pessoa idosa, “os sofrimentos, as doenças e as limitações com toda a carga pessoal e familiar
que tais situações acarretam, embora nunca tratando tais acontecimentos dolorosos e tristes
como sinônimos de velhice”
1031
. Para melhor compreender o envelhecimento, é preciso
considerar que cada pessoa vivencia essa etapa da vida de forma diferente e levar em conta a
hisria particular das pessoas bem como os aspectos estruturais a elas relacionados como
saúde, educação e condições econômicas
1032
. “O que torna a velhice sinônimo de sofrimento
é mais o abandono que a doença; a solidão que a dependência.
1033
Uma realidade complexa relacionada ao envelhecimento diz respeito aos asilos,
também denominados abrigos, retiros ou lares de idosos. Trata-se da assim chamada
“institucionalização da velhice”
1034
. No Brasil, há um modelo largamente hegemônico quando
se fala em instituições para idosos. É o modelo asilar
1035
. Esse é definido como uma
segregação dos idosos diante da comunidade do entorno. Como regra, os idosos estão
apartados de qualquer convivência comunitária; não saem do asilo ou, quando o fazem,
realizam apenas breves e vigiadas incursões”
1036
. Outra característica fundamental ligada a
este modelo, acrescenta o autor, é o abandono das pessoas idosas internadas, tanto por parte
da família, quanto da própria instituição
1037
. Nesse modelo de asilo, não se oferece atividades
para as pessoas idosas; as pessoas idosas não são tratadas como cidadãs; são vistas como
incapazes; devem obedecer às normas internas definidas por outrem. “O espaço que habitam
não é o seu espaço
1038
, pois dividem-no com outros e o possuem mobiliário próprio. A
estrutura física dos pdios é, na maioria das instituões asilares, inadequada às necessidades
1030
MINAYO; COIMBRA JR., 2002, p. 14.
1031
MINAYO; COIMBRA JR., 2002, p. 14.
1032
MINAYO; COIMBRA JR., 2002, p. 14.
1033
MINAYO; COIMBRA JR., 2002, p. 14.
1034
Uma abordagem sucinta sobre a história do surgimento dos asilos de velhos no Brasil pode ser conferida em:
GROISMAN, Daniel. Duas abordagens aos asilos de velhos: da clínica Santa Genoveva à história da
institucionalização da velhice. Cadernos pagu: gênero em gerações, São Paulo, n.13, p.161-190, 1999.
1035
Conforme Rolim, não se sabe quantos são os idosos que vivem em instituições no Brasil. Pelos dados do
Governo, existem hoje [isto é, em 2002, sic.] em torno de 19 mil idosos atendidos em instituições asilares.” Mas,
este número pode ser maior, pois nem todas as instituições do tipo estão cadastradas e outras funcionam na
clandestinidade. ROLIM, Marcos. Entre o silêncio e a morte. V Caravana Nacional de Direitos Humanos:
uma amostra da realidade dos abrigos e asilos de idosos no Brasil. Brasília: Câmara dos Deputados,
Coordenação de Publicações, 2002. (Série ação parlamentar, n. 202). p. 5.
1036
ROLIM, 2002, p.5.
1037
ROLIM, 2002, p. 5.
1038
ROLIM, 2002, p. 6.
284
físicas das pessoas ali internadas
1039
. Embora em menor número, há, contudo, no Brasil,
instituições de idosos que oferecem condições dignas às pessoas idosas ali moradoras e dão
exemplos de modelos institucionais alternativos para esta camada da população
1040
. Devido ao
forte impacto que o modelo asilar representa para a vida das pessoas idosas, deparar-se com a
necessidade de viver num asilo, em determinado momento da vida, é causa de inquietação e
sofrimento, em especial, porque os asilos evocam sentimentos de abandono e solidão.
A entrada num lar de idosos é uma das passagens depreendidas pela pesquisa social,
apresentada no capítulo dois. O caso das pessoas que se mudam para um lar de idosos,
descrito em seguida, tem, por referência principal, o relato de uma das pessoas entrevistadas
que vive num lar de idosos
1041
.
Trata-se de uma senhora de 84 anos, viúva, cujo nome fictício é Francisca. Ela vivia
com o marido numa cidade do interior. Quando ele faleceu, as filhas a levaram para morar
próximo a elas, na cidade onde elas viviam. Francisca aceitou, mas optou por morar sozinha,
numa casa própria. Havia uma pessoa que cuidava dela e da sua casa. Devido a uma queda
dentro da sua casa, ela passou aos cuidados de uma das filhas, morando com ela, enquanto
recuperava-se. Contudo, a filha adoeceu e a família decidiu que a solução mais adequada era a
transferência de Francisca para um lar de idosos, pois ali ela teria a assistência e o cuidado
necessários. Na época da entrevista, havia cinco meses que Francisca estava morando no seu
novo lar. Sua estadia ali, portanto, ainda era recente. Segundo seu relato, ela, em primeiro
lugar, foi conhecer o lugar e as pessoas do lar. É uma casa pequena que abriga poucas
pessoas. Possui as características de uma casa/lar. Sua família teve o cuidado de pesquisar as
instituões da região para lhe oferecer um lugar que tivesse condições dignas de atendimento
à pessoa idosa. Portanto, o lar onde Francisca mora difere do modelo asilar descrito acima.
Mesmo assim, para Francisca, a ida para o lar não foi fácil. De acordo com a sua descrição, no
dia em que ela se mudou “foi muito dolorido”, diz Francisca; ”aquele dia o meu coração, se é
que fica preto, ele ficou
1042
. As filhas a levaram de carro, com todas as suas coisas. Para
consolá-la, as filhas lhe diziam que ela necessitava ser muito bem cuidada para não quebrar
1039
ROLIM, 2002, p. 6.
1040
Por condições dignas entende-se, por exemplo, que, além do acompanhamento e do compromisso assumido
pela família, a instituição ofereça assistência dica especializada (enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas,
nutricionista, dicos, auxiliares de enfermagem e auxiliares de serviços gerais); que o espaço físico seja
adaptado ao perfil das pessoas internas, oferecendo conforto, segurança e privacidade das pessoas idosas; que as
pessoas internas tenham acesso aos meios de comunicação, recebam visitas e possam realizar atividades
externas, com acompanhamento. ROLIM, 2002, p. 27.
1041
Diversos aspectos desse caso encontram-se destacados no capítulo dois, conforme o item 2.3.3.
1042
Francisca, 370-371.
285
outras partes do corpo e que as pessoas do lar lhe dariam o cuidado de que precisava. Embora
triste, Francisca conta que chegou de “cara alegre” no lar. As filhas arrumaram o seu quarto e
se foram. Após o jantar, sozinha em seu quarto, Francisca diz que chorou muito e desabafou
até não poder mais. Aos domingos, uma das filhas leva Francisca para passear, mas no fim da
tarde, diz ela, a volta é triste. Francisca sabe que sua situação exige que ela aceite viver no lar,
mas ela ainda tem esperanças de voltar para a casa da filha. Ela pede a Deus que ajude sua
filha a curar-se. Daí, quem sabe, poderá voltar a viver com a sua família. No lar, diz
Francisca, sentada em seu quarto, ela escuta música para o pensar em coisas tristes. A
oração também lhe é um refúgio. Ela tem diversos rosários e ora todos os dias, até tarde da
noite, diz ela. Ela também tem um oratório que estava em sua casa, mas que a neta lhe trouxe
para o lar. Ele está lá, arrumado num canto da casa onde todos os moradores têm acesso.
Percebe-se nas falas de Francisca um sentimento de medo do abandono,
principalmente, o medo de morrer longe da família. Ela relembra o que disse para uma das
filhas: “mas, se eu morro aqui, como é que eles vão fazer?
1043
Francisca disse que possui
um jazigo na cidade onde seu marido foi sepultado. Ela não diz que tem medo da morte, mas
revela a preocupação de ficar abandonada e de, talvez, não ser conduzida, em sua morte, até o
local onde deverá ser sepultada, ao lado do marido.
Uma pesquisa com um grupo de pessoas idosas, coordenada por Lichtenfels, reforça
alguns dos aspectos apontados por Francisca. As pessoas entrevistadas por esta autora, a
maioria entre 70-79 anos, revelam que a saúde é uma das suas principais preocupações. Seus
planejamentos e suas ocupações diárias estão primordialmente voltados à prevenção,
preservação e à manutenção da saúde
1044
. A falta de saúde e a dependência de cuidados
permanentes de alguém, em casos como o de Francisca, geram sentimentos de não-realização,
de falta de perspectiva, de sentimento de inutilidade e interfere no autoconceito e na auto-
estima das pessoas que vivem nesta fase da vida
1045
. Daí, diante de situações assim, quando
alguém necessita viver num lar de idosos, sob os cuidados incessantes de pessoas
especializadas, experimenta a perda da autonomia e da independência. De acordo com
Lichtenfels, o apoio social é um aspecto vital para a saúde integral e este é, em especial,
manifestado no relacionamento com a família. As pessoas idosas encontram no
1043
Francisca, 109.
1044
LICHTENFELS, Henriete. Saúde e espiritualidade: sentido de vida no envelhecimento. In: NOÉ, Sidnei
Vilmar (Org.). Espiritualidade e saúde: da cura d álmas ao cuidado integral. São Leopoldo: Escola Superior de
Teologia / Sinodal, 2004. p. 26.
1045
LICHTENFELS, 2004, p. 27.
286
relacionamento com a família sentido, alegria e satisfação
1046
. A relação com os amigos
também é altamente significativa, diz a autora. Eles formam um outro tipo de relação e de
vínculo
1047
. Francisca deixa claro o quanto a família lhe é importante e a ida para o lar de
idosos, mesmo que este lhe pareça ser um bom lugar, não lhe apaga o sentimento de perda do
convio com a família, aquela que representa a sua vida, a sua história, as suas raízes. No lar,
quem sabe, encontrará apoio na relação com os novos amigos e amigas. Mas, pelo que
Francisca deixa transparecer, a família continuará sendo seu ponto de apoio fundamental.
Outra característica forte das pessoas que vivem nessa idade é o apego à espiritualidade.
Lichtenfels conclui que, para as pessoas idosas, a fé em Deus “ ‘dá sustento’, ‘facilita a vida’,
‘fortalece e ‘conforta’
1048
. No caso de pessoas que vivem uma situação como a de
Francisca, longe da família, doente, com esperanças de cura e de voltar para casa, mas, ao
mesmo tempo, consciente das suas limitações, o apego à espiritualidade se torna tanto mais
importante, pois a se torna uma fonte de força e consolo e, seja qual for o lugar onde a
pessoa está, em casa, no hospital, em um lar de idosos, pela oração ela tem acesso a Deus e
pela fé ela sabe que Deus a acompanha onde quer que ela esteja.
4.4.2 Os passos metodológicos
Primeiro passo
a) Componentes culturais: valores, pades e instituições
Levando em conta o que foi destacado acima sobre o tema do envelhecimento e
depoimentos como o de Francisca, sobre a sua entrada num lar de idosos, é possível
depreender valores como dignidade, saúde, qualidade de vida, afetividade, laços familiares,
espiritualidade, sabedoria, amizade, lazer, autonomia.
Tomando como base as falas de Francisca, de acordo com a entrevista realizada na
pesquisa social, destacam-se, em seguida, alguns padrões lingüísticos e de comportamento
que revelam os valores que estão presentes na vida de uma pessoa que ingressa num lar de
idosos.
Os valores dignidade e qualidade de vida aparecem na fala de Francisca quando ela
relata, por exemplo, que a sua família teve a preocupação de lhe oferecer um lar com
1046
LICHTENFELS, 2004, p. 28.
1047
LICHTENFELS, 2004, p. 29; BASSIT, 2002, p. 182.
1048
LICHTENFELS, 2004, p. 30.
287
condições dignas de vida. Isso é retratado da seguinte maneira: “meu neto mais velho
descobriu este lar aqui. (...) ele disse, ‘tem uma casa, um lar, de gente boa, gente muito
honesta, trabalha com enfermeiras formadas. A vó pode ficar lá, parando o tempo que for
preciso’(...)”
1049
. Apesar de a doença representar dependência e perda de movimentação
física, o valor da autonomia na vida de uma pessoa idosa também se manifesta na experiência
de Francisca. Ao contar sobre o lar onde vive, ela, por exemplo, destaca a liberdade que a casa
oferece de ela jantar no quarto ou no refeirio. Em outras palavras, ao destacar essa
possibilidade que a casa lhe dá, ela está defendendo a autonomia que ainda lhe resta numa
situação de vida que lhe representa perdas importantes. Ela assim o expressa: “estou numa
casa de gente boa, eu to sendo bem tratada. Recebo remédio no quarto, se eu quiser ir no
refeitório eu vou; se eu quiser, vem a comida no quarto (...)”
1050
. Essa atitude de Francisca
revela ao mesmo tempo a sua sabedoria de vida, de valorizar as pequenas coisas e aproveitar
as brechas que a limitação da doença lhe ime. A doença e o estar no lar de idosos também
não a impedem de usufruir as possibilidades de lazer e de convívio com a família. Francisca
diz: “Nos domingos, (...), vem a filha (...) e me leva. almoço com ela, vou ao Shopping,
dou uma passeadinha.”
1051
Além disso, Francisca diz que no quarto gosta de ouvir sica,
para espantar a tristeza e se distrair
1052
, outra forma de lazer.
Na experiência de Francisca, a valorização da saúde e da família liga-se a outro fator,
à espiritualidade, fonte de e esperança. No lar, por exemplo, Francisca diariamente faz
orações em prol da sua família e de si mesma. Eu pretendo voltar pra casa dela, da filha, (...).
Então, estou rezando pra que certo
1053
. Mas, a espiritualidade é fonte de consolo também
para as situões limítrofes. Francisca expressa isso da seguinte forma: “Daqui pra frente,
Deus sabe o que está pra me acontecer! Sei que um dia Deus me chama! Aí vai ser o final que
eu tinha que passar.”
1054
Os valores “afetividade” e “los familiares” também aparecem nas
lembranças e histórias que ela conta dos netos, dos genros, das filhas, como por exemplo:
“Tive o prazer de assistir a formatura das duas [filhas], depois elas casaram, assisti a
formatura dos genros”
1055
; ver os meus netos, que eu ajudei a criar, se formando, é uma
beleza!
1056
; “agora com um bisneto de dois meses (...)”
1057
.
1049
Francisca, 95-97.
1050
Francisca, 119-121.
1051
Francisca, 102-104.
1052
Francisca, 302-303, 389.
1053
Francisca, 106-108.
1054
Francisca, 123-124.
1055
Francisca, 73-75.
1056
Francisca, 166.
288
Além dos padrões culturais de linguagem e de comportamento, os valores são
manifestados na forma de padrões rituais. Na experiência de Francisca, por exemplo, a
espiritualidade se manifesta na prática da oração; o lazer, na música, na leitura e nas visitas
regulares de fins de semana; nessas visitas também se reforçam os laços familiares. Ligados
às visitas familiares destacam-se os quitutes. É costume, as famílias levarem comida para os
seus membros internados. Francisca, por exemplo, menciona o bolo e a rosca de polvilho. No
lar de idosos, a refeição conjunta na mesa do refeirio também é uma forma de expressar
valores como amizade e afetividade. Ao redor da mesa as pessoas internas têm a oportunidade
de falar de si, das suas experiências, das suas histórias, enfim de se conhecerem e
estabelecerem vínculos através das conversas. Em diversos lares de idosos, inclusive este
onde Francisca se encontra, realizam-se atividades de lazer, tais como: artesanato,
apresentações de grupos musicais, teatrais e danças, festas culturais típicas, jogos, festas
religiosas, comemorações de aniversários, palestras e, inclusive, atividades devocionais
regulares (semanal, quinzenal ou mensalmente)
1058
.
