unicamente porque as coisas não vieram numa certa ordem. A
figura no seu conjunto está perturbada. Não há meio de dar a
esse conjunto o menor desenvolvimento”.
1
A clínica do autismo despertou meu interesse no início da formação em
psiquiatria quando, ainda como estudante de medicina, estagiei na enfermaria de
crianças psicóticas e autistas da Casa de Saúde Saint Roman. Daquela ocasião, ficou
registrada a angústia que experimentei diante de crianças tão inacessíveis e, em muitos
momentos, desesperadas, cuja convivência me propus a suportar dois turnos por
semana. Eram cerca de vinte crianças em regime de internação. As mais graves tinham
o diagnóstico de autismo. A despeito da pobreza institucional, a equipe buscava uma
leitura kleiniana, o que, para mim, parecia quase tão incompreensível quanto o
comportamento e a fala daquelas crianças estranhas. Assim procedi minha primeira
leitura do caso Dick
2
, descrito por Melanie Klein, e do clássico livro de Francis Tustin
3
.
Ao longo de uma trajetória de cerca de vinte anos de trabalho como psiquiatra e
psicanalista, tive oportunidade de deparar-me, em alguns momentos - não muitos - com
essas crianças diagnosticadas como autistas, que compõe uma clínica tão singular. Foi,
em primeiro lugar, a insistência de um casal de pais na busca de tratamento para seu
filho autista que me proporcionou a oportunidade de aprender um pouco mais sobre esse
assunto e elaborar a experiência, que não deixara de ser traumática, dos tempos de
faculdade. Em segundo lugar, o sujeito autista suscita, tão claramente, questões que
dizem respeito à relação com o outro, à fala, à singularidade com que constrói sua
realidade, que nos remetem indubitavelmente às origens do sujeito e, portanto, podem
trazer esclarecimentos quanto à constituição do sujeito. Em terceiro lugar, e mais
recentemente, ao voltar-me para o estudo do autismo pude perceber um incremento nas
pesquisas sobre esse tema a despeito da raridade de sua prevalência.
O termo autismo foi cunhado por Eugen Bleuler por subtração de eros do termo
auto-erotismo inventado por Havellock Ellis e retomado por Freud. Bleuler designou
como autismo o estado de alheamento e de desinvestimento no mundo, gerador de certa
1
LACAN, J. - O Seminário, livro 1, Os escritos técnicos de Freud (1953-54) Rio de
Janeiro, Zahar Editores S.A., 1983, p.105
2
KLEIN, M. - Amor, Culpa e Reparação (1921-1945), Rio de Janeiro, Imago Editora Ltda., 1996.
3
TUSTIN, F. – Autismo e Psicose infantil (1972), Rio de Janeiro, Imago Editora Ltda, 1975.