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Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade
Federal de Uberlândia, como requisito parcial
para o título de mestre em História.
Área de Concentração: História e Cultura
Orientador: Prof. Dr. Alcides Freire Ramos
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FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborado pelo Sistema de Bibliotecas da UFU / Setor de
Catalogação e Classificação / MG
A474f Alves, Luciano Carneiro.
Flores no deserto – a Legião Urbana em seu próprio tempo /
Luciano Carneiro Alves.
Uberlândia, 2002.
150f.
Orientador: Alcides Freire Ramos.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Uberlân-
dia, Programa de Pós-Gradução em História.
Inclui bibliografia.
1. Música e história -Teses. 2. Legião Urbana – Brasil - História
e crítica – Teses. 3. Rock – Brasil –
Teses. I. Ramos, Alcides Freire.
II. Universidade Federal de Uberlândia. Programa de Pós-Gradua-
ção em História. III. Título.
CDU: 930.2:78(043.3)
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Prof. Dr. Alcides Freire Ramos (orientador)
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Profª. Dr.ª Maria Izilda Santos de Matos
___________________________________________
Profª. Dr.ª Rosangela Patriota Ramos
Uberlândia, 22 de Fevereiro de 2002.
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O objetivo dessa dissertação é analisar a obra da banda Legião Urbana
referente aos seus quatro primeiros discos, Legião Urbana (1985), Dois (1986), Que País é
Este 1978-1987 (1987) e As Quatro Estações (1989), argumentando que entre 1978 e
1989, as canções saem de um ponto de partida punk, no qual descrença em relação ao
por vir, para uma esperança no futuro, explícita nas canções de As Quatro Estações, que
compõem um universo de representações no qual é possível identificar o desejo de um
amanhã harmonioso, em que os problemas do presente estejam resolvidos. A descrença
no futuro, de “Geração Coca-Cola”, que ironiza a capacidade dos “filhos da revolução” de
construirem alguma coisa, cede lugar à idéia de que se, cada um fizer a sua parte, “amando
o seu próximo com a si mesmo”, um amanhã melhor será possível.
Nesse sentido, questionamos as análises que a partir de pressupostos pós-
modernistas, identificam na poética de Renato Russo desilusão e desesperança quanto à
possibilidade de futuro, por entendemos tratar-se de um olhar particularizado sobre as
canções e, também, uma concepção restrita do que seja o pós-modernismo.
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RESUMO
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INTRODUÇÃO .............................................................................................
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CAPÍTULO I
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CAPÍTULO II
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CAPÍTULO III
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CONSIDERAÇÕES FINAI
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BIBLIOGRAFIA
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A realização desta dissertação foi possível graças à colaboração de
diversas pessoas. Meus agradecimentos a todas elas e de forma especial:
Ao Prof. Alcides Freire Ramos, meu orientador, que com inteligência tem
me acompanhado nesses anos, desde a iniciação científica. Agradeço imensamente seu
incentivo aos meus estudos e à minha pesquisa;
À professora Rosangela Patriota, pelo talento e amizade. Minha sincera
gratidão à sua generosidade em doar seus conhecimentos tanto em sala de aula quanto na
sua “co-orientação”. Isto muito me ajudou a crescer profissional e pessoalmente;
À Profª. Drª. Maria Izilda Santos de Matos, que gentilmente aceitou fazer
parte desta defesa de dissertação;
À minha família, especialmente minha mãe e minhas irmãs, Juliana e Adriana,
por compartilharem derrotas e conquistas;
Ao Yan pelos sorrisos nas horas necessárias...
Aos amigos do NEHAC (Aguinaldo, Juscelino, Luiz Humberto, Sandra,
Jacques, Meiriely, Ludmila, Rodrigo, João Ivo, Nádia, Kátia, Cláudia Helena, Marcos
Henrique, Silvana, Vânia, Edmilson, Tatiana), pelo mérito de termos conseguido trocar
algo tão raro no meio acadêmico, leituras e amizade;
Para Cristiane, Eduardo, Sandra, Eliene, André e Joyce, ficam meus
agradecimentos por compartilharem a vida comigo da maneira nem sempre desejável, mas
sempre querida;
36
Ao Marcos Menezes, pela amizade que viemos construindo desde muito;
Ao amigo Miguel, pelas milhares de vezes em que experimentamos a
convivência da amizade, compartilhando angústias, felicidades e chopps;
A Aurora e Rachel pela delicadeza com que me tratam e pelas longas
conversas que partilhamos;
À Graça, pelo carinho à minha pessoa;
Às professoras Maria Clara Tomáz Machado e Vera Lúcia Puga, pela
presença e ajuda nestes anos de convivência acadêmica;
Aos funcionários João Batista, Maria Helena, Flávio e Gaspar que, sempre
prestativos, me ajudaram nesta caminhada no curso de História;
E finalmente, à CAPES pelo auxílio por meio de uma bolsa de pesquisa.
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Em O Estilo na História, Peter Gay escreve que “a paixão, famosa como
a ameaça mais prejudicial do historiador, pode se tornar seu bem mais precioso”
1
. Por
muito tempo tive essa frase como argumento de defesa e esperança. Argumento para
aqueles que, ao notarem a minha admiração por meu objeto de estudo, tentavam
menosprezar meu objetivo, como se estudar a obra da Legião Urbana servisse apenas
para atender as minhas curiosidades de fã. Esperança de que a minha paixão pelas
canções me permitisse ver “um algo mais”, como sugere Peter Gay. O dia-a-dia da
pesquisa me ensinou algumas coisas.
Renato Russo foi um dos meus ídolos da adolescência e a Legião Urbana
a minha banda preferida. Fiz de suas músicas trilha sonora para momentos felizes e
tristes. Ainda hoje, escutar as canções é reavivar minha memória. Conheci a “Legião”
em 1988, aos 11 anos, a partir do estrondoso sucesso de “Faroeste Caboclo”. Dediquei
muitas horas para decorar os seus 159 versos e quando consegui, foi como tivesse
ganho um prêmio. Não entendia muito bem o que era cantado, mas a moda era
decorar a letra e não entendê-la. Embora não tenha sido daqueles fãs incondicionais,
possuidor de tudo o que fosse possível sobre a banda, acompanhava sua trajetória e
conhecia uma boa parte de suas canções. Conhecimento mais sistematizado viria a
ter por volta dos 17 anos, quando as canções passaram a me dizer mais.
1
GAY, Peter. O Estilo na História. São Paulo: Cia. das Letras, 1990, p. 179.
38
Com essa idade entrei para o curso de História e, durante o meu 5º
período, ao conhecer o trabalho do NEHAC (Núcleo de Estudos em História Social da
Arte e da Cultura), passei a vislumbrar a possibilidade de estudar a obra da Legião
Urbana. Até então, estudar cultura, e principalmente arte, soava como algo menor,
“que não contribuía”. A morte de Renato Russo, em outubro de 1996, acabou sendo
um incentivo, e ao mesmo tempo um obstáculo. Apesar da vontade, sentia a
necessidade de me preparar para analisar suas composições e resistia aos incentivos
do Prof. Alcides, à época meu orientador, que em uma pesquisa sobre futebol.
Olhando hoje, acho que meu receio na verdade era outra coisa: no fundo, achava que
Renato Russo merecia um “trabalho grandioso”, à altura de sua importância para
mim e tantos outros jovens, que eu não era capaz de realizar. Não que hoje me julgue
apto a fazer tal “trabalho grandioso” ou que Renato Russo não mereça mais. A
diferença é que, atualmente, não tenho mais uma relação de idolatria com ele e
aprendi que pesquisar implica em arriscar. Quando decidi concorrer ao mestrado,
estava mais familiarizado com estudos históricos acerca de manifestações artísticas e
achei que era hora de realizar a pesquisa.
Foi então que começaram as maiores dificuldades. Coletar material,
analisá-lo, ouvir as canções de outra maneira, entender que relações elas tinham com
seu momento histórico, não cair nos julgamentos de valor e na armadilha das
hierarquizações, conectar as discussões teóricas com os temas encontrados nas letras,
sistematizar discussões, sanar lacunas e uma pergunta: que caminho seguir? Foi
somente a partir das críticas e sugestões da banca no exame de qualificação que ele
começou a ficar mais claro. E são nossas conclusões e impasses ao percorrê-lo que
apresentamos aqui.
39
Nesses dois anos, descobrimos que a paixão por um tema pode
realmente ajudar a perceber outras nuances, mas estudar algo com que mantemos
uma estreita relação emocional também nos faz pensar sobre nós mesmos. Isto foi algo
que muito me surpreendeu. E com dois anos de prazo não há espaço para crises...
A perspectiva que orientou nossa análise é a proposta por Antonio Candido
em Literatura e Sociedade
2
. Em princípio direcionada para a crítica literária, esta obra, que
reúne oito de seus ensaios produzidos nas décadas de 1950 e 1960, sistematiza e propõe
soluções a muitos dos problemas enfrentados por aqueles que se dedicam a discutir as
relações entre a literatura e a sociedade. Como várias destas questões não estão restritas
apenas a uma determinada manifestação artística, muito do que Antonio Candido discute
pode ser utilizado para a análise de outras obras que não as de cunho estritamente literário,
em nosso caso a música.
A primeira delas é que o externo à obra artística, ou seja, o contexto no qual
ela se insere, não explica a obra por si, da mesma forma que nenhuma manifestação
artística tem a propriedade de estar a par da realidade social. A obra de arte tem um
contexto que não lhe é totalmente externo, sendo assim necessário fundir "texto e contexto
numa interpretação dialéticamente íntegra", pois o contexto da obra "importa, não como
causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na
constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno obra de arte]"
3
. Se o objetivo
da análise é entender os diálogos entre o contexto e a produção artística, ao invés de
proceder somente a sua classificação dentro de uma determinada estrutura, como se "algo
2
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 8ª ed. São Paulo: Publifolha/T.A. Queiroz, 2000. Col. Grandes
Nomes do Pensamento Brasileiro)
3
Ibidem, p. 06.
40
maior" determinasse seus limites, é mais enriquecedor entendê-la enquanto socialmente
constituída. Perceber de que maneira determinados elementos, em princípio externos a ela,
participam de sua estrutura e coerência interna.
Nesse sentido, os fatores "externos" interessam para a análise do objeto
artístico na medida em que se relacionam a ele. Na definição de quais são estes fatores a
obra em estudo tem papel central, sendo que é ela que nos “indica”, por vezes de forma
explícita, noutras implícita, com o que está relacionada. Cabe a nós, por outro lado,
fazermos os recortes pertinentes aos objetivos almejados.
Antonio Candido, para exemplificar essa perspectiva de análise, cita a
romance Senhora de José de Alencar. O assunto central do livro é a compra de um marido:
[...] essa compra tem um sentido social simbólico, pois é ao mesmo tempo
representação e desmascaramento de costumes vigentes na época, como o
casamento por dinheiro. [...] Se, pensando nisto, atentarmos para a composição de
Senhora, veremos que repousa numa espécie de longa e complicada transação
com cenas de avanço e recuo, diálogos constituídos como pressões e concessões,
um enredo latente de manobras secretas -, no correr da qual a posição dos
cônjuges se vai alterando. Vemos que o comportamento do protagonista exprime,
em cada episódio, uma obsessão com o ato de compra a que se submeteu e que as
relações humanas se deterioram por causa dos motivos econômicos. A heroína,
endurecida no desejo de vingança, possibilitada pela posse do dinheiro, inteiriça a
alma como se fosse agente duma operação de esmagamento do outro por meio do
capital, que o reduz a coisa possuída.[...] Se o livro é organizado em torno desse
longo duelo, é porque o duelo representa a transposição, no plano da estrutura do
livro, do mecanismo de compra e venda
4
.
Ao organizar sua obra desta maneira, José de Alencar faz dos conflitos e
dilemas de um casamento por dinheiro não apenas tema para desenvolver sua narrativa mas
também elementos constituintes da forma que ela assume, possuindo, conseqüentemente,
um papel importante na explicação da obra. Ou seja, elementos da realidade social (a
relação de compra e venda cristalizada pelo sistema capitalista, na obra representada pelo
4
Ibidem, p. 07-08.
41
casamento) e que, numa perspectiva analítica defensora da “autonomia da arte”, nada
teriam a contribuir para a análise e explicação do objeto artístico, ganham, na perspectiva
de cunho sociológico de Antonio Candido, outra significação: são fatores importantes para
a explicação da obra e explicitadores das relações desta com seu contexto. Para ele,
pretender uma análise das manifestações artísticas que tenha o caráter sociológico implica
em identificar esses elementos e compreender a maneira como eles estão “internalizados”
na obra.
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a
a
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t
i
i
v
v
o
o
5
5
.
.
Defensor da pertinência da perspectiva sociológica para a análise da arte,
Antonio Candido chama nossa atenção também para o fato de que a análise sociológica ou
qualquer outra não pode ser imposta como o "critério único, ou mesmo preferencial" para o
estudo da arte, na medida em que "uma crítica que se queira integral deixará de ser
unilateralmente sociológica, psicológica ou lingüística, para utilizar livremente os
elementos capazes de conduzirem a uma interpretação coerente"
6
.
Um outro cuidado a ser tomado na análise da obra de arte está relacionado aos determinismos advindos das interpretações históricas
ou sociológicas. Ao procedermos a relação obra e sociedade não devemos buscar, por exemplo, verificar como a produção de um
determinado artista se encaixa em um determinado processo histórico e como este "explica" tal produção. "Achar, pois, que basta
aferir a obra com a realidade exterior para entendê-la é correr o risco de uma perigosa simplificação causal"
7
.
5
Ibidem, p. 08.
6
Ibidem, p. 8-9. Nunca é demais lembrar que embora tenha concentrado seus esforços intelectuais no âmbito
da crítica literária, Antonio Candido também possui formação de sociólogo, tendo obtido o título de Doutor
em Ciências Sociais no ano de 1954 com a tese Os Parceiros do Rio Bonito (São Paulo: Duas Cidades), onde
traça um perfil sociológico de uma comunidade caipira do interior de São Paulo.
7
Ibidem, p. 13.
42
Não basta dizermos que a formação de uma cultura juvenil nos Estados
Unidos na década de 50 criou o rock'n'roll, é preciso ir além. Muito mais rico é entender
como as manifestações artísticas dialogam com o processo histórico, produzindo
interpretações e representações sobre o contexto no qual se inserem.
Outra questão matizada por Antonio Candido é a definição de arte. Do seu
ponto de vista, "arte é um sistema simbólico de comunicação inter-humana"
8
, com
pressupostos estéticos, alargando significativamente o rol das manifestações artísticas.
Entender a arte como tal, implica em dizer que um produtor e um receptor de uma
mensagem, respectivamente: o artista, o seu público e a obra. Para que esse sistema
simbólico de comunicação se efetive, autor, obra e público precisam fazer parte de um meio
onde o significante (a obra) adquira significado, que não necessariamente precisa ser aquele
pensado ou pretendido pelo artista. Para tanto, autor e receptor devem fazer parte de um
universo cultural onde possuam traços culturais comuns. Do contrário, a mensagem não faz
sentido ao receptor e o processo comunicativo o é efetivado e, conseqüentemente, a arte
não se realiza. E embora autor, obra e público tenham especificidades nesse processo
comunicativo, que é "integrador e bitransitivo por excelência"
9
, não estabelecem entre si
uma relação hierárquica ou com papéis determinados. A obra não é mais importante que o
autor ou o público, que por sua vez não é necessariamente aquele vislumbrado pelo autor,
8
Ibidem, p. 20.
9
Ibidem, p. 21.
43
que por seu turno não pode ser visto como a "voz definitiva" acerca de sua produção, e
assim sucessivamente. Apesar de podermos, analiticamente, privilegiar uma ou outra parte,
isto não significa que possamos hierarquizar ou mesmo desconsiderar qualquer destes
momentos da produção artística.
Em sociedades complexas como a nossa, as variantes dos traços culturais do
público são tamanhas, a ponto de permitirem por exemplo que uma canção cantada em
árabe ser sucesso num país de língua portuguesa e tradição cultural bastante distinta, a
exemplo do Brasil
10
. Evidentemente, o desenvolvimento da indústria cultural influi
acintosamente na produção de significados - que na verdade são simulacros (como nas
canções de Khaled, onde a compreensão da mensagem presente na canção quando da sua
produção é claramente afetada pelas diferenças lingüísticas) - ou de processos de
resignificação a partir dos quais se pode produzir algo novo, sendo a constituição de um
rock marcadamente brasileiro nos anos 80 um bom exemplo disto.
Ainda assim, persiste em nós reações de estranhamento frente a
manifestações artísticas pertencentes a universos culturais diferentes do nosso. E elas nem
precisam ter suas origens numa nação indígena ou africana qualquer. Basta lembrarmo-nos
de nossas reações, ouvintes tão acostumados às musicas estruturadas na tonalidade, frente
às peças dodecafônicas e suas melodias atonais, nas quais o conceito de belo não está
associado ao "perfeitamente harmonioso" das composições tonais. Algo de consenso no
debate acerca da cultura é o fato de que ela não é única, na medida em que cada indivíduo
10
Fazemos aqui referência ao sucesso recente no Brasil do marroquino Khaled que, cantando em árabe,
freqüentou paradas de sucesso, pistas de dança, FMs e programas de auditório no país durante 1999 e 2000
com a canção "El Arbi". Há que se lembrar, todavia, o fato de embora a letra ser em árabe, o arranjo das suas
canções não está muito distante da média dos arranjos "pops" cantados em língua estrangeira
(majoritariamente em inglês), aos quais nossos ouvidos já estão bastante familiarizados. Assim, se por um
lado Khaled é para nós algo exótico, por outro já nos é bastante familiar, o que ajuda a entender a sua
aceitação por aqui, apesar de não ser a única razão.
44
relaciona-se de maneira particular com seu sistema cultural. Mesmo diante de toda a
padronização cultural pretendida em uma sociedade de massas e globalizada, a
possibilidade da resignificação e da reelaboração não foi aniquilada de existir e,
conseqüentemente, universos culturais distintos continuam a existir.
De todo modo, um dos grandes nós do pensamento contemporâneo diz
respeito à circulação das manifestações culturais. O conceito de indústria cultural é,
ao mesmo tempo, um artifício de esclarecimento e complicação quando o objetivo é
entender como se tal circulação na contemporaneidade. Esclarece na medida em
que nos ajuda a entender novas configurações que a produção e difusão cultural
assumiram no século XX; complica por nos induzir a diminuir a importância do
momento da recepção no processo da circulação da cultura.
Formulado pelos frankfurtianos Theodor Adorno e Max Horkheimer
11
, tal
conceito em linhas gerais significa a produção da cultura a partir de pressupostos
industriais, na sociedade de massas. Nela, a cultura passa a ser racionalizada e concebida
como uma mercadoria cultural e, conseqüentemente, submetidas à lógica da administração
e da economia do sistema capitalista. Nos estudos sobre cultura, indústria cultural tem sido
usado também como sinônimo de toda a estrutura organizacional dessa produção cultural
para a obtenção de lucros (meios de comunicação, técnicas, agentes, artistas, etc.). Para nós
é um conceito muito importante, dada a intrínseca relação entre o rock e os meios de
produção e difusão da cultura de massas.
Uma das características do conceito, principalmente nos textos de Adorno, é
a virulência com que se critica a diluição da unicidade da arte em contraposição à sua
11
Sua primeira aparição nestes termos foi na obra Dialética do Esclarecimento (Rio de Janeiro: Zahar, 1985),
cuja primeira edição é de 1941.
45
reprodução em larga escala. Nos anos 30, momento no qual foram desenvolvidas as bases
do conceito, Adorno e Horkheimer estavam estarrecidos com a valorização da tecnologia
no processo de criação, o impressionante crescimento das indústrias do cinema e da música,
assim como a utilização pelo nazismo do cinema, algo determinante na maneira ácida como
criticavam a sociedade.
Sem dúvida, a experiência do nazismo, que levou os dois autores a se
expatriarem, contribuiu para o desenvolvimento de suas maneiras de
pensar. Tanto na Alemanha, quanto na Itália (onde as bases do fascismo
serviram em seguida ao desenvolvimento do nazismo germânico), o grande
capital promovia a expansão industrial, propiciando um verdadeiro culto
da tecnologia, considerada a expressão máxima da inteligência humana.
Ora, o sucesso tecnológico da Alemanha, que se afirmara na invasão da
França e no bombardeio da Inglaterra, dependia de uma rígida disciplina
que, das fábricas, se expandira para toda a sociedade, num controle
rigoroso de toda vida social por um grupo instalado no poder. Para Adorno
e Horkheimer, o que chamaram de grande capitalismo’ constituía o
fundamento que possibilitava a ação desse grupo, cujo modelo se
expandia e envolvia as instituições sociais
12
.
Sob esta nova disciplina as manifestações artísticas assumiam novas
características. Estavam sob a orientação da relação capital
trabalho, das suas possibilidades de lucro no mercado, significando
um desvirtuamento do sentido original da arte recusado por Adorno e
12
PUNTERMAN, Paulo. Indústria Cultural: A agonia de um conceito. São Paulo: Perspectiva, 1994, p. 13.
46
Horkheimer
13
. Adorno, por exemplo, denuncia o caráter fetichista
assumido pela música, resultando numa perda da aura da obra de arte
e a alocação do seu significado fora dela, como no caso da
valorização dos cantores e sua transformação numa espécie de grife
em detrimento das canções em si. Ao recusar tal inversão diz:
As vozes dos cantores constituem bens sagrados de valor igual a uma marca
de fabricação nacional. Como se as vozes quisessem vingar-se disto,
começam a perder o encantamento dos sentidos em cujo nome o
tratadas. Na maioria dos casos, soam como imitações dos arrivistas, mesmo
quando elas mesmas são arrivistas
14
.
Dos esforços intelectuais para compreender estas transmutações é que surge
o conceito de indústria cultural. A escolha dos termos visa demonstrar a síntese aparente
entre mundo da civilização e mundo da cultura estabelecida pela sociedade de massas, que
mascara as contradições e dificulta a síntese efetiva. Do ponto de vista marxista, a
sociedade burguesa mascara a distinção existente entre mundo da cultura e mundo da
civilização, sendo a solução para tal distinção a síntese, no sentido dialético, entre estes
dois mundos. Na medida em que a ntese presente na indústria cultural não visa a
transformação e sim a manutenção de um determinado modelo, ou a “afirmação” nos
termos de Adorno, trata-se de uma síntese aparente. Na formulação deste conceito, Adorno
13
“Adorno e Horkheimer acreditavam que, em sociedades antigas, as artes nasciam espontaneamente do
povo; na sociedade dominada pela organização empresarial de grande porte, apagava-se esta forma de
criar”. (PUNTERMAN, Paulo. Op. cit., p. 16).
47
e Horkheimer aproximaram duas perspectivas teóricas que, para Paulo Punterman, são
bastante díspares: a marxista e a hegeliana.
O respeito pelos dons intelectuais e pelo talento artístico, o medo da uniformização
que a produção em massa trazia à diversidade cultural, produziram em Adorno e
Horkheimer a aproximação entre duas posições filosóficas que eram
profundamente diversas. Enquanto, para Marx, a estrutura econômica da
sociedade era a base real sobre a qual se elevavam as superestruturas expressas
pelas formas de consciência social e espiritual, para Hegel, ao contrário, essa base
era representada pela idéia, que unia o conceito e a objetividade por meio da
dialética, de tal modo que todo o real continha e exprimia a idéia. Nada, portanto,
mais díspar do que essas duas concepções de realidade: para Hegel, ela estava
profundamente imbricada na idéia, que constituía a base determinante da evolução
histórica, para Marx, ao contrário, essa evolução só era alcançada pela luta entre
formas de produção sucessivas no tempo
15
.
Assim, Adorno e Horkheimer analisavam a produção cultural de um ponto
de vista marxista e apontavam como alternativa uma saída de inspiração hegeliana. Ou seja,
analisavam a produção dos bens culturais como parte integrante da relação capital-trabalho,
identificando nessa participação o aniquilamento do pressuposto estético-cultural, que se
não deixava de existir, passava a um papel coadjuvante, apontando que a solução para a
libertação da cultura dessa relação não teria como nascedouro a luta entre a produção
industrial da cultura e outras formas (ou seja, da dinâmica social), mas deveria partir da
idéia. Não acreditavam que a luta social pudesse propiciar alternativas à produção industrial
da cultura porque as formas que se propunham alternativas, de alguma maneira, estavam
ligadas àquilo que propunham ser opção, dada a simbiose obtida na sociedade de massas
entre as forças produtivas e relações sociais de produção. Dessa forma, as massas eram
estéreis quanto a existência de um potencial revolucionário, sendo a única alternativa a
14
ADORNO, Theodor. “O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição”. In: GIANOTTI, José Arthur
(Org.). Adorno. São Paulo: Abril Cultural, 1975, p. 180. (Col. “Os Pensadores”)
15
PUNTERMAN, Paulo. Op. cit., p. 12-13.
48
idéia, a razão pura, que por sua vez deveria ser separada da realidade social para que, uma
vez livre das contaminações conservadoras, pudesse apontar alternativas. Caso não fosse
separada do processo social em curso, a razão, enquanto pensamento crítico, seria, no
limite, levada à destruição.
É exatamente nesta valorização do pensamento isolado da realidade social
que está o ponto mais criticado do pensamento de Adorno e Horkheimer, em especial do
primeiro. É nele que se concentra rgen Habermas, ex-aluno de Adorno e um de seus
principais críticos. Habermas não concebe que a razão possa ser separada do social, nem
muito menos que ela possa ter algum sentido transformador centrada em si mesma. Na sua
visão, a insistência em tal separação é sintoma de resignação quanto à dinâmica social:
Quem insiste num paradoxo num local em que a Filosofia um dia se estabeleceu
com suas fundamentações últimas assume não apenas uma posição desconfortável;
ele pode preservar essa posição, se é possível tornar pelo menos plausível que
não haja saída
16
.
Outro ponto bastante criticado é a concepção de que as massas, tomadas
como um conjunto homogêneo, o passivas na relação com os produtos culturais e
alienadas quanto ao contexto social no qual estão inseridas. Dessa forma, aceitam as
imposições da indústria cultural, que por sua vez tem interesse na uniformização crescente
a fim de facilitar seu objetivo maior: a obtenção de lucro. Afinal, quanto mais uniforme for
o desejo dos consumidores, menor será a necessidade de diversificar os investimentos para
a produção dos bens culturais. A este respeito, escreve Adorno:
16
HABERMAS; Jürgen. Discurso Filosófico da Modernidade. APUD: DUARTE, Rodrigo. Adornos. Nove
ensaios sobre o filósofo frankfurtiano. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1997, p. 136.
49
Diante dos caprichos teológicos das mercadorias, os consumidores se
transformaram em escravos dóceis, os que em setor algum se sujeitam a outros,
neste setor conseguem abdicar de sua vontade, deixando-se enganar totalmente
17
.
Porém, sobre o conceito de massa de Adorno e Horkheimer é bom estarmos
atento ao fato de que
o conceito de massa, tal como foi cunhado na época desses autores e que
representava uma coletividade monolítica e desumanizada, cuja ‘cabeça’ e cujos
gostos foram formados pelas técnicas industriais de comunicação, não tinha sido,
na verdade, nem mesmo no momento em que viveram os dois autores,
representativo do que realmente existia em qualquer sociedade do mundo. Com
efeito, a noção de massa apagava toda a existência de diferenciações no interior
das coletividades, como se não houvesse divisões em camadas sociais, em grupos
étnicos, em setores sócio-profissionais, em variações de instrução, em distinções de
gênero
18
.
Ao verem a sociedade contemporânea como uma massa uniforme e passiva,
17
ADORNO, Theodor. Op. cit., p. 182.
18
PUNTERMAN, Paulo. Op. cit., p. 19.
50
estes autores, na sua perspectiva totalizante, desconsideram as diferenciações sociais que,
embora tênues em alguns casos, continuam a existir. Trabalhadores fabris e camponeses, a
despeito de suas congruências, têm especificidades que os tornam agentes sociais distintos.
Da mesma forma, a indústria cultural não pode ser vista como homogênea, sem
perspectivas de atuação diferenciadas, na medida em que ela “não uniformiza o sentido do
povo e também não coloca seus produtos indistintamente ao alcance de qualquer um”
19
.
Dado o impressionante crescimento da produção de bens culturais dentro de
pressupostos industriais e a velocidades com que eles eram colocados em circulação,
interferindo de fato em outras produções culturais, Adorno e Horkheimer acabaram
superdimensionando o poder da indústria cultural. Ao apontarem para o fato de que no
âmbito da indústria cultural o objeto estético foi transfigurado em mercadoria, que o sujeito
a quem se dirige tal objeto estético é, em última instância, um consumidor e ainda que o
produtor do objeto estético (o “artista”) nada mais é do que uma engrenagem de um
complexo sistema, estão absolutamente corretos. Contudo, pecam ao não conceberem a
mercadoria na qual se torna o objeto estético ou cultural como uma mercadoria detentora de
singularidades em relação à mercadoria destinada à satisfação das necessidades materiais.
Como ressalta Mario Fernando Bolognesi,
como valor de troca, os produtos culturais não se distinguem dos materiais, pois
ambos têm a mesma origem e resultam de um idêntico processo reificado. Contudo,
no que se refere ao uso, há diferenciações que necessitam ser acentuadas. A
produção material, em princípio, destina-se à satisfação de necessidades de
sobrevivência e de bem-estar; a simbólica, à satisfação do gosto, do prazer estético
e do desejo
20
.
19
Ibidem, p. 20-21.
20
BOLOGNESI, Mário Fernando. “A Mercadoria Cultural”. Trans/Form/Ação. São Paulo, nº 19, 1996, p. 82.
51
Nesse sentido, a mercadoria cultural tem especificidades. Um quadro, por
exemplo, não é puramente a demonstração e aplicação de uma dada técnica com vistas a
um valor de troca no mercado, tal qual a peça de um automóvel ou um alimento
manufaturado. O quadro pode até ter tal característica, como de fato têm as reproduções em
série cujo objetivo é decorar ambientes pura e simplesmente. Todavia, no aspecto teórico,
não se pode desprezar a possibilidade da pintura enquanto uma linguagem para
representação do mundo e de intervenção nele, afinal a produção cultural não é, em
princípio, utilitária. Se a indústria cultural tornou-a assim, não podemos perder do horizonte
a existência de formas de produção que fogem à sua lógica, seja na totalidade ou em parte.
Os atos culturais são representações que nascem das relações de produção e
contribuem para a sua reprodução e transformação. Isto é, carregam um potencial
utópico quando imaginam e criam possibilidades de outras relações
21
.
Colocar toda e qualquer obra de arte sob a gica da mercadoria como fruto
de um trabalho alienado, resulta num aniquilamento de suas possibilidades de, caso haja
intenção, desenvolver formas utópicas e/ou críticas de exploração das faculdades humanas
que não se restrinjam à esfera da produção econômica.
Ela [a obra de arte] pode ser crítica, ainda que ocorra por intermédio da indústria
cultural e se manifeste por intermédio dos meios de comunicação de massas. Se o
capitalismo faz uso da arte e da cultura para solidificar o conjunto social, que
relevar que ele não detém o domínio pleno e absoluto do ato de criação, embora
detentor dos meios de produção da arte dominante. [...] Assim, não parece
adequado reduzir toda a produção cultural da época da economia de mercado a
produtos de mercado
22
.
21
Ibidem, p. 82.
22
Ibidem, p. 83 e 84.
52
Se no âmbito da propriedade privada e do trabalho alienado a mercadoria é
uma alegoria estática e concisa do capitalismo, no tocante à esfera cultural, essa
alegorização é dinâmica. Os bens culturais têm a possibilidade de restituírem aos sujeitos
sociais sua participação ativa no embate social, de atuarem como possibilidades de
mudança e transformação. Uma outra discussão é a efetivação ou não dessas possibilidades
em determinadas conjunturas.
No que diz respeito à indústria cultural, temos de estar atentos para o fato de
que, a despeito de sua hegemonia, outras formas de produção cultural subsistem, num
embate contínuo de vitórias e derrotas. E se tais formas de “resistência” não destituem-lhe,
todavia, a hegemonia, não podem ser, por outro lado, desconsideradas.
[...] ao lado dela [a produção industrial de bens culturais], outras tantas relações
ainda permanecem vivas, desde as artesanais, levadas a efeito por produtores
independentes, que põem à venda as suas obras, até as patronais, sem fins
lucrativos, mantidas por instituições privadas ou públicas , ou mesmo as
governamentais, em que as práticas culturais desenrolam-se no interior de
instituições estatais, ou a partir delas
23
.
Além disso, não se pode menosprezar a participação dos sujeitos no
“consumo” dessa produção artística. De acordo com a subjetividade de cada um, as
reelaborações a que a obra estética está sujeita o inúmeras. A recepção não é passiva e
sim criativa e, embora existam comportamentos e percepções comuns nesse ato, as
variáveis reabrem ad infinitum as possibilidades.
A despeito disso, por uma conjunção de fatores, dentre os quais está
certamente a capacidade argumentativa de Adorno e Horkheimer, a perspectiva
23
Ibidem, p. 84.
53
“apocalíptica”, como bem denominou Umberto Eco
24
, com relação a indústria cultural
obteve muitos adeptos, críticos das manifestações culturais relacionadas a ela. Uma dessas
manifestações foi o rock.
