tanto ao conceito de jogo quanto ao de “cinema direto”
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. Em todos os casos, é a
possibilidade de “desautomatizar” processos criativos e linhas narrativas o que
produz certos efeitos – imprevisíveis, por definição, a todos os envolvidos no
processo. Não à toa, alguns desses filmes encontram-se “perigosamente” na
fronteira entre ficção e documentário. Nesse sentido, vem à mente um filme
como Dez (2002), de Abbas Kiarostami, onde o diretor confinou toda a narrativa
do filme ao interior de um carro e a dramaturgia a não-atores, que improvisavam
o texto a partir de ensaios gerais. Para possibilitar tal dispositivo, Kiarostami
utilizou câmeras de vídeo, de modo que o filme é composto de vários planos-
seqüência, nos quais a narrativa “oscila”, mas a tensão das relações persiste.
Nesse filme, não se trata de costurar uma cadeia de causas-e-efeitos “provável e
necessária”, e sim de submeter o espectador à tensão desse caminho imprevisível
que deixa suas marcas no vídeo. Estão presentes novamente frases soltas, tempos
mortos, ações cuja motivação não é unívoca, efeitos cuja causa não é clara... e,
mesmo assim, a narrativa nos prende, por outros caminhos.
Outros filmes menos radicais parecem sofrer influência indireta desses
dispositivos de desautomação da criação e da narrativa, começando por roteiros
que não estão prontos e acabados antes da filmagem, mas que vão sendo
moldados a partir de improvisações e de outros processos indeterminados. A
utilização de não-atores – ou seja, de pessoas não previamente mapeadas por
qualquer tradição dramatúrgica –, além de buscar uma relação de
verossimilhança mais profunda
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, dá um passo em direção a essa desautomação.
Outra estratégia é fazer os atores imergirem nos ambientes da história muito
tempo antes da produção, para que, da convivência com esse espaço, possam
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Parece-nos que, enquanto os documentários-dispositivo nos remetem ao “cinema verdade” e sua crença de
que o aparato constrói a cena, os filmes de ficção “neo-fenomenologistas”, sintomaticamente, dialogam com
uma utopia de cinema direto meio às avessas (uma vez que se trata de ficção), em que a câmera – e o resto da
equipe – possa se tornar invisível, dando-nos acesso privilegiado a um universo in natura.
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A palavra “verossimilhança” aqui está utilizada de uma forma um pouco mais vaga do que utilizaremos mais
adiante, e isto ficará claro quando falarmos dos personagens autônomos nos games. A questão do verossímil na
arte é muito maior do que nosso escopo aqui, mas, no caso do cinema contemporâneo e, especificamente, no
cinema brasileiro, percebem-se frentes diferentes de tentativas de trazer, se não necessariamente um aumento de
“realismo” na encenação, uma diminuição da teatralidade e do estranhamento que parecem ter marcado quase
todo o cinema brasileiro, seja em sua face mais popular, seja na mais autoral. Tal esforço fica claro quando se
percebe a emergente “ditadura da preparação de elenco”, deslocando a criação do personagem para um período
anterior ao das filmagens e, mais importante, a um profissional dedicado, que não é nem o roteirista, nem o
diretor. No caso do cinema brasileiro contemporâneo, um percentual enorme das produções conta com a
preparação de Fátima Toledo, o que tem começado a deixar marcas na tela e a impor um tipo de atuação como
sendo mais aceitável, realista e verossímil. Filmes como “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”, ambos sucesso de
público, discutíveis criticamente e representantes do Brasil no exterior (em festivais e no mercado) contribuíram
para o estabelecimento dessa nova “verossimilhança”. Acerca disso, retornaremos mais adiante.