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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
ESTA TERRA TEM DONO
Uma análise antropológica de representações produzidas sobre o passado
missioneiro no Rio Grande do Sul
CERES KARAM BRUM
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para a
obtenção do título de DOUTOR EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Orientador: Prof. Dr. Ruben George Oliven
Porto Alegre, 2005.
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Dedico esta pesquisa
aos meus pais Flávia e Élio
porque me deram a vida
à Mme. Thiesse e ao professor Ruben
pelo muito que me ensinaram
e, ao Gentil,
por nossa cumplicidade.
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AGRADECIMENTOS
A conclusão desta tese significa mais do que o encerramento de uma etapa
de minha vida acadêmica. Ela significa para mim a descoberta de um profundo
amor pelo fazer antropológico e porque me possibilitou tentar desvendar o sentido
que as pessoas constroem sobre o passado e, nesta medida, um pouco do
significado que o mesmo adquire em suas vidas.
Durante os trabalhos de campo e na escrita do texto, as representações
sobre o passado missioneiro adquiriram um significado especial para mim, porque
se constituíram em meu espaço preferencial de construção como pessoa. Foi
tamm através desta pesquisa que entendi um pouco mais sobre a diversidade
de relações que estabeleço com minha própria história de vida e como represento
o meu passado, ao referendar alguns mitos de minha própria existência.
Devo à pesquisa a alegria da oportunidade de partilhar o conhecimento e o
convívio, mesmo que temporário, com várias pessoas que se dispuseram a me
confiar suas impressões ou que permitiram minha permanência junto aos grupos
para as observações. Neste sentido, desejo sinceramente ter sido fiel em minhas
interpretações às colocações de todos os sujeitos que de alguma forma
contribuíram com a pesquisa. Gostaria de agradecer a todos e a cada um
(instituições e pessoas que me abriram suas portas) pela colaboração e paciência
ao permitirem que eu entrasse em seus lares, participasse de suas festas,
percorresse os Caminhos das Missões e de Santiago, especulasse suas viagens
turísticas, permanecesse em suas praças, vasculhasse seus escritos, na tentativa
de interpretar seu universo para entender seus mitos.
Desejo agradecer ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
UFRGS por ter me acolhido como pesquisadora nas pessoas de todos os
professores, colegas (sobretudo a Ana Freitas, Arlei Damo, Débora Leitão e
Rogério Rosa) e funcionários (especialmente Rosemeri Feijó) com quem partilhei
este trabalho durante este período. Agradeço a CAPES por tê-lo financiado e
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igualmente por ter me oportunizado a participação no Programa de Doutorado
com Estágio no Exterior na École des Hautes Études en Sciences Sociales de
Paris, durante sete meses. À professora Anne-Marie Thiesse, que supervisionou
meus estudos na França, desejo agradecer a acolhida, indicações, conselhos e
disponibilidade ao me receber e dirimir minhas tantas questões nacionais e
regionais, indicando a construção das identidades e os ethnotypes como aportes
para pensar também o passado missioneiro.
Gostaria igualmente de agradecer ao carinho dispensado por meus amigos
(especialmente a Luis Kunrath, Simone Pirotti e Delmo Amendola) e meus
familiares (sobretudo a meus pais Flávia e Élio e minhas irmãs Cíntia e Carolina
Brum). Aos pesquisadores com quem convivi na França quero igualmente
ressaltar a oportunidade proveitosa de interlocução estabelecida na Maison du
Brésil e na École des Hautes Études en Sciences Sociales, especialmente a
Angélica Massuquetti, Carlos Buller, Gentil Corazza, Marcus Fabiano da Silva,
Roseane Freitas Nicolau, Paulo Pacheco e Silvana Nascimento. Aos professores
Afrânio Garcia, Juan Carlos Garavaglia, Marion Aubrée e Mônika Salzbrunn meu
profundo reconhecimento pelas sugestões efetuadas durante o andamento da
pesquisa na França. Aos professores Antón Figueroa e Marcial Gonzar o meu
agradecimento pelas discussões efetuadas em Santiago de Compostela.
Às professoras Sandra Pesavento e Maria Eunice Maciel agradeço pelas
colocações efetuadas durante a produção deste trabalho por ocasião da
qualificação e defesa da tese. Igualmente ressalto e agradeço à professora Bela
Feldman-Bianco as considerações efetuadas por ocasião da defesa.
À minha mãe Flávia Maria Karam Brum agradeço a revisão de português do
texto da tese e a professora Margarita Barreto a leitura do capítulo sobre turismo e
suas sugestões.
Por fim, obrigado professor Ruben Oliven por ter orientado meus passos,
acreditando na possibilidade desta pesquisa construída ao longo destes quatro
anos, conjuntamente. Sua confiança no processo de elaboração do trabalho de
uma historiadora que se construiu antropóloga para entender as Missões se
constituiu em elemento chave para o seu andamento e consecução.
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RESUMO
Esta pesquisa tem por objetivo mostrar a pluralidade de relações estabelecidas na
atualidade com o passado colonial missioneiro no Rio Grande do Sul expressas
nas narrativas que a ele remetem, demonstrando possíveis modalidades de leitura
deste passado e os seus usos públicos e privados. Minha hipótese é que as
referências à experiência missioneira (uma experiência de integração colonial a
que os padres jesuítas submeteram os habitantes originários guaranis durante os
séculos XVII e XVIII), ocorrem em situações ritualizadas específicas a partir da
geração de mitos em torno do passado missioneiro. Estes processos de
mitificação, observados tanto nos discursos que o celebram quanto nos que o
criticam, envolvem perspectivas apologéticas e performáticas de interpretação,
com o intuito de criar uma consciência histórica individualmente concebida,
relacionando a produção de imaginários relativos às Missões a identidades
individuais e grupais acionadas através do pertencimento ao missioneiro e outros
referentes. A análise antropológica destas representações foi efetuada a partir de
trabalhos de campo realizados entre grupos e instituições ligadas ao gauchismo,
turistas, habitantes de alguns dos antigos povoados das Missões, políticos e
mbyá-guaranis, pretendendo apreender a diversidade de formas através das quais
os indivíduos e grupos percebem esta experiência passada e a utilizam no seu
presente.
Palavras chave: representação; passado; Missões.
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ABSTRACT
The present research aims to show the plurality of relations established in the
present with the missionary colonial past in Rio Grande do Sul. This plurality of
relations is expressed in related narratives, allowing different readings of such a
past and its public and private uses. My hypothesis is that references to this
missionary experience (an experience of colonial integration to which Jesuit Priests
submitted the original guarany inhabitants during the centuries XVII and XVIII)
occur in specific ritualized situations from the creation of myths around the
missionary past. These mythification processes, that have been observed not only
in discourses celebrating it but in those criticizing it as well, involve apologetical
and performance-related perspectives of interpretation that are aimed at building
an individually-developed historical awareness linking the production of the
Mission-related imaginary to individual and group identities activated through the
belonging to the missionary and to other references. The antropological analysis of
these representations has been carried out through field work made among groups
and institutions linked to gaucho tradition, tourists, inhabitants of some of the
ancient villages of the Missions, politicians and mbyá-guaranys, trying to
apprehend the diversity of forms through which individuals and groups perceive
this past experience and use it in their present.
Key words: representations; past; Missions
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SUMÁRIO
RESUMO
ABSTRACT
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES 010
CAPÍTULO 1
Tornar presente um passado: algumas reflexões sobre
representações do passado missioneiro na atualidade 027
1-Sobre o poder de nomear da História das Missões 030
2-Da História à Antropologia. A história como narrativa sobre as Missões 036
3-As narrativas e a produção da memória coletiva das Missões 041
4-As modalidades de relações entre o passado e o presente 047
5-Missões: fronteiras e identidades 052
CAPÍTULO 2
Os regionalistas e a comemoração do passado missioneiro no Rio Grande do Sul 059
1-Questões Metodológicas 059
2-Sobre o Regionalismo e o Gauchismo no Rio Grande do Sul 066
3-O Movimento Tradicionalista Gaúcho 081
CAPÍTULO 3
As representações do passado missioneiro no gauchismo 089
1-Semana Farroupilha: desfile e o acampamento do Parque Harmonia 089
2-ENART - Encontro de Arte e Tradição Gaúcha 098
3-1ª Cavalgada Mbyá-Guarani: Uma Cavalgada Humanitária 113
4-A música missioneira no Rio Grande do Sul 124
5-Considerações finais. 135
CAPÍTULO 4
O Passado missioneiro no presente dos povoados: a atuação do turismo nas
Missões 138
1-Porque estudar o turismo nas Missões 138
2-O Circuito Internacional das Missões 144
3-O Caminho das Missões 174
4-O Rota Missões SEBRAE e o projeto turístico de São Nicolau 202
5-Considerações finais 217
CAPÍTULO 5
Mitologia folclórica missioneira 223
1-A lenda do Angüera 227
1.1.Os Angüeras: grupo amador de arte 235
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1.2.Abre o povo que o bagual é novo: o festival da Barranca 240
2-A lenda da Casa de Mbororé 248
2.1.Os tesouros jesuíticos. 260
2.2.Os túneis das Missões 266
3-Sepé Tiaraju 276
3.1O lunar de Sepé e a lenda de São Sepé 281
3.2.Os monumentos a Sepé Tiaraju 295
3.3
.
A performance de Sepé Tiaraju nos espetáculos sobre as Missões 301
3.4.Esta terra tem dono? Um santo missioneiro nas disputas de terra do estado 307
4-Conclusão em forma de paradoxo: o índio hiper-real e o imaginário
missioneiro 321
CONSIDERAÇÕES FINAIS 329
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 343
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SUMÁRIO DE ILUSTRAÇÕES
1- Mapa dos Trinta Povos das Missões 011
2- Mapa das Missões Primitivas e Sete Povos das Missões 013
3- Mapa de localização dos povoados na América do Sul 070
4- Mapa da demarcação dos tratados de limites no Rio Grande do Sul 071
5- Folder publicitário da Claro Digital 108
6- Lenço da Primeira cavalgada Mbyá Guarani 115
7- Foto 1 índio vestido de gaúcho 120
8- Foto 2 o cacique e o tradicionalista 121
9- Folder do Circuito Internacional das Missões 150
10- Foto 3 crianças em frente às ruínas de Santíssima Trinidad 154
11- Postal da Redução de Santíssima Trinidad 155
12- Foto 4 Mbyá-guaranis vendendo artesanato em São Miguel 171
13- Capa Guia do Peregrino 175
14- Foto 5 peregrinos caminhando 185
15- Mapa trajeto Caminho das Missões 186
16- Encarte do Projeto Rota Missões 204
17- Foto 6 placa do sítio arqueológico de São Nicolau 213
18- Foto 7 muro construído com pedras das edificações das Missões 214
19- Mapa do Projeto Rota Missões 216
20- Laudo arquitetônico do subterrâneo de São Nicolau 269
21- Foto 8 e 9 subterrâneo de São Nicolau 273
22- Ilustração da reportagem sobre a canonização de Sepé Tiaraju 277
23- Gravura da imagem de Sepé Tiaraju na lenda O lunar de Sepé 292
24- Gravura de Santiago Matamoros e santinho de Sepé Tiaraju 294
25- Foto 10 monumento á família missioneira em Santo Ângelo 300
26- Reportagem sobre Sepé Tiaraju 308
27- Santinho de Sepé Tiaraju e oração 312
28- Mapa das manobras da Guerra Guaranítica 318
29- Foto 11 roupas guarani em São Miguel 325
30- Foto 12 casa de passagem guarani no sítio arqueológico de São Miguel 326
31- Foto 13 moradia na Reserva Nhancapetun 327
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CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
No presente trabalho desejo apresentar e analisar algumas representações
produzidas sobre o passado missioneiro no Rio Grande do Sul. Os trabalhos de
campo foram realizados entre grupos e instituições ligadas ao gauchismo, turistas,
habitantes de alguns dos antigos povoados das Missões, políticos e mbyá-
guaranis. Eles objetivam apreender a diversidade de formas através das quais
estes percebem a experiência missioneira passada e a utilizam no seu presente
através da produção de representações.
A pesquisa tem por objetivo perceber a pluralidade de relações
estabelecidas com o passado missioneiro expressas nas narrativas que a ele
remetem, demonstrando possíveis modalidades de leitura deste passado e os
seus usos públicos e privados. Minha hipótese é que as referências à experiência
missioneira ocorrem em situações ritualizadas específicas a partir da geração de
mitos em torno do passado missioneiro. Estes processos de mitificação
observados, tanto nos discursos que o celebram quanto nos que o criticam,
envolvem perspectivas apologéticas e performáticas de interpretação, com o
intuito da criação de uma consciência histórica individualmente concebida a que
se relaciona a produção de imaginários relativos às Missões e identidades
individuais e grupais acionadas através do pertencimento ao missioneiro e outros
referentes.
Ocorrida durante os séculos XVII e XVIII, nos territórios atuais do Rio
Grande do Sul, Paraná, Argentina, Uruguai e Paraguai, a experiência missioneira
platina também denominada Os Trinta Povos das Missões correspondeu à
tentativa hispânica de integrar os territórios e seus habitantes, enquanto
possessões coloniais. Apesar de ser uma experiência extremamente controvertida
e estudada, relaciono as Missões à integração colonial efetuada pelos jesuítas, a
11
11
serviço da monarquia castelhada, através do aproveitamento e utilização de
elementos do ethos dos habitantes originários guaranis na imposição do
catolicismo, da fidelidade ao rei e aos valores coloniais nas Reduções e,
posteriormente, nas Missões.
A partir de 1610, tendo como referente a experiência de catequização
intentada pelos jesuítas a serviço da coroa portuguesa, na Bahia em 1549,
começaram a chegar ao Paraguai os primeiros missionários jesuítas
representantes do colonialismo castelhano. Com o objetivo de catequizar e reduzir
em pequenas aldeias os autóctones da região, privando-os do contato com os
demais colonizadores e evitar, por um lado, a dizimação que estava sendo
provocada pela exploração dos encomenderos
1
e, por outro, o apresamento
indígena efetuado pelos bandeirantes paulistas, os jesuítas intensificaram sua
ação missionária em diferentes frentes de expansão.
Extraído do encarte turístico argentino Las Misiones Jesuíticas. San Ignácio Mini:
informaciones Generales (2003:5)
1
Os encomenderos são os agentes da encomienda, segundo Julio Quevedo em Missões Crise e
redefinição (1993:97) um tipo de trabalho indígena à disposição do colonizador, concedido pelo rei
12
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Na região do Guairá, entre os rios Paranapanema, Paraná até a Foz do rio
Iguaçu, foram criadas as primeiras reduções entre 1610 e 1628.
Concomitantemente, entre 1610 e 1627, na região do Paraná-Uruguai, à margem
direita do rio Uruguai são tamm fundados povoados. Num segundo momento,
em virtude das sucessivas investidas bandeirantes, e das dificuldades de
catequização entre os guaranis, alguns jesuítas e guaranis reduzidos seguiram
para o sul e na região do Itatim criaram povoados entre 1631 e 1633, bem como
em direção à margem esquerda do rio Uruguai conhecida como região dos Tapes,
já no atual território do Rio Grande do Sul
2
, onde também fundaram povoados
entre 1626-1634, com a introdução do gado na região. Estes povoados se
desestruturaram definitivamente pela ação bandeirante em 1640. Embora os
índios reduzidos tenham vencidos os bandeirantes, muitos foram aprisionados e
os restantes partiram com os jesuítas para a outra margem do rio Uruguai de onde
retornaram na década de 1680 para organização de uma nova fase missionária.
Esta primeira fase reducional (1610-1640) de conversão à católica se
caracterizou por parte dos jesuítas pela imposição de uma organização que
pretendia a defesa dos interesses expansionistas hispânicos, pontuando a
ocupação do território ao utilizar os indígenas como defensores mobilizados
militarmente e a transição do seu modo de vida, tentando frear, entre outros, seu
nomadismo itinerante ao mantê-los nas aldeias, e suprimir a poligamia e o
canibalismo ritual.
A partir de 1682 são criados os Sete Povos das Missões: São Borja (1682),
São Nicolau, São Miguel e São Luiz Gonzaga (1687), São Lourenço (1691), São
João Batista (1697) e Santo Ângelo (1706) que pertenceram à segunda fase desta
experiência no Rio Grande do Sul os últimos dos trinta povoados a serem
da Espanha e extensivo aos herdeiros daquele, que consistia em receber o serviço indígena nas
lavouras e em obras, em troca do cuidado com o bem estar do índio.
2
Em termos factuais a construção das Missões no Rio Grande do Sul pode ser pensada em dois
momentos: o primeiro iniciado com a fundação de São Nicolau do Piratini pelo Pe. Roque
Gonzales em 1626 e que perdura até 1640 e o segundo correspondente a fundação dos Sete
Povos das Missões entre 1682 e 1756.
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fundados veiculando os autóctones guaranis e seus territórios à Espanha, em
oposição à frente de expansão lusa na América Platina.
Extraído do livro de Júlio Quevedo Guerreiros e jesuítas na utopia do Prata (2000:
84)
Nesta segunda fase, imperava o modelo de índio que estava reduzido
3
à
católica e as Missões se caracterizavam pelas casas coletivas, pela utilização
da língua guarani, por instituições administrativas de cunho hispânico como o
Cabildo, ocupado pelos caciques como lideranças indígenas, pela expulsão dos
pajés enquanto elemento da religiosidade guarani originária e sua substituição
pelos padres jesuítas, pela especialização da mão de obra e divisão da
propriedade dos meios de produção em coletiva (tupambaé) voltada a auto-
suficiência e a produção de excedentes para a economia colonial e particular
(amambaé) que possibilitava a subsistência da família.
A estes aspectos que garantiram a permanência dos guaranis nas Missões
e o fortalecimento dos povoados enquanto experiência colonial se somaram outros
como a arte e arquitetura barroca na construção das cidades através do modelo
espanhol em que a praça e a igreja se constituíam nos principais espaços de
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sociabilidade, permitindo o rígido controle por parte dos padres que identificavam
a missão à terra da promissão. Este imaginário jesuítico incorporado como mito e
que permanece vivo, sendo apropriado ainda na atualidade, está expresso nos
escritos do Pe. Antônio Sepp Viagens às Missões Jesuíticas e Trabalhos
apostólicos de [1710] que foi um dos protagonistas da experiência missioneira
platina. Após escolher o local para a construção do povoado de São João Batista,
juntamente com alguns caciques e índios, em 1697, e o sinalizá-lo com a cruz,
Sepp retorna a São Miguel e profere um discurso às mulheres para convencê-las
à transmigração:
Quando portanto chegou o tempo da transmigração, convoquei todas as
mulheres e moças no templo de São Miguel e, depois da missa, lhes falei
nestes termos: minhas caras filhas no senhor, Deus e os vossos
Superiores mandam-vos deixar esta terra e ir para um lugar distante.
Emigremos, pois, para onde Deus nos chama, e nos foi adiante o glorioso
precursor de Cristo, convidando-nos a segui-lo. Não julgueis que vos
quero conduzir para o deserto da Palestina, solidão da Arábia ou para o
ermo áspero e estéril que habitou São João Batista. Antes esperai que
migreis para os campos elíseos e a terra da promissão regada de leite e
mel. (Sepp: [1710] 1880, 235).
Através da atualização dos escritos bíblicos aplicado à realidade missional
entre os guaranis-missioneiros, os jesuítas produziram um modelo de
pertencimento ao colonialismo hispânico e ao catolicismo, para o indígena, que
tamm se pautava na Guerra Santa dos anjos contra os demônios e na
justificação do espaço das Missões como uma terra sem males, ao enfatizá-la
como a terra da promissão, Neste sentido, a atuação missionária rivalizava os
colonizadores lusos, os índios refratários a catequização e os demais
colonizadores hispânicos, impedindo o contato com os índios das Missões e
formalmente utiliza-os como Guarnição de Fronteira militar e sócio-cultural dos
interesses hispânicos no Prata, ao permitir seu emprego como soldados nas
disputas coloniais e na construção de edificações.
A adequação dos escritos bíblicos, por parte dos jesuítas, com justificação
da Missão como Terra da Promoissão, perdurou até a desestruturação dos Sete
3
As observações a respeito do modelo do índio reduzido se relacionam à análise de Júlio Quevedo
em Guerreiros e Jesuítas na utopia do Prata (2000:11)
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Povos que ocorreu em virtude das disputas ibéricas por estes territórios, a partir
de 1750, por ocasião das demarcações do Tratado de Madrid, o qual determinava
a troca da Colônia do Santíssimo Sacramento (possessão lusa) pelos referidos
povoados. A Guerra Guaranítica (1754-1756) correspondeu, neste contexto, à
recusa por parte dos guaranis de efetuar a referida troca e entregar as terras das
Missões.
Desta disputa, a literatura regionalista, a historiografia e a memória popular
ressaltam a atuação da figura mitológica de Sepé Tiaraju, comandante das tropas
missioneiras e morto na Batalha de Caiboaté, a quem se atribui a expressão Esta
terra tem dono. Esta referência atávica o grito de Sepé, como é conhecido
vem sendo citada, ao longo do processo histórico sulino, em inúmeros episódios
para justificar uma gama de atitudes que denotam a construção de representações
tendentes a ressaltar a bravura dos gaúchos, descendentes do índio Sepé.
A memória da experiência missioneira no Rio Grande do Sul remete
tamm a outros momentos, episódios e personagens, sendo expressa através de
uma pluralidade de narrativas como: o artesanato dos grupos guaranis e
manifestações dos habitantes das regiões próximas aos antigos povoados
missioneiros, narrativas tradicionais de temática missioneira (designadas pelos
folcloristas e regionalistas no Rio Grande do Sul como mitos e lendas), produção
musical e poética relacionada aos grupos tradicionalistas e artistas nativistas,
designação/nominação de Centros de Tradições Gaúchas e grupos folclóricos,
publicidade veiculando as Missões, religiosidade popular em torno da figura de
Sepé Tiarajú e turismo, entre outros. Em suma, elaborações de representações
que traduzem a recriação do passado missioneiro no presente, permeadas de
diversas maneiras pelo mito da Missão como a Terra da Promissão.
Desta forma, a par da pluralidade de estudos realizados sobre a experiência
de evangelização ocorrida durante os séculos XVII e XVIII, penso que o passado
missioneiro deve ser enfocado como um problema antropológico presente, uma
vez que a memória do mesmo vem sendo acionada de diversas formas,
produzindo imaginários, pertencimentos e identidades que tem o missioneiro como
16
16
referencial histórico construído, cujos olhares importam em tomadas de posições
acerca do passado no presente.
O desenvolvimento do presente trabalho decorreu de algumas
coincidências na minha trajetória, que me levaram a tentar compreender a relação
do passado com o presente no tocante à necessidade de interpretação e recriação
que temos como indivíduos e grupos de nos identificarmos e exaltarmos
determinados episódios. O que quero salientar, inicialmente, é que a possibilidade
de ser, viver e existir
4
me parece, em alguns momentos, estar fundamentada na
visão que temos do que ocorreu,, sendo o presente, nestes casos, construído
em relação ao passado e a história vivida por pessoas que, certos indivíduos e
grupos, elegem para glorificar e comemorar ou também para, ao contrário, criticar
e desmascarar, através da produção de representações que se propõem a efetuar
a leitura de um episódio marcante, re-elaborando-o à mercê dos seus interesses e
objetivos.
Quanto às coincidências, o fato de ter nascido e viver no Rio Grande do Sul
teve um peso muito grande na escolha da temática, bem como no seu
desenvolvimento, já que aqui o culto às tradições é bastante significativo e
efetuado de uma pluralidade de formas por vários grupos sociais. Há, ainda, uma
série de justificativas para a escolha da temática que ficarão mais claras ao contar
um pouco da minha trajetória e da própria relação que estabeleci com o passado
missioneiro.
Nasci em São Gabriel, centro-oeste do Rio Grande do Sul, quase fronteira
com o Uruguai. A cidade denominada Terra dos Marechais, por causa de seus
ilustres filhos - Mascarenhas de Moraes e outros tem uma relação com um
passado colonial longínquo e uma identidade missioneira expressa nos nomes de
seus distritos Tiaraju e Batovi, bem como nos nomes dos CTGs Caiboaté e
Tarumã, para citar alguns exemplos. A cidade em 2003 foi palco de um conflito
de terras entre o Movimento dos trabalhadores sem terra - MST e ruralistas, que
4
A diferença entre ser, viver e existir é desenvolvida por Tzevetan Todorov em La vida en Común
(1995: 84) quando aborda as fronteiras entre os 3 (três) níveis e os relaciona a irredutibilidade
entre as dimensões humanas, cósmica, animal e social. Relaciono, como hipótese, as referências
ao passado à dimensão do existir de indivíduos e grupos, como socialmente elaborada.
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17
remeteu, através de apropriações simbólicas da figura de Sepé Taraju, ao
passado missioneiro.
Na minha infância ouvi falar muitas vezes da morte do índio missioneiro
Sepé Tiaraju na Batalha de Caiboaté, que havia morrido na sanga da Bica situada
no pátio da casa de uma das famílias tradicionais da cidade. Assim, apesar de
distante das Missões, São Gabriel tem uma forte identidade missioneira em virtude
da principal batalha da Guerra Guaranítica ter ocorrido em suas terras. O grito de
esta terra tem dono atribuído a Sepé Tiarajú e outras representações produzidas
na cidade em torno do passado missioneiro me são familiares desde muito cedo e
ficaram de alguma forma na minha mente, sendo sobrepostas ao longo dos anos a
outras representações da terra onde nasci.
Cresci fascinada com as coisas que escutava sobre o passado. As histórias
de índios reduzidos e cristianizados e as batalhas do bem contra o mal envoltas
numa névoa. Os gritos escutados nos bailes de CTG exaltando São Gabriel como
uma terra de gente brava e valorosa que honrava a história do índio Sepé. Como
se o índio que lá morreu fosse o fundador de uma genealogia guerreira, um
ancestral de quem descenderam os Marechais e outros bravos. No museu da
cidade duas imagens do barroco missioneiro ao lado de peças da
grandiosidade militar dessa cidade de fronteira.
Na minha adolescência, uma viagem às ruínas missioneiras de São Miguel
ficou particularmente marcada na memória, não por sua monumentalidade
arquitetônica, que as ruínas pareciam não ter muita relação para mim com a
história do Sepé - um índio indomado representado no meu imaginário cavalgando
a galope os cerros próximos à cidade. A viagem me aproximou da produção do
mito redimenssionando tempo e espaço, passado e presente, classificando
momentos e o herói através da leitura da história apresentada pelo guia turístico.
Mas o índio Sepé continuou para mim sendo nome de distrito e a diversidade de
formas pelas quais as Missões apareciam em São Gabriel continuava distante da
história oficial missioneira, que os livros mostravam e do que percebi nas ruínas
de São Miguel.
18
18
Citei esta viagem, ocorrida em novembro de 1981, para ilustrar uma
percepção que me acompanha algum tempo: a de que a história contada
pode não corresponder à história vivida, ou seja: sentia já naquela época um certo
desconforto, como se houvesse um vácuo envolvendo tempo e espaço, enquanto
categorias inventadas para designar momentos e lugares a que se sobrepõem e
com quem interagem nossas impressões em constante re-elaboração. Percebi
que o passado vivido no presente poderia ser constantemente reinventado de
acordo com as possíveis apropriações que, como grupo ou como indivíduos, dele
efetuamos.
Penso que as condições das apropriações, logicamente, não são nada
simples de serem detalhadas já que envolvem não apenas indivíduos e grupos. As
escolhas não são aleatórias e remetem a processos correlatos em que interagem
o estado e a escola, a ciência (em especial a história) como legítimos
controladores do passado e da seletividade da memória que se tem dele. Na
experiência vivida, nesta primeira viagem a São Miguel, ressaltei rapidamente a
relação que estabeleci com o espaço das ruínas como desconectado da memória
que trazia das Missões, naquele período. Na ocasião, não recordo de uma
atuação mais efetiva por parte da escola que promoveu a viagem em estabelecer
a relação entre o espaço visitado e a identidade missioneira de São Gabriel.
Talvez por essa razão eu tenha percebido o distanciamento entre o representado
como missioneiro em São Gabriel e nas ruínas de São Miguel. Recordo apenas da
ênfase dos professores à obra jesuítica das Missões.
O distanciamento entre as identidades missioneiras de São Gabriel e São
Miguel me pareceu mais estreitado em uma segunda visita às ruínas missioneiras
ocorrida em janeiro de 1993, quando assisti pela primeira vez ao espetáculo Som
e Luz, que tem como cenário o espaço das ruínas e apresenta uma visão da
história missioneira em que se somam, aos atores, índios, jesuítas e
demarcadores luso-hispânicos do Tratado de Madrid, a terra e a igreja como
encarnação do povoado enquanto depositários da memória da epopéia
missioneira, tendo sua voz o sentido de denúncia, do não esquecimento do que ali
ocorreu e nesse sentido incorpora o mito da missão como terra da promissão, de
19
19
um paraíso destruído pela ganância das coroas Ibéricas contra quem lutaram
Sepé e outros bravos. A referência à morte de Sepé Tiarajú na Batalha de
Caiboaté e ao seu grito de esta terra tem dono produziu um certo bem estar no
meu universo representacional, pela ligação com São Gabriel e um retorno as
minhas impressões sobre o passado missioneiro.
Após esta viagem, em que estabeleci um contato mais estreito com o
Movimento Tradicionalista Gaúcho, por ocasião do Congresso Tradicionalista
realizado em Santo Ângelo, e onde conheci algumas de suas lideranças e
folcloristas, fiz vestibular para História e iniciei o curso em março de 1993 bastante
interessada em História do Rio Grande do Sul. Parte da minha curiosidade recaía
sobre a vivência desta passado no presente. Este foi um período frutífero,
sobretudo por suas contradições.
De um lado, durante a semana, na universidade, estava tendo contato com
uma historiografia antipositivista
5
preocupada em desmascarar os heróis
brasileiros e gaúchos e a visão factual de história, elegendo o materialismo
histórico como enfoque predominante, pautado em uma visão economicista-
estrutural como determinante para o estudo das formações sociais
6
. Por seu turno,
a convivência com os tradicionalistas me apresentava um outro tipo de história,
enfatizando heróis e fabricando mitos, durante os finais de semana nas atividades
dos CTGs, nos concursos e desfiles
Mas havia para mim ainda uma terceira via historiográfica com a qual
passei a me identificar cada vez mais, que de certa forma contemplava minhas
angústias: a Escola dos Annales e, posteriormente, a História Cultural Francesa
me ofereceram a possibilidade de trabalhar com um outro novo tipo e pluralidade
5
O termo antiposiivista se refere à oposição a uma historiografia definida como positivista também
dita história factual ou évènementielle em que os eventos são explicados através de uma relação
de causalidade, conforme.Peter Burke A escola dos Annales 1929-1989: a revolução francesa da
historiografia (1991:16).
6
A Faculdade de História da UFSM se configurou, no momento referido, em um reduto de
sobrevivência tardia do materialismo histórico, quando este já se encontrava em processo de
superação na maior parte dos cursos do Brasil, por ocasião da recepção da Escola dos Annales e
Nova História Cultural. Havia uma certa resistência a pesquisas inspiradas na historiografia
francesa e especialmente na utilização do folclore como fonte, pois o mesmo era percebido de
forma maniqueísta (por alguns professores mais engajados ao materialismo histórico) como
comprometido com a dominação e não com a libertação do povo.
20
20
de fontes que não a documentação cartorial e as estatísticas econômicas. Nesse
processo de abertura para as fontes elegi o folclore em suas diversas expressões
para estudar história. Mesmo ciente do tratamento dado por muitos folcloristas
(sentia uma certa carência interpretativa, que me soava como uma coleção muito
bem elaborada de dados) passei a fazer uma defesa da possibilidade de utilização
de suas manifestações para a elaboração historiográfica. As razões para esta
opção passaram pela questão da possibilidade antropológica da interpretação das
fontes, por se relacionarem à produção de representações permitindo assim
perceber o imaginário dos grupos e suas identidades sociais.
Desta forma, os breves contatos que tive com a Antropologia no primeiro
semestre de curso me mostraram a necessidade da sua aproximação com a
História, a fim de construir o tipo de conhecimento que eu acreditava mais
convincente, não porque conduzisse a um projeto de história total (distante das
minhas ambições), mas porque me parecia mais fascinante. Um filão pouco
trabalhado em termos de História do Rio Grande do Sul, naquele momento.
Uma outra coincidente ida às Missões, numa viagem de estudo em 1994
desta vez visitando alguns dos Sete Povoados - foi decisiva na minha trajetória.
Vários professores nos acompanharam e suas intervenções me converteram à
temática que me dediquei a estudar durante a licenciatura em História e nos dois
mestrados cursados na Universidade Federal de Santa Maria. A conversão se deu
pela possibilidade de orientação à pesquisa somada à percepção de uma lacuna
na historiografia missioneira, ainda não totalmente sanada, de trabalhos utilizando
fontes literárias e, especialmente, narrativas tradicionais de temática missioneira
o que os folcloristas designam como mitos e lendas.
Embora percebesse que o passado missioneiro era objeto constante de
apropriação, especialmente entre os integrantes do movimento tradicionalista
gaúcho, pelos músicos nativistas, bem como (numa perspectiva mais científica)
pelos próprios historiadores de Missões nas suas produções historiográficas e nos
freqüentes encontros missioneiros, decidi inicialmente tentar construir como
historiadora minha visão sobre a experiência missioneira platina. Meu enfoque se
constituiu sobre o que hoje percebo como uma história antropológica das Missões,
21
21
numa tentativa de contemplar a experiência missioneira através das
representações relacionadas ao seu imaginário. Um breve relato das dissertações
é interessante para esclarecer e justificar o que pretendo desenvolver no presente
trabalho.
Na dissertação de mestrado em Educação Lendário Missioneiro:
pedagogia jesuítica para a integração colonial nos Sete Povos das Missões
PPGE/UFSM, 1998, discuti a questão da transição do mundo guarani, coordenada
pelos jesuítas, durante os séculos XVII e XVIII, nas Missões, através da utilização
de narrativas tradicionais, na versão de João Simões Lopes Neto, por retratarem a
conversão dos guaranis e as identidades missioneiras.
Busquei, nesses discursos de integração/desintegração colonial, as
estratégias utilizadas na conversão dos guaranis e os mecanismos de justificação
e/ou de resistência ao processo a que foram submetidos os guaranis. Na análise
dessas expressões do imaginário (lendas do Angüera e da Casa de Mbororé)
procurei atentar ao caráter dialético e estético das fontes em suas relações com o
universo guarani e jesuítico hispânico.
Para tanto, utilizei as categorias integração colonial e integração no mundo
(na perspectiva de Tzevetan Todorov
7
), relacionando a conversão apresentada no
lendário com a formação de novas mentalidades e identidades através da atuação
pedagógica dos jesuítas, com o intuito de efetivar o projeto de integração colonial
que representavam.
Cheguei à conclusão de que esses relatos se configuravam em fonte hábil
para a elaboração historiográfica, relacionando-os a possíveis instrumentos
jesuíticos. Porém, ressaltei a necessidade de não apenas pensar na elaboração
das expressões do imaginário, para a interpretação das mensagens que
expressavam, mas tamm na maneira como estas eram vivenciadas pelos
grupos. Na conclusão da dissertação supracitada, verifiquei algumas perspectivas
de trabalho, decorrentes de constatações efetuadas naquela oportunidade.
7
Todorov desenvolve e utiliza estas categorias para analisar a dominação simbólica efetuada
pelos espanhóis entre os Astecas durante a conquista, na obra A conquista da América; a questão
do outro (1993: 94 e 118). Numa outra vertente mais economicista Erneldo Schalemberger, com
22
22
Inicialmente, percebi a relação das lendas (narrativas tradicionais) com a
História da Educação, que a experiência missioneira configurou-se como uma
experiência educacional coordenada pelos jesuítas. No entanto, os mecanismos
utilizados por estes para a efetivação desta experiência educacional, tais como os
elementos guaranis, e de uma maneira geral, a mensagem justificadora das
narrativas tradicionais, com relação às Missões, denotam uma perspectiva de
trabalho que exacerba a questão da educação formal à que histórica e
consensualmente relacionam-se os jesuítas abrangendo todos os aspectos da
sociedade missioneira em que atuaram.
Os instrumentos, métodos e a filosofia inspiradora, utilizados pelos jesuítas
nos Sete Povos das Missões, em especial por Antônio Sepp (padre jesuíta que
participou de dois dos sete povoados missioneiros no território correspondente ao
Rio Grande do Sul São Miguel e São João Batista), constituíram-se em temática
abordada na dissertação de mestrado em Integração Latino-Americana
MILA/UFSM, 1999, intitulada: Integração: uma categoria para estudar a atuação
do padre Antônio Sepp nas Missões. Ao analisar os escritos de Sepp relacionei a
permanência dos indígenas nos povoados missioneiros, num momento posterior a
conversão e a expansão, à habilidade jesuítica na formação de mentalidades e
identidades justificadoras da experiência missioneira utilizadas através do teatro,
da música, da língua guarani, por exemplo, com a adaptação de textos bíblicos à
realidade indígena.
Constatei ainda, questões identitárias apontadas nas lendas relacionando
as Missões ao território sulino. Essas narrativas (além de se configurarem em
instrumentos justificadores da atuação jesuítica) mostram a ligação existente entre
diversos momentos da história das Missões, relacionando o espaço missioneiro à
estruturação das fronteiras no Rio Grande do Sul e, como decorrência, as
identidades sulinas como anteriores à desestruturação dos Sete Povos das
Missões.
relação às Missões, trabalha a questão da integração em A integração do Prata no sistema
colonial: colonialismo interno e Missões Jesuíticas do Guairá (1997).
23
23
Nesta perspectiva, é preciso ressaltar a percepção de um novo universo de
estudo, valorizador da memória na formação das fronteiras geo-políticas,
sobretudo, fronteiras sócio-culturais, demarcatórias do espaço missioneiro, em
primeiro lugar como inter-relacionado em suas fases, e sua importância na
formação das identidades no Rio Grande do Sul, ligado com o povoamento
espanhol, atentando uma vinculação platina, como anterior à identificação com o
universo luso-brasileiro como posteriormente se conformaram as fronteiras geo-
políticas no Rio Grande do Sul.
8
As duas constatações se referem à possibilidade de estudo contida na
memória desta experiência propiciada pelas narrativas tradicionais e demais
representações produzidas sobre a experiência missioneira passada e a
conformação que passam a adquirir, após a desestruturação das Missões, em
especial na atualidade, enquanto geradoras de uma gama de expressões de
movimentos regionalistas no Rio Grande do Sul e nos países vizinhos (Nativismo
e Tradicionalismo), tais como a realização de eventos, concursos e festas, a
produção de músicas, poesias, criações literárias, etc, relacionadas a vivificação
do passado missioneiro na atualidade.
Após concluir as dissertações de mestrado e ir trabalhar no oeste do
Paraná, ao me distanciar por dois anos do Rio Grande do Sul, passei a observar
essas constantes referências às Missões, primeiramente através das narrativas,
que havia escolhido como fonte para estudar história e que eu passava a perceber
como representações de um passado bastante acionado no presente através da
designação de nomes de CTGs e grupos folclóricos, de nomes de cidades, das
crenças em assombrações e da busca de supostos tesouros escondidos pelos
jesuítas.
Concomitantemente, a existência das ruínas missioneiras no Rio Grande do
Sul, tombadas como patrimônio da humanidade (no caso de São Miguel), e a
exploração turística desses espaços me colocaram a questão do tipo de
8
Encontrei referência as Missões e aos índios guaranis em publicações argentinas sobre
narrativas tradicionais das quais destaco os trabalhos de Daniel Granada Reseña histórico-
descriptiva de antiguas y modernas supersticiones del Rio de la Plata s/d; Martha Blanche
24
24
veiculação do passado missioneiro que vinha sendo efetuado e gerenciado pelos
órgãos governamentais e mostrado no próprio espetáculo Som e Luz ao qual eu já
havia assistido algumas vezes. Comecei a questionar de que forma a questão
indígena estava sendo relacionada não só às Missões, mas tamm de que forma
os regionalistas se aproximavam ou percebiam os mbyá-guaranis através de suas
práticas e representações.
As constantes referências ao passado missioneiro no presente no Rio
Grande do Sul, bem como nas fronteiras sócio-culturais missioneiras forjadas na
dialética da memória/esquecimento desse passado, me mostraram a necessidade
de efetuar um estudo que abarcasse a influência e a pluralidade de apropriações
acerca do passado missioneiro. Percebi que este estudo deveria ser efetuado na
seara da Antropologia, pois embora remetesse ao passado, a produção de
representações e as práticas dos grupos sociais envolvidos perceptíveis nos
múltiplos sentidos conferidos à pluralidade de narrativas dos mesmos, no meu
entendimento, poderiam ser melhores contempladas através da observação direta
e da produção etnográfica.
O contato com o conjunto de representações sobre o passado missioneiro,
que se constitui em objeto de estudo desta pesquisa, se deu através dos trabalhos
de campo desenvolvidos majoritariamente no Rio Grande do Sul a partir de 2001,
mas iniciado anteriormente ao me deparar com algumas representações que me
incitaram à pesquisa.
Neste sentido, caracterizo minha inserção em campo como decorrente das
situações propiciadas ao longo de minha busca por representações sobre o
passado missioneiro e os resultados de minhas interpretações tangenciadas pela
dialética das viagens às Missões e a outros tantos lugares a que me dirigi a fim de
encontrá-las. Assim, embora eu tenha permanecido nas Missões (residindo nas
dependências do hospital de São Nicolau) não é possível falar em um trabalho de
campo, mas em múltiplos espaços de observação. Territórios antropológicos
visitados e a convivência com uma diversidade de pessoas e situações que me
Estructura del miedo: narrativas folkloricas guaraníticas (1981) e Felix Coluccio Diccionario de
Folklore Argentino (1964). Destaco ainda o site http://www.soygaucho.com.
25
25
possibilitaram interpretar as relações estabelecidas com o passado missioneiro e
seus desdobramentos.
Nesta perspectiva, buscando contemplar as questões vivenciadas durante
os trabalhos de campo, o presente texto está estruturado em 5 (cinco) capítulos
objetivando analisar a produção de representações, no presente, sobre a
experiência missioneira passada, estudando os imaginários construídos a partir da
mesma em sua relação com a construção das identidades no Rio Grande do Sul.
No capítulo 1, efetuo algumas reflexões teóricas sobre a produção de
representações e suas interpretações, norteadas pelas relações estabelecidas
entre o passado e o presente. Os demais capítulos correspondem à apresentação
e análise das próprias representações encontradas a respeito do passado
missioneiro, durante os trabalhos de campo. Um feixe de narrativas que reuni
como narrativas regionalistas, turísticas e acerca do índio nas Missões.
Nos capítulos 2 e 3 interpreto as representações sobre o passado
missioneiro encontradas em trabalhos de campo sobre os discursos regionalistas
em suas relações com o passado histórico no Rio Grande do Sul e as
apropriações efetuadas no seio do movimento tradicionalista gaúcho, bem como a
apresentação de representações produzidas por algumas instituições no Rio
Grande do Sul como a Estância da Poesia Crioula, a Comissão Gaúcha de
Folclore e o Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore no que diz respeito ao
passado missioneiro em relação à figura do gaúcho.
O quarto capítulo é dedicado à atuação do turismo nas Missões, a partir de
etnografias de dois pacotes turísticos (Circuito Internacional das Missões e
Caminho das Missões) oferecidos nas Missões gaúchas, bem como em alguns
dos antigos povoados argentinos e paraguaio. Pretendo interpretar as percepções
oferecidas pelo turismo que comercializa o passado missioneiro através de seus
pacotes e as relações estabelecidas pelos turistas com o passado no espaço das
Missões. Neste capitulo também efetuarei algumas reflexões a respeito do Projeto
Rota Missões SEBRAE 2003-2004 e de seus desdobramentos, especialmente
com relação a São Nicolau que se designa como a primeira querência do Rio
Grande, objetivando apresentar algumas relações estabelecidas pelos habitantes
26
26
do município com as ruínas e as implicações das mesmas na elaboração de um
projeto turístico para o município e região.
No quinto capítulo, apresento três narrativas tradicionais de temática
missioneira as lendas do Angüera, Mbororé e Sepé Tiaraju - que mostram índios
como figuras centrais. A partir do estudo das apropriações destes personagens
lendários na atualidade, tais como a diversidade de relações estabelecidas com
Sepé Tiaraju, o grupo Os Angüeras de São Borja e a busca dos tesouros e túneis
das Missões, interpreto a diversidade de posturas em relação à mitologia folclórica
e suas decorrências, em contraponto aos mbyas-guaranis presentes na região.
Por fim, como considerações finais, pretendo efetuar uma leitura conjunta
dos dados etnográficos com o intuito de caracterizar a diversidade de relações
estabelecidas com o passado missioneiro na atualidade apontando alguns
desdobramentos desta pesquisa no concernente às Missões.
27
27
CAPÍTULO 1
Tornar presente o passado: algumas reflexões sobre representações do
passado missioneiro na atualidade
Este capítulo tem como finalidade refletir acerca da produção de
representações sobre o passado, atentando para as motivações que levam
indivíduos e grupos a se voltarem para o mesmo, evitando o seu esquecimento,
atualizando-o e interpretando-o através da produção de narrativas e de suas
práticas. Minha hipótese de análise é de que a referência ao passado se em
ocasiões e espaços específicos, envolvendo diferentes interesses na sua
utilização. Penso que a dialética entre a memória e o esquecimento, no que diz
respeito às Missões, está relacionada com a manutenção da coesão grupal,
através da produção e afirmação de identidades geradas a partir de olhares a este
passado e sua re-atualização, através da comemoração. Por seu turno, este
retorno pode tamm se nortear por uma necessidade de acerto de contas com
este passado, uma dívida histórica a ser paga via produção de representações
igualmente geradora de identidades sociais e individuais. Percebo como corolário
a possibilidade da alusão às Missões se relacionar com as questões do
pertencimento individual, através de um retorno ao passado missioneiro, em
situações de comemoração ou de denúncia.
No Rio Grande do Sul, praticamente dois séculos e meio após a
desestruturação dos Sete Povos das Missões
1
, inúmeras referências a este
passado colonial. Os trabalhos de campo possibilitaram observar a pluralidade de
1
O referencial temporal da desestruturação que estou utilizando é o final da Guerra Guaranítica
ocorrida em 1756 com a derrota dos índios missioneiros na Batalha de Caiboaté, conforme
demonstram as representações que remetem a esse passado que serão analisadas ao longo do
texto da tese.
28
28
sentidos conferidos às Missões Jesuítico-Guaranis nas representações, através da
forma como a interpretam; ora festejando esta experiência passada ou
denunciando através de criticas à atuação de seus protagonistas, produzindo
heróis e anti-heróis. As implicações dessas interpretações conduzem ao estudo
dos imaginários gerados neste contexto.
Afirmações como o ser missioneiro, a região das Missões, o gaúcho
missioneiro, a música missioneira e a energia percebida nas ruínas, por exemplo,
demarcam fronteiras entre os grupos e sujeitos através da produção e utilização
do referente missioneiro ou Missões como fronteira móvel de interesses nacionais,
regionais, latino-americanos e individuais. Estas afirmações que correspondem à
atualização do passado das Missões se configuram em um feixe de significações
a serem pesquisadas que demonstram, em perpectiva similar a mencionada por
Bela Feldman-Bianco no artigo (Re)construindo a saudade portuguesa em vídeo:
histórias orais, artefatos visuais e a tradução de códigos culturais na pesquisa
etnográfica (2004: 293), como se a reconstrução das camadas de tempo e do
espaço no imaginário e a reconfiguração das identidades individuais e grupais a
partir do acionar o passado, no caso das Missões,
Esta perspectiva, da construção de um imaginário analisada por Feldman-
Bianco ao estudar imigrantes portugueses nos Estados Unidos, com relação as
Missões, pode ser enfocada a partir das menções ao referente missioneiro como
relativo às Missões, em sua pluralidade de utilizações. O missioneiro pode ser
pensado na perspectiva de Anne Marie Thiesse em Ils aprenaint la france:
lexaltaion des régions dans le discours patriotique (1997: 38) como um ethnotype
delimitador de espaços, gerando identidades e pertencimentos, correspondendo a
um conjunto de elementos dotados de especificidades locais, mas relacionados a
características sociais convencionadas para generalizar o conjunto do território,
sendo acionado como marca identitária valorizante para a afirmação de uma
memória coletiva relativa ás Missões. O termo missioneiro está relacionado com a
afirmação de uma região por suas características forjadas a partir de
interpretações do que tenha sido o passado das Missões, sendo utilizadas no
29
29
presente por diferentes agentes em narrativas que o exaltam como lócus histórico
privilegiado e gerador de mitos.
A pluralidade de narrativas produzidas sobre as Missões se relaciona ao
poder de nomeação e ao próprio jogo pelo poder de nomear e interpretar o
passado missioneiro, que diz respeito não apenas a grupos que o comemoram
(como as imagens produzidas pelo turismo e os regionalistas), mas tamm aos
historiadores, aos índios guaranis e demais pessoas que vivenciam este passado
como os turistas em visita às Missões, habitantes dos antigos povoados, líderes
políticos e os historiadores locais, por exemplo.
Neste capítulo, desejo refletir sobre as modalidades de relações
estabelecidas com o passado missioneiro na atualidade, suas decorrências e
tamm sobre alguns conceitos necessários à interpretação das referências
observadas em campo. A começar pelo próprio conceito de representação como
objeto de estudo comum à História e à Antropologia
2
, assinalando através das
relações entre estas disciplinas uma perspectiva para interpretar a produção de
narrativas sobre o passado no presente, a que se encontram articulados os
conceitos de espaço, tempo, memória, história, narrativa, mito, imaginário,
fronteira, território, identidade e pertencimento.
A memória e a história, enquanto depositárias do lembrar e do esquecer,
se encontram articuladas às necessidades e interesses dos próprios grupos
sociais, além dos historiadores. A historiografia
3
, em se tratando de Missões, se
constitui em um tipo de representação sobre o passado que tem por objeto de
estudo as próprias representações sociais.
2
Dentre os trabalhos recentes que reconhecem a importância do estudo das representações do
passado no presente cabe mencionar Roger Chartier Na beira da falésia: a historia entre
incertezas e inquietudes (2000); François Hartog e Jacques Revel Les Usages politiques du passé
(2001). François Hartog Régimes dhistorici (2003). Na Antropologia Dan Sperb no artigo Létude
antrophologique des représentations: problèmes et perspectives (1999), Daniel Fabre Domestiquer
lhistoire (2000) e Daniel Fabre e Alban Bensa Une histoire à soi (2001)
3
Entendo a historiografia (escrita da história) como a produção de conhecimento histórico sobre
um determinado tema em dado momento, De acordo com Reinhart Koselleck em Le futur passé:
contribuition à la sémantique des temps historiques (1990:161) a historiografia é pensada em
relação às exigências de verdade e da relatividade das proposições em história, como discurso
sobre o passado.
30
30
Os imaginários percebidos nas referências às Missões em suas
interpretações se relacionam a idéia de região e fronteira onde operam, espaços
de produção simbólica acerca do passado missioneiro caracterizados pela
circulação de informações na sua referência e geradora de múltiplos sentidos
atribuídos pelos grupos e sujeitos que o articulam. As observações percebidas em
campo sobre o passado missioneiro ocorrem a partir de um momento o presente
- e a partir de vários lugares (espaços) próximos ou distantes das Missões e em
determinadas circunstâncias como as atividades de comemorações (as festas e os
desfiles), as viagens turísticas, produção de monumentos, de espetáculos e em
outras apropriações da mitologia folclórica, por exemplo, demonstrando as
relações estabelecidas entre a história das Missões e as memórias deste passado.
1-Sobre o poder de nomear da História das Missões
Na história como disciplina (detentora do monopólio de interpretar o
passado) o discurso produzido sobre as Missões se baseia na interpretação dos
vestígios/das fontes - depositários de memórias sobre essa experiência passada.
Paul Ricoeur, no artigo Lecriture de lhistoire et la repreésentation du passé
(2000)
4
, discute o problema da representação do passado em história, colocando-
o em relação à memória, pois ambas se relacionam à produção mental de algo
que passou. Na representação produzida pelos historiadores, segundo o autor,
uma expectativa por parte do leitor que recebe o texto (2000:731), havendo um
pacto com a verdade balizado pela existência de vestígios do passado, pontuando
como limite de fidelidade para a criação da representação em história a fonte
retratadora de um real presentificado por sua existência e, assim, representado no
presente. O campo das lutas simbólicas, no que concerne a leitura do passado,
envolvendo história e memória, remete a idéia da representação como objeto de
estudo dos historiadores (2000:741):
Reste aussi ouvert la question de la competition entre la memoire e la
histoire dans la representation du passé. À la memoire reste lavantage
de la reconaissance du passé comme ayant été quoique netant plus: à la
4
O artigo sintetiza as reflexões apresentadas por Ricoeur em La memoire, lhistoire, loubli. (2000).
31
31
histoire revivant le pouvoir delargir le regard dans lespace e dans le
temps, la force de la critique dans lordre de temoignage, de lexplication
et de la compréhension, la maitrisse rhétorique du texte et plus que tout
lexercise de léquité à légard des revendications concurrents de les
memoires blessées et parfois auvegles au malheurs des autres. Entre le
voeu de fidelité de la memoire et le pacte de vérité en histoire, lordre de
prioprité est indécidable. Seul est habilité à trancher le debut le lecteur, et
dans le lecteur le citoyen.(Ricoeur: 2000,747).
5
A disputa entre ambas, para o autor, continua em aberto e o jogo que se
delineia é entre a fidelidade e a veracidade na representação do passado. No
entanto, a história se encontra em situação mais vantajosa por seu patamar de
cientificidade, embora haja o reconhecimento da força da memória na construção
das identidades mencionadas, metaforicamente por Ricoeur, como a possível
relação que atinge leitor e o cidadão, na medida em que, a memória ou a história
se apossa de sua subjetividade
6
. A questão posta por Ricoeur se relaciona às
Missões, pois o passado missioneiro vem sendo objeto de imeras
representações que ultrapassam os limites da história que além dos discursos
historiográficos, há outras memórias acerca desse passado em constante re-
atualização cujos agentes se posicionam na luta pelo poder legítimo de dizer o
que foram as Missões, caracterizando seus protagonistas e suas principais
instituições.
5
Resta assim em aberto a questão da competição entre a memória e a história na representação
do passado. À memória resta a vantagem do reconhecimento do passado como tendo sido,
embora não sendo mais; à história revive o poder de alargar o olhar no espaço e no tempo, a força
da crítica na ordem do testemunho, da explicação e da compreensão, o domínio retórico do texto e
mais que tudo o exercício da justiça a respeito das reivindicações concorrentes das memórias
feridas e cegas à infelicidade dos outros. Entre a promessa de fidelidade da memória e o pacto
com a verdade em história, a ordem de prioridade é indecifrável. está habilitado a separar, a
princípio o leitor, e no leitor o cidadão. Tradução da autora
6
A diferença apresentada por Ricoeur entre memória e história é largamente discutida por ele com
os historiadores Roger Chartier, Alexandre Escudier, Pierre Nora e Krzystof Pomian no artigo
Autour de la mémoire, lhistoire, loubli de Paul Ricoeur na revista Le débat nov/dez (2002). A
argumentação de Nora, por exemplo é do sentido de generalidade da memória em relação á prática
da história a serviço da memória. uma resistência, de modo geral, em admitir a apropriação e
redução da memória a objeto da história por estes historiadores, no entanto o próprio imaginário
dos mesmos sobre a memória e suas apropriações sucessivas na dialética da
ressurreição/rememoração do passado na elaboração das representações em história é silenciado,
conforme menciona Ricoeur (2002:53) o que no meu entendimento corresponde a um
distanciamento entre a percepção e a prática historiográfica em relação ás aproximações entre
memória/imaginário/identidade e história na produção de representações sobre o passado em
história.
32
32
Em 1996, na tese de doutorado em história, Historiografia sul-riograndense:
o lugar das Missões Jesuítico-guaranis na formação histórica do Rio Grande do
Sul (1819-1975) Luiz Henrique Torres caracteriza a historiografia missioneira
como a produção intelectual sobre Missões Jesuítico-Guaranis ou temas afins,
presentes em livros e revistas especializadas, que possibilitam estudos para a
interpretação da historicidade da historiografia neste campo do conhecimento.
(Torres: 1996, p.47,nota 46). Com o objetivo de caracterizar as interpretações
sobre o papel das Missões e sua abordagem na construção de discursos sobre a
questão da identidade nacional e da brasilidade, o autor detecta duas grandes
tendências:
A tendência historiográfica luso-brasileira, entendida como os enfoques
ligados ao exclusivismo luso-brasileiro na história rio-grandense, ao
enaltecimento da nacionalidade e ao antagonismo frente à participação
de personagens platinos ou missioneiros: e a tendência jesuítico
missioneira voltada ao papel cristianizador dos missionários jesuítas e à
inserção das Missões na história do Rio Grande do Sul, com referência
na abordagem eurocêntrica da conquista espiritual. (Torres: 1996, 13).
Ao relacionar estas tendências com a produção de discursos sobre o
sentido histórico das Missões no Rio Grande do Sul, inserindo a historiografia
missioneira na construção da identidade nacional/regional (Torres: 1996, 387)
reconhece um conjunto de interesses conflitantes na produção historiográfica
sobre Missões e a necessidade de relativizar suas interpretações, enquanto
verdade historiográfica, que as mesmas estão comprometidas em termos de
exaltação ou negação, ora do caráter nacional brasileiro ora da exaltação regional
(a figura do gaúcho) em relação às Missões na leitura da formação histórica do
Rio Grande do Sul. As tendências ressaltadas remetem à disputa pelo poder de
nomear, incluir ou excluir o passado missioneiro enquanto verdade plausível ou
não de ser ressaltada dependendo do momento e do sujeito que o interpreta.
Assim, em termos historiográficos, a ocupação colonial no Rio Grande do Sul se
configura em uma disputa maniqueísta entre os historiadores da passagem do Rio
Grande espanhol para um Rio Grande português.
33
33
um desejo de classificação
7
perceptível nas suas criticas referente à
formação de um campo de lutas simbólicas para definir as Missões, cuja
configuração e influências ocorrem concomitantemente dentro e fora do espaço
científico, caracterizando-se por uma circulação de informações que abrange a
produção de diversos discursos sobre as Missões. Porém, as questões
assinaladas por Torres, envolvendo interesses na análise da memória das
Missões até 1975 (conforme as fontes que selecionou), não dizem respeito
apenas à experiência das Missões na América do Sul.
Tais problemas são também contemplados por Pascale Girard Les religieux
occidentaux em Chine à lépoque moderne: essay danalyse textuelle comparée
(2000). Para ela a historiografia missioneira apresenta peculiaridades que
ultrapassam as oposições, mas colocam problemas pela pluralidade de períodos e
personalidades históricas que a enfocam, pertencentes a universos sócio-culturais
diferentes, mudanças ideológicas dos enfoques dos religiosos para os
universitários e suas inter-relações, sendo uma historiografia fragmentada,
orientada por estudos biográficos, fundada sobre crônicas e dominada pela
imprecisão dos problemas de evangelização (Girard: 2000, 28). As questões
identitárias envolvidas são colocadas no centro do debate e assimiladas como
caracteres historiográficos na análise das fontes e não como conseqüências
decorrentes do discurso.
Neste sentido, uma aproximação da análise de Girard às questões do
enfoque ao passado missioneiro no Rio Grande do Sul levaria a inserir toda uma
produção historiográfica mais recente como a realização de uma pluralidade de
encontros missioneiros (iniciados em 1975 em Santa Rosa) e suas publicações na
análise dos discursos produzidos sobre as Missões e suas implicações para além
de uma historiografia missioneira, mas da necessidade de uma abordagem
antropológica desse passado cujos produtores evocam reconhecimento e
7
Refiro-me a aplicação da expressão por Pierre Bourdiieu (1989) no texto A identidade e a
representação: elementos para uma reflexão crítica sobre a idéia de região da obra O poder
simbólico que desenvolve esta perspectiva analisando os poderes de divisão e nomeação como
relacionados à dominação simbólica na configuração do campo; No caso as disputas de
interpretação e afirmação de identidades ocorrem através da produção de narrativas sobre o
passado das Missões.
34
34
identificação, numa perspectiva de guardiões de sua memória, advogando um
patamar científico do status não de historiadores, mas também de
pesquisadores e disseminadores tais como os discursos reproduzidos pelos guias
de turismo, pela produção artística, bem como sua influência no trabalho de
historiadores locais sobre o passado missioneiro, que permanecem residindo em
espaços próximos aos antigos povoados e que se configuram tamm em
interpretes desse universo por se constituírem em atores do cenário missioneiro
da atualidade.
O dar-se conta das utilizações do passado no presente, em se tratando de
Missões implica, no meu entendimento, um duplo movimento relativo ao
reconhecimento da configuração do campo de que a história é apenas um dos
atores e a necessidade de identificar as relações estabelecidas com a exaltação
da memória missioneira, conforme demonstram os exemplos abaixo:
- Numa perspectiva comemorativa de recuperação do passado missioneiro a
RIOCELL lançou, em novembro de 1984, o que denominou como: Este
álbum completo sobre OS SETE POVOS DAS MISSÕES é formado por um
porte-fólio contendo nove lâminas com fotos a cores, uma lâmina com a
reprodução de um mapa antigo e este livro com texto histórico e literário.
Com uma tiragem de 10.000 exemplares o encarte, escrito em português e
inglês, traz textos de Luiz Fernando Veríssimo e Armindo Trevisan e fotos
de Luis Antônio de Souza numa nítida tentativa de disseminar a arte e a
cultura missioneira no Rio Grande do Sul, embora não se constitua em um
discurso historiográfico.
- Em 1999 foi publicado o livro Missões Guarani: impacto na sociedade
contemporânea, organizado por Regina Gadelha (PUC-SP), reunindo os
trabalhos do seminário O espaço jesuítico-missioneiro: aspectos da
colonização ibero-americana e seu impacto na sociedade contemporânea,
realizado em Quito
8
. Os artigos, apesar de remeterem ao passado
8
O seminário se insere na órbita dos freqüentes encontros sobre a temática, dos quais os mais
renomados foram os encontros missioneiros de Santa Rosa iniciados em 1975, tema da obra de
Tereza Neumann de Souza Christensen História do Rio Grande do Sul em suas origens
missioneiras. (2001). Entre os dias 8-11 de outubro de 2002 a PUC de São Paulo organizou, sob a
35
35
missioneiro, são reunidos no livro como se dissessem respeito ao presente
dessas regiões. A ligação passado/presente é sugerida e implícita, mas
atua como um justificador para o desenvolvimento da historiografia
missioneira;
- Também em 1999, uma obra ricamente ilustrada sobre Missões (fotografias
de Eduardo Tavares e design gráfico de Hélio Nardi Filho) foi lançada em
comemoração aos trinta anos da UNISINOS (Universidade do Vale do Rio
dos Sinos), reunindo no texto de Renato Dalto temas desenvolvidos pelos
autores Décio Freitas, Barbosa Lessa, Pedro Ignácio Schmitz, Armindo
Trevisan e Nestor Torelly Martins. A importância desta publicação está no
fato de celebrar o aniversário de uma instituição jesuítica como a
UNISINravés da rememoração do passado missioneiro que se constituiu
em obra jesuítica, sua primeira e mais unânime reconhecida atuação,
através de textos que contemplam variados aspectos dos povoados.
- Em agosto de 2003, em São Miguel das Missões, ocorreu o evento Cidades
Patrimônio Histórico do Brasil, em que as discussões da questão do
tombamento e conservação do patrimônio foram alicerçadas a partir das
Missões, num contexto de exploração turística, envolvendo atores políticos
e a questão indígena.
Nestes exemplos, transparece a relação estabelecida entre passado e
presente como fundamental para uma historiografia cuja temática são as Missões,
pois a consciência desta relação põe em jogo não a leitura de um possível
imaginário missioneiro passado, mas tamm a dos imaginários dos historiadores
e demais produtores de conhecimento acerca das Missões, enquanto
responsáveis pela disseminação e popularização de suas visões sobre as
mesmas.
A percepção das peculiaridades da relação passado/presente conduz a
situação da produção de representações sobre as Missões no Rio Grande do Sul
a um novo contexto que vai além de uma história das Missões, e de uma
coordenação de Regina Gadelha mais um desses seminários temáticos intitulado: IX Jornadas
Internacionais sobre as Missões Jesuíticas. Informatização e globalização na Missão Jesuítica.
Para um mapeamento dos encontros missioneiros ver a tese de Luiz Henrique Torres (já citada).
36
36
historiografia missioneira. Uma vez que no Rio Grande do Sul e nas demais
regiões onde se situam os antigos povoados uma pluralidade de narrativas
referentes a este passado, creio que é possível se pensar na existência de uma
história da história das Missões na tentativa de compreensão dos efeitos das
visões do passado no presente.
2- Da História à Antropologia. A história como narrativa sobre as Missões
Para Marc Augé em Pour une anthropologie des mondes contemporains
(1994: 11) a lhistoire de lhistoire corresponde a uma das manifestações de
contato entre a história e a antropologia como disciplinas em que se supõe a
elaboração de uma história do presente na qual não é o passado que explica o
presente, mas o presente que comanda as releituras do mesmo.
A história da história, como historiografia
9
se propõe a estudar os efeitos de
um evento interpretado pela história tradicional ao longo do tempo através das
manipulações efetuadas pela memória coletiva, ou seja, remete ao imaginário
criado em torno de um evento e as apropriações e utilizações efetuadas no
presente. Neste sentido, o passado passa a ser revivido e posto em atuação
através da produção de representações sobre o mesmo, pondo em evidência a
definição de espaços e lugares sociais e a dinâmica da criação de imaginários e
construção de identidades individuais e grupais.
Porém, no meu entendimento, essa perspectiva historiográfica não
contempla as especificidades e a pluralidade das relações entre o passado e o
9
O projeto de uma historiografia que se define como história da história (ao trabalhar com a
relação passado/presente) traz a marca das conquistas teórico-metodológicas da Escola dos
Annales, na França e diz respeito à revisão do esquema das noções tridimensionais de tempo
(estrutural, conjuntural e eventual) de Fernand Braudel, conforme Jacques Le Goff em História e
Memória (1994: 482). O termo citado como uma nova forma de historiografia é também
mencionado por Pierre Bourdieu no livro O poder simbólico (1989) ao estudar as questões relativas
à história incorporada e reificada. Para o autor: Temos sempre uma filosofia espontânea da
história, e a filosofia da história da sua história, quer dizer, da sua posição e da sua trajetória no
espaço social. Essa espécie de situação central, que permite que nos situemos em relação às
grandes alternativas teóricas ou políticas do momento. (nota 22:1989,91): Bourdieu caracteriza
a história da história como correspondente a algo além do olhar que o historiador lança sobre o
passado, sua alternativa ou escolha teórica de trabalho que está implícita e que se encontra
colada a ele de que decorrem suas opções no presente.
37
37
presente, pois a história como disciplina é tamm produtora de narrativas e
responsável por sua circulação, conforme afirma François Hartog em Les Usages
Politiques du passé:
Les historiens sont en première ligne dans ses grandes manoeuvres
puisquils produisent des versions plus au moins autorisées du passé et
quil leur arrive de le faire pour dautres destinations que leurs collegues.
(...) ils font circuler des représentations, des argumentaires (explicites ou
non), un répertoire des signs et des formes qui, à travers de les
apprendisages scolaires ont été profondément incorporés dans la culture
commune depuis de le XIXéme siécle. (Hartog: 2001,16).
10
O autor reconhece não apenas o lugar ocupado pelo historiador como parte
determinante da representação que produz, e também o papel dos discursos
historiográficos na construção de um imaginário sobre o passado e seus
processos de incorporação e, nesse sentido, remete a ligação dos mesmos às
reivindicações identitárias nacionais expressas nos manuais escolares, bem como
o deslocamento nos debates contemporâneos da posição privilegiada da história
em interpretar o passado a partir do reconhecimento dos seus possíveis usos
públicos.
Para Anne Marie Thiesse em A criação das identidades nacionais (2000:16)
Todo o processo de formação identitária consistiu em determinar o patrimônio de
cada nação e difundir seu culto, cuja primeira etapa corresponderia a determinar
a herança dos antepassados, descobrindo quais deles seriam ascendentes
condizentes. Para fazer surgir o novo mundo das nações, não bastava fazer um
inventário de suas heranças, era necessário inventá-lo (2000: 17). Segundo a
autora, a referência ao passado está inscrita numa proposta de construção e
afirmação do nacional. A história, neste sentido, faz parte desse projeto ao se
relacionar à determinação do patrimônio, em que os historiadores não são os
únicos responsáveis por esse processo. A construção de identidades é percebida
enquanto processo dinâmico e as idéias relativas à afirmação da nação, bem
10
Os historiadores estão em primeira linha nas grandes manobras, porque eles produzem as
versões mais ou menos autorizadas do passado e o que chegam a fazer por outros destinatários
que não os seus colegas. (...) Eles fazem circular as representações, os argumentos (explícitos ou
não), um repertório de signos e as formas que através das aprendizagens escolares estiveram
profundamente incorporadas na cultura comum desde o século XIX.
38
38
como as de região
11
que as impulsionam, se inscrevem em um campo de lutas
simbólicas relacionadas ao poder de nomear e acionar o passado (Bourdieu1989).
Nesta perspectiva a história, no concernente a produção de representações
sobre o passado e sua circulação, pode ser pensada enquanto narrativa a par de
outras narrativas elaboradas sobre um evento. Daniel Fabre no artigo Lhistoire a
changé de lieux em Une Histoire á soi (2001: 13) destaca, do ponto de vista da
Etnologia
12
, uma nova concepção de história relativa à memória de cada um para
além da história dos arquivos. A produção de narrativas analisada pelo autor
remete, por sua vez, à história local enquanto geradora de identidades a partir das
interpretações efetuadas pelos grupos, sendo a abordagem da utilização do
interesse pela história nacional na França, o referente para Fabre enfocar a
definição da localidade e sua história:
Les groupes locaux ne vienent pas de découvrir lhistoire qui depuis des
siécles parfois, est une pièce maîtresse de leur idenité dans le temps,
mais la position de ce discours sest deplacée ainsi que la définition de
ses porteurs et les formes de sa profération. Passant dum univers
relativiment réglé, spécialisé et clos aux sphères de lengouement
personnel, des poliiques publiques et du grand spetacle, une certaine
histoire paricipe à la refondation contemporaine de la localité (Fabre:
2001:16).
13
Fabre aborda a produção simbólica
14
dos grupos em relação aos usos da
história como objeto de estudo da Etnologia, salientando a criação do local e as
11
Com relação à região Thiesse (1997: 74) menciona a utilização pedagógica de uma história da
história local nos manuais escolares na França durante o período de Vicky.(1940-1944).
12
Segundo Michel Pannoff e Michel Perrin no Dicionário de Antropologia (1979: 69)
Efectivamente, no seu sentido restrito actual a etnologia incluiria unicamente os estudos sintéticos
e as conclusões teóricas elaboradas a partir dos documentos etnográficos e orientados mais
particularmente para os problemas de difusão e contactos, de origem, de reconstituição do
passado. (...) O estudo dos problemas mais gerais constituiria o campo da Antropologia Social e da
Antropologia Cultural. Mas estas distinções herdadas dos países anglo-saxônicos estão longe de
ser unanimemente admitidas na França.
13
Os grupos locais acabam de descobrir a história que desde séculos, por vezes é uma peça
dominante de sua identidade no tempo, mas a transformação desse discurso se transformou bem
como a posição de seus portadores e suas formas de manifestação. Passando de um universo
regrado, especializado e fechado às esferas do passional pessoal, de políticas públicas e do
grande espetáculo, uma certa história participa da re-fundação contemporânea da localidade.
14
Marc Auge (1994:14) menciona o espaço da Antropologia como um espaço histórico porque é
investido pelos grupos humanos e simbolizado. A simbolização é percebida por ele como o que
vizibiliza a ocupação do mesmo pelos grupos e o que lhe confere a organização social. Os três
39
39
identidades a partir das múltiplas abordagens ao passado. Essa recriação pode
ser pensada como objeto de estudo num duplo sentido: ao pôr em relevo a
questão das relações entre tempo e espaço (como domínios entrecruzados da
história e da Antropologia) e a questão da historicidade percebida nas
modalidades de recriação do passado e seus usos e os instrumentos escolhidos
neste sentido. O ponto de partida da percepção das identidades e interesses
gerados a partir da História, tamm neste caso, demonstra a presença de outros
interessados além dos historiadores na memória de um evento e sua veiculação.
Como conseqüência do alargamento dessa noção de história a produção de
representações sobre o passado se desdobra em uma pluralidade de narrativas
que apresentam as visões pessoais e de grupos que tamm se reservam o
direito de produzirem história, teatralizando o passado e o mitificando, para
atender a seus interesses presentes.
O autor apresenta algumas possibilidades das relações estabelecidas com
o passado ao mencionar os seus usos políticos, as relações pessoais e a
espetacularização do evento. Os exemplos remetem à reflexão a respeito da
questão tempo/espaço na medida em que há uma simbolização em torno do
espaço local para o re-conceber, numa perspectiva diacrônica, a partir da
narração de sua história. O narrar implica por parte dos grupos refletir acerca de
sua historicidade enquanto relação estabelecida entre estrutura e evento em
termos de afirmação de pertencimento ao local, bem como aos sentidos
conferidos a este como passado mítico e fundador de sua história. Para Marc
Augé:
Du point de vie subjectif, du point du vie dont les sujets peuvent envisager
le passé de leur societé, lhistoire mythique quon vient dévoquer nest
peut-être pas fondamentalement différent de lhistoire tout court, ou peut-
être faut-il dire que, pour le meilleur ou pour le pire, tout lhistoire peut être
myhique: il est significatif quon ait pu aujourdhui parler de <<fin de
lhistoire>> au moment même où, pour les mêmes raisons, on proclamait
la mort des idéologies, cest-à-dire des myhes reconnus comme tels et
principais temas imbricados da Antropologia, que tem como objeto, para Auge, o estudo do outro
são a identidade, a relação e a história.
40
40
condamnés à mort à partir du moment ils étaient reconnus pour ce
quils étaient (Augé: 1994, 17-18).
15
Augé discorre sobre a mitificação da história situando-a como produção
simbólica dos grupos que a vivenciam, a partir de sua produção narrativa,
exemplificando o próprio contexto mitificador e sua dinâmica com relação à
produção do imaginário do fim da história e da falência das ideologias ocorridas na
década de 90. Essa leitura do passado através da construção da história mitificada
como narrativa inter-relacionada ao alargamento da capacidade de contar e viver
a história conduz à reflexão sobre o processo de produção simbólica como objeto
da Antropologia e seus desdobramentos com relação à manipulação da memória
a partir da construção de sentido ao narrar o passado, produzindo identidades e
pertencimentos.
A história mítica referida por Augé, aqui entendida como mitificação da
história enquanto recurso narrativo que remete ao passado corresponde ás
reflexões de Mircea Eliade em Aspects du mythe (1963: 27) de que a história
narrada pelo mito constitui um conhecimento de ordem esotérica não somente
porque é secreta e se transmite ao longo de uma iniciação, mas tamm porque
este conhecimento é acompanhado de uma força mágico religiosa. A aparente
banalização assinalada por Augé da possibilidade da desvirtuação da ciência
histórica (logos) pelo mito do fim da história, cruzada à falência das ideologias,
salienta o mito como linguagem para pensar o presente e decifrá-lo na força
mágica do que seria o fim dos tempos da história como a detentora do poder de
recontar o passado e o re-figurar a seus fins.
A construção dessa falsa oposição conceitual mito/logos é estudada por
Gian Paolo Caprettini (1987: 102) em Mythos/logos onde se refere aos processos
para a realização de investimentos sobre a verdade e a definição dos sentidos
dessa contraposição conceitual. O poder do mito para ele se relaciona ao sentido
15
Do ponto de vista subjetivo, do ponto de vista do qual os sujeitos podem perceber o passado de
sua sociedade, a história mítica que se acaba de evocar não pode ser fundamentalmente diferente
da história, ou pode ser, é preciso dizer que para o melhor ou para o pior toda a história pode ser
mitificada: é significativo que se possa falar atualmente do <<fim da história>> no momento mesmo
que pelas mesmas razões se proclamou a morte das ideologias, quer dizer, os mitos reconhecidos
como tais e condenados á morte a partir do momento em que eles foram reconhecidos pelo que
foram.
41
41
conferido à história nas relações que estabelece via narração com a memória dos
eventos históricos e com a verdade, não a partir da correspondência com o real,
mas pela ação prescritiva da sanção social. O que define o mito frente a outros
gêneros narrativos não são apenas as particularidades de seu conteúdo, ou a
estrutura das histórias que conta, mas as marcas aplicadas no seu exterior
referentes as suas variações e modalidades, onde a falsidade assume relevância
de definição, num modelo discursivo que tende ao ocultamento e a mistificação do
real. (Caprettini 1985: 95).
A questão posta por Augé da mitificação da história desmistifica a oposição
mito/história os erigindo, enquanto dualidades de gêneros narrativos que se
comunicam, em objeto de estudo da Antropologia relativos a produção de imagens
sobre o passado no presente, pondo em relevo o estudo das possibilidades das
formas narrativas de conceberem o real, demonstrando e indagando sobre a
conexão entre os acontecimentos via construção de mundos alternativos
carregados de sentido, identificados com quem os produz e destinados a um fim.
3- As narrativas e a produção da memória coletiva das Missões
No texto Récit oral et production didentité Jacques Bres, (1993: 14) na
perspectiva de Paul Ricoeur, com relação à produção de identidades, define a
narrativa, antes de ser um texto, como um ato de recontar que se articula à
produção de identidade. Ele percebe o ato narrativo como um ato lingüístico
possuidor de estruturas temporais e pessoais. As estruturas temporais instauradas
no presente determinam um passado e um futuro, através da atuação do narrador
que reconta o tempo (através da produção do discurso) a partir de fragmentos
acerca do passado, determinados como tal pelo ato de narração que os seleciona
e evidencia. Como estrutura pessoal o fragmento do passado é conhecido pelo
narrador e desconhecido (a princípio) dos interlocutores. Assim o narrador sabe e
ensina aos interlocutores, construindo sentido sobre o passado ao significá-lo
(ordenando, conferindo coerência narrativa e orientação temporal, fazendo do
presente uma instância na qual o sujeito se consolida do seu passado orientando-
42
42
se em direção ao futuro). O narrador, neste sentido, em associação mais ou
menos forte com os interlocutores, produz as imagens com as quais se
identificam.
Em Temps e récit 3. Le temps raconté (1985: 185) Paul Ricoeur coloca que
a função narrativa se define no romance moderno, na lenda e na historiografia por
sua ambição de re-figurar a condição histórica elevando-a ao plano de consciência
histórica. Para ele é a dura lei da criação que confere de forma mais perfeita a
visão de mundo animada na voz narrativa (1985: 347).
A possibilidade de re-conceber o mundo se a partir da narração
entendida como ato que ordena o passado no presente e aponta para o futuro. A
autoridade do narrador se baseia na convicção dos leitores/interlocutores de sua
capacidade de dizer o que ocorreu. É através do processo de criação nas
narrativas que ocorre a produção de uma consciência histórica a ser festejada ou
denunciada pelos leitores identificados com a visão de mundo expressa nas
representações.
A construção de uma consciência histórica a ser internalizada se relaciona
a um trabalho de concepção do mito enquanto gerador de crenças, catalisador de
uma verdade passada a ser vivida. Régine Robin em La mémoire saturée aborda
o intrincado processo da re-figuração do passado, seu campo de estudos e alguns
agentes de sua vida no presente:
Les passés légendaires devenus mythes, anticipateurs dutopies ou des
désastres, ne sont lapanage ni des historiens, ni des philosophes, ni de
la fiction. Ils sont au couer de la culture, sur la scéne du présent, riches
de toute lexperience du passé qui les a, à maintes réprises, tissés et
détissés. Parfois cest la fiction quinvente le passé, lHistoire rectifiant les
apports légendaires. Dautre fois cest lHistoire qui construit le mythe, le
discours politique, le renforçant, donant naissance à un <<passé>>
senfonçant dans des lointains fabuleux. Il arrive encore que ce soit la
fiction qui dèconstruisse ce passé opaque. Les discours se font et se
défont. (Robin: 2003, 61).
16
16
Os passados legendários tornados mitos antecipadores de utopias ou dos desastres, não são
apanágio nem dos historiadores, nem dos filósofos, nem da ficção. Eles estão no coração da
cultura, sobre a cena do presente, ricos de toda a experiência do passado que os tem, muito
reprisados, tecidos e destecidos. Apesar de ser a ficção que inventa o passado, a História retifica
os aportes legendários. Doutra vez é a história que constrói o mito. O discurso político o reforça
dando nascimento ao passado se penetrando em distâncias fabulosas. Acaba ainda que seja a
ficção que desconstrua este passado opaco. Os discursos se fazem e desfazem.
43
43
A autora se refere a diferentes modalidades na construção de visões acerca
do passado, suas articulações e circulação. É através deste processo e seus
agentes que o passado se transforma em mito para ser vivido no presente, sendo
organizado em termos de produção de imagens múltiplas, correlatas e/ou opostas,
mas cujo objetivo é lhe conferir um novo estatuto: animar o presente, ligando-o ao
passado, buscado-o de alguma forma como legitimador ao construir um imaginário
favorável a sua atuação.
O passado missioneiro pode tamm ser pensado nesta perspectiva
através da análise de narrativas que a ele remetem e que se relacionam à
produção de um imaginário
17
. Sandra Pesavento no texto Narrativas Cruzadas -
história, literatura e mito: Sepé Tiarajú das Missões:
As narrativas conferem sentido ao mundo. Tudo o que existe e passa
pela experiência sensível, ou tudo o que se deseja, se teme e se crê e se
sonha é expresso pela linguagem e dotado de um significado; Assim as
diferentes narrativas que se constroem sobre o real histórica, literária,
ou míticas fazem parte de um sistema de representações sociais sobre o
mundo, a que damos o nome de imaginário (Pesavento: 2003, 1).
A representação
18
se relaciona ao conteúdo presente nas narrativas,
enquanto produtoras de imagens do passado. O conjunto de representações
elaboradas e partilhadas corresponde ao imaginário do grupo expresso através
nas narrativas que demonstram visões do mesmo sobre o real. A interpretação do
17
A aproximação da produção de representações ao imaginário dos grupos e das mentalidades foi
destacada por autores dedicados a história das mentalidades como Georges Duby em O Domingo
de Bouvines: 27 de julho de 1214 (1993). Philippe Tétart em Pequena história dos historiadores
(2000: 143-150) os relaciona também como temas da história cultural nas interrogações sobre o
estudo do instrumental mental dos grupos e na discussão sobre a representação do passado e a
escrita da história, remetendo a Paul Ricouer que em Lecriture de lhistoire et la repreésentation du
passé reflete sobre a potencialidade da representação para se perceber ligações entre imagem do
passado e discurso histórico construído sobre o mesmo, em substituição ao conceito de
mentalidade utilizado pela Escola dos Annales: Segundo Ricoeur, ao substituí-lo o historiador terá
um referente privilegiado para o estudo do social envolvendo memória e o discurso histórico
elaborado, mostrando a sua articulação. A dupla visão que envolve o real como referente do
representado e as crenças que daí emanam, em conformidade com as próprias normas elaboradas
para se representar coloca a questão da visibilidade da relação entre os grupos através da
interpretação de sua produção simbólica.
18
Denise Jodelet em Les représentations sociales (1993: 22) define as representações como
socialmente elaboradas, partilhadas e constituídas a partir das experiências, das informações,
saberes e modelos de pensamentos recebidos e transmitidos pela tradição, educação e
44
44
passado mostrada nos discursos historiográficos, nas lendas, nos pacotes
turísticos, na publicidade, nos monumentos, no artesanato, nos discursos políticos
e institucionais, nas canções, poesias, festas e desfiles relativo às Missões remete
à existência de um imaginário referente ao passado missioneiro no Rio Grande do
Sul atuante no presente que se relaciona às questões de identidades e à memória
de um conjunto de episódios, que por serem significativos são narrados,
destinados a interlocutores, produzindo sentidos presentes acerca do passado
missioneiro. Ocorre que a produção desse imaginário
19
coloca em conflito
diferentes representações geradoras de identidades e que demarcam fronteiras
com relação a este passado.
Dan Sperber no artigo Létude anhropologique des représenations;
problèmes et perspectives reflete sobre as representações culturais
20
e sua
potencialidade. Uma teoria explicativa das representações, para Sperber, em
Antropologia se relaciona com a abrangência da distribuição da representação
cultural no grupo, sua transformação ou sua durabilidade. Assim, explicar um
conto, por exemplo, significa percebê-lo como narrativa pública interiorizada em
forma de histórias mentais, exteriorizadas, por sua vez, sob forma de narrativa
através de diversas versões, (1999: 147), significa identificar os fatores que
comunicação social, direcionada de forma prática à organização social, concorrendo ao
estabelecimento de uma linguagem comum e compartilhada por grupo, classe, etc, ou cultural.
19
Para Bronislaw Baczko em Imaginação Social(1985, 309) o adjetivo social associado ao termo
imaginário ou imaginação, implicaria: Por um lado trata-se de uma atividade imaginativa em
direção ao social, Isto é, a produção de representações da <<ordem social>>, dos atores sociais e
das suas relações recíprocas (hierarquia, dominação, obediência, conflito, etc), bem como das
instituições sociais, em particular as que dizem respeito ao exercício do poder, às imagens do
chefe, etc. Por outro lado, o mesmo adjetivo designa a participação da atividade imaginativa
individual num fenômeno coletivo. Dan Sperber (1999: 135) se refere a pluralidade dos adjetivos
coletivo, social, simbólico ou cultural aplicado às representações, bem como a referência ao
gênero ou tipo de representações como uma dificuldade metodológica dos antropólogos, na
tentativa de aproximá-las ao signo, significação, símbolo ou saber relativo ao grupo/cultura
estudada.
20
Sperber (1999: 134) menciona as representações culturais (como as amplamente utilizadas pelo
grupo por um período significativo de tempo) como objeto privilegiado da Antropologia ao estudar
uma religião, uma mitologia, uma classificação, um saber técnico, por exemplo. Para o autor ao
estudar instituições sociais ou econômicas os antropólogos o fazem em função das representações
culturais e de suas implicações. Referindo-se a ausência de metodologia para a interpretação das
mesmas ele propõe aos antropólogos, a partir do trabalho de campo, interpretar os
comportamentos através da produção de representações mentais similares as representações
mentais e públicas dos grupos estudados (1999: 140), atentando ao caráter intuitivo e contextual
do trabalho das representações culturais, cujo conteúdo se expressa na interpretação do
45
45
permitiram o encadeamento comunicativo e a permanência do conteúdo
comunicado, como a memorização, por exemplo.
A explicação para a pluralidade de narrativas existentes acerca do passado
missioneiro pode ser pensada enquanto abrangência da produção mental dos
grupos e seus contrastes analisados através da transformação das
representações em virtude de sua transmissão e, especialmente, da pluralidade
de motivações nas relações estabelecidas com o passado. Esta percepção exige,
de uma parte, um contato direto e presente com os mesmos possibilitado pelas
observações e descrito nas etnografias além de categorias que permitam refletir
sobre a diversidade dessas relações. As relações estabelecidas têm no trabalho
da memória um referencial para pensar o passado. No texto Memória,
esquecimento e silêncio (1989), Michel Pollak:
A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das
interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra, como
vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar
sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de
tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs,
famílias, nações, etc. A referência ao passado serve para manter a
coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para
definir seu lugar respectivo, sua complementariedade, mas tamm as
oposições irredutíveis. (Pollak: 1989, 9).
O autor coloca em evidência a questão da formação da memória coletiva
como relacionada aos grupos sociais que a veiculam através das suas
experiências compartilhadas. Assim a memória, em seus mecanismos de
perpetuação, é vista como o que permeia intrinsecamente o grupo, no sentido de
que a história do grupo é o seu material de manipulação de que derivam os
significados conferidos ao presente que o mesmo vivencia e constrói. Por seu
turno, a memória coletiva é responsável pela aproximação ou afastamento entre
os grupos, na medida em que é através da interpretação da história e do passado
que ocorre a identificação entre os mesmos.
A memória aparece, desta sorte, como duplamente relacionada à história e
à identidade em termos de lembrar e esquecer. Não falar ou não exaltar um
antropólogo.
46
46
determinado acontecimento não significa necessariamente seu esquecimento,
pois o silêncio pode se relacionar à impotência. Pollak escreve a respeito dos
mecanismos para encobrir a memória coletiva: O longo silêncio sobre o passado,
longe de conduzir ao esquecimento é a resistência que uma sociedade civil
impotente opõe ao excesso de discursos oficiais.
No caso das Missões, a referência em inúmeras narrativas se soma a um
certo silêncio a respeito deste passado por parte dos mbyá-guaranis que
permanecem próximos às ruínas de São Miguel, onde vendem seu artesanato.
Logo, penso que não é possível tratar a memória de um passado e as
manipulações efetuadas por grupos e indivíduos de uma mesma forma. Maurice
Halbwachs no texto A memória coletiva [1949] trabalha a relação dialética
existente entre memória individual e memória coletiva no que concerne à história:
Não é suficiente reconstituir peça por peça a imagem de um
acontecimento do passado para se obter uma lembrança. É necessário
que esta reconstrução se opere a partir de dados ou de noções comuns
que se encontram tanto no nosso espírito como no dos outros, porque
elas passam incessantemente desses para aquele e reciprocamente, o
que é possível se fizeram e continuam a fazer parte de uma mesma
sociedade. Somente assim podemos compreender que uma lembrança
pode ser ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída. (Halbwachs:
|1949] 1990, 94).
A memória relacionada à identidade é estudada a partir da dupla questão
da identificação social e individual no processo de reconstrução da lembrança ao
operar o seu reconhecimento pelos grupos que cotidianamente remetem a história
através dos processos de identificação. O trabalho da reconstrução da lembrança,
neste sentido, se relaciona ao pertencimento a um grupo e sua eficácia à
possibilidade de encontrar eco no imaginário dos sujeitos que o compõem. O
reconhecimento e a reconstituição da lembrança como um processo dialógico não
é, neste sentido, aleatório, colocando os próprios interesses do grupo em questão,
sendo o tipo de relação que o indivíduo ou grupo deseja estabelecer com o
passado importante de ser pensado.
Régine Robin se refere à pluralidade de elementos que concorrem na
construção da memória coletiva na atualidade. Ao estudar a questão da história
comemorada no oeste dos Estados Unidos destaca o urbanismo, o turismo, o
47
47
cinema, os discursos históricos, os museus e as pinturas como expressões da
memória coletiva que trocam lugares, posições, teses, se transformando e
evoluindo:
Le pluriel simpose demblee. Non pas forcèment mémoires affrontées,
quoique très fortement conflictuelles, mais mémoires distinctes, telles des
nappes de passé qui sarticulent pas les unes aux autres, mais <<tiennent
ensemble>> toute de même, désireuses dêtre respectées, et surtout
dêtre narrées, reconnues. (Robin:2003,76).
21
O trabalho da memória coletiva na construção de imagens acerca do
passado missioneiro se expressa neste sentido, marcado pela pluralidade e por
conflitos que colocam em disputa o poder de dizer o que foram as Missões e de
vivê-lo no presente. As relações que essas expressões da memória coletiva
estabelecem com o passado, ao interpretá-lo, são importantes para se entender
as visões, as identidades produzidas e os interesses em disputa ao narrar de
diferentes formas este passado.
4-As modalidades de relações entre o passado e o presente
As relações entre passado e presente
22
vêm sendo estudadas de forma
cada vez mais intensa, sendo ligadas à construção da memória coletiva a partir
das visões acerca de um passado comum também relacionadas à dinâmica dos
processos de identificação e pertencimento. Esta pluralidade de relações vem
sendo pensada do ponto de vista de diferentes campos disciplinares com o intuito
21
O plural se impõe como prioritário. Não forçosamente memórias afrontadas ainda que muito
fortemente conflitantes, mas memórias distintas tais como fluídos do passado que não se articulam
uns aos outros, mas tiveram em comum todo o mesmo desejosas de serem respeitadas, de
serem narradas, reconhecidas.
22
Em Memória do mal, tentação do bem (2002: 154) Tzvetan Todorov aborda a diversidade das
relações dos grupos sociais com o passado e as apropriações que dele efetuam ao caracterizar
três modalidades de relações: A vida do passado no presente conhece, além das modalidades da
testemunha e do historiador, a do comemorador. Como a testemunha, o comemorador é guiado,
sobretudo, pelo interesse, mas como o historiador, produz seu discurso no espaço público e
apresenta-o como dotado de uma verdade irrefutável, distante da fragilidade do depoimento
pessoal. Daniel Fabre (2001: 36) no já citado artigo de Une Histoire à soi menciona como
referentes para pensar a idéia de manipulação política da história e da cultura os modelos de
Jûrgen Habermas e Eric Hobsbawm e Terence Ranger das tradições inventadas. Relaciono este
segundo modelo à comemoração do passado e sua ritualização, relativo ao trabalho de legitimação
das tradições.
48
48
de entender os complexos mecanismos de manipulação das lembranças na
afirmação da nação ou da região, por exemplo, através da exaltação de um
passado. Jürgen Habermas em Écrits Politiques estuda as relações estabelecidas
na Alemanha pelos jornalistas ao enfocarem a experiência nazista e seus
desdobramentos com relação à idéia de nação:
Dans lespace publique, pour la culture politique, pour les musées et pour
lenseigment de lhistoire, la question de la production dimages de
lhistoire dans une perspective apologétique prend immédiatement une
valeur politique. Sagit-il de proceder à des règlements des comptes
macabres mis en ouvre au moyen des comparaisons historiques, afin de
nous dèrouber à la communauté des risques partagés par tous des
Alemands? (Habermas: 1985,258).
