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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP
Solange Salussolia Vaini
O Sagrado ganha Espaço:
Um estudo de caso sobre a Umbanda
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
SÃO PAULO
2008
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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP
Solange Salussolia Vaini
O Sagrado ganha Espaço:
Um estudo de caso sobre a Umbanda
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Doutor(a) em
Ciências Sociais sob a orientação da Professora
Doutora Maria Helena Vilas Boas Concone.
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
SÃO PAULO
2008
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Banca Examinadora
________________________________________________
________________________________________________
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________________________________________________
________________________________________________
Dedicatória
Aos meus pais Iridia e Flavio
Exemplos de seriedade, compromisso, dedicação
E amor a Umbanda!
Aos meus Pais Espirituais
Caboclos Três Penas e Pena Azul
Exemplos de humildade, paciência e determinação!
Agradecimentos
Ao CNPq e ao Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais da PUC/SP
por ter me proporcionado uma bolsa de estudos, sem a qual não teria
condições de realizar esta pesquisa;
À Maria Helena Vilas Boas Concone, minha orientadora, por ter aceito
novamente o desafio de falar sobre a Umbanda, numa época em que falar de
religião parecia estar fora de moda!
Às entidades Caboclo Três Penas e Pena Azul pela autorização em utilizar os
Cadernos de Registros, com os quais foi possível reconstruir a memória do
grupo e da Umbanda!
Ao Caboclo Caciporã (especialmente) e a todas as entidades que me ajudaram
durante estes cinco anos de pesquisa a conquistar a tranqüilidade necessária
para poder escrever!
Aos meus pais Flavio e Iridia Vaini pelas longas conversas aos pés da mesa
tomando café, conversando, brigando e recordando os momentos vividos na
Umbanda!
A cada médium, filho(a) do terreiro, que de alguma forma contribuiu para que
esta pesquisa fosse concluída, como Ilia Ruiz, pelas fotos cedidas, Swamir
Salussolia pelas conversas no sítio, Nelza Fedalto que relembrou a trajetória
da família na Umbanda, ao Rene Ruiz pelos constantes questionamentos sobre
o grupo, ao Marcelo Oliveira pelas longas conversas sobre outras práticas da
Umbanda, a minha irmã Débora Vaini por ter se reencontrado com a Umbanda,
ao Vinicius Carneiro pela tradução do resumo e a todos e todas que
participaram da construção da memória do grupo e da Umbanda!
À toda minha família pelo esforço de tentar compreender o que é escrever uma
tese... e de aceitar meus longos distanciamentos!
À todos os(as) amigos(as), que de alguma forma me auxiliaram a “fincar” os
pés no chão, com suas sugestões, críticas, alegrias...
Gosto de acreditar, como dizem os umbandistas, que nenhuma folha cai por
acaso..., creio então que durante estes cinco anos de pesquisa todas as
folhinhas que apareceram no meu caminho contribuíram para que eu pudesse
atravessar o caminho... se mais fácil ou mais difícil, não sei... mas foi o meu
caminho!!
Resumo
Esta pesquisa teve como objetivo identificar a partir da memória de indivíduos
umbandistas, de um terreiro específico, situações de aprendizagens e se estas
poderiam ser consideradas práticas emancipadoras e humanizadoras do
sujeito umbandista. A partir dos Cadernos de Registro existentes no Terreiro
objeto desta pesquisa, foi possível reconstruir a memória da Umbanda e do
grupo que a pratica, bem como os processos de aprendizagem próprios da
Umbanda. As primeiras hipóteses levantadas relacionavam-se com a própria
religião, ou seja, de que a Umbanda como movimento religioso que agrega
indivíduos das mais diferentes origens em um mesmo espaço, posiciona-se
frente à realidade de forma crítica e transformadora, levando médiuns e
consulentes a constantes reflexões.
Palavras-chave: Umbanda memória aprendizagem
Abstract
1
The objective of this project was to collect and analyses memories of
“umbanda” persons, from as specific “terreiro”. We focused on leave and
learning situations of that space, and if these experiences could be considered
emancipative and human being practices of this “umbandista” unique person.
Based on the written books of this specific “terreiro”, we were able to rebuild the
memories of “Umbanda” and its group, moreover its “umbanda” learning
processes. Some initial hypothesis were related with religion, which means that
“Umbanda” as a religious movement is able to put together too different people
in the same place. The reality that this group shares, is to create a criticism and
individual reformations, around “mediuns” and patients, in order to personal
reflections.
Key-words: Umbanda memories learning process
1
Alguns termos em português, que são específicos sobre a Umbanda, não encontram
correspondência no inglês.
1
SUMÁRIO
SUMÁRIO ____________________________________________________ 1
Índice de Fotografias ___________________________________________ 6
Índice de Figuras ______________________________________________ 8
INTRODUÇÃO _________________________________________________ 9
Motivação _________________________________________________________ 9
Arquitetando o itinerário ____________________________________________ 17
Imagens do itinerário ______________________________________________ 20
Construindo o roteiro ______________________________________________ 24
Meu Olhar ________________________________________________________ 30
Para a Educação _____________________________________________________ 30
Para a Humanização e a Emancipação ___________________________________ 33
Para a Práxis e a Práxis Umbandista ____________________________________ 34
E A UMBANDA É ISSO... _______________________________________ 36
Organização da Umbanda ___________________________________________ 43
2
A estrutura física de um terreiro _____________________________________ 49
A estrutura administrativa do terreiro _________________________________ 55
A estrutura espiritual ______________________________________________ 56
Desenvolvimento da Gira ___________________________________________ 57
A vestimenta a roupa na Umbanda __________________________________ 60
Os dias da Gira ___________________________________________________ 62
Entidades e Orixás As linhas da Umbanda ___________________________ 66
Pontos cantados __________________________________________________ 78
Pontos riscados ___________________________________________________ 80
As Obrigações na Umbanda _________________________________________ 82
ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS __________________________ 86
Sobre a Memória __________________________________________________ 86
Sobre a Aprendizagem e o Terreiro ___________________________________ 93
Sobre os Cadernos de Registro: oralidade e a escrita __________________ 103
A oralidade e a escrita ___________________________________________________ 110
Sobre a práxis mediúnica: a aprendizagem na Umbanda ________________ 117
Sobre o conceito de Trabalho na Umbanda ___________________________ 121
3
SOBRE O TERREIRO: Um Pouco da História _____________________ 126
Considerações preliminares ________________________________________ 126
Localização do Terreiro ___________________________________________ 128
Imigrantes e Benzedeiras __________________________________________ 130
A Tenda Espírita Caboclo Pena Branca e Joãozinho das Sete Encruzilhadas _______ 139
As Giras Públicas e Particulares ____________________________________ 143
As Aulas ________________________________________________________ 143
As Obrigações ___________________________________________________ 145
As Festas _______________________________________________________ 147
As Funções no TUCTPB ___________________________________________ 148
Os Médiuns ___________________________________________________________ 149
Os Cambonos _________________________________________________________ 150
Ogãs e Curimba ________________________________________________________ 151
O TUCTPB, o Bazar da Pechincha e a Comunidade Local _______________ 153
Legalidade ou Clandestinidade _____________________________________ 158
O SAGRADO DE CASA EM CASA _______________________________ 161
Giras Públicas e Particulares _______________________________________ 166
4
As Festas _______________________________________________________ 178
As Obrigações ___________________________________________________ 187
As Reuniões _____________________________________________________ 195
As aulas ________________________________________________________ 204
O SAGRADO NA VARANDA ___________________________________ 208
Giras Públicas e Particulares _______________________________________ 209
As Festas _______________________________________________________ 234
As Obrigações ___________________________________________________ 244
As Aulas ________________________________________________________ 249
As Reuniões _____________________________________________________ 256
O SAGRADO GANHA ESPAÇO _________________________________ 266
Algumas considerações sobre o grupo neste período __________________________ 272
Giras Públicas e Particulares _______________________________________ 279
Primeiro momento ______________________________________________________ 279
Segundo Momento _____________________________________________________ 295
As Festas _______________________________________________________ 301
As Obrigações ___________________________________________________ 308
5
As Aulas e Reuniões ______________________________________________ 312
Estatuto e Regimento Interno: elaboração ___________________________________ 322
CONSIDERAÇÕES... __________________________________________ 328
BIBLIOGRAFIA ______________________________________________ 345
6
Índice de Fotografias
Fotografia 1 Espaço da Assistência do TUCTPB 50
Fotografia 2 - Terreiro de Umbanda Caboclo Sete Cachoeiras/Guaianazes 51
Fotografia 3 - Congá TUCTPB 52
Fotografia 4 TUCTPB 61
Fotografia 5 - Oferenda Para Exu - Santuário Nacional de Umbanda 28/12/2007 83
Fotografia 6 - Santuário Nacional de Umbanda 84
Fotografia 7 - Convite de Inauguração da Tenda de Oxalá, amor e Caridade - 1958 135
Fotografia 8 Trabalho na Praia Grande 1958 135
Fotografia 9 - Festa de Cosme e Damião 1975 148
Fotografia 10 - Escola Estadual P. G. João Domingues de Oliveira - Embu-Guaçu 153
Fotografia 11 - Sala de aula da Escola - foto de Solange Vaini 156
Fotografia 12 - Trabalho na Praia de Peruíbe 1988 Imagem cedida por Iridia Vaini e
Digitalizada em 28/11/2007 por Solange Vaini 180
Fotografia 13 - Trabalho na Praia de Peruíbe 1988 184
Fotografia 14 - Festa de Oxossi na Varanda 1989 209
Fotografia 15 - Escola de Curimba Felix Nascentes Pinto 1989 212
7
Fotografia 16 - Festa de Oxossi na Varanda 1991 Imagem cedida por Ilia Ruiz 234
Fotografia 17 - Festa de Cosme e Damião na Varanda 1992 Foto de Solange Vaini 240
Fotografia 18 - Festa de Cosme e Damião na Varanda 1997 241
Fotografia 19 - Início da construção do Terreiro 1998 Filhos(as) tentando carpir o mato, com a
participação das crianças. 266
Fotografia 20 - Terreiro em construção - 1998 270
Fotografia 21 - Operação realizada em dia de trabalho 2006 297
Fotografia 22 - Trabalho na Praia de Peruíbe 2000 302
Fotografia 23 - Após os trabalhos o Lanche coletivo! 303
Fotografia 24 Oferenda à Oxossi 2004 304
Fotografia 25 Festa em Homenagem a Cosme e Damião. 305
Fotografia 26 - Festa de Cosme e Damião 2006 306
Fotografia 27 Homenagem ao Caboclo Três Penas 308
8
Índice de Figuras
Figura 1 Caderno de Registro de 24/10/1976 161
Figura 2 Caderno de Registro 27/01/1984 170
Figura 3 Caderno de Registro 18/12/1981 182
Figura 4 Caderno de Registro 26/06/1985 198
Figura 5 Caderno de Registro14/06/1997 228
Figura 6 Caderno de Registro de 24/04/1993 237
Figura 7 Caderno de Registro de 03/10/1992 238
Figura 8 Caderno de Registro de 02 março de 1999 246
Figura 9 Caderno de Registro de março 2003 285
Figura 10 Caderno de Registro de 11/02/2000 Relação das ervas colhidas para o Banho 311
9
INTRODUÇÃO
“Tomemos cuidado para não misturar demais a ciência com o
que dizem os textos religiosos. É reconfortante e satisfatório
que haja convergência. Mas não penso que seja preciso
argumentos científicos para provar uma doutrina religiosa. As
religiões não precisam disso”.
Trinh Xuan Thuan
(THUAN, 2002)
“E a Umbanda é isso, a Umbanda não é uma religião
acadêmica, não é uma religião codificada; ela é feita do povo e
para o povo, dentro da sua própria crença, sua própria cultura,
dentro de seus próprios anseios e do seu próprio nível de
espiritualidade”.
Painho (Chico Anísio)
1
Motivação
É inevitável para mim
2
falar da Umbanda sem pensar ou me referir a um
passado recente, mais especificamente a minha infância e adolescência. Todas
as vezes que falo sobre ela, as recordações sobre as noites vividas nos
1
(LIGIÉRO, 2000, p. 78)
2
Tomei a liberdade de utilizar a primeira pessoa do singular para explicar um pouco o processo de
construção da memória, mas devemos pensar este processo de forma geral no indivíduo e na
sociedade da qual faz parte.
10
terreiros me acompanham. Antes mesmo da escola, acho que o terreiro foi à
primeira forma de socialização externa por que passei.
Meus pais são umbandistas desde moços, embora a família venha de uma
tradição católica, misturada é verdade com o kardecismo, mas umbandistas
mesmo foram meus pais que iniciaram a trajetória.
Por parte da família paterna, minha avó já freqüentava reuniões de mesa
branca e reuniões em casa de conhecidos com a prática da incorporação de
caboclos, pretos velhos e crianças, mas sem a denominação de Umbanda.
Minha avó também era uma ótima benzedeira, procurada por muitos
moradores dos arredores onde morava No bairro da Vila Mariana, em o
Paulo.
a família de minha mãe, seguia a tradição católica, por parte de minha avó.
Meu avô dizia-se comunista e ateu. Um fato curioso é que quando os filhos
nasciam ia à biblioteca procurar um nome para ele nas enciclopédias, para
fugir aos nomes de santos que eram comuns à época.
O resultado foi curioso. Os nomes diferentes
3
e realmente incomuns
produziram uma história interessante: quando minha avó resolve batizar as três
primeiras filhas (escondida do marido, que não permitiu que as crianças fossem
3
Os nomes por ordem de nascimento: Ilia, Ilithya, Iridia, Swamir, Ileonisa.
11
batizadas) o padre da igreja local, recusa-se dizendo que os nomes eram
pagãos e realizaria o batismo trocando os nomes das meninas por nomes
de santas da igreja católica. As meninas hoje uma delas minha e foram
então batizadas com os nomes de: “Terezinha, Maria Aparecida...”.
Muitos anos mais tarde é que a família de minha mãe adota também o
kardecismo como prática religiosa, mas sem deixar de se dizerem católicos,
praticando um kardecismo “de mesa”, pois faziam as sessões em casa com a
incorporação de guias, como caboclos, preto-velhos e crianças, que vinham
para conversar, dar passes e fazer curas. Nesta época meu avô já havia
deixado de ser ateu e comunista, participando ativamente das reuniões,
cedendo inclusive sua casa para os encontros.
Meus pais acabam se conhecendo em um terreiro de Umbanda. Casam e
quando nascemos eu e minha irmã afastam-se durante alguns poucos anos
das práticas umbandistas, pois achavam que ir ao terreiro assiduamente
poderia ser penoso para as filhas pequenas.
Voltam a freqüentar a Umbanda quando minha irmã, ainda pequena começa a
apresentar alguns problemas de saúde, que são logo atribuídos ao
afastamento do casal de suas obrigações espirituais.
Assim, retornam a Umbanda. E aqui começam minhas lembranças sobre os
terreiros que freqüentamos, ou melhor, sobre a Umbanda e o presente projeto
12
de pesquisa. Por isso, disse que é difícil falar sobre a Umbanda, sem falar
também da minha própria trajetória e das lembranças que tenho sobre ela.
Minha memória é construída a partir de minhas experiências pessoais,
auxiliada por uma memória social. Se estou inserida na sociedade, se faço
parte de diferentes grupos sociais, construo a partir deles e nas experiências
vivenciadas neles uma existência social. Quando evoco estas experiências, no
caso minha experiência na Umbanda, vividas em espaço e tempo únicos, estas
surgem em forma de lembranças ou memórias que poderão ser
compreendidas se pensadas e analisadas, em relação ao contexto do
cotidiano.
As lembranças que tenho sobre este cotidiano, me dizem que tanto fui
influenciada como influenciei este espaço e tempo únicos. Quando penso nas
experiências que tive ao conviver com as pessoas nos terreiros desde muito
cedo aos oito anos dormia nos bancos do terreiro que meus pais
freqüentavam, esperando a gira terminar! percebo o quanto estas
experiências ainda estão vivas em minha memória, e o quanto ainda me
recordo de homens, mulheres, crianças, cambonos, médiuns, guias... que
construíram parte de minha história pessoal e social.
Assim, falar sobre a Umbanda, tendo como objeto de pesquisa a história do
próprio grupo, é um dos aspectos que diferenciam este trabalho de muitos
outros, ou seja, uma umbandista falando da própria religião, tendo como objeto
de pesquisa o grupo do qual faz parte.
13
Mas, mais do que falar de um grupo específico ou da própria família, este
trabalho pretende refletir, analisar e identificar quem é o sujeito umbandista a
partir de sua formação na Umbanda, ou seja, do processo de ensino
aprendizagem por que passa este indivíduo, como atua na sociedade, na
comunidade em que vive e de que forma a Umbanda contribui para a formação
de uma identidade crítica e transformadora.
Para este percurso vou utilizar dois recursos
básicos de obtenção de dados: registros
escritos e eventualmente entrevistas com
pessoas que fazem parte do terreiro, tanto os que “vestem o branco”, como da
assistência.
A escolha deste terreiro se deu por motivos muito específicos: em primeiro
lugar pela facilidade de acesso, afinal de contas faço parte do grupo, e não
podemos esquecer que o acesso fácil ao objeto de pesquisa é essencial para
sua realização, portanto uma escolha razoável; em segundo lugar pelos
registros escritos existentes que podem resultar em material riquíssimo de
análise sobre a prática da Umbanda, mesmo que estes registros tenham sido
feitos por minha mãe e durante muitos anos por mim mesma. Isto não significa
que ficarei isenta de problemas. Embora estar próxima ao grupo do qual
pretendo desenvolver a pesquisa se apresente como uma facilidade, pode
também representar um fator de complicação.
Estes registros são feitos desde
1970, ou seja, três décadas de
registros à disposição para
consulta e análise.
14
Complicação, pois os sujeitos, ao conhecerem a pesquisadora, podem se sentir
constrangidos a dar depoimentos pessoais sobre a Umbanda e sobre o terreiro,
por exemplo, como também os sujeitos escolhidos para as entrevistas
apresentarem-se inadequados do ponto de vista de informantes, por não se
lembrarem, por serem tímidos demais ou por não possuírem as informações
necessárias à pesquisa.
Posso ainda correr o risco deo ser imparcial nas reflexões e análises
elaboradas, por se tratar de um grupo o qual conheço muito bem, mas, acredito
que a objetividade científica” tão cobrada no meio acadêmico, não ficará
jamais isenta desta pesquisa, pois até mesmo na escolha do tema estará à
subjetividade. Acredito que uma pesquisa deva primar pela objetividade do
pesquisador e ser este, o mais rigoroso possível com os dados colhidos, mas a
pesquisa não estará totalmente isenta de sua subjetividade.
Portanto, ter a Umbanda como objeto de pesquisa apresenta-se como uma
tarefa desafiadora, visto a familiaridade que tenho com ela. São décadas
vividas no interior da religião, e torná-la um objeto de estudo, ainda causa-me
certo estranhamento.
Mas, é justamente por esta familiaridade que venho, cada vez mais, afirmando
a necessidade de falar dela, descortinando nas suas intrincadas redes de
relações, sua história, que é a história de indivíduos que fazem parte desta
cidade e que a tem como espaço religioso, social e educacional.
15
Embora acredite que minha experiência nos terreiros tenha sido minha primeira
forma de socialização, minha existência social se deu também a partir de
outras experiências. Como a de ser professora. Atuei durante muitos anos em
escolas Públicas Municipais de São Paulo e em diferentes espaços, como
professora, coordenadora pedagógica, pedagoga... Meu mestrado na área
educacional, aliado ao trabalho na escola, contribui para a construção de um
conhecimento ancorado na pesquisa e na reflexão da realidade que me
cercava.
A consolidação de um pensamento crítico, voltado à perspectiva de
humanização e emancipação dos sujeitos, motivou a elaboração desta
pesquisa. Ter como hipótese que a Umbanda pode ser propiciadora de
momentos de reflexão, de construção de conhecimento através de processos
de educação dentro dos terreiros estimulou-me a juntar estes dois mundos.
Os conceitos de emancipação, humanização e transformação social
construídos no espaço e tempo vividos na escola, ou melhor, na educação,
propiciou a reflexão sobre os processos educacionais acontecidos e vividos
dentro de minha experiência na Umbanda. Portanto, ao falar sobre estes
processos de aprendizagem, de ensino dentro do terreiro, estarei utilizando os
referenciais de construção do conhecimento para a emancipação do sujeito,
construído na minha experiência com a educação.
A utilização destes conceitos marca além da posição epistemológica, uma
posição política, tomada a partir do olhar de quem está inserida no grupo social
16
e do olhar da pesquisadora (papéis como atora social), pois explicitam meu
compromisso com a práxis transformadora, por isso histórico-social, tanto na
Educação como na Umbanda, enquanto possibilidades reais de ações de
intervenção social que constrói sujeitos humanos.
Concordo com Geertz, (2006, pg. 10) que aponta as mudanças sociais
ocorridas nos últimos anos, lembrando que a religião na verdade nunca
desapareceu, mas sim que as Ciências Sociais desviaram seus estudos para
outros campos de análise.
As transformações sociais, diz ainda, têm modificado as formas de relações e
as religiões hoje possuem novas configurações, perdendo o sentido os estudos
voltados para indicadores e estatísticas, como freqüência a cultos, muitas
vezes numa repetição exagerada do que foi dito, com produção exacerbada
de teorias distanciadas da prática (cotidiana) e que os pesquisadores deveriam
se preocupar hoje em desvendar a qualidade do espírito: quadros de
percepção, formas simbólicas, horizontes morais.
A nova situação exige uma nova conceituação da religião e de seu papel na
sociedade como tal. Bem ou mal, é a construção de visões de mundo com
base na colisão de sensibilidades (e a construção de sensibilidades a partir do
choque de visões de mundo o processo é circular) que é preciso apresentar e
compreender, no momento atual.
17
Arquitetando o itinerário
Geralmente a etapa inicial de um projeto de pesquisa diz respeito à verificação
do que foi escrito sobre o tema pretendido, ou seja, procede-se à pesquisa
bibliográfica para que o pesquisador tenha uma idéia do que existe produzido e
identificar as possibilidades de sua própria pesquisa. Para minha surpresa,
esta dificuldade surgiu, quando iniciei a pesquisa bibliográfica em livrarias e
sebos. Encontrar e/ou localizar o tema procurado tornou-se uma tarefa árdua,
para não dizer quase impossível.
Tente ir a uma livraria e buscar na prateleira dedicada ao tema “religião” algum
livro que fale sobre a Umbanda. Com certeza você irá achar tudo ou quase
tudo sobre catolicismo, islamismo, budismo, taoísmo... Kardecismo? Você
encontra uma divisão específica intitulada Espiritismo. Nos sebos a situação
não é diferente.
E sobre a Umbanda, onde encontramos? Não será difícil imaginar onde
encontraremos alguma coisa. à prateleira intitulada “misticismo”,
“esoterismo”, “magia”... Lá encontrará muita coisa sobre a Umbanda. Não
livros escritos por umbandistas, mas também por intelectuais e pesquisadores,
como Ivone Maggie (Guerra de Orixá) e Reginaldo Prandi (os Candomblés de
São Paulo entre outros)
e outros.
Entre um sebo e outro e várias caminhadas entre as prateleiras garimpando
títulos, as perguntas iam surgindo. Por que a consideram magia e não religião?
18
É um Culto? Uma Seita? Afinal de contas o que é a magia? O que é religião? E
a Umbanda, como podemos defini-la? Identificá-la? Quais são suas
características? Aprende-se a ser umbandista? Quais são as práticas
desenvolvidas nos terreiros de Umbanda e que proporcionam ao indivíduo
construir saberes, como também apropriar-se deles?
Sobre a bibliografia encontrada
4
posso dizer que é tão diversificada quanto às
práticas encontradas. Muitas vezes o termo Umbanda é utilizado como título
para descrever uma série de simpatias ou magias das mais diferentes
naturezas. Você poderá encontrar nas prateleiras e nos conteúdos das
publicações, receitas gicas que vão desde curar uma diarréia até encontrar
ou amarrar o homem/mulher de sua vida.
Estes “manuais utilitários” encontrados em grande quantidade aparecem em
maior número nas ultimas décadas, suprindo necessidades que surgem com a
modernidade, como por exemplo, soluções rápidas e eficientes e que você
mesmo pessoa comum pode realizar, sem a interferência ou a mediação de
outra pessoa com o sobrenatural.
As publicações mais antigas diferem consideravelmente das mais novas, pois
trazem um conteúdo voltado à história da Umbanda, da organização do ritual, e
4
Estou me referindo aqui, as publicações escritas por umbandistas e não produções acadêmicas
frutos de pesquisas sistematizadas nas universidades.
19
principalmente da conduta moral/espiritual dos umbandistas... Tenta de alguma
forma convencer o leitor dos seus dogmas, como o livro “Catecismo de
Umbanda: tudo sobre a doutrina da de Umbanda (Legítimo e Completo)”
5
,
produzido em forma de perguntas e respostas simples, informando o leitor
sobre diferentes aspectos da religião.
Mas nenhuma publicação encontrei, tanto acadêmica quanto umbandista que
tratasse diretamente da questão por mim levantada: de que forma se aprende a
ser umbandista? Existe um processo educacional que forme o sujeito
umbandista? Este processo contribui para a formação de um sujeito
humanizado, emancipado, que pense sua realidade criando e recriando-a?
Embora existam muitas publicações umbandistas, que descrevem seus rituais,
sua organização espiritual (orixás/guias/entidades), e dão orientações morais,
estes escritos influenciam as práticas cotidianas dos terreiros, marcados por
forte tradição oral? Considerando que os saberes sagrados são transmitidos
aos iniciados oralmente, na prática costuma não ser permitido o registro
escrito, tendo como orientação “guardar tudo de cabeça”, me pergunto: de que
forma estes conhecimentos são criados e recriados? Como estes
5
Encontrei este livro em um sebo no centro de São Paulo. Não traz a data de sua publicação. O autor
ou organizador como diz a Editora Cleópatra, ficou a cargo do “escritor M. A. Camacho (...) isto
porque, conhecendo a fundo os mais intricados problemas de Umbanda, Camacho era o mais
indicado para tal realização.” Segundo consta na contra capa esta edição, a 8ª, foram editadas 60 mil
cópias.
20
conhecimentos produzem uma práxis umbandista, capaz de criar e recriar não
a própria religião, mas os sujeitos que a praticam, de forma que estes
possam dialogar com sua realidade criativamente?
A sociedade tem se modificado ao longo das últimas décadas, e os adeptos da
Umbanda também. Hoje as pessoas que freqüentam os terreiros, possuem um
grau de escolarização que no começo do século passado não existia,
entretanto, os ensinamentos transmitidos oralmente, continuam hoje. Dentro
dos terreiros se privilegia a transmissão dos conhecimentos pela prática
empírica e a oralidade.
O umbandista convive com dois mundos, o da oralidade e o da escrita, mas no
espaço sagrado dos terreiros, o que prevalece é o mundo da oralidade, da
transmissão oral dos saberes e estes são independentes, quase não dialogam
quando se trata da transmissão destes saberes. A aprendizagem se dá a
partir da observação e da prática.
Estas práticas, que acontecem dentro dos terreiros e que ensinam o sujeito a
ser um “umbandista” é que me interessam enquanto objeto de pesquisa, de
conhecimento. O confronto entre estes dois mundos, é que vão constituindo o
sujeito, e é esta constituição que me interessa do ponto de vista da pesquisa.
Imagens do itinerário
Como podemos perceber, a diversidade acaba por produzir uma
heterogeneidade de entendimentos e de conceitos sobre a Umbanda que os
21
próprios umbandistas estão longe de conciliar. uma série de ramificações
ou denominações, como mística, esotérica, branca, lisa, quimbanda,
cabalística, popular, iniciática, filosófica, kardecista, cruzada, racional,
carismática...
Como movimento religioso nos aspectos sociológicos, antropológicos e
psicológicos já foi explorado e existem diferentes pesquisas sob diferentes
olhares para o fenômeno. A educação vista sob as concepções religiosas,
principalmente a católica, também foi explorada em diferentes ocasiões e áreas
do conhecimento, mas pouca coisa sobre as relações dos processos
educativos (formais e não formais) com as religiões afro-brasileiras.
Ao iniciar as primeiras incursões sobre o tema, buscando conhecer o que
havia sido produzido sobre Educação e Umbanda como apontei antes,
nada encontrei. Hoje, quase cinco anos após estas primeiras investidas, ainda
encontramos poucas pesquisas sobre o tema, embora comecem a aparecer.
Uma delas “Educação em terreiros e como a escola se relaciona com as
crianças que praticam candomblé”, de Maristela Gomes, pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, sob a orientação de Vera Candau, é
22
uma das poucas de que tomei conhecimento.
6
A autora fala das crianças e de
sua relação com candomblé, e da relação que estas têm com a escola.
A pesquisadora que entra em contato com o mundo religioso do Candomblé
através de uma reportagem, tece um registro sobre as relações destas crianças
com a religião de modo sensível e belo, denunciando o despreparo e o
preconceito da escola (e dos professores
7
) para lidar com o diferente e no caso
com as religiões afro-brasileiras.
Embora a pesquisadora se debruce sobre as relações estabelecidas no campo
religioso do Candomblé, não pode deixar de ser citada, que seu tema se
aproxima pelo menos em título daquilo que pretendemos desvendar. Outros
trabalhos com a mesma temática não foram encontrados.
As primeiras hipóteses levantadas sobre a questão da educação na
perspectiva umbandista relacionam-se com a própria religião, ou seja, de que a
Umbanda como movimento religioso que agrega indivíduos das mais diferentes
6
A autora faz referência à dificuldade de encontrar pesquisas e/ou trabalhos que tenham como
tema a questão da educação e das religiões afro-brasileiras; em sua pesquisa também encontrou
apenas um trabalho, na Bahia, que tem como tema a educação e o currículo na perspectiva da
educação pluricultural e foi realizada na comunidade Oba Biyi.
7
Stela Caputto entrevistou apenas professores da disciplina de Religião, que no Rio de Janeiro es
inserida no currículo escolar.
23
origens em um mesmo espaço, posiciona-se frente à realidade de forma crítica
e transformadora, levando médiuns e consulentes a constantes reflexões.
Neste sentido a Umbanda poderia caracterizar-se como uma prática religiosa
para a transformação social, uma vez que as constantes reflexões
desencadeadas aos seus freqüentadores sejam médiuns e/ou consulentes
podem proporcionar rupturas das visões de mundo do indivíduo, levando-o a
re-construí-lo.
Considerar a Umbanda como prática transformadora que trabalha para a
humanização e emancipação dos sujeitos sociais em ações coletivas supõe
que, se estas práticas participam da constituição do sujeito, podem contribuir
para a efetivação de relações também transformadoras da realidade.
Objetivos
Assim, os objetivos desta pesquisa, são:
Identificar a partir da memória de indivíduos umbandistas, de um terreiro
específico, situações de aprendizagens, que possam ser consideradas
como uma práxis umbandista;
Analisar a natureza destas práticas sob a perspectiva da emancipação e
humanização do sujeito;
Identificar se a práxis umbandista pode ser considerada uma práxis
transformadora do indivíduo, tendo como perspectiva sua humanização;
24
Construindo o roteiro
Ter o conhecimento como produto das práticas humanas, construído na
interação do sujeito com o mundo, implica pensar a Umbanda como face desta
prática, possibilitando pensá-la como práxis constitutiva e transformadora.
Pensá-la estimuladora de uma educação crítica, que promova esta
transformação é uma tarefa desafiadora e instigante, pois como foi dito
anteriormente, este aspecto, dentro dos estudos sobre as religiões afro-
brasileiras e também da educação, ainda não foi refletida e sistematizada.
Dizer que a educação se em diferentes instâncias e de diferentes formas,
fazendo parte das esferas social, cultural, política, econômica e religiosa, é
falar da educação como um processo de formação do indivíduo, historicamente
datado individual e coletivamente construído na interação com outros
sujeitos. Assim, a abordagem dos processos educacionais umbandistas, pode
ser pensada como movimento dinâmico, considerando a diferença e o conflito
como faces da constituição do sujeito social.
Para pensar o processo educacional dentro do terreiro, devo pensar o conceito
de educação como processo, considerando que o currículo entendido aqui
como uma ação, uma prática social e cultural que constrói conhecimento/s
possuí dinamicidade, interatividade, construção coletiva de pressupostos
comuns ao grupo, que o constrói e o põe em prática.
25
Falar em currículo na área religiosa pode parecer estranho num primeiro
momento, mas o conceito pode auxiliar a reflexão sobre os processos de
aprendizagem que ocorrem dentro do terreiro. Para esta reflexão tomarei como
uma das referências o educador espanhol J. Gimeno Sacristán que tem como
objeto de estudo o currículo e suas práticas. Em seu livro Currículo, uma
reflexão sobre a prática, coloca que o currículo “é uma práxis antes que um
objeto estático emanado de um modelo coerente de pensar a educação ou as
aprendizagens.” (SACRISTÁN, 2000) Se temos a educação como processo,
em constante movimento, podemos aceitar a definição que Sacristán nos
oferece sobre o currículo e utilizá-la como uma construção social que facilita o
acesso ao conhecimento e como uma forma particular de entrar em contato
com cultura, no caso a umbandista.
A idéia de que existem processos educacionais nos terreiros e que estes
podem propiciar a reflexão crítica, orientará meu olhar para o papel da
oralidade e da escrita neste processo e de que forma estes dois mundos se
encontram e se articulam no espaço sagrado do terreiro e conseqüentemente
dos umbandistas. Portanto, aspectos como a possessão, o transe, a
historicização da Umbanda, que foram amplamente abordados, com maior
propriedade até, por autores como Maria Helena Vilas Boas Concone, no
primeiro caso, e de Lisias Negrão no segundo, entre outros, não serão temas
centrais deste trabalho, embora presentes.
26
O caminho pretendido para refletir sobre as questões apontadas partirá da
identificação da cultura umbandista, através de dois instrumentos básicos, a
pesquisa participante e o trabalho com memória (o papel da oralidade e do
registro escrito), como formas de construção desta cultura e identificação dos
processos de aprendizagem para esta construção.
Acredito que a partir de minha participação ativa no terreiro, das entrevistas e
da leitura e análise dos cadernos de registro, poderei levantar categorias,
identificando aspectos únicos da cultura umbandista, como é construída e se
esta construção aponta para a idéia inicial da humanização e da emancipação
do sujeito.
Quando penso no caminho a ser percorrido, penso também nas várias
escolhas que terei que fazer, para chegar ao lugar desejado. As escolhas não
são fáceis! Neste processo sempre temos a impressão de que alguma coisa
muito importante está sendo deixada de lado.
Estas escolhas, portanto, se deram no caminhar. Várias situações contribuíram
para a construção desta pesquisa, sejam com os colegas de classe e seus
questionamentos, nas conversas com minha orientadora, que com seu modo
sereno, ia escutando e interferindo de modo delicado nas construções
apresentadas, no grupo de estudo sobre memória que formamos e nas
inúmeras circunstâncias cotidianas que envolviam a religião. Nas tentativas de
esclarecê-los e na inquietação do recorte a fazer, re-organizei este caminho.
27
No meu caso, a inquietação aparece quando percebo que dos vários itinerários
que posso traçar dois em particular me chamam, e de certa forma é o caminho
que percorri aaqui como pessoa: como articular dois mundos aparentemente
tão diferentes de forma que ambos possam dialogar, e como umbandistas e
não umbandistas, podem se apropriar dos conceitos aqui utilizados de forma a
compreenderem este universo, e vê-lo como espaço propiciador da
humanização e da emancipação do sujeito?
Estas duas questões aparentemente tão simples envolvem escolhas, que
foram se fazendo no caminhar. O trabalho com os registros escritos, que
trazem a memória do grupo, foi uma delas. Os cadernos que durante décadas
foram sendo escritos, serão utilizados como documentos memorialistas e
através deles re-construir a história do grupo e da Umbanda, identificando
momentos de aprendizagem, de transmissão de conhecimentos, que vão
construindo a cultura da Umbanda. O aparente paradoxo entre a afirmação do
aprendizado prático e o ensinamento oral e trabalhar com os textos escritos,
será retomado adiante.
Ao reler os cadernos, verifico elementos desta aprendizagem e desta cultura,
ainda hoje existentes no terreiro, como o Ritual de Sacodimento
8
, descrito no
caderno de 1975, quando o terreiro que meus pais freqüentavam na Mooca, foi
8
O caderno citado é de 1975, quando meus pais freqüentavam a Tenda de Umbanda Caboclo Pena
Branca e Joãozinho das 7 Encruzilhadas, na Mooca.
28
ao sítio para as obrigações, com todos os filhos.
Assim está descrito uma parte destas obrigações:
“Foi dado o banho de sacudimento que é jogado no filho pelas costas, feito isso o
filho cobre a cabeça deita esteira, colocando ao lado uma vela de 7 dias, que esta
acesa, fica deitado pelo menos 3 horas. A toalha da cabeça não pode ser tirada mais,
só é tirada no fim da engira pelo Pai de Santo. O banho é para afastar todos os maus
fluídos que a pessoa tem.”
Cerca de vinte anos depois, lemos:
Ervas para o banho, colhidas em 15.04.1995. saia branca (flor), saia branca (folha),
manjericão, alecrim, folha de amora, confrei, balsamo folha larga, melicia, assa peixe,
hortelã, folha gengibre, samambaia, picão preto, sapé, folha de maracujá, novalgina,
arruda, samambaia de bugre, folha de pitanga, alecrim do campo, pinhão roxo,
balsamo, carobinha, folha de goiaba, louro, erva de bicho, são Gonçalo, eucalipto,
carqueja, gervão, balsamo, tansagem, hortelã, dente de leão, erva de santa maria,
folha de laranja, folha de zeduaria, balsamo folha pequena, espada de são Jorge, chá
de estrada e marcelinha.” (1995)
Este ritual embora ressignificado, ainda existe. É feito uma vez por ano, e
passou por algumas modificações, como ficar menos tempo deitado na esteira
(1h somente) e não ser obrigatório. O modo de preparo do banho continua
basicamente o mesmo, o que muda é a diversidade de ervas utilizada e a
retirada de alguns ingredientes que foram considerados “ofensivos”, como o
estrume e as vísceras.
29
Para o banho de sacudimento vai as seguintes ervas que é posta em fusão dias antes
do banho. Carqueja, arruda, guanchuma, alecrim do campo, erva de bicho, catinga de
mulata, carrapichinho, urtiga, cipó abre corpo, cipó abre caminho, cipó de trabalho,
carobinha, esterco de vaca, esterco de cavalo, vísceras de galinha com pena, espada
de são jorge, palha de alho. (1975)
Ao reler os cadernos dúvidas foram surgindo e os questionamentos foram se
acumulando. O que fazer com o volume de informações que iam aparecendo
diante de meus olhos? De que forma identificar se aqueles registros possuíam
as informações pretendidas? Muita coisa está registrada, mas uma grande
parte de acontecimentos não o foi. Seja por falta de agilidade em registrar no
ato dos acontecimentos tudo o que ocorria ou pela seleção do que registrar.
Então como poderia trabalhar estas informações?
A meu ver pelo caminho das entrevistas, da observação e principalmente da
própria participação no terreiro. Através da oralidade destes sujeitos eu
inclusive confrontar este mundo com a cultura identificada nos cadernos de
registro e com o próprio discurso dos sujeitos umbandistas.
Mas antes de pensar no caminho a seguir, é necessário saber a partir de que
bases este caminho será construído. Ou seja, quando falo em educação,
aprendizagem, humanização, emancipação e na própria Umbanda, falo a partir
de que olhar? A partir de qual estrada estou falando?
30
Meu Olhar
Para a Educação
Penso que a educação é um processo que acontece ao longo da vida,
preparando os membros da sociedade para a participação na vida social,
sendo assim, é um fenômeno social, universal, cultural e existencial todas as
sociedades dependem dela para se manter, para funcionar. (PINTO, 2000)
Nas relações entre o Homem e o Homem e deste com a natureza, o
conhecimento
9
é produzido. Portanto, podemos dizer que a educação é um
processo de prover os indivíduos dos conhecimentos e experiências culturais
10
que os tornam aptos a atuar no meio social e a transformá-lo em função de
necessidades econômicas, sociais e políticas da coletividade.
Neste processo de produzir conhecimento, o homem transforma o mundo
social em que vive e transforma a si mesmo. Este duplo processo é que Marx
chama de práxis.
9
Álvaro Vieira Pinto, em Ciência e Existência define o conhecimento como “um processo de extrema
amplitude e complexidade pelo qual o homem realiza sua suprema possibilidade existencial, aquela
que dá conteúdo á sua essência de animal que conquistou a racionalidade: a possibilidade de
dominar a natureza, transformá-la, adaptá-la ás suas necessidades.”
10
Cultura: conjunto de práticas, de representações, de comportamentos, relacionado a um grupo
humano.
31
Charlot (2001) ao falar sobre educação, e a relação desta com a cultura,
acrescenta outro aspecto a questão: diz que educação é cultura e o é em
“(...)três sentidos que não devem ser dissociados. Ela é cultura porque é
humanização. Ela é introdução na cultura, isto é, no universo de signos, de símbolos,
da construção de sentidos. (...) é socialização porque (sem ela) não é possível
introduzir-se na totalidade do que a espécie humana produziu. Introduzir-se na cultura
é possível introduzindo-se em uma cultura, a de um grupo social determinado, em
um momento de sua história.”
Neste sentido, minha relação com outros indivíduos e outras culturas, a partir
de um grupo, faz e refaz minha cultura, me constituindo. Esta construção de
sentidos me permite tomar consciência das relações com o mundo, com os
outros e comigo mesma.
A cultura, portanto, é essencial para compreender em escala menor, meu
grupo e na maior, a sociedade da qual faço parte. Nestas relações o
conhecimento vai sendo produzido e reproduzido, a partir das significações que
lhe atribuo, privilegiando ou não conhecimentos para a transmissão às novas
gerações. Geralmente este processo é pensado a partir de uma educação
escolarizada, sistematizada, planificada.
32
Meu olhar para a educação, e para a educação dentro do terreiro, será a não
escolarizada, não sistematizada, não planificada
11
. O que me interessa aqui é o
processo de construção do conhecimento, do saber, impresso na cultura do
grupo, visto a partir da educação não formal.
Almerindo Janela Afonso faz uma distinção entre educação formal, informal e
não-formal, dizendo:
Educação formal: educação organizada com uma determinada seqüência e
proporcionada pelas escolas; Educação informal: abrange todas as possibilidades
educativas no decurso da vida do indivíduo; Educação não-formal: embora tenha uma
estrutura e uma organização, não se prende a fixação de tempos e locais e flexibiliza
os conteúdos.
A preferência por trabalhar com o conceito de educação não-formal, ainda que
esta preveja uma organização e uma estrutura, se dá pelo fato de acreditar que
estes elementos podem ser encontrados no terreiro, inclusive no que diz
respeito a um conteúdo
12
selecionado a ser transmitido aos filhos/médiuns.
11
No sentido escolar.
12
Conjunto de conhecimentos socialmente acumulados, mas selecionados, pré-determinados e
sistematizados que são transmitidos ao grupo social geralmente através da escola formal.
33
Para a Humanização e a Emancipação
O conceito utilizado por mim é proposto por Paulo Freire, principalmente a
partir de seu livro Pedagogia do Oprimido. Este texto que completou trinta
anos de existência, a cada dia torna-se mais atual. Sua leitura deve ser feita
com o olhar no presente, para as relações hoje estabelecidas na sociedade.
Diversas são as análises feitas da nossa sociedade e de como as relações
estão sendo modificadas e ressignificadas, a partir da lógica do mercado, da
economia e do dinheiro como principal fonte de prazer e de delimitação das
relações.
O que mais ouvimos, seja na rua, em casa, no terreiro ou na televisão é de
como as pessoas estão mudando, os jovens principalmente, que não têm mais
respeito pelos mais velhos, pelos “bons costumes”, a famosa expressão
“inversão de valores”. Os noticiários televisivos a todo instante informam isso,
de maneira determinista, como se estas ações e valores não pudessem ser
modificadas ou transformadas. As pessoas sentem-se acuadas e com seus
valores, crenças, moral, conhecimentos e experiências descartados como os
produtos vendidos nas lojas de departamentos e constantemente lembrados de
sua descartabilidade.
O que gosto em Freire é como vai descrevendo nossa sociedade a partir das
relações sociais, de como homens e mulheres constroem seus espaços e
tempos a partir dos mecanismos de opressão existentes e ao mesmo tempo
34
mostra as possibilidades de rompimento com estas práticas. E a maior
possibilidade é a educação. Muitas vezes refere-se à educação formal,
escolarizada, mas quando faz a análise destas relações não é da escola que
fala, mas sim da educação como possibilidade humana, como prática da
liberdade, que tem no ato de conhecer, uma aproximação crítica da realidade.
Para se pensar a educação como possibilidade da práxis libertadora, é
necessária a crença em homens e mulheres, na sua história e na sua
inconclusão humana. É sabermo-nos seres inacabados, inconclusos, mas não
determinados no sentido da paralisação da ação. É confiar, crer que o outro
tem o poder de decisão, da assunção da liberdade, e a esperança inabalável
na possibilidade do estar-sendo no mundo.
Para a Práxis e a Práxis Umbandista
Na educação utiliza-se muito o termo práxis como referência a prática
pedagógica, ou seja, aquilo que os educadores realizam em sala de aula. Mas
este conceito prevê duas formas de pensar sobre ele: em primeiro lugar
apenas como a coisa prática, a ação em si mesma, uma ação concreta, que
parte do conhecimento adquirido para a realização de uma ação especifica;
outra forma de pensá-la pode ser como um movimento em que o conhecimento
é utilizado pelo homem na sua relação com a natureza, transformando-a e
transformando a si mesmo, em diferentes esferas como a cultural, a social e a
política.
35
A maior dificuldade quando pensamos em mudança, em mudança social e/ou
transformação social, está justamente na ruptura da consciência comum, na
ruptura do pensamento que acredita que a prática está desvinculada de
qualquer tipo de reflexão, da reflexão sobre seu ato, seja ele construir uma
cadeira ou ensinar uma criança os pontos cantados no terreiro, como se estas
ações estivessem desvinculadas do seu pensar, da sua reflexão, de seu estar
no mundo.
Essa atitude natural se baseia no fato do indivíduo ver a atividade prática
como um simples dado que não exige explicação. Com tal atitude, este acredita
estar numa relação direta e imediata com o mundo dos atos e objetos práticos.
Suas conexões com esse mundo e consigo mesmo aparecem diante dele num
plano a - teórico
13
. Não sente necessidade de rasgar a cortina de preconceitos,
hábitos mentais e lugares-comuns na qual projeta seus atos práticos.
(VAZQUEZ, 1977)
A definição trabalhada aqui é aquela que tem por concepção o Homem como
um ser ativo, criador e prático, capaz de refletir criticamente sobre as condições
objetivas da realidade a qual pertence e compreender que se encontra inserido
num tempo e espaço únicos.
13
Vazquez define este indivíduo como possuidor de uma “consciência comum”.
36
E A UMBANDA É ISSO...
A Umbanda e o Candomblé, religiões afro-brasileiras, aparecem no imaginário
da sociedade nacional, em amplos segmentos, como práticas mágicas ou de
feitiço ligadas ao desconhecido, ao sobrenatural, a espíritos e a coisas que não
podem compreender, portanto, desconfortáveis.
Vários são os exemplos que podemos obter conversando e observando as
reações das pessoas quando se deparam com estas práticas. Estas vão desde
o escárnio à rejeição quase total de convívio com os adeptos destas religiões e
das próprias religiões. Uma matéria publicada no Jornal Folha de São Paulo,
no caderno Cotidiano, intitulada Tráfico é acusado de vetar umbanda no Rio.
(MONKEN, 2006), pode ser utilizada como exemplo.
A matéria descreve a ação de traficantes no Rio de Janeiro, em diferentes
bairros, proibindo a prática da Umbanda e do Candomblé com ameaças e
represálias, fechando terreiros e impedindo que seus adeptos usem adereços,
como guias e turbantes, próprios destas religiões. Segundo a matéria, foram
ouvidos líderes de associações de moradores e religiosos, que confirmam o
fechamento de terreiros e o assassinato de um pai-de-santo (em 2002).
Segundo Jair de Ogum, um dos mais famosos pais-de-santo do Rio, no
complexo do Alemão fecharam mais de quarenta terreiros.
37
Embora os motivos apresentados não fiquem claros, o aspecto mais
significativo destas ações, diz respeito à construção de um imaginário social,
bastante matizado pelos setores pentecostais, que coloca estas religiões como
inimigas da sociedade pois associam a Umbanda e o Candomblé a
manifestações demoníacas acirrando a intolerância religiosa e dificultando as
relações sociais nos diferentes espaços, tanto públicos quanto privados.
Este movimento, de intolerância, não é novo para os adeptos destas religiões.
Tanto umbandistas como candomblecistas cotidianamente se deparam com
atitudes preconceituosas e as perseguições a terreiros e seus dirigentes são
comuns
O surpreendente é saber que em tempos de democracia e liberdade religiosa
garantidas na Constituição de 1988, estas posições aflorem com tanta força
sendo tão pouco combatidas. Os próprios umbandistas, para se remeter
apenas a Umbanda, não se posicionam em relação à intolerância e ao
preconceito sofrido
14
.
14
em fase de conclusão desta pesquisa, recebi por e-mail a notícia de que a Federação
Nacional do Culto Afro-Brasileiro, a partir de encontros nacionais, elaborou o CÓDIGO
NACIONAL DE ÉTICA E DISCIPLINA LITÚRGICA DA RELIGIÃO AFRO-BRASILEIRA, na
tentativa de garantir a confiança da sociedade e diminuir a intolerância religiosa. Embora o
documento faça maiores referências ao Candomblé, a Umbanda é citada. Para maiores
detalhes, pode-se consultar este documento no site da instituição citada.
38
Encontramos na história do Brasil, perseguições a Umbanda desde o começo
do século XX, quando os primeiros terreiros aparecem no Rio de Janeiro. Estas
perseguições são das mais diferentes ordens, como políticas, ideológicas,
religiosas e morais e a que vimos na matéria citada.
Segundo Birman (BIRMAN, 1985), como os médiuns umbandistas lidam com
forças sobrenaturais, tidas como primitivas e marginais vistas com
desconfiança e medo, o umbandista acaba por pagar um preço social, pelo fato
de ter poderes às vezes tão perigosos. Esse preço é como sabem todos os
umbandistas, o enfrentamento cotidiano de um estigma. São, com freqüência,
vistos como pessoas suspeitas, despertam desconfianças e sofrem volta e
meia, acusações as mais variadas.
Em 1937, no II Congresso Afro-Brasileiro BA, o texto “A liberdade religiosa no
Brasil: a macumba e o batuque em face da lei.”, Bittencourt (1937) apresenta
um panorama de como as religiões afro-brasileiras eram vistas. Segundo a
Constituição de 1823, estas religiões não eram proibidas, mas “toleradas” e
seus praticantes perdiam os direitos políticos, que eram concedidos aos
praticantes da então religião oficial, a “christâ”.
Muita divergência houve no modo de entender a liberdade religiosa. O projecto
garantia liberdade apenas as comunhões christãs, dando aos que professassem
direitos políticos, que eram negados aos adeptos das religiões não christãs; houve,
porém, quem, com espírito intolerante, “pugnasse pela exclusão também dos
christãos não católicos de entre os brasileiros com direitos políticos” (...) e o longo
debate terminou pela concessão de direitos políticos apenas aos cathólicos (...)”
39
Além disso, o Código Penal de 1831 previa na parte IV, que tratava dos “crimes
policiaes”, um capítulo, o I, relativo às “ofensas à religião, à moral e aos bons
costumes”, e que
como ocorrera no Império, mesmo na República mau grado a claresa desses
dispositivos isto não impediu, nem impede, que alhures, como aqui mesmo,
autoridades policiaes prepotentes invadam o recinto onde estão sendo celebrados ou
se celebram os cultos feticistas, os batuques, destribuindo bordoada e levando para o
cárcere homens e mulheres de regra, sem qualquer motivo plausível, por mínimo
que seja e que , ainda de longe pudesse justificar violência o grande.
(BITTENCOURT, 1937)
Neste mesmo item, também era considerado como ofensa o “celebrar em casa
ou edifício que tenha alguma forma exterior de templo, ou publicamente em
qualquer lugar, o culto de outra religião que o seja a do Estado”.
(BITTENCOURT, 1937)
Somente em 1891, a constituição da República, no seu artigo 72 concedeu a
todos os indivíduos e confissões religiosas o direito de exercerem publicamente
e livremente seu culto (...). Mas, ao mesmo tempo foi necessário um capítulo
especial para tratar do abuso de autoridade exercido por autoridades policiais,
ou seja, “dos crimes contra o Livre exercício dos cultos”, como descreve Silva:
Por esta época predominava o pensamento modernizante, que reclamava a
necessidade de „civilizar‟ o Brasil, colocando-o ao lado das melhores nações
européias. Neste contexto, surgem os primeiros trabalhos científicos que procuram
explicações para os modos de vida e para a cultura das religiões afro-brasileiras que
40
eram denominadas de primitivas e atrasadas. Inicialmente estas explicações,
possuíam orientações racistas e evolucionistas que acabam por confirmar a opinião
da classe dominante de que os traços culturais herdados do continente africano eram
inferiores aos do branco, de tradição européia o ideal de civilização branca,
moderna e cientificista. (SILVA, 2005)
Em 1857 surge na França O livro dos espíritos”, o primeiro livro de Allan
Kardec, que logo chega ao Brasil. O Espiritismo ou Kardecismo, como é mais
conhecido, logo se transforma em alternativa religiosa para uma parcela da
classe dominante, que via em suas orientações uma maneira mais “civilizada”
de religiosidade, pois para Kardec o fenômeno religioso pode ser estudado e
explicado racionalmente, cientificamente.
Esta idéia de religião, que propunha a racionalização da fé e de seus
fenômenos, através de estudos científicos, corroborou com a idéia de poder
civilizar a nação, de higienizar a sociedade, portanto embranquecê-la. Era a
possibilidade de distanciar-se do catolicismo popular e afastar-se de vez das
religiões afro-brasileiras, vistas com preconceito, elevando-se ao status de
grupo civilizado ou pessoa civilizada.
A prática religiosa de transe está presente na sociedade brasileira desde sua
formação, através dos rituais xamanicos, dos cultos bantus, dos candomblés e
das práticas católicas populares, que o movimento civilizador não conseguiu
abafar. A Umbanda surge da intersecção destes três elementos, e segundo
alguns autores, como uma alternativa para a prática da incorporação de
espíritos.
41
Algumas décadas mais tarde, outro fato curioso se dá. Pesquisadores,
intelectuais, escritores e artistas promovem um movimento de afirmação da
identidade negra e de sua cultura com a retomada da cultura africana, a partir
da divulgação da cultura dos candomblés da Bahia, principalmente
15
. Surgem
várias pesquisas sobre o tema, livros o publicados, descrevendo parte dos
rituais que até então somente os iniciados tinham acesso. Romances são
escritos, orixás são cantados fora dos terreiros, em festivais, rádios e televisão,
divulgando e legitimando a cultura negra e conseqüentemente o Candomblé.
Temos então dois movimentos: um que legitima o Candomblé, através de uma
cultura negra ancestral, vinda da África e, portanto digna de ser divulgada e
cultuada e outra vinda da Europa, que legitima a crença no espírito mas não
qualquer espírito. Para doutrinar, médicos, escritores, personalidades com
algum status social e para serem doutrinados, espíritos marginais, que de
alguma forma “não encontram o caminho da evolução moral e espiritual”. E o
transe, mediante a racionalização e o estudo científico, nesta justificativa passa
a ser, portanto, uma prática civilizada que leva ao progresso moral e espiritual.
Estes dois movimentos, embora se dirijam a parcelas especificas da sociedade,
propõe de modos diferentes o mesmo ideal de prática religiosa: uma que
15
Entre estas publicações as de Pierre Verger são as mais conhecidas, como Notas sobre o culto aos
Orixás e Voduns; nas artes plásticas temos Carybé com seus desenhos representando o cotidiano do
candomblé; na música Mario Bethania, Caetano entre outros, na literatura nacional, Jorge Amado.
42
caracterize o praticante como um sujeito culto, pois respeita suas tradições e
no segundo caso acrescento ainda, um sujeito evoluído espiritualmente.
Neste sentido é que afirmei anteriormente que a Umbanda é vista com
preconceito por ambas as correntes religiosas: uma porque não a como
possuidora de uma legitima tradição da cultura africana, que trabalha
diretamente com a incorporação de espíritos desencarnados e é vista como
sincrética e a segunda pela utilização de elementos da cultura africana, como
os atabaques e a dança, e também por lidarem com espíritos “marginais”,
consideradas, nesta perspectiva, como práticas primitivas e de pessoas
ignorantes.
Desta forma a Umbanda tem percorrido um longo caminho para se afirmar
como religião. Vários são os movimentos em torno das práticas umbandistas,
para conferir-lhe legitimidade, que vão desde o abandono das práticas
consideradas “africanizadas”, como oferendas, matança e a música, até o
lançamento de livros em formato mais acadêmico, com diferentes assuntos
tratados de “modo cientifico”.
É o caso do escritor umbandista Rubens Saraceni, que apresenta o tema da
espiritualidade a partir do olhar umbandista. Os títulos vão desde os romances
até os títulos que buscam sistematizar e codificar “um conjunto de temas e
assuntos tão abrangentes, que se não representava formalmente um „código
religioso‟, tratava-se no mínimo de uma „codificação‟ extensa de vários
43
aspectos relativos aos fundamentos do Ritual de Umbanda Sagrada“
(SARACENI, 1998).
Outro movimento bem recente neste sentido é a fundação, em 2004, da
primeira Faculdade de Teologia Umbandista do país, que além de disciplinas
tradicionais aos cursos de graduação, inserem no currículo disciplinas voltadas
especificamente à religião umbandista e ministradas na sua maioria, por
professores umbandistas.
Muitos umbandistas vêem este processo como natural e dizem fazer parte da
evolução da religião, como da própria sociedade, que necessita modernizar-se;
outra corrente que este processo esta transformando a religião em outra
coisa, que não umbanda, podendo extingui-la. Estes movimentos embora
legítimos acabam por negar uma parte essencial da história da Umbanda, uma
vez que vão deixando de lado características e rituais que deram origem a ela.
Organização da Umbanda
Quando sou questionada sobre o que é a Umbanda, a resposta vem rápida:
uma religião! E tão rápido quanto minha resposta aparecem perguntas que
indagam de forma geral se a Umbanda não é a mesma coisa que
Candomblé ou se não é coisa do mal! Explico então que a Umbanda é uma
religião e como tal, também tem sua história.
Em São Paulo a Umbanda chega primeiro que o Candomblé. Mesmo sem a
denominação de Umbanda, os encontros e/ou reuniões aconteciam nas casas
44
de famílias, que praticavam o que se chamava na época, de espiritismo de
mesa, mais conhecido como Mesa Branca, mas que incorporavam espíritos de
Caboclos, pretos Velhos e Crianças principalmente.
A variedade de práticas existentes é grande e pensar sua origem requer
algumas escolhas. Para uma parte dos umbandistas a religião inicia-se com
Zélio de Moraes no Rio de Janeiro, quando este recebe uma mensagem do
Caboclo Sete Encruzilhadas, dizendo que sua missão seria fundar uma nova
religião: a Umbanda.
A partir das décadas de 30 fundam mais sete tendas, todas com a designação
de tendas espíritas, com forte influência do catolicismo.
Para Cavalcanti Bandeira a Tenda Espírita Mirim, fundada em 13 de outubro de
1924 foi a primeira a praticar o ritual de Umbanda e segundo Alexandre
Cumino (editor do Jornal do Axé e da Revista Umbanda) a única a o aceitar
em seu Congá o sincretismo dos orixás com os santos católicos, com exceção
de Jesus Cristo/Oxalá
16
.
Bandeira afirma que a Umbanda é o resultado da
“transmutação com modificações profundas surgi(ndo) uma nova religião de caráter
polimorfo, abrasileirada, porque se distanciando dos primitivos cultos africanos (...)
16
Ligiéro, por exemplo, caracteriza este movimento de Umbanda católica, pois
“profundamente influenciadas pela moral cristã e pelo espiritismo kardecista”. (LIGIÉRO, 2000)
45
embora repousando nos cultos bantos, pela sua base comum espiritual”. (BANDEIRA,
1970)
Embora não me detenha profundamente, neste momento, nas diferentes
formas de se pensar a Umbanda, apresentarei duas delas que são
recorrentes nos livros umbandistas: a primeira pela etimologia da palavra, e a
segunda pela descrição do ritual, suas características, modos, etc., que em
ambos os casos trazem uma diversidade
17,
de explicações, que é interessante
apontar, pois apresentam a própria diversidade da religião e
conseqüentemente a dificuldade de se pensar na Umbanda como uma religião
fechada.