Enquanto um gênero musical surgido nos EUA em meados do século XX, as
ligações do rock com a sociedade de massas são intrínsecas. Somado ao fato de que o seu
crescimento e afirmação na sociedade esteve diretamente ligado ao crescimento da
indústria fonográfica em todo o mundo e à criação de um mercado consumidor jovem,
temos elementos suficientes para os apocalípticos execrá-lo. Conforme ressalta Paulo
Punterman, é nesta perspectiva que Adorno e Horkheimer vêem a criação de uma música
marcadamente jovem. Para eles,
existia nos produtores uma consciência de que a demanda dos jovens não era mais
a de seus pais, o que os levou a um esforço deliberado em satisfazê-los. Não
pareciam temer a rebeldia com que estavam lidando. Agiam com inteira segurança
para dominar uma nova parcela da população, na qual a guerra, terminada havia
pouco, produzira um abalo que souberam diagnosticar, e cujo aparecimento
dominaram pela criação de uma nova música e um novo herói [Elvis Presley]. Essa
criação estreitamente ligada à tecnologia de ponta, num mundo que continuava
fascinado pelas novas descobertas tecnológicas, parece revelar um conhecimento
de psicologia social e um diagnóstico dos descontentamentos reinantes entre os
jovens que seria interessantíssimo foco de outras pesquisas, para corroborar ou
não estas sugestões
.
25
É nesta trilha que segue Tupã Gomes Corrêa ao analisar as relações entre
rock, moda, mídia e consumo
26
. Assim como os pensadores frankfurtianos, entende que os
consumidores são passivos e suas reações frente aos produtos da indústria cultural são pré-
determinados por ela.
24
ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados.2º ed. São Paulo: Perspectiva, 1979.
25
26
CORRÊA, Tupã Gomes. Rock, Nos Passos da Moda. Mídia, consumo X mercado cultural. Campinas (SP):
Papirus, 1989.
54
O abandono do consumidor ao fluxo daquilo que determina e condiciona seu
acesso ao mercado, sem o menor questionamento, indica uma situação que reflete
sua passividade em todo o processo. [...] Particularmente, diríamos que o sistema
capitalista gera não apenas produtos-padrão mas principalmente consumidores-
padrão. Por meio de uns ou de outros, não importa, sempre atinge seu objetivo: a
geração de lucros, também em escala. [...]. Assim, quando um jovem passa a usar
as mesmas cores que seu ídolo do rock, está apenas acrescentando um conteúdo
material (a roupa) ao estilo de música que está ouvindo. E isso pode acontecer com
qualquer outro elemento, desde que esteja associado aos motivos pelos foi
adquirido e está sendo usado. No fim do processo, todavia, descobre-se que até
mesmo a ruptura dos padrões existentes, originando o estilo de música que se ouve,
acaba sendo convertida em um padrão de consumo
27
.
Como se vê, ele deixa claro que o rock é apenas mais um bem de consumo.
Como tal, não pode ser portador nem mesmo de alguma pretensão de contestação, pois
nasce e age dentro de uma esfera que busca a manutenção de um determinado modelo de
organização. Alguns autores, a exemplo de José Ramos Tinhorão, chegam inclusive a
associar o rock e o imperialismo norte-americano. No seu ponto de vista, o aporte do rock
no Brasil foi efeito da “invasão do internacionalismo programado pelas multinacionais
28
.
Reduzir o rock a tais perspectivas demonstra um olhar limitado acerca da
questão, que carece de perspectiva sociológica. Esta ajudaria, antes de mais nada, a
perceber que “inexiste produção cultural independente de uma demanda social,
responsável pela própria produção”
29
. A existência de uma demanda já é sintoma de que a
alegada passividade do público consumidor não existe. A maneira como a indústria cultural
procura dominar e determinar esta demanda é uma outra discussão. Entretanto, se tivermos
como pressuposto que a relação entre produtores culturais e receptores é unilateral,
27
Ibidem, p. 96-97.
28
TINHORÃO, José Ramos. História Social da Música Popular Brasileira.o Paulo: Editora 34, 1998,
p.324.
29
HUET, ION, MIEGE & PERON. Capitalisme et Industries Culturelles. APUD: PUNTERMAN, Paulo. Op.
cit., p. 26.
55
orientada dos primeiros para os últimos, seremos levados a caminhos repletos de paradoxos
e incoerência que até podem render muitas elucubrações teóricas, mas poucas contribuições
efetivas para a compreensão do complexo ato de recepção. Historiadores e pensadores a
delinearam têm feito descobertas bastante interessantes e apontado que muitos fatores
concorrem neste momento, tais como a maneira pela qual as pessoas têm acesso às obras e
as tentativas de autores, produtores, editores e outros agentes de direcionarem a recepção
(formatos, utilização da imprensa, publicidade, etc.), que em essência é criadora na medida
em que cada receptor apropria-se dos objetos culturais de acordo com sua subjetividade
30
.
Além disso, não podemos perder a dimensão de que dentro dos diversos
mercados da indústria cultural, a dinâmica entre seus agentes é constante. Ou seja, dentro
do mercado fonográfico por exemplo, existem disputas entre cantores e diretores das
gravadoras, entre artistas de estilo semelhantes e diferentes, da mesma forma como há
confluências de pensamento, que podem ser precedidas de disputas, que por sua vez podem
ter sido incentivadas com objetivos os mais variados, como a venda de discos ou a criação
de uma determinada imagem em torno de um artista
31
.
30
Podemos citar entre os historiadores os trabalhos de Roger Chartier (A História Cultural: Entre Práticas e
Representações. Lisboa: Difel, 1990; A Ordem dos Livros. Leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os
séc. XIV e XVII. Brasília: Ed. da UnB, 1994), Robert Darnton (O Beijo de Lamourette. Mídia, cultura e
revolução. São Paulo: Cia das Letras, 1990), Carlo Ginzburg (O Queijo e os Vermes. São Paulo: Cia das
Letras, 1987), Arnaldo Daraya Contier (Brasil Novo. Música, Nação e Modernidade: Os Anos 20 e 30. São
Paulo, 1988. Tese (Livre Docência), FFLCH, USP), Rosangela Patriota (Vianinha: Um dramaturgo no
coração de seu tempo. São Paulo: Hucitec, 1999) e Alcides Freire Ramos (O Canibalismo dos Fracos:
História/Cinema/Ficção. Um estudo de “Os Inconfidentes” (1972, Joaquim Pedro de Andrade). São Paulo,
1996. Tese (Doutorado em História), FFLCH, USP). De outras áreas, Umberto Eco (A Obra Aberta: Formas e
indeterminação nas poéticas contemporâneas. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1971) e Wolfgang Wise (O Ato
de Leitura. São Paulo: Editora 34, 1996. 2 Vols.) são dois dos autores contemporâneos mais respeitados.
31
Abordam esses aspectos os trabalhos de Marcia Tosta Dias, Os Donos da Voz. Indústria fonográfica
brasileira e mundialização da cultura (São Paulo: Boitempo Editorial, 2000) e Rita Morelli, Indústria
Fonográfica. Um estudo antropológico (Campinas: Ed. da UNICAMP, 1991).
56
A história do rock é pródiga nesses exemplos, mas não é em função deles
que iremos entender que tudo não passa de um grande jogo cujo objetivo é obter lucro. Da
mesma forma que tantas outras manifestações, o rock pode sim ter como componente o
elemento contestador, nem sempre expresso da mesma forma, podendo estar nas letras,
músicas, comportamentos ou em nada disso. E mesmo que não tenha tal elemento, não
deixa de ser uma manifestação cultural legítima apenas porque é produzido na esfera da
indústria cultural.
Ser de vanguarda, ter conteúdo contestador ou revolucionário não podem ser
características indispensáveis para que uma manifestação artística seja valorizada,
tampouco tais atributos podem ser entendidos como determinantes na participação das
pessoas nessas manifestações.
Da mesma forma que os primeiros filmes eram efetivamente mais revolucionários
que o cubismo, os empresários do rock transformaram o cenário musical mais
profundamente do que as vanguardas ditas clássicas ou de free jazz
32
.
Fugir dessas análises esquemáticas é fundamental para que o rock (e as
manifestações artísticas de maneira mais ampla) seja compreendido à luz do contexto em
que está inserido. Seu caráter contestador nos Estados Unidos nos anos 50 não é o mesmo
do rock feito pelos punks ingleses praticamente 20 anos depois. Enquanto em seu
nascimento a rebeldia estava no comportamento sexualizado e na postura
descompromissada frente a vida, na valorização dos ritmos negros e na utilização da
estética urbana, os jovens súditos da rainha chocam por meio de uma estética agressiva que
substitui o brilho e o colorido pelo preto e os corpos perfurados por alfinetes; pela
32
HOBSBAWN, Eric. História Social do Jazz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 20.
57
contestação ao glamour ressaltando o decadente, o simples e o primitivo; pelo uso da
técnica instrumental de três acordes em contraste ao refinamento técnico do “progressivo”.
Da mesma forma, a possibilidade que rios grupos e artistas tiveram de
realizar experimentações em estúdios, fruto do desenvolvimento tecnológico e do retorno
financeiro do rock (afinal, qual empresa investe, “experimenta”, algo em que não veja
possibilidade de retorno?), não pode ser desprezada porque está diretamente implicada com
a expansão do mercado fonográfico. Se é verdade que esta possibilidade poderia existir por
outros caminhos, também é verdade que ela foi materializada num espaço de tempo
relativamente curto por este caminho. Os resultados obtidos, por exemplo, pelos Beatles em
seu disco Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band, de 1967
33
, abriram perspectivas de
gravação e produção musical difíceis de serem imaginadas sem esse desenvolvimento
tecnológico.
Enquanto uma manifestação artística, a música é uma representação
elaborada a partir do arranjo de elementos culturais, estéticos e técnicos. No âmbito da
difusão massificada, dentre os aspectos técnicos estão os de gravação e reprodução do som.
Na medida em que tais aspectos passam a ser empregados também numa perspectiva
estética (e esta foi uma das contribuições dos Beatles com Sgt. Peppers), a própria postura
do artista frente a eles muda. Quando nada, passam a estar mais informados em relação às
diferenças da utilização do microfone A ou B para a gravação ou realização das
apresentações, da diferença de gravar em 4, 8, 12 ou 24 canais de som, etc.
Buscando ir um pouco mais além nessa discussão acerca do rock e a
indústria cultural é que tratamos no primeiro capítulo, “Rock, Rebeldia, Consumo” da
33
A esse respeito, o relato do produtor da banda, George Martin, em seu livro Paz, Amor e Sgt. Pepper. (Rio
de Janeiro: Relume-Dumará, 1995), é bem informativo.
58
contradição que marca essa relação praticamente desde a origem. Em diversos momentos
vários estilos do rock insurgiram contra o estabelecido, inclusive dentro do próprio rock,
sendo logo depois incorporado e ditando padrões. Partindo da década de 1950, abordamos
como isso ocorre em alguns momentos nos Estado Unidos e Inglaterra, países que estão no
centro da difusão dos padrões da cultura jovem, e no Brasil, tendo como eixo a rebeldia e o
consumo.
No capítulo II, “A Legião Urbana nos Meandros do Pós-Modernismo:
Repensando Renato Russo Enquanto Poeta da Desilusão e Desesperança”, refutamos as
análises que, a partir de pressupostos pós-modernistas, identificam na poética de Renato
Russo desilusão e desesperança quanto à possibilidade de futuro, por entendemos tratar-se
de um olhar particularizado sobre as canções e, também, uma concepção restrita do que seja
o pós-modernismo. Na primeira parte, traçamos um panorama do debate acerca do pós-
moderno, de modo a mostrar como tal discussão complexa e dissensual é tomada apenas
sob alguns aspectos pelos autores que analisam as letras da Legião Urbana, com os quais
debato na segunda parte do capítulo.
Em “As Quatro Estações da Legião Urbana”, expomos nossa análise das
canções produzidas entre 1978 e 1989, registradas nos quatro primeiros discos da banda,
Legião Urbana (1985), Dois (1986), Que País é Este 1978-1987 (1987) e As Quatro
Estações (1989). O argumento é que entre 1978 e 1989, as canções saem de um ponto de
partida punk, no qual há descrença em relação ao futuro, e, já em 1984 quando da gravação
do primeiro LP, estão em processo de repensar, motivado pela própria situação do jovem
naquele momento. A esperança no futuro existe, mas não é claro o tipo de futuro que se
deseja e que caminhos percorrer para alcançá-lo. Em Dois, começam a ser delineados
alguns aspectos que ficarão explícitos em As Quatro Estações, onde as canções compõem
59
um universo de representações do qual é possível identificar o desejo de um futuro
harmonioso, em que os problemas do presente já estejam resolvidos. A descrença no futuro,
de “Geração Coca-Cola”, que ironiza a capacidade dos “filhos da revolução” de
construírem alguma coisa, cede lugar à idéia de que se cada um fizer a sua parte, “amando
o seu próximo com a si mesmo”, um amanhã melhor será possível.
A análise privilegiou as letras sem, no entanto, desconsiderar os aspectos
musicais. A opção foi feita porque a partir delas é que a Legião Urbana foi alçada à
condição de “porta–voz” de uma geração e tornou-se a banda com maior vendagem no rock
nacional. Ao estudar tais letras, nosso intuito foi contribuir para que um período tão
próximo e ao mesmo tempo tão pouco desconhecido, a década de 1980, pudesse ser melhor
entendido do ponto de vista histórico, assim como o rock, uma de suas manifestações
artísticas mais destacadas e igualmente obscura.
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O rock’n’roll foi a novidade musical da década de 1950, arrebatando num
primeiro momento a juventude norte-americana. Por ter em sua base rítmica a pop music, a
country and western music e o rhythm and blues, o rock é considerado um estilo
miscigenado: de um lado as características “brancas” do pop e da country music; no outro o
“sangue negro” do rhythm and blues. Em se tratando da sociedade americana, isso significa
60
não apenas uma junção de características musicais mas também políticas e
comportamentais. Dessa maneira, o lado “branco”, por suas relações, ainda que mediadas,
com a ideologia WASP (White, anglo-saxon and protestant), é marcado pelo
conservadorismo de artistas adeptos do american way of life do pop e dos pequenos
proprietários e trabalhadores rurais que compunham o público da country music
34
.
Da parte negra vieram as características mais “contestadoras”: a
sensualidade, o ritmo mais acelerado e a inventividade musical. Dela também veio o nome:
rock’n’roll, “união de duas gírias, rock (sacudir) e roll (rolar), com alusão aos
movimentos sexuais”
35
. Alguns autores, como Paulo Chacon, chegam a considerar estas
características como as bases do rock: “É ali [na vertente negra] que vamos buscar, quase
que exclusivamente (e só digo o quase por espírito científico) as origens corpóreas do
Rock”
36
. Tal preponderância às origens negras, no entanto, tem de ser relativizada. Embora
as delimitações entre a cultura negra e a branca sejam bem demarcadas na sociedade
americana, o primeiro grande ídolo do rock foi um branco do interior com voz grave de
negro e dança sensual, Elvis Presley, e o próprio rhythm and blues já possuía ligações com
34
CHACON, Paulo. O Que é Rock? São Paulo: Brasiliense, p-22-25. Entre os representantes da pop music
citados por Chacon estão dois ícones mundiais da música norte-americana: o cantor Frank Sinatra e o maestro
Ray Connif.
35
CARMO, Paulo Sérgio do. Culturas da Rebeldia. A juventude em questão. São Paulo: SENAC, 2001, p.
30.
Com o tempo, o termo rock’n’roll passou a designar apenas o movimento relativo à década de 50, ficando sua
abreviatura, rock para designar o estilo.
36
Ibidem, p. 24. Leitura semelhante é feita por Antonio Carlos Brandão e Milton Fernandes Duarte. Para eles
“o rock´n´roll funcionou como uma inversão psicológica na relação dominador (branco)/dominado(negro)
que prevalecia na sociedade norte-americana. [...] essa criação de base negra (blues e rhythm and blues)
será uma mercadoria estilizada pelas grandes gravadoras e vendida ao público branco a partir de meados da
década de 50”. (BRANDÃO, Antonio Carlos; DUARTE, Milton Fernandes. Movimentos Culturais de
Juventude. São Paulo: Moderna, 1990, p. 20-21). Outra leitura nesse sentido é de Tupã Gomes Corrêa, para
quem “na verdade, por trás da origem negra desse gênero forte, o rock, está o espírito de protesto da raça
negra contra todas as formas de discriminação, de dominação e de proscrição a que foi submetida desde sua
chegada em território americano” (CORRÊA, Tupã Gomes. Rock: Nos Passos da Moda. dia, consumo X
mercado cultural. Campinas: Papirus, 1989, p. 49).
61
o country
37
. Além disso, se, conforme argumenta Chacon, o rock é “muito mais que um
tipo de música”
38
, um comportamento, veremos que as contribuições “brancas”, embora
não tão destacadas do ponto de vista rítmico, também são importantes para sua
compreensão. Talvez não tão “rebeldes” ou “contestadoras”, mas importantes.
Da mesma maneira como é impossível dissociá-lo das características negras,
não é possível menosprezar o papel da indústria cultural na sua difusão e caracterização
daquilo que entendemos como rock tanto hoje quanto nos anos 50. Apesar de não ter
surgido em seu âmbito (embora logo cedo tenha passado a fazer parte dela) é a partir de
suas estratégias que o nascente ritmo conquista seu extraordinário sucesso de público nos
EUA e logo em seguida no resto do mundo. Na medida em que os agentes dessa indústria
cultural detectaram a popularidade rock, não apenas as gravadoras, mas também o rádio, o
cinema e a televisão foram mobilizados, e em pouco tempo as canções ao mesmo tempo em
que sintetizavam aspirações da juventude americana constituíam-se como uma excepcional
mercadoria no âmbito do mercado cultural.
Segundo Roberto Muggiati, os locutores de rádios e animadores de bailes e
festas (os disc-jokeys ou DJs) tiveram papel fundamental na criação do rock e sua
transformação em um fenômeno de massas. Porém, argumenta, isso não é geralmente
levado em conta:
Os historiadores do rock’n’roll nem sempre lembram de incluir na galeria dos
heróis da nova música o homem que lhe deu o nome: Alan Freed, um disc-jokey
37
“O Rhythm and Blues surgiu de uma mistura do jazz, dos Spoiritual e dos Blues tradicionais americanos,
principalmente os rurais, que eram uma mescla de Blues com a chamada música regional americana
(Country, Western, etc.). Quando esses chamados Blues Rurais passaram a ser executados em guitarras
elétricas e tendo como tema o cotidiano nas cidades, ou seja, os temas passaram a ser urbanos, houve a
transformação em Rhythm and Blues, fazendo sucesso junto ao público negro”. PEDERIVA, Ana Bárbara A.
Jovem Guarda. Cronistas sentimentais da juventude. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 2000, p. 17.
38
CHACON, Paulo. Op. cit., p. 18.
62
branco, muito louco que ficaria conhecido como o pai do rock’n’roll e seria
também um de seus primeiros mártires
39
.
Apresentador de um programa de música clássica em uma rádio de
Cleveland, Ohio, Alan Freed conheceu o rhythm and blues por meio de um amigo.
Interessou-se pelo ritmo e pela possibilidade de apresentar um programa de fim de noite
dedicado a ele, no qual eram transmitidas festas e bailes embalados por canções de rhythm
and blues.
Surgiu assim, em junho de 1951, o Moon Dog Show, que depois se chamaria The
Moon Dog House Rock’n’roll Party. A canção-tema do programa era Blues for
Moon Dog, de Todd Rhodes, no meio da qual se ouviam uivos feitos pela
sonoplastia ou pelo próprio disc-jockey
40
.
Foi neste programa que Freed usou o termo rock’n’roll pela primeira vez,
baseado em um blues da década de 20 relançado naquela época: “My baby she rocks me
with a steady roll”.
A descontração do programa fez sucesso entre os jovens. Freed passou
então, a ser também um destacado promotor de festas, cujo público era majoritariamente
jovem. Ao mesmo tempo em que tornava-se uma referência para eles, Freed “incorria na
hostilidade dos adultos e das autoridades, pois eram freqüentes os distúrbios e quebra-
quebras, decorrentes principalmente da falta de espaço para abrigar o público”
41
. De todo
modo, sua popularidade entre os jovens não era abalada por isso. Pelo contrário: os
problemas com os conservadores e autoridades ajudavam. “Em seus anos de ouro, quando
39
MUGGIATI, Roberto. Rock: de Elvis à Beatlemania (1954-1966). São Paulo: Brasiliense, 1985, p.22.
40
Ibidem, p. 24.
41
Ibidem, p. 24.
63
mantinha programas também em estações de Nova Iorque, Alan Feed foi o principal
ideólogo pop da juventude americana [...]
42
.
Além dele, muitos outros DJs ganharam notoriedade entre os jovens e o ódio
da sociedade. Ainda de acordo com Muggiati, são palavras do reverendo John P. Carrol, de
Boston: [...] as maliciosas letras dos discos de rock’n’roll são um caso para os
departamentos de censura do governo. Mas a primeira trincheira de defesa deve conter os
disc-jockeys”
43
. Os DJs eram também acusados de estarem sendo pagos para, por meio das
canções, promoverem uma lavagem cerebral” nos jovens, incutindo-lhes o apreço à dança
sensual e ao rock, e o Escândalo da Payola
44
, em 1959, veio revelar que os conservadores
não estavam de todo enganados
45
. Vários DJs (Alan Freed inclusive) estavam recebendo
dinheiro e mordomias para tocarem preferencialmente alguns artistas e/ou canções,
impulsionando a venda destes, dando margem à pergunta: o público gostava daquilo que os
DJs tocavam ou estes tocavam apenas o que o blico queria? As respostas podem ser
controversas, mas da mesma forma que é difícil aceitar a alegada “lavagem cerebral”, não é
possível negar a importância exercida pelos agentes da indústria cultural na difusão não
apenas das canções como dos comportamentos que estavam associados ao rock. Todavia,
sem a base de popularidade formada pelos estilos nos quais o rock se fundamenta, o amplo
sucesso por ele obtido em todo os EUA não teria sido tão rápido.
42
Ibidem, p. 25.
43
Ibidem, p. 27.
44
Payola é o equivalente em inglês do "jabá" ou "jabaculê", o pagamento por fora” aos meios de
comunicações para a veiculação de determinadas canções, prática comum, porém geralmente negada por
empresários, produtores, artistas e gravadoras.
45
MUGGIATI, Roberto. Op. cit., p. 26.
64
Quanto aos DJs, pressionados pela sociedade marcada pelo conservadorismo
do senador Joseph MacCarthy (que até dezembro de 1954, quando o senado aprovou uma
moção de repúdio a suas ações e “decretou” o fim do macarthismo, empreendeu uma “caça
às bruxas” aos comunistas dentro do território norte-americano)
46
e do presidente (e ex-
herói de guerra) Dwight Eisenhower (1953-1960), muitos “encenaram o seu mea culpa e
destruíram publicamente os discos que veiculavam a ‘música de Satã’”
47
. Freed, depois de
ganhar muito dinheiro, acabou por morrer pobre e desempregado aos 43 anos em 1965.
Assim, se de um lado o rock trouxe reivindicações como a busca pelo
prazer e independência, a falta de compromisso, assim como a recusa a uma ordem social
já estabelecida, gerando vários conflitos geracionais”
48
, por outro, desde muito cedo
passou a fazer parte de um complexo jogo no âmbito da indústria cultural. Reforçava-se o
aspecto rebelde tão atraente para muitos jovens ao mesmo tempo que se tentava padronizar
essa mesma rebeldia, adaptando-a a formatos que possibilitassem não causar tantos abalos e
potencializar lucros. A censura à dança de Elvis Presley (apelidado de Elvis, The Pelvis por
conta do seu singular requebrar dos quadris) na televisão é apenas um dentre tantos
exemplos.
A partir de seu terceiro show na televisão, isso pelos idos de 1957, ele podia
ser focalizado da cintura para cima, que sua maneira rebolativa de dançar era
considerada obscena e sua influência sobre a juventude poderia se tornar
desagregadora
49
.
46
Sobre a perseguição aos comunistas, particularmente sobre os artistas, ver: PEIXOTO, Fernando.
Hollywood. Episódios da Histeria Anticomunista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
47
MUGGIATI, Roberto. Op. cit., p. 28.
48
PEDERIVA, Ana Bárbara A. Op. cit., p. 18.
49
BRANDÃO, Antonio Carlos; DUARTE, Milton Fernandes. Op. cit., p. 21.
65
Ao censurar a dança de Elvis, sem no entanto proibi-la, atendia-se a
sociedade conservadora tão preocupada com a sexualidade
50
sem retirar-lhe uma de suas
características. Uma ação importante, em uma estratégia que se mostrou vitoriosa
51
. Isto, no
entanto, não deve significar que o rock reduziu-se (ou ainda está reduzido) apenas à
condição de mercadoria cultural. Deve ser entendido como prática cultural engendrada num
contexto de relações de produção capitalista, no qual a cultura é mediada pela indústria
cultural e possui características de mercadoria cultural.
Foi enquanto mercadoria cultural que ele aportou no Brasil por meio do
cinema, que cumpriu importante papel em seu processo de internacionalização, não
demorando muito para desencadear práticas culturais. Com grande penetração no país na
época
52
, os filmes hollywoodianos foram os responsáveis pela divulgação dos primeiros
rocksno país. Sementes da Violência (Blackboard Jungle), filme de 1955, é considerado
o primeiro a realizar esta divulgação, pois contava em sua trilha sonora com a canção Rock
Around The Clock do grupo Bill Haley e seus Cometas, um dos destaques do então
emergente estilo americano.
53
. A rebeldia juvenil contra a sociedade conservadora
personificada no cinema em ídolos como James Dean
54
encontrara seu representante
50
“[...] no cinema, os americanos ainda viviam sob o rígido código Heys, que proibia beijo que durasse mais
de três segundos e exigia camas separadas até para os casados que aparecessem dormindo” (CARMO,
Paulo Sérgio do. Op. cit., p. 33).
51
Eric Hobsbawn chega a falar no rock enquanto fonte de 80% da indústria fonográfica, o que faz dele seu
produto mais lucrativo (HOBSBAWN, Eric. História Social do Jazz. Rio de Janeiro: Paz e Terra 1990, p. 16).
52
MENEGUELLO, Cristina. Resgatando Hollywood: reflexões a partir de cartazes de cinema. In: História e
Perspectiva. Uberlândia, jul./dez. 1990.
53
PEDERIVA, Ana Barbara A. Op. cit., p. 19; CARMO, Paulo Sérgio do. Op. cit., p. 32; MUGGIATI,
Roberto. Op. cit, p. 11.; BRANDÃO, Antonio Carlos; DUARTE, Milton Fernandes. Op., cit., p. 21.
54
Ator norte-americano, James Dean foi alçado à condição de mito por seus personagens. Morto em um
acidente de automóvel em 1955 aos 24 anos, sintetizava as aspirações do jovem quanto a uma vida regida
pelo prazer sem limite e o rompimento com os padrões da sociedade adulta. Seus personagens eram
66
musical. Nesse aspecto Rock Around the Clock ganha um conteúdo altamente simbólico a
partir o filme:
[...] a música é usada também como referencial do conflito entre o professor (o
Establishment) e os alunos, numa cena altamente simbólica em que os jovens
rebeldes quebram toda a coleção de disco com que o bem-intencionado mestre
tentara iniciá-los nos encantos do jazz tradicional
55
.
Ou seja, a canção é usada como trilha sonora da contestação e mesmo
destruição de dois símbolos da cultura norte-americana (o ensino e o jazz), num explícito
ato de recusa a eles e à vida que esses jovens viriam a ter enquanto adultos “bem formados”
e apreciadores de “boa música”.
Sementes da Violência fez grande sucesso no país. A partir disso, foi
gravado o primeiro rock no Brasil, uma versão em inglês de Rock Around The Clock
cantada por uma cantora de samba-canção Nora Ney. Um fato inusitado revela qual o
propósito dessa gravação:
Nora Ney naquele momento não quis fazer uma incursão pelo rock and roll e, sim,
quando a Metro Goldwyn Mayer mandou a trilha do filme Sementes da Violência,
ela era a única artista que sabia inglês na Rádio Nacional
56
.
A intenção era potencializar o sucesso, dando lhe um toque de brasilidade e,
ao mesmo tempo, testar aqui aquele estilo com tamanho apelo de público nos EUA. O teste
foi positivo e muitos nomes da sica brasileira do período fizeram “suas” incursões pelo
rock, “como o cantor romântico Agostinho dos Santos, um cantor de guarânias e boleros,
“rebeldes” por não compactuarem com a uma lógica de vida onde os desejos fossem subordinados ao
trabalho, às tradições familiares e à acumulação monetária indispensável para a garantia dos padrões de
consumo da vida adulta. Seu filme mais significativo nesse aspecto é Juventude Transviada (Rebel Without a
Cause), de 1955.
55
MUGGIATI, Roberto. Op. cit., p. 11.
56
PEDERIVA, Ana Bárbara A. Op. cit., p. 27.
67
Carlos Gonzaga, Betinho, um dos primeiros guitarristas brasileiro, e outros”
57
. Com isso,
mais um estilo estrangeiro passava a cativar o público do país
58
.
Não demorou muito para que também aqui o rock impulsionasse práticas
culturais. "Rebeldes", "transviados" e "playboys" despontam no cenário das grandes
cidades, promovendo corridas de carros e lambretas, além de arruaças ao som de rocks e
embalados por álcool e drogas, contribuindo para que fosse reproduzido aqui muitos dos
preconceitos contra o rock existentes nos EUA. Uma nova maneira de dançar,
especialmente para os jovens, também foi introduzida, bem como uma relação de
positividade com a cultura norte-americana por parte desses jovens.
Tal relação com a cultura dos EUA não pode ser entendida fora do contexto
de maciça participação dos norte-americanos no país, intensificada no contexto da Guerra
Fria do pós-Segunda Guerra.
Os países da América Latina estavam, na sua maioria, ligados aos EUA por
estreitos vínculos econômicos. Por isso, desde logo, a tendência do Brasil foi
alinhar-se aos interesses daquela nação quando, em 1947, com o enunciado da
Doutrina Truman, teve início a Guerra Fria. A própria difusão do american way of
life por meio do rádio, do cinema, da imprensa e de toda a indústria cultural, desde
a Segunda Guerra, bem como as possibilidades de elevação dos padrões de
consumo e do bem-estar que se impunham à camadas altas e médias dos grandes
centros urbanos como decorrência dapida industrialização, favoreciam essa
57
Ibidem, p. 27.
58
Conforme informam Marcos Napolitano e Maria Clara Wasserman, no panorama musical brasileiro dos
anos 50, “os neros estrangeiros, como boleros mexicanos e tangos argentinos, ganhavam cada vez mais
espaço nas rádios” e além disso, “a música norte-americana também tomava conta das paradas de sucesso.
As Big Bands, famosas nos anos 40, ainda estavam em evidência. Em algumas rádios havia uma grande
divulgação do jazz; pois esse gênero americano ganhava cada vez mais respeitabilidade entre alguns
músicos cariocas, sobretudo aqueles que trabalhavam ‘na noite’ da zona sul” (NAPOLITANO, Marcos;
WASSERMAN, Maria Clara. Desde que o Samba é Samba. A questão das origens no debate historiográfico
sobre a música popular brasileira. IN: Revista Brasileira de História. São Paulo, vol. 20, n.º 39, 2000, p. 173 e
174).
68
postura, uma vez que estimulavam, naqueles segmentos da sociedade, certa
proximidade e até identificação com os valores norte-americanos
59
.
Muitos dos primeiros rocksbrasileiros” eram cantados em inglês e boa
parte dos cantores e grupos utilizavam nomes neste idioma.
Surgiram os Golden Boys; Ronaldo Cordovil era Ronnie Cord; Moacyr Franco era
Billy Fontana; Sérgio Reis era Johnny Johnson; Paulo Silvino era Dixon Savanah;
Ronaldo Antonucci era Ronald Red; Márcio Antonucci era Jet Willians, entre
outros
60
.
O uso do inglês, mais do que uma maneira de agradar um público imerso em
símbolos da cultura de massas norte-americana, era também uma exigência da parte
daqueles que controlavam o mercado musical, como contam dois roqueiros da época,
Márcio Antonucci (Os Vips) e Ed Wilson:
[...] quem exigia era o pessoal dos programas, o tinha gravadora que se
interessava em gravar música jovem, então você ganhava dinheiro onde? Nas
rádios, com os apresentadores e eles exigiam nomes em inglês [...].
[...] era modismo, quer dizer, se vocês não colocam esses nomes [sic] iam dizer:
"Pô, esse cara, brasileiro, Roberto da Silva ..." Roberto Carlos foi uma exceção,
porque, no geral, todos os nomes americanos foram influências de grupos
americanos, de cantores americanos [...] era legal você ter a influência
americana
61
.
Ao lado disso, tal qual nos EUA, o rock deu início à redefinição dos marcos
culturais, no contexto da juventude enquanto um amplo contingente social, com
características semelhantes a grupos dos mais diferentes lugares. Segundo Helena Wendel
59
(FIGUEIREDO, Anna Cristina C. Moraes. “Liberdade é Uma Calça Velha, Azul e Desbotada. Publicidade,
cultura de consumo e comportamento político no Brasil (1954-1964). São Paulo: Hucitec/História Social
USP, 1998, p. 118).
60
PEDERIVA, Ana Bárbara A. Op. cit., p. 29.
69
Abramo, com o fim da Segunda Guerra ocorrem mudanças significativas quanto à
juventude, “centradas na sua ampliação e vinculação aos espaços de lazer, à indústria
cultural e aos meios de comunicação”, sendo que essa ampliação significou “a emergência
de uma cultura juvenil ampla e internacional, ligada ao tempo livre e ao lazer, que abarca
novas atividades e espaços de diversão e novos padrões de comportamento,
especificamente juvenis, que produzem uma série de atritos e conflitos com as normas e as
instituições e seus representantes”
62
. Esses conflitos foram motivados pela redefinição dos
espaços sociais, na medida em que esta juventude além de estar constituindo formas
culturais específicas, constituía-se como um agente econômico importante.
