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unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
Faculdade de Ciências e Letras
Campus de Araraquara - SP
JULIANA TOMÉ ALVES
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Trabalho de Dissertação de Mestrado apresentado
ao Programa de Pós-graduação em Lingüística e
Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e
Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para
obtenção do título de Mestre em Lingüística e
Língua Portuguesa.
Linha de pesquisa: Estrutura, organização e
funcionamento discursivos e textuais.
Orientador: Profa Dra Renata Coelho Marchezan
Bolsa: Capes
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Trabalho de Dissertação de Mestrado apresentado
ao Programa de Pós-graduação em Lingüística e
Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e
Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para
obtenção do Mestre em Lingüística e Língua
Portuguesa.
Linha de pesquisa: Estrutura, organização e
funcionamento discursivos e textuais.
Orientador: Profa Dra Renata Coelho Marchezan
Bolsa: Capes
Data de aprovação: 29/02/2008
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EMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA:
Presidente e Orientador: Profa. Dra. Renata Coelho Marchezan
Faculdade de Ciências e Letras – Araraquara (UNESP)
Membro Titular: Prof. Dr. Valdemir Miotello
Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR)
Membro Titular: Profa. Dra. Maria do Rosário Valencise Gregolin
Faculdade de Ciências e Letras – Araraquara (UNESP)
Local: Universidade Estadual Paulista
Faculdade de Ciências e Letras
UNESP – Campus de Araraquara
A meus pais pela confiança e por me darem
a oportunidade de seguir meus sonhos.
E à minha avó Dida pelo amor eterno,
onde quer que esteja...
(in memorian)
AGRADECIMENTOS
Muitas pessoas foram peças fundamentais para a realização deste trabalho. Por isso,
quero destacar aquelas que me ajudaram, direta ou indiretamente, a chegar nesse importante
estágio.
Inicialmente agradeço a Deus por ter colocado pessoas muito especiais na minha vida
e por ser meu alicerce.
Agradeço a Profa Dra Renata Coelho Marchezan por acreditar em minhas idéias e por
direcioná-las, com muita sabedoria, para o melhor lugar na pesquisa.
Agradeço meus pais, Antônio Carlos e Cida, por terem despertado em mim o gosto
pela arte das Letras e pelos estudos, e também pelo amor incondicional, pois esses são os
motores que me levam a enfrentar maiores desafios. Meus sinceros agradecimentos também
as minhas irmãs (e amigas), Renata e Fernanda, pelo incentivo e por tudo o que representam
para mim. Meu cunhado Cláudio pela amizade e pelas boas conversas desde tempos em que
ainda era menina.
Agradeço, ainda, meus familiares, em especial minhas tias Marinei e Terezinha, por
estarem sempre presentes e cuidando com carinho de mãe.
Agradeço, com muito amor, meu namorado Rafael pela paciência – inesgotável –
durante esse percurso e por ser meu amigo e companheiro fiel. Obrigada pelos ótimos
momentos vividos até agora. Foram fundamentais.
Agradeço minhas amigas Ariadne (Didi), Beatriz e Vanessa pelo ombro amigo nas
horas difíceis, pelas risadas incontroláveis, pelas conversas acolhedoras, por enfrentarem
junto comigo o desafio do Mestrado e por terem sido durante seis anos minha família em
Araraquara. Que mais anos venham pela frente!
Agradeço também a Cris, Débora, Daiane, Letícia e Talita por representarem o espírito
livre e alegre dos momentos da Graduação e por serem amigas, sempre. A Maíra e Roberta
pela amizade que dura desde tempos da formação em Letras e a Valéria (Val) por me fazer
acreditar, a cada dia, no poder da Educação. Também os amigos distantes fisicamente, mas
presentes em minha vida desde a infância, Ana, Verônica, Raquel e Vinícius.
Agradeço o próprio Roberto Pompeu de Toledo, cujos textos muito me instigam, pelas
informações trocadas via e-mail, que contribuíram em minhas indagações.
E, enfim, agradeço a CAPES pelo apoio financeiro e por acreditar nesta pesquisa.
O outro é a medida: é para o outro que se produz o
texto. E o outro não se inscreve no texto apenas no
seu processo de produção de sentidos na leitura. O
outro insere-se já na produção, como condição
necessária para que o texto exista. É porque se sabe
do outro que um texto acabado não é fechado em si
mesmo. Seu sentido, por maior precisão que lhe
queira dar seu autor, e ele o sabe, é já na produção
um sentido construído a dois.
João Wanderley Geraldi
RESUMO
O trabalho apresentado tem por objetivo analisar os mecanismos de apresentação, apreensão e
tratamento dado às vozes sociais nos artigos de opinião de Roberto Pompeu de Toledo
publicados semanalmente na revista Veja. Para tanto, toma como fundamentação teórica a
obra de Mikhail Bakhtin e seu Círculo; organizada com base no que, nem sempre, mas
freqüentemente, se considera seu denominador comum: o conceito de dialogismo. Esse
posicionamento teórico leva a estabelecer procedimentos de análise que privilegiam a
identificação e caracterização das diferentes vozes por meio das quais os textos se constituem,
o exame do processo de transmissão/representação do discurso do outro, nesse contexto em
que se entende que as dinâmicas da inter-relação das vozes representa a inter-relação social
dos sujeitos com a ideologia. Para isso, foram avaliados 25 textos de Toledo publicados entre
julho e dezembro de 2005 na revista Veja. Esses textos caracterizam-se pela temporalidade
atual das temáticas abordadas, tendo o cronótopo uma função organizadora dos textos e de
seus sentidos, como também o uso de ironias e de discursos reportados, elementos de
transmissão valorativa da voz do enunciador. Verificamos que as ironias e os discursos
reportados se constroem por meio de uma relação de vozes, que contribuem para a
amenização do modo de dizer a crítica do enunciador. Se há relativização de um lado; de
outro, ao recorrer a outros dizeres e saberes, sustentando sua opinião neles, o enunciador tenta
fazer do seu posicionamento um dizer irrefutável, dando-lhe um peso absoluto. Entretanto, vê-
se que se instaura no texto apenas um efeito de irrefutabilidade, uma vez que o sentido
atribuído a ele é construído por um jogo entre o texto, o enunciador e o enunciatário, e este
pode ou não concordar com o que é dito.
Palavras-chave: dialogismo; artigo de opinião; ironia; discurso reportado; estilo.
ABSTRACT
This paper has for objective to analyze the mechanisms of presentation, apprehension and
treatment given to the social voices in the opinion articles of Roberto Pompeu de Toledo
weekly published in the magazine Veja. To do so, it takes as theoretical base Mikhail
Bakhtin's work and his Circle; organized based in what, not always, but frequently, is
considered his common denominator: the dialogism concept. This theoretical positioning
makes us establish analysis procedures that privilege the identification and characterization of
the different voices through which the texts are constituted, the examination of the
transmission/representation process of the other’s discourse, in this context in which it is
understood that the interrelation dynamics of the voices represent the social interrelation of
the subjects with the ideology. For that, 25 texts of Toledo, published between July and
December of 2005 in the magazine Veja, were evaluated. These texts are characterized by the
actuality of the themes approached, and the “cronótopo” has the function of organizing these
texts and their meanings, as well as the use of ironies and reported discourses, elements of
evaluative transmission of the enunciator’s voice. We verified that the ironies and the reported
speeches are composed through a voices relationship, that contributes to the softness of the
criticism that is present in the enunciator’s voice. If there is relativism on one side; in the
other side, when he goes through the other sayings and knowledge, sustaining his opinion in
them, the enunciator tries to turn his positioning into an irrefutable saying, giving it an
absolute weight. But in the text is establish only an effect of an irrefutable voice, because the
meaning given to the text is formed by a game between text, enunciator and enunciatary, and
this one may agree or not with is said on the text.
Key-Words: dialogism; opinion article; irony; reported speech; style.
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 Formas de apreensão dos discursos
89
Tabela 2 Formas de apreensão do discurso noticiado
105
Tabela 3 Formas de apreensão do discurso da arte
116
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
11
1 SIGNO: DIALÓGICO E IDEOLÓGICO
18
1.1 O Círculo de Bakhtin: inacabamentos
18
1.2 Ideologia: um enfrentamento de valores
21
1.3 Sobre a inter-relação dos sujeitos
28
1.4 Adjetivos: marcas da voz do enunciador
43
2 IRONIA: UMA INTER-RELAÇÃO DE VOZES
52
2.1 As relações dialógicas na ironia
54
2.2 Ironia: um julgamento amenizado pela ambigüidade
58
2.3 Analisando: como a ironia se dá nos artigos de opinião de Toledo
65
3 DISCURSOS DE OUTREM: UMA INTER-RELAÇÃO DE VOZES NO
ARTIGO DE OPINIÃO
79
3.1 Os discursos reportados
81
3.2 Uma voz julgadora não categórica
90
3.2.1 O discurso da “personagem-tema” 92
3.2.2 O discurso noticiado 104
3.2.3 Discurso da arte 115
3.2.4 Discurso institucional 122
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
129
REFERÊNCIAS
136
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
141
ANEXOS
143
11
INTRODUÇÃO
O trabalho que aqui se apresenta tem por objetivo analisar os artigos de opinião
1
do
colunista e jornalista Roberto Pompeu de Toledo publicados semanalmente na revista Veja.
Nesses textos, o enunciador expõe uma posição avaliativa sobre o contexto político-social
brasileiro e mundial atuais, revelando posições. Tal como outras opiniões, vozes sociais e
textos que surgem e circulam na mídia acerca de temas do contexto brasileiro e mundial, os
textos em análise particularizam-se, pois revelam uma voz julgadora num ato único e singular.
A voz autoral de Toledo, como afirmam alguns críticos, “tem uma visão muito peculiar do
mundo sobre o qual se debruça. O resultado é uma argüição consistente que extrai um sentido
sempre inusitado e grave do que aparenta ser o mais banal e óbvio dos fatos”. (PEREIRA, R.,
2006). Com um estilo próprio, o autor trata os acontecimentos mundiais e nacionais com uma
fina ironia, misturada à erudição e também a coloquialismos. Para revelar sua visão do
mundo, sua voz confronta-se com outras vozes, principalmente refutando-as ou ironizando-as,
deixando transparecer seu próprio caráter julgador e uma modalização de indignação,
principalmente, diante do acontecimento a que recorre em seus artigos de opinião. O
tratamento dado a essas vozes é tanto visto no texto quanto implicado pela linguagem,
relacionando-se à dimensão dialógica caracterizadora de textos, uma vez que todo discurso
está em contato com outros discursos, com diferentes ideologias e valores.
Por esses artigos de opinião veicularem posições através de um embate discursivo,
pretendeu-se nessa pesquisa analisar, pois, os mecanismos de transmissão, recepção e
tratamento das vozes sociais nesses textos, uma vez que assumimos a perspectiva da filosofia
do Círculo de Bakhtin de que se caracteriza um gênero do discurso, bem como o estilo de
textos, ao se descrever e explicar, nesses dois diferentes aspectos, o debate, a ação
apresentada entre vozes. O objeto é, assim, considerado como complexos diálogos e, de
maneira recursiva, também a metodologia de análise pode adaptar-se à dinâmica do diálogo.
Assim, nos termos bakhtinianos, nas ciências humanas têm-se não propriamente objetos a
descrever ou explicar, mas sujeitos a compreender e com quem dialogar.
1
Adotamos o termo “artigo de opinião” para nomear a modalidade textual em análise, uma vez que tem
características formais e de conteúdo desse tipo de texto. Assim, não os tratamos como “ensaio”, nomenclatura
dada pelo suporte em que são veiculados esses textos. Entretanto, o que nos importa não é a nomeação, mas a
caracterização de gênero a que se filiam os textos. Uma descrição detalhada sobre essa questão está na seção 01
deste trabalho.
12
O objetivo desse trabalho não se refere à caracterização do gênero “artigo de opinião”
em si, mas à demonstração de elementos constitutivos dos textos de Roberto Pompeu de
Toledo, na revista Veja, em particular. Por meio dessa investigação e caracterização
particularizada dos artigos de opinião, o trabalho contribui para as reflexões acerca dos
gêneros discursivos, uma vez que apresenta elementos do estilo de um autor, assim como
características do gênero “artigo de opinião”, pois, segundo a perspectiva bakhtiniana, o
enunciador, ao discursar, adequa-se a um esfera de atividade humana, conseqüentemente, ao
gênero discursivo que a ela corresponde.
Mesmo havendo uma possível maleabilidade de representação das vozes sociais dentro
de cada gênero discursivo, cada um apresenta uma especificidade e uma certa fixidez quanto à
forma, às escolhas lingüísticas, ao enunciatário, ao tempo e espaço discursivos. Sendo assim,
nosso trabalho, ao caracterizar o processo de transmissão e representação de vozes nos textos
de Toledo, apresenta elementos lingüísticos e discursivos particulares de um gênero
específico – os artigos de opinião de Roberto Pompeu de Toledo – que podem contribuir para
a caracterização do gênero “artigo de opinião”.
Para refletir sobre essas questões em Toledo, baseamo-nos nas reflexões do Círculo de
Bakhtin acerca da linguagem. Tendo em vista que tal perspectiva tem como denominador
comum o conceito de dialogismo, oferece procedimentos de análise que privilegiam a
identificação e a caracterização das diferentes vozes por meio das quais os textos se
constituem. Definindo a linguagem como dialógica, em que valores socais confrontam-se
entre si, Bakhtin e seu Círculo definem o texto como um diálogo entre interlocutores e
também como diálogo entre outros textos. Sendo assim, a relação entre sujeitos e vozes
sociais é imprescindível para a constituição tanto do sujeito, quanto de um texto.
Baseados nessa perspectiva, atentamo-nos, então, além das relações entre vozes nos
textos em análise, também para a relação “eu/outro” que se faz imprescindível tanto para a
constituição ideológica da linguagem, quanto para o sentido que pode ser atribuído aos
enunciados veiculados. Para Bakhtin, o “outro” é sempre responsável por dar o acabamento
ao “eu” do discurso, pois tem um excedente de visão que complementa e dá a totalidade do
“eu”. Para que um enunciado seja compreendido, é preciso que ele suscite, numa relação
dialógica entre o enunciador e o enunciatário e entre os enunciados que o compõem, uma
atitude responsiva ativa por parte do seu receptor. Em um dado momento histórico e em um
contexto específico, o enunciatário dialoga com enunciados anteriores e posteriores para
poder compreender o texto com o qual se defronta. Além disso, ele deve relacionar os
13
elementos constitutivos do texto na sua totalidade, como os recursos estilísticos, o tempo, o
contexto, o enunciador, uma vez que um texto é constituído pela relação das partes que o
compõem. O enunciatário tem um papel relevante para a significação do texto, pois ele atribui
valoração e significado ao enunciado. Sendo assim, o enunciatário dos artigos de opinião de
Toledo são aqueles que relacionam os elementos que compõem esse tipo de texto – como os
adjetivos, as ironias, os discursos reportados – e que está informado sobre o acontecimento
abordado nele, para,assim, atribuir-lhe uma significação, levando-o a uma resposta ativa
diante do que lê.