A origem etimológica do vocábulo Umbanda é controverso mesmo entre seus
adeptos. Entre as produções umbandistas, encontramos uma variedade de
versões. Uma das mais comuns, explica: “uma” de unidade, Uno (Deus) e
“banda” como sendo um lugar, cidade, agrupamento e interpretada como união
de um grupo (à Deus). Outras interpretações existem e reproduzo abaixo
alguns exemplos, retirados destas produções no:
17
Embora estes aspectos sejam citados não me aprofundarei no primeiro aspecto etimologia da
palavra para explicar o nascimento da Umbanda. O segundo aspecto os rituais e as características
da Umbanda serão oportunamente analisados e descritos quando analisar os Cadernos de Registro,
fonte desta pesquisa.
46
Site Umbanda Racional (2006): Esse vocábulo, Umbanda, tem sua origem no
substantivo feminino do segundo gênero (Banda). Banda tem origem no dialeto
Banto, e quer dizer lugar, cidade; o vocábulo (Umbanda) nasceu do nosso linguajar,
porque o sentido real de banda é, „todos vindos de diversos lugares ou reunidos
daqueles lugares. Pelo entrosamento do dialeto Banto e o idioma falado no Brasil
(português), surgiu o impulso do conjunto e traços culturais estreitamente ligados
entre si, formando a palavra Um Banda, pois Um é o adjetivo único, continuo,
singular, indivisível, e juntando este ao substantivo, expressou-se dentro do nosso
linguajar, a palavra „Umbanda‟.
Livro “O Código da Umbanda” (SARACENI, 1998): a palavra „Umbanda deriva de
„nbanda‟, que em Kibundo significa sacerdote ou curador. Isto é Umbanda, onde
todos os praticantes são um templo vivo no qual os Sagrados Orixás se manifestam,
assim como todos os nossos amados guias espirituais.
Umbanda é a religião, m‟banda é o sacerdote.
Umbanda é a caridade, m‟banda é o curador.
Umbanda é o meio, m‟banda é o médium.
Umbanda é a evolução, m‟banda é o ser evoluindo.
Livro “Umbanda do Brasil (W.W. da, 1996): o vocábulo Umbanda (que margem a
uma série de controvérsias) somente pôde ser identificado até o presente dentro
das qualificadas línguas mortas, assim no sânscrito, no pelevi, nos sinais védicos e,
diretamente, na língua ou alfabeto adâmico ou vatânico dito como um dos primitivos
a humanidade (...), todavia, entre os angoleses, existe o termo forte de KIMBANDA
Kia kusada ou Kia dihamba que significa sacerdote, feiticeiro, o que cura doenças,
invocador dos espíritos, etc.”
47
Estes exemplos, embora apresentem certa divergência, convergem para um
ponto: todas pretendem conferir através da explicação do vocábulo a
legitimidade da própria religião. No último caso, atribuem à palavra a
ancestralidade Adâmica ou Vatan, resgatando símbolos deste alfabeto
18
, para
explicar a origem do termo, enveredando para um estudo lingüístico,
comparando-o a outros alfabetos.
Estes textos são uma amostra da diversidade encontrada, diversidade esta,
utilizada como motivo de críticas por diferentes autores, principalmente aqueles
que vêem na variedade uma desarticulação da própria religião, caracterizando-
a de “crendice”, “devaneio e fantasias”, como Boaventura Kloppenburg (1961).
Em 1961, Candido Procópio Ferreira de Camargo, apontava esta mesma
diversidade, quando analisava as publicações sobre a Umbanda. Segundo ele,
A extraordinária variedade doutrinária que transparece nesses livros é ainda maior do
que a proliferação multiforme dos „terreiros. Os livros doutrinários exprimem duas
tendências, nem sempre mutuamente exclusivas. A primeira segue, com certas
liberdades, a orientação dos antropólogos brasileiros, que alias citam. Traçam a origem
africana da Umbanda, dão ênfase aos ritos de „iniciação‟ tradicionais (...) a segunda
18
Para maiores informações e esclarecimentos de como elaboraram este estudo, procurar em W.W.
da Mata e Silva, especialmente em Umbanda do Brasil, a partir da página 71. Embora citado neste
trabalho, as informações contidas na obra citada, não expressam a opinião da autora ou da maioria
dos umbandistas, que geralmente optam por uma explicação mais simplificada do termo, como “Luz
Divina”, “Luz Irradiante”, etc.
48
Utilizarei o substantivo “terreiro”
quando me referir ao local (fixo)
onde se praticam os rituais de
Umbanda, embora possamos
encontrar diferentes designações,
como centro, templo, tenda, casa
espírita, cabana, fraternidade e
igreja espiritual.
defende a tese da origem remotíssima da Umbanda, muito mais antiga do que o
Kardecismo, o Cristianismo e o próprio Judaísmo.
A variedade literária, embora apresente diferentes formas de se pensar a
Umbanda, o registra de forma significativa e real a riqueza dos rituais
praticados em cada um dos terreiros
existentes, não em São Paulo, mas em
todo o território nacional, possuindo, um
formato multicultural de acordo com as
tradições e formas de se viver em cada
localidade.
Cavalcanti Bandeira ao ser entrevistado, em 1972, por Maria Helena Vilas B.
Concone propõe uma primeira sistematização da Umbanda, assim descrita:
„1º - Umbanda espírita”, de mesa”, constitui-se numa fase intermediária entre, as
Umbandas e o espiritismo de Kardec. (...);
- Umbanda “ritualista ou “de salão”, (...) característica mais marcante é o uso da
roupa branca e das palmas para marcar os trabalhos (...) segue orientação do
Caboclo Mirim, de influencia indígena;
- Umbanda “ritmada”, de “terreiros” (...) sua característica marcante é ouso dos
atabaques para marcar o ritmo e andamento da cerimônia”;
- Umbanda “ritmada e ritualizada”, mais próxima do ritual do Candomblé, (...)
chama esta forma de “Umbandonblé”.
19
19
Atualmente encontramos a utilização deste termo em vários espaços, inclusive acadêmicos, como
nas pesquisas sobre as religiões afro-brasileiras e geralmente sua utilização vincula-se a uma
concepção banalizadora da Umbanda. Mas, o termo foi proposto primeiramente por Cavalcanti
49
Como podemos perceber a variedade de rituais na Umbanda não é uma
característica da atualidade, embora tenha se intensificado, com o passar dos
anos, incluindo ou absorvendo outros saberes, como por exemplo, os
conhecimentos orientais de cura.
O segundo aspecto apontado para se pensar a Umbanda é através de seu
ritual.
Mas, antes de falarmos no ritual da Umbanda a gira vamos descrever de
que forma um terreiro pode se organizar.
A estrutura física de um terreiro
A estrutura física dos terreiros via de regra é muito simples, constando de duas
partes principais: uma onde acontece o ritual e
onde ficam os médiuns, e outra onde fica as
pessoas que vão assistir as giras, a
assistência.
Bandeira, para identificar na sistematização elaborada por ele os vínculos desta com o
Candomblé.
Estou chamando de médiuns
a todos(as) os(as) filhos(as)
do terreiro que estão na
corrente, inclusive cambonos
e ogãs.
50
Assistência: espaço destinado a acomodar as pessoas que visitam o terreiro
ou seus freqüentadores assíduos. Este se localiza fora do espaço da gira,
geralmente dividido por uma espécie de “cerquinha” e cortinas que delimitam
os espaços sagrado do profano e se abrem somente quando a gira é aberta
ao público.
Podemos observar modificações ao longo do tempo neste espaço. Em terreiros
mais antigos o local é dividido para homens e mulheres, que sentam-se em
lados opostos.
Atualmente pode ser visto sem esta divisão e homens e mulheres sentam-se
lado a lado. As crianças geralmente ficam ao lado de seus pais ou
responsáveis. Podemos encontrar também, outros cômodos, como por
exemplo, um quarto para atendimento individualizado, cozinha, vestuário
Fotografia 1 Espaço da Assistência do TUCTPB
51
(camarinha), mas estes dependem, muitas vezes, da disponibilidade de espaço
e de recursos financeiros para serem acrescentados. Os banheiros, geralmente
ficam do lado de fora e são utilizados por todos.
Terreiro local onde acontecem as giras: o espaço destinado ao local das
giras ao sagrado é composto de um salão (que comporte os médiuns); em
uma das paredes fica o Congá (altar) com as imagens, flores, guias e demais
apetrechos utilizados pelos médiuns. As imagens de santos católicos são muito
comuns nos terreiros, pois sincretizam-se com os Orixás cultuados tanto na
Umbanda como no Candomblé.
O Congá de um terreiro é um dos locais mais importantes, pois nele estão
contidos assentamentos (ou firmezas) dos orixás como também das entidades
Fotografia 2 - Terreiro de Umbanda
Caboclo Sete Cachoeiras/Guaianazes
52
que trabalham. Em muitos casos identificam a proveniência do(a) chefe da
casa e das entidades que a comandam.
Atualmente podemos encontrar terreiros com uma quantidade de imagens
muito pequena ou quase nenhuma nos seus Congás, dando preferência a
objetos representativos das linhas com as quais o(a) chefe do terreiro trabalha,
como pequenas quedas d‟água, flores, quartinhas de assentamento, pedras,
fogo (através das velas ou de tochas).
Para Arthur Ramos, em O Negro Brasileiro, a estrutura dos terreiros de
macumba o grosseiros e simples, sem esta teoria de corredores e
compartimentos dos terreiros gegêiorubá”.
Fotografia 3 - Congá TUCTPB
Festa de Ogum
Foto Solange Vaini
53
Acostumado com a organização dos terreiros de Candomblé, na estrutura
da “macumba” uma pobreza oriunda da cultura banto
20
.
Mas não se trata aqui de “pobreza cultural”. Não podemos esquecer que as
casas de Candomblé que tem como modelo as casas da Bahia ou a macumba
do Rio de Janeiro era pouco cultuado em São Paulo. Aqui predominavam as
formas de culto voltadas ao espiritismo, com fortes tradições banto (que
20
O movimento de reafirmação da identidade negra, iniciada por volta da década de 50 em
diferentes frentes, como citado, criou no imaginário das comunidades religiosas e na sociedade
nacional a idéia de que a etnia iorubá é a legitima detentora das raízes das religiões afro-brasileiras,
em especial do Candomblé, quando outras etnias participaram ativamente deste processo, como a
bantu. A construção da idéia de etnia para o povo africano, como mostra Lopes, foi uma criação do
europeu, sendo essencializadas e naturalizadas, tanto no discurso acadêmico como no popular.
Antes desse período enxergavam-se apenas como “seres humanos” e as trocas aconteciam (tanto
tecnológica como cultural) entre todas as tribos, sem esta preocupação de etnia, que acaba por
territorializar os espaços e as relações, ocasionando uma super valorização da cultura iorubá em
detrimento das outras. Ao falar da cultura acústica, em várias passagens mostra a cultura bantu, em
especial a acústica, como sendo muito rica, possuindo a faculdade de classificação, e que este
sistema é muito mais racional que o sistema indo-germânico (...) a faculdade de coordenação de que
provas a língua bantu é muito desenvolvida e -lhes notável clareza. (pag. 206) Mais a frente,
cita Henri Junod, estudioso da cultura africana que assim descreve a cultura bantu: “o espírito bantu
é extremamente sensível a todas as expressões vindas do exterior e encontra meio de exprimir essas
impressões em palavras pitorescas que dão à língua interesse e cor extraordinários. A este respeito,
os bantus são-nos muito superiores e essa é a razão pela qual tão poucos europeus podem, em boa
verdade, aprender e empregar convenientemente esses advérbios descritivos (sem falar daqueles que
os desprezam!). (pag. 213/214) Esta fala, a meu ver, reforça a idéia de que a cultura bantu, longe de
ser “pobre” foi desqualificada e desconsiderada e hoje percebemos nos grupos religiosos
umbandistas o desconhecimento desta nossa matriz, introduzindo aspectos do candomblé acima
citado, como único referencial para a cultura umbandista.
54
cultuavam os mortos) e européias (espiritismo de Kardec) que não tinham
como tradição espaços que congregavam Orixás e filhos(as) de santo adeptos
da casa.
Embora as estruturas físicas dos terreiros de Umbanda não tenham a
intrincada organização dos terreiros de Candomblé descritos por diferentes
autores como o citado acima, possui uma estrutura peculiar, própria a qualquer
terreiro de Umbanda. Possuem um espaço interno destinado ao ritual,
vestuários, camarinha, um espaço externo destinado à assistência, banheiros,
casa de exu, independente de sua localização ou filiação.
Outro aspecto a considerar diz respeito à localização destes terreiros. A
Umbanda é considerada uma prática religiosa urbana, seus terreiros ficam
dentro das cidades e a cidade de o Paulo oferece poucos espaços
disponíveis para comportar um emaranhado de casas ou de corredores; outro
fator bem mais significativo, diz respeito à forma de se cultuar estes Orixás na
Umbanda. Para os umbandistas os Orixás são entidades divinas, de grande
força e luz e que dificilmente incorporam em seus médiuns. Estes fornecem um
variado leque de linhas
21
, das quais as entidades que são incorporadas
(caboclos, pretos velhos, crianças, marinheiros e etc.) fazem parte, como por
exemplo, Caboclo da linha de Oxossi, de Xangô, etc. Portanto, a ausência
21
No item 2 deste capítulo apresentarei as linhas de Umbanda e seus desdobramentos.
55
deste tipo de organização na estrutura física dos terreiros na Umbanda não
pode caracterizá-la como desprovida de cultura.
A estrutura administrativa do terreiro
A estrutura administrativa do terreiro cuida da sua organização e é constituída
pelo conjunto de cargos administrativos, como presidente, vice-presidente,
secretário, tesoureiro, procurador, etc. Cuidam do funcionamento do terreiro,
preocupando-se com os recursos financeiros disponíveis, contribuições (que
podem ser variadas, como: objetos de culto, dinheiros e outros tipos de
doações), sócios, documentações (principalmente se o terreiro participa de
atividades sociais), enfim, a toda a rotina de uma instituição que necessita se
manter com recursos próprios.
Geralmente possuem estatuto e regimento interno e muitos estão
ligados/cadastrados a alguma federação
22
, que lhes dão suporte jurídico e
auxilio para as atividades do terreiro, como por exemplo, concessão de licença
22
Hoje existem várias instituições com a pretensão de organizar as religiões afro-brasileiras, em
todos os estados da federação, em São Paulo temos: Federação de Umbanda e Candomblé do Estado de
São Paulo, Federação Brasileira de Umbanda, Conselho Nacional da Umbanda do Brasil, entre outras. No site
Giras de Umbanda e a cultura afro-brasileira estão listadas 15 federações no estado de São Paulo e o SOUESP -
Superior Órgão de Umbanda do Estado de São Paulo, como entidade que tem por objetivo agregar
todas elas. A lista com nome e endereço encontra-se em anexo nesta pesquisa
56
Optei em apresentar a
nomenclatura utilizada por
Almeida por tratar-se de um
umbandista escrevendo para
umbandistas, mas utilizarei a
forma mais conhecida de
identificação dos dirigentes nos
terreiros: Pai e Mãe espirituais,
quando me referir a esta
hierarquia.
de abertura dos terreiros, concessão para dias de festa, como a de Yemanjá,
na Praia Grande/SP.
Por outro lado, alguns terreiros possuem estatuto e regimento, mas não estão
ligados ou filiados a nenhuma federação, por diferentes razões, como por
exemplo, ter maior liberdade de suas práticas rituais, não terem que pagar
mensalidade ou não ter que se comprometer com as questões políticas tanto
de grupos umbandistas como da política regional ou nacional.
A estrutura espiritual
a estrutura espiritual não deve se preocupar com as questões
administrativas (materiais), embora muitas vezes encontremos terreiros que se
organizam de forma diferente, acontecendo de uma pessoa exercer dois
cargos dentro do terreiro.
Os cargos hierárquicos seguem a
seguinte ordem, sempre em posição
decrescente: babalorixá (pai-grande) ou
ialorixá (mãe-grande), pai-pequeno ou
mãe-pequena, chefes de gira-pública e de
treinamento, ogã, chefes de cambono e
57
Defumação: queima de ervas
aromáticas em um recipiente
próprio (turíbulo) para diluição de
energias negativas. As ervas mais
conhecidas nas defumações dos
terreiros são: alecrim, benjoim,
alfazema e incenso. Exemplo de
ponto cantado para defumação:
Defuma com as ervas da Jurema
Defuma com arruda e guiné
Alecrim, benjoim e alfazema
Vamos defumar filhos de fé
samba, médium de trabalho, médium em treinamento (em desenvolvimento),
cambono ou samba (ALMEIDA, 2003).
23
Desenvolvimento da Gira
No geral a gira tem início por volta das 20h, iniciando com os médiuns
saudando o Congá e os demais componentes, sendo que o/a pai/mãe é
saudado(a) em primeiro lugar, seguido pelo(a) pai/mãe pequeno(a), se o
terreiro utilizar esta organização
hierárquica.
Faz-se a defumação, sempre ao som dos
pontos cantados e dos atabaques. Após
este momento, são cantados pontos de
abertura da gira, saudação das sete
linhas, e saudação a linha de esquerda
23
Esta organização também não é um consenso entre os terreiros de Umbanda. A hierarquia ou a
nomenclatura utilizada para organizar o corpo mediúnico varia de casa para casa. Conhecendo este
aspecto, solicitei para os integrantes da lista de discussão (virtual) sobre a umbanda da qual
participo, que os membros dissessem de que forma suas casas se organizavam, qual a nomenclatura
utilizada. Embora a lista seja composta por aproximadamente 500 internautas umbandistas, não
obtive nenhuma resposta. Este silêncio pode ser interpretado como o não entendimento da
solicitação ou que este é mais um tema controverso entre os umbandistas, ou seja, todos têm uma
maneira de se organizar, mas colocar isso publicamente, numa lista de discussão poderia gerar novos
confrontos.
58
Exus e Pomba Gira, que podem variar de acordo com a casa.
A linha que prevalecerá naquele dia é cantada com maior ênfase e as
entidades são chamadas. Os médiuns incorporam cada um sua entidade,
sempre depois do/a pai/mãe. É normal que neste momento estejam
incorporados, geralmente com a entidade que dá nome ao terreiro e que
comanda a gira.
Na gira descem espíritos, genericamente chamados de guias (...) nem todos descem
para trabalhar, para atender os aflitos que vem procurar lenitivo para seus males (...)
nas entrevistas chamadas de consultas. (NEGRÃO, 1996)
Dentro do terreiro os diuns posicionam-se em fileiras, sendo que homens e
mulheres ficam em lados opostos. Quando há uma grande quantidade de
médiuns na casa, estes se posicionam de maneira um pouco diferente com os
cambonos e médiuns em desenvolvimento enfileirados atrás dos médiuns de
incorporação e que dão consultas, formando duas fileiras. Além desta
disposição, o lugar que ocupam na fila, depende do grau de iniciação dos
médiuns, ou seja, depende do seu grau de aprendizado e/ou da posição que
ocupam na hierarquia do terreiro.
Em terreiros mais antigos, como o que meus pais freqüentaram, esta forma de
organizar os filhos, era também a maneira como iam conquistando, através da
aprendizagem, “postos” dentro do terreiro. Ao médium de incorporação que
iniciava seu processo de desenvolvimento não era permitido conversar ou dar
passes para a assistência. Quando atingia um grau de desenvolvimento maior,
59
podia ser designado para ficar na porteira (local por onde entram as pessoas
para dentro do terreiro); conforme seu grau de desenvolvimento, médium e
entidade iam conquistando outros postos, podendo dar passes, depois
consultas, até chegar a
padrinhos/madrinhas e/ou pai/mãe
pequenos.
Após a incorporação dos médiuns as
pessoas da assistência são chamadas
para tomar os passes ou passar pelas
consultas. Este momento é organizado de
diferentes maneiras pelos terreiros, mas
geralmente trabalham com um sistema de
fichas numeradas de 1 a 10 para cada médium/entidade.
Em alguns terreiros pode ocorrer que a consulta seja permitida somente a
quem é sócio
24
, aos demais é permitido somente o passe. Esta condição foi
identificada por Maria Helena em sua pesquisa sobre a Umbanda, em 1973.
(CONCONE M. H., 1987)
24
Indivíduo que contribui mensalmente com uma quantia em dinheiro mensalidade e que lhe
confere status de sócio e acesso a determinadas situações dentro do terreiro.
Tomar passe: a entidade apenas limpa
as energias negativas através da
imposição das mãos, das baforadas do
charuto ou outra forma, de acordo com
a forma de trabalho da entidade ou da
casa. Não conversa entre a entidade
e a pessoa que esta tomando o passe.
Consultar: a entidade pode conversar
com a pessoa. Pode solicitar que esta
faça algumas obrigações, dependendo
do que foi pedido, como também aplica
o passe.
60
Em um dos terreiros visitados na zona sul de São Paulo
25
, esta não é a prática
usual, como também no terreiro desta pesquisa. O acesso aos
médiuns/entidades é livre e não há necessidade de “fazer carteirinha” de sócio
para passar pelas consultas. Havendo crianças na assistência estas são as
primeiras a entrar na gira para o passe e os demais obedecem à ordem de
chamada das fichas.
Ao terminar as consultas e não havendo mais necessidade de trabalhos
espirituais, os ogãs cantam os pontos de despedida das entidades presentes,
logo em seguida fazem o encerramento da gira, cantando pontos de
fechamento, de saudação a linha de esquerda e de agradecimento.
A vestimenta a roupa na Umbanda
Vale à pena descrever, mesmo que brevemente, a vestimenta utilizada na
Umbanda.
25
O terreiro mencionado localiza-se no bairro de Campo Limpo, periferia de São Paulo. Não está
identificado, pois não houve por parte da pesquisadora oportunidade de conversar com o dirigente
da casa solicitando a permissão para serem citados na pesquisa. O terreiro foi inaugurado
recentemente, em um amplo espaço (galpão), mas que se torna pequeno em dias de gira pela
quantidade de pessoas e médiuns existentes. Todos são atendidos independente de serem sócios.
61
A variedade é grande e podemos encontrar trajes tão diferentes quanto à forma
de se organizar os terreiros.
Na maioria das vezes a roupa utilizada pelos médiuns nos terreiros é branca,
mas a forma como são compostos os trajes se diferencia, tanto pela natureza
do terreiro nação como pelo modo que o(a) pai/mãe determina.
Para as mulheres, saia comprida, que pode ser de renda, chita ou outro tecido
pré-determinado, blusa branca, bombacha (calça utilizada por baixo da saia) e
a toalha de cabeça; para os homens, calça branca, blusa e toalha de cabeça.
Este traje costuma diferenciar-se conforme os chefes do terreiro determinam,
como por exemplo, encontramos terreiros que utilizam roupas coloridas, como
no Candomblé. terreiros que conforme o dia da gira, dedicada a uma linha
específica, podem utilizar algum aparato, como uma faixa colorida na cintura ou
uma espécie de turbante com cores em homenagem ao Orixá.
Fotografia 4 TUCTPB
62
Mais um aspecto a ser mencionado diz respeito às giras da linha de esquerda
Exu e Pomba Gira dia em que é permitido em muitos terreiros a utilização de
roupas e aparatos nas cores solicitados pelas entidades, que geralmente
compõe-se de preto e vermelho, como também a utilização de outros
elementos, como brincos, lenços, anéis, chapéus entre outros.
Da mesma forma que não existe uma organização doutrinaria fixa, as roupas
utilizadas pelos terreiros difere muito de casa para casa, cabendo ao pai/mãe
esta organização, mas a predominância é a cor branca para as roupas já que
esta expressa para os umbandistas à igualdade e a humildade dos médiuns.
No terreiro pesquisado, as roupas são muito simples. Tanto homens como
mulheres utilizam como uniforme, calça branca, camiseta e avental branco
sendo que para as mulheres este deve ser abaixo do joelho e toalha de
cabeça. Nem em dias de festa ou giras de esquerda é permitido à utilização de
roupas coloridas ou adereços muito extravagantes. Às mulheres é permitida a
utilização da saia branca, quando incorporadas com entidades femininas que
solicitam a vestimenta. Além da roupa branca não é permitido à utilização de
adereços materiais, como brincos, colores e às mulheres unhas esmaltadas ou
maquiagem.
Os dias da Gira
Uma situação que vem mudando ao longo do tempo refere-se aos dias em que
acontecem as giras. Para os umbandistas mais velhos, os dias de irem ao
63
terreiro eram segunda, quarta e sexta-feira, onde aconteciam giras específicas
de acordo com o dia da semana. Por exemplo, segunda-feira era dedicada à
linha de preto velho e caboclo, quarta-feira às aulas sobre a Umbanda e/ou
curas e sexta-feira a linha de baianos e também a giras da linha de esquerda
(exus e pomba giras). Segundo Negrão, estes dias tem perdido terreno para o
sábado, com trinta e um dos oitenta terreiros que realizam giras, ou em 38,7%
deles, as faz neste dia, sendo que vinte e seis dos mesmos as realizam
exclusivamente aos sábados e os demais em combinações com outros dias.
Podemos constatar igualmente em nosso estudo, que a preferência pelo
sábado, deve-se ao ritmo de vida na metrópole que exige cada vez mais do
indivíduo seu tempo. Dois fatores contribuem de forma significativa para esta
mudança: o deslocamento na cidade e o trabalho (emprego).
Hoje o deslocamento na cidade exige do sujeito, um esforço redobrado para
suas atividades diárias: o trabalho fica distante da residência, assim como o
terreiro, as conduções são precárias, o que dificulta ainda mais a locomoção,
fazendo com que desta forma o médium tenha que ir muitas vezes de um
extremo a outro da cidade. Daí a preferência ao sábado e em muitos casos ao
domingo para os dias das giras, pois a locomoção acontece com maior
tranqüilidade e com maior disponibilidade de tempo.
A cidade moderna e no caso São Paulo exige de seus moradores cada vez
mais tempo para realizar as tarefas cotidianas. Somente quem mora em São
Paulo, pode entender o que é se deslocar da residência ao trabalho, do
64
trabalho ao terreiro tomando de 4 a 6 conduções diárias, voltando no final da
noite para casa, muitas vezes após uma jornada de 9/10h de trabalho. Ir ao
terreiro após esta jornada diária tem se tornado uma tarefa árdua para a
maioria dos médiuns umbandistas.
Esta jornada diária é produzida e reforçada pelas mudanças que vem
ocorrendo no mundo do trabalho. Os antigos postos e trabalho, que exigiam
trabalhadores afinados com a rotina da empresa
26
, em que ano após ano raras
vezes esta rotina era modificada, criva um tempo linear. Sabia-se hoje o que
seria feito amanhã.
Hoje com o advento da globalização, da terceirização, do novo capitalismo,
como alguns autores denominam, este tempo passa a ser uma série de
rupturas. O trabalhador perde suas referências, principalmente no que diz
respeito ao tempo e conseqüentemente suas prioridades e suas relações
sociais perdem em qualidade e quantidade. O Homem hoje se sente sozinho
incapaz de lutar contra a opressão do cotidiano que o empurra para uma
personalidade fragmentada. O tempo fragmentou-se e com ele o Homem. As
empresas exigem de seus funcionários flexibilidade total, que vai desde a
capacidade de se adaptar a diferentes serviços e tarefas à disponibilidade total
26
Para maiores detalhes sobre esta discussão, consultar Richard Semnett (2007).
65
de tempo
27
(e até de espaço, com postos de trabalho em que o funcionário
trabalha partir de casa).
Esta situação acaba por influenciar a forma como os terreiros se organizam,
pois não possuem filhos/as que disponibilizam de tempo para os afazeres
religiosos, como no passado, em que dispunham de três a quatro noites para
freqüentar as giras.
Hoje vemos terreiros que funcionam somente de quarta e sábado para
atendimento público com revezamento de médiuns para as consultas, como
em dois terreiros na zona sul de São Paulo que conheci; terreiros que realizam
as giras somente uma vez por semana geralmente aos sábados; e terreiros
que funcionam somente aos sábados a cada quinze dias, como é o caso do
terreiro objeto desta pesquisa.
Assim, podemos perceber, que as pesquisas de Negrão sobre as preferências
por dias diferentes, dos considerados como tradicionais (segunda, quarta e
sexta), intensificaram-se com o passar dos anos. A metrópole cresceu e com
ela o número de problemas, demandando novas estratégias de convivência
entre casa, trabalho, estudo e terreiro.
27
Voltarei a este tema no Item 7, quando discutirei a formação do terreiro.
66
Esta modificação nos dias de trabalho também acarreta mudanças na
organização do culto, na forma como são organizadas os dias de gira. Se antes
havia um dia específico para giras de caboclo, de preto velho(cura), ou aulas, o
que verificamos hoje é que os terreiros mesclam estas giras, para atender a
diferentes necessidades. Por exemplo, no Terreiro de Umbanda Caboclo Três
Penas Brancas, que realiza suas giras cada quinze dias, atualmente trabalha
basicamente com a linha de caboclo, mas no decorrer das giras notamos que
outras entidades, de linhas diferentes, descem para trabalhar, como entidades
da linha de criança ou de preto velho.
Entidades e Orixás As linhas da Umbanda
É muito comum ouvirmos falar em “linhas” da Umbanda. Quase todos se
referem a elas como se fossem conhecidas por todos e houvesse um consenso
na denominação. Mas, mais uma vez encontramos um tema polêmico. O que
entidades/guias? E os orixás? O que são linhas? Como identificá-las?
Estes questionamentos aparecem nas conversas informais sobre a religo,
como também entre os umbandistas praticantes, novos e até mesmo entre
aqueles que já estão há algum tempo na religião.
Na Umbanda uma diferenciação entre entidades/guias e os orixás que são
cultuados no Candomblé. Embora a nomenclatura seja a mesma para os
orixás, a concepção em relação a eles é bem diferente. A idéia de orixá para o
Candomblé é que estes são deuses, que receberam de Olurum a incumbência
67
e a responsabilidade de governar o mundo, como também ficaram
responsáveis por determinados aspectos da natureza e da vida humana.
Stela Caputo, em sua pesquisa, cita três dimensões diferentes sobre orixá,
apresentada por Verger, que envolve aspectos históricos, aspectos divinos e
dos arquétipos da personalidade. Para a Umbanda os orixás são definidos
como forças da natureza, uma energia encontrada nestes pontos, como trovão,
raio, mar, rio, pedreiras, matas, cachoeiras e associadas a eles. Por serem
forças da natureza, estes não incorporam nos médiuns.
Para a Umbanda quem desce, incorpora no médium é a entidade, ou seja,
espíritos que tiveram alguma passagem pela Terra, alguma encarnação.
Neste aspecto, é a concepção kardecista que predomina no tocante a
compreensão da idéia de guias espirituais ou entidades espirituais, que o
denominados de Caboclos, Pretos Velhos, Crianças, Baianos e etc.
As linhas de “força cósmica” ou “espirituais” identificadas como Orixás, causam
certa polêmica, pois consenso somente em relação a um deles na
hierarquia dos mesmos, que é Oxalá, identificado em quase todos os terreiros
com Jesus Cristo, personalidade católica, e o primeiro na hierarquia. Quanto às
outras temos: Ogum, Oxossi, Xangô, Iemanjá, Ibeji, Yorimá.
Cada uma destas linhas se subdivide em falanges, onde se agrupam as
entidades. Por exemplo, uma entidade denominada Caboclo pode ser da linha
de Oxossi ou de Xangô. Alguns autores fazem uma divisão das linhas de
68
acordo com os orixás, como Cavalcanti Bandeira que organizou este panteão
da seguinte forma:
“Santos – ligados a Oxalá;
Senhoras ligadas aos Orixás de nomes femininos;
Caboclos ligados a Ogum e Oxóssi;
Oriente ligado a Xangô e a Oxalá;
Pretos Velho0s ligados aos diversos orixás; Almas ligadas a S. Miguel, Omulu e
Pretos Velhos;
Crianças ligadas a Ibeji,
Elementares e Enfeitiçados ligados e Exu.(BANDEIRA, 1970)
Candido Procópio F. de Camargo
28
ao analisar a doutrina na Umbanda, cita
como exemplo, de uma estrutura bastante comum, a seguinte organização,
sincretizada com os Santos católicos:
“1 – Linha de Oxalá Jesus Cristo
2 Linha de Iemanjá Virgem Maria
3 Linha do Oriente São João Batista
4 Linha de Oxoce São Sebastião
5 Linha de Xan São Jerônimo
6 Linha de Ogum São Jorge
7 Linha Africana São Cipriano
28
Segundo este autor, o sistema de “divisão de trabalho dentro das “falanges” permite o acesso de
todos ao contacto espiritual; dezenas de milhares de médiuns atendem semanalmente seus aflitos
clientes. É a democracia na religião.(gf meu)”
69
Outras linhas aparecem e são trabalhadas nos terreiros, mas como linhas
complementares, como Inhasã, Oxum, Yaras, Omulu e a linha do Oriente que
estariam segundo alguns autores, dentro das linhas anteriormente
apresentadas. A linha dos Baianos é uma das mais conhecidas e apreciadas
pelos médiuns e freqüentadores, pois são agitadas e as entidades alegres e
conversadeiras.
Na Umbanda praticamente todos os orixás são sincretizados com algum santo
católico, muitas vezes assumindo suas características, como por exemplo,
Ogum com São Jorge, espírito guerreiro, vencedor de demandas; Yemanjá
com Nossa Senhora da Conceição ou dos Navegantes, espírito apaziguador,
sereno, acolhedor
29
.
Basicamente os terreiros de Umbanda trabalham com linhas de Oxossi,
conhecida como linha de Caboclo; Yorimá conhecida como linha de Preto
Velho; Yori, conhecida como linha de Criança e a linha dos Baianos, que não
tem um orixá correspondente.
29
Para maiores informações a respeito da correspondência entre orixás e os santos católicos, bem
como suas características, pode-se consultar vários livros escritos por umbandistas e por
pesquisadores das áreas das Ciências Sociais, História e Ciências da Religião entre outras, como
também pesquisas realizadas que descrevem mais detalhadamente este assunto. Podem-se
consultar também sites na internet, produzidos por umbandistas, que descrevem seus fundamentos,
linhas e outros aspectos sobre a umbanda.
70
Embora nem todos os terreiros admitam, os trabalhos com a linha de esquerda
Exu e Pomba Gira são muito apreciados e acontecem pelo menos uma vez
por mês nos terreiros. Uma das entidades mais conhecidas na Umbanda,
polêmica pelo seu histórico, é Pilintra, associado ao malandro carioca, que
pode trabalhar tanto nas linhas de direita, como de esquerda ou em ambas.
Geralmente é considerado um exu.
Esta é a mais polêmica das linhas, pois está associada no senso comum ao
capeta, ao demônio, ao diabo e as entidades femininas a mulheres diabólicas,
a prostitutas e/ou mulheres de conduta moral duvidosa; em ambos os casos
pensa-se que estas entidades produzem e trabalham para o mal.
Para o umbandista esta é a linha de proteção do terreiro e dos(as) filhos(as) da
casa, “segura” e protege o médium de possíveis demandas. Comumente na
entrada dos terreiros uma “casinha”, que é o assentamento de exu,
simbolizando a força espiritual da entidade guardiã da casa e ao passar por
ela, todos devem cumprimentá-la. No inicio da gira, também são cantados
pontos de saudação para esta linha e para a entidade guardiã do terreiro, pois
é Exu que guarda os caminhos, protege os(as) filhos(as) e a casa de eventuais
forças negativas que podem surgir durante o desenvolvimento das giras
30
.
30
Em 1972, quando Maria Helena V. B. Concone realiza suas primeiras pesquisas sobre a Umbanda,
descreve esta mesma forma de se homenagear à Exus e Pombas Giras, dizendo: “Essa homenagem
tem um duplo caráter: além da homenagem em si, ao dono das encruzilhadas e das ruas, pede-se-lhe
71
A linha de esquerda, como é conhecida, está articulada as demais linhas,
embora possua seus pólos energéticos próprios, como calunga ou calunga
pequena (cemitério), calunga grande (mar), encruzilhadas (masculinhas e
femininas), estradas, porteiras, rios, entre outros. Na Umbanda, geralmente, a
entidade desta linha está ligada hierarquicamente a outra entidade da linha da
direita e realizam os mais diferentes trabalhos, que podem ir da solicitação de
um emprego à cura de alguma doença. Normalmente as pessoas os procuram
para a resolução de problemas ligados a litígios materiais e no caso das
Pombas Giras, para casos ligados a vida afetiva do(a) consulente.
uma discordância entre umbandistas quanto aos terreiros que utilizam ou
desenvolvem giras com as linhas de esquerda, pois os terreiros que trabalham
com esta linha, estariam classificados para alguns umbandistas, como
Quimbanda ou Umbanda baixa
31
, por demonstrarem pouca civilidade dos seus
adeptos ou como se costuma ouvir “precária evolução espiritual”. Mas,
acredito que esta concepção esta muito mais ligada a uma concepção cristã
que segurança aos trabalhos do terreiro, afastando as más influências, além de manter os
próprios Exus longe dos trabalhos.”
31
Termo encontrado em site da internet para diferenciar a Umbanda Alta, aquela que não trabalha com
a linha de esquerda e não utiliza elementos ou objetos considerados de baixo nível, como charutos,
aguardente, atabaque, etc.
72
(cristianismo) do que propriamente das religiões afro-brasileiras, que nestas
religiões não utilizam esta noção exu/diabo ou pomba-gira/prostituta ou ladra.
Retomando a questão das linhas na Umbanda, estas organizam o panteão de
divindades com as quais se trabalha dentro de um terreiro, mas querer
organizá-las linear e rigidamente não é possível, visto que
“os orixás mais cultuados na Umbanda, cujos nomes são de origem dos cultos afros,
interpenetram-se com as similitudes católicas, do modo que são invocados, seja
como Santo, seja como Orixá, sem estabelecer diferenciações, no que se distanciam
do Candomblé.” (BANDEIRA, 1970)
Além disso, as linhas entrecruzam-se conforme a necessidade cotidiana dos
trabalhos, isto quer dizer, por exemplo, que um determinado Caboclo, que é da
linha Xangô, pode também trabalhar na linha de Iemanjá ou Inhasã. Dentro de
um terreiro podemos observar estes entrecruzamentos nos pontos cantados e
riscados (que serão descritos mais a frente).
Encontramos pontos cantados de Oxossi com Xangô ou Ogum, de Iemanjá
com oxalá. Este emaranhado de situações é aceito por seus adeptos, pois
estes vêem que as linhas são apenas uma forma energética das entidades se
apresentarem.
Aparentemente esta organização pode parecer confusa a quem entra em
contato com a Umbanda pela primeira vez, mas não devemos deixar de
73
lembrar que a Umbanda agrega elementos de outras religiões, produzindo
uma diversidade que dificilmente poderá ser descrita rigidamente.
Mas, o mais importante para se entender esta questão, é não ter um
pensamento rígido, tentando organizar o mundo espiritual da mesma forma que
organizamos nosso mundo material, compartimentalizado. Aliás, acredito que
este seja um dos primeiros passos para aquele que deseja entender e chegar
até a Umbanda.
Mas como chegar até a Umbanda? Recentemente numa lista de discussão na
internet, o tema Seita ou Religião, foi colocado em pauta pelo moderador. As
diferentes opiniões expressas no debate, afinal não deram conta da definição
pretendida. Mas, uma coisa deu para perceber: muitos participantes da lista
são indivíduos que chegam a Umbanda pela primeira vez, após vários anos
dedicados a outras práticas religiosas, e procuram a partir da internet
(modernidade!!!??) buscar informações sobre ela.
Diferente das práticas religiosas tradicionais, muitos praticantes da Umbanda
não nasceram dentro da religião, como é o caso do católico, do protestante ou
do budista. Chegam aos terreiros após alguns anos de vivência religiosa em
outros espaços e ao tomarem contato com a prática da Umbanda se
surpreendem com a flexibilidade e o acolhimento dos terreiros, e se optam por
participar da corrente surpreendem-se com a quantidade de coisas que terão
que aprender.
74
Os conhecimentos que o novo adepto terá que aprender compreende desde a
linguagem utilizada pelas entidades ao comportamento perante estas, como a
forma de auxiliar as pessoas que os procuram pelos mais diferentes motivos,
como por exemplo, problemas de saúde pessoal ou familiar, desavenças
familiares ou amorosas e desemprego, entre outras.
Contudo não é somente o jeito, a maneira de se dirigir às pessoas e às
entidades que o novo adepto aprenderá. Atrelada a esta aprendizagem vem
toda uma nova forma de se relacionar com as pessoas, com a religião e com o
próprio mundo.
Nos terreiros de Umbanda, a aprendizagem se a partir da vivência e da
prática do novo(a) filho(a) nos rituais, num espaço tradicionalmente organizado
pela linguagem oral. Embora alguns terreiros possuam uma sistematização
de seus princípios e fundamentos, organizados em apostilas ou livros, é
através da oralidade que se dá a maior parte da aprendizagem.
Atualmente estas duas formas de aprendizagem têm provocado, a meu ver, um
conflito no meio umbandista. Novamente tomo como exemplo, as listas de
discussão na internet. Quase que diariamente aparecem cursos voltados para
as práticas umbandistas, como por exemplo, utilização das velas, sacerdócio
umbandista, magia das plantas, sistematização da umbanda, etc.
Estas informações são divulgadas e provocam uma grande euforia e algumas
páginas de debate. A questão volta-se para a legitimidade dos cursos, ou seja,
75
o umbandista e principalmente o dirigente, se faz na prática ou através de
cursos sistematizados e legitimados por algum grupo?
Longe de uma solução o que podemos perceber é que nestes casos, mesmo
os umbandistas mais ferrenhos e aqueles que defendem a religião
publicamente, são cuidadosos ao defenderem apenas uma das formas: prática
ou teoria (oralidade/escrita), pois acabaria desconsiderando ou desqualificando
importantes dirigentes que aprenderam a ser umbandistas apenas na prática.
Acredito que demoraremos, enquanto umbandistas, para acharmos uma
solução. O mundo mudou e a modernidade traz novas exigências. A cidade
onde se pratica a Umbanda é outra e as pessoas que a freqüentam também.
Hoje temos uma grande quantidade de adeptos que possuem graduação e
também pós-graduação, que pode imprimir a religião outro formato.
Atualmente com as mudanças que tem ocorrido na sociedade e no nosso dia a
dia, acabamos por imaginar e às vezes reivindicar formas mais rápidas e ágeis
de se apropriar dos conhecimentos necessários para ser um médium de
umbanda. Diferente do formato aprendido por meus pais, onde a transmissão
dos conhecimentos era aprendida na prática, no fazer diário dentro dos
terreiros e nas casas das pessoas.
76
Neste contexto duas formas de aprendizagem
32
aparecem: uma a partir da
memória da Umbanda e do grupo e outra a partir de uma aprendizagem mais
sistematizada que utiliza livros e manuais para formar novos umbandistas
Não obstante este último venha conquistando cada vez mais espaço, o que
tenho percebido é que a preferência ainda é pela transmissão oral dos
conhecimentos. A preferência pela fala, pelo diálogo, deve-se ao fato de ser
este um processo que envolve a participação das pessoas e estabelece
relações entre os membros do terreiro, ou seja, do grupo, construindo laços de
afetividade, de amizade, de solidariedade e de união. Embora nossa sociedade
32
Finalizando esta pesquisa, na fase de revisão do texto, recebo por e-mail de uma das listas de
discussão sobre a Umbanda da qual participo (pelo menos como leitora!), um e-mail que coloca em
discussão justamente este tema, o da formação do sujeito umbandista. A questão levantada dizia
respeito à formação de nível superior em uma Faculdade de Teologia Umbandista (que existe desde
2004), mas que não trazia em seus quadros de profissionais nenhum mestre em teologia ou
professor com esta formação. Segundo este internauta, o que lhe chamou a atenção no debate
presenciado, eram os dois debatedores (de grupos opostos), cada um defendendo sua posição, o
que é natural neste tipo de contenda, mas que a posição do defensor da faculdade foi duvidosa,
que a própria faculdade tem mães e pais de santo em seu quadro docente e nenhum deles com
formação em teologia”. Como podemos perceber, este é um assunto polêmico e que ainda rendará
boas discussões, pois o que irão considerar como legítimo? Aquele que aprendeu na prática, na
vivência dentro dos terreiros ou aquele que foi para uma faculdade “tirar diploma de teólogo
umbandista”? E quem determinará o currículo desta instituição ou o que é legitimo ou não de ser
ensinado? Vamos, nós umbandistas, confiar em nossa memória religiosa ou vamos re-construir uma
história oficial da umbanda?
77
se apresente como uma sociedade letrada enfatizando a escrita como modelo
de comunicação, é a oralidade que prevalece nas relações cotidianas.
O médium constrói as lembranças sobre a religião a partir das aprendizagens e
das relações estabelecidas no e com o grupo, ou seja, no terreiro. E aí
podemos voltar um pouco na questão da utilização da internet como
instrumento de aprendizagem De que forma será utilizada? Quem determinará
o conteúdo (currículo) a ser desenvolvido nos cursos? E a figura do Pai/Mãe de
Santo será questionada, desautorizada?
A internet como instrumento de aquisição de informação é útil e até bem vinda,
mas questiono sua utilização como única forma de se relacionar com as
pessoas e mesmo no processo de aprendizagem, pois em minha opinião o que
promove a mudança de olhar, a construção de conceitos é exatamente a
interação, o contato com o outro. Como se diz “olho no olho” e com a
“mediação” do computador, isso não é possível, fica tudo muito impessoal e
individual e não temos o comprometimento com quem esta do outro lado da
tela. No calor da discussão, a “internet cai!” e cada um, continua com seu ponto
de vista sem o comprometimento de defendê-lo. O seu mundo será o seu
mundo.
78
Pontos cantados
São cânticos do ritual que ao longo da gira vão sendo cantados. É a música
entoada com os atabaques e a curimba grupo que auxilia os ogãs
33
. Os ogãs
e a curimba é que “puxam”estes pontos de acordo com a entidade e o
momento da gira.
33
Encontrei diferentes definições para o termo curimba. Em livros mais antigos, escritos por autores
umbandistas quase não encontramos esta nomenclatura, geralmente quando se referem às músicas
entoadas nos terreiro mencionam somente que os médiuns devem fazê-lo de forma cadenciada,
ritmada e perfeita (OLIVEIRA, 1953, p. 179). Em Catecismo de Umbanda (8ª edição da Editora Cleópatra,
sem data) organizado em perguntas e respostas, o autor apena (THUAN, 2002)s menciona “pontos
puxados” dizendo que servem para facilitar a descida até o plano material das Linhas e Falange(pg.
39)s. Não fala em curimba. Em seu glossário aparece o termo, mas segundo este autor curimba refere-se
à dança e curimá a canto (pg. 93). Cavalcanti Bandeira em O que é a Umbanda?, faz referência a
curimba quando analisa as diferenças de rituais e menciona curimba como cantos: “(...)preces
constantes, raras ‘curimbas’, quando são cantadas (...) ou “sempre acompanhadas de palmas e
curimbas”. Candido Procópio Ferreira em Kardecismo e Umbanda (1961) ao descrever a prática da
Umbanda não faz uma menção sequer ao termo curimba. Quando faz referência á música fala somente
em atabaques e “pontos cantados (cânticos típicos da entidade)”. Em autores mais recentes, como
Paulo N. Almeida, Umbanda: a caminho da Luz, define curimba como pontos cantados e complementa
como sendo “vibrações”. Podemos encontrar nos terreiros a definição de curimba como sendo os
atabaques (encontrada também em Silva, 1994). No site do Centro Espírita Urubatan
(http://ceurubatan.hpg.com.br acesso em Nov/2007) definem a curimba como: A curimba geralmente
é composta de: Ogans Curimbeiros (somente canto), Ogans Atabaqueiros (somente percussão) e Ogans
Curimbeiros e Atabaqueiros (canta e toca percussão).” Esta é a definição mais próxima da que se utiliza
no TUCTP, significando o grupo de médiuns que auxilia a puxada dos pontos, definição trazida da Tenda
Espírita Caboclo Pena Branca e Joãozinho das Sete Encruzilhadas. É esta a definição que utilizo nesta
pesquisa, por isso a distinção entre Ogã e Curimba.
79
Na Umbanda são cantados pontos para diferentes situações como os de
saudação, de chamada e de subida da
entidade e/ou linha, de visita, de
defumação, de bater cabeça, de
descarrego. Para todos os momentos
pontos específicos e toques de atabaque
que são entoados e podem ser auxiliados
pelo bater das palmas, outra forma muita
utilizada nos terreiros para ajudar nos
pontos cantados. É o ogã que determina quais pontos serão cantados,
auxiliando naquele momento a entidade ou Pai/Mãe que dirigem os trabalhos.
A função dos cânticos e dos atabaques é atrair vibrações especificas para cada
momento, como por exemplo, uma chamada de caboclo da linha de Oxossi. O
Ogã cantaentão um ponto que pode ser específico para aquela entidade ou
comum a todos os caboclos da linha de Oxossi.
Na Umbanda a utilização dos pontos cantados são uma de suas principais
características e desde o momento da abertura da gira os pontos são entoados
por todos os médiuns, como também pela assistência, imprimindo ao ritual
movimentação, alegria e o sentimento de participação ativa na gira.
Ogum Matinada
Ogum venceu a guerra, Ogum tocou
clarim,
E o regimento todo, é comandado por
mim....
Salve os guerreiros da madrugada,
Salve Ogum guerreiro, e Seu Ogum
Matinada
Iansã
Iansã tem um leque de penas,
Pra abanar dia de calor,
Iansã mora na pedreira,
Eu quero ver meu Pai Xangô
80
Pontos riscados
Símbolos sagrados riscados no chão com pemba (giz especial) que
representam a entidade ou o orixá. Geralmente estes símbolos são riscados
dentro de um círculo que delimita o espaço mágico. Embora este seja outro
assunto polêmico na Umbanda, o consenso de que todas as entidades
“risquem” seu ponto.
Quando o médium está em desenvolvimento e a entidade inicia sua
incorporação com mais freqüência, o ponto riscado é uma das primeiras
cobranças a ser feita no terreiro. É o nome e o ponto riscado que confirmará
sua identidade e as linhas com as quais trabalha.
Geralmente o ponto de identificação é muito bem guardado e não será riscado
em público. Uma entidade pode ter vários pontos riscados, um para cada
magia e/ou trabalho realizado e que são utilizados nas diferentes situações
vivenciadas dentro do terreiro.
Encontramos uma infinidade de combinações de símbolos e signos comuns na
Umbanda, mas que dispostos de forma específica significam coisas diferentes
para finalidades diferentes.
Nos pontos riscados encontramos uma série de símbolos como flecha, estrela,
lua, coração, raio, sol, cruz, machadinha, lança, rosário, flor, etc.
81
Abaixo vemos algumas destas combinações retiradas do site Povo de Aruanda,
em Nov/2007. Como estão disponibilizados na internet, optei em colocá-los
como exemplo:
Podemos encontrar entidades com nomes iguais, mas que riscam seus pontos
de modo diferente, significando que embora façam parte da mesma linha
vibratória, são personalidades distintas. Por exemplo, a Preta Velha identificada
como Vovó Maria Conga (ponto acima) pode se apresentar em diferentes
terreiros, o que a identificará como um espírito único será o seu ponto riscado,
a partir dos símbolos/signos utilizados por ela. A manipulação destes símbolos
e signos, portanto, dependem não das magias ou trabalhos realizados, mas
também da entidade que o utiliza.
82
As Obrigações na Umbanda
Obrigação refere-se aos preceitos religiosos que as diferentes religiões afro-
brasileiras devem cumprir. Estes preceitos são as oferendas aos orixás e
entidades e podem ser realizadas por diferentes motivos.
Dos livros sobre Umbanda que pesquisei sobre o assunto o único que fala em
Obrigações é o de Cavalcanti Bandeira, onde explica ao leitor o que o e
quais são.
As obrigações na Umbanda, ou oferendas, como ele chama, são as diversas
práticas ritualísticas feitas em locais determinados, basicamente em lugares de
contato com a natureza, nos pontos de força dos orixás ou entidades.
Geralmente são prescrições dadas pelas entidades (Guia) ou pelo dirigente da
casa. Pode ser também realizada pelo médium, mas sempre dos parâmetros
do culto ou ritual que este segue.
Segundo ele também as obrigações podem ser de:
Homenagem: aos orixás ou as entidades, consideradas como um presente, uma
lembrança que o adepto tem para com seus mentores, tem um sentido carinhoso; de
agradecimento: atos de gratidão e reconhecimento pelos benefícios ou graças
alcançadas; de pedido: formalizam as pretensões dos fieis, desejosos de obter o
favorecimento ou graça para si ou para outrem ou o caminho para a solução dos seus
problemas; de obtenção de força vibratória, feitas pelo crente quando sente essa
necessidade ou tem algum trabalho a realizar; e podem ainda ser de descarrego pra
83
aliviar as imantações do astral inferior ou retirar fluídos nocivos absorvidos no decorrer
de certos trabalhos. (BANDEIRA, 1970)
Como podemos verificar os motivos para a realização de uma obrigação é
variada, podendo ocorrer em locais diferentes, como matas, cachoeiras, rios,
encruzilhadas e mesmo no terreiro, dependendo do motivo.
Geralmente as obrigações na Umbanda são realizadas sem matança, ou seja,
para homenagear ou agradecer uma graça não são utilizados como forma de
agradecimento o sacrifício de animais. Para o autor este rito é proveniente das
religiões africanas e na Umbanda não se faz necessário, que esta está mais
próxima dos ensinamentos de Cristo. Mas, embora o autor expresse esta
preocupação, ao dizer que esta prática não é necessária, muitos terreiros,
embora não seja uma regra fixa, a utilizam, principalmente para as linhas de
esquerda.
Estas obrigações ou oferendas são realizadas nos pontos de força vibratória
dos orixás ou das entidades o que obriga o médium muitas vezes a procurar
Fotografia 5 - Oferenda Para Exu -
Santuário Nacional de Umbanda
28/12/2007
84
locais para a realização do ritual, como matas, rios, cachoeiras, encruzilhadas,
cemitério, linhas de trem etc. Mais uma vez a cidade grande força o adepto a
buscar novos locais para a realização dos seus rituais, que a com o
crescimento da cidade estes vão se tornando escassos e os que existem não
possibilitam a realização de forma tranqüila de seus rituais.
Um destes espaços, criado por um umbandista é o Santuário Nacional da
Umbanda
34
, um sítio transformado em um local público para que os terreiros
possam realizar suas giras, próximas a natureza, como também “arriar suas
obrigações”.
Cobram uma taxa de entrada, utilizada para a manutenção do local, e se o
terreiro se interessar pode alugar um espaço fixo para a realização das giras.
34
Estrada do Montanhão, 700 - Pq. do Pedroso - Cep. 09791-250 - Sto. André - SP8.0261
Fotografia 6 - Santuário Nacional de
Umbanda
Foto retirada do site em out/2007
85
No local imagens representando os pontos de força dos orixás, com espaço
para a realização das oferendas, cachoeira, pedreira, cruzeiro e Reino dos
Exus. Os espaços são limpos freqüentemente para que os terreiros encontrem
os espaços sempre em ordem para seus trabalhos.
Outro espaço muito utilizado na umbanda para as oferendas e obrigações é o
cemitério, que ao contrário do pensamento geral sobre a religião, não é um
local utilizado para a prática do “mal”. O cemitério é também um ponto de força
do orixá Omulu, senhor da cura. Este espaço é utilizado para oferendas a este
orixá. Como existe muito preconceito em relação a esta prática pelos usuários
dos cemitérios, na gestão da prefeita Marta Suplicy em São Paulo (2001-2005)
foram destinados espaços específicos para a utilização de umbandistas e
candomblecistas em cemitérios da zona sul, leste e norte da cidade, aberto 24h
para seus rituais. o Cemitério Municipal de Diadema é o único da Grande
São Paulo a ter um espaço reservado para oferendas de Umbanda e
Candomblé. O local é chamado de Ilê, casa para os umbandistas.
86
ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES
TEÓRICAS
Sobre a Memória
Ao iniciamos as aulas no segundo semestre de 2003, a professora Maria
Helena apresentou muito rapidamente a disciplina e logo em seguida nos
propôs uma tarefa: fazer nossa memória de vida. Apressadamente os alunos
entreolharam-se, entre desconfiados e céticos a respeito da atividade proposta.
Logo a convicção de que a atividade era banal caiu por terra. Como colocar no
papel uma vida inteira? O que relembrar? Quais episódios eram os mais
importantes e/ou mais significativos para dizer em voz alta, compartilhar com
colegas de classe que mal conhecíamos? E ainda por cima sem parecer
piegas! Coisa de colegial! Pelo semblante dos colegas percebia-se que os fatos
narrados deveriam ser ao mesmo tempo inteligentes, espirituosos e
interessantes aos ouvidos alheios.
Relembrando isso hoje, quatro anos após o episódio, lendo meus cadernos de
anotação, lembro que quase todos os colegas iniciaram suas trajetórias a partir
do momento do nascimento: nasci dia tal, minha infância foi... Logo após as
87
primeiras leituras daqueles que se prontificaram a ser voluntários de suas
narrativas, a professora novamente nos desafiou: retomem suas narrativas,
mas escrevam somente os fatos mais significativos de suas vidas.
Em questão de minutos teria que decidir o que era importante e significativo
para ser compartilhado com outras pessoas. Eu particularmente nunca achei
que uma atividade fosse ser tão difícil, pois tivemos que relembrar fatos e
selecionar os mais significativos, mas que fizessem sentido não para nós,
mas a quem ouvisse.
“Relembrar é uma reconstrução orientada pela vida atual, pelo lugar social e pela
imaginação daquele que lembra. Nada é esquecido ou lembrado no trabalho de
recriação do passado que não diga respeito a uma necessidade presente daquele que
registra.” (MALUF M. , 1995)
Depois das discussões percebemos que estas etapas seriam aquelas que
trabalharíamos em nossas pesquisas, se optássemos por este viés de
pesquisa.
“O trabalho de rememoração é um ato de intervenção no caos das imagens guardadas.
E é também uma tentativa de organizar um tempo sentido e vivido do passado, e
finalmente reencontrado através de uma vontade de lembrar ou de um fragmento que
tem a força de iluminar e reunir outros conteúdos conexos, fingindo abarcar toda uma
vida”. (MALUF M. , 1995)
Este foi o caminho escolhido por mim. Utilizar a memória como o fio condutor
da reflexão a respeito da Umbanda e da aprendizagem dos sujeitos
88
umbandistas, resgatando a partir das lembranças dos indivíduos do grupo,
fatos passados que possam auxiliar na identificação e na construção da práxis
umbandista e de uma cultura da Umbanda.
Este processo de relembrar fatos passados e experiências vividas que lhe são
significativas, é memória. Este processo pode ser examinado a partir de
diferentes perspectivas ou áreas do conhecimento. Para a psicologia memória
é um termo genérico “para a recorrência consciente, total ou parcial, de uma
função ou de uma experiência aprendida ou vivida no passado.” (PRICE-
WILLIANS, 1987)
Memória pode ser também a ”aquisição, conservação e evocação de
informações. A aquisição se denomina também aprendizado. A evocação
também se denomina recordação ou lembrança.”
35
(IZQUIERDO, 2004)
35
Izquierdo também aponta os diferentes tipos de memória, como a de curta duração, que dura de
uma a seis horas e a memória de longa duração, que dura muitas horas, dias ou anos; memória de
trabalho ou memória imediata, aquela que tem a duração exata para se realizar uma tarefa, como
ler uma frase (que não deixa arquivos permanentes), memórias de procedimentos ou procedurais
(hábitos). Para maiores informações a respeito da obra do autor, ver Questões sobre memória.
Editora Unisinos.
89
Nesta perspectiva a memória está ligada a idéia de aprendizagem, ou seja, o
processo que o indivíduo tem de reter experiências e informações adquiridas
ao longo da vida. Geralmente quando
se tem a capacidade de reter
informações com facilidade e em
grande quantidade, diz-se que o
indivíduo tem uma boa memória.
Memória de elefante!
Atualmente, para aqueles que não
possuem uma memória capaz de
guardar e reter as informações existem
recursos que auxiliam o indivíduo neste
processo, conhecidos como memórias
artificiais, como a escrita, a fotografia e mais recentemente o microcomputador,
que permite grande armazenamento de informações.