As instituições culturais que ajudam a estruturar a vida nos lares de idosos e que
veiculam valores importantes para as pessoas que vivem nesses lares são: os encontros ou
reuniões de lazer (arte, dança, sica, jogos, palestras, por exemplo), as festas do calendário
regional (festa junina, por exemplo), as festas do calendário eclesiástico (advento, natal,
páscoa, em especial), os aniversários de cada um/a, os devocionais (semanais, quinzenais ou
mensais), orões diárias (com símbolos que a acompanham: livros de oração, rosário,
oratório, cruz, imagens, etc.) e visitas. Em alguns lares de idosos há espaços especialmente
reservados para o cultivo da espiritualidade, como por exemplo, as capelas. Na experiência de
Francisca, sobressai a importância da oração e dos símbolos que a acompanham. Ela contou
que tinha um oratório que estava em seu quarto na casa da filha. Um dia a sua neta o trouxe
para o lar. O administrador do lar o arrumou num determinado ponto da casa. Francisca diz:
“ele arrumou um cantinho, mas ele arrumou tão bonitinho, e de noite, fico horas
rezando”
1059
. Francisca também tem consigo diversos rosários. A cada um deles ela dedica um
motivo especial de oração. sica, leitura e orão parecem ser seus refúgios prediletos, ao
menos, nessa fase que ainda é de adaptação ao novo lar.
1057
Francisca, 175-176.
1058
Exemplos dessas atividades em lares de idosos podem ser con feridos em sites como:
<www.ahungara.org.br/admin/upload/hirados/HIRADO%20PORTUGUES%2018.pdf>;
<www.luteranos.com.br/10101/aconteceu/060325/llg.html>.
1059
Francisca, 324-327.
289
b) Ritos de separão, transição e agregação
Refletindo sobre o esquema dos ritos de passagem de Van Gennep em situões de
ingresso de uma pessoa no lar de idosos, depreende-se, em primeiro lugar, que a separação de
casa, da casa ppria ou da casa da família, é um momento muito importante tanto para a
pessoa que sai quanto para as que ficam. Observa-se, no entanto, que a separação de casa não
significa separação ou distanciamento da família. Os vínculos familiares permanecem, muda-
se a forma de vivenciá-los. Francisca, por exemplo, mostra quão forte é o seu apego à família
e que o medo do abandono ainda a acompanha, após viver cinco meses no lar de idosos. Pode-
se imaginar diversas ações que envolvem a fase da separação: decisão de ir para o lar,
conversas com os familiares (mãe ou pai e filha/o, avô ou avó e neto/a), procura por um lar,
visitas ao lar para conhecer, conversas com amigos, organizar o que levar, decidir sobre o
destino das coisas que ficam, visitas de amigos/as, despedidas, são alguns exemplos.
Além dos ritos de separação, a agregação ao novo lar também se constitui como fase
relevante. São momentos distintos. Em meio a eles, encontra-se a fase liminar, de margem ou
intermediária. Nesta, a pessoa vive entre o estado anterior (saudade intensa, vontade de voltar)
e a sua nova condição social, de pertencimento a um novo grupo. Uma fuão importante
nesta fase é a construção de novos vínculos. Pode-se dizer que, também nesta passagem, esta
fase se caracteriza pela aprendizagem típica dos ritos liminares. É preciso aprender as regras
da casa, é preciso conhecer o ambiente e o modo como se convive num grupo de diferentes.
Enfim, é preciso aprender a adaptar-se a uma nova condição de vida. A fase liminar é
marcada fortemente pelas perdas (processo de perder versus reconstruir). O lamento, o choro,
a tristeza, a solidão, a reclusão no quarto representam as perdas. Nesta fase, as visitas da
família são importantes, bem como as conversas com os parceiros do lar, para falar de si, da
família, para se lamentar.
Estas conversas se constituem, ao mesmo tempo, como ritos de agregação, pois elas
oportunizam a criação de vínculos com o novo grupo. Trata-se da reconstrução. Ritos de
agregação também são as refeições em conjunto, momentos em que se costumam dar as boas-
vindas aos novos moradores do lar. No caso de Francisca, um rito de agregação importante foi
a colocação do seu oratório num dos aposentos da casa, por parte do administrador do lar.
Este gesto foi muito significativo para Francisca: ela sentiu-se aceita e respeitada na sua
subjetividade. Ritos de agregação também estão associados às festas e eventos que ocorrem
nos lares. Para quem ingressa no lar, tornam-se importantes os momentos em que alguém
participa “a primeira vez” de uma atividade grupal. A comemoração de uma data importante
290
para a pessoa, como o aniversário, também se constitui como rito de agregação, sobretudo a
primeira vez.
Segundo passo
a) Diálogo do Evangelho com a cultura na passagem de ingresso num lar de idosos
Qual o referencial ou quais os referenciais bíblicos que fundamentam o dlogo do
Evangelho com a cultura no caso descrito sobre a passagem para um lar de idosos?
É possível dizer que, em casos como o de Francisca, o ingresso no lar de idosos
representa deparar-se com limitações e perdas importantes. A auncia de saúde, a
necessidade de cuidados especiais e a impossibilidade de a família mantê-la em casa, levam-
na a mudar-se para o lar de idosos. Sentimentos de abandono, solidão e insegurança a
acompanham.
No Antigo Testamento a pessoa idosa recebe considerável respeito. Segundo a norma
do Levítico, deve-se “honrar a pessoa idosa, bem como a Deus”
1060
. A dignidade conferida
aos mais velhos decorre do papel educativo assumido pelos pais. Eles o os responsáveis por
transmitirem aos filhos as experiências da em Deus
1061
. Esta função, por sua vez, é
resultado da estrutura social daquela época orientada para os valores tradicionais. Isto quer
dizer que a vida social na época bíblica transcorria em moldes pré-estabelecidos, sendo raras
as mudanças de costumes, linguagem e estruturas sociais. Os padrões de vida que os
antepassados usavam eram úteis para os jovens de então
1062
. Numa sociedade assim, com uma
estrutura social voltada para as tradições antigas, as experiências dos mais velhos eram
decisivas. “Foi nos anciãos que se concretizou para a família, a tribo ou a nação, toda a
experiência do passado. Eles preservaram os conhecimentos adquiridos pelo grupo, pela
sociedade.”
1063
Essa função assumida pelos mais velhos na sociedade israelita confere a eles o
poder da sabedoria, pois para Israel, a sabedoria é conhecimento prático que nasce da
experiência e de longas observações e é transmitida pela educação
1064
. A pessoa idosa,
portanto, tendo acumulado grandes experiências durante toda a sua vida, é portadora de
sabedoria e, por isso, ela exerce um papel fundamental na educação dos mais jovens.
1060
GERSTENBERGER, Erhard S. A pessoa idosa no povo de Deus: reflexão bíblica em torno da situação dos
velhos. Estudos Teológicos, São Leopoldo, ano 21, n. 1, p. 33-44, 1981. p. 34.
1061
GERSTENBERGER, 1981, p. 34.
1062
GERSTENBERGER, 1981, p. 35.
1063
GERSTENBERGER, 1981, p. 35-36.
1064
ZIENER, G. verbete Sabedoria. In: BAUER, 1973, p. 1007-1009. Conforme esse autor, para o Antigo
Testamento, a sabedoria também é compreendida como obra do Espírito de Deus.
291
Apesar do grau de respeito e posição de destaque que a pessoa anciã recebia na
sociedade israelita, também houve, naqueles tempos, violações da regra fundamental de
“honra aos mais velhos”
1065
. Além disso, doenças, angústias e, principalmente, o medo do
abandono de Deus, também são realidades vividas pelas pessoas idosas na sociedade de Israel.
É o que retrata, por exemplo, o Salmo 71. O mais importante, porém, é que Israel manteve em
suas leis um mandamento cujo cerne é a proteção ou o cuidado da pessoa idosa
1066
. Trata-se
do quarto mandamento do decálogo: “honra a teu pai e a tua mãe
1067
. Este mandamento,
salienta Crüsemann, não trata da “relação de crianças com seus pais, mas da relação de
pessoas adultas com seus pais idosos”
1068
. Na sociedade de Israel do Antigo Testamento, não
há proteção para os idosos fora do lar, da família. Portanto, “as pessoas idosas, doentes, fracas
dependiam unicamente do amparo das pessoas mais jovens”
1069
. Em todos os códigos legais
do Antigo Testamento, o comportamento em relação aos pais desempenha um papel muito
importante”
1070
. O verbo “honrar” significa algo concreto. Refere-se ao cuidado dos idosos
com alimentação, vestuário, moradia até à morte. “Honrar” também significa assumir um
comportamento respeitoso para com os idosos e “um tratamento digno, que, apesar do
declínio de sua força de vida, corresponda à sua posição como pais. Por fim, faz parte do
‘honrar’ um sepultamento digno”
1071
. Em resumo, o Antigo Testamento atesta um respeito à
pessoa idosa conferindo-lhe a dignidade de um ser humano criado “à imagem de Deus”, ou
seja, uma dignidade inerente à pessoa humana, independentemente do seu status social, idade,
profissão, raça, gênero, condição física e mental.
Esta lei de amparo e proteção da pessoa idosa no Antigo Testamento possui
correspondência significativa em diversas falas e ações de Jesus no Novo Testamento. Por
exemplo, na lei do amor ao próximo (Lucas 10.25-37); no anúncio da vida em abundância
para todos (João 10.10); na solidariedade com pessoas que sofrem por doença (Lucas 4.38-39,
Lucas 6. 6-11, 17-19; 8.43-48), por abandono (João 5.1-9), por discriminação (Lucas 5.29-
32). Essa lei é assumida e aprofundada em seu sentido por Jesus, o filho de Deus. Ele pprio
cuida das pessoas doentes, marginalizadas, abandonadas e angustiadas e, por fim, dá a sua
vida pela salvação de todas as pessoas (João 10.11; Romanos 5.5-8). Jesus, ao tomar
1065
Textos que retratam tais casos podem ser conferidos em GERSTENBERGER, 1981, p. 37ss.
1066
CRÜSEMANN, Frank. Preservação da liberdade: o decálogo numa perspectiva histórico-social. São
Leopoldo: Sinodal / CEBI, 1995. p. 51.
1067
Êxodo 20.12; Deuteronômio 5.16.
1068
CRÜSEMANN, 1995, p. 51.
1069
CRÜSEMANN, 1995, p. 51.
1070
CRÜSEMANN, 1995, p. 51.
1071
ALBERTZ apud CRÜSEMANN, 1995, p. 53.
292
conhecimento da enfermidade da sogra de Pedro, supostamente uma mulher idosa, foi visitá-
la, sentou-se ao seu lado, tomou-a pela mão e a curou
1072
. Além do exemplo de cuidado e
solidariedade dado por Jesus, ele enviou os seus discípulos a praticarem essas mesmas ações
(Mateus 10.5ss, e par.). Em seguimento a Jesus, a comunidade cristã, após a morte dele, dá
continuidade à sua obra de amor, miserirdia e salvação (Atos 3.1-10; Tiago 5.13-16). Paulo,
ao comparar a comunidade cristã com o corpo humano, lembra que o sofrimento de um
membro do corpo afeta todo o corpo e todos sofrem com ele (1 Coríntios 12.12-26), pois,
mesmo a comunidade sendo formada por pessoas muito diferentes entre si, todas são
identificadas e irmanadas mediante o mesmo batismo e a mesma fé no mesmo Senhor. Para as
pessoas idosas que vivem desta fé, há consolo maior do que saber-se protegido, na velhice,
pelo mesmo Deus que, no seio de uma comunidade, as recebeu e as abraçou no batismo e,
através dessa comunidade, as acompanha por toda a vida?
A partir do testemunho bíblico apresentado, o diálogo do Evangelho com a cultura na
passagem de ingresso num lar de idosos, toma como referências fundamentais o respeito, a
dignidade e os direitos da pessoa idosa, como também, a solidariedade e o cuidado às pessoas
fragilizadas, doentes e desprotegidas, por amor a Cristo. Imbuída desses valores, a
comunidade cristã, ao participar de um rito de passagem de ingresso num lar de idosos,
preocupa-se, em primeiro lugar, em averiguar se o lar onde a pessoa vai morar oferece
condições dignas de moradia. No caso brasileiro, essas condições estão garantidas pela Lei
número 10741, de 01 de outubro de 2003
1073
. A comunidade cristã também pergunta pelas
causas que levam uma pessoa a ingressar num lar de idosos e se a família está ou não se
omitindo na responsabilidade para com o seu membro idoso. Cabe à falia respeitar os
direitos da pessoa idosa de permanecer ou o no seio da família e, em caso de necessidade,
apoiá-la e aju-la a encontrar um lugar que assegure os direitos que lhe são inerentes e os
1072
Marcos 1. 29-31.
1073
Disponível em: <http://www.vivendo.org.br/estatuto.htm>
e <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2003/L10.741.htm>. Acesso em: 27 de novembro de 2008.
O capítulo IX, Art.37, parágrafos 1, 2 e 3, do Estatuto do Idoso, descreve o seguinte:
Art. 37. O idoso tem direito a moradia digna, no seio da família natural ou substituta, ou desacompanhado
de seus familiares, quando assim o desejar, ou, ainda, em instituição pública ou privada.
§ 1
o
A assistência integral na modalidade de entidade de longa permanência será prestada quando verificada
inexistência de grupo familiar, casa-lar, abandono ou carência de recursos financeiros próprios ou da família.
§ 2
o
Toda instituição dedicada ao atendimento ao idoso fica obrigada a manter identificação externa visível,
sob pena de interdição, além de atender toda a legislação pertinente.
§ 3
o
As instituições que abrigarem idosos são obrigadas a manter padrões de habitação compatíveis com as
necessidades deles, bem como provê-los com alimentação regular e higiene indispensáveis às normas sanitárias e
com estas condizentes, sob as penas da lei.
293
previstos por lei
1074
. Os ritos de passagem da comunidade cristã jamais devem servir à
manutenção de estruturas ou situações injustas que contrariam os valores do Evangelho. A
comunidade cristã, ao oferecer ritos que ajudam as pessoas idosas em seu ingresso em um lar
de idosos, também acompanha as pessoas em sua nova jornada no lar, visitando-as e
apoiando-as em seu processo de adaptação. Ingressar num lar de idosos não significa ser
excluído da comunidade de fé. Além disso, a comunidade não se omite da responsabilidade
cristã de estar atenta aos trabalhos desenvolvidos pelas instituições que acolhem pessoas
idosas, assumindo o seu papel profético de denúncia das injustiças cometidas contra as
pessoas idosas, mas também de apoio às iniciativas que visam qualificar e dignificar a vida de
seus semelhantes idosos.
b) Processo de equivalência dinâmica
Como demonstrado acima, no exercício de aplicação do método de inculturação
lirgica à passagem da gravidez na adolescência, o ordo litúrgico dos ritos de passagem é
formado a partir da tradição lirgica da igreja, incluídos os elementos pprios do culto
cristão bem como dos ritos de passagem tradicionais da igreja cristã. E no diálogo da liturgia
com a cultura procura-se verificar quais elementos da cultura podem ser integrados no rito
lirgico.
Na descrição, em seguida, dos elementos que podem compor um rito litúrgico para a
passagem de ingresso num lar de idosos, para não tornar-se repetitivo, leva-se em conta o
significado que já foi dado sobre determinado elemento na seção anterior
1075
.
1) Acolhida assim como na liturgia, a acolhida é um elemento de fundamental
imporncia para os ritos de passagem de ingresso num lar de idosos, sobretudo, quando
valorizados pela instituição que recebe a pessoa idosa. Tudo o que a pessoa necessita no
momento em que ingressa num novo lar é ser bem acolhida pelas pessoas que lá estão. É um
rito de incorporação muito simples, mas essencial. Independentemente de quem coordena o
rito, essa acolhida deveria ser realizada em conjunto com as pessoas responsáveis pelo lar.
2) Kyrie eleison – o kyrie é um elemento ritual que expressa a dor do oprimido. É um
grito de clamor: “tem compaixão, Senhor! Através do kyrie, a comunidade celebrante
1074
Art. 3
o
É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com
absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao
lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convincia familiar e comunitária.