23
Habermas enfoca dentro do espaço público, como questão política os
instrumentos utilizados no acerto de contas com o passado recente na Alemanha
o nazismo através da relação que estabelece entre as representações do
passado no presente e as atuações daí decorrentes e seus efeitos na construção
identitária em seus conflitos. O acerto de contas com um passado de que a nação
alemã se envergonha aponta para os processos de elaboração da consciência
histórica (Habermas: 1985, 250) a partir de um evento marcante. Consciência esta
relacionada às posturas políticas presentes no rememorar a partir da apologização
do mesmo, cuja culpabilidade é trabalhada em termos coletivos nas esferas
mencionadas pelo autor (cultura política, museus e ensino da história).
A memória coletiva
24
, nesta perspectiva, conforme Todorov em Memória do
mal: tentação do bem (2002: 155) é enfocada em termos da produção de um
discurso sobre o passado no espaço público, refletindo a imagem que um grupo
ou uma sociedade pretende conferir a si mesma; Nesse processo a criação de
imagens a respeito do passado e as posturas daí decorrentes podem remeter,
23
No espaço público, para a cultura política, para os museus e para o ensinamento da história, a
questão da produção de imagens de história em uma perspectiva apologética, põe imediatamente
um valor político. Trata-se de proceder ao acerto de contas macabras colocado em aberto no meio
de comparações históricas a fim de nos subtrair à comunidade os riscos compartidos por todos os
alemães?
24
Percebo existência de uma memória coletiva relativa às Missões a ser estudada a partir das
constantes referências assinaladas. Embora as representações produzidas sejam heterogêneas, a
pluralidade de discursos sobre as Missões demonstra o desejo de afirmação de sua memória e os
interesses em disputa de quem a aciona.
49
49
tamm, ao orgulho e à necessidade de comemoração, envolvendo grupos e
indivíduos que o acionam, conforme afirma Paul Ricoeur em Temps et Récit 3 le
temps raconté:
Ces événements, quon dit en anglais <<epoch-making>>, tirent leur
signification spécifique de leur pouvoir de fonder ou de renforcer la
conscience didentité de la communauté considerée, son identité
narrative, ainsi que celle des ses membres. Ces événements engendrent
des sentitments dune intensiéthique considérable, soit dans le registre
de la comémoration fervente, soit dans celui de la exécration, de
lindignation, de la déploration, voire de lappel au pardon. (Ricoeur:1985,
339).
Je veux dire que lhorreur comme ladmiration exerce dans notre
conscience historique une fonction spécifique dindividuation.
(Ricoeur:1985, 340).
25
Ricoeur se refere a eventos marcantes cuja significação é construída a
partir da potencialidade de provocar reações. A consciência histórica é produzida
dialeticamente no seio da comunidade que re-figura o passado, através da
narração ao se expressar e identificar com o mesmo, no sentido de se sentir
affecté-par-le-passé (1985: 411). Mas, embora se refira a um processo coletivo de
pertencimento, os sentimentos de orgulho ou de repulsa suscitados pela recepção
do evento são individualmente concebidos no sentido de que o passado é
peculiarizado pelo leitor.
Nas duas modalidades de comemoração e execração apresentadas está
subentendido, via menção, a produção de significação gerada pelas emoções
potenciais que suscita uma tendência a apologização (tamm observada nas
menções de Habermas) do passado para ser utilizado no presente. A consciência
histórica que engendra consciência de identidade do grupo e vice-versa necessita
e se desdobra em ações tendentes a viver o passado no presente. Atividades
grupais ou individualmente concebidas que atualizam o passado evocado, pondo
em contato, quebrando o tempo através da presença de quem visita uma ruína,
25
Estes eventos que a gente diz em inglês <<epoch making>> tiram sua significação específica de
seu poder de fundar ou reforçar a consciência de identidade da comunidade considerada, sua
identidade narrativa, assim como a de seus membros. Estes eventos engendram sentimentos de
uma identidade ética considerável, seja no registro da comemoração fervente, seja naquele da
execração, da indignação, da deploração, ver do apelo ao perdão.
Eu quero dizer que o horror como a admiração exerce na nossa consciência histórica uma função
específica de individuação.
50
50
por exemplo, como turista e se coloca frente ao passado como parte de um grupo
de turistas com quem se identifica, mas cujas emoções frente ao visitado remetem
à individuação. Para Marc Augé em Le temps en ruines:
Les ruines existent par le regard quon porte sur elles. Mais entre leurs
passés multiples et leur fonctionalité perdu, ce qui sen laisse percevoir
est une sorte de temps hors histoire auquel lindividu qui les contemple
est sensible comme sil laidaid a comprendre la durée qui sécoule en
lui.(Augé:2003, 43).
Ce Paris-là, ce sont mes ruines à moi, une ouvre dart hors dage et qui,
pour cette raison, me donne le sentiment quelle nexiste que pour moi.
(Augé:2003,124).
26
O autor analisa as relações pessoalmente estabelecidas com o passado
através da visitação e leitura individual de um vestígio. Como em Ricoeur a
significação se constrói a partir do olhar/sensação que suscita emoções, como a
do privilégio da relação estabelecida pessoalmente como um passado que é
colocado praticamente fora da história, suspenso no tempo, no sentido de ser
percebido como único por quem o vê. Assim, somada à questão das identidades
coletivas, a construção da noção de pessoa, relativa aos processos de
identificação pessoal, passa pela relação estabelecida com o passado e suas
decorrências. As referências observadas durante os trabalhos de campo, da
energia e espiritualidade propiciadas nas visitas as ruínas das Missões, bem como
a religiosidade popular em torno da figura de Sepé Tiaraju, podem ser pensadas a
partir de posturas individuais frente ao passado.
A criação de imagens, perceptível nas narrativas produzidas sobre as
Missões, demonstra nas diferentes modalidades de relações estabelecidas a
apologização e mitificação deste passado e a ampliação das fronteiras do
imaginário missioneiro para além dos Sete Povos, fazendo comunicar as
percepções acerca do mesmo. Nas referências importa analisar a diversidade das
formas que é vivida e encenada essa apologização.
26
As ruínas existem pelo olhar que se porta sobre elas. Mas entre os seus passados múltiplos e
sua funcionalidade perdida, aquilo que se deixa perceber é um tipo de tempo fora da história a que
o indivíduo que os contempla é sensível como se ele ajudasse a compreender a duração que se
esvai nela.
É Paris aqui, são minhas ruínas, uma obra de arte fora de idade e que por esta razão me o
sentimento de que apenas existe para mim.
51
51
Claude Rivière em Ritos Profanos, preocupado com a interpretação dos
ritos em relação ao indivíduo e à sociedade para além da religião, se refere à
necessidade de leitura da incorporação dos mitos no processo de ideologização
da modernidade. Segundo ele estas leituras são possíveis a partir das
manifestações de atitudes ritualizadas nos objetos, símbolos, comportamentos e
idéias de forte impacto afetivo e mobilizador (1996: 37). A imagem que se dá de si
mesmo através da representação dos atores, ritualizando sua vida cotidiana
(1996: 75) é reveladora da ordem social e, no meu entendimento, da busca de
identificação com o passado e seus caminhos. Néstor Garcia Canclini em Culturas
Híbridas discute a utilização política do passado na América Latina, focalizando a
questão do patrimônio cultural:
Entender as relações indispensáveis da modernidade com o passado
requer examinar as operações de ritualização cultural. Para que as
tradições sirvam de legitimação para aqueles que as construíram ou que
se apropriaram delas é necessário colocá-las em cena. O patrimônio
existe como força política na medida em que é teatralizado em
comemorações, monumentos e museus. (CanclinI: 2000, 162).
Ele destaca a questão de sua teatralização como esforço para simular uma
origem, uma substância fundadora (2000: 162) como objeto de atuação. A atuação
dos sujeitos nas representações acerca do passado missioneiro coloca em relevo
os sentidos atribuídos e os interessados em participarem na definição das Missões
a partir da reivindicação de um passado comum em diferentes circunstâncias:
através de um processo de delimitação da região das Missões via redefinição de
suas fronteiras, da situação do ser missioneiro em suas múltiplas expressões,
através do pontuar - a partir de um conjunto de episódios passados reveladores de
um tempo em que ocorre a re-configuração de um território que dialoga com as
representações e práticas do local, do regional, do nacional e do supra-nacional
em diversas situações patrimoniais.
As políticas de teatralização patrimonial nas Missões incluem uma série de
atores e de novos elementos que remetem ao passado colonial. Essa atuação
ritualizada atinge a produção discursiva, a produção de materialidades e outras
expressões. A existência de filmes sobre as Missões, de publicidade, de uma
52
52
política de patrimônio do IPHAN (Instituto de Patrimônio Histórico e Arqueológico
Nacional), responsável pela administração do espaço tombado das ruínas
missioneiras no Rio Grande do Sul e do espetáculo Som e Luz que ocorre
diariamente em São Miguel e em San Ignácio Miní, na Argentina, dos
monumentos a Sepé Tiaraju (em São Gabriel e Santo Ângelo), além do pórtico de
São Miguel das Missões se constituem em exemplos diversificados para se
estudar a apologização do passado missioneiro no presente. Essa contínua
incorporação e superposição do passado no presente (...) a que se refere Bela
Feldman-Bianco (2004: 291), no já citado texto.
Novos municípios emancipados reivindicam a identidade missioneira ao se
designarem com o adjetivo Missões, como no caso de Palmeira, Guarani e São
Paulo das Missões. A expansão dessas identidades reivindicadas ultrapassa as
fronteiras geo-políticas gaúchas e brasileiras, que no passado não existiam (pois a
região pertencia à coroa espanhola), mas que no presente, embora existam, se
mesclam como marcas do regional às identidades nacionais forjadas a partir das
fronteiras com Uruguai, Argentina e Paraguai.
5- Missões: fronteira e identidades
um imaginário missioneiro que ultrapassa as fronteiras geo-políticas dos
povoados, e que se expressa a partir de leituras de um passado comum. Tal fato
autoriza a relacionar as Missões com a questão fronteira. Priscila Faulhaber em A
fronteira na antropologia social: as diferentes faces de um problema (2001)
enfatiza a dimensão simbólica e cultural da fronteira como construção imaginária,
ao diferenciar a cultura de fronteira da linha de fronteira. Para a autora a fronteira
é um local de constituição de múltiplas identidades, pois:
Os processos que diferenciam identidades nacionais contrárias, mas não
necessariamente contraditórias se manifestam no interior de uma rede de
relações estabelecidas na fronteira e instituídas pelo imaginário de
representações sociais segundo um código cultural comum e
circunscritas pela dominação que ultrapassa as fronteiras nacionais.
(Faulhaber: 2000,119).
53
53
As Missões podem, de alguma forma, se constituir em tema de um código
cultural comum, como no caso de pacotes turísticos incluindo povoados
paraguaios, argentinos e brasileiros. No entanto, o código não é construído
exclusivamente como uma dominação que ultrapassa a esfera do nacional, ele
tamm se mescla ao nacional e o ser missioneiro é enfocado nos diferentes
locais de Missões de maneira diversa. Figuras do imaginário missioneiro no Rio
Grande do Sul como Mbororé (relacionado a guarda dos tesouros jesuíticos)
aparece nas publicações de folclore argentino como Pora e Mala Visión (Blache,
1991).
Daniel Nordman em Frontières de la France (1998: 10) se refere à fronteira
como estreitamente relacionada à nação e à sociedade. Um fato específico que
possui um conceito aberto e diverso entendido em acepções culturais, sociais,
figurando simbolicamente em sentidos derivados e diluídos. Para Nordman, no
entanto, a questão principal é sua ligação com o espaço, porque a fronteira
demarca, sejam quais forem as diferenças culturais e separações de países,
regiões ou locais que se dão a partir do espaço (Nordman; 1998, 19).
Referindo-se ao espaço das Missões Jesuíticas em sua relação com a
formação das fronteiras nacionais na América do Sul, Daniel Nordman em Des
frontières au miroir de la France (2003: 1051) e Juan Carlos Garavaglia em
Frontières des Ameriques Iberiques (2003: 1045) apontam o papel das Missões
Jesuíticas na demarcação das mesmas, salientando o conceito de fronteira como
uma construção histórica e antropológica, mas que é representado como
naturalmente dado.
Ao mencionarem as Missões Jesuíticas, ambos os autores acenam para a
possibilidade de se pensar acerca dos usos do espaço construído a partir de uma
experiência colonial na atualidade em que a fronteira Missões é acionada e
vivida de diversas maneiras, importando os interesses envolvidos nessas relações
com o espaço. A peculiaridade do enfoque das utilizações do passado no
presente, nesta situação, remete às categorias utilizadas na sua análise na
medida em que os termos estado, nação, região que a ele se relacionam
54
54
perpassam as narrativas produzidas e se constroem remetendo as Missões como
referente.
Se do ponto de vista de um olhar antropológico ao Rio Grande do Sul a
questão da manipulação do passado missioneiro no presente pode ser percebida
como regional, dadas as constantes referências nas narrativas dos movimentos
regionalistas que a indicam como mito de origem do gaúcho, e da definição de um
espaço missioneiro através da busca de configuração de uma região das Missões,
por exemplo. Por seu turno, no Paraguai, as Missões são representadas como
mito fundador do estado-nação paraguaio, por guias turísticos. Sendo também
representadas em relação à experiência integracionista sul americana como porta
de entrada do Mercosul por se constituir em um passado comum do Brasil,
Uruguai, Paraguai e Argentina.
Somado a estas configurações este passado é objeto também de
interesses de afirmações inter-regionais como no caso da dita música missioneira
no Rio Grande do Sul acionada em oposição a musica regional da campanha e
da serra gaúcha.
Em todos esses exemplos as Missões são referidas como um passado
liminar e exemplar que relacionalmente nomeia e demarca espaços O ser
missioneiro aparece como um híbrido: jesuítico-guarani, sem ser tampouco
jesuítico ou guarani, mas missioneiro. As representações das múltiplas relações
estabelecidas a partir do espaço das antigas Missões e suas imbricadas
utilizações, em diferentes aspectos, acenam para a necessidade de se perceber
no estudo das narrativas os sentidos conferidos ás configurações nas situações de
nomeação.
Assim, as referências à situação de liminaridade das Missões podem ser
pensadas de acordo com Victor Turner em O Processo Ritual como condições em
que freqüentemente se geram os mitos, símbolos rituais, sistemas filosóficos e
obras de arte propiciando modelos de reclassificação da realidade, do
relacionamento do homem com a sociedade, a natureza e a cultura. (Turner: 1974,
156). O termo liminar (representação e categoria) concebe um sistema de
classificação para o passado missioneiro ser representado no presente e estudado
55
55
a partir das situações analisadas em sua dialética com a construção das
identidades e pertencimentos dos atores que o ritualizam.
Esta situação de múltiplos enfoques e flexibilidade em que os lugares são
coletivamente apropriados e delimitados por uma fronteira reconhecida e
naturalizada por uma história e uma memória coletiva corresponde a noção de
território desenvolvida por Martine Bergues e Pierre Alphandéry em Territoires en
questions: pratiques de lieux, usages dum mot (2004: 8). Um espaço ampliado
onde a memória das Missões é acionada por grupos e indivíduos que se
identificam e se caracterizam em relação ao seu passado. O território corresponde
ao lugar de possíveis formas de relações com o espaço em que indivíduos e
grupos produzem e transformam a partir do estabelecimento de relações sociais.
Assim, esses territórios como espaços de referência e as referências se
configuram em geradores de identidades dos indivíduos e grupos produtores de
narrativas sobre o passado missioneiro.
Na coletânea de textos do seminário interdisciplinar Lidentité, organizado
por Claude Lévi-Strauss
27
, Michel Izard (1977: 305) coloca a situação da formação
dos grupos étnicos, espacial e temporalmente localizados como derivada de suas
peculiaridades históricas e suas apropriações. As situações de conquista, de
dominação e enfrentamentos com as respectivas memórias das derrotas e vitórias
são utilizadas como diacrítico na construção das identidades em oposição aos
demais grupos como forma de marcar o eu em oposição ao outro,.
Numa perspectiva relacional para pensar as identidades, Pierre Bourdieu
(1989) propõe um debate sobre a região, tentando romper com a oposição entre a
realidade e a representação na definição das identidades regionais, observando
na prática social as características arroladas como sinais da identidade e a
27
Claude vi-Strauss (1977: 332) ao afirmar a larga aplicação do conceito de identidade nas
ciências e, em especial na Etnologia, utiliza a imagem metafórica do foyer virtuel (um fogo que
não se apaga localizado no centro das casas camponesas francesas). A imagem é elucidativa e
simboliza a dupla relação analógica e supra real que o conceito representa ao ser acionado a um
tempo, pela academia como categoria e por indivíduos e grupos, como forma de sinalizar sua
condição. A relação entre identidade e representação é pensada por Pierre Bourdieu no livro O
poder simbólico, em A identidade e a representação: elementos para uma reflexão crítica sobre a
idéia de região, onde o autor critica a utilização dos critérios objetivos e subjetivos para o
entendimento da noção de identidade, referindo que a mesma deve ser pensada relacionalmente.
56
56
utilização simbólica dessas propriedades, feitas estrategicamente em função dos
interesses materiais e simbólicos do portador (1989: p.122).
A perspectiva proposta por Bourdieu autoriza a refletir sobre as Missões
como incorporadas simbolicamente ao imaginário do gaúcho, conferindo-lhe uma
herança a ser defendida, em constante atualização, sendo recriada e apropriada
em diversas situações, tendendo a exaltação dos regionalistas como grupo. Neste
sentido autorização simbólica para a atuação percebida como legítima a partir
da lógica do reconhecimento onde a história objectivada das Missões se tornaria
actuada (p.87).
Os autores citados oferecem embasamento à análise das apropriações da
história pelos sujeitos nas relações sociais, colocando em jogo as formas e os
interesses da própria ação histórica. Além da compreensão dos processos de
institucionalização da vida social, que denuncia por centrar sua análise na
demonstração da construção social das identidades
28
, esta perspectiva pode
conduzir a uma análise de juízo de valores do jogo da falsidade da realidade social
em sua instituição.
Penso que em termos das constantes apropriações efetuadas do passado
missioneiro na atualidade, não basta detectar os usos privados da história e as
relações estabelecidas entre os grupos nas disputas pelo poder de nomear as
Missões a partir da definição do seu passado via utilização do ethnotype
missioneiro, por exemplo. É necessário ir além e tentar perceber como este
passado é vivido e introjetado no presente para além das estratégias de afirmação
relacional e situacional de identidade, na dialética entre a afirmação do grupo e a
construção do sujeito ao acionar o passado.
Gilles Laferté nas discussões do seminário Du local au National: une
histoire sociale des appartenances do Laboratório de Ciências Sociais da Ècole
Normale Superieur (2004) e na tese de doutorado em Sociologia na Ècole des
Hautes Études en Sciences Sociales, Folklore savante et folklore commercial:
reconstruire la qualité des vins de Bourgogne. Une sociologie économique de
28
Rogers Brubaker em Au-delà de lidentité (2001: 70) menciona a reificação do termo identidade
nas Ciências Sociais, em que reconhece uma postura construtivista e essencialista, enquanto
orientação acadêmica dos analistas e protagonistas de políticas identitárias
57
57
limage régionale dans lentre-deux-guerres (2002) questiona os riscos da análise
construtivista em termos da utilização das noções de identidade, tradição e
memória, propondo o conceito de pertencimento como relativizador dessa postura,
ao associar produção de imagem e pertencimento na análise da atuação dos
grupos na construção e afirmação da região a partir do uso de suas tradições:
Le couple image-appartenance permet de distinguer dum côté lactivité
significatrice, rèductrice du réel, didenification catégorielle des groupes,
et de lautre côté la description des positions sociales prises dans la
complexité de réel. Lappartenance designe les proprietés des groupes
territorialisés dans le quel sinscrivent et se disribuent les individus, cest à
dire les lieux et les proprietés dans lesquels les individus se
reconnaissent. Il sagit dune logique de la participation des individus aux
activités collectives, de leur sociabilité, de leur mobilisation au sein de
structures collectives de la solidarité territoriale. Lappartenance désigne
des formes et proprietés institués dautoclassement des groupes et des
individus. (Lafferté: 2002, 32).
29
Assim, se trata de ir além da denúncia da construção social da realidade em
suas relações e das estratégias utilizadas na construção das identidades pelos
grupos, observando com relação às Missões, a partir dos trabalhos de campo,
como estes se apropriam e utilizam seus referenciais no campo social a partir das
reivindicações do ser missioneiro enquanto disposição individual e coletiva
reconhecida na participação daqueles que apologizam o passado.
Pensar em identidade e pertencimento, nesta perspectiva implica observar
o lugar da produção do sentimento, porque o pertencer significa sentir-se ligado a
e desejar mostrar-se nesta perspectiva como identificado com. O território gerador
do pertencimento é referente para a análise da produção de sentido expressa nas
narrativas. Estas demonstram a elaboração de uma imagem dupla, correlata e
imbricada da idéia da identificação e do pertencimento, correspondendo a um
espaço de sentimento.
29
A dupla imagem-pertencimento permite distinguir de um lado a atividade significativa, redutora
do real de identificação categorial do grupo e do outro lado a descrição das posições sociais
apreendidas na complexidade do real. O pertencimento designa as propriedades dos grupos
territorializados, onde se inscrevem e se distribuem os indivíduos, quer dizer os lugares e as
propriedades nas quais os indivíduos se reconhecem. Trata-se de uma lógica da participação dos
indivíduos nas atividades coletivas, de sua sociabilidade, de sua mobilização no seio de estruturas
coletivas da solidariedade territorial. O pertencimento designa as formas de propriedade instituídas
de autoclassificação dos grupos e dos indivíduos.
58
58
Nesta perspectiva, é preciso passar a analisar as razões e emoções
contidas na dinâmica dos processos de identificação e pertencimentos às Missões
pelos indivíduos e grupos, de sua manipulação e recriação, pensando sincrônica e
diacronicamente essas disposições. O ponto de partida para perceber esses
processos é a análise das representações dos acontecimentos missioneiros
passados expressos na produção de narrativas percebidas nos trabalhos de
campo.
As menções ao passado, neste sentido, põem em evidência as relações
entre os grupos e indivíduos no seu interior, ou isoladamente, e se inscrevem em
interesses específicos para acioná-los. As razões para dar vida ao passado no
presente remetem a análise das relações entre passado, presente, história,
memória, imaginário, representação, território, fronteira, tradição, identidade e
pertencimento, configurando um universo de estudo em que o ser missioneiro é
tornado presente, sendo utilizado de várias maneiras como demonstram as
etnografias que seguem.
59
59
CAPÍTULO 2
Os regionalistas e a comemoração do passado missioneiro no Rio Grande
do Sul
Pretendo analisar neste capítulo algumas narrativas acerca do passado
missioneiro no Rio Grande do Sul, percebidas na construção do gauchismo como
movimento, relacionando a figura do gaúcho à experiência missioneira, integrado
a sua construção através da produção de diversas representações literárias
relacionadas á história do regionalismo no Rio Grande do Sul.
1- Questões Metodológicas
Em março de 2001, quando ingressei no doutorado e comecei a definir
como efetuaria minhas atividades de campo, me deparei com muitas entidades
tradicionalistas cujos nomes remetiam às Missões, tais como Centros de
Tradições Gaúchas, Piquetes
1
e Grupos Folclóricos. Na relação das entidades
filiadas que solicitei, naquela ocasião, ao Movimento Tradicionalista Gaúcho no
Rio Grande do Sul, das 1400 entidades filiadas, entre as trinta regiões
tradicionalistas - RTs - havia vinte e oito entidades que em seu nome se
identificavam com as Missões e sete que remetiam ao universo indígena, além de
nove que se referiam a Sepé Tiaraju e a sua atuação.
Desta forma, como as primeiras representações com que tive contato se
relacionavam ao tradicionalismo, decidi iniciar as atividades de observação junto a
1
Piquete na apropriação efetuada pelos tradicionalistas é a designação dada a uma
associação/grupo de cavaleiros que se reúnem para cultivar as tradições gaúchas campeiras em
festas e concursos. Segundo Zeno Cardoso Nunes no Dicionário de regionalismos do Rio Grande
do Sul (1993: 377) é um pequeno potreiro ao lado da casa onde se põe ao pasto animais
utilizados diariamente.
60
60
este movimento, tentando também observar suas relações com outras expressões
do regionalismo no Rio Grande do Sul em suas referências ao passado
missioneiro.
O movimento tradicionalista gaúcho, ou apenas tradicionalismo, pode ser
entendido como um conjunto de atividades organizadas e regulamentadas que
objetivam celebrar a figura do gaúcho e seu modo de vida em um passado
relativamente distante, tal como os participantes e, sobretudo, os pesquisadores
do movimento o percebem e o definem em seus escritos, instituindo práticas de
culto em torno das quais se glorifica um passado continuamente atualizado e
interpretado no presente.
O responsável pelas atividades tradicionalistas no Rio Grande do Sul é o
Movimento Tradicionalista Gaúcho definido assim em seu site:
É uma entidade associativa, que congrega mais de 1400 Entidades
Tradicionalistas legalmente constituídas, conhecidas por Centro de
Tradições Gaúchas ou Grupos Nativistas ou Grupo de Arte Nativa ou
Piquete de Laçadores ou Grupos de Pesquisas Folclóricas ou outras
denominações, que se identifiquem com a finalidade a que se propõe,
que são as entidades fins. As entidades tradicionalistas filiadas ao MTG
estão distribuídas nas 30 Regiões Tradicionalistas, as quais agrupam 500
municípios do nosso Estado. É um movimento vico, cultural e
associativo. (...) O MTG é definido como uma entidade civil sem fins
lucrativos, dedica-se a preservação, resgate e desenvolvimento da
cultura gaúcha, por entender que o tradicionalismo é um organismo social
de natureza nativista, vica, literária, artística e folclórica, conforme
descreve simbolicamente o Brasão de Armas do MTG, com as sete (7)
folhas do broto, que nasce do tronco do passado. (www.mtg.org.br).
O tradicionalismo como movimento cultural
2
é também comum à Argentina
e ao Uruguai, territórios em que historicamente é referida a presença do gaúcho
identificado à vida rural, cuja principal atividade econômica consistia no
apresamento de gado xucro para a comercialização do couro.
2
O tradicionalismo gaúcho é hoje considerado por seus membros como o maior movimento
cultural do mundo. Essa informação é veiculada nos discursos das sessões solenes que pontuam
abertura e encerramento de suas atividades, bem como por políticos e demais autoridades, mas
não dados que efetivamente comprovem essa afirmação. O tradicionalismo gaúcho do Rio
Grande do Sul, enquanto movimento, se expande por vários estados do Brasil, sendo lá cultuado
por gaúchos, descendentes e simpatizantes. Segundo os tradicionalistas o culto às tradições
gaúchas ocorre em Nova Iorque, em Lisboa e no Japão como conseqüência da diáspora dos
gaúchos rio-grandenses pelo Brasil e pelo mundo.
61
61
Na esfera do tradicionalismo no Rio Grande do Sul, o que me chamou a
atenção não foi apenas o número expressivo de referências através dos nomes a
episódios missioneiros passados, mas o fato dessas entidades se espalharem por
todo o Rio Grande do Sul e, inclusive, em zonas de colonização alemã e italiana,
que originariamente não se relacionam com a história colonial das Missões.
Este fato foi decisivo para o direcionamento do desenvolvimento dos
trabalhos de campo entre os regionalistas e especialmente entre os
tradicionalistas, pois percebi que as representações sobre as Missões não se
cingiam apenas a um possível espaço missioneiro, mas que poderiam ser
percebidas em outros lugares. Desta forma, optei por diversificar os locais de
trabalho de campo e, propositalmente, iniciá-los fora da região missioneira
acompanhando os tradicionalistas em seus congressos e concursos artísticos,
bem como em suas festividades
3
.
Os trabalhos de campo entre os tradicionalistas e (em alguma medida) com
os demais grupos produtores de representações sobre as Missões correspondeu a
uma adaptação metodológica do que George Marcus define em Ethnography
through thick and thin (1998:5) como multi-sited strategies, ou seja, a possível
utilização de múltiplos recursos etnológicos para a percepção de culturas em
circulação para a construção etnográfica. A caracterização de grupos ligados ao
gauchismo no Rio Grande do Sul como culturas em circulação se refere ao fato
das atividades do gauchismo, que celebram a figura do gaúcho se ocorrerem em
diferentes locais do estado, exigindo não apenas o meu deslocamento como
interessada na observação, mas também a circulação de pessoas para
participarem das atividades do gauchismo, tais como os ENARTS, Congressos
Tradicionalistas, Festivais Nativistas e cavalgadas.
3
Ao entrar em contato com a Fundação Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore, a Estância da
Poesia Crioula e a Comissão Gaúcha de Folclore e iniciar as observações de algumas de suas
atividades e entrevistar seus coordenadores percebi que as referências ao passado missioneiro
entre os regionalistas que se referem à construção e ao culto da figura do gaúcho estão mais
visibilizadas entre os tradicionalistas do que nas instituições referidas e por isso decidi enfatizar
minhas observações entre este grupo. Num segundo momento comecei a perceber as relações
entre as diferentes esferas do gauchismo e sua expansão ao me deparar com as referências à
música missioneira, cujos trabalhos de campo envolveram várias dimensões do gauchismo dentro
e fora da região das Missões.
62
62
A adoção desse tipo de estratégia me possibilitou, ao acompanhá-los
perceber diferentes dimensões de seu universo simbólico e construir uma prática
antropológica capaz de caracterizá-los enquanto grupo (principalmente as
relações no seu interior através das disputas que desenvolvem), bem como
perceber as relações com os demais agentes do gauchismo ao se apropriarem do
passado missioneiro e construírem suas interpretações. Meu interesse
preponderante era perceber como as Missões estavam sendo utilizadas e que
sentidos a experiência missioneira passada passa a adquirir quando utilizada
como parte constitutiva dessa identidade regional acionada, já que está em jogo a
definição da imagem da figura a ser cultuada o gaúcho em suas atividades.
O gauchismo (em suas mais variadas expressões) movimenta milhares de
pessoas em suas datas comemorativas e atividades que ocorrem durante todo o
ano. Com a utilização deste termo, pretendo englobar uma gama de
manifestações e sujeitos que efetuam a apropriação da figura do gaúcho na
produção de suas representações. Segundo Maria Eunice Maciel na tese de
doutorado em Antropologia Le gaucho bresilien. Identité culturelle dans le sud du
Brésil:
Por gauchismo é preciso compreender diversas manifestações culturais
que têm o gaúcho como ponto de referência e que jogam sobre as
representações do gaúcho e que exprimem um sentimento de
pertencimento (Maciel:1994, 8).
....................................................................
Entretanto a diferença com as outras dimensões do regionalismo, o
gauchismo não quer estudar ou escrever sobre o gaúcho. Ele pretende
oferecer um culto as tradições por encarnação de uma imagem do
gaúcho. Entretanto, a personificação do gaúcho efetuada pelos
tradicionalistas pretende representar o verdadeiro gaúcho e eles se dão
o título de guardiões de uma pureza em nome de uma autenticidade
(Maciel:1994, 102).
4
Na perspectiva da autora fazem parte deste universo intelectuais e literatos
que se preocupam com as tradições regionais, através da exaltação da terra e do
homem
como fazem, por exemplo, os poetas membros da Estância da Poesia
Crioula - EPC (uma espécie de academia regionalista das letras gaúchas), os
poetas e músicos que participam dos festivais nativistas, muitos deles também
63
63
membros da EPC, os participantes dos Centros de Tradições Gaúchas, CTGs, e
dirigentes do Movimento Tradicionalista Gaúcho, alguns folcloristas e dirigentes da
FIGTF (Fundação Instituto de Tradição e Folclore) e da CGF (Comissão Gaúcha
de Folclore), bem como o próprio público consumidor dessas obras e eventos.
Sob o signo do gauchismo, tenho por finalidade incluir a diversidade de
pessoas e grupos que se identificam de variadas formas com a exaltação do que
se referem como usos e costumes regionais e que os acionam como critério de
definição. Pretendo tamm mostrar a existência de redes que se formam em
torno da figura do gaúcho e da recriação de suas tradições passadas no presente.
Percebo, assim, a existência da circulação de idéias, valores e de pessoas entre
esses grupos que, muitas vezes, identifica músicos e expoentes do nativismo com
a ocupação de cargos no FIGTF e MTG, por exemplo e que interagem com os
pesquisadores que se propõem a estudá-los.
5
As impressões que apresento neste e no próximo capítulo foram percebidas
em uma série de pequenas viagens efetuadas normalmente em finais de semana
e entrevistas, tendo em vista uma atuação do exterior para o interior, percebendo
as significações que as Missões passavam a adquirir fora do espaço missioneiro.
Minhas atividades de observação iniciavam, via de regra, na sexta-feira à noite ou
sábado de manhã seguindo até domingo. Algumas observações foram efetuadas
4
Tradução autorizada por Maria Eunice Maciel.
5
Esta interação diz respeito aos próprios critérios de definição. Os tradicionalistas com quem
convivi durante os trabalhos de campo me impressionaram por conhecerem e acionarem trabalhos
antropológicos como o livro A parte e o todo de Ruben Oliven. Recebi inúmeras propostas do
presidente da CBTG (Confederação Brasileira da Tradição Gaúcha) entidade coordenadora do
tradicionalismo gaúcho no Brasil, composta atualmente por nove federações, para criar e
coordenar um Departamento de Antropologia, cujo objetivo, segundo seu presidente Cel. Celso
Souza Soares, seria conferir um caráter mais científico ao movimento. Esta aproximação à
ciência se refere também á abertura e disponibilidade para apresentar o movimento aos
pesquisadores. Os tradicionalistas ao lerem o que sobre eles se escreve e ao convidarem
antropólogos para a divulgação de pesquisas em seus congressos e convenções como no caso
de Jaczan Kaiser, autor do livro Ordem e Progresso o país dos gaúchos, que efetuou uma palestra
na abertura do Congresso da Confederação Brasileira da Tradição Gaúcha em 2001 em Porto
Alegre bem como ao promoverem a venda de livros em que se constituem em sujeitos estudados
criam um trânsito de informações e estão favorecendo um tipo de circulação de idéias que
influencia seus rumos enquanto movimento popular. Este contexto agregacionista de tentar criar
antropólogos-tradicionalistas e de ter tradicionalistas que reproduzem discursos antropológicos
conduz ao estreitamento dos vínculos entre as partes e o movimento, por sua vez, passa a se
reivindicar como extensão da produção do saber científico, exigindo dos antropólogos, uma
resposta às suas reivindicações.
64
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em Porto Alegre, sede do MTG, IGTF, EPC e CGF e palco do maior desfile
farroupilha do estado e do acampamento do parque Harmonia, que ocorre
anualmente em setembro. As relações que estabeleci nas observações foram
permeadas pelo proposto por Pierre Bourdieu no texto Uma introdução à
sociologia reflexiva como a objetivação participante:
A objetivação da relação do sociólogo com o seu objeto é, como se vê
neste caso, a condição de ruptura com a propensão para investir no
objeto, que está sem vida na origem de seu interesse pelo objeto. É
preciso de certo modo ter-se renunciado a tentação de se servir da
ciência para intervir no objeto, para se estar no estado de operar uma
objetivação que não seja a simples visão redutora e parcial que se pode
ter no interior do jogo passível de ser apreendido como tal porque se saiu
dele. (Bourdieu: 1989, 58).
A opção pela objetivação participante ocorreu, pois desde o início das
atividades de campo fui movida pela preocupação com minha identidade
tradicionalista passada, por ter participado ativamente não do movimento
tradicionalista gaúcho entre
os anos de 1991 e 1996, mas também por freqüentar
festivais de músicas nativistas e conhecer poetas, músicos e alguns folcloristas,
por quem fui bastante influenciada em minhas primeiras pesquisas.
6
Tal fato colocou-me em contato com o problema de uma possível falta de
estranhamento das atividades tradicionalistas (que no passado fizeram parte de
meu cotidiano) em virtude do excesso de inserção e familiaridade. Assim, o
exercício da observação participante se delineou como algo praticamente
desnecessário, pois sabia o que significava ser tradicionalista, Nas atividades de
que participei como intérprete vocal, no período referido, ser tradicionalista
significou estabelecer uma relação com o passado, construindo a identidade
tradicionalista através da transformação e convencimento aos presentes da
veracidade e autenticidade do representado como uma tradição via atuação no
imaginário do grupo. Assim, a utilização da observação participante poderia
6
Entre os anos de 1995 e 1997 participei como bolsista de iniciação científica FIPE e FAPERGS
do projeto de pesquisa intitulado Folclore no Museu desenvolvido no Museu Gama dEça na
Universidade Federal de Santa Maria, ocasião em que tive contato estreito com os folcloristas que
faziam parte do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore: Antonio Augusto Fagundes, Lílian
Marques, Paula Simon Ribeiro e Rose Garcia. Estas três pesquisadoras foram as refundadoras da
Comissão Gaúcha de Folclore ao saírem do IGTF na década de 90.
65
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conduzir a uma inversão, significando a utilização da própria Antropologia pelo
tradicionalismo no sentido de poder me conduzir a um retorno ao tradicionalismo
ao invés da construção de um discurso antropológico sobre o tradicionalismo,
incorrendo nos riscos de má do interesse antropológico mencionados por
Clifford Geertz em A interpretação das culturas (1989: 30. Nota n°4) ao se referir a
observação participante, quando o antropólogo se percebe mais do que um
interessado temporário no estudo do grupo.
Meu retorno ao universo do gauchismo significou o reencontro com
inúmeras pessoas tais como os grupos de danças tradicionais gaúchas de Santa
Maria (onde residi), poetas, músicos nativistas e folcloristas, em congressos
estaduais, nacionais e internacionais do tradicionalismo gaúcho e brasileiro além
do conhecimento e interação com muitas outras pessoas, o que foi por vezes
favorecido por minhas relações com o gauchismo em períodos anteriores.
Foram as premissas da objetivação participante que me permitiram ir além,
no sentido de ter saído do próprio jogo do gauchismo e, em conseguindo abstraí-
lo, perceber as relações que se dão no seu interior ao descentrar-me. Meu
interesse pelo universo do gauchismo foi objetivado pela relação que passei a
estabelecer com ele como antropóloga e as relações anteriormente vivenciadas se
constituíram em importante condição para perceber de que forma as Missões são
acionadas.
As referências à experiência missioneira passada não apenas foram além
da região das Missões como mencionei. Elas também ultrapassaram os limites
das referências vivenciadas em campo. Numa perspectiva diacrônica constatei
que fazem parte da própria história do gauchismo no Rio Grande do Sul, do culto
às tradições gaúchas iniciadas no século XIX, pois estão presentes nos escritos
de Cezimbra Jacques patrono do movimento tradicionalista gaúcho e Simões
Lopes Neto - bem como nos textos que Barbosa Lessa (estruturador e filósofo do
movimento tradicionalista) escreveu sobre folclore e história.
Desta forma, a referência às Missões como um dos elementos formadores
do gaúcho enquanto figura mitificada construída imaginariamente e representada
nas atividades do culto às tradições, merece ser estudada em relação à história do
66
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gauchismo simulttaneamente às suas atividades, pois a menção ao passado não é
efetuada de forma aleatoria como recurso de comemoração para exaltação dos
seus valores. toda uma construção de relações com o passado missioneiro
expressa nas referidas narrativas literárias, onde percebi uma circulação de idéias
e visões sobre as Missões entre os escritos mencionados e a produção de
representações. uma ideologia produzida através da atuação no imaginário
dos tradicionalistas e de seu público que se afirma, utilizando o passado
missioneiro numa relação entre a recepção dos escritos e as atividades do
gauchismo, como tentarei demonstrar.
2-Sobre o Regionalismo e o Gauchismo no Rio Grande do Sul
Anne Marie Thiesse em Écrire la France: le mouvement literaire régionaliste
de la langue française entre la Belle Époque et la Liberation (1991: 10) se refere à
noção de regionalismo como sem contorno ou coerência próprias, por se embasar
em fatos da história nacional. Neste sentido, teorizar sobre o regionalismo implica
pensar sobre a especificidade da construção da idéia de região a que se relaciona
e da inserção da mesma na igualmente construída idéia de nação.
O surgimento do regionalismo no Rio Grande do Sul, neste sentido, se
inscreve na história dessas relações entre o nacional e o regional, manifesta nas
representações da região produzidas por intelectuais, que a comemoram, no
quadro da busca de uma redefinição da história e dos costumes exaltados a partir
da produção de narrativas sobre o gaúcho, cujas primeiras referências aparecem
na literatura no século XIX. Sérgio Alves Teixeira em Os recados das festas
assinala o processo de transformação do termo gaúcho:
O termo gaúcho, de origem imprecisa teve uma trajetória semântica
notável. De início significava contabandista, vagabundo, anti-gregário,
incivilizado, anti-social e se referia a numerosos indivíduos que
circulavam pelas áreas de criatório nas regiões limítrofes da Argentina,
Uruguai e Brasil. Depois passou a designar o tipo social símbolo
daqueles países, bem como do Rio Grande do Sul, inclusive nominando
seu gentílico (...). Hoje, no contexto rio-grandense, o termo gaúcho
passou a significar altivez, orgulho, dignidade, bravura, honradez,
desassombro, lealdade, simplicidade, autenticidade. Gaúcho quer dizer
tudo isto em grau aumentativo. (Teixeira:1988, 53).
67
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A construção simbólica da figura do gaúcho espelha a adaptação do termo
relativo a um dos tipos humanos que habitavam a região, ocorrendo em razão do
processo de busca de afirmação dos espaços platinos que originaram, no século
XIX, os estados nacionais do Uruguai e da Argentina e do Rio Grande do Sul na
região mais meridional do Brasil. Nestes espaços re-configurados o gaúcho é
escolhido como herói fundador para simbolizar, como emblema, a saga da
domesticação do território através da exaltação da bravura de sua dupla atuação
como homem do campo e guerreiro. Na Argentina e no Uruguai, o gaúcho passa a
ser considerado símbolo nacional, ao passo que no Rio Grande do Sul é erigido
como emblema do regionalismo. O historiador Juan Carlos Garavaglia em
Gauchos: identidad, identidades menciona as razões para essa adoção:
Es decir para que, el gaucho cumpliera su destino mítico como emblema
máximo para argentinos, uruguayos y riograndenses era indispensable
despojarlo de ataduras terrenas, era imprescindible que apareciera
desnudo de lazos familiares o de preocupaciones productivas. Pero,
además, en sociedades que en ese entonces, a fines del XIX, eran ya las
más altamente urbanizadas de la América Latina, con una presencia
cresciente de la imigracion, era indispensable que éste fuera un nexo vital
con la tierra, con el humus primordial (Garavaglia:2003, 146-6).
7
O destaque da necessidade do vínculo com a terra, na criação da figura do
gaúcho, se constitui em elemento importante na análise da história do gauchismo
nas regiões mencionadas em relação à formatação das nações nascentes, pois
com o processo de mitificação do mesmo recaindo sobre a exploração da região
do pampa e com a exclusão da figura dos camponeses/imigrantes deste universo
representacional há uma demonstração clara de hispanofilia como suporte do
arquétipo singular em que passa a se constituir o gaúcho (Garavaglia: 2003, 147-
9).
7
É dizer, para que o gaúcho cumprisse seu destino mítico como emblema máximo para
argentinos, uruguaios e riograndenses, era indispensável despojá-lo das ataduras terrenas, era
imprescindível que aparecesse desnudo de laços familiares ou de preocupações produtivas.
Porém, ademais, em sociedades que neste período já eram as mais urbanizadas da América
Latina com uma presença crescente da imigração européia era indispensável que este fosse um
nexo com a terra, com o húmus primordial.
68
68
No tocante à Argentina e ao Uruguai, numa espécie de comemoração dos
seus primeiros colonizadores, a construção do elemento típico, pondo em
relevância a questão da terra em relação ao seu proclamado habitante singular,
justamente no momento de amálgama das nações nascentes, se configura em
uma estratégia bastante explorada de invenção das tradições destacada por
Terence Ranger e Eric Hobsbawn na Invenção das Tradições (1984: 9) e da
criação de símbolos por Anne-Marie Thiesse na Criação das identidades nacionais
(1999: 59) ao ligar a nação à terra, festejando a ocupação do espaço por
determinados habitantes, na construção do território de sua soberania.
Com relação ao Rio Grande a questão se desdobra de forma muito
peculiar, porque a terra a ser enfatizada através da figura do gaúcho não se
relaciona à nação, mas a uma região em que o regionalismo começa a ser
construído praticamente em oposição ao nacional brasileiro no século XIX. Por
seu turno, a exaltação da terra no Rio Grande do Sul, via hispanofilia do gaúcho
recai justamente sobre um território que ao longo do processo histórico foi objeto
de disputa entre as coroas portuguesa e espanhola a quem pertenceu desde o
princípio de sua ocupação e cujos habitantes no século XIX, protagonizaram uma
tentativa de separação do restante do Brasil durante a Revolução Farroupilha
entre 1835 e 1945. A opção por festejar a hispanofilia em um território lusitanófilo
por contingência histórica traz em si a necessidade de acomodação dessa
contradição, e gera questões identiárias peculiares.
Somado a isto, o contexto em que se percebem as primeiras expressões do
regionalismo e especificamente o gauchismo no Rio Grande do Sul no final do
século XIX é um período bastante peculiar nas suas relações com o centro do
Brasil. Um momento em que os intelectuais gaúchos se voltam para a história
recente da região, no tocante a construção e seleção de heróis a serem exaltados
e de costumes a serem revividos. A ênfase ao regional no Rio Grande do Sul
ocorre num contexto de transformações políticas e econômicas, tais como a
recepção no estado da Proclamação da República e da Abolição da Escravatura,
já ocorrida no Rio Grande do Sul em 1884, paralelamente à estruturação do
Partido Republicano Rio-Grandense (PRR, fundado em 1882).
69
69
Cada um dos elementos referidos acima merece ser explicitado para se
entender a atuação no gauchismo com relação à integração do passado
missioneiro expressa em suas narrativas, a começar pela referência ao processo
histórico.
Pelas disposições do Tratado de Tordesilhas de 1494, os territórios
situados ao oeste da linha imaginária traçada - o meridiano de Tordesilhas -
pertenciam à coroa castelhana e os situados a leste á coroa portuguesa. Assim, o
espaço meridional da América (o atual território do Rio Grande do Sul e a região
do Prata) faziam parte dos domínios castelhanos A ocupação do espaço, no Rio
Grande do Sul, se inicia apenas no século XVII pelos jesuítas a serviço de
Castela, num período conhecido como Filipino ou União Ibérica entre 1580 e 1640
(em que ambos os reinos foram governados pelos monarcas Habsburgos Felipe II,
III e IV)
8
. A atuação dos jesuítas na catequização dos habitantes originários se
intensifica com os constantes ataques dos paulistas às reduções paraguaias do
Itatim e do Guairá, que as invadiam a fim de buscar mão de obra entre os índios
aldeados e já adestrados pelos padres para que fossem trabalhar nas lavouras de
cana de açúcar da região de São Vicente.
A partir de 1626 na região do Tape começam a ser criadas novas reduções
que tiveram duração efêmera, também sendo alvo dos paulistas. Estes são
expulsos da região em 1640 na batalha de Mbororé, às margens do rio Uruguai,
pelos índios. Na trama da disputa pela ocupação do território, os portugueses
fundam em 1680 a Colônia do Santíssimo Sacramento às margens do rio da
Prata, quase em frente à cidade de Buenos Aires e os jesuítas empreendem uma
nova investida no noroeste do território, entre Laguna (1686) e a Colônia do
Sacramento, fundando entre 1682-1706 os Sete Povos das Missões.
Localização das Missões Jesuítico-Guaranis na região do Rio da Prata
Extraído de Quevedo (2000: 19)
8
Antônio Manuel Hespanha no texto As estruturas políticas em Portugal na época moderna do livro
História de Portugal (2001) analisa o problema da utilização da categoria nacionalismo naquele
período e suas decorrências no que se refere a análise da expansão colonial ibérica, em oposição.
70
70
Com esta breve explanação
9
pretendo demonstrar que a questão da terra
no Rio Grande do Sul adquiriu uma conotação dramática ao longo do processo
histórico se constituindo em fronteira móvel na disputa de interesses conflitantes
entre as duas coroas. Durante o século XVIII são fundados e invadidos
sucessivamente vários postos avançados na tentativa de garantir a ocupação da
terra, tais como: as invasões à Colônia do Sacramento em 1680 e 1715, a
fundação de Montevidéo em 1726 pelos espanhóis e da fortaleza de Jesus Maria
José em Rio Grande, pelos portugueses em 1737 a fim de garantir a posse
portuguesa entre o Prata e Laguna
10
.
9
Esta síntese foi efetuada a partir dos textos que seguem. Para uma análise sintética e articulada
dos acontecimentos platinos, rio-grandenses e brasileiros consultei de Sandra Pesavento História
do Rio Grande do Sul (1990). Sobre a fundação de Buenos Aires e expansão portuguesa de Alice
Canabrava O comércio português no Rio da Prata (1580-1640) (1984) e Les hommes de la pampa
(2000). Sobre as Missões consultei de Júlio Quevedo Guerreiros e jesuítas na utopia do Prata
(2000).
10
A corrida á ocupação desta região foi detonada pela extensão do bispado do Rio de Janeiro até
o Rio da Prata pelo Papa Inocêncio IX em 1676, demonstrando a influência da igreja nos negócios
de ambas as metrópoles, tanto do lado castelhano com relação às Missões como do lado
português. A atuação da igreja nos territórios americanos estava regrada pelo Padroado Régio
acordo entre o papado e as coroas que garantia a manutenção e atuação dos cléricos, colocados a
serviço das monarquias através de uma contraparida das mesmas ao papado.
71
71
Em razão dessas disputas as coroas ibéricas selaram em 1750 o Tratado
de Madrid acordando a troca entre Sacramento e as Sete Missões. Troca a que os
índios aldeados resistiram entre 1754-56 na Guerra Guaranítica, sendo vencidos
pela comissão demarcatória de limites das duas coroas. Nos anos subseqüentes a
região foi alvo de mais dois tratados: El Pardo de 1761 e Santo Ildefonso de 1777,
sendo efetivamente incorporada ao domínio português em 1801. Em 1807 é
elevada à categoria de Capitania de São Pedro, sendo subordinado ao Vice-Rei
do Brasil. Este processo se deu paralelamente às concessões de sesmarias (lotes
de terras) aos colonos açorianos, pela coroa portuguesa, no sentido do litoral para
o interior, com o intuito de colonizar a região. No mesmo sentido a imigração
européia começa a ser fomentada ao longo de todo o século XIX.
Tratados. Extraído do livro de Sandra Pesavento História do Rio Grande do Sul
(1990: 25) apud Danilo Lazarotto História do Rio Grande do Sul
72
72
Porém, mesmo neste período, formalmente incorporada a coroa
portuguesa, a região do extremo sul novamente se encontra em foco. A partir de
1822 coincidindo com o processo de independência do Brasil a região da Banda
Oriental é disputada por brasileiros e argentinos num conflito sobre a posse da
Província Cisplatina que acabou originando a criação, em 1828, do Uruguai como
nação. Na década seguinte, entre 1835-1845, os charqueadores rio-grandenses
em busca de melhores preços para seu charque no mercado interno brasileiro,
frente ao charque platino menos taxado de impostos, se rebelam contra o Império
brasileiro, durante dez anos na Revolução Farroupilha. Após este período se
seguiram os conflitos referentes à Guerra do Paraguai (1865-1870), envolvendo
Brasil e Argentina igualmente utilizando de soldados rio-grandenses.
Ao pensar sobre o saldo desta história bélica, vale dizer que Revolução
Farroupilha (1835-1845) e a Guerra Guaranítica (1754-1756) foram guerras
perdidas ao passo que a Batalha de Mbororé (1640) e a Guerra do Paraguai
(1865-1870) foram disputas ganhas. No entanto, o imaginário em torno destes
conflitos no Rio Grande do Sul é expresso de forma diversa. Sobre a batalha de
Mbororé (relacionada à expulsão dos invasores paulistas pelos índios das
Missões) pouco se fala e a Guerra do Paraguai é percebida como um genocídio.
Mesmo assim, a Revolução Farroupilha que terminou em virtude de um acordo
com o Império brasileiro e a Guerra Guaranítica que ocasionou o massacre do
exército de índios guaranis são exaltadas como episódios de bravura dos
gaúchos.
Esta exaltação observada no gauchismo na atualidade começou a ocorrer
com a literatura regionalista
11
em que, além das representações literárias que
11
Flávio Loureiro Chaves em Matéria e Invenção (1994:12) traça um roteiro para se entendê-la no
Rio Grande do Sul. Ele considera Caldre e Fião como o patriarca da literatura gaúcha que, com a
publicação da Divina Pastora (1847), deu ingresso ao gaúcho na ficção brasileira, seguido por José
de Alencar (1870) quando é lançado O Gaúcho. A importância da recepção do trabalho de José de
Alencar é sentida no Rio Grande do Sul, segundo ele, através da utilização da temática adotada
por Apolinário Porto Alegre na publicação de O vaqueano (1872). Este foi um dos autores que fez
parte da sociedade Parthenon Literário criada em 1868 e que pode ser entendida como uma
associação que contempla a transição da figura do gaúcho para o plano ficcional, passando este
de tipo social excluído à ancestral histórico idealizado literariamente. Com o Parthenon Literário
são lançadas as bases do regionalismo sul-riograndense. A instituição congregava jovens letrados
que transmitiam seus ideais liberais, abolicionistas e nativista. No início do século XX uma
intensificação da temática do gaúcho com os trabalhos de Luis Araújo Filho, Alcides Maia e a
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73
remetem à figura do gaúcho neste período, ocorre o surgimento de entidades que
se propõem a cultuar suas tradições
12
. Ao traçar uma história do tradicionalismo,
Maciel (1994: 107-112) destaca a atuação de João Cezimbra Jacques, idealizador
da primeira entidade tradicionalista - o Grêmio Gaúcho - criado em Porto Alegre
em 1898, bem como a atuação de João Simões Lopes Neto na fundação da União
Gaúcha em Pelotas em 1899. Suas afirmões permitem assinalar a correlação
existente entre o movimento literário e o da fundação das primeiras entidades
tradicionalistas, já que estes dois agentes atuaram nos dois campos o que
tamm ocorrerá com tradicionalistas da geração de 47/48 como Paixão Cortes e
Barbosa Lessa.
A leitura dos textos de Cezimbra Jacques, Costumes do Rio Grande do Sul
(1883) e Assumptos do Rio Grande do Sul (1912) demonstram as relações que
estabelece com o estado portando-se ora como historiador, ora como folclorista e
ora como tradicionalista mentor e concretizador da primeira entidade no Rio
Grande do Sul destinada ao culto das tradições. Esta tripla relação tem por
objetivo justificar a necessidade de preservar as tradições e cultuá-las como
valores do passado no presente, ou seja, todo um esforço de sua parte no
sentido de produzir um convencimento da necessidade de se criar o
tradicionalismo.
O estatuto do Grêmio Gaúcho, artigo expressa essa relação: (...) e tem
por objetivo congregar seus associados para fins recreativos, culturais, esportivos
e, especialmente, cultivar as tradições gaúchas, inspirada na personalidade
inconfundível do ínclito Gal Bento Gonçalves da Silva. A relação com o passado
consolidação da literatura regionalista no Rio Grande do Sul com Simões Lopes Neto, Ramiro
Barcelos, Augusto Meyer seguido de Cyro Martins e Érico Veríssimo. Cada um desses autores
corresponde a momentos específicos e a visões peculiares acerca do gaúcho e de uma literatura
regionalista no conjunto de suas obras.
12
Uma história do culto às tradições gaúchas no Rio Grande do Sul remete especialmente a dois
momentos específicos: o final do século XIX quando surgem as primeiras entidades tradicionalistas
e a organização do tradicionalismo como movimento no Rio Grande do Sul a partir da metade do
século XX com a criação do 35 CTG em Porto Alegre em 1948. Para uma história detalhada do
tradicionalismo no Rio Grande do Sul consultar os já citados textos de Maciel e Oliven. Na visão de
João Carlos Paixão Cortes, um dos fundadores do movimento tradicionalista consultar: Origens do
tradicionalismo e da Semana Farroupilha. Bem como o texto do folclorista e tradicionalista Antonio
Augusto Fagundes Curso de Tradicionalismo Gaúcho (1995) e os cadernos do Instituto Gaúcho de
Tradição e Folclore n° 1 e 4.
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remete à necessidade de recuperação das características da figura mais
expressiva da Revolução Farroupilha (1835-1845), que passa a ser enfocado
como fato histórico de maior referência para o culto das tradições gaúchas. O
sentido seria recriar no presente, através de antigas tradições, a bravura e o arrojo
dos charqueadores farroupilhas que no passado desafiaram o império brasileiro.
Ruben Oliven em A parte e o todo: a diversidade cultural no Brasil-nação
(1992: 73) analisa o momento da criação do Grêmio Gaúcho assinalando a
ascensão política de Borges de Medeiros e do positivismo no Rio Grande do Sul
destacando, como características deste momento, a mentalidade modernizadora
que se forma e a idéia de federalismo radical, do que decorreria a pluralidade de
várias nações brasileiras com ampla autonomia e peculiaridades que percebo
como tendentes a afirmação de identidades regionais.
Neste conturbado contexto, a um só tempo, arraigado e modernizador,
interessa assinalar a visão de Cezimbra Jacques a respeito da necessidade de
recuperar o passado, do gaúcho a ser cultuado e de como as Missões são
mencionadas por ele nos seus escritos, em que percebo a elaboração de um
esboço para a utilização do passado no presente atingindo a história, o meio, a
população, a fauna, os usos e costumes, numa declarada exaltação ao Rio
Grande, utilizada como justificativa de sua preservação e culto.
A idéia de cultivar as tradições gaúchas a partir da personalidade de Bento
Gonçalves, com a escolha de um momento da história recente como base para o
seu culto implica assinalar que a concepção de tradição de Cezimbra Jacques
dialoga com projeto modernizador que se desenvolve neste momento no estado.
E, nesse sentido, deve responder às suas necessidades presentes
correspondentes à criação de percepção da força de um passado, capaz de, por
seu poder aglutinador, em torno do ideal republicano, conduzir ao futuro. Assim,
os heróis exaltados, como ocorrerá com Sepé Tiaraju, devem ser portadores desta
força impulsionadora.
Anne-Marie Thiesse em Ils apprenaient la France: lexaltation des régions
dans le discour patriotique (1997: 114) ao discutir a questão da exaltação do
regional, num contexto de afirmação do nacionalismo, diz que o voluntarismo na
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celebração das tradições procura impor a imagem consensual da comunidade
nacional através do culto pacífico da diversidade, que tem por finalidade fornecer
às novas gerações uma cultura declarada sadia, mas obsoleta, por oposição a
uma modernidade cosmopolita. A atuação de Jacques se inscreve, enquanto
membro promotor da diversidade gaúcha, elencar as tradições a serem cultuadas.
Sua concepção de tradição, no sentido de explorar o passado que conduzirá ao
futuro, pode ser pensada a partir das colocações de Gerard Lenclud no texto
Quest-ce la tradition? do livro organizado por Marcel Detienne Transcrire les
mythologies, tradition, écriture, hisoricité (1994).
O autor se propõe pensar o termo tradição a partir da sua relação
problemática entre suas categorias e a história, no sentido de que uma tradição é
uma resposta encontrada no passado a uma questão formulada no presente
(1994: 33). Nesta percepção dinâmica do termo em consonância com as
interpretações de Paul Ricouer em Temps et récit 3 a tradição é proveniente de
uma troca entre o passado interpretado e o presente interpretante (1985: 400).
Assim, o passado é reconhecido por uma leitura necessariamente discriminatória
e a tradição é instituída pela visão que se tem dele. O passado apresenta os
materiais, ou as formas nobres a serem utilizadas como se aprouver no presente
(Lenclud: 1994, 33).
É neste sentido que se pode pensar as referências de Jacques às Missões.
Numa dialética entre o passado e o seu presente tendendo a buscar, ao recontar a
história, tradições a serem cultuadas e heróis inspiradores para o movimento
tradicionalista nascente. Na introdução do texto Costumes do Rio Grande do Sul
publicado em 1883 Jacques, após falar dos primeiros habitantes, aborda a
ocupação espanhola do estado e a construção das Missões:
Sob uma espécie de forma de governo teocrático e debaixo de uma
escravidão indireta dirigiam os jesuítas os seus índios, não nestes
povos como nas Missões do Paraguai e em outras da América
Meridional. Para tal fim adotaram a seguinte disposição: cada aldeia
contava de uma suntuosa igreja bem ornada, podendo conter grande
número de pessoas, tendo, de um lado grandes salas onde ficavam as
oficinas, as escolas e as residências desses sacerdotes e de outro um
imenso cemitério. Por detrás da igreja e do cemitério achava-se um
grande jardim e um vastíssimo pomar; na frente existiam três galerias
simétricas em forma de quartéis e repartidas em salas onde habitavam os
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índios com suas famílias. Por habilidade, os jesuítas conservavam em
cada tribo submetida os seus caciques ou chefes, e eram esses que,
debaixo de suas ordens, tomavam a direção dos demais índios.
(Jacques:1883, 23).
O autor efetua a caracterização dos povoados, através da utilização de
categorias que descrevem a atuação dos jesuítas na manutenção da catequese
indígena para o funcionamento dos mesmos. A escolha das categorias demonstra
seu imaginário acerca da experiência protagonizada nas Missões (uma teocracia
comum à experiência missioneira como um todo). Inscreve a fundação dos Sete
Povos na segunda fase da atuação jesuítica no Rio Grande do Sul, no contexto
dos 30 (trinta) povoados platinos, relacionando a submissão indígena e o êxito das
Missões à habilidade jesuítica no aproveitamento dessas lideranças, colocadas a
seu serviço. Ao longo do texto, no entanto, aparecem equívocos.
13
Sobre a desestruturação das Missões o autor menciona razões econômicas
de desvio de dinheiro pelos jesuítas lesando a coroa espanhola, que
representavam, causando o excesso de trabalho aos índios (Jacques: 1883, 24). A
desconfiança de que os jesuítas quisessem fazer das Missões um estado
independente teria ocasionado o Tratado de Madrid de 1750 e a Guerra
Guaranítica (1754-1756) em oposição à troca proposta pelo tratado entre as
Missões e a Colônia do Sacramento. Com relação a este episódio Jacques elogia
a atuação dos jesuítas e a bravura dos índios:
Conquanto evitassem os chefes dessa comissão, para a realização para
o fim a que se propunham, fazer a guerra e debater-se contra tropas
aguerridas de índios mal armados, quase sem disciplina e dirigidos por
caciques ignorantes, não houve meios de consegui-lo: a indignação dos
índios e dos padres, nestes casos muito justa tinha tocado a meta. Eles
se bateram muitas vezes contra os aliados, resultando em um dos
encontros, ao de Santa Tecla, a morte a um dos mais bravos chefes
13
A respeito do momento da fundação dos povoados de São Nicolau, São Miguel e São Luiz
Gonzaga fundados em 1687 Jacques menciona como fundados em 1627 e 1632. A questão da
confusão das datas insere esses três importantes povoados do segundo ciclo, num momento
anterior a 1641, quando as Missões ainda não eram consideradas como Guarnição de Fronteira da
coroa espanhola, segundo Aurélio Porto em História das Missões Orientais do Uruguai v.IV
(1954:14) esta foi uma das razões pelas quais os primeiros povoados foram destruídos pelos
bandeirantes paulistas. As relações entre os jesuítas a serviço da coroa espanhola e os
bandeirantes portugueses é negligenciada por Jacques, bem como o contexto da própria fundação
e expansão da última fase missionária na América Platina, onde se inscreve a fundação dos Sete
Povos.
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indígenas, o índio Sepé Tiarajú, além de outros e a entrada das Missões
em 1755 das forças portuguesas e espanholas. (Jacques:1883, 25).
A narrativa do autor sobre a atuação luso-hispânica contra os índios
missioneiros ressalta a bondade da comissão demarcatória de limites e a visão
da inferioridade da atuação indígena aliada aos padres jesuítas. Jacques destaca
a morte de Sepé Tiarajú como marco da derrota missioneira, ocasionando a
ocupação dos Sete Povos, o que explícita a razão das observações sobre as
Missões. A referência a Sepé pretende criar um herói a ser cultuado pelo
tradicionalismo nascente e o autor utiliza, para ilustrar o ocorrido, alguns
fragmentos de O Uraguai de Basílio da Gama. A escolha desse poema demonstra,
como em outros trechos de seus escritos, a questão da necessidade da exaltação
dos valores do gaúcho, mesmo que nesse período o Rio Grande do Sul ainda não
pudesse ser pensado, enquanto espaço, como tal.
A visão de Jacques sobre as Missões e sobre a Guerra Guaranítica, cuja
argumentação é construída através de uma defesa do índio apresado e
catequizado pelos jesuítas, apresenta contradições. Em alguns momentos ele
parece fazer a defesa da ocupação portuguesa no Rio Grande do Sul, negando a
importância da atuação jesuítica. Em outros, no entanto, elogia a obra civilizatória
construída nas Missões, especialmente quando aborda a herança cristã dos
guaranis de seu tempo nos Assumptos do Rio Grande do Sul (1912: 74-75). Os
seus escritos expressam a relação que ele estabelece entre as Missões e a figura
do gaúcho como um emblema do passado a ser cultuado, apesar dos problemas
que possa ensejar ao ser identificado com a ocupação hispânica do Rio Grande
do Sul.
As contradições das apropriações que Jacques efetua podem se referir às
próprias fontes que utiliza para exaltar as Missões. Este é o caso do poema O
Uruguay [1769] - um marco da poesia épica portuguesa. Basílio da Gama,
segundo Clenir Oliveira em Arte Literária (s/d:129) escreveu O Uruguay com um
tom marcadamente anti-jesuítico e exaltadador do Despotismo Esclarecido do
Marques de Pombal de quem Basílio da Gama era protegido. Ao escolher o
poema para falar da morte de Sepé Tiaraju e das Missões e ao utilizá-lo para
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exaltar a figura de Sepé Tiaraju e abordar a Guerra Guaranítica Jacques ([1883]:
25-33 apud Gama [1769]: 32) sublima essas contradições e aproveita os valores
universais utilizados por Gama na representação figura de Sepé, tais como a
altivez e a luta pela liberdade, que Jacques tamm utilizará na construção do
gaúcho como figura mítica.
A idéia de gaúcho de Jacques está exposta na terceira parte do livro
Costumes do Rio Grande do Sul [1883] dedicada à população. Para falar do
gaúcho desde o seu estado mais rudimentar ([1883]: 56) ele utiliza os escritos do
viajante Nicolau Dreys, Notícia descritiva da Província de Rio Grande de São
Pedro do Sul de 1839 ([1839]1990: 122-125), efetuando, posteriormente sua
definição do gaúcho do século XIX e o relacionando-o ao gaúcho primitivo:
Tal era pois o gaúcho dessas épocas primitivas, porém hoje, conquanto o
sentido dessa palavra tenha ainda na verdade alguma coisa de comum
com o seu significado de outrora, se estende ela não aqui como nas
repúblicas do Prata, a todo o habitante das campinas; do que resulta um
sentido mais alto. Acontecendo em geral como já vimos, que esses
camponeses são naturalmente dotados de muitos nobres sentimentos, de
certa agilidade e robustez física, segue-se que o ser-se bom cavaleiro,
sabendo manejar o cavalo, o laço e as bolas, a lança e a espada e não
recusar-se antes os perigos; encarar os trabalhos e os revezes da sorte
com indiferença, prezar-se a palavra uma vez dada; dizer-se seja para
quem for o que se sente com franqueza (...) ser enfim um homem para o
que se costuma dizer, para o que se ofereça, eis o verdadeiro gaúcho.
De sorte que esta palavra hoje é tomada como sinônimo de cavalheiro;
portanto dizer-se que um homem dos pampas é um verdadeiro gaúcho,
importa dizer que é um perfeito cavalheiro. (Jacques: 1883, 59).
Jacques efetua a relação do passado com o presente através da ampliação
de sentido que confere ao termo gaúcho, cujo fio condutor é a permanência do
tipo humano campesino nas regiões do Prata e de alguns de seus hábitos
tradicionais. Ao precisar a ampliação de sentido do termo providencia a recriação
do gaúcho no plano do imaginário, atribuindo-lhe características universais a que
deve se adaptar essa figura forjada a partir desse tipo regional. A relação entre o
moderno e o tradicional se expressa na composição que Jacques efetua do
cavaleiro com o cavalheiro, colocando em evidência valores como honra,
honestidade, prudência, presteza, solidariedade e hospitalidade como
características indispensáveis ao gaúcho presente do seu tempo.
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A criação e existência do gaúcho como figura cultuada seria o elemento
garantidor da afirmação e desenvolvimento do Rio Grande do Sul de seu tempo
remetendo a tradições passadas e afirmando identidades regionais, tendo como
referente um passado pasteurizado. Assim, para ser o gaúcho cavalheiro ligado ao
progresso global é necessário remeter a um passado de cavaleiro regional e
cultuá-lo. um planejamento para reviver o passado expresso nos Assumptos
do Rio Grande do Sul (1912), desenvolvido por Jacques ao abordar o papel a ser
desempenhado pelo Grêmio Gaúcho:
As relíquias do passado dividem-se em dois grupos: o primeiro consta de
actos os quaes cumpre conservar escriptos na memória e no coração em
estado latente para reproduzirmos nas nossas comemorações por meio
da palavra e de actos e o segundo consta dos ditos artefactos e
utensílios ou instrumentos do passado, os quaes não só relembram os
actos como podem servir para auxiliar as reproduções destes nas nossas
festas comemorativas. (48/9).
E não diga que são esporádicos os factos que acabamos de citar, porque
vemos em todos os póvos com mais ou menos intensidade a nobre
tendência e louvável preocupação de reviver o passado. (53)
É uma lei de sociologia a volta consciente para o ponto de partida de que
os povos saem inconscientes (Jacques: 1912, 54).
É nessa perspectiva que o autor efetua a busca das origens do cavaleiro
para elaborar a figura do gaúcho a ser exaltado nas entidades tradicionalistas que
surgiram neste período. Retoma as Missões, com o intuito de situar a origem do
gaúcho, preocupando-se em integrar o passado como herança, percebendo seus
traços e sua responsabilidade na formação do gaúcho: Os guaranis das Missões,
hoje quase assimilados à raça branca, têm uma parte bem saliente na fama de
que goza a cavalaria sul-rio-grandense
(1912:77). Em nota sobre o gaúcho,
Jacques integra o índio na formação da figura criada relacionando seu surgimento
com as Missões:
Além de ser o gaúcho sul-rio-grandense como o platino, em parte uma
cruza do índio guarani das Missões, de além e de aquém do rio Uruguay
com o elemento branco ibérico é o da República Oriental do Uruguay e o
Sul-rio-grandense também em parte uma cruza do mesmo ibérico uma
cruza com os índios Charruas e Minuanos, (195).
De acordo com Jacques, as Missões passam a fornecer uma origem
histórica e mítica para o gaúcho platino. Ele se apropria da mescla a que as
Missões deram origem e sublima as contradições do Rio Grande do Sul ter
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pertencido a Espanha antes de ser português e a própria questão da escravidão
indígena que anteriormente menciona. Elege as Missões como experiência
referencial ao surgimento do gaúcho, por valorizar seu conteúdo místico o ser
missioneiro: jesuítico/guarani como um dos elementos produtores desse bravo
errante das coxilhas e da pampa que é criado como mito no século XIX, já com as
condições e planejamento para ser exaltado.
Além das Missões, Jacques efetua a lintegração do índio à figura do gaúcho
no plano do imaginário, na composição de sua figura mitológica, sem mencionar a
dizimação dos Charruas, Guaranis e Minuanos protagonizada pelo elemento
ibérico ao longo do processo histórico nessas regiões. Assim, atribuo a escolha
das Missões, por Jacques, como mito de origem do gaúcho a força/potencialidade
engendrada pela mescla jesuítico-guarani com que representa o ser missioneiro e
o gaúcho como seu descendente híbrido. O passado missioneiro fornece um elo
de ligação com o presente porque comporta os valores universais de liberdade,
apego a terra e bravura com que Jacques deseja, como destaquei, identificar a
figura do gaúcho a ser cultuada. Trata-se aqui da percepção de Jacques da
possibilidade da eficácia ideológica da utilização do passado missioneiro como
mito, conforme se refere Claude Lévi-Strauss, no texto História e Dialética ao
abordar a questão a interiorização da história como mito (1997: 283) .
Os escritos de Jacques e sua atuação se constituem em referencial
importante no universo tradicionalista onde foi escolhido, posteriormente, como
patrono e em que continua sendo reverenciado na atualidade.
14
No entanto, o
movimento iniciado por ele teve vida efêmera, após a saída de Jacques do Rio
14
O 47° Congresso Tradicionalista de Caxias do Sul ocorrido entre os dias 11 e 13 de janeiro de
2001 no teatro de lona da Universidade de Caxias do Sul teve como uma das principais polêmicas
o local de acendimento da chama crioula com duas propostas de locais: a de São José do Norte
defendida por Elma SantAna (conhecida comunicadora e escritora regionalista, criadora e
coordenadora do grupo de mulheres cavaleiras As Anitas), homenageando a Revolução
Farroupilha e a proposta de Santa Maria defendida pelo secretário de cultura do município Orlando
Fonseca (conhecido intelectual e literato) para homenagear João Cezimbra Jacques. Após uma
longa discussão com apoios e manifestações de todo o estado foi selado um acordo entre ambos,
demonstrando a abertura e parceria do MTG com outros comemoradores e a relação que
estabelecem com o passado histórico do Rio Grande do Sul e com o seu próprio passado
enquanto movimento. O debate demonstra que o tradicionalismo produz seus próprios mitos
(Cezimbra Jacques, por exemplo, em mais esta homenagem), ocorrendo um distanciamento do
passado histórico do Rio Grande do Sul, cuja celebração norteou sua estruturação
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81
Grande do Sul e sua morte no Rio de Janeiro.
15
O culto às tradições gaúchas
se efetivou a partir da estruturação do tradicionalismo como movimento
organizado a partir de 1948 quando os escritos de Jacques passam a se constituír
em fonte para as
pesquisas dos mentores desta fase, sendo tamm percebidos
na construção de representações entre os tradicionalistas da atualidade, em suas
festas e concursos.
3 - O Movimento Tradicionalista Gaúcho
Um dos marcos da criação do tradicionalismo como movimento é a
fundação do 35 CTG, em Porto Alegre no ano de 1948, por alguns jovens do
interior do estado que faziam seus estudos na capital. A criação deste movimento
cultural que mudou os rumos da exaltação da figura do gaúcho dentro e fora do
estado é percebida pelos próprios tradicionalistas fundadores (Paixão Cortes
1994: 38) como uma espécie de reação à entrada da cultura norte-americana e
seus produtos no estado, como conseqüência da ascensão dos Estados Unidos
da América, no pós-guerra. Oliven sistematiza os primeiros momentos do
tradicionalismo no Rio Grande do Sul:
A criação do 35 é precedida pela fundação, em 1947, pelos mesmos
jovens, do Departamento de Tradições Gaúchas do Grêmio Estudantil do
Colégio Estadual Júlio de Castilhos, à época considerado colégio público
padrão e onde a maioria deles estudava. Eles organizaram a primeira
Ronda Gaúcha (hoje Semana Farroupilha), que se desenrolou de 7 a 30
de setembro daquele ano. Tomando uma centelha do fogo simbólico da
Pira da Pátria antes de sua extinção às 24 horas do dia 7 de setembro,
transportaram-na até o saguão do Colégio lio de Castilhos onde
acenderam a Chama Crioula num candeeiro de galpão.(Oliven: 1992;
74).
16
15
Sobre o término desta primeira fase tradicionalista Fagundes (1995: 40), partindo de uma visão
essencialista da veracidade da apropriação das tradições, alega que o gaúcho e seus hábitos
permaneciam ainda vivos, esquecendo-se de que muitos desses costumes e vestimentas foram
reinventados pelos tradicionalistas, sendo a reatualização dos mesmos uma das características do
próprio tradicionalismo como movimento, conforme destacado por Maciel (1994, 102).
16
O site do MTG destaca como datas principais de sua constituição: *24 de abril de 1948, marca o
início da trajetória histórica do tradicionalismo organizado, ocasião em que um grupo de jovens,
com espírito cívico aguçado, fundou o 35 Centro de Tradições Gaúchas, em Porto Alegre,
motivando a proliferação de inúmeros outros núcleos de preservação da tradição gaúcha; *1° a 4
de julho de 1954, é arregimentado a partir do Congresso Tradicionalista, em Santa Maria, onde
aconteceu a reflexão sobre a importância do tradicionalismo, com a aprovação da tese O sentido
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82
O período inicial de 1947/48 demonstra a tentativa de criação de espaços e
momentos específicos para o culto das tradições gaúchas e valorização do
regional num cenário eminentemente urbano, através de demonstrações de
civismo reverenciando os símbolos da alma regional, baseados no conhecimento
e nas referências que dispunham do passado. um projeto para a identificação
coletiva dos gaúchos e de afirmação do regionalismo. Lessa (1985; 58) define a
atuação do seu grupo enfocando a encarnação da figura do gaúcho passado no
presente, através de suas tradições. O desejo de exaltar o regional, recriando o
gaúcho nas suas vestes, habitat, trabalho, alimentação, lazer assemelha-se à
referência de Anne-Marie Thiesse aos projetos de elaboração simbólica e material,
visando à construção coletiva das identidades nacionais. Segundo a autora:
Hoje podemos estabelecer a lista dos elementos simbólicos e materiais
que uma nação digna deste nome deve apresentar: uma história que
estabeleça uma continuidade com os ilustres antepassados, uma série de
heróis modelos das virtudes nacionais, uma língua, monumentos
culturais, um folclore, locais eleitos e uma paisagem típica, uma
determinada mentalidade, representações oficiais hino e bandeira e
identificações pitorescas trajes, especialidades culinárias ou um animal
emblemático. (Thiesse: 2000, 19).
Os tradicionalistas tiveram esta preocupação simbólica e material na
construção coletiva das identidades regionais. Analisando as características do
tradicionalismo como um movimento cultural, fica nítido o esforço de criação de
mbolos que os identificam, como sinais diacríticos e que possibilitam caracterizar
o próprio tradicionalismo como movimento. A autora se refere à elaboração de um
universo peculiar que justifique a celebração de um lugar e um tempo originário
dos quais é preciso mostrar ao mundo e às demais nações suas características.
e o Valor do Tradicionalismo, de Luiz Carlos Barbosa Lessa;*17 a 20 de dezembro de 1959, é
institucionalizado em Cachoeira do Sul com a criação do Conselho Coordenador, durante o VI
Congresso Tradicionalista, bem como João Cezimbra Jacques foi escolhido Patrono do
Tradicionalismo em 28 de outubro de 1966, em Tramandaí, por ocasião do XII Congresso
Tradicionalista, foi oficialmente criado o MOVIMENTO TRADICIONALISTA GAÚCHO, como
entidade federativa e com personalidade jurídica. Nesta mesma data foi adotado o Brasão de
Armas do Tradicionalismo, que constitui-se atualmente na logomarca do MTG. (www.mtg.org.br).
83
83
Ou seja, um projeto de construção de uma nação se justifica na necessidade de
diferenciação por experiências comuns vivenciadas, por costumes, etc.
Neste sentido, os tradicionalistas de 1947/48 e o próprio Cezimbra Jacques
preocuparam-se em justificar a necessidade de criação do
tradicionalismo para
mostrar e celebrar o Rio Grande como um lugar ímpar com relação ao restante do
Brasil. O processo de criação desses elementos é perceptível na expressão de
Barbosa Lessa ao comentar a finalidade do 35 CTG:
O centro terá por finalidade zelar pelas tradições do Rio Grande do Sul,
sua história, suas lendas canções, costumes... Os costumes, o linguajar,
a maneira de encilhar um pingo e sair galopando, isso nós sabíamos.
Mas quanto ao mais o assunto ia se tornando complexo. História é uma
ciência social muito séria e não éramos historiadores; e história não se
inventa. Folclore é uma ciência social muito séria, e não éramos
folcloristas; e Folclore não se inventa (...).
Mas éramos tradicionalistas. Gente mantendo ativamente aspectos do
passado, com vistas ao futuro. Quando algum elemento faltasse para a
nossa ação nós teríamos de suprir a lacuna de um jeito ou de outro.
(Lessa: 1985, 64).
Da lista de elementos materiais e simbólicos descrita por Thiesse,
necessários para a construção de uma nação, todos podem ser encontrados no
tradicionalismo
17
, cuja base de atuação se cinge a ressaltar o Rio Grande do Sul
como um espaço privilegiado, construído a partir da bravura de homens que
lutaram pela terra e por seus ideais, tentando demonstrar em suas atividades um
passado glorioso com que se comunicam através da produção de representações
sobre momentos marcantes do processo histórico sulino.
Por outro lado, nem todos os elementos do kit-tradicionalista para a
construção da alma regional foram inventados, ocorrendo o aproveitamento da
paisagem épica - o pampa, do cavalo como animal emblemático, o chimarrão
como bebida e do churrasco como prato típico. Uma questão importante é que o
movimento tradicionalista além de possuir elementos materiais e imateriais para
17
A criação de um linguajar pode ser exemplificada nos comentários de Barbosa Leesa: Assim, por
exemplo, qual o adjetivo que daríamos a nós mesmos quando estivéssemos vestidos à gaúcha?
Alguém sugeriu aperado. Mas apero é roupa de cavalo o termo não ficava bem. Então na ata de
8 de maio de 1948 o secretário Antônio Cândido se lembrou que pilcha é dinheiro ou objeto de uso
pessoal que possa ter um valor pecuniário. Vamos oferecer ao patrão de honra Paixão um
churrasco ao qual a indiada deve vir toda pilchada. E esse invento colou! (Lessa: 1985, 64).
84
84
forjar a alma regional, os re-atualiza e agrega a estes novos elementos em suas
atividades como parte da dinâmica de seu desenvolvimento e manutenção.
18
A criação de monumentos culturais é outro aspecto presente entre os
tradicionalistas. A estátua do laçador representação de um gaúcho peão de
estância - em Porto Alegre se insere na questão da exaltação do regional a que se
agregam tamm elementos que se aproximam do gaúcho como figura
representacional. Este é o caso do monumento ao colono em Caxias do Sul,
conforme Teixeira (1988; 64) e dos monumentos a Sepé Tiaraju em Santo Ângelo,
bem como das próprias ruínas de São Miguel das Missões de que se apropriam os
tradicionalistas em suas representações.
A relação que estabelecem com o folclore e a história é igualmente
importante, pois é deles que extraem material para suas representações, já que os
tradicionalistas se consideram herdeiros de seus antepassados e se propõem a
continuar uma história gloriosa ao se identificarem e produzirem representações
do verdadeiro gaúcho em suas danças, cantos, poesias, desfiles bailes,
cavalgadas, por exemplo. Assim se referem ao movimento como um espaço que
preserva valores deste passado como a honra, a família, a honestidade, a palavra
dada como empenhada, retratadas ao mencionar falas de heróis, nas cores dos
lenços visando estabelecer uma continuidade com antepassados ilustres.
Os antepassados cultuados pelos tradicionalistas e o processo histórico em
que se inserem os mesmos é um passado de lutas como a Guerra Guaranítica
(1754-1756) e a Revolução Farroupilha (1835-1845). O principal modelo de virtude
18
Em novembro de 2002 a Mostra de Arte Tradicionalista (um concurso realizado entre as 30
RTs sobre um aspecto da cultura gaúcha designado pelo MTG) que ocorre conjuntamente ao
Encontro de Arte e Tradição Gaúcha ENART em Santa Cruz do Sul teve como tema a culinária
gaúcha. A promoção por parte do MTG deste tipo de evento, no meu entendimento, não tem
apenas o objetivo de divulgar as tradições, mas sobretudo de possibilitar a criação de novas
tradições e incorporação de novos elementos para re-atualização do típico. Ao visitar a Mostra
constatei que a maior parte das regiões tradicionalistas apresentou em seus stands o grostoli
(biscoito trazido pelos imigrantes alemães) tamm conhecido como cueca virada, como uma
contribuição da imigração à culinária gaúcha. Não cabe falar em falsidade ou veracidade dessas
representações, sendo possível apenas dizer que um esforço de integração, uma tentativa de
agregação por parte do movimento tradicionalista na ampliação de seus limites, buscando sempre
novos adeptos. Ser tradicionalista exige participar ativamente de um número cada vez maior de
atividades, estar inserido não bastando conhecer certos aspectos da cultura gaúcha e possuir os
trajes típicos, mas estar a par das novas tendências que surgem em seu interior.
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cultuado pelos tradicionalistas é o do homem guerreiro. No entanto os momentos
passados de afirmação destas virtudes são repletos de contradições. As lutas de
que estes heróis participaram foram momentos de crise de identidade ou de perda
de condições de formular/reformular identidades envolvendo disputas territoriais e
de fronteira, ou seja, na Guerra Guaranítica o que estava em jogo era o próprio
pertencimento do território colonial do atual estado do Rio Grande do Sul
possessão hispânica que passa a ser uma possessão colonial de Portugal. O
herói ressaltado Sepé Tiaraju é um índio que se opõe ao acordo entre as duas
metrópoles. Um índio cristianizado de identificação nebulosa. Nem espanhol,
nem
português tampouco guarani. É missioneiro, um revolucionário cuja atuação
lendária contrariaria as próprias disposições da Companhia de Jesus. Por seu
turno, Bento Gonçalves da Silva é também um revolucionário que lutou pela
valorização econômica do charque sulino frente às vantagens imperiais conferidas
ao charque platino.
O fato de exaltar estes heróis, por si só, poderia levar a caracterização do
movimento tradicionalista como um espaço separatista e revolucionário. Porém, as
observações realizadas nos trabalhos de campo demonstraram justamente o
contrário. Embora o tradicionalismo seja um movimento de afirmação do regional,
não é possível caracterizá-lo como separatista ou de oposição ao nacional. Uma
das pistas para elucidação desta questão está na forma de apropriação efetuada
pelos tradicionalistas da figura desses heróis. Uma recriação que não é integral,
no momento/circunstâncias em que ocorrem as apropriações, bem como sua
dinâmica e objetivos a que se propõe a menção ao passado. A apropriação não se
em razão do ato revolucionário, ou mesmo da atuação do herói, mas pela
simbologia contida na
menção que é uma comemoração, anulando contradições
em que o passado sofre uma espécie de pasteurização no cenário tradicionalista.
O processo de elaboração simbólica do movimento tradicionalista gaúcho e
as identidades regionais que gera com a criação incessante de datas e símbolos
que o representam alude à força de uma região dentro da nação que,
simbolicamente ao exaltar o regional elabora uma proposta completa de alma
nacional, reivindicando valores universais, como se pode notar nos textos de
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Cezimbra Jacques ao mostrar o gaúcho como um cavalheiro, bem como na
própria Carta de Princípios do Movimento Tradicionalista Gaúcho, tese
apresentada por Barbosa Lessa no I Congresso Tradicionalista de Santa Maria em
1954, reconhecida pelos tradicionalistas como fundamento filosófico do
movimento:
Através da atividade artística, literária, recreativa ou esportiva, que o
caracteriza sempre realçando os motivos tradicionais do Rio Grande do
Sul o tradicionalismo procura, mais que tudo, reforçar o núcleo da
cultura rio-grandense, tendo em vista o indivíduo que tateia sem rumo e
sem apoio dentro do caos de nossa época.
E, através dos Centros de Tradições, o tradicionalismo procura entregar
ao indivíduo uma agremiação com as mesmas características do grupo
local que ele perdeu ou teme perder: o pago. Mais que o seu pago, o
pago das gerações que o precederam. (Lessa in www.mtg.org.br)
O reforço à cultura rio-grandense pode ser entendido como o empenho na
criação de uma alma regional a ser cultuada através das mais variadas
atividades tradicionalistas, numa unidade que reproduziria as características de
origem do gaúcho. Esta mentalidade tradicionalista tendente à criação da alma
regional através do culto as tradições gaúchas se baseia em valores universais,
cujo maior expoente é a realização do bem coletivo
19
que justifica sua atuação de
fortalecimento do núcleo cultural. No imaginário tradicionalista os problemas
enfrentados pela sociedade no presente e futuro teriam como aliado o
tradicionalismo, baseado no retorno ao passado via culto das tradições. Daí sua
preocupação em produzir sinais diacríticos que os identifique através de atividades
que expressam: o imaginário/mentalidade tradicionalista citado e um esforço para
criação de um imaginário convencimento, buscando a adesão de novos
membros, mas principalmente o seu próprio reforço como movimento, com o
intuito de provar a essência e a autenticidade que suas representações
expressam.
As narrativas tradicionalistas podem ser percebidas na observação de suas
atividades artísticas, campeiras e culturais (designação dada pelos tradicionalistas
às provas de conhecimento gerais a que se submetem os peões e prendas nos
19
Tradicionalismo é o movimento popular que visa auxiliar o Estado na consecução do bem
coletivo, através de ações que o povo pratica (mesmo que não se aperceba de tal finalidade) com
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concursos, bem como para atividades afins, tais como palestras e seminários)
desenvolvidas pela promoção de eventos oficiais anuais que são: O Congresso
Tradicionalista, A Festa Campeira do Rio Grande do Sul (FECARS), o Concurso
de Peão e Guri Farroupilha, o Concurso Estadual de Prendas, a Convenção
Tradicionalista a Semana Farroupilha e o Encontro de Arte e Tradição Gaúcha
(ENART).
Excetuados o Congresso
20
e a Convenção Tradicionalista que definem os
rumos jurídicos e filosóficos do movimento, bem com a Semana Farroupilha que
se constitui em um evento especial de celebração do culto às tradições gaúchas
que extrapola as dimensões do próprio MTG, os demais eventos se constituem em
concursos de atividades campeiras (FECARS) que ocorrem em março em locais
deliberados pela Convenção Tradicionalista, concursos artísticos (ENART) que
ocorrem em novembro em Santa Cruz do Sul e os concursos de Prenda (maio) e
Guri e Peão Farroupilha na localidade dos detentores adultos do título, envolvendo
atividades artísticas, culturais e campeiras, no caso dos peões e guris.
Os eventos estaduais acima referidos que estão previstos no calendário
oficial do MTG envolvem um universo de pessoas e atividades muito variadas em
diferentes locais do estado do Rio Grande do Sul. É importante ressaltar que estes
são promovidos pelo MTG como instituição coordenadora das entidades filiadas.
Cada entidade, porém, desenvolve e/ou participa de cada um desses eventos em
seu interior como forma de participar dos eventos a nível regional (na região
tradicionalista RT - de que faz parte) e estadual - os promovidos pelo MTG,
o fim de reforçar o núcleo de sua cultura: graças ao que a coletividade adquire maior tranqüilidade
na vida comum. (Lessa in www.mtg.org.br)
20
O Congresso Tradicionalista ocorre anualmente em janeiro e tem por objetivo discutir os temas e
polêmicas do tradicionalismo que marcaram o ano anterior e influenciaram o seu rumo como
movimento tanto em questões definidas pelos tradicionalistas como filosóficas quanto questões
técnicas. Essas questões são decididas em assembléias em que participam, através da
apresentação de proposições e defesas de teses, os patrões, coordenadores e demais
tradicionalistas as quais são votadas pelos delegados do congresso que representam as RTs. No
congresso é eleita anualmente a diretoria do MTG, sendo apresentado um relatório e prestação de
contas das atividades desenvolvidas pela gestão anterior. A elaboração de normas para
regulamentação interna do MTG e suas atividades são elaboradas nas Convenções
Tradicionalistas Ordinária (anual) e Extraordinária(s). Segundo os tradicionalistas este duplo fórum,
além das reuniões do Conselho Diretor do MTG, se deve a constante participação dos seus
membros e a necessidade de aprimoramento do movimento. A questão subjacente é a modificação
nos regulamentos dos concursos e na polêmica que causam.
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especialmente no caso dos concursos citados que, segundo seus regulamentos,
são eliminatórios e classificatórios.
O objetivo desta estrutura é reproduzir em escala local e regional os
eventos estaduais, formando uma rede cada vez maior do universo tradicionalista
com lideranças representativas como os patrões dos CTGs, as prendas e peões
que os representam, os coordenadores regionais, os conselheiros do MTG
(escolhidos nas RTs) e demais componentes de sua diretoria.
Cada uma das atividades oficiais congrega de forma diversa um universo
cada vez maior de pessoas que abrange além dos participantes citados, inseridos
nas entidades e regiões tradicionalistas, familiares, maquiadores, cozinheiros,
costureiros, etc, um grande público que assiste a apresentações e concursos,
participa dos bailes destes eventos e ainda comerciantes de artigos variados:
comida e bebidas, indumentária, arreamento, livros, CDs, jornais. Enfim, artigos
que extrapolam o próprio culto às tradições gaúchas e que visam tamm atingir o
público participante dos mesmos.
As representações produzidas nos eventos oficiais permitem vislumbrar as
relações estabelecidas com o passado como parte de um imaginário
tradicionalista que remete a episódios e a personagens como forma de afirmar a
coesão grupal e de mitificar momentos com que a memória popular tradicionalista
se sente de certa forma em dívida. Nestas atividades se expressam os princípios
e a ideologia que regem o movimento, perpassados pelos discursos e concepções
de seus fundadores como Cezimbra Jacques e Barbosa Lessa que apresentei ao
longo do presente capítulo, com o intuito de demonstrar como as Missões foram
integradas ao tradicionalismo, como mito de origem do gaúcho ao longo de sua
história.
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CAPÍTULO 3
As representações do passado missioneiro no Gauchismo
Desejo apresentar neste capítulo algumas narrativas acerca do passado
missioneiro no Rio Grande do Sul, percebidas nas atividades do gauchismo, na
atualidade relacionadas ao projeto histórico, abordados no capítulo anterior, da
construção desses movimentos (tradicionalista gaúcho e musical nativista) que
focalizam a figura do gaúcho em relação à experiência missioneira, integrada a
sua construção através da produção de diversas representações que, ao
interpretar este passado, o comemoram ou se expressam em dívida.