Para Lopes (2004) em culturas de tradição oral, que não tem na escrita a
principal forma de se comunicar ou guardar informações, como em
determinadas culturas africanas, outros mecanismos como provérbios,
histórias, poemas e preces, que além de preservar a palavra, preservam
também o conteúdo, a história do grupo (p. 197). Mecanismos encontrados
também em nossa cultura, embora se considere letrada. Podemos acrescentar
no universo umbandista outros mecanismos, como os pontos cantados e
Em Branca Gênese, de Sembêne
Ousmane, a figura do (termo de
origem griot francesa que expressa
uma série de funções na sociedade
africana), indivíduo que tem como
função transmitir de geração a
geração a história do grupo. Numa
sociedade de tradição oral, onde a
história, a cultura era transmitida
pela palavra, o griot tinha uma
posição de destaque. Era ele(a) o
genealogista, o cronista, o poeta,
que visitava as povoações
cantando e falando do passado. A
capacidade de reter os nomes das
famílias através das gerações,
cantadas em seus versos, era
condição essencial para exercer a
função de griot.
90
riscados e as rezas utilizadas dentro do terreiro para chamar as entidades,
identificar-se e curar as pessoas.
na área da história ou das ciências sociais o processo identificado como
memória, utiliza-se também das definições da psicologia, mas vai além delas,
pois coloca o processo de memorar como uma ação que do indivíduo em
recordar, vinculado às relações que estabelece socialmente. Isto ocorre porque
guarda fragmentos de experiências vivenciadas e que necessitam do grupo
social para dar sentido a elas. Sua memória encontra-se ancorada em suas
relações sociais. Portanto considerado um processo social.
Para Halbwachs, as lembranças individuais fazem parte de uma memória
coletiva, construída a partir das relações que estabelecemos com nossos
grupos de convivência mais próximos, como o contexto familiar, social,
nacional, que constrói o sentido de identidade de grupo, classe, etnia, nação,
etc.
“Diríamos que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória
coletiva, que este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que este
lugar muda segundo as relações que mantenho com outros meios. (...) Todavia
quando tentamos explicar essa diversidade, voltamos sempre a uma combinação de
influência que são, todas, de natureza social.” (HALBWACHS, 1990)
A memória é uma produção social e como tal está sujeita a produzir memórias
diferenciadas de acordo com o grupo em que é gerada, podendo preservá-la
ou esquecê-la. A sociedade que possuí os meios de produção cultural utiliza
91
não a memória oficial, mas a estratégia do esquecimento como uma forma
de manutenção de sua própria cultura e de seu poder.
“A memória coletiva pode ser também a memória do poder, a memória enquadrada
utilizada como forma de dominação, cujo objetivo é marcar o que deve ser lembrado e
apagar o que se deve esquecer.(LOPES, 2004)
Lopes enfatiza este aspecto sobre a memória quando analisa o que a cultura
oficial preserva ou não. Segundo ele, a tensão se intensifica quando a
comunidade local se apropria de determinados símbolos de memória, como um
monumento à guerra, uma data comemorativa, mas o se apropria de seu
conteúdo. Citando Le Goff, complementa, que “os esquecimentos e os silêncios
da história são reveladores desses mecanismos de manipulação coletiva”.
A linguagem é a forma por excelência da preservação da memória, e a
narrativa “a mais presente e funcional das artes verbais nas culturas orais, pois
histórias são usadas para armazenar, organizar e comunicar o que se sabe.”
Se a linguagem e a oralidade são formas de se preservar a memória do grupo,
podemos dizer que a Umbanda atualmente tem enfrentado uma crise em sua
identidade. A meu ver o conflito entre a transmissão oral da cultura, do
conhecimento, dos fundamentos da Umbanda tem se chocado com a “a
necessidade” de introduzir a cultura letrada (a escrita) em seus espaços. E ai
vem à pergunta: qual a cultura que será preservada através da escrita? Além
do conflito apontado, temos que considerar outro aspecto neste processo.
92
A cidade de São Paulo, para me remeter apenas a um espaço próximo, é
considerada uma cidade “civilizada, letrada”, mas entre as pessoas
consideradas alfabetizadas, que usam a escrita regularmente, como também
nos grupos que pouco a utilizam, percebemos duas atitudes relacionadas à
escrita: “uma de rejeição total, ou a aceitação total e acrítica do que está escrito
e, ainda mais, impresso” (GNERRE, 1998, p. 53). Quem adquiriu uma
familiaridade com a escrita, mas não conquistou uma relação crítica com ela,
tende a considerar que tudo o que está escrito e impresso é verdade. Neste
sentido como pensar a escrita no espaço religioso umbandista?
O que significaria a escrita num ambiente que tradicionalmente é apontado
como um espaço de transmissão oral? A escrita está associada a uma norma
“culta”, “padrão”, ou seja, é associada a uma linguagem de prestígio social.
Seleciona o que deve ou não deve ser transmitido.
“A variedade culta é associada à escrita, como já dissemos, e é associada à tradição
gramatical; é inventariada nos dicionários e é a portadora legitima de uma tradição
cultural e de uma identidade nacional.” (GNERRE, 1998)
Qual será a memória identificada como a “correta” para ser guardada? Quem
definirá os saberes a serem registrados ou não? E como a Umbanda, enquanto
religião resistirá a uma investida como esta? A memória guardada nos
cadernos de registros, escritos durante décadas no terreiro, guardam que tipo
de história?
93
Sobre a Aprendizagem e o Terreiro
Quando falamos em aprendizagem logo nos vem ao pensamento à
aprendizagem que acontece na escola, aquela em que o conhecimento é
sistematizado, planejado e organizado linearmente. Na escola os conteúdos
são selecionados e necessitam na visão de grande parte dos professores, de
uma linearidade, de pré-requisitos, de etapas rígidas e formais para serem
vencidos. Um terreiro de Umbanda também se constitui em um espaço de
aprendizagem e Tudo o que acontece dentro dele faz parte do aprendizado
constante do médium na Umbanda. Embora a gira, aparente ser da mesma
maneira repetidas vezes, é dinâmica e diferente a cada dia. Um universo a ser
apreendido.
Na escola encontramos o discurso: “ensinar do mais fácil para o mais difícil”,
significando que se deve partir de conteúdos simples e gradativamente ir
aumentando o grau de complexidade dos mesmos. Embora esta seja uma idéia
comum, hoje várias pesquisas apontam que aprender envolve as relações que
o indivíduo estabelece com o seu mundo e com o conhecimento, muito mais do
que meras técnicas de memorização.
Outra idéia corrente quando se fala em aprendizagem, é que esta deve ser
significativa, que para ocorrer, deve-se levar em conta um processo que torne a
aprendizagem e a apropriação dos conhecimentos uma tarefa prazerosa.
94
Ainda que este trabalho não trate da aprendizagem escolar, alguns conceitos e
termos comuns a área serão utilizados e explicitados, pois denunciam nossa
visão de mundo, nossa opção política para o tema abordado, além de facilitar a
compreensão da articulação entre a aprendizagem e a aprendizagem no
terreiro.
Por exemplo, na educação é comum ouvirmos o termo “educação tradicional”
ou “método tradicional”, para explicar a postura de um educador(a) que se
utiliza de métodos como memorização, repetição, avaliações quantitativas,
valorizando a adição de conhecimentos, que por sua vez são fragmentados nas
áreas.
O currículo tradicional se traduz por uma prática pedagógica que concebe a
realidade como verdadeira, estática, linear e ideal. Por este motivo tem
recebido ao longo dos anos diferentes críticas, por não possibilitar aos sujeitos
envolvidos no processo de aprendizagem sua emancipação, ou seja, este
currículo tem desconsiderado sistematicamente a diversidade, a pluralidade e
os contextos sociais dos sujeitos, bem como seus conhecimentos.
Este processo desencadeou uma situação no mínimo curiosa dentro das
escolas. Educadores(as) utilizando-se de conceitos e termos pertinentes a
pedagogia crítica, mas com uma prática tradicional. Esta salada conceitual na
área educacional expressa também a confusão que ultimamente se faz com
outros conceitos, como por exemplo, cidadania e democracia, que acabam por
95
produzir no contexto social ações equivocadas e dentro da escola posturas
conservadoras e reacionárias.
A aprendizagem significativa, a partir da vivência e da experiência do indivíduo
é uma concepção relativamente nova para os educadores. O que prevalece
nas escolas, nas salas de aula ainda é a educação tradicional, com seus
conteúdos pré-determinados, pré-selecionados, organizados de forma linear e
que o admite contestação. Os conhecimentos trabalhados geralmente estão
muito distantes dos alunos(as) que não o compreendem e não conseguem
realizar a passagem do conhecimento informal (senso comum) para o
conhecimento formal (científico). Esta transição, acredito, é o principal
problema na educação, na aprendizagem escolar.
A idéia que estabelecemos de conhecer e de aprender está muito relacionada
com a maneira com a qual enfrentamos este processo a partir de nossa
herança cultural e educacional. Nossa educação está alicerçada no modelo de
educação técnica, de aprendizagens práticas, no fazer pragmático e no saber
utilitário. Podemos perceber esta noção em diferentes espaços fora da escola,
como no nosso caso, no terreiro. Esta aprendizagem tem início logo que o
individuo entra em contato com a Umbanda pela primeira vez e descobre que
uma infinidade de coisas a ser aprendidas, inclusive sobre si próprio. É
neste momento que entra em ação a sua representação do que é conhecer, e
do que é aprender.
96
Este modelo expressa o modo como os indivíduos enxergam a realidade e o
contexto social, sempre de forma linear, com muitas certezas e pouco espaço
para o imprevisto. Varela e Maturana questionam a nossa herança ocidental
de enxergar o mundo a partir das certezas, como se a realidade fosse única e
imutável. Para eles o homem ocidental deveria rever sua forma de pensar e de
enxergar a realidade com a qual convive. Nossa atenção perante os
acontecimentos é quase nula. Não fomos educados para a atenção e
interpretação do que vemos, a construir uma reflexão atenciosa que nos
uma visão abrangente sobre o movimento, a ação ou o objeto.
A representação do aprender do individuo irá influenciar sua forma de aprender
dentro do terreiro. A idéia de aprendizagem a partir da observação, da ação
muitas vezes é desconsiderada como forma aceitável de aprendizagem por
parte dos médiuns, que acreditam ser necessário modelos rígidos passados
por “mestres” com autoridade – -se autoritário! para fazê-lo.
Em A Árvore do Conhecimentoos autores Varela e Maturana demonstram a
partir de algumas experiências simples que o que vemos nem sempre
corresponde com a realidade, ou melhor, que o que vemos é apenas uma das
faces da realidade. “Nesse experimento do ponto cego, o fascinante é que não
vemos que não vemos”. (VARELA & MATURANA, 2001)
O que penso ser importante é que os autores demonstram que não podemos
nos fechar numa única visão ou percepção do objeto, pois existem diferentes
formas de vê-lo. Devemos ser mais maleáveis. Deveríamos trabalhar com o
97
pensamento sempre a partir das dúvidas, ou seja, nada está pronto, acabado,
mas em movimento constante de elaboração e reelaboração, numa construção
permanente de significados e sentidos
36
.
“É perceber tudo o que implica essa coincidência continua de nosso ser, nosso fazer
e nosso conhecer, deixando de lado nossa atitude cotidiana de pôr sobre nossa
experiência um selo de inquestionabilidade, como se ela refletisse um mundo
absoluto.” (VARELA & MATURANA, 2001)
Para os autores o conhecer, o aprender a conhecer e o ato de conhecer
implicam outro, o de refletir. Mas o que vem a ser a reflexão? Para eles
“um processo de conhecer como conhecemos, um ato de voltar a nós mesmos, a
única oportunidade que temos de descobrir nossas cegueiras e reconhecer que as
certezas e os conhecimentos dos outros o, respectivamente, tão aflitivos e tão
tênues quanto os nossos.” (VARELA & MATURANA, 2001)
Esta idéia de conhecer é muito diferente do que estamos acostumados a lidar e
que aprendemos na escola. O ato de refletir vai além da mera discussão de
temas, de textos ou de situações vivenciadas no cotidiano. Ao refletirmos
construímos um mundo, fazemos surgir um mundo, e este fazer é um fazer
humano, realizado por nós em determinado lugar. Tudo o que é dito é dito por
alguém. E daí vem à concepção de conhecer, pois o conhecimento é
36
Para maiores informações a respeito das idéias dos autores, consultar a obra “A Árvore do
Conhecimento”.
98
justamente fazer surgir um mundo, esta é a dimensão palpitante do saber, que
se manifesta em todas as ações da vida social humana.
Tendo a pensar, que estas reflexões são muito parecidas com as de Paulo
Freire, quando ele coloca que o mundo não é, está sendo, isto é, que o mundo
é uma construção humana e por isso inacabado. Não somos determinados no
sentido de acabados, prontos, mas que a determinação me conduz a uma
reflexão constante sobre o inacabamento do ser humano e do mundo, portanto
posso modificá-lo, posso modificar-me.
Varela e Maturana definem o conhecer, como ação efetiva, ação que permite a
um ser vivo continuar sua existência em um determinado meio ao fazer surgir
seu mundo, e que este processo, este fenômeno, pode
“resultar em seres vivos como nós próprios, capazes de produzir descrições e refletir
sobre elas, como conseqüência de sua realização como seres vivos, ao funcionar
efetivamente em seus domínios de existência.(VARELA & MATURANA, 2001)
Esta concepção de conhecer, de construir um mundo, é radicalmente oposta à
noção e a concepção de aprendizagem que construímos ao longo de nossa
caminhada escolar e que se estende às esferas de nossa vida cotidiana e
social.
A idéia de aprender ainda esta arraigada a noção de aquisição de técnicas, de
adaptar, de moldar. Lida-se com o conhecimento, a partir de técnicas. A
aprendizagem de algo ainda está ligada a técnicas utilitárias e fórmulas prontas
99
para lidar com as situações cotidianas. Queremos um modelo de companheiro,
de filho(a), de aluno(a), de professor(a), de relação social, de religião, de
felicidade, de corpo, de vida.
Infelizmente esta noção ainda prevalece nas relações sociais e cria a
dificuldade do indivíduo homem/mulher lidar com as diferenças e os
problemas cotidianos, pois está sempre a espera de alguma solução gica. E
aqui a religião pode perpetuar a opressão do indivíduo ou auxiliar que este se
emancipe.
A idéia de modelos não é ruim, pois necessitamos deles para nossa reflexão do
cotidiano, mas tomar o modelo como expressão única da realidade traz no
mínimo a sensação de impotência diante dela, que não caminha de acordo
com o que está previsto. Partir da realidade, do nosso cotidiano para utilizar
criativamente as idéias, transformando-as conforme a realidade se apresenta,
pode ser o caminho, para que a idéia não se transforme em um modelo único,
estático, previsível,
(...), pois nós estamos imersos numa cotidianeidade, refletir sobre essa ação
cotidiana e, então, ir criando idéias para compreendê-la. E essas idéias não serão
mais idéias-modelo, serão idéias que irão se fazendo com a realidade. (FREIRE &
FAUNDEZ, 1985)
Aprendizagem acontece ao indivíduo mesmo que este não esteja na escola,
numa instituição formal de ensino, como no terreiro por exemplo. A
aprendizagem pode ocorrer de diferentes formas e em locais diversos, mas é
100
da escola os referenciais de aprendizagem, de professor, de maneiras
(métodos) de como se ensina e de como se aprende.
A referência do modelo, neste caso do professor, reaparece, com suas
maneiras, modos, processos, enfim com a concepção do que é ser professor e
de como se deve ensinar.
A imagem mais comum do perfil do professor é o da rigidez, do autoritarismo,
do “dono da verdade”, perfil encontrado dentro e fora da escola, que expressa
ainda hoje, o modo como, tanto professor como comunidade, concebem a
própria vida e a sociedade em que vivem. Mais que isso, expressa a maneira
como concebem o conhecimento e a maneira de se apropriarem dele.
A idéia de construção do conhecimento, como processo, em que professor e
aluno aprendem juntos através do diálogo, é inconcebível para uma grande
maioria de indivíduos.
“Para eles o diálogo é sinal da fraqueza do professor, para eles a modéstia no saber é
mostra de fraqueza e ignorância. Quando é justamente o contrário. Acredito que a
fraqueza está naquele que julga deter a verdade e, por isso mesmo, é intolerante(...).
(FREIRE & FAUNDEZ, 1985)
Esta concepção de aprendizagem e de lidar com o conhecimento aparece
também em espaços extra-escolares, como o terreiro. A idéia que se tem de
como aprender ou mesmo de autoridade é aquela que experimentamos nas
relações do dia-a-dia, muito marcada pelo autoritarismo, pela falta de diálogo e
pelas verdades prontas
101
Para um indivíduo que vai pela primeira vez a um terreiro, tudo lhe parecerá
diferente e exótico. O espaço da gira com suas imagens, os cantos, o som dos
atabaques, a fumaça do incenso e dos charutos, os gritos das entidades, os
médiuns e entidades com suas roupas brancas e objetos de trabalho... À
medida que retorna às giras, a curiosidade vai aumentando e as dúvidas
surgem a cada instante. É interessante notar que mesmo para quem está há
algum tempo na Umbanda, como para aquele inicia sua caminhada, este
processo é muito parecido, e dificilmente seus questionamentos terão fim.
Ao escolher está prática religiosa, o indivíduo ainda não tem idéia da
quantidade de conhecimentos que deverá se apropriar ao longo de sua
jornada. Ao optar pela religião e “vestir o branco”, como se costuma dizer, o
novo adepto entra para a corrente e assume uma série de responsabilidades,
entre elas a de auxiliar os médiuns e a assistência na gira.
Este processo pode ocorrer de maneiras diferentes nos terreiros. Alguns optam
por apresentar algumas noções a respeito da Umbanda e de seus fundamentos
através de apostilas elaboradas pelo próprio terreiro e ao final de um período é
aplicada uma “prova” para verificar se o novo filho(a) está apto(a) às novas
funções, como o terreiro mencionado anteriormente na zona sul de São Paulo.
Constantemente são aplicadas provas para verificar o conhecimento do
médium, aprovando sua passagem para outro grau de aprendizagem.
No terreiro objeto desta pesquisa, o Terreiro de Umbanda do Caboclo Três
Penas Brancas (TUCTPB), este processo ocorre de maneira diferente. Ao
102
expressar o seu desejo de participar da corrente ou ao ser convidado a fazê-lo,
a pessoa poderá “vestir o branco” sem nenhum tipo de aprendizagem anterior
determinada.
Está aprendizagem transcorrerá a partir de sua vivência no novo espaço e para
os dirigentes da casa, este é um processo que o novo(a) filho(a) irá se
apropriando. Esta visão tem suas vantagens, como por exemplo, o médium
aprender de acordo com a visão dos dirigentes, como também desvantagens,
como a falta de tempo de ensinar os mais novos e os questionamentos a
respeito do processo de aprendizagem, pois como dissemos, a representação
que os indivíduos fazem deste processo, envolve a aquisição de modelos
prontos transmitidos por um professor.
Em sua nova tarefa dentro do terreiro o novo filho(a) irá se deparar com uma
série de atividades, além do auxílio no atendimento das pessoas na gira. As
obrigações, as festas, os trabalhos fora do terreiro, são ocasiões de novas
aprendizagens para ele(a).
Como o novo(a) filho(a) não passa por uma aprendizagem formal,
sistematizada, percebe que sua aprendizagem vai depender também de sua
iniciativa e que a primeira etapa diz respeito a auxiliar os demais médiuns e
cambonos nas tarefas da gira, ou seja, torna-se ele(a) também um cambono.
Este processo acontece mesmo em terreiros que optam por um modelo de
aprendizagem mais “formal” sistematiza e planejada no sentido escolar do
termo.
103
Voltaremos a discutir estas formas de conceber a aprendizagem nos itens
referentes a aulas no TUCTPB. Por ora, acredito que a breve exposição sobre
a questão da aprendizagem dará conta de entendermos porque os médiuns
questionavam, por exemplo, que ao longo de 15 anos “não tinham aprendido
nada!”.
Sobre os Cadernos de Registro: oralidade e a escrita
Antes de iniciar uma reflexão a respeito das linguagens oral e escrita, gostaria
de abordar o aspecto referente aos cadernos de registro. Estes cadernos,
elaborados ao longo de mais de três décadas, poderiam ser denominados de
diários? Minha vida inicial era se um diário teria a validade necessária para
ser utilizado como material de investigação e se não produziria uma imagem
superficial do processo. Uma breve pesquisa sobre o assunto revelou-se
positiva quanto a sua utilização.
Derivada do latim, o vocabulário diário significava “pagamento de um dia,
registro escrito de memória que se faz cada dia”. Segundo o dicionário
Houaiss, é um substantivo masculino, que significa escrito em que se registram
os acontecimentos de cada dia ou ainda periódico que se publica todos os dias;
jornal. Ainda: obra em que o autor relata cronologicamente fatos ou
acontecimentos do dia-a-dia, consigna opiniões e impressões, registra
confissões e/ou meditações etc. (HOUAISS & VILLAR, 2001).
104
A prática de se registrar fatos cotidianos é bem antiga e os primeiros registros
que se têm notícias em forma de diários surgem no Japão, na corte de Heian
(794-1185), através dos pillow books “livros de travesseiros”
37
.
Entre os diários mais famosos e popularizados estão os de Anne Frank, uma
adolescente judia que se esconde dos nazistas, na segunda Guerra Mundial.
No Brasil, nos anos 60, um diário ficou muito conhecido entre os estudantes de
sociologia, Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus. Estes escritos
traziam à tona a denúncia de uma sociedade injusta e excludente, nas
dificuldades narradas por uma mulher negra, pobre e semi-analfabeta.
De alguma forma este gênero literário esteve ligado à idéia de textos
produzidos por mulheres, visão decorrente da distinção estabelecida nos
papéis exercidos por homens e mulheres na sociedade ao longo do tempo; aos
homens estão ligadas as idéias de vida blica, portanto, esperam-se registros
de acontecimentos ligados a esta esfera social, às mulheres estava ligada a
37
Segundo Cintia Gannett, a história dos diários, ou diarismo, sempre esteve ligada aos homens, que
relatavam aspectos da vida pública em seus escritos, como a guerra e que o atual desinteresse dos
homens não faz jus à tradição. A idéia dos relatos em âmbito privado, como sendo um fenômeno
feminino, é uma postura ideológica, na medida em que assume um caráter marginal. Segundo ela, o
estudo sobre o diarismo denota que é um gênero: elitizado, europeu, branco, heterossexual e
masculino e queixa-se de que até recentemente o discurso sobre diários e jornais tem sido
conduzido por homens sobre homens (...) e que geralmente tem sido considerados mais importantes
e mais preservados. In. Centro de Estudos e Pesquisa em Cibercultura.
WWW.facom.ufba.br/ciberpesquisa.
105
noção da vida privada, portanto esperavam-se textos escritos que narrassem
os acontecimentos da vida em família, de fatos pessoais, etc.
Fabiana de Souza Silva
38
em sua tese de doutorado, analisando o uso das
abreviações em diferentes estilos textuais, faz uma breve apresentação do
gênero “diário”. Segundo suas pesquisas inicialmente o gênero foi considerado
um fenômeno cultural vinculado a uma natureza pública e comunitária”, pois
eram utilizados para registrar e/ou descrever a vida da comunidade. O diário
também apresenta uma peculiaridade única, pois é o que mais se aproxima do
tempo cronológico o autor(a) ao escrever procura fixar instantes acontecidos,
referenciando-os através de uma data, que contem o ano, o mês, o dia e às
vezes a hora (pgs. 119/120). É escrito “em tempo real”, o autor não espera um
momento propício para registrá-los, o registro é feito conforme surgem os
acontecimentos.
Faz uma exposição da classificação dos diários, a partir de autores que
pesquisaram mais profundamente o assunto. Estes são organizados a partir
de diferentes critérios, como por exemplo, a partir da posição dos autores que
escrevem os diários: diarista testemunha, diarista apaixonado, diarista da vila,
diarista naturalista, diarista doente, etc. Silva opta, no entanto pela
38
Para melhores detalhes sobre as observações e detalhamento do estudo realizado pela autora, ver
Uma abordagem diacrônico-comparativa da abreviação em diferentes gêneros, suportes e tecnologias/
Fabiana de Souza Silva Tese (doutorado) Universidade Federal de Pernambuco. CAC. Programa de
Pós-Graduação e Letras e Lingüística, 2006.
106
classificação de Fothergill, que os qualifica como: diários públicos, de viagem,
de memória pessoal e de consciência ou espirituais
Avaliando a exposição da autora, tendo a optar por uma das classificações
apresentadas: aquela que aponta um tipo de diário que tem o diarista como
testemunha (Ronal Blyte) para a análise do material que temos em mãos, os
cadernos de registro. Esta opção se deve ao fato de que os cadernos foram
sendo escritos no momento exato dos acontecimentos, como faz uma
testemunha ao registrar fatos ocorridos, sem a preocupação de que estes
registros fossem considerados, ou melhor, utilizados como uma memória do
grupo, o que daria a eles outra característica.
Na busca de uma definição para os cadernos ou para o entendimento da forma
como foram sendo elaborados, alguns pressupostos, neste caso, podem ser
aceitos para esta pesquisa: primeiro que o diário é um fenômeno cultural,
portanto social; segundo que o diário é um gênero textual que pode ocorrer nos
âmbitos: público e privado e para ambos os fins e terceiro, tomaremos de
empréstimo as funções de testemunhar, registrar, cronicar, da classificação de
diário público. Embora esta opção do ponto de vista de uma pesquisa mais
apurada na área da lingüística possa deixar a desejar, acredito que para nossa
empreitada ela seja conveniente.
O tema das narrativas pessoais, embora comuns nas pesquisas sobre
memória, ainda causam certa resistência por parte dos pesquisadores. A
dúvida por certo apropriada, gira em torno da pertinência dos registros escritos,
107
geralmente pelo fato do autor se colocar em posição de destaque e se julgar
“mais importante do que, de fato é.”
39
Ao pesquisador cabe então verificar se
estas memórias ou narrativas expressam antes de tudo uma memória coletiva,
social que auxilie tanto o pesquisador como a comunidade a que se refere a
pensar em sua própria história.
É neste sentido que acredito que os cadernos de registros, possam contribuir
de maneira efetiva para uma compreensão da Umbanda, como movimento
social e religioso, capaz de propor mudanças não individuais, mas sociais.
Os cadernos, como são chamados, são documentos históricos, que trazem
em suas inúmeras páginas, a construção da história e da trajetória da
Umbanda e das pessoas do grupo. Estes diários foram escritos a partir da
década de 70, quando meus pais ainda freqüentavam o Terreiro de Umbanda
Caboclo Pena Branca e Joãozinho das 7 Encruzilhadas, na Mooca. Inúmeras
39
Frase de Medeiros de Albuquerque, justificando a elaboração de suas memórias, que tem como
título, Quando eu era vivo: memórias de 1867 a 1934 Edição stuma e Definitiva. Segundo ele,
quando se escreve um livro contando suas memórias, geralmente justifica-se dizendo que foi a
pedido de alguém e que no caso dele realmente isso é verdadeiro, e que não se escrevem as
memórias por vaidade. Escrevem-se, às vezes, porque os autores m alguma cousa de que se
justificar.” Argumenta também que o gênero desperta suspeitas, exatamente pelo fato do autor se
julgar muito importante e que ele tenta fugir disso, narrando fatos e acontecimentos em que ele não
aparece como personalidade central das histórias. Seu intuito é despertar no leitor a curiosidade
pelos outros, pelas personagens que aparecem na sua narrativa.
108
são as lembranças que provocam a leitura de suas páginas. Muitas memórias
estão ali guardadas.
Inicialmente, quando ainda freqüentavam o terreiro na Mooca, a preocupação
era em anotar, registrar as aulas que aconteciam às quartas-feiras e as
atividades extras gira, quero dizer, atividades como camarinha e entregas, que
eram realizadas em dias diferentes das giras. Estes registros eram uma forma
de minha mãe guardar o que aprendiam no terreiro e os acontecimentos por
que passavam. Eram, portanto, registros de ordem particular, individual, que
nem mesmo o Pai (Sr. Julio) tinha acesso ou sabia de sua existência. Somente
mais tarde, quando saem do terreiro, é que a preocupação com o cotidiano
dos trabalhos. A preocupação das escreventes
40
, então, consistiu em
descrever os acontecimentos das giras, quem falava com as entidades e o que
era solicitado por elas. Usavam a a palavra escrita sem a preocupação
literária, mas apenas como um meio de comunicação supostamente a salvo de
ambigüidades”. (MALUF M. , 1995)
40
O termo escrevente foi tomado de empréstimo de Marina Maluf, em Ruídos da Memória. Segundo
ela, o termo é definido por Roland Barthes como “aquele que utiliza a linguagem com uma finalidade
‘testemunhar, explicar, ensinar’ “. Nesta pesquisa utilizarei o termo escreventes, pois os cadernos
foram escritos por diferentes pessoas ao longo destes anos: inicialmente por minha mãe, que
durante muitos anos realizou esta tarefa, depois por diferentes mulheres (não há praticamente
registros feitos pelos homens), como a cambona do Pai, a esposa de um dos médiuns do terreiro e
por mim mesma.
109
Ao longo do caminho este material tornou-se mais que simples registro. Não
pelo fato de que nos cadernos estão registrados aspectos relativos à história do
grupo e da Umbanda, mas do paradoxo de ser uma religião que se constituiu
através da oralidade, ter tantas décadas registradas, escritas.
Na Umbanda aprendemos tudo na base da experiência, da vivência, da
transmissão dos conhecimentos dos mais velhos geralmente o pai (mãe)
espiritual ou chefe do terreiro e dos(as) filhos(as) mais velhos, que
freqüentam a casa ou a Umbanda mais tempo. Este fato, para quem se
encontra dentro da religião é mais do que perceptível, é vivenciado. Mas, um
fato curioso tem se dado. Cada vez mais encontramos registros escritos, sobre
os mais diferentes assuntos, relacionados com a Umbanda.
A natureza destes registros é de outra ordem, diferente daqueles utilizados
para esta pesquisa, mas temos percebido por parte dos umbandistas uma
preocupação crescente em fazê-los aparecer, seja através da mídia impressa
ou virtual. Acredito que este aspecto deva ser abordado se não neste item,
posteriormente, descortinando esta necessidade cada vez mais presente em
publicar livros
41
, cartilhas, jornais e outros materiais escritos a respeito da
religião
42
.
41
A idéia de divulgar a Umbanda através de livros não é uma idéia nova. Já nos anos 30 encontramos
publicações sobre o assunto, como cartilhas ou textos que pretendiam codificar a Umbanda, mas o
que chama a atenção hoje é a diversidade da abordagem (cartilhas, divulgação, jornalístico, artigos)
110
Se esta é uma religião de tradição oral, porque a necessidade de registro
escrito? Porque a proliferação de sites divulgando diferentes correntes da
Umbanda se os próprios umbandistas dizem que a “Umbanda é uma ”?
Como estes dois mundos, aparentemente contraditórios (oralidade e escrita) se
articulam? Mas, como se articulam no terreiro? Inicialmente a idéia é confrontar
estes dois aspectos e demonstrar de que forma estão presentes no cotidiano
do terreiro, identificando a memória da Umbanda.
A oralidade e a escrita
Acredito que a primeira idéia sobre as duas linguagens é que estas são
práticas sociais. Ocorrem porque vivemos em grupos e a comunicação é
necessária. Se diversas são as culturas e suas formas de organização então
diversas serão suas formas e meios de comunicação.
Não tenho a intenção de fazer a genealogia das formas de comunicação e
expressão, nesta pesquisa. O que me interessa é demonstrar como adquirimos
e dos meios (livros, internet, cursos presenciais ou não, etc) aliados à quantidade de publicações,
como os livros citados de Ruben Saraceni.
42
Podemos utilizar estes dados, mesmo que empiricamente, para confrontar a idéia, ainda hoje
encontrada, de que a Umbanda seria uma religião praticada por indivíduos pobres e “ignorantes”,
portanto “analfabetos”, pergunto. Como uma religião, que é atribuída a esta parcela da população,
pode ter uma produção rica e constante de “coisas escritas”? Seriam pagos (os autores) para fazê-lo?
111
ou aprendemos a utilizar as duas linguagens e como as compreensões desta
aquisição influenciará sua utilização. A forma como aprendemos as duas
linguagens na escola (principalmente da aquisição da escrita), é a referência
que geralmente temos do processo e isso facilitará ou dificultará a
aprendizagem dos médiuns no terreiro.
Para o campo desta discussão pode-se dizer que as primeiras formas que
conhecemos de comunicação, são a oralidade e os desenhos (pictogramas),
utilizados para expressar idéias, contar fatos e histórias do cotidiano. Nos
primeiros anos de vida do indivíduo no seu grupo social e depois nos primeiros
anos de escola bastará para sua comunicação com o outro. Com o passar do
tempo descobrirá que existe outra forma de comunicação, a escrita.
A oralidade é uma forma de transmissão de conhecimentos e comunicação,
quase tão antiga quanto o ser humano e está presente ainda hoje em todas as
sociedades e culturas, mesmo em sociedades letradas e modernas.
O professor e lingüista Marcuschi faz algumas considerações a respeito do
tema. Para ele é necessário fazer distinções entre oralidade/letramento e
fala/escrita
43
. A primeira distinção que faz é que oralidade e letramento são
43
Devemos considerar que fala e escrita são modalidades da língua, que é dinâmica. Como a língua é
uma atividade social, pode estar sempre em mudança de acordo com o grupo social que a utiliza e
da realidade em que vivem.
112
práticas sociais e que a fala e a escrita são modalidades de uso da língua
(g.autor)
44
. Portanto, a oralidade seria uma prática social interativa para fins
comunicativos que se apresenta sob variadas formas ou gêneros textuais
fundados na realidade sonora; ela vai desde uma realização mais informal á
mais formal nos mais variados contextos de uso.
O letramento, que nas escolas confunde-se com a alfabetização, como se este
fosse um processo posterior a aquisição formal da escrita, é apontado como
um processo de utilização da escrita de diferentes formas pelo indivíduo na
sociedade, e vai além da ação formal da escrita.
Pode ir desde uma apropriação mínima da escrita, tal como o individuo que é
analfabeto, mas letrado na medida em que identifica o valor do dinheiro, identifica o
ônibus que deve tomar, consegue fazer cálculos complexos, sabe distinguir as
mercadorias pela marca etc., mas não escreve cartas nem jornal regularmente...
Letrado é o indivíduo que participa de forma significativa de eventos de letramento e
não apenas aquele que faz um uso formal da escrita. (MARCUSCHI, 2003)
A concepção de letramento é relativamente nova, principalmente na escola,
que produz e continua produzindo idéias-modelo a respeito do processo de
aquisição da escrita. O mito de que não se vive sem o domínio da escrita
44
Neste subitem precisarei os termos no que concerne a esta tese. Não é minha intenção discutir a
gênese da palavra. Este assunto levaria longe do tema. Para isso ver, entre outros, Marcuschi,
Soares, Ferreiro, Chomsky, etc.
113
produziu um quadro crítico na escola e na sociedade: indivíduos escolarizados,
porque freqüentaram a escola durante os anos obrigatórios, mas analfabetos
(não dominam digo da língua). O uso descontextualizado da escrita, com
modelos e formas desvinculadas da realidade e dos usos cotidianos do digo
escrito, afastou ao invés de aproximar estes indivíduos do mundo da escrita e
do conhecimento que se pode adquirir através de seu domínio.
A segunda distinção trabalhada pelo autor refere-se às dimensões da fala e da
escrita, que para ele são modalidades de uso da língua. A fala inscreve-se na
forma de produção textual-discursiva para fins comunicativos na modalidade
oral (situa-se no plano da oralidade, portanto), sem a necessidade de uma
tecnologia além do aparato disponível pelo próprio ser humano.
Já a escrita possui certas
especificidades materiais e se caracterizaria por sua constituição gráfica, embora
envolva também recursos de ordem pictórica e outros (situa-se no plano dos
letramentos) ... Trata-se de uma modalidade de uso da língua complementar a fala.
(...), ou seja, modos de representarmos a língua em sua condição de código.
(MARCUSCHI, 2003)
Portanto, se o código é uma representação da língua e esta é uma prática
social, o grupo ou grupos que detiverem o domínio sobre sua aquisição terão
maior influência e poder social. Esta é uma das dificuldades encontradas na
escola, por exemplo, quando a linguagem e o código escrito expressam uma
cultura distante da cultura do aluno, produzindo indivíduos que não conseguem
114
se apropriar do conhecimento veiculado por este código, mas o dominam
tecnicamente. São geralmente chamados de “copistas”. O entendimento de
que a escrita não é um bem natural que nasce com o indivíduo, e sim um fato
histórico, uma produção social, é desconsiderado.
Esta reflexão nos remete novamente à forma como indivíduos em diferentes
sociedades e culturas se comunicam. Embora a escrita tenha um status
privilegiado em nossa sociedade, a oralidade ainda é a forma mais utilizada de
comunicação entre os indivíduos, inclusive na brasileira, conforme aponta
Marcuschi.
O importante na análise do autor é a defesa de que a língua e seus modos de
uso (escrita e fala) devem ser analisados sob a perspectiva do uso e não do
sistema, ou seja, devemos pensar em como e porque os grupos sociais
utilizam este código.
Fica claro que o uso dos códigos lingüísticos, é eminentemente social e
dependem do uso que se faz deles em cada grupo ou sociedade.
Lopes (2004) demonstra esta idéia em sua pesquisa sobre a “Cultura Acústica
e letramento em Moçambique”. Entre as afirmativas elencadas, ele
acrescenta que a visão sobre a aquisição da escrita e da leitura está centrada
numa referência Ocidental, que determina sua organização em função de suas
permissões, de seus tabus, seus juízos, sua ética e sua estética. Para ele, a
escrita
115
“não é a única simbologia que permite guardar a memória dos fatos, as genealogias, as
dinâmicas e as proibições do interagir. também gestos, desenhos, roupas,
expressões, monumentos, palavras, formas de expressão e outras, que servem ao
objetivo de delinear a conduta social. Porque na verdade, é essa lembrança que um
grupo guarda que orienta a forma de agir, determina as diferenças entre gerações,
hierarquias, épocas, o que pode ser feito e o que deve ser evitado”. (LOPES, 2004)
Neste sentido, sua concepção de letramento e de aquisição da escrita, articula-
se e complementa a concepção descrita anteriormente, quando argumenta que
letramento
“não é aprender e dominar algumas determinadas habilidades técnicas de
decodificação, produção e compreensão de certos signos gráficos, mas adquirir e
integrar novos modos de compreensão da realidade, do mundo, de si mesmo e dos
outros. Ler e escrever são práticas culturais que alteram a consciência e o
comportamento”. (LOPES, 2004)
A aparente contradição entre os dois termos, alfabetização e letramento, são
analisados por Magda Soares, no texto Letramento e Alfabetização: as muitas
facetas”. Para ela, estes dois conceitos não devem ser tratados de forma
desarticulada ou pensados separadamente. Através de uma pequena
contextualização do surgimento do conceito de letramento, expõe os equívocos
surgidos a partir das críticas à alfabetização, como se estes dois processos
acontecessem isoladamente no indivíduo.
Para ela o equívoco se quando professores entendem que a aquisição do
código é suficiente para a entrada da criança ou do adulto no mundo letrado,
116
como se estes dois mundos tivessem que ser conhecidos separadamente. Mas
a entrada do indivíduo no mundo da escrita ocorre
“simultaneamente por esses dois processos: pela aquisição do sistema convencional
da escrita a alfabetização e pelo desenvolvimento de habilidades de uso desse
sistema em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que envolvem a língua
escrita o letramento (SOARES, 2004)”.
Este equívoco, no processo de aquisição da língua e modos de uso não é
diferente da forma como professores pensam o processo da aprendizagem.
Acredita-se que basta adquirir a técnica para se apropriar de conceitos e no
caso da leitura e da escrita que o domínio do código convencional será o
suficiente para que o indivíduo se torne letrado.
Embora o tema seja instigante, o fundamental nesta discussão é entendermos
que tanto a escrita como a oralidade são práticas sociais e seu uso dependerá
do grupo social do qual o indivíduo faz parte. Gostaria, no entanto, de fazer um
breve retorno a questão das linguagens oral e escrita, mas sob outra
perspectiva. Não de sua aquisição, mas de sua utilização.
É inegável a importância destas linguagens em nossa sociedade e seria
impensável realizarmos nossas tarefas sem a escrita. Habituamo-nos de tal
modo a ter a escrita como referência de comunicação que dificilmente
defenderíamos a sua não utilização. Mas mesmo assim, ainda me pergunto, de
que forma nos utilizamos destas práticas no terreiro?
117
Sobre a práxis mediúnica: a aprendizagem na Umbanda
Além das questões da oralidade e da escrita, ainda outro canal de
aprendizagem e comunicação na Umbanda, que é o canal da ação, da práxis.
Esta práxis podem chamar de mediunidade.
Mediunidade é a faculdade que o indivíduo tem de entrar em contato com o
mundo sobrenatural, com o mundo dos espíritos. Esta capacidade pode se
apresentar de diferentes maneiras, como por exemplo, a comunicação com os
mortos através da psicografia.
O caso mais famoso no Brasil foi o do médium Chico Xavier, com centenas de
livros psicografados
45
, geralmente romances, que auxiliaram a organizar, a
codificar e a difundir a religião espírita. O espiritismo como é conhecido no
Brasil, se difundiu a partir das obras de Kardec, por isso também é conhecida
como kardecismo. Os dois termos aqui são utilizados como sinônimos, embora
um possa existir sem o outro.
45
A Psicografia não é nova e o aconteceu somente no Brasil. Na Rússia também vários médiuns
que se dedicam a este tipo de espiritismo como Wera Krijanowskaia, que psicografou 51 romances
do espírito J. W. Rochester, entre 1885 a 1917. Suas obras tornaram-se famosas aqui, inclusive com a
criação de grupos de estudos via internet. Outro exemplo, agora na Umbanda, é do escritor e
umbandista Rubem Sarraceni, que tem publicado uma série de romances e livros psicografados sobe
a doutrina umbandista.
118
Cavalcante Bandeira valendo-se de algumas definições esclarece que “todo
umbandista é espírita, mas nem todo espírita é umbandista”, o que nos dá uma
idéia das proporções desencadeadas pelas obras de Kardec.
A Umbanda é considerada uma religião espírita, isto é, uma religião que
acredita na existência de espíritos e de que o Homem tem a capacidade de se
comunicar com eles.
Embora o termo mediunidade provenha do espiritismo de Kardec, é
amplamente utilizado na umbanda para definir a capacidade que o indivíduo
tem de entrar em contato com o
sobrenatural. Dificilmente encontramos na
umbanda o termo transe ou possessão
como formas de expressar esta
capacidade. Portanto como os termos
mediunidade e médium são utilizados com
mais freqüência no meio umbandista aqui
também serão empregados.
A comunicação entre o mundo material e o sobrenatural ou o mundo humano e
o divino, é feita através da mediunidade e no caso da umbanda o modo mais
conhecido é a incorporação do espírito ou da entidade (Caboclo, Preto Velho,
Baiano, etc.). É esta capacidade que antropólogos e estudiosos da religião
definem ou caracterizam como possessão, ou no caso da Umbanda como
transe de possessão, como define Maria Helena V. B. Concone.
Na Umbanda ouvimos muito o
termo desenvolvimento que é a
uma das formas de
aprendizagem do médium. Esta
aprendizagem está relacionada
com a capacidade do médium
utilizar, ou melhor, aprimorar
sua capacidade mediúnica.
119
Diferentemente de outros grupos sociais que vêem a mediunidade ou o transe
de possessão como “fenômenos ligados à superstição, a ignorância, quando
não, como manifestações nitidamente patológicas”. (...) ou criando explicações
científicas que legitimem esta prática, como os estudos parapsicológicos
(CONCONE M. H., 1987), estas práticas por estarem perfeitamente ligadas ao
modo de vida e as concepções sobre o mundo dos umbandistas, não são
aceitas como incentivadas.
Em seu estudo Maria Helena tenta precisar os dois conceitos, transe e
possessão, pois são empregados de diferentes formas, sem um consenso
quanto à forma de utilização dos mesmos. Ainda que na Umbanda estes
termos praticamente não sejam utilizados, apresentarei as delimitações da
autora sobre os termos. Estabelece transe como “um estado alterado de
consciência ao qual se pode chegar por diferentes vias.” E possessão como
“uma crença e, como tal, tecnicamente pode ser vinculada a um contexto
cultural, isto é, remetida a um conjunto de fórmulas (crenças) explicativas, de
caráter místico.” Sendo que este caráter místico é uma das formas de se olhar
para o fenômeno e embora colocado nesta dimensão do conhecimento, não se
pode afirmar que é falso ou que não aconteça ou não exista. A verdade, é que,
quaisquer que sejam os termos utilizados, o transe de possessão ou a
mediunidade são essenciais a essa religião.
Outro aspecto levantado quanto à mediunidade é a definição de médium, ou
seja, aquele que entra em contato com o sobrenatural, com os espíritos e é
120
possuído por eles. Numa definição literal médium é exatamente isso, o meio
(médio). Na Umbanda também se utiliza a nomenclatura “cavalo”
46
, geralmente
usada pelas entidades da linha de direita, como Caboclos e Pretos Velhos, as
entidades da linha de esquerda se referem ao médium como “burro”, portanto
essa nomenclatura depende muito do contexto em que aparece. Em alguns
terreiros podemos ouvir, embora menos utilizada, a nomenclatura aparelho.
Indiferente às nomenclaturas utilizadas na Umbanda, o que devemos
considerar é a crença na possessão de espíritos, que podem “descer” no
terreiro, tanto para fazer o bem como para fazer o mal, utilizando-se de um
médium, um cavalo, um burro, um aparelho, enfim, um transer.
Diferente de outras práticas religiosas que atuam com um intermediário entre o
adepto e o sobrenatural (“Deus”) para levar seus pedidos e/ou suas preces ao
divino, como no caso do Candomblé, onde o Pai ou Mãe de Santo faz esta
intermediação entre o filho(a) e o Orixá; no caso do Catolicismo, o Padre é o
intercessor entre o adepto e Deus. Na Umbanda esta característica se
diferencia, pois o filho(a) ou o adepto eventual, falará diretamente com uma
entidade vista por estas pessoas como o realizador de seus pedidos. A certeza
de que poderá conversar diretamente com o Caboclo ou o Preto Velho que
46
No Candomblé utiliza-se muito a nomenclatura cavalo de santo, mas na Umbanda o mais comum é
cavalo, sem a qualificação de santo. Isto devido ao fato de que na Umbanda não se trabalha com
esta noção, mas sim de entidades.
121
intervirá em seus problemas, faz estas pessoas se sentirem mais próximas do
mundo sobrenatural.
Sobre o conceito de Trabalho na Umbanda
Entre as muitas acepções sobre trabalho, encontramos no dicionário Houaiss a
seguinte:
“Rubrica: religião.
Em cultos afro-brasileiros, esp. umbanda e quimbanda, ação ou prática ritual
realizada para supostamente atingir objetivos protetivos, bons, de desenvolvimento
espiritual, ou maléficos, feiticeiros.” (HOUAISS, 2005)
A noção de trabalho é muito utilizada na Umbanda, e geralmente expressa a
prática do ritual realizada, a gira. Aliás, podemos encontrar as palavras “gira” e
“trabalho”, muitas vezes utilizadas com o mesmo significado, mas seu emprego
é mais complexo, pois pode depender do momento, da hora, do local e até
mesmo de quem está proferindo a palavra.
A pesquisadora Yvonne Maggie (2001), relaciona nove maneiras de utilização
da palavra trabalho, que pode ir da atuação (médium) em estado de
possessão, no terreiro ou fora dele até a designação de trabalho feito, como
feitiço. Como vemos sua utilização é variada.
122
Embora esta noção seja amplamente utilizada não encontrei entre autores
umbandistas nenhuma preocupação em definir ou pelo menos conceituar a
seu emprego; entre os pesquisadores acadêmicos, salvo engano, Maggie
que elenca os várias sentidos do termo.
Num artigo de Sonia W. Maluf intitulado Mitos coletivos, Narrativas pessoais,
encontrei esta preocupação, embora não fale diretamente sobre a Umbanda,
mas sim sobre trabalhos terapêuticos. A autora discute os sentidos dados ao
trabalho terapêutico a partir de práticas e saberes rituais e para isso faz uma
reflexão sobre a noção de trabalho.
Ela percebe a mesma diversidade na utilização da noção trabalho nas terapias
alternativas e espirituais, como trabalho de crescimento, trabalho do Daime,
pessoa trabalhada, portanto incorporando diferentes sentidos, como vemos na
Umbanda e registrado por Maggie.
Sonia Maluf ao discutir a noção de trabalho define dois sentidos para sua
utilização
47
, no contexto apresentado. Segundo ela,
47
O termo trabalho é utilizado em diferentes áreas, como na pedagógica (projeto de trabalho,
trabalho pedagógico, trabalhar a gramática, os numerais, etc); psicologia (trabalhar o eu, trabalhar
as carências); fisioterapia; educação física e etc. O termo acaba por adquirir um sentido quase
genérico ao ser empregado de diferentes formas e em diferentes ocasiões. Mas, a idéia geral na
utilização do conceito de trabalho ainda está vinculada à noção de trabalho como tarefa manual,
portanto penosa, pesada, tarefa que necessita de muito esforço e persistência. Geralmente esta
123
“Trabalho refere-se a dois momentos de experiência, a dois campos de significação
diferentes e complementares. No primeiro, descreve os diversos momentos da situação
terapêutica e espiritual (a consulta, o ritual, os procedimentos práticos); nesse sentido,
é a terapia propriamente dita, assim como a forma nativa para designar o ritual. No
segundo campo de significados, trabalho sintetiza o estilo e o projeto de vida da
pessoa em terapia. (MALUF S. W., 2005)
Como podemos observar o primeiro sentido se aproxima muito da noção de
trabalho utilizada pela Umbanda, pois trabalho pode significar o ritual praticado,
a gira no terreiro e neste caso, a ligação do médium com as entidades
espirituais e com suas obrigações.
Quando passa a discutir a segunda noção, de trabalho como projeto de vida do
indivíduo, percebo uma proximidade ainda maior com a concepção geralmente
encontrada na Umbanda sobre a religião e a própria trajetória de cada pessoas
dentro dela. Tanto médiuns como consulentes, têm uma visão muito próxima
da apresentada pela autora sobre a prática religiosa dentro do terreiro, ou seja,
sobre o trabalho.
“De um lado, a noção reveste-se de um sentido de sacrifício e sofrimento, pois é
através dessas experiências que o indivíduo pode „aprender e se transformar‟. O
sofrimento é percebido como um instrumento de uma possibilidade de aprendizado e
idéia expressa também a qualificação(ou desqualificação!) do sujeito, pois se é identificado como
trabalhador, isso significará que não tem formação acadêmica. Ninguém diz, por exemplo, trabalhos
médicos, mas serviços médicos; trabalho de advogado, mas serviço de advogado!
124
de transformação pessoal. De outro lado, trabalho, significa produção e criação de si: o
investimento (de energia, de dinheiro, de afeto) na produção de si, o Eu sendo o
resultado de uma construção consciente e uma obra da vontade.” (MALUF S. W.,
2005)
O trabalho em suas diferentes formas, como as apresentadas por Maggie, são
acompanhadas muitas vezes por idéias de sacrifício e sofrimento. Como
exemplo, posso citar a referência que muitos médiuns fazem a questão da
incorporação. ouvi em depoimento médium dizendo que incorporar é uma
forma de “deixar de viver para a entidade trabalhar e o tempo que fica
incorporado é um tempo que ele (médium) deixa de viver sua vida”, neste
sentido a incorporação é encarada como um sacrifício, mas um sacrifício
recompensador, pois está ajudando outro indivíduo.
A noção de trabalho utilizada no TUCTPB articula estas duas acepções: o de
ritual e a relação com as entidades, como também, a noção de aprendizagem
pelo sofrimento, pelo sacrifício, muito embora esta idéia o seja propriamente
uma concepção umbandista, mas proveniente do cristianismo. Apesar de estas
idéias estarem presentes na prática umbandista, acredito que a noção
apresentada por Sonia Maluf, de trabalho como produção e criação de si
adéqua-se melhor a idéia inicial proposta por esta pesquisa, a de que o sujeito
umbandista humaniza-se ao praticar a umbanda. Ou melhor, que a prática
umbandista pode auxiliar o sujeito em sua emancipação e humanização.
125
Ao discutir a constituição do terreiro e conseqüentemente do sujeito
umbandista, estarei lidando com duas concepções de trabalho: a noção de
trabalho como definição do ritual (da gira) e seus desdobramentos e a noção
de trabalho como processo de desenvolvimento do sujeito umbandista para sua
emancipação e humanização.
126
SOBRE O TERREIRO: Um Pouco
da História
Considerações preliminares
O Terreiro de Umbanda Caboclo Três Penas Brancas (TUCTPB) tem uma
história peculiar, pelo fato de possuir cadernos de registro, escritos ao longo
de vários anos. Foi esta peculiaridade que nos fez optar por uma pesquisa
sobre a memória da Umbanda e a partir deste item, iremos buscar reunir as
questões anteriormente apresentadas, que agora articuladas no contexto de
constituição do Terreiro, como práxis (mediunidade), oralidade, escrita,
memória e aprendizagem.
Os cadernos de registro, elaborados de forma não intencional a partir da
década de 70, contam além da história do casal, dirigente do terreiro, a do
grupo que os acompanha e a história da Umbanda, tradicionalmente
considerada uma religião de tradição oral, que significa transmitir seus
fundamentos através da fala, da experiência.
127
Os cadernos de registro (diários) perfazem um total de 20 cadernos ao longo
destes anos. São páginas e páginas de registro das giras, contando, algumas
detalhadamente, como aconteceram.
Para analisá-los optei em organizá-los por períodos distintos, cada um com
aproximadamente 10 anos, sendo que a primeira fase refere-se aos registros
da década de 80 quando o grupo inicia sua caminhada realizando os trabalhos
(gira) de casa em casa, num sistema de rodízio, com a coordenação dos Pais.
No período seguinte, a segunda fase, refere-se aos registros da década de 90,
quando acontece outra mudança, com o deslocamento do grupo que se formou
para o sítio do casal, mas ainda sem o espaço definitivo do terreiro, que irá
ocorrer definitivamente em 2003. O novo espaço é utilizado em 1999 na Festa
de Cosme e Damião inaugurando o espaço definitivo do terreiro, demarcando
esta data como a terceira fase do terreiro. Portanto, o terreiro passa por três
fases bem distintas na sua constituição.
Além desta classificação, adotei as categorias de gira particular e pública,
festa, obrigações e aulas/reuniões como elementos organizativos para a
reflexão da história do terreiro e através da memória contida nos cadernos de
registro, da história da Umbanda. Mas devemos ter em mente que esta divisão
é meramente didática, é uma forma de organizar a reflexão e o olhar para o
fazer da Umbanda, a fim de descortinar suas permanências e mudanças ao
longo dos anos.
128
Localização do Terreiro
O Terreiro de Umbanda Caboclo Três Penas Brancas, localiza-se no distrito de
Cipó, município de Embu-Guaçu, 30 km aproximadamente do bairro do
Socorro, Zona Sul de São Paulo. A cidade, hoje faz parte de uma área de
proteção aos mananciais e da Mata Atlântica e tem procurado se destacar
como uma região de proteção ambiental, promovendo o seu desenvolvimento a
partir da idéia do turismo ecológico.
Como toda cidade da grande São Paulo, Embu-Guaçu enfrenta vários
problemas advindos de uma urbanização sem planejamento. Com a aprovação
da LEI 12.233 de 16 de Janeiro de 2006, que instituiu a Bacia Hidrográfica do
Guarapiranga como área de proteção e recuperação dos mananciais, o
município inicia um processo de investimentos na região como cidade turística,
e oferece a natureza como forma de lazer e de crescimento econômico.
Cipó como distrito de Embu-Guaçu, também sofre com a falta de planejamento
e vai crescendo sem pressa, em comparação com seus vizinhos paulistanos,
como Colônia e Parelheiros.
Em menos de 15 anos estes bairros, antes considerados zonas rurais, hoje são
vistos como parte da periferia da cidade de São Paulo. As chácaras e sítios
que existiam, foram perdendo espaço para loteamentos clandestinos e sem a
infra-estrutura necessária para acomodar o contingente de moradores, em sua
maioria migrante e pobre. Este processo indiscriminado de ocupação do solo
129
causou na região uma série de problemas, tanto para seus moradores, como
para a própria natureza, que foi sendo dizimada.
A região de Parelheiros, Marcilac, Colônia e Embu-Gaçu, são consideradas
áreas de mananciais, o que deveria reduzir sua urbanização, mas isto está
longe de acontecer. Somente Embu-Guaçu cresceu mais lentamente,
principalmente porque o transporte era precário, com tarifas mais caras
(intermunicipais), associada a pouca infra-estrutura, como asfalto, luz, água e
esgoto encanados, como também a escolas que atendessem a todos os níveis
de ensino. Ainda hoje, próximo do local do terreiro, existe somente uma escola
que atende o ensino fundamental I e as crianças e adolescentes que precisam
freqüentar o ensino fundamental II, deslocam-se até Cipó.
A região do Cipó é composta basicamente de sítios e chácaras de fim de
semana e pequenas produções agrícolas locais. O acesso ao terreiro é por
estrada de terra, distante 9km do centro de Cipó.
A luz elétrica chegou à região do terreiro, bairro dos Borges, em 1994,
clandestinamente, mas com o aval da prefeitura(!!), que forneceu o
transformador para os moradores, que arcaram com a despesa dos postes e
da fiação.
Para se chegar ao local é necessário ter condução própria e não se incomodar
com os buracos, poeira e quando chove, lama e até enchentes. Atualmente
uma linha de ônibus (micro-ônibus) que faz ponto final, a uma distância de 2
130
km e meio do terreiro, mas os horários são incertos e aos finais de semana a
circulação é ainda mais reduzida.
Como todo município da grande São Paulo, EmbuGuaçu e Cipó começam a
enfrentar os problemas oriundos das regiões urbanas, como assaltos,
empregos, drogas e organização de gangs ou tribos de adolescentes, que não
encontram na cidade opções de lazer ou outras atividades que possam ocupar-
lhes o tempo.
É neste cenário que se encontra o Terreiro de Umbanda Caboclo Três Penas
Brancas: numa área remanescente da Mata Atlântica, rodeado de nascentes,
rios e matas ainda intocadas, mas que tem recebido um grande número de
moradores, provenientes de vários locais de São Paulo e outros estados,
gerando uma série de demandas que podem fazer desaparecer o que resta
desta mata, se não houver um planejamento responsável e efetivo.
Imigrantes e Benzedeiras
Em 1995 realizei pela primeira vez uma monografia sobre e Umbanda
48
.
48
Em 1994 início uma pesquisa sobre a origem da família na Umbanda, concretizando em 1995,
quando cursava Educação Artística na UNESP. A monografia foi realizada como avaliação final na
disciplina de Folclore sob a supervisão do Prof. Alberto Ikeda, com o nome de “Umbanda: um ensaio
sobre a religiosidade Afro-Brasileira.”
131
Intrigava-me como a família, no caso direto meus pais, tinham optado pela
prática da Umbanda. Eram netos de imigrantes italianos que se diziam
católicos e praticantes, mas as lembranças que tinha da infância não
conseguiam registrar estes fazeres.
A recordação mais viva era de minha avó paterna recebendo em sua casa
crianças e adultos para que ela benzesse quebranto, erisipela, bucho virado,
entre outros males cotidianos. Outras imagens também vêm em minha
memória, como, ser levada a uma benzedeira
49
, no bairro onde cresci, por
minha mãe ou ir com minha avó a um centro de mesa branca, para tomar
passes. Estas práticas pareciam contradizer a fala, de que eram católicos, pois
suas ações estavam muito mais próximas da religiosidade popular.
A partir destas lembranças e dos primeiros questionamentos, iniciei uma
pesquisa para descobrir estas origens e como estas práticas tinham se
transformado numa prática umbandista por parte da família e mais
49
As benzedeiras, pois geralmente são as mulheres que exercem esta atividade, utilizam as
rezas/orações para afastar algum tipo de mal ou doença da pessoa que a procura reclama. Embora se
possa acreditar que na zona urbana esta atividade não exista mais, sendo uma prática em extinção,
percebemos que ainda existem muitas mulheres praticando a benzedura, como por exemplo, para a
cura de doenças para uma população que não tem acesso ao sistema de saúde, seja particular o público.
