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Salvando a pátria da pornografia e da subversão:
a censura de livros e diversões públicas nos anos 1970
Douglas Attila Marcelino
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-graduação em História Social do Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Mestre em
História Social.
Orientador: Carlos Fico
Rio de Janeiro
2006
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Salvando a pátria da pornografia e da subversão:
a censura de livros e diversões públicas nos anos 1970
Douglas Attila Marcelino
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social
do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História Social.
Aprovada por
_______________________________________________
Prof. Dr. Carlos Fico
(Orientador)
_______________________________________________
Prof. Dr. Daniel Aarão Reis Filho
_______________________________________________
Profa. Dra. Marieta de Moraes Ferreira
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III
Ficha catalográfica
Marcelino, Douglas Attila.
Salvando a pátria da pornografia e da subversão: a censura de livros e diversões
públicas nos anos 1970/ Douglas Attila Marcelino. Rio de Janeiro: UFRJ/ PPGHIS,
2006.
v, 300f.; 29,7 cm.
Orientador: Carlos Fico
Dissertação (mestrado) – UFRJ /IFCS/ Programa de Pós-graduação em História Social,
2006.
Referências bibliográficas: f. 282-288
1. Ditadura militar. 2. Censura de diversões públicas. I. Fico, Carlos II. Universidade
Federal do Rio de Janeiro. II. Programa de Pós-graduação em História Social. III. Título
IV
RESUMO
Esse trabalho analisa a censura de livros praticada nos anos 1970, procurando destacar a
existência de duas censuras distintas, uma voltada para as questões morais e outra para o
plano mais estritamente político-ideológico. Tal discussão insere-se na perspectiva de
redimensionar a importância da censura de costumes, destacando os movimentos da
memória em relação ao fenômeno e abrindo a possibilidade de repensar a censura de
diversões públicas do regime militar. Nesse sentido, procura-se ressaltar a existência de
uma espécie de tradição da “censura da moral e dos bons costumes” e analisar a
demanda de parte da população brasileira por esse tipo de “serviço”. Por fim, destacar-
se-á, também, o quanto as dimensões moral e política das censuras estiveram
interconectadas no discurso de determinados segmentos como a comunidade de
informações e alguns grupos sociais que demandavam um enrijecimento da censura de
costumes no período.
ABSTRACT
This research analyzes the censorship of books practiced in the years 1970 in Brazil. It
emphasizes the existence of two different censorships: the first, deal with moral subjects
and the second with the political-ideological subjects. Such discussion is inserted in the
perspective of resizing the importance of the custom’s censorship. It emphasizes the
memory’s movement in relation to the phenomenon and opens the possibility to rethink
the censorship of public amusements during the military regime. Like this, the research
emphasizes the existence of a tradition of moral censorship and analyzes the demand of
part of the Brazilian population for this “service”. Finally, we also highlighted that both
dimensions of censorship were linked in the speech of certain segments as the
“comunidade de informações” (intelligence service) and some social groups that asked
for more censorship during the military dictatorship.
V
SUMÁRIO
Agradecimentos..................................................................................................................................................6
Apresentação......................................................................................................................................................8
Parte I - As censuras........................................................................................................................................13
Capítulo 1: Política, memória e historiografia: o SCDP e uma tradição censória...........................................14
1.1. O SCDP: tradição e reorganização censória..................................................................................26
Capítulo 2: As duas censuras de publicações da ditadura militar: estruturação e desmonte..........................39
Parte II - Política ...............................................................................................................................................69
Capítulo 3: Em defesa da segurança nacional: a censura política ..................................................................70
3.1. O período de Armando Falcão........................................................................................................85
Capítulo 4: Acadêmicos e literatos: censura e monitoramento dos órgãos de informações .........................100
4.1. A perseguição aos livros acadêmicos...........................................................................................100
4.2. Censura política e literatura em meados da década ....................................................................113
Parte III - Moral...............................................................................................................................................139
Capítulo 5: Em defesa da moral e dos bons costumes: a censura moral......................................................140
5.1. O período de Armando Falcão......................................................................................................155
5.2. Educação sexual e drogas: temáticas proibidas...........................................................................167
5.3. Duas autoras “pornográficas” e o “tabu” do homossexualismo....................................................181
Capítulo 6: O “guardião dos bons costumes”: Armando Falcão e as publicações “eróticas” ........................195
Parte IV - Moral e Política...............................................................................................................................223
Capítulo 7: Pátria, família, religião: quando moral e política se misturam.....................................................224
7.1. A defesa da família: as entidades religiosas.................................................................................229
7.2. A defesa da pátria: os militares.....................................................................................................248
7.3. Difusão do anticomunismo: as pessoas “comuns” .......................................................................259
7.4. Total delírio persecutório: os agentes de informações .................................................................267
Considerações finais ......................................................................................................................................278
Fontes e bibliografia .......................................................................................................................................282
Anexos............................................................................................................................................................289
6
Agradecimentos
Sem dúvida, os dois anos que constituem uma pesquisa de mestrado passam de
maneira apressada, exigindo não só uma dedicação aos estudos, mas um
amadurecimento intelectual e profissional bastante difícil de alcançar em pouco tempo.
É nesse curto período que temos a possibilidade de visualizar mais claramente os
elementos que fundamentam a pesquisa histórica, aprendendo a criticar de modo mais
substantivo o conhecimento existente e a lidar com as incertezas de um processo de
pesquisa cujas etapas de constituição e reconstituição se chocam com a necessidade de
uma rápida formulação de um texto coerente e original. Nesse sentido, a percepção do
modo como trabalham determinados profissionais, alguns deles meus professores desde
a graduação, que dedicam uma real seriedade aos estudos acadêmicos, é algo
fundamental. Não menos importante, por outro lado, são as trocas intelectuais e a
companhia sempre enriquecedora de alguns grandes amigos, boa parte deles colegas de
graduação que agora estão fazendo ou concluindo seus estudos de pós-graduação. Sendo
impossível citar todos, peço desculpas àqueles que não serão nominalmente
mencionados e quero dizer-lhes que isso, de forma alguma, os retira desse texto.
Gostaria de destacar, portanto, os seguintes nomes: Eleomar Cândido (o Léo), Marcos
Cesar, Ricardo, Beto, Sérgio Henrique, Aline, Adriano Macedo, Grasiele, Rafael
Mattoso, Valéria Silva, Ricardo Pinto, Marcos Kelly, Irina Aragão, Rose, Amália Dias,
Ilton Telles, Giovana Xavier, Fernanda Castro, Maika Carocha, William Martins, José
Marcelo, Abner Sotenos, Tatiana Lomba e Miliandre Garcia. Agradeço também às
pessoas do Grupo de Estudos sobre a Ditadura Militar (IFCS/UFRJ), algumas das quais
não estão nessa lista, mas contribuíram em nossas discussões e reuniões. Outro
importante nome é o de Simone de Mello, cuja valiosa e inabalável amizade sempre se
materializou em estímulos para minha vida profissional. A Ana Paula Sampaio devo
não só trocas intelectuais, mas o carinho do dia-a-dia e a compreensão e os incentivos
nos momentos mais difíceis.
Meu orientador, Carlos Fico, foi certamente uma pessoa fundamental para a
conclusão desse trabalho. Agradeço a ele não somente pela rotina da orientação
acadêmica, mas pela amizade e a contribuição na própria conformação da minha visão
sobre como deve ser o ofício do historiador: não negligente em relação à teoria, mas
7
também não displicente com a pesquisa arquivística. Agradeço também a minha banca
de qualificação, formada pelos professores Daniel Aarão Reis e Marieta de Moraes
Ferreira, cujas valiosas sugestões foram praticamente todas incorporadas nessa versão
final da dissertação. Igualmente importante foi a colaboração dos funcionários do
Arquivo Nacional, da sede do Rio de Janeiro, e do Arquivo Nacional, localizado em
Brasília, as duas instituições onde recolhi o material que fundamentou essa pesquisa. No
caso do último, quero agradecer especialmente ao Carlos Marx, funcionário responsável
pelo fundo DCDP. O profissionalismo e a dedicação de Carlos são realmente aspetos
admiráveis e representaram colaboração importantíssima. Não poderia deixar de
agradecer também ao CNPq, que financiou o primeiro ano de pesquisa, e à Faperj, que
me beneficiou com uma Bolsa Nota 10 no ano seguinte. Graças ao auxílio que a Faperj
tem concedido ao Grupo de Estudos sobre a Ditadura Militar, pude viajar a Brasília
algumas vezes e recolher o material documental do fundo DCDP aqui utilizado.
Finalmente, sou grato à minha família, sempre incentivadora dos meus estudos e nunca
coibidora das minhas escolhas, algo fundamental para que eu optasse por dar
continuidade à minha vida acadêmica.
8
Apresentação
Quando falamos da censura praticada durante o regime militar, geralmente nos
remetemos à censura política, particularmente aquela que se abateu sobre a imprensa
escrita, acometendo grandes jornais, ou mesmo, periódicos da chamada “imprensa
alternativa”. Os anos que se seguiram à promulgação do Ato Institucional nº 5, de 13 de
dezembro de 1968, foram marcados pelo veto à liberdade de expressão, tendo sido
fortalecidos os mecanismos de controle censório já existentes e implementados outros,
como a censura prévia nas redações de alguns jornais e o envio a diversos órgãos de
comunicação dos chamados “bilhetinhos” contendo os assuntos que não poderiam ser
mencionados. Não obstante, aqueles não foram anos de censura somente no plano
político, mas também no que diz respeito ao campo dos costumes. Foi no processo
histórico da conformação de uma memória sobre aquele período, valorizadora do
confronto entre repressores e reprimidos, que somente uma das dimensões da atividade
censória foi ganhando proeminência. Deslindar as principais características desse
“movimento da memória”, da estruturação e da atividade das duas formas de censura
existentes no período torna-se fundamental, portanto, para um aprimoramento da
historiografia sobre a ditadura militar.
O campo privilegiado nesta pesquisa foi o da censura de livros praticada nos
anos 1970. A censura de escritores por motivações morais, como se sabe, é um
fenômeno de longuíssima duração, confundindo-se, nos últimos séculos da história do
mundo ocidental, com a atuação da Igreja Católica. No caso brasileiro, desde o chamado
período colonial, ela foi também praticada pela Coroa portuguesa, preocupada em
controlar a circulação de idéias consideradas imorais ou sediciosas nas suas “terras de
além-mar”. Nesse sentido, a censura de caráter moral foi, desde muito tempo, firmando
suas raízes no solo brasileiro, haja vista, ainda, o controle sobre a produção teatral no
século XIX e o seu também largo emprego durante a conjuntura republicana. Claro está,
essa é uma longa trajetória, que esse trabalho jamais objetivaria examinar. O que se quer
destacar, entretanto, é que a censura de costumes feita sobre determinados meios de
comunicação nos anos da ditadura não se explica somente pelas mudanças políticas
vividas naquele momento de autoritarismo. A censura de livros e revistas que tratavam
de temas comportamentais nos anos 1970, por exemplo, foi articulada em torno de um
9
órgão de censura que atuava nesse plano desde meados dos anos 1940 (controlando as
chamadas “diversões públicas”). Após 1964, por outro lado, este órgão foi objeto de
uma série de medidas visando sua reestruturação, tornando-se mais importante e
atuante. Todas essas discussões (sobre as conformações da memória, a tradição da
censura de costumes e sua reorganização nos anos 1960 e 1970) são os temas do
capítulo 1 desse trabalho.
A censura da “moral e dos bons costumes”, que já existia antes da implantação
da ditadura militar, por outro lado, também foi utilizada com finalidade política, inter-
relacionando-se com a censura de natureza mais estritamente ideológica em
determinados momentos históricos. Foi o que aconteceu durante os anos do regime
militar, especialmente na conjuntura de auge da repressão (1968-1972). A censura
política, entretanto, nunca anulou a de costumes, que também continuou atuando
intensamente nesse período. No plano da censura de livros e revistas, por exemplo, é
possível reconstituir o processo de estruturação e de desmonte das duas distintas
censuras ao longo dos anos 1970. Feitas em instâncias diferentes, com base em normas
legislativas e convicções de naturezas distintas, as censuras de publicações tiveram suas
atuações marcadas pelas ações de uma personagem importante no âmbito do governo
Geisel: o ministro da Justiça Armando Falcão. Esse é o assunto do capítulo 2.
De fato, a censura prévia de livros e revistas foi implementada no início dos anos
1970, mas foi durante o mandato de Armando Falcão na pasta da Justiça (1974-1979)
que a atividade ganhou mais consistência e sistematicidade, haja vista suas grandes
preocupações com o âmbito da moral e dos bons costumes. Falcão era uma personagem
de colorações morais bastante conservadoras, cuja administração ficou marcada pela
farta utilização da tesoura censória, quando a censura de diversões públicas atingiu seu
momento de auge (foram interditados, naqueles anos em que se iniciava a chamada
“abertura política”, uma grande quantidade de filmes, peças de teatro, programas de
televisão, livros, revistas etc.). Foi também nos anos de Armando Falcão que tivemos
uma maior atuação da censura política de livros e revistas tidos por atentatórios à
segurança nacional, embora grande parte dos livros examinados não tenha chegado a ser
proibida. Nesse sentido, enquanto a censura de costumes recebia a colaboração de
determinados missivistas, que denunciavam obras e autores tidos como imorais às
autoridades governamentais, a censura política contava com a importante atuação dos
10
órgãos de informações. A distinção de ambas as censuras nos permite perceber a
fragilidade das concepções que interpretam o Estado ditatorial como um todo
monolítico, desconsiderando a existência de importantes diferenças entre as instâncias
que atuavam dentro dele. A prática efetiva da censura política de livros é o tema dos
capítulos 3 e 4. Já a análise da censura moral corresponde ao objeto do capítulo 5.
No caso da censura voltada para as publicações “eróticas”, Armando Falcão
recebeu uma considerável quantidade de correspondências de pessoas que viam suas
atitudes como positivas na “defesa dos valores tradicionais da sociedade brasileira”.
Dentre as centenas de missivas encaminhadas à censura pedindo mais rigor moral,
muitas delas tinham sido anteriormente enviadas ao ministro Falcão e se referiam a
revistas e livros considerados obscenos (publicações periódicas como Ele e Ela, Status,
Photo, Homem, Festa, por exemplo, eram muito visadas). Paralelamente à discussão
sobre a imoralidade em programas de televisão e sobre a difusão da pornografia no
cinema nacional, essa parecia ser uma questão candente para os setores que pregavam
uma intensa atuação da censura em fins dos anos 1970 e que não se conformavam com a
exposição de revistas eróticas em bancas de jornal. Assim, a atuação de uma
personagem como o ministro Falcão figurava, para muitas pessoas mais conservadoras,
como uma oportunidade sui generis de combater energicamente a suposta imoralidade
existente nesses meios, algo que estimulava o envio de missivas congratulando-se com
sua intensa atividade como “guardião dos bons costumes”. Esse é o tema do capítulo 6.
Essa última problemática remete a uma questão também discutida ao longo das
páginas seguintes, qual seja, a do apoio que a “censura da moral e dos bons costumes”
recebia de uma determinada parcela da população brasileira. A análise das
correspondências enviadas à censura, ou às autoridades governamentais envolvidas com
a matéria, nos permite perceber a maior aceitação que havia em torno desse tipo de
atividade, diferentemente do que acontecia com a censura estritamente política dos
órgãos de imprensa (esta última, como se verá, foi feita às escondidas, por ser mais
claramente arbitrária). Como se pode notar, tal discussão também se relaciona
diretamente com a temática já mencionada da existência de uma espécie de tradição de
censura de costumes na sociedade brasileira. Por outro lado, as décadas de 1960 e 1970
foram marcadas pelo fenômeno conhecido como “revolução dos costumes”, quando
determinadas discussões comportamentais ganharam grande espaço, sobretudo quando
11
exibidas por aquele que ia tornando-se o principal meio de comunicação do país: a
televisão. Esse processo, que demarca uma espécie de aceleração na mudança de
determinados padrões morais da sociedade, também ajuda a explicar a demanda que
havia, por parte de um conjunto de pessoas, pelo enrijecimento da censura de costumes
no período.
Entretanto, embora seja o fator mais importante, não é somente a perspectiva de
defesa da moral e dos bons costumes que ajuda a explicar a demanda por mais censura.
Os anos da ditadura militar foram marcados também pelo entrelaçamento entre as
discussões de natureza moral e política, pelo menos nos discursos de segmentos como a
“comunidade de informações”, de certos setores militares e de algumas entidades
religiosas que “faziam funcionar” o que se tem chamado de “imaginário anticomunista”.
A tese de que a propagação da imoralidade nos meios de comunicação obedecia a um
plano do movimento comunista internacional, por exemplo, pode ser facilmente
encontrada nos documentos dos órgãos de informações, servindo como um importante
meio utilizado por esse segmento para demandar que a censura de costumes assumisse
uma conotação tipicamente político-ideológica. O mesmo pode ser visto nas cartas de
muitas entidades religiosas que defendiam um maior controle sobre as diversões
públicas em favor da “família cristã ocidental”, e de outros segmentos militares
preocupados com a “defesa da pátria” em relação aos seus supostos inimigos
comunistas. O tema da associação entre as discussões morais e políticas no plano do
discurso anticomunista é o objeto do capítulo 7.
Essa pesquisa ampara-se, fundamentalmente, nas documentações de dois
importantes acervos documentais. O primeiro corresponde ao próprio fundo documental
do órgão criado em 1945 para fazer a censura de diversões públicas: a hoje extinta
Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP). Era ele que deveria fazer o “exame
censório” de peças teatrais, dos filmes para o cinema, da música, de parte da
programação de rádio e televisão (esta última, a partir dos anos 1950) e das publicações
cujos temas fossem tidos como referentes à moral e aos bons costumes (nesse caso,
durante boa parte dos anos 1970). Praticamente toda a sua documentação ainda
existente encontra-se alocada no Arquivo Nacional, na sede de Brasília. Outro fundo
documental extremamente importante para os nossos propósitos foi o da Divisão de
Segurança e Informações do Ministério da Justiça (DSI/MJ). Esse órgão era um dos
12
integrantes do chamado “SISNI” (Sistema Nacional de Informações) do regime militar.
Tal sistema era encabeçado pelo Serviço Nacional de Informações (SNI) e ramificava-
se por uma série grande e complexa de outros órgãos, os quais tinham por objetivo não
somente prover a Presidência da República de informações estratégicas, mas também se
encarregar das atividades de informações típicas do período ditatorial. Nesse sentido,
em cada ministério civil havia uma DSI e, nas empresas estatais e autarquias, uma ASI
(Assessoria de Segurança e Informações), órgãos integrantes deste grande sistema cujos
membros ficaram conhecidos como “comunidade de informações”. É nesse sentido,
portanto, que essa última expressão será utilizada ao longo do texto.
13
Parte I
As censuras
14
Capítulo 1
Política, memória e historiografia: o SCDP e uma tradição censória
Os que viveram intensamente aqueles tempos guardam
a impressão de que não faziam outra coisa: mais do que
fazer amor, mais do que trabalhar, mais do que ler,
fazia-se política. A moda era politizar – do sexo às
orações, passando pela própria moda, que, durante pelo
menos uma estação de 68, foi “militar”: as roupas
mimetizaram a cor e o corte das fardas e das túnicas dos
guerrilheiros.
1
Os brasileiros nunca entenderam por que Adolf Hitler e
Cassandra Rios – um aficionado por aberrações
genético-políticas, a outra por aberrações sexuais –
apareceram ao lado de Regis Debray, Henry Miller,
Mao Tsé-tung, Che Guevara, Leon Trotski, Louis
Althusser. Todos censurados.
2
O trecho do conhecido livro de Zuenir Ventura, utilizado como epígrafe, parece
bastante propício à reflexão sobre a memória construída em torno da ditadura militar,
inclusive no que diz respeito à censura praticada no período. Podendo ser tida como
inserida no âmbito da disputa pela leitura correta daqueles anos de autoritarismo, a obra
do jornalista reflete uma das imagens mais cristalizadas nesse sentido, qual seja, a de
uma conjuntura na qual tudo era submetido à política, particularmente temas de cunho
comportamental, como o amor e a sexualidade. Assim, segundo o autor, o período que
se seguiu ao emblemático ano de 1968 teria sido marcado por uma “juventude que se
acreditava política e achava que tudo devia se submeter ao político: o amor, o sexo, a
cultura, o comportamento”.
3
Fortalecendo uma visão bastante positiva sobre os jovens
daqueles anos, o livro de Zuenir Ventura pode ser tomado, então, como um exemplo
bem sucedido do processo de conformação de uma certa imagem do passado recente,
facilmente encontrada em depoimentos, artigos de jornais, programas de televisão ou
em outras formas de produção cultural que procuraram representar o período. Talvez,
1
VENTURA, Zuenir. 1968. O ano que não terminou. São Paulo: Círculo do Livro, 1988. p. 81.
2
COURI, Norma. Censura cortou o elo de leitores com o mundo. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 13
dez. 1998. Caderno especial dos 30 nos do AI-5.
3
VENTURA, Zuenir. Op. cit. p. 17.
15
entretanto, ele destaque apenas uma dimensão da experiência histórica que marcou os
chamados “anos de chumbo”.
Antes de aprofundarmos a questão, vale nos reportarmos ao outro trecho
transcrito poucas linhas acima, da jornalista Norma Couri. Como se pode notar, ele
reflete o espanto da autora diante de uma constatação insólita: não foram somente os
livros que tratavam de política que foram censurados. Mais do que isso, foram
proibidos, ao lado de autores clássicos do pensamento “marxista”, livros de escritoras
como Cassandra Rios que, abordando a temática erótica, jamais o fizera de forma
“politizada”. Como se vê, os dois trechos emprestam uma importância desmedida ao
fator político como o vetor explicativo do processo histórico que marcou os anos de
autoritarismo. Claro está, essa foi uma faceta fundamental do período. Sua
supervalorização, porém, pode acabar por encobrir determinadas questões e, mesmo,
tornar inexplicável algo plenamente compreensível, desde que observado de um ponto
de vista que procure atentar para as peculiaridades e as várias dimensões de fenômenos
como a censura do regime militar.
De fato, a memória construída sobre os anos da ditadura, de forma geral, tende a
ressaltar somente a dimensão política da censura então existente. Na verdade, a época é
lida, como um todo, sobretudo a partir da chave política. Questões como a sexualidade e
outras referidas ao plano comportamental, quando mencionadas, são tomadas apenas
como epifenômenos de uma variante política fundamental. Assim, a história do Brasil
entre 1964 e 1985 tem sido reduzida à história política da ditadura militar. Por outro
lado, sendo o livro de Zuenir Ventura e o trecho da matéria da jornalista Norma Couri
apenas indícios desse tipo de percepção geral sobre o período, talvez sua origem deva
ser procurada mais apropriadamente nos anos mesmos de resistência ao regime
autoritário, particularmente no que concerne ao chamado processo de “abertura
política”. Durante aqueles anos de embates contra o regime implantado pelos militares,
a denúncia da censura política era um recurso político e simbólico fundamental para
desestruturar de vez os mecanismos ditatoriais ainda existentes, acabando por fazer
generalizar-se a convicção de que somente havia censura desse tipo. A luta contra essa
que era uma das facetas mais importantes do regime político de exceção, nesse sentido,
acabou por encobrir a existência da censura de costumes, aspecto também importante
para se compreender de modo mais profundo aquela conjuntura.
16
Como não poderia deixar de ser, esse tipo de concepção acabou por se
manifestar, também, na já razoavelmente expressiva historiografia que foi sendo
conformada em torno dessa problemática. Desse modo, instituições que tinham uma
longa trajetória de atuação no âmbito da censura de costumes, como o Serviço de
Censura de Diversões Públicas,
4
acabaram sendo tomadas como executoras de uma
censura apenas político-ideológica, praticamente despreocupada com as discussões de
âmbito comportamental. Nesse sentido, certos casos de censura política ganharam
grande repercussão após a ditadura, algo certamente importante para compreendermos o
período, mas que, por si só, não nos proporciona uma visão mais completa da atuação
do SCDP. Parte da historiografia sobre o tema sobrevalorizou a dimensão política da
censura reforçando, assim, o processo de consolidação de certa memória da resistência
às arbitrariedades cometidas durante aquele período, que tende a enaltecer a dicotomia
repressor/reprimido. Tal dicotomia é fundamental para a compreensão da época, mas
não a esgota em sua complexidade. Quanto mais não fosse, é muito recente o processo
de retorno à normalidade democrática no caso brasileiro, o que faz com que o capital
simbólico mobilizado, sobretudo pelos meios intelectualizados, contra os valores que
representaram o arbítrio daqueles anos de exceção, ainda permaneça com bastante vigor
na memória coletiva.
É nessa medida que praticamente todos os trabalhos que analisam a censura da
ditadura militar mencionam certos casos exemplares, os quais vão constituindo uma
tópica que, como acontece em qualquer processo de construção de memória, é
notoriamente coletivo e seletivo.
5
Assim, quem nunca ouviu falar de Julinho de
Adelaide, pseudônimo adotado por Chico Buarque para ludibriar a censura durante o
regime militar? Ou, ainda, quem nunca se deparou com reportagens sobre a perseguição
sofrida por compositores como Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo, Taiguara e alguns
outros ligados à MPB durante os “anos de chumbo”? Por sua vez, quem ainda não
sentiu o sabor de ironizarmos as “visões delirantes” dos agentes dos órgãos de
informações sobre Glauber Rocha, Ruy Guerra e outros importantes cineastas do
4
O Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP) fazia a censura das chamadas “diversões públicas”
(o teatro, o cinema, a música, o rádio, as casas de espetáculo, entre outros) desde os anos 1940, conforme
destacaremos mais pormenorizadamente no item seguinte. Em 1972, o SCDP tornou-se Divisão de
Censura de Diversões Públicas (DCDP). Por isso, ao longo desse texto, poderão ser encontradas as duas
designações para a censura de diversões públicas que atuou durante a ditadura militar.
5
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
17
período? Esses poucos exemplos, aos quais poderíamos facilmente acrescentar outros,
são mencionados, não para negar sua importância como aspectos fundamentais do
processo histórico recente, mas somente para destacar que eles foram apenas alguns
eventos dos anos 1960 e 1970, os quais, paulatinamente selecionados no processo de
conformação da memória coletiva, acabaram por fazer prevalecer a proeminência da
censura política.
O caso de Chico Buarque é exemplar, pois talvez ele tenha sido aquele que mais
ficou cristalizado na memória coletiva como um representante da resistência intelectual
à ignorância da repressão.
6
De fato, o reconhecido talento de Chico Buarque associou-se
à sua habilidade de, em alguns momentos, burlar a censura, tornando-o emblemático de
uma valorizada capacidade da classe artística de resistir. É preciso destacar, porém, que
casos como o de Chico Buarque não constituíam toda a atividade da censura. Artistas
como ele, Glauber Rocha e alguns outros, recebiam um tratamento especial, justamente
devido às recomendações e admoestações dos setores militares superiores para que os
censores não deixassem passar mensagens de caráter “subliminar” em suas obras. Tal
articulação, entretanto, não se dava para a maioria dos processos censórios que
chegavam ao Serviço de Censura de Diversões Públicas.
Em outras palavras, nomes como Chico Buarque e Glauber Rocha eram
notoriamente visados e, por isso, havia instruções específicas e uma atenção especial
para como lidar com suas canções e filmes (até porque se os técnicos de censura
deixassem passar incólumes músicas como Apesar de você, provavelmente sofreriam
admoestações).
7
Porém, a especificidade desses casos não representa a atividade mais
rotineira do Serviço de Censura de Diversões Públicas, a qual esteve, na maior parte do
período autoritário, voltada para a questão da moral e dos bons costumes, único plano
no qual não havia praticamente nenhum constrangimento na aplicação da tesoura
censória. Um indicativo disso pode ser percebido num documento do SCDP visando
auxiliar o órgão regional do Rio de Janeiro na uniformização dos critérios de censura:
6
Ver, por exemplo, o recém-lançado livro de Rinaldo de Fernandes, para quem Chico Buarque foi o
principal artista-símbolo da resistência à ditadura. FERNANDES, Rinaldo de. Chico Buarque do Brasil.
Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 2004.
7
Nos cursos para aperfeiçoamento de censores, os filmes usados como exemplo sobre os perigos à
segurança nacional eram, geralmente, os de autores como Glauber Rocha e Ruy Guerra. Do mesmo
modo, quando o filme Terra em transe chegou para a avaliação do SCDP, em 1967, o chefe daquele
órgão, Romério Lago, designou cinco censores para examiná-lo e não três como de habitual. SIMÕES,
Inimá. Roteiro da Intolerância: a censura cinematográfica no Brasil. São Paulo: Editora do SENAC,
1999. p. 87-88.
18
No campo da comunicação social relativa a diversões e
espetáculos públicos, as matérias que envolverem aspectos
políticos ou filosóficos, sem que haja manifestação superior,
prévia e expressa, não devem sofrer restrições por parte do
SCDP/SR/RJ. (...) No que concerne à moral e aos bons
costumes, entretanto, é inegável a competência da ação prévia
da Censura Federal para o cumprimento da legislação em
vigor.
8
Conforme veremos no capítulo seguinte, a censura estritamente política da
imprensa, de livros e revistas, durante grande parte da ditadura militar, foi mais
largamente empregada por outras instâncias censórias, de modo escamoteado, e com
todos os constrangimentos advindos de uma prática nitidamente arbitrária. A atuação do
Serviço de Censura de Diversões Públicas nesse plano se deu mais intensamente no
período de auge da repressão (1968-1972), mas não fez aquele órgão abdicar da sua
função precípua de supostamente “zelar pela moralidade do povo brasileiro”. Assim,
embora a grande maioria dos trabalhos sobre a censura do período tenha enfatizado
somente a natureza política da censura executada pelo SCDP, ele tinha, como uma de
suas principais características, a função de se voltar para as questões referidas à moral e
aos bons costumes, algo que, em nenhum momento, foi anulado pelas preocupações
ideológicas. A censura de diversões públicas, que abarcava as peças teatrais, a produção
musical, a cinematografia, a programação de rádio e televisão e, a parir de 1970, foi
também direcionada aos livros publicados no período, estava ancorada em uma forte
tradição de censura de costumes que, além de anteceder em muito aos anos de ditadura
militar, se enraizava em convicções profundas sobre a necessidade de se resguardar
certos padrões morais tidos como típicos da sociedade brasileira. Entretanto, deixemos
para aprofundar essa discussão mais adiante.
Por ora, cabe retornarmos à problemática da supervalorização do vetor político
para a compreensão do pós-64, pois uma questão fundamental que procuramos suscitar
talvez tenha passado desapercebida: a “politização” das questões comportamentais,
enfatizada no livro de Zuenir Ventura, tem de ser vista como algo bastante restrito a
8
Normas internas para avaliação das matérias submetidas ao SCDP/SR/RJ, [197?], Fundo “Divisão de
Censura de Diversões Públicas”, Arquivo Nacional, Coordenação Regional do Arquivo Nacional no
Distrito Federal, Seção Orientação, Série Normatização, doravante identificada apenas como “NO”. Erros
de pontuação, grafia e outros foram corrigidos quando da transcrição de documentos. Alguns
truncamentos frasais foram mantidos porque expressam o padrão de escrita dos censores e da comunidade
de informações. Para não sobrecarregar o texto com ressalvas, serão mantidos e designados com a
expressão “sic” apenas os equívocos que sejam significativos para o entendimento do assunto em análise.
19
uma determinada parcela da população. Para além dos setores de classe média
intelectualizada que faziam uma conexão entre a crítica ao chamado “padrão de
relacionamento burguês” e o combate ao autoritarismo, como ressaltado por aquele
jornalista, havia uma enorme parcela da população ávida pelo consumo de livros,
filmes, programas de TV e outros meios que abordassem o sexo de modo menos
“sofisticado”. Um grande número de pessoas, geralmente desconsideradas nas análises
históricas, lotava as salas dos cinemas quando eles exibiam filmes mais “picantes”,
gastava dinheiro comprando uma literatura considerada de “baixo nível” pelos setores
mais intelectualizados e promovia a alavancada de um dos produtos mais rentáveis em
termos da chamada “indústria cultural”: as telenovelas.
9
Desse modo, se os anos 1970
foram marcados pela conformação de um mercado para os livros abordando temáticas
políticas, conforme destacou Heloísa Buarque de Hollanda,
10
no que concerne àqueles
“simplesmente eróticos”, tal fato parece também bastante notável, haja vista o caráter
industrial que foram tomando os diversos rumos da produção cultural naquela
conjuntura, em parte devido aos próprios esforços governamentais nesse sentido.
11
Assim, o largo emprego do erotismo (ou, ao menos, de uma representação
menos comedida do sexo e de temáticas a ele relacionadas) pode ser visto não somente
no plano editorial, mas também no âmbito dos programas televisivos e do cinema
nacional. Nesse caso, além dos filmes brasileiros apresentando freqüentemente cenas
que, até então, poderiam ser facilmente taxadas de pornográficas (tais filmes
começaram a ser transmitidos, via TV, sobretudo a partir de fins dos anos 1970),
tivemos a presença de novas discussões e posturas comportamentais no plano das
telenovelas, minisséries e programas de auditório que chocavam a suscetibilidade de
muitas pessoas moralmente mais conservadoras. No âmbito cinematográfico, por seu
9
Daniel Aarão Reis, em trabalho recente, destacou a ênfase que a historiografia tem dado a determinado
tipo de produção cultural mais engajada que, apesar da alta qualidade, possuía público restrito (como a
música de protesto de Geraldo Vandré e Chico Buarque e os filmes de Glauber Rocha e Ruy Guerra), em
detrimento de outros segmentos como a Jovem Guarda e as telenovelas e programas humorísticos de
televisão, que atraíam uma soma muito maior de pessoas. REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar,
esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. p. 47-48.
10
HOLLANDA, Heloísa Buarque de; GONÇALVES, Marcos Augusto. Política e literatura: a ficção da
realidade brasileira. In: FREITAS FILHO, Armando. Anos 70: literatura. Rio de Janeiro: Europa, 1979. p.
41.
11
Refiro-me à conformação ou expansão de um mercado para a produção em escala industrial de bens
culturais referentes à cinematografia nacional, à produção televisiva e, também, ao plano editorial, para a
qual determinados governos militares, como o de Ernesto Geisel, tiveram um importante papel (no caso
da expansão da televisão, foram marcantes as diversas medidas tomadas ao longo do governo de Castelo
Branco com vistas a desenvolver a rede de telecomunicação no país).
20
turno, eram as chamadas “pornochanchadas” que despontavam como um mercado
bastante lucrativo na exploração das cenas de nus e de relações sexuais. Já o mercado
editorial sofria as mudanças em direção à “profissionalização” dos escritores e à
consolidação de uma produção de livros em mais larga escala.
12
A influência da
literatura internacional abordando temas como a violência e o sexo, como se pode ver
pela numerosa importação de best-sellers norte-americanos,
13
ou mesmo a exploração
dessas questões devido às mudanças internas à produção literária brasileira, foram
aspectos que marcaram aquela conjuntura histórica. Como parece evidente, esses
processos não se fizeram no vazio, mas acompanhados de um público que se comprazia
em consumir esse tipo de produto cultural.
Havia, portanto, pelo menos dois processos distintos naquele período: a adoção
de novas posturas comportamentais por parte de uma parcela mais intelectualizada da
juventude, que rejeitava muitos dos padrões morais e culturais tradicionais a partir da
desilusão ou da busca da confrontação com a ordem política vigente; e o consumo, em
grande escala, do erotismo sem preocupações de natureza ideológica, pautado na
expansão de um mercado de bens culturais dessa natureza em diversos planos. Ambos
esses processos, embora não se confundam, se chocavam com a moral defendida e
apregoada pelos governos militares, mas também ressoavam de modo diferenciado
dentro das diversas correntes ali existentes: enquanto determinados segmentos, como a
“comunidade de informações”, associavam diretamente a “explosão da sexualidade”
com as atividades políticas de setores “subversivos”, outros setores, que também
atuavam dentro do Estado, como o Serviço de Censura de Diversões Públicas, estavam
mais preocupados com as questões próprias à mudança acelerada de costumes. É
preciso atentar para todas essas nuances para que tenhamos uma visão mais refinada
sobre o período.
Para a maioria dos trabalhos históricos sobre a censura da ditadura militar,
entretanto, a perspectiva de defesa da moral e dos bons costumes, sempre afirmada pelo
12
SUSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária: polêmicas, diários & retratos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1985.
13
A importação brasileira de livros produzidos nos Estados Unidos aumentou consideravelmente nos
anos 1970, como se pode perceber pelos dados levantados por Laurence Hallewell. Se, em 1960, ela
atingia a marca de 423,67 toneladas de livros, em 1965, ela chegava a 446,27t, passando para 915,72t, em
1970, e 1.744,28t, em 1975. O grande salto, nesse sentido, parece ter sido mesmo em 1975, quando os
números praticamente dobraram em relação aos anos anteriores. Já o ano de 1978 foi aquele em que
tivemos o ápice do número de livros norte-americanos importados da década, com 1.870,82t.
HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história. São Paulo: EDUSP, 1985. p. 400-403.
21
Serviço de Censura de Diversões Públicas, seria, quando muito, um estratagema
encontrado pelas autoridades envolvidas com a ditadura militar para escamotear o
verdadeiro objetivo daquela instância censória: combater a “subversão” e as idéias
politicamente contrárias ao regime instalado no país desde 1964. Essa é a perspectiva,
por exemplo, de Beatriz Kushnir, para quem a tarefa executada pelo SCDP foi de
censura política “encoberta pelo manto da vigilância à ‘moral e aos bons costumes”.
14
A
análise de Kushnir chegou a destacar a existência de duas censuras distintas (uma para
as diversões públicas e outra para a imprensa), mas as igualou em seus objetivos de
forma bastante duvidosa. Segundo ela,
mantendo uma continuidade, a censura no pós-1968, também
nesse momento, esteve dividida em duas instâncias: uma se
aplicava à diversão, outra à imprensa. Ambas com cunho
político, contudo a primeira encoberta nas preocupações com a
moral e os bons costumes.
15
O jornalista Inimá Simões, ao analisar a censura cinematográfica do período,
também enfatizou o caráter político desse tipo de atividade, pois, “apesar do esforço
para aparentar legalidade”, a censura “não passou de um órgão executor das orientações
da alta hierarquia militar e dos órgãos de informações. Com o pretexto de defender a
moral e os bons costumes, ela (...) na verdade, operava exclusivamente na preservação
do Estado e de seus poderes”.
16
Como se pode notar, assim como no trabalho de Beatriz
Kushnir, a preocupação com a “moral e os bons costumes” aparece também como
apenas um subterfúgio para a feitura da censura política. Outra análise que apresenta
uma perspectiva semelhante é a de Alexandre Ayub Stephanou, sobre a censura
praticada entre 1964 e 1968.
17
Seguindo a mesma concepção, Stephanou procurou
ressaltar que a censura teve dificuldades na “busca do conteúdo subversivo” das artes do
período (as quais, segundo ele, teriam sofrido um processo de “militarização” devido ao
14
KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São
Paulo: Boitempo Editorial, 2004. p. 77.
15
Ao referir-se às ordens que embasaram a atuação do órgão responsável pela censura política da
imprensa, Beatriz Kushnir também afirmou que os censores da DCDP “executavam essas mesmas ordens
em livros, música, cinema”. Ibidem. p. 105 e 125. Esse tipo de confusão está relacionada com algumas
incompreensões de Kushnir sobre as devidas nominações e funções dos órgãos de censura, conforme
discutiremos no capítulo seguinte.
16
SIMÕES, Inimá. Op. cit. p. 14-15.
17
STEPHANOU, Alexandre Ayub. Censura no Regime Militar e militarização das artes. Porto Alegre:
Edipucrs, 2001. p. 21.
22
surgimento de intelectuais engajados na crítica ao regime) por causa da larga utilização
de “mensagens cifradas”. Isto porque a busca de tal conteúdo era a “prioridade da ação
censória no período, já que se tratava de uma censura de caráter político e não moral”.
18
Assim, “os censores pareciam saber – ou eram orientados neste sentido – que
importante era o perigo político e não moral”.
19
Provavelmente, entretanto, nenhum outro segmento da produção cultural dos
anos 1970 ficou tão associado à censura política quanto a chamada Música Popular
Brasileira. A própria conformação histórica da MPB acabou ficando marcadamente
relacionada com sua trajetória de combate ao autoritarismo, auxiliando a construção de
uma memória que somente privilegia a dimensão política da censura e que destaca
nomes como os de Gilberto Gil, além dos já mencionados Geraldo Vandré e Chico
Buarque, eleitos pela memória coletiva como alguns dos grandes ícones do combate à
repressão política do pós-68. Ora, é sabido que compositores como Geraldo Vandré
tiveram um papel importante, principalmente simbólico, na luta contra o regime militar,
produzindo canções permeadas de alegorias e metáforas sobre a repressão e tendo,
assim, sofrido uma vigilância bastante rigorosa por parte da censura do período. Não
obstante, muitos outros cantores e compositores que não se enquadravam no âmbito da
MPB foram também censurados, nesses casos, por tratarem de temas comportamentais,
algo que não deve ser confundido com a adoção de uma postura engajada como alguns
autores parecem acreditar,
20
mas serve como uma advertência importante quanto à
relevância tomada pela censura da chamada “defesa da moral e dos bons costumes”.
A ênfase dada à MPB e à censura política, de fato, pode ser percebida na análise
de Alberto Ribeiro da Silva. Nela, o autor identificou quatro outros segmentos dentro do
escopo da música brasileira do período, diferenciando-os da MPB pela postura
“alienada” que seus componentes teriam diante do Estado autoritário: “o chamado
‘samba-jóia’, a música sertaneja, a canção romântica ao estilo Roberto Carlos e um
incipiente rock brasileiro”. Nesse sentido, os artistas ligados a esses estilos musicais, na
18
Ibidem. p. 214.
19
Ibidem. p. 304. Em trabalho mais recente, Alexandre Ayub Stephanou procurou matizar algumas de
suas teses do livro mencionado, mas, ainda assim, podemos perceber um enfoque semelhante no que
concerne ao caráter político da censura do SCDP. STEPHANOU, Alexandre Ayub. O procedimento
racional e técnico da censura federal brasileira como órgão público: um processo de modernização
burocrática e seus impedimentos (1964-1988). Tese de doutorado em História. PUCRS, 2004.
20
ARAÚJO, Paulo César de. Eu não sou cachorro não: música popular cafona e ditadura militar. Rio de
Janeiro: Record, 2003.
23
perspectiva de Alberto Ribeiro da Silva, somente teriam sofrido censura quando se
aproximavam da postura assumida pelos compositores da MPB, os quais teriam sido os
únicos preocupados em se enquadrar no plano da música de protesto dos anos 1960 e,
por isso, a sofrer uma “perseguição sistemática”. Torna-se evidente, portanto, a
exclusividade que o autor confere à política entre as preocupações censórias:
Essa postura “alienada” era favorecida tanto pelo exemplo –
dado pela perseguição sistemática aos artistas ligados à MPB –
quanto pela proposta estético-poética desses compositores e
cantores [não filiados à MPB]. Quando fugiam a essa regra,
tais compositores e cantores eram logo incorporados – mesmo
que temporariamente – ao padrão MPB, atraindo tanto o
público universitário quanto a repressão”.
21
Nesse sentido, um dos únicos trabalhos que enfatizou a dimensão moral da
censura praticada pelo Serviço de Censura de Diversões Públicas nos anos 1970 foi o de
Paulo César Araújo.
22
Elegendo a música chamada cafona como objeto de estudo, o
autor, entretanto, talvez tenha acabado por subjugar a importância da produção musical
e da censura sofrida pela MPB, supervalorizando, em certos momentos, um suposto
caráter contestatório presente nas músicas de alguns dos cantores daquele primeiro
universo musical. De fato, a questão parece estar menos ligada à refutação do
conhecimento existente sobre a matéria do que à possibilidade de chamar a atenção para
outra importante faceta da censura daqueles anos. Ambos os processos coexistiram e
foram relevantes, não obstante, no plano mais rotineiro da atuação do SCDP, a
problemática dos costumes estivesse mais presente do que as questões estritamente
político-ideológicas. No que concerne à censura de livros, por sua vez, o escritor
Deonísio da Silva também ressaltou a importância da questão da sexualidade dentro das
preocupações censórias, mas sua pesquisa se restringiu ao conhecido caso da proibição
da obra Feliz ano novo, de Rubem Fonseca.
23
A falta de percepção do papel específico de certas instâncias dentro do Estado,
como o Serviço de Censura de Diversões Públicas, está relacionada, também, com a
importância que muitos trabalhos têm atribuído à chamada Doutrina ou Ideologia de
21
SILVA, Alberto Ribeiro da. Sinal fechado: a MPB sob censura (1937-45/1969-1978). Rio de Janeiro:
Obra Aberta, 1994. p. 167.
22
ARAÚJO, Paulo César de. Op cit.
23
SILVA, Deonísio da. Nos bastidores da censura – sexualidade, literatura e repressão pós-64. São
Paulo: Estação Liberdade, 1989.
24
Segurança Nacional.
24
Esta doutrina, emanada da Escola Superior de Guerra, foi vista,
por muitos estudiosos do período, como o conjunto de idéias que, procurando situar o
caso brasileiro no contexto bipolar da Guerra Fria, teria amparado as diversas medidas
de que lançaram mão os militares com relação à repressão.
25
Talvez seja um pouco mais
razoável, no entanto, pensarmos que o potencial de influência dessas idéias dentro da
corporação militar como um todo e sua inter-relação com as medidas mais conjunturais
adotadas pelos governos militares tenham de ser um pouco matizados.
26
Parece pouco
eficaz supor que as diversas iniciativas dos generais-presidentes e seus ministros
seguiam estritamente a racionalidade de um plano sistemático esboçado já antes do
golpe militar, pois, tal perspectiva, de algum modo, retira do processo histórico suas
características fundamentais de descontinuidade e complexidade, desconsiderando,
assim, o caráter algo contingente de muitas das medidas repressivas.
27
Um dos trabalhos que seguiram essa perspectiva foi o de Creuza de Oliveira
Berg,
28
talvez um dos melhores exemplos da crença na existência de um Estado militar
dotado de um projeto de dominação totalmente coerente e uniforme e da qual
procuramos nos distanciar. Ao analisar a censura praticada sobre as “expressões
artísticas” entre 1964 e 1984, a autora foi procurar a existência de uma “mentalidade
militar” que “balizasse” a atuação do Serviço de Censura de Diversões Públicas. E foi
justamente na Doutrina de Segurança Nacional que ela encontrou o fundamento da
atividade censória sobre esse campo: “essa censura não se dá absolutamente de forma
aleatória, mas surge de um estudo, de uma sistematização dos métodos a serem
empregados e de uma doutrina: a doutrina da Escola Superior de Guerra (ESG), que tem
24
Ver COMBLIN, Joseph. A Ideologia da Segurança nacional: o poder militar na América Latina. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. COUTO E SILVA, Golbery. Conjuntura Política Nacional – O
Poder Executivo e Geopolítica no Brasil. Rio de janeiro: José Olympio, 1981.
25
Entre os diversos trabalhos que atribuem grande importância à Doutrina de Segurança Nacional
podemos destacar ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil, 1964-1984. Petrópolis:
Vozes, 1984.
26
Segundo Carlos Fico, o caráter sistêmico desta doutrina tem de ser relativizado devido à grande
diversidade existente entre os militares e, mesmo, a “pouca importância que planos de ação e doutrinas
sistemáticos tiveram, posteriormente, por ocasião da implantação de políticas efetivas dos governos
militares”. FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 41.
27
Elio Gaspari também destacou, em trabalho recente, a fragilidade das análises que buscam encontrar
explicações para todas as medidas adotadas pelos governos militares nas teses da Doutrina de Segurança
Nacional. Segundo o autor, a mesma “nada teve de doutrina, muito menos de ideologia”. GASPARI, Elio.
Ilusões armadas: a ditadura envergonhada. Rio de Janeiro: Editora Companhia das Letras, 2002.
28
BERG, Creuza de Oliveira. Os mecanismos do silêncio: expressões artísticas e censura no regime
militar (1964-1984). São Carlos: EdUFSCar, 2002.
25
como eixo central a segurança nacional”.
29
Acreditando na existência de um
“pensamento militar” uno e homogêneo, que fundamentaria a atuação da censura,
Creuza Berg adotou a perspectiva de que havia uma total coerência de objetivos na
atuação das diversas instâncias do Estado militar:
a censura na vigência do regime militar se deu de duas
maneiras. Uma era burocrática, baseada em leis e decretos, na
qual incluímos a censura exercida pela DCDP, formulada
segundo os princípios da ESG, com ênfase na “Segurança
Nacional”, na qual percebemos dois níveis: um preventivo
(censura prévia) e outro punitivo (processos judiciais). Ao lado
desta, havia uma outra censura de caráter coercitivo, exercida
por terroristas de extrema direita ligados à ala radical do
Exército e pela polícia, sobretudo civil, ligada ao DOPS
(Departamento de Ordem Política e Social).
30
De fato, o problema, segundo nosso ponto de vista, não está na distinção entre as
formas de censura feita pela autora, mas na concepção de que todas elas estavam
enquadradas dentro de um projeto totalmente coerente de dominação, ou seja, na
Doutrina de Segurança Nacional. Em outras palavras, para Creuza de Oliveira Berg,
essa última era a ideologia que articulava a atuação das diversas instâncias do campo
repressivo da ditadura militar, sendo inclusive os conceitos de “prevenção”, “punição” e
“coerção”, transcritos no trecho acima, retirados dos manuais da ESG. Desse modo,
todas essas formas de censura se “concretizavam segundo os critérios do planejamento
militar para a segurança interna”
31
e constituíam um “imenso aparelho censório
montado em vários níveis de atuação”.
32
Tal perspectiva, desse modo, desconsidera
completamente a especificidade da censura praticada pela Divisão de Censura de
Diversões Públicas, ignorando a existência de disputas internas dentro do Estado em
favor da suposição de uma total unicidade entre as atividades repressivas da ditadura (a
qual seria dada justamente pela DSN). Corre-se o risco, nesse sentido, de não se
compreender a complexidade da censura do pós-64, particularmente no que concerne às
diferenças entre a atuação de certos setores que faziam atividades repressivas típicas do
período e outros, que tinham sua atuação pautada na existência de uma tradição de mais
longa duração das suas atividades.
29
BERG, Creuza de Oliveira. Op. cit. p. 91.
30
Ibidem. p. 121.
31
Ibidem. p. 70.
32
Ibidem. p. 131.
26
1.1. O SCDP: tradição e reorganização censória
Criado ainda nos anos 1940 com o objetivo precípuo de lidar com questões de
natureza moral,
33
o Serviço de Censura de Diversões Públicas surgiu para substituir um
órgão de perfil bastante autoritário, qual seja, o Departamento de Imprensa e
Propaganda, do Estado Novo.
34
Enquanto o DIP conjugava a censura de diversões
públicas com a censura da imprensa, o SCDP deveria atuar somente no primeiro plano,
pautado, sobretudo, pela justificativa de resguardar “a moral e os bons costumes do
povo brasileiro”. Nesse sentido, tal serviço de censura estava inserido em uma espécie
de “tradição” que sempre amparou a censura de costumes, preocupada com a
preservação de valores morais formadores da própria história da sociedade brasileira.
35
Voltada para uma suposta defesa dos “padrões morais tradicionais da família”, a
censura de costumes centrava-se, desde muito tempo, em questões de natureza
comportamental – como aquelas referidas ao sexo, às mudanças no tratamento dado às
mulheres, à proteção de certos valores cristãos, enfim, a tudo aquilo mais propriamente
relacionado ao plano da moralidade pública.
Assim, por mais que a censura praticada pelo SCDP tenha assumido um caráter
mais ideológico em certos momentos, particularmente no que diz respeito aos anos mais
“duros” da ditadura militar, ela continuou guardando diferenças importantes em relação
à censura política stricto sensu conforme era feita pelo DIP. A censura voltada para
questões políticas na imprensa, durante os anos 1970, passou a ser feita não por um
órgão público e legalizado, como o SCDP, mas por obscuros setores inseridos nos
meandros do Ministério da Justiça, provavelmente por causa da rejeição que muitos
militares tinham de uma possível comparação com o órgão getulista que fazia a censura
33
O Serviço de Censura de Diversões Públicas foi criado em 26 de dezembro de 1945 pelo decreto-lei nº
8.462 e teve seu regulamento aprovado pelo decreto nº 20.493, de 24 de janeiro de 1946.
34
Sobre a censura no Estado Novo, ver GOULART, Silvana. Sob a verdade oficial: ideologia,
propaganda e censura no Estado Novo. São Paulo: Marco Zero, 1990.
35
A própria formação colonial brasileira, presidida por um Estado forte e, principalmente, por uma Igreja
poderosa, fez com que a censura ligada às questões morais sempre tivesse existido no Brasil. Ver
MARTINS, Ana Luiza. Sob o signo da censura. In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.). Minorias
silenciadas: história da censura no Brasil. São Paulo: EDUSP, 2002.
27
e a propaganda do Estado Novo.
36
Portanto, ao contrário dessa forma de censura
estritamente política da imprensa, feita de modo escamoteado pelos governos militares,
a censura do SCDP possuía “amparo legal” e era bastante conhecida pela população.
37
Aliás, o controle das diversões públicas já na Primeira República foi marcante,
relacionando-se à própria expansão dos setores de divertimento público que instalavam-
se velozmente na capital brasileira no período, processo que se ampliaria nas fases
posteriores, especialmente no pós-30, tornando familiar, por exemplo, a existência da
figura do censor teatral nos ensaios gerais das inúmeras peças de teatro montadas no
Rio. Sempre vinculada à instituição policial, esse tipo de atividade funcionava não
somente como um mecanismo de manutenção da ordem moral e social, mas também
como uma fonte de arrecadação de recursos por parte do Estado.
Entretanto, se a censura moral já existia havia muito tempo, foi durante a
ditadura militar que o Serviço de Censura de Diversões Públicas ganhou mais
consistência, já que, até então, a censura de diversões públicas funcionava singelamente,
segundo uma “escala” que ainda não havia se confrontado com a produção massificada
da “indústria cultural”. Embora ela já viesse, em anos anteriores, proibindo o que
considerava imoral no plano da produção cultural, sobretudo no que concerne ao
cinema, foi a partir de meados da década de 1960 que tivemos iniciativas mais rigorosas
de centralização da censura em nível nacional, do aumento do número de censores e do
aperfeiçoamento daquele “serviço”, assim entendido como agência do governo que
precisava ser modernizada, evoluindo para acompanhar o desenvolvimento de meios de
comunicação como a televisão, por exemplo. Segundo o chefe do SCDP em 1964,
Edísio Gomes de Matos, a censura de diversões públicas vinha sendo executada na
Guanabara até a transferência da capital para Brasília, quando o ministro da Justiça,
Armando Falcão, e o então governador, Sete Câmara, fizeram um acordo pelo qual
aquele estado somente ficaria responsável pelos encargos que não pudessem ser
imediatamente transferidos para a nova capital. No primeiro dia de 1962, entretanto, o
36
Visão diversa da nossa, conforme já mencionamos, pode ser encontrada no trabalho de Beatriz Kushnir,
para quem a censura do SCDP, desde 1946 até 1988, seguiu as mesmas linhas mestras da censura do
Estado Novo. KUSHNIR, Beatriz. Op. cit. p. 100.
37
Note-se que, quando destacamos o “amparo legal” da censura de diversões públicas, não estamos
deixando de considerar que os governos militares utilizaram fartamente o campo legislativo para tentar
dar uma aparência de legalidade a atos visivelmente autoritários. Entretanto, o que se quer demarcar é que
a censura de diversões públicas se amparava numa legislação ostensiva, anterior à ditadura,
diferentemente do que aconteceu com a censura mais estritamente político-ideológica que, sempre negada
pelas autoridades, foi estruturada de modo sigiloso dentro do âmbito da administração pública.
28
governador da Guanabara teria sido avisado de que todo o serviço, a partir daquele
momento, deveria ser feito em Brasília. Contudo, ainda não existia em Brasília a
estrutura necessária para que isso ocorresse e, em 1963, o órgão se viu na necessidade
de instalar delegacias na própria Guanabara e em São Paulo.
38
Assim, a multiplicidade de censuras, que já era um problema daquele “serviço”,
continuaria existindo por mais alguns anos, sobretudo em função da recusa de alguns
estados a acatar as ordens da censura federal ou pela discrepância de critérios adotados
nos diferentes serviços regionais (o próprio estado da Guanabara, por exemplo, entraria
muitas vezes em conflito com as decisões da censura federal). Se somarmos isso a
outros problemas, como a falta de estrutura material da nova capital e a resistência de
funcionários que não queriam ser transferidos para Brasília, poderemos perceber as
dificuldades encontradas pelo Serviço de Censura naquele período. Assim, segundo o
ofício do chefe do SCDP, antes mencionado, a partir de 1962, “quase tudo”, no âmbito
da censura, “desde sua precária organização à sua não menos rudimentar estrutura,
passou a ser feito praticamente de ‘boca’, exceto as nomeações, que se fizeram através
de portaria”.
39
O Serviço de Censura de Diversões Públicas, até a estruturação do
Departamento de Polícia Federal, fazia parte do Departamento Federal de Segurança
Pública, órgão criado em 1944 para substituir a Polícia Civil do Distrito Federal. Essa
instância, o DFSP, chegou a sofrer algumas modificações logo nos primeiros anos do
regime militar, durante o mandato de Castelo Branco,
40
mas tais mudanças praticamente
não afetaram o SCDP, que já funcionava como um dos quadros daquela instituição
desde que foi criado, em 1945. A mudança mais efetiva nesse sentido, é claro, se
relacionava à transferência do prédio do DFSP para Brasília, inaugurado em 1965, no
qual passaria a atuar o SCDP. No ano seguinte, uma norma legislativa, que criava o
Instituto Nacional de Cinema, tornou a censura de filmes exclusiva da União,
41
algo que
38
Ofício nº 391/64-SCDP, do chefe do SCDP, Edísio Gomes de Matos, ao chefe de polícia do DFSP, 12
maio 1964, fl. 1, Fundo “Divisão de Censura de Diversões Públicas”, Arquivo Nacional, Coordenação
Regional do Arquivo Nacional no Distrito Federal, Seção Administração Geral, Série Correspondência
Oficial, Subsérie Ofícios de Comunicação, doravante identificada apenas como “OC”.
39
Ofício nº 391/64-SCDP, do chefe do SCDP, Edísio Gomes de Matos, ao chefe de polícia do DFSP, 12
maio 1964. fl. 2. OC.
40
Lei nº 4.483, de 16 de novembro de 1964 (reorganizou o Departamento Federal de Segurança Pública).
Decreto nº 56.510, de 28 de junho de 1965 (aprovou o regulamento geral do Departamento Federal de
Segurança Pública).
41
Art. 26 do decreto-lei nº 43, de 18 de novembro de 1966.
29
seria depois confirmado e ampliado pela Constituição de 1967, que atribuiu à instância
federal a tarefa de organizar uma polícia federal com o objetivo de efetivar, entre outras
tarefas, a censura de diversões públicas.
42
Ainda naquele ano, pouco antes da nova Carta
Magna entrar em vigor, foi baixado um decreto alterando a designação do
Departamento Federal de Segurança Pública para Departamento de Polícia Federal.
43
Consolidava-se, assim, a perspectiva de centralização da censura de diversões
públicas na União, através do Departamento de Polícia Federal. Foi por volta desse
período que a censura do SCDP assumiu, no que concerne a diversos casos censórios,
uma conotação mais claramente político-ideológica, o que não discrepa do que vimos
destacando até aqui, pois a perspectiva moralista do serviço também esteve fartamente
presente. Não era por menos, pois, nesse período, passaram pela chefia do SCDP figuras
mais tendentes a atitudes truculentas, que pareciam pouco preocupadas com as
atribuições legais do órgão e, portanto, mais propícias à feitura da censura política. Em
1967, passou pelo cargo o general Fulgêncio Façanha, o mesmo que declarou que o
teatro brasileiro estava “podre” e que as atrizes Tônia Carrero e Odete Lara eram
“vagabundas”.
44
Já entre 1968 e 1969, o órgão que fazia a censura de diversões públicas
foi dirigido pelo igualmente conservador e polêmico coronel Aloísio Muhlethaler. As
atuações de personagens como essas, de fato, acabavam contraditando a adoção de
medidas que visavam aperfeiçoar tecnicamente o Serviço de Censura, como aquelas
previstas na lei 5.536, de 21 de novembro de 1968.
45
Tal norma legislativa trazia
consigo determinações importantes nesse sentido, como a de que, para ocupar o cargo
de censor (desde então denominado “técnico de censura”) era preciso ter nível superior,
além de estabelecer o número de três censores para o exame das obras que chegavam ao
SCDP e de um prazo mínimo de vinte dias para a manifestação daquele órgão sobre o
material a ele submetido.
De fato, apesar da exigência de que os técnicos de censura tivessem curso
superior (as áreas admitidas eram Ciências Sociais, Direito, Filosofia, Jornalismo,
42
Art. 8º da Constituição de 1967. Note-se que, pelas normas legislativas de 1964 e 1965 antes
mencionadas, a atuação do SCDP ficava restrita às diversões públicas (especialmente aos filmes) quando
seus casos ultrapassassem as censuras dos estados, demonstrando o quanto a descentralização ainda
marcava aquele “serviço” no período.
43
Art. 210 do decreto-lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967. A Constituição mencionada entrou em vigor
em 15 de março de 1967.
44
SIMÕES, Inimá. Op. cit. p. 87.
45
Sobre as tentativas de aperfeiçoamento técnico do SCDP, ver STEPHANOU, Alexandre Ayub. Op. cit.
30
Pedagogia ou Psicologia), os antigos funcionários do SCDP, muitos dos quais possuíam
apenas o colegial completo, acabariam sendo aproveitados dentro dos quadros daquela
instituição. Para não se desfazer deles, foi criado, pouco antes da promulgação da lei
5.536, um Curso Intensivo de Treinamento do Censor Federal, ministrado na Academia
Nacional de Polícia por professores da Universidade de Brasília (UnB), da Pontifica
Universidade Católica (PUC) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Do
currículo constavam as seguintes disciplinas:
1. Literatura Brasileira
2. Psicologia Evolutiva e Social
3. Introdução à Sociologia
4. Comunicação e Sociedade
5. Introdução à Ciência Política
6. Ética Profissional
7. Filosofia da Arte
8. História da Arte
9. História e Técnica de Teatro
10. Técnica de Cinema
11. Técnica de Televisão
12. Segurança nacional
13. Legislação Especializada
14. Técnica Operacional
46
Claramente um “artifício” para não dispensar os antigos funcionários, o curso
terminou apenas cinco dias antes da promulgação da lei que estipulava a
obrigatoriedade do nível superior, sendo a importância do seu conteúdo talvez um
pouco superestimada pelos trabalhos existentes sobre a censura do período.
47
Era esse,
pelo menos, o teor que pode ser percebido em um documento enviado pelo chefe do
SCDP ao diretor-geral do DPF:
Face ao exposto, urge, destarte, seja regularizada esta situação
de fato [dos censores que fizeram o curso na Academia
Nacional de Polícia], criada tão somente para que os trabalhos
de censura não sofressem solução de continuidade (...) Uma
forma para a composição desse impasse seria a realização de
concurso público de provas na Academia Nacional de Polícia e
a posterior matrícula no Curso de Técnico de Censura que, uma
vez concluído, permitiria a nomeação dos aprovados.
Impedimento de ordem legal, entretanto, se interpõe ao
46
Ofício nº 442/69-SCDP, do chefe do SCDP, Aloysio Muhlethaler de Souza, ao diretor-geral do DPF, 18
ago. 1969, fl. 2, Fundo “Divisão de Censura de Diversões Públicas”, Arquivo Nacional, Coordenação
Regional do Arquivo Nacional no Distrito Federal, Seção Administração Geral, Série Correspondência
Oficial, Subsérie Ofícios de Solicitação, única caixa, doravante identificada apenas como “OS”.
47
Um dos trabalhos que dá bastante ênfase a esses cursos é STEPHANOU, Alexandre Ayub. Op. cit.
31
concurso público, ou seja, a proibição contida no parágrafo 5
o
do artigo 99 do decreto-lei n
o
200 (...) O caminho lógico a
seguir será, portanto, o aproveitamento imediato de todos os
portadores do curso específico na Academia Nacional de
Polícia, a fim de que os mesmos tenham suas situações
definidas (...).
48
O impedimento de ordem legal citado pelo chefe do SCDP era a obrigatoriedade
do aproveitamento do pessoal já existente dentro do serviço público (desde que
considerado apto para o exercício da função em pauta). Parece claro que, pelas novas
exigências, os antigos censores não deveriam ser tidos como qualificados para o cargo
de técnico de censura. Ainda assim, é importante considerar o conteúdo desses cursos
na Academia Nacional de Polícia, pois eles continuariam sendo praticados nos anos
seguintes, quando a ênfase em matérias como “Segurança Nacional” foi sendo deixada
de lado.
49
Na documentação existente no Arquivo Nacional visualiza-se como as aulas
dessa disciplina, quase todas voltadas para a análise de filmes, eram pautadas em
concepções bastante enviesadas sobre a presença do comunismo internacional em filmes
como os de Glauber Rocha e Ruy Guerra, além dos diversos cineastas estrangeiros do
período.
50
Assim, numa aula intitulada “O que os cineastas franceses esquerdistas já
realizaram em países da América do Sul e pretendem repetir aqui no Brasil, ou seja,
predispor a juventude universitária para revoltar-se e reagir contra o governo”, listava-se
como “subversivos” Paolo Pasolini, Bernardo Bertolucci, Michelangelo Antonioni,
Jean-Luc Godard, Luis Malle, Costa-Gravas, Robert Atman, entre muitos outros.
Esse tipo de curso, por outro lado, reflete também a importância que a questão
política assumiu para o Serviço de Censura naquele momento, fins dos anos 1960 e
início da década de 1970, sobretudo no campo cinematográfico e teatral, os quais,
provavelmente, eram os mais afetados por essa forma de censura. Conforme já
destacamos, o SCDP, que praticava uma censura voltada para a tradição da “defesa da
moral e dos bons costumes”, também foi utilizado para a feitura da censura política em
certas conjunturas, particularmente aquela referente ao auge da repressão do regime
militar (1968-1972). Nesse sentido, o diretor-geral do DPF em exercício no ano de
48
Ofício nº 442/69-SCDP, do chefe do SCDP, Aloysio Muhlethaler de Souza, ao diretor-geral do DPF, 18
ago. 1969, fls. 3-4, OS.
49
STEPHANOU, Alexandre Ayub. Op. cit. p. 38-52.
50
Ver a documentação da Série Cursos do Fundo “Divisão de Censura de Diversões Públicas”, Arquivo
Nacional, Coordenação Regional do Arquivo Nacional no Distrito Federal, Seção Orientação, caixa
única. Consultar também STEPHANOU, Alexandre Ayub. Op. cit.
32
1968, Raul Lopes Munhoz, frente à concessão de liminares liberando determinadas
peças teatrais vetadas pela censura, enviou uma série de ofícios a outros escalões do
governo militar com a seguinte requisição:
Solicito a digna atenção de Vossa Excelência no sentido de que
esse órgão possa interferir junto aos órgãos competentes a fim
de que as decisões do Departamento de Polícia Federal, no
tocante às proibições de espetáculos pornográficos e
subversivos, não sejam sustadas com a concessão de liminares
por parte daqueles magistrados. Tal solicitação prende-se ao
fato de que dezenas de peças teatrais proibidas pelo Serviço de
Censura de Diversões Públicas estão sendo liberadas,
sumariamente, através de recursos impetrados à Justiça.
51
De fato, no que concerne à produção teatral e cinematográfica, como já
destacamos, a dimensão política da censura do SCDP parecia bem mais relevante,
sobretudo no que concerne à perseguição sofrida por determinadas figuras mais
conhecidas dessas áreas (dramaturgos e cineastas). Assim, no mesmo documento
mencionado, o diretor-geral do DPF também destacava que
o Departamento de Polícia Federal suspendeu a encenação
pública, em todo o território nacional, da peça teatral Roda
viva, de autoria de Francisco Buarque de Holanda. Informações
chegadas ao conhecimento desta direção-geral dão conta de
que a empresa interessada já se movimenta no sentido de entrar
na Justiça contra o referido ato proibitório.
Se não bastasse a perspectiva do diretor-geral do DPF de intervir na Justiça,
outro documento indicativo da importância que a questão política assumiu nesse
período, pelo menos no plano cinematográfico, foi um ofício do chefe do SCDP,
Aloysio Muhlethaler, de maio de 1969. Ele alertava seu superior para o fato de que
a constante remessa para o SCDP de filmes nacionais de longa
metragem com conteúdo de natureza subversiva constitui [um]
51
Ofício nº 391/68-SCDP, do diretor-geral do DPF em exercício, Raul Lopes Munhoz, ao secretário do
Conselho de Segurança Nacional, 9 out. 1968, Fundo “Divisão de Censura de Diversões Públicas”,
Arquivo Nacional, Coordenação Regional do Arquivo Nacional no Distrito Federal, Seção Administração
Geral, Série “Correspondência Oficial”, Subsérie “Informações Sigilosas”, única caixa, doravante
identificada apenas como “IS”. Ofício nº 391/68-SCDP, do diretor-geral do DPF em exercício, Raul
Lopes Munhoz, ao chefe do Centro de Informações do Exército, 9 out. 1968, IS. Ofício nº 391/68-SCDP,
do diretor-geral do DPF em exercício, Raul Lopes Munhoz, ao ministro da Justiça, 9 out. 1968, IS. Ofício
nº 391/68-SCDP, do diretor-geral do DPF em exercício, Raul Lopes Munhoz, ao chefe do Serviço
Nacional de Informações, 9 out. 1968, IS.
33
grave problema com o qual [se] depara esta chefia (...). No
decurso de um ano de administração foi possível observar o
afluxo sempre crescente à censura de películas brasileiras de
tema político, várias das quais de cunho doutrinário no sentido
de sublevação armada, visando à consecução de objetivos
sociais. A cada uma dessas investidas, o órgão censório,
cumprindo o seu dever funcional e cívico, impõe considerável
número de cortes ou proíbe totalmente a exibição da fita em
todo o território nacional.
52
Aliás, na discussão sobre o caráter moral ou político da censura, não poderíamos
deixar de considerar, também, a interconexão dessas duas dimensões no período. Tal
discussão será aprofundada ao longo do capítulo 7, mas aqui se deve adiantar que
determinados segmentos que atuavam dentro do governo militar, como a comunidade de
informações, faziam constantemente uma relação entre as questões comportamentais
típicas daquela conjuntura e a atuação de grupos “esquerdistas”.
53
A tese de que a
propagação da dissolução dos costumes nos meios de comunicação fazia parte de uma
estratégia do movimento comunista internacional era uma idéia corriqueira nos informes
dos agentes dos órgãos de informações, os quais percebiam o ambiente de fortes
mudanças dos padrões de moralidade como uma verdadeira derrocada em direção à
“subversão”. Por outro lado, no âmbito do Serviço de Censura de Diversões Públicas,
essa era uma concepção muito menos difundida (apesar dos esforços dos órgãos de
informações) e, mesmo no que concerne aos grupos sociais que pediam mais censura a
determinadas autoridades na década de 1970, ela também era pouco corriqueira.
54
Na
maioria dos casos, o que mais parecia incomodar esses segmentos era a chamada
“revolução de costumes”, consubstanciada em torno de determinadas discussões morais
que ganhavam mais espaço na sociedade: questões referidas aos direitos de certas
“minorias” (mulheres, homossexuais etc.), à adoção de novos métodos contraceptivos, à
legalização do divórcio, ao uso de drogas como forma de rebeldia e à liberalização
sexual demonstram o ambiente de fortes mudanças vivido naquela conjuntura.
A chamada “revolução de costumes”, portanto, é um dos principais fatores que
devem ser considerados quando mencionamos a demanda por mais censura dos
segmentos moralmente mais conservadores da sociedade (sem descurar, é claro, da
52
Ofício nº 296/69-SCDP, do chefe do SCDP, Aloysio Muhlethaler de Souza, ao diretor-geral do DPF, 29
maio 1969, OS.
53
Sobre a comunidade de informações ver o item 7.4. do capítulo 7.
54
Ver o capítulo 6.
34
própria tradição da censura de costumes, sempre muito ativa no caso brasileiro). Dentre
as “novas discussões”, por sua vez, o sexo era um dos aspectos que mais preocupava as
pessoas que compunham os segmentos que pediam mais rigor censório, muitas delas
visualizando uma ascensão ameaçadora do erotismo nos programas de TV (sobretudo,
no que diz respeito às telenovelas e aos programas de auditório), nas publicações
editadas no país e em outros setores como o cinema nacional (com a difusão da
chamada “pornochanchada”, por exemplo). Assim, a conjugação entre o avanço dos
meios de comunicação, especialmente a TV, e o fenômeno da “revolução de costumes”
nos ajuda a compreender a demanda por mais rigor censório nos anos 1970. E o Serviço
de Censura de Diversões Públicas, embora já existisse muito antes da implantação da
ditadura, continuou atuando intensamente nesse plano ao longo da década,
diferenciando-se bastante da censura estritamente política, inclusive no que se refere à
censura de livros e revistas tidos por imorais.
Nesse sentido, em 1970, foi baixado o decreto-lei que permitiria a feitura da
censura prévia de publicações tidas como “contrárias à moral e aos bons costumes”, que
será analisado no capítulo seguinte. Após cerca de dois anos, ainda durante o mandato
de Alfredo Buzaid no Ministério da Justiça, o Serviço de Censura de Diversões Públicas
passou a se chamar Divisão de Censura de Diversões Públicas, tornando-se um órgão de
“direção, coordenação e controle” dentro da estrutura do Departamento de Polícia
Federal.
55
Anos depois, no governo Geisel, teríamos uma maior preocupação com a
censura de diversões públicas, não obstante aquele fosse também o período de início do
chamado processo de “abertura política”. Nesse sentido, como se verá mais adiante, a
ocupação da pasta da Justiça por uma personagem como Armando Falcão é um aspecto
fundamental que devemos considerar para compreendermos de modo mais refinado as
medidas tomadas nesse campo, sobretudo no que concerne às censuras moral e política
de livros e revistas. Receoso de uma possível propagação da imoralidade e da
“subversão” nos meios de comunicação, Armando Falcão tomaria diversas iniciativas
nessa seara, apesar de muitas delas não terem chegado a ser concretizadas no sentido do
fortalecimento efetivo do órgão de censura.
55
Decreto nº 70.665 de 2 de junho de 1972.
35
Em 1974, foi realizado o primeiro concurso público para técnico de censura,
56
algo que, conjuntamente com outras medidas, como a transferência de servidores de
outras áreas do serviço público,
57
ajudou a minorar um pouco o problema do reduzido
número de censores que acometia a Divisão de Censura de Diversões Públicas. Aliás, ao
contrário do que se tem destacado,
58
a DCDP nunca conseguiu dar solução a esse
problema da falta de censores, até porque, a existência de outras fragilidades bastante
típicas do serviço público no Brasil, como o despreparo de alguns funcionários, acabava
contribuindo para tanto. Em 1976, por exemplo, 14 censores foram dispensados por
terem sido reprovados no exame psicotécnico para o cargo, agravando o problema e
reforçando a imagem negativa do órgão perante a opinião pública.
59
Por outro lado, se a
escassez de censores era uma realidade com a qual se deparava o órgão que centralizava
a censura em nível nacional, no que concerne às instâncias regionais de censura havia
casos da atuação de pouquíssimos funcionários, sobretudo nos Serviços de Censura de
Diversões Públicas de regiões interioranas do país.
60
Outra iniciativa levada a cabo durante o governo Geisel foi a tentativa de
unificar os critérios censórios por meio de uma nova legislação que amparasse a atuação
da Divisão de Censura de Diversões Públicas. Essa, na verdade, era uma demanda
antiga da DCDP, pois a principal norma legislativa que embasava sua atividade no
plano das diversões públicas datava de meados dos anos 1940 (portanto, já considerada
bastante obsoleta, sendo, inclusive, anterior à efetiva construção de emissoras de
televisão no país). Desse modo, em abril de 1974, o ministro da Justiça, Armando
56
No sentido do que vimos destacando sobre a preocupação com a censura de diversões públicas no
governo de Ernesto Geisel, vale acrescentar que a maior parte dos concursos para técnico de censura
foram feitos durante o mesmo. Eles foram realizados nos anos de 1974, 1975, 1977, 1979, 1980 e 1985.
KUSHNIR, Beatriz. Op. cit. p. 184.
57
Segundo o diretor da DCDP, Rogério Nunes, o aumento do número de técnicos de censura em 1974
(que chegavam a 54 naquele ano) se devia à implantação de um Curso de Transformação que, instituído
pela Academia Nacional de Polícia, havia possibilitado o deslocamento de funcionários de outros setores
do serviço público para a DCDP. Relatório referente ao ano de 1974, assinado pelo diretor da DCDP,
Rogério Nunes, 13 dez. 1974, Fundo “Divisão de Censura de Diversões Públicas”, Arquivo Nacional,
Coordenação Regional do Arquivo Nacional no Distrito Federal, Seção Administração Geral, Série
“Relatórios de Atividades”, doravante identificada apenas como “RE”.
58
STEPHANOU, Alexandre Ayub. Op. cit. p. 60.
59
Relatório da DCDP referente ao exercício de 1976, assinado pelo diretor da DCDP, Rogério Nunes, 17
jan. 1977, RE.
60
Note-se que, até a promulgação do decreto nº 70.665 (de 2 de junho de 1972), a Divisão de Censura de
Diversões Públicas (DCDP) chamava-se Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP). Essa última
designação (SCDP) depois passou a ser empregada para os órgãos regionais de censura, que, desde 1967,
eram denominados Turmas de Censura de Diversões Públicas (TCDP). Para informações sobre o
reduzido número de censores do órgão central e das instâncias regionais de censura, consultar os
documentos da série RE do fundo DCDP já mencionada.
36
Falcão, baixou uma “portaria reservada” criando uma comissão encarregada da matéria,
a qual foi formada pelo seu assessor especial, por um professor catedrático da Faculdade
de Direito da Universidade Federal de Pernambuco e pelo então diretor da Divisão de
Censura de Diversões Públicas, Rogério Nunes.
61
Devido à demora na apresentação do
relatório final dessa comissão, cerca de três anos depois ela teve sua composição
alterada, permanecendo somente o último membro mencionado.
62
Ainda assim, a nova
lei de censura nunca chegou a ser promulgada. Apesar do caráter de urgência que
Armando Falcão procurou imprimir ao processo (além do seu caráter sigiloso),
demandando sua conclusão em dois meses, somente no início de 1979 o anteprojeto de
lei criado pelas referidas comissões havia sido completamente revisado, segundo o
diretor-geral do Departamento de Assuntos Legislativos que coordenou os trabalhos.
63
Assim, terminado já nas semanas finais do governo de Ernesto Geisel, é provável que o
referido anteprojeto nunca tenha chegado a ser enviado à Presidência da República.
Apesar disso, algumas características daquela que deveria ser a nova “lei básica
da censura de diversões e espetáculos públicos” nos permitem perceber, não somente a
importância conferida à instância censória naquela conjuntura, mas também a ânsia de
imposição de um maior rigor à atuação da Divisão de Censura de Diversões Públicas.
De fato, o até hoje desconhecido anteprojeto de lei procurava claramente alargar a
possibilidade da DCDP de atuar no plano político, para além das suas atividades no
âmbito da moral e dos bons costumes. Diferentemente do já mencionado decreto de
1946,
64
no qual ainda se amparava legalmente a censura de diversões públicas, ele
mencionava a questão da segurança nacional, e ainda a colocava como o primeiro item
que deveria motivar a proibição “da apresentação de diversões e espetáculos públicos”:
61
Portaria Reservada nº 157-B, de 19 de abril de 1974. Processo C. 100509/77. MC/P. Caixa 612. Os
documentos da DSI do Ministério da Justiça, sob a guarda do Arquivo Nacional, sede do Rio de Janeiro,
serão referidos conforme as seguintes abreviaturas: a letra “C” posterior ao tipo de documento
(Informação, Processo, Relatório, Ofício etc.) designa que ele é confidencial. Todos os documentos que
utilizamos encontram-se em duas únicas séries, “Movimentos Contestatórios à Ordem Política e Social”,
que abreviamos com as letras MC, e “Diversos”, que abreviamos com as letras DI. Essas séries, assim
como as outras existentes no referido fundo documental, subdividem-se em duas subséries identificadas
pelas letras maiúsculas após a barra: “Processos” (P) e “Avulsos” (A).
62
Portaria Confidencial nº 595, 29 jul. 1977. Processo C. 100509/77. MC/P. Caixa 612. Os novos
membros da comissão ocupavam os cargos de diretor-geral do Departamento de Assuntos Legislativos
(como coordenador dos trabalhos) e de assistente jurídico do Ministério da Justiça.
63
Despacho nº 25/79 do diretor-geral do Departamento de Assuntos Legislativos, Joaquim Luiz de
Oliveira Bello, 12 fev. 1979. Processo C. 100509/77. MC/P. Caixa 612.
64
Refiro-me ao já citado decreto que aprovou o regulamento do SCDP (decreto nº 20.193, de 24 de
janeiro de 1946).
37
Art. 6º - É proibida a apresentação de diversões e espetáculos
públicos que: I – atentem contra a segurança nacional e as
instituições vigentes; II – firam a dignidade ou os interesses
nacionais; III – induzam ao desprezo público vulto ou herói
nacional, autoridade constituída ou instituição vigente; IV –
provoquem a prática de ações contra a ordem pública ou a
autoridade e seus agentes; V – atentem contra a dignidade da
pessoa humana; VI - prejudiquem as relações com outros
povos; VII – ofendam a coletividade ou credos religiosos,
incitem ao preconceito de raça ou à luta de classes; VIII –
atentem contra a moral e os bons costumes; IX – apresentem
cenas de extrema violência ou que possam induzir à prática de
crime; X – mostrem, ao vivo, a prática de ritos com cenas de
flagelação de pessoas ou animais ou de morte de animais.
65
Representativo das atitudes e medidas que perpassavam o Ministério da Justiça
no período de Armando Falcão, é provável que tal projeto não tenha sido aprovado
justamente pela tentativa de assegurar à censura de diversões públicas a possibilidade de
atuação na seara política. Além disso, o anteprojeto também aumentava sobremaneira o
valor das multas pelo não cumprimento das imposições censórias e determinava certas
obrigatoriedades que, certamente, acarretariam uma série de problemas para serem
cumpridas (como a exigência da apresentação, para avaliação censória, do texto integral
de programas de TV divulgados em capítulos, como as novelas). Por outro lado, o
documento também demonstrava a maior preocupação que foi recaindo sobre a
televisão, cujo grande desenvolvimento técnico e aumento de alcance em termos de
público a havia tornado o principal veículo de comunicação do país. Nesse sentido, a
atenção censória que, nas décadas anteriores, se voltava, prioritariamente, para o campo
cinematográfico, naquela conjuntura parecia mais direcionada aos filmes veiculados
pela televisão e, sobretudo, às telenovelas:
Evidenciou-se a necessidade de incluir, no anteprojeto, a
proibição de exibirem-se na televisão, nos horários ao alcance
do público infanto-juvenil, filmes que tenham por tema fatos
policiais violentos, cenas de terror, sexo ou grande intensidade
dramática, bem como a apresentação de novelas ou programas
com iguais motivações, por ser o único meio capaz de conter a
onda de violência e de temas inconvenientes surgidos nesse
meio de comunicação social, motivo de grande preocupação
por parte das autoridades públicas, do público em geral e,
especialmente, das pessoas que têm responsabilidade pela
65
O texto do projeto de lei referido encontra-se no Processo C. 100509/77. MC/P. Caixa 612.
38
formação da juventude brasileira.
66
De fato, é possível perceber um aumento gradual da atenção das instâncias de
censura com relação à programação televisiva. A partir do início dos anos 1980, isso foi
se tornando ainda mais claro, até porque foi ficando cada vez mais difícil ao órgão que
fazia a censura de diversões públicas atuar no plano político. Conforme já destacamos, a
preocupação com a questão da defesa da moral e dos bons costumes foi uma constante
durante os anos de atividade da DCDP, não obstante, em muitos momentos, ela também
tenha atuado na seara mais propriamente política. A partir dos anos 1980, entretanto,
aquele órgão de censura, apesar de alguns casos de interdição política mais notórios, foi
restringindo de fato sua atuação somente ao campo da moralidade, não somente pela
importância angariada por determinados gêneros de programas televisivos que
exploravam largamente esse tipo de temática (as telenovelas, centradas, na sua grande
maioria, em torno dos conflitos morais das camadas médias urbanas), mas pela própria
dificuldade de praticar um tipo de censura mais claramente associado ao autoritarismo
dos anos dos governos militares anteriores.
Aliás, foi provavelmente por essa dificuldade, advinda do paulatino desmonte
dos mecanismos de repressão, que o anteprojeto de lei da censura de diversões públicas
encomendado pelo ministro Falcão, como dissemos, não chegou a ser implementado,
mesmo depois que ele já havia deixado a pasta da Justiça. É nesse sentido também,
conforme aprofundaremos adiante, que o ministro da Justiça do governo João Batista
Figueiredo, Abi-Ackel, voltou suas atenções mais fortemente para a programação de
televisão, discursando e procurando promover campanhas em prol da moralização da
mesma. A forte preocupação que a censura de diversões públicas dispensou às questões
morais na década de 1970, por outro lado, poderá ser vista nos capítulos seguintes,
quando abordarmos a censura de publicações praticada no período.
66
Ofício do diretor-geral do Departamento de Assuntos Legislativos ao chefe do gabinete, 25 out. 1977.
Processo C. 100509/77. MC/P. Caixa 612. Tal documento foi encaminhado, no mesmo dia, ao ministro da
Justiça, Armando Falcão.
39
Capítulo 2
As duas censuras de publicações da ditadura militar: estruturação e
desmonte
O exercício secreto do poder não é fato novo, nem entre
nós nem em outras partes do mundo. O que é
assustadoramente novo no Brasil é que ele se vai
tornando cada vez mais secreto e cada vez mais
abrangente, abarcando hoje a grande maioria dos
assuntos tratados pelo Estado. (...) Atualmente podem
ser identificados dezenas, talvez centenas de projetos,
planos, estudos que tramitam reservadamente na
burocracia do governo federal. Não há notícias na
imprensa sobre eles e é cerrada a barreira diante da
curiosidade das partes interessadas, dos repórteres e até
dos próprios escalões burocráticos não envolvidos.
67
Não obstante já houvesse certas normas legislativas que amparassem o controle
sobre a circulação de livros e revistas durante os primeiros anos do regime militar, foi
somente a partir do governo Médici (1969-1974) que a censura prévia de publicações
feita pela ditadura brasileira começou a ser estruturada. A atuação do ministro da
Justiça, Alfredo Buzaid, foi fundamental nesse sentido, dada sua preocupação com a
problemática da defesa da moral e dos bons costumes.
68
Jurista de postura autoritária,
ardoroso defensor do AI-5,
69
Buzaid promulgou, em 1970, o decreto-lei n. 1.077,
primeiro instrumento legislativo, após a implantação da ditadura, que possibilitou a
efetivação da censura prévia de publicações que tratavam de temas referentes à
moralidade e aos costumes.
70
Apesar de alguns autores, como Beatriz Kushnir, considerarem esse diploma
legal como tendo sido aquele que institucionalizou a censura prévia da imprensa, uma
67
GÓES, Walder de. O Brasil do general Geisel: estudo do processo de tomada de decisão no regime
militar-burocrático. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p. 121-123. O trecho transcrito foi publicado
no Jornal do Brasil, 2 jan. 1977.
68
Ver BUZAID, Alfredo. Em defesa da moral e dos bons costumes. Brasília: Departamento de Imprensa
Nacional, 1970.
69
ABREU, Alzira Alves de; BELOCH, Israel; LATTMAN-WELTMAN, Fernando; LAMARÃO, Sério
T. de Niemeyer (Coord.) Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. 2º ed. Rio de Janeiro:
Editora FGV; CPDOC, 2001, v. 1, p. 889.
70
Decreto-lei nº 1.077, de 26 de janeiro de 1970.
40
análise mais apurada possibilita percebermos que sua grande novidade, em termos
censórios, foi a introdução da verificação prévia de livros e revistas, que ficaria a cargo
da Polícia Federal. Não concordamos, portanto, com a autora, para quem,
ao ser elaborado o decreto-lei nº 1.077, de 26/1/1970, na minha
compreensão, legaliza-se a norma da censura prévia. Assim, se,
de acordo com o capítulo 2 do Decreto nº 20.4963/46, o serviço
de censura deveria, antecipadamente, analisar e aprovar, na
totalidade ou em partes, todas as exibições de cinema, teatro,
shows, bem como a execução de discos, propagandas e
anúncios na imprensa, o 1.077 vai bem mais longe. (...) Ou
seja, a censura aplicava-se à imprensa nacional e aos
exemplares estrangeiros que aqui chegassem e que estivessem
em desacordo com as normas.
71
A confusão que têm sido feita nesse sentido, aliás, já foi identificada e
trabalhada por outros analistas,
72
mas, ainda assim, importantes estudos novos sobre o
período têm adotado perspectiva semelhante à mencionada acima, dando continuidade à
confusão entre as noções de censura prévia e de censura da imprensa, que aparecem
constantemente como sinônimas na análise de Kushnir. Não se pode esquecer que essas
expressões designam aspectos diferenciados, inclusive porque a censura da imprensa
feita no período, ao contrário daquela dispensada às diversões públicas, não se restringia
somente ao regime de “verificação prévia”. O emprego indistinto dessas duas
expressões e a perspectiva de que o decreto-lei n. 1.077 legalizou a censura prévia da
imprensa, portanto, podem ser vistos na recente análise de Alexandre Ayub Stephanou:
E, assim, se manteve a censura em termos legais, concentrada
nos espetáculos de diversões públicas e radiodifusão, até o
decreto-lei nº 1.077/70. Ou seja, a legislação censória abrangia,
até o dia 26 de janeiro de 1970, cinema, rádio, televisão, teatro,
direito autoral, código de ética, publicidade. O novo decreto
insere na censura os meios de comunicação impressos. (...) O
governo federal baixa o decreto chamando-o eufemisticamente
de ofensa contra a pornografia, buscando passar a idéia de que
sua preocupação era com a moralidade, quando, na realidade,
estava estabelecendo, legalmente, a censura prévia na imprensa
escrita. (...) Ou seja, alicerçada na moralidade, estava
oficializada a censura prévia.
73
71
KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São
Paulo: Boitempo Editorial, 2004. p. 116.
72
FICO, Carlos. “Prezada Censura”: cartas ao regime militar. Topoi: Revista de História. Rio de Janeiro:
Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ / 7 Letras, n. 5, p. 251-283, set. 2002.
73
STEPHANOU, Alexandre Ayub. O procedimento racional e técnico da censura federal brasileira
como órgão público: um processo de modernização burocrática e seus impedimentos (1964-1988). Tese
de doutorado em História. PUCRS, 2004. p. 31-32.
41
Em nossa concepção, o decreto-lei n. 1.077 realmente legalizava a censura
prévia, mas de livros e revistas, e não de jornais impressos. Mais do que isso, não
obstante o decreto-lei mencionado também se referisse “às diversões e espetáculos
públicos, bem como à programação das emissoras de rádio e televisão”,
74
sua única
inovação, de fato, residia na legalização da censura prévia de publicações tidas por
ofensivas à moral e aos bons costumes, pois a censura de caráter prévio daqueles outros
meios de comunicação (o rádio e a TV) já existia antes mesmo da sua promulgação.
Portanto, o objetivo fundamental do ministro Buzaid, ao promulgar a
mencionada norma legislativa, era controlar os livros e periódicos que tratavam de
temas referentes aos costumes, sobretudo no que concerne às revistas de grande
circulação nacional que abordavam questões comportamentais. Iniciativas como essa,
inclusive, atendiam às aspirações de uma parcela moralmente mais conservadora da
sociedade, sempre preocupada com um suposto processo de desregramento dos
costumes e com o papel dos meios de comunicação nesse sentido. O parecer de um
técnico de censura da DCDP resume bem a questão, servindo aqui para corroborar nossa
posição:
O que objetivou especificamente o dec.-lei nº 1077/70 foi
estender a ação censória à “divulgação de livros e periódicos”
(art. 2º do mesmo diploma legal), dentro de formalidades
estabelecidas por atos do Ministro da Justiça. Este os baixou
pela Portaria nº 11-B, de 6/2/70 e pela Instrução nº 1-70, de
24/2/70, ambas estritamente alusivas a livros e periódicos. Para
disciplinar a aplicação da norma em apreço pelo setor censório
que se lhe subordina, o diretor-geral do DPF emitiu a Portaria
nº 219, de 17/3/70, a qual também trata expressamente de
“publicações periódicas”.
