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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
PUC-SP
Adriana Bernardes Pereira
A construção social do tipo “jogador de futebol profissional”:
um estudo sobre os repertórios usados por jogadores de
distintas categorias etárias e por integrantes de suas matrizes
DOUTORADO EMPSICOLOGIA SOCIAL
SÃO PAULO
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
PUC-SP
Adriana Bernardes Pereira
A construção social do tipo “jogador de futebol profissional”:
um estudo sobre os repertórios usados por jogadores de
distintas categorias etárias e por integrantes de suas matrizes
DOUTORADO EMPSICOLOGIA SOCIAL
Tese apresentada à Banca Examinadora
como exigência parcial para obtenção do
título de Doutor em Psicologia Social pela
Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, sob a orientação da Profa. Dra. Mary
Jane Paris Spink.
SÃO PAULO
2008
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BANCA EXAMINADORA
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_______________________________________
Para Anita
AGRADEÇO
À minha grande família, minha mãe Martha, minha irmã Ninon Rose, meu pai
Liberato, meu sobrinho Igor e minha amada Cassandra, que foram modelos e
motivos de coragem para enfrentar os desafios, superar os obstáculos,
perseguir os ideais e não desistir jamais. Todos me ensinaram a cultivar
ternura e crer no amor como dínamo que dá sentido à vida, me dizendo todo
dia: “tudo vale a pena se a alma não é pequena”.
À amiga/irmã Anita, que me abriu os olhos para a importância de continuar
minha formação, me incentivou, me empurrou, me ajudou e fez tudo por mim
quando tudo parecia impossível de se realizar.
À Lenise, companheira nesta jornada de estudos e, com certeza, muito mais
que isso. Ela foi determinante em meu caminho de desbravar um curso novo,
uma cidade nova e amigos novos. Lê, obrigada por fazer deste desafio algo
bem mais leve enquanto foi dividido com você.
À Profa. Mary Jane por ter me dado a chance de ter com ela orientações
seguras e constantes, pelo exemplo de correção e dedicação e pela tolerância
em meus momentos de dificuldade.
Aos colegas do Núcleo de Práticas Discursivas e Produção de Sentidos da
PUC-SP, Milagros, Jaqueline, Serginho, Rafaela, Wanda, Nina, Eliete,
Alexandre, Mariana e tantos outros que passaram no grupo nestes quatro
anos, que fizeram toda a diferença no desenrolar deste trabalho, criaram a Drix
e a fizeram se sentir especial.
À querida Marlene, secretária do programa, pelos diversos favores,
esclarecimentos e conduta que foram muito mais que eficientes.
Aos professores Odair Sass, Kátia Rúbio e Jaqueline Brigagão, que aceitaram
e contribuíram significativamente no processo de qualificação deste trabalho.
À CAPES pelo auxílio financeiro.
À instituição que permitiu a minha entrada e a todos que trabalharam comigo
durante a pesquisa, principalmente os atletas e seus interlocutores.
Em especial à minha revisora, Suzana Oellers, que sempre me deu a
segurança de que este trabalho ficaria impecável.
À Ana More, que auxiliou com seus conhecimentos de inglês.
À amiga Adriana Parada pelo resgate da amizade sem formalidades e com
direito a me ajudar em tudo que precisei neste longo caminho. Sem deixar de
mencionar a beleza das apresentações feitas por ela e que sempre elevaram
meu trabalho a um patamar superior.
Às professoras da UFG, onde fui professora substituta por um ano, Rosário,
Edna, Susie, Mona, Renata e Gina. Elas foram solidárias e amigas sempre,
para que eu tivesse condições de terminar o doutorado.
À amiga do coração Malu, pelas críticas sempre pontuais, pelo encorajamento,
devoção e carinho que me deram a certeza de que no final tudo acabaria bem,
com meu carinho todo especial.
É UMA PARTIDA DE FUTEBOL
Samuel Rosa e Nando Reis
Bola na trave não altera o placar
Bola na área sem ninguém pra cabecear
Bola na rede pra fazer o gol
Quem não sonhou em ser um jogador de futebol?
A bandeira no estádio é um estandarte
A flâmula pendurada na parede do quarto
O distintivo na camisa do uniforme
Que coisa linda é uma partida de futebol
Posso morrer pelo meu time
Se ele perder, que dor, imenso crime
Posso chorar, se ele não ganhar
Mas se ele ganha, não adianta
Não há garganta que não pare de berrar
A chuteira veste o pé descalço
O tapete da realeza é verde
Olhando para bola eu vejo o sol
Está rolando agora, é uma partida de futebol
O meio-campo é lugar dos craques
Que vão levando o time todo pro ataque
O centroavante, o mais importante
Que emocionante, é uma partida de futebol
O meu goleiro é um homem de elástico
Os dois zagueiros têm a chave do cadeado
Os laterais fecham a defesa
Mas que beleza é uma partida de futebol
Bola na trave não altera o placar
Bola na área sem ninguém pra cabecear
Bola na rede pra fazer o gol
Quem não sonhou em ser um jogador de futebol?
O meio-campo é lugar dos craques
Que vão levando o time todo pro ataque
O centroavante, o mais importante,
Que emocionante uma partida de futebol!
RESUMO
Diante da gama de possibilidades que o fenômeno esportivo em geral
apresenta para a sociedade, e especificamente o futebol na sociedade
brasileira, optamos por realizar um estudo sobre a construção coletiva do tipo
“jogador de futebol profissional”. A partir da sistematização de elementos
observados e conversados no contexto do futebol, foi possível refletir acerca da
configuração social que permeia essa construção e entender as matrizes
especificadoras, as relações sociais que são formadas, os atores envolvidos,
as materialidades presentes, a ocorrência de jogos de força nas relações
sociais, sua caracterização e entrelaçamentos inter e intracategorias do futebol.
Para que isso fosse possível, escolhemos a observação in loco das situações
de treinamento e jogo de diferentes categorias de jogadores de futebol (dente
de leite, infantil, mirim, juvenil, júnior e profissional). Também conduzimos
conversas informais com jogadores dessas categorias e com as pessoas
citadas por eles como integrantes de sua rede de relações sociais (familiares e
profissionais associados ao futebol, como médicos, nutricionistas,
fisioterapeutas, jornalistas, professores, coordenadores, dirigentes e
patrocinadores dos clubes). Decidimos utilizar um recorte transversal de faixa
etária/categoria, no qual foi escolhido aleatoriamente um jogador de futebol de
cada categoria e, a partir dele, buscamos identificar pessoas que constituem
seu cotidiano como jogador de futebol. Observamos seus treinamentos,
participação em jogos, rotina e as pessoas presentes em sua vida quando o
assunto é futebol. A partir da pergunta norteadora “O que é ser um jogador de
futebol profissional?”, conversas informais com os interlocutores presentes na
vida de cada atleta demonstraram os sentidos utilizados na perspectiva de
cada um dos envolvidos na construção do tipo jogador de futebol profissional.
Os resultados mostraram que a trajetória desses jovens em busca de sua
formação e da consolidação de sua pertença a essa categoria é definida por
esses sentidos, os quais, por conseguinte, consolidam a matriz na qual o
próprio tipo se atualiza como categoria. A trajetória desses indivíduos é
permeada de situações diferentes e de pessoas, relatoras de idéias e
expectativas próprias, que nem sempre se coadunam com o entendimento da
realidade vivida e desejada pelos próprios atletas. Entender essa trajetória,
desde o período da infância até a aposentadoria do esportista, requisitou fazer
escolhas que levassem a compreender as particularidades do processo. Esses
resultados corroboram a tese deste estudo, a qual afirma que a matriz que
constrói o jogador de futebol profissional está presente nas diferentes faixas
etárias, produzindo e reafirmando sentidos que o caracterizam como tipo.
Palvras-chave: Construcionismo. Futebol. Práticas discursivas. Psicologia
social do esporte.
ABSTRACT
Social construction of the type “professional soccer player” in a cross-
sectional perspective of its categories from a point of view of the people
that have a position in his social relationship network
Given the great variety of possibilities that the sports phenomenon in general
presents to society, and specifically soccer in Brazilian society, we have chosen
to study the collective construction of the type “professional soccer player”.
Through a systematization of spoken and observed elements in soccer it was
possible to reflect on the social configuration that permeates this construction
and to understand the specifying matrixes, the social networks that are formed,
the actors involved, the materialities that are present, the occurrence of
competitions for strength in the social network, their characterization, and the
interweavings of inter and intracategories in soccer. To make all this possible,
we observed in loco the trainings and matches of different categories of soccer
(3-5 year-olds, 6-8 year-olds, 9-11 year-olds, 12-16 year-olds, 17-20 year-olds,
professionals). Also, we held informal conversations with players of these
categories and the people they mentioned as part of their social networks
(family members, professionals associated to soccer, such as physicians,
nutritionists, physical therapists, journalists, teachers, coordinators, directors,
and club sponsors). We decided to approach the age group/category in a cross-
sectional perspective, for which at least one soccer player of each category was
randomly chosen to permit the identification of the social network that
constitutes his universe as a soccer player. We observed their training and
participation in matches, their routine, and the people present in their life when
soccer is the issue. The question “What is the meaning of being a professional
soccer player?” was the starting point for informal conversations with the
components of the network, which demonstrated the meanings according to the
point of view of each person involved in the construction of the professional
soccer player type. The results showed that the trajectory of these young boys,
searching for their formation and consolidation of their sense of belonging to
this category, is defined by these meanings; as a result, they consolidate the
matrix in which the type is updated as a category. The trajectory of these
individuals is permeated by people and different situations, which produce their
own ideas and expectations, not always correlated to the understanding of the
reality the athletes live and want. To understand this trajectory, from the
athlete’s childhood to retirement, it was necessary to grasp the particularities
and the psychosocial mediations of the construction of the professional soccer
player type.
Key words: Constructionism. Soccer. Discursive practices. Social psychology
of sport.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1
Prática do tsu chu na China. ................................................... 85
Figura 2
Representação de como era jogado o tlachtli na maioria dos
lugares. ...................................................................................
86
Figura 3 Atleta grego equilibrando uma bola em sua coxa,
provavelmente demonstrando uma técnica de treinamento
de epyskiros ao menino. ......................................................... 86
Figura 4
Harpastum, conhecido como o jogo da bola pequena. .......... 87
Figura 5
O jogo de kemari. .................................................................... 88
Figura 6
A prática do soule na Bretanha e Normandia. ........................ 88
Figura 7
A prática do gioco del calcio fiorentino. .................................. 89
Figura 8
Taberna Freemason’s, em Londres, local em que foram
discutidas as regras e as determinações do football. ............. 91
Figura 9
Alfred Common, o primeiro jogador de futebol a ser
negociado. .............................................................................. 94
Figura 10
Charles Miller, o pai do futebol no Brasil. ............................... 95
Figura 11
Hans Nobiling e as antigas bolas de futebol. .......................... 96
Figura 12
Oscar Alfredo Cox: símbolo da aristocrática juventude
brasileira de 1902. .................................................................. 96
Figura 13
Charles Miller jogando na primeira partida de futebol
realizada no Brasil. ................................................................. 97
Figura 14 Carlos Alberto tentou disfarçar sua cor passando pó-de-
arroz no corpo. ........................................................................ 99
Figura 15
Seleção Brasileira de Futebol: tricampeã da Copa do Mundo
em 1970, no México. ............................................................... 105
Figura 16
Categorias no futebol definidas pela faixa etária. ................... 118
Figura 17
Diário de campo. ..................................................................... 126
Figura 18
Percurso do jogador de futebol. .............................................. 127
Figura 19
Elementos que integram a matriz dos jogadores por
categoria. ................................................................................ 131
Figura 20
Representação gráfica do conjunto intercambiável formado
por tipo, interlocutores e matriz. .............................................. 132
Figura 21
Sentidos produzidos pelos diferentes partícipes da matriz do
jogador de futebol nas diferentes categorias definidas pelo
clube para treinamento. ..........................................................
133
114
Figura 22
O jogador de futebol das diferentes categorias estudadas e
seus interlocutores. ................................................................. 140
Figura 23
Repertórios dos jogadores de futebol das diferentes
categorias estudadas. ............................................................. 141
Figura 24
Repertórios dos pais dos jogadores de futebol das diferentes
categorias estudadas. ............................................................. 142
Figura 25
Repertórios das mães dos jogadores de futebol das
diferentes categorias estudadas. ............................................ 143
Figura 26
Repertórios dos irmãos dos jogadores de futebol das
categorias mirim, juvenil, júnior e profissional. ....................... 144
Figura 27
Repertórios das namoradas dos jogadores de futebol das
categorias juvenil e júnior. ...................................................... 145
Figura 28
Repertórios da esposa do jogador de futebol da categoria
profissional. ............................................................................. 145
Figura 29
Repertórios dos amigos dos jogadores de futebol das
categorias mirim, juvenil, júnior e profissional. ....................... 146
Figura 30
Repertórios das nutricionistas dos jogadores de futebol das
categorias infantil, mirim, juvenil, júnior e profissional. ........... 147
Figura 31 Repertórios dos fisioterapeutas dos jogadores de futebol das
categorias juvenil, júnior e profissional. .................................. 148
Figura 32
Repertórios do roupeiro do time do jogador de futebol da
categoria profissional. ............................................................. 149
Figura 33
Repertórios do empresário do jogador de futebol da
categoria profissional. ............................................................. 150
Figura 34
Repertórios do torcedor do time do jogador de futebol da
categoria profissional. ............................................................. 151
Figura 35
Repertórios dos auxiliares técnicos dos times dos jogadores
de futebol das categorias júnior e profissional. ....................... 152
Figura 36
Repertórios dos preparadores físicos dos jogadores de
futebol das categorias juvenil, júnior e profissional. ................ 153
Figura 37
Repertórios dos professores e técnicos dos jogadores de
futebol das categorias dente de leite, infantil, mirim, juvenil e
júnior. ...................................................................................... 154
Figura 38
Repertórios do técnico do jogador de futebol da categoria
profissional. ............................................................................. 155
Figura 39
Repertórios dos colegas de profissão dos jogadores de
futebol das categorias júnior e profissional. ............................ 156
Figura 40
Repertórios do patrocinador do time do jogador de futebol da
categoria profissional. ............................................................. 156
Figura 41
Dimensões descritas pelos interlocutores em diferentes
posições da matriz do jogador que recaem sobre a categoria
dente de leite. ......................................................................... 158
Figura 42
Dimensões descritas pelos interlocutores em diferentes
posições da matriz do jogador que recaem sobre a categoria
infantil. ..................................................................................... 158
Figura 43
Dimensões descritas pelos interlocutores em diferentes
posições da matriz do jogador que recaem sobre a categoria
mirim. ...................................................................................... 159
Figura 44
Dimensões descritas pelos interlocutores em diferentes
posições da matriz do jogador que recaem sobre a categoria
juvenil. ..................................................................................... 159
Figura 45 Dimensões descritas pelos interlocutores em diferentes
posições da matriz do jogador que recaem sobre a categoria
júnior. ...................................................................................... 160
Figura 46
Dimensões descritas pelos interlocutores em diferentes
posições da matriz do jogador que recaem sobre a categoria
profissional. ............................................................................. 160
Figura 47
Representação gráfica da matriz social do jogador de futebol
profissional. ............................................................................. 188
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ...................................................................................... 15
CAPÍTULO 1 – POR UMA PERSPECTIVA CRÍTICA ................................ 21
1.1 Fazer ciência na pós-modernidade ....................................................... 21
1.2 O futebol na sociedade do espetáculo ................................................. 37
CAPÍTULO 2 – CONSTRUCIONISMO, LINGUAGEM, TIPO SOCIAL E
MATRIZ ...................................................................................................... 49
2.1 Por uma perspectiva crítica sobre o conhecimento: o construcionismo
como opção epistemológica ....................................................................... 49
2.2 Linguagem e produção de sentidos ...................................................... 52
2.3 Caracterização de tipo social e matriz .................................................. 55
2.4 Atletas ciborgues: a questão informacional e as materialidades .......... 62
CAPÍTULO 3 – O FUTEBOL NA PERSPECTIVA DAS TEORIZAÇÕES
SOBRE AS FUNÇÕES DO BRINCAR E DO JOGAR NO
DESENVOLVIMENTO DA SOCIABILIDADE ............................................ 67
3.1. Psicologia social e formação do atleta: a perspectiva de George
Herbert Mead .............................................................................................. 67
3.2. Caracterização do brincar e do jogar na concepção de Johan
Huizinga ...................................................................................................... 72
3.3 A classificação dos jogos segundo Roger Caillois ............................... 78
CAPÍTULO 4 – O PROCESSO DE LEGITIMAÇÃO SOCIAL DO
FUTEBOL ................................................................................................... 85
4.1 Dos primórdios à formalização globalizada do futebol ......................... 85
4.1.1 Primeira etapa do futebol: os jogos com bola .................................... 85
4.1.2 Segunda etapa do futebol: os anos selvagens .................................. 91
4.1.3 Terceira etapa do futebol: a organização em entidades e a
disseminação pelo mundo .......................................................................... 92
4.1.4 Quarta etapa do futebol: a mercantilização ....................................... 93
4.2 O futebol no Brasil ................................................................................ 95
4.2.1 Primeira fase (1894-1904): elite boa de bola ..................................... 97
4.2.2 Segunda fase (1905-1933): o futebol da elite para o povo ................ 99
4.2.3 Terceira fase (1933-1950): a profissionalização ................................ 102
4.2.4 Quarta fase (1950-1970): a pátria de chuteiras ................................. 103
4.2.5 Quinta fase (1970-2007/2014): futebol total ...................................... 105
CAPÍTULO 5 – METODOLOGIA ............................................................... 109
5.1 Etapas do trabalho de campo ............................................................... 112
5.1.1 Caracterização dos participantes ....................................................... 118
5.1.2 Caracterização do local ..................................................................... 119
5.2 Técnicas ................................................................................................ 120
5.2.1 Observação ........................................................................................ 120
5.2.2 Conversas no cotidiano ..................................................................... 121
5.3 Caminho percorrido .............................................................................. 124
CAPÍTULO 6 – SOBRE CATEGORIAS ETÁRIAS E MATRIZES: A
CONSTRUÇÃO DO TIPO “JOGADOR DE FUTEBOL PROFISSIONAL”
EM UMA PERSPECTIVA TRANSVERSAL ............................................... 127
6.1 As categorias de treinamento ............................................................... 128
6.2 Elementos que formam a matriz do jogador de futebol profissional ..... 130
CAPÍTULO 7 – SER JOGADOR DE FUTEBOL: A PERSPECTIVA DE
JOGADORES E DE INTEGRANTES DE SUAS MATRIZES .................... 137
7.1 Definição de jogador de futebol profissional pelos diferentes
elementos da matriz: análise por posição .................................................. 139
7.2 Definição de jogador de futebol profissional pelos diferentes
elementos da matriz: análise por categoria ................................................ 157
CAPÍTULO 8 – REPERTÓRIOS EM CIRCULAÇÃO: AS CENAS
ENUNCIATIVAS ......................................................................................... 161
8.1 O álbum de figurinhas ........................................................................... 161
8.2 A munhequeira ...................................................................................... 163
8.3 O quase filho de Francisco ................................................................... 165
8.4 Cartão vermelho para todos ................................................................. 170
8.5 A galinhada ........................................................................................... 172
8.6 Chuteiras para qualquer pé .................................................................. 175
CAPÍTULO 9 – CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................. 179
REFERÊNCIAS .......................................................................................... 191
15
APRESENTAÇÃO
O futebol no Brasil é uma prática muito freqüente e identitária da nação.
A grande maioria dos brasileiros tem, desde a mais tenra idade, sua vida
perpassada de alguma forma por esse fenômeno esportivo que lhe permite a
vivência de momentos especiais e a sensação de fazer parte de um todo.
Nesta pesquisa visamos estudar a construção do tipo social “jogador de
futebol profissional” a partir da psicologia social e, mais especificamente, da
perspectiva construcionista. Esta última permite uma leitura crítica das
construções sociais do nosso tempo, afirmando que o mundo não precisa
necessariamente se configurar de uma única forma e, se foi construído como
está agora, poderia também tê-lo sido de outra forma. Hacking (2001)
preconizou a utilização de conceitos, categorias e idéias para organizar e
facilitar o entendimento do mundo. Assim, a noção de tipo social é decorrência
dessa estratégia facilitadora.
Partindo da premissa de que o mundo é socialmente construído, assim
como tipos sociais são criados (professores, pais, técnicos, garçom, mulher,
refugiado), buscamos analisar e desconstruir as engrenagens que articulam os
“tipos” para melhor compreender seu funcionamento. Os tipos não são
necessariamente bons ou ruins, bonitos ou feios, certos ou errados; a
perspectiva crítica permite identificá-los e explicitá-los para que as pessoas que
neles circulam possam, a partir do conhecimento dos elementos que os
estabelecem, ser mais livres e conscientes, além de ter a capacidade de ir, vir
e falar da matriz social da qual participam.
Imersa na pós-modernidade e na sua condição, observam-se com essa
leitura as potencialidades e as múltiplas possibilidades de ser pessoa neste
mundo. Diferentemente do que se pensava na modernidade, ser pessoa é ser
pluri e não uno, além de poder circular nos diferentes tipos que desempenha
socialmente sem ter de se cristalizar ou se definir como um único tipo. A noção
de identidade é relacional e fluida e as engrenagens presentes em seu
processo de formação podem configurar e reconfigurar suas potencialidades de
ser e estar no mundo.
16
Com a racionalidade supracitada pode-se descrever este trabalho a
partir da seguinte proposição: existe uma matriz configurada, muitas vezes,
pelas relações entre dinheiro (sistema neoliberal), busca de fama/sucesso
(sociedade do espetáculo) e profissionalismo de alta performance (exigindo da
tríade ação, cognição e emoção o máximo possível de controle e rendimento e
levando-a ao limite). Esses aspectos são criados e sustentados pelo grupo
social direto (local) e pela sociedade como um todo (global). Por meio das
práticas discursivas, é possível verificar como os repertórios lingüísticos que
circulam constituem uma linguagem específica do contexto futebol e geram o
tipo “jogador de futebol profissional”, deste modo formando uma matriz
específica.
Por vezes, o jogador de futebol profissional ainda em formação fala de
“dentro” do tipo, se referindo a ele mesmo, enquanto outras vezes fala de
“fora”, como quem se refere a um personagem. Em ambas as formas, é
possível demonstrar as engrenagens que subsidiam as construções do tipo e,
também, como são construídos pelo jogador de futebol profissional os
mecanismos de resistência frente às pressões que sofre. Sendo assim, o
percurso de apresentação deste trabalho será iniciado com as bases teóricas
que nos levaram a construir os argumentos que o compõem.
Portanto, com esta pesquisa buscamos apresentar e inter-relacionar
assuntos como pós-modernidade, construção social, linguagem, tipo social,
matriz e futebol. Está vinculada, de modo expressivo, à trajetória pessoal e
acadêmica da pesquisadora, que tem como características ser apaixonada por
esportes, ter sido atleta, ter realizado sua formação básica em psicologia,
especialização em psicologia do esporte e mestrado em educação especial,
além de ter como ofício a docência universitária. Tudo isso somado possibilitou
a concepção deste trabalho sobre o fenômeno de massa futebol construído
pela inter-relação entre elementos individuais e sociais nos âmbitos geral e
específico, descrita nas dimensões econômica, política, social e individual que
requerem explicitação e discussão no ambiente acadêmico.
O presente estudo teve como objetivo analisar e compreender o
processo de formação do tipo social “jogador de futebol profissional”, bem
como identificar e apresentar a forma particular da configuração social presente
17
no contexto desta categoria de atleta. Para isso, procedemos a uma análise
das redes de relações sociais heterogêneas presentes em sua matriz social e
que se interconstituem com ele.
Pretendemos, assim, refletir sobre a constituição e a reprodução dessa
configuração engenhosa de valores, crenças, interesses e sonhos que circulam
por meio de repertórios repletos de sentidos no processo de sua formação
pessoal e profissional. Sustentamos a tese de que a configuração matricial e
rizomática na qual o tipo social “jogador de futebol profissional” está inserido
encontra-se presente, quase na íntegra, nas diferentes faixas etárias, ou seja, a
matriz que apóia o tipo “jogador de futebol profissional” antecede e extrapola o
processo de formação deste atleta.
Observamos que variáveis situacionais, materialidades, atores familiares
e da equipe de saúde se fazem presentes nas categorias dente de leite, infantil
e mirim. Nas categorias juvenil e júnior, há o acréscimo de outros profissionais
de saúde, comissão técnica, dirigentes, patrocinadores e torcedores como
variáveis. Por fim, na categoria profissional, existe a presença de profissionais
liberais, como assessores pessoais de imprensa e de imagem, advogados
pessoais e vários empresários para um único jogador, compondo um staff que
gerencia todos os aspectos de sua carreira.
O esporte em geral, e mais especificamente o futebol, é um fenômeno
de massa que interessa a pessoas do mundo todo (FOER, 2005). Na
atualidade, em decorrência do alcance e do poder da mídia, o mundo se tornou
“menor” e a sociedade, com sua possibilidade de visualização e globalização,
transformou-se em palco e espetáculo simultaneamente (DUNNING, 1979;
GIULIANOTTI; WILLIAMS, 1994; RICUPERO, 2001; TIESLER, 2004).
No futebol, não são somente os jogadores que se tornam ídolos e
circulam produzindo notícias mundo afora. Troféus também circulam
amplamente, expostos em estádios para a promoção de campeonatos.
Uniformes de todos os clubes e pátrias são trocados por jogadores e
torcedores e comercializados nos magazines e nas ruas pelos camelôs. As
marcas esportivas produzem materiais de altíssima tecnologia e, obviamente,
vendem mais do que os seus produtos podem oferecer por si mesmos, vendem
18
os conceitos e a ideologia de um estilo de ser e de ascender, associado à
imagem de sucesso do atleta que as utiliza.
A psicologia social e a perspectiva epistemológica construcionista,
recorte que abriga este estudo, oferecem inúmeras possibilidades de reflexão
sobre o tema na medida em que se ocupam da problematização dos processos
sociais e da construção de tipos sociais. A psicologia social crítica brasileira
1
tem especial interesse em compreender as mudanças sociais e a construção
de fatos sociais relacionados ao cotidiano. No caso específico desta pesquisa,
propomos compreender o fenômeno social do futebol a partir das práticas
discursivas, tomadas como expressões ou produções sociais que levam a
compreender os sentidos do que se considera jogador de futebol profissional.
Para isso, esta tese está organizada de acordo com a seguinte estrutura:
CAPÍTULO 1 POR UMA PERSPECTIVA CRÍTICA, no qual
descrevemos o percurso lógico racional do que se denomina uma perspectiva
crítica: o fazer ciência na pós-modernidade e o futebol no contexto da
sociedade do espetáculo;
CAPÍTULO 2 – CONSTRUCIONISMO, LINGUAGEM, TIPO SOCIAL E
MATRIZ, em que exploramos o olhar da psicologia e da perspectiva
epistemológica do construcionismo, como se trabalha a linguagem a partir da
perspectiva construcionista e definimos o que se chama de tipo social “jogador
de futebol profissional” e matriz social. Acrescentamos, ainda, a metáfora do
ciborgue como uma forma de pensar o atleta na contemporaneidade;
CAPÍTULO 3 – O FUTEBOL NA PERSPECTIVA DAS TEORIZAÇÕES
SOBRE AS FUNÇÕES DO BRINCAR E DO JOGAR NO
DESENVOLVIMENTO DA SOCIABILIDADE, em que apresentamos elementos
do processo formativo do atleta com base na perspectiva de George Herbert
Mead, além da caracterização do brincar/jogar na concepção de Johan
Huizinga e a classificação dos jogos segundo Roger Caillois;
CAPÍTULO 4 – O PROCESSO DE LEGITIMAÇÃO SOCIAL DO
FUTEBOL, no qual apresentamos, de forma sucinta, a trajetória do futebol
1
Spink e Spink (2006) referem-se a ela como uma psicologia crítica, comprometida com a
realidade e a transformação social, fruto de amplo movimento dentro e fora da psicologia e
focalizada no questionamento de verdades geralmente aceitas.
19
como esporte, desde o seu início até os dias de hoje, e o atleta inserido no
contexto atual, com os interlocutores presentes em suas relações sociais
específicas do futebol;
CAPÍTULO 5 – METODOLOGIA, em que apresentamos as diferentes
técnicas usadas no estudo, a noção de campo-tema, a descrição do local e dos
participantes e como se deu a realização desta pesquisa;
CAPÍTULO 6 – SOBRE CATEGORIAS ETÁRIAS E MATRIZES: A
CONSTRUÇÃO DO TIPO “JOGADOR DE FUTEBOL PROFISSIONAL” EM
UMA PERSPECTIVA TRANSVERSAL, no qual apresentamos resultados
sobre categorias etárias e matrizes na construção do tipo “jogador de futebol
profissional” em uma perspectiva transversal;
CAPÍTULO 7 – SER JOGADOR DE FUTEBOL: A PERSPECTIVA DE
JOGADORES E DE INTEGRANTES DE SUAS MATRIZES, em que
discutimos dados obtidos em conversas entabuladas no cotidiano dos
alunos/atletas com vários interlocutores, realizadas com foco na pergunta
norteadora: “O que é, para você, ser um jogador de futebol profissional?”;
CAPÍTULO 8 – REPERTÓRIOS EM CIRCULAÇÃO: AS CENAS
ENUNCIATIVAS, no qual exploramos os repertórios que definem o tipo por
meio de cenas do cotidiano, presenciadas e descritas no formato de narrativas
e analisadas tendo como base os aspectos teóricos salientados no estudo, as
dimensões apontadas no capítulo anterior e as posições de quem fala;
CAPÍTULO 9 – CONSIDERAÇÕES FINAIS: O QUE A PSICOLOGIA
TEM A VER COM ISSO?, em que fazemos o fechamento possível das
informações sistematizadas e compiladas, contexto no qual trazemos de volta a
psicologia como ciência mãe e a psicologia social do esporte como um
caminho plausível.
21
CAPÍTULO 1
POR UMA PERSPECTIVA CRÍTICA
1.1 Fazer ciência na pós-modernidade
Pretendemos, neste capítulo, apresentar a perspectiva epistemológica
que fundamenta esta tese, explicitando a noção de conhecimento que embasa
e perpassa todo o trabalho. Para a psicologia social, a noção de conhecimento
é determinante de toda a sua existência, porque define como iremos entendê-la
e com ela trabalhar. Este estudo trata de esporte, especificamente de sujeitos
que nascem, crescem e envelhecem sofrendo as influências do contexto do
futebol, com o decisivo agravante de residirem no chamado “país do futebol”.
Para pensar esse fenômeno cultural, iniciaremos com as bases
epistemológicas da pesquisa, isto é, a condição pós-moderna e, ao mesmo
tempo, perguntando: o que é pós-moderno nesta reflexão sobre o esporte, o
futebol e a construção social dos sentidos de ser jogador de futebol
profissional?
Hoje se utiliza muito a expressão pós para se referir às características
da sociedade contemporânea, tais como sociedade pós-moderna, pós-
religiosa, pós-política; ao explicitar o que é pós-modernidade, fica evidente ser
necessário, primeiramente, definir o que é modernidade, ou seja, estabelecer o
seu referencial.
A modernidade, delimitada temporalmente, está situada no período entre
os séculos XVII e XX. Uma de suas principais características foi o surgimento
da ciência moderna, com o estabelecimento das primeiras correlações
matemáticas entre os fenômenos naturais (FOUCAULT, 1981; ROUANET,
1998).
A partir daí, a filosofia passou a fazer um contraponto à ciência,
buscando fundamentos sólidos para o conhecimento. Dois caminhos se
apresentavam como possíveis: o racionalismo, que começou com René
22
Descartes (1596-1650), e o empirismo, que teve início com John Locke (1632-
1704). O ponto crucial para qualquer desses caminhos era a tentativa de
estabelecer uma base segura para o conhecimento. Podemos dizer que a
modernidade é caracterizada por um período de delimitações entre
verdadeiro/falso, certo/errado, moral/imoral, luz/sombra, as quais funcionavam
como parâmetros da verdade.
Naquele longo período, houve grande desenvolvimento das ciências
naturais e a física, a química e a biologia, entre outros saberes, deram sua
contribuição nas formas de compreensão da eletricidade e difusão de seu uso,
produção de vacinas, desenvolvimento do telefone, aprimoramento dos meios
de transporte e tantos outros avanços. Em suma, as pessoas achavam que
aquele período, repleto de descobertas, traria um futuro promissor e que
estavam todas diante de uma situação paradisíaca. Finalmente, a ciência
produzia grandes benefícios para a humanidade! Então, viriam pela frente a
alegria, a satisfação, a ordem e o progresso, pois a ciência iluminaria os
caminhos e levaria o homem ao auge da satisfação. Razão e método científico
passaram a ser as únicas fontes de conhecimento válidas. Tudo que parecia
dogma, interpretação ou fantasia não tinha mais espaço. Universalidade,
individualidade e autonomia eram os parâmetros a ser alcançados e colocados
a servo das forças produtivas.
O período que se estendeu do final do século XIX até o início do século
XX, entre os anos de 1870 e 1900, foi pautado por otimismo, esperança e
crença nas ciências naturais. Ainda nesse período, deu-se o surgimento das
ciências humanas, uma vez que foi percebida a necessidade de incluir nos
estudos científicos aspectos subjetivos das pessoas; entretanto, o modelo de
ciência que vigorava e devia ser seguido era pautado pelos métodos das
ciências naturais. Sendo assim, em 1879 surgiu a psicologia, com Wilhelm
Wundt, bem como o primeiro laboratório de psicofísica, tornando esta nova
ciência passível de ser estudada nos moldes das ciências naturais. Mesmo
antes disso, existiram as famosas leis de associação formuladas por David
Hume (1711-1776), que tomava como modelo a física de Isaac Newton (1643-
1727) já como uma tentativa de seguir os caminhos das ciências naturais.
23
A própria psicanálise de Sigmund Freud (1856-1939), a seguir, foi
pensada como um tipo de desdobramento da neurologia; o condicionamento
clássico de Ivan Pavlov (1849-1936) e a Gestalt ou psicologia das formas e das
estruturas de Wolfgang Köhler (1887-1967) foram elaboradas por intermédio de
experimentos de laboratório; além disso, o behaviorismo, a princípio com John
Watson (1878-1958) e, em suas versões seguintes, com Fred Simmons Keller
(1899-1996) e Burrhus Frederic Skinner (1904-1990), encontrou nas ciências
naturais o seu maior ponto de referência. As ciências, tal com são conhecidas
hoje, inclusive as ciências humanas, são filhas da modernidade.
Discussões teóricas e metodológicas caracterizam as diferentes
abordagens da psicologia e esta se estabeleceu, e tem se mantido, como uma
área plural que não dispõe de elementos para a definição de uma área
específica como a melhor. É interessante citar que nem na matemática, ciência
considerada mãe, existe consenso quanto às suas teorias. Gomes (2007, p.
333) nos diz: “A filosofia que se escolhe depende do homem que se é”. Dessa
forma, escolhe-se, utiliza-se e acrescenta-se aos saberes existentes um pouco
de cada um que por eles passa, de suas crenças e da forma como avança
teórica e metodologicamente.
Entretanto, o otimismo começou a desaparecer no início do século XX,
quando do advento da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), durante a qual o
conhecimento científico foi utilizado como instrumento de inúmeras
possibilidades para o mal. O clima se modificava e a ciência, com todas as
suas promessas, conseguia resolver alguns problemas da humanidade,
embora não todos. Além do mais, era coadjuvante na criação de outros tantos
problemas.
A medicina, como saber disciplinar, é um excelente exemplo da
contribuição da ciência para a humanidade. Porém, apesar de todas as
pesquisas feitas, até o presente momento ainda não se descobriu a cura de
várias doenças e, como descreve Foucault (1997), a medicina ainda gera um
sistema que se sobrepõe ao seu próprio saber como instância de poder. A
crença utópica de que a ciência resolveria todos os problemas humanos
tornou-se insustentável. O otimismo foi substituído pelo pessimismo. O
ocidente, como diria Hobsbawm (1995), estava condenado à decadência e aos
24
extremos. Eram guerras, grandes depressões, revoluções; eram “os tempos
modernos”, alusão feita por Charles Chaplin, em sua sensível e visionária obra
cinematográfica, na qual ele demonstra, de forma poética, a maquinização do
homem (MODERN times, 1936). Nesse intervalo de tempo está datado,
originalmente, o nascimento da pós-modernidade.
Chegar até aqui para introduzir o que é pós-modernidade nos auxilia a
contextualizar a origem do termo que, como expressão da filosofia, começou a
se caracterizar no começo do século XX, com o trabalho de Ferdinand de
Saussure (1857-1913), intitulado Curso de lingüística geral, originalmente
publicado em 1916 (SAUSSURE, 1995). O autor introduziu precisamente a
noção de que a linguagem é uma estrutura dentro da qual existem importantes
diferenças. Essa estrutura simbólica faz com que cada língua seja diferente de
outra ou que haja diferentes sentidos na mesma língua, dependendo do
contexto e, para isso, é necessário que ela tenha uma lógica interna pautada
em sua estrutura e função. Posteriormente, o antropólogo Claude Lévi-Strauss
(1908-) retomou, em 1958, em sua obra Antropologia estruturalista, a idéia de
estrutura na acepção de que as culturas podem ser compreendidas como um
sistema de relações fechadas, organizado e com regras próprias (LÉVI-
STRAUSS, 1989). A esse método de análise, a antropologia denominou
estruturalismo.
A chamada filosofia pós-moderna tomou esse método a partir de
releituras do estruturalismo feitas pelos então denominados pós-estruturalistas.
Foucault (1981, 1986, 1987, 1994, 1995, 2006) é, provavelmente, o nome mais
importante dessa fase e outros, como Deleuze (1974, 1985), Deleuze e
Guattari (1995), Lyotard (1989) e Rorty (1988, 2000), seguiram desenvolvendo
seus temas a partir dessa perspectiva. Gostaríamos de deixar claro que são
vários os elementos que se encontram na base da pós-modernidade e que o
estruturalismo, bem como as leituras dos pós-estruturalistas, são apenas
alguns deles.
Pensando no que é pós-moderno, observamos que é uma característica
comum entre os autores desta corrente (diferentemente do movimento dos
autores na modernidade – época de traçar fronteiras, traçar linhas entre
antinomias) apagar linhas, destruir fronteiras, mostrar a fluidez presente na
25
contemporaneidade, enfim, desconstruir para entender. Um ponto importante
para eles é que, ao estudar a sociedade e suas diferentes culturas, deve-se
pensá-las como um sistema de regras próprias, sem antinomias, tendo por
pressuposto que, se existem fronteiras entre opostos que se completam, elas
somente terão sentido dentro de um sistema cultural de referência. É nessa
acepção que os filósofos pós-modernos quebram fronteiras, diluem os opostos
e criam metáforas explicativas para a dissolução do humano, como faz
Haraway (2001).
Os modernos diriam: a verdade é igual para todos, ela é aquilo que é
verdadeiro em todos os lugares, no sentido de universalidade. Assim sendo, 2
+ 2 = 4 em Paris, em Beijing ou em qualquer outro lugar e matar é errado em
qualquer parte do mundo. Os autores pós-modernos dirão que não, que 2 + 2 =
4 e matar são elementos que só podem ter sentido quando estão dentro de um
sistema social com cultura própria, na qual esses elementos façam (ou não)
sentido para aquela respectiva cultura internamente, ou seja, na dialogicidade
dos repertórios que são construídos dentro da sociedade. E mais, esses
elementos teriam origem social e instituiriam relações de poder (FOUCAULT,
2006).
Resumindo, os tipos sociais são internos a cada sociedade/cultura e se
configuram por relações de poder descritas em redes e matrizes sociais,
tramas ou rizomas, dependendo de sua complexidade (DELEUZE, 1974). É
importante ressaltar que na filosofia pós-moderna não há o relativismo amplo,
como fundamento de seus postulados. Para os pós-modernos, as antinomias
não deixam de existir. Verdadeiro e falso não se diluem na incerteza de sua
fusão; todavia, existem dentro de um contexto e não de forma universal. Não é
impossível ver o certo ou o errado, o verdadeiro e o falso; porém, estes
requerem um contexto, uma cultura para que possam ser analisados. Não é
que não exista lógica, mas a lógica interna de uma cultura pode parecer ilógica
aos olhos de indivíduos pertencentes a outra cultura.
Então, se as ciências humanas não cabem nos moldes das ciências
naturais, como pensá-las fora dos padrões de certo/errado? Sabemos que a
ciência é apenas uma entre as muitas maneiras de se conhecer o mundo e os
seres humanos que nele habitam. A relatividade pós-moderna está exatamente
26
em aceitar que os sentidos podem ser variados de acordo com as diferentes
culturas e com as diferentes formas de aquisição do saber.
Para Jameson (1999), a pós-modernidade teve seu início em 1960 e a
efervescência de sua problematização ocorreu em 1970. Foi descrita pelo autor
como a racionalidade do capitalismo tardio, que veio questionar os conceitos
modernos de sujeito, progresso, verdade, razão e legitimidade. Os sonhos
advindos do projeto iluminista, que fundamentavam a modernidade, viraram
pesadelo.
Em sua reflexão sobre a modernidade, Bauman (1999, 2004) a
considera uma transformação, deixando de existir na forma sólida e passando
a existir na forma líquida, metáfora representativa do tempo que deixava de ser
estável para outro tempo, agora volátil, mutável, inconstante e instável. Na
modernidade, as expressões culturais como a arte, a pintura e a literatura
foram nutridas pelos valores rígidos da tradição e das raízes, tão bem
expressos nas antinomias em que oscilava a descrição dos juízos de valor de
uma época. Os conceitos de estética, ética e ciência, antes tão sólidos, se
desmancharam no ar, apresentando efeitos em todas as manifestações
culturais.
A partir daí, então, surgiram questões pontuando o que estaria
acontecendo. Estaria decretada a morte, o fim da modernidade, ou de um
período que, inserido na modernidade, estabeleceu uma nova condição,
especificada por um novo conjunto de engrenagens ou formas de relações
(perpassadas pelo desenvolvimento tecnológico e informacional), que se
denomina pós-modernidade.
De acordo com Lyotard (1989), pensando a cultura contemporânea, a
condição pós-moderna caracteriza-se exatamente pela incredulidade quanto
aos mecanismos de legitimação do conhecimento na atualidade. Habermas
(2000, p. 47) afirma ser a pós-modernidade “a modernidade diante de um
projeto inacabado” e que “deveríamos aprender com os desacertos que
acompanham o projeto”. Projeto inacabado, segundo o autor, refere-se à
finalidade de promover igualdade social, independentemente das questões
multiculturais que a modernidade, enquanto planejamento racional
intersubjetivo, havia começado a encetar.
27
Cabe refletir que a pós-modernidade parece carregar consigo um
desligamento do sujeito de si próprio e de seus sonhos iluministas. O problema
passou a ser como assumir, sem luto, a nova configuração cultural, ou mesmo
perante esta nova configuração – a condição pós-moderna –, saber como agir
e pensar diante de suas engrenagens e formas de relação.
Falar de esporte, cultura e sociedade na condição pós-moderna implica
viajar no tempo e pousar na contemporaneidade. Dessa forma, para entender
os processos sociais, as práticas discursivas e as redes de materialidades que
são constituintes da matriz esportiva na atualidade, se faz necessário situar o
que vem a ser condição pós-moderna. Assim, essa condição baseia-se na
apropriação de uma lógica racional específica, globalizadora, individualista e
reflexiva (GIDDENS, 2001, 2002; SPINK, 2001).