1075
Conforme acima, item 4.3.2, segundo passo, letra b.
294
manifesta a sua dor pelas dores dos outros (o termo compaixão expressa sofrimento com o
outro)
1076
. O rito de passagem de ingresso num lar de idosos é uma oportunidade de o grupo
celebrante manifestar a sua solidariedade, colocando diante de Deus as dores e os clamores
das pessoas idosas, tanto das que estão ali no lar, quanto das que sofrem em casa, nas ruas,
nas instituições asilares, nos hospitais.
3) Leituras bíblicas – a leitura da blia é um dos elementos principais do culto
cristão, pois a Bíblia é a referência mais importante dos valores evangélicos. White diz que
“as memórias contidas na Escritura confere à igreja sua identidade
1077
. De acordo com
Romanos 15.4, ela é fonte de ensino e de consolo: Pois tudo quanto outrora foi escrito, para
o nosso ensino foi escrito, a fim de que, pela paciência, e pela consolação das Escrituras,
tenhamos esperança.” Sendo a Bíblia fonte de consolo, de esperança, de fé, de amor, de
solidariedade, a leitura bíblica torna-se um elemento quase imprescindível ao rito de
passagem de ingresso ao lar de idosos. É um elemento que ajuda a definir os valores do
Evangelho.
4) Pregação a interpretação da Escritura, por meio da voz humana, é uma forma de
Deus chegar até às pessoas, sendo ela também fonte de consolo, cura, reconciliação, ensino.
Trata-se de um elemento útil a um rito de passagem de ingresso a um lar de idosos. Através da
interpretação da palavra de Deus os valores do Evangelho são confrontados com os da cultura,
reforçando-os ou questionando-os.
5) Oração a oração, como “a voz da criatura para o Criador”
1078
, é uma das
expressões fundamentais da espiritualidade cristã, a articulação de necessidades humanas
profundas
1079
. É a forma mais simples de comunicação com Deus, sendo praticada em
conjunto ou individualmente, em celebrações comunitárias ou no recanto de um quarto.
Proferida de forma espontânea ou formulada, no silêncio do coração ou em alta voz, a oração
facilita o contato com uma realidade transcendente e permite transformar situações de
ansiedades e angústias em esperança e consolo. Devido à função que esse elemento assume
tanto na vida individual como comunitária, a oração é um elemento de profundo significado
para ritos de passagem como o de ingresso num lar de idosos.
1076
O dicionário Houaiss define compaixão, entre outros, como “sofrimento comum”. HOUAISS, Antônio et al.
verbete Compaixão. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. p. 773.
1077
WHITE, 1997, p. 124.
1078
WHITE, 1997, p. 125.
1079
WHITE, 1997, p. 125.
295
6) Ceia do Senhor ou eucaristia como elemento primordial do culto cristão, forma
exemplar de Deus manifestar a sua autodoação aos seres humanos, a ceia do Senhor pode ser,
por si só, um rito de passagem de ingresso num lar de idosos. A ceia resume tudo o que o
Evangelho significa para as pessoas. Por meio dela se manifestam valores imprescindíveis à
comunidade cristã no seu lidar com as pessoas idosas: comunhão, aceitação, inclusão, amor,
respeito, dignidade, vida eterna, doação, solidariedade, cura e salvão.
8) Bênção e imposição das mãos – esses elementos são significativos para os ritos de
passagem em geral. Impor a mão sobre a cabeça das pessoas que estão vivenciando uma
passagem importante em sua vida é uma forma de visibilizar a força salvadora e consoladora
de Cristo. O próprio gesto de imposição das mãos evoca bênção de Deus e manifesta a força
do Espírito que a pessoa tanto necessita para enfrentar um novo momento em sua vida.
9) Unção com óleo e ato de selar – esses também são símbolos de força, bênção, cura
e salvação. Lembram, sobretudo, o batismo. Já foi destacado, neste capítulo, sobre a relação
entre ritos de passagem e batismo. Utilizando-se esses elementos num rito de passagem de
ingresso num lar de idosos, lembrando às pessoas idosas do seu batismo, significa manifestar
a elas a presença contínua de Deus em suas vidas, significa dizer que Deus não abandona os
seus filhos e as suas filhas e que nas situações mais difíceis da vida Deus é atuante.
10) Para o rito de passagem de ingresso num lar de idosos também vale o que foi
afirmado acima sobre as estruturas do tempo e do espaço lirgico
1080
.
c) Processo de assimilação criativa
Considerando o que foi mencionado acima, no primeiro passo metodológico, sobre
os componentes culturais, diversas atividades são realizadas nos âmbitos dos lares de idosos,
das quais, de acordo com o processo de assimilação criativa, alguns elementos, dada a sua
compatibilidade com os valores do Evangelho, podem ser integrados nos ritos de passagem de
ingresso a um lar de idosos.
Por exemplo, nos lares, normalmente são realizadas refeições em conjunto e quando
um novo membro ingressa no lar é comum fazer uma acolhida aos novos membros da casa
durante a refeição. Em alguns ambientes também há a prática da oração de mesa. Portanto, a
1080
Conforme item 4.3.2, segundo passo, letra b, número 11.
296
acolhida e a oração de mesa o elementos perfeitamente adequados à assimilação criativa.
Há que valorizá-los. A própria oração de mesa serve como moldura de um rito, ou seja, pode-
se incluir na oração de mesa intercessões pela pessoa que ingressa no lar. Além das
atividades lembradas cabe mencionar também a importância dos momentos celebrativos e
festivos realizados na casa. Nos lares onde ocorrem devocionais, por exemplo, o rito de
passagem pode ser incluído na própria celebração. Basta acrescentar ou moldar algum
elemento, visando a incorporão da pessoa que ingressa no lar como novo membro da
família.
A partir do relato de Francisca sobre a importância do oratório, rorio e imagens
sacras na sua experiência de ingresso no lar, ao se elaborar um rito para essa passagem, é
importante perguntar se há objetos significativos da espiritualidade da pessoa ingressante e, na
medida do possível, integrá-los no rito de passagem. Por exemplo, livros de oração, Bíblia,
cruz, hinários, livros de meditação, ou algum símbolo relevante para a pessoa. Fotos de
familiares ou álbuns também o significativos e podem ser integrados no rito como
elementos simbólicos relevantes. Esses elementos são adequados tanto para ritos de separação
(despedida de casa) quanto de agregação (acolhida ao novo lar), como demonstra o exemplo
do oratório de Francisca.
Na reflexão acima sobre os ritos de separação, de transição e de agregação também
foi assinalado que a separação de casa, da casa própria ou da casa da família, constitui um
momento muito importante nesse tipo de passagem. Portanto, há que se valorizar também o
espaço da casa como um lugar muito adequado de ritualização da passagem.
Terceiro passo: considerações litúrgicas sobre o rito de ingresso em um lar de idosos
a) Função do rito
Proporcionar a vivência ritual de passagem de uma pessoa a um lar de idosos.
Oferecer um rito de separação do antigo lar e de incorporação ao novo lar. Manifestar apoio a
uma pessoa idosa em sua passagem de ingresso em um novo lar.
b) Grupo envolvido no rito
As pessoas envolvidas são, em primeiro lugar, a própria pessoa idosa e a sua família,
filhos ou filhas, genros ou noras, netos, netas, bisnetos, bisnetas. Em segundo lugar, incluem-
se, de acordo com cada caso, os vizinhos, amigos e amigas. As pessoas do lar onde a pessoa
vai ingressar também estão envolvidas no rito; as que administram o lar, funcionários e
funcionárias e também as que já moram no lar. Essas pessoas, enfim, são as que irão receber a
297
pessoa idosa em seu novo lar e são as principais responsáveis por algum rito de acolhida. O
pastor ou a pastora da comunidade à qual pertence a pessoa idosa e/ou, sua família, ou outra
pessoa representante da comunidade, ajudam a coordenar o rito.
c) Local do rito
No que diz respeito ao lugar onde ocorre a passagem, há dois locais especiais: a casa
de onde a pessoa sai e a casa para onde a pessoa iestabelecer-se. Ao se elaborar o rito, é
preciso ter clareza quanto ao lugar onde ele vai ocorrer, pois o lugar está diretamente
relacionado à ênfase do rito. A casa de onde a pessoa sai, seja ela da ppria pessoa ou da
família com quem ela mora, é o lugar da despedida, o espaço ideal do rito de separação. A
casa para onde a pessoa vai, ou seja, a instituição ou o lar, é o lugar ideal para o rito de
agregação. A proposta ritual apresentada abaixo leva em conta esses dois lugares distintos e,
por isso, são oferecidas duas liturgias, uma que acontece na casa de onde a pessoas idosa sai e
outra que acontece no lar onde a pessoa idosa ingressa.
d) Tempo e duração do rito
Considerando, por um lado, que o rito de separação ocorrena casa de onde a
pessoa idosa parte, este, naturalmente, deve ser realizado num dia próximo à mudança da
pessoa para o lar. Levando em conta que no grupo celebrante participam pessoas idosas, a
duração do evento não deve ser longa. O tipo de rito, se mais ou se menos dinâmico, também
determina a duração do evento.
De outro lado, o rito de incorporação realizado no lar pode ocorrer imediatamente
após a entrada no lar ou em dias subseqüentes. Não se recomenda realizar um rito de
agregação complexo nos dias próximos à chegada, pois a pessoa que chega ainda está sob o
impacto da separação. Ela necessita, sim, de gestos rituais de acolhida, mas estes devem ser
simples e breves. Uma recepção com uma oração de chegada pode ser significativa. É
necessário levar em conta o tempo de transição que é de adaptação.
e) Símbolos
Uma conversa com a família e com a pessoa idosa ajuda a descobrir elementos
simbólicos significativos para o rito. Os netos, netas, bisnetos, bisnetas, por exemplo, podem
oferecer algum objeto para a avó ou avô, demonstrando o amor e o carinho que não acaba
com a separação. Filhos e filhas igualmente oferecem algo para o pai ou mãe levar. Também a
pessoa idosa deixa algo para a família da casa de onde sai. Esses objetos simbólicos visam
reforçar os vínculos que jamais acabam. Na instituição que recebe a pessoa idosa, as pessoas
298
também podem preparar algum objeto simbólico que represente a boa acolhida à pessoa que
está chegando. Mas, é importante considerar o seguinte: a pessoa que coordena o ritual,
conversa antecipadamente com as pessoas envolvidas no evento para que cada qual escolha e
prepare o seu objeto simbólico.
f) Roteiro lirgico
- O ambiente
A primeira parte do rito, descrito abaixo, ocorre na casa onde a pessoa está morando,
o lugar de onde ela sai. Considera-se, na proposta deste rito, que a pessoa idosa está na casa
de um familiar, da filha, com uma neta e um neto. O ambiente principal é a sala de estar, a
qual encontra-se organizada em forma de círculo. Há cadeiras para todos sentarem e, no
centro, uma mesa, com uma vela acesa, uma Bíblia aberta e um recipiente com óleo.
A segunda parte do rito ocorre no lar que recebe a pessoa idosa. O ambiente principal
onde ocorre o rito é o refeitório. A mesa encontra-se arrumada para uma refeição: chá, pães,
bolos, bolachas, frutas, geléias, etc. cadeiras e lugares para todas as pessoas da casa, para
os familiares, assim como para a pessoa que chega. O lugar da pessoa que está chegando é
decorado de forma especial, por exemplo, com um pequeno vaso de flores. No centro da
mesa, há uma vela acesa.
- O decorrer do rito
Na primeira parte, o rito que inicia com o grupo reunido na sala de estar, todos
sentados. Ali faz-se a acolhida às pessoas presentes (amigos e vizinhos convidados, a pessoa
idosa e cada familiar) e recorda-se o motivo do encontro. A liturgia se desenvolve ali mesmo,
na sala. Após a leitura do texto bíblico e uma breve palavra sobre o texto, a família e os
amigos são convidados a destacarem algo da experiência de vida que cada um/a vivenciou
com a avó/mãe/amiga. Segue uma oração realizada em conjunto. Após a oração convida-se
cada um/a a apresentar o objeto simbólico que escolheu e fazer a entrega, cuja preparação foi
antecipadamente encaminhada. Por fim, a pessoa idosa é abençoada por todos ali presentes e
enviada ao seu novo lar mediante unção com óleo.
Na segunda parte, considera-se que a pessoa idosa chega ao lar, após o almoço, no
início da tarde, acompanhada por pessoas da sua família. A pessoa idosa e seus familiares são
recebidos por alguém da administração do lar e conduzidos ao quarto de moradia da pessoa.
Eles são convidados a reunirem-se mais tarde no refeitório da casa para um chá de boas-
vindas ao lar. Enquanto isso, os familiares da pessoa idosa arrumam o quarto de sua nova
299
morada. Na hora determinada, eles se dirigem ao refeitório onde encontram-se reunidas as
pessoas que moram no lar, funcionários, pessoa que administra o lar e um representante da
comunidade eclesial da pessoa idosa (pastor, pastora ou outro). A pessoa idosa que chega é
conduzida ao seu lugar, assim como os seus familiares. O principal elemento da liturgia é a
acolhida. Desta participam a pessoa que administra o lar, um representante das pessoas que
moram no lar, um representante do corpo de funcionários e o/a representante da comunidade
eclesial. Este último, após a acolhida faz uma oração e, em seguida, o grupo da casa canta
para a pessoa que está chegando. O rito encerra-se com a refeição.
4.4.3 O rito litúrgico, passo a passo
1) Na casa de onde a pessoa idosa sai
Acolhida
L Bem vindos/as sejam, amigos e amigas de N. N. Saúdo a vocês familiares aqui
reunidos, amigos, amigas e, em especial, saúdo N..
O dia de hoje é muito especial. Reunimo-nos com N. para juntos com ela
agradecermos a Deus por tudo o que ele tem feito por ela a aqui e para juntos pedirmos a
sua força e proteção diante da nova jornada que N. seguirá.
C (todos proclamam juntos)
Bendize, ó minha alma, ao Senhor, e tudo que em mim bendiga ao seu santo
nome.
Bendize, ó minha alma, ao Senhor, e não te esquas de nenhum de seus
benefícios.
Ele é quem perdoa todas as tuas iniqüidades; quem sara todas as tuas enfermidades;
Quem da cova redime a tua vida, e te coroa de graça e misericórdia;
Quem farta de bens a tua velhice, de sorte que a tua mocidade se renova como a da
águia. (Salmo 103.1-5)
C Canto
300
Bom é estarmos unidos em comunhão e amor, nesta fraterna família dos filhos do
Senhor. Lá, lá, lá, lá lá ...
1081
Leitura bíblica
Neto ou neta Pois tu és a minha esperança, Senhor Deus, a minha confiança desde a
minha mocidade.
Em ti me tenho apoiado desde o meu nascimento; do ventre materno tu me tiraste, tu
és motivo para os meus louvores constantemente.
Não me rejeites na minha velhice; quando me faltarem as forças, não me
desampares.
Tu me tens ensinado, ó Deus, desde a minha mocidade; aagora tenho anunciado
as tuas maravilhas.
Não me desampares, pois, ó Deus, até à minha velhice e às s; a que eu tenha
declarado à presente geração a tua força e às vindouras o teu poder. (Sl 71. 5-6, 9, 17-18)
Ensina-nos a contar os nossos dias para que alcancemos coração sábio. (Sl 90.12)
Canto
/: Em ti, ó Deus, nossos olhos esperam.:/
Partilha da palavra
L Este salmo é uma oração de uma pessoa idosa. Ele contém palavras de louvor e
de intercessão. Por meio desta oração percebemos que esta pessoa idosa a sua vida em
estreita relação com Deus. Para ela Deus é fiel, cuida, não abandona. A pessoa desta oração
se entrega confiante em Deus porque ela experimentou a presença desse Deus durante toda a
sua vida, desde o seu nascimento e até mesmo no ventre materno. Inspirados pela história de
confiança, e testemunho de vida que a oração dessa pessoa idosa deixa transparecer, eu
convido os netos/as, bisnetos/as, as filhas e também os amigos aqui presentes para contarem
algo da experiência de vida que vocês fizeram ao longo dos anos de convivência com a avó,
mãe e amiga de vocês. Peço que destaquem algum aprendizado importante que vocês
receberam com o relacionamento com a vovó. A vovó que gosta de contar histórias, hoje, vai
ouvir as histórias que os netos/bisnetos, filhas e amigos têm para contar.