Ao descrevermos e apresentarmos a relação dialógica de vozes sociais e enunciados
nos artigos de opinião de Toledo, outros elementos são chamados à descrição, como a ironia,
a transmissão do discurso de outrem e a representatividade do enunciatário, pois eles, além de
definirem o estilo desses textos, têm relevante papel para a construção da voz autoral.
Dialogando com outras vozes e outros textos, o enunciador, ao mesmo tempo em que expõe
uma crítica aguda aos acontecimentos políticos e sociais recuperados nos textos, não a veicula
por meio de uma voz autoritária; mas relativizada por algumas estratégias, como a ironia e os
discursos reportados. Ao problematizar enunciados e vozes de outrem, ou mesmo ironizá-los,
o enunciador veicula sua posição, que se faz crítica e julgadora, mas com um efeito
amenizador. Nesse confronto os discursos se relacionam, intercruzam-se num constante e
intenso processo dialógico de aceitações, refutações, afirmações, etc. O que dialoga, portanto,
são posições de sujeitos sociais, pontos de vista acerca da realidade, o que caracteriza o
caráter constitutivo em toda produção lingüística.
Como córpus de análise, foram escolhidos os artigos de opinião publicados no período
de julho de 2005 a dezembro de 2005, contabilizando 25 artigos de opinião. Não houve
nenhum critério específico para que os artigos fossem coletados nesse período; porém, devido
à época de início dos estudos nessa área de conhecimento e sobre esse tema (julho de 2005)
com um projeto em iniciação científica, também sob orientação da professora Drª Renata
Coelho Marchezan, achamos pertinente, para a pesquisa de mestrado, ampliar o córpus para
um ano de coleta. Os artigos de opinião selecionados apresentam variados temas, desde a
venda do jogador Robinho para o Real Madrid, à cassação do ex-deputado José Dirceu, até
questões ligadas ao governo atual (governo de Luis Inácio Lula da Silva). Variadas temáticas
e “personagens” de ambiente público são recorridos pelo autor em seus textos sempre com
uma abordagem política e social e com um viés de criticidade e de indagações. De situações
tidas como banais, e até mesmo daquelas que figuram constantemente na mídia e em outros
14
discursos, a voz autoral, por meio do seu dizer particular, transforma-os em temas inusitados e
graves, mas abertos a questionamentos e reflexões por parte do leitor, já que o texto, pela
perspectiva bakhtiniana, está aberto a múltiplas leituras. Então, mesmo o enunciador tendo um
projeto de dizer, o sentido atribuído ao texto não é totalmente regulado por ele, pois a
significação se dá por meio de um jogo entre texto, enunciador e enunciatário, e este pode
concordar ou não com a proposição defendida no texto. Mesmo assim, o córpus em análise,
que tem variados temas e diversas vozes recuperadas, tem um estilo peculiar, que se
caracteriza pela contrariedade e contestação do enunciador frente ao tema tratado no texto.
O embasamento teórico que dá sustentação a essa pesquisa refere-se às reflexões
acerca da linguagem do Círculo de Bakhtin. Apresentando uma filosofia que prima pela
relação entre vozes sociais na constituição da linguagem, oferece procedimentos de análise
que possibilitam a verificação dos processos discursivos e o tratamento dessas vozes nos
artigos de opinião de Toledo. Ao conceberem a linguagem sob uma perspectiva dialógica e
ideológica, nossas reflexões são fundamentadas em torno da identificação e do exame das
vozes sociais que se confrontam nos artigos de opinião em questão.
Organizada com base naquilo que freqüentemente considera-se seu denominador
comum, o dialogismo, os pensadores do Círculo de Bakhtin centram-se na relação do “eu”
com o “outro” como fatores determinantes no processo de comunicação e enunciação,
privilegiando a identificação e a caracterização das diferentes vozes sociais por meio das
quais um texto se constitui. O sujeito, em inter-relação dialógica com outro numa situação de
fala dada, define-se e expõe sua posição avaliativa responsivamente. Ele é responsável por seu
discurso, um ato de fala único que, entretanto, não se desvincula da coletividade no seio da
qual é produzido. Como integrante de uma pluralidade, o sujeito constitui-se nela e em sua
função; ao produzir um texto, está sempre incorporando, veiculando valores e dialogando com
diferentes vozes e ideologias – as quais pode recusar ou aceitar. Sendo assim, ao analisarmos
os artigos de opinião de Toledo, pontuamos em seu texto essas especificidades e
características da linguagem, privilegiando a relação dialógica entre vozes sociais e ideologia.
Aberto a múltiplas leituras e constituído por uma pluralidade de vozes, o texto, para
Bakhtin, constitui-se de enunciados, os quais possuem enunciados anteriores a ele e suscitam
enunciados posteriores, sendo, portanto, uma atitude responsiva que leva a uma outra, à do
enunciatário. Para Bakhtin, o significado somente se dá quando há essa interação entre os
interlocutores, sendo a palavra um ambiente partilhado tanto pelo enunciador, quanto pelo
enunciatário. Nesse sentido, o discurso não se realiza somente por um “eu” soberano, mas por
15
meio da inter-relação e tensão entre sujeitos. Em conseqüência, a compreensão do discurso
não se trata de uma experienciação psicológica da ação dos outros, mas uma réplica ativa,
uma tomada de posição diante do texto, envolvendo a pluralidade. Assim, a perspectiva de
Bakhtin e seu Círculo, ao privilegiarem a identificação e a caracterização das diferentes vozes
por meio das quais textos se constituem, entende que a dinâmica da inter-relação das vozes
representam a inter-relação social dos sujeitos com a ideologia.
Nos artigos de opinião de Toledo, ao levar em conta essas reflexões, verificamos o
envolvimento do enunciatário na compreensão do texto como um todo, uma vez que aquele
atribui significação àquele, no qual há uma dinamicidade e embate entre vozes e enunciados.
O enunciador dos artigos de opinião, por meio de uma resposta ativa diante do contexto
político-social brasileiro e do mundo, coloca-se diante das vozes pelas quais é interpelado e
posiciona-se responsivamente. Uma vez que o enunciador pensa por meio da linguagem e a
utiliza para se comunicar, é perpassado por diversas vozes de outrem, constituindo-se não por
uma subjetividade exclusiva, mas sim, por meio da pluralidade de vozes. Sendo assim, os
artigos de opinião de Toledo ao mesmo tempo em que apresentam um embate entre textos
explicitamente, marcados por aspas, por exemplo, deixa entrever vozes na enunciação,
compreendidas no todo do texto.
Responsivamente, esse enunciador, que se faz crítico e julgador, relativiza sua voz ao
se apoiar em outros discursos, recorrendo a enunciados de outrem e à ironia, por exemplo.
Sendo integrante da pluralidade, o enunciador, ao produzir seu texto, incorpora e veicula
valores, dialogando com diferentes ideologias e vozes – as quais refuta ou aceita, dependendo
da sua posição. Assim, os textos de Toledo são tecidos pelos mais diversos fios ideológicos,
os quais são colocados em embate discursivo, configurando a voz do enunciador no todo do
texto.
Portanto, para atender aos nossos objetivos de caracterização e identificação das
vozes sociais nos artigos de opinião de Toledo, embasamos o trabalho principalmente nas
questões referentes ao dialogismo, refletidas pelo Círculo de Bakhtin, e também nas reflexões
de Brait (1996), Hutcheon (2000) e Ducrot (1987) quanto à ironia (já que essa se trata de uma
das formas de tratamento dada às vozes sociais nos textos em análise). O trabalho desses
autores vem dar sustentação às nossas discussões sobre a ironia nos artigos de opinião de
Toledo, abordando-os sob a perspectiva teórica que adotamos.
Relacionando o enunciador com o enunciatário, Brait (1996) afirma que a ironia é
configurada pela relação entre uma voz que é dita e outra não-dita, cabendo ao enunciatário
16
interpretar o inter-dito. Assim, o enunciador, ao construir a ironia, pressupõe quem seja seu
enunciatário, pois os sentidos da ironia são negociados com o outro. O enunciador deve
encontrar formas de chamar a atenção do enunciatário para que ele perceba a construção da
ironia e possa chegar até ela. Sendo assim, a interpretação da ironia, que não deve separar o
dito do não-dito, leva em conta a quem é destinada e também o contexto em que é produzida.
Brait, baseada na teoria de M. Bakhtin, defende, então, uma perspectiva interdiscursiva sobre
a ironia. Segundo ela, a ironia se dá por meio do entrecruzamento de discursos, sendo, então,
uma duplicidade enunciativa, pois dialoga com o conteúdo de uma outra enunciação. Para
Ducrot (1987), o dito refere-se a um discurso absurdo veiculado pelo enunciador, tendo
implicado nele um discurso sério, com o qual o enunciador concorda. Por meio da relação
entre essas vozes dissonantes, o enunciador revela seu juízo de valor, porém de maneira
velada. Ao mesmo tempo em que desvela um discurso ou instituições vigentes, não revela
uma agressão, pois o posicionamento do enunciador não está dado no enunciado diretamente
– é preciso relacionar o dito e o não-dito para se chegar à crítica. Em vários artigos de opinião
estudados, o enunciador elucida seu ponto de vista por meio de uma ironia fina e sutil, o que
contribui para a amenização da sua voz avaliadora. Nesse sentido, a ironia, por meio do
entrecruzar de vozes e discursos, mostra-se como uma forma de discurso dialógica que
subverte valores, mas sem incitamento.
Uma vez que o objetivo deste trabalho é verificar as formas de transmissão e o
tratamento dado às vozes sociais nos artigos de opinião de Toledo, na primeira seção
refletimos sobre a perspectiva teórica que adotamos, a qual permite o exame da configuração
do córpus. Uma vez que entendemos que a linguagem, pela perspectiva bakhtiniana, é
ideológica, observamos nessa seção a relação entre a linguagem e a tomada de posição do
enunciador diante dos acontecimentos do mundo e do Brasil, que chama para o texto. Com
esse propósito, mostramos a importância dos adjetivos para a configuração do posicionamento
do enunciador, uma vez que são signos ideológicos, os quais, pelas suas características
semânticas, qualificam, exprimem um tom valorativo, frente ao enunciado a que se refere, e
são recorrentes nos artigos de opinião de Toledo.
Uma vez que os temas que o enunciador aborda nos textos se referem a
acontecimentos contemporâneos à época de publicação dos textos na revista Veja, refletimos
também nessa seção sobre a importância do cronótopo como organizador dos textos e também
dos sentidos veiculados, já que, para que haja uma resposta ativa diante dos enunciados, o
enunciatário recupera esses acontecimentos atuais.
17
Na primeira seção tratamos ainda das relações estabelecidas entre os sujeitos do
discurso, enfocando a importância do enunciatário para a compreensão da tomada de posição
do enunciador. Uma vez que é estabelecida entre eles uma relação dialógica, percebe-se nos
textos em análise que essa relação se caracteriza por uma certa proximidade entre ambos, uma
vez que se verificam no texto elementos discursivos que tentam regular o sentido dos textos.
Na segunda seção, tratamos do papel da ironia nos artigos de opinião em análise, e
sobre sua materialidade lingüística, isto é, como ela se mostra e de que maneira contribui para
a configuração do posicionamento do enunciador, uma vez que constitui um importante modo
de tratamento das vozes nesses textos. Com base em Brait (1996), Hutcheon (2000) e Ducrot
(1987), analisamos a ironia sob uma perspectiva dialógica, entendendo que ela se constrói por
meio do embate entre vozes. Como assume Brait (1996), a ironia se dá pela não separação
entre a voz dita e a não-dita, tendo o enunciatário um papel importante para a identificação e
interpretação da voz implicada. E é por meio dessa relação entre vozes que o posicionamento
do enunciador é configurado, o que caracteriza a amenização da sua voz julgadora aguda.
Na terceira seção, tratamos dos mecanismos de apreensão e transmissão dos discursos
de outrem, os quais, ao serem problematizados pelo enunciador nos textos, elucidam seu
posicionamento diante do tema enfocado pelo texto. Essa relação, marcada pela interação
entre o discurso recuperado e o discurso do enunciador, faz com que a voz julgadora deste
seja relativizada, uma vez que ele não afirma categoricamente seu posicionamento no texto:
ele é veiculado pela relação estabelecida entre esses discursos.
Analisamos tamb m nessa seção as formas de transmissão desses discursos
recuperados, com fundamento nos dois estilos que, segundo as reflexões teóricas adotadas,
são usados para apreender discursos de outrem: o estilo linear e o estilo pictórico. Pelo estilo
linear, o enunciador elucida seu posicionamento ao dar voz a um outro, deixando marcas
visíveis no texto da diferenciação entre as vozes; e pelo estilo pictórico, o enunciador mistura
essas vozes, não as distinguindo nitidamente no texto. Independente do estilo usado, os
discursos reportados contribuem para o efeito de relativização da voz autoral, amenizando a
forma de dizer a crítica.
18
1 SIGNO: DIALÓGICO E IDEOLÓGICO
1.1 O Círculo de Bakhtin: inacabamentos
Em sua época, Chesterton dividiu a espécie humana em três grandes
categorias: “pessoas simples”, “intelectuais” e “poetas”. As “pessoas
simples” são capazes de sentir, mas não de expressar seus sentimentos; os
“intelectuais” são capazes de menosprezar com perfeição os sentimentos das
“pessoas simples”, de ridicularizá-las e de arrancar de si próprios esses
sentimentos; os “poetas”, ao contrário, foram agraciados com a capacidade
de expressar aquilo que todo mundo sente, mas ninguém sabe dizer. De
acordo com essa classificação, Bakhtin pertence ao grupo dos poetas.