1- Semana Farroupilha: desfile e o acampamento do Parque Harmonia
No cenário tradicionalista da atualidade presenciei referências às Missões
como um momento de origem de uma civilização de bravos guerreiros de que
descendem os gaúchos tradicionalistas atuais.
Dentre os eventos oficias do MTG, a Semana Farroupilha é o mais
significativo em termos da exaltação e comemoração do passado no Rio Grande
do Sul. Acontece anualmente em todos os municípios do estado, no mês de
setembro, entre os dias 14 e 20 quando ocorre uma série de festividades iniciadas
com o acendimento da Chama Crioula. Estas atividades que têm por objetivo a
comemoração da Revolução Farroupilha (1835-1845) possuem um caráter popular
acentuado, extrapolando a esfera das entidades tradicionalistas, atingindo a
população em geral, o comércio, as autoridades civis, militares e religiosas que
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participam especialmente do desfile farroupilha
1
do dia do gaúcho (20 de
setembro), na qual os componentes das entidades tradicionalistas desfilam
vestidos com trajes típicos pilchados no seu dizer, a cavalo ou em carros
alegóricos. A montagem do cenário é efetuada em torno do tema anual do desfile
para homenagear os gaúchos farroupilhas, que os próprios tradicionalistas
revivem e representam através das interpretações que efetuam deste passado. O
desfile é o ponto culminante das festividades da semana, encerradas no final do
dia com a extinção da Chama Crioula.
Maciel (1994: 292) percebe a Semana Farroupilha como um ritual
identitário, alicerçado sobre um conjunto de relações e intenções coletivas
formalizadas que remetem ao pertencimento a este grupo. À re-atualização do
passado no que concerne à Revolução Farroupilha, aos heróis e eventos, somam-
se outros momentos que fortalecem a identificação com o regional.
Estas identidades não se chocam com as identidades nacionais,
anteriormente mencionadas. Neste cenário de afirmação do regional o
pertencimento é construído através da articulação com outras identidades em
questão de que se apropriam os tradicionalistas. No desfile de 2001 a bandeira
dos Estados Unidos foi trazida pelos bombeiros e por algumas entidades
tradicionalistas para homenagear as vítimas de 11 de setembro. Na abertura do
desfile tradicionalista foi feito um minuto de silêncio em sinal de luto pelos mortos
nos atentados.
Na semana farroupilha e especialmente no desfile, percebi uma
multiplicidade de elementos que concorrem à exaltação do passado regional. Num
contexto de globalização e modernidade os tradicionalistas exaltam suas
tradições. A eficácia da exaltação está na correspondência existente entre os
valores instituídos pelos tradicionalistas como relativos aos farroupilhas e a outros
momentos de sua história e a atualidade. Louis Dumont em Individualismo: uma
1
O desfile farroupilha de 2001, em Porto Alegre (considerado o maior do estado) contou com a
participação do governador Olívio Dutra pilchado. Além da Brigada Militar que o abriu oficialmente,
participaram 3500 cavalos, 120 veículos e em torno de 5000 tradicionalistas. Na semana
Farroupilha de 2002, 15 mil pessoas acompanharam o desfile de 3000 cavaleiros, 60 carros
alegóricos e 4000 pessoas das 103 entidades tradicionalistas em Porto Alegre. Dados do Jornal
Eco da Tradição de outubro de 2001 e 2002.
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perspectiva antropológica da ideologia moderna (1985: 167-8) discute a questão
dos valores holistas e individualistas em relação às sociedades e sua apropriação,
ao analisar traços individualistas como o igualitarismo e a democracia, afirmando
que concorreram para a formação da ideologia nazista de Hitler que os utilizou na
construção da idéia de raça. Em termos de exaltação do passado, este é tamm
o caso dos tradicionalistas ao pinçarem certos valores farroupilhas e missioneiros,
objetivando ao destacá-los concorrer para o fortalecimento das identidades
regionais, porque estes momentos remetem à questão da terra, à formação do
gaúcho que é exaltado e à raça.
Em 2001, no desfile farroupilha, as referências ao passado missioneiro
podem ser pensadas nesta perspectiva: uma das apresentadoras mencionou em
versos, ao longo da apresentação das entidades tradicionalistas, o índio
missioneiro Sepé Tiarajú como fundador da genealogia de heróis gaúchos, cujos
descendentes mais ilustres seriam os heróis farroupilhas. Especialmente Bento
Gonçalves da Silva comandante chefe das tropas revolucionárias de 1835.
A referência às Missões pela atuação de seus bravos guerreiros na Guerra
Guaranítica e, conseqüentemente, como lócus originário gerador de descendentes
não menos bravos - os gaúchos - e do tradicionalismo com palco para sua
celebração, já aparece, como salientei, nos escritos de Jacques de forma similar à
representada no desfile. Oliven desenvolve a questão da eficácia da recepção
utilizando o conceito de ideologia:
Uma ideologia é bem sucedida na medida em que consegue dar a
impressão de unificar os interesses de diferentes grupos sociais. Para
isso, é necessário que um discurso ao interpelar sujeitos veicule uma
mensagem verossímil, pois, para que uma ideologia se realize como tal,
capture os sujeitos, provoque adesão é preciso que as significações
produzidas por seu discurso encontrem eco no imaginário dos indivíduos
aos quais se dirige, isto é, é preciso que se uma certa adequação
entre as significações desse discurso e as representações dos sujeitos.
(Oliven:1992, 21).
A circulação das informações dos escritos de Jacques e a recepção desta
dupla
concepção sobre as Missões, na atualidade, são permeadas por toda a
história do tradicionalismo como movimento organizado. Obrigatoriamente a visão
de Jacques não foi lida pela apresentadora do desfile. No entanto, é inegável
92
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que a ideologia tradicionalista do autor permanece e se atualiza no universo
tradicionalista atual em que o culto às tradições gaúchas encontra eco no
imaginário de quem dele participa e do público espectador. Durante as
observações percebi que o objetivo dos apresentadores era compor um cenário do
passado para o desfile das entidades tradicionalistas que festejavam o dia do
gaúcho daquele ano.
A esta referência se somaram outras ao tempo das Reduções Jesuíticas
como gerador da genealogia farroupilha; a Sepé Tiarajú como precursor da
independência da querência; Sepé Tiarajú como fundador originário da raça
gaúcha, bem como exaltações às entidades tradicionalistas Piquete
Missioneiro e
Cruz de Lorena durante o seu desfile, como herdeiros da raça missioneira.
A apropriação deste passado extrapolou a organização formalista do
desfile. O governador Olívio Dutra que saudava calorosamente a todos os
tradicionalistas foi aclamado em pleno desfile com um grito de galo missioneiro
por um integrante da entidade tradicionalista Candeeiro do Sul. O governador que
é natural de Bossoroca, um dos municípios que formam a região missioneira,
durante várias campanhas eleitorais foi identificado tamm como o índio
missioneiro da Bossoroca.
Essas referências demonstram a reatualização do passado missioneiro no
presente entre os tradicionalistas, com relação à questão política, numa via de
mão dupla no que concerne à formação do imaginário nas campanhas políticas
objetivando votos, bem como sua recepção e atualização pelos eleitores
tradicionalistas que identificam e/ou saúdam Olívio Dutra como depositário desta
herança missioneira.
As citações de índio e galo missioneiro remetem às apropriações destes
termos, demonstrando a criação e circularidade da relação entre natureza
e
cultura no cenário regional do desfile tradicionalista. No imaginário político, o índio
é pensado a partir de sua proximidade com a natureza, um ente natural, um
intermediário entre àquela e a cultura, o que lhe confere credibilidade, a
honestidade necessária à cena política gaúcha. Em se tratando de um índio
missioneiro da Bossoroca, Olívio Dutra, ao ser identificado desta forma, recebe o
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passaporte histórico de herdeiro dos feitos protagonizados no passado, sendo
capaz de honrar a terra gaúcha por encarnar a própria raça missioneira.
Oliven (1992: 81) se refere à palidez das representações sobre o negro e
do índio na formação das identidades no Rio Grande do Sul. A apropriação
efetuada neste caso do termo índio configura-se em apanágio do próprio gaúcho
que dele descende. O que é ressaltado em termos representacionais é o índio
romântico missioneiro que defende a terra, não referências à cultura
guarani,
mas às Missões e à liminaridade da cultura missioneira.
Na alusão ao galo missioneiro, como nos termos galo e índio velho, o que é
posto representacionalmente em relevo é a tenacidade que o animal representa
na cultura gaúcha. Galo como sinônimo de virilidade e também de luta. A
utilização deste diacrítico da identidade natural como caráter inequívoco à
construção cultural gaúcha, pode ser pensada a partir da análise de Geertz em
Um jogo absorvente: notas sobre a briga de galos balinesa (1989: 183) em que
menciona que a profunda identificação psicológica dos homens balineses com
seus galos é incontestável.
Sérgio Alves Teixeira (1987: 39), na esteira de Geertz em Rinhas de galos:
legitimação e identificação ressalta a masculinidade como um aspecto importante
da sociabilidade das rinhas relacionada ao jogo, através de fatores como os galos
de briga são corajosos e briosos; galos e galistas convivem com intimidade. A
possibilidade desta analogia que encontrei fora do espaço do rinhedeiro, mas com
sentido correlato é mencionada por Ondina Fachel Leal em sua tese de doutorado
Gaúchos: male culture and identities in the pampa:
The intimacy cock/man which is basically an exchange of attributes, is
essential to the construction of maleness. Man acquires ownership over
what he elects as animal nature, basically strength and power, and makes
then part of human nature. This process of naturalizing certain attributes
relies on previous and well demarcated categories of what is nature and
what is culture. Power in gaucho classification is part of nature; one way
to obtain power is to have dominion over nature. (Leal: 1989, 247).
2
2
A intimidade homem/galo a qual é basicamente uma troca de atributos, é essencial para a
construção da masculinidade. O homem adquire propriedade sobre o que ele elege como animal
natural, basicamente força e poder e faz deles parte da natureza humana. Neste processo de
naturalização certos atributos contam como anteriores e bem demarcam categorias do que é
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Segundo Leal, a construção da identidade masculina se pela
apropriação de elementos naturais, via construção de sentido de seus atributos.
Galo é utilizado como sinônimo de poder e força, nesta perspectiva. Assim, o
termo galo missioneiro mencionado para Olívio Dutra tem ainda
a conotação de
disposição para a luta e possibilidade de domínio da cena política, um brigador
das Missões, de puas afiadas para defender o Rio Grande, segundo o imaginário
do tradicionalista. Viril, forte e poderoso como os atributos do galo.
As referências de herança, raça, bravura e genealogia foram também
acionadas por participantes do Acampamento Farroupilha de Porto Alegre onde
encontrei o Piquete Cruz de Lorena, Piquete Missioneiro (já referidos no desfile
tradicionalista) e o Piquete Chão Missioneiro.
O acampamento acontece no Parque Maurício Sirotiski Sobrinho e se
insere atualmente nas atividades oficiais da semana farroupilha. Segundo o jornal
Eco da Tradição (out 2002: 6): O Parque da Harmonia, que este ano completou
15 anos de Acampamento Farroupilha, foi visitado por mais de 500 mil pessoas
durante os 23 dias do evento. Cerca de 4000 tradicionalistas permaneceram no
local o tempo todo. As atividades iniciaram no dia 31 de agosto quando os
acampamentos começaram a ser montados. Galpões rústicos construídos em
lotes dispostos por todo o parque, separados em pequenos quarteirões por onde
transita o público visitante. Nas três entidades visitadas o movimento maior ocorria
à noite quando os integrantes desses grupos se reuniam para confraternizar e
receber visitantes em festas com comida típica e música. Durante o dia, afora nos
finais de semana e no dia 20 de setembro, os acampamentos ficam a cargo de um
peão caseiro, no dizer do patrão Joel do Piquete Chão Missioneiro - alguém
responsável pela manutenção do acampamento até a noite quando chegam os
demais.
Se comparado às entidades tradicionalistas que se configuram em um
espaço mais regrado e restrito aos seus sócios, o parque é um espaço popular
natureza e o que é cultura. Poder na classificação do gaúcho é parte da natureza; um caminho
para obter poder é ter domínio sobre a natureza.
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onde encontrei uma diversidade de pessoas como muitos idosos vestidos à
gaúcha, dançando nos bailes dos acampamentos ou nos dos lonões, casais
homossexuais de mãos dadas tomando cerveja, meninos de rua e jovens
assistindo a shows tradicionalistas e concursos campeiros, nos rodeios. Frente à
tamanha pluralidade, este enclave de recriação do mundo rural no cenário urbano
do centro da cidade efetua referências constantes ao passado no Rio Grande do
Sul, através da presença de produtos campeiros, do vestir e da denominação dos
acampamentos, como no caso dos três piquetes missioneiros, onde conversei
com alguns de seus participantes.
Cada um dos três acampamentos citados tem uma história de ligação com
a região missioneira, no que concerne à identidade do ser missioneiro (natural das
Missões) sendo fundados por pessoas que se reconhecem como missioneiros ou
que são designados como tais por participantes desses piquetes, conforme
constatei ao lhes perguntar sobre os nomes:
- Porque são todos missioneiros. Aqui é um grupo de missioneiros todos são são-borgenses e que
fundou o primeiro povo dos sete das missões
- O Piquete missioneiro foi criado por quatro amigos né, sendo que um destes é o nosso patrão de
honra hoje que é natural de São Luiz Gonzaga (...) a gente achou por bem homenagear a ele
dando o nome do chão dele da terra onde ele nasceu onde ele se criou.
- O Chão Missioneiro na realidade ele nasceu num grupo de amigos no qual alguns nasceram, ou
os seus pais nasceram nas Missões. São Luiz, Santiago, aquela volta.(Entrevista fita k-7 1 lado A).
Porém, a denominação vai além dessa origem missioneira e da
necessidade de sua perpetuação e manutenção do vínculo regional de pessoas
que passaram a residir na capital. uma força na referência ao termo
missioneiro mencionada pelo patrão Joel do Piquete Chão Missioneiro e por Tio
Nanato, conhecido compositor, que me falou em torno de um fogo de chão:
-Ele é forte porque ele tem uma tradição muito grande, porque se a gente realmente analisar os
missioneiros, o nome missioneiro entre os gaúchos, todos os gaúchos ele soa mais forte
-A referência que ele fez que é uma coisa forte é porque as Missões era governada por Sepé
Tiarajú, o maior cacique do Sul, o maior guerreiro do Sul, então por isso e nós também na época,
eu digo nós porque meus ancestrais também fizeram isto, pelearam para defender este pedaço de
chão prá do Uruguai desse lado, inclusive tomando um pedaço da Argentina que vinha até
Santa Maria né, então isso foi com luta, correu muito sangue na época, então por isso que nós
dissemos assim é forte a terra missioneira. .(Entrevista fita k-7 1 lado B).
A força atribuída ao termo vem da terra e, no caso do Chão Missioneiro, o
excesso simbólico do nome salienta a força da relação, que o missioneiro
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lembra a terra e o Chão é a própria terra por quem no passado se lutou, além de o
Piquete ser identificado ao seu próprio lote do parque onde anualmente acampam.
As lutas de Sepé no passado têm uma relação com a conquista de seus herdeiros.
A construção de um galpão de costaneira, no início era uma barraca de quartel de
lona e ali nós puxava uma gaitinha, denota a relação simbólica estabelecida com
o passado para construção do presente no sentido de elaboração de uma
identidade missioneira, entre seus participantes, tendente a reforçar a coesão
grupal de missioneiros na capital gaúcha, assinalando os vínculos com a terra
que adotaram como sua, já que se reconhecem como legítimos herdeiros de
Sepé:
-A gente se identifica com esses nome porque esse nome ele representa pra nós assim um
respeito aqueles que lutam pela sua terra, pela sua querência, pelo lugar onde criou seu filho,
plantou, criou suas raízes, isso pra nós é o grande símbolo do nosso Piquete e o pessoal a raiz
missioneira que é simbolizada tamm por Sepé Tiarajú, ele nos inspira a manter viva essa chama,
a levar adiante essa idéia aos nossos filhos, nossos amigos independente, mas sem ser contra a
evolução das coisas, né. Eu acho que a evolução, o progresso, as culturas elas podem se misturar
mais a verdadeira cultura é aquela que ta no fundo que vem da raiz isso a gente tem que
preservar e a gente acha que é isso é fundamental para que as pessoas mantenham a sua
própria identidade (...) e não se massifique simplesmente na cultura que hoje tem essa facilidade
dos meios de comunicação e tornar todo mundo igual então a gente luta (...) a gente tem que
valorizar o que nos gerou os nossos valores, a nossa história, então o Piquete Missioneiro é tudo
isso aí pra nós.
-Essa é a história viva e o gaúcho depois de Sepé Tiarajú que eu acho que é o maior gaúcho que
existiu dentro do Rio Grande do Sul foi Sepé Tiarajú e seus irmãos guarani. Então é o seguinte pra
nós não entrar noutra história, vamos falar de nós, então é o seguinte nós se tornemos os
guerreiros depois que Sepé foi morto, vencemos várias revolução e, inclusive enfrentado nossos
irmãos paulistas, né. Então por isso que ele falou que o chão é forte, porque todo o chão forte
boa planta, então nós temos uma referência disso que é o Chão Missioneiro, então e esse
rancho pra nós não ir muito longe vamos cortar por partes, então esse rancho de chão batido.
(Entrevista fita k-7 1 lado B).
Marshal Sahlins em Ilhas da História (1999: 187) ao refletir sobre estrutura
e história enfoca as relações entre signo/interesse/sentido mencionando a questão
das opções do grupo na produção dos conceitos em relação ao passado e sua
utilização. O sentido atribuído ao passado missioneiro e, especialmente, à figura
de Sepé Tiarajú espelham esse processo no cenário tradicionalista dos piquetes,
construídos como lugar de tradição, de culto a valores verdadeiros. A terra é
percebida como fértil na semeadura da herança adquirida historicamente que é
preciso honrar. Os tradicionalistas se percebem como guerreiros capazes de, a
partir de suas representações, se inserirem na história idílica dos ancestrais
97
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gaúchos e prosseguirem suas lutas. Sepé é referendado mais uma vez como
fundador da genealogia e os tradicionalistas são os possuidores de sua força ao
acionarem o chão Missioneiro. Mas na apropriação da luta as batalhas destes
tradicionalistas se distanciam da questão indígena e de uma dívida com o passado
missioneiro, pelo massacre guarani:
-Porque diretamente a gente não tem nenhuma articulação, nenhum tipo de tribo ou de movimento
assim, mas a gente considera que assim como nós gaúchos né, temos essa missão de preservar
eu acho que o índio tamm tem esse vínculo nisso porque ele de certa forma ele foi a origem
de tudo e são os verdadeiros donos né, e a gente tem muito que aprender com eles né, no
sentido da civilização da não tecnologia, mas no sentido de respeito a natureza, os valores
então a gente indiretamente sim. .(Entrevista fita k-7 1 lado A).
-Hoje em dia por incrível que pareça nós não temos relação nenhuma com o índio, porque o índio
ta escravizado pelo Brasil, o índio não tem oportunidade de chegar num acampamento desses que
é tudo deles e fazer uma visita .(Entrevista fita k-7 1 lado B).
O índio, idealizado e reverenciado no mito de Sepé Tiarajú, concorre
representacionalmente na elaboração do universo tradicionalista, sendo incluído
simbolicamente, no acampamento, e o esta terra tem dono distancia-se da
política das demarcações ocorridas no estado. Claude Lévi-Straus em A estrutura
dos mitos relaciona a eficácia do mito à sua proposta ideológica expressa na
capacidade de reforço e atualização. A figura mitológica de Sepé Tiaraju no
universo tradicionalista corporifica os valores de liberdade e bravura relativos ao
gaúchos, como ressaltei anteriormente. A força do passado missioneiro e da
figura de Sepé para os participantes destes piquetes está no seu poder de
significar o presente a partir do passado.
A questão do distanciamento entre índios e tradicionalistas está ligada aos
projetos dos tradicionalistas como comemoradores do passado missioneiro.
Segundo Todorov em Memória do mal: tentação do bem a evocação do passado
é necessária para afirmar a própria identidade (2002: 195), ficando a vontade no
presente e o projeto de futuro, adstritos à evocação efetuada. As identidades
acionadas e buscadas pelos tradicionalistas no passado missioneiro (no
acampamento) se caracterizam como uma busca de fortalecimento das
identidades do grupo.
A função narrativa, como refere Ricoeur (1985: 185), apresenta como
objetivo maior a re-figuração da condição histórica através da produção de uma
98
98
consciência histórica. As narrativas observadas nos piquetes Missioneiro, Cruz de
Lorena e o Chão Missioneiro re-figuram o passado missioneiro exaltando-o em
prol do gauchismo. Assim, o desejo de produção dessa consciência histórica se dá
em benefício da figura do gaúcho exaltada, integrando apenas o índio idealizado
imaginariamente, neste momento, em seu universo representacional.
2 - ENART Encontro de Arte e Tradição Gaúcha
O Encontro de Artes e Tradição Gaúcha é um concurso de arte
tradicionalista em que se compete individual e coletivamente, envolvendo CTGs
(Centro de Tradições Gaúchas) das 30 regiões tradicionalistas RTs em que os
tradicionalistas dividem o estado. O evento ocorre anualmente e se realiza em três
fases eliminatórias: a regional, a inter-regional e a final entre os classificados nas
etapas anteriores.
O ENART pode ser pensado como um show e um concurso, uma
encenação em que se concorre à premiação - um troféu - um jogo em que se pode
perder ou ganhar pontos no espaço de uma apresentação. Os objetivos deste jogo
para o MTG estão expressos no regulamento do ENART
3
, nos arts. e que se
referem à promoção da preservação da arte e da cultura popular. No que diz
respeito aos participantes é pertinente pensar na excitação proporcionada pelo
caráter competitivo do evento. Segundo Norbert Elias e Eric Dunning no livro A
busca da excitação:
As actividades deste tipo são actividades de tempo livre que possuem o
caráter de lazer, quer se tome parte neles como actor ou como
espectador, desde que não se participe como se participasse numa
ocupação especializada através da qual se ganha a vida; neste caso
deixam de ser uma actividade de lazer e tornam-se uma forma de
trabalho, implicando todas as obrigações e restrições características do
trabalho em sociedades do tipo da nossa mesmo que as actividades
como estas possam ser sentidas como sendo muito agradáveis. (Elias e
Dunning: 1992, 110).
Os autores se referem ao lazer e ao esporte, em particular, como uma
atividade mimética em que os participantes procuram emoções/sensações que
3
MTG Coletânea da legislação tradicionalista. 2ª ed Porto Alegre: MTG, 2001.
99
99
extravasem o regramento do seu cotidiano, buscando superar limites através da
excitação propiciada pelo jogo. O ENART como competição, é também uma
atividade de lazer que para os participantes envolve muito trabalho e dedicação,
constituindo-se em um dos espaços no universo tradicionalista para se superar os
próprios limites individuais e coletivos em diferentes modalidades a principal é o
concurso de danças tradicionais. A peculiaridade deste jogo, em que os grupos
estão simbolicamente em confronto, está em convencer os avaliadores dos
concursos da eficácia/beleza/estética através das apresentações em que se
produzem representações do ser gaúcho, do ser tradicionalista.
Essas representações remetem ao passado ocorrendo apropriações
diversas de episódios do quotidiano do gaúcho: trabalho, festas, bem como de sua
história através da recriação de momentos considerados marcantes para a
construção de sua figura. A produção dessas representações envolve uma série
de questões, tais como a percepção/ entendimento de um episódio passado que
será (re)presentado e interpretado no presente. A relação que o grupo estabelece
com o mesmo e a sua utilização têm por objetivo a
criação e demonstração de um
imaginário do grupo que funcionará como cenário para as danças tradicionais, por
exemplo, bem como a construção estética do convencimento da comissão
avaliadora.
Estas representações expressam as múltiplas identidades sociais
envolvidas através do pertencimento acionado a um determinado CTG que
possibilitam perceber as diferentes visões e suas apropriações do passado,
definindo os tradicionalistas entre si, enquanto participantes do concurso de
danças tradicionais, bem como sua relação com outros grupos sociais que
tamm se apropriam do passado. Alguns tradicionalistas se percebem como
produtores de uma forma de arte:
- Prá nós é, tem maneiras de cultuar. Tem gente que não concorda, que acha que não é assim.
Eu como curso Desenho e Plástica na universidade tenho duas formas de ver a arte: eu vejo como
dançarina, dançar prá mim é o máximo, eu acho que isso é artístico, as pessoas estão num palco
são bailarinos, por esse lado do trabalho, do ensaio eu vejo como arte. Agora, vendo dentro do
contexto da arte, do que os artistas falam dançar não é uma arte, no conceito deles, não: dançar é
dançar, é um divertimento, a arte é outra coisa bem diferente é estudo de pintores, de filósofos. E
outra consideração é de que por trás da nossa dança tem uma baita parte histórica. Tem um lado
histórico, mas tempos atrás isso era comum, era corriqueiro, não era arte. Prá nós agora que
100
100
estamos fazendo uma representação do passado, agora nós achamos que é uma arte, antes não
era uma arte, era o convívio, o dia a dia das pessoas, iam num baile dançar. (ENART 2001, K-7
IA).
A prenda
4
assinala dois tipos de arte: uma reconhecida por ela como a
erudita, que exclui a dança de modo geral como arte e, uma outra, valorizadora de
suas peculiaridades onde insere a dança tradicionalista, no sentido de que esta
faz uma leitura do passado. É o caráter histórico e a produção da representação
que caracterizam a arte tradicionalista, por seu trabalho de criação e
aperfeiçoamento técnico.
Sua fala demonstra também que as identidades acionadas pela prenda em
termos da percepção de uma arte tradicionalista são relacionais e contrastivas,
conforme menciona Bela Feldman-Bianco em Imigração, confrontos culturais e
(re)construção de identidade feminina: o caso das intermediárias culturais
portuguesas (1997: 71). A autora enfoca as representações da mulher nas
relações de gênero entre as imigrantes portugueses, destacando a negociação
identitária das intermediárias ao recriarem imaginários relativos ao passado. A
prenda, neste sentido, se configura e representa como intermediária entre dois
universos: o feminino tradicionalista cujo modelo é a prenda tradicionalista e o de
mulher universitária, ao pensar a arte tradicionalista (por sua autenticidade) em
relação e contraste aos padrões da arte erudita. Por seu turno, como
intermediária a prenda está em comunicação com ambos os universos e os
representa como complementares ao significar os concursos de dança como arte
tradicionalista.
A produção de uma arte voltada aos concursos me leva a relacionar os
concursos realizados no contexto do Movimento Tradicionalista no Rio Grande do
Sul, ao mundo competitivo e individualista em que se inscreve. Louis Dumont em
O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna escreve
sobre as características da ideologia moderna e suas aparentes contradições ao
4
Os termos regionais citados podem ser esclarecidos através de Zeno e Rui Cardoso Nunes em
Dicionário de regionalismos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins livreiro, 1993. Prenda no
universo tradicionalista designa a mulher tradicionalista e originariamente significa preciosidade,
valor. Em relação a construção da tradicionalidade dos termos tradicionalistas consultar Maria
Eunice Maciel Memória, tradição e tradicionalismo no Rio Grande do Sul (2001:258)
101
101
caracterizar o individualismo e exemplificar sua relação com o nacionalismo:
A ideologia moderna é individualista sendo o individualismo definido
sociologicamente do ponto de vista dos valores globais. (..)
Vejamos um exemplo para se apreciar a diferença entre o discurso
ordinário e o discurso sociológico de que estamos tratando. Alguém opõe
ao individualismo o nacionalismo, sem explicação; sem dúvida, é preciso
entender que o nacionalismo corresponde a um sentimento do grupo que
se opõe ao sentimento individualista. (...) A nação é precisamente o tipo
de sociedade global correspondente ao reino do individualismo como
valor. Não ela o acompanha historicamente, mas a interdependência
entre ambos impõe-se, de sorte que se pode dizer que a nação é a
sociedade global composta de pessoas que se consideram indivíduos.
(Dumond: 1985, 21).
As colocações de Dumont evidenciam as aparente contradições como
complementaridades, pois para os tradicionalistas
5
, enquanto discurso ordinário, o
individualismo não é afirmado (dito, discursado) como um valor, ao contrário, é
encoberto. No entanto, é vivido como discurso sociológico porque um dos fatores
propulsores de sua expansão como movimento é justamente o valor individualista
que o permeia, num cenário em que todos são iguais perante o regulamento
ideologia moderna da igualdade, inegavelmente individualista.
Dos eventos tradicionalistas etnografados foi no ENART
6
que encontrei o
número mais significativo de representações remetendo à experiência missioneira
platina. A primeira referência que percebi com relação às Missões foi no concurso
de intérprete vocal feminino, quando uma moça interpretou a composição
chamada Mulher Tarefeira anunciando ser do Carijo, festival musical nativista de
Palmeira das Missões. A música falava do trabalho das mulheres gaúchas ao
longo da história, do seu companheirismo e submissão ao homem. Ao
conversarmos me disse que a havia escolhido por ser de Palmeira das Missões,
5
Embora haja um discurso anticapitalista por parte do tradicionalismo, creio que o movimento
incentiva o individualismo através das competições ao conferir certificados e troféus. O fato dos
prêmios não serem em dinheiro não muda a sintonia do tradicionalismo no mundo capitalista, já
que ganhar um concurso corresponderia a atestação da autenticidade da representação
relacionadas ao gauchismo. Como no caso analisado por Maciel (2001: 259) do ISO TCHE, um
selo de qualidade, autenticidade e tradicionalidade conferido pelo MTG aos produtos destacados
pelo mesmo.
6
Durante o 16° ENART (2001) percebi 5 (cinco) referências ao passado missioneiro e no 17°
(2002) duas menções. Não casualidade neste sentido, a pluralidade de menções ao passado
missioneiro em 2001, no meu entendimento, ocorreu em virtude do reflexo dos atentados de 11 de
setembro nos EUA e, por conseguinte a utilização da guerra na produção das representações
tradicionalistas como uma das razões para a alusão ao passado missioneiro e a Guerra
102
102
sua terra e porque falava das mulheres, do trabalho, dos guris: - A erva tem tudo
a ver com as Missões, os índios, acredito e sei com certeza que a erva veio de
uma cultura indígena que nos passaram por herança, herdamos deles.
A escolha da música ocorreu em razão da necessidade da prenda de se
fazer identificar como de Palmeira das Missões. A composição enaltece a mulher
tarefeira e submissa ao homem imagem de mulher que vem ao encontro à
representação feminina do CTG. A apropriação efetuada e a representação
produzida (música e performance na apresentação) mostram as identidades
envolvidas neste processo. Identidades femininas mantenedoras das relações
sociais no Rio Grande do Sul. Percebo este espaço tradicionalista, o interior do
CTG, como norteador da produção de sentido.
É o sentimento de pertencimento ao território em que a prenda atua (o
CTG) e que ela representa, no concurso de intérprete vocal feminina, na fase final
do ENART que funciona como determinante na sua escolha. Embora em outras
relações ela possa se opor à ideologia que a canção encerra, as identidades são
relacionais, contrastivas, mas coerentes com a situação vivenciada. Na esfera do
gauchismo o pertencimento se expressa através da exaltação de seus costumes e
tradições, classificando e demarcando a atuação de quem o efetua em relação ao
universo de culto em dados espaços que podem ser pensados como territórios,
pois é a partir dos mesmos e em relação a estes que as identidades
tradicionalistas são construídas.
O fato das Missões serem lembradas pelos ervais é significativo quando
analisado conjuntamente às demais representações observadas que remetem ao
passado missioneiro, enaltecendo
seus aspectos civilizatórios, índios
cristianizados, heróis fundadores da genealogia gaúcha. A representação
produzida sobre as Missões na Mostra de Arte Tradicionalista pela 17ª RT
7
,
Guaranítica.
7
A Mostra de Arte e Tradição é também um concurso em que o público presente vota no estande
da região que mais lhe agrada. Estavam ali as 30 RT representadas nas bancas pelos seus peões
e prendas da atual gestão, mostrando os resultados obtidos na implantação do projeto o MTG Vai
à Escola que consistia na confecção de brinquedos pelas crianças sob a coordenação dos jovens
tradicionalistas. Além disso cada região mostrava sua cultura e tradições, além de uma diversidade
de formas de desenvolver o projeto. Em 2002, como mencionei, o tema da Mostra de Arte e
103
103
formada por alguns municípios da região missioneira, tamm recaiu sobre a
herança econômica dos ervais.
Ao lado do churrasco, afirmado como prato típico, do quero-quero como
animal símbolo, a erva-mate, no universo do gauchismo, é a planta símbolo e o
chimarrão é considerado a bebida típica dos gaúchos. Das inúmeras narrativas
que remetem a erva e ao chimarrão, o livro Os mistérios ocultos no chimarrão:
aspectos místicos da erva-mate de Wilson Tubino, apresentado em sua segunda
edição no sarau de novembro de 2002 da Estância da Poesia Crioula e laureado
com o selo ISO-TCHE pelo MTG, em maio de 2001, demonstra a atualização do
passado missioneiro no presente através do hábito do chimarrão, enfocado pelo
autor por suas potencialidades místicas.
Tubino parte de uma leitura da aura da planta da erva-mate, para
demonstrar sua forte relação com o homem, construída historicamente desde sua
utilização pelos guaranis, sua aceitação pelos jesuítas dada a sua importância na
sociabilidade indígena e papel econômico nas Missões, até chegar ao plano de
religiosidade que o chimarrão deve ensejar na atualidade e assim contribuir para a
harmonia entre as pessoas:
Afirmamos, portanto, que o mate além de suas conhecidas e já
explicadas virtudes terapêuticas - tanto sicas como psíquicas -, possui
virtudes místicas, capazes de nos fazer integrados com os planos
superiores, dependendo da forma ritual adequada que usamos para o
seu preparo. (Tubino: 2001, 60).
Na cerimônia ritual do mate retemperamos nossas forças, comungamos
com nossos ancestrais e distribuímos eqüitativamente, quinhões de
harmoniosas vibrações masculinas e femininas, num perfeito permutar
de emoções e sentimentos. (Tubino: 2001, 95).
No texto são mesclados aspectos da história, do folclore, da homeopatia, da
botânica e da Nova Era para apresentar o chimarrão como referencial de unidade
entre os gaúchos. A relação com o passado se através do dar-se conta da
celebração e comunhão que o costume propicia. O fio condutor está nos valores
que a erva e o hábito integram (força, ancestralidade, saúde e sabedoria), do rito
da comunhão da roda de chimarrão explorando o circulo (2001: 53) como
Tradição foi a culinária gaúcha e a região das Missões 17ªRT apresentou além de produtos da
colonização alemã, italiana e polonesa o processo de produção e secagem da erva mate.
104
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mbolo de igualdade e fraternidade, perene através dos tempos e que faz
desaparecer diferenças sociais e raciais.
O discurso do comunitarismo da cuia de chimarrão, presente em outras
narrativas do gauchismo como canções e poesias, é atualizado através de um
discurso místico, em sintonia com o momento vivido. É importante assinalar que o
contato com a atualidade e a visão de mundo que norteiam as relações no
gauchismo se dão através da vivência das tradições. Assim, nesta narrativa o que
está em questão enquanto produção de uma consciência histórica não é o fato de
os jesuítas terem proibido o mate nas Missões ou sua importância econômica,
mas a continuidade e atualidade do ato sagrado de sorver o mate.
Esta busca se evidencia nas representações que salientam a idéia de
região, da glorificação de um passado e do pertencimento. Um exemplo disto é o
nome da cidade de Palmeira das Missões. Visitando o estande desta região
tradicionalista na Mostra de Arte e Tradição vi as prendas e peões
apresentaram o município como formado por um conjunto de etnias de onde
advém sua doçaria campeira e tendo o chimarrão como principal produto e bebida.
Demonstraram minuciosamente todas as etapas do plantio e produção de erva-
mate. Segundo eles, a influência indígena no município inexiste em termos de
colonização, tendo o nome Palmeira das Missões sido adotado por ocasião da
emancipação do município, antes se chamando Vilinha, Vilinha da Palmeira, Santo
Antônio da Palmeira e só, posteriormente, Palmeira das Missões porque uma
Palmeira na Praça. Outros municípios pertencentes a 17ª RT situados entre as
Missões e Planalto também adotaram a identidade missioneira no seu nome: Dois
Irmãos, Boa Vista, São José, São Pedro todos das Missões.
Ítalo Calvino em As cidades invisíveis, no conto da cidade Cecília (1990:
137-8), narra a história de um pastor que não conseguia distinguir as cidades por
onde passava, pois para ele as cidades não tem folha, são lugares que separam
um pasto do outro, os espaços se misturam. No conto a identidade está
relacionada ao olhar e ao sentido que este olhar escolhe para identificar. O sentido
é construído e possui uma dinâmica, mesmo que pareça contraditório, controverso
ou mascare certos aspectos em determinados momentos.
105
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A escolha do termo Missões se localiza no tempo da emancipação, um
tempo tamm de lutas simbólicas em defesa da demarcação de fronteiras
espaciais e do reconhecimento do município como um novo espaço identitário que
escolhe para se representar, ao citar Missões, implicitamente a referência à
bravura daqueles que lutaram em defesa da terra na Guerra Guaranítica, como os
emancipadores do município desejam ser percebidos ao se reconhecerem e
nomearem como missioneiros. Neste sentido, conforme Feldman Bianco (2004:
293) a busca de significado se dá através da re-construção das camadas de
tempo e espaço, sendo o termo Missões, com relação aos municípios que passam
a adotá-lo, reconstruído no imaginário como uma história que justifica a
emancipação dos municípios e a adoção do termo.
O espaço da Mostra Tradicionalista e do ENART, com as múltiplas
identidades envolvidas e acionadas pelas regiões tradicionalistas pelos grupos e
concorrentes individuais, constitui-se no cenário de um jogo que consiste na
ocorrência do próprio evento com as representações que se produzem sobre a
figura do gaúcho, a imagem deste gaúcho, em que os grupos CTGs e regiões
buscam impor a sua visão e assim torná-la a visão e a versão mais correta do que
é o ser gaúcho,
da veracidade da herança e tradições acionadas ao representar o
passado modificando/reorganizando-se ano a ano, por ocasião do evento
(ENART/Mostra).
À construção da figura do gaúcho nestes concursos tradicionalistas se
agregam e, mais comumente, se excluem inúmeros grupos sociais no Rio Grande
do Sul. Oliven em Um Brasil excêntrico: sobre índios, portugueses, negros,
alemães e italianos no Rio Grande do Sul menciona a construção da identidade
regional no estado como excludente dos grupos sociais, exaltando o gaúcho:
Trata-se de uma construção de identidade mais excludente do que
includente, deixando de fora metade do território sul-riograndense e
grande parte de seus grupos sociais. Apesar do enfraquecimento da
região sul do estado, da notável projeção econômica e política dos
descendentes de colonos de origem alemã e italiana que desenvolveram
a região norte, da urbanização e da industrialização, o tipo representativo
do Rio Grande do Sul continua a ser a figura do gaúcho da campanha
como teria existido no passado. (Oliven: 1994, 46).
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A construção da identidade remete ao passado que no presente a
campanha já não é a região mais rica do estado, sendo a região de colonização
alemã e italiana que domina a cena econômica e que igualmente reverenciam a
figura do gaúcho. Um grupo de danças de Santa Cruz do Sul CTG Rincão da
Alegria - apresentou como dança de retirada uma exaltação da mescla
colono/gaudéria na região, trazendo para o palco do ENART os bonecos da
Octoberfest Fritz e Frida, outros grupos também efetuaram a relação da imigração
com o gauchismo
8
. Nesta perspectiva é preciso analisar que a forma de
relacionamento com o passado passa pela memória que se tem do mesmo. Os
colonos, ao invés de rivalizarem a figura do gaúcho, classe dominante opressora,
desclassificam este discurso e o reconstroem de forma colaboracionista, sem
contradições, colocando as tradições e o trabalho lado a lado, unindo-os.
Relaciono esta narrativa a uma necessidade de justificação dos grupos, ao
dizerem que não estão traindo a sua cultura originária, mas que ela se congratula
com as tradições aqui encontradas, pois esta é a terra da promissão regada a
leite e mel, como já dizia o Pe. Sepp em Viagens às Missões Jesuíticas e
trabalhos apostólicos ([1710]1980: 235) aos índios guarani-missioneiros para
justificar sua transmigração de São Miguel Arcanjo para São João Batista.
A música encenada pelo CTG Rincão da Alegria diz: E a gente ainda acha
que o Rio Grande fica perto do céu. A memória do passado vivenciada pelos
grupos quer fazer crer na prosperidade e felicidade, reforçando o pertencimento a
um Rio Grande que é de todos, que propiciou a união das diferenças, em que não
exclusão reforçando, desta maneira, a coesão social entre os gaúchos, figura
que identifica a todos e com quem se identificam, mesmo que tenham sido
diferentes neste passado, como o trabalhador que ascendeu socialmente,
tornando-se gaúcho.
No ENART, a imagem do gaúcho e das Missões foi tamm veiculada pela
publicidade. A Claro Digital
9
apresentou um banner em que o papagaio Claro
8
Para uma análise da relação entre os colonos e gaúchos no Rio Grande do Sul consultar de
Sérgio Alves Teixeira Os recados das festas.
9
um acordo comercial entre a Claro Digital e o MTG de quem é patrocinadora oficial. As
informações que disponho a respeito do mesmo constam do relatório de atividades do MTG 2001,
107
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aparece sobre o mapa do Rio Grande do Sul com uma das patas em São Miguel
das Missões. O maior destaque no mapa é para Porto Alegre, mas este tamm
mostra parte do Paraguai e Argentina com suas respectivas Reduções e o
seguinte dizer: Pega nas Missões? É Claro. As Missões são mostradas como
um lugar distante. A experiência missioneira é retratada como um todo (não
somente os Sete Povos das Missões) ao demonstrar, no mapa, a proximidade
com a fronteira das nações onde se localizam as demais ruínas. Na publicidade
televisiva veiculada pela Claro são mostrados turistas nas ruínas de São Miguel,
falando ao celular. A apropriação do passado pela Claro é utilizada para alimentar
o turismo e as ruínas de São MIguel das Missões são mostradas como um
patrimônio a ser preservado e visitado.
Everardo Rocha em Magia e capitalismo: um estudo antropológico da
publicidade (1985: 70) elucida que o processo percorrido pelo produto - de sua
criação até o seu consumo - é permeado pela publicidade, responsável por sua
personificação e identificação que se relaciona a quem este produto é dirigido,
para após ser definido por seus consumidores, numa relação que é recíproca. A
publicidade baseia-se numa lógica da passagem, da transformação. Esta
passagem se opera no imaginário dos consumidores e atua simbolicamente
gratificando-os de alguma maneira por terem escolhido aquele produto. Assim,
um processo inegável de identificação entre ambos produto e consumidor, que é
tamm um processo de classificação. Se a Claro Digital se aproxima dos
tradicionalistas utilizando seus símbolos não é apenas porque tem um mercado a
ser conquistado. É tamm porque é capaz de atuar no seu imaginário
apropriando-se ludicamente da história gaúcha usando a linguagem do seu
consumidor, que é ao mesmo tempo moderno e tradicional, que precisa se
comunicar É Claro e classifica os consumidores, legitimando-os como
gaúchos. Reconhece as fronteiras e as transpõe comunicativamente na
publicidade que encarna o produto ao utilizar as Missões. A mensagem contida é
linear, não interessando o passado missioneiro, mas o fato dos gaúchos
Parte III. Resumo Das Conquistas Mais Importantes d) Realização da parceria MTG e Claro
Digital, através da ação da Fundação Cultural Gaúcha/MTG. (p.21). MTG. Relatórios de atividades
dos anos 1998, 1999, 2000, 2001. Porto Alegre: Brindes, 2002.
108
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reconhecerem as ruínas como um lugar histórico a ser preservado e visitado o que
cria a necessidade prática de comunicação e o uso de um celular que pegue nas
Missões, sendo criada
a simbologia e o discurso publicitário
10
para o produto, que
venha ao encontro às necessidades desses consumidores.
Folder publicitário da Claro Digital coletado durante o
16° ENART em nov. 2001 em Santa Cruz do Sul - RS
Por fim, houve uma menção às Missões no 16° ENART que se choca com
as demais representações apresentadas que objetivavam comemorar o passado
missioneiro. Refiro-me à representação de uma guerra produzida pelo grupo de
danças do CTG Raízes do Sul, de Porto Alegre, como dança de retirada.
Manoelito Carlos Savaris, presidente do MTG nas gestões de 1999-2002,
menciona a importância das danças para o movimento tradicionalista gaúcho e a
sua relação com o passado:
- O CTG tem lá o foco, qual é: preservação, resgate e divulgação da história, dos aspectos
históricos, folclóricos e evidentemente tradicionais. todo um estímulo para que os CTGs façam
10
A questão da aceitação da utilização da publicidade pelos tradicionalistas e da veiculação de
seus símbolos se insere no contexto de proliferação da publicidade regional (a LG e a Coca-cola,
são exemplos disto no Rio Grande do Sul), embora segundo Nilda Jacks em Mídia Nativa os
tradicionalistas se oponham a veiculação de seus símbolos (Jacks: 1998, 93 e 97). No caso da
publicidade da Claro Digital, porém, que salientar que a utilização dos símbolos tradicionalistas
e das próprias Missões acarreta vantagens econômicas para ambos os lados, razão prática da
concordância decorrente da atuação simlica.
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essa volta lá atrás e representem diversos aspectos no hoje. Como é que nós podemos fazer isso?
Nós podemos fazer isto de muitas formas, mas a forma que nós encontramos mais fácil e que mais
cala, que mais tem significado nas pessoas é via dança, via música e via dança. Claro que também
algumas iniciativas de teatro. Tem algumas iniciativas muito interessantes da área do teatro nos
CTGs, tá. Mais isso via dança, via representação que na verdade é quase um teatro, é que eles
fazem. De pegar determinados aspectos do folclore, da história e representá-los hoje, fazendo uma
viajem no tempo. Então esta relação da história como uma coisa inanimada, uma coisa distante
inatingível quase pra muitas pessoas, ta! Se corporifica nestas atividades que são feitas, porque
nós entendemos que é mais fácil se ensinar história, fazendo utilizando um grupo de dança pra
fazer a reconstrução. Por exemplo, no ENART do ano passado um CTG de Porto Alegre o Raízes
do Sul representou a Guerra Guaranítica, certo? Aquela representação deles ali ela foi uma aula
de história melhor do que muitas palestras que nós pudéssemos fazer para aquela juventude e não
das pessoas que fizeram a apresentação e das famílias envolvidas nisso porque tem ali doze
pares, doze jovens dançando, mais seis ou sete na parte da música, então são então trinta
pessoas, mas estas trinta pessoas carregam consigo pelo mais três ou quatro cada um. Já
chegamos a 100, 130 pessoas envolvidas naquele processo e compreendendo como é que aquele
fato se deu na história e isso se apresenta lá no ENART que todo mundo vê e isso desperta
curiosidade, desperta interesse de leitura, desperta interesse de saber como é que foi, desperta
discussão tamm de que não foi bem assim e isso tamm é importante.(Entrevista k7 1 lado B)
As palavras de Savaris relacionam a utilização do passado efetuada pelos
grupos de dança como um recurso pedagógico a serviço do tradicionalismo
gaúcho. O caráter desta criação se insere e tem por objetivo o concurso de
danças, que segundo o regulamento do ENART consiste na apresentação pelas
invernadas artísticas de três danças tradicionais sorteadas do Manual de Danças
de Paixão Cortes e Barbosa Lessa, perante a comissão avaliadora. A
apresentação destas danças é precedida de uma dança de entrada e encerrada
por uma dança de retirada, que são de livre escolha do grupo e mostram a
criatividade do mesmo. Estas coreografias devem servir de cenário para a
apresentação das três danças tradicionais.
O CTG Raízes do Sul escolheu como cenário para sua apresentação duas
danças que remetem à guerra no Rio Grande do Sul. A dança de entrada,
coreografia montada utilizando a música Colorada, aborda as degolas e a dança
de retirada a epopéia missioneira platina. Transcrevo a seguir a apresentação da
dança de retirada do grupo:
-O grupo idramatizar na sua coreografia de retirada a invasão espanhola, a expulsão dos
portugueses e a saga da grande nação guarani. Com esta visão e na defesa da demarcação e
proteção das terras indígenas entregamos aos senhores o nosso sentimento por esta causa.
MUSICALIZAÇÃO:
Livres, bravos, imortais, guaranis índios charruas
Dessa terra missioneira
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Guerreiros de alma nua (bis)
Índios da banda oriental
Chegaram os homens da cruz
A lenda se fez verdade
E a verdade se fez luz.
Com o suor guarani, nos Sete Povos do pampa
Ergueram-se as Missões na ilusão que acampa (bis).
No início de sua saga, índios se tornam guerreiros para expulsar portugueses
Em castelhana missão (bis)
Homens em nome de Deus, com sua fé e justiça
Prá defender suas leis numa guerra comunista.
Em Madrid o tratado divisório dos guaranis
Duas coroas se unem perfazendo a traição
Índios Tapes e os guerreiros numa luta desigual
Sendo todos inimigos, até os Charruas brigãos
As ruínas missioneiras relucidam na ilusão. (bis)
Na divisão de seu mundo quase nada lhes restou
Expulsaram sua fé e aumentaram seus medos
As pedras contam história que os homens esqueceram (bis)
-Será que somos nós os verdadeiros donos desta terra? - O que queremos com a saga do
extermínio dos grupos guaranis e outros mais? É com a fé missioneira que pedimos a São Miguel
de Arcanjo que proteja aqueles que morreram e aos poucos que ainda restam
Nas ruínas missioneiras de São Miguel (bis) de Arcanjo!
A performance inicial da coreografia se com as prendas vestidas de
espanholas, tocando castanholas. Ao encantar com sua dança, encenam através
da sedução, a invasão. Após, aparecem os índios seminus e, em seguida, os
categuisadores jesuítas que, com o trabalho do guarani, representado pelas índias
vestidas de tipoy com crucifixo pendurado ao pescoço, e índios de xiripá saia,
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erguendo a cruz missioneira e a bandeira espanhola, representando a construção
dos povoados e a necessidade de luta contra os portugueses para preservar o
território espanhol. A seguir, ao cantar a civilização comunista, criada nas
Missões, surge a discórdia dela decorrente na representação do acordo das
bandeiras e na tentativa de mediação do padre em que a guerra dos índios contra
ambas os leva ao seu extermínio, pelas armas (tiros e fumaça no palco) e pela
desorganização simbólica ocorrida neste contexto de transformação. A alusão às
ruínas pelo grupo remete ao que está oculto, o que as pedras não mostram o
extermínio efetuado ao longo do processo histórico sulino e ao qual o grupo se
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Conforme Vera Zatera em Pilchas do gaúcho. Vestuário tradicional, arreios e avios de mate
(1995: 41). Tipoy camisa formada de dois panos costurados nos lados e com abertura para os
braços e cabeça levava às vezes um cordão na cintura. Seu comprimento variava indo até abaixo
dos joelhos. A indígena usa ainda um crucifixo no pescoço indicando fé ou catequese efetivada.
Chiripá saia pano de algodão amarrado á cintura.
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refere ao encenar um tiro de um português em uma índia missioneira. O término
da apresentação se com uma reflexão sobre os verdadeiros donos da terra,
numa alusão ao grito do índio Sepé, morto em combate pela causa missioneira
(também anteriormente mostrado) e com um apelo da proteção de São Miguel
Arcanjo para o povo guarani e seus descendentes.
A apresentação constrói uma visão de história que denuncia a injustiça
social, afirmando através de sua arte um posicionamento em prol da proteção
indígena na atualidade. O passado revivido pelo grupo através da produção desta
representação demonstra uma visão da história das Missões no Rio Grande do
Sul, no universo tradicionalista diversa das apresentadas anteriormente, no
sentido de que não enaltece heróis específicos, denuncia e não festeja ou
comemora o passado, pontuando a sua dívida com o mesmo. Esta coreografia
não recebeu qualquer premiação, embora tenha atingido o público presente no
ginásio. O grupo obteve o lugar na classificação geral. Desta forma, na análise
deste concurso, concluo que o grupo Raízes não conseguiu totalmente, com sua
arte tradicionalista, que o imaginário do público e da comissão avaliadora aderisse
a sua causa, neste contexto de luta pelo poder simbólico de ser outorgado e
reconhecido como gaúcho.
O grupo se apropria de um episódio histórico representando-o como
controverso, e faz questão de mostrá-lo como um passado latente passível de ser
reconhecido e com quem se pode ajustar suas contas, que os descendentes
dos guaranis missioneiros ainda necessitam de terra e da proteção dos homens
brancos, sendo possível aos tradicionalistas denunciarem a situação através de
uma arte tradicionalista engajada demonstradora das atrocidades cometidas.
As leituras do passado missioneiro na atualidade sobre as quais se
produziram representações têm como limite suas repercussões no presente. Os
tradicionalistas, no meu entendimento, não são ativistas, no sentido de tremularem
bandeiras políticas por causas sociais tendentes a transformação do real. Suas
batalhas são simbólicas, no sentido da transubstanciação do passado para o
presente via atuação de um imaginário de retorno ao mundo idílico de antanho.
Este retorno se através de práticas, hábitos, tradições que os identifiquem com
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este passado e a apropriação da memória, da qual decorre a construção da sua
visão a respeito do mesmo, tem como limite o choque com as fronteiras
identitárias do seu grupo os tradicionalistas, cuja imagem representada de si
mesmo e em que se projetam é o gaúcho - uma construção que permanece
excludente dos demais grupos sociais do estado, apesar de suas contradições.
O choque desses imaginários, no seio do tradicionalismo, no entanto, é um
dado importante no atual estado desta luta simbólica em que se quer provar ser
mais gaúcho, através deste e de outros concursos. Ele demonstra uma
modificação na dinâmica deste jogo, uma tênue abertura do mundo tradicionalista
que interpreto no sentido de que para se provar ser mais gaúcho ao reviver o
passado é preciso retornar a este passado e redefinir seus agentes e sua
influência no jogo do tradicionalismo no presente. Sobre as relações simbólicas na
afirmação de identidade Bourdieu salienta:
A revolução simbólica contra a dominação simbólica e os efeitos de
intimidação que ela exerce tem em jogo não, como se diz, a conquista ou
a reconquista de uma identidade, mas a reapropriação colectiva deste
poder sobre os princípios de construção e de avaliação de sua própria
identidade de que o dominado abdica em proveito do dominante
enquanto aceita ser negado ou negar-se (e negar os que, entre os seus
não querem ou não podem negar-se) para se fazer reconhecer
(Bourdieu: 1989, 125).
Porém, esta revolução simbólica de uma reapropriação coletiva das
identidades no gauchismo não é a lógica do jogo, é uma estratégia de luta
percebida por alguns grupos de danças, mas que ainda não se tornou, no dizer
mesmo de Bourdieu, habitus, o que poderia descaracterizar o próprio
tradicionalismo como movimento, se ocorresse, uma vez que às batalhas
simbólicas se somariam posturas de engajamento. Manoelito Carlos Savaris se
expressou com relação à representação produzida pelo grupo:
- O movimento tem estimulado isso. Isso na verdade não acontece por acaso, este de tipo coisa
não é por acaso, na verdade todo um estímulo nos últimos quatro anos por todo um
estímulo de discussão disso dentro do movimento, e claro mas pra ti fazer um trabalho desses tu
necessita de algumas cabeças melhor preparadas porque é um trabalho extremamente difícil. É
Muito mais fácil tu fazer simplesmente fazer a apologia ao herói, né? Mais tu questionar
determinados aspectos da história, como a Guerra Guaranítica que é uma mácula que nós temos
com o passado. (Entrevista k7 1 lado B).
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Ao que parece, a visão dos tradicionalistas não remete apenas à questão
da comemoração, mas tamm se relaciona, no espaço da exaltação, à denúncia
social de episódios com que a memória tradicionalista, embora os tenha exaltado
de outra maneira, se sente em dívida e começa a expressar. Há, segundo Savaris,
projetos de cunho social sendo desenvolvidos pelo tradicionalismo. Como
entendê-los a luz do movimento que tem por objetivo a construção de uma alma
regional e sua exaltação? Observei este desejo de atuação social e exaltação da
alma regional nas relações estabelecidas entre os índios e tradicionalistas na
Primeira Cavalgada Mbyá-Guarani.
3 - 1ª Cavalgada Mbyá-Guarani: uma cavalgada humanitária
A 1ª Cavalgada Mbyá-Guarani foi uma promoção da 22ª RT do MTG
ocorrida nos dias 28 e 29 de setembro de 2002
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. As cavalgadas se constituem
atualmente em atividade de destaque crescente no movimento tradicionalista e
agregam um público diverso dos participantes de invernadas artísticas, bem como
dos concursos campeiros: o cavaleiro é um ser mais simples do dia a dia, ele vem
de berço, ele vem com isso desde família, que usava o animal para trabalhar,
então ele acha que precisa disso e no mesmo tempo é um relax, conforme o
senhor Carlos Alberto Bulca, coordenador da 22ªRT.
Entre os tradicionalistas, as cavalgadas consistem em percorrer um trecho
em grupo a cavalo, estando os componentes vestidos à gaúcha e o cavalo
corretamente aperado, ou seja com arreamento (em couro) e com as patas
ferradas, para que não machuque os cascos. Observei a recriação do passado
rural dos tropeiros
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nestas cavalgadas e o reforço à imagem do gaúcho através
da relação que desenvolve com o cavalo. Este vínculo se pauta pela busca de
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A cavalgada de cerca de 60 km partiu da sede campestre do CTG Fogão Gaúcho de Taquara
dia 28 às 9 horas após uma rápida sessão solene que assistimos a cavalo, passou por Rolante
onde almoçamos e prosseguiu à tarde até Riozinho, aonde chegamos por volta das 19 horas. No
dia seguinte foram cavalgados os 25 km restantes, morro a cima até a reserva do Campo Molhado.
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Dois tradicionalistas que cavalgavam a meu lado relataram sobre as tropeadas de gado e até de
porcos, que fizeram quando jovens já que as estradas da região ainda não ofereciam condições de
tráfego para caminhões.
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autenticidade e se num cenário urbano, já que as cavalgadas ocorrem entre as
cidades, preferencialmente nos fins de semana, e em que os cavaleiros contam
com o apoio, enquanto cavalgam. É o apoio que lhes fornece bebidas e
alimentos em pontos específicos ou durante todo o trajeto e que prepara as
acomodações nos pernoites e paradas, tornando o cavalgar uma grande festa.
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As cavalgadas, como as demais atividades tradicionalistas se inscrevem no
cenário de atualização do passado no presente, conforme as necessidades e
interesses do momento e dos participantes na manutenção desses vínculos. Se a
cavalgada é uma atividade de lazer ela também envolve trabalho (preparação e
alimentação dos cavalos, hospedagem dos mesmos, cuidados com o arreamento,
etc) e se cinge a regras de conduta para a participação. O crescente
desenvolvimento das cavalgadas no estado, com a consolidação de grupos de
cavaleiros como os Cavaleiros da Paz, os Cavaleiros da Serra, os Cavaleiros da
Santa Cruz, as Anitas, Grupo de Cavalgada da 13ªRT, a própria Cavalgada do
Mar
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que ocorre anualmente no litoral gaúcho, e a já tradicional Cavalgada da
Neve, na região de São Francisco de Paula levaram o MTG a regulamentar essas
atividades através da Ordem dos Cavaleiros. Assim, o caráter espontâneo da
sociabilidade nas cavalgadas passou a adquirir, com o seu regramento, a busca
do reconhecimento e definição do ser gaúcho através da conferência da comenda
da Ordem dos Cavaleiros do Rio Grande, similarmente ao que ocorre com a
conquista das faixas nos concursos de prendas e os troféus de premiação nos
demais concursos.
Os motivos para a realização de uma cavalgada podem ser os mais
diversos
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O diferencial da Cavalgada Mbyá-Guarani, de acordo com os
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Maciel (1994: 260), se refere a este aspecto interno e externo das cavalgadas em virtude das
reuniões que se oportunizam onde música e comida típica, em suma, um espaço de
sociabilidade nos intervalos do cavalgar, num ambiente improvisado de confraternização.
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Sobre a Cavalgada do Mar e os Cavaleiros da Paz consultar o já citado texto de Maciel. Numa
perspectiva dos próprios participantes consultar de Elma SantAna e Peter Damborg Diário de uma
cavalgada: Cavaleiros da Paz no Pantanal (1998).
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A necessidade de trazer cavalos para o desfile farroupilha de 2001 em Santa Maria motivou a
Cavalgada de Santa Flora que acompanhei nos dias 07-08/09/2001, em que 4 cavaleiros e mais
dois cavalos puxados pelo cabresto saíram desse distrito de São Gabriel e cavalgaram 25km até a
Associação Tradicionalista Estância do Minuano em Santa Maria. A condução da Chama Crioula é
um outro exemplo de motivo para a realização de cavalgadas..
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tradicionalistas participantes, é o seu caráter humanitário em relação aos objetivos
turísticos e ecológicos previstos pela Ordem dos Cavaleiros do MTG, pois apesar
de abarcar a motivação tradicionalista de comemorar o passado a proposição
de ação social, através de uma atividade tradicionalista. Segundo o mentor da
cavalgada:
-Eu sou o Genilton Nivaldo Hofmayer, nascido em Taquara dentro do movimento gaúcho a partir
de noventa e três depois de um curso de danças, já fui vice-patrão do CTG O Fogão Gaúcho, já fui
patrão, já fui vice-coordenador já fui coordenador por dois anos da 22º Região Tradicionalista. Essa
idéia da cavalgada surgiu durante um serviço que eu faço, eu sou vendedor na parte de
eletricidade e visitando a cidade de Riozinho, num dia frio de chuva após o meio dia eu tirando
uma sestiada, me chamou a atenção um índio que passava de bicicleta no meio da chuva
solicitando comida e roupa então veio essa idéia. Lançamos essa semente com o nosso
coordenador de cavalgada o seu Marco Aurélio, que deu apoio e logística dando informações de
como poderia ser feito o trajeto. Fizemos reunião com a Prefeitura de Riozinho, de Rolante, de
Taquara muito bem aceito por essas prefeituras e o incentivo foi muito grande, tanto é que hoje no
dia da cavalgada o patrão véio das alturas está nos agraciando com um dia magnífico e nós
temos a satisfação de dizer que foram duas kombis lotadas de roupas encaminhadas até a
Prefeitura de Riozinho .(Entrevista fita K-7 1 lado A).
Humanitária porque tem por objetivo ajudar os índios através da
arrecadação de donativos para as 22 famílias mbyá-guaranis que estão na
Reserva de Campo Molhado e as 5 famílias do Km45, um lote de 12 hectares a
6km de Riozinho, também denominada Reserva do Felipe, recentemente
demarcada. Esses donativos (grande quantidade de roupas e mantimentos não
perecíveis), recolhidos entre os tradicionalistas e pelas prefeituras dos municípios
de Taquara, Rolante e Riozinho foram levados às famílias pela prefeitura de
Riozinho, entregues no Campo Molhado ao cacique, no domingo à tarde, pelos
tradicionalistas e pelo prefeito do município.
Lenço da !ª Cavalgada Mbyá Guarani
adquirido durante a cavalgada em Rolante set.
2002.
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Numa cavalgada, a relação que se estabelece com o cavalo é fundamental,
dependendo dela o bem estar físico e mental de quem cavalga. A interação com o
meio, a temperatura, bem como as relações com os demais membros do grupo
estão condicionadas à primeira. Um cavalo lerdo ou muito agitado (o trote ou o
galope que desenvolve que não permita acompanhar os demais), um cavalo
macho mal castrado que se agita em presença de outros animais, um cavalo que
não esteja adestrado para andar em cidade ou que se assuste com foguetes, ou
um simples saco plástico, pode tornar a cavalgada um verdadeiro inferno sobre
quatro patas, cujo aspecto preponderante é a questão do risco que encerram,
através da relação entre natureza e cultura que se desenvolve entre
homens/mulheres e o cavalo.
O risco, mesmo implícito e não externado permeia esta atividade de tempo
livre. A excitação propiciada pelo risco de não conseguir fazer o trajeto pelas dores
no corpo e assaduras provocadas pelo roçar dos arreios nas calças (bombachas)
e coxas, o risco de cair do cavalo e ser apontado como cavaleira de ter
plantado uma figueira
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como dizem quando alguém cai do cavalo.
Mas os riscos não param aí, segundo me relataram e que presenciei os
cavalos não são adestrados especificamente para cavalgadas o que gera um risco
de acidentes realmente muito grande. O cavalo que me foi cedido, apesar de me
parecer cômodo, ao ouvir os foguetes saudando nossa chegada em Rolante e
Riozinho, tentou disparar comigo. Nessas ocasiões a excitação é geral e apesar
dos cuidados e de um amadrinhador (alguém que impede que o cavalo dispare,
evitando que o cavaleiro se machuque) que me socorreu a tempo, o alvoroço foi
geral. Gritos de é gaúcha, olha o tombo aparentaram um desejo de presenciar
algum tipo de acidente.
Apesar do estranhamento de ver as pessoas querendo que algo ruim
acontecesse, entendi que o sentido da cavalgada está na busca do risco de perigo
e na sua superação como sinônimo de afirmação da coragem do cavaleiro e da
cavaleira como são denominadas as mulheres. O
risco coloca em questão a
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O grupo os Cavaleiros da Paz instituiu o troféu figueirinha, motivo de chacota da gauchada a
quem caísse por mais vezes em uma cavalgada.
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capacidade de dominar o animal e subjugá-lo. Ao estudar a construção da
masculinidade Leal (1989: 266) se refere à imagem do centauro como uma noção
central para definir o gaúcho. O cavalo é visto como uma extensão do seu próprio
corpo, havendo um processo de identificação entre o cavalo e o gaúcho em que o
primeiro é a continuidade do segundo. Essa associação, para ela tem uma
conotação de poder sexual que no plano metafórico relaciona o poder e a
liberdade ao cavalo e seu domínio, as mulheres são excluídas ou totalmente
secundárias neste universo de emoções e desejos (1989:273).
Nas cavalgadas é recriado, através do risco, um ambiente em que se busca
a transcendência da humanidade, no sentido do domínio da natureza corporificada
no cavalo, pelo gaúcho. Assim, a presença das mulheres
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merece destaque na
relação estabelecida entre natureza/cultura, neste contexto, pois a cavaleira recria
a liminaridade entre o masculino e o feminino similarmente ao que fez Anita
Garibaldi na Revolução Farroupilha, como uma mulher na guerra, lutando junto
aos homens.
As cavalgadas são espaços de sociabilidade masculina a que as mulheres
participam numa condição de geração de cruzamento de identidades, uma
espécie de transgressão do feminino para penetração do universo masculino,
Assim, as mulheres cavaleiras tal como as intermediárias estudadas por Feldman-
Bianco (re)elaboram identidades híbridas que revelam as subjetividades de vidas
vividas nas fronteiras de mundo discrepantes (1997: 75), pois embora não haja a
proibição da participação feminina nas cavalgadas um certo consenso do lugar
secundário feminino, simbolicamente recriado na atualização deste passado que
caracteriza a cavalgada como um espaço masculino.
A motivação desta cavalgada gerou uma certa polêmica entre os
participantes e moradores da região, cuja opinião a respeito dos índios divergia.
Embora nutridos pela solidariedade aos guaranis, durante o jantar em Riozinho um
18
Apesar de em número inferior aos homens, nesta cavalgada participaram durante todo percurso
em uma longa fila de dois cavaleiros à beira da estrada. Não haviam regalias, mas uma certa
cortesia e cerimônia com as mulheres como no oferecimento para dar água ou desencilhar os
animais. As mulheres usam bombachas e xiripás. Vestimentas masculinas o que confere as
cavaleiras (como são designadas) uma nova identidade, diferente da prenda de CTG, mbolo da
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grupo de tradicionalistas me relatou a dificuldade de entender a postura
protecionista do governo com relação a estes e a falta de incentivo aos demais
trabalhadores da região. Um deles expressou: - o índio é como o búfalo e o
branco como o boi, no sentido de que o índio é refratário a qualquer processo
educacional, não se submete, não tem interesse em trabalhar, enquanto o branco
assimila as coisas, quer crescer. Frente a esta manifestação alguns
tradicionalistas participantes da cavalgada e defensores de uma atuação mais
incisiva do estado em defesa dos índios, demonstraram que tamm o
tradicionalismo é responsável pelo seu bem estar.
As posturas dos grupos
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gravitaram entre o entendimento ou não dos
índios como representantes de uma lógica cultural diversa da do branco, onde a
questão da compreensão do não-trabalho indígena se configurou como uma via
de acesso à interpretação de sua cultura. Na visão de outros participantes da
cavalgada a visita à aldeia foi expressa como um programa de índio. Outros
destacaram seu sentido social, conforme as falas a seguir:
- Essa cavalgada pra nós é uma cavalgada, o sentido dela é uma cavalgada humanitária no caso,
que é uma das primeiras, um momento muito importante porque nós estamos voltando ao passado
é os primeiros habitantes do nosso país do Brasil seriam os índios e eles foram assim como se
dizem um pouco abandonados, um pouco assim afastados das suas origens então eles estão aqui
meio abandonados, então o quê que o tradicionalismo está fazendo, eles fizeram esse evento que
eles estão tão sacrificadas, que eles não tem assim uma orientação ainda, um apoio que deveria
assim, nós o Governo, o Prefeito, os dirigentes do município do estado e que dessem apoio a
esses índios para que eles possam também crescer e viver junto conosco é isso aí que eu gostaria
de finalizar um pouquinho.
fragilidade feminina. Algumas moças usam largas saias-calças que me definiram como um traje
alternativo do MTG para atividades campeiras.
19
Os tradicionalistas exigiram minha opinião. Alguns temerosos de que eu representasse a FUNAI
e pudesse denunciá-los, outros apenas querendo saber realmente a que eu vinha. Deixei claro a
eles que não representava nenhum órgão de defesa indígena e que meu interesse em termos de
pesquisa era justamente estudar as relações que estavam se estabelecendo entre os grupos.
Minha opinião pessoal como antropóloga era de defesa dos povos indígenas, de manutenção das
condições de sua reprodução como cultura originária, num mundo globalizado, implicando a
compreensão da diversidade dos modos de vida das sociedades indígenas, neste contexto, pelas
pessoas. Garanti que o fato de divergir deles não me autorizava a condenar suas visões, mas me
obrigava a considerá-las, enquanto postura de uma parte, mesmo que minoritária do grupo e não
tentar transformar suas opiniões. Este diálogo que me aproximou ainda mais dos tradicionalistas
com quem havia cavalgado lado a lado, durante todo o dia foi uma lição da sociologia reflexiva de
Bourdieu (1989: 58), com relação à objetivação participante:: de que a ciência e o universo de
pesquisa não podem se transformar em palco para afirmação de nossas crenças e ideologia. Ela é
o cenário da diferença que deve ser respeitada, mesmo em se tratando da urgência da
modificação de mentalidades com relação à questão indígena.
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- Olha é diferente assim, nunca tinha, vou junto nesses passeios, mas não é normal tu conhecer e
ver como viviam os primeiros habitantes, né, essa vai ser uma experiência bem, bem diferente,
voltar a ver como eles eram.
- Nosso respeito pra eles, eles foram eles que, claro nós viemos de outras raças mas foram eles
que fundaram que difundiram, são poucos os primeiros habitantes mais antigos eles estão
tentando cultuar como nós do CTG estamos tentando cultuar a tradição, nós de uma forma e eles
na deles, e nós temos que ir lá também demonstrar o nosso respeito ao que eles ainda estão
fazendo porque eles ainda estão cultuando o que é deles, o que eles ainda tem na cultura deles
né. (Entrevistas fita K7 I lado B).
As visões dos tradicionalistas sobre os índios se inscrevem no passado e
se relacionam ao simulacro mencionado por Alcida Rita Ramos em O índio hiper-
real:
Criam-se estruturas quase-cartoriais destinadas a gerir os recursos
muitas vezes vultosos que permitam produzir e manter esse simulacro
que é o índio hiper-real, dependente, sofredor, vítima do sistema,
inocente das mazelas burguesas, íntegro em suas ações e intenções e
de preferência exótico. Os índios assim criados são como clones de
fantasia, feitos a imagem de que os brancos gostariam de ser eles
mesmos. Pairando acima e além do real o modelo de índio passa a existir
como que numa quarta dimensão, instituindo uma entidade ontológica de
terceiro grau. (Ramos: 1998, 11)
A percepção dos tradicionalistas revela um referencial provavelmente
adquirido na escola e uma visão caridosa também encontrada nos escritos
tradicionalistas de Cezimbra Jacques que, nos Assumptos do Rio Grande do Sul
(1912: 72), menciona a relação estabelecida com um grupo de guaranis em visita
a Porto Alegre: Os índios foram até à nossa casa, onde lhes mandamos servir o
tradicional cahy matte que muito lhes agradou por estarem com saudades delle.
Em seguida, damos-lhes algumas roupas usadas e calçados, e um bom machado
para o cacique que mostrou-se muito satisfeito.
A atuação tradicionalista na cavalgada se inscreve na perspectiva caridosa
de Jacques. Segundo as falas acima, os índios que encontrariam na aldeia se
assemelham aos encontrado pelos colonizadores 500 anos atrás, sendo
percebidos como outros distantes que se encontram além do horizonte, em
contraste com o índio hiperreal, que encontramos, quando chegamos à aldeia.
Um dos familiares de Felipe estava vestido à gaúcha para encontrar os
tradicionalistas, efetuando uma composição do traje de bombacha tênis e óculos
de sombra, demonstrado sua visão na recepção aos tradicionalistas, através de
sua imagem, assinalando o contato através da inversão, ao reivindicar sua
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identificação com os gaúchos. Se a destruição e dizimação indígena foram
externadas pelos tradicionalistas e condenadas, ensejando sua atuação, cujo
respeito aos índios é conferido por terem sido um dos componentes formadores
da raça gaúcha, por outro lado, para festejar os gaúchos da cavalgada que foram
lhes visitar, o índio pilchado se apropria e estiliza a imagem do gaúcho, na mesma
perspectiva com que nos fantasiamos de índio na escola para celebrá-lo no dia 21
de abril.
Foto 1 Índio vestido de gaúcho ; Autoria: Ceres Karam Brum; Reserva do Campo
Molhado, Riozinho; 2002; Fonte; Acervo Pessoal; P&B (original colorido);
(tamanho 10x15); fotografia fotocopiada em scanner e reduzida (5x7).
A relação com o passado foi duplamente assinalada por índios e
tradicionalistas. A cavalgada é uma atividade de recriação do passado no
presente. O mote de retorno ao passado nesta ocasião e sua atualização foi a
questão da ancestralidade na relação com os índios como habitantes originários
cujo elo de ligação, segundo as falas, seria o culto às respectivas tradições
passadas revividas nas aldeias indígenas e nos CTGs. A figura do índio pilchado
remete à apropriação indígena do gaúcho invertendo a relação já ressaltada ao
longo deste capítulo no concernente à apropriação de um índio romântico; o
próprio missioneiro, efetuada pelo tradicionalismo em suas representações. Várias
vezes os participantes da cavalgada efetuaram a comparação entre as duas
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culturas em de igualdade, havendo uma cultura tradicionalista e uma cultura
indígena, não culturas indígenas.
Na chegada à aldeia
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fomos recebidos pelo cacique e por Felipe. A
prefeitura de Riozinho intermediou os contatos estabelecidos entre os índios e os
tradicionalistas numa rápida solenidade com a apresentação de canto guarani. A
perplexidade dos tradicionalistas era geral e muitos pediram para visitarem o
interior das casas indígenas, o que não foi permitido. Os índios se mostraram
bastante reservados, um peso pairava no ar e pareciam desejar que tudo logo
acabasse. Transcrevo abaixo a diálogo que se seguiu no momento da colocação
do lenço da cavalgada no pescoço do cacique e a manifestação de Felipe:
Foto 2 o cacique e o tradicionalista ; Autoria: Ceres Karam Brum; Reserva do
Campo Molhado, Riozinho; 2002; Fonte; Acervo Pessoal; P&B (original colorido);
(tamanho 10x15); fotografia fotocopiada em scanner e reduzida (5x7).
CACIQUE: - Depois de conhecer há mil anos atrás né, depois de conhecer os povos que
principalmente e sempre estão aqui dirigidos, cada vez mais perto da cidade então a gente sempre
estamos colaborando com a gente. Só que participa só que a gente precisamos do que é nosso ali
por exemplo que faça parte da comunidade indígena, Tem muitos povos que são de diferentes
culturas nós tupi guarani, tem Kaingang, tem Xoclen. Então que cada uma faça a parte deles e
mostre a sua cultura. Então na verdade a gente faz parte da cultura. Depois que nós chegamos a
lage 45, uma localidade perto primeira comunidade que a partir disto estamos quase três anos
alI. E a gente sempre estamos assim Nós tamm queremos dar o quê que nós queremos dar.
Acho que não adianta nós dizer assim chegar muita gente, porque muitos anos atrás, muita gente
muitos se aproveitaram dos povos, chega na comunidade, fala com o cacique e cada vez que vai
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Poucos tradicionalistas foram a cavalo até a reserva, optaram por embarcar os animais para
casa na hora do almoço e prosseguir na carroceria da caçamba da prefeitura até a aldeia.
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falando com o cacique e ele que pouco entende português ele se vai se entregando porque é
uma língua diferente: mostra que é uma coisa o povo e o povo pensa outra coisa. Mas hoje graças
a deus nós conseguimos a partir de nós conhecer os povos brancos. Né, que eu sempre estou
lutando pelo povo. Porque tem que vê aquilo que nós precisamos. Não que nós precisamos. Não é
assim que nós precisamos assim tem que trazer alimento, roupas. Não, isso simplesmente vocês
tem, vamo ir lá, vamo levar. A gente tamos recebendo isso não tem a gente dizer que não.
que também eu fico contente porque as cavalarias que vocês tem. Nós somos os primeiros que
conhecemos cavalo. Sempre gostamos do cavalo. Quando nós passamos ali todo mundo ficava
contente. Que bom que vocês fizeram pra ter uma cultura, ser legais, pra ter uma integração
nós aqui convivendo aqui no mato. Muitas vezes pensam que os índios moram fora da cidade, eles
não conhecem, eles são brabos, eles comem gente tem muitos que falam isso. A gente não a
gente queremos ser amigos, termos amizade, amizade natural. Nós damos aquele apoio pra
vocês, que fizeram o caminho certo pra chegar e dizer que estamos ajudando este povo (...), a
dificuldade de vir de longe. Assim que nós chegamos.
TRADICIONALISTA: - Nós estamos desde ontem de manhã a cavalo, saímos hoje às 8 horas de
Riozinho que dizer que não é tão fácil chegar. A gente ta mostrando as dificuldades que nós
também temos, mas conseguimos chegar até vocês. Porque nós queremos aprender a cultura de
vocês. E queremos que vocês aprendam a nossa cultura.
FELIPE: - Agradeço a presença de vocês. Trazer pra nossa comunidade e falar com a gente e pra
ver como que se mostram e pra trazer a sua própria cultura, a própria língua, a tradição toda. Nós
sentimos muito Sempre estamos por aqui lutando por aqui pra preservar. Espero que vejam na
comunidade sempre leva no coração, leva na mente que leva o sentimento dos povos, o
sofrimento dos povos. E nós fora da cidade, dentro da comunidade nós sempre estamos abertos e
contente e a gente espera que vocês vejam a comunidade nossa que espera vocês sempre com a
mão aberta e assim como nós esperamos que vocês também poderão esperar.
CACIQUE: - Como é teu nome?
- Carlos
CACIQUE: - Então aqui nós estamos recebendo a visita do Carlos e junto com prefeito,que eu já
conheço que veio trazer umas coisas pra nós que veio pra visitar, pra conhecer a área, os índios
também. Então estou agradecendo muito esse trabalho, todos os que estão presentes aqui neste
momento estou feliz, porque aqui eu ganhei muito pouco. de Riozinho que nos apoiaram.
Mas de outras cidades eu nunca ganhei, primeira vez que nós tamo ganhando e estamos
agradecendo muito.Que possam vocês trabalhar melhor, se conhecer melhor, pode dar mas apoio
pra nóis porque o Deus que está junto com vocês e com nóis, né. Guarani e o branco também,
então isso pra poder ter mais a força, a paz e saúde e estamos esperando vocês.
FELIPE: - Eu só queria agradecer lembrando do trabalho do prefeito que a gente a dificuldade que
nós temos da comunidade. Estamos com os braços sempre abertos pra vocês. Nós estamos muito
contentes. Obrigado
As falas indígenas foram sábias e emocionadas contemplando a visão
historicamente construída sobre os brancos e a sua responsabilidade pela
desestruturação da cultura guarani. Nelas há a preocupação da visão dos brancos
sobre os guaranis e dos equívocos em que incorrem ao rotulá-los. Agradecendo
os donativos aceitaram o auxílio, colocando limites bastante claros à entrada de
brancos na aldeia. A verdade guarani não é a verdade dos brancos. Felipe
expressa um modo de vida diverso que tenta interagir com a lógica interétnica
forjada ao sabor das relações - relações de incompreensão. As representações
que o branco constrói sobre o guarani e que usa para não atender suas
reivindicações (não entendimento) coincidem com a
recusa do guarani a este
123
123
tratamento, uma recusa a seus moldes, não aos moldes brancos, uma vez que,
esta é tamm a dialética da preservação de seu ethos e da construção de suas
identidades no jogo das semelhanças e diferenças entre brancos e índios. As falas
guaranis podem ser pensadas conforme expressa Carlos Rodrigues Brandão em
Identidade e etnia: Faz parte do repertório de símbolos e, mais ainda, da lógica
indígena que os estrutura para dar sentido á vida, para explicar, através do que se
vive, como se é e como se deve ser (Brandão: 1986, 32).
O impacto das manifestações do cacique e de Felipe frente aos
tradicionalistas cansados, após dois dias de cavalgada, os fez retornaram calados.
Da aldeia ficou a imagem de muitos índios que não havíamos visto se
aproximando dos donativos no meio do campo. A missão dos tradicionalistas
estava cumprida. Para eles a cavalgada havia sido um sucesso e deveria se
repetir no dia do índio nos próximos anos.
21
Os tradicionalistas deram um passo importante ao cultuarem suas
tradições, como cidadãos cientes de sua responsabilidade social nesta cavalgada
humanitária e concluo que a atuação social praticada no universo tradicionalista se
inscreve como uma motivação a mais de participação do movimento, uma nova
oportunidade de cultuar as tradições, não o inverso. A atuação prática do
tradicionalismo em termos de caridade indígena, nesta cavalgada humanitária se
inscreve nas lutas simbólicas dos tradicionalistas de atualização da autenticidade
do ser gaúcho, uma vez que procuram estabelecer um elo com o passado através
da construção do vínculo com os descendentes de uma das populações
originárias do estado. A imagem que os comemoradores tradicionalistas possuem
dos índios é uma visão do que foram, uma visão da inferioridade mbyá-guarani e
não da riqueza da diversidade cultural.
Entre índios e tradicionalistas, durante a cavalgada, nenhuma menção foi
feita as Missões e ao passado missioneiro. A interpretação deste silêncio quanto à
ancestralidade anteriormente mencionada do gaúcho missioneiro é lapidar. Não
estabeleceram a relação entre os guaranis e as Missões. Provavelmente porque,
21
Em princípio de abril de 2003 recebi um telefonema de Genilton me convidando para participar
da II cavalgada mbyá-guarani a que não compareci em virtude de um trabalho de campo na região
das Missões.
124
124
como na maioria das demais representações apresentadas ao longo deste
capítulo, as Missões não sejam percebidas em relação aos traços guaranis que as
caracterizaram, mas a partir dos traços cristãos, de valores mais inteligíveis e por
isso acionados na re-atualização do passado. De um estranho outro bestializado
de outrora os guaranis ascenderam, na visão tradicionalista, a um outro
despossuído que é dever do tradicionalismo como movimento cívico-cultural
auxiliar.
4 - A música missioneira no Rio Grande do Sul
Na esfera do gauchismo outras representações sobre o passado
missioneiro foram encontradas, tais como a produção de narrativas literárias
22
e
musicais de cunho regionalista observadas abrangendo as atividades de
instituições como a Fundação Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore (IGTF), a
Fundação Gaúcha de Folclore (FGF), tradicionalistas, músicos nativistas,
habitantes e municípios da região das Missões. As referências à música
missioneira se constituem na pedra de toque das demais representações
apresentadas ao longo deste capítulo, pois demonstram o envolvimento de
diferentes atores e territórios na esfera do gauchismo em suas intersecções e nas
relações com outros grupos sociais.
O termo música missioneira pode ser entendido como um gênero musical
relacionado às Missões. Nos diferentes contextos em que é mencionada a música
missioneira pode se referir àquela ensinada pelos jesuítas e reproduzida pelos
guaranis, durante a experiência missioneira, tratando-se do barroco musical,
segundo Jorge Preiss em A música nas Missões Jesuíticas nos séculos XVII e
XVIII (1988:18). Por seu turno o termo também é utilizado para caracterizar, na
atualidade, composições de caráter regionalista, cuja poesia enaltece o passado
missioneiro e seus descendentes, bem como pode ainda relacionar-se a pajada,
22
Neste sentido se inscrevem o texto de Barbosa Lessa São Miguel das Missões da humanidade;
uma proposição antropológica.
125
125
em diferentes momentos e nuances, ou ainda a um gênero musical possuidor de
uma linha melódica peculiar designada como música missioneira a par da música
fandangueira (tocada nos bailes/fandangos), além ainda de uma melodia bastante
lenta e melancólica tocada em ritmo de milonga também caracterizada como
música missioneira.
Diante da pluralidade de menções, na busca de entendimento da mesma, a
música missioneira pode ser pensada em dois contextos e suas decorrentes
apropriações. O primeiro é o da música que foi executada nos Sete Povos das
Missões em suas apropriações e o segundo, o referente ao regionalismo através
da produção musical do grupo que se auto-designa como compositores e
intérpretes nativistas.
Percebi a apropriação da música executada nas Missões durante a
experiência missioneira platina, na atualidade, no espaço do sítio arqueológico de
São Miguel, no final da tarde, nos momentos que antecedem a apresentação do
espetáculo Som e Luz e durante o próprio espetáculo. No primeiro caso o
projeto Música nas Missões reproduz em cd composições missioneiras dos
séculos XVII e XVIII que podem ser ouvidas nas arquibancadas em frente à igreja.
São cds de música sacra, pertencentes à Secretaria de Turismo do município:
Musica de las Misiones de Chiquitos, Alabanzas a la Virgen e Musica de los dos
mundos. O objetivo do projeto é divulgar a música barroca das Missões no cenário
das ruínas.
A musicalização do espetáculo Som e Luz, composta por Jorge Preiss, faz
parte da recriação e teatralização do cenário da Redução de São Miguel Arcanjo
com o intuito de contar sua verdadeira história. Neste sentido, em ambas as
circunstâncias, o barroco missioneiro apresentado é uma representação musical
da música das Missões no passado e não apenas uma reprodução da mesma que
percebo como impossível em razão das circunstâncias espetaculares de sua
execução na atualidade, bem como pelo desaparecimento dos instrumentos
utilizados em sua execução naquele período. O padre Antônio Sepp em Viagem
às missões jesuíticas e trabalhos apostólicos (1980: [1710] 240) se refere a
música como responsável pela missionarização e grandiosidade do projeto
126
126
colonial para educar a alma, como instrumento pedagógico de integração dos
guaranis às Missões.
As apropriações da música missioneira se relacionam à questão da
recepção e consumo da obra de arte. Pierre Bourdieu no texto Gosto de classes e
estilos de vida (1983) relaciona a disposição estética como enraizada nas
condições de existência particulares de um estilo de vida. Para o autor a
apropriação da obra de arte se relaciona ao poder simbólico de divisão entre as
classes sociais que adquirem suas condições de apropriação da mesma não
apenas através da escolarização, mas, sobretudo, através das experiências
familiares compartilhadas, foco da distinção dos gostos e estilo de vida. Segundo
o autor:
O consumo material ou simlico da obra de arte constitui uma das
manifestações supremas do desembaraço, no sentido de, ao mesmo
tempo, condição e disposição que a língua ordinária a essa palavra.
(...). Deste modo, a disposição estética se define também, objetiva e
subjetivamente, com relação às outras disposições. (Bourdieu: 1983, 87).
....................................................................
(...) a música não são os discos e a eletrola dos vinte anos graças aos
quais descobrimos Bach e Vivaldi, mas o piano da família, ouvido desde
a infância e vagamente praticado até adolescência; a pintura não são os
museus, de repente descobertos no prolongamento de uma atividade
escolar, mas o cenário do universo familiar. (Bourdieu:1983, 97).
As colocações de Bourdieu no que diz respeito à música das Missões e sua
representação enquanto vestígio do passado remete a definição de música como
produto de um tempo e contexto e sua transposição como evocação desse
passado numa relação dialética entre produção, representação e recepção
musical, no sentido de que, não uma preparação dos espectadores no
recebimento da representação da música missioneira. Há, apenas, a preocupação
dupla por parte do projeto Música nas Missões e do Som e Luz em construir o
vínculo com o passado a partir do momento presente através da representação do
barroco missioneiro, em embate com a própria designação de uma música
missioneira reivindicada pelos regionalistas na luta pela definição do passado
missioneiro no presente.
127
127
A música é vista como um apêndice se comparada às demais menções ao
passado missioneiro que ocorrem no espaço do sítio, em que uma mediação
ou preparação a cargo dos guias, em termos da recepção a par de outros
aspectos turísticos nas Missões. Em termos da música apresentada, a
suposição da existência de capital cultural garantidor de sua interpretação. Logo, o
estabelecimento de relações com a mesma - aspecto descolado do passado
missioneiro - no presente se insere na lógica referida por Bourdieu em que a
possibilidade de aquisição e entendimento se em relação às particularidades
das condições de existência de um estilo de vida. A música missioneira, nas
situações acima referidas, é acionada como dimensão do erudito e se insere como
poder de divisão, numa perspectiva de cultura enquanto civilização = erudição. O
barroco como dimensão musical da civilização construída pelos jesuítas nas
Missões.
Na esfera do regionalismo a música missioneira é referida também como
possibilidade de nomeação e classificação do passado missioneiro no presente.
Mas se insere enquanto representação deste passado em oposição aos aspectos
eruditos da cultura missioneira, afirmados através da referência ao Barroco
Missioneiro, de que a música se constitui em uma de suas expressões. A
variedade de definições da música missioneira encontrada entre os compositores
nativistas conduz a questão da produção de um gênero musical ou de uma
temática poética, relacionada à cultura popular e gerada a partir da região das
Missões ou que, mesmo partindo de seu exterior, dela se apropria.
As definições de música missioneira são bastante nebulosas. Para seu
Argemiro, gaiteiro do município de São Luiz Gonzaga, pai do músico nativista
Erlon Péricles a música missioneira é temática e não um ritmo de fandango (diário
de campo 3), no sentido de que a poesia remete ao passado missioneiro, como
nos versos dos poemas e músicas de Jaime Caetano Braun, Cenair Maicá, Pedro
Ortaça e Noel Guarany.
23
23
Guardadas as diferenças e posturas entre os mesmos, de uma forma geral, uma relação
entre esses compositores que enfocam o passado missioneiro enquanto herança da qual se
consideram herdeiros e cultuadores, sob o signo do regionalismo, em que as Missões passam a
ser percebidas (similarmente às representações dos tradicionalistas) como a origem do gaúcho.
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A força e a especificidade da temática missioneira remete ao ritmo e a uma
linha melódica que passa a ser divulgada por Jaime Caetano Braun e também
Noel Guarany que é a payada ou pajada. Nos versos Destino Missioneiro Guarany
justifica as razões do seu canto e o dever de pajador:
Esse destino me fez/Cantor de muitas payadas/Parceiro de
guitarreadas/Em pulperias estranhas/Passatempo de campanha/Que em
dia santo e domingo/Cada qual em melhor pingo/Num dia folgado e
campeiro/Vão chegando mui faceiro/Pra pulperia sorrindo
Nesse ritual primitivo/De orgias campechanas/Me deu sorte aragana/Ser
pastor desse rebanho/Se jogar truco ganho/Se cantar, comando
farra/Pois sou mesmo que cigarra/Pra cantar de contraponto/Faço um
cantor ficar tonto/E se manear na guitarra
Canto terra, pampa e rio/Com campeira vivência/De filho desta
querência/Feito a casco de cavalo/Onde os buenos e os
malos/Vaqueanos de muitas guerras/Banharam campos e serras/Com
sangue de mil combates/Sem saber que nesse embate/Foi puro amor
pela terra.
São passado que me orgulho/De cantar de alma aberta/E há de ser rimas
bem certas/E as cordas bem afinadas/A garganta bem afiada/E os
acordes bem certeiros/E assim qualquer brasileiro/Ou se escuta algum
paisano/Verá que é sul americano/O canto do missioneiro
Verão que as raças se uniram/Num potencial varonil/Pra levantar o
Brasil/Índios, gringos e mestiços/Sem medir sacrifícios/Sem sede sem
sentir sono/Como se a terra, seu trono/Lutando com força e fé/Igual como
gritou Sepé/A nossa terra tem dono
Evoco o santo cacique/O imortal Tiarajú/Que deu pra este xirú/A sublime
inspiração/De lutar por este chão/No mais sério patriotismo/Da lança para
o lirismo/ Da tradição ao presente/Da incertidão ao consciente/Pra o puro
brasilianismo
Se não entendem meu canto/Neste país muito grande/Hei de cantar meu
Rio Grande/Pedaço de continente/E se cantar o que a alma sente/É falta
pra um pecador/Meu patrão nosso senhor/Que perdoe este gaudério/Vou
levar pro cemitério/Este destino cantor.(Sosa e Silva: 2003, 78)
.
Esta payada de Noel Guarany que faz parte de sua biografia póstuma Noel
Guarany: destino missioneiro, organizado por Chico Sosa e Neide Silva ilustra as
Missões como foco de sua arte, enquanto lição histórica que o compromete a
efetuar a defesa da cultura missioneira como resistência. Guarany se considera
como um escolhido para cantar sua história e seu passado se designando como
missioneiro, herdeiro de Sepé Tiarajú, consciente de sua missão que é lutar tal
qual o cacique missioneiro por sua terra, ligando o passado ao presente,
extrapolando a tradição e incorporando o ser regionalista missioneiro ao
patriotismo brasileiro, através de seu canto.