75
A controvérsia historiográfica em que se tornou tal discussão talvez tenha sido
suscitada pela utilização do termo “periódicos”, que também aparece na norma legal em
questão, mas que se refere às revistas relacionadas à moral e aos bons costumes e não à
imprensa escrita. Ao contrário da primeira, a censura política da imprensa era
respaldada pelo Ato Institucional nº 5 que, diferentemente do que preceitua Anne-Marie
74
Art. 7º do decreto-lei nº 1.077 de 26 de janeiro de 1970.
75
Parecer do técnico de censura, Coriolano L. Cabral Fagundes, enviado ao chefe da Seção de Censura,
19 nov. 1971, NO.
42
Smith,
76
permitia a censura prévia da imprensa quando considerado “necessário à defesa
da Revolução”, mesmo se não declarado o estado de sítio (a censura da imprensa, nesse
último caso, já estava prevista na Constituição, o que dispensaria o artigo do AI-5 que a
determinava). A polêmica que se colocava naquele período, portanto, era a de que, não
obstante um determinado artigo do AI-5 desse margem para esse tipo de arbítrio, ele
não era auto-executável, dependendo de um ato do presidente autorizando a medida
para torná-la “realmente legal”. Num determinado episódio envolvendo a censura do
jornal Opinião, em 1973, foi apresentado um despacho do presidente permitindo a
censura da imprensa com base naquele Ato Institucional, documento que, para alguns
autores,
77
teria sido ante-datado para embasar o ato proibitório que recaiu sobre esse
periódico.
O decreto-lei baixado pelo ministro Buzaid também não foi o primeiro diploma
legal a introduzir o controle sobre a circulação de livros e revistas. Instrumentos legais,
como a Lei de Imprensa,
78
por exemplo, já permitiam ao ministro da Justiça, quando a
situação reclamasse urgência, acionar a Polícia Federal e determinar a apreensão de
publicações em todo o território nacional. Agora, por outro lado, esse tipo de controle
poderia se tornar mais estruturado, assentado sob o regime de cesura prévia e vinculado
a uma instituição que já possuía uma larga tradição de atuação no campo censório: o
Serviço de Censura de Diversões Públicas do Departamento de Polícia Federal.
Encarregada de fazer o exame do material e encaminhar os pareceres censórios ao
Ministério da Justiça, a Polícia Federal não possuía, no entanto, a prerrogativa de
determinar a proibição das publicações avaliadas, algo que somente caberia ao titular
daquela pasta. Tal procedimento, inclusive, diferencia a forma como era feito o
processo censório desses tipos de publicações em relação aos espetáculos e diversões
públicas em geral, os quais poderiam ser proibidos por determinação da própria direção
do SCDP.
Apesar de faltar ao Departamento de Polícia Federal a faculdade de proibir
diretamente as publicações, não parece acertado afirmar que “a censura de livros sempre
era a posteriori” ou que “a DCDP não tinha competência legal para atuar sobre a
76
SMITH, Anne-Marie. Um acordo forçado: o consentimento da imprensa à censura no Brasil. Rio de
Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 2000. p. 96.
77
SOUZA, Maurício Maia de. Henfil e a censura: o papel dos jornalistas. Dissertação de Mestrado. USP,
1999. p. 81. FICO, Carlos. Op. cit. p. 256.
78
Lei 5.250, de 09 de fevereiro de 1967.
43
proibição de livros”,
79
pois esse tipo de concepção provavelmente encobre a não
percepção de uma questão fundamental: a existência de duas formas distintas de censura
nesse campo, uma voltada para as questões políticas e outra para as publicações que
tratavam de temas referentes à moral e aos bons costumes. A segunda amparava-se no
decreto-lei n. 1.077 e em outras normas legais correlacionadas, obedecendo ao regime
de verificação prévia, que deveria ser feito pela Polícia Federal. Já a censura prévia de
caráter político dos livros e revistas nunca teve amparo consistente na legislação do
período, podendo a proibição e a apreensão serem executadas apenas depois da
publicação do material, com base no AI-5 ou na Lei de Segurança Nacional.
Afirmativas como aquelas que mencionamos acima, portanto, se amparam em
confusões sobre a censura de livros que existem desde aquele período, como pode ser
visto numa matéria do Jornal do Brasil que duvidava, até mesmo, da existência da
censura de livros:
A censura política exercida pelo Ministério da Justiça não teve
um só dono. Qualquer assessor podia produzir seu parecer, que
por sua vez era aprovado ou não pelo Ministro. Na realidade,
não houve censura a livro, mas apreensão depois que as obras
já estavam nas prateleiras das livrarias. O veto nascia de acenos
diferentes: tanto podia valer um telefonema como uma carta ao
Ministro.
80
De fato, idéias como essa são bastante repetidas ainda hoje e o conhecimento
sobre a censura de livros praticada nos anos 1970 tem sido pouco aprofundado. A
existência das duas formas de censura mencionadas, entretanto, não impediu que,
durante a gestão de Armando Falcão no Ministério da Justiça, algumas tentativas de
estruturar a censura política, com base no modelo de censura prévia, em torno do
Departamento de Polícia Federal, tivessem sido feitas. As iniciativas para a
implementação desse tipo de atividade no âmbito do DPF, não obstante, pareciam
causar um certo desconforto no diretor-geral daquela instituição, haja vista sua evidente
ilegalidade:
Senhor Ministro:
Em atenção ao Av. G/8391, de 15 de dezembro próximo
passado, tenho a informar a V. Exa que o ônus do exame de
79
STEPHANOU, Alexandre Ayub. Op. cit. p. 68.
80
FLORA, Leda. A censura vista por dentro. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 abr. 1979. Agradeço a
Miliandre Garcia de Souza por me chamar atenção para essa matéria.
44
livros de natureza política vem recaindo sobre o Departamento
de Polícia Federal, malgrado a inexistência de qualquer medida
legal dispondo expressamente sobre a matéria, como ocorre no
decreto-lei 1.077, de 1970, para as exteriorizações contrárias à
moral e aos bons costumes.
81
A censura prévia de caráter político nas publicações, como se pode notar,
embora tenha sido praticada de modo escamoteado, não possuía amparo legal. Aliás,
vale ressaltar que era somente isso que incomodava o diretor-geral do DPF, pois, caso
tal atividade fosse regulamentada, não haveria maiores obstáculos à sua execução,
“prazerosamente”, como afirmou o próprio Moacyr Coelho, ocupante do cargo. Por
outro lado, a censura política de publicações esbarrava, ainda, em outros problemas que
cercavam o “serviço censório” da Polícia Federal, sobretudo no que concerne à falta de
pessoal especializado para a execução dessa tarefa. Segundo Coelho,
o DPF realizaria esse encargo na forma aventada no expediente
de referência, caso dispusesse de pessoal qualificado para o
exercício de tal mister. Entretanto, em virtude de não contar
com servidores com essa qualificação, nem do efetivo de que
possa dispor para especializar-se na matéria, torna-se
praticamente impossível o cumprimento da exigência
formulada.
82
Preocupado com a questão, o diretor-geral do DPF já tinha solicitado ao ministro
da Justiça autorização para enviar a França um funcionário daquela instituição, o qual,
naquele momento, encontrava-se em Nanterre fazendo uma especialização em “análise
do discurso ideológico”. Nesse sentido, uma das idéias que circulavam dentro do
Ministério da Justiça era quanto à possibilidade de se formar pessoal especializado na
Academia Nacional de Polícia para a execução desse tipo de trabalho, algo que também
atuaria “em benefício da uniformidade de critérios e [da] implantação de uma rotina
mais consentânea com os objetivos legais”.
83
Tal aspecto, inclusive, confirma aquilo
que ressaltamos no primeiro capítulo quanto à falta de pessoal para atuar no âmbito da
DCDP, não obstante alguns autores tenham preferido destacar um “inchaço do corpo de
censores federais” nos quadros do serviço de censura durante o regime ditatorial.
84
81
Ofício nº 003/77-SIGAB, do diretor-geral do DPF, Moacyr Coelho, ao ministro da Justiça, Armando
Falcão, 25 jan. 1977. Processo C. nº 630481, 19 ago. 1975. MC/P. Caixa 597, fl. 72.
82
Idem.
83
Parecer nº 096/77, da assistente jurídica do Ministério da Justiça, Gizela Cornélia Teleki, 11 mar. 1977.
Processo C. 100292, 2 jun.1977. MC/P. Caixa 610/05276 , fl. 20.
84
Ver p. 35.
45
A distinção entre a censura política e aquela voltada para os costumes no campo
das publicações (praticamente ignorada pela historiografia), é de fato difícil de
estabelecer-se claramente, inclusive em função da própria ambigüidade da legislação
produzida durante a ditadura militar. Assim, embora o decreto-lei n. 1.077 dispusesse
sobre livros e revistas tidos como contrários à moral e aos bons costumes, ele
mencionava, na parte final dos seus considerada, que “o emprego desses meios de
comunicação obedece a um plano subversivo, que põe em risco a segurança nacional”.
Esse, inclusive, foi um dos motivos da polêmica suscitada na época, quando os setores
oposicionistas acusaram o referido diploma legal de inconstitucional e procuraram
ressaltar que o mesmo possuía, no fundo, objetivos de natureza política (como o próprio
controle da imprensa escrita).
85
As diversas reclamações feitas nesse sentido fizeram
com que o ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, tivesse de se esforçar para convencer os
críticos de que o decreto-lei voltava-se para a defesa da moral e dos bons costumes,
86
não abrangendo a imprensa, nem as publicações periódicas de caráter estritamente
filosófico, científico e didático.
A associação entre as discussões morais e políticas, de fato, não deve ser deixada
de lado no estudo daquela conjuntura histórica, quando teses que relacionavam uma
suposta propagação da imoralidade nos meios de comunicação com uma ação do
movimento comunista ganhavam maior importância. Esse tipo de concepção, que será
analisada no capítulo 7, foi enfaticamente reiterada no discurso feito pelo próprio
Alfredo Buzaid para justificar a adoção da censura prévia de publicações:
A campanha insidiosa dos agentes do comunismo internacional
está em desnudar a alma humana no que [ela] tem de mais
reservado e secreto para dar-lhe expansões de liberdade, para
revelar sentimentos menos dignos, para por de público grandes
dramas morais, que envilecem e desonram. É contra esse
esquema de publicidade que se volta o decreto-lei, proibindo
que se escancarem as exibições que devem ficar no mais
recôndito da vida interior.
87
Aliás, foi com base na ambigüidade aberta pela norma legislativa e pelo discurso
85
O MDB entrou com uma ação judicial contra a constitucionalidade do decreto-lei, mas o Supremo
Tribunal Federal “recusou-se a pronunciar sentença no caso, alegando que o próprio MDB não publicava
um jornal e portanto não estava diretamente afetado pela lei”. SMITH, Anne-Marie. Op. cit. p. 237.
86
ABREU, Alzira Alves de; BELOCH, Israel; LATTMAN-WELTMAN, Fernando; LAMARÃO, Sério
T. de Niemeyer (Coord.). Op. cit. p. 890.
87
BUZAID, Alfredo. Op. cit.
46
de Buzaid que alguns juristas ligados ao seu sucessor na pasta da Justiça, Armando
Falcão, tentaram encontrar amparo legal para a prática da censura prévia de caráter
político. Procurando pressionar a Polícia Federal a arcar com essa tarefa, alguns
assessores de Falcão adotaram uma interpretação bastante arbitrária da legislação para
justificar esse tipo de prática. Assim, respondendo à consulta feita pelo ministro quanto
à matéria, o parecer do primeiro dentre os três assessores jurídicos que a analisaram
destacava que “o controle e apreensão de livros que, por seu conteúdo, atentam contra o
regime, está disciplinado pelo decreto-lei n. 1.077” e utilizava justamente a
ambigüidade deste diploma legal para fundamentar essa assertiva:
Tendo-se em vista a íntima correlação existente entre a
intolerável exteriorização de matéria contrária à moral e aos
bons costumes e a de conteúdo político (...), avaliada no último
considerando do decreto-lei em referência (ao aludir ao
emprego de meios de comunicação que obedecem a um plano
subversivo) – quer nos parecer, embora não especificamente
declarado, como atribuição da Polícia Federal, o controle e a
apreensão de livros (...). Se é verdade que o veto final à
divulgação e à apreensão do livro deva obedecer a uma
determinação prévia do ministro da Justiça (...), menos verdade
não é que, em tudo mais, o trabalho deve ser levado a efeito
por aquele organismo policial.
88
A atribuição ao decreto-lei n. 1.077 da regulamentação da censura política de
livros parecia uma interpretação tão frágil que o próprio ministro Falcão fez, à caneta,
dois grandes pontos de interrogação ao lado dessa afirmação do assessor jurídico.
Talvez por isso Falcão tenha pedido o parecer de outros dois assessores. Destes, o
segundo guiou-se por uma lógica semelhante, utilizando a ambigüidade aberta pela
legislação do período para argumentar em favor da associação entre a censura de
questões morais e as ameaças à segurança nacional. Por outro lado, seu parecer citava
um trecho do comentário do jurista Pontes de Miranda à Constituição de 1969
criticando justamente a “vaguidão dos termos” da Carta que, estando “fora da técnica
legislativa, criavam problemas sérios de interpretação”.
89
Esse, aliás, era um traço
bastante característico da legislação do período, que possibilitava um amplo leque de
leituras sobre os textos legislativos, muitas vezes servindo para enquadrar setores
88
Parecer do Assessor, Jesuan de Paula Xavier, 6 jan. 1977. Processo C. 100292, 2 jun.1977. MC/P.
Caixa 610/05276, fl. 4.
89
Parecer nº 096/77, da assistente jurídica do Ministério da Justiça, Gizela Cornélia Teleki, 11 mar. 1977.
Processo C. 100292, de 2 jun.1977. MC/P. Caixa 610/05276 , fl. 11.
47
oposicionistas em artigos de leis cuja leitura era nitidamente tendenciosa.
90
O parecer do
assessor jurídico também terminava de forma ambígua, pois, ao mesmo tempo em que
concluía pela necessidade da verificação prévia de publicações (para apuração de
possíveis ameaças à segurança nacional), a classificava como “mera diligência policial”,
diferenciando-a do mecanismo de censura prévia existente no âmbito da DCDP. Já as
considerações do terceiro consultor jurídico, Ronaldo Poletti, cujos pareceres eram mais
comumente aceitos por Falcão, pautavam-se por maior rigor, descartando qualquer
ligação entre a censura política de publicações e o decreto-lei:
Como já dissemos número plural de vezes, é mister distinguir a
verificação prévia, com base no decreto-lei 1.077/69, da
aplicação da Lei de Segurança Nacional, onde não se prevê a
cit. verificação, mas se apura a existência de um dos crimes
mencionados no seu art. 54, com o objetivo de decidir-se pela
proibição e apreensão, com o posterior conhecimento do
Ministério Público Militar para as providências legais
cabíveis.
91
Essa diferença, não obstante possa parecer uma questão irrelevante, é um
aspecto importante para que possamos compreender de modo mais refinado a censura
de publicações praticada durante o regime militar. Ao ser feita com base na Lei de
Segurança Nacional, a censura política de livros, além de ter de ser feita a posteriori,
deveria necessariamente passar pela apreciação do Ministério Público Militar com vistas
a uma provável ação penal, acarretando a necessidade de a proibição vir acompanhada
de um parecer com uma certa consistência jurídica (praticamente impossível de ser
encontrada nas análises proibitórias). Até porque, para um enquadramento no artigo da
LSN que disciplinava a matéria,
92
era preciso comprovar-se que o material a ser
publicado se constituía de fato em um “crime contra a segurança nacional”, algo por si
só já bastante difícil de demonstrar tratando-se de uma simples publicação. Portanto,
essa, é uma diferença importante entre as censuras política e moral de publicações,
sendo a primeira feita com muito mais dificuldades pela ditadura, enquanto a segunda
era não só mais aceita por certas parcelas da população, como possuía maior eficácia:
90
Ver MARCELINO, Douglas Attila. Introdução. In: Repertório analítico da legislação brasileira
produzida pelo regime militar (1964-1985). Site do Grupo de Estudos sobre a Ditadura Militar
(www.gedm.ifcs.ufrj.br)
91
Despacho CJ/nº 212/77, do consultor jurídico Ronaldo Poletti, 21 mar. 1977. Processo C. 100292, 2
jun.1977. MC/P. Caixa 610/05276 , fl. 21.
92
Art. 54, da Lei nº 898, de 29 de setembro de 1969.
48
primeiro, porque era feita antes da publicação do material, acarretando menores
prejuízos políticos advindos de uma possível repercussão do ato proibitório; segundo,
porque era mais dificilmente contestada na Justiça. Certamente foi por isso que, durante
o governo Geisel, a censura da moral e dos bons costumes foi, por vezes, utilizada como
pretexto para se proibir obras tidas como contrárias à ordem política, mas essa
problemática será mais bem analisada posteriormente.
Diante dessas dificuldades para a execução da censura política de publicações,
Falcão determinou a criação de um Grupo Permanente de Trabalho para uma análise
pormenorizada do problema e determinou ao Departamento de Polícia Federal que
continuasse atuando nesse âmbito mediante uma apreciação mais profunda dos livros
que deveriam ser interditados:
Senhor Diretor-Geral
Encareço a Vossa Senhoria providência no sentido de que,
quando encaminhados a este Ministério, para apreciação, livros
ou congêneres, virem acompanhados da expressa opinião desse
Departamento e da indicação dos dispositivos penais tidos
como violados, sendo também assinalada a correlata menção
dos trechos contidos na obra que caracterizariam os ilícitos
justificadores de uma eventual proibição e apreensão. (...) O
exame subjetivo do conteúdo ideológico-político do texto
representa critério insuficiente para a censura e acarreta, na
verdade, que ela [a análise censória] seja exercida pelo ministro
de Estado, e não pelo Departamento de Polícia Federal, a quem
incumbe desempenhá-la (...).
93
Como se pode notar, a censura política de livros era uma questão importante
para o Ministério da Justiça durante o mandato de Armando Falcão (1974-1979). Nesse
sentido, não surpreendem as pressões feitas sobre o Departamento de Polícia Federal
para que assumisse tal encargo ou, mesmo, as interpretações tendenciosas da legislação.
Sabedores do desejo de Falcão de tudo controlar e censurar, é provável que seus
assessores tenham feito algum esforço para que tal adequação se efetivasse, ainda que
isso demandasse leituras bastante parciais da legislação existente. Por outro lado, no
âmbito da censura de costumes, também tivemos um aumento significativo da
preocupação da pasta com as publicações. Foi durante o mandato de Armando Falcão,
de fato, que a censura dos livros e revistas ganhou maior espaço, seja no que concerne à
93
Aviso nº 8391-B, do ministro da Justiça ao diretor-geral do DPF, Moacyr Coelho, 15 dez. 1976.
Processo C. 100292, 2 jun.1977. MC/P. Caixa 610/05276, fl. 24.
49
moral e aos bons costumes ou à política. Se, no governo Médici, o ministro Buzaid teve
o papel fundamental de promulgar a legislação que amparou a censura prévia de
publicações, como destacaremos em seguida, foi no período em que Geisel era
presidente que tivemos algumas das iniciativas mais ousadas nesse campo, assim como
um aumento substancial no número de livros e revistas censurados.
Durante o mandato de Alfredo Buzaid, além do decreto-lei n. 1.077, outras
importantes normas legislativas foram formuladas no sentido de estruturar a censura
prévia de publicações. Assim, no mesmo ano da promulgação do decreto-lei, foram
baixados, pelo menos, três outros textos legislativos regulamentando a atividade da
censura de livros e revistas tidos como ofensivos à moral e aos bons costumes.
94
Cerca
de três anos depois veio a público uma portaria
95
exigindo a obrigatoriedade do registro,
na Divisão de Censura de Diversões Públicas, das revistas nacionais e estrangeiras que
circulavam no país, visando sujeitar à verificação prévia aquelas “que contenham
matéria ofensiva à moral e aos bons costumes e dispensar as demais dessa exigência.”
96
Essa portaria, somada a outra que viria logo em seguida,
97
fez com que os editores
tivessem que colocar em lugar visível das publicações o número de registro na DCDP,
assim como cancelou os registros anteriormente existentes e determinou a apreensão
daquelas que não estivessem enquadradas nesses termos.
Porém, afora essas iniciativas tomadas ainda no governo Médici, a censura
prévia de publicações, se comparada com aquela praticada sobre o cinema, a TV ou
outros meios de diversões públicas, pode ser vista como quase episódica nesses
primeiros anos. Começando a atuar em 1970, foi somente a partir de meados da década
que tal atividade censória ganhou maior importância, sempre com menor incidência.
98
Tal acréscimo, claro está, relaciona-se não somente ao aprimoramento do “serviço”,
mas também à substituição de Alfredo Buzaid por Armando Falcão na pasta da Justiça,
ministro que, desde o início do governo Geisel, passou a tomar medidas visando
94
São eles a Portaria nº 11-B, de 06 de fevereiro de 1970, a Instrução nº 1-70, de 24 de fevereiro de 1970,
ambas do Ministério da Justiça, e a Portaria nº 219, de 17 de março de 1970, do diretor-geral do
Departamento de Polícia Federal.
95
Portaria n° 209, de 16 de abril de 1973.
96
Regulamentando o decreto-lei 1.077, essas portarias corroboram nossa afirmação de que o principal
objetivo dessa norma legislativa era controlar a circulação de revistas tidas como ofensivas à moral e aos
bons costumes e não “instrumentalizar” a censura política como querem os trabalhos que o vinculam com
a censura prévia da imprensa.
97
Portaria nº 7, de 25 de abril de 1973.
98
Ver o capítulo 5.
50
fortalecer esse tipo de censura.
Pouco tempo depois de Falcão assumir o Ministério, pelo menos duas
importantes iniciativas foram tomadas no âmbito da censura de publicações. Uma,
visando controlar a entrada de livros e revistas no país e, outra, procurando estabelecer
uma espécie de “plano de combate” às publicações tidas por “imorais” e “subversivas”.
A primeira delas, inclusive, nos ajuda a perceber o modo como eram tomadas certas
decisões nessa seara durante o mandato do presidente Ernesto Geisel: embora Geisel
seja sempre lembrado como um chefe de Estado extremamente centralizador das
decisões governamentais,
99
talvez ele tenha dado uma certa abertura às definições
iniciais de algumas importantes medidas tomadas no campo da censura nos anos de sua
administração (possivelmente, tentando contrabalançar as medidas em favor da
“abertura política”). Aliás, uma análise mais apurada da documentação referente à
atuação do Ministério da Justiça nessa conjuntura torna-se importante para que
tenhamos uma visão mais clara do lado obscuro e autoritário do governo desse general-
presidente, cujo perfil não se esgota no tão propalado projeto de “abertura política”.
100
Por outro lado, é importante considerarmos também aquilo que alguns analistas já
ressaltaram quanto à necessidade de esse tipo de material ser sempre confrontado com
outros documentos provenientes dos demais segmentos da administração pública, sob o
risco de não compreendermos o período com a complexidade que ele demanda.
101
No início de agosto de 1975, o ministro Armando Falcão enviou ao presidente
Geisel um documento sobre a necessidade de aumentar o cerco às “publicações
caracterizadamente contrárias aos bons costumes e, também, de caráter subversivo”.
102
Falcão solicitava a criação de um grupo de trabalho informal, que estabeleceria as
diretrizes e procuraria uma base legal para a feitura da censura das publicações vindas
do estrangeiro nas alfândegas e nos correios. Antes disso, o ministro havia tentado
iniciar uma operação conjunta com outros ministérios a respeito do tema, quando Falcão
recebeu a visita de representantes do SNI que o alertaram para um aumento da entrada
99
Ver GÓES, Walder de. Op. cit., entre outros.
100
Refiro-me à documentação relativa ao Ministério da Justiça, do arquivo pessoal de Ernesto Geisel,
doada ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (Cpdoc) da Fundação
Getúlio Vargas pela filha do ex-presidente, Amália Lucy Geisel, em 1998.
101
D'ARAUJO, Maria Celina. Ministério da Justiça: o lado duro da transição. In: ____.; CASTRO, Celso
(Orgs.). Dossiê Geisel. Rio de Janeiro: FGV, 2002, p. 23.
102
Exposição de motivos ao presidente da República, 6 ago. 1975. Processo C. 630481, 19 ago. 1975.
MC/P. Caixa 597, fl. 3.
51
no país, nos meses seguintes, de publicações tidas por subversivas provindas de
Portugal e da Argentina.
103
Não obtendo de pronto a colaboração que desejava, Falcão
resolveu voltar-se para o presidente, pedindo que ele recomendasse aos ministros da
Fazenda e das Comunicações que colaborassem com a pasta da Justiça nesse sentido. O
ministro argumentava que, na maior parte dos casos, “o ato que veda a circulação de
material obsceno ou subversivo já se faz na fase em que está ele sendo comercializado,
o que lhe dá, freqüentemente, caráter mais simbólico do que eficácia”.
104
Falcão não
obteve nenhum despacho do presidente em sua exposição de motivos, recebendo
resposta apenas do SNI, que dizia, obviamente, ter o “máximo interesse” no controle
desse tipo de publicação.
105
Seja como for, Falcão decidiu dirigir-se aos outros
ministérios interessados, pedindo sua colaboração, talvez munido apenas de um
assentimento oral de Geisel.
Dessa vez, os ministérios solicitados acabaram colaborando. Logo em seguida,
portanto, foram indicados os representantes do Serviço Nacional de Informações, dos
ministérios das Comunicações e da Fazenda, restando designar apenas aquele que
representaria a pasta da Justiça, função que acabou sendo atribuída ao diretor da Divisão
de Censura de Diversões Públicas, Rogério Nunes. Assim, o coordenador do Sistema de
Fiscalização da Secretaria da Receita Federal tomou medidas para aumentar o rigor das
repartições aduaneiras quanto à importação de livros tidos por “contrários ao interesse
nacional”
106
e o Ministério das Comunicações apresentou os primeiros dados sobre o
controle, via postal, das publicações estrangeiras. Segundo aquela pasta, a única
categoria postal pela qual uma publicação poderia entrar no país que representaria
maiores problemas era a do gênero carta, pois, ao contrário das demais (encomendas,
pequenas encomendas e impressos), aquela não poderia ser violada pelas autoridades,
salvo quando houvesse suspeita da existência de conteúdo sujeito à fiscalização
aduaneira. Porém, o relatório do Ministério das Comunicações logo sugeria uma
103
Processo C. 630481, 19 ago. 1975. MC/P. Caixa 597, fl. 8.
104
Processo C. 630481, 19 ago. 1975. MC/P. Caixa 597, fl. 3.
105
Aviso nº 034/SI-Gab, do chefe do SNI, João Batista Figueiredo, ao ministro da Justiça, 27 abr. 1976.
Processo C. 630481, 19 ago. 1975. MC/P. Caixa 597, fl. 6.
106
Ofício-Circular/CSF/nº 422, do Coordenador do Sistema de Fiscalização ao Superintendente Regional
da Receita Federal da 1º à 15º RF, 9 jun.1976. Ofício-Circular/CSF/nº 669, do Coordenador do Sistema
de Fiscalização ao Superintendente Regional da Receita Federal da 15° à 19° RF, 5 ago. 1976. Ver
também Ofício-Circular CSF/BR/nº 203, do Coordenador do Sistema de Fiscalização ao Superintendente
Regional da Receita Federal – 1 Região Fiscal, jun.1972. Processo C. 630481, 19 ago. 1975. MC/P. Caixa
597.
52
solução arbitrária para esse tipo de fiscalização:
A suspeita da existência, em pacote, de publicação proibida é
muito difícil. Qualquer tentativa de conhecer o conteúdo tende
à violação. Além do mais, solicitar a presença do destinatário
sob a alegação de que o pacote pode conter “publicação
proibida” ou coisa que o valha não deverá ter efeitos práticos.
(...) Para contornar o problema, a alegação pode ser a [de]
“fiscalização aduaneira”, na forma do art. 270, observadas as
condições descritas na letra d
do art. 10, ambas do Dec.
55.870.
107
(grifado no original)
Ainda que deturpando uma prerrogativa legal para a apuração de algo não
previsto em lei, como sugeria a pasta das Comunicações, a verificação desse tipo de
categoria postal somente poderia ser feita na presença do destinatário.
108
Acrescentando
somente a necessidade de designarem-se funcionários do Departamento de Polícia
Federal para fazer o parecer sobre as publicações retidas pelo pessoal do ECT e pela
fiscalização aduaneira, o relatório do grupo de trabalho a quem foi efetivamente
confiado o estabelecimento de diretrizes sobre a matéria em questão sugeria a mesma
estratégia do Ministério das Comunicações (mencionando o artigo da norma legislativa
que prevê a fiscalização aduaneira como forma de verificar a existência de publicações
“contrárias aos bons costumes” ou “subversivas” nas encomendas do tipo carta).
Novamente, portanto, o maior obstáculo encontrado por Falcão para sua ânsia de
controle censório era a falta de pessoal no Departamento de Polícia Federal para a
execução da tarefa, já que, por meio de combinações quase sempre arbitrárias de textos
legislativos regulamentando matérias diversas, o pessoal responsável pelo estudo da
legislação que amparava essas práticas sempre encontrava um suposto respaldo legal
para elas.
109
Apesar de todas as dificuldades existentes, Armando Falcão, seguindo sugestão
do diretor da DCDP, Rogério Nunes, baixou uma portaria regulamentando a questão em
107
Dados fornecidos pelo representante do Ministério das Comunicações. Processo C. 630481, 19 ago.
1975. MC/P. Caixa 597, fl. 34-39.
108
A inviolabilidade da carta, aliás, constituía-se num dos princípios estabelecidos na Declaração
Universal dos Direitos do Homem (artigos XII e XIX), depois assegurada pela Constituição brasileira
(art. 153, § 9º).
109
Nesse caso, por exemplo, o relatório feito pelo grupo de trabalho designado para a tarefa utilizava o
decreto-lei 1.077 para justificar caber à Polícia Federal a censura de livros tidos como ofensivos à moral e
aos bons costumes, combinando-o com o que estabelecia a Lei de Imprensa para as publicações contrárias
à ordem política e social. Assim, utilizava-se parte da legislação referente à censura de costumes para
argumentar que o DPF deveria ser também o encarregado daquele segundo tipo de censura previsto na
Lei de Imprensa, algo que não possuía amparo em nenhum dispositivo daqueles dois textos legislativos.
53
meados de 1977.
110
Estava estabelecida, então, a censura de publicações nos correios
das cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Santos, Campinas, Porto Alegre, Recife,
Belém e Manaus. Fundamentada num decreto-lei que se referia somente à censura de
publicações tidas por “ofensivas à moral e aos bons costumes”, a portaria do Ministério
da Justiça mencionava timidamente, somente no inciso de um de seus artigos finais, o
controle sobre os livros e periódicos “que contiverem matéria contrária à ordem
pública”.
111
Criava-se, naquele momento, uma nova forma de controle sobre a
circulação de livros e revistas no país, quase sempre esquecida pelos trabalhos que
abordam a censura praticada durante a ditadura militar e tendem a ressaltar o período do
governo Geisel como aquele em que os mecanismos censórios começaram a ser
desmontados. Talvez, nesse sentido, faltem estudos mais atentos ao papel do Ministério
da Justiça naquela conjuntura histórica.
Outra iniciativa importante do Ministério da Justiça no âmbito da censura de
publicações tomou corpo no mesmo período da exposição de motivos de Falcão ao
presidente Geisel pedindo providências para estabelecer a censura nos correios. De fato,
no mesmo ano de 1975, circulava nos meandros do Ministério da Justiça um “Plano
para um combate sistemático contra as publicações obscenas e subversivas”, elaborado
por um consultor jurídico daquela pasta.
112
Logo nas suas linhas iniciais, o referido
documento destacava que, “de uns tempos para cá, as livrarias e bancas de jornal foram
invadidas por uma torrente de literatura pornográfica, constante de jornais, revistas e
livros”, e que, “ao seu lado, infiltrou-se a literatura subversiva”. O “plano” como um
todo, na verdade, visava suprir o que o seu autor percebia como certas deficiências da
censura de publicações, sobretudo depois que ela ficou centralizada no Ministério da
Justiça, pois, embora as portarias ministeriais proibindo tais livros tivessem “ampla
difusão perante a opinião pública, deixando claro que o governo federal está vigilante e
sua tônica é a austeridade”, elas traziam problemas graves como
o acomodamento de forças vivas que poderiam ser mobilizadas
para uma ação ex officio, constante e espalhada por todo o país,
110
Portaria nº 0427, de 25 de maio de 1977. Processo C. 630481, 19 ago. 1975. MC/P. Caixa 597, fl. 80-
81.
111
Ver o § 1° do art. 3° da referida Portaria.
112
O “Plano para um combate sistemático contra as publicações obscenas e subversivas” foi elaborado
pelo consultor jurídico Hélio Fonseca e consta no Processo C. 67657, 9 out. 1975. MC/P. Caixa 597, fl. 3-
13.
54
onde, atualmente, a atuação dos órgãos federais não pode
chegar. Além disso, o número desses livros [obscenos e
subversivos] no mercado mundial é enorme, e a proibição de
sua circulação atingiria a casa dos milhares, o que, além de
difícil execução, poderá gerar críticas de setores culturais,
embora improcedentes, mas com o poder de indispor a opinião
pública contra o governo.
113
Percebendo a censura prévia como insuficiente, o documento propunha “uma
nova estratégia, mais silenciosa e eficaz, de repressão à fonte de tais publicações
(livreiros, distribuidores etc.)”, a qual passaria pelo acionamento de diversas instâncias
do serviço público, além da Polícia Federal.
114
Nesse sentido, tanto a repressão à
literatura considerada pornográfica quanto àquela tida por “subversiva” seguiriam uma
mesma lógica: ao invés da Polícia Federal ficar na dependência de uma portaria
ministerial proibindo determinado livro para, só então, apreendê-lo, ela, logo que
descobrisse um “foco de difusão” desse tipo de literatura, faria “a apreensão dos
volumes, antes que atingissem o público, e abriria inquérito policial para a punição dos
culpados. Esta ação seria automática, independentemente de portaria ministerial”.
115
A diferença de ambas as ações, portanto, seria determinada apenas pela
legislação que regulamentaria cada uma delas: no caso das publicações “subversivas”, o
documento descartava a Lei de Imprensa, tida curiosamente por “excessivamente
liberal”, sobretudo por ensejar recurso à Justiça comum, e sugeria a Lei de Segurança
Nacional
116
(que remetia à Justiça Militar). Já, no caso das publicações tidas por
imorais, o respaldo seria dado pelo decreto-lei n. 9.085,
117
o qual permitiria o
cancelamento do registro das empresas responsáveis pela distribuição e venda de
material obsceno. O documento previa, ainda, o acionamento das polícias estaduais, que
deveriam auxiliar a Polícia Federal (através de uma ação do Ministério da Justiça junto
aos governadores dos estados), da Alfândega e dos Correios e, também, uma espécie de
tentativa de cooptação dos Juízes de Menores:
113
Ibidem, fl. 4.
114
Também estava prevista a mobilização dos Ministérios Públicos Federal, Militar e dos Estados, das
polícias estaduais, dos Juizados de Menores, das Justiças Federal, Militar e dos Estados, da Alfândega e
dos Correios.
115
Ibidem, fl. 7.
116
O documento baseava-se no art. 54 da referida lei que, segundo sua interpretação, permitia ao ministro
da Justiça “não só suspender a impressão, circulação e a venda de impressos subversivos, mas, o que é
mais importante, determinar a proibição de funcionamento da empresa que se dedicar a editá-los ou
distribuí-los”. Idem.
117
Decreto-lei nº 9.085, de 25 de março de 1946.
55
Existe uma Associação dos Juízes de Menores do Brasil, que
deverá ser prestigiada pelo governo federal e incentivada a
colaborar no setor. (...) Brevemente, essa Associação fará uma
reunião em Manaus, e o Ministério da Justiça poderá sondá-la
sobre a possibilidade de mandar um representante, para propor
o tema. (...) Também poderá ser aventada a hipótese de uma
segunda reunião em Brasília, e especialmente para isso, quando
deverá ser estudada uma forma de colaborar materialmente
com a entidade, dando-lhe meios para executar seus objetivos,
inclusive o fornecimento de agentes para cumprir suas
determinações.
118
Apesar de destacar as fragilidades da censura prévia, o “plano de combate” não a
descartava completamente, sugerindo a possibilidade de utilizá-la como um recurso
auxiliar que, embora não fosse tão eficaz, demonstraria que o governo não perdeu o
rigor no tratamento da questão. Assim, “em determinadas oportunidades, a serem
inteligentemente escolhidas, as publicações deveriam ser proibidas por meio de portaria
do senhor ministro da Justiça, para demonstrar à nação a vigilância sobre o setor”.
119
É
curioso, aliás, como o documento destacava a censura prévia sempre como uma forma
de legitimação do ministério e do governo, mencionando poucas vezes o desgaste
político que poderia advir da manutenção de um “serviço censório” no país. Como
temos procurado ressaltar em outros momentos desse texto, no caso da censura referente
à defesa da moral e dos bons costumes, havia, de fato, uma determinada parcela da
população que demandava esse tipo de “serviço”, não obstante seja quase impossível
mensurar mais precisamente o número de pessoas que o faziam. Ainda assim, parece
evidente a parcialidade da visão do autor do documento, o qual, além de sugerir
medidas autoritárias para um maior controle sobre as publicações editadas no país,
provavelmente acreditava na existência de um total assentimento popular à prática da
censura.
A análise do referido “plano” é importante, sobretudo, para ressaltarmos como o
controle sobre a circulação de livros e revistas era uma grande preocupação no âmbito
do Ministério da Justiça naquele momento (governo Geisel) e que a censura prévia não
era o único meio de fazê-lo. O fundamento principal desse “plano de combate”, de fato,
era centrar-se no cerceamento das fontes dessas publicações, pois,
118
Ibidem, fl. 11-12.
119
Ibidem, fl. 7.
56
acima de tudo, deverão ser localizados os focos de distribuição,
de modo que este ministério possa interditar estabelecimentos
com base na Lei de Segurança Nacional (subversão) e no
decreto-lei nº 9.085, de 25 de março de 1946 (pornografia), o
que, em termos de ordem pragmática, resultará muito mais
vantajoso [do] que apreensões isoladas de livros.
120
Já no parecer elaborado sobre o referido “plano de combate” por parte de outro
consultor jurídico do ministério, Ronaldo Poletti, ficam evidenciadas as dificuldades da
pasta da Justiça para um tratamento mais rigoroso da circulação de livros e revistas.
121
Dividindo o assunto em duas partes fundamentais, uma relacionada às “publicações
subversivas” e, outra, às “exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes”, o
consultor jurídico ressaltava não haver maiores problemas quanto ao primeiro tipo de
censura, exceto no que diz respeito àquela que recaía sobre livros.
122
Estes, conforme já
mencionamos outrora, “são suscetíveis de apreensão apenas se caracterizado crime
contra a segurança nacional” e, além disso, “em recente parecer, esta consultoria
analisou a possibilidade de aprender-se livro marxista (...), manifestando-se
contrariamente à medida”.
Porém, segundo Poletti, os problemas se tornavam mais complexos no campo da
moral e dos bons costumes, pois, não obstante a censura nessa seara tivesse um respaldo
mais consistente na legislação do período, “não têm sido poucas as dificuldades, quer
pela ineficiência, quer pelo desgaste político permanente em tal matéria, construído pela
propaganda dos prejudicados pela censura”.
123
Segundo seu parecer, a censura prévia de
livros e revistas tidos como contrários aos bons costumes, no âmbito do Departamento
de Polícia Federal, foi implantada devido à omissão das autoridades que deveriam tratar
dessa questão (a Polícia Judiciária, os Juízes de Menores e o Ministério Público), o que
acarretou a decisão ministerial de centralizar o controle sobre esse tipo de publicações
na pasta da Justiça, terminando por deixar ainda mais indiferentes os setores que
deveriam atuar nesse campo. Agora, portanto, seria o momento de fazer voltar a essas
120
Ibidem, fl. 13.
121
Estudo nº 07/75 do consultor jurídico, Ronaldo Rebello de Britto Poletti, 17 dez. 1975. Processo C.
67657, 9 out. 1975. MC/P. Caixa 597, fl. 33-38.
122
Corroborando aquilo que vimos destacando no início desse capítulo, o consultor jurídico do Ministério
mencionava o Ato institucional nº 5, assim como a Constituição, as leis de segurança e de imprensa, como
os instrumentos que tornavam possível a feitura da censura política nos jornais.
123
Ibidem, fl. 34.
57
autoridades a responsabilidade que lhes cabia, em parte pela sempre reiterada falta de
“material humano em quantidade e qualidade”
124
nos quadros da Polícia Federal para a
execução da tarefa e, por outro lado, pelo desgaste político que tais práticas vinham
trazendo ao ministro da Justiça:
As conotações políticas do problema são óbvias. Na guerra
psicológica e revolucionária adversa, os inimigos se utilizam
de todas as armas, como a literatura imoral. Mas, utilizam
também a propaganda indireta para colocar sob fogo incessante
o ministro da Justiça, que passou a encarnar, segundo ela, uma
espécie de Torquemada ou de queimador de livros. No entanto,
o decreto-lei não visava obter um clima de puritanismo
exacerbado, mas preservar o Brasil de misteriosa onda
internacional de pornografia e de degeneração quanto aos
costumes, da mesma forma que se procura manter um clima de
ordem e tranqüilidade sociais, quando o mundo se agita em
desordem e desassossego. Além disso, como já foi dito, a
situação vem servindo à omissão das demais autoridades,
assoberbando, por conseguinte, o ministro da Justiça com
sucessivos despachos de proibição de livros, cujo rol, já
extenso, pode levá-lo a um inevitável desgaste, quando
somente em caso excepcional deveria intervir.
125
Nesse sentido, o consultor jurídico ressaltava que houve um certo
desvirtuamento da censura prévia implantada pelo decreto-lei n. 1.077, pois, a princípio,
ela objetivava conter a circulação das “luxuosas revistas, de grande penetração popular
e altamente formadora da moral das pessoas”,
126
e não de livros, como se vinha fazendo,
ainda que o documento não descartasse completamente a verificação prévia destes
últimos. Para ele, o referido diploma legal deveria ser invocado apenas
excepcionalmente, ao passo que, no que diz respeito às revistas de grande circulação,
sua aplicação far-se-ia ordinariamente, visando obstar a proliferação daquelas que
atentassem contra a moral e os bons costumes. Por outro lado, como vimos destacando,
deveriam ser acionadas as demais autoridades responsáveis pela matéria, inclusive no
que concerne às polícias que, semelhantemente ao que sugeria o “plano de combate”
anteriormente analisado, não deveriam esperar uma autorização ministerial para abrir
um inquérito policial ou apreender publicações “obscenas” ou “subversivas”.
Deslocava-se, novamente, o foco para a fonte desses tipos de publicações. Além disso,
cabe considerar, por outro lado, que esse tipo de medida, se posta em prática, atenderia
124
Ibidem, fl. 35.
125
Ibidem, fl. 35-36.
126
Ibidem, fl. 35.
58
aos anseios do próprio Departamento de Polícia Federal, o qual, por vezes, se mostrava
indignado com uma suposta omissão das demais autoridades que poderiam atuar nesse
sentido:
É chegado o momento de as referidas autoridades juntarem
esforços e cerrarem fileiras contra o perigo comum, ou seja,
contra os que querem destruir, por meio de publicações de
cunho obsceno ou pornográfico, as resistências morais e
corromper os costumes mais sadios da coletividade que querem
ver destruída, valendo acrescentar que, na ocorrência do evento
criminal, qualquer pessoa do povo pode e as autoridades locais
têm o dever de tomar providências. Não é lícito cruzarem os
braços, aguardando a intervenção da União, através do seu
organismo policial assoberbado com os múltiplos e complexos
problemas que surgem na área de sua competência.
127
Cerca de três anos depois, o diretor da DCDP, Rogério Nunes, se manifestava ao
ministro Armando Falcão com argumentos semelhantes, mas deixando bem mais clara a
intenção do Departamento de Polícia Federal de se desvencilhar da feitura da censura
prévia de publicações:
A matéria se resolveria (...) se houvesse, por parte desse
Ministério da Justiça, recomendação aos poderes executivos e
judiciários dos estados, no sentido de adotarem as providências
que a respeito lhe competem, pois se trata de medidas de
interesse público (...) Com isso poder-se-ia, inclusive, sustar a
verificação prévia – que só se realiza se o Ministério da Justiça
julgar necessária – deixando assim os interessados prevenidos
para as conseqüências (medidas repressivas) a que estariam
sujeitas, caso cometam abusos no exercício da liberdade de
manifestação de pensamento.
128
Apesar das tentativas de recrudescimento no campo da censura de publicações
que passavam pelo Ministério da Justiça durante o período de Armando Falcão, o
controle sobre esse segmento da atividade cultural do país enfrentava uma série de
limitações e dificuldades. Para além da fragilidade da legislação existente sobre a
matéria e das novas tendências governamentais à abertura política, havia a própria
lentidão que perpassava à tramitação dos processos no âmbito daquela pasta, inclusive
no que concerne à falta de pessoal existente para tratar do assunto. A escassez de
quadros para tal parece evidente no caso do Departamento de Polícia Federal, mas
127
Ofício nº 493/76, do diretor-geral do DPF ao ministro da Justiça, 29 jun.1976, NO.
128
Ofício do diretor da DCDP, Rogério Nunes, ao diretor-geral do DPF, 4 jan. 1979, NO.
59
atingia também setores do ministério mais próximos de Armando Falcão, ocasionando,
até mesmo, disputas internas quanto a quem caberia certas atividades como, por
exemplo, a feitura da análise sobre os livros que tratavam de assuntos políticos.
Enquanto o chefe de gabinete do ministério esforçava-se para demonstrar que tal
atividade competia à Polícia Federal, essa última quase sempre mencionava a carência
de meios para executá-la, porquanto, para tal, ela teria que deslocar funcionários que
estariam trabalhando em outras importantes atividades próprias daquele organismo
policial. De fato, a burocracia que perpassava as medidas tomadas nesse campo pode ser
percebida na tentativa de melhor estruturar a censura política de livros, cujas
dificuldades e limitações contradiziam o forte desejo de controle censório que
atravessava a pasta da Justiça naquela conjuntura.
Atendendo a uma sugestão do seu consultor jurídico, Falcão estabeleceu, em
1977, um “grupo permanente de trabalho” que ficaria “incumbido de proceder à análise
de livros considerados atentatórios à segurança nacional e sugerir critérios para sua
proibição”.
129
A medida, baixada por meio de uma “portaria confidencial” (algo bem
nos moldes do regime de exceção instalado no país), atendia aos reclames da própria
consultoria jurídica, que vinha ressaltando suas “dificuldades para desincumbir-se da
análise de livros, provenientes do Departamento de Polícia Federal, para verificação de
uma eventual transgressão da Lei de Segurança Nacional ou da contrariedade da moral e
dos bons costumes”.
130
Foram designados para a tarefa representantes do Departamento
de Polícia Federal, do Departamento de Assuntos Legislativos e do Ministério Público
Militar, os quais, ao final dos trabalhos, produziram um relatório conclusivo sobre o
assunto. Analisando a legislação pertinente à questão, o estudo concluía pela existência
de amparo legal à censura política de livros, sobretudo no que diz respeito à Lei de
Segurança Nacional, e mencionava que tal atividade deveria ser feita pelo Departamento
de Polícia Federal. Entretanto, novamente o maior empecilho para a execução da tarefa
era a falta de pessoal:
É conveniente, no entanto, assinalar que o Departamento de
Polícia Federal não dispõe de pessoas qualificadas para
129
Portaria Confidencial nº 0903, de 14 de dezembro de 1977. Processo C. 100292, 2 jun.1977. MC/P.
Caixa 610/05276, fl. 43.
130
Ofício do consultor jurídico, Ronaldo Poletti, ao ministro da Justiça, 17 fev. 1977. Processo C.
100292, 2 jun.1977. MC/P. Caixa 610/05276, fl. 27.
60
proceder à análise de livros de natureza política, haja vista a
existência ali de 473 obras para serem examinadas. (...) Ora, se
uma repartição da complexidade do Departamento de Polícia
Federal, infra-estruturada, julga-se sem condições de executar
tal tarefa, como haveria de fazê-lo 3 (três) pessoas físicas? (...)
Haveria o Ministério da Justiça de criar, nos quadros do DPF,
um corpo de analistas formados na Academia Nacional de
Polícia e/ou Escola Nacional de Informações – com amplos
conhecimentos sobre o assunto e versados em vários idiomas –
ou permitir a colaboração de pessoas estranhas ao serviço
público, à semelhança do procedimento adotado para [as]
publicações que atentam contra a moralidade e os bons
costumes (...).
131
Como se pode notar, havia uma fragilidade inerente às tentativas de estruturar a
censura política de publicações, a qual ultrapassava a problemática da falta de pessoal.
Essa última, claro está, perpassava todo o serviço censório, levando a DCDP a requisitar
o trabalho de pessoas de fora do serviço público para a verificação de livros e revistas,
mas, para além dela, havia certas incoerências como a formulação de um grupo de
trabalho de apenas três pessoas para a verificação de um grande número de livros que,
versando sobre temas políticos, poderiam passar pelo “crivo censório” naquela
conjuntura. Além dos 473 volumes que aguardavam um parecer censório na Polícia
Federal, havia, pelo menos, outros 45 processos de livros esperando por uma análise
mais acurada no Ministério da Justiça. Entre eles, encontravam-se A ilha: um repórter
brasileiro no país de Fidel Castro, de Fernando Moraes, Os grandes senhores, de
Ronaldo Limas Lins, Destin du Brézil, de Michel Schoyans, A favor de Gramsci, de
Maria Antonieta Macciocchi, Os conceitos elementais do materialismo histórico, de
Marta Harnecker e A Sinfonia de Napoleão, de Antony Burgess.
132
E, diga-se de passagem, a situação não parecia ser muito melhor para a censura
no que diz respeito às publicações apreendidas por terem sido consideradas ofensivas à
moral e aos bons costumes ou, ainda, àquelas que estavam retidas nos Serviços de
Censura de Diversões Públicas regionais. Só para se ter uma idéia, em fins de maio de
1975, o chefe do SCDP do Rio de Janeiro comunicava ao diretor do órgão federal a
retenção de “212 livros acintosamente expostos em bancas do centro da cidade”, entre
131
Relatório conclusivo de Paulo Leite de Lacerda, representante do Departamento de Polícia Federal,
Miriam Campelo de Melo Amorim, representante do Ministério da Justiça e Octávio Magalhães do Vabo,
representante do Ministério Público Militar, 9 out. 1978. Processo C. 100292, 2 jun.1977. MC/P. Caixa
610/05276, fl. 45-54.
132
“Relação de processos acompanhados de livros para apreciação”. Processo C. 100292, 2 jun.1977.
MC/P. Caixa 610/05276, fl. 34.
61
os quais listavam-se Tóxico, sexo, morte, de Wedge S. Nels, O homem, a mulher e a
cama, de John Wallace, Inteirinha nua e sua, de R. Bava, O mundo pecaminoso em que
vivi, de Mylène Demarst, Do namoro à noite de núpcias, de Richard Hershey e Annie
Berger, Lenita e o padre, de Márcia Fagundes Varela e Páginas eróticas, de Luís
Barreiros.
133
Um dia depois, o mesmo serviço de censura mencionava o recolhimento de
diversos números das revistas Neue revue e Quick em jornaleiros daquela região, os
quais estariam expondo as “páginas mais desrespeitosas”, solicitando, ainda, que os
órgãos descentralizados fossem comunicados sempre que uma nova publicação
estrangeira fosse vetada, pois essa é a “única forma de evitar a proliferação da onda de
erotismo e pornografia que assola esta capital”.
134
Se considerarmos que, comunicados
como esse, chegavam das instâncias censórias espalhadas pelos diversos estados do país
(ou, pelo menos, daquelas dos estados com melhor estrutura censória) e, por outro lado,
que havia grandes dificuldades para a efetivação da verificação prévia, não fica difícil
imaginar a lentidão e os demais problemas que acarretavam o acúmulo desse tipo de
material. No que concerne à estocagem dos livros e revistas tidos como contrários aos
bons costumes, por exemplo, a saída encontrada pelo serviço de censura era a
incineração dos exemplares proibidos. Assim, em fins de abril de 1976, foram
queimados, na Usina da Companhia Municipal de Limpeza Urbana (COMLURB), em
Irajá, 12.246 volumes de publicações apreendidas pelo SCDP do Rio de Janeiro.
135
A
destruição, ao que parece, não recaía apenas sobre os livros e revistas apreendidos, mas
também sobre outros tipos de material como discos, jornais etc.
136
O relatório do grupo de trabalho encarregado de avaliar a legalidade da censura
prévia de caráter político dos livros somente foi encaminhado ao ministro da Justiça
cerca de um ano após a promulgação da portaria que o estabeleceu (ou seja, em fins de
1978). Assim, a demora acabou por levar Armando Falcão a ter que deixar o assunto
para ser tratado pelo próximo encarregado daquela pasta. Portanto, apesar desse e dos
diversos outros estudos feitos sobre a questão, esse tipo de censura nunca foi
solidamente estruturado, sendo a interdição política de livros praticada de maneira
133
Ofício nº 242, do chefe do SCDP/RJ ao diretor da DCDP, 22 maio 1975, NO.
134
Ofício nº 244, do chefe do SCDP/RJ ao diretor da DCDP, 23 maio 1975, NO.
135
Ofício nº 322, do chefe do SCDP/RJ ao diretor da DCDP, 18 maio 1976. Ofício nº 266, do chefe do
SCDP/RJ ao diretor-presidente da COMLURB, 26 abr. 1976, IS.
136
Em meados de 1979, por exemplo, o chefe do SCDP da Bahia perguntava ao diretor da DCDP se
podiam ser destruídos, além de algumas revistas e jornais, discos de Bob Marley e The Wailers, e capas
do disco Jóia, do cantor Caetano Veloso. Ofício nº 01979, 3 jul. 1979, OS.
62
errática e, por vezes, proibindo-se títulos considerados “subversivos” sob a alegação de
ofensa à moral e aos bons costumes. De fato, não foi uma menor importância dada ao
campo literário que levou Armando Falcão a ter um controle censório mais precário
nessa seara, mas as próprias fragilidades existentes no serviço público, frustrando, em
certo sentido, as expectativas de um ministro ávido de controle sobre todos os setores da
atividade cultural do país.
Ademais, para além desses problemas administrativos, não se pode esquecer que
o mandato de Armando Falcão demarca o período da chamada “distensão lenta, gradual
e segura” do governo Geisel, quando parecia tornar-se cada vez mais difícil a adoção de
medidas tendentes ao recrudescimento do autoritarismo. Apesar de o processo de
abertura ter sido marcado por diversas “sístoles” e “diástoles”, como ressaltam os
trabalhos existentes sobre a ditadura militar, não resta dúvida, por outro lado, que, na
medida em que nos aproximávamos da década de 1980, o espaço para iniciativas como
a censura política de livros e revistas ia tornando-se cada vez mais estreito. Aliás, a
persistência de uma personagem como Armando Falcão no Ministério da Justiça (até
março de 1979) talvez tenha sido um dos principais motivos para os retrocessos do
processo de abertura política, apesar da praticamente total inexistência de trabalhos
enfocando sua atuação como titular daquela pasta no período. Essa, de fato, é uma
questão ainda controversa, que se mescla à discussão sobre o controle ou não do
processo de distensão pelos militares.
Para certos autores, que enfocam o controle que Geisel teria tido sobre tal
processo, a própria escolha de Armando Falcão para o Ministério da Justiça teria sido
uma estratégia do presidente, pois ele poderia funcionar “como um termômetro das
relações com os ‘duros’ num nível que preservasse os interesses mais gerais da
repressão, sem pôr em risco a sua proposta de distensão”.
137
Assim, enquanto ministro,
Armando Falcão teve um papel fundamental na imposição de mecanismos visivelmente
autoritários, como a lei que restringiu a propaganda eleitoral no rádio e na televisão,
conhecida como Lei Falcão,
138
e o chamado “Pacote de Abril”, que, para além da
137
KUCINSKI, Bernardo. O fim da ditadura militar. São Paulo: Contexto, 2001. (Repensando a
História), p. 30.
138
A Lei Falcão foi aprovada pelo Congresso Nacional, em 25 de julho de 1976, determinando que as
emissoras de rádio e televisão reservassem, nos dois meses anteriores à realização das eleições, espaços
na programação destinados à propaganda eleitoral gratuita, a qual deveria se reduzir à apresentação dos
63
Reforma do Judiciário, procurou introduzir no país uma série de modificações no
funcionamento do processo político com o objetivo de favorecer o governo.
139
Aliás, o
enfraquecimento da Arena nos pleitos eleitorais foi um problema fundamental para o
Ministério da Justiça durante todo o governo Geisel, ocupando um lugar especial nas
preocupações de Armando Falcão, que sempre pareceu impulsionado a tomar medidas
ou a formular instrumentos autoritários que ajudassem a melhorar as condições do
partido oficial. Além disso, o acervo documental da pasta da Justiça, durante o mandato
dessa personagem, está repleto de papéis que atestam a proximidade que ela guardava
dos setores mais radicais dentro do regime militar (a chamada “linha dura”), inclusive
no que concerne aos responsáveis pelos sistemas de segurança e de informações.
140
De fato, algumas mudanças correspondentes à abertura política e, no mesmo
sentido, à saída de Armando Falcão do Ministério da Justiça, foram deixando com dias
contados a prática da censura prévia de publicações. Certas medidas, como a aprovação,
pelo Congresso Nacional, em setembro de 1978, da extinção do AI-5 (a partir de 31 de
dezembro) e o fim da censura prévia aos últimos jornais ainda submetidos a ela naquele
mesmo ano,
141
ainda que não diretamente relacionadas ao controle de livros e revistas,
sinalizavam na direção de um afrouxamento do controle censório de modo geral,
deixando na boca da intelectualidade brasileira um gostinho otimista de maior liberdade
de expressão. Por outro lado, a substituição de Armando Falcão por Petrônio Portela na
pasta da Justiça ajudou a concretizar esse clima de liberalização: apesar da
administração Portela não ter ocasionado o fim efetivo da censura (até porque o então
ministro faleceu nos primeiros dias do ano de 1980, pouco mais de dez meses após
assumir o cargo), ela legou instrumentos importantes nesse sentido, como a
currículos e plataformas dos candidatos (e, no caso da TV, de seus retratos), sob a fiscalização direta e
permanente da Justiça Eleitoral.
139
O pacote incluía, entre outras, as seguintes medidas: quorum de maioria simples, e não mais de dois
terços no Congresso, para aprovação de emendas constitucionais; efetivação da eleição indireta para
governadores; mandato presidencial de seis anos, a partir do próximo ocupante do cargo; eleição indireta
de um terço dos senadores; extensão às eleições gerais das limitações estabelecidas em 1976 para os
pleitos municipais (Lei Falcão); e a realização das eleições presidenciais em 15 de outubro de 1978, ao
invés de 15 de janeiro de 1979.
140
Além dos documentos referentes ao assunto existentes no CPDOC/FGV, uma outra fonte de consulta
nesse sentido são os próprios papéis do fundo Divisão de Segurança e Informações do Ministério da
Justiça (alocado no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro) que vimos analisando.
141
Em 1978, foi notificado o fim da censura prévia aos três jornais ainda submetidos a essa forma de
controle: Tribuna da Imprensa (censurado, vez por outra, desde 1968), O São Paulo (censurado desde
junho de 1973) e Movimento (censurado desde abril de 1975). No ano anterior a censura prévia tinha
deixado de existir para Opinião (censurado desde janeiro de 1973) e, em 1975, para O Estado de S. Paulo
(censurado desde setembro de 1972) e Pasquim (censurado desde novembro de 1970).
64
regulamentação do Conselho Superior de Censura.
142
Composto de representantes dos organismos governamentais e de instituições da
sociedade civil,
143
esse Conselho, como se sabe, além de possuir um papel normativo
para atualização dos critérios censórios, era uma instância de recurso encarregada de
julgar as proibições determinadas pela Polícia Federal, atuando acima das decisões da
Divisão de Censura de Diversões Públicas (não obstante, acima dele, ainda
permanecesse como instância última o próprio ministro da Justiça). Criado por uma lei
ainda de final de 1968, o Conselho somente começou a funcionar efetivamente em fins
de 1979,
144
já no governo Figueiredo, e acabou gerando a indignação de alguns diretores
da DCDP devido à liberação de filmes e outros espetáculos anteriormente vetados por
aquele órgão. Entretanto, se essa e outras medidas demonstram a propensão
governamental à abertura política, vale ressaltar que não são somente as atitudes do
Poder Executivo em direção ao projeto de distensão que nos ajudam a explicar o fim da
censura prévia de publicações. Somado às crescentes pressões sociais pelo fim do
regime ditatorial e às dificuldades materiais que atingiam a DCDP, estava o fato de que
as “artimanhas legislativas” do governo já começavam a ser contestadas mais
facilmente no âmbito da Justiça, dando mostras da fragilidade existente por detrás da
roupagem legal que amparava a atividade censória. E, como também vimos
mencionando, se o mandato de Armando Falcão correspondeu ao período da chamada
“distensão lenta, gradual e segura”, ele foi igualmente marcado por diversas atitudes no
âmbito da pasta da Justiça visando aumentar o controle sobre as publicações editadas no
país.
Assim, em fins dos anos 1970, malgrado a frustração das tentativas de estruturar
um serviço mais eficaz e sistemático de censura política no campo dos livros e revistas,
restava, ainda, a verificação prévia das publicações tidas por contrárias à moral e aos
bons costumes (e, conseqüentemente, a possibilidade de interditar determinadas obras
tidas como “subversivas”, alegando que seu conteúdo atentava contra a moralidade do
142
A ação do Conselho foi regulamentada pelo Decreto nº 83.973, 13 dez. 1979.
143
O Conselho foi composto de sete representantes do governo (do Ministério da Justiça, do Itamaraty,
das Comunicações, dos Conselhos Federais de Cultura e de Educação, da Embrafilme e da Funabem) e de
sete representantes de instituições não-governamentais (ABI, da ABL, do SBAT, das associações de
críticos cinematográficos e produtores de filmes, dos artistas e técnicos em espetáculos de diversões
públicas e dos autores de radiodifusão).
144
O Art. 15 da Lei 5.536, de 21 de novembro de 1968, criou o CSC, mas a decretação do AI-5 e o
fechamento político acabaram por fazer com que ele somente fosse implementado mais de uma década
depois (Decreto nº 83.973, de 13 de dezembro de 1979).
65
povo brasileiro). Mas, mesmo essas possibilidades se viram obstadas no período que vai
do final do mandato de Armando Falcão até o início da administração de Abi-Ackel
(substituto de Petrônio Portela na pasta da Justiça), sobretudo quando a Justiça começou
a dar ganho de causa aos mandados de segurança impetrados contra os mecanismos de
censura prévia. De fato, nos primeiros meses de 1980, foi feita uma reunião das
autoridades responsáveis pela DCDP com os editores de revistas que tratavam de temas
referentes aos costumes, na qual foram comunicadas as normas que permaneceriam
impostas a esses últimos a partir de então:
1 – a partir dessa data, ficou abolido o exame prévio das
publicações que abordam temas referentes ao sexo, moralidade
pública, bons costumes ou que apresentem fotografias de nus,
eróticas ou não; 2 – tais edições necessitam manter um padrão
que as enquadre na espécie de revistas para o homem, não
descambando para a pornografia; 3 – as capas devem ser
discretas, sem apelações, já que os exemplares são expostos em
bancas; 4 – a restrição de sua venda a menores deve aparecer
bem destacada, bem como sua comercialização continua a ser
em embalagem plástica; 5 - ao material redacional não se
impõe qualquer restrição, respondendo cada um pelos abusos
que cometer; 6 – a parte visual (material fotográfico) deve ser
contida nos limites da decência; permitem-se as fotografias do
nu frontal, evitando-se, no entanto, as poses que mostrem a
masturbação, o relacionamento sexual e que caracterizem o
homossexualismo, masculino e feminino; 7 – qualquer abuso
será julgado e punido com base no Código Penal e na Lei de
Imprensa; 8 – os senhores editores ficam obrigados a remeter,
mensalmente, a esta Divisão, três exemplares das publicações
que forem comercializadas, para o devido acompanhamento.
145
Como se pode notar, estava extinta a censura prévia de livros e revistas a partir
daquele momento, não obstante as exigências mantidas e as evocações do Código Penal
e da Lei de Imprensa como meio de tentar garantir sua obediência por parte dos
editores. Mais do que um simples ato de vontade do ministério, tal atitude correspondia,
segundo a ótica da ditadura, à única saída existente diante das constantes manifestações
no âmbito do Judiciário ressaltando a ilegalidade que cercava a prática da verificação
prévia de publicações. Agora, quando o regime autoritário se esfacelava, tornava-se
mais difícil manter o controle sobre o Judiciário, algo que ajudava a tornar mais
evidente a fragilidade legislativa que embasava a manutenção de determinados
mecanismos como o da censura prévia. Por outro lado, tal medida não representava o
145
Ofício-Crircular nº 623/80-SE/DCDP, do diretor da DCDP, José Vieira Madeira, 6 mar. 1980, NO.
66
fim de uma das importantes formas de controle então existentes, qual seja, a
obrigatoriedade do envio de três exemplares dessas publicações para o registro na
Divisão de Censura de Diversões Públicas. Nesse sentido, embora tal prerrogativa dê a
impressão de ser algo irrelevante, ela foi bastante utilizada como forma de controle,
tornando-se um mecanismo do qual a DCDP não queria abrir mão. Até porque, a
manutenção da obrigatoriedade do registro no órgão que fazia a censura de diversões
públicas também era importante para a regulação da importação de revistas relacionadas
aos costumes, algo que preocupava o ministério, pelo menos, desde os primeiros meses
do mandato de Armando Falcão:
Os interessados [na importação e comercialização de revistas
masculinas estrangeiras, que exploram o sexo] pleiteiam a
revogação da Portaria nº 209, de 16.04.73, do Diretor-Geral do
DPF, que estabeleceu a obrigatoriedade do registro de
publicações periódicas, do gênero revistas, nacionais e
estrangeiras, na Divisão de Censura de Diversões Públicas. Isto
porque, sistematicamente, vem sendo negado o registro, com
base no art. 4º da aludida portaria. (...) Não cremos ser
oportuno deferir tal pedido, ainda mais que, naquela ocasião,
lembrou Vossa Excelência de se recorrer ao Ministério do
Planejamento solicitando providências que resultassem em uma
sobretaxa desestimuladora da pretendida importação (...).
146
Outra medida mantida após o fim da censura prévia era a exigência de que os
“livros e impressos” tratando de temas “referentes ao sexo, à moralidade ou aos bons
costumes” fossem vendidos em embalagens plásticas e somente no âmbito das
livrarias.
147
Mas, mesmo nesse ponto, o Ministério da Justiça vinha sofrendo reveses no
âmbito do Judiciário devido aos mandados de segurança impetrados pelos editores
contra a determinação de excluir as bancas de jornal da possibilidade de comercializar
tais publicações. Argumentando que tal iniciativa impedia “o livre comércio” e
favorecia ilegalmente os jornais e revistas em detrimento dos livros, as editoras vinham
obtendo o respaldo do Tribunal Federal de Recursos na matéria, o qual vinha julgando
146
Ofício do diretor da DCDP, José Vieira Madeira, ao ministro da Justiça, 7 abr. 1980, NO.
147
O artigo 1º da Portaria 319/79-DG, de 10 de abril de 1979, estabelecia que: “A circulação e a venda,
no território nacional, de livros e impressos que exteriorizem temas referentes ao sexo, moralidade
pública e bons costumes, só poderão ser feitas se os mesmos estiverem embalados em material plástico
resistente, hermeticamente fechado, em que conste em uma das faces a inscrição: VENDA PROIBIDA
PARA MENORES DE 18 ANOS”.
67
nulo o parágrafo único da portaria que estabelecia tal exigência.
148
Assim, não restou
outra saída ao diretor-geral do Departamento de Polícia Federal que não a revogação do
referido parágrafo único, mantendo-se, no entanto, a outra parte da norma legislativa
que exigia que a venda de tais publicações fosse feita em embalagens plásticas,
“hermeticamente fechadas”.
Na verdade, o fim da censura prévia de publicações já era uma idéia
razoavelmente recorrente no âmbito da DCDP desde os tempos de Armando Falcão, não
obstante a intransigência desse ministro. Como temos visto, mesmo no âmbito do
Ministério da Justiça, as dificuldades existentes no Departamento de Polícia Federal e a
percepção de uma certa ineficácia desse tipo de censura já tinham levado à formulação
de planos visando minorar a constância da verificação prévia mediante o acionamento
de outras áreas do serviço público. Entretanto, nos primeiros meses da gestão de Abi-
Ackel na pasta da Justiça, a questão se colocava de forma diferenciada, já que o
ministério se via praticamente obrigado a deixar de atuar nesse campo, malgrado as
poucas possibilidades existentes de controle a partir da exigência de registro ou da
evocação do Código Penal e da Lei de Imprensa. Mais do que nunca, portanto, o
governo se via diante da necessidade de incitar as autoridades públicas que podiam
atuar sobre a questão a fazê-lo. E foi isso que fez o ministro Abi-Ackel, procurando
encorajar os governadores e a magistratura dos Estados:
Tendo em vista que, nos termos do que tem reiteradamente
decidido o Poder Judiciário, as publicações consideradas
ofensivas à moral e aos bons costumes não estão sujeitas ao
regime de censura prévia, aplicado aos espetáculos e diversões
públicas, por força do disposto no art. 153, § 8º da
Constituição, permito-me encarecer a Vossa Excelência a
expedição de instruções necessárias à Procuradoria Geral do
Estado a fim de que os abusos constatados sejam reprimidos na
forma do que dispõem os art. 17 e 61 da Lei de Imprensa (Lei
nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967). (...) Solicito ainda que,
nos casos em que possa haver dano iminente e irreparável, seja
endereçada a este Ministério representação fundamentada, para
eventual aplicação do disposto no art. 63 da mesma lei, sempre
que a representação indicada no § 1º desse dispositivo possa se
revelar inócua, para os objetivos de preservar a moral pública e
148
O parágrafo único da referida Portaria (nº 319/79-DG, de 10 de abril de 1979) estabelecia que os
“livros e impressos que exteriorizem temas referentes ao sexo, moralidade pública e bons costumes (...)
poderão ser vendidos em livrarias e editoras, sendo vedada sua exposição e venda em bancas de jornais e
revistas”.
68
os bons costumes.
149
Apesar de todas as dificuldades já mencionadas no âmbito da verificação prévia
de livros e revistas, o fim dessa atividade, em 1980, não correspondeu ao término da
atividade censória sobre as diversões públicas. E, nesse sentido, é importante perceber
que a administração de Abi-Ackel voltou-se mais para a censura de outros meios de
comunicação, particularmente a televisão, cuja extraordinária expansão na década
anterior a tinha tornado indubitavelmente o mais importante meio de comunicação do
país.
A evidente importância da TV, aliás, tinha um papel fundamental na tentativa de
legitimação da atividade censória, quanto mais não fosse porque as emissoras existentes
já angariavam uma grande parcela de sua audiência a partir de programas que tocavam
nitidamente em questões comportamentais. Assim, se havia uma parcela da população
disposta a demandar a censura das publicações tidas por imorais, no que concerne às
telenovelas daquela que já tinha se consolidado largamente como a principal rede
televisiva do país (a Rede Globo), tal anseio era ainda maior, trazendo um certo
respaldo às autoridades censórias quando elas argumentavam que a censura tinha apoio
popular. Além disso, naqueles anos de abertura política, quando se esvaía de fato o
espaço para a censura com base nas questões de segurança nacional, a alegação da
defesa da moral e dos bons costumes tornava-se a única saída para a continuidade da
existência da prática censória. E, nesse particular, nada melhor do que as discussões
sobre os costumes da classe média dos centros urbanos do país, material primordial das
telenovelas, ou as roupas ousadas das dançarinas de determinados programas de
auditório, para fortalecer o argumento daqueles que propugnavam por mais censura. Até
porque, ao contrário do cinema, das publicações ou do teatro, a TV “invade os lares,
encontrando a família indefesa, inclusive em horas das mais sagradas, como aquela
reservada ao jantar”.
150
149
Minuta de aviso (nº 400) a ser expedido pelo Ministro da Justiça, Abi-Ackel, aos governadores de
Estado, set. 1980. Ver também a minuta de aviso (nº 402) a ser expedida aos presidentes do Tribunal de
Justiça dos Estados, set. 1980, NO.
150
Essa era uma das justificativas mais recorrentes daqueles setores, governamentais ou não, que
apoiavam ou propugnavam por mais controle censório sobre a programação de televisão.
69
Parte II
Política
70
Capítulo 3
Em defesa da segurança nacional: a censura política
O período que se seguiu ao golpe de 1964 foi marcado por várias formas de
intervenção na produção intelectual, haja vista as perseguições nas universidades, as
suspensões de direitos políticos, as aposentadorias forçadas, as conduções arbitrárias de
inquéritos policiais contra importantes pensadores do país e outras medidas tomadas
nesse plano. O chamado “terrorismo cultural”, praticado, sobretudo, nos primeiros anos
do governo de Castelo Branco, marcando-o e envergonhando-o,
151
quando atividades de
grupos extremistas invadindo peças teatrais, apreendendo e destruindo acintosamente
determinados livros e outras de mesmo tipo foram efetuadas, é uma dimensão
importante que deve ser considerada nos estudos sobre aquele período. Essas ações,
entretanto, não se confundem com as atividades censórias dos anos 1970 que
analisaremos aqui, embora sejam parte de um mesmo processo de recrudescimento do
autoritarismo iniciado com o golpe de 1964.
Conforme procuramos ressaltar no capítulo anterior, foi na década de 1970,
fundamentalmente, que as censuras de publicações melhor se estruturaram, tanto aquela
mais voltada para as questões políticas, quanto a outra, que se conformou em torno da
problemática da defesa da moral e dos bons costumes. Não obstante ambas, por vezes,
tenham se mesclado, particularmente pela utilização da censura de costumes para
interdições de livros considerados atentatórios à segurança nacional, torna-se
fundamental as distinguirmos, pois elas estavam associadas a segmentos diferenciados
dentro dos governos militares. Somente assim poderemos compreender de modo mais
refinado o processo censório daquela conjuntura, demonstrando sua complexidade e
demarcando suas nuances e particularidades.
É nessa perspectiva que analisaremos, nesse capítulo, a censura de caráter
político praticada sobre os livros nos anos 1970. Note-se que os principais
“instrumentos legislativos” que possibilitaram tal prática foram promulgados ainda na
151
VIANA FILHO, Luís. O governo Castelo Branco. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1975.
71
década anterior, diferentemente da censura prévia de costumes,
152
fazendo com que a
interdição de livros por questões políticas, nos termos do processo censório que visamos
analisar, pudesse ter sido efetuada já no final dos anos 1960. Nesse sentido, existem
indícios de que, já no ano de 1969, estava proibida de circular no território nacional a
versão brasileira do livro Mein Kampf, do líder nazista Adolf Hitler.
153
Era com base na
informação sobre o veto da referida obra que o diretor-geral do Departamento de Polícia
Federal visava interditar o filme Confissões de uma espiã nazista, examinado no âmbito
do Serviço de Censura de Diversões Públicas naquele mesmo período.
154
E não foi somente o famoso livro de Hitler que foi censurado por nazismo, pois,
pouco mais de um ano depois, o delegado regional da Polícia Federal na Guanabara
enviava ao ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, a obra intitulada Basta... bastardos, de
Hélio de Almeida.
155
Recomendando ao ministro a proibição da referida publicação, o
documento destacava que o autor demonstrava forte anti-semitismo, dizendo-se
nacional-socialista e culpando a influência norte-americana por diversas das mazelas
existentes no Brasil. No entanto, a falta de estrutura do serviço censório nesses
primeiros anos era grande: o processo do livro estava entre os de diversos outros
encaminhados pelo Departamento de Polícia Federal, os quais ficaram aguardando um
julgamento final no Ministério da Justiça por cerca de cinco anos, “sem qualquer
andamento”.
156
Assim, segundo um assessor daquela pasta, além do processo de Basta...
bastardos, ainda estavam pendentes, no final de 1975, aqueles relativos à apreensão ou
proibição dos seguintes livros: Uns fesceninos, de Oswaldo Lamartine de Farias; Ao
encontro de Jesus (sem autor indicado); Cometa de Halley, de Jesus de Aquino Jayme;
O som dos cavalos selvagens, de Adelmo de Oliveira; Os caminhos do absurdo, de
Eduardo Jordão; Despertamento da graça, de Bartolomeu Ciro Pimentel Quaresma; A
152
Refiro-me à Lei de Imprensa, de 1967, e a Lei de Segurança Nacional, de 1969. No caso da censura de
costumes, a principal norma legislativa que a regulamentou somente foi promulgada em 1970 (decreto-lei
1.077, de 26 de janeiro de 1970).
153
Ofício nº 93/69-SCDP, do diretor-geral do DPF, José Cupertino, ao ministro da Justiça, 10 fev. 1969,
OS.
154
Segundo Laurence Hallewell, o livro ficou proibido durante muito tempo no Brasil por suas idéias
incompatíveis com a opinião pública influente e somente em 1983 foi possível à Editora Moraes lançar
uma edição de Mein Kampf em português. HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história. São
Paulo: EDUSP, 1985. p. 432.
155
Ofício nº 3110, do delegado regional do DPF/GB ao ministro da Justiça, 22 dez. 1970, Fundo “Divisão
de Censura de Diversões Públicas”, Arquivo Nacional, Coordenação Regional do Arquivo Nacional no
Distrito Federal, Seção Censura Prévia, Série Publicações, doravante identificada apenas como “PUB”.
156
Ofício do assessor especial ao chefe do gabinete do Ministério da Justiça, 28 nov. 1975, fl. 1, PUB.
72
jumentinha de Balaão, de Fredy Kunz; Quatro cantos de pavor e alguns poemas
desesperados, de Álvaro Alves de Faria e A grain of mustard seed - The awakening of
the Brazilian Revolution, de Márcio Moreira Alves. Não bastasse a excessiva demora
para sua conclusão, todos esses processos foram devolvidos, naquele mesmo ano, ao
Departamento de Polícia Federal para “reexame e, se for o caso, renovação da
providência cabível”. Já no caso específico de Basta... bastardos, o diretor da DCDP
resolveu, no início de 1976, fazer o processo “aguardar em arquivo”, pois o autor não
teria se manifestado a respeito da obra, “revelando o seu desinteresse”.
157
Além da falta de estrutura existente no campo censório, um outro aspecto
relevante é a diversidade de iniciativas que poderiam originar processos de censura aos
livros tidos como politicamente contrários ao regime instaurado. Apesar da tentativa de
controle por parte dos governos militares, parece bastante evidente que a tarefa de
examinar toda a produção literária da época, com o objetivo de averiguar quais seriam
ou não atentatórias à segurança nacional, era algo praticamente impossível. Assim,
certos setores, como os órgãos de informações, tiveram um papel fundamental na feitura
da censura política, principalmente ao produzirem documentos e pareceres sobre os
livros editados naquele momento, mobilizando um ethos persecutório bastante típico
dos segmentos mais radicais dentro do regime ditatorial. O mesmo – embora com menor
intensidade – foi feito por outros escalões dentro do governo militar que não
propriamente os setores de informações. Essa, de fato, demarca uma das diferenças
fundamentais que deve ser feita entre a censura política de publicações e aquela outra
referida à defesa da moral e dos bons costumes, já que a primeira, além de mais
assistemática, era praticada, em grande medida, a partir das pressões advindas da
comunidade de informações. Retornaremos a esse ponto em diversos momentos,
procurando exemplificar a importância que esses órgãos assumiam nesse plano, muitas
vezes produzindo avaliações tão exageradas que depois seriam contrariadas pelos
técnicos de censura ou, ainda, pela assessoria jurídica do Ministério da Justiça. Analisar
a diferença existente entre os pareceres e as apreciações de livros dos diversos setores
que participavam da censura de publicações praticada nos anos 1970 é também um
ponto importante que procuraremos aprofundar nesse capítulo, pois, como se pode
notar, essa distinção é fundamental para a nossa perspectiva de compreender as
157
Despacho do diretor da DCDP, Rogério Nunes, 9 fev. 1976, PUB.
73
particularidades das instâncias que atuavam nesse plano dentro dos governos militares.
Nesse sentido, vários segmentos se sentiam à vontade para apreciar um
determinado livro e demandar sua proibição aos órgãos censórios. Em 1971, o
presidente da Comissão Nacional de Moral e Civismo produziu um parecer sobre
História Militar do Brasil, do historiador Nelson Werneck Sodré, que foi enviado ao
ministro Alfredo Buzaid, argumentando que ele sintetizava “todas as opiniões expressas
pelos membros do colegiado” daquele órgão. Sobre o livro ele dizia que
não se trata, evidentemente, de um compêndio didático, mas de
uma obra de fundo inteiramente político, expondo pontos de
vista em grande parte negativos, cuja leitura é desaconselhável
à juventude brasileira. Agravando ainda mais, não se pode
deixar de acentuar as bases marxistas do trabalho e a
preocupação do autor em perturbar o exame crítico da
esplendida atuação das Forças Armadas Brasileiras no nosso
processo democrático. Como o objetivo dessa Comissão é
animar, por todos os meios ao seu alcance, a Educação Moral e
Cívica nas Escolas, o presente livro, evidentemente, contraria
aqueles fins, razão porque consideramos de todo
desaconselhável sua difusão.
158
Retransmitindo a avaliação do presidente da CNMC, o Centro de Informações
da Polícia Federal destacou que o livro se encontrava na sétima edição pela Editora
Brasiliense, sendo “de fácil aquisição em qualquer livraria desta capital” (São Paulo) e
“recomendado por professores de várias universidades para a cadeira de Problemas
Brasileiros”.
159
Nelson Werneck Sodré, cujas obras eram tidas como “de cunho
eminentemente doutrinário”, já tinha tido seus direitos políticos cassados e seu livro
apreendido ainda nos primeiros anos do governo Castelo Branco, quando Ênio Silveira
entrou com um mandado de segurança contra o Departamento Federal de Segurança
Pública (em nome da Editora Civilização Brasileira, pela qual o livro tinha sido editado
naquele momento, além de vários outros também apreendidos) demonstrando a clara
ilegalidade daquele ato. Seja como for, treze anos após esse episódio, que datava de
1966,
160
“a Civilização Brasileira pôde publicar uma nova edição de História militar do
158
Encaminhamento nº 505, da DSI/MEC ao ministro da Justiça, 27 jul. 1971. Processo C. 000247/71.
MC/P. Caixa 588.
159
Informação nº 1336, do CI/DPF ao ministro da Justiça, 5 jun.1972. Processo C. 000247/71. MC/P.
Caixa 588.
160
O mandado de segurança da Editora Civilização Brasileira contra o Departamento Federal de
Segurança Pública foi reproduzido na edição de setembro/novembro de 1966 da Revista Civilização
Brasileira.
74
Brasil sem que, aparentemente, obstáculo algum lhe fosse posto”.
161
O processo censório do livro Bar Don Juan, romance político de Antônio
Callado sobre os impasses da chamada “esquerda festiva” do período,
162
nos ajuda a
exemplificar dois traços marcantes da censura então existente: a já mencionada
predominância da origem censória nos órgãos de informações e a tentativa eventual de
utilização da censura de costumes como argumento para interdição de caráter político.
Tendo publicado Quarup ainda em fins dos anos 1960, Antônio Callado, com essa obra,
dava prosseguimento à sua análise dos conflitos existenciais e políticos vivenciados
pelas esquerdas naquela conjuntura, agora centrando-se nos desacertos e desilusões dos
projetos da luta armada. Nesse sentido, a obra de Callado consubstanciou-se a partir
daquele que foi um dos traços característicos da produção literária do período,
destacado pelos diversos autores que nele produziram,
163
qual seja, a necessidade de
referir-se à atualidade política do país, já que os outros planos por meio dos quais se
poderia tentar fazê-lo (como a própria imprensa) se viam mais fortemente controlados
pela tesoura censória. Segundo Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Gonçalves, o
romance de Callado, ao lado de Incidente em Antares, de Érico Veríssimo, foram as
duas grandes obras do início da década de 1970 (ambos de 1971) que já traziam consigo
esses traços que marcariam diversas outras posteriores (a necessidade de “contar a
história, testemunhar, colar-se ao imediato”). Assim, esse impulso em direção à
verossimilhança realista, à observação, ao documento, conviverá, ao longo dos anos
1970, com uma certa tendência à alusão e à transcendência, própria da alegoria.
164
De fato, publicada em março de 1971, a primeira edição da obra de Callado
passou desapercebida para a comunidade de informações, mas sua divulgação pela
imprensa nos meses seguintes chamou logo a atenção desses segmentos. Quanto mais
não fosse, a tiragem inicial de 4.000 exemplares se esgotou em apenas três meses e, em
161
HALLEWELL, Laurence. Op. cit. p. 488.
162
Segundo Walnice Galvão, a expressão “esquerda festiva” foi inventada para caracterizar
pejorativamente parte da esquerda daquela conjuntura histórica. Ver GALVÂO, Walnice Nogueira. As
falas, os silêncios (literatura e imediações: 1964-1988). In: SOSNOWSKY, Saúl, SCHWARTZ, Jorge
(orgs.). Brasil: o trânsito da memória. São Paulo: EDUSP, 1994, p. 187.
163
Ver os depoimentos dos vários escritores que já produziam naquele período em SOSNOWSKY, Saúl,
SCHWARTZ, Jorge (orgs.). Op. cit.
164
HOLLANDA, Heloísa Buarque de; GONÇALVES, Marcos Augusto. Política e literatura: a ficção da
realidade brasileira. In: FREITAS FILHO, Armando. Anos 70: literatura. Rio de Janeiro: Europa, 1979, p.
14-15. Note-se, entretanto, que ambos os autores já tinham demonstrado sua perspectiva de mesclar o
relato ficcional com a história recente do país em romances da década anterior. Ver, por exemplo, o
mencionado Quarup, de Antônio Callado, e Sr. Embaixador, de Érico Veríssimo.
75
meados de junho, o livro já constava como a segunda obra nacional mais vendida no
país.
165
Assim, a perspectiva de lançamento da segunda edição de Bar Don Juan levou o
CISA a encaminhar um documento ao Departamento de Polícia Federal da Guanabara
“no sentido de conseguir dois exemplares para o exame prévio do romance”.
166
Retransmitindo um parecer originado na DOPS/GB, assim a informação daquele órgão
se referia ao livro:
Dito romance Bar Don Juan é o relato das atividades de um
magote de jovens da “esquerda festiva” que, despertados
abruptamente para a realidade dos eventos da Revolução de
1964, aceitam o desafio que ela representa e se empenham na
tomada de novas posições (...). Misturando ficção e realidade,
Callado, mercê de seu estilo vigoroso, empresta a alguns dos
personagens do livro uma auréola lírica de heroísmo que bem
pode transformá-los em símbolos: a morte de Guevara no
sertão boliviano e o comportamento do “Che” ante seus
comandados dão ao chefe rebelde uma nova dimensão. Da
mesma forma, a queda de companheiros em entreveros com o
exército e a polícia já no final do livro, com a exaltação do
jovem sobrevivente que promete prosseguir na luta, no ideal
revolucionário.
Baseado nesse documento, a delegacia regional do DPF/GB apreendeu dois
exemplares do romance no depósito da Editora Civilização Brasileira para a verificação
censória, gerando a indignação do seu então diretor, Ênio Silveira. Em carta ao então
delegado regional da Guanabara, Ênio reclamava do “excesso de zelo das autoridades” e
mencionava a “estranheza” causada pela referida apreensão “uma vez que esse romance,
de um dos mais conhecidos nomes de nossa literatura, não contém matéria atentatória à
moral e aos bons costumes”.
167
Não recebendo nenhuma resposta, o diretor daquela
editora entrou com um mandado de segurança contra o ato do delegado, alegando,
inclusive, a perda financeira que poderia advir de eventual proibição. O livro de Callado
parece ter sofrido, nesse sentido, uma espécie de “esfriamento”, ou seja, uma demora
proposital da resposta censória com vistas a diminuir seu impacto editorial. Após
despacho do ministro Buzaid, o processo passou ainda pela análise do chefe do gabinete
do diretor-geral do DPF de São Paulo, José Fraga Teixeira de Carvalho, que produziu
um parecer ainda mais contundente do que aquele dos órgãos de informações.
165
Os best-sellers da quinzena. O Globo, Rio de Janeiro, 17 jun. 1977. Processo C. 003459/72. MC/P,
Caixa 590.
166
Informação nº 493 do CISA ao DPF, 17 ago. 1971. Processo C. 003459/72. MC/P, Caixa 590.
167
Carta de Ênio Silveira ao delegado regional do DPF/GB. Processo C. 003459/72. MC/P, Caixa 590.
76
Segundo o chefe do gabinete, embora não se possa “deixar de reconhecer a
existência – aqui e ali – de algumas passagens de inequívoco valor artístico-literário”, o
livro seria uma “obra comprometida”, marcada por apelar “para o sentimentalismo
malsão, para o erotismo e para o escabroso, para a desmoralização da polícia, para o
achincalhe de valores caríssimos não só ao povo brasileiro como a toda a civilização e
cultura do mundo ocidental”.
168
Assim, além de colocar várias “palavras de baixo calão”
na boca de seus personagens, Callado se deleitaria em pôr “as diversas figuras da trama
a criticarem desapiedadamente a polícia, a ofenderem a Deus e aos santos, ao
praticarem e contemplarem cenas de erotismo e amor carnal, de bestialidade, de
depravação sexual, de violência, de seqüestro”. Mais surpreendente do que essas
passagens bastante radicais do parecer do chefe de gabinete, no entanto, é a sua
conclusão sobre o romance:
E qual, enfim, a conclusão que se extrai de todo o enredo? Ao
que se afigura, precisamente aquela que o autor da apreciação
crítica inserta na aba do livro aponta e vazada nesses termos:
“Boas intenções, análises empíricas, revoltas pessoais não
resultam em transformação do quadro político”. (...) O romance
de Antônio Callado encerra, assim, um verdadeiro convite à
tomada de “certas posições” (se é que não contém instrução a
respeito). Enquadra-se, destarte, entre os livros que podem pôr
em perigo a segurança nacional.(...) Por outro lado, em que
pese a fama do autor, em iminente o lançamento de traduções
nos Estados Unidos, França, Itália, Espanha, Alemanha e
Suécia, em que pese a acolhida do público brasileiro à primeira
edição, pode a obra incluir-se entre as que atentam contra a
moral e os bons costumes.
169
Como se pode notar, a apreciação do chefe de gabinete era frágil e enviesada.
Além disso, salta aos olhos a perspectiva de utilizar a censura da moral e dos bons
costumes para a interdição de uma obra considerada atentatória à segurança nacional e a
preocupação com a repercussão do ato proibitório. Aliás, esse último aspecto, conforme
procuraremos demonstrar ao longo desse texto, foi o principal motivo que levou a
censura a recuar no momento de decidir pela interdição de várias importantes
publicações do período. Até porque, conforme destacamos anteriormente, a censura
política, não obstante essas artimanhas do uso da censura de costumes, de acordo com
168
Parecer do chefe do gabinete do diretor-geral do DPF de São Paulo, 22 fev. 1972. Processo C.
003459/72. MC/P, Caixa 590.
169
Ibidem, fl. 20.
77
as normas legislativas então existentes, somente poderia ser feita a posteriori (além, é
claro, de ter de preencher os requisitos estipulados na LSN).
170
Ainda que alguns dos processos de livros que pesquisamos não contenham
desfecho final ou o motivo principal que levou o Ministério da Justiça a arquivá-los,
eles são importantes para que possamos perceber o monitoramento das publicações
editadas no país.
171
Sempre atentos, os órgãos de informações tiveram um papel
importante nesse tipo de censura, como aconteceu, entre vários outros, com dois livros
de Rosemarie Muraro, que foram interditados a partir de uma avaliação inicial do
CIE.