(SERGEI AVERINTSEV, apud. FIORIN, 2006, p. 09)
Com uma evidente preocupação acerca da concepção de linguagem, o chamado
Círculo de Bakhtin, com formação na Rússia, era constituído por pessoas de diversas
formações, interesses pessoais e intelectuais e não formava em algum sentido uma
organização fixa; porém, de acordo com Clark e Holquist (1998), podem ser citados como os
três principais intelectuais envolvidos Bakhtin, Volochinov e Medvedev, os quais se
encontraram regularmente durante dez anos (1919-1929) num grupo de estudos e partilharam
um conjunto expressivo de idéias, primeiro em Nevel e Vitebsk e, depois, em São
Petersburgo. Tinham em comum “uma paixão pela filosofia e pelo debate de idéias (...).
Mergulharam fundo nas discussões de filósofos do passado, sem deixar de se envolverem
criticamente com autores do seu tempo”. (FARACO, 2003, p. 16). Dentre essas preocupações,
foram progressivamente imergindo discussões a respeito da linguagem, a qual passa, com o
tempo, a ser o principal foco de discussão do Círculo de Bakhtin.
A recepção da obra do Círculo foi tumultuada na década de 1960 na Rússia e também
no Ocidente, cujas traduções nem sempre foram bem elaboradas. Além do mais, há uma
quantidade de manuscritos inacabados e rascunhados deixados por Bakhtin, dificultando a
apreensão do seu pensamento. Alguns textos padeceram também de discussões sobre sua
verdadeira autoria, pois assinados por Volochinov ou Medvedev, alegou-se serem de autoria
de Bakhtin. A não-linearidade e não-homogeneidade da recepção da obra de Bakhtin parecem
19
reiterar o pensamento que ele formulou sobre a constituição do ser e sobre a linguagem, isto é,
o vir a ser, o inacabamento, a heterogeneidade. De acordo com Brait
Ninguém, em sã consciência, poderia dizer que Bakhtin tenha proposto
formalmente uma teoria e/ou análise do discurso, no sentido que usamos a
expressão para fazer referência, por exemplo, à Análise do Discurso
Francesa. Entretanto, também não se pode negar que o pensamento
bakhtiniano representa, hoje, uma das maiores contribuições para os estudos
da linguagem, observada tanto em suas manifestações artísticas como na
diversidade de sua riqueza cotidiana. (BRAIT, 2006, p. 09).
Bakhtin, portanto, não tem uma teoria acerca da linguagem e seu funcionamento, mas
sim, reflexões sobre ela, as quais muito contribuem para os estudos na área de análise do
discurso, uma vez que privilegia as relações sociais e ideológicas no signo e no discurso. Para
Bakhtin não há uma dissociação entre a linguagem e a história, sendo, portanto, questões
relevantes e essenciais ao se estudar sua manifestação. Sendo assim, neste trabalho, ao
refletirmos sobre as formas de tratamento e transmissão das vozes sociais nos textos de
Roberto Pompeu de Toledo, enfatizamos os valores que constituem a palavra nos artigos de
opinião estudados, apoiando-nos nas relações dialógicas que envolvem o sujeito situado em
um contexto histórico, o qual assume um ponto de vista diante de um objeto/discurso. Nos
textos estudados, o enunciador assume uma posição axiológica diante do contexto
contemporâneo brasileiro e mundial, expondo sua tomada de posição, elucidada com uma voz
crítica e julgadora. O enunciador, ainda, ao expor seu ponto de vista, considera um
enunciatário implicado pelo contexto de produção desse discurso: revista Veja e a
contemporaneidade. Assim, as relações dialógicas não se fazem somente entre discursos, mas
também entre sujeitos, já que há uma compreensão responsiva ativa do enunciatário diante do
discurso pelo qual é interpelado.
Os estudos de Bakhtin acerca do discurso priorizaram discussões e reflexões acerca da
língua, entendendo-a como uma “integridade concreta e viva” (BAKHTIN, 2002, p. 181) e
não
[...] como objeto específico da Lingüística, obtido por meio de uma
abstração absolutamente legítima e necessária de alguns aspectos da vida
concreta do discurso. (...) Por este motivo as nossas análises subseqüentes
não são Lingüísticas no sentido rigoroso do termo. Podem ser situadas na
Metalingüística, subentendendo-a como um estudo – ainda não constituído
20
em disciplinas particulares definidas – daqueles aspectos da vida do discurso
que ultrapassam – de modo absolutamente legítimo – os limites da
Lingüística. (BAKHTIN, 2002, p. 181)
C
onstruindo uma nova perspectiva de estudo sobre a língua e a linguagem, chamada
Metalingüística (ou dialogismo, como é mais conhecida), Bakhtin não ignora os estudos da
Lingüística. Reconhece que os estudos lingüísticos enfocam a língua como algo abstrato,
inserido em um sistema. Partindo desse enfoque sistemático, passa a assumir a importância
em se estudar a língua em seu cotidiano, viva, contextualizada, atualizada historicamente –
pois é no contexto que ela se constrói e se reconstrói. O enfrentamento bakhtiniano da
linguagem leva em conta, portanto, “as particularidades discursivas que apontam para
contextos mais amplos, para um extralingüístico aí incluído” (BRAIT, 2006, p. 13).
Mesmo não havendo uma obra sistematizada, pode-se concluir que, de acordo com
Faraco (2003), há dois grandes projetos intelectuais no conjunto das obras do Círculo, que são
o de construir uma “prima philosophia” e o de contribuir para a construção de uma teoria
marxista da chamada criação ideológica, ou seja, da produção e dos produtos do “espírito
humano”. Levando em consideração as asserções da chamada “prima philosophia” no que se
refere à linguagem, o Círculo centrou-se em questões referentes à eventicidade e à unicidade
do Ser, à contraposição eu/outro e ao componente axiológico intrínseco ao ser humano.
Mesmo não negando a validade do teoreticismo
2
– muito enfatizado pelas teorias da época –
critica o posicionamento de que a razão da teoria não acompanha o mundo da vida,
desvinculando o ser humano da sua realidade concreta. Bakhtin deseja, antes, reconciliar o
mundo da cognição teórica com o da vida, interessando-lhe a idéia da ênfase no singular, no
individual, no irrepetível. Para ele, a filosofia moderna não pode ser compreendida como uma
filosofia primeira, pois não diz nada sobre o ser como evento-único. Ele quer, assim,
[...] recuperar a possibilidade de uma tal filosofia primeira, uma filosofia
cujo procedimento não será construir conceitos, proposições ou leis
universais sobre o mundo do ato efetivamente realizado (...), mas só poderá
se viabilizar como uma fenomenologia daquele mundo, como uma forma de
pensamento que Bakhtin chama de participativo. (FARACO, 2003, p. 21,
grifo do autor)
2
Essa terminologia é utilizada por Faraco em seu livro Linguagem e diálogo: as idéias lingüísticas do Círculo de
Bakhtin (2004, p. 20), ao se referir ao posicionamento crítico de M. Bakhtin acerca de teorias que posicionam a
razão teórica acima do ser humano, tomando-as como uma abstração.
21
Ao se perceber único, o ser responsabiliza-se pela sua unicidade e reconhece que não
vive apenas para si, mas constitui-se na relação que estabelece com o “outro”, representando,
cada um deles, universos de valores. Por meio dessa interação entre sujeitos é que Bakhtin vai
refletir sobre a ideologia, que é considerada por Faraco (2003) o seu segundo grande projeto,
discutido no item a seguir.
1.2 Ideologia: um enfrentamento de valores
Para Fiorin (2003, p. 22), “Mikhail M. Bakhtin (1895-1975) é um dos mais influentes
teóricos da linguagem do século XX”. Por meio de suas reflexões, juntamente com outros
pensadores de sua época, mudou, além dos paradigmas da Lingüística e da Teoria da
Literatura, a forma de ver o fenômeno da linguagem em sua completude e concretude. Para
ele “Bakhtin é antes um filósofo da linguagem, ou melhor, um filósofo, em cujo projeto
intelectual a linguagem tem uma dimensão importante”. (FIORIN, 2003, p. 22). Característica
fundamental do seu pensamento, Bakhtin tentava compreender os complexos fatores que
tornam possível o diálogo – mas não apenas aquele realizado na conversação entre duas
pessoas, face a face, mas o diálogo entendido como comunicação entre diferenças
simultâneas. Sua concepção dialógica da linguagem leva-o a examinar esse princípio sob
diferentes ângulos, estudando-o detidamente em suas diferentes manifestações. Acentua sua
obra na alteridade, tratando fundamentalmente das relações entre o “eu” e o “outro”, sendo
esse outro uma posição social expressa no texto.
Questionando a teoria marxista da criação ideológica, a qual concebia a linguagem
como uma ligação direta entre os “acontecimentos nas estruturas socioeconômicas e sua
repercussão nas superestruturas ideológicas” (MIOTELLO, 2005, p. 168), Bakhtin reflete
sobre uma outra filosofia da linguagem, a qual pudesse colocar o estudo da ideologia no
“lugar certo” (MIOTELLO, 2005, p. 167). Ele e o Círculo inserem, então, essa questão no
conjunto das relações sociais, tratando a ideologia
3
de forma concreta e dialética.
3
O termo ideologia, de acordo com Faraco (2003, p.48) “é o nome que o Círculo costuma dar (...) para o
universo que engloba a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a religião, a ética, a política, ou seja, todas as
manifestações superestruturais (para usar uma certa terminologia da tradição marxista)”.
22
Bakhtin mesmo alerta que não aceita ser medíocre dialeticamente, e por isso
vai construir o conceito no movimento, sempre se dando entre a
instabilidade e a estabilidade, e não na estabilização que vem pela aceitação
da primazia do sistema e da estrutura; vai construir o conceito na concretude
do acontecimento, e não na perspectiva idealista (MIOTELLO, 2005, p.
168).
Considerando as interpretações das idéias de Saussure em relação à língua – o qual a
considerava como um sistema de formas – Bakhtin, ao contrário, assume uma perspectiva
social ao discutir questões de linguagem, valorizando a não-estabilização das estruturas e do
sistema.
4
Mesmo privilegiando a língua na vida cotidiana em seus estudos, não desconsidera
os estudos de Saussure, pois todos os produtos da criação ideológica são objetos dotados de
materialidade, mas que não podem ser estudados fora da realidade. Para ele, a linguagem é
viva e dinâmica, e ela, enquanto signo, reflete e refrata os valores e pontos de vista de um
grupo social definido historicamente. Partindo das asserções de Marx
5
sobre ideologia,
Bakhtin observa que é por meio da ideologia do cotidiano (ou da infraestrutura, como define
Marx) que se promovem e se desenvolvem mais rapidamente as mudanças de paradigmas e de
qualidades ideológicas tramadas nas relações sociais. Sendo assim, Bakhtin reflete sobre o
conceito de ideologia na sua concretude – e não sob uma perspectiva idealista. O signo é para
ele tudo aquilo que tem uma “encarnação material, seja como som, como massa física, como
cor, como movimento do corpo ou como outra coisa qualquer” (BAKHTIN, 2004, p. 33) e
que aparece na experiência exterior, refletindo e refratando uma outra realidade que ultrapassa
as peculiaridades do objeto. Assim, os atos físicos, os objetos do mundo apenas terão um
sentido quando valores forem agregados a eles; caso contrário, serão apenas atos fisiológicos
4
Saussure, um dos primeiros lingüistas a sistematizar os conceitos em torno da Lingüística sincrônica, ao tratar
da língua em seus estudos, enfatiza a relação entre significante (materialidade acústica) e o significado
(conteúdo) do signo lingüístico. Mesmo considerando que a língua “É, ao mesmo tempo, um produto social da
faculdade da linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo grupo social para permitir o
exercício dessa faculdade nos indivíduos”. (SAUSSURE, 1970, p. 17), não privilegia as relações sociais em
torno da valoração do signo em seus estudos, pois tal questão não era relevante para os estudos sobre língua que
estava desenvolvendo.
5
Para Marx, a ideologia é um dos aspectos da história do homem. O modo como os homens interpretam as
relações sociais (imaginariamente) é a ideologia. De acordo com Chauí (1980, p.60) “Marx e Engels determinam
o momento de surgimento das ideologias no instante em que a divisão social do trabalho separa o trabalho
material e manual, e trabalho intelectual”. Marx considera que há um poder oficial (que seria o poder do Estado),
o qual pretende ser também um órgão controlador. Seria dele que emanariam as ideologias que circulam na
sociedade, controlando-as. As classes sociais não teriam ideologias próprias, conseguindo sua emancipação
somente através de uma luta e revolução. Bakhtin, por outro lado, considera que há sim uma ideologia oficial e
também uma ideologia do cotidiano (cujas terminologias em Marx são superestrutura e infraestrutura,
respectivamente). Mas ao contrário do pensamento da luta de classes de Marx, Bakhtin considera que tais
valores se intercruzam, influenciando-se mutuamente. Para ele, é através da ideologia do cotidiano que se
promove uma revisão dos
sistemas ideológicos oficiais. As transformações se dão principalmente na infra-
estrutura e vai tomar forma na super-estrutura num processo dialético; e essas transformações são refletidas e
refratadas no signo.
23
ou objetos em si mesmos. Os campos de significações agregados aos objetos físicos do mundo
advêm das relações sociais, sendo dependentes da sociedade, da classe social, dos
investimentos simbólicos que cada cultura imprime a si mesma através das coisas e dos
homens em um dado contexto e tempo histórico. Nessa medida, o signo para Bakhtin (2004,
p. 36) é uma “unidade social” que carrega os mais variados pontos de vista, uma vez que um
mesmo objeto físico pode refletir e refratar valores distintos, dependendo dos interesses
particulares do grupo por quem é adotado. Sob esse ponto de vista, a linguagem é o lugar mais
completo da materialização da ideologia, pois pontos de vista e valores são constituídos na
comunicação entre grupos organizados em diferentes esferas de atividade. Nos artigos de
opinião estudados, os signos veiculam a tomada de posição do enunciador, constituídos pela
ideologia do contexto contemporâneo em que se situam. Utilizando-se de vocábulos diversos,
e, ainda, de discursos de outrem, e de ironias, o enunciador veicula sua crítica ao objeto-tema
a que se refere, esperando a resposta ativa do enunciatário. Assim, as relações dialógicas que
aí se instauram, decorrem da responsividade (tomada de posição axiológica), que é inerente a
todo e qualquer enunciado.