(QUINTANA, 1999) É através da benzedeira que o indivíduo tem um encontro com o sagrado. Ela faz a
ponte entre seus problemas cotidianos, como uma doença ou um mau-olhado, pois a partir da sua
intermediação com o sagrado este obtém a cura. A benzedeira tem a legitimidade do seu grupo social
para fazer esta intermediação a do mundo sagrado com o mundo cotidiano, o profano.
132
significativamente por meus pais, que hoje dirigem o Terreiro de Umbanda
objeto desta pesquisa.
Tanto a família de meu pai como de minha mãe são de origem italianas, filhos
e netos de imigrantes que vieram para o país em busca de melhores condições
de vida, fugidos de uma Europa em guerra e sem emprego.
As pesquisas no Memorial do Imigrante
50
, na Mooca, em São Paulo, mostram
uma leva de imigrantes chegando ao país, pelo porto de Santos principalmente,
para- trabalhar nas fazendas de café em substituição aos recém libertos
escravos, como mão-de-obra barata. Meus bisavós provavelmente faziam parte
dessa leva. Embora tenha encontrado três nomes com o mesmo sobrenome
paterno, vindos por volta de 1887, nenhum deles foi reconhecido pelo membro
mais velho da minha família como parente.
Nome
Sobrenome
Parentesco
Ano
Nacionalidade
BARBARA
VAINI
SORELLA
9/14/1887
ITALIANO
GIUSEPPE
VAINI
CAPO
9/14/1887
ITALIANO
ISIDORO
VAINI
CHF
8/21/1895
ITALIANO
www.memorialdoimigrante.sp.gov.br acesso em Nov/2007
De fato, nas entrevistas realizadas com a integrante mais velha esta diz que
seus primeiros parentes avós chegaram por esta época, mas que seu avô
50
Rua Visconde de Parnaíba, 1316 Mooca (Próximo à estação Bresser do metrô - linha Leste-
Oeste)
133
tinha uma profissão, era ourives e trabalhava com ouro e prata”, e que por
esta razão seu nome não consta dos registros no Memorial. Inicialmente vão
para Serra Negra, interior paulista, mas terminam por fixar-se no bairro da Vila
Mariana e é neste bairro que a minha família paterna e materna se encontra e
fazem sua história.
O mais interessante nessa trajetória são as práticas religiosas, pois os
primeiros descendentes trazem na bagagem cultural a herança do catolicismo
popular, como promessas, ex-votos e benzimentos e o conhecimento das
chamadas “mesas giratórias”, que aconteciam na Europa e que provocaram
as pesquisas de Alan Kardek
51
, pseudônimo do pedagogo francês Hypolite
Leon Denizard Rivail (1804-1869).
Algumas destas práticas foram transmitidas a filha mais nova, no caso minha
avó paterna, que aprende a benzer com seu pai. Torna-se mais tarde uma
benzedeira conhecida nas imediações onde mora, entre as avenidas Lins de
Vasconcelos e Domingos de Moraes. Dos três filhos e três sobrinhos que criou
somente o filho mais novo optou pela Umbanda e um dos sobrinhos pelo
51
A partir destas pesquisas são escritos cinco livros: O Livro dos Espíritos (1857), O Livro dos Médiuns
(1861), O Evangelho Segundo o Espiritismo (1864), O Céu e o Inferno ou a Justiça Divina segundo o
Espiritismo (1865), A Gênese, os Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo (1868), considerados
o “Pentateuco espírita”. Para maiores informações a respeito do tema, há uma dissertação de
mestrado pela USP com o titulo de Geografia do (in)visível: o espaço do kardecismo em São Paulo”,
de Alberto Pereira dos Santos, professor e geógrafo.
134
kardecismo, realizando obras assistenciais ligados ao grupo de Chico Xavier,
em Minas Gerais.
A história da família de minha mãe é parecida, mas os dados a respeito dos
primeiros integrantes perderam-se no tempo, e nem mesmo no Memorial do
Imigrante há qualquer informação a respeito.
Provavelmente a vinda destes para o Brasil deve ter acontecido de forma
individual, ou seja, por conta própria, independente dos acordos estabelecidos
entre os dois países, já que não foi encontrado nenhum indivíduo com o
mesmo sobrenome.
A família materna era católica praticante, mas também freqüentava o
“espiritismo de mesa”, até conhecerem um grupo que praticava a Umbanda.
Iniciam suas atividades na Tenda de Oxalá, Amor e Caridade, na Vila Ema, por
volta de 1958 quando participam ativamente da construção do terreiro e de sua
fundação
52
.
52
Em entrevista com um dos membros da família que participou ativamente deste período no terreiro,
contou que para poder terminar a construção do terreiro o grupo tinha inventado um sistema de venda
de tijolinhos, como se fosse uma rifa e o dinheiro arrecadado era revertido para o término da
construção.
135
Fotografia 7 - Convite de Inauguração da Tenda de Oxalá, amor e Caridade - 1958
Imagem cedida por Ilia Ruiz Digitalizada em 04/07/2007 por Solange Vaini
É a partir deste momento que, meus pais iniciam sua história dentro da
Umbanda, ainda solteiros, ela com pouco mais de quatorze anos e ele com
vinte e três.
Fotografia 8 Trabalho na Praia Grande 1958
Tenda de Oxalá Amor e Caridade
Imagem cedida por Iridia Vaini
Digitalizada em 28/11/2007 por Solange Vaini
136
Após casarem-se, abandonam por alguns anos as práticas umbandistas, mas
logo retornam para realizar as giras em São Caetano do Sul, com a
participação de toda a família. Mesmo praticando a Umbanda, com a
incorporação de caboclos e pretos velhos, nomeavam o encontro como
“trabalho”
53
, designação que perdura até os dias de hoje.
Após alguns anos o casal decide procurar um terreiro aberto para freqüentar,
mas não são acompanhados pela família, que preferem cultos mais
reservados, familiares e sem o compromisso com as responsabilidades de um
terreiro aberto
54
.
53
Ivone Maggie em seu livro “Guerra de Orixá: um estudo de ritual e conflito” encontra várias
utilizações para a palavra “trabalho”, como “trabalhar na macumba”, “trabalhar com santo
encostado”, “trabalhar para o mal”, “trabalho feito”, entre outras. A palavra pode ser utilizada de
acordo com a situação, portanto, pode adquirir variadas significações.
54
Décadas mais tarde este será um dos argumentos utilizados por alguns filhos(as) para o cisma
ocorrido no terreiro, como veremos.
137
Optam pela Casa de Caridade Caboclo Guarantã”, localizado na Av. Santa
Catarina em São Paulo. Após várias
tentativas sem sucesso para conversar
com a entidade dirigente da casa,
optam por conversar com o Caboclo
Pena Vermelha, incorporado pelo
médium Jaime. Tornam-se amigos,
estreitando os laços de amizade e
formam um grupo com mais dois
casais que freqüentavam o terreiro.
Quando o Sr. Jaime abandona este
terreiro, o grupo o acompanha e
começam a freqüentar um terreiro na
baixada santista, toda sexta-feira, próximo ao prédio da prefeitura da Praia
Grande Boqueirão.
Esta casa iniciava suas atividades com orações católicas e cânticos de
umbanda, mas não se recordam de haver elementos considerados da cultura
africana em suas atividades. Não tinha atabaques, pouco se falava em orixás e
não havia obrigações. Deixam de freqüentar a casa pela distância.
Iniciam nova peregrinação para encontrar outro terreiro que pudessem
freqüentar e que agradasse a todos. Optam pela Tenda de Umbanda Caboclo
Arranca Toco”, localizado no Brás, numa zona comercial de São Paulo. Este
Encerrado os trabalhos no terreiro, os
casais e seus filhos todos com
idades variando entre 7 e 10 anos,
paravam no calçadão da praia do
Boqueirão, na Praia Grande, para
fazer piquenique e conversar sobre os
acontecimentos da noite, antes de
subirem para São Paulo. Estes
piqueniques aconteciam à noite e
muitas vezes entravam na
madrugada, com as crianças
brincando na areia e os adultos
conversando. Esta prática de oferecer
um lanche após os trabalhos
encerrados acontecem ainda hoje no
TUCTPB, onde todos participam,
desde os médiuns até o pessoal
da assistência, levando alguma
coisa para o lanche coletivo.
138
terreiro é comandado por duas mulheres negras, irmãs biológicas e difere dos
outros dois, pois era mesclado com o Candomblé.
As roupas utilizadas no terreiro
consistiam em saias de renda e
rodadas para as mulheres e calça e
camisa para os homens. Em dias de
gira, era utilizada uma fita larga na
cintura representando o orixá ou a linha
que seria trabalhada naquele dia.
Também era permitido aos médiuns a utilização de objetos solicitados pelas
entidades, como espadas (alumínio) em tamanho natural, capas para os Oguns
e Exus e cocares de penas para os(as) caboclos(as). Possuía três atabaques,
que podiam ser tocados noite adentro; faziam oferendas para entidades e
orixás, nos seus pontos de força, como praia, cachoeira, mata, pedreira;
obrigações de feitura para os(as) filhos(as) e festas em homenagem aos orixás,
principalmente a Yemanjá, na Praia Grande.
O terreiro utilizava o sistema de “sócio”, pagando-se uma taxa pelas fichas que
davam a pessoa da assistência o direito de falar com a entidade de sua
preferência.
Embora tenham feito várias obrigações, principalmente meu pai, o que dava-
lhe o direito de ser Pai Pequeno ou Babalorixá, acabam desligando-se do
Neste terreiro as crianças também
podiam participar da corrente,
vestindo a roupa branca. Entravam na
gira e trabalhavam como cambonos
e muitos passavam pelo
desenvolvimento, incorporando suas
entidades. O mero de crianças era
grande a ponto da dirigente do
terreiro sempre falar que o seu sonho
era realizar uma gira somente com
elas.
139
terreiro por descobrirem que os trabalhos externos eram cobrados. Quem
necessitasse de trabalho particular, tinha que pagar por ele. Como o grupo não
concordava com esta prática, saem do terreiro, iniciando nova busca por um
terreiro que pudessem freqüentar.
É neste momento que este grupo se desfaz, pois cada casal opta por uma casa
com propostas de atuação distintas. Dois casais optam por um terreiro com
práticas próximas do kardecismo e com pouquíssimos elementos do
Candomb; o outro casal opta por trabalhar sozinho em casa e meus pais
optam por freqüentar a Tenda Espírita de Umbanda Cacique Pena Branca e
Joãozinho das Sete Encruzilhadas”, na Rua dos Trilhos, Mooca.
Embora permaneçam no terreiro pouco mais que um ano e meio é dele as
maiores referências que o TUCTPB tem. É neste terreiro também que se
iniciam os primeiros registros escritos, por volta de 1974. Como este período
não foi selecionado, como um dos momentos de constituição do TUCTPB, este
será descrito brevemente a seguir, propiciando a identificação posterior de
possíveis elementos que permaneceram ao longo dos anos na prática do casal.
A Tenda Espírita Caboclo Pena Branca e Joãozinho das Sete
Encruzilhadas
Ficava na Mooca, na Rua dos Trilhos, hoje uma das principais vias de acesso
do bairro. A casa era alugada e foi modificada para poder atender as
140
necessidades do terreiro. A parte da frente possuía dois espaços, um da
assistência e outro das giras; nos fundos havia dois quartos para se vestir (um
para os homens e outro para as mulheres); uma cozinha e um quintal, onde
foram construídos mais dois cômodos: um quarto, com cozinha e banheiro em
que morava um senhor que tomava conta do terreiro durante o dia e um quarto
pequeno, destinado aos assentamentos de esquerda Exu e Pomba Gira.
As giras começavam às 20h. Geralmente os(as) filhos(as) chegavam um pouco
mais cedo para auxiliar na preparação da gira como, limpar o espaço, o congá,
verificar se não faltava nada para as entidades, colocar as flores no congá, etc.
Os médiuns de incorporação deveriam chegar mais cedo, para poder fazer
suas obrigações antes do início dos trabalhos, como as firmezas para
exu/pomba gira, que consistia em acender uma vela no local destinado para
este fim e colocar um copo com pinga ou
outra bebida da preferência da entidade.
No espaço externo aconteciam os
“passes magnéticos”, aplicados pelo Sr.
Manoel, um dos médiuns da casa.
Muitas pessoas chegavam mais cedo ao
terreiro, somente para passar com ele,
que cuidava basicamente da saúde,
como problemas na coluna e dores em
geral.
Em um dos cadernos, está
registrada uma aula em que o Pai
fala sobre estes passes, explicando
como funcionavam e qual era
finalidade dos mesmos.
“O Sr. Manoel com o passe
magnético e para operações, tirar
perturbação dos filhos e não dar
irradiação para chamar os guias.”
Primeira aula do mês (Caderno de
Registro 02/04/1975 Escrevente
Iridia Vaini )
141
As giras no terreiro eram organizadas conforme o dia da semana: a segunda
feira era destinada as gira de caboclo, preto velho ou boiadeiro; a quarta-feira
para as aulas proferidas pelo pai, o Sr. Julio, ou para as operações espirituais,
que trabalhavam para a saúde do indivíduo; e na sexta-feira gira de baiano e
boiadeiro e uma vez por mês gira de exu/pomba gira, que eram abertas ao
público.
O terreiro também realizava muitos trabalhos externos, na casa das pessoas
que necessitassem de acompanhamento extra. Para estes trabalhos os
médiuns eram escolhidos pelo guia espiritual, o caboclo ou o exu, que
convocava os médiuns para participarem. Estes trabalhos não eram cobrados e
aconteciam nos dias em que não ocorriam as giras para atendimento público,
ou seja, de terça, quinta ou sábado.
No terreiro funcionava o sistema de filiação de sócio, em que este pagava uma
taxa mensal, para auxiliar nas despesas diárias como a compra de velas,
defumação, fitas, fósforos, pinga, pólvora etc. bem como o pagamento do
aluguel, água e luz. Embora houvesse a carteirinha de sócio, não havia
restrição quanto à participação dos inadimplentes, tanto da assistência quanto
dos médiuns. Todos participavam e saldavam suas mensalidades quando
pudessem o que gerava do ponto de vista material um grande problema, pois o
terreiro estava sempre com suas despesas no vermelho e o Sr. Julio (Pai
Espiritual) é que arcava com elas, transferindo o problema para sua vida
pessoal.
142
O terreiro possuía estatuto e regimento, era regularizado em cartório, mas não
era filiado a nenhuma federação ou outro órgão umbandista. Possuía uma
diretoria que cuidava da parte material
da casa e uma organização interna
hierarquia que coordenava a parte
espiritual do terreiro. No terreiro
existia a figura do pai/mãe de santo,
padrinho e madrinha, pai/mãe
pequeno(a), médiuns, ogã, curimba e cambonos.
As giras públicas no terreiro aconteciam basicamente três vezes por semana,
ou seja, segunda, quarta e sexta. Cada dia da semana era destinado a uma
linha diferente, como caboclo ou preto velho. Começavam sempre por volta da
20h, mas sempre acontecia de iniciarem às 20:30h para que todos os diuns
pudessem chegar.
Os médiuns ao chegarem, faziam suas obrigações, vestiam a roupa branca e
dirigiam-se ao terreiro para esperar o início dos trabalhos. Eram cantados
pontos de “bater cabeça” onde todos cumprimentavam o cone o pai, sendo
cantado ponto de abertura das cortinas, que separavam o espaço do terreiro e
da assistência. Após este ritual eram cantados os pontos de defumação, de
abertura das cortinas do congá e dos trabalhos. Se fosse gira de caboclo
cantava-se para o caboclo chefe da casa, o Caboclo Pena Branca e seguindo a
hierarquia as demais entidades.
Foi registrado no Ofício de Registro
de Títulos e Documentos- Cartório Dr.
Arruda, sob 932.245 do protocolo
A 41 Registrado no Livro A nº 18
sob o número 16.920 em São Paulo a
08 de novembro de 1968.
143
As Giras Públicas e Particulares
Nas giras públicas havia duas formas de atendimento: passes e consultas. Os
passes geralmente eram dados pelas entidades cujos médiuns estavam
iniciando e as consultas pelos médiuns que eram desenvolvidos e tinham
sido liberados, pelo chefe espiritual da casa, para isso. Quando a pessoa que
passava pela consulta e apresentava problema considerado mais sério, era
encaminhada para a linha de esquerda Exu e Pomba-gira, que poderia
acontecer no mesmo dia, o que significava terminar os trabalhos de
madrugada, muitas vezes três ou quatro horas da manhã.
As giras particulares, ou seja, aquelas que eram realizadas nas casas das
pessoas, aconteciam nos dias em que o terreiro não funcionava. Nestas giras
não havia atabaques e cantos, apenas uma prece era proferida e os pontos
(cantados por uma única pessoa) de chamada das entidades que iriam
trabalhar no dia, que geralmente eram da linha de esquerda. Os médiuns
tinham que levar todos os objetos que seriam utilizados ou que presumissem
que poderiam ser utilizados no dia. Voltava-se a casa da pessoa tantas vezes
quanto fosse necessário para que os trabalhos tivessem sucesso.
As Aulas
Neste terreiro, situado na Mooca, o Pai dava aulas para os médiuns,
geralmente uma vez por mês, ás quartas feiras. O Pai é que escolhia o tema a
144
ser proferido no dia e pelos registros podemos notar que basicamente
consistiam em explicações sobre a incorporação, como vemos a seguir:
“O bom médio é aquele que demora para dar incorporação. É normal o dio ter
receio de falar quando está com as entidades. Principalmente aquele que é
desenvolvido em terreiro. O médio quando trabalha em casa particular é mais fácil
porque ele se ambienta com as pessoas da família. Porque não necessidade de
segurança, porque é feito o trabalho em portas fechadas. Quando é no terreiro as
portas abertas é perigoso por entrar qualquer pessoa.
(Caderno de Registro 18/06/1975 Escrevente Iridia Vaini)
Em outro registro de aula temos como tema a Origem da Umbanda. Ainda que
esse registro pareça contraditório ou pouco coerente, podemos observar que
tal contradição na fala, pode ser atribuída a problemas maiores relacionados à
identidade religiosa na sociedade inclusiva; por outras palavras ao mesmo
tempo em que existe um apelo ao passado este mesmo passado é visto com
preconceito em relação às origens negras da Umbanda.
Outro ponto a ser lembrado em relação ao “texto” é que ele busca registrar de
modo mais fiel possível a palavra falada. Não é demais lembrar a diferença
entre os dois tipos de discurso e que nem sempre se pode converter
diretamente um no outro.
“Começou a aula às 9:45h.
O Pai começou falando como começou a Umbanda. Falou que a umbanda de
antigamente era mais respeitada, mais temida do que na época de hoje.
145
Que se seguia mais a rigor e faziam tudo com mais reito (respeito?) em tudo desde
as obrigações.
Quando vem para o Brasil que era seguido mais pelos escravos e foi daí que
começou a ser mais sem respeito. Agora está falando do grau de espíritos que vem
(...).”
(Caderno de Registro 11/08/1976 Escrevente Iridia Vaini)
É evidente que a pessoa que realizou os registros não conseguiu acompanhar
inteiramente o ritmo (provavelmente rápido) da fala, que é um fluxo sonoro
continuo
55
.
Nesta mesma aula, na continuidade de sua exposição sobre a evolução do
espírito o Pai fala sobre a camarinha, dizendo que é nela que o filho aprende o
que é uma hierarquia e a ser humilde. Esta lição ele retira do Candomblé, que
inclusive cita como um exemplo a ser seguido. Como podemos perceber sua
fala é contraditória, pois ao mesmo tempo em que nega as raízes negras da
Umbanda, dizendo que é menosprezada por ter estas origens, cita como um
bom exemplo, o Candomblé, uma religião considerada tipicamente negra.
As Obrigações
No tempo em que ficaram neste terreiro algumas obrigações foram feitas, mas
a mais significativa foi a Camarinha ou Sacudimento realizada no sítio, com a
55
Mesmo para o indivíduo letrado, acostumado com os usos da escrita, registrar a fala do outro, que
é ágil, é continua, é rápida, exigirá uma capacidade de abstração, de reflexão e de certa intimidade
com estes usos, registrando (na forma escrita formal) aquilo que o falante expôs.
146
presença de todos os(as) filhos(as) do terreiro num final de semana de janeiro
de 1975.
Saíram de São Paulo numa sexta feira de madrugada, às quatro e meia,
chegando a Embu-guaçu às cinco e meia da manhã. Logo foi servido um café,
pois os(as) filhos(as) não poderiam mais comer até o termino do ritual.
A descrição é rica em detalhes, mas irei destacar apenas dois pontos que ao
longo do tempo permaneceram presentes na prática do TUCTPB:
No quarto das filhas o congá era com Mamãe Oxum e dos filhos com nosso pai
Oxossi.
Foi a coisa mais linda dos quartos.
Depois foram colocadas as esteiras e a vela de sete dias e o lençol branco que foi
arrumado por cada filho deixando a vela já acesa do lado direito da esteira.
Todo este ritual do almoço foi feito depois do banho de sacudimento. Os filhos depois
do banho trocaram de roupa e deitaram (na) esteira durante 3 horas, depois que
volta do banho o filho já vem com a cabeça coberta com uma toalha que é tirada
na hora da engira quando os filhos batem cabeça para o Pai de Santo.
Para o banho de sacudimento são precisos 3 dias no máximo. Os filhos têm que levar
uma esteira, uma vela de sete dias, branca, 2 toalhas de cabeça branca, 2 trocas de
roupa de santo e 1 lençol branco.
(Cadernos de Registro 17/01/1975 Escrevente Iridia Vaini)
Ainda hoje no terreiro a prática do banho se mantém com algumas
modificações, como veremos nos próximos itens referentes ao TUCTPB.
147
As Festas
O terreiro costumava realizar festas em homenagem aos Orixás como, Oxossi,
Xangô, Ogum, Yemanjá e Cosme Damião. Mas somente o registro de duas
festas, uma em homenagem a Ogum em que há a descrição de como o terreiro
ficou enfeitado e outro em homenagem a Cosme Damião, através de uma
única foto.
A Festa em homenagem a Ogum está assim descrita:
“Hoje é Dia de Ogum, o seu verdadeiro dia.
No terreiro vai ser feita uma Festa em Homenagem para Ogum e todos os filhos vão
colaborar. A Raquel já fez a toalha vermelha e vai dar as fitas.
O terreiro essa noite ficou muito bonito, foi enfeitado com rosas vermelhas e com
as fitas brancas e rosas vermelhas.
Foi feita simples, mas mesmo assim o nosso pai Cacique Pena Branca disse que
estava muito contente.”
(Caderno de Registro 23/04/1975 Escrevente Iridia Vaini)
Da festa em homenagem a Cosme Damião, não registro escrito, mas uma
única foto, sem data, mas que provavelmente date de 1975, que mostra um
pouco do terreiro e da decoração (feita por minha mãe), como a flor pendurada
na parede, que trazendo em seu miolo uma foto de criança.
Podemos ver também um dos ogãs da casa e uma das filhas do terreiro, que
não vestia o branco, mas que auxiliava na curimba. Ao fundo está o congá com
as imagens de caboclos e pretos velhos, acima de todos, Oxalá em destaque e
148
na parte de abaixo, havia três nichos, destinados a outros Orixás, como
Yemanjá, ao centro, com um aquário com conchas, areia e água do mar, do
lado direito, Ogum e do lado esquerdo Cosme e Damião. Atrás das cortinas
podemos ver a porta de acesso às camarinhas.
Fotografia 9 - Festa de Cosme e Damião 1975
As Funções no TUCTPB
Na maioria dos terreiros umbandistas, uma hierarquia entre os médiuns,
como apresentada no item referente à organização da Umbanda. No TUCTPB
não uma hierarquia rígida de funções ou postos como em outros terreiros.
No topo da hierarquia estão os dirigentes, Pai e Mãe Espirituais, seguidos dos
médiuns, cambonos, ogãs e curimba, que serão descritos rapidamente a
149
seguir, pois ao analisar o terreiro nos períodos apontados, voltarei novamente a
esta questão.
Os Médiuns
Médiuns são os(as) filhos(as) que tem alguma mediunidade, ou seja, a
capacidade de entrar em contato com o mundo espiritual seja através da
incorporação, da vidência, da audição ou outros formas. Esta capacidade é
chamada de mediunidade.
No TUCTPB a mediunidade mais praticada e a de incorporação; os(as)
filhos(as) ao entrarem no terreiro como cambonos(as) passam pela fase de
desenvolvimento, que é a fase em que o médium vai aprendendo a controlar o
seu corpo, e, na linguagem dos adeptos, vão aprendendo a reconhecer as
energias e as vibrações das diferentes entidades que possam vir a trabalhar
com eles(as).
médiuns em início de desenvolvimento que: incorporam suas entidades,
mas não ficam muito tempo neste estado e aqueles que já incorporam, mas
que ainda estão na fase de aprendizagem, ou seja a entidade está liberada
apenas para dar passes mas não para “dar consultas” – por último, há
aqueles “mais desenvolvidos” que estão liberados para dar consultas. Neste
último caso, conversa entre a pessoa (o consulente) e a entidade, e esta
pode solicitar coisas como: acender uma vela na igreja, tomar banho de ervas,
tomar algum chá, etc.
150
Os Cambonos
Cambono também chamado cambone, é o filho(a) que veste o branco no
terreiro e auxilia os médiuns mais velhos que incorporam suas Entidades
em várias atividades.
No TUCTPB a figura do cambono também é muito importante, pois ele irá
intermediar as conversas entre o consulente e a Entidade, auxiliando na
interpretação do que a Entidade está dizendo. Também é o cambono que
auxilia quando a Entidade necessita de alguma coisa, como vela, flor, água,
pemba entre outros objetos necessários para efetuar o ritual.
Geralmente também é um médium, mas ainda não desenvolveu a capacidade
de servir de elo entre as Entidades e as pessoas que procuram ajuda no
terreiro, ou seja, ainda não incorpora de forma plena suas Entidades.
O Cambono é de extrema importância dentro de qualquer terreiro, na medida
em que é o auxiliar do médium e de suas entidades, nesse sentido
desempenha um papel fundamental.
De forma indireta é responsável pelas pessoas que vão falar com as Entidades,
pois serve de interprete, explicando o que foi dito ou solicitado, não deixando
que os consulentes saiam da gira confusos e com dúvidas.
Dentro deste terreiro a figura do cambono é por excelência a do aprendiz. É na
função de cambono que o médium aprende o funcionamento do ritual, a lidar
151
com as diferentes ocorrências na gira, a compreender a entidade que
cambona, as consultas, os passes, enfim todos os aspectos do ritual. Quanto
mais um(a) filho(a) exerce a função de cambono mais irá aprender sobre a
Umbanda. Esta função que é de extrema importância dentro de qualquer
terreiro, de forma geral é pouco compreendida pelos médiuns, queo querem
exercê-la por muito tempo, pois acreditam que a parte mais importante do ritual
é a incorporação.
Ogãs e Curimba
outras figuras que desempenham funções importantes no universo da
Umbanda.
Ogã de atabaque: é o nome que se no TUCTPB à pessoa responsável
pelos atabaques e pela curimba, organizando os toques e os cantos sagrados
dentro do terreiro. Na concepção umbandista é o o que em muitos
momentos pode levantar uma gira, ou seja, ele é capaz de atuar, através dos
toques e cantos, para que a gira transcorra de forma organizada e disciplinada.
Da mesma forma que um opode auxiliar a disciplinar a gira, pode também
“derrubar” a mesma, através de toques e cantos executados de forma errada
ou em hora imprópria à gira.
Curimba: é o nome que se dá para o grupo responsável pelos toques e cantos
sagrados dentro de um terreiro de Umbanda. No TUCTPB não um grupo
específico para esta função, todos os médiuns auxiliam nos cantos quando
152
necessário, não havendo também a obrigatoriedade de cantar, dançar e bater
palmas. Quando isso acontece, pode-se dizer que a curimba se transforma em
um verdadeiro “pólo” irradiador de energia. Considera-se que a “energia” assim
gerada, potencializa ainda mais as vibrações das Entidades.
Para o TUCTPB, como para outros terreiros, estas funções, a de ogã e a de
curimba, estão interligadas e uma depende da outra para entoar os cantos
tranqüila, rítmica, e organizadamente, de forma que não prejudique os
trabalhos que estão sendo realizados.
A preocupação com este aspecto no TUCTPB é sempre muito grande, pois não
depende somente da execução coordenada dos pontos com os toques do
atabaque, mas sim de uma sensibilidade, quase mediúnica, para o que está
ocorrendo na gira, que proporciona ao ogã executar diferentes pontos
consecutivamente.
Esta preocupação fez com que, em 1991, um grupo de cinco médiuns do
terreiro freqüentasse a Escola de Curimba e Arte Umbandista Felix Nascentes
Pinto, fundada em 1975 e à época comandada por Denise Fernandes,
(infelizmente fechada em 1992). A escola ficava situada na Mooca. Na escola
ensinavam canto, toques de atabaque e os fundamentos da Umbanda. Um dos
professores, Pai Élcio de Oxalá, hoje com sua própria escola, continua
ensinando cantos a novas turmas é uma das figuras mais conhecidas no meio
umbandista, não por sua voz, mas por ter ensinado dezenas de médiuns a
conquistar o título de ogã.
153
Neste período participam do V estival de Música Umbandista, evento que
agrega terreiros de diferentes localidades do estado de São Paulo, competindo
nas categorias de canto inédito, toques e interpretação.
O TUCTPB, o Bazar da Pechincha e a Comunidade Local
O Bazar da Pechincha foi organizado inicialmente como uma forma de
arrecadar dinheiro para a construção do terreiro, ou melhor, para possibilitar o
término da sua construção. Ao todo foram realizados cinco bazares, a partir de
1999.
O primeiro bazar foi o mais esperado por todos do terreiro, que ansiavam em
realizá-lo. Todas as coisas que foram colocadas a venda, foram doações
dos(as) filhos(as) e de pessoas que freqüentam ou freqüentavam o terreiro.
Neste primeiro bazar, a arrecadação durou aproximadamente 3 meses, e os
mais diferentes objetos, desde tampas de panelas a sofá, foram arrecadados.
Fotografia 10 - Escola Estadual P. G. João Domingues de
Oliveira - Embu-Guaçu
154
Num primeiro momento a idéia era realizar o bazar no próprio local do terreiro,
ou seja, no sitio. Mas como o acesso não é tão fácil, optou-se em realizá-lo na
Escolinha
56
que fica a dois quilômetros e meio de distância do sítio, de fácil
acesso para quem vem de outros sítios e estradas e por onde passa duas
vezes ao dia o microônibus.
Ao entrar em contato com a direção da escola para ceder o espaço para a
realização do bazar, a diretora
57
recebeu muito bem a idéia, emprestando a
escola quantas vezes quisessem.
Embora o terreiro esteja muito tempo na região, a maioria dos diuns que
o freqüentam não conhecem a realidade dos moradores locais. Suas
realidades são muito diferentes. Enquanto os diuns do terreiro vêm da zona
urbana, com as facilidades que isso implica em termos de acesso a hospitais,
padarias, farmácias, empregos, escolas e lazer os moradores do bairro onde se
localiza o terreiro, estão sujeitos às dificuldades da zona rural, ou seja, todos
56
A EEPG João Domingues de Oliveira (antigo morador do bairro) é conhecida na região como
Escolinha. Possuía apenas duas salas de aula, um pátio externo, dois banheiros e uma cozinha
pequena, onde a merenda era preparada pela própria professora. No primeiro bazar realizado as
condições da escola impressionaram o grupo pela má conservação do prédio, a ponto de não
acreditarem que a escola realmente funcionasse. É o primeiro confronto das duas realidades.
57
D. Umbelina, hoje falecida, recebia muito bem a idéia da realização dos bazares na escola, pois
dizia ser importante para a comunidade como forma de ajudar os moradores da região.
155
estes serviços estão a nove quilômetros de distância no mínimo, de onde
moram.
Outro fator a ser considerado diz respeito as suas atividades profissionais dos
médiuns, que implicam uma inserção num mundo de privilégios sociais e
culturais, e poderíamos dizer que quase todos faziam ou fazem parte do que se
convencionou chamar de classe média da sociedade. São profissionais
assalariados com escolaridade que varia do ensino fundamental incompleto a
pós-graduação, profissionais liberais, donos de empresa, trabalhadores de
multinacionais, professores.
os moradores da região, em sua maioria são trabalhadores braçais, que
trabalham nas chácaras vizinhas, realizando bicos ou trabalhando na
Fazenda
58
um grande loteamento de chácaras de fim de semana que existe
na região. A população mais antiga da região cursou apenas as primeiras
séries do Ensino Fundamental I. Os mais jovens tem se esforçado em concluir
o Ensino Fundamental II que as escolas ficam longe, como mencionado e
aqueles que pretendem ir para a faculdade têm que se deslocar diariamente ou
morar em São Paulo.
58
Antigamente a propriedade era uma fazenda com plantação de chá mate; desativada durante
muitos anos, foi loteada em pequenas chácaras e transformada em um condomínio.
156
O desconhecimento do contexto da região, fez do primeiro bazar um grande
aprendizado para todos que participaram, pois muitos não imaginavam que não
ter um real para comprar uma camiseta usada pudesse acontecer.
Ao pensar nos preços para as mercadorias, imaginou-se uma escala de valores
que pudesse atender a todos. Quando ao final do bazar o grupo participante
discutem sobre o evento e todos deram suas opiniões e impressões a respeito,
percebeu-se que o valor dos objetos oferecidos, que para o grupo do terreiro
parecia baixo ou razoável, para grande parte da população local, ao contrário,
era muito alto ou impraticável. Mesmo assim optou-se em realizar novos
bazares, mas em novas bases.
Fotografia 11 - Sala de aula da Escola - foto de Solange Vaini
157
Foram realizados mais quatro bazares, com intervalos de aproximadamente
seis meses entre um e outro, pois a arrecadação de objetos ocorreu de forma
mais lenta que o primeiro. Mesmo assim foram realizados e algumas
modificações ocorreram principalmente nos valores cobrados das mercadorias.
A partir do terceiro bazar o grupo resolveu colocar somente dois preços: R$
0,50 e R$ 1,00. Se o objeto fosse algo muito diferente, considerado de valor,
então era colocado um preço mais alto e em local de destaque. O sucesso foi
absoluto. No terceiro bazar havia fila de espera na porta. Quem não podia
pagar o valor estipulado na mercadoria, pechinchava no caixa e o valor era
reduzido e muitas vezes saiam com a mercadoria de graça. Apesar disso, em
todos eles o valor arrecadado superou as expectativas do grupo.
A avaliação geral sobre os bazares, ainda que positiva, foi cancelado nos anos
seguintes, pois o grupo que organizava o evento, após votação entre os
médiuns mais participativos, sobre sua continuidade ou não, optou pelo
encerramento desta atividade. Entre os argumentos apresentados pelo grupo,
para o cancelamento do bazar, estavam as tarefas que tinham que realizar,
como angariar roupas e outros objetos, selecioná-las, entrar em contato com a
direção da escola, arrumar o local um dia antes e ficar o domingo todo no
bazar, sem a possibilidade de rodízio entre os participantes. Todos estes
motivos acabaram por convencer aqueles que ainda defendiam a continuidade
do bazar e este acabou sendo encerrado.
158
Legalidade ou Clandestinidade
Este tema ainda é polêmico para os terreiros. Muitos defendem sua legalidade,
com o principal argumento de protegerem-se de possíveis ataques, não as
suas casas, mas também aos(as) filhos(as) que as freqüentam. As federações
dariam aos terreiros uma suposta tranqüilidade para exercerem suas
atividades, bem como apoio jurídico em diferentes litígios.
Mas esta idéia não é consenso e muitos preferem manter a clandestinidade de
suas casas e não se comprometer com nenhuma instituição que possa
fiscalizá-las, bem como cobrar mensalidades e participação política nos
eventos promovidos por estas federações e associações. Outro fator para a
não legalização dos terreiros são as altas taxas cobradas para a elaboração da
documentação e do registro em cartório.
No TUCTPB, o Pai nunca se preocupou com esta questão, além disso, nunca
quis que nenhum dos(as) filhos(as) fizesse nenhum movimento neste sentido,
pois legalizar o terreiro, para ele, significaria atrelar-se a alguma federação ou
associação e as suas normas. Filiar-se e manter relações com estas
instituições provocaria um certo desconforto, que tentam uniformizar os
rituais o que não é aceito por grande parte dos terreiros, inclusive este.
159
Acredito que este fator, o da uniformização e interferência nos rituais
59
, é o fato
principal para estas instituições terem tantas dificuldades para convencer os
terreiros a efetivarem sua filiação e legalização, muito mais do que uma
possível ligação política e o uso que fazem dos terreiros neste sentido.
Mesmo entre os terreiros, que dizem ser federados, a relação se mantém
distante e às vezes quase invisível, o que confirma esta idéia.
Atualmente tem ocorrido um movimento entre os umbandistas de legalizarem
suas casas, mas acredito, que por motivos totalmente diferentes daqueles
ocorridos nas cadas de 70 ou 80 quando a legalização era uma forma de se
protegerem. Hoje a legalização está mais voltada aos benefícios que os
terreiros poderão desfrutar como entidades filantrópicas ou religiosas, abrindo
59
Em texto produzido sobre o sincretismo na Umbanda, Maria Helena V. B. Concone discute os
aspectos pertinentes a formação da Umbanda; entre outros fatores indica a “formulação do novo a
partir das interinfluências dos diversos modos culturais, diversas crenças, valores, representações de
mundo desses grupos em presença”. Considerando que cada terreiro de Umbanda é uma Umbanda,
no sentido de único, pelos motivos apresentados pela autora, não é difícil imaginar o porque da
resistência dos chefes espirituais umbandistas filiarem-se a qualquer uma das federações ou
associações afro-brasileiras. Atualmente, alguns grupos acreditam ser necessário a organização dos
cultos através destas federações, inclusive para protegerem-se juridicamente, mas acredito que
grande parte dos umbandistas ainda vêem esta questão com muita restrição, basta verificarmos que
ainda hoje para conhecermos algum terreiro ainda se faz necessário conhecermos algum adepto que
nos leve até ele, pois dificilmente encontramos placas ou alguma identificação em sua fachada que
nos permita localizá-lo.
160
uma rie de possibilidades de atuação nas comunidades locais e fora dela,
que antes não era possível, pois as leis não permitiam.
Hoje temos a Constituição que garante a liberdade de expressão e de práticas
religiosas, leis municipais
60
, estaduais e federais que garantem os cultos nos
estados nacionais como também a realização de atividades pertinentes a estas
práticas, mesmo que no cotidiano ainda sejam vistas com preconceito e
desconfiança.
60
Finalizando esta pesquisa recebo a notícia que na Bahia um terreiro de Candomblé a décadas na
cidade é destruído pela prefeitura com a justificativa de estarem ocupando o espaço ilegalmente. A
Mãe de Santo, Mãe Rosa mesmo apresentando a documentação e argumentando que não tinham o
direito de destruírem seu templo, foi desconsiderada e o terreiro colocado no chão. Para maiores
detalhes da ocorrência verificar o endereço http://patriafc. blogspot. com/ . como vemos, a
legalização dos templos não é uma garantia aos adeptos destas religiões de poderem praticá-las sem
o risco do preconceito e da intolerância. Tanto um como o outro irão desaparecer, se é que
podemos considerar tal pretensão, numa ação concreta da sociedade, em que a educação tem um
papel fundamental, pois pode levar para a escola uma visão mais abrangente das diversidades
culturais, sociais e religiosas, construindo mentalidades abertas às diversidades.
161
O SAGRADO DE CASA EM CASA
Depois de freqüentar o terreiro da Mooca (S. Julio) os atuais Pai e Mãe do
TUCTPB deram início a uma trajetória independente na Umbanda. Esta
trajetória percorreu algumas etapas, culminou com a abertura “oficial” do
terreiro em 2003. Como proposto anteriormente, esta trajetória foi dividida em
três fases, tomando-se como referência os locais onde os trabalhos foram
realizados (casas, varanda, terreiro) sendo que a primeira fase (casa) será a
partir de agora descrita e analisada. Este primeiro momento refere-se à
década de 80, período mais intenso de trabalhos realizados nas casas das
pessoas que acompanhavam os Pais, embora o primeiro registro em que haja
uma referência ao início de seus trabalhos
autonomamente seja de 1976.
Este registro se refere a um trabalho
realizado na cachoeira, após a saída do
terreiro do Sr. Júlio em 24 de outubro, e é o
primeiro que designa as pessoas que os
acompanham como “nossos filhos”, como
vemos:
Figura 1 Caderno de Registro de
24/10/1976
162
Fomos à cachoeira para pedir proteção e firmeza a Xangô e Inhasã.
Pedi para que todos que foram juntos para acenderem 1 vela roxa, uma branca e
uma marrom, para pedir proteção e firmeza para os orixás.
Cada um acendeu a vela aonde teve intuição.
Fomos eu, Flavio, Ruth, Artur, Laura, mamãe e as meninas.
Essa foi a primeira lavagem de cabeça que fizemos para nossos filhos
(Escrevente Iridia Vaini)
O registro feito por minha mãe descreve as pessoas que participaram do
trabalho e faz menção às meninas”, que presumo ser suas filhas carnais,
portanto, ao nomear, no final do registro, “nossos filhos”, posso dizer que este é
o primeiro registro do início dos seus trabalhos como dirigentes espirituais e
embora não gostem de serem chamados assim, de Pai e Mãe de Santo.
O período que vai de 1976 á 1979 embora conte com registros de trabalhos
realizados em sistema de rodízio
61
, não foram selecionados, pois poucas
anotações e muito espaçadas. Estes registros não são tão constantes e temos
pouca coisa registrada, o que pode significar que realizavam poucos trabalhos
ou que nesta época a e tinha uma incorporação mais estável e
conseqüentemente não estava sempre disponível e aparentemente não tinha
substituta para realizar os registros. Assim, as anotações desse período além
61
Rodízio de casas: revezamento das casas das pessoas para a realização dos trabalhos.
163
de espaçadas trazem apenas datas de trabalhos realizados para algum filho(a),
como podemos ver:
TRABALHO PARA ELZA
Elza
Rua Manoel Jacinto 541 fundos
Vila Sonia
Telef. 8267....
Foram feitos 3 trabalhos (iniciais
62
) e no quarto (07.08.1977) um banho de pinga com
7 garrafas.
1º. Primeiro trabalho nada registrado
2º. Nada registrado
3º. Nada registrado
4º. (07.08.77) banho de pinga.
5º. Nada registrado
6º. 30.09.1977 1 caixa de fósforos e uma vela branca (?)
7º. Trabalho em casa. Exu dos Rios e Exu do Lodo trabalharam juntos,
resultado da entrega que foi feita na beira do rio e na encruzilhada
8º. 25.10.1977 trabalho em casa com Veludo. Trabalho com 2 velas: 1 preta e
uma vermelha.
9º. 08.11.1977 trabalho com Veludo e CBC T Penas
10º. 29.11.1977 ????
11º. 13.12.1977 trabalho com Veludo
12º. 03.01.1978 ?????
62
As anotações entre parênteses são da autora da tese para facilitar a leitura.
164
13º. 10.01.1978 trabalho com Veludo e Lalu
14º. 17.02.1978 trabalho com CBC T Penas
15º. 08.03.1978 trabalho com CBC
16º. 11.03.1978 trabalho no sítio com Veludo, que fez trabalho com um casal
(?) ponteiro, 2 velas brancas e foto e uma vermelha e fez descarga com fundanga
17º. 28.03.1978 trabalho em casa com Veludo, com uma vela vermelha e fita.
Deu um prazo de 2 meses para voltar
18º. 29.05.1978 trabalho com Veludo. Só conversou.
13. 06.1978 trabalho em casa com o Veludo. Veio dos exus, o primeiro Exu Sete
Catacumbas e o segundo Exu Sete Encruzilhada. Ela tem que voltar 27.06.1978.
(Caderno de Registro 1978 Escrevente: Iridia Vaini)
Como se vê, estas anotações não trazem informações mais detalhadas dos
trabalhos realizados e é por este motivo que optei em desconsiderar estes
quatro anos de registros. Para a análise deste período serão utilizados aqueles
que apresentam uma regularidade tanto no registro (mais detalhado), como nos
períodos de trabalhos realizados nas casas.
O sistema de rodízio nas casas funcionava da seguinte forma: um dos(as)
filhos(as) se prontificava a ceder a casa para que os trabalhos fossem
realizados
63
. Até esta época o que havia sido acordado no trabalho anterior era
63
Como a gira era realizada na sala produzia certa desordem na casa. Geralmente quem a cedia
eram os donos, causando discussões com os filhos adolescentes, que muitas vezes não aceitavam o
empréstimo.
165
respeitado, pois até 1980 os Pais não tinham telefone e transferir os trabalhos
para outra casa criava um
contratempo muitas vezes de difícil
solução.
Como as giras eram realizadas nas
casas todos que participavam,
sendo da corrente ou não, levavam
para o final dos trabalhos, alguma
coisa para lanche. Depois de
encerrados os trabalhos havia o
lanche coletivo, como acontecia na praia do Boqueirão. Os donos da casa
nunca tinham que se preocupar em oferecer algo para as visitas, pois o grupo
levava tudo, café, refrigerante, pão, bolo, etc. Também eram auxiliados na
arrumação da casa após o encerramento das atividades.
Muitas vezes após o lanche ter sido servido, um grupo ficava na cozinha
conversando sobre os acontecimentos da noite, conversando sobre os
trabalhos, as entidades, o que havia sido feito, o que o Caboclo Três Penas
havia orientado. Estes diálogos giravam em torno dos aspectos espirituais dos
trabalhos. Infelizmente estas reuniões informais, ricas em conteúdos sobre a
Umbanda e seus processos, não foram registradas e a única coisa que ficou
foram as lembranças das conversas ao redor da mesa.
A aquisição de uma linha telefônica era
um processo difícil e demorado. Era
necessário fazer inscrição na Telesp e
aguardar ser chamado, o que levava,
em muitos casos cerca de 20 anos de
espera. O indivíduo que possuía meios
de adquirir uma linha a vista, comprava
de terceiros ou no “paralelo”. No
governo de Fernando Henrique
Cardoso, com as privatizações é que o
telefone passa a ser um produto de
consumo de fácil acesso a toda a
população.
166
O resgate destas reuniões, a partir de entrevistas com os filhos(s) mais velhos
ou com os Pais, apresentou-se inviável devido à diversidade de situações que
se apresentavam em dias de trabalho, bem como, por sua informalidade.
Nunca houve, segunda a Mãe a intenção ou preocupação em registrar estes
momentos, que segundo ela, não eram vistos como uma “continuidade da gira”
e muitas vezes extrapolavam estas circunstâncias.
Neste período o grupo que acompanhava o casal era fixo, embora pequeno, e
a rotatividade acontecia muito mais na assistência. Alguns filhos(as) que
participaram deste período encontram-se ainda hoje trabalhando no terreiro.
Giras Públicas e Particulares
Como dissemos, este foi um período em que os trabalhos aconteciam nas
casas de forma rodiziada e eram abertos a qualquer pessoa que quisesse
participar, embora esta participação estivesse vinculada a um convite por parte
de outra pessoa do grupo. Esta forma de participação ou de chegar até o grupo
fazia com que todos se conhecessem e proporcionava ás pessoas um
sentimento de acolhimento e intimidade.
Geralmente os trabalhos iniciavam por volta das 20:30h ou até mais tarde, pois
as regras não eram o rígidas, o que causava de tempos em tempos
discussões e reuniões para tentar organizar este aspecto.
Antes de iniciarem os trabalhos, faziam as firmezas para as entidades de
esquerda Exu e Pomba-Gira, geralmente no quintal da casa. A firmeza para
167
Exu consistia em riscar o ponto da entidade, acender uma vela branca e
colocar um copo de pinga no ponto riscado. Embora as firmezas para a
esquerda sejam realizadas geralmente na porta de entrada ou na frente dos
terreiros, como uma forma de proteção do espaço e do ritual, podemos notar
que o grupo fazia a firmeza na parte de trás da casa, para não ser visível da
rua.
Outro aspecto, que podemos considerar como sendo uma característica própria
desta casa, é o uso da vela branca para a firmeza de entidades de esquerda,
pois geralmente os terreiros utilizam velas vermelhas ou pretas; as razões
apresentadas para esta escolha são de ordem espiritual, a escolha do local
(fundos da casa) é de ordem material, pois apesar da família ceder a casa
para os trabalhos, tinha receio de ser vista praticando a Umbanda
64
. Os Pais
então tomavam o cuidado para não colocá-los em exposição perante os
vizinhos.
Os médiuns que faziam as firmezas eram aqueles que incorporavam suas
entidades e geralmente não passavam de cinco.
64
A Umbanda se aproxima do espiritismo para tentar uma legitimação social, que é comparada,
ou melhor, confundida com o Candomblé. Ambas, Umbanda e Candomblé, ainda hoje são vistas
como cultos de indivíduos ignorantes ou do “mal” como dizem algumas vertentes religiosas. Vários
trabalhos foram produzidos analisando estes aspectos, entre eles o de Maria Helena citado e de
Josildeth Gomes Consorte.
168
Os(as) filhos(as) batiam cabeça em primeiro lugar e depois os Pais. Faziam a
defumação e sem seguida eram cantados os pontos de abertura e de chamada
das entidades.
Os trabalhos eram iniciados com uma
prece, proferida pela Mãe e logo em
seguida eram cantados alguns
pontos de abertura da gira,
resgatados do terreiro do Sr. Julio.
O andamento dos trabalhos e da chamada das entidades dependia muito das
pessoas que estavam presentes, não havendo uma definição rígida quanto às
linhas a serem chamadas.
Geralmente chamavam o Caboclo Três Penas (entidade incorporada pelo Pai)
e Caboclo Pena Azul (entidade incorporada pela Mãe), mas era comum a
incorporação de Pretos Velhos, Baianos e Exus e Pomba Giras, sem uma
definição prévia da linha. Havendo necessidade os médiuns incorporavam
outras entidades, que trabalhavam e iam embora retornando a linha de
caboclo. Quando isso acontecia, normalmente o Pai continuava incorporado
com o Caboclo Três Penas que coordenava a gira. Era comum também que a
gira virasse”, ou seja, que as entidades da linha de caboclo fossem embora
dando lugar as entidades da esquerda.
Não havia atabaques e quando era
necessário um ritmo mais forte, este
era produzido pelas palmas. No início
das atividades de casa em casa, os
pontos quase não eram utilizados,
pois poucos médiuns os tinham
memorizado. Muitas vezes cantava-se
o mesmo ponto trocando apenas o
nome das entidades.
169
Como não havia sistema de fichas ou lista para controlar a ordem de chamada,
esta era feita quando as pessoas da assistência chegavam e comunicavam
com quem iriam conversar ou a própria entidade chamava a partir de uma
ordem sua. Não havia tumulto ou briga
para ver quem era o primeiro, pois
todos sabiam que seriam atendidos.
Era comum ainda, uma pessoa
conversar com mais de uma entidade
durante os trabalhos e pedir a mesma
coisa á todas as entidades com as
quais havia conversado.
As entidades mais procuradas nesta
época eram os Caboclos Três Penas e
Pena Azul e os Exus Veludo
(incorporado pelo Pai) e Lalu (incorporado pela Mãe). Embora houvesse outros
médiuns, estes ainda estavam no processo de desenvolvimento e sua
incorporação não era estável, fazendo com que as pessoas, embora
conversassem com as suas entidades e as solicitassem para a resolução de
seus pedidos, insistiam em passar com as entidades acima. Como não havia
uma rigidez no ritual, no sentido de restringir o acesso das pessoas ás
entidades, muitas vezes acabava gerando um problema, pelo menos do ponto
de vista da organização da gira.
Na Umbanda também ocorre à
doutrinação de espíritos sofredores,
a exemplo do kardecismo, embora o
ritual seja diferente. Na umbanda é
permitida a incorporação
(transporte) destas entidades que
são aconselhadas e doutrinadas
tanto pelos médiuns como pelas
entidades que trabalham no
terreiro. A orientação aos médiuns
do TUCTPB nos momentos de
desenvolvimento, sempre foi a de
permitir a vinda destas entidades,
por dois motivos: 1) a de auxiliar
estas entidades e 2) para que o
médium distinguindo as
diferentes vibrações diferenciando-
as, num processo de aprendizagem
para o médium e para o cambono.
170
As giras por fim se tornavam uma sucessão de acontecimentos, mas que não
causavam estranheza. Na mesma noite poderia ocorrer uma operação com a
linha de Preto Velho, para em seguida ser realizado um desenvolvimento com
a incorporação de entidades sofredoras, para logo em seguida dar início aos
atendimentos e nestes momentos poderia ocorrer a incorporação de entidades
diferentes das linhas que estavam presentes no momento, como podemos
observar no relato de 27 de janeiro de 1984:
A Vera recebeu a Mãe D‟água, o Pena Azul
deu uma flor e uma vela, falou que precisava
trabalhar, deu uma vela para ela acender para
Daniel (filho da D. Vera).
T. Penas riscou um ponto para a Nanci que
recebeu um entidade pedindo ajuda. Seu nome
é Cecília Buarque e morreu muito tempo”.
(Escrevente Solange Vaini)
65
65
A partir deste período as anotações são revezadas entre algumas filhas do terreiro e a própria
autora desta tese, a pedido da Mãe. Percebemos, pela imagem apresentada, a preocupação em
anotar em detalhes tudo o que ocorre na gira, como o ponto riscado pelo Caboclo Três Penas. A
preocupação não era somente com os acontecimentos, mas também com aquilo que as entidades
faziam como os pontos riscados, as velas que acendiam e como as utilizavam. Este cuidado era
freqüentemente relembrado pela Mãe, que dizia as escreventes para anotarem “tudo”.
Figura 2 Caderno de Registro
27/01/1984
171
Como não havia uma delimitação de espaços espaço sagrado e espaço
profano os indivíduos da assistência participavam ativamente do ritual,
ouvindo, vendo, intervindo e às vezes participando dele.
O ambiente onde aconteciam os trabalhos, a sala, era preparado para receber
o sagrado: arrastavam-se sofás, cadeiras, mesas, televisão, tapete e montava-
se em um dos cantos o congá.
Esta atmosfera propiciava uma interação muito próxima entre o sagrado e o
profano, ou seja, o ritual e a assistência, causando alguns conflitos entre os
médiuns, que não aceitavam determinadas atitudes, como idas constantes à
cozinha para fumar, comer alguma coisa ou mesmo as conversas paralelas na
hora do ritual.
A dificuldade dos médiuns era compreender que os espaços se confundiam e
que dificilmente conseguiriam uma disciplina rígida da assistência e dos
próprios médiuns durantes os rituais. Como o Pai e a Mãe não tinham uma
postura autoritária, exigindo dos(as) filhos(as) uma disciplina rigorosa, esta
situação muitas vezes se agravava, gerando reuniões para tentar disciplinar
os(as) filhos(as).
66
66
Estas reuniões serão analisadas no item referente ás Reuniões.
172
A Umbanda trabalha com a noção de
demanda, significando um confronto
violento, um combate, uma luta, mas
um combate espiritual, muitas vezes
entre forças opostas que tentam
através da magia, prejudicar alguém.
Maggie, pag. 143, define demanda
como uma guerra de orixá, batalha ou
briga de santo, mas briga de santo no
senso comum umbandista pode
significar briga de entidades, de
falanges, então podemos definir a
demanda como um combate espiritual,
entre falanges.
O Caboclo Três Penas, chefe espiritual, também não exigia esta rigorosidade,
principalmente com a assistência; comumente dava algumas orientações
gerais a respeito do comportamento a ser seguido, mas deixava aos próprios
médiuns a reflexão sobre suas ações e esperava que mudassem sua postura.
Estas orientações eram mais enfáticas e
cobradas quando aconteciam
trabalhados mais “pesados”, quando
enfrentavam demandas e/ou iam à casa
de algum filho(a) para a realização de
um trabalho neste caso uma gira
particular (que será analisada em
seguida).
Outro fato interessante a ser comentado
diz respeito ao início dos trabalhos. Nos terreiros a primeira entidade a ser
chamada é a que comanda o terreiro, ou a gira, que geralmente é um caboclo e
os(as) filhos(as) é que vão até o Pai para cumprimentá-lo. Este aspecto é
mantido no ritual, mas com uma diferença que irá se manter ao longo dos anos:
tanto o Caboclo Três Penas como o Caboclo Pena Azul é que ao chegarem e
depois de fazerem sua firmeza, vão cumprimentar os médiuns e as entidades
já incorporadas, como também a assistência.
173
Este ato, de ir cumprimentar, imprime um estilo mais próximo, de mais
intimidade, além de demonstrar uma postura mais humilde, fazendo as
pessoas sentirem-se lembradas, amparadas, pois o Caboclo é que foi aelas
para cumprimentá-las, podendo significar
que Ele sabe que estavam ali. Esta forma
de cumprimento gera uma ruptura no
formato hierárquico estabelecido nos
terreiros, em que a figura do chefe
espiritual é a figura suprema,
apresentando-se num nível diferenciado e
por vezes distante para muitos(as)
filhos(as), principalmente da assistência.
Esta atitude rompe com a postura de poder do chefe da casa, tanto material
como espiritual, embora não o destitua de sua força e de sua autoridade. Esta
é outra marca que distingue este terreiro. No TUCTPB não se bate cabeça
67
para o Pai ou a Mãe nem para suas Entidades, bate-se apenas para o congá.
Estes aspectos fazem parte de uma “educação emancipatória” nem sempre
bem compreendida por alguns adeptos.
67
Bater cabeça: ação em que o médium deita-se no chão, com a barriga para baixo, com a toalha de
cabeça estendida a sua frente e posiciona a cabeça na toalha em sinal de reverência. Este ritual é
feito quando se inicia a gira, ao cumprimentar o congá ou quando outra situação se apresente.
O fato dos Caboclos chefes irem
cumprimentar os médiuns,
entidades e assistência, modificou
o comumente visto em outras
casas; atualmente outras
entidades, principalmente da linha
de Caboclo, reproduzem o mesmo
comportamento, indo
cumprimentar os médiuns,
incorporados ou não.
174
As giras particulares, a exemplo do que acorria no terreiro do Sr. Julio, também
eram realizadas para adeptos, com necessidades específicas, que não
poderiam ser trabalhadas nas giras públicas, como por exemplo, uma
demanda, que, aliás, era a causa principal dos trabalhos individuais.
Estas giras eram realizadas com o consentimento da pessoa em dias
diferentes daqueles em que eram realizadas as giras públicas,
necessariamente em dias da semana. Poucos médiuns, geralmente, eram
convocados além do Pai e da Mãe.
O ritual acontecia de forma bem mais simples que o público, com uma prece de
abertura e pontos cantados para as entidades, caboclo ou exu, mas que
poderiam ser dispensados dependendo do local e da circunstância em que se
encontravam. Geralmente nestes trabalhos chamavam a linha de esquerda,
pois ela é que resolvia casos mais difíceis e que exigiam a presença dos exus
para negociar.
Os trabalhos poderiam ser realizados uma única vez como poderiam durar
alguns meses. Alguns trabalhos poderiam ser ainda mais longos, como por
exemplo, um caso ocorrido em 1984, em que foram necessárias a realização
de 21 giras específicas para o tratamento de uma garota, além de sua
freqüência aos trabalhos normais, ou seja, às giras públicas.
175
Maria
68
e sua mãe foram trazidas por um filho preocupado com a condição da
adolescente, que entrava em depressão constantemente e tentava cometer o
suicídio
69
.
Segundo depoimento da mãe
70
, estes distúrbios tiveram início quando
deixaram de freqüentar uma casa, que segundo elas era de Candomblé, onde
haviam realizado vários assentamentos. A partir do momento em que o
Caboclo Três Penas iniciou o tratamento espiritual, foram sendo realizados
vários trabalhos, cada um deles com uma solicitação diferente (como banhos
de ervas, pinga, entrega para a linha de esquerda) e a garota foi melhorando,
até “receber alta”.
A compulsão por comer doces (bolos, doces caseiros e chocolates o que a fez
engordar demais para a idade), entre os vários problemas que tinha,
desencadeou outro transtorno, a obesidade. Após o tratamento espiritual,
solicitou autorização para internar-se em uma clínica de recuperação. Os Pais
68
Os nomes das pessoas foram trocados para garantir sua privacidade, principalmente quando se
referirem a trabalhos de giras particulares. Os nomes que foram mantidos referem-se àqueles que
deram autorização para serem mencionados.