Considerando a fluidez da cultura e as novas determinações para a
relação espaço–tempo, que fazem do esporte, e mais especificamente do
futebol, um palco privilegiado de relações de poder, objetivamos problematizar
como ocorre a construção do tipo “jogador de futebol profissional”, como ele é
mantido, que personagens atuam e sustentam sua rede de relações sociais,
que se caracteriza como uma matriz e acaba por influenciar todo o seu
processo de formação.
Percebemos que existem alguns elementos que caracterizam essa
construção social e que configuram o imaginário sobre o que é ser um jogador
de futebol profissional: um atleta de alto rendimento, detentor de saúde, vigor,
dinheiro, fama e disposição acima de qualquer suspeita. Problematizar essas
idéias, geralmente recebidas como verdades, é uma maneira de entender
como essas construções são feitas. Daí se amplia o olhar sobre o mundo e, por
conseguinte, sobre nós mesmos (IBÁÑEZ, 1993, 1994, 2001, 2004; ÍÑIGUEZ,
2003).
Um desses elementos é a linguagem, que fundamenta a construção
social da categoria jogador de futebol a partir de elementos que vão além da
sua objetividade, dos aspectos biológicos e das verdades postas. Inclui-se aqui
o ponto de vista histórico e cultural. Sendo assim, é possível, por meio do
entendimento das práticas discursivas e da produção de sentidos nos
microprocessos sociais, compreender as redes de relações envolvidas na
28
construção de conceitos e, mais especificamente, o que se chama de tipo
social. Isso se faz importante, pois esses conceitos subjazem às formas de
percepção e pensamento humanos sobre o social. O momento contemporâneo,
como definido por alguns (GUARESCHI; BRUSCHI; MEDEIROS, 2003; HALL,
2001), ou pós-moderno, como desejam outros (HARVEY, 2002; JAMESON,
1999; LYOTARD, 1989; SANTOS, 1989), é considerado uma mudança iniciada
pelo modernismo e que se configura como outro contexto para análises sociais.
Anderson (1999) defende que o pós-modernismo pode ser visto como
um campo cultural triangulado, com as seguintes coordenadas históricas: a
ordem dominante, a evolução tecnológica e as mudanças políticas de época. O
autor conclui que isso é resultante da combinação de uma ordem dominante
preponderante, uma tecnologia midiatizada e uma política sem as nuances da
ágora.
Por sua vez, Lyotard (1989) analisa a pós-modernidade em termos de
condição do conhecimento nas sociedades mais desenvolvidas e desloca-a
para o contexto da crise das narrativas, concebendo o pós-moderno como o
estado da cultura após as transformações que afetaram as regras do jogo da
ciência, da literatura e das artes a partir do final do século XIX. Entende-se aqui
a pós-modernidade não como conseqüência ou desdobramento do moderno,
mas como um movimento de renovação interna inerente ao moderno. Assim,
tendo o moderno como referência de partida, a condição chamada pós-
moderna se desenvolveu e se atualizou dentro do próprio período denominado
moderno, condição esta em que o conhecimento tornou-se a principal força
econômica de produção. O ponto central, para Lyotard (1989), é o debate
sobre a criação de um novo referencial epistemológico, capaz de responder às
novas condições do conhecimento impostas pelas transformações sociais. O
autor defende a tese de que o saber científico é uma espécie de discurso, e
aponta o quanto as transformações tecnológicas afetam o saber e criam novas
linguagens, alterando não apenas a produção do conhecimento, mas também o
senso comum. E assim, tanto o saber científico como os avanços tecnológicos
apresentam marcos de uma sociedade pós-industrial, terreno fértil no qual a
condição pós-moderna se desenvolve. Embora necessária no momento
29
contemporâneo, a discussão sobre a pós-modernidade está distante de ser
consensual e se dispersa em diversas perspectivas teóricas.
Giddens (1991, 2002) busca discutir a transição paradigmática da
ciência pós-moderna a partir da dupla hermenêutica. Para o autor, a reflexão
hermenêutica torna-se necessária para transformar a ciência de objeto
estranho, distante de nossas vidas, em objeto familiar e próximo, o qual,
mesmo não falando a língua de todos os dias, seja capaz de nos comunicar as
suas valências e os seus limites. Ainda esclarece que essa intenção pode ser
alcançada na medida em que se percebem as partes tendo como referência o
todo a que elas pertencem. Ele considera todo e parte, de algum modo, uma
ilusão mecânica, pois o princípio hermenêutico é o de que as partes são tão
determinadas pelo todo como o todo o é pelas suas partes. Daí a cautela ao se
tomar contato com os vários fenômenos sociais contemporâneos, entre os
quais se encontra o esporte e, particularmente, o futebol, com sua
singularidade e diversidade. Isso porque se corre o risco de aceitá-los sem
qualquer crítica, como decorrência da espetacularização desses tempos,
mantida pela paixão, ou ainda, como contraponto, esmiuçá-los com habilidade
cirurgiã, correndo o risco de separar parte e todo.
Se, do ponto de vista da condição dos tempos atuais, existem inúmeras
controvérsias, a unanimidade da condição pós-moderna se afirma no modo
pelo qual as inúmeras análises e tendências se aglutinaram para formar um
novo gênero discursivo, possibilitando tantas análises quantas tendências
existirem (GIDDENS 1991; HALL, 2003). Decorre disso a condição central da
cultura que, no meio esportivo do futebol, é afirmada pelo modo como se dá a
formação do tipo social “jogador de futebol profissional”, formado por
intermédio da linguagem no imaginário e nas redes de relações sociais que o
sustentam e/ou o exploram.
Jameson (1999) preconiza que a pós-modernidade é o que se tem
quando o processo de modernização é findo e a natureza iluminada se foi para
sempre. Esse é um mundo mais que humano (no sentido de ganhos
tecnológicos individuais e perda de valores coletivos), no qual a cultura se
tornou uma segunda natureza. Sendo assim, a condição pós-moderna não é
uma dominante cultural de uma ordem social totalmente nova, mas apenas um
30
aspecto concomitante de mais uma modificação sistêmica do capitalismo.
Nessa condição, a própria cultura e seus elementos se tornaram um produto; o
mercado tornou-se seu substituto, isto é, um produto exatamente igual a
qualquer um dos itens que o constitui. A cultura, necessariamente, expandiu-se
a ponto de se tornar praticamente co-extensiva à economia, como base
sintomática de algumas das maiores indústrias do mundo e também de
maneira muito mais profunda, uma vez que todos os objetos e serviços
(materiais e imateriais) se tornaram, de forma inseparável, uma marca
manipulável ou um produto vendável.
Entretanto, o que parece uma vitória plena do individualismo burguês
sobre o indivíduo burguês faz com que esse sujeito reaja, crie novas formas de
resistência que o coloquem em situação de atuante sobre o sistema e não de
refém dele. A construção de novas possibilidades de ser e estar no mundo
contemporâneo estabelece a concordância com a mudança dos tempos e do
uso de toda a parafernália tecnológica e dos apelos do mercado de forma mais
crítica e reflexiva.
De maneira análoga, a cultura esportiva, e sobretudo do futebol, no
Brasil e no mundo, constitui-se como inevitável tecido da vida no capitalismo
avançado e apresenta-se como uma segunda natureza para os que dela fazem
parte ou por ela se interessam. Cabe ressaltar que, por mais que sugira uma
exaltação muitas vezes acrítica do uso das tecnologias, principalmente quando
os objetivos são desempenho, rendimento e lucro, negando qualquer
expressividade humana, a condição pós-moderna apresenta um potencial que,
se for aproveitado, pode levar o atleta a possibilidades de ganho pessoal e
coletivo. O que ele não pode é deixar de compreender o funcionamento da
matriz a que pertence e sua capacidade de atuação e valor diante de toda a
engrenagem. Conhecendo a sociedade e seus mecanismos articulares, o
esportista pode fazer escolhas mais conscientes diante do que lhe é
apresentado.
Para que isso ocorra, faz-se necessário saber que, nessa sociedade,
sobressaem o espetáculo de superficialismo, a competição, os ganhos, a
exaltação dos patrocinadores, a competição entre marcas tecnológicas que não
visam o ritual nem tampouco qualquer celebração de mitos ou sentido superior
31
de virtudes. Importante perceber que, nesse momento, há uma transformação
dos valores presentes na Paidéia – do corpo belo, da formação completa do
humano, realizada por meio das experiências dos sentidos com a música e as
artes, da cognição com a matemática e do corpo com os esportes –, mas que
ele não é massa de manobra dos interesses alheios. Na Paidéia, a espada era
instrumento de luta e acompanhava o sentido coletivo das conquistas;
atualmente, o corpo é moldado por técnicas de condicionamento físico
calibradas por suplementos alimentares, acessórios high tech, interfaces de
controle e câmeras que o focam, moldam e inventam, sem, porém, formá-lo ou
emancipá-lo.
Se, por um lado, a exacerbação dos valores físicos, acompanhada da
ingerência midiática para o consumo, destrói o conceito de emancipação no
sentido de utilização da razão como mecanismo esclarecedor e crítico, por
outro, o atleta, sabedor de tudo isto, pode reconstruir seus objetivos de trabalho
associando desenvolvimento técnico com crescimento pessoal. A prática
esportiva, que aparentemente se tornou mero contexto de espetáculo, palco de
tipos que atuam intencionalmente e são assistidos por outros tantos
apaixonados e manipulados dentro do jogo de interesses mercadológicos, pode
também levar à formação de um atleta crítico e transformador. Paixão e
manipulação oscilam como um pêndulo em função do senso crítico ou da falta
dele quanto à consciência do tipo social e da matriz que o sustenta. No
entanto, segurar esse pêndulo sabendo o que determina seu movimento pode
fazer com que os atletas se transformem em senhores de seus próprios
destinos, tomando as rédeas de muitas situações nas quais, de outro modo,
seriam meras marionetes.
Voltemos à cultura contemporânea e às possíveis “razões” dessa
aplicação no contexto esportivo do futebol profissional no Brasil. Seria o triunfo
do irracionalismo ou um novo conceito de razão o que fundamenta o contexto
esportivo na atualidade? Em que sentido pode-se falar de futebol, de
sociedade, a partir da perspectiva da condição pós-moderna? Que
racionalidade é esta, que vem substituir ou aterrar o grande sonho que a
humanidade elaborou para si mesma de razão libertadora e de emancipação
32
pela revolução ou pelo saber? Afinal, desde a Paidéia grega, o esporte é
agente intrínseco de formação do homem.
A racionalidade, advinda do domínio da natureza e da constituição de
saberes disciplinares, serviria à sociedade para lhe garantir segurança,
estabilidade e igualdade de direitos e oportunidades em qualquer contexto. A
ciência traria segurança, que protegeria a todos com o poder da razão
esclarecedora contra qualquer manifestação incontrolável e imprevisível da
natureza.
Infelizmente, esperar tanto do conhecimento objetivo em formato de
ciência transformou a criatura em algoz de seu criador. Ainda na modernidade,
a ciência, levada ao topo do exercício da razão, transformou-se em um Deus
que decidiu, para sua manutenção, acabar com qualquer outra forma de pensar
o mundo, tirando deste próprio mundo a liberdade do exercício da razão ou,
para sermos mais justos, criou uma razão própria. Trágico, levando em conta
que a idéia inicial era justamente emancipar. A serpente (símbolo do
conhecimento) engolia seu próprio rabo, e o que era caminho para a plenitude
humana se transformou em forte instrumento de opressão. Estariam
assegurados, entretanto, ordem e progresso.
Contudo, na pós-modernidade, especificamente no contexto do esporte
em geral e do futebol em particular, por intermédio dos conhecimentos
objetivos produzidos pelas ciências do esporte, legitimadoras de diferentes
tipos de controle sobre corpos e mentes, com seus saberes disciplinares, estão
sendo gerados superjogadores. Esses pagam o preço de sua transformação
em fenômenos e em produtos de um conhecimento que os leva, bem como
àqueles que desejam segui-los, ao exercício de uma prática de trabalho
acrítica, movida apenas pela estética de belas jogadas que podem ou não
resultar em gols (o futebol chamado de arte).
Vários e importantes eventos históricos marcam os efeitos do projeto de
uma ciência forte. No futebol não é diferente; pelo contrário, até hoje, e talvez
mais que nunca, a busca pelo domínio do conhecimento como ciência e seu
produto tecnologizado e midiatizado espetacularizam e corrompem tanto
quanto salvam ou libertam. Isso propiciou o surgimento de uma irracionalidade
calcada na paixão pelo esporte, que talvez seja o único meio de ascensão
33
social para muitos, que gera identidade nacional e, a cada quatro anos, uma
sensação coletiva de pertencimento à nação.
Em um país de tamanha desigualdade social como o Brasil, o futebol,
assim como o carnaval e as telenovelas, tem o sentido do “circo” que alegra e
distrai o povo cheio de necessidades que, literalmente, está sem “pão”. Como
maior fenômeno de massa do país de miseráveis, o futebol é contexto para
exorcizar as faltas e se travestir de verde e amarelo de modo a exaltar seus
tipos, os quais, de forma identitária, refletem desejos de ascensão e de
possibilidades.
Entretanto, depois de tanto fazer (bem e mal – sob o olhar moderno), a
ciência passou a ser questionada pelo desequilíbrio desses efeitos, pois, após
guerras, desastres ecológicos, destruições em massa e crises de humanidade,
as pessoas perceberam que esta mesma ciência precisa ser problematizada,
repensada e, quiçá, transformada. Se foi construída assim, por certo pode ser
reconstruída de forma diferente.
Hoje, mesmo sendo a melhor maneira de gerar conhecimento, o formato
cartesiano de ciência perdeu, pelo menos em parte, sua hegemonia como
detentora de todas as certezas. Já não é tão real que possa garantir que seu
processo seja suficientemente claro e preciso para predizer e controlar eventos
como idealizado anteriormente. Sua trajetória pode ser seguida nas tramas da
construção de fatos, como fizeram Latour (1999, 2000) e Latour e Woolgar
(1997) em suas obras. Os benefícios cotidianos, principalmente os
tecnológicos, apresentam múltiplas possibilidades e, ao mesmo tempo, uma
dependência idêntica. O controle dos corpos e mentes, muito presente nas
atividades esportivas, começa a ser questionado e, por vezes, desacreditado
como condição única e exclusivamente humana.
Esse ponto leva à reflexão sobre a condição humana e o efeito que toda
essa disciplina e tecnologia geram. Seriam esses jogadores de futebol
humanos ou seriam eles novos deuses em formato de máquinas? Seriam
heróis, reeditados pela tecnologia, ou anti-heróis pelo modo como se fazem
heróis? Esses mesmos atletas, na atualidade, aceitam se submeter a
arriscadas condições, pois o que importa é chegar ao fim, que é a vitória, a
34
qualquer custo, mesmo que isto os leve, posteriormente, a despencar do pódio,
quando, então, cairá o manto e se revelará o doping do existir como atleta.
Porém, o descrédito atual do esporte como agente emancipador e da
ciência como solução para todos os males parece transportado do projeto
iluminista que, em sua origem, continha o âmbar impregnado do DNA da
desconfiança. Dessa forma, compreende-se porque, na pós-modernidade, o
niilismo e a descrença na cultura como fonte de liberdade e emancipação
floresceram. E, mais ainda, o sistema sociopolítico e econômico opressivo
contemporâneo, que gera grande desigualdade social e impõe a forma como
os sujeitos devem agir, pensar e sentir, também engendra desconfiança e
desconforto. No esporte, existem “impressões” de progresso e saúde,
principalmente no contexto de alto rendimento; porém, o próprio espetáculo
que o apresenta e faz circular seus valores demonstra a fragilidade de seu
processo e a lógica do seu sistema, pois também veicula os efeitos da busca
irracional pela excelência, dos quais, muitas vezes, nem a própria ciência pode
dar conta. No meio esportivo, a desconfiança vem emoldurada pelo espetáculo,
pela possibilidade de ascensão social diante da falta de oportunidades, pela
fama e fortuna decorrentes da superação acompanhada de valores físicos e
sociais de grande poderio histórico, ético e moral.
Nesse caso, a racionalidade atual é rebuscada e nublada pela dúvida
quanto às possibilidades de fundamentação lógica tal que fuja a um modelo
que atenda ao sistema, sendo este modelo instrumental e individualizador. As
narrativas e as performances globalizantes, veiculadas em tempo real e
expressas em todas as formas de cultura, não anunciam liberdade. A cultura,
apresentada como uma segunda natureza, agora é definida pelo que pode ser
veiculado por intermédio das mídias, instantaneamente, preenchendo os
horários televisivos, motivando reclames, chegando a todos os cantos do
planeta e estabelecendo os valores dos tempos atuais a partir dos produtos
que carrega consigo. O ideal do projeto inicial de cultura (moderna e
emancipadora) não existe mais; o que se chama de cultura, na
contemporaneidade, como produto, e ao mesmo tempo como tecido do
capitalismo, já nasce com sua obsolescência programada.
35
Essa configuração requer indivíduos mais bem preparados para
entender a dinâmica relacional e fluida em que estão inseridos e, como tipos
sociais, por vezes são os nós centrais de matrizes repletas de pessoas
posicionadas e interessadas em exercer poder sobre eles. Essa condição os
leva a resistir ao sistema. Ser “antenado”, “tecno”, “pós”, ”virtual” e tudo que os
mantenha competitivos e habilitados a ascender no meio esportivo é válido,
desde que utilizado como meio e não como fim em si mesmo.
Lyotard (1989) iniciou sua tentativa de desmascarar a pretensão de
legitimidade da ciência pela evidência de que ela não pode provar-se por si
mesma. Exatamente nesse ponto, no fundamentalismo científico, é que reside
o que ele chamou de condição pós-moderna. No esporte, e mais
especificamente no futebol, os saberes associados ganharam projeção e
respeito por serem intitulados ciência do esporte; cada saber disciplinar
constitui-se como especificidade e carrega suas inscrições e materialidades
2
como se fossem agentes legitimadores. Freqüentemente, essas ciências
perdem a noção do contexto maior em que está inserido o jogador de futebol,
que é a sociedade, impondo suas técnicas e tecnologias como se estas
determinassem o que é certo, de uma forma geral, para o atleta. Nesse ponto,
vale a pena ressaltar a problematização que Latour (2000) propõe quanto à
formação e à fluidez da ciência e de seus derivados, além dos caminhos
labirínticos de construção e ação da ciência.
Sendo assim, é importante problematizar o conhecimento, tornando a
condição pós-moderna clara no que diz respeito ao direito de desafiar a ciência
como única instância legitimadora do que é e do que não é conhecimento. Para
tanto, se faz necessário aceitar que não existem certezas nas afirmações e
descobertas científicas, mas formas posicionadas de explicação, versões
legitimadas de saberes que não devem invalidar metodologias, porém situá-las,
deixando claro que apenas uma perspectiva parcial, posicionada, pode gerar
uma visão objetiva e ampla, com conexões claras e responsáveis (HARAWAY,
1995).
2
Inscrições e materialidades são termos que, segundo Latour (2000), se referem aos aparatos
técnicos produzidos pelo fazer científico e saberes que legitimam as categorias de análise e a
própria ciência.
36
A condição pós-moderna nos faz problematizar a objetividade da ciência
e de sua razão instrumentalizadora, além de questionar a sociedade e sua
relação com os indivíduos. Deve-se compreendê-la em um estado de perda da
confiança na cultura atual, midiatizada, que só parece existir como veículo de
interesses previamente programados e instrumento de consumo. Essa
condição gera a necessidade de outros paradigmas de ciência, assuntos
intoleráveis no discurso científico clássico. Por outro lado, descreve certa
fragilidade quanto a valores como segurança, saber e poder, mostrando que a
cultura pode ser tão assustadora em sua versão opressora quanto na
libertadora.
A permissividade total mostra-se culturalmente tão desastrosa quanto
uma cruel limitação: poder tudo é tão angustiante quanto não poder nada. E no
esporte, cruzar algumas fronteiras pode significar até a morte. A consciência da
incerteza, pelos detentores dos saberes disciplinares no esporte, gera imenso
desconforto para quem compreende a sua irracionalidade e raciocina com
outra lógica que não a instrumental. Sob esse ponto de vista, não há segurança
e previsibilidade sobre nada quando a cultura expressa valores e modelos de
explicação para nossas condutas. Entretanto, na perspectiva de quem é ídolo
ou consumidor, modelos são estabelecidos e seguidos de forma acrítica, sem
nenhuma angústia; no máximo, se há desconforto, isto decorre da
impossibilidade de aquisição da identidade ou do produto ao qual o ídolo se
refere. Giddens (2001, p. 73) corrobora essa idéia quando afirma que “A cultura
já não pode mais proporcionar uma explicação adequada do mundo que nos
permita construir ou ordenar nossas vidas; entretanto, não há nada de
misterioso no surgimento do fundamentalismo no mundo moderno tardio”.
Fica claro que adotar uma única forma de pensar e a tudo responder é
fugir da angústia latente e da dúvida constante, cujo fascínio advém do poder
dogmático de livrar os sujeitos das agonias da escolha individual, retirando-lhes
a determinação de suas próprias vidas e dando-lhes um sentido que legitime
seus atos. O fundamentalismo é um exemplo de ausência crítica, ou de
irracionalismo, que não pode ser confundido com a pós-modernidade apenas
por estar presente também no período pós-moderno.
37
1.2 O futebol na sociedade do espetáculo
O fascínio pelo espetacular, pelo fenomenal, pelo show imagético torna-
se cada vez mais evidente na condição pós-moderna, o que não pode ser
dissociado do desenvolvimento da tecnologia de informação, o qual, por sua
vez, possibilita que os grandes eventos esportivos estejam ao alcance do
mundo globalizado e façam parte do cotidiano e da cultura dos países
(DEBORD, 1992; RÚBIO, 2002). Tampouco pode esse fascínio ser dissociado
de transformações econômicas, que fazem do contexto pós-moderno um
ambiente propício e disfarçador da racionalidade instrumental, que se utiliza da
lógica cultural específica do capitalismo tardio, ou, em outras palavras, de
irracionalidade.
É comum caracterizar a cultura atual como “sociedade do espetáculo ou
de consumo” (DEBORD, 1992, p. 42), o que corresponde a aceitar que os
países se fazem respeitar por seu poderio tecnológico, pelas mercadorias que
produzem, trocam e consomem. Esse é um dos eixos centrais para a
compreensão da cultura esportiva: tudo pode ser consumido. Se outrora o
consumo era apenas de bens materiais com valor de troca, na atualidade tudo
e todos são simultaneamente mercadorias e consumidores. Portanto, é
necessário produzir os dois, demanda e objeto, na fluidez dos interesses, e
essa produção é bem mais cara e ardilosa que somente a produção de
mercadorias. O consumo de pessoas, produtos e serviços está pautado por
sua circulação, estabelecida pela linguagem dada aos acontecimentos, como
no exemplo de fenômenos que viram mercadorias, as quais, se forem
humanas, passam a agregar, com sua imagem, valor a tudo em que tocam.
A origem da análise atual sobre a sociedade do espetáculo é oriunda da
obra do pensador pós-marxista Guy Debord (1931-1994). Sua obra Sociedade
do espetáculo, originalmente publicada em 1967 (DEBORD, 1992) e até hoje
considerada atual, consiste em um importante instrumento analítico e
contestatório que auxilia a reflexão sobre a vida moderna e sobrepõe a imagem
e a representação ao real e ao natural, a aparência à realidade do ser, a ilusão
ao fato, a imobilidade e a passividade às ações de pensar e de fazer com
atitude. Pode-se ressaltar, em sua obra, uma crítica acentuada a todo tipo de
38
imagem que tira a ação do homem e o coloca em posição acrítica e passiva,
fazendo-o aceitar de forma alienada os valores do capital.
Tendo por base os ensinamentos de Debord (1992), é possível
compreender que a sociedade atual, particularmente no tange ao tema futebol,
está totalmente contaminada pelas imagens, pela aparência do que realmente
existe e não pelo plano da própria realidade. As imagens, seguindo os valores
de quem as cria e as faz circular, estabelecem o que vem a se tornar
parâmetro real.
Entendendo o futebol atual como um trabalho que envolve centenas de
pessoas com saberes diferentes em condições de produção e ganho,
observamos um imenso acúmulo de espetáculos. Aquilo que outrora era vivido
pelas pessoas em seu círculo local, agora, mediado pelo sistema informacional
de massa, ganhou alcance global e tornou-se, com o efeito gerado pela grande
audiência, uma imagem. Nesse ponto, são vários os tipos sociais famosos que
se tornaram heróis e ídolos instantâneos e que duraram como tal o exato
período de tempo que suas imagens ficaram em circulação, pois, retirando-as
de evidência, eles foram esquecidos tão rapidamente quanto haviam levado
para ser fabricados e idolatrados.
No futebol atual, globalizado, as imagens e as mensagens dos meios de
comunicação de massa criam e referendam tipos sociais específicos – reis,
fenômenos, bons moços, deuses, entre outros. Esses tipos são apresentados
de acordo com os interesses de quem os torna visíveis, podendo também ser
apresentados os demais tipos de um jogador (marido, religioso, filho, amigo)
quando o interesse comercial se faz presente. Nesse contexto, tanto o tipo
“jogador de futebol profissional” quanto aqueles que o assistem, e nele se
espelham, passam a viver em um mundo de consumo permanente de tudo
aquilo que foi associado ao tipo que lhes interessa: fatos, notícias, produtos e
mercadorias.
O espetáculo do futebol é composto de vários elementos, dimensões e
esferas de atuação; engloba um grande conjunto de atores e espectadores que
fazem parte, simultaneamente, do mesmo contexto e de outros tantos variados
em diferentes culturas; entretanto, estabelece uniformidades e padrões em alta
velocidade. Aquilo que está em volta do assunto vira um imenso espetáculo: o
39
atleta e tudo o que ele faz, inclusive fora dos gramados; o jogo, com suas
questões técnicas, táticas, físicas e psicológicas, assim como os saberes
envolvidos em cada uma; o uniforme, com toda a tecnologia desenvolvida por
diversas marcas de materiais esportivos, os esquemas de patrocinadores e as
disputas pelos tipos que levarão suas imagens ao sucesso de vendas; os
contratos, que são preenchidos com cifras inimagináveis e geram um êxodo de
jogadores, de todas as idades, em busca de maiores oportunidades de
ascensão social, rumo a países do mundo todo; as chuteiras, que fazem
milagres que os pés não podem acompanhar; os gestores, com suas
estratégias de marketing e as notícias que, por serem produzidas diariamente e
em horários considerados nobres, deixam de ser informações sobre os
acontecimentos e se tornam, constantemente, especulações e sensacionalismo
sobre pessoas e temas. Para Debord (1992, p. 32):
O espetáculo consiste na multiplicação dos ícones e imagens,
principalmente através dos meios de comunicação de massa, mas
também dos rituais políticos, religiosos e hábitos de consumo, de tudo
aquilo que faltava na vida real do homem comum: celebridades,
atores, políticos, personalidades, gurus, mensagens publicitárias –
tudo transmite uma sensação permanente de aventura, felicidade,
grandiosidade, ousadia. O espetáculo é aparência que confere
integridade e sentido a uma sociedade esfacelada e dividida. É a
forma mais elaborada de uma sociedade que desenvolveu ao
extremo o “fetichismo da mercadoria” (felicidade identifica-se com o
consumo).
Pode-se entender que, no futebol, a relação entre as pessoas,
principalmente aquelas em processo de formação, transformam-se e são
construídas tendo por base a imagem e o espetáculo. O consumo da imagem e
dos bens por ela induzidos ocupa o lugar do diálogo e do pensar que
anteriormente compelia a ação participativa e transformadora da sociedade.
Esse resultado é desastroso, pois leva as pessoas a um isolamento e à
afirmação do “eu que tenho coisas”, para, logo a seguir, conduzi-las à
massificação acéfala e devastada por uma inversão de valores do “eu que
tenho e pertenço ao todo”. O espetáculo e seus atores passam a constituir-se
em realidade e esta, em espetáculo, alimentando o círculo vicioso. Configura-
se, então, a perda de fronteiras e de limites claros para as coisas, uma
característica definidora do que se chama modernidade.
40
Com o assédio constante de imagens e informações, o indivíduo pode
passar a viver uma vida idealizada, na qual a ficção tende a misturar-se à
realidade e vice-versa. São jovens sonhando e acreditando que podem se
tornar reis, fenômenos, heróis e que, baseados neste sonho, consomem
produtos que os aproximam do objeto que o simboliza. Entre um jogo e outro, a
vida continua. As ações rotineiras, como ir à escola, treinar e viver o cotidiano
são mescladas com noticiários específicos, comerciais, jogos de diferentes
campeonatos, programas personalizados, ou seja, o reforço diário do sonho e
da vida cotidiana vão se alternando. Essa manipulação midiática afeta o reino
das emoções e, obviamente, o processo de formação das crianças e dos
jovens. Dessa forma, felicidade, raiva, justiça e solidariedade são apresentadas
como espetáculo, em uma realidade própria e teleguiada conforme os
conceitos de quem a produz.
Essas tecnologias informacionais de comunicação interferem na
percepção e na formação de conceitos dos indivíduos. Uma sociedade
espetacular, seja futebolística ou não, cria e reproduz uma forma de cultura
própria. Sua conseqüência é a construção de uma sociedade com tipos sociais
também próprios. No caso do futebol, além dos tipos serem superexpostos,
supermanipulados, também são pauta de outras relações familiares que não as
suas, aquelas invadidas por sua imagem. São geradas expectativas de mães,
projeções de pais, disputas entre irmãos, embates entre profissionais, entre
outras relações conflituosas.
Nesse processo, a mídia passa a ter peso fundamental no que se
estabelece como cultural e socialmente relevante. O espetáculo define os
parâmetros do que é socialmente aceitável e desejável, uma vez que é a
afirmação da imagem tornada visível por ela mesma e não, como observa
Debord (1992, p. 42), “a negação da vida que se torna visível.”
Não se pode esquecer que o mundo atual foi criado por nós mesmos;
manipulado ou não, é governado por algo socialmente construído que,
portanto, não precisa ser assim (HACKING, 2001). Nos esportes em geral, e no
futebol de maneira específica, torná-los espetáculo pode gerar identificação
popular, funcionar como vitrine política de uma ordem estabelecida pelo
Estado, maquiar problemas de ordem social e de direitos humanos, recuperá-
41
los, parar momentaneamente guerras e animosidades entre opostos políticos e
religiosos.
Nos anos após aquelas Copas do Mundo nas quais a Seleção Brasileira
de Futebol saiu vitoriosa (1958, 1962, 1970), houve efeitos sobre o país,
gerando a imagem de campeão, de um povo orgulhoso identificado com a
vitória. Como dizia Nelson Rodrigues, “a pátria de chuteiras”, mas que escondia
atrás dessa imagem atrocidades econômicas de endividamento externo
gigantesco e práticas nada democráticas de conduta do Estado.
Esse mesmo futebol, com o passar do tempo, apresentou nas Copas do
Mundo de 1994 e 2002, nas quais a Seleção Brasileira de Futebol também foi
vitoriosa, a referência de um país que continuava a gerar talentos e a se
desenvolver como país. Seus atores, antes reis e manés, passaram a ser
chamados de “fenômenos” pela sociedade que os constrói e consome,
apresenta-se democrática e faz crer aos cidadãos que estes têm poder,
oportunidades e liberdade de escolha para consumir os sonhos e os produtos
que lhes são ofertados.
Campbell (1990, p. 64) faz uma análise do consumo, identificando suas
relações com o romantismo, o sonho, a busca imaginária de realização: “a
atividade essencial do consumo não é a seleção, a aquisição ou o uso real dos
produtos, mas a procura imaginária do prazer a que se presta a imagem do
produto”. Assim, pode-se recorrer quase instantaneamente aos exemplos de
ídolos construídos no esporte que ajudam a vender produtos tendo por base o
sonho da realização imaginária de seus consumidores.
A forma como as pessoas vivem na sociedade atual demonstra que o
consumo transformou-se em atividade substitutiva da busca de formação
pessoal. A condição de possuir
objetos tomou lugar das condições de formação
que levam os indivíduos a ser
alguma coisa. Essa tendência ao consumismo
desenfreado pós-moderno é pautada por uma lógica instrumental que define os
sujeitos de acordo com aquilo que consomem. Não é raro ver, na época
presente, crianças, jovens e adultos trocando possibilidades de aprendizagem
e de experiências coletivas pelo consumo de aparatos tecnológicos que os
levam à competição e à individualização ou, no máximo, a um novo modelo de
coletividade intermediada pela tecnologia.
42
Aparatos ou inscrições tecnológicas como a televisão, de maneira geral,
e o computador, ainda de modo restrito, se transformaram na janela para o
mundo da maioria das pessoas. Por conseguinte, esses equipamentos são
fontes de dados, sites, imagens, signos, sentidos e a esse aglomerado de
informações, passou-se a chamar hoje de cultura. Esses conteúdos, como no
caso dos sites esportivos, são propaganda ou fragmentos de informações, por
vezes sem profundidade, a alimentar o imaginário atual; esteticamente belos e
fascinantes pelos efeitos, trazem no apelo visual o encantamento, embora nem
sempre favoreçam o entendimento de fatos e conteúdos. O sujeito que absorve
essa quantidade de informações de forma passiva, e é fruto de uma sociedade
extremamente desigual em termos de possibilidades de formação, passa a ser
somente condicionado reflexamente, como o cão do clássico experimento de
Pavlov na década de 1920 (PAVLOV, 1971), ou opera sobre a sua própria
passividade e articula mecanismos de resistência que o levam a uma interação
posicionada dentro do sistema.
Diante das posturas de autoridade, passividade e resistência, pontos de
um contínuo no qual estão presentes lógica instrumental, partidarismo faccioso,
adoração, indisciplina, posicionamento político, conhecimento dos mecanismos
do sistema e acesso aos caminhos de mudanças, conhecer pode se tornar
mera adaptação a um tipo de relação, reagir ao outro, estar informado, ser
esperto, ter excelente desempenho ou não. Assim, conhecer passa a ter outra
conotação, pautada pela consciência de fazer tudo o que foi acima descrito
como um meio para se chegar a um fim e não como um fim em si mesmo.
Uma ilustração dessa lógica adaptativa e condicionante esteve presente
na campanha do cigarro Vila Rica, veiculada na década de 1970. Gérson,
capitão da Seleção Brasileira de Futebol na conquista do tricampeonato
mundial no México, foi escolhido para protagonizar a campanha. Ele
disseminou o discurso de que fumar aquela marca de cigarro era a melhor
escolha, pois apresentava todas as condições de se “levar vantagem em tudo”
(mais saboroso, mais suave, mais barato). Tornou-se, assim, símbolo de uma
forma de agir de acordo com o famoso “jeitinho brasileiro” e foi cunhado o
termo “lei de Gérson”, com o significado de que o indivíduo deve se aproveitar
de todas as situações em benefício próprio, sem se importar com a ética. Não é
43
necessário expor quão atual é o lema daquela campanha publicitária, e mais, o
fato de ela ter se transformado em marco da cultura nacional.
Interessante citar que, em várias ocasiões, o próprio Gérson demonstrou
sentir-se agredido pela associação de sua pessoa com a lei que leva seu
nome, dizendo ser ela uma versão maldosa do “jeitinho brasileiro”. Isso
demonstra como a mídia pode usar um tipo como legitimador de uma
mensagem, associando-a a seus feitos e importância social. Nesse meio
tempo, como linguagem, a mensagem circula e ganha vida própria, de tal modo
que extrapola os limites de qualquer intencionalidade. Talvez por isso, na
atualidade, a presença dos assessores de imagem e de imprensa nos clubes
de futebol, e também como funcionários particulares de jogadores, tenha ganho
espaço e apresente serventia dupla: promovê-los e protegê-los.
Quem não conhece a lógica do sistema pode funcionar em meio a uma
engrenagem que, na maioria das vezes, leva a não se dar por conhecer e, no
máximo, consegue diferenciar sua boa capacidade de informar-se acerca de
sua má formação. Por outro lado, quem conhece a lógica do sistema pode, ao
reconhecer a engrenagem, entender mais claramente sua forma de funcionar
e, com isso, afetar seu próprio processo formador, ganhar cultura e ir além do
informar-se. Diante de qualquer lógica, poderá se posicionar e resistir,
enfrentando o sistema se assim o desejar, apresentando os seus valores à
sociedade. Não são maioria os Sócrates, Falcões, Leonardos, Caios e Tostões,
embora se possa arriscar que todos estes tiveram em comum a facilitação de
acesso a algum grau educação formal e/ou de oportunidade.
Portanto, esses dois caminhos, trilhados por quem conhece o sistema e
resiste a ele e por quem não conhece o seu funcionamento e se submete a ele,
podem gerar pessoas tão diferentes, embora pareçam apresentar um processo
similar na sociedade do espetáculo. Aquele que se auto-refere como o tipo
“jogador de futebol profissional”, e as materialidades que o circundam como
mercadoria – bola, chuteira, camisa, tênis, entre outros tantos artigos –, se
confundem na vida prática e cotidiana com os valores do lucro, do mercado e
dos repertórios que circulam na mídia e nas vias correntes de informação como
valores do tempo atual. O nível de subordinação de cada um é facilmente
identificado no modo de relação que tem com os objetos de consumo e com o
44
seu modo de consumir. Tais objetos, para o atleta, não são feitos somente para
atender às necessidades de uso; são também artigos que mantêm o sistema
do capital circulando e posicionam o esportista como um valor agregado a eles.
E quando esses atletas, por meio de suas capacidades, demonstram seu valor
para a sociedade, passam eles mesmos, e tudo o que tocam, a constituir
objetos de desejo. O desejo dos fãs e admiradores oscila entre aquilo que o
ídolo faz, aquilo que ele tem e aquilo que parece existir a par do que ele tem e
faz tornado visível pelos mais diversos tipos de veículos de comunicação nos
quais circulam repertórios verbais, cheios de sentidos e significados sobre ser
jogador de futebol profissional.
Em suma, há uma forma utilitária e instrumental de produzir e obter
conhecimento, gerando a vida, os objetos, as realidades, as emoções, as
relações sociais, com base nessa estruturação de pensar o indivíduo e o
mundo. Essa “universalização” ganhou a nomenclatura de globalização, na
qual os modos de produzir objetividades e subjetividades se tornaram iguais,
pautados por um único sistema socioeconômico e político que praticamente
uniformiza a humanidade. Saberes e culturas locais vêm paulatinamente
perdendo espaço para o longo alcance da banda larga e da informação em
tempo real. A estrutura desse sistema condiciona as formas de sociabilidade e
estas, por conseguinte, constituem realidades que a confirmam. O capitalismo
“cria um mundo à sua imagem e semelhança” (grifo nosso) e quase todas as
estratégias de formação das pessoas são meros mecanismos de manutenção
e preservação de suas condições de realidade. Entretanto, isso não significa
que o indivíduo não tenha vontade ou possibilidade de resistir. Pelo contrário,
resistimos à nossa maneira e somente precisamos de uma maior gama de
possibilidades, oportunidades e formação educacional crítica que nos habilite
para tal. O que a sociedade globalizada faz circular e uniformiza é mais que o
capital; são valores, crenças, modelos de relações sociais, sonhos construídos
tendo por base valores situacionais, maquiados pela propaganda e
demaquilados pela falta de condições igualitárias de obtenção e realização
destes. As redes de relações sociais e as matrizes
3
que vão constituindo e
3
Redes de relações sociais e matrizes são os conceitos-chave deste estudo e terão
desenvolvimento no capítulo seguinte.
45
dando forma às sociedades se configuram e reconfiguram a partir de um foco
mais uniforme, ordenado e pouco contraditório.
No contexto esportivo, esse mundo, e mais especificamente o mundo do
futebol de campo, abordado nesta tese, tornou-se sem pátria, sem origem, sem
amor à camisa e com uma história que foi se transformando. Essa
transformação é verificada na mudança do que outrora era considerado valor, a
paixão pelo que era defendido e agora é somente algo que gera proventos
financeiros. Na atualidade, esse contexto se mostra perfeito para a construção
de ídolos, personagens e fenômenos que compactuam quase de forma
taylorista com o sistema regido pela lógica instrumental e que, não raras vezes,
camufla as desigualdades, universaliza a exclusão, a apartação e a
segregação.
Hoje, o futebol de campo, que já apresentou várias funções sociais no
decorrer de sua existência, é emblema do modo como a sociedade se
configura e tem em seu profissionalismo todas as características supracitadas.
Justamente por essas peculiaridades, existe falta de disponibilidade reflexiva
por parte de seus integrantes para analisar e divulgar os mecanismos
construtores da sociedade e que são determinantes das relações humanas. É
possível aventar que essa ausência de disponibilidade seja interessante para
vários integrantes do sistema. O futebol de campo e a formação do jogador de
futebol profissional, nas suas mais diferentes categorias, tornaram-se excelente
exemplo da forma de funcionamento da sociedade na condição pós-moderna.
As promessas iluministas de um mundo melhor, de conhecimento
científico que melhorasse e construísse uma sociedade moderna, do progresso
e da felicidade ao alcance de todos, se tornaram meras ilusões. Claro que
muito se realizou; no entanto, isso se voltou para muito poucos e à custa de
muita desigualdade e sofrimento para cidadãos que acreditaram em uma
sociedade justa e igualitária. Esse padrão parece se repetir no futebol de
campo profissional quando este se torna meta de milhões de jovens que, não
tendo acesso a mecanismos de formação pessoal e profissional, se entregam a
uma rotina de treinamentos, de controle de seus corpos, mentes e interesses
em busca de ascensão social, poder de compra, auto-realização e diminuição
das desigualdades das quais são vítimas.
46
O atleta, que atua como jogador de futebol profissional, com sua
subjetivação e razão reflexiva, sua capacidade crítica, gestada e gerada com o
tempo da história, da memória e das experiências, pode ir pelo ralo ou, no
máximo, para a sala de manutenção, ou ser submetido a cirurgia, ou, ainda,
pode funcionar como mola propulsora do sistema em que ele mesmo está
inserido. Suas possibilidades de autonomia e emancipação, que dependem de
conhecimentos plurais e singulares, advindos de sua relação direta com uma
sociedade que deveria esclarecê-lo e não eclipsá-lo, lhe são vedadas.
O modo como a pessoa passa a agir é função direta dos constitutivos
sociais construídos pelo seu momento histórico e social e, aparentemente,
cristalizados no formato de matriz, e também passa a confirmar os valores dos
tempos curto, vivido e longo, aqui descritos como pós-modernos
4
. Essa forma
como a sociedade se apresenta, no contexto do futebol, deve ser descrita,
esmiuçada, interrogada e compreendida em suas particularidades. Do ponto de
vista da psicologia social, isso se faz pela análise da matriz social que nos dá
pistas desse processo de construção das relações sociais e do tipo “jogador de
futebol profissional”.
Entretanto, não é somente pela identificação das características sociais
no futebol profissional que este estudo propõe uma análise da matriz presente
na formação deste tipo social, mas também, e principalmente, pela
possibilidade de refletir sobre a constituição e a reprodução dessa configuração
engenhosa de valores, crenças, interesses e sonhos circulando por meio de
repertórios repletos de sentidos, afetando crianças, jovens e adultos no
processo de sua formação pessoal e profissional no esporte (a construção do
tipo social “jogador de futebol profissional”). Sendo assim, esta tese, como
primeiro momento do processo dialético, torna necessária a exposição da
proposição que a sustenta e que pode ser assim descrita:
• O processo de formação (construção social) do tipo social “jogador de
futebol profissional” demanda um grande contingente de colaboradores à volta
4
Tempos curto, vivido e longo são descritos por Spink e Frezza (1999) como os tempos da
história, dos acontecimentos e da interanimação dialógica, respectivamente.