Com a política de prosperidade econômica capitaneada pelos EUA com o
fim da Segunda Guerra, mesmo em países periféricos como o Brasil houve incremento do
mercado de consumo, uma forma de atender ao desenvolvimento industrial e a
diversificação da produção. No âmbito interno, temos entre 1955 e 1960 o nacional-
desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek e sua proposta de modernização do país,
entendida como industrialização, sintetizada no slogan “50 anos em 5”
63
.
também neste contexto maior preocupação em relação à formação das
pessoas com vista a atuação no mercado de trabalho, evidenciada no aumento do período
escolar obrigatório e ampliação do equivalente ao ensino fundamental a camadas mais
pobres, significando maiores oportunidades de empregos para jovens recém-egressos dos
61
Depoimentos de Márcio Antonucci (Os Vips) e Ed Wilson coletados por Ana Bárbara A. Pederiva e citados
em PEDERIVA, Ana Bárbara A. Op. cit., p. 29.
62
ABRAMO, Helena Wendel. Op. cit., p. 27-28.
63
Um panorama do político-econômico do governo JK é traçado por Lincol de Abreu Penna em República
Brasileira (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999), particularmente no sétimo capítulo dentro do item “O
Desenvolvimentismo com JK: ‘Cinqüenta Anos em Cinco’” (p. 223-238)
70
bancos escolares, que passam a ter maior participação no mercado de trabalho e
contribuem, em alguma medida, no aumento da renda familiar, não significando isto, no
entanto, qualquer alteração substancial na configuração sócio-econômica do país:
A ampliação do ensino fundamental, mesmo nas condições em que foi feita, criou
uma oferta abundante de mão-de-obra apta a exercer postos de trabalho
subalternos, rotineiros, pouco exigentes em termos de escolaridade praticamente
requeriam ler e escrever -, que se ampliavam rapidamente. Por exemplo:
balconistas, caixas de supermercado, datilógrafos, oficce-boys, telefonistas, caixas
de bancos
64
.
Estes postos “subalternos” foram em larga escala ocupados por homens
jovens e mulheres, o que em certa medida permitiu a incorporação precária, em função dos
baixos salários, de alguns outros itens aos padrões de consumo, alimentando novos
segmentos de mercado. No caso das camadas médias, onde a entrada dos jovens no
mercado de trabalho é postergada em prol dos estudos, o poder de compra da juventude
também foi incrementado, por meio das “mesadas”. Nesse processo, forma-se rapidamente
um setor da economia voltado especificamente para a juventude, no qual o entretenimento
possui papel preponderante. Assim, o maior poder de consumo da juventude no processo
produtivo, implicou na “satisfação” de necessidades “específicas” em relação aos adultos,
uma música “própria”, por exemplo
65
.
A redefinição do papel do jovem, embora ajude, por si não explica sua
adesão ao rock, tanto no Brasil quanto nos EUA. Outro elemento importante é a relação
entre trabalho e lazer. Ao tratar desta questão no período de 1954 a 1964 no Brasil, Anna
Cristina Camargo Moraes Figueiredo afirma que o país passava por um processo de
64
MELLO, João M. Cardoso de; NOVAIS, Fernando. Capitalismo Tardio e Sociabilidade Moderna. In:
NOVAIS, Fernando; SCHWARCZ, Lilian M. (Coord.) História da Vida Privada no Brasil. Contrastes da
Intimidade Contemporânea. São Paulo: Cia. das Letras, 1998, p. 621, vol. 4.
65
ABRAMO, Helena Wendel. Op. cit., p. 29.
71
incorporação do modelo norte-americano de industrialização, no aspecto tecnológico,
produtivo e organizacional, de base taylorista e fordista.
Isso significa que se incrementava a produção em massa de bens industrializados,
sobretudo dos bens de consumo duráveis, mediante a divisão e organização
racionais do trabalho e o emprego crescente de maquinário e tecnologia, para os
quais ficava progressivamente reservada a produtividade do trabalho
66
.
Uma das conseqüências desse modelo foi é o incremento do processo de
alienação do trabalho, na medida em que cada vez menos a produção dependia da ação dos
trabalhadores.
A massa de empregados passou, com isso, a não ver nenhum sentido nos processos
diretamente técnicos de seu trabalho e, por conseqüência, outros aspectos como a
renda, o poder e o status, acabaram assumindo para ela importância primordial
67
.
Dessa forma, fazer parte do sistema produtivo para os trabalhadores era
poder ter acesso às benesses da sociedade de consumo. O aspecto positivo da introdução
das máquinas no processo de produção era a possibilidade de um maior tempo livre. Em
que medida os trabalhadores, de fato, puderam usufruir dessas vantagens” é uma outra
discussão. Importante aqui é destacar que tais aspectos foram amplamente ressaltados por
aqueles que detinham as rédeas do processo, tanto o governo quanto os empresários. Dessa
forma,
Na mesma proporção em que a produção se massificava e o aumento da
produtividade passava a depender mais e mais do desenvolvimento tecnológico,
ampliava-se a importância do indivíduo no papel de consumidor, pois se tornava,
desse modo, imprescindível para a reprodutibilidade do sistema assegurar a
existência de um mercado consumidor compatível com a oferta
68
.
66
FIGUEIREDO, Anna Cristina C. Moraes. Op. cit., p.75.
67
Ibidem, p. 75.
68
Ibidem, p. 75-76.
72
Sendo assim, empreende-se todo um discurso onde o lazer e o consumo
assumem um lugar oposto ao do trabalho. Enquanto este traz consigo a imagem do cansaço,
da rotina, da dificuldade, consumo e lazer remetem ao prazer, em diferentes aspectos, numa
separação entre o mundo do trabalho e o mundo do lazer/consumo, sendo este o objetivo da
vida. O papel do consumidor sobrepuja o do trabalhador sem que, no entanto, o trabalho
seja desvalorizado, pois é o meio pelo qual se pode atender os desejos e obter prazer, seja
ele o bem estar da família ou a aquisição de um automóvel ou mesmo o disco do cantor
predileto.
Em seu livro, Anna Cristina analisa essa caracterização do lazer e do
consumo como opostos ao trabalho em peças publicitárias veiculadas em revistas do
período (particularmente Manchete e O Cruzeiro), concluindo que é uma constante nelas a
seguinte mensagem: “o trabalho é o momento em que o indivíduo ganha dinheiro. O lazer,
na outra mão, é o momento em que a vida realmente se desenrola”
69
.
Na medida em que a publicidade “não tem a função, e muito menos a
pretensão, de criar valores, idéias ou imagens absolutamente inéditas na sociedade” e que
ela “lança mão de imagens e valores presentes na cultura, mesmo que em estado latente
ou dormente”
70
, sob o risco de, em agindo de maneira diferente, não atingir seu objetivo de
vender um determinado produto (ou mensagem), podemos inferir que tal visão acerca do
trabalho e do lazer não era resultado apenas do discurso dos anunciantes. Para os fins que
se pretende aqui, importante é atentar para esta noção do lazer enquanto espaço do prazer e
fim último da vida.
69
Ibidem, p. 78.
70
Ibidem , p. 19.
73
Isto nos ajuda a definir qual concepção de juventude está associada ao rock.
Enquanto categoria social, o “ser jovem” deve ser entendido dentro de um determinado
contexto, pois é participante de um sistema de relações que implica na existência de outros
grupos e instituições, sistema que por sua vez tem um lugar e um tempo na história. A
imagem que temos da juventude, enquanto “un período de permisividad, una especie de
estado de gracia, una etapa de relativa indulgencia, en que no les son aplicadas com todo
su rigor las presiones y exigencias que pesan sobre las personas adultas”
71
, é algo recente,
que começa a ganhar corpo no século XIX e é massificada a partir da década de 1950 do
século XX.
Nesta acepção, é principalmente um estágio da vida dedicado à educação
escolar e à preparação para a vida adulta, momento no qual se dá, teoricamente, a entrada
no mercado de trabalho, o casamento com vistas à constituição de uma nova família e o
rompimento dos laços de dependência econômica com os pais. Nem todos os jovens fazem
parte dessa juventude. Entendida sob estes aspectos,
reduce su alcance a cierta clase de jóvenes: aquellos que tienen los medios
económicos y la herencia cultural que les permite y orienta hacia los estudios, lo
que posterga su plena inserción en la actividad económica
72
.
Em outros termos, uma determinada noção de juventude, tendo como
referência uma parcela específica de jovens, acabou sendo tomada e difundida pelos meios
de comunicação de massa enquanto sinônimo do “ser jovem”, num processo no qual
cristalizou-se um modelo de juventude fundamentado em símbolos de alta carga de
positividade na sociedade de consumo: “bella, alegre, despreocupada, deportiva y
71
MARGULIS, Mario. Juventud: Una aproximacio conceptual. In: BURAK, Solum Donas (comp.).
Adolescencia y Juventud en América Latina. Cartago: LUR, 2001, p. 43.
74
saludable, vistiendo las ropas a la moda e viviendo romances y aventuras amorosas, ajena
a la falta de dinero, al rigor cotidiano del trabajo o las exigencias del hogar”
73
. Enfim, um
momento em que se admite muito do que deve ser restringido na vida adulta, no qual
tolera-se atitudes inadmissíveis ao “pai de família” (atitudes perdulárias, por exemplo).
É precisamente esta imagem de juventude que acabou sendo associada a
partir da indústria cultural ao rock, na seguinte gica: a música do prazer para a fase do
prazer. Conforme ressaltamos, o rock desde sua origem está vinculado ao prazer e na
medida em que sua obtenção passa a ser professada enquanto objetivo da existência juvenil,
as canções e os diversos comportamentos a elas associados ganham conotações positivas
bem atraentes para estes jovens, na medida em que assumem aspectos de passaportes para o
prazer. Posto que os jovens passam a fazer parte de um mercado consumidor, a
potencialização do rock enquanto mercadoria cultural busca uma dupla satisfação: comprar
um disco do cantor preferido atende a dois desejos, o de consumir e o de participar do
mundo do prazer.
Enquanto parte desta lógica é que se configura o primeiro movimento de
rock no Brasil, a Jovem Guarda, em 1965. Este foi o ano do lançamento do programa cujo
nome, inspirado em uma coluna assinada por Ricardo Amaral no jornal Última Hora e
numa frase de Lênin
74
, viria a batizar todo um conjunto de canções e comportamentos
juvenis. Inicialmente artifício para cobrir o buraco da programação dominical paulistana da
72
Ibidem , p. 43.
73
Ibidem, p. 44.
74
Segundo Paulo de Tarso Medeiros, “Festa de Arromba” seria o nome do programa mas ao lembrar-se de
uma frase de Lênin (“o futuro pertence à jovem guarda porque a velha está ultrapassada”), Carlito Maia,
publicitário e sócio da agência MM&P, apropriou-se dos termos, decidindo por “Jovem Guarda”
(MEDEIROS, Paulo de Tarso. A Aventura da Jovem Guarda. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 46). O nome
75
TV Record após a briga entre Paulo Machado de Carvalho, seu proprietário, e a Federação
Paulista de Futebol, que culminou na proibição da transmissão dos jogos do Campeonato
Paulista de Futebol (às quais era dedicado o horário das 17 horas), “Jovem Guarda” foi
também uma jogada publicitária:
Uma idéia audaciosa da nova agência de João Carlos Magaldi, Carlito Maia e
Carlos Prosperi [a MM&P ou Magaldi, Maia & Prosperi], que acompanhavam
atenta e entusiasmadamente a revolução dos Beatles e do rock na Inglaterra e nos
Estados Unidos, a vertiginosa transformação no comportamento dos jovens e sua
crescente influência na sociedade e no mercado consumido
75
.
Comandado pelo “Rei” Roberto Carlos, o “Tremendão” Erasmo Carlos e a
“Ternurinha” Warderléa, “Jovem Guarda” contava com as apresentações do trio, de artistas
contratados pela emissora e convidados que cantavam rock’n’roll no país
76
. Os planos da
agência não se restringiam ao programa. Muitos produtos foram lançados (roupas,
acessórios, brinquedos, etc.) associados à marca “Jovem Guarda”, capitalizando o interesse
pelo rock, que na época contava também com vários programas de rádio no eixo Rio-São
Paulo dedicados especificamente a ele. Sob todos os aspectos, o programa foi um sucesso
comercial. Ele passou a ser feito também no Rio de janeiro e, posteriormente, enviado em
tapes para outros lugares do país.
As canções, boa parte versões para o português de sucessos norte-
americanos, ingleses e até italianos, tinham no amor seu tema mais destacado, mas também
tratavam de carros, aventuras, cinema e comportamentos juvenis. A situação política do
tinha a intenção de demarcar a distância entre os jovens roqueiros e a “velha guarda”, antigos compositores e
intérpretes de boleros, tangos, sambas-canções e outros estilos “adultos” das décadas de 40 e 50.
75
MOTTA, Nelson. Noites Tropicais. Solos, improvisos e memórias musicais. Rio de Janeiro: Objetiva,
2000, p. 94.
76
Ana Bárbara Pederiva cita, entre outros, Trio Esperança, Golden Boys, Wanderley Cardoso, Renato e Seu
Blue Caps, The Jordans, Jerry Adriani, Os Vips, Deny e Dino, Leno e Lílian, Martinha e Prini Lopes.
(PEDERIVA, Ana Bárbara A. Op. cit., p. 41).
76
país (sob a ditadura militar), não era uma preocupação e isto, juntamente com a estreita
ligação com a cultura dos EUA, foi duramente criticado pelos defensores de uma música
produzida na perspectiva nacional-popular, sintetizada no âmbito da MPB
77
. De um lado os
jovenguardistas, “alienados”, símbolos do imperialismo norte-americano e da cultura de
consumo; do outro emepebistas e a defesa, ainda que não por todos, de uma música
nacional e engajada. Este embate era também o de dois segmentos distintos da juventude.
Enquanto os defensores da MPB eram filhos dos setores médios e abastados, os adeptos da
Jovem Guarda eram basicamente suburbanos. Para estes, a música era a porta de entrada
para o mundo dos carros, viagens e aventuras daqueles, ao mundo do prazer. Os
depoimentos de Wanderley Carsoso e de Márcio Antonucci (Os Vips) citados por Ana
Bárbara Pederiva, são particularmente ricos quanto a isso:
[...] eu não estava alienado de jeito nenhum, sabia o que estava fazendo,
acontecendo, mas não podia, eu tinha uma família pra sustentar, eu sou de família
pobre, minha família é toda simples, meu pai é motorista de taxi [...] (Wanderley
Cardoso)
[A Jovem Guarda] era uma crônica dos costumes da juventude da época, dos
nossos sonhos, dos nossos valores, uma coisa dica, a gente queria ser feliz,
cantar a felicidade, cantar o prazer, era uma coisa meio epicurista, quase
filosófica, lúdica e que foi muito mal compreendida [...] (Márcio Antonucci)
78
77
De acordo com Marcos Napolitano, o nacional-popular remete aos escritos de Antonio Gramsci e está
bastante vinculado a uma cultura política esquerda. Em linhas gerais, a proposta nacional-popular buscava
“articular a expressão de uma consciência nacional, politicamente orientada para a emancipação da nação,
cujo sujeito político difuso, o povo, seria carente de expressão cultural e ideológica (e não de representação
política, propriamente dita). Os artistas-intelectuais nacionalistas e da esquerda, mesmo aqueles não ligados
organicamente ao Partido Comunista, incorporaram a tarefa de articular esta consciência”
(NAPOLITANO, Marcos. O Conceito de MPB nos Anos 60. IN: História: Questões & Debates. Curitiba, Ed.
da UFPR, 31, 1999, p. 20). No tocante à música, o nacional-popular compôs a chamada Música Popular
Brasileira ou MPB, sigla criada nos anos 60 que sintetizou a convergência de diversas vertentes em busca de
uma música brasileira: a Bossa Nova e seu rigor técnico; o projeto nacional-popular; as vanguardas estéticas
nas figuras do Tropicalismo e do movimento Música Nova; a tradição da “legítima” música popular (samba,
baião, marcha, etc.).
78
PEDERIVA, Ana Bárbara A. Op. cit., p. 50 e 51.
77
De todo modo, a Jovem Guarda ajudou a mexer com os comportamentos da
época, contribuindo de maneira significativa para redefinição da juventude. Bem
enquadradas do ponto de vista comercial, as canções instigavam a transgressão
comportamental, especialmente no que diz respeito ao desejo sexual, num diálogo direto
com as mudanças que aconteciam na cultura jovem ocidental. As canções falavam
abertamente do jogo amoroso (embora restrito, em muitos casos, aos limites de um namoro
“comportado” que, no entanto, não precisava ser “sério”, com vistas ao casamento) e os
artistas cantavam e vestiam-se de maneira diferente, “rebelde”, simbolizando o desejo de
opor-se ao mundo adulto. O contraditório, no entanto, é que em momento algum este
mundo era, de fato, recusado.
Os jovens do movimento – como os adultos – dirigiam, mas em "disparada";
Participavam de festas, mas "de arromba"; mantinham relações com o sexo oposto,
mas fora dos limites impostos pela sociedade, ou seja, sem a seriedade exigida,
afinal, as formas mais tradicionais, como o casamento, "não eram papo pra eles"
79
.
Assim, como podemos notar, a rebeldia era praticamente sinônimo de uma
postura de desregramento, concentrada na exacerbação de aspectos prazeirosos do mundo
adulto por parte de jovens ansiosos para aproveitarem o que ele “tinha de melhor”. Esse
melhor confundia-se com o mundo do consumo também almejado, de modo que, no limite,
a rebeldia cedia espaço a uma postura conservadora, pois desejava-se não transformar a
sociedade mas sim conquistar espaços no seu interior, no tocante aos comportamentos e às
oportunidades de consumo.
O programa dura até 1968 e sua extinção acompanhou o exaurir do formato.
Muitos artistas desapareceram e os que resistiram incursionaram por outros estilos, a
79
Ibidem, p. 67.
78
maioria acomodando-se dentro do guarda-chuva estético que é o pop. Roberto Carlos
continuou sendo o “Rei”, só que da música romântica. Apesar dos breves 3 anos de
existência, a Jovem Guarda, contrariando a efemeridade característica dos movimentos com
forte apelo consumista, deixou suas marcas na música brasileira. Foi referência importante
para os roqueiros das décadas posteriores e continua sendo para a nossa música popular,
tanto através de artistas ainda em atividade quanto de regravações, trazendo consigo uma
imagem (questionável) de “época da inocência” do rock no Brasil
80
.
Enquanto isso, nos EUA (e Europa de maneira geral), uma parcela
significativa do rock assumia um outro papel, o de instrumento de ação no âmbito da
contracultura, uma das marcas dos anos 60, fazendo com que esta década não visse apenas
a consagração da sociedade do consumo e da tecnocracia. Contando com a participação de
muitos jovens, diversas manifestações opuseram-se ao futuro racional e de satisfação
material apregoado e expressaram o desejo de algo diferente, configurando um movimento,
a contracultura, notadamente marginal e contestador no qual aglutinaram-se várias
propostas e perspectivas contra os valores dominantes na sociedade ocidental expressos na
cultura oficial.
Ocorreu verdadeira revolução nos costumes. Havia necessidade de quebrar velhos
tabus e destruir valores estabelecidos. Paz e amor, desbunde; aqui e agora; contra
o poder das armas, o poder da flor (flower power), o poder gay (gay power), a
libertação feminista (women’s lib) e o poder negro. [...] Esse conjunto de
manifestações novas que brotaram em diversos países foi chamado de
contracultura. Trata-se da reivindicação de um estilo de vida diferente da cultura
oficial, valorizada e defendida pelo sistema. Underground, no sentido de ‘à
margem’, essa cultura criticava e contestava radicalmente o que havia sido
80
É essa a visão de Ana Bábara Pederiva: “Mesmo que de forma pouco consciente, os participantes do
movimento Jovem Guarda inovaram em vários aspectos e, dessa forma, acabaram por questionar e
transgredir os valores das instituições sociais existentes, principalmente as familiares, e influenciaram outros
movimentos do Brasil, como a Tropicália, o rock dos anos 80 e possivelmente a nova geração de duplas
sertanejas surgidas na década de 90 (Ibidem, p, 55).
79
produzido pela cultura ocidental, pondo em xeque os valores tradicionais, de
diferentes maneiras, e buscando novas formas e novos canais de expressão
81
.
Abordar o tema da contracultura remete, mais uma vez, à sociedade norte-
americana. Foi lá o lugar em que primeiro se manifestaram as críticas desse “novo espírito”
de contestação. Apesar da importância do papel que a Europa seguramente desempenhou
na formação de toda essa nova ideologia da juventude, certas condições faziam deste país
o berço por excelência da contracultura”
82
.
Os EUA têm tal importância para a configuração da contracultura por ser o
país em que a tecnocracia assumira seus contornos mais nítidos, tendo sido particularmente
intensificada com o fim da Segunda Guerra. Em linhas gerais, tecnocrata é a sociedade na
qual os técnicos e especialistas, fundamentados no conhecimento científico e
instrumentalizados pela técnica, são as peças principais do gerenciamento da sociedade.
Nela, busca-se a máxima integração organizacional, de modo a eliminar as brechas e
fissuras da sociedade industrial e, conseqüentemente, apurar os métodos de
produção/reprodução de riquezas e de controle. “Na tecnocracia tudo aspira a tornar-se
puramente técnica, objeto de atenção profissional”
83
, inclusive aspectos da vida pessoal
como comportamento sexual, educação de filhos, saúde mental, recreação, etc. “Por
conseguinte, a tecnocracia é o regime dos especialistas – ou daqueles que podem empregar
81
CARMO, Paulo Sérgio do Op. cit., p. 50-51.
82
PEREIRA, Carlos Alberto Messender. O Que é Contracultura? ed. São Paulo: Brasiliense, 1992, p. 32-
33.
83
ROZACK, Theodore. A Contracultura. Reflexões sobre a sociedade tecnocrática e a oposição juvenil. 2ª
ed. Petrópolis: Vozes, 1972, p. 20.
80
os especialistas”
84
. É contra ela que se mobilizam os movimentos contraculturais que
embora tenham obtido muita repercussão, não deixaram de ser uma ação de minorias:
Neste momento, a contracultura de que falo congrega apenas uma pequena minoria
dos jovens e um punhado de mentores adultos. Exclui nossos jovens mais
conservadores, para os quais um pouco menos de previdência social e um pouco
mais de religião à antiga (além de mais policiais na ronda) bastariam para
concretizar a Grande Sociedade. Exclui nossa juventude mais liberal, para a qual o
alfa e o ômega ainda é o estilo Kennedy. Exclui os esparsos grupos marxistas
ortodoxos, cujos membros, repetindo seus pais, continuam a atiçar as cinzas da
revolução proletária, esperando que delas salte uma fagulha. Exclui, sobretudo, a
maioria dos jovens militantes negros, cujo programa político passou a definir-se
em termos étnicos tão estreitos que, apesar de sua urgência, tornou-se atualmente
tão anacrônico, do ponto de vista cultural, quanto os mitos nacionalistas do século
XIX”
85
.
As razões para que essa minoria tenha uma predominância de jovens,
sobretudo de universitários, passam pelo aumento da população juvenil, a adoção de uma
educação mais liberal a partir da década de 60 e a expansão do sistema universitário nos
EUA e em vários países europeu. Dados apresentados por Theodore Rozack dão conta de
aumentos, no período entre 1950-1964, na ordem de até 3,3 vezes no mero de
universitários, como no caso da França (140 mil em 1950; 455 mil em 1964)
86
. Embora
menores em números relativos, nos Estados Unidos o crescimento foi muito significativo
em termos absolutos, passando de 2,3 milhões para 5 milhões pessoas matriculadas nas
universidades. Nelas, a experiência propiciada pela convivência nos campi, permitia aos
jovens um espaço de discussão e questionamento que favorecia uma identidade de grupo,
sendo que os “mais velhos” (na faixa dos 25 anos) desempenhavam o importante papel de
passar aos mais novos suas experiências, assumindo por vezes papéis de liderança. Além
84
Ibidem, p. 20.
85
Ibidem, p. 8.
86
Ibidem, p. 30, nota 10.
81
disso, Rozack aponta a omissão dos adultos frente aos problemas da tecnocracia como
outro fator para que os jovens tomassem a linha de frente. Tais jovens, cientes de suas
potencialidades, puseram em prática muitas das proposições dos adultos.
O fato é que foram os jovens, à sua maneira amadorística e até mesmo grotesca,
que deram efeito prático às teorias rebeldes dos adultos. Arrancaram-nas de livros
e revistas escritos por uma geração mais velha de rebeldes, e as transformaram
num estilo de vida. Transformaram as hipóteses de adultos descontentes em
experiências, embora freqüentemente relutando em admitir que às vezes uma
experiência redunda em fracasso
87
.
Entre esses “rebeldes adultos” estavam os beats que, na década anterior,
davam seu grito de descontentamento. Tendo Allen Ginsberg, Jack Kerouac e William
Burroughs entre seus nomes mais destacados, os beats rejeitavam os paradigmas burgueses
e valorizavam a natureza, a vida descompromissada e sem preconceitos quanto às drogas e
bebidas, numa postura rebelde frente ao american way of life. Tiveram na literatura o
principal meio de divulgação e suas obras, além de explicitarem seus valores, promoviam
duras críticas à sociedade americana e sua hipocrisia. Allen Ginsberg viria a ser, inclusive,
um dos nomes com maior repercussão de outro movimento característico da contracultura,
o hippie.
De caráter pacifista, o movimento hippie rejeitava a sociedade consumista,
tecnocrática e amplamente industrializada, a corrida armamentística e suas guerra (os
embates no Vietnã estavam em curso) e o conservadorismo, tendo como lema “paz e amor”
e São Francisco, cidade portuária com habitantes de várias partes dos EUA e do mundo, um
ponto aglutinador. Os hippies propuseram a vida em comunidades, em harmonia com a
natureza e em constante busca de ampliação da percepção:
87
Ibidem, p. 37.
82
O surgimento dos hippies chocava a sisudez da velha guarda, inconformada diante
da "promiscuidade" dos jovens de cabelos compridos que faziam do amor livre, da
sensualidade e da vida nômade e libertária suas armas de combate à violência do
mundo industrializado. Por outro lado, a experiência da droga, como forma e
buscar a ampliação da sensibilidade, o erotismo, a preferência pela expressão
artística no lugar do discurso político assumiam uma postura ‘contracultural’, que
encantava toda uma geração
88
.
Neste contexto, o rock teve importância similar à da literatura para os beats.
Nomes como Bob Dylan, Joan Baez, Beatles, Rolling Stones, Jimi Hendrix, Janis Joplin,
dentre outros, deram, cada um à sua maneira, formato musical e existencial aos
questionamentos e proposições da contracultura. Bob Dylan e Joan Baez estabelecendo o
diálogo entre a canção de protesto norte-americana, de base folk, e o rock, criando o folk
rock e engajando-se na luta pelos Direitos Civis; os Beatles passando de canções e posturas
com apelos mais comerciais no início da carreira (gravaram o primeiro disco em 1961)
89
a
um disco de forte diálogo com a contracultura como é Sargent Peppers Lonely Hearts Club
Band de 1967
90
.
Os Rolling Stones com suas canções incisivas e imagem ligada a sexo,
drogas, escândalos, processos e atritos em shows davam uma faceta mais radical à
88
CARMO, Paulo Sérgio do. Op. cit., p. 54.
89
John Lennon, por exemplo, era casado desde agosto de 1962, com uma jovem a quem engravidara. Porém,
como era comercialmente ruim que os membros da banda fossem compromissados (“o charme dos Beatles é
que os quatro eram jovens solteiros e suas fãs adolescentes jamais admitiriam a idéia de ver um deles
casados”. MUGGIATI, Roberto. Op. cit., p. 78), Cynthia, foi por muito tempo uma “esposa-fantasma”,
proibida pelo empresário da banda, Brian Epstein, de aparecer em público junto com John, que, por sua vez,
não se sentia bem com a situação mas acabava aceitando, como revelou em 1971: “Brian literalmente limpou
a nossa imagem. Havia brigas homéricas porque eu me recusava a me embonecar. Ele e Paul formaram até
uma espécie de aliança para me manter na linha: eu estava sempre sujando a imagem dos Beatles (APUD
PEREIRA, Carlos A. Messender. Op. cit., p. 46). Essa situação só sofreu alterações significativas no final de
1966, quando encerrou-se o contrato que os Beatles assinaram com Epstein antes de serem famosos, e a partir
de então eles passaram a ter maior autonomia sobre suas carreiras, tendo a liberdade de recusarem
apresentações e ingerências na gravação dos discos. A partir de agosto de 1967, passariam a ser uma banda
estritamente de estúdio, não realizando nenhuma apresentação até a separação definitiva em 1970.
83
contundência contracultural. Janis Joplin personificava o underground norte-americano,
com sua pele alva e "voz negra", roupas coloridas e a postura hippie; Jimi Hendrix, síntese
da perspectiva criativa da contracultura: gerar o novo a partir daquilo que a tecnocracia
desprezava, do “lixo cultural”. Hendrix, com sua técnica instrumental particular e até
mesmo inigualável, produzia som a partir das distorções e ruídos de sua guitarra, fazendo
do instrumento símbolo do rock veículo para sua crítica social, a exemplo do que ocorrera
no Festival de Woodstock:
[...] em dado momento, Hendrix inicia uma longa improvisação com a guitarra a
partir do tema de "Star Spangled Banner", o hino dos Estados Unidos. Pouco a
pouco, através de um som violento e angustiado, a melodia vai sendo literalmente
estraçalhada, dissolvida e, em seguida, sem nenhuma interrupção, ele começa a
tocar o "Purple Haze", uma de suas composições mais célebres com enorme
suavidade e delicadeza, numa tentativa de contrapor, à desintegração do hino
nacional americano, um novo hino da contracultura
91
.
São por estes e outros momentos que Woodstock adquiriu importância
singular entre os vários festivais de rock ocorridos nos EUA e na Europa a partir de 1965.
Os festivais, ao reunirem diversos artistas e bandas, eram eventos de massa, espaço no qual
a perspectiva da vida em comunidade buscada pelos hippies encontrava materialidade e
parecia possível existir de maneira mais ampla e consistente. Realizado entre 17 e 19 de
agosto de 1969 em uma fazenda nos arredores de Nova York, Woodstock, com seu público
estimado em cerca de meio milhão de pessoas, foi o ápice da realização da utopia de paz e
amor para os jovens da contracultura, e da libertinagem para os conservadores, horrorizados
com o consumo de drogas e sexo livre que marcaram o festival. Outro evento com as
90
Este disco é repleto de citações ao psicodelismo (as iniciais da canção “Lucy in the Sky with Diamons”
eram LSD, a droga para ampliação da percepção), ao orientalismo, aos hippies (a capa, por exemplo, era bem
colorida com muitas flores).
91
PEREIRA, Carlos A. Messender. Op. cit., p. 68.
84
mesmas proporções realizado daí a quatro meses, o Festival de Altamont, no entanto, ficou
marcado pela violência.
Para comemorar uma bem-sucedida excursão pelos Estados Unidos que lhes
rendeu mais de um milhão de dólares, os Rolling Stones resolveram oferecer um
concerto de graça aos fãs da Califórnia, onde é alta a percentagem de hippies e
afins. Escolheram Altamont, que fica a quarenta milhas de São Francisco,
contrataram alguns grupos famosos para os números de abertura (Santana,
Greatful Dead, Jefferson Airplane etc.) e deram aos Hell’s Angels, a assustadora
gang de motociclistas, um caminhão cheio de cerveja como pagamento por seus
serviços como ‘guardas de segurança’. Compareceram cerca de trezentas mil
pessoas e o desastre foi total. O congestionamento de tráfego tornou a área um
verdadeiro inferno. Além do ácido e da maconha, e ao contrário do que aconteceu
em Woodstock, as bebidas alcoólicas e as bolinhas de anfetamina tiveram um
amplo consumo. A violência estourava a cada momento, em discussões e brigas
sangrentas. Chamados de "fascistas" pelo público, os Algels espancavam quem
pintasse na frente. Quatro pessoas morreram: uma afogada e duas atropeladas
pelos automóveis irritados. O restante, um estudante negro chamado Meredith
Hunter, foi esfaqueado por um Angel no momento em que apontava um revólver na
direção do palco, enquanto Mick Jagger cantava os versos escabrosos de
"Sympathy for the Devil"
92
.
O anti-climax de Altamont acabou sendo um marco, o início do fim. Em
1970 as mortes de Jimi Hendrix (18 de setembro) e Janis Joplin (4 de outubro),ambos aos
27 anos e por overdose, mais a dissolução dos Beatles dava margem ao sentimento
expressado por John Lennon em uma frase célebre de dezembro deste ano: “O sonho
acabou”
93
. E a morte de Jim Morrison, também aos 27 anos de um mal explicado ataque
cardíaco, no 3 de julho seguinte (uma infeliz coincidência com a data da morte de Brian
Jones, guitarrista dos Rolling Stones, também por overdose dois anos antes) pareceu ter
vindo para confirmar isso.
92
MACIEL, Luís Carlos. O Fracasso da Contracultura. APUD: PEREIRA, Carlos A. Messender. Op. cit., p.
71-72.
93
Numa entrevista à revista Rolling Stones em dezembro de 1969, ao fazer um balanço da cada de 60 e as
transformações advindas da “contracultura”, afirmou: “Eu acordei pra isso também. O sonho acabou. As
coisas continuam como eram, com a diferença que eu estou com trinta anos e uma porção de gente usa
cabelos compridos”. (APUD PEREIRA, Carlos A. Messender. Op. cit., p. 51).
85
Nos anos 70, a vitória da maioria à qual Rozack faz referência ficou clara. A
sociedade de consumo, ao contrário do que muitos acreditaram, não era fardo e sim desejo
de uma população, não apenas nos Estados Unidos, marcada pelo conservadorismo
expresso no seguinte relato transcrito por Herbert Marcuse acerca da revolta estudantil na
Universidade de Kent em 1970, que acabou com quatro jovens mortos:
Mas nenhum caso de rejeição parental iguala o de uma família que vive numa
pequena cidade vizinha da divisa do Kentucky, com três filhos bem parecidos e bem
comportados que freqüentavam a universidade. Sem quaisquer antecedentes de
participação em protestos, os rapazes viram-se inadvertidamente envolvidos no
remoinho: o filho do meio acabou se encontrando ao lado de um dos estudantes
que foi abatido (a uma grande distância do tiroteio); o caçula foi detido por
transgressão e o seu retrato apareceu no jornal da cidade, para grande embaraço
de sua família. Quando a família falou com um dos nossos pesquisadores, a
conversa foi tão surpreendente que se tomaram mais preocupações do que as
usuais para registrar exatamente o que se disse.