69
A adolescente morava em apartamento, num condomínio no bairro das Perdizes, e sua mãe, em
várias situações, pegou-a na janela do seu apartamento tentando se jogar.
70
Este depoimento esta anotado no Caderno de Registro e aconteceu em uma das conversas que
teve com o Caboclo Três Penas sobre a adolescente.
176
perderam o contato com a família e as informações que obtiveram sobre a
adolescente foram por intermédio da pessoa que as havia trazido, informando
que havia terminado a faculdade e trabalhava na área da comunicação.
Nos trabalhos particulares freqüentemente eram realizados “transportes”
incorporação de uma entidade, geralmente de esquerda, que não era a
entidade do médium para conversar e tentar descobrir o que estava fazendo
e por que. Estas incorporações não eram realizadas por qualquer médium,
pois muitos deles não se sentiam a vontade ou tinham medo de fazê-lo, pois
nunca se sabia como estas entidades iriam chegar. Na maioria das vezes
vinham de forma violenta, bravas e desafiando as pessoas ao seu redor.
Como já mencionado, o trabalho com a linha de esquerda é muito controverso,
e poucos são os terreiros que admitem trabalhar com esta linha, pelo menos
publicamente. Quase todos realizam giras de esquerda, mas de forma bem
particular e quando abrem para o público em geral, classificam estas entidades
de “exus batizados”.
Podemos dizer que nestas giras eram realizadas “desobsessões”, diferente é
claro dos métodos utilizados pelo kardecismo. Tinham uma metodologia
própria, como fazer o espírito incorporar, conversar, questionar, atender a suas
solicitações (desde que não fosse prejudicar ninguém ou que o pedido fosse
coerente), ou seja, a desobsessão era um ato de negociação entre o espírito
obsessor e as entidades, com a mediação dos cambonos, que atuavam
significativamente neste processo.
177
A incorporação destas entidades era realizada quantas vezes fossem
necessárias, não num mesmo dia de trabalho, como também ao longo do
processo de cura
71
. As entidades que estão nesta faixa vibratória, podemos
assim dizer, possuem uma vibração diferente, mais pesada, que influi no
médium de forma contundente. Podemos verificar médiuns diferentes sentindo,
a mesma dor ou o mesmo acesso de ódio da entidade, quando a incorporava,
por exemplo. Os registros são muitos, para se dizer que não sejam reais.
71
Cura de acordo com o dicionário Houaiss significa restabelecimento da saúde. Estarei utilizando
aqui o termo com o significado estabelecido por Deepak Chopra, médico endocrinologista que
combinou as concepções da ciência moderna á antiga sabedoria oriental, elaborando uma teoria de
equilíbrio dinâmico entre corpo, mente e espírito. Para ele a conquista da saúde perfeita ”envolve
uma mudança de perspectiva, tornando a doença e a debilidade inaceitáveis”. Embora esta
concepção de saúde esteja vinculada a uma proposta de medicina alternativa, pelo menos entre os
ocidentais, suas idéias sobre a saúde do corpo e da mente são muito parecidas com a concepção
utilizada na Umbanda. Sabemos que ao procurar um centro ou terreiro de umbanda para curar-se, o
indivíduo, principalmente se vai a Umbanda pela primeira vez, esgotou todas suas possibilidades.
Para o umbandista as desordens do corpo são provenientes em grande parte das desordens
provocadas pela mente, pelo espírito (se quiserem podem chamar de inconsciente), mais do que por
“trabalhos feitos” ou magia. Antes de “arriar trabalhos” o que as entidades fazem é tentar modificar
a faixa vibratória destas pessoas, que apenas uma pequena parcela destes indivíduos sofre algum
mal proveniente de “despachos”, “magias” ou “trabalhos feitos”. No caso mencionado, as duas
situações apresentaram-se verdadeiras: a adolescente tinha dificuldades em controlar-se e havia as
cobranças espirituais. existem algumas pesquisas científicas na área da saúde mental que
comprovam as influências vibracionais nos indivíduos, embora ainda sejam muito contestadas. O Dr.
Chopra apresenta alguns casos em seu livro Saúde Perfeita: um roteiro para integrar corpo e mente,
com o poder da cura quântica, em que o poder da mente no indivíduo provocou sua cura deixando
em perplexidade médicos da medicina tradicional.
178
Portanto estes trabalhos eram momentos de aprendizagem para todos os
envolvidos. Aprendiam, através da prática, da ação em si, a doutrinar a
entidade incorporada, aprendendo a negociar, a questionar, a ceder, a auxiliar,
a distinguir uma entidade sofredora (espírito que não reconhece sua condição),
um “exu sem luz”
72
, uma pomba gira ou um exu.
A aprendizagem ocorria para o médium, que tinha que saber diferenciar as
vibrações e se permitir recebê-las sem preconceito; para os cambonos, pois
tinham que ficar atentos para o que a entidade fazia, não permitindo que
machucasse o dium, ouvindo muitas vezes narrações de acontecimentos
que iam contra sua ética; para o filhos(a) para quem se estava trabalhando,
pois percebia que as ações praticadas no passado, tinham reações muitas
vezes imprevistas e de difícil solução.
As Festas
72
Esta classificação do ponto de vista da doutrina umbandista é bem simplista, pois existe uma gama
variada de possibilidades de classificação destas entidades, que depende da concepção adotada
pela casa. No geral trabalha-se com a idéia de exus e pomba giras “de luz” e “sem luz”, significando
que trabalham para o bem ou para o mal. Alguns terreiros ou mesmo livros sobre o assunto,
trabalham com a noção de “exus batizados” e “exus pagãos”, significando na primeira, exus que
deram o nome e ponto, por isso consciente de sua condição e o inverso, exus que não deram o nome
e por isso estão “soltos” podendo realizar qualquer espécie de pedido ou trabalho. No TUCTPB
trabalha-se com a primeira noção, embora também acredite que esta classificação é uma forma
didática de explicar um assunto complexo.
179
No período que estamos apresentando, eram poucas as datas que se
comemorava. Faziam homenagem aos orixás em suas datas comemorativas,
mas somente com pontos cantados e a incorporação da”, entidades das linhas
homenageadas. As exceções eram para
a linha de Yemanjá, em que havia festa
na praia (mas estas também não eram
regulares e dependiam da autorização
do Caboclo Três Penas para sua
realização) e para a gira em
Homenagem ao Caboclo Três Penas.
A homenagem a Yemanjá, era realizada fora do período convencional
73
, em
locais distantes, de preferência em praias desertas ou com pouca presença de
turistas.
As datas para a realização das giras na praia eram marcadas após o período
de férias escolares, que de modo geral ficavam vazias ou pelo menos com uma
quantidade muito menor de pessoas. Como o local escolhido para a realização
73
Na Umbanda a data oficial de Yemanjá é 8 de dezembro e as maiores festividades para
homenageá-la acontecem nas duas primeiras semanas de dezembro, datas organizadas pelas
federações para controlar o acesso de umbandistas às praias do litoral sul do Estado de São Paulo,
principalmente na Praia Grande.
Durante alguns anos os trabalhos na
praia foram realizados em Peruíbe,
numa área de proteção ambiental e
com pouquíssimos moradores. Ao
chegar à cidade, ainda percorriam
alguns quilômetros praia adentro
para achar um local adequado à
realização dos trabalhos, um local
com pouco fluxo de pessoas para
que “os trabalhos ocorressem de
forma tranqüila, como dizia o Pai.
180
dos trabalhos era distante (Peruíbe), basicamente contavam apenas com os
médiuns e seus familiares na gira.
Para a realização da gira, tudo era levado, desde objetos pertencentes ao
ritual, como velas, imagens, atabaques, como também objetos para auxiliar no
preparo do local, como enxada, cordas, lonas, arames, lampião a gás, etc.,
sem esquecer é claro do lanche coletivo após o término da gira.
Nesta época o Pai e a Mãe tinham uma Kombi que transportava a maioria das
coisas, além dos(as) filhos(as), indo sempre carregada. Aqueles que tinham
carro se organizavam dando carona para os colegas.
Quando os trabalhos na praia eram marcados e confirmados, estes haviam
sido autorizados pelo Caboclo Três Penas, que então passava as orientações
Fotografia 12 - Trabalho na Praia de Peruíbe 1988
Imagem cedida por Iridia Vaini e Digitalizada em
28/11/2007 por Solange Vaini
181
Puxada: termo utilizado neste
terreiro para a ação de
desenvolver os médiuns, que vai
para o centro da gira, incorporar
sua entidade.
para a ida, como não brincar, não fazer muita confusão e ter sempre a “cabeça
firme”, ou seja, ir com o pensamento direcionado para os trabalhos que seriam
realizados
74
.
Como nestes trabalhos o ritmo era modificado em virtude do local não há
praticamente registro escrito sobre o desenrolar do ritual, somente das pessoas
que estiveram presentes e das entidades que vieram.
Os trabalhos na praia eram uma homenagem a Yemanjá, uma festa e por isso,
cantava-se para todas as linhas. Não havia restrição na incorporação de
entidades, a não ser para a linha de esquerda que deveria vir na hora
estipulada ou permitida pelo Caboclo. Os médiuns em desenvolvimento eram
“puxados” pelo Caboclo Pena Azul.
74
É comum encontrarmos nestas festividades, terreiros com médiuns alcoolizados. Como este dia é
especial, visto que muitos terreiros deslocam-se centenas de quilômetros para chegar à praia, nem
sempre os conseguem controlar o comportamento dos seus adeptos, que exageram no consumo de
álcool, antes e depois das giras, provocando situações constrangedoras aos seus dirigentes. Uma das
maneiras encontradas pelas federações de controlar estes procedimentos é a obtenção da
autorização para entrar na praia (Praia Grande) nestes dias, não significando, no entanto que estes
comportamentos (muitas vezes individuais) possam ser contidos. Embora o grupo do TUCTPB não
tenha esta característica, o uso de bebidas alcoólicas é proibido, antes ou depois da gira e mesmo
durante os trabalhos a bebida alcoólica é controlada pelos cambonos.
182
A assistência presente, na maioria das vezes, tomava somente um passe e
seus pedidos eram escritos e levados ao mar no momento da entrega das
oferendas:
3 Penas abriu os trabalhos veio o caboclo da M..., L..., A..., V... que receberam
irradiação de preto velho L... também e a V... de caboclo, L... recebeu Iemanjá, a M...
também, vieram os baianos e baianas, 3 Penas pediu para cada filho escrever em um
papel um pedido, depois ele trabalhou em todos e colocou em uma rosa presa por
pingos de vela, fomos todos a água, para lavar a cabeça pelo caboclo Pena Azul,
não fizeram as meninas e Irma, Hursula, Arnaldo, Cássio, depois o 3 Penas pois sobre
uma toalha branca as rosas com os pedidos e todas as demais flores e com o caboclo
Pena Branca entraram na‟gua e depositaram no mar com água a altura do tórax,
antes de lavar a cabeça os filhos depositaram flores, com um pedido tinha nascido o
sol do dia 19.12.81.
Figura 3 Caderno de Registro
18/12/1981
183
Recado _ Flavio deixar o por no mar levar 7 velas 1 de cada cor flores sem
espinho.
(Escrevente: Ruth Chiste, cambona Caboclo Três Penas)
Outra característica deste terreiro era a forma de homenagear Yemanjá. O
Caboclo Três Penas solicitava que as pessoas levassem somente flores
brancas para oferendar a orixá, não havia perfumes, espelhos, barquinhas com
pedidos ou outros objetos, tão comum de encontrarmos nos terreiros de
umbanda.
Em determinado momento, sempre sob o seu comando, todos se dirigiam ao
mar levando as flores em homenagem a Mãe Yemanjá. Entrava-se na água
somente com a água até os joelhos (não era permitido ir mais fundo), contavam
geralmente sete ondas e colocavam as flores na água, gentilmente, sem jogá-
las.
Os médiuns e filhos(as) da assistência que estavam juntos e que recebessem
irradiação da linha D‟água, poderiam dar passagem
75
a sua entidade, sempre
auxiliada por outro filho(a) ou médium. As entidades desta linha podiam ser
ondinas, caboclas(os) do mar, marinheiros.
75
Incorporar. Momento de incorporação.
184
Iniciavam os trabalhos assim que o grupo arrumava o local escolhido e
montasse ali o terreiro. Os carros eram estacionados de forma a fazerem uma
barreira lateral; no centro montavam o congá e o espaço sagrado (terreiro)
delimitavam com velas acesas no chão. Geralmente, mesmo chegando logo ao
entardecer na praia, tudo só ficava pronto por volta 20h ou mais.
O ritual praticamente era igual ao que ocorria nas casas: faziam a firmeza para
a linha de esquerda, afastada do local onde havia sido montado o terreiro,
cantavam pontos de abertura da gira (neste caso não havia defumação), a Mãe
rezava a prece de Caritas e cantavam o ponto de chamada dos Caboclos Três
Penas e Pena Azul, para em seguida chamar as outras entidades.
Os trabalhos não tinham hora para terminar, e todos que estavam presentes
eram atendidos. Aqui também não havia uma regra para o atendimento da
Fotografia 13 - Trabalho na Praia de Peruíbe 1988
Abertura dos Trabalhos
185
assistência, as pessoas eram chamadas de acordo com a necessidade ou o
critério estabelecido pelos Caboclos.
Estes trabalhos eram mais “comportados do que aqueles que ocorriam nas
casas, embora fossem considerados pelos médiuns como uma festa. Estes
eram organizados e pouco tumultuados. Os filhos não faziam algazarra, todos
trabalhavam em harmonia para definir o espaço do sagrado na imensidão da
praia e no desenrolar do ritual pouco se percebia de conversas paralelas ou
saídas “estratégicas” como eram vistas no cotidiano das giras.
A justificativa para este comportamento pode ser explicada de duas maneiras:
uma pela natureza do espaço em que realizavam o ritual. O mar, muito mais do
que a praia, é por excelência um local sagrado para o umbandista. Local onde
os indivíduos reconhecem “o ponto fixo”, no caso o ponto de força da divindade
(Yemanjá) a qual estão prestando homenagem; outra pela amplitude do
espaço, que dissipa o barulho e as conversas e como não paredes para
limitar onde podem ou não podem ir, as ações dos médiuns ficavam menos
visíveis.
A homenagem ao Caboclo Três Pena era realizada em outubro. Embora o
Caboclo não gostasse destas homenagens, a Mãe fazia questão da mesma,
como uma forma de agradecer e de mostrar respeito pelo Caboclo.
186
Segundo a tradição desta casa,
considera-se o dia 12 de outubro,
como sendo a data de seu
aniversário. Esta data o Caboclo
forneceu como sendo o “de seu
nascimento em uma de suas
passagens (encarnação) na terra
como chefe de uma tribo indígena
no México” e da qual ele traz sua
“imagem” atual.
A Festa de Aniversário era simples, sem ostentação. Os(as) filhos(as) levavam
flores para presenteá-lo, geralmente amarelas e “batiam cabeça”
76
para ele.
Segundo a a memória da casa, o Caboclo
então cruzava os(as) filhos(as) nas
costas fazia o sinal da cruz , cada um
deles levantava cumprimentava o
Caboclo, indo para seu lugar. Neste dia
as entidades eram chamadas somente
depois de terminada a homenagem.
Quando o Caboclo recebia flores geralmente devolvia a gentileza oferecendo-
as a todos os presentes, após cruzá-las (benzer).
“Ruth ofereceu ao 3 Penas rosas amarelas
3 Penas pediu 14 flores e cada filho escolheu uma flor.
Depois pediu mais flores deu uma flor para cada um da assistência.
3 Penas explicou o que fazer com as flores.
Quando as pétalas estiverem secas fazer um banho com as pétalas (ferver a água
primeiro e depois colocar as pétalas, jogar do pescoço para baixo)
(Escrevente: sem identificação
77
)
76
Este é o único momento em que os médiuns realizam este ritual.
77
Os registros eram feitos por qualquer pessoa que estivesse disponível, não havia a preocupação
em identificar-se, ou seja, colocar o nome. A identificação das pessoas que faziam o registro muitas
vezes se fez através do reconhecimento da letra, pela convivência de muitos anos com as pessoas.
187
Em 1986 o Caboclo recebeu como homenagem pelo seu aniversário uma
oferenda e um abraço dos(as) filhos(as) ao som do ponto cantado “Um abraço
dado” (ponto cantado para cumprimentar quem faz aniversário); terminado este
rito dão continuidade a gira. No caderno está assim registrado:
“Três Penas chegou, recebeu as flores e a abobora dos filhos. Depois disse que cada
um fizesse um pedido para os seus ou para parentes que estivessem doentes. Foi
cantado um abraço dado e todos os filhos bateram cabeça para o Caboclo Três
Penas. (...)Caboclo 3 Penas pediu para todos escreverem em pedaços de papel,
nomes de pessoas que todos conhecessem e que estivessem com alguma doença.
Quando todos escreveram, ele colocou os papéis dentro da abobora e enfincou um
ponteiro atrás da bandeja com abobora que estava debaixo, no do congá. Todos
tomaram vinho com abacaxi. Depois 3 Penas perguntou se alguém queria falar com
ele.”
(Caderno de Registro de 11 de outubro de 1986 Escrevente: Ilíria Pilissari)
As Obrigações
Podemos entender de duas formas as obrigações que acontecem nos terreiros
de umbanda e em particular neste terreiro: uma delas como manifestação de
agradecimento do médium aos orixás e/ou entidades por terem atendido aos
seus pedidos (seja qual for a sua natureza) através de oferendas de diferentes
Quando não houver identificação do escrevente significa que não foi possível reconhecer o autor do
registro.
188
tipos; outra como uma forma de entrar em contato mais profundo com seus
orixás e/ou entidades, num processo de transformação do aspecto “humano”
do dium em divino, pois está em contato muito próximo da divindade. No
primeiro caso, neste terreiro, temos as oferendas às entidades realizadas pelo
próprio indivíduo e em alguns casos particulares, pelo Pai/Mãe; no segundo
caso, temos o Banho de Abô (camarinha), visto como um sacrifício pessoal
para estabelecer o contato com a divindade.
As entregas eram feitas para entidades tanto de direita quanto de esquerda. No
período analisado as obrigações para as entidades da direita, respondiam a
alguma necessidade, isto é, eram feitas de acordo com os pedidos das próprias
entidades.
Por outras palavras, as obrigações ou entregas realizadas neste terreiro para
as entidades de direita, como Caboclo ou Preto Velho, não eram obrigatórias e
aconteciam quando a entidade do médium ou o Caboclo Três Penas
solicitava.
Poderiam acorrer em duas situações: a primeira como forma do médium
agradecer a entidade e a segunda como forma de estabelecer um contato mais
próximo com Ela. As oferendas neste caso não eram obrigatórias, ou seja,
aconteciam esporadicamente e em diferentes momentos, não se constituindo
em um ritual freqüente a todos do grupo.
189
Para a linha da direita as oferendas eram compostas de frutas, flores e velas
(de acordo com a preferência ou a linha da entidade), bebidas (cerveja, vinho,
guaraná, água) ou outro material solicitado. Quando ocorria a solicitação da
oferenda pela entidade da linha de direita, os médiuns utilizavam o próprio local
do sítio para sua realização. Procuravam outro local apenas quando o
solicitado não era encontrado no sítio, como um jardim cheio de flores ou uma
plantação de eucaliptos.
No TYCTPB somente uma obrigação era realizada regularmente para todos
os(as) filhos(as), que era a entrega para a linha de esquerda, aos Exus e
Pombas Giras. A entrega era realizada uma vez por ano, na Quinta-feira Santa.
Duas semanas antes da data prevista para as entregas, a linha de esquerda
era chamada para solicitar das entidades o que queriam na mesa. Exus e
Pombas giras incorporavam e davam a lista do que queriam. Antes de passar
para o médium esta lista era confirmada pelo Exu Veludo e se houvesse
alguma coisa que não estivesse de acordo era retirada ou solicitada sua troca.
Nesta casa, a mesa para os Exus e Pombas Giras não eram permitidas a
matança. Esta é uma prática comum nos terreiros quando se fala em oferendas
para a linha de esquerda, mesmo que não trabalhem regularmente com as
entidades. Neste terreiro, a entidade poderia pedir alguma comida, como farofa
ou carne (crua), mas oferecer animais para corte nunca foi permitido.
Geralmente os Exus pediam velas, pingas (ou outra bebida de sua
190
preferência), mel, carne (que poderia ser de vaca ou porco
78
), pimenta, como
vemos nos registros transcritos a seguir:
Exu Lalu (médium Iridia)
Sarapatel bem ardido, cozido com óleo de dendê.
7 velas brancas
1 pano
1 alguidar com farinha
3 velas pretas e 3 vermelhas
3 fósforos, 3 charutos, 3 pingas.
Exu Veludo (médium Flavio)
Carne de vaca com bastante pimenta e azeite de dendê,
1 pinga
Pano preto e vermelho
1 charuto
1 vela e fósforo
1 alguidar
(Caderno de Registro 1982 Escrevente: Vanda Roberto)
Para as Pombas Giras eram ofertadas velas brancas ou coloridas, de acordo
com a linha de trabalho da entidade, flores (geralmente rosas), perfumes,
adornos (como brinco, pulseira, colar, piteira), bebida de sua preferência, como
vemos:
Pomba Gira: Dalva(médium: Le)
1 perfume, 1 vinho branco doce
Cigarro (1 maço) 1 taça
7 rosas vermelhas
78
Adquiridas no varejo.
191
7 velas vermelhas
Toalha branca
Fósforo- 1 caixa
Pomba Gira: Estrela Dalva (médium: Maga.)
1 champanhe importada
1 toalha branca com rendas
7 rosas brancas
1 taça 1 maço de cigarros
1 cerveja
1 fita branca larga
Peito de peru no alguidar
(Caderno de Registro 1982 Escrevente: Vanda Roberto)
É interessante notar a diversidade entres os pedidos destas duas Pombas
Giras; a segunda (Estrela Dalva) é uma entrega mais dispendiosa.
As entregas eram realizadas no sítio num local preparado especialmente para
isso, portanto os médiuns não necessitavam procurar encruzilhadas para sua
realização, a não ser que a entidade solicitasse. A entidade que preferisse sua
entrega em outro local, como um riacho também era atendida, que a
propriedade tinha nascente, riozinho, pedras etc. No dia da entrega os médiuns
chegavam mais cedo para auxiliar na limpeza do local, que ficava no meio da
mata. Após 21 dias, os médiuns novamente chegavam mais cedo para os
trabalhos para limpar o local onde havia feito sua entrega. Retiravam o que
havia sobrado jogando tudo no lixo. Nesta época não havia a preocupação com
a reciclagem dos materiais duráveis, como as garrafas, e o destino dado às
elas era muito variado. Geralmente a Mãe solicitava que cada médium levasse
192
embora o que havia trazido. Atualmente estas garrafas são trocadas por litros
de pinga e depois colocados no terreiro para uso comum.
No TUCTPB o Banho de Abô ou camarinha é parte indispensável do ritual das
Obrigações que os(as) filhos(as) m para com o terreiro e suas entidades. Era
realizado todo ano, no sítio, após as entregas para a esquerda. No dia da
realização do banho não havia gira normal, ou seja, os trabalhos eram apenas
para os médiuns e para aqueles que os acompanhavam, como marido, esposa,
mãe, salvo se o Caboclo Três Penas solicitasse a presença de algum adepto
para trabalhos específicos (particulares), aproveitando que neste dia não havia
muita gente na assistência.
O banho de ervas (Abô) feito com ervas coletadas pela Mãe na Sexta feira
Santa. As ervas eram colhidas antes do sol nascer e colocadas em infusão por
um período de 21 dias. Somente depois do período de infusão é que era
marcado o dia para o ritual do banho, entrando muitas vezes no período de
inverno, em que as temperaturas chegavam a 8°, 10°. Os médiuns tomavam o
banho frio, em temperatura ambiente o que significava que em dias muito frios
sofriam bastante.
Neste dia o congá era montado na varanda da casa e o chão coberto com lona
e esteiras que cada médium deveria trazer. Era permitido aos(as) filhos(as)
cobrirem-se com lençol ou coberta, no período em que permaneciam deitados,
193
Os trabalhos eram alternados entre
São Paulo e Cipó, mas em 1982, no
mês de maio os trabalhos no sítio
tiveram que ser suspensos, por causa
do frio, o que uma idéia de
como a temperatura caia nesta época
na região. Quando o banho acontecia
no outono/inverno e a temperatura
cai demais, era permitido aos
filhos(as) a utilização de cobertor e à
alguns filhos, principalmente aos mais
velhos, aquecer o banho de ervas e a
pinga.
que naquela época o banho acontecia próximo ao inverno e na região as
temperaturas caiam consideravelmente.
O ritual contava com dois momentos, mas seqüenciais, sendo o Banho de
Pinga o primeiro. Para isso o médium deveria levar três garrafas de pinga e seu
conteúdo era despejado no médium, da cabeça aos pés. Considerava-se que
este banho serviria para dissipar toda a energia negativa do médium e auxiliar
também na parte material
79
, que o orixá
ou entidade que rege este banho é da
linha de esquerda. A Mãe, incorporada por
uma entidade de esquerda é que aplicava
o banho nas mulheres; para os homens o
banho era aplicado pelo Pai, incorporado
também por uma entidade de esquerda.
O Banho de Abô era feito em seguida, também da cabeça aos pés e seguia o
mesmo processo descrito acima. A cabeça do médium, após a aplicação dos
dois banhos, era coberta com a sua tolha de cabeça, significando que a partir
daquele momento estava consagrando-se à suas entidades, indo para a parte
interna do terreiro “deitar na esteira” - preparada para recebê-los(as).
79
Neste terreiro fazem a distinção entre duas esferas da vida: uma material que diz respeito ao
mundo cotidiano do indivíduo, como trabalho, casa, saúde, etc.; vida espiritual que diz respeito ao
mundo divino, ao mundo dos espíritos, das entidades.
194
Ao deitar na esteira o médium acendia uma vela de sete dias branca, do seu
lado direito e ficava deitado por uma hora ou até que o último filho que havia
deitado completasse seu horário. O Pai e a Mãe eram os últimos a tomar o
banho e deitavam como os(as) filhos(as). Em 1981, vinte e sete pessoas, entre
as que colocavam o branco e as que os acompanhavam, participaram do ritual,
como vemos nesta transcrição:
TRABALHO NO SÍTIO, BANHO DE ABÔ, para os filhos presentes e aqueles que não
veste branco, Joãozinho e família estiveram presentes, ele tocou enquanto os filhos
estiveram deitados na esteira, depois houve o banho de caboclo.
Vera, Vanda, Dada, Sonia, Margarida, Leda, Solange, Mariza, Rose, Lílian, Ruth,
Iridia, Débora.
Flavio, Artur, Melvin, Swamir, Sebastião, Luiz, Edgar, Arnaldo, Sergio, Ricardo,
Joãozinho, Juan, Carlos Eduardo.
(Caderno de Registro de 17 de janeiro de 1981 Escrevente: Ruth Chiste)
O tempo (uma hora) que o médium ficava deitado na esteira era considerado
um momento de reflexão, de meditação, para entrar em contato com suas
entidades e com Oxalá, agradecendo ou pedindo que o ano que se iniciava, a
partir daquele momento, fosse bom, com saúde e prosperidade. Julgam ser
um momento de purificação do indivíduo. Podemos dizer que consideravam
este contato uma forma do médium se tornar menos “mundano”, transformando
ou preparando seu corpo para ser o receptáculo do sagrado, quando da
incorporação de suas entidades. Neste sentido sua natureza de Homem,
transformava-se. Elevava-se ao divino.
195
Ao pegar as ervas para o banho a Mãe ia marcando o nome das mesmas e a
data em que tinham sido colhidas. O ritual para colher as ervas seguia os
mesmos fundamentos aprendidos no terreiro do Sr. Julio, com a diferença que
aqui eram utilizadas somente ervas como já apontamos anteriormente.
A Mãe, além disso, tinha a preocupação de ensinar aos(as) filhos(as) os nomes
das ervas e sua função, como ainda orientava que estes deveriam ter um
caderno de registro (diário) de sua vida espiritual no terreiro, ou seja, deveriam
registrar tudo o que era realizado nos trabalhos
80
.
A lista com os nomes das ervas recolhidas era posta a disposição para que
todos soubessem o que estava sendo feito. Não havia a preocupação de
esconder dos(as) filhos(as) os passos do ritual. Como dissemos atrás, nesta
casa havia sempre uma preocupação educativa, socializando os
conhecimentos, visto que, para a Mãe, estas informações mais adiante, quando
não estivessem mais neste terreiro, soubessem como e por que tinha sido feito.
As Reuniões
As reuniões eram marcadas sempre que alguma coisa ou algum evento
provocava algum conflito no grupo. Estes conflitos eram em grande parte
80
Esta preocupação persiste ainda hoje no terreiro, tendo como justificativa da Mãe, que o médium
em anos futuros terá registrado tudo o que foi feito e quando não estiver mais neste terreiro poderá
lembrar consultando o registro e lembrar o que fez ou o foi realizado.
196
materiais, ou seja, conflitos provocados pelas atitudes dos participantes, nas
giras e que não eram aceitas por um ou mais filhos(as). Muitas vezes estes
eventos acabavam sendo discutidos na gira, com o Caboclo presente, mas
havia determinadas questões que o Caboclo não podia mediar, somente os
médiuns poderiam modificar, como horário de início dos trabalhos, evitar
conversas paralelas durante a gira, cuidar dos objetos das entidades para que
não faltasse nada, etc.
Estas situações ficavam mais críticas quando o número de pessoas na
assistência aumentava. Como todos utilizavam praticamente o mesmo espaço
e não havia uma delimitação tão
marcada entre os espaços sagrado e
profano, o conflito se estabelecia e
qualquer atitude era vista como uma
quebra na unidade da corrente.
O grupo então marcava uma reunião
para tentar solucionar o(s) problema(s),
e todos eram convocados. Primeiro
levantavam o que haviam observado nos trabalhos e que estava gerando o
transtorno. Logo em seguida estas questões eram discutidas e tentava-se
achar uma solução.
O maior problema ou dificuldade e que irá perdurar por mais alguns anos no
grupo, era a elaboração e a implantação de regras. Estas eram cobradas pelos
Corrente: união dos médiuns dentro
da gira. A harmonia de pensamentos,
a união nas ações, a sensibilidade, a fé
dos médiuns formam os elas desta
corrente. Quando algum médium não
está bem ou tem pensamentos
desarmoniosos, costuma-se dizer que
a corrente quebrou, rompeu-se. Este
aspecto é muito importante para uma
gira, pois pode significar um trabalho
espiritual não realizado.
197
médiuns constantemente e na maioria das vezes entravam em choque com a
direção espiritual, principalmente com o Caboclo Três Penas, que não
concordava com a necessidade de regras, pois na sua opinião não adiantava
ter regras se o médium não mudava sua postura.
Em 1983 o grupo discutiu numa destas reuniões, questões como:
“não brincar antes do trabalho;
O que precisa se ter é firmeza de pensamento;
O cambono é responsável pela pessoa que está incorporada;
Cada pessoa tem que levar suas próprias coisas para que um cambono não fique
correndo para cima e para baixo;
Ser assíduos, ter horário certo para começar, obedecer ao horário, sermos mais
unidos; (...)
Rute cada pessoa (deve) cuidar do que é seu e da sua entidade; não consegue
mais ser cambona, corre para todo lado e no fim não faz nada; não gosta que quebra
garrafa, vai tirar menga (sangue)...
L... horário, se a pessoa chegar atrasada nos trabalhos pedir permissão para
colocar o branco; (evitar) muita conversa antes dos trabalhos; assistência (deve) fazer
mais silêncio; medo (de ser deixado) deixar de fora; (...)
A... maior entrosamento, fazer mais trabalhos, que haverá mais entrosamento.
Solução:
Fazer os trabalhos toda semana; começar os trabalhos 8 e meia; cada pessoa trazer
suas coisas; fazer um trabalho na sexta e outro no sábado; determinar um dia para
aulas.”
(Caderno de Registro de 08 de novembro de 1983 Escrevente: Solange Vaini)
Nesse registro podemos notar a preocupação dos médiuns em organizar a gira,
as falas registradas referem-se aos médiuns da casa que cobravam esta
organização. Embora o registro seja confuso e difícil de compreender, notamos
alguns medos, como por exemplo, de Ruth que “não gostava quando a
198
entidade de esquerda dizia que iria quebrar garrafa (na gira) ou tirar menga
(sangue) do médium”. Nessa época ela era considerada a cambona chefe do
grupo, portanto sua preocupação era pertinente querendo, na verdade,
garantias de que estas coisas não aconteceriam na gira.
Segundo as anotações no Caderno de Registro de 1985, outra reunião foi
marcada, para “discutir as medidas de ordem nos trabalhos e ajuda ao
próximo”.
Como podemos notar na imagem, não registro da fala dos participantes,
como na reunião anterior, apenas os nomes e as decisões tomadas, inclusive
com a assinatura dos presentes e segundo o registro com gravação da
reunião.
As mesmas preocupações da reunião de 1983, descrita atrás, aparecem nesta
reunião. A diferença encontrada entre os dois registros é o estabelecimento de
Figura 4 Caderno de Registro
26/06/1985
199
uma quantia mensal que cada médium deveria dar para a compra de material
coletivo e a realização de dois tipos de trabalho: um para desenvolvimento e
outro para atendimento da assistência, que não vemos no registro anterior.
Não ai nenhum registro de alguma decisão tomada pelo grupo, quanto à
ajuda ao próximo, bem como nos registros posteriores. Podemos deduzir que
esta ação não se concretizou, pelo menos nesse período.
Esta forma de registro identificar os presentes e obter assinaturas - expressa
a necessidade que sentiam de formalizar as reuniões imprimindo uma
legitimidade ao grupo e ao ritual.
Uma semana depois dessa reunião um trabalho estava marcado, que foi
cancelado na hora, para que o grupo resolvesse um conflito que havia surgido
naquele momento. Esta reunião está mais detalhada, inclusive com o
apontamento da fala dos participantes, ou melhor, dos médiuns que tinham ido
para a gira.
O motivo da discussão girou em torno dos dias de trabalho (sexta-feira e
sábado) e do local onde se realizariam (casa das pessoas e sítio), que haviam
sido definidos na reunião anterior; percebe-se um conflito no grupo, pois ao
mesmo tempo em que buscam regras e uma organização maior para os
trabalhos resistem em defini-las. A sugestão de um dos participantes, que o
sítio seja um local fixo para as giras, é visto com resistência. O argumento
principal dos médiuns presentes é a distância que teriam que percorrer toda
semana e o custo que isso implicaria.
200
Decide-se por fim, que todos os trabalhos serão realizados às sextas-feiras em
São Paulo e o sítio seria utilizado eventualmente aos sábados.Estabelecem
inclusive um calendário:
Casas:
Sábado no sítio - 06/07/85
1. Swamir trabalho normal
2. Flavio doutrinação
3. S. Arnaldo trabalho normal
4. Sítio desenvolvimento
5. Margarida trabalho normal
6. Luiza
Sexta São Paulo
Sábado sítio
Horário: 20:30hs
(Caderno de Registro de 31 de maio de 1985 Escrevente: Solange Vaini)
Pelos registros posteriores podemos notar que os primeiros trabalhos
obedecem à ordem descrita acima, mas os registros seguintes mostram que os
trabalhos acabam seguindo uma ordem própria, ou seja, definida pelas
necessidades espirituais; é isto que imprime a organização ao grupo surgindo
trabalhos fora do calendário previsto, o que desorganiza a ordem que haviam
estabelecido.
Em 1988, no dia 06 de fevereiro, ao final da gira de esquerda, a entidade da
Mãe, Exu Lalu, avisa que iria falar com todos os(as) filhos(as). O recado era
que a partir daquele dia os trabalhos seriam realizados somente no sítio e não
mais de casa em casa. Pelos apontamentos não contestação de nenhum
dos presentes a respeito da nova ordem, que acatam; mas, como veremos
201
mais adiante, novas divergências aparecerão. Há trabalhos registrados em
outros locais, como São Caetano do Sul, mas estes se referem a trabalhos
particulares específicos, realizados para algum adepto.
Neste período o poucos os registros encontrados de reuniões; o que
podemos observar é que quando um conflito surgia este era resolvido durante
a gira, na presença do Caboclo e com sua intervenção, mesmo que este não
gostasse ou não sentisse a necessidade de sua intervenção nessas questões.
As reuniões que aparecem registradas fora do espaço sagrado (a gira) e sem a
presença do Caboclo, giravam em torno de regras de convivência, como
pudemos observar.
Acredito que o maior problema enfrentado pelo grupo era a sacralização do
local da gira, ou seja, a transformação da sala num ambiente sagrado. A sala,
ambiente privado e de convivência familiar, com suas regras e tempo próprios
era modificada repentinamente pela entrada de um grupo, que a transformava
em poucos minutos, num ambiente sagrado, com outras regras regidas por
princípios estranhos às pessoas que não faziam parte do grupo “de branco”.
Era inevitável o choque.
Mesmo para os que “vestiam o branco”, era difícil entender ou assimilar onde
começava ou terminava cada um dos espaços; para compreender isso
deveriam como que se ausentar do mundo material, o seu mundo, para
então entrar na “gira”. Por isso, vemos nos itens das reuniões regras como: não
sair (da gira) para fumar, não sair (da gira) para comer, evitar conversa antes
202
dos trabalhos, assistência fazer silêncio, o deixar que a pessoa da
assistência converse com todas as entidades, entre outras. Aqui o “ponto fixo”
aparece e desaparece
constantemente
81
(ELIADE, 1992).
Temos ainda outro fator que
contribuía para esta relatividade do
lugar, o espaço sagrado a cada
trabalho era organizado e
reorganizado, pois rodiziavam-se as
casas e a cada domicílio um novo
espaço, um novo “ponto fixo” teria
que se formar.
Quando os trabalhos passam a ser realizados somente no sítio, estas
preocupações ainda permanecerão, mas de maneira diferente da descrita aqui,
como veremos.
Outro fator importante a ser mencionado a respeito destes conflitos é a
procedência religiosa das famílias que acompanhavam o casal. A maior parte
81
Eliade apresenta a noção de espaço sagrado e espaço profano e o “ponto fixo”seria a
manifestação do sagrado, que funda um centro (fundação do mundo), uma orientação, num espaço
(profano) sem nenhuma referência; a experiência profana mantém a homogeneidade e portanto a
relatividade do espaço, o “ponto fixo” permite uma orientação no caos,num mundo não-religioso.
É interessante notar que já nesta época o
Caboclo Três Penas constantemente em
conversas com os filhos(as) dizia que
estes deveriam saber separar os dois
mundos; que quando entravam para a
gira deveriam esquecer os problemas
de fora”. Em 1984, num dia de trabalho o
Caboclo abre um espaço para conversar
(aulas) com os filhos(as), e podemos ver
o seguinte registro:
“T. Penas orientou: colocou branco,
começou trabalho, o filho deve
esquecer seus problemas”.
203
das famílias ou casais que os acompanhavam vinha do catolicismo e se
mostravam perante a comunidade como católicos e, receber a cada quinze
dias ou uma vez por mês, um grupo que modificava o espaço, cantava, fumava
charuto, vestia roupa branca, provocava um choque entre seus membros,
principalmente entre os(as) filhos(as) adolescentes da família, que não
aceitavam a nova prática religiosa dos pais e avós (isto sem falar dos vizinhos).
O registro de 1985, revela:
“ Chegamos na casa da Ruth, a L... falou que não ia mais participar, que não dá mais
para continuar, que os trabalhos estão atrapalhando a vida particular dela e que se os
trabalhos vão ser de sexta-feira ela não vai mais participar e outras infinidades de
coisas.”
(Caderno de Registro de 31 de maio de 1985 Escrevente: Solange Vaini)
Neste registro podemos notar o drama de uma das filhas do terreiro. Sua casa
era uma das que se dispunha a receber o grupo para o rodízio, mas com filhos
adolescentes, principalmente a menina que não aceitava a nova prática da mãe
e dos avós, e que provocava constantes atritos quando sabia que o grupo iria a
sua casa. Muito mais que uma reação de adolescente, era a reação contra o
preconceito que iria enfrentar em seu espaço cotidiano, se suas relações
soubessem destas práticas. Os atritos entre a filha do terreiro e sua filha
adolescente eram freqüentes e intensos a ponto dela solicitar seu desligamento
do grupo, na reunião mencionada. Seu desligamento do grupo, entretanto, não
ocorre neste período e nem por esse motivo. Isso irá acontecer bem mais
204
tarde, na década de noventa, com o falecimento de seu pai e a falta de
transporte para se deslocar até Embu Guaçu.
As aulas
Uma das reivindicações do grupo, descrita na reunião de 1985, que aparece no
item anterior, era a realização de um encontro para doutrinação (aula),
desvinculado dos dias normais de trabalho. Esta solicitação, ou melhor, este
“dia de aula” determinado pelo grupo, nunca aconteceu como previsto por eles.
Na verdade, as aulas aconteciam em dias normais de trabalho, durante a gira,
como podemos perceber pelos registros nos cadernos. Os cadernos estão
repletos de apontamentos de conversas, que podemos classificar como aulas,
pois ensinam aos(as) filhos(as) aspectos da vida religiosa, seja do ritual ou das
concepções da Umbanda.
Pudemos verificar que as situações em que estas aulas ocorriam eram
variadas, como por exemplo, no atendimento de um adepto, durante um
desenvolvimento, mas a situação mais comum era o Caboclo encerrar o
atendimento e abrir espaço para os(as) filhos(as) fazerem suas perguntas. Os
assuntos eram diversificados, indo desde o cotidiano dos trabalhos a temas
como mediunidade, vida espiritual, incorporação, batizado, etc.
Como não havia uma rigidez no ritual, as aulas aconteciam também no início
dos trabalhos, quando começava a gira, antes do atendimento ou incorporação
das entidades, como vemos neste registro de 1984.
205
Foi feita a firmeza para os exus.
Feito também a Cruz das Almas pelo falecimento do avô do Carlos.
Incorporou o Caboclo T. Penas.
T. Penas pediu para cantar o ponto de chamada de caboclos apenas para saudação.
(...)
Perguntas:
P - Pode-se marcar um dia para o trabalho de caboclo ou criança ou pode-se fazê-lo
numa mesma gira?
R - Se quiser marcar, pode (Ex. p/quem está doente). Se quiserem trabalhar com
criança depois dos caboclos, não deixar passar da meia noite.
Ele (o Caboclo) quer a separação das linhas: trabalhar com a direita até 24:00h para
depois passar para a esquerda.
P Pode-se marcar uma sessão para desenvolvimento dos filhos?
R Sim, de cada 15 ou 20 dias, uma sessão para os filhos, sem assistência. T.
Penas orientou: colocou branco, começou trabalho, o filho deve esquecer seus
problemas.
P O médium percebe que está firme?
R Sim. O trabalho pode melhorar se o cavalo tentou se concentrar mais.
T. Penas decidiu escolarizar os guias novos para orientação.
P O L... tem permissão para contar os acontecidos para outros filhos quando
cambonar os guias?
R - Sim, com permissão das entidades.
P Pode o cambono não permitir a incorporação de entidades num médium, para por
ordem nos trabalhos?
R Sim, desde que essa entidade não tenha nada a ver com os trabalhos feitos.
Orientou no sentido de que o médium deve, ao desincorporar, cruzar os braços para
que outra entidade não entre e venha atrapalhar os trabalhos.
P Num trabalho a L... não consegue incorporar o caboclo, mas sente irradiação de
uma entidade que está na assistência. Com a permissão do chefe do terreiro essa
entidade pode incorporar mesmo não sendo o caboclo dela?
R - Sim. Pode ser um sofredor que precisa de orientação. Com a permissão do chefe
(Pai) do terreiro a entidade pode incorporar.
P Trabalhos deverão ser feitos sem bebida ou comida?
R - comida só no dia da entrega.
Bebida o cambono é responsável pela quantidade a ser dada. Não deixar a
entidade andar com a garrafa.
206
P Bebidas oferecidas durante os trabalhos podem ser recusadas pelos filhos?
R - Pode. Se quiser, o filho poderá pedir orientação para chefe do terreiro ou para as
entidades mais conhecidas se pode ser tomado ou não.
P Os filhos podem visitar outro terreiro?
R Sim, porém o cavalo deve se cuidar e saber se trabalham na mesma linha para
não ter conseqüências mais tarde.
(Caderno de Registro de 11/05/1984 Escrevente Vanda Roberto)
Podemos notar que a aula está registrada em forma de perguntas e respostas,
mas estes momentos não se davam de “modo formal”. Como o Caboclo abria
espaço para que os médiuns elaborassem suas perguntas, expondo suas
dúvidas, o que ocorria era uma discussão coletiva sobre os temas abordados,
gerando no grupo que participava certo conflito.
Um fator que contribuía para os conflitos, era a concepção que os praticantes
tinham sobre o que era aprender. Embora participassem ativamente destes
momentos, de discussão, os médiuns, de forma geral, não viam nestas
conversas (como ainda hoje, não vêem!) conteúdos de aprendizagem. Para
eles, aprender significava “ter aulas”, ou seja, organizar formalmente um
momento em que o Pai ou a Mãe se transformem em professores e explanem
temas a respeito da Umbanda. Isto fica claro quando encontramos em
diferentes ocasiões constantes apontamentos solicitando dos Pais, aulas ou
doutrinação, significando a meu ver que os momentos de diálogo com os
Caboclos não eram considerados pelo grupo de médiuns como momentos de
aprendizagem, de aula.
207
Outro fator de conflito era a própria formação religiosa anterior diferenciada
entre os médiuns. Quando um filho(a) expunha sua opinião a respeito de um
tema, não vinha desprovida da visão de mundo e das concepções do filho(a) a
respeito da vida ou da sociedade. Estas opiniões eram proferidas a partir
daquilo que conhecia, o do mundo em que vivia, mas das noções que
construiu ao longo de sua vida sobre o mundo religioso. Não podemos
esquecer que grande parte dos integrantes do grupo tanto de médiuns como
da assistência tinham um histórico de vida dentro do catolicismo e do
kardecismo e as concepções religiosas construídas a partir dessas
experiências eram de alguma forma referências para a prática atual.
Recuperando as noções sobre educação apresentadas no início deste texto,
quando apresentei as concepções que os indivíduos construíram na escola e
vinculá-las ás concepções sobre a vida religiosa dos médiuns, veremos que
são práticas sociais que se articulam e se completam. Não esqueçamos que a
forma de ensinar na escola ainda segue um modelo produzido pela igreja,
ainda que ressignificado e que tanto catolicismo quanto o kardecismo
trabalham com catequese. Se juntarmos estas duas praticas teremos então,
algo aproximado daquilo que os médiuns reivindicavam nessa época.
208
O SAGRADO NA VARANDA
Neste segundo período, quando o grupo definitivamente passa a realizar as
giras na varanda da casa do sítio, os trabalhos se intensificam em
acontecimentos, que serão decisivos para o grupo. Para a análise desta fase,
irei considerar o período de 1990 a 1999, ainda que os trabalhos no sítio
tenham se iniciado em 1988. O motivo para esta escolha deve-se ao fato de
que as anotações de 1988 são praticamente de uma única demanda, ou seja,
os trabalhos registrados nesse ano estavam todos voltados para uma única
pessoa, embora houvesse também atendimento público. os registros de
1989 apresentaram-se muitos espaçados e com pouca coisa anotada. Por
estes motivos estou desconsiderando estes dois anos no período em análise.
O espaço da varanda, onde era realizado o ritual, era montado e desmontado a
cada quinze dias. Os(as) filhos(as) que chegavam cedo ajudavam na
montagem do espaço, esticando lonas que fechavam a varanda e a
transformavam num grande salão onde eram realizadas as giras.
Na fotografia abaixo, podemos observar como o local da varanda era fechado e
a localização do congá e dos atabaques. Como os trabalhos geralmente
terminavam de madrugada, o local era desmontado no dia seguinte pela Mãe e
pelos(as) filhos(as) que ficassem até o domingo.
209
Não havia uma delimitação visível entre o espaço sagrado (terreiro) e o espaço
profano (assistência), esta divisão era feita através de cadeiras que eram
colocadas para o pessoal da assistência.
Giras Públicas e Particulares
A partir de 1988, quando os trabalhos passam a ser realizados definitivamente
no sítio, algumas alterações ocorrem. A mudança principal diz respeito aos
trabalhos, que passam definitivamente para os sábados e a cada quinze dias.
O desenvolvimento dos médiuns às sextas feiras, como o grupo tinha
programado, foi de fato extinto, ocorrendo então dentro do tempo estipulado
para as giras, que agora podem contar com os atabaques, fato que até então,
não acontecia, pois não eram utilizados freqüentemente devido aos locais de
trabalho. Os atabaques imprimem novo ritmo ao grupo.
Fotografia 14 - Festa de Oxossi na Varanda 1989
Foto cedida por Iridia Vaini
Digitalizada em 08/01/08 por Solange Vaini
210
Este período, que compreende aproximadamente 10 anos, foi muito intenso
para o TUCTPB, com acontecimentos diversificados e marcantes na vida do
grupo, que toma também outra configuração. Alguns filhos(as) se desligam e
outros passam a fazer parte como filhos(as) do terreiro, aumentando a
corrente.
A forma de atendimento ao público continua igual, ou seja, não uma ordem
de atendimento das pessoas da assistência, estas vão sendo chamadas de
acordo com sua chegada (informalmente), ou de acordo com a solicitação das
entidades. A previsão de início era ás 20:00h, mas como o Pai não gostava de
iniciar a gira sem que todos estivessem presentes, muitas vezes iniciavam bem
mais tarde.
Depois que o congá estava montado e as coisas no lugar, os(as) filhos(as) iam
se trocar e voltavam para o terreiro. O ritual seguia o mesmo processo do
período anterior, eram feitas as firmezas para a linha de esquerda, no fundo da
casa, em local específico e faziam as firmezas os médiuns que
incorporavam suas entidades. Após este ritual, os médiuns retornavam ao
terreiro e a gira era iniciada, com os pontos de defumação, de abertura da gira,
de bater cabeça e de chamada das entidades.
O ritual de bater cabeça continua da mesma forma que nos anos anteriores, os
Pais são os últimos e não o ritual de cumprimentar os Pais, por ordem dos
próprios Pais, que não aceitam um tratamento diferente por serem os chefes
espirituais.
211
Nos primeiros anos de trabalho na
varanda, com a utilização dos
atabaques, fica evidente a falta de
médiuns que soubessem cantar e
tocar, já que não existia a figura do
Ogã. A partir de então o grupo passa
a se preocupar com este aspecto e
mostrando ser necessário, ter Ogã. Quando nos anos anteriores utilizava-se os
atabaques, os toques ficavam a cargo de uma das filhas (que vinha do terreiro
do Sr. Julio) ou de um dos filhos, que por ter freqüentado outro terreiro e nele
exercer a função de Ogã, podia desempenhar esta função no TUCTPB.
Um pequeno grupo resolveu então procurar uma escola de curimba e atabaque
para aprender os fundamentos do toque e do canto na Umbanda. Procuraram
uma escola que se aproximasse das concepções sobre a Umbanda do próprio
grupo. A Escola de Curimba e Atabaque Felix Nascente Pinto, no Brás,
comandada pela filha do fundador, Denise, que era também professora de
percussão, foi a escolhida. Cinco pessoas do terreiro iniciaram as aulas (entre
elas eu).
No mesmo ano em que freqüentaram a
Escola de Curimba, participaram do III
Festival de sica Umbandista, realizado
no Teatro Caetano de Campos, com a
participação de vários terreiros do estado
de São Paulo. A escola havia inscrito
alguns grupos de alunos em categorias
diferentes, como música original e
intérprete e o grupo do terreiro teve a
oportunidade de participar no coro e nos
toques, junto com colegas de curso que
inscreveram suas músicas.
212
Aprendiam canto, com os professores Élcio de Oxalá (que atualmente tem sua
própria escola em Diadema e é muito conhecido no meio umbandista, inclusive
com CDs gravados) e Leonor (hoje falecida). Os professores de percussão
eram cinco, além da Denise, cada um deles responsável por uma turma, de
acordo com nível de aprendizagem dos alunos.
Conforme iam avançando nos estágios, o grau de dificuldade ia aumentando. O
curso durava em média um ano, com aulas todos os domingos, na parte da
manhã.
A escola não tinha um método de aprendizagem. As pessoas que ensinavam
na escola não eram professores formados, eram umbandistas que conheciam
Fotografia 15 - Escola de Curimba Felix Nascentes Pinto
1989
Da esquerda para a direita de branco, Rene (atual Ogã do
terreiro) e Débora, filha do terreiro.
Imagem cedida por Ilia Ruiz
Digitalizada em 08/01/08 por Solange Vaini
213
toques e pontos da umbanda, tinham vontade de ensinar o que sabiam e
trabalhavam na escola como voluntários. Utilizavam como método de
aprendizagem a repetição e memorização. Para passar de uma turma a outra
havia uma prova prática, onde o aluno deveria tocar e cantar conforme a
solicitação do professor, demonstrando haver decorado ou assimilado os
pontos e toques ensinados.
Do grupo do terreiro que iniciou as aulas, somente um filho terminou o curso,
os demais não conseguiram concluir por diferentes motivos: gravidez, atrito no
âmbito familiar, falta de condução para se deslocar.
Como mencionado anteriormente, a curimba e os atabaques são a “alma” do
terreiro. É a partir do canto e do toque que as entidades são chamadas. Mesmo
freqüentando a escola, ainda havia dificuldade com a curimba em cantar ou
puxar pontos específicos de acordo com a necessidade da gira e os pedidos
das entidades. O Caboclo Três Penas nestes momentos interferia, chamando
a atenção de quem estava tocando, mostrando que os pontos ou a marcação
estavam errados. Geralmente após o “puxão de orelha” parava para conversar
com os Ogãs, questionando-os sobre o que havia ocorrido. Perguntava a
opinião deles, o que achavam e após ouvi-los expunha sua visão sobre o que
ocorrera e de que forma isso influenciava seus trabalhos. Este era outro
momento de aprendizagem que ocorria durante a gira, mas do qual poucos
médiuns se davam conta, pois na concepção deles a aula deveria ser
ministrada de modo formal e sempre com a idéia de “manual” a ser seguido.
214
Os trabalhos nessa época, como dissemos transcoram de forma muito
parecida com o período anterior, mas algumas situações marcaram
significativamente o grupo.
O atendimento ao público foi realizado basicamente da mesma maneira ao
longo dos anos: as pessoas vão conversar com as entidades, contam seus
problemas, suas aflições, alegrias e após ouvi-los, a entidade “receita” alguma
coisa, como acender uma vela, tomar um chá, fazer alguma obrigação. Muitas
vezes o médium ou o grupo não consegue se recordar especificamente das
pessoas que passaram pela gira, pois são muitas as que passam pelas giras
no decorrer do ano.
Mas uma forma bem peculiar de relembrar os acontecimentos e demarcar o
tempo. Este tempo é demarcado a partir das demandas vivenciadas no
terreiro. Nos registros escritos podemos observar uma diluição, se assim
podemos chamar, dos apontamentos dos atendimentos na gira, que trazem
muito marcadamente registros de trabalhos considerados “diferentes” ou
difíceis, que exigiram dos médiuns grande dedicação e união. Este período foi
marcado muito profundamente por uma demanda contra o TUCTPB, combatida
pelo Caboclo Três Penas e as demais entidades, embora tenham vivenciado
outras situações conflitantes.
As demandas são presença significativa no universo da Umbanda, por isso,
vamos nos deter na descrição desse fato, de acordo com a percepção de
membros do terreiro.
215
São comuns as visitas de terreiros a outros terreiros de umbanda. Geralmente
os Pais de Santo vão acompanhados dos(as) filhos(as) do terreiro e são
recebidos como autoridades, inclusive com música e ritual próprio para a
ocasião. No TUCTPB esta prática não é diferente e o Caboclo oferece sua
casa, como sendo a do visitante, cedendo seu lugar à frente do cone do
Caboclo Pena Azul, para o visitante, num ato de humildade e respeito. O Pai de
Santo visitante recebe então suas entidades, comanda a gira durante alguns
minutos, cumprimenta os Pais da casa e então a gira segue normalmente.
Se o visitante quiser pode permanecer dentro do terreiro com seus
acompanhantes ou então se retirar para a assistência.
A demanda em questão aconteceu a partir da visita de um Pai de Santo do
Candomblé, em 1990, trazido por uma filha, que não freqüentava mais a
casa
82
. O candomblecista foi recebido pelo Caboclo Três Penas com todas as
honrarias de um chefe de terreiro. Várias vezes ele voltou à casa, participando
junto com os demais das giras realizadas. Este vaivém durou mais ou menos 3
anos. Em uma dessas visitas, durante a gira ele fez uma oferenda, solicitando
que os presentes participassem, com a doação de moedas que foram
82
Esta filha era conhecida dos pais desde a época do terreiro do Sr. Julio. Os Pais eram padrinhos de
sua filha na umbanda e as relações entre eles sempre foram muito próximas, por isso não
estranharam a visita, pois era comum, embora não freqüente, sua vinda ao terreiro.
216
colocadas junto com outros objetos oferecidos
83
. Como suas entidades
auxiliaram o Caboclo em outros trabalhos, não houve desconfiança quanto às
suas intenções naquele momento, que era uma de suas primeiras visitas.
Quando o Pai e Mãe percebem seu intuito, meses mais tarde, começam a
cortar os vínculos, tanto com ele como com a antiga filha.
Os(as) filhos(as) mais velhos e atuantes do terreiro se recordam com clareza
desta época, principalmente pela posição daquele Pai de Santo perante o
grupo e aos Pais do terreiro (tanto
espirituais, como materiais). Para
eles, sua postura era provocativa,
sempre demonstrando o quanto era
diferente, fazendo magias
desconhecidas (para o grupo) e
criticando abertamente as pessoas na
gira e na presença das entidades, o
83
Esta oferenda é muito comum de ser realizada no Candomblé, onde utilizam alguidar, cará, mel,
búzios e moedas para a obtenção de bens materiais, geralmente emprego ou dinheiro, mas pode ser
utilizada também para “roubar” o Axé (energia, vibração) do outro. Para os filhos do TUCTPB esta foi,
uma entre outras, entregas que o Pai visitante utilizou para desorganizar o terreiro ou como os
filhos(as) dizem, fechar o terreiro, demandando contra eles.
Esta demanda durou alguns anos, pois até
1993 ainda visitavam o terreiro
(esporadicamente). Em uma de suas
visitas (de férias e sem a presença dos
donos da casa) fez um trabalho nos
atabaques, provocando um agravamento
na situação tanto espiritual (do terreiro)
como material (do casal e de suas filhas).
Os trabalhos não serão descritos, pois
envolvem ações e pessoas que não foram
permitidas descrever.
217
que irritava os(as) filhos(as), pois na avaliação deles, o sujeito estava
desconsiderando ou desqualificando o casal e suas entidades
84
.
Segundo os médiuns, meses mais tarde descobrem que havia uma demanda
acontecendo contra o terreiro e, o Caboclo após ser pressionado por alguns
filhos confirma a natureza do conflito. Este fato provocou nos médiuns uma
revolta muito grande, pois não conseguiam entender e aceitar a postura
humilde do Caboclo Três Penas, que dizia que se aquele Pai de Santo
aparecesse novamente, “ele novamente o receberia.
Vários acontecimentos
85
foram desencadeados após esta demanda que,
inclusive implicou em matança. Na defesa do terreiro as entidades chefes
recomendaram uma outra matança (sacrifício
86
,) para constrarrestar a
demanda, uma situação que para o grupo feria os princípios da Umbanda e do
terreiro.
84
Lísias N. Negrão aponta como comum esta postura entre pais de santo. Segundo o autor “é regra
este sentimento de superioridade sobre os colegas-rivais, os quais são habitualmente
desqualificados de forma genérica.” (1996)
85
Estes acontecimentos diziam respeito à vida material dos médiuns, principalmente dos Pais, que
passam a enfrentar uma série de dificuldades, que foram atribuídas a esta demanda.
86
Matança, no caso, aves.
218
A aceitação de tais trabalhos pelos médiuns ocorreu somente depois de
conversas com as entidades de esquerda do Pai e da Mãe que explicaram ser
um recurso final para quebrar de vez
a demanda, que haviam tentado
alternativas sem sucesso. Mesmo
assim, estes trabalhados ocorreram na
presença de um grupo muito restrito
de médiuns e sem a presença da assistência, como pudemos verificar através
dos cadernos de registro.
Este é um assunto polêmico dentro da Umbanda. Para alguns segmentos
umbandistas o sacrifício de animais ou “matança”, como é conhecida, é
inaceitável em qualquer situação e poucos a reconhecem publicamente como
uma prática comum nos terreiros, como também o trabalho com a linha de
esquerda.