47
do indivíduo. Entre eles estão parentes, amigos, “cartolas”,
5
profissionais
liberais, instituições, patrocinadores, entre outros. No decorrer do processo, vai
se formando uma rede de relações sociais específica, a qual se configura em
uma matriz social que faz circular repertórios verbais próprios e tipificados que
atualizam a rede constantemente. Essa matriz que, em um dado momento
anterior, era só do atleta de alto rendimento, ou seja, do jogador de futebol
profissional, agora se reproduz em outras categorias deste esporte, incluindo
indivíduos cada vez mais jovens.
• Repertórios verbais repletos de sentidos são constituídos e circulam,
estabelecendo gêneros do discurso (BAKHTIN, 2003) sobre o jogador de
futebol em seu referido contexto. Essa forma carrega consigo posicionamentos,
saberes, expectativas, dados da realidade social, econômica e do sistema
como um todo. O gênero discursivo, com sua forma peculiar, circula em vários
ambientes e, com o auxílio das tecnologias de informação e midiáticas, seu
conteúdo é levado a grandes distâncias e cria vínculos com outros atores que
se utilizam da mesma linguagem. Os termos teóricos dessa proposição serão
discutidos no próximo capítulo.
5
Termo usado pejorativamente para designar dirigente de clube ou de qualquer entidade
esportiva, visto geralmente como indivíduo que se aproveita de sua posição para obter ganhos
e prestígio (HOUAISS; VILLAR; FRANCO, 2001, p. 638).
49
CAPÍTULO 2
CONSTRUCIONISMO, LINGUAGEM, TIPO SOCIAL E MATRIZ
2.1 Por uma perspectiva crítica sobre o conhecimento: o construcionismo
como opção epistemológica
A perspectiva construcionista está presente no conjunto de
conhecimentos existente de diferentes maneiras: por um lado, propõe
problematizar e desconstruir noções profundamente arraigadas em nossa
cultura, questionando radicalmente o que tem sido considerado como
conhecimento nos aspectos de obviedade, normalidade, naturalidade,
evidência; por outro, exige o posicionamento dos sujeitos na forma de
participação ativa no processo de transformação social.
Visando dar uma perspectiva crítica à psicologia social, surgiram vários
movimentos confluentes, entre os quais, em uma série de estudos sobre os
processos de construção e transformação social, está aquele liderado por
Berger e Luckmann (1966), sociólogos que, com seu trabalho clássico, A
construção social da realidade, orientaram o desenvolvimento de muitos outros
estudos nesta área.
Focalizando a dialogia como elemento-chave da interação e construção
dos fatos, Kenneth Gergen foi um dos primeiros psicólogos a conduzir estudos
sob a perspectiva teórica do construcionismo. Gergen (1985) afirma que a
investigação construcionista preocupa-se com a explicação dos processos por
meio dos quais as pessoas descrevem, explicam ou dão conta do mundo em
que vivem, incluindo a si mesmas. O mundo é conhecido pelas engrenagens
que o constituem e conhecê-lo significa desfamiliarizar os elementos do
processo que o forma.
Pressupondo-se que conhecimento não é algo dado e guardado em
algum lugar, mas que se constrói e reconstrói continuamente diante dos
eventos do cotidiano, a perspectiva construcionista procura desfamiliarizar,
50
problematizar e buscar os elementos da linguagem que estão presentes nos
processos de produção de sentidos vividos no cotidiano.
É importante compreender que a postura epistemológica na qual o
construcionismo está ancorada se contrapõe à explicação do conhecimento
tendo por base a relação sujeito–objeto que releva um ou outro (empirista ou
idealista), ou oscila entre os dois (interacionista). No caso, a perspectiva
construcionista seria uma decorrência do interacionismo, porém, incluindo na
interação elementos históricos e culturais.
Frente a essa postura, devemos pensar o construcionismo como um
encadeamento lógico que busca explicações para os fenômenos sociais, mas
entendendo que não existem verdades absolutas. Autores como Kenneth
Gergen, Tomás Ibáñez, Lupicinio Íñiguez e Mary Jane Spink, entre outros, não
falam do construcionismo como uma teoria fechada, já que esta não pretende
postular verdades a partir de princípios preestabelecidos e inquestionáveis.
Caracteriza-se, então, como uma perspectiva teórica, uma postura crítica e
quiçá transformadora do mundo.
Para Íñiguez (2003), pode-se identificar a perspectiva construcionista
pela postura crítica, de constante problematização daquilo que é natural,
aparentemente óbvio e comum, ou que se consolidou como verdade. Porém,
não se aceita um mundo sem “verdades”, apenas acredita-se que elas são
versões, sempre específicas de cada cultura, contextualizadas, negociadas,
construídas e adequadas às finalidades do viver coletivo local. Enfatiza-se,
portanto, que os acontecimentos são construídos sociohistoricamente por meio
dos repertórios que circulam em diversas versões e contextos.
Ibáñez (1994) postula que os princípios norteadores dessa perspectiva
são: o antiessencialismo
, pois o mundo e as pessoas não têm uma natureza
determinada, não há essência nas coisas e sim efeitos de processos sociais; o
relativismo/anti-realismo
, que não admite uma relação direta entre
conhecimento e realidade, sendo produzido social e coletivamente; a
determinação cultural
, uma vez que o conhecimento é dependente da cultura,
da sociedade e do momento histórico; e a linguagem
, que não é apenas forma
de expressão, mas considerada como ação por meio da qual se constrói o
mundo.
51
Complementar ao desenvolvimento da perspectiva epistemológica vem o
trabalho de investigação a partir da linguagem e da produção de sentidos no
cotidiano, que é uma forma de investigação e de produção do mundo filiada a
essa perspectiva (SPINK; FREZZA, 1999). Compreende-se que a “realidade” é
construída a partir de nossas práticas cotidianas e que a linguagem é um
instrumento imprescindível para construí-la e, portanto, deve ser tomada como
condição de possibilidade e acesso.
Assim, visamos analisar a produção de sentidos sobre o que é ser um
jogador de futebol profissional e seu processo de construção nas diferentes
faixas etárias, formada como uma categoria de análise (um tipo social
específico), e tomada como uma co-construção social que propicia o
entendimento do próprio atleta e das materialidades que sustentam sua prática
e existência.
Entendemos produção de sentidos como forma de conhecimento do
mundo e de si mesmo em uma perspectiva dialógica (SPINK; MEDRADO,
1999), ou seja, conhecimento construído na medida de experiências práticas e,
principalmente, discursivas, da linguagem em uso. Os sentidos constituem para
o sujeito uma visão de si mesmo, e a imagem produzida reafirma um conjunto
de micro e macroprocessos sociais presentes em seu cotidiano (GERGEN,
1985).
A produção de sentidos permite, por intermédio da linguagem, da
história e da pessoa, o acesso para compreender como as pessoas, no caso
presente os atletas e seus interlocutores, dão sentido aos eventos do cotidiano
e constroem suas vidas em sociedade. Spink e Medrado (1999, p. 41) se
referem à produção de sentidos como "Uma construção social,
empreendimento coletivo, interativo, por meio do qual as pessoas constroem os
termos a partir dos quais compreendem e lidam com fenômenos à sua volta”.
Nessa linha, a produção de sentidos é estudada a partir das práticas
discursivas, isto é, da linguagem em uso (SPINK, 2004).
Spink e Medrado (1999, p. 45) se referem às práticas discursivas como
“[...] momentos de ressignificações, de rupturas, de produção de sentidos, ou
seja, corresponde aos momentos ativos de produção de linguagem nos quais
convive tanto ordem quanto diversidade”.
52
Sendo assim, a perspectiva construcionista também possibilita uma
análise dos microprocessos de produção dos sentidos sobre diferentes temas,
conceitos e tipos, permitindo, por meio da linguagem, a análise das
materialidades e interações. Sendo o jogador de futebol parte integrante e
constituinte da sociedade em que vive, geralmente como elo tradutor do
processo de ordenação, pontua as interações de vários atores de sua rede
social e ainda contribui para definir as determinações mais específicas e
controladoras de sua própria conduta como atleta. Dessa forma, é necessário
conceber o tipo “jogador de futebol profissional” a partir de matrizes que
rompem com dicotomias e modelos apriorísticos, têm configuração própria e
fazem circular repertórios que dão cor e forma aos tipos sociais.
2.2 Linguagem e produção de sentidos
Enfocar a linguagem em uso é capturar, na dinâmica da construção
social do tipo “jogador de futebol profissional”, as engrenagens a partir das
quais este tipo se forma. Um dos objetivos desta pesquisa foi entender essa
dinâmica das engrenagens sociais que levam à objetivação dos atletas e dos
outros atores à sua volta. Incluímos aqui o ponto de vista histórico e cultural, ou
seja, como os acontecimentos importantes já vivenciados no contexto do seu
esporte e as expectativas futuras de ascensão social podem participar de sua
constituição e possibilidades. Sendo assim, buscamos, pela análise das
práticas discursivas nos microprocessos sociais, compreender a construção do
tipo “jogador de futebol profissional”, as redes de relações sociais envolvidas
em seu cotidiano e a matriz a partir da qual tipos se formam e a atualizam.
Para desenvolver a linha de raciocínio sobre o tema, iniciamos
sinalizando que o sujeito é ele próprio, materialidade do self em forma de corpo
somado ao processo de construir-se constantemente. Natureza e história,
objetividade e subjetividade, pensamentos e sentimentos, entre outras coisas,
se movimentam na constituição de tudo que cerca o sujeito. O construcionismo
entra como uma perspectiva crítica diante da ordem atual, uma ferramenta ou
arma de desconstrução do status quo vigente em cada tema que forma a
53
sociedade, como o esporte. Assim sendo, utilizamos a capacidade analítica
dessa perspectiva para melhor entender o poderio discursivo que acreditamos
ser constituinte das relações e dos fatos sociais.
Ainda que socioculturalmente construídas, formadas pela linguagem em
uso no cotidiano, as relações humanas e todos os seus constitutivos materiais
têm uma herança filogenética e ontogenética. O atleta, jogador de futebol, não
foge à regra, pois existe como expressão interconstituinte de sua objetividade e
subjetividade e estas o levam a possibilidades várias de conhecimento. O atleta
é materialidade humana, determinada por fatores biopsicossociais. Suas
potencialidades e limites, por mais visíveis que sejam em suas ações,
realizadas e concretas, são construções sociais que outrora eram pontuadas
pela necessidade de sobrevivência, mas que, na atualidade, expressam
interesses tanto individuais quanto mercadológicos. Essas necessidades
representam novas demandas e requerem novas maneiras de atendê-las.
A linguagem é constituinte de todo esse processo de construção do
atleta, que vê sua transformação ocorrer a partir do que esta própria linguagem
estabelece e faz circular. Na era do atleta coisificado, do corpo-máquina, do
sujeito “bombado”, dos grandes negócios, das grandes marcas, de uniformes,
bolas, apitos e câmeras, grande parte do que se refere ou pertence ao contexto
futebolístico é produzido por meio da linguagem. Nesse ponto, a linguagem
mostra sua força e surgem, a partir dela, categorias (tipos sociais) que se
sobrepõem aos sujeitos e que passam a determiná-los e aos elementos que
compõem seu contexto. Dessa maneira, torna-se importante apresentar os
conceitos que permeiam o uso e a forma como a linguagem se faz presente
como ferramenta metodológica que é, ao mesmo tempo, alvo de análise e
mecanismo do processo.
A linguagem é considerada uma prática social, um acontecimento e,
desta forma, vem sendo utilizada na psicologia social discursiva como
linguagem em uso. Preocupações com a formatação, o sentido e a
performática são critérios apresentados por Spink e Frezza (1999), citando
Bruner (1984), que se mostraram úteis na diferenciação de outras maneiras de
teorizar sobre linguagem.
54
Entretanto, este estudo, que se situa nas ciências humanas, tem como
correntes importantes a etnometodologia e a análise de conversação. De
acordo com Spink e Frezza (1999), a primeira busca analisar a racionalidade
do senso comum, enquanto a segunda visa entender as estruturas normativas
do raciocínio na interação. No entanto, as autoras asseveram que essas duas
correntes “focalizam as minúcias da interação lingüística tão excessivamente
que perdem o ponto de vista da interação” (SPINK; FREZZA, 1999, p. 36).
Sendo assim, para problematizar o contexto no qual o discurso ocorre sem
perder de vista a interação, partimos para o que se denomina perspectiva
discursiva, cujos grandes representantes são os conhecidos pós-estruturalistas
Michel Foucault, Jacques Derrida e Michel Pechêux.
Na psicologia social, Jonathan Potter, Margareth Wetherell, Ian Parker,
Lupicinio Íñigues e Mary Jane Spink são autores que falam da perspectiva
discursiva como ferramenta metodológica para entender como as engrenagens
sociais são construídas por discursos, incluindo pessoalidades, contextos e
formas de expressões sociais das quais a linguagem é função. As práticas
discursivas constituem o foco da análise nessas abordagens.
Os repertórios, quer sejam eles interpretativos como descrevem Potter e
Wetherell (1987), ou circulantes como propõem Spink e Medrado (1999), são
elementos-chave para analisar o discurso tomado como ação, com seus
recursos lingüísticos existentes e sua adequação ao contexto. Na análise das
práticas discursivas, contrariamente à análise do discurso (que privilegia
regularidades e padrões que levam às categorias), o foco está nas
irregularidades do discurso, na polissemia, na dinâmica dos enunciados
orientados por vozes ou pela circulação de repertórios, nas formas mais ou
menos estáveis dos enunciados que são função do tempo e do contexto em
que estão inseridos, assim como nos conteúdos – os repertórios interpretativos.
Vários conceitos são empregados para a análise da produção de
sentidos no cotidiano do futebol, entre eles: enunciados e vozes (BAKHTIN,
1998); repertórios interpretativos e circulantes (POTTER; WETHERELL, 1987;
SPINK; FREZZA, 1999); posição (GOFFMAN, 1975).
Foucault (1986, 1993) considerou as práticas discursivas como formas
de ação no mundo,as quais, quando exercidas, provocam efeitos como
55
qualquer outra ação. Os conjuntos de enunciados ou formações discursivas
possibilitam o exercício de saberes disciplinares, operando e instituindo fatos
em campos de interesses específicos. Para o autor, não existe prática
discursiva que não seja regulada por relações de poder estabelecidas pelos
interesses econômicos e de governamentalidade. Analisando as relações
constitutivas das práticas discursivas, Foucault (1993) entende que os
enunciados são conectados às engrenagens que os constituem e que a
compreensão de tais práticas e das relações de poder é que possibilitaria
entender o sistema social (aparelhos do estado, agenciamentos, interesses,
posições). A “verdade” não estaria em um enunciado, mas no jogo
comunicativo de diferentes unidades de análises em que enunciados estão
dispostos. Se algo se modifica, pela fluidez das interações, as materialidades
também se modificam, lembrando que estas são, segundo Haraway (1991),
relacionais e situadas.
Essa linguagem, vista a partir de enunciados e seus constituintes, define
o tipo “jogador de futebol profissional” ou atleta de alto rendimento. Ela possui
vários sentidos que permitem interpretações diferentes do atleta em versões
como alienado, refém do sistema, ídolo, fenômeno, rei, entre outros, visto que o
processo que constitui a linguagem é dialógico e sociohistórico. E, mesmo com
poderes anunciados para fundamentar enunciados controladores, sabemos
que para todo poder de controle há um poder de resistência. Entender o
processo de formação do jogador de futebol profissional na contemporaneidade
pode, indubitavelmente, levar ao esclarecimento das engrenagens que o
constroem como um tipo específico em contexto também específico e que
apresenta mecanismos de aceitação e resistência próprios.
2.3 Caracterização de tipo social e matriz
Tipo social é descrito por Hacking (2001) como uma classe de pessoa
que ocupa uma posição de forma fluida, definida por uma matriz do sistema
social composta de vários elementos (linguagem, cultura, objetos). Existem
alguns elementos específicos que caracterizam a construção social de “tipos”
56
de pessoas e coisas, bem como configuram o imaginário e a realidade das
pessoas. Em síntese, essas pessoas, atores do sistema social, ocupam
posições diferentes e fazem parte de uma matriz social que configura o que se
chama de tipo social e que também é constantemente reconfigurada por ele.
O tipo social em pauta neste estudo é o “jogador de futebol profissional”.
A partir da perspectiva construcionista, nomear objetos, formar conceitos,
circular idéias são formas de construir o mundo. Esse mundo que vai se
formando é composto por grande quantidade de categorias, idéias e conceitos
que descrevem o que, no presente estudo, define-se como tipo social. A
construção desses tipos e as nuances do seu processo de formatação podem
nos permitir compreender as relações sociais enquanto estrutura rizomática e
almejar a transformação, caso ela se faça necessária, em oposição a entendê-
la de forma linear e essencialista, ratificando o sistema.
Categorias, conceitos e idéias são descritores dos tipos sociais e
geralmente configuram-se como clichês. A construção de um tipo social
específico, como diria Hacking (2001), pode gerar um “X” (um tipo social) que
carrega consigo valores que podem ser libertadores ou conformadores. No
caso específico do tipo “jogador de futebol profissional”, pode-se perceber que
existem as duas possibilidades quanto à utilização crítica desta categoria,
embora a segunda seja mais bem representada pela grande maioria dos leigos,
talvez devido à sua falta de noção das relações indivíduo–sociedade.
A utilização de categorias, conceitos e idéias, que, segundo a psicologia,
são processos ou estruturas cognitivas organizadoras e facilitadoras do
entendimento do mundo, pode influenciar o pensamento da coletividade de
várias maneiras. Essas categorias não são essências da pessoa, mas
processos construídos em sua formação. Assim é que especificam e agrupam
os elementos que formam a cultura e, em decorrência de seu uso excessivo,
são considerados parte da condição humana, estabelecendo aquilo que
inicialmente chamamos de tecido da cultura, reconhecido como uma segunda
pele. O tipo adolescente, por exemplo, foi criado socialmente e passou a
estabelecer uma série de considerações acerca de pessoas de uma
determinada faixa etária. Antes dele, obviamente, essas pessoas já existiam,
57
porém, depois de ter sido cunhado o termo adolescência, a cultura se
rearranjou e se reatualizou de outra forma.
A ciência, no molde tradicional, legitimadora de saberes, é um dos
rótulos e etiquetas que geram status quo; ela mesma se tornou uma espécie de
fundamentalismo que teme o relativismo e está em guerra civil com outros
modelos de fazer ciência. O tipo cientista tem, em seu processo de
formação/construção, a explicação do que significa fazer ciência e as
engrenagens que cercam esta prática.
A perspectiva construcionista vai além da especificação das relações
entre eventos e do entendimento das estruturas cognitivas usadas para falar do
mundo; ela problematiza a formação dos tipos e, principalmente, fornece uma
postura crítica em relação à maneira como são observados os eventos em
interação e os efeitos de seus determinantes. Na perspectiva construcionista,
afirma-se que as experiências do mundo vivido são construídas e geram, em
sua dinâmica de formação, as categorias, os conceitos e as idéias que vão
resultar em tipos sociais. Esses tipos, por conseguinte, estão condicionados e
apresentam reivindicações concretas e específicas de acordo com as redes às
quais estão ligados e, sobretudo, com a matriz à qual pertencem.
Toda a configuração de um “X” (um tipo social) é fruto de arranjos
sociais, de matrizes que se constituíram em movimentos de forças, histórias e
inúmeros fatores presentes na ordem social estabelecida. Esta pesquisa tem
como “X” (um tipo social) o “jogador de futebol profissional”, e como intenção
subjacente, investigar como ocorrem as relações sociais que levam, por meio
do discurso, à formação deste determinado tipo social, como podem ser
entendidas, criticadas e, quiçá, desconstruídas.
Para entender as relações sociais, faz-se necessário proceder a uma
análise estrutural do contexto do futebol profissional, de tal modo que possa
apresentar claramente embutida uma especificação do que é “X” (um tipo
social) e do que poderia vir a ser “X” (um tipo social). Assim, de acordo com a
perspectiva construcionista, argumentamos que:
a) não é necessário que “X” (um tipo social) exista ou seja como é;
58
b) “X” (um tipo social), como se configura no contexto atual, não é
determinado pela essência ou pela natureza das coisas e, portanto, não é
inevitável;
c) esse mesmo “X” (um tipo social) é problemático e seria muito melhor
se fosse eliminado ou parcialmente transformado.
Tratar de um fenômeno social questionando-o dessa forma também
descreve níveis de compromisso social e político da perspectiva teórica. Para
Hacking (2001), esses níveis podem ser assim estabelecidos:
a) histórico – no qual “X” (um tipo social) é descrito como sendo
construído no curso dos processos sociais e, longe de ser inevitável, é
resultado contingente de processos históricos;
b) irônico – o “X” (um tipo social), que consideramos inevitável, poderia
ter sido absolutamente diferente. Constatamos que “X” (um tipo social) é
altamente contingente e produto de histórias e forças sociais. Ainda assim, é
algo que pode deixar de ser tratado como parte do universo em que interatua
com outros indivíduos, com o mundo material e com nós mesmos;
c) reformista ou desmascarador – no qual, apesar de “X” (um tipo social)
ser problemático, não se sabe viver sem ele, embora se saiba que ele não é
inevitável e, na atual situação, podem ser modificados alguns de seus aspectos
para fazê-lo menos ruim. Ainda se pode desmascarar uma idéia para despojá-
la do falso poder de atração ou autoridade;
d) rebelde – aquele construcionista que mantém ativamente as
premissas de que “X” (um tipo social) é inevitável, é algo ruim, e de que o
mundo seria melhor sem a sua existência, além de ainda estar em atividade
política com radicalidade no que concerne a esses pressupostos;
d) revolucionário – um ativista que vai além do mundo das idéias e tenta
modificar o mundo no que diz respeito a “X” (um tipo social) e vai mudando seu
nível de compromisso à medida que vai tomando consciência de suas idéias e
atitudes.
Esses níveis de compromisso do construcionismo trazem, em
subjacência às suas práticas, a necessidade de entendimento de “X” (um tipo
59
social), mesmo sabendo-se que os sujeitos se convertem em tipos como
conseqüência de uma sucessão de acontecimentos sociais, legislações,
trabalhos sociais, grupos, juristas, práticas institucionais, redes heterogêneas,
até que, por fim, se configuram como marcos sociais dentro dos quais se
formam idéias, conceitos ou classes, estabelecendo-se uma matriz social
(CARDONA, 2004; HACKING, 2001).
Ser jogador de futebol profissional é ser um “X” (um tipo social). A
construção de “X” (um tipo social) remete à sua objetivação na matriz
conceituada acima. O entendimento de “X” (um tipo social) como tipo, como
substrato da matriz, é condição de entendimento e de postura construcionista.
A problematização do fenômeno social realizada pelo construcionista indicará a
maneira como o estudioso vai se alocar em termos do nível de
comprometimento com relação à sua prática.
A perspectiva construcionista possibilita entender que, uma vez
constituída a matriz (assumindo sua fluidez e movimento constante de
reatualização), ela passa a afetar individualmente as pessoas, as quais
aprendem a se comportar para pertencer àquele determinado tipo social.
Muitas vezes, os próprios tipos sociais são formados a partir de matrizes e se
cristalizam em uma estrutura física que atualiza a mesma matriz,
ressignificando-a dentro de espaço e tempo. Quando Hacking (2001) pergunta,
em sua célebre obra, A construção social de que?, sua intenção é enfatizar que
não se trata de sujeito, pessoa ou indivíduo específico, mas de uma classe,
uma categoria, ou, como enfatizado neste estudo, um tipo social. Como
conseqüência dessa tipificação, os sujeitos e suas experiências mudam
constantemente e reatualizam a rede de relações sociais que compõe a matriz.
O tipo “X” (um tipo social) de que trata esta pesquisa é o jogador de
futebol profissional e aqui propomos que ele é construído em uma matriz. As
experiências dos sujeitos individuais são afetadas pela tipificação, que é
contingente às construções sociais da linguagem e que constituem o objeto de
estudo deste trabalho. Na presente pesquisa, sustentamos, ainda, a tese de
que a matriz, que em um dado momento era só do atleta jogador de futebol
profissional, agora se reproduz em categorias cada vez mais jovens.
60
Hacking (2001) explica que objetos, idéias, palavras de acesso são itens
que estão no mundo e são os subsídios da construção social dos fatos.
Aparentemente óbvia, a idéia de se pensar o tipo “jogador de futebol
profissional” como um tipo construído não é tão clara assim. É necessário
esclarecer as inter-relações entre materialidades e fatos que compõem a rede
heterogênea
6
de relações sociais, as mediações psicossociais existentes
naquele contexto de espaço e tempo definidos. Entendemos aqui que matriz
comporta mais que tipos, redes e instituições; ela é tudo isso em movimento e
mais que isso em sua influência, pois é pontuada pelos atores humanos e não-
humanos. Caso contrário, não seria relevante discorrer acerca de fatos
aparentemente tão óbvios. Hacking (2001, p. 11) assim utiliza a noção de
matriz:
As idéias não existem no vácuo, habitam situações sociais. Vamos
chamar isto a matriz dentro da qual uma idéia ou conceito é criado
[…] A matriz dentro da qual a idéia de mulher refugiada é formada é
um complexo de instituições, ativistas, artigos de revista, advogados,
decisões jurídicas, procedimentos imigratórios. Para não falar da
infra-estrutura material, barreiras, passaportes, uniformes, balcões de
aeroporto, centros de detenção, tribunais e os campos para crianças
refugiadas. Você pode querer considerar estes como sociais porque
seus sentidos são o que são, importantes para nós, mas são
materiais e sua materialidade faz uma diferença substantiva para as
pessoas. Igualmente, as idéias sobre mulheres refugiadas afetam o
ambiente material (porque mulheres refugiadas não são violentas e
não há necessidade de armas, mas há uma grande necessidade de
papel, papel, papel).
Berger e Luckmann (1966) especificam que a realidade não é nem um a
priori kantiano, nem um produto da maturação psicológica ocorrida depois da
interação (a posteriori). Ela resulta de processos e atividades construídos pelas
relações interconstitutivas e dialógicas entre indivíduo e sociedade. Nessa
relação, sentidos, percepções e experiências são confiadas às diversas
realidades presentes no complexo mundo de matrizes que habitamos.
Entretanto, nada é generalizável como modelo universal, pois a
realidade é fluida, cotidiana e individual, determinada pelas construções que se
dão a partir dos repertórios que circulam e que permitem objetivação e
subjetivação, mesmo compondo e atualizando a matriz, sendo seu elo de
intersecção mais importante a noção de tipo.
6
Latour (2000) descreve rede heterogênea como uma rede de relações sociais composta por
elementos humanos e não-humanos.
61
No futebol profissional, são visíveis os
efeitos da tipificação. Seu uso político e
econômico, para a obtenção de
oportunidades, lucro, poder, status e
dinheiro, é explícito. O alto rendimento do
jogador de futebol profissional tem agora de
ser físico em suas possibilidades corpóreas,
visível nos resultados por meio das vitórias e
exemplificado em sua conta bancária ou em tudo aquilo que pode adquirir ou
propagar em termos de consumo. O próprio jogador, por vezes alienado,
reificado e ideificado, tem pouca consciência de que é um representante de seu
tipo social para além da imagem de ídolo; porém, nem sempre consegue
apreender como tal tipo é funcional para terceiros (intermediários que lucram
com a comercialização de tudo que o jogador de futebol profissional toca,
inclusive seu próprio passe). Passa, apenas, a reagir e a responder como é
esperado do tipo ou, ainda, dependendo do seu “valor de troca”, cria produtos
próprios que podem virar objetos com suas marcas e, posteriormente, objetivar
o próprio tipo que ele personifica.
Existem, também, os tipos que são produzidos a partir do talento e das
possibilidades econômicas futuras que os atletas podem gerar. O jogador de
futebol, como afirma Caldeira (2002), investe, cada vez mais precocemente, na
sua imagem, seguindo um modelo construído com a modernização do futebol
globalizado, buscando contratos milionários, oportunidades de patrocinadores,
fama e sucesso. Para que isso ocorra não é incomum que surja todo um
procedimento de marketing, pautado em nomeações que descrevem as
características pessoais dos ídolos e passam a referendar sua imagem. Temos
“o fenômeno”, “o marrento”, “o animal”, “o galã”, “o bom moço”, “o religioso” e
todos “os inhos” derivados de Ronaldinhos que já percorrem esse caminho e
obtiveram sucesso. São adjetivações que, ao mesmo tempo, podem servir
como mola propulsora de uma carreira ou freio dela.
Para o jogador que obtém ganhos com seu talento, somados às
potencialidades criadas pela construção de uma imagem, a adaptação ao
sistema parece tornar-se mais fácil, desde que retroalimente esta imagem e
62
corresponda às expectativas. Assim, seu sucesso será mais longo e ele
passará a ser ídolo ou modelo para milhões de pessoas.
No entanto, para o jogador que teve sua categorização criada pela
resistência às determinações de controle prescritas pelas regras do sistema
futebolístico, o caminho é outro. O regime disciplinar severo e os imperativos
sobre o seu desempenho técnico, tático, físico e psicológico exercem cada vez
mais pressão sobre ele, fazendo com que o atleta fique, por vezes, submetido
a uma gama de impossibilidades que vão além de sua conduta profissional. O
jogador que foge dessa subserviência, se recusa a obedecer as formas de
determinação de sua conduta para a adaptação, passa a ser considerado
rebelde ou resistente. A partir daí, é indesejado por não aceitar integralmente o
poder disciplinar sobre a sua conduta e acaba, como cita Florenzano (1998),
excomungado e transformado em jogador problema. Como personagens da
sociedade, esses tipos estão em constante modificação em função do tempo e
da cultura específica em que vivem. Sendo assim, é necessário que os estudos
sobre eles sejam cuidadosamente contextualizados e temporalmente
demarcados em decorrência dessa fluidez. O tipo não é algo fixo; entretanto,
tem características fixas que o configuram como tipo, embora não seja
previamente determinado, objeto inanimado e irracional. Ele se adapta e resiste
o quanto pode, segundo sua capacidade de reflexão e crítica sobre o seu papel
e o de todos que o cercam.
2.4 Atletas ciborgues: a questão informacional e as materialidades
A expressão ciborgue ou, mais
especificamente, atleta ciborgue, remete em um
primeiro momento aos modelos aprendidos em livros,
filmes e imagens de ficção científica. Entretanto, sem
excluir essa imagem, pretendemos deixar claro que a
utilização da “metáfora do ciborgue” vai além de uma
analogia física. Buscamos, a partir de uma
perspectiva pós-moderna, entender a perda de limites
63
ou fronteiras que diluiu todas as antinomias presentes na modernidade,
conforme discutimos no Capítulo 1.
Haraway (1991) se posiciona politicamente e procura falar de
subjetividade humana de uma maneira que supere discriminações e
antinomias. Opositora das dicotomias conceituais modernas, rompe com as
idéias de organismo/máquina, animal/humano e físico/não-físico, mudando a
forma costumeira como pensamos a realidade. Nesse contexto, define um
ciborgue como “um organismo cibernético, um híbrido de máquina e
organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura de ficção.
Realidade social significa relações sociais vividas, significa uma ficção capaz
de mudar o mundo” (HARAWAY, 1991, p. 15). O advento de novas tecnologias
(informacionais) permite, de forma facilitada, ver o jogador de futebol como um
ciborgue, e essa metáfora nos permite analisá-lo sob outro ponto de vista –
sem dicotomias. Como ciborgue, ele reage, apresenta a coragem, o belo, o
fluido e, simultaneamente, a proteção para os riscos potencial e real que
compõem estes atributos. A nova forma de ver o social, somada ao advento
das novas tecnologias (reais e virtuais), são os fundamentos para essa
proteção e, ao mesmo tempo, os propulsores para o enfrentamento de novos
riscos. Haraway (1995, p. 31) propõe que:
Não só a ciência e a tecnologia são idéias possíveis para uma grande
satisfação humana, assim como uma matriz de complexas
dominações, e a imagem do ciborgue pode sugerir uma saída do
labirinto dos dualismos pelos quais temos explicado nossos corpos,
nossas ferramentas e a nós mesmos.
Para Galindo (2003, p. 2),
A configuração ciborgue só se torna possível, em sua plenitude, no
contexto dos avanços tecnológicos e da cibernética e, ainda assim,
em alguns espaços-tempo da contemporaneidade por meio da
intensificação introduzida pelas novas tecnologias de informação.
O jogador de futebol ciborgue pode pontuar, pelo tipo social que é, o seu
processo de construção social. Mais que isso, ele se situa em um lugar, tem
um ponto de vista e, de modo nenhum, é inocente, já que traz consigo a
parcialidade das experiências vividas – suas e de outros atores
(materialidades) que o constituem. Sendo assim, o contexto esportivo de alto
rendimento apresenta-se como o ambiente ideal para uma leitura a partir da
64
figura do ciborgue, que representa muito além do “ser/estar atleta” em sua
radicalidade: permite a análise como tipo social, possibilitando vê-lo como uma
síntese que evite dualismos e essencialismos com os quais ele tem sido
coisificado (BUTRYN, 2002; LOLAND, 2002; MIAH; EASSOM, 2002).
Podemos, em um primeiro momento, questionar se a metáfora do
ciborgue supera ou afirma a coisificação do humano. Esse aparente paradoxo
pode facilmente ser diluído quando entendemos que a metáfora é uma
tentativa de tornar atual e discutível o que é teoricamente apresentado. O
entendimento que se tem acerca de termos como organismo, gente, indivíduo,
pessoa e sujeito são modificados. Esses termos sempre vêm carregados de
críticas por suas limitações teóricas e por expressarem formas de tratamento
que dizem do posicionamento de quem os usa. São conceitos que,
freqüentemente colocados em xeque, têm, nessa metáfora do ciborgue, uma
possibilidade de análise para que possamos entender a figura do atleta de alto
rendimento e os sentidos que ele produz.
Quando falamos dos sentidos que o atleta produz, estamos querendo
dizer que ele traz consigo uma série de características que são previamente
determinadas e que permitem vê-lo como um tipo social. Atleta é aquela
pessoa disciplinada, esforçada, batalhadora, talentosa, que tem saúde, entre
outros atributos. Além de suas adjetivações, vemos também as materialidades
com as quais está envolvido, como alimentos, suplementos, exames, materiais
esportivos e toda a tecnologia utilizada para a sua construção, incluindo
roupas, quadras, campos e os softwares para treinamento e aperfeiçoamento
técnico e psicológico. Essas materialidades falam de um processo histórico e
de evolução técnica, carregados de sentidos, descritores das possibilidades da
história e que se modificam cada vez mais rapidamente.
Outro ponto, talvez, seja entender que a antevisão do jogador ciborgue
deixou seu lado maquínico muito mais evidente, com suas representações de
força, fenômeno, idolatria ou subserviência e extermínio. Em contrapartida, o
que se tem hoje são máquinas que não despontam pelas mesmas qualidades
físicas, mas pelas informacionais. Obviamente, partiram de alguma habilidade
motora e cognitiva, mas foram potencializadas pela tecnologia que molda
corpos e mentes. A biotecnologia, por meio da genética (mais especificamente
65
do doping genético), vem transformando os conceitos no esporte. O que se vê
atualmente são DNAs associados à nanotecnologia, modificando estruturas
que não cabem mais em conceitos anteriormente construídos, materialidades
outrora jamais pensadas tomando conta e fazendo parte do espetáculo
esportivo, as quais estão, sem dúvida alguma, modificando o atleta, fazendo
com que se entenda de outra forma sua participação e, por conseguinte,
fazendo a diferença nos resultados (MIAH; EASSOM, 2002). Quem hoje
consegue pensar em um tipo social “jogador de futebol profissional” sem os
aparatos físicos e materiais que o acompanham?
Pensar o tipo social “jogador de futebol profissional” sob essa
perspectiva possibilita a produção de conhecimentos situados em uma posição
da qual não se vê o atleta como mero espectador passivo, ingênuo e
corporificado. A “metáfora do ciborgue” deve funcionar como um instrumental
teórico que visibiliza a “superação” das dicotomias corpo–mente, humano–
máquina, organismo–máquina, entre outras. O pensamento dicotômico permeia
todo o imaginário contemporâneo acerca do corpo que o atleta de alto
rendimento desenvolve, utiliza materialidades e se transforma em uma
“entidade”, meio humano, meio máquina, para superar todos os limites.
Modificar essa visão requer superar dicotomias; para isso, o social precisa
deixar de ser visto somente como relações e interações entre pessoas e passar
a ser entendido também como relações e interações entre materiais de toda
sorte, como máquinas, textos, animais, dinheiro, marcas, entre tantos outros.
A melhoria do desempenho, seja ele emocional, cognitivo ou
operacional, vem construindo e reafirmando um modelo de atleta-máquina,
hipertecnologizado, porém acéfalo quanto ao discurso hegemônico das
agências esportivas controladoras, que insistem em falar de esporte somente
como mecanismo para obtenção de boa condição física, dinheiro, glória,
ascensão e sucesso, aparentemente sem riscos e como apologia à saúde.
Nesse ponto, é interessante explorar o papel da categoria jogador de
futebol quanto aos elementos que fazem parte de sua rotina de vida e verificar,
neste processo, como se dá sua conceitualização. Esse discurso é
constantemente ressignificado, polissêmico e apresenta, na noção do tipo
“jogador de futebol profissional”, as inúmeras transformações sociais que
66
podem ser atribuídas ao esporte e estão calcadas na “estetização da
existência” (BIRMAN, 2000, p. 14). A cultura da imagem que ressalta o tipo
social (imagem construída/aparência) em detrimento da pessoa (ser), de
acordo com Valle e Guareschi (2003), passa a ser o critério fundamental do
sujeito. O tipo social “jogador de futebol profissional”, assim como as idéias do
esporte como instrumento formador do homem, são assim transformadas. Os
atletas, antes vistos como heróis eternos, agora são celebridades, e assim
permanecem enquanto dura o seu sucesso.
Essa nova configuração é fruto da polissemia atribuída ao jogador de
futebol, de um marketing feroz, amparado pelo desenvolvimento tecnológico e
cada vez mais coisificante, no qual o conteúdo informacional superou o
maquínico e mudou tudo em pouquíssimo tempo. Atingir a todos pelo
deslocamento que as novas tecnologias permitem ao corpo é fácil (GUZZO,
2003); difícil é separar a informação que chega virtualmente do conteúdo
humano e processual que constitui o atleta e da imagem que é vista e
significada por quem a recebe.
Sabemos que as mudanças advindas da evolução tecno-informacional
são grandes; também sabemos do poderio midiático, da sociedade do
espetáculo e de vários outros elementos que fazem parte da construção social
do tipo atleta. Porém, cabe aqui lembrar que, mesmo com a perda dos limites
fronteiriços entre o que é tecnológico e o que é humano, a formação do
indivíduo não perde sua capacidade processual elaborativa de adquirir, realizar
e exercitar suas capacidades. O processo de formação humana, por mais que
se depare com novos elementos e possibilidades, segue seu processo e
necessita de tempo e experiências que o consolidem.
Antes, durante e depois de serem tipos sociais, os atletas apresentam
um processo de formação humana carregado de elementos psicológicos
independentemente da modalidade trabalhada. A forma de aquisição de
habilidades, competências e possibilidades passa por diferentes atividades
quanto ao jogo em si. Brincar e jogar são duas das formas de pensarmos no
jogo e nos diferentes elementos envolvidos no processo de formação humana.
Além, é claro, das características e dos tipos de cada jogo. Desse modo,
veremos a seguir alguns elementos do processo de formação do atleta.
67
CAPÍTULO 3
O FUTEBOL NA PERSPECTIVA DAS TEORIZAÇÕES SOBRE AS FUNÇÕES
DO BRINCAR E DO JOGAR NO DESENVOLVIMENTO DA SOCIABILIDADE
3.1 Psicologia social e formação do atleta: a perspectiva de George
Herbert Mead
Sabemos que a psicologia, tomada como ciência natural, procura
entender e explicar a estrutura e a função dos mecanismos psíquicos.
Buscando predizer e controlar, por meio das análises causais, ou do caminho
da catarse, ou das associações livres, a psicologia sempre visou compreender
os humanos pelos mais diferentes caminhos, fornecendo explicações pautadas
pela tríade emoção, cognição e ação. A escolha do caminho ocorreu sempre
em função da concepção de homem que subjaz à escola de referência, sem
abrir mão do modelo de demonstração e generalização que lhe garantiu o
status de ciência.
A idéia de conhecer para predizer e controlar o comportamento era
pautada no método científico, que devia garantir a análise funcional do
comportamento dos indivíduos. Esses eram tratados como sujeitos de uma
ação, em ambientes controlados e passíveis do exercício da manipulação de
variáveis que “imobilizariam o mundo”, garantindo a discriminação de seus
efeitos sobre respostas específicas. Acima de tudo, dessa forma, se teria
clareza e precisão na replicação dos procedimentos usados e garantia de
certeza das conclusões. Muito conseguimos entender com esse modelo, cuja
contribuição é inegável, podendo ser citados aqui centenas de trabalhos que
foram determinantes na continuidade das diferentes abordagens psicológicas.
Entretanto, falar de psicologia no âmbito geral e, especificamente, na
esfera social, requer compreender que o modelo das ciências naturais é válido,
embora não seja suficiente e demande uma expansão das condições de
análise – tanto epistemológicas quanto teóricas – para incluir elementos da
68
dinâmica, da história e, principalmente, da linguagem como construtora do
mundo a partir dos sentidos que circulam. Harré e Gillet (1994) e Spink e
Frezza (1999) afirmam que a psicologia social necessita de um método próprio
que possibilite uma reflexão crítica acerca do mundo.
George Mead (1962) e Kurt Levin (1935, 1936), precursores da
psicologia social, talvez sejam exceções diante das amarras impostas pelo
modelo hegemônico das ciências naturais que, em sua primeira fase, sem
romper com o modelo experimental, ampliaram e impulsionaram o olhar
psicológico para além das paredes laboratoriais. Outros estudos foram
valorizados com metodologias que levaram a novos conceitos, novas formas
de medir e observar e novas metodologias que poderiam vir a ser críticas, mas
que construíam uma nova psicologia social.
Refletindo sobre os elementos psicológicos na formação do indivíduo a
partir da perspectiva da psicologia social, entre os estudiosos que propõem que
esta pode ter função crítica e transformadora, damos destaque a George Mead
(1863-1931), autor progressista, que tinha uma postura democrática e pensava
a formação de indivíduos críticos e reflexivos para a construção de uma
cidadania plena (SANT’ANA, 2005).
Localizando os estudos de Mead na perspectiva do interacionismo
social, é importante salientar que, mesmo diferenciada da posição
epistemológica que embasa esta pesquisa, a noção de que propriedades
específicas da formação humana resultam de um processo histórico de
socialização, que foi possibilitado pela emergência e o desenvolvimento da
linguagem e das materialidades que se constroem em conjunto com ela, são
características comuns a ambos os trabalhos. O compartilhamento se dá por
seu inicial diálogo.