Privilegiando as formas concretas de comunicação, Bakhtin atribui à palavra o caráter
de melhor meio para representar imediatamente as mudanças nas relações sociais – refletindo,
conseqüentemente, novos pontos de vista e lugares valorativos determinados por grupos
sociais ao longo da história. Em Marxismo e filosofia da linguagem (2004), afirma que
A palavra é o fenômeno ideológico por natureza. A realidade toda da palavra
é absorvida por sua função de signo. A palavra não comporta nada que não
esteja ligado a essa função, nada que não tenha sido gerado por ela. A
palavra é o modo mais puro e sensível de relação social. (BAKHTIN, 2004,
p. 36, grifo do autor).
Ao considerar a palavra sob esse prisma, considera que é nela que se refletem mais
imediatamente as mudanças de valores promovidas pelas mudanças das relações sociais. Por
valorizar a comunicação na vida cotidiana como uma esfera ideológica particular, afirma que
é nela que a palavra pode ser compreendida como um material privilegiado, agindo em toda
transformação e criação ideológicas e as incorporando. A palavra é também acessível a
diferentes funções ideológicas; pode, assim, servir a interesses de diferentes grupos sociais e
situações. Sendo assim, uma mesma palavra pode vir a ter os mais variados sentidos
possíveis, até mesmo contraditórios entre si. Nesse sentido, a linguagem em geral, e,
24
conseqüentemente a palavra, não se trata de algo finito, pronto, mas sim construído ao longo
das relações sociais estabelecidas entre grupos, comunidades, etc; isto é, ela é reconstruída
pelo ser humano a partir do momento em que o perpassa em suas relações sociais. Em sua
vida, a palavra é, portanto, tecida pelos mais diversos fios ideológicos, pois aparece e tem
sentido em diferentes domínios das relações sociais. O falante, ao dar vida à palavra com sua
entonação, dialoga diretamente com os valores da sociedade, expressando seu ponto de vista
em relação a eles. Para Bakhtin,
Os signos só podem aparecer em um terreno interindividual. [...] É
fundamental que esses dois indivíduos estejam socialmente organizados, que
formem um grupo (uma unidade social): só assim um sistema de signos pode
constituir-se. (BAKHTIN, 2004, p. 35, grifo do autor)
Nos artigos de opinião de Toledo aqui estudados, a palavra, entremeada pela ideologia
do contexto contemporâneo, veicula pontos de vista, e, ainda, os valores sociais nela
agregados. Os signos são atualizados em um contexto específico (ano de 2005 e a revista
Veja, a qual é o suporte dos artigos), configurando novos sentidos – já que, a cada vez que a
língua é utilizada, em um ato único e singular, um novo sentido é dado. Os signos veiculam o
ponto de vista defendido pelo enunciador de tais textos, e, ainda, os valores neles contidos
nessa época em questão. Sendo assim, para que haja a compreensão deles, e,
conseqüentemente, dos pontos visados pelo enunciador, há a recorrência a um enunciatário
contemporâneo aos textos, o qual recupera os sentidos que subjazem os signos empregados.
Espera-se esse tipo de enunciatário em decorrência do gênero desses textos, pois neles o
enunciador dialoga com acontecimentos imediatos à publicação do artigo, os quais podem,
muitas vezes, fazer referência a sentidos específicos da época. Além disso, o modo como o
autor utiliza a língua caracteriza o estilo de seus textos, o que é relevante para nossos estudos.
Nesse sentido, de acordo com a perspectiva bakhtiniana, além das formas de utilização
da língua, os procedimentos de acabamento do texto e a visão de mundo nele expressa
caracterizam o estilo de uma obra. Dessa maneira, o tratamento das vozes nos artigos de
opinião em análise reflete, conseqüentemente, o estilo que os caracteriza, já que esse envolve
“idiossincrasias que tem como interlocutores textos, contextos, etc., e que, ao mesmo tempo”
trata-se de uma “dimensão que não pode ser negligenciada na análise da linguagem”.
(BRAIT, 2004, p. 82). Sob esse aspecto, Bakhtin considera que a singularidade de um
enunciado, de um texto, de uma autoria, isto é, o estilo, é impregnado da atitude valorativa do
25
autor-criador, o qual dá unidade ao todo artístico. O estilo, para ele, é a constituição da
singularidade de um enunciado, de um texto, de um discurso, de uma autoria, fundamentada
na relação, na alteridade, e não na subjetividade, considerada como o que há de
“exclusivamente particular, individual, pessoal” (BRAIT, 2004, p. 79). Assim, a linguagem,
que é social, histórica e cultural, deixa entrever, ao mesmo tempo, singularidades,
particularidades, sempre “afetadas, alteradas, impregnadas pelas relações que as constituem”.
(BRAIT, 2004, p.80). Para Bakhtin, a função autoral é aquela que dá unicidade à
exterioridade do mundo; é, acima de tudo, uma visão de mundo, e, somente depois, meio de
elaborar um material.
Nos artigos de opinião analisados, a voz autoral é particularizada por um autor
indignado com as questões que aborda, sempre contra-argumentando um discurso que chama
ao texto. Dessa maneira, o leitor, ao recorrer à coluna de Toledo, espera, de antemão, a
contestação ou crítica de algum assunto veiculado na mídia daquela semana. Ele não tem
certeza sobre o assunto específico que será abordado, mas sabe que será veiculada uma voz
indignada e avaliadora. Isso se dá, pois, tais textos possuem esse estilo próprio, dado pela
visão de mundo do autor e pela sua forma particular de expressá-la.
Analisando-se os textos, pôde-se verificar alguns dos valores defendidos ou
repudiados pelo autor de tais textos, deixando entrever, dessa forma, sua visão de mundo. Em
sua maioria, esse autor defende o valor da ética e também o da integridade e o da
responsabilidade política, principalmente. Repudia, assim, a corrupção; o beneficiamento de
cargos públicos, que faz com que se coloquem interesses particulares acima dos interesses
coletivos; e repudia também a reafirmação constante, por meio de atitudes, de que as
melhores oportunidades estão em países estrangeiros, e não no Brasil, como no caso da venda
exorbitante de jogadores de futebol para outros países. Uma vez que o estilo de um texto está
relacionado ao seu contexto de produção e também à relação que o autor mantém com o
leitor, o autor refere-se a alguns temas específicos da época de publicação dos artigos de
opinião, avaliando-as sob o viés de sua visão de mundo. No período em que foram escritos os
textos em análise, era freqüente na mídia a veiculação de denúncias de corrupção envolvendo
membros do governo Lula e também do partido político PT. Sendo assim, é marcante a
contestação do autor a tais fatos, criticando-os e avaliando-os sob o viés dos valores que
defende. Dessa forma, verifica-se que o autor é contrário ao governo Lula, já que esse se via
envolvido, na época, em denúncias de corrupção, mostrando a falta de integridade política dos
parlamentares em questão, já que agiram, de acordo com o autor, sem responsabilidade e sem
26
ética. Além disso, discorda também das atitudes políticas do presidente Lula, pois para o
autor, aquele deveria exercer uma governância mais sólida e incisiva, e não delegar funções a
ministros e fazer viagens constantes, enquanto a política brasileira via-se envolta em
escândalos. Mostra-se contrário, também, a José Dirceu (articulador político do governo
Lula), tido pelo autor como o organizador de todo o esquema do mensalão.
Ao mesmo tempo em que se refere à falta de ética da esquerda política do país,
representada nos textos principalmente pelo PT, José Dirceu, Lula, Delúbio Soares e Aldo
Rebelo, esse autor também exprime sua indignação a políticos representantes da direita
política, como Paulo Maluf e Roberto Jefferson, os quais tiveram envolvimento com
esquemas de desvio de dinheiro público. Declarando-se favorável a essa vertente política, o
autor, mesmo assim, faz uma ressalva:
O Brasil ficará melhor no dia em que tiver uma direita decente, que escolha
melhor seus ícones. E que, na questão dos bons costumes, se proponha a ser
melhor do que o outro lado, e não se contente em gozar um momento
delicioso como o atual com o risinho safado de quem diz: "Viu? Eles são
como nós". (TOLEDO, 2005g).
Sendo assim, vê-se que a visão de mundo de tal autor, independente de sua filiação
política, é a da defesa da ética na política e também a da manutenção de governantes sérios,
que agem incisivamente e com responsabilidade nas decisões diárias, não beneficiando
colegas de partido ou aliados, mas sim, colocando o Estado acima de interesses particulares –
como abordado no artigo “Leoa de um lado, gata distraída de outro” (TOLEDO, 2005e).
Bakhtin (2003) afirma que a autoria assinala uma singularidade, bordejando o texto,
delimitando-o, caracterizando-o. Portanto, ao o leitor recorrer aos textos de Toledo, não está
esperando a abordagem feita pela pessoa física do escritor, mas sim, à abordagem da voz
autoral, a qual é caracterizada, como visto, por uma voz de contrariedade e de crítica, com
uma avaliação negativa, na maior parte das vezes, realizada textualmente por meio da contra-
argumentação, da ironia e pela relação entre discursos. Dessa forma, seria possível afirmar
que o leitor se pergunta, de antemão, qual será o assunto da semana que esse autor irá criticar
desfavoravelmente. Além do mais, tal autor organiza o texto com uma forma peculiar, dando
o efeito de uma opinião irrefutável, uma constatação, particularizando seu estilo.
6
6
Nas seções seguintes descrevemos e analisamos como se dão essas formas de dizer, como a ironia e os
discursos reportados, as quais conferem um efeito de sentido de constatação, de dizer absoluto à voz autoral.
27
O modo de organização das vozes/dos discursos no interior dos textos também
caracteriza seu estilo. Nos artigos de opinião de Toledo, o autor recupera discursos e temas
que estão em circulação naquele período, e os expõe entremeados pela sua visão de mundo.
Ao chamá-los ao texto, recupera-os propositalmente, organizando o discurso de forma que
possa, além de veicular seu posicionamento, dar um efeito de constatação ao que diz. Para
isso, o autor recupera discursos de outrem que têm uma representação significativa, já que são
discursos de personalidades políticas, jornalísticas, literárias, etc. Dessa forma, desvencilha-se
de um dizer categórico, já que dá voz a um outro, mas, ao mesmo tempo, confere um sentido
de irrefutabilidade ao que diz. Além disso, o autor, na maioria dos textos, faz uma afirmação
sobre o acontecimento de que trata no texto, e, em seguida, o contra-argumenta por meio de
uma ressalva, expondo seu ponto de vista. Isso pode ser visto no artigo de opinião
“Hummmmmm...Uai! Chi.......Eureca!” (TOLEDO, 2005i). O enunciador afirma:
O governo brasileiro precisava mandar uma missão especial para esse fim?
Não que seja reprovável seu interesse pelo assunto. Pelo contrário, tem o
dever de preocupar-se com a sorte dos brasileiros no exterior.
E, em seguida:
Mas o Brasil mantém em Londres uma embaixada e um consulado. Eles
poderiam, até com mais vantagem, conhecedores que são, por dever de
ofício, ou que devem ser, dos meandros da vida britânica, desincumbir-se da
tarefa. (TOLEDO, 2005i).
Vê-se que, baseado em fatos e em dados, o enunciador contra-argumenta a afirmação
que faz, expondo o ponto de vista de discordância a tal proposição. Ao mesmo tempo em que
afirma algo no enunciado, discorda dele, tratando a opinião que defende como plausível e
coerente, já que pelos dados referentes à cidade de Londres, não seria necessária a intervenção
de outras instituições brasileiras naquele caso, além da embaixada brasileira existente na
Inglaterra. Assim, o lugar autoral caracteriza-se por um autor avaliador, marcado pelo viés da
contra-argumentação, configurando ao seu dizer um efeito de irrefutabilidade.
Ao longo do trabalho, essas questões referentes às formas de tratamento e de
transmissão de vozes nos artigos de opinião de Toledo serão exploradas com maior
especificidade e, conseqüentemente, o estilo de tais textos. Mas já se pode antever que tais
28
textos têm suas singularidades e particularidades, as quais dão unicidade a eles. E, a partir
disso, o enunciatário conhecedor do estilo desses textos, cria uma expectativa quanto à
opinião do autor dos artigos de opinião, a qual é constituída por uma avaliação crítica e
negativa, de contrariedade, principalmente.
1.3 Sobre a inter-relação dos sujeitos
Uma vez que os valores ideológicos dos signos são construídos socialmente, eles
devem ser entendidos, apreendidos e confirmados (ou não) pelo enunciatário. Assim, o caráter
ideológico da linguagem trata-se de um diálogo vivo entre sujeitos. De acordo com a
perspectiva bakhtiniana, há uma dialogização interna da palavra, que é perpassada sempre
pela palavra do outro; o que significa que qualquer pessoa, ao falar, leva em conta a fala de
outrem, que está presente na sua. Portanto, no discurso, o que dialogam são posições de
sujeitos sociais, pontos de vista acerca da realidade. Bakhtin afirma:
Nenhuma enunciação verbalizada pode ser atribuída exclusivamente a quem
a enunciou: é produto da interação entre falantes e, em termos mais amplos,
produto de toda uma situação social em que ela surgiu. (BAKHTIN, 2004, p.
35).
Sendo assim, em relação dialógica, o “eu” só se define pela contraposição ao “outro”.
A palavra, enquanto “estado de dicionário”, não pertence a ninguém, uma vez que qualquer
enunciado pode ser apropriado por alguém e ter o seu sentido alterado ou acrescido de novos
significados, sendo uma ponte entre sujeitos. Assim, o enunciado, ao mesmo tempo em que
responde ao “já-dito”, sendo uma réplica a um enunciado anterior, é orientado para uma outra
réplica, não havendo limites ao contexto dialógico.
Nos textos estudados, o enunciador veicula sua tomada de posição sobre
acontecimentos políticos que envolvem o mundo e o Brasil próximos ao dia de publicação de
tais textos. Para expor seu ponto de vista, recorre a ironias, recupera discursos de outrem e
utiliza, ao mesmo tempo, um vocabulário erudito e também coloquial. Uma vez que o
29
enunciado é uma réplica orientada para outra, para que isso ocorra nos artigos de opinião de
Toledo, é preciso que haja um enunciatário que reconheça e interprete o embate entre vozes
feito principalmente pelas ironias e pelos discursos reportados, e que recupere, pela memória
discursiva, os acontecimentos que são referidos. Além do mais, o contexto de produção é
importante, já que o enunciador trata de acontecimentos contemporâneos, atuais, ocorridos
principalmente uma semana antes da publicação do artigo de opinião na revista. Nos
exemplos a seguir, pode-se observar as marcas temporais que indicam a atualidade de tais
textos:
Artigo de opinião de 06 de julho de 2005.