129
129
Letícia Nedel em O embate entre a parte e o todo na payada de Noel
Guarany, assim caracteriza sua arte: Peça memorial, a payada mistura tempo
presente e passado, eliminando fronteira políticas e privilegiando referenciais
históricos e geográficos capazes de caracterizar a cultura rio-grandense numa
matriz tangencial à brasileira, vinculada ao Prata. (2002, 4). Para a autora o canto
de Noel Guarany
24
(1941-1998) se configura em resistência e oposição às
interpretações acadêmicas das Missões, bem como a inúmeros atores do universo
regionalista e demais instituições do estado que a sua época se apropriavam do
passado missioneiro de forma oposta às reivindicações de Noel Guarany.
Paulo de Freitas Mendonça é um dos principais pajadores e divulgadores
do gênero no Rio Grande do Sul. Começou a pajar 20 anos atrás inspirado em
Jaime Caetano Braun e se aproximou de pajadores argentinos e uruguaios em
busca de informações e integração. Ao conversarmos, durante a primeira edição
do Concurso de Pajada no dia 10/11/2002, no 17° ENART, ele a situou,
defendendo sua universalidade:
- A pajada é um improviso em décimas, ou seja, um improviso que o repentista faz em estrofes de
dez versos, com quatro rimas. A forma literária dessa questão rimática é ABBAACCDDC, ou seja,
a primeira rima com a quarta e a quinta, a segunda e a terceira entre si. A sexta e a sétima rimam
com a décima e a oitava e a nona entre si. Essa décima chama-se décima espinela foi encontrada
pela primeira vez no mundo em 1591 por um poeta espanhol chamado Vicente Espinel, nascido
em Ronda no seu livro Diversas Rimas. A partir daí com a colonização européia dos vários
continentes do mundo ela se espalhou e ganhou características próprias em cada localidade. (..)
25
-
Qualquer tema é bom, mas ele tem que dar possibilidade do pajador filosofar.(..)
- Missões é um bom tema ele tem uma energia guerreira, ele tem uma energia de ancestralidade,
ele tem uma qualidade de monumento da humanidade, que hoje as Missões são monumento da
humanidade pela UNESCO. Ele tem essa gana missioneira de querer uma pátria para eles, ele tem
24
Noel Guarany e Jaime Catano Braum (1924-1999) nasceram na Bossoroca (antigo distrito de
São Luiz Gonzaga) e foram os dois grandes referenciais da música missioneira no Rio Grande do
Sul, enquanto payadores, conforme aponta Henrique Mann em Sons do Sul: a história da música
do Rio Grande do Sul no século XX (2002;137). Ambos compuseram juntos o afamado long-play
de 1977 Payador, Pampa e Guitarra, sendo considerados responsáveis pela popularização do
gênero no Rio Grande do Sul. Exerceram uma profunda influência no que é referido como a
temática da música missioneira no Rio Grande do Sul bem como serviram de inspiração á
realização do concurso de Pajada ocorrido no 17° ENART em 2002 e ao Encontro de Pajadores de
30/01/2203, promovido pelo IGTF (Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore), comemorativo ao dia
do pajador.
25
Segundo Raúl Fradikin em Centaures de la pampa: le gaucho entre lhistoire et le mythe (2003:
116) a construção do termo e figura do payador na Argentina se inscreve nas afirmações de
Sarmiento no século XIX da construção do gaúcho com símbolo nacional argentino, com a
naturalização dos pendores poéticos dos habitantes da campanha e a existência de uma poesia
popular do gaúcho.
130
130
esse amor à terra do grito de Sepé. Ele é realmente um tema inesgotável. Eu acho que isso é
importante para as pessoas que escolhem os temas, ou que venham a escolher que dêem esse
direito à universalidade. (FITA K-7 1 A).
A referência às Missões ocorreu em imeras ocasiões de nossa conversa.
Segundo ele, embora não haja uma região preponderante de pajadores no Rio
Grande do Sul, existe uma tendência de relacionar a pajada com as regiões de
fronteira e às Missões, pois por parte dos músicos da região uma exploração
do fato de se identificarem com as Missões, o que passa a se constituir para eles
como uma espécie de passaporte musical para cantar, como ilustram os versos
anteriormente citados de Noel Guarany:
- Não, mais um tema de fronteira e também muito falada nas Missões por duas questões
fundamentais: primeiro o Jaime ter sido um missioneiro e a segunda por esta energia toda que as
Missões causam. Dá uma riqueza de temática muito grande e uma coisa que talvez a
Antropologia explique isso. Nós os gaúchos quando queremos firmar nossa identidade nós falamos
no Sepé Tiarajú. Nós queremos firmar nossa identidade como nação nós falamos nas Missões.
Talvez essa forma do gaúcho se auto-afirmar nas Missões faça com que as Missões sejam
importantes em qualquer tipo de arte e principalmente na pajada, mas ela não é dividida por região
essa questão cultural. (...).É uma coisa de sentimento, de espírito de identidade. . (FITA K-7 1 A).
Para ele o constante apelo às Missões pelos gaúchos é uma questão
antropológica de reivindicação identitária, acionada através da referência a Sepé
Tiaraju de que os gaúchos são os donos da terra e com ela se identificam. Um
signo de auto-afirmação acionado por Paulo de Freitas Mendonça como um sinal
diacrítico que, em termos de arte, pode ser entendido como a chave da produção
da diferença e sua nomeação em termos da música missioneira e de um duplo
equívoco que, na sua ótica, se traduz na identificação da pajada com as Missões
(como sendo uma música missioneira) e de músicos missioneiros que são
percebidos como pajadores:
-Mas a música missioneira se sobressaiu por uma questão de autoafirmação, as pessoas naquela
região são de muita auto-afirmação. Noel Guarany era uma pessoa que falava muito na primeira
pessoa, Jaime Caetano Braun era uma pessoa que falava muito artisticamente e pessoalmente na
primeira pessoa. Pedro Ortaça hoje assim, o Cenair Mainão ele já tinha uma universalidade
maior na sua música. Então a maioria dos poetas e cantores e o pajador que era o Jaime sempre
procurou falar na primeira pessoa e auto-afirmando a música missioneira. Não existe música
missioneira se nós formos analisar. Essa música missioneira ela é uma música de fronteira, de
inspiração Argentina, de inspiração de fronteira. Eu me auto-contestaria aqui, não é que seja de
inspiração Argentina, nós temos algumas pessoas e que defendemos algumas teses, de dizer que
essa música já estava aqui antes que o Brasil, Uruguai e a Argentina podem requisitar a
131
131
paternidade da Zamba, da Milonga, da Chimarrita, só que ela houve uma preservação maior na
Argentina por ser um país identificado com as raízes. Nós temos um problema de regionalização
folclórica, nós temos uma tradicionalidade regional, enquanto na Argentina e no Uruguai é nacional
essa questão, até dentro de um imaginário popular. Então eu não sinto isso no Rio Grande do Sul.
um cruzamento de influência entre as criações musicais que não definem muito uma região,
então a música missioneira ela se auto-definiu e ela foi absorvida pelo imaginário popular que ali
tem uma música missioneira, esta música é que nem o bugio que dizem nasceu em São Chico de
Paula, mas o Tio Bilia nas Missões tocava bugio era um dos primeiros a tocar esse ritmo tanto que
os Bertussi aprenderam a tocar bugio com o tio Bilia. Se formos analisar eu não consigo fazer essa
definição tão clara da música até porque o Rio Grande do Sul é composto por artistas que residem
em Porto Alegre e aqui eles se auto influenciam, então uma miscigenação musical muito
grande, então eu não creio que haja uma música missioneira, ela é na verdade uma música
resgatada da Argentina que deve ter passado pelo RS e que depois foi resgatada, o Noel viajava
muito.
Para ele não uma música missioneira, mas um imaginário tendente á
construção da divulgação de sua existência do que decorre um entendimento
neste sentido dentro da própria região das Missões no constante a afirmação do
missioneiro como peculiar, inclusive em termos artísticos. A tese de Paulo de
Freitas Mendonça é bastante similar a da folclorista etnomusicóloga Rose Marie
Reis Agrifoli, ex-presidente da Comissão Gaúcha de Folclore:
- Eu também tenho ouvido olha o xote missioneiro, o xote missioneiro eu me pergunto tem alguma
diferença entre o xote de outra região, não ele é igual em Quaraí, não ele é igual ao de
Uruguaiana, então porque que chamam, então quando começam a batizar e a nomear alguma
coisa tem naquele tipo de música, que faz com que ela se identifique como sendo daquela região,
e não de outra é como o xote gaúcho, o próprio xote recebeu essa denominação normal, pela
espécie de gênero musical somente, mas as pessoas além de denominar aquele tipo de música
pelo gênero musical ainda tem o cuidado de indicar a região do Rio Grande do Sul de onde
provém. Eu diria que a região missioneira ela está muito ligada ao imaginário das pessoas e esse
imaginário ele é feito assim de telurismo, então este telúrico atinge o imaginário das pessoas e faz
com que haja um tratamento diferenciado do campo da estética e principalmente do campo das
considerações especiais que a gente chama de respeito não é. Ser da região missioneira ou não
ser da região missioneira tem diferença no Rio Grande do Sul então se trata com uma aura as
coisas que são dali se tratam com uma aura. (FITA K7 1
A)
Apesar disso constatei referências à proliferação de um entendimento sobre
a existência de uma música missioneira, durante os trabalhos de campo, conforme
ilustra o diálogo que tive com Romaldo, amigo peregrino (guia) do Caminho das
Missões:
ROMALDO: - Estava comentando que a música da região das Missões ela tem uma característica
própria, ela conseguiu manter as raízes depois da música transferida junto aos índios e eles se tu
ouvir a música aqui ela é uma música missioneira, ela tem traços da época dos índios. Em São
Luis Gonzaga, nós podemos visitar Jorge Guedes. São Luis é a cidade dos poetas Pedro Ortaça.
CERES - Há algum pajador na região?
-Tem lá em São Nicolau, eu não sei se vamos conseguir pegar o pajador hoje, o Tuta.
132
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-Tu falastes que a música missioneira ela tem traços dos guaranis?
-Ela tem características da época dos guaranis, eles contam, se tu cuida na música missioneira ela
sempre traz a história das Missões, por trás ela conta sempre a história então eles identificam
como música missioneira, dentro do Rio Grande do Sul tu consegue ver uma separação um pouco
da música.
-E com relação a linha melódica tem alguma diferença com relação a outras produções musicais?
O ritmo é diferente?
-Tu consegue perceber uma diferença sim. Eu não sei te dizer. É interessante nós conversarmos
com um músico, há diferenças até no ritmo.
-Então tu consideras que a música missioneira tem uma determinada autenticidade com relação
aos povoados?
-Tem uma autenticidade e uma temática própria.
Nosso diálogo possibilita perceber o reconhecimento da peculiaridade
atribuída à música missioneira por um dos habitantes da região, que a representa
como autêntica e peculiar, não está preocupado e não percebe as diferenças entre
trovadores e pajadores. É importante o fato de as Missões serem cantadas e com
isso se constituir em mais um dos aspectos do ser missioneiro. O Tuta referido por
ele como pajador, é um conhecido trovador da região que conheci no CTG
Querência de São Nicolau quando este estava participando do concurso de trovas,
ao visitarmos o município. Neste sentido, vale referir as palavras do pajador Paulo
de Freitas Mendonça a respeito de Noel Guarany, da criação da imagem do
pajador e da disseminação da temática missioneira:
- Não o Noel Guarany e Ataualpa Yupanqui são os maiores equívocos, não deles, são artistas
maravilhosos tiveram sua verdade artística de atuação elogiável, quero deixar bem claro, mas são
os maiores equívocos de interpretação popular, as pessoas interpetram Yupanqui como pajador
porque ele escreveu O Payador Perseguido, ele não era pajador. O Noel Guarany cantava muitos
versos de Jaime Caetano Braun que se auto definia como pajador. No meu canto pajadoresco.
Ele não era pajador. Ele fazia versos escritos e decorados, ele era guitarreiro. Ataualpa Yupanqui
também era um cantor guitarreiro, ambos admiradores dos pajadores, mas não tinham o dom do
improviso ou pelo menos não expressaram publicamente esse dom de improviso. Há um equívoco
de interpretação popular porque eles defenderam esse tipo de arte, então hoje é muito comum citar
Noel Guarany e Yupanqui como pajadores. Sim, esta foi uma das grandes lições. Nós não viramos
as costas a Noel Guarany e a Yupanqui, muito pelo contrário. Eu acho que assim, a imagem
passada por eles. A forma de cantar era por milonga, a forma de cantar era meio pajadoresca, mas
existe nesta concepção que eu estou te passando eu estou te dando, eu estou colocando um
divisor de águas entre forma pajadoresca e o canto pajadoril. O canto pajadoril é esse feito aqui
hoje bem ou mal de improviso, a forma pajadoresca é um cantar por milonga, quase recitado na
mesma décima (...). O Noel fez muito isso, musicou muitos versos do Jaime, escreveu algumas
décimas. (...) O Noel escreveu uma que eu pesquisei em décima que foge a décima espinela e
depois quando ele começou a musicar mais versos pro Jaime ele passou a escrever em Décima
Espinela, então como ele musicava em milonga ele dava esse imaginário que tu citas bem
recolhido por ti ele dava esse imaginário pajadoresco, tanto ele como o Ataualpa, criavam esta
imagem do canto pajadoril, mas eram versos decorados, interpretados como canto do pajador
133
133
A recepção de um imaginário favorável a respeito da música missioneira foi
percebida também ao conversar com Eraci Rocha
26
músico nativista e presidente
do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore na gestão 98/2002:
:
- Ceres, é o seguinte que eu vou seguido prá região missioneira e vou a trabalho eu sinto uma
coisa diferente de todo o estado e eu vou te explicar e tu vai entender porque isso aí. E com
certeza tu te emocionasse com isso, e eu vou te dizer uma coisa: nós cantamos em todo o estado
o cavalo, o campo, o heroísmo, cantamos o machismo lá sei eu cantamos todas as coisas, ali nas
Missões nós cantamos o homem, o ser humano é sempre cantado e todas as vezes que eu vou
nas Missões eu me transformo quando eu to lá. (FITA K7 1B).
A temática das Missões e a música missioneira como sua representação
artística foram destacadas, ao longo deste tópico, como a encarnação do fascínio
exercido por este passado no presente. Sua força está na possibilidade de
engendrar um passaporte para se transportar às Missões, através da composição
poética exaltadora de heróis, da terra e do homem, pelo canto. Não há uma
definição da música missioneira como nero musical regional, embora seja
inegável a presença recorrente da temática em termos da música regionalista, que
se relaciona a significação da força atribuída a este passado pelos entrevistados,
em suas composições.
A temática também se expressa na existência de um Festival da Música
Missioneira de Santo Ângelo Grito dos Livres -, cuja primeira edição ocorreu em
novembro de 2002. Interpreto sua realização como uma forma de coroamento e
divulgação do próprio modo de ser missioneiro a partir de Santo Ângelo em
relação a outros projetos como, por exemplo, os projeto turísticos que se
desenvolvem na região. No entanto, o festival não define o que é para ele a
música missioneira a partir do seu regulamento, o que conduz a uma interpretação
do missioneiro como o que aborda como temática as Missões.
A construção de um entendimento do missioneiro em termos musicais a
partir das falas de atores regionalistas, a exploração e sua apropriação com o seu
26
Neste mesmo sentido se expressaram os músicos Telmo de Lima Freitas (missioneiro de São
Borja) e tio Nanato e Araújo, durante o Acampamento Farroupilha de 2002 em Porto Alegre. A
trova (desafio) e a pajada são composiçéoes de improviso com diferentes rítmos. Para efetuar a
diferença entre ambas consultar Dicionário de Regionalismo. Sobre os aspectos de
profissionalização ver de Maria Elizabeth Lucas o artigo Classe dominante e cultura musical no Rio
Grande do Sul (1996).
134
134
aproveitamento a partir de um passado que passa a ser cantado e divulgado pela
música regionalista, passa a ser nomeado como um tema pertencente à região,
enquanto discurso performático dos músicos e da organização do festival. Assim,
a música missioneira é a que canta as Missões em seu passado propiciando seu
vínculo com o presente através da realização do
Festival em que o passado passa
a ser vivido como tradição missioneira.
No entanto, a exploração das Missões em termos musicais por festivais
nativistas não é recente e remonta a própria origem destes festivais na década de
1970. O cantar o homem como referiu Eraci Rocha causa um impacto e
guarda a energia de retornar ao passado e nomear os ancestrais, criando um
imaginário favorável neste sentido.
Em termos de produção de representação musical, o festival de música
missioneira de Santo Ângelo Grito dos Livres
27
surge num contexto de
celebração/comemoração no cenário dos Festivais Gaúchos, em que muitos deles
passam a celebrar seus aniversários, como no caso dos trinta anos da Califórnia
da Canção, da Barranca, da Ciranda Teuto Rio-grandense de Taquara, do Grito
de Jaguari, etc. Na Assembléia Legislativa em 20/09/2002 foi lançado o projeto da
Mostra Farroupilha de Festivais Nativistas que ocorreu durante os dias 6 e
7/11/2002 onde cada um dos festivais escolheu para apresentar ao público a
27
É interessante assinalar que o tema Missões não é encontrado apenas na região designada
como missioneira, mas é produzido e cantado em diferentes lugares do estado em diversos
festivais nativistas. Em 1995 a composição vencedora do festival Grito do Nativismo da cidade de
Jaguari, situada na região central do estado foi à composição Ruínas de Vinícius Brum. Na
composição não uma referência expressa às Missões como nos versos de Noel Guarany, por
exemplo. O que é abordado por Vinícius Brum é a relação com as Missões estabelecida através
das ruínas, enquanto vestígios materiais de um passado distante mais presente pelas evocações
que possibilita a uma cultura perdida, contrariamente ao efetuado, por exemplo por boa parte dos
músicos missioneiros.
As ruínas rugem seus leões nas pedras repletas de dor
As ruínas choram lágrimas de fogo fogueirais da dor
As ruínas dormem em olhos prisioneiros daqueles primeiros que viviam
Com a maravilha de arrancar da terra com os seus suores o que a terra dá.
Oh! Casa do pranto mãe das invernias tudo o que anunciavas não vai mais voltar.
Flor de cada dia que história trazes de quem não virá
Flor da pedra solta conta dessa sombra que não vai clarear
Flor do nosso tempo diz que tempo é esse que ficou perdido e vem nos embalar
Nessas badaladas que nos atormentam quando não há nada mais para escutar
Oh! Casa dos prantos mãe das invernias o que silencias vem nos revelar.
Sabe Deus porque Deus prometeu toda a luz para a terra e depois apagou.
Quem morreu quem ficou hoje mora no fundo do escuro do que Deus criou.
135
135
músicas mais significativa de todas as suas edições. O Musicanto de Santa Rosa
apresentou a canção de Nelson Coelho de Castro Do Sangue da Terra Nada
Guarani. Nos dois dias de evento esta foi a única composição que remetia às
Missões, uma composição extremamente conhecida, por seu caráter de
universalidade, de certa forma similar à mensagem musical de Noel Guarany ao
remeter a questão indígena e a necessidade de um cantar sul-americano a que se
propõe o Musicanto.
Frente às colocações apresentadas da defesa da música missioneira e da
criação de um espaço para sua divulgação em Santo Ângelo percebo na região
das Missões um desejo de regrar tamm esse aspecto através da criação de um
festival cuja temática lhes pertence. Da mesma forma que a pajada passou a ser
regrada e concebida quase que em termos de uma instituição musical, a
universalidade das Missões enquanto temática por um lado é alardeada e, por
outro tende a se restringir (pela atuação de Santo Ângelo) para ser vivida (e
vendida) na região missioneira pelos missioneiros, para os turistas a par dos
compositores nativistas que, majoritariamente, produzem uma música para ser
apresentada no palco dos festivais.
A ambição de Noel Guarany de criar um canto sem fronteiras, da defesa da
arte, de um gauchismo continentino merece ser lembrada como inviabilizada no
campo do regionalismo como ele próprio criticou, em que a construção de uma
música missioneira vem sendo reivindicada como propriedade missioneira pelo
Festival de Santo Ângelo em contradição a sua universalidade representada como
origem do gaúcho e por isso pertencente, em termos representacionais, não a
todo o Rio Grande do Sul, mas também aos missioneiros das outras bandas do rio
Uruguai.
5 - Considerações finais
As narrativas produzidas sobre as Missões nas atividades do gauchismo e
sua constante re-atualização, por esse grupo de comemoradores, se inscrevem
em uma perspectiva de apologizar o passado para revivê-lo, conforme
136
136
demonstram os sentidos expresso nas representações. O missioneiro apropriado
no gauchismo pode ser definido como um ser belicoso e heróico forjado na leitura
de um passado colonial que mudou o destino da região e do Rio Grande do Sul
como um todo ao tornar-se português e brasileiro.
A imagem do gaúcho com que se identificam os tradicionalistas e a partir da
qual advogam seu pertencimento, como legítimos cultuadores das tradições do
Rio Grande, que construíram e escolheram como autênticas, apresenta uma clara
vertente hispanófila, cujas contradições são mascaradas através do processo de
construção de heróis identificados com a alma regional e cultuados em suas
atividades.
As relações estabelecidas no contexto do gauchismo em relação à
nomeação do passado missioneiro ocorrem de fora para dentro da região das
Missões o que me permite assinalar que este passado é vivido como o mito
originário do gaúcho, no seio do gauchismo, especialmente no que concerne à
figura de Sepé Tiaraju, inegavelmente relacionada à questão da terra e da luta
pela mesma. Esse vínculo com a terra gerado a partir das Missões e uma certa
unidade representacional em torno da figura de Sepé Tiaraju confere ao mito sua
eficácia entre os regionalistas, através dos tempos, nas sucessivas narrativas
visitadas que se comunicam: de Cezimbra Jacques ao tradicionalismo, passando
pela música, pela publicidade e literatura em leituras sucessivas do passado no
presente em constante atualização.
Denis Chevalier e Alain Morel no texto Identité culturelle et appartenance
régionales; quelques orientation des recherches (1985: 4) exemplificam as festas
populares como ocasiões de mise en scene das identidades como relativas à
produção de discursos pelos atores que contribuem para redefinir seus esquemas
de pertencimento. Jean-Noél Pelen no texto Le pays dArles; sentiments
dappartenance et représentation didentité (1985:45) ao refletir sobre os rituais
identitários analisa o poder dos ritos de paralisar a história, permitindo que seja
liberada e vivida como se deseja.
As Missões e o passado missioneiro como tentei demonstrar ao longo deste
capítulo, são utilizadas na construção das representações sobre o gaúcho que
137
137
nasceu das Missões, cuja genealogia se inicia com Sepé Tiaraju. É a experiência
missioneira platina que no imaginário tradicionalista marca a relação com a terra,
através do grito de Sepé esta terra tem dono; como parte constitutiva da
identidade regional acionada. O gaúcho, assim, é missioneiro em sua composição.
Um bravo, possuidor de características liminares, uma mescla de índio
cristianizado com os habitantes ibéricos de que se orgulham os tradicionalistas
exaltando-o em suas representações e a ele se referem como raça, da qual se
percebem como legítimos descendentes.
A identificação com o missioneiro é acionada a partir dos territórios do
gauchismo em circunstâncias de exaltação deste pertencimento que se
configuram como momentos de mise en scene de identidade do gaúcho que
paralisa a história das Missões com o objetivo de vivê-la, em atividades
ritualizadas como os desfiles, os concursos, cavalgadas e os festivais nativistas
como mito originário do gaúcho.
No entanto, um duplo movimento a ser assinalado. As Missões como
região em construção através da nomeação e utilização do ethnotype missioneiro
apresentam uma postura de disputa pelo pertencimento do ser missioneiro como
adstrito as Missões, no sentido de sua exploração através de eventos e pacotes
turísticos em que o termo passa a ser comercializado como marca, conforme o
assinalado com relação à música missioneira.
O fato de o gaúcho, representado pelo gauchismo, ter nascido das Missões
torna os missioneiros e a região ainda mais gaúcha, porque o Rio Grande nasceu
lá. E assim, em São Nicolau a linguagem do regionalismo se torna imagem do
município ao ser representado pela administração e pelo turismo como a
primeira querência do Rio Grande, nascida em 1626 numa circulão de
interpretações que ultrapassam a esfera do regionalismo, denotando sua adoção
como linguagem preferencial na produção e alusão dos pertencimentos de São
Nicolau ao Rio Grande do Sul, às Missões (como diferencial dos demais
povoados) e dos habitantes do município que se identificam como descendentes
dos primeiros gaúchos, antes mesmo da existência de Sepé Tiaraju.
138
138
CAPÍTULO 4
O Passado missioneiro no presente dos povoados: a atuação do turismo nas
Missões
Nas narrativas interpretadas neste capítulo apresento uma etnografia
baseada em informações obtidas no espaço dos povoados missioneiros platinos,
objetivando interpretar as percepções apreendidas nos mesmos como norteadoras
de memórias a respeito do passado missioneiro no presente em relação as
pêrspectivas de comemoração, acerto de contas ou de crescimento individual,
estabelecidas com o mesmo. Neste sentido, serão apresentadas representações
de diferentes atores sociais nas Missões tais como: as apropriações efetuadas
pelos organizadores de pacotes turísticos e por turistas em visita às mesmas, a
produção de projetos turísticos na região e a recepção do turismo pelos habitantes
locais, constituindo-se assim, o turismo no principal elemento propiciador das
percepções que tentarei interpretar.
1- Porque estudar o turismo nas Missões
Com relação ao espaço enquanto norteador de memória das Missões, em
relação às antigas Missões jesuítico-guaranis, cabe salientar a existência dos sete
antigos povoados no Rio Grande do Sul, os quais se constituem em sua maioria
em municípios, além das ruínas missioneiras situadas na Argentina e no Paraguai.
Desta forma me deparei com uma impossibilidade física e temporal de observação
da totalidade dos povoados
1
e a partir dos primeiros contatos com o espaço
missioneiro percebi a necessidade de efetuar algumas opções em termos de
campo, tais como: em que locais deveria permanecer por mais tempo e os
1
Logicamente, alguns que se salientam em termos de veiculação da memória missioneira
como São Miguel no Rio Grande do Sul, San Ignácio Mini na Argentina e Santíssima Trinidad no
Paraguai.
139
139
aspectos que deveria priorizar nas observações a fim de perceber as relações
estabelecidas entre o passado e o presente, que havia muito a ser apreendido
e, por outro lado, vários estudos contemplando especialmente São Miguel.
2
Para esclarecer minha opção pelas memórias veiculadas pelo turismo nas
Missões é necessário salientar que os critérios de minha inserção no campo foram
se modificando, sendo construídos, ao longo do seu desenvolvimento, ao sabor
das oportunidades e obstáculos encontrados. Para explicitar minha opção por
etnografar as viagens turísticas, considero pertinente efetuar um pequeno relato
acerca desta experiência:
Durante o semestre de 2001, como parte dos créditos necessários ao
doutorado cursei a disciplina de Sociedades Indígenas e, como trabalho de
campo
3
da mesma, foi escolhido irmos a São Miguel das Missões efetuar uma
avaliação das condições dos mbyá-guarani que haviam recebido terra neste
município (reserva denominada Nhancapetun), para tentar intermediar suas
relações com a prefeitura.
Neste contato inicial percebi, em termos operacionais, uma série de
obstáculos ao desenvolvimento das observações mais prolongadas no município,
tive a impressão de uma ênfase bastante grande a São Miguel em termos de
pesquisa em um curto espaço de tempo com os informantes da cidade e região
sendo sucessivamente assediados por diversas pesquisas, em detrimento de
outros territórios missioneiros. Os mbyá-guaranis me pareceram cansados de
tantas promessas de conversas infrutíferas e de servir a uma antropologia de
idas e vindas e lentos resultados.
Por outro lado, me pareceu que o principal espaço de configuração das
relações entre passado e presente no município se constituía nas ruínas de São
2
No PPGAS-UFRGS duas teses de doutorado tiveram trabalhos de campo desenvolvidos
preferencialmente em São Miguel. Refiro-me aos textos de José Otávio Catafesto de Souza Aos
fantasmas nas brenhas (1998) sobre etnologia indígena e de Flávio Leonel Abreu da Silveira.As
paisagens fantásticas e o barroquismo das imagens (2004) sobre biologia e memória coletiva.
3
Este trabalho, que ocorreu entre os dias 30/11 e 2/12/2001, demonstrou, além das péssimas
condições em que se encontravam os mbyás - vivendo com suas famílias em barracas de lona
preta, sem água encanada e energia elétrica, sem condições de plantio e sem escola indígena
para as crianças - a dificuldade de dialogar com o poder público que tentamos, sem grande êxito,
intermediar.
140
140
Miguel patrimônio da humanidade administrado pelo IPHAN
4
. Relaciono desde
então esta configuração à existência e implementação de um projeto turístico que
inclui visitas guiadas ao sítio arqueológico, museu, vídeo e o espetáculo Som e
Luz. Além da própria presença indígena no parque objetivando a venda de
artesanato para os turistas.
Naquela ocasião, no final de 2001, encontrei São Miguel bastante voltada
para o turismo (esta pelo menos era a imagem que a municipalidade e alguns
cidadãos tentaram nos passar) e melhor estruturada do que em minhas visitas
anteriores agora com novo hotel, uma pousada e vários restaurantes. O projeto
turístico abrangia ainda um pórtico em construção e pequenas paradas de ônibus
ao longo da estrada de acesso imitando o estilo de edificação das ruínas e uma
intensa atuação da prefeitura local na promoção do turismo. Segundo Margarita
Barreto em O imprescindível aporte das Ciências Sociais para o planejamento e
compreensão do turismo:
O turismo consiste no deslocamento de pessoas que, por diversas
motivações deixam temporariamente seu lugar de residência, visitando
outros lugares, utilizando uma série de equipamentos e serviços
especialmente implementados, para este tipo de visitação. A atividade
dos turistas acontece durante o deslocamento e a permanência fora de
sua residência. Os negócios turísticos são realizados nos equipamentos
ou durante a prestação de serviços (...) O turismo, portanto, é um ato
praticado por pessoas que realizam uma atividade específica de lazer,
fora de suas respectivas cidades, e se utilizam, para atingir seus
objetivos, cuja prestação constitui um negócio. (Barreto: 2003, 21)
A busca do aprimoramento das condições de São Miguel e da montagem
de uma estrutura turística se insere nas colocações da autora. Após o retorno
desta primeira incursão conclque, apesar da ênfase de inúmeros trabalhos a
São Miguel, a questão do turismo como um problema antropológico, ainda não
havia sido abordada, especialmente a questão do turismo referido como cultural.
Assim, optei por centralizar minhas observações no espaço destas ruínas, porque
4
São Miguel foi declarado Patrimônio Nacional em 1937 logo após a criação do IPHAN (Instituto
do Patrimônio Histórico e Arquitetônico Nacional). Em 1983 foi declarado pela UNESCO Patrimônio
Cultural da Humanidade e em 1996 o Circuito Internacional Integrado das Missões Jesuíticas dos
Guaranis foi também declarado pela UNESCO como uma das Quatro Rotas de Turismo Cultural
Internacional mais importantes do Mundo.
141
141
o percebi como palco privilegiado da menção ao passado missioneiro no Rio
Grande do Sul a própria publicidade e a imagem veiculada da região das
Missões na mídia recai sobre as ruínas da igreja. Com relação aos demais sítios
restava investigar se também se configuravam neste sentido, em lugares de
memória das Missões, que São Nicolau, São Lourenço e São João Batista se
constituem tamm em Patrimônio Nacional.
Baseada nesta hipótese pensei em percorrer o maior número possível dos
antigos povoados, mas meus planos se modificaram quando me deparei em
janeiro de 2003 com o pacote turístico O Circuito Internacional das Missões,
oferecido pela Galápagos Tour: turismo ambiental e cultural e, posteriormente,
com o Caminho das Missões, comercializado em Santo Ângelo por uma empresa
do mesmo nome. Percebi que etnografar os pacotes turísticos significava a
oportunidade de visitar o que suspeitava serem lugares de memória e estudar as
relações estabelecidas com o espaço pelos turistas que o visitavam, bem como a
postura das pessoas da região envolvidas neste processo e os olhares
construídos pelas empresas turísticas ao mostrar as ruínas missioneiras e suas
atrações. Assim, o turismo nas Missões passou a se configurar em um instigante e
inexplorado universo de pesquisa acerca das relações entre o passado e o
presente.
Para Agustin Santana Talavera em Turismo cultural: culturas turísticas
(2003: 36) esta modalidade de turismo também definida como turismo histórico e
foi classificada por Smith em 1977 em função da mobilidade da classe de tempo
livre disponível pelos turistas, vem sofrendo profundas alterações em relação ao
seu desenvolvimento com atividade:
Turismo cultural y histórico abarcaba en el momento de la construcción
de la tipología desde lo pintoresco y el color local, los vestigios de una
vida en proceso de extinción, hasta los circuitos de ruinas, monumentos y
museos, pudiendo incluir ciudades o espacios, donde se desarrollaran los
acontecimientos a resaltar. (...) Pero además se hace bastante difícil de
separarlo por completo del turismo étnico. (Talavera: 2003, 37).
5
5
Turismo cultural e histórico abarcava no momento da construção da tipologia desde o pitoresco e
a cor local, os vestígios de uma vida em extinção até os circuitos de ruínas, monumentos e
museus, podendo incluir cidades ou espaços de onde se desenvolviam os acontecimentos a
ressaltar. Porém, ademais se faz bastante difícil de separa-lo do turismo étnico.
142
142
As observações do autor apontam para a complexidade da demanda
turística em termos das aproximações entre as diferentes modalidades de turismo
(étnico, ambiental, recreativo e cultural/histórico), o que conduz a especificidade
do enclave dos clientes potenciais do turismo cultural, cujos interesses são
estimulados pela discussão ecológica da atualidade, forma de organizar as férias,
sua dissociação do turismo de massa e, sobretudo, a possibilidade de
oferecimento da cultura como experiência individual que alimenta o sentimento do
único e estimula uma forma de recordar através de uma viagem de aventura ao
passado (Talavera: 2003, 38).
Nesta perspectiva, procurei observar o turismo nas Missões buscando uma
aproximação sob o ponto de vista antropológico com o intuito de perceber as
representações produzidas sobre o passado missioneiro no espaço dos povoados.
Estas observações resultaram em laços de afetividade construtores de novas
identidades, a ponto do ser antropóloga parecer por vezes ameaçado quando
tamm me percebi como turista (reclamando como os demais turistas da falta de
planejamento e das más condições do pacote) e das vezes em que fui convidada
pelos guias ou por turistas (companheiros de viagem) a dar explicações sobre
história das Missões, bem como questionada pelos próprios mbyá-guaranis sobre
minha presença e postura. Segundo James Clifford em A experiência etnográfica:
Conseqüentemente, nem a experiência nem a atividade interpretativa do
pesquisador científico podem ser consideradas inocentes. Torna-se
necessário conceber a etnografia não como a experiência e interpretação
de uma outra realidade circunscrita, mas sim como uma negociação
construtiva envolvendo pelo menos dois, e muitas vezes mais sujeitos
conscientes e politicamente significativos. Paradigmas de experiência e
interpretação estão dando lugar a paradigmas discursivos de diálogo e
polifonia. (Clifford:1998, 43).
A questão das minhas múltiplas identidades permeou o desenvolvimento
dos trabalhos de campo em que busquei conscientemente essa dialética. Ao me
mostrar como interessada no duplo sentido do referente de pesquisa e contar
minha história pessoal e profissional, quando perguntada, provoquei o
desencadeamento de um processo similar com as pessoas com quem convivi por
alguns dias em situação etnográfica. Elas, ao longo do tempo, se tornaram parte
143
143
interessada no bom desenvolvimento da pesquisa oferecendo auxílio e me
indicando novas perspectivas de trabalho. Desta sorte, este texto etnográfico é um
discurso sobre as relações estabelecidas, sendo permeado por nossos diálogos e
uma pluralidade de vozes expressas não apenas nas falas, mas também nas
pistas e interlocuções estabelecidas.
Ao optar por efetuar várias incursões às Missões em rápidos e intensos
trabalhos de campo elegi também uma pluralidade de aspectos em detrimento de
outros, tais como um esforço contínuo de observação e uma multiplicidade de
atores a serem contemplados. Daí decorreu que as representações sobre as
relações estabelecidas com o passado missioneiro no espaço das ruínas foram
percebidas em diferentes locais, contemplando os seis dos Sete Povos no Rio
Grande do Sul, além de dois povoados no Paraguai e um na Argentina.
A escolha desta modalidade de campo se justificou por tentar contemplar as
pistas das informações que dispunha e, especialmente, a oportunidade de abordar
a questão do turismo nas Missões em sua dinâmica no momento presente, em
que tanto estímulo por parte do governo federal, estado e municípios, neste
sentido, nos discursos observados na região.
Em maio de 2003, o SEBRAE lançou o projeto Roa Missões com verba
para ser utilizada pelos municípios da região missioneira no desenvolvimento do
turismo, artesanato e agro-negócios. vários pacotes turísticos enfocando as
ruínas das Missões no Rio Grande do Sul, na Argentina e no Paraguai, além do
próprio fato de alguns municípios como São Nicolau, buscarem e apostarem em
alternativas turísticas como forma de desenvolver o município, tendo como
referente a experiência de São Miguel das Missões.
Por estas razões encontrei um contexto favorável à pesquisa da atuação do
turismo nas Missões. Durante as observações do Caminho das Missões fui
convidada pela prefeitura de São Nicolau para efetuar um levantamento
antropológico da região, a fim de auxiliar no desenvolvimento da mesma,
Posteriormente, ao buscar informações suplementares sobre o Rota Missões
SEBRAE fui convidada para dialogarmos sobre o ser missioneiro, na tentativa de
definição do mesmo para implantação do referido projeto na região. Ao aceitar os
144
144
dois desafios, meu trabalho como interessada em perceber as relações entre o
passado e o presente nas Missões adquiriu um outro patamar, pois de certa
forma, mesmo efetuando os trabalhos de consultoria antropológica, me tornei
parte do processo de incentivo ao turismo na região e não só espectadora/analista
do mesmo, tendo o privilégio e a dificuldade de observar e ser também parte deste
cenário, num momento ímpar da história da região.
Este capítulo é o resultado de minha incursão como turista nas Missões.
Retrata também minha inserção como observadora do impacto e perspectivas
para o desenvolvimento do turismo na região, onde residi por um mês entre
agosto e setembro de 2003, tentando entender as representações que os
habitantes da região possuem do turismo como atividade que vem sendo
apresentada pelas administrações municipais e pelo SEBRAE como a principal
solução econômica para a região.
Ele está dividido em três partes: as duas primeiras se referem ao pacote
Circuito Internacional das Missões e ao Caminho das Missões e a terceira ao Rota
Missões SEBRAE 2003 e a algumas observações efetuada sobre a implantação
de um projeto turístico em São Nicolau. As observações foram efetuadas na
região das Missões gaúchas, argentinas e paraguaias. Nas Missões gaúchas
minhas observações abrangeram São Miguel, Santo Ângelo, São Nicolau, São
Luis Gonzaga, São João Batista, São Borja e São Lourenço. No Paraguai foram
visitados Trinidad e San Cosme y Damian e na Argentina San Ignácio Mini. Na
tentativa de entender as atividades de peregrinação do Caminho das Missões
apresentarei também neste capítulo algumas referências a peregrinação a
Santiago de Compostela, cujas observações foram realizadas em maio de 2004,
na França e Espanha.
2 O Circuito Internacional das Missões
Durante os feriados de Páscoa, Carnaval e Finados a companhia de
turismo Galápagos Tour (especializada em turismo cultural e ecológico) vem
oferecendo há mais ou menos 10 anos, um pacote rodoviário denominado Circuito
145
145
Internacional das Missões
6
. O percurso previsto seria sair de Porto Alegre em
direção ao oeste do Paraná até Foz do Iguaçu onde visitaríamos as Cataratas no
Parque Nacional e a cidade. No dia seguinte atravessaríamos a fronteira do Brasil
com o Paraguai em Ciudad del Este e partiríamos para o seu interior em visita a
três reduções Jesus, Trinidad e San Cosme y Damian, com almoço em
Encarnación, entrando no mesmo dia na Argentina e se instalando em Posadas
(capital da província de Misiones). No domingo o previsto era visitarmos a redução
de San Ignácio Miní e voltarmos ao Brasil pelo noroeste do Rio Grande do Sul,
cruzando a fronteira Santo Tomé/São Borja e rumarmos em direção a São Miguel
para, na segunda-feira, encerrarmos nossa viagem em Santo Ângelo de onde
retornaríamos a Porto Alegre. A programação era extensa, conciliando o turismo
ecológico das cataratas com o turismo cultural das ruínas missioneiras.
O público era bastante variado, havia pessoas de todas as idades, exceto
crianças. A viagem começou com uma rápida apresentação da guia e dos
motoristas, mas não fomos apresentados uns aos outros
7
, tampouco recebemos
outras informações além das contidas no folder encaminhado por e-mail sobre o
programado.
Na manhã de sexta-feira fomos despertados com um texto intitulado As
Missões. A primeira parte, de autoria de Erneldo Shallenberger
8
, trazia
informações sobre a atuação dos jesuítas como agentes de integração dos índios
e territórios coloniais às metrópoles ibéricas. A seguir abordando as Missões em
6
Nosso passeio iniciou na quinta-feira dia 17 de abril de 2003 em Porto Alegre às 19 horas no
início de um feriado prolongado de Páscoa, e finalizou na noite de segunda-feira 21/04 quando
retornamos. Vinte e cinco passageiros embarcaram nos 32 lugares disponíveis do ônibus pouco
confortável para uma viagem tão longa mais de 2600 km em 4 dias, cruzando as fronteiras Brasil-
Paraguai, Paraguai-Argentina e Argentina-Brasil, numa via sacra às ruínas missioneiras
percorrendo regiões de três países, que num passado colonial não estavam divididos.
7
As dificuldades começaram a surgir pra mim desde o começo, pois não tinha a menor iia de
como abordar as pessoas numa situação de desconhecimento. Apenas fomos nos conhecendo e
identificando quando saímos do ônibus para os passeios ou para enfrentarmos os dissabores de
inúmeras situações difíceis. O guia também não correspondia à expectativa de integração do grupo
e de propaganda do passeio que havia vivenciado em outras situações. Procurava abordar cada
um dos passageiros separadamente em suas poltronas no ônibus e as duas vezes que questionei
sobre a apresentação do grupo mudou de assunto
8
Shallemberger é historiador professor e ex-reitor da UNIOESTE-Pr, com mestrado em História
Ibero-Americana pela PUC-RS com trabalhos sobre o primeiro ciclo missioneiro; é de sua autoria o
citado texto A integração do Prata no sistema colonial: colonialismo interno e missões jesuíticas
do Guairá. (1997).
146
146
ciclos e regiões específicas (Guairá e Itatim, Tape e do Uruguai e os Sete Povos
das Missões em relação aos Trinta Povos, bem como seu desenvolvimento e
destruição). A segunda parte do texto intitulada O espaço do índio e a terceira
Redução de São João Batista escritas por Ivanira Falcade e Luiz Carlos Bachi (um
dos donos da Galápagos tour) apresentavam respectivamente algumas
características dos guaranis, preponderando a do seu cotidiano no espaço das
reduções. A terceira parte do texto parecia desconectada das demais, dirigida a
um povoado que não iríamos visitar São João Batista.
Não houve nenhuma explicação ou leitura conjunta do texto e tampouco
nenhuma pergunta. Minha impressão foi de que texto não havia sido elaborado
para o pacote, mas de uma colagem e uma linguagem bastante acadêmica que
exigia o domínio de conceitos como colonialismo e integração que foram aplicados
a uma análise conjuntural da experiência missioneira.
A primeira referência às Missões durante os passeios ocorreu no Parque
Nacional das Cataratas quando percorríamos as pontes próximas às gigantescas
quedas dágua sob um temporal que se formava. O guia que nos acompanhava
mostrou o local onde Robert de Niro havia filmado algumas cenas de A Missão.
Exceto eu, os demais pareceram não dar muita importância ao local, pois
estávamos no meio de uma chuva torrencial. As pessoas corriam envoltas em
capas de chuva compradas no próprio parque, decidindo prosseguir ou retornar e
interromper o passeio. Quando retornei ao ônibus todos estavam encharcados,
furiosos pelo passeio frustrado e pelo risco que corremos. Decidiram retornar ao
hotel que ficava em Medianeira Pr, distante uns 110 km do Parque.
À noite, no jantar, conversei com algumas pessoas que relacionaram sua
participação na viagem à curiosidade sobre o passado ativada pela série A Casa
das Sete Mulheres, que recentemente havia sido exibida na televisão e daí seus
interesses para o conhecimento das origens da história do Rio Grande do Sul as
Missões.
O sentido de uma busca de conhecimento dos vestígios desse passado
referenciado como originário pode estar também relacionado ao fato de algumas
pessoas conhecerem São Miguel no Rio Grande do Sul e por isso se interessarem
147
147
pelas Missões paraguaias e argentinas. A questão da recepção e circulação das
informações da mídia propiciada pela A Casa das Sete Mulheres me parece
importante como um fator de criação de um ambiente favorável à reflexão sobre o
passado e atividades que a ele remetem como o turismo cultural e ecológico. Sua
visão comemorativa salienta a bravura de homens e mulheres no Rio Grande do
Sul, reforçando as identidades coletivas regionais em torno da figura do gaúcho.
Neste sentido, cabe mencionar que as imagens mostradas da região dos
canyons gaúchos pela série (que em verdade não foram palco de batalhas da
Revolução Farroupilha) obtiveram uma projeção nacional, com uma efetiva
intensificação do turismo na região.
9
A relação entre A Casa das Sete Mulheres e
esta etnografia está em perceber que a abordagem à história do Rio Grande do
Sul, durante a Revolução Farroupilha, incidiu tamm sobre outros momentos e
espaços do passado, como é o caso das Missões
10
. Assim, cabe perceber as
relações que com ele passam a se estabelecer e/ou intensificar, através do
turismo fomentado pela mídia, tentando perceber em que sentidos o referente
Missões é igualmente comemorado ou não em termos de turismo.
Percebi um desejo de conhecer e reviver o passado missioneiro entre
aquelas pessoas a partir da referida série, apesar das Missões não terem sido
ainda tratadas amplamente pela mídia, como objeto de comemoração/exaltação
como no caso da Revolução Farroupilha.
11
Nossa visita às reduções iniciou no sábado. Pela manhã, já com certo
atraso, nos dirigimos à fronteira do Brasil com o Paraguai em Ciudad del Este. O
9
Tal fato pode ser comprovado pelo próprio catálogo da Galápagos tour que recebi em junho de
2003 e 2004 oferecendo viagens neste sentido e, por exemplo, pelas reportagens da revista Isto é
noticiando as propostas turísticas destas regiões do Rio Grande do Sul.
10
Durante a exibição da série, com relação às Missões recordo as menções de Davi Canabarro;
Valha-me meu São Sepé. É preciso referir que a mídia não apresentou nos últimos anos
nenhuma série abordando a questão das Missões especificamente. O passado missioneiro no Rio
Grande do Sul de certa forma ainda se configura um tabu, no sentido da interpretação da disputa
desencadeada pelo Tratado de Madrid (1750) e Guerra Guaranítica (1754-56) que tornou esse
território colonial espanhol, desde então português. As conseqüências da formação de um Rio
Grande do Sul português, apesar da pluralidade de referências às Missões, no entanto, não
parecem bem resolvidas em parte creio que em virtude dos atores sociais envolvidos (a questão
do índio e de suas identidades, em especial) como no caso da figura revolucionária de Sepé
Tiarajú e sua ligação com a questão da terra.
11
A série A Ferro e Fogo sobre as batalhas gaúchas, exibida pela RBS TV aos sábados a partir do
mês abril de 2003 não abordou em nenhum de seus episódios a Guerra Guaranítica.
148
148
feriado de Páscoa é o período de maior movimento do ano na região e muitos
problemas começaram a ocorrer e a caracterizar o pacote que haviam nos
oferecido. A fronteira entre os dois países foi mencionada pelo guia em uma das
suas idas e vindas ao ônibus para buscar documentos e passar informações,
como um lugar imundo em que a sujeira paira no ar, estando incrustada nas
pessoas. Aqui e no Peru ninguém se entende. A gente devia se negar a vir a
estes lugares. (Diário de Campo 3).
Permanecemos cerca de uma hora na fronteira. Uma fila de carros e ônibus
e pessoas passando com pequenos e grandes pacotes pela Ponte da Amizade. A
parada e a extrema pobreza com que nos deparamos suscitou conversas de todo
tipo em torno da fronteira e das relações com o turismo. O caso de Cuba foi
mencionado e dois passageiros começaram a discutir os prós e contras do regime
a liberdade e seus contrastes, a pobreza. Nas duas outras fronteiras que
tivemos de atravessar o ambiente ficou tenso e as pessoas se alteravam pela
demora, atribuindo a inoperância da liberação à má vontade dos paraguaios e,
especialmente, dos argentinos (onde ficamos cerca de 3 horas e 30 minutos na
noite de sábado para domingo). A fronteira foi vivenciada pelo grupo como um
entrave. Sandra Jatahy Pesavento em Fronteiras do Milênio menciona algumas
visões sobre a fronteira:
Mas as fronteiras não são apenas marcos divisórios construídos, que
representam limites e estabelecem divisões. Elas também induzem a
pensar na passagem, na comunicação, no diálogo e no intercâmbio.
Figurando um trânsito não apenas de lugar, mas também de situação ou
época, esta dimensão de fronteira aponta para a instigante reflexão de
que, pelo contato e permeabilidade, a fronteira possibilita o surgimento de
algo novo, híbrido, diferente, mestiço, de um terceiro que se insinua nesta
situação de passagem. (Pesavento: 2001, 8).
A concepção da fronteira como limites que estabelecem divisões e
descontinuidades se confirmou nesta experiência, nas fronteiras por onde
passamos e ficamos retidos, demonstrando não apenas o espaço territorial
descontínuo de separação entre os países, mas também os desentendimentos,
humilhações e propinas mencionados pelo guia e uma profunda dificuldade de
conviver com o híbrido por parte da empresa turística como a questão da sujeira e
149
149
desorganização mencionadas, bem como os comentários dos próprios turistas
participantes sobre o turismo de má qualidade na América Latina.
A passagem nas fronteiras colocou também a questão temporal em termos
do planejamento da viagem que ficou comprometida, além de um certo
desconhecimento/despreocupação por parte da companhia de turismo com
relação ao tempo e às distâncias, afetando a relação entre um tempo passado
objetivo da viagem (a ser mostrado através das visitas às Missões) e o presente. A
viagem neste sentido se caracterizou, conforme Barreto em Planejamento e
organização em turismo (1991: 62) pela deficiência de estudos diagnóstico no
concernente ao trajeto e local de destino.
A criação de um roteiro incluindo visitas em três países diferentes coloca
em questão a relação estabelecida com a fronteira em termos regionais e
nacionais. O passado histórico das Missões que o turismo cultural se propôs a
mostrar contempla o espaço missioneiro, até certo ponto, como um espaço
contínuo a Província Jesuítica do Paraguai. Uma grande região por onde se
distribuíram os 30 povoados. O historiador Arno Alvarez Kern em Missões; uma
utopia política (1982: 9) alerta para os problemas de se interpretar os Trinta
Povos, em termos historiográficos, como um tipo ideal, estático e imóvel. Com
relação ao turismo a falta de planejamento relativa às fronteiras demonstra a
imagem construída pela mesma do espaço missioneiro como um passado virtual
em choque com sua dinâmica atual em que é estereotipado como uno.
O surgimento de três países que se comunicam nas adjacências do espaço
das reduções encontra uma diversidade de ramificações em que se concebem
novas identidades, pertencimentos e imaginários. As linhas de fronteira que
separam os três países neste pacote turístico, cujo foco são as reduções, são
recriadas em intersecção com o passado missioneiro, concebendo uma fronteira
imaginária cujos referenciais se constituem no espaço das ruínas a serem
visitadas. E o turismo, neste sentido, concebe uma região para ser visitada.
Salientando alguns espaços (os visitados) em detrimento de outros (não incluídos
no pacote).
150
150
Folder do Circuito Internacional das
Missões. Doação Galápagos Tour.
Caxias do Sul outubro de 2004.
Este choque entre o espaço recriado para fins turísticos e as distâncias a
serem percorridas salientou a dialética da concepção de fronteira como separação
e a continuidade do espaço missioneiro, pontuando as distâncias entre as
reduções a serem visitadas. Percebi a fronteira como a pedra de toque de uma
série de reações e manifestações de brasilidade no interior do ônibus, tendo sido
sugerido inclusive o boicote ao turismo nos países vizinhos.
12
As concepções de
turismo das pessoas que participavam do pacote cujo imaginário concebia que
tudo deveria estar a seu serviço que estavam sendo cuidadas por uma
Companhia de Turismo se chocava com as condições oferecidas pela companhia.
Uma conversa entre dois passageiros que estabeleceram comparações
entre a cultura do turismo no Brasil e na Europa ilustra a situação vivenciada.
Segundo eles há uma fabricação mais efetiva do turismo na Europa não em
função dos vestígios históricos, mas em razão de uma cultura de aproveitamento
do passado em contraste com o Brasil em que o histórico é desprezado em
12
A consciência de alteridade por parte dos turistas nas percepções da atuação aduaneira
inexistiu. Uma certa má vontade, por seu turno e extrema calma no atendimento pontuou a atuação
dos funcionários das aduanas nos três países. Havia unanimidade do grupo em torno do
tratamento que deveria ser oferecido aos turistas brasileiros em função das divisas que traziam
para os países vizinhos, bem como a recíproca do tratamento que consideram excelente dado aos
estrangeiros no Brasil. O guia admitiu para um pequeno grupo, que apesar da viagem ocorrer
cerca de 10 anos, o roteiro proposto jamais havia sido feito, demonstrando a falta de embasamento
151
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relaçãoà ás belezas naturais. Jaime Pinsky e Pedro Paulo Funari em Turismo e
patrimônio cultural superando a divisão entre turismo cultural e natural enfocam o
turismo cultural para além de sua concepção corrente de viagem de estudo,
percebendo o turismo como um fato cultural (2003: 8), ao problematizar a
abordagem ilusória propiciada pelos pacotes turísticos que efetivamente não
propiciam o contato com a diversidade, através de apropriações caricatas que
apenas pontuam o estive ali. Em perspectiva similar Marc Augé em El viaje
imposible: el turismo e sus imágenes relaciona o turismo à produção de ilusões:
El mundo existe todavía en su diversidad. Pero esa diversidad poco tiene
a ver con el caleidoscopio ilusorio del turismo. Tal vez una de nuestras
tareas más urgentes sea volver a aprender a viajar, en todo caso, a las
regiones más cercanas a nosotros, a fin de aprender nuevamente a ver.
(Augé: 1997, 16).
13
Nesta perspectiva, o turismo corresponde à criação de ilusões e de mundos
imaginários, onde a questão da diversidade se encontra (embora focalizada a
partir de se mostrar o exótico), descentrada e opaca. O turismo não
obrigatoriamente se relaciona às características, peculiaridades e circunstâncias
dos locais visitados, mas ao contrário, ele pode produzi-las.
A discussão entre os dois passageiros contempla a separação entre turismo
natural e cultural e a produção do exótico, uma vez que suas concepções
contemplam e enfocam o aproveitamento do passado e suas possibilidades. A
percepção das Missões como relativa ao turismo cultural se choca com as
deficiências do aproveitamento turístico efetuado em termos do seu passado
histórico. Neste sentido, percebem a dinâmica na exploração de seus espaços que
os torna também dinâmicos. O algo a mostrar não é suficiente havendo a
necessidade de inventar novas atrações e se centra a cultura do turismo
mencionada por ambos. Por um lado, apontam a necessidade de inventar o que
ver, enfeitar, divulgar e por outro, percebem as dificuldades da existência de
fronteiras entre Brasil/Paraguai, Paraguai/Argentina e Argentina/Brasil. A criação
histórico e geográfico do turismo cultural por parte da Galápagos Tour, gerando a frustração das
expectativas dos participantes.
152
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de condições de turismo, segundo eles, recai sobre a questão, em paralelo com a
Europa, de uma política de fronteira como a da Comunidade Européia. No entanto,
a existência do Mercosul não garante esta política. Sobre a importância das
Missões o então ministro da cultura Francisco Weffort na apresentação do livro
Missões:
A compreensão profunda da cultura de um povo acontece quando os
limites do cotidiano são rompidos e os fatos históricos passam a ser
melhor conhecidos pelos cidadãos que compõem a sociedade. Ao editar
o livro Missões Jesuítico-Guaranis, a Universidade do Vale do Rio dos
Sinos (UNISINOS) oferece sua parcela de contribuição para o
entendimento histórico-cultural dos brasileiros e dos povos vizinhos que
habitam o território onde os jesuítas, no século XVII, instalaram as
reduções ou missões. Por ter ligação com a história da Argentina, do
Paraguay, do Uruguay e do Brasil, as Missões são hoje consideradas o
símbolo cultural do Mercosul. (Tavares:1999, 7).
As contradições são aparentes e amplamente discursadas. Se a existência
do Mercosul não diminui em nada os entraves fronteiriços em relação ao turismo,
a imagem das Missões como mbolo cultural do Mercosul é continuamente
apropriada criando, para os turistas, um universo missioneiro imaginário comum
aos três países, como no caso da ficção alegórica que identifica as Missões às
raízes da América Latina, ou como porta de entrada do Mercosul, em termos de
uma identidade histórica comum, justificativa da integração presente. Embora
institucionalmente acordada, a integração presente não se manifesta em termos
fronteiriços, ao contrário, uma afirmação muito forte dos estados nacionais em
suas imagens, representações e práticas de fronteira. Em termos dos sítios
arqueológicos visitados, as proximidades se cingem a algumas características
arquitetônicas comuns, pois as identidades geradas e os lugares de memória em
que se constituem nas relações que se estabelecem com o passado não podem
ser generalizadas, ora enfarizando o nacional e ora o regional.
13
O mundo existe em sua diversidade. Mas esta diversidade pouco tem a ver com o caleidoscópio
ilusório do turismo. Talvez uma das nossas tarefas mais urgentes seja voltar a aprender a viajar,
em todo o caso ás regiões mais próximas de nós, a fim de aprender novamente a ver.
153
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A visita à Santíssima Trinidad
14
demonstra a relação entre um lugar de
memória e diversidade de afirmações identitárias e pertencimentos gerados. Ao
perguntar sobre a influência das Missões no Paraguai o guia me respondeu que
não percebia herança das Missões no país, mas uma forte influência guarani. Ele
próprio se considerava um índio guarani e que as Missões se constituíram numa
experiência concreta de preservação da cultura guarani através da língua, em
razão dos estudos e das compilações feitas pelos jesuítas, como Antonio Ruiz de
Montoya
15
para a conversão dos índios e do idioma ser utilizado nos povoados:
ESTIVIAR: - No Paraguay lo más normal es hablar los dos idiomas mezclados. Estar hablando en
guarani e cambia para el español. Yo as veces hablando, meto palabras de guarani, la gente me
mira así.
TURISTA: - Tem imprensa escrita em guarani, jornais?
ESTIVIAR: - Si y muchos pueblos aqui en Paraguay llevan el nombre en guarani. (Fita K7 1 A)
Ele não percebe as Missões como responsáveis pela descaracterização e
genocídio guarani, mas como forma de perpetuação de sua cultura traduzida na
manutenção da língua e na sua mescla com o espanhol. No Rio Grande do Sul
apesar de haverem muitos nomes guaranis designando locais, não a
dinamicidade da língua falada a não ser nas comunidades indígenas, e a força
mencionada no Paraguai, em que a moeda nacional se chama guarany. O guarani
é um idioma vivo no Paraguai e há uma visibilidade expressa na fala de Estiviar ao
caracterizar-se como tal. Não são as feições ou um modo de ser exótico, mas o
fato de se perceber como tal que torna Estiviar guarani - seu processo de
identificação e pertencimento, em que se insere sua atuação como guia
.
Ao se reconhecer e se identificar como guarani, num processo de
pertencimento em que se vizibiliza como descendente indígena, que salientar o
espaço de sua colocação o Paraguai - em que o guarani é representado como
elemento de unidade nacional. Assim, se perceber e declarar como índio é
14
Em Trinidad fomos recebidos pelo guia e guarda Estiviar, que nos apresentou seus principais
aspectos históricos e arquitetônicos. Contou-me que mora perto do sito arqueológico e que
trabalha cinco anos como guia particular, juntamente com outras 9 (nove) pessoas. Segundo
ele o governo faz apenas a manutenção da Redução. O trabalho de guia não tem uma formação
continuada, apenas um curso de 15 dias e as informações são completadas através de pesquisa.
15
Montoya chegou a região do Paraguai por volta de 1610 se tornou célebre pelo trabalho de
conversão através do aproveitamento da língua. Sua atuação está relatada no livro A conquista
espiritual (1639) e na compilação de dois volumes Arte, vocabulário, tesoro y catecismo de la
lengua guarani a que se referiu Estiviar.
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efetuado concomitantemente a um fator de unidade nacional (o guarani) e em
oposição a uma influência missioneira, representada por ele como inexistente.
Porém, é inegável que a ruína da Redução de Santíssima Trinidad se
constitui em espaço gerador de identidades individuais e regionais, pois o ser
guarani é adotado em termos de estar missioneiro (índios próximos à ruína) como
demonstra a fotos de crianças pobres de feições indígenas que permanecem na
entrada de Trinidad vendendo artesanato, como em outros sítios que visitamos.
Foto 3 crianças em frente às ruínas de Santíssima Trinidad Paraguai abr 2003;
Fonte; Acervo Pessoal; P&B (original colorido); (tamanho 10x15); fotografia
fotocopiada em scanner e reduzida (5x7).
Se não no Paraguai identidades missioneiras acionadas como tais
(conforme Estiviar) há uma efetiva utilização das Missões pelas pessoas em
virtude do turismo, como no caso de um postal que comprei em que o típico é
explorado no espaço da ruína.
Uma moça usando o traje de nhanduti
16
pousa nas escadas de Trinidad.
Segundo o vendedor este é o nome do traje típico feminino do Paraguai, cujo par
masculino é o gaucho que veste bota, bombacha e aopai (uma camisa
16
Na dissertação de mestrado em educação Lendário missioneiro: pedagogia jesuítica para a
integração colonial nos sete povos das missões (UFSM/PPGE 1998: 148-150) encontrei o termo
nhanduti é citado em uma narrativa tradicional de temática missioneira no Rio Grande do Sul. Na
lenda do Angüera na versão de Simões Lopes Neto as donas costuravam ou faziam nhanduti, o
Generoso a alma dele pro caso soprava devagarzinho sobre a chama da luz. O termo se
relaciona a uma tarefa feminina, a tecelagem de uma renda.
155
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transpassada). O termo guarani nhanduti confirma a afirmação da presença de
vocábulos guaranis no Paraguai aludida acima e a sua utilização pode ser
pensada em relação à história de sucessivas apropriações e de uma circularidade
que considero peculiar.
Postal da Redução de Santíssima Trinidad. Moça com traje de Nhanduti. Paraguai
abril de 2003.
Encontrei em Félix Coluccio Folklore de las Américas (1964:337) uma
gravura demonstrando uma renda de trabalho bastante delicado com os seguintes
dizeres Paraguai um tecido de nhanduti, com seus fios brancos como uma
espuma, sutis como uma malha de Bruxelas. Antonio Sepp em Viagens ás
Missões Jesuíticas e Trabalhos Apostólicos
.
(1980: [1710], 240)
menciona a
importância dada a confecção das rendas nas Missões.
A delicadeza das rendas
indígenas e sua imitação ao afamado filé do francês filer fiar, e sua relação com
nhanduti foi mencionada em 30/01/1998 por Elizabeth Rogrigues, uma senhora
paraguaia que, como Estiviar, se considera descendente de guaranis. Para ela,
nhanduti é uma renda finíssima de dificílima execução, antigamente muito popular
156
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no Paraguai, cujo nome alude a semelhança do trabalho da aranha ao tecer sua
teia.
As menções demonstram a permanência do mesmo e suas sucessivas e
próximas apropriações em termos de aspectos da cultura missioneira jesuítico-
guarani como geradora de identidades, numa relação dialética claramente
perceptível entre o espaço missioneiro e o regionalismo, sendo Trinidad utilizada
como local do regional historicamente validado por ser vestígio e assim visto como
local de comemoração do passado. A ruína é explorada e beneficiada na
atualização dinâmica da venda de postais, produzindo um imaginário em torno da
monumentalidade de Trinidad composto pela bricolage de momentos históricos
diversos, compondo um cenário para o consumo dos turistas, também perceptível
nas réplicas em argila onde se perde a noção do histórico e se exalta a concepção
de souvenir, em que se pode levar para casa um pedaço das Missões. Marc
Augé em Le temps em ruines analisa os múltiplos passados dos espaços e a sua
espetacularização propiciada pela visitação turística (2003: 90) Para ele a ruína:
La ruine, en effet, cest le temps qui echappe à lhistoire : un paysage, un
mixte de nature et de culture qui se perd dans le passé et surgit dans le
présent comme un signe sans signifié, sans autre signifié, au moins, qui
le sentiment du temps qui passe et qui dure à la fois. (Augé: 2003, 92).
17
Os múltiplos passados que encerra Trinidad e a pluralidade temporal foram
permeados pela relação que, como turistas, estabelecemos com Trinidad,
pontuada de diversas maneiras no espaço da ruína através das fotos tiradas, das
perguntas ao guia, da compra de artesanato, do toque nas pedras, entre outras
manifestações como a de Graça :
- Uma coisa maravilhosa, quando eu entrei ali eu senti uma emoção fortíssima. Deu um assim
aperto no coração, uma emoção de ver e num lugar assim que agora é deserto. Antigamente,
naquele tempo que foi formada a Redução era muito mais, e que vieram os jesuítas e construíram
todo um trabalho tão grandioso com um povo primitivo e conseguiram extrair da pedra essas
imagens tão maravilhosas. Então foi uma coisa emocionante que aconteceu tão perto de nós e faz
parte da nossa história. (Fita K-7 1A).
17
A ruína em efeito é o tempo que escapa à história: uma paisagem, um misto de natureza e
cultura que se perde no passado e que surge no presente como um signo sem significado, sem
outro significado ao menos que o sentimento do tempo que passa e que dura, por sua vez.
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À par dos souvenirs da visita sua manifestação demonstra a relação
individualmente estabelecida por ela com o espaço missioneiro de Trinidad
descrito como um lugar especial, produtor de uma grandiosidade artística através
da evolução dos índios guaranis. Para ela foram os jesuítas que construíram e
conceberam as Missões. Os índios como a pedra e a madeira que moldaram
foram tamm moldados pelos padres na criação de uma nova realidade sócio-
cultural. Cabe salientar na fala, que a representação das Missões recai sobre a
elaboração de uma memória que se relaciona ao universo civilizatório e não ao
universo originário dos guaranis. O que emociona, segundo ela, é a tarefa
catequisadora da transformação, cujas ruínas e a arte missioneira exposta no
museu, se constituem em vestígio possível de ser visitado e apropriado pelos
turistas. Trinidad a emocionou pela capacidade criativa da conquista espiritual
como parte da história platina que se relaciona ao Rio Grande do Sul e a
conquista que também lá se operou.
Observei esta mesma perspectiva de invizibilização dos guaranis com
relação às Missões ao chegamos a San Cosme y Damian ao anoitecer depois de
o guia e os motoristas terem errado o caminho. Uma das turistas sugeriu: -vamos
pegar os cocar, demonstrando seu enorme descontentamento com a viagem que,
creio, tinha se transformado para ela num autêntico programa de índio. Esta
manifestação etnocêntrica pode ilustrar a percepção anterior a respeito da
representação desses turistas sobre as Missões como uma obra jesuítica a que os
índios concorreram de forma secundária tal qual as pedras que edificaram os
prédios e ainda permanecem nas ruínas. Nas duas manifestações o imaginário
acerca da presença indígena nas Missões é excludente e as percepções podem
ser interpretadas segundo a dialética ser/existir de Todorov (1995: 93).
referências à presença indígena no passado missioneiro, porém nas falas dos
turistas, os índios passam a existir e a adquirir identidade enquanto relacionados
às Missões. O reconhecimento está ligado à descaracterização do ethos guarani e
sua transformação em humanos/civilizados, como parte das Missões.
Com relação à construção de identidades a partir do espaço do sítio
arqueológico a visita a San Cosme y Damian nos reservou uma realidade
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totalmente diversa da encontrada em Trinidad. A proposta era conhecermos a
igreja, construída no espaço do antigo povoado, e visitar as imagens missioneiras
dos dois santos guardados no seu interior, mas a encontramos fechada
18
. Para
Halbwachs em A memória coletiva:
lugares sagrados, outros que evocam lembranças religiosas,
lugares profanos, alguns que estão povoados de inimigos de Deus, onde
é preciso fechar os olhos e os ouvidos, outros sobre os quais pena uma
maldição. Hoje, dentro de uma velha igreja, ou no claustro de um
convento, caminhamos distraidamente sobre as lajes que assinalam os
lugares dos túmulos e não tentamos decifrar os caracteres gravados na
pedra, sobre o solo ou nas paredes dos santuários. Tais inscrições se
ofereciam sem cessar aos olhos dos que se encerravam neste claustro,
que faziam longas meditações nessa igreja, e por entre esses túmulos,
assim como pelos altares, estátuas, quadros consagrados a santos,
espaços que rodeavam os fiéis, e no seio dos quais permaneciam,
impregnavam-se de um significado religioso. (Halbwachs: 1990,143).
Segundo nos informou o guia a igreja foi construída exatamente onde
estavam as fundações do antigo templo e conservou em seu interior as imagens
de San Cosme y Damian que são seus padroeiros. O prédio que também funciona
como escola, foi construído em formato de L, como uma casa de hacienda com
um amplo avarandado em torno da edificação. Embora não ofereça elementos da
arquitetura barroca do período, o local é considerado sagrado e a memória das
Missões se atualiza mesmo que para nós forasteiros seja imperceptível. O lugar
é concebido e representado pela comunidade como lugar de religiosidade, cujo
marco celebrado e dinamizado é o catolicismo imposto pelos jesuítas. As imagens,
neste sentido, se configuram no elo de ligação entre o passado e o presente,
numa relação evocativa e comemorativa do mesmo.
A visita a San Cosme y Damian causou boa impressão a um senhor que
manifestou a necessidade que ele percebia de revitalizar as Missões gaúchas em
prol das comunidades, trazendo inclusive os índios para o seu interior e assim
recolocá-los no caminho da evolução interrompido após a desestruturação das
Missões. Para ele esta seria uma forma viável de resolver a questão indígena no
estado do Rio Grande do Sul, que entendia que nas reservas ou perambulando
nas estradas e rodoviárias os índios estavam condenados ao desaparecimento.
18
Em San Cosme y Damian, afora o relógio de sol, poucos vestígios arqueológicos das Missões
aparentes e visitáveis sobraram.
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Sua manifestação bem intencionada de ajudar os índios se aproxima da
visão empreendedora caracterizadora da obra jesuítica dos séculos XVII e XVIII. A
relação estabelecida por ele com o passado missioneiro - uma relação de
comemoração, de exaltação da obra jesuítica - no presente através da integração
das ruínas ao novo tempo, garantindo assim sua permanência não enquanto
vestígio, mas enquanto exemplo a ser seguido. A integração nega a alteridade
guarani, impondo como limites a sua autonomia enquanto cultura e a afirmação de
suas identidades presentes, o passado missioneiro e a experiência que
protagonizaram.
No domingo de Páscoa pela manhã, na Argentina, na província de
Missiones, após pernoitarmos em Posadas, visitamos a Redução de San Ignácio
Mini. Fomos recebidos pelo guia em um prédio imponente onde conhecemos
Museo Escenografico
19
e só posteriormente visitamos as ruínas.
Em cada uma das etapas percorridas recebemos explicações do guia,
relacionando o contexto europeu com o universo guarani e a construção das
Missões, visando preparar para a visita às ruínas. A visão preponderante de sua
explanação salientava as Missões como uma alternativa à dizimação indígena que
vinha sendo produzida e a atuação jesuítica de reduzir a e civilizar como um
trabalho meritório, não por seus objetivos, que levaram à descaracterização do
universo mbyá-guarani, mas pela tenacidade jesuítica. Durante as explicações
19
A passagem entre o presente e o passado era um pequeno corredor de palha que nos
transportou para o mundo indígena antes da conquista, numa representação de uma casa guarani
mostrando utensílios e alguns de seus hábitos. De acordo com o guia, os utensílios foram
produzidos pelos próprios índios da região, onde atualmente vivem entre 4000 a 5000 mbyás. Num
segundo momentos estava representada a mata com o universo natural guarani com sua fauna e
flora e, num terceiro, o seu mundo religioso. Como segunda etapa do museu a da conquista
fomos introduzidos em um pátio onde estava ancorada uma caravela representando a conquista
maléfica, no dizer do guia, e após a boa conquista para os indígenas com a atuação da Companhia
de Jesus representada através de uma sala gradeada onde bonecos de cera vestidos de padre
com a bíblia na mão estavam dispostos simetricamente. Para a experiência missioneira de San
Ignácio Mini havia uma sala em separado, com uma maquete da redução e pinturas nas paredes
que reproduziam o cotidiano do povoado, as pinturas foram feitas similarmente aos moldes das
pirâmides egípcias, com motivos jesuítico-guaranis. O projeto turístico iniciado em 1986/7 a partir
da atuação de profissionais e estudantes de turismo, arte e arquitetura de Buenos Aires, bem como
de historiadores locais se divide em dois momentos bastante diversos: o da produção de
representação fantasiosa com intuito pedagógico introduzindo o visitante no passado missioneiro e
o da autenticidade da visita ao tio (o verídico, o que realmente ocorreu). A concepção do projeto
inclui ainda o espetáculo Luz y Sonido, que conta a história da redução de San Ignácio Mini, mas
que não estava incluído no nosso pacote turístico.
160
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vários artigos sobre as Missões foram vendidos. Pequenos livros, artesanato e
pequenos pacotes de terra vermelha junto aos demais artigos. Após as
explicações fui conversar com o guia Thiago e perguntei:
-Sobre las cosas que venden acá. Ustedes están vendendo tierra de las Misiones? Que es aquel?
- Es tierra colorada no es de las Misiones. Tierra que uno troce acá.
- E por que están vendiendo tierra?
- No se vende se da como recuerdo.
- Puedo llevar una?
- Si, puede llevar
A terra vermelha que embora, segundo o guia, não seja retirada do sítio é
certamente uma representação alusiva a terra vermelha das Missões. A
representação, conforme Chartier (1991: 177) e Jodelet (1993: 22) pode se
relacionar ao estar no lugar de, em substituição a algo. A terra é um referente
importante em termos de Missões para se perceber os sentidos (Sahlins:1990:93-
94) conferidos no presente ao passado missioneiro, pelo projeto turístico montado
em torno de San Igfnacio Mini.
No Rio Grande do Sul um imaginário sobre a terra representado nas
apropriações do grito de Sepé Tiaraju: Esta terra tem dono que se relaciona à
Guerra Guaranítica e à questão das fronteiras e identidades geradas, da força de
uma ligação com o pago através dos tempos ao se nomear como legítimo dono da
terra. Na Missão Argentina, a terra presenteada pode ser pensada em termos de
posse simbólica e de identificação com o local.
A materialidade da terra para ser ofertada sugere a continuidade da ligação
estabelecida pelos visitantes com o local. A existência deste tipo de recuerdo que
é concebido para ser transportado e mostrado como eu estive aqui, extrapola a
dimensão da compra dos livros e outros objetos, pois traz em seu bojo a dupla
questão da reciprocidade do presente em troca da visita, na perspectiva de Marcel
Mauss em Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas
(1974: 183) e de um sentido de autenticidade representacionalmente produzido
em torno da terra vermelha missioneira. Levar terra das Missões significa
continuar pertencendo a este passado, poder retornar a ele e pensar nos seus
propósitos através da terra, perpetuando uma relação gerada no passado a partir
161
161
da sua existência e da de seus habitantes. Receber terra missioneira tem como
um de seus significados a existência de um imaginário da perpetuação da
conquista, uma viagem que se repete a cada nova entrada de visitantes no museu
através da choça guarani e que culmina com o saco de terra no final da visita ao
mesmo. Nestor Garcia Canclini em Culturas híbridas se refere à teatralização do
patrimônio efetuada nos museus:
O museu é a sede cerimonial do patrimônio, o lugar em que é guardado e
celebrado, onde se reproduz o regime semiótico com que os grupos
hegemônicos o organizaram. Entrar em um museu não é simplesmente
adentrar um edifício e olhar obras, mas tamm penetrar em um sistema
ritualizado de ação social. (Canclini: 2000, 169).
O sítio de San Ignácio Mini se inscreve nesta perspectiva. As várias etapas
do museu que antecedem a visita às edificações missioneiras têm como papel
pedagógico inserir o visitante no passado, compondo um cenário fictício e caricato
capaz de fazer adentrá-lo no autêntico mundo das Missões corporificado por suas
ruínas. Logicamente a visão mostrada é a visão dos vencedores e a obra exaltada
é a jesuítica. A ritualização se ao longo de todo o complexo missioneiro
visitado, através do regramento dos espaços e da performance dos próprios guias,
durante as exposições, bem como por parte dos visitantes nas poses para as fotos
e compra de souvenirs, por exemplo.
A singularidade do rito que assegura a eficácia e manutenção do mito
civilizatório das Missões jesuítico-guaranis
20
se circunscreve também à relação
pessoalmente estabelecida com o passado vivenciado pelos visitantes,
especialmente no espaço das ruínas, em que a leitura é mediada pela atuação do
guia, cuja explicação se cinge às leituras interelacionadas de um espaço a ruína
- e do tempo o passado missioneiro, pondo em evidência o trabalho da memória
e as significações atribuídas ao lugar através de sua descrição. Paul Ricoeur no
artigo Architecture et narrativité (1998) efetua uma analogia entre a produção
20
A segunda etapa da visita teve início logo a seguir no princípio do largo caminho que conduz às
ruínas de San Ignácio Mini, onde o guia Jorge nos esperava. A explicação durou cerca de uma
hora e percorremos todo o sítio. A maior ruína missioneira que visitei, em que além da igreja
ainda existem as edificações das oficinas e muitas casas dos índios. Novamente, como no
Paraguai, a Missão foi apresentada enquanto possibilidade de reprodução da cultura guarani em
oposição ao extermínio de outras formas de conquista, com um teor acentuador do primitivismo
162
162
textual e o projeto arquitetônico perceptível nas três etapas de ambos
(prefiguração contexto/meio; configuração produção textual/edificação do
espaço e refiguração recepção do texto/dimensão adquirida pela edificação no
tempo).
A ruína se enquadra nesta terceira etapa a da refiguração e corresponde
à materialidade de um espaço que conduz a um outro tempo, ao passado onde
encontramos referências que lhe dão sentido e que são perceptíveis na sua
conformação, tais como as técnicas e estilo o que possibilita efetuar sua leitura
analogamente a de um texto e assim interpretá-la. A relação com o tempo
presente é permeada pelo mostrar concebido como leitura do passado na
construção de explicações/olhares a este passado e visões do mesmo. A leitura
da pedra missioneira, neste caso, é circundada pelo texto do guia cujo fim é
construir uma coerência sobre o passado concebido neste espaço. As relações
estabelecidas pelos turistas e sua
capacidade de efetuar leituras particulares e de
se apropriar do espaço e consumi-lo, neste sentido, é mediada e regrada pelo
guia. Segundo Augé:
Nuestra relación con la imagen e con el espacio se presenta en un doble
aspecto: recibimos imágenes (fijas o móviles) y fabricamos imágenes.
Fabricar imágenes (fotografiar, filmar) significa a la vez apropiarse del
espacio y en cierto modo transformarlo, consumirlo. De manera que la
toma de vistas asigna con finalidad última al espacio y a la historia el
espectáculo, un espectáculo al que espacio y tiempo históricos dan la
materia prima: la toma de vistas impone un cambio de naturaleza, de
lugar y de temporalidad. (Augé: 1998,124).
21
A relação de apropriação do espaço pelos turistas nesta e nas demais
reduções é mediada pelas explicações dos guias que efetuam a tradução das
ruínas como imagens de um outro tempo, somada a apropriação do espaço na
produção de imagens e representações turísticas sobre o passado no presente. A
escolha dos lugares para tirar as fotos, procurando excluir os vestígios do
dos silvícolas, mesmo na Redução, através de afirmações sobre sua alimentação e estatura,
estabelecidas em comparação aos padrões atuais.
21
Nossa relação com a imagem e com o espaço se apresenta em um duplo aspecto: recebemos
imagens (fixas e móveis) e fabricamos imagens. Fabricar imagens (fotografar, filmar) significa, por
sua vez, apropriar-se do espaço e em certo modo transformá-lo, consumi-lo. De maneira que torna-
lo vivel é assegurado pela finalidade última ao espaço e á história através do espetáculo, um
espetáculo a que espaço e tempo históricos dão a matéria prima torná-la vivel impõe uma troca
de natureza, de lugar e de temporalidade.
163
163
presente (como estacas e andaimes de sustentação ou as arquibancadas que
poluem o espaço e adquirem sentido no momento do Luz y sonido, por
exemplo) demonstram que nesta produção há um retorno ao passado através de
trocas em que o próprio turista é a ligação entre tempo, lugar, natureza e culturas,
cuja matéria prima são as ruínas das Missões. Para Celso: A visita às ruínas é
um retorno ao passado em que se pode pensar sobre si e ser melhor. (fita K7 1
B).
O transporte é possibilitado pela viagem e a relação com o passado tem por
finalidade o crescimento individual que é dado não apenas em termos de
aquisição de informações, mas ao que parece, de uma forma psicanalítica em que
a interação com o vestígio no espaço visitado conduz ao retorno a um tempo
passado e a experiências vivenciadas de que se tiram lições para o
desenvolvimento pessoal presente, reflexões sobre a própria vida e sobre a
história coletiva em intersecção com a história pessoal de cada um dos visitantes.
Lições de aperfeiçoamento e de beleza, de mágica em que um encantamento
pelo passado. Marc Augé em Le temps en ruines estuda a relação pessoalmente
estabelecida com o passado ao analisar um relato da visitação de Freud à
Acrópole, contrapondo a imagem histórica do local passada pela escola frente à
relação pessoalmente estabelecida por Freud na visitação:
Et je sérais tenté pour ma part datribuer <<lettonement joyeux>> (cest
son expression) de Freud sur lAcropole au constraste perçu entre
lactualité du moment quil vit, du lieu il se trouve (une Acrópole en
ruines dse perçoit parfois la rumeur de la ville moderne) et lévidence
incertaine du temps pas : à une extraordinaire composition où le
sentiment du temps pur le dispute aux évocations plus culivés et plus
construites de lhistoire. (Augé: 2003, 32).
22
No final da visita a San Ignacio Mini alguns saíram boquiabertos frente a
monumentalidade arquitetönica, outros de cabeça baixa custaram um pouco a
perceber que o elo com o passado se rompera ao cruzarmos o portão
demarcatório da entrada e tirarmos nossas últimas fotos. Como nas observações
22
E eu estive tentado da minha parte de atribuir este <<espanto alegre>> sua expressão) de
Freud sobre a Acrópole em contraste à atualidade do momento que ele vive, do lugar onde ele se
encontra (uma Acrópole em ruínas de onde se percebe às vezes rumores da cidade moderna) e a
164
164
de Augé o sentimento de impacto do estar lá contrasta e se mescla às
experiências e momentos vividos por cada um de nós, tamm em relação com a
múltipla temporalidade do local, e a carga histórica que recai sobre sua exploração
como espaço turístico.
Em adição às observações de Augé a relação buscada pelos habitantes
locais a partir do espaço turístico espelhando a exclusão social e a tentativa de
sua inserção através da proximidade com os turistas. Do lado de fora da tela que
demarcava o sítio arqueológico havia algumas pessoas vendendo e esmolando.
Um contraste com os monumentos que acabáramos de visitar, mas mesmo que o
fenótipo dessas pessoas demonstrasse traços indígenas não percebi nenhuma
manifestação dos turistas em efetuarem uma relação entre o passado visitado e
as condições do presente na região, através da figura da exclusão indígena.
Ao rumarmos para São Miguel para mais um capítulo do passado
missioneiro entramos no Brasil pela ponte São Tomé São Borja, cidades que
tamm foram palco da experiência missioneira platina. Não paramos para visitá-
las, pois o pacote turístico que adquirimos não as elegeu como local de memória
deste passado, embora São Borja tenha sido o primeiro dos sete povoados a ser
fundado no território do atual Rio Grande do Sul em 1682. Este fato levanta a
questão da não representação das duas cidades e ao serem excluídas de
roteiros turísticos
23
referentes às Missões a par das identidades geradas a partir
destes lugares
24
.
A cidade de São Miguel das Missões apresenta uma série de elementos
que remetem ao passado missioneiro, numa intencionalidade percebida na
estrada, nas paradas de ônibus construídas com motivos imitativos da ruína de
São Miguel, nas sinalizações das ruas e nos seus nomes, na decoração de alguns
ambientes e no pórtico
25
de entrada da cidade. As ruas são bastante sinalizadas
evidência incerta do tempo passado; com uma extraordinária composição em que o sentimento do
tempo puro o disputa às evocações mais cultivadas e mais construídas da história.
23
Outros roteiros consultados também não as incluíram www.missoesturismo.com.br .
24
As identidades missioneiras acionadas, como por exemplo, pelo grupo regionalista os Angüeras
em São Borja, adquirem uma conotação não turística, mas musical como enfocarei ao abordar a
mitologia folclórica missioneira.
25
O pórtico, inaugurado em dezembro de 2002 de autoria do artista de Santo Ângelo Tadeu
Martins representa figuras relacionadas à experiência missioneira como Sepé Tiaraju, Pe Antonio
165
165
com réplicas de todo tipo das ruínas e simbologia referente às Missões. No local
onde pernoitamos, Wilson Parque Hotel os corredores têm nomes
guaranis e uma
das opções noturnas do cardápio é o café missioneiro composto com pratos que
vão do cachorro quente e sucrilhos a geléias, pão de todo tipo, salgados e vinho.
Talavera no citado texto Turismo cultural e cultura turísticas aborda a questão
da produção da autenticidade;
Al fin y al cabo, la autenticidad buscada por el turista y vivida por el
residente no necesariamente tiene que coincidir con la materialidad
forjada en un área. La autenticidad tiene más a ver con el cómo se
presenta y se percibe una interpretación determinada de una experiencia
y artefacto que valores admirables se contemplan encarnados en ellos
y con qué estética son expresados - que con la cosificación de la
experiencia y el artefacto mismo. La autenticidad es creada
individualmente como un constructo contextualizado en las propias
experiencias del sujeto, representando una alternancia de experiencia
que compensa las pautas y rutinas del cotidiano. (Talavera: 2003, 46).
26
Ante tantas alusões e indefinições ao missioneiro cabe mencionar a alegria
dos turistas e estudantes que visitam a cidade e se sentem recompensados por
essa constante referência a seu motivo maior de visitação. Neste sentido, a
autenticidade do missioneiro se relaciona à dialética da produção e recepção das
imagens mostradas do que é o ser missioneiro a partir de demonstrações de
fabricações de uma identidade missioneira baseada num passado que incorpora
elementos variados como os gastronômicos da colonização imigrante que se
seguiu na região, mas que igualmente os exclui enquanto cultura imigrante do
mosaico missioneiro, através do sentido conferido ao termo como relativo ao
jesuítico-guarani.
Essa incorporação de elementos endossa duplamente a tese da produção
da autenticidade de Talavera, porque se por um lado a exigência do missioneiro
Sepp e Cristóvão de Mendonça, introdutor do gado nas Missões, tendo como motivo central a
figura de Sepé protegida pela cruz missioneira de dois braços. Nos pilares deste pórtico estão
representadas situações da vida nas Missões.
26
Ao fim e ao cabo a autenticidade buscada pelo turista e vivida pelo residente não
necessariamente tem que coincidir com a materialidade forjada em uma área. A autenticidade tem
mais a ver com o como se apresenta e se percebe uma interpretação de determinada de uma
experiência e artefato que valores admiveis se contemplam e com que estética são expressos
que com a coisificação da experiência e do artefato mesmo. A autenticidade é criada
individualmente como uma construção contextualizada nas próprias experiências do sujeito,
representando uma alternativa que compensa as pautas e rotinas do cotidiano
166
166
em termos de culinária leva os produtores do turismo a se socorrerem de outros
momentos para produzirem a autêntica e típica gastronomia missioneira, por outro
os turistas em viagem vivenciam e a recebem como autêntica a par de outras
representações do missioneiro com que interagem nas visitas a São Miguel,
27
onde a memória é trabalhada em termos da preservação e recuperação dos
vestígios
28
materiais deste passado cujo responsável principal é o IPHAN.
À noite é exibido o espetáculo Som e Luz (criado em 1978 pelo governo do
estado) e as relações entre o passado e o presente que se estabelecem no
espaço das ruínas, além das apropriações já referidas de filmar e fotografar
puderam tamm ser percebidas através da recepção do mesmo, O Som e Luz
pode ser pensado, conforme Thiesse em A criação das identidades nacionais,
como o teatro histórico que propõe ao seu público descobrir não apenas as
personagens, mas também um cenário histórico
(1999: 140) e, assim, estabelecer
a identificação entre o passado e o presente através de sua exaltação como
proposta turística encarregada de patrimonializar e sacralizar a terra, os sujeitos
históricos e o espaço missioneiro, ao produzir mitos a serem cultuados dentro e
fora da região das Missões
29
.
27
As constantes referências na cidade, fora do espaço do sítio arqueológico, m como intuito a
construção de uma estrutura turística, bem como de uma imagem de São Miguel relacionada ao
turismo, se constituindo nos últimos anos em uma das principais atividades do município. Um
movimento crescente que teve como impulso o reconhecimento de São Miguel como patrimônio da
humanidade em 1984 e com a atuação do prefeito Mário (de São Miguel) como é conhecido. Em
termos de turismo a cidade é percebida como um modelo a ser seguido pelos demais municípios
no Rio Grande do Sul que tem alguma relação com as Missões, especialmente os que possuem
ruínas missioneiras.
28
Toda a atividade de turismo é efetuada a partir da produção de imagens concernentes às ruínas
da igreja. A própria imagem que se tem das Missões no Rio Grande do Sul é a igreja de São
Miguel amplamente veiculada pela mídia, neste sentido. O espaço de visitação do sítio
arqueológico é composto, além das ruínas da catedral e demais fundações, pelo museu de arte
missioneira, ao redor do qual os mbyá-guaranis vendem artesanato da manhã à noite. Na sacristia
reconstruída da igreja é mostrado um vídeo representando a reconstituição computadorizada da
redução de São Miguel e do seu cotidiano e um multimídia para ser consultado pelos visitantes
com informações sobre os 30 povoados missioneiros, além do espetáculo Som e Luz.
29
A narrativa da história das Missões é elaborada a partir da apresentação de seus protagonistas
principais: a terra e a igreja e alguns sujeitos relacionados ao
passado dos Sete Povos, chamados
a dar seu depoimento, contando o que realmente houve e o porquê de, na atualidade, apenas
existirem vestígios (as ruínas), testemunhos daqueles tempos. Assim, as atrizes Terra e Igreja se
propõem a transportar o publico ao passado missioneiro, contando as atrocidades que
ocasionaram a desestruturação do espaço civilizatório de São Miguel revividos através da visão e
atuação de seus principais protagonistas, como os jesuítas Gian Batista Primoli (o arquiteto
construtor da igreja de São Miguel) e o padre Antonio Sepp, além dos atores ibéricos responsáveis
167
167
O Som e Luz, que utiliza como cenário as ruínas, tem como técnicas a
produção de luzes e de sons. Os expectadores o assistem nas arquibancadas
sem cobertura, sob as estrelas, o que confere a magia do momento de recriação
do passado missioneiro à noite dos tempos de tantos episódios do passado, que
no presente se torna cenário desta revivificação. O espetáculo objetiva erigir as
ruínas em vestígio símbolo da luta pela terra no Rio Grande do Sul, onde o povo
guarani das missões, representado na figura de Sepé Tiaraju, foi exterminado. O
Som e Luz contribui para a elaboração mítica de sua figura que ascende no
imaginário como emblema do apego à terra através do seu brado Esta terra tem
dono: ela nos foi dada por Deus e por São Miguel.
Durante a encenação do Som e Luz permanecem no sítio arqueológico os
mbyás-guarani que silenciosamente aguardavam o final do espetáculo e a saída
dos turistas para venderem seu artesanato. Após o show, uma das participantes
do nosso grupo, comentou comigo não concordar com o apresentado no
espetáculo, porque era uma visão que produzia revolta e que não levava a coisa
alguma. Sua percepção, para mim, ilustra a questão da ineficácia simbólica do
espetáculo na visão de uma turista que veio para ver um passado e que não está
interessada na exploração de suas contradições. Ela não me pareceu chocada
com a visão oferecida pelo espetáculo, apenas não a considerava edificante em
termos de veiculação da memória missioneira, talvez porque a relação que ela
estabeleça com a mesma seja refratária as Missões como um episódio
revolucionário.
que salientar que a percepção desta turista tem uma certa razão de ser
enquanto ineficácia simbólica do mesmo, se confrontada com a questão da
presença indígena para venda do artesanato na ruína e da não relação que as
pessoas que assistem ao espetáculo efetuam com os mesmos. Explico: o Som e
Luz constrói uma imagem do índio bravo e lutador por sua terra a imagem de um
Sepé Tiaraju não submisso que com seus guerreiros, resiste a entrega da terra
das Missões. Os mbyá-guaranis que ali estão não correspondem em nenhum
pela demarcação e execução do Tratado de Madrid (1750) na Guerra Guaranítica (1754-56), e
Sepé Tiaraju.