172
Mas, antes de destacarmos os pormenores desse caso, vale ressaltar uma questão
importante quanto à censura da ditadura militar: a da existência ou não de critérios
consistentes para a prática censória Não obstante seja necessária uma análise mais
específica sobre cada um dos meios de expressão cultural atingidos pela tesoura
censória, pois os critérios variavam de acordo com eles, ainda assim acreditamos que
nossa análise pode ajudar no encadeamento de uma visão mais refinada sobre essa
problemática.
No caso da censura da imprensa, por exemplo, alguns trabalhos têm se esforçado
para destacar que a prática censória não se deu de maneira completamente aleatória e
assistemática, dependendo somente da vontade individual deste ou daquele censor.
173
Talvez partindo dessa perspectiva pioneira de Maria Aparecida de Aquino, a maioria
dos autores que trataram da questão mais recentemente, mesmo no caso das diversões
públicas, também procurou acentuar uma certa racionalidade e objetividade da censura
do período. Beatriz Kushnir, por exemplo, se esforçou para demonstrar que a censura da
imprensa não era “caótica”, nem “acéfala” como, segundo ela, muitas análises teriam
mencionado, e que, no campo das diversões públicas, todos os vetos censórios estavam
amparados numa determinada norma legislativa.
174
Preocupada em retirar dos censores
a pecha de “bilontras”, Kushnir destacou, ainda, que os onze técnicos de censura por ela
170
Ver p. 47.
171
Não foi encontrado, nos acervos documentais aqui utilizados, o desfecho final de alguns processos
censórios, sobretudo no caso daqueles livros encaminhados para o exame da comissão criada pela Portaria
Confidencial nº 903, de 14 de dezembro de 1977. Sobre esta última ver p. 59.
172
Informação nº 1980 do CIE, 31 jul. 1972. Processo C. 61402/72. MC/P. Caixa 592/05258.
173
AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, imprensa, estado autoritário, 1968-78: o exercício cotidiano
da dominação e da resistência; O Estado deo Paulo e Movimento. São Paulo: EDUSC, 1999.
174
A autora refere-se ao decreto nº 21.493, de 24 de janeiro de 1946. KUSHNIR, Beatriz. Cães de
guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004, p.
118.
78
entrevistados sabiam de cor o texto desse decreto, citando-o “no artigo ou parágrafo
adequado para cada situação”.
175
Também Inimá Simões, que analisou a censura
cinematográfica do período, critica a concepção de que a censura tinha um
comportamento “errático”, “sem critérios”, e destaca a existência de um “claro projeto
de controle da sociedade” que impediria ao censor “escrever o que quisesse, proibindo
hoje e liberando amanhã com critérios oportunistas e argumentação de botequim”.
176
Alexandre Ayub Stephanou, por outro lado, nos falou de uma crescente racionalização
dos critérios censórios ao longo do regime, mencionando um projeto de “modernização
burocrática” que, “embora tenha sido atravessado por diversos impedimentos”, fez com
que a censura, em vários momentos, atuasse de “maneira técnica, eficiente e
moderna”.
177
Creuza Berg, por sua vez, procurou destacar a objetividade dos critérios
censórios com base na doutrina de segurança nacional, ideologia que, segundo ela,
amparou a prática da censura durante toda a ditadura militar e, também, no que ela
chamou de “militarização” do censor, o qual teria ficado cada vez mais apegado a
normas impessoais que independeriam de uma análise mais crítica e apurada.
178
Destoando dessa tendência, o trabalho de Paulo César de Araújo sobre a censura
musical do período procurou ressaltar uma total falta de critérios, pois “os censores
tinham na época a liberdade de colocarem o julgamento deles, eles decidiam e
interpretavam da maneira que eles achavam que deviam interpretar”.
179
De nossa parte, achamos que não podemos deixar de considerar as várias
tentativas de criar critérios mais consistentes para a prática censória, desde a criação de
cursos de aperfeiçoamento para os censores, até os esforços para a promulgação de uma
nova lei de censura (além das várias portarias editadas ao longo dos anos 1970 e 1980
tentando normatizar a atividade dos censores). Porém, isso nunca foi o bastante para
podermos dizer que as duas censuras do período se baseavam em critérios sólidos e
uniformes. Em determinados planos, como o da censura política de livros, que tinha um
funcionamento mais errático, esse aspecto é mais claro, havendo uma grande
175
Ibidem, p. 23-24 e 101.
176
SIMÕES, Inimá. Roteiro da Intolerância: a censura cinematográfica no Brasil. São Paulo: Editora do
SENAC, 1999, p. 16.
177
STEPHANOU, Alexandre Ayub. Censura no Regime Militar e militarização das artes. Porto Alegre:
Edipucrs, 2001, p. 13.
178
BERG, Creuza de Oliveira. Os mecanismos do silêncio: expressões artísticas e censura no regime
militar (1964-1984). São Carlos: EdUFSCar, 2002.
179
ARAÚJO, Paulo César de. Eu não sou cachorro não: música popular cafona e ditadura militar. Rio de
Janeiro: Record, 2003, p. 89.
79
discrepância nas avaliações dos vários setores dentro do governo militar pelos quais
passavam as obras censuradas. Por outro lado, se isso é bastante claro no caso da
censura política de livros, no caso daquela voltada aos mesmos por questões morais,
conforme analisaremos no capítulo 5, os pareceres de censura, na maioria das vezes,
também eram feitos a partir de critérios pessoais de modo bastante variável. Nesse
sentido, fica muito difícil acreditar que qualquer uma das duas censuras conseguisse
atuar de modo razoavelmente uniforme. No caso da censura política de livros, isso se
somou à precariedade estrutural daquela prática, gerando uma grande quantidade de
equívocos. Havia ainda, naturalmente, a própria subjetividade inerente ao exame de
qualquer produção cultural, que também pode ser percebida nos pareceres de censura e
acabava, muitas vezes, não sendo minorada pela precariedade dos critérios existentes.
De fato, as contradições existentes na análise de livros por matéria política e as
atitudes erráticas adotadas podem ser vistos no caso de dois livros de Rosemarie
Muraro. Segundo uma informação do CIE, de 1972, o livro A mulher na construção do
mundo moderno, da referida autora, estava “eivado de propaganda comunista, de
incitamento e de apelos à subversão”.
180
Procurando ressaltar o elevado “grau de
subversão contido no livro”, o documento daquele órgão transcrevia diversas passagens,
destacando a necessidade de uma “solução imediata” e a possibilidade do seu
enquadramento na LSN. Com base nesse documento (e não numa análise de fato da
referida obra), foi elaborado o primeiro parecer do assistente jurídico do Ministério da
Justiça, destacando que os trechos assinalados pelo CIE evidenciavam,
“indubitavelmente”, “um incitamento à subversão da ordem político-social do país e
[que], por conseguinte, medidas que evitem a proliferação de tais idéias devem ser
tomadas”. Nesse sentido, o consultor mencionava, ainda, a necessidade de que “todo o
conteúdo” do referido livro, assim como da obra Automação e o futuro do homem, da
mesma autora, fossem encaminhados ao Ministério da Justiça, pois, “se for o caso,
através de um único ato baixado pelo Excelentíssimo Senhor Ministro da Justiça,
determinar-se-á à apreensão de ambos os livros”.
181
Tempos depois, o mesmo assistente
jurídico foi novamente chamado a opinar sobre as duas obras que, segundo ele,
180
Informação nº 1980 do CIE, 31 jul. 1972. Processo C. 61402/72. MC/P. Caixa 592/05258.
181
Parecer CJ 231/72 do assistente jurídico, Paulo de Carvalho Vianna, 21 nov. 1972. Processo C.
61402/72. MC/P. Caixa 592/05258.
80
não procuram outra coisa senão lançar no espírito do leitor a
idéia de subversão da ordem no país. (...) No primeiro livro, o
CIE (...) somente transcreveu os trechos mais contundentes,
pois, na realidade, todo o seu conteúdo é nitidamente de
propaganda contrária à forma de governo constituída no Brasil.
Já quanto à segunda publicação, ou seja, Automação e o futuro
do homem, a autora procurou encobrir ou, mesmo, disfarçar seu
objetivo, mas, em final, ou mais precisamente, no Capítulo XI,
aproveitando-se do tema que desenvolvera, levanta todo o véu
e revela de maneira clara e irretorquível o sentido que
pretendeu dar ao livro: fazer propaganda subversiva.
182
Depois de aprovar o parecer, o consultor jurídico Hélio Fonseca
183
aproveitou
para propor a abertura de um inquérito policial contra a autora e, em outubro de 1975,
foi baixada uma portaria assinada por Armando Falcão determinando a proibição e a
apreensão de ambos os livros. Vetadas por serem tidas como contrárias à segurança
nacional, as obras de Rosemarie Muraro foram citadas no ato proibitório como
atentatórias à moral e aos bons costumes,
184
gerando a indignação daquela autora, que
requereu ao ministro da Justiça uma revisão do processo censório. Ficou evidente, a
partir de então, o descabimento da aplicação da norma legislativa que amparava a
censura de costumes, o que fez o processo voltar à consultoria jurídica. Dessa vez, ao
fazer uma nova análise do livro, o assessor expôs um ponto de vista praticamente
contrário ao que destacamos anteriormente:
Tanto a obra analisada naquele parecer, quanto as que se
encontram em exame, situam-se no plano de mera exposição de
doutrinas e idéias, sem incitamentos à guerra subversiva ou
psicológica adversa (...). Na obra A mulher na construção do
mundo futuro, única, aliás, cujo texto foi examinado para efeito
de proibição, observam-se passagens que, a princípio, podem
impor à autora a coima de comunista. Examinados, porém,
esses textos dentro do contexto em que se inserem, verificar-se-
á que não tem a menor procedência a acusação. A escritora
revela-se, ao invés, uma autêntica contestadora do regime
adotado na União Soviética e demais países do mundo
comunista. (...) Do outro livro da mesma escritora, indicado à
proibição, não há a menor menção a textos seus que possam
configurar crime contra a segurança nacional. A sugestão de
proibi-lo é uma decorrência da apreciação do trabalho anterior
182
Parecer CJ 124/73, do assistente jurídico, Paulo de Carvalho Vianna, 27 jun. 1973. Processo C.
61402/72. MC/P. Caixa 592/05258.
183
Hélio Fonseca foi o consultor jurídico que sugeriu o “Plano para um combate sistemático contra as
publicações obscenas e subversivas” analisado no capítulo 2.
184
As duas obras foram enquadradas no decreto-lei nº 1.077/70, que regulamentava a censura de
costumes, e não na Lei de Segurança Nacional de 1969, como sugeriam os pareceres.
81
que se refletiu sobre ele.
185
Não bastasse a discrepância dos pareceres quanto à postura “subversiva” da
autora, que passa de propagandista do regime cubano à contestadora do comunismo
soviético, o documento da assessoria jurídica, em certos momentos, deixava
transparecer uma certa simpatia pelas obras em questão. Assim, depois de procurar
demonstrar que a interpretação do CIE sobre trechos isolados do livro eram
equivocadas, o assessor ressaltava que Automação e o futuro do homem não se voltava
para as doutrinas econômicas do presente, “senão indaga como será a sociedade da era
da cibernética, com a máquina substituindo o homem no trabalho, propiciando-lhe mais
bem-estar e minorando, ou eliminando de vez, os seus sofrimentos”.
186
A mulher na
construção do mundo moderno “é um exame sereno e isento da realidade da mulher na
atualidade, com indagações quanto ao seu papel no futuro da humanidade, a necessidade
de sua participação cada vez mais ativa na evolução do mundo”.
187
Por outro lado, o
parecerista mencionava também que o texto do primeiro livro citado estava “num nível
acessível apenas aos versados em ciências sociais, sem possibilidade de consumo da
grande massa”,
188
demonstrando a consideração, para efeitos censórios, do possível
impacto dos livros analisados. Tendo o parecer sido aprovado pelo consultor jurídico,
foi feita, em abril de 1976 (note-se que o processo começou em 1972), a minuta do
despacho de “desfazimento do ato ministerial” que proibiu o livro, pois “a informação
do CIE foi calcada em trechos isolados do livro”, apresentando “séria distorção da
realidade editorial”.
189
Como se pode notar, tal caso, ao lado de outros que iremos citar, ilustra as
contradições existentes na censura política de livros dos anos 1970. A falta de critérios
sólidos parecia atingir a atividade censória de um modo geral, mas é importante
considerar as especificidades da censura de livros, sobretudo no que concerne àquela
que recaía sobre as obras tidas como atentatórias à segurança nacional, pois, nesse
plano, a estrutura censória parecia mais precária, conforme já procuramos demonstrar.
185
Parecer nº 73/76, do assessor Edelberto Luiz da Silva, 15 mar. 1976. Processo C. 61402/72. MC/P.
Caixa 592/05258, fl. 10-19.
186
Ibidem, fl. 18.
187
Ibidem, fl. 17.
188
Ibidem, fl. 18.
189
Documento assinado pelo assessor, Wesson Alves Pinheiro, enviado ao chefe do gabinete, 12 abr.
1976. Processo C. 61402/72. MC/P. Caixa 592/05258, fl. 10-19.
82
Nesse caso, os livros passavam pela análise de setores com percepções diferenciadas
sobre o devido alcance da repressão ou sobre as atitudes mais ou menos arbitrárias que
deveriam ser tomadas no âmbito do Ministério da Justiça. Não se pode esquecer, aliás,
que, tanto no caso da censura de costumes quanto naquela de caráter político, o
julgamento final sobre o veto ou não de determinado livro cabia somente ao ministro da
Justiça. Entretanto, se é certo que a análise inicial das publicações que tratavam de
temas “referentes ao sexo e à moralidade pública” deveria ser feita pela Divisão de
Censura de Diversões Públicas (que encaminhava os pareceres ao Ministério da Justiça
com a sugestão da interdição ou liberação das mesmas), no que diz respeito à censura
política, tal questão ficava mais difusa, pois esse órgão não tinha competência para atuar
sobre a matéria.
Aliás, a documentação existente sobre a censura do período, por vezes, deixa
dúvidas quanto à própria atuação do Departamento de Polícia Federal no âmbito da
censura política de livros, inclusive pela sua quase sempre reiterada falta de quadros
para a feitura dos pareceres censórios. Desse modo, em 1971, o diretor-geral do DPF
encaminhava ao ministro da Justiça um livro de Amadeu Carmello que tratava de
matéria política, pois “este Departamento não dispõe de pessoal especializado para
proceder ao julgamento solicitado pelo autor”.
190
No próprio processo censório do livro
de Rosemarie Muraro, o Centro de Informações do DPF destacou que não cabiam
providências daquele órgão quanto à apreensão e o enquadramento do mesmo na LSN,
pois tal departamento “só interfere, quanto a publicações, em matéria infringente à
moral e aos bons costumes”.
191
Por sua vez, quando do processo censório do livro Feliz
ano novo, de Rubem Fonseca, o diretor-geral do DPF argumentou que “o controle e a
apreensão de livros que, por seu conteúdo político, atentam contra o regime, torna-se
difícil pelo DPF, por ser da competência do Ministério da Justiça, sem ser,
especificamente, atribuição deste Departamento”.
192
De fato, como procuramos ressaltar no capítulo anterior, a legislação da censura
prévia resguardava ao DPF (através da DCDP) a verificação apenas das publicações que
tratavam de temas referentes aos bons costumes, excluindo aquelas “de caráter
190
Ofício nº 055/71-SEC/PFS do diretor-geral do DPF, Walter Pires de Carvalho e Albuquerque, ao
ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, 23 abr. 1971, PUB.
191
Informação nº 2502 do Centro de Informações do Departamento de Polícia Federal, 4 set. 1972.
Processo C. 61402/72. MC/P. Caixa 592/05258.
192
Ofício nº 591/Séc/Gab, do diretor-geral do DPF ao ministro da Justiça, 27 dez. 1976, OC.
83
estritamente filosófico, científico e didático”.
193
Foi nesse sentido que o consultor
jurídico do Ministério da Justiça opinou, em 1972, pela liberação do livro Os dois
mundos das três Américas, de Jânio Quadros, pois “a mera análise perfunctória do
trabalho (...) revela o mesmo versar sobre temas da História, da Sociologia, da Política e
da Economia”.
194
E, como a censura de caráter potico (com base na LSN ou na Lei de
Imprensa) só poderia ser efetivada a posteriori, o consultor complementava: “o autor,
todavia, por força da problemática que aborda, onda há inclusive questões brasileiras,
será responsável, nos termos da lei, por eventuais violações de dispositivos penais”. O
livro, aliás, somente deve ter chegado à DCDP por causa da aversão que alguns setores
dentro dos governos militares tinham à figura de Jânio Quadros, conforme destacou
José de Barros Martins.
195
A consideração dessa questão, entretanto, não pode encobrir uma outra também
importante: se, ao SCDP, não cabia fazer a censura política de livros, tal fato não
impediu que uma outra instância dentro do próprio DPF se encarregasse dessa atividade.
Além disso, a inexistência de base legal para a censura de obras de “caráter filosófico,
científico e didático” também não impossibilitou a sua prática no período aqui estudado.
Durante boa parte dos anos 1970, os livros de natureza política foram encaminhados
para a análise do Setor de Imprensa do Gabinete do diretor-geral do Departamento de
Polícia Federal, o qual foi igualmente o responsável pela censura da chamada “imprensa
escrita, falada e televisada”. Era de lá, portanto, que saíam as “proibições
determinadas”, ou os chamados “bilhetinhos”, contendo os assuntos proibidos de serem
tratados pelo jornalismo político do período.
Nesse sentido, ao contrário do que já se afirmou, a sigla SIGAB, facilmente
encontrada em vários documentos censórios dos anos 1970, jamais designou um
“Serviço de Informações do Gabinete” e, muito menos, este serviço esteve “vinculado
diretamente ao gabinete do ministro da Justiça”.
196
Esse tipo de incompreensão, não
obstante possa parecer uma questão irrelevante, de simples nomenclatura, está
relacionada com uma série de confusões que perpassam a historiografia nesse campo,
193
Art. 3º da Portaria nº 209, baixada pelo diretor-geral do DPF em 16 de abril de 1973.
194
Parecer 73/72 do consultor jurídico, Ronaldo Rebello de Britto Poletti, ao ministro da Justiça, 18 maio
1972, PUB.
195
HALLEWELL, Laurence. Op. cit. p. 494.
196
Ver KUSHNIR, Beatriz. Op. cit. p. 18-19 e 187. Chamada Setor de Imprensa do Gabinete, a instância
responsável pela censura política de publicações e da imprensa fazia parte da estrutura do gabinete do
diretor-geral do DPF.
84
sobretudo pelo caráter sigiloso de certas instâncias que praticavam as atividades mais
tipicamente ligadas à repressão. Novamente, cabe destacar aqui, portanto, a necessidade
de diferenciarmos essas “agências” que existiam dentro do estado naquela conjuntura:
enquanto algumas atuavam a partir de uma espécie de tradição de mais longa duração de
práticas assemelhadas na história brasileira, como a DCDP com a censura de costumes,
outras eram mais tipicamente relacionadas ao regime ditatorial implantado no Brasil a
partir do golpe de 1964, como o SIGAB com a censura política de publicações e da
imprensa. A primeira forma de censura possuía um maior respaldo popular e não
precisava ser escamoteada pelos governos militares, embora tenha sido utilizada, por
diversas vezes, para encobrir a censura política. Já a segunda obedecia a diretrizes
sigilosas, de caráter “revolucionário” e, por ser nitidamente arbitrária, não podia sequer
ser conhecida pela população de um modo geral.
Portanto, muitos dos livros que tiveram que passar pelo processo censório foram
encaminhados ao Setor de Imprensa do Gabinete do Diretor-Geral do DPF para que o
mesmo se pronunciasse sobre a matéria. Foi assim com os livros The New Left: the anti-
industrial revolution, de Ayn Rand, Who is Ayn Rand?, de Nathaniel e Barbara Braden,
e Alternative to Armageddon, de Yale-White-Von Manteuffel, encaminhados ao chefe
daquele setor pala DOPS em 1972.
197
O mesmo se deu com os artigos do jornal Última
Hora, intitulados “Coluna do meio” e “Tia Glorinha”, alguns anos mais tarde.
198
Uma
evidência mais forte de que tal tipo de censura não era abarcada pelo SCDP, mas sim
pelo SIGAB, é que alguns processos de censura política de livros eram remetidos
diretamente daquela primeira instância censória ao mesmo. Assim, a obra Ten poems
and lyrics by Mao Tsé-tung, após ter chegado à DCDP por meio da Alfândega, foi
encaminhada ao SIGAB, “em face da natureza do assunto”.
199
O mesmo se deu com
Tutti facisti, de Cláudio Quarantotto, em que o diretor da DCDP também solicitava ao
SIGAB “o obséquio de seu pronunciamento, face à natureza do assunto”.
200
Já os
pareceres dos livros Diccionário del anarquismo, de José Peirats, Diccionário de la
Falange, de Eduardo Alvarez Puga, Jaume Carner, de Josep M. Poblet, Petita História
197
Ofício nº 09/72-SEC/DOPS/CONF do diretor da DOPS ao Setor de Imprensa do Gabinete do DPF, 17
mar. 1972, PUB.
198
Ofício nº 2.171/76-GAB/SR/SP, do Superintendente Regional do DPF/SP ao diretor-geral do DPF, de
25 maio 1976, PUB.
199
Ofício nº 055/76-SIGAB/DG/DPF do chefe do SIGAB ao diretor-geral do DPF, 10 ago. 1976, PUB.
200
Ofício nº 367 do Superintendente Regional do DPF/ES ao diretor da DCDP, 20 jul. 1976, PUB.
85
de la Guerra Civil, de Joan Sariol Badia e Desde la cola del dragon, de Jorge Edwards,
foram enviados àquele setor “por tratar-se de assunto político”, após os técnicos de
censura da DCDP terem “concluído pela inexistência de matéria infringente à legislação
censória” (leia-se contrária à moral e aos bons costumes).
201
Ao que tudo indica, alguns dos técnicos de censura que trabalhavam no SCDP
também foram chamados para dar seus pareceres sobre publicações de natureza política
no SIGAB. Segundo o diretor-geral do DPF, esse órgão policial ainda precisou, diversas
vezes, contratar pessoas de fora do serviço público para atuar nesse sentido, tanto no
que concerne à censura de costumes, quanto àquela eminentemente política.
202
Provavelmente pela falta de quadros, e também pela estrutura mais precária desse tipo
de censura, a verificação de livros obedecia a procedimentos mais informais, sendo
vários os casos em que o julgamento de uma determinada obra foi efetuado por apenas
um censor. Embora o procedimento padrão (pelo menos, como acontecia para os filmes,
peças e outras produções culturais do período) demandasse a análise de cerca de três
técnicos de censura, no âmbito das publicações, esse tipo de exigência foi várias vezes
desconsiderada, chegando ao ponto de termos uma obra censurada a partir apenas da
verificação de uma outra do mesmo autor (como aconteceu com o livro de Rosemarie
Muraro). Por outro lado, a fragilidade legal da censura política de livros fez com que
grande parte dos processos censórios tivessem que passar pela análise da consultoria
jurídica do Ministério da Justiça, gerando pareceres que, em muitos casos, contradiziam
a interpretação esboçada pelos técnicos de censura. Mais facilmente contestada na
Justiça, a censura política de livros chegou, até mesmo, a gerar grandes e
pormenorizados estudos dos assistentes jurídicos do ministro Armando Falcão,
objetivando avaliar a viabilidade do ato proibitório.
3.1. O período de Armando Falcão
Os processos censórios que vimos destacando até aqui se iniciaram,
principalmente, no período do mandato de Alfredo Buzaid no Ministério da Justiça,
201
Anotação do diretor-geral do DPF no ofício nº 717/77-SCDP/SR/RJ, do chefe do SCDP ao diretor da
DCDP, 27 jul. 1977, PUB.
202
Idem.
86
quando a censura política de livros era mais pontual e a atividade dos órgãos de
informações nesse sentido, menos sistemática. Como já mencionamos, foi a partir do
início da gestão de Armando Falcão naquela pasta, que tivemos uma atividade mais
intensa visando proibir aqueles livros tidos como subversivos ou contrários à segurança
nacional, assim como foi também no período de Falcão que tivemos mais publicações
censuradas por questões morais. A própria postura autoritária do ministro e sua
proximidade dos setores de informações foram, certamente, aspectos que muito
contribuíram para esse tipo de mudança, quanto mais não fosse, termos tido diversas
iniciativas no sentido de melhor estruturar esse tipo de serviço durante os primeiros
anos do governo Geisel.
Nesse sentido, entre 1974 e 1979, passaram pela estrutura censória ou, ao
menos, pelo monitoramento dos órgãos de informações, as obras de escritores
importantes no cenário literário brasileiro como Rubem Fonseca, Renato Tapajós, Alex
Polari, Carlos Heitor Cony, José Louzeiro, Ignácio Loyola Brandão, Dalton Trevisan,
Hamilton Almeida Filho, Augusto Boal, Thiago de Melo, Luiz Fernando Emediato,
dentre outros. No plano dos estudos de “caráter acadêmico”, o mesmo se deu com livros
de autores como Fernando Henrique Cardoso, Caio Prado Júnior, Alfred Stepan, Nelson
Werneck Sodré, Leandro Konder, Márcio Moreira Alves, Fausto Guimarães Cupertin,
Kurt Rudolf Mirow, Isaac Deutscher e Marta Harnecker. E, como não poderia deixar de
ser, livros de autores como Marx, Engels, Bukharin, Lênin, Trotski ou de outros
“intelectuais marxistas” foram também bastante visados. Procuraremos, ao longo desse
texto, alternar a análise das questões historiográficas importantes com relação à temática
da censura de livros com uma pequena amostragem das concepções que amparavam os
documentos produzidos sobre essas obras, dando uma ênfase especial, nesse último
caso, às diferenças entre os pareceres das diversas instâncias que, de algum modo,
participavam do processo censório no período (os órgãos de informações, os técnicos de
censura e a consultoria jurídica do Ministério da Justiça).
De fato, o Departamento de Polícia Federal parecia tratar com uma certa
ambigüidade as obras que não estavam adstritas à verificação prévia, ora mencionando a
inexistência de amparo legal à sua proibição, ora procurando colaborar, de modo
sigiloso, na possibilidade de uma interdição de caráter político. No que concerne às
chamadas “publicações e exteriorizações de caráter filosófico, científico e didático”, tal
87
aspecto parece significativo, sobretudo depois de iniciado o governo Geisel, quando
temos um número maior de indícios da atuação da censura nesse segundo sentido.
Quando da análise do livro Princípios fundamentais de Filosofia, de Georges Politzer,
por exemplo, o diretor-geral do DPF dirigia-se ao ministro Falcão ressaltando que o
livro, “como indica o próprio título, estaria, certamente, dispensado de verificação, mas
como se trata de trabalho inteiramente consagrado à filosofia marxista (...), submeto-o à
superior consideração de Vossa Excelência”.
203
Já os órgãos de informações, como era
de se esperar, desconsideravam cabalmente qualquer questão legal, demandando, a
partir de pareceres nitidamente enviesados, a proibição de livros didáticos, como Brasil.
História, de Ricardo Frota de Albuquerque Maranhão, Antônio Mendes de Almeida
Júnior e Luiz Dagoberto de Aguirre Roncari:
A obra em apreço, em que pese a sua excelente paginação e
apresentação gráfica, é escrita com a visão distorcida dos
esquerdistas, tudo levando a crer que se insere no contexto de
“revisionismo” marxista, com a possibilidade de graves
prejuízos para a formação dos estudantes brasileiros. Tais
livros, nas mãos de professores esquerdistas, se constituirão,
por certo, em arma cultural negativa de inestimável valor para
a doutrinação dos alunos que, pela sua natural imaturidade, não
perceberão as distorções e os enfoques parciais da referida
publicação. (...) O CIE julga que, pelas observações expostas e
por outras que por certo advirão de um exame mais completo
da obra, a citada publicação deve ter sua circulação proibida,
sugerindo que, para isso, a análise da mesma seja feita pelos
órgãos competentes.
204
Entre os aspectos tidos como negativos e de caráter “esquerdista” no livro, o
documento originado no CIE destacava: a “desvalorização genérica dos heróis
nacionais”; a “crítica à atuação do Exército ou Guarda Nacional” (tidos como “um
braço armado do poder”); a “desvalorização da atuação de Caxias” (“visto como um
chefe da ‘repressão”, e não se mencionando “suas reconhecidas qualidades de chefe
militar e verdadeiro pacificador”); “a exploração do tema da escravidão”; a “distorção
da apreciação sobre a capacidade de trabalho do índio brasileiro” (“na tentativa de
favorecer a tese da ‘primeira república comunista’ nas missões”); e o fato da “traição de
Calabar” não ser tratada como uma atividade em favor dos invasores e, sim,
“apresentada como normal e até positiva”, enfoque que estaria “em consonância com o
203
Ofício nº 463/74-DCDP, do diretor-geral do DPF ao ministro da Justiça, 14 maio 1974, OC.
204
Informação nº 748 da DSI/MJ, 18 ago. 1977. Processo C. 100606/77. MC/P. Caixa 613/06279.
88
que Chico Buarque e Ruy Guerra pretendiam apresentar na peça teatral de mesmo
nome”.
205
Por outro lado, a demanda pela censura de livros que fugiam visivelmente da
alçada censória não advinha somente dos órgãos de informações, dada a já mencionada
profusão de iniciativas que poderiam gerar um processo de censura por motivação
política no período.
Nesse sentido, em 1977, o presidente da Comissão Nacional de Moral e Civismo
se dirigia ao ministro da Educação relatando que “as disposições constitucionais de
liberdade de pensamento foram desafiadas abertamente por dois autores”, um na “área
filosófica” e outro “na área didática”, ambos com livros “versando a respectiva matéria
pelo prisma do marxismo e do materialismo histórico”.
206
Eram eles, Carlos Henrique
de Escobar, com o livro As Ciências e a Filosofia, e C. H. Porto Carreiro, com
Introdução à Ciência do Direito. O curioso, no entanto, era que o processo censório do
período era tão difuso que o próprio presidente do CNMC, ao invés de se remeter ao
Ministério da Justiça (responsável pela censura), se dirigiu ao ministro da Educação,
aproveitando para felicitá-lo pela interdição de Feliz ano novo, de Rubem Fonseca, tido
como uma “obra realmente representativa da obscenidade literária em nosso país”.
Depois de enviado à secretaria geral do Ministério da Justiça, o processo foi
encaminhado para o parecer de Solange Hernandez, assessora do SIGAB de São Paulo
que, mais tarde, se tornaria a diretora da Divisão de Censura de Diversões Públicas.
Segundo sua análise do livro As Ciências e a Filosofia: “o autor, marxista, baseando-se,
principalmente em Althusser e, por vezes, socorrendo-se no pensamento de Lênin,
procura ajustar alguns conceitos e pensamentos filosóficos à luz da filosofia moldada
segundo princípios marxistas”.
207
Apesar disto, Solange sugere a liberação da obra,
pois, “em conseqüência de sua alta especialização, filosofia pura, se destina a um
público muito restrito, sem possibilidade de alcançar o leitor comum e, possivelmente,
de pouca aceitação, mesmo entre estudantes universitários”. O parecer foi aprovado
pelo diretor-geral do DPF, que também aconselhou a não proibição do livro devido “sua
205
Ibidem, fl. 2-3.
206
Ofício nº 663 do secretário geral do MEC ao secretário geral do Ministério da Justiça, 24 mar. 1977.
Processo C. 100158/77. MC/P. Caixa 608/05274.
207
Parecer da assessora do SIGAB/DPF/SR/SP, s/d. Processo C. 100158/77. MC/P. Caixa 608/05274.
89
linguagem hermética e intelectualizada”.
208
Como se vê, novamente a concepção de que
a obra teria repercussão apenas restrita foi um impedimento à sua interdição,
demonstrando o quanto a censura estava atenta a esse aspecto que, se desconsiderado,
poderia ter ocasionado a proibição de vários livros no período.
Se, conforme destacamos, livros de caráter didático foram visados, muitos
daqueles contendo biografias de personalidades como Trotski, Mao Zedong, Lênin, ou
trazendo no título qualquer menção aos termos “comunismo”, “materialismo histórico”,
“guerrilha”, “revolução” e outros assemelhados, também não passaram desapercebidos
para a censura ou para os órgãos de informações. Entretanto, assim como no caso citado
acima, em vários outros a censura também optou pela não interdição, tendo em vista a
possível repercussão negativa do ato proibitório e a suposição de uma difusão apenas
restrita da obra em questão. Assim, a famosa obra do polonês Isaac Deutscher sobre a
vida de Leon Trotski, O profeta armado, parte de uma trilogia corajosamente editada
pela Civilização Brasileira naquele período (composta também pelos volumes O profeta
desarmado e O profeta banido), foi encaminhada, em 1974, pelo ministro Armando
Falcão, para a avaliação do diretor-geral do DPF. De fato, aquela obra, que se
conformou como parte de uma das mais importantes e detalhadas biografias de Trotski,
era assim examinada num sintético parecer que também procurava dar conta do livro
Mao e a China:
Duas biografias, entre muitas outras do mesmo teor, existentes
nas livrarias, referentes a vultos considerados históricos. (...)
Ambos fazem propaganda ideológica. Mais adequados a
intelectuais ou a estudantes do ciclo superior, são também
utilizados por alguns dos que pretendem se opor aos
comunistas. (...) O número de livros contendo biografias e
matéria de cunho filosófico marxista é enorme. Proibir tal
divulgação provocaria, por certo, o ressurgimento das
conhecidas campanhas contra o que os comunistas chamam de
“terror cultural”.
209
Provavelmente, o diretor-geral do DPF não tinha percepção, àquela altura, da
importância do livro de Deutscher. No mesmo documento, ele destacava que as edições
dos livros mencionados deveriam ter sido “subsidiadas”, pois ambas tinham sido
208
Ofício nº 017/77-SIGAB/DG/DFP do diretor-geral do DPF ao ministro da Justiça, 13 maio 1977.
Processo C. 100158/77. MC/P. Caixa 608/05274. O livro de C. H. Porto Carreiro não pôde ser analisado
por se encontrar com edição esgotada.
209
Parecer do diretor-geral do DPF ao ministro da Justiça, 1º jul. 1974, PUB.
90
impressas em “papel muito bom” e estavam sendo vendidas a preço baixo. De fato, O
profeta armado, conforme destacamos, tinha sido publicado pela Editora Civilização
Brasileira, a qual foi também responsável pela edição de diversas outras obras de cunho
marxista no período, levando seu dono e administrador, Ênio Silveira, a ser preso várias
vezes (sem contar todas as outras formas de pressão, inclusive econômica, feitas sobre a
empresa).
210
Já os outros livros também mencionados no mesmo parecer, La teoria
revolucionaria, de Philippe Sollers, La internacional Comunista desde la muerte de
Lênin, de Leon Trotski, e Sociología de una revolución, de Frantz Fanon, eram tidos
como obras cuja “circulação não deve ser permitida”.
211
No caso deste último autor, sua
conhecida obra, Os condenados da terra, segundo Laurence Hallewell, já tinha sido
proibida por um ato do ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, em junho de 1970.
212
Algo semelhante ao que aconteceu com o livro de Deutscher, ocorreu com a obra
Conceitos elementais do materialismo histórico, da socióloga chilena Marta Harnecker,
por pouco não proibida de circular no país. Na época professora da Faculdade de
Economia e Sociologia da Universidade de Santiago do Chile, Harnecker veio a ser uma
ativa militante da divulgação do ideário marxista na América Latina, ganhando alguma
expressão justamente com o referido livro que, editado no México, teve uma vendagem
substantiva em língua espanhola. Em 1974, no entanto, a pedido do CISA e do 1º
Exército, o DPF apreendeu 397 exemplares da obra em cerca de quinze livrarias e
editoras da Guanabara.
213
Considerada uma “obra que estuda, didaticamente, a teoria do
comunismo”, cuja divulgação era “desaconselhável”, o livro foi encaminhado à
assessoria especial do ministro da Justiça, que considerou o ato do DPF “exorbitante”,
já que sua proibição não tinha sido determinada e sua apreensão realizada somente na
Guanabara, “dando uma idéia de fato isolado”.
214
Não bastassem os equívocos
210
Ver HALLEWELL, Laurence. Op. cit. p. 445.
211
La teoria revolucionaria era fruto de um período da vida do escritor francês, Phillippe Sollers, voltada
para o marxismo. Já a obra de Frantz Fanon, um importante teórico dos movimentos ditos de libertação
nacional do chamado Terceiro Mundo, referia-se à perspectiva de independência da Argélia frente o
colonialismo francês, provavelmente tendo sido considerada perigosa pelo seu apelo à luta armada como
forma de libertação. No caso do outro livro mencionado, uma versão em castelhano da obra Stalin, o
grande organizador de derrotas, na qual Trotski procurava denunciar os diversos males que teriam se
entranhado do interior do primeiro estado socialista, o próprio nome do autor, evidentemente, já deve ter
sido considerado o bastante para o parecer pela proibição.
212
Ainda segundo Hallewell, o livro foi reeditado pela editora de Ênio Silveira em 1978. HALLEWELL,
Laurence. Op. cit. p. 495 e 497.
213
Informação 0661 do CI/DPF, 25 jan. 1974. Processo C. 58639/76. MC/P. Caixa 601/05267.
214
Parecer do assessor do ministro da Justiça, 4 maio 1976. Processo C. 58639/76. MC/P. Caixa
601/05267.
91
cometidos pela instância censória no período, atitudes como essa demonstram como
havia espaço para atividades nitidamente desrespeitadoras da legislação censória por
parte de setores subordinados, conformando uma espécie de clima de que “tudo é
permitido” aos setores repressivos (daí, inclusive, a profusão de origens da prática
censória). Analisado, ainda, pela consultora jurídica do Ministério, o livro foi
considerado
uma obra didática, destinada ao estudo sócio-econômico,
porém, de conteúdo socialista, contendo fundamentos e
conceitos que não estão de acordo com a nossa ordem política
e social. Mas, entendemos não ser um livro capaz de despertar
o interesse do grande público [e], portanto, poderá atingir
apenas uma pequena faixa de leitores. (...) A nosso ver, proibir
a circulação do livro no momento seria despertar o interesse do
público pelo mesmo e, como este não traz o nome da editora,
impressora ou distribuidora responsável pela sua circulação,
não seria possível proibir sua distribuição. (...) Parece-nos que
a primeira providência a ser tomada em relação ao livro ora em
análise é uma investigação efetuada pelo DPF, a fim de
localizar a impressora ou distribuidora da referida obra.
215
Como se vê, novamente a concepção de que a obra somente alcançaria um
público restrito foi um dos principais motivos para não se opinar pela proibição da
mesma. Por outro lado, livros tidos como “marxistas” ou tratando de personalidades
comunistas que também poderiam ser considerados de pequena circulação, mas cujo ato
de interdição talvez causasse uma repercussão menor, por vezes eram vistos pela
consultoria jurídica como devendo ser sumariamente vetados. Em 1977, por exemplo, o
conjunto de três volumes da obra Mao tse-Tung: o imperador vermelho de Pequim, de
E. Krieg, era tido como “um perigoso veículo de propaganda do comunismo chinês”,
pois, nele, Mao Zedong “é apresentado como um semi-deus, de sabedoria onímoda e
infalível, ao passo que Chang Kai-chek é apresentado como a encarnação do
imperialismo internacional, vaidoso, pirrônico e ostensivo protetor de corruptos e
incapazes”.
216
Sendo o livro redigido na Suíça, mas impresso no Brasil pela Otto Pierre
Editores Ltda. a partir de uma edição pouco sofisticada, os dois consultores que
examinaram a matéria opinaram pela sua interdição e a apreensão de todos seus
exemplares com base na LSN. Do mesmo modo, foram julgados dignos de proibição
215
Parecer da assistente jurídica do Ministério da Justiça, Hilda Gonçalves Teixeira, 13 dez. 1976.
Processo C. 58639/76. MC/P. Caixa 601/05267.
216
Parecer sem assinatura e data. Processo C. 52897/76. MC/P. Caixa 593.
92
por serem “contrários aos interesses nacionais” os livros Autobiografia di una
guerriglia e La guerriglia in Itália, apreendidos na agência dos Correios de São Paulo,
em 1978. O primeiro era visto como “uma crítica bastante minuciosa da situação
vigente” e um “trabalho de orientação de novas gerações de revolucionários latino-
americanos”;
217
já o segundo seria “inconveniente” por conter “técnicas de guerrilha,
ainda eficazes, na hodierna luta de classes”.
218
A verificação desses livros, assim como de outras obras estrangeiras que
chegavam ao país, tinha sido estruturada a partir da portaria baixada pelo ministro
Armando Falcão, em 1977, estabelecendo a censura nos Correios.
219
Assim, também no
ano de 1978, foram apreendidos, na Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, 38
livros provenientes dos Estados Unidos. Os que não eram de Marx ou de autores
marxistas tratavam das possibilidades do processo revolucionário nos países da América
Latina ou do chamado “Terceiro Mundo”. Entre eles, listavam-se Violência y política en
América Latina, de Julio Barreiro, Las revoluciones del tercer mundo, de Roberto Mesa,
Karl Marx & Frederick Engels (selected works), The Comunist Manifest, de Marx e
Engels, El libro verde olivo, de Ernesto Che Guevara e El diario del Che en Bolivia, de
Fidel Castro. No entanto, dando prosseguimento à sua postura ambígua, a estrutura
censória do período não os proibiu por considerá-los de “conteúdos filosóficos,
científicos e técnicos”.
220
É interessante perceber que, em casos de livros importados como os
mencionados, a instância censória acabava levando em consideração também as
possíveis causas das suas aquisições, podendo chegar a solicitar uma investigação sobre
o destinatário da obra estrangeira por parte de outros órgãos do campo repressivo. Nesse
sentido, quando da retenção, pelo Serviço de Remessas Postais Internacionais, do livro
Ten poems and lyrics by Mao Tsé-tung, editado e traduzido nos Estados Unidos, o
mesmo foi encaminhado para a análise do SIGAB que, logo em seguida, opinou pela
sua não apreensão. Entretanto, “como a publicação está sendo importada pela firma
Casa do Livro”, ponderou o chefe daquele órgão, “conviria fosse investigado o motivo
de sua aquisição por parte da indicada livraria, bem assim, outros ângulos a critério da
217
Parecer da assessoria do SIGAB/SR/SP, 28 ago. 1978, PUB.
218
Parecer da assessoria do SIGAB/SR/SP, 29 ago. 1978, PUB.
219
Ver p. 53.
220
Ofício nº 65, do Serviço de Remessas Postais ao chefe da Divisão de Censura de Diversões Públicas, 6
set. 1978, PUB.
93
DOPS, tendo em vista que se trata de um indício não desprezível”.
221
Já o livro Tutti
faciste, de Cláudio Quarantotto, retido pelo Correio do Espírito Santo, embora tenha
sido considerado “uma obra eminentemente perigosa” por parte do técnico de censura,
foi liberado depois do SIGAB descobrir que, além de “tratar-se de um único exemplar
despachado diretamente para um leitor”, o mesmo “está escrito no original italiano, não
se encontrando a venda nas livrarias”.
222
O caso de Tutti faciste, aliás, serve também para ilustrarmos o caráter simplório
de alguns “exames censórios” e do linguajar enigmático utilizado por determinados
técnicos de censura. No parecer produzido antes de sua liberação, o livro de Cláudio
Quarantotto foi considerado como uma “espécie de terrorismo psicológico”, cujo
objetivo “não é outro senão o de inculcar na mente dos seus leitores seu psiquismo,
através de um trabalho de mentalização”. Desse modo, tal publicação seria “contrária
aos interesses nacionais” e nela estariam “ocultas as sementes da anarquia filosófica”,
“onde se pretende destruir tudo o que existe”.
223
Diante de pareceres como este, torna-se
difícil acreditar que a censura possuía critérios objetivos para análise dos diversos livros
censurados no período. Agindo de forma dúbia com as obras que não estavam adstritas
à legislação censória e pautando-se em pareceres que continham análises bastante
simplistas dos livros em questão (muitas delas, eivadas de erros gramaticais), a censura
não somente conformava-se como uma prática autoritária por sua existência em si, mas
também pelo modo errático como agia devido à falta de critérios mais solidificados e à
precária formação intelectual dos seus funcionários.
E as ambigüidades continuaram durante todo o período de existência da prática
censória, algo que dificultaria, até mesmo, uma possível busca de racionalidade no
tratamento que os órgãos por ela responsáveis deram aos livros do período. Assim, se
essa dubiedade pode ter sido, em certos momentos, uma estratégia que permitia à
censura vetar determinadas obras, mesmo consideradas de cunho didático, filosófico ou
científico, ela, por outro lado, não parece ter sido empregada com esse mesmo sentido
em muitos outros casos. Havia, de fato, uma certa desorganização e um grande número
221
Ofício nº 055/76-SIGAB/DG/DPF do chefe do SIGAB ao diretor-geral do DPF, 10 ago. 1976, PUB. O
caso foi investigado “de maneira sigilosa” e, depois de não se ter encontrado nada de suspeito, a
publicação acabou sendo devolvida ao destinatário.
222
Parecer do técnico de censura do SCDP/SR/ES, 16 jul. 1976. Anotação do chefe do SIGAB no ofício
nº 367, do Superintendente Regional do DPF/ES ao diretor da DCDP, 20 jul. 1976, PUB.
223
Parecer do técnico de censura do SCDP/SR/ES, 16 jul. 1976, PUB.
94
de incompreensões por parte dos setores envolvidos nesse tipo de atividade, malgrado a
vontade de proibir os livros tidos como “subversivos” os unificasse em determinadas
ações. Afora os casos que já mencionamos, esses paradoxos na atuação da censura se
mostraram presentes também na avaliação de várias outras obras, inclusive no que
concerne àquelas de caráter acadêmico, ora consideradas como “propaganda
ideológica”, ora tidas apenas como textos de caráter técnico ou didático. O mesmo,
guardadas as devidas proporções, se deu com certos livros de conteúdo político.
Assim, alguns livros conseguiram passar incólumes pela censura por terem sido
considerados “sem orientação doutrinária”, enquanto outros foram sumariamente
proibidos. Em 1977, The economics of socialism, de J. Wilczynski, foi analisado e
considerado um livro “técnico” por um censor, que o caracterizou como “um estudo
sobre modelos de economia dita socialista” no qual o autor age “imparcialmente”.
224
Também se livraram do veto censório pelas mesmas razões os livros Diccionário del
anarquismo, de José Peirats, Diccionário de la Falange, de Eduardo Alvarez Puga,
Jaume Carner, de Josep M. Poblet, Petita História de la Guerra Civil, de Joan Sariol
Badia e Desde la cola del dragon, de Jorge Edwards.
225
No caso deste último, o técnico
de censura que o liberou produziu um parecer bastante curioso, pois condenava
qualquer regime de caráter ditatorial, não obstante sua atuação, de algum modo,
acabasse cooperando para a existência de um deles em seu próprio país. Avaliando
negativamente o falangismo espanhol, ele destacava:
Ditadura de direita, esse movimento como todo movimento
fascista rendeu culto à violência, opôs-se à democracia, aos
direitos da mulher em igualdade aos homens, perseguiu judeus,
a maçonaria, destruindo qualquer livro, revistas ou propaganda
marxista. (...) Considerando altamente perniciosa qualquer
ditadura de esquerda ou de direita, bem como a propagação de
suas idéias, é que só posso considerar esse livro uma literatura
fraca e desaconselhável; no entanto, por ter sido apresentado de
forma tão superficial e não partidária de qualquer ideologia,
sugiro sua liberação.
226
Note-se, nesse caso, que o censor considerou o livro desaconselhável somente
pelo assunto do qual ele tratava e não pela possibilidade dos seus leitores fazerem
224
Parecer nº 1761 do técnico de censura do SCDP, 8 ago. 1977, PUB.
225
Ofício nº 717/77-SCDP/SR/RJ, do chefe do SCDP ao diretor da DCDP, 27 jul. 1977, PUB.
226
Parecer nº 1550/77 do técnico de censura do SCDP, 12 jul. 1977, PUB.
95
analogias entre certos traços ditatoriais do regime falangista e aqueles da ordem política
existente no país. Nesse sentido, não parecia haver, por parte do técnico de censura,
qualquer questionamento sobre a relação entre o seu ofício e certas práticas autoritárias
ou, mesmo, entre o regime político implantado no Brasil e essas ações ditatoriais que ele
criticava nos “modelos políticos” de outros países.
Já o livro The brazilian communist party, de Ronald H. Chilcote, que passou
pelo processo censório naquele mesmo ano, não teve a mesma sorte desses outros, pois
o diretor-geral do DPF julgou sua “colocação no mercado, ao alcance de todo o
público”, como “inconveniente”, argumentando que sua leitura deveria “ser reservada
aos estudiosos da matéria e aos serviços de informação, pelo conteúdo e precisão dos
dados referentes ao comportamento das esquerdas na América Latina”.
227
Algo
semelhante se deu com Obras escolhidas de Mao tse-Tung, que teve um de seus
exemplares retidos pela censura quando ela avaliava o conteúdo de seis obras que
chegavam ao Serviço de Encomendas Postais Internacionais (Colis Postaux), em 1977.
Chamado a opinar sobre os livros An Essay on Marxian Economics, Neo-Colonialism in
West-Africa, Lumpen-Development, The Myth of Marginality, Nudes of the 20s and 30s
e a citada publicação, um assessor do DPF opinou pela proibição apenas dos dois
últimos (o outro por “explorar o nu feminino”), tendo sido os demais devolvidos aos
seus destinatários.
228
Novamente torna-se clara a inconsistência dos critérios censórios:
se livros de Che Guevara, Fidel Castro, Marx e Engels foram liberados, por que foram
vetados os escritos de Mao Zedong? O mesmo pode ser dito em relação a quatro livros
de Lênin e um de Bukharin e Preobrazhensky vetados por Armando Falcão, em 1975.
Considerados “veículos de divulgação de propaganda ideológica” pela já mencionada
assistente do SIGAB, Solange Hernandez, os livros ABC do comunismo, de Bukharin e
Preobrazhensky, O esquerdismo: doença infantil do comunismo, A catástrofe iminente e
os meios de a conjurar, O imperialismo e a cisão do socialismo e Sobre a caricatura do
marxismo e o “economismo imperialista”, de Lênin, foram proibidos juntamente com
outras oito publicações por meio de uma única portaria daquele ministro da Justiça.
229
227
Ofício nº 231/77-DCDP do diretor-geral do DPF ao ministro da Justiça, 13 maio 1977, OC.
228
Anotação do assessor de assuntos especiais, no Ofício IRF.Br. nº 005/77, para o diretor da DCDP, 28
jan. 1977, PUB.
229
Ato publicado no Diário Oficial em 17 de julho de 1975. Consta como anexo do Ofício n 219/Séc/Gab.
do diretor-geral do DPF ao ministro da Justiça, 2 jul. 1975, PUB. As outras oito publicações eram: A
concepção das super-potências, de Pierre Maes, O papel da mulher na solução do problema feminino nos
96
A falta de critérios consistentes na escolha dos livros a serem censurados e a
perseguição aos títulos que continham palavras como “revolução” ou outras congêneres
também geraram casos curiosos como o do livro MO – Nova Vida Revolucionária.
Provavelmente tendo sido avaliado devido ao seu título, bastante sugestivo para um
tempo de grande força acadêmica e, mesmo, ideológica do marxismo, o referido livro
deve ter surpreendido os censores que o examinaram. Longe de referir-se ao processo
revolucionário ou à luta de classes, a obra tratava-se da tradução da coleção de cartas
(originalmente em inglês) escritas por Moisés David, criador de uma “seita” baseada na
Bíblia, embora crítica à Igreja Católica, chamada “Os meninos de Deus”. Diante disso,
já que não podia ser proibida por seu conteúdo político, a obra o foi por ter sido
considerada contrária à moral e aos bons costumes.
230
O modo dúbio como a instância censória agia em certos casos e a forma pouco
criteriosa de escolher as obras que deveriam ser examinadas eram acompanhados, ainda,
do tratamento diferenciado que ela, por vezes, reservava aos livros considerados
proibidos ou liberados. Enquanto os processos de algumas publicações eram deixados
em arquivo, mesmo depois delas terem sido julgadas sem restrições no “exame
censório” (algo que acabava atrasando sua edição, conforme destacamos no caso de Bar
Don Juan), outros, geralmente de publicações favoráveis ao regime, eram resolvidos de
modo que o comunicado da permissão de sua publicação chegasse diretamente ao
interessado. Foi o que aconteceu com o texto A revolução ganha as ruas, de Walter de
Oliveira Garrocho, que, segundo o técnico de censura que o avaliou, além de “tecer
considerações sumariamente elogiosas aos nossos homens públicos, à Revolução de
1964 e ao Brasil”, conteria “inúmeras transcrições de pensamentos e máximas de
orientação moral formulados por autores cristãos e não cristãos, mas perfeitamente
afinados com a ‘leben und weltanschauung’ do brasileiro”.
231
Assim, tendo sido
liberado, seu texto foi prontamente devolvido ao autor, em sua própria residência.
países socialistas, de Unikolaieva-Tereshkova, Os comunistas e o desporto, de Laurent, Barran e Faure,
Os sindicatos e a gestão de empresas na U.R.S.S, de I. Lazarenko, Um português em Cuba, de Alexandre
Cabral e A união popular e o domínio da economia, de Philippe Herzog.
230
Ofício nº 065/79-DCDP, do diretor-geral do DPF ao ministro da Justiça, 9 fev. 1979. De acordo com a
síntese da censora, o livro deveria ser assim considerado por divulgar “idéias de natureza alienígena, com
finalidade de abalar socialmente e moralmente os jovens a quem são dirigidas”; por conter “incentivo à
desagregação familiar”, pregando “o amor livre, o adultério”; por contrariar “a instituição do casamento”;
e, ainda, por “desrespeitar os valores da Igreja”. Apreciação de publicação nº 19, da técnica de censura da
DCDP, Teresa Cristina dos Reis Marra, 26 jan. 1979, PUB.
231
Parecer de José Fraga Teixeira de Carvalho, 26 dez. 1973. Processo 59109, 22 ago. 1973, PUB.
97
O caso de tal publicação, aliás, enseja também uma outra questão curiosa: a
tentativa de se beneficiar ou angariar certos favores da censura por parte dos autores
submetidos àquele “serviço”. Nesse sentido, juntamente com o processo do texto de
Walter de Oliveira Garrocho, encontramos a carta que o mesmo tinha enviado ao diretor
do DPF demandando a liberação da sua obra. Argumentando já ter “prestado alguns
serviços à Revolução” na sua cidade, o mineiro de Teófilo Otoni apostava no seu
conhecimento do “líder pecuarista” de Governador Valadares, “o sr. Wander Campo,
uma espécie de general civil da Revolução de 64”, para conseguir publicar seu
“livrinho” pela Imprensa Oficial de Minas Gerais. Mais do que isso, o remetente
aproveitava para pedir algo um tanto inusitado à censura: ele queria que os censores
anotassem as correções gramaticais que achassem necessárias em dois dos exemplares
por ele enviados para a verificação. Isto porque “o moço que os datilografou cometeu
alguns erros assombrosos (...), deturpando o sentido de muita coisa, omitindo muita
coisa e acrescentando coisas que [eu] não tinha escrito”. Segundo o missivista, ele
estava
passando uma fase difícil no sentido financeiro, pegando até na
enxada para plantar hortaliças, e não estou tendo tempo de
corrigir os dois exemplares que estou anexando (...) Eu preciso
de vossa ajuda, de vossa compreensão e colaboração. (...) Sou
um homem simples, bem intencionado. O livro conta bastante
sobre mim. (...) Peço vossa ajuda para que os corrigendos [sic]
necessários, nos dois exemplares que anexei ao já corrigido,
sejam anotados também. Espero merecer a liberação (...). Este
livro será muito útil à revolução de 64, em nossa região. Creio
no que aqui afirmo. [vários erros de português foram corrigidos
do original]
232
Em situações menos favoráveis, outros autores atingidos pela tesoura censória
também escreviam para o DPF, mas, nesses casos, demandando uma revisão da
proibição de sua obra. O paraibano Lenine Lima, por exemplo, que teve seu poema
Pertitório impedido de ser recitado no concurso “Jóias da Poesia”, promovido pela
Academia de Letras e Música do Brasil (ALMUB), resolveu escrever à censura
explicando porque o mesmo não deveria ter sido vetado. Pertitório, na análise do
SCDP, tinha sido considerado um “texto capaz de provocar o incitamento contra as
232
Carta de Walter de Oliveira Garrocho ao diretor-geral do DPF, 30 jul. 1973. Processo 59109, 22 ago.
1973, PUB.
98
autoridades e seus agentes”, “ferindo o interesse nacional por induzir ao desprestígio
das Forças Armadas”.
233
Sendo o poema claramente crítico ao momento vivido no país,
de supremacia dos militares, ainda assim o autor argumentava:
Militarismo, porém, é um “estado de espírito”. Não é o mesmo
que instituição militar. Aquele é uma tendência que leva à
supremacia armada, às agressões da conquista; o outro é
existencial, uma necessidade de conjuntura (...). Por outro lado,
militarismo não é um estado de espírito típico do soldado.
Caxias não foi militarista. Foi militar. Um pacificador, por
excelência. Não na sua inteligência combativa residia o seu
grandioso valor, mas no [seu] uso em favor da pacificação, já
que esse era o único modo de conciliar a intolerância das
correntes do pensamento político na época da ciência militar na
qual era um mestre. [grifado no original]
234
Como se vê, o autor não somente tentou justificar uma possível liberação do seu
poema, como também apelou para a feitura de uma imagem positiva de Caxias,
personagem de valor simbólico indubitável dentro da corporação militar.
235
Tal
estratégia, entretanto, não proveu os resultados esperados, pois seu pedido de revisão foi
indeferido, justamente pelo poema “induzir ao desprestígio das Forças Armadas” e
conter “alusões desprimorosas à figura do militar”. O prestígio que a imagem do
patrono do Exército gozava dentro do meio castrense, aliás, já tinha gerado, naquele
mesmo ano, fortes reações contra um artigo do jornalista Lourenço Carlos Diaféria,
236
que “teria tratado com ironia e desrespeito o vulto de Duque de Caxias, conclamando a
opinião pública a desprezar os heróis nacionais e as Forças Armadas”.
237
Retomando a questão do tratamento distinto que a censura dispensava às obras
tidas como “favoráveis” ao regime, podemos perceber que o que aconteceu com o texto
A revolução ganha as ruas não foi um caso isolado. Em 1976, foi enviado para a
censura, num papel timbrado do “Front International Contre Le Communisme”, a
edição brasileira de um livro do jornalista Meldutis Laupinaitis, intitulado Eu acuso:
genocídio soviético. Segundo o técnico de censura da DCDP que o examinou: “o livro
versa sobre as atrocidades do poder soviético e [o] período da guerra de 39, tendo como
233
Ofício do chefe do SCDP/DPF/SR/DF ao diretor da DCDP, 25 out. 1977. Processo nº 030.764/77, OS.
234
Carta de Lenine Lima ao diretor-geral do DPF, 11 out. 1977. Processo nº 030.764/77, OS.
235
Ver CASTRO, Celso. A invenção do Exército brasileiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.
236
Um gato nas terras de tamborim. Folha de São Paulo, São Paulo, 1º set. 1977. Processo C. 100679/77.
MC/P. Caixa 3540/00010.
237
Processo C. 100679/77. MC/P. Caixa 3540/00010.
99
palco a Lituânia”. Assim, “considerando-se as relações mantidas pelo Brasil com os
países socialistas”, ele opinava pela sua não liberação, argumentando que tal publicação
poderia “criar problemas de ordem diplomática e até reclamações das ditas
representações onde o autor focaliza as perseguições”.
238
Entretanto, apesar do parecer
em contrário, o diretor da DCDP fez o livro ser novamente examinado pelo mesmo
técnico da repartição para ele esclarecer se o mesmo continha “exteriorização contrária
à moral e aos bons costumes”.
239
De fato, cerca de dois meses depois, era encaminhada
uma correspondência diretamente à residência de Meldutis Lapinaits comunicando que
“a obra de que se trata pode ser normalmente divulgada, visto não apresentar
impedimento para sua liberação”.
240
Naquele mesmo ano, também tinha passado pelo
processo censório e sido liberado outro livro extremamente crítico ao comunismo, qual
seja, A igreja ante a escalada comunista, do líder tefepista Plínio Corrêa de Oliveira.
Nesses casos, torna-se interessante refletirmos, inclusive, sobre as causas que teriam
levado essas publicações a passarem pela censura, algo cuja explicação talvez perpasse
pelas palavras “soviético” e “comunismo” no título das mesmas ou, ainda, por uma
iniciativa do próprio autor de enviá-las para o exame do DPF.
238
Parecer nº 243/76, do técnico de censura da DCDP, Carlos Rodrigues, 30 jun. 1976, PUB.
239
Anotação do diretor da DCDP, Rogério Nunes, no parecer indicado na nota anterior.
240
Carta do diretor da DCDP, Rogério Nunes, ao diretor da DCDP, 3 ago. 1976, PUB.
100
Capítulo 4
Acadêmicos e literatos: censura e monitoramento dos órgãos de
informações
4.1. A perseguição aos livros acadêmicos
Como já mencionamos, o período no qual Armando Falcão ocupou a pasta da
Justiça foi marcado por um aumento substancial da censura em determinados planos,
não obstante o projeto de abertura política iniciado pelo presidente Geisel fosse, com
seus recuos e avanços, sendo colocado em prática. Como ressaltou a maioria dos
analistas, Falcão atuou como um verdadeiro “fiel da balança”, colocado naquele
ministério com o objetivo precípuo de demonstrar aos setores mais radicais dentro do
regime, com os quais possuía estreita ligação, que o governo da chamada “abertura
lenta, gradual e segura” não abandonaria os princípios mais fundamentais da dita
“revolução de 1964”. É nesse sentido, portanto, que, naquela conjuntura de meados dos
anos 1970, certos traços autoritários do regime de exceção implantado no país acabaram
sendo fortalecidos.
Tal é o caso das censuras política e moral de livros, assim como da atuação
intensa dos órgãos de informações que, nesse caso, certamente foram alimentados por
sua ojeriza à idéia de desmontar os mecanismos do chamado “aparato repressivo” (entre
os quais eles se incluíam com preponderância). Motivados, muitas vezes, por interesses
escusos,
241
o pessoal da “comunidade de informações” procurou resistir ao desmonte da
ditadura de diversas formas, particularmente pela tentativa de difundir mais amplamente
a idéia de que ainda havia “focos” de “subversão” bastante ativos no país. Por outro
lado, a atenção que os altos escalões deram às iniciativas desses segmentos, assim como
o próprio papel que instâncias como o SNI ocupavam dentro dos governos militares, nos
impedem de falar de uma total autonomia desses setores, que teriam passado a atuar
independentemente das cadeias de comando.
242
Um dos planos dentro dos quais
241
Ver depoimento do general Gustavo Moraes Rego Reis em SOARES, Gláucio Ary Dillon,
D'ARAUJO, Maria Celina (Orgs.). CASTRO, Celso (Orgs.). A volta aos quartéis: a memória militar
sobre a abertura. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995, p. 60.
242
Sobre essa discussão ver FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record, 2001.
101
podemos perceber isso é justamente na prática da censura política de livros, que contou
com a freqüente colaboração ou, mesmo, pressão, dos órgãos de informações para que
determinadas obras publicadas fossem proibidas. Parecia haver uma certa aceitação, por
parte dos altos escalões, das atividades desses setores mais extremistas em planos como
o da censura de livros, ao mesmo tempo em que se procurava desmontar outros
mecanismos também visivelmente autoritários, como o chamado DOI-CODI.
Nesse sentido, por volta de meados da década de 1970, a comunidade de
informações produziu um forte monitoramento sobre a produção acadêmica brasileira e
os intelectuais nela envolvidos, objetivando demonstrar o caráter “subversivo” de
muitos importantes livros publicados naqueles anos. O mesmo foi feito com obras já
clássicas de autores consagrados que, mesmo tendo sido editadas antes da implantação
da ditadura, ganharam em importância naqueles anos de forte predomínio acadêmico do
marxismo (perspectiva teórica que se conformava, ao mesmo tempo, como uma
tentativa de explicação global da sociedade e como uma forma de resistência ao regime
autoritário). Assim, em 1974, a DSI/MJ solicitava o pronunciamento do chefe do
gabinete do Ministério da Justiça sobre os livros Formação do Brasil contemporâneo,
Evolução política do Brasil, História Econômica do Brasil e A revolução brasileira, de
Caio Prado Júnior, que poderiam estar “fazendo apologia do regime socialista-
comunista e tecendo críticas ao regime revolucionário brasileiro”.
243
No ano seguinte,
depois de solicitado pela Agência Central do SNI, foi proibido de circular no país O
despertar da revolução brasileira, de Márcio Moreira Alves,
244
o jornalista que, havia
alguns anos, tinha protagonizado o importante episódio da promulgação do Ato
Institucional nº 5.
245
Também foram alvos do processo censório, naquele mesmo ano, os
livros Autoritarismo e democratização, do professor aposentado de sociologia da
243
Informação da DSI/MJ ao chefe do gabinete do Ministério da Justiça, 6 mar. 1974. Processo C.
52378/74. MC/P. Caixa 593/05259.
244
Portaria publicada no Diário Oficial em 9 de julho de 1975. Processo C. 65022/75. MC/P. Caixa 597,
fl. 69.
245
Num discurso realizado na Câmara dos Deputados em repúdio às ações da repressão na Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG) e na Universidade de Brasília (UnB), em fins de 1968, o então
deputado, Márcio Moreira Alves, conclamou a população a não participar das comemorações da
independência do Brasil no 7 de setembro próximo. Tal discurso foi, em seguida, utilizado pelos militares
como um pretexto para a edição do AI-5, de 13 de dezembro de 1968. O autor também já tinha tido seus
livros Tortura e torturados (1967) e O Cristo do povo (1967) apreendidos em anos anteriores. Ver
ABREU, Alzira Alves de; BELOCH, Israel; LATTMAN-WELTMAN, Fernando; LAMARÃO, Sério T.
de Niemeyer (Coord.) Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora
FGV; CPDOC, 2001, v. 1, p. 178.
102
USP,
246
Fernando Henrique Cardoso, e Os militares na política, do brasilianista Alfred
Stepan, não obstante nenhum dos dois tenham sido vetados.
O processo censório do livro de Fernando Henrique Cardoso parece bastante
exemplar, não somente da pressão que os órgãos de informações faziam pela interdição
de determinadas obras, mas também da diferença entre as teses mobilizadas por esses
segmentos e as ponderações da consultoria jurídica do Ministério da Justiça.
Encarregados de analisar a maioria dos pedidos de proibição de livros que provinham de
áreas exteriores àquela pasta, os assistentes jurídicos, muitas vezes, faziam pareceres
contrários às investidas dos setores mais extremistas dentro do governo,
complexificando o processo censório do período. Desse modo, no final do ano de 1975,
chegava ao ministro Armando Falcão uma informação originada no CISA,
247
a qual
pedia a cassação dos direitos políticos de Fernando Henrique Cardoso e trazia consigo
um longo parecer do livro Autoritarismo e democratização. Elaborado por um delegado
de polícia, o exame da obra contido no documento demonstra uma interpretação
bastante enviesada da mesma, marcada por conclusões errôneas sobre determinados
trechos e por adjetivações bastante contundentes do referido autor. Vale, portanto,
destacarmos algumas das idéias ali expressas, até porque ele foi o instrumento que
motivou a quase proibição do livro de FHC.
Segundo o delegado, Fernando Henrique Cardoso, no mencionado livro, faria
“doutrinação comunista, de massificação”, deixando “reiteradamente clara sua
bitolagem aos dogmas marxistas, manipulando fatos históricos” e fazendo “perguntas
capciosas, que induzem à subserviência do atual governo às empresas
multinacionais”.
248
Procurando demonstrar o caráter “subversivo” da obra, o documento
contém diversas transcrições, muitas delas seguidas de avaliações equivocadas. Assim,
numa parte do livro na qual Cardoso critica certas perspectivas tidas como mais
ortodoxas dentro do escopo marxista, as quais, segundo ele, ainda pautariam suas
análises por uma concepção teológica da história, o delegado vislumbrava um
“desmascaramento” do autor em “toda a sua plenitude”. Transcrevendo um longo trecho
no qual Cardoso se contrapõe às noções do que nomeia de “marxismo estático”, o
246
Fernando Henrique Cardoso foi aposentado por um decreto de 29 de abril de 1969, com base no AI-5.
247
Informação nº 579/75, da DSI/MJ ao ministro da Justiça, 2 set. 1975. Processo C. 65022/75. MC/P.
Caixa 597 (a informação da DSI repassava outra originada no CISA).
248
Informação nº 320 contendo a análise do delegado de Polícia do Gabinete do Secretário de Segurança,
9 set. 1975. Processo C. 65022/75. MC/P. Caixa 597, fl. 5.
103
examinador procurou sublinhar a passagem tida como mais perigosa:
Por certo, para algumas análises baseadas neste paradigma de
marxismo estático, existem as “contradições”. Só que, se o
método for o caracterizado acima, a pequena burguesia rural
vai opor-se, por definição, por princípio, por obra e graça de
Deus, sempre ad secula seculorum, ao grande capital agrário,
aos latifúndios, aos trabalhadores rurais, ao operariado urbano
e sabe Satanás a que outras categoria mais, num jogo infinito,
mas repetitivo, no qual não há surpresas ou modificações, a não
ser no dia em que, graças à “Dialética da Marcha Incontrolável
das Oposições Gerais”, como no juízo final, a classe portadora
dos destinos históricos da humanidade, o proletariado (...), virá
expropriá-la e enterrá-la no museu da humanidade. (...) Não
haverá mais teologia nisso do que marxismo?
249
(grifado no
original)
Como se vê, o parecer do delegado estava marcado por interpretações bastante
errôneas do livro de Cardoso, procurando teses “subversivas” do autor em trechos nos
quais ele, claramente, estava criticando a concepção de certas correntes dentro do
marxismo. Marcado por um linguajar bastante virulento, no qual Cardoso era
caracterizado com expressões que iam desde “fiel súdito de Moscou e de Cuba” até
“míope mental”, o longo documento de quinze páginas concluía tentando demonstrar
que o objetivo principal do autor seria o de “instigar a violência”, visando a “alteração
das estruturas sociais”.
250
Vale transcrever, nesse sentido, mais um trecho do mesmo,
pois, nele, o delegado expressa suas convicções políticas, defendo uma sociedade de
mercado e criticando contundentemente o comunismo:
Aí F.H.C. se torna doutrinariamente violento, pretendendo ver,
nos sistemas realmente democráticos, em que há livre-
iniciativa, onde há liberdade econômica, sem a qual não podem
subsistir quaisquer outras formas de liberdade (fato este que
esse autor marxista não pode diagnosticar, bitolado que está,
fanaticamente, aos dogmas comunistas), pretende ele ver um
sistema de escravização, de exploração da “mais-valia” (...),
embora, também, em momento algum, jamais logre sequer
desconfiar que, pela massificação que pretende e defende,
precisamente por aí, o homem se torna cientificamente um
escravo, com a incipiente e duvidosa recompensa da ração no
cocho público oficial do regime comunista!!!
251
O documento, cumprindo despacho de Falcão, seguiu para o exame de um
249
Ibidem, fl. 6.
250
Ibidem, fl. 5-8.
251
Ibidem, fl. 7.
104
delegado da Polícia Federal, que prontamente concordou com o parecer anterior, o qual
teria posto “em relevo trechos de inequívoca contestação ao regime vigente em nosso
país”.
252
Levando em consideração a posição de Fernando Henrique Cardoso como
professor de sociologia sumariamente aposentado e “comprometido com elementos
comunistas”, o delegado mencionava, com uma espécie de ironia severa, que “o
remédio revolucionário aplicado” a ele parecia ter sido “insuficiente”, sugerindo a
suspensão dos seus direitos políticos e a apreensão dos exemplares do livro. Desse
modo, pouco tempo depois, o chefe do gabinete do Ministério da Justiça, seguindo a
orientação de Armando Falcão, elaborou o ato de apreensão do livro de Cardoso com
base na Lei de Imprensa. No entanto, antes disso, resolveu enviar o processo a um
consultor jurídico que, após um longo estudo sobre a matéria, concluiu pela inexistência
de base legal para a proibição de Autoritarismo e democratização. Assim, tal parecer
livrou a obra de uma apreensão que já parecia em vias de concretizar-se.
O caso do livro de Stepan, originalmente intitulado The military in politics,
também serve para ilustrar a complexidade e as ambigüidades da censura do período,
seja no que concerne à variedade de iniciativas que poderiam gerar processos censórios,
seja no que diz respeito às discrepâncias entre as visões dos segmentos que dela
participavam. Sua origem remonta a meados de 1975, quando o ministro do Exército,
Sylvio Frota, encaminhou a Armando Falcão o estudo de um oficial daquela força sobre
a referida obra. Segundo aquele oficial, a tradução do livro de Stepan para o português
preocupava por dois motivos: primeiramente, “porque é uma análise minuciosa e
distorcida do nosso Exército, em parte devido à indiscrição de alguns companheiros,
que abriram o bico para o autor”; em segundo lugar, “porque há críticas severas à
Revolução, como dependência aos EEUU, torturas etc.”
253
Diante dessas informações, o
general Frota pediu ao ministro da Justiça um exame acurado do livro e o processo,
conforme despachado por Falcão, seguiu para avaliação do chefe do gabinete daquela
pasta, Alberto Rocha. Possuindo apenas um resumo da obra, Rocha procurou destacar
os inconvenientes de uma medida proibitória, pois, “com uma edição na língua original
(inglês) e uma em espanhol, feita em Buenos Aires, a sua supressão pura e simples, que
252
Parecer do delegado de Polícia Federal, Jesuan de Paula Xavier, 9 set. 1975.
Processo C. 65022/75.
MC/P. Caixa 597.
253
Aviso nº 037, do ministro do Exército ao ministro da Justiça, 26 jun. 1975. Processo C. 60271/75.
MC/P. Caixa 597/05263.
105
não poderia ser encoberta, pode ter mais significação e efeito do que a própria
publicação”.
254
Além disso, para o chefe de gabinete, o livro não parecia ter sido escrito
“com ânimo hostil”, sendo obra típica dos cientistas sociais, “que procuram reduzir tudo
a modelos, embora reconhecendo que a sociedade é sempre mais rica e variada”. É a
partir deste ponto, entretanto, que o parecer de Rocha se torna mais curioso, não tanto
pelo seu teor enigmático, mas porque sua argumentação, de modo geral, parece
fundamentar-se numa crítica à própria existência da censura, algo que serve como um
exemplo significativo dos paradoxos que permeavam essa prática no período:
V. Exa. conhece meu ponto de vista, de que não é possível
conservar um país numa câmara assética [sic] e de que, ainda
que o fosse, as possíveis vantagens de uma vida
excessivamente protegida são mais do que compensadas pela
vulnerabilidade de um organismo sem defesas (...) Entendo,
assim, que conhecer a realidade como é vista pelos outros,
concorre para a formação de um quadro compósito, o único
que pode, com alguma aproximação, representar a realidade
como ela é.
Cerca de um ano depois, quando chamado a opinar sobre a possibilidade de
proibição do livro Lúcio Flávio - o passageiro da agonia, de José Louzeiro, Alberto
Rocha acabou fazendo outro discurso que mobilizava concepções caras àqueles
segmentos que lutavam pela liberdade de expressão no período. Referindo-se,
inicialmente, ao parecer de um dos técnicos de censura que sugeriu a interdição da obra
devido ao linguajar utilizado na mesma, o documento do chefe do gabinete destoava
completamente daquilo que se esperava da argumentação de uma autoridade envolvida
no processo censório:
Não me impressionam as palavras de baixo calão que se catam,
uma a uma, no texto de certas obras, como se elas não fossem
faladas ou ouvidas em certos meios (...) Com os limites, que
tudo tem nesta vida, pretender suprimir toda cena ou vocábulo
forte ou menos purista de obras, sejam quais forem, que
refletem a vida, parece-me a mim simples farisaísmo. (...)
Também não me impressionam as críticas a policiais (...) Elas
existem e suprimi-las em obras de ficção não chega a significar
a limpeza que a sociedade exige e a que tantas autoridades se
têm dedicado com resultados muito relativos. Como estou
persuadido de que certas lutas contra os males que existem na
sociedade somente têm sucesso quando se fazem sob a pressão
254
Parecer do chefe do gabinete do Ministério da Justiça, Alberto Rocha, 2 jul. 1975. Processo C.
60271/75. MC/P. Caixa 597/05263.
106
e com o apoio público, tudo que concorra para dar consciência
desses problemas e despertar o desejo de os corrigir me parece
socialmente útil e desejável. (...) O problema não está em
esconder o erro, o que já é uma cumplicidade, mas o por à luz
do sol, vale dizer, da publicidade a mais candente (...).
255
Ora, é no mínimo curioso que o chefe de gabinete de Armando Falcão, ministro
que tanto se comprazia em censurar, mobilizasse convicções como essas, sobretudo no
que concerne à defesa de uma conscientização da opinião pública sobre as mazelas que
atingiam o país. Como vimos destacando, o processo censório do período jamais se deu
de modo linear, pois ele envolvia segmentos com concepções bastante discrepantes
sobre os limites e o papel daquela atividade. De fato, havia uma grande diferença entre
as teses mobilizadas pelos órgãos de informações, onde se originava a maioria dos
processos de censura política de livros, e as idéias esboçadas pelo chefe de gabinete ou
pela assessoria jurídica do Ministério da Justiça. O mesmo se dava entre as concepções
desses dois segmentos e aquelas do pessoal da Divisão de Censura de Diversões
Públicas. Nesse sentido, somente uma análise mais atenta a essas nuanças e matizes
internos da atividade censória pode nos ajudar a compreender de modo mais refinado a
censura praticada nos anos 1970. Na verdade, a percepção dessas diferenças esclarece
mais do que o funcionamento da censura, elucidando, num plano mais geral, a
multiplicidade e heterogeneidade dos diversos segmentos que compunham não apenas
os setores estritamente repressivos da ditadura militar, mas também os escalões
burocráticos que configuravam um jogo complexo capaz de fazer funcionar um aparato
que supunha tanto a repressão quanto sua desmontagem. É por isso, também, que é
importante destacarmos a diferença existente entre as duas formas de censura então
existentes, pois, caso contrário, corremos o risco de nos aprisionarmos numa análise
simplista do fenômeno, caracterizando como homogêneas instâncias bastante diversas
que atuavam dentro do Estado.
Não faltaram análises discordantes desses setores quanto ao caráter “subversivo”
ou a real necessidade de se interditar determinadas obras. Em casos extremos, tal
discrepância chegava a ponto de o livro em questão ser avaliado como eminentemente
perigoso e subversivo, por parte de um desses setores, e como útil e positivo pelos
demais. Assim, em 1976, o recém-lançado estudo do jornalista Fausto Guimarães
255
Parecer do chefe do gabinete do Ministério da Justiça, Alberto Rocha, ao ministro da Justiça, 26 jul.
1976, PUB.
107
Cupertin, A concentração da renda no Brasil, foi logo taxado pela DSI como “um livro
faccioso, muito perigoso nas mãos de quem nada sabe de economia brasileira, dos
predispostos, dos frustrados”.
256
Ao tratar da desigualdade social existente no país,
destacava a DSI, o livro de Cupertin seria uma “leitura muito perniciosa para
estudantes”, na qual o autor, “usando um processo de sofisma”, “vê discriminação em
tudo: na educação, nos transportes, na saúde e, até mesmo, no abastecimento de água”.
Já um outro estudo lançado por Cupertin naquele mesmo ano, População e saúde
pública no Brasil, tinha sido analisado por um técnico de censura do SCDP/RJ cerca de
dois meses antes, sendo também considerada “importuna” sua divulgação, pois ele
objetivaria “denegrir a imagem da política sanitária do governo, numa época em que
todos os esforços têm sido enviados, digo, envidados, para erradicar as endemias nesse
país”.
257
Chamada a opinar sobre as duas obras, a consultoria jurídica do Ministério da
Justiça, entretanto, discordou completamente dos exames anteriores, sugerindo sua não
interdição, pois, além de não atentarem contra a segurança nacional, as mesmas
resultariam de profundos estudos e pesquisas que poderiam, até mesmo, “ser
considerados como uma consolidação de dados oficiais sobre os assuntos abordados.”
258
As mais evidentes contradições no exame dos livros do período se davam entre
as avaliações alarmistas dos órgãos de informações e aquelas dos técnicos de censura da
DCDP e da consultoria jurídica do Ministério, pois, embora esses dois últimos nem
sempre concordassem, seus pareceres eram pautados em concepções menos extremistas
sobre o caráter “subversivo” de determinadas obras. Conforme já mencionado, a
manutenção da crença no perigo eminente do movimento comunista era uma forma
encontrada pela comunidade de informações para justificar a necessidade de sua própria
existência e, nesse sentido, qualquer livro mais crítico para a ordem política era logo
tido como integrante de uma campanha dos setores marxistas. Assim, mais do que
colaborar com a censura política, o que os órgãos de informações procuraram fazer,
sobretudo a partir do início da chamada abertura “lenta, gradual e segura”, foi
pressionar esses outros setores no sentido da interdição de diversas obras, produzindo
256
Informação nº 738/76, da DSI/MJ ao ministro da Justiça, 3 set. 1976. Processo C. 67344. MC/P. Caixa
604/05270.
257
Parecer do técnico de censura Rogério Freitas Fróes, enviado ao Chefe do SCDP/SR/RJ, 15 jul. 1976.
Processo C. 67344. MC/P. Caixa 604/05270.
258
Parecer nº 362/76 do assistente jurídico, Fernando de Carvalho Amorim, enviado ao chefe do gabinete
do Ministério da Justiça, 8 nov. 1976. Processo C. 67344. MC/P. Caixa 604/05270.
108
informações bastante enviesadas sobre as mesmas.
No episódio da verificação censória do livro Moçambique: primeiras
machambas, de Sônia Corrêa e Eduardo Homem, essa discrepância entre as concepções
dos técnicos de censura e as dos órgãos de informações parece evidente. Segundo fica
subtendido numa informação da DSI/MJ, que chamava a atenção para a publicação, o
livro trataria da história da África a partir de um viés ideológico, a partir do qual “a
colonização é particularmente criticada”, sendo o “homem branco” apresentado como
“opressor dos aborígenes” e “introdutor da ‘ideologia individualista do capitalismo”.
Mais do que isso, segundo aquele órgão, seus autores seriam “favoráveis ao regime ora
instaurado em Moçambique”, que teria se iniciado com a luta da Frente de Libertação
de Moçambique contra o domínio português, em 1964, “entidade jungida ideológica e
materialmente ao mundo soviético-cubano”.
259
Diante disso, conforme demandado pelo
ministro Armando Falcão, o diretor-geral do DPF encaminhou à pasta da Justiça os
pareceres de três técnicos de censura da DCDP encarregados de analisar o livro. Todos
eles, invariavelmente, destacaram as positividades da obra, mostrando-se simpáticos à
idéia de sua divulgação.
260
Aliás, é bastante curioso perceber a eventual identificação do censor com a obra
em exame, algo que evidencia, ainda mais, o caráter subjetivo desse tipo de ofício,
marcado, inexoravelmente, pelo modo distinto com que cada indivíduo se apropria dos
textos com que se depara. Tal fato pode ser visto, por exemplo, nos pareceres que uma
técnica de censura fez dos livros The New Left: the anti-industrial revolution, de Ayn
Rand, e Who is Ayn Rand?, de Nathaniel e Barbara Braden. Lendo tais documentos,
podemos perceber como a funcionária da censura parece ter simpatizado com as idéias
de Ayn Rand, autora russa que migrou para os Estados Unidos na primeira metade do
século e defendia uma concepção de mundo extremamente racionalista e favorável à
chamada “revolução tecnológica”. Do primeiro livro mencionado, da própria autora, a
259
Informação nº 600/77, da DSI/MJ ao ministro da Justiça, 20 jul. 1977. Processo C. 100457/77. MC/P.
Caixa 611/05277.
260
De acordo com o primeiro deles, “trata-se de uma edição de grande interesse público por nos dar
informações detalhadas do que foi Moçambique durante sua colonização e nos dez anos que fundaram a
luta pela independência”. Já o segundo concluía que a obra “se reveste de um cunho didático e cultural,
uma coletânea de dados elucidativos que informam e tornam compreensível a realidade africana em suas
diversas etapas históricas”. Finalmente, o terceiro técnico de censura ressaltava que “o livro apresenta
aspectos didáticos, dedicado aos interessados em uma bibliografia atualizada sobre a África”. Ver,
respectivamente, Parecer nº 2020, de Augusto da Costa, 31 ago. 1977. Parecer nº 2090, de Sonia Mendes,
1º set. 1977. Parecer nº 2091, de Solange Vidal, 6 set. 1977. Processo C. 100457/77. MC/P. Caixa
611/05277.
109
censora procurou destacar dois artigos objetivando “dar à chefia uma idéia de como
Ayn Rand formula suas teorias”: o primeiro deles, tratava da “rebelião” dos estudantes
na Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos anos 1960; o segundo, a partir da
interpretação de uma determinada obra de Nietzsche, fazia uma analogia entre os deuses
gregos, Apolo e Dionísio, a chegada do homem à lua e o festival de Woodstock. Assim,
manifestando sua afeição às idéias de Ayn Rand, a funcionária do SCDP destacava que
ela, no primeiro artigo, “analisa e refuta cada crítica dos estudantes com argumentação
perfeita, toda ela baseada na lógica e no respeito ao direito de cada um”.
261
Já no que
concerne ao segundo, que ocupou a maior parte do parecer, fica difícil saber, inclusive,
quais as partes do texto nas quais a mesma está somente tentando esboçar as concepções
da autora daquelas outras em que ela está de fato endossando sua argumentação. Na
maior parte das vezes, entretanto, a segunda opção parece mais plausível, algo que pode
ser exemplificado no seguinte trecho:
Os hippies são uma demonstração viva do que significa ignorar
a razão, dar vazão aos instintos primitivos, intuições e
impulsos. Com isso, foram incapazes de satisfazer seu desejo
de realizar um festival. Precisaram da caridade dos que
precisaram emprestar o terreno para o encontro; dos médicos
que foram socorrê-los; dos automóveis que os transportaram;
das cocas-colas que substituíram a água; e do helicóptero que
levou os cantores; tudo isso não aconteceria se não fossem as
descobertas da civilização tecnológica que eles tanto
condenam. (...) Alguém já disse que o homem tem seus olhos
nas estrelas e seus pés na lama. (...) No festival de Woodstock,
vimos a verdade, lembra a autora, são as emoções irracionais
do homem que o levam à lama, e a razão, às estrelas.
262
Na análise da outra publicação, a censora também não deixava de dar sua
opinião sobre as convicções de Ayn Rand, dizendo que a mesma “professa uma filosofia
bem fundamentada, que se propõe a salvar o capitalismo do caos moral em que se
encontra”. Assim ela concluía a questão:
A filosofia desta autora, segundo o próprio livro, é muito
discutida nos Estados Unidos, contando com profunda
admiração de uns e fanática hostilidade de outros. No Brasil,
ela não tem a mínima repercussão, e mesmo que tivesse, não
haveria perigo de se permitir a propagação dessa filosofia (a
meu ver, com uma única falha – a negação de Deus e,
261
Parecer da técnica de censura do SCDP, Heloísa M. D. d’Oliveira, 13 abr. 1972, fl. 1, PUB.
262
Ibidem, fl. 3.
110
conseqüentemente, de todos os valores espirituais) porque é
contra qualquer regime de força e a favor do capitalismo em
seu esplendor.
263
De fato, a maioria dos processos de censura política de livros se iniciava a partir
da denúncia de um dos órgãos de informações, assim como eram freqüentes as
discordâncias dos outros setores envolvidos naquela prática com suas teses extremistas
sobre as obras em questão. Nesse sentido, em 1978, a DSI procurava informar o
ministro da Justiça sobre o livro Introdução ao fascismo, de Leandro Konder,
considerado “propaganda adversa”. Para aquele órgão, tal publicação representava o
“reaparecimento” do referido autor “no cenário brasileiro”, o qual já tinha sido preso,
pela participação no Comitê Cultural do Partido Comunista, em 1970. O fato de o livro
ter sido editado pela Graal, por seu turno, demonstraria que “intelectuais comunistas
acham-se infiltrados em importante atividade de comunicação social, ao abrigo de
firmas comerciais que funcionam legalmente”, sendo por meio delas que eles “escrevem
e editam obras literárias que têm por escopo tão-somente o embasamento do
proselitismo da doutrina marxista-leninista”.
264
Enviado o processo a um assessor do
ministro, ele considerou “tratar-se de livro de ciência política”, não devendo “merecer”
a atenção dos órgãos de segurança.
265
Naquele mesmo ano, o então ministro-chefe do
SNI (e, depois, presidente da República), João Batista Figueiredo, enviou um
documento a Armando Falcão destacando diversos trechos do livro O governo João
Goulart, de Moniz Bandeira, igualmente caracterizado como “propaganda adversa”.
266
Ainda seriam alvos dos órgãos de informações, naquele final da década de 1970, o livro
As memórias, de Gregório Bezerra,
267
e A liberdade para os brasileiros: anistia ontem e
hoje, de Roberto Ribeiro Martins. Se o primeiro voltava ao país devido à promulgação
da Lei de Anistia, o segundo era visado, justamente, por tratar do “assunto anistia” a
partir de uma ótica que desagradava aos segmentos mais radicais dos militares, sempre
temerosos de um possível “revanchismo” civil contra as práticas mais arbitrárias da
repressão política:
263
Parecer da técnica de censura do SCDP, Heloísa M. D. d’Oliveira, 10 abr. 1972, fl. 2-3, PUB.
264
Informação nº 565/78 da DSI/MJ, 10 jul. 1978. Processo C. 100501/78. MC/P. Caixa 3411/08078.
265
Parecer do assessor José Carlos Silva de Meira Matos ao chefe do gabinete do Ministério da Justiça,
25 jul. 1978. Processo C. 100501/78. MC/P. Caixa 3411/08078.
266
Documento enviado pelo ministro-chefe do SNI ao ministro da Justiça, 17 abr. 1978. Processo C.
100297/78. MC/P. Caixa 3408/08075.
267
Informação (sem indicação da procedência), 10 dez. 1979. Processo C. 100061/80. MC/P. Caixa 3420.
111
O autor, alinhando fatos históricos, apresenta um texto de
conteúdo político dirigido para o momento atual. O enfoque
dado ao problema não fica apenas no sentido real da anistia,
isto é, a participação política da nação, através do
esquecimento, sem julgamento dos atos e fatos que a
precederam. Mais [do] que isso, desvirtuando esse sentido,
coloca a anistia como medida imperiosa para o prosseguimento
da atuação político-ideológica dos que se opuseram ao regime
pelo qual foram punidos.
268
Vale ressaltar, novamente, que nem todos os casos de censura política se
iniciavam nos órgãos de informações, tendo, muitos deles, se originado em pontos
diversos dos governos militares. O processo de A ditadura dos cartéis, de Kurt Rudolf
Mirow, por exemplo, parece ter começado no âmbito da própria Polícia Federal, quando
o diretor-geral daquela instituição procurou avisar o ministro Armando Falcão do perigo
que a referida obra traria à ordem política vigente. Segundo ele, tal publicação retrataria
“a economia brasileira de forma distorcida e tendenciosa, de modo que desacredita o
governo e os princípios que nortearam a Revolução de Março de 1964”. Além disso,
haveria notícias de que tinha sido feita uma encomenda de oito mil exemplares daquele
livro, os quais “serão distribuídos gratuitamente aos oficiais das Forças Armadas”,
provavelmente “numa tentativa de subverter a ordem vigente”.
269
Pouco tempo depois,
devido aquela publicação, seu autor foi alvo de uma denúncia junto à 2
a
Auditoria da
Aeronáutica da 1
a
CJM, mas o Conselho Permanente de Justiça da auditoria acabou
decidindo que a Justiça Militar era incompetente para julgá-lo.
270
Publicado no início de
1977, o livro de Mirow atingiu a sétima edição em menos de um ano e, em 1980, já
estava na décima-nona.