“Surgiram razões, nas últimas semanas, para estranhar a falta de coerência
entre as diversas declarações e práticas do ex-ministro José Dirceu e suas
declarações e práticas do passado.” (TOLEDO, 2005a, grifo nosso).
“Ele próprio, numa conversa com jornalistas, na semana passada, transcrita
pelo Estado de S. Paulo de quarta-feira, endossou as razões para crer que
vive uma cruel crise de identidade”. (TOLEDO, 2005a, grifo nosso).
7
Artigo de opinião de 13 de julho de 2005
“Os últimos acontecimentos confirmam a impressão, já antiga, de que Lula,
como executivo, preferiu refugiar-se nas artes da levitação”. (TOLEDO,
2005b, grifo nosso).
8
Artigo de opinião de 20 de julho de 2005
“Até a semana passada, o Santos resistia, mas até quando? O Santos era o
lado vira-latas da questão. Tinha tudo para perder”. (TOLEDO, 2005c, grifo
nosso).
9
Artigo de opinião de 3 de agosto de 2005.
“Terça-feira passada foi o dia em que, por artes de Renilda [...]”.
(TOLEDO, 2005e, grifo nosso).
10
7
Vide Anexo A
8
Vide Anexo B.
9
Vide Anexo C.
10
Vide Anexo E.
30
Artigo de opinião de 10 de agosto de 2005.
“Lula aos adversários na semana passada inscreve-se na galeria das grandes
grosserias já disparadas pelos presidentes do Brasil”. (TOLEDO, 2005f,
grifo nosso).
11
Artigo de opinião de 31 de agosto de 2005.
“Na semana passada, uma missão do governo brasileiro [...]”.(TOLEDO,
2005i, grifo nosso).
12
Artigo de opinião de 07 de setembro de 2005.
“Na terça-feira passada, quem assistiu à cena do deputado Fernando
Gabeira [...]”.(TOLEDOj, 2005, grifo nosso).
13
Artigo de opinião de 14 de setembro de 2005.
“Seria fácil trazer as histórias do livro para circunstâncias mais próximas”.
(TOLEDO, 2005k, grifo nosso).
14
Artigo de opinião de 05 de outubro de 2005.
“[...] atual escândalo, dignos de entrar no repertório [...]”(TOLEDO, 2005n,
grifo nosso).
15
Artigo de opinião de 12 de outubro de 2005.
“Na quinta-feira, depois de receber uma carta do presidente Lula
[...]”.(TOLEDO, 2005o, grifo nosso).
16
Artigo de opinião de 26 de outubro de 2005.
“Os brasileiros foram convocados a participar, neste domingo, 23 de outubro
de 2005, de uma consulta popular sobre coisa nenhuma”. (TOLEDO, 2005q,
grifo nosso).
17
11
Vide Anexo F.
12
Vide Anexo I.
13
Vide Anexo J.
14
Vide Anexo K.
15
Vide Anexo N.
16
Vide Anexo O.
17
Vide Anexo Q.
31
Artigo de opinião de 16 de novembro de 2005.
“[...]Nesta era de política-espetáculo [...]”.(TOLEDO, 2005t, grifo
nosso).
18
Artigo de opinião de 23 de novembro de 2005.
“Nos dias de hoje, são as cidades a escolha inevitável de quem quer
amedrontar”. (TOLEDO, 2005u, grifo nosso).
19
Artigo de opinião de 30 de novembro de 2005.
“Assim terminava o comunicado expedido na segunda-feira passada pelo
comando de greve do Andes [...]”.(TOLEDO, 2005v, grifo nosso).
20
Artigo de opinião de 21 de dezembro de 2005.
“Pensemos em José, neste Natal, [...]”. (TOLEDO, 2005y, grifo nosso).
21
Pelos exemplos, vê-se que as marcas temporais indicam que, inserido no contexto da
contemporaneidade, o enunciador recorre a acontecimentos que estão em circulação naquele
período e se posiciona diante deles. Isso faz com que seja exigido do enunciatário a
recuperação, pela memória discursiva, de tais eventos e discursos, para assim, interpretar os
textos e estabelecer uma atitude responsiva ativa diante do que lê.
Além das marcas temporais apresentadas, a atualidade dos artigos de opinião mostra-
se também pela temática abordada. Escritos entre julho e dezembro de 2005, o enunciador
refere-se a acontecimentos políticos aludidos na época. Dentre vários temas recorridos, pode-
se apontar: a cassação do ex-deputado José Dirceu e do ex-deputado Roberto Jefferson; a
saída do jogador de futebol Robinho, do Santos para o Real Madrid; denúncias de corrupção
que envolveram o governo, denominadas “mensalão”; CPI dos Correios; a Copa do Mundo; a
morte do brasileiro Jean Charles de Menezes na Inglaterra; protesto de estudantes em Paris;
greve de fome do bispo Dom Cappio, como protesto contra a transposição do Rio São
Francisco; o referendo contra as armas de fogo no Brasil; casos de filas no INSS; greve nas
universidades públicas, entre outros.
18
Vide Anexo T.
19
Vide Anexo U.
20
Vide Anexo V.
21
Vide Anexo Y.
32
Dessa maneira, observa-se que o cronótopo está integrado ao significado temático,
pois “as categorias espaço-temporais são centros organizadores dos [...] acontecimentos
temáticos do enunciado” (CAMPOS, 2003, p. 55). Recorrendo a temáticas da atualidade,
percebe-se que esse contexto nos quais os artigos de opinião foram veiculados influencia sua
produção, visto que o enunciador apreende o mundo de acordo com acontecimentos da
contemporaneidade, além de ter em vista um enunciatário “esperado” – que, por sua vez, para
que compreenda o sentido do enunciado e, assim, ocorra a réplica ao que é dito, deve
mobilizar diversos saberes e sentidos que englobem o objeto-tema tratado pelo enunciador, o
qual pertence à contemporaneidade, além de compreender e interpretar as vozes e discursos
recuperados pelo enunciador. Dessa maneira, “o sentido de um enunciado”, como dito
anteriormente, “é estabelecido por meio de seu contexto, que lhe é intrínseco, e também pela
interação entre os sujeitos interlocutores”. (CAMPOS, 2003, p. 78).
Ao refletirmos e considerarmos a temporalidade dos textos em análise, vemos que há
aproximação deles com o gênero “artigo de opinião”, já que neles são recuperados temas
atuais, da semana anterior, ou seja, temporalmente próximos à publicação do texto na revista e
é conferido a esse tema uma avaliação, perpassada pela visão de mundo da voz autoral. Dessa
forma, o cronótopo, os aspectos formais e os temas abordados vêm suscitar questões
referentes à filiação de tais textos a um gênero discursivo, uma vez que, conteúdo temático,
estilo e construção composicional “fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e
todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação. (...) [e] cada
esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo
denominados gêneros do discurso. (BAKHTIN, 2003, p. 279, grifo do autor). Sendo assim, de
acordo com a perspectiva bakhtiniana, ao fazer uso da linguagem, o homem se insere em um
gênero, sendo a sua escolha uma das formas que o autor encontra para produzir sentido ao se
inscrever em alguma atividade comunicativa.
Ao observarmos a definição de Melo (1985) em relação a textos jornalísticos
opinativos, vemos que o gênero ensaio é o termo atribuído a um suplemento especial, de
edição dominical ou edições temáticas de revistas, cuja compreensão dos acontecimentos é
mais abrangente, pretendendo sistematizar o conhecimento apresentado; já no artigo de
opinião ou artigo jornalístico, o tratamento dado ao tema é mais ou menos provisório, pois é
escrito “enquanto os fatos ainda estão se configurando”. (MELO, 1985, p. 93). Ambos tipos
de textos são caracterizados pela recorrência a argumentos, entretanto, no ensaio, a
argumentação é apoiada em fontes que “se legitimam pela sua credibilidade documental,
33
permitindo a confirmação das idéias defendidas”; já no artigo, a argumentação “baseia-se no
próprio conhecimento e sensibilidade do articulista” (MELO, 1985, p. 93). Além do mais, o
artigo jornalístico tem como elementos específicos a atualidade e a opinião. No caso do
primeiro, o autor tem liberdade de conteúdo e de forma, tendo que tratar de acontecimentos ou
de idéias da atualidade, coadunando com o espírito do suporte em que é veiculado. Assim,
mesmo tendo o autor liberdade de exprimir sua opinião, não pode, ao mesmo tempo, destoar
antiteticamente dos valores defendidos pelo suporte no qual é publicado.
No que se refere à atualidade do artigo jornalístico, ele não se restringe a elementos do
cotidiano, mas também ao momento histórico vivido. Pelos exemplos apresentados referentes
à temporalidade dos textos em análise e também pela temática neles abordado, vê-se que o
enunciador recorre a acontecimentos próximos ao dia de publicação dos textos, recuperando
temáticas vividas naquele momento histórico específico. Além disso, os textos são publicados
semanalmente, juntamente com a publicação da revista, e não em edições especiais, como
seria característico de um ensaio.
É característico também de um artigo jornalístico a opinião. De acordo com Melo
(1985, p. 93), “a significação maior do gênero [artigo] está contida no ponto de vista que
alguém expõe. E essa avaliação não pode estar oculta, eventualmente dissimulada na
argumentação, (...) mas deve apresenta-se claramente, explicitamente”. Além disso, a opinião
emitida no artigo jornalístico é vinculada à assinatura do autor do texto, e o leitor a procura
para saber como esse autor pensa e reage diante da temática que aborda. Como visto no item
anterior desta seção, o enunciatário, ao recorrer aos textos de Toledo, espera a contrariedade e
a contestação do autor a algum tema noticiado naquela semana pela mídia. Dessa forma, fica
evidente nos textos de Toledo o ponto de vista defendido pelo autor desses textos e os valores
com os quais concorda ou discorda. Além disso, o autor baseia-se em argumentos para
elucidar seu posicionamento e defendê-lo, característica também do artigo, gênero que
trabalha principalmente com argumentos, mesclando fatos e idéias. Nos textos analisados,
verifica-se que é dessa maneira que o autor organiza seu texto. Baseado em acontecimentos
ou em notícias atuais, o autor recupera discursos de outrem ou mesmo fatos que possam
sustentar sua argumentação, expondo sua opinião.
Não queremos aqui discutir se os textos de Toledo estão denominados corretamente ou
não na revista, pois não é nosso objetivo trabalhar questões referentes a nomenclaturas.
Entretanto, suscitamos tais reflexões uma vez que o autor adapta-se à esfera de comunicação
em que se insere, e, assim, a um gênero discursivo. Portanto, é interessante uma abordagem
34
em torno do gênero ensaio e do gênero artigo jornalístico, já que as características
composicionais, temáticas e de estilo são fundadoras de um gênero discursivo. A hipótese que
temos quanto à nomeação dos textos de Toledo como “ensaio” na revista Veja, é a relação
estrutural e composicional que essa mantém com a revista Times, a qual, em sua seção final,
expõe um texto intitulado “essay”, que, traduzido para o português, fica “ensaio”. De acordo
com Melo (1985), o “formal essay” norte-americano é identificado, pelos padrões do
jornalismo brasileiro, como uma espécie do artigo, não se distanciando tanto do gênero
discursivo usado por Toledo. Nesse sentido, ao nos referirmos a “ensaio” neste trabalho,
referimo-nos à nomeação que é dada ao texto de Toledo pelo próprio suporte em que é
veiculado, e não ao gênero ensaio como suplemento jornalístico. Entendemos que os textos
estudados tratam-se de “artigos jornalísticos” ou “artigos de opinião”, sendo uma questão
apenas de nomenclatura.
Ao nos referirmos a gênero discursivo e, conseqüentemente, ao estilo de um texto, sob
o viés bakhtiniano, é preciso considerar também a relação estabelecida entre enunciador e
enunciatário, já que este é visado pelo enunciador ao fazer suas escolhas lingüísticas,
composicionais e temáticas. Assim, fundamentando nossa pesquisa na alteridade e nas
múltiplas vozes que se defrontam para constituir um enunciado, um texto ou um discurso,
consideramos, sob a perspectiva bakhtiniana, o objeto de estudo como complexos diálogos e,
de maneira recursiva, também a metodologia de análise, que pode adaptar-se à dinâmica do
diálogo. De acordo com Marchezan (2006, p. 130) “o diálogo fundamenta e também instrui a
consideração da linguagem em ato, que constitui e movimenta a vida social, que surge como
réplica social e contra a réplica que consegue antever”. Assim, nos termos bakhtinianos, nas
ciências humanas têm-se não propriamente objetos a descrever ou explicar, mas sujeitos a
compreender e com quem dialogar. Entendemos, portanto, que, o dialogismo, elemento
constitutivo da linguagem, rege a produção e a compreensão dos sentidos, sem confundir a
fronteira entre o eu e o outro.
Partindo das asserções do Círculo de Bakhtin acerca da alteridade, construtora da
linguagem, entende-se, por meio de suas obras, que o estilo de um autor trata-se de uma
dimensão textual e discursiva. Assim, ao tratarmos da relação eu/outro nos artigos de opinião
de Toledo, tratamos conseqüentemente do estilo, uma vez que tais textos apresentam
singularidades e particularidades, afetadas pelas relações que as constituem. Assim,
35
A estilística deve basear-se não apenas e nem tanto na lingüística quanto na
metalingüística, que estuda a palavra não no sistema da língua e nem num
“texto” tirado da comunicação dialógica, mas precisamente no campo
propriamente dito da comunicação dialógica, ou seja, no campo da vida
autêntica da palavra. A palavra não é um objeto, mas um meio
constantemente ativo, constantemente mutável de comunicação dialógica.
Ela nunca basta a uma consciência, a uma voz. (BAKHTIN, 2002, p. 202)
Portanto, Bakhtin assume uma postura discursiva sobre o estilo, o qual se refere à
forma como se utiliza a língua, historicamente situada, sendo um fenômeno social. Assim, as
formas de tratamento das vozes nos textos de Toledo e sua relação com o enunciatário
caracterizam também o estilo do autor, uma vez que o enunciatário assume uma participação
constante na fala exterior e interior do enunciador. As escolhas lingüísticas, a visão de mundo
do enunciador, e a avaliação que faz do enunciatário são determinantes para a configuração do
estilo de seus textos.