(Tempo para ouvir as histórias)
1081
HINOS do povo de Deus, 2005, hino 334.
301
Oração de intercessão
L Convido vocês a colocarem os motivos da oração, sejam eles de agradecimento
e/ou de intercessão.
(Por fim, L reúne os motivos em uma única oração, encerrando, todos juntos, com o
Pai-Nosso)
Troca de objetos simbólicos
(Os netos/netas, bisnetos/as, os filhos/as entregam o objeto que prepararam para a
avó/mãe. Apresentam e explicam o motivo da escolha do objeto simbólico. A avó também
entrega algo para a família da casa de onde sai).
Hino (escolhido pela família envolvida)
Bênção
(A pessoa idosa permanece sentada e os demais levantam e estendem as mãos sobre
ela, enquanto L diz:)
L O Senhor te abençoe e te guarde; o Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre ti
e tenha miserirdia de ti; o Senhor levante o seu rosto sobre ti e te dê a paz (+).
Envio
L Assim diz Deus: s a quem desde o nascimento carrego e levo nos braços desde
o ventre materno. Até à vossa velhice eu serei o mesmo, e ainda até às cãs eu vos carregarei;
já o tenho feito; levar-vos-ei, pois, carregar-vos-ei e vos salvarei. (Isaías 46.3-4).
(L faz o sinal da cruz, com óleo, na testa de N.). Vai em paz, N., ninguém te
abandonará! (Todos a abraçam).
2) No lar onde a pessoa idosa ingressa
(N. chega ao lar, após o almoço, no início da tarde, acompanhada por pessoas da sua
família. N. e seus familiares são recebidos por alguém da administração do lar e conduzidos
ao quarto de moradia de N. Eles são convidados a reunirem-se mais tarde no refeitório da casa
para um chá de boas-vindas ao lar. Enquanto isso, os familiares de N. arrumam o quarto de
sua nova morada. Na hora determinada, N. e seus familiares se dirigem ao refeirio onde
encontram-se reunidas as pessoas que moram no lar, funcionários e pessoa que administra o
lar.)
302
Acolhida
A (pessoa que administra o lar, diz:) É com alegria e satisfação que recebemos N.
em nosso meio. Seja bem-vinda, N. Que a cada dia você possa sentir-se mais e mais
pertencente a este lar; que a cada dia cresçam e se fortifiquem os laços de amizade entre s
para que sejamos uma grande família. (Dirigindo-se ao grupo, apresenta dados biográficos de
N.) N.N. é da família .... (Abraços e palmas)
M (moradora da casa) N., em nome das pessoas que moram nesta casa, eu te ofereço
estas flores. Que elas simbolizem o início de uma nova vida de amizade, comunhão e
solidariedade entre nós. (Abraços e palmas)
F (funcionária da casa) N., em nome dos funcionários e das funcionárias desta casa,
eu te dou as boas vindas e te ofereço esta “campainhacomo sinal da nossa disposição em
te servir e te cuidar. Com esta campainha você pode nos chamar sempre que necesrio.
(Abraços e palmas)
A (dirigindo-se aos familiares de N.) vocês são bem-vindos/as aqui neste lar.
Venham sempre nos visitar. Que nós possamos, juntamente com vocês, cuidar bem de N. para
que ela sinta este lar como a extensão do lar de vocês.
L (representante da comunidade eclesial de N.) em nome da comunidade (nome da
comunidade) queremos acompanhar N. em sua nova jornada, neste lar, assim como também
nos colocar à disposição para apoiar a todos que aqui vivem. Assim, trago a vocês e, em
especial, a N., a seguinte palavra bíblica: As misericórdias do Senhor o a causa de não
sermos consumidos porque as suas misericórdias não têm fim; renovam-se a cada manhã.
Grande é a tua fidelidade.” (Lamentações 3.22-23) Diz Jesus: O meu mandamento é este,
que vos ameis uns aos outros, assim como vos amei”. (João 15.12)
Oração
L (Oremos) Querido e amado Deus, tu que renovas a cada man as tuas
misericórdias, s te agradecemos por este lar e pelas pessoas que aqui recebem em amor a
nossa querida N. Dá que os dias nesta casa sejam preenchidos pela tua presença amorosa e
que a convivência entre os que aqui moram seja plena de comunhão e solidariedade.
Abençoa as pessoas que administram e trabalham neste lar. Que elas encontrem neste seu
serviço alegria e realização. Dá, Senhor, que este lar seja exemplo de uma família que se
ama, se respeita, se cuida e busca o bem-estar e a felicidade de todos. Que a paz reine neste
lar. Por teu filho Jesus Cristo que nos ensinou a amar. Amém.
303
Canto (as pessoas do lar cantam para N.)
“Se vens de longe, ou de bem perto, esta é tua casa e faremos festa de peito aberto.
Deus nos conhece, somos seu povo. Vem te achegando, demos as mãos pra louvar de
novo.
1082
Refeição
A (convida todos para o chá)
4.5 Exercício de aplicação do método de inculturação litúrgica à despedida de pessoas
na iminência da morte
4.5.1 O caso
A pesquisa social realizada para o estudo do tema desta tese, a ritualização das
passagens da vida, trouxe à tona o assunto da morte pela maioria das pessoas pesquisadas. Em
dois dos relatos aparece o aspecto do acompanhamento a um familiar na iminência de morte.
Uma das pessoas entrevistadas destacou, com bastante ênfase, a importância que teve o fato
de ela ter permanecido ao lado do pai e da mãe nos seus últimos dias de vida.
A despedida na iminência da morte, dirige-se, mais especificamente, às pessoas que
vivem em situação de doenças cnicas em estágios avançados ou, como diz Menezes,
“pacientes diagnosticados como fora de possibilidades terapêuticas(FPT), com prognóstico
de morte próxima”
1083
. Diferentemente dos casos de mortes inesperadas, a situação da pessoa
doente diagnosticada como “fora de possibilidades terapêuticas”, oferece a oportunidade de
uma preparação para a morte, tanto por parte da pessoa doente quanto de seus familiares,
assim como de um tempo de despedidas na família. É preciso levar em conta, porém, a
dificuldade que as pessoas têm, em geral, de encarar situações de morte, de lidar com a morte
e de falar sobre ela. Tenta-se adiar ao máximo o rompimento dos vínculos entre as pessoas
que encontram-se diante da morte. Esta atitude diante da morte, a recusa da própria idéia da
morte, de não querer abordá-la de forma consciente e tranqüila no dia de sua chegada são
sinais característicos do pensamento da maior parte das pessoas do mundo contemporâneo
1082
“Esta é tua casa”. In: KIRST, 2006, p.2.
1083
MENEZES, Rachel Aisengart. Em busca da boa morte: antropologia dos cuidados paliativos. Rio de
Janeiro: Garamond / Fiocruz, 2004. p. 15.
304
ocidental
1084
. Mas, falar sobre a morte é uma necessidade, pois ela faz parte da vida humana e
ninguém pode evitá-la. Por isso, falar da morte é humanizá-la. Segundo Hennezel e Leloup, as
pessoas, na verdade, sofrem porque o timas do silêncio sobre a morte, porque elas evitam
acompanhar os momentos finais da vida de uma pessoa amada, pois não conseguem e não
sabem como enfrentar sua ppria angústia e perdem, assim, a oportunidade de entrar no
espaço íntimo dos últimos instantes de suas pessoas queridas
1085
. Acompanhar as pessoas em
sua morte é, antes de tudo, uma questão de humanidade e de solidariedade
1086
. Hennezel diz
que as pessoas manifestam dois grandes medos antes de morrer e na hora da morte, o da dor
física e o da solidão e do abandono
1087
.
De acordo com Menezes, a compreensão que existe sobre a morte e o sentido que se
atribui ao processo de morrer estão relacionados ao momento histórico e ao contexto cio-
cultural. O morrer, além de um fato biológico, é um processo construído socialmente
1088
. De
acordo com esta autora, no campo das ciências sociais, o final da vida e a morte constituem
objeto de investigação desde o início do século XX, mas durante algumas décadas desse
mesmo século há poucas referências sobre o tema; a partir dos anos de 1960, a morte ressurge
mais sistematicamente como tema de estudos. Os pesquisadores começam a perceber uma
mudança significativa nas práticas e representações da morte e do morrer, principalmente
depois da Segunda Grande Guerra. Com a crescente institucionalização da doença, observa-se
também um processo de ocultamento e exclusão social dos que estão morrendo. Esse processo
é chamado pelos pensadores sociais de morte moderna”, a qual eles qualificam como morte
escamoteada, expulsa, banida e excluída da vida social
1089
.
O século XX assistiu a uma administração da morte na qual a medicina, com seus
progressos cnicos, passou a ser responsável pela diminuição de algumas taxas de
mortalidade em especial a infantil neonatal e pelo prolongamento da vida. Ao
mesmo tempo, a própria medicina, com suas medidas de prevenção e de controle
social da saúde e da doença, desempenha um papel fundamental no afastamento da
morte das consciências individuais.
1090
O emprego de tecnologia médica para o prolongamento da vida altera o processo do
morrer e o próprio conceito de morte, diz Menezes. Segundo a autora, no modelo de morte
1084
HENNEZEL, Marie de; LELOUP, Jean-Yves. A arte de morrer: tradições religiosas e espiritualidade
humanista diante da morte na atualidade. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 13.
1085
HENNEZEL; LELOUP, 1999, p. 13.
1086
HENNEZEL; LELOUP, 1999, p. 17.
1087
HENNEZEL; LELOUP, 1999, p. 61.
1088
MENEZES, 2004, p. 24.
1089
MENEZES, 2004, p. 25. Conforme as indicações bibliográficas dessa autora, outros modelos de morte no
ocidente, podem ser conferidos em: ARIÈS, Phillipe. História da morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro,
2003.
1090
MENEZES, 2004, p. 30.
305
moderna”, o doente esmorrendo silenciado, não participa das decisões referentes à sua vida,
doença e morte. Não há escuta para a expressão dos seus sentimentos”.
1091
Constata-se a
ausência de um espaço para as emoções na rotina institucional do hospital, seja para o doente,
para seus familiares, como também para os profissionais da saúde. Essa realidade é resultante
de um modelo de medicina caracterizada pela fragmentação e objetificação da pessoa do
paciente
1092
. A partir das críticas a esse modelo de medicina excessivamente racionalizada
surgem, em diferentes partes do mundo, novas práticas de atendimento à pessoa doente em
iminência da morte, as quais visam transformar a relação de poder entre doente, seus
familiares e os profissionais da saúde. Essas novas práticas acentuam: cuidados paliativos,
autonomia, participação e independência das pessoas doentes. Elas se fundamentam no
discurso sobre o direito à “boa morte” ou morte com dignidade
1093
.
Falar sobre a morte, sobre os desejos da pessoa doente e da família, participar das
decisões sobre a própria vida e morte, interagir com os profissionais da saúde são
características desse modelo chamado de “morte contemporânea”
1094
. Rituais de despedida de
pessoas na iminência da morte também se inserem nesse contexto de reflexão sobre a “boa
morte”. Entre os próprios profissionais da área médica há propostas de rituais de despedida,
os quais se caracterizam pelo aspecto psicológico. Wright e Nagy defendem que em situões
de ameaça de perda, fazer as pazes consigo mesmo e com a família é uma tarefa fundamental.
Questões pendentes, não-resolvidas, comprometem o processo de cura nos
relacionamentos
1095
. A perda e o luto são causas de doenças emocionais tais como depressão e
ansiedade e até sintomas sicos. Neste sentido, Lisboa e Crepaldi falam da prevenção desses
sintomas através do apoio aos familiares para que expressem seus sentimentos. Para essas
autoras, o ritual de despedida constitui-se como um importante instrumento de apoio para os
familiares quanto para a pessoa doente na iminência da morte
1096
. Ao desenvolver rituais de
despedida em suas experiências clínicas, essas autoras concluíram que eles ajudam a diminuir
1091
MENEZES, 2004, p. 34.
1092
MENEZES, 2004, p. 36.
1093
Conforme Menezes, “Na cultura do Individualismo, que valoriza a vida única e singularmente vivida, é
criado o conceito de ‘boa morte’, como a escolhida e produzida por quem está morrendo. A divulgão mais
ampla da ‘morte contemporânea’ objetiva a difusão do modelo da ‘boa morte’ e conta com uma extensa
produção literária, em sua maior parte norte-americana. A produção não se restringe aos Estados Unidos, e
diversos livros foram publicados na Inglaterra, França e Brasil.” MENEZES, 2004, p. 38.
1094
MENEZES, 2004, p. 38ss.
1095
WRIGHT, Lorraine M.; NAGY, Jane. Morte: o mais perturbador segredo familiar. In: IMBER-BLACK,
Evan. Os segredos na família e na terapia familiar. Porto Alegre: Artes Médicas, 2002. p. 141.
1096
LISBÔA, Márcia Lucrecia; CREPALDI, Maria Aparecida. Ritual de despedida em familiares de pacientes
com prognóstico reservado. Universidade Federal de Sant a Catarina. Dispovel em:
<http://sites.ffclrp.usp.br/paideia/artigos/25/08.pdf>. Acesso em: 05. dez. 2008.
306
a sensação de impotência e culpa, redefinem relacionamentos, marcam um momento muito
especial da vida; auxilia na aceitação da morte e no processo de luto. O ritual faz com que a
morte seja percebida e não ignorada
1097
. O ritual de despedida na iminência da morte se
diferencia dos chamados rituais de luto s-morte, especialmente porque ele, além dos
familiares, também beneficia a pessoa que está diante da sua própria morte. Lisboa e Crepaldi
explicam que, de acordo com a fala dos familiares entrevistados que participaram da
experiência com tais rituais, a pessoa na iminência da morte parecia mais tranqüila e serena,
sentindo-se amada e acompanhada pelos familiares nos seus momentos finais
1098
.
4.5.2 Os passos metodológicos
Primeiro passo
a) Componentes culturais: valores, padrões e instituições
O acompanhamento e a despedida de pessoas na iminência da morte envolvem dois
grupos principais, o da pessoa doente com seus familiares e o dos profissionais da saúde.
A partir do que foi destacado acima sobre a visão dos profissionais da saúde que
defendem o modelo da “boa morte” e do que se observa sobre a necessidade das pessoas que
vivem em situação de morte iminente, é possível extrair valores significativos como,
dignidade humana, respeito, autonomia, direito, solidariedade, verdade, cuidado,
espiritualidade, amor, esperança. Tais valores podem ser depreendidos tanto das falas de
pessoas do grupo entrevistado que se depararam com a morte de um familiar, quanto da
reflexão de profissionais da saúde que estudam e acompanham pessoas doentes na iminência
da morte e que defendem o modelo assinalado acima como “morte contemporânea” ou “boa
morte”. Solidariedade, amor e dignidade humana, por exemplo, estão presentes na fala de
Henrique, conforme entrevista da pesquisa social, quando ele relata sobre o tempo que
conviveu com o pai doente em estado terminal. Henrique conta que seu pai, aos 97 anos, teve
um AVC, ficando um tempo no hospital e, mais tarde, num lar de idosos, aa sua morte.
Nesse tempo, Henrique o visitava diariamente e conversava com ele, mesmo que o pai não
pudesse responder. Aos poucos, Henrique foi aprendendo a reconhecer os sinais que o velho
pai dava mediante expressões corporais. Henrique avalia essa convivência com o pai como
um tempo de despedida, uma época muito rica, de aprendizado, pelo simples fato de estar ali
1097
LISBÔA; CREPALDI, 2008.
