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A idéia gramsciana de ideologia remete a um determinado conjunto
de práticas, interesses manifestos e aspirações sociais, econômicas e culturais de uma classe
social, que fundamentam princípios que repercutem no conjunto da coletividade e da vida social,
na medida em que seja esta classe social capaz de estabelecer sua hegemonia sobre as demais
classes. Esse conceito de ideologia é relevante para que percebamos como se desenvolve
historicamente as ideologias burguesas, incluindo o direito moderno, partindo de uma longa luta
contra-hegemônica no meio da Idade Média, para consolidar sua hegemonia séculos depois, com
as revoluções liberais.
Em 1184 d.C., na cidade francesa de Châteauneuf, revolucionários assumiram o
controle dos principais edifícios, anunciando que protestavam contra impostos,
extorsões e restrições à sua liberdade de trabalhar e comerciar. Instados a renunciar à
“comuna ou conjura...que construíram”, recusaram-se. Passou-se um ano antes que a
ordem fosse inteiramente restabelecida e, mesmo assim, persistiram os boatos sobre
conspirações, tramas e sociedades secretas. Os revolucionários eram, nas palavras do
Papa, “os chamados burgueses”, ou, nas palavras do arcebispo, “potentiore
burguenses”, ou, poderosos burgueses (TIGAR; LEVY, p. 19, 1978).
As revoluções liberais são, portanto, o ponto culminante, o golpe de
misericórdia, que estabelece um novo bloco histórico no lugar do velho mundo, que começara a
ruir, definitivamente, ainda que em um processo longo, com o renascimento cultural e a reforma
protestante. A ideologia dos burgueses é, entretanto, gerada e, principalmente, vivenciada, num
modo de vida questionado e alvo da ideologia dominante, vinculada à hegemonia da Igreja
Católica. O mercador, quando surgiu na Europa, por volta do ano 1000, era alvo de ataques dos
senhores feudais e de membros do clero. Os “pés sujos” atravessavam as cidades, vivendo do
comércio e do lucro auferido (TIGAR; LEVY, p. 20, 1978). São portadores, e realizadores, de
uma nova cultura, vislumbram uma ordem econômica que lhes garanta liberdade para comerciar
e aumentar seus ganhos, numa perspectiva individualista que destoa na realidade das corporações
de ofício. Tais expectativas, como veremos, culminaram com as teses filosóficas que fundam o
direito moderno, as quais correspondem às ideologias vinculadas aos interesses da burguesia,
cabendo aqui observar que as idéias, as filosofias, não nascem umas das outras, mas do
desenvolvimento histórico real (GRAMSCI, 2000a, p. 256).
A construção da hegemonia cultural da burguesia inicia-se na luta
contra-hegemônica contra o bloco histórico sustentado pelo domínio cultural da Igreja, apoiada
na nobreza feudal agrária. A coesão cultural e política na Idade Média, num quadro em que