De acordo com Brait (2004, p. 95), o modo como o locutor “percebe e compreende seu
destinatário, e o modo [com] que ele presume uma compreensão responsiva ativa”
determinam o estilo. Nos artigos de opinião de Toledo, por meio dos elementos discursivos e
lingüísticos desses textos, vê-se que é preciso que haja um enunciatário informado sobre
acontecimentos políticos e sociais da contemporaneidade e que seja capaz de interpretar as
relações entre vozes e discursos tramada no enunciado, como as ironias, as relações entre
discursos reportados e principalmente a temática abordada no texto, pois senão, não haverá
uma resposta ativa diante do que é lido. Nesses artigos, o enunciatário muitas vezes é
“chamado” ao texto, ocupando o espaço do “leitor” e também do “nós”, sendo tratado, assim,
como uma pessoa discursiva. Vejam-se alguns exemplos:
Artigo de opinião Glória e desdita de um dono de butique”
22
“Da biografia do ex-chefe da Casa Civil, caso alguém não se lembre, consta
um período de quatro anos em que viveu clandestinamente na pequena
Cruzeiro do Oeste, no Paraná”. (TOLEDO, 2005a, grifo nosso).
Artigo de opinião “Nhô Lula e a tentativa do último milagre”
23
“A boa notícia conforta quem não quer ver o país mergulhado num impasse
que conduza, de novo, à destituição do presidente, com toda a dor e o
22
Vide Anexo A.
23
Vide Anexo B.
36
traumático sacolejo nas instituições que isso significa. A má notícia
decepciona os que acreditavam haver um presidente a ocupar a Presidência”.
(TOLEDO, 2005b, grifo nosso).
Artigo de opinião “Leoa de um lado, gata distraída de outro”
24
“Imagine-se o leitor, ou a leitora, morador(a) do exclusivo condomínio
Retiro do Chalé, ao sul de Belo Horizonte, perto da casa onde mora a
senhora Renilda Santiago Fernandes de Souza”. (TOLEDO, 2005e, grifo
nosso).
“Agora, vá o leitor, ou leitora, entregar uma prefeitura ao casal, um governo
de estado, um ministério...” (TOLEDO, 2005e, grifo nosso).
Artigo de opinião “A mesma e triste direita de sempre”
25
“Primeiro, antes que o(a) leitor(a) se sinta desnorteado(a), ou até
chocado(a), explique-se o recurso à palavra "direita". (TOLEDO, 2005g,
grifo nosso).
Artigo de opinião “Nos labirintos do poder”
26
“O leitor acha fácil a tarefa de abrir a porta para o augusto governante?
Aprenda que não.” (TOLEDO, 2005k, grifo nosso)
“Pensa o leitor que era tarefa fácil?” (TOLEDO, 2005k, grifo nosso)
Artigo de opinião “Sobre causas, efeitos e trepar em árvores”
27
“ [...] revolta dos queimadores de carros, é outra, anterior, aquela, o leitor se
lembra – a da Bastilha, da guilhotina, da execução do rei”. (TOLEDO,
2005u, grifo nosso).
Além dessas referências, em alguns artigos de opinião, o enunciador refere-se a
enunciatários específicos, caracterizando a relação estabelecida entre eles. Pelo que se percebe
nos exemplos tratados e nos apresentados a seguir, vê-se que há um autor perspicaz, que, ao
se referir textualmente ao enunciatário, conduz a leitura do texto, fazendo com que o leitor
recupere os sentidos específicos desejados, numa tentativa de regular o sentido dos textos.
24
Vide Anexo E.
25
Vide Anexo G.
26
Vide Anexo K.
27
Vide Anexo U.
37
No artigo “Leoa de um lado, gata distraída de outro” (TOLEDO, 2005e), o enunciador
chama ao texto o enunciatário na pessoa do “leitor”/ “leitora”, inserindo-o no contexto
referido: o caso de desvio de dinheiro público envolvendo o empresário Marcos Valério e
também sua esposa, Renilda Santiago de Souza. O enunciador afirma:
Imagine-se o leitor, ou a leitora, morador(a) do exclusivo condomínio Retiro
do Chalé, ao sul de Belo Horizonte, perto da casa onde mora a senhora
Renilda Santiago Fernandes de Souza. Que sorte contar com uma vizinha
como essa. A aparência, os modos, a fala, não deixam dúvida – é uma pessoa
a quem se pode confiar. É o tipo de pessoa a que se pode recorrer de olhos
fechados, se um dia surgir o problema de ter de deixar as crianças com
alguém. (TOLEDO, 2005e, grifo nosso).
Tratado como uma pessoa do discurso, o enunciatário é levado pelo enunciador a se
imaginar experienciando a situação referida. Mas, ao mesmo tempo em que o enunciatário se
coloca diante da imagem descrita pelo enunciador, deve desconstruí-la em seguida, pois o
enunciador habilmente recupera discursos que se referem ao envolvimento da esposa de
Marcos Valério no caso do mensalão, como protetora das misteriosas reuniões em sua casa.
Dessa maneira, o enunciador leva o enunciatário a uma dúvida quanto à confiabilidade em
Renilda de Souza.
Chamando o enunciatário ao texto, o enunciador tenta regular os sentidos veiculados,
uma vez que o enunciatário, para que responda ativamente ao que lê, deve se inserir no
contexto referido e realizar as relações de sentido visadas pelo enunciador: Renilda é mesmo
confiável? Afim de provar sua hipótese de que Renilda, quando se trata de dinheiro e de
poder, não é uma mulher totalmente confiável, conduz o enunciatário a essa proposição por
meio de uma relação de sentidos inter e extra-textualmente. O enunciador afirma:
Renilda é a mulher do hoje célebre Marcos Valério Fernandes de Souza, e
não há nenhuma ironia no que acima se disse dela. Seu depoimento na CPI
dos Correios, na semana passada, não deixou dúvidas de que é uma dona-de-
casa, mãe e esposa exemplares. Também não há razão para supor que o
marido seja menos prestimoso nos assuntos privados. Agora, vá o leitor, ou
leitora, entregar uma prefeitura ao casal, um governo de estado, um
ministério... No governo da casa e da vida íntima, pode haver igual, como
disse outro dia de si próprio o presidente Lula, sobre o respeito aos
mandamentos da ética, mas melhor impossível. Já quando se dá à dupla a
chave do Erário... (TOLEDO, 2005e, grifo nosso)
38
Referindo-se ao enunciatário como “leitor/leitora”, o enunciador trata-o como uma
pessoa discursiva, o que enfatiza a participação do primeiro como experenciador e também a
conduta de leitura desejada pelo enunciador. Iniciando o texto com a hipótese de que Renilda
de Souza é um exemplo de mãe e de esposa, o enunciador, mais à frente no texto, habilmente
questiona a respeitabilidade de Renilda, levando o enunciatário a também duvidar da sua
confiabilidade. Entretanto, tal proposição somente será configurada se o enunciatário
recuperar, pela memória discursiva, os discursos que se referem ao envolvimento de Marcos
Valério de Souza no caso do mensalão, um de seus principais articuladores, e também as
próprias afirmações do texto referentes a Renilda, como esta:
Renilda se disse "um pouco leoa" quando se trata de defender a família.
Exibiu avassaladora devoção aos filhos e ao marido. E disse que proibia
terminantemente encontros políticos ou de negócios no sagrado recesso do
lar. Quanto ao vertiginoso crescimento de sua conta bancária, do patrimônio
familiar e de seu nível de vida, coincidindo com a entrada em cheio do
marido no mundo da política, ela nem reparou. Não podia ser mais agudo o
contraste entre a atenção da leoa do lar quando o que está em jogo é o bem-
estar dos seus e a desatenção de gata preguiçosa com respeito aos meios
pelos quais o marido lhe ia aumentando os luxos. (TOLEDO, 2005e)
Sendo assim, ao longo do texto, para que o enunciatário compreenda o posicionamento
do enunciador frente ao acontecimento a que se refere, deve relacionar sentidos e discursos
inter e extra-textualmente. Além de recorrer à memória discursiva, deve, ao mesmo tempo,
relacionar os sentidos internos no texto, para assim responder ativamente ao que lê. Com isso,
o enunciador acaba conduzindo a leitura a ser feita do texto, pois ao ser chamado ao texto
como pessoa discursiva, o enunciatário experencia a situação referida e, além disso, relaciona
os sentidos que subjazem o texto inter e extra-textualmente sinalizados pelo enunciador, para
assim apreender o posicionamento defendido. Vê-se, assim, que a relação entre
enunciador/enunciatário em Toledo pode ser caracterizada pela instauração de um
enunciatário informado e que, ao mesmo tempo, relaciona os sentidos sinalizados ao longo do
texto; além disso, essa relação se baseia pelo tratamento do enunciatário como pessoa
discursiva e também pela tentativa de regulação de sentido feita pelo enunciador. É uma
tentativa de regulação, pois uma vez que a interpretação do texto se faz por um jogo entre
enunciador e enunciatário, este pode ou não concordar com os sentidos atribuídos por aquele
ao texto.
39
Assim como há a referência ao enunciatário como “leitor” ou “leitora” nos artigos de
opinião de Toledo estudados, também se pode observar outras marcas lingüísticas da
recorrência a um público específico, tratando o enunciatário como uma “persona” discursiva.
Seguem alguns exemplos:
Artigo de opinião “Uma bela cena de um filme ruim
28
“Na terça-feira passada, quem assistiu à cena do deputado Fernando Gabeira,
o dedo em riste, investindo contra o colega Severino Cavancanti, durante
sessão plenária da Câmara, viu uma cena bela, de recuperar a crença no
Parlamento”. (TOLEDO, 2005j, grifo nosso).
Artigo de opinião “A mais estonteante das quartas-feiras”
29
“A Câmara, como se sabe – e, quem não sabia, ficou sabendo agora, com a
ampla divulgação de suas sessões – é a casa-da-mãe-joana”. (TOLEDO,
2005l, grifo nosso).
Artigo de opinião “Huummm... Uau! Chi... Eureca!”
30
“Será que alguém ainda se lembra do "eureca"?” (TOLEDO, 2005i, grifo
nosso).
Artigo de opinião “Anedota de brasileiro”
31
Para quem não está entendendo, voltemos aos pontos de partida desta
história. No dia 22 de dezembro de 2003, foi sancionada pelo presidente
Lula a Lei nº 10 826, apelidada de Estatuto do Desarmamento”. (TOLEDO,
2005q, grifo nosso).
Artigo de opinião “Do sonho de 1968 à realidade do mensalão”
32
Quem foi moço em 1968 e nos três ou quatro anos seguintes se lembra de
um tipo de sobressalto que costumava assaltá-lo no período. Olhava-se para
o companheiro de faculdade ou de emprego que ultimamente vinha exibindo
hábitos diferentes e indagava-se a si mesmo "Será que ele aderiu?"”.
(TOLEDO, 2005w, grifo nosso).
28
Vide Anexo J.
29
Vide Anexo L.
30
Vide Anexo I.
31
Vide Anexo Q.
32
Vide Anexo W.
40
Nos exemplos citados, observa-se que o enunciador dialoga, em algumas partes do
texto, com um enunciatário específico, ora esclarecendo possíveis dúvidas que possam surgir
em torno do que é dito no enunciado ora referindo-se a um público que experenciou a situação
recuperada no texto. Esse diálogo caracteriza a regulação do sentido que é dada ao texto:
mesmo aquele que não vivenciou as circunstâncias referidas ou aqueles que não possuem
dúvidas quanto à questão abordada, devem considerar as asserções e explicações do
enunciador, pois nelas está veiculado o ponto visado, o sentido atribuído a tais circunstâncias.
Dessa forma, o enunciatário não as interpreta somente sob o seu ponto de vista, mas também
sob o ponto de vista do enunciador, o qual conduz aquele para o sentido a que visa. Por
exemplo, ao se referir à expressão “Eureca!” no artigo Huummm... Uau! Chi...
Eureca!”(TOLEDOi, 2005)
33
, o enunciador presume que a expressão seja antiga, por isso,
refere-se ao público jovem, afirmando: “Eureca! Será que alguém ainda se lembra do
"eureca"? Quer dizer "achei", "descobri", "encontrei a solução". A explicação é dedicada aos
jovens, a quem a palavra deve soar tão enigmática quanto "caluda" ou "homessa". Eureca!”
(TOLEDOi, 2005, grifo nosso). Referindo-se a um público específico ao definir o que é
“eureca”, o enunciador atribui um sentido a tal palavra (“achei”), indicando que essa deve ser
a adjetivação considerada para compreender suas asserções. Entretanto, ao mesmo tempo, o
enunciador dialoga com um enunciatário universal, seja ele jovem ou não, conhecedor da
palavra “eureca” ou não, fazendo com que esse também transfira o sentido de “achei”,
“descobri”, ao objeto-tema qualificado no texto (neste caso, a explicação da ida do
embaixador Manoel Gomes Pereira à Inglaterra para resolver o caso do brasileiro morto Jean
Charles de Menezes). Dessa forma, há uma tentativa de regulação do sentido feita pelo
enunciador: todos que recorrerem ao texto devem atribuir à palavra “eureca” o sentido de
“achei” e, assim, conseqüentemente, à proposição do enunciador, pois somente assim o
enunciatário compreenderá o sentido dado pelo autor ao tema de que trata. Se outros sentidos
forem suscitados para a definição de tal palavra, a resposta ao que é dito no texto não será a
mesma daquela visada pelo enunciador. Por isso, perspicaz como é, o autor chama ao texto
seu enunciatário, indicando-lhe os sentidos que deve recuperar – indicando uma tentativa de
regulação dos sentidos, portanto.
A relação entre o enunciador e o enunciatário faz-se também quando o enunciador
utiliza verbos na terceira pessoa do plural e o pronome nós, os quais indicam a inclusão do
enunciador no discurso, e, também, a caracterização do enunciatário. O nós se refere, dessa
33
Vide Anexo I.
41
forma, ao enunciador e ao enunciatário, os quais são vivenciadores de uma mesma situação.