Mead (1962) concebeu a formação do indivíduo relacionada aos
processos de socialização, particularmente os educacionais, os quais
fornecem, por meio de suas atividades, elementos que o direcionam ao
desenvolvimento cognitivo, afetivo e moral como conseqüência da construção
do seu self (SANT’ANA, 2005). Mead (1962) construiu uma teoria social e
dialógica do sujeito que se constitui em uma ação comunicativa participante
com base social na formação da linguagem e, em seguida, na formação da
69
mente e do self. Essa ação, segundo ele, se dá pelo compartilhamento de
sentidos e significados entre indivíduos. O autor articulou os conceitos de I (eu
observador – resistente à ordem social) e Me (sujeito social – reprodutor da
ordem social) como elementos que têm, na sua relação, a constituição de um
processo de controle do impulso e de deliberação reflexiva e moral. Mead
(1962) fez suas elucubrações a partir dos estudos de Kurt Levin (1890-1943) e
William James (1936-1950) e apresentou as determinações sociais do self
sempre em um sentido anti-representacional e dialógico.
É importante entender que, para Mead (1962), a possibilidade humana
de produzir sentidos parte do conceito de ação comunicativa que advém do ato
social comunicativo (aquele que evoca a ação participativa e compartilhada de
símbolos e significados). Nesse processo, ocorre a adoção da “atitude do
outro” ou do “papel do outro” por intermédio do compartilhamento de símbolos
e significados; posteriormente, forma-se a linguagem que, por conseguinte,
forma a mente, a qual, por sua vez, forma o self.
Em explicação mais detalhada da formação do self a partir da ação
comunicativa participativa, Mead (1962) elucida como a criança adota a
“atividade ou o papel do outro” na brincadeira e no jogo. Brincadeira e jogo
representariam dois estágios diferentes no desenvolvimento do self. Na
brincadeira, a criança adota os papéis particulares de pessoas significativas –
uma simples sucessão de papéis sem interferência dos anteriores adotados. Já
no jogo, a adoção de papéis do outro adquire um significado mais importante.
Nesse caso, para que a criança seja bem-sucedida, precisa adotar o “papel de
todos os outros” participantes da atividade – vários outros, que incluem, além
da diversidade de papéis, perspectivas sociais diferentes.
Sass (2004) problematiza a manutenção do termo self por Mead e
apresenta a concepção meadiana para a formação e o desenvolvimento do self
apresentando sua gênese social, as etapas de seu desenvolvimento e a noção
do outro generalizado com as implicações para a psicologia social. Quanto à
origem, Sass (2004), baseado em Mead (1972), descreve que o self é
organizado no interior do processo social. Nesse processo, ocorre a
apropriação da atitude do outro, que se dá em etapas de crescente
complexidade organizativa perpassando o brincar (play), o jogar (game) e o
70
pensar (thought). Quanto ao desenvolvimento do self, esse perpassar pelas
etapas levaria, tanto como princípio educativo quanto como atividade
mediadora do self, ao desenvolvimento moral, intelectual e afetivo-emocional
da pessoa. Outras atividades consideradas mediadoras, além do jogo, seriam o
trabalho e as artes, diferenciadas pela ausência de finalidade e técnica. Todas
juntas teriam o caráter funcional organizativo da vida da criança.
Por fim, Sass (2004) discorre sobre a internalização de papéis sociais,
feita por meio da apropriação da noção do outro generalizado e das regras
presentes nos jogos, que, se forem acrescidas do domínio da linguagem,
levariam a pessoa a pensar ou a adquirir a capacidade reflexiva, assim
demonstrando a dupla face do self.
James (1950) já preceituava que o self é formado por “outros
significativos” e “outros generalizados”, em uma composição entre o I e o Me,
ou self observador e self social. O self observador seria especificamente uma
condição lógica do conhecimento. O I não pode ser observado na condição
lógica de I, mas pode sê-lo na condição de Me (self social), ou seja, de um self
social que foi um self observador na condição anterior. Por outro lado, o self
social teria por base a noção de self transcendental kantiano (MEAD, 1912,
1913), na qual o eu observador só aparece na experiência como memória e,
conseqüentemente, só pode ser conhecido a posteriori.
Resumindo, o self seria a relação entre o I (self observador) e o Me (self
social), uma conversação social. Na ação de brincar, o “outro” origina toda a
ação comunicativa, sendo, portanto, um “outro significativo”, enquanto na ação
de jogar, esse outro é um “outro generalizado”. A conversação entre o I e o Me
nas ações comunicativas de brincar e jogar resultaria em um self social, mais
convencional, que tende para o Me, mais conformista e habitual; ou um self
observador, mais crítico, que tende para o I, mais criativo, aquele que analisa e
modifica o Me e, portanto, se forma mais resistente ao controle social (ABIB,
2005).
O self observador, crítico e inovador é uma construção a partir do “outro
generalizado”. Ele coincide com o advento do indivíduo civilizado, pois demarca
a passagem da sociedade primitiva para a civilização (ABIB, 2005). É um
acontecimento que imprime no indivíduo sua singularidade e a marca da
71
própria civilização. Nesse caso, o self é um processo de formação que se dá na
conversação interna de gestos por meio da linguagem que origina
pensamentos de ordem individual e moral. Essa conversação é denominada
dialogia por Mead (1962), e Abib (2005) acrescenta ser o indivíduo dialógico ou
evoluído, assumindo que a essência do self é de natureza cognitiva. Esse
último autor ainda afirma que o que está em jogo na relação dialógica entre I e
Me é o debate contínuo entre ações cognitivas, impulsivas, morais e sociais;
ele ainda destaca que os chamados comportamentos sociais teriam como
objeto os símbolos e seus sentidos expressos na linguagem contextualizada.
A linguagem é, portanto, anti-representacional, uma vez que não
simboliza situação ou objeto; ao contrário, é ela que torna possível a existência
ou o aparecimento daquela situação ou objeto, pois é parte do mecanismo que
os cria. Essa orientação pragmática se coaduna com a idéia de linguagem que
circula e constrói o mundo em que se vive. A ação comunicativa participativa
de Mead (1962), a dialogia de Bakhtin (1998, 2003) e a interanimação dialógica
de Spink e Frezza (1999) são processos exclusivamente humanos nos quais a
linguagem é responsável pela comunicação, a qual se transforma em
processos mentais e circula constituindo a realidade dos fatos, além de,
simultaneamente, ser ela acontecimento.
A adoção da atitude ou do papel do outro por meio de brincadeiras e
jogos caracteriza-se como processo social formador da linguagem e do self. Ao
formar o self por meio da inter-relação entre o eu observador (I) e o eu social
(Me), nos contextos de brincar, desenvolve-se a capacidade de reagir ao seu
próprio eu, criando uma postura crítica. Quando o outro é generalizado e se
instala em múltiplas perspectivas, como no jogar, o indivíduo forma-se de um
modo complexo, interdependente e menos crítico, no qual a formação do eu
cognitivo crítico depende das convenções e da moral social. Em resumo, é o
diálogo envolvendo o indivíduo impulsivo que segue a fluidez do brincar e o
“outro generalizado” que segue os controles do jogar que caracterizam o
indivíduo e suas potencialidades.
Entendendo os fenômenos do brincar e do jogar como inerentes ao
processo de formação do indivíduo, procuraremos estabelecer um diálogo
entre os elementos essenciais do jogo trazendo para a discussão outros dois
72
importantes interlocutores acerca do tema: Huizinga (2007) e Caillois (1990). O
primeiro apresenta as características do brincar e do jogar, diferenciando-as; o
segundo aponta as experiências que o jogo proporciona.
3.2 Caracterização do brincar e do jogar na concepção de Johan Huizinga
Brincar é uma atividade humana intencional e sem uma justificativa
externa a ela mesma, constituinte do imaginário e estabelecedora de regras.
Difere do jogar (ou de atividades esportivas propriamente ditas), que se
configura em repetições e no qual o sentido imaginário (formador) é substituído
por uma finalidade utilitária.
Brincar pode incluir o jogar, embora não se reduza a suas
determinações e utilidades. Brincar é diferente de jogar, uma vez que este
último é institucionalizado por definição em sua organização, manifestação e
conseqüências. Além da institucionalização, a competição, situada no contexto
de uma finalidade externa à própria prática – como as premiações – diferencia-
se da “proposta” inicial descrita como espírito lúdico presente no brincar/jogar.
Por fim, da forma como as regras são definidas e trabalhadas – seja no brincar
como elemento de negociação, seja no jogar quando as regras são imperativos
categóricos que subsidiam a sua própria identidade –, pode-se dizer que, no
brincar, as regras orientam a tarefa e, no jogar, a determinam como uma lei.
O jogador de futebol profissional, por exemplo, é um ator que pode ou
não brincar dentro de sua modalidade específica de jogar. Ele cria maneiras
próprias de alcançar seus objetivos, sem burlar as regras, mas alterando a
forma convencional de execução de seus movimentos, tal como marcar um gol
diferente ou executar um drible bonito. O craque é aquele que cumpre a regra e
surpreende pela habilidade, estética e criatividade diante do que está posto.
Retondar (2007, p. 23) esclarece que esse brincante é solitário e “[...]
ludicamente vive em um mundo próprio e fechado sobre si mesmo que faz uso
de mudanças abruptas das brincadeiras por conta da necessidade de se auto-
satisfazer”. Acrescentamos aqui que não basta fazer dribles fantásticos ou
jogadas maravilhosas, pois é imprescindível executá-las dentro das normas e
73
de forma competitiva, ou seja, unindo o que é convencionado fazer com o que
é desejado pelo indivíduo.
Brincar é elemento inegável na formação do homem. Duflo (1999)
postula que o jogo pode ser pensado em suas dimensões ética, epistemológica
e estética. Ainda na concepção do autor, a dimensão ética sofre forte influência
das noções religiosas de pecado e excesso, que posicionam o jogo como
atividade que pode corromper a atenção do homem virtuoso e de fé. A
dimensão estética é pontuada pela possibilidade humana e, somente a partir
dela, pode integrar de maneira harmoniosa impulsos sensíveis e impulsos
cognitivos. Desse modo, os sentimentos mais instintivos poderiam ser
vivenciados de acordo e “dentro” dos ditames sociais, sem que um dos
impulsos se sobressaísse.
Por fim, e de forma mais detalhada, na dimensão epistemológica do
jogo, isto é, como um elemento da constituição cognitiva e própria do humano
de produzir conhecimento sobre a vida, sobre o mundo e sobre si mesmo, é
possível verificar a forma particular e interessante com a qual o indivíduo se vê
diante da natureza e do indefinido, procurando uma forma, nem sempre
compreensível para quem o vê, entretanto lógica, de lidar com o controle das
variáveis que podem levá-lo aos objetivos e metas traçados.
Em sua clássica obra Homo ludens, Huizinga (2007) pondera que
pessoas são dotadas de razão (Homo sapiens) e fabricadoras de cultura
(Homo faber). Além disso, afirma que as pessoas seriam, por excelência,
ludens, ou seja, estabelecem uma relação lúdica com seu mundo por meio do
brincar.
Para Huizinga (2007), brincar é uma atividade universal e humana que
se manifesta em todas as culturas, respeitando suas particularidades, e
apresenta características próprias de organização. O autor demarca a noção
de brincar a partir da descrição de características formais e informais que são
apropriadas por crianças, jovens e adultos nos diferentes espaços relacionais
do cotidiano.
Huizinga (2007) enuncia que brincar é um fenômeno social e universal
com quatro características formais – voluntariedade, regras, relações espaço-
74
temporais e evasão da vida real – e cinco características informais – tensão,
incerteza/acaso, ludicidade, agonisticidade e sentido de faz-de-conta. Para o
autor, qualquer atividade que seja social e apresente tais características cabe
na noção de brincar. Jogar, com suas três características diferenciadoras
institucionalização, competitividade e regras predefinidas – pode comportar a
noção de brincar, embora o contrário não seja verdadeiro. Considerando as
características formais apontadas pelo autor, o futebol profissional pode ser
considerado tanto uma brincadeira quanto um jogo com elementos formais do
brincar.
Então, partindo do enunciado de Huizinga (2007), com relação à
primeira das características formais, verifica-se que todo jogo é formado por
pessoas que praticam uma ação voluntária
e livre enquanto decisão
consciente. Brinco porque quero brincar. No brincar não existe um motivo
prévio estabelecido que motive as pessoas a fazê-lo; entretanto, é possível
identificar sua voluntariedade, envolvimento, satisfação ou mesmo suor, que
indicam adesão à tarefa por ela mesma e por suas conseqüências inter-
relacionadas. Retondar (2007) esclarece que voluntariedade significa decisão
de iniciar e continuar no jogo como prática que atende às necessidades mais
imediatas e profundas.
Pensando o futebol profissional nos moldes atuais de uma sociedade
pós-moderna, a voluntariedade é contratada previamente, uma vez que o
querer jogar não é uma necessidade a ser atendida, mas uma forma de
trabalho acordado. O jogador vende sua voluntariedade para aquela atividade
institucionalizada, incluindo o fato de que fará o melhor de suas possibilidades
dentro das regras. Todo esse acordo não garante que o jogador esteja disposto
para a atividade, até mesmo porque entram nesse ponto os agentes
motivadores externos que passam a regular aquilo que, no brincar, é intrínseco
à tarefa.
É possível verificar com clareza no discurso do treinador Felipe Scolari,
técnico da Seleção Brasileira de Futebol na Copa do Mundo em 2002, que,
quando não encontrou maneiras externas para motivar craques já milionários e
famosos, lançou mão da idéia de constituir uma família – na época intitulada
família Scolari. Desse modo, o grupo, ou a “família”, tinha como princípio o
75
desprendimento da atividade de jogar bola com ganhos externos de modo a
exacerbar ganhos intrínsecos, tais como divertir-se jogando e alegrar a si
mesmo e aos seus “irmãos”, exatamente como se faz em família.
De acordo com a segunda característica formal de Huizinga (2007), todo
jogo tem regras
, as quais fazem parte do brincar como um exercício de
negociação, que torna a atividade mais ou menos maleável dentro do contexto
de possibilidades e intenções do grupo. No brincar, as regras são flexíveis,
construídas e reconstruídas pelos participantes de acordo com sua intenção.
As regras medeiam as inter-relações subjetivas do grupo social que pratica a
atividade, garantem a identidade do jogo e permitem aos participantes definir a
atividade que estão praticando. Mediar as relações não significa determinar a
conduta dos participantes, mas harmonizar e tornar possível a prática da
atividade para o referido grupo, aproveitando as condições objetivas, materiais,
geográficas e orgânicas dos seus jogadores.
As regras são flexíveis no brincar, isto é, as determinações previamente
convencionadas podem ser alteradas. Assim, em um jogo de futebol de rua,
com gols menores, feitos com garrafas, e que podem ter dimensões distintas,
dependendo do acordo feito entre os participantes, o número de jogadores
pode ser variável, dependendo da habilidade de cada um e da definição do
grupo. Pode-se permitir a participação de crianças e adultos, homens e
mulheres conjuntamente, com o intuito de praticar a atividade por ela mesma.
No jogo de futebol formal, isso jamais seria possível, pois “a regra é
clara”, bordão que indica como deve ser praticada a atividade já
institucionalizada e que visa garantir igualdade de condições entre os
oponentes em todas as dimensões possíveis. Na era do futebol espetáculo, as
regras têm sofrido alterações para permitir maior ganho por parte daqueles que
vendem o jogo e querem fazer acreditar em sua lisura. As pessoas que
ganham dinheiro de alguma forma com o jogo, além de se apropriar do uso de
tecnologia que mostre que as regras estão sendo cumpridas e que a igualdade
impera nos gramados, precisam manter o discurso moral do “o importante é
competir”. Todavia, se soubermos ler nas entrelinhas, vamos perceber que “o
importante não é competir, nem mesmo é importante vencer; o importante é
vender” (MELO, 2008, p. 13). Para isso, há câmeras, computadores, tira-
76
teimas, árbitros de campo que contam com intercomunicadores para falar com
o quarto árbitro, árbitros auxiliares com dispositivos que possibilitam a
comunicação com o árbitro, exames antidoping, modalidades diferentes de
chuteiras, categorias diferentes por idade e sexo dos jogadores e diferentes
graus de envolvimento institucional dos atletas.
Todo jogo tem espaço e tempo
próprios, de acordo com a terceira
característica formal de Huizinga (2007). O espaço deve aqui ser entendido
para além do lugar físico, percebido também como espaço de sentidos e
significações, espaço da imaginação que o jogo suscita e expressa por meio de
sentimentos, pensamentos e ações. Para a pessoa que joga, há poucas coisas
na vida que sejam tão importantes quanto seu jogo, pois naquele espaço
simbólico estão inscritos seus desejos e vontades e lá ela se expressa e pode
ser compreendida. Nesse mesmo contexto, repleto de sentidos, é feita a
marcação do tempo. Um tempo cronológico que orienta o tempo interno,
marcado por cada emoção vivida. Esse tempo é subjetivo, particular e único de
cada experiência; não pode ser medido por nenhum mecanismo tecnológico,
mas, em conjunto com os sentidos daquele espaço, cria uma dimensão mais
relevante e que não pode ser medida ou vista com a lógica cartesiana. Espaço
e tempo entendidos como lugares e minutos não são suficientes para entender
esta dimensão do brincar, sendo preciso considerar sentidos, simbologias e
marcações emocionais fora ou dentro do jogo.
No futebol atual, um jogo com 90 minutos mais acréscimos, jogado em
um belo gramado bem cuidado e com medidas oficiais, pouco descreve o que,
de fato, este ambiente pode conter. Se focarmos somente no que é
mensurável, brincar e jogar parecem se diferenciar claramente. Entretanto, nos
aspectos simbólicos e idiossincráticos, e até mesmo no que essa atividade já
consegue representar como identidade de um país, verificamos que essas
duas dimensões se confundem. O brincar sofre influência do jogar e vice-versa,
em uma dança que alimenta o imaginário até mesmo de quem não pratica
qualquer das atividades, mas apenas vive na pátria das chuteiras.
Muitos se encantam com os lances mágicos do “rei” Pelé, de pura
beleza e fruição. Ao descrevê-los, o próprio jogador conta sobre o choro de seu
pai quando do maracanazzo – termo usado para se referir à partida final da
77
Copa do Mundo de 1950 que a Seleção Brasileira de Futebol perdeu para a
Seleção Uruguaia no estádio do Maracanã, considerada um dos maiores
reveses da história do futebol. O atleta fala sobre o sofrimento de ambos, da
promessa que fez ao pai de ganhar uma Copa do Mundo para ele e da emoção
da realização do feito dentro das quatro linhas oito anos depois.
Todo jogo (brincar/jogar) implica evasão da vida real
, isto é, adentrar no
mundo do faz-de-conta e esquecer, mesmo que brevemente, as regras e os
compromissos sociais, conforme a quarta característica formal de Huizinga
(2007). Sendo assim, seria possível ver aspectos da subjetividade humana que
não são claramente percebidos em função das “amarras” sociais, repletas de
pressões e julgamentos morais. Segundo Huizinga (2007), existiria uma
necessidade humana de as pessoas se relacionarem de forma lúdica e
ficcional como mecanismo de sobrevivência dentro da sociedade. Essa evasão
pode ser interpretada por dois ângulos diferentes. Primeiro, como um
mecanismo para aliviar pressões e tensões sociais dentro do campo, jogando.
Segundo, como uma maneira de afastamento da realidade, fora do campo,
para percebê-la ou reinventá-la sob outra perspectiva.
O jogar futebol, visto nessa perspectiva dimensional, nos remete a dois
pontos diferentes. O primeiro, pensando-se no ator principal – o jogador – e
colocando-o como nó central de uma rede na qual ele, ao contrário do que
afirma Huizinga (2007), não se afasta das pressões, mas mergulha de corpo
inteiro em um universo próprio de cobranças e tensões que só tem de faz-de-
conta a idéia de que seu sucesso não terá fim. Segundo, quem assiste ao
jogador, nele se espelha e o vê, na atualidade, casando-se em castelos como
um príncipe, fazendo “pontas” em produções de Hollywood como grande herói,
tornando-se modelo famoso de grandes marcas de todo tipo de bem de
consumo, dirigindo carros possantes e caros, consumindo drogas que abalam
ou terminam com sua carreira, tornando-se símbolo ou partícipe religioso.
Todos esses exemplos nos remetem ao fora de campo, ao dentro dele, à moda
dos cortes de cabelo do Cascão, rastafári ou pintado. As formas de comemorar
um gol e a postura do jogador de futebol profissional dizem o que é ser um tipo
social e como ele pode instituir um mundo para além das regras estabelecidas
e fazer-de-conta muitas coisas.
78
3.3 A classificação dos jogos segundo Roger Caillois
Autor fundamental quando se fala de jogo, Caillois (1990) focaliza as
diferenças na classificação dos jogos, a saber: tensão (ludicidade/regras) e
incerteza (gratuidade/necessidade de limites). O autor afirma que os jogos
podem ser de salão, corrida, obstáculos, campo, tabuleiro, natureza, aventura,
eletrônicos, sociedade, dramáticos simbólicos, populares. Caillois (1990) visou
destacar os domínios predominantes das apropriações encontrados nos jogos
de maneira geral, classificando-os como jogos de: Agôn/Luta, Alea/Sorte,
Mimicry/Simulacro e Ilinx/Vertigem.
a) Jogos de Agôn/Competição – apresentam sentido de luta, de embate
entre partes, primando pela necessidade de igualdade de condições. Esse
sentido expressa o desejo e o anseio dos próprios jogadores em querer que
vigore o espírito de luta com garantia de igualdade e dentro dos princípios da
alegria e da justiça. No jogar atual, as regras e o sentido de competição geram
uma ilusão de igualdade para todos; porém, na realidade, há diferenças
significativas na vida objetiva dos competidores. No jogar, que envolve o
brincar, a competição não é uma condição anterior a ele mesmo, como ocorre
com o jogar em que o brincar não está presente, tal como sucede na prática
dos jogadores profissionais, que vivem das vitórias e das conquistas para se
afirmar.
Vitória e derrota são legitimadas pelo esforço. O espírito competitivo
pressupõe repetição para o aprimoramento do alto rendimento, dando
surgimento ao espaço para a ritualização e os cultos, campo fértil para o
estabelecimento do chamado comportamento supersticioso. Dentro do espírito
agonístico, o adversário é um amigo que proporciona o momento mágico de
superação e de aprimoramento humano. Tensão e incerteza são elementos
incondicionais da competição, que tem no elemento lúdico e em seus detalhes
inesperados a possibilidade de tornar grandioso tanto o jogo quanto o jogar.
No sistema socioeconômico ora vigente, há a apropriação da
competição de forma ideológica e mercadológica; nele, o jogar tem, de maneira
a instituir um componente moral, o slogan “o importante é competir”, e a
79
assertiva de que as competições fornecem igualdade de condições objetivas e
subjetivas para os atletas que dela participam. Percebemos, entretanto, que o
jogo não funciona como descrito. O futebol atual, que faz circular grande
quantidade de capital e tem em sua rede de relações vários saberes
disciplinares, tem também grandes disputas fora do jogo, as quais afetam tudo
que está envolvido no jogar. Como já comentamos anteriormente, na
atualidade, o importante não é competir, e nem mesmo vencer, o importante é
vender.
Na sociedade de consumo e do espetáculo, o jogar se tornou um palco
extremamente propício para iludir consumidores e espectadores quanto ao
equilíbrio de forças, mas de modo a ocultar as condições objetivas antes da
competição. Que fique claro que o problema, se há algum, não está na
existência do espírito competitivo, mas na forma de seu gerenciamento
pautado por interesses particulares.
b) Jogos de Alea/Sorte – são jogos nos quais o “adversário” é sempre
imaginário e a relação entre tensão e incerteza é mais potencializada. Os
indivíduos que jogam jogos de Alea são verdadeiras pessoas de fé. Esses
justificam derrotas e vitórias sempre levando em conta o controle externo como
agente causador dos resultados, isto é, a pessoa foi pouco capaz de ouvir os
deuses. Nesse jogo, o acaso funciona como regulador das superstições que
vêm atreladas a essa modalidade. Durante esse jogo, o tempo escoa.
c) Jogos de Mimicry/Simulacro – são jogos em que os indivíduos
adentram a esfera do imaginário por meio da evasão da vida real, com
predomínio do imaginário sobre a catarse (olhar em perspectiva em vez de
liberar uma energia libidinal retida). Os jogadores são motivados pela presença
predominante do espírito lúdico, ou seja, do movimento gratuito e espontâneo
cuja finalidade última é se auto-satisfazer. O que aciona o espírito lúdico é a
necessidade de satisfação de uma realidade imaterial, como os desejos, os
sonhos, a alegria, o prazer, o transe. Como descreve Huizinga (2007), uma
forma de consciência do faz-de-conta que mantém o indivíduo em dimensões
distantes (real e imaginária) sem cruzar os limites do que a sociedade
considera normalidade. Ser outra pessoa em um mundo inexistente, lutar
usando elementos mágicos, ou assumindo identidades irreais, passa a ser
80
permitido nos jogos de simulacro, os quais tendem mais a revelar que a
encobrir seus sonhos e fantasias.
d) Jogos de Ilinx/Vertigem – são jogos que causam vertigem, ou alguma
emoção que possa ser descrita pelo excesso de adrenalina que venha a
distorcer a realidade de forma abrupta ou intensa. Nesses, estão incluídos os
chamados jogos de risco ou de aventura, nos quais o perigo é iminente e
calculado, sendo os mecanismos de seu controle e de sua proteção
assegurados pelas materialidades envolvidas. Nos jogos de perigo iminente, as
regras e os equipamentos têm grande relevância porque devem propiciar o
máximo de emoção e garantir o mínimo de risco aos competidores. No Ilinx, o
espírito lúdico leva o indivíduo à emoção pura, com o controle e o cálculo do
risco em suas mãos. Excitação e tensão acontecem em ritmo crescente, como
verdadeiros ritos de passagem e iniciação de um mundo a outro.
Expondo esses princípios, faz-se importante observar que eles possuem
dois pólos antagônicos que os hierarquizam: Paidia e Ludus. Define-se o
primeiro como diversão, improviso e espontaneidade e é por meio dele que se
manifesta certa fantasia. Já o segundo, como seu oposto, é a supressão da
alegria e da espontaneidade por intermédio da disciplina e da necessidade de
subordinação às regras. No Ludus são exigidas repetição, persistência e
habilidade (CAILLOIS, 1990).
Para falar de jogo e formação, buscamos sintetizar as definições formais
e informais de brincar e jogar segundo Huizinga (2007) e as classificações dos
jogos de Caillois (1990). Ambas as formas de falar do brincar e do jogar são
complementares e descrevem sua importância na formação do homem. Os
conceitos ou as perspectivas epistemológicas dão sustentação a uma análise
da formação moral dos indivíduos e de sua experiência do belo para a vida, ou
seja, perspectiva ética e estética.
Temos que, no jogo, o espírito lúdico e alegre impera como função da
voluntariedade e também como forma de resistência contra qualquer tipo de
obrigação ou imposição externa a ele. No futebol, vários jogadores parecem
brincar e se divertir enquanto exercem seu ofício. São nítidos a alegria e o
aparente descompromisso associados ao espírito lúdico dos craques que, ao
fazer seus gols ou belos dribles, parecem estar literalmente brincando consigo
81
mesmos, com o outro e com a bola de maneira acrobática e, por vezes,
solitária. As pessoas e a sociedade à qual pertencem estabelecem sentidos
para a ação de brincar e de jogar e até mesmo para o que significa “jogar
bonito”.
Quanto às regras, estas levam à discussão dos limites e da capacidade
humana de negociar ou se adaptar, podendo criar e recriar, obedecer ou
resistir. Diante delas, o jogo pode e deve ser apreendido como uma
possibilidade de exercício da capacidade crítica e reflexiva da realidade
apresentada pela atividade e, porque não, pela própria vida. As pessoas que
jogam podem, também, exercitar a negociação, propor mudanças quando lhes
parecer favorável, aprender a perder ou a ceder para que todos ganhem. Além
dos limites, existe a possibilidade de formação da consciência e do
autocontrole, características tão úteis e importantes na vida em geral.
Diante das regras, o jogador aprende disciplina para a execução da
atividade e, com isso, está diante do conhecimento das pressões do outro
sobre ele, que podem se constituir na forma de autoridade ou mesmo de
autoritarismo. Conhecer as regras e a forma como obedecê-las permitirá que
ele faça essa separação, isto é, tenha a consciência do que deve ser feito, do
como e do porquê e não apenas de maneira passiva e submissa, calcada na
hierarquia e no exercício do poder, como ocorre nos processos autoritários. No
brincar, as regras podem ajudar a construir a percepção moral dos indivíduos,
o sentimento de justiça e injustiça social que fará parte das influências sobre
sua conduta por toda a sua vida.
Na psicologia, Piaget (1978) ensina que tomar consciência das regras
como mecanismos de subjetivação humana faz parte da aquisição da
autonomia, passando anteriormente pelas etapas da anomia e heteronomia. No
caminho para a autonomia, a anomia é a quase total falta do seguimento de
regras que não conduzem diretamente à satisfação integral. A heteronomia
leva o indivíduo para o lado oposto, isto é, leva-o a seguir cegamente aquilo
que a regra determina; e ele a segue como se fosse algo sagrado, imutável,
determinado e que só cabe a ele obedecer.
Falando de regras em um modelo aristotélico, a autonomia seria o
mediano entre vício e virtude, fase na qual o desenvolvimento moral e a
82
consciência da regra do jogo podem, por analogia, ser empregados também na
vida. Nesse momento da formação, capacidades de apreensão – tanto
cognitivas quanto afetivas – já se fazem presentes na consciência das regras e
de sua utilização por parte dos indivíduos. Portanto, prazer, medo e inteligência
emocional (no sentido de experiências cognitivas) são conceitos que balizam a
utilização e a absorção das regras pelos indivíduos, de maneira que a justiça
seja entendida e exercitada, além de fortalecer seu desenvolvimento moral.
Uma diferença clara entre o jogo em que o brincar prepondera e o jogo
como competição regrada está na elaboração realizada pela pessoa que joga.
O jogo regrado é pautado pela possibilidade de adaptação ao que é
estabelecido. Já aquele que permite brincadeiras, apresenta maiores
possibilidades de construção, mas, nem por isso, elas são menos regradas ou
éticas. A cooperação é um elemento presente tanto no contexto de construção
quanto no de seguimento de regras; no contexto do brincar, ela é importante
para a construção da noção de diferença e de responsabilidade. Os sentidos
aprendidos, dados aos conceitos, são pautados justamente nas experiências
da cooperação e em todo sentido culturalmente já estabelecido. O indivíduo
que brinca é um ser social, culturalmente determinado e historicamente
posicionado.
Quanto à relação espaço-tempo, ética e estética consistem na
compreensão do espaço do jogo desde a visão do lugar no qual esta atividade
se dá até a referida simbologia cultural que a modalidade tem. A vivência desse
espaço favorece a abstração e a antecipação de conhecimentos, o que é
fundamental na formação do indivíduo como treino da habilidade de percepção
do futuro em relação ao presente, lembrando que todo lugar, quando
perpassado pelo olhar humano, é também um espaço de sentidos.
O aspecto simbólico do jogo é um recurso a mais, adquirido pelos
brilhantes esportistas, que requer o domínio de uma linguagem carregada de
sentidos próprios sobre ações e acontecimentos, os quais não seriam
significados em sua ampla possibilidade por meio da razão empregada como
processamento cognitivo direto. Retondar (2007, p. 72) esclarece que
No espaço do jogo, compreendido enquanto lugar da produção de
sentidos que o ato de jogar remete e evoca, sentimentos diversos
circulam em seu interior, como coragem e covardia, amizade e
83
inimizade, solidariedade e egoísmo, justiça e injustiça,
condescendência e arrogância, autoridade e autoritarismo,
cooperação e individualismo, força e fraqueza, alta e baixa estima,
extroversão e introversão,
criatividade e repetição, respeito e
desrespeito as regras do jogo, etc.
Não podemos nos esquecer das noções de tempo objetivo e subjetivo
ou externo e interno, respectivamente. Essa consciência do tempo por parte
dos indivíduos permite disciplina quanto ao ritmo das ações humanas em
função de suas necessidades de organização e de produção. Em contrapartida,
o tempo, no brincar, é aquele da manifestação do belo, uma vez que a
ludicidade é um dos fundamentos da estética.
Quem não se recorda do tempo do nosso “rei” Pelé, com seus mais de
mil gols e dribles fantásticos, que nem sempre resultaram em gols, mas que
são lembrados por sua plástica e genialidade, pois eternizaram momentos e
forneceram ao espetáculo do futebol brasileiro o status de “futebol arte”. O belo
do “futebol arte” é que ele pára o tempo e o eterniza em lances inesquecíveis,
que conciliam sensibilidade, destreza e inteligência sem que um se sobressaia
ao outro, elevando este esporte ao sublime. O espectador fica atônito,
boquiaberto, sem palavras, é puro êxtase e euforia. Como comenta Retondar
(2007, p. 80) “uma experiência numinosa!”. Nesse instante, ocorre o profundo
encontro do indivíduo consigo mesmo, por intermédio da alegria, do êxtase
daquela experiência vivida sem qualquer julgamento moral. Surge o jogo como
belo no sentido de sua transcendência e espiritualidade. Essas experiências
podem vir do esporte que identifica nossa pátria e que faz de muitos de nós
apaixonados por ele.
85
Figura 1 – Prática do tsu chu na
China.
Fonte – Guia de futebol em
Portugal (200-).
CAPÍTULO 4
O PROCESSO DE LEGITIMAÇÃO SOCIAL DO FUTEBOL
4.1 DOS PRIMÓRDIOS À FORMALIZAÇÃO GLOBALIZADA DO FUTEBOL
A criação do futebol, seu desenvolvimento e cultura percorreram um
longo percurso histórico internacional e nacional. Neste capítulo apresentamos,
de maneira sucinta, uma viagem no tempo abarcando os acontecimentos que
construíram os fatos mais importantes que marcaram a prática esportiva de
maior popularidade no mundo atualmente.
4.1.1 Primeira etapa do futebol: os jogos com bola
A atribuição da invenção do futebol a
uma cultura ou a um determinado país é
bastante polêmica. No entanto, sabe-se que as
primeiras manifestações desse esporte
surgiram entre 2000 a.C. e 1500 a.C., na China
(Figura 1). Tsu chu, que significa "chutar" (tsu)
uma "bola feita de couro" (chu), teria sido a
primeira nomenclatura dada a um jogo, que foi
criado para fins de treinamento militar por
Yang-Tsé, integrante da guarda do Imperador,
na dinastia Xia, em 1971 a.C. Inicialmente, era
praticado por 12 jogadores de cada lado,
relativos aos signos do zodíaco, em terrenos de
30 m por 40 m, usando como bola a cabeça do
inimigo (FRANCO JÚNIOR, 2007).
86
Figura 3 – Atleta grego equilibrando
uma bola em sua coxa,
provavelmente demonstrando uma
técnica de treinamento de epyskiros
ao menino.
Fonte – Expert football (200-).
Figura 2 – Representação de
como era jogado o tlachtli na
maioria dos lugares.
Fonte – Figueiredo (2002).
Na península de Iucatã, atual México,
entre 900 a.C. e 200 a.C, os maias praticavam
um jogo, conhecido como tlachtli, com os
joelhos, os cotovelos e a bacia, cujo objetivo
era arremessar uma bola através de um furo
circular colocado no meio de seis placas
quadradas de pedra (Figura 2). Na linha de
fundo, havia dois templos, onde o atirador-
mestre (o equivalente ao capitão da equipe) do
grupo perdedor era sacrificado. As regras
desse esporte especificavam que os times
deveriam ser compostos por sete jogadores,
todos do sexo masculino, e era proibido a
qualquer um deles reter a posse da bola.
Assim sendo, o jogo era extremamente dinâmico, pois quem recebia a pelota já
a passava imediatamente (FRANCO JÚNIOR, 2007).
No livro Sphairomachia, de Homero,
inteiramente dedicado a esportes com
bolas, é feita referência a um esporte
disputado com os pés, no século IV a.C.
em Esparta, denominado epyskiros
(Figura 3). Era jogado com uma bola feita
de bexiga de boi e recheada com ar e
areia, em um campo retangular, por duas
equipes, com nove jogadores cada,
podendo este número aumentar,
chegando a até 15 jogadores de cada
lado, de acordo com as dimensões do
campo. Esse jogo parece se aproximar de
forma mais precisa às origens do futebol,
uma vez que os pés eram o elemento
fundamental para a sua prática (FRANCO
JÚNIOR, 2007).
87
Descendente do epyskiros, da Grécia antiga, o harpastum foi um esporte
praticado por volta de 300 a.C. no Império Romano (Figura 4). Esse era um
exercício militar que podia durar várias horas, praticado em um campo
retangular, divido por uma linha, além de possuir duas linhas como meta. A
bola, feita de bexiga de boi, era chamada de follis. Com as conquistas
romanas, foi difundido para outras regiões da Europa, da Ásia Menor e do norte
da África (FRANCO JÚNIOR, 2007).
Em outra versão conhecida, o esporte era praticado por integrantes da
corte imperial japonesa e conhecido como kemari, significando "chutar” (ke) a
“bola" (mari) (Figura 5). Sua prática acontecia em um campo quadrado, de
aproximadamente 200 m
2
, em cada lado do qual havia uma árvore: cerejeira
(sakura), salgueiro (yana-gi), bordo (kaede) e pinheiro (matsu). Cada uma das
equipes era composta por oito jogadores, que podiam jogar tanto com as mãos
quanto com os pés, sendo proibido qualquer contato corporal (FRANCO
JÚNIOR, 2007).
Historiadores do futebol encontraram relatos que confirmam a ocorrência
de jogos entre equipes chinesas e japonesas na Antiguidade. Ao contrário do
tsu chu chinês, as mulheres não podiam participar do kemari. Esse jogo, mais
um ritual religioso que propriamente um esporte, era sempre precedido por
uma celebração com o intuito de abençoar a bola, que simbolizava o Sol e,
naquela época, era feita de fibras de bambu (FRANCO JÚNIOR, 2007).
Figura 4 – Harpastum, conhecido como o jogo da bola pequena.
Fonte
Hadrianeum
(
200-
)
.
88
Durante a Idade Média, por
volta de 1200, na região onde
atualmente fica a França, foi criado o
soule (Figura 6), uma versão do
harpastum. Esse foi um esporte
praticado pela realeza e aristocracia,
que teve como um grande entusiasta
o rei Henrique II. Contudo, por ser um
jogo muito violento, o rei Felipe V
proibiu-o em 1319, o que novamente
ocorreu no governo do rei Carlos V,
em 1388. Porém, isso não conseguiu
impedir que fosse difundido e jogado
em toda a França (FRANCO JÚNIOR,
2007).
De volta à Itália, cerca de 100 anos depois, o harpastum foi recriado em
Florença e, então, chamado de gioco del calcio fiorentino (Figura 7). Era um
esporte de rua, mais especificamente jogado na praça, e o barulho, a
desorganização e a violência dele decorrentes eram tão grandes que o rei
Eduardo II teve de decretar uma lei proibindo sua prática e condenando seus
adeptos à prisão (FRANCO JÚNIOR, 2007).
Figura 6 – A prática do soule na Bretanha e
Normandia.
Fonte – Guia de futebol em Portugal (200-).
Figura 5 – O jogo de kemari.
Fonte – Histoire du jeu de rugby (200-).
89
Porém, o jogo não terminou, pois integrantes da nobreza criaram uma
nova versão com regras que não permitiam a violência e com a supervisão de
12 juízes, os quais deveriam fazer cumprir as regras. O calcio fiorentino,
praticado pelos nobres de Florença e Siena, só era jogado uma vez por ano,
em um esquema específico, com cada equipe tendo 27 jogadores, divididos em
quatro setores: três zagueiros recuados, quatro zagueiros avançados, cinco
médios e 15 atacantes. Com apenas um ponto, a partida era encerrada
(FRANCO JÚNIOR, 2007).
O primeiro registro de um esporte semelhante ao futebol na Bretanha
pode ser encontrado no livro Descriptio Nobilissimae Civitatis Londinae, de
Willian Fitztephe, em 1175. A obra cita um jogo parecido com o soule, praticado
durante a Schrovetide, uma celebração semelhante à terça-feira gorda, em que
habitantes de várias cidades inglesas teriam saído às ruas chutando uma bola
de couro, que simbolizava a cabeça de um invasor, para comemorar a
expulsão dos dinamarqueses de seu território (FRANCO JÚNIOR, 2007).
Outra versão sobre a origem do futebol garante que, com a travessia do
canal da Mancha por Guilherme, "o conquistador", o soule chegou às Ilhas
Britânicas, tendo sido pouco aceito por seus habitantes, pois esses já
possuíam uma modalidade semelhante, o hurling over country. Também são
incertas as suas origens, embora historiadores britânicos sejam quase
Figura 7 – A prática do gioco del calcio fiorentino.
Fonte – Tuscany holidays (200-).
90
unânimes em afirmar que tudo se deveu a um ataque Viking, no século VIII, a
Kingston-on-Thames, na costa inglesa. Depois que os bárbaros vikings
mataram, violaram e saquearam, os ingleses conseguiram matar o chefe
inimigo e, para exteriorizar seu ódio, decapitaram-no e atravessaram toda a
aldeia dando pontapés na sua cabeça até a deterioração total (FRANCO
JÚNIOR, 2007).
Por muito tempo, o futebol foi meramente um festejo para os ingleses.
Lenta e gradualmente, o esporte se tornou cada vez mais popular e violento.
De fato, era comum haver pernas quebradas, roupas rasgadas ou dentes
arrancados. Há notícias até de acidentes fatais, como o de um jogador que se
afogou ao pular de uma ponte para pegar a bola. Houve também muitos
assassinatos decorrentes da rivalidade entre times. O esporte ficou conhecido
como mass football (futebol de massa).
Em 1365, na Inglaterra, o rei Eduardo III proibiu um jogo chamado de
football, praticado pelas classes baixas, alegando que causava distúrbios
populares e afastava as pessoas de outras práticas mais nobres e úteis para as
quais se utilizavam as mãos. Sem dúvida, o jogo praticado inicialmente pelas
classes baixas e, posteriormente, nas escolas das classes altas, sobreviveu.
Alguns pesquisadores, por outro lado, concluíram que o gioco del calcio
fiorentino saiu da Itália e chegou à Inglaterra por volta do século XVII. Lá
chamado de football, o jogo ganhou regras diferentes e foi organizado e
sistematizado. O campo deveria medir 120 m por 180 m e nas duas pontas
seriam instalados dois arcos retangulares chamados de gol. A bola era de
couro e cheia de ar. Apesar de tantas controvérsias, dá-se como certo que em
1700 foram proibidas as formas violentas do futebol. O esporte, então, teve de
mudar e foi ganhando aspectos mais modernos.
Disseminou-se pelas escolas inglesas um jogo com bola semelhante ao
praticado desde o século XIV pelas classes baixas, com o intuito de formar as
elites para dominar os súditos do Império. Em 1710, as escolas de Covent
Garden, Strand e Fleet Street, na Inglaterra, passaram a adotar o futebol como
atividade física. Com isso, ele logo ganhou novos adeptos e passou a ser mais
difundido nos colégios daquele país. Surgiu, então, o problema de haver
diferentes tipos de regra em cada escola.
91
A multiplicidade de regras era uma dificuldade para a expansão do jogo,
incentivada pelo Estado como um campo de treinamento para preparar jovens
ingleses, que logo depois sairiam pelo mundo assegurando o Império. Duas
regras de diferentes colégios ganharam destaque na época: uma, especificava
jogadas apenas com os pés, e a outra, permitia a prática com os pés e as
mãos, diferenciando-se, assim, o football e o rugby, em 1848. Entre 1830 e
1860 havia mais de 70 equipes de futebol, com regras específicas em cada
local (FRANCO JÚNIOR, 2007).
