... sem me reconhecer porque eu não era eu (...) nasci em Alcoitão, que
sou igual a eles, que o meu marido, o neto do senhor general, o senhor
doutor, tão importante, tão rico no dia em que me levou ao Estoril (...) a
família a examinar o colar que a minha avó emprestou a que faltavam
pedras (...) a desprezarem-me conforme desprezavam a cozinheira, o
jardineiro (...) a minha sogra incomodada comigo, o senhor general que
me censura, a modista que me trata por senhora e atrás do senhora o
Amélia e por tu – Conheci-te ao balcão da retrosaria Amélia doze horas
por dia a medir tecidos e rendas (...) tanto vento que me escondia de mim
(...) o meu marido incomodado quando eu me sentava na sala, a minha
filha Ana Maria a emendar-me as frases, os olhos dela demonstrando,
explicando, sinaizinhos de dedos, faça assim, não faça assim, endireite-se
no assento, esconda essa alça, aquele talher primeiro mãe - ao passo que
a Maria Clara idêntica a mim no outro canto da mesa, um despeito
idêntico, um embaraço idêntico que me impedia de me interessar por ela,
não posso gostar de ti dado que não gosto de mim, não sou capaz, não
quero ver-te medir tecidos, comer numa marmita sobre um jornal aberto,
ensinar-te a roubar moedas e botões (...) houve instantes assim na minha
vida antes de casar, antes das minhas filhas e da cama no escritório ...
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A repulsa dela em relação aos pobres está esclarecida, enfim. Era essa a verdade
que Amélia escondia, por isso ela detestava tudo aquilo que pudesse lembrá-la do
passado humilde e ainda transferia esses valores para o marido. Quanto à Maria Clara,
a mãe a evitava por ser parecida fisicamente com ela e, conseqüentemente, perpetuar
“a mistura de sangue” e, ainda, pela menina se identificar mais com os pobres do que
com os ricos, o que representava a lembrança de um passado que Amélia queria
esquecido e, a ameaça, movida pela curiosidade inquietante de Maria Clara, da
descoberta de sua origem.
É nesse ritmo que a memória de Maria Clara está avolumada de fatos.
Imaginando viver ainda no lugar da infância, fala de como estão a mãe e a irmã e do
local onde a família habitava. Tudo está modificado pelo tempo, inclusive para ela que
mora com o marido “num andar longe do Tejo...”.
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Mas, como Maria Clara está
constantemente presa ao passado, ela tenta negar essa condição ao “pensar na minha
mãe, no meu pai e, portanto não sou Clara, sou Clarinha tenho dezoito anos e passeio lá
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Idem, ibidem, pp. 355/356/362.
229
Idem, ibidem, 447.