Isso pode ser visto da seguinte maneira:
Artigo de opinião “Um certo José”
34
“Não nos deixemos corromper.” (TOLEDO, 2005y, grifo nosso)
Artigo de opinião “Do sonho de 1968 à realidade do mensalão”
35
“Há um tanto de exagero, e outro tanto de irritante pretensão, nessa sua
mania. Mas vá lá – concedamos em tomá-lo como símbolo dos moços e
moças do belo e doido ano de 1968”. (TOLEDO, 2005w, grifo nosso)
Artigo de opinião “Sobre causas, efeitos e trepar em árvores”
36
“[...] das notícias da França que dão conta não da Bastilha, mas dos Hosni e
Ahmed do cinturão de Paris, e pensamos: "Engraçado””. (TOLEDO, 2005u,
grifo nosso)
Artigo de opinião “Anedota de brasileiro”
37
“O Congresso já o decidiu por nós, como aliás é de sua obrigação – e
decidiu, dadas as múltiplas exigências que estabeleceu para o cidadão
comum ter acesso a armas, que elas são nocivas, tanto à segurança coletiva
quanto à individual”. (TOLEDO, 2005q, grifo nosso)
Artigo de opinião “Leoa de um lado, gata distraída de outro”
38
“[...] proporcionou-nos uma aula de Brasil [...]” (TOLEDO, 2005e, grifo
nosso)
Por meio da inclusão do enunciatário no discurso, referido como “nós”, o enunciador
conduz a leitura a ser feita de seu discurso, tentando fazer com que o enunciatário,
discursivamente, considere ou desconsidere as asserções e sentidos sob o mesmo aspecto que
o enunciador. Para que a leitura prossiga e para que o sentido do texto seja compreendido, o
34
Vide Anexo Y.
35
Vide Anexo W.
36
Vide Anexo U.
37
Vide Anexo Q.
38
Vide Anexo E.
42
enunciatário atenta-se para a leitura proposta pelo enunciador, para chegar ao sentido visado –
mas pode, ao mesmo tempo, discordar dele, já que a interpretação é um jogo discursivo.
Assim, o enunciador, ao atribuir sentido a um determinado tema ou discurso, usa estratégias
que possam levar o enunciatário a atribuir também tal sentido, igualmente – que pode ocorrer
ou não. Por exemplo, ao o enunciador afirmar: “[...] das notícias da França que dão conta não
da Bastilha, mas dos Hosni e Ahmed do cinturão de Paris, e pensamos: "Engraçado””
(TOLEDO, 2005u, grifo nosso), o enunciador atribui o sentido de “engraçado” à relação entre
a Tomada da Bastilha e os manifestos de estudantes na França. Da mesma maneira, o
enunciatário textualmente também atribui tal sentido, uma vez que está incluso no discurso
pela desinência verbal indicadora da primeira pessoa do plural (“nós). Mesmo que não
compartilhe dos mesmos sentidos e das mesmas asserções que o enunciador, textualmente o
enunciatário deve atribuir os sentidos visados pelo enunciador, para, assim, responder
ativamente ao que lê.
Dessa forma, o enunciador, por meio do chamamento ao leitor e pela inclusão dele
como “persona” discursiva, conduz a leitura do seu texto, tentando regular o sentido. As
marcas lingüísticas mais freqüentes são verbos na primeira pessoa do plural e também o
pronome “nós” e “nos”; o pronome “quem” e referências como “leitor”, “leitora”, entre
outras, as quais se referem a enunciatários específicos. Por meio delas, o enunciador dialoga
com o enunciatário, indicando-lhe qual a discussão a ser feita no texto e quais os sentidos
priorizados nele.
Essa relação entre enunciador e enunciatário pode ser vista também em outro artigo de
opinião: “A mesma e triste direita de sempre” (TOLEDO, 2005g)
39
. Nele, o enunciador
recupera discursos que envolvem uma das definições de direita e de esquerda políticas no
Brasil e na França, elucidando algumas das diferentes posições de cada país: no Brasil, dizer-
se de direita, para a maioria, é visto de uma maneira enviesada, tendo uma má qualificação; já
na França, é admissível e aceitável dizer-se partidário da direita política – a menos que seja do
partido de Jean-Marie Le Pen, o qual é de extrema-direita, defensor do racismo. Então,
afirma: “Se já estamos entendidos que não é pecado nem ofensa chamar a "direita" de
"direita", retomemos o fio da meada”. (TOLEDO, 2005g, grifo nosso). Dialogando com o
enunciatário e chamando-o em seu texto por meio dos verbos na primeira pessoa do plural,
“entendidos” e “retomemos”, o enunciador afirma que, uma vez que o enunciatário
compreendeu as definições e valores atribuídos, deve-se retomar a discussão principal do
39
Vide Anexo G.
43
texto, conduzindo sua leitura. Além disso, textualmente tanto enunciador quanto enunciatário,
inclusos na pessoa do “nós”, consideram que não é pecado se assumir como de direita
política. Dessa maneira, o enunciador assume que ambos têm um mesmo posicionamento,
regulando o sentido do texto. Dialogando com o enunciatário, tratado como uma “persona”
discursiva, o enunciador desses textos organiza a leitura a ser feita e também tenta regular o
sentido a ser atribuído ao texto, modalizando-o.
Então, como afirma Bakhtin, o enunciado, o qual está voltado para seu destinatário,
faz com que o enunciador perceba e compreenda o seu enunciatário, presumindo, assim, uma
compreensão responsiva ativa. Portanto, um enunciado reflete naturalmente um estilo
individual, uma vez que reflete, em qualquer esfera da comunicação, a individualidade de
quem fala ou escreve. Assim, o estilo de um autor depende da relação estabelecida entre o
enunciador e o enunciatário, e, ainda, do gênero do discurso utilizado. Cada esfera de
atividade conhece gêneros apropriados a suas especificidades, e a esses gêneros correspondem
certos estilos. No caso do gênero artigo jornalístico, não há uma normativização ou prescrição
do conteúdo nem da forma como o discurso deva ser veiculado. Dessa maneira, percebe-se
que em Toledo o estilo baseia-se em estratégias que melhor conduzam a leitura do texto e,
assim, possam levar à compreensão do seu posicionamento, tratado como irrefutável pelo
autor. Para isso, cria-se um efeito de proximidade entre enunciador e enunciatário, uma vez
que este é tratado como “persona” discursiva, que leva a uma tentativa de regulação do
sentido visado pelo enunciador. Sendo assim, a relação entre sujeitos em Toledo caracteriza-
se por um enunciador que usa mecanismos para tentar regular a atribuição de sentidos ao que
diz, mas que, ao mesmo tempo, recorre a estratégias de atenuação de sua autoridade. Há
também instaurado no texto um enunciatário informado dos acontecimentos do Brasil e do
mundo atuais e que relaciona os sentidos propostos pelo enunciador intra e extra-
textualmente.
1.4 Adjetivos: marcas da voz do enunciador
O signo, como visto no tópico 1.2 desta seção, é considerado pela perspectiva
bakhtiniana como ideológico, carregando um ponto de vista, um lugar valorativo, refletindo o
44
contexto de sua produção. Assim, as relações que são estabelecidas historicamente entre os
homens e seus valores são agregados aos signos, o qual possui uma materialidade lingüística.
Dependendo da situação imediata de fala e também dos interesses do grupo que os utilizam,
os signos podem adquirir sentidos variados, caracterizando, assim, a vivacidade e a
mobilidade de sentidos.
Para Bakhtin, a palavra é o meio mais imediato de se perceber as mudanças
ideológicas e de sentidos dados por uma sociedade, pois ela é a memóriai
45
enunciador ao se retratar tanto às personalidades quanto às instituições e temas abordados no
texto. Com uma carga ideológica, esses signos, empregados em contextos específicos dentro
do texto, revelam juízos de valor, retratando a indignação do enunciador e configurando nos
artigos um julgamento de contrariedade e de crítica a algumas situações políticas e sociais
brasileiras e mundiais. Assim, o posicionamento do autor toma uma forma concreta, além de
outras marcas, por meio de adjetivos, os quais são tratados neste item.
40
Como afirma Bakhtin (2004, p. 44), “Realizando-se no processo da relação social,
todo signo ideológico, e portanto também signo lingüístico, vê-se marcado pelo horizonte
social de uma época e de um grupo social determinados” (grifo do autor), carregando um
índice de valor. Nos artigos de opinião de Toledo, o posicionamento diante de personalidades
e/ou temas recuperados, mostra-se, dentre outras maneiras (as quais são abordadas em
capítulos seguintes), pelo uso de adjetivos, os quais devem ter seus índices de valor
reconhecidos pelo enunciatário para que haja uma resposta ativa diante do discurso.
No artigo “Glória e desdita de um dono de butique” (TOLEDO, 2005a)
41
, por
exemplo, o enunciador faz uma abordagem da trajetória política de José Dirceu, desde os
tempos em que foi perseguido pela ditadura militar, até quando foi acusado de participação no
caso do “mensalão” em 2005. Inicia o texto afirmando: “Onde se revela a verdadeira
identidade do homem que se passa por José Dirceu” (TOLEDO, 2005a, grifo nosso).
Utilizando-se do “verdadeira”, o enunciador afirma que em seu texto fará uma explicação
consistente sobre a identidade de um personagem: José Dirceu. Ao longo do texto, utilizando-
se de uma trajetória história e de discursos reportados, o enunciador expõe seu
posicionamento sobre a identidade política de José Dirceu, a qual, de acordo com aquele,
mostra-se inconsistente e incoerente devido a atos políticos praticados por Dirceu no passado
e na atualidade. Relacionando sentidos inter e extra-textualmente, o enunciador propõe-se a
provar sua tese de que a imagem de José Dirceu como ícone da política de esquerda brasileira
e militante não passou de uma farsa construída ao longo de anos. Dessa maneira, vê-se que o
adjetivo “verdadeira”
42
é empregado com um viés irônico, já que o enunciador não apresenta
em seu texto a história política de José Dirceu como parece ter ocorrido, mas a desconstrói,
invertendo-a:
43
em meio à ditadura, José Dirceu viveu sob o pseudônimo de Carlos Henrique
40
As outras formas de transmissão da voz do enunciador estão tratadas nas seções que se seguem.
41
Vide Anexo A.
42
“Onde se revela a verdadeira identidade do homem que se passa por José Dirceu”. (TOLEDO, 2005a)
43
A história política de José Dirceu enquanto esteve escondido em Cruzeiro do Oeste durante a ditadura militar é
apresentada ao enunciatário pelo próprio enunciador do texto. Sendo assim, é contado sob seu viés, o que nos
leva a observar que se trata de uma das possíveis visões que se pode ter sobre tal acontecimento.
46
Gouveia de Melo para despistar os órgãos militares de repressão. O enunciador, então, assume
que essa falsa identidade criada por Dirceu é que parece ser a verdadeira identidade do ex-
deputado, uma vez que, pelos fatos chamados ao texto, como o envolvimento de Dirceu nos
escândalos do mensalão, e também pelos acontecimentos em que se envolveu, recuperados
pela memória discursiva, a imagem de defensor da política de esquerda que sempre sustentou,
esfacelou-se. Diante disso, o enunciador assume, então, que, devido aos recentes
acontecimentos da época envolvendo Dirceu, esse mais se assemelha a Carlos Henrique, o
pseudônimo que vivia na pacata cidade de Cruzeiro do Oeste, no Paraná, o qual aparentava
um não envolvimento político. Assim, o adjetivo “verdadeira” está empregado com um viés
irônico, pois o enunciador assume algo no enunciado, mas há, ao mesmo tempo, uma outra
afirmação na enunciação (um não-dito), a de que a história que conta sobre José Dirceu não é
a verdadeira, mas deveria ser, em razão da falta de consistência política atual do político. Vê-
se que o adjetivo veicula o posicionamento do enunciador frente a José Dirceu, tema chamado
ao texto, enviesada, ao mesmo tempo, pela ironia.
44
Além disso, o enunciador recupera
discursos do próprio Dirceu, em que certa vez declarou-se militante político como Dilma
Rousseff. Mas, tempos depois, em uma entrevista, disse que não gostava de tal movimento e
que não se envolvera com ele de fato. Dessa maneira, relacionando os sentidos inter e extra-
textualmente, o enunciador põe-se a provar que Dirceu sustenta uma farsa (a de defensor dos
valores da esquerda), e que aquela sim é sua verdadeira identidade.
Mais à frente, afirma: “O conjunto de tais elementos leva a uma única e inexorável
conclusão. José Dirceu não existe. É uma invenção de Carlos Henrique Gouveia de Melo”.
(TOLEDO, 2005a, grifo nosso). Elucidando sua voz julgadora, o enunciador afirma, por meio
dos adjetivos “única” e “inexorável”, que a conclusão a que ele chegou sobre a identidade de
José Dirceu está correta e é inquestionável: José Dirceu não existe, é um personagem criado.
Põe-se a provar essa sua tese por meio de discursos reportados do próprio ex-deputado e
também pela recuperação de acontecimentos políticos que mostram a falta de coerência
ideológica de Dirceu na política: aquele que um dia defendeu a esquerda política e seus
valores, na época via-se envolvido com esquemas de corrupção. Nesse sentido, os adjetivos
“única” e “inexorável” carregam valores de inquestionabilidade, como se a conclusão a que o
enunciador chega, tratasse-se de uma constatação. Tal estratégica imprime à voz autoral um
grau de autoridade, como se sua afirmação fosse correta e, além disso, irrefutável.
44
Questões teóricas referentes à ironia estão melhor explicadas na seção 03 deste trabalho.
47
Em outro artigo de opinião, “Nhô Lula e a tentativa de um novo milagre” (TOLEDO,
2005b)
45
, o enunciador, dentre algumas abordagens sobre a postura de Lula como governante
do país, recupera o discurso da reforma ministerial, elucidando sua crítica de que Lula não
governa; delega suas funções aos ministros que escolheu. Veja-se o exemplo: “Na hora em
que não havia outro jeito e a batata quente lhe estourava nas próprias mãos, o sofrimento era
grande. Que o diga a história aflitiva, tortuosa e sem rumo daquilo que, há quase um ano, vem
sendo chamado de reforma ministerial"”. (TOLEDO, 2005b). As expressões “aflitiva”,
“tortuosa” e “sem rumo” elucidam a qualificação dada pelo enunciador à reforma ministerial
proposta por Lula em seu governo no ano de 2005. Para que essas adjetivações possam ser
interpretadas pelo enunciatário, compreendendo a tomada de posição do enunciador e o
sentido veiculado, ele deve recorrer à memória discursiva, recuperando discursos sobre a
reforma ministerial da época em questão. Nesse sentido, ao empregar os adjetivos citados, o
enunciador imprime seu posicionamento de discordância e de desprezo às medidas até então
tomadas pelo governo em relação à reforma ministerial. Tais adjetivos carregam valores
negativos, o que enfatiza o estilo de contrariedade característico da voz autoral de tais textos.