168
168
aspecto a essa visão monumentalizada atribuída aos guaranis no Som e Luz, pois
suas figuras expressam a marca da pobreza e da exclusão social quase 3 séculos
após a desestruturação das Missões.
As pessoas após o espetáculo se dirigem a seus ônibus, em sua maioria
passando rapidamente pelos guaranis em torno do museu, demonstrando uma
certa repulsa por suas figuras e sua arte tão primitiva. Poucos param para adquirir
seu artesanato, mesmo após a apologia efetuada às Missões e sua mensagem
edificadora de luta pelos ideais e verdades de um passado que, segundo o
espetáculo, permanece vivo no presente através das ruínas das edificações
missioneiras. O imaginário criado pelo espetáculo em torno das Missões não
contempla em sua plenitude a relação necessária de ser estabelecida com as
figuras guaranis que povoam o presente deste local turístico, pois o missioneiro é
construído e identificado com os valores de bravura e liberdade. Nada tem a ver
com a aparência pobre e quieta dos guaranis e seu artesanato dedicado
preponderantemente a representar seu universo da fauna e cestaria. Em suma,
não uma identificação dos mesmos por parte dos turistas com as Missões.
Observei que não conseguem enxergar os mbyá-guarani presentes nas ruínas
enquanto descendentes do bravo Sepé Tiaraju.
A visão expressa no Som e Luz, apesar das denúncias que efetiva, é uma
visão de comemoração do passado missioneiro, enquanto um olhar que parte do
presente e que se propõe a perpetuar uma memória, pois considera a saga
missioneira como um episódio a ser relembrado e constrói um mito a ser cultuado
Sepé Tiaraju e transportado para além do espaço das ruínas. A dinâmica
desta relação ritualizada pode ser pensada através da analogia com as
observações de Thiesse sobre o romance histórico:
Aos leitores iletrados, o romance histórico proporciona simultaneamente
as emoções de uma intriga exaltante e os prazeres da descoberta de um
universo desconhecido (...), um saber sobre o passado e as chaves para
sua compreensão. E é através deste gênero que se constitui uma galeria
de heróis históricos em tom algo exagerado e uma representação da
história tão profundamente ancorada quanto largamente difundida
(Thiesse: 1999, 139).
169
169
O Som e Luz elabora uma concepção estática e heróica do ser missioneiro
como voltado para o passado e de São Miguel como um lugar de memória, em
que o município que cresce em termos de turismo a seu redor deve servir como
suporte. Porém, esta imagem veiculada pelo turismo não é unânime e os próprios
moradores da cidade apresentam um certo desconforto com a mesma. O caso da
construção do pórtico é um exemplo disto. Em dezembro de 2002, um pouco
antes de sua inauguração, estive em São Miguel, como mencionei no princípio
deste capítulo e seu Emílio, funcionário do IPHAN e figura referencial na relação
que buscávamos estabelecer com os mbyás, assim se manifestou sobre o pórtico
em construção: estão nos tratando como morto, é como se fosse a entrada de um
túmulo. (diário de campo 1).
Sua manifestação ilustra a representação que se tem das Missões como
um passado que deve ser preservado e que deve ser vivido através do turismo e
contabillizado como mito civilizatório. As ruínas são a imagem preponderante de
São Miguel. O pórtico funciona neste sentido como moldura (a entrada de um
túmulo) que se propõe metaforicamente a guardar o passado, em que as figuras
dos guaranis na ruína e dos habitantes da modernidade missioneira aparecem
como coadjuvantes. É necessário perceber que a produção desta imagem turística
e de outras que lhe são correlatas está imersa em um jogo social e simbólico em
ebulição, em que outras representações são produzidas sobre as Missões como a
expressa acima, cuja repulsa a monumentalização vai de encontro a uma
percepção de que um dinamismo e uma história das Missões para além das
pedras, que ainda carne e osso por lá, que seus habitantes estão vivos e não
em processo de putrefação. Há vidas e histórias que se desenrolam no local e não
apenas os fantasmas de Sepé e Sepp a espreitarem as ruínas.
O mundo missioneiro possui uma dinâmica que engloba índios, políticos, os
comerciantes e proprietários rurais locais, turistas, os trabalhadores e os
pesquisadores e técnicos que residem, mas onde uma intenção cada vez
mais clara de construir uma São Miguel por e para o turismo que vem se
afirmando por uma busca do monopólio representacional nas Missões e
conseqüentemente construindo sua identidade turística. Seu Emílio é um
170
170
personagem do drama missioneiro que parece bastante ciente das representações
que lá se produzem e do seu poder de manipulação simbólica justificador de
práticas sociais, sobre um passado que se quer vivo, mas higienizado.
Esta percepção sobre o pórtico e a forma como este símbolo é decifrado
demonstra o impacto do turismo sobre as populações locais das Missões que
percebi durante os trabalhos de campo na região. Um imaginário abarcador de
diversos momentos e das relações dos turistas com os missioneiros.
Por seu turno, os mbyá-guaranis produzem representações e não
representações ao se relacionarem com as ruínas através de seu silêncio,
tentando interargir com a lógica e ética imposta pelo contexto turístico em que se
enquadram. Michel Pollak em Memória, esquecimento e silêncio (1989: 10) alerta
que a preservação da memória não se apenas através da produção de
discursos organizados sobre acontecimentos e personagens, mas se traduz
tamm na produção de outras materialidades, bem como em não produções,
pois o silêncio deve ser analisado através do não dito que não corresponde ao não
explicitado, o que não quer dizer inexistente, mas que pode estar sendo
propositalmente encoberto pelo grupo.
Creio que os guaranis com que o grupo de turistas se deparou naquela
noite após o Som e Luz e no dia seguinte se relacionam com o espaço do sítio
arqueológico através de sua presença e da forma como se distribuem em torno do
museu, ao disporem seu artesanato, ao colocarem suas roupas sobre as pedras,
ao comerem e defecarem em local impróprio segundo os códigos culturais
dominantes. Suas relações com o passado missioneiro se expressam através de
seu silêncio sobre as Missões, bem como no seu artesanato a que além dos
motivos de sua cosmologia aos poucos vem se somando motivos missioneiros,
tais como pequenos terços de contas com a cruz de madeira e a cruz missioneira
de dois braços, na tentativa de interação no universo capitalista em que se
inserem.
171
171
Foto 4 artesanato Mbyá-guarani nas ruínas de São Miguel abr 2003; Autoria
Ceres Karam Bum; Fonte; Acervo Pessoal; P&B (original colorido); (tamanho
10x15); fotografia fotocopiada em scanner e reduzida (5x7).
Quando perguntei sobre as cruzes de dois braços a Leusa (artesã mbyá-
guarani que ali comercializava seu trabalho) ela me disse que o fazia porque
estava ali - me apontando através do vidro para o museu e completando,
porque vende, gostam de levar como lembrança (diário de campo 3). Sua
resposta demonstra que os mbyá que ali estão percebem de alguma maneira a
ineficácia simbólica do Som e Luz com relação a sua presença nas Missões para
venda de artesanato. Desta forma estão buscando um outro tipo de inserção
através dos motivos missioneiros que passaram a representar com sua arte,
tentando se identificar com as Missões, cuja motivação primordial é a questão
econômica da subsistência frente ao seu modo de ser. Uma tentativa desesperada
de fazer com que as pessoas os vejam tamm como missioneiros a custa de
uma possível lenta descaracterização de sua arte, intentando se representar como
próximos das Missões. Apesar deste esforço os turistas naquela noite não
perceberam sua intenção. Ao chegar ao ônibus peguei o microfone e apelei:
- os índios que encontramos perto do museu são mbyá-guaranis descendentes dos índios que
povoaram as Missões. Vivem a 30 km daqui numa reserva denominada Nhancapetun e
sobrevivem da venda do artesanato. Por favor, os ajudem a sobreviver (diário de campo n°3).
Apenas a partir daquele momento, as pessoas pareceram efetuar a relação
entre a figura de Sepé Tiaraju representada no Som e Luz e os mbyá que ali
estavam. Na manhã seguinte antes de rumarmos para Santo Ângelo vi algumas
172
172
pessoas do grupo comprando suas peças. E apesar de me sentir meio incômoda
por uma intervenção tão incisiva ao abdicar de minha identidade de observadora e
impor minha autoridade antropológica, creio que consegui auxiliar os guaranis
naquele feriado do dia 21 de abril e espero que tenham conseguido vender
melhor.
A última etapa de nossa viagem foi Santo Ângelo
30
onde visitamos o
Memorial Luis Carlos Prestes, o monumento a Sepé Tiaraju e a família
missioneira, a catedral e o museu da cidade. Não há ruínas missioneiras na
cidade e esta apresenta uma série de identidades sobrepostas em relação ao seu
processo histórico, principalmente entre o passado colonial missioneiro do século
XVIII (pois foi o último dos 7 povos a ser criado, fundado em 1706) e o passado
mais recente da década de 1920, relacionado ao movimento anti-Getulista
comandado por Prestes, nascido na cidade
31
. O turismo tenta contemplar esses
dois momentos.
As apropriações efetuadas pelo pacote turístico que etnografei me levam a
perceber o turismo oferecido em termos de Missões como uma atividade
comemorativa da obra civilizatória efetuada pelos jesuítas que invizibiliza os índios
guaranis e seus descendentes. As identidades geradas do ser missioneiro incluem
uma série de elementos específicos característicos das regiões e contextos locais
em que se situam as ruínas. Neste sentido se configuram a utilização do termo
nhanduti no Paraguai e da figura Sepé Tiaraju em São Miguel enquanto elementos
utilizados pelo regionalismo que remetem ao passado missioneiro, bem como os
30
O passado missioneiro é veiculado e apropriado a partir de uma menção a imagem da catedral
de São Miguel que dista 35 km do município e que foi distrito até a emancipação do município.
Santo Ângelo ocupa a condição de maior cidade da região das missões a que se segue São Borja.
Percebi no nome do Teatro Padre Sepp, no dois monumentos a Sepé Tiaraju (um em frente ao
teatro e outro no museu), na loja de artesanato ao lado da catedral (construída sobre as fundações
da antiga catedral misssioneira), um desejo de identificação com as Missões e da promoção deste
passado de uma forma mais estrutural. Isto ocorre em razão das condições que oferece em
termos de turismo, hotelaria e da própria universidade URI e do Centro de Cultura Missioneira,
além do festival de música missioneira Grito dos Livres promovido em novembro de 2002.
31
O pacote Circuito Internacional das Missões da Galápagos Tour encerrou às 22 horas e 30
minutos quando chegamos a Porto Alegre, no final daquele feriado de Páscoa prolongado.
Nenhum comentário foi feito sobre as Missões no nosso retorno. As relações estabelecidas com
este passado pareciam ter tido seu elo cindido ao sairmos de São Miguel.
173
173
pacotes da terra missioneira a serem doados com que me deparei em San Ignácio
Mini.
Se uma identidade missioneira, além da terra vermelha como elemento
natural, culturalmente representada em sua diversidade e utilizada como
ethnotype, comum aos sítios visitados, que salientar que esta identidade é
forjada pelo turismo a partir da arquitetura barroca missioneira que erige as
Missões como lugar de memória de um passado colonial liminar e controverso,
mascarando ao máximo suas contradições entre o passado e o presente (como a
pobreza a seu redor e a problemática das fronteiras), a fim de oferecer aos turistas
um passado higienizado a comemorar.
Nesta perspectiva, a dialética entre a produção e venda dos pacotes
turísticos, seu consumo e recepção pelos turistas e a relação estabelecida por
ambos com os habitantes locais é importante de ser salientada, pois demonstra a
produção e utilização do missioneiro como ethnotype caracterizado como
autêntico e típico das Missões. Os turistas com quem convivi durante as
observações do Circuito Internacional das Missões, além de receberem o passado
missioneiro como comemoração, também estabelecem com ele uma relação de
crescimento individual, tiram lições históricas e energéticas deste passado.
Conforme tentei destacar estas relações são propiciadas a partir do estar nas
ruínas como passaporte para adentrar o passado, viver as Missões e significá-las
como evolução do universo do guarani primitivo para a civilização missioneira.
Uma relação ritualizada, apologética e performática em que se vive o mito da
Missão como Terra da Promissão.
A dinâmica da vivência do mito pelos turistas em relação aos habitantes
locais se configura em um processo repleto de contradições e desdobramentos
como a recusa destes aceitarem viver as Missões na atualidade como um
passado estático. As relações estabelecidas a partir do turismo na região das
Missões, observadas neste pacote turístico se cruzam às peculiaridades
turísticas das peregrinações percebidas nas observações do pacote turístico
Caminho das Missões, que abordarei a seguir.
174
174
3 O Caminho das Missões
O Caminho das Missões
32
é definido por seus idealizadores e executores
no Guia do Peregrino como:
O projeto Caminho das Missões Jesuítico-guaranis é um roteiro místico/cultural de peregrinação
que percorre os mesmos trajetos que ligavam os antigos povoados missioneiros que compunham o
conjunto urbano e rural - das Missões Jesuíticas, cujos remanescentes encontram-se hoje
situados em parte do território brasileiro, argentino e paraguaio.
As antigas trilhas guaranis, os caminhos missioneiros e, depois, as velhas estradas dos tropeiros
serviram de orientação para o traçado do caminho que ora se apresenta como uma jornada de
peregrinação mística, ou de pesquisa, lazer ou esporte (www.caminhodasmissoes.com.br ).
A definição do projeto como peregrinação em sentido ampliado, cruzada ao
seu caráter comercial me incitou a peculiarizá-lo como uma das leituras do
passado no presente, calcada na produção de um conjunto de representações
com fins turísticos desenvolvida na região das Missões, efetuando uma
interpretação de alguns aspectos atribuídos a este passado para oferecê-los aos
peregrinos como o projeto Caminho das Missões. É através da recepção e
formatação de representações historiográficas e literárias que o Caminho das
Missões constrói e comercializa o projeto de peregrinação turística que se
desenvolve no espaço de seis dos Sete Povos das Missões:
O encontro de duas culturas diferenciadas: a guarani e a européia, deu origem a um novo modo de
ser, o missioneiro, desenvolvido com base em uma rígida organização social e econômica que se
destacou no contexto colonial. A originalidade da cultura guarani, alicerçada no solidarismo e
reciprocidade encontrou nas inovações técnicas trazidas da Europa, como a escrita, imprensa,
metalurgia, arte e arquitetura barroca, as condições ideais para o grande desenvolvimento
alcançado. (Guia Do Peregrino: 2003, 5).
A concepção do modo missioneiro de ser enquanto peculiaridade da região
se constitui na razão de ser do projeto, o produto comercializado pela empresa
32
Em abril de 2003, ao fazer um tour por Santo Ângelo durante as atividades do pacote turístico
Circuito Internacional das Missões me deparei com a sede do Caminho das Missões. Surpreendida
com a novidade da proposta turística agendei minha caminhada para os dias 10 -17 de maio de
2003. Adquiri o pacote ao preço de R$ 490,00 que incluía: palestra sobre o passado missioneiro e
Caminho das Missões, Guia do Peregrino, camiseta, cajado, cruz missioneira, traslado Santo
Ângelo/São Nicolau; refeições e hospedagem durante os seis dias e almoço de encerramento em
Santo Ângelo.
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175
turística desde 2000 como forma de fomentar o turismo na região
33
. O
aproveitamento desses aspectos se através de uma apropriação do espaço
missioneiro das estradas, dos sítios arqueológicos tombados como patrimônio
nacional e mundial da humanidade, do estabelecimento de uma relação com o seu
imaginário mítico-religioso, sua gastronomia, outras atrações e aspectos da região
que compõem um modo missioneiro de ser percebidos pela empresa promotora
como um conjunto de características identitárias forjadas ao longo do processo
histórico da região.
Capa Guia do Peregrino. Maio de 2003
33
Segundo Marta Antõnia Benatti, uma das sócias da empresa, na palestra de recepção ao grupo:
- Então a gente acreditando no potencial turístico, resolvemos fazer por nós e trabalharmos o que
a nossa região tem (fita k71A). Segundo ela o caminho ainda se encontra em fase de formatação.
Além da peregrinação de 7 dias também peregrinações de 3 e 5 dias. Futuramente o Caminho
das Missões pretende se expandir até São Borja e para as Missões Argentinas e Paraguaias,
contemplando parte dos 30 povos missioneiros do passado.
176
176
A Peregrinação de 189 Km do Caminho das Missões ocorre periodicamente
a partir do fechamento dos grupos de até 15 pessoas e se inicia com a recepção
pela empresa promotora em Santo Ângelo seguida da palestra de abertura
quando os peregrinos oficialmente se encontram pela primeira vez. A empresa
promotora distribui aos participantes o Guia do Peregrino onde constam
informações gerais sobre o trajeto e aspectos da cultura e história da região. Ela
possui também um site onde me informei sobre os requisitos para participar da
atividade:
Da preparação do peregrino. (...) É interessante que o peregrino defina um trajeto próximo a sua
casa para preparar-se meses antes: caminhar carregando uma mochila com aproximadamente
10% do seu peso dele e, à medida que aumentar a resistência, ir aumentando o trajeto.
O que levar? Cada pessoa decide carregar, mas o que sugerimos para o caminhante é o seguinte;
1 mochila leve; 1 capa de chuva; 1 par de tênis ou bota especial para a caminhada (já amaciado);
1 chinelo; 1 cantil leve; 2 camisetas; 1 bermuda ou short; 4 pares de meias (grossa de algodão); 2
pares de meia fina; 1 caderno pequeno de notas; 1 máquina fotográfica pequena e leve; 1 conjunto
de moleton (tactel ou suplex); 1 chapéu ou boné; material de higiene pessoal; medicação pessoal;
saco de dormir; protetor solar; repelente de insetos; gelol; vaselina pasta; dorflex; band-aid;
esparadrapo microporo; atadura; e 1 lanterna pequena. ( www.caminhodasmissoes.com.br ).
O preparo físico e os equipamentos adequados são assinalados pela
empresa promotora como indispensáveis à peregrinação, o que se confirmou no
contato com o grupo ao chegar em Santo Ângelo: pessoas de diversos lugares do
Brasil, todos com mais de 40 anos, a maioria muito experiente em termos de
caminhadas de longas jornadas, o que observei pelo equipamento e conversas a
respeito de outros caminhos brasileiros e especialmente o de Santiago de
Compostela na Espanha um referente maior para todos eles.
Neste sentido, a participação majoritária do grupo
34
no Caminho das
Missões se insere em um contexto mais amplo o ser peregrino, representado por
34
13 pessoas participaram dos 7 dias de caminhada: Valderes, Alice e Antonio, Vera e Gustavo de
Brasília-DF.; Oswaldo e Maria Luiza de Campinas-SP; Elísio de Belo Horizonte-MG; Vera e
Carmem de Santa Maria-RS; João de Canoas-RS; Uma senhora de Caxias-RS que pediu para não
ser identificada. Destes 5 já haviam feito o Caminho de Santiago e apenas uma pessoa faria sua
primeira peregrinação no Caminho das Missões além de mim, naturalmente. Elísio em
10/05/2003 me informou sobre alguns caminhos brasileiros mencionando seus sites para consulta
e sobre as associações regionais e nacionais existentes, citando os caminhos: da Fé; do Sol; da
Luz; Os Passos de Anchieta; Estrada Real www.caminhodafé.com.br; www.caminhodosol.com.br;
www.carangola.com.br; www.abapaorg.com.br;www.estradareal.org.br, a Associação Caminho de
Santiago de Compostela www.caminhodesantiago.com.br e a Associação de Peregrinos de Belo
Horizonte: www.bhgrino.com.br João, Carmem e Vera mencionaram a existência de um caminho
177
177
relações de identidades e pertencimentos de todos e de cada um com o projeto do
Caminho das Missões, a partir de uma dialética que os trazia as Missões por
diversas razões estreitamente relacionadas ao fato de se perceberem como
peregrinos em busca de novos caminhos.
As relações estabelecidas com a região das Missões e o seu passado pelo
grupo de peregrinos etnografado se construiu através desta tensão que inclui as
características do trajeto e o clima; as condições do Caminho em termos de
hospedagem, alimentação, o condicionamento físico de cada um, as relações
interpessoais entre o grupo e as pessoas da região com que nos deparamos, as
atrações oferecidas e a intermediação fornecida pelo Caminho das Missões como
responsável por sua realização.
É a entrega do símbolo do caminho a cruz missioneira - e do cajado o que
marca ritualmente a entrada do peregrino no universo do Caminho das Missões.
MARTA: - Pessoal a cruz missioneira ela é feita em cedro que é uma madeira macia ela é feita por
um artesão. Nós não comercializamos, cada um ganha a sua. Se perder ou não quiser carregar a
sua cruz é uma coisa muito pessoal. A gente entrega ela, ela fica um talismã prá vocês, cada um
tem a sua religião e acreditando que Deus está no coração de vocês, desejando a vocês uma boa
caminhada e até breve!
GUSTAVO: - Qual o significado da cruz?
- Eu vou deixar prá guia de São Miguel. Vou dizer pra vocês que é a fé redobrada. Na verdade
em São Miguel tem uma cruz original.
O guia do peregrino se refere à cruz missioneira como:
A cruz missioneira é o símbolo místico da região. Esta é uma cruz episcopal que teve origem na
Idade Média utilizada pelos cristãos nas Cruzadas. Também teve grande importância entre os
Cavaleiros Templários. Os jesuítas trouxeram para a região a cruz de Caravaca (localidade da
Espanha) que acabou tomando características próprias sendo conhecida como cruz missioneira. A
população católica personifica nos dois braços a fé redobrada. (Guia Do Peregrino: 2003, 7).
A produção e a recepção da simbologia cristã remetem à religiosidade
daquelas pessoas que se definiam como peregrinos. No entanto, creio que esse
invólucro simbolizado de forte religiosidade pode ser pensado em termos de uma
dupla apropriação dos mesmos, tanto pela agência promotora quanto pelos
peregrinos na conformidade de utilização desses símbolos que passaram a portar.
na região da Quarta Colônia próximo a Santa Maria-RS de que participaram no carnaval de 2003.
(Diário de campo 3).
178
178
Um paralelo com o caminho de Santiago de Compostela
35
, (cujo símbolo é a
vieira) por exemplo, remete a questão da difusão da lenda da chegada da barca
que conduzia Santiago a Padrón na sua pregação à Galícia. As vieiras são
penduradas às mochilas dos peregrinos e se integram a outros mbolos que os
identificam.
No tocante as Missões, a cruz de dois braços é regionalmente associada
com a história da região e sua utilização como símbolo de evangelização remete à
atuação dos próprios jesuítas ensejando uma série de sentidos relacionados à boa
atuação do cristianismo. Na atualidade, vários trevos de acesso às cidades da
região possuem cruzes de dois braços. No Caminho das Missões a cruz
missioneira ao representar a redobrada do povo, se transforma em mbolo
místico protetor dos peregrinos
36
que a aceitam incluindo-a em sua indumentária.
Sua utilização como mbolo de evangelização remete à atuação dos próprios
jesuítas, conforme expressa o padre Antônio Sepp em Viagens às Missões
Jesuíticas e trabalhos apostólicos ao se referir a demarcação do território de São
João Batista: Na outra manhã ao nascer do sol subimos o outeiro onde erigimos o
estandarte da cruz salutar, em sinal da tomada da posse daquela terra (1985
[1710], 203). A cruz em Sepp enseja uma série de sentidos relacionados à boa
atuação do cristianismo. Para Danièle Hervieu-Léger em Le pèlèrin et le converti:
Elle sinscrit beaucoup plus couramment dans des operations de
bricolage qui permettent à lindividu dajuster ses croyances aux données
de sa propre experience. Chacun prend en charge, pour son compte
personnel, la mise en forme de la référence à la ligne dans laquelle il se
reconait. Cette <<religiosité pèlerine>> individuelle se caractérise donc
avant tout par la fluidité des contennus de croyance quelle elabore, en
35
Realizei a peregrinação a Santiago de Compostela em maio de 2004 percorrendo 778 km entre
Saint-Jean-Pied-Port e Santiago de Compostela com o intuito de entender as constantes menções
efetuadas ao Caminho de Santiago pelos peregrinos das Missões. Constatei uma aproximação dos
dois caminhos em termos da construção das identidades dos peregrinos e da simbologia religiosa
e das setas amarelas utilizadas, além de outros aspectos que destacarei ao longo do texto.
36
Durante o Caminho de Santiago em Puente de la Reina conheci alguns peregrinos da região da
Múrcia que identificaram a cruz de dois braços de minha camiseta com a cruz de Caravaca.
Encontrei a cruz de dois braços esculpida em Torres del Rio no prédio onde funciona um centro de
informações, em que foi referida como a cruz dos templários. Juan (peregrino da Múrcia) no
caminho entre Najera e Santo Antonio de la Calzada contou-me que Caravaca é percebido além de
Roma, Jerusalém e Santiago de Compostela como um lugar sagrado para os católicos, porque a
cruz de dois braços lá existente possui lascas da cruz de Cristo.
179
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même temps qui par lincertitude des appartenances communautaires
auxquelles elle peut donner lieux.(Hervieu-Léger:1999,99).
37
A autora contempla a peregrinação como forma de religiosidade
contemporânea, individual, móvel e dinâmica em relação à fixidez da religiosidade
tradicional que prescinde identidades e pertencimentos mais específicos. Ao
contemplar a peregrinação a partir da dialética entre as crenças individuais e as
incertezas do pertencimento comunitário específico a autora relaciona sua prática
a um leque vasto e liminar de motivações, integrando interesses individuais e
grupais variados. Em síntese, a peregrinação para Hervieu-Léger se relaciona a
uma prática que evidencia liminaridades. Victor Turner em O processo ritual:
estrutura e anti-estrutura, caracteriza a liminaridade:
Os atributos de liminaridade, ou de personae (pessoas) liminares são
necessariamente ambíguas, uma vez que esta condição ou estas
pessoas furtam-se ou escapam à rede de classificações que
normalmente determinam a localização de estados e
posições num espaço cultural (Turner:1974,117).
No contexto da peregrinação, a liminaridade corresponde a uma categoria
conceitual que se relaciona ao exame de valores dos peregrinos, nas relações
entre os estados religioso e semi-religioso (1974: 202) propiciado pela
peregrinação, em que através da busca de simplicidade e despojamento se
caracteriza como um processo ritual de reversão de status (1974: 228) e que
insere os participantes numa situação de communitas existencial partilhada.
Esta situação de communitas existencial (1974: 169) permite refletir sobre
as motivações e sentidos (religiosos ou não) que cada um elabora acerca das
Missões ao percorrer o caminho e o fato de os mesmos não serem externados
espontaneamente, sendo construídos e transformadas ao longo da peregrinação
ao sabor da subjetividade de cada peregrino em seu encontro consigo mesmo. No
Caminho de Santiago, também observei que o ser surpreendido pelo caminho e
37
Ela se inscreve mais correntemente nas operações de bricolage que permitem ao indivíduo
ajustar suas crenças aos domínios de sua própria experiência. Cada um coloca em troca, por sua
conta pessoal, a forma de referência à linha na qual se reconhece. Esta religiosidade peregrina,
individual se caracteriza, então, antes de tudo pela fluidez dos conteúdos da crença que ela
elabora, ao mesmo tempo, que pela incerteza dos pertencimentos comunitários aos quais ela pode
dar lugar.
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a reflexão sobre uma guinada radical, uma decisão a ser tomada pode se
constituir em motivação para prosseguir ou iniciar uma peregrinação.
Essa pluralidade de motivações se relaciona também à configuração e ao
reconhecimento do trajeto da peregrinação como um espaço tradicional e
autêntico que leva a um território sagrado. Um lugar de memória envolvendo a
idéia de passado/história e as relações de comemoração, de crítica que com ele
se estabelecem que, por sua vez, remetem à construção das identidades grupais
e a construção de si a partir do contato com o passado e sua interpretação.
Neste sentido, as motivações para participar do Caminho das Missões são
múltiplas e se integram à questão da religiosidade, remetendo ao interesse pela
história da região e sua diversidade cultural, como ilustram as considerações feitas
por Gustavo em um debate animado durante o rápido apanhado histórico
oferecido sobre as Missões, objetivando esclarecer o grupo sobre a história da
região, antes de rumarmos para São Nicolau:
- A Companhia de Jesus sempre teve uma relação conflituosa com o papado. O livro O papa
negro mostra que a organização do jesuíta é militar. Eu acredito pelo que se nos livros de
história é de que quando os caras disseram pra eles irem embora daqui eles foram embora
mesmo, mesmo que contrariados, obviamente um ou dois ficou e alguém organizou os caras para
eles combaterem. Porque também não eram só jesuítas tinham outras pessoas aí. O tratado é uma
renegociação do tratado de Tordesilhas, este é o primeiro passo de que eu acho que você tem que
começar falando aqui é o seguinte: da renegociação do tratado de Tordesilhas que vinha cortando
de reto de cima. E nele, no Rio Grande do Sul, além do Tratado de Madrid teve também a
ação de nós próprios gaúchos aqui que empurramos as nossas fronteiras mais pra longe, porque
ela é completamente irregular e uma fronteira de tratado é uma coisa mais regular. Então a origem,
a primeira grande intenção do tratado de Madri foi refazer, repensar o Tratado de Tordesilhas.(Fita
k7 1 A).
Gustavo, corrigindo o guia palestrante, na sua fala demonstra um
conhecimento contextual da questão do Tratado de Madrid e da Guerra
Guaranítica como decorrência das disputas coloniais entre Portugal e Espanha
nas terras americanas. Segundo sua visão, houve uma influência por parte dos
jesuítas na coordenação da resistência guarani na troca dos Sete Povos pela
Colônia do Sacramento, mesclada a questão de sua expulsão em 1768. Por outro
lado, Gustavo menciona a questão da formação das fronteiras no Rio Grande do
181
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Sul e se identifica como gaúcho
38
, reconhecendo a atuação do tipo humano na
formação do território. Implicitamente, uma intenção de exaltação à atuação
guerreira dos gaúchos como decorrência deste processo histórico colonial,
contextualmente relacionado com o tratado de Tordesilhas e com o de Madrid
(1750) foco do nosso debate. Mas relacionado também à possibilidade de
revificação deste passado, enquanto objeto de debate através da visitação desses
vestígios como atividade de peregrinação, logicamente relacionada a processos
identitários da construção da própria definição do que é ser peregrino e estar nas
Missões em contato com o modo de ser missioneiro e sua recepção.
Em sentido similar ao interesse pela história da região e atualização do
estereótipo do gaúcho guerreiro, cabe também salientar, como parte da motivação
para peregrinar, a curiosidade pelo exótico através de perguntas sobre a
permanência dos índios guaranis próximos aos povoados e sobre os costumes
gaúchos. Esse interesse/ abertura para conhecer o outro aproximam o peregrino
das Missões do turista, na medida em que o recolhimento e o isolamento da
concepção medieval de peregrino em busca de purificação é permeado pela
curiosidade de conhecer a região e interagir com ela.
Na primeira noite, em São Nicolau, fomos convidados a ir até o CTG
Centro de Tradições Gaúchas. Havia pessoas no grupo em primeira visita ao Rio
Grande do Sul e suas perguntas aos gaúchos sobre os trajes, seus nomes e o
lugar ocupado na questão do típico por uma mulher que vestia xiripá traje
masculino - foram pontuadas pelas relações que cada um de nós, como gaúchos,
estabelece com o tradicionalismo e o regionalismo no estado e a dimensão
adquirida pelo movimento no espaço das Missões em termos da construção
imbricada das identidades missioneiras e sua utilização, pois CTG se configura em
espaço privilegiado de sociabilidade em cidades pequenas do Rio Grande do Sul e
a linguagem utilizada é pontuada por termos regionais.
38
Gustavo (gaúcho) é Relações Públicas aposentado da Petrobrás e vive em Brasília, casado com
Vera (maranhense) que é médica. Ambos ótimos contadores de piadas de gaúcho.
182
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Na visita que fizemos ao sítio arqueológico de São Nicolau
39
este foi
mencionado pelo guia como a primeira querência do Rio Grande criada em 1626,
correspondendo assim, sua fundação ao primeiro ciclo missioneiro no Rio Grande
do Sul e não como do segundo (ocasião da fundação dos Sete Povos das Missões
em que São Nicolau foi re-fundado em 1687 em local diverso, mas muito próximo
de sua primeira localização). Esta manifestação coloca a questão da diversidade
de relações estabelecidas na elaboração das identidades missioneiras e suas
implicações. A apropriação efetuada pelo turismo oferecido no Caminho das
Missões com relação a São Nicolau advém do fato de o município possuir ruínas
missioneiras do segundo ciclo, no período de construção dos Sete Povos das
Missões.
São Nicolau é identificada externamente a partir de sua segunda fundação.
No entanto, as identidades missioneiras geradas a partir do município, seu
pertencimento, entendido como sentimento de identidade (apesar de os vestígios
que visitamos pertencerem ao segundo ciclo) é construído tendo como referente
sua primeira fundação, pois São Nicolau se reconhece como o local onde nasceu
o Rio Grande do Sul. Querência ou querença, segundo Zeno Cardoso.Nunes em
Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul. (1993, 409), é o lugar onde
alguém nasceu, se criou ou se acostumou a viver, e ao qual precisa voltar quando
dele afastado; é o local onde habitualmente o gado pasta ou onde foi criado;
pátria, pago, torrão, rincão, lar. O termo apresenta uma ligação com a terra e com
costumes arraigados, dando uma idéia de pertencimento e continuidade da
existência em um local como condição de sobrevivência. Sua utilização remete à
terra como fator identitário preponderante, não sendo o tempo/momento de
39
No certificado de hospede oficial do município, conferido aos peregrinos das Missões, uma
gravura do Passo do Padre, designação atribuída ao local em que,
Roque Gonzáles fundador de
São Nicolau em 1626, rezou a primeira missa, com os seguintes dizeres: aqui nasceu o Rio
Grande em 03 de maio de 1626. Não vestígios arqueológicos que atestem o local da primeira
fundação de São Nicolau ou o da primeira missa. O Passo do Padre foi concebido como um
espaço de comemoração do passado pela atual administração do município que utiliza essa
relação com a primeira querência e constrói um espaço a ser comemorado. Visitei o Passo do
Padre como parte das observações do Projeto Rota Missões em setembro de 2004. No local em
maio de 2001, foram festejados os 365 anos do Rio Grande do Sul pela prefeitura municipal e
governo do estado. As placas de aqui nasceu o Rio Grande foram destruídas pela ação do
tempo. O proprietário do local foi bastante hostil e no retorno a São Nicolau a prefeitura esclareceu
que iriam trocar o local do passo, numa utilização da história para fins políticos e turísticos.
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fundação levado em consideração como diacrítico, na construção das identidades
missioneiras em São Nicolau, mas o território como um lugar de memória das
Missões.
Não há, em termos da apropriação efetuada pelo guia, uma diferença entre
os dois ciclos missioneiros para a estruturação de São Nicolau, que percebe e os
trabalha em termos de continuidade, inclusive com o momento presente com a
intenção de construir um imaginário abarcador de diversos momentos,
relacionando passado e presente: 1626 fundação; 1687... edificações; 2003...
turismo que relaciona e aproveita os dois momentos passados.
uma proposta de comemoração na forma de sua enunciação. São
Nicolau é apropriado pelo município em termos de uma linguagem regional, sendo
visto, ao se designar como 1ª querência não apenas como local de nascimento do
Rio Grande do Sul, mas tamm como lugar originário do gaúcho, coincidindo
com as representações construídas pelo gauchismo sobre as Missões,
abordadas.
Por seu turno, o projeto turístico Caminho das Missões que se coloca como
de encontro às necessidades de desenvolvimento do município e não aborda as
contradições mencionadas em termos históricos, deixando a cargo do próprio
município a construção/divulgação da sua visão de história e sua veiculação em
termos de ser missioneiro. O turismo se situa neste sentido como oportunizador do
contato com a diversidade regional (veicula e explora o modo de ser missioneiro,
deixando em aberto sua interpretação), a menos que certos comportamentos
sejam percebidos como incompatíveis. Este é o caso do chimarrão citado pelo
Guia do Peregrino como um dos costumes legados pela cultura guarani-
missioneira, com a recomendação que segue:
- se você aceitar tomar um chimarrão, representação da comunhão e solidariedade gaúcha, saiba
que a tradição manda que o líquido seja sorvido até se ouvir o ronco típico da cuia vazia. (Guia do
Peregrino: 2003: 6).
No entanto, ao longo do Caminho das Missões, observei os moradores dos
locais por onde passamos se resignarem, permitindo aos peregrinos sorverem um
gole ou dois de chimarrão e logo a seguir entregarem a cuia ainda cheia. Esses
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exemplos ilustram que as relações estabelecidas com o típico pelos peregrinos no
Caminho das Missões se dão a partir de sua abertura para o contato com o
diverso, numa tentativa de integração temporária com a situação vivenciada. As
identidades dos peregrinos se constroem através do caminhar por sua passagem
e do estabelecimento de relações com o local, não em identificação com o
mesmo. Talavera (2003: 51) analisa os contatos propiciados pelo turismo e suas
decorrências como relativos a renovação cultural local e não ao contato
intercultural, como se pressupõe. Porque o turismo, para ele, tem um carater de
imposição/obrigação como alternativa econômica em que se configura para as
populações locais.
Por seu turno, igualmente que referir o impacto destas relações
temporárias de contato e as representações produzidas pelos receptores. As
pessoas com que nos deparamos nos locais de hospedagem e alimentação
solicitavam que deixássemos mensagens para elas. Os recados, segundo os
coordenadores do Caminho das Missões, serviriam como sugestões para
melhorar a qualidade dos serviços oferecidos. No entanto, nossos anfitriões as
representavam com o sentido de marcar nossas presenças em suas vidas. A
maior parte dos peregrinos assinava seus livros agradecendo pelo tratamento que
nos dispensavam, sem coragem de externar outros sentimentos ou efetuar
sugestões, temendo que os pudessem magoar. Esta situação se configurou, em
uma intenção da construção de familiaridade, descomercialização e estreitamento
dos laços entre peregrinos e hospedeiros, por um lado, mas tamm conduziu a
um certo desarmamento dos peregrinos frente às precárias condições de
hospedagem e alimentação comercializadas. A construção das identidades
peregrinas no Caminho das Missões, no que concerne ao contato com os
receptores, se configura em uma relação similar ao contato vivenciado em
situações turísticas. A alteridade entre os peregrinos e a afirmação de suas
identidades se efetua a partir do contato com os demais membros do grupo.
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Foto 5 peregrinos caminhando Caminho das Missões maio 2003; Autoria: Ceres
Karam Brum; Fonte: Acervo Pessoal; P&B (original colorido); (tamanho 10x15);
fotografia fotocopiada em scanner e reduzida (5x7).
É no caminhar que se percebe o que é ser peregrino, sua relação consigo
mesmo e com os demais. Iniciamos nossas atividades de peregrinos na manhã
seguinte em São Nicolau, quando o grupo se dispersou em uma longa fila pela
estrada de chão, seguindo as setas amarelas indicativas do Caminho das
Missões, cada um no seu ritmo. Mochilas nas costas, cajados na mão, cruz
missioneira no pescoço, bonés e óculos para proteger do sol. Tênis ou botina nos
pés, meias especiais e conversas durante o trajeto sobre os equipamentos
40
mais
adequados.
Mapa do Trajeto do Caminho das Missões. Fonte: Guia do Peregrino, maio de
2003
40
Oswaldo e Maria Luíza de Campinas que usavam botinas Reebok Tundra Rike me informaram a
respeito do preço de alguns equipamentos: R$ 94, 00
a botina acima, enquanto a Salomon, mais
resistente, custa em torno de R$ 300,00. As meias especiais R$ 45,00. Uma boa mochila que
deve ter peiteira e barrigueira para distribuir o peso custa em torno de R$ 400,00.
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Ao caminhar, a primeira sensação que tive foi de desconforto. Suportar a
dor nas costas, o calor, a terra, o peso da mochila por 31 km no primeiro dia.
Percebi ao longo daqueles dias que isso era o que importava para os peregrinos.
Vencer o caminho, passo a passo sorvendo os odores, enfrentado o vento, as
pedras, tentando se adaptar a elas se equilibrando na mochila ou de mãos dadas
com quem apenas ontem conhecemos, mas que pelo caminho trilhado
conjuntamente e pelas experiências compartilhadas parece tão próximo. O
caminhar e o ser peregrino podem ser pensados em suas identidades como um
distante próximo. Porque o caminhar é permeado pela ocupação do espaço e da
distância, em vários aspectos: o próprio caminho a ser percorrido que a cada
passo é vencido, mas tamm no caso de uma caminhada em grupo como o
Caminho das Missões - o distante próximo é também uma constante na relação
estabelecida entre os companheiros de caminhada, bem como com o amigo
peregrino (designação dada ao guia no Caminho das Missões), pois esse tipo de
atividade é concebido e representado num ambiente em que a maior parte das
coisas é obrigatoriamente compartilhada
41
.
41
Alguém que conhecemos há algumas horas à noite dorme profundamente ao nosso lado, pois os
alojamentos são conjuntos e mistos, os banheiros tamm, e obrigatoriamente uma intenção
expressa para que ocorra uma aproximação e trocas nas relações interpessoais de conhecimento
mútuo, como de diagnósticos, remédios, massagens e curativos. um ambiente de integração e
camaradagem recíproca, tanto durante o trajeto quanto nas paradas para almoço e hospedagem.
187
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No segundo dia no final da manhã chegamos a São Luiz Gonzaga, nosso
segundo local de visitação. A sensação de entrar em uma cidade por sua entrada
principal caminhando com a mochila nas costas, pedindo, a beira da estrada água
para abastecer os cantis e banheiro fez com que refletisse acerca da passagem e
do desprendimento. Segundo Valderez:
- Quando eu vim pra eu me interessei por conhecer melhor a hospitalidade do povo do Rio
Grande, um povo encantador. Às vezes o peregrino fica com receio de parar nas casas e
conversar, de pedir alguma água, alguma coisa, e os moradores às vezes não querem se
apresentar por timidez. E quando acontece essa apresentação, essa parada realmente se sente
muito de terno e eu fiquei impressionado com a hospitalidade, Eles abrem a casa como se fossem
velhos amigos, etc. A gente entra e sai das casas com muita naturalidade usa banheiro, água. (Fita
K7 2 A)
O caminhar para os peregrinos é a forma escolhida para conhecer o mundo
e tamm para se auto-conhecer e se identificar, simboliza uma busca através da
situação de extrema simplicidade e desprendimento, no contato com pessoas
desconhecidas. Oswaldo me relatou:
- Bem, ah, o Caminho foi, era um sonho que eu tinha de percorrer e era um sonho tamm
percorrê-lo com a minha mochila e a mochila representa o símbolo, qual seja: tudo o que eu trago
esnela. Então é um sinônimo de despojamento: aquilo que eu não posso carregar eu não posso
levar então não é imprescindível. (FITA K7 2 A)
A mochila é percebida por ele como o símbolo do despojamento, da
essencialidade do que não pode faltar, todo o resto é descartável não se
constituindo em estritamente necessário. O peregrino se reconhece e se dentifica
como alguém capaz de viver com muito pouco durante as caminhadas. A
peregrinação é uma projeção, cujo objetivo não é apenas superar os próprios
limites físicos, mas se auto-perceber sem os invólucros, as correntes de ouro da
vida diária, ser capaz de conviver consigo mesmo e com os outros sem falsas
aparências, segundo destaca Vera Therezinha:
- Bom, todo o caminho ele é muito importante porque faz a gente refletir sobre o próprio caminho
da vida de cada um, então é o momento que a gente tem pra fazer esta reflexão, reavaliar a
própria vida, as experiências e trabalhar um aspecto muito difícil no ser humano que é o desapego,
porque permanecendo tantos dias juntos nós exercitamos o apego que é o laço que une as
pessoas e nós devemos exercitar o mais difícil que é o momento da separação que é o exercício
do desapego. E as pessoas são bem mais felizes, mais saudáveis mentalmente e espiritualmente
188
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quando as pessoas exercitam e vivenciam o amor, a solidariedade, a tolerância, o respeito, a
alegria e ao mesmo tempo saber se separar. (FITA K7 2 A)
Esta auto-representação evidencia que o despojamento e o desapego não
são obrigatoriamente características pessoais de cada um, mas um aspecto
circunstancial da peregrinação e de indivíduos que se propõem através da mesma
de se distanciar do seu mundo a que depois retornam. Para Antonio:
- A proposta turística é um lado da história, qualquer caminho tem a função de abstrair a pessoa do
sistema, a pessoa sair um pouco do sistema de trabalhar, produzir, consumir e enfrentar desafios,
todo mundo precisa ter desafios e aceitar esse desafio próprio é importante né. As pessoas hoje se
atiram a natureza com esportes radicais e contato com a natureza e o caminho é uma das formas
principalmente para as pessoas de uma certa idade que não vão se pendurar em rapel, não vão
digo assim, nós não vamos pular de pára-queda, enfim eu acho isso muito bom pra gente sair do
sistema, arejar a cabeça então é importante (FITA K7 1B).
A peregrinação é representada como uma atividade que ocorre em um
mundo dominado pela ideologia individualista em oposição às sociedades holistas
tradicionais em que o indivíduo não é percebido como valor primordial. Louis
Dumond, em sua citada obra, relaciona a gênese do individualismo com
surgimento do cristianismo como religião, pontuada por uma passagem do
indivíduo fora-do-mundo ao indivíduo-no-mundo. Para ele os primeiros cristãos:
Mostrei em outra parte que o mundo moderno subverterá o primado
tradicional das relações entre homens, substituindo-o pelas relações
entre os homens e as coisas. Sobre esse ponto, a atitude dos primeiros
cristãos não sofre vidas porquanto as coisas apenas constituem meios
ou estorvos na busca do reino de Deus, ao passo que as relações entre
homens baseiam-se em indivíduos feitos á imagem de Deus e destinadas
à união com ele. Talvez seja nesse ponto que o contraste com os
modernos está mais marcado. (Dumond: 1993, 50).
No Caminho das Missões os indivíduos se reconhecem enquanto valores
primordiais, como componentes de uma sociedade individualista em que a
communitas, buscada de existência e êxtase para uma possível negação desse
individualismo se subscreve a compra do pacote Caminho das Missões, numa
lógica capitalista do estabelecimento da relação homem/coisa. Segundo Turner:
O tipo de communitas desejado pelos homens tribais nos seus ritos e
pelos hippies nos seus happenings não é a camaradagem aprazível e
sem esforço, que pode surgir entre amigos, colaboradores e colegas de
profissão, em qualquer tempo. O que buscam é uma experiência
189
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transformadora, que vai até as raízes do ser de cada pessoa, e encontra
nessas raízes algo profundamente comunal e compartilhado. (Turner:
1974, 169).
Este tamm é o caso da peregrinação em que a experiência da projeção
de uma vida simples através do despojamento se num contexto de ideologia
individualista que se constitui em cenário das relações, cuja construção conduz,
pela situação de communitas, a relações interpessoais menos permeadas pela
coisificação, onde o contato propicia a união transformadora entre os peregrinos,
com Deus e especialmente consigo mesmo. Este contraste provoca ruptura (a
reversão de status) e se relaciona tamm a uma construção de representação da
oxigenação das relações modernas entre homem e coisa, como proposta da
peregrinação.
No entanto a relação com as coisas é simbolizada e vivida diversamente
pelos peregrinos. A mochila ao se constituir em representação material das
necessidades básicas do peregrino implicaria o estreitamento dos laços com a
mesma obrigando este a carregá-la sempre durante o trajeto como a síntese de
seus pertences e de si mesmo. No entanto, durante o Caminho das Missões e
mesmo no Caminho de Santiago observei as pessoas pagarem para ter suas
mochilas transportadas, do que concluo que a relação com a mesma no caminhar
é vivida e representada de várias formas pelos peregrinos. A mochila pode ser
percebida, neste sentido, como um acessório ou como um fardo. Durante o
Caminho de Santiago de Compostela, em maio de 2004, uma peregrina comentou
ao ver pessoas sem suas mochilas durante o difícil trajeto entre O Cebreiro e
Samos: a minha cruz eu mesma carrego.
Neste sentido, a peregrinação é tamm simbolizada ora como um espaço
de sofrimento ora como um espaço de prazer: le pèlerinage cest pas le
calvarie
42
. As representações, no entanto, se relacionam a experiências de
religiosidade vivenciadas e propiciadas nas peregrinações. No Caminho das
Missões
43
, os espaços de religiosidade se constituem em locais de visitação,
42
A peregrinação não é o calvário. Manifestação de Jacqueline em Tossantos ao tomarmos um
ônibus para Burgos no Caminho de Santiago de Compostela em 10/05/2004.
43
Em São Luiz Gonzaga, visitamos a gruta Nossa Sra. de Lurdes construída em 1926, como
promessa a retirada das tropas guerrilheiras da coluna Prestes em 1924 (Guia do Peregrino: 10).
190
190
mesmo que não tenham uma relação direta com o passado missioneiro na região.
Este é o passaporte para efetuar a relação entre o passado e o presente ao se
constituírem em lugares de memória missioneira, cujo caráter principal veiculado é
a mensagem cristã do vivido por índios e jesuítas e sua continuação.
São Luiz Gonzaga se constitui em um lugar peculiar em termos de memória
missioneira, porque, como em Santo Ângelo, na cidade não ruínas das
Missões, mas representações produzidas e veiculadas que desejam
caracterizá-la como um local de Missões. Percebi uma ênfase à construção da
visibilidade de um passado missioneiro que não é tão aparente, mas a que as
placas do Caminho das Missões contribuem, enquanto sinalizadores, como
demarcatórias de um desejo de ser missioneiro expresso em algumas
representações. Durante à tarde visitamos a igreja da cidade, onde inúmeras
imagens missioneiras e dois museus. No Museu Arqueológico inaugurado em
1992 o guia nos apresentou vestígios arqueológicos das Missões e suas
interpretações:
- O índio era um artista mesmo. Ele não sabia criar, mas copiava muito bem. (...) As Missões foram
destruídas por causa da Guerra Guaranítica, do Tratado de Madrid Os próprios índios queimaram.
Se eu não posso ficar contigo, te mato. (Diário de Campo 3).
Sua visão demonstra a relação efetuada entre as Missões e o universo
jesuítico, em que o índio é percebido como inferior e não civilizado, reprodutor e
não criador, conforme se expressa o padre Sepp (1985:[1710], 144-145), nos seus
escritos. A respeito da arte e do barroco missioneiro os peregrinos exaltaram:
ANTONIO:
- Veja bem a parte da arte foi importante, porque esses índios de repente se tornaram escultores,
pintores, cantores, nesta parte da arte eles cantavam na aldeia deles, é uma parte da expressão
da arte que eu vejo através dos jesuítas, da igreja, sei lá, mas a expressão da arte não pode ter
fronteiras.
ELÍSIO:
- O guarani mostrou uma coisa interessante que sempre se falou que se foi obrigado a buscar o
negro na arte porque o índio brasileiro não aceitava o trabalho, indolente e tal e por outro lado o
guarani mostrou que ele era marceneiro, metalúrgico, construtor civil e que além disso ele
desenvolveu o que já existia de cultura lá de música poesia que eles tinham sofreu uma adaptação
dos jesuítas, em vez de cantar lá para o pajé eles estavam cantando música de igreja pra Deus,
pronto. Tocavam harpa, piano, mas na verdade se não tiver um dom musical não vai aprender. Até
porque os negros não aprenderam.
Lá fizemos (como manda a tradição) nossos três pedidos e rezamos juntos para o bom andamento
de nossa atividade. A gruta foi construída com pilares e pedras pertencentes às Missões.
191
191
GUSTAVO:
- A diferença que tem entre o barroco missioneiro e o barroco mineiro é que o barroco mineiro leva
as feições negróides, o missioneiro leva as feições indígenas. Na verdade, é eu não sei se houve
uma descaracterização da cultura guarani ou se os guaranis evoluíram porque a evolução implica
em abandonar algumas coisas em prol de outras melhores e o que nós vimos aqui foi uma
evolução fantástica, não é. Eu acho que pra eles foi uma coisa ótima no sentido de melhorar a
longevidade, melhorar a qualidade de vida deles, diferentemente do yanomames e outros.
Atualmente o contato deles com o branco é uma coisa mortal. Em compensação esses daqui não,
eles evoluíram como pessoas conseguiram assimilar a arte construtiva de pintura melhorando a
cultura deles, agora. Veja lá o que aconteceu com os yanomames e os outros, estão morrendo.
.(Fita K 7 1B)
As falas expressam a diversidade da recepção da arte missioneira pelos
peregrinos no Caminho das Missões. Por um lado, mencionam a questão da
expressividade guarani no seu modo de vida originário e a manutenção da mesma
nas Missões. A transição significou, segundo eles, a possibilidade da manutenção
da arte, como um dom que os jesuítas souberam explorar, passando a se
manifestar em outros cânones, atingindo assim o lema da Companhia de Jesus ad
maiorem dei gloriaem, como menciona Sepp. A significação de cantar para o pajé
e passar a cantar para Deus (Elísio) não é representada como descaracterizadora
ou preocupante. No seu entendimento essa transição ocorre de forma pacífica,
celebrando a vitória da civilização jesuítica operada junto aos guaranis,
conduzindo a evolução (Gustavo).
Os parâmetros para a análise são negros e índios artistas anônimos dos
barrocos missioneiro e mineiro em oposição, enquanto sujeitos criadores
detentores de habilidades naturais e que a cultura imposta apenas aprimorou. Em
suma, a visão de arte missioneira desses peregrinos está mais preocupada em
compreender as Missões do que a descaracterização do universo guarani, ao
contrário da visão de João que questiona a evangelização:
- Eu acho que existe uma tendência de muitas vezes os livros passarem pra ti uma história bonita
então a gente imagina que ali foi construída uma cidadela, onde viviam os índios em comunidade,
mas não se fala muito do sofrimento que os índios passaram aqui, da própria construção. Se eles
não chegaram, por exemplo, a serem escravizados, no sentido de eles serem os construtores
daquelas casas daquela igreja. Então imagina quantos não devem ter morrido, sofrido durante todo
esse processo. Muito mais se esse processo de evangelização que estava sendo passado pra
eles, isso não é colocado assim ah eles estavam evangelizando índios como uma coisa muito
boa, mas será que isto realmente era preciso? (Fita K7 2 A).
Os questionamentos de João demonstram a relação de contestação a
comemoração incessantemente veiculada pelo Caminho das Missões e partilhada
192
192
por parte dos peregrinos. Ao contrário das falas anteriores, uma crítica
44
ao
processo de transição a que foram submetidos os guaranis nas Missões e a visão
comunitária da sociedade missioneira.
São Lourenço foi nossa próxima parada para visitação após duas jornadas
de 27km trilhadas em um calor escaldante na estrada de terra vermelha, com
muito cascalho. As ruínas da redução de São Lourenço Mártir se situam no
município de São Luiz Gonzaga. É um lugar muito pobre, sem infra-estrutura para
o turismo peregrino em termos de alojamento e alimentação.
Na entrada do sítio arqueológico encontramos ovelhas pastando
designadas como ovelhas missioneiras pelo guarda local. Possuíam uma
aparência muito rústica e sua designação como missioneiras, segundo ele, se
deve a sua introdução pelos jesuítas assim como a conhecida introdução do gado
nas Missões durante o século XVII. A presença dos animais na redução,
representados como nativas (das Missões), herança desse passado, remete a
questão do termo missioneiro/missioneira tão utilizado, não apenas como algo que
se relaciona a região das Missões, mas como detentor de uma especificidade
situada para além da sua caracterização como mescla jesuítica-guarani.
uma conotação racial e o termo missioneiro pode ser pensado como um
ethnotype (Thiesse: 1991, 38) construído para valorizar a região a partir de
características naturais atribuídas como específicas, mas que se constituem em
características socialmente elaboradas. A uilização do ethnotype missioneiro se
refere também a algumas pessoas que encontramos em São Lourenço que nos
pareceram possuir ascendência indígena. Sua não identificação como
descendentes dos habitantes originários e sua percepção como missioneiras nos
múltiplos sentidos atribuídos ao termo, remete à forma de integração ao universo a
que pertencem, que discrimina o índio e enaltece o missioneiro. Nesse sentido
necessidade de elucidar as relações referentes á contraposição das formas como
são construídas e acionadas as identidades (indígenas e missioneiras) em termos
44
Vale assinalar que as opiniões divergentes acerca do passado missioneiro e sua recepção no
Caminho das Missões ocorreram de forma incidental, a partir de bate-papos nos momentos de
parada sem causar qualquer desconforto ou provocar animosidades entre os peregrinos em sua
jornada.
193
193
de turismo na região, a fim de perceber a lógica dessas apropriações e seus
objetivos.
Apesar da presença indígena em São Miguel e de uma herança velada
pelos habitantes da região expressa na sua aparência, o que é utilizado em
termos de turismo é o missioneiro enquanto híbrido. A dinâmica dessa apropriação
é permeada pela disparidade da qualidade oferecida pelo pacote que igualmente
utiliza o missioneiro como ethnotype para justificar as más condições oferecidas
em alguns locais de parada. São Lourenço é apresentado no Guia do Peregrino
(2003: 10): o local guarda muito das lendas e da magia do povo missioneiro,
numa apropriação efetuada na tentativa de criar atrativos para o local. Segundo os
peregrinos essa idéia fica obscurecida pelas condições estruturais oferecidas
que para Elísio:
- As pessoas pensam que peregrino faz voto de pobreza, mas isto não é verdade, pois os
peregrinos gostam de conforto em suas paradas. Os peregrinos não são turistas, mas incentivam o
turismo que passa a se desenvolver em torno da atividade de peregrinação, como em Santiago de
Compostela. (Diário de Campo 3).
Essas manifestações de desconformidade conduzem a reflexão sobre o tipo
de turismo missioneiro oferecido pelo Caminho das Missões, em contraste com
uma negativa por parte dos peregrinos de se representarem e reconhecerem
como turistas, mas que apresentam exigências de turistas, que a
representação da dependência da infra-estrutura oferecida pelo pacote embora
todos trouxessem sacos de dormir e suas pequenas toalhas/fraldas nas mochilas.
São Miguel das Missões ilustra essa situação da identificação do
peregrino com o turista. fomos encaminhados a uma pousada com toalhas,
roupas de cama e alojamentos separados para homens e mulheres
45
. A
aproximação entre o turista e o peregrino é estudada por Carlos Alberto Steil no
artigo Romeiros e turistas no Santuário de Bom Jesus da Lapa em que analisa as
transformações ocorridas na romaria:
45
Nosso quarto coletivo foi batizado por João de Canoas de cotiguaçu que nas Reduções
correspondia a um local sem janelas para o exterior e com grande pátio interno onde viviam as
índias viúvas e os órfãos. A designação ao nosso quarto se deu em função de dormirmos apenas
as mulheres peregrinas que não vieram acompanhadas. Por isso deveriam ser colocadas no
cotiguaçu, se possível vigiadas pelos integrantes do alojamento masculino.
194
194
De modo que a lógica de comunhão não apenas coexiste com uma lógica
diferencial no comportamento dos romeiros e turistas, mas ambas
estabelecem entre si um jogo dentro do qual se definem os
pertencimentos religiosos e as identidades sociais. Nesse sentido o ritual
da romaria opera uma espécie de união dos contrários, onde as duas
lógicas se articulam, sem que uma exclua a outra. Portanto, mais do que
lamentar tal transformação, qualificando-a como uma espécie e
degradação da prática religiosa ou de rejeição da tradição, trata-se de
tomar as representações turísticas sobre o evento como constitutivas de
uma outra tradição, de caráter mundano e moderno que também se
constitui como uma lógica interna das práticas de peregrinação. (Steil:
2002, 257).
Numa perspectiva similar, Marc Augé se refere às diferenças e à conjunção
de interesses entre os turistas e os peregrinos, ao analisar as visitações ao Mont
Saint-Michel em El viaje imposible (1997: 66), o apresentando como um lugar
representado como santo, em que apesar das diferenças uma comunhão de
interesses e interação entre turistas e peregrinos, compondo o cenário de
visitação. No Caminho das Missões observei além de uma conjunção dos
interesses de ambos, um conjunto de identificação e pertencimentos que variam
de acordo com a situação de movimento ou estática em que se encontram: como
peregrinos, ao andar, não se queixam de dores ou das dificuldades do trajeto, mas
reclamam das condições dos locais de parada quando se representam como
turistas. Neste sentido, as colocações de Steil quanto às transformações da
romaria de Bom Jesus da Lapa, fornecem um aporte para se pensar o Caminho
das Missões como uma peregrinação turística, em que as categorias não se
chocam ou excluem, mas a peculiarizam como prática religiosa e mundana,
conforme observei.
Muitos turistas peregrinos que conheci no Caminho das Missões têm como
referência de suas necessidades a estrutura que conheceram no Caminho de
Santiago de Compostela e a que inúmeras vezes se referiram, mencionando os
albergues em que pernoitavam, onde havia: de tudo abandonado pelos
peregrinos que passavam, a fim de que pudesse ser aproveitado por outros, da
hospitalidade e camaradagem e do menu peregrino. Há uma nítida mitificação em
torno do Caminho de Santiago representado e vivido como paradigma de
peregrinação, na construção das identidades peregrinas acionadas. Um
verdadeiro peregrino, neste sentido, deve percorrê-lo ao menos uma vez, e
195
195
conquistar a Compostelana, a que os peregrinos se referem com certo orgulho. A
Compostelana é um certificado, escrito em latim, conferido àqueles que percorrem
pelo menos 100 Km do Caminho de Santiago.
O Caminho das Missões, enquanto proposta turística de peregrinação,
incorpora e explora o Caminho de Santiago como referente na sua montagem,
conforme expressa Marta:
- Nós tomamos como ponto fundador o Caminho de Santiago de Compostela, mas é claro gente
nós trabalhamos os aspectos históricos, místicos, culturais prá fundamentação do nosso projeto
até porque existem diferenças muito grandes, até porque esta foi a maneira que nós adaptamos e
ainda estamos construindo o Caminho das Missões. A sinalização esta bem precária, assim como
outros projetos na parte de cultura. Os próprios certificados houve uma demora e agora a gente
esaguardando pra poder entregar as pessoas os certificados de peregrinos das Missões. Pra
quem não vier a este evento a gente vai achar uma maneira de mandá-lo. (Fita K7 1
A)
As Missões são trabalhadas em termos de suas atrações que expressam o
modo de ser missioneiro e a estrutura, ao contrário do Caminho de Santiago
peregrino não paga para caminhar (diário de campo 3) é oferecida como
pacote, não havendo alternativas em termos de escolhas e privacidade na maior
parte dos lugares por onde passamos. O caminho das Missões (rota concebida) é
a razão de ser do Caminho das Missões como agência turística, deixando de
existir se a agência não o oferecer o que ocasiona uma ausência de autonomia ao
peregrino e ao próprio caminho literalmente produzido como turismo pela agência
Caminho das Missões.
Alguns aspectos históricos, culturais e místicos foram externados pelos
peregrinos após a visita guiada que fizemos á tarde as ruínas de São Miguel. Ouvi
alguns comentários sobre a presença dos mbyás-guarani que vendiam seu
artesanato e secavam algumas roupas sobre as pedras.: Eles não tem como viver
assim, não trabalham; Um índio bem moderninho, cabelo pintado; Passou um
por mim fumando, isso vicia; Tiraram tudo o que era deles (diário de campo 3).
Para Carmem e João:
JOÃO:
- Eu acho muito triste ver eles ali daquela maneira, tendo que vender um artesanato, que eu acho
que é uma coisa maravilhosa, o seu conhecimento. Mas eu olho pra aquilo e me dá a impressão de
que eles estão esmolando, sabe querendo sobreviver e as pessoas passam por ali e não
reconhecem que tudo aquilo em volta foi deles que eles não precisavam mendigar, eles não
196
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precisavam de um tipo de moeda pra comprar um pão, eles tinham a terra deles, o sol, a água, o
alimento eles foram subjugados, mais massacrados, cada vez colocados mais num canto e parece
que isto vai desaparecer, eu acho que a gente deveria tomar uma providência de preservação, da
gente ajudar de uma outra maneira, mais mantendo eles num lugar onde eles tenham condições
de fazer o que eles faziam. (Fita K7 2 A).
CARMEM
- Eu acho muito triste a situação deles porque eles não têm noção do que eles foram, porque eles
eram aqui dessa terra. Eles não têm expectativa. Eles são um povo sem terras, sem ideais e eles
estão perdidos e isso foi o homem que deixou porque eles tinham e o branco veio e deixou eles
sem nada, eles estão à margem da civilização sem conhecer e saber o poder que tinham. Acho
eles deslocados ali, a gente vê que eles estão ali por uma circunstância, porque eles ficaram sem
nada é a única alternativa que eles têm, alguém deve ter trazido eles pra ali porque eu acho que
eles não têm conhecimento do que eles são. (Fita K7 2 A).
As percepções denotam um distanciamento entre a representação que
possuem dos índios e o choque do encontro com os mesmos nas ruínas de São
Miguel, em que são percebidos e negados como outros. São recriminados por sua
aproximação a hábitos e gostos brancos, ao mesmo tempo em que identificados
como não trabalhadores. Percebi uma confusão representacional na
caracterização dos mbyá-guaranis, porque se por um lado são reprovados por
pintarem os cabelos e fumarem (perda de autenticidade e da tradicionalidade
indígena em que os inserem, constatando o estágio de aculturação em que se
encontram), por outro são percebidos como não trabalhadores, quando deveriam
adaptar-se, nesta linha de raciocínio, ao universo capitalista em que se inserem.
Os comentários efetuados não contemplam um projeto de como deveriam ser os
guaranis que ali estão, mas denotam sua desconformidade com o que parecia
esperarem encontrar. consciência em termos das atrocidades efetuadas em
nome do processo civilizatório e uma dificuldade em perceber nas diferenças
encontradas a vontade e autonomia indígena. Nas expressões de ambos o índio,
conforme seu estatuto legal de relativamente incapaz, deve ser cuidado,
protegido, reconduzido. É representado pela ausência de tudo, cabendo ao branco
reinseri-lo e não ao índio buscar alternativas e dialogar. Outro ponto assinalado
de nossa passagem por São Miguel foi a recepção de alguns peregrinos ao
espetáculo Som e Luz:
ALICE
- Uma coisa que me chamou atenção foi ali em São Miguel quando eles fizeram aquela
representação o teatro que a gente toma a história como ela é realmente. (fita k7 1B).
ANTONIO
197
197
- Interessante ele trás a história de volta, a gente houve falar no secundário da história das Missões
e não imagina a dimensão que isso atingiu e que durou 150 anos isso e eu não tinha essa
dimensão da perfeição, da distribuição de riquezas nessa sociedade de jesuítas e da arte e eu
nunca tinha visto e eu achei magnífico como eles trabalhavam a pedra e madeira, as coisas que os
guaranis faziam e eu achei muito bonito. Então aquele espetáculo trás isso de volta e uma
dimensão exata de como as coisas aconteceram e infelizmente de como as coisas se repetem na
história, né. Se atinge um ápice, um ponto em que estavam felizes, em harmonia de repente
acabou tudo. Então nesse ponto eu achei válido o espetáculo. (Fita K7 1B).
O Som o Luz é percebido como o que realmente ocorreu nas Missões e não
como uma das visões possíveis a respeito do passado missioneiro. um
aspecto pedagógico ressaltado no espetáculo que expressa com a exaltação de
heróis e a criação de mitos, reforçando visões idílicas acerca das Missões como
as citadas percepções da civilização jesuítica guarani e da sociedade igualitária
e sem contradições em que o passado é comemorado, sendo mostrado como
exemplo para o presente, numa atualização do mito da Missão como Terra da
Promissão.
A partir da nossa saída de São Miguel notei que o grupo estava mais
interessado em vencer o percurso e se divertir. As menções ao passado
missioneiro adquiriram um tom jocoso como as menções à lingüiça missioneira
(um misto de carne de gado e de porco) mencionado em seu poder de combustão
e reprodução os índios procriavam por causa da lingüiça; ai como era grande.
A picanha no churrasco descrita como carne do cabildo. O cabildo, instituição
colonial espanhola, nas Missões correspondia ao poder temporal reunindo
caciques que votavam e deliberavam administrativamente. A referência à carne do
Cabildo pode ser entendida como uma carne diferenciada em sua qualidade e
servida para pessoas especiais conforme conceberam serem os caciques nas
Missões e os próprios peregrinos.
A memória do passado missioneiro passou a ser vivenciada também
através do contato com peças das Missões fora do espaço dos sítios
arqueológicos. Em Carajazinho local do nosso quinto pernoite encontrei peças das
Reduções, servindo de base a um pilar de madeira, como mesa e colunas sendo
usadas como vasos, que foram aproveitadas também por alguns peregrinos para
se alongar antes do nosso trajeto matinal, denotando uma consciência de
198
198
preservação que não contempla os vestígios fora do espaço em que deveriam
estar, ou seja, as Missões.
Esta não percepção por parte dos peregrinos pode ser relacionada a
situação do não reconhecimento dos mbyàs-guaranis como índios missioneiros
pelos turistas participantes do Circuito Internacional das Missões, conforme
demonstrei anteriormente. A dificuldade de estabelecer relações entre o passado
e o presente neste sentido demonstra a relação estática com que as Missões são
percebidas e representadas no imaginário dos peregrinos. O passaporte para
adentrar no passado é relacionado ao estar no espaço das ruínas e ser conduzido
pelo guia.
A necessidade de sinalização e mediação foi mencionada no nosso último
pernoite durante um papo com os peregrinos acerca do caminho e suas
impressões. Elisio elogiou a conformação de São João Batista
46
em sua estrutura
turística, por causa do vídeo e do trabalho pedagógico efetuado pelo guia. Por seu
turno, Gustavo:
- O que mais me chamou a atenção em termos de Missões foi a evolução das ruínas de São
Miguel. Eu como já tive oportunidade de dizer a primeira vez que estive nas ruínas de São Miguel
foi em 1969. Não existia absolutamente nada a não ser as ruínas e se visitava, podia subir, tirar
uma pedra de lá e fazer qualquer coisa que você quisesse. Voltei aqui em 1989, com a Vera e o
Frederico meu filho e encontramos uma diferença bastante grande e muito surpreendentemente
agora nós encontramos uma mudança radical porque a cidade melhorou com a emancipação do
município com a formação daquele restaurante, daquele hotel, do IPHAN ter colocado lá pessoas
trabalhando, gabaritadas, do próprio espetáculo Som e Luz progrediu assim tremendamente, então
isto trás muita alegria para a gente, isso é valorizar aquilo que é nosso, este é o caminho. (Fita K7
1B).
Percebi a representação pelos peregrinos de que, nas ruínas missioneiras,
se deve obrigatoriamente fomentar o turismo como única forma de torná-las
atrativas e que devem se prestar ao desenvolvimento da região. Suas alusões
salientam que as mesmas não falam por si só, enquanto espaços/ lugares de
memória missioneira. Seus espaços devem ser reconcebidos e devem ser
mediados, como condição de entendimento das mesmas por um trabalho
46
Dentro do próprio sítio um monumento de 1959 em homenagem ao padre Sepp e a primeira
fundição de ferro
14
de autoria de Valentin von Adamovich. Este monumento é anterior ao
tombamento de São João Batista como patrimônio histórico nacional, ocorrido em 1970 e
demonstra, a necessidade de sinalização via concepção do monumento e sua inserção no cenário
199
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pedagógico que as apresente. Esta seria uma das condições para a manutenção
do vínculo entre o passado e o presente segundo os mesmos, ou conforme se
expressa Antonio:
- Queria falar ainda da falta de cuidado, a gente fica imaginando um dia em que aquelas igrejas
pudessem ser reconstruídas e que aquela área da praça pudesse servir de albergue, para que as
pessoas pudessem viver a história e ao mesmo tempo servir de acomodação. Uma coisa integrada
das pessoas estarem vivendo a história e ajudando a sua reconstrução. (Fita K7 1B).
A sua fala expressa as possíveis relações estabelecidas, enquanto turista-
peregrino de conceber as ruínas missioneiras no presente, tendo como referente o
passado. um desejo de cuidar e reviver a experiência missioneira através da
reconstrução de alguns de seus espaços como forma de ligação com o presente,
numa etapa diversa do contato propiciado neste momento pelo turismo peregrino.
Seu imaginário contempla a possibilidade de integrar os dois momentos e se
transportar de uma forma mais real através da reconstituição do espaço
reducional. Por enquanto, o próprio fato de ter estado nas Missões no presente,
enquanto turista-peregrino, já propicia este retorno ao passado.
No entanto, a dimensão que a experiência missioneira passada adquire,
para cada um dos peregrinos, não pode ser generalizada. Pois se de uma maneira
uma tendência de comemoração, enquanto ênfase de religiosidade, por parte
do Caminho das Missões, por exemplo, tal perspectiva não impede outros tipos de
relações com esse passado, tais como a crítica e a necessidade de um acerto de
contas com a questão indígena na atualidade e de crescimento pessoal
mencionada por todos os peregrinos, bem como a própria comemoração da obra
jesuítica já destacada anteriormente.
No sétimo dia de peregrinação trilhamos os 16km finais que nos
conduziram a Santo Ângelo (último dos Sete Povos fundado em 1706).
Atravessamos o rio Ijuí de balsa. Entramos na cidade através de uma pequena
rua, mencionada como um antigo caminho jesuítico que nos levou à Catedral
Angelopolitana. Os sinos dobraram para saudar nossa chegada e o padre nos
recebeu com Marta (uma das donas da empresa turística Caminho das Missões)
da ruína significando a vontade de perpetuar a atuação de Sepp, seu criador, que não está
200
200
nas escadas da igreja ressaltando, em um pequeno sermão, o significado do
caminhar e da experiência missioneira. Cansados e emocionados escutamos com
atenção e nos abraçamos saudando o final daquele percurso, o privilégio de
termos nos conhecido, o fato de estarmos nas Missões sob a cruz de dois braços
que nos abençoava do alto da catedral. Este foi o final comovente e ritualizado do
Caminho das Missões para cada um dos peregrinos que dele participou.
Era um momento de celebração que se seguiu até após o almoço quando
nos separamos. Uma profunda celebração do ter sido Peregrino das Missões,
perceptível nas suas fisionomias emocionadas. Da minha parte uma celebração
pelo aprendizado de ser antropóloga, tentando entendê-los no seu percurso pelas
Missões e nas relações que estabeleceram com a região e o seu passado. Mais
do que isto eu me senti tamm uma peregrina naqueles momentos não apenas
em busca das informações que necessitava, mas pelo ser peregrino que cada um
deles havia me mostrado.
Nossas vidas retomariam seus rumos enriquecidos por aquela semana de
maio de peregrinação. Cada um de nós como peregrino das Missões retornava
agora ao seu mundo quotidiano, mas ao contrário de uma ruptura com o mundo, é
possível pensar em sua reorganização e fortalecimento representados nas
percepções de João e Oswaldo pela continuidade e pela riqueza de cada
caminho:
JOÃO
- Não este caminho como todos os outros que eu fiz eu acho que eles têm assim muita
importância tanto pelo lado físico que é o próprio caminhar que é uma coisa que faz bem pra
saúde, que ativa a tua acoisa toda e tamm no lado espiritual, no sentido de uma busca de uma
paz interior de renovação durante o caminho e, além disso, eu acho que é um momento para se
fazer novos amigos e além disso, como foi o caso de duas pessoas neste grupo que eu havia
feito caminhadas antes e fazia um bom tempo que eu não via. Uma bela oportunidade para esse
reencontro, porque os caminhos são feitos assim, os caminhos são feitos de encontros e eu acho
que a coisa melhor do caminho são os reencontros.(Fita K7 2 A).
OSWALDO
- Sim, eu me senti energizado tal qual no Caminho de Santiago ao saber que 300 anos atrás,
houve lutas, conquistas, mas principalmente saber que os jesuítas conseguiram fazer índios,
bugres, estranhos, ignorantes trabalharem, moldarem, construírem. Isso é o inusitado. Que, dois
padres para gerenciar 5 mil e tantos índios em alguns povoados como São João Batista. Isto é um
mérito, eles tinham uma disciplina militar. Como é que eles conseguiram o trabalho com psicologia
desses?. Eu fiquei particularmente impressionado com a região de São Miguel das Missões eu
acho que ali é emocionante, é fantástico, uma coisa que eu vou escrever, vou transmitir. Como
alguém conseguiu construir aquilo há 300 anos atrás. Foi uma emoção muito grande e diferente. E
expressa nos vestígios que restaram São João Batista.
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isso eu pretendo divulgar, isso eu escrevo. Tenho alguns escritos na internet e vou, também tenho
o compromisso de escrever no site e também no jornal de Campinas porque eu quero divulgar
essa emoção que eu senti que foi é uma coisa que eu não pensava que existisse mais. Ao
entender a saga do povo guarani e o que eles construíram com tão poucos recursos num local tão
longe do mar onde aportaram. Isso emocionou muito e eu acho que tem que ser preservado,
estudado, pesquisado e tem que ser divulgado. É uma coisa maravilhosa que eu não tinha
conhecimento que pudesse encontrar aqui. (Fita K 7 2
A).
As falas expressam uma solução de continuidade e o significado que cada
caminho adquire na vida dos peregrinos. Como se os caminhos e os reencontros
fossem interrompidos pelo quotidiano de cada um, numa representação de
inversão em que a pausa é dada pelo não caminhar. O caminho é tamm vivido
pelas marcas que deixa, pelas lembranças e pelos laços que produz. Neste
sentido, insiro os aspectos do passado missioneiro comemorados por Oswaldo.
Uma celebração que passa pela negação da cultura dos habitantes originários e
sua discriminação, numa percepção do caráter de evolução propiciado pelos
jesuítas com relação aos índios e de sua capacidade civilizadora. O estar no
espaço dos vestígios é representado como marca de religiosidade legada das
Missões, provocando em Oswaldo a sensação de energização, analogamente ao
espaço percorrido no Caminho de Santiago tamm concebido como sagrado.
O caminho para ele não termina com a conclusão do trajeto, mas se
estende como um compromisso de divulgação das experiências que vivenciou
enquanto peregrino através de seus escritos
47
o que conduz a criação de uma
rede entre os mesmos que vai além dos encontros propiciados nos caminhos e
dos congressos de peregrinos estendendo-se ao seu cotidiano através da internet
e prolongando o convívio anteriormente iniciado. Esta é uma das facetas do ser
peregrino que deve também ser considerada na busca de compreensão de suas
identidades em construção, pois demonstra que os peregrinos se identificam,
reconhecem e mantém seus laços para além do espaço dos caminhos, através
das trocas de impressões e percepções.
47
Cerca de 45 dias após retornar do Caminho das Missões recebi um e-mail de Oswaldo,
convidando para percorrê-lo novamente, desta vez através da visita ao site
www.caminhodesantiago.com.br onde encontrei, além de inúmeros outros escritos seus e demais
peregrinos um relato minucioso denominado Caminho das Missões em 7 etapas
202
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Assim, à história forjada do caminho se mescla a história de vida de cada
peregrino sendo por ele ressignificada. As visões do passado das Missões se
somam à visão de outros passados acionados através de outros caminhos na
construção do peregrino enquanto pessoa, de sua energização, de seu auto-
conhecimento e das peregrinações enquanto atividade de múltiplos contatos. A
relação preponderante percebida com o passado missioneiro é o produto das
interações individuais que conduzem ao reforço das identidades dos peregrinos
enquanto grupo, impulsionado pelo missioneiro como atrativo explorado pelo
Caminho das Missões.
4 O Rota Missões SEBRAE e o projeto turístico de São Nicolau
O Rota Missões é definido pelo SEBRAE como um projeto que objetiva
fomentar ações de desenvolvimento setorial de forma integrada nas áreas de
turismo, agronegócios e artesanato nos municípios que compõem a Rota das
Missões, durante os anos de 2003 e 2004. O nome do Projeto, neste sentido,
identifica as Missões como uma ampla região composta, na época (julho de 2003)
pela adesão de 24 e posteriormente de 25 municípios da região das Missões. A
relação estabelecida pelo projeto entre o espaço geográfico, a história da região e
a construção das identidades é gerada a partir do pertencimento ao COREDE
(Conselho Regional de Desenvolvimento) pelos municípios e não a partir da
história enquanto conjunto de eventos marcantes do espaço Missões.
O município de São Borja (o primeiro dos Sete Povoados a ser fundado no
atual território do Rio Grande do Sul em 1682) não faz parte do projeto,
demonstrando que a construção das identidades na região das Missões em
relação ao Rota Missões não coincide com que é representado enquanto Missões,
como os sete povos pelo senso comum. Se por um lado, São Borja não pertence
ao COREDE Missões e não é local de desenvolvimento do projeto, mesmo
possuindo alguns atrativos turísticos em termos do passado missioneiro. Por
outro, que se mencionar, que essa identificação do município com o passado
na dita região das Missões se em contraste com a opção do mesmo de não
fazer parte do COREDE Missões, mas do COREDE Fronteira.
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Em termos de turismo um dos focos do Rota Missões a par do trabalho
com os atrativos turísticos e a hospedagem é o espírito missioneiro que
interpreto como um conjunto de ações tendentes a identificar as Missões em
relação às demais regiões do estado através de ações práticas tendentes à
construção de uma mentalidade coletiva do ser missioneiro e de sua exaltação.
A percepção do espírito missioneiro como peculiaridade a ser desenvolvida
pelo projeto incita a pensá-lo enquanto referente dinâmico e componente
primordial da lógica do ser missioneiro das Missões - como critério de nomeação
na disputa pelo poder simbólico de se identificar com as Missões e neste sentido
desenvolver ações turísticas integradas na região que abrange o projeto. Ou seja,
o espírito missioneiro, por exemplo, ao não ser extensivo a São Borja
corresponde, na atualidade, a um distanciamento do município da exaltação das
identidades missioneiras a par dos outros locais que fazem parte do projeto
(mesmo os que não possuem uma memória atuante do passado em termos de
Missões, mas que passam em razão da região a que pertencem, palco do projeto,
a assim se nomear e se reivindicar como Missões.
O espírito missioneiro é apresentado no projeto Rota Missões como algo a
ser construído e formatado através de produtos turísticos o produto missioneiro.
Neste sentido o SEBRAE se comporta como fomentador de seu desenvolvimento
através de inúmeras atividades relacionadas à construção das identidades
missioneiras no presente por parte do SEBRAE que reconhece a necessidade de
tornar visível e fomentar o espírito missioneiro. Nesta perspectiva, o projeto foi
construído através de uma relação dialética que pressupõe as Missões, mas não a
existência concreta do espírito missioneiro, apresentado como o que deve ser
elaborado na dinâmica das relações existentes entre SEBRAE, FUNMISSÕES,
Prefeituras Municipais e empreendedores nas três áreas que o projeto abarca.
No texto do projeto não uma definição do espírito missioneiro, enquanto
meta, mas como foco de trabalho a ser objetivado através da produção da marca
missioneira e da Campanha Sou Missioneiro. O espírito missioneiro corresponde
à própria construção de um imaginário/conscientização tendente ao
desenvolvimento do projeto na região, funcionando como um elo de ligação entre
204
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os municípios. Neste sentido, os critérios da construção do espírito missioneiro
ultrapassam o processo histórico e cultural da região (como peculiaridades a
serem mostradas). Remetem a um conjunto de valores sócio-culturais a serem
encontrados e exaltados, buscando a inclusão dos caracteres étnicos e demais
diversidades da macro-região, a fim de serem burilados como elemento comum a
ser transformado em produto turístico missioneiro, além das identidades
trabalhadas em termos de artesanato e agronegócios.
Fotocópia do encarte do Porjeto Rota Missões. Doação Lucas Brum Corrêa, Santo
Ângelo junho de 2004.
Neste sentido, encontrei como decorrência uma pluralidade de posturas na
recepção do projeto por pessoas da região, onde efetivamente não um espírito
missioneiro, mas alguns caracteres comuns de identidades missioneiras. Percebi
uma pré-concepção acerca da atuação do SEBRAE e do que se propõe o Rota
Missões por parte dos municípios e seus habitantes, bem como uma espécie de
decepção antecipada porque o projeto é percebido pela população, a priori como
fornecedor de verbas para a região das Missões, o que se choca com a proposta
do mesmo de capacitação.
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O oferecimento de capacitação por parte do SEBRAE no Rota Missões tem
seu eixo alicerçado na atuação de uma equipe de consultores com o objetivo de
detectar os principais problemas enfrentados, buscar empreendedores e,
posteriormente, oferecer a capacitação. Esta dinâmica de trabalho se a partir
das relações entre os consultores do SEBRAE e os articuladores dos municípios
inscritos no projeto, bem como estagiários convocados neste sentido.
Minha atuação como antropóloga se deu em uma destas fases de
desenvolvimento do projeto, a etapa de - desencadeamento e monitoramento de
cursos e consultorias - com o objetivo de perceber o impacto do projeto na região
e eventuais potencialidades turísticas da mesma em termos de suas
características históricas e antropológicas. Minha atuação consistiu em visitar
vários municípios e observar essas relações em um pequeno espaço de tempo,
acompanhada pelos consultores do SEBRAE que, via de regra, me apresentavam
aos articuladores. Estes por sua vez me mostravam a cidade, seus atrativos
potenciais, me colocando em contato com pessoas idosas ou com historiadores
locais. Também observei algumas reuniões da equipe do SEBRAE e participei de
eventos que estavam ocorrendo na região.
A observação da produção de novos atrativos turísticos para a região se
constituiu em minha principal atividade. Nesse sentido, em São Luiz Gonzaga
participei de uma reunião de apresentação ao SEBRAE da Trilha dos Santos
Mártires e de seus objetivos por Sérgio Venturini (historiador local e idealizador do
evento) ocorrido em duas edições. A trilha foi apresentada como uma busca de
encontro das raízes da história missioneira através do percurso do espaço de 4
dos antigos povoados do primeiro ciclo missioneiro (São Nicolau do Piratini,
Candelária do Caaçapamini, Assunção do Ijuí e Caaró de Todos os Santos). A
Trilha abrange os municípios de São Nicolau (partindo do Passo do Padre no
distrito de Santo Isidro), Dezesseis de Novembro
48
, São Pedro do Butiá; Roque
48
Em Dezesseis de Novembro presença indígena e uma comunidade negra no município que,
segundo a Secretaria da Educação já se apresenta integrada a Trilha dos Santos Mártires como
proposta turística.
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Gonzáles, Pirapó, Caibaté e Rolador. Para Venturini a Trilha tem o triplo objetivo
religioso, ecológico e histórico.
A produção da Trilha se alicerça na própria obra de Sérgio Venturini que
possui vários livros publicados sobre a história das Missões. Em Inhacurutun e as
missões jesuíticas e Na trilha dos Santos Mártires ele apresenta sua concepção
de história e uma visão romanceada do primeiro ciclo missioneiro, em que os
jesuítas são percebidos como heróis civilizatórios e os guaranis que se opuseram
ao processo de missionarização, como o índio Nheçu, são tratados como hereges
a serem condenados e rechaçados pela exaltação do catolicismo através das
figuras dos padres que foram mortos pelos índios durante a catequização em 1628
e que se tornaram mátires. Venturini representa Nheçu:
Com seu harém de jovens e belas mulheres, em número superior a duas
dezenas. Nheçu vivia a lo largo desfrutando da natureza deslumbrante,
com fartura de caça e de pesca e do aroma das doces frutas silvestres.
Tinha principalmente o poder incontestável sobre o seu povo e as tribos
de caciques vizinhos, porque era reconhecido unanimimente como
feiticeiro mais poderoso da margem oriental do Rio Uruguai. (Venturini:
2001, 15)
A proposta da caminhada é uma forma de comemoração a atuação
jesuítica na região (na esteira do Caminho das Missões)
49
e remissão simbólica
dos pecados pela morte dos mártires especialmente através da exaltação da
figura de Roque Gonzáles e com uma postura de condenação da atuação
indígena, demonstrada nos textos de Venturini pela execração de Nheçu -
responsável pela morte do Pe. Roque Gonzales. A Trilha dos Santos Mártires foi
apresentada como um grande potencial turístico a ser explorado, cuja
peculiaridade é remeter ao primeiro ciclo missioneiro e integrar muitos municípios
que não possuem sítios arqueológicos missioneiros tombados. Gilles Laferté et alli
no texto La carrière dum historien local entre enterprise touristique, érudition et
patrimoine apresenta e analisa a figura de Gaston Bari, historiador local com
49
Em 28/08/2003 conversei com Marta Bellati do Caminho das Missões que me informou sobre
uma possível ampliação do Caminho das Missões até o Passo do Padre em Santo Isidro distrito
de São Nicolau. Esperspectiva de modificação do Caminho das Missões se relacionada a um
planejamento de ampliar o caminho até São Borja e assim incluir os Sete Povos das Missões
207
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atuação patrimonial e turística na promoção de uma pequena cidade da região de
Île de France:
Gaston Bari se positionne comme un médiateur posible entre le pôle le
plus légitime du champ de production de récits historiques et un public
supposé le plus démuni culturelement. Tout en affichant <<quand
même>> son appartenance au monde restreit des initiés par sa
frequentation des travaux universitaires, il essaie de conturner le stigmate
de la <<vulgarisation>> en evocant la necessaire difusión au plus grand
nombre, pour mettre lhistoire locale au service de lintégration sociale et,
à terme, de lindustrie du tourisme. (Laferté: 2001,125).
50
A atuação de Sérgio Venturini pode ser pensada em perspectiva similar a
de Bari, buscando a promoção da região e sua inclusão, através da criação de um
projeto turístico para o espaço onde ocorreu o primeiro ciclo das Missões no atual
território do Rio Grande do Sul, através da integração de diversos municípios.
Seus livros apresentam o duplo sentido de divulgar a memória deste passado
colonial, a partir da perspectiva de um historiador local que tenta produzir um
discurso de pertencimento à região e promover ações práticas no sentido de
manter uma relação com o passado e atualizá-lo no presente, através de uma
proposta de peregrinação definida com histórica e religiosa. Segundo o Pe.
Eugênio Hartmann na apresentação do livro A trilha dos santos mártires de Sérgio
Venturini:
O roteiro da caminhada palmilha os lugares de quatro das primeiras
reduções jesuíticas fundadas em solo rio-grandense, mais precisamente
em nossa diocese, de 1626 a 1628, ano do martírio dos padres Roque,
Afonso e João. Percorremos as reduções de São Nicolau, Assunção do
Ijuí, Nossa Senhora da Candelária e Caaró, fundadas pelo padre Roque
e seus companheiros. (...). A trilha quer ajudar a abrir um horizonte novo
de evangelização. Nós, da diocese, neste novo milênio, mais que nos
outros tempos, é desafiada a acolher e compartilhar as riquezas da
maravilhosa história missioneira com romeiros e turistas. (Venturini: 2002,
4).
A proposta de integração social se dá como proposta de evangelização que
incorpora tamm o aproveitamento turístico da região. Pirapó é um dos
acelerado pelo contexto turístico da região com o surgimento da Trilha dos Santos Mártires que se
propõe a enfocar o primeiro ciclo missioneiro.
50
Gaston Bari se posiciona como mediador entre o pólo mais legítimo da produção de narrativas
históricas e um público suposto o mais desmunido culturalmente. Salientando que seu
pertencimento ao mundo fica assegurado por sua freqüência no mundo universitário. Ele tenta
contornar o estigma da vulgarizaçaão evocando a necessária difusão ao maior nome, para colocar
a história local a serviço da integração social e a serviço da indústria turística.
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municípios que faz parte da Trilha. Ao visitá-lo encontrei várias referências ao
primeiro ciclo missioneiro mescladas à memória da colonização alemã do
município que completou seu centenário em 2003 e cujas comemorações incluíam
a previsão da publicação de um livro da história de Pirapó. Percebi um processo
presente de identificação com as Missões, como as cruzes de dois braços e
materialidades da experiência missioneira do primeiro ciclo como o Passo da
Capilla, provável capela jesuítica cujas pedras se encontram na taipa de um açude
próximo, e a Barra do rio Uruguai com o rio Ijuí (local atribuído a Batalha de
Mbororé de 1641). Apesar destes vestígios observei uma resistência da população
e da própria prefeitura. As telhas da capela jesuítica foram levadas do local pela
própria professora responsável pela pesquisa e a comunidade não possui noções
básicas de patrimônio. Uma proposta turística na região implicaria a modificação
da postura dos seus habitantes, que ao longo do tempo vivenciaram a
desvalorização dos locais das ruínas e os pilharam e que agora repentinamente se
surpreendem com sua valorização.
A postura frente ao passado da região e sua memória é diversa em outros
municípios (em que não vestígios materiais que remetam às Missões). Em
Cerro Largo e Guarani das Missões a identificação se em termos da memória
da colonização alemã e polonesa. No caso de Cerro Largo cuja colonização
ocorreu no início do século XX, o fundador Pe. Max era jesuíta e participou junto
com Pe. Luis Gonzaga Jaeger (historiador e arqueólogo) de atividades de
exaltação dos mártires rio-grandenses e da construção do Santuário do Caaró. O
fato de colonos alemães católicos terem vindo para esta região e efetuarem a
exaltação destas identidades através da arquitetura, gastronomia e na
religiosidade embasa a intenção de inserir o município no calendário turístico das
Missões através da promoção de festas religiosas, unindo turisticamente os dois
momentos.
Em Guarani das Missões a utilização do nome que remete ao passado das
Missões se soma às tentativas de exaltação das identidades da imigração
polonesa no município. No museu/Casa de Cultura entrevistei seu Eduardo,
imigrante polonês, que chegou com 1(um) ano de idade no Brasil. O museu é uma
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residência decorada com motivos coloniais poloneses doada por uma das ricas
famílias polacas da cidade e mostra uma série de utensílios que expressam a
memória da colonização polonesa da região. Entre os inúmeros objetos no
acervo um conjunto significativo de pedras de boleadeira (que no passado eram
utilizadas pelos índios para apresar o gado e outros animais de grande porte), sem
qualquer identificação.