Mãe: Quem aparece nas ruas de uma cidade como Kent, com roupas imundas,
cabelos compridos ou descalço, merece ser fuzilado.
Pesquisador: Tenho a sua permissão para citar essa afirmativa?
Mãe: Claro que sim. Teria sido melhor se a Guarda fuzilasse logo a pandilha toda,
naquela manhã.
Pesquisador: Mas a senhora tinha lá três filhos.
Mãe: Se eles não obedeceram ao que a Guarda lhe disse que fizessem, deviam ser
abatidos como os outros.
Professor de Psicologia (que estava ouvindo): Ter cabelos compridos é justificativa
para fuzilar alguém?
Mãe: Sim. Temos de limpar esta nação de uma ponta a outra. E começaremos pelos
cabeludos.
Professor: Permitiria que um de seus filhos fosse morto a tiro, simplesmente
porque estava descalço?
Mãe: Sim.
Professor: Onde aprendeu tais idéias?
Mãe: Eu leciono no ginásio local.
Professor: A senhora quer dizer que ensina essas coisas a seus alunos?
Mãe: Sim. Ensino-lhes a verdade. Que os boas-vidas, os sujos, os que você por
ai , vadiando pelas ruas e sem fazer nada, deviam ser todos fuzilados
94
.
O conservadorismo, aqui em cores fortes (e que para Marcuse era base do
caráter proto-facista da sociedade americana
95
) e, de maneira alguma, restrito apenas aos
94
MICHENER, James A. Kent State: What Happened and Why APUD MARCUSE, Herbert. A Esquerda sob
a contra-revolução. In: ___. Contra-Revolução e Revolta. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973, p. 34-35.
86
EUA ou aos setores tradicionalmente classificado enquanto “direita”
96
, venceu a
contracultura enquanto projeto. Porém, foi incapaz de aniquilá-la enquanto referência para
a construção de uma sociedade alternativa. Entendida “como uma postura, ou até uma
posição, em face da cultura convencional, de crítica radical”
97
, a contracultura deixa de ser
tão somente um acontecimento localizado e datado e passa a ser importante perspectiva
para muitos jovens que não se vêem contemplados nos dogmatismos de direita ou esquerda.
No Brasil, o crescimento universitário experimentado nos Estados Unidos e
Europa, encontrou paralelos na década de 1970
98
. Entretanto, a relação entre os
universitários e a contracultura por aqui não foi tão significativa, visto que o movimento
95
“O Governo Nixon fortaleceu a organização contra-revolucionária da sociedade em todas as direções. As
forças da lei e da ordem foram transformadas em uma força acima da lei. O equipamento normal da política,
em muitas cidades, assemelha-se ao das S.S e a brutalidade de suas ações é por demais familiar. Todo o
peso da repressão cai sobre os dois centros da oposição radical : as universidades e os militantes negros e
pardos; a atividade no campus está sufocada; o Partido da Pantera Negra [sic] foi sistematicamente
perseguido e caçado, antes de se desintegrar em conflitos internos. Um vasto exército de agentes de
informação espalhou-se pelo país inteiro e penetrou em todos os ramos da sociedade. O Congresso foi
castrado ou, melhor, castrou-se a si próprio), submetendo-se ao poder executivo que, por sua vez, depende do
seu vasto estabelecimento militar. Não estamos num regime fascista, em absoluto. [...] A questão mais
decisiva é se a presente fase de contra-revolução preventiva (sua fase democrático-constitucional) não estará
preparando o terreno para uma subseqüente fase fascita” (MARCUSE, Herbert. Op. cit., p. 32).
96
Na América Latina, as ditaduras militares no Chile, Bolívia, Argentina, Brasil (entre outras) e o regime
socialista em Cuba, não foram campos profícuos para a efetivação dos ideais libertários da contracultura.
Quanto à Europa, o caso do maio de 68 francês, marco da resistência estudantil, analisado por Theodore
Rozack é bastante ilustrativo: “Na França, os aguerridos estudantes da rebelião de maio de 1968 foram
obrigados a assistir o conluio entre a amolecida CGT [Central Geral dos Trabalhadores] e o PC [Partido
Comunista], que passaram a agir como órgão de confiança do Pres. De Gaulle na manutenção do governo
responsável e ordeiro, face à ameaça de ‘anarquia nas ruas. Se os estudantes rebeldes marcham aos
milhares para as barricadas, seus pais cautelosos marcham às dezenas de milhares em defesa do status quo e
votam aos milhões pela manutenção da elite gerencial que o velho general recrutou na Ecole polytechnique
com o intuito de controlar a nova prosperidade francesa. Até mesmo os operários, que engrossaram aos
milhares as fileiras dos estudantes durante as primeiras fases da Greve Geral de maio de 1968, parecem
haver chegado à conclusão de que a essência da revolução consiste num envelope de pagamento mais
polpudo (ROZACK, Theodore. Op. cit., p. 17).
97
MACIEL, Luís Carlos. Segunda anotação. APUD PEREIRA, Carlos A. Messender. Op. cit., p. 14.
98
Segundo Marcos Napolitano, “ao longo dos anos 1970, a população universitária cresceria mais de dez
vezes e, na sua maioria, era constituída por jovens egressos de famílias de classe média, com um poder
aquisitivo significativo” (NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira. Utopia e massificação (1950-1980).
São Paulo: Contexto, 2001, p. 83).
87
estudantil brasileiro mantinha estreitas ligações com os movimentos de esquerda, tendo
sido inclusive agente importante na mobilização contra o regime militar. Os ecos da
contracultura podiam ser ouvidos no Tropicalismo, o movimento estético que,
particularmente no tocante à música, causou a ira de muitos jovens pela incorporação das
referências “alienadas”, como a Jovem Guarda e a guitarra.
Ao propor a justaposição do arcaico e do moderno da sociedade brasileira e, a
partir disso, ressaltando as polarizações (e não as combatendo como fazia a tradição
engajada) de modo a revelar a verdadeira faceta contraditória do Brasil (folclórico e
massificado; nacional e cosmopolita; cafona e elegante; engajado e alienado, etc), os
tropicalistas buscavam uma revolução estético-comportamental, para a qual a perspectiva
antropofágica de Oswald de Andrade, a eles associada pelo teórico e poeta concretista
Augusto de Campos (também um dos responsáveis, a partir de sua atuação na imprensa, pela
chancela intelectual ao movimento
99
), teve importante contribuição pois a partir dela ficou
mais clara a postura de apropriação de diversas manifestações vanguardistas e a posterior
reelaboração em busca do novo. Delimitado cronologicamente pelos anos de 1967 e 1968, o
Tropicalismo teve em Hélio Oiticica nas artes psticas, Glauber Rocha no cinema, José
Celso Martinez Correa no teatro, Caetano Veloso e Gilberto Gil na música, nomes que
sintetizaram em suas obras os seus preceitos, dando ao movimento uma efervescência interna
às vezes perdida por análises que privilegiam apenas a faceta mais visível, que acabou por ser
a música, dada a sua maior inserção nos meios de comunicação
100
.
99
A esse respeito, ver: CAMPOS, Augusto de (Org.). O Balanço da Bossa e Outras Bossas. São Paulo:
Perspectiva, 1974; VILLAÇA, Mariana Martins. Tropicalismo: Um movimento em debate. Alta Fidelidade
Dossiê Especial I: Tropicalismo. www.geocities.com/altafidelidade/trop_debt.htm, 24/05/2001.
100
É o caso da obra de Celso Favaretto Tropicália: Alegoria, alegria (São Paulo: Kairós, 1979 segunda
edição pela Ateliê Editorial, em 1996), uma das matrizes de análise sobre o movimento, na qual apenas a
88
Os ecos da contracultura, a preocupação em revolucionar os padrões
comportamentais em todos os aspectos, embora não sejam o chamariz do movimento,
estiveram relacionados a uma importante contribuição tropicalista, qual seja a validação,
por meio de uma perspectiva crítica, do rock no Brasil. Até então, conotações positivas
lhe eram atribuídas referenciadas em parâmetros de consumo. Ao utilizarem a guitarra e
fazerem referências à Jovem Guarda (chamando a atenção daqueles que a desprezavam
para outros aspectos, além do mercadológico) em acordo com sua proposta para a solução
do impasse da MPB pós-1964, impasse também identificado pelos nacionalistas, que
consistia numa música produzida no Brasil que fosse um “som universal”, Gil e Caetano
mexeram com as estruturas de nossa música popular
101
. Em 1966 já havia sido organizada a
“Passeata Contra a Guitarra Elétrica” pelas ruas de São Paulo, liderada por Elis Regina,
reunido os defensores da perspectiva nacional-popular em protesto contra a Jovem Guarda
e a “invasão” de música estrangeira (o rock mais precisamente) na cultura nacional. O
espaço dos festivais, a partir do III Festival de MPB da TV Record em 1967, passou a ser
um espaço de embate das perspectivas estéticas e políticas.
Neste festival, Gilberto Gil e Caetano Veloso apresentaram,
respectivamente, “Domingo no Parque” e “Alegria, Alegria”, canções posteriormente
produção musical, centrada nas produções de Caetano Veloso e Gilberto Gil, é abordada. Posteriormente,
analisou a produção de Hélio Oiticica, não somente à do período tropicalista, em A Invenção de Hélio Oiticica
(São Paulo: EDUSP, 1992).
101
Fazemos questão de ressaltar que apesar de seu maior destaque, Gil e Caetano não foram os únicos a
produzirem música tropicalista, assim como também não foram os únicos a buscar novas perspectivas. “Ao
radicalizar na busca de novos paradigmas, os dois compositores baianos, estavam inseridos num conjunto de
artistas que tentavam superar os ‘impasses’, ora priorizando o tema das letras, ora priorizando o todo
musical” (NAPOLITANO, Marcos. O Tropicalismo no contexto dos festivais. Alta Fidelidade Dossiê
Especial I: Tropicalismo. www.geocities.com/altafidelidade/trop_debt.htm, 24/05/2001, p. 3). Entre os
tropicalistas, Tom Zé e o maestro Rogério Duprat também foram nomes paradigmáticos.
89
“mitificadas como evento inaugural do tropicalismo”
102
. Vaiados, mas não muito (afinal a
canção de Gil era um baião e a de Caetano uma marcha, embora as guitarras estivessem no
arranjo), o enfrentamento com o público e os defensores do nacional-popular ocorreria de
maneira intensa na primeira edição do Festival Internacional da Canção, em 1968. Antes,
em agosto de 68, os tropicalistas lançaram o “álbum-manifesto” Panis et Circensis:
As canções do disco se propunham a ser uma espécie de "exumação" dos mitos
políticos, valores sociais, categorias ideológicas e simbólicas que informavam a
expressão do "nacional-popular" no Brasil. Numa atitude iconoclasta,
aproveitando todos os parâmetros da canção – letra, melodia, arranjo, entonação –
o álbum transformava aqueles elementos em "relíquias do Brasil", questionando o
papel da arte como veículo ideológico de afirmação nacional. A colagem de
fragmentos musicais (Vicente Celestino, Hino Nacional, O Guarani, ufanismo
musical, A Internacional, batuque de samba) e poéticos (Coelho Neto, Gonçalves
Dias, Bertold Brecht), cuja liga era dada pela informação contemporânea (música
concreta, música eletrônica , experiências eletroacústicas, rock e a própria MMPB
[Moderna Música Popular Brasileira]), formavam um verdadeiro mosaico. Um
mosaico que tinha um objetivo ideológico muitas vezes assumido pelos
"tropicalistas": reiterar sobre a impossibilidade da canção ser um veículo
ideológico coerente e orgânico, sobretudo se estiver submetida aos ditames da
indústria cultural
103
.
A proposta do disco, juntamente com a postura de instigar a polêmica que os
tropicalistas adotaram (Caetano fazia questão de ressaltar a importância de Roberto Carlos,
“Rei” do mercado e inimigo 1 dos nacionalistas, para a música brasileira sempre que
possível, por exemplo) criou um clima de tensão em torno de suas participações no I
Festival Internacional da Canção, promovido pela TV Globo e a Secretaria de Turismo do
Estado da Guanabara, marcado pela disputa na final entre as canções “Pra Não Dizer que
Não Falei das Flores (Caminhando)” de Geraldo Vandré, conclamando à resistência armada
(“Vem, vamos embora / Que esperar não é saber / Quem sabe faz a hora / Não espera
102
NAPOLITANO, Marcos. O Tropicalismo no contexto dos festivais. Op. cit., p. 3.
103
Ibidem, p. 5.
90
acontecer”), e “Sabiá” de Tom Jobim e Chico Buarque, uma canção de exílio que remetia à
resistência democrática (“Vou voltar/ Sei que ainda vou voltar / Para o meu lugar)
["Caminhando"] Acabou classificada em 2º lugar, até por pressão dos militares que
não admitiam sua vitória, perdendo para “Sabiá”, de Tom Jobim e Chico
Buarque. De qualquer forma, a canção acabou se consagrando, sobretudo pelos
estudantes, protagonistas das grandes passeatas contra o regime militar. [...] na
finalíssima do FIC, com o Maracanãzinho lotado com trinta mil pessoas que
cantaram "Caminhando" em coro, uma multidão [que manifestara seu
descontentamento com o resultado vaiando o júri] continuou cantando a música
enquanto ia embora para a casa
104
.
Antes, durante a final paulistana na qual seriam classificadas as seis
primeiras para a finalíssima no Rio de Janeiro, Caetano Veloso, vaiado e alvejado com
tomates pelo público na sua eliminatória, usou sua apresentação de “É Proibido Proibir”
para protestar contra o júri que desclassificara Gilberto Gil e sua canção “Questão de
Ordem”
105
. Acompanhado pelos Mutantes, todos vestindo roupas de plástico em cores
fortes e modelagem futurista, discursou contra o público, que de costas para o palco o
vaiava, e os jurados, “que não haviam entendido nada” da proposta de Gilberto Gil e dele
também:
Eu quero dizer ao juri: me desclassifiquem ... eu não tenho nada a ver com isso...
Gilberto Gil está comigo (Gil entra no palco, a vaia cresce) ... nós estamos aqui
para acabar com o festival e com toda a imbecilidade que reina no Brasil... nós
entramos no festival pra isso... nós tivemos coragem de entrar em todas as
estruturas e sair de todas... se vocês forem em política como são em estética,
104
NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira. Utopia e Massificação (1950-1980). Op. cit., p. 72 e 73.
105
A eliminação se deu dois dias antes na última eliminatória, por desrespeito às normas do festival. Nela, Gil
apresentou “Questão de Ordem” acompanhado pelo grupo de rock argentino Beast Boys “e o público vaiou
estrepitosamente. Também não entendi nada e perguntei, me disseram que era um ‘canto falado à Jimi
Hendrix’, mas ninguém gostou daquilo, guitarras aos berros, um dos garotos da banda batendo com uma
baqueta numa calota de automóvel, Gil de barba, bigodes e cabelo black power gritando palavras em
desordem, não havia música, não havia ritmo, era tudo barulho. Nem o júri gostou e a música acabou
desclassificada, o que pouco importava para Gil: ‘Questão de Ordem’ colocava em questão a estrutura do
festival e seus critérios e classificá-la seria tão insólito e ridículo quanto desclassificá-la” (MOTTA, Nelson.
Op. cit., p. 175)
91
estamos feitos! Me desclassifiquem junto com Gil... o juri é muito simpático, mas é
incompetente. Deus está solto
106
.
Em dezembro de 1968, com a instauração do Ato Institucional 5, a censura
aperta o cerco e vanguarda, mudança e subversão passam a ser sinônimos para os militares
107
.
Gil e Caetano são presos e posteriormente exilam-se, opção feita por muitos outros
“inimigos” do regime, fazendo com que a efervescência tropicalista, juntamente com
produção artística em geral, diminuísse. Assim, “a sica popular brasileira entrava nos
anos 1970 sem os seus maiores compositores; quase todos ‘viviam’ fora do país. Ao mesmo
tempo, a grande tendência do mercado, com a crise dos festivais da canção e cerceada pela
censura, era a música jovem, o pop e o rock, que garantiam um espaço maior na preferência
de uma boa parte da juventude”
108
.
Nesta cada, apesar da perspectiva contracultural ter significativo apelo entre
os jovens brasileiros, na forma do desbunde” (a vida fora da sociedade estabelecida), a
ampliação da participação dos jovens na sociedade de consumo atraiu muito mais:
Mas para a grande maioria dos jovens brasileiros de classe média, e mesmo alguns
das classes populares, o início dos anos 1970, representou a abertura de um grande
106
MOTTA, Nelson. Op. cit., p. 177. O desembarace de Gil e Caetano no âmbito da indústria cultural
posteriormente, no entanto, veio demonstrar que o desejo de entrar e sair das estruturas foi circunstanciado.
Após tornarem-se autores canônicos, passaram a estar mais preocupados em defender sua posição. A esse
respeito ver: SANCHES, Pedro Alexandre Tropicalismo. Decadência bonita do samba. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2000; MEDAGLIA, Julio. MPB Entertainments Limited. In: ___: Música Impopular. São Paulo:
Global, 1988, p. 312-318.
107
Em 1968, o quadro político no Brasil torna-se bastante diverso dos primeiros anos de ditadura. “O regime
respondeu, em dezembro de 68, com o endurecimento. Se em 64 fora possível a direita ‘preservar’ a
produção cultural, pois bastava liquidar o seu contato com a massa operária e camponesa, em 68, quando o
estudante e o público dos melhores filmes, do melhor teatro, da melhor música e dos melhores livros
constituem massa politicamente perigosa, será necessário trocar ou censurar os professores, os encenadores,
os escritores, os músicos, os livros, os editores, - noutras palavras, será necessário liquidar a própria cultura
viva do momento” (SCHWARZ, Roberto. O Pai de Família e Outros Estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1978, p. 63).
108
NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira. Utopia e massificação (1950-1980). Op. cit., p. 85.
92
mercado de trabalho, com novas possibilidades de consumo (por exemplo, a compra
do automóvel, uma marca da juventude alienada). Longe de alternativas radicais de
recusa ao sistema, politizada ou desbundada, o jovem brasileiro ‘médio’ queria
apenas comprar o seu Corcel 73 e tentar aproveitar o milagre [econômico],
conforme a crítica de Raul Seixas: "Eu devia estar contente porque eu tenho um
emprego / Sou o dito cidadão respeitado / Ganho 4 mil cruzeiros por mês / Eu devia
estar contente porque eu consegui comprar um Corcel 73 ... "
109
Fora do Brasil, o rock buscava legitimidade. Com a derrocada da
contracultura, a proposta sintetizada no rótulo “progressive rockou rock progressivo”
ganhou maior visibilidade. Embora não fosse única, a tendência à profissionalização do
rock obteve respaldo de público, crítica e gravadoras, fazendo com que ele pudesse
reivindicar o status de arte. Ainda hoje, boa música remete a elaboração, virtuosimo,
complexidade, seriedade, características da música erudita, vista como o ponto máximo da
produção musical. Não é necessário muito esforço para percebermos como, de um lado, os
estudos sobre sica privilegiam estas características e, de outro, o desprezo de boa parte
da academia com a produção musical popular, visto que nos cursos de música, ela é
estudada (quando é) sob o estigma do “folclore”
110
. Ao buscarem a excelência técnica para
a produção de rock, os adeptos da perspectiva progressiva queriam estabelecer a distinção
entre o “bom” e o “mau” rock e, uma vez separado o joio do trigo, reivindicaram sua
importância no cânone da música ocidental:
Atribui-se geralmente o nascimento do rock progressivo ao álbum dos Beatles
Sergeant Pepper’s, que não abriu a criatividade pop para os recursos técnicos
do estúdio, mas também ousou apresentar o rock como uma forma de arte. Mas os
Beatles tinham muito humor (Sergeant Pepper’s é uma festa), e o humor não se
inclui entre as características básicas do idioma progressivo. E há também a
109
Ibidem, p. 84.
A canção de Raul Seixas a que se faz referência é “Ouro de Tolo”, do LP Krig-ha Bandolo de 1973.
110
Em História e Música: Canção popular e conhecimento histórico (Revista Brasileira de História. o
Paulo, vol. 20, n.º 39, 2000, p. 203-221) José Geraldo Vinci de Moraes trata disso no tocante ao Brasil, mas
exemplos como o da citada obra de Eric Hobsbawn sobre o Jazz (História Social do Jazz. Rio de Janeiro: Paz
e Terra 1990), por ele assinada sob o pseudônimo de Francis Newton até a década de 80, de modo a não
misturar o trabalho historiador do movimento operário com o do crítico musical, nos dão elementos para
inferir que o problema não está restrito às universidades brasileiras.
93
questão das letras: no rock dos anos 60 (Beatles, Stones, Dylan, Simon &
Garfunkel), elas exerceram um papel vital, como poesia. No progressivo, as letras
são secundárias; às vezes os vocalistas se tornam uma simples complementação
sonora para as grandiloqüentes construções instrumentais elaboradas em estúdio.
Estes poemas tonais do rock podiam ser oníricos, sem dúvida, mas num clima de
pesadelo, sombrio, aparentemente sem nenhuma ligação com a vitalidade rítmica
do rock’n’roll original ou com a atmosfera de celebração do rock dos anos 60
111
.
O privilégio à parte musical foi uma característica advinda de um ponto em
comum entre vários nomes do rock progressivo, a formação em música erudita, o que ajuda
a explicar também sua preocupação em obter respaldo para este estilo de massas frente à
música canônica. Emerson, Lake & Palmer, The Alan Parksons Project, Supertramp, Yes,
Pink Floyd, foram alguns dos grupos que deram forma à proposta progressiva, rompendo
com diversos padrões no âmbito do rock. Um deles foi o formato das canções, normalmente
curtas (cerca de 3 minutos), produzindo obras longas preocupadas com a exploração das
possibilidades sonoras. A aproximação com orquestras também foi outra característica, em
várias oportunidades convidadas a participarem de gravações e apresentações. As
apresentações ao vivo também foram alteradas. As composições do grupo passavam a ser
um dos elementos dos shows, que, contando com produção sofisticada efeitos visuais,
projeção de imagens, iluminação especial, figurinos etc., e alta potência sonora. As
apresentações passaram a ser pensadas enquanto espetáculos:
Assim, quando lançaram [o disco] Atom Heart Mother [1967], durante o Festival
de Bath, os músicos do Pink Floyd subiram ao palco com um coral completo, uma
seção de metais e brindaram a platéia com uma exibição de fogos de artifício.
Numa outra apresentação, em Londres, usaram um polvo inflável de uns vinte
metros de altura que se elevava de um lago (os peixes do lago teriam morrido por
causa do volume dos alto-falantes ...) E, ao voltarem de sua turnê americana [a
banda é inglesa], deram um de seus maiores shows, em Londres, com efeitos
especiais nunca vistos: imagens de desastre de avião, refletores multicoloridos,
111
MUGGIATI, Roberto. Rock: Da Utopia à Incerteza (1967-1984). São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 60-61.
94
gelo seco, um homem inflável com olhos verdes iluminados e um gongo que se
consumia em chamas
112
.
Evidentemente, toda essa alta produção (que também tinha o seu equivalente
em estúdio, com a utilização dos melhores equipamentos disponíveis para gravação na mais
alta fidelidade dos sons) tem um preço, exige uma técnica apurada para composição e
execução das canções e para a manipulação da tecnologia utilizada. A conseqüência mais
imediata disso é a sua “elitização” (financeira e intelectual), demarcando sobremaneira a
distinção entre produtores e público e restringindo em muito o campo da produção. É
contra esse aspecto elitizado que uma outra perspectiva vai se constituir no âmbito do rock,
a partir do movimento punk.
O punk surgiu na Inglaterra e nos EUA (logo se espalhando por outros
países) por volta de 1975-1976, no contexto de implementação do neoliberalismo e
desmantelamento do Estado social-democrata. O termo punk, em inglês, significa “madeira
podre” mas também é usado para designar coisas sem valor ou pessoas desqualificadas. É
com esta última conotação que o termo vai ser empregado pelos punks, geralmente filhos
de operários que, tendo de lidar com a sua condição social e as dificuldades para se
inserirem no mercado de trabalho, optam por “assumir” que são o lado “sem valor”,
“podre”, da sociedade, usando a miséria e a aspereza como elementos básicos de criação e
recusando os aparatos luxuosos, o conhecimento acumulado e os parâmetros estabelecidos
pela sociedade em geral, numa postura anarquizante. Basicamente, os punks se articularam
em torno de duas formas de expressão: o vestuário e a música.
112
Ibidem, p. 63.
95
A indumentária punk, produzida com o intuito de chocar, caracteriza-se por
roupas rasgadas, cabelos com cores, penteados exóticos e alfinetes espetados pelo corpo
(boca, nariz, orelha, braços, etc.). Com os punks surge o punk rock, onde se busca fazer
rock numa outra perspectiva, mais percussivo, seco, ágil, “simples” e “em três acordes”,
como se costuma dizer. Propõe-se que ao invés de apenas admirar o virtuosimo dos grandes
guitarristas progressivos, por exemplo, “do it yourself” ou “faça você mesmo”, não
importando ser ou não um bom instrumentista, se o instrumento era ou não de boa
qualidade. Ao invés de esperar que alguém faça (ou diga) aquilo que se deseja, aja, afinal o
importante é cada momento. Não futuro (“no future”). O importante é o que se faz no
presente
113
.
Apesar dessas linhas gerais, é complicado analisar o punk sob a ótica de um
movimento detentor de uma doutrina. A fluidez na organização e espacialidade que
caracteriza os agrupamentos faz com que eles criem éticas e normas em conformidade aos
seus contextos e aos indivíduos que deles fazem parte
114
. Para Alexander Martins Vianna,
“o motivo disto talvez esteja na própria raiz do fenômeno, que nunca fora pensado
inicialmente como movimento de caráter político, mas uma difusa e suposta reação à
inclusão nos valores da sociedade urbana de meados da década de 1960”
115
. De todo
modo, punk está associado a rebeldia em relação ao estabelecido e foi sob esta conotação
113
ABRAMO, Helena Wendel. Op. cit., p. 42-46
114
Uma conseqüência disso é a dificuldade em se periodizar o punk. Por isso, é importante ressaltar que o
marco adotado aqui diz respeito mais ao momento em que as manifestações ganham visibilidade na Inglaterra
e nos Estados Unidos, não restringindo, em absoluto, a possibilidade da existência de agrupamentos punk
antes de 1975-1976.
115
VIANNA, Alexander Martins. Punk (Conceito e Comportamento). In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira
da (Org.) Dicionário Crítico do Pensamento de Direita. Rio de Janeiro: MAUAD/FAPERJ, 2001, p. 382.
96
que o ele foi incorporado ao sistema, por meio da indústria cultural, principalmente a partir
da moda e da música:
Tornada mercadoria e difundida para faixas sociais que ultrapassavam os bairros
operários, a estética punk vestiria diversas bandeiras; no entanto, pode-se delinear
uma paridade de comportamento no pressuposto da necessária manutenção de uma
postura agressiva no âmbito estético embora nem sempre ficasse restrito a este
campo –, alimentada pelo fantasma de ‘não se tornar sistema’, de não ser modismo
ou artigo de consumo
116
.
Ou seja, para tentarem escapar das garras da indústria cultural, levam esta
postura de radicalização ao limite das possibilidades estéticas, fazendo uso de formas e
símbolos que o padrão estabelecido recusa. Por isso, se produz música contra o “bom
gosto” (o primarismo contra a elaboração do rock progressivo) e utiliza-se símbolos
nazistas nas vestimentas, por exemplo. Dado o grande poder de absorção da indústria
cultural, as ações de rebeldia precisam estar em constate mudança e diferenciação, de modo
a permitir a distinção entre os grupos, “os legítimos” e “as cópias”:
[...] no tipo de música, nas formas de expressão oral e gestual, na estética visual,
enfim, todo ato criativo deve ofender o uso comum dos códigos sociais, causar uma
tensão interpretativa ao seu espectador. Ora, para que sua estética seja ofensiva ao
estabelecido, ela deve conter um des-padrão suficientemente forte para não ser
absorvido por ele o que parece impossível numa sociedade onde a indústria do
entretenimento é um dos maiores ramos e cujo motor de sua expansão está na
própria diversidade. Para escapar a esta tragédia cultural, o universo punk parece
estar condenado ao presente: para cada grupo não ser "cooptado pelo sistema",
deve manter um fluxo ininterrupto de novas criações que sustentem a tensão
interpretativa.
117
.
A manutenção desse fluxo ininterrupto só é vista enquanto possível por meio
do grupo, fragmento espacial, temporal e comportamental da realidade. Cientes da
116
Ibidem, p. 382.
117
VIANNA, Alexander Martins. O Universo Punk como Paradigma para Análise Crítica da Cultura. In:
MENEZES, Lena Medeiro de (Org.). História e Violência. Anais do VII Encontro Regional ANPUH-RJ. Rio
de Janeiro: ANPUH-RJ/UERJ, 1996, p. 505.
97
impossibilidade de subsistir a partir da recusa total ao sistema (a necessidade da venda do
trabalho é algo corriqueiro para os grupos, especialmente os de periferia e de origem
operária), criam no grupo um espaço em que se vêem livres das imposições sociais:
[...] cada grupo pode ser o seu presente mais aperfeiçoado; o passado não lhe
importa porque fora corrompido e o futuro não é predizível – o que resta,
portanto, é tirar o melhor partido possível do presente. [...] Por isso, não importa
que na maior parte do tempo eles circulem dentro do sistema, pois já conformaram
para si um fragmento de vida "impenetrável", onde se encontra defesa e
conforto
118
.
Radicalidade, recusa ao sistema, presentismo, fragmentação, metamorfose
constante os signos e posturas punk acabam, ainda que de maneira fragmentada,
compondo uma “essência punk”, um estereótipo sólido o suficiente para poder ser
transformado em mercadoria cultural. Os integrantes do Sex Pistols, grupo de referência no
punk rock, fizeram este percurso. Criada em Londres a partir da iniciativa de um
comerciante de roupas e empresário de roqueiros, Malcon McLaren, rapidamente percorreu
o caminho das gravadoras independentes até as grandes, assinando com a EMI, uma das
cinco maiores do mundo. Entre 1976 e 1979, eles chocaram a Inglaterra e o rock como um
todo com sua estética agressiva, freqüentaram o segundo lugar das paradas de sucesso sem
precisar que suas músicas tocassem na maior rádio do país, a BBC; fizeram show em um
barco no Rio Tâmisa, que corta Londres, para burlarem a proibição da execução de suas
canções nas rádios, julgadas agressivas e ofensivas. Também foram aos Estados Unidos em
turnê, viraram padrão de “legítimo” punk rock e marca de rebeldia.
Com a morte de seu baixista, Sid Vicius, em fevereiro de 1979 por overdose
de heroína, a banda foi desfeita e os Sex Pistols entraram para a galeria de mitos do rock,
sendo, paradoxalmente, um dos símbolos mais utilizados pela indústria cultural para ganhar
98
dinheiro com o punk, pois na trila aberta por eles, muitas outras bandas, não apenas na
Inglaterra e nos EUA, ganharam dinheiro e muitas lojas venderam indumentárias punk, isso
sem falar das publicações. O punk rock, surgido da necessidade de reverter o paradigma
alcançado pelo rock progressivo, tornou-se um modelo da “verdadeira” música rebelde
119
.
Assim, “a forma de se definir o punk como anti-sistema ou contra o estabelecido
guardaria, então, uma grande ironia: o 'sistema’, tão zelosamente ‘posto pra fora’ da casa,
entra pela porta dos fundos”
120
.
Apesar dessa relação com a indústria cultural não invalidar o punk enquanto
movimento, nem significar que sua presença em outros países além da Inglaterra e dos
Estados Unidos é apenas resultado de estratégia de circulação no âmbito do mercado
cultural, ela revela a contradição que permeia toda a cultura jovem da segunda metade do
século XX em diante: a rebeldia, entendida enquanto recusa aos padrões estabelecidos e
que em vários momentos significou a recusa do padrão de consumo, é a principal
mercadoria que os jovens consomem. Circunstanciada, no entanto, esta contradição,
embora não possa ser resolvida, pode ser equacionada.
Rebeldia não é uma característica nata e sim uma prática cultural. Como tal,
precisa ser analisada sob diversos aspectos: de que rebeldia e de qual rebelde se fala, em
que circunstâncias ela se dá, quais as suas referências, seus mecanismos de expressão, suas
formas de organização, quais seus desdobramentos, e assim por diante. O fato de estar mais
ou menos mediada pela indústria cultural, em princípio, não a condena nem a redime. Feita
118
Ibidem, p. 505.
119
MUGGIATI, Roberto. Rock: Da Utopia à Incerteza (1967-1984). Op. cit., p.71-80.
120
VIANNA, Alexander Martins. Punk (Conceito e Comportamento). Op. cit., p. 383.
99
mercadoria, pode muito bem ser recebida como tal e, reelaborada, ser mecanismo de
contestação, da mesma forma como pode apenas reproduzir padrões.
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Entre os trabalhos que se propuseram a analisar as canções da Legião
Urbana, uma idéia que permeia vários deles é a aproximação das letras com aspectos que
caracterizam o contexto pós-moderno delineado a partir da década de 70. Mesmo autores
que não relacionam diretamente as letras a este debate, ressaltam aspectos que remetem a
ele, tais como a valorização do presente e das ações cotidianas.
Sem querer aqui resolver esta discussão tão acirrada, buscamos neste
capítulo sistematizar em que termos alguns destes trabalhos fazem essa associação entre a
obra da banda e o pós-modernismo, para discutir uma outra idéia: a leitura na qual a Legião
Urbana (e Renato Russo mais precisamente) canta a desesperança de uma geração.