271
Porém, não era somente a comunidade de informações que se sentia à vontade
para reclamar censura política de livros a partir de análises tendenciosas ou
equivocadas. Em 1980, o presidente da Comissão Nacional de Moral e Civismo remeteu
ao ministro da Justiça, Armando Falcão, denúncia contra os livros da coleção Anos 70,
dedicados, cada um dos diversos volumes, a um tipo de expressão cultural daquela
268
Informação nº 190/79, da DSI/MJ ao ministro da Justiça, 9 jul. 1979. Processo C. 100026. MC/P.
Caixa 3417/08084.
269
Ofício nº 537/76-DCDP, do diretor-geral do DPF ao ministro da Justiça, 20 jul. 1976, OS.
270
Ofício nº 57/GAB/PGMP, do procurador-geral da Justiça Militar, Milton Menezes da Costa Filho, ao
ministro da Justiça, 22 set. 1977. Processo C. 100016/77. MC/P. Caixa 606/05272.
271
HALLEWELL, Laurence. Op. cit. p. 503.
112
década (música popular, teatro, literatura, televisão, entre outros). Dizendo ter lido
aqueles que abarcavam a produção literária e teatral do período, o presidente da CNMC
pretendia demonstrar a “inspiração marxista dos referidos trabalhos”, que objetivariam
“colocar [a] arte e a cultura a serviço da subversão”. Isolando trechos do livro de modo
descabido, o presidente daquela instituição produzia avaliações errôneas, valendo a pena
transcrevermos, pelo menos, dois deles:
Referindo-se a um certo Padre Nando: “A revolução direta não
tem sido ainda possível, ele bem poderia voltar ao aprisco, no
sentido de colaborar com o bispo Casaldáliga, com D. Tomás
Balduíno, com D. Paulo Evaristo Arns”.(...) Este outro trecho
mostra a arregimentação de escritores de esquerda para,
aproveitando a abertura, produzirem obras para reforçar a ação
subversiva: “Quanto à publicação de meus trabalhos, posso
dizer que foi um processo diretamente derivado do chamado
boom, fui um dos arregimentados para um mercado potencial
não-ativado”.
272
Ora, o tal “padre Nando” mencionado pelo presidente do CNMC era a
personagem principal do romance Quarup, de Antonio Callado, que, naquela obra,
abandonava a batina em prol do movimento revolucionário. Nesse sentido, o trecho
citado referia-se a uma entrevista com Callado, na qual ele era perguntado sobre o tipo
de vida que Nando supostamente levaria naquele momento de abertura política. O
segundo trecho, por sua vez, era a transcrição de parte da entrevista com o escritor Julio
Cesar Monteiro Martins, no qual ele apenas procurava situar a publicação de seus
trabalhos dentro do chamado boom da ficção que marcou o ano de 1975. Uma
personagem de ficção e a declaração de um autor sobre sua produção intelectual
anterior: eram esses os dois grandes perigos citados pelo presidente do CNMC. Pouco
tempo depois, analisando o documento enviado ao ministro da Justiça, o presidente do
Conselho Superior de Censura não deixou de destacar que o presidente do CNMC
“revela desconhecimento elementar dos temas objeto de sua análise”.
273
Diante disso,
não restou outra saída ao chefe do gabinete do Ministério da Justiça senão a de arquivar
o processo do referido livro, o que foi feito em setembro daquele mesmo ano de 1980.
272
Ofício nº 371/80 – CNMC, do presidente da Comissão Nacional de Moral e Civismo ao ministro da
Justiça, 27 jun. 1980. Processo C. 100096/80. MC/P. Caixa 3421/08088.
273
Parecer do presidente do CSC, Octaciano Nogueira, 5 set. 1980. Processo C. 100096/80. MC/P. Caixa
3421/08088.
113
4.2. Censura política e literatura em meados da década
A conjuntura de meados dos anos 1970, segundo muitos autores que nela
produziram, foi também marcada pela renovação no âmbito da produção literária.
274
Não obstante algumas projeções mais pessimistas sobre a possibilidade de inovação
nesse plano surgissem em fins da década de 1960, sobretudo se considerada a
efervescência que marcou o teatro, a música e o cinema nos anos anteriores, aquele foi
um momento importante de surgimento de novos autores e de certas mudanças estéticas
e formais internas ao campo. Além disso, parece consensual, entre boa parte dos
escritores do período, que o âmbito da literatura foi, de certa forma, menos acometido
pela censura, algo que fez com que as discussões políticas o permeassem mais
fortemente, como uma espécie de escoadouro para o que não podia ser dito no plano
jornalístico. Um dos autores que melhor expressou tal fato e suas razões foi Ignácio
Loyola Brandão:
Não se pode ser ingênuo a ponto de imaginar que o poder
estabelecido não soubesse disso. De certa maneira, sabia e
consentia. Porque, enquanto era grande a vigilância sobre a
televisão, o rádio, o cinema, a música e o teatro, havia em
relação à literatura mais elasticidade. Os governantes não
desconheciam a realidade cultural brasileira. O imenso número
de analfabetos (que eles mantiveram), a pouca leitura, as
edições de livros mínimas e, quem sabe, a certeza de que
nenhum livro coloca armas na mão de ninguém.
275
Como vimos destacando na análise sobre os livros censurados por matéria
política, muitos deles somente não foram sumariamente vetados devido ao
reconhecimento por parte das autoridades censórias de que tal medida poderia ter mais
repercussão do que a própria obra. Segundo dados do censo de 1970, numa população
economicamente ativa de 30 milhões de pessoas, apenas 500 mil poderiam ser
274
Ver os depoimentos de vários escritores que produziram no período em SOSNOWSKY, Saúl,
SCHWARTZ, Jorge (orgs.). Brasil: o trânsito da memória. São Paulo: EDUSP, 1994.
275
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Literatura e resistência. In: SOSNOWSKY, Saúl, SCHWARTZ,
Jorge (orgs.). Op. cit. p. 177. Ver também, além dos outros artigos sobre a literatura do período existentes
na mesma obra, HOLLANDA, Heloísa Buarque de; GONÇALVES, Marcos Augusto. Política e
literatura: a ficção da realidade brasileira. In: FREITAS FILHO, Armando. Anos 70: literatura. Rio de
Janeiro: Europa, 1979. p. 41.
114
consideradas habituais leitores, mas não essencialmente compradores de livros.
276
Nesse
sentido, a literatura tendia a ter um impacto menor se comparado, por exemplo, com a
programação de televisão, e os setores responsáveis pela censura não estavam
desatentos a esse aspecto. Por outro lado, o momento que se seguiu aos primeiros anos
da década de 1970 foi marcado pelo crescimento do mercado para os livros de caráter
político, particularmente no que concerne ao consumo da juventude urbana e setores
médios. É a partir desse dado que alguns autores mencionaram a existência de um boom
na literatura ou de uma sensível expansão do mercado editorial no período.
277
Tal fato,
como não poderia deixar de ser, fez com que a censura também se voltasse mais para a
produção literária, apesar desse tipo de censura nunca ter atingido a intensidade daquela
que acometeu outros segmentos da produção cultural, justamente pelas razões que
mencionamos acima (a censura de livros nunca atingiu o número de obras examinadas e
vetadas no âmbito do cinema e da televisão, por exemplo). E foi também devido à
relativa “politização” das obras literárias, que tivemos mudanças significativas no plano
formal e estilístico dos livros que marcaram aquela conjuntura, sobretudo no que
concerne aos autores estreantes que, mais do que os escritores já consagrados, tiveram
um papel fundamental nesse sentido.
278
De fato, se a censura do campo literário não foi tão intensa quanto aquela que
atingiu outros segmentos de produção cultural ou o jornalismo político, ela também não
se restringiu aos casos mais famosos das interdições de Feliz ano novo, de Rubem
Fonseca, Zero, de Ignácio Loyola Brandão e Em câmara lenta, de Renato Carvalho
Tapajós, como parece ter ficado cristalizado na memória sobre o período.
279
Esses são
importantes casos censórios que procuraremos abordar, os quais nos permitem,
inclusive, perceber quais as concepções sobre esses livros mobilizadas pelos segmentos
envolvidos na prática censória. Sua análise, entretanto, não esgota a questão, sobretudo
se considerarmos o monitoramento feito pelos órgãos de informações de outras
importantes obras literárias do período, algo que é fundamental, também, para
276
Dados da Secretaria de Recita Federal citados em CABRAL, Reinaldo. Literatura e poder pós-64:
algumas questões (outras coisas) ensaios e artigos. Rio de Janeiro: Editora Opção, 1977. p. 17.
277
HOLLANDA, Heloísa Buarque de; GONÇALVES, Marcos Augusto. Op. cit. p. 41.
278
ÂNGELO, Ivan. Nós, que amávamos tanto a literatura. In: SOSNOWSKY, Saúl, SCHWARTZ, Jorge
(orgs.). Op. cit. p. 72.
279
Esses são os casos mais citados e lembrados pelos vários autores que escreveram sobre o período. Para
se ter um exemplo, ver os artigos sobre a literatura dos anos 1970 em SOSNOWSKY, Saúl,
SCHWARTZ, Jorge (orgs.). Op. cit.
115
continuarmos acentuando as diferenças entre os diversos setores que efetuavam a
atividade censória.
Nesse sentido, podemos dizer que tivemos dois processos que coincidiram
naqueles anos: de um lado, uma certa politização e florescimento da produção literária;
de outro, uma intensificação da censura de livros, inclusive literários, com a ascensão de
Armando Falcão ao Ministério da Justiça.
280
Claro está, no entanto, que a preocupação
que a pasta da Justiça teve com os livros não se restringiu à produção literária,
inviabilizando qualquer relação de causa e efeito mais simplificadora da questão (haja
vista a censura de livros acadêmicos e didáticos que já analisamos nos capítulos
anteriores). Por outro lado, não obstante a produção de obras literárias com cunho
político bastante claro tenha sido algo característico daquele período, há que se levar em
consideração o próprio teor político que determinadas discussões no plano
comportamental assumiam para setores como a comunidade de informações, ou mesmo
para grupos de esquerda envolvidos com o processo de resistência à ditadura. Nesse
sentido, a distinção que vimos fazendo, quanto às censuras moral e política existentes
durante os anos 1970, não deve ser compreendida de modo simplista: essas duas
dimensões, muitas vezes, se mesclaram na prática censória do período. Até porque,
conforme já mencionamos, a censura de costumes foi, diversas vezes, utilizada como
um pretexto para se vetar obras tidas como “subversivas” ou “atentatórias à segurança
nacional”.
Assim, obras como Feliz ano novo, cujo processo de censura analisaremos nesse
capítulo, foram proibidas com base na legislação que amparava a censura de costumes,
mas certos aspectos que a caracterizam podem ser considerados também como uma
crítica política ao regime instalado pelos militares. Embora tenhamos de ter o cuidado
de não nos aprisionarmos numa interpretação determinista sobre as obras do período
(que poderia conceber certas características formais ou de conteúdo como relacionadas
apenas ao momento político vivido no país), não devemos ser ingênuos, de outra parte,
de desconsiderar que a violência dos temas e da linguagem mobilizadas nos contos de
Rubem Fonseca, por exemplo, também podem ser tidos como um grito de rebeldia
280
Não concordamos, nesse sentido, com as análises de autores como Renato Franco que, associando o
início da chamada “abertura lenta, gradual e segura” a um suposto fim da censura à literatura, destaca o
florescimento da produção literária nesse período como uma conseqüência direta desse processo.
FRANCO, Renato. O narrador dilacerado: uma análise do romance da época da abertura política. Outras
palavras. v. 2, n. 1, ano 2/out. 2002.
116
política contra os valores autoritários prezados pelos governos militares e os setores que
o apoiavam. Partindo da ótica dos setores que se opunham à ditadura ou, mesmo,
daqueles envolvidos com a repressão censória, acabaremos por nos deparar, em certos
momentos, com a interconexão feita entre as discussões mais propriamente morais e
aquelas de caráter político.
281
Aqueles traços que já mencionamos quando tratamos da censura ao romance Bar
Don Juan, de Antônio Callado, parecem ter se afirmado na produção literária que
marcou o chamado boom de 1975. Refiro-me à tensão entre o realismo e o alegórico: de
uma lado, a necessidade de tentar retratar aquele momento político vivido no país, já
que, no campo jornalístico, a censura operava mais acintosamente; de outro, a
necessidade de utilizar uma mensagem cifrada que não chamasse a atenção do poder
existente. Nesse sentido, o tratamento da realidade política parece ter convivido com a
necessidade de se expressar metaforicamente, dando margem à farta utilização de
elipses, alegorias e alusões. Esse tipo de renovação estilística, diga-se de passagem, não
se manifestou somente na produção literária, sendo conhecido o uso de parábolas e
fábulas nos filmes de Glauber Rocha, nas peças teatrais de Gianfrancesco Guarnieri e
nas canções de Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil.
282
O uso de uma linguagem metafórica para exprimir as mazelas da ditadura
implantada no país, entretanto, não evitou a proibição de Zero, famoso romance de
Ignácio Loyola Brandão. Segundo o próprio autor, aquele é um livro “sobre a violência
dos tempos, com a denúncia da tortura, do esquadrão da morte, da repressão intensa, do
caos em que se encontrava o Brasil”.
283
Escrito durante parte da ditadura militar (1964-
1973), a obra de Brandão foi inicialmente rejeitada por diversas editoras brasileiras,
tendo sido publicada pela italiana Feltrinelli, em 1974. Um ano depois, a Editora
Brasília/Rio resolveu lançar o livro e, em 1976, ele foi proibido. Caso claro de como a
censura de costumes foi utilizada para a interdição de livros que se opunham ao regime
político existente, Zero somente voltou às livrarias em 1979, tendo sido, segundo o
281
É nessa medida que optamos por tratar, nesse capítulo, da censura a certas obras como Feliz ano novo
e, também, de outras cujas discussões comportamentais foram vistas como tendo caráter “subversivo”
pelos órgãos governamentais. Tal opção se explica, ainda, pela importância dos contos de Rubem Fonseca
dentro da produção literária do período, algo que acaba tornando mais interessante sua análise no quadro
das mudanças que se abateram sobre esse plano naquela conjuntura.
282
GALVÃO, Walnice Nogueira. As falas, os silêncios (literatura e imediações: 1964-1988). In:
SOSNOWSKY, Saúl, SCHWARTZ, Jorge (orgs.). Op. cit. p. 192.
283
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Op. cit. p. 177.
117
autor, “o primeiro livro liberado, dos quase quinhentos que chafurdavam no index dos
que atentavam contra ‘a moral e os bons costumes”.
284
O romance político foi uma das características da produção literária dos anos
1970. Nem todos eles conseguiram passar incólumes pela censura. Alguns, talvez por
sua maior preocupação com a linguagem, para além do teor crítico, conseguiram
circular sem chamar a atenção dos órgãos de informações: é o caso, por exemplo, de A
Festa, de Ivan Ângelo. O mesmo pode ser dito de romances como Armadilha para
Lamartine, de Carlos Sussekind, e Quatro-Olhos, de Renato Pompeu, os quais
trabalharam um tema que, segundo Holanda, foi caro às manifestações da contracultura
brasileira: a questão da loucura.
285
Ainda no âmbito dos livros que podem ser tomados
como bastante críticos à realidade brasileira, mesmo que tal aspecto, em certos casos,
possa parecer eclipsado pelo seu caráter alegórico e sua linguagem rebuscada,
poderíamos destacar Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, e Sargento Getúlio, de João
Ubaldo Ribeiro. Nem todos os romances políticos do período, entretanto, ficaram à
margem do processo censório.
Esse foi o caso de Em câmara lenta, livro do cineasta e jornalista Renato
Carvalho Tapajós que, além da apreensão de seu romance, sofreu a violência do cárcere
e da tortura devido à sua militância política. Preso em fins dos anos 1960 pela Oban, o
autor escreveu boa parte do livro no presídio Carandiru, sendo posto em liberdade
condicional em 1974. Quando Em câmara lenta foi publicado, em 1977, Tapajós foi
novamente encarcerado, desta vez pela DOPS de São Paulo, sob a ordem do secretário
de segurança pública daquele estado, Antônio Erasmo Dias, que classificou o livro
como “uma verdadeira cartilha de guerrilha urbana”.
286
Com uma mensagem mais
direta, traço característico do chamado “romance-reportagem” que marcou o período,
287
e talvez devido à própria escolha temática, tratando da insurgência da guerrilha urbana
entre 1964 e 1973, a obra de Tapajós tornou-se alvo fácil para os órgãos de informações
da ditadura militar. Nesse sentido, em agosto daquele ano, o ministro-chefe do SNI,
João Batista Figueiredo, encaminhou uma informação a Armando Falcão sobre o livro,
284
Ibidem, p. 176.
285
HOLLANDA, Heloísa Buarque de; GONÇALVES, Marcos Augusto. Op. cit. p. 63.
286
Escritor está preso em São Paulo. Zero Hora, 30 jul. 1977. Processo C. 100743 /77. MC/P. Caixa
614/05280.
287
MIGUEL, Salim. Apresentação. In: MACHADO, Janete Gaspar. Constantes ficcionais em romances
dos anos 70. Ed. da UFSC, 1981. p. 7.
118
destacando que ele
encerra, em seu conteúdo, uma apologia lírica, romântica,
apaixonada e fanática do terrorismo, da subversão e da luta
armada, procurando, fundamentalmente, caracterizar uma
legitimidade por parte das ações violentas de grupos
extremistas em detrimento das missões constitucionais dos
órgãos de segurança, sempre retratados como ignorantes,
sanguinários e, sobretudo, anti-populares. (...) A obra é feita
dentro da dialética marxista, tendo como doutrina a moral e a
ética comunista (...). A obra, escrita em linguagem clara e bem
disposta, mesclando descrições de “ações revolucionárias” com
um lirismo romanceado (...), encerra uma inteligente
mensagem subliminar, capaz de atrair mentes em formação ou
alienadas, geralmente encontradas entre os mais jovens,
inexperientes e desconhecedores das reais atividades e
finalidades de um movimento de cunho subversivo.
288
Como se vê, novamente os órgãos de informações procuravam atuar
denunciando obras e autores. Àquela altura, entretanto, o ministro Armando Falcão já
tinha proibido a circulação do livro de Tapajós em todo o território nacional.
289
Sua
primeira edição, por outro lado, já estava esgotada quando o ato proibitório foi baixado,
durando apenas quatro dias.
290
A informação do SNI acabou chamando a atenção do
ministro para o processo censório de outro livro também editado pela Alfa-Ômega
naquele momento, qual seja, Não passarás o Jordão, de Luiz Fernando Emediato. A
primeira parte do livro de Emediato, inclusive, é demonstrativa de como a utilização de
subterfúgios lingüísticos para se referir à atualidade política do país era algo utilizado
em parte da produção literária do período, apesar da segunda metade da obra, por seu
conteúdo crítico mais explícito, provavelmente ter chamado a atenção da comunidade
de informações. Nesse sentido, o caráter implícito do conteúdo contestatório da primeira
parte não foi o bastante para burlar a vigília dos órgãos de informações, sendo ela
mesma identificada como “subversiva”.
De fato, Emediato era um jovem escritor mineiro que, em 1971, quando tinha 19
anos, ganhara o famoso prêmio do Concurso Nacional de Contos do Paraná (que já
havia premiado autores como Dalton Trevisan, Rubem Fonseca e Lygia Fagundes
288
Informação enviada pelo ministro-chefe do SNI, João Batista Figueiredo, ao ministro da Justiça, 4 de
out. 1977. Processo C. 100743/77. MC/P. Caixa 614/05280.
289
Parecer do chefe do gabinete, Walter Costa Porto, ao ministro da Justiça, 11 dez. 1977. Processo C.
100743/77. MC/P. Caixa 614/05280.
290
Segundo Laurence Hallewell, Em câmara lenta foi liberado por Armando Falcão exatamente um dia
antes dele deixar o Ministério da Justiça. HALLEWELL, L. Op. cit. p. 502.
119
Telles). A parte da sua obra que pode ser tomada como uma crítica veemente à realidade
política, feita por meio de uma linguagem caracterizadamente alegórica, chamada Os
dragões do trigésimo primeiro dia, foi assim interpretada na informação que Figueiredo
enviou ao ministro Falcão:
Livro I – Os Dragões do Trigésimo Primeiro Dia, onde
Artaroth, deus da guerra e da maldade, e seus generais
venceram Emanuel, entidade do bem que “morreu antes de
expulsar todos os poderosos”, deixando Artaroth “protegendo
os porcos e oprimindo os miseráveis”, preparando, assim, a
opinião do leitor para, na 2º parte, caracterizar esses dois
contendores como sendo o Governo Revolucionário e seus
órgãos de segurança, de um lado, e os subversivos e seus
defensores, do outro.
291
Como se vê, guardado o caráter enviesado da interpretação, a linguagem
alegórica de Emediato foi logo identificada pelo ministro-chefe do SNI. Na segunda
parte do livro, Não passarás o Jordão, Emediato procura contar a história de uma jovem
comunista que foi presa e torturada, misturando realidade e ficção ao intercalar tal
narrativa com a transcrição do depoimento da vítima retratada na personagem e de
outros documentos como discursos feitos no Congresso Nacional contra as práticas da
tortura política e laudos periciais sobre a morte de Vladimir Herzog. Essa é, certamente,
uma parte do livro que o aproxima mais do teor jornalístico, presente em muitos outros
de caráter literário do período, não obstante a preocupação de se exprimir
metaforicamente seja bastante marcante em Os dragões do trigésimo primeiro dia. De
conteúdo “contestatório” mais facilmente identificável, esse momento do texto, assim
como o caráter alegórico dos contos da parte anterior, também foi destacado na
informação do SNI:
O autor usou, inicialmente, a figura de um local imaginário
onde imperava o terror, as trevas, a tortura de estudantes e a
exploração dos trabalhadores para, depois, caracterizar como
sendo o Brasil. (...) Nessa caracterização procurou, através de
perícias, cartas e declarações – documentos reais - dar cunho
de veracidade aos depoimentos e denúncias de subversivos que
autenticavam as paródias contidas nos contos. (...) O autor põe
em dúvida a idoneidade dos oficiais e dos peritos que
concluíram pelo suicídio de Vladimir Herzog, procurando
caracterizá-los como simples beleguins do “sistema opressor”
291
Informação enviada pelo ministro-chefe do SNI, João Batista Figueiredo, ao ministro da Justiça, 28
jul. 1977. Processo C. 1000506/77. MC/P. Caixa 612.
120
que ele denuncia em seu livro.
Embora a informação do SNI demandasse que o autor fosse “controlado” e
indiciado na LSN, o processo censório da obra foi encaminhado ao grupo de trabalho
encarregado de analisar os critérios e os casos de censura política de livros. Dada a
precariedade do serviço, é provável que o mesmo não tenha chegado a ser sequer
examinado por essa comissão. Foi levantado, ainda, o prontuário dos responsáveis pela
editora Alfa-Ômega, concluindo-se que os mesmos “exercem, em sua maioria,
atividades de magistério na área de Ciências Humanas”. Tal fato, portanto, viria a
ratificar “informações anteriormente difundidas de que a área das Ciências Humanas e
Sociais, pelos temas que lhe são peculiares, é a que mais tem se prestado à pregação de
cunho subversivo e contestatório”.
292
Em 1978, outro livro de Luís Fernando Emediato
seria visado: A rebelião dos mortos. Apesar de premiado em 1977, o livro foi proibido
no ano seguinte.
293
Um dos traços sempre mencionados da produção literária dos anos 1970 é a
adoção de um discurso de teor jornalístico, marcado pelo desejo de retratar a realidade
brasileira de modo objetivo, direto, dando ênfase ao fato documentável, ao depoimento.
Para alguns escritores, tal “supervalorização do jornalístico” acabou por ocasionar uma
literatura frágil, pouco afeita às preocupações com a linguagem, com o plano estilístico
e formal. Poderíamos descrever aqui a opinião de vários autores nesse sentido,
294
mas
talvez seja melhor destacarmos somente o depoimento de Ana Maria Machado, que
parece bastante ilustrativo da questão. Segundo essa autora, havia de fato uma espécie
de “mal-estar” com relação às obras que enveredavam por uma maior sofisticação da
linguagem, algo que fazia com que os escritores, durante a ditadura, sentissem uma
dupla vergonha:
De um lado, vergonha de se preocupar com a valorização
estética ou a qualidade artística do texto – basta lembrar como
292
Informação (sem identificação da procedência), 5 set. 1977. Processo C. 1000506/77. MC/P. Caixa
612.
293
SUSSEKIND, Flora. Op. it. p. 26.
294
Para Fábio Lucas, “na área da literatura, desdenharam-se as regras de produção literária, baseadas nos
exemplos e nas buscas, que representam o refinamento de séculos de prática da escrita, como se fosse
possível liberar conteúdos de protesto social sem a co-respectiva pesquisa de expressão. Tivemos uma
alavancada de obras-depoimentos, obras-reportagens, de valor inexpressivo, pois elaboradas dentro de
uma técnica reducionista”. LUCAS, Fábio. A crise da cultura literária no Brasil pós-64. In:
SOSNOWSKY, Saúl, SCHWARTZ, Jorge (orgs.). Op. cit. p. 136.
121
Reflexos do baile, de Antônio Callado, foi criticado por sua
sofisticação estilística, como se torce a cara para Nélida Piñon
por sua rigorosa valorização da linguagem, como o próprio
Zero, de Loyola, embora defendido por ser vetado, foi tantas
vezes cobrado por sua renúncia à linearidade, muitas vezes em
patrulhamento dos próprios escritores em debates públicos ou
palestras com estudantes, levando ao que Autran Dourado
definiu como “o mito brasileiro do escritor ignorante”, do autor
que se orgulha publicamente de não conhecer a língua, de não
elaborar seu texto com cuidado, e que se recusa a aprofundar
reflexões incômodas, ou, como ele diz, a “meditar e pensar”.
295
Assim, muitas das obras do período se caracterizaram pelo entrecruzamento do
caráter mágico do discurso ficcional e a objetividade dos esquemas de linguagem
jornalística, tenha isso sido feito com maior ou menor qualidade. Os livros mais
explícitos foram visados pela censura do período que, deparando-se com uma
linguagem mais direta e menos rebuscada, talvez tenha tido maior facilidade de
encontrar um “conteúdo contestatório” (não obstante a fragilidade da feitura de uma
relação direta entre essas questões, conforme já mencionamos). Foi o caso, por
exemplo, de dois romances-reportagens de José Louzeiro, autor que lançou mão de
maneira exemplar das técnicas jornalísticas na prosa de ficção. Uma de suas obras mais
conhecidas, Aracelli, meu amor, foi censurada em 1976 e narrava a história de Aracelli
dos Santos, uma menina de oito anos que foi vítima de um violento crime no estado do
Espírito Santo, em 1973. Procurando relatar de modo bastante crítico o caso da menina
Aracelli (que, antes de morrer, além de seqüestrada, foi drogada e estuprada), o livro de
Louzeiro trazia consigo uma forte crítica à precariedade do sistema judiciário e policial,
denunciando, ainda, toda a estrutura perversa das redes de exploração e abuso sexual de
crianças e adolescentes. Foi o bastante para o livro ser apreendido. Um outro importante
romance de Louzeiro, Lúcio Flávio: o passageiro da agonia, também passou pela
avaliação da censura, salvando-se por muito pouco do ato proibitório.
O livro de Louzeiro foi examinado pelos técnicos de censura da DCDP
conjuntamente com O caso Lou: assim é se lhe parece, do jornalista e escritor Carlos
Heitor Cony, ambos editados pela Civilização Brasileira, em 1975. Nesse sentido, o fato
de os três censores que analisaram a obra de Cony terem sugerido sua não proibição
acabou por ajudar a liberação de Lúcio Flávio: o passageiro da agonia, que dividiu a
295
MACHADO, Ana Maria. Da resistência à transição. In: SOSNOWSKY, Saúl, SCHWARTZ, Jorge
(orgs.). Op. cit. p. 83. Também no campo da dramaturgia Flora Sussekind apontou a fragilidade estética
dos “cacoetes literários antiautoritários”. SUSSEKIND, Flora. Op. cit. p. 27.
122
opinião dos censores. O livro de Cony tratava da história da universitária Maria de
Lourdes, acusada de matar dois ex-namorados a pedido do seu noivo, Vanderlei, na
Barra da Tijuca (Rio de Janeiro). Assim, destacando que o fato era amplamente
conhecido, os censores praticamente não fizeram nenhuma observação negativa sobre a
obra (somente um deles destacou que a linguagem, por vezes, tornava-se “agressiva”),
tendo o primeiro, inclusive, opinado “elogiosamente” sobre Cony e seu livro:
O livro acima foi escrito pelo conhecido e talentoso repórter e
romancista C. H. Cony, autor de diversos livros. Agora, com
toda sua argúcia, resolve reconstituir esse episódio criminal, já
tão divulgado e conhecido de todos, através de inúmeras
reportagens em revistas e jornais do país. Procura mostrar a
verdade de cada um dos personagens envolvidos nessa trama
de amor e ódio. Não julga nem acusa, apenas expõe os fatos,
para que cada um interprete como queira.
296
Algo bem diferente aconteceu com o livro de Louzeiro. Examinado por quatro
técnicos de censura, ele logrou, no máximo, um “empate técnico”, havendo indicações
de restrições mesmo nos pareceres daqueles dois censores que sugeriram sua liberação.
O curioso, nesse sentido, é que os dois técnicos de censura que opinaram pelo veto
foram os mesmos que examinaram o livro de Cony. De fato, a obra de Louzeiro
procurava retratar a vida de Lúcio Flávio, um conhecido assaltante carioca que, antes de
morrer, denunciou para um repórter a existência de agentes policiais que o protegiam no
mundo do crime. Nesse sentido, para além de tratar dos aspectos mais anedóticos da
vida de Lúcio Flávio (suas prisões e fugas curiosas), o livro de Louzeiro tocava fundo
em questões muito mais caras aos governos militares, ressaltando não só as mazelas do
sistema penitenciário brasileiro e a promiscuidade e corrupção de parte da instituição
policial, mas o próprio processo de marginalização engendrado pela ordem social
existente. Não foi por menos que todos os quatro pareceres destacaram o caráter crítico
do livro em relação ao sistema carcerário e ao organismo policial como um aspecto
negativo da obra, embora aqueles que sugeriram sua liberação tenham destacado que
esse tipo de questão não deveria ser considerada para efeito de proibição.
297
Já um dos
296
Parecer nº 846/76, da técnica de censura do SCDP, Maria Ribeiro de Almeida, 18 maio 1976, PUB.
297
Para o primeiro caso ver Parecer nº 812/76, do técnico de censura do SCDP, Augusto da Costa, 12
maio 1976, PUB. Parecer nº 861/76, da técnica de censura do SCDP, Maria Ribeiro de Almeida, 10 maio
1976, PUB. Para o segundo consultar Parecer nº 324/76, do técnico de censura do SCDP, Hellé Prudente
Carvalhêdo, 24 jun. 1976, PUB. Parecer nº 325/76, de J. Antonio S. Pedroso, 24 jun. 1976, PUB.
123
censores que opinou pelo veto não se constrangeu em infringir a legislação censória:
Mensagem: Negativa, pois, alem de mostrar os vários modos
de assaltos a bancos, apresenta o bandido com uma auréola de
bom moço e a polícia como única culpada do mesmo ter
enveredado pelo caminho do crime. Além do mais, desmoraliza
completamente o aparelho policial, apresentando alguns de
seus integrantes como corruptos e coniventes com o bando de
Lúcio, ainda assim, como tarados praticando torturas que só
mesmo em mentalidades doentias poderiam ser inventadas,
pois os policiais não satisfeitos com as violências corporais,
sujeitavam os detidos, homens e mulheres, a aberrações
sexuais, inclusive com um cachorro. O palavreado, em quase
todo o texto, é do mais baixo calão, pornográfico. (...)
Conclusão: Nada de aproveitável no livro examinado (...).
298
O outro técnico de censura que opinou pela proibição do livro enveredou pelo
mesmo tipo de crítica, não obstante pareça ter desconfiado que as denúncias contra o
delegado e o inspetor encarregados do caso de Lúcio Flávio fossem verídicas. Assim, as
“acusações” a essas personagens, segundo o censor, teriam sido feitas “com tal
habilidade e astúcia que se chega a duvidar que seja fruto apenas da imaginação fértil do
autor. Os fatos são evidentes e mostram os métodos monstruosos praticados nas
delegacias e presídios”.
299
Depois do exame dos técnicos de censura, os livros de
Louzeiro e Cony foram encaminhados, conjuntamente com seus pareceres, ao
Ministério da Justiça pelo diretor-geral do DPF, Moacyr Coelho, que ressaltou não saber
se a existência de “25 palavras de baixo calão” no primeiro deles seria o bastante para
vetá-lo como “atentatório à moral e aos bons costumes”. Coelho destacou, ainda, a
possível ineficácia de se baixar o ato proibitório, pois “o livro em si já cumpriu a
finalidade proposta e a sua proibição a essa altura somente viria aumentar a curiosidade
popular em torno do criminoso, ensejando outras publicações do gênero e estimulando o
destaque de casos semelhantes”.
300
O chefe do gabinete do ministro também aconselhou
Falcão a não impedir a circulação normal dos livros e, assim, o processo foi
arquivado.
301
Porém, dado o teor dos pareceres sobre Lúcio Flávio: o passageiro da
agonia, percebe-se que faltou pouco para o livro ser interditado.
Pouco depois, a EMBRAFILME consultava o diretor da DCDP sobre a
298
Parecer nº 812/76, do técnico de censura do SCDP, Augusto da Costa, 12 maio 1976, PUB.
299
Parecer nº 861/76, da técnica de censura do SCDP, Maria Ribeiro de Almeida, 10 maio 1976, PUB.
300
Ofício nº 508/76-DCDP, do diretor-geral do DPF ao ministro da Justiça, 8 jul. 1976, OS.
301
Documento do chefe do gabinete, Alberto Rocha, ao ministro da Justiça, 26 jul. 1976, PUB.
124
“conveniência” de participar como co-produtora do filme homônimo ao livro de
Louzeiro, gerando um novo parecer sobre a possibilidade de transformação do romance
em roteiro cinematográfico.
302
Nele, dois censores mencionavam que o filme até podia
ser liberado, mas somente a partir da aceitação de uma série de exigências visando
minorar o impacto que esse outro meio de comunicação poderia causar: a personagem
Lúcio Flávio deveria arrepender-se de seus crimes e estilo de vida, se conscientizar do
mal que causou a seus familiares e demonstrar seu firme propósito de regenerar-se; já as
figuras de Moretti, Bechara, Carcará e 132 (autoridades policiais da trama) não
deveriam ser apresentados como “verdadeiros policiais”, em serviço normal, pois no
livro eles apareceriam sempre como “verdadeiros gângsteres”; deveriam ser reduzidas
as cenas em que aparecem planos de assaltos e revoltas na penitenciária;
303
a cena na
qual Lúcio Flávio aparecia sendo torturado deveria ser “simplificada” e descaracterizada
como uma ação que se passou numa delegacia de polícia.
304
Enfim, mais um pouco e os
censores mudariam todo o sentido do filme. Com o roteiro de José Louzeiro, Jorge
Duran e Hector Babenco (que se encarregou também da sua direção), Lúcio Flávio: o
passageiro da agonia acabou sendo posto em circulação com a produção e distribuição
da EMBRAFILME no ano de 1977, logrando grande sucesso de público.
Além do livro de Louzeiro, outros romances de caráter jornalístico também
foram visados pelos órgãos de informações ou pelo “serviço censório” em meados dos
anos 1970. O famoso A Ilha: um repórter brasileiro no país de Fidel Castro, do
jornalista e escritor Fernando Moraes, por exemplo, estava entre os diversos livros que
compunham a lista de obras a serem examinadas no âmbito do Ministério da Justiça, em
1977.
305
Falar sobre Cuba naquela conjuntura era arriscado, mas o tema atraía um
público curioso sobre “o país de Fidel Castro”: o livro não foi proibido e entrou para a
lista dos best-sellers pouco depois do seu lançamento (1976), chegando a atingir, em
1980, a marca de 146.000 exemplares, com 16 edições.
306
Um veto à obra naquele
momento, portanto, certamente teria grande repercussão. Outro livro jornalístico que
302
Ofício DG/310/76, do diretor geral da EMBRAFILME, Roberto Farias, ao diretor da DCDP, 2 ago.
1976, PUB.
303
Um aspecto curioso, nesse sentido, era a exigência feita pelos censores de que, em cenas como essas,
os presidiários aparecessem atirando antes dos policiais. Com isso, eles pretendiam deixar claro que
foram os presos que geraram a repressão.
304
Parecer nº 326/76, de Hellé Prudente Carvalhêdo e J. Antonio S. Pedroso, 24 jun. 1976, PUB.
305
“Relação de processos acompanhados de livros para apreciação”. Processo C. 100292, 2 jun.1977.
MC/P. Caixa 610/05276, fl. 34.
306
HALLEWELL, Laurence. Op. cit. p. 500.
125
também tocava em uma questão cara aos governos militares, tendo preocupado os
órgãos de informações, foi A sangue quente: a morte do jornalista Vladimir Herzog, de
Hamilton Almeida Filho. Lançado em 1978, a obra tratava de um evento que se tornou
um marco do chamado processo de abertura política, qual seja, a morte do jornalista
Vladimir Herzog, em 1975, nas dependências do DOI-CODI de São Paulo.
Assim, ao demonstrar a fragilidade da versão oficial sobre o caso, que apostou
numa inacreditável tese de suicídio por enforcamento (na foto apresentada à imprensa, o
diretor de jornalismo da TV Cultura aparecia pendurado pelo pescoço por um cinto
numa grade mais baixa do que ele), o livro foi alvo de uma informação do SNI quando
ainda estava no prelo,
307
sendo, pouco depois, examinado pela assessoria do SIGAB de
São Paulo. No parecer dessa última, a “mensagem principal” da obra era identificada
como “a inexistência de segurança total e absurda para o cidadão comum”. Havia ainda,
entretanto, as “mensagens secundárias ou paralelas”, também listadas no documento:
1. existe um total desrespeito ao direito do cidadão; 2. o
desrespeito é gerado pela ausência de democracia e do primado
do Direito e da Justiça; 3. sendo assim, a repressão ilegal,
injusta e violenta impera sem controle; 4. pois o governo não a
domina por fraqueza ou omissão, podendo, até mesmo, ser
conivente com ela; 5. os órgãos de segurança são desonestos
(não foi dada credibilidade aos atestados ou declarações
oficiais) e neles não se pode confiar; 6. apesar de tudo, existe
uma profunda e firme união entre os fracos e oprimidos que
permite a esperança de uma mudança no processo.
308
Apesar disso, o parecer concluía que era “tolerável” a circulação do livro, mas
somente se “acompanhada de medidas reorientadoras da opinião pública”, até porque,
“na ocasião, as declarações oficiais ficaram em nível de credibilidade muito baixo, não
tendo havido um esclarecimento eficiente da opinião pública”. Cerca de dois meses
depois, outra informação provinda dos órgãos de informações chegava ao Ministério da
Justiça sobre a obra, tida como inserida numa “campanha que está sendo encetada por
entidades e elementos esquerdistas de São Paulo, visando provar a cumplicidade do
Estado na morte de Vladimir Herzog”. O documento ainda mencionava, curiosamente,
traços típicos da prática jornalística como uma suposta estratégia do autor para que seu
307
Documento do assessor, José Carlos Silva de Meira Mattos, ao chefe do gabinete do Ministério da
Justiça, 17 fev. 1978. Processo C. 100118/78. MC/P. Caixa 3407/08074.
308
Parecer da assessoria do SIGAB/SR/SP, 28 abr. 1978. Processo C. 100118/78. MC/P. Caixa
3407/08074.
126
livro não parecesse “subversivo”:
Hamilton Almeida Filho, inteligentemente, apresenta sua obra
pautada em “verdades ditas por outros”, ou seja, sua missão
constituiu-se em reunir depoimentos, reportagens e, até mesmo
laudos oficiais do IML e IPT da SSP/SP, onde aparece o nome
do Cap. Ubirajara
como requisitante dos mesmos, de modo que
sua “criação” não pudesse ser caracterizada como uma obra
“subversiva”, pois ele nada disse, apenas coligiu, organizou e
expôs “idéias de terceiros”, inclusive de autoridades da área.
[grifado no original]
309
A maior parte dessas obras não chegou ser proibida, apesar de ter passado pela
censura ou pelo monitoramento da comunidade de informações. A simples passagem
por essas instâncias, de fato, é demonstrativa das tentativas de controle sobre a
circulação de livros, sendo sua análise fundamental para uma melhor compreensão da
censura praticada no período. Ainda nos anos 1970, outras reportagens também
passaram pelos agentes dos órgãos de informações, entre elas Dos porões da delegacia
de polícia, de Marionósio Trigueiros Filho, que, segundo documento da DSI, seria
lançada em 1979 como “um livro-denúncia que visa alertar a opinião pública sobre
aspectos contundentes do organismo policial-repressivo nacional”.
310
Não parece
preciso destacar porque tal assunto incomodava a esses setores mais extremistas dentro
dos governos militares.
Provavelmente o caso mais conhecido de censura no âmbito literário durante a
ditadura militar tenha sido o da proibição do livro de contos de Rubem Fonseca, Feliz
ano novo, em 1976. Publicado pela editora Artenova um ano antes, o quarto livro de
contos de Rubem Fonseca trazia como marca aqueles que seriam traços fundamentais da
produção ficcional do autor: a exploração da temática da violência e do erotismo por
meio de personagens que têm anseios repentinos de crueldade, refletindo com grande
acuidade a realidade social dos centros urbanos do país. Explorando situações como a
de três assaltantes que resolvem fazer um furto na noite de ano novo e regojizam-se com
o assassinato de grã-finos (no conto que dá nome ao livro) ou histórias como a de um
executivo que se distrai atropelando pessoas pelas noites do Rio de Janeiro (Passeio
309
Informação ao ministro da Justiça, 9 jun. 1978 (não foi possível identificar a procedência da
informação). Processo C. 100459/78. MC/P. Caixa 3411/08078.
310
Informação nº 916/78, da DSI/MJ ao ministro da Justiça, 6 dez. 1978. Processo C. 100871/78. MC/P.
Caixa 3540/00010.
127
noturno, partes I e II), o livro de Rubem Fonseca foi logo taxado de imoral pelo técnico
de censura que o examinou (no processo da obra somente consta o exame de um técnico
de censura, demonstrando o caráter assistemático da censura de livros). O caso de Feliz
ano novo, na verdade, já foi pormenorizadamente analisado por outros analistas.
311
Vale
destacar, no entanto, alguns aspectos pouco sabidos sobre o desenrolar inicial do
processo censório do livro.
A primeira manifestação de preocupação com a referida obra adveio do SCDP
do Ceará, que encaminhou um exemplar da mesma ao diretor da Divisão de Censura
pedindo uma resposta urgente, pois “esse livro está sendo discutido na Universidade do
Ceará pelos alunos, com o acordo do professor da turma”.
312
De modo semelhante, a
DSI/MJ dirigiu-se ao ministro da Justiça mencionando, ainda, que o referido docente
seria “contumaz em distribuir e indicar textos eivados de idéias extravagantes para
análise e discussão de seus alunos” e que Feliz ano novo, “além de seu pobre conteúdo,
apresenta linguajar tão baixo e chulo que se custa acreditar que haja obtido permissão à
sua comercialização”.
313
O livro foi, em seguida, encaminhado para o “exame
censório”, sendo objeto de um parecer sucinto, mas contundente:
O presente livro de Rubem Fonseca (...) retrata, em quase sua
totalidade, personagens portadores de complexos, vícios e
taras, com o objetivo de enfocar a face obscura da sociedade na
prática da delinqüência, suborno, latrocínio e homicídio, sem
qualquer referência a sanções. (...) O autor utilizou-se de uma
linguagem bastante popular, onde a pornografia foi largamente
empregada, como pode ser constatado nas 35 páginas
assinaladas (...) Por outro lado, nas páginas 31, 139 e 141, são
feitas rápidas alusões desmerecedoras aos responsáveis pelo
destino do Brasil e ao trabalho censório.
314
Opinando pela proibição do livro, o parecer citado trazia consigo uma questão
cara às análises censórias, qual seja, a concepção de que as obras que retratassem
personagens criminosos ou “pervertidos sexuais” tivessem, necessariamente, que trazer
consigo algo como sua punição ao final da trama (ou, ainda, seu arrependimento dos
311
Consultar SILVA, Deonísio da. Nos bastidores da censura – sexualidade, literatura e repressão pós-64.
São Paulo: Estação Liberdade, 1989. ______. Rubem Fonseca: proibido e consagrado. Rio de Janeiro:
Relume Dumara, 1996.
312
Ofício nº 80/76-SCDP/SR/CE, do chefe do SCDP/SR/CE ao diretor da DCDP, 15 out. 1976, PUB.
313
Informação nº 1000/76, da DSI/MJ ao ministro da Justiça, 25 nov. 1976. Processos C. 73543/76.
MC/P. Caixa 605/05271.
314
Parecer nº 594/76, de Raymundo E. de Mesquita, 3 dez. 1976, PUB.
128
“desatinos” cometidos). Assim, todas as obras pareciam ter de se pautar por um
didatismo ingênuo para supostamente demonstrar que o crime não compensa. A “não
referência a sanções” aos personagens delituosos de seus contos, por outro lado,
continuou sendo o argumento utilizado para a manutenção do veto à obra de Rubem
Fonseca, proibida em dezembro daquele mesmo ano de 1976 (e somente liberada cerca
de 13 anos depois, em 1989, após o autor ter passado por uma longa jornada de disputas
judiciais contra o despacho do ministro Armando Falcão). Certamente, a interdição de
Feliz ano novo acabou por gerar uma maior repercussão da obra, tornando Rubem
Fonseca um autor ainda mais conhecido e dos mais representativos do chamado boom
da ficção pós-75.
Outro autor importante que também enfrentou problemas com a censura foi
Dalton Trevisan, cujo conto Mister Curitiba teria sido vetado juntamente com O
cobrador, de Rubem Fonseca, por conta do Prêmio Status de Literatura (patrocinado
pela revista Status, dirigida por Gilberto Mansur), em 1979. O conto de Trevisan, na
verdade, já tinha sido objeto de preocupação da censura desde 1976, quando obteve o
primeiro lugar no I Concurso Nacional de Contos Eróticos. Naquela ocasião, o então
diretor-geral do DPF, Moacyr Coelho, chamava a atenção do ministro Armando Falcão
para o fato do referido conto narrar “uma relação sexual anormal, que se me afigura
infringente da proibição enunciada no artigo 1
o
do decreto-lei n. 1077, de 1970”. É
provável, aliás, que a obra não tenha sido vetada nesse período somente em função da
relevância do concurso, cuja banca julgadora era composta por Jorge Amado, Fausto
Cunha e Gilberto Mansur. Era isso, pelo menos, que Coelho procurava deixar claro para
o ministro Falcão, pedindo que ele considerasse a questão na hora de julgar pela
proibição ou não do conto vencedor do concurso, pois “qualquer medida restritiva da
censura poderá causar manifestação de protesto, com repercussão negativa para o
governo, em virtude de impor verificação prévia a uma produção literária selecionada
por renomados escritores brasileiros”.
315
Assim como no caso do livro de contos de Rubem Fonseca há pouco citado,
outras obras também preocuparam os órgãos de informações por sua utilização com
finalidade didática. Em 1977, Para ler e pensar, de Hermann Hesse, foi considerado um
livro perigoso, que faria “abertamente a pregação marxista”, procurando “estabelecer,
315
Ofício nº 520/76-DCDP, do diretor-geral do DPF ao ministro da Justiça, 13 jul. 1976, OC.
129
como única solução para os problemas da humanidade, a ideologia comunista”. O maior
problema, entretanto, era que o mesmo estaria sendo recomendado como “boa leitura”
para os alunos de algumas escolas do Rio de Janeiro.
316
Já o livro de contos de Jair
Vitória, Cuma João, publicado em 1976, estaria sendo empregado num colégio da Ilha
do Governador, também no Rio de Janeiro. Assim, o exame dos agentes de informações
sugeria a proibição da sua utilização com finalidade didática, pois ele daria “maior
ênfase à exploração do homem pelo homem” e “violentaria a moralidade da família
rural”.
317
Um dos aspectos mais importantes que sobressai da análise da atividade censória
durante os anos 1970 é justamente o fato de muitos livros relevantes do período não
terem sido proibidos devido à percepção das autoridades da ineficácia de tal medida.
Assim, importantes obras circularam livremente não por uma falta de atenção ou
vontade das instâncias censórias, mas por que elas foram percebendo o quanto o veto a
determinados livros acabava por ter efeito contrário, dando grande repercussão ao autor
e à obra censurada. É por isso, aliás, que muitos que analisam ou rememoram o período
tendem a se espantar com o fato de livros bastante críticos não terem sido interditados,
algo que não se deveu à insuficiência da censura ou ao despreparo dos seus
funcionários.
Já tem sido bastante discutido, no âmbito da historiografia mais recente, o
caráter reducionista das teses que associavam os censores a figuras totalmente
incompetentes e facilmente ludibriáveis. Tal concepção hoje criticada está, certamente,
relacionada com a própria constituição da memória sobre os anos da repressão,
sobretudo no que concerne à perspectiva dos meios formadores de opinião da época que
se contrapunham aos desmandos do regime de exceção implantado no país. Trata-se de
uma construção do próprio período da ditadura, que acabou se consolidando na
memória que hoje temos sobre ele. À sua desconstrução, por outro lado, temos de
acrescentar a percepção de que os principais responsáveis pelas instâncias censórias
também não eram tão ingênuos a ponto de não perceberem o impacto negativo que a
interdição de determinadas obras poderia gerar, ainda que muitos dos atos proibitórios
316
Informe nº 84/77, da DSI/MJ ao ministro da Justiça, 3 ago. 1977. Processo C. 100515/77. MC/P. Caixa
612.
317
Informação nº 01/77, da DSI/MJ ao ministro da Justiça, 19 jan. 1977. Processo C. 100033/77. MC/P.
Caixa 607/05273.
130
do período tenham sido baixados sem a consideração mais pormenorizada dessa
questão. Na maioria dos casos, as autoridades censórias tinham alguma clareza dessa
possibilidade, optando por não vetar determinados livros, principalmente se os mesmos
já tivessem sido lançados e obtido boa recepção nos meios intelectuais do país.
Foi o que aconteceu, por exemplo, com o livro Inventário de cicatrizes, de Alex
Polari, publicado em 1978. Seu autor, ativo militante político da época, que participou
de episódios como o seqüestro do embaixador alemão, Ehrenfied Von Hollebern, foi
preso em 1971, permanecendo no cárcere até novembro de 1979 (Polari, na verdade,
chegou a ser condenado à prisão perpétua, sendo depois absolvido). As poesias do livro,
nesse sentido, exprimem, numa linguagem bastante clara e direta, muitas das
experiências do autor naquela conjuntura, sua passagem pela tortura, angústias e
sofrimentos. Os serviços de informações, entretanto, somente tomaram conhecimento da
obra após o seu lançamento na sede da Associação Brasileira de Imprensa, evento que
contou com a colaboração do Comitê Brasileiro pela Anistia e do Teatro Ruth Escobar.
Na informação da qual o livro foi objeto, o SNI o classificava como uma “obra
pornográfica e subversiva”, destacando supostos momentos do evento, como o
recolhimento de assinaturas para a feitura de um abaixo-assinado a favor da anistia e a
distribuição de uma carta de Polari justificando sua ausência devido à reclusão a que
estava submetido.
318
Encaminhada para o exame da consultoria jurídica do Ministério
da Justiça, a obra foi considerada como uma “apologia da guerrilha, dos guerrilheiros
mortos em ação” que conteria, ainda, “algumas passagens obscenas”. O parecer da
consultora que a avaliou, entretanto, destacava que a tomada de qualquer medida contra
seu autor, que naquele momento já se encontrava preso, só viria a “glorificá-lo”,
lamentando a não apreensão anterior da mesma:
Quanto ao livro, é realmente lamentável não ter sido ele
apreendido quando ainda não dado ao público. Hoje, após o seu
festivo e concorrido lançamento – no qual tiveram, de certo,
participação relevante e interessada, o Comitê Brasileiro de
Anistia e o Teatro Ruth Escobar - qualquer ação ministerial
sancionatória [sic] (com fulcro no D. L. 1077, por exemplo)
virá, a nosso ver, dar notoriedade ao autor e à sua obra.
319
318
Informação nº 924/78, da DSI/MJ ao ministro da Justiça, 18 dez. 1978. Processo C. 100887/78. MC/P.
Caixa 3416.
319
Parecer nº 273/78, da diretora da Divisão de Pareceres e Estudos da Consultoria Jurídica, Thereza
Helena S. Miranda Lima, 28 dez. 1978. Processo C. 100887/78. MC/P. Caixa 3416.
131
Como se pode notar, a percepção da repercussão que o ato proibitório teria
impediu, novamente, que uma obra do período fosse vetada. O fato de o livro já ter sido
amplamente difundido, nesse sentido, foi um aspecto central na consideração da
consultora (ela destacava, ainda, sua divulgação em Estocolmo, França, Portugal, Itália
e Alemanha, por meio de publicação da Anistia Internacional), que resolveu aconselhar
a não interferência do Ministério da Justiça, “a menos que a obra em questão alcance
espetacular tiragem e análoga vendagem”. Assim “resta, todavia, a lição a ser aprendida,
ao fito de, no futuro, buscar-se evitar situação qual a presente”.
320
Pouco mais de uma
semana depois da feitura desse parecer, o processo foi arquivado.
Um importante poeta do período cuja obra também passou pelo monitoramento
dos órgãos de informações e quase sofreu o veto censório foi Thiago de Mello.
Conhecido por seus trabalhos publicados em diversos países e pelo “caráter
politicamente engajado” de suas poesias, o amazonense Thiago de Mello já tinha
produzido livros bastante críticos sobre as ditaduras latino-americanas (como Poesia
comprometida com a minha e a tua vida, de 1975), participando, em 1977, da coletânea
Poemas al Che, editada pela instituição cubana Casa de las Américas. Além de 26
poemas dedicados a Che Guevara, escritos por importantes poetas de diversos países,
Poemas al Che compunha-se de dois discos em que os mesmos eram recitados. Entre os
poemas ali contidos, estava Sangue e orvalho, do exilado poeta brasileiro, objeto de um
informação do CISA datada de 1978. Caracterizando aquele poema como uma
“apologia a Che Guevara, entremeada com outra a Ho Chi Min”,
321
o documento
produzido por aquele órgão e, principalmente, o desenrolar dos eventos posteriores a
ele, servem aqui como exemplos bastante ilustrativos da pressão que a comunidade de
segurança e informações vinha fazendo em favor da proibição de certas obras de cunho
político no período.
De fato, o documento do CISA demandava o enquadramento do autor no artigo
24 da Lei de Segurança Nacional, mencionando que seu poema fazia “apologia da luta
insurrecional”.
322
Assim, aparece destacado no mesmo um trecho do poema de Thiago
de Mello: “Nunca te escrevi nenhum poema. Nunca conversei muito e longamente,
320
Idem.
321
Informação nº 044/78, da DSI/MJ ao ministro da Justiça, 18 jan. 1978 (retransmitindo a Informação nº
0019, do CISA/RJ, 6 jan. 1978). Processo C. 100054/78. MC/P. Caixa 618/05284.
322
O referido artigo previa pena de 12 a 30 anos de reclusão para a promoção de “insurreição armada” ou
tentativa de “mudar, por meio violento, a Constituição”.
132
foram muitas e muitas madrugadas, contando a tua vida, o teu lúcido sonho, a tua luta,
para os camponeses da minha terra e de outras terras também”.
323
De fato, baseado
numa interpretação literal e numa argumentação pouco sofisticada, o CISA ressaltava:
Ora, se Che Guevara é o símbolo internacional da insurreição
armada, se Thiago de Mello conversou muito e longamente
durante madrugadas com camponeses brasileiros sobre o lúcido
sonho e a luta de Che Guevara, depreende-se que Thiago de
Mello promoveu, junto a brasileiros, no território nacional,
insurreição armada.
Diante da lógica exposta no documento, a consultoria jurídica do Ministério da
Justiça procurou logo afastar a possibilidade de um enquadramento do autor naquele
artigo da LSN, porquanto não acreditava “que o Ministério Público Militar se convença,
em face do poema, da violação do referido dispositivo legal”. Por outro lado, não
obstante a consultoria discordasse da frágil argumentação do CISA, ela mencionava
uma suposta violação de outro artigo daquela lei (o artigo 45 que disciplinava a feitura
de “propaganda subversiva”), agora se baseando nos “inúmeros trabalhos literários do
autor do poema em tela”. Nesse sentido, mostrando-se mais precavida, mas sem perder
o ímpeto punitivo, a consultoria sugeria aos órgãos de segurança que acompanhassem as
atividades daquele escritor, esperando o melhor momento para iniciar um inquérito
policial, “sob pena de se propor uma ação penal com reduzida oportunidade de
sucesso”.
324
Ao que parece, entretanto, o CIE não gostou da decisão da consultoria jurídica.
Pouco tempo depois, aquele órgão divulgou um informe contestando o parecer daquela
instância, mesmo após ele ter sido aprovado pelo ministro Falcão, pois “imperiosa se
fazia a instauração de inquérito policial contra o epigrafado, mostrando-se tímida, com
fisionomia acomodatícia, a solução da consultoria do Ministério da Justiça”.
325
Deixando clara a insubmissão aos escalões superiores, o documento do CIE parece um
exemplo não somente das diferenças entre esses setores que conformavam o Estado
militar no período, conforme vimos ressaltando, mas também do caráter extremista
desses segmentos ligados à comunidade de segurança e informações, que se utilizaram
323
Como não foi possível ter acesso ao texto original do poema de Thiago de Mello, transcrevemos esse
trecho conforme aparece no documento do CIE. Pode haver, portanto, alguma pequena diferença em
relação ao original.
324
Parecer nº 112/78, da consultoria jurídica, sem data. Processo C. 100054/78. MC/P. Caixa 618/05284.
325
Informe nº 358 S/102-AS, do CIE, sem data. Processo C. 100054/78. MC/P. Caixa 618/05284.
133
da capacidade de repercussão dos informes para lançar uma ameaça pública aos
consultores do Ministério da Justiça:
É preciso que o órgão jurídico de Ministério tão importante,
como é o da Justiça, por seus componentes, demissíveis ad
nutum, melhor se compenetre de sua grandiosa missão,
integrando-se, de forma concreta, com os setores de segurança
do país, com estes mantendo indispensáveis liames íntimos, e
com o Ministério Público Civil e Militar Federal, de modo a
conjugarem, em seu esquema perfeito e harmônico, o trabalho
de combate à subversão e à corrupção, eis que, ante a
escandalosa infiltração vermelha em todos os escalões
administrativos da República, não há espaços para indefinições
e procedimentos festivos e acomodatícios.
A contundência do documento originado no CIE, que concluía sugerindo
providências para uma “reestruturação do setor jurídico do Ministério da Justiça”, teve
logo seu impacto, indignando a consultoria, que reagiu chamando as idéias ali contidas
de “comentários leigos e indicadores de quem pouco ou nada está afeito aos problemas
desta Secretaria de Estado”. Segundo o consultor Ronaldo Poletti:
É realmente esdrúxulo que informes comentem trabalhos e
conclusões dos órgãos jurídicos de assessoramento, primeiro
porque os autores, sempre anônimos, de tais informes, não
dispõem de todos os dados necessários para o exame integral
da matéria, nem são, ao que tudo indica, pessoas versadas na
dogmática jurídica ou na Ciência do Direito Positivo (...)
326
Diante do mal-estar causado pelo informe do CIE, Armando Falcão resolveu
ligar para o ministro do Exército pedindo providências, o qual mandou recolher todas as
cópias do documento para destruição. Como se pode notar, longe de manter uma total
organicidade e unidade, como muitos trabalhos sobre o período ressaltam, o Estado
ditatorial era atravessado por diversas instâncias que possuíam concepções
diferenciadas sobre os limites da repressão, influindo claramente no caráter da atividade
censória. Somente considerando esses liames e matizes, poderemos compreender de
modo mais profundo a complexidade das censuras praticadas naquela conjuntura.
A análise dos processos censórios dos livros de conteúdo literário de meados dos
anos 1970 nos permite perceber, ainda, certos casos nos quais a tentativa de utilizar o
326
Documento do consultor jurídico, Ronaldo Poletti, ao ministro da Justiça, 21 set. 1978. Processo C.
100054/78. MC/P. Caixa 618/05284.
134
serviço censório para promover interesses particulares ganharam espaço. Foi o que
aconteceu com o livro do jornalista e escritor Josué Guimarães, Os tambores
silenciosos, ganhador do Prêmio Érico Veríssimo de Romance de 1975. Nessa obra,
Guimarães procurou narrar o projeto caricatural de uma ditadura construída numa
pequena cidade imaginária do Rio Grande do Sul, chamada Lagoa Branca, a partir dos
acontecimentos ocorridos na “Semana da Pátria” de 1936. Uma verdadeira sátira
política, o livro de Guimarães é permeado de personagens inescrupulosas, sobretudo no
que concerne àquelas que detêm o poder político na região, como o próprio prefeito da
cidade, caracterizado com um ingênuo ditador que adota medidas como a proibição da
distribuição de jornais, o impedimento à leitura de livros considerados subversivos ou
imorais e a censura às correspondências dos cidadãos. Não obstante a obra possa ser
claramente interpretada como uma alegoria ao autoritarismo do regime de exceção
instaurado no país, ela foi alvo do processo censório por outro motivo.
O problema era que autoridades locais do Rio Grande do Sul tinham se
identificado em algumas personagens caricaturais de Josué Guimarães. Um dos
primeiros a chamar a atenção do ministro Armando Falcão para a questão foi o diretor-
geral do DPF, que retransmitiu uma informação do III Exército afirmando que “a
impressão e a distribuição de tal livro acarretará graves inconvenientes à administração
pública e aos nomes de ilustres homens públicos do Rio Grande do Sul”.
327
Apenas
quatro dias antes, havia chegado ao ministro uma nota confidencial de um procurador-
geral da República demandando a apreensão do romance. Segundo o procurador, um
dos personagens centrais do livro de Josué Guimarães, apresentado como um vereador e
conselheiro corrupto e bajulador do prefeito, de nome Lúcio Machado, seria de fato um
conselheiro do Tribunal de Contas daquele estado, de nome assemelhado. Assim,
argumentando que a criação de tal personagem não passava de um “propósito
mesquinho e torpe de vingança”, aquela autoridade procurava encontrar algo de imoral
na obra para justificar seu pedido. Desse modo ele tentava convencer Armando Falcão:
Se a isso se limitasse o livro [expor aquela autoridade como
bajuladora e de pouco caráter], o problema de suas
conseqüências deveriam ser deixadas ao critério do
Conselheiro (...) Mas, apresenta ainda, o autor, o conselheiro
(...) como impotente e acabando por ser traído pela esposa e, o
327
Ofício nº 076/77-DCDP, do diretor-geral do DPF ao ministro da Justiça, 14 fev. 1977, OS.
135
que é muito mais grave, descrevendo minuciosamente os dois
atos de adultério, ou seja, as relações sexuais praticadas, uma
das quais consistente em ato de sodomia (...). Aos que
conhecem o temperamento do dr. (...), não é difícil prever a
reação violenta que haverá da parte deste, que diversa não seria
da de qualquer outro homem de honra.
328
Diante do imbróglio, Armando Falcão fez o diretor da DCDP, Rogério Nunes, se
pronunciar sobre a matéria, o qual se concentrou mais estritamente na possibilidade da
ofensa à moral e aos bons costumes. Não encontrando nada de imoral que embasasse a
proibição do livro, Rogério Nunes resolveu, diante do pedido do procurador (que Falcão
lhe encaminhara pouco antes), arranjar uma solução para a matéria:
Não me parece se deva propor a proibição do livro com
fundamento no decreto-lei n. 1.077, de 1970, podendo-se, no
entanto, solicitar à editora a apresentação da obra para efeito de
verificação prévia, como prescrito no artigo 2º do referido
diploma legal, e o não atendimento, então, justificaria impor a
medida preconizada no artigo 5º da mesma norma jurídica.
329
Como se vê, o serviço censório gozava, ainda, de outros mecanismos para
impedir a circulação das obras publicadas no período. O parecer do diretor da DCDP,
entretanto, não foi aprovado pela consultoria do Ministério da Justiça, que optou pelo
“arquivamento puro e simples” do processo.
330
Além da aproximação com a linguagem jornalística, um outro traço fundamental
da produção literária da segunda metade dos anos 1970, como ressalta a maioria dos
analistas, foi o impulso em direção ao relato testemunhal, ao depoimento de próprio
punho, ao chamado memorialismo.
331
Esse enfoque na narrativa autobiográfica, por
outro lado, se deu, sobretudo, a partir da memória daqueles autores ainda jovens, que
viveram a experiência da repressão aos vinte ou trinta anos e procuraram discutir
questões como “a prática política, a clandestinidade, a guerrilha, a prisão, a tortura e o
desenraizamento”.
332
São conhecidos, nesse sentido, os livros de Fernando Gabeira,
328
Nota confidencial do procurador geral da República, Henrique Fonseca de Araújo, ao ministro da
Justiça, 10 fev. 1977. Processo C. 100023/77. MC/P. Caixa 607/05273.
329
Documento do diretor da DCDP, Rogério Nunes, ao diretor-geral do DPF, 11 fev. 1977. Ofício nº
076/77-DCDP, do diretor-geral do DPF ao ministro da Justiça, 14 fev. 1977. Processo C. 100023/77.
MC/P. Caixa 607/05273.
330
Parecer CJ nº 167/77, do consultor jurídico, Ronaldo Poletti, ao ministro da Justiça, 24 fev. 1977.
Processo C. 100023/77. MC/P. Caixa 607/05273.
331
Ver SUSSEKIND, Flora. Op. cit., entre outros.
332
GALVÃO, Walnice Nogueira. Op. cit. p. 193.
136
Alfredo Syrkis e o já mencionado romance de Renato Tapajós.
333
A livre circulação de
algumas dessas obras, provavelmente, somente foi possível pela desestruturação dos
mecanismos censórios em fins dos anos 1970, sobretudo a partir de 1978, quando há
indícios de que o SIGAB deixou de atuar no âmbito da censura política de livros. Pelo
menos, era isso que mencionava o diretor da DCDP, Rogério Nunes, num processo
sobre diversos livros de “natureza política” retidos pela EBCT:
Por haver a DOPS passado a cuidar de matéria que antes estava
afeta ao SI/GAB, então encarregado de pronunciar-se sobre
obras literárias de cunho político e social, transmito àquele
órgão o material a que se refere este expediente, solicitando-lhe
a gentileza de seu parecer a respeito da conveniência ou não em
permitir o ingresso no país dos livros remetidos pelo Colis
Postaux.
334
Apesar desses indícios de uma espécie de desestruturação da censura política de
livros, os órgãos de informações, entretanto, continuaram produzindo denúncias sobre a
produção literária nos anos finais da década de 1970, ao passo que, do lado dos
militares, também foram sendo escritas obras-depoimento por volta daquele período,
como as de Olympio Mourão Filho, Hugo de Abreu, Jayme Portella Mello e Hernani
D’Aguiar,
335
algo que teria continuidade nas décadas seguintes, conformando uma
verdadeira batalha pela memória dos anos de repressão entre os setores oposicionistas e
aqueles ligados aos governos militares.
336
Não bastasse isso, a luta pela “leitura correta”
333
GABEIRA, Fernando. O que é isso companheiro? Rio de Janeiro: Codecri, 1979. SYRKIS, Alfredo.
Os carbonários. Memórias da guerrilha perdida. São Paulo: Global, 1980. TAPAJÓS, Renato. Em
câmara lenta. São Paulo: Alfa-Omega, 1977. São desse período também, entre vários outros de mesmo
teor, os livros FON, Antônio Carlos. Tortura. A história da repressão política no Brasil. São Paulo:
Global, 1979 e BOAL, Augusto. Milagre no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
334
Anotação do diretor da DCDP, Rogério Nunes, no documento citado na nota anterior, 25 set. 1978.
Conforme já destacamos, o SIGAB centralizava a censura política de livros e do jornalismo político de
modo geral, inclusive no que concerne aos bilhetinhos encaminhados às redações dos jornais com os
assuntos proibidos de serem tratados. A retirada da feitura da censura política daquele órgão, com sua
passagem à DOPS, nesse sentido, parecia ser uma medida bastante afinada com o projeto de “abertura
política” do governo Geisel, não obstante os sabidos retrocessos que, vez por outra, esse processo sofreu.
335
MOURÃO FILHO, Olympio. Memórias. A verdade de um revolucionário. Porto Alegre: L&PM,
1978. ABREU, Hugo. O outro lado do poder. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979. MELLO, Jayme
Portella. A revolução e o governo Costa e Silva. Rio de Janeiro: Guavira, 1979. D’AGUIAR, Hernani. A
revolução por dentro. Rio de Janeiro: Artenova, 1976.
336
Para a “versão dos militares” exposta em livros mais recentes ver, por exemplo, os depoimentos
contidos nos livros organizados pelo CPDOC/FGV: D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary
Dillon e CASTRO, Celso. Os anos de chumbo. A memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 1994. ______. Visões do golpe. A memória militar sobre 1964. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 1994.______. A volta aos quartéis. A memória militar sobre a abertura. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 1995. Para a memória recente dos setores oposicionistas ver, por exemplo, TAVARES, Flávio.
137
do passado também se intensificou no interior desses dois segmentos, sobretudo no
plano das esquerdas, quando foram postos em xeque, por exemplo, seu papel quando do
golpe de 1964 ou a opção pela luta armada. Já os militares, por seu turno, conseguiram,
com menor dificuldade, configurar um discurso mais ou menos unívoco sobre o
período, marcadamente preocupado em justificar as medidas repressivas adotadas, como
a tortura e o assassinato de presos políticos.
337
Um exemplo de como, nos últimos anos da década de 1970, livros-depoimento
sobre os anos da repressão ainda eram objetos de pressões dos órgãos de informações a
favor da censura política pode ser visto no processo de Milagre no Brasil, do teatrólogo
Augusto Boal. Basicamente um relato autobiográfico, o livro de Boal procurava narrar
sua prisão, em 1971, e suas experiências na cela do presídio Tiradentes, possuindo a
contundência política típica das obras do autor, que, exilado naquele mesmo ano,
procurou desenvolver as técnicas do chamado Teatro do Oprimido em outros países da
América Latina. Alvo de uma informação encaminhada pelo ministro-chefe do SNI,
João Batista Figueiredo, a Armando Falcão, Milagre no Brasil foi tido como uma obra
perigosa, que narraria a detenção de Boal visando
ressaltar a imbecilidade de seus inquisidores, sua baixa
formação moral, seus instintos bestiais (na descrição da tortura
a que se diz ter sido submetido, é notória a tentativa de
glorificação do “mártir revolucionário” que não capitula diante
dos algozes) e que atinge o seu ápice quando da descrição do
“comissário” que dirige as operações, facilmente identificável
como Sérgio Paranhos Fleury, e a satisfação dos policiais ou
militares com o saque realizado em sua residência, quando um
dos homens do “comissário”, ao mostrar-lhe um seu anel,
segundo o autor, presente de sua mãe, se divertia dizendo-lhe:
Eu agora sou engenheiro-químico, eu agora sou engenheiro
químico.
338
O parecer encaminhado pelo SNI procurava ressaltar, ainda, a existência de
certas contradições no livro de Boal, “pois o próprio autor, no início do seu livro, vende
a imagem de um inocente, totalmente desvinculado da realidade subversiva do período
Memórias do esquecimento. São Paulo: Editora Globo, 1999. VENTURA, Zuenir. 1968. O ano que não
terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. SODRÉ, Nelson Werneck. A fúria de Calibã - Memórias
do golpe de 64. Rio de Janeiro: Bertrand Russel, 1994.
337
É o que se pode perceber, por exemplo, a partir das sempre reiteradas noções de “guerra suja” para se
referir ao conflito com as esquerdas ou de “excessos” para designar as atividades mais brutais da
repressão política.
338
Informação do ministro-chefe do SNI ao ministro da Justiça, em 14 mar. 1978. Processos C.
100217/78. MC/P. Caixa 3408/08075.
138
68-71, e mais adiante, discute com companheiros de prisão, táticas e meios de atuação
subversiva”. O autor, por sua vez, foi caracterizado como participante da “Frente
Brasileira de Informações”, que visaria desenvolver uma constante campanha contra o
Brasil no exterior, algo que demonstrava a mobilização de uma tópica recorrente nos
documentos da comunidade de informações, qual seja, a sempre alegada preocupação
com a imagem brasileira veiculada em outros países. Apesar disto, Milagre no Brasil
não chegou a ser proibido.
339
O livro, assim como muitos outros, apenas engrossou a
lista daqueles que deveriam ser examinados pela obscura comissão censória.
339
Ainda nesse sentido das obras-depoimento, algo semelhante parece ter acontecido com o já
mencionado As Memórias, de Gregório Bezerra, também alvo do monitoramento praticado pelos órgãos
de informações no final dos anos 1970.
139
Parte III
Moral
140
Capítulo 5
Em defesa da moral e dos bons costumes: a censura moral
Eles [seus virtuosos censores e os amadores de gracejos
obscenos] têm a doença cinzenta do ódio ao sexo, ao
mesmo tempo em que têm a doença amarela do apetite
vil. Consideram o sexo como um pequeno segredo sujo,
que deve ser cultivado às escondidas.
LAWRENCE, D. H.
340
Conforme ressaltado no capítulo 2, o exame dos livros e revistas que tratavam de
temas referentes aos costumes, por parte do Serviço de Censura de Diversões Públicas,
somente ganhou algum “embasamento legal” no ano de 1970, devido às iniciativas do
ministro Alfredo Buzaid. Nesse sentido, o número de publicações que passaram por
aquele órgão nos primeiros anos dessa atividade foi bastante inexpressivo,
principalmente se comparado com a censura de filmes, músicas e outros gêneros de
produção cultural no mesmo período.
341
Foi somente depois de alguns meses do
mandato de Armando Falcão no Ministério da Justiça que tivemos um aumento
substancial dos livros censurados, processo cujo brusco decréscimo se deu, justamente,
com o fim do governo Geisel. Segundo a listagem da própria DCDP,
342
o número de
livros que passaram por aquele órgão entre o período de 1970 e 1982 teria sido o
seguinte:
1970 1971 1972 1973 1974 1975 1976 1977 1978 1979 1980 1981 1982
6 6 15 11 20 131 99 48 84 47 4 1 1
340
LAWRENCE, D. H. Eros et les chiens. Paris: Gallimard, 1931. p. 351. Apud. ALEXANDRIAN,
Sarane. História da Literatura Erótica. Lisboa: Edição Livros do Brasil Lisboa, 1991. p. 407.
341
Para se ter uma idéia do número de filmes, peças de teatro, letras musicais e programas de televisão
censurados durante o período, ver os relatórios anuais da DCDP contidos na série RE do Fundo “Divisão
de Censura de Diversões Públicas” que vimos trabalhando.
342
Os números que apresentaremos em seguida estão baseados na listagem de livros censurados
produzida pela própria DCDP. Sendo assim, eles podem conter algumas imprecisões, sobretudo no que
concerne à possibilidade de alguns livros examinados no período não terem sido registrados no referido
documento.
141
Como se pode notar, nos quatro primeiros anos de censura aos livros tivemos o
número relativamente inexpressivo de 38 obras examinadas, das quais 7 foram vetadas
(18%).
343
Tal aspecto começou a se modificar em 1974 (Armando Falcão assumiu a
pasta da Justiça em 15 de março daquele ano), sendo os anos de 1975 até 1978 os de
maior número de livros examinados, totalizando 362 obras, com 266 delas proibidas
(73%). Já em 1979, ano da saída de Falcão do ministério (ele deixou o cargo em 15 de
março daquele ano), houve um relativo decréscimo no número de livros avaliados, que
somaram 47, tendo sido interditados 38 (81%), tendência declinante que persistiu nos
anos posteriores, quando tivemos, praticamente, a extinção desse tipo de atividade.
344
Conforme procuramos ressaltar anteriormente, as normas legislativas que embasavam a
censura moral de livros e revistas começaram a ser fartamente contestadas no âmbito da
Justiça por volta desse período, assim como o prosseguimento dado ao processo de
“distensão política” foi tornando inviável a manutenção de certos mecanismos de
controle como esse.
345
De fato, a censura de costumes, não obstante o caráter rarefeito dos seus
primeiros anos, atingiu livros de importantes autores naquele período, conforme se
evidenciará ao longo deste capítulo. Obras clássicas ou universais não deixaram de
passar pelo exame dos censores, destacando-se, nesse sentido, As Memórias de
Casanova, Kama sutra, um livro do Marquês de Sade, uma coleção de gravuras de
Pablo Picasso, entre outros. O mesmo, dado o conservadorismo moral que perpassava a
censura, foi reservado a diversos estudos sobre sexualidade, artigos sobre a educação
moral de jovens e adultos, além de outras publicações do mesmo gênero. Já escritoras
como Cassandra Rios e Adelaide Carraro, bastante marcadas pelo tom desabrido de seus
livros eróticos, foram extremamente perseguidas e tiveram dezenas de publicações
censuradas em meados da década de 1970. Outros inúmeros autores desconhecidos,
343
Não foram computados aqui os textos das peças editados pelo Serviço Nacional de Teatro que vão ser
mencionados em seguida. Passaram pelo SCDP, naquele ano, 19 publicações do SNT, das quais 3 (15%)
foram vetadas.
344
No relatório anual produzido pela DCDP sobre as atividades de 1975 consta o número de 150 livros
proibidos, discrepando do total daqueles registrados na listagem que contém os nomes dos livros
censurados. No caso do relatório de atividades da DCDP sobre o ano 1976 também existem diferenças
nos números apresentados, sendo mencionados 219 livros examinados, dos quais 74 teriam sido
proibidos. Os relatórios referentes aos outros anos não indicam o número de livros examinados ou
proibidos. Ver Relatório da DCDP referente ao exercício de 1975, assinado por Rogério Nunes em 15 jan.
1976, RE. Relatório da DCDP referente ao exercício de 1976, assinado por Rogério Nunes em 17 jan.
1977, RE.
345
Outras causas para a extinção dessa atividade são mencionadas no capítulo 2.
142
sobretudo aqueles que procuravam explorar o tema da sexualidade com objetivos
meramente financeiros, também tiveram suas obras examinadas e proibidas, como se
pode verificar na lista de livros censurados que anexamos ao final, bastante indicativa
da importância que o tema do erotismo tinha para a DCDP.
346
Afora os 6 livros que passaram pelo SCDP em 1970, os textos de 19 peças
editados pelo Serviço Nacional de Teatro também foram examinados no âmbito da
censura de publicações naquele mesmo ano. Desses, 3 foram completamente vetados
por motivos políticos: Pavana para um macaco defunto, de Antônio Galvão Naclésio
Novaes, Papa Highirte, de Oduvaldo Vianna Filho e A farsa do bode espiatório, de
Luiz Maranhão Filho.
347
Já o texto da peça O Sótão e o Rés-do-chão ou Soninha Toda
Pura, de José Iclemar Ferreira, foi aprovado para maiores de 18 anos, desde que
efetivados alguns cortes, pois conteria “cenas de lesbianismo, procurando
desencaminhar o menor”, e estaria “eivado de expressões pornográficas e palavras de
baixo calão”.
348
Dos 6 outros textos mencionados, somente um foi vetado (trata-se de
Basta... bastardos, de Hélio de Almeida, cujo processo de censura já foi analisado) e
alguns chegaram, não somente a ser liberados, como também recomendados, como
Fatores Morais do Ensino, de Edson de Abreu. Segundo o censor encarregado da
matéria, “na obra em questão, o autor revela profundo conhecimento dos problemas que
afligem o ensino em nosso país”, o que faria daquele um “opúsculo que, não só não
contém nada de comprometedor, como, pelo contrário, se recomenda pelo criterioso das
análises e pelo construtivo das críticas”.
349
No ano de 1971, passaram apenas 6 livros pelo SCDP, todos liberados. Já em
1972 tivemos, pelo menos, 3 obras proibidas por questões morais. Nos pareceres de
avaliação das mesmas já começava a sobressair uma questão que se evidenciará ao
longo de todo este capítulo, qual seja, a utilização de um linguajar bastante peculiar e
ofensivo por parte dos técnicos de censura. Impulsionados por uma postura geralmente
muito conservadora em termos comportamentais, os funcionários do órgão que fazia a
censura de diversões públicas não se constrangiam em fazer adjetivações virulentas
346
Observe-se que a lista possui algumas incongruências, como repetições e o fato de indicar que não há
parecer no caso de livros censurados que geraram pareceres efetivos. Ver p. 289.
347
Parecer da técnica de censura do SCDP, Maria das Graças Pinhati, 13 nov. 1970, PUB. Parecer do
técnico de censura do SCDP, Hellé Prudente Carvalhêdo, 10 nov. 1970, PUB. Parecer do técnico de
censura do SCDP, Vicente de Paulo Alencar Monteiro, 6 abr. 1970, PUB.
348
Parecer do técnico de censura do SCDP, Vicente de Paulo Alencar Monteiro, 8 abr. 1970, PUB.
349
Parecer de José Fraga Teixeira de Carvalho, 23 dez. 1973, PUB.
143
sobre as obras em questão, muitas vezes chegando ao ponto de avaliar aspectos que, em
tese, não deveriam passar pelo “exame censório”, como a estruturação lógica do texto
ou, mesmo, o português mais ou menos escorreito empregado. Esse, de fato, é um
aspecto que somente tende a confirmar aquilo que já vínhamos destacando quanto à
falta de critérios mais sólidos nas avaliações feitas no âmbito do SCDP, algo
sobejamente agravado pela falta de preparo dos censores encarregados da análise dos
livros naquela conjuntura.
O primeiro dos 3 livros vetados a passar pelo exame dos censores, em 1972, foi
Labirinto, do autor paraibano André de Figueiredo. Ganhador do Primeiro Prêmio
Walmap (concurso importante que também premiaria autores como Carlos Drummond
de Andrade), o livro de Figueiredo havia sido selecionado por um júri composto por
Rachel de Queiroz, Antonio Olinto e Maria Alice Barroso. Para o Centro de
Informações da Polícia Federal os julgadores teriam sido “intrépidos e valentes”, já que
a obra “fere princípios de alta relevância moral e os bons costumes”.
350
O livro, por sua
vez, já tinha sido objeto do exame de um censor, cujo parecer desqualificou a obra,
caracterizando-a como um “manual de pornografia” que se desenvolveria numa
“atmosfera de situações aberrantes aos bons costumes, onde campeia, nos diálogos, a
pornografia e, nas cenas, a obscenidade”.
351
Nesse sentido, o censor passou quase todo o documento tentando destacar os
sinônimos que André de Figueiredo poderia ter utilizado para “não ofender a
sensibilidade do leitor”, caracterizando essas partes da obra como “grosseiras” e
mencionando as passagens nas quais ele teria utilizado uma “linguagem adequada”
como um provável “cochilo” seu diante da intenção de chocar o público. Assim, o uso
das palavras “cagada e cuspida”, em determinado trecho do livro, seria “intolerável”,
caracterizando uma “expressão banal e inestética”. Algo semelhante se daria com o
emprego do “termo foder”, que “poderia ser elegantemente substituído por sexo”.
352
O
mais curioso, entretanto, era que o funcionário da censura não procurava se mostrar
contrariado somente com o que considerava imoral ou pornográfico no texto do autor,
mas também com outras características lógicas e formais da narrativa:
350
Informação do Centro de Informações do DPF ao chefe do gabinete do DPF, 17 mar. 1972, PUB.
351
Parecer de Astrogildo P. Moreira da Motta, 22 dez. 1971, fl. 1, PUB.
352
Ibidem. fl. 2.
144
Pág. 27 – linha 5: Pouca prudência do autor ao usar a indiretiva
“consigo” na proposição “alguém ligeiramente parecido
consigo”. Falta de beletrismo, como se pronuncia Cândido de
Figueiredo. (...) Pág. 27 – linhas 34 e 35: Erro de composição.
Se a mulher mostrava os fundos da calça, subentende-se que
essa calça tinha frente. Por que, então, ela estava de “boceta” à
mostra? No Nordeste a frase comum é “mostrando o rabo”.
As avaliações sobre determinados aspectos das obras que fugiam às atribuições
dos censores, aliás, não foi algo que aconteceu apenas com o livro de André de
Figueiredo. A consideração de aspectos formais ou, mesmo, o emprego de argumentos
pela interdição ou liberação baseados somente na opinião pessoal sobre a relevância ou
não de determinada obra, sem maiores pesquisas sobre o autor e seus livros, era um
aspecto recorrente nos pareceres de censura. Nesse sentido, o livro Proibido, de
Reinaldo Cabral, examinado cerca de dois anos depois, foi considerado um “trabalho
bom”, escrito “num bom estilo e bom português” e acabou sendo liberado.
353
Já a obra
Sexo, delírio e tormento, de Jean Floubert, segundo um censor, seria “fraca” como
“literatura”, enquanto que, “como pornografia e erotismo, bem como sexualismo e
perversão, é forte”.
354
Ainda nesse sentido, os censores se compraziam em destacar que determinados
livros seriam “péssimos em todos os aspectos”,
355
“não apresentariam valor algum”,
356
possuiriam uma “linguagem medíocre”
357
e um “mau” ou “péssimo gosto”.
358
Alguns
chegavam a ser caracterizados como “uma subliteratura do submundo prostibular” cujas
“cenas são descritas com tranqüila canalhice”, no caso de uma autobiografia de Xaviera
Hollander,
359
ou como um livro “o mais pornográfico possível”, no que diz respeito à
publicação Loucuras sexuais, de Dr. J. Gradus.
360
Desse modo, os funcionários do
SCDP colocavam-se numa posição superior, capaz de discernir o que é de bom ou mau
gosto, o que é decente e indecente, o que é saudável e possui algum valor e o que é
353
Parecer nº 20931/74 do técnico de censura, Joel Ferraz, 17 out. 1974, PUB.
354
Parecer nº 99/76, de Corrêa Lima, 17 fev. 1976, PUB.
355
Parecer nº 00094/79 (do livro As levianas, de Francis Hagaerre), feito pelo técnico de censura, Silas de
Aquino Lira Gouvêa, 14 fev. 1979, PUB.
356
Parecer feito por um técnico de censura da DCDP (nome ilegível), 5 nov. 1974, PUB.
357
Parecer nº 8172/75 (do livro A amante de Kung-fu, de Lee Van Lee), feito por Avelita Barreto, 29 set.
1975, PUB.
358
Parecer nº 8063/75 (de alguns contos da revista Elas fazem aquilo..., produzida pela Editora Edrel),
feito por Avelita Barreto, 21 out. 1975, PUB. Parecer nº 8062/75 (dos livros Sexo no paraíso e Nuas e
carinhosas, produzidos pela Editora Edrel e sem autor indicado), feito por J. Antonio S. Pedroso, 22 out.
1975, PUB.
359
Parecer de Clovis Lema Garcia ao ministro da Justiça, 10 fev. 1974, PUB.
360
Parecer nº 1497, do técnico de censura do SCDP, Augusto da Costa, 19 set. 1980, PUB.
145
prejudicial e carente de utilidade. Voltaremos a essa questão quando analisarmos a
censura praticada no período em que Armando Falcão geriu o Ministério da Justiça.
Também é interessante perceber, em pareceres como aquele feito sobre
Labirinto, como seus formuladores não tinham o menor pejo de ofender os autores em
questão, inclusive, por vezes, identificando traços da personalidade dos componentes da
trama com o próprio escritor. Preso a códigos morais bastante conservadores, o censor
assim desenvolvia sua análise:
Criar, embora que traumatizando a sensibilidade de todos, algo
que o evidenciasse. Este, pois, seu objetivo egocêntrico,
visivelmente exibicionista, que lhe dá, nesse caráter, a
fisionomia do psicopata sexual, como ensinam Vicente
Piragibe e Afrânio Peixoto. (...) Pág. 168: Daqui por diante o
livro vai num crescendo alarmante de baixezas, como se fora
uma catarse do autor para se livrar da sujeira que emana de seu
subconsciente.
361
Poucos anos depois, na análise de uma matéria da revista francesa Photo, em que
apareciam determinadas fotografias que remetiam a um sonho da autora, um censor
chegaria a ponto de arriscar uma análise psicanalítica da mesma: “catalogamos as
fotografias como pornográficas, em que pese o sonho da autora, que nada mais é [do]
que uma catarse dos seus complexos freudianos”.
362
Assim, “nem todos os sonhos
podem ou devem ser fotografados” e “o interesse, no caso, seria médico-psicanalítico, e
não artístico”. Mais violento foi o tratamento dado por um técnico de censura ao autor
anônimo do livro Memórias de um burguês. Embora tenha sido escrita em Paris de fins
do século XIX, a obra foi caracterizada como um “manual de anomalias sexuais, onde o
ser humano é rebaixado ao nível animalesco, presa dos mais baixos instintos e
insensível a qualquer mandamento moral”.
363
Seu autor, por sua vez, seria marcado por
possuir uma “visão unilateral” e, muitas vezes, “distorcida”, “devido ao seu
envolvimento emocional com as figuras retratadas e à deformação moral de que ele é
portador, evidenciada pelo seu comportamento sexual anômalo”.
364
Ainda no que concerne ao livro Labirinto, assim o censor concluía sua
avaliação:
361
Parecer de Astrogildo P. Moreira da Motta, 22 dez. 1971, fl. 1-2, PUB.
362
Parecer nº 1598/76 da técnica de censura do SCDP, Marina de A. Brum Duarte, 9 ago. 1976, PUB.
363
Parecer nº 2992 da censora, Lígia Barreto Ferreira, 30 nov. 1977. fl. 1, PUB
364
Ibidem, fl. 2.
146
Finalmente: homossexualismo – “leitmotiv” do livro -,
devassidão, licenciosidade, prostituição, fezes, lombrigas,
panos sujos de esperma, lesbianismo, adultério, morbidez –
tudo envolto em linguagem de bordel, atirado sobre o leitor
pelo autor, como uma vingança que se não explica.
Desnecessário gastar papel para imprimir tais rasteirices. Elas
estão por demais divulgadas nas paredes dos mictórios de
botequins.
365
Se assim o censor se referia ao livro de André de Figueiredo, ganhador do
prêmio Walmap, muito pior acontecia com os livros que incursionavam pelo erotismo
de modo mais apelativo. Em muitos desses casos, o linguajar utilizado pelos censores
causa estarrecimento, não só pelo conservadorismo moral, mas pela ausência de
preocupação com a utilização de um palavreado menos rude e áspero que o mobilizado.
É possível entrever, em alguns desses pareceres, um tal grau de repulsa ao livro em
questão que, por vezes, parecia materializa-se numa certa satisfação na desqualificação
da obra analisada. No exame que um técnico de censura fez do livro O homem que
desafiou o diabo, cujo autor assinava Dr. G. Pop e teve vários livros proibidos durante
os anos 1970, podemos perceber a rispidez de determinados pareceres:
A excrescência literária supra nomeada, traz a borbulhar, no
atoleiro de baboseiras, situações inconcebíveis, sobressaindo-se
o endemoninhamento de criaturas humanas. (...) O avantajado
lodaçal de inverossimilhanças expõe um constante, abominável
e inacreditável misticismo, a par do incesto-felação,
masoquismo, corrupção de menores, prostituição de mocinhas
adolescentes, cópula “per anum”, estupro, peculato, o aborto,
as práticas de lesões corporais graves, contágios venéreos,
uranismo, filicídio e mais um rol de execráveis hipotéticos
acontecimentos a exalar seus miasmas que sufocam os bons
sentimentos do leitor.
366
O desconhecido Dr. G. Pop (provavelmente um pseudônimo utilizado por algum
autor que não queria assinar obras daquele teor) foi, ao que tudo indica, um dos autores
mais censurados em meados dos anos 1970 por questões morais. O número de livros
seus proibidos que aparecem na documentação da DCDP chega a superar o de autoras
como Cassandra Rios e Adelaide Carraro, notadamente perseguidas pela atividade
censória do período, como analisaremos de modo mais detido adiante. São alguns deles:
365
Parecer de Astrogildo P. Moreira da Motta, 22 dez. 1971, fl. 3, PUB.
366
Parecer nº 9771/75 do técnico de censura, Tabajara Fabiano de Santana Ramos, 21 nov. 1975, PUB.
147
Vida e o sexo; A filha de ninguém; O contrabandista de escravas; O homem que
desafiou o diabo; Gina, a procura de Kukla; O louco; As trigêmeas; A coisa incrível e
A vida amorosa de um médico.