Mesmo nesta rápida visita algumas contradições ficaram visíveis. As
identidades polonesas, extremamente exaltadas por seu Eduardo, não
correspondem às expressas e vividas pela maioria da população, conforme me
informou a jovem articuladora do município, mas dizem respeito aos velhos
descendentes dos primeiros imigrantes, que assim desejam elaborar uma imagem
para Guarani das Missões, patrimonializando a memória da imigração polonesa,
através do museu e de outras estratégias, conforme aborda Lafferté (2001: 126),
ao se referir a finalidade pedagógica de produção de identificação, em que o
sentimento que alicerça o pertencimento dos mais velhos como seu Eduardo, se
transforma em discurso de memória com a finalidade de produzir a memória
coletiva para ser vivida pelo grupo como um todo.
Em Guarani das Missões, afora nas festas polonesas, não é possível
encontrar pratos da gastronomia com a qual desejam caracterizar o município; a
língua polonesa não é falada pelos mais jovens, embora haja na cidade, conforme
destacou seu Eduardo, rádios com programa em polonês e TV a cabo com
transmissão da Polônia. O fato da cidade se chamar Guarani das Missões e de a
maior empresa do município ser a Pelego índios Guarani, que se dedica a
atividade historicamente relacionada á matéria prima das Missões (couro e de
ovelha) me leva a pensar na dialética da relação estabelecida por quem se
representa como imigrante e nega a presença indígena na região. A homenagem
do nome se relaciona a disputas e estratégias identitárias do nomear, enquanto
possibilidade e permissão para viver a alteridade e, ao designar via representação
(nome da cidade que remete aos originários), negar e impor seus referenciais. Os
referenciais da cultura imigrante polonesa.
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A questão da abordagem da diversidade em relação à construção de
estratégias turísticas para a região das Missões por parte do SEBRAE foi uma
constante e permeou todo o trabalho de campo. Percebi a intenção de uma
acomodação expressa da diversidade
51
e sua homogeneização, como no caso
das propostas de criação de uma gastronomia missioneira, através da atuação do
SEBRAE junto aos municípios.
Durante uma reunião em Cerro Largo, o coordenador do setor de
agronegócios/SEBRAE, Otto, levantou a proposta de definição de temas
gastronômicos das Missões como parte da necessidade de sua diferenciação das
demais regiões do estado para ter uma coisa que sobressaia. O tema
missioneiro foi metaforicamente comparado a uma pizza em que a maior fatia é
representada pelos guaranis, portugueses e espanhóis, ficando as demais
relacionadas à gastronomia de outras culturas que vieram para a região e se
adaptaram aos dados climáticos da região das Missões. A percepção dinâmica do
seu processo histórico pela coordenação do SEBRAE, no que tange a
gastronomia, conclui pela extirpação do espanhol e a transformação do índio
mesclado ao português em bugre e, neste sentido, apresenta a necessidade de
um resgate da gastronomia local.
A metáfora da pizza pretende sintetizar a diversidade gastronômica da
região em termos temporais e espaciais, porém apesar da percepção da dinâmica
do processo histórico missioneiro penso que a proposta de resgate da
gastronomia missioneira capitaneada pelo SEBRAE é inviável. O termo resgate
51
Na Casa de Chá Kemper Hauss em Santo Ângelo observei a utilização de diferentes imagens
sobrepostas da região das Missões em embalagens de caixas de chocolates. Esta representação
mostra a percepção das múltiplas identidades missioneiras ao longo do processo histórico e o seu
uso para marketing. Em todas as embalagens observei referências às ruínas de São Miguel e
neste sentido é possível pensar sobre a unidade missioneira e suas diversidades que compõem o
ser missioneiro que vem sendo apropriado apenas em termos do passado colonial e da herança
jesuítica. Neste sentido municípios cujos nomes guaranis contemplam uma grande diversidade
que deseja ser integrada ao projeto turístico Rota Missões. Giruá (flor de butiá, em guarani) foi o
25° município a aderir ao projeto Rota Missões. No município remanescentes de quilombos e
uma população que se reivindica nesse sentido. Em Ubiretama (cujo nome em guarani significa
terra fértil) onde conversei com Alfredo e Leontina Teodora Bergmann de 73 e 68 anos o SEBRAE
não encontrou nenhuma alternativa de exploração turística. Para os informantes, após a
emancipação o município decaiu em todos os sentidos em termos de serviço, festas, religiosidade
só há missa uma vez por mês. A dificuldade de contemplar a diversidade por parte do SEBRAE é
perceptível no próprio folder do Rota Missões que privilegia imagens das ruínas missioneiras.
211
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está carregado de um sentido estático, de salvar de forma intacta o que é
impossível, pois tanto as técnicas de fabricação dos alimentos, os produtos
utilizados, o solo, os recursos, etc, se modificaram e se transformaram. Esta
perspectiva é recebida com preocupação pelos habitantes que participam do
projeto Rota Missões.
Os processos da eleição dos temas gastronômicos são aleatórios (são
escolhidos em reuniões com os empreendedores) e obscurecem as diversidades
locais encontradas nos municípios padronizando e massificando os processos de
fabricação e consumo dos alimentos elencados, acarretando um acelerado
processo de descaracterização cultural via impacto da construção do típico em
termos de alimentação. Por seu turno, a utilização do termo missioneiro como
ethnotype também relacionado à gastronomia, conforme o observado no café
missioneiro do Wilson Parque hotel, em São Miguel, durante o Circuito
Internacional das Missões, demonstra também a dificuldade de criar o típico em
relação ao missioneiro.
Esta tensão em termos do trabalho da criação do típico junto aos
municípios e suas dificuldades, para ser consumido como produto turístico em
relação ao impacto de sua criação, somado a um imaginário de que a solução dos
problemas da região e sua última chance de desenvolvimento é o turismo acarreta
um certo embaraço traduzido no esvaziamento das atividades do projeto, pela
diminuição dos empreendedores na área de turismo.
As iniciativas da criação de associações e participação de atividades
comunitárias relacionadas ao Projeto Rota Missões, por sua vez, esbarravam no
próprio ritmo de atividades imposto pelo SEBRAE e sua linguagem
52
, bem como
da atuação do próprio IPHAN
53
que é percebido e representado pelas prefeituras e
52
Numa reunião com o Clube de Mães de Santo Isidro (distrito do município de São Nicolau) foram
passadas informações a respeito dos cursos a serem ministrados pelo SEBRAE nas áreas de
artesanato e agronegócios. Minhas observações prosseguiram após a reunião e conclui que
grande parte do público não havia entendido as colocações efetuadas pelos coordenadores, pois
as pessoas perguntaram sobre informações dadas na reunião à articuladora do município
Andréia. Constatei uma distância em termos da linguagem erudita do SEBRAE e da linguagem
corrente das pessoas da região. Exemplo disso é a utilização do fiquemos ao invés do ficamos.
53
Em São Miguel durante o Encontro da Frente Nacional de Cidades Históricas do Brasil e
Encontro da Organização das Cidades Brasileiras Patrimônio Mundial de 28 e 29 de agosto de
2003 observei as discussões sobre a política de patrimônio desenvolvida pelo IPHAN, bem como a
212
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habitantes que residem próximo aos sítios arqueológicos missioneiros como
policiador de suas atividades nos municípios possuidores destes vestígios.
No caso das Missões, a atuação do IPHAN é de conservação do sitio de
São Miguel com a desapropriação de prédios e ruas situados no interior de seu
espaço, em detrimento dos demais sítios. Segundo a arquiteta Matilde, a atual
filosofia da instituição está pautada na valorização e conservação da ruína sem
reconstrução, pois a mesma como fato arquitetônico deve demonstrar o fato
histórico. Segundo ela, atualmente o IPHAN apresenta uma preocupação de
apenas permitir pesquisas arqueológicas voltadas para a preservação dos sítios
arqueologia de salvamento para evitar que sejam retiradas dos locais peças ou
que os sítios fiquem a descoberto, como no caso ocorrido dos pisos de São
Nicolau. A arqueologia, neste sentido, passa a fazer parte da consolidação
espacial dos sítios, freando por um lado, novas investigações, mas por outro
impedindo a deterioração dos já existentes.
Apesar de o IPHAN apresentar uma visão arrojada de patrimônio vivo,
sendo este entendido como um espaço a ser utilizado no quotidiano da
comunidade, tais como em eventos, a própria instituição ressalta que não tem um
bom relacionamento com as comunidades e as prefeituras, destacando que
atualmente as melhores relações são com a prefeitura de São Nicolau, justamente
onde os remanescentes dos pisos a descoberto da igreja, no sítio arqueológico
estão em processo de deterioração acelerada, sem a intervenção do IPHAN.
A visão de patrimônio vivo para ser implementada exige um nível de
conscientização condizente com a utilização dos sítios pela população sem que
isto conduza à sua depredação, mas à sua revitalização. Observei em todas as
cidades próximas aos sítios arqueológicos a reutilização de pedras e bases de
colunas das construções das Missões, bem como os nomes gravados nas pedras
centenárias e riscos nas placas informativas.
síntese e peculiaridade dos problemas enfrentados por cidades históricas do país como Ouro
Preto, Olinda, São Luiz do Maranhão e São Miguel em que a atividade turística se desenvolve a
partir da dialética entre conservação e preservação do patrimônio e desenvolvimento e
crescimento urbano, a partir de uma visão de patrimônio vivo.
213
213
Foto 6 Placa do sítio arqueológico de São Nicolau São Nicolau setembro 2003;
Autoria: Ceres Karam Brum; Fonte: Acervo Pessoal; P&B (original colorido);
(tamanho 10x15); fotografia fotocopiada em scanner e reduzida (5x7).
Cabe, neste sentido, mencionar as relações observadas no espaço do sítio
arqueológico de São Nicolau com relação a seus habitantes e alguns estudantes.
Dentro do espaço do próprio sítio (situado na parte central da cidade - Praça
Roque Gonzales) se encontra a escola CIAA (Centro Integrado de Assistência aos
Alunos). O mesmo prédio abriga ainda o museu arqueológico e o Posto de Saúde
nº2, do município. O Centro de Tradições Gaúchas Primeira Querência do Rio
Grande também se situa no espaço tombado como patrimônio nacional, havendo
a promessa de sua retirada há várias administrações.
O sítio arqueológico de São Nicolau não é cercado, traduzindo a filosofia
do IPHAN de uma postura pautada por relações dinâmicas entre os sítios e a
população local. Os sítios, nesta perspectiva, se constituem em espaços de
sociabilidade e devem, segundo o IPHAN, ser usufruídos pela população que
precisa ter consciência da necessidade de preservação e de como deve portar-se
no seu espaço. No entanto, observei algumas vezes os alunos do CIAA jogando
bola, subindo nas figueiras e andaimes de proteção e algumas pessoas andando
de bicicleta em um atalho que corta o sítio.
214
214
Foto 7 muro construído com pedras das Missões São Nicolau agosto 2003;
Autoria: Ceres Karam Brum; Fonte; Acervo Pessoal; P&B (original colorido);
(tamanho 10x15); fotografia fotocopiada em scanner e reduzida (5x7).
Embora haja no município o desenvolvimento de projetos de educação
patrimonial nas escolas este projeto não é extensivo à população e sua eficácia
fica comprometida, não gerando uma conscientização mais ampla em prol da
valorização e cuidados com o patrimônio histórico, como desejam o IPHAN e parte
da administração municipal. Laferté analisa a atuação dos guias de turismo na
elaboração e transmissão dos saberes sobre o passado, concluindo que:
À partir dum objectif de <<visites culturelles>>, lanimation du patrimoine
sinscrit em outre dans um objetif pedagogique et social visant à créer
une identification á la ville pour les publiques des quartiers périphériques
supposés déracines. Cette idée en creux selon laquelle lidentité locale se
forme par lappropriation dês monumenttes emblématiques de la ville et
par lancienneté de limplantation, est largement partagée au sein de la
bourgeoisie cultivée locale. (Laferté: 2001, 126)
54
Através das observações efetuadas especialmente no município de São
Nicolau, percebi uma série de contradições em termos de comportamentos com
relação ao patrimônio histórico. Há várias pessoas que se representam como
54
A partir de um objetivo de visitas culturais a animação do patrimônio se inscreve mais do que em
um objetivo pedagógico e social visando a criar uma identificação com a cidade pelo público dos
bairros mais periféricos supostamente desenraizados. Esta idéia vazia segundo a qual a identidade
local se forma pela apropriação dos monumentos emblemáticos da cidade e pelos anciãos, na
implantação é largamente partilhada no seio da burguesia cultural local.
215
215
agentes de defesa do patrimônio na administração municipal que desenvolvem um
projeto de educação patrimonial nas escolas do município. Porém, dentro da
mesma, uma atuação danosa ao patrimônio tombado, por exemplo, através da
atuação da Secretaria de Obras percebida nos respingos de cal nas pedras
centenárias do sítio arqueológico e fora dele. Na perspectiva de Laferté, um
projeto de educação patrimonial é pensado pelos elaboradores das visitas
culturais a um tempo em formatador de uma consciência de preservação dos
excluídos e em instrumento que o poder local acredita poder utilizar para
consolidar sua visão do que deve ser preservado e por quem tem de sê-lo. Esta
idéia partilhada pelo IPHAN, na sua visão de patrimônio vivo, distancia ainda mais
a comunidade de seus objetivos e do próprio projeto turístico, sendo visos como
uma imposição a mais e não como meta comum desejada.
Pude observar a atuação do IPHAN em São Nicolau durante o período que
residi no município. uma extrema inexatidão de dados em que este baseia
suas interpretações e que recomenda para a utilização dos guias
55
, relativos ao
próprio sítio arqueológico, baseados no texto de Fernando La Sálvia O sítio
urbano da missão de São Nicolau (1992) que efetuou uma escavação em 1979.
inúmeras incongruências acerca da planta de São Nicolau e necessidade
de serem efetuadas novas pesquisas arqueológicas, uma vez que a planta não
contempla a própria disposição dos vestígios encontrados dificultando inclusive
explanações turísticas.
As inexatidões, a ausência de acessoria pelo IPHAN e a própria postura de
distanciamento do SEBRAE têm fomentado um mercado de consultoria cultural na
região junto às prefeituras municipais. A Época Produtora Cultural de Santo
Ângelo foi responsável por projetos de guaritas e paradas temáticas em São
Miguel, além do projeto de Restauração do Sobrado dos Silva em São Nicolau.
55
Em São Nicolau no dia11/09/2003 observei as atividades da reunião da Associação dos Guias
das Missões com SEBRAE e o IPHAN. Ao efetuar uma explanação sobre o sítio arqueológico de
São Nicolau, a arquiteta responsável não conseguiu compatibilizar as infformações entre o que
estávamos visualizando no espaço do sítio e as descrições de Fernando La Sálvia que usava
como referência bibliográfica de suas explicações. Também reagiu agressivamente as questões
sobre a possibilidade de existência de ourtos subterrâneos de São Nicolau o que parece ser um
tabu para o IPHAN.
216
216
Suas atividades consistem em elaborar projetos patrimoniais em todas as suas
etapas desde a captação de recursos até a restauração.
Fotocópia do mapa do Projeto Rota Missões. Fonte: folder do Projeto. Doação
Lucas Brum Corrêa, Santo Ângelo, junho de 2004.
Por todas as questões acima apresentadas com relação ao Rota Missões,
no meu entendimento, o projeto Rota Missões se caracterizou por um
distanciamento entre a equipe de consultores do SEBRAE e os articuladores
municipais o que interpreto em parte pelo desconhecimento das características
regionais e municipais traduzido nas tentativas de implementação do espírito
missioneiro como algo forjado de fora para dentro. A formatação do produto
turístico missioneiro esbarrou nos próprios prazos reduzidos do projeto, na rapidez
desenfreada da consolidação das suas ações e a permanência exígua da equipe
do SEBRAE nas comunidades, bem como na padronização de ações que
deveriam ser engendradas a partir de observação pormenorizada dos ethos dos
grupos locais e desenvolvidas através de uma linguagem mais adequada às
condições encontradas na região das Missões, além de uma maior
correspondência de objetivos e circulação de idéias entre os articuladores locais,
consultores e a coordenação.
217
217
5 - Considerações finais
Ao etnografar os dois pacotes turísticos, a fim de interpretar as diversas
formas que o turismo apresenta as Missões e as relações entre o passado e o
presente propiciadas aos turistas e turistas-peregrinos, e a tentativa de formatação
de um produto turístico missioneiro e sua recepção percebi alguns aspectos
comuns entre os dois pacotes e o Rota Missões aos quais gostaria de me referir
como conclusão do presente capítulo.
Em ambos os pacotes a terra vermelha das Missões aparece presente, não
apenas como elemento natural do cenário missioneiro, do espaço das ruínas e
dos trajetos percorridos, mas como uma diversidade culturalmente elaborada.
Durante o Caminho das Missões, anotei no Diário de Campo ao chegar em São
Lourenço Mártir: Caso se possa pensar em algum critério objetivo de identidade
nas Missões (embora minha hipótese de trabalho seja a da formação relacional e
contrastiva das identidades em relação ao pertencimento acionado individual ou
do grupo) é inegável que nas Missões há a terra vermelha que impregna a gente e
tinge. (Diário de Campo 3).
A partir do cenário natural em que a terra vermelha é uma constante, as
menções a mesma se configuram e desdobram: os pacotes de terra vermelha a
serem ofertados em San Ignácio Mini, a exaltação do Esta Terra Tem Dono no
Som e Luz de São Miguel, a questão das contradições apontadas por alguns
turistas entre a terra missioneira como terra pertencente aos indígenas de onde
foram expropriados, são exemplos de que nas Missões o apelo à questão da terra
é de suma importância. Terra com que o turismo se relaciona a título de
explorador de suas belezas - da grandiosidade da terra missioneira enquanto
espaço dos antigos povoados missioneiros ou reduções.
A terra, neste sentido, é certamente o elemento natural preponderante que
é utilizado como ethnotype, pois é de sua naturalização, como terra vermelha das
Missões, que brotam as produções simbólicas significantes da sua força e
simbolismo, como nas representações da prosperidade que gerou através da
civilização jesuítico-guarani e das disputas de que foi palco (mesmo que as
218
218
principais batalhas da Guerra Guaranítica, por exemplo, tenham ocorrido em
território distante das Missões).
Em termos de turismo, o espaço das Missões é pensado de uma forma
excludente, com relação a alguns locais de visitação. Em ambos os pacotes e no
Rota Missões o município de São Borja não está incluído. Tal fato denota uma
diferença em termos das distâncias (no caso do Caminho das Missões que
pretende incluir São Borja em um segundo momento), uma falta de planejamento
e contato com relação ao Circuito Internacional, uma vez que, passamos por
dentro da cidade e a da não adesão de São Borja ao Rota Missões.
Neste sentido, a questão a ser salientada é a das relações que partem de
São Borja como município em termos de turismo que prefere se reconhecer como
região de fronteira e de que formas os habitantes da cidade se relacionam com
seu passado colonial e o acionam a par de outras identidades, tais como a
exaltação do passado Getulista e Brizolista. Assim, se é possível se referir a
identidades missioneiras no município estas não estão voltadas para a questão do
turismo, como enfocarei ao abordar o grupo Os Angüeras.
Um outro ponto comum encontrado é a questão do trabalho pedagógico
efetuado no espaço dos sítios arqueológicos e sua recepção pelos turistas e
turistas peregrinos. Uma questão polêmica e imbricada, em termos das imagens
do passado que estão sendo levadas dos sítios pelos visitantes, das visões que
encerram e suas conseqüências. Se por um lado verifiquei que uma certa
unanimidade pelos participantes dos pacotes com relação à validade do trabalho
pedagógico como forma de mediação entre os vestígios e os turistas para o
entendimento da experiência missioneira passada, por outro a recepção destas
informações se em termos de verdade acabada, da história que realmente
aconteceu, não sendo mostrada como uma possível visão do passado
missioneiro.
O trabalho pedagógico espelha uma conjuntura com múltiplas faces e se
relaciona à formação a que os guias que o transmitem m acesso, às relações e
saberes que embasam a política de patrimônio (como o IPHAN no Brasil), aos
projetos de educação patrimonial e à própria inserção da inclusão ou exclusão das
219
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populações locais com o patrimônio tombado. Este é o caso da presença indígena
e as formas de reconhecimento destas alteridades pelos turistas e dos habitantes
locais em relação aos turistas nessa, mesmo que rápida, situação de fricção.
Essa não relativização conduz a uma impossibilidade de alteridade
traduzida de forma radical nas relações observadas entre turistas e turistas-
peregrinos com os mbyá-guaranis e demais descendentes de guaranis-
missioneiros, uma vez que as representações preponderantes os mostram ora
como coadjuvantes da experiência missioneira passada, coordenada pelos
jesuítas, ora enquanto heróis românticos mitificados, não sendo apresentados a
partir de suas diversidades culturais e peculiaridades. Daí o choque e o incômodo,
várias vezes mencionado, do encontro com os mbyá-guaranis nas ruínas de São
Miguel, bem como o deparar-se com crianças esmolando na entrada dos sítios, o
que atribuo em parte à confusão representacional oriunda das próprias imagens
dos índios geradas pela atuação pedagógica nos sítios arqueológicos, através da
exposição dos guias, da montagem dos museus, dos vídeos e dos espetáculos
apresentados.
Por fim, a questão das propostas de revitalização e reconstrução do
espaço das ruínas sugeridas merece ser analisada no concernente às possíveis
relações que esses visitantes concebem em seu imaginário como passíveis de
serem estabelecidas com o passado a partir do turismo. Marc Augé no capítulo
final do texto El viaje imposible, aborda a questão da paralisação do presente em
prol da manutenção do passado, analisando a situação de Paris, cuja tendência é
perder sua dinâmica para conservar os traços das imagens que a imortalizaram.
Para Augé:
Algunas de esas realidades sobreviven, otras desaparecen y los
recuerdos se mezclan con la ficción, con la imaginación, en el sentimiento
de nostalgia suscitado a veces por la ciudad. Sin duda, ese sentimiento,
por lo demás, no resume por si solo el placer ambiguo que se siente
siempre cuando se frecuentan los lugares. (Augé: 1997,134).
56
56
Algumas destas realidades sobrevivem, outras desaparecem e as lembranças se misturam com
a ficção, com a imaginação, no sentimento de nostalgia suscitado ás vezes pela cidade. Sem
vida, este sentimento ademais não resume por si o prazer ambíguo que se sente sempre,
quando se freqüentam os lugares.
220
220
A situação imaginada por Augé com relação a Paris se constitui no inverso
das propostas referidas durante os dois trabalhos de campo, em se tratando de
Missões. O autor projeta a transformação de Paris em um grande parque,
perdendo seu caráter vivo de cidade. As propostas para as Missões (sugeridas por
dois turistas) são da reconstrução de suas igrejas e praças para que seus espaços
possam ser melhor apreciados e vivenciados pelos turistas, bem como cenário de
readaptação e integração dos índios à sociedade. Em ambos os casos (tanto no
descrito por Augé, como nos casos das reconstruções das Missões) o ponto
comum percebido é a reconfiguração dos lugares e sua revitalização com o intuito
de manter um passado estático para servir de suporte/diversão a ser explorada
pelo turismo no presente.
O imaginário destes turistas aponta, através de suas propostas, uma outra
forma (mais real) de se relacionar com o passado através da reconstrução de seus
espaços, cuja questão preponderante é a de que a vontade de propor esta
reconstrução ocorreu, em ambos os casos, a partir dos sentimentos suscitados na
visita às ruínas missioneiras como um lugar de memória. Um sentimento de
melancolia, de saudade, de vontade de ter pertencido a um passado do qual não
foram atores, mas que na condição de turistas tiveram a vontade despertada de
adentrar e revivê-lo. A forma concebida a representação da vontade de sua
reconstrução que poderá projetá-los no sonho de ser missioneiro.
Augé menciona como conclusão; su ciudad de ensueño era una ciudad de
muertos. Quizás los volvamos a encontrar algún día
57
. (1997:141). Neste sentido,
o desejo de ressuscitar as Missões pode ser pensado em termos do temor do
desaparecimento de suas ruínas quase perdidas no tempo presente e, assim,
da perda do elo de ligação com o passado. Perda da própria possibilidade de sua
comemoração através da visitação como atividade turística, para a qual é preciso,
a qualquer custo, manter vivo o passado conservando seus traços mais
significativos. Reconstruir as Missões seria a concretização de um real transporte
ao mundo missioneiro passado.
57
Sua cidade de sonho era uma cidade de mortos. Quiçá voltemos a encontrá-la algum dia.
221
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Os elos entre o passado e presente nas Missões se constituíram a partir do
espaço das ruínas, adjacências e trajetos. Assim, de uma forma geral, é possível
dizer que o turismo, que explora os vestígios do passado no presente, se
configura como atividade de comemoração nas relações que estabelece tentando
mascarar as contradições que o caracterizaram. No entanto, há uma pessoalidade
na significação do passado missioneiro para cada uma das pessoas com quem
me deparei por ocasião da pesquisa. Esta pessoalidade pode conduzir a outras
possibilidades de relação com o passado, além da comemoração relacionada.
Como, por exemplo, a do desenvolvimento pessoal de cada um, da subjetividade
da experiência que pode acarretar desde atitudes de acerto de contas com o
passado, suscitando ações e propostas de soluções práticas, bem como posturas
de auto-conhecimento e reforço dos laços de relações interpessoais.
Porém, a par das múltiplas relações estabelecidas pelos turistas por
ocasião de suas visitações às Missões, é preciso pensar nas reações dos
habitantes locais destes lugares de memória, que são explorados pelos pacotes
turísticos como atividade de deslocamento e seus posicionamentos. As
observações de campo demonstraram que o produto turístico missioneiro tem sido
formatado através da homogeneização e do velamento da dinâmica das
transformações da região, sendo o passado colonial seu foco por excelência.
Na representação de seu Emílio de São Miguel, a cidade é comparada a
um mulo cujo pórtico corresponde à entrada do cemitério. Em São Nicolau as
freqüentes menções aos enterros de tesouros e aos saques às ruínas efetuados
por estrangeiros são reveladores de um imaginário sobre o turismo no município,
bem como o que me foi relatado como a lenda de São Nicolau que reflete a
dubiedade da significação do turismo para a cidade, ora percebido como a solução
para o seu desenvolvimento, ora como o temor de sua invasão:
- A lenda de São Nicolau é uma lenda antiga que existe uma lagoa, hoje já está sendo subterrada
de terra a lagoa, mas eu conheci ela em meio aonde a lenda, a história diz que uma santa
enterrada pelos jesuítas, com ouro, e que São Nicolau não ia desenvolver muito, não ia ser uma
cidade grande através, enquanto não retirassem essa santa. É o que todo mundo sabe! Inclusive
tinha o padre, o bispo de São Nicolau que em 64 que foi roubado de dentro da igreja e sumiu
depois foi localizado só a imagem dele que é uma imagem de jesuíta foi localizado em São Paulo.
E quando foram a procura para requisitarem de volta não encontraram.
- E nessa lenda, nunca foi desenterrado então, a santa?
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- Não, até inclusive a lagoa ela hoje está subterrada de terra.
- Mais ou menos onde é que é a lagoa? É próxima?
- É ali próximo ao sobrado. É quadra e pouco do sobrado. São duas quadras é uma lagoa nunca
secava, ela só ta subterrada, mas ainda existem as vertentes dela.
- Tu sabes mais ou menos onde tà enterrada, não?
- Não. Isso aí é uma lenda que ninguém sabe.
A narrativa remete às Missões como um momento de esplendor,
caracterizado pelo desenvolvimento e prosperidade em comparação à atualidade,
que é percebida como um momento de estagnação. O desafio de desenterrar a
santa simbolicamente se relaciona com o encontro e florescimento de algum tipo
de atividade que devolva ao município uma prosperidade retratada como perdida
após a desestruturação das Missões. Creio que o turismo corresponderia a
representação desta alternativa, frente mesmo a todas as contradições que abarca
e a postura dos habitantes locais. Porém, o lento amadurecimento desta
perspectiva se choca com a urgência da imposição da criação do produto turístico
missioneiro e sua comercialização por parte das agências fomentadoras.
223
223
CAPÍTULO 5
Mitologia folclórica missioneira
No presente capítulo, desejo apresentar algumas narrativas tradicionais de
temática missioneira, pretendendo mostrar como as mesmas são vivenciadas na
atualidade por indivíduos e grupos sociais. Tentarei demonstrar que, a referência à
experiência missioneira efetuada por sujeitos e grupos, faz parte de um conjunto
de relações estabelecidas com fatos passados no Rio Grande do Sul, sobretudo
em relação às Missões, que comporta o duplo sentido da busca de
respostas/justificativas para o presente neste passado.
As constantes referências ás Missões se relacionam à necessidade de
manutenção da coesão grupal e ou de crescimento individual perceptíveis na
atualização de identidades demonstradas no pertencimento às Missões. As
manifestações de pertencimento se expressam na produção de representações
que remetem às narrativas tradicionais. Nestas representações que comemoram
ou efetuam críticas ao passado missioneiro percebo a intenção da elaboração de
uma consciência histórica acerca do passado através de seus usos públicos e
privados,
O que identifico como narrativas tradicionais de temática missioneira
corresponde, de certa maneira, ao designado pelos folcloristas como lendas das
Missões, ou seja, são histórias fabulosas que remetem a personagens
representados como protagonistas da experiência missioneira e que a demarcam
por suas características como um momento marcante na história do Rio Grande
do Sul, como região e território. As lendas se constituem em uma história fabulosa
ou misteriosa caracterizada pela atuação fantástica de um protagonista,
relacionada às tradições populares de um determinado grupo. Uma narrativa que
224
224
transmite e celebriza o que o trabalho de memória selecionou para glorificar e
viver como mito.
A permanência das narrativas tradicionais, através de publicações e das
apropriações das mesmas na atualidade, põe em relevo a definição do ser
missioneiro e a importância das Missões no imaginário do Rio Grande do Sul.
Desta sorte, a perspectiva de justificação do passado missioneiro apresentado nos
textos das lendas selecionadas e suas apropriações posteriores se configuram em
importante perspectiva de trabalho com relação à memória missioneira, em virtude
dos desdobramentos efetuados na leitura das narrativas pelos grupos e sua
utilização, enfatizando alguns aspectos do passado missioneiro em detrimento de
outros.
Neste sentido, na tentativa de ilustrar e analisar o estabelecimento dessas
relações, a par de outras representações produzidas acerca do passado
missioneiro na atualidade, selecionei as narrativas tradicionais Angüera, Casa
de Mbororé, Lunar de Sepé e São Sepé
1
que remetem a figuras de índios que
protagonizaram, imaginária ou efetivamente, a experiência missioneira passada e
sobre as quais foram atribuídos e mitificados feitos.
O contato com as menções ás narrativas e seus personagens ocorreu
durante os trabalhos de campo e em entrevistas em diferentes ocasiões dentro e
fora da região missioneira do estado ao longo da pesquisa de doutorado. Os
textos das narrativas tradicionais referidas fazem parte do livro Lendas do Sul
(1913) de João Simões Lopes Neto (1865 1916), considerado o maior escritor
regionalista do Rio Grande do Sul
1
A escolha destas narrativas ocorreu em virtude da atualização e referências que presenciei
durante os trabalhos de campo. É preciso ressaltar, porém, que existem outras narrativas
tradicionais no Rio Grande do Sul e em outras regiões onde se situaram os povoados missioneiros
que remetem às Missões. Uma rápida pesquisa no índice de algumas publicações regionalistas no
Rio Grande do Sul, via de regra, apresenta uma parte reservada às Missões, mencionando as
narrativas Zaoris, A mãe do Ouro, Cerros Bravos, Mãe Mulita, mboi-guaçu de São Miguel, A
Salamanca do Jarau, Lagoa Vermelha, Tupanciretã, Lenda de Bagé, Rio das Lágrimas, entre
outras tais como as diversas versões encontradas sobre os tesouros missioneiros e os túneis das
Missões. O texto de Paula Simon Ribeiro Folclore: similaridades nos países do Mercosul 2002
apresenta como mitos do Rio Grande do Sul o Angoera e Casa de Mbororé. Sobre a prosa de
Siméoes Lopes Neto consultar http://pelotas.ufpel.edu.br/simoeslopes.html .
225
225
O principal ponto em comum entre as narrativas selecionadas está no fato
de, ao remeterem a figuras indígenas, demonstrarem um imaginário acerca das
suas formas de participação durante a experiência missioneira passada, bem
como, em termos das apropriações de suas figuras, a visão acerca do índio na
atualidade e a teia de relações estabelecidas através dessas menções.
As lendas, a par de outras narrativas mencionadas por Ricoeur (1985: 185)
como o romance e a historiografia, correspondem à re-figuração do passado
através do ato de narrar. A mitificação do passado missioneiro, objeto deste
capítulo se expressa em dois sentidos: as versões das lendas na linguagem
regionalista dos textos literários de Simões Lopes Neto, entre outras referências
textuais, e a forma como os mesmos são apropriados e utilizados na atualidade.
Esta pluralidade de referências compoem o mito referendado por grupos e
indivíduos que os vivem de diversas formas. Para Claude Lévi-Strauss em A
estrutura dos mitos:
Um mito diz respeito, sempre, a acontecimentos passados: antes da
criação do mundo, ou durante os primeiros tempos, em todo o caso,
faz muito tempo. Mas o valor intrínseco atribuído ao mito provém de
que estes acontecimentos, que decorrem supostamente em um
momento do tempo, formam também uma estrutura permanente. Esta se
relaciona simultaneamente ao passado, ao presente e ao futuro. Uma
comparação ajudará a precisar esta ambiidade fundamental. Nada se
assemelha mais ao pensamento mítico que a ideologia política. (Lévi-
Strauss: 1996, 241).
Ao situar o mito no passado em relação a sua atualidade presente e sua
articulação com o futuro, comparando o pensamento mítico à ideologia política, o
autor deseja remeter a questão da eficácia do mito referendada por sua
permanência ao analisar as referências à Revolução Francesa. O evento
potencializa, nesta perspectiva, uma diversidade de construções de sentido que
convergem na sua atualização e eficácia simbólica porque o mito permanece mito
enquanto é percebido como tal (1996: 250).
A experiência missioneira passada corresponde a um momento fundador,
um mito de origem que permanece presente no imaginário de indivíduos e grupos
que o vivenciam através das representações das figuras indígenas que
226
226
protagonizam as narrativas e de suas utilizações. Neste sentido, apresentarei os
imaginários e identidades mostradas nas narrativas tradicionais e as apropriações
efetuadas por quem as utiliza, com o intuito de demonstrar a relação estabelecida
com o passado e os sentidos conferidos no presente ao mesmo, por aqueles que
o acionam. As versões das narrativas apresentadas fazem parte da obra Lendas
do Sul de Simões Lopes Neto, contrapostas a publicações mais recentes.
A obra de Simões Lopes Neto
2
é bastante conhecida e difundida no Rio
Grande do Sul. Esta popularidade, especialmente em se tratando da compilação
dos Contos Gauchescos e Lendas do Sul, se relaciona às sucessivas
apropriações e a recepção da mesma na literatura folclórica e regionalista que se
seguiu. Assim, a par da discussão acerca do caráter da obra de Simões Lopes
Neto, de estas tradições orais terem sido coletadas ou recriadas pelo autor,
conforme menciona Carlos Reverbel na apresentação de Lendas do Sul (2000:
11), que se pensar na continuidade de sua recepção, pois na perspectiva de
Lévi-Strauss todas as versões pertencem ao mito(1996: 252).
Assim, com relação às lendas apresentados na obra de Simões Lopes
Neto, a questão do caráter etnográfico de seus escritos, e da veracidade e
fidelidade às tradições orais coletadas, adquire menor importância em relação à
continuidade da atualização das narrativas pelos grupos que se identificam com
sua ideologia e a incorporam a seu ethos, vivenciando as tradições expressas e
por isso se configurando em uma questão antropológica de recepção de sua obra
ficcional.
Flávio Loureiro Chaves (1994: 39-40), no texto Matéria e Invenção,
caracteriza a ficção de Simões Lopes Neto como regionalista em razão de a
crônica que este efetua da história sul-riograndense descrever os usos e costumes
relativos à região que demarca. Chaves (1994: 41) relaciona a produção do
regionalismo e de uma ideologia regionalista com a obra de Simões Lopes Neto,
2
A versão apresentada das narrativas encontra-se na edição de Lendas do Sul publicada pela
editora Martins Livreiro (2000). Alguns aspectos que passo a apresentar da interpretação das
mesmas foram efetuados no texto da dissertação de mestrado de minha autoria Lendário
missioneiro: pedagogia jesuítica para a integração colonial nos Sete Povos das Missões
UFSM/PPGE 1998.
227
227
pois a mesma traduz os acontecimentos vividos no estado e os recria, permitindo
a partir de sua recepção, a possibilidade de se vivenciar esse regionalismo.
Tal fato permite assinalar a produção do mito das Missões por Simões
Lopes Neto. As narrativas, neste sentido, contemplam a temática missioneira e
seus sujeitos, através da atuação dos indígenas em diferentes momentos desta
experiência que é representada como a origem da bravura dos gaúchos.
O texto deste capítulo está subdividido em três partes que se referem a
situações relacionadas ao passado missioneiro, apropriados na atualidade. Julguei
pertinente, a fim de melhor contemplar as apropriações e os sentidos conferidos
no presente às narrativas e seus personagens, apresentar as mesmas,
inicialmente, como fontes reveladoras do passado missioneiro documentos
literários possibilitadores da reconstrução de uma forma de memória da
experiência missioneira passada, para apenas num segundo momento de cada
parte do texto, apresentar as apropriações que remetem à musicalidade, aos
subterrâneos e tesouros das Missões, aos monumentos, à religiosidade, aos
espetáculos e à questão da terra no Rio Grande do Sul, sendo utilizados como
elementos identificadores da experiência missioneira passada que permanecem
no presente e que se configuram em usos deste passado.
Escolhi, como contraponto tentar apresentar, a título de conclusão do
capítulo, algumas observações sobre os mbyá-guaranis, partindo das relações
que percebi estabelecerem com o passado missioneiro.
1-
A lenda do Angüera
O ANGÜERA
O Angüera, enquanto foi pagão, chamava-se deste nome; era um índio grande, forçudo e valente;
mas era triste, carrancudo e calado.
Quando os padres de Jesus entraram no sertão da serra, corridos que vinham doutro rumo, foi
Angüera, o tapejara, quem conduziu sem erro a companha; e quando os padres sentaram pouso,
batizou-se.
E foi padrinho, Mbororé, que era cacique e já amigo muito, dos padres. O nome de Angüera pagão,
ficou sendo Generoso, nome de cristão.
E foi como cobra que deixou a casca...
Angüera que era triste, deixou a casca de tristura, e como Generoso, de nome bento ficou
prazenteiro.
228
228
E ajudou a botar pedra sobre pedra no alicerce de todas as igrejas dos Sete Povos. E durou anos,
esse ofício!... E ele, sempre risonho e cantador.
Um dia chamou o padre cura, confessou-se e foi ungido de óleo santo e morreu.
Generoso morreu contente pois a cara do seu cadáver guardou um ar de riso e foi muito chorado,
porque tinha a estima de todos, por ser muito prazenteiro e brincador.
De forma que sua alma saiu-lhe do corpo, de jeito alegre; e então, invivel, entrava na casa dos
conhecidos, passeava nos quartos e salas, e para divertir-se fazia estalar os forros do teto e os
barrotes do chão, e também os trastes novos e os balaios de vime grosso; e se achava
dependurada uma viola, fazia sonar o encordoamento, para lembrar-se com a lembrança de suas
cantigas, de quando era vivo e cantava...
Outras vezes assobiava nas juntas das portas e janelas, espiando por elas os moradores da casa;
e quando os homens rodeavam a candeia pitando, ou as crianças, brincando, ou as donas
costuravam ou faziam nhanduti, o Generoso a alma dele, pro caso soprava devagarzinho sobre
a chama de luz, fazendo-a requebrar-se e balançar, que era prá sombra das cousas também
mudar de estar quieta.
E muitas vezes até no tempo dos farrapos quando se dançava o fandango nas estâncias ricas
ou a chimarrita nos ranchos do pobrerio, o Generoso, intrometia-se e sapateava também, sem ser
visto, mas sentiam-lhe as pisadas, bem compassadas no rufo das violas... e quando o cantador de
baile era bom e pegava bem de ouvido, ouvia, e por ordem do Generoso repetia esta copla que
ficou conhecida como marca de estância antiga: sempre a mesma...
Eu me chamo Generoso,
Morador em Pirapó:
Gosto muito de dançar
Coas moças de paletó...
Na lenda do Angüera uma pluralidade de contextos apresentados e que
a extrapolam. O contexto missioneiro cenário da narrativa um duplo contexto,
aliás, na medida em que se refere as duas fases missioneiras no Rio Grande do
Sul. ainda, no plano da narrativa, um outro contexto, que é múltiplo o das
aparições do Generoso em momentos marcantes da história sulina. Para além da
narrativa o contexto da produção do mito por Simões Lopes Neto e que se liga
à atualidade missioneira no Rio Grande, ao grupo Os Angüeras de São Borja e ao
festival da Barranca. Antes, porém de abordar como o mito é vivido na atualidade
pelos Angüeras é preciso interpretar o texto da narrativa.
Angüera é apresentado como um índio não convertido no tempo das
Missões do Tape, Itatim e Guairá, embrenhado nos matos, comprimido pelas
frentes de expansão opostas luso-hispânicas. A presença do índio fugindo do
contato dos civilizadores ilustra um momento crucial na resistência do habitante
originário à nova ordem, em que os jesuítas são vistos por Angüera como menos
nocivos que os demais luso-hispânicos. A fuga de índios e jesuítas remete à
atuação bandeirante e à sua presença no território sulino para apresar os guaranis
das Reduções do Tape.
229
229
O termo Angüera, através da atuação do cacique convertido, que passa a
se chamar Generoso, pode se relacionar simbolicamente na lenda, à repulsa dos
índios cristianizados às bandeiras paulistas. Pois Angüera apresenta uma
similaridade com o termo Anhanguera que quer dizer diabo velho ou espírito
maligno. Assim era chamado o bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva (1672-
1740), conhecido por sua atuação no sertão de Goiás em busca de pedras
preciosas. Não encontrei registros na historiografia de sua presença no território
do Tape, o que é corroborado pela afirmação de Sandra Pesavento em História do
Rio Grande do Sul (1990: 9) que diz que as bandeiras paulistas cessam as
investidas a partir de 1640, quando o tráfico negreiro volta a se normalizar em
razão do fim do domínio espanhol, com a expulsão dos holandeses da África.
Finda, assim, a necessidade de prear índios das reduções para sua uilização nas
lavouras da cana-de-açúcar
Segundo o Vocabulario de la lengua guarani do padre Antonio Ruiz de
Montpoya ([1639]1993: 67), ang é alma e anguera, a alma que saiu do corpo. Um
fantasma, ou alma penada, segundo a interpretação do jesuíta. O Angüera que se
transforma em Generoso, após o batismo, é representado como uma figura
expoente de confiança dos jesuítas e cujo nome revela um caráter sobrenatural.
O Angüera Tapejara, segundo Nunes (1993: 477) senhor dos caminhos
apresentado na narrativa, provavelmente tenha sido um cacique aliado dos
jesuítas. Moacyr Flores, em Colonialismo e Missões Jesuíticas (1983: 100), faz
referência, além do renomado Sepé Tiaraju, a dois caciques de nome Neenguirú,
tamm chamado de Languirú. Ignácio Dalcin no texto Em busca de uma terra
sem males (1983: 112) o apresenta como um dos colaboradores do padre Roque
Gonzáles na fundação das Missões do Tape, sendo um dos protagonistas do
primeiro ciclo missioneiro no território do Rio Grande do Sul. Um outro cacique de
nome Neengui neto do primeiro é mencionado por Dalcin (1983:115) e
Flores (1983: 101) como comandante da resistência guarani após a morte de
Sepé Tiarajú, na Guerra Guaranítica em 1756,
A narrativa apresenta os dois episódios missioneiros vinculando-os a uma
mesma figura lendária sem fazer distinção entre os dois Neenguirús que nela
230
230
aparecem como Angüera apenas, participando a um tempo da fundação das
Missões do Tape (Pirapó citado nos versos finais da narrativa, foi tamm um
desses povoados), do Êxodo do Guairá (representado pela fuga dos padres,
conduzidos por Angüera) e da construção dos Sete Povos.
Ao ilustrar a ligação entre os dois episódios (1626, data da fundação de São
Nicolau e 1756, quando ocorreu a morte de Sepé Tiarajú), apesar do lapso
temporal de 130 anos que os separam, a narrativa, ao enfatizar a ligação entre
ambos através do Generoso, conduz a reflexão acerca de processos identitários
estruturados. Simbolicamente o que permeia a construção destes povoados, em
momentos e contextos históricos distintos, é justamente o locus das mesmas, o
território sulino, submetido ao colonialismo espanhol, gerando assim um
sentimento de pertencimento em formação, relacionado ao projeto missionário
nessas terras terras gaúchas - e justificado pela presença do próprio habitante
originário catequizado na figura do Angüera. A narrativa apresenta o processo
de identificação ao território sulino como anterior à demarcação fronteiriça
acordada no Tratado de Madrid (1750). A terra missioneira é apresentada como
laço comum gerador das identidades cristãs do índio Generoso.
O grau de submissão dos guaranis é crescente, o que é demonstrado na
narrativa através do batismo e da mudança radical que ele opera na pessoa do
Angüera que se torna Generoso. A troca de nomes é o sinal da conversão do
gentio e da expulsão do demônio. É o índio missioneiro Generoso que a
narrativa mitifica e exalta e não o seu duplo Angüera de quem conta o
desaparecimento, ou pelo menos a transformação. Assim, a alusão metafórica à
cobra que saiu da casca, representa não apenas uma mudança significativa,
mas o alerta do perigo, da animalidade/bestialidade do índio, numa visão
preconceituosa em que cobra, mesmo de casca nova, é sempre cobra. Índio
catequizado, mas sempre índio que deve ser vigiado e manipulado, mesmo em
seu território, para se tornar útil à Coroa Hispânica. A transformação do Angüera
em Generoso se dá através do batismo que, conforme Jean Delumeau em História
do Medo no Ocidente (1986: 102), se configura em forma de purificação utilizada
para expulsar o demônio.
231
231
A expulsão do demônio se através da troca do nome Angüera (alma
penada) por Generoso, pondo em suspenso suas características (cobra) de não
converso e exaltando sua atuação na experiência missioneira na construção dos
Sete Povos das Missões. Através da atuação dos jesuítas construtores das
Missões desaparece o Angüera e surge o Generoso aliado dos santos padres
que, segundo a narrativa, são os principais responsáveis pela grandiosidade da
vida missioneira. A construção das igrejas dos Sete Povos, após as quais morre o
Generoso, ilustra a participação do índio guarani nas Missões. Essa
participação/colaboração e não construção/concepção é fundamental, uma vez
que a igreja representa o seu símbolo maior o catolicismo e demarca a
dimensão da presença do guarani nas Missões, enquanto submissos aos padres
jesuítas. E ajudou a botar pedra sobre pedra no alicerce de todas as igrejas dos
Sete Povos (Lopes Neto 2000: 82).
Esta simbologia deve ser duplamente explorada, pois o catolicismo é o
paradigma de identidade adotado por Generoso, e este paradigma se dá em
decorrência da tarefa de missionar dos jesuítas acatada por Generoso - o que
justifica a atuação dos próprios missionários é a existência de Angüeras
demoníacos a serem convertidos.
A morte do índio apenas se concretiza após a construção de todas as
igrejas, o que prova o compromisso do velho Generoso com a causa jesuítica, sua
própria causa, segundo a narrativa, mostrando a criação de uma nova identidade
atribuída aos guaranis convertidos a identidade missioneira a qual concorrem
alguns elementos do seu antigo universo, representados na narrativa pelos termos
guaranis: Angüera, Tapejara, Nhanduti, Pirapó, num contexto jesuítico e pós-
jesuítico em que permanecem enquanto identidades missioneiras, como o descrito
após a morte do Generoso que retorna às Missões - por ter sido muito feliz e
assim não conseguir/querer desligar-se do seu mundo. O relato das aparições do
Generoso mostra que mesmo as casas e as pessoas não apresentavam mais
características da cultura guarani originária, num predomínio de elementos
jesuíticos sobre os indígenas. Há, portanto, a justificação do processo de
missionarização, denotando que a experiência de tornar-se cristão foi proveitosa
232
232
para os guaranis, mesmo a custa da desagregação e invisibilização de sua
cultura. A narrativa se constitui em exaltadora da atuação jesuítica nas Missões.
As aparições do Generoso, mesmo após a desagregação dos povoados
missioneiros sobre o que a narrativa nada menciona - acontecem em um
momento marcante da história do Rio Grande do Sul o tempo dos farrapos,
temporalmente compreendido entre os anos 1835-1845. A presença do Generoso,
ainda durante este episódio decisivo na estruturação das identidades sulinas por
representar no imaginário do gaúcho a sua garra e determinação frente à
discriminação e os abusos imperiais, demonstra o enfoque ufanista conferido à
participação do índio na sociedade que se forma. Um índio de contorno cristão,
colaborador do branco civilizador, sem demonstrar qualquer desconformidade no
que concerne à desagregação de sua cultura. Esta imagem indígena é também
expressa em outros textos de Simões Lopes Neto e concorre para a recepção e
exaltação de seus escritos pelos regionalistas, na medida em que apresenta
aspectos aceitáveis (não contraditórios) e potencialmente construtores de heróis e
episódios para serem comemorados.
3
José Otávio Catafesto de Souza, na tese de doutorado em Antropologia
Social PPGAS/UFRGS/1998, Aos fantasmas nas brenhas, estuda o tratamento
representacional das alteridades originárias no sul do Brasil. Sobre os guaranis e
as Missões menciona a existência de narrativas que abordam a temática
missioneira, explorando a questão da invisibilização e do velamento das
alteridades originárias no Rio Grande do Sul como decorrentes de um processo
histórico e historiográfico, cujas conseqüências alcançam a atualidade, sendo
percebidas no tratamento dado aos descendentes de originários guaranis
missioneiros e mbyás, Kaingangs e no caso das terras da Borboleta. Segundo o
autor, a utilização de termos e expressões etéreas como fantasmas, almas
penadas é uma constante na tentativa de mostrar o pretenso desaparecimento do
autóctone, o que para ele é inverossímil, que a construção deste simbolismo
esconde interesses políticos e econômicos e se relaciona, tamm, à historiografia
3
Neste sentido se inscrevem as narrativas tradicionais Salamanca do Jarau: Casa de Mbororé e o
poema Lunar de Sepé.
233
233
missioneira (Souza: 1998, 82) que corrobora com o imaginário acerca do
desaparecimento dos guaranis que construíram as Missões.
Na narrativa O Angüera é igualmente velada a autoctonia guarani,
enfatizando o surgimento do missioneiro utilizando-se da figura de um fantasma
que o protagonista Generoso/Angüera nunca deixou de ser: quando vivo, pagão e
após morrer, cristão, sendo representado na narrativa como muito mais
assustador antes de batizado, por sua barbárie demoníaca, do que quando
aparece como assombração, depois de morto. Afinal, neste contexto, por ter sido
convertido, construiu e enalteceu o universo cultural cristão em que está inscrito,
não ferindo, portanto, sua lógica.
Ao justificar a transformação do guarani em sujeito catequizado/integrado
às Missões, a narrativa mostra a formação de novas mentalidades ocasionando
redimensionamento destes referenciais e a estruturação (a partir dos mesmos) de
novas identidades identidades missioneiras - expressas ao longo da narrativa,
com o objetivo de enfatizar a obra jesuítica, sua presença no Rio Grande do Sul.
Roberto da Matta no texto Mito e autoridade doméstica:
Pois, parafraseando Hubert e Mauss, sem os índios não haveria homem
branco e sem Auké os índios não poderiam explicar a sua situação de
contato. O sacrifício de Auké assim vale como uma verdadeira
legitimação do ambíguo.(Da Matta :1976, 43).
Igualmente ao que ocorre com o mito do Auké como um mito de contato
entre brancos e índios, na lenda do Angüera o que se legitima é a ambiguidade da
transição com a criação do missioneiro representado na figura ambígua do
Angüera/Generoso, com a diferença de que Angüera não é uma narrativa indígena
explicando o contato cultural, embora a presença de termos guaranis possa
objetivar conduzir a interpretação diversa. Apesar de enfocar a obra missionária, a
narrativa se intitula O Angüera, enfatizando a identidade guarani através do termo,
enquanto o restante de seu conteúdo justifica a estruturação de novos referenciais
identitários e a refutação dos antigos, ou pelo menos o seu redimensionamento. È
preciso, assim, reconhecer no seu texto a liminaridade e dubiedade no que diz
234
234
respeito ao universo guarani como relativo às Missões, tentando simbolicamente
conduzir a contradições.
É este caráter liminar, conforme mencionei no capítulo 1, na perspectiva
de Turner (1974: 156), justamente o gerador do mito, possibilitando a
reclassificação do índio Angüera nas Missões que se transforma em Generoso e
permanece como uma alma que saiu do corpo. Um fantasma cristão, nostálgico
por retornar, mesmo depois de morto ao seu espaço, com referenciais
missioneiros e não com os do antigo universo guarani. Nesse sentido, que
referir que apesar de a narrativa chamar-se O Angüera, ela conta a história da
desintegração do mundo guarani, ficando como lembrança das antigas
identidades, os termos guaranis que se inscrevem num outro contexto, diverso do
que os gerou.
Os termos Angüera, tapejara, Pirapó, nhanduti pretendem conduzir
representacionalmente a uma condição de pertencimento ao mundo guarani, ou
seja, demonstrar que esta narrativa é a visão dos guaranis sobre o processo a que
foram submetidos, servindo a mesma como cenário justificador da catequização e
manipulação de seu ethos, para compor o mundo missioneiro. Mas a narrativa não
se relaciona a uma visão guarani do processo civilizador, pois a visão que
apologiza é a do colonizador/ catequizador.
O quarto contexto em que se insere a narrativa O Angüera ultrapassa o
texto da mesma e remete à sua permanência e interpretação relacionando não
apenas os dois momentos do regionalismo no estado (contexto da produção da
obra de Simões Lopes Neto e o gauchismo na atualidade), mas as possíveis
relações entre a produção de representações sobre o passado missioneiro a partir
da ótica de história da mitologia folclórica das Missões apresentada por Simões
Lopes Neto em relação às apropriações que etnografei.
Desta sorte, cabe mostrar a recepção do imaginário que a narrativa
expressa. Neste sentido, as razões da permanência e dimensões adquiridas pelo
regionalismo e sua disseminação extrapolam a questão literária e passam a ser
pensadas como um problema antropológico da manipulação da memória do
passado missioneiro acionado via ocorrência da circulação entre as tradições orais
235
235
provavelmente coletadas por Simões, expressas na narrativa através de uma
linguagem regionalista, com a penetração na literatura e, posteriormente, a
recepção destas idéias lenda do Angüera por um grupo que se denomina Os
Angüeras, em São Borja.
1.1 - Os Angüeras: grupo amador de arte
Encontrei sobre os Angüeras, nos arquivos do Instituto Gaúcho de Tradição
e Folclore, um encarte produzido pelo próprio grupo, sem data, que traz
explicações detalhadas sobre a fundação, os objetivos e as atividades do grupo.
Sobre o nome, explica o encarte, que o termo angueraes provém do guarani e
significa fantasma, espírito, alma e que Angüera, na mitologia folclórica
missioneira, foi um índio convertido pelos jesuítas que, após batizado com o nome
de Generoso, tornou-se fandangueiro e brincador o mais divertido dos índios
das Missões que mesmo depois de morto e de ter ido para o céu, volta
sempre em espírito para visitar os rincões onde viveu; e se o gaiteiro ou cantador
de baile é bom de ouvido pega na relancina o verso de sempre que ele canta:
Eu me chamo Generoso
Morador em Pirapó
Gosto de dançar coas moças
Nos bailes, de pale...
Percebo que uma apropriação da narrativa pelo grupo, com
modificações na interpretação da mesma, cuja ênfase é dada à figura artística do
índio missioneiro e não às Missões, em si, como locus de uma profunda e
polêmica transformação cultural. O grupo se apropria do termo Angüera e,
conforme a já enfatizada mensagem da narrativa, promove a figura do Generoso e
sua personalidade:
Entendendo o Angüera como uma espécie de mbolo espiritual da
dança, da música e do canto no Rio Grande do Sul especialmente na
região missioneira onde se situa São Borja o Grupo tomou o seu
nome.
A fundação do grupo ocorreu em 10/03/1962, a partir do Departamento
Cultual do Clube dos Dez, extinto em 1965. Os Angüeras mantêm, ainda, a
estrutura inicial de quinze casais como sócios efetivos, sócios artistas
236
236
colaboradores e os demais sócios e contam com sede própria (uma área de
10.000 metros quadrados), onde montaram o primeiro museu Ergológico do
estado (peças e utensílios de trabalho do homem gaúcho). Dentre suas atividades
artísticas, para as quais se reúnem semanalmente, destacam-se a música, o
teatro e a recitação. Segundo Telmo de Lima Freitas, conhecido músico nativista e
um dos fundadores dos Angüeras, relatou sobre o nome do grupo:
- Angüera, isso aí numa das reuniões eu estava presente, então Angüera é aquela lenda do índio
que canta triste, quando tu vê um violão às vezes num canto e dali um pouco rebenta uma
corda, ou um zunido interessante no instrumento, o Angüera anda ali, era um músico tocava
instrumento de corda. Esse aí é o significado do batismo do grupo. (Fita K-7 1 A).
Inicialmente, cabe assinalar a utilização do termo (uma alusão ao regional)
e a conotação que adquire entre os participantes do grupo que escolheram este
nome para designá-lo. O território, como já destaquei na análise do texto da
narrativa, é reconhecido como missioneiro, mas o grupo não se refere ao mesmo,
pois seu interesse é artístico, difusor dos valores regionais. O batismo do grupo,
com o nome Angüera, remete à música nas Missões e às aparições do índio. A
tristeza se refere às suas aparições após a desestruturação das Missões, uma
saudade/melancolia daquele tempo que os Angüeras, como grupo, ao assim se
denominarem, se propõem a restaurar através da produção de sua arte que tem
como inspiração o protagonista da narrativa, num local em que no passado esteve
Generoso auxiliando os padres na construção dos Sete Povos.
João Leal em Saudade: la construction dum symbole (1999) apresenta a
saudade como um traço construído em diferentes situações em Portugal; sendo
utilizado como <<representação mental>> particular do caráter português (1999:
186). Neste sentido, ele percebe a saudade como um esteriótipo acionado na
construção da identidade nacional portuguesa:
Bien que sadressant a lenssemble de la population nationale, symboles
et stéréotypes font en realilobjet dune appropriation sélectives de la
part de groupes socioculturels bien précis, pour lequels ils symbolisent
237
237
leur propre perception dum sentiment de portée plus génerale: le <<
sentiment national>>. (Leal:1999, 186).
4
A saudade como mbolo se constitui, para os Angüeras, no elo que
procuram estabelecer com o passado, neste caso com o intuito de pontuar a
questão regional e com ela identificar-se. Assim, é possível inferir que a saudade,
enquanto critério de definição da identidade nacional portuguesa, é utilizada em
termos de identidades regionais, num contexto relacional de referência a um
passado espanhol a construção das Missões e suas tradições de musicalidade.
Nesta perspectiva, da representação do saudosismo dos Angüeras, que
remete ao tempo das Missões, cabe assinalar a visão e análise de Bela Feldman-
Bianco (2004: 299) sobre os imigrantes portugueses nos Estados Unidos. Para a
autora, a utilização do passado se constitui num pretexto para lidar com o
presente, através da referência a um tempo em que o tempo não contava (apud
Thompson, 1966), um tempo vivido e acionado miticamente como o das origens. A
representação da saudade, remete, para Feldman-Bianco, à questão do contexto
da ação social da produção das representações simbólicas: ao privilegiar o
significado do tempo e do espaço da saudade na (re)construção da identidade no
nível do eu (2004: 296).
Sua proposta de co-relacionar os processos individuais e grupais de
produção identitária remete aos Angüeras, pois o conjunto de siginificados que
atribuem ao passado das Missões, ao ser mediado pela saudade, representada na
figura do Generoso, se constitui na forma escolhida para reinventar o passado no
presente (Feldman-Bianco: 2004, 296), a partir das experiências musicais do
grupo, inspirado por Angüera e vivido peculiarmente por cada um de seus
membros e expresso em suas reminiscências.
Pierre Bourdieu em Identidade e representação: elementos para uma
reflexão crítica sobre a idéia de região - se refere à utilização simbólica dos
critérios de identificação, o que é feito estrategicamente em função dos interesses
materiais e simbólicos do portador. (Bourdieu:1989,122). Os Angüeras ao assim
4
Embora dirigidos ao conjunto das populações nacionais símbolos e estereótipos foram objeto de
apropriações seletivas da parte de grupos socioculturais bem marcados para os quais simbolizam
sua própria percepção de um sentimento de posse mais geral o <<sentimento nacional>>.
238
238
se designarem estão interessados na herança artística das Missões que enfatizam
através da interpretação e utilização da narrativa.
Desta sorte, a explicação da escolha do nome do grupo se constitui em
estratégia de identificação relacionada à necessidade de legitimação do espaço
missioneiro na atualidade, pois São Borja
5
foi o primeiro dos Sete Povos das
Missões a ser fundado, embora atualmente a identificação do município no cenário
nacional seja efetuada como sendo a terra de presidentes. Com a elevação do
Angüera a símbolo musical das Missões o regional é enfatizado e o passado
missioneiro passa a compor o presente de São Borja, identificando-se a valores
regionais. Para Marshall Sahlins, em Ilhas da História:
As pessoas, enquanto responsáveis por suas próprias ações, realmente
se tornam autoras de seus próprios conceitos, isto é, tomam a
responsabilidade pelo que sua própria cultura possa ter feito com elas.
Porque se sempre um passado no presente, um sistema a priori de
interpretação (...): a inflexão empírica específica de significados dada a
conceitos culturais quando estes são realizados como projetos pessoais.
(Sahlins:1999,189).
Ao discutir a interpenetração do passado no presente, pensando a cultura
como a organização da situação atual em termos do passado, ou seja, que os
sentidos e referências do presente são não apenas buscados no passado, mas
tamm norteiam a interpretação dos eventos e das posturas pessoais e dos
grupos, o autor me leva a perceber nos Angüeras uma busca do regional para dar
sentido a suas ações, em um passado da região considerado enaltecedor na
procura de uma solução de continuidade entre o passado missioneiro e o grupo,
sendo esta solução enfatizada como artístico-musical, isenta de valorações
políticas e econômicas, remetendo às origens, aos ancestrais missioneiros.
Bernardo Lewgoy, na tese de doutorado Os espíritos e as letras: um estudo
antropológico sobre cultura escrita e oralidade no espiritismo kardecista (USP,
2000), ao analisar a biografia de Chico Xavier, refere-se à questão da atualização
do mito, na já ressaltada perspectiva de Lévi-Strauss da anulação temporal:
5
Getúlio Vargas e João Goulart eram naturais de São Borja, bem como Leonel Brizola e os restos
mortais dos três políticos estão no cemitério da cidade. Em termos de turismo São Borja, conforme
mencionei em outros momentos, não vem sendo visitada como local de Missões e o projeto
239
239
A sincronicidade e atualidade do mito esno trabalho de anulação da
diferença presente/passado que desliga o ritmo da narrativa do tempo
ordinário, operação por meio da qual o presente atual torna-se
desdobramento de um presente anterior. (Lewgoy: 2000, 160).
Penso que entre os Angüeras há um mito de origem que é a própria
narrativa citada, com suas adaptações às necessidades do grupo criação de um
ícone musical missioneiro de quem os próprios Angüeras se consideram
herdeiros artísticos. Nesta atualização do mito uma transformação importante
nos versos finais da estrofe do Generoso, pois na versão de Simões Lopes Neto
Generoso gosta de dançar com as moças de paletó.
Essa é uma referência ao trajar das moças que, no século XIX, durante o
período farroupilha usavam um conjunto de saia e casaquinho, segundo Antonio
Augusto Fagundes em Indumentária Gaúcha (1992: 21). A parte superior deste
traje era também designada paletó, conforme me informou Jaime Alves Bohrer
(Anotações de campo Fazenda do Irapuá, abril de 1995). Não é o Generoso que
usa o paletó nos bailes, como contam Os Angüeras equivocadamente no seu
encarte, pois o traje masculino preponderante desta época se constitui em chiripá
e túnica militar, conforme Antonio Augusto Fagundes em Indumentária gaúcha
(1992: 21).
Porém, a modificação nos versos não é um equívoco desinteressado, ao
contrário, denota a vontade de representar o Generoso como um dançador, cantor
da região das Missões, cujo espírito retorna bem trajado, representado como
branco e não em traje de índio (nu) ou missioneiro. Ocorre assim a atualização do
mito, aproximando o passado do presente, que tratará de anular contradições
referentes à figura do índio que se dá em consonância à aceitação de uma
ideologia - a ideologia regionalista, num trabalho que designo como de depuração
da memória missioneira, (partindo da limpeza da narrativa e de sua
reconstrução), havendo uma adaptação à ideologia regionalista de Simões
expressa na narrativa, pelo grupo. Michel Pollak em Memória, esquecimento e
SEBRAE Rota das Missões também não o contempla, porque na divisão geográfica do estado o
município não é considerado como região missioneira, mas como fronteira oeste.
240
240
silêncio (1989: 9) caracteriza o processo de elaboração da memória como um
processo coletivo e seletivo, objetivando o fortalecimento da coesão do grupo.
Os Angüeras atuam de diversas formas, nesta perspectiva. Não é apenas a
narrativa tradicional citada que faz parte desse processo seletivo, também são
utilizados neste sentido as peças teatrais, as músicas e poesias de temática
regional, conforme referiu Telmo de Lima Freitas durante o depoimento que me
concedeu, ao mencionar uma das apresentações de teatro do grupo de São Borja
em Porto Alegre. Entre Os Angüeras o processo de operação da memória coletiva
é explícito e se tanto através de suas atividades artísticas, ressaltando os
valores regionais de honra, hospitalidade, cordialidade, quanto da preocupação
em preservar o material via organização de um museu, guardando objetos de um
passado pecuário glorioso da vida do gaúcho, alguns desaparecidos. Nesta
operação consciente do grupo ainda uma outra instância a ser analisada
que é
a do festival da Barranca, em que se compartilham as questões regionais, numa
clara aceitação da ideologia regionalista, em conformidade com as colocações de
Oliven em A parte e o todo: a diversidade cultural do Brasil-nação (1992: 21),
desta vez em um espaço missioneiro, como palco de disseminação da ideologia
via imaginário compartilhado pelos sujeitos barranqueiros e a forma como o
passado missioneiro é atualizado pelo grupo no Festival da Barranca.
1.2 - Abre o povo que o bagual é novo: o festival da Barranca
Diversamente das demais informações apresentadas ao longo do presente
trabalho, que foram construídas a partir de trabalhos de campo baseados na
dialética entre observação e objetivação participante e por algumas entrevistas e
depoimentos, a análise que passo a apresentar sobre o festival da Barranca foi
construída a partir das consulta aos arquivos do IGTF (Instituto Gaúcho de
Tradição e Folclore) e do Banco de Dados sobre Cultura Gaúcha coordenado pelo
professor Ruben George Oliven no Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS/UFRGS), onde
encontrei uma série significativa de reportagens de jornais noticiando sucessivas
241
241
Barrancas em São Borja, bem como uma etnografia da Barranca efetuada em
1985, por Leo Voigt.
A ausência de minhas observações de campo com relação ao Festival da
Barranca se deve à irredutível proibição da participação feminina por parte de
seus organizadores. Assim, tentando complementar os dados encontrados,
conversei com os barranqueiros Telmo de Lima Freitas e Eraci Rocha músicos
participantes de vários festivais nativistas e de algumas barrancas e com José
Bicca, também músico e atual coordenador dos Angüeras.
As reportagens jornalísticas
6
(em sua maioria, do jornal Correio do Povo, do
Diário do Sul de Porto Alegre e do jornal de São Borja) mencionam a existência de
um festival fechado em São Borja promovido anualmente pelos Angüeras na
semana santa (de quinta a domingo) de que participam homens. Enfatizam o
machismo, em virtude da exclusão feminina do festival, as farras e bebedeiras
destacando o alto consumo alcoólico e relatam os vencedores do troféu Tio
Manduca oferecido à melhor composição. As reportagens também destacam a
heterogeneidade dos participantes: Entre outros eram advogados, pecuaristas,
bancários, agricultores, jornalistas, trabalhadores rurais, políticos, músicos.
Tradicionalistas e seus críticos, rudes campeiros, ginetes e jovens exibindo
brincos. (Diário do Sul 24/04/1987). Para Telmo de Lima Freitas:
- Então a data que eles fazem geralmente o festival que foi o que eu resolvi a não ir mais
freqüentemente, porque é quinta-feira santa, sexta-feira santa e eles não mudaram, sempre a
mesma coisa, sábado e domingo encerra. Sábado eles dão o tema da música. É aí tem o
julgamento escolhem o grupo de jurados e tu vais fazer a tua apresentação, quer dizer que o
tema tu vai desenvolver, a letra, música em cima do tema que eles te deram. Na época que eu
participei foi linha de mão o tema, Inclusive Linha da Vida, esta música eu gravei agora neste
meu último CD.
6
Alguns títulos: Pescador e o irmão do rio vence o 5º festival da Barranca (1976), Relato de um
misterioso festival de arte nativa gaúcha em São Borja (1978), Segundo relato do misterioso
Festival da Barranca (1979), À margem de um rio em São Borja está acontecendo o 8º festival da
Barranca(1979),Onde estão nossas raízes? (1982), Música e poesia nas barrancas do
Uruguai(1982), Abre o povo que o bagual é novo(1982); Festival da Barranca aponta os
vencedores(1982); Barranca festeja os 300 anos de São Borja(1982), Festival da Barranca: este
ano com festa na praça (1982), Festival da Barranca será na beira do rio Uruguai (1983), A
Barranca mantém a tradição (1983), Conheça a Barranca, o mais autêntico dos festivais gaúchos
(1983), Sons do comício de espíritos (1987), Elogio afetivo ao macho na Barranca (1987).
Além do festival da Barranca, os Angüeras desenvolvem suas atividades e encontros
semanalmente, quando sábados à noite se reúnem na sua sede social para os jantares de
confraternização, segundo as informações de Miguel Bicca e José Bicca.
242
242
Telmo destaca a parte musical do festival, em que surgem as parcerias
mais inusitadas. Menciona também o tema que a cada ano se modifica, cuja
peculiaridade na Barranca é o processo de criação que deve ocorrer em 24 horas.
Para Eraci Rocha,
o festival da Barranca surgiu a partir de uma turma de homens
que se reunia para fazer pescaria, sendo a seguir ampliado para convidados. A
característica preponderante, segundo Eraci, é o fato de o festival se constituir em
um momento de confraternização sem senhoria e hierarquia como, por exemplo,
na ocasião em que o então governador do estado Olívio Dutra participou do
evento, em que todos o chamavam apenas de Olívio e não de governador. (Diário
de Campo 2).
A Barranca é enfatizada como um festival musical diferente em comparação
aos demais festivais musicais do Rio Grande do Sul que são abertos ao público e
que existem em função do mesmo. Na Barranca essa questão se inverte, pois os
próprios poetas e músicos são o público. É um festival apenas para iniciados no
regionalismo, escolhidos pelos Angüeras. Rosangela de Araújo na dissertação de
mestrado Sob o signo da canção: uma análise de festivais nativistas do Rio
Grande do Sul PPGAS/UFRGS (1987: 37) percebe a Barranca por seus
caracteres de exclusão como um festival sui generis e misterioso, cujas
peculiaridades impõem uma associação com comportamentos sexuais de
adolescentes masculinos no campo, especialmente em área de pastoreio.
O nome do festival é uma das dualidades que caracteriza a Barranca.
Conforme Araújo (1987: 34) este foi o segundo festival de música nativista criado
no estado em 1972, no ano seguinte à criação da Califórnia da Canção em
Uruguaiana e que o insere, com relação aos demais festivais, como um espaço
privilegiado da mística do regionalismo. A etnografia de Léo Voigt efetua uma
descrição da Barranca em um cenário bastante rústico de um pesqueiro a beira do
rio Uruguai, destacando a pluralidade de atividades que ocorrem no
acampamento, ao contrário da visão jornalística que lhe confere mais destaque ao
concurso musical. Segundo Voigt este é o elemento aglutinador do festival:
Será a dinâmica interna o fato aglutinador da diversidade de
manifestações e esta é a característica fundamental que diferencia a
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243
barranca dos outros festivais do Estado. Isto é, não será para competir
que se reúnem, mas competem ao se reunir. E isso é referendado pela
história da barranca. (Voigt:1985? 2).
A peculiaridade do competem ao se reunir do festival pontua o concurso
como mais uma das atividades dessa reunião masculina o que me leva a pensá-
la não só na sincronia de suas atividades, mas em sua diacronia, uma vez que, as
Barrancas são diferentes e delas não participam sempre as mesmas pessoas, os
temas se sucedem e inspiram novas composições e parcerias.
Para José Bicca
7
, atual coordenador dos Angüeras, trinta e dois anos após
a primeira edição do festival e com o lançamento em 2003 do cd com as trinta
canções vencedoras das Barrancas, se pode pensar na história do festival e
ressaltar pelo menos dois momentos: o inicial, com a presença e influência de
Aparicio da Silva Rillo, o poeta idealizador dos Angüeras que compôs, juntamente
com Bicca, o Canto Hino que se transformou no hino do grupo e cujo refrão é
riualmente entoado na abertura de cada Barranca e, num segundo momento,
após a morte de Rillo ocorrida em 1996, quando ele passa a assumir a
coordenação do grupo e da Barranca. Para Telmo de Lima Freitas:
- Eu acho que o festival da Barranca é um laboratório musical, é um laboratório onde tu te inspira.
Até tu podes mexer com coisas que nunca tu despertou dentro de ti porque quantos, eu falei no
Vilela, o Vilela tinha uma veia poética, mas não tinha despertado essa veia poética e lá no
Angüera foi a forma dele e de muitos outros, até eu mesmo uma forma de tu te sentir capaz de
fazer uma música por encomenda o que não é fácil.
Sim, porque ele vai mexer com uma coisa
que nem tu mesmo ainda mexeu, tu nem sabes que tu tens esse potencial e quando tu menos
espera tu faz. eu comecei a fazer trabalhando madeira, nem sei se foi lá, com um galhinho,
outros faziam cerâmica com barro do rio Uruguai que é um tipo dum barro preto, uma argila. Eu
pegava um galhinho que até hoje eu pego e isso te motiva, eu não sei se foi de lá ou se eu já fazia
antes, mas ajuda bastante. faz tu descobrir coisas que tu tens. Quantas coisas nós temos que não
descobrimos ainda(Fita K7 1 B).
Segundo Telmo, é o caráter artístico e o desenvolvimento da subjetividade
dos presentes identificados com a natureza, com a simplicidade do mundo rural o
que predomina no festival, em que um clima misto de festa e de excitação pelo
reencontro com velhos amigos ou encontro que pode ser musical ou de outras
7
Entrevistei José Bicca na sua residência em São Borja em 13/09/2003. A entrevistas de Eraci
Rocha ocorreu em 30/10/2002 na sede do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore, quando era seu
presidente. A de Telmo de Lima Freitas ocorreu na sua residência em Cachoeirinha em
19/07/2001.
244
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descobertas. Na entrevista que me concedeu Telmo fez questão de desmontar
alguns mitos acerca da Barranca como as bebedeiras, o próprio nome do festival,
que apresenta uma certa dualidade, conforme ressalta ao explicar o nome
Barranca:
- Porque geralmente faziam numa Barranca, é na beira do rio. O rio Uruguai do lado de cá,
lamentavelmente, na Argentina é difícil conseguir um local para o festival, porque é mato, eles
preservam a fauna na Argentina. Então do lado de cá cada fazendeiro que faz fundo com o rio
Uruguai tem um despraiado muito bonito e prá acampar no barranco, por isso que chama de
festival da barranca (Fita K7 1 B).
O nome barranca no linguajar gauchesco é também associado ao
popularizado termo barranquear que segundo Zeno Cardoso Nunes (1993: 58) e
que popularmente corresponde a uma pratica zoofílica (especialmente com
ovelhas) dos meninos e adolescentes da zona rural da campanha no Rio Grande
do sul. Neste sentido, perguntei ao Telmo sobre uma possível relação entre a
designação do Festival da Barranca e o termo barranquear:
- É diferente. O Uruguai não tem condições de barranquear pois se tu vai barranquear te afunda
na areia, (risos) ..(Fita K7 1 B).
O tom jocoso da resposta demonstra que uma questão fundamental para se
entender a Barranca é a das dualidades presentes no festival, em vários
aspectos: no que se refere a lenda (presença do Generoso e do Angüera), do
próprio nome (a Barranca) que apresenta esta conotação sexual no linguajar
gauchesco, além da própria dinâmica às avessas do Festival, que segundo a
etnografia de Voigt não será para competir que se reúnem, mas competem ao se
reunir .
Essas questões apontam para uma forma utilizada pelos participantes dos
Angüeras e das Barrancas na organização e classificação do festival em suas
representações em que o estabelecimento de relações entre o passado
missioneiro e o presente, através do recebimento da narrativa tradicional e da
forma como compõem essas contradições na recepção da fabulação mítica,
com a produção de um interdiscurso, Na Barranca, percebo a recepção do texto
mítico nos momentos solenes, de ritualização, como demonstra a etnografia de
245
245
Voigt, a fala de Telmo sobre o conhecimento da narrativa do, Angüera, pelos
participantes do festival e a descrição da reportagem Comício de Espíritos do
jornal Correio do Povo:
A seguir os Angüeras, na pessoa do Cacau Rillo, fizeram a abertura
solene do festival: Em nome dos Angüeras declaro aberto o XII Festival
da Barranca, e vão todos a merda! Convidaram-nos a entoar em o
Generoso (canção folclórica de origem desconhecida, assumida como
hino dos Angüeras) que possui a seguinte letra:
Eu me chamo Generoso
morador de Pirapó
gosto de dançar com as moças
nos bailes de paletó.
E o espelho largo do rio Uruguai mais uma vez refletirá a imagem, por
vezes solene de homens que, de chapéu na mão entoarão versos do
Canto à Angüera - canção de Aparício Silva Rillo e de José Bicca,
evocando a lenda do índio(...). (Correio do Povo 16-04-87).
Ainda, segundo Telmo de Lima Freitas:
- Ah, sim. Nessas reuniões de poetas, de gente que fazia música, gente interessada em literatura,
então geralmente, eu acho que quase todos que participavam desse grupo no começo tinham
conhecimento do Angüera, do que fazia o Angüera, quando é que ele aparecia. E outra coisa que
no decorrer dos festivais e não só nos festivais, nos galpões, hoje, ainda, tu chegas num galpão tu
vês as histórias da assombração não sei o quê, da árvore que se mexe, da árvore não sei o que
mais.(Fita K7 1 B)..
Analisando o relato da abertura do festival, na perspectiva de Claude
Riviére em Ritos Profanos (1996: 56), penso que esta cerimônia produz, como
significação de caráter coletivo, uma forte carga afetiva, entre os homens iniciados
participantes (somente os convidados dos Angüeras ao Festival) cuja simbologia
relaciona presente e passado na evocação do Angüera, personificado no
Generoso, como mbolo musical das Missões, de quem os barranqueiros se
consideram herdeiros. A ação simbólica da evocação, somada ao tom jocoso do
coordenador do rito, se funde construindo um estado de communitas existencial
(Turner: 1974, 169) buscado no espírito do Generoso e celebrado na sua
presença imaginária.
A partir da recriação da narrativa tradicional do Angüera entre os Angüeras
efetuada no festival, a Barranca adquire uma conotação de um espaço em que se
revive o passado missioneiro no presente, através da recepção da lenda do
Angüera, via atuação de um imaginário regional, onde convidados podem ficar à
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246
vontade, longe da presença feminina embriagando-se na beira do Rio Uruguai.
Logo, cabe refletir sobre a forma de veiculação deste imaginário que é excludente
e que se constitui em comemoração do passado musical das Missões, e em que a
questão da presença indígena é enfocada por Telmo de Lima Freitas de forma
similar à apresentada por Simões Lopes Neto na narrativa: a alusão indígena
seria o nome do Angüera, em espírito estavam os índios (fita K7 1B). Para Telmo
a dicotomia Angüera/Generoso no festival é assim descrita:
- Houve uma divisão e até quase o esquecimento do Generoso. Porque Generoso até pouco falam
no festival, é o Angüera ele pode ser assim usado num poema, numa música, mas no festival não
se fala: ó tem o festival do Generoso, aonde é isso? E outra coisa, não é todos que sabem quem é
o Generoso, qual é o significado do Generoso. .(Fita K7 1 B)
A exclusão a que me referi é a da figura do índio missioneiro verossímil e a
celebração da figura do macho no festival
8
, em que é simbolicamente aceitável
abrir solenemente o festival, mandando todos a merda e, em seguida, invocar a
presença do Generoso. na Barranca, através da invocação espiritual ao índio,
uma busca dos sons das Missões, embora a música não seja Barroca, como nos
povoados, mas seja a música gauchesca que se produz no espaço missioneiro em
um pesqueiro de São Borja, assim se configurando em herança das Missões.
A ausência do índio em um festival que supostamente o homenageia é
espiritual e se resolve simbolicamente no imaginário dos participantes, na
invocação da inspiração musical que o Angüera possa lhes proporcionar, na figura
de Generoso, na criação musical do concurso que lá ocorre. E como refere Sérgio
Jacaré (jornalista e poeta barranqueiro). Todos eles estão na Barranca
participando avidamente de mais um Comício de Espíritos. A expressão é
conhecida por Eraci Rocha, que a interpretou como: É o estado de espírito das
pessoas. O artista sai de si para compor a todo o momento, tudo favorece para
que tu viajes, para que as pessoas que lá estão todas em alfa. (Diário de Campo
2).
8
Há no festival um elemento jocoso, as brincadeiras consideradas na reportagem Elogio afetivo ao
macho na Barranca: Estas são constantes, por vezes grosseiras e chulas, mas contraditoriamente
afetivas. Características de uma cultura tipicamente masculina com traços interiroranos e rurais.
(Diário do Sul 24/04/1987).
247
247
Geoges Duby, em O Domingo de Bouvines: 27 de julho de 1214, se propõe
a estudar o destino de uma lembrança no seio de um conjunto de representações
mentais que não pára de se modificar (Duby: 1993, 20). Neste mesmo sentido,
tentando entender esta relação estabelecida com o passado missioneiro no
presente, é possível referir que a narrativa O Angüera é vivida e ritualizada como
um mito, sendo representada e significada em sua conotação musical pelos
Angüeras e pelos participantes do Festival da Barranca. O destino dessa
lembrança não se restringe apenas a evocação do índio Generoso na Barranca
através da evocação do Angüera, ele também se espalha musicalmente por todo o
Rio Grande do Sul através dos festivais nativistas e da própria produção musical
dos Angüeras sobre a figura do Generoso, bem como através da menção à
música missioneira analisada anteriormente como contraponto musical regional
que assinala a força das Missões enquanto temática.
O Angüera/Generoso apropriado pelos Angüeras é enfatizado por sua
musicalidade de espírito brincalhão, como destacaram Telmo de Lima Freitas e
José Bicca, sendo o pertencimento ao passado missioneiro gerado, construído e
vivido, caracterizando-se pela liberdade de conceber o pertencimento similarmente
ao destacado por Arlei Damo em Futebol e identidade social (2002: 35) ao se
referir ao pertencimento clubístico em relação à forma como cada torcedor
vivencia o seu pertencimento.
O processo de seleção da mensagem da narrativa tradicional O Angüera
efetuado pelos Angüeras, numa relação de comemoração do passado missioneiro,
através da exaltação performática do índio Generoso por sua musicalidade,
implica a apologização da figura do bom selvagem por seus dotes musicais,
negando suas demais características expressas na narrativa. A memória coletiva
produzida, que tem por base a lenda do Angüera, corresponde, em certo sentido,
conforme se refere Régine Robin em La mémoire saturée (2003: 17), ao discurso
produzido pelos Angüeras para referendar sua atuação como grupo folclórico, cuja
exaltação do Generoso se a partir dos interesses da musicalidade regional do
grupo que o escolheu como símbolo e que leva seu nome.
248
248
No entanto, de forma correlata à participação masculina dos músicos e
convidados iniciados no Festival da Barranca a ritualização do mito, é relativa a
relação de pertença e identificação que individualmente cada um estabelece com
o passado missioneiro e demais momentos na sua construção individual,
demonstrando que comemorar este passado se inscreve na auto-celebração de
cada um dos homens participantes. Uma festa de identidades, como se refere
Oliven, ao analisar a construção social das identidades no Rio Grande do Sul,
analisando o encerramento do festival Musicanto: Se me perguntarem o que as
pessoas celebram eu diria que elas celebram a si mesmas, individualmente, em
grupos, ou enquanto participantes de um festival (1992; 106). A Barranca é uma
festa de celebração de cada um dos barranqueiros via invocação do Generoso.
2- A lenda da Casa de Mbororé
A Casa de Mbororé
Dentro do mato grosso, mato velho e crescido, sem plantas pequenas dentro, aí, só uma luz
pouca, tirante a verde e a cinzento; e nenhuma árvore faz sombra, porque a ramaria de todas faz
peneira por onde passa o sol, que nunca enxerga o chão...
Dentro desse mato, no mais tupido dele, uma lombada redonda, com uma casca de carumbé;
aí, em cima dela, uma casa de pedra branca, branca como se encaliçada, e sem porta em
nenhum lado nem janela em nenhuma altura.
Dentro da casa branca as salas estão lastradas de barras de ouro e barras de prata, do peso que é
preciso dois homens para mover cada uma; e todas as juntas das pilhas estão tomadas de pedras
finas...
Por cima de tudo estão, em montes, tocheiros de ouro maciço e cálices e resplendores de santos;
e salvas de prata e turíbulos e cajados.
Nos corredores, como prontos para içar para as cangalhas das mulas de carga, prontos, com suas
alças, estão em lotes de surrões, socados de moedas de ouro, separadas em porções, metidas em
bexiga de rês...
O rondador da casa branca dia e noite anda em redor dela; é um índio velho, cacique que foi,
Mbororé, de nome, amigo dos santos padres das Sete Missões da serra que vertentes para o
Uruguai.
Os padres foram tocados pra longe, levando a roupa do corpo... mas a casa branca já estava
feita, sem portas nem janelas... e Mbororé, que sabia de tudo e era cacique, de noite, e precatado,
com os seus guerreiros, carregou de todos os lugares para aquele as arrobas amarelas e as
arrobas brancas, que não valiam a caça e a fruta do mato e a água fresca, e pelas quais os
brancos de longe matavam os nascidos aqui, e matavam-se uns aos outros.
Mbororé desprezava essas arrobas; mas como era amigo dos santos padres das Sete Missões,
guardou tudo e espera por eles, rondando a casa branca, sem portas nem janelas. Ronda e
espera.
249
249
A narrativa tradicional a Casa de Mbororé da obra Lendas do Sul de
Simões Lopes Neto (2000: [1913], 79)
9
apresenta elementos relacionados aos
referenciais guaranis expressos na narrativa, na voz do índio Mbororé, com alguns
valores do seu mundo primitivo. Isto também ocorre no que concerne aos
referenciais expressos em elementos que relaciono à estruturação das identidades
nas Missões. Somado, às questões de identidades guaranis e missioneiras, a
veiculação destes referenciais, após a desestruturação das Missões, tamm
mostrados pela lenda.
Casa de Mbororé conta à história dos tesouros dos Sete Povos das
Missões cuidados por um velho índio - Mbororé - após a desestruturação destes
povoados pela expulsão dos padres, mas permanência de seus bens. Neste
sentido, é efetuada a descrição da casa de Mbororé, dos tesouros que lá estão
escondidos, do índio, das Missões e suas perspectivas, do caráter da ocupação
missioneira em seus valores legados na pessoa do próprio índio, contrapostos aos
seus valores guaranis tamm expressos na atuação e concepções de Mbororé.
Assim, por esses elementos, a narrativa me incita a pensar acerca da existência
de identidades missioneiras em sua formação, caracterização, permanência e
apropriação na atualidade na região das Missões e fora dela.
O cenário descrito no princípio da narrativa configura um universo natural -
o mato fechado - composto por sombras, fornecendo a impenetrabilidade como
característica preponderante. O vocábulo dentro, que dá inicio aos três primeiros
parágrafos, confirma, contraditoriamente (já que dentro idéia de inclusão), o
isolamento da paisagem onde nem sequer o sol consegue penetrar o chão.
No segundo momento, a narrativa passa à descrição do local onde se situa
uma casa que está localizada sobre uma lombada redonda, no mais tupido dele.
9
Elsa Eleonor Pasteknik, em Mitos vivientes de Misiones (1977: 101-102) menciona um dado
importante sobre a lenda. Segundo seu informante (Juan Taraska), Mbororé não seria uma casa
apenas, mas um povoado escondido no meio da selva, coberto de ouro, onde ainda vivem os
índios e os jesuítas como nas Missões. Segundo a tradição as pessoas que em busca de riquezas
o avistam, ao retornarem, não conseguem mais encontra-lo (Brum: 1998, 153-154). A publicação
de Osório Santana Figueiredo Lendas, Causos e Assombrações de 2002 traz uma série de
histórias sobre tesouros recolhidas pelo autor conhecido historiador do município de São Gabriel
- na região. A partir do causo O buraco dos Jesuítas (2002: 118-224) é possível perceber a
influência da experiência missioneira nesta região do estado que a ele se relaciona historicamente
pela morte de Sepé Tiaraju (7/02/1756) ocorrida na Batalha de Caiboaté
250
250
Lombada para Nunes (1993: 271) é o mesmo que lomba, ou seja, uma pequena
elevação no terreno. Tupido para este mesmo autor (1993: 513), significa
compacto, espesso. O elevado do terreno é redondo, possuindo uma casca de
carumbé, onde se situa a casa. Carumé para o autor um jabuti macho, bem
desenvolvido (1993: 99). É, assim, sobre este casco que foi construída a estranha
casa.
A descrição do cenário se completa com a sua caracterização em seus
aspectos exteriores e interiores, referindo-se, após, aos tesouros nela contidos. A
casa, em contraste com o restante do cenário, espesso e escuro, é de pedra
branca, branca como se encaliçada. A metáfora expressa no termo encaliçada
quer acentuar a claridade da construção, como se ela tivesse sido caiada (o
mesmo que encaliçada). A casa é redonda, sem portas ou janelas, mas possui em
seu interior salas e corredor onde um enorme tesouro em ouro, prata e pedras,
cuja descrição menciona objetos sacros utilizados nos rituais católicos: tocheiros,
cálices, resplendores, salvas, turíbulos, cajados e outras preciosidades como as
moedas, as barras de ouro e prata e as pedras, enfim um tesouro valioso
representado como refratário ao tempo transcorrido.
O cenário fechado, isolado, circular, impenetrável, temeroso e valioso se
evidencia, ainda, pelos termos denotativos da paisagem escura, do interior do
mato, na forma da casa sobre o casco do jabuti. Um cenário sem comunicação
com o exterior. Assemelha-se, na sua incomunicabilidade uterina, a camadas
circulares blindadas e superpostas que nomeio em ordem inversa a fim de elucidar
a proteção representada: tesouros imersos em salas e corredores; circundados
pela casa, construída na lombada; envolta no mais tupido do mato.
Não bastando toda esta proteção, um índio que ronda a casa, Mbororé,
que está entre essa e o mato. A incomunicabilidade entre os elementos do cenário
indica que nem o índio, que cuida dos tesouros, tem acesso a eles, pois as salas
lastradas de tesouros da casa não tem abertura para o exterior. O índio apenas a
ronda os mesmos, que representam a riqueza dos padres nas Missões.
Segundo a voz do índio a sua riqueza não se representa por estes valores
materiais. Logo, o fato de Mbororé se encontrar como limite entre os dois
251
251
universos convida a pensar sobre a sua caracterização. O mato é representado
como o universo próprio do índio que se interpõe ao cenário civilizado da riqueza,
que legitima, ao cuidar dos tesouros. Mbororé está entre estes dois mundos
antagônicos relacionados à experiência missioneira. Não é por acaso que a
narrativa se chama Casa de Mbororé. Não que esta seja a morada de um índio,
como o título sugere, mas como um local com que ele se identifica por fielmente lá
permanecer para cuidar dos tesouros. É a casa, em suas riquezas, que mantém
vivo o índio, guardião da memória das Missões.
No que concerne a esta forma peculiar de preservar a memória, é
necessário salientar que esta impenetrabilidade simboliza o próprio mistério da
experiência missioneira, que é tamm representada desta forma em imeras
fontes cartoriais, literárias e etnográficas, em que as Missões são representadas
em seu mistério.
Sobre a figura do guardião Mbororé, cabe referir que este é um termo
presente na historiografia missioneira. É o nome do local da batalha que expulsou
os bandeirantes paulistas em definitivo das Missões do Tape, durante a primeira
fase missioneira (Jaeger s/d, p.53)
10
. Para Aurélio Porto na nota 122 (v. III, p.
180): Mbororé, pequeno arroio da margem direita do Uruguai, é hoje conhecido,
na cartografia argentina, pelo designativo de arroio Nonje. No texto de Olmiro
Hartmam (1985: 11) referência ao termo como: Bororé: Afluente da margem
esquerda do Butuí, Itaqui. Mbororé = é uma planta. Mario Simon aborda a Batalha
de Mbororé:
Os encontros armados se deram durante o mês de março de 1641, e
alguns autores referem-se a destruição total da trágica bandeira, cujos
restos mínimos só chegaram de volta a São Paulo um ano e meio
depois. Nem o reforço que outros bandeirantes enviaram sobreviveram.
(Simon:1984, 24).
No entanto, apesar da batalha ter sido ganha pelos índios das reduções, a
mesma não é representada como a Guerra Guaranítica (1754-1756) e a
Revolução Farroupilha (1835-1845), guerras perdidas, mas exaltadas como um
episódio de bravura dos gaúchos. No imaginário, a Batalha de Mbororé está
252
252
esquecida, contrariamente as duas anteriores. Apesar disto o termo Mbororé
permanece ainda sendo referido na atualidade, no universo do gauchismo.