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Um conceito controverso entre os autores (e não apenas entre os aqui
selecionados) é o de pós-modernidade. De maneira geral, define-se a pós-modernidade
100
como sendo o momento histórico no qual se constituiu uma crítica à modernidade,
particularmente nos campos da arte e da academia, estabelecendo-se um debate,
caracterizado como pós-modernismo, orientado em torno do repensar e da superação de
alguns preceitos modernos. Sem menosprezar a ressalva feita por Nicolau Sevcenko sobre a
impossibilidade da delimitação de um ato inaugural, um recorte ou mesmo uma data
decisiva a partir do qual se pudesse caracterizar o surgimento da pós-modernidade
121
,
podemos ter no contexto dos EUA da década 60 um ponto de partida. Andreas Huyssen
chega até mesmo a dizer que o pós-moderno tratou-se de uma “invenção norte-americana”,
produzida por artistas e intelectuais nascidos ou radicados no país (exemplo das realizações
da modernidade e paradigma para compreensão da saturação de seus ideais), fortemente
identificada dos anos 60 em diante
122
. O pós-modernismo ganhará contornos mais nítidos
com a ampliação do debate na década seguinte, o que não significou, entretanto, um
consenso quanto à sua definição. Steven Connor chega a ironizar isso, ao dizer que
“notável é precisamente o grau de consenso no discurso pós-moderno quanto ao fato de
não haver possibilidade de consenso [...]”
123
.
De todo modo, crítica à modernidade é uma característica sempre
atribuída à pós-modernidade. Mas o que vem a ser esta modernidade
criticada?
A idéia de modernidade, na sua forma mais ambiciosa, foi a afirmação de que o
homem é o que ele faz, e que, portanto, deve existir uma correspondência cada vez
mais estreita entre a produção, tornada mais eficaz pela ciência, a tecnologia ou a
administração, a organização da sociedade, regulada pela lei e a vida pessoal,
121
SEVCENKO, Nicolau. O enigma s-moderno. In: OLIVEIRA et alli; Roberto Cardoso. Pós-
Modernidade. 5ª ed. Campinas: Ed. UNICAMP, 1995, p. 45.
122
HUYSSEN, Andreas. Mapeando o pós-moderno. In: HOLLANDA, Heloisa B. (org.). Pós-Modernidade e
Política. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p. 15-80.
123
CONNOR, Steven. Cultura Pós-Moderna. Introdução às teorias do contemporâneo. ed. o Paulo:
Loyola, 1996, p. 17.
101
animada pelo interesse, mas também pela vontade de se liberar de todas as
opressões. Sobre o que repousa essa correspondência de uma cultura científica, de
uma sociedade ordenada e de indivíduos livres, senão sobre o triunfo da razão?
Somente ela estabelece uma correspondência entre a ação humana e a ordem do
mundo, o que já buscavam pensadores religiosos mas foram paralisados pelo
finalismo próprio às religiões monoteístas baseadas numa revelação. É a razão que
anima a ciência e suas aplicações; é ela também que comanda a adaptação da vida
social às necessidades individuais e coletivas; é ela, finalmente, que substitui a
arbitrariedade e a violência pelo estado de direito e pelo mercado. A humanidade,
agindo segundo leis, avança simultaneamente em direção à abundância, à
liberdade e à felicidade
124
.
Em torno dessa posição central da racionalidade na sociedade é que se
organiza o debate acerca do pós-moderno, alimentado pelo desejo de resposta à seguinte
questão: a modernidade, enquanto momento no qual a sociedade busca o progresso
conduzida pela razão, estaria superada?
Para Sérgio Paulo Rouanet a pós-modernidade e seus congêneres,
enquanto um momento de superação da modernidade, não é nada
além de uma ilusão. Em sua ótica, a modernidade tem passado por
mudanças, precisa ser em muito melhorada, mas ela não chegou ao
fim, embora esteja em profundo descrédito:
Creio que o que esem jogo é o seguinte: depois da experiência de duas
guerras mundiais, depois de Auschwitz, depois de Hiroshima, vivendo num
mundo ameaçado pela aniquilação atômica, pela ressurreição dos velhos
fanatismos políticos e religiosos e pela degradação dos ecossistemas, o
homem contemporâneo está cansado da modernidade
. [...]
O desejo de
ruptura leva à convicção de que essa ruptura ocorreu, ou está em vias de
ocorrer. Se é assim, o prefixo pós
tem muito mais o sentido de exorcizar o
velho (a modernidade) que de articular o novo (o pós-moderno).
[...]
À
consciência
pós-moderna não corresponde uma realidade pós-moderna.
[...]
Essa é a verdade do pós-moderno. Sua ilusão é a tentativa de reagir às
patologias da modernidade através de uma fuga para a frente,
124
TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 9.
102
renunciando a confrontar-se concretamente com os problemas da
modernidade
125
.
na análise de Andreas Huyssen, não dúvidas: houve uma mudança de
“sensibilidade” na sociedade ocidental a partir da crítica ao racionalismo (e sua
conseqüente reavaliação), ao caráter utilitário da arte e às explicações pretensamente totais
que, no entanto, deixaram de lado muitos aspectos da vida social. Tal mudança é
particularmente perceptível na cultura, a partir da década de 1960, configurando-se um
novo momento para o qual o termo pós-moderno é adequado, na medida em que as
transformações não implicaram numa alteração radical no paradigma de modernidade e,
também, pelo fato de só ser factível o entendimento da amplitude do que há de novo a partir
de uma perspectiva relacional, ou seja, que coadune modernidade e pós-modernidade.
Entende que negar e ridicularizar o pós-moderno a partir de suas manifestações efêmeras
ou megalomaníacas por parte de alguns artistas (praticantes do “pós-modernismo
afirmativo”) é algo fácil.
Huyssen distingue o pós-modernismo em dois: o afirmativo, que apesar da
aparente desconstrução anunciada em suas manifestações (a ruptura” com os conceitos
tradicionais de arte, por exemplo), reafirma os valores da sociedade, e o pós-modernismo
crítico, que não se reduz à desconstrução e reafirmação dos valores que critica. A distinção
entre um e outro é muito tênue, sendo difícil identificar esta última forma de pós-
modernidade. Para ajudar a diferenciar um e outro, Huyssen cita o que é para ele uma
postura comum na arte pós-moderna afirmativa, ocorrida durante a Documenta 7,
exposição de arte contemporânea realizada na cidade alemã de Kassel em 1982, a qual
125
ROUANET, Sérgio Paulo. A verdade e a ilusão do s-moderno. IN: ___. As Razões do Iluminismo. São
103
visitou acompanhado de seu filho Daniel, então com 5 anos. No museu, obras dos mais
variados artistas materializavam uma extensa lista de rupturas. Quando um guarda percebeu
que Daniel tocava uma obra, “aproximou-se rapidamente gritando: ‘Nicht Berühren! Das
ist Knust!’ (‘Não toque! Isso é arte!’). [...] Ali estava ela, de novo, a velha noção de arte:
não toque, não ultrapasse. O museu como templo, o artista como profeta, a obra como
relíquia e o objeto de culto, a aura restaurada”
126
. Tais posturas, devem ser efetivamente
recusadas mas, se os críticos da pós-modernidade tomarem apenas o caráter “afirmativo”
para fundamentarem-se, estarão deixando de lado suas contribuições para o debate como
um todo. “Essa rejeição radical nos deixará cegos, contudo, para o potencial crítico do
pós-modernismo, que, acredito, também existe, embora possa ser difícil identificá-lo
127
.
Ao não se reduzir à desconstrução, a perspectiva crítica do pós-modernismo
contribui para alargar os limites do debate, apontando falhas e propondo ações. Em seu
texto, Huyssen destaca o papel de setores da crítica feminista e de minorias que, rompendo
com os dogmatismos, deram novas dimensões às discussões dos anos 70 em diante.
Especificamente sobre as mulheres diz:
A crítica produzida por mulheres tem lançado uma luz nova sobre o próprio cânon
modernista, a partir de uma variedade de perspectivas feministas. Sem sucumbir a
uma espécie de essencialismo feminino, um dos lados mais problemáticos da
proposta feminista, parece óbvio que, se não fosse pelo olhar sagaz da crítica
feminista, as determinações e obsessões masculinas do futurismo italiano, do
Vorticismo, do construtivismo russo, da New Sachlichkeit ou do surrealismo teriam
permanecido ocultas; e os escritos de Marie Louise Fleisser e Ingeborg Bachmann,
bem como as pinturas de Frida Kahlo, continuariam sendo conhecidos apenas por
um punhado de especialistas
128
.
Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 268-269.
126
HUYSSEN, Andreas. Op. cit., p. 17.
127
Ibidem, p. 21.
128
Ibidem, p. 46-47.
104
De modo a não menosprezar essas contribuições, Andreas Huyssen,
propõe que o pós-moderno seja discutido sem ilusões e preconceitos,
numa perspectiva histórica:
Se o pós-moderno for discutido antes como condição histórica e não como simples
estilo, torna-se possível e mesmo importante descobrir o momento crítico no
próprio pós-modernismo e afiar o seu gume, mesmo que ele pareça cego à primeira
vista. O que não adianta mais é louvar ou ridicularizar o pós-modernismo em seu
conjunto. O pós-modernismo deve ser salvo de seus defensores e de seus
detratores
129
.
Se Huyssen quer salvar o pós-moderno, Alain Touraine, por outro lado,
deseja salvar a modernidade (também tanto de seus críticos quanto de alguns apologistas)
por meio da valorização do sujeito e da subjetivação, possibilitando, além de um conceito
de modernidade mais crítico, que a efetivação de seus projetos seja menos inconseqüente,
pois ela não foi superada e não deve ser abandonada
130
. As bases da modernidade, ainda
que atualizadas, permanecem. Um de seus conflitos centrais, por exemplo, assume nova
roupagem. No contexto da substituição da sociedade de produção pela sociedade de
consumo no pós–2ª Guerra, o embate entre capital e trabalho metamorfoseia-se na oposição
sujeito versus objetos de consumo. “Sociedade de consumo e defesa do sujeito o os
atores opostos cujo conflito define a forma social que toma uma sociedade pós-industrial
que não é absolutamente pós-moderna mas, ao contrário, hipermoderna”
131
. Por isso,
Touraine recusa a idéia de estarmos vivendo uma era pós-moderna, na qual a razão estaria
fragilizada pelas múltiplas críticas aos caminhos que ela levou, entendendo que estamos,
antes, em uma “sociedade programada”:
129
Ibidem, p. 22.
130
TOURAINE, Alain. Op. cit., p. 13-14.
131
Ibidem, p. 267.
105
Com efeito, eu chamo de sociedade programada – expressão mais precisa que a de
sociedade pós-industrial que é definida por aquilo que ela sucede aquela em
que a produção e a difusão maciça dos bens culturais ocupam, o lugar central que
fora o dos bens materiais da sociedade industrial. O que foram a metalurgia, a
indústria têxtil, a química, assim como as indústrias elétricas e eletrônicas na
sociedade industrial, são a produção e a difusão dos conhecimentos, dos cuidados
médicos e das informações, portanto a educação, a saúde e os meios de
comunicação na sociedade programada
132
Nessa nova sociedade, a razão, pretensamente enfraquecida, é
hipervalorizada na sua forma utilitária, embora não seja mais a única pilastra na qual se
sustente a busca do progresso. A especialização técnica ganha contornos extremados, com
cada indivíduo tendo de desempenhar da melhor forma possível a função social para o qual
foi formado, “programado”, e o conhecimento é usado para criar fórmulas que permitam
antever a ação das pessoas e seus anseios, de modo a moldar personalidades e a própria
cultura. A Indústria Cultural é a materialização disso, ao objetivar o mundo dos “valores” e
não somente o campo da utilidade cotidiana. Reconfigurada, a modernidade precisa ser
repensada, reconceituada, sob o risco de virmos a enfrentar tempos conturbados.
Se nós não conseguirmos definir uma outra concepção da modernidade, menos
orgulhosa que a do Iluminismo, mas capaz de resistir à diversidade absoluta das
idéias e dos indivíduos, nós entraremos em tempestades ainda mais violentas que
aquelas que acompanharam a queda dos antigos regimes e da industrialização
133
.
Entre os defensores da existência de um momento pós-moderno, a oposição
radical em relação à modernidade não é idéia dominante. A perspectiva relacional, análoga
à definida por Andreas Huyssen, tem predominância. Em seu estudo acerca do discurso
pós-modernista, Italo Moriconi concluiu que o prefixo “pós” não remete a “após” ou “não
O papel do consumo no âmbito da sociedade capitalista de 1945 em diante já foi oportunamente discutido no
capítulo 1.
132
Ibidem, p. 258-259.
133
Ibidem, p. 209.
106
modernidade” e sim a um período posterior em constante diálogo com a modernidade. A
importância da modernidade não é negada, a partir da sua manutenção como “palavra-
núcleo”, mas a necessidade de repensá-la e buscar ir além é premente:
O pós representa ao mesmo tempo o esgotamento e o desdobramento da palavra-
núcleo enquanto aventura de mudança, aventura de destruição e de construção. O
pós refere-se ao balanço dos resultados desta aventura e assinala um deslocamento
e uma inversão em relação a suas metas iniciais, mas assinala também sua
irreversibilidade
134
.
Buscando, então, ir além da modernidade, no que tange ao conhecimento,
adquire relevância a perspectiva de análise diacrônica, na qual a temporalidade está
fragmentada em uma multiplicidade de séries, em contraposição à sincrônica, ancorada na
simultaneidade dos eventos e existência de uma única temporalidade na vida social.
A sincronia ou simultaneidade deixa de ser a solda entre os múltiplos níveis e
elementos de uma contemporaneidade e de uma proximidade concreta no plano dos
acontecimentos e passa a indicar um princípio ativo de ordenação da diacronia,
alternativo às relações simples do antes e do depois
135
.
Ao falar de um tempo constituídos por vários outros tempos, Moriconi quer
dizer, entre outras coisas, que o desenvolvimento do capitalismo não se deu de maneira
uniforme, da mesma forma que o projeto da modernidade não foi um desejo de todos
aqueles que dela participaram. É por isso que no âmbito da pós-modernidade, as
explicações totalizantes, quase dogmas da modernidade, passam a ser redimensionadas e
teorias como o marxismo perdem força. Também ocorre uma valorização do presente, que
deixa de ser apenas predeterminação do passado e etapa necessária para o futuro. Ele, o
134
MORICONI, Italo. A Provocação Pós-Moderna. Razão histórica e política hoje. Rio de Janeiro: Diadorim,
1994, p. 25.
135
Ibidem, p. 125-126.
107
presente, é o tempo da ação política, que não está submetida à tradição mas em diálogo com
ela numa perspectiva histórica:
Pensar o histórico como político é pensá-lo como agora, pensando o agora como
histórico. É desvincular cada agora de seu caráter de transição automática entre o
passado e o futuro. Cada agora é mônada, que suga para dentro de si todo o passado
como entrecruzamento de esperanças e todo o futuro como tempo de múltiplas
possibilidades, nem todas boas, nem todas ruis, por tudo dependerá das lutas
travadas
136
.
A matriz da qual Ítalo Moriconi parte para a valorização do presente nesses
termos é controversa. Trata-se do conceito de “agoridade” de Walter Benjamin, lido como
significando por um lado, enfatizar a presença simultânea do passado e do futuro no
âmago de qualquer presente; por outro lado, dotar dos atributos do agora as relações
entre as diferentes dimensões do tempo cronológico”. o pensador, um crítico da
modernidade, como um precursor (embora não use o termo) do discurso pós-moderno por
sua proposição de intervenção efetiva no presente.
Benjamin propunha um conceito de história baseado na necessidade de intervir
sobre ela. A agoridade, princípio sincrônico, desordenador/reordenador do
artificial constructo linear imposto sobre o campo de ruínas do passado,
representava uma concepção de pensamento histórico como exercício de vontade e
responsabilidade política. Vontade de mudar o curso da história
137
.
De fato, Benjamin defendeu a participação ativa dos sujeitos históricos em
seus tempos para que eles não se tornassem fantoches da história. Também entendeu que
esta mesma história não transcorre numa marcha uniforme, pois a história é objeto de
136
Ibidem, p. 126.
108
uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de
‘agoras’”, constantemente reordenados sob a forma do passado, que por sua vez é sempre
mobilizado para ação no presente e projeção de um futuro
138
. Mas será que isso basta para
alçá-lo à condição de precursor do pós-modernismo?
Segundo Nicolau Sevcenko, o Benjamin crítico da modernidade que escreve
estas palavras em 1940 é um pensador moderno em crise e desiludido com os caminhos
deste momento histórico. Alemão e judeu, estava exilado para fugir da perseguição nazista;
pensador marxista, via o modelo socialista russo assumir a forma totalitária. Para além
disso, o mundo enfrentava sua segunda grande guerra e russos e nazistas haviam assinado
um pacto.
Ele apostou com convicção nas vanguardas artísticas do início do século, que por
sua vez apostaram pesado na vitória da racionalidade, do maquinismo, da
transformação da sociedade num gigantesco autômato auto-regulado, em que a
arte, a técnica e a vida se fundiram numa unidade revitalizadora. Uma utopia da
igualdade perfeita, produzida pela razão, governada pela técnica e desfrutada pela
arte
139
.
Crítico e desiludido, Benjamin, no entanto, não desistiu do projeto moderno.
Talvez até pudesse vir a desistir, mas sua morte prematura, no mesmo ano de 1940, fez com
que tal possibilidade ficasse reduzida ao campo das conjecturas. Atribuir a Benjamin um
adjetivo que seria formulado pelo menos duas décadas depois pode até ser possível.
Porém, embarcando nessa mesma lógica, se retrocedermos ao século XIX não será difícil
encontrar outros precursores do pós-modernismo entre outros críticos da modernidade e
137
Ibidem, p. 126.
138
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: ___. Obras Escolhidas Magia e Técnica, Arte e
Política. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 229-230.
139
SEVCENKO, Nicolau. Op. cit., p. 48.
109
cometermos muitos anacronismos. Beatriz Sarlo tem uma resposta contundente a quem se
propõe a fazer tais aproximações:
Então, de onde sai este Benjamin precursor da pós-modernidade e flâneur, ele
mesmo, das ruínas da totalidade? Nos alambiques da Internacional acadêmica,
promotora dos últimos achados industriais dos estudos culturais, combina-se, com
invejável singeleza, Foucault com Benjamin, Derrida com Deleuze e Raymond
Williams com Bakhtim. Tudo se soma. Entretanto, a soma é o problema
140
.
Ou seja, para Sarlo o Benjamin “pré” pós-moderno surge da
despreocupação dos estudiosos culturais, tão preocupados em romper
com as barreiras, com a historicidade dos autores e seus textos. Agindo
desta maneira, fragmentos retirados de seus contextos podem,
reordenados, sustentarem concepções pouco ou nada próximas de seu
intuito original.
Em outro texto, escrito quase uma década antes, Moriconi identificava
o conceito de agoridade em outro autor: Octavio Paz
141
. A partir da
leitura feita por Haroldo de Campos da obra do poeta e ensaísta
mexicano
142
, ele nomeia a pós-modernidade como “pós-utopia”, por
entender ser
“problemático identificar nos impasses, propostas e
realizações da arte e da literaturas contemporâneas traços de uma
ruptura ou superação do que se convencionou chamar de
modernidade”
143
.
Reportando-se a Paz, diz que, na modernidade, as
vanguardas tinham como tempo o futuro. Contudo, no âmbito da
“crise das ideologias” que marca o contexto pós-moderno/pós-
140
SARLO, Beatriz. Esquecer Benjamin. In: ___. Paisagens Imaginárias. São Paulo: Ed da UNESP, 1997, p.
103.
141
MORICONI, Italo. O Pós-Utópico: Crítica do futuro e da razão imanente. Revista Tempo Brasileiro. Rio
de Janeiro, n.º 84, jan./mar. 1986, p. 69-85.
142
Trata-se da comunicação “Poesia e Modernidade” apresentada por Haroldo de Campos em um seminário
realizado na Cidade do México em 1984 por ocasião dos 70 anos de Octavio Paz, publicado nos n.º 403 e 404
do Folhetim (Folha de S. Paulo, 07 e 14 de outubro de 1984). A obra analisada é Os Filhos do Barro, uma
série de conferências proferidas por Octavio Paz em Harvard no ano de 1972.
143
MORICONI, Italo. O Pós-Utópico: Crítica do futuro e da razão imanente. Op. cit., p. 69.
110
utópico, o futuro está desacreditado e o novo passa a ser pensado no
presente, por sua vez pós-utópico:
O pós-utópico é, portanto, o tempo da pós- vanguarda, nestas duas
acepções, desde o início interligadas: artístico-literária e político cultural.
Tanto para Octavio Paz, quanto para Haroldo de Campos, que retoma
um tema caro ao mexicano, a pós-vanguarda, modo deste momento pós-
utópico, aponta o caminho de uma poética da presentividade
, ou
agoridade
, marcada por uma noção de tempo não mais governada pelo
futuro, tempo da utopia.
[...]
Assim, em Octavio Paz, a reflexão sobre o
esgotamento das vanguardas conduz a uma teoria da pós-modernidade e à
defesa de uma nova cultura, pós-iluminista, pós-racionalista
144
.
Cotejando os dois trabalhos de Moriconi, podemos notar que entre um
e outro a noção de pós-modernidade muda. Se aqui ela é vista como
uma etapa posterior à modernidade na qual rompe-se com os preceitos
desta, conforme destacamos, em seu livro ele endossa a leitura na
qual o pós-modernismo em certa medida da continuidade à utopia
moderna. No entanto, não dedica qualquer palavra para esclarecer a
razão de tal mudança, a ponto do termo “pós-utópico não ser
utilizado uma única vez. Mas o conceito de agoridade, e uma
correspondente poética do agora, permanece. Este é um problema
que não iremos resolver. Porém, é importante identificá-lo em função
de Ítalo Moriconi ser a base na qual Christian Vargas busca
sustentação para sua análise de Renato Russo como um poeta do
presente e as canções da Legião Urbana como constituintes de um
imaginário pós-utópico.
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.
.
Em seu texto “Os Anjos Decaídos: Uma arqueologia do imaginário pós-
utópico nas canções da Legião Urbana”, que define como sendo um
ensaio filiado à Nova História Cultural, Christian Vargas busca atender
144
Ibidem, p. 75.
111
à premissa dessa historiografia, compreendida por ele como
“preocupada em demonstrar, analisar e problematizar o processo de
construção de sentido para o mundo por parte dos atores sociais, bem
como em apontar suas conseqüências para a conformação da
realidade histórica de um dado momento em um lugar
determinado”
145
.
Esses processos de construção de sentidos são
constituídos por “camadas de representações”. Em sua perspectiva, a
obra da Legião Urbana é um desses processos e
escavar as camadas de representações presentes em construções discursivas
tais como as canções de um grupo de rock implica a partir do duplo
postulado sobre o caráter coletivo da obra de arte e a relativa
independência da dimensão superestrutural na conformação da realidade
histórica trazer à tona as formas como uma parcela de uma determinada
população compreende a sociedade num dado momento e, em
conseqüência, de que modo algumas representações fundamentais
formuladas por essa camada social participam ativamente da construção
de sua identidade e, no limite, da compreensão de seu papel histórico,
gerando táticas e estratégias que dão uma nova configuração à realidade
social circundante
146
.
Dessa forma,
Ao nos debruçarmos sobre as letras das canções da Legião Urbana,
buscaremos, portanto, identificar a conformação de certas representações
que apontariam para a constituição de um imaginário pós-utópico
147
.
Orientado pelo conceito de representação de Roger Chartier, entende
que as letras de Renato Russo não são reflexo desse imaginário pós-
utópico e sim leituras do mesmo, que por sua vez têm, também, um
145
VARGAS, Christian. Os Anjos Decaídos. Uma arqueologia do imaginário pós-utópico das canções da
Legião Urbana”. In: COSTA, Cléria Botelho; MACHADO, Maria Salete Kern (Orgs.). Imaginário e História.
Brasília/São Paulo: Programa de Pós-Graduação em História da UnB/Marco Zero, 1999, p. 174.
146
Ibidem, p. 175-176.
147
Ibidem, p. 181.
112
caráter produtivo e projetivo inegável, gerando estratégias de
sobrevivência e práticas existenciais: ele moldou atitudes, levou a ações e
altamente destrutivas em certos momentos, lançou modas, embalou
protestos, canalizou raivas e angústias, prescreveu soluções, enfim, foi
muito mais do que a mera trilha sonora de uma geração em busca de
identidade e de modos de expressão renovados
148
.
E o que vem a ser este imaginário pós-utópico? Vejamos. Para definir
imaginário, Christian Vargas cita Cornélius Castoriadis, sendo ele
“criação incessante e essencialmente indeterminada (social-histórica
e psíquica) de figuras-formas-imagens, a partir das quais somente é
possível falar-se de alguma coisa. Aquilo que denominamos
realidade
e
racionalidade
são seus produtos”
149
.
O pós-utópico é entendido como momento posterior à morte de três
utopias seculares: aposta no futuro; na ideologia do trabalho;
apego ao prometeísmo, símbolo da produção moderna. Na medida em
que utopia, de acordo com a etimologia da palavra no grego (
u-topos
,
o “não-lugar”)
“evoca sempre a projeção para um espaço e um tempo
que não podem ser de forma alguma o aqui e agora”
, o pós-utópico,
enquanto momento de questionamento das antigas utopias e
reconstrução de ideais, é marcado por uma nova temporalidade para
a realização das ações humanas. Assim,
“o embate entre os
paradigmas utópicos e pós-utópicos seria basicamente uma tensão
entre presente e futuro, ou melhor, entre as representações
predominantes desses dois tempos”
150
.
Antes de seguir, o autor esclarece a opção pelo conceito de “pós-
utópico” ao invés de “pós-moderno”, normalmente utilizado para
caracterizar este período posterior à morte das utopias seculares
148
Ibidem, p. 181.
149
CASTORIADIS, Cornélius. A Instituição Imaginária da Sociedade. APUD: VARGAS, Christian. Op. cit.,
p. 177.
150
VARGAS, Christian. Op. cit., p. 186-187.
113
(décadas de 1970 e 1980), recorrendo ao referido texto de Italo
Moriconi
151
:
Em conferência realizada em 1984, Haroldo de Campos identificava o
momento literário e cultural então prevalecentes como "pós-utópicos",
termo que acredita ser preferível ao conceito de pós-moderno, visto que não
era ainda clara a superação da totalidade estética dos valores da
modernidade
152
.
Concordando com Moriconi que as vanguardas caracterizavam-se por
projetos coletivos e totalizantes bem definidos, nos quais era
indispensável a desarticulação do presente para uma redefinição do
futuro, tempo da materialização das utopias, e ainda que no contexto
pós-utópico predomina uma “poética da agoridade ou
presentividade”, questionadora dos valores iluministas e modernos, diz
que
“caem por terra a crença otimista na linearidade da história, a
ilusão do conhecimento histórico objetivo, a aposta no jogo político
como a melhor forma de construção de um futuro glorioso, a no
poder transformador das classes eleitas”
153
.
Acompanhando a valorização do presente, está a definição de uma
espacialidade mais imediata, na qual as ações repercutem mais
rapidamente, implicando numa rearticulação das relações sociais e
suas hierarquizações:
O sentimento coletivo é revitalizado, agora de uma forma familiarizada,
mediante a exaltação de um tempo presente e de um espaço privado, o do
doméstico, o do cotidiano experienciado, das ações sem qualidade, das
relações de vizinhança, das afinidades das turmas e tribos de bairro.
[...]
A
evidente valorização de um vínculo social hedonista e tribal, de um estar-
junto que não pressupõe um objetivo comum a ser atingido em um futuro
glorioso, reatualizaria, assim, uma solidariedade social de outro tipo, mais
151
MORICONI, Italo. O Pós-Utópico: Crítica do futuro e da razão imanente. Op. cit.
152
Ibidem, p. 187.
153
Ibidem, p. 188.
114
interiorizada, mais familiar, relacional e orgânica, marcada por um
sentimentalismo exacerbado
154
.
Em meio a toda essa transformação, as canções da Legião Urbana são
entendidas como sendo, ao mesmo tempo, constituintes do imaginário
pós-utópico e veículos de crítica social, pois na medida em que
ajudam a construir este imaginário, recusam valores modernos e,
conseqüentemente, os criticam. Analisadas sob este prisma, as
canções da Legião Urbana respondem a duas acusações
constantemente feitas pelos críticos da juventude brasileira:
passividade política e incapacidade de crítica social procedente. Ao
valorizar o presente, o indivíduo e as novas formas de relações e
solidariedade, as canções da Legião Urbana (e do rock brasileiro dos
anos 80 em geral) entoadas pela juventude são uma forma distinta e
igualmente válida de contestação social, em relação à juventude dos
anos 60. Essa juventude, descrente das utopias seculares, não ficou
inerte. Configurou novas formas de contestação e de atuação social.
Nem melhores, nem piores, apenas novas, porém incômodas.
A Legião Urbana da década maldita merece ser redimida: o presente e o
cotidiano são também os lugares da crítica social pertinente e de uma nova
contestação, mais sentimental, mais espetacular e teatralizada, mais
lúdica e menos comprometida sem dúvida, mas não menos ácida, não
menos convincente e, sobretudo, não menos ameaçadora para os
aparentemente eternos detentores do poder e da verdade, que se querem
produtores monopolistas do discurso dominante.
155
.
Nesse sentido, o universo das canções da Legião Urbana é uma
evidência da pertinência e contundência dessa nova crítica social,
sendo ainda representação dos anseios e opiniões de uma massa de
154
Ibidem, p. 189 e 190.
155
Ibidem, p. 192.
115
jovens que, incapazes de se fazerem ouvir solitários, fizeram da banda
um meio de demarcarem suas posições na sociedade.
Concordamos com Christian Vargas sobre o papel da Legião Urbana
enquanto veículo para uma parcela de jovens se fazer ouvir, e até
mesmo que esses jovens fizeram das letras instrumentos de resposta às
críticas por eles sofridas na comparação com a juventude da década
de 1960. Contudo, temos dúvida quanto à oposição, particularmente
de Renato Russo, aos ideais desse período. É importante não
esquecermos que duas referências fundamentais para ele, Bob Dylan e
Beatles, foram ícones da juventude dos anos 60.
Além disso, não concordamos quando Vargas diz que
“a aceitação
imediata da vida, a crença na integridade individual e a prevalência
dos laços sentimentais sobrepujam, assim, o esgotamento da
esperança utópica finalista, pintada como moribunda prostrada em
leito infecto”
156
, significando isto uma desilusão quanto à
possibilidade de uma sociedade e um futuro melhores. Mesmo nos
momentos em que as letras expressam mais incertezas, a esperança
não está aniquilada.
Também orientada por referenciais s-modernos está Almerinda de
Sales Guerreiro em seu estudo sobre o
rock
no Brasil
157
. A emergência do
estilo no país, a ponto de se falar de um rock brasileiro, é entendida a
partir da tribalização da sociedade e da passagem do social para a
socialidade, nos termos definidos por Michel Maffesoli
158
.
Para Maffesoli, a pós-modernidade se caracterizaria pelo neotribalismo.
Este é o fundamento que organizaria as relações sociais que se
estabelecem no novo panorama contemporâneo. O tribalismo seria uma
nova forma de agregação social cujo nculo se funda a partir do ponto
156
Ibidem, p. 199.
157
GUERREIRO, Almerinda de Sales. Retratos de Uma Tribo Urbana: Rock brasileiro. São Paulo, 1991.
Dissertação (Mestrado em Antropologia), FFLCH, USP.
158
MAFFESOLI, Michel. O Tempo das Tribos. O declínio do individualismo na sociedade de massas. Rio de
Janeiro: Forense-Universitária, 1987.
116
afetivo/empático determinado, sobretudo, por ambiências, sentimentos e
emoções e que reuniria justamente aqueles que pensam e sentem de
maneira coincidente
159
.
Preocupado em identificar as formas sociais contemporâneas, Michel
Maffesoli entende que elas possuem uma tensão fundadora: ao passo
que a massificação cresce, as pessoas se organizam em vários e
pequenos grupos, as “tribos”, participando de vários deles aos
mesmo, tempo numa dinâmica intensa, de modo que a massa
aparentemente amorfa da sociedade ganha contornos nítidos
examinada mais de perto.
Trata-se da tensão fundadora que me parece caracterizar a socialidade
deste fim de século. A massa, ou o povo, diferentemente de proletariado ou
de outras classes, não se apoiam numa lógica de identidade. Sem um fim
preciso, elas não são os sujeitos de uma história em marcha. A metáfora da
tribo, por sua vez, permite dar conta do processo de desindividualização,
da saturação da função
que lhe é inerente, e da valorização do papel que
cada pessoa (persona) é chamada a representar dentro dela. Claro está
que, como as massas em permanente agitação, as tribos, que nelas se
cristalizam, também pouco são estáveis. As pessoas que compõem essas
tribos podem evoluir de uma para a outra
160
.
Essas tribos se mantêm coesas a partir de elementos sensíveis”,
“pequenos nadas”, por vezes efêmeros, mas que permitem ao grupo
vivenciar um mesmo cotidiano ou ritual. Quanto aos “pequenos
nadas”, diz:
É impossível apresentar uma lista exaustiva deles, mas essa lista constituiria
um programa de pesquisa dos mais pertinentes para a atualidade. Ela pode
ir do fato culinário ao imaginário do eletrodoméstico, sem esquecer a
publicidade, o turismo de massa, o ressurgimento e a multiplicação das
ocasiões festivas. Bem se que são coisas que dão conta de uma
sensibilidade coletiva, sem muito que ver com a dominância econômico-
159
GUERREIRO. Almerinda de Sales. Op. cit., p. 13.
160
MAFFESOLI, Michel. Op. cit., p. 8.