367
Suas obras acabavam, provavelmente, servindo como
uma espécie de válvula de escape aos censores que queriam deslanchar sua repugnância
do que consideravam imoral e pornográfico. Desse modo, o livro Vida e sexo exploraria
“situações escabrosas”, “detalhando minuciosamente relações sexuais, atos de
lesbianismo, coito anal, felação e várias espécies de depravações sexuais, numa
linguagem que oscila entre o obsceno e o vulgar”.
368
Já o parecer feito sobre O louco, o
caracterizava como um “livro esdrúxulo, narrando cenas de perversão sexual praticadas
pelo próprio pai ao filho, de lesbianismo, numa linguagem cínica, contrária à moral e
aos bons costumes”.
369
O terceiro livro proibido no ano de 1972
370
foi a tradução para o português de
uma obra considerada clássica na abordagem da temática do sadomasoquismo, qual
seja, Histoire d’O, de Pauline Réage.
371
Publicado, originalmente, na França, em 1954,
o livro contava a história de uma jovem, conhecida como O, que procurava satisfazer
suas pulsões sexuais a partir da submissão ao marido, o qual a entregava aos desígnios
da dor, do sofrimento e da humilhação. Durante muitos anos pairaram dúvidas sobre a
autoria do romance, para alguns, obra do amante de Pauline Réage, Jean Paulhan,
escritor sabidamente admirador de Marquês de Sade, que foi eleito membro da
Academia Francesa em 1963 e chegou a ser interrogado como presumível autor do livro
cerca de um ano depois de sua edição.
372
A obra, entretanto, somente ganhou
notoriedade nos anos 1970, tornando-se best-seller nos Estados Unidos como uma
367
Os demais livros do Dr. G. Pop que podem ser encontrados na listagem de obras examinadas pela
DCDP são: A menina cor de rosa; Sensação em Portugal; As lágrimas das virgens; Loira vestida de
branco; Horas tardias; Cidinha, a incansável e Quando o diabo se diverte.
368
Parecer nº 10230/75 de Jeanete Maria de Oliveira Farias, 12 dez. 1975, PUB.
369
Parecer nº 05/79 de Teresa Cristina dos Reis Marra, 8 jan. 1979, PUB.
370
O segundo dentre os 3 livros proibidos em 1972, foi uma obra de contos de Welington Pinto, alguns
deles considerados impróprios por sua linguagem, caracterizada como “desbragadamente bordelenga”,
“chula e sórdida” e, até mesmo, “crapulosa”. Parecer ao ministro da Justiça, 27 nov. 1972 (assinatura
ilegível), fl. 1-2, PUB.
371
Ver PAUVERT, Jean-Jacques. Pauline Réage. Histoire d’O. In: ____. Anthologie historique des
lectures érotiques. De Eisenhower à Emmanuelle. 1945-1985. Paris: Éditions Stock/Éditions Spengler,
1996. p. 282-292.
372
Segundo Sarane Alexandrian, Pauline Réage teria assumido a autoria do romance para não
comprometer Jean Paulhan no que diz respeito à sua promoção na Ordem da Legião de Honra e na sua
eleição para a Academia Francesa. Para ele, a idéia do livro teria sido concebida por Jean Paulhan, não
obstante a obra devesse ser vista como tendo sido feita por um casal e não por apenas uma pessoa.
ALEXANDRIAN, Sarane. Op. cit. p. 360-364.
148
espécie de reação à investida feminista do período e enfrentou, na própria França, a ira
de uma centena de militantes da Liga do Direito das Mulheres.
373
O que mais
constrangia, nesse sentido, não era somente a representação do prazer advindo da
submissão feminina, mas o fato desse tipo de livro ter sido escrito por uma mulher, o
que fez o romance ficar retido pela censura na Espanha até, pelo menos, o ano de 1979,
quando a censura moral já parecia de longa data abolida e algumas obras de autoria
masculina fartamente taxadas de pornográficas circulavam livremente.
374
Como não
poderia deixar de ser, para o técnico de censura da DCDP que avaliou o livro, sua
tradução, feita por Hermilo Borba Filho em 1969, deveria ser imediatamente
apreendida, pois História de O seria um livro “obsceno, pornográfico, contendo
descrições de depravações e orgias sexuais, onde predominam o sadismo e o
masoquismo”.
375
Um outro livro que, curiosamente, também passou pela verificação censória em
1972 foi O exorcista, de William Peter Blatty, em tradução para o português pela Nova
Fronteira. Não obstante a obra (que procurava contar a história da possessão e do
exorcismo de um ente diabólico do corpo de uma adolescente) já tivesse alcançado a
marca dos best-sellers no mercado editorial norte-americano, ela foi tida como
“altamente contrária à moral e aos bons costumes” pelo Superintendente Regional do
DPF na Guanabara.
376
Já o parecer da censora que a examinou era menos contundente,
embora, por outro lado, deixasse transparecer a longa margem de espaço deixado às
avaliações subjetivas e, por vezes, extremamente extravagantes, dos funcionários
encarregados da matéria. O documento, além disso, serve para exemplificar como os
censores, em certos casos, conseguiam perceber um teor erótico em passagens que
dificilmente poderiam ser assim interpretadas pelos leitores do livro. Assim, a
“verdadeira intenção” do autor seria a de
expor a sensibilidade e a fé juntos à coragem de enfrentar a luta
contra a abjeta contaminação, invisível, mas presente no corpo
de uma adolescente, de dois padres jesuítas que praticam o
exorcismo católico, oferecendo suas vidas em holocausto. O
fato de chocar sensibilidades com a linguagem do “demônio”
373
Ibidem, p. 363.
374
PAUVERT, Jean-Jacques. Op. cit. p. 284.
375
Parecer ao Superintendente Regional do DPF em São Paulo, de Ricardo de Bloch, 11 ago. 1972, PUB.
376
Ofício nº 1403/GSR/72 do Superintendente Regional do DPG/GB ao diretor-geral do DPF, 14 jul.
1972, PUB.
149
ou excitar com descrições eróticas (presente em toda a obra
sobre demonologia) pode ser um vício do autor como outro
qualquer, mas que hoje não é mais original, nem atrai o falso
interesse; o que importa é o fascínio da força da religião contra
as perplexidades cometidas pela humanidade. Existe uma onda
atual de espiritualismo entre os jovens (revolução através de
Cristo) como símbolo de ânsia de pureza e fraternidade contra
a desumanidade das guerras, dos crimes em nome da sociedade
(pena de morte), da incompreensão, da falta de amor, enfim,
uma legião de estandartes que não se pode simplesmente
ignorar.
377
Apesar do documento, no trecho acima, deixar transparecer uma visão positiva
quanto ao sentido final do livro por parte da censora que o analisou, ainda assim ela
concluía pela necessidade de se cortar as “cenas de auto-estupro”, tidas como
“realmente impressionantes”, e de “envolver o volume a ser vendido em capa
sobreposta lacrada, contendo esclarecimento sintetizado sobre o tema e a proibição para
menores de 18 anos”. Como se pode notar, a concepção de uma censura pela defesa da
moral e dos bons costumes, muitas vezes, se tornava vaga, acabando por abarcar obras
que não tinham como objeto temas ligados ao sexo ou aos costumes, sendo difícil
compreender o motivo pelo qual elas chegaram a sofrer a avaliação da censura. A
própria censora, nesse sentido, ressaltava que o referido livro seria “difícil de ser
julgado, normalmente, segundo as normas de censura estabelecidas dentro de uma teoria
geral”, pois se trataria de uma obra sobre “demonologia”. Ainda assim, O exorcista
seguiu para a decisão final do ministro da Justiça, conjuntamente com a opinião do
Superintendente do DPF de que era uma obra “altamente contrária à moral e aos bons
costumes”.
378
O ano de 1972 foi marcado, ainda, por outro caso inusitado no âmbito censório.
Faltando apenas poucos dias para acabar o ano, o ministro da Justiça, Alfredo Buzaid,
baixou um ato proibindo uma coleção de gravuras de Pablo Picasso publicadas pela
Editora Artenova. Segundo a portaria assinada pelo ministro, a divulgação de As
gravuras eróticas de Picasso visaria, “exclusivamente, à exploração obscena da
sexualidade”.
379
Embora o caso possa surpreender por sua excentricidade e comicidade,
377
Parecer de Maria de Mello Ferreira, 10 jul. 1972, PUB.
378
Nos documentos do Fundo “Divisão de Censura de Diversões Públicas” não existem registros sobre a
decisão final do ministro da Justiça quanto à proibição ou não do livro, mas sua impressão, com data de
1972, indica que ele foi liberado.
379
A portaria foi publicada no Diário Oficial de 12 de janeiro de 1973 e consta no Processo C. nº
50240/73. MC/P. Caixa 592.
150
já que se tratava da proibição das gravuras de um artista reconhecido mundialmente pela
genialidade de suas obras, ele enseja, ainda, a reflexão sobre determinadas
características importantes da censura de costumes do período, sobretudo no que
concerne ao desenrolar inicial dos fatos que levaram ao ato de Alfredo Buzaid.
Como já destacamos em outros momentos, parece notório que a censura dos
anos 1970 não tinha condições de avaliar todas as publicações editadas no período,
mesmo que tal exigência se restringisse àquelas que tratavam de temas relacionados ao
sexo e aos costumes. Inexistia, como era de se esperar, um controle ou conhecimento
das inúmeras obras que foram publicadas naquela conjuntura, algo que fazia com que
também não houvesse regularidade nos meios pelos quais a censura tomava
conhecimento de muitas delas. No caso da censura política, conforme já analisamos,
grande parte dos livros proibidos foi objeto de informações ou, mesmo, de pressões
advindas dos órgãos de informações. Já no âmbito da censura de costumes, as
autoridades censórias contavam, ainda, com a contribuição de uma parcela da população
empenhada em denunciar autores e obras tidos como imorais.
380
Foi o que aconteceu
com As gravuras eróticas de Picasso.
De fato, poucos meses antes da proibição da obra, o ministro da Educação e
Cultura, Jarbas Passarinho, recebeu uma correspondência de um morador do bairro
Maria da Graça, no Rio de Janeiro. Pedia o remetente providências contra a firma que
havia enviado à sua residência “um folheto, com gravuras pornográficas”, o qual foi
recebido por “sua senhora” que, “num ímpeto de desagravo, rasgou-a”. A propaganda
de As gravuras eróticas de Picasso era vista pelo correspondente como
uma infiltração direta no lar brasileiro e que constitui mesmo
um perigo contra a segurança nacional. Outros colegas devem
ter recebido idêntico folheto. (...) Assim sendo, confio nas
providências eficientes de V. Exa. no sentido de que seja
proibida a firma em causa a atuar de forma tão degradante
junto à família cristã brasileira, que se encontra em perfeita
consonância com os ideais da Revolução Democrática de
Março de 1964, tão bem dirigida pelo ínclito e extraordinário
presidente Emílio Garrastazu Médici e seus eficientes ministros
de Estado.
381
Diante da correspondência recebida, Jarbas Passarinho resolveu enviar um aviso
380
Essa discussão será aprofundada no capítulo seguinte.
381
Carta ao ministro da Educação e Cultura, 8 jan. 1973. Processo C. nº 50240/73. MC/P. Caixa 592.
151
diretamente ao ministro da Justiça para as providências cabíveis, afinal, tratava-se “de
mais uma tentativa de degradação dos costumes da família brasileira pela infiltração de
propaganda perniciosa no lar”.
382
Assim, no dia 28 de dezembro, Alfredo Buzaid
assinou a minuta do ato que proibiu a comercialização das “perniciosas gravuras”.
383
Cerca de 4 anos depois, a Editora Artenova entrava com um pedido de reconsideração
da interdição a que foram submetidas as gravuras de Picasso, fazendo com que elas
fossem, então, examinadas por dois técnicos de censura da DCDP. Seus pareceres, nesse
sentido, servem como exemplos claros da falta de critérios mais sólidos a que estava
submetida a prática censória, sendo baseados em noções completamente antagônicas.
Nesse sentido, embora ambos destacassem que as gravuras não podiam ser vistas
simplesmente como pornografia, um deles defendia a proibição, argumentando pela
necessidade de se ater ao texto legal, enquanto o outro, talvez mais sensato, procurava
destacar o descabimento desse tipo de medida. Na conclusão a que chegara o primeiro,
“as cenas retratadas, mesmo de autoria de um dos maiores gênios contemporâneos, não
podem, tecnicamente, ser colocadas à parte, capazes que são de chocar um grande
número de pessoas, que não podem ser deixadas em favor de uma minoria
intelectual”.
384
O segundo, que passou boa parte do seu parecer destacando as
qualidades e o reconhecimento internacional de Pablo Picasso, argumentava que
não se justifica dar a uma obra de arte procedimento mais
rigoroso do que é dado a outras publicações. Uma proibição da
circulação, venda e distribuição do álbum de Picasso atrairia,
para a autoridade governamental, a ironia e o ridículo. Cabe-
nos preservar a autoridade governamental dessa circunstância.
Com efeito, uma eventual proibição teria repercussão
internacional, com prejuízo evidente para a imagem do país no
exterior, pois seria medida contra a obra de um dos artistas
mais divulgados universalmente. (...) Considerando todos esses
fatos, opino pela liberação, com absoluta consciência do meu
ponto de vista, e penso também que esta atitude contribuirá
para resguardar o bom nome deste departamento.
385
O que o técnico de censura provavelmente não sabia era que a obra de Picasso já
estava proibida desde o final do mandato de Alfredo Buzaid. Ele não sabia, também,
382
Aviso nº 1402.BSB, 26 dez. 1975. Processo C. nº 50240/73. MC/P. Caixa 592.
383
Embora o ato tenha sido publicado no Diário Oficial cerca de duas semanas depois, ele foi assinado
em 28 de dezembro de 1972. Processo C. nº 50240/73. MC/P. Caixa 592.
384
Parecer nº 468/76 de J. Antonio S. Pedroso, 28 set. 1976, PUB.
385
Parecer nº 467/76, de Gláucia de Lima Baena Soares, 28 set. 1976, PUB.
152
que sua argumentação de pouco adiantaria, pois o diretor-geral do DPF, Moacyr
Coelho, ao encaminhar os pareceres ao ministro Armando Falcão, opinou pela
manutenção do ato proibitório. Dizendo-se “convencido de que a distribuição do
trabalho não se destina a promover a arte, mas a comercializar um artigo potencialmente
ofensivo ao pudor”, ele argumentava, ainda, que não haveria mais motivo para “recear
mais nenhuma repercussão, porquanto a medida proibitiva, determinada há quase quatro
anos, caiu no esquecimento”.
386
No ano de 1973, também houve um número reduzido de livros examinados e
vetados pela DCDP. Dentre os últimos, além da autobiografia de Xaviera Hollander já
mencionada (A aliciadora feliz: minha própria história), tivemos O túmulo, de Rezende
Filho, Quatro cantos de pavor e alguns poemas desesperados, de Álvaro Alves de
Farias, e Último tango em Paris, de Robert Alley. Do livro do jornalista e crítico
literário Álvaro de Farias, foram considerados “atentatórios à moral e aos bons
costumes” trechos de cantos e poemas que somente muito forçosamente poderiam ser
tidos como obscenos:
Meu amor, o nosso licor / Nosso exercício / A nossa culpa, a
máxima culpa / A nossa cópula, a nossa cúpula (...) Pratico o
crime de aceitar / Como num coito de motel (Terceiro Canto
de Pavor) (...) as mulheres que se deitam comigo são muito
mais tristes do que eu (A cidade).
387
Já no que concerne ao romance Último tango em Paris, de Robert Alley,
baseado no filme homônimo de Bernardo Bertolucci, que ficou famoso pelas fortes
cenas de erotismo,
388
podemos visualizar a radicalidade e, mesmo, o caráter um tanto
enigmático que assumiam os pareceres de alguns técnicos de censura. Não era por
menos, pois, para além das cenas picantes mais conhecidas existentes em ambos, o
filme e o livro traziam consigo um certo “ar de 68”, inclusive nos questionamentos aos
valores da família como instituição. Assim, para o funcionário da censura, o “pretenso
romance” de Robert Alley não passaria de “um grotesco relato, contestando a estrutura
386
Ofício nº 722/76-DCDP, do diretor-geral do DPF ao ministro da Justiça, 8 out. 1976, OS.
387
Parecer de Clovis Lema Garcia, 21 dez. 1973, PUB. Como não tivemos acesso ao original, os trechos
foram transcritos conforme aparecem no parecer do censor. Portanto, pode haver alguma pequena
diferença em relação ao original.
388
O filme data de 1972, mas também sofreu com a censura e somente foi liberado, no Brasil, em 1979.
Entre as cenas mencionadas, a que mais causou celeuma foi a representação da prática da sodomia com
uma manteiga.
153
social contemporânea, explorando o sexo em seu plano de exaltação individual e
coletiva, na explicitação de um livro ou relato pornográfico e de insensibilidade
humana”.
389
Mas, isso não era nada perto do que viria a seguir:
Não satisfeito com a solapa moral oferecida e insuflada por
uma propaganda malsã e teleguiada, sadomasoquista, sodomia
requintada, atitudes vulgares, violência bestial, auto-elogio de
práticas excessivas do sexo mórbido à guisa do prazer
assublimado, de possível induzimento do leitor menor a uma
predisposição angustiada, ansioso pela sua repetição ou
conduzi-lo a frustrações com seu cortejo de conseqüências,
pela impossibilidade da prática imediata. (...) Finalmente, a
narrativa gravita essencialmente no prazer sexual de natureza
animalesca, suscitando ao leitor a visualização do limite da
experiência em seu plano objetivo, deixando como única
mensagem a necessidade e como cada um pode e deve solapar
as bases de nossa sociedade num flagrante e cínico desrespeito
a tudo o que é mais sagrado.
Diante disso, o livro foi, em seguida, encaminhado para o exame de um Inspetor
da Polícia Federal, cujo “relatório censório” não divergiu muito do parecer
anteriormente mencionado, primando por opiniões extremadas:
A fúria sexual exaltada em quase todos os capítulos descreve,
com requintes de crueldade e perversão, num linguajar baixo e
obsceno, momentos de intimidade sexual que revelam tara e
selvageria, misturando a sordidez do instinto animalesco ao
desrespeitoso e profano comportamento de homem anormal.
(...) Os detalhes sobre cenas de sangue, suicídio, aberrações
sexuais, miséria humana, erotismo, racismo, palavreado vulgar,
pornografia, acolhimento e proteção de atos ilícitos, humor
deformado, deboche e desrespeito à religião, aos mais velhos e
às autoridades, irreverência, e exaltação à desagregação social
e familiar, resumem o absoluto espírito negativista contido no
livro, sem qualquer contribuição positiva ou literária.
390
A Editora Civilização Brasileira, responsável pela publicação da obra, ainda
entrou com um mandado de segurança contra o ato proibitório do ministro da Justiça,
argumentando que o decreto-lei 1.077/70 era inconstitucional, mas a iniciativa não
logrou êxito. Nem mesmo a apreensão do livro que, contrariamente ao que dispunha
389
Relatório censório sobre o livro Último Tango em Paris do técnico de censura, Antonio Gomes
Ferreira, 29 maio 1973, PUB.
390
Relatório censório do Inspetor de Polícia Federal, Bel. Helio Romão Damaso Segundo, 29 jul. 1973,
PUB.
154
aquele diploma legal, tinha sido feita a posteriori, foi considerada ilegal.
391
Assim, em
agosto de 1974, foram apreendidos 144 exemplares de Último tango em Paris na
distribuidora Alaôr e em algumas bancas de jornal e revistas pelo Serviço de Censura de
Diversões Públicas do Ceará.
392
Ainda no ano anterior, um Juiz de Menores da Comarca
de Niterói, no Rio de Janeiro, havia expedido uma portaria proibindo a circulação e
determinando a apreensão de todos os exemplares do livro na capital daquele Estado.
Para ele, o livro de Robert Alley era “um repositório de pornografia e incitador da
sensualidade amoral, com indesmentidos propósitos de ofender a moralidade pública e
os bons costumes”.
393
De fato, aqueles eram tempos em que equipes de busca saíam às ruas revistando
jornaleiros e livrarias à procura de publicações tidas como pornográficas, causando
enorme prejuízo financeiro aos donos de bancas de jornal que tinham boa parte de sua
renda proveniente da venda de revistas eróticas. Assim, ainda em 1973, a Divisão de
Polícia Federal no Piauí realizou uma “planejada operação” para a apreensão de livros e
revistas tidos como obscenos em diversas lojas e jornaleiros, recolhendo um grande
número de publicações.
394
Ações como essa, seguiam um “roteiro de busca previamente
estabelecido”, mas nem sempre obedeciam aos trâmites legais, resultando, em certos
casos, em apreensões indevidas. Nesse sentido, entre os meses de agosto e outubro de
1971, por exemplo, funcionários do SCDP compareceram diversas vezes à sede da
Editora Esdras, em são Paulo, e apreenderam milhares de posters, com a anuência do
chefe do órgão regional de censura daquele Estado.
395
Havia, porém, pelo menos duas
arbitrariedades nesse tipo de ato: a primeira, porque a legislação censória não dispunha
sobre a censura prévia de posters; a segunda, devido ao fato de qualquer apreensão
somente poder ser efetuada a mando do ministro da Justiça.
De fato, não obstante os dados sobre o número de livros apreendidos durante os
anos 1970 sejam bastante incompletos, podemos ter uma noção da sua enormidade por
alguns relatórios de atividades da Divisão de Censura de Diversões Públicas. Só para se
ter uma noção, segundo tais documentos, no ano de 1975 foram confiscados 52.962
391
Telex do presidente do Tribunal Federal de Recursos ao ministro da Justiça, 15 fev. 1974, PUB.
392
Ofício nº 1.369/74, do chefe do SCDP/SR/CE, Benedicto Ramão de Siqueira, ao diretor do SCDP, 22
ago. 1974, NO.
393
Portaria nº 2/73, do Juiz de Menores, Enéas Machado Cotta, de 26 de junho de 1973, PUB.
394
Ofícios nº 014/73.SI.DPF.PI e nº 016/73.SI.DPF.PI do diretor da Divisão de Polícia Federal no Piauí,
Bel. Sidiney Duarte Brandão, ao diretor da DCDP, Rogério Nunes, 9 maio 1973, NO.
395
Ofício do técnico de censura, Coriolano Fagundes, ao chefe da Seção de Censura, 19 nov. 1971, NO.
155
exemplares de livros. Esse número decresceria para 16.842, em 1977, aumentando
desproporcionalmente para 226.641, em 1978. Já no que concerne às revistas
apreendidas, os números mencionados são 3.196, em 1973; 4.341, em 1975; 22.293, em
1977 e 9.494, em 1978.
396
Como se pode notar, embora inexistam dados sobre os outros
anos, o número de exemplares de livros e revistas apreendidos durante os anos 1970
alcançava facilmente a casa das dezenas de milhares, sendo muitas dessas apreensões,
provavelmente, feitas de modo arbitrário. É o caso, por exemplo, de várias publicações
que foram recolhidas mesmo depois de já terem sido examinadas e liberadas pela
DCDP.
5.1. O período de Armando Falcão
Se os pareceres dos livros que passaram pelo crivo do SCDP nos primeiros anos
da década de 1970, quando a censura de publicações possuía um caráter mais episódico,
já apontam para o conservadorismo moral presente nas avaliações dos técnicos de
censura, durante o mandato de Armando Falcão isso se tornou muito mais perceptível.
Conforme já mencionamos, aquele foi um período em que o número de livros
examinados e vetados teve um aumento substantivo, particularmente no que concerne às
obras tidas como “contrárias à moral e aos bons costumes”. Tal conjuntura histórica,
nesse sentido, se torna um campo privilegiado para a análise dos conflitos morais que se
manifestavam entre os padrões comportamentais defendidos pelos funcionários do
órgão que fazia a censura de diversões públicas e aqueles presentes nos livros
examinados, sejam eles considerados obras de grande valor literário ou, ainda,
publicações que exploravam o sexo com objetivos meramente comerciais.
397
396
Ver Relatório referente ao ano de 1973, assinado pelo diretor da DCDP em exercício, Hugo Póvoa da
Silva, 15 mar. 1974, RE. Relatório da DCDP referente ao exercício de 1975, assinado por Rogério Nunes,
15 jan. 1976, RE. Relatório da DCDP referente ao exercício de 1977, assinado por Rogério Nunes, 16 jan.
1978, RE. Relatório da DCDP referente ao exercício de 1978, assinado por Rogério Nunes, 23 jan. 1979,
RE.
397
A diferenciação entre esses dois tipos de literatura, muitas vezes ressaltada pela crítica especializada
por meio das adjetivações “erótica” ou “pornográfica”, respectivamente, não caberá ser avaliada em nossa
narrativa. Sendo o objetivo central de nossa análise as concepções mobilizadas pelos técnicos de censura
e seu confronto com os valores morais presentes nos livros examinados, procuraremos apenas demonstrar
que, certos livros, após já terem sido amplamente consagrados pela crítica literária, foram vetados do
mesmo modo que aqueles outros que circulavam sem o “aval” da mesma.
156
Nesse sentido, há que se destacar que passaram pelo exame dos censores nesse
período textos de escritores já considerados clássicos da literatura erótica mundial,
como Henry Miller (Dias de Clichy e Uma noite em Newhaven), Jacques Casanova de
Seingalt (As memórias de Casanova), Marquês de Sade (A divina marquesa), D. H.
Lawrence e Guy de Maupassant. Igualmente examinados pelos funcionários da DCDP,
por outro lado, foram diversos livros de autores tidos como meramente “pornográficos”
ou, mesmo, desconsiderados (e desconhecidos, em alguns casos) pela crítica
especializada, como Cassandra Rios, Adelaide Carraro, Brigitte Bijou e Dr. G. Pop.
Aliás, a impossibilidade de encontrar referências sobre alguns dos escritores que
aparecem na listagem de livros examinados pela DCDP deixa dúvidas quanto ao próprio
fato de a assinatura contida na obra corresponder ao nome do seu autor ou ter sido
apenas um pseudônimo usado para burlar a vigília daquele órgão de censura. É curioso
perceber, nesse sentido, que não foi somente no plano político e da chamada Música
Popular Brasileira que esse tipo de recurso foi utilizado, assim como foram diversos os
casos de livros “pornográficos” reeditados com títulos trocados para passarem
novamente pela avaliação do órgão que fazia a censura de diversões públicas.
398
No ano em que Armando Falcão assumiu a pasta da Justiça não houve, de
imediato, um grande aumento no número de livros examinados pela DCDP em relação
ao que se verificou nos quatro anos anteriores. Segundo a listagem daquele órgão,
passaram pelas mãos dos técnicos de censura apenas 20 livros em 1974, 12 dos quais
(pelo menos) foram vetados. Entre eles, estava a tradução para o português do romance
Emmanuelle, de Emmanuelle Arsan (pseudônimo de Maryat e Louis Rollet-Andrianne),
o qual foi publicado na França, inicialmente, em 1959, sob uma edição clandestina que,
apresentada por Eric Losfeld, não indicava nem mesmo sua autoria.
399
Narrando as
aventuras sexuais da jovem Emmanuelle, o romance foi depois transformado em filme e
alcançou sucesso internacional, sendo encenado pela atriz Sylvia Kristel numa produção
do mesmo ano em que o livro passou pela DCDP. A publicação, por outro lado, também
já tinha tido uma grande vendagem em 1974, levando o técnico de censura que a
398
Vale ressaltar, aliás, que a utilização de pseudônimos em obras eróticas ou pornográficas foi um
recurso sempre muito utilizado pelos escritores de publicações deste teor em termos mundiais, não sendo,
de modo algum, algo característico daquele período (a não ser, como um recurso que teve que ser mais
freqüentemente empregado devido ao enrijecimento da censura de costumes).
399
ALEXANDRIAN, Sarane. Op. cit. p. 364-366. PAUVERT, Jean-Jacques. Emmanuelle Arsan.
Emmanuelle. 1959. In: ____. Op. cit. p. 411-414.
157
examinou a recear sua pura e simples interdição. Segundo ele, “é um romance traduzido
em onze línguas, que já vendeu mais de um milhão de exemplares” e, portanto, “apesar
da publicação contrariar os princípios que ditaram a edição do decreto-lei n. 1.077 (...),
opino por uma consulta para saber se a obra foi examinada, antes de qualquer ação com
relação à proibição do livro”.
400
Já no que diz respeito ao outro livro de Emmanuelle
Arsan, que dava continuidade à história da personagem Emmanuelle, intitulado
Emmanuelle. L’Anti-Vierge, cuja tradução chegou ao serviço censório no ano seguinte,
o censor que o examinou pareceu não ter tido o menor pejo em sugerir sua não
liberação, taxando-o enfaticamente de “mais do que pornográfico e licencioso”.
401
Para
o funcionário da DCDP, “o vernáculo não é tão rico em expressões contundentes para
qualificar o verdadeiro sentido (...) do grupo interessado pela destruição ou
desmoronamento das bases psicossociais do Brasil”.
Outro livro que passou pela avaliação da censura em 1974 foi Confissões de um
conquistador de criadas, do sexólogo gaúcho Hernani de Irajá. Embora quase não seja
lembrado atualmente, Hernani de Irajá foi um dos pouquíssimos médicos do Rio de
Janeiro que poderia ser considerado de fato como sexólogo na primeira metade do
século XX e chegou a ganhar uma certa notoriedade nos anos 1930 e 1940 por suas
pinturas, que ele utilizava para ilustrar suas obras de sexologia.
402
Seu livro, no entanto,
foi sumariamente proibido. Segundo o técnico de censura que o avaliou, nele, “o autor
arrasta o leitor da primeira à última página comunicando-lhe lascívia, instigando-o à
imitação, o que seria totalmente prejudicial à adolescência, quando a fome de prazer
eclode mais viva e inconscientemente”.
403
Assim, “não há outra finalidade senão
despertar a luxúria, o desequilíbrio sexual na juventude, enriquecendo-lhe os métodos
para maiores atitudes eróticas”. Como analisaremos adiante, naqueles anos, muitas
obras que se constituíam tão-somente em estudos sobre a sexualidade eram
interpretadas pelos censores como sendo altamente imorais ou pornográficas. Por vezes,
parecia que tratar de sexo, seja lá como fosse, era o bastante para se ter um livro
proibido.
400
Parecer s/n. do técnico de censura, José Vieira Madeira, 1º nov. 1974, PUB.
401
Parecer nº 479/75, sem assinatura, 1975, PUB.
402
CARRARA, S. L.; RUSSO, J. A. A psicanálise e a sexologia no Rio de Janeiro de entreguerras: entre
a ciência e a auto-ajuda. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 276 e 289
mai./ago. 2002.
403
Parecer nº 21598/74, sem assinatura, 4 nov. 1974, PUB.
158
Mas, foi, de fato, nos anos de 1975 e 1976 que houve um número maior de obras
avaliadas no âmbito do órgão que fazia a censura de diversões públicas. Naquele
primeiro ano, passaram pelo crivo dos censores 131 livros, entre eles, Dias de Clichy e
Uma noite em Newhaven, do escritor norte-americano Henry Miller. Escrito em teor
confessional, algo bastante característico das obras do autor, o livro compunha-se de
duas histórias, uma sobre sua estada em Paris e, outra, sobre uma frustrada viagem a
Londres, pela qual Miller viu-se obrigado a retornar a Paris depois de ter visto negada a
sua entrada na Inglaterra. Assim, o conhecido autor da trilogia Sexus (1949), Plexus
(1953) e Nexus (1960), cujas obras já tinham um histórico de longo enfrentamento com
a censura em diversos países,
404
foi também moralmente condenado pelos censores
brasileiros, que não se contentaram em taxar o livro de “contrário à moral e aos bons
costumes”: “a pornografia é a mais baixa possível e, no texto, o autor dá vazão às suas
taras”, argumentava o técnico de censura que o examinou.
405
O principal motivo da
sugestão de proibição do livro foi a descrição de “uma cena de alcova com os mínimos
detalhes”, algo que levaria o censor a concluir que nele “não há mensagem positiva” e
que, “a sua leitura, só contribuirá para a má formação da nossa mocidade”.
Naquele mesmo ano, também passou pelo “serviço censório” A divina
marquesa, do Marquês de Sade. Amplamente conhecido por sua vida e obras dedicados
a variadas formas de exploração da libido na França do século XVIII, Donatien
Alphonse-François, o Marquês de Sade, foi autor de livros considerados clássicos da
literatura mundial, entre eles Os 120 dias de Sodoma (1785), no qual ele explorou à
exaustão diversas formas de prática sexual condenáveis pelos padrões morais existentes
(sodomia, pedofilia e coprofilia são algumas das variações descritas por Sade). Em A
divina marquesa ele narrava a história da bela Euphrase, que teria se tornado objeto da
cobiça do marido e do cunhado devido a uma vultosa herança que teria recebido. E foi,
curiosamente, a condenação de ambos os personagens pelos crimes praticados contra
Euphrase que acabou fazendo com que o funcionário da DCDP que examinou o livro
opinasse por sua liberação. Desse modo, dando prosseguimento ao didatismo prezado
pela instituição censória, assim o técnico de censura concluía seu parecer: “a obra em
404
Inclusive, no seu próprio, pois um de seus mais importantes livros, Trópico de Câncer, de 1934, ficou
proibido de ser editado durante quase trinta anos nos Estados Unidos. A saída encontrada por Henry
Miller era publicar várias de suas obras na França. Ver PAUVERT, Jean-Jacques. HENRY Miller.
Tropique du Capricorne. In: ____. Op. cit. p. 90-92.
405
Parecer nº 968/75, do técnico de censura C. Guterres, 14 jul. 1975, PUB.
159
questão, trata-se de um acúmulo de perversidades, porém culminando com o castigo dos
criminosos. Opino pela sua liberação”.
406
Ainda no ano de 1975, quando tivemos o maior número de livros examinados e
proibidos da década, passaram pela avaliação da censura trechos de romances e contos
de autores clássicos no âmbito da literatura erótica como D. H. Lawrence, Guy de
Maupassant e Júlio Ribeiro. Eles faziam parte de uma coletânea organizada por R.
Bava, intitulada Mulheres eróticas, a qual foi vetada por meio de uma portaria assinada
por Armando Falcão em novembro daquele mesmo ano.
407
O ato proibitório, como não
poderia deixar de ser, se baseava no parecer de um funcionário da DCDP que
considerou aquele como “um livro que atenta para o lúbrico e o obsceno, que colabora
apenas para a dissolução da moral e dos bons costumes, pelo que somos de parecer que
não deva ser liberado”.
408
Igualmente interditado, nesse sentido, foi o livro Dez estórias
imorais, de Agnaldo Silva, autor que mais tarde ficaria conhecido pela produção de
minisséries e novelas para a televisão. Dentre os dez contos da obra, dois foram
consideradas imorais por um técnico de censura, um deles por tratar-se da história do
envolvimento de um marinheiro com o homossexualismo, tema que foi uma
preocupação constante do órgão de censura durante o período, conforme analisaremos
mais adiante.
409
O ano seguinte, 1976, foi aquele em que tivemos o segundo maior número de
obras examinadas e proibidas da década de 1970. Em janeiro, foi a vez das famosas
Memórias de Casanova, o veneziano do século XVIII cujo nome praticamente tornou-se
sinônimo de conquistador e libertino, graças às suas histórias de sedução de inúmeras
mulheres em aventuras por diversos países. O valor histórico e o fato de a obra ser
mundialmente conhecida,
410
entretanto, parecem não terem sido levados em
consideração pelos técnicos de censura que a examinaram, os quais optaram pela sua
pura e simples interdição. A obra, na verdade, chegou ao serviço censório,
primeiramente, como uma tradução publicada pela editora Hemus, intitulada Diário
íntimo de Casanova, sendo enigmaticamente caracterizada por um censor que se dizia
406
Parecer nº 8436/75, de Vilma Duarte do Nascimento, 1º out. 1975, PUB.
407
Portaria publicada no Diário Oficial em 17 de novembro de 1975.
408
Parecer nº 9059/75, de Avelino Barreto, 18 out. 1975, PUB.
409
Ver parecer nº 2209/75, do técnico de censura, Augusto da Costa, 30 dez. 1975, PUB.
410
Segundo Jean-Jacques Pauvert, “les Mémoires figurent dans toutes les anthologies de l’érotisme”.
PAUVERT, Jean-Jacques. Jacques Casanova de Seingalt. Mémoires. In: ____. Op. cit. p. 434.
160
em favor de “uma juventude sadia e livre das algemas dos crimes e da escravidão dos
vícios”:
A técnica usada arrastará o leitor menor a um comportamento
invulgar, face aos estímulos eróticos e lascívia próprios das
emoções sexuais, ainda que, no íntimo, se esforce para
contestar a mensagem proposta ou pretendida. (...) O autor
busca contestar que a moral e [os] bons costumes não se
substractam [sic] na índole ou conjunto de valores elaborados,
aceitos e vividos pelo povo, como fonte necessária e propulsora
de nacionalidade e bem-estar social, em que o indivíduo se
traduz e se realiza integrado em si mesmo e na coletividade.
411
Como se pode notar, o censor que examinou as Memórias de Casanova fazia
uma correlação entre a chamada “moral e os bons costumes” de um povo e sua
identidade nacional, mobilizando noções como índole e considerações sobre a
mensagem proposta pelo autor de modo bastante equivocado. O interessante em
argumentações como esta, no entanto, é a convicção de que certas obras, como a de
Jacques Casanova de Seingalt, estariam sendo editadas não somente com propósitos
comercias de simples exploração da pornografia (como talvez fosse mais comum dentro
de um ponto de vista moralmente conservador), mas com o objetivo precípuo de
“corromper a juventude”. Esse tipo de concepção, como se poderá notar ao longo deste
capítulo, esteve presente em diversos pareceres sobre livros do período, sendo uma idéia
recorrentemente empregada pelos técnicos de censura para argumentar pela interdição
de determinadas obras. Assim, para o censor que examinou O diário íntimo de
Casanova haveria, de fato, a “intenção de expor à juventude brasileira o comportamento
de um homem sem moral, cuja glória consiste numa vida fútil, desregrada nos prazeres
da carne, violação dos lares e aliciamento de menores”.
Cerca de dez meses depois, a obra de Casanova seria novamente examinada,
agora numa edição de 1969, sob o conhecido título Memórias de Casanova. E, mais
uma vez, a controvertida “autobiografia erótica” do veneziano do século XVIII seria
moralmente condenada por um funcionário da DCDP, o qual interpretou as conquistas
sexuais narradas por Jacques Casanova de Seingalt como “indecentes”, “levando a crer
não haver mulher honesta”.
412
Nesse sentido, é possível especular se o fato da obra de
411
Parecer nº 03/76 do técnico de censura, Antonio Gomes Ferreira, 5 jan. 1976, PUB.
412
Parecer nº 454/76, de Selia Natalha Stolte Rouver, 22 set. 1976, PUB.
161
Casanova ter sido examinada por uma censora (e não por um censor) acabou por
contribuir para sua proibição, não obstante a postura moralmente conservadora em
relação à representação da prática sexual fosse comum a censores e censoras.
Continuando sua avaliação dos escritos de Casanova, a censora argumentava que “a
impressão final” sobre o livro seria de “descrença e falsidade, depois de tanta farsa e
ultraje praticados contra a moral e os bons costumes”, concluindo seu parecer em favor
da interdição. Representativa do teor do documento produzido por aquela censora, nesse
sentido, foi a sucinta frase por ela empregada para caracterizar o que ela interpretava
como o verdadeiro sentido da obra: “não edifica, destrói”.
De fato, durante o mandato de Armando Falcão no Ministério da Justiça, o
conservadorismo moral das análises censórias parece ter se acentuado no plano dos
livros. Nem mesmo obras consagradas ou de valor artístico ou histórico foram poupadas
pelos técnicos de censura. Naquele mesmo ano de 1976 foram considerados impróprios
pelos censores publicações como L’art erotique, de Eberhard e Phykkis Kronhausen,
baseado na 2
a
Exposição Internacional de Arte Erótica, que teve lugar na Suécia, em
1968. O livro reproduzia diversas obras de valor artístico em planos como o da pintura,
da escultura e da fotografia, mas foi tido pelo censor que o examinou como “muito
direto e chocante, podendo constranger o publico leitor”.
413
Poucos meses depois, outro
técnico de censura opinava pelo veto a Jou pu tuan (o livro erótico chinês), um dos mais
célebres romances no âmbito da literatura erótica chinesa.
414
Escrito ainda no século
XVII por Li-Yu, autor de diversas outras obras no plano literário daquele país, Jou pu
tuan é considerado um livro de grande valor histórico. Para o funcionário da DCDP,
entretanto, “a obra nada tem de positivo” e “visa explorar o sexo em sua forma mais
deprimente”.
415
Nesse sentido, eram poucas as vezes em que a canonização, o valor artístico ou
histórico de uma determinada obra eram considerados critérios suficientes para sua
liberação (até porque, em muitos casos, os censores pareciam não possuir quaisquer
informações sobre o livro em questão). Um dos poucos livros que conseguiu passar pela
“tesoura censória”, nesse sentido, (não bastasse, por outro lado, ser uma obra
amplamente reconhecida como um dos clássicos da literatura mundial) foi Kama sutra,
413
Parecer nº 86/76, de Gláucia Baena Soares, 11 fev. 1976, PUB.
414
Ver PAUVERT, Jean-Jacques. Li-Yu. Jeou P’ou T’ouan. In: ____. Op. cit. p. 474.
415
Parecer nº 2859, da técnica de censura, Sonia Mendes, 21 nov. 1977, PUB.
162
o antigo livro de Vatsyayana, no qual a prática sexual aparece intrinsecamente
relacionada à concepção de mundo da religião hindu. Escrito, originalmente, em
sânscrito (grupo de línguas e dialetos indo-áricos antigos do Norte da Índia, nos quais
Kama sutra significa “Livro do amor”) para a nobreza indiana, Kama sutra foi
traduzido para todas as línguas e sua feitura, embora imprecisa, data do período entre os
séculos I e II. Desse modo, a obra de Vatsyayana, diferentemente do que acontecia com
a maioria dos importantes livros que passavam pela censura, foi considerada como
“uma contribuição de estudo no campo antropológico e social”, por um censor,
416
como
uma “fonte de pesquisa para os historiadores da civilização hindu, no campo
sociológico e antropológico”, por outro,
417
e como tendo “um marcante valor histórico,
sócio-antropológico e cultural”, por um terceiro.
418
Em casos de outros livros liberados, entretanto, os censores pareciam o terem
feito a partir de supostos critérios “estritamente técnicos”, sem considerar o caráter
simbólico e religioso das ilustrações porventura neles existentes. Assim aconteceu com
um livro de iniciação ao tarô, que reproduzia as 78 cartas utilizadas naquela prática
religiosa para, supostamente, predizer o futuro. Intitulado O significado sexual do Tarô,
o livro de Theodor Laurence foi liberado com base no seguinte argumento:
No que tange às fotografias – na realidade desenhos – não há
nenhum inconveniente, isto porque não fere, em absoluto, os
postulados ou princípios, dispositivos ou textos legais, razão
sobeja pela qual opino pela sua liberação.
419
Como se pode notar, a simples passagem de publicações como essa pelo serviço
censório, assim como de diversas obras literárias que somente muito forçosamente
poderiam ser enquadradas no âmbito dos livros eróticos, torna-se bastante curiosa. No
caso dessas últimas, algumas delas chegavam, até mesmo, a obter alguma simpatia dos
técnicos de censura, os quais, às vezes, deixavam entrever em seus pareceres um certo
apreço por determinados autores e obras. Assim, o livro O homem subterrâneo, que se
tornou um dos best-sellers da série de romances de detetive do escritor norte-americano-
416
Parecer nº 2879, do técnico de censura, Joel Carlos Tavares de Almeida, 23 nov. 1977, PUB.
417
Parecer nº 91/78, de Eni Martins França Borges, 23 fev. 1978, PUB.
418
Parecer nº 15/79, de Ivan Batista Machado, 22 jan. 1979, PUB.
419
Parecer nº 14/76, de Correêa Lima, 1976, PUB.
163
canadense Ross Macdonald, foi descrito como “um sensacional conto policial”,
420
enquanto O direito e o avesso, de Robin Maugham, por exemplo, recebeu o parecer
favorável de um censor que o considerou “um romance muito bem formulado”.
421
O
machão, do reconhecido autor norte-americano, Harold Hobbins, que também teve
diversos livros alcançando a marca dos mais vendidos, foi considerado um “romance de
urdidura dramática vibrante” pelo funcionário da DCDP que o examinou.
422
Ainda
assim, ele opinou pelo seu veto, pois nele “o autor descreve, com riqueza de detalhes, as
experiências sexuais dos personagens”.
O que predominava nos exames dos censores, entretanto, era a contundente
adjetivação de autores e obras, conforme já mencionamos. Nesse sentido, segundo um
técnico de censura, o livro O gigolô, de Chris Harrison, “não consegue despertar no
leitor outro sentimento que o de nojo”,
423
ao passo que, na obra A escalada do prazer,
seu autor, Peter McCurtin, tentando alcançar o erotismo, somente alcançaria o
ridículo.
424
Já o livro O sexo portátil, de Luiz Canabrava, não seria pornográfico, mas
uma “obra literária de baixo nível”, cuja “mensagem contida na narrativa é praticamente
inócua”.
425
A linguagem e o assunto do livro Fêmeas de luxo, de Jean Charles Capelle,
por sua vez, seriam “baixos e chulos”
426
e os contos da publicação Onlymen (Coleção
garotas e piadas), “como passatempo, são deprimentes, por virem destituídos de
qualquer princípio moral e desprovidos de criatividade”.
427
Irritado com a afirmativa de
Luis Barreiros de que o livro Páginas eróticas, por ele revisado e traduzido, traria 13
contos de grandes escritores, um funcionário da DCDP perguntava:
Qual o movente desse autor? Será tão ingênuo, julgando-se
acima dos demais, a ponto de escolher tanta lascívia em tão
reduzidas páginas, tanta podridão moral à guiza de literatura
dos melhores do mundo? É pura decadência moral e fere os
padrões amparados pelas leis brasileiras. Luxúria e lascívia
afrontando todos os valores e induzindo à prática criminosa do
420
Parecer nº 316/76-SR/DF, do técnico de censura, Bel. L. Fernando, 7 jun. 1976, PUB.
421
Parecer nº 479/76, de Maria das Graças Sampaio Pinhati, 23 set. 1976, PUB.
422
Parecer nº 01/75, da assessoria/DCDP (com assinatura ilegível), 1975, PUB.
423
Parecer nº 5135/75, de Onofre Ribeiro da Silva, 6 jun. 1975, PUB. O caso do livro O gigolô é curioso
pelo fato do próprio censor que o examinou ter afirmado que o nome presente na obra poderia ser apenas
um pseudônimo, demonstrando como os funcionários da DCDP não estavam completamente alheios à
utilização desse tipo de recurso para burlar o órgão de censura.
424
Parecer nº 5134/75, de Onofre Ribeiro da Silva, 6 jun. 1975, PUB.
425
Parecer nº 350/76, de Dalmo Paixão, 30 jun. 1976, PUB.
426
Parecer nº 21750/74, com assinatura ilegível, 5 nov. 1974, PUB.
427
Parecer nº 21747/74, com assinatura ilegível, 5 nov. 1974, PUB.
164
sexo, descrevendo-o com requinte de lascívia, visando
despertar e arrastar a juventude e os menos avisados ao crime
de base sexual.
428
Além da crença no objetivo precípuo de “corromper a juventude”, perceptível
nesse e em outros pareceres que já destacamos, uma outra questão bastante presente nas
avaliações dos censores era a convicção de que as publicações eróticas levariam de fato
à prática do ato sexual. Em outras palavras, os funcionários da DCDP não somente
estavam convencidos de que tais publicações poderiam deixar lúbricos seus leitores,
mas, às vezes, pareciam dotá-las de uma desproporcional capacidade de conduzi-los à
imitação das relações sexuais ali descritas ou ilustradas. Esse tipo de concepção, por
outro lado, está relacionada com uma espécie de subestimação da capacidade crítica das
pessoas de modo geral, particularmente no que concerne aos jovens e adolescentes,
sempre tidos como despreparados ou por demais curiosos no que diz respeito aos
assuntos afetos ao sexo. Ainda no âmbito da censura ao livro Páginas eróticas, um
outro censor que o avaliou o considerou sem palavras pornográficas, mas ressaltou que
a narração de “práticas de sexo” nos mínimos detalhes “não deixaria de ser uma
maneira, ostensiva, de induzir e ensinar o leitor para conquistas amorosas diversas e
para a prática de anormais relações sexuais”.
429
O livro Contos eróticos, por outro lado, foi tido por um funcionário da DCDP
como um “livro ilustrado, essencialmente erótico, totalmente pernicioso aos de menor
idade e maiores menos avisados ou de educação sexual e moral rígida”, na medida em
que acabaria por “induzir a juventude à prática de aberrações sexuais, pela alta
excitação que certamente despertará no leitor menor”.
430
Uma outra obra editada no
período, intitulada Cedo para a cama, de Mark Clements, receberia uma caracterização
semelhante: “embora não apresente, na narração, palavrões, o seu conteúdo é
pretensioso e indutivo, pois, subjetivamente, leva o leitor, principalmente os jovens e
adolescentes, a terem a experiência sexual logo cedo, como diz o título e sua cena de
capa”.
431
Para outro técnico de censura, ambos os aspectos que já ressaltamos como
recorrentes nos pareceres de censura se conjugariam, ou seja, a ingênua curiosidade dos
adolescentes e os objetivos nefastos dos editores:
428
Parecer nº 21285/74, com assinatura ilegível, 29 out. 1974, PUB.
429
Parecer nº 20751/74, com assinatura ilegível, 29 out. 1974, PUB.
430
Parecer nº 21286/74, com assinatura ilegível, 1974, PUB.
431
Parecer nº 20752/74, com assinatura ilegível, 29 out. 1974, PUB.
165
Sabemos que o verdadeiro alvo a ser atingido por tais
publicações é o público adolescente, aberto a toda e qualquer
informação no âmbito sexual, face ao elevado espírito de
curiosidade e de aventura que possuem, envolvendo-se em
constantes e novas descobertas.
432
Determinados trechos de pareceres demonstram como os censores, muitas vezes,
viam o erotismo presente nos livros do período como indicadores de uma suposta
exploração da pornografia em escala mundial. Tal diagnóstico não discrepava
completamente da realidade, na medida em que o sexo foi um tema freqüente nos anos
1960 e 1970 (haja vista a expressão “revolução sexual”, sempre associada ao período), a
não ser pelo conservadorismo moral presente nas concepções dos censores, que tendiam
a encarar qualquer representação do ato sexual como pornografia. O curioso, nesse
sentido, é que os pareceres de censura acabavam conformando-se como um espaço no
qual os funcionários da DCDP podiam expressar suas opiniões e avaliações sobre a
produção literária de modo geral, assim como aquilo que percebiam como limitações do
serviço censório no combate às “publicações obscenas”. As idéias contidas nos
pareceres, portanto, ultrapassavam um simples exame centrado no livro em questão, o
que nos permite, inclusive, compreender mais profundamente as convicções dos
funcionários da censura. Escrevendo em 1975, um deles acreditava que,
ultimamente, tem havido grande divulgação de temas erótico-
pornográficos e milhares de livros com esse conteúdo foram
lançados no mercado, sem que fossem tomadas providências
para reprimir tais abusos. As editoras, impunes, sentiram-se
liberadas para lançar mais obras, explorando taras e aberrações
sexuais sobre os leitores, principalmente os adolescentes,
atraídos por chamadas de capas altamente eróticas e, apesar de
haver toda uma legislação mandando reprimir tais abusos, [ela]
pouco tem sido usada.
433
Mobilizando concepções semelhantes, outro censor da DCDP identificava uma
invasão das bancas de jornal e das bibliotecas do mundo inteiro por obras pornográficas,
as quais se esconderiam por trás da “moda do best seller”:
A moda do best-seller invadiu o mercado mundial de livros
proporcionando que, no roldão, se lançassem aventureiros
432
Parecer nº 3984/80, do técnico de censura, Sergio Roldan de Oliveira, 17 dez. 1980, PUB.
433
Parecer nº 1775/75, da técnica de censura, Ascension Palacios Chanques, 30 out. 1975, PUB.
166
transformados em geniais escribas, levando sob a capa obras
imorais, atentatórias aos costumes, pornográficas e prejudiciais
à mente humana. (...) Assim, bancas de revistas e até
bibliotecas do mundo inteiro estão sendo invadidas por obras
de vários conteúdos, incluindo as obscenas, pornográficas e
prejudiciais aos interesses da cultura.
434
Ainda no sentido de avaliações como essas, podemos perceber, em muitos dos
“exames censórios” dos anos 1970, a concepção de que os recursos existentes para o
combate à literatura imoral eram ainda muito limitados, quando não inexistentes. Para
muitos censores, o rigor demonstrado pela DCDP parecia pouco diante da exploração da
pornografia no âmbito das publicações:
Ressalte-se, ainda, que a frouxidão com que são aplicadas as
medidas preventivas de venda para menores prejudica, em
grande escala, o nosso trabalho, uma vez que não existe, por
parte dos distribuidores, a menor preocupação do “a quem
vender”. (...) Considerando a posição dos distribuidores na
venda indiscriminada dos ditos livros, seria conveniente uma
tomada de posição mais segura a fim de que os princípios
morais que fundamentam nossa sociedade não sejam ainda
mais prejudicados pela depravação generalizada que penetra
em nossas livrarias e cria em nosso povo uma moralidade que
em nada condiz com [os] nossos princípios mais
importantes.
435
De fato, pareceres como esse nos remetem não somente ao conservadorismo
moral dos técnicos de censura da DCDP, mas também para as precariedades da censura
de publicações que já aludimos ao longo do nosso texto. A conjugação desses aspectos,
portanto, gerava a reclamação de vários funcionários do órgão que fazia a censura de
diversões públicas, os quais se mostravam insatisfeitos com a suposta “onda de
pornografia” que estaria tomando conta do país no plano da literatura. Algo semelhante,
nesse sentido, se daria no âmbito dos livros de educação sexual e outros congêneres,
como se destacará em seguida.
434
Parecer do censor, Manoel Felipe de Souza Leão Neto, sobre o livro Um homem e uma mulher, de Sr.
E Sra. K (Editora Artenova), 16 mar. 1972, PUB.
435
Relatório do técnico de censura, Mateus Antonio da Silva Neto, sobre o livro Amor sem limites, de
Christopher Palmer, ao superintendente regional da Polícia Federal do Maranhão, sem data, PUB.
167
5.2. Educação sexual e drogas: temáticas proibidas
As décadas de 1960 e 1970 foram marcadas tanto pela exploração do erotismo
nos meios de comunicação (nos filmes, livros, programas televisivos etc.), conforme já
mencionamos, quanto por debates acalorados sobre sexualidade, abrindo um espaço
propício à edição e ao consumo massivo de publicações tratando do tema. Assim,
naquele período, tivemos não somente a edição de importantes estudos sobre
sexualidade por parte de especialistas renomados no assunto, mas também uma grande
proliferação de livros e revistas que se conformavam como espécies de manuais para
melhorar ou maximizar o desempenho sexual entre casais. Geralmente produzidas com
objetivos meramente financeiros, muitas das publicações desse último tipo alcançavam
enorme vendagem.
436
E, de fato, no “exame censório”, esses dois tipos de publicação,
muitas vezes, eram tratados de modo semelhante, sendo vistos como meras explorações
da imoralidade e da pornografia. Impulsionados por uma concepção bastante
conservadora sobre as representações do ato sexual, os censores da DCDP encontravam
lascívia tanto em textos que exploravam o sexo de modo cabalmente desabrido, quanto
em estudos acadêmicos e manuais ou revistas de orientação sexual.
Nesse sentido, entre 1975 e 1979, passaram pelo serviço censório várias
publicações tratando de sexualidade: A emoção sexual da mulher, de E. Radetzki;
Descubra o seu QI sexual, de Larry Scheab e Karen Markham; Guia sexual da moça
moderna, de Wardell Pomeroy; Seja feliz na vida sexual, de Helmut Fichter; O que
excita as mulheres, Guia para o amor sensual e As mulheres, o amor e o sexo, de
Robert Chartham; Discurso sobre o sexo, de Hilário Veiga de Carvalho; A revolução
erótica, de Lawrence Lipton; Guia prático de técnica sexual, publicado pela MEK
Editores; O relatório Hite, de Shere Hite; O ser erótico, de Albert Ellis; Posições
amorosas, de Roy Thomas; O amor e suas posições básicas: dicionário sexual, de Karl
Fritz e Dicionário sexual, de Georges Valentin são alguns deles. Além destes, revistas
que também possuíam matérias de orientação sexual ou tratavam de temas
comportamentais correlacionados, como Ele e Ela, Pais e Filhos, Ciência e vida,
Intimidade – Dicionário Enciclopédico de Orientação Sexual, entre diversas outras
publicações periódicas de mesmo tipo, também passaram pelo rigoroso crivo dos
436
Ver DURIGAN, Jesus Antônio. Erotismo e literatura. São Paulo: Ática, 1986. (Série Princípios)
168
censores no período. A análise de alguns desses casos de censura permite destacarmos a
importância que o tema assumia para a DCDP e o choque de valores entre os padrões
morais prezados pelos funcionários daquele órgão e as discussões trazidas em algumas
dessas publicações.
Em março de 1975, passava pelas mãos de um técnico de censura um livro sobre
sexualidade nos moldes dos manuais bastante comercializados no período, no qual
constavam dez questões do seguinte tipo: “Tenho o amante certo?”; “Você acha que
sabe tudo sobre sexo?”; “Qual o grau de maturidade do seu relacionamento sexual?”
Intitulado Descubra o seu QI sexual, o livro de Larry Scheab e Karen Markham foi logo
considerado “tendencioso” pelo censor que o examinou, o qual sugeriu sua interdição,
entre outros motivos, porque “o homem e a mulher não são tratados como pessoas, mas
como companheiros de sexo”.
437
Poucos meses depois, era a vez de Seja feliz na vida
sexual, de Helmut Fichter, que continha ilustrações de diversas posições para as
relações sexuais entre casais, chocando o funcionário da censura: “trata-se de um livro
com uma capa de formação sexual que, na realidade, não passa de incitação ao sexo de
maneira deprimente e depressiva”.
438
Partindo do argumento de que a sociedade se via
“cada vez mais carente de padrões que a elevem social, moral e psicologicamente”, o
funcionário da DCDP havia ficado consternado pelo casal das ilustrações aparecer “em
trajes menores”, ela com “uma calcinha rendada tipo biquíni, e ele com uma cueca que
pouco aparece, o que em nada impede que esteja sendo realizado o coito”. No mês
seguinte o livro foi proibido por uma portaria de Armando Falcão.
439
Já em 1978, o livro Guia prático de técnica sexual, que também continha fotos
de variadas posições para a prática do sexo, foi liberado sob o argumento de que
expunha “uma modelo devidamente vestida” e “não apresenta anomalias sexuais”.
440
O
modo pouco criterioso da atuação censória pode ser percebido pela discrepância entre a
conclusão do censor que o avaliou e o parecer do livro de moldes semelhantes
anteriormente mencionado: “cada ser humano é livre para adotar ou rejeitar as práticas
demonstradas”, argumentava ele, sugerindo a não proibição da obra. Por outro lado,
casos como esse talvez sejam representativos, também, de um possível afrouxamento da
437
Parecer nº 2209/75, sem assinatura, 25 mar. 1975, PUB.
438
Parecer nº 8074/75, do técnico de censura, L. Fernando, 25 set. 1975, PUB.
439
A portaria foi assinada no dia 9 de outubro de 1975 e publicada no Diário Oficial 4 dias depois.
440
Parecer nº 557/78, do técnico de censura José Dauluy Cardoso, 26 dez. 1978, PUB.
169
censura nos anos finais da década de 1970. Assim, cerca de um mês depois, foi liberado
um outro livro que continha uma parte dedicada a 83 fotografias e descrições de
relações sexuais, não obstante seu conteúdo fosse, em geral, mais sofisticado que o
anteriormente citado. A obra O amor e suas posições básicas: dicionário sexual, de
Karl Fritz, chegou a ser elogiada pela “linguagem séria dentro de uma terminologia
médica” e por “suprir a lacuna, o vazio, no que tange a uma sadia educação sexual” pelo
censor que a examinou, embora suas ilustrações, constantes da segunda parte do livro,
ainda aparentassem ferir um pouco a suscetibilidade do mesmo: “compreende-se que a
2
a
parte da obra, em primeira instância, possa gerar um impacto, possa parecer chocante.
(...) À medida em que se lê e se folheia a 2
a
parte, tal impacto vai se dissipando,
diluindo-se e se esgotando em si”.
441
De modo semelhante ao caso anterior, o censor não deixou de destacar que, nas
referidas ilustrações, o casal possuía “suas partes pudendas devidamente recobertas”,
algo tido como um “princípio de ética e moral”, o que poderia indicar o estabelecimento
de tal exigência como um critério para a liberação desse tipo de obras nos últimos meses
do mandato de Armando Falcão na pasta da Justiça. Entretanto, sua própria
argumentação sugere o contrário, não somente porque se contrapõe àquela de diversos
outros censores que avaliaram livros no mesmo período, mas porque, se levada a cabo,
acabaria por retirar, em certo sentido, a própria razão de ser da prática censória:
Há que se compreender que adquirir um livro se constitui em
um ato voluntário e de livre e auto-artbítrio; e que, dentro de
nossa realidade socioeconômica, adquirir um livro está afeta a
uma mínima percentualidade [sic], que dispõe de um mínimo
nível econômico e cultural
.
De fato, a proibição ou liberação de muitos dos livros do período ficava sujeita,
em larga escala, ao caráter moralmente mais ou menos conservador dos técnicos de
censura que os examinavam. Esse talvez seja um dos aspectos que mais chama a
atenção na leitura dos pareceres de livros feitos naquela conjuntura, não deixando de
surpreender a falta de critérios mais sólidos que pudessem ser seguidos pelos
funcionários da DCDP com o objetivo de diminuir o elevado grau de subjetividade que
o exame de qualquer obra exige. A consagração mundial de um determinado escritor ou
441
Parecer nº 20/79, de Ivan Batista Machado, 29 jan. 1979, PUB.
170
artista, por exemplo, deveria ser considerada na avaliação dos censores? Casos como o
das gravuras de Picasso, além de outros que já analisamos, indicam que não havia nada
previamente estabelecido quanto a esta questão, ficando ela tão somente a cargo da
opinião pessoal dos técnicos de censura encarregados do material a ser examinado. A
mesma pergunta poderia ser feita com relação ao problema levantado pelo técnico de
censura no trecho acima: o fato da compra de um livro demandar uma atitude voluntária
deveria ser levado em consideração para efeito de sua proibição? Evidentemente, não
havia nenhuma resolução consistente da DCDP nesse sentido, até porque, algo assim,
em última instância, desautorizaria a própria existência da censura.
Alguns autores de “livros de orientação sexual” tiveram mais de uma obra
examinada e vetada pela Divisão de Censura. Foi o que aconteceu com o sexólogo
inglês, Robert Chartham, que teve, pelo menos, três publicações consideradas contrárias
à moral e aos bons costumes entre 1975 e 1976. A primeira examinada, intitulada Guia
para o amor sensual, foi considerada “altamente erótica e libidinosa” por destacar
diversas formas de relação sexual:
Dr. R. Chartham (...) revela uma gradação de obscenidades do
intercurso sexual, entre elas a cópula em outras sedes (coito
anal, a fellatio, o cunnilinguns, o anilingus, o coito inter
fenora, a cópula entre os seios, os lábios, as axilas etc.); o auto
ou heteromasturbação, as esfregações torpes de um corpo
contra o outro, com tateio das partes pudentas para o fim de
contemplação lasciva, além de dar instruções de como realizar
o sexo em grupo. (...) É leitura altamente erótica e libidinosa,
que visa, tão só, a satisfação do apetite sexual por equivalentes
ou sucedâneos do coito normal, por mera depravação sexual.
442
No exame de outro livro do autor, O que excita as mulheres, o censor também
opinava pelo veto, destacando que nele se encontrariam o “testemunho de call girls,
homossexuais e sexo grupal”, além de duvidar do seu título de Ph.D.
443
O mais
interessante na análise dos pareceres sobre os livros de Robert Chartham, entretanto, é a
percepção de algo recorrente nos “exames censórios”: a concepção de que cada povo
possuiria seus próprios padrões morais, os quais jamais poderiam ser maculados pela
infiltração de valores advindos de outros países mais “avançados” no processo de
liberalização sexual. Nesse caso, o Brasil era, geralmente, tido como um país em que a
442
Parecer nº 1543/75, de Odette Martins Lanziotti, 6 out. 1975, PUB.
443
Parecer nº 1741/75, da técnica de censura Marina de A. Brum Duarte, 30 out. 1975, PUB.
171
moral e os bons costumes seguiam padrões mais recatados, os quais deveriam ser
preservados, ao passo que outras nações como a Inglaterra e os Estados Unidos
apareciam quase sempre como excessivamente liberais em termos sexuais. Cabia a uma
instituição como a DCDP, portanto, zelar pela manutenção dos valores morais da
sociedade brasileira, proibindo a circulação de obras como As mulheres, o amor e o
sexo, do próprio Robert Chartham:
Tendo sido feito o exame do livro (...) constatei ser uma obra
que trata o sexo cientificamente ou num sentido psico-
terapêutico, no intuito de ajudar as deficiências e problemas de
relacionamento sexual. (...). No início, trata normalmente do
assunto, porém, no final, o autor adota uma atitude não
compatível com as leis e a moral brasileira no que concerne aos
homossexuais, bem como [ao] sexo grupal e a infidelidade. Tal
modo de encarar as aberrações e desvios sexuais não [se]
coaduna com nossas leis éticas e morais. Para a Inglaterra é
compatível. Se o livro dá apoio irrestrito aos desvios do sexo,
como maneiras apenas diferentes de atingir o orgasmo, dará
incentivo a quem já tem tendências e provocará a vontade de o
fazer a quem ainda não as tiver, persuadido tratar-se de ações
naturais e decentes.
444
Apenas alguns anos antes, a publicação O amor sensual, originária dos Estados
Unidos,
445
havia sido proibida a partir de um parecer semelhante, no qual a censora
encarregada da matéria argumentava pela falta de uma atitude mais rigorosa, por parte
daquela sociedade, no controle da sua literatura pornográfica. Para ela, os norte-
americanos haviam transitado de uma atitude bastante intolerante em relação ao sexo
para uma outra de excessiva liberalidade:
A publicação do livro O amor sensual deve ser entendida no
contexto de uma sociedade como a norte-americana, onde o
puritanismo herdado dos tempos coloniais sempre prevaleceu,
transformando o sexo num tabu difícil de ser vencido. O que é
lamentável é os norte-americanos, no seu comportamento
social, passarem de um extremo a outro, com incrível
facilidade. Daí encontrar-se nas livrarias, jornaleiros e demais
locais de vendagem, obras eróticas, pornográficas, assim como
revistas sobre esses assuntos à disposição do público com total
naturalidade.
446
Assim, para alguns técnicos de censura da DCDP, certas publicações advindas
444
Parecer nº 214/76, da técnica de censura Selia Natalha Stolte Rouver, 7 abr. 1976, PUB.
445
O livro foi publicado no Brasil pela Editora Artenova, mas no parecer não consta o nome do seu autor.
446
Parecer sem número de Heloisa M. D. d’Oliveira, 28 fev. 1972, PUB.
172
de países como os Estados Unidos refletiriam uma moral que não se coadunava com
aquela prezada no Brasil, o que as tornava extremamente perniciosas quanto a certos
valores ainda caros à nossa sociedade como, por exemplo, a importância dada à
manutenção da virgindade e da preservação sexual até o casamento. Foi a suposição da
pregação de concepções em contrário que levou um técnico de censura a sugerir a
proibição do livro Guia sexual da moça moderna, do sexólogo norte-americano Wardell
Pomeroy, o qual foi co-autor de importantes obras no âmbito da sexologia
447
e, a partir
dos anos 1960, publicou diversos livros de orientação ao grande público quanto à
sexualidade dos adolescentes. Segundo o funcionário da DCDP, o livro de Wardell
Pomeroy visaria, fundamentalmente, “convencer a adolescente da necessidade do coito
antes do casamento”, “ridicularizando, de leve, a virgindade” e “ferindo os padrões
morais brasileiros, carinhosamente defendidos pela legislação em vigor”.
448
Novamente,
então, podemos perceber a visão negativa sobre esse tipo de publicação fartamente
importada no período e a concepção de que a moral e os bons costumes era algo restrito
a “cada povo”, pois, segundo o mesmo, o livro seria apenas
mais um da coleção internacional que se arroga senhora da
ciência de orientar o jovem de qualquer país sob matéria
exclusiva de cada povo, de cada sociedade, de cada família (...)
Que será do Brasil se a juventude feminina se prostituir ou se o
amor livre for uma constante de nossas famílias?
A concepção de que certas sociedades como a norte-americana eram
excessivamente liberais em termos sexuais, por vezes, parecia fazer com que os exames
dos técnicos de censura se mostrassem ainda mais conservadores do que o de praxe no
que concerne às publicações lá originadas. Se, somado a isso, elas fossem obras de forte
impacto na mídia, como foi o caso de O Relatório Hite: um profundo estudo sobre a
sexualidade feminina, publicado nos Estados Unidos pela historiadora e feminista Shere
Hite (o título original era The Hite report on female sexuality e sua publicação data de
1976), tal aspecto poderia se verificar ainda mais significativo. O famoso estudo
daquela autora, baseado em questionários distribuídos para milhares de mulheres norte-
americanas entre 14 e 78 anos, alcançou a marca dos best-sellers no período, tendo sido
447
Wardell Pomeroy foi co-autor, juntamente com Alfred C. Kinsey, de obras como Sexual Behavior in
the Human Male, publicada em 1948, e Sexual Behavior in the Human Female, de 1953.
448
Parecer nº 10408/75, do técnico de censura A. Gomes Ferreira, 22 dez. 1975, PUB.
173
traduzido para diversas línguas e contribuído largamente para torná-la uma importante
referência do movimento feminista. Nele, Shere Hite se contrapunha às concepções de
que a menor incidência do orgasmo vaginal se devia a uma disfunção sexual da mulher,
apontando a importância do clitóris para a obtenção do prazer feminino e contrariando
às perspectivas de importantes estudiosos do ramo como Masters e Johnson.
449
Para os
técnicos de censura da DCDP, entretanto, a obra da autora contrariava à moral e aos
bons costumes, devendo ser proibida.
Assim, na parte do livro de Shere Hite que abordava a temática da masturbação,
o censor identificou um tratamento dado à matéria que visaria à “glorificação” daquela
prática.
450
Já o homossexualismo feminino seria “enfocado como uma fonte saudável de
prazer”, o que caracterizaria o trabalho como “uma apologia do lesbianismo”, sendo o
tema, inclusive, “usado como bandeira de frente para a libertação da mulher”. No que
concerne à problemática do “amor livre”, por sua vez, o técnico de censura destacava
que ele era “uma constante na maioria das respostas” das mulheres entrevistadas, o que,
novamente, era justificado com a concepção de que aquela foi “uma forma de trabalho
dirigida a uma cultura e uma realidade diferente da nossa”. De fato, pareceres como este
são bastante demonstrativos, não somente do forte conservadorismo moral mobilizado
pelos censores do período, mas como o caráter científico da publicação (não obstante o
método quantitativo de Shere Hite tenha sido muito criticado pela falta de rigor
metodológico), quando necessário, poderia ser cabalmente desconsiderado como um
item que deveria impedir a interdição da obra em questão.
Além disso, o processo do livro nos permite ressaltar outra concepção
corriqueira nos “exames censórios”, qual seja, a idéia de que certas informações
deveriam ficar restritas aos especialistas no assunto, sob o risco de uma interpretação
equivocada acabar por ter um efeito negativo sobre a moralidade do povo brasileiro. Era
essa a argumentação do diretor-geral do DPF no documento que encaminhava o “exame
censório” do livro ao ministro da Justiça. Nele, percebe-se uma caracterização
completamente enviesada da obra, a qual visaria
449
Baseada no sucesso alcançado pelo primeiro livro, cuja utilização de um grande número de
questionários baseava-se nos estudos de Kinsey, Shere Hite produziu alguns outros estudos parecidos nos
anos posteriores, como The Hite Report on men and male sexuality (O relatório Hite sobre a sexualidade
masculina, publicado em 1981). Sobre o tema consultar PAUVERT, Jean-Jacques. Shere Hite. Le
Rapport Hite sur les hommes. In: ____. Op. cit. p. 983-999.
450
Parecer nº 333/78, de Eni Martins França Borges, 13 jul. 1978, PUB.
174
divulgar “um profundo estudo sobre a sexualidade feminina”,
cujo acesso aos dados fornecidos deveria ficar restrito aos
psiquiatras, psicólogos, analistas, médicos e estudiosos dos
problemas sexuais, mas não ao público em geral, pelo risco de
refletir na moral social, subvertendo os costumes e
modificando a organização familiar (...). Como terá Vossa
Excelência a bondade de verificar (...) o livro constitui-se em
[uma] verdadeira aula de masturbação feminina, reveladora dos
múltiplos recursos de que podem as mulheres lançar mão para
atingir o orgasmo; exalta as práticas lésbicas, indicadas como
bandeira de libertação da mulher; e dá ênfase especial às
relações anormais entre pares, estimulando a obtenção do
prazer através da cunilíngua, da felação etc.
451
De fato, a visão da sociedade como despreparada para lidar com a imoralidade se
relacionava com a própria concepção da necessidade da existência da censura de
costumes no país. Colocando numa espécie de patamar superior a instituição de censura,
cujos funcionários seriam capazes de alcançar a “verdadeira mensagem” das obras
examinadas e, a partir de então, julgar se ela poderia ou não ser equivocadamente
interpretada pelas pessoas em geral, tal perspectiva impulsionava à proibição de
diversos livros que continham o debate de questões extremamente importantes naquele
período. Esse tipo de concepção, que subestimava a capacidade crítica da população
como um todo, também pode ser facilmente encontrada nas cartas das pessoas que
demandavam mais rigor ao órgão que fazia a censura de diversões públicas, conforme
analisaremos mais adiante. Com base nela, não chegaram ao grande público certas obras
de arte (como As gravuras eróticas de Picasso ou a reprodução de diversas pinturas e
esculturas no livro L’art erotique) e importantes estudos acadêmicos, ambos tidos como
chocantes demais para a população brasileira. Um ano antes do exame do livro de Shere
Hite, foi também considerado impróprio A revolução erótica, de Lawrence Lipton, obra
que continha importantes dados sociológicos para o estudo da sexualidade. O censor
que o examinou acreditava que o autor estava defendendo a “revolução erótica”, pois a
obra traria consigo “ensinamentos daninhos ao ser humano, [uma] vez que apregoa o
desmantelamento de todos os ditames que norteiam a sociedade a fim de que a velha
moral seja substituída pela nova moral”.
452
Um dos poucos livros acadêmicos que conseguiu passar pelo “crivo censório”
451
Ofício nº 312/78-DCDP, do diretor-geral do DPF, Moacyr Coelho, ao ministro da Justiça, Armando
Falcão, 14 jul. 1978, PUB.
452
Parecer nº 005/77, de Humberto Ruy de Azevedo Simões, 13 jan. 1977, PUB.
175
sem ser acusado de “pornográfico” foi O ser erótico, do psicólogo norte-americano
Albert Ellis. Para o técnico de censura que avaliou a obra, ela não poderia induzir à
prática sexual, pois sua “forma de linguagem direta torna-se, muitas vezes, enfadonha
ao leitor”.
453
É interessante perceber, nesse sentido, que os censores pareciam não
considerar o caráter acadêmico da obra para a feitura de afirmativas como essa,
desconsiderando as especificidades da linguagem dos estudos científicos em relação
àquela presente em publicações meramente exploratórios da pornografia. Além da
concepção de que o estudo de Albert Ellis possuiria uma “linguagem enfadonha”, o
funcionário da DCDP também ressaltava, parecendo não se dar conta disso, uma outra
característica típica dos estudos de conotação científica: “o autor, em seus argumentos,
contraria vários pontos de vista de colegas seus, que desenvolveram estudo no mesmo
sentido e que tiveram como resultado publicações como a ora examinada”. Do mesmo
modo, ele havia encontrado, no livro do psicólogo norte-americano, “citações
pornográficas”, as quais poderiam ser relevadas na medida em que visariam “dar maior
autenticidade às idéias expostas pelo autor”, o que, por sua vez, parece demonstrativo da
inexistência de qualquer reflexão dos funcionários censórios quanto àquilo que deveria
ou não ser caracterizado como pornográfico. Apesar disso, o livro acabou sendo
liberado.
Diferentemente do que aconteceu com o livro de Albert Ellis, alguns estudos
relacionados ao sexo foram liberados por serem tidos como afinados com o ideário
defendido pela instituição censória, como aconteceu com a publicação de Hilário Veiga
de Carvalho:
Com enfoque principal nos problemas sociais e jurídicos do
sexo, Discurso sobre o sexo analisa o casamento, a família, o
aborto, métodos anticonceptivos e outros aspectos do tema
condenando a dissolução da família, o amor livre e os métodos
de abortamento. Sempre pregando a união familiar como a
grande solução para os grandes males que afetam o mundo
atual, o livro exalta os padrões morais vigentes, sem qualquer
alusão ao aspecto puramente biológico do sexo.
454
A censura às revistas de cunho educativo sobre sexualidade também pode ser
tomada como um exemplo bastante ilustrativo do forte conservadorismo moral
453
Parecer nº 028/79, de José Dauluy Cardoso, 5 mar. 1979, PUB.
454
Parecer nº 222/76, de J. Antonio S Pedroso, 9 abr. 1976, PUB.
176
mobilizado pelos funcionários da DCDP e como havia um forte choque de valores entre
certos comportamentos por eles prezados e aqueles que ganhavam mais força em termos
de uma maior liberalização sexual. Revistas como Ciência e Vida, Pais e Filhos,
Intimidade – Dicionário Enciclopédico de Orientação Sexual, entre várias outras,
tiveram diversas de suas matérias vetadas, por vezes, devido a meras idiossincrasias dos
censores de plantão. Assim, um dos números de Ciência e Vida, segundo três técnicos
de censura que o examinaram, seria inadequado ao público mais jovem porque “o autor
afirma levianamente que a relação sexual pré-matrimonial não é mais considerada
imoral e que a virgindade é considerada, muitas vezes, como uma vergonha”.
455
Para os
referidos censores, “esses conceitos diferem totalmente da moral social brasileira,
chocando ou induzindo o leitor despreparado a um confronto de situações nem sempre
favoráveis ou condizentes com nossos métodos educacionais”.
Algo parecido se deu com a revista Pais e Filhos, que teve artigos de vários de
seus números interditados por serem considerados “não científicos” ou “permissivos”
demais. Nesse sentido, a matéria Tabus sexuais congelam o casamento deveria ser
vetada por sugerir, “com insistência”, “variações” nas relações sexuais dos casais, as
quais seriam “muito empregadas, na atualidade, com as prostitutas e mulheres
‘avançadas’ no setor sexual”.
456
Já outra matéria de cunho semelhante, intitulada
Desperte sua sensualidade, também não poderia ser liberada, pois “causaria efeitos
efetivamente perigosos às jovens leitoras”.
457
No que concerne à educação sexual dos
filhos, conteúdo primordial desse tipo de revista, os censores pareciam ainda mais
conservadores. Desse modo, o artigo Ela não é mais virgem pareceu indignar um dos
técnicos de censura que o analisou, pois tentaria “imprimir, como normal, como
demonstração de afeto, as relações sexuais antes do casamento, mesmo entre
menores”.
458
Nesse sentido, ele indagava:
Se, para demonstrar afeto, é preciso recorrer ao sexo, as
relações afetivas entre pais e filhos, tios, primos, etc. também
deverão ser sexuais? Se é pregada a liberalidade sexual, mesmo
entre menores, como ficará a situação dos mesmos depois do
casamento? Onde ficaria a família?
455
Parecer nº 15505/74, de Marly M. C. de Albuquerque, Myrtes Nabuco de O. Pontes e Hellé Prudente
Cavalhêdo, 23 maio 1974, PUB.
456
Parecer nº 392/76, do técnico de censura da DCDP Carlos Rodrigues, s/d, PUB.
457
Parecer nº 340/76 de Paulo Acácio Marra, 28 jun. 1976, PUB.
458
Parecer nº 7186/75 de Antônio Gomes Ferreira, 25 ago. 1975, PUB.
177
Numa direção completamente contraditória, o outro censor que examinou a
revista considerou que, naquele caso, “o artigo orienta sobre a atitude certa a ser
tomada”, não obstante também tenha, curiosamente, sugerido a supressão da expressão
“fazer filhos”.
459
E não era somente no âmbito de Pais e Filhos que matérias sobre a
educação sexual eram vistas, muitas vezes, como uma “apologia ao amor livre da
juventude”
460
ou como “efetivamente perigosas”.
461
A publicação periódica Intimidade
– Dicionário Enciclopédico de Orientação Sexual, que circulava no período com vistas
à educação de adultos em termos sexuais, sofreu diversos cortes por matérias
consideradas “contrárias à moral e aos bons costumes”. A revista, aliás, chegou a ser
alvo de uma ordem expressa do ministro da Justiça, Armando Falcão, para que os
censores tivessem “o maior rigor possível” no exame de seus artigos.
462
Assim, uma determinada parte da publicação que tratava objetivamente do
assunto pedofilia deveria sofrer cortes por conter “afirmativas levianas e
permissivas”,
463
enquanto outra sobre as características fisiológicas do órgão sexual
masculino não poderia ser liberada devido aos “comentários isentos de seriedade e
pródigos de sensacionalismo”.
464
O artigo Coito anal é uma prática sadomasoquista?,
correspondente ao nº 38 da revista, também deveria ser vetado “por induzir e estimular à
prática de atos pouco recomendáveis”.
465
Já numa matéria chamada Há provas da
origem fálica do cristianismo?, o autor até demonstraria “alto nível cultural, mas a
preservação de certos valores deve ser feita para a salvaguarda do equilíbrio social”.
466
Um outro artigo sobre o uso da pílula como método contraceptivo, por sua vez, somente
não foi proibido porque o autor, segundo o técnico de censura, se posicionava contrário
ao uso da mesma, algo que, na sua concepção, o tornaria imparcial.
467
E os censores
também se demonstravam bastante intransigentes no que diz respeito às imagens,
sugerindo a proibição de fotografias de partos normais,
468
de mulheres com seios a
459
Parecer nº 7193/75, de Hellé Prudente Carvalhêdo, 26 ago. 1975, PUB.
460
Parecer nº 8480/75, de Maria Helena Dourado dos Santos, 9 out. 1975, PUB.
461
Parecer nº 340/76, de Paulo Acácio Marra, 28 jun. 1976, PUB.
462
Parecer nº 8656/75, de Onofre Ribeiro da Silva, 14 out. 1975, PUB.
463
Parecer nº 7819/75, de Zuleika Santos Andrada, 17 set. 1975, PUB.
464
Parecer nº 8220/75, de Zuleika Santos Andrada, 29 set. 1975, PUB.
465
Parecer nº 10234/75, de Jeanete Maria de Oliveira Farias, 12 dez. 1975, PUB.
466
Parecer nº 8223/75, de Corrêa Lima, 1º out. 1975, PUB.
467
Parecer nº 8656/75, de Onofre Ribeiro da Silva, 14 out. 1975, PUB.
468
Parecer nº 7582/75, de Myrtes N. de O. Pontes e Hellé P. Carvalhêdo, 8 set. 1975, PUB.
178
mostra em matérias educativas,
469
tudo isso apontado como impregnado de lascívia e
sensualidade.
Embora fosse preponderante nos pareceres, não era somente a questão sexual
que atraía a censura para determinadas publicações na segunda metade dos anos 1970.
Outros temas caros ao período, como o uso de drogas, quando abordados, eram
igualmente alvos do rigoroso exame dos técnicos da DCDP, que quase sempre
encontravam um sentido apologético em livros apenas educativos ou informativos.
Assim, no ano de 1977 passaram, pelo menos, dois livros pelo serviço censório por
abordarem o tema: The book of pot, de Pamela Lloyd, e Dicionário sexual, de Georges
Valentin. O texto de Pamela Lloyd procurava informar sobre os efeitos e as
possibilidades do uso da maconha como erva medicinal, além de situar historicamente o
tipo de contato que o homem teve com a droga ao longo do tempo. O problema era que,
para os censores, o tema em si era impróprio, o que pode ser percebido na ambigüidade
presente no parecer que deu margem ao veto do livro:
A autora pretende informar ao público sobre o uso da maconha,
como tirar melhor proveito do seu uso, quais seus efeitos e
esclarecer algumas das concepções errôneas herdadas de
gerações passadas. Esses esclarecimentos são ilustrados com
fotos. (...) O tema apresentado é inteiramente impróprio e o
objetivo do livro é difundir o vício.
470
Como se vê, ao mesmo tempo em que considerava o livro como uma obra de
caráter informativo, o censor concluía pela sua intenção de difundir o vício, algo
justificado tão somente pela própria temática abordada. Conforme já destacamos, era
comum nos pareceres da DCDP a concepção de que certas discussões não deveriam
chegar ao grande público, tido como incapaz de compreendê-las corretamente. Por outro
lado, a própria interpretação dos técnicos de censura, na maioria dos casos, parecia
bastante equivocada, classificando estudos acadêmicos como obras que possuiriam
objetivos perniciosos, de fazer apologia das drogas. Foi o que aconteceu com
Dicionário sexual, de Georges Valentin, cujo processo também se mostra representativo
de uma certa confusão que assumiam alguns casos de censura. Embora considerado
livre no que concerne à abordagem do assunto sexo, o livro acabou passando por várias
469
Parecer nº 7613/75, de J. Camelier, 9 set. 1975, PUB.
470
Parecer nº 1997/77, da técnica de censura, Leila Chalfoun, 29 ago. 1977, PUB.
179
instâncias do serviço público devido a um verbete intitulado LSD e sexualidade,
justamente no que diz respeito ao tratamento dado à temática das drogas.
Afinado com as discussões que permeavam a problemática naquele período, o
verbete, além de mencionar os diversos efeitos perniciosos e ainda inconclusos do uso
do LSD, mencionava que alguns estudos vinham defendendo o êxito da sua utilização
para o tratamento de determinados problemas sexuais. Foi o bastante para a suspeição
sobre seu conteúdo e, em seguida ao “exame censório”, o diretor da DCDP resolveu
enviar a publicação para a avaliação da Divisão de Repressão a Entorpecentes que, pela
falta de competência sobre a matéria, sugeriu seu encaminhamento ao Conselho de
Prevenção Antitóxico.
471
Desconsiderando as diversas advertências que o autor do
verbete fazia em seu texto sobre os efeitos negativos daquela droga, o referido Conselho
se arrogou digno da última palavra sobre o respaldo científico daquela discussão e
opinou pela proibição daquela parte do livro:
O verbete do Dicionário Sexual apresenta como verdades fatos
ainda não cientificamente comprovados e que minimizam os
riscos do ácido lisérgico, estimulando o seu uso. (...) Todas as
afirmativas feitas pelo autor não têm respaldo científico e não
merecem qualquer crédito, sendo altamente nociva a sua
divulgação entre leigos.
472
O documento do Conselho de Prevenção Antitóxico e o referido livro foram,
logo depois, encaminhados à consultoria jurídica do Ministério da Justiça e uma
assistente daquela instância, não somente se contrapôs à argumentação de que o verbete
era “nocivo”, como procurou destacar diversas outras obras que mencionavam as
possibilidades de tratamento psicoterápico com base no LSD. Não satisfeito, o consultor
jurídico do Ministério da Justiça, Ronaldo Poletti, fez o processo voltar à mesma
assistente, que deveria opinar sobre a competência do Conselho quanto à questão, e ela,
novamente, sugeriu a liberação do livro.
473
Como se não bastasse, depois da diretora da
Divisão de Pareceres e Estudos do Ministério da Justiça também endossar o parecer da
assistente jurídica, o ministro Armando Falcão resolveu enviar o processo ao Ministério
471
Oficio nº 047/DRE/77, do diretor da Divisão de Repressão e Entorpecentes, Fábio Calheiros
Wanderley, ao diretor da DCDP, 29 abr. 1977, PUB.
472
Parecer de César Poggi de Figueiredo, constante do ofício nº 21/CPA/GM-BsB (do presidente do
CPA, Alberto M. D Magalhães, ao diretor da DCDP), 30 jun. 1977, PUB.
473
Parecer nº 317/77, da assistente jurídica, Cremilda Soares, 5 set. 1977. Aditamento ao parecer nº
317/77, da assistente jurídica, Cremilda Soares, 20 fev. 1977, PUB.
180
da Saúde, que concordou com o exame do Conselho de Prevenção Antitóxico.
474
Depois
dessas atitudes intransigentes com vistas a proibir o livro, tudo indica que ele acabou
sendo liberado, pois, ao final, o próprio Ronaldo Poletti já tinha concordado pela não
proibição da obra
475
(a documentação existente, entretanto, não permite saber sobre o
término do processo). O que importa, entretanto, é chamar a atenção para a burocracia
pela qual passavam os processos censórios de determinados livros e a atenção dada à
questão das drogas como uma possível afronta à moral e aos bons costumes.
Por outro lado, se o dicionário mencionado, cuja difusão se direcionava a um
público restrito, poderia ser interditado como impróprio, o que dizer de publicações de
conteúdo didático que abordavam o problema das drogas? Nesses casos, a solução da
censura era igualmente optar por impedir o tratamento do tema, pelo menos de modo
profundo, sobressaindo a suspeição quanto ao pessoal habilitado a utilizar esse tipo de
livro (ou seja, os professores). Foi assim com a publicação Programa de saúde (projetos
e temas de higiene e saúde), de Lídia Rosenberg Aratangy, Sílvio de Almeida Toledo
Filho e Oswaldo Frota-Pessoa. Apesar de ser visto como inteiramente enquadrado nas
propostas do Conselho Federal de Educação, o livro foi considerado perigoso pela
“grande ênfase” dada ao assunto drogas por dois técnicos de censura que o examinaram:
Os autores do livro analisado são doutores em Biologia e
podem estar credenciados pelo MEC para lecionar sobre
tóxicos, porém são imprevisíveis os enfoques que cada
professor de Programa de saúde, que venha a utilizar tal
publicação, dará ao problema, enfatizando que a maioria não
possui este credenciamento acima citado. (...) [Com] o temor
de que a [sua] má utilização por pessoas não qualificadas para
palestrar sobre “drogas”, usando a abordagem tão ampla que a
publicação apresenta, possa causar sérios problemas no espírito
da juventude brasileira, é que nos manifestamos contrários à
sua venda e uso indiscriminados.
476
Como se pode notar, a impossibilidade de controlar o uso que seria feito da
publicação era o principal argumento em favor da proibição da mesma, e não seu
conteúdo em si. Nesse sentido, ânsia de controle, subestimação da capacidade dos
professores (e do público juvenil) e uma certa dose de imaginação se combinavam no
474
Parecer da diretora da Divisão de Pareceres e Estudos, Thereza Helena S. Miranda Lima, 27 fev. 1978.
Aviso nº 155/BsB, do ministro da Saúde ao ministro da Justiça, 10 maio 1978, PUB.
475
Ofício do chefe do gabinete, Walter Costa Porto, ao ministro da Justiça, 24 maio 1978, PUB.
476
Parecer nº270/78, dos técnicos de censura Lílian Filus e Regina Maria Abil Russ, 19 out. 1978, PUB.
181
parecer dos censores, fazendo com que uma publicação, mesmo que tida como de
“conteúdo positivo”, pudesse ser sumariamente vetada. De fato, a coerção parecia a
melhor solução para o suposto despreparo que o público do livro teria para lidar
corretamente com ele.
5.3. Duas autoras “pornográficas” e o “tabu” do homossexualismo
Duas autoras, que tiveram diversas obras com passagem pela Divisão de
Censura de Diversões Públicas nos anos 1970, exemplificam de modo substancial a
importância que aquele órgão dava aos livros considerados imorais ou obscenos. A
primeira delas, Adelaide Carraro, teve, pelo menos, 11 livros examinados pelos técnicos
de censura, quase todos proibidos pelo ministro da Justiça, Armando Falcão. Da
segunda, Cassandra Rios, temos o registro de 14 livros avaliados no âmbito da DCDP,
todos eles vetados por serem tidos como “contrários à moral e aos bons costumes”.