1098
LISBÔA; CREPALDI, 2008.
307
presente e tentando se comunicar com o pai de alguma forma e de compreendê-lo. Henrique
diz que, por uma graça muito especial, o pai faleceu quando ele estava junto. Ele expressa isso
da seguinte maneira: se ele queria alguém que tivesse com ele nesse momento era o filho
dele, né!
1099
Lisboa e Crepaldi, a partir de suas experiências em acompanhar pessoas na
iminência da morte e seus familiares, falam da importância da comunicação o-verbal entre
as pessoas doentes e seus familiares (gestos, toques, olhares, afagar das mãos)
1100
. Na
experiência de Henrique com seu pai à beira da morte, a presença do filho, as suas falas, a
escuta ao pai, os gestos e as expressões faciais foram os rituais de despedida que
transformaram essa morte num tempo significativo de vida. Esses rituais certamente ficarão
gravados na memória de Henrique como um tempo de boa convivência com o pai, mesmo em
situação de sofrimento e de morte. Segundo Henrique, algo parecido também ocorre com sua
mãe. Um tempo depois da morte do pai, sua mãe adoece, fica hospitalizada durante um
período e retorna para casa com o diagnóstico médico de pouco tempo de vida. Em casa, os
filhos acompanham-na em revezamento. Henrique conta que no dia de sua morte ele estava de
plantão. Dormia ao seu lado, numa poltrona, atendia-a quando solicitava. Numa determinada
hora, ele ouviu um soluço e percebeu que ela estava falecendo. Henrique diz que se sente
grato e abençoado por estar junto com seu pai e sua mãe no momento de passagem” dos
dois
1101
.
Dignidade humana, solidariedade e amor, no acompanhamento e despedida de
pessoas na iminência da morte, o valores que, de igual modo, podem ser encontrados na
prática daqueles profissionais de saúde que defendem uma medicina de cuidados paliativos
cujo objetivo é assistir a pessoa doente até os seus últimos momentos de vida, minimizando o
seu sofrimento e o de seus familiares. Nesse tipo de medicina também se identificam valores
como verdade, direito e autonomia, pois a pessoa que está na iminência da morte e os
familiares que a acompanham participam do processo da morte; a elas é dado o direito à
verdade sobre as reais condições da vida da pessoa doente. Como se refere Menezes, a
comunicação entre pacientes e profissionais de saúde deve ser franca: “o tratamento dever ser
discutido, em suas várias etapas, entre enfermos, seus familiares e o médico responsável”
1102
.
Esse tipo de atitude diante da morte revela uma profunda responsabilidade para com a
realidade da ppria vida, pois esse tipo de medicina inclui a aceitação dos limites humanos e
1099
Henrique, 254.
1100
LISBÔA; CREPALDI, 2008.
1101
Henrique, 292-294.
1102
MENEZES, 2004, p. 37.
308
a finitude da vida. Os valores que sustentam esse tipo de atitude diante da doença e da morte
se contrapõem aos do modelo de “morte moderna” que prioriza a cura indeterminadamente
através da aplicação de recursos tecnológicos. A prática desse tipo de medicina tem como
conseqüência o abandono e a solidão do doente e o silêncio diante da morte
1103
. Nesse tipo de
morte, doentes e visitantes permanecem calados, não sabendo se comportar ou se comunicar.
Tal modelo de medicina, na verdade, leva os profissionais da saúde a ignorarem a real
condição humana que é a sua finitude, a morte. A morte, para médicos e hospitais, torna-se
fracasso. Por isso, ela deve perder sua importância central e ser banida da comunidade dos
viventes. Isto não significa que esses profissionais sejam insensíveis ao sofrimento e à morte.
A vida desses profissionais, segundo Menezes, revela uma angústia inconsciente face ao
evento da morte
1104
.
Padrões culturais que se sobressaem nesse tipo de passagem são as visitas dos
familiares, o acompanhamento incessante ao doente, seja de um familiar ou de outra pessoa,
as visitas do médico, o acompanhamento diário das/os enfermeiras/os, as formas
comunicativas com a pessoa doente, sejam elas verbais ou o-verbais (tocar a cabeça, tomar
pelas mãos, as perguntas drias sobre o bem-estar da pessoa, se quer deitar, cobrir-se, sentar,
andar, etc.), ler para a pessoa, trazer notícias de familiares ou ainda a presença silenciosa ou
vigília. O momento último da despedida é especialmente marcado por gestos como, por
exemplo, o olhar, o aperto de mãos e a atenção vigilante a qualquer sinal de necessidade. O
ambiente das pessoas em iminência da morte, seja o quarto de um hospital ou de uma casa, é
caracterizado pelo sincio, pelas conversas de baixo tom. Tal como o relato da experiência de
Henrique no acompanhamento ao seu pai e depois à sua mãe, é comum ouvir relatos de
pessoas que permanecem ao lado da cama das pessoas doentes seja em casa ou no hospital,
fazendo plantão ou vigília. As pessoas permanecem ali atentas a qualquer necessidade que a
pessoa doente manifeste: dar água, secar o suor, por exemplo. São gestos de solidariedade e
cuidado à pessoa na iminência de sua morte e, ao mesmo tempo, são formas de despedida.
Muitas vezes essa vigília ocorre em silêncio e em profunda solidão do lado de fora da porta da
UTI.
Hennezel descreve que na proximidade da morte, a vida de um doente é
verdadeiramente pontuada por ritos: do levantar, do deitar, da higiene pessoal, das refeições,
1103
MENEZES, 2004, p. 35-37.
1104
MENEZES, 2004, p. 35.
309
etc.
1105
. Sendo a espiritualidade um valor importante na vida de pessoas na iminência da
morte e das pessoas que as acompanham, esta se expressa, em casos em que predomina a
religiosidade cristã, nos gestos rituais de oração, nas leituras bíblicas, na prática da ceia da
comunhão, a extrema unção. Cabe assinalar que a espiritualidade não se limita às práticas
religiosas tradicionalmente conhecidas. Como diz Leloup, a espiritualidade independe da
experiência religiosa. Ela constitui a ppria essência do ser humano
1106
. A espiritualidade
esligada à busca pela verdade mais profunda do ser humano, por isso, ela se relaciona ao
sagrado, à transcendência, a algo que aponta para além de si mesmo. “A espiritualidade é ‘dar
um passo a mais’ na aceitação da minha fadiga, na aceitação dos meus limites, limites da
minha inteligência, de minha incompreensão diante do sofrimento.”
1107
Neste sentido, a
pessoa na iminência da morte não deve ser considerada simplesmente um corpo doente, mas
uma pessoa “com sua história, seu eixo interior íntimo e, sobretudo, seu mistério”
1108
.
Entre as instituições culturais ligadas à vida de pessoas em iminência da morte
podem ser destacados os horários de visitas regulamentados pelos hospitais, o costume de
fazer visitas a pessoas doentes nos hospitais ou nas casas, as conversas com os profissionais
de saúde sobre a situação do ou da paciente, horários e rotina hospitalares (dormir, acordar,
levantar, tomar remédios, alimentar-se, fazer exames), eventualmente, uma capela dentro do
hospital ou um local com uma imagem sagrada, objetos sacros do tipo rosários, terços, cruz,
ou outro elemento de espiritualidade, um livro de leituras preferidas, uma música, a Bíblia,
um devocionário, um livro de orações, folhetos com mensagens, ritos religiosos específicos
para o acompanhamento de doentes (ceia eucarística, unção de enfermos) e, principalmente, o
costume popular da vigília ou do plantão ao lado da pessoa doente.
b) Ritos de separão, transição e agregação
No estudo dos ritos de passagem ligados à morte, Van Gennep apenas fala dos ritos
funerários, acentuando os ritos de separação, de margem e de agregação e destacando os ritos
que agregam ao mundo dos mortos como sendo os mais elaborados e aos que se atribui maior
imporncia
1109
.
Em se tratando de um rito de despedida na iminência da morte, a separação constitui-
se, predominantemente, o foco de centralidade do rito, sendo ela o elemento de elaboração
1105
HENNEZEL; LELOUP, 1999, p. 122.
1106
HENNEZEL; LELOUP, 1999, p. 23.
1107
HENNEZEL; LELOUP, 1999, p. 24.
1108
HENNEZEL; LELOUP, 1999, p. 25.
1109
Conferir acima, no primeiro capítulo, o item 1.3.7.
310
mais importante. De certa forma, o rito de despedida na iminência da morte pode ser
considerado uma parte do rito de separação que, normalmente, inicia com a morte. A grande
diferença, no entanto, é que um rito de despedida na iminência da morte inclui a pessoa
moribunda como participante ativo do rito de separação. O rito de despedida na iminência da
morte é, neste sentido, um rito inclusivo. Às vezes, a despedida se caracteriza pelo simples
“estar junto”, acompanhando e cuidando da pessoa doente. Mas, é importante considerar a
necessidade de as pessoas também estabelecerem a comunicação verbal, pois situações em
que a despedida final depende de reatar laços rompidos, pedir perdão, expor preocupações
quanto ao futuro da família, fazer recomendações, etc. casos em que a despedida ainda
inclui a liberação ou autorização para partir, como se a pessoa esperasse dos seus familiares
um consentimento com a sua morte, para que ela possa morrer em paz. Isto pode ser um sinal
da aceitação da morte. Uma questão relevante para muitas pessoas e parte dos rituais de
separação é o pedido quanto à forma de realização do funeral. A entrega de algum objeto da
pessoa na eminência de sua morte a algum familiar, em especial, ou a mais familiares também
se caracteriza como despedida e rito de separação.
Segundo passo
a) Diálogo do Evangelho com a cultura na despedida de pessoas na iminência da
morte
Enfrentar a morte própria e a do outro traz sofrimento e angústia ao ser humano. A
Bíblia não ignora esta realidade. Ela fala do sofrimento que se expressa na tristeza das viúvas
e dos órfãos, no luto, no choro, no lamento
1110
. A Bíblia trata a morte como realidade humana,
como algo de que ninguém está isento. Ela é parte da natureza e da condição humana.
Conforme atesta 1Timóteo 6.16, Deus é o único que possui imortalidade. A morte e a finitude,
neste sentido, “indicam a diferença básica entre o Criador e o criado”
1111
. Ao mesmo tempo
em que esta diferença aponta para a causa da angústia do ser humano, a sua finitude, ela
também diz à criatura que o seu criador é maior do que a realidade criatural, ele é maior do
que a morte. E a verdade de que a morte não é a última realidade é demonstrada por Deus
através da morte e ressurreição de Jesus Cristo. A vitória de Jesus sobre a morte, a na
ressurreição e a esperança de uma nova vida
1112
constituem a grande mensagem do Evangelho
1110
Tiago 1.27; 1Tessalonicenses 4.13; Lucas 7.13; João 11.31,33; 20.11; Marcos 5.8 par. Mateus 2.18.
1111
SCHWARZ, Hans. Escatologia. In: BRAATEN, Carl E.; JENSON, Robert W. (Eds.). Dogmática cristã, v.
2. São Leopoldo: Sinodal / IEPG, 1995. p. 563.
1112
1 Contios 15.
311
e são motivos de consolo para o ser humano. Apesar disso, a morte não deixa de provocar dor
e sofrimento humano; ela continua sendo uma causa de angústia.
Por isso, a Bíblia, sobretudo o Novo Testamento, mostra um Deus que não apenas
supera a morte, mas se envolve totalmente com o sofrimento humano. Jesus se depara com o
sofrimento do outro e com o seu próprio. Ele sofre com a dor dos outros e também com a sua
própria dor
1113
. Antes de sua entrega na cruz, Jesus ora a Deus em sua agonia e chega a pedir
“passa de mim este cálice”
1114
. Deus não tira Jesus da cruz, mas deixa ele ser inteiramente
humano e participar plenamente da condição humana. Jesus amesmo sente-se abandonado
na cruz
1115
. Ele sofre, exatamente como todo ser humano, e morre. A ressurreição anunciada
por ele abre as portas para a esperança de uma vida além da morte, contudo, a na
ressurreição o elimina a morte da experiência humana. Deus não tira a morte, a dor, o
sofrimento porque estas o realidades da vida humana, mas através da cruz de Jesus, da
experiência com o sofrimento do próprio filho, Deus mostras de que se importa
profundamente com o sofrimento humano e forças e ânimo para suportá-lo, assim como
expressa Paulo em 2Coríntios 4.7ss.: “Em tudo somos atribulados, porém, não angustiados,
perplexos, porém, não desanimados; perseguidos, porém, não desamparados; abatidos, porém,
não destruídos; levando sempre no corpo o morrer de Jesus para que a sua vida se manifeste
em nosso corpo.
Muitas são as imagens da blica que expressam a ação de Deus como aquele que
espresente nas tribulações, oferecendo consolo e apoio e impedindo que o ser humano seja
destruído em suas dificuldades. Esse Deus, como diz Isaías 25.4, é “a fortaleza do necessitado
na sua angústia; refúgio contra a tempestade, e sombra contra o calor; (...)” e, conforme Isas
40,11, Deus é como um pastor que em seus braços recolhe os carneirinhos e os carrega em seu
seio.
Esse Deus que a Bíblia apresenta como alguém que ama, sofre junto e o abandona
é a sustentação na hora da despedida final, a esperança de que a morte não dá a palavra final.
A nesse Deus dá a certeza de que, mesmo morrendo, a pessoa continua nas mãos de Deus.
Para a comunidade cristã, o batismo é a representação dessa na vida de cada crente, o
1113
Um exemplo é João 11.1-3, 28-36.
1114
Lucas 22.42-44.
1115
Mateus 15.34.
312
atestado da afiliação divina que jamais é tirado, nem pela morte
1116
. Portanto, acompanhar a
pessoa na hora da sua morte, cuidar, oferecer a ela as condições de uma morte digna, não
abandoná-la em seu sofrimento e angústia, são tarefas da comunidade cristã, são um
testemunho de fé no Deus que está ao lado dos seus filhos e filhas na vida e na morte. Quando
a comunidade cristã acompanha a pessoa na iminência da morte e a sua família, ajuda essas
pessoas a se despedirem; e quando a comunidade crisdiz que se Deus se importa com o seu
sofrimento, ela, ao mesmo tempo, denuncia aquelas atitudes que visam excluir a morte da
vida social, deixá-la de lado, escamoteá-la, como se ela não fosse parte da vida humana.
b) Processo de equivalência dinâmica
Da igreja cristã das origens destaca-se a prática ritual do acompanhamento aos
doentes, conforme relata o texto de Tiago 5.14-16, que inclui a visita ao doente e utiliza
elementos lirgicos como a oração, a confissão de pecados, a imposição das mãos e a uão
com óleo
1117
. O acento desse rito, em sua origem, é a restauração da saúde sica e espiritual.
Gradualmente, esse rito sofre variações. Na prática da igreja medieval, mais precisamente
durante o século 15, o rito não está mais direcionado à unção da pessoa doente, mas
transforma-se em extrema unção ou preparação para a morte
1118
, sendo ministrada, portanto,
somente às pessoas moribundas e acompanhada da comunhão ou viático
1119
. O viático,
possivelmente, tem sua origem na ceia eucarística para ausentes praticada pela Igreja
Antiga
1120
, originalmente destinada aos enfermos e encarcerados
1121
, impossibilitados de
participarem da reunião comunitária. A comuno sob a forma de viático aparece nos
primeiros rituais litúrgicos como sendo a “provisão indispensável para a viagem”
1122
ou
“alimento espiritual necessário na passagem desta para a outra vida”
1123
. Através do viático, a
Igreja “propõe ao moribundo celebrar a morte como passagem para o Pai. Quer que ele faça
de sua morte uma ‘Páscoa’
1124
. Uma descrição do viático encontrada no Sacramentário
1116
“Porque eu estou bem certo de que nem morte, nem vida, nem anjos, nem principados, nem cousas do
presente, nem do porvir, nem poderes, nem altura, nem profundidade, nem qualquer outra criatura poderá
separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor.” (Romanos 8. 38-39).