117
política que caracterizou a Modernidade. Essa sensibilidade não mais se
inscreve numa racionalidade orientada e teleológica (a Zweckrationalität
weberiana), mas é vivida no presente, e se inscreve num espaço dado, hic
et nunc. E assim sendo, faz cultura no quotidiano. Permite a emergência de
valores verdadeiros, às vezes surpreendentes ou chocantes, mas que
expressam uma dinâmica inegável
[...].
É a compreensão do costume como
fato cultural que pode permitir uma apreciação da vitalidade das tribos
metropolitanas
161
.
Para marcar a diferea em relação aos padrões modernos, Maffesoli
nomeia a rede de relações que se estabelece, entre essas tribos e
dentro delas, de socialidade. Trata-se de um conceito diferente de
social por este estar fundamentado numa estrutura mecânica de
grupos contratuais nos quais os indivíduos têm função definidas. Na
socialidade, a estrutura social é complexa e orgânica, os indivíduos
são vistos como pessoas que desempenham diversos papéis na vida
social e se organizam em torno de “tribos afetuais”, nas quais o
preponderante não é a origem sócio-econômica dos indivíduos ou as
relações de poder mas o partilhar de sensações, sendo perfeitamente
compreensível que elas assumam muitas vezes um caráter efêmero. O
mais importante para Maffesoli em olhar a dinâmica social por este
prisma é devolver-lhe uma vitalidade que os discursos totalizantes e
monolíticos característicos da modernidade haviam praticamente
aniquilado
162
. Pensar a pós-modernidade nos termos da socialidade e
enquanto palco da efervescência das tribos, o tribalismo, é pen-la
enquanto dinâmica social, fundamentada no presente. Se continuar a
olhar para o mundo de outra forma, o conhecimento continuará a
manter uma defasagem entre o que ele vê e o que esacontecendo e
menosprezar sua ligação com a dinâmica social:
161
Ibidem, p. 34-35.
162
Ibidem, p. 1-11.
118
O conhecimento, sempre e de novo renascente, es em ligação com o
estado do mundo, e é quando se esquece disso, que a defasagem inevitável
entre a reflexão e a realidade empírica torna-se um fosso, que é, desde
então, impossível ultrapassar. Daí a morosidade, o cinismo e outras formas
de desilusões que parecem prevalecer em nossos dias. De fato, mesmo
sendo apenas um ponto de passagem evanescente entre o passado e o
futuro, só o presente é a fonte fecunda do pensamento
. Com efeito, ele
nos fornece os elementos, os fatos de experiência que nos permitem
compreender, para além de todos os ‘a priori’, o que está em estado
nascente
163
.
Olhando, então, os jovens brasileiros que apreciam o
rock
feito no
país a partir da década de 1980 enquanto participantes de uma tribo
da presentividade é que Almerinda de Sales Guerreiro procura primeiro
mapear quais temas estavam circulando nela e, depois, caracterizar
um momento particular para a sua materialização: o show de
rock
. À
primeira tarefa ela dedica o capítulo dois de seu trabalho. Para
identificar os temas, ela selecionou 105 LPs e 1.100 letras de 22
artistas e bandas, concluindo que a música produzida pelos roqueiros
brasileiros de então era
“umbilical, absolutamente centrada no
universo de valores do grupo. E desta maneira, esses jovens lançam luz
sobre eles próprios
164
.
Após a análise quantitativa, empreende a
qualitativa, na qual as 1.100 canções
“foram devidamente
desmontadas”
165
, etapa onde identifica quatro grandes temas
presentes nas canções: cotidiano (em 20% das letras), identidade
(30%), amor e sexo (40 %) e política (10 %). A partir desses quatro
temas é que as obras são mobilizadas em seu texto, muito mais para
referendarem a sua leitura acerca da juventude do período do que
para serem “devidamente desmontadas” ou analisadas.
163
MAFFESOLI, Michel. No Fundo das Aparências. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 9.
164
GUERREIRO, Almerinda de Sales. Op. cit., p. 77.
165
Ibidem, p. 80.
119
O cotidiano identificado a partir das letras é fruto de uma análise
baseada na constatação-descrição, sem maiores relações entre as
canções e o contexto, salvo no tocante à angústia causada pela vida
na cidade. Nesse sentido, a análise passa a ser estritamente temática,
confluindo apenas para a fundamentação de uma dada leitura sobre o
cotidiano dos jovens, marcado pelo descompromisso com o mundo e
pela deambulação, o vagar pela cidade. Tal cotidiano é urbano,
angustiante, violento, contraditório, tecnológico e vazio, alimentando
um desejo de “viajar” (escapar dele). Enfim, é um cotidiano que não
é vivido com sentido positivo. E, para Almerinda Guerreiro, as canções
não materializam alternativas a ela
166
.
Ao optar pela análise temática, a autora toma os cantores e
compositores como cronistas da juventude, que por meio das letras,
registraram-na. Problemático entretanto é que toda a efervescência
social à qual faz referência Maffesoli cede espaço para um monolito:
a juventude. Assim, em seu texto não existem “tribos jovens” mas a
“tribo jovem”. Isto é particularmente perceptível no tocante à
desesperança e ao descompromisso dos jovens em relação ao seu
cotidiano, pois toda a juventude é entendida dessa maneira. Além das
contradições que apontaremos logo a seguir, o podemos perder a
dimensão de que a “tribo
rocker
”, entendida dentro dos pressupostos
maffesolinianos, é fragmentada em uma infinidade de outras tribos, e
ainda, mais especificamente sobre a delimitação de Almerinda
Guerreiro, dois grupos bastante significativos, os
punks
e os
darks
,
dentre outros, não estão contemplados
167
. A “tribo
rocker
” é antes
aquela que se constitui em torno dos artistas que conseguiram
projeção no âmbito da indústria cultural, estando isto bem explícito
na opção feita para o terceiro capítulo.
166
Ibidem, p.85-98.
167
Sobre os punk e os darks, ver Cenas Juvenis. Punks e darks no espetáculo urbano. (São Paulo: Scritta,
1994) de Helena Wendell Abramo.
120
Nele, Almerinda Guerreiro, tendo o espaço do show como momento no
qual esta tribo e suas práticas podem ser mais facilmente
identificáveis, ao invés de descrever etnograficamente algumas
apresentações, lança mão da ficção. A autora cria um evento - o
Green Rock Concert - e na medida em que vai caracterizando-o
delineia as práticas da "tribo
rocker"
. O festival “ocorrera” no
primeiro verão de 1990 com quatro concertos simultâneos em países
diferentes (Estados Unidos, Inglaterra, Austrália e Brasil) e “fora”
promovido por entidades ecológicas internacionais para alertar o
mundo sobre o problema da ecologia. O concerto brasileiro foi na
cidade de São Paulo e contou com a apresentação das três bandas
mais representativas do rock nacional para Almerinda Guerreiro:
Legião Urbana, Titãs e Paralamas do Sucesso.
O alcance desses grupos é tão abrangente que, somados os seus públicos
(seja em forma de discos, clip ou shows), seriam capazes de perfazer a
quase totalidade dos jovens que consomem rock no Brasil
168
.
Embora consideremos inconsistente esse argumento, pois não é citado
qualquer dado quanto a vendagem, freqüência de público ou
audiência que o sustente, o mais importante é o fato da escolha ser
sustentada no sucesso das bandas entre os jovens. A hierarquia
estética cede lugar aqui à do consumo.
Retomando o aspecto da descrença no cotidiano, uma das letras
utilizadas para mostrar isso é O Beco” dos Paralamas do Sucesso.
Cita-se o seguinte trecho:
No beco escuro explode a violência
Eu tava acordado
Ruínas de igreja, seitas sem nome
Paixão, insônia, doença, liberdade vigiada
168
GUERREIRO, Almerinda de Sales. Op. cit., p. 146.
121
No beco escuro explode a violência
No meio da madrugada
Com amor, com ódio, urgência
Ou como se eu não fosse nada
Mas nada perturba o meu sono pesado
Nada levanta aquele corpo jogado
Nada atrapalha aquele bar ali na esquina
Aquela fila de cinema
Nada mais me deixa chocado
169
Dele, diz-se que
“nota-se uma incapacidade de reagir e uma certa
indiferença em relação à violência que aparece como um elemento
perfeitamente inserido no cotidiano dos rockers”
170
.
De fato a
indiferença quanto à violência urbana é algo marcante nos versos, mas
daí a dizer que a violência está “perfeitamente inserida” no cotidiano
dos jovens uma certa distância. Além disso, o fato de
escrever/escutar estes versos não significa compactuar com tal
situação. Uma dimensão não explorada pela autora é a das canções
enquanto meios de denúncia da situação social. Talvez por que esses
jovens e suas produções tão “umbilicais”, não sejam capazes disso.
Mas o fato é que em “O Beco”, Herbert Vianna, ao identificar a
indiferença quanto a violência, critica a passividade das pessoas,
fazendo de seus versos veículo de denúncia da mesma maneira como
já havia feito em “Alagados”
171
e “Bora Bora”. Nesta inclusive, escreve
169
Paralamas do Sucesso. O Beco (Herbert Vianna). Bora Bora, EMI, 1988.
170
GUERREIRO, Almerinda de Sales. Op. cit., p. 89.
171
“Todo dia o sol da man/ Vem e lhes desafia / Traz o sonho pro mundo / Quem não queria / Palafitas,
trapiches, farrapos / Filhos da mesma agonia // E a cidade que tem braços abertos num cartão postal / Com os
punhos fechados na vida real / Lhes nega oportunidades / Mostra a face dura do mal”. Paralamas do Sucesso.
Alagados (Herbert Vianna / Bi Ribeiro / João Barone). Selvagem?, EMI, 1985.
122
e canta na primeira pessoa:
Eu vou lutar, eu vou lutar / Eu sou
Maguila, eu não sou Tyson”
172
, em referência ao ex-pedreiro Adilson
Rodrigues que se tornou o principal boxer brasileiro nos anos 1980
.
Preocupada apenas com o mais explícito nas letras, Almerinda
Guerreiro identifica nos versos de “Azul e Amarelo” de Cazuza, ícone
da geração, um forte desejo de fantasia e escape da realidade. Este
desejo, em sua ótica, é marcante nessa juventude que tem no cinema
uma importante referência, por ser a sétima arte um campo profícuo
de materialização de desejos
173
. Nesta letra, Cazuza, em parceria com
Lobão, escreve:
Anjo bom, anjo mau
Anjos existem, e são meus inimigos
E são amigos meus
E as fadas, as fadas também existem
E são minhas namoradas, me beijam pela manhã
Gnomos existem e são minha escolta
Anjos, gnomos, amigos
Tudo é possível
174
Assim como na análise de “O Beco”, o tema identificado é bem
explícito. Mas se analisado à luz do contexto em que Cazuza compôs
a canção, ganham um sentido mais complexo do que um simples
desejo de fantasiar a realidade. Parte do último disco do cantor,
Burguesia
(1989) , “Azul e Amarelo” foi escrita durante seu último ano
de vida, com a saúde bastante debilitada pelo HIV. Em um trecho
que Almerinda Guerreiro não cita, diz:
172
Paralamas do Sucesso. Bora Bora (Herbert Vianna). Bora Bora, EMI, 1988.
173
GUERREIRO, Almerinda de Sales. Op. cit., p. 92.
174
Cazuza. Azul e a Amarelo (Cazuza / Lobão / Cartola). Burguesia, Polygram, 1989.
123
Senhores deuses me protejam
De tanta mágoa
Estou pronto pra ir ao teu encontro
Mas não quero, não vou , não quero
o quero, não vou, não quero
Eu estou de azul e amarelo
Azul e amarelo.
Ou seja, antes de ser uma letra sobre a fantasia, “Azul e Amarelo”
trata do sentimento de Cazuza diante da morte, cada vez mais
iminente para ele (que havia "visto a cara da morte e ela estava viva",
como canta em “Boas Novas”
175
), e a fantasia é um escape de sua
realidade, que cada vez mais se confunde com a morte, e não de uma
realidade qualquer. Por isso, a fantasia, enquanto um dos elementos
da deambulação/descompromisso dessa geração precisa ser
referenciada. Se, de fato, o dado da deambulação é marcante nas
canções do período, ela é muito mais fruto de um viver com mais
leveza as angústias do mundo, de uma forma que não aniquile o
prazer, do que uma despreocupação total com elas. Prazer que é, ao
mesmo tempo, antídoto à monotonia do cotidiano e fonte de
reenergização para enfrentá-lo.
O desejo de “viagem”, geográfica e/ou sensorial, identificada pela
autora aponta para isso. Porém, ela prefere -lo como um fim em si
mesmo
176
. Opção válida, se contextualizada. Pois a mesma geração
175
“Senhoras e senhores / Trago boas novas / Eu via a cara da morte / E ela estava viva / Eu via a cara da
morte e ela estava viva – viva!”. Cazuza. Boas Novas (Cazuza). Ideologia, Polygram, 1988.
176
GUERREIRO, Almerinda de Sales. Op. cit., p. 96-98.
124
que cantou “De Repente Califórnia” de Lulu Santos
177
também cantou
“Pois alimento pra cabeça nunca vai matar a fome de ninguém”
com
a Legião Urbana em “Conexão Amazônica”
178
, ficando a pergunta:
teriam sido os mesmos jovens?
Por isso, entendemos que as representações nas quais Almerinda
Guerreiro sustenta sua leitura de desesperança e despreocupação em
relação ao cotidiano urbano precisam ser melhor contextualizadas.
Nelas também é possível perceber que quem as produziu enquanto
artistas e com elas compactuou enquanto público, ao mesmo tempo
em que viveu essa vida urbana, também a questionava. Uma tarefa
ainda a se realizar é delinear melhor as fronteiras entre os grupos
juvenis e os percursos dos jovens ao transitarem por eles, estando isso
implicado numa análise mais particular das concepções de mundo
tanto de artistas quanto de seus respectivos públicos. Isso pode levar à
conclusão que de fato as fronteiras não existem (hipótese de difícil
comprovação no nosso entender), mas se não for feito, continuaremos
a conjecturar sobre os jovens do período.
Sobre a referência ao cinema, ao invés de entendermos que
“ao
perceber a vida como cinema os membros da tribo se colocam como
personagens de um roteiro dado”
179
de uma vida estetizada e
previsível cantada pela Legião Urbana em “Baader-Meihoff Blues”
(são citados os versos
“A violência é tão fascinante / e nossas vidas são
tão normais / você passa de noite e sempre apartamento acesos /
Tudo parece ser tão real / Mas você viu esse filme também”
), de um
lado o cinema aparece nas letras enquanto umas das muitas
referências desses jovens, uma linguagem diretamente ligada ao
177
“Garota eu vou pra Califórnia / Viver a vida sobre as ondas / Vou ser artista de cinema / O meu destino é
ser star / O vento beija meus cabelos, as ondas lambem minhas pernas / o sol abraça o meu corpo, meu
coração canta feliz”. Lulu Santos. De Repente Califórnia (Lulu Santos / Nelson Motta). Tempos Modernos,
WEA, 1982.
178
Legião Urbana. Conexão Amazônica (Renato Russo). Que País é Este. 1978-1987, EMI, 1987.
179
GUERREIRO, Almerinda de Sales. Op. cit., p. 93.
125
desenvolvimento tecnológico e urbano (tal qual o
rock
) integrada
ao cotidiano deles, conforme ela mesma aponta. De outro, a vida não
é para eles apenas um cinema, com seus filmes de roteiros acabados.
No caso da Legião Urbana é ainda mais complicado tal afirmação,
pois em “Tempo Perdido”, como a própria autora ressalta, chama-se a
juventude a continuar a seguir, agindo no seu próprio tempo.
A reivindicação de um espaço social para o jovem é um dos elementos
em torno dos quais se orienta uma identidade jovem. A esse respeito é
muito interessante quando a autora cita “Tempo Perdido e diz que
na canção
“novamente a questão da presentificação se manifesta, a
partir da construção de um tempo subjetivo, diferente do tempo
social”
mas ao completar que ele
“traz um caráter simultaneamente
efêmero e infinito, cujo transcorrer não implica em objetivação”
180
,
mais uma vez deixa-se levar pela idéia de desilusão. Retomemos a
letra:
Todos os dias quando acordo
Não tenho mais o tempo que passou
Mas tenho muito tempo
Temos todo o tempo do mundo
Todos os dias, antes de dormir
Lembro e esqueço como foi o dia
Sempre em frente
Não temos tempo a perder
Nosso suor sagrado,
É bem mais belo que esse sangue amargo
E tão sério e selvagem
Veja o sol dessa manhã tão cinza
180
Ibidem , p. 103.
126
A tempestade que chega é da cor dos seus olhos castanhos
Então me abraça forte
E diz mais uma vez que já estamos distantes de tudo
Temos nosso próprio tempo
Temos nosso próprio tempo
Não tenho medo do escuro
Mas deixe as luzes acesas, agora
O que foi escondido é o que se escondeu
E o que foi prometido, ninguém prometeu
Nem foi tempo perdido
Somos tão jovens, tão jovens
181
A letra chama os jovens para uma valorização do presente, enquanto o
seu tempo da existência e da ação, sendo a partir dele que se segue
em frente. Com muito tempo pela frente, por serem tão jovens, autor e
público não devem olhar para o passado com pesar, resignação ou
descrédito, pois mais importante do que o que se passou é o que se
faz. Além disso, os jovens têm um tempo particular, articulado ao
“tempo social”, mas não necessariamente submetido a ele.
Tal idéia é ainda mais forte no
viodeclip
da canção. Enquanto a
banda executa a canção são apresentadas imagens de vários ícones
jovens feitas pouco antes deles se tornarem famosos (John Lennon, Sid
Vicius, Brian Jones, Janis Joplin, entre outros, ídolos que, na maioria,
morreram jovens), como se dissessem que os ícones deram sua
contribuição e não podem mais fazer nada por ninguém. Embora
ressalte o presente, o verso “temos nosso próprio tempo” não despreza
o futuro, pois remete à necessidade de seguir em frente. E quem
181
Legião Urbana. Tempo Perdido (Renato Russo). Dois, EMI, 1986.
127
acredita no futuro não está desiludido. Além disso, o viver não está
aqui sob o signo do descompromisso. O presente não é valorizado
enquanto um fim em si mesmo. A afirmação de um tempo próprio para
o jovem e para a juventude dos anos 1980 como um todo insere-se num
contexto amplo de auto afirmação. Um contexto de afirmação de
limites específicos, de desejos próprios, de verdades “jovens”, de um
espaço tipicamente jovem no seio da vida social.
Embora não seja possível dizer que toda a juventude do período tenha
tido essa preocupação, pode-se inferir que foi de uma parcela
significativa, que, como dissemos, ainda precisa ser melhor
delineada. Renato Russo foi, nesse contexto, seu porta-voz e “Tempo
Perdido”, uma representação exemplar.
Lida sob a ótica da desilusão, a identidade dos jovens da década de
80 que Almerinda Guerreiro nas canções é, em síntese,
hiperfragmentada e não reflexiva, ou seja, os jovens não têm clareza
das razões pelas quais estão juntos e identificam-se uns com os outros
e não vêem motivos para se apegarem às relações pessoais que
estabelecem de modo a dar-lhes um lugar privilegiado em suas
vivências.
-se então construída uma identidade claramente fragmentada e o
reflexiva, resultante da velocidade do dia-a-dia e multiplicidade de
informações que parecem fornecer os contornos de um determinado estilo
de vida cuja superficialidade e a leitura imagética são as principais
características
182
.
Uma canção do período que sintetiza essa identidade é “Uniformes”,
da banda Kid Abelha. Para a autora, na letra é possível ver isso com
clareza e são citados os seguintes trechos:
Eu ouço sempre os mesmos discos
Repenso as mesmas idéias
182
Ibidem, p. 116.
128
O mundo é muito simples
Bobagens não me afligem
Você se cansa do meu modelo
Mas, juro eu não tenho culpa
Eu sou mais um no bando
Repito o que eu escuto
E eu não te entendo bem
E quantos uniformes ainda vou usar
E quantas frases feitas vão me explicar
Será que um dia a gente vai se encontrar?
[...]
A minha dança, o meu estilo
E pouco mais me importa
[...]
Os heróis na minha blusa
Não são os que você usa
E eu não te entendo bem
183
. (Grifos nossos)
Em outra canção da Legião Urbana, “Quase sem Querer”, estaria o
indivíduo característico dessa “tribo urbana”,
“um ser em constante
ebulição e, francamente, indeterminado, instável e sofredor”
184
:
Tenho andado distraído, impaciente e indeciso
E ainda estou confuso
Só que agora é diferente
183
Kid Abelha. Uniformes (Leone / Léo Jaime). Educação Sentimental, BMG-Ariola, 1985.
184
GUERREIRO, Almerinda de Sales. Op. cit., p. 117.
129
Estou tão tranqüilo e tão contente
Quantas chances desperdicei
Quando o que eu mais queria
Era mostrar pra todo mundo
Que eu não precisava provar nada pra ninguém
Me fiz em mil pedaços pra você juntar
E queria sempre achar explicação pro que eu sentia
Como um anjo caído
Fiz questão de esquecer
Que mentir pra si mesmo é sempre a pior mentira
Mas, não sou mais tão criança a ponto de saber tudo
Já não me preocupo se eu não sei porque
Às vezes, o que eu vejo, quase ninguém vê
E eu sei que você sabe, quase sem querer
Que eu vejo o mesmo que você
Tão correto e tão bonito
O infinito é realmente um dos deuses mais lindos
Sei que às vezes uso, palavras repetidas
Mas, quais sãs as palavras que nunca são ditas?
Me disseram que vo
Estava chorando
E foi então que eu percebi
Como te quero tanto
Já não me preocupo se eu não sei porque
Às vezes, o que eu vejo, quase ninguém vê
130
E eu sei que você sabe, quase sem querer
Que eu vejo o mesmo que você
185
“Aqui, esse processo ebulitivo de um ser que busca a sua própria
silhueta, é marcado por uma introjecção num ego narcísico”
186
.
Nesse
sentido, a ética social do jovem representado nas canções (e, por
conseqüência daqueles que as apreciam) é uma ética individualista,
assentada na descrença nas relações sociais e perspectivas de
melhora. No entanto, uma análise de “Quase sem Querer” no
contexto do disco em que está registrada e da própria obra da Legião
Urbana na década de 1980, nos da margem para outra análise.
O título do disco,
Dois,
além de alusão ao fato de ser o segundo disco
da banda, também é referência a uma preocupação maior com o
“nós” do que com o “eu”. Este "nós", é passível que se argumente,
não estaria submetido ao eu, na medida em que no encarte do disco
há uma foto na qual um casal está de costas a contemplar o horizonte,
casal que, ao dar as costas ao observador, vira as costas também ao
mundo social, privilegiando o seu universo particular? Em nossa visão,
não. Conforme analisaremos no próximo capítulo,
Dois
marca uma
virada conceitual de busca de uma ética individual que
sustentação a uma ética social, que ficará explícita em
As Quatro
Estações
, particularmente no refrão de “Pais e Filhos”: é preciso amar
as pessoas como se não houvesse amanhã, porque, se você parar pra
pensar, na verdade não há. A introjecção do jovem em “Quase sem
Querer” é a de quem “procura se achar”, angustiado pela dúvida da
possibilidade de vir a se encontrar, para não estar mais confuso em
relação ao seu papel social, e não expressão de uma recusa em
relação à sociedade.
185
Legião Urbana. Quase sem Querer. (Renato Russo). Dois, EMI, 1986.
186
GUERREIRO, Almerinda de Sales. Op. cit., p. 118.
131
Por essas razões, não concordamos com a idéia de que a Legião
Urbana canta a desilusão e a descrença de uma geração, que também
é defendida por Cristiano Escobar Maia em
A Nossa Geração
Perdida
187
.
O autor, um jornalista entusiasta das teorias pós-modernas,
em especial dos escritos do filósofo francês Jean Baudrillard, analisa a
obra da Legião Urbana como sendo composta por canções que
“refletem” a desesperança da juventude dos anos 80 frente às
questões e utopias desta década, completando que
“a ética do
Legião é a da descrença. Ética que duvida das soluções”
188
. Embora
tenha o mérito de ser o primeiro livro de origem acadêmica dedicado
especificamente à análise da produção da banda e das relações entre
as letras e seu contexto (trabalho apresentado para obtenção do
diploma de jornalismo na UNIVALI Universidade do Vale do Itajaí-SC),
A Nossa Geração Perdida
fica muito preso à tentativa de comprovar
que Renato Russo foi poeta de uma geração perdida, tentando
adequar suas canções aos pressupostos teóricos do autor. Assim, suas
análises acabam por ser muito superficiais e, em alguns pontos,
contraditória. Para ele, por exemplo,
“arte é simplesmente arte. A
beleza é beleza e pronto”
e, portanto, a música de Renato Russo
“não revela nada, nem é história. Não pergunta, e tampouco quer ser
cultura. Não tem categoria”
189
. A música não revela nada? Não é
história? Não tem categoria? Então, como é que ela pode ter uma
ética? Como é possível que ela esteja relacionada a algum contexto?
Cristiano Escobar Maia não se dá conta dessas e de outras tantas
contradições, comprometendo em muito sua análise.
As canções da Legião Urbana, contraditoriamente, são classificadas
em 5 categorias:
“Pós-punks (de entonação rápida, quase ao estilo
187
MAIA, Cristiano Escobar. A Nossa Geração Perdida. Itajaí-SC: Ed. da UNIVALI, 2000.
188
Ibidem, p. 76-77.
189
Ibidem, p. 92 e 93-94.
132
dos ingleses do Sex Pistols, pais do Punk), Neo-barrocas (ricas em
formas), Melancólicas (pessimistas), Épicas (relatos de tragédias
cotidianas) e Inquietas (a busca dos malditos pelos quatro cantos do
mundo)”
190
, sem que haja, no entanto, maiores conseqüências dessa
classificação (as letras não são analisadas tendo-a como referencial)
da mesma maneira como não outras informações que ajudem a
caracterizar cada categoria.
Em sua análise, a sociedade brasileira dos anos 1980 em diante, à luz
do advento da s-modernidade/pós-utopia no mundo ocidental
191
,
passa a ver com maior nitidez as massas, alijadas do poder por tanto
tempo e desconsiderada nos
devaneios utópicos de intelectuais tanto
de esquerda quanto de direita
192
.
Um desses “agrupamentos sem
forma”
193
é a juventude. Juventude passiva, e por isso mesmo poderosa,
por ser detentora da
passividade destruidora de certezas e planos. A
passividade da massa que se move por inércia contagiando a tudo e a
todos. Nada passa”
194
.
Aqui as concepções de Jean Baudrillard se fazem presentes. Em sua
obra
À Sombra das Maiorias Silenciosas
, nas massas um poder
advindo de sua passividade em relação à esfera social.
“Um conjunto
no vácuo de partículas individuais, de resíduos do social e de impulsos
190
Ibidem, p. 21. É imprescindível ressaltar que os ingleses da banda Sex Pistol, embora tenham sido um dos
ícones do punk, o foram seus pais, se é que seja possível designar a paternidade do movimento a alguém.
Para ficarmos restritos ao punk rock, nada nada já haviam antes do Sex Pistol nomes como Ramones, Iggy
Pop, New York Dolls e Patti Smith, todos nos EUA, fazendo música dentro da estética que posteriormente
seria classificada como punk rock. Sobre as origens e percursos do punk rock nos EUA e a Inglaterra ver
Mate-me por Favor. Uma história sem censura do punk (Porto Alegre: L&PM, 1997), coletânea de entrevistas
realizadas e organizadas por Legs McNeill e Gillian McCain.
191
Ao contrário de Christian Vargas, Cristiano Escobar maio não distingue os dois termos, usando-os em
diversas oportunidades como sinônimos.
192
MAIA, Cristiano Escobar. Op. cit., p. 30.
193
“As massas, é bom que se diga, não são mais massa. Não são mais instância que se encaixa com conceitos
como classe e povo. Não são mais sujeito, nunca foram, nem da história, nem do produtivismo
marxista(Ibidem, p. 40).
194
Ibidem, p. 30.
133
indiretos”
195
,
perceptíveis somente em sua “forma amorfa" (pois ela,
enquanto elaboração teórica, é
“justamente um contra-senso é
procurar um sentido no que não o tem
196
), a massa é para Baudrillard
de um potencial implosivo, e não construtivo como acreditaram os
teóricos do marxismo e sua crença na massa proletária, outro contra-
senso:
Diz-se: "a massa de trabalhadores". Mas a massa nunca é de
trabalhadores, nem de qualquer outro sujeito ou objeto social. As "massas
camponesas" de outrora o eram exatamente massas: se comportam
como massa aqueles que estão liberados de suas obrigações simbólicas,
‘anulados’(presos nas infinitas "redes") e destinados a serem apenas o
inumerável terminal dos mesmos modelos, que não chegam a integrá-los e
que finalmente os apresentam como resíduos estatísticos. A massa é sem
atributos, sem predicação, sem qualificação, sem referência. Ai está sua
definição, ou sua indefinição radical. Ela não tem "realidade"
sociológica. Ela não tem nada a ver com alguma população real
, com
algum corpo, com algum agregado social específico. Qualquer tentativa
de qualificá-la é somente um esforço para transferi-la para a sociologia e
arrancá-la dessa indistinção que não é sequer a da equivalência (soma
ilimitada de indivíduos equivalentes: 1+1+1+1 tal é a definição
sociológica), mas a do neutro
, isto é, nem um nem outro (ne-ut er)
197
.
Enquanto algo amorfo, conceitualmente inapreensível e sem lugar
definido no social e no histórico, a massa é vista como uma espécie de
“buraco negro” que absorve todas as forças de compreensão e
manipulação que lhes são dirigidas, repercutindo vozes
incompreensíveis, um silêncio. Todos os sentidos que lhes são
atribuídos caem num abismo, que o conhecimento em sua vontade de
a tudo explicar reluta em reconhecer a existência. Os sentidos podem
195
BAUDRILLARD, Jean. À Sombra das Maiorias Silenciosas. O fim do social e o surgimento das massas.
São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 10.
196
Ibidem, p. 11.
197
Ibidem, p. 11-12.
134
se aplicar perfeitamente a outros objetos, não às massas, da qual nem
mesmo aqueles que querem enfrentá-la conseguem escapar:
nós somos apenas episodicamente condutores do sentido, no essencial e em
profundidade nós nos comportamos como massa
, vivendo a maior parte do
tempo num modo pânico ou aleatório, aquém ou além do sentido
198
Essa certeza de incompreensão é a única resposta à qual Baudrillard
consegue chegar para uma questão do seu ponto de vista
fundamental:
por que após inúmeras revoluções e um século ou dois de aprendizagem
política, apesar dos jornais, dos sindicatos, dos partidos, dos intelectuais e
de todas as energias postas a educar e a mobilizar o povo, por que ainda se
encontram (e se encontrará mesmo em dez ou vinte anos) mil pessoas para
se mobilizar e vinte milhões para ficar "passivas"?
199
.
É a partir desse mar de indefinições que Cristiano Escobar Maia a
juventude dos anos 80, juventude nascida nas “cinzas megalópoles”,
que Renato Russo é ícone, poeta, profeta e ideólogo
:
As brincadeiras nos campo da pós-modernidade revelam uma nova e
surpreendente realidade. O meio importa mais do que a mensagem. Ou
ainda, como profetizou McLuhan "o meio é a mensagem". Renato Russo,
polêmico vocalista e principal letrista do Legião Urbana precursor da
geração rock’n’roll, de Brasília sabia disso muito bem
200
.
Para essa massa identificada com o jovem (Baudrillard o havia dito
que ela não suporta adjetivos?) que vive quase num mundo paralelo,
visto que apenas o da cultura estabelecida é reconhecido, numa
temporalidade onde apenas o presente é importante e a fragmentação
é total, a música ganha contornos especiais:
198
Ibidem, p. 16.
199
Ibidem, p. 17.
200
Ibidem, p. 40-41.
135
Obras musicais constroem mundos paralelos e imaginam inventar o universo
total em partículas que se chocam; em pedacinhos sonoros que cortam e
fazem sangrar os ouvidos com os versos nítidos e peculiares. Peculiaridades
de um mundo perdido
201
.
Se o “meio é mensagem”, se o tempo é o do presente e as ações não
querem ir além do raio do cotidiano, o
rock
é visto como o ritmo ideal
para as canções professarem sua mensagem:
O rock é o ritmo estético da orgia cotidiana. O som, às vezes ensurdecedor,
que impressiona e embriaga a massa não-intelectual. É o ritmo estético dos
que vivem do outro lado da fronteira da linearidade narrativa.
[...]
O rock
germina nos campos complexos semeados com a eterna dúvida misturada
ao prazer dionisíaco e a aspereza nietzscheniana. Rock, batalha contra o
ascetismo do racionalismo descartiano em um final de século banhado em
incertezas, abismos e nevoeiros. No calor dos trópicos, o ritmo nascido na
voz de negros padecendo no inferno recriado ao sul dos Estados Unidos,
torna-se fértil. Reconstroe-se a cada geração
202
.
No final do século, sob a névoa da incerteza, a juventude sem
referência aglutina-se em torno do
rock
, a “música dos não-
intelectuais” (como se fosse proibido àqueles que fazem e/ou
escutam-no pensar sobre o mundo no qual vivem):
[...] escutar rock serve de ponto de ligação. Ponto de encontro da juventude
perdida. "Uma música de jovens para jovens", crê Renato Russo. A musicalidade
incorporada ao rock abusa da complexidade. A canção do não conformismo dos
não-intelectuais eleva aos quatro ventos a bandeira fecunda da reprodução do
mundo. Espalha o esperma da diversidade. Grávida de novos tempos, febril, à
luz [sic] a processos a-temporais e não lineares de ritmos incultos da massa
humana perdida no universo pós-utópicas [sic]
203
.
Enfim, Renato Russo é alçado ao posto de alguém que, fazendo parte
dessa juventude, conseguiu olhá-la de fora, detectar seus desejos e
201
Ibidem, p. 44.
202
Ibidem, p. 139-140.
203
Ibidem, p. 144.