Seja por conta das demandas ou pelo espaço que agora permitia avançar noite
adentro, neste período (da varanda) outra mudança ocorre: as constantes giras
de esquerda, que aconteciam em praticamente todos os trabalhos, como
registrado nos cadernos. A gira era iniciada normalmente, com a vinda de
Caboclos ou Pretos Velhos, mas em determinado horário, geralmente à meia
noite ou próximo dela, encerravam-se os trabalhos na linha de direita e “virava
a gira”, ou seja, as entidades da linha de esquerda eram chamadas para
trabalhar.
A linha de esquerda Exu e Pomba Gira
é uma das mais polêmicas linhas da
Umbanda, como mencionado. É
identificada com os demônios e diabos
católicos e com o mal, o que a coloca no
limite da marginalidade, mesmo entre
umbandistas.
219
Para alguns umbandistas a linha de esquerda é aquela com a qual os médiuns
iniciam seu processo de desenvolvimento, de incorporação, por se tratar de
uma linha cuja vibração é mais fácil de
ser reconhecida, por ser mais densa,
mais pesada; consideram também
como fator facilitador da incorporação a
proximidade dessa linha com o mundo
humano. Suas características
mundanas, marginais, facilitariam a
sintonia entre o médium e a entidade a
ser incorporada, que os dois
médium e exu ou pomba gira participariam do mesmo espaço, o profano, o
Caos. É o caso deste terreiro.
No período tratado os médiuns que estavam em desenvolvimento no terreiro
começaram a incorporar mais constantemente estas entidades, percebendo as
irradiações e vibrações pertinentes a esquerda. As entidades de direita (num
processo semelhante ao anterior) também são chamadas.
O desenvolvimento do médium é um momento de aprendizagem, mas de
aprendizagem prática, pois colocam em ação os fundamentos a respeito da
mediunidade. A este processo, de desenvolvimento, se vinculou outro: a
doutrinação.
Algumas casas consideram
desnecessário trabalhar com esta
linha, embora lhe renda homenagem
antes da gira iniciar. Esta não é a
concepção deste terreiro, que não
trabalham como consideram Exus e
Pombas Giras possuidores de “luz”,
ou seja, que estas entidades têm
conhecimento necessário a respeito
da vida espiritual para atuar no
terreiro. Mas as concepções a cerca
desta linha são variadas e
desencontradas e por mais que este
tema seja instigante, não irei me
aprofundar neste universo.
220
Doutrinação: processo de
educação de um espírito.
Concepção trazida do
kardecismo, amplamente
utilizada, como forma de educar
e de pregar a doutrina espírita.
Segundo alguns textos espíritas,
este processo veio para
humanizar os tradicionais
exorcismos praticados pelo
catolicismo. Aqui está sendo
utilizado com o significado de
educar, de aprender.
A doutrinação pode ser entendida como uma forma de educação por que
passa o médium e compreende dois momentos: um de aprendizado com suas
próprias entidades e outro com entidades
que não são as que irá incorporar ou
trabalhar ao longo de sua trajetória como
umbandista. No primeiro caso, tanto médium
quanto entidade, vão passando por um
aprendizado comum: lidar com a palavra,
com o corpo e mais tarde com as pessoas
que atenderá; no segundo caso, a
incorporação de espíritos obsessores e/ou sofredores, a aprendizagem se
através do mesmo exercício: servir de intermediário entre o espírito/entidade e
o cambono que fará a doutrinação do mesmo.
Estes exercícios vão proporcionando ao médium o conhecimento de seu
próprio corpo, assimilando o reconhecimento de energias que são suas ou não.
Esta prática, embora assimilada do kardecismo, é amplamente utilizada neste
terreiro, pois acredita-se que não adianta apenas “tirar o espírito obsessor,
afastando-o do indivíduo”, mas sim esclarecê-lo, auxiliando-o na compreensão
221
e modificação do seu comportamento, bem como encaminhá-lo para
tratamento espiritual
87
se necessário.
Nos momentos de doutrinação apresentados anteriormente, o médium
aprender a incorporar suas entidades. No TUCTPB, estes momentos
aconteciam na gira, geralmente antes do atendimento das pessoas da
assistência, mas isso não era uma regra fixa. Em novembro de 1995 podemos
observar um destes momentos:
“(o Caboclo Três Penas) Pediu para o Caboclo Pena Azul desenvolver os filhos,
pode cantar qualquer ponto (linha), sempre 3 pontos, para depois mudar. O Caboclo
Três Penas disse que não é para cantar ponto de Yemanjá. Quem estava no centro
da gira era o Salvador. Foi cantado vários pontos, mas o de Preto Velho foi mais
repetido.
Depois foi a Maria para o centro. Foi cantado ponto de Caboclo e da Cabocla Yara
(Yara Deusa dos Rios), depois que a entidade foi embora o Caboclo Pena Azul
chamou a Marta. O Mario começou com ponto de criança; Preto Velho, criança, ponto
de caboclo e cabocla (Yara Deusa dos Rios), depois o Caboclo Três Penas pediu
87
Esta idéia de tratamento espiritual” também é bem conhecida no meio kardecista. Segundo esta
concepção, o espírito (encarnado ou não) que não compreende o que seja e como funciona a vida
espiritual, estaria sujeito a ficar “vagando” entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Aquele
que não está mais encarnado pode vir a perturbar um indivíduo encarnado, através, por exemplo, da
invasão do campo energético de seu desafeto. Segundo esta mesma concepção, estes casos são mais
comuns do que imaginamos e o grau máximo a que pode chegar esta invasão, em alguns casos
transformada em simbiose, é a loucura do espírito encarnado.
222
para cantar um ponto de cabocla do oriente, como não tinha ninguém que conhecia,
foi cantado um ponto (quando elevem lá do oriente...) de Caô.
Depois o Caboclo Pena Azul chamou a Eliane. Cantou ponto de caboclo mas a E...
recebeu uma entidade sofredora, depois que acendeu a vela e o Caboclo Pena
Azul falou com ele (grifo meu), foi embora. Foi cantado ponto de Preto Velho, que
ela recebeu.”
(Caderno de Registro de 11 de novembro de 1995 Escrevente Solange Vaini)
O desenvolvimento para o médium é um momento importante e se espera
ansiosamente por ele. No TUCTPB também não era diferente. Todos queriam
mesmo era incorporar, ter suas entidades, falando, consultando, dançando,
trabalhando. Embora o cambono seja uma função importantíssima na
Umbanda, em quase todos os terreiros, os médiuns têm uma ansiedade “louca”
em “receber”, e muitos acreditam que estão “ajudando” ou “fazendo algo” se
incorporados.
Esta ansiedade era expressa logo que
o indivíduo iniciava sua participação na
gira. Ao colocar “o branco”, acreditava
que logo iria incorporar e quando isso
não acontecia, não entendia e muitas
vezes não aceitava a demora em
receber suas entidades.
Para o Caboclo Três Penas esta
deveria ser a menor preocupação de
um filho(a). Para Ele quanto mais um
filho(a) trabalha como cambono,
melhor será o seu desempenho como
médium de incorporação, pois
conhecerá todo o ritual, saberá agir
em diferentes situações, como
também adquirirá a segurança e
tranqüilidade necessárias para lidar
com as pessoas que procuram o
terreiro.
223
Esta impaciência levou os médiuns do TUCTPB a novo acordo: realizar os
trabalhos toda a semana, para fazer o desenvolvimento e incorporar mais
rapidamente. Assim, escolheram a sexta-feira para realizar o desenvolvimento.
A gira seria realizada quinzenalmente, em São Caetano do Sul, na casa da D.
Norma, mãe da D. Iridia (Mãe). Quinzenalmente também, aos sábados,
realizariam os trabalhos normais com atendimento da assistência. Mas o
acordo acaba por não dar certo, pois as pessoas da assistência começam a
freqüentar a casa em São Caetano do Sul o que torna inviável o
desenvolvimento dos médiuns e no próximo ano, os trabalhos voltam
novamente a acontecer a cada quinze dias apenas no sítio.
Quando isso acontece outro ritual se intensifica, que são as operações. Muito
freqüentemente tinha alguma pessoa doente que solicitava ser examinada. O
Caboclo Três Penas pedia que os médiuns dessem passagem para os Pretos
Velhos e estes vinham para cuidar da pessoa. O Pai Tico (Preto Velho do Pai)
é que realizava as operações. Quando aconteciam estes trabalhos o Caboclo
Três Penas mandava parar qualquer outro que estivesse sendo feito e a
operação era o único trabalho que acontecia.
Para a operação a pessoa era convidada a se deitar num colchão colocado no
meio do terreiro e coberta com um lençol branco. A entidade do Pai (o Caboclo
ou o Pai Tico) solicitava que outras entidades auxiliassem, colocando-os na
posição desejada. Neste momento podemos observar novamente um processo
de aprendizagem ocorrendo, se levarmos em consideração que nesse período
224
a maioria dos médiuns ainda não tinha sua incorporação estável. Podemos
observar neste registro o Caboclo Três Penas ensinando como a entidade
auxiliar deveria se posicionar e o que deveria notar:
Três Penas pediu para a vovó levantar-se e começou a examiná-la. Três Penas pediu
para ela deitar, todos os caboclos ficaram em volta. Três Penas deu passagem para
Pai Tico e todos os Pretos Velhos operaram a vovó. Três Penas explicou que é
perigoso operá-la, por causa da idade, os intestinos dela estão gastos e podem dar
complicação.
Disse que operou-a junto com a Dra. Pina e que é para prestarmos atenção em
qualquer reação que ela possa ter. Esperar uma semana e fazer outro exame, pois
ele costurou a ulcera e quer saber se houve melhora. É para ela alimentar-se bem,
comer fígado mal passado e não operar no Hospital, por causa da idade. (Caderno de
Registro de 19 de agosto de 1995 Escrevente: Iliria Pilissari)
A pessoa que passa pela operação é a D. Norma, mãe carnal da Mãe e que
trabalhava no terreiro até pouco antes de seu falecimento
88
, aos 84 anos, como
podemos ver no registro de 16 de setembro de 1995:
Três Penas pediu para a Norma entrar, ela sentou na cadeira e emocionada
agradeceu aos caboclos por sua melhora. Nesse meio a vovó recebeu uma entidade
que parecia de esquerda e que havia estado com ela. A entidade dizia que fazia
88
D. Norma falece no mês seguinte, em outubro de 1995. Tanto para os Pais como para a família
nunca houve a preocupação com a idade para incorporar. A mãe carnal do Pai, D. Inês também
incorporava suas entidades até os 84 anos, quando faleceu.
225
dias que queria pegá-la. Queria ter vindo para ajudá-la na sua saúde, mas que não
deixaram. A entidade falou mais um pouco e depois foi embora.
(Caderno de Registro de 16 de setembro de 1995 Escrevente Iliria Pilissari)
Os trabalhos, agora realizados somente no sítio, intensificam algumas ações,
como o desenvolvimento dos médiuns, as operações para problemas de saúde
e os transportes
89
, esta última, resultado de demandas que chegavam através
de pessoas solicitando auxílio ou de disputas pelo terreiro, como vimos.
Todas estas ações aconteciam durante a gira, num mesmo dia. Como
realizavam os trabalhos a cada quinze dias, as giras contemplavam uma rie
de acontecimentos, que não vemos em outros terreiros, como por exemplo, a
incorporação de diferentes entidades (linhas) numa mesma gira e trabalhando.
As linhas de Caboclos e Pretos Velhos ou Caboclos e Baianos, eram as linhas
que mais se imbricavam e o Caboclo Três Penas não permitia estas
incorporações, como também as incentivava.
É interessante comentar um fato curioso que se dava com o trabalho
desenvolvido pelo Caboclo Três Penas. Este fato é a utilização que faz da
Bíblia nos trabalhos, principalmente nos casos que envolviam demanda. Em
89
Incorporação pelo médium de espíritos (obsessores, sofredores, exus) e/ou entidades que não as
suas, para “conversar”, ou seja, realizar um processo de doutrinação.
226
cima do congá havia sempre uma pequena Bíblia e que podemos ver ainda
hoje no terreiro.
Nesta época o Caboclo Três Penas a
pegava e após concentrar-se, com
ela fechada em suas mãos, abria-a e
colocava de volta no conga e assim
permanecia durante toda gira, mas se
no decorrer dos trabalhos, quando
surgisse a necessidade de realizar
algum mais específico, recorria à bíblia novamente, como uma forma de
confirmação do que precisava fazer ou do que estava acontecendo. Nestes
casos, Ele novamente a pegava, fechava se concentrava e abria-a e solicitava
que algum médium lesse uma passagem apontada por Ele. Também acontecia
de solicitar a algum médium que realizasse este processo. Era muito
interessante a precisão entre os temas (trabalho e leitura do texto), já que abria
a página aleatoriamente.
Num registro de 1994, um dos filhos (o mesmo que fará a leitura da bíblia) trás
para o Caboclo Três Penas o nome de uma pessoa que buscava ajuda. No
registro podemos verificar a proximidade dos assuntos.
“Caboclo Três Penas pediu para o Mané abrir a Bíblia e ler um pedaço, depois
explicar o que leu. Ele disse que falava sobre confiança.
Ele pegava o livro fechado, passava as
mãos em suas páginas e após alguma
concentração abria em alguma página,
aleatoriamente. Pedia a um filho(a)
para ler o versículo escolhido e depois
contar o que havia lido e entendido de
sua leitura. Quando o filho(as) tinha
dificuldades de explicar a leitura pedia
a outro filho(a) e depois comentavam o
que tinham lido.
227
O Caboclo Três Penas perguntou sobre a mulher que está trabalhando, se ela confia
(em Deus), o Mané falou que ela está se “agarrando” no Caboclo.”
(Caderno de Registro de 10 setembro de 1994 Escrevente Solange Vaini)
Dois anos mais tarde, após o episódio descrito envolvendo a leitura da Bíblia,
o TUCTPB passa por momentos difíceis, ainda em decorrência da demanda
citada anteriormente, que faz com que suspendam o ritual do banho. As
anotações no caderno de registro mostram uma conversa da Mãe com o
Caboclo Três Penas, em que esta dizia ter recebido, por três vezes, a intuição
de que não deveriam dar o banho de pinga nos(as) filhos(as) o que foi
confirmado pelo Caboclo. Estavam novamente com uma demanda (guerra de
orixá) ele ainda não tinha identificado a(s) linha(s). Resolvem suspender o
Banho de Abô naquele ano ou até segunda ordem.
No registro, do trabalho seguinte a esta conversa, o Caboclo Três Penas vai
pegar sua guia e esta arrebenta. Após avisar que iria conversar com a
assistência, lemos:
O Caboclo Três Penas pediu para ler um pedaço da Bíblia e ver se fala sobre guerra. O
Mané leu e disse que fala.
(Caderno de Registro de 20 de abril de 1996 Escrevente Iliria Ruiz)
No ano seguinte, em junho, menos de um ano após este diálogo, percebemos
que a demanda ainda não acabou, e a escrevente anota a necessidade da
realização de um trabalho específico, que foi confirmado através da leitura da
Bíblia.
228
O Caboclo Pena Azul pediu para confirmar na bíblia (g. meu) e o Caboclo Três
Penas disse que tudo bem; perguntou para que, é uma coisa que foi pedido, eu disse
(escrevente e cambona) que foi o pano vermelho. Ele abriu (a bíblia) e mandou o
Mané ler e para ver se fala em guerra e tambor e pano. (...) O que foi lido na bíblia foi
confirmado, ou melhor, confirmou o que o Caboclo (Pena Azul) pediu.
(Caderno de Registro de 14 de junho de 1997 Escrevente Solange Vaini)
Em uma outra situação, na Festa de Cosme Damião em setembro, o Caboclo
Três Penas pede para o M... ler a bíblia (trecho) e saber se fala de festa. O filho
responde
que não fala nada sobre festa, mas sobre guerra e o caboclo (Três Penas) falou em
demanda, ele (filho) disse que sim; o caboclo (Três Penas) perguntou sobre sacrifício
e ele (filho) falou que sim, a “cada três dias e no dizimo”; perguntou (o caboclo) sobre
prazo/quando; mas na bíblia não fala. O Caboclo disse que estão devendo
(nós/caboclos) já há muito tempo.
Figura 5 Caderno de
Registro14/06/1997
229
No final desse mesmo ano, 1997, anotações no caderno de registro sobre a
necessidade de outro sacrifício, decorrente da mesma demanda. O trabalho foi
marcado, somente com os Pais e mais três filhos(as). O Caboclo veio riscou
seu ponto, pediu as coisas para o trabalho: a faca (nova) e os alguidares e
antes de iniciar, solicitou para um dos filhos ler um trecho da Bíblia.
O Caboclo Três Penas pediu: a faca (nova) e os alguidares. Colocou um de cada lado
do ponto dele e a faca dentro, depois tirou a faca. O Caboclo Três Penas pediu para
abrir bíblia onde quer (M...) e ler o que está falando. (...)
Bíblia: restauração do templo, fala sobre uma pessoa que está indo onde tem o
templo, medindo o tempo, e este está olhando e chega a um lugar onde está a mesa
de sacrifícios e as adagas. Que através dos sacrifícios o templo irá se reerguer.
(Caderno de Registro de 14 de junho de 1997 Escrevente Solange Vaini)
A partir da leitura e portanto da confirmação do trabalho que iria fazer, deram
continuidade, e a oferenda(com sacrifício
90
) foi realizada para tentar quebrar
novamente a demanda.
Neste mesmo ano, 1997, alguns filhos do TUCTPB iniciam uma conversa, fora
do ambiente das giras, sobre a construção de um local específico para a
realização dos trabalhos, o terreiro, que irá se concretizar dois anos depois, em
1999.
90
Matança.
230
Os trabalhos particulares realizados pelo TUCTPB nesse período, são poucos,
pelo menos os registrados nos cadernos. Encontrei somente três trabalhos
registrados fora do sítio, quero dizer, trabalhos que os médiuns tiveram que se
deslocar para outros locais. Dois destes trabalhos foram realizados na praia,
um na Praia Grande/SP (litoral sul de São Paulo) e outro em Tabatinga/SP
(litoral norte de São Paulo). O terceiro foi realizado em São Caetano do Sul/SP,
mas na época em que os trabalhos estavam sendo revezados entre o sítio e a
casa da D. Norma
91
.
Nos apontamentos encontrados nos cadernos de registro, podemos notar uma
preocupação em relação aos procedimentos a serem realizados, pois as
pessoas ao procurarem o TUCTPB descrevem o que foi feito em outros locais,
e as entidades que iniciam a ajuda deixam transparecer que os terreiros
procurados antes deste, teriam realizado magias erradas, que ao invés de
auxiliar a pessoa, prejudicou-a ainda mais. De acordo, ainda, com a descrição
das pessoas, nos apontamentos, estes terreiros eram mesclados com o
91
A casa de D. Norma (mãe carnal da Mãe) sempre foi uma opção para a realização dos trabalhos
devido ao seu tamanho. Era uma casa antiga, que contava com uma ampla sala e uma varanda
grande que comportava todos os médiuns.
231
candomblé, utilizando magias pertinentes a esta prática religiosa, mas de
forma equivocada, como por exemplo, no sacrifício de animais
92
.
Mas um dos trabalhos, o realizado em São Caetano do Sul, fugiu a esta regra.
A solicitação era para tentar resolver um caso de obsessão. A garota,
conhecida de um dos filhos do terreiro, ao contar seu caso foi convidada para
participar da gira na tentativa de ajudá-la.
Há poucos registros no caderno, sobre este caso, se comparado com os
demais. Um caso que é bem interessante, pois diferia daqueles comumente
registrados. Nos registros podemos observar somente conversas, tanto com a
consulente como com o espírito que a obsidiava. Segundo seu relato, este
espírito, que ela via e com o qual conversava, a acompanhava ha muito
tempo.
92
Este é um assunto polêmico e controverso e um dos motivos para que as federações ou os
movimentos umbandistas defendam a homogeneização dos rituais e a identificação dos terreiros. A
crítica diz respeito a terreiros e chefes espirituais que não tem a experiência e prática necessárias
para o atendimento ao público e acabam por realizar magias equivocadamente. Dentro das religiões
afro-brasileiras é comum encontrarmos adeptos (filhos e pais/mães santo) que culpabilizam terreiros
por práticas contrárias às deles: o umbandista culpa o candomblecista e vice versa. Mas, mesmo
assim, ainda não um consenso em como minimizar este conflito. Aliada a esta dificuldade, de
identificar o que é errado ou certo dentro da magia, temos também a necessidade do “indivíduo
moderno” de querer que seus problemas ou necessidades sejam resolvidas de imediato, o que leva
muitos adeptos a uma peregrinação à todos os terreiros (seja de umbanda ou candomblé) na
esperança da uma solução rápida. Do ponto de vista religioso esta atitude provocaria somente um
emaranhado de “magias” que reforçaria o problema ao invés de solucioná-lo.
232
Este espírito, segundo os registros das conversas, tinha conhecimento de sua
condição, era consciente, sabia o que estava fazendo com ela e não aceitava
interferência e nem ajuda. A simbiose entre os dois era o grande que ela
deixava de fazer as coisas se ele não permitisse, pois tinha medo do que ele
poderia fazer com ela.
Alguns trabalhos foram realizados para tentar conversar com aquele espírito e
as tentativas de fazê-lo incorporar, para isso, não se concretizaram. Como a
consulente mesma dizia, ele não queria conversa. Em um dos trabalhos,
concordou finalmente em incorporar; um dos médiuns o recebeu, mas depois
que foi embora a moça disse que ele tinha mandado outro no seu lugar, um
empregado. Ela viu, mas ficou quieta, com medo dele, pois todas as vezes
que tinha ido procurar ajuda, passava muito mal e tinha medo de desobedecê-
lo. Ele, o obsessor
93
, dizia que esperaria quanto tempo fosse necessário, mas
93
Segundo Allan Kardec, decodificador da doutrina espírita, a obsessão pode ser assim entendida:
“A obsessão é a ação persistente de um Espírito mau sobre uma pessoa. Apresenta características
muito diversas, desde a simples influência de ordem moral, sem sinais exteriores perceptíveis, até a
completa perturbação do organismo e das faculdades mentais" (O Evangelho Segundo o
Espiritismo, capítulo 28:81).
"Trata-se do domínio que alguns Espíritos podem adquirir sobre certas pessoas. São sempre os
Espíritos inferiores que procuram dominar, pois os bons não exercem nenhum constrangimento. Os
maus, pelo contrário, agarram-se aos que conseguem prender. Se chegam a dominar alguém identifica-
se com o Espírito da vítima e a conduz como se faz com uma criança" (O Livro dos Médiuns, capítulo
28:237).
No TUCTPB as concepções a respeito do tema convergem, mas o método de tratamento é diferente.
233
que ela era dele. Os registros apontam que mesmo depois de várias
conversas, não houve acordo.
A moça acabou se afastando e cortou o contato com o filho que a levou até o
terreiro e com o grupo, o que inviabilizou o término dos trabalhos, como
também saber se tinha melhorado ou não. Não há nada registrado nos
próximos meses que possa nos dar uma pista do que aconteceu.
Voltando à questão das demandas, que eram um dos motivos da realização
das giras particulares, podemos observar que uma de suas principais
característica dizia respeito a procedência das mesmas. vários casos
registrados de pessoas que tinham passado por terreiros mesclados com o
candomblé. Este fator trouxe para dentro do TUCTPB a necessidade de
conhecer estas práticas, ou pelo menos a música, pois estas eram solicitadas
pelas entidades nos trabalhos.
Em diferentes registros de gira, principalmente de esquerda, encontramos
solicitações para que se cantassem pontos do candomblé. Eles eram cantados
em momentos determinados pelo Caboclo ou pelo Exu Veludo. Esta situação
acaba sendo comum neste período, principalmente nos últimos anos de
trabalho na varanda. O Caboclo Três Penas inclusive nunca escondeu a
necessidade que tinha de ter dentro do terreiro alguém que conhecesse os
fundamentos do candomblé para auxiliá-lo nas demandas.
234
Esta circunstância acabou provocando um “reboliço” entre alguns filhos do
terreiro, principalmente quando houve a mudaça para o novo espaço. Viam
nestas atitudes ou nas práticas desenvolvidas pelas entidades chefes, uma
transformação para o candomblé.
As Festas
Com os trabalhos na varanda, as festas ocorrem com mais freqüência, pois
havia espaço e autonomia para organizar o lugar.
Fotografia 16 - Festa de Oxossi na Varanda 1991 Imagem
cedida por Ilia Ruiz
Digitalizada em novembro de 2007 por Solange Vaini
235
A Festa para Cosme e Damião continua sendo a mais importante para o
terreiro, embora as outras linhas e Orixás sejam também homenageados, como
veremos pelos registros seguintes.
Na Umbanda, 20 de janeiro é considerado o Dia de Oxossi. Quando
reiniciavam os trabalhos, após o recesso de final de ano, a primeira gira era em
homenagem aos Caboclos. Enfeitavam o espaço, o congá e os atabaques com
folhas e flores.
A Mãe fazia a oferenda
94
, com moranga cozida, mel, milho e para beber vinho
licoroso com mel e abacaxi.
Os médiuns levavam frutas ou alimentos que seus caboclos gostavam e estes
eram ofertados a eles na hora da gira e, depois de terminada a festa, a
oferenda era levada e arreada aos pés da árvore de Oxossi
95
. Os(as) filhos(as)
ajudavam trazendo flores, frutas e comida que suas entidades gostavam que
eram então compartilhadas com todos durante a gira.
94
Para fazer comida do orixá, existe todo um ritual que era respeitado pela Mãe. Quando cozinha-se
para o Orixá, o(a) filho(a) acende uma vela branca pedindo permissão para a feitura do prato; é
proibido conversar, como também, comer qualquer iguaria que esteja sendo preparada. A feitura
dos pratos (comida) oferendados aos Orixás a Mãe aprendeu no terreiro do Sr. Julio.
95
Na época em que freqüentaram o Terreiro do Sr. Julio e fizeram a camarinha no sítio, várias
árvores foram consagradas aos Orixás. Estas árvores existem até hoje no meio da mata.
236
Neste dia dava-se a preferência para a incorporação dos caboclos e caboclas,
mas não era proibido os médiuns receberem entidades de outras linhas.
Durante a gira o Caboclo Três Penas pedia para os(as) filhos(as) tanto da
assistência como da corrente, que escrevessem o nome de pessoas que
estivessem doentes, mesmo aquelas que não estavam presentes na gira e
colocassem no congá (na mesa ofertada ao Orixá). Estes papéis eram
colocados por ele dentro da moranga, que era fechada novamente e no dia
seguinte levavada aos pés da árvore de Oxossi, com o restante das coisas que
tinham sido utilizadas na festa.
As festividades em homenagem a Ogum aconteciam em abril. O terreiro e o
congá também eram enfeitados, geralmente com flores vermelhas e folhas
colhidas na mata, quando era permitido.
O prato preparado pela Mãe, para homenagear Ogum consistia em polenta
com jiló e couve, preparados com óleo de dendê. A bebida era a cerveja, como
podemos verificar neste registro feito por ela em abril de 1993, quando a festa
em homenagem ao Orixá acontece junto a obrigação do Banho de Abô.
Trabalho de Ogum fiz a polenta, couve, jiló, couve e jiló feito com azeite de dendê,
cebola, alho. Filhos vão tomar banho com 3 garrafas de pinga. (Escrevente Iridia
Vaini)
237
Podemos observar novamente a riqueza de detalhes, como o nomes das
pessoas participantes, o que foi realizado e mais abaixo o ponto riscado do
Preto Velho, Pai Benedito, incorporado pela Mãe. Neste registro podemos notar
também, um momento raro nas giras, que é a incorporação de outra entidade
pelo Pai, que não o Caboclo Três Penas. Neste dia ele recebe seu Ogum, o
Ogum Beira Mar. Como vemos, a diversidade de entidades incorporadas
durante as giras permanece como uma das características deste terreiro.
Em maio homenageava-se os Pretos Velhos, embora nem sempre isso
acontecesse. Quando a data era lembrada com antecedência pedia-se aos
médiuns que trouxessem para a gira bebida e comida que sua entidade
gostasse, para montar uma mesa coletiva para as entidades. A mesa era
arrumada com café, rapadura, bolo de fubá, pão e vinho tinto. No congá além
das flores, geralmente brancas, havia um vaso com alecrim e arruda, duas
Figura 6 Caderno de Registro de
24/04/1993
238
plantas que as entidades desta linha gostam muito para realizar suas
mirongas.
Durante alguns anos seguidos não registro de homenagens para esta linha,
pois a data coincidia com a data do ritual do banho. Um dos únicos registros
data de 1991, em São Caetano do Sul (os trabalhos durante alguns meses
tinham sido transferidos para São Paulo, pois a casa estava em reforma):
Festa de Pretos Velhos
Foram cantados pontos para os Pretos Velhos e o primeiro a chegar foi Pai Benedito,
depois foram chegando os demais.
O Roberto recebeu a Mãe Chica, o Mauricio recebeu Pai João de Camargo, a Sonia
recebeu a Vó Luiza, a Leda recebeu Tonho Tião, e a Fátima recebeu o Benedito.
(...) foi servido vinho ou café para os Pretos.
(Caderno de Registro de Maio de 1991 Escrevente Iliria Pilissari)
Em todos os anos deste período foram realizadas a Festa em Homenagem a
Figura 7 Caderno de Registro de
03/10/1992
239
Cosme Damião, com exceção de 1991, que devido a uma demanda, não foi
permitida.
É a única festa em que o espaço do terreiro mudava radicalmente de aspecto.
Suas paredes eram forradas, com pano, papel ou outro material dependendo
de como iria ser a decoração; o teto era coberto com bandeirinhas e enfeites
eram colocados nas paredes, na mesa de doces e no congá, sempre com
muitas flores.
Os preparativos para a Festa de Cosme aconteciam com meses de
antecedência, onde se organizava a decoração e as sacolinhas saquinho
com doces e brinquedos que eram entregues para as crianças.
Toda decoração da festa era confeccionada pela Mãe e algumas filhas
geralmente a irmã carnal da Mãe que faziam desde os enfeites do congá, das
paredes, como as sacolinhas, que durante alguns anos foram feitas de pano e
costuradas pela Mãe.
Um final de semana antes da festa todos os médiuns eram chamados para
auxiliar na arrumação do espaço e no dia chegavam sempre mais cedo para
terminar de organizar e enfeitar tudo. Os doces eram comprados com a
colaboração dos médiuns e algumas pessoas da assistência, mas nunca foi
obrigatória. Os médiuns que não ajudavam nunca foram impedidos de
participar da festa e de levar as sacolinhas, tanto de sua entidade como para
pessoas conhecidas.
240
Nesse dia todos traziam bolos, balas, doces, brigadeiros, sanduíches, guaraná
e mais uma vez a mesa coletiva era montada. Nunca houve a tradição que
acontece em outros terreiros de preparar para a festa, o caruru, comida típica
em alguns terreiros, oferecida aos gêmeos. Nos primeiros anos de trabalho no
sítio eram confeccionadas por volta de 50 sacolinhas, que eram distribuídas
aos médiuns e as pessoas da assistência e mais umas 20 sacolinhas que eram
distribuídas às crianças na estrada do sítio. em 98 e 99 são confeccionadas
150 sacolinhas para distribuição e quase não sobra sacolinhas pra a
distribuição externa.
As festas praticamente não são registradas, pois não havia tempo e pessoas
disponíveis para o registro, dado o volume de crianças e adultos que
participavam e entravam na gira, praticamente todos ao mesmo tempo, para
conversar com as Crianças, que davam passe e consulta.
Fotografia 17 - Festa de Cosme e Damião na Varanda 1992
Foto de Solange Vaini
241
Cada uma das Crianças tinha suas peculiaridades, como a Mariazinha (criança
da Mãe) que come pão com banana, que segundo ela é o que existia para
se comer em sua época de criança na terra (encarnada) ou o Luizão (criança
de uma das filhas) que come laranja, pois em sua época de menino morava em
uma fazenda de laranjas e tinha que roubá-las para matar a fome. Depois que
a festa acabava e as crianças iam embora, o espaço era relativamente limpo, e
os caboclos chamados para trabalhar e dependendo do momento, poderiam ou
não dar consultas.
O Pai ficava incorporado com o Caboclo Três Penas durante toda a festa, para
supervisionar a festa e deixava a cargo da Mariazinha colocar ordem nas
Crianças e não deixar que estragassem a comida ou fizessem muita bagunça.
Se a criança não respeitasse as ordens dele ou da menina, era imediatamente
advertida pedindo que subisse (desincorporasse).
Fotografia 18 - Festa de Cosme e Damião na Varanda 1997
Foto de Solange Vaini
242
Em outubro, outra ocasião importante para o terreiro acontece, que é o
aniversário do Caboclo Três Penas. Às vezes deixavam-se os enfeites da
festa de Cosme e Damião, para este momento. A gira era aberta normalmente
e cantavam o ponto para o Caboclo Três Penas incorporar. Quando o Caboclo
chegava, a um sinal da Mãe, todos levantavam e formavam uma fila para
cumprimentá-lo. Este momento sempre foi de muita emoção, pois o Caboclo
não gosta de agradecimentos, como verificamos nos cadernos de registros,
mas a Mãe insistia que os(as) filhos(as) fizessem este ritual como uma forma
de agradecimento e em sinal de respeito ao Caboclo.
Em 1996 este ritual foi um pouco diferente daquilo que os médiuns estavam
acostumados, como vemos abaixo, na transcrição do momento. Após os filhos
baterem cabeça para o Caboclo, pede para um dos filhos abrir a Bíblia e ler
uma passagem.
O Caboclo Três Penas deu a bíblia ara o Mané abrir onde queria e ler um trecho.
Fala sobre uma reunião (exortação) sobre a elevação espiritual; ai ele (caboclo) abriu
e pediu para o Mané ler um trecho (versículo) que ele mostrou; fala a mesma coisa,
agrupamento de pessoas que buscam uma elevação espiritual; quem falava: primeiro
os discípulos e depois Jesus.
O Caboclo Três Penas é que colocou a toalha de cabeça dos filhos no chão;
passando a Mão para “limpá-la”.
O Caboclo Três Penas chamou o Rubem, colocou-o em frente ao congá com a toalha
de cabeça no chão, mas ele em pé. Pediu para que firmasse em Oxalá e ver se via
alguma coisa, se não ver é para deixar vir a entidade que quiser. Ele recebeu o seu
Caboclo que riscou o ponto: o ponto é diferente do que ele havia riscado.
243
Depois foi a vez da Marisa, igual, colocou a toalha e pediu para firmar em Oxalá. Ela
recebeu o seu Caboclo.
O Caboclo Três Penas disse que os filhos não estão respeitando direito a toalha, que
ela é um “objeto” sagrado para o filho de branco. (...)
(Caderno de Registro de outubro de 1996 Escrevente Solange Vaini)
O Caboclo faz o mesmo processo com todos os filhos e quando encerra o ritual
pede para cantar o ponto de “Maleime”.
Depois pergunta a cada um se houve
alguma coisa de diferente dos outros
trabalhos. Os(as) filhos(as) respondem,
mas não registro, somente a explicação
do Caboclo, dizendo que o que ele fez, foi para que cada filho conheça o seu
próprio corpo e as vibrações que percebeu no corpo.”
Notamos que as giras transcorriam de forma muito dinâmica e com diferentes
ações numa mesma noite. Nesta gira ao realizarem a homenagem, o Caboclo
aproveita para transformá-la em uma aula prática, colocando os médiuns numa
situação de vivência dos fundamentos da Umbanda (incorporação; riscar o
ponto; orientação quanto aos cuidados que o médium deveria ter com sua
“toalha de cabeça”). A aprendizagem acontece quando coloca os médiuns para
incorporarem (mediunidade/práxis) de maneira diferente, sob seu olhar e dos
demais na gira, além de supervisionar o ponto riscado da entidade.
MALEIME - Pedido de socorro, de
clemência, de auxílio ou ajuda, de
misericórdia. Podem vir em forma de
cânticos ou preces pedindo perdão.
244
Esta não deve ter sido uma incorporação fácil, que não estavam habituados
a incorporar individualmente, com o Caboclo supervisionando, além da
incorporação o ponto riscado pela entidade. Embora o Caboclo esteja sempre
atento, sua interferência acorre em momentos específicos nas giras.
As Obrigações
As obrigações para os médiuns continuam as mesmas do período anterior, ou
seja, as entregas para a linha de esquerda e o Banho de Abô. Não há registro
nesta época de oferendas realizadas pelos médiuns para Caboclos e Pretos
Velhos, como uma obrigação coletiva.
O ritual das entregas para a linha de esquerda ocorreram da mesma maneira
que nos anos anteriores. Elas aconteciam sempre na quinta-feira da Semana
Santa, e os(as) filhos(as) iam para o sítio somente para isso, pois neste dia não
havia trabalho. As entregas aconteciam à noite, depois que todos voltassem do
serviço. Nos primeiros anos todos esperavam os colegas chegar para
iniciarem a entrega, mas com o passar do tempo esta prática vai se
modificando.
O local para as entregas continua o mesmo, um espaço reservado no meio da
mata, que é organizado (limpo) alguns dias ou horas antes da entrega anual.
Os médiuns iam chegando e preparando as coisas da entrega para suas
entidades, como retirando os espinhos das rosas, abrindo as garrafas, lavando
copos e cumbucas, costurando os panos para a mesa, etc. Todas as entregas
245
tinham sido confirmadas e autorizadas pelo Caboclo Três Penas ou pelo Exu
Veludo. O médium que não tinha ido à gira, estava autorizado a entregar a
mesma mesa do ano anterior.
Os exus e pombas giras podiam pedir o que quisessem em suas mesas e se
fosse autorizado pelas entidades chefes, o médium poderia dar. Neste dia
estava liberado oferecer comida (fígado, bucho, carne) e outros objetos
(brincos, moedas) bem como velas pretas e/ou vermelhas. A utilização destes
objetos em dias normais de trabalho só ocorria quando o Exu Veludo permitia e
dependendo do que era solicitado a entidade não tinha autorização para usar.
Em 1994 e 1996 as entregas para a esquerda acontecem também no início do
ano, em janeiro. Esta solicitação vem por parte do Exu Veludo que explica ser
parte de acordos espirituais que tinha feito, devido as demandas do terreiro.
Mas, a partir de 1997 as entregas para a esquerda ocorrem em dois períodos,
um ao iniciar as atividades do terreiro em janeiro e outro no período normal, na
Semana Santa. próximo da inauguração do novo espaço esta prática vai se
alterar novamente.
Nessa época o Banho de Abô passa a ser obrigatório, principalmente depois de
1992, quando percebem que as demandas estão cada vez mais constantes.
Sendo obrigatório, o médium que não comparecia no dia, ficava proibido de
vestir a roupa branca e participar da corrente, até que cumprisse sua
obrigação.
246
Nos anos anteriores o banho não era
obrigatório e quem não comparecia,
não sofria nenhuma sanção e
participava normalmente da gira.
Quando passa a ser obrigatório, cria-
se uma atmosfera de insatisfação,
pois ao mesmo tempo que exigiam
normas, quando estas eram
colocadas, os médiuns queixavam-se.
Geralmente o banho ocorria após a
Semana Santa. A Mãe recolhia as
ervas na Sexta-feira Santa e estas
ficavam em infusão por um período de
21 dias. Para o recolhimento das
A preocupação com o tipo de ervas
colocadas no banho surgiu de algumas
situações inusitadas e engraçadas, mas
preocupantes. Um dos casos
constantemente lembrado pela Mãe é o de
um senhor que levou como tarefa, fazer um
banho de defesa de “chapéu de couro”
(erva), mas como desconhecia a existência
de tal erva e não foi esclarecido pelo
cambono como proceder, este foi a uma
casa do norte comprou um chapéu de
couro, fez o banho e tomou (engoliu)! Em
outra situação uma pessoa foi instruída a
fazer o banho de defesa e tomar após o seu
banho de asseio. Ao terminar, pegou um
copo com o banho de ervas e tomou
(engoliu)! Com estas experiências a Mãe
decide retirar da lista, ervas consideradas
perigosas, tóxicas. Constantemente orienta
os cambonos para que estes expliquem
detalhadamente às pessoas como devem
fazer o que as entidades pedem para não
saírem com dúvidas, fazendo errado o que
foi solicitado.
Figura 8 Caderno de Registro de 02
março de 1999
Registro das ervas recolhidas para
o Banho de Abô de 1999.
Escrevente Iridia Vaini
247
ervas, há todo um ritual obedecido rigorosamente pela Mãe, como acender
uma vela pedindo licença para a coleta e recolher as ervas antes do sol nascer
ou depois do sol se r. Neste período as ervas colhidas para o banho eram
ervas medicinais, utilizadas para a cura. Plantas consideradas perigosas,
tóxicas, como a Comigo Ninguém Pode, não eram utilizadas (ver quadro
acima).
O Banho de Abô é dado frio, depois do banho de pinga. As entidades de
esquerda do Pai e da Mãe vinham para dar o banho nos filhos. Primeiro às
mulheres e depois os homens. Após o banho o filho(a) cobria a cabeça com a
toalha de cabeça e deitava na esteira pelo período de uma hora. Durante o
tempo que os médiuns ficavam deitados, não se conversava e os atabaques
não tocavam
96
.
Os médiuns levantavam quando o horário do último filho(a) acabava. Como
os Pais também tomavam o banho e deitavam todos esperavam o horário
96
Quando fazem esta obrigação na época em que estavam no terreiro do Sr. Julio, os atabaques
ficavam tocando a noite toda, da abertura da gira ao final dela. Os Ogãs não paravam de tocar para
deitar, cumpriam com sua obrigação no atabaque. Paravam somente para o banho e depois
retornavam a ele. Neste terreiro isso não acontece, mesmo porque as pessoas que tocavam o
atabaque não eram consideradas Ogãs de cabeça.
248
deles terminar, para levantarem
97
; uma das filhas da assistência, é que
controlava o horário.
Muitas vezes, depois de terminado o horário de permanecerem deitados, o
Caboclo Três Penas incorporava e pedia que os médiuns dessem passagem
para suas entidades, momento em que as toalhas de cabeça eram retiradas
pelos caboclos dos médiuns. Os caboclos vinham, riscavam o seu ponto e logo
iam embora. Em outras ocasiões o Caboclo Três Penas aproveitava para
conversar com os médiuns, transformando a ocasião em mais um momento de
aula. Numa dessas ocasiões conversou a respeito do banho, como vemos no
registro, de 1998:
T. Penas explicou para que serve o banho de pinga:
Limpeza da esquerda: sofredor (pode vim e ficar judiando, com dor,
revolta);esquerda; egum (não sabe o que faz, suga o plasma, não consegue
descobrir); zombeteiro (sabe o que faz)
Se o médium não conhece o corpo ele fica sugando o médium acaba ficando doente
O marafo é colocado em cima da cabeça para fechar a roda (coroa energia);
Banho de Erva: para limpeza e defesa.
Por que o odor? Porque os zombeteiros, eguns não gostam;
Por que se dá o banho de pinga e ervas eles não voltam? Por causa dos banhos.
97
Depois que o Pai esteve doente (infarto) o Caboclo Três Penas tem permanecido incorporado
durante o tempo em que os médiuns ficam deitados. Quando ocorre do Pai deitar, permanece menos
tempo do que os demais.
249
Por que deitar? Ficar rezando e pedindo perdão a Deus; ficar conversando com Deus
e com o Anjo da Guarda; quase uma penitência, um sacrifício; retribuição do que nós
recebemos.
Pode tomar só o banho de erva? Pode, mas não fica completo.
Criança pode tomar? o de ervas, o de pinga não; mas não é muito aconselhável
que tome.
(Caderno de Registro 1998)
As Aulas
Poucos são os momentos registrados de aula neste período no terreiro, em
que paravam especificamente para isto, as aulas aconteciam durante as giras,
como notamos no relato anterior e não havia dias específicos para elas.
O que encontramos com mais freqüência nas anotações são momentos em
que o Caboclo Três Penas ou outra entidade, mas geralmente a dos Pais,
ensinando ou melhor conversando a respeito das giras com os médiuns. Estes
momentos tornaram-se mais freqüentes devido a interferência da Mãe, que não
gostava muito deste momentos pelos conflitos que surgiam. Mas algumas
situações estão registradas, em que o Caboclo Três Penas para
especificamente para conversar com os médiuns.
Uma dessas situações acontece em 1995, quando falece D. Norma, mãe
carnal da Mãe e pessoa constante nos trabalhos. Antes de iniciar as consultas
o Caboclo diz para os médiuns que vão conversar e inicia a discussão com
uma pergunta aos(as) filhos(as) e a assistência:
250
O Caboclo Três Penas disse que como não tem trabalho vamos conversar, que ele
vai “cutucar”:
O que acha sobre a morte? O que nós achamos que acontece quando uma
pessoa morre, para onde ela vai? (g. meu) Quer que cada um responda o que
acha, o que pensa.
M... local de aprendizagem e de passagem; o local de origem é o “outro lado”.
R... lugar de evolução, lugar de cumprir o que prometeu, não aceita muito a morte,
a despedida.
P...- possível retorno, segunda etapa, não se prende não tem medo; quando chega a
hora vai...
L... faz parte de cada um, passo para estágios; vem para cumprir uma
missão;adquire corpo, forma para aprender e pagar coisas, terminou o estágio vai
embora, se não cumpriu volta.
I...- a morte não existe, problema da morte....
S... não aceita a morte, apesar de saber que ela existe e que tem espírito.
S... estágio lá, determinado momento vem para a terra para cumprir missão, prazo
e depois retorna em diferentes estágios.
E...- não aceita a morte, é muito ligada as pessoas.
M...- antes não aceitava, quando o pai morreu encarou diferente, depois que sonhou
com ele encarou diferente, que agora estão em um lugar melhor.
S...- encarou de forma natural, tranqüila.
Caboclo Três Penas disse que tem que aprender, que temos que encarar mais
tranquilamente, que isto faz parte da vida espiritual.
O que ele quer falar é que quando morreu, acabou, apagou é para se desligar, não é
mais para pensar, que todos são prejudicados.
Vai “oló”, fica três dias grudados no corpo, o espírito, pois o elo ainda está ligado, o
períspirito ainda está conectado e quando acaba algum espírito de luz vem ajudar (...)
251
Nesta parte do registro podemos notar as respostas do filhos(as) para a
pergunta do Caboclo, que explica sobre o desligamento do espírito após a
morte e o que acontece ao indivíduo que não acredita numa vida espiritual.
Estes momentos eram muito ricos do ponto de vista da aprendizagem dos
médiuns, que tinham a oportunidade de expressar suas idéias e noções a
respeito dos temas abordados, mas por outro lado, demonstrava muitas vezes
a incapacidade que os mesmos tinham de aceitar a existência de opiniões
diferentes, de estágios diferentes de entendimento dos assuntos tratados e
muitas vezes de sua própria incapacidade de assimilar o que estava sendo
discutido.
O Caboclo Três Penas também abre espaço para que os médiuns façam suas
próprias perguntas, insistindo para que suas dúvidas sejam expressadas para
que possam conversar sobre elas. Em uma gira de novembro de 1996,
encontro nos registros anotações um destes momentos, em que os temas
abordados pelos(as) filhos(as) são bem diversificados, como a pergunta de um
dos presentes a respeito das vítimas do acidente com o avião da TAM que
havia acorrido dias antes no bairro do Jabaquara em São Paulo:
Como podemos ajudar as pessoas que morreram no acidente de avião?
Rezar, pois na parte espiritual já estava programado. As pessoas que foram juntas
tinham um motivo para estar lá, uma missão. Para o espírito o tem tempo; então
podem estar resgatando coisas do passado.
(Caderno de Registro de 02 de novembro de 1996 - Escrevente Solange Vaini)
252
Outro assunto polêmico levantado nesta mesma aula refere-se ao Dia de
Finados e a morte:
Dia de finados, louva as Almas, na Umbanda tem significado?
R. para ele, (Caboclo) Três Penas não tem significado algum, mas em outros lugares,
sim, pois acham que esta tudo aberto, porque as pessoas ficam chamando os mortos.
Quando morre vai direto para o hospital ou fica aqui, e onde fica?
R. Fica junto do corpo, vendo e sentindo tudo, se ela(pessoa)não tiver esclarecimento
sobre a vida espiritual, é porque não entendeu ou aceitou sobre ela. Se a pessoa tem
“luz”, ela passará por tudo isso mais facilmente.
(Caderno de Registro de 02 de novembro de 1996 - Escrevente Solange Vaini)
A mesma questão sobre a morte foi respondida pelo Caboclo Três Penas na
reunião de 1995 e para os mesmos filhos presentes nesta aula. Podemos
perceber que somente conversar, ou melhor, falar sobre um assunto e esperar
que o indivíduo “grave” na memória ou como se diz na escola, “decore o
ponto”, não resolve em termos de aprendizagem, de assimilação e
interiorização de conceitos. A aprendizagem não se dá desta forma. Mas é esta
a concepção esperada pelos(as) filhos(as) e cobrada dos Pais.
Em 1993, período anterior a circunstância descrita acima, encontro nos
Cadernos de Registro uma situação de aprendizagem diferente. Uma das filhas
é colocada para abrir os trabalhos , junto com o Pai (a Mãe ficava na parte de
trás do terreiro e ia auxiliando a filha) para aprender como abrir a gira. Pelo
registro, podemos notar que a filha em questão estava abrindo os trabalhos
há pelo menos dois meses e meio, como vemos.
253
6º Trabalho que a Leda abriu
Foi feita a firmeza e não colocou ebó.
A Leda abriu os trabalhos junto com o Flavio e a Iridia ficou na porteira.
(Caderno de Registro de 04 de Maio de 1993 Escrevente Iliria Pilissari)
Abrir os trabalhos, significava que a filha deveria fazer a oração de abertura, a
defumação e incorporar antes dos(as) filhos(as), no momento em que
cantavam para as entidades chefes incorporarem. Segundo entrevista com a
Mãe era uma maneira de fazê-la, não aprender como abrir os trabalhos,
mas também de aprender a diferenciar as vibrações das entidades quando se
está na frente. Sentir as irradiações diferentes e as intuições para os
procedimentos da gira”.
Mas, este é o grande conflito dos(as) filhos(as), pelo menos de grande parte
deles, que imaginam que a aprendizagem se por técnicas de como fazer,
como se houvesse um manual de procedimento. Embora esta filha tenha
passado por este aprendizado, este não foi suficiente, pois queria ter por
escrito, como fazer.
Atrelada a esta concepção de aprendizagem, vem a de autoridade, ou seja,
que o mestre, o professor deve ser firme, autoritário e impositivo. Esperavam,
portanto, que o tanto os Caboclos como os Pais fossem pessoas autoritárias e
que fizessem valer suas regras e suas opiniões, impondo procedimentos aos
médiuns.
254
Na primeira fase do terreiro, em uma das reuniões registradas estas eram as
qualidades cobradas por alguns filhos, que diziam que para mudar (o terreiro),
os Pais deveriam “impor as regras” e fazer com que todos obedecessem.
Estas o qualidades que estão longe da personalidade do Caboclo, como
também dos Pais, que preferem uma atitude mais flexível, emancipatória. Se
por um lado esta postura auxilia na criação de um ambiente de aconchego e de
coletividade, por outro é incompatível com as concepções dos médiuns a cerca
do terreiro, do papel dos Pais, da aprendizagem no terreiro e finalmente com a
prática cotidiana social dos médiuns.
Nos momentos de aula havia discussões entre os filhos, por terem opiniões
diferentes o que acarretava muitas vezes em brigas verbais, choros e decisões
tomadas no calor da discussão, como a opção de desligamento do terreiro,
pela crença de que esta atitude resolveria o problema, ou seja, ao invés de
resolver o conflito, se afastam dele. Posturas como estas são comuns em
nosso cotidiano. Por este motivo, a Mãe vai aos poucos cortando estes
momentos de aula, como notamos: neste período, que compreende
aproximadamente 10 anos somente dois momentos de aula explícita estão
registradas. A e não aceitava as discussões que ocorriam no terreiro e
principalmente a falta de respeito dos(as) filhos(as) com o Caboclo Três
Penas, achando que ele era igual a nós, matéria.” Ao final deste período os
momentos de aula quase não existem mais.
255
O Caboclo Três Penas tem uma noção interessante a respeito da
aprendizagem dos(as) filhos(as); para ele o médium deve ser curioso,
indagador, questionador. Nas giras solicitava aos médiuns que ficassem
atentos ao que acontecia e que perguntassem o que não entendiam ou o que
tinham dúvidas. Mas, esta nunca foi à postura dos médiuns. De forma geral
ninguém perguntava, esperavam o Caboclo falar ou melhor perguntar. Aliás
esta é uma outra característica do modelo conservador do ensino, o pouco
espaço que professores o a construção da pergunta. A pergunta como uma
forma de construção de conhecimento.
A noção que os indivíduos foram construindo ao longo de suas vidas sobre o
processo de aprendizagem, é explicitada pela concepção que os médiuns têm
do que é ensinar e do que é aprender no terreiro. A idéia da construção do
conhecimento a partir da experiência, da troca e do diálogo o é aceita, na
verdade, o diálogo é visto como fraqueza e falta de conhecimento de quem
ensina, isto é, do Caboclo e dos Pais.
O diálogo, como metodologia de aprendizagem, não é considerado como uma
forma válida de se aprender dentro e fora do terreiro. A noção interiorizada
sobre este processo molda as ações e reforça o comportamento passivo diante
do conhecimento e da realidade.
256
No primeiro período quando os
trabalhos eram feitos no sítio a
disposição era inversa, com o congá no
vão perto da porta da cozinha e do
quintal. Foi invertido pelos motivos de
reclamação do segundo período: o
entra e sai para a cozinha.
As Reuniões
Quando os trabalhos passam a acontecer somente no sítio surgem novos
problemas, relacionados à organização do terreiro e dos médiuns. É
interessante relembrar que as giras aconteciam na varanda da casa, que era
fechada com lonas para conter o vento e transformá-la num “barracão”. O
congá ficava de costas para a estrada e as portas de entrada da rua/quintal e
da cozinha ficavam do lado da assistência, facilitando a entrada e a saída das
pessoas.
As atividades do terreiro foram intensas e o grupo tentava se organizar,
discutindo regras que melhorassem as giras. Embora não haja tantas reuniões
marcadas, este período foi bem agitado e as reivindicações constantes, que
giravam em torno do “entra e sai” dos(as) filhos(as) e da assistência, a
conversa paralela, a “via sacra” com os guias etc.
As reuniões aconteciam durante os trabalhos, muitas vezes ao término da gira,
quando o atendimento ao público
havia terminado ou na casa dos Pais,
quando um ou mais filhos(as) iam
procurá-los com alguma reclamação,
dúvida ou sugestão.
As principais reclamações deste período giraram em torno da utilização do
espaço do terreiro. Em 1995, em uma das poucas reuniões registradas que
257
ocorreu na presença dos Caboclos Três Penas e Pena Azul, após o
encerramento do atendimento ao público, lemos o seguinte:
O Caboclo Pena Azul pediu para o R... começar. Ele começou a falar sobre a
organização, pois agora tem muitas pessoas na gira. Organizar os trabalhos.
Para o Caboclo Três Penas falta responsabilidade.
Resumindo: nova tentativa de organizar os trabalhos e a gira.(g. meu)
Para o L...:
Falta preparação pra os trabalhos: não comer, não brincar
Evitar atividades que possam prejudicar os andamentos dos trabalhos;
Não comer carne
Não beber bebida alcoólica
Não ter relações sexuais
Não desviar assunto
Os filhos deveriam logo que chegar por o branco e concentrar-se.
Nos trabalhos:
Consultas muito demoradas
As consultas deveriam ser levadas a apenas uma entidade (via-sacra)
Uso do avental
Barulho demais
Cada médium deve ter o seu material consigo
Definir o que são objetos de uso coletivo ou não
Quem vai ensinar os fundamentos para os novos filhos
(Caderno de Registro de agosto de 1995 Escrevente Iliria)
Como lemos, as regras levantadas referem-se a aspectos muito mais
individuais, como por exemplo, o que podem comer ou beber antes da gira, uso
258
do avental e material individual, do que aspectos coletivos, como consultas
menos demoradas (aspecto este que irá afetar diretamente o Caboclo Três
Penas, que não aceita este tipo de regra). Os tópicos descritos eram
recorrentes nas reuniões ou conversas entre os médiuns e entre estes e o
Caboclo Três Penas, numa tentativa de fazer com que este colocasse regras
rígidas que todos deveriam seguir. É certo que nem todos os médiuns
reivindicavam estas regras, mas elas eram constantemente relembradas,
atingindo a todos.
Alem destas regras, outras estão registradas, como “não colocar a mesa antes
dos trabalhos depois de acabar”, “ter firmeza para não deixar outras
entidades entrar” e quem deve falar o que é certo ou errado é o Caboclo Três
Penas.
uma confusão entre o que esperavam individualmente de cada um e o que
esperavam da pessoa como médium dentro do terreiro e as tais regras acabam
muitas vezes invadindo o espaço individual de cada um, ou se quisermos, do
livre arbítrio do médium. Estas regras eram constantemente cobradas por dois
ou três filhos, que não aceitavam a postura mais aberta do Caboclo e
conseqüentemente das pessoas que freqüentavam os trabalhos tanto de
branco como da assistência.
259
A dificuldade que os adeptos tinham de enxergar “a varanda” como um local
sagrado, ou seja, o espaço montado como local do sagrado, apontado no
primeiro período, aqui também se faz presente. A facilidade de acesso à
cozinha, à sala, ao banheiro, o horário que terminavam os trabalhos (era
normal os trabalhos terminarem de madruga, depois da 3h da manhã), tudo
contribuía para este olhar.
No item a mesa colocada”, referindo-se ao lanche servido antes de iniciar os
trabalhos
98
, que era motivo de agregação, de constituição do grupo e da
coletividade, passa a significar um fator de desagregação, já que este espaço
a cozinha onde se come, se conversa, interfere no espaço espiritual, no
sagrado, pois é visto como um
espaço profano, um espaço “da
matéria”. Na verdade um equívoco
no modo de ver a questão, pois o
espaço da cozinha, visto como
causador do conflito ou de
desorganizador da gira, não era
problema, mas sim o modo como os
adeptos enxergavam o espaço
sagrado. A varanda, como sendo este local, portanto o espaço que deveria ser
98
Após os trabalhos, já de madrugada, era servido novo lanche para todos.
A utilização da casa sempre foi um
assunto polêmico, pois para a Mãe como
poderiam proibir que as pessoas
entrassem ou utilizassem os demais
cômodos, como o quarto, se eles eram os
anfitriões da casa e as pessoas que
freqüentavam o terreiro eram todos
conhecidos? Em todos os momentos que
havia a cobrança de proibir a utilização
da casa, criava-se um mal estar para a
Mãe que não aceitava este
procedimento.
260
reverenciado, era violado a partir do momento que os adeptos não
respeitavam as normas, como por exemplo sair da gira ou da assistência para
comer (na cozinha).
Os problemas que ocorriam na hora dos trabalhos e do atendimento ao público,
eram atribuídos ao procedimento dos(as) filhos(as), como por exemplo, a frase
registrada “quem tem firmeza, não deixar outras entidades entrar”, era
imputada à postura descompromissada do médium com os trabalhos,
interferindo na gira.
Quanto ao item dos objetos, pelo registro podemos inferir que nem todos
traziam ou mantinham em ordem as coisas de suas entidades, e na hora dos
trabalhos, quando necessitavam de certos apetrechos o cambono tinha que
sair procurando ou pedindo emprestado para outro médium. Geralmente
pegavam dos Pais que mantinham suas “sacolinhas” sempre com material
extra ou então contavam com as coisas da casa. Para evitar este tipo de
problema várias soluções foram tentadas, como a compra de material coletivo
e que ficava no sítio (os médiuns não precisavam carregar as coisas). Esta foi
uma solução em grande parte bem sucedida, a não ser pelo recolhimento da
taxa mensal para a compra do que era necessário, pois nem todos os médiuns
contribuíam.
Podemos perceber pelos registros, que quando estas reuniões aconteciam na
presença do Caboclo Três Penas ou o Caboclo Pena Azul, estes ouviam as
reclamações e diziam que quando fossem para o terreiro tudo se modificaria,
261
seria diferente. Os filhos que cobravam uma atitude compromissada dos
demais ouviam com incredulidade os Caboclos e geralmente cobravam uma
postura deles no presente, de imediato. A fala do Caboclo Três Penas,
principalmente, era de que os médiuns deveriam refletir sobre sua própria
postura, sobre sua forma de ver e agir nos trabalhos e que se isso acontecesse
metade das reclamações acabariam.