Em Campo Bom, na região de colonização alemã do estado, um CTG
(Centro de Tradições Gaúchas), chamado Mbororé. No tradicionalismo, como
ressaltei, os nomes dos grupos apresentam uma conotação regional, relacionada
ao passado, que passa a adquirir um novo significado no presente. Este é o caso
de integrantes do grupo de danças do CTG Mbororé que não souberam, no XVI
ENART, me precisar seu significado. Este fato remete a apropriação de um
passado cuja significação se perde, havendo um processo de ressignificação do
regional em que se percebe o CTG Mbororé como um espaço, um lugar de
tradicionalismo, não remetendo às Missões como se poderia esperar mas a
região de colonização alemã. Trata-se de um lugar que, como grupo de danças,
autoriza os jovens a participarem do concurso tradicionalista não importando,
assim, quem foi Mbororé.
Segundo Maria Eunice Maciel (1994: 189), mesmo os tradicionalistas,
algumas vezes, não sabem os significados dos nomes regionais, no entanto,
esses nomes indicam autenticidade e assinalam com mais força um
pertencimento. O termo permanece e se recria um novo significado para ele.
Mbororé índio missioneiro se torna CTG da região de colonização alemã do
estado. Vale assim o apelo regional do nome que remonta a coisas antigas,
nativas e ininteligíveis para os próprios imigrantes alemães, mas cuja apropriação
os legitima como gaúchos, identificando-os como tradicionalistas.
A perda da memória de uma batalha vencida e a ressignificação do termo
Mbororé fora da região das Missões indica a sua não utilização como memória
missioneira fora da região. E mesmo nas Missões o termo, ao ser relativo ao índio
contribui para o esquecimento da Batalha de Mbororé, em cujo provável local não
encontrei monumentos ou outras menções, havendo um deslocamento de sentido
de Mbororé como local espacial da batalha que passa a ser identificado como
índio.
10
Aurélio Porto também faz referência a este mesmo episódio em História das Missões Orientais
do Uruguai, v. IV. 1954, p.13.
253
253
Nos textos de Simões Lopes Neto, Mbororé aparece como um importante
aliado dos padres. Na lenda do Angüera (2000: [1913], 82) E foi padrinho
Mbororé que era cacique e amigo, muito dos padres. Na Casa de Mbororé, ele
é tamm um cacique (1991: 80): é um índio velho, cacique que foi, Mbororé, de
nome, amigo dos santos padres das Sete Missões da Serra que vertentes para
o Uruguai. Mais adiante, designando sua autoridade e intimidade com os padres:
Mbororé, que sabia de tudo e era cacique.
A relação entre os dois episódios missioneiros em terras gaúchas
apresentada nas narrativas tradicionais da obra de Simões Lopes Neto foi também
percebida durante os trabalhos de campo no município de São Nicolau, em São
João Batista, São Lourenço, São Miguel e São Borja demonstrando a existência
de uma memória relativa aos tesouros e túneis/subterrâneos das Missões
presente na atualidade. O elemento identificador de ambas as fases missioneiras
em solo sulino se expressa através da representação de um elo entre as primeiras
Missões: a vitória sobre os paulistas; a construção dos Sete Povos, às margens do
rio Uruguai - local próximo ao citado arroio Mbororé, com o que o índio tamm
corroborou; a desestruturação dos Sete povoados e a salvação e guarda dos seus
tesouros. O elo entre todos estes episódios é o próprio termo Mbororé.
Mbororé arroio é designativo de espaço missioneiro, perto do qual foram
construídos os Sete Povos. Esse também se constitui em território missioneiro
onde atuou Mbororé que é assim não um índio, mas alguém identificado com a
causa missioneira e por quem continua a existir para preservar sua memória,
mesmo ao tentar escondê-la, guardando seus tesouros. Enquanto nome de um
cacique índio ilustre, na narrativa ele é a própria representação das identidades
missioneiras, em suas latentes contradições e características, que parecem
tangenciar o universo do guarani originário e o jesuítico-hispânico, que nas
Missões se interagem. Conforme Meliá:
La reducción, como nuevo producto espacial, producía un nuevo modo
de ser, es decir, se orientaba a crear cultura en todos los órdenes:
politico, economico y religioso. Y precisamente porque pretendia
cambios profundos, aprovechaba parte de lo que habia, tomaba la
lengua guarani, por ejemplo, para hacerce entender de cierta manera
254
254
dentro del mismo sistema guarani, y desde lo que era, provocaba la
eclosión de lo que debia ser, pero no era todavia. (Meliá:1978,198).
11
A citação do autor sintetiza a problemática da caracterização das
identidades nas Missões evidenciando, primeiramente, a existência das mesmas
como diferentes dos referenciais guaranis, mas que com eles mantinham íntima
conexão embora tamm relacionadas ao universo jesuítico-hispânico
representado como coordenador desta experiência. um certo consenso entre
os autores em evidenciar nas Missões características dos guaranis e jesuítas,
resultando daí, um esforço teórico dos estudiosos do tema em nomear e descrever
os processos protagonizados por índios e jesuítas como possibilitadores desta
experiência, a partir de categorias estranhas à referida experiência como, por
exemplo, as expressas nos célebres estudos: o Comunismo Cristão (Clóvis
Lugon), Socialismo Missioneiro (Décio Freitas), Modo de Produção Despótico
Comunitário (Juan Garavaglia), Aculturação (Flores), Transculturação (Kern) e
Convergências (Lacouture).
12
Pascale Girard, ao abordar a questão da historiografia missioneira em Les
religieux occidentaux em chine à lépoque moderne; essai danalyse textuelle
comparée (2000: 28), reflete sobre a produção dos diferentes enfoques
ideológicos perceptíveis nos estudos sobre as Missões Jesuíticas na passagem
entre os estudos dos religiosos em relação aos universitários.
Em termos de construção de um entendimento da experiência missioneira
no Rio Grande do Sul, a questão ideológica expressa na utilização destes modelos
teóricos/categorias acima referidas tem como conseqüência uma mitificação da
temática Missões, observada nos escritos destes historiadores que interpretam o
passado a partir de seus interesses presentes, sem levar em conta em suas
11
A redução como um novo produto espacial produzia um novo modo de ser, a dizer, se orientava
a criar cultura em todas as ordens: política, econômica e religiosa. E precisamente porque
pretendia mudanças profundas, aproveitava parte do que havia, tomava a língua guarani, por
exemplo, para fazer-se entender em certa maneira dentro do mesmo sistema guarani, e desde o
que era, provocava a eclosão do que deveria ser, mas não era todavia..
12
As obras destes autores são respectivamente: A república comunista cristã dos guaranis; O
socialismo Missioneiro; Um modo de produção subsidiário: a organização econômica das
comunidades guaranizadas durante os séculos XVII e XVIII na Formação do Alto Peruano-Rio
Platense; Colonialismo e Missões Jesuíticas; Missões: uma história de dominação ou um processo
de transculturação?; Uma teocracia barroca entre os guaranis.
255
255
análises a questão da produção das identidades nas Missões e suas utilizações
em termos dos modelos citados, bem como suas próprias identidades de
produtores destas representações, conforme menciona Girard (2000: 38): a
historiografia missioneira se caracteriza por uma grande subjetividade,
inviabilizando uma história crítica.
Neste sentido, conforme Girard (2000: 50), uma vez que as referências dos
arquivos vêm simplesmente confirmar a crônica do historiador baseada na sua
concepção de trabalho, que apologiza o passado colocando-o a serviço de seus
interesses, penso que uma das vias possíveis para sua compreensão seria a
análise da representação do êxito do contato entre estas duas culturas, enquanto
experiência de integração colonial, coordenada pelos jesuítas que remete à
abordagem das questões identitárias e do seu conhecimento como possibilitador
da efetivação do contato entre diferentes
As Missões são repetitivamente representadas por esta dicotomia
(guarani/jesuítica) de dois mundos compartilhados, onde a imposição do
catolicismo no cenário sacro barroco se converte em referente maior de suas
identidades. Os guaranis comparecem a este universo representacional por um
lado, enquanto animação (se constituindo em fantoches nas mãos dos jesuítas) e,
por outro, como a razão mesma de sua estruturação. Ou seja, em termos de
justificação deste passado, foi a necessidade de integração do guarani ao mundo
colonial que determinou a atuação dos jesuítas.
Um outro aspecto a ser salientado diz respeito a provável utilização da
mensagem dessa narrativa pelos próprios padres jesuítas no passado missioneiro,
já que a mesma é condizente com os seus discursos sobre as Missões. Creio que
a necessidade de salientar essas peculiaridades vividas nas Missões encontra-se
na busca e situação da representação dos elementos que a narrativa expressa e
da possibilidade de haver ocorrido, sobretudo, o aproveitamento de elementos
relacionados ao seu imaginário. Elementos manipulados através de uma
pedagogia jesuítica, conforme ressaltei na dissertação Lendário missioneiro:
pedagogia jesuítica para a integração colonial nos Sete Povos das Missões (Brum:
1998, 176), com o objetivo de manter os guaranis nas Missões, através da criação
256
256
de um imaginário favorável a sua atuação do que decorreram as novas
identidades - identidades missioneiras, mantenedoras da integração, baseada na
formação de mentalidades que podem ter contribuído para a efetivação da
experiência missioneira passada.
Nesta perspectiva, o catolicismo nas Missões adquire importância como
elemento identitário expresso na lenda tanto imaterial como materialmente ao ser
relacionado à riqueza dos tesouros guardados na casa, na presença dos padres
nas Missões, na amizade destes com Mbororé e em sua expulsão. Mas é preciso
salientar a dicotomia destes valores expressos na atuação do índio: a riqueza é
relacionada a um valor cristão que Mbororé despreza (por não entender a
valorização que alcança), mas ela é representada, através dos tesouros, da
presença dos padres nas Missões. É a amizade de Mbororé o que legitima seu
trabalho de carregar os tesouros e cuidá-los após a expulsão dos padres. Este
elemento é apontado na narrativa como o que une os dois universos - guarani e
jesuítico - legitimando a perpetuação da memória desta experiência. Aí está,
segundo a narrativa, a chave para o entendimento da conversão ocorrida nas
Missões: os guaranis construíram as Missões junto com os padres, pois esses
cativaram a amizade/fidelidade do índio, o que se constitui em um valor comum
aos dois universos.
A construção da casa, durante a experiência missioneira, indica a
temeridade dos padres com relação a sua desestruturação e o interesse em
preservar os tesouros missioneiros que conceberam, nos dois aspectos acima
assinalados. O índio percebe este interesse, pois quando os padres são expulsos
ele efetua a tarefa que implicitamente - por fidelidade aos seus amigos - o cacique,
agora um guerreiro imbuído da preservação da herança missioneira, sabia que
deveria executar. Na Casa de Mbororé, a desestruturação dos Sete Povos ocorre
com a expulsão dos padres, não se referindo, a mesma, à Guerra Guaranítica
(1754 - 1756), que é considerada entre outros pelo historiador Moacyr Flores
(1983:148), como marco da desestruturação dos Sete Povos das Missões.
Os jesuítas foram expulsos da América em 1768, (Flores: 1983,148). O fato
da narrativa silenciar sobre a Guerra Guaranítica e se referir a expulsão dos
257
257
jesuítas indica a importância atribuída a sua presença nas Missões e a
impossibilidade de sua manutenção após a expulsão dos mesmos
13
. A narrativa a
explica através da integração do sujeito protagonista à experiência missioneira
expressa na guarda destes valores por Mbororé e na tentativa, nesta perspectiva
de preservação de suas identidades e, assim de uma dupla herança a ser
preservada enquanto memória material e imaterial a fidelidade aos padres e a
guarda dos tesouros.
Mbororé despreza a riqueza que cuida, ao afirmar os valores do seu mundo
natural como superiores a estes, ao relatar o esforço do cacique guerreiro em
levar os tesouros à casa já construída e de cuidá-los e ainda, em sua opinião
sobre os mesmos: que não valiam a caça e a fruta do mato e a água fresca
(Lopes Neto: 2000 [1913], 80). Aparentemente o índio não entende o valor das
arrobas, pois ele, mesmo tendo construído as Missões, não precisa sua
materialização. São símbolos cujo sentido Mbororé não alcançou, ainda que lhes
fossem familiares. Mas não necessidade, segundo a representação, da
compreensão plena desses valores materiais pelo mesmo. Basta que ele fielmente
os guarde porque foram importantes para os jesuítas.
Mesmo que questione o valor dos tesouros, através dos referenciais
identitários guaranis, não deixa de guardá-los, pois ele compreendeu, que melhor
do que os mbolos materiais das Missões é seu sentido e significados imaterial,
espiritual, legados pelos padres por quem, eternamente, vela os tesouros e
espera. Cuidando-os ele justifica o mundo missioneiro a que pertenceu. Mbororé
representa, assim, a vontade da permanência deste mundo através do seu
retorno.
Nesse sentido, é preciso pensar na interpenetração da narrativa por um
mito designado como relacionado ao mundo guarani - o Yvy Marã Ey Mito da
Terra sem Males e condizente tamm com o discurso jesuítico de Sepp da
missão como a terra da promissão. Na Casa de Mbororé, a presença desse mito
cristianizado é mais flagrante: guardou tudo e espera por eles, rondando a casa
13
Pode ainda significar o próprio apoio dos jesuítas a Guerra Guaranítica (1754-6), que apenas
teriam abandonado os povoados missioneiros por ocasião da sua expulsão da América hispânica.
pontuando uma nova fase na vida reducional: sua desintegração.
258
258
branca, sem portas nem janelas. Ronda e espera. A relação efetuada entre a
terra prometida no mito guarani e as Missões ocorre, pois a mesma, apesar de
todas as suas contradições e a descaracterização do ethos guarani que ocasionou
é representada como uma experiência à qual o índio quer retornar. ainda um
outro mito que a permeia. Não se trata de um mito guarani cristianizado desta vez,
mas de um mito
14
relacionado às riquezas do mundo americano. Refiro-me,
especificamente, ao mito do Eldorado que pode ser sinteticamente entendido com
a ilusão da profusão de riquezas que os europeus facilmente encontrariam na
América.
Com relação aos Sete Povos das Missões, as minas de ouro e prata
sugeridas pelo mito do eldorado estão escondidas quer em subterrâneos ou
enterros, configurando-se não apenas a sugestão da existência de tesouros das
Missões guardados por Mbororé, mas na representação dos Sete Povos como
parte integrante do eldorado americano que se atualiza, que segundo a
narrativa, a expulsão dos jesuítas e a desestruturação dos povoados plantaram na
memória coletiva uma aura de mistério e de riqueza expressa em outras lendas,
além da Casa de Mbororé, no Rio Grande do Sul, na Argentina e Paraguai que
tamm mencionam os tesouros missioneiros.
Em um texto supostamente escrito no final do século XIX, logo, anterior ao
de Simões Lopes Neto, o argentino Daniel Granada em Reseña histórico-
descriptiva de antiguas y modernas supersticiones del Rio de la Plata, menciona o
termo Mbororé. Este aparece no Glosário como Mboré, significando na voz
guarani altar, bem
como se referindo a casa encantada das antigas missões
jesuíticas (Granada s/d 485). O autor atribui as razões de seu surgimento nas
imediações das Missões à violenta expulsão dos jesuítas e à existência de
bosques onde, na imaginação tradicional dos habitantes, se encontra a casa
branca sem portas nem janelas onde os jesuítas expulsos isolaram os riquíssimos
tesouros que possuíam (s/d: 122-123).
14
As versões dos mitos citados são as dos textos de Pierre Clastres A fala sagrada: mitos e cantos
sagrados dos índios guaranis (1990: 131) e Héctor Hernán Bruit no artigo Derrota e simulação; os
índios e a conquista da América (1991: 14).
259
259
Granada, tentando desfazer a crença da existência dos tesouros
missioneiros, constrói uma argumentação atribuindo as virtudes jesuíticas da
catequização dos guaranis à significação do verdadeiro tesouro das Missões. Por
outro lado, o autor reforça a tradição dos tesouros: ao enfatizar a obra inigualável
dos jesuítas frente as condições de pobreza dos índios, após o fim das Missões e,
ao mencionar a existência de uma velha senhora missioneira conhecedora do
local onde foram escondidos os tesouros e que morreu guardando esse segredo
(Granad: s/d: 124). A dubiedade das afirmações de Daniel Granada é reforçada
pela folclorista Argentina Elsa Eleonor Pasteknik em Mitos vivientes de Misiones
no capítulo Creencias, supersticiones, leyendas onde menciona Mbororé,
Mboré o Pueblo Mboré:
Los viejos conquistadores hispanos buscaron por muchos años la ciudad
de Eldorado, ciudad donde habian escondido sus tesoros los incas. No
solo Eldorado es símbolo del ideal inalcanzable que puede en ocasiones
visualizarse pero nunca alcanzarse: Mboré, Mbororé o Pueblo
Mboré es para muchos misioneros la ciudad perdida donde podrán
lograr toda clase de riquezas, pues sus muros están cubiertos de oro,
sus campanarios refulgen a la luz del sol y de vez en cuando se oyen
campanadas y cantos de indios que van al trabajo guiados por los
Padres de la Compañía de Jesús. (Pasteknik:1977,149).
15
Assim como na narrativa o Angüera, também imeros momentos
expressos e sobrepostos na Casa de Mbororé, perceptíveis em apropriações que
lhe são posteriores, tais como na produção dos folcloristas gaúchos, argentinos e
paraguaios e nos relatos dos habitantes das Missões sobre enterros de tesouros e
subterrâneos.
16
A Casa de Mbororé ultrapassa o universo missioneiro no Rio
15
Os velhos conquistadores hispanos buscaram por muitos anos a cidade do Eldorado, cidade
onde haviam escondido seus tesouros os incas. Não o Eldorado é símbolo de um ideal que
pode em ocasiões visualizar-se mas não alcançar-se: Mboré, Mbororé o Pueblo Mboré é para
muitos missioneiros a cidade perdida onde poderiam encontrar toda a sorte de riquezas, pois seus
muros estão cobertos de ouro, seus campanários refulgem a luz do sol e de vez em quando se
ouvem badaladas e cantos de índios que vão ao trabalho guiados pelos padres da Companhia de
Jesus.
16
São exemplos de narrativas referentes aos tesouros missioneiros: Salamanca do Jarau e Túneis
das Missões no texto Mitos e Lendas do Rio Grande do Sul de Antonio Augusto Fagundes (1992:
44-4, 51), bem como Pora, Tesoro Escondido e Mala Visión constantes do livro Estructura del
miedo; narrativas folklóricas guaraníticas de Martha Blache, (1991: 82, 96 e 108) que aborda a
significação das narrativas folclóricas no Paraguai. E numa outra perspectiva, como na
apresentada por Pasteknik, a referência da procura desses tesouros, dentro e fora da região
das Missões no Rio Grande do Sul, como as histórias relatadas no livro Lendas, causos e
260
260
Grande do Sul, atingindo outras reduções e regiões demonstrando a existência de
uma memória partilhada entre estes espaços. A presença do vocábulo indica
experiências histórico-culturais num território representado como comum ao
partilhar Mbororé. Mbororé, simbolicamente, permanece guardando os tesouros
das Missões por fidelidade aos santos padres seus amigos, justificando, portanto,
a experiência passada.
Na narrativa o índio espera a volta dos padres e a reconstrução das
Missões. Neste sentido, o apelo a este retorno na lenda e a relação das Missões
com o Yvy Marã Ey significam a aceitação, justificação e desejo de retomada da
experiência missioneira para os guaranis. A narrativa também apresenta
elementos sobre a desestruturação das Missões e suas conseqüências, num
imaginário relacionado, metaforicamente, à crise ou à perda de condições de
formular/reformular identidades, tendo como referente relacional o passado
missioneiro, tanto para os habitantes originários, representados por Mbororé,
como para alguns habitantes atuais dos antigos povoados missioneiros que me
relataram algumas histórias sobre tesouros e túneis da região dos Sete Povos.
2.1 - Os tesouros jesuíticos
Durante os diversos trabalhos de campo que efetuei enquanto a pesquisava
ouvi relatos referentes as riquezas das Missões. Milton que nos recebeu em um
dos almoços, durante o Caminho das Missões, na localidade denominada Esquina
Ezequiel, próxima a pedreira de onde, no passado, foram retirados os blocos de
pedra para a construção da igreja de São Miguel, relatou que até pouco tempo
atrás
havia nesta pedreira a Pedra do Serrote um grande bloco repleto de
marcas de ferramentas, que os índios não conseguiram cortar. Milton me disse
que os matos eram assombrados por um índio-bugre que enganava os cachorros
dos caçadores de tatu, fazendo com que se perdessem à noite. Segundo ele, o
índio-bugre era muito temido na região e, por guardar os tesouros, às vezes
assombrações de Osório Santana Figueiredo (2002) coletadas na região de São Gabriel referentes
ao enterro de riquezas e a um tesouro jesuítico, mencionado na lenda Buraco dos Jesuítas
segundo o autor a história mais antiga do Cerro do Batovi.
261
261
aparecia tamm em pescarias para assustar e confundir os homens que se
aproximavam do mato, normalmente à noite. Contou tamm uma história de
pescaria envolvendo o mesmo bugre:
- Dava um vento e as pessoas ouviam o maior golpe do mundo.... Cada vez mais assustados
foram procurar pela assombração e encontraram uma taquara raspando o disco do finado
Teixerinha. (Diário de campo 3).
As histórias de Milton apontam para a mística da existência de uma
assombração, um índio embrenhado nos matos da região, hoje bastante
desmatada pelas plantações de soja. A presença de um bugre no mato alude a
um imaginário sobre a relação natureza/cultura na região missioneira, onde o índio
é percebido e representado como parte do universo natural, envolto em mistério
(como no caso de Mbororé que se encontra como limite entre os dois mundos).
Nessa atualização da narrativa, a mensagem se mantém, porque, talvez os
verdadeiros tesouros defendidos pelo índio-bugre sejam a terra que lhe fornece
os frutos. Além disso, os breves relatos de Milton apontam para a relação que os
habitantes da região estabelecem com seus habitantes originários os guaranis -
que pejorativamente, designam como bugres. A representação de sua
permanência assustadora nos matos aponta para o índio como alguém que deve
permanecer para além do horizonte, sem possibilidade de composição no
universo representacional do ser missioneiro e de suas identidades, enquanto
diversidade cultural e alteridade, a que concorre como índio romântico ou como
assombração. Sobre os tesouros das Missões, Fagundes em Mitos e lendas do
Rio Grande do Sul, menciona um desdobramento da Lenda da Casa de Mbororé:
Mas os jesuítas nunca mais voltaram. Com o passar dos anos o velho
índio morreu e o tempo foi marcando tudo, deixando as ruínas de
como as cicatrizes de um sonho que acabou.
Acabou? Não. A Casa de Mbororé continua lá num mato nas Missões,
imaculadamente branca cuidada dia e noite pela alma do índio fiel que
ainda espera a volta dos jesuítas.
Às vezes algum mateiro - lenhador ou caçador com ela de repente,
num campestre qualquer. Imediatamente dá-se conta que é a Casa de
Mbororé, cheia de tesouros. Resolve então marcar bem o local para
voltar com ferramentas e abrir a força a casa que não tem porta nem
janela. Guarda bem o lugar na memória pelas árvores tais e tais, pela
direção do sol e coisas assim. Sai, volta com ferramentas, só que nunca
262
262
mais acha de novo a Casa Branca de Mbororé, sem porta e sem janela.
(Fagundes: 2000, 53).
Como na referência de Fagundes, as histórias narradas por Milton
mencionam a existência de tesouros guardados nos matos e da atuação de um
índio-bugre, tentando assustar e despistar o que deles se aproximam. Histórias de
tesouros foram tamm mencionadas em outras ocasiões, tamm durante o
Caminho das Missões. Ao entardecer quando tomávamos mate em Carajazinho.
D. Mina, (Guilhermina Biazi de Matos de 74 anos), mãe de um de nossos
anfitriões se referiu aos cemitérios de São João Batista e a um subterrâneo que
havia na entrada de um deles, no tempo dos escravos, e que a estrada debaixo
da terra o ligava até São Miguel, onde, ainda hoje, ao construírem as casas da
região, não permitem que cavoquem muito para que não encontrem tesouros.
Em São Nicolau, Cleidi (nossa anfitriã da primeira noite no Caminho das
Missões) me relatou que quando ainda era mocinha entrou em um túnel que havia
na adega jesuítica e que foi até o CTG, que o medo a impediu de prosseguir, mas
que sabia que este túnel ia até a igreja de São Miguel. Em São João Batista
fotografei uma figueira com as raízes à mostra exaltada pelo guia como um local
atribuído à busca dos tesouros das Missões. O dono do local onde almoçamos
(um pequeno bolicho de campanha em frente ao sítio de São João Batista) nada
relatou a respeito desses tesouros, mas assinalou a retirada do que entendi como
tesouro das Missões e a venda de pedras seculares da Redução que, segundo
ele, ocorreu até alguns poucos anos atrás.
Nas diversas referências acima mencionadas uma relação entre os
supostos túneis das Missões e os tesouros escondidos, demonstrando a
existência de crenças entrelaçadas, de uma duplicidade das Missões e seus
tesouros, encontrados próximos aos locais missioneiros. Porém, as pessoas não
falam livremente sobre eles, Quando perguntadas relatam alguns desses causos,
ilustrando que a memória oral da região permanece atuante em termos da
ocupação
jesuítica-guarani. As histórias ressaltam a fidelidade indígena aos
padres das Missões. Referências neste mesmo sentido também são aludidas na
etnografia realizadas por Souza (1998: nota 11, 275), que menciona algumas
histórias sobre tesouros escondidos e sobre a Guerra Guaranítica, envolvendo
263
263
jesuítas e seus fantasmas. Além de se referir (1998: 129) à mitologia histórica
missioneira, remetendo à origem de localidades ligadas ao passado missioneiro,
como no caso da cidade de Tupanciretã, também enfatizando a atuação jesuítica.
Em inúmeros momentos do seu texto Fagundes menciona histórias de
tesouros. Refere-se aos túneis das Missões de São Miguel e São Borja, às
imagens missioneiras ocas usadas para guardar pó de ouro escondido pelos
jesuítas, bem como a índios e vultos que os protegem, não nas Missões, mas
em outras regiões do estado. Todas essas tradições são designadas por
ele no
linguajar gauchesco como enterros (Fagundes: 2000, 51). As situações
mencionadas pelo autor como folclore missioneiro encontram eco na região das
Missões, adquirindo contornos específicos. Se por um lado se constituem em
múltiplas atualizações da narrativa Casa de Mbororé, por outro dizem muito a
respeito da visão de seus habitantes sobre o passado missioneiro e suas
identidades.
Na narrativa, Mbororé não se descaracteriza totalmente do seu universo
guarani. A imagem do índio entre o mato fechado e a casa demonstra que ele está
entre os dois mundos, como as Missões, mostradas através de suas identidades,
tamm estiveram, pois foram construídas a partir de referenciais guaranis e
hispano-jesuíticos. O desejo do retorno deste tempo significa a vontade de
retomar referenciais obscuros, mas ainda não esquecidos. Assim, as Missões, são
utilizadas para representar o elo cindido entre as identidades do guarani histórico
do período missioneiro e do guarani da atualidade, uma vez que os índios mbyá-
guaranis que permanecem em São Miguel são representados como incapazes de
se recuperarem, enquanto cultura, do trauma histórico que as Missões lhes
causaram, sendo apenas reconhecidos como civilização ao serem coordenados
pelos padres jesuítas na construção das Missões, conforme destaquei ao
interpretar a fala da peregrina Carmem, sobre os índios, durante o Caminho das
Missões (p.187)
Por isso a permanência de Mbororé entre o mato e a casa.
O índio Mbororé
que ronda e espera simboliza ainda os habitantes da região posicionados,
atualmente, entre o passado e o presente. A apologização do passado missioneiro
264
264
como à uma situação que se quer retornar e sua nebulosidade caracterizam uma
postura de busca de acerto de contas com este passado como demonstram as
tradições orais da busca de tesouros e enterros onde figuram padres, índios e os
habitantes das atuais regiões, assinalando a existência de um vínculo não menos
misterioso e liminar com relação ao passado. Os locais dos enterros são velados,
escuros e incomunicáveis. Assustadores como as menções ao túnel de São
Nicolau onde uma adega jesuítica tombada pelo IPHAN como parte do sítio. O
cemitério (referido por D. Mina) se encontra dentro do próprio sítio de São João
Batista e continuou sendo usados por seus habitantes até sua proibição como
ocorreu tamm o cemitério de São Louenço Mártir. Em ambos se misturam
histórias retratadas na aparência de seus túmulos, muitos deles violados, quem
sabe, em busca de tesouros.
O ponto comum entre as histórias relatadas sobre os túneis é o fato de se
referirem a locais tombados, o que pode significar duplamente a relação
estabelecida com as ruínas missioneiras, cuja monumentalização é representada
como impedimento de sua dinâmica: em São Miguel, quando vão construir as
casas, não permitem que cavoquem prá não encontrar tesouros (diário de campo
3) e, por outro lado, a elaboração de visões retratadoras da própria
dependência do passado missioneiro na atualidade nestas regiões. Este é o caso
da lenda de São Nicolau relatada por Cleidi, que analisei na conclusão do capítulo
anterior, em que o passado do município é expresso como uma amarra ao seu
desenvolvimento no presente. A necessidade de desenterrar a santa para que São
Nicolau retorne a se desenvolver me parece diretamente relacionada com a busca
de um acerto de contas com o passado missioneiro, através da crítica velada,
misteriosa e quase imperceptível ao que significou esse passado.
O resgate de tesouros foi também mencionado por duas moradoras de
locais próximos às ruínas jesuítico-guaranis de São Nicolau com relação à
atuação de pessoas de fora do município. Em ambos os relatos as senhoras
mencionaram que gente de fora que veio cavar encontrou uma panela de ouro que
tiraram da figueira. Essas pessoas não voltaram mais, pois levaram o melhor que
havia a riqueza dos padres e seus tesouros.
265
265
Provavelmente, a história acima se relaciona à memória de uma das
intervenções arqueológicas efetuadas no espaço da praça central da cidade. Uma
grande escavação foi realizada em 1979 (segundo o IPHAN, a maior realizada no
Rio Grande do Sul) com a participação de funcionários da prefeitura e do quartel
de São Luiz Gonzaga. Nesta escavação foi encontrada uma pia batismal que hoje
se encontra exposta no museu arqueológico do município. As referências ao não
retorno dos pesquisadores expressa a visão que as pessoas da região
demonstram dos forasteiros e da própria formação dos mesmos em oposição aos
saberes locais e a visão negativa que os habitantes mais antigos possuem dos
turistas e da desorganização que causam na pacata vida da cidade.
Uma análise conjunta das narrativas demonstra visões opostas e
complementares que traduzem a relação ambígua de São Nicolau com relação ao
passado da região. Se por um lado, a narrativa que se refere ao enterro da santa
exige que se encontre uma atividade que proporcione a ascensão de São Nicolau,
através do resgate simbólico do passado missioneiro, por outro lado, o fato de o
ouro da figueira do Cabildo ter sido achado por forasteiros que o levaram, remete
ao temor da presença de estranhos não missioneiros - na região.
Este temor se traduz em uma certa reserva dos habitantes locais,
especialmente os da zona rural. A perspectiva de um acerto de contas com o
passado perceptível através da apologização, que as narrativas efetuam do tempo
das Missões como um tempo mítico, das origens de São Nicolau por parte dos
habitantes, se encontra em confronto com as atitudes de comemoração do
passado missioneiro efetuadas no município pela prefeitura municipal, que
tamm busca, para fins políticos, o desenterro do passado e que os veicula em
suas ações de patrimonialização.
Durante minha permanência em São Nicolau observei esta relação nos
discursos oficiais do prefeito ao referir à necessidade de resgatar o passado das
Missões. O termo carregado de um sentido estático expressa com precisão a
relação estabelecida com um passado que deve ser descoberto e divulgado para
ser cultuado. Este foi o caso do pedido do prefeito Heitor Pavéglio para que eu
encontrasse na Espanha o original da Carta Ânua que assinalava a criação de
266
266
São Nicolau em 1626 e o trouxesse para o município. Segundo ele, este
documento se constituía na certidão de nascimento de São Nicolau e deveria ficar
no município exposto em uma placa para ser visitado.
Sua postura de busca de monumentalização traduz uma perspectiva de
comemoração da civilização missioneira exigindo ações práticas com relação ao
passado da região e um desejo de ser reconhecido por sua atuação neste sentido,
como o protetor de São Nicolau para reviver a história de bravura das Missões e
seus ideais.
Esta tensão entre as duas posturas com relação ao passado missioneiro de
São Nicolau permeou minhas observações no município, exigindo de minha parte
uma abertura para uma certa antropologia aplicada com relação aos túneis das
Missões, a fim de que pudesse melhor compreender a dialética entre as posturas
do poder público, do IPHAN e dos habitantes locais com relação ao subterrâneo
de São Nicolau. Neste sentido, efetuei um trabalho de levantamento conjunto da
história, arqueologia e folclore cruzado a um laudo arquitetônico, a fim de poder
melhor interpretá-las.
2.2 - Os túneis das Missões
Nos relatos orais que me foram confiados, duas senhoras, moradoras do
município, mencionam a existência de um túnel cuja entrada é o subterrâneo
localizado no espaço do sítio. Segundo elas, a escada leva a um túnel grande e
escuro, á direita, onde brincavam quando eram crianças e que foram (através do
túnel) até o local onde hoje se localiza o CTG Primeira Querência do Rio Grande.
Uma delas relatou ainda que seu pai participou dos trabalhos de fechamento da
entrada desse túnel coordenado por pessoas de fora de São Nicolau e que o
fecharam com ferro e que o soldaram nas pedras, pois havia risco de
desmoronamento do local.
Em um outro relato, uma senhora de 89 anos mencionou uma porta de ferro
que levava a um túnel e um senhor de cerca de 60 anos me falou sobre uma
tampa de ferro que girava e que muitas pessoas que estiveram nunca mais
267
267
voltaram. Uma outra senhora entre 30 e 40 anos me contou uma lenda que ouviu
quando era criança:
- A lenda que eu conheci era assim: O subterrâneo tinha uma porta secreta que quando aberta
tinha um santo virado e em cima uma faca. Se tu abrisse a porta e entrasse automaticamente essa
faca cairia na cabeça da pessoa.
As descrições do local do subterrâneo efetuadas por viajantes,
historiadores, folcloristas e arqueólogos permitem comparar as significações
adquiridas nestes estudos com as tradições orais encontradas. O relato mais
antigo sobre a visitação de São Nicolau após sua desestruturação é o mencionado
por Roselene Gomes (2003) como o do viajante Auguste Saint-Hilaire que visitou
a região em 1816 e apresentou suas considerações na obra Viagem ao Rio
Grande do Sul (1820-1821). Porém, nada menciona sobre o subterrâneo, cuja
primeira descrição é apresentada pelo historiador Hemetério José Velloso da
Silveira, leitor das anotações de Saint-Hilaire que visitou São Nicolau no final do
século XIX e assim descreve o subterrâneo, levantando hipóteses de sua
utilização:
Regressando pelo mesmo trilho que nos conduziu até a extinta mansão
dos padres, um dos nossos companheiros chamou nossa atenção para
um subterrâneo, pouco profundo é certo, com quatro metros em cada
face (dezesseis metros quadrados). As paredes no subsolo eram
guarnecidas de pedras de gres e era-o tamm o fundo desta cavidade.
Afirmaram-nos ser essa a descida para uma galeria subterrânea,
destinada aos criminosos, que deveriam acabar seus dias. Não
acreditamos nesta versão serôdia. Uma cavidade igual vira-mos no
colégio de São Lourenço, mas essa, que era bem ladrilhada ao fundo,
soubemos por um ancião que lá existia, ser a adega dos padres. Nem o
subsolo em São Lourenço, frouxo e compressível admitiria uma galeria e
mais aposentos para aquele fim sinistro. Em São Nicolau o subsolo é
mais firme, mas nem por isso é de supor que no colégio dos padres
houvesse existido uma masmorra subterrânea. Para os crimes como
dissemos à página 26, outros eram os castigos empregados e
resignadamente recebidos por índios tão submissos. (Silveira:
[1886]1979, 234).
.
As informações de Silveira são mencionadas pelo folclorista Carlos Galvão
Krebs no texto Tesouros e Subterrâneos Jesuíticos, publicado em 1948 na Revista
da Província de São Pedro e em cd-room, pela PUCRS em 2002. Krebs menciona
o subterrâneo de São Nicolau referindo-se a uma prospecção arqueológica
noticiada em 1938 pelo jornal Correio do Povo através da entrevista de Augusto
Brando que estava a serviço do DPHA, na região das Missões:
268
268
Em São Nicolau a missão mais ocidental, situada na fronteira com a
Argentina, consegui após escavações trazer a vista a saleta de acesso
ao subterrâneo, junto ao Colégio segundo poderia ser observado pelo
esquema daquela missão. Além dessa saleta, cuja descoberta é de
suma importância, espero no prosseguimento dos trabalhos que serão
reiniciados dentro de trinta dias, tão logo venham instruções superiores,
espero fazer outras de alta significação
Junto a tais palavras o clichê da planta de São Nicolau, com o local da
saleta assinalada. Seguramente é o mesmo a que se refere Hemetério
José Velloso da Silveira. (Krebs: 2002 [1948])
Conforme referi anteriormente, em 1979 em São Nicolau ocorreu a maior
escavação arqueológica já realizada no Rio Grande do Sul. Fernando La Sálvia no
texto O sítio urbano da Missão de São Nicolau apresenta uma detalhada
caracterização da redução e assim se refere ao subterrâneo:
Na direção leste-oeste, junto ao meio-fio da rua General Salvador
Pinheiro Machado, encontramos os afloramentos de um muro que
deveria circundar o conjunto colégio-convento. Ao fundo, nessa mesma
direção, e distante desse muro 85m, encontramos oito bases de colunas
nas quais duas estão no eixo da rua Manoel Mamede de Souza. Essas
bases os levam até a evidência denominada de subterrâneo
No levantamento de José Saia Neto, assinalada a presença de dois
pedaços de parede junto ao subterrâneo, o que não encontramos.
Ainda nessa planta uma parte tracejada representaria a união das
paredes afloradas. Nada existe que possa neste momento confirmar o
dito levantamento. (La Sálvia:1992,20).
Mais adiante, ao abordar os locais utilizados como depósitos, o autor efetua
uma rápida descrição do subterrâneo e da hipótese de sua utilização:
A guarda de alimentos in natura que necessitam de uma temperatura
mais moderada, es no denominado subterrâneo, cuja entrada foi
aberta através da remoção de uma pedra do teto. Escavações
procedidas mostraram que realmente havia uma escadaria que levava
até a sua porta principal. Comumente, chama-se a este tipo de depósito
de adega, e serve para a guarda de alimentos perecíveis. A adega é um
quarto de 4x4m e fica junto a cozinha, sua aeração é feita por uma
tubulação de arenito com 10cm de diâmetro. (La Sálvia: 1992, 24).
Após o levantamento de histórias referentes ao subterrâneo pelos
habitantes de São Nicolau e região, contrapostas às descrições documentais,
efetuei três visitas ao local, juntamente com uma equipe formada para este fim,
composta pelo prefeito municipal Dr. Heitor Paveglio, pelo secretário de turismo sr.
269
269
Vanderlei Vieira, pelo guia turístico Andréia Maciel, o funcionário do setor de obras
Rudimar Pereira e pela arquiteta Liliane Pitrowiski
Fotocópia do laudo arquitetônico da arquiteta Liliane Pietrovisk sobre o
subterrâneo de São Nicolau. São Nicolau setembro de 2003.
Nas duas primeiras visitas o trabalho da equipe consistiu em observar,
fotografar e filmar o encontrado no subterrâneo. Para efetuar a terceira visitação
ao local, munidos de iluminação artificial, solicitei à arquiteta Liliane Pitrowiski um
laudo arquitetônico com a descrição do local com o objetivo de contrapor o mesmo
270
270
às menções efetuadas anteriormente, quer através das histórias relatadas como
da documentação escrita.
Inegavelmente existe em São Nicolau o subterrâneo no espaço pertencente
ao sítio arqueológico. As tradições orais se referem à escada que leva a um
acesso localizado à direita por onde se poderia prosseguir até a altura do CTG
Primeira Querência do Rio Grande que fica atualmente separado do local de
acesso ao subterrâneo por uma rua situando-se o mesmo atrás das ruínas da
igreja jesuítico-guarani. No subterrâneo não encontramos a referida porta de ferro
a direita, mas uma parede onde nitidamente se percebe a colocação de cimento,
como em outros locais no seu interior. Curiosamente, na rua que separa o
subterrâneo do restante do sítio uma pequena elevação próxima ao local descrito
como sua porta de acesso.
A entrada que encontramos no subterrâneo se situa à esquerda da escada
e conduz a uma pequena sala muito úmida e fria em que verte água do teto,
formando na terra que cobre o chão marcas visíveis no formato de um retângulo
bastante irregular. Constatamos a abertura de 10cm de diâmetro referida por La
Sálvia (1992) e logo abaixo da mesma uma abertura proporcional à porta de
entrada que alcança a altura da metade da parede por onde percebemos
desmoronamento de terra que se deposita no chão, formando assim uma pequena
elevação. Na parede em frente à porta de entrada há, quase na altura do teto,
uma abertura retangular que deixa a terra a mostra e o que aparenta ser uma raiz
de árvore. Na parede situada em frente à abertura mencionada verificamos a
utilização de cimento.
Penso que há demonstrações claras de intervenções arquitetônicas no
subterrâneo, posteriores a experiência missioneira em São Nicolau. Sobre estas
intervenções não encontrei, até o presente momento, documentação
correspondente. Além das utilizações de cimento mencionadas anteriormente,
através do laudo arquitetônico é possível comprovar a descrição dos degraus
iniciais da escada com relação aos demais que conduzem a seu interior, pois é
possível comprovar que as pedras não apresentam o mesmo formato de
acabamento arredondado das demais.
271
271
Neste sentido, o secretário de turismo do município sr. Vanderlei Vieira me
esclareceu acerca da colocação das mesmas (dois grandes blocos de pedra que
foram trazidos de longe) aumentando a escada de acesso para evitar o
alagamento do local, pois, segundo ele, quando foi descoberto o subterrâneo o
nível do piso do calçamento era superior ao da entrada da adega. O laudo
arquitetônico apresenta as medidas do subterrâneo e estas não coincidem em
totalidade com as descrições anteriores (que tamm não coincidem entre si) o
que conduz a necessidade de esclarecimentos acerca do subterrâneo através do
prosseguimento de um conjunto de estudos.
uma pluralidade de referências à existência de subterrâneos em prédios
construídos pelos jesuítas, conforme aponta o folclorista Carlos Galvão Krebs
(2002: [1948]) ao se referir às construções coloniais da Bahia. No texto Manzana
de las Luces da coleção Túneles de Buenos Aires (1997) Ramón Gutiérrez e Juan
Divito abordam as hipóteses de construção e relatam o processo de descoberta e
restauração do mais famoso subterrâneo de Buenos Aires Manzana de las
Luces cuja exploração científica foi iniciada em 1917 pelo engenheiro Héctor
Geslebin. Segundo a obra, estes túneis também se relacionam à atuação jesuítica:
Podria decirse entonces, que los diversos túneles comunicaban entre
residencias de religiosos y templos, pasando todos por el subsuelo de la
Manzana de las Luces, o sea por el lugar donde los jesuítas alzaron
diversas construcciones (residencia templo colegio, instalaciones
administrativas vinculadas a las reducciones de indios). (...) A esa Orden
pertencieron los infatigables y talentosos ejecutores de obras de gran
significación cuyos nombres, juan Krauus, juan Batista Prímoli y
Andrés
Bianchi, entre otros, aparecen de continuo al estudiar la arquitectura del
viejo Buenos Aires. De estar vinculados los jesuitas a estas
construccione, ya como promotores, ya como ejecutores expertos, cabe
señalar que en Buenos Aires se habria dado tanbién, como en otras
ciudades hispanoamericanas -Córdoba entre ellas- la doble presencia de
la Compañía de Jesus y de construcciones subterrânes.
(Gutiérrez:1997,18-19).
17
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Poderia dizer-se então que os diversos túneis comunicavam entre si residências de religiosos e
templos, passando todos pelo subsolo da Manzana de las Luces, ou seja pelo lugar de onde os
jesuítas alcançaram diversas construções (residência, templo, colégio, instalações administrativas
vinculadas às reduções de índios (...). A essa Ordem pertenceram os infatigáveis e talentoso
executores, de obras de grande significação cujos nomes juan Krauus, juan Batista Prímoli y
Andrés Bianchi, entre outros, aparecem continuamente ao se estudar a arquitetura da velha
Buenos Aires. De estar vinculados, os jesuítas a estas construções, seja como executores, seja
como especialistas, cabe assinalar que em Buenos Aires, como em outras cidades
272
272
O texto acima apresenta considerações sobre a presença jesuítica na
América colonial e os relaciona ao período reducional. Juan Batista Primoli, um
dos arquitetos citados no texto, foi o responsável pela concepção da catedral de
São Miguel. Por seu turno, o subterrâneo do sítio de São Nicolau, conforme as
descrições anteriores, faz parte do conjunto colégio-convento, conforme o
mencionado acima.
Os subterrâneos jesuíticos no Rio Grande do Sul se constituem ainda na
atualidade em certo tabu. Há uma aura de mistério e uma grande mitificação
envolvendo o assunto que é tratado pelo próprio IPHAN como crença popular a
que não se deve dar crédito em nenhuma hipótese. Os poucos trabalhos
existentes no estado neste sentido se situam no domínio do folclore como as
inúmeras publicações sobre as lendas de túneis e tesouros jesuíticos (Fagundes
2000). Os mais detalhados são obra de dois estudiosos das tradições populares: o
já citado artigo de Krebs e o texto de Fernando DOnnel e Aparício Silva Rillo Os
subterrâneos de São Borja (1991).
Fotos 8 e 9 Subterrâneo de São Nicolau São Nicolau setembro 2003; Autoria:
Ceres Karam Brum; Fonte: Acervo Pessoal; P&B (original colorido); (tamanho
10x15); fotografia fotocopiada em scanner e reduzida (5x7).
hispanoamericanas Córdoba entre elas a dupla presença da Companhia de Jesus e de
construções subterrânes.
As conclusões acima, do tabu dss túneis estão baseadas em minhas observações de campo da
reunião do dia 11/09/2003 ocasião em que a 12ª superintendência regional do IPHAN esteve em
São Nicolau efetuando explicações arquitetônicas a Associação dos Guias das Missões (AG-
MISSÕES). Durante uma visita ao sítio arqueológico de São Nicolau, questionada acerca da
existência de túneis nas Missões, a arquiteta Matilde respondeu com rispidez, colocando a questão
da existência de outros compartimentos no subterrâneo citado como folclore e ignorância popular.
273
273
Diante de todas estas nebulosas evidências, o tratamento histórico e
antropológico da questão do subterrâneo de São Nicolau levou-me a conversar
com José Bicca, (coordenador dos Angüeras e parceiro de Rillo um dos autores
do texto sobre os subterrâneos de São Borja). Este, ao me apresentar a provável
localização do subterrâneo de São Borja, relatando as evidências da existência do
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túnel e o interesse da igreja em desestimular estas buscas, em diferentes
situações em São Borja, ao longo da primeira metade do século XX, também me
relatou histórias sobre ruídos/ecos em uma casa da cidade que supostamente se
relacionariam aos túneis missioneiros. José Bicca sugeriu ainda que através da
Prefeitura de São Nicolau fosse contatado o exército, a fim de demarcar o local
através da utilização de JPS e, assim, evitar intervenções arqueológicas
desnecessárias.
Na conclusão do relatório que elaborei para a Prefeitura Municipal de São
Nicolau, efetuei a recomendação de que o IPHAN fosse comunicado e solicitada a
instituição uma nova prospecção arqueológica no local e que este, por sua vez,
efetuasse os possíveis contatos com o Serviço Geográfico do Exército, caso
considerasse necessário. A partir de meu posicionamento, creio que a Prefeitura
de São Nicolau se sentiu um pouco desestimulada a desvelar a questão dos
possíveis túneis do sítio arqueológico em virtude da dificuldade de diálogo com o
IPHAN.
Efetuei as considerações acima na tentativa de interpretar a diversidade de
formas com que o mito do El dorado é vivido, na atualidade, com relação às
Missões Jesuítico-Guaranis. Ao longo dos trabalhos de pesquisa observei as
relações estabelecidas com o local do subterrâneo em São Nicolau e a noção de
patrimônio a ele relacionada, verificando três posições bem demarcadas que
remetem aos tipos de relações estabelecidas com o passado.
Para a prefeitura do município, os túneis, se encontrados, corresponderiam
a uma possibilidade de exploração turística diferenciada de São Nicolau
praticamente igualando-a a São Miguel em termos de atrativos turísticos. Neste
sentido, o incentivo do então prefeito e sua equipe pode ser pensado em termos
de uma comemoração do passado missioneiro e uma vontade expressa de,
através de sua atuação com relação ao passado, consolidar-se como figura
pública indispensável ao desenvolvimento do município e assim garantir sua re-
eleição. Trata-se aqui de refletir sobre um uso público do passado, conforme se
referem Jacques Revel e François Hartog na introdução do livro Les usages
politiques du passé (2001: 8) relativo à necessidade de construir uma imagem
275
275
coerente e gratificante a partir da mobilização de recursos voltados para o
passado com fins políticos.
A segunda hipótese de relação estabelecida com o passado nesta situação
é a do acerto de contas, observada na vontade/temor de desenterrar tesouros, na
profanação dos túmulos e destruição das placas, na ocupação dos espaços dos
sítios e sua depredação que entendo como uma repulsa quase ou mesmo visceral
comprovada pela existência de fezes humanas no espaço das ruínas e de
preservativos encontrados no subterrâneo de São Nicolau. Interpreto tais posturas
como uma demarcação expressa da vontade de inversão do culto ao passado
assinalando a importância de um presente que se quer para além da memória das
Missões Jesuítico-Guaranis e sua exaltação para fins turísticos.
A terceira hipótese de relação se através de uma postura
individualmente estabelecida com o passado observável nos relatos que
mencionam as visitas ao túnel quando crianças ou seu temor, demonstrando as
ruínas das Missões como lugar de memória de seus habitantes. Uma análise das
três modalidades de relações estabelecidas com o passado demonstra que as
mesmas não se excluem, conforme observa Giovani Levi na coletânea supra
citada:
Il ne sagit pas simplesment de la mémoire et doubli. Il sagit aussi du
changement même de la mémoire, qui est devenue autre que ce quelle
était, collective et sociale, caractères auxqueles dhabitude on pense
quand on fait réference à lhistoire. La mémoire sest dilatée (...) Cest la
mémoire de chacun, non celle dun groupe, que entre continuellement en
scéne: non plus une histoire communicable, mais une autobiographie,
non plus le passé de la societé, mais une myriade de fragments et
dobjets separes, des choses telles quelles sont representés dans
limagination courant, alimentés par des livres, des films et des mythes
aproximatifs (Levi: 2001, 31-2).
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18
Não se trata simplesmente da memória e do esquecimento. Trata-se da mudança da memória
que se transforma em outra da que foi coletiva e social, daqueles caracteres que se pensa
habitualmente quando se faz referência à história. A memória se dilatou. É a memória de cada um
não a de um grupo que entra continuamente em cena: não mais uma história comunicável, mas
uma autobiografia, não mais o passado da sociedade, mas uma infinidade de fragmentos e de
objetos separados, de coisas tais que elas são representadas na imaginação corrente, alimentadas
pelos livros, os filmes e os mitos aproximativos.
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Assim, as relações estabelecidas com o passado missioneiro em São
Nicolau demonstram que a postura de comemoração da administração municipal
se desenrola em dialética com uma crítica a este passado, ambas referentes à
história de vida de cada um de seus habitantes que se posicionam positiva ou
negativamente em termos de sua patrimonialização e de seus usos, cujos
desdobramentos puderam ser percebidos nas últimas eleições em que as
propostas do prefeito que buscava a reeleição não foram referendadas pela
população, que elegeu o candidato de oposição Joceli Cardoso.
3 Sepé Tiaraju
No jornal Zero Hora do dia 21/01/2003 uma pequena reportagem
noticiando a proposição da canonização do índio Sepé Tiaraju morto em 1756,
durante a Guerra Guaranítica. A contra capa do jornal mostra a foto de uma placa
de agradecimento por graça alcançada dirigida a Sepé e aos jesuítas, sobreposta
às ruínas de igreja de São Miguel.
Fotocópia em scanner da contracapa ilustrativa da reportagem sobre a
canonização de Sepé Tiaraju Jornal Zero Hora. Porto Alegre 21/01/2003.
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A reportagem menciona um rápido histórico das tentativas de canonização
do herói gaúcho, segundo ela, popularmente santificado em virtude do seu
martírio em prol das terras missioneiras. A polêmica recai sobre a inexistência de
milagres realizados por Sepé. A campanha quase solitária pela canonização
conta como padrinho com um padre experiente em causas de santo o irmão
marista Antonio Cecchin que já trabalhou no Vaticano como secretário do
promotor geral da e que é o responsável pelos processos de canonização na
Igreja Católica.
Apesar de a reportagem dar a entender que a santificação popular de Sepé
está consolidada (apresentando inclusive o depoimento de uma devota), a
campanha de canonização iniciada há 20 anos atrás na Romaria da Terra em São
Gabriel, atualmente se calca na distribuição de santinhos de Sepé Tiaraju, na
região missioneira e em eventos religiosos.
No entanto, a aceitação da santidade e do próprio caráter do índio Sepé é
posta em relevo pelo jesuíta Arthur Rabuske conhecido estudioso das Missões
que aponta alguns óbices a respeito da figura de Sepé e de sua santidade como a
tentativa de homicídio de um padre jesuíta nas Missões pouco antes da Guerra
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Guaranítica e a desobediência religiosa de Sepé aos jesuítas que
desaconselharam a luta pela resistência ao acordo selado pelas coroas ibéricas
no Tratado de Madrid (1750).
A polêmica a respeito da possível canonização de Sepé e das prerrogativas
necessárias para o respectivo processo remetem obrigatoriamente à questão do
tratamento representacional que vem sendo dispensado à figura histórica e
mitológica de Sepé Tiaraju, ao longo do processo histórico sulino, por inúmeros
agentes, tais como por historiadores e estudiosos das Missões, por algumas
instituições, pelo turismo e por movimentos sociais.
Creio que as menções a Sepé Tiaraju observadas na produção de
representações tendentes a homenageá-lo através de placas, monumentos,
poemas, músicas, entre outras, objetivando evitar o seu esquecimento, devem ser
referidas como a necessidade de perpetuar a memória de sua atuação e se
relacionam, neste sentido, a tomadas de posição sobre o passado histórico
missioneiro que Sepé protagonizou. Não é de hoje que no Rio Grande do Sul
referências ao índio, herói da Guerra Guaranítica, e a sua atuação e filiação. As
menções à sua figura iniciaram pouco tempo depois de sua morte, quando ainda
no século XVIII foi lançado o poema O Uraguai (1769) de Basílio da Gama em
Portugal.
Sandra Pesavento no texto Narrativas cruzadas. História, literatura e mito:
Sepé Tiarajú das Missões (2004) apresenta uma análise detalhada da
documentação e suas interpretações em história e literatura referentes à figura de
Sepé Tiaraju, pontuando o nascimento da lenda com o Uruguai (1789), a que se
seguem as menções do Brigadeiro Rocio (1774) e, posteriormente, as de Simões
Lopes Neto (1917), com um caráter de tradição popular recolhida pelo autor
(2004:8). A par de outras narrativas, ela também menciona o romance histórico O
tempo e o vento (1949) de Érico Veríssimo que, na primeira parte, se refere às
Missões e em que Sepé Tiaraju comparece nas menções do índio Pedro
missioneiro numa narrativa que se apropria da história entre as fronteiras da ficção
literária e da tradição oral (2004: 11).
279
279
A par da volumosa produção dos historiadores, poetas, folcloristas,
religiosos sobre as Missões em suas referências a Sepé, destacada por Sandra
Pesavento, de tempos em tempos a memória popular remete à sua figura e a seus
feitos como parte importante do imaginário do gaúcho. Sepé Tiarajú no Rio
Grande do Sul se constitui em uma das figuras históricas a que mais se alude,
mesmo em zonas distantes da região missioneira a que se relaciona. Talvez as
referências a sua figura lendária sejam mais freqüentes do que as alusões ao
general Bento Gonçalves da Silva, proclamador da república rio-grandense,
expoente maior da Revolução Farroupilha (1835-1845). Creio que este parâmetro
comparativo é importante de ser ressaltado, na medida em que as referências aos
mesmos remetem aos momentos históricos passados a que se relacionam e que
de certa forma representam e remetem, no plano do imaginário, à elaboração de
identidades presentes a partir do passado. Oliven menciona:
Na construção social das identidades do gaúcho brasileiro uma
referência constante a elementos que evocam um passado glorioso no
qual se forjou sua figura, cuja existência seria marcada pela vida em
vários campos, a presença do cavalo, a fronteira cisplatina, a virilidade e
a bravura do homem em enfrentar o inimigo ou as forças da natureza, a
lealdade a honra, etc. (Oliven:1992, 50).
....................................................................
Essa situação não impede que no Rio Grande do Sul se enalteça a
figura de Sepé Tiaraju, líder dos guaranis que se opuseram a entregar
suas terras aos brancos na área das Missões, no século XVIII, como
símbolo da coragem do gaúcho. O grito de guerra esta terra tem dono
a ele atribuído é hoje em dia freqüentemente utilizado como palavra de
ordem contra qualquer interferência externa nos assuntos do estado.
(Oliven: 1992, 104).
Creio que a Revolução Farroupilha se insere nesta perspectiva e é
representada como um momento marcante deste passado na história do Rio
Grande do Sul, se constituindo em referente preponderante para a exaltação da
figura do gaúcho no estado por ser representada como um episódio de bravura
donde resultou separação do Rio Grande do Sul do restante do Brasil. Assim
funciona como uma espécie de mito fundador do gauchismo e a menção aos
heróis farroupilhas pode ser compreensível a partir da lógica da construção da
figura do gaúcho como tipo característico cultuado no Rio Grande do Sul.
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280
Penso que, a figura de Sepé Tiaraju, ao ser apropriada como o primeiro
caudilho rio-grandense e as Missões identificadas com a origem do gaúcho passa
a ser construído um elo de ligação com este passado para a elaboração da figura
mítica do gaúcho. Tal fato, incita a reflexão acerca da dimensão atribuída ao
passado missioneiro através da atuação de Sepé por diferentes sujeitos na
atualidade. Se, conforme demonstrei em momentos anteriores, Sepé Tiarajú é
referido em nomes de entidades tradicionalistas e nas poesias nativistas em razão
de sua luta e morte pelas terras das Missões, ele também é lembrado através de
monumentos que representam sua figura de várias maneiras, dentro e fora das
Missões, nos espetáculos Som e Luz e Missões; de Raça e Corpos, pelo pacote
turístico Caminho das Missões, através de proposta de canonização por uma parte
da Igreja Católica e nos conflitos de terra na região de São Gabriel onde é
mencionado tanto pelo MST quanto pelos ruralistas da região.
Se por um lado Sepé Tiaraju é passível de ser enquadrado nesta dinâmica
de bravura como a ele se refere Oliven, a par da extrema palidez a que negros e
índios concorrem na construção das identidades no estado (1992: 100) uma
série de elementos a serem analisados. O quadro de referência mencionado por
Oliven, no tocante às apropriações de Sepé Tiaraju, vem adquirindo uma
complexidade extrema em termos de sua menção e dos desdobramentos em
torno de sua figura. Observei uma diversidade de situações com menções ao
mesmo, pontuadas pelo caráter extremamente polêmico de suas identidade um
índio guarani catequizado pertencente a elite missioneira por fazer parte das
lideranças que formavam o Cabildo, e que, ao longo de sua existência, teve
interesses que se chocaram com as metrópoles ibéricas e com os próprios
jesuítas, idealizadores das Missões.
O momento que protagonizou como corregedor de São Miguel foi um
momento de apogeu dos povoados missioneiros na região platina (com os Sete
Povos das Missões consolidados) a que se seguiu imediatamente a tensão
causada pela notícia das disputas ibéricas que culminaram com o Tratado de
Madrid, acordando a troca desses povoados missioneiros pela Colônia do
Sacramento. Tal fato ocasionou posturas incidentais entre os índios guaranis e os
281
281
jesuítas nas Missões, e conseqüentes tomadas de posição frente às operações
relativas a demarcação dos limites portugueses e espanhóis e a sua própria
atuação na Guerra Guaranítica que o levou a morte na Batalha de Caiboaté,
ocasionando a imediata criação do mito de Sepé Tiarajú e São Sepé,
popularizados por Simões Lopes Neto, que influenciou toda a produção literária
posterior, em termos das representações sobre Sepé Tiaraju.
19
3.1 - O lunar de Sepé e a lenda de São Sepé
Simões Lopes Neto apresenta a atuação de Sepé Tiaraju e sua santificação
popular. Em nota o autor menciona o poema O Lunar de Sepé como uma
melopéia recolhida em 1902: sofregamente recitada por uma velhíssima mestiça
Maria Genória Alves moradora na picada que atravessa o rio Camaquã, entre
os municípios de Canguçu e encruzilhada (2000:88). A melopéia em seu início faz
alusão à demarcação de limites e as Missões:
Eram armas de Castela
Que vinham do mar de além;
De Portugal Também vinham
Dizendo por nosso bem;
Mas quem faz gemer a terra....
Em nome da paz não vem!
Mandaram por serra acima
Espantar os corações
Que os reis vizinhos queriam
Acabar com as Missões,
Entre espadas e mosquetes,
19
Este é o caso do capítulo A fonte de O continente de Érico Veríssimo em que o percebi como
leitor de Simões Lopes Neto, não apenas por fazer referências as lendas da Salamanca do Jarau
(2001:{1949], 44) ao mencionar a Teiniaguá e a de São Sepé (55), mas também porque Érico
Veríssimo representa Pedro missioneiro da mesma maneira que Simões Lopes Neto representa
Sepé (Veríssimo: 56) através de suas qualidades sobrenaturais e dualidades postas a serviço da
causa das Missões em fidelidade aos padres jesuítas. A interextualidade é tão explícita que Érico
Veríssimo chega a se referir a Pedro como um inventior de melopéias (44). Tal fato me leva a
pensar sobre Pedro como memória da experiência missioneira passada e como herdeiro de Sepé,
vivendo desta sorte o seu mito a partir da mensagem de Simões que compõe o texto de
Veríssimo, conforme demonstra o diálogo que segue entre o menino.Pedro e o Padre Alonso:
- Deus botou tamm na testa da noite um lunar como o de São Sepé.
- São Sepé? Repetia o padre meio estonteado.
Sem dizer palavra e sem fazer o menor gesto, Alonso viu o menino guardar o punhal entre a
camisa e o peito e sair da cela em silêncio.
282
282
Entre lanças e canhões!...
Cheiravam as brancas flores
Sobre os verdes laranjais;
Trabalhava-se na folha
Que vem dos altos ervais;
Comia-se das lavouras
Da mandioca e milharais.
Ninguém a vida roubava
Do semelhante cristão,
Nem a pobreza existia
Que chorasse pelo pão;
Jesus Cristo era contente
E dava sua bênção...
Porque vinha aquele mal,
Se o pecado não havia?...
O tributo se pagava
Se o vizo-rei o pedia,
E, até sangue se mandava
Na gente moça que ia....
.
Eram armas de Castela (...)
O poema denominado o Lunar de Sepé inicia apresentando a
desconformidade com que os demarcadores de limites são recebidos pelos
habitantes das Missões. Sepé Tiaraju apenas aparece a partir do problema da
demarcação de limites, que é o foco central do poema, colocando em pauta a
disputa ocorrida por esses territórios. A menção às Coroas se dá a partir da
abordagem a Portugal como estado nacional e a Espanha através de Castela
uma de suas regiões. O caráter da exaltação regional espanhola em oposição à
unidade portuguesa é preponderante em
todo o poema, o que se percebe a partir
da repetição dos versos que compõem a estrofe inicial a cada grupo de quatro
estrofes, lembrando a chegada dos demarcadores como princípio da
desagregação das Missões. São estes mesmos 6 (seis) versos iniciais que
tamm finalizam o poema, a fim de demonstrar insistentemente os responsáveis
pela desagregação das Missões. Além disso, a menção a Castela induz à
interpretação de seu menor poder de barganha como região, frente a Portugal e
do mau negócio efetuado.
As Missões são representadas no poema, através de seus referenciais
cristãos, como a terra da promissão, em que tudo é abundante e justo. No entanto,
283
283
mesmo ao exaltar a obra jesuítica, o poema se configura como uma busca de
culpados para aquele mal, mencionando as obrigações missioneiras sendo
cumpridas tanto com relação aos padres através da menção de uma vida nas
Missões nos moldes ensinados pelos jesuítas sem pecados, quanto com relação
à Coroa (onde o vizo-rei pode significar uma corruptela de vice-rei do Peru) a
quem eram pagos os tributos, bem como a menção ao sangue dos moços
(soldados missioneiros) usados na defesa do território espanhol. Os versos
seguintes se referem ao nascimento de Sepé:
Os padres da encomenda
Faziam sua missão:
Batizando as criancinhas,
E casando por união,
Os que juntavam os corpos
Por força do coração...
Do sangue dum grão cacique
Nasceu um dia um menino,
Trazendo um lunar na testa,
Que era bem pequenino:
Mas era um cruzeiro feito
Como um emblema divino!...
E aprendeu as letras feitas
Pelos padres, na escritura:
E tinha por penitência,
Que a sua própria figura
De dia era igual às outras...
E diferente, em noite escura!...
Diferente em noite escura,
Pelo lunar do seu rosto,
Que se tornava visível
Apenas o sol era posto;
Assim era - Tiarajú - ,
Chamado Sepé, - por gosto..
Eram armas de Castela (...).
O nascimento de Sepé ocorre no contexto da atuação jesuítica nas
Missões. A menção aos padres da encomenda é bastante importante, pois se
choca com a representação acerca da
substituição da instituição espanhola
encomienda pela atuação religiosa na América frente aos índios. Conforme
destaquei e, segundo Flores (1983: 17-8), encomienda é o sistema em que o
284
284
indígena pagaria tributos ao proprietário da terra, o encomendero em troca de
catequese, assistência e defesa. Havendo falta de mão de obra na comunidade o
indígena pagava seu tributo em trabalho (....) Fora o trabalho forçado, restava aos
índios as missões religiosas.
A menção aos padres da encomenda, como relacionada às Missões, pode
se constituir em uma crítica a atuação jesuítica que a seus moldes continuavam a
efetuá-la. Essa crítica à atuação dos ditos padres pode ser percebida pela visão
apresentada do casamento nas Missões através dos termos união/corpos/coração
que relaciono à negação da poligamia em contraposição ao amor cristão permitido
pelos jesuítas. Porém, se eram monogâmicas as uniões dos índios, por que então
os versos seguintes apenas aludem ao sangue de um grão cacique como
ascendente do menino índio? Não encontrei menção em nenhum momento à
linhagem materna de Sepé Tiarajú.
A crítica à atuação jesuítica e à descaracterização do universo guarani nas
Missões, embora muito velada, pode ser percebida ao longo dos versos que
narram o nascimento do menino e suas características espetaculares que
remetem ao mundo natural guarani, embora sejam justificadas no poema como
traços cristãos. Tal fato pode ser percebido na designação de Sepé como alguém
de nome Tiaraiú, mas que por gosto era chamado de Sepé (designação guarani
para facho de luz), reforçando, a partir desse momento, a identificação do mesmo
com os índios guaranis e, até certo ponto, em oposição aos jesuítas responsáveis
por sua formação:
Cresceu em sabedoria
E mando dos povos seus;
Os padres o instruíram,
Para o serviço de Deus,
E conhecer a defesa
Contra os males dos ateus...
Era moço e vigoroso,
E mui valente guerreiro:
Sabia mandar manobras
Ou no campo ou no terreiro;
E na cruzada dos perigos
Sempre andava de primeiro.
Das brutas escaramuças,
As artes de artimanhas
285
285
Foi o grande Languiru
Que lhensinou; e as façanhas,
De enredar o inimigo
Com o saber das aranhas...
E, tudo isso, aprendia;
E tudo já melhorava,
Sepé-Tiaraiú, chefe,
Que os Sete Povos mandava,
Escutado pelos padres,
Que cada qual consultava.
Eram armas de Castela (...)
A formação do menino é mencionada como uma dupla formação religiosa e
militar que se fundem na alegação da guerra justa contra os ateus. Neste contexto
ocorre a menção a uma também dupla relação que Sepé estabelece com os
padres enquanto líder das Missões que a eles tudo submetia, bem como as táticas
de guerrilha aprendidas com o grande Languiru, cacique que posteriormente o
substitui na liderança das tropas guaranis Uma peculiaridade do poema é a
antecipação da própria atuação de Sepé que é representado como criado para
atender aos interesses missioneiros na guerra, já anunciada. Assim, desde os
versos que narram seu nascimento, Sepé é concebido como um herói o que
alcança seu clímax com a descrição de sua atuação durante a guerra contra as
coroas. Neste sentido ocorre a criação do mito de Sepé Tiaraju, como alguém
dotado de qualidades sobrenaturais e fantásticas para defender as Missões:
E quando a guerra chegou
Por ordem dos reis de além,
O lunar do moço índio
Brilhou de dia também,
Para que os povos vissem
Que Deus lhe queria bem...
Era a lomba da defesa,
Nas coxilhas de Ibagé,
Cacique muito matreiro
Que nunca mudou de fé:
Cavalo deu a ninguém...
E a ninguém deixou a pé...
Lançaram-se cavaleiros
E infantes, com partazanas,
Contra os Tapes defensores
Do seu pomar e cabanas;
A mortandade batia,
Como ceifa de espadanas...
286
286
Couraças duras, de ferro,
Davam abrigo à vida
Dos muitos, que, assim, fiados,
Cercavam um só na lida!...
Um só que de flecha e arco,
Entra na luta perdida...
Eram armas de Castela (...).
A descrição da atuação na guerra inicia pela menção a suas qualidades
fantásticas, onde o lunar é descrito como um aviso da proteção divina de sua
predestinação como líder dos guaranis. Estes são referidos como Tapes que
lutavam brava e pobremente pela defesa de suas propriedades (numa linguagem
que nomeia os seus valores naturais) em oposição à descrição das armas e
aparatos usados pelo exército inimigo. A menção a Ibagé remete às alianças entre
os
índios de diversas regiões naquele período a que se deve a consecução das
Missões enquanto experiência. Ibagé, segundo Antonio Augusto Fagundes em A
lenda de Bagé (2000: 59), é um cacique de confiança dos padres jesuítas que com
ele fizeram aliança e a quem entregaram uma das estâncias missioneiras a
estância de Santa Tecla além do menino José Tiarayu para que o educasse.
Segundo a lenda foi nessa região que, posteriormente, surgiu o município de
Bagé. A menção ao afamado cacique no poema O lunar de Sepé, é interpretada
duplamente: em relação ao local onde ocorreram as batalhas da Guerra
Guaranítica como distantes dos povoados missioneiros, como o caso das lutas
ocorridas no cerro de Santa Tecla, bem como as alianças realizadas pelo exército
guarani, em que uma certa dubiedade dos versos que remetem a atuação de
Ibagé o que interpreto como, por um lado, a alusão à fidelidade do cacique aos
missioneiros nunca mudou de , que aparentemente pressionado não trocou de
lado, mesmo sabendo tratar-se de uma luta perdida, conforme descreve o poema:
Os mosquetes estrondeiam
Sobre a gente ignorada,
Que acima do seu espanto,
Tem a vida decepada....;
E colubrinas maiores
Fazem maior matinada!...
Dócil! Gente, não receia
287
287
As iras de Portugal:
Porque nunca houve lembrança
De haver-lhe feito algum mal:
Nunca manchara seu teto...;
Nunca comera seu sal!...
E, de Castela, tampouco
Esperava tal furor;
Pois sendo seu soberano,
Respeitava seu senhor;
Já lhe dera ouro e sangue,
E primazia e honor!...
A dor entrava nas carnes....
Na alma, a negra tristeza,
Dos guerreiros de Tiaraiú,
Que pelejavam defesa,
Porque o lunar divino
Mandava aquela proeza..
Eram armas de Castela (...).
Estes versos expressam a dizimação guarani e a indignação dos mesmos
frente à atuação dos dois exércitos, o que é ilustrado através das relações
estabelecidas pelos povoados missioneiros com Portugal e Castela, onde o
primeiro
é ressaltado através do respeito às negociações comerciais, numa alusão
ao comércio lícito com os portugueses, em oposição ao contrabando, efetuado via
Colônia do Sacramento. Com relação a Castela, novamente, o poema menciona o
cumprimento das obrigações coloniais efetuadas pelas Missões, utilizando tal
alegação para salientar a injustiça cometida contra as mesmas. O poema
pretende, neste sentido, ao remeter novamente às relações entre as Missões e às
duas metrópoles, dar a impressão de que os guaranis, mesmo cientes de sua
inferioridade bélica, conseguiriam, através das virtudes sobrenaturais de Sepé e
da religiosidade que encerram, convencer seus opositores a cessarem a investida.
As alegações parecem se relacionar à injustiça da guerra, e do fato de haverem
sinais indicativos de Deus estar do seu lado. Este é um elemento importante que
se repete até o final do poema, quando é descrita a morte de Sepé Tiaraju:
E já rodavam ginetes
Sobre os corpos dos infantes
Das Sete Santas Missões,
Que pareciam gigantes!...
Na peleja tão sozinhos...
Na morte tão confiantes!...
288
288
Mas o lunar de Sepé
Era o rastro procurado
Pelos vassalos dos Reis
Que o haviam condenado:...
Ficando o povo, vencido...
E seu haver.... conquistado!
Então, Sepé, foi erguido
Pela mão do Deus senhor,
Que lhe marcara na testa
O sinal do seu penhor!...
O corpo, ficou na terra...
A alma subiu em flor!...
E, subindo para as nuves,
Mandou aos povos bênção!
Que mandava o Deus-Senhor
Por meio do seu clarão...
E o lunar da sua testa
Tomou no céu posição...
Eram armas de Castela,
Que vinham do mar de além;
De Portugal também vinham;
Dizendo por nosso bem....
Sepé Tiaraiú ficou santo
Amém! Amém! Amém!...
A descrição da derrota das Missões na Guerra Guaranítica reforça o
argumento da posição acima mencionada, de uma batalha do bem contra o mal,
uma vez que os infantes missioneiros, que se consideravam invencíveis por
possuírem Deus a seu lado tombam gloriosamente e o
poema projeta a
argumentação final da derrota terrena como relacionada à vitória em outro plano
no sobrenatural. Essa dimensão é enfocada pela morte de Sepé Tiaraiú cuja alma
sobe às nuves, ficando o seu corpo na terra. A derrota na guerra é simbolizada
pela morte de Sepé o qual é procurado e abatido ao ser encontrado por seu lunar.
É através de sua morte que o poema representa o fim da guerra, que a
historiografia missioneira menciona como tendo ocorrido posteriormente. Sepé
Tiarajú foi morto em 7/02/1756 ao passo que a tomada de São Miguel ocorreu em
maio. Segundo Julio Quevedo em Guerreiros e Jesuítas na Utopia do Prata:
O exército luso-castelhano marchou pelo lado português com 1600
homens, 152 carretas, 3769 cavalos, 261 bestas muares e 1816 bois,
enquanto pelo lado espanhol havia 2300 homens, 7000 cavalos, 800
mulas e 6000 vacas. Em 17 de maio de 1756 os luso-castelhanos
289
289
entraram triunfantes em São Miguel e os outros seis povoados se
renderam. (Quevedo: 2000, 172).
A morte de Sepé Tiarajú representa no plano do imaginário o término da
Guerra Guaranítica e a capitulação dos Sete Povos, que apesar de perderem seus
territórios, são representados nas duas estrofes finais, através da vitória do
sobrenatural assinalada pela elevação de Sepé aos céus. Um mártir que se
transforma em santo para guiar os missioneiros. A lição do poema é a santificação
de Sepé, anunciada desde o princípio através de suas características
sobrenaturais. Como elemento derradeiro O lunar de Sepé em seus versos finais,
ao aclamá-lo como santo, introduz a lenda de São Sepé. Simões Lopes Neto
(2000: 86-7), além do referido poema, apresenta, em separado, uma outra
referência à sua figura fazendo menção à localização geográfica do arroio São
Sepé e a inscrição no túmulo do mártir efetuada pelos jesuítas como uma
homenagem póstuma por sua atuação, além de mencionar o seu peculiar
processo de santificação
:
Conforme a homenagem pontuada pelos jesuítas, na inscrição e na denominação do arroio, e não
havendo no calendário católico santo de nome Sepé temos de concluir que as virtudes, o
mérito do grande chefe índio foram forais para a sua estranha canonização ao entretanto
perdurável e popularizada.
Foi sob tal aspecto que recordamos aqui este curioso fato
(Cancioneiro guasca) (Lopes Neto: 2000 [1913], 86).
uma relação entre as duas narrativas tradicionais, que conduz à
necessidade de uma análise conjunta das mesmas, pois a pluralidade de
representações observadas, acerca da figura de Sepé Tiarajú, produzida a partir
do recebimento das próprias narrativas, têm como peculiaridade a sua dupla
referência como personagem histórico
heróico e como santo em suas sucessivas
apropriações. Neste sentido, o historiador Teófilo Torronteguy em As origens da
pobreza no Rio Grande do Sul ao analisar os versos finais do poema O lunar de
Sepé assinala sua ligação com a lenda de São Sepé:
Esse desenlace reproduz o discurso do resgate divino premiando o
homem bom, o justo, o valente e o injustiçado. Subjaz a visão de um
paraíso que se perdeu, mas que poderá existir para aqueles que se
mantiverem próximos do divino. Discursos presentes nas epopéias e nas
290
290
lendas. Por sinal não é difícil entender as razões de a lenda de São
Sepé ter surgido com esse poema canção. É uma narrativa de autoria
indeterminada. Seu contexto tem um tempo histórico definido, a Guerra
Guaranítica, e conta feitos extraordinários de um herói, Sepé Tiaraju,
que mantém laços com o sagrado. (Torronteguy: 1994, 40).
A relação assinalada pelo autor entre o poema e a lenda é justificada
através da criação do vínculo do herói com o sagrado, situado espacial e
temporalmente, e assim possibilitando subsídios a sua santificação popular. Neste
sentido se configura como fonte para entender a desestruturação da experiência
missioneira, pois enfoca a Guerra Guaranítica e a figura de Sepé Tiarajú. Além
disso, as duas narrativas passam a se constituir através do tempo em elo
primordial com o passado missioneiro, uma vez que é através de sua circulação e
de sua recepção que são produzidas as representações em torno da figura de
Sepé Tiaraju, pois nas narrativas há a produção do mito missioneiro de Sepé a ser
cultuado.
A importância antropológica das referências de Simões Lopes Neto a Sepé
Tiaraju está na popularização de sua imagem através de uma linguagem
regionalista. Elementos de O lunar de Sepé e da Lenda de São Sepé permanecem
sendo utilizados, não apenas na esfera do gauchismo no Rio Grande do Sul. As
apropriações remetem a um conjunto de práticas e representações produzidas na
recepção das narrativas analisadas acima, cuja peculiaridade é a dupla referência
a Sepé enquanto personagem histórico heróico e como santo. Claude Lévi-
Strauss no texto História e Dialética se refere à interiorização da história como
mito ao analisar o processo da construção de sentido:
Então basta que a história se distancie de nós na duração ou de que
dela nos distanciemos no pensamento para que ela deixe de ser
interiorizável e perca sua inteligibilidade, ilusão ligada a uma
interioridade provisória. Mas que não nos façam dizer que o homem
pode ou deve livrar-se dessa interioridade. Não está em seu poder o fato
de fazê-lo, e a sabedoria consiste, para ele, em olhar-se vivendo-a
sabendo (porém num outro registro) que aquilo que vive tão completa e
intensamente é um mito que aparecerá como tal aos homens de um
século próximo. (Lévi-Strauss:1997,283).
A história das Missões encontra nas narrativas de Simões Lopes Neto as
condições para que seja interiorizada como mito. As construções de sentido
291
291
relativas a Sepé Tiaraju ocorrem a partir de um código regional comprometido com
a afirmação do gaúcho, originário das Missões e descendente do índio Sepé. O
mito explora elementos erigidos como valores regionalmente exaltados ao compor
a figura de Sepé Tiaraju através de suas características sobrenaturais, voltadas
para a defesa da terra e de sua gente.
Na perspectiva de Lévi-Strauss em A estrutura dos mitos (1996: 241), o
mito tem por objeto a resolução das contradições. Neste sentido, a partir do mito
de Sepé Tiaraju são resolvidas as contradições da experiência missioneira
passada, através da integração deste momento histórico vivido ao presente e ao
futuro através do relato de sua santificação como síntese e superação de sua
atuação. A eficácia mitológica da figura de Sepé é assegurada pela proposta
ideológica que incessantemente se reforça e atualiza nas apropriações do mito em
diferentes versões: a luta pela terra, a liberdade e a demarcação permanente do
espaço missioneiro como herança jesuítico-guarani. Em termos do aproveitamento
da figura de Sepé Tiaraju observei a fusão das duas narrativas citadas, através da
recriação apresentada na contracapa do Guia do Peregrino, distribuído aos
peregrinos do Caminho das Missões:
292
292
Fotocópia em scanner da gravura e lenda. Fonte: Guia do Peregrino do Caminho
das Missões maio de 2003
Lenda do Lunar de Sepé
Sepé* Tiaraju foi um guarani missioneiro, nascido na redução de São Luiz Gonzaga. Órfão de pai e
mãe foi adotado por um Pe. Jesuíta e transferido para a redução de São Miguel Arcanjo. Desde
cedo manifestou sua liderança, tanto civil com espiritual. Índio valente e bom, lutou contra os
estrangeiros para defender a terra das Missões. Seus irmãos de raça o viam como predestinado
por Deus e São Miguel, e uma pequena cicatriz na testa, em forma de lua assinalava a sua
capacidade sobrenatural. Nas noites escuras ou no combate o lunar de Sepé brilhava, guiando os
soldados missioneiros. Assim, quando ele morreu, na Batalha de Caiboaté vencido pelas armas e
o número de portugueses e espanhóis, Deus Nosso Senhor retirou o lunar de sua testa, e o
projetou no céu do pampa em forma de cruz, para ser o guia de todos os gaúchos: o Cruzeiro do
Sul. (Guia Do Peregrino: 2003, 2).
*Sepé: facho de luz em Guarani
A lenda do Lunar de Sepé, ao contar a história do índio missioneiro Sepé
Tiaraju como defensor das Missões, assinala seu caráter sagrado e suas
características sobrenaturais
,
enfatizando através de sua figura mitológica a
origem da constelação do Cruzeiro do Sul que é reconhecida como o guia dos
gaúchos. A ênfase a esta constelação se justifica pelo próprio caráter de atividade
do projeto turístico a peregrinação. O Cruzeiro do Sul é visto pelo projeto
293
293
turístico como marco geográfico missioneiro, sendo representado como guia dos
participantes do Caminho das Missões. Neste sentido, a narrativa acima enfatiza a
influência da história das Missões, enquanto fato marcante no imaginário popular
que, em conformidade com Evelyne Patlagean em A história do Imaginário, se
constitui no conjunto das representações que remetem a momentos de crise e
transformação, explicados pelos grupos sociais através de histórias, mitos e
lendas, por exemplo. (1989: 291). É também nesta perspectiva que Torronteguy
se refere ao Cruzeiro do Sul:
A lenda é a narrativa de que depois da morte de Sepé seu lunar
transformou-se no Cruzeiro do Sul. Esta constelação existe desde antes
de Sepé ter existido. Os indígenas, os portugueses e os espanhóis a
conheciam. Ela fazia parte do mundo dos guaranis, servia de orientação
geográfica para os europeus, incluindo os jesuítas, pois foi o símbolo
cristão, a cruz, que a nominou. (Torronteguy: 1994, 40).
A explicação do autor para a criação da lenda do Cruzeiro do Sul se calca
na mensagem cristã simbolizada pela cruz o que demonstra também, mais uma
razão da apropriação e produção deste tipo de representação por parte do projeto
Caminho das Missões que escolheu como
mbolo a própria cruz missioneira,
tamm presente na representação da imagem de Sepé Tiaraju que acompanha a
lenda. Desta sorte, o projeto turístico ao relacionar a cruz e dela se apropriar como
mbolo objetiva produzir um elo de ligação entre passado e presente que remete
à própria figura de Sepé Tiaraju, identificando-o com a religiosidade, como um
santo missioneiro São Sepé: Sepé Tiaraju personifica os ideais e as crenças
missioneiras, tanto que o próprio povo o canonizou transformando o corregedor
José Tiaraju em São Sepé. (Guia do Peregrino:7).
O Caminho das Missões, que se constitui em um projeto de peregrinação
turística, tem como modelo, como ressaltei anteriormente, o Caminho de
Santiago de Compostela. Sandra Pesavento no texto acima citado menciona a
aproximação entre a figura de Sepé Tiaraju e de Santiago Matamoros, em virtude
da atuação guerreira de ambos em nome do cristianismo e de suas vocações de
guia. Neste sentido, a autora também cita Aurélio Porto e esclarece a respeito do
nome Sepé: Sepé ou Sape (Ça-pé) seria um designativo ao condutor de homens
294
294
ou caudilho (Pesavento : 2OO4, 7). Nesta perspectiva, ela aproxima Sepé Tiaraju
das tradições espanholas medievais e da Reconquista ao se referir a El Cid
(condutor) e a Santiago Matamoros que, na América hispânica, é introduzido como
Santiago Mata Índios e que se relaciona a Sepé por uma inversão de significado,
já que o último se constitui em mbolo da luta contra a opressão do colonizador.
2004: 12).
As representações efetuadas de Sepé Tiaraju pelo Caminho das Missões
se cingem à produção e utilização de sua imagem pela empresa turística. Os
peregrinos não o evocam como guia ou condutor. Por seu turno, no Caminho de
Santiago a invocação de proteção e devoção dos peregrinos remete ao Santiago
Peregrino, embora se possam encontrar imagens e souvenirs de Matamoros em
Santiago de Composela. Apesar destas observações, percebo uma aproximação
entre as figuras de Sepé e do Matamoros nas representações pictográficas
encontradas na biblioteca do Museu do Peregrino, em Santiago de Compostela,
no Catálogo de Santiago na arte popular e nos santinhos de Sepé Tiaraju em que
ambos estão a cavalos, lutando pela terra em prol da cristandade ocidental que de
alguma forma representam.
Santinho de Sepé Tiaraju (doação Simoni Pirotti. Santa Maria, maio de 2003).
Santiago Matamoros fotocópia extraída do livro Santiago na Arte popular. Museu
das Peregrinações. Santiago de Compostela, Espanha maio de 2004.
295
295
A produção de representações sobre a figura de Sepé Tiaraju enfatizam
determinados aspectos em detrimento de outros, a fim de atender às
necessidades presentes de quem produz as menções, demonstradas através dos
traços que salienta. Estes traços, ao objetivarem evitar o esquecimento de Sepé
Tiaraju, podem ser entendidos como uma postura de comemoração frente ao
passado
missioneiro, no entanto, cada uma das situações de apropriação que
passo a enfocar - o espetáculos Som e Luz e Missões: de arte e corpos, a
produção de monumentos e sua menção pela igreja comportam especificidades
e desdobramentos no presente colocando em jogo a disputa pelo poder simbólico
de nomeação de Sepé Tiaraju e de visões a respeito do passado missioneiro.
3.2 Os monumentos a Sepé Tiaraju
Durante os trabalhos de campo realizados na região das Missões, além das
já mencionadas referências às apropriações do poema O lunar de Sepé e da
Lenda de São Sepé, me deparei com algumas placas e monumentos em sua
homenagem nas cidades de Santo Ângelo e de São Miguel, onde um pórtico
na estrada que dá acesso à entrada da cidade.
Ao analisar a existência e produção de monumentos a Sepé Tiaraju nestes
lugares de memória do passado missioneiro, cabe mencionar uma célebre
discussão ocorrida no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, na
década de 50, a respeito da construção de um monumento para homenagear
Sepé Tiaraju, por ocasião do bi-centenário de sua morte na Guerra Guaranítica. O
parecer foi solicitado pelo então governador do estado ao IHGRS (Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul) após ter recebido a sugestão de sua
construção, por parte do major do exército João Carlos Nobre da Veiga.
Mansueto Bernardi em O Primeiro Caudilho Rio-Grandense apresenta a
discussão e o parecer do Instituto Histórico e Geográfico sobre a proposta da
construção de um monumento a Sepé Tiaraju. O argumento do proponente era de
que:
Ao que tudo indica, era êste verdadeiro brasileiro, na acepção pura da
palavra, o principal chefe dos guaranis na resistência heróica que êstes
296
296
ofereceram ao cumprimento dos artigos do Tratado de Madrid, assinado
por portugueses e espanhóis, em 13 de janeiro de 1750. (...) Sr.
governador, creio que nada mais justo para o povo gaúcho do que
reverenciar, na pessoa do índio Sepé, seu passado de lutas, de glórias e
de sacrifícios, mandando erguer, em homenagem ao bicentenário do seu
desaparecimento em holocausto à pátria um monumento que
personifique o denotado valor e o acendrado apego à terra da figura
mais simpática dos acontecimentos que ensangüentaram as coxilhas rio-
grandenses, na segunda metade do século XVIII. (Bernardi: 1957, 47).
O julgamento do parecer, elaborado pelo Instituto, foi de desaconselhar a
construção do monumento, pelos argumentos que seguem:
A conclusão parece-nos irretorquível: não só é inaceitável o brasileirismo
de Sepé, como ainda não é admissível encará-lo como uma expressão
dos sentimentos, das tendências, dos interesses da alma coletiva, enfim
do povo gaúcho, que se estava formando ao signo da civilização
portuguêsa.
É de acentuar-se, ademais que o Rio Grande do Sul ainda não resgatou
a sua vida cívica com imeros de seus filhos ilustres de significado
histórico, estreme de qualquer incerteza e dúvida e de papel relevante e
expressivo no curso de sua evolução.
Somos, assim, de parecer contrário à proposta feita, no processo junto
ao Sr. Governador do Estado.
(Ass.) Afonso Guerreiro Lima, Othelo Rosa (relator), Moysés Vellinho.
(1955) (1957, 154).
O parecer desfavorável à construção do monumento demonstra a
preocupação de historiadores renomados do Rio Grande do Sul com as
proporções que a questão do passado missioneiro poderia alcançar naquele
momento histórico. Há, por parte do Instituto, a consciência do que pode ser
preservado e enaltecido como patrimônio. A construção de um monumento a Sepé
Tiaraju colocaria em dúvida a brasilidade do povo gaúcho, evidenciaria e poderia
fomentar a luta pela terra por parte de despossuídos, enfim, afrontaria a ordem.
Ele demonstra, assim, a visão
do perigo que a glorificação da experiência
missioneira, na homenagem a Sepé Tiaraju, poderia representar para o estado,
naquele momento.
Segundo Marshall Sahlins, em Cultura e Razão Prática: E é, entre outros
meios, através de uma concretização literal desse código em estátuas que a
história atua dentro do presente, ao mesmo tempo diretamente e através de sua
reapropiação e reavaliação dialética (Sahlins: 1979, 32). Para Daniel Fabre em
297
297
Domesiquer lhistoire: ethnologie des monuments historiques (2000: 21) os
monumentos, sob diversos ângulos, se situam no centro da elaboração das
identidades sociais que os adaptam, ilustrando o trabalho da representação, da
manipulação e da transfiguração, constituindo-se em referentes nas confrontações
teóricas em torno do poder:
Le monument, historique, en particulier sera donc un fait paradoxal, il est
une façon dapprisionner lhistoire au moment simpose lidée quelle
est indechiffrable quant a ses fins dernières tout en étant le seuil lieu du
sens, au plan collective ou personnel. Mais il moigne surtout de la
capacite dauto-construction maintenant devolue à la cite des hommes
qui se veut capable de choisir ses ancêtres et son passé et leur inventer
une forme de célébration. (Fabre: 2000, 22).
20
Desta forma, os historiadores responsáveis pelo parecer que se opôs a
construção de um monumento a Sepé Tiaraju estavam conscientes de que uma
estátua eterniza o personagem, retirando-o do passado para elevá-lo a exemplo
de civismo no presente. E Sepé, por suas trajetória cheia de contradições, não se
enquadrava como ancestral passível ser de celebrado pelo povo gaúcho naquele
momento em que afetaria os rumos da consolidação de identidades coletivas
voltadas à identidades portuguesas e a brasilidade do povo gaúcho. Para os
membros do Instituto Sepé não deveria ser imortalizado como figura histórica, pois
em torno dele pairava um mito (Bernardi: 1957, 152), que desvirtuava de certa
forma sua credibilidade histórica. Este argumento demonstra a consciência da
impossibilidade de celebrar, através da produção de materialidades, uma figura de
caráter ambíguo em virtude do perigo de sua apropriação simbólica e suas
conseqüências sociais.
A polêmica gerada pela proposição da construção de um monumento a
Sepé Tiaraju é enfocada por Letícia Nedel, no contexto da produção de pareceres
históricos pelo IHGRS utilizados em ações práticas, tais como a elaboração do
20
O monumento histórico em particular será então um fato paradoxal, ele é uma forma de
aprisionar a história no momento em que se impõe a idéia de que ela é indecifrável quanto a seus
fins últimos, sendo só lugar de sentido no plano coletivo ou pessoal. Mas ele testemunha acima de
tudo a capacidade de auto construção atualmente desenvolvida na cidade dos homens que se
considera capaz de escolher os seus ancestrais e seu passado e lhe inventar uma forma de
celebração.