136
formular, em suas canções uma voz para essa “maioria silenciosa”. A
voz da desesperança e da desilusão. Pensado isso, Cristiano Escobar
Maia vai às letras procurando comprovações para suas análises. Assim,
em “O Reggae”,
“Renato Russo canta a incerteza de uma juventude
fora do compasso tradicional. Não há possibilidades”
204
.
Vejamos a
letra.
Ainda me lembro aos três anos de idade
Meu primeiro contato com as grades
Meu primeiro dia na escola
Como eu senti vontade de ir embora
[...]
Fazia tudo que eles quisessem
Acreditavam em tudo o que me dissessem
Me pediram para ter paciência
Falhei
Gritaram: - Cresça e apareça!
Cresci e apareci e não vi nada
Aprendi o que era certo com a pessoa errada
Mas mesmo assim, vou ver se tiro o melhor pra mim
[...]
Tiram todas as minhas armas,
Como posso me defender?
Vocês venceram essa batalha,
Quanto à guerra vamos ver
205
.
204
Ibidem , p. 45.
205
Legião Urbana. O Reggae (Renato Russo / Renato Rocha / Marcelo Bonfá). Legião Urbana, EMI, 1985.
137
Os trechos em destaque foram os utilizados por Cristiano Escobar Maia
para comprovar sua leitura. Lidos em separado podem oferecer
material para uma interpretação desesperançada. Porém, no conjunto
não. “O Reggae” trata de um jovem que cresceu sob o jugo dos
adultos e acreditando em coisas inexistentes. Ao se dar conta disso,
fica atordoado, sem saber bem como agir. Será isso suficiente para
acreditar na inexistência de possibilidades? Os versos finais dão a
resposta: vocês (os adultos) venceram essa “batalha”, mas nada está
perdido, pois a “guerra” ainda não terminou. Até lá, “vamos ver”.
Além disso, como discutiremos no capítulo posterior, a confusão é uma
marca de todo o disco
Legião Urbana.
O autor encontra comprovações também em A Dança” do mesmo
disco. Em dois versos, “que se dane o futuro” e “com ódio de
verdade”, aproxima Renato Russo da presentividade de Maffesoli e da
massa insossa de Baudrillard, respectivamente
206
. Na letra, no entanto,
critica-se a falta de preocupação com futuro de alguns jovens e a
maneira como eles copiavam comportamento de maneira acrítica:
Não sei o que é direito
Só vejo preconceito
E a sua roupa nova
É só uma roupa nova
Você com suas idéias
E a sua rebeldia
Tratando as meninas
Como se fossem lixo
206
MAIA, Cristiano Escobar. Op. cit., p. 57-58, notas 2 e 3.
138
Você é tão moderno
Se acha tão esperto
Mas é igual a seus pais
É só questão de idade
Tanto fez tanto faz
Você com suas drogas
E as suas teorias
E a sua rebeldia
E a sua solidão
Vive com seus excessos
Mas não tem mais dinheiro
Pra comprar outra fuga
Sair de casa então
Então é outra sexta-feira
Que se dane o futuro
Você tem a vida inteira
Você é tão esperto
Você está tão certo
Mas você nunca dançou
Com ódio de verdade
207
.
Vista a partir das referências biográficas de Renato Russo, o alvo de
suas críticas são os
playboys
brasilienses com quem tanto travou
embates enquanto
punk
em Brasília
208
. Mas aqui, mesmo sem saber
207
“A Dança” (Renato Russo / Marcelo Bonfá / Dado Villa-Lobos). Legião Urbana, EMI, 1985.
208
Alguns dos enfrentamentos entre o grupo de Renato em Brasília, a “Turma”, e os playboys da capital
federal são contados em por Paulo Marchetti em O Diário da Turma 1976-1986. A história do rock de
Brasília (São Paulo: Conrad, 2001).
139
disso, é nítido que ele se assume enquanto crítico de determinadas
posturas, do tratar as “meninas” como lixo à fuga por meio das
drogas. Por isso, o “que se dane o futuro” é referência a uma
determinada postura que o tempo mostrará errada (Você é tão
moderno / Se acha tão esperto / Mas é igual a seus pais / É questão
de idade).
Esta prática de Cristiano Escobar Maia continua pelo livro, mas a
abandonamos aqui. Importante agora é tentar matizar uma outra
questão: de onde vem essa leitura das composições da Legião Urbana
enquanto expressão de desilusão e desesperança de uma geração?
Em primeiro lugar, de uma análise onde seu contexto de produção
assume um papel secundário, quando não é totalmente
desconsiderado. No próximo capítulo procuraremos mostrar de que
maneira os integrantes da banda, e Renato Russo em particular,
mudaram sua perspectiva estética entre o momento no qual eram
adolescentes em Brasília e a consagração enquanto ídolos do
rock.
No
âmbito da sociedade de massas e sua fragmentação, com a produção
artística circulando mediada pela indústria cultural, se buscamos o
sentido expresso pelas obras, não podemos perder a dimensão do
momento em que elas foram produzidas e de qual lugar fala quem as
produziu. No momento da recepção, ele pode até vir a perder a
significação presente no ato da criação, mas não é da recepção que
tratam os autores aqui debatidos.
Outra origem para a leitura que aqui contestamos, é a tentativa de
aplicar um dado referencial teórico para análise de um objeto não
numa perspectiva analítico-crítica mas mecânica, na qual o objeto é
até mesmo “aparado” ou “complementado” para que caiba na forma
escolhida. Tão perigoso quanto tomar a obra como detentora de uma
verdade única e inquestionável, atribuída por seu autor, é fa-la
“falar” por meio de uma teoria prévia.
140
Uma terceira razão que identificamos é uma leitura empobrecida do
que vem a ser a pós-modernidade. Embora o debate seja acirrado e
pantanoso, pudemos apreender que é uma visão simplista identificá-la
somente com a desesperança, a desconstrução e a desilusão. Sem
fazer apologia do pós-modernismo, concordamos com Andreas Huyssen
na necessidade da distinção entre um s-moderno afirmativo e outro
crítico. Esse é apenas um dos muitos pontos que ainda precisam ser
discutidos quanto à pós-modernidade.
Nosso intuito aqui não foi definir a obra da Legião Urbana como
moderna ou s-moderna. Steven Connor é muito feliz ao dizer que o
rock
, de forma geral, aceita tanto um rótulo quanto outro, mas
nenhum lhe cai bem
209
. Ao analisá-lo, entende que suas múltiplas faces
formam um paradoxo, pois de um lado ele está plenamente
estabelecido no seio da indústria cultural e, no outro, ele
“pode ser
considerado a forma cultural pós-moderna mais representativa. Isso
porque ele personifica à perfeição o paradoxo central da cultura de
massas contemporâneas: o seu alcance e influência globais
unificadores, de um lado, combinados com a tolerância e criação de
pluralidades de estilos, de mídia e identidades étnicas, do outro”
210
.
Pensado apenas no espectro da polaridade modernidade/pós-
modernidade, esse paradoxo não se resolve. É impossível aprisionar o
rock
, e a cultura de massas da qual é expressiva manifestação, em um
ou outro conceito. As conotações de moderno ou pós-moderno lhes
são compatíveis em análises localizadas
Porque, afinal, o dominante na cultura contemporânea é a projeção de um
universo de múltiplas diferenças. Se a indústria do rock exige um produto
estável e reprodutível, também é verdade que ela depende da invasão
periódica da diferença e da inovação. Com efeito, essa indústria é talvez o
melhor exemplo do processo mediante o qual a cultura capitalista
contemporânea promove ou multiplica a diferença no interesse da
209
CONNOR, Steven. Op. cit., p. 153.
210
Ibidem, p. 151.
141
manutenção de sua estrutura de lucros. Se um dominante no rock
contemporâneo, trata-se do domínio da múltipla marginalidade
211
.
Ao não vermos Renato Russo e a Legião Urbana como
desesperançados, não estamos lhe reivindicando um cater moderno.
Buscamos apenas mostrar que as mensagens contidas em suas canções
devem ser entendidas à luz do contexto no qual foram produzidas.
Assim, é possível entender que as canções, produzidas a partir da
experiência dos integrantes e de suas leituras sobre algumas questões
contemporâneas, formularam um desejo de futuro visto como
conseqüência do presente.
C
C
A
A
P
P
Í
Í
T
T
U
U
L
L
O
O
I
I
I
I
I
I
AS QUATRO ESTAÇÕES DA LEGIÃO URBANA
Renato Russo
212
desponta para o cenário da música no âmbito nacional em
1985, ano do lançamento do primeiro álbum da Legião Urbana, banda na qual era vocalista
e letrista. Sua trajetória como cantor e compositor, porém, começa no ano de 1978, quando
aos 18 anos cria, juntamente com Felipe (Fê) Lemos (filho de professor universitário) e
André Pretórius (filho do embaixador da África do Sul), a banda Aborto Elétrico, em
Brasília. Naquele momento, a cidade vivenciava um processo de nascimento e
efervescência de uma cultura jovem que tinha à frente filhos da classe média inspirados
pelo lema punk "do-it-yourself" ou "faça você mesmo".
211
Ibidem, p. 153.
212
Renato Manfredini Junior, seu nome de batismo, era carioca, filho de economista do Banco do Brasil e
professora de inglês, e chegou a Brasília em 1973, aos 13 anos.
142
Enquanto uma cidade criada para ser fundamentalmente administrativa,
Brasília tem na sociabilidade um problema crônico. Em estudo publicado no final dos anos
60, José Pastore ressaltava que "uma das queixas mais freqüentes em Brasília refere-se à
falta de oportunidades para lazer. Sendo uma cidade nova, Brasília parece ter
negligenciado até o momento o desenvolvimento das condições de lazer"
213
. E a existência
de opções de lazer é fator fundamental para criação de laços de sociabilidade numa cidade
cuja população tem tantos imigrantes como Brasília.
Esta carência de opções de lazer também foi sentida pelos filhos da classe
média na segunda metade dos anos 70, Renato Russo entre eles, que não tinham muita
afeição a opções como sessões cinematográficas promovidas pelas embaixadas ou outros
eventos "cultos".
A gente fazia rock por necessidade lá. Além de ser uma necessidade de você ir
contra o tédio da cidade, é uma necessidade física mesmo, de você se expressar. Ao
passo que, se eu estivesse aqui no Rio, ia à praia, ia comer um sanduíche natural, e
não teria tanta necessidade assim
214
.
Além disso, esses jovens não se identificavam com a música nacional
produzida naquele momento. Herbert Vianna da banda Paralamas do Sucesso,
contemporâneo de Renato em Brasília e outro desses jovens de classe média, dirá
posteriormente que "a MPB não supria as necessidades da geração da Abertura"
215
, e
juntamente com ela a música jovem de então, casos de Rita Lee, Raul Seixas, os mineiros
213
PASTORE, José. Brasília: A cidade e o homem. São Paulo: Nacional/Edusp, 1969, p. 66.
214
ASSAD, Simone (Coord.) Renato Russo de A a Z. As idéias do líder da Legião Urbana. Campo
Grande(MS): Letra Livre, 2000, p. 41.
215
DAPIEVE, Arthur. BRock. O rock brasileiro dos anos 80. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996, p. 201.
143
do "Clube da Esquina" (Milton Nascimento, Borges, etc.) e outros mais. Depois se
aproximariam bastante, mas em outro contexto.
Antes de ser punk, em 1975 Renato é acometido de uma doença chamada
epifisiolise, enfermidade de caráter virótico que dissolveu a cartilagem de ligação entre a
bacia e seu fêmur esquerdo, sendo necessária uma cirurgia para colocação de três pinos de
fixação. Por conta de um erro médico, os pinos não foram colocados adequadamente e uma
nova cirurgia foi necessária. "Passou seis meses de cama, seis meses andando de cadeira
de rodas, seis meses se movimentando de muletas, um ano e meio sofrendo"
216
.
Nesse período de estaleiro, o gosto pela leitura, incentivado desde a infância
pelos pais, assim como o hábito de ouvir música, além de serem bastante incrementados,
foram passatempos preciosos. Foi em algum momento dessa fase de recuperação que
Renato decidiu que assim que pudesse formaria uma banda.
Chegou a criar uma banda fictícia para se distrair no seu quarto de paredes
cobertas de fotos, a 42th Street Band, na qual o cantor/alter ego se chamava Eric
Russell. Esse sobrenome, compartilhado por um de seus pensadores favoritos, o
inglês Bertrand Russell, e sonoramente parecido com duas outras fontes de
admiração, o também filósofo Jean-Jacques Rousseau e o pintor primitivista Henri
Rousseau, ambos franceses, acabou resultando no 'Russo' que adotaria, alguns
poucos anos depois, como sobrenome artístico
217
.
216
DAPIEVE, Arthur. Renato Russo, o Trovador Solitário. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/Prefeitura, 2000,
p. 24.
217
Ibidem, p. 25.
144
Ao criar o Aborto Elétrico
218
, Renato estava vivendo a "onda punk" (tal qual
André, Fê e a "Turma da Colina"
219
em geral), que chegara a Brasília por meio dos
primeiros discos de punk rock que eram trazidos por pessoas que visitavam os EUA e a
Inglaterra, e a opção pelo rock de três acordes foi quase automática. O interesse pelo rock,
no entanto, era anterior. Sua primeira paixão foram os Beatles, depois Elvis Presley, Bob
Dylan e até mesmo Emerson, Lake and Palmer, um dos ícone do rock progressivo - estilo
ao qual o punk rock se opôs de maneira mais direta numa demonstração clara de que o
punk foi para Renato Russo muito mais um momento do que uma filosofia de vida. Um
período importante, mas apenas um momento resultado de um contexto particular:
[...] passei no vestibular com 17 anos, para Comunicação [na UnB], e consegui me
sindicalizar como jornalista antes mesmo de me formar. Cobria a parte de política
e todas as minhas ilusões, de querer salvar o mundo, ser o bastião da verdade,
acabaram ali. Porque era muita treta, muita enganação, muita coisa por baixo do
pano, você escrevia as coisas e o editor não deixava. Fui ficando muito desiludido
e isto foi me puxando cada vez mais pro rock, porque os punks estavam falando
justamente disso, da hipocrisia. Você faz tudo direitinho, estuda, trabalha e depois
vê que é essa corrupção, não só a nível governamental, mas em tudo
220
.
Os punks da Colina eram bem peculiares. Se vestiam como tais,
comungavam da atitude, em especial na vontade de chocar (e o nome Aborto Elétrico
218
duas versões para a escolha do nome da banda. "Segundo o próprio Renato, Aborto Elétrico era uma
referência a um cassetete usado pela polícia do Distrito Federal, que, posto em ação para dissolver uma
manifestação em 1968, induzira uma jovem grávida ao aborto. Segundo Fê, o nome nascera de um
brainstorm em torno do nome de uma banda americana, Eletric Flag [Bandeira Elétrica]. Estando os três
membros da banda de acordo com a presença da palavra 'elétrico', foram experimentando outras que
caíssem bem com ela. Pretorius sugeriu 'aborto', aprovada por aclamação. Aborto Elétrico. [...] De qualquer
forma, aquele era adequado a uma banda formada para protestar contra o regime militar" (DAPIEVE,
Arthur. Renato Russo: Trovador solitário. Op. cit., p. 36) A banda é considerada a primeira banda punk de
Brasília.
219
A “Turma da Colina” ou “Turma” era composta por filhos de professores universitários, diplomatas,
militares, políticos, etc., que, em fins dos anos 70, se reuniam na “Colina”, uma mini-quadra dentro da
Universidade de Brasília onde moravam os professores, para trocarem informações e material sobre rock.
220
RUSSO, Renato. Renato Russo. Um guru quase recluso. E suas mensagens nervosas (entrevista a Antonio
Carlos Miguel). Jornal da Tarde.o Paulo, 29/07/1988, p. 12-A (Divirta-se).
145
também tinha essa intenção), mas eram "punks de fim-de-semana", como o próprio Renato
veio depois definir: "era uma garotada com muita informação, os pais tinham livros em
casa, todo mundo classe média alta e punks nos fins de semana"
221
. Com relação ao rock, a
maior perspectiva surgida com o punk foi poder criar sua banda e fazer música:
Sempre quis ser igual aos Beatles, ter uma banda, mas achava impossível, porque
não sabia tocar nada. Daí, surgiu o punk [...] e pensei: 'Ah, para fazer quatro
acordes, até eu
222
.
Essa possibilidade de fazer música independentemente de um virtuosismo
musical ou de um apuramento estético, nos moldes apregoados pelo rock progressivo e
outras vertentes musicais, foi a principal contribuição do punk rock para a cultura jovem.
Todavia, não ter tais predicados como condição não significou para as bandas punks a
produção de músicas simples ou pobres, esteticamente falando, o que é possível verificar
sem muito esforço: basta ouvir uma das canções-símbolo do movimento, "Anarchy in the
U.K." dos ingleses Sex Pistols.
O Aborto Elétrico nunca chegou a ser um grupo profissional, mas
muitas das canções do seu repertório foram posteriormente registradas
por outras bandas, em especial a Legião Urbana e o Capital Inicial, do
qual Fê Lemos veio a fazer parte. Renato Russo, além de compor, era o
baixista e vocalista do "Aborto" e assim foi até fins de 1981, quando
rompeu com (que também compunha, além de tocar bateria), saiu
da banda e ela começou a acabar. Ico Ouro Preto, guitarrista desde
que André Pretorius teve de retornar à África do Sul para cumprir
221
MAIA, Sônia. 1976-1989. Do Aborto Elétrico ao Globo de Ouro. In: Conversações com Renato Russo.
Campo Grande (MS): Letra Livre, p. 114. (Essa entrevista foi publicada originalmente na revista Bizz em abril
de 1989).
222
ASSAD, Simone (Coord.). Renato Russo de A a Z. As idéias do líder da Legião Urbana. Campo Grande
(MS): Letras Livre, 2000, p. 201.
146
serviço militar em 1980, também saiu da banda logo depois,
colocando a pá-de-cal na trajetória do Aborto Elétrico, no início de
1982.
A saída de Renato da banda significou para ele, também, uma mudança em
relação ao tipo de música produzida. Como se quisesse romper com os traços do punk rock,
ele se apresentou em Brasília durante o primeiro semestre de 1982 como "Trovador
Solitário" cantando músicas suas ("Eduardo e nica" entre elas, um dos maiores sucessos
de sua carreira, gravado pela Legião Urbana em 1986) e de outros compositores, onde a
influência do folk rock de Bob Dylan era explícita. Em lugar da estética urbana, rápida,
pesada e agressiva do punk, as melodias mais lentas (onde o violão é o instrumento básico)
e as letras reflexivas do folk e suas ligações com a música country norte-americana, que lhe
conferiam, portanto, um aspecto mais "rural". Até a gravação de seu primeiro disco em
1984, que também é o primeiro da Legião Urbana, formada em meados de 1982 quando
convida o baterista Marcelo Bonfá para criarem uma banda, as composições de Renato cada
vez mais caminham para o diálogo entre várias perspectivas do rock, acabando por definir a
Legião Urbana como um grupo de pop-rock.
Não apenas ele mas também Marcelo Bonfá, Dado Villa-Lobos e Renato
Rocha (respectivamente guitarrista e baixista que se juntaram aos dois primeiros, em
circunstâncias distintas, para formarem o quarteto que gravou os três primeiros discos da
banda - Renato Rocha saiu em 1989, quando o quarto LP estava sendo gravado) fizeram
parte da "cena punk" de Brasília, significando que os quatro tiveram trajetórias
semelhantes. Apesar de Renato Russo, de forma recorrente, ser visto como sinônimo de
Legião Urbana, os outros integrantes da banda não foram meros coadjuvantes. As letras das
147
canções, quase na totalidade, foram escritas por Russo mas as músicas e arranjos contaram
com ativa participação dos demais na sua elaboração, particularmente Dado e Bonfá.
Dessa maneira, a forma característica das canções do grupo tem a marca de
Renato Russo assim como de Bonfá, Dado e Renato Rocha. Se por vezes parecemos
abordar em demasia a figura de Russo em detrimento dos demais, isto é uma decorrência do
recorte metodológico, que privilegia as letras das canções. Assim, esse maior destaque ao
letrista é praticamente impossível de ser evitado. Mas, voltamos a destacar, a Legião
Urbana era um grupo e não apenas seu vocalista, como ele mesmo fazia questão de
ressaltar:
[...] as pessoas ficam em cima - Rolling Stones/Mick Jagger, RPM/Paulo Ricardo ...
E não é Legião/Renato Russo. É Legião. Só que eu falo mais - eu sou muito
ambicioso -, dou sempre um jeito de falar a coisa certa na hora exata. As letras
tentam provar que alguma coisa é possível, mas as letras são feitas em cima do que
os quatro vivem
223
.
Se elementos da trajetória do
punk
ao
pop
podiam ser detectados
no primeiro disco,
Legião Urbana,
lançado pela gravadora “carioca
(inglesa, na verdade) EMI Brasil
224
em janeiro de 1985, isto pode ser
feito em retrospectiva, pois na época não era possível afirmar com
segurança qual seria o caminho trilhado por aqueles jovens do
Planalto Central. Até mesmo porque, quem poderia garantir que eles
continuariam a seguir algum caminho, gravar um segundo disco?
Legião Urbana
é um álbum “colcha de retalhos”, com estilos e
possibilidades múltiplos, às vezes contrastantes:
A Dança
lembra o funk-punk do Gang of Four,
Ainda é Cedo
tem a
melancolia do Joy Division e do primeiro U2. A Legião gravou até um reggae
223
ASSAD, Simone (Coord.) Op. cit., p. 153.
224
Todos os discos do grupo, e também os dois solos de Renato Russo, foram lançados pela EMI Brasil, que
ainda hoje tem na Legião Urbana um de seus maiores produtos.
148
e um punk-sico (mesmo na letra) como
Geração Coca-Cola [...].
Não era
possível perceber, a partir desse disco de estréia, quais seriam os próximos
passos musicais da banda
225
.
Após a experiência
punk
a banda flertava com outras perspectivas
estéticas, sendo que a multiplicidade de estilos do primeiro disco em
muito estava relacionada ao momento “pós-
punk”
, no qual após o
desgaste da perspectiva iconoclasta
punk
, muitos se perguntavam e
agora?”. A primeira canção é “Será”, de Dado, Bonfá e Russo:
Tire suas mãos de mim
Eu não pertenço a você
Não é me dominando assim
Que você vai me entender
Eu posso estar sozinho
Mas eu sei muito bem aonde estou
Você pode até duvidar
Acho que isso não é amor.
Será só imaginação?
Será que nada vai acontecer?
Será que é tudo isso em vão?
Será que vamos conseguir vencer?
Nos perderemos entre monstros
Da nossa própria criação
Serão noites inteiras
Talvez por medo da escuridão
Ficaremos acordados
Imaginando alguma solução
Prá que esse nosso egoísmo
Não destrua nosso coração.
Brigar prá quê
Se é sem querer
Quem é que vai
Nos proteger?
225
VIANNA, Hermano. Por Enquanto 1984/1985. In: Por Enquanto –1984-1995. (caixa discográfica). Rio
de Janeiro: EMI Brasil, 1995.
149
Será que vamos ter
Que responder
Pelos erros a mais
Eu e você?
A letra começa com versos de inspiração punk, numa espécie “declaração de
princípios punks, autoritária e arrogante, onde o grito de independência pressupõe o corte
de todos os laços (afetivo, de qualquer tipo de pertencimento) com o mundo ao redor e com
as pessoas que vivem nesse mundo”
226
(Não é me dominando assim / Que vovai me
entender). Mas Será” também é uma canção de amor, tendo inclusive feito sucesso em
regravações posteriores num arranjo romântico na voz de Simone e em outro, “pagode–
suingue”, do grupo Raça Negra. Nos versos da segunda e sexta estrofes podemos identificar
referências a uma relação amorosa em conflito. Porém, aqui as referências punks fazem
com que este lado romântico sejam sobrepujados; elas estão também na melodia e no
arranjo, no ritmo acelerado marcado pela batida seca da bateria e na utilização apenas dos
instrumentos “clássicos” do punk rock (baixo, guitarra e bateria). Dessa maneira, em “Será”
interpretada pela Legião Urbana o que predomina é a representação de uma relação
conflituosa com o mundo e não apenas entre duas pessoas.
Outra canção tipicamente punk do disco é “Geração Coca-Cola”:
Quando nascemos fomos programados
A receber o que vocês nos empurraram
Com os enlatados dos USA, de 9 às 6.
Desde pequenos nós comemos lixo
Comercial e industrial
226
Ibidem, p. 08.
150
Mas agora chegou nossa vez
Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês.
Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Nós somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola.
Depois de vinte anos na escola
Não é difícil aprender
Todas as manhas do jogo sujo
Não é assim que tem que ser?
Vamos fazer nosso dever de casa
E aí então, vocês vão ver
Suas crianças derrubando reis
Fazer comédia no cinema com as suas leis.
Esta foi a primeira letra (e música) composta por Renato Russo e fez parte
do repertório do Aborto Elétrico, sendo uma das mais conhecidas da banda. Tal qual em
“Será”, o ritmo é acelerado e os versos têm brados juvenis (Desde pequenos nós comemos
lixo / Comercial e industrial / Mas agora chegou nossa vez / Vamos cuspir de volta o lixo
em cima de vocês), mas uma pequena diferença na instrumentação em relação à versão
executada nas apresentações do “Aborto Elétrico” que possui grande significação: o uso
de violões. Conforme já destacamos, o violão é um instrumento básico para o folk e durante
a sua fase "Trovador Solitário", Renato Russo elaborou uma versão de “Geração Coca-
Cola” em arranjo folk, de ritmo bem mais lento
227
.
Não se trata apenas de uma opção sem maiores conseqüências. As escolhas
estéticas estão diretamente relacionadas com a posição do artista no seu contexto social e
227
Agradeço imensamente a Sérgio Campos pela gentileza de fornecer-me uma cópia dessa versão,
conseguida por ele na internet. Tal pia, ao que tudo indica, foi obtida a partir de uma gravação caseira feita
pelo próprio Renato Russo. Em algumas apresentações a Legião Urbana chegou a tocar esta versão folk, uma
delas em outubro de 1994 no Rio de Janeiro, registrada no CD póstumo Como é que se Diz Eu te Amo, de
2001.
151
concordamos com Gerard Béhague quando afirma que “essa posição é a que determina as
decisões do compositor frente a suas opções artísticas e estilísticas”
228
. Ao adicionar um
elemento do folk a uma composição punk de origem, Renato Russo internaliza em sua obra
algo que vivenciava como ser social, no caso o repensar da sua experiência com a “Turma
da Colina”, jovens que, como tantos outros, um dia acreditaram na mística da rebeldia
juvenil como instrumento de transformação social. É sobre esse repensar, entre outras
coisas, a canção que fecha o disco, “Por Enquanto”:
Mudaram as estações e nada mudou
Mas eu sei que alguma coisa aconteceu
Está tudo assim tão diferente
Se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar
Que tudo era prá sempre
Sem saber
Que o prá sempre
Sempre acaba?
Mas nada vai conseguir mudar o que ficou
Quando penso em alguém
Só penso em você
E aí então estamos bem
Mesmo com tantos motivos prá deixar tudo como está
E nem desistir, nem tentar
Agora tanto faz
Estamos indo de volta prá casa.
Se “Será” exala rebeldia e energia com seu ritmo acelerado, “Por
Enquanto” e sua base de teclados deixa a sensação de resignação e
impotência diante dos acontecimentos. Afinal, “mudaram as estações
e nada mudou”, apesar de um dia ter se acreditado tanto na
possibilidade da mudança. E a impotência diante da constatação do
fim dessa esperança parece tamanha que o melhor a fazer é voltar pra
228
BEHAGUE, Gerard. Fundamento Sócio-Cultural da Criação Musical. Revista da Escola de Música UFBA,
Salvador, Agosto, 1992, p. 07.
152
casa (
Mesmo com tantos motivos prá deixar tudo como está / E nem
desistir, nem tentar / Agora tanto faz /Estamos indo de volta prá casa
).
Algo aconteceu entre o "tire suas mãos de mim" e o "estamos indo de volta
pra casa". Então existe uma casa, um local de repouso, uma utopia
tranqüila? Que casa é essa, onde ela fica, quem sabe onde ela fica, quem
está indo de volta? Esta casa é o "nosso" futuro?
229
Aquele jovem que no início desejava romper com todos os laços agora
deseja "voltar pra casa", voltar a um lugar em que possa se sentir
tranqüilo, e em se tratando de jovens, implícito ao "voltar pra casa"
está retornar ao convívio familiar e aceitar restrições inerentes a este
convívio. “Por Enquanto”, então, é uma canção de desesperança,
uma dentre tantas canções do poeta do “eterno
no future”
? Não.
Primeiramente porque as letras de Renato Russo não expressam essa
eterna falta de esperança no futuro. Em segundo lugar, o próprio título
da canção, ao denotar uma situação provisória, deixa em suspenso a
resposta sobre o fim ou não da esperança de mudança. Voltar pra casa
significa também buscar um lugar em que seja possível refletir sobre os
impasses do momento e tentar encontrar soluções.
Pensando também a partir das referências de Renato Russo, os versos
finais de “Por Enquanto” remetem a um outro tempo. Entendendo
"casa" como um ponto de partida, podemos retomar as influências de
Renato pré-
punk.
ressaltamos que ser “igual aos
Beatles
era um
sonho de adolescência e que ao romper com o
punk
ele tocou
folk
rock
inspirado em Bob Dylan.
Dylan e Beatles remetem aos anos 60 e
todas as utopias juvenis que marcaram os embates político-
comportamentais desse momento no mundo ocidental. Nesse sentido,
voltar para casa” significa também retomar essas referências iniciais
que embora não tenham sido abandonadas, perderam espaço para
outras (as
punks
) que naquele momento estavam sendo repensadas.
229
VIANNA, Hermano. Op.cit.
153
“Por Enquanto”, letra e música, foi composta por Renato
Russo em 1984, no segundo semestre, quando a banda estava no
estúdio gravando o disco
230
. E este momento da década é marcado por
crises. No âmbito da potica e da economia interna é o momento da
transição do regime militar para o regime civil e de uma recessão
econômica resultante da falência domilagre econômicobrasileiro
da cada de 1970, além de toda crítica em relação às posturas
adotadas pela esquerda durante o período da ditadura; o contexto
internacional é marcado pela crise das utopias de superação do
regime capitalista, com o início do desmantelamento do império
soviético, por um lado, e de outro, a confirmação da hegemonia do
modelo neoliberal em contraposição ao modelo
“so cial-democrata” e sua promessa de uma sociedade capitalista
menos desigual. Enfim, as perspectivas e promessas de uma sociedade
melhor, tanto à direita quanto à esquerda, passavam por fortes abalos,
gerando uma sensação de “o que fazer?”, sem que, no entanto,
houvesse respostas concretas a esta pergunta. Na busca delas, refletir
e repensar o passado foi uma prática bastante usual e “Por Enquanto”
foi um desses momentos.
Essa situação de indefinição também estará presente no segundo
disco,
Dois,
gravado e lançado em 1986, mas a crença em dias
melhores também, assim como o repensar do passado. Além disso,
Dois
marca uma mudança conceitual em relação ao primeiro álbum:
se o disco de 1985 retratava a busca pela ética na esfera pública, o de
1986 voltava sua atenção para a busca pela ética na esfera privada. Na
capa
[no encarte, na verdade]
, uma foto em pia de Ico Ouro Preto
230
A versão gravada teve uma importante contribuição dos produtores do disco, Mayrton Bahia e José Emílio
Rondeau: “Não tinha introdução, a música era muito mais curta. Ela já entrava (cantando): ‘Mudaram as
estações ...’ e eles colocaram todo o instrumental antes”. (RUSSO, Renato. Entrevista. In: LEONI. Letra,
Música e Outras Conversas. Rio de Janeiro: Gryphus, 1995, p. 81).
154
deixava claro a que
Dois
o trabalho se referia: um casal abraçado
contemplava o mar, de costas para a câmera
231
.
Em “Adréia Dória”, Renato escreve:
Ás vezes parecia que, de tanto acreditar
Em tudo que achávamos tão certo,
Teríamos o mundo inteiro e até um pouco mais:
Faríamos florestas no deserto
E diamantes de pedaços de vidro.
[...]
Ás vezes parecia que era só improvisar
E o mundo então seria um livro aberto,
Até chegar o dia em que tentamos ter demais,
Vendendo fácil o que não tinha preço.
Eu sei é tudo sem sentido
Quero ter alguém com quem conversar,
Alguém que depois não use o que eu disse
Contra mim.
Aqui, de forma poética, Renato Russo fala da crença de se realizar
coisas impossíveis (
Faríamos florestas no deserto / E diamantes de
pedaços de vidro
), mais uma vez fazendo referência às utopias das
décadas anteriores. Também representa a preocupação com a ética
privada, o desejo de ter ao lado alguém que respeite o outro acima de
tudo (
Alguém que depois não use o que eu disse / Contra mim
),
apesar
da confusão geral (
Eu sei é tudo sem sentido).
Mas antes mesmo de
se poder pensar numa resignação em relação ao fracasso dessas
utopias e anseios, na canção imediatamente seguinte, “Fábrica”, a
crença em dias melhores é reafirmada logo nas primeiras estrofes:
231
DAPIEVE, Arthur. Renato Russo: O trovador solitário. Rio de Janeiro: Rioarte/Relume-Dumará, 2000, p.
76.
155
Nosso dia vai chegar
Teremos nossa vez.
Não é pedir demais:
Quero justiça,
[...]
Deve haver algum lugar
Onde o mais forte
Não consegue escravizar
Quem não tem chance.
Poeta do “eterno
no future
”? Renato Russo, em suas letras,
recorrentemente, expressou a sua esperança em um futuro mais
ameno. Ao invés de desesperança, ao analisarmos de maneira
sistemática sua canções na ordem em que foram produzidas,
percebemos que nas primeiras, da fase Aborto Elétrico”, temos uma
postura até mesmo ingênua de contestação à ordem (vide “Geração
Coca-Cola”); depois um momento de impasse, onde as utopias eso
em crise e persiste apenas a esperança de dias melhores, sem no
entanto saber como alcançá-los, até chegarmos a um terceiro
momento onde propostas para alcançar uma sociedade melhor são
formuladas. Nesse sentido, as referências dos anos 60, a partir de
Dois
começam a ser repensadas à luz dos embates dos anos 80, repensar
que tomaria contornos mais nítidos no disco
As Quatro Estações
, de
1989, marco do terceiro momento a que fazemos referência.