4.1.2 Segunda etapa do futebol: os anos selvagens
A segunda parte da história do futebol se desenrolou desde o século XIV
até meados do século XIX.
Em 1848, em Cambridge, na
Inglaterra, foi realizada a primeira
reunião com intenção de uniformizar
as regras do esporte visando facilitar
sua difusão. A normatização não foi
totalmente acatada e as discussões
continuaram. Em 1863, logo após uma
série de reuniões entre os praticantes
na mítica Taberna Freemason's
(Figura 8), estabeleceram-se as regras
modernas do esporte denominado football, derivadas da fusão, principalmente,
dos Códigos de Cambridge e Sheffield.
Modificações e adendos às regras foram sendo
admitidos ao longo do tempo. Assim, foi criada a
primeira versão da regra do impedimento em 1867;
o tiro de meta em 1869; a participação do árbitro
em 1868; a figura do guarda-redes em 1871, que
seria o único elemento da equipe com permissão
para colocar as mãos na bola e que deveria ficar
Figura 8 – Taberna Freemason’s, em
Londres, local em que foram discutidas as
regras e as determinações do football.
Fonte – Beer in the evening (200-).
92
próximo ao gol para evitar a entrada da bola; foram definidos o escanteio, o
peso, as medidas e os materiais da bola e das traves do gol em 1872; a forma
de jogar deixou de ser individualista e passou a ser mais coletiva em 1876; o
árbitro passou a usar o apito em 1878; fixou-se a duração de cada partida em
90 minutos em 1877; estabeleceram-se o escanteio em 1881 e que as bolas
laterais seriam cobradas com as mãos em 1882 (FRANCO JÚNIOR, 2007).
4.1.3 Terceira etapa do futebol: a organização em entidades e a
disseminação pelo mundo
Desde o fim do século XIX até meados do século XX, após a criação das
primeiras regras do futebol, tornou-se necessário gerenciá-las e ampliar seu
alcance. Com essa finalidade, em 1863 foi criada a Football Association, uma
associação de futebol inglesa que oficializou e estatizou as regras do esporte.
A primeira taça da Inglaterra de futebol (Football Association Challenge Cup)
ocorreu em 1872 e ainda no fim do século foram formadas as ligas inglesas de
St. Mary e Hampshire, neste último local já existindo competições com
diferentes categorias, divididas por idade e denominadas mirim, juvenil e adulta
(MILLS, 2005).
O profissionalismo no futebol foi iniciado somente em 1885 e, no ano
seguinte, foi criada, na Inglaterra, a International Football Association Board,
entidade cujo objetivo principal era estabelecer e mudar as regras do futebol
quando necessário e garantir que estas fossem uniformizadas e controladas
por um corpo restrito de notáveis. Em 1888, equipes foram eliminadas por
trazer jogadores estrangeiros para representá-las e, no mesmo ano, foi
fundada a Football League, com o objetivo de organizar torneios e
campeonatos internacionais, composta por 12 clubes, que em 1889
começaram a disputar um torneio nacional com dois pontos cumulativos por
vitória e um por empate (FRANCO JÚNIOR, 2007).
Foi demarcado o campo de jogo e, em 1891, por sugestão de William
McCrum, goleiro e filho de um xerife, estabeleceu-se a regra do pênalti,
penalidade inicialmente cobrada de qualquer ponto do campo e,
93
posteriormente, a 12 jardas do gol; surgiram os bandeirinhas em 1892 e as
linhas internas do campo em 1902 (FRANCO JÚNIOR, 2007).
Em 1896, na primeira ocorrência dos Jogos Olímpicos modernos, em
Atenas, Grécia, o futebol foi o segundo esporte coletivo a participar como
esporte de exibição. No ano de 1897, uma equipe de futebol inglesa, chamada
Corinthians, fez uma excursão fora da Europa, contribuindo para difundir o
futebol em diversas partes do mundo (FRANCO JÚNIOR, 2007).
Em 21 de maio de 1904, foi criada em Paris,
França, a Fédération Internationale de Football
Association (FIFA), entidade que deu a base
organizacional para a disseminação do esporte
e organiza até hoje o futebol em todo o mundo.
A Inglaterra, país de maior representatividade
do futebol europeu na época, não aderiu à FIFA logo após sua criação,
fazendo-o somente dois anos depois (FRANCO JÚNIOR, 2007).
Em 1908, o futebol participou da quarta versão dos Jogos Olímpicos, em
Londres, Reino Unido, como esporte de competição. Pela amplitude desse
evento, as disputas olímpicas foram encaradas como campeonatos mundiais
de futebol até 1930, quando foi realizada no Uruguai a primeira Copa do Mundo
(FRANCO JÚNIOR, 2007).
4.1.4 Quarta etapa do futebol: a mercantilização
Os tempos foram avançando, o
futebol ampliando suas fronteiras, o
público aumentando, o que demonstrava
que os eventos a ele relacionados já eram
populares. As federações perceberam
que administrar o jogo significava ter de mantê-lo sob controle e divulgá-lo e
que os custos disso implicavam estratégias de gerenciamento para sua
manutenção. O processo de desenvolvimento dos meios para se chegar aos
fins passou, então, a ser realizado de acordo com os princípios e a lógica do
Fédération Internationale de
Football Association
94
mercado, o que se denomina mercantilização. Desse modo, o futebol passou
do status de esporte ou atividade de lazer para a condição de serviço ou bem
comercial, pois já se apresentava como atividade altamente lucrativa. Toda a
popularização desse esporte implicou expandir, investir, consumir e ser
consumido. Surgiu a necessidade de construir lugares apropriados para sediar
as organizações, estádios para a realização dos jogos, além da exigência do
desenvolvimento de jogadores com capacidade para levar as pessoas aos
estádios. Deu-se início, então, à compra e venda de tudo que está relacionado
ao futebol, inclusive os próprios jogadores.
Começou a era da construção de grandes estádios como palco das
competições: em 1877, Stamford Bridge (Chelsea), preparado para receber 42
mil espectadores; em 1884, Anfield Road (Liverpool), para 62 mil pessoas; em
1910, Old Trafford (Manchester United), para 60 mil; em 1912, Campo Grande
(Benfica), para 25 mil; em 1913, Highbury (Arsenal), para 70 mil; em 1923,
Wembley, para 125 mil e Chamartin (Real Madrid), para 23 mil; em 1926, San
Siro (Milan), para 35 mil, entre outros.
Na Inglaterra, em 1891, o Arsenal abriu parte de
seu capital a 860 acionistas, entre pessoas físicas
e jurídicas. Em 1901, o Sunderland, time da
primeira divisão, vendeu o jogador considerado
seu grande artilheiro, Alfred Common, por 350
libras ao time do Sheffield United (Figura 9). O
jogador continuou sendo um sucesso e, no verão
de 1904, o Sunderland o comprou de volta por
520 libras. Em seguida, em fevereiro de 1905, Alf
Common, foi transferido para o Middlesbrough
pela cifra de 1.000 libras. Em 1925, o Arsenal
contratou o jogador Charles Buchan, do
Sunderland, por um salário fixo mais uma quantia
por gol marcado (FRANCO JÚNIOR, 2007).
Figura 9 – Alfred Common, o
primeiro jogador de futebol a
ser negociado.
Fonte – Spartacus
educational, [200-].
95
Figura 10 – Charles Miller,
o
pai do futebol no Brasil.
Fonte – BBC home (200-).
4.2 O futebol no Brasil
Há dúvidas quanto à origem do
futebol no Brasil, embora se saiba que o
"jogo de bola" foi proscrito em 1746, em
São Paulo, por lei da Câmara Municipal,
como causador de desordem e agrupamento de vadios (CALDAS, 1990). A
primeira apresentação do futebol no Brasil foi em 1870, no Rio de Janeiro, com
uma partida mítica entre marinheiros ingleses, em frente ao atual Palácio
Guanabara, então residência da Princesa Isabel (FRANCO JÚNIOR, 2007).
Entre 1880 e 1890, os jesuítas introduziram no Colégio São Luís, em Itu,
um jogo com o ballon anglais, parecido com o futebol, chamado por eles de
“bate bolão” e jogado por jovens da elite local. Vários times foram criados em
escolas do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo para praticar aquela
modalidade.
Como football, seu surgimento é atribuído a Charles
Miller (Figura 10), um descendente de ingleses que
em 1894 trouxe da Inglaterra as duas primeiras
bolas de couro da marca Shoot, uma agulha, uma
bomba de ar, dois uniformes, um par de chuteiras,
livros de regras e organizou o primeiro jogo em São
Paulo (MILLS, 2005).
O alemão Hans Nobiling, fundador do Sportclub
Germania, atual Esporte Clube Pinheiros, reforçou a
implantação do futebol no Rio Grande do Sul em
1897, ajudando a fundar o Sport Club Internacional de Porto Alegre (Figura 11).
Também foi determinante para o sucesso do futebol no país, Antonio Casimiro
de Abreu, primeiro presidente da Liga de Futebol do Brasil.
Outra pessoa importante foi Oscar Alfredo Cox, filho de ingleses, que
estudou fora do Brasil (Figura 12). Após uma temporada de estudos na Suíça,
Cox voltou ao Brasil, em 1896, para mostrar aos cariocas o esporte que estava
fascinando os europeus. Juntou alguns amigos e fundou o Rio Team. Em 1901,
96
Figura 11 – Hans Nobiling e as antigas bolas
de futebol.
Fonte – Esporte Clube Pinheiros (200-).
Figura 12 – Oscar Alfredo Cox: símbolo
da aristocrática juventude brasileira de
1902.
Fonte – Fluminense (200-a).
organizou os primeiros jogos entre paulistas e cariocas. Foram duas partidas
realizadas em São Paulo que terminaram empatadas: a primeira, em 1 x 1 e a
segunda, em 2 x 2. Em 21de julho de 1902, Cox fundou o Fluminense Foot Ball
Club e foi presidente do clube até 31 de dezembro de 1904. Esse time foi o
vencedor do primeiro Campeonato Carioca, realizado em 1906, e dos oito
seguintes, o que estimulou a criação de uma liga carioca e organizou o futebol
naquele estado.
De acordo com Levine (1982), a história do futebol brasileiro pode ser
descrita como tendo quatro fases fundamentais no contexto histórico-cultural
em que se desenvolveu, às quais acrescentamos, no presente estudo, uma
quinta fase:
a) Primeira fase (1894-1904) – chegada do futebol ao país e criação de
clubes urbanos por imigrantes europeus;
b) Segunda fase (1905-1933) – período amador, caracterizado pelo
elitismo na platéia e na composição dos times;
c) Terceira fase (1933-1950) – início do profissionalismo;
d) Quarta fase (1950-1970) – período do reconhecimento internacional e
da comercialização do futebol;
e) Quinta fase (1970-2007/2014) – futebol globalizado.
97
A PRIMEIRA PARTIDA DE FUTEBOL NO BRASIL
Um ponto a destacar era que todos os jogadores eram ingleses radicados em São Paulo.
A partida agradou tanto que, em pouquíssimo tempo, foram fundados diversos clubes na
capital paulista: o time da colônia inglesa era o São Paulo Athletic; o Germânia foi
fundado pelo alemão Hans Nobiling; o Internacional foi criado por uma parte dos
fundadores do Germânia; já o Mackenzie foi o primeiro clube formado exclusivamente
para a prática do novo esporte. Começava a institucionalização do futebol, com a
representação de agremiações de jogadores, torcedores e cartolas, ponto de concretude
da paixão de milhões de torcedores, com suas cores, bandeiras, símbolos, hinos e
histórias.
Figura 13 – Charles Miller jogando na primeira partida de futebol realizada no Brasil.
Fonte – BBC home (200-).
4.2.1 Primeira fase (1894-1904): elite boa de bola
A inserção do futebol no Brasil se deu no século XIX, sob a influência de
brasileiros estudantes de escolas na Inglaterra que tiveram contato com o
futebol naquele país. Em 1894, Charles Miller, paulista descendente de
escoceses e ingleses, trouxe o futebol da Inglaterra para São Paulo.
Ferroviária São Paulo Railway, time de Charles Miller, contra Companhia
de Gás, foi o primeiro jogo de futebol no Brasil, com placar de 4 x 2, disputado
no dia 14 de abril de 1894, na Várzea do Carmo, em São Paulo (Figura 13).
Helal (1997, p. 38) assim descreve a façanha de Miller: “[...] de início, logo após
a atividade de missionário exercida por Charles Miller, o futebol teve como
focos de irradiação o meio industrial e aristocrático, ligados aos hábitos de
lazer da colônia européia”. Em 1888, o São Paulo Athletic Club foi fundado
especialmente para a prática do cricket. Em 1897, o clube introduziu a nova
modalidade esportiva – o futebol (MILLS, 2005).
98
Em 1899, foram fundados em São Paulo: a Associação Atlética
Mackenzie College, primeiro time constituído exclusivamente por brasileiros; o
Sport Club Internacional, reunindo ingleses e brasileiros; e o Sport Club
Germânia, para alemães e descendentes. Em 1900, também em São Paulo,
foram fundados: o Club Athletico Paulistano, representando tradicionais
famílias de São Paulo; o Sport Club Savoia, representando a colônia italiana; o
Sport Club Rio Grande. Em 1902, foi fundada a Associação Athletica das
Palmeiras, por jogadores dissidentes do Paulistano.
A partir de 1902, o futebol deixou de ser um esporte exclusivamente de
elite. Como era um jogo que atraía muitas pessoas, tinha regras fáceis e não
necessitava de equipamentos, logo caiu no gosto popular. As classes médias e
baixas também queriam jogar e aprenderam o futebol, surgindo os clubes
formados por pequenos comerciantes, operários e artesãos.
Entre 1900 e 1911 surgiram os primeiros clubes destinados somente à
pratica do futebol, esporte do qual só as elites participavam: Ponte Preta
(1900), Fluminense (1902), América (1904), Botafogo (1904). Também clubes
dedicados a outras modalidades incorporaram o futebol: Náutico (1909) e
Flamengo (1911).
Entre 1901 e 1905 foram criadas as primeiras ligas, que congregavam
os times de elite, com o intuito de “proteger” a prática do esporte, isto é, mantê-
la a salvo da maioria dos brasileiros, usando o disfarce da defesa do
amadorismo. Na criação da Liga Paulista de Football, quando da aprovação de
seu estatuto, este já prescrevia que a instituição seria sustentada pela renda
dos jogos, devendo 50% do que fosse arrecadado ser destinado para os cinco
clubes que integravam a instituição e os demais 50%, para a manutenção dela,
que tinha as seguintes atribuições: organização dos torneios e das cores dos
uniformes de cada um dos times, administração dos campos em que
ocorreriam os jogos, organização dos jogos propriamente ditos e sua
divulgação pelos jornais (FRANCO JÚNIOR, 2007; MILLS, 2005).
99
O RACISMO E O PÓ-DE-ARROZ
Inicialmente, apenas brancos podiam
jogar futebol no Brasil como
profissionais, dado o fato de a maioria
dos primeiros clubes terem sido
fundados por estrangeiros. Em jogo
contra o seu ex-clube, o América, no
Campeonato Carioca de 1914, o
mulato Carlos Alberto, por conta
própria, chegou a cobrir-se com pó-de-
arroz para parecer branco. Porém, com
o decorrer da partida, o suor cobriu e
derreteu a maquiagem e a farsa foi
desfeita. A torcida do América, que o
conhecia, por ser um dos jogadores
que havia saído do clube na cisão
interna de 1914, tendo sido campeão
carioca em 1913, começou a persegui-
lo e a gritar "pó-de-arroz". Esse apelido
foi incorporado pela torcida do
Fluminense, que passou a jogar pó-de-
arroz e talco toda vez que seu time
entra em campo, proporcionando uma
das mais bonitas festas de torcidas
.
Figura 14 – Carlos Alberto tentou
disfarçar sua cor passando pó-de-arroz
no corpo.
Fonte – Fluminense (200-b).
4.2.2 Segunda fase (1905-1933): o futebol da elite para o povo
Nesse período, se deu a aproximação do futebol com outros segmentos
sociais e o esporte foi se popularizando, ganhando as várzeas e os terrenos
baldios. Foi sendo incorporado pelo proletariado, atingindo os ambientes de
trabalho e surgiram os clubes esportivos não associados às fábricas. Em 1904,
foi fundado o Bangu Athletic Club por ingleses que trabalhavam para a
Companhia Progresso Industrial Ltda. No início, jogavam apenas os ingleses e
os trabalhadores de outras nacionalidades, porém, logo começaram a ser
aceitos operários brasileiros para completar o quadro de jogadores (FRANCO
JÚNIOR, 2007; LEVINE, 1982).
Além da formação dos primeiros
clubes de futebol, apareceu o primeiro
noticiário e o primeiro repórter esportivo
Mário Cardim, no jornal O Estado de São
Paulo. Começavam as primeiras disputas
entre os cariocas e os paulistas. Foi
publicado o primeiro livro sobre futebol, o
Guia do football, no qual havia a distinção
entre pobres e ricos e entre brancos e
negros (RIBEIRO, 2007).
Marcada pelo futebol como
distinção social, essa fase caracterizou-se
pelo elitismo na platéia e na composição
dos times (LOPES, 1994) e pela ampla
divulgação na imprensa (LEVINE, 1982).
Essa foi a etapa do desenvolvimento do
futebol no Brasil considerada a mais
racista (Figura 14). Jogadores negros e
mulatos sofriam aberta oposição dos
sócios de clubes de brancos, autoridades
e espectadores, à semelhança de outra
100
PIONEIRISMO DO VASCO
A princípio, os jogadores de raça
negra não eram aceitos pelos times.
Entretanto, essa situação se
modificou rapidamente e o Vasco da
Gama foi o pioneiro em contratar
alguns negros. Além dos negros,
também operários e pessoas das
camadas sociais mais populares
passaram a fazer parte de diversos
times. O Vasco foi o primeiro dos
clubes grandes a vencer títulos com
uma equipe que contava com vários
jogadores negros e pobres. Em uma
época em que o profissionalismo era
proibido, os portugueses do Vasco
pagavam os jogadores e os
registravam como seus empregados,
de modo que pudessem treinar e
levar vantagem física e técnica
sobre os seus adversários, os quais
trabalhavam durante o dia e não
podiam treinar.
Fonte – Pereira (2000).
grande expressão cultural brasileira na
mesma época, o samba. Cada vez mais, o
futebol espelhava e sintetizava as
condições sociais, políticas e econômicas
da época. A exclusão de pobres, negros e
operários lentamente deu lugar a uma
inclusão a contragosto e, finalmente, sem
resistências ostensivas. O Vasco da Gama,
clube fundado por portugueses ricos, e que
incorporou o futebol em 1915, já em 1904
elegeu um primeiro presidente negro.
Entre 1910 e 1919, mais times e
federações surgiram e o esporte tornou-se
cada vez mais popular. Em 1910, após
uma visita do Corinthians londrino ao
Brasil, foi fundado, em São Paulo, o atual Clube Corinthians Paulista. Também
surgiram os primeiros jornais específicos sobre esse esporte a partir de 1910. A
própria noção de esporte era confundida com a noção de futebol. Os campos
de várzea proliferaram e o futebol começou a ser popularizado (RIBEIRO,
2007).
Os times foram se organizando e, de 1910 a
1919, quase todos os estados brasileiros já tinham
seu campeonato e sua federação. Em 1914, foi criada
a Federação Brasileira de Sports, que teve duração
curtíssima e, já em 1916, foi substituída pela
Confederação Brasileira de Desportos (CBD), a qual
cuidava também de outros esportes, como remo,
natação e atletismo (RIBEIRO, 2007).
Em 1912, o Clube de Regatas do Flamengo, que se tornaria o mais
popular do Brasil, começou a jogar futebol. Em 1917, teve início a cobrança de
ingressos para assistir as partidas de futebol no Rio de Janeiro, a fim de cobrir
custos materiais e, posteriormente, para o pagamento de salários aos
jogadores. Embora a prática do esporte já fosse generalizada entre as classes
101
operárias, majoritariamente mestiças, a Seleção Brasileira de Futebol de 1919
era composta apenas por jogadores brancos. O próprio presidente Epitácio
Pessoa proibiu a convocação de jogadores negros (CALDAS, 1990; FRANCO
JÚNIOR, 2007).
Na década de 1920, o futebol já havia se separado do tênis e do
críquete, esportes da elite, e despertava o interesse de toda a massa. Nas
fábricas, o futebol era usado como veículo publicitário para a divulgação da
imagem e do prestígio das empresas e, ainda, como mecanismo de diversão e
disciplina para os trabalhadores (ANTUNES, 1994; FRANCO JÚNIOR, 2007).
Em 1923, a CBD organizou o primeiro campeonato brasileiro entre os
times estaduais, em que o São Paulo sagrou-se campeão. Surgiram os
campeonatos regionais e o público e a imprensa tornaram-se cada vez mais
interessados pelo esporte, difundindo-o pelo país (FRANCO JÚNIOR, 2007;
RIBEIRO, 2007).
A partir dos anos 20, após a Primeira Guerra Mundial, o futebol passou a
criar identidade e a difundir estilos. Nessa época, sugiram os times
clandestinos, com a presença de negros e mulatos, mesmo sendo ainda
proibidos na Seleção Brasileira de Futebol. Graças a seu poderio, o futebol,
que era fator de inserção social das mais diferentes camadas socioraciais,
passou a ser utilizado para a política durante a campanha de Nilo Peçanha
para a presidência da república. O dono do mais famoso jornal de esporte da
época tornou-se o presidente da CBD e os literatos discutiam a importância do
futebol para a sociedade brasileira. Foram feitas as primeiras transmissões de
jogos de futebol pelo rádio, o esporte foi tema de obras no cinema e o noticiário
esportivo ganhou nova estética. Dirigentes, jogadores amadores e profissionais
e a mídia já se configuravam como instâncias e tipos sociais que começavam a
definir papéis nesse contexto (FRANCO JÚNIOR, 2007; RIBEIRO, 2007).
Entre os anos 20 e 30, em um contexto político-social nacionalista e
autoritário, se cumpriu a etapa que talvez tenha sido a mais importante da
incorporação definitiva do futebol à cultura brasileira. De um passatempo
trazido por estrangeiros e disseminado entre todas as classes sociais, esse
esporte passou gradualmente a ícone da identidade nacional, expressão
máxima da especificidade brasileira. Aos poucos, os brasileiros elegeram o
102
A “PROFISSIONALIZAÇÃO”
Em 1933, o futebol brasileiro
preparou-se para sofrer uma
mudança radical: até aquele
momento, o esporte era ainda
amador; porém, a partir dali, o
profissionalismo foi oficializado,
inicialmente, no Rio de Janeiro e
São Paulo, e depois, atingindo
outros estados.
Fonte – Pereira (2000).
futebol como terreno privilegiado para a resolução de suas aspirações coletivas
mais profundas, uma simbiose entre o fortalecimento do ideário da nação e a
consolidação do esporte (FRANCO JÚNIOR, 2007; RIBEIRO, 2007).
Fato notável ocorreu em 1932, quando o Clube de Regatas Vasco da
Gama venceu o campeonato carioca com uma equipe formada basicamente
por jogadores negros, mulatos ou brancos pobres, representando “[...] muita
humilhação para os times grã-finos, cujos times eram formados, em sua grande
maioria, por jovens estudantes e profissionais de alto nível da elite carioca”
(CALDAS, 1990, p. 44).
4.2.3 Terceira fase (1933-1950): a profissionalização
Caracterizada pela entrada de jogadores de
origem popular nos grandes clubes, essa fase
demarcou a passagem do amadorismo para o
futebol profissional, mudança patrocinada
pelo Governo de Getúlio Vargas (1930-1936),
que regulamentou o futebol como profissão
por meio de legislação social e trabalhista. A
democratização do futebol e sua definitiva
consagração como elemento da cultura nacional se deram a partir dos anos 30
(MOURA, 1998). Isso possibilitou a inserção de atletas nos grandes clubes sem
que fossem considerados critérios sociais ou étnicos. Surgiu, então, o "futebol
arte", o estilo brasileiro por excelência.
Vários foram os acontecimentos relacionados ao futebol nessa época,
entre os quais se destacam o surgimento dos diários esportivos e a inclusão
das transmissões de rádio como mais uma variável nas competições entre Rio
de Janeiro e São Paulo. Os meios de comunicação existentes no período, o
rádio e o jornal, também brigavam pela atenção do público, procurando ser o
melhor veículo de circulação das notícias, e surgiu a noção de exclusividade
nas transmissões. Empresários da comunicação passaram a assumir, em
número maior, as presidências dos clubes de futebol.
103
Ocorreu em 1938 a primeira transmissão de uma Copa do Mundo via
rádio. Foram publicados livros de autoria de jogadores e romancistas, tendo
sido o primeiro o polêmico livro escrito por um jogador de futebol brasileiro,
Floriano Peixoto Correia, em 1933: Grandezas e misérias do nosso futebol. A
imprensa construiu o primeiro fenômeno esportivo – Leônidas da Silva,
apelidado de “diamante negro” e surgiu a primeira revista especializada, a
Sport Ilustrada. Começaram a ser cobradas cotas nas rendas dos jogos para
subsidiar a imprensa (FRANCO JÚNIOR, 2007; RIBEIRO, 2007).
4.2.4 Quarta fase (1950-1970): a pátria de chuteiras
A quarta fase se caracterizou pelo
surgimento dos meios de comunicação de
massa e a propagação definitiva do futebol no
centro da vida social brasileira. Grandes jornais,
como A gazeta esportiva e O jornal dos sports,
cresceram vertiginosamente; surgiram as
estrelas do rádio, grandes locutores que, com
suas transmissões, fizeram do futebol um
espetáculo que atraía multidões; começaram os
plantões jornalísticos; cresceu o jornalismo
esportivo e foi inaugurada, em 18 de setembro de 1950, a TV Tupi, que
consagrou definitivamente a imprensa esportiva (RIBEIRO, 2007).
No dia 16 de julho de 1950, no estádio do Maracanã no Rio de Janeiro,
ocorreu a final da Copa do Mundo do Brasil, da qual participaram 13 seleções.
O Brasil enfrentava o já lendário Uruguai, duas vezes campeão olímpico e
campeão mundial em 1930. E a Seleção Brasileira de Futebol perdeu a
disputa, contrariando as expectativas de milhões de brasileiros. Enfrentando
200 mil torcedores que apinhavam o Maracanã, os visitantes fizeram o Brasil
chorar na tarde conhecida como maracanazzo. A derrota foi por muitos
atribuída à “raça brasileira”, isto é, a uma inevitável deficiência proveniente da
mestiçagem que há no país (FRANCO JÚNIOR, 2007).
104
A ERA DE OURO
Durante as décadas de 1960 e
1970, o Brasil possuía uma das
melhores "safras" de jogadores
já vista na história do futebol.
Contava com verdadeiros
craques, como Bellini, Vavá, Didi,
Nilton Santos, Zito, Djalma
Santos, Gérson, Jairzinho,
Carlos Alberto Torres, e muitos
outros, além da tricampeã
Seleção Brasileira de 1970 e dos
dois maiores jogadores da
história do futebol nacional, o Rei
Pelé e Garrincha: a alegria do
povo.
Na etapa final dessa fase, aconteceu a modernização do futebol
brasileiro. Surgiram os centros de treinamento e o futebol passou a ter caráter
profissional, tornando-se reconhecido como trabalho, fonte de renda, atrelado à
possibilidade de ganhar muito dinheiro e visto como forma de ascensão social.
Em um avanço constante, o futebol passou a embalar os sonhos de várias
gerações e se tornou um fenômeno social, sinalizando possibilidades de
ascensão para todos os envolvidos com a modalidade (jogadores, treinadores,
dirigentes e políticos).
A atividade tornou-se veículo de marketing e representação ideológica,
adentrou o círculo dos esportes de alto rendimento e profissional,
movimentando altas somas de dinheiro e propiciando o surgimento de
profissionais em diferentes segmentos da sociedade: dirigentes, empresários,
jornalistas, fotógrafos, treinadores, preparadores físicos, massagistas, médicos
do esporte, fisioterapeutas, fisiologistas, nutricionistas, sociólogos, filósofos,
psicólogos do esporte, entre outros (FRANCO JÚNIOR, 2007).
O esporte praticado no Brasil passou a ser
referência para o mundo, reforçado pelos títulos
mundiais conquistados (1958, 1962 e 1970) e
pelos mitos despontados, como Leônidas da
Silva, o “diamante negro”, Mané Garrincha, o
gênio índio de pernas tortas, nascido em Pau
Grande, e o até hoje considerado rei do futebol
e atleta do século, Edson Arantes do
Nascimento, o Pelé, que se tornou referencial
do esporte e do país no mundo inteiro.
Somando-se aos craques que viraram ídolos, houve uma explosão de
audiência das rádios, ocorreu a revolução gráfica dos jornais, surgiu a
tecnologia que possibilita ver, gravar e rever os jogos – o videoteipe,
jornalistas e atletas viraram garotos propaganda de inúmeros produtos.
105
O jornalista João Saldanha se tornou
técnico da Seleção Brasileira de Futebol,
campeã da Copa do Mundo de 1970,
disputada no México, quando ocorreu a
primeira transmissão televisiva em cores
deste evento esportivo (Figura 15). Em 24 de
setembro de 1979, a Confederação Brasileira
de Futebol (CBF) assumiu a batuta passada
pela CBD, dedicando-se exclusivamente ao
futebol (FRANCO JÚNIOR, 2007).
Outros mitos vieram e fortaleceram o desenvolvimento do esporte no
país e no mundo, como Rivelino, Zico, Romário, Ronaldo, Ronaldinho, Kaká,
Pato, vindo a ser também referências para jovens e crianças, os quais buscam
se espelhar na trajetória de seus antecessores e ídolos e tornar-se craques e
astros do futebol internacional.
4.2.5 Quinta fase (1970-2007/2014): futebol total
Pensando o futebol pós-era midiática, que
produz astros globais, os quais, por conseguinte,
geram grandes transformações no processo de
formação dos atletas e de todos os outros aspectos do
futebol, acrescentamos uma outra fase, ainda não
descrita na literatura. Sua existência se justifica
principalmente por ser uma fase contemporânea
pautada pelas Copas do Mundo como grandes espetáculos, por leis que
mudaram o futebol brasileiro, por comissões parlamentares de inquérito (CPI) e
por contratos milionários sobre direitos da imagem.
Esse período caracterizou-se pela regulamentação da profissão de
jogador de futebol e deu início à veiculação de vários programas específicos
sobre esta modalidade, alguns chegando a ter um dia inteiro dedicado à
programação esportiva. Atletas e jornalistas passaram a ser comercializados a
Figura 15 – Seleção Brasileira de
Futebol: tricampeã da Copa do
Mundo em 1970, no México.
Fonte: Rede Gazeta
de televisão
(200-).
106
preço de ouro entre clubes e redes de televisão, tornando-se estrelas de
comerciais. A imprensa assumiu que tem muito poder nas escolhas da Seleção
Brasileira de Futebol. O jornalista esportivo Juca Kfouri foi convidado pelo
presidente Fernando Henrique Cardoso, em seu primeiro mandato, a ocupar o
cargo de Ministro dos Esportes. Não aceitou o convite e indicou Pelé, o grande
“rei” do futebol, que se posicionou politicamente, assumiu o cargo e conseguiu
que fosse elaborada e sancionada aquela que ficou conhecida como a lei Pelé
(BRASIL, 1998), que regulamentou os desportos no país. Sucederam-se a
máfia das loterias, a bancada da bola no Congresso Nacional, a CPI do
milionário contrato da empresa multinacional de material esportivo Nike com a
CBF, as negociatas da MSI com o Corinthians.
Mais recentemente, programas televisivos têm escolhido e inventado
craques infantis que mobilizam centenas de outros garotos com seus sonhos
de também participar do espetáculo. O fenômeno da Internet e dos blogs de
jornalismo esportivo explodiu e vem experimentando grande expansão. O tipo
social “jogador de futebol profissional” vem se multiplicando, com alguns
chegando ao topo de suas carreiras e se tornando celebridades instantâneas,
que duram enquanto as luzes dos flashes incidirem sobre eles (RIBEIRO,
2007).
Todos esses fatos e muitos outros descrevem o ambiente do futebol em
um contexto repleto de engrenagens, entre as quais se incluem as agências
controladoras, as instituições, as normas, as leis, as características de classe,
raça, religião e gênero. Por meio da linguagem que veicula sentidos sobre
essas mediações, estas caracterizam e dão forma à matriz social na qual está
inserido o jogador de futebol profissional, sendo ele, ao mesmo tempo, seu
agente atualizador.
Cabe ressaltar que a história do futebol no Brasil e no mundo é
importante para entender as transformações socioeconômicas que levaram
esse esporte a galgar o status de espetáculo, ao surgimento de atletas
considerados fenômenos, à corrupção e ao enriquecimento dos “cartolas” e das
redes de televisão, estas freqüentemente associadas às grandes marcas de
produtos industrializados dos mais variados segmentos de consumo.
107
O futebol nunca movimentou tantos recursos financeiros e humanos
quanto na atualidade, quando tudo é comercializado sem comedimento, tudo é
comprado e vendido, tudo tem presente a figura do patrocinador: a seleção de
cada cidade e de cada país; o time de várzea e o time grande; o jogador
iniciante e o fenomenal; a bola de treino e a de cada campeonato; a chuteira de
cada jogador, na qual seu nome encontra-se gravado, personalizando-a e
criando o mercado específico de seus admiradores; a transmissão exclusiva,
que impede a concorrência e faz consumir a televisão paga só para não ter de
ouvir as inadequações do locutor que se acha especialista em tudo; o campo,
rodeado de placas, banners, efeitos especiais e contratos feitos para as
transmissões televisivas.
Os contratos de qualquer ordem apresentam
cifras hollywoodianas. Movimentam-se trilhões
para a execução e a transmissão de uma Copa
do Mundo; bilhões são empregados nas licenças
de marcas; milhões são arrecadados em vendas
de atletas. No entanto, questiona-se se essa
corrente milionária, pontuada e definida pela
matriz e pelo tipo “jogador de futebol
profissional”, fez o esporte melhorar. É chegado o momento de problematizar
se essa excessiva mercantilização do futebol e de tudo que o permeia gera
efeitos sobre a sociedade.
109
CAPÍTULO 5
METODOLOGIA
Neste capítulo é apresentada a metodologia deste trabalho, para o que
se faz necessário contextualizar como sua forma e conteúdo foram pensados
para, em seguida, expor o percurso de atuação da pesquisadora em campo.
Partimos do pressuposto que dar sentido ao mundo é uma prática social
discursiva, repleta de vozes e repertórios, que faz parte da condição humana.
Dar sentido ao mundo não é algo que acontece ao acaso, mas algo
sistemático, que pode ser estudado e compreendido, no caso deste estudo, a
partir da perspectiva construcionista, ou seja, como uma prática social, reflexiva
e crítica, que adota a postura de estar diante de um processo inacabado.
A forma de estar diante desse processo implica realizar uma atividade
metódica, embasada por uma concepção específica sobre natureza,
conhecimento e ser humano. Essa forma de proceder situa o método na
perspectiva das ciências humanas e sociais e intitula metodologia a
consistência interna dos seus procedimentos (lógica de demonstrar a
correspondência entre o que é produzido e as estruturas da realidade).
Refletir sobre a natureza e o uso das categorias utilizadas para explicar
o conhecimento, sem abandono do rigor, sem as amarras da previsão e sem a
crença no controle, mas com uma atitude pautada na ética, são características
da posição construcionista, que é adotada neste estudo. Para tal, foi
necessário assumir o rompimento com o monismo metodológico que instituía
uma única maneira de fazer ciência, o modelo das ciências naturais.
Entretanto, esta pesquisa está pautada nas ciências humanas e, sendo assim,
encontra-se repleta de possibilidades de escolhas na ação de pesquisar e, em
face delas, exige maior responsabilidade, cuidado e ética por parte da
pesquisadora.
Sabe-se que metodologia não pode ser uma opção meramente técnica,
associada somente ao objetivo da pesquisa. Envolve um posicionamento
110
diante da forma de tratar o conhecimento e que, no caso da perspectiva
construcionista, conforme postula Gergen (1985), propõe-se a compreender o
mundo e as suas engrenagens, além dos seus artefatos sociais, produto das
trocas historicamente situadas entre os interlocutores. Sendo assim, a partir do
construcionismo, o foco deste trabalho recai sobre a explicação dos processos
pelos quais as pessoas descrevem, explicam e justificam o mundo em que
vivem e participam.
Com Goffman (1975), observa-se uma modificação na maneira de
produzir conhecimento em psicologia social, em contraposição ao modelo
positivista clássico: as visões do outro sobre o mundo e sobre si mesmo dão
um impulso metodológico que se coaduna com as implicações de definir
diferentemente o objeto de estudo da psicologia social (interações) dentro das
ciências humanas.
Dessa forma, a metodologia que empregamos neste estudo focaliza as
interações sociais, mais especificamente os processos de produção de
sentidos na vida cotidiana do atleta de futebol, preocupando-se com a
explicação dos processos por meio dos quais os interlocutores descrevem,
explicam e elaboram o mundo em que vivem. É importante salientar que o foco
da análise está nas estruturas e no funcionamento da interação humana,
deixando de lado a visão representacionista do conhecimento e afirmando que
as idéias sobre o mundo não são algo que se fornece pronto ao indivíduo, mas
que ele constrói conjuntamente.
Nesta tese assumimos as noções de campo de Bourdieu (1989), Law
(1989, 1992), Law e Hassard (1999) e Spink (2003), de modo a propor que
campo não é um lugar, mas sim a situação atual de um assunto, a justaposição
de sua materialidade e sociabilidade. Não é o campo que tem um assunto, mas
o assunto que tem um campo. Spink (2003) utiliza a noção de campo-tema
com as seguintes características: a relação entre pesquisado e pesquisador
(pesquisa colaborativa, pesquisa-ação, pesquisa participativa), que pode
possuir múltiplos e diferentes métodos dentro de uma mesma investigação
(caso da presente pesquisa), que pode analisar, segundo a perspectiva
construcionista, as práticas discursivas levando em conta lugar e tempo e que
não requer planejamento antecipado rigoroso das estratégias de pesquisa.
111
Salientamos que, no contexto desta pesquisa, foram realizadas
observações, reflexões e conversas sobre o jogador de futebol profissional.
Acrescentamos, ainda, que falar do campo-tema requer contar e narrar os
processos e as histórias presentes no estudo, sem perder o rigor da forma de
organização e da redação do trabalho dentro das regras acadêmicas.
Recorremos à analogia feita por Bourdieu (1989, p. 17) entre o produto
de uma pesquisa e de uma obra de arte acabadas (a pintura). Em ambas, o
autor fala da exaltação ou da avaliação como produto que leva em conta a sua
finalização com todos os seus “toques e retoques findos” (grifo nosso) para
atender ao academicismo. Em contrapartida, fala dos esboços das obras de
arte como obras tão ou mais valiosas que algumas “acabadas” (grifo nosso),
principalmente por conter nuances do processo de sua criação.
Bourdieu (1989) é aqui trazido, pois, assim como ele pensou em sua
obra, também refletimos acerca deste estudo, agora exposto diante de vários
Homo academicus como um trabalho que busca ser finalizado, porém não
acabado no sentido definitivo, e que tem, na descrição de sua metodologia, o
relato das nuances do processo de sua construção.
A posição da pesquisadora diante do estudo foi a de quem concebe,
adentra, vasculha, dialoga, observa, reflete e retorna transformada com o novo
olhar, compelida a refazer este trajeto inúmeras vezes. Em uma concepção
bakhtiniana, seria o entendimento da palavra como acontecimento, com toda a
sua dialogicidade característica, para, por fim, explicitar como se deu a
racionalidade do processo de estar em um campo-tema (AMORIM, 2001).
Para quem concebe pesquisa como atividade racional, a construção do
objeto de estudo e o questionamento do seu modus operandi requer um pensar
relacional,
7
no qual se incluem técnicas, teorias e rigor
8
metodológico. Sabe-se
que a importância do objeto, nesta pesquisa o tipo social “jogador de futebol
profissional”, não garante a importância do estudo. Por isso, se faz necessária
7
Pensar relacional, como preconiza Bourdieu (1989), é tentar escapar do modelo realista e
construir o objeto de maneira a usar a categoria existente para compreender as relações de
força entre as posições sociais que dividem interesses.
8
Bourdieu (1989, p. 18) afirma que “a pesquisa é coisa séria demais e demasiado difícil para
se poder tomar a liberdade de confundir a rigidez, que é o contrário da inteligência e da
invenção com o rigor, e se ficar privado deste ou daquele recurso entre os vários que podem
ser oferecidos pelo conjunto das tradições intelectuais das disciplinas”.
112
a análise dos processos de construção social, ressaltando menos as
inscrições
9
e dando ênfase às observações triviais. Dirigir uma pesquisa é fazer
verdadeiramente, e com responsabilidade, um caminho e não buscar um
produto ou uma resposta.
5.1 Etapas do trabalho de campo
O trabalho de campo exige do pesquisador que participe de uma
pequena parte do sistema geral de funcionamento do ambiente em que está
inserido. Além disso, requer uma série de cuidados, sendo um deles a clareza
do seu objeto de estudo, de tal modo que o recorte em torno dele fique
protegido de suas próprias intervenções no campo. Outro ponto que merece
atenção reside no fato de estar o campo-tema de pesquisa social em um
contexto rico de possibilidades, as quais incluem o exercício de tensionamento
que o pesquisador faz, utilizando-se da palavra como arena, no que se refere
ao ambiente em que se confrontam sua bagagem intelectual e sua experiência.
Tal exercício de tensão e de deslocamento exotópico, consoante Bakhtin
(1998, 2003), em conjunto com a polifonia decorrente das vozes de
pesquisador e pesquisados, na pesquisa em ciências humanas, pode garantir
uma “medida” de envolvimento e distanciamento que dê ao leitor a chance de
entender os processos do pesquisador e do campo pesquisado, bem como
propiciar-lhe o exercício da crítica e da interlocução.
A noção de campo que adotamos neste trabalho advém da posição de
pesquisadora e psicóloga social da autora, que escolheu o contexto esportivo
(clube de futebol) por ser este um “lugar” de ocorrência de um fenômeno social
de massa e de transformação social. Essa posição é clara na medida em que
estabelece um olhar da psicologia para o processo de tornar-se jogador de
futebol profissional, assim como a intenção de poder vir a fundamentar
disciplinarmente novas teorias e práticas dentro da psicologia do esporte. Para
tal, observamos a totalidade de fatos psicológicos, suas matrizes, suas
9
Latour (2000) explica que o termo inscrições se refere ao produto formal da objetivação
humana e cita como exemplos tabelas, gráficos, máquinas e dados.
113
materialidades, toda a processualidade de temas situados até a complexa rede
de negociação de sentidos sobre o tipo social “jogador de futebol profissional”.
Esta pesquisa objetivou, a partir da perspectiva do construcionismo,
entender, por meio de observações e conversas cotidianas, como ocorre o
processo de formação do jogador de futebol profissional em um clube da
Região Centro-Oeste do Brasil que está na primeira divisão do futebol nacional.
Buscamos entender como os acontecimentos ocorreram e quais são os
interlocutores e as inscrições presentes no processo de construção social
envolvidos durante o referido percurso.
Spink (2000) afirma que a pesquisa social reúne condições excepcionais
para o exercício da competência ética de pesquisa. A autora argumenta a favor
da ética da responsabilidade, pautada por competência ética de foro íntimo e
passível de gerar condições de sustentabilidade para a conduta profissional,
que ela denomina ética dialógica.