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298
calendário festivo regional, construção de obras, liberação de verbas para acervos
de museus e bibliotecas, monumentos, etc. Segundo ela o parecer contrário à
construção de estátua a Sepé se relaciona a uma oposição à aceitação da própria
origem hispânica da história do Rio Grande do Sul:
A ocupação das Missões pelos jesuítas chegou a ser excluída de sua
história em prol da ocupação portuguesa (a partir da construção do forte
de Jesus Maria José em Rio Grande em 1737), que era oficialmente
considerada pelo IHGRS como marco de fundação do estado. Assim, no
panteão heróico local, o lugar de Sepé Tiaraju foi substituído em parecer
(...) pelo de Rafael Pinto Bandeira, prócere da resistência de Rio Pardo
aos espanhóis expulso em 1756, e por eles apelidado o fronteiro do sul.
(Nedel: 2002, 3).
Creio que a seu argumento da filiação lusitanista do IHGRS deve se somar
a representação que os historiadores que produziram o parecer construíram a
respeito da figura de Sepé Tiaraju como inaceitável por suas identidades
liminares. A menção ao mesmo e sua inserção no terreno do mito denuncia o
argumento preconceituoso dos componentes do IHGRS, pois a sua alegação de
que mito e história não devem se misturar demonstra dialeticamente seu temor
acerca da força do próprio mito que seria reforçado pela materialidade da estátua
a Sepé. O fato é que naquele momento o caráter da identidade liminar, e por isso
danosa, atribuída a Sepé foi preponderante
.
A disputa representacional entre a perpetuação da memória da figura já
reconhecida como mito de domínio popular e a sua condenação ao esquecimento,
conforme o parecer do IHGRS, ilustra que a perpetuação da memória em termos
oficiais não pode comportar contradições. A figura de Sepé Tiaraju foi percebida
pelos membros do IHGRS que assinaram o parecer como uma flagrante
contradição com o processo histórico sulino. O Rio Grande do Sul deixou de ser
espanhol no século XVIII e passou a ser português com a tomada das Missões.
Assim, como enaltecer através de uma estátua a figura de Sepé Tiaraju? Se não
era português, nem ao menos espanhol. Não era tampouco índio guarani, pois
fora educado de acordo com os valores cristãos dos jesuítas. Sobretudo a
liminaridade principal de sua identidade criticada, certamente, se referia à questão
da luta pela terra no estado, naquele momento. Se não pertencia a quaisquer
299
299
desses mundos, se sua figura era tão controversa, deveria ser condenada ao
esquecimento, pois a terra gaúcha pertencia ao Rio Grande português e brasileiro
a que deu origem.
A expulsão de Sepé para o terreno do mito reforçou a aceitação da
recepção de sua figura, a partir daquele momento, porque o Sepé representado e
glorificado nas narrativas é apresentado com extrema cautela como um índio,
(passível de ser aceito), ao encerrar valores cristãos e não guaranis, sendo ora
representado como santo popular, ora como herói missioneiro que subiu aos céus
como cruzeiro, por suas virtudes cristãs.
Neste sentido, a produção das materialidades na região das Missões pode
ser vista como uma vontade de perpetuação do herói missioneiro por sua luta,
mas as representações de Sepé em monumentos não são solitárias, exclusivas de
sua figura, com exceção de uma pequena estátua que se encontra no museu da
cidade de Santo Ângelo, em que Sepé aparece representado como um índio
seminu segurando uma lança. Nas duas outras representações observadas o
herói missioneiro não está só.
Em frente ao teatro Antonio Sepp em Santo Ângelo, há um monumento com
três figuras indígenas, uma espécie de podium, onde a figura de Sepé ocupa a
posição central, abaixo da qual a inscrição Esta terra tem dono. A placa ao
lado do monumento possui os seguintes dizeres:
Foto 10 Monumento à família missioneira Santo Ângelo abril 2003; Autoria:
Ceres Karam Brum;Fonte; Acervo Pessoal; P&B (original colorido); (tamanho
10x15); fotografia fotocopiada em scanner e reduzida (5x7).
300
300
Homenagem aos índios das reduções jesuítico-guarani, em especial a SepéTiarajú, líder da
resistência indígena durante a Guerra Guaranítica 1754 à 1756 que morreu lutando pelo direito
das terras missioneiras.
Santo Ângelo, 25-05-1993.
Administração Municipal 83/86
Monumento em 25-12-1967
Administração Municipal 64-67
Projeto: Rockenbach
Executor: Nadel
A homenagem à família missioneira pretende remeter a Sepé Tiaraju, como
exalta sua atuação, a placa que acompanha o monumento, mas por que então
Sepé não aparece sozinho? É admirável que em plena ditadura militar o passado
missioneiro tenha sido
exaltado na figura de um herói tão controverso em termos
de brasilidade. A resposta para a questão acima pode ser encontrada mais
recentemente no Pórtico de São Miguel, de autoria do artista de Santo Ângelo
Tadeu Martins, inaugurado 35 anos depois do monumento à família missioneira.
Nele Sepé Tiaraju também não está só. Apesar de ser duplamente representado
no seu centro e em uma de suas colunas laterais, ele vem acompanhado de
outros personagens da história da região como o padre Antonio Sepp e o tropeiro
Cristóvão Pereira de Abreu.
Neste sentido, é preciso salientar que a figura de Sepé Tiaraju, apesar de
extremamente homenageada, é ainda considerada e percebida como perigosa por
301
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suas peculiaridades e a pluralidade de suas representações nos mais diversos
trajes de índio seminu, índio missioneiro e em trajes de guerreiro branco, bem
como as muitas formas como é escrito o seu nome (José Tiarayú, José Tiaraju,
Sepé Tiarayú, Sepé Tiaraju e Sepé Tiarajú), denotam uma certa confusão
representacional a que se somam sua vinculação com a questão da posse da
terra e da relação estabelecida com os índios ao longo do processo histórico
sulino.
3.3 A performance de Sepé nos espetáculos sobre as Missões
Observei referências a Sepé Tiaraju também através da encenação de dois
espetáculos na região das Missões: o teatro histórico Som e Luz e a performance
do Grupo Teatrodança Vida em Arte, cuja apresentação do tema Missões de
Raça e Corpos assisti em Santo Ângelo.
O Som e Luz, como ressaltei, é o principal espetáculo turístico das
Missões gaúchas. Nele o mito de Sepé Tiaraju é ritualmente encenado
diariamente, à noite, nas ruínas de São Miguel e apresenta uma visão do passado
missioneiro através da produção de uma representação calcada na expressão dos
elementos naturais e materiais que compõem o seu cenário na atualidade e que
surgiram durante a experiência missioneira passada, bem como através da
apresentação de seus protagonistas principais que são chamados a dar seu
depoimento, contando o que realmente houve e porque, na atualidade, apenas
existem as ruínas, enquanto testemunhas daqueles tempos. Sepé Tiaraju é
apresentado como um dos protagonistas deste passado. Através da
representação de sua atuação é forjada sua imagem de herói, sendo a ele, sua
memória e feitos relevantes que o espetáculo é dedicado ao enfatizar sua luta pela
terra e as razões de sua morte em prol das Missões e da justiça.
Sepé é inicialmente apresentado como um líder da Redução de São Miguel,
um cacique que, como corregedor, faz parte do Cabildo, tendo poder de decisão e
influência sobre seus pares guaranis. O modelo de virtudes cristãs que encerra,
em razão da formação jesuítica que recebeu nas Missões, se insurge contra a
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notícia da disposição do Tratado de Madrid de trocar os Sete Povos das Missões
pela Colônia do Sacramento. É nesta conjuntura que ocorre sua célebre
manifestação: - Esta terra já tem dono. Deus e São Miguel a entregaram.
Frente à irredutibilidade da decisão da troca das terras missioneiras, Sepé
Tiaraju se converte em seu defensor primordial, desobedecendo à posição dos
próprios padres jesuítas de entregar as terras missioneiras e passa a lutar pelas
mesmas contra os exércitos unidos das duas coroas. A representação de sua
figura abrange dois pontos principais: o Sepé guerreiro e o líder político. Ambos os
aspectos não se dissociam e da mesma forma que o espetáculo enfoca sua
ferocidade na defesa das terras missioneiras, também o representa como um
estadista que não se dobra aos caprichos dos comandantes estrangeiros ibéricos.
Neste sentido, a visão de Portugal e Espanha de considerá-lo como um
bugre, ignorante, é atacada por sua própria atuação que ressalta ofensivamente o
caráter de impostor dos exércitos inimigos. Num encontro entre as duas partes
uma tentativa de intimidar e humilhar o líder guarani, termina com o convite do
próprio Sepé para que o comandante português beije as patas do seu cavalo em
respeito à terra missioneira, para quem os ibéricos são representados como
usurpadores. Sepé, em contrapartida, é representado à luz da hipocrisia aos olhos
luso-hispânicos como um insolente, bárbaro e guerreiro ladino no comando da
resistência guarani.
O embate simbólico entre as lideranças e o tratamento de companheiro,
atribuído a Sepé por seus pares guaranis, ilustra a produção de uma
representação do passado missioneiro, na década de 1980, através de categorias
que lhe são exteriores e extemporâneas. A utilização dos
termos burocracia para
caracterizar os reinos ibéricos, bem como democracia e comunismo como
peculiaridades do passado missioneiro merecem ser lembrados, no sentido de que
objetivam produzir, através de analogias com o mundo contemporâneo, a visão
das Missões como uma civilização perfeita e igualitária e dos reinos ibéricos como
a própria imagem da cobiça, hipocrisia, desunião e deslealdade com os vassalos
missioneiros, numa ausência de critérios históricos e ideológicos de aplicação dos
303
303
termos acima, que pretendem pedagogicamente construir um imaginário favorável
de aceitação do passado como testemunho de um massacre.
A representação da morte de Sepé Tiaraju é mostrada pela recusa do índio
de parar de lutar: eu quero viver, evitando aceitar o seu fim, sendo ferido por
uma lança de origem espanhola e um tiro de misericórdia alardeado pelo
comandante do exército português. Essa dupla morte do herói pode ser entendida
pela superação dos inúmeros desacordos que caracterizaram a atuação da
comissão demarcatória de limites, bem como para impingir a significação da
atuação danosa dos representantes portugueses e especialmente dos espanhóis
a quem pertenciam as Missões.
O espetáculo ilustra, por fim, a troca de comando das tropas guaranis que
passam a ser dirigidas por Nicolau Languiru, após a morte de Sepé, e a tomada
das Missões a partir da invasão de São Miguel. A partir daí o espetáculo adquire
um tom de acerto de contas com o passado missioneiro e o trabalha em termos
de memória, objetivando construir uma lição a partir dessa experiência passada.
Isto é efetuado através da fala de Sepé Tiaraju:
Terra que circula em nossos corpos,
é teu o nosso trabalho.
Ventos claros, rios prateados,
independência natural,
esposa comum. Liberdade.
É por ti a nossa luta, e toda a nossa lealdade. (Texto do Som e Luz ; recebido por e-mail)
Sepé Tiaraju é representado como um bravo de idéias próprias, defendendo
o que é apresentado como os valores cristãos de liberdade, igualdade e
fraternidade mescladas à idéia de democracia e de telurismo aguerridos na defesa
do pago, da terra como um valor sagrado e preponderante. O índio Sepé fica
subjugado à sua representação romântica, num misto de herói iluminista e
socialista utópico.
O espetáculo aproveita uma multiplicidade de representações acerca das
Missões e de Sepé Tiaraju. As mais evidentes são as representações acolhidas do
polêmico trabalho de Clóvis Lugon (1977) A república comunista cristã dos
guaranis - com relação à construção do modelo comunitário das reduções
produzido pelo espetáculo, bem como a própria utilização do poema O Uraguai de
304
304
Basílio da Gama (1769) na composição da figura heróica do índio romântico Sepé
Tiaraju.
A recepção destas representações e sua re-elaboração pelo espetáculo se
inserem numa perspectiva de circulação entre análises historiográficas e literárias
das Missões, com sua ressemantização para a produção de um imaginário,
através de uma linguagem popular que alcance a maior parte do público as
escolas de todo estado que vem assistir ao espetáculo. A construção de um
imaginário favorável não pode ser descolada da construção do mito de Sepé
Tiaraju que creio configurar-se no seu carro chefe.
Da recepção desse espetáculo pelo público é possível dizer que o Som e
Luz se configura no mais importante disseminador de informações a respeito do
passado missioneiro no Rio Grande do Sul, ultrapassando mesmo a produção dos
historiadores sobre as Missões. Por se constituir em uma representação show de
linguagem popular a que milhares de pessoas já assistiram, ele é o grande
responsável pela produção do mito de Sepé Tiaraju e das Missões como uma
civilização igualitária inspiradora de doutrinas e filosofias da mesma ordem. Neste
sentido, sua recepção pelo público é responsável tamm pela estática e
impossibilidade de percepção do presente missioneiro (as transformações
ocorridas na região) e de seus atores, especialmente, como já destaquei em
momentos anteriores, com relação aos mbyá-guaranis.
Ele é um dos agentes primordiais do turismo em São Miguel e se encarrega
de produzir mitos a serem cultuados deste passado. Creio que mais referidos fora
da região das Missões através da circulação de informações levadas pelos turistas
e estudantes, do que no seu interior, onde a menção ao passado está expressa
nas ruínas, bem como na produção de materialidades como as placas, os
monumentos e o pórtico de São Miguel.
21
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Além do Som e Luz há, nas Missões, uma série de manifestações artísticas que tem como
temática o passado missioneiro, observáveis nas feiras de artesanato dominical de Santo Ângelo e
nas obras do artista plástico Tadeu Martins, por exemplo. É de sua autoria o inacabado e polêmico
mural da catedral Angelopolitana que não foi concluído, por ter sido considerado pela população
impróprio para uma igreja por possuir índios nus. São também de sua autoria os painéis da
Prefeitura municipal de Santo Ângelo, o pórtico de São Miguel e imeras telas e composições
nativistas que remetem às Missões e seu passado. O foco deste artista plástico é a saudade como
tema da vida das pessoas, o ser missioneiro, o gaúcho e o índio, além da mitologia missioneira.
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Embora com dimensões de recepção bem mais limitadas, o Grupo
Teatrodança Vida em Arte, de Santo Ângelo vem apresentando algumas
performances que remetem ao passado missioneiro, como o tema Missões de
Raça e Corpos a que assisti na Universidade Regional Integrada de Santo Ângelo.
na abertura do espetáculo percebi uma perspectiva cristã da análise do
passado missioneiro ligada a crítica social dessa herança:
ODA: - É inútil o batismo para o corpo, o esforço da doutrina para ungir-nos, não coma, não beba,
mantenha os quadris imóveis. Porque estes não são pecados do corpo. Á alma sim a esta batizai,
crismai, escrevei para ela a imitação de Cristo. Nosso corpo ameríndio. Corpo temeroso,
envergonhado de si. Desejoso de ocultar sua origem, apagar a culpa inscrita em sua carne e seu
sangue. Corpo índio colonizado! (Roteiro da apresentação: 2003, 1).
O espetáculo se constitui na interpretação coreográfica de textos, canto e
dança de uma leitura da história das Missões que relaciona o passado ao
presente, enfocando especialmente a questão indígena na formação das
identidades missioneiras na atualidade. Conforme o texto da segunda parte da
coreografia intitulada Procissão de Santo Izidro:
ODA - De tudo isto restaram pedras, lendas e o imaginário popular passando através das
gerações.
TODOS -.Tornando-se uma verdadeira herança para o surgimento da temática missioneira.
ELIS - Em cada canto da região onde se ergueram os Sete Povos, ainda paira uma sombra do
passado, como que saudando o presente, para afirmar diante das incertezas do futuro...
TODOS - Que esta terra tem dono e onde provavelmente nós somos os invasores (grifo meu)
ADE - Que ontem expulsaram os jesuítas e hoje confinam o que restou de uma raça em reservas
indígenas. (Roteiro da apresentação: 2003, 1).
A representação produzida pelo grupo é de uma história crítica e engajada
que defende a inclusão das populações originárias e relaciona o passado
missioneiro com a religiosidade da região, com uma proposta social de defesa do
índio, numa perspectiva cristã. Sua visão não é de comemoração do passado,
mas objetiva suscitar reflexão sobre o mesmo, a partir de um trabalho artístico
Um dos projetos do artista é construir um parque temático sobre as Missões no município de São
Miguel das Missões. Entrevistei Tadeu Martins em Santo Ângelo em 16/09/2003. Sobre uma
análise da produção de arte nas Missões consultar de Liane Nagel sua tese de doutorado em
história PUC/2003, ainda não disponível para consulta..
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306
alicerçado nas concepções da Teologia da Libertação, conforme me informou o
coordenador do grupo Odailso Berté.
Uma análise dos espetáculos referidos remete a dois tipos de relações: a
de comemoração e a de acerto de contas, estabelecidas com o passado
missioneiro. No entanto em ambos os casos uma perspectiva de mitificação e
apologização deste passado através do enfoque da figura de Sepé Tiaraju que, no
Som e Luz, é representado como o ancestral dos gaúchos se constituindo em seu
mito fundador ao lutar em defesa da terra das Missões. O Sepé Tiaraju
representado no Missões: de raça e corpos, por outro lado, se inscreve em um
outro campo semântico, sendo relacionado como o protetor dos oprimidos,
embasando o mito de um eterno retorno, do acerto de contas e do resgate com a
dívida histórica das Missões aos despossuídos, em especial os índios na
atualidade.
Em ambas as performances do mito um interesse na produção de uma
consciência histórica sobre o passado para ser utilizada no presente relativa a
construção de um projeto político futuro, conforme as salientadas perspectivas
de Habermas (1985: 258) e Ricoeur (1985: 340). Creio que questão primordial a
ser analisada a partir desta possibilidade de produção de uma dupla consciência
histórica, através das apropriações de uma mesma figura lendária, está no duplo
fato da lógica que permite que suas características liminares sejam apropriadas de
formas opostas. Bem como, de como se dão os usos públicos da figura de Sepé
Tiaraju e suas conseqüências na construção de identidades do Rio Grande do Sul,
na atualidade.
Provavelmente, o que possibilita que a história interiorizada das Missões,
na exaltação da figura de Sepé Tiaraju seja vivida como mito por diferentes grupos
sociais seja justamente seu caráter ambíguo e liminar como produtor de sentido e
garantidor da eficácia do mito ao conseguir responder as demandas ideológicas
dos grupos.
Conforme destaquei, para Lévi-Strauss: o objeto do mito é fornecer um
modelo lógico para resolver uma contradição (Lévi-Strauss:1996, 264). Para
quem o aciona, em se tratando de Sepé Tiaraju, a aquisição de sentido está na
307
307
capacidade de resolução de questões presentes ao remeter ao passado fundador
as Missões e suas interpretações, Neste sentido, a força do mito de Sepé
Tiaraju está no caráter estrutural deste impulso intelectual que não se esgota, ao
contrário, se afirma cada vez mais a cada nova disputa em torno da de sua figura
e da interpretação de sua célebre colocação Esta terra tem dono em suas
utilizações, como abordarei a seguir.
3.4 Esta terra tem dono? Um santo missioneiro nas disputas de terra do
estado
No conjunto das representações produzidas em torno da figura de Sepé
Tiaraju, a polêmica proposta de sua canonização, noticiado pela imprensa
gaúcha
22
, já mencionada no começo deste item, adquiriu desdobramentos de
amplas dimensões ao remeter, através de seu caráter místico, às disputas de terra
entre laifundiários e MST, na região de São Gabriel, centro oeste do Rio Grande
do Sul.
De acordo com o irmão Cecchin,
23
cada vez mais a figura de Sepé vem se
distanciando dos CTGs, onde era muito cultuado, e se aproximando dos pobres.
Segundo ele, essas transformações começaram a partir de 1960, num contexto de
transformações no interior da igreja em relação aos oprimidos. A questão indígena
começou a ser revista e esses passaram a ser apresentados como excluídos da
história oficial, se configurando, desta sote, em sujeitos potenciais a serem
22
O jornal Zero Hora do dia 21/01/2003 noticia a proposição da canonização do índio Sepé Tiaraju
morto em 1756, durante a Guerra Guaranítica..
23
O contato com as informações que analiso a seguir se deu a partir de uma entrevista que
realizei com o irmão marista Antonio Cecchin em Porto Alegre, com o objetivo de conversarmos
sobre a campanha em prol da canonização de Sepé Tiaraju. Logo na minha chegada, antes de
começarmos a entrevista, ele me perguntou de que lado eu estava com relação a disputas de terra
que vinham ocorrendo na região de São Gabriel. Coincidência ou não, sou natural do município e
vivi por 17 anos. Assim, conheço alguns dos latifundiários envolvidos na disputa, bem como a
família do proprietário, cujas terras estão em processo de desapropriação. Expressei ao irmão
Antonio o que relatei acima e temerosa de não conseguir efetuar a entreista, mencionei a ele
também que percebia a importância da marcha na região e o significado que uma desapropriação
daquele porte adquiria para o MST, enquanto proposta concreta de Reforma Agrária no sul do
Brasil.Dito isso começamos a conversar e eu me surpreendi diante da conotação que a figura de
Sepé Tiaraju vem adquirindo, nas últimas décadas a partir da atuação do próprio irmão Ccechin.
Entrevista realizada em Porto Alegre, 26/07/2003.
308
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incorporados por suas atividades através de um processo de resgate como
mártires, com o intuito de propiciar sua integração ao sistema de crenças da nova
igreja que surgia, baseada na Teologia da Libertação.
Fotocópia em scanner da reportagem Zero Hora de 21/01/2003
Ao me relatar sua história, inseriu as referências a São Sepé em sua
trajetória como participante da Teologia da Libertação na América Latina, através
de sua atuação junto as Comunidades Eclesiais de Base - CEBs - , de que é
atualmente acessor. As menções a Sepé Tiaraju iniciaram a ser efetuadas por ele
a partir de 1977, após retornar de um período no Vaticano em que trabalhou como
assistente do Secretário Geral da e onde teve contato com a Teologia da
309
309
Libertação que prega uma igreja cuja opção é pelos pobres, baseada na práxis
social, de acordo com Gustavo Gutiérrez em Teologia de la liberación (2003; 75).
No texto O Retorno de São Sepé escrito em agosto de 2003, o irmão
Antonio Cecchin aborda a relação de São Sepé Tiaraju com os fatos que estavam
ocorrendo na região de São Gabriel. Sobre sua trajetória e o surgimento da
devoção:
No final da década de 60 houve na Igreja Católica Latino-americana, a grande virada da opção
pelos pobres. Surgiram pela força do Espírito, as Comunidades Eclesiais de Base, tanto na roça
como na cidade. Foi o tempo de primavera dentro da Igreja, segundo os dizeres do Papa João
XXIII. Tempos do Concílio Vaticano II para o mundo, e tempos de Medellín para a América Latina.
Passamos a ler a história do Brasil sob o ponto de vista dos vencidos, sempre os pobres e os
fracos.
Completavam-se, no ano de 1978, os trezentos anos da presença do cristianismo em terras
gaúchas, com a fundação da Missão de São Borja. O episcopado riograndense decidira que o
ponto culminante das comemorações do tricentenário, seria a peregrinação por todas as dioceses,
do coração do Padre Roque - sacerdote jesuíta mártir missioneiro conservado em relicário,
trazido da cidade de Buenos Aires.
Sobre os índios pairava durante séculos, a pecha de assassinos dos padres no Caaró, Rio Grande
do Sul. Continuariam eles ainda a ser os vilões dessa história tão mal contada? As CEBs,
juntamente com o CIMI (Centro Indigenista Missionário), obedientes à sugestão de nosso bispo
profeta e poeta, Dom Pedro Casaldáliga, decidiram então proclamar 1978 como o ano dos mártires
indígenas de toda a América Latina, a mesmo como preparação para o Encontro Latino-
americano de Puebla de 1979, comemorativo dos 10 anos de Medellín. (Cechin: 2003, 4).
Foi neste contexto, identificado por Antonio Cecchin como de inúmeras
transformações no interior da igreja, que começou a ser revista a relação da
mesma com os oprimidos. Os índios aparecem como excluídos da história oficial e
passam neste sentido a serem integrados às suas atividades através da atuação
da mesma que passa a resgatá-los como mártires, a fim de propiciar sua
integração ao sistema de crenças da nova igreja que surgia. As menções aos
índios, apesar da participação do CIMI, relatada por ele, não ocorrem a partir das
comunidades indígenas, mas através da nova igreja que tem por objetivo um tipo
de integração diferenciador, no sentido de que a promoção dos mártires indígenas
não é direcionada a integrar o índio, mas a fornecer um elemento identificador
para ser cultuado pelos pobres, em geral, onde o passado de lutas é utilizado para
pontuar a atuação evangélica do presente. Assim, em 1979, as atividades
relacionadas a Sepé Tiaraju ocorreram no local do seu martírio, conforme o relato
de Antonio Cecchin:
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A abertura solene do ANO DOS MÁRTIRES se deu na periferia de São Gabriel, no Caiboaté, que
foi o lugar da hecatombe, com os milhares de índios mortos, comandados pelo valente cacique
Sepé. O encerramento das comemorações do Ano dos Mártires, no dia 8 de dezembro, foi nas
Ruínas de São Miguel das Missões, na catedral em que foi batizado São Sepé e da qual saiu com
seu exército de guaranis, para embeber seu sangue todo na terra que queria para seu povo.
Neste encerramento, foi lançada a Missa da Terra Sem Males, tamm chamada Missa em honra
de São Sepé, ou ainda Missa da Ecologia, de autoria de Dom Pedro Casaldáliga e Martin Coplas.
Em 1979 e 1980, as CEBs foram novamente à periferia de São Gabriel, especificamente na Vila
Tiaraju, para a segunda e terceira Romarias da Terra. De então a esta parte, romarias se realizam
todos os anos, na terça-feira de carnaval, em honra do mártir primeiro das lutas pela terra,
reunindo cada ano não menos de 30 mil pessoas. (Cechin: 2003, 4-5).
Assim, a partir de São Gabriel se iniciam as atividades de exaltação a figura
de Sepé Tiaraju, como uma devoção popular indígena, forjada no seio da própria
igreja, sendo direcionada ás questões da terra com que Sepé se identificou no
passado e com quem a igreja o representa como identificado no presente. O
surgimento da mesma se fora da região missioneira do estado, mas numa
região de identidade missioneira em razão de questões do passado colonial a que
se relaciona. Neste movimento, as atividades programadas pela igreja libertária,
tamm passam a atingir as Missões através da realização da Missa daTerra Sem
Males, numa tentativa de inclusão da comunidade missioneira a sua causa. Desta
vez através da apropriação do espaço das ruínas da redução.
A produção da mística de Sepé Tiaraju para animar os pobres em sua
jornada, conforme se referiu Antonio Cecchin (diário de campo 4) passou a ser
produzida pela igreja de diversas formas nos últimos 25 anos, tais como: missas,
romarias
24
e, mais recentemente, a produção de santinhos em que Sepé Tiaraju
aparece vinculado à questão das lutas pela terra no estado. A própria Missa da
Terra sem Males, numa alusão cristianizada do mito guarani, se insere neste
contexto. Na apresentação do texto da Missa D. Pedro Casaldáliga explica seu
surgimento e seu nome:
24
Valéria Aydos no texto A invenção do mito de Sepé Tiaraju (2004: 58) a caracteriza como um
ritual produtor de identidades coletivas que reúne militantes políticos e excluídos em geral.
Segundo ela a figura de Sepé Tiaraju é reinventada como mito de origem das batalhas no campo
no Rio Grande do Sul a partir da romaria. No entanto, a produção do mito, como ressaltei,
remete a uma pluralidade de situações em que o sentido conferido pelo grupo a sua figura es
diretamente relacionado com os seus interesses, como no caso enfocado da disputa entre os
laifundiários e o MST.
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311
Pensou-se primeiro numa missa missioneira em torno das Missões dos Sete Povos Guarani.
Assim me pediu o irmão marista Antonio Cecchin, gaúcho, arrependido revisador da história mal
contada, cronista apaixonado da caminhada do Povo, catequista da Libertação, também
perseguido no Templo e no Pretório. (...)
Eu sou América, sou o Povo da Terra
da Terra sem males
o Povo dos Andes,
o Povo das Selvas,
o Povo dos Pampas
o Povo do Mar...
Do Colorado
de Tenochtitlan,
do Machu-Pichu,
da Patagônia,
do Amazonas
dos Sete Povos do Rio Grande....
Os guaranis filhos da grande nostalgia, buscadores incansáveis da terra sem males, dariam o
utópico tom político e tamm escatológico. A Terra sem males que a mística guarani
secularmente vem procurando, num êxodo comovente, é uma terra posvel, o dever fundamental
da História Humana, a tensa alegria da nossa esperança em Jesus Cristo, o Senhor Ressuscitado,
o novo Céu e a Terra Nova que o Pai Deus jurou a seus filhos. (Casaldáliga: s/d,3-4).
A Missa da Terra sem Males, que foi produzida enquanto atividade
missionária, surge como parte das atividades da Teologia da Libertação na
América Latina, no contexto acima assinalado de reavaliação da história e da
trajetória da Igreja no continente, num aproveitamento claro da cosmologia guarani
pois, segundo se pode depreender das palavras do próprio autor, a
coincidência em ambas as buscas (do povo guarani e da igreja) de uma terra
possível.
Santinho de Sepé Tiaraju e Oração. Doação irmão Antônio Cecchin Porto Alegre
julho de 2003.
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O tom utópico, político e escatológico destacado pelo autor com relação aos
guaranis e sua celebração na catedral de São Miguel são elementos que se
somam e se repetem em uma proposta moderna de evangelização que reproduz,
como estratégia, um recurso simbólico utilizado no passado missioneiro pelos
próprios jesuítas, que forjaram a identificação das Missões ao mencioná-la com a
Terra da Promissão, numa alusão clara ao mito guarani, conforme o relato da
transmigração de São Miguel para São João Batista efetuada pelo padre Antônio
Sepp e relatada no texto Viagens ás Missões Jesuíticas e trabalhos apostólicos
(Sepp: {1710}1980: 235), já referida nas Considerações Preliminares deste texto.
Nesta nova proposta missionária da teologia da libertação, a questão
política é trabalhada e reconhecida em prol dos pobres, como doutrina de
movimentos sociais de que se aproxima, como no caso dos Sem-Terra, apontado
por Antônio Cecchin como palco de devoção a Sepé Tiaraju. Ele o considera um
santo político protetor dos pobres, que atualmente acompanha os sem terra, que
carregam o estandarte de Sepé em suas marchas como sinal da devoção.
25
Há,
neste sentido, uma relação entre a Comissão Pastoral da Terra e o MST,
25
Neste mesmo sentido Valéria Aydos (2004: 39) menciona: em cada romaria na performance do
evento (a bandeira de Sepé Tiaraju era porada por um grupo de sem-terra) e também no discurso
dos participantes.
313
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destacada por Zander Navarro no texto Mobilização sem emancipação; as lutas
sociais dos sem-terra no Brasil (2001: 12 e 21). Para o autor, embora menos
influente do que no passado, a CPT, a partir de 1998 funciona como
departamento religioso do MST, sendo tamm responsável pela produção da
mística do movimento a que se somam um ethos militarista e a devoção quase
religiosa de seus miliantes (2001: 20).
Apesar de ainda não ter encontrado nenhuma referência a Sepé Tiaraju, na
região missioneira, enquanto religiosidade popular acionada por fiéis e de não ter
ainda observado diretamente quaisquer atividades do MST no estado, creio que
uma forte ênfase por parte desta facção da igreja e pessoalmente por Antônio
Cecchin, na divulgação da figura mitológica de Sepé Tiaraju do que uma devoção
popular propriamente dita. Segundo ele não milagres registrados de autoria do
santo e apenas uma devota lhe procurou para relatar uma graça alcançada.
Creio que a devoção a São Sepé vem sendo produzida ao longo dos
últimos 25 anos e vem garimpando fiéis, neste sentido, entre aqueles a que a
figura de Sepé possa interessar como representação plausível de ser utilizada
como mbolo e, neste sentido, é tamm utilizada pela igreja que apóia e se
encarrega de produzir a mística para o movimento social. Tais fatos podem ser
ilustrados pela atuação e produção do irmão Antônio Cecchin que em momento
nenhum da sua jornada residiu próximo à região missioneira (suas atividades
evangélicas se desenvolveram prioritariamente em Porto Alegre, onde hoje
coordena atividades junto aos papeleiros da cidade), mas que demonstra uma
intensa preocupação com a história de Sepé Tiaraju e a divulgação do seu
exemplo, no presente a partir de suas qualidades sagradas. Neste sentido, em
1977, ele produziu e compilou o que me descreveu como um panfleto
mimeografado intitulado São Sepé Tiaraju rogai por nós objetivando divulgar sua
história e justificar sua utilização pela igreja.
O referido planfleto se constitui numa coletânea de representações acerca
de Sepé Tiaraju que inclui a letra de uma música regionalista de autoria de
Barbosa Lessa em homenagem a Sepé Tiaraju, o poema O lunar de Sepé,
documentos históricos como artigos do Tratado de Madrid (1750) e cartas
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trocadas em 1753 entre o governador de Buenos Aires, D. José Andonaegui e os
padres dos povoados de Santo Ângelo e São Luiz Gonzaga, a fim de ilustrar a
trajetória guerreira de Sepé Tiaraju. Inclui ainda explicações sobre a Teologia da
Libertação e a relação que a mesma estabelece com Sepé Tiaraju, como
encerramento do panfleto:
E nós nos perguntamos: tivesse vingado (em lugar da igreja atrelada ao colonizador) a igreja dos
Sete Povos, como seria hoje o Rio Grande Cristão?
Entre tantas e profundas diferenças, talvez uma delas seria Sepé na glória de Bernini, oficialmente
canonizado ao lado de Nenguiru e outros.
Para garantir o povo de Deus em cultura guarani, qual novo Moisés, São Sepé morreu lutando
para garantir a terra. Sem a Terra do Sem Males não há povo de Deus.
Em que seria inferior São Sepé a Santa Joana darc, só para citar um exemplo? Santa esta que só
foi canonizada em 1922.
Em todo o caso para o povo guarani e para o povo simples do Rio Grande do Sul as coisas
estão resolvidas há muito tempo: São Sepé é santo, ele é um protetor. (Cecchin:1977, 45).
A alusão a Sepé Tiaraju é clara e tem por objetivo transformá-lo em santo,
embora este seja percebido como já canonizado popularmente. Esta
representação de Sepé Tiaraju aproveita as contradições da história missioneira e
de seus atores, pois o que é apropriado de sua figura, em prol de uma igreja dos
oprimidos, é justamente o que é visto como perigoso pelo poder instituído a
questão da terra e sua essência guarani de rebeldia, de luta pela mesma e da
busca da Terra sem Males em oposição à atuação da própria igreja colonizadora,
a quem de certa forma se vinculou Sepé por ter sido educado pelos jesuítas.
Assim, dentro da própria igreja como instituição, oposição à canonização de
Sepé pela dubiedade que encerra, como ressaltei, no princípio deste tópico, ao
mencionar a posição do historiador jesuíta padre Antonio Rabuske com relação as
máculas de Sepé acusado de indisciplina e homicídio de um jesuíta.
A polêmica da canonização e exaltação de Sepé Tiaraju demonstra uma
disputa simbólica no seio da igreja em prol de sua memória versus seu
esquecimento, uma vez que o mesmo vem sendo representado como relacionado
a questões sociais polêmicas como a reforma agrária. Questões que não são
unânimes dentro da igreja como instituição. Assim, o poder de representar Sepé
Tiaraju se encontra em disputa simbólica dentro inicialmente da própria instituição
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e concomitantemente no centro-oeste do estado em que os ruralistas e o MST
disputam sua figura através da produção de representações.
Da parte dos ruralistas uma crítica a apropriação efetuada pelo MST,
acusando os mesmos de desvirtuar a célebre frase de Sepé Tiaraju Esta terra
tem dono, pois ao possuírem seus títulos de propriedade se consideram os
legítimos donos de suas terras e criticam as possíveis desapropriações como
ilegais e injustas, conforme demonstra o manifesto de tom fascista distribuído na
região que lhes é atribuído:
GABRIELENSES DIZEM NÂO À INVASÂO E A SEUS APOIADORES
Povo de São Gabriel, não permita que sua cidade tão bem conservada
nesses anos, seja agora maculada pelos pés deformados e sujos da escória
humana. São Gabriel, que nunca conviveu com a miséria, terá agora que abrigar o que
de pior existe no seio da sociedade.
Nós não merecemos que essa massa podre, manipulada por meia dúzia de
covardes que se escondem atrás de estrelinhas no
peito, venham trazer o roubo, a violência, o estupro, a morte.
Estes ratos precisam ser exterminados. Vai doer, mas para grandes
doenças, fortes são os remédios.
É preciso correr sangue para mostrarmos nossa bravura. Se queres a paz,
prepara a guerra, só assim daremos exemplo ao mundo que em são gabriel não
há lugar para desocupados. Aqui é lugar de povo ordeiro, trabalhador e
produtivo. Nossa cidade é de oportunidades para quem quer produzir e não há
oportunidades para bêbados, ralé, vagabundos e mendigos de aluguel.
Se tu, gabrielense amigo, possuis um avião agrícola, pulveriza a noite
100 litros de gasolina em vôo rasante sobre o acampamento de lona dos ratos.
Sempre haverá uma vela acesa para terminar o serviço e liquidar com todos
eles.
Se tu, gabrielense amigo, és proprietário de terras ao lado do
acampamento, usa qualquer remédio de banhar gado na água que eles usam para
beber, rato envenenado bebe mais água ainda.
FIM AOS RATOS. VIVA O POVO GABRIELENSE
Por seu turno, os sem terra são representados pelas CEBs como aqueles
que tiveram suas terras usurpadas pelos colonizadores e pela aristocracia rural da
região. Segundo Antônio Cecchin, a história missioneira de Sepé Tiaraju está
sendo revivida na região de São Gabriel, referida como um campo de lutas e Sepé
Tiaraju como santo protetor dos oprimidos que os incita a vitória final através de
sua marcha, como ilustram alguns fragmentos do já referido texto:
Não satisfeito com o anúncio de um precursor, São Gabriel retorna uma segunda vez, conforme a
Bíblia, para a Anunciação do Senhor Jesus. Dando seguimento à pregação de João, Jesus, em
seu Sermão da Montanha, considerado sua plataforma, proclama: Bem-aventurados os mansos
porque possuirão a terra!
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Os acontecimentos em curso, na cidade de São Gabriel, trazem à tona, uma vez mais, situações
que estão a pedir um ajuste de contas do Rio Grande do Sul consigo mesmo.
É a reflexão que vamos fazer, em cima dos fatos do presente, relacionando tudo com fatos do
passado, dentro de uma leitura calcada no bom senso e na fé.
I. FATOS DO PRESENTE
São Gabriel, ano de 2003
Um decreto do operário-presidente Lula desapropria uma área de terra de 13.200 hectares de um
único proprietário, uma verdadeira sesmaria, quase uma capitania hereditária, para fins de
Reforma Agrária. Nada menos que 143 municípios do Estado são menores em extensão. O
decreto visa assentar as famílias dos 45 peões de estância que moram no latifúndio e mais 513
famílias de SEM-TERRAS.
Trata-se da maior desapropriação de que se tem notícia em toda a história do Rio Grande do Sul.
Os gaúchos, ficamos impactados com o fato, porque achávamos que tamanha extensão de terra,
em mãos de um único proprietário, fosse característica de regiões como Mato Grosso ou
Amazônia, jamais em nosso Estado.
O acontecimento causou uma reboldosa na terra dos marechais. Foi realizada uma concentração
de moradores na cidade, tendo à frente as forças dominantes: autoridades locais e grandes
fazendeiros. Sob o mote Alerta Rio Grande Esta Terra tem Dono (apropriação indébita como
veremos, da figura lendária do índio Sepé) foi tomada posição contrária à desapropriação, foi
também declarada indesejável para o município, a presença das centenas de famílias de Sem-
Terras e desencadeado um movimento de fazendeiros para a reversão do ato reformador da
situação fundiária. Distribuíram na cidade, a todos os meios de comunicação e à população em
geral, um panfleto de conteúdo jamais imaginado, de caráter fascista, convocando todas as
camadas sociais, particularmente os grandes, a cometerem um genocídio em relação aos
membros do MST.
O proprietário das terras em questão, entrou na Justiça a fim de assegurar a propriedade. Uma
juíza-mulher, a primeira do Supremo Tribunal Federa e por sinal gaúcha, em Brasília, concedeu
liminar de suspensão da desapropriação. Se retomada a vistoria e comprovada a produtividade,
ficará demonstrada a inviabilidade, do ponto de vista legal, de desapropriação para fins de Reforma
Agrária.
Agricultores Sem-Terra, acampados há vários anos nas cercanias de Pantano Grande, no coração
do Estado umas 800 pessoas - decidem realizar uma marcha sobre São Gabriel, até as fazendas
desapropriadas, a fim de pressionar o poder Judiciário, contra a liminar concedida ao latifundiário.
A pé, carregando à frente a bandeira de São Sepé, pela BR-290, pretendem chegar nas cercanias
das tão sonhadas terras, depois de palmilharem 250 quilômetros.
As forças dominantes em São Gabriel montam uma estratégia para impedir que os Sem-Terra
entrem na cidade. O Prefeito chega mesmo a abrir um fosso profundo na estrada de chão batido,
de nome Reiúna, que acesso às terras desapropriadas. Um ex-secretário de governo do
município, em sua caminhonete rural, quase perde a vida, ao tombar dentro do fosso, à noite, e diz
que vai processar o Prefeito.
Os grandes fazendeiros de São Gabriel e municípios vizinhos também se arregimentam e
organizam a Marcha dos Produtores Rurais. Essa marcha vem em direção contrária à dos Sem-
Terras. Pretendem os fazendeiros fazer uma grande concentração na cidade de Vila Nova do Sul,
distante 80 quilômetros de São Gabriel.(..)
II. FATOS DO PASSADO
Coxilha do Caiboaté (hoje município de São Gabriel), ano de 1756
Os bombeiros (sentinelas indígenas avançados) alertam os irmãos guaranis dos Sete Povos das
Missões, que os exércitos aliados de Espanha e Portugal, as duas maiores potências econômicas
e militares da época, se encontram na fortaleza de Rio Pardo, a chamada Tranqueira do Rio
Grande, a fim de dar combate aos índios, no cumprimento do Tratado de Madrid, assinado pelos
reis das duas potências européias, no ano de 1750. Por este Tratado, os índios dos florescentes
Sete Povos das Missões, deveriam se bandear para o outro lado do rio Uruguai, exigência feita
pelo rei de Espanha, em troca da Colônia do Sacramento, que era uma fortaleza de Portugal,
situada no estuário do Rio da Prata, no lado contrário a Buenos Aires. A função principal da
fortificação, era pilhar os navios que desciam das minas do Potosi, carregados de ouro, rumo à
Espanha. Os Sete Povos das Missões seriam portugueses e a Colônia do Sacramento, espanhola.
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O cacique Sepé Tiaraju, corregedor do povo de São Miguel (7.000 habitantes), à frente de um
exército de 1500 guaranis, depois da solene Missa da bênção, das 10 horas de domingo, na
catedral, parte de sua cidade, em direção a Rio Pardo, a fim de dar combate aos intrusos. A
mística de luta que empolga o comandante-em-chefe e seus companheiros, vai traduzida no grito:
Esta terra é nossa! Nós a recebemos de Deus e do arcanjo São Miguel. Somente eles nos podem
deserdar!
Na altura em que hoje se situa a cidade de São Gabriel os guaranis esbarraram com os exércitos
das duas maiores potências militares de então.
Hábil estrategista, Sepé se conta de imediato que com seu exército de índios lanceiros, face a
um inimigo muito mais numeroso, com as mais modernas armas de fogo, a maneira lógica de
enfrentamento, teria que ser a guerra de guerrilha. Adotou como tática: empurrar algumas cabeças
de gado que os guaranis possuíam em abundância nos campos do Rio Grande, para a frente dos
acampamentos inimigos. Os dragões de Rio Pardo, necessitados de alimentos, se atiravam sobre
os animais e os índios, escondidos no meio do mato, atiravam-se por sua vez sobre os incautos
soldados, pondo-os fora de combate.
Foi precisamente numa dessas escaramuças da guerrilha que o comandante Sepé perdeu a vida.
Morreu assassinado ao mesmo tempo por Espanha e Portugal, no dia 7 de fevereiro de 1756. O
corpo de Sepé foi atirado ao mato que margeia o rio. Naquela mesma noite voltaram os índios que
o acompanhavam, para dar-lhe sepultura. Cavaram-na junto ao rio que chamaram de São Sepé e
o enterraram com a dor correspondente ao amor que lhe devotavam, celebrando suas exéquias
com os hinos e cânticos que acostuma a Igreja, embora sem assistência de sacerdotes (já ao
estilo das futuras Comunidades Eclesiais de Base). E o lunar de sua testa tomou no céu posição.
Como um rastilho, espalhou-se por toda a parte, a fama de santidade do mártir que havia
derramado todo seu sangue em favor dos irmãos. Os guaranis, muito bem catequizados pelos
padres, nada mais fizeram que imitar os fiéis da primitiva Igreja. Conhecida a morte de qualquer
cristão por mãos impiedosas a serviço do império romano, resgatavam-lhe o corpo, davam-lhe
sepultura nas catacumbas e, ao do túmulo, celebravam os ritos religiosos, particularmente o
sacramento da eucaristia. Quem morresse mártir, era canonizado no mesmo instante, sem
necessidade de processo canônico de espécie alguma. Simplesmente em fidelidade ao Mártir
Jesus que dissera: Não maior prova de amor do que dar a vida por aqueles a quem se ama.
Quem morre mártir é santo de direito, canonizado diretamente pelo Senhor Jesus.
SÃO SEPÉ TIARAJU, (do guarani, Luz do dia) ROGAI POR NÓS!
San Romero de América, o bispo mártir de El Salvador, assassinado durante a celebração da
Missa, na década de 80, uns dias antes de morrer exclamou: Se me matarem, ressuscitarei
sempre de novo nas lutas do meu povo!
Os índios cristãos guaranis, além de canonizarem São Sepé, espalharam por todo o Rio Grande, a
Boa Nova de que o santo haveria de retornar. Na prática, expressaram a mesma fé que animava o
bispo Dom Romero. Os que lutam por libertação, das Comunidades Eclesiais de Base, são os
legítimos herdeiros de São Sepé Tiaraju. Em outras palavras: Sepé retorna sempre de novo na
pessoa dos pobres organizados, à semelhança dos índios. (...)
Quem dera nossa Igreja que está no Rio Grande deixasse de se arrenegar das Missões Jesuíticas
dos primórdios do Rio Grande e toda ela fosse convertida aos pobres conforme rezam os
documentos de Medellín e Puebla. Então sim, a entrada dos Sem Terra seria Domingo de Ramos e
não se correria o risco, como de fato corremos, de comemorar uma Sexta-feira Santa.
SÃO SEPÉ TIARAJU. Glorioso mártir pela fé e pela JUSTIÇA, Rogai por nós!
Irmão Antônio Cecchin, Assessor de CEBs
O texto se constitui em um relato do reconhecidamente responsável pela
canonização de Sepé, numa conjuntura de atuação social da igreja libertadora no
Rio Grande do Sul. Como produtor da mística de São Sepé, Cecchin constrói uma
narrativa em tom profético e evangelizador, compatibilizando episódios bíblicos,
acontecimentos presentes e as batalhas que pontuaram a desestruturação da
318
318
experiência missioneira, apresentando uma visão do passado articulada às
batalhas do presente em que a história, segundo Claude Levi-Strauss em História
e dialética (1997:286) é contada para, não hvendo história pura. No sentido de
que a história é produzida para ser vivda pelo grupo e para fortalecer sua coesão
grupal.
O MST é justificado por Cecchin como seu herdeiro de luta, legitimando-se
enquanto movimento político, revolucionário e social ao eleger Sepé Tiaraju como
santo protetor, a fim de alcançar seus objetivos de transformação do status quo.
Essa forma de apropriação do passado missioneiro que incita a transformação
social a partir da atuação revolucionaria e exemplar de Sepé é inusual e temerosa
se comparada às demais representações.
A leitura e utilização que Cecchin efetua do passado, focalizando a questão
da terra (elo de ligação enquanto objeto de disputa dos dois momentos),
simbolizada pela representação mitológica da figura de Sepé Tiaraju, era
justamente a apropriação temida pelos membros do IHGRS. Uma inversão do
índio missioneiro monarca das coxilhas cultuado nos CTGs para o anti herói
questionador da divisão fundiária do estado, igualmente dotado de eficácia
ideológica.
Mapa das manobras da Guerra Guaranítica. Extraído de Quevedo (2000: 168)
319
319
Até o presente momento, a grande maioria das representações produzidas
acerca do passado missioneiro se relaciona à comemoração e ao mascaramento
das contradições que o caracterizaram enquanto fato histórico de longa duração.
As referências ao passado via utilização de outras figuras da mitologia folclórica
missioneira, apresentadas ao longo deste capítulo, abertamente, não remetem a
possibilidade de transformações sociais como esta. Assim, a disputa
representacional em torno de Sepé Tiaraju corresponde a um possível divisor de
águas das relações estabelecidas com este passado, pois ao acionar e se
identificar como legítimos herdeiros de Sepé Tiaraju a atuação das CEBs frente ao
MST cria um mecanismo de acerto de contas com o passado missioneiro, através
da criação de um santo popular a ser venerado pelos oprimidos e, por outro lado,
denuncia a impossibilidade de sua utilização pelos regionalistas. Sepé, enquanto
autor do esta terra tem dono - se transforma em estandarte da luta pela própria
terra onde morreu e assim se converte em capital simbólico potencial do grupo,
demonstrando as relações entre as disputas pelo poder de nomear, as
representações e a construção das identidades, conforme Pierre Bourdieu (1989,
125) em O Poder Simbólico. Na relação observada, o que está em jogo é a
produção de sentidos por parte dos grupos, a partir da utilização de um evento,
conforme se refere Marshal Sahlins em Ilhas da história:
A questão mais verdadeira jaz no diálogo entre sentido e referência,
visto que a referência põe o sistema de sentido em situação de risco
com relação a outros sistemas: o sistema inteligente e o mundo
intransigente. E a verdade desse diálogo maior consiste na indissolúvel
síntese de coisas como o passado e o presente, sistema e evento,
estrutura e história. (Sahlins:1990, 193).
Com relação a Sepé Tiaraju, a disputa se em termos da construção de
sentido em torno da sua figura lendária, pondo em relevo e disputa a interpretação
do passado missioneiro como fato marcante na história do Rio Grande do Sul. As
apropriações efetuadas pelas CEBs como produtora da mística do MST remetem
às relações entre a interpretação de um evento passado e o contexto de suas
utilizações. Neste sentido, as interpretações atingem, inclusive, a própria estrutura
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social, em termos da produção de consciência histórica que clama pela
modificação do status quo vigente, através da utilização da figura de Sepé Tiaraju
como bandeira, na redistribuiçéao de terra no estado.
O desdobramento dos acontecimentos em que se situa esta disputa
representacional ainda está em curso. Apesar de ser vetado pelo STF, o decreto
presidencial que aventou a possibilidade de ocupação da área, a marcha do MST
rumo a terra de Sepé prosseguiu frente a conflitos cada vez mais iminentes.
Se por um lado a disputa representacional parecia parcialmente vencida
pelos ruralistas pela concessão da chancela judiciária, penso que, paulatinamente,
a figura de Sepé Tiaraju tende a se afastar dos discursos dos ruralistas e se
incorporar, como símbolo, da luta pela terra no estado. Os conflitos ocorridos entre
ruralistas e a Policia Militar em São Gabriel
26
fortaleceram a atuação do MST
invertendo a representação de usurpadores nas configurações do campo social
gaúcho.
A redefinição das identidades a partir das apropriações de Sepé e de quem
o aciona continua em aberto. Na disputa entre comemoradores e revolucionários
em torno da figura de Sepé Tiaraju, apresentada ao longo deste tópico, a partir
das relações estabelecidas com o passado, provavelmente as testemunhas (os
mbyás-guaranis) pudessem se constituir legitimamente em fiéis da balança desta
disputa representacional. Uma questão, no entanto, parece pacífica: apesar de
produzirem no seu artesanato peças referentes a Sepé Tiaraju, os mbyá-guaranis
parecem distantes da disputa que poderia primordialmente lhes dizer respeito,
enquanto descendentes de Sepé Tiaraju.
Apesar das identidades reivindicadas a partir das representações de Sepé
Tiaraju não índios entre os membros do MST e tampouco entre os ruralistas.
Essa dupla ausência demonstra que o mito de Sepé Tiaraju parece exterior ao
universo representacional dos mbyá-guaranis etnografados até o presente
momento. Exterior no sentido de uma não identificação com o mesmo (ou um
26
A reportagem de André Neto em 1°/12/2003 noticia a decisão do MST de acampar a 8km da
fazenda de Alfredo Southal. www.clicrbs.com.br. Em 4/12/2003 o jornal Zero Hora noticia o
confronto envolvendo os ruralistas, o prefeito de São Gabriel e a Brigada Militar na reportagem
Confronto em São Gabriel.
321
321
proposital silêncio), acerca de uma disputa simbólica que parece não lhes
interessar.
Assim, é possível afirmar que as ressignificações do passado missioneiro
na atualidade demonstram que ainda prepondera a figura de Sepé Tiaraju em sua
atuação heróica e romântica, que é relacionada e reivindicada como bravura dos
gaúchos descendentes do índio Sepé. Suas identidades indígenas são
mascaradas e o termo índio não objetiva contemplar os habitantes originários
guaranis na dinâmica do seu ethos. O passado guarani fica subsumido ao
passado missioneiro, pasteurizado na referência ao típico como carrefour das
identidades sociais sulinas, num processo de construção, confrontando projetos
políticos ao disputar Sepé.
4. Conclusão em forma de paradoxo: o índio hiper-real e o imaginário
missioneiro
Ao longo deste capítulo, apresentei três narrativas tradicionais que remetem
à experiência missioneira passada, através da atuação de seus personagens as
figuras indígenas: Angüera, Mbororé e Sepé Tiaraju e a partir de suas lendas
etnografei uma pluralidade de situações, na atualidade, que remetem a um
imaginário passado que tem como referente as próprias narrativas. Uma análise
conjunta das mesmas, igualmente possuidores de uma linguagem regionalista,
possibilita refletir sobre a experiência missioneira como mito advindo do contato
entre índios e jesuítas que concebe a Missão como a terra da promissão.
A diversidade de situações em que este mito é acionado e vivido, por seu
turno, permite a reflexão sobre o passado missioneiro em relação ao conjunto de
apropriações efetuadas, bem como a relação deste imaginário sobre as Missões
(que a justifica como experiência de integração colonial coordenada pelos
jesuítas), com os índios hiper-reais que vivem no município de São Miguel.
Roberto da Matta em Mito e autoridade doméstica, (1976) ao analisar o mito
do Auké, como mito originário de contato entre os brancos e os Timbira salienta
elementos que considero tamm relacionados às narrativas tradicionais
analisadas, tais como a questão da ambigüidade e a bricolage (1976: 35), o tempo
322
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mítico, as mudanças ocorridas a partir do mito e o aproveitamento das qualidades
sobrenaturais de seus personagens (1976: 41). No entanto, uma diferença
fundamental entre o mito do Auké, que é um mito Timbira, e as narrativas
analisadas que não podem ser entendidas como um mito guarani de contato com
o homem branco.
O fato de pairar um certo mistério sobre a autoria destas lendas
(provavelmente instrumentos jesuíticos, já que sua mensagem apologiza a Missão
como terra da promissão), que abordam, de variadas formas, o contato entre os
colonizadores e os habitantes originários guaranis produz um imaginário sobre o
passado missioneiro cuja ambigüidade e mistério ultrapassa as relações entre os
índios e os jesuítas, não sendo acionado por nenhum destes dois grupos. Em
suma, o mito da Missão como terra da promissão é um mito para ser vivido por
grupos, cuja ideologia se vale da experiência missioneira passada com que se
consideram de alguma forma relacionados. Identificam-se com a mesma, através
da utilização das lendas em prol da construção de um pertencimento ás Missões
acionado em suas atividades.
Como decorrência, é necessário pensar sobre as peculiaridades e
conseqüências das apropriações que remetem aos grupos estudados ao longo
deste capítulo. Para Chartier, as representações podem ser interpretadas através
da história das apropriações:
A apropriação, a nosso ver, visa uma história social dos usos e das
interpretações referidas a suas determinações fundamentais e inscritas
nas práticas específicas que as produzem. Assim, voltar a atenção para
as condições e os processos que, muito concretamente, sustentam as
operações da produção de sentido (na relação de leitura, mas em tantos
outros também) é reconhecer, contra a antiga história intelectual, que
nem as inteligências e nem as idéias são desencarnadas, e, contra os
pensamentos do universal, que as categorias dadas como invariantes,
sejam elas filosóficas ou fenomenológicas, devem ser construídas na
descontinuidade das trajetórias históricas. (Chartier: 1991,180)
O autor aponta para o processo como construtor do sentido de um
determinado acontecimento, sendo a interpretação diretamente relacionada com o
momento e o lugar da produção, como socialmente construída e expressa nas
representações sociais. Uma análise das narrativas tradicionais de temática
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missioneira no Rio Grande do Sul como O lunar de Sepé, Casa de Mbororé e
Angüera, estruturada a partir da questão da apropriação na produção das
representações sociais, demonstra múltiplas e sucessivas apropriações, que se
configuram em leituras do passado missioneiro efetuadas a partir das narrativas
regionalistas.
Ao longo deste capítulo, através dos trabalhos de campo, os sentidos
conferidos ao passado missioneiro a partir das apropriações de suas figuras
lendárias puderam ser percebidos em sua pluralidade. Entre os Angüeras, numa
postura de comemoração do passado missioneiro, na apropriação da figura
lendária do índio Generoso no festival da Barranca, que enaltece espiritualmente a
figura indígena, uma alusão aos índios sem que estes participem do festival,
ocorrendo um pertencimento individualmente acionado em relação ao passado
missioneiro que passa pela invocação à proteção do espírito musical do
Angüera/Generoso, no festival da Barranca.
Em Mbororé, os conteúdos das apropriações se dividem e elas gravitam em
torno da comemoração do passado missioneiro, da procura das riquezas
missioneiras, através da busca dos tesouros e túneis das Missões. Estas são
relacionadas, por vezes, com uma proposta de utilização turística (túneis), ou na
recusa por parte de seus habitantes de cuidar do patrimônio histórico tombado,
numa atitude de recusa de desenterrar o passado missioneiro, ou seu inverso.
Importa um desejo da negação do passado estático que deve, por força de lei,
ser preservado, em favor de um presente dinâmico, oprimido pelas ruínas e suas
interdições patrimoniais por parte do IPHAN.
Com relação a Sepé Tiaraju, os conteúdos das apropriações também se
dividem e a sua alusão de herói fundador da genealogia de bravos gaúchos que
lutou em defesa da terra das Missões se soma uma inversão do sentido desta
batalha (que por isso também passa a se constituir em uma batalha
representacional) e o índio que simboliza os valores cristãos de justiça e liberdade
passa a ser disputado entre os latifundiários e o MST que confrontam projetos
políticos ao disputar Sepé.
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Foi sobre o universo da significação simbólica dos indivíduos e grupos
analisados, a partir da produção de narrativas sobre o passado missioneiro que
tentei centrar meu enfoque, analisando a relação sentido/referência conferida ao
passado no presente. Marshal Sahlins em Ilhas da História (1990) aborda esta
relação através do enfoque ao universo da significação simbólica. Seu trabalho
consiste em observar a ordenação a que os eventos são submetidos pela cultura,
ou melhor, o quadro cultural dos grupos, bem como a mesma é reordenada pelos
eventos, demonstrando que a relação evento/estrutura é uma via de mão dupla e
que certos eventos podem, sim, subvertê-la e não só refleti-la.
Com relação às Missões, sua proposta permite focalizar o passado e o
presente enquanto processo dialógico determinante na produção de
representações sociais na atualidade, na medida em que as representações
remetem a um passado missioneiro, um evento que mudou os rumos da história
sulina, mas cujo olhar é permeado pelo sistema de produção de significados dos
grupos, os sentidos que os mesmos atribuem, em que está em jogo a relação dos
mesmos com as Missões e entre si enquanto grupos no campo de definição do
que tenha sido a experiência missioneira passada. Assim, creio que a ordenação
do passado missioneiro, efetuada pela cultura, entre os diferentes grupos e
indivíduos com semelhanças e descompassos na produção das suas
representações sociais, é o que confere sentido ao passado que vivificam para a
produção de seus referenciais identitários, havendo, assim, interesses ao acionar
este passado em momentos específicos.
Se a interpretação do passado faz parte da organização do presente, as
formas de expressão inter-relacionadas nas quais se baseiam estas interpretações
são fundamentais para se ter acesso às mesmas. As práticas e representações
dos grupos analisados demonstram que as interpretações e relações que
estabelecem com o passado missioneiro são plurais e relativas às possibilidades
dos usos públicos e privados deste passado, que se confere em capital simbólico
dos grupos.
No entanto, o passado missioneiro vivificado nas apropriações efetuadas
das narrativas já referidas, apesar de ocorrer no presente, dele se afasta em razão
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de sua perspectiva performática e apologética. A produção do imaginário
missioneiro dos grupos analisados contrasta com a pobreza dos mbyás-guaranis
de São Miguel uma pobreza que é também representacional, em relação ao
passado missioneiro, cujo espaço continuam a ocupar.
Durante os trabalhos de campo, várias vezes me deparei com os mbyás-
guaranis e o conjunto de minhas impressões pode ser resumido ao espanto e
choque das relações percebidas entre estes e os turistas, o IPHAN, as prefeituras
municipais, os habitantes locais, os governos federal e estadual e os antropólogos
que os estudam.
Fotos 11 Roupas guarani em São Miguel São Miguel abril 2003; Autoria Ceres
Karam Brum; Fonte; Acervo Pessoal; P&B (original colorido); (tamanho 10x15);
fotografia fotocopiada em scanner e reduzida (5x7).
Há um discurso de boa vizinhança que oculta o descaso com a comunidade
Mbyá-guarani. As manifestações do IPHAN são no sentido de exaltar a atuação da
instituição em São Miguel e de uma convivência pacífica com os guaranis da
Comunidade KOENJU que vendem seu artesanato no seu espaço e receberam
terra na Reserva de Nhancapetun, a 28 km do sítio arqueológico. O IPHAN faz
parte de uma ONG que propõe ações em prol deste grupo de Mbyá-guaranis. A
prefeitura de São Miguel publicamente exalta suas boas intenções para com os
mesmos, bem como a URI (Universidade Regional Integrada) que, tamm em
eventos públicos, destaca uma série de projetos desenvolvidos na região.
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Fotos 12 Casa de Passagem guarani em São Miguel São Miguel abril 2003;
Autoria: Ceres Karam Brum; Fonte; Acervo Pessoal; P&B (original colorido);
(tamanho 10x15); fotografia fotocopiada em scanner e reduzida (5x7).
Ao longo de minhas visitas ao sítio arqueológico de São Miguel me deparei
com a Casa de Passagem Guarani dentro do espaço das ruínas também uma
ruína que serve de abrigo aos guaranis e com a própria aldeia Mbyá onde
continuam a residir em barracas de lona preta enquanto a madeira apodrece e as
cestas básicas da FUNAI não chegam.
O referido grupo com que sucessivas vezes me deparei em São Miguel se
encontra em condições sub-hummanas de sobrevivência, ainda não possuindo
casas para morar. As mesmas são objeto de amplas disputas políticas e se
configuram, dentre outras promessas feitas a esta população originária, em
discurso de atos públicos, ao invés de ações concretas em prol desta comunidade.
Sua situação beira a mendicância. Observei crianças guaranis pedindo dinheiro
aos turistas presentes no sítio de São Miguel
Caracterizo a relação estabelecida com os mbyás-guarani como
singularizada pela discursividade da proteção por todos em São Miguel e região e
pela prática da desresponsabilização, porque efetivamente não ações que os
beneficiem na manutenção de seu ethos e de sua própria subsistência. As ações
capitaneadas pela prefeitura, efetuadas por voluntários no espaço da reserva,
desconhecem suas peculiaridades culturais e se pautam por um resgate que não
se sabem de quê, acelerando o processo de descaracterização em que o grupo
se encontra e sua suscetibilidade à violência, conforme demonstra a tentativa de
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estupro a uma menina índia de 12 anos, por um enfermeiro, ocorrida em
10/09/2003, no hospital de São Miguel.
A situação dos guaranis é caótica e o processo de descaracterização
violento que estão vivenciando pode ser percebido através da temática do seu
artesanato em que, além de sua tradicional cestaria e dos bichos esculpidos em
madeira, podem ser encontrados terços de conta e cruzes de dois braços, além de
imagens esculpidas da catedral de São Miguel e de representações de Sepé
Tiaraju. A justificativa para a súbita diversificação de sua produção é dada pelos
próprios mbyás: turista gosta de comprar.
Fotos 13 Moradia guarani na Reserva Nhancapetunl São Miguel dezembro 2001;
Autoria: Ceres Karam Brum; Fonte: Acervo Pessoal; P&B (original colorido);
(tamanho 10x15); fotografia fotocopiada em scanner e reduzida (5x7).
Frente a esta situação, a análise das narrativas tradicionais de temática
missioneira e suas apropriações adquire a conotação do distanciamento entre os
índios atuais reais e seu imaginário e os índios escolhidos para serem
representados e vividos, não como índios em suas peculiaridades e diversidade,
mas como missioneiros e por isto passíveis de serem festejados no presente.
Roland Barthes em Mythologies (1957; 29) ao analisar a representação dos
romanos no cinema aborda o problema da ambigüidade dos signos que mesmo
em sua superficialidade, se faz crer profundo, incorporando um conjunto de
dualidades, através das quais deixa aparecer sua finalidade. A moral do signo
para Barthes está na relação que estabelece com a produção do significado,
espetacularizada e a mercê de quem o produz. As apropriações das narrativas de
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temática missioneira se inserem nesta lógica: os personagens índios lendários
Angüera, Mbororé e Sepé apologizam o sentimento de pertença que se deseja
viver, um sentimento relativo as utilizações públicas e privadas do passado no
presente. Um pertencimento que reforça o mito da Missão como terra da
promissão, presente nos escritos jesuíticos do século XVIII e que se atualiza
como consciência histórica presente em relação ao passado missioneiro, quer nas
situações de comemoração, quer nas de crítica, que apresentei ao longo deste
texto.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na perspectiva de enfocar a experiência missioneira passada como um
problema antropológico presente, ao longo deste trabalho, apresentei e analisei
algumas representações produzidas sobre o passado missioneiro no Rio Grande
do Sul.
Conforme ressaltei nas Considerações Preliminares, a pesquisa teve como
objetivo perceber a pluralidade de relações estabelecidas com o passado
missioneiro expressas nas narrativas que a ele remetem, demonstrando possíveis
modalidades de leitura deste passado e os seus usos públicos e privados. Minha
hipótese foi de que as referências à experiência missioneira ocorrem em situações
ritualizadas específicas a partir da geração de mitos em torno do passado
missioneiro. Estes processos de mitificação, observados tanto nos discursos que o
celebram quanto nos que o criticam, envolvem perspectivas apologéticas e
performáticas de interpretação, com o intuito da criação de uma consciência
histórica individualmente concebida a que se relacionam a produção de
imaginários relativos às Missões e identidades individuais e grupais acionadas
através do pertencimento ao missioneiro e outros referentes.
Ao longo deste texto, tentei demonstrar que as Missões Jesuítico-Guaranis,
como parte de um passado colonial no Rio Grande do Sul e nas demais regiões
em que se localizaram os Trinta Povos das Missões, se configuram em um evento
bastante acionado e disputado na construção, por exemplo, das identidades
regionais gaúchas. Neste sentido, os eventos relacionados ao passado
missioneiro foram objeto de diversas interpretações e utilizações, relativas a
interesses individuais e grupais.
O ponto de partida da pesquisa foi a percepção das relações estabelecidas
entre a História (enquanto representação do passado) e a experiência missioneira,
Salientei que a história é reconhecida como uma disciplina detentora do monopólio
de interpretar o passado e que a historiografia missioneira se relaciona com os
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interesses de afirmação do nacional e do regional, ao enfatizar ou negar a
influência das Missões como evento passado, na construção das identidades
nacionais brasileiras no Rio Grande do Sul ou, inversamente, ressaltar sua
contribuição enquanto caráter identitário hispano-gaúcho no processo histórico
sulino.
Nesta perspectiva, a questão da interpretação historiográfica do processo
de construção das fronteiras geo-políticas no Rio Grande do Sul se plasma no
problema da interiorização e vivência do processo sócio-cultural da estruturação
das fronteiras na América Latina a que as Missões concorrem como fato
marcante, gerador de identidades e pertencimentos. Daí a questão antropológica a
ser pesquisada: por que, como, de que formas e em que situações este passado é
acionado.
Desta forma, a experiência missioneira passada se delineou, para mim,
como um referente dialeticamente construído em inter-relação com a historiografia
e a que também concorrem várias outras narrativas que apresentam suas visões
acerca do que foram as Missões. A configuração deste campo relativo à
interpretação do passado das Missões, me levou a pensá-lo em termos da
produção destas narrativas, que relacionei à memória enquanto processo de
elaboração da lembrança e que situei a partir da discussão da disputa entre a
memória e a história, pelo monopólio de representar o passado.
Esta disputa entre o dever de fidelidade da memória e o pacto com a
veracidade da história em termos do acontecido, para Ricoeur, está em aberto.
Segundo ele, ela atinge o leitor e, neste, o cidadão, na recepção dos discursos
sobre o passado, na forma como os interpreta e os ressemantiza. O viver o
passado no presente, no caso das Missões, se relaciona não apenas à recepção
salientada por Ricoeur, mas tamm à produção das narrativas. Neste sentido, as
narrativas são relativas ao construir-se como pessoa e grupo, constituindo-se em
uma das diversas dimensões do existir no presente, tendo como referente um
passado histórico, que passa a ser incorporado como mito.
Assinalei a complementaridade do leitor/cidadão posta por Ricoeur, porque
para além do optar pela verdade ou fidelidade na interpretação do passado (já que
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as narrativas são representações do mesmo) percebi que as representações
correspondem aos conteúdos das narrativas, do ato de narrar como um processo
de re-figuração do passado que o situa no presente, assinalando, a partir da visão
que se tem do mesmo, uma proposta de sua glorificação/ comemoração ou de sua
execração.
Duas questões devem ser assinaladas: está implícito no narrar o
opinar/posicionar-se claramente acerca de um evento marcante e reordená-lo.
Esta é uma peculiaridade comum a todas as narrativas tais como os romances, as
lendas, a historiografia, entre outras. É isto que lhes confere unidade e o seu
poder/autoridade como narrativa. O segundo ponto é que a re-figuração do
passado não é aleatória e, neste sentido o narrar implica na produção de uma
consciência histórica. Um processo que é duplamente individualizado, tanto do
ponto de vista de quem o produz (de quem está autorizado a narrar e é
reconhecido como tal) quanto de quem recebe o discurso escolhendo legitimá-lo,
incorporando-o ou não ao seu imaginário, deixando penetrar-se.
Em ambos os pontos assinalados uma tida relação entre a produção
de narrativas, sua recepção, apropriações, circulação, ressemantização e a
questão da identidade e do pertencimento. Isto porque os processos de
construção do sentido acerca de um passado no presente gravitam em torno do
desejo de reconhecimento: no sentido de identificar-se com o evento passado (de
sua escolha) e estar autorizado a narrar, da identificação com o narrador e desejar
pertencer a esta re-figuração e incorporá-la ao capital identitário pessoal ou do
grupo.
Assim ocorreu, de minha parte, uma passagem da História das Missões
para uma Antropologia das relações estabelecidas com o passado missioneiro,
acionado no presente. O objetivo da abordagem antropológica destas relações foi
perceber como as utilizações da simbolização do passado missioneiro se
apresentavam nos imaginários dos grupos, como referente na produção de
identidades e pertencimentos (sobretudo regionais) no Rio Grande do Sul. O
contato com as narrativas e sua interpretação foi efetuado a partir das construções
de sentido elaboradas pelos grupos estudados e do peso conferido a este
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passado no presente. Tal fato me levou a perceber a existência de imaginários em
construção acerca das Missões, colocando em disputa sua interpretação, o poder
de nomeá-las e reivindicá-las como passado a que se deseja pertencer.
As referências às Missões remeteram, por sua vez, a questão espacial e
temporal. De como este passado é enfocado pelas narrativas e em que situações,
por exemplo, é percebido o tempo das Missões. A partir de que lugares/espaços
simbolizados como (nacionais, regionais ou locais), são produzidas as narrativas,
em que o passado passa a ganhar vida no presente (de acordo com Feldman-
Bianco) e, a história, se torna incorporada e atuada como capital simbólico do
grupo, conforme Bourdieu.
Apesar da abordagem antropológica, mesmo por parte de alguns
historiadores (Duby, Hartog, Revel e Levi), me deparei com a percepção de uma
história que se deseja viver, da consciência de um passado transformado em
mito (conforme Pesavento) e de suas articulações, por exemplo, com a construção
dos espaços nacionais.
Mesmo assim, caracterizei a história da história como objeto de estudo da
Antropologia, porque relaciono o re-figurar o passado para vivê-lo no presente a
uma série de elementos que extrapolam a referência a um evento marcante
amplamente enfocado pela historiografia, (conforme se refere Le Goff ao definir a
História da história). Para tanto, penso que não concorrem apenas os discursos
históricos e suas recepções, na escola, por exemplo. A estas referências
historiográficas se somam outras memórias do evento, em suas utilizações
simbólicas, que incessantemente se constroem em diversas situações.
Conforme assinalado por Thiesse, a escolha dos antepassados, a produção
de heróis para serem exaltados como relativa a uma história nacional, na
construção da nação, se somam também outros elementos como a língua, o
folclore, a escolha dos símbolos nacionais e uma gastronomia típica, por exemplo.
O elo entre o passado e o presente se constrói em relação à afirmação de um
espaço que se quer exaltar, o que pode se dar também em relação (uma certa
oposição) a outros espaços. É possível pensar nesta mesma lógica com relação à
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afirmação do espaço local e do regional a que concorre uma multiplicidade de
elementos simbolicamente elaborados e utilizados.
A questão fundamental a ser salientada neste processo, com relação às
Missões, no tocante a sua escolha como passado incorporado é justamente sua
possibilidade etnográfica. Possibilidade apreendida pelo fato de estar sendo
representada e porque a história como discurso sobre o passado é também
utilizada nas representações, como base para a produção do mito da Missão
como Terra da Promissão.
Ou seja, ao abordar a construção das identidades no Rio Grande do Sul,
tendo como elemento a sua relação com o passado missioneiro, me deparei com
inúmeros elementos em articulação. A história, como referi, se encontra em
disputa com a memória e o fato de ser utilizada como verdade acabada nos
trabalhos de outras memórias. O espaço que, como lugar do acionar e pelo
acionar, se constitui em território a que, por sua vez, se relaciona o pertencimento
como reivindicação de sentimento. A que concorrem igualmente alegações como
a produção do discurso da autenticidade e da tradição, por exemplo, articulando
as Missões ao presente, como um passado ancestral que se deseja incorporar.
Em termos desta intencionalidade, refleti sobre a elaboração das
referências às Missões e especialmente sobre o termo missioneiro,
caracterizando-o, na perspectiva de Thiesse, como um ethnotype (elemento
cultural e socialmente construído, mas representado como elemento naturalizado).
Assim o enfoquei porque observei uma tendência a naturalização do missioneiro,
a partir de certos elementos naturais apropriados e designados como
missioneiros. Nesta perspectiva, observei as alusões à terra vermelha das
Missões. Relacionei estas alusões aos interesses do afirmar-se enquanto região e
fazer-se crer peculiarizada por certos traços, representados como naturais.
Percebi, porém, estes traços como intencionalmente produzidos e simbolizados na
construção do típico missioneiro, por exemplo, nas representações produzidas
pelos pacotes turísticos.
Curiosamente, observei que esta intencionalidade em afirmar uma região
como missioneira não se especificamente a partir da região ou de um local
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determinado, mas ocorre a partir de diferentes territórios em relação às Missões,
de onde passa a ser representada. Espacial e simbolicamente interesses em
jogo desvendados ao longo da pesquisa, inter-relacionados e intertextualizados.
Assim, o passado missioneiro é simbolizado, por exemplo, em relação ao espaço
como nacional no Paraguai, enquanto experiência que possibilitou a sobrevivência
do guarani como idioma e, por outro lado, regionalmente como relativo ao
surgimento do gaúcho no Rio Grande do Sul.
Por estas alusões, caracterizei as Missões como um passado dinâmico e
acionado em diversas situações. Um referente multiespacial e multicultural
apropriado por diversos sujeitos. Tal fato me conduziu a analisá-lo como uma
fronteira sócio-cultural. Um referente imaginariamente construído, objeto simbólico
perceptível na construção e afirmação das imagens da integração latino-
americana, do nacional, do regional e do local traduzidos nos estereótipos do que
foram os povoados, enquanto herança acionada.
Uma herança simbolizada como apologizada, forjada na atualidade através
da dialética entre as fronteiras geo-políticas, naturalizadas, e as fronteiras sócio-
culturais, nas memórias expressas das Missões como um passado acionado e
referendado, através de vários discursos. Este é o caso da utilização das Missões
como mbolo cultural do Mercosul. Enquanto discurso o mesmo esbarra na
carência de uma política de fronteira que facilite a visitação dos sítios
arqueológicos em que se situam os povoados, hoje localizados em três países
diferentes e que no passado pertenceram a uma experiência cultural representada
em sua unidade.
Com relação aos territórios simbolizados como missioneiros, é através de
uma linguagem marcada regionalmente por termos gauchescos que os próprios
municípios onde se localizaram os antigos povoados no Rio Grande do Sul se
identificam e acionam seu pertencimento. Este é o caso de São Nicolau que se
denomina como a Primeira Querência do Rio Grande. Nesta denominação
salientei, entre outros elementos, a linguagem utilizada assinalada como regional
e afirmada como típica e autêntica.
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A designação que sublinha o local de nascimento do Rio Grande do Sul põe
em relevo um momento do passado sulino anterior mesmo às célebres disputas
entre Portugal e Espanha em oposição aos Sete Povos (1754-1756), no processo
de demarcação das fronteiras sulinas. A Primeira Querência remete às Reduções
do Tape na fundação da Primeira Redução em terras gaúchas - São Nicolau, em
1626. Neste período a noção de gaúcho ainda não existia (já que este foi
escolhido e forjado no século XIX na Argentina e no Uruguai como mbolo dos
estados nacionais nascentes) e, apenas, posteriormente, passou a ser burilado
como símbolo regional no Rio Grande do Sul.
Neste sentido, gostaria de salientar que é impossível tentar entender
apenas historicamente a designação de Primeira Querência, quando o Rio Grande
não era Rio Grande e quando o gaúcho ainda não existia como símbolo. A
complexidade da utilização da denominação e sua eficácia ideológica enquanto
mito de origem do gaúcho, (ao salientar o local onde nasceu o Rio Grande)
passam justamente pelo reconhecimento do sentido da utilização do passado
como relacional à construção das identidades presentes, afirmadas através de um
pertencimento declarado. A força da tradição referendada em São Nicolau, que se
reconhece como Primeira Querência, não está, neste sentido, na falsidade ou na
veracidade da representação amplamente utilizada pela administração municipal
para fins turísticos como imagem diferenciada do município. Ela se relaciona ao
eco que a mesma encontra no imaginário (segundo Oliven) dos habitantes locais a
que se circunscreve sua manutenção o que passa pela questão ideológica do seu
reconhecimento como Primeira Querência.
Desta maneira, concluo que, em termos do passado missioneiro, o fato de
tentar demonstrar sua utilização na construção social das identidades no Rio
Grande do Sul seria, até certo ponto pouco revelador, porque apesar de as
tradições poderem ter sido inventadas como no caso do tradicionalismo (segundo
Maciel), que contempla o passado missioneiro em seus discursos, estas tradições
são acionadas e vividas, produzindo uma consciência histórica tendente a sua
glorificação.
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Assim, acredito que foi fundamental tentar perceber e situar as
circunstâncias turísticas, políticas no contexto da produção simbólica da Primeira
Querência, por exemplo, e suas recepções pelos habitantes locais. Foi esta
dinâmica que me possibilitou entender o processo de produção da consciência
histórica ao glorificar o passado para utilizá-lo no presente.
O fato de tentar refletir sobre a construção social das identidades, a partir
de tradições já analisadas como inventadas (na perspectiva de Hobsbawm e
Ranger), como a figura do gaúcho, por exemplo, em relação ao pertencimento ao
passado missioneiro acionado pelos grupos, me possibilitou entender os sentidos
da utilização do passado no presente. Uma utilização representada como relativa
ao seu apego/sentimento vivido no ou pelo território acionado, mesmo que situada
historicamente, como inventada.
Neste sentido, cada uma das etnografias apresentadas nesta tese,
demonstra que as construções de sentido tendo como referente o passado
missioneiro são, de certa forma, relativas aos sentimentos suscitados pelo
passado na produção de uma consciência histórica. Imagem escolhida para
identificar sujeitos e grupos, através das suas utilizações. O evento transforma-se
em artefato, sendo burilado como resposta às necessidades e interesses dos
sujeitos estudados, na produção individuada de consciência histórica para fins
presentes.
Observei que a produção desta consciência histórica, o ser introjetada
como imaginário o qual abarca o passado, envolve referências apologéticas e
performáticas às Missões, num processo que designei como de pasteurização e
de homogeneização, com a finalidade de aparar as contradições que lhe são
peculiares, como por exemplo, a transição do mundo guarani para o mundo das
Missões que é representada como uma exaltação da civilização jesuítico-guarani,
por suas benesses civilizatórias da cristianização.
Neste sentido, os guaranis passam a ser erigidos como sujeitos da história
ao se despirem de sua barbárie pela mão dos jesuítas, pertencendo às Missões.
Este discurso coincide com as narrativas jesuíticas, especialmente as proferidas
pelo padre Sepp, que utilizava como estratégia de manutenção dos guaranis nas
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Missões a adaptação de textos bíblicos à empresa missionária. A relação da
Missão com a Terra da Promissão, regada a leite e mel, foi proferida por ele por
ocasião da transmigração dos índios de São Miguel para o povoado em
construção de São João Batista, conforme assinalei nas Considerações
Preliminares.
Observei a permanência e sucessivas apropriações deste discurso jesuítico
por parte da produção do turismo, ao exaltar o barroco missioneiro, assinalando a
incapacidade dos habitantes originários de criarem, mas sua surpreendente
capacidade imitativa, igualmente destacada pelos jesuítas em seus escritos. As
sucessivas apropriações deste discurso me permitiram refletir sobre a
permanência desta mentalidade, um mito que continua a ser vivido na própria
região das Missões gaúchas, sendo especialmente incentivado pelas prefeituras
municipais e pelo IPHAN na implantação de projetos patrimoniais e políticas de
preservação do seu legado arquitetônico.
O presente das Missões, nesta perspectiva, fica subsumido a um passado
que se quer estático e higienizado. A visitação dos espaços das Missões foi
percebida como um retorno ao passado, possibilitado pelo estar nas ruínas.
Espaços que estão animados atualmente pelo teatro histórico, pela mediação dos
guias, por museus, vídeos, etc, numa clara proposta de teatralização do
patrimônio.
As observações enfatizadas até aqui dizem respeito à glorificação do
passado missioneiro para ser comemorado no presente. Porém, esta perspectiva
de comemoração, observada em grande parte das narrativas, não é unânime e me
causou, ao longo da pesquisa, um grande estranhamento, uma vez que (conforme
já referi, ao citar Thiesse) a exaltação do passado missioneiro se inscreve em um
projeto de construção de territórios envolvendo história, construção de heróis,
turismo, patrimônio, etc.
As manifestações de crítica, da necessidade do acerto de contas com o
passado missioneiro foram encontradas em diferentes situações. Em cada uma
das etnografias demonstrei a existência de posturas neste sentido: entre os
tradicionalistas, turistas e nas apropriações da mitologia folclórica missioneira.
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Assim, não se trata somente, o que seria previsível, de uma certa resistência à
exploração por parte dos habitantes locais que vivem próximos aos espaços
turísticos, como ressaltei por ocasião da análise da lenda de Mbororé, em suas
apropriações, no concernente aos tesouros e aos túneis das Missões. Esta foi
apenas uma das situações etnografadas.
A relação de execração de uma dívida histórica a ser resgatada e da
necessidade de uma catarse com o passado missioneiro, propiciada pelo narrar
pôde ser percebida por mim em outras situações etnográficas como entre os
tradicionalistas, por parte de um grupo de danças que ofereceu sua apresentação
no concurso ENART à defesa da demarcação das terras indígenas no estado.
Herança de exclusão que o grupo representou como relacionada ao passado
missioneiro, em virtude da dizimação ocasionada pela Guerra Guaranítica que
levou à desestruturação das Missões.
Esta representação me permitiu perceber que mesmo dentro do território
tradicionalista, reconhecido como um espaço de comemoração do gaúcho,
espaços para a crítica deste passado reconhecido como mito de origem da
genealogia dos gaúchos. Porque das Missões surgiram os gaúchos, que são
descendentes dos bravos missioneiros, que lutaram por sua terra e, mesmo que a
tenham perdido, sua simbolização é de uma vitória que continua a alimentar o
imaginário tradicionalista, na atualidade. Diversamente da Batalha de Mbororé
(1641) que apesar de ter sido vencida pelos índios das Missões, não é
mencionada como um episódio de bravura dos gaúchos, estando esquecida.
Assim, durante a pesquisa percebi as posturas de crítica se mesclando às
posturas de comemoração do passado missioneiro, enfatizando uma não
unanimidade em sua interpretação, enquanto evento passado. Entre os turistas
pude perceber esta situação com mais clareza, em relação ao processo de
individuação (assinalado por Augé) ao analisar a relação estabelecida com os
lugares de memória em suas visitações. A crítica, nesta situação, se dá a partir do
contato com o passado, propiciado pelo espaço, assim como a energização tantas
vezes assinalada com relação às ruínas das Missões e nos caminhos que unem
os peregrinos em suas jornadas de auto conhecimento.
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Concluo que a crítica, na situação turística, se configura em uma postura de
comiseração, consciência histórica individualmente desencadeada a partir do
contato com os índios, no espaço de São Miguel, bem como, quando nos
deparamos com a pobreza estampada nos traços indígenas de crianças que
esmolavam à beira das telas.
Estas cercas delimitam as fronteiras entre o passado e o presente, se
constituindo em seu passaporte e elo de ligação. Ao protegerem o patrimônio
histórico missioneiro o cristalizam como passado patrimonializado e o separam da
dinâmica do tempo, excluindo a pobreza que o cerca de seus espaços
higienizados. Neste sentido, a situação de crítica à herança legada do passado
das Missões se circunscreve ao uso privado do passado em termos de um
crescimento individual, de uma conscientização da pobreza e da exclusão,
paralelamente forjada a par da recepção da monumentalidade arquitetônica do
barroco, da compra dos souvenirs e da degustação de uma gastronomia
missioneira, ainda em construção.
As posturas de acerto de contas dizem respeito ainda a um desejo de
esquecimento deste passado (conforme a perspectiva de Pollak) por parte de seus
habitantes locais, excluídos do processo de patrimonialização do mesmo. Percebi
este desejo de esquecimento simbolizado nas representações que mencionam o
mistério, a escuridão e a sua incomunicabilidade assinalada na presença de índios
assustadores que guardam tesouros e túneis. Uma necessidade de desenterrar as
Missões como passado que impede que se viva o presente ou ao menos que o
reverta em benefício dos municípios e seus habitantes, ao invés de importuná-los.
Estas posturas de acerto de contas me mostraram que o passado
missioneiro está sofrendo um claro processo de ressemantização para ser
utilizado no presente pelos sujeitos e grupos que o acionam. Creio que estas
posturas podem levar a um redimensionamento radical de sua comemoração,
majoritariamente atribuída, para uma utilização política, envolvendo propostas de
mudanças sociais a partir da interpretação do passado missioneiro.
Observei esta utilização mais radical, quando a postura de acerto de contas
com o passado missioneiro extrapolou os usos privados do mesmo, adentrando a
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esfera de sua utilização pública (como o mencionado por Habermas). Uma busca
do resgate da dívida histórica missioneira, no presente, levou a disputa simbólica
pela figura de Sepé Tiaraju entre os latifundiários e o MST, em São Gabriel,
justamente onde ocorreu a morte de Sepé Tiaraju na Batalha de Caiboaté, em
1756. Uma luta pela terra que já naquele momento tinha dono!
Os fatos do presente, nesta perspectiva, geraram e foram gerados a partir
da análise deste passado e de sua utilização por ambos os grupos, ora pendendo
favoravelmente para cada um deles. Isto me autorizou a pensar tanto a
comemoração quanto o acerto de contas com o passado missioneiro como um
mito vivido e ritualizado em situações específicas como tentei demonstrar ao longo
deste trabalho.
Momentos que dizem respeito à terra quando esta se encontra em disputa.
Hoje uma terra gaúcho-brasileira, mas antes hispano-jesuítica e que, mesmo
tendo sido perdida, foi erigida como ganha para fortalecer a garra do gaúcho por
seu chão. Mesmo que este seja o chão dos Piquetes Missioneiros, simbolicamente
vivido e festejado, no Acampamento do Parque Harmonia em Porto Alegre ou na
música missioneira, através da payada, que evoca as Missões como signo de
auto-afirmação do gaúcho como referente bélico espaço-temporal.
Um mito que diz respeito ao homem que se deseja ser e existir, que
acredita como Mbororé no eterno retorno da felicidade e da prosperidade das
Missões, numa alusão de que o passado é melhor do que o presente. Um mito
que também engendra perspectivas futuras, ao resolver as contradições dolorosas
como a perda da terra, erigindo-a, no plano do sobrenatural, pela
santificação/sacralização dos injustiçados. Este é o caso de Sepé Tiaraju, cuja
canonização não é pacífica, nem mesmo dentro da própria igreja católica.
O mito da Missão como Terra da Promissão é também vivido em termos de
arte, na música, sob a proteção do Angüera/Generoso em São Borja e que se
espalha pelo Rio Grande do Sul e além fronteiras como a música missioneira.
Uma produção musical discursada na pajada, cantada nos bailes e festivais, mas
que, como os demais termos a que às Missões se refere, é indefinido, ambíguo e
liminar (conforme Turner, engendrando mitos).
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Uma história que percebi (conforme Bourdieu) como incorporada e
reificada. Como pródigo objeto de disputa entre os grupos, num jogo simbólico que
envolve tradições e identidades, pertencimentos e territórios e que continua
atuante e atuado, campo fértil da produção de representação por ser acolhido e
enfatizado como misterioso e necessário de ser, a um tempo, descoberto e
ocultado, velado e desvelado à mercê dos interesses de quem o aciona como
passado. Da capacidade de se valer enquanto grupo e indivíduo que nomeia as
Missões e as interpreta.
Um jogo a que concorrem inclusões e necessárias exclusões, como o
tantas vezes observado tratamento representacional dos índios no Rio Grande do
Sul. Estes são simbolicamente incluídos em lendas e como heróis, sendo assim
utilizados enquanto estratégia justificativa de sua não vizibilização, como o
observado na relação estabelecida entre índios e tradicionalistas na cavalgada e
entre os turistas.
Concluo que, apesar de todas as disputas em que o passado missioneiro se
configura como objeto, tanto nas posturas de comemoração como de acerto de
contas, o mito da Missão como Terra da Promissão é igualmente vivido. Quem o
comemora apologiza a mensagem cristianizadora da atuação jesuítica na
construção das Missões que permanecem vivas, materializadas e visitáveis por
seu legado arquitetônico, garantindo a eficácia simbólica do mito (conforme Lévi-
Strauss) e sua atualização.
Por seu turno, quem o denuncia igualmente vive o mito da Missão como a
Terra da Promissão, porque explora e relaciona este passado a valores legados
das Missões. Valores como o apego à terra enquanto baluarte de lutas e critério
de inclusão disputado ao longo do processo histórico, que engendra e atualiza a
liberdade e a bravura como parte do ehos do gaúcho de diferentes camadas
sociais.
Na análise das representações sobre o passado missioneiro, percebi as
Missões como um passado que continua vivo e apologizado em razão de suas
características limitares. Este caráter fomenta o pertencimento ao local no esta
terra tem dono a que acorrem tantos donos quantos forem capazes de com ela se
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identificar, ao simbolicamente representá-la. Mesmo que o evento possa subverter
a própria estrutura das relações sociais na atualidade.
Este é o caso da visão da desestruturação dos povoados missioneiros,
apresentada nas representações produzidas pelo MST com o objetivo de modificar
as estruturas sociais, para além de refleti-las. Assim (conforme Sahlins), um
evento transforma-se naquilo que lhe é dado como interpretação, passando a
adquirir uma significação histórica para quem o aciona.
Nesta perspectiva, as Missões são relativas às possibilidades simbólicas
dos grupos que as interpretam, a partir de seu esquema cultural, atribuindo
sentidos específicos a este passado (significando-o) do que decorre a eficácia
histórica que parte do próprio grupo. Uma pluralidade de memórias,
aparentemente saturadas remete ao passado missioneiro que passa a fazer parte
da historicidade dos grupos e indivíduos que as re-elaboram.
A partir de suas percepções e representações se justificam interesses e se
festejam identidades: o ser missioneiro, a música missioneira, a terra vermelha, o
turismo nas Missões, o gaúcho, a nação paraguaia, o índio ideal, os sem-terra, por
exemplo. Maneiras diversas de acionar um passado no presente e vivê-lo como
mito de origem da terra e do homem que se reatualiza e se fortalece, mesmo
quando estruturalmente ressemantizado.
O fascínio exercido por este passado transformado em mito está justamente
no seu poder de significar o presente de quem o utiliza, transformando a
identificação com o passado interpretado das Missões em pertencimento ao
missioneiro, presentificado nos interesses e sentimentos de quem o aciona.
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