Ambas as escritoras, nesse sentido, somam um número de livros proibidos que
ultrapassa o de qualquer autor de obras de conteúdo político mais crítico ao regime
militar. Consideradas pornográficas e vendendo milhares de livros abordando temáticas
tidas como tabu para os padrões morais da época, Adelaide Carraro e Cassandra Rios se
tornaram dois dos principais alvos do processo censório da década de 1970.
Autora de dezenas de livros eróticos, Adelaide Carraro chocava-se frontalmente
com os valores morais defendidos pela DCDP, levando os censores a produzirem
pareceres bastante ríspidos sobre suas obras. Geralmente publicadas por editoras pouco
conhecidas, os livros de Adelaide Carraro tiveram sua maior vendagem justamente nos
anos 1960 e 1970, segundo uma afirmação do diretor da distribuidora de suas
publicações no ano de sua morte.
477
O enrijecimento da censura, portanto, parecia ter
efeito inverso, aumentando a curiosidade sobre os escritos da autora, os quais
indignavam os censores pelas descrições de relações sexuais ou pelo linguajar
mobilizado pelos personagens. Dentre os livros de Adelaide Carraro examinados pela
Divisão de Censura, todos no período de 1975 a 1978, encontramos os processos
referentes às seguintes obras: A verdadeira estória de um assassino; Os padres também
amam; Carniça; Podridão; Escuridão; Eu e o governador; O comitê; Mulher livre; Os
477
Morre a escritora Adelaide Carraro. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 7 jan. 1992.
182
amantes; De prostituta à primeira dama e Submundo da sociedade.
De todos esses, o único livro que não recebeu qualquer parecer visando sua
interdição foi Eu e o governador, justamente a obra mais famosa da autora que,
publicada em 1963, narrava sua suposta relação amorosa com Jânio Quadros, durante o
mandato dele no governo de São Paulo.
478
Não obstante o conteúdo denunciador da
corrupção que permeava a administração de Jânio, o livro foi considerado livre pelo
censor que o examinou, pois “o impacto e as repercussões negativas que poderia ter
causado no seu lançamento” já não se verificariam mais e “as passagens que descrevem
cenas de sexo não ultrapassarem o limite tolerável pela moral e pelos bons costumes”.
479
Entre os demais livros, apenas outros dois tiveram alguma questão política ressaltada
como inconveniente nos pareceres dos censores, quais sejam, O comitê e A verdadeira
estória de um assassino. O primeiro porque, ao mencionar a corrupção que havia em
determinadas campanhas políticas, “nos leva a um período da vida pública brasileira
onde a depravação, a licenciosidade e a corrupção eram os caminhos mais fáceis ao
poder”;
480
e o segundo, por “jogar o leitor contra a organização policial da cidade de
São Paulo”
481
ao tratar da tentativa de inculpação, por parte de altos escalões do poder
público, de um jovem inocente que teve sua irmã estuprada e assassinada. Em todos os
outros casos, era a questão da obscenidade que mais indignava os técnicos de censura.
Nesse sentido, um parecer bastante representativo do choque entre os padrões
morais prezados pelos censores e aqueles refletidos nos livros da autora é o que foi feito
sobre A escuridão, em 1976. A começar pela enigmática caracterização que o técnico de
censura fez da obra, considerada um livro em que “é quimericamente vaticinado o
sobrepujamento de novos valores de moral, com amparo em falsos princípios éticos”,
482
vale destacar um longo trecho do “exame censório” para um aprofundamento daquilo
que vimos discutindo:
A autora (...) escreve a “autobiografia de três meninas que
percorrem o caminho da depravação” (...). É focalizado o
escárnio, emparelhado com as fraudes partidas de moçoilas
478
Outro dentre os livros mais conhecidos de Adelaide Carraro é Adelaide no Mundo com Sílvio Santos,
no qual ela relatava sua experiência como repórter no programa Sílvio Santos, entre 1972 e 1978, fazendo
várias acusações àquele empresário e apresentador.
479
Parecer nº 679/76, de Domingos S. Pereira, 23 nov. 1976, PUB.
480
Parecer nº 237/76, de J. Camelier, 26 abr. 1976, PUB.
481
Parecer nº 336/77, do técnico de censura da DCDP, José Dauluy Cardoso, 22 ago. 1977, PUB.
482
Parecer nº 138/76, do técnico de censura, Tabajara Fabiano de Santana Ramos, 4 mar. 1976, PUB.
183
internas a arrotar, agressiva e insolenemente, impropérios
visando abater a resistência da família contra o aviltamento da
juventude. Realizam-se autênticos bacanais nas denominadas
“festinhas”, onde tudo vale... inclusive, e em proporções
ciclópicas, o uso de entorpecentes (...), o desencaminhamento e
a corrupção de menores, de práticas lascivas enoveladas com
atos de libidinagem (...), vindo a virgindade a ser considerada
como “a insignificante pelinha”. (...) São miasmas, ainda, da
espaçosa decomposição moral de uma minoria social, a
chantagem, a referência a abortos provocados, irreverências nas
atitudes de moçoilas para com os pais, tentativas de estupro, o
apregoamento do amor livre, o suicídio, o uso desmedido de
bebidas alcoólicas (...). [grifos do original]
Dificilmente algum outro parecer conseguiria resumir tantos dos conflitos
morais típicos daquela conjuntura de mudanças aceleradas no plano dos costumes. Estão
presentes nele alguns dos aspectos francamente condenados pelos funcionários do órgão
que fazia a censura de diversões públicas como o chamado “amor livre”, o confronto de
gerações, a banalização da perda da virgindade e o uso de alucinógenos. Seguindo esta
mesma linha, outras obras de Adelaide Carraro foram também sumariamente proibidas
por serem consideradas imorais. O livro Carniça, por exemplo, abordaria um caso de
“paixão mórbida”, marcado por “aberrações sexuais” e pelo “vício em drogas”, sendo
“inadequado para o público juvenil, incapaz de discernir entre o certo e o errado das
coisas que acontecem”.
483
Assim, o censor que sugeriu a proibição da obra aproveitou
para deleitar-se numa certa ironia, pois, segundo ele, “na sua introdução, a própria
autora escreve: ‘a estória é nojenta e fétida’. Concordamos com ela e sugerimos [que o
livro] não seja liberado”. O livro Mulher livre, por sua vez, foi considerado “uma
afronta à boa literatura” por um técnico de censura que opinou pela sua interdição, ao
passo que outro o considerava livre para o leitor adulto, já que apresentaria casos de
“anomalias sexuais” e “uso de tóxicos” descritos “sem maiores detalhes”.
484
Dando continuidade ao caráter áspero desses tipos de pareceres, o livro Os
amantes deveria ser interditado por “não trazer nenhuma contribuição cultural”,
485
enquanto, no que diz respeito a Os padres também amam, a lista de aspectos negativos
ressaltados seria imensa. Transcreveremos apenas alguns deles:
483
Parecer nº 262/76, de Arésio Teixeira Peixoto, 10 maio 1976, PUB.
484
Parecer nº 00021/78, do técnico de censura, Silas de Aquino Lira Gouvêa, 7 mar. 1978, PUB.
485
Parecer nº 00022/78, do técnico de censura, Silas de Aquino Lira Gouvêa, 14 mar. 1978, PUB.
184
Desrespeito à pessoa humana (...) Despertar a sevícia de
menores (...) Maltrato á criança (...) Desrespeito à religião (...)
Concepção de que para se vencer na vida deverá ser safado e
desonesto (...) Crime de estupro, praticado com menores (...)
Práticas de atos imorais em vários sentidos (...) Desagregação
familiar, provocada por atos libidinosos (...) Festa
carnavalesca, generalizada para a prostituição (...) Uso do sexo
de forma animalesca (...) Ameaça e prática de homicídio
(...).
486
Além desses aspectos, o parecer terminava por enfatizar algo que já
mencionamos como sendo corriqueiro nos pareceres de censura, qual seja, a concepção
de que a obra deve possuir um sentido didático ao final de sua leitura. Assim, a
conclusão do censor era a de que não havia encontrado “nenhum valor educativo” no
livro e que, embora houvesse “uma coerência entre as narrativas e o desfecho” do
mesmo, “o aspecto positivo não é suficiente para superar o negativo”.
487
Por outro lado,
se, no caso desse livro, o retrato de um padre como homossexual foi um agravante para
sua interdição, no que concerne à obra Podridão, da mesma autora, o censor deixava
transparecer toda sua indignação e preconceito com relação a esse tipo de opção sexual.
Num ímpeto bastante virulento de desagravo em relação ao livro, ele destacava como
aspectos negativos, não somente a utilização de “termos chulos e palavras de baixo
calão”, mas o fato da autora “colocar em cena”, entre as personagens da trama, “um
advogado pederasta” que, de acordo com sua concepção, exaltaria “o homossexualismo
de tal forma que chega a dar nojo de ler tal porcaria”.
488
De fato, o tratamento dado à homossexualidade era, certamente, um dos temas
mais caros à DCDP nos anos 1970, sendo objeto da repulsa de muitos dos técnicos de
censura que examinaram a produção cultural do período. E, provavelmente, nenhum
outro autor foi tão censurado por escrever sobre o tema quanto Cassandra Rios.
Abordando, prioritariamente, o homossexualismo feminino em suas obras, Cassandra
Rios (na verdade um pseudônimo adotado por Odete Rios) tornou-se, durante os anos
1970, uma escritora que, ao mesmo tempo em que batia recordes de vendagens, era
marcadamente perseguida pela censura do regime militar. Segundo uma matéria da
revista Realidade, ela,
486
Parecer nº 67/76, de Maria Lívia Fortaleza, 19 jan. 1976, p. 1, PUB.
487
Ibidem, p. 2.
488
Parecer nº 142/76, de J. Antonio S. Pedroso, 8 mar. 1975, PUB.
185
neste ano de 1970, chegará a uma posição jamais alcançada por
uma escritora brasileira: será a primeira mulher a atingir 1
milhão de exemplares vendidos. Ela é a única mulher no Brasil
que vive exclusivamente de livros; mesmo entre os homens, só
Jorge Amado e José Mauro de Vasconcelos a acompanham.
489
Os livros escritos por Cassandra Rios eram obras baratas, de caráter
assumidamente popular, publicados em edições pouquíssimo sofisticadas. Muitos deles,
traziam em suas capas mulheres em posições sensuais ou títulos já bastante indicativos
do conteúdo da publicação adquirida como, por exemplo, Eu sou lésbica, Volúpia do
pecado ou Nicoleta ninfeta. Por outro lado, a popularidade que a escritora gozava
naquela conjuntura contrastava com o forte monitoramento da censura sobre suas obras,
das quais encontramos, pelo menos, 14 examinadas e vetadas no âmbito da DCDP entre
os anos de 1975 e 1978. Não obstante a imprecisão desse número, inclusive pelo fato da
autora, possivelmente, ter utilizado pseudônimos para que algumas de suas obras
fossem liberadas, ele parece indicativo de como o enrijecimento da censura no período
de Armando Falcão acabava, muitas vezes, por ter sentido inverso, aumentando a
popularidade de certos escritores e aguçando a curiosidade de muitas pessoas sobre eles.
Na verdade, Cassandra Rios já enfrentava problemas com a censura desde antes
da ditadura militar, até porque suas obras já tratavam de modo bastante desabrido de
temas relacionados à homossexualidade feminina desde fins dos anos 1940, quando ela
publicou seu primeiro livro, intitulado Volúpia do Pecado (1948), momento em que
contava apenas 16 anos. Claro está, não obstante, que o recrudescimento da censura
moral em meados dos anos 1970 teve um impacto muito maior nesse sentido, embora
não fossem somente os técnicos de censura da DCDP que desdenhassem das suas obras,
muitas vezes desqualificadas pela crítica dos meios intelectuais pela dita baixa
qualidade de sua literatura. Nesse sentido, num de seus últimos livros, a autora
demonstrava todo seu ressentimento quanto à taxação de sua literatura como meramente
pornográfica e apelativa:
Me batizaram de Demônio das Letras, Papisa do
Homossexualismo, uma dama de capa e espada, seduzindo e
corrompendo. Vestiram-se e revestiram-se como decorosos
santos, e no entanto, tudo ao redor dessa gente fede. Fede! Os
metidos a sábios da Literatura! Mais aparecem eles do que suas
489
Realidade, mar. 1970.
186
obras!
490
Dentre as obras da autora cujos processos encontramos na documentação do
órgão que fazia a censura de diversões públicas, podemos destacar: Copacabana Posto
6 (A madrasta); As traças; Marcella; Um mulher diferente; Georgette; Tessa, a gata; A
borboleta branca; Volúpia do pecado; Veneno; A breve estória de Fábia; Nicoleta
ninfeta; A sarjeta; A paranóica e O prazer de pecar. Os exames que os técnicos de
censura fizeram das mesmas, nesse sentido, ilustram de modo substancial o quanto o
tema da homossexualidade era uma das questões que mais atraíam a violência da
DCDP, auxiliando na percepção do choque de valores existente entre o avanço das
perspectivas de liberalização sexual e os padrões culturais prezados pelos setores
moralmente mais conservadores da sociedade. É no âmbito dos códigos culturais desses
segmentos, que não se encontravam representados somente no órgão governamental,
mas em uma razoável parcela da população brasileira, que devemos compreender a
censura de costumes daqueles anos, sob o risco de isolarmos a DCDP dos
condicionantes sociais que a conformavam. O parecer feito sobre o primeiro livro da
escritora, Volúpia do Pecado, pode ser tomado, portanto, como representativo do modo
como os censores lidavam com as suas obras e a temática em questão:
A autora descobriu um filão rentável na descrição ousada das
relações homossexuais, que se constituem em uma constante
em suas criações subliterárias, onde prefere dar ênfase aos
segredos “caça-níqueis” do amor lésbico, sem se preocupar em
levantar os sintomas e causas dos desvios da conduta sexual.
491
Para além da nítida tentativa de depreciação das obras de Cassandra Rios, o
parecer deixa clara a percepção do homossexualismo como um “desvio da conduta
sexual”. Esse tipo de caracterização, de fato, sobressai em muitos outros momentos do
documento, assim como em diversos outros pareceres feitos sobre as obras da escritora
e, nesse sentido, há que se perceber o quanto a associação entre o relacionamento de
pessoas do mesmo sexo e problemas psicológicos ou, mesmo, patológicos, ainda era
algo que permeava francamente os padrões culturais defendidos por setores moralmente
mais conservadores da sociedade naquela conjuntura. Nos primeiros anos da década de
490
RIOS, Cassandra. Flores e Cassis. São Paulo: Editora Pétalas, 2001.
491
Parecer nº 79/76, de José Carmo Andrade, 10 fev. 1976, PUB.
187
1980, os movimentos pró-homossexuais ainda lutavam contra a adoção, por parte do
governo brasileiro, do código da Classificação Internacional das Doenças (a CID, da
Organização Mundial da Saúde), que caracterizava o homossexualismo como “desvio e
transtorno sexual”. Foi somente a partir do início do ano de 1985 que o Conselho
Federal de Medicina aprovou a desvinculação do homossexualismo da categoria
“transtornos mentais”, retirando do mesmo, assim, a classificação de “patologia. Não
parece preciso dizer, pois, que tal conquista do movimento homossexual somente se deu
a partir de variadas campanhas e demandas de grupos que lutavam pelos direitos
daquela minoria (como o chamado Grupo Gay da Bahia e outros congêneres).
Por outro lado, no que diz respeito aos escritos de Cassandra Rios, havia não
somente o agravante do tom desabrido se suas narrativas, mas do fato delas tratarem,
sobretudo, do homossexualismo feminino, fartamente exaltado pela autora, exasperando
os técnicos de censura encarregados da avaliação de suas obras. Foi o que aconteceu,
entre diversos outros casos, com o mencionado livro Volúpia do pecado, cuja aridez do
parecer censório se relacionava justamente ao tratamento dado a uma relação sexual
entre duas jovens:
Os personagens que constrói são mostrados grotescos e
patéticos em sua condição, às vezes atormentados e solitários,
dentro de reflexões morais falsas, incapazes, entretanto, de
orientar toda uma compreensão dos impulsos condicionadores
do homossexualismo, dentro de um quadro clínico-psicológico.
De fato, o homossexualismo aparecia caracterizado no parecer censório não
somente como um caso clínico-psicológico, como no trecho transcrito acima, mas como
uma “aberração sexual”, sendo a relação mantida entre as duas jovens da trama tida
como uma “repugnante ligação”. E vários dos outros livros de Cassandra Rios foram
vetados com base numa argumentação semelhante. Assim, Nicoleta Ninfeta deveria ser
proibido, entre outros motivos, pela “pregação da falsa filosofia dos homossexuais, a
naturalidade de seus atos, a indução aos maus costumes”.
492
Marcella, que tratava da
história de uma mulher que assassinava todas àquelas outras com quem mantinha
relações sexuais, seria uma “verdadeira apologia do lesbianismo”.
493
O livro As traças,
por seu turno, ao relatar os desejos e as relações sexuais mantidas por uma professora
492
Parecer nº 144/76, do técnico de censura L. Fernando, 4 mar. 1976, PUB.
493
Parecer nº 159/76, do técnico de censura Vicente de Paulo Alencar Monteiro, 12 mar. 1976, PUB.
188
com suas alunas, também conteria “uma mensagem negativa sobre todos os aspectos,
inclusive porque a autora afirma que o lesbianismo é a verdadeira condição normal da
mulher”, contrariando, assim, “um padrão moral consagrado pela nossa sociedade”.
494
Já no livro A borboleta branca, Cassandra Rios trataria do homossexualismo “de forma
minuciosa e chocante, sendo que tal relacionamento é valorizado pela autora como se
fosse algo ‘fantástico e incomparável”.
495
Geogette, nesse sentido, também deveria ser
interditado, entre outros, por “focalizar a vida desregrada e libertina de um
homossexual”.
496
Entretanto, não era somente a presença de personagens homossexuais nas obras
de Cassandra Rios que irritava os censores, mas também o fato das “descrições sexuais
serem feitas nos seus mínimos detalhes”,
497
como se pode notar pelo parecer de A
paranóica. Nesse sentido, alguns censores chegavam a reconhecer na autora alguma
qualidade literária, enquanto outros tratavam sua forma de escrita com um certo
escárnio. Para o censor que examinou A breve estória de Fábia, por exemplo:
Não resta a menor sombra de dúvida [de] que a escritora, no
presente ensaio, mostra grandes poderes descritivos, narrando
pensamentos estranhos, podendo impressionar o leitor com
suas estórias fantásticas, chegando mesmo a considerar como
se fora um prelúdio à relação sexual entre duas mulheres, sem
contudo, apelar para a pornografia.
498
Já para o censor que examinou Veneno, aquela obra teria “um pouco mais de
imaginação que a média dos livros do gênero”, mas não escaparia “às descrições
pormenorizadas e frias das relações sexuais do personagem central”.
499
Assim, “sem
oferecer qualquer compensação social ou exemplo válido que o justifique, o livro
limita-se a oferecer uma estória banal, com enredo desinteressante, a entremear as
passagens mais ‘apimentadas”. Outros pareceres, entretanto, eram bem mais cruéis na
análise que faziam. Para um dos funcionários do órgão de censura, Tessa, a gata,
apresentaria “nada mais do que atos de tribadismo, lenocínio e homicídio” e, “apesar da
técnica adotada, não possui nenhum valor moral, educativo ou mesmo literário, estando
494
Parecer nº 1720, da técnica de censura Ana Kátia Vieira, 29 out. 1975, PUB.
495
Parecer nº 137/76, de Maria das Graças Sampaio Pinhati, 4 mar. 1976, PUB.
496
Parecer nº 155/76, de Teresa Cristina dos Reis Marra, 10 mar. 1976, PUB.
497
Parecer nº 00073/78, do técnico de censura Silas de Aquino Lira Gouvêa, 27 dez. 1978, PUB.
498
Parecer nº 118/76, de Maria Helena Dourado dos Santos, 25 fev. 1976, PUB.
499
Parecer nº 182/76, de J. Antonio S. Pedroso, 18 mar. 1976, PUB.
189
tudo calcado em uma linguagem medíocre de total degradação do ser humano”.
500
No
exame da obra Copacabana Posto 6 (A madrasta), por outro lado, o censor a
caracterizou como uma “infeliz subliteratice” e seu alvo era justamente o tratamento
dado ao homossexualismo: “mensagem negativa, psicologicamente falsa em certos
aspectos de relacionamento, nociva e deprimente, principalmente pela conquista lésbica
da heroína junto à madrasta e o duplo suicídio final”.
501
Outros aspectos sempre condenados pelos técnicos de censura também se
mostravam presentes nas análises dos livros de Cassandra Rios. No caso do já
mencionado livro A borboleta branca, além do tratamento dado ao homossexualismo, o
censor também identificava como negativos a descrição de “situações de conflito
familiar, comportamentos desajustados e a dependência de drogas e prostituição”.
502
A sarjeta deveria ser vetado por ter sua narrativa “totalmente passada no submundo da
prosituição”, não podendo “oferecer mais do que alguns momentos de erotismo, com
apelos à pornografia, degradação humana e outras baixezas próprias desse ambiente”.
503
Como se pode notar, os pareceres de livros como os de Cassandra Rios são exemplos
claros do quanto as questões morais eram centrais para a DCDP e não somente pretextos
para uma censura de caráter político-ideológico. Numa sociedade ainda bastante
conservadora em termos morais, não obstante o despontar de novas discussões
comportamentais fosse evidente a partir de fins dos anos 1960, livros como os de
Adelaide Carraro ou Cassandra Rios, que somente muito forçosamente poderiam ser
vistos como politicamente contrários ao regime político existente, exasperavam o órgão
que fazia a censura de diversões públicas por questões referidas estritamente ao plano
dos costumes.
A questão do homossexualismo, por outro lado, não somente chamava a atenção
dos técnicos de censura nos livros de Cassandra Rios, mas acabava sendo um tema que,
quando discutido ou retratado nos meios de comunicação, atraía a ira de muitos setores
moralmente mais conservadores da sociedade nos anos 1970 e 1980. O problema parece
bastante representativo, portanto, daquilo que vimos destacando sobre a existência de
um certo respaldo social para a censura da moral e dos bons costumes, pois, mesmo
500
Parecer nº 166/76, de Maria Lívia Fortaleza, 27 fev. 1976, PUB.
501
Parecer nº 1711/75, da técnica de censura Marina de A. Brum Duarte, 27 out. 1975, PUB.
502
Parecer nº 137/76, de Maria das Graças Sampaio Pinhati, 4 mar. 1976, PUB.
503
Parecer nº 332/76, de J. Antonio S. Pedroso, 29 jun. 1976, PUB.
190
após o fim da ditadura militar, em 1985, a representação do homossexualismo em
programas de TV, por exemplo, acabava impulsionando algumas pessoas a escreverem
à DCDP clamando por mais rigor na censura de costumes. Além disso, a pouca
aceitação dos relacionamentos homossexuais dentro dos padrões culturais da época
fazia com que as manifestações de ojeriza ou de condenação moral do relacionamento
entre pessoas do mesmo sexo pudessem ser feitas com uma certa naturalidade, mesmo
nos grandes veículos de comunicação e por autoridades públicas responsáveis pelo
serviço censório.
Desse modo, em 1985, o diretor da DCDP, Coriolano Fagundes, declarava no
Jornal do Brasil que considerava obsceno o ato sexual entre dois homens ou duas
mulheres.
504
Pouco tempo depois, o Triangulo Rosa, um grupo de liberação
homossexual sediado no Rio de Janeiro, lhe enviava uma carta-resposta na qual ele era
chamado literalmente de “preconceituoso”. Segundo os missivistas, eles haviam ficado
consternados com as declarações de Coriolano, pois, “não há nada de obsceno na
homossexualidade, tampouco na heterossexualidade, quando a atividade sexual se
desenvolve sem violência e entre pessoas conscientes”.
505
Ainda naquele ano, o chefe
do Serviço de Censura de São Paulo, Dráusio Dornelles Coelho, afirmava que a
apresentadora Hebe Camargo, que comandava um programa na TV Bandeirantes, o
tinha transformado em uma “tribuna de aliciamento, indução e apologia do
homossexualismo”.
506
A contundente declaração do chefe do SCDP/SP referia-se a um
“episódio” do programa exibido poucos dias antes, no qual o tema do “lesbianismo”
teria sido discutido pela antropóloga Rosely Roth, uma associada do Grupo de Ação
Lésbica-Feminista (GALF). Novamente, então, o Triangulo Rosa respondia
enfaticamente, agora com seus missivistas dizendo-se “horrorizados” com tal declaração
e argumentando que,
ao contrário do que pensava o ex-ministro da Justiça, sr.
Armando Falcão, de triste memória, e, ao que ora se divulga,
também V. Sa., não se pode fazer “propaganda da
504
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30 abr. 1985, Fundo “Divisão de Censura de Diversões Públicas”,
Arquivo Nacional, Coordenação Regional do Arquivo Nacional no Distrito Federal, Série
“Correspondência Oficial”, Subsérie “Manifestações da Sociedade Civil”, Caixa 4, doravante identificada
apenas como “Caixa 4”.
505
Carta do presidente do Triângulo Rosa, Antônio de Souza Mascarenhas, ao diretor da DCDP,
Coriolano de Loyola Cabral Fagundes, 2 maio 1985, Caixa 4.
506
Folha de São Paulo, São Paulo, 29 maio 1985, Caixa 4.
191
homossexualidade”, pois seria uma perda de tempo e
esforço.
507
Menos de um ano depois, novamente Coriolano Fagundes fazia declarações
polêmicas contra a homossexualidade: “não tenho dúvida de que o homossexualismo é
uma forma de perversão sexual. Não acho que o homossexualismo seja correto. É
preciso ter uma postura de educação em relação ao sexo e não de permissividade”.
508
De
fato, aqueles eram tempos em que, não somente o diretor da censura federal podia fazer
declarações discriminatórias desse tipo, mas também respondia às cartas de protesto de
grupos organizados amparado tão-somente em convicções religiosas: “o
homossexualismo é, antes de tudo, uma questão moral. Sob o prisma desta, todo o
mundo civilizado norteia seu comportamento sexual dentro de parâmetros ditados pela
Bíblia Sagrada, portadora do código judaico-cristão”.
509
Neste caso, Coriolano
Fagundes respondia a uma carta do Grupo Gay da Bahia, a qual protestava contra a
proibição da música Rubens, do conjunto Premê, de São Paulo.
Porém, o meio de comunicação que mais incomodava a censura pelo tratamento
dado ao homossexualismo, naqueles anos, era a televisão. Assim, em 1985, foi baixada
uma instrução normativa assinada pelo próprio Coriolano Fagundes, a qual determinava
que:
I – A apresentação de travestidos, de homem ou mulher
aparentemente homossexual, respectivamente em atitude
ostensivamente efeminada ou masculinizada, quer em
telenovela como em programa de auditório, terá a veiculação
televisiva autorizada para as 21 (vinte e uma) horas.
1.1 – O tratamento cênico dado, assim por animador como por
narrador, a travestido ou homossexual aparente não poderá ser
ofensivo à dignidade humana do apresentado, nem apologética
do trans-sexualismo ou do homossexualismo.
510
A medida adotada gerou logo uma resposta do vice-presidente de operações da
Rede Globo de Produção, que interpretou a referida norma como uma conseqüência
direta das exibições da emissora. Dizendo temer que “o documento introduza
507
Carta do presidente do Triângulo Rosa, Antônio de Souza Mascarenhas, ao chefe do SCDP/SP,
Dráusio Dornelles Coelho, 29 maio 1985, Caixa 4.
508
Folha de São Paulo, São Paulo, 13 set. 1986, Caixa 4.
509
Ofício nº 1100/86-GAB/DCDP, do diretor da DCDP Coriolano de L. Cabral Fagundes, ao professor da
Universidade Federal da Bahia, Dr. Luiz Mott, do Grupo Gay da Bahia, 8 out. 1986, Caixa 4.
510
Instrução normativa nº 03/85-DCDP, de 9 de julho de 1985, Caixa 4.
192
novamente a censura tácita” e que “a generalização de proibições é decisão
ditatorial”,
511
José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, na verdade, apostava num
certo crédito do qual a emissora já gozava por ter sido sempre extremamente obediente
às imposições do órgão que fazia a censura de diversões públicas. É por isso que a
resposta de Coriolano Fagundes procurou ser bastante complacente com a Rede Globo,
não obstante permanecesse o teor discriminatório em relação à apresentação do
homossexualismo na TV:
Se todas as emissoras de televisão se conduzissem com a lisura
com a qual se tem havido a Rede Globo, a Instrução Normativa
nº 03/85-DCDP careceria de objeto, pelo que jamais teria sido
baixada. Mas a norma administrativa não pode discriminar,
devendo dirigir-se, indistintamente, a todos, embora possamos
afirmar que a apresentação de travestidos aos domingos à tarde,
apresentados como se o trans-sexualismo fosse uma habilidade
a mais para assegurar o sucesso artístico; as entrevistas de
homossexuais aparentes em programas de auditório, com
ofensa à dignidade humana do entrevistado; a veiculação de
números eróticos de espetáculos de homossexuais, como se se
tratasse de reportagem telejornalística; a entrevista de mulher
declaradamente lésbica, em horário livre, na qual a entrevistada
convidava as mulheres a terem uma experiência homossexual
por considerá-la altamente gratificante – tudo isto levado ao ar
por congêneres, constitui abuso da liberdade de expressão,
tendo inspirado e justificado a edição da instrução normativa
questionada.
512
De fato, a restrição da aparição do homossexual na programação de televisão era
demandada, também, por boa parte dos missivistas que escreviam à DCDP ou a outras
autoridades pedindo mais rigor na censura de costumes. Nesse sentido, em fins dos anos
1970, um remetente enviava uma carta para o presidente da Republica e alguns de seus
ministros procurando manifestar seu “veemente protesto contra um escandaloso,
aviltante e afrontoso programa de televisão” da Rede Globo, o qual teria “exibido um
infeliz rapaz de maneiras efeminadas, cognominado Ney Matogrosso”.
513
Segundo ele,
a “triste e deplorável coreografia” do cantor, “eivada de deboches e sandices
511
Carta do vice-presidente de operações da Rede Globo, J. B. de Oliveira Sobrinho, ao diretor da DCDP,
Coriolano de L. Cabral Fagundes, 15 ago. 1985, Caixa 4.
512
Ofício nº 1537/85-GAB/DCDP, do diretor da DCDP, Coriolano de L. Cabral Fagundes, ao vice-
presidente de operações da Rede Globo, J. B. de Oliveira Sobrinho, 9 set. 1985, Caixa 4.
513
Carta enviada ao redator do Jornal do Brasil, ao presidente da República, aos ministros militares, ao
ministro da Justiça e ao secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, de Alcides B. Cunha, 30
out. 1978, Fundo “Divisão de Censura de Diversões Públicas”, Arquivo Nacional, Coordenação Regional
do Arquivo Nacional no Distrito Federal, Série “Correspondência Oficial”, Subsérie “Manifestações da
Sociedade Civil”, Caixa 2, doravante identificada apenas como “Caixa 2”.
193
despudoradas”, teria chocado “a grande maioria do público que teve a desventura de vê-
lo”. Assim, “diante de tão insólita afronta à população, somos forçados a nos interrogar
a todos pulmões: será que existe censura neste país?”. Já um outro missivista, que
escreveu para a diretora da DCDP, Solange Hernandez, reclamava do quadro do Capitão
Gay apresentado no programa Viva o Gordo, pois, tal personagem, “devido à sua
roupagem vistosa, influencia as crianças que o tomam como herói, a exemplo de tantos
outros de desenhos e filmes levados ao ar pela televisão”.
514
Para o remetente, a
diferença
entre o Capitão Gay e os outros heróis como Super-Homem,
Homem Aranha, é que estes últimos apresentam-se como
protótipo do homem másculo, e nos já citados desenhos e
filmes, o vilão leva sempre a pior, triunfando assim a
legalidade.
Cerca de um ano depois, chegava à DCDP um telex enviado ao ministro da
Justiça, Abi-Ackel, por um deputado estadual da Assembléia Legislativa do Maranhão.
Nele, a propaganda do programa do apresentador Clodovil, cuja exibição se iniciaria na
Rede Bandeirantes pouco tempo depois, era tida como “um deboche, uma ironia, um
show de efeminismo [sic]”.
515
Já outro remetente reclamava de um comercial de
desodorantes da marca Playboy em que apareceriam “cenas de um casal adolescente
levando uma vida de transa e de duas jovens que vivem juntas em um caso bem a vista
de lesbianismo”.
516
Algumas vezes, entretanto, esse tipo de manifestação ao poder
público assumia um teor muito mais violento, como na carta enviada ao ministro da
Justiça, Fernando Lyra, por um morador de Pernambuco. Nela, o missivista dizia ter
chegado à conclusão de que, “na TV brasileira, putos, lésbicas e chifrudos de alto
coturno, para gáudio da cafajestagem galordoada ou não, estão mandando e
desmandando”.
517
E, novamente, um dos principais alvos era o apresentador de
televisão Clodovil:
514
Carta à diretora da DCDP, Solange Hernandes, de Itacir Cardoso Coelho, 24 ago. 1982, Fundo
“Divisão de Censura de Diversões Públicas”, Arquivo Nacional, Coordenação Regional do Arquivo
Nacional no Distrito Federal, Série “Correspondência Oficial”, Subsérie “Manifestações da Sociedade
Civil”, Caixa 3, doravante identificada apenas como “Caixa 3”.
515
Telex do deputado estadual, Holanda Braga, ao ministro da Justiça, Abi-Ackel, 7 mar. 1983, Caixa 4.
516
Carta à DCDP, de Edson José Martins Lopes, 4 jan. 1985, Caixa 4.
517
Carta ao ministro da Justiça, Fernando Lyra, de Luiz Avelino de Andrade Filho, 7 out. 1985, Caixa 4.
194
Ignoramos se a TV Bandeirantes ainda apresenta um programa
dirigido e apresentado pelo fresco Clodovil que, via
EMBRATEL, oferecia um show de frescura nacional, ante a
omissão covarde de nossas autoridades, que deviam colocar
esses frangos em soberbos garajaus. (...) Tomamos
conhecimento, mas não acreditamos nas informações de que
esse profícuo Ministério, temendo a gritinhos histéricos de
putos, lésbicas e chifrudos, tudo de cambulhada, resolveu
sugerir a abolição do Serviço de Censura, que era uma
sentinela indormida a serviço da moral. E com a sua extinção,
senhor ministro, não iriam, certamente, os putos, publicamente,
praticar o que fazem reservadamente?
Nesse mesmo sentido, um remetente também escrevia à DCDP protestando
contra a futura exibição da telenovela Olho por olho, da TV Manchete, na qual “um
travesti (bicha) irá ao ar em gritante escândalo de homossexualismo, coisa que devemos
evitar nos lares e nos acobertar”.
518
Para ele, “ser bicha não é certo, e sim pouca
vergonha, ou intenção de escandalizar ainda mais a nossa sociedade que, em muitos
casos como este, nada pode fazer, a não ser desligar a TV”. A maioria dessas cartas, de
fato, era impulsionada por determinadas telenovelas que eventualmente criavam alguma
celeuma pela representação de personagens homossexuais, como aconteceu no caso de
Vale Tudo, que teve a cena de um diálogo sobre lesbianismo vetada pela DCDP em
1988. A medida adotada por aquele órgão de censura foi destacada nos meios de
comunicação
519
e gerou algumas cartas de apoio ao seu então diretor, Raimundo
Mesquita. Assim, segundo uma missivista evangélica que lhe escreveu pouco tempo
depois, “sua decisão tem todo o nosso aplauso e esperamos que não se limite a apenas
essa”, pois, na televisão brasileira, haveria uma “tremenda fusão entre liberdade e
libertinagem”.
520
Já outro remetente dizia concordar com o diretor da Divisão de
Censura e dar “irrestrito apoio” à sua atitude”.
521
Para ele, embora a homossexualidade
fosse uma “realidade social, inclusive mundial, não podem tais aberrações ou outras
mais adentrarem em nossos lares, por questão de privacidade do cidadão e de seu lar,
pois o homossexualismo, por si só, já agride a sociedade”.
518
Carta ao diretor da DCDP, de Jair Ferreira Rodrigues, 14 ago. 1988, Caixa 4.
519
Censura não quer homossexualismo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 19 jul. 1988. Veja, 27 jul. 1988,
p. 137, Caixa 4.
520
Carta ao diretor da DCDP, Raimundo Mesquita, de Rosa Maria I. Pastana, 27 jul. 1988, Caixa 4.
521
Carta ao diretor da DCDP, Raimundo Mesquita, de Sérgio Nassar Guimarães, 27 jul. 1988, Caixa 4.
195
Capítulo 6
O “guardião dos bons costumes”: Armando Falcão e as publicações
“eróticas”
A severidade é a virtude dos Deuses, a autoridade é a
dos homens e as duas o são do Ministro (...).
522
Sei que o senhor é muito responsável e não tem medo
de defender aquilo que é certo (...).
523
Eu estou vendo tudo. O ministro está certo. Duro em
cima deles! E apertar mais. Que escrevam obras limpas,
de valor. Imoralidade não é literatura, como eu escrevi
ao Sr. Jorge Amado.
524
“Guardião dos bons costumes” foi a expressão utilizada por uma missivista para
designar e enaltecer a figura do então ministro da Justiça, Armando Falcão, ressaltando
suas atitudes no que concerne ao cerceamento de uma suposta proliferação de
publicações eróticas, em meados dos anos 1970, como benéficas e moralizadoras.
Utilizando com largueza a tesoura censória nesse campo, Armando Falcão, certamente,
desagradava a amplos setores da sociedade que combatiam ou viam com muitas
reservas a atuação da censura no âmbito da literatura e das diversões públicas em geral,
mormente no que diz respeito às camadas mais intelectualizadas da população. Não
obstante, diferentemente da memória construída em torno do fenômeno, que tende a
ressaltar somente este lado lisonjeador das tomadas de posição dos atores sociais que se
encontravam fora dos círculos de poder político, no que diz respeito ao plano da
moralidade pública, a censura possuía o apoio de uma parcela da população.
Personalidades como o ministro da Justiça, Armando Falcão, por exemplo, receberam
muitas missivas prontificando-se a colaborar com a censura, pedindo mais rigidez no
veto às questões morais ou, simplesmente, enaltecendo a adoção de uma medida mais
rigorosa nesse campo.
522
Carta ao ministro da Justiça, Armando Falcão, encaminhada à DCDP, 25 jun.1976, Caixa 2.
523
Carta ao ministro da Justiça, Armando Falcão, encaminhada à DCDP, 12 jan. 1977, Caixa 2.
524
Carta ao presidente da República, Ernesto Geisel, encaminhada à DCDP, mar. 1977, Caixa 2.
196
Claro está, no entanto, que os diretores da DCDP e as demais autoridades
responsáveis pela censura procuravam exagerar o apoio que recebiam dos setores
moralmente mais conservadores da sociedade, utilizando, inclusive, as cartas
encaminhadas à DCDP para ressaltar a legitimidade de sua atuação. Por isso, quando
infensos aos discursos de que a censura atuava de modo arbitrário, essas personagens
logo procuravam alegar que a maioria da população apoiava a existência de um serviço
censório no país. Ademais, a maior aceitação que tinha a censura de costumes também
foi utilizada, por vezes, para a feitura de interdições de natureza nitidamente voltadas
para as questões políticas por parte da instituição (ainda que, na grande maioria das
vezes, obedecendo a ordens emanadas dos escalões superiores). Mas, não é verdadeira,
de fato, a imagem de que toda a sociedade brasileira combateu a censura,
particularmente no que concerne àquela relacionada à defesa da “moral e dos bons
costumes”. E a passagem de figuras emblemáticas pelo Ministério da Justiça, que deram
grande importância à matéria, como Alfredo Buzaid, Abi-Ackel e, sobretudo, Armando
Falcão, contribuiu bastante para que uma perspectiva de moralização permeasse mais
fortemente àqueles setores que queriam “salvaguardar a família cristã ocidental”.
Assim, a postura rígida, conservadora e autoritária do ministro Falcão no campo
da chamada “defesa da moral e dos bons costumes” não foi objeto apenas do escárnio
daqueles que procuravam minar as bases de sustentação do regime de exceção
implantado no país desde 1964. Para uma parte da população ávida de proteção do
poder público perante uma suposta “propagação da obscenidade atentatória à instituição
familiar”, Armando Falcão representava uma luz no fim do túnel. Para algumas pessoas,
as atitudes conservadoras do ministro de Estado do governo Geisel assumiam uma
conotação positiva, representativas de uma postura tão severa quanto necessária na
batalha contra o “desregramento dos costumes” e a “devassidão”,
525
possível somente
àqueles “que não têm medo de defender o que é certo”
526
e que possuem o austero
“espírito de não esmorecer”
527
em meio à luta.
Como discutimos anteriormente, Armando Falcão é uma figura importante para
a compreensão da censura de livros e revistas praticada nos anos 1970. Cioso quanto a
uma suposta propagação da “pornografia” e da “subversão” nos meios de comunicação,
525
Carta ao ministro da Justiça, Armando Falcão, encaminhada à DCDP, 23 jul. 1977, Caixa 2.
526
Carta ao ministro da Justiça, Armando Falcão, encaminhada à DCDP, 12 jan. 1977, Caixa 2.
527
Carta ao diretor da DCDP, José Vieira Madeira, 18 abr. 1979, Caixa 2.
197
o ministro do governo Geisel marcou seu mandato, na pasta da Justiça, por várias ações
importantes nesse campo: criou um “grupo permanente de trabalho” para analisar e
sugerir critérios de proibição aos livros considerados atentatórios à segurança nacional;
estendeu a censura às publicações estrangeiras distribuídas no país (ficando excluídas
somente as de caráter estritamente filosófico, técnico ou didático); recorreu fartamente
ao uso de admoestações para coibir a veiculação, por parte dos responsáveis por certas
publicações periódicas, daquilo que era tido por contrário aos interesses do regime;
procurou intensificar a atuação da DCDP no controle à exposição de revistas eróticas
em bancas de jornal etc.
Personagem algo enigmática durante o período que ocupou o Ministério da
Justiça, Armando Falcão ficou marcado pela resposta lacônica que proferia quando
interrogado sobre qualquer atitude sua ou do governo: “nada a declarar”, dizia o
ministro em tom austero e sem dar muita importância aos repórteres de plantão. Mas,
menos de dez anos após sua saída do cargo, Falcão publicou seu livro de memórias,
ironicamente intitulado Tudo a declarar, no qual admitiu orgulhosamente ter sido,
durante seus dois mandatos na pasta da Justiça (nos governos de Juscelino Kubitscheck
e de Ernesto Geisel), “um ministro que censurou, que coibiu”, com o qual “a tesoura
funcionou sem tremer a mão”.
528
Segundo Falcão:
Fui inflexível na exigência do respeito aos textos legais
vigentes no meu tempo de ministro (...) O cinema, no meu
tempo, também estava abrangido pelo arco da legislação
censória. Fi-la cumprir, como devia. Assisti, pessoalmente, na
sala privativa do Ministério, a exibições prévias de filmes
nacionais e estrangeiros em que a obscenidade mais torpe era
marca registrada. Lembro-me de que só depois de muitos
cortes, que determinei, permiti a apresentação pública de
películas como Dona Flor e seus dois maridos, Laranja
mecânica, Último Tango em Paris e outros.
529
De fato, torna-se curioso perceber que o ex-ministro, que não tinha escrúpulos
de dizer que censurou severamente os meios de comunicação, tivesse mudado de
postura àquela altura: “nesse terreno, mudei de posição. Agora, entendo que o cinema e
o teatro devem ser livres, pois, só quem quer e quem paga, vai às salas de espetáculos
528
FALCÃO, Armando. Tudo a declarar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p. 355.
529
Ibidem, p. 375.
198
populares”.
530
Difícil é saber, no entanto, se as pessoas que pediam mais rigor censório
ao Falcão, quando ele ainda era ministro, também mudaram de perspectiva em relação
ao fenômeno. Note-se que não deve ser tomado por mero detalhe o fato de a maioria das
pesquisas existentes sobre a atividade censória da ditadura militar relegarem para
segundo plano o apoio que a censura moral da ditadura recebia de determinados setores
sociais. Tal aspecto revela a desconsideração de um dos traços marcantes, que se fizera
sempre presente ao longo da conformação histórica da sociedade brasileira, qual seja, o
forte apreço de parte da população pela adoção de uma postura paternal por parte
daqueles que dirigem o Estado. A concepção de que cabe ao poder público uma
“posição tutelar” em relação aos populares em campos como a moralidade não foi algo
sempre restrito a certas elites políticas que estiveram no poder em conjunturas
autoritárias da história brasileira. Desde um longínquo período difícil de delimitar, ela já
guardava respaldo em uma determinada parcela da sociedade, forjada em torno de uma
cultura política que sempre primou pelo paternalismo nas relações de poder entre as
elites políticas e os setores populares. A demanda pela censura moral por parte de um
conjunto de pessoas durante a ditadura é um exemplo bastante característico da força
dessa tradição.
Nesse sentido, a instalação de um regime autoritário e as tomadas de atitudes de
personalidades, como o ministro Falcão, apenas tendiam a fortalecer, ainda mais, esse
tipo de concepção presente em determinados setores sociais, que viam aquele como o
momento em que se tornaria possível alcançar seu almejado desejo de “moralizar o
Brasil” (ou, pelo menos, “retirá-lo da completa devassidão”). Por outro lado, há que se
considerar o “caráter mobilizador” que questões referidas ao campo da moralidade
sempre tiveram para uma ampla camada da população, muito atenta ao que acontece
nesse plano, haja vista o sucesso alcançado por certos gêneros de programas televisivos
que o exploram largamente e, já nos anos 1970, açambarcavam índices de audiência
bastante elevados. Refiro-me às telenovelas, é claro, mas o mesmo pode ser dito em
relação à expansão da indústria cinematográfica nacional através da veiculação do
erotismo ou, ainda, da enorme vendagem que as revistas que tratam de temas
comportamentais já conseguiam naquele período. Enquanto alguns setores eram atraídos
pelos “novos valores” difundidos nesses meios, uma outra parcela da população
530
Idem.
199
permanecia reticente e, mesmo, indignada com o suposto “despudor” desses tipos de
programas, filmes ou publicações.
Portanto, muitas das medidas tomadas por Falcão no âmbito da censura moral
geravam manifestações de apoio por parte de alguns setores sociais. Quando o ministro
baixou uma Portaria estendendo a atividade censória às publicações estrangeiras,
531
logo
recebeu correspondências parabenizando-o e apoiando a medida. Poucos dias após a
promulgação da norma legislativa, um padre da Paróquia de São Cristóvão, em Goiânia,
procurou cumprimentar o ministro “pela atitude patriótica” e ressaltar sua
incompreensão em relação às “críticas malévolas contra tal decisão muito justa e do
máximo interesse da coletividade brasileira”.
532
Para ele, aqueles que criticavam a
referida norma legislativa não tinham noção da existência de certas revistas eróticas que
“passam nas mãos de jovens de ambos os sexos”, pois, se o soubessem, “não
permitiriam que seus filhos a vissem”. Um remetente, de Belo Horizonte, que vinha
“acompanhando, sempre, através do noticiário de jornais, as intervenções de V. Exa. no
âmbito da literatura”, sobretudo no que concerne à “pornografia de nossas revistas”,
procurava agradecer ao ministro “pelo bem imenso que esta pasta vem fazendo ao nosso
povo, à nação”.
533
Outro missivista, ao ler a notícia da promulgação da referida Portaria
no Jornal do Brasil, também ficou bastante satisfeito, principalmente porque Falcão,
“ao ser indagado por repórteres a respeito da mesma, afirmou magnificamente que a
Portaria em questão ‘só prejudicará os subversivos e os obscenos”.
534
Entusiasmado, ele
comemorava:
Aos acórdãos da quinta sinfonia de Beethoven, com o
pensamento elevado ao criador e no futuro da nossa querida e
tão amada nação brasileira, demos graças aos céus por mais
essa atitude patriótica proveniente de tão ilustre homem
público, incansável batalhador, erudito e fiel ministro de
Estado, assessor de primeira linha do nosso destemido
presidente Ernesto Geisel.
Assim, o discurso de autoridades governamentais responsáveis pela censura
destacando a necessidade de aumentar o rigor do serviço quanto à moralidade, por
vezes, gerava manifestações de apoio, algo que não se restringia à figura emblemática
531
Portaria nº 0427, de 25 de maio de 1977.
532
Carta ao ministro da Justiça, Armando Falcão, encaminhada à DCDP, 23 jun.1977, Caixa 2.
533
Carta ao ministro da Justiça, Armando Falcão, encaminhada à DCDP, 12 mar. 1977, Caixa 2.
534
Carta ao ministro da Justiça, Armando Falcão, encaminhada à DCDP, 6 jun.1977, Caixa 2.
200
de Falcão. Em 1977, reclamando de certas publicações que considerava imorais, um
correspondente de Belo Horizonte relatava ter apreciado muito as declarações do diretor
da censura federal que, publicadas no jornal O Estado de S. Paulo, defendiam uma
maior vigilância dos censores no campo da “moral e dos bons costumes”. “Inteiramente
de acordo”, o missivista achava que “a censura está sendo muito liberal”.
535
Outro
remetente escrevia ao diretor da DCDP, José Vieira Madeira, para prestar “minha
homenagem e meu modesto apoio às medidas preconizadas por V. Sa. e divulgadas pela
imprensa”, pois elas demonstrariam “que V. Sa. está com o firme propósito de colocar a
censura federal em seu devido e importantíssimo lugar, que é o de zelar pela integridade
moral de nosso referido país”.
536
De fato, ressaltar essas manifestações de apoio à
censura, impulsionadas pelos discursos dessas personagens que defendiam mais rigor na
proteção da moralidade, é importante para refletirmos sobre um aspecto que já vimos
destacando: ao contrário da censura mais estritamente política, praticamente
indefensável por meio da feitura de discursos nos meios de comunicação, a censura
realizada pela DCDP, não somente era ostensivamente justificada por certas autoridades
governamentais, mas também estimulava as manifestações desses setores moralmente
mais conservadores da sociedade, servindo, ainda, como um meio eficaz para angariar
sua simpatia. Por ter seu foco principal voltado para a questão da moralidade, a censura
praticada pela DCDP era amplamente conhecida, não sendo necessário escamoteá-la,
como era feito no caso da censura política do setor jornalístico impresso ou televisivo.
537
A maioria das cartas enviadas ao ministro Falcão reclamando mais rigor na
censura às publicações referia-se, certamente, às revistas “eróticas” expostas em
jornaleiros. A preocupação que o ministro dispensava à matéria ia ao encontro aos
anseios de várias pessoas que, em suas correspondências, muitas vezes apontavam para
uma mudança na relação que tinham com as bancas de jornal, já que agora elas “se
tornaram um lugar quase proibido de apresentação de moças e senhoras, pois, além de
ser desagradável, estão sempre repletas de homens apreciando as ditas fotografias”. A
exibição de fotos de mulheres nuas “deixa as pessoas até constrangidas ao se
aproximarem de uma banca, sem contar as piadas imorais que se ouve, decorrentes de
535
Carta ao diretor da DCDP, 17 jan. 1977, Caixa 2.
536
Carta ao diretor da DCDP, José Vieira Madeira, 18 abr. 1979, Caixa 2.
537
Segundo Anne-Marie Smith, a censura da imprensa foi um dos temas mais censurados nos jornais que
estavam adstritos à censura prévia. SMITH, Anne-Marie. Um acordo forçado: o consentimento da
imprensa à censura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 2000, p. 105.
201
tais exibições”.
538
Em 1974, uma senhora idosa escreveu à censura relatando que, ao se
aproximar de um jornaleiro, no município de São Paulo, ouviu tocar uma das “músicas
escandalosas” que “passam em certos canais de TV daqui da capital” quando, de
repente, “dois homens disseram que, se ela quer mesmo encostar o seu corpo no meu,
que venha aqui nas Capoeiras, que ela ficará satisfeita”. Diante do acontecido, escrevia
ela, “corri para minha casa, [pois,] para quem sabe ler, um pingo é letra”.
539
De fato, se
alguns reclamavam com certo comedimento que “a censura está sendo muito liberal”,
pois “nas bancas de jornal só se vê exposição de nus”,
540
outros remetentes carregavam
nas cores da denúncia que faziam:
Que dizer também das publicações? Hoje, uma banca de jornal
e revistas mais parece uma porta de bordel, anunciando em
cartazes coloridos, as diferentes opções sugeridas aos seus
usuários (...) Achei magnífica a idéia de V. Sa. de exigir as
capas plásticas para revistas como Ele e Ela, Play-Boy etc.
Mas, que estes plásticos sejam opacos
e que os cartazes
mostrando as mulheres nuas, existentes nestas revistas, sejam
sumariamente proibidos.
541
O curioso, em boa parte dessas cartas que reclamavam mais censura às revistas,
é que elas, por vezes, deixavam entrever o constrangimento que algumas dessas pessoas
tinham de escrever à censura pedindo mais controle sobre a veiculação do que
consideravam imoral, o que podia levá-las a justificar sua postura à própria DCDP.
Assim, muitos missivistas repetiam que não queriam ser tomados por “moralistas”,
“quadrados” ou algo do tipo, não obstante, quase sempre utilizassem um linguajar
bastante carregado de moralismo em seus argumentos:
Sou contra impedir as pessoas de comprar tais revistas. É um
direito do adulto, fazer uma opção. Se ele quer se alimentar
com lixo, com comida podre, que o faça. Mas por sua própria e
consciente opção. O que não é justo, é que crianças e
adolescentes percam horas em frente às bancas, masturbando-
se mentalmente, destruindo seus próprios valores, pela exibição
livre e acintosa de tais revistas.
542
538
Carta ao Chefe do SCDP/RJ, Wilson de Queiroz Garcia, encaminhada à DCDP, 6 jul. 1976, Caixa 2.
539
Carta à DCDP, 23 set. 1974, Fundo “Divisão de Censura de Diversões Públicas”, Arquivo Nacional,
Coordenação Regional do Arquivo Nacional no Distrito Federal, Série “Correspondência Oficial”,
Subsérie “Manifestações da Sociedade Civil”, Caixa 1, doravante identificada apenas como “Caixa 1”.
540
Carta ao diretor da DCDP, 17 jan. 1977, Caixa 2.
541
Carta ao diretor da DCDP, José Vieira Madeira, 18 abr. 1979, Caixa 2. Grifado no original.
542
Idem.
202
Certas localidades como os centros urbanos das cidades do Rio de Janeiro e São
Paulo eram objetos da maioria das reclamações. Assim, na capital paulista, “desde a
estação rodoviária até o centro da cidade podem ser vistos tais livros [pornográficos],
ora nas livrarias (...), ora nas bancas de jornal”.
543
No centro do Rio, a exposição de
revistas e posters de mulheres nuas seria visível, principalmente “na Avenida Rio
Branco [e nas] ruas da Assembléia, Carioca, Senador Dantas e todas as outras”.
544
Mas,
não era somente nas capitais que a “proliferação de publicações eróticas e obscenas”
545
gerava protestos, como pode ser visto numa manifestação que, formulada pelo prefeito
de Andradina, foi aprovada pela Associação de Municípios de Urubupungá (AMRU).
Utilizando-se de uma ironia bastante provocativa, com o intuito de denunciar que as
medidas tomadas pelas autoridades governamentais não estavam surtindo o efeito
desejado, o prefeito destacava:
Não é só a televisão que hoje em dia agride os costumes e a
moral da juventude brasileira. Também as bancas de revista
dão substancial colaboração: revistas com mulheres
fotografadas em atitudes das mais inconvenientes (ainda bem
que devidamente envoltas em plástico, só que
TRANSPARENTE), revistas de terror, violência [do] tipo
Kung Fu (ainda bem que trazem em letrinhas pequeninas:
“impróprio para menores de 18 anos” - e vendem para crianças
de qualquer idade), enfim, revistas e livros eróticos proliferam
nas bancas.
546
De fato, assim como em todos os outros campos de atuação da DCDP, no âmbito
da exposição de publicações eróticas em jornaleiros, ela também tinha muita dificuldade
de fazer cumprir suas determinações, em grande medida devido à escassez de
funcionários para a execução das tarefas de fiscalização. Nos casos dos serviços de
censura estaduais, onde a falta de pessoal era ainda mais grave, tal fato era objeto de
freqüentes reclamações. Por isso, em 1976, o chefe do Serviço de Censura de Diversões
Públicas do Rio de Janeiro enviou uma carta ao diretor da Divisão de Censura dizendo
que “o aviso aos proprietários de bancas de jornal, para que não exponham as
543
Carta ao ministro da Justiça, Armando Falcão, encaminhada à DCDP, 23 jul. 1977, Caixa 2.
544
Carta ao chefe do SCDP/RJ, Wilson de Queiroz Garcia, encaminhada à DCDP, 6 jul. 1976, Caixa 2.
545
Requerimento do vereador, Toledo Piza, aprovado pela câmara municipal de Ribeirão Preto e enviado
ao Ministério da Justiça, 14 fev. 1980, Caixa 2.
546
Carta ao ministro-chefe do Gabinete Civil da Presidência da República, Golbery do Couto e Silva,
encaminhada à DCDP, 6 set. 1979, Caixa 2.
203
fotografias mais provocantes, têm sido inúteis”.
547
Não muito tempo depois, a Câmara
Municipal de Guarulhos aprovava e encaminhava à DCDP uma indicação do vereador,
Elizo Rosignoli, pedindoprovidências, em caráter de urgência, visando coibir a
afixação, em bancas de jornal, de revistas e jornais com fotos pornográficas e
atentatórias à moral”, pois, “apesar da proibição da venda dos referidos exemplares a
menores de idade, os mesmos podem apreciar tais fotos que ficam expostas nas
bancas”.
548
Muitas das reclamações de fins dos anos 1970 e início dos anos 1980 estavam
relacionadas, também, com a paulatina “retirada” da censura do campo das publicações.
As constantes perdas na Justiça, as denúncias quanto à inconstitucionalidade de algumas
das normas legislativas que regulamentavam a matéria e, depois, a saída de Armando
Falcão do Ministério, levaram não somente à determinação do fim da censura prévia
nessa seara, mas também à impossibilidade de se continuar a proibir a venda, em
jornaleiros, dos livros e revistas que tratavam de temas “referentes ao sexo, à
moralidade ou aos bons costumes”. Os revezes diante dos “mandados de segurança”
perpetrados pelas editoras responsáveis por esse tipo de publicações, que argumentavam
estar sendo prejudicadas pela concorrência desleal que a medida acarretava entre as
livrarias e as bancas de jornal, fizeram com que fosse revogada, em 1980, a parte da
norma legislativa que estabeleceu tal proibição.
549
Porém, a determinação de que esses
tipos de livros e revistas somente poderiam ser vendidos em embalagens plásticas, com
os dizeres de que os mesmos eram proibidos para menores de 18 anos, apesar de
continuar em vigor, segundo muitos missivistas, era completamente descartada. E, como
o ministro Ackel não demonstrava o mesmo ímpeto de Falcão diante da matéria, alguns
apelavam para sua origem mineira:
Temos podido constatar, junto às bancas de jornal e revistas, a
invulgar proliferação de publicações eróticas e obscenas, que
antes eram vendidas em envelopes lacrados e com tarjas de
censura e que, presentemente, estão sendo expostas livremente,
até mesmo com predominância sobre revistas infantis e de
cunho cultural (...) Há necessidade, por isso, que o Sr. ministro
da Justiça, homem público oriundo do estado de Minas Gerais,
547
Ofício nº 460, do chefe do SCDP/RJ ao diretor da DCDP, 7 jul. 1976, Caixa 2.
548
Indicação de autoria do vereador, Elizo Rosignoli, aprovada pela Câmara Municipal de Guarulhos,
enviada ao diretor da DCDP, José Vieira Madeira, 4 out. 1979, Caixa 2.
549
Refiro-me à Portaria nº 319/79-DG, de 10 de abril de 1979, e à revogação do parágrafo único da
mesma. Sobre essa norma legislativa ver p. 66-67.
204
que se constitui num dos baluartes da defesa da moralidade de
costumes e da preservação das tradições e integridade
familiares, adote urgentes providências no sentido de que a
população não continue a ser afrontada pela
indiscriminadamente [sic] exposição das publicações em
apreço (...)
550
Assim, embora a Portaria que regulamentava o padrão de apresentação de tais
publicações determinasse que elas somente poderiam ser vendidas embaladas “em
material plástico resistente, hermeticamente fechado”, o uso de plásticos transparentes
era freqüente e irritava algumas pessoas. Para o vereador Vilberto Adolfo Cattani, cujo
requerimento foi aprovado por unanimidade pela Câmara Municipal de São Carlos, “em
todas as cidades, nas bancas onde se vendem jornais e revistas, a pornografia
transparece em quase tudo”, pois “os editores de publicações deletérias, falsamente
‘proibidas’ ao público infantil e adolescente, chegam ao inqualificável cinismo de
‘lacrá-las’ com plástico transparente, de modo a serem exibidas a qualquer público, sem
distinção de idade”.
551
Por outro lado, mesmo depois de decorridos cerca de cinco anos
após a revogação do “parágrafo único” da norma legislativa que proibia a venda de
publicações eróticas em bancas de jornal, a DCDP ainda recebia reclames tratando do
assunto. Numa missiva enviada ao diretor do serviço censório, as Mulheres Metodistas
de Jundiaí resolveram apresentar suas idéias quanto à matéria, já que elas sabiam que
Coriolano de Loyola Fagundes era “uma pessoa de mente aberta”:
Que as publicações pornográficas, quaisquer que sejam, fiquem
proibidas de serem expostas nas bancas de jornal e revistas,
pois é um espetáculo deprimente e constrangedor quando uma
família é obrigada a se aproximar de uma dessas bancas onde
as mesmas são vendidas. Elas sempre ocupam lugar de
destaque, colocadas de tal maneira que até os pequeninos
podem vê-las com a maior facilidade. (...) Que, no lado externo
das bancas, fosse proibida a exibição de cartazes referentes
àquelas publicações, pois, os mesmos, geralmente reproduzem
as capas das revistas em tamanho bem maior. Em um deles
outro dia vi em letras destacadas esta jóia da “moral”[:] MÃE
E FILHAS NUAS.
Também procurando não se mostrar autoritárias ou moralistas, as mulheres
550
Requerimento do vereador, Toledo Piza, aprovado pela Câmara Municipal de Ribeirão Preto, enviado
ao Ministério da Justiça, 14 fev. 1980, Caixa 2.
551
Requerimento do vereador, Vilberto Adolfo Cattani, aprovado pela Câmara Municipal de São Carlos,
encaminhado à DCDP, 24 mar. 1980, Caixa 2.
205
metodistas complementavam dizendo que não queriam “que todos sejam impedidos de
ler as revistas ou assistirem aos filmes e vídeos que quiserem. O que pretendemos é
proteger nossa juventude de ser obrigada a conviver com isso e achar normal.”
552
Afora essa e outras cartas enviadas às autoridades mais diretamente responsáveis
pela censura, a maior parte das correspondências que pediam mais rigor nas interdições
às publicações eróticas foi enviada diretamente ao ministro Falcão, reconhecidamente
cioso quanto ao problema. Mas, há algo de mais complexo nesse tipo de manifestação
ao poder público: ao mesmo tempo em que a postura moralista de certas autoridades,
como Armando Falcão, estimulava mais denúncias, talvez por um certo apreço por sua
personalidade austera e conservadora, por outro lado, quando da sua saída do
Ministério, a demanda pelo combate às revistas eróticas se intensificou. Tal fato,
certamente, guarda relação com o arrefecimento da tomada de medidas em torno da
matéria que já mencionamos: nem o substituto de Falcão na referida pasta, o ex-senador
Petrônio Portela, nem o seu sucessor, o ex-deputado Abi-Akel, mostraram o mesmo
ímpeto de Falcão no controle das publicações tidas por contrárias à moral e os bons
costumes. Portela tinha uma posição mais liberal no que concerne à censura, mas
faleceu após cerca de dez meses no cargo, não concretizando medidas mais eficazes que
significassem o efetivo fim da censura de diversões públicas.
553
Já Abi-Ackel,
certamente mais conservador do que Petrônio Portela nesse plano, apesar de ter
procurado mostrar-se preocupado com a questão da pornografia, o fazia mais no campo
da programação de canais de televisão do que da “proliferação” de revistas “eróticas”.
Segundo o próprio Ackel, ele recebia milhares de cartas pedindo um controle mais
rigoroso sobre os programas televisivos que veiculavam discussões relacionadas à
sexualidade ou transmitiam cenas mais fortes de violência.
554
Parece que, nesse período, tornou-se uma espécie de “moda” apregoar a
formação de uma “cruzada” contra aquilo que preocupava boa parte da população,
atitude que certamente tinha como um dos seus principais objetivos o acúmulo de
capital político. O ministro Ackel, por exemplo, estimulando e estimulado por esses
setores que reclamavam mais controle no plano moral, procurou ressaltar, durante o seu
552
Carta da Igreja Metodista em Jundiaí ao diretor da DCDP, 26 jul. 1985, Caixa 4.
553
Portela, apesar de não ter acabado com a censura prévia de diversões públicas, teve um papel
importante na regulamentação do Conselho Superior de Censura. Ver p. 64.
554
Sexo e censura; exclusivo: os protestos que Abi-Ackel recebe. Isto é. 26 mar. 1980, p. 24-30.
206
mandato, que faria uma “cruzada contra a pornografia”, dando grande visibilidade às
atitudes que tomava nesse campo e gerando protestos de muitos setores mais críticos da
sociedade.
555
Talvez para não perder a simpatia que o Ministério vinha angariando em
meio aos setores moralmente mais conservadores ao longo desses anos, o jurista Paulo
Brossard, apesar de suas convicções e trajetória mais liberais, após assumir a pasta no
governo Sarney, tratou de lançar também sua “cruzada contra a violência”. Ambas as
atitudes corresponderam a uma intensificação da atuação censória nesses planos,
visando, sobretudo, um controle mais rígido da programação televisiva.
Esse aspecto, aliás, parece representativo da complexidade da censura
relacionada à defesa da moral e dos costumes: mesmo um político considerado liberal,
como Paulo Brossard, teve dificuldade ou, talvez, pouca vontade política, para
extinguir, pura e simplesmente, a censura de diversões públicas. Além da conveniência
de continuar auferindo o apoio de determinados setores mais moralistas que diziam
defender os bons costumes e o tradicionalismo, havia toda a engrenagem legislativa que
dava sustentação à existência dessa atividade. Por outro lado, existia, também, o
desgaste político advindo da manutenção de um tipo de prática que já era prontamente
associada à censura política, embora não se confundisse diretamente com ela, o que
deixava o ministro numa situação bastante vulnerável, sofrendo as pressões de ambos os
lados. Ademais, uma postura mais liberal em termos políticos não corresponde,
diretamente, a uma perspectiva menos conservadora em termos morais.
E a difícil posição do ministro do governo Sarney pode ser facilmente percebida
a partir de seus pronunciamentos e entrevistas nos meios de comunicação daquela
conjuntura, principalmente no que concerne às críticas que sofria de personalidades
ligadas à produção cultural e suas respostas alegando que a continuação da atividade
censória correspondia tão-somente à obediência a um preceito constitucional.
556
Para
algumas pessoas que desejavam mais rigor censório, por outro lado, aquele deveria
significar um período de saudades de figuras mais moralistas no que diz respeito a uma
suposta ascensão da “pornografia nos meios de comunicação”, as quais pareciam tomar
atitudes mais enérgicas e assumiam claramente sua postura paternalista em relação ao
555
Ver a p. 247 do capítulo seguinte, referente ao abaixo-assinado produzido pelas chamadas “Senhoras
de Santana” e à importância que o ministro Abi-Ackel dispensou à questão.
556
Em 1986, o ministro Brossard concedeu uma entrevista ao primeiro programa Roda Viva, da TV
Cultura, tendo sido bastante criticado pela manutenção da censura. Suas respostas enfatizavam que ele
estaria apenas cumprindo uma determinação constitucional.
207
povo brasileiro. Talvez seja nesse sentido que possamos compreender a manifestação de
um missivista, o qual reclamava da “decadência moral” que assolaria o carnaval no
procurava alertar Paulo Brossard de que, “nós brasileiros, precisamos muito do nosso
ministro para nos defender daqueles que pretendem destruir a nossa sociedade no
âmbito social”.
557
No período final da ditadura, o que mais preocupava aos setores moralmente
mais conservadores da sociedade era a contínua perda de vigor da censura que se dava,
paulatinamente, ao esfacelamento do regime militar. As tendências quanto à
liberalização, que ganhavam espaço desde o início da chamada “abertura política”,
quando pensadas em termos da censura de costumes, geravam indignação nesses
segmentos, ainda que, nesse âmbito, a efetiva existência de tais tendências liberalizantes
seja bastante discutível. O suposto afrouxamento da censura nesse campo, de fato, era
mais aparente do que real. Ainda assim, em 1980, o presidente da Câmara Municipal de
Uberlândia solicitava a atenção do Conselho Superior de Censura para a “onda de
pornografia, nudismo, licenciosidade e permissividade que atinge diretamente a célula
mater de nossa sociedade, a família”. Reclamando de todos os meios de comunicação,
que teriam “levado a público, de maneira brutal e ostensiva”, aquilo “que pertence à
intimidade do homem”, o remetente destacava que os detentores de canais de televisão
“confundiram abertura com libertinagem”.
558
E, conforme passavam os anos, com a
progressiva derrocada da ditadura, esse tipo de discurso ficava ainda mais enfático,
como pode ser visto na manifestação do vereador do PMDB, Clementino Faria, em
1985:
Inaugura-se no Brasil a Nova República. Seja ela uma
República honesta, que não faça concessões no campo moral,
censurando a pornografia e o erotismo, pois censurar o mal é
alta expressão democrática, porque virá preservar a família,
que afinal é o alicerce da pátria e do regime.
559
As revistas que traziam fotografias de mulheres nuas (ou, dentro dos padrões de
permissão moral da época, seminuas, em sua maioria), que tratavam de questões
relacionadas à sexualidade ou, mesmo, que veiculavam, em algumas de suas edições,
557
Carta de J. da Silva Duarte, do Joquey Club de Fortaleza, ao ministro da Justiça, 27 jan. 1987, Caixa 4.
558
Carta do presidente da Câmara Municipal de Uberlândia ao Chefe do Conselho Superior de Censura,
encaminhada à DCDP, 8 mar. 1980, Caixa 2.
559
Requerimento do vereador Clementino Faria, enviado à DCDP, 26 mar. 1985, Caixa 4.
208
discussões acerca de problemáticas comportamentais típicas do período (a crise da
família, a ascensão da mulher, a legalização do divórcio etc.) eram as publicações que
mais sofriam denúncias ao serviço censório. Revistas diversas como Ele e Ela, Homem,
Status, Manchete, Festa, Pais e Filhos, Fiesta, Photo, Visão, entre muitas outras, foram
objetos das reclamações de pessoas preocupadas com uma suposta difusão da
pornografia nesse plano. Mas, não eram somente as matérias relacionadas ao sexo que
sofriam a vigilância dos setores que propugnavam por mais rigor censório. No início
dos anos 1980, o Jornal da tarde publicou um artigo chamado “Vendendo o Vício”, o
qual denunciava as revistas norte-americanas High Times e Hi-Life como difusoras das
drogas, dando o respaldo que precisavam alguns vereadores para pedir a proibição
dessas publicações. Num requerimento de autoria do vereador Toledo Piza, aprovado
pela Câmara Municipal de Ribeirão Preto, o mesmo demandava o cerceamento das
revistas qualificando-as como um dos “evidentes indutores de nossa juventude ao
vício”, pois elas tratariam “exclusivamente de drogas e apetrechos necessários ao
consumo e, até mesmo, da fabricação de tóxicos e alucinógenos”.
560
Já os vereadores da
Câmara Municipal de São Paulo aprovaram a moção de Yukishigue Tamura, que
também queria a interdição da publicação por “difundir o tóxico”, levando “jovens
facilmente influenciáveis” ao uso nocivo de entorpecentes.
561
Algumas das cartas que, depois de enviadas ao ministro da Justiça ou a outras
autoridades governamentais, foram encaminhadas à censura, parecem ilustrativas do
grosso do material existente no fundo da DCDP. Elas nos permitem refletir mais
profundamente sobre quem eram essas pessoas que escreviam pedindo mais controle no
plano das publicações e quais as motivações que as levaram a se manifestar dessa forma
diante do poder público. Muitas vezes relatando casos particulares, vividos no ambiente
doméstico ou na vizinhança, parte dessas missivas era marcada por um procedimento ao
mesmo tempo bastante curioso e freqüente: a utilização desse relato como um
argumento para que suas demandas fossem atendidas. Tal fato, provavelmente, guarda
correlação com um traço típico da cultura política brasileira: o “modo pessoal” de lidar
com aspectos referentes ao Estado ou, melhor, a fluida relação entre público e privado,
560
Requerimento do vereador, Toledo Piza, aprovado pela Câmara Municipal de Ribeirão Preto, enviado
ao Ministério da Justiça, 14 fev. 1980, Caixa 2.
561
Moção nº 2/80, de autoria do vereador da Câmara Municipal de São Paulo, Yukishigue Tamura, e
outros, enviada ao ministro da Justiça Abi-Ackel e encaminhada à DCDP, 25 fev. 1980, Caixa 2.
209
há tempos já denunciada por grandes pensadores do Brasil.
562
A tentativa de utilizar um
“bem público” (a censura) para resolver um caso da esfera privada (como a educação
ética e moral dos filhos) é algo facilmente perceptível em boa parte das cartas que
chegavam à censura. Entretanto, deixando de lado a análise desse plano mais genérico,
tais relatos, como dissemos, podem ser vistos como vestígios interessantes de quem
eram essas pessoas e de quais eram os motivos que as impulsionaram a escrever às
autoridades governamentais.
Em meados de 1977, o missivista Dilésio Amaral escrevia ao ministro Falcão
relatando um acontecimento que teria lhe motivado a se manifestar à censura federal.
Ele, que orgulhosamente se dizia “diretor de escola pública, vereador, advogado, chefe
de família e cidadão brasileiro”, num determinado dia em que se encontrava na “Escola
de 1º e 2º Graus Antônio Carneiro Ribeiro”, que dirigia na cidade de Guaçuí, deparou-
se, em plena sala de aula, com uma edição da revista Ele e Ela nas mãos de cerca de
oito alunos da sétima série. Eram eles seis “rapazes” e duas “moças”, todos com idades
entre dezesseis e dezenove anos. Diante do problema, Dilésio somente não tomou uma
atitude extrema, de indiciar os alunos envolvidos “em tamanha barbaridade” no decreto-
lei n. 477, porque eles eram todos menores de idade. Não obstante, além de suspendê-
los por quatro ou cinco dias de aula, como diretor, também os impediu de renovar suas
matrículas naquele estabelecimento. Tal atitude autoritária, agora lhe causava
aborrecimentos, na medida em que três dos alunos tinham recorrido da decisão junto à
Subsecretaria de Estado da Educação, a qual, “além de criticar nossa atitude, ousou
aconselhar que tais alunos fossem novamente readmitidos e rematriculados neste
estabelecimento, com o que nós nunca iremos concordar”. Assim, afirmando que
colocaria seu cargo à disposição caso os alunos voltassem ao colégio, ele demandava ao
ministro Falcão que medidas semelhantes à Portaria que estabeleceu a censura prévia
para as publicações estrangeiras fossem estendidas às publicações nacionais,
“notadamente às editoras responsáveis por edições de revistas que se assemelham a Ele
e Ela, da Bloch”.
563
Outra carta relatando um caso pessoal às autoridades com o objetivo de pedir
562
Refiro-me às obras de Gilberto Freyre e, sobretudo, de Sérgio Buarque de Holanda. FREYRE,
Gilberto. Casa Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Global Editora, 2003. HOLANDA, Sérgio Buarque de.
Visão do paraíso. Rio de Janeiro: José Olympio, 1984. Recentemente, um autor que tem dado bastante
destaque à questão é Roberto. Da Matta.
563
Carta ao ministro da Justiça, Armando Falcão, encaminhada à DCDP, 6 jun.1977, Caixa 2.
210
mais censura às publicações eróticas foi a de Alarico Crispiani, um missivista de Campo
Grande (Mato Grosso do Sul). O próprio remetente destacava que aquela carta
“constituía mais um desabafo do que uma reclamação”, denotando algo corriqueiro em
várias correspondências que chegavam à DCDP: o fato de terem sido escritas sem muito
o pensar, ao “calor da hora”, sem muitas elaborações e sofisticação. Segundo Alarico,
“sua senhora”, ao limpar o quarto de seus filhos, se deparou com “uma grande
quantidade de material pornográfico” e ficou estarrecida. Ao verificar que o material
“não se tratava simplesmente de erotismo”, mas sim de “pornografia barata”, o
missivista teve logo um ímpeto de surrar as crianças, mas, “como sou uma pessoa
relativamente esclarecida, esperei calmamente e, então, interroguei-as”. Diante de tal
infortúnio, Alarico, “pai de família”, “religioso”, “que sempre trouxe seus filhos
educados dentro de um rígido padrão de moralidade”, descobriu que eles, assim como
muitas outras “crianças” dentre doze e dezesseis anos, estavam deixando de comprar o
lanche na escola para adquirir tais revistas, e que as mesmas eram consumidas,
sobretudo, por “crianças” da mesma idade. Procurando desvendar como elas
conseguiam comprar tais publicações, o missivista percebeu também que “as bancas de
jornal estão abarrotadas delas” e tratou logo de denunciar ao chefe da DCDP aquelas
que trariam material pornográfico: Exclusivo erótico policial, HQ color sex comic,
Ninfetas, Carne viva e real sex.
564
Assim como muitos relatos de casos vividos no ambiente doméstico, outras
missivas enviadas à DCDP denotavam terem sido motivadas por desavenças, rancores
pessoais ou, simplesmente, pela desaprovação moral de pessoas da vizinhança. No
início dos anos 1980, chegava à censura federal uma correspondência de José Francisco,
um morador de Pitangueiras (São Paulo), que reclamava de uma revista editada naquela
cidade, chamada Gente Nossa Especial. Segundo o missivista, ele escrevia “em nome
de muitos cidadãos deste município envergonhados com a publicação da referida
revista”, que traria “piadas de pornochanchada, mulheres escandalosamente vestidas e
palavras maliciosas”. José se irritava, “principalmente por ser esta revista feita por uma
conhecida lésbica e um conhecido travesti de Pitangueiras”, e asseverava que muitas
pessoas, naquela cidade, já estavam chamando a Polícia Federal de “omissa”. Para ele,
tal revista não era mais do que um meio para “comer” o dinheiro do povo daquela
564
Carta ao chefe do DPF, encaminhada à DCDP, 10 dez. 1982, Caixa 2.
211
localidade, numa verdadeira “exploração publicitária, sem nota fiscal, sem pagar
imposto”. Indignado, o remetente reclamava “em nome de todos os pais de família da
região”, que tinham filhos adolescentes e não queriam vê-los com a referida revista na
mão, pois isso “é um desrespeito à formação do adolescente e um desvirtuamento à
mente do jovem”.
565
Certamente, esses são apenas alguns casos que motivaram o envio de cartas ao
poder público rogando mais censura no campo da moralidade. Entretanto, uma análise
mais geral das cartas existentes no fundo documental da extinta DCDP nos revela que,
casos parecidos com o de Dilésio, o de Alarico ou o de José Francisco, eram muito
comuns e motivaram várias pessoas a enviar cartas à censura pedindo mais atenção dos
censores. No que concerne às reclamações sobre programas de televisão, situações
como aquela vivenciada por Alarico, por exemplo, na qual um “pai de família” escrevia
à censura após encontrar algum de seus filhos vendo um programa que considerava
imoral ou, ainda, outras semelhantes (de avós preocupados com a educação moral de
seus netos, de mães pedindo sugestões sobre a criação de seus filhos etc.) eram ainda
mais recorrentes, motivando a redação de boa parte das correspondências enviadas aos
órgãos governamentais responsáveis pela atividade censória.
Ressaltar esse ponto é importante para destacar, primeiro, como, apesar das
elaborações discursivas de boa parte das missivas, advogando algo como a preocupação
com a formação moral de toda uma geração de crianças e adolescentes, muitas delas
tinham sua motivação principal proveniente de situações vividas no próprio ambiente
doméstico (o que denota uma atitude bastante “individualista”, em muitos casos,
embora travestida de uma roupagem discursiva que destacava a preocupação com o bem
coletivo). Segundo, o fato de a maioria dessas manifestações, ao contrário do que
muitos analistas procuram destacar, não advirem de pessoas comprometidas ou
“colaboracionistas” da ditadura militar, mas sim de cidadãos comuns, afetados pelas
rápidas mudanças comportamentais daquela conjuntura e que, na esteira de uma forte
tradição paternalista de atuação do poder público, pensavam estar advogando seus
direitos e cumprindo seus deveres de proteger a “moral e os bons costumes do povo
brasileiro”. Como já mencionamos em outro capítulo, havia, em grande parte dessas
pessoas, um sentimento de que a luta contra a imoralidade nos meios de comunicação
565
Carta ao diretor do DPF, encaminhada à DCDP, 23 abr. 1980, Caixa 2.
212
era um dever de todo cidadão, principalmente daqueles que eram “pais de família” ou
“cristãos”. Uma carta bastante ilustrativa nesse sentido, foi a enviada por um missivista
de Niterói (Rio de Janeiro), na qual ele denunciava a Livraria Natal por “estar vendendo
livros pornográficos”:
Como brasileiro e como chefe-de-família me sinto coobrigado
na tarefa de combate à literatura licenciosa ou pornográfica.
Mais que um dever, é um prazer colaborar com o governo para
que o mesmo consiga proibir, efetivamente, a venda de livros
como Boca de fogo, A selvagem Xaviera, Cartas eróticas de
Edward, Por trás das câmeras e A menina cor de rosa.
566
Segundo o remetente, um dos grandes problemas da cidade de São Paulo era a
“devassidão”, sendo “inúmeros os livros que devem ser apreendidos e queimados” e,
por isso, ele vinha procurando “observar se os livros citados continuam a venda nas
livrarias paulistas”. Utilizando uma argumentação bastante típica das cartas enviadas à
DCDP, o missivista destacava ainda que as principais “vítimas” desse tipo de
publicações “são os jovens que, pela excitação sexual, são levados à masturbação, que
prejudica o seu desenvolvimento físico e mental, ou à prática de ato obsceno com suas
namoradas ou, ainda, ao relacionamento sexual com prostitutas”.
Outros remetentes também faziam uma correlação direta entre a leitura de obras
pornográficas e a prática de “delitos” ou de “atos despudorados”. Usana Manetto, por
exemplo, escreveu ao Falcão procurando demonstrar sua “teoria”, de modo a ajuda-lo
no esclarecimento das “causas que levam os indivíduos ao crime”, já que dizia ter
conhecimento da preocupação que o ministro resguardava à matéria. Morador da cidade
de Lençóis Paulista, segundo o próprio Ursana, desde muito tempo ele já vinha
observando duas causas principais para os crimes: a educação unissexual que, “dada em
escolas, em classes mistas, levam os indivíduos ao homossexualismo e este [sic] aos
crimes”; e a “leitura de obras pornográficas, [que] levam as crianças e os jovens à
poluição mental”. Denunciando os livros Dias de Clichy, de Henry Miller, e Último
tango em Paris, de Robert Alley, Usana destacava que, naquela cidade, “muitos jovens,
após a leitura de livros sem nenhum valor artístico e científico, foram levados a cometer
faltas contra o pudor”.
567
Postura semelhante foi a de um padre, que escreveu ao
566
Carta ao ministro da Justiça, Armando Falcão, encaminhada à DCDP, 23 jul. 1977, Caixa 2.
567
Carta ao ministro da Justiça, Armando Falcão, encaminhada à DCDP, 2 set. 1974, Caixa 1.
213
ministro Falcão pouco tempo depois de ter retirado das mãos de “jovens de 12, 13 e 14
anos (...) uma dessas revistas pornográficas”, pois, segundo ele, é “impressionante como
essas crianças se deleitavam em ver tais cenas. É certamente isso que leva essas pessoas
a cometerem horríveis desatinos em grande prejuízo da família”.
568
O discurso da
necessidade de se proteger as crianças e os jovens da imoralidade era, certamente, o
argumento mais consistente daqueles que demandavam mais rigor censório e aparecia
em diversas cartas, mas, mesmo nesse ponto, ficava sempre difícil discernir o que cabia
ao Estado e o que era tarefa da educação dada dentro do ambiente doméstico. Curiosa,
nesse sentido, foi a correspondência de Carlos Azzi, que escrevia pela quarta vez ao
Armando Falcão, desta vez denunciando a resposta dada pela “consultora sentimental”
Noemia Bello, da seção “Alô Coração!”, da revista Ciúme, a uma “garotinha de 17
anos” (o uso do termo “garotinha” para designar uma jovem desta idade, por si só, é
indicativo das diferenças de padrões morais daquela época em relação aos de hoje em
dia e, principalmente, da postura moralmente conservadora do remetente). Para Azzi,
“qualquer pessoa que ler esta resposta, julgá-la-á uma mulher desprovida de moral e que
quer descarregar seus complexos nas meninas inocentes que apenas pediram uma
orientação para as dúvidas que esta idade lhes trás”. Mas, o interessante, de fato, era que
o missivista, logo após reclamar censura à revista, concluía que “este caso não cabe às
autoridades e sim aos pais”.
569
Algumas das cartas encaminhadas à DCDP reclamando das publicações
“eróticas” também eram perpassadas por uma espécie de nostalgia de um suposto
período em que a sociedade era moralmente superior, menos propensa à pornografia e à
obscenidade. Assim, um missivista que pedia a interdição de alguns livros tidos por
imorais, por exemplo, rogava por um possível retorno ao tempo em que a educação era
“de ‘rendinhas’, somente para as meninas, e de ‘botinas’, para os meninos, respeitando,
assim, seu sexo”. Segundo o remetente, “é comum sentirmos o cheiro de cigarro numa
menina e [um] cheiro acentuado de perfume nos meninos”, algo que dificultaria “sua
própria identificação”. Convicto de que deveria haver uma “educação especial para cada
sexo”, ele argumentava que “salada devemos fazer com frutas e legumes e nunca com
crianças”.
570
Já um abaixo-assinado enviado ao ministro Falcão, em 1977, que
568
Carta ao ministro da Justiça, Armando Falcão, encaminhada à DCDP, 30 abr. 1978, Caixa 2.
569
Carta ao ministro da Justiça, Armando Falcão, encaminhada à DCDP, 30 abr. 1978, Caixa 2.
570
Carta ao ministro da Justiça Armando Falcão, encaminhada à DCDP, 2 set. 1974, Caixa 1.
214
reclamava de uma matéria da revista Manchete sobre o carnaval daquele ano, utilizava
argumentos que parecem expressivos de uma postura reticente quanto aos novos valores
morais que se supunha advirem conjuntamente com o progresso técnico, desmanchando
a estrutura tradicional da família e a alegria inocente que a relação entre os seus
membros supunha em tempos anteriores:
Porque a mocinha de fantasia simples e gestos decentes não
merece ser mostrada ao mundo? O semblante másculo e
descontraído do jovem sincero, do adulto e do velho que se
irmanizam na mesma explosão de alegria?! Bem o sabemos:
seria um prato insípido para os homens que encerram o século
XX, teimando em retroceder à idade da pedra lascada. E tudo
isso em nome do progresso e da técnica que não precisam ser
inimigos da moral.
571
De fato, casos como os citados acima denotam, não somente as concepções
moralmente conservadoras de muitas dessas pessoas e seu apoio às medidas tomadas em
favor da censura, mas também algo mais profundo, que pode ser tido como um traço
típico da cultura política brasileira: a convicção de que ao Estado cabe uma postura
paternalista em determinados campos, como o da moralidade. Desconsiderar essa
tradição paternalista da cultura política brasileira para pensar essas correspondências
endereçadas ao poder publico corresponde a retirarmos essas pessoas de dentro de uma
complexa rede de heranças de valores e representações acerca do papel do Estado no
Brasil. A imagem de uma sociedade inteira, que lutava homogeneamente contra todas as
facetas do regime autoritário implantado no país desde 1964, talvez seja, em boa
medida, mais uma construção da memória coletiva de parte daqueles que procuraram
resistir à ditadura, do que uma evidência a qual os analistas do período teriam todos de
tomar como ponto de partida em suas pesquisas. Tal construção, certamente, serviu
positivamente à luta contra o autoritarismo em favor da restauração do regime
democrático, mas, quando não percebida como tal, pode encobrir a falta de um
distanciamento analítico necessário para lidar com o problema.
Como vimos insistindo, havia certos planos, como o da censura de costumes,
que já possuíam uma larga tradição de atuação do poder público dentro da sociedade
brasileira, não contendo uma aura de arbitrariedade como era o caso da censura política,
571
Abaixo-assinado enviado ao ministro da Justiça, Armando Falcão, encaminhado à DCDP, 5 mar. 1977,
Caixa 2.
215
mais típica dos períodos de exceção. Isto não quer dizer que todos apoiassem a censura
moral. Muito menos deve ser confundido com a adoção de uma perspectiva ingênua,
que desconsidera a luta dos setores que combateram intensamente o regime militar, o
caráter autoritário deste último ou, mesmo, a utilização, por parte daqueles que foram os
responsáveis pela ditadura, do apoio que parte da população os legava em certos campos
para alegar uma falsa legitimidade do regime como um todo. O caráter arbitrário deste
último, seguramente, não deve ser analisado somente pelo maior ou menor apoio que
certas parcelas da população conferiam à censura de costumes. Se essa última, por si só,
conformava-se como uma prática que muito pouco tinha a ver com uma postura
democrática, não se pode esquecer que a ditadura brasileira manteve ainda, como uma
de suas importantes facetas, um forte controle do jornalismo político (impresso ou
televisivo), seja por meio da censura, seja através de outros procedimentos que não
estão propriamente relacionados com o que se entende tradicionalmente por esse
termo.
572
Ademais, como já dissemos, em certos casos, a censura de costumes foi
utilizada para a feitura de interdições de natureza política, extrapolando o âmbito de
atuação legal da Divisão de Censura de Diversões Públicas.
Por outro lado, há que se fazer aqui uma distinção entre certo tipo de
correspondências encaminhadas à censura, que mobilizavam muitas pessoas e foram
redigidas em nome de entidades ou grupos organizados (como os abaixo-assinados
oriundos de organizações católicas analisados no capítulo seguinte), dessas
manifestações individuais, provavelmente escritas de modo menos elaborado e mais
“sincero” por parte de pessoas comuns, que se sentiam afetadas pela veiculação de uma
cena mais “sensual” num determinado meio de comunicação. Movidos geralmente por
situações vivenciadas no âmbito familiar, dificilmente poderíamos identificar todas
essas pessoas apenas como colaboracionistas da ditadura ou algo semelhante, ainda que
uma parcela delas enfatizasse sua admiração pelo regime ou por esta ou aquela
autoridade governamental. Nesse caso, há que se considerar, também, o possível
“caráter retórico” de muitos dos adjetivos dispensados a essas personagens, já que as
cartas encaminhadas à censura compunham-se, em sua quase totalidade, de
manifestações que solicitavam algo (a defesa da moralidade) ao poder público.
572
A retirada das verbas oficiais empregadas na feitura de propaganda, a instauração de inquéritos para
apurar irregularidades inexistentes como forma de pressão política e a criação de dificuldades no acesso a
empréstimos de bancos governamentais são alguns exemplos nesse sentido.
216
A demanda ou o apoio à proibição de publicações não se restringia às revistas
eróticas e sua exposição em jornaleiros, pois, para várias dessas pessoas, certos
escritores brasileiros também não passavam de meros exploradores da pornografia com
objetivos comerciais. Numa carta enviada diretamente ao ministro Falcão, o presidente
do Hospital de Caridade São Roque destacava:
Lemos no Correio do Povo a censura que V. Exa. aplicou ao
livro O Eterno Sexo, de João Francisco de Lima. Perdoai-nos a
ousadia de vir a V. Exa. entabular algumas palavras, mas não
podemos deixar de louvar vossa atitude, neste conturbado
assunto cujas arestas por demais afiadas já ultrapassam os
lindos aceitáveis pelo bom senso, e cuja resultante vetorial
exige amiúde a interferência enérgica dos nossos
mandatários.