As questões éticas e epistemológicas surgiram quando, ao estar em
campo para as observações e conversas desta pesquisa, a pesquisadora foi
instada a fazer parte da escolinha de iniciação esportiva, dando atenção
especial às pré-equipes de um de três centros de treinamento do clube no qual
a pesquisa foi conduzida. Apesar de considerar que o estudo para a
elaboração desta tese envolve um universo maior de jogadores e atores e que
as pré-equipes representam apenas uma pequena amostra deste contexto,
como poderia a doutoranda exercer as duas funções sem comprometer uma
(pesquisadora) ou outra (psicóloga da escolinha de iniciação esportiva)?
Como a permanência e o livre trânsito da pesquisadora pelo clube (único
da categoria na região) estavam condicionados à aceitação da função de
psicóloga na escolinha de iniciação esportiva, fizemos a seguinte negociação:
durante dois meses (maio a junho de 2006) seriam realizadas observações e
conversas por todo o clube, inclusive na escolinha de iniciação esportiva. A
partir do material coletado, seria confeccionado um dossiê contendo: o resumo
das observações acerca da escolinha de iniciação esportiva; uma proposta de
intervenção para iniciar o trabalho no semestre seguinte; orientações para os
professores nos sentidos acadêmico e pedagógico. Assim, logramos êxito em
viabilizar uma solução para o impasse ético e para o aproveitamento do
114
contexto de forma a atender ao trabalho de pesquisa e à solicitação de
intervenção. Durante dois meses, o trânsito pelo clube e a obtenção de
informações de maneira aberta e consentida não implicaram nenhuma
intervenção imediata.
O pesquisador, mais que pensar a ética, a exercita constantemente do
lugar do seu fazer; e, deste lugar, pertencendo ao processo que investiga,
assume o compromisso de uma prática social reflexiva, transparente em sua
condução teórica e metodológica.
Interseccionando teoria e prática, Bakthin e sua concepção de
enunciados (AMORIM, 2003, 2006; BRAIT, 2005, 2006), vozes e dialogia, é
possível entender, por meio dos microprocessos de produção de sentidos e da
linguagem utilizada pelo atores da rede, como estes criam e recriam a noção
de jogador de futebol profissional. A dialogia remete sempre a algo novo na
relação falante–ouvinte. As vozes e o silêncio promovem a interpretação e a
compreensão. Os exercícios da palavra e da formação de uma contrapalavra
permitem um movimento que vai além do reconhecimento do que é dito, pois
extrapolam e promovem novos sentidos que variam e formam os enunciados. A
metodologia de coleta e análise de dados especifica uma relação entre
pesquisado e pesquisa que perfaz uma inter-relação, mas, nem por isso
caracteriza menos rigor e responsabilidade na busca de entendimento dos
sentidos (MENEGON, 2003; SPINK, 2000; SPINK; LIMA, 1999).
Portanto, uma ética dialógica é o processo de dar sentido, de forma
contextualizada e exotópica, à linguagem que está sendo trabalhada como
acontecimento. A linguagem nos auxilia na descrição, explicitação e,
principalmente, compreensão dos fenômenos sociais a partir do entendimento
das vozes presentes no conjunto da pesquisa, sem a extirpação da voz do
pesquisador (estrangeiro), porém, com a necessidade de maior esclarecimento
acerca das cenas enunciativas e dos respectivos papéis que o pesquisador
assume nas diferentes falas que anuncia.
Sendo assim, pensar a pesquisa como uma produção de sentidos
gerada pela interanimação dialógica entre pesquisador e pesquisado, literatura,
pares, agências de fomento, orientadores, ou seja, todos os personagens que
fazem interlocução com o pesquisador antes que ele inicie a pesquisa (sua
115
formação) e/ou durante a sua execução (escolha do tema, disciplinas do curso,
orientadores), e até mesmo aqueles que farão parte depois dela pronta
(bancas, leitores, alunos), exigirá dele uma ética fundamentada em valores
pessoais e na responsabilidade que vem antes e extrapola qualquer notação
instituída como código ou lei.
Desse modo, é dever e responsabilidade do pesquisador garantir que o
pesquisado tenha conhecimento sobre a pesquisa e os seus objetivos, obter
seu consentimento para participação, proteger sua identidade e estabelecer e
manter uma relação com ele pautada no respeito e sem qualquer tipo de
abuso. Portanto, a confiança por parte do pesquisado e a sensibilidade por
parte do pesquisador são ingredientes necessários a uma boa relação entre
eles, tendo por base uma conduta estritamente ética.
Essa forma explícita de considerar dialéticas as relações sujeito–objeto
ou pesquisador–pesquisado colabora com o leitor/crítico para que sua voz de
interlocução seja mais profícua e inquisitiva. Ela expande o entendimento do
texto para além dele mesmo e do fenômeno, possibilitando que o leitor
apreenda sua dinâmica em contraposição aos textos estáticos, que engessam
fenômeno e pesquisa, tornando-os apenas uma descrição dos processos e um
exercício de retórica, legitimados muito mais pelo formato que pelo conteúdo.
Assim é que a perspectiva construcionista leva o pesquisador a buscar e
a identificar os processos pelos quais as pessoas descrevem, explicam e/ou
compreendem o mundo em que vivem, incluindo elas próprias (GERGEN,
1985). O foco de seu estudo se encontra na compreensão das ações e práticas
sociais e, sobretudo, dos sistemas de significação que dão sentido ao mundo.
A relação sujeito–objeto é composta por construções sociohistóricas, produto
de nossas épocas e contextos sociais. A questão para o construcionista não é
saber se existe uma “realidade real”, como busca o paradigma positivista, mas
saber como se constrói essa realidade, que sentidos são dados ao mundo
assim construído.
Não há ênfase na idéia de corrigir a compreensão que os coletivos têm
do geral, mas de propor compreender a linguagem que constitui esse real. O
conceito de linguagem é fundamental para essa abordagem de investigação,
pois é considerada constitutiva do sujeito e de sua vida social. As práticas
116
culturais e históricas são formadoras de visões de mundo que, à medida que se
constituem como tais, também constituem posições de sujeito. Na cultura
esportiva, isso se torna visível nos discursos sobre como ser um atleta, como
formar um atleta e o que é necessário para tanto.
Nas sete semanas de observações e conversas para a coleta do
material desta pesquisa, foram obtidas informações sobre atores que
constituem o cotidiano do clube como um todo (atletas, familiares, professores,
treinadores, fisioterapeutas, nutricionistas, roupeiros, torcedores,
patrocinadores, empresários, amigos). As observações foram sistematizadas
em forma de descrição: do clube, das categorias trabalhadas, das atividades
realizadas e das conversas vivenciadas. Essas informações permitiram a
identificação das nuances do caminho e das possibilidades presentes na
formação do atleta. Foi elaborado um dossiê com as informações referentes à
escolinha de iniciação esportiva, o qual foi apresentado ao diretor de futebol
daquela divisão do clube no final do mês de julho de 2006 como previamente
combinado. Os dados como um todo foram, posteriormente, analisados à luz
da metodologia das práticas discursivas proposta por Spink e Frezza (1999).
Neste estudo, aparecem diversas vozes que representam os “gêneros
discursivos”, nos quais estão presentes transformações sociais em várias áreas
do saber. A “realidade” do contexto esportivo descrito pode permitir a reflexão
sobre o mundo contemporâneo e suas mudanças, vistas por meio da
circulação de repertórios e de todos os valores que eles carregam consigo
(AMORIM, 1996, 2006).
A linguagem apresenta categorias de análise repletas de signos
carregados de ideologias que formam o gênero discursivo e definem seu
cronotopo (AMORIM, 2006) e/ou os tempos definidos por Spink e Medrado
(1999): longo, vivido e curto. A palavra, funcionando como eixo de significação
ou sentido, possibilita trabalhar a dicotomia instabilidade–estabilidade de
maneira contextualizada para entender o enunciado. Para Bakhtin (1998),
enunciado é o acontecimento que permite percorrer os caminhos polissêmicos
e polifônicos da língua de seus falantes, ouvintes, contextos e épocas. Nesse
exercício, podemos verificar que sentido e significado nem sempre são a
117
mesma coisa e, dessa forma, ficaremos com o sentido, que denota uma
captura do significado contextualizado, respeitando temporalidade e espaço.
Compreender os sentidos de ser atleta, de ser jogador de futebol
profissional, no mundo contemporâneo, pressupõe ser capaz de construir um
texto que descreva, anuncie e tensione o relato dos sujeitos pesquisados e
outras materialidades envolvidas. Isso permitirá entender como se dá a
construção do tipo social denominado “jogador de futebol profissional”, de
modo a verificar sua utilidade, problematizá-lo e desconstruí-lo. A multiplicidade
de valores e a polissemia das vozes possibilitam a compreensão da
padronização dos sentidos marcados de forma histórica.
Sabemos que as mais ínfimas mudanças sociais são expressas na
linguagem. Sentidos em disputas, significados, ideologia, alteridade, posição e
valores formam gêneros de fala que, por conseguinte, passam a funcionar
como reguladores do coletivo, influenciando os novos sentidos que seguem
dialeticamente formando a fala e a matriz social.
O sentido é regulado pelo gênero, é social e coletivo, funciona como
uma memória criativa das interlocuções produtoras do diálogo. O gênero obriga
a comunidade verbal que o cria a utilizar determinadas formas de enunciado e,
também, a pontuar a própria alternância da fala e a delimitação dos
enunciados. Apropriar-se dos enunciados e impregnar-se da língua com todo o
seu léxico, contexto, alteridade, valores e temas é pertencer a uma matriz
social, isto é, os gêneros de fala são a cristalização do repertório, que circula
cheio de histórias e forma o social.
A análise desta pesquisa foi realizada a partir das escolhas de:
a) local – o clube e duas de suas sedes de treinamento em duas regiões
da cidade;
b) participantes do estudo – garotos, jovens e adultos pertencentes a
seis diferentes categorias de treinamento do clube, determinadas pela idade
dos jogadores, e vários atores de sua rede de relações sociais, como pai, mãe,
esposa/namorada, amigos, nutricionista, fisioterapeuta, roupeiro, empresário,
torcedor, auxiliar técnico, preparador físico, técnico/professor e colega de
atividade esportiva.
118
Foram observadas as dinâmicas de funcionamento do clube e a
estrutura das categorias de base, uma vez que foi por meio delas que o estudo
focalizou o processo de formação do jogador de futebol profissional, em um
recorte transversal e sincrônico de atletas de diferentes idades e categorias
tomados ao mesmo tempo e no mesmo espaço. Neste estudo, os dados
coletados dizem respeito a sete semanas de observações e registros de
conversas realizadas no clube em situações cotidianas, com o conhecimento e
a aquiescência dos participantes.
5.1.1 Caracterização dos participantes
No futebol, as categorias são definidas pela idade dos jogadores e
aquelas escolhidas para foco de análise das redes nesta pesquisa são
descritas como: dente de leite, infantil, mirim, juvenil, júnior e profissional
(Figura 16). Participaram das observações e registros de conversas atletas de
todas essas categorias e as pessoas referidas por eles como integrantes do
seu cotidiano como esportistas. As observações feitas foram especificamente
acerca de como ocorre a dinâmica de treinamento no ambiente dos centros de
treinamento escolhidos para esta pesquisa.
Figura 16 – Categorias no futebol definidas pela faixa etária.
119
A HISTÓRIA DO CLUBE
A cidade de Goiânia ainda não havia
completado 10 anos de fundação
quando um grupo de amigos começou
a se reunir na casa dos irmãos Lino e
Carlo Barsi para discutir a criação de
um novo clube de futebol. Incomodada
com a barulheira, a matriarca da
família Barsi sugeriu que os jovens
transferissem a reunião para a calçada,
do lado de fora da casa. Foi então que
os visionários esmeraldinos (como são
chamados os torcedores que têm como
símbolo a cor verde do clube), debaixo
de um poste de luz, deram o pontapé
inicial para a fundação do clube.
Por mais de 20 anos, o clube
sobreviveu com poucas conquistas e
uma torcida pequena, que se dizia era
de apenas 33 torcedores. Esse cenário
mudou radicalmente a partir de 1966,
quando conquistou o primeiro título
estadual. Com o passar do tempo, o
Periquito (mascote do clube) foi
alçando vôos mais longos. Na década
de 1970, surgiu com regularidade no
cenário nacional e nos anos 2000
começou a construir sua recente,
porém brilhante, história internacional.
Fonte – GOIÁS Esporte Clube (2006).
5.1.2 Caracterização do local
Este estudo foi desenvolvido em um clube da Região Centro-Oeste que
participa da primeira divisão do Campeonato Brasileiro de futebol.
O clube conta atualmente com três centros de treinamento na cidade de
Goiânia e esta pesquisa foi conduzida em dois deles: as quatro categorias de
menor idade foram focalizadas no contexto da escolinha de iniciação esportiva
do clube no Centro de Treinamento da Serrinha; os jogadores de futebol das
categorias júnior e profissional, que já participavam de competições
internacionais, foram acompanhados no Centro de Treinamento do Parque
Amazonas.
O Centro de Treinamento da Serrinha
está localizado em região nobre da
cidade e possui: o Estádio da Serrinha,
com capacidade para 10.000 torcedores;
um ginásio coberto com capacidade para
3.000 pessoas; uma completa estrutura
de concentração para os atletas; dois
campos gramados de treinamento para
alunos da escolinha de iniciação
esportiva; uma piscina semi-olímpica (25
m), coberta e aquecida, para a iniciação
esportiva; estacionamento para 300
veículos; duas quadras de areia para
vôlei e futevôlei, com iluminação; uma
pista para caminhada com 1.000 m de
extensão; e área disponível para a
realização de eventos.
O Centro de Treinamento do Parque
Amazonas possui: quatro campos
gramados para a prática de futebol com dimensões oficiais; vestiários com
armários personalizados (com a foto de cada jogador), ar-condicionado,
120
duchas, banheiras de hidromassagem e cadeiras especiais; uma sala para uso
da comissão técnica, com computadores, mesa de reunião, aparelhos de TV e
DVD, além de um vestiário exclusivo; um departamento médico; uma
academia de ginástica; área de lazer com quiosque e churrasqueira; um
minibosque com árvores nativas; três campos de futebol soçaite; um parque
natural com lago; e um parquinho de diversões.
5.2 Técnicas
Esta pesquisa contou com um elaborado, porém não rígido, plano para a
organização e o registro das informações, observando todos os aspectos
envolvidos no assunto tratado, presentes no contexto dos atletas do futebol.
Todo o conhecimento aqui exposto vem da realidade do campo-tema da
pesquisa e a ele se refere.
5.2.1 Observação
Donna e Matos (1986) comentam que, desde épocas pré-históricas, a
observação e a prática foram os guias do progresso na jornada para assegurar
melhores e mais seguras condições de vida. A observação, como técnica
científica, é a sistematização realizada a partir de diferentes formas de registro
do uso dos sentidos visando adquirir os conhecimentos necessários para o
cotidiano e possibilitar melhor compreensão dos acontecimentos.
As observações realizadas foram conduzidas em função do objetivo
específico do estudo, o qual ajudou a determinar as informações a serem
coletadas sem perder a possibilidade de contextualizar como, quando e onde
ocorriam, levando em conta a sua dialogicidade. Isso implicou não deixar de
lado as impressões da pesquisadora, que estava presente no campo e nas
relações cotidianas existentes.
O planejamento específico de coleta e registro de dados delimitou: onde
– o local e a situação em que esses seriam realizados; quando
em que
121
momentos eles seriam realizados; com quem
– os participantes a serem
observados; o que
– o foco da observação, como acontecimentos e
circunstâncias; como – a forma de observação e de registro de dados
utilizados.
5.2.2 Conversas no cotidiano
Sabemos que as conversas no cotidiano, em formato de entrevistas ou
narrativas, realizadas de maneira criteriosa, sempre ocuparam um lugar de
destaque nas pesquisas realizadas em ciências humanas. Tais técnicas foram
e continuam sendo utilizadas como instrumento por meio do qual se pode ter
acesso a informações necessárias para o alcance dos objetivos de uma
pesquisa. A partir da perspectiva construcionista, entrevistas e narrativas
foram, entre outras ferramentas, escolhidas para compor a metodologia deste
trabalho com os dados.
As conversas no cotidiano permitem focalizar o momento da interação, a
qual, de acordo com Spink e Medrado (1999), está inserida em uma
perspectiva bakhtiniana em que a linguagem é, por definição, um
acontecimento social. Considerando que não se constroem sentidos
isoladamente, Bakhtin (1929/1995 apud SPINK; MEDRADO, 1999) propõe o
termo interanimação dialógica para se referir à dinâmica da construção de
sentidos, que é o processo que acontece em uma conversação, em que os
participantes endereçam enunciados uns aos outros.
No caso desta pesquisa, na qual buscamos os sentidos atribuídos por
um grupo de interlocutores acerca do que é ser um jogador de futebol
profissional, a entrevista e as narrativas das cenas do cotidiano dos atletas em
seu clube de treinamento foram as técnicas pelas quais procuramos entender a
construção social do jogador de futebol profissional.
Para a escolha dos interlocutores, buscamos um jogador de cada
categoria definida pelo clube, escolhido no período de observação de sete
semanas. Nesse período, pela facilidade de horário, disponibilidade e
voluntariedade em participar da pesquisa, foram escolhidos aleatoriamente seis
122
atletas, cada um pertencente a uma categoria de treinamento do clube. Em
seguida, ao falar sobre suas redes de relações sociais e, portanto, das pessoas
que formavam sua matriz de referência ligada ao futebol, esses indivíduos
forneceram os demais interlocutores da pesquisa, os quais também foram
entrevistados.
Reconhecendo que as conversas são co-construções, que ambos,
falante e ouvinte em interação nas cenas enunciativas, têm conhecimento
sobre o assunto e de alguma forma participam da matriz do jogador de futebol,
buscamos estabelecer e manter relações simétricas de poder junto aos
interlocutores.
Com o compartilhamento das informações sobre o trabalho e o convívio
no clube, propusemos uma conversa com cada interlocutor, na qual todos que
enunciavam – pesquisador e pesquisado – podiam se posicionar e reposicionar
constantemente dentro da relação. Dessa forma, as conversas se deram em
uma dinâmica de posicionamentos que construiu o sentido produzido por
ambos.
Procuramos formular inúmeras perguntas sobre o processo de formação
do jogador de futebol profissional, perpassando ocorrências, dúvidas,
polêmicas e contradições sobre o tema. Sabemos que tudo aquilo que foi dito
esteve indubitavelmente correlacionado com o contexto em que a conversa foi
realizada. Contudo, visando possibilitar a transversalidade da análise, optamos
por manter uma pergunta norteadora, presente em todas as conversas
realizadas, independentemente do interlocutor. Essa pergunta se tornou,
posteriormente, a base das análises das entrevistas: “O que é, para você, ser
um jogador de futebol profissional?”.
Buscamos respeitar o que o interlocutor sabia, quanto desejava falar
sobre o tema, quanto permitia que algo fosse registrado e veiculado e quanto
queria estar naquele local e naquele momento. O processo de negociação
incluiu o dia e o tempo da conversa, a possibilidade de mais de uma conversa
em outros momentos, a explicitação do papel da pesquisadora naquele
contexto, o conhecimento dos pais acerca do roteiro das perguntas quando os
interlocutores eram menores de idade, bem como dos objetivos e das questões
éticas envolvidos na pesquisa.
123
Nas análises, fizemos uso de convenções para transcrição seqüencial,
literal e na íntegra de todas as perguntas realizadas. Entretanto, em
decorrência da grande quantidade de informações coletadas optamos por
executar um recorte que definisse, para a análise neste estudo, somente as
respostas à pergunta norteadora.
Portanto, as conversas do cotidiano foram o resultado dos diálogos
entabulados com diversos atores ou interlocutores presentes no contexto do
atleta jogador de futebol, em formato de entrevistas ou de narrativas de cenas
do cotidiano. O uso de conversas do cotidiano é discutido por Spink e Menegon
(1999), que demonstram a importância e a riqueza deste recurso metodológico,
apoiando-se na abordagem teórico-metodológica sobre práticas discursivas e
produção de sentido.
Os atletas funcionaram como informantes-chave do estudo, pois, além
de fornecer suas próprias informações, apontavam para a conexão com os
elementos de sua rede, os quais passaram, então, a ser também reconhecidos
como atores da rede e foram convidados a participar deste trabalho.
As conversas realizadas no cotidiano do clube, diante da rotina dos
atletas, podem ser descritas como situações de interação, ocorridas sem o
estabelecimento de regras formais. Os assuntos se desenvolveram
espontaneamente dentro das seguintes temáticas:
a) o futebol em geral (quem paga pelo curso, como os garotos são
escolhidos, se há datas especiais para a “peneira”
10
, quem custeia os
uniformes);
b) a rotina dos treinamentos e da vida do atleta descrita por ele ou por
qualquer integrante de sua rede;
c) o que é ser um jogador de futebol profissional sob o seu ponto de
vista ou posição.
10
Assim é denominada a seleção que os clubes de futebol fazem para descobrir novos
jogadores nas categorias de base.
124
5.3 Caminho percorrido
Durante sete semanas foram realizadas várias atividades no clube, as
quais demonstram a rotina de trabalho intensivo da pesquisadora em campo.
Na Figura 17 são apresentadas, de forma resumida, as principais atividades
desenvolvidas. Foram feitos registros de uma grande quantidade de material
colhido por meio das observações e conversas realizadas com várias pessoas
durante todo o período. Para a elaboração do trabalho foi necessário um
recorte visando o melhor aproveitamento do material co-construído e de toda a
experiência vivida. A pergunta norteadora “O que é, para você, ser um jogador
de futebol profissional?” foi o fio condutor para a verificação dos sentidos
produzidos no cotidiano pelos diferentes personagens da rede de atores que
vivenciam o clube e, de alguma forma, fazem parte do mundo do futebol.
Nas primeiras semanas foram realizadas as conversas iniciais com o
coordenador geral da iniciação esportiva do clube e com todos os seus
subordinados. Foram negociados a permanência e o trânsito da pesquisadora
nas dependências do clube e dos centros de treinamento que poderiam ser
campo para este estudo. Em contrapartida, foi elaborado o dossiê do clube e
das relações humanas nesse contexto, indicando-se a possibilidade de
melhorias na conduta de professores e pais no que concerne às relações
humanas e de ensino-aprendizagem.
A seguir, foram realizadas as visitas nos centros de treinamento, nos
quais ocorreram jogos, campeonatos, treinamentos diários e a rotina de
trabalho, procedendo-se às observações de funcionários do clube, torcedores,
atletas e seus familiares, todos envolvidos na rede de relações sociais
existente no clube em função do futebol.
Da segunda semana até a sétima foram observadas as diferentes
categorias de jogadores nos dois centros de treinamento e iniciadas as
conversas com pais, mães e familiares que esperavam as crianças
rotineiramente nos treinos. Aos poucos, após a ambientação da pesquisadora,
e já com o conhecimento da dinâmica de treinamentos, dos objetivos da
escolinha de iniciação esportiva e das categorias de base e profissional,
125
passamos a conversar e a observar a dinâmica da comissão técnica, dos
profissionais da área de saúde, dos torcedores, da imprensa e dos demais
atores ali presentes. Essas atividades estavam sendo executadas em ano de
disputa da Copa do Mundo, evento que o clube esperava com alegria e que
parecia contagiar os atletas e os demais participantes da pesquisa em clima de
euforia e esperança. A isso se some o fato de o clube estar participando pela
primeira vez da Copa Libertadores da América, principal competição do
continente, o que conferiu àquela rede social um clima bastante festivo.
126
Figura 17 – Diário de campo.
127
Figura 18 – Percurso do jogador de futebol.
CAPÍTULO 6
SOBRE CATEGORIAS ETÁRIAS E MATRIZES: A CONSTRUÇÃO DO TIPO
“JOGADOR DE FUTEBOL PROFISSIONAL” EM UMA PERSPECTIVA
TRANSVERSAL
Os dados advindos das observações cotidianas possibilitaram entender
as características mais relevantes de cada categoria etária durante o percurso
que leva à profissionalização do jogador de futebol, resumido na Figura 18.
Para que se tornem atletas de alto rendimento, essa trajetória apresenta
estrutura e funcionamento que podem ser descritos da seguinte maneira: os
atletas começam a jogar bola em uma determinada categoria; se mantêm em
treinamento naquela categoria; mudam de uma categoria para outra; terminam
a etapa em uma categoria para passar para a próxima.
128
6.1 As categorias de treinamento
Os atletas da categoria definida como dente de leite
iniciam a prática do
futebol, no contexto do clube observado, sempre por intermédio dos pais e ali
se mantêm porque têm algum “padrinho”
11
ou os pais como pagantes
regulares. A passagem desses atletas para a categoria seguinte ocorre
rotineiramente tendo como único critério sua mudança de faixa etária. Durante
as observações deste estudo, não foi detectada nenhuma desistência ou
recusa das crianças desta categoria em seguir na modalidade futebol.
Os atletas da categoria definida como infantil
praticam futebol, no
contexto do clube observado, por intermédio dos pais, por terem vindo da
categoria dente de leite ou por terem solicitado aos pais que os colocassem
naquele clube para treinar. Eles ali se mantêm porque têm algum “padrinho” ou
os pais como pagantes regulares. Nessa categoria, a manutenção do atleta na
escolinha de iniciação esportiva já requer que ele seja esforçado. A passagem
desses atletas para a categoria seguinte ocorre rotineiramente tendo como
critérios sua mudança de faixa etária ou a indicação do professor. Nessa etapa,
foram detectados casos de desistência em função do rigor dos treinamentos ou
de mudança de endereço da família.
Os atletas da categoria definida como mirim
praticam futebol, no
contexto do clube observado, por intermédio dos pais, por terem vindo da
categoria infantil, por terem solicitado aos pais que os colocassem naquele
clube para treinar, por indicação de professores de educação física de sua
escola regular ou por indicação de “olheiros”
12
. Eles ali se mantêm porque têm
algum “padrinho” ou os pais como pagantes regulares. Nessa categoria, a
manutenção do atleta na escolinha de iniciação esportiva já requer que ele seja
esforçado e disciplinado. A passagem desses atletas para a categoria seguinte
ocorre rotineiramente tendo como critérios sua mudança de faixa etária, a
indicação do professor, a indicação do “olheiro” ou por já apresentar talento
11
Pessoa que custeia sua mensalidade ou dirigente do clube que lhe fornece uma bolsa como
atleta.
12
Profissionais que viajam por todo o país para observar jogadores de futebol de todas as
idades e, conforme suas habilidades técnicas, táticas e físicas, os indicam a clubes como
prováveis jogadores de sucesso.
129
que os destaque dos demais atletas. Nessa etapa, também foram detectados
casos de desistência em função de rigor dos treinamentos, incompatibilidade
com o professor ou mudança de endereço da família.
Os atletas das categorias definidas como juvenil e júnior
podem ter
iniciado a prática do futebol no próprio clube e passado para a categoria
seguinte, ou podem haver passado por outros clubes da cidade ou de outras
localidades em que viveram. A maioria deles veio das categorias anteriores por
indicação do professor, por indicação do “olheiro” ou por já apresentar talento
que os destaque dos demais atletas. Eles ali se mantêm porque têm algum
“padrinho” ou os pais como pagantes regulares. Nessa categoria, a
manutenção do atleta na escolinha de iniciação esportiva já requer que ele seja
esforçado, disciplinado e talentoso. A passagem desses atletas para a
categoria seguinte ocorre rotineiramente tendo como critérios sua mudança de
faixa etária, a indicação do professor, a indicação do “olheiro” ou por já
apresentar talento que os destaque dos demais atletas. Nessa etapa, foram
detectados casos de desistência em função de rigor dos treinamentos,
incompatibilidade com o professor, mudança de endereço da família ou
excesso de atividades extracurriculares. Quando atingem essa etapa, os jovens
atletas são comunicados que podem ser sumariamente eliminados da equipe
por indisciplina, falta de habilidade técnica e/ou condicionamento físico
inadequado.
Os atletas da categoria definida como profissional
13
podem ter iniciado a
prática do futebol no próprio clube e passado para a categoria seguinte, por
indicação de um treinador, por indicação do “olheiro”, por já apresentar talento
que os destaque dos demais atletas ou por comercialização de seu passe,
principalmente pelas constantes trocas de treinadores no time principal. Nessa
categoria, a manutenção do atleta no clube requer que ele seja esforçado,
disciplinado, talentoso e taticamente inteligente. Nessa etapa, não foram
detectados casos de desistência por parte dos atletas, embora tenham sido
verificadas situações de afastamento por treinadores, que dispensam ou
13
Atleta profissional, de todas as modalidades desportivas, é definido como aquele que
desempenha atividade esportiva e recebe remuneração pactuada em contrato formal de
trabalho firmado com entidade de prática desportiva, pessoa jurídica de direito privado
(BRASIL, 1998).
130
utilizam os jogadores de acordo com o seu modo de trabalho e a necessidade
ditada por seu esquema tático, por indisciplina, por constantes más atuações
ou por excesso de peso.
Em todos os casos citados, observamos que o atleta, seja jogador de
futebol profissional ou ainda não, depende de uma série de pessoas e fatores
que estabelecem até mesmo a simples possibilidade de ele continuar naquele
clube realizando as atividades requeridas em cada categoria. Muitos desses
critérios não dependem de capacidades ou habilidades físicas, técnicas e/ou
táticas, mas de indicações, advindas única e exclusivamente da experiência de
professores, treinadores, “olheiros” ou membros da diretoria, os quais abrem ou
fecham as portas para vários atletas que, de alguma forma, fogem do modelo
de potencial jogador de futebol profissional.
Durante as observações e conversas realizadas nesse contexto, esses
atores, quase unanimemente, emitiram em seus depoimentos afirmações de
que o talento para o futebol é uma característica inata dos indivíduos. Também
afirmaram que os dirigentes e os técnicos são experientes no assunto e os
únicos indivíduos aptos a reconhecer o talento presente nos atletas. Cada
atleta ou partícipe da matriz descreveu o jogador de futebol profissional de uma
maneira diferente, tendo por base a posição que ocupa e os interesses que tem
em sua matriz social.
6.2 Elementos que formam a matriz do jogador de futebol profissional
A Figura 19 descreve os elementos presentes no processo de formação
dos jogadores de futebol das diferentes categorias estudadas, apresentando os
atores que compõem a rede de relações sociais que dão origem, sustentação e
constantemente atualizam a matriz social dos jogadores de futebol e a noção
de tipo social.
Percebemos que a configuração existente na categoria profissional se
apresenta quase na íntegra nas categorias inferiores, confirmando a tese deste
estudo e que as idéias sobre o tipo social estão presentes em todas as
posições independentemente da categoria ocupada.
131
A partir de conversas e observações realizadas para este estudo foi
possível sistematizar o formato desta matriz na Figura 23. Nela observa-se a
presença do atleta como nó de uma configuração rizomática, circundado por
atores humanos e não humanos que constituem uma matriz composta por
instituições, normas e valores que fundamentam e são fundamentados nas
dinâmicas das relações sociais e assim se atualizam constantemente.
Figura 23 – Representação gráfica do conjunto intercambiável tipo,
interlocutores e matriz.
Interlocutores e
materialidades
Figura 19 – Elementos que integram a matriz dos jogadores por categoria.
132
Sendo assim, observamos que o tipo “jogador de futebol profissional”
não é construído no processo de desenvolvimento profissional, mas está
presente nos repertórios circulantes dos interlocutores em todas as categorias.
Pudemos perceber, também, que variáveis situacionais, materialidades, atores
familiares e da equipe de saúde se fazem presentes nas categorias dente de
leite, infantil e mirim. Nas categorias juvenil e júnior, há o acréscimo de outros
profissionais de saúde, comissão técnica, dirigentes, patrocinadores e
torcedores como elementos constituintes da matriz. Por fim, na categoria
profissional, observamos a presença de profissionais liberais, como assessores
pessoais de imprensa e de imagem, advogados pessoais e vários empresários
para um único jogador, compondo um staff que gerencia todos os aspectos de
sua carreira.
A partir de conversas e observações realizadas para este estudo, foi
possível sistematizar o formato desta matriz na Figura 20. Nela, observa-se a
presença do atleta como nó de uma configuração rizomática, circundado por
atores humanos e não-humanos que constituem uma matriz composta por
instituições, normas e valores que fundamentam e são fundamentados nas
dinâmicas das relações sociais e assim se atualizam constantemente.
Figura 20 – Representação gráfica do conjunto intercambiável formado por tipo, interlocutores
e matriz.
Interlocutores e
materialidades
133
Com o intuito de encontrar os sentidos de ser jogador de futebol, no que
diz respeito à sua transversalidade no clube, buscamos identificar, nas falas
dos atores que compõem a matriz social do atleta, o que o leva a estar
treinando naquele contexto. Essas falas não estavam presentes nas respostas
à pergunta norteadora, mas foram retiradas de outras perguntas e das
observações registradas pela pesquisadora. Foi possível observar que, em
todas as categorias, são feitas verbalizações sobre o que os atletas
potencialmente fazem, assim como aquilo que seria o ideal que eles fizessem
se fossem o tipo “jogador de futebol profissional” (Figura 21).
Para os envolvidos na matriz do atleta da categoria dente de leite
, como
principal motivo para a criança iniciar a prática do futebol, foi citada a paixão
dos pais pela modalidade ou pelo clube em questão. Assim, logo no início do
desenvolvimento motor de seus filhos, os pais buscam os primeiros contatos
com o esporte, de modo a integrá-lo naquele ambiente e, principalmente,
familiarizá-lo com o seu clube de preferência.
Figura 21 – Sentidos produzidos pelos diferentes partícipes da matriz do jogador de futebol
nas diferentes categorias definidas pelo clube para treinamento.
134
De acordo com o relato dos envolvidos na matriz do atleta da categoria
infantil,
como principal motivo para a criança praticar futebol foi citada a
realização de exercícios, como sinônimo de esporte, para evitar o
sedentarismo, principalmente aquele produzido pelo brinquedo preferido das
crianças – o video game. Outros motivos apresentados foram a possibilidade
que as crianças têm de brincar ao ar livre e de torná-las mais independentes,
uma vez que aprendem a cuidar de seus pertences e a ficar no clube sozinhas.
Os envolvidos na matriz do atleta da categoria mirim
citaram casos de
crianças que iniciaram a prática do esporte por motivo de saúde (bronquite)
e/ou porque eram atletas da natação. Quando praticavam natação por
indicação médica no mesmo clube, viram as várias turmas de futebol e pediram
aos pais para também participar daquela modalidade de esporte. Nessa etapa,
foi possível identificar vários relatos de amizades entre os atletas que, além do
futebol, desenvolvem outras atividades em conjunto, como ir ao cinema e a
jogos, assim como pernoitar na casa do amigo. Alguns pais relataram que,
nessa idade, é importante para a criança aprender a lidar com regras, saber
ganhar e perder e que as competições de futebol são o contexto ideal para
isso.
Na categoria juvenil
, pudemos perceber nos relatos dos jovens que o
futebol é contexto para a realização do sonho de suas vidas, trazendo como
conseqüência a possibilidade de aquisição de benefícios, como possuir lindas
namoradas, modelos e atrizes, uma vez que, no imaginário desses rapazes, as
mulheres vislumbram casar-se com jogadores famosos para poder desfrutar de
vários benefícios advindos de sua fama e fortuna. Para esses adolescentes,
não são somente as garotas (denominadas por eles “marias-chuteiras”) que os
observam, pois estar nessa categoria do futebol, no clube em questão, lhes
propicia visibilidade fundamentalmente para estar na mira dos “olheiros” e,
dessa forma, conseguir subir para a categoria júnior.
Foram observados nos relatos dos próprios atletas da categoria júnior
certos problemas que se referiram às suas escolhas. A pressão quanto à
escola e ao vestibular (lembrando que realizamos este estudo em um clube de
classe média alta), além da vida regrada de um atleta, que não comporta farras
e outras atividades de lazer típicas da adolescência, fazem com que muitos
135
desistam de uma possível carreira como jogador de futebol. Observamos
durante esta pesquisa que são mais resistentes a pressões os atletas que
moram no clube, pois vieram de localidades pobres e estão nessa posição
como decorrência de uma série de oportunidades já conquistadas. Parece
existir uma relação entre classe social e, mais especificamente, grau de
escolaridade, com a possibilidade de buscar outras opções que não o futebol.
Desse modo, aos garotos de origem mais humilde resta resistir às pressões e
manter o foco no objetivo de ser profissional.
Entender as diferentes formas de resistência do atleta às pressões de
todos os tipos em sua trajetória no futebol, como aquele que agüenta tudo o
que está posto pela matriz e ainda conta com incidentes críticos que podem
projetá-lo ou colocar fim a esta trajetória, é um ponto que merece atenção, pois
existe sempre uma forma de se posicionar que é demasiadamente dependente
das condições do tempo e do espaço vividos em seu cotidiano. Ele existe como
estrutura psíquica e social conjuntamente e é consequência deste
imbricamento. Percebemos a construção dinâmica e fluida da relação
indivíduo–sociedade em sua forma mais concreta, sendo a objetivação do
atleta intermediada pelos fatos e pela sua capacidade de elaborá-los.
A categoria júnior é o penúltimo degrau para o que se denomina
”decolar”, que é ter a chance de se tornar o tipo social “jogador de futebol
profissional” propriamente dito. Dessa forma, os atletas que, nessa categoria,
jogam em um clube grande e têm um bom salário, podem adquirir os benefícios
de atuar no futebol como contexto para a realização do sonho de suas vidas.
Na categoria profissional
, a busca pela realização do sonho inclui,
necessariamente, fazer sucesso, ganhar dinheiro, constituir família e consumir
bens caros, como carros, mulheres (encaradas e descritas como bens de
consumo), roupas de grife, objetos de desejo da família de origem, como a
casa para a mãe, a fazenda para o lazer, os estudos para os irmãos e todos os
brinquedos eletrônicos que um dia desejaram possuir para eles mesmos e para
os filhos. Nos relatos, foi revelado, ainda, que tanto jogar na Seleção Brasileira
de Futebol quanto ter a possibilidade de jogar em algum clube europeu ou
asiático são a concretização final de seu sonho e o alcance de sua realização
profissional. Um ou ambos esses acontecimentos levariam à projeção da
136
imagem do atleta por meio da mídia nacional e internacional, tornando
realidade a idéia de se tornar celebridade instantânea, de modo a obter
sucesso e prestígio suficientes para ser estrela de campanhas publicitárias,
matérias de revistas e entretenimentos vários, os quais extrapolam a esfera do
esporte, e seguir como o tipo social que os fundamentou desde o início de sua
trajetória de jogador.
137
CAPÍTULO 7
SER JOGADOR DE FUTEBOL: A PERSPECTIVA DE JOGADORES E DE
INTEGRANTES DE SUAS MATRIZES
Os dados obtidos por intermédio das conversas cotidianas, na forma de
entrevistas, resultaram em um conjunto grande de dados. A partir deles,
primeiramente, foi possível identificar as pessoas presentes no cotidiano dos
atletas como jogadores de futebol. Posteriormente, realizamos entrevistas com
cada uma das pessoas citadas pelos atletas e novas entrevistas com os
jogadores participantes do estudo.
Portanto, para a análise dos dados, privilegiamos a execução de um
recorte a partir de duas perguntas feitas em momentos distintos. Com a
primeira, indagamos do jogador quem eram os integrantes de sua rede e as
situações que ele vivia em seu cotidiano de jogador de futebol. A segunda, feita
posteriormente a todos os interlocutores citados e/ou observados como
pertencentes à matriz do jogador, e âmago desta pesquisa, foi: “O que é, para
você, ser um jogador de futebol profissional?”.
Organizamos e analisamos as respostas de acordo com dois critérios:
vozes por posição
e dimensões por categoria. No primeiro caso, as vozes ou
os repertórios circulantes dos vários integrantes de uma determinada posição
(os pais, as mães, as nutricionistas) nos levaram às dimensões. No segundo
caso, pudemos observar as dimensões para cada uma das categorias
Cada jogador de futebol descrito neste estudo,
independentemente da categoria à qual pertença no futebol,
apresenta uma configuração matricial própria. A seguir,
observamos o contingente de sentidos atribuídos a ser um
jogador de futebol profissional, tendo por base vozes por
posição que resultaram em dimensões por categoria. Todos
os nomes ou referências aqui apresentados são fictícios e todos os atletas e
pessoas por eles referidos foram informados do objetivo das perguntas e
consentiram em que seus relatos fizessem parte deste estudo. Analisamos os
138
dados obtidos por intermédio das conversas cotidianas com esses
interlocutores de acordo com a metodologia das práticas discursivas e de
produção de sentidos (SPINK; MENEGON, 1999).
O jogador 1 é um atleta da categoria dente de leite
, de 5 anos de idade,
filho de um jogador de futebol profissional e uma dona-de-casa. É estudante da
pré-escola em uma instituição privada, pertence à classe alta e tem uma irmã
mais nova. Vem participando da escolinha de iniciação esportiva do clube
desde os 4 anos de idade e é levado duas vezes por semana aos treinamentos
por sua mãe, babá ou avó. Tem como professor na escolinha de futebol o
profissional mais antigo do clube.
O jogador 2 é um atleta da categoria infantil
, de 7 anos de idade, filho de
um funcionário público e uma advogada. É estudante da primeira série do
Ensino Fundamental em uma escola privada, pertence à classe média e tem
um irmão mais novo. Vem participando da escolinha de iniciação esportiva do
clube desde os 4 anos de idade e é levado duas vezes por semana aos
treinamentos por sua mãe, que o aguarda discutindo futebol com os outros pais
presentes. Conta com a orientação de uma nutricionista para cuidados gerais
com sua alimentação. Tem como professor na escolinha de futebol um
estagiário de educação física.
O jogador 3 é um atleta da categoria mirim
, de 10 anos de idade, filho de
um assessor de político fanático por futebol e uma dona-de-casa. É estudante
da quarta série do Ensino Fundamental em uma escola pública, pertence à
classe média e tem uma irmã mais nova. Vem participando da escolinha de
iniciação esportiva do clube desde os 7 anos de idade e é levado duas vezes
por semana aos treinamentos por seu pai, que o aguarda regularmente para,
em seguida, treiná-lo fisicamente. O pai também o acompanha em todos os
jogos dos campeonatos internos e externos de que participa. Este atleta já foi
vítima de incidentes nos quais o pai o agrediu publicamente, nos treinos, por
não cumprir suas determinações. Conta com a orientação de uma nutricionista
para cuidados gerais com sua alimentação. Tem como professor na escolinha
de futebol um profissional formado em educação física.
O jogador 4 é um atleta da categoria júnior
, de 14 anos de idade, filho de
um empresário e uma dona-de-casa. É estudante da sexta série do Ensino
139
Fundamental em uma escola privada, pertence à classe alta e tem um irmão
mais velho que também joga bola e no qual se espelha. Vem participando da
escolinha de iniciação esportiva do clube desde os 9 anos de idade e é levado
duas vezes por semana aos treinamentos por seu pai, que o aguarda. O pai
também o acompanha em todos os jogos dos campeonatos internos e externos
de que participa. Conta com a orientação de uma nutricionista especialista em
dietas para atletas, uma fisioterapeuta e um preparador físico de uma
conceituada academia da cidade. Tem como professor na escolinha de futebol
um profissional formado em educação física.