1117
Ver estudo do assunto no capítulo três, de acordo com o item 3.3.5.
1118
TUCKER, Karen B. Westerfield. Liturgical Ministry to the Sick. In: BRADSHAW, 2002, p. 437.
1119
WHITE, 1997, p. 211-212.
1120
GEORG, Sissi, 2006, p. 95.
1121
WHITE, 1997, p. 214.
1122
SICARD, D. A morte do cristão. In: MARTIMORT, A.G. (Org.). A igreja em oração: introdução à liturgia:
os sacramentos, v. 3. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 194.
1123
(...) the necessary spiritual sustenance for the journey from this life to the next”. Cf. BRADSHAW, Paul.
Viaticum. In: BRADSHAW, 2002, p. 471.
1124
SICARD, 1991, p. 193.
313
gelasiano do século VIII, que reproduz um ordo romano da morte, consta os seguintes
elementos lirgicos: leitura do evangelho de João a respeito da paixão do Senhor, Salmo 41,
anfona, ladainha, oração sacerdotal de recomendação da alma e comunhão no corpo e
sangue de Cristo
1125
. Como observa Sicard, essa liturgia é estruturada de acordo com a
liturgia da palavra e a liturgia da ceia. De um lado está a leitura do evangelho, de outro, o
viático (ceia) e, interligando essas duas partes, um salmo penitencial. “Trata-se, pois, de uma
celebração da Páscoa”.
1126
Na tradição do ordo romano 49, a liturgia inicia com o viático e segue com a leitura
do evangelho da paixão de Cristo até o momento em que o doente morre
1127
.
Como se pode observar, tanto o rito de unção dos enfermos quanto o viático são
compostos por elementos básicos do culto cristão: leitura bíblica, oração, confissão de
pecados, cantos, salmos, ceia, bênção com imposição das mãos e unção com óleo. Além
desses elementos que estão presentes nos tradicionais ritos lirgicos ligados ao
acompanhamento de pessoas doentes e à preparação para a morte, do ordo do culto cristão
ainda elementos significativos para uma liturgia de despedida de pessoas na iminência da
morte como a saudação formal, o credo, cantos ou hinos.
A saudação formal é um elemento do culto cristão muito importante. Assim como no
culto, a saudação expressa que o evento que esacontecendo, independentemente do lugar
(casa, hospital), é realizado em nome e na presença de Deus. E mais, num rito de despedida a
pessoas na iminência da morte, a saudação formal, ao evocar a presença de Deus da mesma
forma que no culto dominical da comunidade, lembra às pessoas presentes a sua íntima
relação com a comunidade cristã e vice versa; ela lembra o seu pertencimento à família de
Deus. O credo ou confissão de fé é parte do culto dominical, mas tem sua origem no batismo.
Portanto, proferir esta confissão num rito de despedida a pessoas na iminência da morte é
confirmar a adesão ao Senhor realizada no dia do batismo e rememorar as afirmações
fundamentais da que servem de sustento no sofrimento, na dor, na morte. Cantos ou hinos
expressam não os valores da fé, mas atingem o coração e envolve todo o corpo. Num rito
de despedida a pessoas na iminência da morte, o canto se torna um elemento de grande valor,
pois dependendo do estado em que a pessoa doente se encontra, se ela pode ou não se
1125
SICARD, 1991, p. 194.
1126
SICARD, 1991, p. 195.
1127
SICARD, 1991, p. 195.
314
comunicar verbalmente, ouvir bem ou enxergar, a sica pode alcançá-la de muitas outras
formas. Buyst está convicta de que
o canto é capaz de derreter dentro de nós as atitudes negativas: a raiva, o rancor, o
desespero, a tristeza ... Ele faz brotar em nós alegria, confiança, perdão, bem-querer
... O canto é capaz de quebrar nosso orgulho diante de Deus, nossa resistência e
nosso fechamento; ele pode abrir como que o fundo de nossa alma, para que
possamos pressentir algo do insondável mistério do Amor de Deus.
1128
Além dos elementos já assinalados, cabe lembrar a importância do silêncio, dos
gestos e dos símbolos. O silêncio é um elemento significativo do culto e pode tornar-se
fundamental em ritos de despedida a pessoas na iminência da morte. Palavras nem sempre
exprimem o insondável mistério de Deus ou, até mesmo, a realidade inexplicável do ser
humano. O silêncio é uma atitude de oração, de meditação na palavra de Deus, de escuta do
outro, de contemplação e também pode expressar uma atitude de respeito pelo outro, por sua
dor. O silêncio é espera, é atenção, é comunhão
1129
. Em silêncio, de mãos dadas com a pessoa
que sofre, é possível entrar em contato com ela, com a sua paio e partilhar sentimentos
profundos.
Gestos e símbolos pertencem à liturgia e à linguagem comunicativa do ser humano.
“Simbolizar é ser capaz de expressar e perceber um sentido para além do valor funcional,
técnico ou comercial de um objeto, de um gesto (...). Simbolizar é ser capaz de sintonizar com
uma realidade invisível, por meio de um objeto ou um gesto visível, palpável...”
1130
. Na
liturgia, as ações, os gestos, os símbolos apontam para uma outra realidade, a transcendente.
Uma vela acesa, por exemplo, evoca a no Cristo vivo e ressuscitado, a água do batismo
lembra, entre outros, o renascimento, pela morte e ressurreição diárias em Cristo. Enfim, tudo
na liturgia, gestos, objetos, símbolos, refere-se à realidade de Cristo e o seu reino e estão
carregados com o espírito do ressuscitado
1131
.
c) Processo de assimilação criativa
Na cultura dessa passagem, de despedida a pessoas na iminência da morte,
sobressaem aspectos tais como a visita a pessoas doentes, presença constante da família ao
lado da pessoa doente, cuidando como uma vigília ou plantão, gestos de despedida (toque, dar
1128
BUYST, Ione. Celebração do domingo: ao redor da palavra de Deus. 8.ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
(Equipe de liturgia, 5). p. 83.
1129
BUYST, 1999, p. 85.
1130
BUYST, 1999, p. 91.
1131
BUYST, 1999, p. 91-92.
315
as mãos, olhar, cuidar), eventualmente, troca de palavras entre doentes familiares, um pedido
de perdão, resolver relacionamentos rompidos, uso de objetos simbólicos (livros de orações
ou meditação, hinos leitura de um hino significativo para a pessoa, um poema, um terço ou
objetos semelhantes, oração do Pai-nosso), ações do tipo “chamar algum parente que vive
distante para se despedir”. Esses elementos que, em geral, marcam a despedida de pessoas em
situação de morte iminente estão carregados de valores compatíveis com o evangelho de Jesus
Cristo e, de acordo com o que foi levantado no item anterior sobre a tradição lirgica da
igreja, eles são expressões adequadas de uma liturgia cristã que visa marcar a despedida de
uma pessoa na iminência da morte.
Os rituais de despedidas em casos de morte iminente desenvolvidos por profissionais
da saúde, sobretudo da área da psicologia, também são ricas fontes de assimilação criativa
para os ritos de passagem da liturgia cristã. Por exemplo, na experiência desenvolvida por
esses profissionais se destaca a preparação psicológica
1132
dos pacientes em estado terminal,
assim como dos seus familiares sobre a necessidade e o desejo de realizar a despedida assim
como de orientação em como realizá-lo e o acompanhamento dos profissionais. Para uma
liturgia de despedida à pessoa na iminência da morte, essa preparação é um aspecto de grande
relevância. É fundamental estabelecer uma conversa prévia da pessoa que coordena o rito com
ambas as partes, familiares e doentes em estado terminal, sobre o desejo de realizar um rito de
despedida e sobre os aspectos a serem abordados no rito. Essa conversa deve estar inserida no
contexto de uma visita pastoral e pode ser determinante para a elaboração do próprio rito de
despedida. Tal conversa, inclusive, pode oferecer elementos para serem inseridos no rito, por
exemplo, um hino ou uma sica relevante para as pessoas envolvidas, um texto bíblico ou
um poema, um símbolo, uma palavra ou um gesto especiais. Essa conversa, a exemplo do que
fazem os profissionais da saúde da medicina paliativa, busca estimular os membros da família
e os pacientes a estabelecerem um diálogo sincero, maduro e, se necessário, resolverem
questões pendentes e cruciais; nessa conversa também é importante orientar sobre as possíveis
questões a incluir num tal ritual.
Terceiro passo: considerações litúrgicas sobre o rito de despedida a pessoas na
iminência da morte
1132
“O processo de despedida da família diante de um paciente que está morrendo é um momento solene, apesar
da simplicidade com que o mesmo pode ocorrer. Requer preparo emocional, uma disponibilidade, em algum
nível, para aceitar a morte e o desapego. Uma das metas do trabalho com famílias que possuem um doente com
prognóstico reservado deve ser ajudá-los a ficarem próximos, enquanto preparam-se para a separação, e
estimulá-los a se comunicarem com seus parentes que estão morrendo.” LISBÔA; CREPALDI, 2008.
316
a) Função do rito
Ajudar familiares e pessoa doente em estado terminal a enfrentar a realidade da
iminência da morte e a separação mediante um rito lirgico de despedida.
b) Grupo envolvido no rito
O grupo principal é o da família com a pessoa em estado de morte iminente. Cabe,
no entanto, perguntar quais outras pessoas a família e a pessoa doente desejam convidar
(quando realizado no hospital, eventualmente, algum profissional da saúde que acompanha de
perto o/a paciente). A comunidade crisse faz presente através do seu pastor/a ou pessoa
incumbida e preparada para esta tarefa.
c) Local do rito
O local é determinado pelo lugar onde a pessoa doente se encontra, em casa, no
quarto de um hospital ou de um lar de idosos. O/a pastor/a vai ao encontro da pessoa onde ela
estiver.
d) Tempo e duração do rito
Considerando a situação da pessoa doente, o rito não deve ter longa duração. O
momento em que tal rito acontece é determinado pelas condições em que vive uma pessoa em
estado terminal. Há casos em que a família solicita ao pastor/a acompanhamento pastoral, às
vezes, atendendo a um pedido da pessoa doente. Mas, o/a pastor/a também pode estimular a
família a realizar tal evento. Neste caso, supõe-se que o/a pastor/a acompanhe as pessoas
doentes de sua comunidade, estejam elas em casa ou no hospital, conheça o estado de saúde
delas, com base nos dados apresentados pelos médicos, e saiba da importância de um rito de
despedida para os casos de morte iminente. Em todo caso, é necessário conhecer e
acompanhar os membros de uma comunidade que estão doentes e, em casos de situação de
morte iminente, ter sensibilidade pastoral para sentir o momento adequado para oferecer à
família e às pessoas doentes um rito de despedida diante da proximidade da morte.
e) Símbolos
A partir das visitas e conversa prévia com a família e, sempre que possível, com a
pessoa doente, a pessoa que coordena o rito observa se há algum objeto simbólico
significativo para as pessoas envolvidas, doente e família, que pode ser incluído no roteiro
lirgico. A utilização de qualquer símbolo ritual litúrgico deve levar em conta a familiaridade
317
das pessoas com o símbolo escolhido, ou seja, o símbolo deve fazer parte da espiritualidade
das pessoas, seja no nível pessoal ou comunitário.
Na liturgia, descrita em seguida, incluem-se a unção com óleo e a imposição das
mãos e se utiliza o círio pascal, lembrando o batismo e em alusão ao Cristo ressuscitado.
f) Roteiro lirgico
- O ambiente
O rito, descrito em seguida, transcorre na casa da família da pessoa doente (mas ele
também é adequado a um quarto de hospital ou de um lar de idosos). Se a pessoa está
acamada e o pode se levantar, o evento ocorre no quarto. Cadeiras são colocadas de modo
que a pessoa enferma seja inclda na roda. Se a pessoa está em condições de sentar, o rito
ocorre na sala e a pessoa deve sentir-se bem aconchegada num sofá. O ambiente é arrumado
com simplicidade. Numa mesinha, um pequeno vaso com flores ao lado da Bíblia aberta e um
recipiente com óleo. Ao lado da mesinha, num suporte especial, ou sobre uma mesinha mais
elevada, encontra-se o círio pascal aceso.
- O decorrer do rito
O rito é conduzido, do início ao fim pelo pastor ou pastora, que convida previamente
pessoas da família a fazerem as leituras bíblicas e a proferir uma oração. Inicia-se com a
saudação apostólica, oração, leitura de um salmo com antífona e leitura bíblica, meditação
breve e um hino escolhido previamente pela pessoa doente. Segue um momento de partilha da
palavra entre demais familiares e pessoa doente. É importante que a pessoa que coordena o
rito converse antecipadamente com as pessoas envolvidas sobre a importância de se incluir no
rito este momento de partilha da palavra entre os familiares. Após a conversa entre os
familiares, L convida alguém da família para proferir uma oração. O rito prossegue mediante
uma unção com óleo e a imposição de mãos sobre a pessoa doente. Em seguida, a pessoa
enferma é convidada a recitar o lema de sua confirmação ou, em caso de impossibilidade
desta, alguém da família o faz por ela. Trata-se de um lema bíblico que, conforme o costume
da IECLB, cada pessoa recebe no culto do dia de sua confirmação. Este, por sua vez, costuma
ser memorizado e relembrado em diversas situações da vida, como uma confissão de fé. Esse
versículo consta no documento intitulado “Lembrança da Confirmação”. O rito é concluído
com a bênção final para toda a família.
g) Observações
318
Na liturgia abaixo, considera-se que a pessoa enferma está consciente; que ela e sua
família concordam em abrir um momento na liturgia para troca de palavras; que o/a pastor/a
conversou previamente com a família e a pessoa enferma sobre o ato litúrgico; que a pessoa
enferma escolheu um hino para ser cantado durante o ato litúrgico.
4.5.3 O rito litúrgico, passo a passo
Saudação apostólica
L A graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito
sejam com todos e todas nesta casa.
C E também com você
Oração
L Deus de amor, tu que és consolo nas tribulações, vem estar conosco nesta hora
difícil de dor. Tira o peso da tristeza dos nossos corações e preenche-nos com o teu Santo
Espírito de renovação, de paz e de esperança. Senhor, s te pedimos, dá-nos coragem para
enfrentar o que não podemos evitar e fortalece em nós a confiança de que tu estás sempre
conosco, desde o amanhecer ao anoitecer, desde o nosso nascer até o nosso morrer. Por
Jesus Cristo, que contigo e com o Espírito Santo, vive e reina, de eternidade a eternidade.
C Am
Salmo 91
(proferido por algm da família)
C Canto
/: Senhor, tu tens sido o nosso refúgio de geração em geração, antes que os montes
nascessem e se formassem a terra e mundo, de eternidade em eternidade, tu és Deus.:/
Leitura bíblica
João 14.1-6
Meditação
Hino (escolhido previamente pela pessoa enferma)
Momento para a família
319
L Nossas vidas são marcadas pelo tempo da presença, entre nós, de pessoas que
amamos. Mas também pelo tempo da ausência saudosa delas. Sabemos que para Deus nós
pertencemos à sua grande família e essa nunca se desfaz nem pela separação da morte.
Sabemos que as separações que enfrentamos em nossa vida aqui neste mundo são
necessárias, mas cremos que elas nãoo eternas. Enquanto estamos juntos aqui neste
mundo Deus nos concede ricas oportunidades de trocarmos palavras, de nos aproximar, de
dizer o quanto cada um/a é importante. Hoje, Deus nos presenteia com um desses momentos
e oportuniza a esta família de N., a dizer uma palavra um ao outro ou de se manifestar com
algum gesto de amor, de carinho, de paz. Vamos receber de Deus este momento de graça que
nos é dado e, com humildade, façamos uso dele de acordo com o desejo do nosso coração.