573
Ecoando uma percepção que era comum a muitos desses missivistas, a carta em
questão deixava transparecer uma visão bastante negativa não somente de certos
escritores brasileiros (tidos como “pornô-escritores” que possuíam uma “visão míope” e
deveriam ser educados na “senda sinuosa da arte de escrever”), mas também do “povo”,
algo presente em grande parte dessas correspondências. Concebendo a população como
ingênua e despreparada para lidar com esse tipo de literatura, o remetente deixava
entrever aquilo que vimos ressaltando quanto ao sentimento da necessidade de uma
atitude tutelar por parte das autoridades. Assim, autores como João de Lima, Adelaide
Carraro, Cassandra Rios, Brigitte Bijou e outros “devem sofrer vigilância adequada para
que não tomem proveito da inocência do povo através de seus escritos prejudiciais,
principalmente à nossa juventude”. Tido como o principal alvo desta “infecção de nosso
arsenal bibliográfico”, assim a “massa popular” era representada na correspondência:
E o pior é que suas obras encontram um berço fértil no seio da
massa popular em busca de sensações extravagantes e que não
tem condições de avaliar a periculosidade que lhe intoxica a
mente e lhe tolda o espírito, e nem de conjeturar sobre os
interesses mesquinhos que se acobertam na licenciosidade
putrefata das pessoas (autores) que não vão além de exalar o
hálito das suas sensualidades doentias, molestas e vexaminosas
(...) Não confundamos pobres de espírito (o povo que se deleita
com esses mananciais pornográficos que jorram todas as suas
impropriedades em terrenos despreparados), com podres de
espírito (responsáveis pelos sensacionalismos descabidos e
depravados das livrarias com acesso ao público que minam a
573
Carta ao ministro da Justiça, Armando Falcão, encaminhada à DCDP, 25 jun.1976, Caixa 2.
217
boa conduta, distorcem os bons costumes e são as sementes de
uma desmoralização desenfreada de algo muito moral, divino e
humano a um só tempo).
Não obstante o caráter momentoso que torna o trecho da carta transcrita bastante
peculiar, o importante é ressaltar o quanto, em meio a essas correspondências, era
comum percepções como esta, que deixavam entrever uma visão bastante negativa da
população. Numa outra missiva, dessa vez enviada ao Juiz de Menores do Estado do
Rio de janeiro e somente depois repassada para a DCDP, também fica evidente o quanto
algumas dessas pessoas representavam a si próprias e às autoridades tidas por
responsáveis pela defesa da moralidade como mais suscetíveis do que a maioria da
população para lidar com a pornografia, pois, se eles possuíam um “senso crítico”
apurado para não serem seduzidos, outros raramente o teriam:
Se o Sr., ao ver esta foto, como muitas outras, não tem
segundas idéias, é porque já é um homem realizado, educado,
instruído para a não maldade, mas os leitores desta revista, ou
simplesmente aqueles que, passando pelas bancas de jornal, a
vêem, não a compram somente com a intenção de aprender
mais, e sim porque são excitados.
574
O remetente, que se identificava apenas como “um defensor da moral, dos
costumes e da religião”, reclamava de algumas fotografias publicadas pela revista Pais e
Filhos que estariam expostas em bancas de jornal da Avenida Rio Branco, dizendo ter a
“certeza de alguma providência, pois não moramos na Suécia, e sim no Brasil”.
De fato, para alguns missivistas, não eram somente as revistas que estariam
infectadas por essa “desbragada e despudorada onda de pornografia”,
575
pois a literatura
brasileira também sofria dos mesmos males, inclusive no que concerne aos livros
utilizados como leitura escolar. Assim uma “mãe de família” que, “como tal, queria
defende-la”, se remetia ao ministro Falcão:
E nossos Colégios, Sr. Ministro? Com o pretexto de dar
literatura, obrigam nossos filhos a ler Dona Flor e Seus Dois
Maridos, Menino de Engenho etc., etc. (...) Sr. Ministro, será
que a nossa literatura brasileira não possui livros sem
pornografia para dar aos nossos adolescentes? Será que não
574
Carta ao Juiz de Menores do Estado do Rio de Janeiro, encaminhada à DCDP, 14 mar. 1975, Caixa 2.
575
Requerimento do vereador, Vilberto Adolfo Cattani, aprovado pela Câmara Municipal de São Carlos,
encaminhado à DCDP, 24 mar. 1980, Caixa 2.
218
temos livros sem cenas de alcova descritas com pormenores? O
que lucram, o que aprendem de bom nossos filhos lendo tais
livros? E dizer que até nossos colégios católicos adotam os
mesmos livros? Para se passar no vestibular é preciso saber
pornografia?
576
É provável que muitas dessas pessoas não tenham realmente lido alguns dos
livros que pediam que fossem proibidos, até porque, para algumas delas, tal atividade,
por si só, deveria gerar constrangimento. E, não obstante a grande maioria das cartas
enviadas à DCDP se referissem a questões de natureza moral, algumas também
identificavam um objetivo político por trás desse tipo de literatura, mobilizando um
ethos discursivo bastante parecido com o daqueles setores que analisaremos no capítulo
seguinte. Em outras palavras, não era somente a comunidade de informações e alguns
setores católicos e militares mais radicais que identificavam, em quaisquer obras do
período, uma insidiosa e subliminar propaganda comunista. Escrevendo diretamente ao
ministro Falcão, em 1976, um missivista de Goiânia denunciava alguns dos clássicos
literários daquela conjuntura a partir de uma argumentação não muito distinta:
Tenho acompanhado pelos jornais a patriótica ação
moralizadora de V. Exa., expurgando da nossa literatura os
frutos podres que, às vezes, a frondosa árvore produz. Não li e
jamais leria livros como Zero, Feliz ano novo e outros que tais.
Aliás, é [o] bastante um superficial estudo de fisionomia para
se ver que um escritor como o tal Ignácio Loyola não passa de
um lombrosiano perigoso. E ainda usando o nome de um santo!
Excelência, até isso deveria ser proibido! O nome de um santo
doutor da Igreja!
577
O missivista denunciava um livro que, editado naquela capital, estaria sendo
adotado “até no Instituto de Educação de Goiânia e em outros colégios estaduais”.
Tratava-se de O Planeta do Silêncio, de Antole Ramos, o qual seria o dono da Editora
Barão de Itararé, pela qual o livro estava sendo produzido. Segundo o remetente, o autor
do livro não passava de um “falso barão”, sendo, na verdade, “um perigoso comunista
gaúcho chamado Apparício Torelli”. Assim, “aparentemente uma história sobre discos
voadores”, o livro
nada mais é que pregação subversiva, onde o autor procura
576
Carta ao ministro da Justiça, Armando Falcão, encaminhada à DCDP, 12 jan. 1977, Caixa 2.
577
Carta ao ministro da Justiça, Armando Falcão, encaminhada à DCDP, 30 dez. 1976, Caixa 2.
219
ridicularizar os generais brasileiros, formar uma péssima
imagem de nossa Polícia Federal e, ainda, fazer proselitismo
em favor de um suposto planeta onde reina uma liberdade
caricata e dirigida por cérebros poderosos. Não é difícil a
alguém de mediana inteligência descobrir que esse planeta do
silêncio não é outro lugar que a União Soviética, onde o
silêncio realmente existe, mas como algo imposto a ferro e
fogo pela NKVD (...) Um livro perigoso, Excelência, que
deveria também figurar no índex desse expurgo moralizador e
cívico com que V. Exa. vem limpando o nosso cenário
literário. Um livro que não pode cair nas mãos inocentes de
crianças dos colégios estaduais e municipais, sem que se
cometa, com isso, um terrível crime de lesa-pátria.
Portanto, não eram somente as revistas eróticas que atraíam a ira desses setores
moralmente mais conservadores da sociedade. Autores clássicos da literatura brasileira,
como Jorge Amado, também poderiam ser vistos como meros propagadores da
pornografia com objetivos puramente lucrativos. Segundo um missivista que escrevia
diretamente ao presidente Geisel,
o indecente, imoral do Sr. Jorge Amado, precisa acabar com
essa coisa de andar escrevendo imoralidade. Um escritor que se
preza, decente, culto, não anda escrevendo estas porcarias (...)
Aproveitando da ignorância, da incultura, da falta de boa
formação espiritual das pessoas, para ganhar dinheiro. Quem
escreve assim como ele, sujeiras, em vez de cooperar para a
melhoria da moral das pessoas, da sociedade, estraga tudo,
ensinando o povo a ser imoral, ficar com a boca suja, a falar
palavrões. Por causa dele e outros sujos mais, é que as moças,
os moços – muitos deles nem sabem o que estão soltando pela
boca - em qualquer coisa que falam, soltam “porra”, e outras
obscenidades mais.
A carta também demonstrava uma visão bastante negativa dos intelectuais, algo
igualmente recorrente nos discursos das autoridades responsáveis pela censura, que
sempre mencionavam as dificuldades que tinham para aumentar o rigor censório devido
às críticas provindas desse segmento da sociedade. Note-se aqui que, ao destacarmos
esses setores que demandavam mais rigor censório, não pretendemos, de modo algum,
desconsiderar a importância daqueles outros que se mobilizaram criticamente em
relação à atuação da censura nesse período, sobretudo no que concerne à atividade
intensa de alguns segmentos artísticos e intelectuais. Justamente por seu relevante papel,
denunciando as práticas arbitrárias da instituição encarregada da censura, por vezes,
através de manifestações e abaixo-assinados bastante representativos da repulsa que
220
muitas pessoas tinham àquele órgão público, eles eram, geralmente, injuriados por parte
desses segmentos que apoiavam ou eram responsáveis pela censura. Foram várias as
vezes que diretores do serviço censório e outras autoridades a ele correlacionadas
expressaram sua visão resignada em relação à intelligentsia nacional, tida como
benevolente com aqueles que exploravam a imoralidade ou, mesmo, usurpadora da
pornografia com finalidades meramente comerciais ou subversivas. A carta desse
missivista, portanto, não se diferenciava muito, nem da visão de muitas dessas pessoas
que pediam mais censura, nem da concepção de algumas autoridades por ela
responsáveis, a não ser pelo seu tom grandiloqüente:
Escolas da imoralidade, de tudo que não presta. Assim sendo, é
preciso a Sensura dá [sic] duro em cima dessa gente. Não
deixar passar nada que for imoral. Note V. Exa., essa questão
dos “intelectuais” – não sei se são – acharem ruim essas coisas
de sensura [sic], reclamarem, é para ficarem soltos, à vontade,
para escreverem imoralidade. Estão vendo o tal Jorge Amado
ganhar dinheiro com suas imoralidades, [então] procuram, por
todos os meios, ganhar também. Eu estou vendo tudo. O
ministro está certo. Duro em cima deles! E apertar mais [sic].
Que escrevam obras limpas, de valor. Imoralidade não é
literatura, como eu escrevi ao Sr. Jorge Amado. Não deixo por
menos. É para ele saber que nem todo mundo é besta, estúpido!
Tarado, imoral!
578
Por outro lado, é interessante observar que, não obstante muitas dessas cartas
fossem perpassadas por avaliações bastante simplórias sobre importantes autores e obras
literárias produzidas naquela conjuntura, existem fortes indícios de que muitas das
denúncias presentes nelas produziram efeitos práticos por parte da DCDP. Tal aspecto
pode ser percebido, por exemplo, no episódio de um remetente que escreveu ao ministro
Falcão reclamando da revista Manchete. Denunciando um determinado número da
publicação, que continha uma entrevista com a autora de “um livro sobre a nova
mulher” e alguns depoimentos de artistas sobre sua primeira relação sexual, o remetente
pedia providências quanto aos “jornalistas dissolutos” responsáveis por esse tipo de
matérias, as quais somente “estimulam os ‘contestadores’ que atualmente pululam nas
escolas primárias e secundárias à prática de atos que a maioria de nossa sociedade
condena por contrários aos nossos princípios”.
579
Pouco tempo depois, a DCDP o
578
Carta ao presidente da República, Ernesto Geisel, encaminhada à DCDP, mar. 1977, Caixa 2.
579
Carta ao ministro da Justiça, Armando Falcão, encaminhada à DCDP, 8 jun.1978, Caixa 2.
221
respondia ressaltando a “pertinência do assunto” e mencionando que, “em consideração
aos fatos apontados em seu expediente, remetemos [uma] carta à Editora Bloch
advertindo-a sobre a publicação de matérias tão contundentes e que, na reincidência,
estará sujeita a sofrer as penalidades previstas em lei”.
580
De modo semelhante, no ano
anterior, a revista Peteca tinha passado a integrar a relação dos periódicos submetidos à
censura prévia justamente devido à denúncia feita por um padre de Belo Horizonte que,
além de reclamar da exposição de revistas eróticas em bancas de jornal, enviou um
exemplar da referida publicação à DCDP.
581
Em resposta ao missivista, o diretor da
Divisão de Censura agradeceu ao remetente, reclamou das prováveis críticas que
adviriam dessa atitude por parte da “elite intelectualista” [sic] e destacou que a mesma
continha fotos e matérias “altamente perniciosas”.
582
A análise das cartas que demandavam mais rigor censório enseja, ainda, outras
questões importantes, apesar de difíceis de precisar: dificilmente poderíamos identificar
os missivistas que às redigiam com segmentos sociais muito específicos ou facilmente
delineáveis. Atitudes como muitas daquelas que citamos ao longo desse texto poderiam
advir de indivíduos provenientes de uma grande e complexa gama de estratos sociais,
não obstante, por vezes, seja possível perceber a predominância de certos traços
discursivos característicos de segmentos como as camadas médias urbanas. De fato, a
grande maioria dessas correspondências provinha de importantes capitais brasileiras,
sobretudo do Rio de janeiro, de São Paulo, de Brasília e de Belo Horizonte, apesar de
também terem chagado à censura federal cartas provenientes de regiões menos
desenvolvidas do país. Certamente, muitas das cartas encaminhadas à DCDP foram
antes enviadas aos serviços de censura estaduais (os SCDP) e, por isso, as cidades que
mantinham sua sede regional ou onde tais instituições eram mais conhecidas tenderam a
receber uma quantidade maior de missivas.
Por outro lado, conforme pode ser contatado se considerarmos outros
importantes momentos históricos do país, como o episódio das chamadas “Marchas da
Família com Deus pela Liberdade”, a classe média desses centros urbanos tornou-se, a
580
Ofício nº 013/78, da DCDP a Álvaro de Freitas Guimarães, 21 nov. 1978, Caixa 2. Embora seja difícil
confirmarmos se tal advertência foi de fato enviada à referida revista, é importante ressaltar que esse foi
um tipo de procedimento fartamente utilizado pelo ministro Armando Falcão para controlar o conteúdo
das matérias veiculadas nesse periódico. São vários os documentos que registram, inclusive, a ocorrência
de admoestações feitas, pessoalmente, pelo ministro ao dono da revista.
581
Carta ao ministro da Justiça, encaminhada à DCDP, 16 mar. 1977, Caixa 2.
582
Carta do diretor da DCDP, Rogério Nunes, ao padre Paulo Lopes de Faria, 18 abr. 1977, Caixa 2.
222
partir de um momento difícil de precisar dentro da trajetória republicana brasileira, a
grande guardiã de certos valores tradicionais da chamada “família cristã ocidental”
(possuindo, inclusive, grande ímpeto e poder de mobilização quando instada a defende-
los). Representando a si próprias como uma espécie de reserva moral da sociedade,
muitas dessas pessoas, provavelmente, decidiam-se pela denúncia de certas publicações
impulsionadas, menos pela admiração ao regime ditatorial como um todo, do que por
questões mais imediatas de natureza moral, sobretudo no que concerne a uma moral
religiosa católica. Isso, para não mencionarmos novamente a forte tradição paternalista
da cultura política brasileira, que tinha respaldo em uma parcela considerável da
população no que diz respeito ao plano da moralidade pública e foi ainda mais
estimulada pela sucessão de personagens conservadoras que passaram pelo Ministério
da Justiça durante o período de exceção. Por tudo isso, podemos concluir que seria uma
atitude bastante reducionista tomar todas essas pessoas somente como colaboracionistas
da ditadura militar.
223
Parte IV
Moral e Política
224
Capítulo 7
Pátria, família, religião: quando moral e política se misturam
É dever do Estado dar à família apoio e proteção para
que nela o homem recolha as sementes de sua realização
individual e os ideais de cumprir sua vocação como
povo. E entendendo na família o fio de que se tece a
sociedade, encontro, na família brasileira, a certeza de
estarmos construindo, no Brasil, uma sociedade livre e
generosa.
Emílio Garrastazu Médici
583
A preocupação do Governo consistiu em banir do
mercado as publicações obscenas (...) bem como proibir
terminantemente que os agentes do comunismo
internacional se servissem do rádio e da televisão para
exercer, através de programas insidiosos, influência
subliminar ao seio das famílias.
Alfredo Buzaid
584
No início da década de 1970, assim o então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid,
justificava a promulgação do decreto-lei que instituía a censura prévia de livros e
revistas tidos como atentatórios à moral e aos bons costumes. Segundo o discurso
mobilizado pelo ministro, a difusão da imoralidade nos meios de comunicação obedecia
a uma estratégia do movimento comunista internacional para dissolver os valores
tradicionais da sociedade brasileira. Agindo insidiosamente, por meios subliminares, os
agentes do comunismo internacional teriam plena concepção de que, somente por meio
da “fragilização” dos valores relacionados à família, poderiam tomar o poder. De fato,
por mais dissonante que essas palavras possam soar aos ouvidos daqueles que, como eu,
não viveram a intensidade daquele período, elas não eram objeto do discurso apenas do
ministro do governo Médici. Muito ao contrário, elas representavam uma concepção
difundida entre muitos setores naqueles tempos de obscurantismo, conforme
procuraremos demonstrar neste capítulo. A associação entre moral e política, entre
583
MÉDICI, Emílio Garrastazu. Tarefa de todos nós. Brasília, Departamento de Imprensa Nacional,
1971. p. 11.
584
BUZAID, Alfredo. Em defesa da moral e dos bons costumes. Brasília: Departamento de Imprensa
Nacional, 1970. p. 17.
225
pornografia e subversão, entre obscenidade e comunismo, era algo presente nas cabeças
de muitos, tenha sido ela utilizada apenas estrategicamente, como meio de propaganda
política contra os setores adversários, tenha sido ela empregada por temores reais de
uma possível ação planejada em escala internacional dos “inimigos da pátria e da
religião”.
A conjuntura de radicalização política do início dos anos 1960, aliás, já
demonstrava a importância que essas associações entre moral e política teriam após a
implantação do regime ditatorial, haja vista toda a simbologia e os discursos
mobilizados nas famosas “Marchas da Família com Deus pela Liberdade”.
585
Promovidas, sobretudo por entidades católicas, organizações femininas e grupos
empresariais relacionados ao complexo IPES/IBAD,
586
essas campanhas veicularam
imagens e idéias-força com um momentoso caráter moralista e anticomunista, tudo isso
em nome de uma concepção bastante peculiar de democracia. Por outro lado, os
agrupamentos militares, ansiosos pela tomada do poder, também se utilizaram de
tópicas recorrentes do discurso moralista, preocupando-se em destacar a necessidade de
uma intervenção saneadora das instituições, de modo a acabar com a venalidade no
tratamento das finanças públicas, por exemplo. Assim, para esses setores, somente uma
ação global de “reerguimento moral” poderia salvar o Brasil da “anarquia”, utilizada
esta palavra com sentidos bastante negativos: sinônimo de corrupção, de baderna, de
imoralidade, de pornografia etc.
587
Tomado o poder pelos militares, iniciada a escalada de medidas punitivas
visando silenciar as oposições, assegurada uma austera política econômica para acabar
com a “hiperinflação” do governo anterior, havia ainda muito por fazer para o
“reerguimento moral da pátria”. Havia a suposta ameaça do erotismo, da pornografia
que tomava conta dos meios de comunicação, do chamado “desfibramento moral da
juventude” por meio da propagação de “doutrinas exóticas”. Enfim, não era somente
585
Sobre as marchas ver PRESOT, Aline. As marchas da Família com Deus pela Liberdade. Dissertação
de Mestrado. PPGHIS/UFRJ, 2004. SIMÕES, Solange de Deus. Deus, Pátria e família: as mulheres no
golpe de 64. Belo Horizonte: UFMG, 1983. CODATO, Adriano Nervo; OLIVEIRA, Marcus Roberto de.
A marcha, o terço e o livro: catolicismo conservador e ação política na conjuntura do golpe de 1964.
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 24, nº 47, p. 271-302, 2004.
586
Sobre o complexo IPES/IBAD, ver DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação
política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 1981.
587
Para uma noção das representações dos militares sobre essas questões, que supostamente os levaram
ao golpe de 1964, ver os depoimentos constantes do livro D'ARAUJO, Maria Celina, SOARES, Gláucio
Ary Dillon, CASTRO, Celso (Int. e Org.). Visões do golpe: a memória militar sobre 1964. Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 1994.
226
através da repressão política que se poderia salvaguardar a família cristã ocidental; eram
necessárias ações mais eficazes no plano dos costumes; era preciso congelar o processo
de aceleramento das mudanças comportamentais que tomava corpo a partir de fins dos
anos 1960. Para tanto, não bastava também a existência de um serviço censório
“capenga”, sendo necessária uma instituição mais eficaz no combate à imoralidade
presente nos meios de comunicação, que pudesse perceber os perigos políticos que se
encobriam por trás das falsas benesses do mundo moderno.
Esse capítulo trata dessas questões a partir das cartas enviadas à Divisão de
Censura de Diversões Públicas ou a autoridades responsáveis pela censura durante o
regime militar. Como já analisamos as correspondências que tratavam de questões
morais no capítulo anterior, nos voltaremos aqui para alguns setores que demandavam
um enrijecimento da censura nos anos 1970 a partir da feitura de uma associação entre a
expressiva liberalização sexual que ganhava espaço nos meios de comunicação e uma
suposta ação política de segmentos contrários ao regime político. Nos referimos a um
grande número de organizações religiosas, a certos grupos de militares e, até mesmo, a
algumas pessoas comuns que se manifestaram por correspondências ao poder público.
Na maioria dos casos, esses segmentos mostravam-se sintonizados com um aspecto
importante do amplo repertório de representações e imagens que faziam parte do que se
pode chamar de “imaginário anticomunista”: a associação entre comunismo e
imoralidade.
588
Englobando elementos provenientes de matrizes de pensamento diversas
(catolicismo, liberalismo, nacionalismo etc.), o “imaginário anticomunista” refere-se a
um fenômeno bastante complexo e de mais longa duração, não sendo este o nosso
objeto de estudo. Por meio dele, foram criadas inúmeras representações sobre os
comunistas: “diabólicos”, “depravados”, “vermes”, “libertinos”, “antipatriotas” etc.
Portanto, não obstante guarde “nexos relacionais” com essa problemática, esse capítulo
se voltará apenas para uma das dimensões do fenômeno, considerada importante para a
compreensão da censura dos anos 1970 (a associação entre comunismo e imoralidade).
Inseridos no rol dos setores que mobilizavam representações anticomunistas,
588
Sobre a temática do imaginário anticomunista, consultar os trabalhos citados na nota 659. Para uma
discussão sobre os conceitos “imaginário social” e “imaginário político”, ver BACZKO, Bronislaw.
Imaginação social. In: ROMANO, Ruggiero (dir.). Enciclopédia Einaudi, v. 5, Antrophos – Homem.
Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São
Paulo: Cia das Letras, 1987.
227
refletiremos também sobre um agrupamento pródigo na conformação desse tipo de
discurso: a chamada “comunidade de informações”. Embora não estivesse enquadrada
entre os setores que precisavam enviar cartas pedindo uma ação mais enérgica à
censura, ela não somente articulava um discurso com largas semelhanças com aqueles
que discutiremos nos outros itens desse capítulo, como utilizava uma estratégia que
parece bastante semelhante em seus métodos: a de enviar informações à Divisão de
Censura de Diversões Públicas e a outros órgãos do governo demandando uma
politização da censura de diversões públicas.
A historiografia da censura praticada no regime militar, de modo geral, não
considerou as concepções dos grupos que demandavam a atividade censória.
589
Se essa
problemática, à primeira vista, pode parecer irrelevante, já que não eram esses setores
que formulavam as diretrizes da censura, torna-se fundamental perceber que eles
estavam envolvidos no mesmo ambiente geral de fortes mudanças no âmbito dos
costumes e partilhavam uma série de convicções que podem nos ajudar a não cair numa
perspectiva anacrônica em relação ao fenômeno estudado. É preciso considerar os
valores e as representações dos segmentos que procuravam legitimar a prática censória,
pois esses setores mobilizavam determinadas idéias-força que ganhavam importância no
período, como a associação entre comunismo e imoralidade. Por outro lado, podemos
dizer que o campo dos valores e da moral tem sido bastante negligenciado pela literatura
produzida sobre a ditadura militar. Há uma verdadeira escassez de trabalhos
preocupados com o plano do simbólico, da legitimação por meio da propagação de
imagens e representações, enfim, de tudo aquilo que foge ao âmbito apenas dos atos
racionalmente planejados pelos atores sociais. A retórica moralista e a mobilização
simbólica que ganharam força nos momentos que antecederam à queda de João Goulart
parecem exemplos claros da importância que esses planos assumiram naquela
conjuntura.
590
Os grupos que pediam mais censura durante o período ditatorial provinham de
589
Uma exceção nesse sentido é FICO, Carlos. “Prezada Censura”: cartas ao regime militar. Topoi:
Revista de História. Rio de Janeiro: Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ / 7 Letras, n.
5, p. 251-283, set. 2002.
590
Cada vez mais, por outro lado, há que se perceber que, assim como o campo da repressão política, o
âmbito dos valores morais é fundamental para a compreensão do golpe, da consolidação e da manutenção
da ditadura, não obstante a visível falta de legitimidade do regime implantado pelos militares. Nenhum
regime, por mais arbitrário que seja, pode abdicar da manipulação de bens simbólicos e assegurar-se
somente por meio da violência física. Ver BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico.
2 ed. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1998.
228
segmentos específicos da sociedade, não sendo nossa intenção generalizar o fenômeno.
Pelo contrário, não somente havia muitas pessoas e, mesmo, grupos organizados que
combatiam a censura, como esta história é mais conhecida. Além disso, o maior apoio
que a Divisão de Censura de Diversões Públicas recebia de determinados setores sociais
se relaciona com a especificidade da censura que ela praticava, voltada fortemente para
as questões morais, conforme analisamos em capítulos anteriores. Por outro lado, não é
somente o anticomunismo que explica o fenômeno da demanda por mais censura, pois a
maioria das pessoas que escrevia à DCDP o fazia impulsionada por questões de
natureza comportamental. Sentindo-se ofendidos pela divulgação do que consideravam
imoral nos meios de comunicação, grande parte dos missivistas não estava preocupada
ou tinha conhecimento de uma suposta ameaça do movimento comunista. Assim, em
determinados momentos do texto, teremos de nos remeter a essas problemáticas mais
estritamente relacionadas ao plano dos costumes, sobretudo quando tratarmos da
demanda por censura de certas entidades religiosas (embora esse tema tenha sido
analisado também no capítulo anterior).
O discurso anticomunista dos setores militares e religiosos aqui estudados pode
ser interpretado como encerrando uma visão global da sociedade, projetada a partir de
valores fundamentais como certas noções de “pátria”, “família” e “religião” (ou, ainda,
“nação”, “democracia” etc.). Não obstante as ênfases distintas dadas a uma ou outra
noção, tais discursos giravam de modo geral em torno da concepção de que a defesa da
família era a base para uma conformação saudável da pátria. Utilizando tais palavras
sempre com iniciais maiúsculas, tais setores compartilhavam seu temor às mudanças
comportamentais da “modernidade” e sua aversão ao comunismo, idealizando a
existência de uma sociedade ordenada e sem conflitos (sejam eles de gênero, políticos,
religiosos etc.). Tal concepção, por vezes, era perpassada pela crença no mito da
“pureza das origens”, ou seja, na idéia de que a conspurcação dos costumes vivida
contemporaneamente era parte de um processo de degenerescência sofrido por uma
sociedade original, na qual os laços familiais eram fortes e os valores morais mais
sólidos. Essa “nostalgia dos bons tempos”, certamente, não é algo típico somente dessa
conjuntura, sendo sua especificidade muito mais relacionada à atribuição de tal
degenerescência ao movimento comunista ou subversivo. Nessa sociedade ideal, a
mulher ocupava um lugar determinado (de mãe e esposa passiva), o homossexualismo
229
não existia (ou não era tolerado), o sexo não era vulgarmente difundido... Finalmente,
não haveria a ameaça de um articulado movimento comunista de escala internacional.
7.1. A defesa da família: as entidades religiosas
É notória a forte presença do catolicismo na sociedade brasileira desde os
tempos coloniais. Não somente as atitudes e decisões da Igreja como instituição quase
sempre tiveram forte repercussão e capacidade de influência nas decisões políticas,
como também o peso de uma tradição que atravessou séculos deixou marcas profundas
nos valores e crenças da população de modo geral (mesmo naqueles que se disseram ou
dizem não católicos). Assim, quando, ao longo de determinadas conjunturas do século
XX, a alta hierarquia da Igreja adotou posturas fortemente contrárias ao comunismo, ela
ajudou sobremaneira a difusão do que se tem chamado de imaginário anticomunista.
Aliás, ainda na segunda metade do século XIX, algumas Cartas Encíclicas já
mencionavam o comunismo como uma ameaça à religião, relacionando-o aos males dos
processos de secularização e laicização modernos.
591
Dentre os vários pontífices
responsáveis pela feitura de encíclicas com pregação anticomunista a partir de então,
Leão XIII e Pio XI são, certamente, figuras de destaque pelo teor dos documentos
divulgados. Assim, não obstante tenham sido redigidas diversas outras encíclicas que
tratam do tema, a Encíclica Rerum Novarum, de 1891, e a Encíclica Divinis
Redemptoris, de 1937, podem ser tomadas como exemplos bastante elucidativos de uma
postura católica mais conservadora diante do fenômeno comunista.
Para o caso brasileiro, outra fonte documental importante para reflexão sobre as
concepções anticomunistas da Igreja são algumas Cartas Pastorais redigidas ao longo do
século XX, pois estes documentos demonstram como os bispos locais procuravam
traduzir para o contexto nacional as orientações contidas nos pronunciamentos
papais.
592
A preocupação da Igreja brasileira com o “credo vermelho” começou a tomar
591
As Cartas Encíclicas são documentos papais dirigidos aos bispos e cardeais e, portanto, uma das
principais fontes de orientação doutrinária da Igreja Católica.
592
Um levantamento de algumas dessas Cartas Pastorais pode ser encontrado em MOTTA, Rodrigo Patto
Sá. Em guarda contra o “perigo vermelho”: o anticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo:
Perspectiva/FAPESP, 2002. p. 24-25.
230
corpo a partir da implantação do regime republicano, quando as doutrinas anarquista,
socialista e comunista foram ganhando, pouco a pouco, maior projeção entre os
segmentos operários.
593
Essa preocupação aumentou ainda mais em determinados
períodos do século XX, como nos anos 1940, com o crescimento eleitoral do PCB, e na
década de 1960, quando começaram a ganhar espaço setores católicos que, ligados ao
trabalho do apostolado leigo, se identificavam com ideais mais progressistas.
594
De fato, tendo os posicionamentos da alta hierarquia da Igreja, inclusive no
Brasil, já sido objeto do estudo de muitos analistas, não se faz necessário nos
aprofundarmos nessa problemática. A questão foi tomada apenas para
contextualizarmos a longa duração do anticomunismo católico, pois nossa preocupação
aqui diz respeito à atuação de certos grupos mais restritos dentro do catolicismo. Mais
do que isso, nossas atenções voltam-se apenas para um dos traços do imaginário
anticomunista mobilizado por esses setores religiosos que pode nos auxiliar na
compreensão da censura praticada nos anos 1970, qual seja, as representações que
relacionavam imoralidade e subversão política. Impelidos pelo forte processo de
mudanças nos costumes de fins dos anos 1960 e pela crença no aumento da “ameaça
comunista”, certas entidades de caráter religioso passavam a considerar tais aspectos
numa relação de causa e efeito que possuía uma enorme força simbólica.
Diferentemente do discurso produzido pelos grupos militares que analisaremos em
seguida, sobressaí, nesse caso, uma espécie de politização de tópicas nitidamente
moralistas. Claro está, por outro lado, que muitas dessas entidades encampavam tais
teses influenciadas pelas concepções e diretrizes emanadas de Roma e traduzidas pelos
bispos locais.
Nesse período, portanto, grupos como alguns daqueles que participaram da
campanha de desestabilização do governo Goulart, dentre muitos outros, viam a Divisão
de Censura como o órgão dentro do governo militar que devia combater a difusão de
ambos os aspectos (a imoralidade e o comunismo) nos meios de comunicação. Assim,
era preciso alertar a DCDP para o perigo da propagação dos valores relacionados à
“liberalização sexual”, à “pornografia” ou outras impropriedades do “mundo moderno”
nesses meios, pois eles teriam, em última instância, finalidades políticas muito
593
RODEGHERO, Carla Simone. O diabo é vermelho: imaginário anticomunista e Igreja Católica no
Rio Grande do Sul (1945-1964). 2 ed. Passo Fundo: UPF, 2003. p. 56.
594
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op. cit. p. 24.
231
específicas. Nesse sentido, as antigas preocupações católicas com o campo da
moralidade poderiam ganhar mais consistência discursiva na medida em que eram
associadas a concepções de natureza nitidamente políticas – ou, numa expressão
bastante utilizada naqueles tempos, tinham importância para a “defesa da segurança
nacional”.
E, de fato, embora muitas das entidades que participaram das “Marchas da
Família com Deus pela Liberdade” tenham tido um caráter efêmero, outras continuaram
atuando depois de implantado o regime militar e tiveram um papel ativo na demanda
por uma radicalização da censura relacionada ao campo da “moral e dos bons
costumes”. Fazendo abaixo-assinados, mobilizando os fiéis e procurando se associar
para promover campanhas conjuntas contra a pornografia nos meios de comunicação,
entidades como o Movimento por um Mundo Cristão (MMC), a União Cívica Feminina
(UCF) e o Movimento de Arregimentação Feminina (MAF) continuaram atuando em
favor dos mesmos princípios que propagandearam pouco antes da queda de João
Goulart.
Vale ressaltar, entretanto, que o expediente de fazer pressões por meio de
matérias na imprensa, da organização de protestos ou da feitura de abaixo-assinados
para impedir a divulgação de materiais considerados impróprios nos meios de
comunicação não foi algo típico dos setores católicos brasileiros dos anos 1970. Nas
décadas de 1930 e 1940, por exemplo, grupos como a Ação Católica já atuavam nesse
sentido, assim como, nos anos 1950, a Confederação das Famílias Cristãs teve um papel
ativo na demanda pela proibição de diversos filmes tidos por imorais ou contrários aos
costumes cristãos do povo brasileiro.
595
Aliás, ainda que não seja preciso relembrar da
ação perpetrada ao longo de vários séculos pela Igreja Católica com o fito de não
permitir a divulgação do que contrariava os valores morais tradicionais da família cristã,
basta destacar que, durante o século XX, a utilização de justificativas com base na moral
religiosa para a interdição de obras de arte foi uma constante em boa parte do mundo
ocidental.
Em países como os Estados Unidos, por exemplo, data dos anos 1930 o
surgimento de entidades de cunho religioso que se lançavam na tentativa de impedir a
veiculação de certos filmes tidos por atentatórios à moral cristã, como a Legion of
595
SIMÕES, Inimá. Roteiro da intolerância: a censura cinematográfica no Brasil. São Paulo: Editora do
SENAC, 1999. p. 34 e p. 50.
232
Decency e congêneres. No mesmo período, foi adotado o famoso Código Hays naquele
país: com a finalidade de criar um padrão moral considerado sadio dentro da estrutura
de realização dos filmes norte-americanos, o Código de Produção elaborado pelo
presbiteriano Will Hays teve um papel importante na tentativa de moralizar a produção
cinematográfica até por volta dos anos 1950, quando a preocupação com o comunismo
passou a sobrepujar as discussões sobre costumes.
596
Não cabendo aqui aprofundarmos
essa discussão, o importante é perceber a longa duração de fenômenos semelhantes ao
que estamos estudando.
O Movimento por um Mundo Cristão era um grupo religioso surgido em Belo
Horizonte, em 1956, que combatia o “modernismo” de modo geral, identificado tanto
nas idéias marxistas quanto no processo de mudanças no campo dos costumes. Foi a
partir do início dos anos 1960 que o anticomunismo tornou-se uma grande preocupação
para o grupo, chegando a ocupar o centro de suas atividades de propaganda.
597
No início
dos anos 1970, o MMC conseguiu articular-se a uma série de outras entidades, entre
elas a Associação das Mães Cristãs, a Federação dos Trabalhadores Cristãos de Minas
Gerais e o Círculo Operário de Belo Horizonte, para pedir ao coronel Armando Amaral,
delegado regional da Polícia Federal, a proibição da exibição do filme O padre que
queria casar-se na capital mineira.
598
Na carta enviada ao delegado, cuja cópia foi
remetida à DCDP, a entidade argumentava que o filme era “ofensivo aos nossos
costumes religiosos, morais e familiais” e ainda aproveitava o ensejo para citar trechos
de uma conferência por ela organizada em dezembro de 1969: “não conseguirá o poder
civil, ainda que em mãos honestas, governar um povo corrompido e ele será, se o
governo não secar as fontes que o corrompem”.
599
Entretanto, foi na carta enviada à DCDP, que reclamava não só do filme, mas de
programas de rádio, televisão e peças de teatro, que a entidade deixou transparecer de
modo mais nítido a associação que fazia entre imoralidade e subversão política.
Conjugando anticomunismo, moralismo e, mesmo, um certo patriotismo, o MMC
ressaltava: “a amoralidade favorece a subversão de toda ordem, inclusive a política,
596
Idem. p. 31-35.
597
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op. cit. p. 238.
598
Carta ao delegado regional do Departamento de Polícia Federal, encaminhada ao diretor-geral daquela
instituição, 28 out. 1971, Caixa 1.
599
Trecho da conferência “Contribuição à Pátria” transcrito no mesmo documento.
233
enfraquecendo a nação”.
600
Pouco tempo depois, o grupo reclamaria da novela O
Espigão que, segundo ele, ia em “oposição ao ideal patriótico de formar o caráter do
jovem brasileiro” para o “futuro de nosso país”.
601
Ao presidente do MMC de
Uberlândia, que produziu uma outra missiva (desta vez, enviada ao ministro das
Comunicações), preocupava também a proliferação de gírias nas estações de rádio e
emissoras de TV, além das novelas da Rede Globo que “incitam a nossa juventude para
a imoralidade e o crime”.
602
Seu consolo vinha de sua confiança nas autoridades que
governavam o país:
Sei que o governo patriótico do presidente Geisel deseja
também moralizar os programas das nossas emissoras de
televisão (...) Sr. Ministro, nós, os pais de família, confiamos
em V. Exa. na cruzada pela salvação de nossa juventude.
603
O MAF e a UCF também foram organizações que participaram das campanhas
contra Jango no início dos anos 1960 e, posteriormente, utilizaram o expediente de
enviar cartas e abaixo-assinados à censura pedindo mais rigor ao “serviço”. Entidade
cuja criação foi estimulada por uma série de conferências sobre o perigo da ameaça
comunista promovidas por Wladimir Lodygensky, ativista membro do Instituto de
Pesquisa e Estudos Sociais (IPES), a UCF foi criada em São Paulo, no início de 1962.
604
Ela inspirou, ainda, o surgimento de outros grupos similares como a famosa Campanha
da Mulher pela Democracia (CAMDE),
605
entidade feminina católica cujas atividades se
iniciaram, no Rio de janeiro, um mês após às suas. Esses grupos de mulheres, muitas
delas esposas de militares, que tiveram papel ativo nas mobilizações contra o
comunismo e o ateísmo através de atividades como a promoção de comícios e a
distribuição de panfletos, ficaram bastante marcados pelo conteúdo fortemente religioso
de seus discursos. Além dessas três entidades criadas em São Paulo e no Rio de Janeiro
(o MAF também era sediado em São Paulo), vários grupos igualmente encarregados da
600
Carta ao ministro da Justiça, encaminhada à DCDP, 29 out. 1971, Caixa 1.
601
Carta ao ministro das Comunicações, encaminhada à DCDP, 13 maio 1974, Caixa 1.
602
Carta ao ministro das Comunicações, encaminhada à DCDP, 20 maio 1974, Caixa 1.
603
Idem.
604
POWER, Margareth. The Transnational Impact of 1964 Coup in Brazil: Conservative Women in
Chile, 1964 to 1973. Paper apresentado no International Symposium The Cultures of Dictatorship:
Historical Reflections on the Brazilian Golpe of 1964. (University of Maryland, 14-16 de outubro de
2004).
605
Sobre a CAMDE ver PRESOT, Aline. Op. cit. SIMÕES, Solange de Deus. Op. cit.
234
doutrinação anticomunista surgiram em outras importantes cidades brasileiras no início
dos anos 1960. Entre eles destacam-se a Liga das Mulheres Democráticas, em Belo
Horizonte, a Cruzada Democrática Feminina, em Recife, e a Associação Democrática
Feminina, em Porto Alegre.
A importância de organizações femininas como essas, inclusive, chegou ao
ponto de ultrapassar as fronteiras nacionais, estimulando o fortalecimento de
movimentos congêneres em países vizinhos. Foi o caso do Chile, onde as articulações
dos grupos de mulheres brasileiras ressoou forte, algo demonstrativo do alto nível de
organização dessas entidades, que chegaram a enviar porta-vozes a países latino-
americanos e aos Estados Unidos para alertar as donas-de-casa dessas nações vizinhas
sobre o perigo que corriam diante da ameaça comunista.
606
Ainda assim, faltam estudos
sobre o papel que assumiram organizações como essas após o golpe de 1964, quando o
regime ditatorial instalado paulatinamente “arrefeceu os ânimos” de quaisquer “ameaças
aos valores cristãos ocidentais”.
Da UCF, encontramos algumas missivas enviadas à DCDP, duas delas fazendo
um “veemente protesto contra a programação de televisão, notadamente as novelas, que
não estão à altura da educação tradicional da família brasileira”.
607
Dentre elas, uma era
a cópia da carta original enviada à Rede Globo, emissora que, segundo a UCF, vinha
provocando tristeza e revolta pela pouca vigilância que dava às telenovelas de 18, 19 e
20 horas.
608
Além desse gênero de programas, “que certamente virão a causar males
irreparáveis aos nossos jovens ainda em fase de formação moral”, à UCF preocupava
também certos anúncios exibidos pela televisão como, por exemplo, o do Sabonete
Darling e o da Sempre Livre Johnson & Johnson.
609
O primeiro constrangia pela
aparição de uma mulher enrolada numa toalha, enquanto, no caso do segundo, a
preocupação dos missivistas pode parecer, aos olhos de hoje, bastante curiosa e
anacrônica:
Há necessidade de se tornar tão pública certas preocupações da
higiene feminina? Considerando que sendo a mulher o elo
principal na união da família, anúncios dessa espécie só tendem
a ridicularizá-la e torná-la alvo de comentários pouco
606
POWER, Margareth. Op. cit. p. 3.
607
Carta à DCDP, 19 maio 1976, Caixa 2.
608
Carta à DCDP, 26 set. 1978, Caixa 2.
609
Carta ao diretor da DCDP, 25 out. 1978, Caixa 2.
235
condizentes com sua posição de mãe (...) Chegou ao nosso
conhecimento que os anúncios da cueca Zorba foram
suspensos, portanto indagamos qual a razão dessa
discriminação?
610
Não obstante essas reclamações da UCF, como se pode notar, digam respeito
estritamente a aspectos relacionados às mudanças no plano dos costumes, existem
indícios de que a entidade não deixou de lado a bandeira do anticomunismo, associando
moral e política como o tinha feito nas campanhas contra o “comunismo e o ateísmo”
que promoveu ao lado de diversos outros grupos no início dos anos 1960. Na verdade,
as cartas que encontramos da entidade eram todas do final da década de 1970,
representativas de uma outra conjuntura, na qual o “fantasma do comunismo”
provavelmente já não assustava tanto. Talvez por isso mesmo tenhamos tido nas
mesmas poucas menções às conseqüências políticas do processo de liberalização dos
costumes.
Ainda assim, a associação entre moral e política se faz presente numa outra carta
da UCF protestando contra a “terrível problemática da liberação dos cartazes de
propaganda cinematográfica e de posters de promoção de revistas”.
611
Ao voltar-se para
essas questões dos cartazes de filmes pornográficos e das chamadas “pornochanchadas”,
que, aliás, eram reclamações contidas em grande parte das missivas que chegavam à
DCDP, a entidade colocava tal problema como diretamente relacionado à segurança
nacional. Assim, interpretando um discurso do Papa Paulo VI, o qual mencionava que
“do meio de nós mesmos, como já sucedia em tempos de São Paulo, surgirão homens a
ensinar coisas perversas para arrebatar discípulos atrás de si”, a UCF destacava:
Os homens que estão a ensinar coisas perversas são, em nosso
entender, todos aqueles que usam a inocência dos jovens e
crianças para promover a libertinagem com fins de destruir a
família (...) A Segurança Nacional, senhores censores, é o grau
relativo de garantia que, através das ações políticas,
econômicas e sociais é proporcionada ao povo a despeito de
antagonismos ou pressões existentes ou potenciais (...) A
agressão, no mundo de hoje, não é aquela feita unicamente nos
campos de batalha ou de concentração; ela começa pela
deturpação das mentes jovens, em qualquer parte da terra,
ameaçando não só a segurança e existência territoriais dos
povos, mas, principalmente, a integridade e sua forma ético-
610
Idem.
611
Carta aberta à Censura Federal, 1º ago. 1978, Caixa 2.
236
moral de viver.
612
Afora essas entidades que certamente participaram das campanhas contra João
Goulart no início dos anos 1960, várias outras de caráter religioso também se
mobilizaram para pedir mais censura à censura durante as duas décadas seguintes.
Grupos como a Congregação Mariana São Gonçalo, a Comunidade Católica de Jaú, o
Movimento Católico de Promoção Moral, a Ação Católica Diocese de São Carlos, a
Confederação Nacional das Congregações Marianas do Brasil, o Centro Bíblico
Católico, a Fraternidade Eclética Espiritualista Universal, a Convenção Batista
Brasileira, a Igreja Metodista Central em Jundiaí, a Comunidade Carismática do Paraná,
a Comunidade Católica de João Pessoa, dentre outros, produziram diversos documentos
pedindo uma moralização dos meios de comunicação social. Assim, esses grupos
procuraram representar uma parcela mais conservadora da sociedade que não somente
via com bons olhos a ação rigorosa da censura contra uma suposta imoralidade nesses
meios, mas, em muitos casos, a achava insuficiente e cobrava mais atenção dos
censores.
É claro, no entanto, que nem todos esses grupos centravam suas atividades na
feitura de propaganda anticomunista, muitos deles diferenciando-se largamente de
entidades mais conservadoras como a famosa Sociedade Brasileira em Defesa da
Tradição, Família e Propriedade (TFP), por exemplo. Criada pelo professor Plínio
Corrêa de Oliveira em 1960, essa organização, composta de militantes católicos leigos,
ficou bastante conhecida e estigmatizada por sua intensa atuação anticomunista durante
parte da ditadura militar. De modo semelhante às que vimos destacando, a TFP também
utilizava a feitura de abaixo-assinados como uma das suas principais formas de
manifestação, a maioria deles passados por meio de campanhas de rua extremamente
exóticas e barulhentas. Voltados para uma idealização romântica do período medieval,
quando a Igreja Católica possuía um poder muito mais intenso na sociedade, os
militantes da TFP saíam às ruas portando megafones, clarins, estandartes com o símbolo
da organização (um leão dourado sobreposto a um fundo vermelho), além de
vestimentas que demonstravam seu apreço por modelos medievais como túnicas e
612
Idem.
237
botas.
613
O comunismo, então, era uma preocupação fundamental dessa organização,
embora não fosse o único objeto das atenções do grupo.
614
O mesmo não se dava com
outras entidades religiosas, tornando-se fundamental percebermos que há diferenças e
especificidades importantes em cada uma delas, algumas perpassadas por uma nítida
preocupação anticomunista como a TFP e o MMC, outras mais atentas a fenômenos
como o suposto processo de “desregramento dos costumes”.
Por outro lado, é notório também que muitos dos outros grupos religiosos que
destacamos manifestavam claramente uma visão que associava a imoralidade a uma
suposta ação de elementos ligados ao comunismo, atribuindo um caráter político-
ideológico às discussões em torno das mudanças comportamentais. Para a Confederação
Nacional das Congregações Marianas do Brasil, uma associação de leigos católicos
presente em todo o país, vivia-se um momento de “avanço progressivo da
licenciosidade, através de todos os meios de comunicação”, quando a “degradação da
mulher” assumia níveis extremos. Mas, quando uma autoridade agia de modo a
combater a essa “onda erótica e pornográfica que campeia livremente”, muitos reagiam
criticando-a, os quais não seriam mais do que
mercenários da dignidade e da honra nacional [que] não vêem
ou não querem ver que a sua atuação concretiza as previsões do
líder comunista chinês Chou-En-Lai: “Nós introduziremos a
nossa doutrina comunista em qualquer país, penetrando através
de pontos fracos do caráter do inimigo.” Esses pontos fracos
entre nós são representados, sem dúvida, pela sensualidade,
permitida ou tolerada, representando grave ameaça à Segurança
Nacional.
615
Associando o processo de “dissolução dos costumes” a uma estratégia
comunista, a Confederação Nacional das Congregações Marianas do Brasil demandava
atitudes enérgicas para “um combate sem tréguas às publicações e espetáculos imorais”.
613
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op. cit. p. 152-153. KORNIS, Mônica; HEYE, Thomas Ferdinand.
Sociedade Brasileira em Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP). In: ABREU, Alzira Alves de;
BELOCH, Israel; LATTMAN-WELTMAN, Fernando; LAMARÃO, Sério T. de Niemeyer (Coord.)
Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV; CPDOC, 2001,
v. 5, p. 5535-5537.
614
A TFP, que teve seu momento de auge durante os anos mais repressivos da ditadura (1968-1973),
chegando a possuir 1.500 militantes em 1970, se enfraqueceu bastante por volta dos anos 1980. Após a
morte de Plínio Corrêa, em 1995, a organização teve que enfrentar as disputas internas pela sua direção,
opondo grupos ainda ultraconservadores e outros visando criar uma versão mais moderada da entidade.
BARBOSA, Roberto. Moderados criam versão “light” da TFP. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 23 maio
2004.
615
Carta ao ministro do Exército, encaminhada à DCDP, 15 mar. 1978, Caixa 2.
238
A entidade acabava dando mostras, também, do quanto algumas de suas preocupações
eram semelhantes às idéias apregoadas na propaganda governamental daquele período,
a qual, durante anos, pautou-se na projeção da grandeza do país, apontando sempre para
uma realização plena num futuro glorioso. Um futuro que deveria ser construído por
todos e que não poderia, jamais, ser conspurcado, de modo parecido com certos trechos
da carta da Confederação:
Confiamos na atuação de Vossa Excelência que, como nós
Congregados Marianos, tem família e quer vê-la preservada do
mal, razão por que estamos certos de que envidará o máximo
de seus esforços, pela depuração dos costumes neste país, por
cuja construção somos todos responsáveis. Ele é grande
geograficamente. Mas queremo-lo ainda maior, por sua
grandeza moral. Está nas mãos de Vossa Excelência uma
ponderável força, capaz de arrastar, pelo exemplo, incalculável
multidão de patrícios, coesos em torno desta grande causa
nacional, independentemente de credo político ou religioso.
616
De fato, algumas dessas entidades religiosas não somente demandavam uma
ação mais enérgica das autoridades para uma “depuração dos costumes”, mas, muitas
vezes, associavam a questão da imoralidade à manutenção da ordem política existente.
Numa missiva enviada pela Congregação Mariana São Gonçalo, por exemplo, não fica
difícil perceber como o tratamento dado a essas questões era encaminhado nessa
direção. Protestando contra as novelas Assim na Terra como no Céu, Irmãos Coragem e
Simplesmente Maria que, segundo os missivistas, atingiam a “honorabilidade do
sacerdote e se apresentam [como] exemplos destrutivos da família e da moral”, a
Congregação destacava:
Quando o governo se preocupa em dar uma formação moral e
cívica séria, aos estudantes de todos os níveis, como fator
importantíssimo na preservação dos valores morais da Nação,
parece-nos que tais novelas, penetrando nos lares, vão destruir
todo esse esforço e toda a boa intenção governamental (...) Não
se contentam os inimigos da pátria e da religião em se servir do
cinema nacional sobretudo, mas vendo a inércia de muitos
homens de boa formação e de responsabilidade no setor
público, sentem-se estimulados na sua audácia (...) Esta é a
maneira sutil e maliciosa de minar as consciências e destruir o
que há de mais sagrado num povo: seus sentimentos religiosos
e cívicos.
617
616
Idem.
617
Carta ao ministro da Justiça, encaminhada à DCDP, 2 ago. 1970, Caixa 1.
239
Como se pode notar, o discurso da Congregação Mariana São Gonçalo vincula
claramente o florescimento da nação à religiosidade de um povo, mobilizando
sentimentos moralistas, patrióticos e cristãos para o combate aos “inimigos da pátria e
da religião”. Todas essas representações, assim, consubstanciavam um imaginário que
unificava o discurso de diversos segmentos na luta contra um inimigo comum
(notadamente o comunismo), que se utilizava de todas as armas disponíveis para
corromper a moral do povo e, deste modo, tomar o poder.
Outra carta representativa das concepções dessas entidades religiosas é a da
Comunidade Católica de Jaú. Enviada no início do ano de 1971 diretamente ao
presidente Médici e congratulando-se com “o melhor Presidente que até a presente data
teve o grande e querido Brasil”, a missiva encaminhava um abaixo-assinado com
centenas de assinaturas.
618
Segundo o próprio documento, os peticionários eram “todos
cristãos, casados, exemplares chefes de família” e protestavam contra um artigo
publicado na revista Manchete em fevereiro daquele ano cujo título era “A grande crise
da família”. Demandando ao presidente uma advertência à revista, alguns trechos da
carta demonstram o quanto era intenso o conflito moral enfrentado por esses setores
religiosos naquela conjuntura de intensas mudanças no plano dos costumes:
Dita revista prega contra o recato feminino, que a mulher deve
se revoltar por ter sido criada com tanta severidade, enquanto
os rapazes gozam de amplas liberdades; que o amor livre é o
caminho para solucionar milhares de problemas que afligem a
família; que se deve dar vez à mulher, eliminando privilégios
em busca de direitos iguais para ambos os sexos e que a mulher
não é objeto exclusivo do marido; que a velha instituição já é
obsoleta diante da nova realidade social. Conclui o articulista
que a justiça e os direitos iguais resolverão os problemas, “na
sua opinião”. Não concordamos, e achamos que o referido
periódico atenta contra a moral e os bons costumes.
619
Argumentando que o casamento foi “manifestação da vontade de Deus” e que
muitas famílias estavam em crise justamente por valores como estes apregoados na
revista Manchete, a Comunidade Católica de Jaú também condenava os “inimigos da
Igreja” e destacava que a luta contra a “coisificação” da mulher era “a filosofia de uma
618
Carta ao presidente da República, encaminhada à DCDP, 25 fev. 1971, Caixa 1.
619
Idem.
240
minoria de nossos pobres irmãos que vivem como irracionais”. No entanto, o ponto que
mais nos interessa aqui é aquele em que a entidade relacionava tais questões morais à
manutenção do Estado, algo bastante claro no seguinte trecho:
Senhor presidente, sabe Vossa Excelência que a família
representa, sem contestação, o núcleo fundamental, a base mais
sólida em que repousa toda a organização social (...)
Efetivamente, onde e quando a família se mostrou forte, aí
floresceu o Estado; onde e quando se revelou frágil, aí
começou a decadência geral.
620
Tomando a família como a instituição fundamental na qual se alicerçaria o
Estado como organização social, o discurso da Comunidade Católica de Jaú amparava-
se em uma das tópicas mais recorrentes do ideário conservador de legitimação da
atuação censória. Tese freqüente nas centenas de cartas enviadas à DCDP pedindo mais
censura, ela era também fomentada e alimentada pelos valores difundidos pelo regime
instalado pelos militares, sempre ciosos em resguardar os valores tradicionais da
“família cristã ocidental”. Não foi por menos que, durante o período militar, o Dia da
Família foi anualmente lembrado e saudado através de discursos do presidente da
República nos meios de comunicação, como pode ser percebido no trecho de uma fala
do presidente Médici que, transmitida por uma rede de rádio e de televisão em 1970,
serviu de epígrafe a esse capítulo.
A associação entre família e Estado era uma tópica recorrente na propaganda
produzida durante os governos militares, sobretudo nos daqueles generais-presidentes
cujo mandato ficou marcado por suas preocupações nesse campo. Nos anos do chamado
“milagre econômico”, quando Médici ocupava a presidência assessorado por uma
eficiente equipe de “relações públicas” (eufemismo por demais usado na época para
escamotear o caráter propagandístico da AERP), a família era um dos elementos mais
recorrentes e valorizados nos discursos oficiais. Na esteira das tentativas profícuas de
difundir um clima de euforia e otimismo, que contrastava com o aumento das práticas
de repressão política, a esfera familiar era concebida como campo privilegiado para o
exercício do que os militares chamavam de “educação cívica”: “o estímulo à obediência
e o respeito, a verdade e a lealdade, honestidade e sentimento do dever, e a iniciativa do
620
Idem.
241
amor, perdão e renúncia”.
621
Sintonizados com concepções semelhantes, alguns censores também deixavam
transparecer sua perspectiva de que a família era a instituição basilar de uma
organização social estável e fortalecida. Para um técnico de censura que escrevia ao
ministro da Justiça, Petrônio Portela, procurando alertá-lo do perigo que a TV encerrava
à moral familiar,
o mais grave, porém, é que se busca levar a sociedade
brasileira a aceitar costumes morais de outras nações, cujas
autoridades governamentais já se preocupam com o declínio de
seus estados, em conseqüência da degradação de suas
sociedades. A História é mestra e nos ensina que a luxúria fez
desaparecer povos, como os Assírios, e ruir impérios, como
Grécia e Roma antigas.
622
Como se pode notar, a perspectiva do técnico de censura citada acima não se
distancia muito daquela apregoada pela Comunidade Católica de Jaú ao relacionar o
problema da luxúria atentatória à moral familiar ao desaparecimento de “povos” e
“impérios” grandiosos. Não obstante seja perceptível o caráter limitado desse tipo de
concepção, que, inclusive, acreditava na existência de algo como uma “História”
magistra vitae (que nos ensinaria, por meio dos acontecimentos passados, a não repetir
os mesmos erros dos povos que nos antecederam), o trecho transcrito se assemelha ao
de outras cartas que usaram, de modo parecido, o exemplo histórico tentando dar mais
consistência às suas teses moralistas. Provavelmente também acreditando numa suposta
autoridade da “História”, as autodenominadas “Mulheres Metodistas de Jundiaí”
mencionaram igualmente a queda do Império Romano numa carta enviada ao diretor do
Serviço de Censura, Coriolano de Loyola Fagundes, em 1985. Procurando dar conta de
suas obrigações “quer como mães, quer como cristãs”, esse conjunto de mulheres
demandava a proibição da exposição de “revistas pornográficas” em bancas de jornal a
partir de concepções muito próximas às que vimos destacando:
Quer nos parecer que existem interessados em destruir a moral
de nossa juventude, pois sabem eles que as crianças de hoje
serão os dirigentes do país no futuro e onde a moral não existe
também não existe a força de vontade para superar as
dificuldades, quer sejam as normais da vida, ou as impostas por
621
FICO, C. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de
Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997. p. 132
622
Carta ao ministro da Justiça, encaminhada à DCDP, 26 out. 1979, Caixa 2.
242
potências estrangeiras, que assim poderão encontrar presas
fáceis para satisfazer suas ambições desmedidas. Onde existe a
devassidão, os povos perdem o sentimento de patriotismo, o
respeito próprio e se enfraquecem (...) Roma, que dominava o
mundo, caiu quando a devassidão tomou conta dela.
623
Já tratamos em outro capítulo da exposição de publicações eróticas em
jornaleiros, um dos motivos que mais fazia chegar cartas à DCDP pedindo censura,
sobretudo nos anos em que Armando Falcão ocupou a pasta da Justiça. Agora, o que
estamos procurando ressaltar é o quanto a identificação entre moral familiar e
estabilidade social era algo difundido entre esses grupos religiosos naquele período.
Vivenciando o que muitos deles identificavam como um momento de “crise moral”, é
provável que tais “segmentos conservadores”, em parte, mobilizassem tais idéias para
ter suas demandas atendidas: a associação entre família e nação, por vezes, parecia um
aviso àqueles que detinham o poder de que a manutenção dos padrões morais
tradicionais que eles tanto apregoavam era fundamental para a estabilidade do regime
político existente. Nesse sentido, mais do que uma “associação imaginária” entre
questões morais e políticas, não podemos descartar a “instrumentalização” do político
por parte desses setores moralmente mais conservadores da sociedade. O mesmo
raciocínio pode ser empregado na inversão do problema: alguns agrupamentos mais à
direita do “espectro político” também usaram, em muitos de seus discursos,
preocupações mais restritas ao plano comportamental como um recurso para o
fortalecimento de seu ponto de vista ideológico.
No entanto, embora essa dimensão “estratégica” não possa ser descartada, tais
concepções não podem ser tomadas apenas como mero recurso retórico, pois é provável
que muitas pessoas acreditassem realmente nelas. Como já destacaram outros autores, o
pensamento dos setores conservadores tem sido tratado, de modo geral, como algo
meramente artificial, tendo um caráter apenas instrumental ou propagandístico.
624
Raros
são os trabalhos que percebem o quanto tais discursos, em certos casos, se amparavam
em convicções e temores reais, assim como não possuíam uma total discrepância com a
realidade vivida.
625
E muitas dessas teses não foram inventadas naquela conjuntura,
623
Carta da Igreja Metodista em Jundiaí ao diretor da DCDP, 26 jul. 1985, Caixa 4.
624
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op. cit.
625
É de fato notória a longa persistência das perspectivas que, seja no seio da história ou das ciências
sociais, apregoavam a idéia de que as representações não são mais do que epifenômenos das estruturas
econômico-sociais. Tais concepções, entretanto, têm sido revistas em importantes trabalhos sobre o plano
243
sendo a própria noção de “crise moral” fruto de uma trajetória cuja longevidade
temporal ultrapassa o momento estudado. A especificidade dos anos 1960 e 1970 é que,
neste período, representações como essas ganhavam maior espaço entre os grupos que
tinham dificuldade para lidar com as mudanças comportamentais provenientes da
chamada “revolução cultural”. As lutas de segmentos da Igreja Católica contra a
legalização do divórcio, da adoção de novos métodos contraceptivos ou do atendimento
das demandas de certas minorias (movimentos feministas, grupos de liberalização
homossexual etc.) são exemplos do ambiente mais geral em que se fortaleciam tais
representações.
Ademais, ao relacionar a conservação de padrões morais tradicionais com a
estabilidade do regime político, esses segmentos abriam caminho para a difusão da
visão de que o processo de mudança comportamental vivido naquela conjuntura poderia
estar sento arquitetado por grupos inimigos do Estado que tinham como objetivo tomar
o poder político. Assim, não só a concepção de que o Estado se fundamenta nos valores
relativos à família é importante, como também o fato dela abrir espaço para a
propagação do que vimos chamando de imaginário anticomunista. Não parece ter sido
de modo despropositado, aliás, que tanto nas idéias do técnico de censura quanto
naquelas do grupo de mulheres metodistas tenham sido mencionados a existência de
nações ou potências estrangeiras portadoras do propósito de introduzir
compulsoriamente seus padrões morais na sociedade brasileira. Em tempos de Guerra
Fria, não é pouco provável que tais países fossem identificados com a União Soviética
e, em menor escala, com Cuba ou mesmo a China.
Por outro lado, vale ressaltar que o que mais salta aos olhos na análise do
discurso dessas entidades religiosas é, de fato, o intenso conflito moral por elas
vivenciado naquela conjuntura de forte liberalização comportamental. O aceleramento
das mudanças nos costumes fortalecido sobremaneira a partir do ano de 1968 era tido,
para esses setores, como um dos grandes problemas do Brasil daquele período, sendo
constante a idealização de um longínquo passado mítico cuja degenerescência foi
tornando-se visível ao longo dos anos, até chegarmos no perverso estágio de
conspurcação dos costumes contemporâneo. Nesse sentido, talvez uma das mais
expressivas manifestações do sentimento de animosidade quanto à ascensão do erotismo
do imaginário social e das mitologias políticas. Ver, por exemplo, GIRARDET, Raoul. Op. cit.
BACZKO, Bronislaw. Op. cit.
244
nos meios de comunicação, por parte de um desses grupos religiosos, tenha sido a da
Fraternidade Eclética Espiritualista Universal. Numa carta enviada ao ministro da
Justiça e ao diretor da Censura Federal, a organização reclamava de uma propaganda da
revista Playboy encontrada na edição de abril de 1979 da revista Quatro Rodas.
626
Segundo a entidade, causava espanto que uma revista como a Quatro Rodas, a
qual “até o presente momento se manteve fiel aos preceitos da verdadeira moral cristã
ao pudor público e aos bons costumes”, tivesse lançado mão de “semelhante apelação
para a pouca vergonha e a aberta devassidão”, tudo com a devida “aprovação da censura
federal”. Tal fato, segundo os missivistas, somente demonstrava o estado atual daquela
sociedade, o qual não era mais do que o resultado da deterioração moral que a mesma
teria sofrido ao longo dos séculos:
Os tempos são mudados e mudaram para pior de todos os
séculos. Aí está a prova irrefutável. Os homens carregam no
corpo e no espírito os túmulos caiados mencionados no
Evangelho. A imoralidade e a depravação campeiam à solta e
têm guarida nos espíritos-túmulo. Poderíamos continuar nossa
lamentação até ao longo do mais distante “fim do mundo”, que
nosso grito em prol da reforma interna do homem, segundo os
preceitos do Cristo, seria em vão. Verdadeiramente, está tudo
perdido. O punhal e a espada da Lei Divina estão em riste para
fazer justiça. “A Lei não castiga, nem também perdoa!
627
A carta ganha mais ainda em termos de eloqüência ao final, demonstrando o tom
não somente desesperançoso como também algo desesperado desse discurso, para não
falar das mostras nítidas de que o mesmo foi redigido no calor da hora. Tudo isso,
atravessado pelo fanatismo religioso denunciado pelo documento, parece transbordar
em evidência no seguinte trecho:
Sr. Ministro! Senhor Diretor! Nós, os Espartanos Ecléticos do
Cristo, morreremos de pé, pregando aos “quatro ventos” os
preceitos da moral. Continuaremos nossa luta “com os homens,
sem os homens, e apesar dos homens”, até o fim. Somos
portadores também das palavras do Cristo seguindo os seus
passos (...) Não colaboreis com a imoralidade! Não lanceis
“lenha para o fogo”. Quem sabe, os vossos entes queridos,
possam ser vítimas nas mãos criminosas dos “túmulos
caiados”? (...) Morramos todos de pé, pela moral sadia em prol
626
Carta ao ministro da Justiça, encaminhada à DCDP, 13 maio 1979, Caixa 2. Carta enviada à DCDP, 26
set. 1978, Caixa 2.
627
Idem.
245
da humanidade!
628
Como se vê, o trecho destacado fala por si mesmo, mas, ainda assim, vale nos
desculparmos pelas longas citações utilizadas nesse texto. Tal fato deve-se menos a uma
opção metodológica do que a uma constatação do caráter enfático de determinados
trechos dessas missivas, os quais, embora longos, são bastante ricos para a tentativa de
compreensão do conflito moral vivenciado por esses grupos.
Apesar da perspectiva simplista presente em muitas dessas cartas, a atuação
dessas entidades religiosas, de combate ao processo de mudanças no campo dos
costumes por meio de pedidos e exigências à DCDP, nos remete à importância do
discurso religioso como um aspecto relevante à compreensão da ação censória. Quanto
mais não fosse, essa é uma problemática praticamente ignorada pela historiografia que
tratou da censura no regime militar. Aqueles grupos, certamente, não formulavam os
critérios censórios, mas suas demandas não somente eram levadas em consideração pela
DCDP, como utilizadas pela mesma para afirmar a legitimidade de sua atuação no
âmbito da censura de costumes.
A falta de uma percepção mais apurada dessa questão está relacionada àquilo
que ressaltamos no início desse texto: a desconsideração, por parte da historiografia, da
importante diferença entre a censura praticada pela DCDP, enfocada na questão da
moral e dos bons costumes, e aquela outra de caráter mais estritamente político-
ideológico. De fato, a defesa da “família”, do “tradicionalismo”, da “moral cristã do
povo brasileiro” em detrimento da “corrupção dos lares”, da “derrocada moral” ou da
“onda de libertinagem” era tanto uma preocupação fundamental para as entidades
religiosas que estamos estudando, quanto para a Divisão de Censura de Diversões
Públicas. Ao contrário da censura política stricto sensu, feita às escondidas no âmbito
do Ministério da Justiça, a censura praticada pela DCDP podia contar, a seu favor, com
os discursos moralistas de muitas lideranças ou autoridades ligadas ao regime, inclusive
publicados em matérias de grandes jornais.
629
E esses discursos, claro está, deveriam
aumentar as expectativas dos setores religiosos afetados pelas rápidas mudanças
comportamentais e, por conseguinte, fomentar suas cobranças quanto às promessas de
628
Idem.
629
Sobre os discursos moralistas de Coriolano Fagundes publicados nos jornais, por exemplo, ver p. 190-
191.
246
lutar contra a “pornografia” e a “subversão”.
Se, para tanto, fosse necessária a implantação ou manutenção de um regime com
características autoritárias, para alguns, que assim o fosse, como pode ser percebido
numa missiva enviada pela Prelazia da Tefé do Amazonas:
Os bons costumes fazem um povo forte, mas esses bons
costumes são agora, diariamente, e de todos os modos,
atacados por exibições despudoradas e pornográficas de filmes
e revistas (...) Sei que muitos irão gritar logo que deverá haver
liberdade de expressão de pensamento, mas liberdade não é o
mesmo que libertinagem (...) Constata-se que essa libertinagem
existe justamente em países democráticos, enquanto em países
totalitários isso não se permite. A virtude está no meio, diz o
provérbio (...).
630
Assim, o sacrifício da democracia, para muitos desses grupos religiosos, não
parecia um grande problema, mesmo porque o valor simbólico do aperfeiçoamento
democrático ainda não estava, de certo modo, consolidado como um valor primordial na
sociedade brasileira daquele período (não obstante muitos desses grupos se dissessem
defensores da democracia). Isto pode ser constatado, aliás, quando percebemos que
muitos dos membros desses grupos que demandavam maior rigor censório não viam
como delação sua atitude de enviar cartas denunciando determinados meios de
comunicação à Censura Federal. Pelo contrário, tais setores acreditavam que, com isso,
estavam defendendo seus direitos ou exercendo seus deveres como “cidadãos” ou
“patriotas”. Não podemos esquecer, entretanto, que a exaltação do patriotismo presente
em muitas das cartas pedindo censura também fazia parte da estratégia de muitos
remetentes para angariar maior legitimidade perante o poder público. O mesmo pode ser
destacado do ato de dizer-se “pai de família” ou “cristão”. Tal aspecto é importante,
inclusive, quando lembramos que esses segmentos escreviam para um regime de caráter
militar, no qual a instituição que detinha o poder concebia as noções de “dever cívico” e
de “patriotismo” como valores fundamentais a serem cultivados. Por outro lado, há que
se considerar a imagem que a corporação militar ainda possuía perante parte da
população brasileira naquele período.
Cultivando uma aura de moralmente superiores desde, pelo menos, o início do
período republicano da história brasileira, os militares não só geralmente se viam como
630
Carta ao presidente da República, encaminhada à DCDP, 3 jun.1972, Caixa 1.
247
verdadeiros guardiões dos valores morais da nação, como eram assim imaginados por
muitos segmentos sociais. O cunho salvacionista atribuído aos militares os municiava de
uma autoridade moral e uma admiração cujo grande desgaste provavelmente só se deu
com o fortalecimento, a partir do processo de abertura política, das denúncias de
práticas arbitrárias cometidas durante o regime de exceção. Mas, nessa conjuntura que
estamos estudando, para alguns setores sociais, os militares ainda apareciam como o
único grupo moralmente preparado para lutar contra a difusão da imoralidade e do
comunismo nos meios de comunicação. Aos olhos de muitas pessoas, eles deveriam ser
os “salvadores da pátria”, os “guardiões dos bons costumes”, enfim, os encarregados de
manter os “padrões morais tradicionais da sociedade brasileira”.
Difícil é saber o quão representativas eram as demandas desses segmentos
sociais por mais censura. É certo que as entidades religiosas já mencionadas
mobilizavam muitas pessoas, inclusive para a produção de abaixo-assinados que
reuniam uma enorme gama de assinaturas. Segundo as chamadas “Senhoras de
Santana”, suas listas e abaixo-assinados contra uma suposta pornografia nos meios de
comunicação, sobretudo na TV, tinham o apoio de cem mil pessoas espalhadas por
quinze estados brasileiros.
631
O grupo de mulheres de classe média do bairro de Santana,
na cidade de São Paulo, dedicava-se apenas à caridade e a reuniões para reflexão sobre
o Evangelho até que, por volta de 1980, indignadas com uma telenovela da Rede Globo,
iniciou uma cruzada contra a imoralidade.
As “Senhoras de Santana” ganharam maior projeção na mídia quando o ministro
da Justiça, Abi-Ackel, em 20 de maio de 1981, recebeu as líderes do grupo para a
entrega da lista com as tais assinaturas. A atenção que o ministro dispensou a essas
mulheres gerou o manifesto de alguns editoriais de jornais preocupados com um
possível enrijecimento da censura em momentos de abertura política e, a partir de então,
setores mais críticos logo tornaram a expressão “Senhoras de Santana” sinônimo de
pessoa “quadrada” ou conservadora. É por isso, de fato, que algumas das líderes do
movimento, depois de mais de 20 anos passados daquele episódio, ainda guardavam
grande mágoa da mídia e se recusavam a falar sobre o assunto. Ercília César Silveira, a
dona Neném, foi a única das líderes que se prontificou a falar das atividades do grupo e
destacou que sempre que eram chamadas para dar entrevistas em programas como TV
631
ALBIM, Ricardo Cravo. Driblando a censura. Rio de Janeiro: Gryphus, 2002. p. 65-67.
248
Mulher, da Marta Suplicy, elas eram “esculhambadas”, sendo chamadas de “carolas e
mal-amadas”.
632
É difícil saber se as Senhoras de Santana conseguiram mesmo mobilizar mais de
100 mil pessoas, ainda que este seja o número registrado nas matérias sobre o
assunto.
633
Seja como for, em 1986, após o fim da ditadura, como parte da “campanha
nacional contra o erotismo e a pornografia instalada nos comerciais e novelas exibidos
na TV”, foi produzido, na cidade de Fortaleza, um abaixo-assinado com cerca de 40 mil
assinaturas e advogando que a Nova República fosse “liberal, mas não libertina”.
634
A
TV, de fato, era o meio de comunicação que mais chamava a atenção dos setores
conservadores e os mobilizava a fazer manifestos contra sua programação. Quanto aos
abaixo-assinados que encontramos no acervo da DCDP, eles, na maioria das vezes,
reuniam realmente uma infinidade de assinaturas e, o que parece mais curioso,
provenientes de diversos setores sociais. Só para citar um exemplo, o abaixo-assinado
promovido pela Ação Católica Diocese de São Carlos, em abril de 1974, que listava
mais de 2.824 assinaturas, era, conforme a entidade se orgulhava em anunciar, assinado
por “autoridades, mães de família, estudantes, operários, professores, elementos das
classes liberais, além da adesão da Câmara Municipal”.
635
É provável que tal afirmação
não fosse mero artifício retórico.
7.2. A defesa da pátria: os militares
É sabido que o sentimento anticomunista impregnou a organização militar
brasileira. Tal instituição, provavelmente mais do que qualquer outra, conservou sua
memória e suas tradições, ao longo de quase todo o século XX, em oposição ao
comunismo. Juntamente com a luta travada no campo simbólico, da conquista do
imaginário e das representações acerca do inimigo, os militares travaram combates reais
com grupos identificados com as idéias comunistas ao longo desse período, algo que foi
632
MATEOS, Simone Biehler. Há 20 anos, Senhoras de Santana já reclamavam da programação. O
Estado de S. Paulo, São Paulo, 25 nov. 2000.
633
ALBIM, Ricardo Cravo. Op. cit. p. 66. MATEOS, Simone Biehler. Op. cit.
634
KUSHNIR. Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São
Paulo: Boitempo Editorial, 2004. p. 145.
635
Carta à Câmara dos Deputados, encaminhada à DCDP, 30 abr. 1974.
249
constantemente utilizado para reforçar as imagens negativas sobre o adversário, assim
como para criar uma identidade comum e reforçar suas tradições. Um dos momentos
mais marcantes desse tipo de embate foi a pejorativamente chamada “Intentona
Comunista”, de 1935, luta cuja memória foi, durante várias décadas, utilizada pelos
meios castrenses como forma de reforçar o imaginário anticomunista e a identidade
militar.
636
Nas missivas enviadas por militares, grupos de militares e, mesmo, órgãos
policias à DCDP reclamando mais rigor censório, podemos perceber algumas das
tópicas mais recorrentes do discurso anticomunista propagado no âmbito desses setores.
Na maioria dessas cartas, assim como em muitas daquelas provenientes de grupos
religiosos que trabalhamos no tópico anterior, salta aos olhos a associação entre
imoralidade e subversão política, sendo a “pornografia” tida por muitos desses militares
como uma “estratégia revolucionária”. Assim, esse material, como se verá, é
extremamente rico para exemplificarmos alguns dos mitos do imaginário anticomunista
que se espraiaram ainda mais no período, não obstante sua recepção pela população em
geral seja algo difícil de captar devidamente. Nessa documentação é possível perceber,
ainda, o quanto a censura moral, para esses segmentos, poderia ter fundamentos
políticos mais profundos, tudo isso respaldado na concepção de que o processo de
dissolução dos costumes fazia parte de uma estratégia do movimento comunista
internacional para “desfibrar a juventude” e, assim, tomar o poder.
Assim como no caso do discurso católico antes examinado, em certos casos, esse
tipo de argumentação assumiu uma conotação tipicamente estratégica: o enfoque no
problema da imoralidade podia ser empregado como apenas mais um recurso em favor
das convicções políticas desses grupos. Ainda assim, achamos que tal perspectiva não
esgota o problema, pois nem todas essas “manifestações discursivas” podem ser
explicadas somente como uma “instrumentalização da moral” em virtude de um
fundamento político. Aliás, é preciso considerar não somente que tais representações,
além do seu “caráter propagandístico”, também poderiam advir de sentimentos e
crenças reais, mas mobilizavam as pessoas a agir e se comportar de determinada forma,
636
Sobre as rememorações e as cerimônias de homenagem aos militares mortos em 1935, ver CASTRO,
Celso. A invenção do Exército brasileiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. GONÇALVES,
Marcos. Para nunca mais esquecer: elementos do mito da conspiração no imaginário anticomunista
brasileiro. Revista História Hoje, São Paulo, nº 4, 2004.
250
influenciando diretamente as conformações do mundo social. Ao mesmo tempo em que
são frutos da realidade material, as mitologias políticas, os imaginários sociais e as
representações de modo geral também interferem na mesma, pois as tomadas de atitude
dos atores sociais não podem ser concebidas como determinadas apenas por interesses
econômicos ou políticos racionalmente planejados.
637
Inseridos dentro do conjunto de pessoas que apoiavam a censura, esses militares
acabavam fazendo parte da base de sustentação da prática censória, a qual conformava-
se, em certa medida, a partir de uma mescla de valores católicos e militares, ambos
provenientes de instituições com longínquas trajetórias de combate ao comunismo.
Porém, se, no discurso católico, a família parecia ser o alvo fundamental da estratégia
comunista, no discurso militar, a defesa da pátria será visivelmente a questão mais
importante. Note-se, é claro, que ambas essas noções aparecem como valores
fundamentais a serem defendidos em ambos os casos: estamos apontando, apenas, uma
questão de ênfase. De resto, é visível que tais valores e tradições se mesclavam
formando uma espécie de cultura comum, chamemos a isso de cultura política católica,
imaginário anticomunista ou algo semelhante.
638
Para esses militares, como mencionamos, a pátria era um valor fundamental a
ser defendido do comunismo, e é nesse sentido que podemos compreender suas
preocupações com a moralização dos meios de comunicação. Assim, no início dos anos
1970, o tenente-coronel chefe do ERF/5, Hugo da Cunha Alves, escrevia ao ministro da
Educação, Jarbas Passarinho, pedindo medidas contra a revista O Cruzeiro, algumas
peças de teatro e o programa de televisão Flávio Cavalcanti. Entoando um discurso
ufanista típico da propaganda política daquela conjuntura, o missivista, logo no início de
sua carta, dizia-se inteiramente integrado “nesta ‘corrente pra frente’, da qual nenhum
verdadeiro patriota pode ficar apartado”. E, pouco depois de demonstrar suas colorações
patrióticas, destacava o perigo que assolava o “reerguimento moral e material” da nação
brasileira:
637
Ver GIRARDET, Raoul. Op. cit. BACZKO, Bronislaw. Op. cit. CHARTIER, Roger. A história
cultural. Entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1988.
638
Note-se que ressaltamos a interconexão entre esses conceitos não por um desleixo teórico, mas sim
pela constatação de que ainda persistem muitas confusões nas delimitações das especificidades de cada
um deles. Nesse sentido, mais importante do que utilizar qualquer um dos conceitos mencionados é
demonstrarmos, analiticamente, a conformação do fenômeno estudado.
251
Nem tudo pode ser visto pelos órgãos do governo, e aqui estou
(...) expressando a opinião de centenas de pessoas de todas as
camadas sociais e de elevado gabarito moral, que, como eu,
também pensam sobre os males que poderão causar ao nosso
povo, este avassalador ataque, que a “guerra revolucionária”
vem desfechando em todas as frentes, através de seus grandes
aliados, “os famigerados mercenários da má imprensa”. Como
tradicionalista gaúcho, falo de centenas (o número ultrapassa a
casa dos milhares), mas, tenho certeza, mais de 90% do povo
brasileiro, também, felizmente, condena a campanha de
desmoralização dos costumes, que uma minoria desgarrada
tenta efetivar, principalmente junto a nossa valorosa
juventude.
639
No trecho, não só fica evidente a atribuição aos responsáveis pela “guerra
revolucionária” do processo de mudanças nos costumes, mas também o modo como o
articulista o faz, mobilizando jargões típicos do discurso que encorpa o imaginário
anticomunista característico daquela conjuntura. Ao contrário das tópicas mais comuns
do discurso anticomunista das décadas de 1930 e 1940, no qual se recorria
freqüentemente à associação dos comunistas com um vírus exótico que infectaria o
corpo social,
640
a partir dos anos 1960 ganhou espaço a imagem de uma “guerra
revolucionária” desfechada em todas as frentes (inclusive através da chamada “guerra
psicológica”). A lógica desse discurso embasava-se na concepção de que os
“subversivos”, tendo perdido espaço devido à ação efetiva dos órgãos de repressão
governamental, se voltariam então para a família, procurando desfibrar a juventude por
meio da propagação de valores espúrios, notadamente no que concerne ao sexo:
Perdendo terreno em todas as frentes, face à vigorosa e
eficiente ação do governo, através de seus operosos órgãos, os
mais diversos, principalmente esse que V. Exa., com sábia
psicologia, vem dirigindo, volta-se o subversivo para a
“família” brasileira.
Como, para os “inimigos ou falsos amigos”, os fins justificam
os meios, utilizam-se eles de todas as armas que lhes chegam
às mãos.
641
Assim, para o autor da correspondência, o sexo sempre teria existido, mas “uma
série de fatores positivos conseguiam orientar a sua força” de forma que “o espírito
639
Carta ao ministro da Educação, encaminhada à DCDP, 31 maio 1971, Caixa 1.
640
CASTRO, Celso. Op. cit. p. 60. Para uma perspectiva diferente, que destaca a associação do
comunismo como um agente patológico como algo ainda presente nos anos 1960, mesmo que por meio de
representações menos “exageradas”, ver MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op. cit.
641
Carta ao ministro da Educação, encaminhada à DCDP, 31 maio 1971, Caixa 1.
252
ocupava o lugar que lhe competia”, ficando “a matéria cumprindo o papel que lhe era
destinado”. No entanto, com o materialismo tomando conta dos intelectuais, “o espírito
cede, pouco a pouco, terreno e estamos sentindo que a humanidade, conseqüentemente,
marcha a passos largos para o caos”. Mais do que isso, segundo o missivista, os
subversivos não somente tinham por meta “destruir os lares” por meio da propagação da
imoralidade nos meios de comunicação, mas desejavam, ainda, evitar a formação de
novas famílias segundo os princípios morais tradicionais da sociedade brasileira:
Se, por um lado, procuram destruir os lares, pregando a
imoralidade de todas as formas, por outro, o que consideramos
mais grave, sente-se, desejam evitar a formação de novas
famílias segundo os princípios que nos são tão caros e que
realmente os impedirá de destruí-las, como tentaram fazer
antes de março de 1964.
642
Como se sabe, os símbolos nacionais são aspectos caros aos militares, sendo seu
culto um dos meios eficazes de manter, inclusive, a disciplina e a ordem dentro da
instituição (dois dos valores mais caros à organização militar). Sendo assim, quando da
exibição, no programa de televisão do apresentador Silvio Santos, das chamadas
“mulatas do Sargenteli” sambando com a bandeira nacional em mãos, logo a
Associação de Ex-combatentes do Brasil se manifestou pedindo medidas punitivas
contra tal “falta de respeito”:
comunicamos a V. Exa. que ontem, por volta das 18:50 horas,
no “Programa Silvio Santos” (...) assistimos um espetáculo
deveras constritador [sic] de absoluta falta de respeito, qual
seja, a apresentação em cena de dez moças sumariamente
vestidas, sendo que três delas, sem guardarem a reverência e a
idolatria a que ela nos merece, segurando-as pelas pontas dos
dedos e cobrindo-lhes os colos quase desnudos, portavam o
imaculado Pavilhão Auriverde, cada uma.
643
Embora não queiramos sobrecarregar o texto com citações desnecessárias, vale
ressaltar outro trecho da missiva, pois sua peculiar eloqüência, típica de certo discurso
militar, torna sua transcrição quase obrigatória:
com imenso desprazer, e por que não dizer, revolta, vimos, pela
642
Idem.
643
Carta ao Diretor da DCDP, 1º jul. 1974, Caixa 1.
253
primeira vez, a Bandeira Nacional ser transformada em
estandarte de escola de samba, porquanto, ao som de um
ruidoso samba executado na hora, elas passaram a dançar
estrepitosamente, levando nas nuances de seus imorais e
provocantes requebrados, aquilo a quem devemos, voltamos a
repetir, o máximo e absoluto respeito, que é o nosso querido e
imaculado Pavilhão Nacional.
644
Como já mencionamos, o “patriotismo” era um dos traços típicos do discurso
militar que, materializado no ideal de defesa da nação, associava a proteção da moral do
povo à salvaguarda contra o comunismo internacional. Tal percepção, aliás, nos remete
para uma questão fundamental que atravessava as cartas enviadas à DCDP pedindo mais
censura, qual seja, a da exacerbação das noções de “dever cívico” e de “dever
patriótico”. Uma das justificativas mais encontradas nas cartas, sejam as de militares, de
religiosos, de políticos ou, mesmo, de pessoas comuns, era a de que a denúncia era uma
obrigação do cidadão, acreditando-se numa espécie de luta contra a imoralidade da qual
todos os patrícios deveriam fazer parte.
Tal aspecto não pode passar desapercebido, sobretudo, se pensarmos que tais
noções de dever cívico e patriótico, às quais interconectavam-se facilmente outros
valores como o ideal de civilidade, eram algumas das mais caras concepções veiculadas
pela propaganda política desenvolvida pelos governos militares no período.
645
Ademais,
como demonstra o trecho citado, a defesa de uma postura solene no tratamento dado aos
símbolos nacionais tem, como contrapartida, um certo desprezo para com as “coisas
populares”, que pode ser percebido na adjetivação de “ruidoso” ao samba tocado e de
“imoral” aos “requebrados” das dançarinas do programa mencionado.
Por outro lado, se, nessa defesa dos símbolos nacionais, sobressai a dimensão
apenas patriótica do discurso militar de apoio à censura, numa outra carta da própria
Associação de Ex-combatentes, podemos visualizar mais claramente as conotações
anticomunistas da sua demanda pela moralização dos meios de comunicação.
Encaminhada diretamente à DCDP, a carta, na verdade, tinha como objetivo enviar uma
matéria do jornal O São Gonçalo, intitulada “Heróis drogados e assassinos” e assinada
pela jornalista Anna de Vasconcellos, como meio de ressaltar a aparição da violência na
TV:
644
Idem.
645
Ver FICO, Carlos. Op. cit.
254
a articulista interpreta o sentimento de repúdio de todo o povo
brasileiro a essa forma de divulgação, sob todos os aspectos
nefasta, anti-social e anti-patriótica, a que está se prestando
nossa imprensa escrita e falada, cujos objetivos tanto podem
ser mercantis, como também levar grande parte da juventude
contemporânea, pelo exemplo e avidez de imitação, a se
desintegrar moral e espiritualmente, tornando-a presa fácil de
ideologias espúrias e escravizantes, que contrariam
frontalmente nossas convicções e nossa maneira de viver.
646
O artigo de Anna de Vasconcellos referia-se, principalmente, à suposta idolatria
que os jovens costumavam ter por “marginais” e “drogados”, mormente quando a eles
era dada grande visibilidade por meio da televisão. Porém, mais importante do que isso
para nossa discussão, são as concepções mobilizadas no discurso do presidente da
Associação de Ex-combatentes, sobressaindo as noções de “desintegração moral” da
juventude por meio de “ideologias espúrias e escravizantes”. Embora tal discurso não se
refira diretamente ao comunismo, ele expressa certas noções bastante recorrentes no
discurso anticomunista daqueles tempos de Guerra Fria: a perspectiva de que haveria
subversivos procurando propagar ideologias antipatrióticas, visando importar modelos
não condizentes com nossa tradicional moral cristã para, assim, escravizar o povo
brasileiro. Correlata a ela, era a percepção de que tal escravização se faria por meio do
“desfibramento moral” da juventude, já que esta era sempre tida como facilmente
influenciável, seja por sua disposição natural para seguir exemplos ou por sua “avidez
de imitação”. Assim, a imoralidade na TV, na literatura, nos cinemas, nas revistas,
enfim, nos meios de comunicação em geral, poderia trazer “reflexos psíquicos e morais
profundamente negativos” à formação dessa “juventude imatura e ávida de coisas
obscenas”, conforme reclamava outra missiva da Associação de Ex-combatentes
enviada à Divisão de Censura.
647
Manifestação correlata foi a de um coronel da Brigada Militar do Rio Grande do
Sul, enviada ao ministro da Justiça, Armando Falcão, em protesto contra a “onda de
degradação” que, segundo ele, se traduzia “ora por artigos de conteúdo excitante sobre
sexo, ora pelo exagerado erotismo de figuras ou cenas de infidelidade conjugal, que é a
tônica dominante de certos programas de televisão e de um grande número de
646
Carta ao diretor da DCDP, 26 out. 1977, Caixa 2. O artigo encontra-se anexado à carta e foi publicado
na edição de 26 out. 1977 do referido jornal.
647
Carta ao Diretor da DCDP, 14 jul. 1976, Caixa 2.
255
revistas”.
648
Segundo o coronel, ele não fazia mais do que “lançar sua democrática e
patriótica inconformidade ante a agressividade dos meios de comunicação de massa”,
demandando uma reformulação profunda da censura, pois, embora ela estivesse se
mostrando atuante, deixava muito a desejar.