O jogador 5 é um atleta da categoria juvenil
, de 17 anos de idade, filho
de um político de uma cidade do interior de Goiás e uma professora. É
estudante da primeira série do Ensino Médio em uma escola privada, pertence
à classe média e tem um irmão mais velho que mora com os pais no interior do
estado. Vem praticando futebol no clube desde os 16 anos de idade, mora no
alojamento e tem sua manutenção e despesas custeadas pelo clube. Nascido
em uma cidade do interior do estado, mudou-se para a capital com o intuito de
estudar e jogar futebol. Iniciou sua carreira na categoria juvenil de outro clube e
foi convidado a jogar no atual há um ano por seu bom desempenho, sendo
titular da categoria júnior. Conta com a orientação de uma nutricionista, da
fisioterapeuta do clube, do auxiliar técnico, do preparador físico e do treinador
específico com experiência internacional pelo clube.
O jogador 6 é um atleta da categoria profissional
, de 34 anos de idade.
No clube há 9 anos, é ídolo da torcida e líder do time. É casado, tem um filho e
uma filha, é bem estruturado financeiramente e programou o término de sua
carreira para o ano de 2010. Conta com toda a estrutura de profissionais
disponível no clube.
7.1 Definição de jogador de futebol profissional pelos diferentes
elementos da matriz: análise por posição
A Figura 22 apresenta o jogador como ponto central de sua matriz, a
partir da qual foram identificados os enunciados sobre o que é ser um jogador
140
de futebol profissional, pergunta norteadora desta pesquisa, no repertório
circulante de cada interlocutor citado por ele como participante de sua matriz.
O atleta-alvo de cada categoria foi escolhido no período em que a
pesquisadora fez suas observações cotidianas no clube e, ao entrar em contato
com alguns deles, teve a oportunidade e/ou facilidade de acesso tanto ao
jogador quanto aos seus interlocutores. Os dados obtidos por intermédio das
conversas cotidianas com esses interlocutores foram analisados de acordo
com a metodologia das práticas discursivas e de produção de sentidos.
Por meio de suas respostas à pergunta norteadora, os interlocutores, em
suas respectivas posições, apresentaram repertórios descrevendo os sentidos
que há para eles em ser um jogador de futebol profissional. Interessante notar
que em algumas ocasiões, mesmo a pergunta tendo sido colocada de forma
geral, a resposta foi dada em função das expectativas que o indivíduo que a
enunciava tinha sobre o jogador de seu convívio. Essas vozes resultaram no
que chamamos de dimensões.
Figura 22 – O jogador de futebol das diferentes categorias estudadas e seus
interlocutores.
141
Na Figura 23 podemos observar que as dimensões presentes nas falas
dos jogadores
das diferentes categorias estudadas enunciam que ser um
jogador de futebol profissional está associado a: ter prazer por meio do brincar;
ter oportunidades de ascensão social por intermédio de contratos milionários
em outro continente; poder representar um clube que lhe forneça condições de
trabalho; ter poder para comprar o que desejar em termos gerais, ressaltando-
se que, para um garoto de 15 anos, é possível comprar até garotas. Apenas
um deles colocou o futebol como sendo algo que representa sua vida.
Esses repertórios são distintos nas várias etapas da trajetória, sendo
dada maior ênfase ao brincar no início (dente de leite), ocorrendo progressiva
exacerbação do ganho financeiro e da fama à medida que o jogador muda de
categoria e se profissionaliza. Vale apostar, entretanto, que a dimensão prazer
não desaparece, pois foi mencionada até mesmo pelo jogador profissional: “É
uma profissão prazerosa”.
A Figura 24 apresenta os repertórios quanto a ser um jogador de futebol
a partir dos enunciados dos pais
dos jogadores das diferentes categorias
estudadas. Observamos que as dimensões presentes nessas falas enunciam
que ser um jogador de futebol profissional está associado a: imagem para o
Figura 23 – Repertórios dos jogadores de futebol das diferentes categorias estudadas.
142
“outro”; bem-estar financeiro, com responsabilidade e possibilidade de se
”perder” no processo em decorrência dos apelos de consumo e divertimento,
antagônicos à disciplina requerida do atleta; instabilidade em função da idade e
da exploração que o sistema impõe aos jogadores; ser capaz de aproveitar
todas as chances.
Esses repertórios estão presentes nas várias etapas da trajetória,
apresentando maior ênfase acerca da renda e da realização profissional,
seguida de preocupação com a instabilidade e o reconhecimento, como citado
pelo pai do jogador da categoria profissional: “É uma profissão muito
gratificante, pois as pessoas fazem o que gostam, ganhando dinheiro e
reconhecimento por aquilo que fazem. Mas, ao mesmo tempo, é uma profissão
muito instável, em que as pessoas não podem cometer erros. São
constantemente exploradas por pessoas que só querem se aproveitar da
situação momentânea do jogador”.
A Figura 25 apresenta os repertórios quanto a ser um jogador de futebol
a partir dos enunciados das mães
dos jogadores das diferentes categorias
estudadas. As mães eram pessoas muito presentes no cotidiano dos atletas
até a categoria mirim. Podemos observar que as dimensões presentes nessas
Figura 24 Repertórios dos pais dos jogadores de futebol das diferentes categorias
estudadas.
143
falas enunciam que ser um jogador profissional de futebol está associado a:
possibilidade de ganhos financeiros e culturais por meio de contratos e viagens
que supririam a falta dos estudos; possibilidade de conhecer outros lugares
acompanhando o filho, que teria a oportunidade de retribuir todo o cuidado já
recebido; ajudar financeiramente a família; fazer o que gosta e, com isso, ter
prazer, além de amadurecer com as dificuldades do percurso; aprender a ser
responsável e dedicado e a obter vantagens.
Esses repertórios são distintos nas falas das mães nas diferentes
categorias, porém, apresentam aspectos em comum que foram resumidos na
fala da mãe do jogador mirim: “Olha, primeiro de tudo tem de ser muito
humilde, muito responsável. Tem de ter muita garra e tem de ter disponibilidade
o tempo todo para o clube, porque o clube exige muito tempo dos jogadores.
Depois, tem de olhar para a família, ajudar os irmãos e não acreditar em todos
que dizem que são amigos. Deve ajudar, mas pouco“.
A Figura 26 apresenta os repertórios quanto a ser um jogador de futebol
a partir dos enunciados dos irmãos
dos jogadores das categorias mirim, juvenil,
Figura 25 Repertórios das mães dos jogadores de futebol das diferentes categorias
estudadas.
144
júnior e profissional. Percebemos que as dimensões presentes nas falas dos
irmãos enunciam que ser um jogador de futebol profissional está associado a:
ter responsabilidade profissional; obter fama e sucesso por meio de seu próprio
esforço e dedicação; trabalhar duro desde cedo, mas ter prazer e satisfação
com os lucros financeiros do seu próprio trabalho.
Esses repertórios estão presentes nas várias etapas da trajetória,
havendo maior ênfase na questão da fama, como expôs o irmão do atleta da
categoria juvenil: “É uma profissão que pode dar muita fama e muito dinheiro,
mas que não depende só do atleta. Depende também das oportunidades que
lhe serão oferecidas. Aí, cabe a ele não deixar escapar. E meu irmão é muito
bom jogador e muito esforçado”.
As Figuras 27 e 28 apresentam os repertórios sobre ser um jogador de
futebol a partir dos enunciados, respectivamente, das namoradas
dos
jogadores das categorias juvenil e júnior e da esposa
do atleta da categoria
profissional.
Figura 26 Repertórios dos irmãos dos jogadores de futebol das categorias mirim, juvenil,
júnior e profissional.
145
Observamos que as dimensões presentes nas falas das namoradas e da
esposa enunciam que ser um jogador de futebol profissional está associado a:
ter dinheiro pelo preço de se ausentar das pessoas que gosta; não só jogar e
pegar o dinheiro, mas participar de treinos, se ausentar sábados e domingos,
deixar de participar de festas familiares em decorrência das inúmeras viagens;
deixar tudo por um sonho que se realiza com muita vontade e determinação,
mas quem tem o dom consegue.
Figura 27 Repertórios das namoradas dos jogadores de futebol das categorias juvenil e
júnior.
Figura 28 Repertórios da esposa do jogador de futebol da categoria profissional.
146
Esses repertórios são similares nas várias etapas da trajetória, sendo
dada maior ênfase à ausência e à determinação em função do sonho, como
descreveu a namorada do atleta da categoria juvenil: “É ter muita dedicação
para com o trabalho e ser, ao mesmo tempo, ausente com a família e com os
filhos, principalmente no caso de ser um grande jogador. Mas, também, ser um
grande jogador é muito bom”. A esposa do atleta da categoria profissional
complementou: “É uma pessoa que joga bem, que se destaca entre os demais
jogadores não profissionais. É uma pessoa que tem um dom especial. É a
realização de um sonho.”
A Figura 29 apresenta os repertórios quanto a ser um jogador de futebol
a partir dos enunciados dos amigos
dos jogadores das categorias mirim,
juvenil, júnior e profissional.
Verificamos que as dimensões presentes nas falas dos amigos
enunciam que ser um jogador de futebol profissional está associado a ter
responsabilidade, prazer, fama, relacionados ao fato de ter um dom divino,
somando-se a isso disciplina, determinação, superação e vontade de ganhar
dinheiro tendo prazer com tudo.
Figura 29 Repertórios dos amigos dos jogadores de futebol das categorias mirim, juvenil,
júnior e profissional.
147
Esses repertórios variam pouco nas diferentes etapas da trajetória,
havendo maior ênfase na fama e no dom, como citou o amigo do atleta da
categoria juvenil: “É uma profissão que pode levar à fama”
A Figura 30 apresenta os repertórios quanto a ser um jogador de futebol
a partir dos enunciados das nutricionistas
dos jogadores das categorias infantil,
mirim, juvenil, júnior e profissional. A alimentação dos atletas mais novos é
planejada pelas profissionais já visando seu desgaste físico como se fossem
profissionais, recebendo uma dieta balanceada para, além de ter saúde, poder
suportar os treinamentos árduos.
Observamos que as dimensões presentes nas falas das nutricionistas
enunciam que ser um jogador de futebol profissional está associado a: ter um
lugar de trabalho diferenciado; buscar o sucesso, a fama e a ascensão familiar
em troca da abnegação e da distância da família; necessitar muita disciplina
física; precisar do apoio de uma equipe de saúde; saber dar valor aos
alimentos; correr muitos riscos em busca do sucesso e da fama.
Figura 30 Repertórios das nutricionistas dos jogadores de futebol das categorias infantil,
mirim, juvenil, júnior e profissional.
148
Os repertórios circulantes são muito próximos nas várias etapas da
trajetória, tendo sido dada maior ênfase à fama e ao rendimento, além de terem
sido citadas a abnegação e a diferenciação do atleta, como relatou a
nutricionista do jogador da categoria juvenil: “É uma pessoa geralmente de
classe humilde, que sonha alto com o sucesso, a fama e uma condição melhor
de vida para a sua família”.
A Figura 31 apresenta os repertórios quanto a ser um jogador de futebol
a partir dos enunciados dos fisioterapeutas
dos jogadores das categorias
juvenil, júnior e profissional. É interessante notar que o atleta da categoria
juvenil já era cuidado por fisioterapeuta porque lutava constantemente com
dores no joelho em função da carga de treinamento físico a que estava
submetido.
Podemos observar que as dimensões presentes nas falas dos
fisioterapeutas enunciam que ser um jogador de futebol profissional está
associado a ter o corpo como instrumento de trabalho e com ele ter dedicação
integral, sabendo que ganhar dinheiro é função desta dedicação.
Figura 31 Repertórios dos fisioterapeutas dos jogadores de futebol das categorias
juvenil, júnior e profissional.
149
Esses repertórios não são distintos nas várias etapas da trajetória, com
maior ênfase na questão da dedicação e do cuidado com o corpo, como
mencionado pelo fisioterapeuta do jogador da categoria júnior: “Para mim, é
dividido em duas formas: jogador é aquele cara que está ali só para ganhar
dinheiro, não dando importância para a parte física; atleta é aquele que se
dedica 24 horas para tratar o físico, o tático e o alimentar”.
A Figura 32 apresenta os repertórios quanto a ser um jogador de futebol
a partir dos enunciados do roupeiro
do time do jogador de futebol da categoria
profissional, que é uma figura-chave do clube e da tradição do futebol nacional.
Existe somente nessa categoria, é considerado por todos como uma pessoa
fundamental na equipe e aquele que “mima” os jogadores mantendo tudo o que
é importante para eles limpo e no devido lugar.
Percebemos que as dimensões presentes nas falas do roupeiro
enunciam que ser um jogador de futebol profissional está associado a ser um
profissional de rendimento dentro e fora do campo, ajudando nas vitórias do
time. O roupeiro afirmou: “Bom, primeiro, que ele seja profissional, né? Dentro
do campo. Espero que possa ajudar o grupo para a vitória, né?”.
Figura 32 Repertórios do roupeiro do time do jogador de futebol da categoria
profissional.
150
A Figura 33 apresenta os repertórios quanto a ser um jogador de futebol
a partir dos enunciados do empresário
do jogador da categoria profissional.
Apesar de ser a única categoria que tinha formalmente um empresário, é muito
comum encontrá-los nas dependências do clube, observando jogadores
pertencentes às categorias iniciantes. Empresários e olheiros se misturam
nessa função de encontrar talentos cada vez mais jovens como forma de
investimento futuro.
Observamos que as dimensões presentes nas falas do empresário
enunciam que ser um jogador de futebol profissional está associado a ser uma
pessoa diferenciada, muito cobrada e que sofre inúmeras pressões de
diferentes tipos. O empresário explicou: “O jogador é uma pessoa diferenciada
das demais, porque a maioria das pessoas, principalmente os meninos, quer
ser jogador. É também uma pessoa muito cobrada pelos outros, principalmente
a imprensa, a torcida, os dirigentes dos clubes e o técnico”.
A Figura 34 apresenta os repertórios quanto a ser um jogador de futebol
a partir dos enunciados do torcedor
do time em que atua o jogador da categoria
Figura 33 Repertórios do empresário do jogador de futebol da categoria profissional.
151
profissional. Repletos de paixão pelo time, os torcedores costumam
acompanhar os treinamentos durante toda a semana, muitas vezes em horário
de trabalho. Eles gritam, torcem, fazem apelos e exigências, pedem autógrafos,
também vivem seu cotidiano no clube e são indicadores de muitas mudanças.
Podemos verificar que as dimensões presentes nas falas do torcedor
enunciam que ser um jogador de futebol profissional está associado a: ter
prazer no que faz; ter possibilidade de altas rendas, fama, honra e prestígio;
representar o clube em grandes competições nas mais diferentes categorias. O
torcedor disse que ser jogador de futebol profissional significa que ele: “É uma
pessoa feliz, pois faz o que gosta, no caso, jogar bola, e vive disso. A partir do
momento que o atleta passa a ser remunerado, disputar campeonatos oficiais e
assinar contrato, ele deixa de ser um atleta amador e passa a ser uma atleta
profissional. É ter uma honra. É muito bom. É ter prestígio. É muito bom”.
A Figura 35 apresenta os repertórios quanto a ser um jogador de futebol
a partir dos enunciados dos auxiliares técnicos
atuantes nos times das
categorias júnior e profissional. O auxiliar técnico é tão importante quanto o
Figura 34 Repertórios do torcedor do time do jogador de futebol da categoria profissional.
152
treinador, pois divide com este as responsabilidades sobre o time e a
participação em seu comando caso haja alguma impossibilidade por parte do
treinador. Contudo, essa posição só existe nas categorias júnior e profissional
ou, ainda, quando a categoria juvenil representa o clube em alguma
competição externa.
Percebemos que as dimensões presentes nas falas dos auxiliares
técnicos enunciam que ser um jogador de futebol profissional está associado a:
ter responsabilidade, profissionalismo e concentração; ser uma escolha
precoce influenciada pelas pressões, mas que pode torná-lo um profissional
diferente, um símbolo, embora para tal seja necessária muita responsabilidade
associada a conhecimentos psicológicos, físicos, morais e espirituais.
Esses repertórios são similares nas duas etapas da trajetória, com maior
ênfase dada à responsabilidade e à realização profissional, seguidas de uma
preocupação com as pressões, que foram mencionadas pelo auxiliar técnico do
jogador da categoria júnior: “O jogador de futebol profissional é um atleta na
acepção da palavra. Tem de se cuidar, não ficar em baladas, cumprir seus
Figura 35 Repertórios dos auxiliares técnicos dos times dos jogadores de futebol das
categorias júnior e profissional.
153
horários direito, sem atrasos. Isso, para mim, é ser um atleta profissional. Além
de ter um trabalho bem feito dentro de campo, ser concentrado no que faz”.
A Figura 36 apresenta os repertórios quanto a ser um jogador de futebol
a partir dos enunciados dos preparadores físicos
dos jogadores das categorias
juvenil, júnior e profissional. Os preparadores físicos são, de longe, as pessoas
mais temidas pelos jogadores, pois são os controladores do peso, da rotina e
da condição física dos atletas. A condição física é delatora de quando o jogador
quebra a rotina estabelecida e o preparador tem autonomia para vetar aqueles
que não se apresentam em seu melhor condicionamento físico. Isso faz dele o
personagem que representa tudo o que não pode e que é mais um desafio
para os atletas que estão na adolescência ou são jovens adultos.
.
Podemos observar que as dimensões presentes nas falas dos
preparadores físicos enunciam que ser um jogador de futebol profissional está
associado a: ser um atleta responsável, com escolhas feitas muito cedo na
vida; saber que será exemplo para muitos garotos; ser um profissional de quem
é exigido preparo em todos os aspectos. O preparador físico da categoria júnior
enfatizou que o jogador: “Deve gostar do que faz dentro e fora do campo,
Figura 36 Repertórios dos preparadores físicos dos jogadores de futebol das categorias
juvenil, júnior e profissional.
154
respeitando seu limite e as pessoas com que convive. É um atleta que sempre
está na mídia e um dia também poderá estar fora dela.”
As Figuras 37 e 38 apresentam os repertórios quanto a ser um jogador
de futebol a partir dos enunciados, dos professores e técnicos
dos jogadores
das diferentes categorias estudadas. Como a escolinha tem o caráter educativo
e não competitivo, segundo seu diretor e coordenador geral, aqueles que
comandam os times até a categoria juvenil devem ser chamados de
professores e os treinos são denominados aula. Para as categorias júnior e
profissional, pode-se usar o termo técnico.
Verificamos que as dimensões presentes nas falas dos professores e
técnicos enunciam que ser um jogador de futebol profissional está associado a:
ter amizades influentes, adestramento dos corpos e desejos em troca de muito
sacrifício e responsabilidade; ter prazer dentro e fora de campo; estar ou não
com sua imagem na mídia; fazer sacrifícios; saber a importância do seu corpo;
ter profissionalismo; saber que tem de trabalhar desde muito cedo.
Figura 37 Repertórios dos professores e técnicos dos jogadores de futebol das
categorias dente de leite, infantil, mirim, juvenil e júnior.
155
Esses repertórios são distintos nas várias etapas da trajetória e a idéias
de ter sorte, dom e talento superam a do trabalho árduo. O professor da
categoria dente de leite mencionou que: “É um cara especial e de sorte. Tem
de ter o dom, nascer com o jeito. São poucos os que vão dar em alguma coisa
dessa turminha, mas vão melhorar a coordenação motora e ficar menos
sedentários”.
A Figura 39 apresenta os repertórios quanto a ser um jogador de futebol
a partir dos enunciados dos colegas de profissão
dos jogadores das categorias
júnior e profissional, pois são aquelas consideradas como trabalho por todos os
demais profissionais do clube. Percebemos que as dimensões presentes nas
falas dos colegas de profissão dos jogadores enunciam que ser um jogador de
futebol profissional está associado a sacrifício, “peneira” e ter prazer por meio
do que gosta de fazer.
Esses repertórios são distintos nas várias etapas da trajetória, com
relato em duas categorias: na categoria júnior, o colega afirmou que significa
“Sacrifício. Não podemos muito. A peneira é forte”; na categoria profissional, o
colega relatou que “É como qualquer profissão. Cada um faz o que gosta”.
Figura 38 Repertórios do técnico do jogador de futebol da categoria profissional.
156
A Figura 40 apresenta os repertórios quanto a ser um jogador de futebol
a partir dos enunciados do patrocinador
do time do jogador de futebol da
categoria profissional. Podemos verificar que as dimensões presentes na fala
do patrocinador enunciam que ser um jogador de futebol profissional está
associado a ter saúde, vigor e uma imagem que faça a diferença para que
todos possam ganhar com ela.
Figura 39 Repertórios dos colegas de profissão dos jogadores de futebol das categorias
júnior e profissional.
Figura 40 Repertórios do patrocinador do time do jogador de futebol da categoria
profissional.
157
O patrocinador falou que: “Um jogador de futebol é um profissional
‘linkado’ ao esporte e à saúde ao mesmo tempo. E como nós somos uma
indústria de medicamentos, é justamente isso que nós queremos: ‘linkar’ saúde
com a nossa projeção, claro, a do profissional e a da nossa indústria no
mercado. Então, os dois estão intimamente relacionados, esporte e saúde. E
nós, como empresa de saúde, justamente vinculamos essa parte. Nosso atleta
deve representar isso: total vigor e grande imagem. Nós o impulsionamos e ele
nos leva junto. Todos ganham”.
7.2 Definição de jogador de futebol profissional pelos diferentes
elementos da matriz: análise por categoria
Lembrando que esta tese apresenta uma pesquisa acerca da existência
de dimensões sobre categorias e não sobre posições, apresentamos nas
Figuras 41 a 46 as dimensões por categoria, a partir do que foi citado pelos
interlocutores em diferentes posições da matriz do jogador de futebol e que
recaem sobre todas as categorias estudadas. Nessas figuras, verificamos que
a categoria em questão é sinalizada e cada item numerado relaciona-se à fala
de um interlocutor que ocupa uma posição específica mencionada na legenda.
Observamos, de maneira geral, que alguns elementos se repetem em
todas as categorias (prazer, fama, sucesso, renda e responsabilidade),
corroborando a tese defendida neste estudo de que as dimensões que
compõem o tipo social “jogador de futebol profissional” estão presentes, na
atualidade, em todas as faixas etárias dos praticantes deste esporte. De
maneira específica, também, pudemos observar que a quantidade e a
diversidade das dimensões variam em função da quantidade de posições
envolvidas.
Por fim, constatamos que a referida matriz existe em cada uma das
categorias trabalhadas e que os repertórios circulantes contidos nas falas dos
interlocutores ali presentes, apesar de variados, podem ser analisados como
dimensões que se repetem em todas elas.
158
Figura 41 Dimensões descritas pelos interlocutores em diferentes posições da matriz
do
j
o
g
ador
q
ue recaem sobre a cate
g
oria dente de leite.
Figura 42 Dimensões descritas pelos interlocutores em diferentes posições da matriz
do
j
o
g
ador
q
ue recaem sobre a cate
g
oria infantil.
159
Figura 44 Dimensões descritas pelos interlocutores em diferentes posições da matriz
do jogador que recaem sobre a categoria juvenil.
Figura 43 Dimensões descritas pelos interlocutores em diferentes posições da matriz
do jogador que recaem sobre a categoria mirim.
160
Figura 45 Dimensões descritas pelos interlocutores em diferentes posições da matriz
do jogador que recaem sobre a categoria júnior.
Figura 46 Dimensões descritas pelos interlocutores em diferentes posições da matriz do
jogador que recaem sobre a categoria profissional.
161
CAPÍTULO 8
REPERTÓRIOS EM CIRCULAÇÃO: AS CENAS ENUNCIATIVAS
Entendendo que a linguagem é construtora de realidade e que os
enunciados são expressões de vozes (BAKHTIN, 1998; BRAIT, 2005),
buscamos, por meio de algumas cenas enunciativas (AMORIM, 2006) do
cotidiano, analisar como circulam os repertórios constitutivos do tipo jogador de
futebol profissional. Com esse intuito, serão apresentadas narrativas feitas a
partir de recortes das anotações do diário de campo da pesquisadora.
Escolhemos as cenas aqui descritas por conter maior quantidade de
elementos teóricos e dimensões anteriormente apresentadas. A riqueza das
cenas cotidianas, repletas de repertórios e sentidos sobre “ser jogador de
futebol”, ilustra o contexto específico do clube de futebol e do cotidiano dos
atletas. Em todas as narrativas foram identificados os personagens
participantes, os repertórios circulantes, as dimensões presentes e os aspectos
teóricos salientados neste trabalho.
8.1 O álbum de figurinhas
Sentadas na arquibancada estavam várias
mães a trocar figurinhas. Era época de Copa
do Mundo e a negociação constante pelos
cromos prateados soava como compra e
venda de ações na bolsa de valores. As
crianças eram as que menos participavam;
olhavam atônitas e felizes quando
conseguiam completar mais uma página do
álbum. Percebi que ali estavam mulheres que entendiam de futebol, sabiam
escalar seleções e reconhecer escudos de times que a maioria dos maridos
talvez não soubesse. O futebol, relacionado à ida ao clube, duas vezes por
162
semana, para levar os filhos ao treino, tornou-as conhecedores de esquemas
táticos e técnicos, o que as habilitava, como de resto a qualquer brasileiro que
minimamente goste de futebol, a se considerar capacitadas para comandar
qualquer time.
Observando o contexto diariamente, percebemos que o melhor caminho
de aproximação com essas pessoas seria negociar com elas (figurinhas,
sentidos), e assim o fizemos. Do lugar de colecionadora de figurinhas,
primeiramente, e de psicóloga, quando inquirida quem era a pesquisadora e o
que fazia ali, ficou mais fácil a aproximação com os grupos de mães, pais, avós
e demais parentes na intenção de melhor entender o cotidiano dos atletas em
formação no clube.
Isso propiciou colecionar também muitas histórias: dos filhos que
começaram no futebol após fazer natação por causa de bronquite; para seguir
o caminho do irmão mais velho; para diminuir a obesidade causada por
alimentação pouco balanceada; para deixar o video game e a TV, que geram
sedentarismo, entre outras motivações. Havia também casos de paixão dos
pais pelo clube e de filhos de ex-craques e dirigentes que sempre eram
referidos como “os filhos de...” e não pelos seus próprios nomes. O clube, que
possui várias sedes de treinamento, tinha uma rivalidade interna e, quando os
torneios começavam, era clara a disputa mais acirrada quando o time a ser
batido, embora pertencesse ao mesmo clube, treinava em outra sede.
Foram muitas as histórias e as conversas presenciadas e das quais
participamos, construídas ou não pelo álbum de figurinhas. Apresentamos, a
seguir, algumas que ilustram aspectos da construção do tipo “jogador de
futebol profissional” e como este pode ajudar a fazer uma leitura da realidade
naquele lugar de inúmeras trocas entre indivíduos em diferentes posições e
contextos formadores do foco deste trabalho, que é o jogador de futebol
profissional.
163
8.2 A munhequeira
Estava esperando começar o treino das 10 horas da turminha do
mirim quando vi Homero, o capitão do time profissional do clube, vindo em
minha direção para me cumprimentar. Papeamos um pouco sobre o último
jogo e as responsabilidades dele quanto a fazer interlocução entre os
jogadores, os dirigentes e a imprensa. Como líder do time, ele atua em várias
posições extracampo. Reparei que, mais adiante, estavam sua esposa e sua
mãe, além da babá de seu filho, todas “corujando” o garoto. Perguntei como
ia a vida familiar e ele me contou que aproveitou o dia anterior para sair
com a família e comentou como havia sido um pai presente, por ter tido a
oportunidade de passar o dia mimando o seu filho de 5 anos, Binho.
Perguntei como ele encarava a preferência do garoto por jogar na linha e
não no gol, como faz o pai. Ele disse, então: “Doutora, fico feliz, porque,
assim, ele terá reconhecimento maior e mais oportunidades de crescer.”
Afirmou que não sabia se o garoto daria para a profissão, porém, o
respeitava muito e sempre esperava somente duas coisas dele: primeiro, que
jamais o esquecesse, em virtude de suas inúmeras ausências; segundo, que
seguisse a prática e o caminho que ele próprio almejasse.
Contou-me também que no passeio do
dia anterior havia ido com a esposa e
o filho ao shopping center para
comprar chuteiras novas e prometidas
a ele já há algum tempo. Falando a
respeito de Binho, frisou que, durante
a compra, para defendê-lo, discutiu
em alto e bom som com sua esposa,
pois o menino queria chuteiras e munhequeiras brancas, pedido que ela se
recusava a aceitar com a justificativa de que o trabalho diário e constante
de mantê-las limpas seria muito maior. Homero falou a ela que ele não só
podia como iria comprar as chuteiras brancas e caríssimas (em torno de R$
600,00), pois o dever da mãe é cuidar das chuteiras do filho.
Aproveitei para perguntar-lhe o porquê da necessidade desses artigos
serem brancos e para que Binho precisaria de uma munhequeira, quando este
acessório é típico de outra modalidade esportiva – o basquete. Foi, então,
que ele me contou que seu filho idolatrava o jogador Adriano, apelidado de
“o imperador”, na época jogador da Seleção Brasileira de Futebol e do Inter
164
de Milão, time italiano. Adriano, além de usar as
desejadas chuteiras brancas, também ostentava em
seus pulsos munhequeiras brancas, que apareciam
em destaque no agradecimento a Deus após cada
gol, quando levantava os braços apontando para o
céu.
Homero acrescentou que seu filho havia lhe pedido que o levasse mais
à igreja e que o ensinasse a oração que supostamente o jogador Adriano faz
quando marca os gols. Interessante ver, logo depois, o garoto marcar um gol
na escolinha e repetir os gestos de seu ídolo, assim como sua mãe gritar:
“Viva, meu imperador!”
Presentes na cena estavam a pesquisadora, o pai de uma criança de 5
anos em treinamento na categoria dente de leite, além da mãe, da avó e da
babá de Binho. O local da cena era a arquibancada em frente ao campo em
que estava ocorrendo o treinamento. Nessa cena, as dimensões presentes
sobre a categoria dente de leite, descritas na Figura 41, se caracterizam pela
obtenção de prazer com o jogo de futebol, pela possibilidade de fama, sucesso,
renda e viagens, assim como pela possibilidade de ajudar a família, em uma
atitude responsável com aqueles que o apoiaram durante seu percurso.
Na cena enunciativa em questão, os repertórios circulantes dizem
respeito ao papel do pai como jogador de futebol profissional e interlocutor do
time em diferentes instâncias dentro e fora do clube. Falam também de sua
vida familiar, do papel de pai como modelo de suas expectativas quanto ao
filho, do desejo do filho por bens de consumo, da adoção de atitudes tomando
como referência um jogador que tem destaque em times europeus e na
Seleção Brasileira de Futebol e do papel da mãe junto ao filho.
Narrada e descrita, a cena enunciativa pode ser analisada destacando-
se que o treinamento da categoria dente de leite na escolinha envolve um
conjunto de ações que oscila entre o brincar e o jogar, gerenciado pelo
treinador, e que, aos olhos dos observadores, essa diferenciação não é clara.
Pais, mães e parentes assistem aos treinos como torcedores; todos esperam
desses pequenos atletas que as regras sejam cumpridas na íntegra e que os
elementos de negociação possíveis estejam somente no fato de que precisam
imitar os “outros generalizados” que os atletas têm como ídolos.
165
Na cena, é possível verificar que prepondera o jogar, segundo Mead
(1962), ou o Ludus, conforme Caillois (1990), com as características de
institucionalização e o predomínio dos “outros generalizados” sobre o “outro
observador”. Somando-se ao seguimento de regras, também observamos a
presença de materialidades, a evasão da vida real e o sentido de faz-de-conta
de Huizinga (2007) perpassado por demonstração de voluntariedade e tensão,
incerteza, ludicidade e agonisticidade, porém, acima de tudo, motivado pela
idéia da existência do tipo social “ídolo”, elemento determinante no imaginário
infantil, reforçado pela atitude dos pais (compra de bens similares aos que o
ídolo utiliza e torcida da mãe fazendo referência ao codinome do ídolo), movido
e mantido pela sociedade do espetáculo.
8.3 O quase filho de Francisco
“Temos de mandar o garoto embora. O pai é louco e pega mal para o
clube. Todos os pais estão comentando que não adiantou nada a conversa
com ele, que fica quieto um dia e depois volta a cometer insanidades. Ontem,
mesmo, o garoto saiu do treino passando mal”, disse o diretor da escolinha
para o coordenador.
A situação era muito grave, pois Antonio gritava o tempo todo com
Marcos, garoto de 11 anos, que não sabia se atendia aos gritos do pai ou às
ordens do professor. Certa vez, o menino resolver seguir só as ordens do
professor e logo que o treino acabou, antes mesmo que todos saíssem do
gramado, Antonio entrou em campo e deu uma sova no filho. Ali,
publicamente, em frente aos seus coleguinhas e diante de mães e pais
atônitos que, de tão assustados, nada conseguiram fazer para detê-lo.
Alguns dias se passaram, o fato foi comunicado à coordenação da escolinha
e as mães e os pais das outras crianças resolveram falar com Antonio. No
entanto, a mesma situação se repetia e o problema quedava sem solução.
Antonio sempre dizia: “Cuidem de seus filhos porque do meu, cuido eu.”
A situação já estava insustentável. Marcos ficava cada vez mais
fechado, sempre emburrado e recebeu ordens estritas do pai para, logo após
os treinos, não falar com ninguém e correr mais dez voltas no campo de areia
para fortalecer a musculatura das pernas. Enquanto isso, todos os seus
166
coleguinhas se juntavam para lanchar, rir, conversar e deitar ao sol para o
merecido descanso.
A coordenação da escolinha estava decidida a não deixar Marcos
treinar mais no clube, embora a situação fosse delicada, pois ele era bolsista
e havia sido indicado ao diretor por um famoso cantor de música sertaneja
da região.
Diante dessas ocorrências, fui conversando com as mães e os pais dos
outros meninos que, a cada dia, me contavam sobre um ato mais cabeludo
que o outro, todos de violências que Marcos sofria de Antonio.
Se no treino era assim, nos jogos era bem pior. Antonio agredia
Marcos, o professor, os dirigentes, a torcida. Era um tumulto! Ele sabia que
a permanência de Marcos no clube estava por um fio, mas raramente se
continha. Podia-se ver nele o olhar de desprezo quando alguém o abordava
pedindo-lhe calma e ponderando que aquilo era só um treino ou apenas um
jogo.
Por mais que meu papel naquele contexto fosse somente o de
observadora dos acontecimentos, não me contive e pedi ao coordenador que
me desse uma chance de intervir. Marcos jogava bem demais, batia falta
como gente grande e, junto com Renan, eram como “corda e caçamba” para
jogar. Até mesmo os coleguinhas já se rebelavam e não queriam lhe passar a
bola, pois ele nunca fazia o combinado e, sob as ordens do pai, sempre tinha
de mostrar que podia mais.
Sentei perto de Antonio durante quatro treinos e dois jogos. Ouvi-o
falar absurdos, prometer pancadas, ameaçar, constranger o garoto e até
mesmo se levantar e puni-lo fisicamente. Porém, houve um dia em que
Antonio estava mais quieto, ficou o treino todo calado e repetiu este padrão
mais uns dois dias. Era minha chance. Cheguei perto e falei: “Seu Antonio,
a pedido do clube, eu gostaria de ter uma conversa com o senhor”. Ele se
assustou e logo disse: “Mais bronca? Quem é a senhora? É mãe de quem?
Nunca vejo a senhora com menino, mas está sempre acompanhando os
treinos. E olha que eu conheço todos os garotos”. Eu me identifiquei como
psicóloga, disse que estava ali para ajudar a todos e que não entendia bem
por que as pessoas falavam tanto que ele era isso e aquilo, quando eu tinha
presenciado um homem tão interessado no filho, quieto e entendedor do
assunto. Afirmei que gostaria mesmo de parabenizá-lo pelo comportamento
exemplar daquele dia, que calava a boca de todos os seus acusadores, porém,
167
mesmo assim, gostaria de ter uma conversa mais longa e saber do seu gosto
pelo futebol e de seu desejo de orientar tão bem o seu filho.
Percebi que ele tomou um susto, pois minhas palavras pegaram-no de
surpresa. Ele não esperava um elogio e logo relaxou. Marquei uma conversa
para o dia seguinte. Ficamos ali, falando dos garotos e ele me dizendo o que
era o certo a fazer. Ouvi-o atentamente, reforçando o seu querer falar
comigo.
No dia seguinte, aproveitei o próprio horário do treino e o chamei
para conversar em um lugar mais reservado. Ele chegou todo arrumadinho,
me cumprimentou e perguntou se eu tinha visto o jogo do Brasil no dia
anterior. Falamos um pouco do jogo e logo o assunto mudou para o porquê
de ele não ter jogado futebol, já que a prática lhe seria tão vital.
Antonio começou a contar sua história. Falou da infância
paupérrima no interior de Goiás, da grande quantidade de irmãos e de que
até fome passou. Seu sonho era jogar bola, mas não podia fazê-lo, nem nos
momentos de folga, pois seu pai não permitia, já que ele tinha de estar
descansado para o trabalho na lavoura. Contou-me da falta de condições e,
principalmente, da falta de apoio do pai, que não gastava tempo com ele.
Disse-me que, ainda pequeno, jurou ter um filho, dar toda a sua atenção a
ele e fazer dele um craque da bola.
Foi aí que ele me contou uma passagem interessante do seu
imaginário. Ele me olhou e perguntou: “A senhora conhece o Wellington
Camargo, político da cidade e irmão da dupla
Zezé e Luciano?” Eu disse que não o conhecia
pessoalmente, embora soubesse quem era pela
mídia. Ele me disse que os conhecia desde
pequenos, que havia sido criado junto com eles
e que era de dentro da casa. Era funcionário
do político, mas seu grande exemplo de vida
era o pai deles. Perguntou também se eu havia
visto o filme sobre a vida deles no cinema,
porque ele desejava fazer com seu filho
Marcos igualzinho ao que Francisco havia
feito com os seus, ou seja, apostar todas as
suas fichas nele. E acrescentou que nada iria
detê-lo. Em outros momentos da conversa foi comovente ver aquele homem
chorar feito uma criança e dizer que ninguém jamais o tinha compreendido e
168
muito menos lhe feito um elogio. Perguntou se eu podia ajudá-lo com
Marcos, pois sabia que, apesar de querer o melhor para ele, às vezes pegava
muito pesado. Durante semanas repassamos seus planos e o que significava
para ele ser um jogador profissional de futebol. Conversamos sobre o
desenvolvimento infantil e o tempo necessário para o amadurecimento de
Marcos, que já apresentava dores nos joelhos de tanto treinar. Falamos da
importância do professor, dos companheiros e do descanso. Observei que,
com o passar do tempo, ele foi trocando seus gritos por dicas após o treino,
seguidas de um acolhimento mais caloroso para com o filho. Algumas vezes
presenciei Antonio esperando enquanto Marcos lanchava e tomava o seu
solzinho junto com os companheiros. Isso não ocorreu da noite para o dia,
mas gradativamente e sempre seguido de um olhar que me procurava,
aguardando que eu fizesse sinal de positivo com o polegar. Com o tempo,
percebi que tudo aquilo estava acontecendo porque ele tinha entendido que
Marcos era mesmo o filho de Antonio e não de Francisco!
Essa historinha não descreve apenas uma cena enunciativa, mas um
conjunto delas que fala, mesmo que indiretamente, do cotidiano de um atleta
de 11 anos da categoria mirim. Presentes nas diferentes cenas estavam o
diretor e o coordenador da escolinha, a pesquisadora, pais de várias crianças
da turminha-chave
14
do mirim, Marcos, o atleta, e Antonio, o seu pai.
Os locais em que as cenas descritas ocorreram foram o campo de
treinamento da turminha-chave, uma sala reservada dentro da secretaria da
escolinha e o campo de jogo no Centro de Treinamento do Parque Amazonas.
As dimensões presentes sobre a categoria mirim, descritas na Figura 43, se
caracterizam pela obtenção de condições de trabalho, oportunidade e
realização profissional e pessoal, necessidade de humildade, responsabilidade,
garra e profissionalismo. Ao atleta cabe, ainda, não se mostrar ingênuo, ser
dedicado, mesmo que precise se afastar da família. Prazer, disciplina, sucesso,
fama e ascensão social foram elementos já apresentados para a categoria.
Na história narrada, os repertórios concernem ao comportamento do
atleta e de seu pai nas dependências do clube; ao conflito dos dirigentes que,
para controlar o pai do atleta, pretendiam punir o garoto com a exclusão do
clube; à indignação dos pais de outros atletas diante das agressões assistidas
ou sabidas; ao comportamento fechado/explosivo da atleta-alvo; ao excesso de
14
Turminha-chave se refere ao grupo dos melhores atletas daquela categoria na escolinha.
169
treinamento a que o atleta, com seu corpo ainda em formação, era submetido
pelo pai, o que chegou a provocar-lhe lesões nos joelhos; à falta de
diferenciação do pai entre o brincar e o jogar, não permitindo que seu filho
relaxasse e agredindo-o publicamente, bem como a todos que o cercavam
quando contradiziam suas determinações; à história pessoal do pai com
elementos marcantes e traumáticos de sua infância, somada aos elementos
ficcionais do cotidiano misturados à sua vida real.
Tais aspectos nos mostram que não existiam, por parte do pai e do
atleta, elementos típicos do brincar, mas somente do jogar em sua forma de
imperativo categórico, de seguimento absoluto de regras mantidas por meio da
sinalização da punição (MEAD, 1962). A experiência descrita é do tipo Agôn de
Caillois (1990) e a pouca voluntariedade por parte do atleta quanto a reagir
relembra Huizinga (2007). No que tange à formalidade do jogo descrita por
Huizinga (2007), existe tensão, incerteza e está repleta de sentido de faz-de-
conta por parte do pai.
Parece claro o comprometimento de Antonio na formação do self,
projetando no filho suas frustrações e expectativas e buscando sua auto-
realização por meio da prática esportiva de Marcos. Por conseguinte, o atleta,
que inicialmente se mostrava totalmente fechado, amedrontado e infeliz,
desprovido de qualquer emotividade positiva sem prévia autorização do pai,
apresentou uma significativa mudança de comportamento, possivelmente como
decorrência da alteração do comportamento do pai, que estabeleceu novas
possibilidades de ação. A total submissão aos desejos e desmandos do pai era
nitidamente função de sua autoridade e, com certeza, a construção do self
desse atleta seria afetada por isso, embora não tenha sido foco deste estudo.
Brincar e jogar somente parecem presentes em conjunto no momento do
jogo e, particularmente, quando da realização de um gol por parte do atleta, o
qual, por pouco instantes e reproduzindo ídolos, faz gestos de raiva,
divertimento, alegria e auto-referência que se sobrepõem à competição.
Por fim, o que se observa é a guerra entre o tipo social pretendido e a
pessoa em formação. A disciplinarização dos corpos (FOUCAULT, 1979), em
busca de excelência, controle e sucesso, parece não colocar piso ou teto de
referência para esses atletas. Eles estão sempre em constante pressão por
170
conta de jogos de interesse dos mais diferentes saberes disciplinares que
querem levar um quinhão do seu sucesso. Some-se a tudo isso a construção,
por meio da indústria cultural, do imaginário que quer transformar ficção em
realidade e vice-versa, atualizando e fazendo parte da sociedade do
espetáculo.
8.4 Cartão vermelho para todos
Sábado de decisão. Centro de Treinamento da Serrinha (CTS) versus
Centro de Treinamento do Parque Amazonas (CTPA) na disputa do título
da categoria mirim. O time do CTPA veste branco e o do CTS, verde. As
arquibancadas estão lotadas, há muita gente no sol, o clima é de festa, os
familiares estão motivados, há sorvete, pipoca e cerveja à venda nas
carrocinhas e todos, atletas, árbitros e torcida, já estão a postos.