(Tempo para o ato)
Oração
F (um/a familiar) Deus, tu és a ponte de contato, de união, de amor entre s. Quer
nos relacionamentos diários, na presença um do outro, quer na ausência de alguém, tu nos
manténs unidos/as como uma família, como pessoas que jamais se desligam, como pessoas
que jamais deixam de se amar. Nós te agradecemos pelas experiências que nos
proporcionaste até o dia de hoje como família, como amigos, como vizinhos, como
comunidade. Tu sempre estiveste conosco nas dificuldades, nos sofrimentos, mas também nas
alegrias e realizações. Por isso, Senhor, confiamos que neste momento de angústia, medo e
insegurança pelo que nos de vir, tu estás conosco e não nos abandonas. Quer na vida,
quer na morte, tu és nosso amparo, nossa luz e nossa salvação. s te pedimos, ó Deus, ao
chegar a hora de nos defrontarmos com a realidade da despedida final do nosso irmão/ã (pai,
mãe, avô, avó, tio, tia), sustenta-nos com a tua mão protetora. Entregamos este momento a ti.
o nos deixes a sós, não nos abandones. No momento em que N. separar-se de nós, recebe-
a/o em seus braços amorosos; conduze-a/o à sua nova morada em paz e serenidade. Tudo
isto te pedimos, por teu filho Jesus Cristo, que suportou as dores da cruz, venceu a morte e
conquistou a vida eterna e a nossa salvação.
C Am.
Unção e imposição de mãos
L (Com o óleo, faz o sinal da cruz na testa da pessoa enferma, dizendo:)
Não temas, porque eu te remi; chamei-te pelo teu nome, tu és meu.
320
(Impondo as mãos sobre a cabeça, L continua dizendo) Quando passares pelas águas
eu serei contigo; quando pelos rios, eles não te submergirão; quando passares pelo fogo, não
te queimarás, nem a chama arderá em ti. Porque eu sou o Senhor teu Deus, o santo de Israel,
o teu salvador. (Isaías 43.1-3a)
Lema da Confirmação
(Neste momento, caso a pessoa enferma possa falar, é convidada a recitar o versículo
de sua confirmação. Se a própria pessoa não puder fazê-lo, um/a familiar o recita por ela.)
Bênção
L (a família se põe ao lado da pessoa doente e L abençoa a pessoa doente e os
familiares)
O Senhor te abençoe e te guarde; o Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre ti e
tenha misericórdia de ti; o Senhor levante o seu rosto sobre ti e te dê a paz.
C. Amém
4.6 Considerações finais
A definição e a descrição de um método para a ritualização das passagens da vida,
neste capítulo, tiveram como ponto de partida a reflexão sobre a inculturação lirgica e os
métodos que Chupungco denomina de assimilação criativa e equivalência dinâmica. O estudo
deste assunto retoma o que se havia constatado no capítulo anterior sobre a importante
relação entre liturgia e cultura estabelecida na prática litúrgica da igreja dos primórdios.
Através da liturgia, a igreja crisdos primórdios um exemplo de vivência do evangelho
encarnado na vida e história dos povos. Foi visto que da prática lirgica das origens surge o
que na atualidade das igrejas é expresso pelo termo “inculturação lirgica”, referindo-se ao
processo pelo qual o culto de uma igreja local se insere na estrutura da cultura, integrando,
mediante a crítica doutrinária, pensamentos, linguagens, modelos rituais e símbolos de uma
cultura local ao ordo litúrgico cristão.
As passagens da vida são inerentes ao ser humano que nasce, se desenvolve, se
socializa e morre, e os ritos de passagens estão arraigados na cultura dos povos. Portanto, um
método para a ritualização de passagens na Igreja exige o diálogo da liturgia com a cultura.
321
Baseado nos métodos de inculturação lirgica que Chupungco aplica ao culto
cristão, fez-se uma adaptação dessa metodologia à ritualização das passagens da vida,
demonstrando a sua aplicabilidade a três casos escolhidos. Vale lembrar que o método de
assimilação criativa mostra-se mais adequado aos novos ritos de passagem. Uma vez que
estes não possuem um ordo pré-estabelecido na tradição litúrgica da igreja, conforme o que
foi explicado em 4.2.4, o método de equivalência dinâmica não lhes é tão adequado, sendo,
porém, bastante útil para a inculturação dos ritos de passagem tradicionais da igreja
(batismo/iniciação cristã, matrimônio, funerais). Tendo estes ritos um ordo lirgico
estabelecido pela tradição litúrgica da igreja, a equivalência dinâmica é um método que
favorece a sua adaptação aos contextos culturais das igrejas locais, ajudando a “traduzi-los”
mediante linguagens e símbolos da cultura local.
Os passos metodológicos para a ritualização de passagens na Igreja, propostos neste
capítulo, visam reunir elementos da cultura, do evangelho e da liturgia e levam a realizar um
diálogo entre essas áreas. É desse dlogo, da interação dos diversos elementos, que resulta a
formulação de liturgias de passagem. A combinão do instrumental de Van Gennep, do seu
esquema dos ritos de passagem que se desdobram em ritos de separação, transição e
agregação, com o instrumental de Chupungco, de descrição dos componentes culturais,
conforme explicação do primeiro passo metodológico, resultou numa complementação mútua,
útil para o labor litúrgico. Esses dois instrumentos se somam na busca por uma compreensão
da cultura do grupo envolvido na respectiva passagem. O instrumental de Van Gennep torna-
se mui relevante no primeiro passo da metodologia aplicada, pelo fato de ajudar a manter o
foco sobre o rito de passagem. Ele, inclusive, ajuda a perceber, com mais clareza, a função
específica do rito em estudo (se separação, se transição, se agregação). Sem esse instrumental
é possível que questões importantes dos ritos de passagem na cultura dos grupos fiquem
despercebidos.
Quanto mais se conhece um grupo (o que as pessoas pensam, como expressam suas
idéias, como se comportam, como festejam, de que gostam, o que crêem), mais subdios se
reúne para elaborar uma liturgia e tanto mais rica e contextualizada a liturgia pode se tornar.
O método, proposto neste capítulo, permite reunir subsídios suficientes para elaborar
diversas liturgias para a mesma passagem. Quer dizer, várias possibilidades de fazer uma
liturgia para a passagem estudada a partir do mesmo resultado obtido com a aplicação dos
passos metodológicos. Essa é uma das vantagens do método apresentado.
322
Enfim, o método de inculturação litúrgica adaptado à ritualização de passagens na
igreja, descrito e aplicado neste capítulo, possibilita a formulação autônoma de liturgias para
as passagens da vida, favorece a criatividade e a diversidade na criação dessas liturgias; além
disso, o uso de tal método permite a contextualização e a constante renovação de liturgias de
passagens. Neste sentido, ter um método que funcione é mais importante do que liturgias
prontas. Além da sua funcionalidade, a qualidade desse método, reside, em especial, no fato
de que ele faz jus à cultura, ao evangelho e à liturgia e pode ser utilizado para qualquer
passagem em qualquer contexto.
CONCLUSÃO
A ritualização das passagens da vida na perspectiva da liturgia cristã foi o objeto
investigado ao longo desta pesquisa. Esse assunto tornou-se um objeto de pesquisa, por um
lado, em vista da constatação inicial, realizada pela autora, a partir de seus estudos em
liturgia, de que a vida das pessoas é marcada pela ritualização. Juntaram-se a isso, de outro
lado, resultados instigantes da pesquisa social intitulada Vale da Pitanga que investiga a
relação entre culto e cultura
1133
. Aquela pesquisa revela que as pessoas experimentam Deus
nos momentos limítrofes da vida e nas tensões do cotidiano. Segundo a pesquisa citada, as
experiências que as pessoas fazem com Deus estão relacionadas aos “mistérios abissais das
origens e dos limites últimos da exisncia, e com os altos e baixos da vida de todos os
dias”
1134
. Deus está presente nas passagens da vida, cuidando, protegendo, ajudando. A
relação entre Deus e as pessoas, portanto, é fortemente marcada pela experiência das
passagens da vida. Esta constatação apontada pela pesquisa social, citada acima, levou a
perceber as passagens como experiências marcantes da vida que necessitam de ritualizão.
Este dado fundamental fez com que a ritualizão das passagens da vida se transformasse
num tema de pesquisa, suscitando sérias perguntas para a liturgia e desafios relevantes para a
prática litúrgica da Igreja.
Partindo do fato de que a ritualização das passagens da vida é uma necessidade
humana fundamental e tendo como referência o exemplo da prática litúrgica da IECLB,
levantou-se a suspeita de que a igreja na atualidade oferece ritos para passagens tradicionais,
como nascimento, iniciação religiosa, casamento e morte, mas não supre a necessidade de
ritualização de outras passagens relevantes da vida. Levando em conta a necessidade de
ritualização das passagens e a constatação de que os ritos litúrgicos contemplam algumas
passagens apenas, foi perguntado como a Igreja pode responder à demanda da clara
necessidade que as pessoas têm de ritualização das passagens da vida.
Com o intuito de responder a essa pergunta e oferecer subsídios teóricos e
metodológicos que contribuam tanto para a pesquisa na área da liturgia quanto para o
enriquecimento da prática lirgica na Igreja, com vistas à ritualização das passagens da vida,
1133
Esta pesquisa é citada na introdução deste trabalho, conforme a nota de roda número 2.
1134
KIRST, 1995, p. 55.
324
iniciou-se a presente pesquisa, a qual encontra-se relatada nos quatro capítulos que formam
esta tese. A partir dos resultados alcançados e considerando as perguntas que motivaram esta
pesquisa, a conclusão final desta tese é apresentada conforme os pontos que seguem.
1) A ritualização das passagens da vida é uma prática cultural humana universal. Os
ritos de passagem são essenciais às sociedades humanas. E o fato fundamental que torna os
ritos de passagem um fenômeno cultural é que todo ser humano enfrenta, em alguma fase
marcante da sua vida, o novo, o desconhecido e se utiliza do rito para fazer a passagem. Essa
necessidade básica é universal, no tempo e no espaço
1135
. É o pprio ato de viver que exige
passagens sucessivas, pois viver é continuamente desagregar-se e reconstituir-se, mudar de
estado e de forma, morrer e renascer”
1136
. Desde o nascer até o morrer, há muitos e diferentes
limiares a atravessar. Segundo esse pensamento é possível dizer que não passagem sem
travessia, ou não há passagem sem ritualização. A ritualização das passagens da vida é
necessária às pessoas e ao grupo do qual ela faz parte.
2) A busca por fundamentos antropológicos dos ritos de passagem, como um dos
objetivos desta pesquisa, leva a enfatizar a importância vital dos ritos de passagem na vida
humana, necessários às circunstâncias graves da vida, “obrigatórios”
1137
às etapas
sucessivas da vida do indivíduo, porque eles funcionam como uma “costura” entre as
diferentes fases ou etapas da vida; são como pontes que auxiliam o ser humano em sua
“travessia” de uma situação a outra, de um mundo a outro, novo e desconhecido. Os ritos de
passagem visam, pois, ajudar as pessoas e os grupos a enfrentarem as tensões provocadas pela
passagem. Uma crise ou uma tensão existencial não se resolve com a linguagem fria e
racional; os ritos ultrapassam o discurso da razão e tocam as pessoas em todo o seu ser,
levando às profundezas da vida; eles exprimem valores essenciais ao ser humano e apontam
para o além de si. Em determinadas situações, as palavras, por si, não comunicam tudo o que
se pretende alcaar, e os ritos, por sua linguagem abrangente e simbólica, conseguem
expressar mais profundamente as tensões vividas e as possibilidades de atravessá-las.
Então, uma forte razão por que os ritos de passagem são tão importantes para o ser
humano é antropológica. As passagens são inerentes à vida. O rito, como fenômeno cultural, é
uma parte constitutiva da existência humana; ele ajuda o ser humano a “pôr ordem no
1135
Cf. acima, item 1.4.4.
1136
Cf. citação acima, item 1.3.9 ou GENNEP, 1978, p. 157.
1137
Termos utilizados por Van Gennep, conforme GENNEP, 1978, p. 157.
325
caos”
1138
do cotidiano da vida. O ser humano, portanto, se vale do rito de passagem para viver
e reorganizar o “caos” provocado pela passagem.
Além de sustentar a tese da necessidade humana intrínseca de ritualização das
passagens da vida, a pesquisa assinalou a importante função social do rito de passagem. O rito
de passagem confirma uma mudança. Como se referiu Mardones, “os acontecimentos não são
plenamente reais enquanto não são reconhecidos e celebrados como tais
1139
. Um indivíduo
que passa de uma situação a outra necessita, em especial, de confirmar a passagem e ser
aceito em sua nova posição, ou seja, o indivíduo precisa do aval da sociedade para assumir a
nova função que lhe é atribuída. Tensões também são provocadas pelo não reconhecimento ou
não aceitação da nova condição de um indivíduo no grupo de sua relação. Portanto, outra
razão por que a ritualização das passagens da vida é tão importante para o ser humano, é
social. O ser humano se vale do rito de passagem para conviver, para socializar.
Há ainda mais uma razão por que os ritos de passagem são tão imprescindíveis ao ser
humano. Esta se encontra relacionada à dimensão sagrada do humano. As crises existenciais
geradas pelas passagens, as perguntas que surgem nos “momentos limítrofes” da vida, levam
o ser humano a buscar respostas fora de si e a entrar em contato com o sagrado e
transcendente. O rito de passagem possibilita esse encontro do humano com o sagrado. Ele
faz a ponte entre essas duas esferas. O ser humano se vale do rito de passagem para
transcender.
3) Além de constatar que os ritos de passagem o parte constitutiva das sociedades
humanas, bons e necessários para viver, reorganizar a vida nas passagens, conviver,
transcender a si e ao mundo, o seu estudo numa perspectiva antropológica, revela, sobretudo a
partir da pesquisa de Van Gennep, a existência de um esquema seqüencial. Todo rito de
passagem é desdobrado em ritos de separação, margem e agregação. Este esquema ajuda a
reconhecer o sentido e a função do rito de passagem (separar, permanecer à margem e
agregar). Para quem lida com ritos de passagem é imprescindível conhecer essa sua
característica básica e observar qual dos ritos desdobrados assume função destacada dentro do
conjunto dos diferentes ritos de passagem (por exemplo, casamento - agregão; morte
separação; mudança de comunidade religiosa agregação; saída de casa separação;
gravidez margem, e assim por diante). É preciso conhecer, estudar e observar bem cada
passagem, detectar a necessidade que ela exige para, então, entender a ênfase dada pelo rito.
1138
Conforme acima, 1.2, página 19.
1139
Cf. acima página 160, ou MARDONES, 2006, p. 164.
326
4) Os ritos de passagem que ocorrem em torno do nascimento, da puberdade, da
entrada na vida religiosa, do casamento e da morte, o encontrados em diversas culturas
humanas. São os chamados ritos de passagem clássicos ou tradicionais. Tais ritos também se
verificam na vida social de grupos e pessoas do contexto brasileiro atual.
Mudanças sociais e culturais da sociedade pós-moderna geram novas situações de
passagens que, por sua vez, exigem novos ritos de passagem. diversas passagens
relevantes que marcam a vida na atualidade, porém, nem todas são ritualizadas. passagens
sendo ritualizadas, há outras para as quais não há ritualização e há ritos que não preenchem as
reais necessidades das pessoas nas passagens. A pesquisa levantou as seguintes passagens
relevantes na vida da atualidade: gravidez, nascimento, namoro, casamento, ingresso na vida
religiosa, morte, ingresso e conclusão de estudo, saída de casa e ingresso em outros contextos,
doença, saída para o hospital, morar juntos, separação conjugal, separação de pai e mãe,
ingresso na vida profissional, mudança de vida profissional e desemprego, entrada num lar de
idosos, mudança de comunidade religiosa, mudança de lugar, aquisição de casa própria.
Mencionar esta lista de passagem não significa limitar o número de passagens que
caracterizam a vida na atualidade, mas ela confirma que outras passagens além daquelas
tradicionalmente ritualizadas e que mudanças sócio-culturais podem gerar novas situações de
passagens.