No início de 1997 alguns filhos(as) em reunião informal com os Pais decidem
construir um barracão para a realização dos trabalhos. Em fevereiro deste ano
antes de iniciar os trabalhos um dos filhos tem a permissão para falar com os
demais sobre a decisão. Não registro da fala dos médiuns a respeito do
assunto, mas em setembro deste mesmo ano, após a gira ter terminado o
Caboclo Três Penas abre espaço para uma de suas aulas e o tema principal é
o novo terreiro.
Sobre os trabalhos:
O Caboclo Três Penas disse que quando o terreiro ficar pronto, o ritual irá mudar, vai
ficar tudo diferente. terá porteira (entrada e saída); não poderá entrar de sapatos,
fumar.
(...)
Quando abrir o terreiro terá normas:
Porteira: quem ficar na porteira não poderá dar consulta; se um filho entrar e estiver
ruim quem (es) tiver na porteira tem que tomar conta, não pode deixar entrar filho ruim
no terreiro;
(Caderno de Registro de 06 de setembro de 1997 Escrevente Solange Vaini)
262
No caderno de registro, as anotações dizem respeito aos problemas que vêem
nos trabalhos, como: a questão das regras, do horário, da falta de paciência
que “os de branco” acabam tendo pela demora em terminar a gira (para estes
médiuns ficar na gira, sem estar incorporado é como “não fazer nada”, “não
tem sentido”), falta de doutrina (aula), linha de conduta, ter desenvolvimento.
Depois de relacionarem todos os problemas percebidos, encontramos
anotadas algumas sugestões, como a de um dos filhos (M...) sobre o item
desenvolvimento: deveriam realizar os trabalhos toda semana. A resposta do
Caboclo Três Penas é bem interessante, pois na verdade explicita o conflito
dos médiuns entre o que gostariam de fazer (ideal) e o que fazem (real), isto é,
que o tempo na cidade, hoje é organizado de forma diferente e com outras
exigências.
Resposta do Três Penas: hoje é diferente. Se for fazer como deve ser feito, os filhos
não agüentam, a vida hoje é diferente e os filhos não teriam condições de seguir.
(Caderno de Registro de 06 de setembro de 1997 Escrevente Solange Vaini)
Uma das reivindicações, quase recorrente no final deste período, dizia respeito
ao horário dos trabalhos, que segundo os diuns não tinha sentido demorar
tantoe que os consulentes ficavam “fazendo hora” com as entidades. para
os Caboclos a questão do tempo era a que menos importava, pois para eles
“não existe tempo”; na parte espiritual não para impor, a matéria não „faz
mandador‟”.
263
Segundo pudemos notar nos vários
apontamentos de aulas e reuniões, para o
Caboclo muito mais do que realizar
“trabalhos”, o indivíduo necessita ser
ouvido, responder às suas inquietações, a
suas dúvidas. O diálogo para ele é a
forma por excelência de ajuda, por isso
não há sentido em cercear o que se diz e
o quanto se diz através de horários
rígidos de atendimento.
Os(as) filhos(as) sugeriram que se determinasse um tempo x para as
consultas. Mas os Caboclos não concordavam e mesmo o Pai quando
participava destas discussões expressava seu descontentamento a qualquer
referência de controle de horário ou de tempo determinado para o atendimento.
Sua opinião a respeito do assunto era a mesma do Caboclo e de outros
membros do grupo: que era
impossível estabelecer um tempo
para que as pessoas ficassem em
consulta com as entidades.
A resposta do Caboclo Três Penas à
esta questão era que tudo que é
“radical não é bom” e cita como exemplo um terreiro que tinham horários
rígidos de início e término dos trabalhos, que uma das filhas freqüentou durante
alguns meses. No exemplo citado pelo Caboclo, a casa, independente do que
estava acontecendo na gira, às 10h encerravam os trabalhos”. Para o Caboclo,
esta atitude era inconcebível, pois atrapalhava a ajuda espiritual e as pessoas
sairiam do terreiro descontentes e sem a ajuda que tinham ido buscar.
Após uma discussão acalorada entre todos os participantes, que podemos
notar pelos registros, inclusive com um pedido de afastamento de um dos filhos
mais próximo aos Pais, o Caboclo tenta apaziguar a questão e faz nova
pergunta aos médiuns: o que eles entendem por vida espiritual”?
264
As respostas foram diversificadas, como aprendizagem, evoluir o espírito,
aprender, missão a cumprir, escolha de um caminho certo, equilíbrio, conciliar
matéria/espiritual (fazer coisas boas). Depois que todos responderam, queriam
saber se suas respostas estavam corretas. O Caboclo Três Penas responde
que sim, mas que para ele faltava uma coisa pequinininha, que era “ajudar ao
próximo”. E dá um exemplo: Jesus porque ele ajudava os outros se ele tinha
tudo? Ele não precisa de nada então porque ajuda os outros.
Para ele, Caboclo, a questão da ajuda ao próximo era o item principal com o
qual os médiuns deveriam se preocupar e citando Jesus, lembra-os de que
não limites quando se quer prestar a caridade ou quando se quer ajudar o
próximo.
Com esta fala o Caboclo põe um fim ao questionamento dos médiuns, pelo
menos naquele momento, pois ninguém (pelos apontamentos da reunião)
questionou. Mas, podemos notar o drama do grupo, que ao mesmo tempo em
que sugere aumentar o número de trabalhos por mês, quer cercear o tempo de
consulta das pessoas da assistência.
Como vimos, embora a varanda tenha sido eleita como um espaço para
acolher o sagrado, manteve sua relatividade, pois o sagrado aparecia e
desaparecia conforme a necessidade de sua utilização. O local era visto pelos
adeptos, (médiuns e assistência) como um espaço de convívio, mas o como
um espaço religioso, o “ponto fixo” portanto não foi construído. Esta maneira de
265
lidar com o espaço originou uma desorientação, que sereorganizada com a
construção do terreiro.
266
O SAGRADO GANHA ESPAÇO
A partir de 1998 começam a construir o barracão. Inicialmente a idéia era
levantar uma construção simples, onde as paredes seriam cobertas com lona,
como era feito na varanda. Não queriam algo suntuoso, mas um local modesto,
para que pudessem sair da varanda da casa, limitando os espaços de
utilização da casa (privado) e do terreiro (público).
A entusiasmo era grande e imaginavam poder construir eles mesmos o
barracão. E assim, no local indicado, foram carpir o terreno, primeira etapa
para delimitar o lugar. Como podemos observar na foto, o terreno tinha uma
parte de mata fechada e a construção foi pensada para interferir o mínimo
possível neste espaço. Porém, no primeiro final de semana capinando,
Fotografia 19 - Início da construção do Terreiro 1998
Filhos(as) tentando carpir o mato, com a participação das
crianças.
Foto Solange Vaini
267
descobrem que a empreitada era demais para todos e resolvem contratar
alguém habituado e com experiência para realizar a tarefa.
O local para a sede do terreiro foi indicado pelas entidades em novembro de
1997. Numa gira o Caboclo Três Penas pede a um dos filhos, como de
costume, para ler uma passagem da Bíblia, indicada por ele e depois dizer o
que leu. Segundo o registro do caderno, a passagem lida pelo médium, falava
sobre sacrifício e a necessidade de fazê-lo, como podemos ver:
Caboclo Três Penas pediu para o M... ler a bíblia, caiu em “Amos(?) e ele falou, o
caboclo, para ler e ver se fala sobre doença.
O M... disse que leu essa passagem outro dia, fala em doença, mas é a mesma
passagem falando em sacrifícios, o caboclo disse que estão cobrando e terá que
fazer. (...)
Quando fizeram a entrega
99
deram com o nome daqui, do terreiro e que estava
errado. Onde estava, onde foi feito é onde vai ser o terreiro.
(Caderno de Registro de 01 de novembro de 1997 Escrevente Solange Vaini)
A construção do barracão no local onde foi realizada a entrega contra o próprio
terreiro, sinaliza a sacralidade do local. Neste caso podemos considerar a
99
O Caboclo estava se referindo a demanda provocado pelo antigo Pai de Santo do candomblé que
os visitaram, no início da década de 90 e que disputou espiritualmente o terreiro com o Caboclo,
como comentado em passagens anteriores.
268
entrega para conter a demanda e a construção do terreiro no local, como um
sinal que põe fim à tensão provocada pela ansiedade e pela desorientação, em
suma, para encontrar um ponto de apoio absoluto, o “ponto fixo”. uma
dimensão simbólica importante nessa construção exatamente no local da
demanda: pode-se dizer que foi uma demonstração de poder, um enterro real e
simbólico do mal feito; uma recuperação da confiança. Em Eliade encontramos
um exemplo dessa busca e do encontro de um lugar sagrado, local indicado de
forma extraordinária; não é uma escolha ditada pela racionalidade e utilidade,
se fosse esse o caso, escolher-se-ia um lugar “conveniente” (fácil acesso,
limpo de pedras ou mato, etc). A sacralidade está embutida na forma de
eleição do espaço.
Um exemplo: persegue-se um animal feroz e, no lugar onde o matam, eleva-se o
santuário; ou então põe-se em liberdade um animal doméstico um touro, por exemplo
, procuram-no alguns dias depois e sacrificam-no ali mesmo onde o encontraram. Em
seguida levanta-se o altar e ao redor dele constrói-se a aldeia. Em todos estes casos
foi o animal que revelou a sacralidade do lugar, o que significa que os homens não são
livres de escolher o terreno sagrado, que os homens não fazem mais do que procurá-lo
e descobri-lo com a ajuda de sinais misteriosos. (ELIADE, 1992)
E naquele lugar o terreiro foi construído, devagar, com a contribuição mensal
dos médiuns. O projeto inicial de construir somente um barracão foi
abandonado e resolve-se construir o terreiro de alvenaria e com espaços bem
269
definidos: assistência, vestiário, banheiro e nos fundos do terreiro, o quarto
para os Exus
100
.
Quando as paredes estavam levantadas e o telhado colocado, era o
segundo semestre de 1999 e resolve-se fazer a Festa de Cosme Damião no
novo espaço. O terreiro (Isto é, os rituais) passa a funcionar a partir dessa data,
alternadamente, entre o novo local e a varanda até que a construção termine
definitivamente.
Como o se queria voltar para a varanda e o ritmo da construção desacelera
por falta de fundos, decide-se conseguir verba para o término do terreiro,
através da realização de um bazar. O Bazar da Pechincha. Iniciam-se as
arrecadações de roupas, sapatos e outros objetos e o primeiro bazar acontece
em 2000 (como mencionamos anteriormente). Além do Bazar da Pechincha o
terreiro ganhou as janelas e o piso de madeira como doação.
100
O espaço neste terreiro destinado ao “povo da esquerda”, como no terreiro do Sr. Julio e nos
demais períodos, continua sendo na parte de trás do terreiro e configura-se num espaço comum a
todos. Este espaço é para que todos os filhos(as) do terreiro possam, antes de iniciar os trabalhos,
saldar suas entidades, colocando velas, copos com bebidas e até mesmo deixando “arreado”
trabalhos realizados. A firmeza das entidades que comandam a casa tem um espaço reservado na
frente do terreiro que é cuidado pelos Pais e não é de uso comum. Mesmo que este espaço exista
na parte dos fundos do terreiro, numa ressignificação do espaço comumente reservado a esta linha
(é comum que seja na frente), seu fundamento não é deixado de lado, que é o respeito e o
reconhecimento dos exus e pombas gira como guardiões do médium e do ritual, ou seja, da gira.
270
Foram realizados outros bazares e o dinheiro arrecadado foi utilizado para o
término da construção, como colocação de piso, reboque nas paredes,
instalação de banheiro na parte externa e a calçada. Os demais serviços, como
pintura e colocação da fiação foram feitas por alguns filhos. Até a colocação do
piso as giras aconteciam com um piso improvisado: uma lona esticada para
cobrir o chão de terra.
O terreiro foi funcionando desta forma até que uma das filhas indica um colega
para fazer o chão de terra batida como o Pai queria, mas como na mesma
época recebeu-se a doação de tacos de madeira para o piso decidiu-se instalá-
lo.
Como dissemos, antes não existia separação entre o terreiro (congá) e a
assistência, ou seja, entre o sagrado e o profano, no novo espaço passa a
Fotografia 20 - Terreiro em construção - 1998
Uma das filhas (a frente) e a Mãe verificando o
andamento da construção.
Foto Solange Vaini
271
contar com uma divisão
101
: uma cerquinha que demarca a entrada e a saída
dos(as) filhos(as) do espaço sagrado e uma cortina que separa visualmente os
dois espaços.
Com esta delimitação, sem perceber, os médiuns dão início a uma nova
aprendizagem. O comportamento que tinham em relação ao espaço do terreiro
(sagrado) e com a assistência (profano), serão modificados drasticamente.
Uma transformação que alguns médiuns não estavam preparados para
assimilar.
Com o novo espaço do terreiro, muitas coisas mudam, como: o aumento do
número de pessoas desconhecidas, tanto na corrente como na assistência; os
trabalhos de esquerda diminuem; o número de operações aumentam; os
trabalhos realizados fora do terreiro diminuem e o comportamento dos
Caboclos, chefes da casa, naturalmente se transforma, construindo uma nova
corrente, um novo grupo e um novo terreiro.
101
Inicialmente havia sido construída uma mureta separando os dois espaços e do lado interno, voltado
para o terreiro (conga), havia uma prateleira, para guardar as coisas utilizadas na gira, mas diante de
ponderações da Mãe (que julgava que este arranjo poderia ser perigoso para os médiuns), dicidiu-se
retirá-la. Ela temia que na hora do desenvolvimento ou de um transporte o médium pudesse cair em sua
direção e se machucar seriamente. Para confirmar sua argumentação, expôs um caso que presenciou,
quando freqüentavam o terreiro do Caboclo Arranca Toco, no Brás, em que a médium foi jogada pela
entidade na parede e esta se machucou seriamente, pois bateu a cabeça em um prego. Assim, a mureta,
como qualquer outro objeto que pudesse provocar qualquer acidente na hora dos trabalhos (como
lixeiras de madeira, garrafas, cabides muito baixos etc.) foram retirados.
272
Algumas considerações sobre o grupo neste período
Antes de passarmos para a análise da gira, acredito ser indispensável uma
breve apresentação da constituição do
grupo de médiuns para compreender o
cisma que acontece neste período.
Nos dois períodos anteriores e no início
deste o grupo do terreiro se constituía
basicamente de familiares e de alguns
amigos.
Os Pais na verdade comandavam um
agrupamento de indivíduos, todos com
alguma relação familiar direta ou indireta. Pessoas que chegavam ao grupo
eram sempre conhecidas de alguém. Esta característica imprimia aos trabalhos
e ao próprio grupo um ar doméstico, de intimidade, visto por todos com
naturalidade.
Mas, ao final do período anterior iniciara-se um processo de ruptura a partir da
formação de um grupo paralelo (GP2)
102
com opiniões divergentes e que
102
A denominação de GP1 (grupo principal) e GP2 (grupo paralelo) será apenas para efeito de
identificação dos grupos, uma vez que não utilizarei o nome das pessoas envolvidas nos conflitos
mencionados.
Até este período uma característica
marcante do grupo era o
parentesco, quase todos que
faziam parte dos trabalhos eram
sobrinhos, pais, tios, irmãos. Quem
não fazia parte da família, eram
considerados como tal pelo tempo
que estavam juntos muitos desde
74, 78. Este aspecto construiu no
imaginário do grupo a noção do
ritual (dos trabalhos), como sendo
algo de caráter privado, íntimo e
que irá se chocar com a nova
configuração do terreiro,
principalmente quando mudam de
espaço.
273
Na época em que os trabalhos eram
realizados na varanda, no final da
década de 90, o Pai sofre um enfarto que
o impossibilita de trabalhar no terreiro,
durante alguns poucos meses. Neste
período o Caboclo Pena Azul (Mãe) pede
a um dos médiuns, que fazia parte do
GP2, para ficar na frente com a Mãe
abrindo os trabalhos, até que o Pai se
recuperasse. Pelos registros no caderno,
fica por volta de uns 7 trabalhos abrindo
as giras, como um “Pai substituto”. Para
alguns integrantes do GP2, esta atitude
do Caboclo Pena Azul, abriu a perspectiva
deste filho assumir o lugar do Pai, como
chefe do terreiro futuramente. Esta
possibilidade, principalmente de algumas
pessoas muito próximas a ele, que
vislumbrou um poder dentro do terreiro,
contribuiu significativamente para os
acontecimentos desencadeados,
segundo minha análise.
tentava de todos os modos fazer prevalecer suas idéias e interferir na forma
como eram conduzidos os trabalhos.
Inicialmente as críticas eram vistas como uma forma de tentar resolver os
problemas que discutidos nas reuniões. Mas, as críticas se intensificaram em
conteúdo e forma de serem expressas. Segundo alguns filhos, tais críticas
aconteciam paralelamente, envolvendo poucas pessoas ou então eram levadas
diretamente para a Mãe, que muitas vezes se via num “beco sem saída”, pois
os comentários vinham de pessoas com
vínculos de sangue ou de amizade
muito antigos, o que dificultava tomar
uma decisão ou se contrapor a elas.
Além do mais, os Pais não tinham um
perfil autoritário, portanto estavam
sempre prontos para ouvir e muitas
vezes depois de algumas discussões
acabavam por atender as
reivindicações deste grupo, numa
tentativa de evitar o confronto, o que
nem sempre se mostrava tranqüilo.
Nesta época também retorna, embora nunca tenha deixado de freqüentar, um
dos médiuns (M1) do terreiro. Descrevo esta nova situação porque ela é
importante para revelar alguns aspectos que vamos analisar. Este filho sempre
274
teve uma participação inconstante nos trabalhos, ora vinha assiduamente ora
desaparecia por meses e até anos, como verificamos pelos Cadernos de
Registro. Os trabalhos nas épocas anteriores, quando M1 freqüentava “à sua
maneira” os trabalhos, tinham outra configuração e os Pais e mesmo as
entidades não se importavam com o comportamento desta pessoa.
conheciam sua postura, desde a época em que freqüentavam o terreiro do Sr.
Julio, na Mooca; conheciam seu temperamento e sua personalidade e além do
mais eram padrinhos na umbanda da filha dele. Os Pais o consideravam como
sendo da família.
Os médiuns, no entanto, não pensavam assim e tinham certa implicância com
ele por sua personalidade exagerada e brincalhona. Embora destoasse dos
demais os Pais sempre saiam em sua defesa, pois diziam que uma de suas
qualidades era a humildade dentro do terreiro, pois aceitava sem brigas ou
contestação as „broncas‟ ou as „puxadas de orelha do Caboclo Três Penas”.
Além do mais estava sempre pronto a ajudar e não recusava nenhuma tarefa,
principalmente no que dizia respeito aos trabalhos. Estas características faziam
dele uma figura singular e respeitada pelos Pais, que o acolhiam (e acolhem!)
sempre que aparecesse.
É interessante notar que ciúme e disputa pela atenção dos Pais do Terreiro não
podem ser descartadas na raiz dessas controvérsias. Aliás, estes quadros de
luta surda pelo privilégio do reconhecimento dos chefes de uma Casa e dos
demais freqüentadores, são uma constante tanto na Umbanda, como no
275
O ritual no TUCTPB é bem
diferente e considerado simples
por alguns indivíduos que o
visitaram, se comparado com
outros terreiros, principalmente
no que diz respeito a postura dos
Pais em relação a seu posto, bem
como dos Caboclos dirigentes.
Como exposto, não é permitido
ostentação e a utilização de
materiais e objetos que possam
causar no imaginário dos
filhos(as) possuírem uma
importância que para os Pais e
suas entidades não existe. Isso faz
do terreiro, do ponto de vista
destas pessoas, que vem de fora,
ser o terreiro e os Pais
“vulneráveis espiritualmente”, ou
como ouviram na época em
que realizavam trabalhos de
forma rodiziada, “muito
fraquinho”, por não executarem
um ritual cheio de “pompa”.
Candomblé e responsáveis por muitas demandas e divisões levando à
formação de novas Casas (nem sempre duradouras). São de fato situações
que testam no limite a capacidade dos chefes de uma Casa de conciliar e de
lidar com “egos feridos” e baixas auto-estimas, pretensões reprimidas e assim
por diante. Por isso, dissemos acima do “beco sem saída” enfrentado pela Mãe
(também poderíamos dizer “saia justa”) ao tratar dos problemas da Casa que
tema desta Tese.
Na mesma época, mais dois indivíduos farão parte do grupo. Um deles trazido
por uma das filhas para fazer o piso do terreiro (M2). Vem num dia de gira para
conversar com o Pai sobre a construção e
como gostariam de fazer o revestimento.
Nesta conversa “descobrem” que é
umbandista e ogã. M2... começa a
freqüentar o terreiro, colocando o branco e,
a pedido do Caboclo Três Penas, fica no
atabaque acompanhando o outro filho que
comandava a curimba. Este rapaz acaba
trazendo outras pessoas para o terreiro,
como esposa, filha e um casal amigo que
também passam a freqüentar a gira.
Este médium vinha de outra casa, ou
melhor, de outras casas, pois não
276
freqüentava assiduamente nenhuma, embora percorresse vários terreiros em
busca de informações sobre a Umbanda, pois como dizia, estava escrevendo
um livro sobre a religião.
Conhecia também o Candomblé, que sua mãe de sangue era Mãe-de-Santo
com terreiro aberto numa cidade próxima de São Paulo. Freqüentou também
cursos sobre a Umbanda com Ruben Saraceni
103
, como Magia das Velas e
Teologia Umbandista.
Nos cadernos de registro encontramos referência as longas conversas
estabelecidas com o Caboclo Três Penas durante a gira. O Caboclo, revestido
de sua autoridade, mas na sua maneira peculiar, tenta mostrar-lhe, entre outras
coisas, a necessidade da incorporação, que esse novo personagem se recusa
terminantemente a colocar em prática.
Foram localizadas nas anotações de gira, várias ocasiões em que o Caboclo
Três Penas pedia-lhe a opinião, querendo saber como faria tal coisa ou qual
sua opinião sobre os trabalhos que estavam sendo realizados. Esta é a atitude
que chamamos peculiar e que é característica tanto do Pai quanto do seu
Caboclo e que na leitura dos chefes significa respeito e humildade e é também
103
Umbandista e escritor umbandista que adquiriu notoriedade no meio religioso por psicografar
livros romances e técnicos relacionados a Umbanda; além dos livros publicados o autor ministra
cursos, formando magos iniciáticos, que segundo ele não necessariamente tem ligações com a
Umbanda. Para ele, qualquer pessoa pode ser um mago sem ser umbandista.
277
esta atitude que nos estimulou a tomar o viés da educação nesta Tese. Como
veremos esta atitude do Caboclo aliada a uma postura pouco humilde de M2,
desencadeiam um processo de desordem no grupo, que culminarão tempos
depois com a rotura do mesmo.
O outro rapaz (M3) chega ao final de 2003, também ele trazido por um dos
filhos (M1) que o conhece por intermédio de sua filha (afilhada dos Pais) e o
marido. É apresentado no TUCTPB e aos Pais como Pai de Santo feito na
Umbanda e no Candomblé”. Quando chega ao terreiro é recebido pelo Caboclo
Três Penas com a consideração que se deve a um chefe espiritual. Este
médium passa a freqüentar o terreiro e seus conhecimentos e sua forma de
trabalhar provocam certo desconforto no grupo, pois diferia daquela que os(as)
filhos(as) estavam acostumados de ver no terreiro, sendo suas práticas muitas
vezes confundidas com hábitos do candomblé.
M3 trabalha de forma diferente, utilizando materiais que não eram comuns no
terreiro, como a água de cheiro (alfazema) e o Adjá (pequeno sino de metal
branco, utilizado para chamar as entidades e orixás) e os médiuns do grupo
(GP2) que haviam iniciado um processo de rotura no grupo, utilizavam estes
novos componentes e suas práticas para acirrar o conflito. O foco principal
deste confronto era a idéia de que o terreiro estava se transformando num
terreiro de Candomblé.
Para o GP2 qualquer acontecimento diferente confirmava a idéia de que o
terreiro estava se transformando, citavam como “exemplos” alguns
278
acontecimentos. Dentre estes, a visita em abril de 2003, na Festa de Ogum de
uma Mãe de Santo do Candomblé (amiga de uma das filhas) recebida pelo
Caboclo Três Penas com as honrarias devidas a uma chefe espiritual. Esta
Mãe de Santo veio acompanhada de sua irmã, que era sua ekedi e seu
cunhado que era Ogã. O Caboclo Três Penas cede o atabaque para ele, que
canta para a incorporação do Orixá Ogum. O Caboclo pede que todos fiquem
ajoelhados, inclusive ele e o Caboclo Pena Azul em sinal de respeito e se
levantam após o Orixá ir embora, recolhido ao vestiário, sob a supervisão de
sua ekedi.
Estes acontecimentos vão desenvolvendo no imaginário deste grupo a idéia de
que o terreiro se transformava. E isto realmente era verdade, mas não na
direção que imaginavam. Assim, acirram as cobranças por regras e normas de
conduta que todos deveriam seguir, numa tentativa de coibir/inibir os novos
médiuns da corrente, forçando-os a uma “postura adequada” ou a saída dos
mesmos.
No entanto o que está por traz desta idéia é mais do que a inquietação de virar
ou não um terreiro de Candomblé, mesmo porque um dos filhos que “aderira”
ao GP2, um dos mais velhos da casa, freqüentou durante muito tempo um
terreiro de nação, portanto conhecia as práticas desenvolvidas nestes
terreiros; o que estava em jogo na verdade era perda de poder ou de prestigio
que estas pessoas imaginavam ter no terreiro, assustava-os as idéias e as
mudanças que vinham ocorrendo no terreiro a partir de uma nova organização.
279
De fato, com as novas regras e (especialmente) o terreiro aberto
definitivamente para o público diversificado, as cobranças passam a ser
maiores, bem como a responsabilidade e compromisso cobrados pelo Caboclo
Três Penas, como veremos.
Giras Públicas e Particulares
A percepção dos médiuns e principalmente do GP2 de que o terreiro estava
mudando, era real e verdadeira. Muita coisa se modifica nesta ocasião,
principalmente no ritual. É neste período que ocorre uma ruptura entre o velho
e o novo rito, agora mais próximo de um terreiro aberto, acolhendo pessoas de
diferentes procedências. Para apresentar este período e apenas para efeitos
didáticos como forma de organizar o tempo descrito ele será dividido em
dois momentos: antes e depois do cisma. Um primeiro momento antes da
ruptura quando a transferência para o novo espaço, mas ainda com uma
configuração muito próxima do ritual da varanda e o segundo momento pós
ruptura quando a configuração do ritual toma outro formato que é aquele que
permanece até os dias atuais.
Primeiro momento
Inicialmente as giras continuam com o mesmo formato dos períodos anteriores.
As pessoas são chamadas de acordo com o trabalho a ser realizado e/ou pela
ordem de chegada.
280
A periodicidade dos trabalhos continua quinzenal, por isso não uma
definição prévia quanto às linhas a serem trabalhadas, embora prevaleça a
linha de Caboclos e Pretos Velhos. As anotações desse período mostram que
o desenvolvimento dos médiuns é mais intenso e nos três primeiros anos
acontece praticamente em quase todos os trabalhos, supervisionado pelo
Caboclo Pena Azul. Geralmente esta aprendizagem acontece antes da
assistência entrar para os passes e consultas.
Mudar para o novo espaço o significou num primeiro momento mudar a
postura ou a concepção sobre os trabalhos, sobre o ritual. Durante os anos na
varanda e mesmo nos primeiros anos de trabalho realizados no novo espaço
os médiuns ou parte deles cobravam uma postura do Caboclo e dos Pais
quanto às normas que deveriam ser implantadas. Quando começam a
trabalhar no novo espaço estas regras vão se tornando mais consistentes, mais
fortes e o conflito explode. Mas não explicitamente.
É interessante notar que o grande tema de discordância nesse período era “a
falta de regras fortes e deterministas”; quando a nova organização, o aumento
e a mudança na composição dos membros, exige que se adote um controle
mais efetivo, as queixas persistem. Pesquisadores da Umbanda destacam que
um dos motes principais na fala dos adeptos é a “organização”; quando
inquiridos sobre qual seria tal organização, as respostas são evasivas;
entretanto é comum ouvir freqüentador dizer que mudou de terreiro porque “o
outro não era organizado”.
281
Nesse Terreiro, o grupo anteriormente mencionado (GP2) inicia um processo
de enfrentamento dos demais membros e de cobrança do Caboclo Três Penas
relativamente às novas regras que prometia implantar no terreiro.
A assistência foi embora e o Caboclo Três Penas pegou os filhos para conversar
sobre os trabalhos. Principalmente sobre os Oguns, quando vão embora.
O Caboclo Três Penas citou uma passagem da bíblia onde o que não se aprende
“c/amor vai pela dor” (não sei se é isto) que os médiuns tem que aprender de um jeito
ou de outro. Que os filhos estão errados (encostados na parede). O M... disse que
está esperando o Caboclo Três Penas colocar ordem no terreiro. Ele disse que está
colocando ordem. Caboclo falou em ordem: unha pintada não entrar; não entrar de
sapato...
(Caderno de Registro de 12 de maio de 2001 Escrevente Solange Vaini)
Este processo de enfrentamento dos Pais do terreiro fere uma das principais
regras da Umbanda ou como se diz de seus fundamentos, que é a obediência,
a confiança e o respeito pelos Pais tanto espirituais como materiais do
terreiro. Esta atitude provocava entre os médiuns, principalmente entre os mais
novos, reações conflitantes, pois passavam eles também a duvidar ou
questionar os Pais e suas normas.
Para descrever um pouco este processo de conflito, utilizarei novamente o
conceito de demanda. Privilegiamos esta situação para análise, por alguns
motivos: primeiro por estarem registradas mais detalhadamente, segundo pela
282
natureza destes conflitos, onde aflora a demanda e por último, por ser através
das demandas que os(as) filhos(as) demarcam o tempo no terreiro.
A demanda relatada a seguir, está relacionada a uma das filhas e sua família.
A demanda contra ela visava que esta filha perdesse todos os bens adquiridos
junto ao ex-companheiro, como também afetar sua saúde, pois assim não teria
como lutar por seus direitos. Pelos registros esta demanda foi solicitada dentro
do Candomblé, na Bahia, de onde era a demandante.
Vários acontecimentos se sucediam em sua vida cotidiana, sendo os mais
intensos e vistos com maior preocupação os que ocorriam em seu sítio, pois os
animais morriam e/ou ficavam doentes aparentemente sem explicação. Estas
ocorrências foram atribuídas à demanda e o Caboclo Três Penas inicia um
processo de defesa, realizando trabalhos para identificar o que tinha sido feito,
por quem e como (no mundo espiritual).
São vários trabalhos registrados
104
que descrevem as negociações entre as
entidades (da linha de esquerda principalmente), como: o que tinham feito e o
que solicitavam para reverter o processo. Os registros mostram que o
Caboclo, sabedor da procedência da demanda, pedia que se cantassem
pontos utilizados no candomblé.
104
Esta demanda está sendo citada, mas não será descrita na íntegra e nem os motivos detalhados,
como está registrado no caderno para preservar a identidade das pessoas envolvidas.
283
Três Penas pediu para a S... que cantasse 3 pontos de Pomba e 3 pontos de Exú de
Candomblé.
Vieram os exus que conversaram com os filhos. (...)
O Caboclo Três Penas comentou que o trabalho que está sendo feito é pesado, que
tem mais de um terreiro envolvido e que são de candomblé.
(Caderno de Registro de 21 de outubro de 2000 Escrevente Iliria Ruiz)
Sempre que necessário o Caboclo solicitava estes pontos, pois encontrei em
diferentes momentos dos registros, principalmente quando os trabalhos eram
realizados na varanda, o pedido do Caboclo
para uma das filhas cantar um ponto “na
língua do Candomblé”. Estas situações
aconteciam com freqüência nas giras,
portanto não era novidade para os médiuns.
Em algumas giras de esquerda o Exu
Veludo (Pai) comenta que seria bom se
tivesse alguém que conhecesse ou fosse do
candomblé para auxiliá-lo. Estas falas,
somadas, algum tempo depois, com a presença de novos filhos que chegam
ao terreiro, contribuíram para que o conflito se tornasse mais explícito.
Nos Cadernos de Registro encontrei
várias situações em que o adepto
solicitava do Caboclo a identificação
do que estava acontecendo e de
quem havia enviado a demanda. Mas
em nenhum registro li confirmação
de quem estava mandando a magia.
Para eles isso não interessava ao
filho(a), pois nem sempre teria uma
personalidade, ou como dizemos,
“cabeça”, para não se voltar contra a
pessoa, espiritual e materialmente.
284
Em fevereiro de 2003
105
o novo espaço do terreiro foi finalmente inaugurado, e
algumas modificações foram introduzidas na organização da gira. A partir deste
ano a assistência passa a ser chamada para os passes e consultas por ordem
de chegada, ou seja, foi estabelecido um sistema de fichas para entrar no
terreiro. Ao chegar a pessoa assinava um caderno de presença e recebia uma
ficha correspondente a entidade/médium com a qual queria conversar.
Neste período o terreiro contava com alguns médiuns que estavam liberados
para as consultas, ou seja, suas entidades tinham permissão para atender e
conversar com as pessoas; alguns deles eram médiuns pertencentes ao GP2.
Um dos médiuns (GP1) intensifica sua atuação como médium de cura
aumentando o número de pessoas interessadas em falar com sua entidade,
tendo crescido também o número de operações realizadas no terreiro. Esse
médium, no ano em questão, atendia em dia durante os trabalhos, de 10
a 15 pessoas, das quais algumas eram operadas na hora.
105
É em 2003 que o cisma ganha força, se intensifica. Com o terreiro pronto, novos filhos (inclusive
com conhecimentos do candomblé) e as normas sendo implantadas e cobradas, bem como o
Estatuto e o Regimento Interno, o conflito se explicita, culminando com a ruptura do grupo no final
ano seguinte, 2004.
285
O Caboclo Três Penas deu ordem para que o Caboclo Gira
Mundo começasse a operação do Mauricio.
O Caboclo Flecheiro e CBC ....... ficaram na porteira. Os
atabaques ficaram cantando somente pontos de Oxalá.
A operação foi feita na cabeça do Mauricio descendo até a
espinha. Depois que ele ficou com a pressão estabilizada,
os caboclos pediram para levantar.
(...) depois deram passe nos filhos da assistência e o
Caboclo Três Penas abriu para consulta.
(Escrevente Solange Vaini)
Alguns médiuns recebiam suas entidades, mas
não estavam autorizados a dar consultas, então foi proposto como forma de
aprendizagem, tanto para o médium como para as pessoas da assistência,
passar antes da consulta por um passe, sem escolha de entidade. Os
cambonos é que iam chamando e indicando aleatoriamente o
médium/entidade. A própria operação também era uma forma dos
médiuns/entidades passarem por um processo de aprendizagem, visto que o
Caboclo Três Penas geralmente convoca duas entidades para auxiliarem na
operação, como podemos confirmar pelo desenho registrado na Figura 11.
Esta organização funcionou durante um curto período, sendo depois
interrompida; argumentava-se que muitas vezes as pessoas queriam conversar
com uma determinada entidade, mas não tinham permissão para fazê-lo, outro
motivo de descontentamento era que na avaliação do grupo “a gira demorava
demais”.
Figura 9 Caderno de Registro de
março 2003
Desenho com a posição das
entidades e do adepto na hora
da operação
286
Sendo assim, o desenvolvimento dos médiuns a partir desta data, era realizado
sempre que o Caboclo Pena Azul percebia a necessidade do médium em dar
passagem para suas entidades. Às vezes isso acontecia durante a gira,
quando outras pessoas ainda estavam sendo atendidas. Neste momento o
Caboclo Três Penas parava o seu atendimento, pois gostava de supervisionar
o processo. Um bom exemplo desta preocupação em supervisionar os
trabalhos encontramos em 2000, quando um dos filhos, que ficava no
atabaque, recebeu forte irradiação” e o Caboclo o colocou no centro do terreiro
para o desenvolvimento. E comenta com o combono:
Disse que o (...) não “consegue” incorporar ou ele “acaba dando baile” porque o cavalo
acaba sendo um funil e ele deixa se levar por todas as vibrações que encosta. Como
ele não conhece a vibração das entidades dele, todas as entidades que encostam ele
aceita a vibração. Então o que acontece é que todos vão entrando. Ele não assimila a
“vibração” do guia. Veio um que disse que “quer provar”. Foi até o congá e bateu a
cabeça e voltou.”
(Caderno de Registro de 24 de março de 2000 Escrevente Solange Vaini)
Um mês depois deste trabalho, encontramos um registro em que o Caboclo
Três Penas novamente acompanha seu desenvolvimento, “provocando” o filho
na sua incorporação. Pede aos outros dois ogãs que toquem bem rápido, até
que o filho recebe uma entidade e o Caboclo Três Penas vai “doutriná-la”,
como podemos ler:
(...) veio um sofredor, pois o Caboclo Três Penas acendeu uma vela e ficou
conversando com ele;perguntando porque judiava dele; ele respondeu que estava
287
perdido, ai o Caboclo Três Penas disseque não estava mais e que ele (T. Penas)
levava ele embora. Pediu a toalha de cabeça do (...) e cobriu a cabeça dele e pediu
ara cantar ponto de subida.
(Caderno de Registro de 05 de maio de 2000 Escrevente Solange Vaini)
Estes momentos chamados de desenvolvimento/transporte são ocasiões em
que o médium aprende
106
a utilizar seu corpo como meio (transer) para o
contato com os espíritos. Para o indivíduo que atua
107
como médium esta
aprendizagem é necessária, mas difícil, pois constantemente surgirá a
incerteza do que acontece com ele. A dúvida mais comum é o médium
questionar se os atos que pratica na hora do desenvolvimento pertencem a ele
ou a entidade que o está possuindo. Está dúvida, que martiriza quase todos os
106
Este é um processo de aprendizagem constante dentro desse terreiro. Quando está em início de
desenvolvimento, ou seja, ainda não domina seu corpo e não reconhece aquilo que é chamado de
energias vibratórias pertinentes a cada entidade; o médium tende a incorporá-las de modo aleatório, sem
controle, que o médium fica suscetível a estas incorporações e que são aceitas como uma forma de
aprendizagem, como vimos no relato transcrito de 05 de maio de 2000. Quando o médium é requisitado
para o transporte, esta ação também não deixa de ser um modo de aprendizagem, um exercício em que o
médium vai reconhecendo nas diferentes situações e “personalidades” das entidades incorporadas,
àquelas que são peculiares aos seus guias.
107
Verbo utilizado com o sentido de exercer ação ou atividade; agir, obrar, operar e não de uma
atuação teatral, representação.
288
médiuns em desenvolvimento deve-se ao fato dele ou dela estarem consciente
da sua incorporação
108
.
Os transportes, incorporação de entidades para doutrinação ou negociação, no
caso das demandas, eram mais comuns e constantes e havia médiuns
específicos, no caso, mais acostumados com a tarefa e que eram convocados
com mais freqüência.
No caso da incorporação de sofredores ou de espíritos considerados “sem
luz”, qualquer dium, principalmente os que estavam em fase de
desenvolvimento, poderiam incorporar espontaneamente ou ser requisitado
para isso.
108
Para os médiuns na Umbanda esta questão é extremamente importante e delicada já que envolve
uma questão ética. Embora o transer ou médium seja um meio para o contato com os espíritos ele
não será totalmente inconsciente durante um longo período desta sua aprendizagem (embora isto
possa variar de indivíduo para indivíduo), adquirindo a inconsciência com o tempo. Os médiuns
podem ser classificados, portanto em duas categorias: conscientes e inconscientes. Todos gostariam
de fazer parte da primeira categoria, mas esta leva bons anos para ser adquirida. E este é o drama da
grande maioria, pois constantemente estão em dúvida a respeito de suas ações no terreiro. Por isso
a aprendizagem passa por etapas que o médium/entidade vai vencendo ao longo do processo, como
por exemplo, dar passes e depois de um tempo, consulta. A questão ética encontra-se justamente
neste processo, pois se o médium é consciente e suas entidades podem aplicar o passe ou dar
consultas deve redobrar sua atenção às suas ações e principalmente ao que fala, para não “adiantar”
as intuições que serão dadas por suas entidades.
289
Em fevereiro de 2003 como dissemos, o novo terreiro é definitivamente
inaugurado. Este ano é bem intenso para todos os(as) filhos(as) no terreiro. As
mesmas preocupações apresentadas em 2002, nos últimos trabalhos do ano,
em conversas
109
com o Caboclo Três Penas, podemos verificar no final de
2003, pelas anotações nos Cadernos de Registro, principalmente aquelas
relacionados à questão da configuração do terreiro e seu rumo.
Neste contexto, outra situação agravou consideravelmente as relações
pessoais no grupo. Uma “reunião” que acontece após uma gira, com a
presença do Caboclo, em 2003, em que M2 faz uma crítica ao grupo, de modo
ofensivo, causando uma situação constrangedora e que poucos médiuns
combateram. A Mãe principalmente sentiu-se menosprezada que a crítica
desqualificou o terreiro e conseqüentemente os Pais. Esta postura aliada aos
acontecimentos relacionadas com os trabalhos que estavam sendo realizados,
produziu um mal estar entre ele e os médiuns mais velhos da casa
110
. O GP2
neste período freqüenta esporadicamente o terreiro, pois não aceitam as
mudanças que vão ocorrendo, bem como os novos médiuns.
109
Estas conversas serão discutidas no item Reuniões.
110
Muitos desses acontecimentos extrapolaram o ambiente do terreiro, atingindo a vida pessoal de
alguns médiuns e a vida do terreiro.
290
Durante as giras públicas o Caboclo Três Penas se dirige constantemente ao
M2
111
para conversar e perguntar sobre os trabalhos, principalmente no que
dizia respeito aos eventos espirituais, e o médium ao emitir sua opinião,
quando esta era pública, causava certo “desconforto” no grupo.
Quando iniciam as atividades em 2004 mais algumas mudanças ocorrem,
principalmente na questão da organização. Um grupo, junto com os Pais,
elabora o Estatuto do Terreiro e um Regimento Interno, que são apresentados
no primeiro trabalho; são também definidos os cargos existentes disponíveis
para eleição.
Iridia falou sobre a organização que será feita no terreiro para organizar melhor.
Que o cargo de Presidente é do Flavio e de Vice da Iridia e que o cargo não esa
disposição e que os outros cargos serão colocados por todos, que será eleição.
(Caderno de Registro de 31 de janeiro de 2004 Escrevente Suelen Geraldo)
111
Tanto ele como sua filha adolescente (na época) diziam “enxergar”, isto é, como videntes tinham
a possibilidade de saber” o que acontecia na parte espiritual e este era um dos motivos pelo qual o
Caboclo Três Penas sempre pedia sua opinião ou então discutia com ele sobre os trabalhos; mas
pelos registros que temos das conversas, na verdade o Caboclo Três Penas utilizava estes momentos
muito mais para “doutriná-lo” do que compartilhar o modo de realizar a magia, pois segundo a visão
do Caboclo “M2 tinha uma visão dura e pragmática da vida espiritual”, que na visão da entidade
“mais atrapalhava do que ajudava o próprio M2 e sua família”. Parece um fino jogo de estratégia no
qual o chefe do terreiro como que “dá corda para o dissidente se enforcar”.
291
É a partir desta data que o conflito vai se intensificando. Conversas fora do
terreiro entre os(as) filhos(as) a respeito do que acontecia nas giras
112
,
questionamentos a respeito das decisões tomadas pelos Pais e pelos
Caboclos, intrigas entre os(as) filhos(as) e a idéia da perda de prestígio e/ou
poder dentro do terreiro culminam no cisma em 2004.
Estas ocorrências confirmam a análise que fizemos mais acima. um duro
jogo de poder no qual um dos envolvidos procura cooptar adeptos que fazem
parte do terreiro. É interessante também que ele chame “aulas” aos encontros
realizados em sua própria residência e que o clamor por “organização” ecloda
fortemente quando esta é estabelecida de modo mais formal. Este trabalho
mostra como terreiros são difíceis de administrar dado que envolvem questões
de relações humanas, relações com o sagrado, poder mágico e jogos de poder.
As ocorrências citadas acima acabam por provocar a interferência da parte
espiritual nos acontecimentos. Em um trabalho, em março de 2004, uma
112
Esta situação era provocada por M2 que reunia em sua casa alguns médiuns, entre eles M1 e a
médium que o levou, para discutirem os acontecimentos dos trabalhos. Ele convidava os médiuns e
a partir do que tinham visto e ouvido nas giras, a discussão acontecia. Estas “aulas” como chamava,
tinha como objetivo entender o que acontecia nos trabalhos. A explicação era dada por ele com base
nos conhecimentos que tinha adquirido em outras casas e cursos como mencionado. Este
“estudo” provocou entre os médiuns novos conflitos, pois um grupo chegava com informações
diferentes que conflitavam com as que eram dadas no terreiro, além de terminarem muitas vezes
em “fofocas” sobre pessoas que não estavam na reunião. Estes informações foram fornecidas na
época por duas filhas que acompanharam estes eventos durante alguns encontros.
292
entidade da Mãe, da linha de Ogum coloca quatro pessoas na frente do congá,
três filhos (M1, M2, M3) e o Pai, todos envolvidos nos conflitos entre os
médiuns e faz os(as) filhos(as) da corrente que estavam presentes baterem a
cabeça para eles com a ordem de que aquele que não o fizesse poderia ir
embora.
Antes de começar qualquer coisa veio a entidade que veio da outra vez; colocou os
filhos M..., Flavio, A... e C... na frente e falou para os filhos baterem cabeça para eles.
Que não era para a entidade, mas sim para os cavalos e que ele o queria mais
falatório no terreiro, que se isso continuar que ele fecha o terreiro; que eles são iguais
a todos que não existe ninguém diferente; que o filho que não bater a cabeça pode
pegar suas coisas e ir embora.
Que ele não está brincando e quem não acredita nele ele vai mostrar. Que no
próximo trabalho é para fazer a mesma coisa com os filhos que faltaram e o M... ficou
encarregado de falar para as pessoas.
(Caderno de Registro de 27/03/2004 Escrevente Solange Vaini)
Depois desta ordem espiritual, a entidade (Ogum) também suspendeu qualquer
tipo de comida oferecida às entidades de esquerda. Foram proibidos os ebós (
oferenda que se fazia no início dos trabalhos para a linha de esquerda) bem
como qualquer agrado neste sentido para as entidades de esquerda, exu ou
pomba gira. Esta proibição perdura até os dias de hoje.
No mesmo trabalho, horas depois, explode outro choque. A entidade de um
dos médiuns (M1) envolvido na situação descrita chama um dos filhos, que
fazia parte do grupo de oposição(GP2), para conversar e entre outras coisas
diz que falava em nome dos Caboclos Três Penas e Penas Azul, mandando se
293
afastar do terreiro. Esta situação foi levada até o Caboclo Três Penas que
espera terminar o atendimento da assistência, para resolver o novo conflito.
Chama o Caboclo, incorporado por M1, perante todos para se explicar.
Os Caboclo Três Penas e Caboclo Pena Azul ouvem a outra entidade e lhe
dizem que estava errado e que não tinha permissão para falar em nome deles,
como mais ninguém ali e não davam esta permissão para ninguém; quando
necessitassem falar com algum filho(a) para chamar-lhe a atenção ou solicitar
algo, como por exemplo, o que tinha sido dito, eles o fariam pessoalmente.
O Caboclo Três Penas encerra a discussão dizendo que “com tantas
demandas e ainda ficam arranjando encrencas” e que agora esclarecidos, não
precisam mais ficar com fofocas”.
Mas o ambiente continua tenso, como também as relações fora do espaço do
terreiro. Estes acontecimentos deixam todos muito abalados. Mas ainda não
havia terminado.
O médium (M1) que provocou o conflito descrito, deixa de freqüentar o terreiro
após uma discussão com uma das filhas do terreiro, pelo mesmo motivo que os
Caboclos haviam lhe chamado a atenção: interferência na vida particular da
médium. O ponto forte do seu afastamento auto-definido, entretanto, parece ter
sido a descoberta de que seu poder era menor do que imaginava dentro do
terreiro, que suas ações foram questionadas e desautorizadas pelos Pais e
por suas entidades; a situação contudo continua explosiva, pois o mesmo
294
personagem declara na presença dos médiuns, ser possuidor de um título de
Pai de Santo (conquistado na Bahia por volta da década de 80) e que não é
filho do terreiro e nem do Caboclo Três Penas”. Depois dessa declaração
desaparece novamente; M2 por sua vez, deixa de freqüentar dizendo que não
desejava se envolver com terreiro nenhum, pois não queria compromisso e
responsabilidade.
Um dos médiuns que fazia parte GP2, era médium de consulta e muitas vezes
as pessoas da assistência vinham para falar especificamente com ele e este
não comparecia a gira, provocando desentendimento com o Pai, que cobrava
compromisso e responsabilidade de todos. Mesmo sabendo que o Pai não
gostava de faltas e com o Regimento sendo implantado, o médium continua a
faltar, comparecendo uma vez por mês ou menos aos trabalhos. Esta situação
vai se arrastando até meados de 2005, quando o Caboclo Três Penas o
chama, ou melhor, chama sua entidade um Caboclo e coloca para ele sua
preocupação e sua solicitação: o Caboclo (do médium renitente) deveria deixar
na mente do cavalo a conversa que estavam tendo para que ele decidisse sua
freqüência nos trabalhos, pois estava sendo cobrado espiritualmente por isso,
que suas faltas estavam causando transtorno na parte espiritual”. O médium
em questão acaba optando por não mais freqüentar o terreiro, levando com ele
o grupo que se formará ao seu redor.
Ao final de 2004 por volta de 15 médiuns deixam o terreiro, iniciando uma nova
fase na casa.
295
Segundo Momento
Depois da ruptura do grupo, a corrente de médiuns se altera drasticamente,
diminuindo em número de filhos(as), mas ganhando em coesão e
determinação.
O Estatuto do Terreiro e o Regimento ganham força, sendo revisto e colocado
em prática; os médiuns que faziam parte GP1 e o M3 que continua a freqüentar
o terreiro cobram seu cumprimento. Os médiuns e a própria assistência
percebem uma mudança significativa nas giras e na organização do terreiro.
Um calendário anual com as atividades desenvolvidas ao longo do ano, como
festas, reuniões e confraternização foi implantado nos dois últimos anos,
facilitando o acesso às pessoas de um modo geral.
O sistema de fichas foi substituído por uma planilha com o nome dos médiuns
e suas entidades, controlada por uma das filhas (irmã carnal da Mãe e que os
acompanha a mais de 25 anos) que auxilia do lado de fora do terreiro, como
acender o carvão para a defumação e fazer o café para os médiuns após os
trabalhos.
As giras permanecem basicamente com o mesmo formato, mas o ritual sofreu
algumas modificações:
a) O ritual dos(as) filhos(as) de “bater cabeça” que antes era realizado durante
a abertura da gira, passou a ser feito assim que os médiuns entram no terreiro,
296
antes do início da gira e sem o toque dos atabaques. Após este ritual o médium
não deve deixar o recinto.
b) A incorporação das entidades da linha de Ogum por todos os médiuns, foi
introduzida no ritual como parte da liturgia, entre a abertura da gira e antes da
chamada do Caboclo Três Penas e Caboclo Pena Azul. Este momento
segundo os Pais tem dois propósitos: primeiro para que os(as) filhos(as) em
desenvolvimento possam incorporar em todos os trabalhos e segundo que esta
linha é considerada na Umbanda como uma das linhas de proteção dos
terreiros, portanto daria uma firmeza a mais para o ritual, com a incorporação
de todos os médiuns.
c) A linha de esquerda, que nos últimos dois anos, diminui consideravelmente.
Atualmente, a gira de direita é encerrada no horário previsto (1h) e dificilmente
a linha de esquerda é chamada. Com o calendário anual e um dia específico
para o trabalho com esta linha, exus e pombas giras são incorporados em
ocasiões específicas, como a registrada em abril de 2006 (sábado de Aleluia);
após a gira de Caboclo, a linha virou para a esquerda. Neste dia, as entidades
fazem atendimento às pessoas da assistência e em seguida realizam um
trabalho especial para a mãe de um dos médiuns (M3) do terreiro, que estava
com problema sério de saúde.
297
O argumento utilizado pelas entidades
chefes para este procedimento de
atendimento nas operações, “é qe o
terreiro, antes da abertura da gira para
o público, está com as energias limpas,
facilitando a cura do paciente”.
d) O número de atendimentos para cura e operações cresceu, devido ao fato
de contar na corrente com um médium que recebe um Caboclo que trabalha
nesta linha. Isto significou um acréscimo de pessoas que buscam o terreiro por
motivos de doenças, ou seja,
procuram o terreiro como uma
alternativa de tratamento; as
operações acontecem no início das
giras, antes da abertura do terreiro para a assistência e estão previstas para
acontecer entre 21h e 22h, mas devido ao número de operações, bem como ao
tempo
113
utilizado em cada uma, acaba sendo extrapolado.
113
Em média a operação leva de 30 a 40 minutos para ser realizada.
Fotografia 21 - Operação realizada em dia de trabalho 2006
A direita (costas) Caboclo Gira Mundo, a esquerda Caboclo Três
Penas (Pai), Caboclo Pedra Branca e ao Fundo Caboclo Pena
Azul (Mãe)
298
Um dos motivos para o estabelecimento
de horários foi a preocupação com o
estado físico do Pai após um período de 5
a 9 horas de incorporação, que se
apresentava visivelmente esgotado.
d) O Estatuto e o Regimento Interno
114
passam a vigorar de fato e alteram o
ritual. A principal alteração está na demarcação do tempo que utilizam nas
giras, pois estabelecem horários para as tarefas do terreiro como: início às 20h,
operações das 21h às 22h, encerramento do atendimento à 1h da manhã
(ninguém sai sem ser atendido); marcação de consulta até às 21:30h, sendo
que após este horário é permitido que o adepto entre para tomar um passe,
mas sem escolha de entidade. Com os horários agora bem demarcados, com a
assistência e a corrente de médiuns
maiores o grupo se volta para
outras preocupações.
Estes itens passam a vigorar após acaloradas discussões entre os médiuns e
os Pais (e com os seus Caboclos), e são mais intensas e polêmicas no que diz
respeito ao tempo, que será demarcado, limitado.
Tanto o Pai (como o seu Caboclo) e o médium que realiza as operações, são
os mais resistentes, pois não querem determinar um “tempo” para o
atendimento público e para as consultas. Mas, por fim os argumentos utilizados
pelos filhos(as) acabam por convencer a todos e as novas regras Implantadas.
Com o Regimento, estabelecem a função do Cambono(a) chefe, que
supervisiona a gira e neste caso cuidava para que fossem cumpridas, como por
114
Esta discussão será retomada no item referente Às Reuniões. Por ora, citarei apenas as mudanças
implantadas com o Estatuto e o Regimento que imprimem as giras novo formato.
299
exemplo, terem maior agilidade nas conversas, provocando alguns atritos, pois
na prática havia a dificuldade dos Caboclos em cumprir às novas regras, isto é,
aos horários estabelecidos.
Os problemas enfrentados atualmente pelos médiuns, diz respeito às tais
normas que querem implantar e o maior desafio, refere-se à questão do tempo.
O estabelecimento de horários de forma ordenada e delimitada é
invariavelmente desorganizado e a busca em adequar o tempo do sagrado ao
tempo humano freqüentemente rompido pelos acontecimentos da gira.
Embora o ritual tenha uma constância, não são iguais. Nas giras ocorrem
eventos diversificados, como a incorporação de entidades que demandam mais
tempo com o médium ou atendimentos que solicitam atenção especial por
parte das entidades, desorganizando o tempo. A tentativa de imprimir ordem ao
tempo do sagrado pode ser vista como uma forma de entendê-lo, pois
reconheceriam suas regras e ordenações, assim como entendem o Cosmos.
Esta tentativa de organizar, ordenar, controlar o Caos, o mundo religioso, é o
que fazem os indivíduos no cotidiano de suas vidas; o indivíduo tende a
construir sua realidade de forma ideal e muitas vezes fechada, que considero
como sendo “um mundo de certezas”, onde acredita ser possível ordenar e
controlar existindo pouco espaço para o imprevisto. Mas, este mundo que é
desordenado, possui regras plausíveis, capazes de orientar o indivíduo no
espaço e no tempo. O mundo espiritual, o Caos, possui regras, tempo e lógica
externas ao sujeito e no caso o sujeito umbandista, se sente desorientado,
300
como se estivesse fora de lugar. Quando os médiuns tentam organizar a gira
no terreiro, tentam na verdade organizar um mundo que desconhecem, que é
regido por princípios que não dominam; quando essa ordem é alterada, a
desorientação surge novamente. O que tem ocorrido é que estão reaprendendo
a lidar com o novo espaço (do sagrado) e com o tempo (do sagrado) de forma
que possam o entendê-los, mas viver neles. O choque se ao
perceberem que o espaço que conheciam, onde sagrado e profano “conviviam
juntos”, com regras confusas, não existe mais e que o tempo humano, do
mundo é incompatível com a realidade vivenciada hoje no terreiro, do sagrado.
Ainda que tentem imprimir ao sagrado uma configuração, ou melhor, uma
organização secular, este tem uma disposição e lógica próprias.
Com o novo espaço, as giras particulares diminuem e raramente
acontecem. De acordo com as anotações dos Cadernos de Registro, alguns
poucos trabalhos foram realizados fora do terreiro.
Um dos poucos trabalhos particulares registrados data de 2005, para uma
família do interior paulista. A família foi auxiliada a distância durante meses e
nesta data, os Pais e alguns médiuns foram para Tupã (cidade do interior do
Estado de São Paulo), realizar uma gira, com a presença do restante da
família, para encerramento dos trabalhos. A gira contou com a incorporação
dos Caboclos e depois dos Exus, conforme as anotações, que fizeram uma
301
limpeza (espiritual) na casa. Encerrados os trabalhos houve o lanche coletivo e
o grupo retornou no mesmo dia a São Paulo.
Nessas saídas, principalmente quando o deslocamento era longo, as
recomendações do Pai/Mãe eram: não brincar, ir com o pensamento firme, não
ingerir bebidas alcoólicas. Apesar do grupo ter se modificado, conheciam a
personalidade do Pai e sabiam que ele não gostava de brincadeiras e
confusão quando saiam, exigindo dos(as) filhos(as) uma postura ainda mais
correta, o que inibia qualquer tentativa de „sair da linha‟”.
As Festas
Nos últimos anos, após a elaboração do Estatuto e do Regimento, quando o
calendário é organizado, as homenagens aos Orixás e entidades ganham uma
visibilidade maior. Como o formato das giras em dias de festa não se modificou
totalmente, reorganizei os itens, juntando-os em homenagens aos Orixás, às
linhas da Umbanda, a homenagem à entidade chefe do terreiro, o Caboclo Três
Penas e a homenagem aos Exus e Pombas Giras que agora é realizada em dia
específico no mês de Agosto.
A mudança mais significativa ocorreu com a Festa em Homenagem a Yemanjá,
que a partir de 2001 não acontecem mais na praia e são suspensas em virtude
do receio do grupo (expresso principalmente pela Mãe) de serem assaltados,
ocorrência cada vez mais comum no litoral paulista. Como o Pai e a e
gostam de realizar os trabalhos em locais distantes do acesso de turistas
302
evitando as praias lotadas, optaram (numa decisão coletiva) por suspender os
trabalhos na praia e fazer a homenagem no terreiro.
Nos Cadernos de Registro, encontramos em maio de 2000 anotações como
sendo este o último ano em que realizam trabalho na praia em Homenagem a
Orixá. Como em outros anos, poucos acontecimentos registrados neste dia,
somente o nome de quem compareceu e das linhas chamadas.
A realização desses trabalhos seguiu o formato dos trabalhos realizados no
segundo período do terreiro, na época “da varanda”: fazia-se a firmeza para a
esquerda, cantava-se os pontos de abertura da gira (não havia defumação) e
chamavam as entidades, geralmente os Caboclos e não tinham restrição
quanto às linhas a serem incorporadas.
Fotografia 22 - Trabalho na Praia de Peruíbe 2000
Chegando à praia para montar o terreiro, os filhos(as) e a
Mãe (de costas)
Foto cedida por Ilia Ruiz e Digitalizada por Solange Vaini
303
Ao final dos trabalhos, que não tinham hora para terminar, paravam em algum
local para o lanche coletivo.