Começa o jogo! As crianças estão correndo arrumadinhas em campo e
observa-se um bom posicionamento; os esquemas táticos são obedecidos à
risca; os professores gritam o tempo todo; os familiares estão em polvorosa!
Esse jogo é especial. No time do CTPA joga Jennifer, uma das poucas
meninas que treinam no clube e que, para desespero de todos do CTS, de
fato, desequilibra o jogo. Nessa idade, 11 anos, as garotas são um
pouquinho maiores que os meninos e sua coordenação motora já está bem
mais refinada. Jennifer joga com a camisa 10 e o time todo executa as
jogadas em função dela, considerada a craque do grupo. Menina bonita e do
tipo calada, já parece saber exatamente o que quer da vida: ser jogadora de
futebol profissional. Filha de um ex-craque do time principal e hoje
treinador das categorias de base, ela tem no pai um treinador formado em
educação física; e o pai, alimenta a expectativa de que a menina obtenha o
sucesso no exterior que ele, em sua carreira, não alcançou. Jennifer só fala
de futebol, só pensa em futebol e não seria demais dizer que só quer jogar
futebol. Sabe que esse deve ser seu último ano junto com os meninos, pois,
daí para frente, as diferenças físicas os impedirão de jogar juntos.
Enquanto isso, Arno passa para Cléber, que sai de uma falta, pula o
adversário e cruza na área. Jennifer salta, erra a bola, pom a recupera em
seguida e, num lance de puro talento, puxa a bola para a direita, gira e
chuta de esquerda. É goool! Gol de Jennifer!! Todos correm atrás dela, que
171
corre em direção ao pai e vibra muito. O time adversário recolhe a bola e se
prepara para o reinício do jogo. De um lado, a “galera” grita o nome da
jogadora e anuncia o “chocolate”; do outro, pais e mães lembram aos filhos
que perder não é problema, mas deixar uma garota ganhar é. O jogo se
reinicia tenso e Jennifer faz mais um gol no primeiro tempo e outro no
segundo. Observa-se a torcida adversária irritada. Alguns pais se divertem,
enquanto outros gritam palavrões do mais baixo calão, mesmo sentados ao
lado de esposas e filhas.
Nesse momento, os urros de um dos pais se destacam. É o pai de Igor,
zagueiro do time do CTS, garoto esforçado, disciplinado e taticamente muito
competente. Entretanto, sua ingrata função naquele jogo é marcar Jennifer,
em um tipo de marcãohomem a homem”, se é que isto se possa aplicar ao
caso. A cada lance da garota em cima de Igor, o pai do menino se desespera.
Visivelmente alcoolizado, grita e profere insultos a todo momento. De
palavrões ao acaso, passa a xingar Igor diretamente em alto e bom som,
falando coisas impensáveis ao próprio filho, submetendo-o a uma desonra
ainda maior do que aquela que ele já estava sofrendo em campo. Igor parece
perdido, tenta correr, luta, faz falta dura e é advertido. Como em uma
cadeia de acontecimentos, a cada lance o menino recebe
um insulto do pai, faz faltas cada vez mais duras e,
como conseqüência, é punido com um cartão amarelo.
Seguem-se mais insultos, até que Igor perde a cabeça,
deslealmente pega um garoto por trás, com um carrinho
desnecessário, e recebe o cartão vermelho. É o fim para
Igor e também o ponto final dos insultos. Ele sai
chorando, nitidamente confuso e envergonhado, e corre para o vestiário. O
pai ainda esbraveja mais alguns comentários e se cala, aparentemente se
sentindo vencedor pela confirmação dos insultos ao garoto. Todos se
comovem com a interferência e a crueldade; alguns vaiam, outros insultam
também e o jogo se encerra. O time do CTPA comemora; os garotos do CTS
saem humilhados. Na arquibancada, rostos que se perguntam quem teria
ganhado algo com tudo isso. A multidão se dispersa e todos seguem para o
almoço de sábado.
Presentes na cena enunciativa estavam familiares de vários jogadores
da categoria mirim, professores, coordenadores, diretores e a pesquisadora.
Era a final do campeonato interno e essa categoria representa a maior
rivalidade existente entre os torcedores do clube. As dimensões citadas sobre
172
os atletas dessa categoria foram descritas na Figura 43 e se caracterizam pela
presença do esporte como possibilidade de trabalho, oportunidade e realização
profissional e pessoal, necessidade de humildade, responsabilidade, garra e
profissionalismo. Ao atleta cabe ser disciplinado, dedicado e obediente.
Elementos como prazer, autocontrole, sucesso, fama e ascensão social foram
também apresentados para a categoria.
Na cena em questão, os repertórios que circulam envolvem questões
internas ao jogo – quem o pratica, ou seja, o atleta – e questões externas ao
jogo – quem o assiste, isto é, a torcida. Nesse caso, torna-se possível
identificar quando o jogo e os festejos de um sábado em família transformam a
brincadeira do futebol em competição e guerra. O Ludus supera a Paidia
(HUIZINGA, 2007), a tensão aumenta e o rompimento das regras,
exarcerbando o Agôn, gera um clima de constrangimento e desapontamento.
Nessa narrativa, o papel feminino na sociedade é desvelado a partir do
universo masculino do futebol, portanto, neste caso, machista. Questões de
honra e força parecem deixar perdidos meninos que são companheiros e não
adversários; a cultura que cria e recria preconceitos é exposta. O que se
observa a partir do pai não justifica a violência, o preconceito de gênero, o
abuso no trato pessoal, a pressão e a tensão presentes no futebol. As
expectativas de vitória superam os limites da convivência social educada,
tolerante e respeitosa. Abuso e violência parecem estarrecer a todos; a
despeito disso, ninguém se mobiliza para fazer parar os horrores de um pai
descontrolado. É o futebol, sempre espetacular e produzindo espetáculos,
mesmo quando não dá aos atores nem os 15 minutos de fama prometidos.
8.5 A galinhada
Hernandes estava apreensivo, tenso e sua característica primeira, a
timidez, parecia ressaltada diante da notícia e da possibilidade de ir jogar
futebol na Europa. Garoto bom, habilidoso e disciplinado, tinha sido
escolhido como um dos quatro jovens de 15 anos comprados por um olheiro,
cadastrado na FIFA, que iriam jogar em um grande time europeu. A notícia
173
corria o clube como rastilho de pólvora e não foi difícil encontrar a turminha
de faladores pelos cantos a comentar tudo que iria acontecer com os garotos.
Presenciei Hernandes de papo com Sávio, externando sua
preocupação e medo caso o país escolhido fosse a Alemanha. Ele falava que
tinha um grande pavor: morrer de fome. Como era jogador da zaga, vivia
dizendo que precisava comer bem, ganhar “sustância” para poder enfrentar
os também fortes jogadores alemães. Outras opções existiam, como a Itália,
a França e a Espanha, pois cada um dos quatro jovens atletas seria enviado
para um desses países. Sávio, que já havia morado na França com seu pai e
falava francês, provavelmente iria para lá. Era possível observar a agonia
de Hernandes quando o assunto era a viagem. Nesse contexto, uma de suas
falas me chamou a atenção: “Puxa cara! Você sabia que teve um jogador
chamado Viola que foi pra lá (se referindo à Alemanha) e voltou rapidinho
porque não agüentou comer tanta salsicha? Já pensou? Eu não gosto de
salsicha! E se só tiver isso lá, eu não vou agüentar. Vai ser o meu fim”.
Ao escutar aquilo fiquei a pensar. Os dias se passaram e então chegou
a notícia da ida de Hernandes para a Espanha e não para a Alemanha como
pensara. Eu estava por ali quando a notícia chegou e não sei ao certo o que
a sua expressão descrevia. Aparentemente assustado, olhou e disse:
“Caramba! E se lá não tiver nem salsicha? Tô ferrado!” Foi, então, que a
mãe de outro jogador falou: “Não de preocupe com comida, não! Lá tem
mariscos, gazpacho, jamón e paella”.
Observei que, apesar da boa intenção daquela mãe, com todos os seus
conhecimentos gastronômicos, seu comentário somente deixou Hernandes
ainda mais confuso. Sendo um garoto de origem humilde, nascido no interior
de Goiás e com hábitos simples, foi ficando assustado, seu olhar
esbugalhado se acentuou e, logo tentando disfarçar, foi embora. Eu, que
ouvia a tudo atentamente, presenciei o desespero do garoto que, em sua
ingenuidade e desconhecimento, sofria a olhos vistos.
No mesmo dia, percebi que podia fazer
alguma coisa por aquele adolescente.
Separei alguns guias de viagem sobre a
Espanha, recortei fotos e encartes de
gastronomia, fiz um belíssimo cartaz
contendo uma linda e fumegante paella
valenciana no centro, coloquei tudo na
bolsa e levei comigo para o clube.
174
Esperei o treino acabar e, então, o chamei. Disse que tinha ficado
sabendo que ele não conhecia as comidas da Espanha e que eu havia trazido
um cartaz com várias fotos para ele poder ver como elas eram. Foi aí que ele
logo veio me pedindo para ver o tal cartaz e se mostrou muito interessado.
Quando abriu aquele encarte, ficou absolutamente encantado e feliz. Olhou
para a paella e, em seguida, para mim
com uma expressão de alívio e
descoberta e gritou: “Tia, lá tem
galinhada!15 Lá tem galinhada! A
senhora salvou a vida de um
campeão”. Saiu com o cartaz na mão,
rindo, pulando e fazendo aviãozinho
com ele, além de gritar “Estou salvo!
Estou salvo!”. Daquele momento em
diante, não vi mais Hernandes com a cara fechada ou rugas de preocupação.
Aquele garoto, que havia conseguido atravessar o oceano das possibilidades,
cruzara também o oceano dos medos antes de transpor o Oceano Atlântico
para dar início à sua carreira internacional.
Presentes nas cenas enunciativas estavam familiares de vários
jogadores da categoria juvenil, professores e a pesquisadora. Eram dias
normais no cotidiano do clube e o clima de Copa do Mundo mantinha todos
“ligados” nos resultados da seleção canarinho. As dimensões citadas sobre os
atletas dessa categoria foram descritas na Figura 44 se caracterizam pela
presença do esporte como possibilidade de ascensão social, momento de
aproveitar oportunidades de trabalho, de realização profissional e pessoal,
necessidade de ter responsabilidade, garra e profissionalismo. Ao atleta cabe
ser disciplinado, dedicado e obediente. Elementos como prazer, autocontrole,
desejo de sucesso e fama para a obtenção de materialidades foram também
apresentados para a categoria. Na cena em questão, os repertórios que
circulam envolvem questões internas à negociação dos atletas. Nesse caso,
torna-se possível identificar a tensão do futebol fora das quatro linhas de jogo.
A incerteza (HUIZINGA, 2007) gera um clima de expectativa e preocupação
quanto ao imaginário dos atletas, lembrando o Mimicry de Caillois (1990).
15
Galinhada é um prato típico do estado de Goiás e de outras regiões do Brasil que consiste
basicamente de arroz e frango preparados juntos.
175
Nessa narrativa, o papel das notícias veiculadas pela mídia do futebol
(sociedade do espetáculo) aliado à falta de conhecimento sobre diferentes
culturas alimentam o imaginário que forma o universo dos jovens. Questões
aparentemente simples, que poderiam ser contornadas ou evitadas antes de se
tornarem problemas, ainda estão presentes no processo de formação dos
atletas citados. Com a experiência de várias negociações realizadas e
desfeitas pela volta prematura dos atletas ao Brasil, por falta de adaptação à
cultura do país de destino, muitas escolinhas de formação de jogadores de
futebol já contam com uma agenda que inclui aulas extracurriculares, ou seja,
fora do horário regular da escola formal, de história, geografia e línguas. O que
se observa, a partir do novo modelo dos centros de formação de atletas, é um
ganho adicional para os jovens que, na eventualidade de não concretizar sua
carreira no futebol, podem ter outras oportunidades a partir da melhor
educação formal.
Nessa narrativa sobre o adolescente Hernandes, foram observados
elementos individuais aparentes de medo e apreensão por parte do atleta, além
de expectativas generalizadas por parte dele e dos demais interlocutores que o
cercam e compartilham com ele o desejo de ir jogar em um grande time e país
da Europa. Isso inclui a expectativa de ser “comprado” como uma mercadoria
que poderá ser revendida por um preço ainda maior que o inicial, a ampliação
da chance de agregar valor às suas habilidades e talento, a possibilidade de
aprender mais sobre a língua e a cultura de um país diferente e a perspectiva
de lá ter melhores condições de adaptação e permanência.
8.6 Chuteiras para qualquer pé
Marina terminava seu tricô
automaticamente, enquanto seus olhos seguiam
os dribles habilidosos de Renan, que “cavava”
uma falta e dava a Marcos a chance de bater. Ela esperava seu filho, Jonas,
da categoria infantil. Mais adiante vinha Carmélia, trazendo seus dois
meninos: um que teria treino no próximo horário e outro que já encerrara
suas atividades. Carmélia trazia debaixo do braço uma sacola de
176
supermercado com um par de chuteiras aparentemente novinhas, bem
limpinhas e bastante modernas. Eram azuis e parecidas com o modelo usado
no momento por Ronaldo, “o fenômeno”.
Marina recebeu Carmélia, que se sentou ao seu lado desembrulhando
o pacote e dizendo: “São estas aqui. Você vai fazer um
excelente negócio, pois elas estão novinhas e não servem
mais em nenhum dos meus garotos. O preço que faço
pra você é de R$ 100,00, lembrando que elas custaram
mais de R$ 300,00.” Marina pegou as chuteiras,
observou pequenos defeitos, mas parecia visivelmente ter se agradado com a
mercadoria.
Naquele instante, terminou o treino e os garotos correram para tomar
água e encontrar suas mães que os esperavam ansiosas com seus comentários
sobre a prática do dia. Jonas se aproximou e perguntou para a mãe de quem
eram aquelas chuteiras, embora tenha dado pouca atenção a elas. Sua mãe
lhe disse: “Experimente, pois elas são suas futuras chuteiras”. Jonas,
fazendo cara de desgosto, disse que não, que queria chuteiras iguais às do
Kaká, que, além de serem de outra cor são também de outra marca. A mãe
argumentou: “Deixa de bobagem, menino. Essas são iguais às do Ronaldo,
que é muito melhor que o Kaká, além da marca ser muito mais bonita”.
Jonas pegou as chuteiras e, ainda suado, tirou aquelas que estava usando e
experimentou as “novas”, obedecendo às ordens da mãe. Imediatamente, ele
disse: “Estão grandes. Não vai dar para correr com elas!”. Marina rebateu:
“Tem problema, não. O pé cresce loguinho e é sua oportunidade de usar uma
chuteira dessa marca. É pegar ou largar!”.
Mesmo claramente insatisfeito, o
menino parecia não ter mais
argumentos. Olhou novamente para
as chuteiras e falou: “Mas são
azuis e o uniforme é verde. Vai
ficar feio, além de serem grandes!”.
A mãe finalizou: “Escuta aqui,
Jonas, pé de pobre não pode ter
número e olho de pobre tem de ver tudo bonito!”. Virou-se para Carmélia e
arrematou: “Ficou ótimo! Trago o dinheiro na próxima quinta-feira. Você
aceita cheque?”. A negociação terminou e todos se foram para cumprir a
rotina do dia.
177
Mais tarde, no treino do time profissional, vi um senhor de terno,
fato estranho naquele contexto. O clube estava mudando os patrocinadores
do material esportivo e, com a mudança, todos os uniformes de treino e jogo,
assim como as bolas e os demais materiais usados pelo time, deveriam exibir
a nova marca. Porém, aquele senhor estava lá para averiguar se dois dos
mais importantes jogadores do time estariam interessados em aceitar o
patrocínio individual da marca para suas chuteiras.
No futebol, as chuteiras e suas respectivas marcas
são de escolha pessoal e intransferível dos jogadores
que, por princípio, deveriam escolhê-las por
conforto e adequação do calçado a seu pé e gosto.
Entretanto, vários jogadores, principalmente
aqueles que mais se destacam, acabam por receber
quantias astronômicas para utilizar determinadas marcas, associando a elas
suas habilidades e sucesso.
Nessa cena, pude observar que, ao final do treino, os jogadores que
tinham sido escolhidos não somente escutaram a proposta com atenção como
também a receberam por escrito para discutir com seus empresários a
viabilidade de aceitá-la.
Cabe aqui considerar que aquelas chuteiras de segunda mão, desejadas
pela mãe e rejeitadas pelo garoto, faziam seu ciclo, agora não como um
objeto que precisa de um sujeito para comprá-las, mas como um objeto que
precisa de um sujeito para vendê-las. Fecha-se o ciclo e, mais que pensar na
chuteira como instrumento de auxílio à prática do futebol, pode-se pensar
nela como produto pertencente a uma cadeia de outros produtos que
perpassa a coisificação do sujeito para a sua própria valorização.
Participaram das cenas descritas acima os atletas, alguns companheiros
de escolinha, algumas mães e pais que sempre estavam presentes nos
ambientes de treinamento do clube, o representante do patrocinador e a
pesquisadora. Em ambas as histórias, as cenas ocorreram em situações de
final ou intervalo de treinamento no clube.
Na narrativa acerca do garoto Jonas e das “novas” chuteiras, os
elementos individuais estavam mais inclinados ao desejo pautado em
modismos e possibilidades sociais de aquisição de bens, em materialidades
escolhidas e escolhendo quem as compra e vende em diferentes momentos do
percurso do jogador de futebol.
178
A questão das materialidades envolvidas, como a comida de Hernandes,
os materiais esportivos de Binho e Jonas, o clima, a língua, os hábitos
culturais, já fazem parte da preocupação dos grandes times de futebol que
mantêm programas de formação de atletas para exportação. Essa
preocupação propicia aos jogadores de futebol um ganho educacional que
outrora não existia em seu processo de formação, principalmente para aqueles
pertencentes às classes sociais de baixa renda. Esse ganho os habilita a
funcionar como atletas mais qualificados diante das oportunidades que a vida
lhes oferece e, desta forma, tornam-se mais resistentes ao controle social e
adquirem a capacidade de reconhecer os seus próprios interesses em uma
possível transação de compra e venda, bem como os de seus intermediários.
Porém, acima de tudo, a melhor formação fornece a esses indivíduos recursos
para a adoção de outras carreiras caso o futebol não lhes realize o sonho tão
acalentado.
Depois de perder capital com a volta de vários atletas e contratos
desfeitos por falta de adaptação às condições do local de destino, os dirigentes
dos clubes finalmente entenderam que precisam preparar melhor a sua
“mercadoria”. Não basta alimentar os atletas, vesti-los e treiná-los; é preciso
educá-los para enfrentar novos desafios e novas condições de sobrevivência.
Por um lado, isso garante um ganho expressivo em termos educacionais aos
atletas que ficam no país e não seguem carreira no futebol. Por outro lado,
aumenta o desejo de ter as mesmas oportunidades, fazendo parte do time dos
escolhidos nas inúmeras “peneiras” realizadas por esses clubes. Não é
somente a riqueza, a fama e a possibilidade de virar fenômeno, mas também a
chance de ter acesso a uma educação melhor, simultaneamente fazendo algo
que lhes é prazeroso.
Tensão, incerteza, diferentes formas diante da relação espaço–tempo
(HUIZINGA, 2007) e muita voluntariedade estão presentes na busca de
ascensão e no processo de formação dos atletas. Além disso, mais uma vez,
percebemos o imaginário constituído pelos veículos de comunicação que
apresentam histórias, casos e materialidade que influenciam a vida de todos os
atletas desse esporte.
179
CAPÍTULO 9
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Problematizar a prática do exercício e do esporte na contemporaneidade
é pensar muito além do desempenho, das habilidades, dos números e das
marcas associadas a atletas. Requer, outrossim, compreender o conjunto de
materialidades e socialidades, humanas e não-humanas, presentes no
cotidiano do atleta e que o envolvem. Familiares, comissão técnica, dirigentes,
patrocinadores, fatores climáticos, equipe de saúde, imaginário social, são
todos elementos da rede de relações sociais que configuram uma matriz cujo
ator pontual é o atleta. Os atores coadjuvantes são responsáveis pelas
transformações que o esporte tem sofrido no decorrer dos anos, tomando
feições de um fenômeno mundial de massa e fazendo circular cifras
extraordinárias de capital.
O futebol é uma manifestação cultural eminentemente moderna, mas
que vive as transformações da pós-modernidade. Em cada um dos lugares nos
quais é praticado se associou tanto aos valores da cultura local quanto da
global. Caracteriza-se por congregar profissionais especializados nos mais
diferentes tipos de saberes disciplinares, por possuir calendários próprios e
instituições específicas que representam cidades, estados, países e, também,
por movimentar um mercado global girando ao seu redor.
Como prática social, o futebol cresceu vertiginosamente e, ao se tornar
esporte, estabeleceu uma realidade nova que está em constante
transformação. Tornou-se uma paixão em vários lugares do mundo e explodiu
como o fenômeno de maior popularidade das práticas esportivas coletivas,
trazendo consigo interesses diversos, tanto de agências de governo (como
forma de controle dos corpos) quanto de grupos de resistência. O meio
futebolístico é repleto de tensões que oscilam entre vários poderes, entre os
quais estão as determinações federativas e confederativas, o poder dos clubes
como empresas, o talento individual dos atletas que lhes assegura uma forma
de resistência própria diante do sistema, a paixão dos torcedores.
180
No Brasil, o futebol se confunde com a identidade nacional e, em vários
momentos, foi utilizado para romper idéias racistas. A elegia do mestiço como
protagonista de grandes vitórias facilitou o entendimento da construção da
identidade de um povo que diz ter orgulho e amor de ser brasileiro. Ter jogo de
cintura, criatividade, fazer arte com os pés, ser parte do país do futuro, entre
outras características atribuídas aos que aqui nascem, abriu caminho para que
nos libertássemos do “complexo de vira-lata”. Contudo, os tempos mudaram, o
futebol se transformou e o sistema também.
Levando em conta a história construída em conjunto com essas
mudanças, o futebol passou a ser um grande negócio. Empresas se tornaram a
pátria dos jogadores, que já não sentem orgulho maior em vestir a camisa de
seu clube ou país, mas sim a do seu financiador. Mesmo assim, a relação do
futebol com a identidade do país persiste, embora seja constantemente posta
em xeque; o conjunto, a coletividade perde espaço para a individualidade.
Ainda somos celeiro e exportadores de craques, apesar de não termos mais o
melhor time. Temos talentos individuais que se destacam perante o mundo
futebolístico, enquanto a coletividade decaiu. Nossos jogadores sonham em ser
negociados como objetos de grande valor, pouco resistindo ao poder monetário
de grandes marcas e empresas, às quais reputam o condão de funcionar como
o principal meio para atingir a ascensão social e profissional almejada.
Potencializado por sua instituição maior, a FIFA, o futebol cresceu e se
transformou em uma instância do poder administrado. O lema do Barão de
Coubertin, “o importante não é vencer, mas competir”, inicialmente cedeu lugar
a “o importante é vencer” e, posteriormente, a “o importante é vender”.
Entretanto, o futebol, como negócio, tem tanto seu lado positivo quanto
negativo. Sabemos que as contribuições desse esporte, mesmo com sua
grande popularidade, são limitadas e não atingem o mundo como um todo, mas
somente aqueles diretamente ligados a clubes, empresas e federações.
Mesmo os projetos advindos das políticas governamentais públicas, que
promovem programas de formação humana por meio do futebol, pautados pelo
discurso da moralidade acerca das condições de uma prática esportiva,
acabam, inúmeras vezes, por se revelar tão-somente um meio de desvio de
verba financeira e corrupção. Todavia, faz-se necessário entender que a
181
compreensão acerca da dinâmica do estabelecimento do futebol como
fenômeno de massa parte de pequenos locais e da manutenção dos focos de
construção do atleta e das matrizes que o sustentam.
Visando entender a construção do tipo “jogador de futebol profissional”,
buscamos nesta pesquisa contribuir com uma leitura construcionista sobre as
engrenagens presentes no contexto do futebol contemporâneo, com a
possibilidade de se pensar uma psicologia do esporte que inclua, no trato com
o alto rendimento e com as demais áreas de atuação do profissional, uma visão
crítica e problematizadora da sociedade.
Recordando a tese deste estudo, sugerimos a existência de uma matriz
própria do tipo social “jogador de futebol profissional”, configurada por vários
elementos (dinheiro, fama, desempenho) e sustentada pela sociedade tanto
local quanto global. Assim, empreendemos um percurso empírico que nos
possibilitasse, primeiramente, verificar se essa matriz existia e, se isto se
confirmasse, procurar entendê-la posteriormente.
Esse trajeto, pleno de possibilidades de problematização advindas do
arcabouço da psicologia social, teve como referência a perspectiva teórica do
construcionismo, que forneceu os elementos epistemológicos e metodológicos
para trilhá-lo. Conduzimos conversas e observações que resultaram em grande
quantidade de material de análise, o que nos permitiu identificar tanto os
elementos que compõem a estrutura e o funcionamento da matriz do jogador
de futebol profissional quanto a forma particular de sua configuração.
No campo-tema, definido como lugar de acontecimentos, práticas sociais
e contexto de dialogias repletas de sentidos, estabelecemos as formas de
execução do trabalho de pesquisa. Uma das principais características da
estrutura e do funcionamento do clube, que nos possibilitou estabelecer os
critérios de escolha dos atletas para a pesquisa, foi sua configuração em
categorias de treinamento distintas por idade. Conhecidas as categorias,
escolhemos aleatoriamente um atleta de cada uma delas e, a partir daí,
identificamos seus interlocutores. Dessa forma, a matriz à qual cada um deles
pertence foi se tornando visível.
182
Cada elemento citado pelo atleta como pertencente à sua rede foi
identificado e entrevistado. As falas dessas pessoas foram conteúdo para as
dimensões que surgiram e permitiram confirmar tanto a existência da matriz
quanto o fato de que a construção do tipo social “jogador de futebol
profissional” se dá pela circulação de repertórios nas diferentes posições que
formam esta matriz, em todas as categorias etárias estudadas.
É importante salientar que, independentemente da categoria do atleta, a
configuração matricial existe e nela está presente a noção do tipo social
“jogador de futebol profissional”, que se “confunde” com as expectativas que os
interlocutores têm com relação ao atleta, ator central da matriz que ele compõe.
Identificamos também que, mesmo nas categorias iniciantes (mirim e juvenil),
já há a atuação de profissionais especializados que até recentemente estavam
disponíveis somente na categoria profissional, como nutricionistas e
fisioterapeutas.
Vários elementos teóricos, segundo os autores que embasam este
estudo, foram igualmente identificados. Os elementos formais do jogo,
descritos por Huizinga (2007), e a classificação de Agôn, postulada por Caillois
(1990), são alguns desses aspectos que configuram o futebol como
modalidade esportiva, tendo havido ainda a presença de outros, citados pelos
mesmos autores, no contexto geral que compõe a matriz do atleta. Além disso,
identificamos que a formação do tipo social “jogador de futebol profissional”
passa pelo brincar e pelo jogar, que estão presentes no jogo de futebol (juntos
ou não). Ambos auxiliam a formação do self pela internalização dos aspectos
sociais, com afirma Mead (1962), favorecendo as possibilidades da
pessoa/atleta se posicionar de forma mais adaptativa ou resistente.
Pensando nas possíveis aplicações deste trabalho, faz-se importante
ressaltar que nossa tese se sustenta na psicologia social discursiva, a qual
pressupõe que conceitos psicológicos comuns, como percepções, memórias e
emoções, encontram-se entranhados nas ações sociais, nos discursos e nas
conversas do dia-a-dia. Sendo assim, confirma a potencialidade de pensar e
produzir conhecimento situado a partir dela, além da importância de colocar em
evidência o papel da linguagem nas relações sociais como instrumento de
visibilidade e crítica.
183
Outro ponto importante desta pesquisa está na leitura construcionista,
que permite a problematização das engrenagens que circunscrevem o futebol e
expõe a necessidade do desenvolvimento de pessoas/atletas mais
posicionados, que possam compreender e, se necessário for, resistir com
maior autonomia às pressões sociais. Além disso, possibilita pensarmos em
uma transformação da psicologia do esporte tradicional, que atua no esporte de
alto rendimento somente visando aumento do desempenho físico e das
habilidades técnicas do atleta, algumas vezes deixando de lado sua formação
geral. As formas de conduta para o exercício de seu ofício vêm sendo
associadas ao desempenho excelente dos atletas de alto rendimento e às
conquistas de seus clubes, times, equipes e países que representam.
A psicologia do esporte
surgiu há várias décadas como uma
especialidade da psicologia geral e se desenvolveu conjuntamente com outros
saberes disciplinares como especificidade de uma área maior, constituindo as
chamadas ciências do esporte. Essas subáreas são compostas por múltiplas
disciplinas que procuram legitimar-se a partir de sua base epistemológica e se
consolidar como fonte de expressão de um conhecimento novo. Entre elas
estão sociologia, psicologia, antropologia, filosofia, medicina, fisioterapia,
nutrição e fisiologia. Esses saberes, com seus graus de especialização,
definidos pela demanda do contexto esportivo de competição, apresentam a
necessidade, nem sempre visível em sua prática, de troca entre si, tendo como
base um objetivo comum. Entretanto, ocorre que tornar comum um objetivo,
focado na figura do atleta, se torna uma missão um tanto quanto difícil quando
variados saberes apresentam diferenças da ordem da episteme e da ontologia.
As ciências do esporte, incluindo a psicologia do esporte, focam seus
trabalhos na adaptação do atleta de modo a potencializar seu desempenho,
não visando problematizar o sistema que o construiu e que dele é dependente.
O que acaba por sobressair é a prática do saber que melhor se adequar ao
sistema econômico e político vigente em uma sociedade, somada aos avanços
técnico-científicos que cada área conquista e que aumentam o poderio
legitimador de sua importância frente a outra área. Além disso, há a utilização
de aparatos e inscrições (LATOUR, 2000), que demonstram concretamente a
existência de muito avanço.
184
Weinberg e Gould (2001) definem a psicologia do esporte como um
estudo científico de pessoas e de seus comportamentos durante atividades
esportivas e físicas e a aplicação prática desse conhecimento. Essa definição é
considerada clássica e descreve uma prática psicológica tradicional pautada
por: definir características de personalidade do atleta e associá-las a formas de
conduta e treinamento específicas; gerar inventários e testes para medição e
detecção de habilidades e aptidão do atleta; criar técnicas que favoreçam a
regulação e o alto rendimento do atleta; detectar formas de equipar o atleta
com diferenciais de controle psicofisiológico (SAMULSKI, 2002). Dessa forma,
busca tratá-lo como peça fundamental da engrenagem de um sistema que
precisa estar “azeitado” para funcionar bem.
Tendo como objetivo conseguir o máximo do atleta nas competições,
muitas vezes a rede social que o cerca age de modo a fazer parecer que os
fins justificam os meios, o que pode tornar seu caminho de formação um longo
e penoso exercício de bravura e superação. Nesse percurso, a psicologia do
esporte e as demais ciências do esporte exercitam seus saberes diante do
atleta e, em conjunto com ele, visam tirar proveito das possibilidades que sua
excelência e, por conseguinte, seu sucesso, podem garantir para todos os
elementos de sua rede. Cabe perguntar se esse indivíduo também deveria ser
visto e tratado como sujeito que exerce, dentro ou fora da condição de atleta,
outros tipos sociais, que requeiram dele mais que a passividade imposta pelos
saberes que dele tratam quando do exercício de sua profissão. Em
conseqüência, estando dentro ou fora da categoria de atleta, ele não deveria
ter também o conhecimento e a operância sobre o sistema ao qual ele dá
origem e que não existiria sem a sua participação?
Como fenômeno social de massa, veículo de grandes somas de
dinheiro, status de espetáculo e efeito de idealização de heróis, o esporte vem
adquirindo cada vez maior importância no mundo globalizado. Em decorrência
dessa importância, a psicologia do esporte tem sido solicitada a comparecer
com seu saber, bem como a participar e a intervir nessa rede social. Por isso,
tem experimentado grande desenvolvimento no campo da intervenção e da
produção de conhecimento, fruto de esforços crescentes na formação do
psicólogo do esporte e de tudo o que ele produz neste âmbito.
185
O paradigma positivista e o pragmatismo presentes no contexto
esportivo da educação física marcaram e definiram um caminho para a
psicologia do esporte. Presentemente, essa forma de atuar vem se
modificando, a exemplo da própria sociedade. Primar pelo rendimento passou
a ser apenas uma das formas de considerar o atleta ou o praticante de
exercícios. Torna-se fundamental pensá-lo sob variados ângulos: em seu
aspecto formativo e não somente adaptativo; em sua qualidade de vida; na
iniciação esportiva com função socializadora e educativa; nos projetos sociais
que melhoram a condição de vida e integram indivíduo e sociedade; nos
sujeitos que necessitam de acompanhamento de exercícios em função de uma
atividade esportiva reabilitadora; até mesmo no atleta de alto rendimento, como
profissional e ídolo que um dia, ainda bastante jovem, terá de se desligar da
condição de atleta e estar preparado para outras atividades.
Vinculada a tamanho comprometimento com a adaptação, a psicologia
do esporte carece de maior preocupação com o rendimento humano sem,
necessariamente, comprometer o rendimento esportivo (RÚBIO, 2001). Uma
maneira possível de compensar anos de vantagem na utilização das técnicas
de rendimento esportivo sobre o rendimento físico é resgatar o papel do
psicólogo, conhecedor dos mecanismos de formação humana, entre os quais
se encontram os psicomotores, cognitivos, emocionais e comportamentais
formados pela sociedade e possuidores de uma condição histórica.
Técnicas psicológicas são muito úteis para ajudar o atleta a melhorar
suas capacidades em amplos sentidos, embora a utilização do conhecimento
acerca da formação humana, por meio de projetos educacionais que envolvam
o esporte como instrumento de desenvolvimento psíquico e de cidadania,
podem levá-lo muito mais longe. Sabemos que nem todos os jovens serão
fenômenos, craques ou heróis, pois estas posições de destaque envolvem
fatores que vão além de boa técnica. Portanto, é imprescindível incentivar o
desenvolvimento da capacidade de fazer escolhas criteriosas, ser responsável,
ético e, talvez, até campeão em alguma modalidade. O contrário leva à
exclusão prematura e a uma forma de competição na qual os fins justificam os
meios.
186
A psicologia do esporte, dentro desse contexto, iniciou seus estudos a
partir dos conhecimentos, dos reflexos e de sua possibilidade de
condicionamento e operância (RÚBIO, 2001). Ao longo do tempo, outros
temas, como personalidade, motivação, nível de ativação, liderança, coesão
grupal, treinamento mental e controle emocional, foram ganhando espaço na
mente de pesquisadores curiosos que buscavam alternativas aos inventários e
testes. A quantidade e a qualidade dos estudos na área dos esportes
cresceram vertiginosamente nas últimas décadas, acompanhando o
crescimento e a espetacularização do esporte e sua transformação em
fenômeno de massa. O diferencial para a vitória, procurado pelos campeões
olímpicos e mundiais, que podiam ser treinados psicologicamente, passou a ter
um grande valor dentro do contexto esportivo. O reconhecimento do aspecto
emocional treinável e sua efetiva influência sobre os resultados das
competições abriram as portas para o campo da psicologia do esporte.
Com o passar dos anos, têm surgido cada vez mais questões sobre
como criar elementos técnicos para atingir maior controle emocional que leve a
maior rendimento. No entanto, o resultado do saber psicológico, somado aos
outros tantos saberes pertencentes às ciências do esporte, bem como suas
disputas para atender a cada demanda individual, geram pressão sobre os
esportistas e levam a questionamentos acerca do que esta conduta realmente
produz no sujeito e no sistema social. Do ponto de vista da psicologia do
esporte, essas práticas têm como maior contribuição reafirmar uma ação
adaptativa à tarefa e pouca ou quase nenhuma função formadora.
A psicologia do esporte tem como meio e fim o estudo e a intervenção
no ser humano envolvido com a prática de atividade física e esportiva
competitiva e não-competitiva. Esses estudos podem abarcar os processos de
avaliação, as práticas de intervenção ou a análise do comportamento social,
esta última se apresentando na situação esportiva a partir da perspectiva de
quem pratica ou assiste ao espetáculo (RÚBIO, 2004). A psicologia do esporte
é a transposição da teoria e da técnica das várias especialidades e correntes
da psicologia para o contexto esportivo, no que se refere à aplicação de
avaliações para a construção de perfis ou ao uso de técnicas de intervenção
para a maximização do rendimento esportivo (RÚBIO, 2000; 2004).
187
A psicologia social aplicada ao esporte, como utilizada neste estudo, tem
ampliado seus horizontes ao longo dessas últimas décadas, dividindo espaço
em territórios antes identificados como exclusivos do psicólogo do esporte. É
consenso que, no contexto esportivo, principalmente o de alto rendimento, o
trabalho interdisciplinar se faz necessário (RÚBIO, 2000); nesse caso, o
intradisciplinar também. Porém, pela falta de clareza e de conhecimento dos
limites e especificações de cada uma das áreas, aquelas que trabalham
aspectos não diretamente observáveis e/ou mais críticos do papel do atleta
diante da sociedade têm sua prática colocada em segundo plano, uma vez que
esta não se enquadra no modelo de busca do alto rendimento. A psicologia do
esporte sofre desse “preconceito” e precisa ser mais bem apresentada como
teoria e prática.
Assim sendo, devemos pensar a própria atuação do psicólogo e seu
status quo visando construir, criticamente, uma psicologia aplicada ao esporte,
que também tenha preocupações sociais, e seja, portanto problematizadora,
formadora e quiçá transformadora. Além disso, precisam ser desenvolvidos
procedimentos e técnicas adequados de treinamento que também reflitam as
construções da cultura do seu povo, das linguagens em uso, das
materialidades e socialidades que a sustentam e das interações existentes
entre os diversos atores. Para tanto, são necessários mais estudos que
venham a preencher a lacuna de informações sobre vários aspectos envolvidos
nesse contexto.
Uma abordagem questionadora que abarque o esporte e esteja
fundamentada em uma perspectiva construcionista pode ser uma alternativa
para o entendimento dos elementos que constroem o tipo social atleta de alto
rendimento. Tal compreensão deve levar em consideração tudo o que está
presente em sua dinâmica para que o atleta possa, se assim o desejar,
continuar utilizando procedimentos de melhoria de desempenho. Todavia, deve
problematizar o tipo social em que se enquadra a partir do conhecimento de
linguagens, materialidades, interações e formas de gerenciamento a que está
submetido e que constituem as redes que o auxiliam e a matriz que o
fundamenta. Esse percurso permite pensar quem é esse atleta (o personagem
188
Figura 47 – Representação gráfica da matriz social do jogador de futebol profissional.
construído socialmente), quais são suas metas e as agências que o controlam
e que domesticam seu corpo, entre tantas outras questões.
Esse movimento estabelece relações sociais entre elementos humanos
e não-humanos que se configuram como uma teia ou rede. Uma vez
configurada dessa forma, a vazão e os caminhos pelos quais os repertórios
passam e circulam ganham fluidez e propiciam a emergência de novas
relações. Uma configuração dessa rede de relações pode descrever a
amplitude de elementos que são satélites da figura pontual do jogador de
futebol como categoria – o jogador de futebol e sua matriz (Figura 47).
A partir desses repertórios, é possível observar diferentes tipos sociais,
relações pessoais e saberes em disputa, que reconfiguram constantemente
essa matriz e são fatores determinantes na trajetória do jogador de futebol.
Existem outros aspectos, nos quais a circulação de repertórios lingüísticos são
mais complexos, que contribuem para a formatação dessa matriz social e
também são condicionantes nesse processo, destacando-se entre eles: a
lógica do sistema socioeconômico vigente, a noção de formação, a
globalização, o mercado de produtos associados, a mídia e a pouca
responsabilidade dos atores da rede diante do sujeito jogador de futebol.
A sociedade contemporânea, em sua condição pós-moderna e com sua
particularidade histórica e constitutiva de subjetividades, visibiliza uma pessoa
189
“produzida”, construída comercialmente pelo aproveitamento do que tem de
habilidade. A partir do reconhecimento dessas habilidades, surgem os
interessados em lucrar e atender a interesses próprios de seu saber disciplinar,
capturando o atleta para fazer dele um produto ou, no máximo, um sujeito com
atributos de objeto, com características próprias (definidas única e
exclusivamente por suas habilidades), cercado de metas, desafios, objetivos e
prazos. O jogador de futebol profissional vê nos modos de ser (características
do tipo social) a possibilidade da fama e da ascensão social, materializadas em
bens de consumo, em sua imagem circulando na mídia e em seu passe
valendo milhões, independentemente do quanto essa configuração possa
passar a se constituir como matriz social e a coisificá-lo.
Portanto, consideramos que esta pesquisa demonstrou, de maneira
empírica e reflexiva, a tese proposta: a existência de uma matriz do jogador
profissional de futebol que apresenta interlocutores com discursos próprios
para o tipo, recorrentes nas diferentes categorias e perpassados por elementos
como dinheiro, fama e desempenho. Também a confirmou, uma vez que
retomou a reflexão da compatibilidade entre as diferentes formas de se pensar
a formação do jogador de futebol profissional no Brasil (pautada ou não pelo
modelo lógico racional instrumental e profissionalismo requerido na atualidade
do futebol).
Além disso, propomos pensar uma forma de atuação mais
emancipadora no que se refere ao saber disciplinar da psicologia do esporte,
tendo por base diferentes noções de conhecimento e atuando de maneira a
fundamentar e a formar pessoas mais livres, éticas, críticas e justas,
diferenciando-as de uma relação que se apresenta como politicamente correta,
desejada e lucrativa, a qual, no entanto, anula ou enevoa o questionamento de
fatos sociais.
Apresentar as redes de relações sociais da categoria jogador de futebol
e as matrizes que, simultaneamente, as libertam e engessam, bem como os
constituintes humanos e não-humanos dessa matriz, favoreceu a compreensão
das relações sociais na condição pós-moderna. Uma vez descrita e
apresentada, a matriz gerou estranhamento e, assim, fez questionar o que
parecia natural, ou seja, verdades tidas como certas, tais como encarar o
190
esporte como sinônimo de ascensão social, saúde, companheirismo, alegria,
descontração e festa.
As possibilidades de resistência, de contraposição ao sistema e de
aquisição de conhecimentos que levem a uma transformação social visando
melhoria das condições de vida da coletividade, vislumbrando o esporte como
um processo de individuação, consistem, primordialmente, no entendimento do
sistema social. Entendê-lo, por conseguinte, requer o movimento de descrevê-
lo, compreendê-lo e sair da acriticidade para efetivamente conhecer.
Reconhecer a construção social dos fatos que norteiam o jogador de
futebol profissional, a sua história e a interconstituição da relação entre
indivíduo e sociedade foi o primeiro passo para a compreensão da matriz social
deste tipo. Estranhar, questionar, desnaturalizar, resistir e, com isso, suportar a
tensão e os conflitos adjacentes ao fato de se constituir dessa forma, talvez
possam, além de fazer do atleta uma pessoa capaz de avaliar seu processo de
construção enquanto tipo, produzir uma pessoa que seja capaz de exercer uma
transformação social que não seja auto-referida. Desse modo, será possível
produzir novos efeitos naqueles que seguem o tipo e constantemente atualizam
sua matriz e, assim, a autonomia poderá ser gerada e até se tornar outra lógica
de referência para a mesma universalidade que adere ao consumo de produtos
associados ao atleta.
191
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