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caracterizava os costumes de seus contemporâneos, de onde desenvolveria seus
Ensaios
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.
Em seu elogio da vida filosófica Da solidão é um dos capítulos da obra, mais
marcados pelo estoicismo de Sêneca, no qual o autor francês, tal como o antigo
filósofo cordovano, manifestou sua confiança no poder da razão, entendendo que
o verdadeiro sábio era aquele que levava a cabo uma perfeita resistência contra as
paixões do mundo e encontrava na solidão o caminho privilegiado para o
autoconhecimento e a felicidade
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. Em Da glória ele também se utilizou de uma
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É impossível saber ao certo as razões pelas quais Montaigne se decidiu tão repentinamente pelo
abandono da vida pública. Como nos mostra Pierre Villey: “Vejam bem, diz-se: quando
magistrado, ele agarrava todas as oportunidades para acorrer a Paris e mostrar-se na corte. Vai para
lá pelo menos duas vezes, e na segunda fica ausente por longo tempo, talvez dezessete anos. Todas
as vezes acompanha a corte em viagens pelas províncias (...)” Villey, P. Vida e Obra de
Montaigne, In: Ensaios, V. I, p. LX. Montaigne recebera de seu pai Pierre Eyquen uma sólida
educação humanista e fora criado para alçar as mais altas posições. Tomou assento na Câmara de
Inquéritos do Parlamento de Bourdeaux ainda em 1561 e lá permaneceu até o momento da
renúncia dez anos depois. Os conflitos internos entre seus colegas e uma tentativa frustrada de
ascensão à grande Câmara (a mais soberana, aonde se pronunciavam as sentenças) podem ter
precipitado a retirada, além de outras razões, como a melancolia causada pela morte de seu grande
amigo Etienne De La Boètie em 1563 que conhecera no cumprimento de suas funções no
Parlamento, assim como a morte de seu pai em 1568. De todo modo, como se sabe, ele não iria
abandonar completamente os negócios públicos a partir de então. Em 1574 estava no exército real
no baixo Poitou, além de cumprir ainda missões diplomáticas junto a seus ex colegas do
Parlamento. Era muito íntimo do rei Henrique de Navarra por quem foi nomeado fidalgo de seu
gabinete em 1577. No entanto, muito pouco de sua vida pública aparece nos Ensaios, fruído a
partir do domínio privado de sua vida retirada. Como bem nos mostra Starobinski quanto ao
estabelecimento do espaço do autoexílio, celebrado pela inscrição de 1571: “o importante para ele
é ter conquistado a possibilidade de estabelecer-se em um território pessoal e privado, de ali tomar
a todo tempo um recuo absoluto, saindo do jogo: o importante é ter dado à distância reflexiva sua
localização a um só tempo simbólica e concreta, ter-lhe reservado um sítio, sem se obrigar a
habitá-lo constantemente.” STAROBINSKI, J. op. cit., p. 16.
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A fonte principal desse “eventual” estoicismo de Montaigne tomado de Sêneca, parece ter sido
principalmente as Cartas a Lucílio. Além de Da solidão, podemos atestar a forte influência do
“senequismo” nos capítulos I, 19; I, 20 e I, 40, todos datados dos primeiros tempos da escrita dos
Ensaios. Mas se devemos levar em consideração a observação de Pierre Villey, que em seu
Sources et Evolution des Essais, nota o modo como as citações tomadas diretamente de Sêneca
perderam espaço na edição de 1588, é preciso por outro lado, observar que a crítica e o
afastamento de Montaigne em relação a ele jamais foram generalizados, incidindo exclusivamente
ao que restava de dogmático e de normativo em sua reflexão moral, ou seja, ao ideal regulador do
sábio que pemanecia no horizonte de seu pensamento filosófico. O autor dos Ensaios não deixou
de reificar sempre seu “senequismo”, especialmente no que dizia respeito ao modo como o filósofo
afirmava seu próprio afastamento do antigo dogmatismo dos estóicos gregos, expresso no
ecletismo das Cartas a Lucílio e no modo como declarava limites à pretensão da filosofia em
prover a felicidade humana, contrapondo às suas generalizações a diversidade individual e as
particularidades dos homens. Sobre isso ver, por exemplo, a carta 22 do primeiro volume de suas
Cartas a Lucílio. EVA, L., “Notas sobre a presença de Sêneca nos Essais de Montaigne”. In:
Educação e Filosofia, 17, p. 42-47. De resto, concordamos ainda com Fausta Garavini, que em seu
Itinéraires à Montaigne, sublinha que o autor dos Ensaios encontrou nas Cartas de Sêneca antes
um modelo estilístico para sua escrita pessoal do que um mestre filosófico. Agradava a ele o
caráter peremptório das frases de Sêneca e a densidade de significado contida em suas sentenças
concisas e lapidares. Nesse sentido, o afastamento do estoicismo que se verifica nos ensaios
posteriores, não significou propriamente um afastamento de Sêneca: Montaigne jamais renegou
sua influência em termos estéticos e formais ao longo dos anos em que desenvolveu seu discurso,
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