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tem dezesseis anos. Se tivesse o senhor operaria?, perguntei. Talvez, ele disse. [...]
Se ela tivesse dezesseis anos os riscos para a saúde da paciente seriam menores e ele
não queria meter-se em confusões operando uma menina de onze anos. Ela tem doze
anos, corrigi, involuntariamente. E o senhor com essa cara pierrotesca querendo me
fazer de trouxa, disse ele rindo. Ela tem uma saúde de ferro, eu disse, revelando o
doesto, envergonhado. Ele continuou rindo, balançando a imensa barriga, um riso
baixo e musical. Boris Godunov. [...] Nós não podemos ter esse filho, doutor, eu
disse humilde. Boris parou de rir e encostou o rosto no meu. [...] Por que não usou
pílula, diafragma, camisinha, diu, coitus interruptus? Fazem besteira e depois vêm
correndo para cá. [...] Não podemos ter esse filho, repeti, desanimado. Boris
perguntou minha idade e quando eu disse notei que ele me olhou com mais simpatia.
Mesmo assim não abandonou o eu estilo injurioso: mais pra lá do que pra cá, hein?
Eu amo esta menina. Ah, o amor, o amor, sentenciou Boris. Tudo tem um ônus um
preço, um imposto, uma carga, um gravame. [...] Vexame, ele entoou, há sempre um
vexame à nossa espera. Mas o senhor tem sorte, farei esta loucura, deve ser a sua
cara de parvo que me comove. (PC, p.489).
No fim do conto, aliviado por ter eliminado os delicados inconvenientes de seu enlace
amoroso com Sofia – “Eu amava Sofia, eu amava Sofia. Eu amo Sofia!” (PC, p.485) –, o
protagonista, melancólico, pierrotesco, retorna, com Sofia, à sua caverna e ao seu penoso
ofício, afirmando: “Nada mudou, nada vai mudar” (PC, p.490).
Em sua análise da narrativa, Luiz Costa Lima efetua uma leitura alegórica da trama,
considerando que o tema e o protagonista do conto representariam a situação atual do escritor
e sua relação com a vida, que lhe serve de matéria para ficção:
O personagem é um escritor que vive trancado em seu apartamento. Como diz a
garota de 12 anos, não sabe assim o que se passa lá fora. Não desprezaria as amantes
adultas e não se apaixonaria pela menina exatamente porque tem assim a impressão
de aproximar-se da vida que lhe escapa? Não seria portanto o conto a alegoria,
menos do estado da velhice, que do estado do escritor, que pretende estimular em si
a paixão pela matéria? Logo no início de sua narração, ele declara: “o que me
mantém vivo é o risco iminente da paixão e seus coadjuvantes, amor, ódio, gozo,
misericórdia”. [...] Seus instrumentos de trabalho são o risco da paixão e o gravador
a tiracolo. Talvez o escritor, não apenas o aqui aludido, seja uma espécie de
perverso: o mundo lhe importa, como já dizia Sartre, para que se converta em tinta
impressa em páginas coladas”. (LIMA, Luiz Costa, 1981, p.156).
Tentar aproximar-se da vida que escapa, partir em busca de Sofia, manter-se vivo
através do risco da paixão para depois fazer disso tudo literatura. Eis talvez algo comum aos
personagens-escritores de Fonseca – o mundo, suas agruras e vicissitudes: o amor (carnal), a
morte, a glória, o fracasso, os júbilos, as misérias, enfim, a própria literatura, lhes interessa
para que se convertam em tinta impressa nas páginas dos livros.