As passagens são experiências deveras significativas e acarretam mudanças na vida
das pessoas; elas sempre estão carregadas de expectativas e suscitam perguntas existenciais
importantes. Enfim, as passagens da vida, apresentando-se como uma nova realidade, sempre
trazem desafios a serem enfrentados, como os exemplos verificados a seguir
1140
: na gravidez
de uma adolescente: ser aceita pela família e pelo grupo social circundante; na separação de
pai e de e: necessidade do filho (ou da filha) de definir o seu papel na nova configuração
familiar ou o sentimento de o filho (ou a filha) ser menos amado/a pelo pai porque optou por
morar com a mãe; na morte prematura de um filho, irmão ou irmã: encontrar respostas para
perguntas que surgem como “por quê?”, “qual o sentido dessa morte?”; quando alguém sai de
casa para enfrentar os desafios da vida adulta: deparar-se com as perguntas e o medo dos
desafios da nova realidade: como será?” ou “vou conseguir vencer?”. E assim, cada
passagem suscita perguntas relacionadas a questões profundamente existenciais, as quais
dizem respeito ao convívio das pessoas entre si e ao sentido último da realidade humana (vida
e morte).
1140
Os exemplos mencionados são extraídos da pesquisa social qualitativa realizada para a presente tese.
327
Passagens tão relevantes, como as acima destacadas, que marcam a vida na
atualidade e a defasagem na área dos ritos apontam para a necessidade de se investir na
ritualização das passagens da vida. Atender à necessidade de ritualização das passagens da
vida é responder às perguntas e angústias existenciais enfrentadas pelas pessoas nas suas
passagens. Essa é uma tarefa incontornável para a Igreja.
5) Os ritos de passagem têm diversos espaços de vivência. Eles estão relacionados à
família, à escola, ao trabalho e às igrejas, por exemplo.
É na família que as pessoas vivem passagens importantes da vida (gravidez,
nascimento, saída de casa, casamento, enfermidade, morte, luto). A família está diretamente
implicada com as mudanças que ocorrem na vida de seus membros e ela também sofre as
tensões decorrentes das passagens. Portanto, a família pode ajudar os seus membros a
vivenciarem as transições, atras de ritos. Ela assume um papel importante de apoiar
emocionalmente os seus membros nas passagens e em garantir que eles ritualizem as
passagens da vida. A família, enfim, funciona como uma agência social promotora dos ritos
de passagem.
Como a família, os centros educacionais igualmente são instâncias promotoras de
ritos de passagem e representam espaços singulares de prática dos ritos de passagem, em
especial, porque lidam com adolescentes e jovens e, assim, com fases da vida em que as crises
e os conflitos das passagens podem ser mais acentuados.
Da mesma forma, as instituições de trabalho são espaços especiais de promoção de
ritos de passagem. Não o ingresso no mundo do trabalho e o encerramento da carreira
profissional (aposentadoria) são passagens relevantes nessa área da vida. Mudar de emprego
ou de uma função no emprego, o estar desempregado, entre outras, também pedem
ritualização.
O ambiente da escola, da falia e do trabalho não são os únicos, mas constituem
espaços importantes de ritualização porque estão diretamente ligados a passagens marcantes
da vida.
As igrejas, assim como outros centros religiosos, são espaços significativos de
ritualização das passagens da vida. diversas passagens sendo ritualizadas no âmbito
eclesial, das quais estão presentes os ritos tradicionais e clássicos, mencionados. Para a
igreja cristã, no entanto, o desafio da ritualização das passagens da vida vai além da
ritualização de passagens específicas ou das clássicas e tradicionais. A Igreja se preocupa com
328
o ser humano como um todo. Ela tem por missão evangélica, acompanhar ritualmente os seus
membros “em sua contínua jornada ao longo da vida ou quando passam por experiências
novas e irrevogáveis”
1141
. Por sua própria natureza, por amor a Cristo, a comunidade cristã
apóia, abraça e cerca de amor as pessoas tanto nas alegrias quanto na dor em todas as
passagens da vida. Ela sustenta as pessoas em suas crises existenciais e as pessoas esperam da
Igreja uma resposta às perguntas que se relacionam aos “mistérios abissais das origens e dos
limites últimos da existência humana”
1142
.
6) Historicamente, a igreja cristã se caracteriza por celebrar ritos, por prestar serviços
lirgicos aos membros do corpo de Cristo e a oferecer ritos de passagens. Assim como no
exemplo da IECLB, os ritos de passagem na igreja cristã atual, dizem respeito a passagens
relevantes da vida humana. Em geral, eles estão ligados ao nascimento, à iniciação, ao
casamento, à doença e à morte. Ime-se, porém, a necessidade de levar em conta as novas
passagens que fazem parte da vida das pessoas na atualidade. As novas passagens são desafios
para a prática litúrgica das igrejas. Elas requerem novos ritos. Nos ritos litúrgicos de igrejas,
como no exemplo da IECLB, algumas passagens (como maternidade, paternidade e
puberdade), não possuindo ritos específicos e autônomos, estão acopladas a outros ritos de
passagem
1143
. O exemplo desses ritos de passagem que insistem em se manter sob uma ou
outra forma, mostra a relevância da ritualização das passagens da vida. Tudo isso demonstra
que no campo da ritualização das passagens da vida há um grande potencial a ser
desenvolvido pela Igreja na atualidade. Há novos ritos a serem criados, ritos agregados a
serem desvinculados e tornados autônomos, há ritos a serem reformulados.
7) A igreja cristã dos primórdios é uma referência significativa para a ritualização
das passagens da vida. Em suas origens, ela se apoiou na prática cultural dos ritos de
passagem. Ritos de parto, nascimento, cura, casamento e, em parte, os funerais, nos
primórdios da igreja cristã, são desenvolvidos no espaço doméstico, sendo as mulheres as
principais protagonistas dos ritos do âmbito do doméstico e da família. A prática desses ritos,
portanto, está ligada aos costumes culturais, locais, dos quais a igreja cristã é herdeira. A
igreja das origens faz um processo de assimilação cultural dos ritos de passagem e, aos
poucos, os incorpora ao seu corpo litúrgico.
1141
WHITE, 1997, p. 204.
1142
KIRST, 1995, p. 55.
1143
Cf. acima, página 192.
329
Em suma, os ritos de passagem na igreja cristã dos primórdios resultam do diálogo
entre liturgia e cultura. Nesse diálogo, a igreja assume diversos ritos de passagem locais e os
reinterpreta à luz de Cristo. Cristo é o critério teológico para a interpretação dos ritos de
passagem. Imagens, histórias e personagens bíblicos ajudam a dar sentido aos simbolismos
presentes nesses rituais. Dos ritos culturalmente assimilados, a comunidade cristã evita as
práticas consideradas idolátricas, contrárias ao espírito do evangelho. Dialogar com a cultura,
levar em conta as práticas rituais do contexto de inserção da comunidade cristã é um sinal do
evangelho encarnado vivido por uma igreja que não se afasta do mundo que a circunda. Os
ritos lirgicos, portanto, também são veículos de contextualização do evangelho.
Essa prática de dlogo entre cultura e liturgia na vida da igreja dos primórdios é
significativa para a Igreja na atualidade porque oferece traços importantes para um método de
trabalho no campo da liturgia. É preciso assinalar, no entanto, que o diálogo entre liturgia e
cultura na igreja das origens não esteve imune a ideologizões e partidarismos. A mulher,
por exemplo, o recebeu uma função destacada nos ritos de passagem oficializados pela
igreja cristã, como a que ela possuía nos rituais domésticos, a exemplo do que se observou nas
práticas rituais no entorno da comunidade cristã. Isto não significa, entretanto, que na vida
cotidiana das comunidades cristãs, os costumes culturais dos sistemas rituais não tenham
sobrevivido, até mesmo numa forma de “subterrâneo ritual”
1144
. Evidentemente, o
direcionamento e a oficialização dos ritos litúrgicos na igreja cristã dos primórdios estão
relacionados ao processo de institucionalização e patriarcalização da igreja que relativizou o
papel de liderança das mulheres nas atividades da igreja
1145
.
8) O rito de passagem primordial da igreja cristã das origens é o de inicião cristã.
Trata-se de um rito amplamente desenvolvido pela igreja cristã dos primórdios, um rito
original e essencial à igreja. É através da iniciação cristã, cujo ápice é o batismo, que alguém
se torna cristão ou cristã
1146
. O rito de iniciação cristã surge lado a lado com a própria igreja
cris e, embora ele possua elementos simbólicos característicos dos ritos de iniciação das
culturas em geral e dos ritos de passagem em específico, na igreja cristã ele é o rito de
passagem referencial para os demais ritos de passagem. Ele oferece a base teológica e
simbólica para todos os demais ritos de passagem. Ele reúne os principais símbolos e o
1144
Em alusão a uma definição dada por Bobsin quando fala do “subterrâneo religioso da vida eclesial”. Vide
acima, capítulo um, item 1.4.3, cf. BOBSIN, 1997.
1145
Cf. reflexões sobre o assunto, em 3.3.7, item 1.
1146
Cf. acima, item 3.3, número 2.
330
conteúdo central da cristã, tornando-se a chave de interpretação da comunidade crisna
assimilação dos ritos de passagem da cultura local.
O rito de iniciação da igreja cristã das origens também é uma referência fundamental
para a ritualização das passagens na Igreja, hoje. Ele possui os principais elementos lirgicos
de um rito de passagem da igreja cristã e oferece o fundamento teológico-cristológico válido
para qualquer rito de passagem. Os elementos litúrgicos do rito de iniciação podem ser
adaptados para os novos ritos de passagem, assim como podem ser utilizados para enriquecer
o significado dos tradicionais ritos de passagem da Igreja, hoje. A teologia batismal do rito de
iniciação cristã da igreja das origens (que remete para o evento salvífico de Cristo) é, ao
mesmo tempo, a teologia que orienta os demais ritos de passagem, sejam eles novos ou
tradicionais. O rito de iniciação da igreja cristã dos primórdios é, ao mesmo tempo, uma
referência para uma revisão do pprio rito de iniciação praticado pelas igrejas na atualidade.
Em suma, a ritualização das passagens da vida na perspectiva da liturgia cristã encontra seus
fundamentos ou suas referências básicas no rito de iniciação cristã da igreja das origens.
9) Na igreja cristã dos primórdios, assim como nos grupos do seu entorno sócio-
cultural, o ambiente do doméstico sobressai como um lugar predominante de ritualização das
passagens. Essa ênfase no lugar do doméstico ajudou a perceber que o rito está ligado ao lugar
onde ocorre a passagem (parto, nascimento, maternidade, paternidade, casamento, morte,
doença, na cultura da comunidade crisdas origens, são acontecimentos ligados à casa, à
família). A ritualização da passagem, portanto, es relacionada ao lugar vivencial da
passagem. É importante levar em conta esse dado quando se elaboram liturgias para as
passagens na atualidade. Mas, mais importante é perguntar se os lugares onde ocorrem as
passagens, hoje, são devidamente valorizados como locais importantes de ritualização (como,
por exemplo, a casa, na saída de casa, - para morar longe e estudar ou trabalhar, para ingressar
em um lar de idosos, para hospitalizar-se -; o hospital, na morte, e assim por diante).
10) Um dos recursos oferecidos por esta pesquisa para quem lida com liturgia para as
passagens é o método para a ritualização de passagens na Igreja. A proposta do método para a
ritualização de passagens na Igreja, apresentada nesta pesquisa, é resultado do estudo sobre a
inculturação litúrgica e dos estímulos vindos da própria ptica lirgica da igreja cristã dos
primórdios que adotou o diálogo entre liturgia e cultura local. Baseado nessa experiência da
igreja cristã das origens, Chupungco propõe os métodos de assimilação criativa e equivalência
dinâmica para ser aplicado ao culto cristão. O método para a ritualização de passagens na
Igreja, proposto neste trabalho, é uma adaptação do método de Chupungco para os ritos de
331
passagem na Igreja, incluindo-se o instrumental decorrente do estudo de Van Gennep sobre o
esquema dos ritos de passagem
1147
.
Fazer o exercício da proposta de um método para a ritualização de passagens na
Igreja e de aplicá-lo a algumas passagens foi deveras significativo. Esse exercício
demonstrou, em especial, que, utilizando um método adequado é possível elaborar tantas
liturgias de passagens quantas necessárias forem, ou seja, ter um método de ritualização das
passagens da vida na Igreja, que funcione, significa ter um instrumento à mão que permite
formular novas liturgias de passagem de acordo com as necessidades que cada contexto exige.
Uma ferramenta adequada também permite renovar o estoque das velhas liturgias de
passagens, pois o método de ritualização de passagens da vida na Igreja apresentado no último
capítulo serve para ser aplicado a qualquer outra passagem em qualquer contexto. Dessa
experiência, importa destacar que as ciências sociais, antropológicas e teológico-litúrgica
oferecem subsídios suficientes que possibilitam às igrejas criarem métodos de trabalho para a
ritualização das passagens da vida. Há diversos caminhos e diversos instrumentos. Basta
definir um método e aplicá-lo. Os métodos, os instrumentos são apenas meios para o
aperfeiçoamento do labor litúrgico que se põe a serviço das pessoas e da missão do evangelho
de Jesus Cristo. O mais importante é que a cncia litúrgica se empenhe por realizar pesquisas
que ofereçam respostas concretas a perguntas que surgem das questões mais substanciais da
vida.
11) No início desta pesquisa foi levantada a pergunta como a Igreja pode responder à
demanda da clara necessidade que as pessoas têm de ritualização das passagens da vida. A
partir dos resultados colhidos, ao longo dos quatro capítulos, é possível dizer que a igreja
crisna atualidade, tendo como referência o caso da IECLB, necessita, em primeiro lugar,
dar-se conta da necessidade urgente de ritualização das passagens da vida. Uma igreja que
tem a missão de manifestar o amor de Deus neste mundo, não pode ficar alheia aos
sofrimentos, às angústias ou crises de alguém que enfrenta uma mudança na vida, quando
necessita ingressar num lar de idosos, quando necessita ser aceita em uma gravidez ainda na
adolescência, quando necessita sair de casa para estudar longe da família, dos amigos, da terra
natal, ou para trabalhar e enfrentar as exigências da vida de adulto, quando necessita
hospitalizar-se e separar-se do convívio da família, dos amigos, do trabalho, quando necessita
enfrentar a própria morte ou de um familiar, quando necessita enfrentar o luto, quando
necessita enfrentar a separação do njuge ou a separação entre pai e mãe. Essa igreja
1147
Conferir acima, 4.2.4 e 4.6.
332
também não deixa de alegrar-se, festejar, interceder e manifestar as bênçãos de Deus no
nascimento de um novo ser, na união de um novo casal, na entrada de uma pessoa ou família
em um novo lar, na aquisição de uma casa própria, na conclusão de uma etapa da formação,
no início de uma carreira profissional, entre outras tantas passagens relevantes da vida.
12) Para responder à demanda da clara necessidade de ritualização das passagens da
vida, a Igreja necessita estar atenta aos novos tempos, que exigem sempre de novo a
renovação das liturgias de passagens em vista das constantes mudanças sócio-culturais. Ela
necessita: a) ter ouvidos atentos para ouvir os clamores e os olhos abertos para ver as pessoas
em seus sofrimentos e trazê-las diante de Deus mediante a ritualização das passagens; b)
providenciar recursos litúrgicos para as passagens da vida; b) disponibilizar, aos obreiros e às
obreiras, subsídios necessários à ritualização das passagens da vida; c) oferecer cursos de
formação para obreiros e obreiras, tematizando um assunto que possui razão existencial.
Em suma, a ritualização das passagens da vida é um assunto importante para a Igreja
na medida em que ela, através da ritualização das passagens da vida, põe a liturgia a serviço
das pessoas nas suas crises existenciais, vai ao encontro das necessidades mais urgentes da
vida, responde às perguntas mais inquietantes e está presente nos momentos significativos e
limítrofes da vida!
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