Antes, em fins de 1987 a banda lançou o disco
Que País é
Este. 1978-1987
, composto basicamente por canções da época do
“Aborto Elétrico”. Tal opção de repertório deu-se muito em função do
conturbado momento em que o disco foi gravado. Por imposição de
contrato, o grupo tinha de lançar um LP até dezembro de 1987. A
banda também gostava da idéia de “dar um presente de Natal” aos
fãs, e Renato sabia que para uma banda iniciante, como de fato
ainda eram, não seria bom negócio (e eles sabiam que suas músicas
156
também faziam parte de um negócio) passar mais de um ano sem
lançamentos no mercado. Tinham um bom cartaz com a gravadora em
função das vendas de
Dois
época em torno de 700 mil cópias), mas
nada capaz de sustentar uma briga, pois ela ansiava por novos discos o
quanto antes para poder continuar a colher os lucros proporcionados
pelo sucesso da banda. Afinal, o mercado fonográfico brasileiro é
marcado pela volatilidade de seus produtos.
No mesmo ano de 1987, por exemplo, a banda
RPM
bateu
todos os recordes de vendagem, atingindo a impressionante marca de
2,2 milhões de cópias de seu disco
Radio Pirata
, lançado em 1986,
para daí a pouco (fevereiro de 1989) sucumbir à guerra de vaidade de
seus integrantes e ser desfeita, após um “fracasso” comercial: o
terceiro e último disco da banda,
RPM ou Quatro Coiotes
“embora
os números divulgados na época falassem em até 300 mil pias
vendidas, o fato é que ‘RPM’ vendeu pouco mais que a metade, 170
mil. Uma boa vendagem. Mas em termos de RPM, um retumbante
fracasso”
232
.
Neste momento a Legião Urbana, apesar do destaque, não
podia ser considerada exceção a esta regra e, além disso, acatar as
pretensões da gravadora garantia algumas regalias, tais como mais
verba para produção do disco (mixagem, prensagem, encarte, etc.) e
um período maior para utilização do estúdio, o que significava
tranqüilidade para composição e gravação das canções.
Começadas as gravações, elas logo foram interrompidas,
em setembro de 1987. Em crise por diversas razões, uma delas a
crescente histeria em torno da sua figura detonada com o sucesso de
Dois
Renato Russo não conseguia compor. Suspensas as gravações,
começaram as pressões da EMI. Em outubro, chegou-se a um consenso.
Para cumprir o contrato, o terceiro disco seria composto por canções
das fases
Aborto Elétrico
e Trovador Solitário, que, umas mais, outras
menos, estavam incorporadas ao repertório dos shows da
Legião
, além
232
DAPIEVE, Arthur. Brock. O rock brasileiro dos anos 80. Op. cit., p. 126.
157
das duas canções que conseguiram finalizar no estúdio, “Angra dos
Reis” e “Mais do Mesmo”.
Com este disco a Legião Urbana consolidou sua posição
enquanto uma das bandas de maior destaque (e vendagem) no cenário
nacional, numa relação com o público marcada por momentos de
amor e ódio, atingindo níveis de fanatismo a ponto de ficar famoso um
trocadilho com o nome da banda, “Religião Urbana”.
Este sucesso conseguiu até mesmo subverter a estratégia de
divulgação dominante no mercado fonográfico, regida pela regra das
canções curtas (de dois minutos e meio a três minutos e meio de
duração) e fáceis de decorar. O carro-chefe de
Que País é Este 1978-
1987
foi a canção-título, “Que País é Este”, um
punk rock
composto
por Renato Russo (letra e música) em 1978 e sucesso do Aborto Elétrico
em Brasília. devidamente “atualizada” (assim como “Geração
Coca-Cola” tem violões na instrumentação), alavancou as vendas do
disco com seus versos simples, ritmo rápido e ar de indignação. Nela,
Renato canta:
Nas favelas, no Senado
Sujeira pra todo lado
Ninguém respeita a constituição
Mas todos acreditam no futuro da nação
Que país é este
No Amazona, no Araguaia, na Baixada Fluminense
No Mato grosso, nas Gerais e no Nordeste tudo em paz
Na morte eu descanso mas o sangue anda solto
Manchando os papéis, documentos fiéis
Ao descanso do patrão
Que país é este
Terceiro Mundo se for
158
Piada no exterior
Mas o Brasil vai ficar rico
Vamos faturar um milhão
Quando vendermos todas as almas
Dos nossos índios num leilão.
Que país é este
Tão atual nos dias de hoje ao fazer referências ao cenário político-
institucional brasileiro quanto em 1978 ou 1987, “Que País é Este” e seus versos de rimas
simples e teor panfletário, embora seja uma das referências do disco, acabou não sendo a
mais marcante. Este posto coube a “Faroeste Caboclo”, a canção responsável pela
subversão da estratégia de divulgação por ter alcançado o topo das paradas e ser uma das
mais executadas durante o ano de 1988 apesar dos seus mais de nove minutos. Escrita em
1979, compunha com “Que Pais é Este”, “Química”, “Conexão Amazônica”, “Tédio (Com
um T bem grande pra você)” e “Eu Sei” o rol se canções do LP que estavam
incorporadas ao repertório de shows. Com sua longa duração e seus 159 versos era a mais
anti-comercial de todas. Mas foi o maior sucesso, tendo até mesmo ganhado o prêmio de
“A Melhor Música de 1987” da revista Bizz
233
. Inesperadamente, começou a tocar em
algumas rádios menores e, não demorou muito, começou o aparecer na programação das
maiores, para atender as solicitações dos fãs. Daí ao Globo de Ouro”, programa semanal
da Rede Globo de Televisão, no horário nobre, no qual se apresentavam os artistas que
mais se destacavam na parada de sucessos, o caminho foi rápido, cerca de três meses
234
.
233
MELHORES de 1987. Bizz, São Paulo, n° 31, fevereiro de 1988, p. 43. A eleição foi feita por 22 críticos
de pop/rock convidados pela revista.
234
MAIA, Sônia. Faroeste Caboclo O estranho no ninho do sucesso. Bizz, São Paulo, 36, julho de 1988,
p. 49-51.
159
Uma ironia, pois fora vaiada pelo público punk carioca quando foi apresentada pela
primeira vez fora de Brasília, no Morro da Urca em 1983
235
.
A letra conta a história, fictícia, de João do Santo Cristo, um migrante
nordestino que, cansado do “marasmo da fazenda”, segue rumo a Brasília para tentar
ganhar a vida. Chegando à capital federal, o filho do interior baiano fica impressionado
(“Meu Deus mas que cidade linda!”). Consegue um emprego de aprendiz de carpinteiro
mas, em não muito tempo, a esperança de uma “vida melhor” esbarra em dificuldades
bastante concretas, que acabam por levá-lo a caminhos “pouco recomendados”.
E Santo Cristo até a morte trabalhava
Mas o dinheiro não dava prá ele se alimentar
E ouvia às sete horas o noticiário
Que dizia sempre que seu ministro ia ajudar
Mas ele não queria mais conversa
E decidiu que como Pablo ele ia se virar
Elaborou mais uma vez seu plano santo
E sem ser crucificado a plantação foi começar.
Pablo, no caso, era um traficante e contrabandista peruano, “que vivia na
Bolívia”, que João conhecera em algum prostíbulo de Brasília. A plantação a ser iniciada
era de maconha. Ou seja: João do Santo Cristo passa de aprendiz de carpinteiro a traficante.
Seu plano é bem sucedido, rendendo-lhe respeito e dinheiro, conseguindo “desbancar” os
traficantes da área. Contudo, influenciado pelos “boyzinhos da cidade” passa a roubar. Mas
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E pro inferno ele foi pela primeira vez
Violência e estupro de seu corpo
“Vocês vão ver, eu vou pegar vocês”.
235
A informação é do próprio Renato Russo no encarte de Que País é Este 1978-1987.
160
Revoltado, torna-se um bandido barra pesada”. Até ser “salvo” pelo amor,
Maria Lúcia, prima de Pablo. Movido pelo projeto de casar-se, volta a ser carpinteiro. E
assim vai seguindo sua vida até um senhor de “alta classe” lhe fazer uma “proposta
indecorosa”, que João rejeita de forma veemente, inclusive ameaçando o “alta classe”, que
devolve a ameaça:
Você perdeu sua vida, meu irmão!
Atordoado e amedrontado, Santo Cristo deixa de ir trabalhar e, numa
bebedeira, fica sabendo que perdera seu emprego. Fala, então, com Pablo e passa ser seu
sócio, ficando responsável pela distribuição do contrabando.
Neste meio tempo, se afasta de Maria Lúcia e quando volta a procurá-la,
descobre que ela havia se casado com Jeremias, um traficante seu inimigo, estando,
inclusive, grávida. É o momento em que o título da canção se justifica:
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E então Jeremias prá um duelo ele chamou
“— Amanhã, as duas horas na Ceilândia
Em frente o lote quatorze que pra lá que eu vou”.
O duelo, anunciado pela TV, de fato acontece, inclusive com platéia e
cobertura televisiva. João vai desarmado e é atingido pelas costas por um disparo de
Jeremias. Agonizante, reconhece Maria Lúcia, trazendo uma arma, que ele aceita e com a
qual dispara cinco tiros em Jeremias, morrendo os dois. Vendo a cena, Maria Lúcia pega o
revolver e suicida. Termina assim, sem final feliz, a história de João do Santo Cristo.
História confusa? Sim, resultado de uma letra imensa composta em apenas duas tardes, e o
próprio Renato reconheceu depois.
161
Faroeste Caboclo eu escrevi em duas tardes sem mudar uma vírgula. Foi: "Não
tinha medo o tal João do Santo Cristo ..." e foi embora. [...] Mas se você prestar
atenção tem um montão de falhas. Como a gente canta, as pessoas não percebem.
Uma vez, o pessoal da R. Farias [produtora de cinema] queria fazer um filme
[baseado na história]. Foi ai que deu para perceber como tem furo na história.
Cantando parece que faz sentido, mas por que cargas d’água esse homem encontra
boiadeiro em Salvador, que história é essa de trocar, "eu fico aqui, você vai pra
Brasília", por causa da minha filha? Por que é que a Maria Lúcia fica com o
Jeremias? Não pra entender! Ai você tem que bolar a sua própria história. O
máximo que eu cheguei é que ela era uma viciadona e o Jeremias era tão mal que
disse: "Se você não casar comigo eu vou matar o João". Mas também não justifica.
E o Santo Cristo é um banana? A menina apaixonada por ele e ele fica andando
com o Pablo pra cima e pra baixo, ele é gay? Tem uma porção de coisas na
história que não funcionam, mas quando a gente ouve no rádio funciona muito
bem
236
.
Com mais este sucesso de público, Bonfá, Dado, Rocha e
Russo saíram em turnê pelo país lotando ginásios, estádios e
colecionando incidentes, sendo o mais grave deles ocorrido em
Brasília, sexta-feira, 18/06/88. Nesse dia, mais de 50 mil pessoas
lotavam o estádio “Mané Garrincha”. Falta de organização,
segurança e infra-estrutura, além do atraso da banda para entrar no
palco, foram alguns dos fatores que acabaram por exaltar essa
multidão, gerando tumultos e um clima tenso. Quando a Legião
começasse o show, esperava-se, os ânimos seriam acalmados. Porém
isso não ocorreu. Iniciada a apresentação, os incidentes continuaram.
Objetos eram jogados no palco pela platéia (o que irritou
sobremaneira Renato Russo) e para completar a noite, um fã, que
sofria de problemas mentais, invade o palco e agarra-se ao pescoço do
vocalista, que por sua vez revida batendo com o microfone em sua
cabeça. Após a intervenção dos seguranças e Renato Russo dizer um
monte de impropérios para o público, a banda volta a tocar.
“Irritado
com uma bombinha de festas juninas lançada ao palco, Renato Russo
236
RUSSO, Renato. Entrevista. IN: LEONI, Op. cit., p. 72-73.
O projeto de filme da R. Farias foi abandonado, mas foi recentemente retomado pela Globo Filmes, que
pretende usar os globais Fábio Assunção e Cláudia Abreu para os papeis de João do Santo Cristo e Maria
Lúcia. Ainda não há previsão para lançamento.
162
saiu de cena três músicas depois. ‘Cidade babaca disse antes de
sair”
237
.
Com o show dado por encerrado,
“a multidão exigia que a
banda voltasse. Isso não aconteceu e a expectativa transformou-se em
revolta, em verdadeira batalha campal”
238
.
A batalha campal que se seguiu, envolvendo a polícia montada e bombas de
gás lacrimogêneo, degringolou num quebra-quebra pela cidade e deixou um
saldo de 60 pessoas detidas, 385 atendidas pelo serviço médico e 64 ônibus
depredados. Embora ônibus tivessem sido depredados antes do show,
quem levou a culpa pela arruaça foi a banda. Um relatório entregue pela
administração do estádio ao então governador José Aparecido dizia que
Renato incitara a juventude local e que "com menos de uma hora de show,
passou a agredir a cidade e os presentes". Embora isso fosse apenas uma
meia verdade, a Legião perdeu multidões de fãs em Brasília e teve de passar
um tempão tentando se defender. "Nós tocamos por uma hora e meia e não
por apenas meia hora como disseram, e separaram algumas frases do
contexto" lembrava Renato ao "Jornal do Brasil" do dia 21. "Temos tudo
gravado em fita cassete e filmado em 16 mm pelo Jodele Larcher". Exibido
pela Rede Globo, o material do videomaker ajudou a segurar a barra da
banda, que estava sendo empurrada para o cadafalso
239
.
Além desse incidente, os integrantes da banda não se relacionavam bem com a
histeria criada em torno deles e toda a ciranda de shows, mídia e tudo o mais característico
que se liga a artistas de sucesso. Achavam que público, mídia, etc., estavam dando poder e
importância demais às canções de quatro jovens. Juntando tudo isso, resolveram “dar um
tempo” com a banda, cancelando shows, compromissos e até mesmo repensando sua
postura, como lembrou Renato Russo em depoimento para a rede de TV MTV. “Até ‘Que
237
SHOW da Legião em Brasília provoca inquérito policial. Folha de S. Paulo, 21/06/1988, p. A-35.
238
IORI, Cristina. Era uma festa. Virou uma guerra. IN: Jornal da Tarde. São Paulo, 20/06/1988, p. 2 (Artes e
Espetáculo).
239
DAPIEVE, Arthur. BRock. O rock brasileiro dos anos 80. Op. cit., p. 136-137.
163
País é Este’ a minha postura no palco era de quebrar tudo”
240
. Depois de “fechar para
balanço”, voltam mais preocupados em chamar a atenção de seu público para outras
questões. De nada adiantava, para eles, o público entoar canções que questionavam a
situação política e social do país e se comportar de maneira violenta nos shows. Assim, o
disco As Quatro Estações (lançado em fins de 1989) foi fruto dessas preocupações, como
ressaltou Dado Villa-Lobos: “o ‘Quatro Estações’ seria uma questão de ser pôr contra o
que foi ‘Que País é Este’ e tudo nas turnês, aquela violência toda”
241
.
As Quatro Estações marca uma mudança quantitativa e qualitativa nas
temáticas das canções, que passam a privilegiar ainda mais o “micro” do que o “macro”,
numa tentativa de dizer que antes da “revolução social” deveríamos nos preocupar em fazer
a “revolução pessoal”, pois de nada adianta buscar uma nova realidade social se
continuarmos nos comportando da mesma maneira, a partir de antigas concepções.
Questionado, à época do lançamento do disco, se a Legião Urbana não queria mais “fazer
música com conotação política” Renato responde:
Eu não sei, porque o novo disco é todo político. Nesse disco a gente está falando do
espiritual, e hoje em dia não existe nada mais político para mim do que o espiritual.
Aliás, acho que essa é a questão crucial hoje em dia, a questão de você com teu lado
religioso
242
.
Ao realizar tal questionamento, os repórteres evidenciam uma concepção de
"político" (enquanto algo dissociado das demais instâncias da sociedade) que perpassava
240
“Legião Urbana. Passado, Presente, Futuro". MTV, 1994.
Este programa foi reprisado quando da morte de Renato, em outubro de 1996.
241
Ibidem.
242
RUSSO, Renato. O Som e a Fúria Entrevista a Humberto Finatti e Mário Mendes. Isto é Senhor,
01/11/1989. In: Conversações com Renato Russo. Campo Grande (MS): Letra Livre, 1996 p. 71.
164
também a maneira pela qual o público entendia as mensagens expressas pela Legião
Urbana em suas canções e apresentações.
[...] reduzir, como se fez, a categoria da Política à atividade direta ou indiretamente
relacionada com a organização do poder coativo é restringir o âmbito do ‘político’
quanto ao ‘social’, é rejeitar a plena coincidência de um com o outro. Esta limitação
baseia-se numa razão histórica bem definida. De um lado, o cristianismo subtraiu à
esfera da Política o domínio da vida religiosa, dando origem à contraposição do
poder espiritual ao poder temporal, o que era desconhecido do mundo antigo. De
outro lado, com o surgir da economia mercantil burguesa, foi subtraído à esfera
Política o domínio das relações econômicas, originando-se a contraposição (para
usarmos a terminologia hegeliana, herdada por Marx e hoje de uso comum) da
sociedade civil à sociedade política, da esfera privada ou do burguês à esfera
pública ou do cidadão, coisa que também era ignorada no mundo antigo
243
.
Buscando chamar a atenção de seu blico para a incoerência dessa
dissociação, Renato Russo fez nas letras de As Quatro Estações uso de várias referências
religiosas e ricas buscando, ao mesmo tempo, ressaltar a necessidade de se pensar o
político de maneira mais ampla e o fato de existirem diversas formas para se falar de um
mesmo assunto. Em "Monte Castelo", utilizou o nome de uma batalha da Segunda Guerra
Mundial para dar título à canção e a compôs a partir de versos do "Soneto 11" de
Camões e trechos bíblicos (I Coríntios,13).
Ainda que eu falasse a língua dos homens
E falasse a língua do anjos,
Sem amor eu nada seria.
É só o amor, é só o amor
Que conhece o que é verdade
O amor é bom, não quer o mal
Não sente inveja ou se envaidece.
O amor é o fogo que arde sem se ver
É ferida que dói e não se sente
É um contentamento descontente
243
BOBBIO, Norberto. Política. In: BOBBIO, Norberto et alli. Dicionário de Política. ed. Brasília: Ed. da
UnB, 1995, p. 960 (Vol. 2).
165
É dor que desatina sem doer.
Ainda que eu falasse a língua dos homens
E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.
É um não querer mais que bem querer
É solitário andar por entre a gente
É um não contentar-se de contente
É cuidar que se ganha em se perder.
É um estar-se preso por vontade
É servir a quem vence, o vencedor;
É um ter com quem nos mata a lealdade
Tão contrario a si é o mesmo amor.
Estou acordado e todos dormem todos dormem todos dormem
Agora vejo em parte, mas então veremos face a face
É só o amor, é só o amor
Que conhece o que é verdade.
Ainda que eu falasse a língua dos homens
E falasse a língua do anjos,
Sem amor eu nada seria
.
Aqui, Renato Russo coloca claramente uma proposta para se chegar a uma
sociedade melhor: o amor ao próximo como ato fundamental (Ainda que eu falasse a língua
dos homens/ E falasse a língua do anjos/Sem amor eu nada seria). Ao fazer uso de uma
passagem bíblica para dizer isto, além de explicitar sua religiosidade (dizia-se um católico
não-praticante), o compositor tenta comunicar-se com o público a partir de outros registros,
às vezes presentes em momentos anteriores de sua obra mas pouco percebidos até então.
Uma metáfora religiosa já estava na canção título de Dois, “Daniel na Cova dos Leões”,
letra na qual, por meio da citação do livro bíblico do profeta Daniel, fala de maneira cifrada
da dificuldade juvenil em afirmar-se sexualmente, especialmente os jovens que, assim
como ele à época, tinham de mascarar sua sexualidade até então Renato Russo não havia
166
assumido publicamente sua bissexualidade, ou “pansexualidade”, tal como veio a defini-la.
Porém, como ele mesmo admitiu, as pessoas não entenderam a mensagem
244
. Mesmo na
fase punk os símbolos religiosos não estão de todo ausentes. O maior exemplo disso é
“Faroeste Caboclo”, onde os personagens têm todos nomes bíblicos (João do Santo Cristo,
“Maria” Lucia, Jeremias, Pablo).
As referências religiosas em As Quatro Estações não se limitam a passagens
bíblicas. No videoclip de “Há Tempos” aparecem cartas de tae em “Quando o Sol Bater
na Janela do Seu Quarto” há citação de A Doutrina de Buda:
Tudo é dor
E toda dor vem do desejo
De não sentirmos dor
O uso dessas múltiplas referências está diretamente relacionado com o objetivo de mostrar a diversidade e, além disso, que para a
Legião Urbana mais importante que a religião era a espiritualidade:
Nós não estamos falando de religião, estamos falando do lado espiritual do ser
humano. Não estamos falando que Deus existe. Eu, pessoalmente, acho que seria
muita pretensão nossa achar isso. Acho sim, que temos um sentimento de
espiritualidade que comprova que ele existe. O disco não lida com a questão da
existência de Deus, sim com a idéia de Deus. E tem aquela estória [sic]: foi Deus
quem inventou o homem ou foi o homem que inventou Deus? O disco não é um
catecismo religioso
245
.
Apesar da diversidade de referências e da intenção de não fazer do disco um
catecismo, tal conotação é difícil de ser dissociada de As Quatro Estações. Não obstante as
muitas citações ao longo das canções, a letra de encerramento, “Se Fiquei Esperando Meu
244
LEONI, Op. cit., p. 95.
245
RUSSO, Renato. Quando o artista faz sucesso fica sempre devendo Entrevista a Denise Domingos,
Amiga, 04/01/1990. In: Conversações com Renato Russo. Op. cit., p. 83-84
167
Amor Passar”, é finalizada com o último trecho da “Ladainha de Nossa Senhora”, que
também é parte do missal romano:
Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo
Tende piedade de nós
Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo
Daí nos a paz
Conforme está em João (1, 29), o Cordeiro de Deus é Jesus Cristo, enviado à Terra em missão de salvação. Em declarações da época
do lançamento de As Quatro Estações, Renato Russo expressou sua perplexidade com o momento do país, particularmente com a
descrença das pessoas. Numa delas diz:
Até bem pouco tempo atrás, a gente realmente acreditava que poderia mudar alguma
coisa. Depois percebemos que não ia dar mais para mudar, mas continuamos
acreditando. E passou um certo tempo – eu pelo menos senti issoem que as
pessoas aqui no Brasil, principalmente depois do Plano Cruzado [1986], ficaram
descrentes de tudo. Está assim atualmente: elas deixam as coisas irem sem
convicção. Mesmo estas eleições presidenciais estão assim: todo mundo está
querendo acreditar, mas ninguém acredita muito
246
.
Essa vontade de acreditar, de manter a esperança de um país melhor, está expressa em Se Fiquei Esperando Meu Amor Passar”,
quando canta Quero minha nação soberana / Com espaço, nobreza e descanso”, em meio às virtudes do amor (“Quando se
aprende a amar / o mundo passa a ser seu). Ao comentar a letra, Renato deixa algo em suspenso que, no entanto, ajuda a
compreender o sentido da citação da “Ladainha de Nossa Senhora” ao final: “É uma situação onde a pessoa já levou tanta porrada
que nem sabe ...”
247
Nem sabe o quê? Pra onde ir? O quê fazer? A quem recorrer? Continuando, comenta: “A música termina com
aquela parte da liturgia católica cristã [...]. Depois é que percebemos que Cazuza já tinha feito uma colocação parecida, no ‘Blues
da Piedade’”
248
. E o que canta Cazuza nesse blues, do disco Ideologia, de 1988? Vejamos:
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Pra essa gente careta e covarde
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Lhes dê grandeza e um pouco de coragem
246
RUSSO, Renato. Legião Urbana Entrevista a Hagamenon Brito, A Tarde, Salvador, 07/11/1989. IN:
Conversações com Renato Russo. Op. cit., p. 76.
247
RUSSO, Renato. Quando o artista faz sucesso fica sempre devendo. Op. cit., p. 85.
248
Ibidem.
168
Que “gente careta e covarde” é essa? O próprio Cazuza responde, em outra
canção de Ideologia, “Brasil”:
Brasil
Mostra a tua cara
Quero ver quem paga
Pra gente ficar assim
Brasil
Qual é o teu negócio?
O nome do teu sócio?
Confia em mim
Ou seja, a “gente careta e covarde” era (somos) todos os brasileiros passivos diante da situação do país do colarinho branco, do
clientelismo, da corrupção , do “jeitinho brasileiro”, do “vale tudo”. Voltando à Legião Urbana, quando é feita a aproximação entre
“Se Fiquei Esperando o Meu Amor Passar” e “Blues da Piedade”, a primeira ganha uma conotação que por si só não consegue ter.
Ao interpretar sua composição, Cazuza canta com pitadas de ironia, sendo a súplica por piedade muito mais sarcástica do que
qualquer outra coisa. Ao evocar o “Cordeiro de Deus, Renato Russo não o faz em sentido irônico. Além de não ser uma forma de
discurso que gostasse de usar, sua interpretação da canção e o contexto em que há a citação não dão margem para tal percepção.
Afinal, por qual razão um tratamento irônico seria utilizado para cantar uma referência bíblica em um disco onde uma das premissas
foi a valorização da religiosidade. Ou seja, os pedidos de piedade de Renato e de Cazuza são bem diferentes, sendo que o da Legião
Urbana não é uma súplica aos deuses para que resolvam nossos problemas terrenos, retirando nossos pecados, mas um pedido de paz
social, individual e espiritual. Assim, embora não seja uma obra catequética no sentido de pregar o catolicismo, ao terminar o disco
com uma oração (e reafirmar a religiosidade), ao contrário do que defendeu, Renato Russo reforçou esse caráter de “manual
religioso”, ou de um “pequeno tratado sobre virtude”
249
de As Quatro Estações. Paradoxalmente, o disco fruto de preocupações com
o culto em torno da banda acabou por fornecer ainda mais elementos para a adoração dos fãs.
Quanto ao amor, um amor que respeite as diferenças, que não seja restrito
apenas às relações sexuais ou familiares, a valorização da religiosidade reforça o papel
desse sentimento como um ato fundamental de convivência social. Um mandamento:
“Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mateus 22,29). Não apenas isso:
o amor, na visão da gente em As Quatro Estações, o é uma coisa importante
porque as religiões dizem que seja, ou então porque é da natureza humana, mas sim
porque pode ser uma espécie de passaporte para outras reflexões e outras
sensações
250
.
Toda essa presença da religião, no entanto, não significou um abandono total das perspectivas punks. Em “Pais e Filhos” canta-se:
É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã
Porque se você parar pra pensar, na verdade não há
249
VIANNA, Hermano. Op. cit., p. 34.
250
RUSSO, Renato. Legião Urbana. Op. cit., p. 77.
169
A inexistência de um futuro positivo, com uma sociedade melhor do que a do presente, professada pelos punks, ainda tem seus ecos
aqui. A diferença, porém é que esse futuro só não existirá se não houver ações positivas no presente, ações “do bem, como ele
defende em 1965 (Duas Tribos)” ao dizer que está do lado do bem, “com a luz e com os anjos”.
Em síntese, o que entendemos é que a dúvida quanto ao futuro expressa por “Geração Coca-Cola” (afinal, que futuro a tão criticada
geração consumista poderia construir?) em As Quatro Estações está reelaborada, assumindo conotações bem distintas. A dúvida
passa a ser proposta. Seria esta a proposta mais correta, coerente, para superar os problemas da sociedade capitalista? A discussão
não é por esse caminho, na medida em que juízos de valor dessa ordem pouco contribuem para a análise histórica. Mais importante é
entender a lógica dessa proposta, e tentamos aqui minimamente recompor o seu processo de construção, e, num segundo momento,
entender a sua recepção. Em se tratando das canções da Legião Urbana, o sucesso delas junto aos jovens brasileiros a partir da
década de 80 fez de Renato Russo uma das referências culturais do Brasil contemporâneo.
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Ao discutir as canções da Legião Urbana que compõem os quatro
primeiros discos da banda, lançados entre 1985 e 1989,
argumentamos que elas partem de uma vontade de ação frente à
sociedade sem que, no entanto, saiba-se o que fazer, a uma proposta
do que fazer. Esta proposta tem como fundamentos a valorização da
individualidade e o respeito ao outro, numa busca incessante de
harmonização individual e das relações cotidianas, de modo a
permitir uma vida em sociedade menos conflituosa, pois quem é
incapaz de harmonizar-se consigo e com aqueles que lhe são mais
próximos, não conseguirá isto em dimensões mais amplas.
A síntese dessa proposta está em estreita ligação com um mandamento
bíblico, “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mateus 22,29). Na medida em que as
relações cotidianas têm esta posição central, o presente assume um papel fundamental,
enquanto momento das ões para que a proposta de futuro seja construída. Assim, para
que o deserto dê lugar às flores, é fundamental que cada um, em seu próprio tempo,
contribua, não somente plantando, mas principalmente cuidando de suas flores. Algo como
“cada um faz a sua parte e juntos mudamos o mundo”.
170
Por identificarmos esta proposta, questionamos a leitura na qual a Legião
Urbana (e Renato Russo sobretudo) canta a desesperança de uma geração. Entendemos que
a esperança em um futuro melhor acompanha toda a obra e que a alegada desesperança é
antes a angústia frente aos impasses do presente. Presente que, por sua vez, não é visto de
maneira otimista, tampouco está em confronto com um passado idílico.
Na medida em que presentividade, individualidade, desvinculação com as
propostas de transformação da esquerda, dentre outros aspectos, são geralmente associadas
ao momento de questionamento da tradição moderna, a pós-modernidade, juntamente com
o fato da Legião Urbana ter representado o papel de porta-voz de jovens criticados por seu
pequeno envolvimento sócio-político, em contraste com a atuante juventude da década de
60, pensar as canções da banda enquanto contraposição ao paradigma dos anos 60 é, de
fato, possível. Entretanto, parece obscurecer aspectos importantes da obra.
Os versos “É o amor, é o amor / Que conhece o que é verdade”, que
Renato Russo utilizou da obra de Camões para compor “Monte castelo”, remete, entre
outras, à canção All You Need Is Love” do Beatles. Parte do disco Magical Mistery Tour
(1967), momento em que o grupo inglês está em estreito diálogo com a contracultura, sua
mensagem é que nada é impossível desde que você tenha o mais importante, amor. Não é
demais lembrar a importância dos Beatles para Renato Russo, assim como Bob Dylan,
conforme já apontamos.
Embora tenhamos que investigar melhor as ligações entre as canções da
Legião Urbana e Dylan (bem como os Beatles), a proximidade entre o estilo folk de
“Eduardo e Mônica”, “Faroeste Caboclo” e Hurrycane” e “Mr. Tamborine Man”, para
citarmos apenas duas composições de Bob Dylan, são facilmente identificáveis na
instrumentação e na letra, pois todas narram trajetórias de personagens. Apesar de não ser
171
nada extraordinário no âmbito do rock artistas inspirarem-se em autores e obras sem
maiores preocupações em relação às vinculações estéticas e políticas de suas referências, a
insistência de Renato Russo em reafirmar Bob Dylan enquanto um de seus compositores
preferidos e o folk como uma referência, nos permite inferir que ambos estavam entre seus
paradigmas de criação. Porém, voltamos a enfatizar, é importante que isto seja melhor
investigado, tarefa que temos no horizonte.
Outra referência dos anos 60 com destaque na banda, especialmente na
iconografia de 1993 em diante, são as flores. Na capa do disco O Descobrimento do Brasil
(1993), Dado, Bonfá e Renato estão fotografados no meio de um campo florido. Em várias
outras fotos, muitas em shows, Renato Russo aparece empunhando flores, como se fizesse
delas a sua arma. Referência ao “poder da flor” hippie? É possível. De flor em mãos é que
ele está na capa de seu primeiro disco-solo, “The Stonewall Celebration Concert”. Lançado
em 1994, é uma homenagem aos acontecimentos de 28 de junho de 1968 no bar
“Stonewall” em Nova Iorque, data em que os homossexuais, freqüentadores do local,
enfrentaram a repressão policial. A partir de então, 28 de junho passou a ser marco na luta
pelos direitos homossexuais e dia do “Gay Prideou “Orgulho Gay”.
Estas e muitas outras questões que nos angustiaram durante a pesquisa, nos
dão a certeza de que há um longo caminho a percorrer para a análise das muitas
representações que as canções da Legião Urbana suscitam, de modo a fazer com que elas
nos ajudem ainda mais a entender aspectos da cultura da história recente de nosso país. E
dada a popularidade da banda mesmo após sua dissolução com a morte de Renato Russo
em 11 de outubro de 1996, popularidade constantemente alimentada pelo mercado da
música, que lançou três discos stumos e acena com outros, arriscamos a dizer que as
canções da Legião Urbana continuarão a nos informar sobre a cultura brasileira por um
172
bom tempo. A incompletude da análise que por ora encerramos é amainada pelo nosso
desejo de continuar a investigar a obra da banda, particularmente as letras de Renato Russo,
e pelas outras tentativas, ainda que reticentes como a criação do Memorial Renato Russo
em Brasília (previsto para 2000, mas atualmente em suspenso, onde será – ou seria -
disponibilizado seu espólio), de iluminar a sua trajetória.
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Pelo avesso assim, sem final feliz
Teremos coisas bonitas pra contar
E até lá, vamos viver
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Metal Contra as Nuvens
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