50
E é isso que Lacan vê à margem da intuição cartesiana. A um bom
leitor, chamaria a atenção o enigma do Deus enganador, que reintegra,
segundo Lacan, aquilo que sofrera rejeição. Veja-se esse exemplo de engano,
logro, engodo: até o amor-próprio é enganador, inautêntico, como mostrava La
Rochefoucauld, contemporâneo de Descartes, ao salientar que “até mesmo
nossas atividades aparentemente mais desinteressadas são feitas para cuidar
da glória, até mesmo o amor-paixão ou o mais secreto exercício da virtude”
(Lacan, 1992, p. 17) : há um hedonismo próprio ao ego –o eu, moi- , que é
justamente o que nos engoda. Situado na tradição dos moralistas, esse tipo de
concepção abre uma perspectiva chamada de verdade, e mostra o embaraço
que sempre se percebeu no comportamento como tal – a verdade está alhures,
e Freud dirá onde ela está. É, parece, o que Descartes intuía ao falar do Deus
enganador.
A consciência nos ilude, a despeito de esta consciência apreender a si
mesma, de modo transparente, e, numa reflexão imediata, permitir ao sujeito
apreender a si mesmo numa experiência qualquer. Lacan propõe cortar o nó
górdio da consciência – abandonar o problema sem tê-lo resolvido – declarando
que a consciência se produz sempre que uma superfície possa produzir uma
imagem. Trata-se de um ilusório ...objetivo. E tal apreensão do eu, centrada
numa experiência de consciência, nos cativa, mas é preciso desprendermo-nos
disso para ter acesso à concepção lacaniana do sujeito “a fim de permitir-lhes
apreender, enfim, onde está, para Freud, a realidade do sujeito. No
inconsciente, excluído do sistema do eu, o sujeito fala” (Lacan, 1992 a, p. 80).
Entre o sujeito do inconsciente e a organização do eu há diferença
radical – e uma oposição: o eu nos diz muita coisa pela via da Verneinung, da
denegação. Mas isto não explica qual é a relação entre os dois sistemas. Eles
não são apenas um o inverso do outro, de forma que a análise do eu fosse a
análise do inconsciente ao avesso; e isto se deve ao fato da insistência, da
repetição: aquilo que Freud introduziu como o Além do princípio do prazer.
Uma questão, a esta altura, fica em aberto, a saber,