Para o missivista, aqueles eram tempos de degradação moral, quando “até os
calendários e a publicidade de outdoors são negativos em suas mensagens maliciosas,
que deixam veneno no subconsciente das crianças”. O ponto que mais nos interessa,
entretanto, é justamente quando as representações sobre um suposto processo de
deterioração moral e de uma “ameaça política” se entrecruzam, dando mostras de como
moral e política se imbricavam no discurso desses setores:
É por isto que venho externar aqui minha inconformidade com
a licenciosidade de costumes que, além de aviltar a nossa
civilização, não deixa de afetar a Segurança Nacional, pelo
desfibramento moral da juventude (...) Aliás, a história nos diz
que a crise da família helênica derrubou a Grécia e a crise da
família romana derrubou o Império Romano (...) A
imoralidade, que cria a ridicularização do herói, não tem outro
escopo que destruir a democracia.
649
Tomando a “licenciosidade dos costumes” como uma ameaça à segurança
nacional, o coronel também articulava as discussões sobre a pornografia e a imoralidade
àquelas concernentes à proteção do regime político, para além de utilizar noções que
sempre foram caras àqueles que propunham uma espécie de “refinamento dos
costumes”, como se pode notar pelo emprego da palavra “civilização”. Aliás, é curioso
constatar a persistência secular dessa noção, certamente muito cara aos “projetos
civilizatórios” do século XIX, não obstante as eventuais mudanças semânticas que a
cercaram em sua longínqua trajetória. Por outro lado, o trecho destacado nos remete,
também, a uma tópica igualmente recorrente no discurso daqueles setores que
demandavam mais censura, qual seja, a concepção de que a família é a instituição
basilar da sociedade (já mencionada anteriormente). E, novamente, podemos constatar o
uso do exemplo histórico como um recurso para tentar atestar a veracidade dessa tese,
certamente deturpado para atender aos interesses discursivos do coronel.
Outra organização de militares preocupada com a deterioração dos costumes era
648
Carta ao ministro da Justiça, encaminhada à DCDP, 22 mar. 1977, Caixa 2.
649
Idem.
256
a Sociedade Veteranos de 32, desta vez já no contexto dos anos 1980 e, portanto, do
fortalecimento da oposição que se dava paralelamente ao paulatino esfacelamento do
poderio militar. A abertura dos canais de expressão para os adversários do regime
ditatorial, iniciada parcialmente no governo Geisel quase uma década antes, já fazia
sentir seus efeitos e criava uma forte animosidade em certos setores militares. Em carta
enviada diretamente ao presidente Figueiredo, a entidade destacava:
Temos visto e ouvido na TV uma licenciosa propaganda de
incitamento à baderna, num linguajar que muito lembra o
famigerado comício dos sargentos do infeliz governo do sr.
João Goulart e, isso, em nome de “abertura” e “democracia”.
Esse deplorável espetáculo que pelo vídeo se transmite à
população tem que ser reprimido, por ser atentatório e
indecoroso.
650
Mais do que qualquer outra missiva já citada, a carta da Sociedade Veteranos de
32 acentua a importância da censura como um fator de dominação política, referindo-se
diretamente ao controle da oposição, provavelmente devido ao fortalecimento dos
movimentos contrários à ditadura, sobretudo se pensarmos que a famosa campanha das
“Diretas Já” tinha se iniciado poucos meses antes.
651
Entretanto, como se pode notar,
ainda assim temos uma associação clara entre moral e política, desta vez mobilizando
um jargão bastante semelhante àquele que marcou os discursos conservadores da
conjuntura de derrubada do governo de João Goulart.
A conjugação de sentidos por meio de um moralismo e um conservadorismo
político exacerbados foi a tônica dos discursos contra a “baderna” e a “corrupção”
atribuídas ao governo de Jango. Embora a analogia com os discursos desses setores que
demandavam censura, à primeira vista, possa parecer equivocada, ela não o é no sentido
de realçar a importância simbólica que o campo do discurso moral teve, tanto para a
implantação, quanto para a manutenção do regime militar. Para uma tradição
historiográfica majoritariamente valorizadora dos atos políticos racionalmente
planejados pelos atores sociais, como é a nossa, nunca é exagerado destacar a
importância legitimadora desses discursos moralistas, sejam eles de combate à
corrupção, à baderna, à dissolução dos costumes, à pornografia, à indisciplina etc.
650
Carta ao presidente da Republica, encaminhada à DCDP, 7 dez. 1983, Caixa 4.
651
Note-se, não obstante, que a campanha das “Diretas Já” começou em 1983, mas somente ganhou
maior expressão a partir dos primeiros meses do ano seguinte.
257
Tais representações sobre a difusão da imoralidade e de sua relação com o
comunismo podem ser vistas também como demonstrativas do momento de crise
vivenciado por esses grupos, seja de militares ou de religiosos, os quais debatiam-se
fortemente com as rápidas mudanças comportamentais de fins dos anos 1960. A tônica
de liberalização sexual dos anos 1960 e 1970 parecia um verdadeiro golpe nos “valores
tradicionais” por eles prezados, possibilitando a proliferação de tentativas para explicar
o fenômeno. É nos momentos de crise ou de abalo profundo de determinados grupos
sociais, sejam eles minoritários ou de maior amplitude, que se fortalecem certas
representações e mitologias, pois é somente através delas que tais setores conseguem
criar uma identidade comum para lidar com as mudanças que ameaçam sua estabilidade
social.
652
Nesse sentido, uma explicação possível era justamente a associação dessas
mudanças dos padrões comportamentais a uma ação estratégica de um grupo adversário,
no caso, o “movimento comunista internacional”.
Nesse contexto, citar trechos do discurso ou de falas atribuídos a grandes líderes
comunistas, de modo a comprovar a veracidade dessas representações, era um recurso
recorrentemente utilizado para fortalecer o mito da existência de uma conspiração
comunista internacional com vistas à tomada do poder por meio da “fragilização” moral
do povo brasileiro. Assim, para a Associação de Delegados de Polícia do Estado de São
Paulo, por exemplo, o conselho vinha de Mao Zedong
a cultura revolucionária é uma poderosa arma revolucionária
para as grandes massas populares. Antes do começo da
revolução, ela prepara ideologicamente o terreno, e, durante
esta, constitui uma frente de combate necessária e importante
na frente geral da revolução.
653
Segundo o presidente da Associação, esse perigoso plano de Mao Zedong estava
sendo posto em prática a partir da transmissão de duas telenovelas do período que
tratavam de forma caricata a figura do delegado, Irmãos Coragem e O Homem que
Deve Morrer. Embora possa parecer surpreendente a conclusão de que essas novelas
estariam a serviço do comunismo, para ele, “os meios de comunicação massiva
representam o habitat preferido dos maus brasileiros adeptos da subversão”, os quais se
utilizariam habilmente do seu incontestável progresso para, “subliminarmente, incutir
652
BACZKO, Bronislaw. Op. cit.
653
Carta ao ministro da Justiça, encaminhada à DCDP, 4 out. 1971, Caixa 1.
258
suas idéias no seio do povo”.
654
A referência a lideranças políticas comunistas fica ainda mais patente quando
constatamos que autoridades diretamente responsáveis pelo serviço censório utilizaram
estratégias semelhantes para argumentar em favor da censura. É o que pode ser visto no
livro Censura & liberdade de expressão, de Coriolano Loyola Fagundes, antigo técnico
de censura que assumiu o cargo de diretor da Censura Federal no governo Sarney.
655
Argumentando que, em momentos de “guerra revolucionária” como aquele em que se
encontrava a sociedade brasileira, o comunismo internacional procurava promover a
dissolução dos costumes para implementar seu regime político, Coriolano afirmava que
o conselho viria de Lênin: “desmoralizem a família de um país e a revolução estará
ganha”.
656
Parece correto afirmar que a DCDP atribuía importância a missivas como as da
Associação de Delegados de Polícia do Estado de São Paulo. Quanto mais não fosse,
elas também se constituíam num material recorrentemente utilizado pela Divisão de
Censura para tentar sustentar a legitimidade de suas ações (a partir da idéia de que uma
grande parte da população demandava o serviço censório). Mais do que isso, tais
missivas eram sempre respondidas e, muitas vezes, encaminhadas para feitura de um
parecer por parte do técnico de censura responsável pela matéria. No caso da carta da
Associação de Delegados, por exemplo, o técnico de censura tranqüilizava o diretor da
DCDP de que a permanência do personagem alvo da crítica na telenovela já tinha sido
condicionada à imposição de uma “sanção reprovatória” [sic] ao mesmo até o término
do programa, algo que, “conforme acreditamos, acontecerá no final”.
657
Ainda segundo
o técnico de censura, esses programas deveriam “mostrar a autoridade na sua mais pura
essência”, ou seja, como responsável “pela preservação da ordem, da moral e dos bons
costumes”.
658
Não é difícil notar, portanto, a similaridade de concepções entre as idéias
do técnico de censura e aquelas mobilizadas pela missiva citada.
654
Idem.
655
O livro data de 1974 e teve sua edição custeada pelo próprio autor.
656
FAGUNDES, Coriolano Loyola. Op. cit. Apud SIMÕES, Inimá. Op. cit. p. 111. O curioso é que
Coriolano Fagundes era considerado da ala liberal da censura.
657
Parecer do técnico de censura enviado ao chefe do Serviço de Censura de Diversões Públicas, 30 nov.
1971, Caixa 1.
658
Idem.
259
7.3. Difusão do anticomunismo: as pessoas “comuns”
É bastante difícil captar a recepção do anticomunismo entre a população de
modo geral. Os estudos existentes geralmente se atêm somente ao discurso de grupos
organizados, principalmente da Igreja e do Exército,
659
duas instituições com longínquas
trajetórias de combate ao comunismo e, por isso mesmo, fundamentais para uma
compreensão mais profunda do fenômeno em questão. As dificuldades de avanço em
direção à recepção desses discursos, não obstante, devem-se menos a uma
supervalorização do pensamento dessas organizações do que a uma dificuldade de
caráter heurístico: quais fontes possibilitariam um tratamento adequado? Certamente, o
avanço do que se tem denominado de História Oral
660
é um dos caminhos possíveis para
um aprofundamento das pesquisas nessa direção, até mesmo por se tratar de um período
bastante recente de nossa história. Ainda assim, poucos são os trabalhos que têm
utilizado tal metodologia para uma análise mais consistente da temática.
661
Nesse sentido, as cartas enviadas à censura durante o regime militar podem nos
servir de indícios do transbordamento do imaginário anticomunista dos discursos
propagandísticos de setores mais organizados. Entretanto, vale dizer que o material é
bastante limitado, sendo poucas as missivas atravessadas por um discurso que associava
a “imoralidade nos meios de comunicação” a uma ação do comunismo. Sua análise, no
entanto, é fundamental para pensarmos como aquelas representações se difundiam no
período, legitimando, perante uma pequena parcela da população, a atuação da censura.
A partir de fins dos anos 1970 e início da década de 1980, esse discurso parece ter, cada
659
A imprensa também é um dos meios mais utilizados para esse tipo de pesquisa. Alguns trabalhos
recentes são FERREIRA, José Roberto Martins. Os novos bárbaros: análise do discurso anticomunista do
Exército brasileiro. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. PUC-SP, 1986; DUTRA, Eliana de
Freitas. O ardil totalitário: imaginário político no Brasil dos anos 30. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997;
AZEVEDO, Débora Bithiath de. Em nome da ordem: democracia e combate ao comunismo no Brasil
(1946-1950). Dissertação de Mestrado em História. UnB, 1992; MOLINARI FILHO, Germano. Controle
ideológico e imprensa: o anticomunismo n'O Estado de S. Paulo (1930-1937). Dissertação de Mestrado
em História. PUC-SP, 1992; MARIANI, Bethania. O PCB e a imprensa. Os comunistas no imaginário
dos jornais (1922-1989). Rio de Janeiro: Revan, 1998; RODEGHERO, Carla Simone. Op. cit.; SILVA,
Carla Luciana. Perigo vermelho e ilusão comunista: configurações do anticomunismo brasileiro — da
Aliança Liberal à Aliança Nacional Libertadora. Dissertação de Mestrado em História. PUC-RS, 1998;
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op. cit. Esse levantamento foi retirado de RODEGHERO, Carla Simone.
Religião e patriotismo: o anticomunismo católico nos Estados Unidos e no Brasil nos anos da Guerra Fria.
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, nº 44. 2004.
660
Para algumas discussões teóricas sobre História Oral, ver FERREIRA, Marieta de Moraes &
AMADO, Janaína (orgs.). Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro, FGV, 1996.
661
Um dos poucos trabalhos que utilizou o recurso foi RODEGHERO, Carla Simone. O diabo é
vermelho: imaginário anticomunista e Igreja Católica no Rio Grande do Sul (1945-1964). 2. ed. Passo
Fundo: UPF, 2003.
260
vez mais, caído no vazio, culminando com sua praticamente total extirpação do cenário
político nos anos seguintes. Nesse sentido, poderíamos dizer que a já frágil
“comunidade de sentido”
662
que ainda o amparava nas décadas anteriores, acabou por
diluir-se por completo com a chegada da chamada “Nova República”. Alternando
momentos de auge a outros de decaída,
663
o imaginário anticomunista marcou o século
XX da história brasileira, sendo sua compreensão algo fundamental para que possamos
explicar os golpes de estado que deram origem aos regimes autoritários mais duradouros
que marcaram o período.
664
Assim, por volta de meados dos anos 1970, uma senhora de setenta anos
escrevia à censura pedindo providências contra a imoralidade presente nos meios de
comunicação, principalmente em alguns programas de TV e nas revistas eróticas
expostas em bancas de jornais. Escrevendo de São Paulo, ela dizia representar umas
cinqüenta mães de família, as quais lhe rogavam que, em nome de Deus, fizesse um
pedido à censura para ordenar o fim da imoralidade nesses meios. Sendo ela uma
senhora doente, que não podia trabalhar, acabou aceitando a tarefa e, apesar de sua
idade, escreveu de “próprios punhos” uma carta à DCDP:
esta geração está como aquela quando veio o dilúvio, geração
maldita. Só vocês poderão endireitar o mundo porque vocês
têm autoridade para isso, deus no céu e vocês aqui em baixo na
terra (...) Abre-se um jornal, mulheres peladas; abre-se uma
revista, mulheres peladas. Afinal nosso país, nosso querido
Brasil, não é comunista, como nos estrangeiros. Não podemos
consertar o mundo, mas a tentativa é válida.
665
Como interpretar tal concepção? Será a missivista apenas uma receptora passiva
dos discursos anticomunistas propagados pela Igreja ou por outros setores organizados?
A breve menção ao comunismo pode ser considerada uma concepção arraigada na
consciência deste tipo de pessoa com relação à temática em pauta? Será que ela
transmitiu, nesse trecho da missiva, um temor ao comunismo que era compartilhado por
662
Sobre a noção de “comunidade de sentido”, ver BACZKO, Bronislaw. Op. cit. p. 296-332.
CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
663
Segundo muitos dos autores que trabalham com o campo do imaginário social, das representações e
das mitologias políticas, esses fenômenos nunca deixam de existir, ora se manifestando mais
intensamente (nos momentos de crise social), ora permanecendo em estado latente. GIRARDET, Raoul.
Op. cit. BACZKO, Bronislaw. Op. cit.
664
Refiro-me aos golpes de 1937 e 1964. Ver MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op. cit.
665
Carta à DCDP, 23 set. 1974, Caixa 1.
261
todas aquelas “mães de família” que lhe pediram que escrevesse à censura? É
provavelmente impossível responder com um alto grau de certeza a todas essas
questões.
Portanto, a análise desse tipo de material traz consigo problemas metodológicos
difíceis de resolver, alguns dos quais retomaremos ao final desse tópico. Muitas das
cartas existentes no acervo da DCDP não contêm o endereço do remetente, algo que nos
permitiria fazer maiores reflexões sobre as localidades onde esse tipo de discurso era
mais forte. Tal lacuna somente pode ser minorada pelo fato de nossa preocupação mais
fundamental aqui não ser tanto de caráter sociológico, mas sim com as idéias-força
contidas no imaginário que associava imoralidade e comunismo. Seja como for, parece
perceptível que a carta relacionava diretamente o erotismo presente nas revistas para
público masculino ao comunismo, identificado esse último com “os estrangeiros”, numa
visão bastante semelhante àquela que destacamos quando analisamos os setores
religiosos e militares que demandavam mais censura. Ora, salta aos olhos, também,
neste como em outros trechos do documento, o embasamento religioso do discurso, sem
contar o “modo” da escrita, denunciador de uma posição social provavelmente
“humilde”, não obstante a falta de informações mais detalhadas a respeito da missivista:
note-se que a grafia foi atualizada e os inúmeros erros, corrigidos.
Uma outra carta bastante curiosa que nos permite refletir sobre essas questões é
a de uma mulher que se dirigia ao diretor da DCDP para “protestar” contra as ações
censórias em 1977. Reclamando da censura em geral, ela se dizia deprimida quando lia
que novelas, músicas, livros, filmes, peças teatrais e, até mesmo, balés ainda eram
proibidos. Entretanto, o mais curioso na missiva era que sua concepção negativa sobre a
atividade censória se mesclava à idéia de que havia elementos subversivos planejando
tomar o poder por meios “subliminares”. Mais do que isso, ela acabava por perceber tais
intenções justamente naqueles que pensavam combatê-las, acreditando em uma total
inversão de papéis:
Palavra de honra, acho que os responsáveis pela censura são
subversivos. Eles sabem e muito bem o mal que fazem ao
governo. Como são muito bem dogmatizados, sabem que todo
reprimido volta à tona.
666
666
Carta ao diretor da DCDP, 27 jan. 1977, Caixa 2.
262
Dando mostras de certo “delírio persecutório”, a missivista protestava contra a
censura, dissociando-a do governo, e a percebendo como uma forma utilizada pelos
subversivos para promover um maior desgaste do mesmo. Para ela, a censura estava
longe de conseguir seus objetivos e somente contribuía para elevar o descrédito da
população em relação ao regime, sendo, portanto, prejudicial ao país e ao governo do
presidente Geisel, o qual, inclusive, ela achava “bem intencionado”.
Outro exemplo interessante para refletirmos sobre a difusão do imaginário
anticomunista era a reclamação de um mineiro, de Juiz de Fora, contra o filme O super
dotado homem de Itu, também datado de fins dos anos 1970.
667
O remetente
fundamentava-se, sobretudo, na concepção de que tal filme poderia ocasionar “chacotas
a todos os habitantes masculinos de Itu”, dado que, “em todo transcorrer do filme
homens e mulheres se referem ostensivamente ao tamanho gigante do pênis do homem
de Itu”.
668
Mais adiante, a carta deixa transparecer a conexão entre comunismo e
imoralidade que vimos destacando até o momento:
Vendo no movimento de 31 de março de 1964 o anjo da guarda
que nos salvou da iminente ditadura comunista, preocupa-me o
fato de que, por ironia do destino, justamente nesse período de
moralização, é que a mediocridade do cinema nacional vem
encontrar guarida, para se tornar cada vez mais ousado. Oitenta
por centro dos filmes nacionais exploram, no gênero cômico-
pornográfico, o sexo de forma negativa, estimulando os jovens
hodiernos à prática deste crime.
669
Assim, a ameaça comunista existente antes da implantação da ditadura
(referência óbvia ao governo de João Goulart) era associada novamente a um tempo de
imoralidade, somente salvo pelo “anjo da guarda” materializado no “movimento
militar” de 1964. A diferença do trecho citado em relação aos demais, portanto, refere-
se somente ao fato de a ameaça comunista não ser associada, pelo menos diretamente, à
produção cinematográfica daquela conjuntura, mas sim à suposta difusão da pornografia
anterior ao golpe militar. Ainda assim, as conexões feitas entre imoralidade e
comunismo parecem óbvias, tanto quanto a crítica à modernidade (contida na referência
aos jovens hodiernos).
Nesse sentido, vale mencionar uma outra carta também bastante curiosa para
667
Carta ao ministro da Justiça, encaminhada à DCDP, 29 set. 1978, Caixa 2.
668
Idem.
669
Idem.
263
pensarmos a difusão do imaginário anticomunista no período, desta vez enviada
diretamente ao ministro da Justiça, Armando Falcão, por uma missivista também de Juiz
de Fora. Protestando contra o “carnaval de imoralidades” presente nas revistas
Manchete, Gente e Fatos e Fotos daquela semana, a remetente emprestava um tom
eloqüente à sua carta ao descrevê-la como “um pedido de mulher brasileira, uma
solicitação de mãe, uma súplica de quem enxerga com evidentíssima nitidez, a
pornografia atentatória da instituição familiar”.
670
Assim, nesse tom de desabafo, ela
esbravejava:
Excelência, como explicaremos nossas pesadas
responsabilidades ante Deus, pela corrupção de uma juventude,
aturdida em face do carnaval de imoralidades a que somos
compungidos, obrigados a assistir diariamente?
E, mobilizando um jargão típico do discurso anticomunista, complementava:
Não olvidemos jamais, senhor ministro, que vivemos numa
“guerra total, global e permanente” e o inimigo se vale do
recurso da corrupção dos costumes para desmoralizar a
juventude do país e tornar o Brasil um país sem moral e
respeito aos olhos dos estrangeiros, no exterior.
671
Esse trecho do documento, como se pode notar, é bastante expressivo de uma
estrutura discursiva francamente utilizada pelos setores anticomunistas daquela
conjuntura. Associando a “corrupção dos costumes” a uma estratégia política do
inimigo, a carta exterioriza traços típicos do discurso de setores militares mais
extremistas como a idéia de que se vivia em tempos de “guerra total, global e
permanente”. Tal expressão, aliás, foi utilizada por muitos militares, não somente como
justificativa para uma atuação mais enérgica na censura de costumes, mas também
como respaldo para atitudes ainda mais lamentáveis como a tortura e o assassinato de
presos políticos. Também está presente o medo da desmoralização do Brasil “aos olhos
dos estrangeiros”, algo sempre reiterado por setores como a comunidade de informações
que, via em muitas matérias veiculadas pelos meios de comunicação em geral, parte de
uma estratégia comunista para difusão de uma imagem negativa do país. Para esses
setores, havia, de fato, toda uma estruturada campanha de difamação do Brasil perante
670
Carta ao ministro da Justiça, encaminhada à DCDP, 2 mar. 1977, Caixa 2.
671
Idem.
264
outros países, obviamente organizada por “setores subversivos”.
Ademais, a constatação de que essas concepções não eram completamente
descartáveis pode ser notada a partir da preocupação do diretor da DCDP, Rogério
Nunes, de responder a tal missiva, como de resto a todas as outras encaminhadas ao
órgão que fazia a censura. Não obstante o caráter esquemático das respostas, parece
claro que, para a DCDP, a existência de pessoas que demandavam mais rigor na
aplicação da censura mostrava-se uma das formas mais profícuas na defesa da
legitimidade de sua atuação (não deve ter sido por outro motivo, aliás, que a instituição
organizou, em seu arquivo, uma subsérie documental com todas as correspondências a
ela encaminhadas). O diretor da DCDP dizia entender
as razões de seu desabafo, como também o consideramos
válido. Essas observações são importantes por que, por um
lado, servem de parâmetro para o nosso trabalho, e, de outro,
vêm reforçar a necessidade da preservação de um órgão
censório em nosso país, contrariando uma boa parcela de
brasileiros que atacam e criticam a Censura Federal (...)
agradecemos a iniciativa de V. Sa., esperando contar sempre
com esse tipo de colaboração, que redunda em subsídio valioso
à nossa tarefa.
672
O único lamento do diretor da Divisão de Censura de Diversões Púlbicas era o
fato de que as referidas revistas (Manchete, Gente e Fatos e Fotos) não estavam sob
censura prévia, algo que anulava qualquer possibilidade de intervenção da DCDP para
proibi-las com base na legislação vigente. Mas isto não impedia, por outro lado, a
feitura de uma outra forma muito comum de censura no período, largamente utilizada
contra a revista Manchete, qual seja, a utilização de pressões e admoestações aos
responsáveis pela mesma para a não veiculação de uma determinada matéria.
Com se vê pelo exposto linhas atrás, poucas e, em boa parte, incompletas, são as
fontes que nos permitem refletir sobre a difusão desse tipo de discurso anticomunista
entre as pessoas comuns, assim como existem dificuldades metodológicas importantes
para o tratamento da problemática. É bastante provável que muitas manifestações
pedindo mais rigor censório a partir da associação entre moral e política guardem
relação com a doutrinação anticomunista promovida por setores mais organizados da
sociedade. A ação da Igreja Católica, de entidades religiosas mais específicas, de grupos
672
Carta de Rogério Nunes à Maria Helena Marques, 6 abr. 1977, Caixa 2.
265
femininos ligados ao catolicismo, de autoridades militares mais influentes, de algumas
lideranças políticas, de determinados meios de comunicação (certos jornais, estações de
rádio e emissoras de TV), entre outros, provavelmente teve um papel importante na
mobilização dos setores populares para que eles se manifestassem contra a imoralidade
e o comunismo.
Tal assertiva parece ainda mais correta se pensarmos em pequenas localidades e
em municípios interioranos onde a influência das elites políticas e de organizações
religiosas e meios de comunicação locais é geralmente grande. Mesmo em cidades mais
desenvolvidas, podemos ter uma idéia do papel desempenhado por políticos locais a
partir dos manifestos e requerimentos de alguns vereadores demandando um aumento
do rigor censório às autoridades governamentais, sobretudo no que concerne à
programação de televisão. E, de fato, uma grande quantidade de documentos desse tipo,
seja de câmaras municipais de cidades menos ou mais desenvolvidas, chegaram à
DCDP a partir de fins dos anos 1970, muitos deles provenientes de municípios
localizados no estado de São Paulo.
673
Assim, muitas lideranças políticas locais provavelmente tiveram um papel
importante na difusão de representações que relacionavam uma suposta imoralidade nos
meios de comunicação a ações planejadas de elementos subversivos ou comunistas. No
início dos anos 1980, por exemplo, o vereador Vilberto Adolfo Cattano fez um
requerimento protestando contra a pornografia presente em jornais e revistas vendidas
nas bancas de São Carlos, o qual foi aprovado por unanimidade pela câmara municipal
da respectiva cidade. No requerimento, que foi enviado à DCDP, fica clara a associação
que o vereador fazia entre a imoralidade e uma ação comunista:
O que está acontecendo em nosso país (...) deve trazer à
consideração do governo e da sociedade as palavras de Lenine,
que arrastou a Rússia ao comunismo, proferidas em 1924, por
ocasião de um congresso realizado pela Federação Feminina
Comunista: disse aquele chefe bolchevista ser necessária, para
o triunfo da revolução, a colaboração da mulher. “Para isso é
preciso destruir nela o sentimento egoísta e instintivo de amor
materno”, pois, segundo Lenine, “nenhuma revolução será
673
Somente entre 1977 e 1985 a DCDP recebeu vários requerimentos e protestos aprovados por diversas
câmaras municipais pedindo mais rigor censório como as de Curitiba, Ribeirão Pires, São José dos
Campos, São Paulo, Itápolis, Guaçuí, São Vicente, Jundiaí, Guarulhos, Ribeirão Preto, São Carlos,
Uberlândia, entre outras. Esse material encontra-se também na subsérie “Manifestações da Sociedade
Civil”, do fundo DCDP, que vimos analisando.
266
possível enquanto existirem família e o espírito de família”.
674
Já destacamos o quanto era recorrente a utilização de frases atribuídas a lideranças
comunistas com o objetivo de fortalecer o discurso de que a destruição da família estaria
diretamente ligada ao “triunfo da revolução”. Como se pode ver no trecho acima, a
mulher teria um papel importante nesse sentido, pois, identificada primordialmente ao
papel de mãe, ela seria fundamental para a manutenção do “espírito de família” que os
comunistas queriam “aniquilar”. Não sendo necessário retomarmos essa discussão, o
requerimento de Vilberto Adolfo Cattano foi destacado somente para exemplificar como
o discurso anticomunista de “lideranças políticas” locais deve ser um aspecto
importante para pensarmos a difusão das imagens que relacionavam a pornografia à
subversão política.
Convém considerar outra questão: o envio de missivas ao poder público pedindo
mais censura não decorreu apenas da recepção do discurso oficial ou de manipulação
política. Existiam estratégias definidas de grupos, como as entidades religiosas que
vimos estudando, com o fim de arregimentar o maior número de pessoas possível para
que elas também se manifestassem contrárias a uma suposta onda de imoralidade e ao
comunismo. No entanto, entender a ação desses atores sociais que enviavam cartas à
DCDP como derivada apenas de uma dominação ideológica pode trazer-nos prejuízos
analíticos importantes para uma interpretação mais apurada da problemática.
Para Beatriz Kushnir, por exemplo, as várias correspondências enviadas à DCDP
e ao governo nos anos 1970, poderiam ser explicadas como fazendo parte de uma
estratégia de setores mais conservadores da Igreja que, tendo na CNBB seu “braço
organizacional”, dispunham de uma arma muito eficiente: bispos e padres pedem aos
fiéis, nas missas, que se manifestem.
675
Desse modo, a lógica da manipulação parece
explicar por completo a questão. Embora seja evidente que tal estratégia, e outras
semelhantes, de fato tenham existido, é preciso considerar outros aspectos para
compreender de modo mais refinado o fenômeno. Existe uma fronteira tênue entre
manipulação e espontaneidade nas manifestações dos diversos setores sociais que deve
ser levada em consideração: é provavelmente na tensão entre esses dois aspectos que
674
Requerimento enviado ao diretor da DCDP através do Ofício nº 843, 1º abr. 1980, Caixa 2.
675
KUSHNIR, Beatriz. Op. cit. p. 145.
267
poderemos compreender melhor as missivas enviadas à DCDP.
676
Assim, se muitas pessoas eram estimuladas a enviar cartas à Divisão de Censura,
parece razoável pensarmos que muitas outras o faziam espontaneamente, até porque o
expediente de enviar correspondências ao poder público pedindo ou exigindo que o
Estado tome providências quanto ao que supostamente lhe cabe não é algo exclusivo
dessa conjuntura. Ademais, a concepção que enfatiza excessivamente o caráter de
manipulação desse fenômeno, acaba por perceber os atores sociais como apenas
passivos diante das “camadas dominantes da sociedade”, algo já bastante
problematizado pelas novas correntes interpretativas que ganharam espaço dentro do
campo historiográfico nas últimas décadas. É preciso considerar que os valores
intrínsecos ao discurso que aqui vimos trabalhando, marcados pelo seu forte apelo
católico de defesa da família e de supostos padrões morais tradicionais da sociedade
brasileira, não foram inventados na conjuntura dos anos 1960 e 1970 por algumas
poucas instituições mais organizadas. Muito ao contrário, tais valores guardam raízes
profundas na sociedade brasileira, na qual o catolicismo sempre foi uma força não
somente no nível da atuação político-institucional, mas no plano do imaginário, da
criação de mitos e de representações com enorme força simbólica. Finalmente, não
poderíamos deixar de mencionar que essa concepção tende a desconsiderar a existência
de um processo importante que tomava maior vulto naquele momento, qual seja, a
chamada “revolução dos costumes” de fins dos anos 1960. Esse fenômeno, associado ao
avanço dos meios de comunicação, certamente teve um papel importante no
fortalecimento da “reação conservadora” ao que era visto como atentatório à moral e
aos bons costumes.
7.4. Total delírio persecutório: os agentes de informações
Ao tratarmos do fenômeno anticomunista não poderíamos deixar de nos remeter
676
Concepções semelhantes às de Beatriz Kushnir podem ser percebidas no tratamento dado às
organizações femininas que fizeram parte das campanhas contrárias ao governo de João Goulart. Para
certos autores, elas não foram mais do que agrupamentos formados pelo IPES, não gozando de nenhuma
autonomia ou iniciativa própria. Heloisa Starling, por exemplo, parece acreditar que a suposta passividade
desses grupos de mulheres pode ser explicada apenas pela sua condição de classe. STARLING, Heloisa
Maria Murgel. Os senhores das Gerais. Os novos inconfidentes e o golpe de 1964. Petrópolis: Editora
Vozes, 1986. Ver, especialmente, o capítulo III, “Aquelas mulheres de Minas”.
268
à chamada “comunidade de informações”. Compreendendo diversos órgãos que tiveram
atividade intensa durante praticamente todo o regime militar, a comunidade de
informações constituía-se basicamente do Serviço Nacional de Informações (SNI), que
encabeçava o sistema de informações, do Centro de Informações do Exército (CIE), do
Centro de Informações da Marinha (CENIMAR), do Centro de Informações de
Segurança da Aeronáutica (CISA), das Divisões de Segurança e Informações (DSI),
alocadas nos ministérios civis, e das Assessorias de Segurança e Informações (ASI),
localizadas nas empresas estatais e autarquias. Representados por meio dessa enorme
gama de siglas, referidas a órgãos civis, mistos e outros exclusivamente militares, esses
setores conformaram-se num dos mais eficientes propulsores de um contundente
discurso extremista, por meio do qual tentavam influenciar às tomadas de posição de
outros escalões do governo militar. Assim, constituindo-se numa espécie de “voz
autorizada” dentro do regime, a comunidade de informações assumiu um papel
importante durante a ditadura, ultrapassando as tarefas de um simples “sistema de
inteligência”.
677
Utilizando-se, em muitos casos, de métodos escusos para a obtenção de
dados sobre as atividades dos “inimigos do regime”, os órgãos que a compunham
atuavam de acordo com o que já foi chamado de “lógica da suspeição”: mais importante
do que a produção da informação, era a geração da suspeita.
678
De fato, os agentes de informações que compunham o pessoal desses órgãos
foram fortes propagadores do imaginário anticomunista, utilizando um jargão bastante
peculiar. É difícil captar a recepção desse tipo de discurso dentro e fora dos governos
militares, sendo preciso não generalizá-lo como representativo do pensamento militar
como um todo. Esse, aliás, parece ser um problema de vários trabalhos já produzidos
sobre a ditadura militar, os quais, muitas vezes, buscam a unidade de uma suposta
mentalidade militar na Doutrina de Segurança Nacional, da Escola Superior de Guerra.
Não obstante, ainda que não queiramos adotar perspectiva semelhante, pois
consideramos que as idéias-força mobilizadas pelos agentes de informações são
representativas de setores específicos entre os militares, achamos que sua análise é
677
Para Carlos Fico, os agentes dos órgãos de informações acabaram conformando-se como o que Pierre
Bourdieu nomeou de “corpo de especialistas”. FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record,
2001. BOURDIEU, Pierre. Op cit.
678
MAGALHÃES, Marionilde Dias Brephol de. A lógica da suspeição: sobre os aparelhos repressivos à
época da ditadura militar no Brasil. Revista Brasileira de História, v. 17, n. 34, p. 203-220, 1997. Apud
NAPOLITANO, Marcos. A MPB sob suspeita: a censura musical vista pela ótica dos serviços de
vigilância política (1968-1981). Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 24, n. 47, 2004. p. 104.
269
fundamental para pensarmos a difusão das representações que associavam mudanças
comportamentais à subversão. Afinal, a comunidade de informações foi certamente um
dos pólos mais importantes na difusão de uma das versões mais radicais desse discurso.
Era freqüente a veiculação, por parte desses setores, de certas idéias-força com o
objetivo de “pressionar” a Divisão de Censura de Diversões Públicas para que ela
promovesse a censura de aspectos políticos na programação televisiva, por exemplo.
679
Aspectos dos mais irrelevantes, quando apareciam num determinado programa de TV,
tornavam-se motivo para o envio de uma informação à DCDP e ao ministro da Justiça
demandando que providências fossem tomadas. Certo “delírio persecutório” perpassava
muitas das idéias desses agentes, não sendo difícil perceber o quanto era corriqueira a
produção de documentos com avaliações extremamente exageradas que identificavam,
em qualquer programa que fosse, “estratégias subliminares” dos agentes do “movimento
comunista internacional”.
Foram várias, portanto, as avaliações equívocas que, de algum modo,
superdimensionavam a atuação dos segmentos contrários ao regime ditatorial na
programação de televisão. Assim, a apresentação do Balé Bolshoi pela Rede Globo, em
1976, foi tida como planejada por Sobolev, um correspondente da rádio e TV de
Moscou, que procurava influenciar a programação da emissora “com finalidade
sobejamente identificada”, de “desinformar, mentir, fundir meias verdades, subverter a
ordem e, principalmente, trazer descrédito às instituições democráticas”.
680
A
apresentação, que seria feita na véspera do 12º aniversário da “Revolução de Março de
1964”, visaria, além disso, “exibir mensagens tendenciosas alusivas ao movimento”.
681
Foi a partir dessa denúncia, provinda dos agentes dos órgãos de informações, que o
então ministro da Justiça, Armando Falcão, determinou que a direção da DCDP
mantivesse “gestões sigilosas com a alta direção da Rede Globo, objetivando cercear ou
coibir a perniciosa influência do Sr. Sobolev junto àquela organização”.
682
A concepção da existência de uma infiltração comunista nos meios de
comunicação, assim, municiava os órgãos de informações de argumentos para que
679
Note-se que a DCDP, em conformidade com o que vimos discutindo sobre a proeminência das
questões morais na censura por ela praticada, não fazia a censura de telejornais ou programas de conteúdo
noticioso no âmbito da televisão. Essa tarefa cabia ao SIGAB, responsável pela censura política stricto
sensu, conforme ressaltado no capítulo 2.
680
Processo C. nº 100236, 28 mar. 1978. MC/P. Caixa 3408/08075.
681
Idem.
682
Ofício nº 0292/78 – CCP/DPF. Tal ofício encontra-se dentro do processo antes referido.
270
pudessem exigir ações mais efetivas por parte da Divisão de Censura:
Consta que há a possibilidade de estarem sendo estruturadas
células comunistas dentro dos principais órgãos de imprensa,
notadamente nas estações de televisão. Os profissionais
identificados como democratas estão, gradativamente, sendo
afastados e substituídos em suas funções, quando elementos
esquerdistas passam a ocupar postos de destaque.
683
Nessa ótica, um simples gesto de Erasmo Carlos, de “erguer e cerrar o punho”
ao aparecer no programa do apresentador Silvio Santos, da TV Globo, era “um gesto
típico dos comunistas”, algo que, ainda por cima, “teve a conivência de, pelo menos, um
cameraman que focalizou a cena com insistência”.
684
Do mesmo modo, a apresentação,
pelo programa Sexta Super da TV Globo, de uma discussão sobre a condição do negro
na sociedade brasileira, evidenciaria que tal programa estava inserido na “campanha que
os órgãos de comunicação vêm desenvolvendo no sentido de manter um clima
pessimista, negativista e adverso ao governo, bem como de solapar as instituições”.
685
Como não poderia deixar de ser, quaisquer aspectos relacionados às mudanças
comportamentais que marcaram fortemente os anos 1960 e 1970, quando mostrados,
seja na TV, seja em algum outro meio de comunicação, eram considerados parte de uma
estratégia comunista para tomar o poder pelo “desfibramento da juventude”.
Assim, as telenovelas eram vistas como uma das armas mais importantes dentro
do amplo arsenal mobilizado pelos comunistas para “fragilizar” os valores relacionados
à família:
O ator Carlos Vereza e o diretor de TV, Dias Lopes, são dois
dos principais elementos apontados dentro da TV Globo. As
telenovelas selecionadas para serem encenadas para os
telespectadores serão aquelas de autores comunistas e que
levantem novas teses a serem discutidas pela audiência,
baseando-se principalmente em temas e argumentos que afetem
a família e tragam “idéias novas” e “avançadas” (...) Dentro do
meio artístico, vários elementos cantam o samba Apesar de
você, de Chico Buarque de Holanda, e ameaçam os democratas
com afirmações de que “a mesa vai virar, vamos te fechar
etc.”
686
683
Pedido de busca nº 218/DSI/MJ, 24 maio 1971, IS.
684
Informação nº 1087 do DPF, 5 nov. 1970, IS.
685
Processo C. 100251, 6 abr. 1978. MC/P. Caixa 3408/08075.
686
Pedido de busca nº 218/DSI/MJ, 24 maio 1971, IS.
271
Ao mencionarem a difusão de “idéias novas” e “avançadas”, os agentes de
informações remetiam-se às práticas comportamentais que ganhavam maior visibilidade
naquela conjuntura, como a liberalização sexual, o uso das drogas como forma de
rebeldia, a contestação dos padrões tradicionais de tratamento das mulheres, o conflito
de gerações. O mesmo pode ser visto no plano dos livros editados no período, muitos
deles tidos não somente como “atentatórios à moral e aos bons costumes”, mas também
como parte de uma “tática comunista”, algo demonstrativo das diferenças existentes
entre as idéias-força mobilizadas dentro dos órgãos de informações e as que
perpassavam as avaliações dos técnicos de censura da DCDP. Apesar da associação
entre uma suposta proliferação da imoralidade nos meios de comunicação e uma
“estratégia esquerdista” também ser encontrada em alguns pareceres dos funcionários da
Divisão de Censura de Diversões Públicas, ela era feita com menos freqüência e
eloqüência. Como já afirmamos, os órgãos de informações acabaram se tornando, na
verdade, um forte mecanismo de pressão para que a censura de diversões públicas
assumisse completamente sua dimensão política, subordinando temas comportamentais
a esse objetivo principal.
Assim, em meados de 1975, os setores de informações divulgaram uma
avaliação do livro Os degenerados, de Oliver Ruston, visto como sintoma da
“proliferação de livros erótico-pornográficos” que assolaria o país:
Tem-se observado que está proliferando, em todo o país, a
venda de livros erótico-pornográficos, altamente atentatórios à
moral e aos bons costumes. (...) As aberrações e inversões
sexuais e a pregação subliminar de dissolução da família,
constantes dos conteúdos dos livros em questão, ao narrarem,
crua e detalhadamente, relações sexuais entre pais e filhos, ou
entre estes, dão mesmo a impressão de que a “idéia mãe”, que
norteia esse gênero de literatura, está em lançar o caos e a
degradação na célula básica da nação – a família. (...) É sabido
que, dentro da tática comunista de conquista de um povo, está a
desagregação do mesmo, através do incentivo, não só à
corrupção e aos tóxicos, como, primordialmente, da deturpação
das normas básicas sociais e morais que regem a família, o que
é conseguido pela exploração do sexo.
687
De fato, a simples menção aos conflitos morais que marcavam aquela
conjuntura, sobretudo quando feita por um órgão de comunicação de grande amplitude,
687
Informação nº 351/75 da DSI/MJ (originada na Agência Central do SNI), 5 jun.1975, IS.
272
gerava a indignação da comunidade de informações e a municiava de argumentos para o
seu discurso anticomunista. Nesse sentido, uma entrevista da atriz Bete Faria na revista
Manchete seria demonstrativa, para a comunidade de informações, de uma estratégia
“subversiva” da jornalista Heloneida Studart e do caráter comunista daquele meio de
informação:
A revista Manchete vem apresentando, em seus últimos
números, diversas reportagens e/ou notas que refletem a
atuação de repórteres comunistas e transformam aquele órgão
em veiculador da propaganda comunista em seus múltiplos
aspectos. (...) Assim é que, no seu número 1260, de 12 jun. 76,
a jornalista Heloneida Studart (Heloneida Soares Orban) utiliza
habilmente o alto grau de popularidade de que atualmente
desfruta a artista Bete Faria para a abordagem de temas
convenientes à doutrinação esquerdista. (...) Destacam-se na
referida reportagem os seguintes aspectos: a) a agressão
generalizada aos padrões tradicionais da sociedade brasileira,
configurada pelas seguintes idéias: rebeldia em relação ao pai,
por sinal um militar; o desejo expresso da atriz de ser “mãe
solteira voluntária”; a aceitação do uso de drogas como
passagem normal de sua vida.
688
Além de discussões típicas do período como o conflito de gerações e o direito da
mulher de ser “mãe solteira”, tidos como valores relacionados à propaganda comunista,
outro tema mencionado no trecho acima, que também era recorrente nas avaliações dos
órgãos de informações, era o problema das drogas. Assim, um outro artigo de Heloneida
Studart naquela mesma revista, segundo uma informação originada no SNI, mencionaria
dados do Instituto Brasileiro de Análise Técnica e Estatística (IBATE) que
relacionavam a repressão política e o aumento do uso de tóxicos por parte da juventude,
tidos pelo SNI como uma “acusação inaceitável à orientação da Revolução de 64”.
689
um outro documento, produzido em 1975, destacava que “o uso da droga se constitui
num degrau da subversão, face à degradação moral a que conduz o viciado”.
690
Assim,
para os setores de informações, a utilização da droga também estaria relacionada com
uma estratégia do movimento comunista internacional que, por meio da sua propagação,
visaria “fragilizar” os jovens em busca do “domínio do mundo”:
688
Informação nº 607/76, da DSI/MJ (originada no CIE), 29 jul. 1976. Processo C. 000336/76. MC/P.
Caixa 590/05256.
689
Informação nº 097/78, da DSI/MJ (originada na Agência Central do SNI), 9 fev. 1978. Processo C.
000336/76. MC/P. Caixa 590/05256.
690
Informação C. nº 181/75, 19 mar. 1975. MC/A. Caixa 4111-36.
273
A toxicomania não pode deixar de ser encarada, também, como
a mais sutil e sinistra arma – do variado arsenal – do
movimento comunista internacional, empregada cada vez em
maior escala, em suas contínuas e quase sempre clandestinas
atividades em busca do domínio do mundo.
691
Outro tema recorrente nas avaliações dos órgãos de informações no âmbito
comportamental era o da homossexualidade, igualmente tida como estratégica para os
“grupos esquerdistas”. Nesse sentido, um artigo da revista Isto É sobre o lançamento de
jornais direcionados àquele tipo de público foi logo interpretado como “um elogio à
homossexualidade masculina”, que apresentaria “aspectos chocantes para os moldes
educacionais da sociedade brasileira”. Segundo a mesma informação, aquela matéria
trazia consigo, entre outros, a defesa do jornalista como “o primeiro mártir do
homossexualismo brasileiro”; a “citação do Brasil como um local favorável ao
desenvolvimento das atividades homossexuais”; e “entrevistas com diversos elementos
(...) onde são citadas frases e expressões de encorajamento aos homossexuais que ainda
vivem às escondidas, para que assumam sua condição”. Entre os entrevistados, por sua
vez, estariam Vlado Pereira, “criador do cartão de crédito gay”, Denner Pamplona de
Abreu, conhecido figurinista “que declara ter inventado a frescura no Brasil”, e Ney
Matogrosso, “conhecido cantor que declara gostar muito de mulher como gosta de
homem”. Assim, não bastasse o caráter preconceituoso da informação, ela também se
voltava para uma suposta relação entre homossexualidade e comunismo:
A análise sumária dos itens anteriores permite concluir: a)
Mais do que a propaganda do jornal a ser lançado, é notado um
esquema de apoio às atividades dos homossexuais. Este apoio é
baseado, em sua quase totalidade, em órgãos de imprensa
sabidamente controlados por esquerdistas. Aliando-se a este
fato a intenção dos homossexuais de se organizarem em
movimentos e ocupar um lugar certo – inclusive politicamente
–, pode-se estimar alto interesse comunista no proselitismo em
favor do tema.
692
Os órgãos de informações pareciam sempre atentos a qualquer aparição de
discussões ou divulgação de eventos relacionados ao movimento homossexual durante a
década de 1970, sendo vários os documentos que mencionavam o surgimento de jornais
691
Informação C. nº 87/74, 24 abr. 1974. DI/A. Caixa 42-4117. Sumário de informações3, mar. 1971.
692
Informação nº 24/78, da DSI/MJ (originada no CIE), 11 jan. 1978. Processo C. 100045/78. MC/P.
Caixa 618/05284.
274
voltados para aquele público como algo pernicioso. Assim, uma informação de 1978
destacava como nocivos a realização de um concurso Miss Gay em Manaus e “a ampla
cobertura e apoio” que a imprensa da região teria dado ao evento.
693
Para um assessor
do ministro da Justiça, a divulgação daquele concurso teria sido, “evidentemente,
atentatória à moral e aos bons costumes”.
694
Já uma outra informação dos órgãos de
informações se referia de modo semelhante à circulação do Jornal do Gay, editado pelo
Círculo Corydon, o qual publicaria “notas e reportagens ligadas ao homossexualismo,
tentando conceituá-lo como atividade normal”. Segundo o documento, aquele periódico
estaria sendo editado pela mesma oficina que publicava o jornal Lampião, supostamente
“contrário ao regime e destinado ao movimento estudantil”. Tal fato, portanto,
evidenciaria a existência da relação entre o movimento homossexual e a “subversão”:
Também o fato de o Jornal do Gay ser impresso nas oficinas
PAT (Publicações e Assistência Técnica Ltda), que imprime
uma grande quantidade de jornais da “imprensa nanica”, de
conhecida linha contestatória e subversiva, vem demonstrar um
esquema perfeito, consoante as teses marxistas-leninistas, que
visam à derrocada das instituições, não só políticas como
sociais, do mundo ocidental.
695
Desse modo, a questão da homossexualidade surgia como mais um dos temas
através dos quais os órgãos de informações procuravam pressionar a Divisão de Censura
de Diversões Públicas para um enrijecimento da prática censória. Segundo uma
informação do SNI, a censura federal deveria ser mais rigorosa no controle do assunto,
pois a imprensa de Salvador estaria dando ampla cobertura a matérias desse tipo, sem
contar a grande visibilidade angariada por alguns gays em programas de televisão. A
aparição de Clóvis Bornay, Denner e Clodovil em programas de auditório, por exemplo,
era motivo para a expressão de toda a radicalidade do discurso desses segmentos:
Não se compreende que a competição por IBOPE justifique a
invasão dos lares por essa estranha fauna, vez que, na
programação nobre do domingo, o telespectador fica com as
alternativas de Clóvis Bornay, no Programa Silvio Santos,
Denner, no Programa Flávio Cavalcanti, ou o costureiro
Clodovil, na Buzina do Chacrinha. Além da masculinidade
693
Informação nº 53, da DSI/MJ, 20 jan. 1978. Processo C. 100045/78. MC/P. Caixa 618/05284.
694
Ofício do assessor do ministro da Justiça ao chefe do Gabinete, 26 jan. 1978. Processo C. 100045/78.
MC/P. Caixa 618/05284.
695
Informação nº 490/78, da DSI/MJ, 9 jun. 1978. Processo C. 100045/78. MC/P. Caixa 618/05284.
275
dúbia dos citados personagens, confirmada pelos trejeitos
femininos, expressões faciais duvidosas e voz em falsete,
procura-se apresentá-los como “entendidos”, “sumidades” etc.,
criando em torno dos mesmos uma imagem socialmente aceita
e respeitável.
696
Como se pode notar, tal trecho exemplifica o caráter preconceituoso do discurso
mobilizado pela comunidade de informações. Para o SNI, apesar do “grande esforço em
todo o país com o objetivo de moralizar os costumes e resguardar a família da
obscenidade”, a aparição de personagens como essas em programas televisivos poderia
colocar tudo a perder, deixando o caminho livre para a subversão política. A TV, como
um poderoso meio de comunicação, portanto, não poderia cair nas mãos do inimigo,
pois ela “tem a função fundamental de educar pelo exemplo, [de] influir e moldar o
comportamento, sobretudo da infância e [da] adolescência”. Assim, as personagens
antes destacadas “não possuem os mínimos requisitos morais para servirem de
‘modelos’, ‘arquétipos’ ou ídolos da mocidade no Brasil, a quem poderão influenciar no
sentido negativo e indesejado”.
697
Um analista do SNI, argumentava de modo
semelhante, destacando que a competição das emissoras de TV pelos índices de
audiência estaria sendo explorada pelos setores comunistas “para a consecução de sua
política expansionista”:
Não é, pois, de se estranhar que os meios de comunicação
social no Brasil sofram influência comunista. Elementos
infiltrados, agindo habilmente para burlar a censura, vão
conseguindo corromper a sociedade, disseminando mensagens,
muitas vezes oriundas do exterior. Assistimos, hoje, ao
desmoronamento dos conceitos fundamentais da sociedade. A
juventude, mais suscetível à ação psicológica, vai sendo
iniciada em meio a doutrinas espúrias importadas, no uso de
drogas e tóxicos, no incitamento à indisciplina e a desordem.
698
Se, na Agência Central do SNI, tais análises simplórias eram feitas, nos escalões
mais baixos, teses como essas pareciam ainda mais corriqueiras. Assim, na 2
a
Seção do
IV Exército, em 1973, circulava a informação de que “elementos hippies e andarilhos”
estariam se relacionando com adeptos do movimento comunista internacional. Não é
difícil perceber, no trecho abaixo, uma recepção enviesada da tese que associava as
696
Informação C. nº 013121, 13 abr. 1972, Caixa 1.
697
Idem.
698
Informação nº 0880/971/SNI/AC, 5 maio 1971, enviada pelo ministro da Justiça ao diretor-geral do
DPF em 13 de julho do mesmo ano, IS.
276
novas discussões comportamentais e uma suposta expansão do movimento comunista:
Tem ocorrido, ultimamente, grande movimentação, pelos
diversos estados brasileiros, de elementos andarilhos e
“hippies”, às vezes, confundindo-se [uns] com os outros, os
quais procuram [ilegível], por esses processos, um meio de
vida, toda a sua filosofia, que consiste, da maneira que pensam,
na busca de liberdade completa, sem quaisquer compromissos
empregatícios permanentes e caracterizando-se,
especificamente, como um ser essencialmente nômade. (...) Em
muitas oportunidades, vários desses elementos foram detidos
para averiguações, constatando-se que, por trás da sua
simplicidade aparente, utilizada como engodo ou história-
cobertura, havia um outro tipo de elemento, mais perigoso,
com atividades e missões pré-determinadas, entre elas, até
mesmo, as que vão de encontro à segurança nacional, pelo seu
caráter ou tendências subversivas.
699
Segundo a denúncia, um desses “elementos hippies e andarilhos” já havia sido
detido em Fortaleza e, “pelo termo das declarações por ele prestadas”, apurou-se que,
em Manaus, “têm ocorrido contatos de alguns ‘hippies’ com um indivíduo de
nacionalidade russa” ligado a “práticas subversivas”. Assim, para aquela Seção do IV
Exército, “há que se encarecer atenção especial, por parte dos organismos policiais, no
que se refere às atividades de ‘hippies’ e de andarilhos por todo o território nacional”.
Como se vê, os novos modos de agir de determinados grupos da sociedade eram logo
associados à “subversão” nos documentos produzidos por alguns setores do regime
militar, muitos dos quais foram enviados à Divisão de Censura de Diversões Públicas
com o objetivo de pressionar por mais censura política.
De fato, difundindo para outros segmentos dentro dos governos militares teses
como essas, a comunidade de informações tornava-se um dos setores que propagavam o
que temos chamado de imaginário anticomunista numa de suas versões mais
conservadoras. Associando questões morais e políticas, os agentes dos órgãos que a
compunham eram pródigos em destacar supostos objetivos subversivos na veiculação de
matérias ou programas referentes às discussões comportamentais. Quanto à recepção
desse discurso por outros escalões dentro dos governos militares, deixemos para outros
analistas a tarefa de elucidar mais profundamente a questão. É certo, no entanto, que,
apesar do evidente equívoco de muitas das informações produzidas pelos agentes de
699
Pedido de Busca nº 034 S/2, da 2º Seção do 28º Batalhão de Caçadores do IV Exército - 6º R. M, 16
abr. 1973, IS.
277
informações, elas não eram, de modo algum, simplesmente descartadas pelos setores
que a recebiam.
278
Considerações finais
O povo está revoltado com um tal filme que anda por aí,
de nome Dona Flor e seus dois maridos (...) Fui vê-lo.
É a maior vergonha do cinema nacional! Uma
imoralidade declarada! O homem e a mulher praticam
ato sexual – na cama – abertamente, com todos os seus
detalhes, até terminar, acabar, gozar, como se costuma
dizer. A coisa é assim, respeitosamente: o homem sobe
em cima da mulher – os dois nus – enfia a “coisa” na
“coisa” da mulher, e faz aquela coisa de sobe e desce,
até terminar. Quando terminam, os dois suados, ela
pergunta se ele agüenta dar outra – subir de novo nela.
Para deixar passar tal coisa, tamanha imoralidade, para
moças e moços verem, famílias, a censura – os diretores
– devem ter recebido alto dinheiro.
700
Quando Dona Flor e seus dois maridos começou a passar nas telas dos cinemas
nacionais, algumas pessoas se manifestaram ao poder público reclamando da suposta
obscenidade presente no filme. O mesmo aconteceu com outras produções nacionais
como A dama do lotação e filmes estrangeiros como Je vous salue, Marie e Último
tango em Paris. Já as chamadas “pornochanchadas” e os “filmes eróticos” liberados
para exibição na televisão a partir de fins dos anos 1970 geravam uma indignação ainda
maior de segmentos moralmente mais conservadores da sociedade. Saindo do âmbito
dos filmes, fato semelhante pode ser visto no plano de determinadas publicações do
período ou com relação a certos gêneros de programas de TV, como as novelas e os
programas de auditório. Ora, é claro que o enorme sucesso de público alcançado por
filmes como o dirigido por Bruno Barreto (Dona Flor e seus dois maridos bateu recorde
de público nos anos 1970) ou por várias telenovelas do período demonstra que havia um
grande número de pessoas que “consumiam” esse tipo de produção artística. Não
obstante, parece correto afirmar que a presença de expressiva liberalidade em relação às
cenas de sexo na produção cultural dos anos 1970 e 1980 gerou a reação negativa de
uma parcela da sociedade. As cartas enviadas ao ministro da Justiça, Armando Falcão,
reclamando das publicações “eróticas” expostas em bancas de jornal, parecem exemplos
significativos disso. Paralelamente aos setores que combatiam a prática da censura,
700
Carta ao presidente da República, Ernesto Geisel, encaminhada à DCDP, 19 maio 1977, Caixa 2.
Vários erros de português foram corrigidos do original.
279
havia uma parte da população que esperava uma atitude de caráter mais paternalista do
poder público diante da suposta “propagação da pornografia nos meios de
comunicação”. Quanto mais não fosse, aquele era um período de rápidas mudanças no
plano comportamental, dando margem ao emprego da expressão “revolução de
costumes” para designá-las.
De fato, conforme se procurou demonstrar, a censura praticada pela Divisão de
Censura de Diversões Públicas durante o regime militar, ao se voltar para a questão da
“defesa da moral e dos bons costumes”, amparava-se numa espécie de tradição de
censura de costumes já existente na sociedade brasileira. Diferentemente da censura
estritamente política dos órgãos de imprensa, ela estava ancorada numa instituição que
fazia esse tipo de censura desde meados dos anos 1940, sendo bastante conhecida do
grande público e, em certos casos, apoiada por aqueles que defendiam a necessidade de
se resguardar os “valores tradicionais da família brasileira”. Entretanto, certa memória
da resistência à ditadura militar acabou por gerar a impressão de que aquele foi um
período marcado apenas pela censura política. A censura de costumes, quando
considerada, foi vista como um pretexto para o efetivo combate às idéias políticas
contrárias ao regime implantado pelos governos militares. Os problemas desse tipo de
concepção foram abordados aqui a partir da censura aos livros nos anos 1970, mas
poderiam ser estendidos, com suas devidas peculiaridades, aos demais tipos de
produção cultural considerados “diversões públicas” (o cinema, o teatro e a música, por
exemplo).
No caso específico em que trabalhamos, porém, essa visão acabou por encobrir a
existência de duas censuras bem distintas nos anos 1970, feitas por instâncias
diferenciadas e “obedecendo” a normas legislativas que não se confundiam. Refiro-me
ao “exame censório” de livros e revistas praticado pela Divisão de Censura de
Diversões Públicas, voltado para a “defesa da moral e dos bons costumes”, e à censura
direcionada às questões políticas nesses tipos de publicações, praticada por setores mais
obscuros como o SIGAB. Assim, ao longo das páginas anteriores, pudemos reconstituir
a conformação e a atuação de ambas as censuras: a primeira, obedecendo ao regime de
censura prévia, começou a ser estruturada por um decreto-lei de 1970 e, justamente por
ser mais conhecida, contava com a denúncia que pessoas comuns faziam de autores e
obras tidos como “pornográficos”; já a segunda, baseada em normas legislativas como a
280
Lei de Imprensa e a Lei de Segurança Nacional (sobretudo esta última, pois a primeira
tendia a ser considerada muito liberal pela ótica dos setores repressivos), deveria ser
feita a posteriori e se amparava, fundamentalmente, na documentação produzida pelos
órgãos de informações. Procuramos demonstrar também, por outro lado, que aquela
primeira forma de censura foi utilizada, em determinados momentos, para a interdição
motivada por questões políticas, não obstante esses fossem casos mais esparsos do que a
censura efetivamente centrada nas questões morais.
A diferenciação entre essas instâncias que faziam as censuras de livros e revistas
no período nos permite ressaltar a necessidade de se considerar a existência de
segmentos diferenciados dentro do Estado brasileiro durante a ditadura militar, os quais
nem sempre estavam ancorados em um projeto totalmente unificado e homogêneo de
dominação. O aperfeiçoamento do conhecimento existente sobre o período, em nossa
concepção, demanda análises mais atentas à complexidade da relação entre essas
instâncias, marcada, muitas vezes, por conflitos ou visões discordantes sobre a
necessidade e a extensão da prática repressiva. A diferença das idéias-força mobilizadas
por segmentos como a “comunidade de informações” e a Divisão de Censura de
Diversões Públicas é ilustrativa disso. Enquanto a primeira sempre fazia uma conexão
entre as mudanças comportamentais ou a veiculação do erotismo nos meios de
comunicação e uma suposta ação do movimento comunista internacional, a DCDP
mobilizava, preponderantemente, sua tradição de décadas de controle dos costumes.
Os órgãos de informações tendiam a funcionar mais como um mecanismo de
pressão para que a DCDP fizesse uma censura eminentemente voltada para as questões
políticas, do que como a instância à qual estariam submetidos seus critérios censórios. A
complexidade do problema se relaciona, também, com a conjuntura histórica abordada,
pois, em determinados momentos, como aquele dos chamados “anos de chumbo”
(1968-1972), a DCDP tendeu a praticar mais fortemente a censura voltada para as
questões político-ideológias. Tal fato, entretanto, nunca obscureceu a preponderância de
sua atuação no plano da censura de costumes. Já nos anos 1980, por outro lado, a prática
efetiva da censura política foi diminuindo e a censura de costumes tornando-se, de fato,
a única possível de ser praticada por aquela instância. A exemplaridade assumida por
determinados casos de censura, que não representam a atividade mais rotineira da
DCDP, também ajuda a explicar a desconsideração da censura de costumes. Foi isso
281
que aconteceu com relação à censura de determinados artistas da MPB, aspecto
fundamental para a compreensão do período, mas que não esgota sua complexidade.
Uma outra questão que procuramos demonstrar foi o entrelaçamento entre as
discussões morais e políticas durante aquele período e sua importância para a
compreensão da censura. Nesse caso, privilegiamos a análise das cartas enviadas à
DCDP nas quais sobressaía um discurso moral de forte apelo anticomunista (ou,
também poderíamos dizer, um discurso anticomunista de forte apelo moralista). Além
da já mencionada comunidade de informações que, dentro do Estado, funcionava como
um “mecanismo de pressão” em favor da censura política, havia as entidades religiosas
e os diversos setores militares que mobilizavam o que se tem chamado de “imaginário
anticomunista”. Assim, representações como as que destacavam um suposto plano do
movimento comunista para “fragilizar” os “padrões morais da família cristã ocidental”
ou “os tradicionais valores cívicos da sociedade brasileira” foram fartamente utilizadas
em favor da “censura da moral e dos bons costumes”. Nesse sentido, foi possível
destacar a necessidade de atentarmos para as várias facetas dessa problemática, pois,
além da discussão sobre as dimensões moral e política da censura, a conexão entre
ambas também deve ser considerada. Um refinamento do conhecimento sobre a censura
daquela conjuntura histórica supõe a distinção dessas duas dimensões, mas não se pode
esquecer a politização de certas discussões comportamentais (e vice-versa) como algo
forte naquela conjuntura. Portanto, foram todas essas facetas da censura de diversões
públicas que procuramos estudar: a dimensão moral, a dimensão política e suas
interconexões. Desconsiderar qualquer uma delas pode levar a uma visão simplificada,
apenas parcial do fenômeno.
282
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289
Anexos
RELAÇÃO DE PUBLICAÇÕES SUBMETIDAS À DCDP ENTRE 1970 E 1982
CONFORME TÍTULO, AUTORIA E PARECER DA CENSURA
TÍTULO AUTOR PARECER
1970
Espanta gato
Luiz Maranhão Filho Liberado
Se eu te esquecer, Jerusalém
Ari Chen Liberado
Os Azeredo mais os Benevides
Oduvaldo Vianna Filho Liberado
Havana para um macaco defunto
Antônio Galvão
Naclério Novaes
Vetado
O começo é sempre fácil o difícil é depois
Milton de Moraes
Emery
Liberado
Foto de crepúsculo
Maria Helena Kuhner Liberado
Aspectos do teatro infantil
Lúcia Benedetti Liberado
O apocalipse ou o capeta de Caruaru
Aldomar Conrado Liberado
Papa Highirte
Oduvaldo Vianna Filho Vetado
Pertinho do céu
José Wanderley/ Mário
Lago
Liberado
O sótão e o rés-do-chão ou Soninha toda pura
José Ildemar Ferreira Vetado
A farsa do bode expiatório
Luiz Maranhão Filho Vetado
Caramanchão próximo ao milagre
Edson Newton de
Campos
Liberado
Suave é a bomba
Luiz Carlos Saroldi Liberado
O berço de ouro
E. C. Caldas Liberado
Os mistérios do amor narrados em prosa e verso por um
ilustre cantador
Eduardo Borsato Liberado
O sétimo dia
Ari Chen Liberado
As feras
Vinícius de Morais Liberado
A construção
Altimar de A. Pimentel Liberado
Meus versos
Weimar Torres Liberado
Terra corpo sem nome
Cleonice Rainho Liberado
Os fatores morais do ensino
Edson de Abreu Liberado
Elisabel, sol e mel
Marcílio Alves Liberado
Basta bastardos
Hélio de Almeida Vetado
Soluços e sorrisos
Alarico Portiere Liberado
1971
Trinta e quatro anos de desgoverno no Brasil
Amadeu Carmello Liberado
Assim vivemos
José dos Santos Liberado
Amélia, a flor da pedra
José dos Santos Liberado
Atrás do arame farpado
Kost Krymow Liberado
Algodoal em flor
João Francisco de Lima Liberado
1972
290
Despertamento da graça
Bartolomeu C. P.
Quaresma
Liberado
História de O
Pauline Reage Vetado
Labirinto
André de Figueiredo Sem parecer
A nova esquerda: a revolução anti-industrial
Ayn Rand Sem parecer
Quem é Ayn Rand
Nathaniel Branden Liberado
Um homem e uma mulher
Sr. e Sra. K. Sem parecer
O casal sensual
Dr. C. Liberado
Um pedaço de minha vida
José Vieira Moreira Liberado
Os dois mundos das três Américas
Jânio Quadros Liberado
Quinta brava
José Vieira Moreira Liberado
Bar Don Juan
Antônio Callado Sem parecer
Tóxicos
Ivan Schmidt Liberado
Marise, minha colega e outros contos
Welington Pinto Vetado
Delírio
Guálter silva Araújo Liberado
Do pai ao filho dos seis aos dezoito anos
Luiza R. Oliveira Liberado
1973
Técnicas sexuais modernas
Robert Street Sem parecer
A aliciadora feliz
Xaviera Hollander Vetado
Último tango em Paris
Robert Alley Vetado
A revolução ganha as ruas
Walter de O. Garrocho Liberado
A Grain of mustard seed
Márcio Moreira Alves Liberado
O túmulo
Rezende Filho Vetado
Onde cai o sol amarelo
Augusto Shigueru
Yamazato
Liberado
Quatro cantos de pavor e alguns poemas desesperados
Álvaro Alves de Farias Vetado
Poesia sem príncipe
Georgenor Franco Liberado
Cinco anos – julgamento político na União Soviética
- Liberado
Andréia
Hugo Penteado
Teixeira
Liberado
1974
Emmanuelle – a virgem
Emmanuelle Arsan Vetado
Um caso de sexo especial
D M. Perkins Vetado
Puros – história de ontem – estórias de hoje
Líbero Luxardo Sem parecer
Confissões de um conquistador de criadas
Hernani de Irajá Liberado
Silken Idol
Robert Moore Vetado
Jeff´s trade
Roger St. Clair Vetado
Cruise ship
Jay Geene Vetado
O amante insaciável
James Garan Vetado
Homens alados
Joaquim Alves de
Oliveira Neto
Liberado
Vida comum
Munir Calixto Liberado
Castelo destruído
Maria de Luz Alves Liberado
Uma gota de esperança
Marisa Helena de
Moura
Liberado
Dramas e tóxicos
Marisa Helena de
Moura
Liberado
291
Minhas Marílias e seus nomes de guerra
Dirceu Alves Ferreira Liberado
Proibido
Reinaldo Cabral Liberado
Novas aventuras da aliciadora feliz
Robin Moore Vetado
As tumbas
Enrique Medina Vetado
Trotsky – o profeta armado
Isaac Deutscher Liberado
Páginas eróticas
Luiz Barreiros Vetado
Contos eróticos
R. Bar Bava Vetado
1975
Vendetta do sexo
Jackie Collins Vetado
Mulheres eróticas
R. Bar Bava Vetado
Chinesinha erótica
Brigitte Bijou Vetado
Luiza, a cigana sexual
Nelson C. Cunha Vetado
O sexo e o amor – vol. 1
David Saramon Liberado
O sexo e o amor – vol. 2
David Saramon Liberado
O sexo e o amor – vol. 3
David Saramon Liberado
A amante de Kung-Fu
Lee Van Lee Vetado
O quinteto sensual
Robert Gover Vetado
Emmanuelle, a virgem
Emmanuelle Arsan Vetado
Everybody does it e outros
Dick Trent Vetado
Saigon meu amor
Luiz Barreiros Vetado
Adaptação sexual perfeita
A. H. Chapman Vetado
Eu, Margô
- Vetado
Nuas e carinhosas
- Vetado
Sexo no paraíso
- Vetado
Elas fazem aquilo...
- Vetado
Elas e o sexo
- Vetado
Escravas do sexo
- Vetado
Devaneios de uma virgem... Virgem?
José Adalto Cardoso Vetado
Doze mulheres e um andrógino
Roy Thomas Vetado
Emmanuelle, a antivirgem
Emmanuelle Arsan Vetado
O machão
Harold Robbins Vetado
Confissões de um conquistador de criadas
Hernani de Irajá Vetado
Novelas da erosfera
Emmanuelle Arsan Vetado
Copacabana posto 6 (A madrasta)
Cassandra Rios Vetado
As traças
Cassandra Rios Vetado
Duelo entre duas mulheres
Brigitte Bijou Vetado
Liberdades sexuais
Felisberto da Silva Vetado
Há muito tempo não tenho relações com o leitão
Rex Schindler Vetado
Em busca de aventuras
Brigitte Bijou Vetado
Mulher-pecado
Márcia Fagundes
Varella
Vetado
Padre fogoso de Boulange
Brigitte Bijou Vetado
Vida e sexo
Dr. G. Pop Vetado
Explosão sexual
Felisberto da Silva Vetado
Sexo e morte em Paris
Maxine Rabel Vetado
A verdadeira estória de um assassino
Adelaide Carraro Vetado
O que excita as mulheres
Robert Chartham Vetado
Novas páginas eróticas
Luiz Barreiros Vetado
292
As sensuais – meu amante o bode
N. Campel Vetado
Lenita e o padre
Márcia Fagundes
Varella
Liberado
Um casal de duas
Máximo Jubilus Liberado
Deuses eróticos
N. Cunha Liberado
Cartilha do bem sofrer com lições de bem amar
Farias de Carvalho Liberado
Minha vida com Xaviera
Larry Vetado
Férias em Mar del Plata
Al. Trebla Vetado
Seja feliz na vida sexual
Dr. Helmut Fichter Vetado
Guia para o amor sensual
Robert Chartham Vetado
Discurso sobre o sexo
Hilário Veiga Carvalho Liberado
Sem retoque
J. Melo Vetado
Ela
Christopher Palmer Vetado
O prazer sexual no casamento
Jerome e Júlia Rainer Liberado
Elas não escondem nada...
- Vetado
Contos eróticos
Vários Vetado
Diários de André
Brasigóis Felício Vetado
Marcella
Cassandra Rios Vetado
Na rota do sexo
Lee Van Lee Vetado
Uma mulher diferente
Cassandra Rios Vetado
A inocente
Brigitte Bijou Vetado
Ele
Christopher Palmer Vetado
Paris, sexo, prazeres, crimes
Paul Demougart Vetado
A filha de ninguém
Dr. G. Pop Vetado
As violentadas
M. Casey Vetado
Sexo para jovens e adultos
Robert Chartham Vetado
Descubra seu QI sexual
Larry Schwab/ Karen
Markham
Vetado
As garotas que dizem sim
Edward Thorne Vetado
Amores insaciáveis de uma estrela
Frederic Oisberg Vetado
Ele... Não brincava com o amor
Al. Trebla Vetado
A jóia do sexo
Virginia Graham Vetado
O contrabandista de escravas
Dr. G. Pop Vetado
Em busca de aventuras
Brigitte Bijou Vetado
A boca sensual
Paul Ableman Vetado
O galante Mister John
João Francisco de Lima Vetado
A possuída
Charles W. Runyon Vetado
Africana
Luiz Barreiros Vetado
O gigolô
Chris Harrison Vetado
A escalada do prazer
Peter McCurtin Vetado
A hora do amor
Christopher Palmer Vetado
Vício, tuberculose e sexo
Bernardo Elias Lahdo Vetado
Irene (O sexo de Irene)
Albert de Routsie Vetado
As carícias do casal
Pierre Valinief Vetado
Sexo super consumo
Márcia Fagundes
Varella
Vetado
Amantes e exorcistas
Wesley Simon York Vetado
Dias de Clichy e uma noite em Newhaven
Henry Miller Vetado
Tororomba, o cancioneiro de Ilhéus
Jocelino Leal Liberado
Amores da filha de Lady Chatterley
Patrícia Robins Liberado
293
A emoção sexual da mulher
Dr. E. Radetzky Liberado
Simplesmente amor
Francis Miller Liberado
Posições amorosas
- Vetado
Marnie – seus vícios e encantos
Winston Graham Vetado
Companheiras noturnas
Francis Miller Vetado
Gente e humor
A. Tito Filho Liberado
As sensuais
Marcel Koppa Vetado
The picture book of sexual love
Robert Harket Vetado
The photographic manual of sexual intercourse
L. R. O’Conner Vetado
Male / Female
William Steig Vetado
Inteirinha nua e sua
R. Bar Bava Vetado
Gatinha erótica
N. Camppell Vetado
Amor sem limite
Christopher Palmer Vetado
A ilha do desejo
Jean Garret Vetado
Confidências íntimas
Riola Arriagada Vetado
Duas flores do sexo
- Vetado
O homem, a mulher e a cama
John Wallace Vetado
Vôo erótico
N. Hughes Jonathan Vetado
O mundo pecaminoso em que vivi
Myléne Demarst Vetado
Kukla, a boneca
Dr. G. Pop Vetado
Páginas eróticas
Luiz Barreiros Vetado
Contos eróticos
R. Bar Bava Vetado
Saudos do pensamento
Rodrigues de Souza Liberado
Amadas amantes
Ivonit Karystyse Vetado
Adoráveis gatinhas
René D’Clair Vetado
Colégio Harrison – a escola do sexo
John Farris Liberado
O indomável
Harold Robbins Liberado
Mundo cão
Domingo Hugo Pace Liberado
Os degenerados
Oliver Ruston Vetado
O homem que desafiou o diabo
Dr. G. Pop Vetado
Gina, a procura de Kukla
Dr. G. Pop Vetado
Fêmeas de luxo
Jean Charles Capelle Vetado
Meu jardim secreto
Nancy Friday Vetado
A mulher erótica
Joy Warren Vetado
A divina marquesa
Marquês de Sade Liberado
ABC do comunismo
Preobrajenski
Boukharine
Vetado
Cartas eróticas de Marilyn
Marilyn Whitney Vetado
O preço de Marta
Márcia Fagundes
Varella
Vetado
O carvoeiro
Ignácio Piter Vetado
A carne
Júlio Ribeiro Liberado
Tóxico, sexo e morte
Wedge Nels Vetado
Meu nome é Marcelo
M. Lopes Vetado
As tumbas
Enrique Medina Vetado
A amante virgem
I. A. Satoc Liberado
Guia sexual da moça moderna
Wardell B. Pomeroy Vetado
1976
294
Vampiras do sexo
F. W. Paul Vetado
Georgette
Cassandra Rios Vetado
As trigêmeas
Dr. G. Pop Vetado
Noviça erótica
Márcia Fagundes
Verella
Vetado
As aventureiras
Al. Trebla Vetado
Dez estórias imorais
Aguinaldo Silva Vetado
A grande comédia
Fernando Menezes da
Silva
Vetado
O diário íntimo de Casanova
J. Casanova de Seingalt Vetado
Essas virgens de hoje...
Felisbelo da Silva Vetado
O sexo portátil
Luiz Canabrava Liberado
A casa de rendez-vous
Oscar Lewis Liberado
Eliana, uma rosa entre espinhos
Minami Keizi Liberado
Africana
Luiz Barreiros Liberado
Teribré, o místico do sexo
Lima de Miranda Vetado
Os padres também amam
Adelaide Carraro Vetado
Graciela, amava e... matava
Dr. G. Pop Vetado
Sexo no confessionário
Norberto Valentini/
Clara di Meglio
Liberado
As memórias de Casanova
J. Casanova de Seingalt Vetado
As tumbas
Enrique Medina Vetado
As amantes do moralista
John Gardner Liberado
Escravo do desejo
Louis-Charles Royer Liberado
O sexo, a mulher e a erótica
Dr. Emanuel Bosch Liberado
O direito e o avesso
Robin Maugham Liberado
A igreja ante a escalada da ameaça comunista
Plínio C. de Oliveira Liberado
Vida e sexo
Dr. G. Pop Vetado
Ambições frustradas
J. Viriato de Castro Sem parecer
As mulheres, ao amor e o sexo
Robert Chartham Vetado
Caminhos interrompidos
Luiz Roberto de Paiva
Lima
Liberado
Tessa, a gata
Cassandra Rios Vetado
As aventuras das secretárias
Rommie James Vetado
Lúcio Flávio – O passageiro da agonia
José Louzeiro Liberado
O caso Lou – Assim é se lhe parece
Carlos Heitor Cony Liberado
A barboleta branca
Cassandra Rios Vetado
Mistérios de uma doutora
Al. Trebla Vetado
Lobisomem
Gedeone Liberado
O gavião do asfalto
João Francisco de Lima Vetado
Volúpia do pecado
Cassandra Rios Vetado
Nós
Christopher Palmer Vetado
Feliz ano novo
Rubem Fonseca Vetado
O eterno sexo
João Francisco Vetado
A vida secreta de um homem sensual ou Adios
Scheherazade
Donald E. Westlake Vetado
Um reino clandestino na Amazônia
Meldutis Laupinaitis Liberado
Fortaleça sua potência sexual
Richard M. Falk Liberado
Mulheres do sexo violento
José Adalto Cardoso Liberado
Supermercado supermacho
R. T. Larkin Vetado
295
A breve estória de Fábia
Cassandra Rios Vetado
As medidas do amor
Irving Wallace Liberado
Viva – A super estrela
- Vetado
O homem subterrâneo
Ross MacDonald Liberado
Carniça
Adelaide Carraro Vetado
Nicoleta ninfeta
Cassandra Rios Vetado
Palácio das ninfas
Al. Trebla Vetado
Veneno
Cassandra Rios Vetado
Noites de Moscou
Vlas Tenin Vetado
Em busca de aventuras
Brigitte Bijou Vetado
Sexo, delírios e tormentos
Jean Floubert Vetado
Podridão
Adelaide Carraro Vetado
O pulo do gato
Otacílio Dantas Liberado
O cabo e a normalista
Claudovino Alencar Vetado
Mulheres de ninguém
Márcia Fagundes
Varella
Liberado
Dois corpos em delírio
Márcia Fagundes
Varella
Liberado
O preço do amor
Eustace Chesser Liberado
A trama perfeita
Al. Trebla Liberado
As novas aventuras das massagistas
Jennifer Sills Vetado
O significado sexual do tarô
Theodor Laurence Liberado
Uma aventura no Oriente
Paul Theroux Liberado
Escuridão
Adelaide Carraro Vetado
A vida e a verdade
José Vieira Moreira Liberado
Belas e perigosas
René D´Clair Liberado
As massagistas
Jennifer Sills Vetado
A beleza mora com o sexo
- Vetado
L´art erotique
Eberhard e Phyllis
Kronhausen
Vetado
Última hora
- Vetado
Free sex
Moses David Vetado
Blood sport
Robert F. Jones Liberado
Diary
Paula Newhorn Liberado
The boys from Brazil
Ira Levin Liberado
Tem poems and lyrics by Mao Tse-Tung
- Vetado
Tutti Fascisti
Claudio Quarantotto Vetado
Gravuras de Picasso
- Vetado
Eu e o governador
Adelaide Carraro Liberado
Elas são de morte
René D´Clair Vetado
Sexo e prazer
- Vetado
Sexo em conflito
Márcia Fagundes
Varella
Liberado
Ninguém é de ninguém
Harold Robbins Liberado
Fabiana, a mulher que sabia amar
Marcel Kappa Liberado
O manual sensual
David I. Chapnick Liberado
Voragem do desejo
Márcia Fagundes
Varella
Liberado
Palmeira dos índios e os seus encantos
Antônio Laurindo Liberado
Meus amores secretos
João Francisco de Lima Vetado
296
Amor a três
Brigitte Bijou Vetado
Sexo e boêmia
João Francisco de Lima Vetado
Minha vida íntima
Cathérine Renoir Vetado
Cartas à Xaviera
Xaviera Hollander Vetado
O que excita as mulheres
Robert Chartham Vetado
A grande comédia
Fernando Menezes da
Silva
Vetado
Só nós duas
Bárbara Brooks Vetado
A sarjeta
Cassandra Rios Vetado
O garanhão da casa nostra
F. W. Paul Vetado
Eu acuso... Genocídio soviético
Meldutis Laupinaitis Vetado
Uma para cada gosto
- Vetado
1977
Por trás das câmeras
Mylène Demarst Vetado
Confissões de uma estrela
Mylène Demarst Vetado
A coisa incrível
Dr. G. Pop Vetado
Um momento, escute-me – Homossexualismo
Benedito A. de Oliveira Vetado
A selvagem Xaviera
Xaviera Hollander Vetado
A forasteira
Calder Willingham Vetado
Cartas eróticas de Edward
Edward W. Richardson Vetado
O comitê
Adelaide Carraro Vetado
Os prazeres do sexo
Alex Comfort Vetado
Mais prazeres do sexo
Alex Comfort Vetado
The economics of socialism
J. Wilczynski Liberado
Total sex
Dan Abelow Vetado
79 park avenue
Harold Robbins Liberado
The book of pot
Pámela Lloyd Vetado
Jou Pu Tuan – O livro erótico chinês
Li Yu Vetado
Aventuras de um sádico
Anônimo Vetado
The myth of marginality
Janice E. Perlman Liberado
Vamos querida
Brigitte Bijou Vetado
Lira ligeira
Silvio Leopoldo Liberado
Nuas e voluptuosas
Peter Khan Liberado
Leila, o veneno doce
Peter Khan Liberado
A deusa do sexo
Peter Khan Liberado
Eliana, uma rosa entre espinhos
Thais de Alencar Liberado
A verdadeira estória de um assassino
Adelaide Carraro Vetado
Alucinadas pelo sexo
Tom Willyann Sem parecer
O amor pecado
Yuri Gletter Liberado
Prazer e desejo
Yuri Gletter Vetado
Lili, a vamp sexy
- Vetado
Diccionário del anarquismo
José Peirats Liberado
Diccionário de la Falange
Eduardo Alvarez Puga Liberado
Jaume Carner
Josep M. Poblet Liberado
Petita historia de la guerra civil
Joan Sariol Badia Liberado
Desde la cola del dragon
Jorge Edwards Liberado
Let history judge
Roy A. Medvedev Liberado
El caso Padilla
Lourdes Casal Liberado
297
The brazilian communist party
Ronald H. Chilcote Vetado
Os garotos da massagista
Jennifer Sills Vetado
A vida amorosa de um médico
Dr. G. Pop Vetado
The pictorial guide to sexual intercourse
Istvan Schwenda/
Thomas Leuchner
Vetado
A menina cor de rosa
Dr. G. Pop Vetado
A revolução erótica
Lawrence Lipton Vetado
Sensação em Portugal
Dr. G. Pop Vetado
Boca de fogo
Roy Thomas Vetado
Mulheres ardentes
Yuri Gletter Vetado
Sonetos
Edgar Paula Rodrigues Liberado
Dicionário sexual
Georges Valensin Liberado
O violador
Henry Kane Vetado
Taormina – Debut de siècle
Baron de Gloeden Vetado
1978
Emoção sexual
Ivonit Karystyse Vetado
Sexo proibido
Ivonit Karystyse Vetado
Paulette, aeromoça
Vicky Morris Vetado
Liselle, massagista para cavalheiros
Gabrielle Manson Vetado
Novas aventuras de Linda Lovelace
D. M. Perkins Vetado
Rainha do strip-tease
Danielle Jobbert Vetado
Mares da perdição
Jack Gordon Vetado
Bolero sensual
Denise Taylor Vetado
As massagistas de Tóquio
Rita Reinolds Vetado
Sou Lilly, atriz de cinema
Lili Lamont Vetado
Mulheres proibidas
Mari Terése Luke Liberado
Sexo em conflito
Ivonit Karystyse Vetado
Resistência sexual
Francis Hagaerre Vetado
Os prazeres de uma princesa russa
Maria Luhan Vetado
Férias amorosas
Vivian Crawford Vetado
A última noite de amor de um condenado à morte
Michel Lamont Vetado
O relatório Hite
Shere Hite Vetado
A herança de Dena
Gwen Whinter Vetado
O cruzeiro dos amantes
Michel Lamont Vetado
As novas aventuras das massagistas
Jennifer Sills Vetado
A última conquista de Don Juan
Rex Stewart Vetado
Os fornecedores do vício
E. Rimbaud Vetado
Volúpia sensual
Peter Khan Vetado
For adult
Rock Duggan Vetado
Amantes do sexo
- Vetado
Elas, as eróticas
- Vetado
As mais simples e sinceras comunicações
Franciso C. P. Biondo Liberado
As lágrimas das virgens
Dr. G. Pop Vetado
Providência
Maxlem Rodrigues Liberado
A pérola – Um jornal erótico 2
- Vetado
Memórias eróticas de um burguês
- Vetado
Dois corpos em delírio
Márcia Fagundes
Varella
Vetado
298
Show de piadas
- Liberado
Foto riso
- Liberado
Sorriso
- Liberado
Play sexy
Brigitte Bijou Vetado
O amor e o sexo
Ivonit Karystyse Vetado
Xaviera masculino
Grant Tracy Saxon Vetado
Um office boy das arábias
Virgínia Grey Vetado
Garotas calientes
Lita Lafond Vetado
Férias no Havaí
Paul Harris Vetado
Aminhos eróticos
Brigitte Bijou Vetado
O anel do desejo
Tom Brooks Vetado
Loira vestida de branco
Dr. G. Pop Vetado
Machos e fêmeas
Michel Lamont Vetado
Prazer sem pecado
Brigitte Bijou Vetado
Clube dos prazeres
Brigitte Bijou Vetado
O homem que gostava de mulheres
Marc Brandel Liberado
Amor sem limites
Robert A. Heinlein Liberado
Mortal apedrejado
Carlos Luiz
Campanella
Liberado
Sexo, amor, casamento
Aurico Serzedello
Machado
Liberado
O companheiro espírita
Paulo Roberto M.
Sampaio
Liberado
Uma homenagem de Manoel Lourenço ao prof.
Nazareno Lobo e aos Orixás do Brasil
Manoel Lourenço Liberado
Opressão
- Liberado
A minha vida secreta – Autobiografia erótica
- Vetado
Violencia y política en América Latina
Julio Barreiro Liberado
Programa de saúde (Projetos e temas de higiene e saúde)
Lídia Rosenberg
Aratangy e outros
Vetado
Erotic art of the masters
Bradley Smith Liberado
Klee
Denys Chevalier Liberado
Horas tardias
Dr. G. Pop Vetado
Sadismo e masoquismo da princesa russa
Maria Luhan Vetado
Kama Sutra
Vatsyayana Liberado
Teatro dos prazeres
Anny Lover Vetado
Copa mundial do sexo
Camille La Femme Liberado
A garota cobiçada
Brigitte Bijou Vetado
Cassandra
Marilyn Monray Vetado
Na voragem do êxtase
Brigitte Bijou Vetado
Última besta
Irany Cristina Rezende Vetado
Maldição erótica
Adal Casey Liberado
As novas aventuras das secretárias
Natalie West Liberado
Guia prático de técnica sexual
- Liberado
La guerriglia in Italia
Vários autores Vetado
Autobiografia di una guerriglia
Ricardo Ramirez Vetado
O louco
Dr. G. Pop Vetado
A paranóia
Cassandra Rios Vetado
Garotas em apuros
Brigitte Bijou Vetado
Amante amada
R. Barnes Vetado
299
Adelaide, uma enfermeira sensual
Marilyn Monray Liberado
Posições amorosas
Roy Thomas Vetado
Mulher livre
Adelaide Carraro Vetado
Armadilha erótica
Francis Hagaerre Vetado
Os amantes
Adelaide Carraro Vetado
Aventuras de um sádico
Anônimo Vetado
Fraqueza da carne
F. Lamont Vetado
1979
O amor e suas posições básicas
Karl fritz Liberado
Amante amada
R. Barnes Vetado
Paulette, aeromoça
Vicky Morris Vetado
Amado amante negro
June Warren Vetado
Copa mundial do sexo
Camille La Femme Vetado
Prazer sem pecado
Brigitte Bijou Vetado
Armadilha erótica
Francis Hagaerre Vetado
O primo Charlie
Jeanette Sinclair Vetado
MO – Nova vida revolucionária
Moisés David Vetado
Ahnnn!
Camille La Femme Vetado
Garotas em apuros
Brigitte Bijou Vetado
Teatro dos prazeres
Anny Lover Vetado
O prazer de pecar
Cassandra Rios Sem parecer
Amores frenéticos
P. I. Jones Vetado
A virgem de Jade
Dorothy Amin Vetado
A princesa russa massagista do balneário
Maria Luhan Sem parecer
Linka – A mestra do sexo
Anny Lover Vetado
Camila, modista de alta costura
Sylvana Dubois Vetado
Tentação sensual
Brigitte Bijou Vetado
Emoção e frenesi em Veneza
Lana Robbins Vetado
As levianas
Francis Hagaerre Vetado
Sexo em ritmo de rock
F. Lamont Sem parecer
Swing – Sexo sem segredos
Eurico Felix Vetado
Hot girls
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O lupanar de luxo da princesa russa
Maria Luhan Vetado
Sexo para principiantes
Mylène Demarst Vetado
Coleção de poemas
Raimundo A. de
Oliveira
Liberado
Novelas da erosfera
Emmanuelle Arsan Vetado
Trio sensual
Francis Hagaerre Vetado
O ser erótico
Albert Ellis Liberado
Sexo em alta rotatividade
Rigers Yuong ou Gisele
Sorrel
Vetado
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Stella Moore Vetado
Deliciosas loucuras em Monte Carlo
Carolyn Colby Vetado
Delírio sensual
F. Lamont Vetado
Star Álbum
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Massagistas para executivos
Mark Andrews Vetado
Harmonia psicológica
Pedro Alves da Silva Liberado
As insaciáveis de Paris
Maurice Montier Vetado
300
Três gatas e uma cama
Jay D. Matcalfe Vetado
Asilo de vermes
Pedro de Paula
Rodrigues/ Nilda N.
Silva
Liberado
Resistência sexual
Maria Luhan Vetado
As fascinadoras
Maria Luhan Vetado
O louco
Dr. G. Pop Vetado
As lágrimas das virgens
Dr. G. Pop Vetado
Os classificados do sexo
Hélio Miranda Abreu Vetado
Sadismo e masoquismo da princesa russa
Maria Luhan Vetado
Confissões de uma estudante
Francis Hagaerre Vetado
Cassandra
Marilyn Monray Vetado
1981
Tara
Ross Casey Vetado
1982
Orgy room bottoms
- Sem parecer
Fonte: BRASIL. Casa Civil da Presidência da República. Arquivo Nacional. Coordenação Regional do
Arquivo Nacional no Distrito Federal. Fundo DCDP. Seção Censura Prévia.
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