As festas em Homenagem a Oxossi e Ogum são realizadas sempre próximas
as suas datas oficiais. O terreiro era preparado com enfeites no congá, flores,
folhas variadas e o chão coberto com folhas de eucalipto. No conga eram
acesas sete velas na cor do Orixá homenageado: para Oxossi a cor verde e
Ogum a cor vermelha.
Neste dia cantam primeiro para a linha homenageada, chamando as entidades
que são orientadas pelos cambonos a permanecerem incorporadas mais tempo
no terreiro.
Fotografia 23 - Após os trabalhos o Lanche coletivo!
A Mãe e a filha Maga que está a mais de 25 anos no
terreiro. À direita (camiseta listrada) Juan, seu marido.
Foto cedida por Ilia Ruiz e Digitalizada por Solange Vaini
304
Nos dias de festa, a Mãe prepara a mesa com as oferendas (comida) do Orixá,
aprendidas quando freqüentaram o terreiro do Sr. Julio; no dia seguinte, após
os trabalhos, as oferendas são arredas aos pés das árvores consagradas ao
Orixá.
A festa que recebe maior atenção por parte do Terreiro, especialmente da Mãe,
e a Festa em homenagem a Cosme e Damião, a Festa das Crianças. A Os
preparativos têm início de três a quatro meses antes e tudo é comprado com o
dinheiro das mensalidades e com a contribuição dos(as) filhos(as) do terreiro e
da assistência e não é obrigatória.
Todo ano fazem uma decoração diferente, desde os enfeites das paredes às
sacolinhas que distribuem para a assistência. Tanto os enfeites como as
Fotografia 24 Oferenda à Oxossi 2004
305
sacolinhas são feitas pela Mãe e sua irmã, e quando se aproxima o período da
festa o Pai e outros(as) filhos(as) ajudam na confecção. Os médiuns são
convocados para enfeitar o terreiro, um final de semana antes, deixando os
últimos preparativos como a montagem da mesa, para o dia.
Na Festa de Cosme e Damião o número de pessoas que comparecem na gira
é maior que o normal, pois muitas vêm somente neste dia para participar do
evento.
A Festa de Cosme Damião, principalmente a partir do período em que
realizavam os trabalhos na varanda nunca deixou de ser realizada,
transformando-se numa tradição dessa Casa. Pelas anotações encontradas
nos Cadernos de Registro, este evento deixa de acontecer somente em um
Fotografia 25 Festa em Homenagem a Cosme e Damião.
A Mãe terminando de arrumar a mesa.
306
ano, aquele em que a demanda contra o terreiro estava no auge e as entidades
chefes não permitiram a realização da festa.
Esta festa aparentemente segue o mesmo fluxo das giras normais e acontece
dentro do horário previsto no Regimento, mas com a preocupação de não
ultrapassar o horário da meia noite. Nesse terreiro não há o costume de
realizar a festa durante o dia ou em dias diferentes, como por exemplo, aos
domingos, como acontece em alguns terreiros, nem de oferecer o caruru como
prato principal da linha.
Antes dos ogãs chamarem a linha das crianças, cantam para o Caboclo Três
Penas que incorpora e as orientações para médiuns e cambonos sobre a
ordem a ser seguida, solicitando que se inicie ou não a festa com a chamada
das Crianças.
Fotografia 26 - Festa de Cosme e Damião 2006
Atendimento das crianças pequenas
Imagem cedida por Suelen C. Geraldo
307
Com a implantação do Regimento e da ordem de chamada para atendimento
das pessoas, a assistência é prevenida que neste dia isso pode não ocorrer,
sendo orientadas a conversarem com as Crianças em terra. Primeiro são
chamadas as crianças pequenas, depois os adolescentes e por último os
adultos; todos entram no terreiro por blocos (10 a 15 pessoas).
A distribuição das sacolinhas (com doces e brinquedos), para a assistência,
era realizada quando o adepto entrava para conversar e tomar passe, mas em
2007 modificam a forma de distribuição, devido ao número esperado de
pessoas na festa. Organizam um sistema de fichas para a entrega das 250
sacolinhas, que funcionou da seguinte forma: cada pessoa ao chegar e assinar
o livro de presença recebia uma ficha numerada que depois da consulta ou
passe trocava por uma sacolinha com o Cambono(as), do lado de fora do
terreiro. As sacolinhas para os médiuns e cambonos aconteceu durante a gira,
depois que os médiuns incorporaram suas Crianças.
A homenagem ao Caboclo Três Penas, chefe espiritual desse terreiro, é uma
data importante e acabou fazendo parte do calendário oficial, transformando-se
também numa tradição da Casa. Como a data é muito próxima da Festa de
Cosme e Damião, retiram os enfeites depois da comemoração do aniversário
do Caboclo. Os(as) filhos(as) e as pessoas da assistência levam flores
amarelas para enfeitar o congá ou entregam diretamente para o Caboclo.
308
As Obrigações
As entregas para a linha de esquerda acontecem duas vezes por ano: uma
quando iniciam o ano, geralmente no primeiro ou segundo trabalho e a outra na
Semana Santa. A solicitação da entrega no início do ano, foi gerada por uma
demanda e acabou por ser incorporada no ritual. Nos últimos dois anos, o
Caboclo Três Penas deixou para os médiuns a decisão de fazer a entrega na
Semana Santa. A orientação aconteceu em função da interferência da Mãe,
que argumentou com o Caboclo que muitas vezes o médium não tinha
condições financeiras para arcar com as duas mesas, assim enquanto a
Fotografia 27 Homenagem ao Caboclo Três Penas
Pai (a frente) incorporado pelo Caboclo
Recebe homenagem dos filhos(as) - 2003
Imagem Solange Vaini
309
espiritualidade não interfere, a mesa tem sido oferecida, como obrigação,
somente no início do ano.
As entidades eram incorporadas para que pudessem solicitar as coisas da
entrega; o cambono anotava e confirmava com o Caboclo Três Penas ou com
o Exu Veludo. Não havendo problemas com a relação dos itens solicitados, o
médium entregava da forma que havia sido pedido, podendo ser vetada, como
a do Exu incorporado por M1, (médium envolvido no conflito) que é vetada, por
pedir sacrifico de aves, como podemos observar pelo registro abaixo:
Capa
1 pano preto que caiba o alguidar
Piau (frango) preto vivo c/espora
Alguidar que caiba o piau
7 pimentas vermelhas escuras (grandonas)
1 ponteira grande preta
7 sebos (velas) pretos
1 quartinha de barro com tampa para por o sangue do piau
3 litros de menga (vinho) da boa
Preparar o piau cortar em cima do pescoço, de uma vez deixar toda menga
correr na quartinha.
(registro do cambono que foi verificar com o Exu Veludo sobre a entrega) o Veludo
não deixou matar o piau, é para ele soltar o piau no mato, se quiser...”
(Caderno de Registro de 08/03/2003 Escrevente Suelen Geraldo)
Nos apontamentos não encontramos nada que revelasse a reação da entidade,
sobre a proibição, que esta é uma reação normal nesta linha, quando as
310
entidades são “proibidas” de fazer algo. O Caderno de Registro também não
traz nenhum apontamento sobre o dia
em que os médiuns realizam as
entregas, para verificar se o médium
realmente entregou o solicitado ou se
alterou alguma coisa nela.
As entregas oferecidas ás entidades de esquerda são realizadas dentro da
mesma concepção, ou seja, como uma forma de agradecimento a estas
entidades; mas um aspecto neste ritual se modificou a partir de 2004, quando
houve a rotura no grupo de médiuns: a esquerda foi proibida (pela
espiritualidade
115
) de receber em sua mesa qualquer tipo de comida.
As entidades ficaram proibidas de solicitar em suas entregas qualquer tipo de
comida, como carne (qualquer tipo) e farinha (alimento tradicionalmente
oferecido a exu e pomba gira), esta proibição afeta o que é considerado nesta
linha, como um de seus fundamentos, a carne ou o sangue (mesmo que
adquiridos no varejo).
115
Esta proibição veio de uma entidade da linha de Ogum, incorporada pela Mãe, na gira em que os
médiuns do terreiro bateram cabeça para os filhos envolvidos nos conflitos (M1, M2, M3 e o Pai).
Esta proibição afetou também a firmeza que
faziam antes de iniciar a gira. Na firmeza
para os exus e pombas giras, colocavam
uma cuia com farinha de mandioca
preparada com água ou pinga e ofereciam à
linha de exu para proteção do ritual.
311
O Banho de Abô acontece no segundo ou terceiro trabalho do ano. O preparo é
o mesmo: a Mãe recolhia entre 40 a 50 ervas (sempre em números ímpares)
que eram colocadas em infusão durante 21 dias. As ervas eram recolhidas no
sítio antes do sol nascer ou depois que este se punha. Em 2000 recolheu 51
ervas e 4 anos depois vemos a mesma quantidade, 51 ervas colhidas.
Quando o terreiro muda de espaço, o banho tornou-se obrigatório aos(as)
filhos(as) da corrente ficando proibido de colocar a roupa branca quem não
cumpria com a obrigação. O número de médiuns que deixavam de cumprir com
a obrigação era pequeno, mas suficiente para gerar insatisfação naqueles que
viam esta atitude como um desrespeito a Casa e aos Caboclos. Assim, para
evitar novos conflitos, os médiuns da diretoria levaram ao Caboclo Três Penas,
como proposta, esta “obrigação” ser opcional; a fala de uma das médiuns
quem não toma o banho, não esta prejudicando os trabalhos mas a si mesmo,
que a obrigação é para proteção à matéria, foi o argumento utilizado para
Ervas: Picão branco, tanchagem,
folha de goiaba, folha de amora,
folha saia branca, flor da saia
branca, folha de maracujá, picão
preto, balsamo largo, boldo falso,
confrei, arruda, louro, flor da
bananeira, espada de são Jorge,
alecrim, folha de limão, limão,
hortelã do norte, erva de santa
Maria, sapé (folha e raiz)...
(continua, completando 51 ervas)
Figura 10 Caderno de Registro de
11/02/2000 Relação das ervas
colhidas para o Banho
312
“convencer” o Caboclo, que novamente acata a decisão do grupo e durante os
próximos três anos o banho foi opcional.
As Aulas e Reuniões
Nesse terreiro aulas e reuniões se confundem e ao mesmo tempo se articulam.
A opção em juntá-las em um mesmo item, se deu pelo imbricamento de ambas,
bem como pelos temas tratados nessas conversas. Optei também, em
considerar aqueles apontamentos que trazem mais explicitamente os conflitos
vivenciados no terreiro. As reuniões para a elaboração do Regimento e do
Estatuto serão discutidas neste item, mas em tópico separado.
As aulas continuavam a acontecer durante os trabalhos quando os Caboclos
iniciavam uma conversa com os (as) filhos(as) sobre aspectos relacionados
aos trabalhos (o mundo espiritual) e aos acontecimentos das giras; muitas
vezes nessas aulas, acabavam por estabelecer ou tomar decisões a respeito
da organização do terreiro, que era um momento que podiam contar com a
presença de todos.
Os momentos de aula ou como o Caboclo chamava, conversa, aconteciam
principalmente porque abria este espaço, como uma forma de saber das
dúvidas e das concepções sobre a vida espiritual que os médiuns tinham. Para
a Mãe esta prática ainda era vista com reserva, pois relembrava os momentos
vivenciados anteriormente, na varanda e não queria que se repetissem. Mas,
nesse período, que compreendeu a saída da varanda e entrada no novo
313
espaço, as aulas/reuniões também aconteciam para apaziguar os ânimos e
não como momentos de aprendizagem. Um dos registros, também aponta
que o Caboclo usava estes momentos para chamar a atenção dos(as)
filhos(as) e utilizava o evento para discutir a ocorrência, como no apontamento
de maio de 2000.
A escrevente descreve a gira e anota a fala do Caboclo Três Penas com o
Caboclo Pena Azul, que dizia “que estava ruim, que estavam tentando entrar
ou pegar o terreiro”. Quando acaba o desenvolvimento dos(as) filhos(as),
podemos notar (pela leitura) que o Caboclo se dirigiu aos médiuns muito bravo,
questionando a postura dos mesmo, que segundo as anotações,
encontravam-se sentados no chão”. Como mencionado em outro item, na
época da varanda, o médiuns tinham como hábito sentar ou encostar nas
paredes, hábito este que reproduziam no novo espaço. É bom lembrar que o
terreiro ficou definitivamente pronto somente em 2003, e que até este período
funcionava na nova construção, mas precariamente, portanto não é de se
estranhar que os médiuns repetissem os mesmos costumes dos outros anos.
Assim, quando o Caboclo Três Penas se dirigiu aos médiuns, foi para lhes
chamar a atenção, mas já indicando as mudanças que estavam para ocorrer:
O Caboclo Três Penas antes disso dizia que não entendia porque os médiuns
estavam todos sentados; porque seus caboclos não estavam no terreiro (?); porque
eles foram embora (?), porque os médiuns não agüentavam ficar incorporados?
314
Não para ficar assim. Quando o terreiro estiver pronto vai mudar muita coisa.
Que ele ia chamar o “papai”
116
dele e ai ele queria ver, que iria colocar todos
na linha e quem não seguisse as ordens dele, não ficasse.(g. meu)
Também fizeram referência à porteira, que com todos os médiuns desincorporados a
porteira ficou aberta, sozinha. O Caboclo Pena Azul falou em trocar os médiuns da
porteira.
(Caderno de Registro de 05 de maio de 2000 Escrevente Solange Vaini)
Nesse terreiro não um dia específico para “ensinar” os(as) filhos(as), como
encontramos em outros locais; lá, as conversas eram desencadeadas com o
intuito de discutirem os acontecimentos da gira, mas na verdade eram
momentos em que a entidade chefe aproveitava para debater os fundamentos
da religião. Alguns meses mais tarde, encontramos uma anotação em que o
Caboclo interrompeu por alguns momentos a gira, para explicar aos médiuns
116
A entidade a que se refere 0 Caboclo era o Pai do Caboclo Três Penas que tinha o mesmo nome
que o seu; era considerada uma entidade (Caboclo) muito brava, autoritária, que não aceitava meio
termo. Este Caboclo era incorporado pelo Pai no começo de sua jornada como umbandista. Depois
que o atual Caboclo Três Penas passou a trabalhar com o médium (Pai) constantemente, esta
entidade raras vezes incorporava. O motivo do Caboclo Três Penas dizer que chamaria seu pai para
“colocar ordem, no terreiro” é que Ele não aceitava meio termo ou negociações e não passava a
mão na cabeça de ninguém”, diferente do Caboclo (atual) que estava sempre negociando,
desculpando e acolhendo aqueles que de alguma maneira “feriam” as pessoas do terreiro e os
próprios Caboclos. Geralmente quando era necessário chamar a atenção ou ser mais duro com
algum filho(a), as entidades da Mãe, principalmente da esquerda, eram chamadas, pois como o Exu
Lalu costumava dizer “não gosta de mandar recado”. A partir da concepção espiritual a “bronca”
foi pertinente, afinal no início do ritual tinha avisado que alguma coisa estava acontecendo ou ia
acontecer e deste modo os médiuns deveriam estar atentos à gira.
315
os trabalhos que estavam sendo realizados para uma das filhas do terreiro
(mencionado anteriormente, como uma das demandas). As anotações mostram
que terminado o atendimento à assistência, a médium e seus filhos foram
chamados para o centro do terreiro, dando início a uma gira específica para
ela. Os médiuns são trocados de lugar, numa ordem estabelecida pelo Caboclo
e algumas entidades (externas ao terreiro) chamadas para conversar
(transporte). Após este ritual e a gira quase encerrando, o Caboclo parou e
conversou com os(as) filhos(as):
(...) que o trabalho que está sendo feito é pesado, que tem mais de um terreiro
envolvido e que são de candomblé. E que os trabalhos espiritualmente estavam
bagunçados, pois é somente na bagunça que ele pode pegar. (...) quando foi feito
trabalho no sítio dela, foi feito um trato, quase um acordo. (Agora) Ele tem que
descobrir onde foi feito (...)
(Caderno de Registro de outubro de 2000 - Escrevente Iliria Ruiz)
Percebemos, portanto, que mesmo o havendo momentos formalmente
estabelecidos para “dar aulas”, como os médiuns cobravam, não ficavam sem
explicação sobre os acontecimentos, aspecto muito peculiar desse terreiro, que
compartilhava as informações com os(as) filhos(as); esta atitude, de
compartilhar informações, dificilmente será vista em outros terreiros,
316
principalmente nos de “nação”
117
, pois nesta prática nada é realizado na frente
dos(as) filhos(as); somente aos iniciados e àqueles que alcançaram certo
grau na hierarquia é que podem compartilhar destes momentos com o Pai/Mãe.
Em 2002, os médiuns (de ambos os grupos), antes de iniciarem os trabalhos,
pediram para conversar com os Pais a respeito dos trabalhos. Ao iniciarem a
conversa, os(as) filhos(as) foram elencando vários itens para discussão e a
Mãe, então, pede para chamar o Caboclo Três Penas e “ele resolveria o que
fazer”. Esta atitude demonstrou a preocupação da Mãe em não “tomar partido”,
deixando para o Caboclo a decisão sobre o que deveriam fazer. Esta postura
isentava, tanto o Pai como a Mãe, de entrarem no conflito ou de se
posicionarem a favor ou contra um dos grupos, pois o que o Caboclo decidisse,
também eles acatariam.
Esta reunião, que acontece em setembro, expressou os acontecimentos que
culminariam em 2004, isto é, os motivos para ruptura do grupo. Dois, desses
aspectos, foram discutidos nesta reunião/aula: um dizia respeito ao que os
médiuns distinguiam como sendo o sagrado e outro, o reconhecimento da
117
Existem inúmeros trabalhos e pesquisas realizadas sobre a prática do candomblé. Para maiores
detalhes, consultar entre outros, os trabalhos das antropólogas Josildeth Consorte, Terezinha
Bernardo, ambas da PUC/SP, bem como pesquisadores da USP que também possuem várias
pesquisas publicadas.
317
mudança, isto é, que o terreiro já não era a mesma coisa (comparado com os
trabalhos na varanda).
A discussão foi iniciada a partir de um protesto sobre o fechamento das
cortinas à assistência. Nesse período, numa tentativa de organizarem o
espaço, iniciavam a gira com a cortina fechada ao público, que era aberta
depois do desenvolvimento dos(as) filhos(as). Os apontamentos registram a
fala dos médiuns, que afirmavam que as pessoas se sentiam excluídas, pois
“queriam ver o que acontecia do lado de dentro”. A resposta
118
do Caboclo
Três Penas, quando se refere a está divisão, chocou os médiuns:
O Caboclo disse que se quiser a cortina aberta, pode deixar, não tem problema, mas
que o problema é aqui dentro, que o terreiro dele é daqui, e mostrou a porteira,
para dentro. Que as pessoas não têm firmeza.
O M...(GP2) disse que temos que enxergar isto mais amplamente, que não devemos
fazer esta divisão;
Para o Caboclo o terreiro é aqui dentro e o fora. O Caboclo apenas confirmou
que não ligou para a matéria e que não liga, para ele o problema é espiritual.
Caboclo:
quem não es aqui dentro, não vale, pois eles não têm firmeza. Se você
reconhece a matéria, mas não enxerga o lado espiritual, esta ruim. Não precisa
118
Embora a transcrição fique um pouco longa é interessante reproduzi-la da forma como se
encontra no Caderno de Registro, para entendermos melhor a discussão.
318
enxergar é só sentir”. Filhos (os médiuns): eles disseram que está mudando, que já
não tem mais as mesmas características de antes.
O Caboclo: que havia dito que ia mudar, que não ficaria na mesma, que ia
mudar se para melhor ou pior não interessa ou que cada um que analise do jeito
que quiser.
Eles continuam a insistir que não concordam quando o Caboclo diz que não se
importa com o lado de fora. Eles não entendem e não concordam. Ele (Caboclo)
continua afirmando que é assim... “que a curuca (cabeça) é fraca” (...)
O M... disse que é difícil, pois tem o lado sentimental. E tentou explicar (para o
restante dos médiuns): quando o Caboclo disse que não importa o lado de fora, não
quer dizer que espiritualmente não tem amparo. O Caboclo disse que é difícil!!!”
A Mãe disse que os filhos se sentiram agredidos, ofendidos.
(Caderno de Registro de 07/09/2002 Escrevente Solange Vaini)
Depois de explicar sobre o espaço sagrado (tratado no item referente a gira
pública) e discutir sobre o sentimento dos médiuns sobre esta idéia, os(as)
filhos(as) apontam as soluções, mas o Caboclo retoma a discussão por outro
ângulo:
(a respeito dos médiuns irem embora antes de terminar a gira) o Caboclo nunca
achou ruim dos filhos saírem antes do término (dos trabalhos), o que ele fica bravo é
de médiuns (GP2) que dão consulta e não vem, pois fica em falta com as pessoas
lá de fora. Aí ele explicou a situação.
“Numa situação destas pode rodar tudo, pois a pessoa que veio procurar ajuda
veio e o médium não veio, ai o discurso de ligar para o lado de fora, foi por
“água abaixo”, pois não ligou para o lado de fora”.
(Caderno de Registro de 07/09/2002 Escrevente Solange Vaini)
319
Diante do argumento utilizado pelo Caboclo, os médiuns, principalmente
aqueles do GP2, se calam. Não encontramos nenhum apontamento no
caderno que pudesse demonstrar algum tipo de contra argumentação, por
parte dos médiuns.
Neste mesmo ano outros registros foram encontrados, indicando que o
assunto não morrera. Pelas anotações percebemos que a questão da
organização do ritual era quase uma “idéia fixa” para alguns médiuns.
Em novembro (desse mesmo ano) encontramos dois ou três registros em que
os médiuns apresentaram aos Caboclos (durante a gira) um documento com as
regras do terreiro, e o Caboclo colocou que as regras do jeito que o R... quer,
não acontece, não certo... pois em cima é diferente e cada pessoa tem
uma evolução”
119
.
119
Podemos notar que dificilmente o Caboclo Três Penas ou o Caboclo Pena Azul se contrapunham
às proposta apresentadas pelos filhos(as). Todas as vezes que vinham com alguma proposta de
organização da gira, isto é, regras e normas para serem implantadas no terreiro, o Caboclo
concordava, com raras exceções, como a questão do tempo; no mais deixava que os filhos
colocassem em prática aquilo que estavam propondo para perceberem que as regras do jeito que
querem não dá certo...”.
320
Em 2003, com o terreiro definitivamente pronto, se junta ao grupo de médiuns
um novo grupo, trazido por M2. A corrente agora era formada por um número
grande de médiuns, que possibilitou um ensaio de organização, tanto no
espaço do terreiro como de cambonos que atuariam com cada um.
Esta reorganização, principalmente do espaço, foi uma tentativa de amenizar a
ação de alguns médiuns no terreiro. Em março os Caboclos chefes autorizaram
a mudança e os médiuns/entidades
avisados, assim como os(as)
filhos(as). Durante os primeiros
meses a ordem foi mantida, embora
nem todos os médiuns tenham
seguido o acordo.
Em maio desse mesmo ano, encontramos anotações no dia da obrigação do
Banho de Abô, de uma conversa. Dessa vez, a iniciativa não parte do Caboclo,
mas de um dos filhos (GP1) que justifica sua iniciativa pelo número de
filhos(as) novos(as) no terreiro e não conheciam a forma de trabalhar da casa.
Antes do banho, segundo as anotações, foi explicado para todos o seu
significado e como é feito. Encerrada a obrigação, retornaram para conversar,
e entre outras coisas, apresentaram novamente a organização do terreiro. A
preocupação do grupo, principalmente de alguns integrantes do GP1 com a
ordem, com a regra é se podemos dizer crônica, embora tenham o Regimento
Interno para orientá-los.
A proposta apresentada para os Caboclos
e depois aos médiuns dizia respeito aos
lugares que estes ocupariam na gira e a
designação de um cambono fixo para
cada médium, que seguiu entre outras
regras o tipo de personalidade de ambos,
por exemplo, o cambono designado para
um dos médiuns deveu-se a facilidade
que este tinha de “controlar a entidade”
(médium).
321
Em dezembro, nos dois últimos trabalhos do ano, duas reuniões foram
realizadas antes dos trabalhos, segundo o Caderno de Registro; a primeira
reunião aconteceu para tirarem dúvidas a respeito das mudanças que vinham
ocorrendo nas giras, mudanças, que muitos(as) filhos(as) não entendiam e não
aceitavam. Alguns médiuns, instigados pelo médium M2, discutiam o que
acontecia na gira fora do terreiro, em sua casa, como mencionado
anteriormente, intensificando o conflito no grupo, pois os integrantes do GP1
não aceitavam esta prática, endossada pela Mãe, que dizia “que as coisas do
terreiro interessam ao terreiro e devem ser discutidas e faladas no terreiro”.
Na última gira do ano, os registros mostram que outra reunião foi feita.
Pelos apontamentos, tanto numa como na outra, o foco principal da discussão
era a questão da interpretação dada ao que ocorria nas giras pelos(as)
filhos(as). Sem perguntarem para as entidades chefes se estava correta sua
forma de interpretação, estas eram expostas a outros médiuns, gerando uma
série de mal entendidos e conflitos entre eles. No registro da última reunião, o
Caboclo Três Penas estava presente e explica e insiste que todos que tem
vida ou que não concordam com determinada atitude devem se dirigir a Ele
(ou ao Caboclo Pena Azul ) para perguntarem”, que não “devem ficar com
dúvidas”. Um dos comentários, tecidos pelo GP2 era que M2 estava
“mandando no terreiro e no Caboclo Três Penas, que este perguntava ao
médium o que fazer e aquele usava o terreiro para se promover”; a resposta do
Caboclo Três Penas, assustou os médiuns e as pessoas presentes, pois não
322
era a imagem que tinham da espiritualidade, bem como de uma autoridade.
Disse ele:
Que tem um filho que o vem e que está com a cabeça virada, mas se ele não
vem,, vai ser difícil...(se não vem não tem conversa e não dá para tirar as dúvidas)
Quantas vezes ele (Caboclo) não perguntou o que era para ser feito, pois não sabia o
que tinha sido feito, ele (Caboclo) precisava saber para poder mexer... que não é
porque é Caboclo que tem que saber tudo. (g. meu) Ele não vai mexer com
alguém se não sabe o que foi feito, Ele precisa saber, então ele pergunta.”
(Caderno de Registro de 20/12/2003 Escrevente Solange Vaini)
Mais uma vez o Caboclo desorganizava as hipóteses dos médiuns a respeito
do mundo sagrado e sua relação com o mundo profano. Ao expor para os
médiuns que entidade/espírito “não tem obrigação de saber tudo” ou “de
adivinhar” o que acontece com os filhos, provocando uma ruptura nas formas
de pensamento, ou melhor, nas concepções construídas pelos médiuns. Este
evento pode ser considerado como um dos momentos de aprendizagem do
médium no terreiro, pois através desta desorganização conceitual, o sujeito
tende a refletir sobre o tema, construindo uma nova hipótese.
Estatuto e Regimento Interno: elaboração
Em abril de 2004, acontece na casa de uma das filhas, integrante do GP1, a
primeira reunião para a elaboração do Regimento Interno e revisão do Estatuto
do Terreiro. Participaram desta reunião os membros eleitos da diretoria do
terreiro, entre eles os Pais.
323
No Caderno de Registro estão anotadas somente as decisões tomadas a
respeito do regimento. Como o documento existia, utilizaram-no como base
para as modificações proposta pelos médiuns nas reuniões de final de ano.
Entre as anotações dos itens modificados, está a definição da contribuição
mensal dos médiuns e a mais significativa, a determinação de horário para a
assistência marcar consultas com as entidades, que passa a ser 21:30h, pois
mexe com a assistência.
Dois meses mais tarde, em junho, realizaram um trabalho, somente para a
leitura do Estatuto e do Regimento Interno do Terreiro, com todos os médiuns
presentes. Segundo o Caderno de Registro os trabalhos foram abertos
normalmente, chamando o Caboclo Três Penas que participaria da reunião.
Neste dia, estavam registrados os nomes de todos os(as) filhos(as) do terreiro,
com exceção dos componentes do GP2, que não compareceram.
Uma das filhas, membro da diretoria, procedeu à leitura do Estatuto,
“explicando algumas partes”; quando terminou abriu espaço para perguntas,
mas segundo a escrevente, “não teve nenhuma muito complexa”. Após a
leitura do Estatuto, passam para a do Regimento, com o mesmo processo,
leitura e espaço para comentários.
Neste ponto especificamente, fizeram algumas perguntas e sugestões, como
por exemplo, um filho que diz: “antes da gira começar, uns 10m antes, que seja
explicado algum tema, pois sente falta de explicações”, mas segundo o registro
da escrente, o Caboclo Três Penas diz “que não concorda, que prefere deixar
324
um espaço (na gira) para esclarecimento de dúvidas. O Caderno de Registro
não mostrou anotações específicas das falas dos médiuns, apenas as
considerações mais gerais.
Notamos, pelas anotações da escrevente, que esta optou em registrar os
temas mais gerais, fazendo um “apanhado” do discurso dos médiuns, talvez
pela dificuldade em seguir com precisão a fala dos(as) filhos(as), e
acompanhar o debate. Realizar um registro no calor da discussão, é uma tarefa
que exige esforço, certa habilidade e domínio da língua falada e escrita, como
vimos em outros registros ao longo
desta pesquisa.
A próxima reunião, formalmente
registrada, está datada de maio de
2006; não registro de quem
participou e das falas destes
participantes, apenas anotações gerais
sobre as propostas levantadas, como:
elaborar uma apostila com os pontos
para (que) a assistência (possa)
cantar; marcar reuniões fora do espaço
do sítio (São Paulo) para que todos participem; ao final dos trabalhos
conversarem sobre os mesmos (aulas); marcar reuniões para
confraternizações e anotar as dúvidas para ler na reunião e discuti-las. Mas o
Nas entrevistas e conversas com os Pais,
quando questionados sobre o assunto
“aulas”, solicitadas por alguns médiuns,
estes não compreendem porque “tanto
alvoroço” a este respeito, por parte dos
filhos(as), que o processo de
aprendizagem deles mesmo se deu na
prática, no fazer dentro dos terreiros que
freqüentaram. Para eles a “educação da
umbanda se a partir da vivência do
médium no terreiro, fazendo,
perguntando, vivendo, se doando à
religião. Esta foi a forma que
aprendemos!” “Vê se nos terreiros
ensinavam a gente como fazia? Ninguém
ensinava, aprendíamos fazendo, na
gira...”. (Flavio – Pai)
325
que percebemos, pelos registros, foi que a proposta mais praticada tem sido
aquela em que conversam no final dos trabalhos sobre a gira, ou seja, apesar
de tudo prevaleceu a conversa com o Caboclo Três Penas e o Caboclo Pena
Azul sobre a gira e o mundo espiritual, como observamos no registro da
reunião ocorrida em setembro de 2006.
O Caboclo Três Penas parou tudo e perguntou aos filhos se alguém tem duvida, se querem
perguntar alguma coisa. que não tem escola ele faz perguntas.
(Caderno de Registro de 09/09/2006 Escrevente Solange Vaini)
No registro acima, o Caboclo Três Penas reconhece que a escola, da maneira
como os(as) filhos(as) imaginam, não tem, então abria espaço para
questionamentos, ou seja, essas conversas não deixaram de acontecer, nem
mesmo quando os temas/assuntos eram polêmicos para o grupo.
Nessa reunião percebe-se que o grupo está mais coeso e a preocupação que
tinham com as regras quase não apareceu no registro, a apreensão passa a
ser de outra natureza como o receio que expressaram do grupo “quebrar”, de
nova ruptura se outros componentes entrassem no terreiro:
R... corrente mais firme parece que tem mais harmonia; se daqui a algum (tempo)
vem pessoas que nos desagradem, o grupo vai ficar assíduo?
Resp. Caboclo: medo de quebrar a harmonia? Que o grupo não pode dar ouvido,
que depende do grupo.
M... o grupo passou pelas duas situações, então o grupo pode fazer uma análise
do que aconteceu e não deixar se influenciar pelo que acontece.
326
(Caderno de Registro de 09/09/2006 Escrevente Solange Vaini)
Encontramos a partir desta data, registros em diferentes giras, de uma
ansiedade que foi tomando conta do grupo, que era a preocupação com o
desenvolvimento dos(as) filhos(as). Esta questão foi encontrada nos registros
de várias reuniões; como atualmente o grupo se compõe de novos médiuns e
outros mais velhos (de casa), mas que ainda não tem uma incorporação
estável tentou-se organizar uma forma de atender a todas as atividades numa
única gira, como desenvolvimento, operação e atendimento público.
Estas questões o foram de todo resolvidas, como verificamos pela
quantidade de propostas registradas. Entre elas encontramos: marcar as
operações algumas horas antes do início oficial da gira começar
120
, modificada
para apenas uma hora antes do início da gira; realizar uma aula formal com os
médiuns, que seria dada pelos médiuns mais velhos da casa, antes do início
dos trabalhos; realizar o desenvolvimento no final dos trabalhos e a proposta
mais recente é realizarem a gira de desenvolvimento no domingo, no mesmo
final de semana dos trabalhos.
Todas as propostas foram aceitas pelo grupo, colocadas em prática e depois
discutidas quanto a sua eficácia. A proposta das operações ocorrerem antes da
gira iniciar foi abandonada e voltaram para o período normal, ou seja, dentro da
120
A idéia era iniciar às 15h somente para as operações,
327
gira. A proposta do desenvolvimento ao final da gira mostrou-se ineficaz, já que
a gira terminava muito tarde e os médiuns diziam não “ter condições físicas”
para a atividade; a última proposta, de realizarem o desenvolvimento aos
domingos, foi aceita pela maioria dos médiuns e somente daqui a alguns
meses poderemos verificar se foi produtiva ou não, ou melhor, se funcionou de
acordo com o esperado por todos.
A realização da aula formal aconteceu uma única vez, pelo que está registrado,
e não encontramos outros registros que nos indicasse o sucesso da atividade.
O que nos pareceu é que as aulas formalmente organizadas, como
imaginavam ser uma aula ou uma escola, dificilmente acontecerá, pois
pressupõe todo um “ritual” que o terreiro esta longe de assimilar. A gramática
da escola como nós educadores costumamos chamar, implica uma série de
regras que no fundo choca-se com as regras do terreiro, ou melhor, do
sagrado.
O que prevaleceu e ainda prevalece nesse terreiro são as conversas entre as
entidades e os médiuns, num processo coletivo de aprendizagem, sanando
suas dúvidas e resolvendo os problemas que surgem geralmente
desencadeados pela convivência de diferentes indivíduos num mesmo espaço,
com idéias e concepções a cerca do mundo humano e do mundo sagrado
muito diferentes.
328
CONSIDERAÇÕES...
Quando iniciei esta pesquisa os Cadernos de Registro não eram o material
primordial a ser utilizado, minha idéia, como já disse, era trabalhar basicamente
com entrevistas e observação dos adeptos da Umbanda em diferentes
terreiros, identificando em suas práticas os momentos de aprendizagem ou de
educação não escolarizada que aconteciam dentro de suas Casas (terreiros).
Mas, quando apresentei o material para minha orientadora, ela me propôs o
desafio, não sem antes aceitá-lo também, de trabalhar com eles para
desvendar (se posso usar este termo) a memória da Umbanda, através do
surgimento de um novo terreiro. O conjunto dos cadernos registra cerca de 30
anos de atividades umbandistas. Nos primeiros estão sobretudo as atividades
de um casal de umbandista: o seu percurso por terreiros de umbanda como
adeptos e aprendizes, seu trabalho autônomo como Pai e Mãe (mas ainda sem
uma sede), o estabelecimento de uma primeira sede, as atividades e
transformações do local até a configuração atual do Terreiro de Umbanda
Caboclo Três Penas Brancas.
A medida que o tempo passava, um maior número de personagens foi dando
entrada nessa história e também variaram as pessoas encarregadas de fazer
as anotações; durante os anos foram sendo registrados nos cadernos o
andamento das sessões, os rituais, os processos de ensino e de
aprendizagem, os conflitos, os encaminhamentos.
329
Como se vê, o desafio foi grande, pois aliada a questão da leitura crítica dos
cadernos, ainda tive como tarefa, a de me abster de qualquer julgamento ou
crítica pessoal aos registros, por se tratar de uma narrativa muito próxima,
quase que uma narrativa de mim mesma, que pertenço ao grupo e muitos
registros foram por mim realizados. Isso exigiu um esforço não pequeno de
“afastamento crítico”; se em toda pesquisa qualitativa o pesquisador é um
instrumento da própria investigação, no caso presente esta pesquisadora foi
instrumento, sujeito e objeto da pesquisa, buscando o “olhar de dentro” e “o
olhar de fora”. Nosso trabalho, que não se limitou à leitura dos registros, não foi
de observação participante, mas de participação observante.
Aos colegas que em início de curso diziam dos perigos de iniciar uma
pesquisa desta natureza, tenho a dizer que é possível, mas realmente não foi
fácil. Não foram raros os momentos em que ao ler os registros e recordar das
pessoas, das situações, das entidades, surgia o sentimento pessoal... e o
estado de alerta imediatamente se fazia presente; busquei constantemente o
distanciamento para ler com olhar crítico” as inúmeras páginas registradas.
Espero ter conseguido!
A angústia de tornar este processo o mais objetivo possível foi constante, até
reencontrar Geertz que deixou-me mais tranqüila, porém não menos
preocupada; se ele, um antropólogo reconhecido aceitava ou melhor
identificava que o ”distanciamento não é um dom natural nem um talento
fabricado, mas uma conquista parcial laboriosamente e precariamente mantida
330
(GEERTZ, 2001), então, como iniciante na antropologia estava no caminho
certo e a paixão reencontrada.
Minha orientadora diz que se fala muito da dificuldade do trabalho do etnógrafo,
mergulhado em outra cultura, outra língua, tendo que laboriosamente
estabelecer a aproximação com “o outro”; sem desmerecer esse esforço, diz
ela, é também difícil estudar o familiar que exige um esforço igualmente
laborioso de afastamento. Esforços equivalentes em direções opostas, mas
visando a mesma meta: “buscar as teias de significado”. Esta frase me deu
certeza de ter escolhido um caminho árduo, porém foi o meu caminho.
A Umbanda dos Cadernos de Registro, escritos por diferentes escreventes ao
longo destas três décadas, é uma Umbanda em constante movimento, mas
uma Umbanda que permanece, que mantém seus fundamentos.
Muito se escreveu a respeito da religião, em jornais
121
, livros, periódicos
umbandistas, mas o diferencial das coisas escritas desse terreiro, a memória
cristalizada”, para utilizar o termo proposto por Maria Helena quando realizou
uma pesquisa sobre a Umbanda através de jornais, se fez no calor mesmo dos
acontecimentos, dos trabalhos ou como os umbandistas dizem, da gira.
121
A este respeito ver os trabalhos realizados por Maria Helena V. B. Concone, que fez uma análise
da Umbanda paulista a partir de textos publicados em jornais, basicamente a partir da hemeroteca
do jornal O Estado de São Paulo.
331
Percebemos ao longo dos registros a dificuldade das escreventes em registrar
fielmente o acontecido, expressa através de escritas pouco coerentes,
tornando muitas vezes o registro e seu conteúdo de difícil entendimento. Neste
aspecto, pertencer ao grupo, apresentou-se na verdade como uma facilidade,
muito mais que dificuldade, pois permitiu desvelar através dos apontamentos
das giras, das festas, das reuniões, das aulas, uma Umbanda viva, presente,
multifacetada ou como alguns autores a definem, uma bricolagem, embora
goste mais de imaginá-la como um caleidoscópio, que a cada movimento,
surge nova imagem, nova figura, “num conjunto de cores e formas que formam
imagens em constante mutação.” (HOUAISS & VILLAR, 2001)
Através dos Cadernos de Registro estas imagens em constante mutação foram
sendo apresentadas aos nossos olhos, como: os trabalhos realizados pelo
Caboclo Três Penas com a Bíblia; a abertura da gira com as preces de Cáritas
e Oração de São Francisco, (geralmente os terreiros utilizam o Pai Nosso,
oração católica, considerada universal); o ato de bater cabeça somente para o
Congá (geralmente bate-se cabeça para os Pais do terreiro e suas entidades);
os Pais compartilharem a gestão do terreiro, se assim podemos chamar, com
os médiuns; o uso contido de objetos de ritual, como as guias (colares);
elementos estes, inexistentes nos terreiros freqüentados anteriormente pelos
Pais ou vistos atualmente pela pesquisadora em outros terreiros.
Por outro lado, localizamos elementos que permanecem, que são constantes,
fazendo do ritual desse terreiro, um rito de Umbanda, como: as festas em
332
homenagem aos Orixás e à entidades dirigentes dos terreiros; a liturgia
122
do
ritual que envolve os atos de defumação, de bater cabeça, o batizado, os
cantos, as palmas, a dança, as roupas; as obrigações do filho(a), como deitar
camarinha, os banhos (de defesa, de purificação, aproximação da entidade), as
oferendas às entidades (direita e esquerda); os princípios da religião, como a
crença num Deus único, a caridade, a preservação da natureza, a crença nos
espíritos, na reencarnação; a incorporação de espíritos (guias/entidades
espirituais), que podem ser classificados como Caboclos, Pretos Velhos,
Crianças, Marinheiros entre outros e que compõem as linhas da Umbanda.
Este último elemento é a principal característica da Umbanda, ou seja, a
Umbanda é uma religião que tem no transe de possessão de espíritos, acima
citados, seu principal fundamento.
Os Cadernos de Registro desvelaram também a memória social dos adeptos
da Umbanda, através de suas práticas. Os registros do cotidiano do terreiro
(embora os registros sejam praticamente quinzenais), mostram o conflito dos
122
Ivan Illich, em seu texto sobre a cultura escrita faz referência a sua área favorita de pesquisa: o
estudo da liturgia (Igreja Católica). Diz ele: a liturgia estuda como os gestos e os cantos solenes, as
hierarquias e os objetos ritualísticos criam não apenas a fé, mas também a realidade da comunidade-
enquanto-Igreja, que é o objeto dessa fé. Esta pode ser mais uma pista para pensarmos a Umbanda
como uma comunidade-terreiro e identificarmos nela sua produção cultural, sua produção de
sentidos. Esta pode ser, assim como Geertz falou, uma mudança de olhar para a religião, deixando
de lado apenas a descrição e ocuparmo-nos com o que ela constrói.
333
médiuns ao praticarem a Umbanda, enfrentando o medo do preconceito e da
intolerância
123
.
O medo desses adeptos ao declararem-se abertamente umbandistas numa
época em que ser da Umbanda significava ser “macumbeiro” ou fazer coisa “do
mal”, era também o medo de serem considerados indivíduos pouco confiáveis,
rudes e ignorantes e que de alguma forma se mantém no imaginário de seus
adeptos, pois atualmente ainda existe a dificuldade de se identificarem como
umbandista. Este receio pude perceber na prática, quando entrevistei a Mãe e
alguns adeptos; a fala da Mãe referia-se ao receio de me ver realizar uma
pesquisa sobre a Umbanda quando esta ainda é vista com preconceito que
seria estendido a mim, como pesquisadora; na fala dos adeptos, na verdade
um pergunta traduz este receio ainda hoje: Mas, a faculdade aceitou o seu
trabalho? Você não tem/teve dificuldade em ser aceita lá?” e ao ouvirem minha
resposta, um nossa que legal” era emitido,explicitando na verdade a
desconfiança daquele que falava.
O nome macumba, que antes designava uma prática religiosa, que tinha no
transe de possessão seu principal elemento, passa a ser utilizado, em meados
123
Pesquisadoras como Maggie, Birman, Concone descrevem em suas pesquisas a relação entre os
adeptos das religiões consideradas afro-brasileiras e a sociedade, que no geral apresentam relações
desconhecimento destas religiões gerando a intolerância e o preconceito, por serem consideradas
práticas míticas e não naturais.
334
do século passado, como uma forma de desqualificar o adepto da Umbanda,
principalmente
124
.
Para o dium que acreditava pertencer a uma classe social privilegiada
125
,
ser reconhecido como umbandista na comunidade onde vivia, era o mesmo
que ser considerado “ignorante”, uma “pessoa sem cultura”, sem “educação”
(no sentido de refinamento, de civilidade do sujeito), que esta prática estava
associada, no senso comum, a este estrato social menos favorecido.
Foi possível identificar esta apreensão nas situações descritas ao longo da
pesquisa, como a dium que pede para se afastar do grupo, pois sua prática
religiosa atrapalhava sua vida pessoal ou a preocupação dos Pais em fazer o
“despacho de Exu” atrás da casa, no quintal quando esta entidade é
124
O termo “macumba” ou “macumbeiro” adquire significados diferentes dependendo do local, da
comunidade ou do grupo que a utiliza; podemos encontrar entre os umbandistas a designação um dos
outros como “macumbeiros” e do ritual como “macumba” sem que, no entanto isso tenha uma
conotação ofensiva ou desqualificadora do sujeito e da prática; mas não é bem vista ou aceita quando
utilizado por sujeitos externos ao grupo, que pode implicar “uma desqualificação social ignorância,
primitivismo, boçalidade etc. (do sujeito umbandista), aparecendo ainda uma identificação entre
macumba e “baixo” ou “falso” espiritismo.” (CONCONE, 2004).
125
Estou considerando como privilegiada, aqueles que tinham acesso a bens materiais e culturais,
como carro, escola, emprego fixo, profissão (sem necessariamente ter escolaridade) e lazer;
reconheço que esta classificação é bem simplista do ponto de vista dos estudos e/ou pesquisas das
áreas econômica e social, mas tendo em vista que estas classificações nos últimos anos tem sofrido
consideráveis alterações, optei em utilizar uma classificação menos fechada.
335
reconhecidamente colocada na frente da casa, para guardar e proteger a gira
de perturbações espirituais numa tentativa de proteger ou dissimular a prática
da Umbanda para a vizinhança.
Outra preocupação diz respeito à roupa utilizada. No Terreiro estudado, o
avental, utilizado como uniforme, para todos os médiuns da corrente, vem
desde a época em que os trabalhos eram realizados de casa em casa,
permanecendo ainda hoje nesse terreiro como uniforme. Podemos perceber o
cuidado em não serem reconhecidos como “macumbeiros”, que a roupa
tradicional da Umbanda (principalmente para as mulheres, que usam saias
rodadas e rendadas, os saiotes, a bombacha) é facilmente identificável,
facilitando aos outros seu reconhecimento. Mas, também pode siginificar uma
maneira de trazer um “refinamento ao ritual, que as roupas tradicionais
podem ser identificadas coma prática do Candomblé ou de terreiros “com
praticas menos civilizadas”. São usos e mecanismos que foram sendo
desenvolvidos no longo e difícil caminho do processo de legitimação.
Quanto aos processos de aprendizagem, os Cadernos de Registro mostraram
que estes eram constantes dentro do terreiro e que a Umbanda continua sendo
uma religião que tem na transmissão oral dos conhecimentos uma de suas
principais características, embora esta transmissão não seja aceita nesse
terreiro como uma forma de aprendizagem (pelo menos explicitamente); seus
adeptos (médiuns ou não) não concebem o fazer e o diálogo como processos
336
de aquisição de conhecimentos, isto é, a transmissão oral desses
conhecimentos no fundo é questionada. A razão disso, a meu ver, é o choque
entre o que os médiuns concebem como sendo “ensinare “aprender” e o que
vivenciavam no terreiro; este conflito (interno do indivíduo) explicitou-se através
das constantes cobranças que surgiram ao longo das três décadas de história
desse terreiro.
Verificamos que os processos de aprendizagem ocorriam de forma regular,
tanto para os médiuns da corrente, como para os adeptos que participavam na
assistência. Para estes últimos, os adeptos, estes momentos de aprendizagem
se davam quando, por exemplo, passavam por consultas com as entidades e
estas entabulavam longas conversas com as entidades que explicavam,
questionavam, calavam... no intuito de provocar uma reflexão no indivíduo;
reflexão esta que poderia gerar uma ruptura no modo como percebiam sua
realidade e fazê-los partir para a ação, ou seja, modificá-la.
Para os médiuns, o processo de aprendizagem era intenso e se dava de
diferentes maneiras, através de suas participações nas ações no terreiro,
próprias à prática da Umbanda, como as obrigações, as festas, as giras e o
desenvolvimento da mediunidade, que podemos considerar como sendo a
práxis por excelência da Umbanda, ou melhor, o processo por excelência da
aprendizagem do indivíduo umbandista.
As conversas (diálogo) com o Caboclo, como constatamos, abordavam
diferentes temas, abrangendo desde a vida espiritual à prática da Umbanda.
337
Durante a pesquisa realizada no terreiro,
elaborei um questionário para as pessoas
que freqüentavam o terreiro
responderem. As questões abordavam
assuntos como tipo de religião que
declarava, freqüência a outros locais
(independente de ser Umbanda), leituras
especializadas sobre a religião e uma
delas dizia respeito a aprendizagem. Se
era possível aprender a ser umbandista?
90% dos questionários respondidos
diziam que poderíamos aprender a ser
Umbandistas através de leituras e aulas
sobre a religião. Estas respostas
corroboram o que encontramos nos
Caderno de Registro, ou seja, o sujeito
vem com uma concepção do que é
aprender e ensinar e que esta forma de
conceber o processo entrou em choque
com o vivenciado no terreiro,
principalmente a proposta do Caboclo de
“parar e pensar sobre o tema discutido”,
Essas conversas (diálogos) realizadas com os médiuns e na presença da
assistência (principalmente nos dois primeiros períodos do terreiro) de alguma
forma contribuíram para a construção de uma postura reflexiva e
conseqüentemente emancipatória.
O que mais chamou a atenção, nos Cadernos de Registro, foi a dificuldade dos
médiuns (para me referir somente ao grupo fixo do terreiro) em perceber que a
aprendizagem pode se dar de diferentes maneiras dentro do terreiro. Como
educadora e com os anos de experiência adquiridos dentro da escola, foi
estarrecedor descobrir o quanto a
“gramática” da escola estava impregnada
no modo dos sujeitos conceberem sua
aprendizagem ou o ensino. Vários são os
exemplos encontrados e que posso citar,
como a orientação do Caboclo Três
Penas para que os filhos(as) prestassem
atenção à gira, ficassem atentos a
postura das entidades, dos médiuns e
que perguntassem sobre aquilo que viam
e sobre suas dúvidas, orientação
estendida pela Mãe ao solicitar dos
médiuns que anotassem estas dúvidas para depois serem explanadas, que
solicitavam constantemente que tivessem “aulas”.
338
De forma geral, os médiuns se posicionavam de forma passiva diante deste
processo, esperando que as informações ou melhor, que o conhecimento
viesse até eles. Neste aspecto, acredito que a escola, aliás, o modelo de
escola, de aprendizagem, de professor, como também do saber, do
conhecimento, moldou profundamente a vida e a concepção que os sujeitos
tem deste processo. Num mundo onde a escrita predomina e a escola é tida
como necessária
126
e insubstituível , pensar a aprendizagem pela oralidade
parece um processo inimaginável.
Aprender, numa perspectiva diferente da exposta aqui, exige do sujeito, e no
caso em questão, do sujeito umbandista, uma boa dose de ousadia: para
formular a pergunta, para receber a resposta, para errar, para se expor e
aceitar que o outro pode ter um saber diferente do seu, uma forma de ver a
realidade diferente da sua e acima de tudo aceitar que aquilo que não está
escrito, registrado, é conhecimento, é “um mundo”.
126
Em toda parte, espera-se que os alunos adquiram uma certa “educação” – que se tenciona
monopolizada pela escola -, supostamente necessária para fazer cidadãos úteis, cada um deles
consciente da classe social que essa “preparação para a vida” lhes destina. Vi, assim, como a liturgia
da escolaridade cria a realidade social em que a educação é percebida como um bem necessário.(g.
meu) (ILLICH, 1991) Esta dimensão apontada pelo autor invade o espaço do terreiro, através das
concepções adquiridas pelo indivíduo na escola, como verificamos na pesquisa.
339
A escola, sabemos, está longe desse processo, sua lógica ainda está
direcionada a fragmentação e acostumado que está (o sujeito) a esta forma de
ver o mundo, tende a desconsiderar o conflito e a simplificar a realidade
Concordo com Morin, quando diz que o desafio de nosso tempo, ou melhor, “ o
problema crucial de nosso tempo é o da necessidade de um pensamento apto
a enfrentar o desafio da complexidade do real, isto é, de perceber as ligações,
interações e implicações mútuas, os fenômenos multidimensionais, as
realidades que são, simultaneamente, solidárias e conflituosas” (MORIN,
ALMEIDA, & CARVALHO, 2000, p. 72), e para isso o sujeito deverá
transformar sua concepção do que seja aprender ou do que seja construir o
conhecimento, desvencilhar-se da liturgia da escola, como Illich a chama, e
começar a considerar outros processos de aprendizagem, como processos
válidos para esta ação.
Outro aspecto a ser considerado, para a Umbanda, diz respeito ao que o
sujeito (umbandista) considera como sendo um “conhecimento de valor”, isto é,
aquilo que ele considera ou que lhe fizeram considerar como sendo
conhecimentos “dignos” ou pertinentes à Umbanda para serem guardados ou
não.
340
A escola faz esta distinção através dos livros didáticos utilizados em sala de
aula, isto é, do currículo colocado em prática através do projeto pedagógico
127
.
E no caso da Umbanda? Como este currículo é construído? Temos, nós
umbandistas, um currículo? Um projeto pedagógico?
Neste momento, podemos retomar as dimensões apontadas nesta pesquisa e
que foram desmembras para efeitos meramente didáticos, como a memória, a
aprendizagem e a oralidade e a escrita. Estas dimensões, embora as tenha
separado, não podem ser analisadas ou refletidas isoladamente, pois
constituem um todo. Como por exemplo: Quais serão os saberes levados em
consideração para a construção de um currículo na Umbanda? Dentro da
Umbanda um saber é mais valioso do que outro? Se assim considerarmos,
quando selecionamos ou selecionam um saber, o que fazem com o outro, o
que foi desconsiderado como válido? Neste caso, perguntamos: e o Pai e Mãe
Espirituais? Terão valor somente aqueles reconhecidos como possuidores de
saberes ”válidos”? Quem validaria e como seriam validados os saberes?
um movimento entre os umbandistas de proceder a codificação da
Umbanda. Esta idéia não é nova, mas tem produzido atualmente algumas
situações interessantes, como a abertura de escolas e faculdades que ensinam
127
Como educadora gosto de utilizar o termo “projeto político pedagógico”, reafirmando a dimensão
política do currículo, desconsiderada no contexto escolar e na elaboração do projeto, que tende a
ver este processo como possuidor de neutralidade.
341
ao sujeito como ser umbandista. E aqui, a meu ver, começam os problemas...
pois quais serão os ensinamentos, os saberes “escolhidos” e “por quem” para
serem ensinados e perpetuados? E a transmissão oral será considerada, numa
sociedade em que tem legitimidade aquilo que é escrito? Teremos uma
Umbanda codificada a exemplo de outras religiões que homogeneízam prática
e valores?
Neste caso como proceder à aprendizagem daquilo que não é dito, dos gestos,
dos passos (da dança), da fala peculiar dos Caboclos, Pretos Velhos, Baianos
e Crianças? Serão enquadrados em alguma gramática de “caboclês”,
“baianês”? Ou serão consideradas como desvios da língua e faremos
dicionários ou daremos treinamento para as entidades “dialetarem” de acordo
com a “cartilha” da Umbanda?
Em uma cultura oral, pode não haver “palavras” como aquelas que comumente
procuramos no dicionário. Nesse tipo de cultura, intervalos silenciosos podem constituir
um sílaba ou uma sentença, mas não o nosso átomo: a palavra. Todas as expressões
vocais são aladas, desaparecendo para sempre antes mesmo de serem totalmente
pronunciadas. A idéia de fixar essas expressões em uma linha, ou mumificá-las para
posterior ressurreição, não pode sequer ocorrer. (ILLICH, 1991)
Todas estas questões dificilmente serão respondidas através desta pesquisa,
mesmo porque, a estas questões tem se juntado outras, provenientes dos
novos tempos, tempos virtuais. Muitas questões relacionadas a aprendizagem
dos médiuns na Umbanda, tem despontado em fóruns e listas de discussão na
internet, trazendo a meu ver, novos questionamentos e por que não, novas
342
pesquisas, para entendermos e talvez descobrirmos o que tem acontecido nos
terreiros, que faz com que seus filhos(as) acreditem mais no computador (e na
pessoa que está respondendo, sem ao menos conhecê-la) do que no seu Pai
ou Mãe espirituais.
Pelo que tenho percebido, o fenômeno da não aceitação” da aprendizagem a
partir da transmissão oral dos conhecimentos, não é um fenômeno restrito ao
terreiro pesquisado. À esta prática (dos fóruns virtuais, chats e cursos), as
mesmas dúvidas e questionamentos podem ser aplicadas: quem determina o
tipo de conhecimento a ser veiculado? Quem o legitima? Os Pais e Mães
espirituais que aprenderam a Umbanda na prática desaparecerão? Quem são
estes Pais e Mães espirituais que estão perdendo o domínio de seus filhos(as)
para um mundo virtual? E acredito, uma pergunta crucial: o que acontece
dentro dos terreiros quando estes dois mundos se encontram? Como não
refletir sobre a natureza eminentemente política da aprendizagem. Não
podemos esquecer que deter o conhecimento do sagrado e suas formas de
manipulá-lo e de praticá-lo, envolve também uma postura de poder,
desconsiderada ou camuflada no tipo de concepção que os adeptos da
Umbanda muitas vezes têm.
Voltando ao meu ponto de partida, foi através dos Cadernos de Registro que
me foi possível recuperar uma parte da memória da Umbanda e do grupo que a
pratica. Esta obviamente não pode ser considera “a” história da Umbanda, mas
através deste universo foi possível verificar uma Umbanda viva, que preserva
343
elementos fundamentais a sua prática e remodela outros de acordo com o
tempo social vivido por seus integrantes, bem como a preocupação de seus
adeptos de legitimá-la socialmente, através da escrita.
A Umbanda que meus pais, quando iniciaram na religião por volta da década
de 50, não é a mesma Umbanda que praticam hoje no próprio terreiro, mas
ainda assim é Umbanda.
As vivencias sociais mudaram, os sujeitos que fazem parte deste mundo social
estão diferentes e com novas preocupações, novas aflições, que não eram
sequer imaginadas, quando começaram.
Os sujeitos que freqüentam um terreiro de Umbanda atualmente, os adeptos,
para nos distanciarmos do objeto, chegam hoje ao terreiro com preocupações
de uma cidade moderna, com aflições que minha avó como benzedeira
dificilmente veria chegar às suas mãos, como por exemplo, a busca por um(a)
companheiro(a), movida pela agonia de ficar sozinho(a) numa cidade habitada
por milhões de pessoas como é o caso de São Paulo ou a mudança constante
de emprego e a necessidade, quase obrigatória, de estudo para mantê-lo;
aspectos que a três ou quatro décadas eram pouco comuns ou que nem faziam
parte das preocupações vividas pelos sujeitos que procuravam a religião.
A partir do estudo de um terreiro especifico, pudemos verificar uma diversidade
presente não no ritual, mas também nos sujeitos que o freqüentam, seja
como médiuns, cambonos ou mesmo na assistência. Esta heterogeneidade
344
dentro do espaço do terreiro, faz dele um lugar de convivência e de
aprendizagens coletivas, capazes de se traduzirem em atitudes humanizadas
fora do seu espaço.
Como pesquisadora e educadora acredito que temos ainda um longo caminho
pela frente. Como Geertz nos alertou, as pesquisas na área da religião ainda
estão voltadas a estatísticas, formas e freqüência à cultos e temos ainda muito
a refletir sobre quem é o sujeito religioso, no caso o sujeito umbandista; como
pensa, quais são seus horizontes morais, suas formas simbólicas e de que
maneira todas estas coisas influenciam seu viver em sociedade.
Se a Umbanda é capaz de promover a emancipação e a humanização do
sujeito umbandista, como indiquei no início desta pesquisa, podemos
considerar que sim, que ela proporciona questionamentos e reflexões
constantes no indivíduo, promovendo rupturas em seus modos de pensar; além
do mais, este indivíduo hoje necessita, principalmente numa cidade como São
Paulo, de acolhimento, do sentimento de pertencimento, da vida em
coletividade, do outro para reconhecer a si próprio.
Como disse Painho, personagem de Chico Anísio, e a Umbanda é isso...
345
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