Os adjetivos, portanto, com uma carga ideológica, elucidam o julgamento do
enunciador diante do tema que recupera, necessitando de um enunciatário que compreenda
seu sentido e a relação estabelecida entre eles e os objetos qualificados em um contexto
específico. Escolhidos de acordo com o gênero a que se filiam os textos e também ao contexto
de produção, o significado dos adjetivos utilizados somente se dão ao serem inseridos em um
contexto específico, em um ato de fala único e não considerados como palavras isoladas.
Bakhtin mesmo afirma:
Em todos esses casos não estamos diante de uma palavra isolada como
unidade da língua nem do significado de tal palavra mas de um enunciado
acabado e com um sentido concreto – do conteúdo de um dado enunciado;
aqui, o significado da palavra refere uma determinada realidade concreta em
condições igualmente reais de comunicação discursiva. Por isso aqui não só
compreendemos o significado de dada palavra enquanto palavra da língua
como ocupamos em relação a ela uma ativa posição responsiva – de
simpatia, acordo ou desacordo, de estímulo para a ação. (BAKHTIN, 2003,
p. 291, grifo do autor).
45
Vide Anexo B.
48
Assim, as palavras utilizadas pelo enunciador carregam uma valoração, um ponto de
vista, quando se tornam um enunciado, isto é, quando revelam um posicionamento de um
autor e são utilizadas em um contexto determinado. Além do mais, ao se tornar enunciado,
permitem uma réplica, tendo um acabamento específico que permite uma resposta. Os
adjetivos utilizados nos artigos de opinião de Toledo, empregados em um contexto específico,
elucidam a tomada de posição do enunciador frente aos objetos-tema que recupera em seu
discurso (marcada, principalmente, pela contra-argumentação) e são escolhidos dentre uma
gama de possibilidades, levando-se em conta um enunciatário presumido e, também, a
valoração dada pelo enunciador ao seu discurso. Assim, a palavra, “quando é assumida por
alguém ou ganha um acabamento específico [...] se converte em enunciado e, portanto, passa
a se dirigir a alguém”. (FIORIN, 2006, p. 23). A valoração dada aos adjetivos em Toledo é
marcada, principalmente, pela negatividade e pelo efeito de constatação que o enunciador
imprime ao que diz, como se sua qualificação fosse algo inquestionável, além de, algumas
vezes, os adjetivos terem um viés irônico. Sendo assim, por meio dos adjetivos, o enunciador
afirma categoricamente seu posicionamento, os quais contribuem para a instauração da voz de
contrariedade e de contestação, caracterizadora do estilo desses textos.
No artigo de opinião “O futebol nas malhas do desenvolvimento” (TOLEDO,
2005c)
46
, por exemplo, o enunciador veicula seu posicionamento sobre a venda do jogador
Robinho para o Real Madrid. Afirma que o Brasil ainda permanece na condição de colônia de
metrópoles estrangeiras, pois os jogadores valorizam mais jogarem foram do país do que em
times brasileiros. Afirma: “O Brasil é um reles fornecedor de matéria-prima”. (TOLEDO,
2005c, grifo nosso). Utilizando-se de um adjetivo (“reles”), o qual é perpassado pelo índice de
valor da inferioridade, o enunciador veicula seu posicionamento sobre a condição permanente
do Brasil como país subdesenvolvido. Isso se dá, de acordo com o enunciador, pela
mentalidade de alguns brasileiros, que dão mais valor ao que é estrangeiro ao que é nacional.
Assim, o adjetivo “reles” enfatiza seu posicionamento de que o ideário nacional subestima o
caráter econômico e empreendedor do Brasil, inferiorizando-o. Tal posicionamento é
apreendido ao se levar em conta o contexto a que se refere – venda de jogadores para times
estrangeiros – e também a temporalidade dos enunciados – na época, a venda de jogadores era
muito recorrente e valorizada pela maior parte do público brasileiro e o Brasil ainda mantinha
uma economia em desenvolvimento.
46
Vide Anexo C.
49
No artigo de opinião “Uma furtiva lágrima” (TOLEDO, 2005d)
47
o enunciador
também se utiliza de adjetivos ao se referir ao caso de denúncias de corrupção envolvendo o
governo e o PT. Afirma:
A esta altura já emerge claro, com base não só nos indícios como nos
documentos, não só no que foi dito nos depoimentos como, mais ainda, no
que neles foi silenciado, que a grande obra do governo Lula foi a montagem
de uma gigantesca estrutura de compra de pessoas e solapamento das
instituições do Estado. (TOLEDO, 2005d, grifo nosso).
Qualificando a obra como “grande” o enunciador expõe sua crítica às denúncias de
corrupção, afirmando que a maior e mais importante ação feita pelo governo Lula, até então,
foi o desvio de um montante de dinhe
50
[...] a emoção, o juízo de valor, a expressão são estranhos à palavra da língua
e surgem unicamente no processo do seu emprego vivo em um enunciado
concreto. Em si mesmo, o significado de uma palavra (em referência à
realidade concreta) é extra-emocional. Há palavras que significam
especialmente emoções, juízos de valor [...] mas também esses significados
são igualmente neutros como todos os demais. O colorido expressivo só se
obtém no enunciado, e esse colorido independe do significado de tais
palavras, isoladamente tomado de forma abstrata. (BAKHTIN, 2003, p. 292)
Além disso, a escolha dos adjetivos é feita em consideração ao enunciatário do texto,
uma vez que o enunciador adapta-se à esfera de atividade em que seu discurso é empregado e
também ao seu interlocutor, para que haja uma réplica ativa. E, uma vez que se tratam de
enunciados concretos, a interpretação desses signos é feita por meio da apreensão do contexto
em que se situam e também a que se referem, não podendo ser interpretados isoladamente no
texto. Empregados por um enunciador em um contexto determinado, os adjetivos veiculam
ainda o estilo individual do autor, que, no caso dos artigos estudados, mostra-se contrário a
alguns posicionamentos que recupera no texto. Isso se dá pois as palavras, de acordo com
Bakhtin, não pertençam a ninguém, mas constituem a “expressão individual externada com
maior ou menor nitidez (em função do gênero), determinada pelo contexto singularmente
individual do enunciado”. (BAKHTIN, 2003, p. 293). Utilizados no gênero artigo jornalístico
ou artigo de opinião, no qual a opinião do autor pode ser expressa com poucas pré-
determinações, tendo certa liberdade para fazê-la, os adjetivos expressam, assim, o
posicionamento do enunciador enfaticamente e de uma maneira singular, caracterizando seu
estilo de contrariedade e de uma voz categórica.
Dessa forma, podemos afirmar que os adjetivos (mas não somente eles) utilizados nos
artigos de opinião de Toledo veiculam o posicionamento do enunciador, e, assim, sua voz
crítica e julgadora. Ao qualificarem os discursos, temas ou personagens recuperados, eles
veiculam o índice de valor neles agregado, perpassados principalmente pelo valor da crítica
negativa e também pela afirmação categórica da opinião do enunciador, a qual é tratada por
ele como uma constatação. Os adjetivos contribuem, então, para a valoração impressa aos
temas chamados aos textos, a qual se caracteriza pela contrariedade do enunciador frente ao
que se refere e, ainda, marca uma voz crítica até mesmo “dogmática”.
Entretanto, como é abordado nas seções seguintes, ao mesmo tempo em que essa voz
julgadora se mostra peremptória por meio dos adjetivos e pela relação entre enunciador e
enunciatário, ela não pode ser generalizada como categórica. Ela é também relativizada por
meio de ironias e da relação entre discursos, cujo exame é aprofundado nas seções que se
51
seguem. Portanto, como se vê, podemos afirmar que o autor de tais textos habilmente entoa
sua voz, pois constrói ao mesmo tempo uma voz julgadora categórica tanto ao recorrer a
adjetivos quanto ao construir seu enunciatário, e a relativiza, estrategicamente, por meio de
ironias e de discursos de outrem. Porém, como abordado a seguir, entendemos que tais
estratégias “pseudo-relativizam” a voz autoral, já que por meio delas o autor imprime ao seu
dizer um efeito de dizer absoluto.
52
2 IRONIA: UMA INTER-RELAÇÃO DE VOZES
Como elemento estruturador de um texto, cuja força reside na sua
capacidade de fazer do riso uma conseqüência, o interdiscurso irônico
possibilita o desnudamento de determinados aspectos culturais, sociais ou
mesmo estéticos, encobertos pelos discursos mais sérios e, muitas vezes,
bem menos críticos. (BRAIT, 1996, p. 16)
Enfocando o tratamento dado às vozes sociais no discurso de Toledo, tratamos nesta
seção do papel da ironia nos artigos de opinião, uma vez que ela é freqüente nesses textos e
caracterizadora do estilo do autor, além de ser, segundo Denise Jardon,
48
uma forma de
discurso que se instaura por meio de um jogo entre vozes. Pela ironia, o enunciador transmite
sua avaliação sobre os acontecimentos políticos e sociais brasileiros e mundiais, ao mesmo
tempo em que dá um efeito amenizador à sua voz julgadora, pois o enunciador não afirma
diretamente sua crítica no enunciado; ele simula dizer algo, mas que tem seu sentido implícito
na enunciação. Sob essa perspectiva, consideramos que a avaliação feita por meio da ironia
não está dada no enunciado explicitamente, mas está em construção, pois para se chegar a ela
é preciso que o enunciatário a reconheça e interprete o jogo entre vozes que a caracteriza (o
dito e o não-dito). Por isso, quando nos referirmos que a ironia relativiza a voz crítica do
enunciador, estamos entendendo-a como um mecanismo amenizador dessa voz, pois para se
chegar à crítica feita por ela, o enunciatário não pode tomar ao “pé da letra” o sentido posto
no enunciado; ele deve considerar ao mesmo tempo o dito e o não-dito (implicado na
enunciação). Entretanto, observa-se nos textos em análise que os valores da crítica e do
julgamento feitos pela ironia são incisivos e tratados pelo enunciador como categóricos.
Diante disso, entendemos a ironia como um mecanismo que “pseudo-relativiza” a voz crítica
do enunciador, pois os valores veiculados por ela são incisivos, assumidos principalmente
53
Delúbio Soares; e também decisões tomadas pelo governo, como o referendo sobre as armas
de fogo no Brasil, decisões do INSS, entre outros. Isso se dá pois esses textos são organizados
em função do seu cronótopo; os assuntos políticos e sociais que estão em foco na semana de
publicação do artigo de opinião, passam a ser a temática desses textos. Por isso, o alvo da
ironia serão as personalidades ou notícias tratadas como tema de discussão, já que o
enunciador as chama ao texto para contra-argumentá-las e criticá-las, servindo a ironia como
um instrumento para isso.
Mesmo não sendo necessária em textos jornalísticos opinativos, a ironia, quando
instaurada de maneira densa na estrutura argumentativa, contribui para o processo de
formação de opinião a que o enunciador visa, funcionando como um instrumento de avaliação
de discursos vigentes. O discurso irônico tem um lugar privilegiado nos artigos de opinião,
uma vez que se trata de textos cujo local é propício para a manifestação explícita e subjetiva
do autor, sendo de sua responsabilidade o ponto de vista defendido. Sem a preocupação de
expressar clara e diretamente a voz do jornal, já que não se trata de editoriais, muitas vezes
esse tipo de texto não segue normas jornalísticas prescritas, como conteúdo e forma. O autor
tem certa liberdade para expressar sua opinião, mas desde que não contradiga os valores do
suporte em que é veiculado. No artigo, o autor pode manipular o fato/acontecimento dentro da
estrutura argumentativa do texto a serviço de sua persuasão e também do seu estilo. Sendo
assim, procuramos verificar nesta seção o funcionamento da argumentação irônica nesse tipo
de texto, preocupando-nos em descrever seu funcionamento em Toledo, demonstrando sua
função e como ela se estrutura argumentativamente.
Em nossas análises, pautamo-nos principalmente pela caracterização da ironia como
um discurso absurdo que é posto no texto (no enunciado) pelo enunciador, como se fosse a ele
aderir, mas que é sinalizado para o enunciatário, pelo modo de estruturação argumentativa,
que o enunciador não só rejeita esse discurso, como o orienta para uma outra leitura, o qual
denominamos, de acordo com Passetti (1995), “discurso sério” (aquele com o qual o
enunciador concorda e defende). Assim, para que haja uma compreensão da ironia nesses
textos em análise, e, assim, conseqüentemente do posicionamento do enunciador, é necessário
que o enunciatário seja capaz de interpretá-la. Para isso, deve contar com os mecanismos
oferecidos no texto pelo enunciador, que não se prendem somente aos limites da frase, mas
que dependem também de relações intra, inter e extra-textuais.
54
2.1 As relações dialógicas na ironia
Em vários campos das esferas sociais e também da literatura, a ironia assume um papel
importante como desvencilhadora de discursos prontos e sacralizados, encobertos por
discursos oficiais, e também como questionadora de instituições. Por meio do humor, típico
da ironia, estudos como os de Brait (1996) e de Hutcheon (2000) refletem sobre esse traço de
linguagem revelador de um ponto de vista e também sobre as relações dinâmicas e plurais
entre o texto e a elocução (ou seja, o contexto, o ironista, o interpretador e as circunstâncias
que cercam a situação discursiva). Sendo assim, a ironia requer que tanto o enunciador quanto
o enunciatário tenham competências discursivas suficientes para produzi-la e interpretá-la,
respectivamente. Levando em consideração essas reflexões acerca da inter-relação
enunciador/enunciatário, Brait (1996, p.13) enfatiza a dimensão interdiscursiva assumida pela
ironia, uma vez que para ela esse fenômeno “só poderia interessar como traço de linguagem e
não apenas como marca de uns poucos produtores”. Nesse sentido, Brait assume que a ironia,
como processo discursivo, pode ser observada em várias manifestações de linguagem, já que
atua por meio da interação entre o enunciador e seu interlocutor. O tipo de texto e as pistas
lingüísticas escolhidas para provocar a ironia devem-se exclusivamente aos interesses do
enunciador em face do seu interlocutor e também aos sistemas de referência e cultura
vivenciados por ambos. Sendo assim, a perspectiva adotada neste trabalho trata o enunciatário
como função ativa na dimensão significativa da ironia, uma vez que ele é o ponto visado pelas
estratégias do enunciador ao longo do texto, e é ele quem interpreta, a partir das pistas
lingüísticas deixadas pelo enunciador, se o discurso é irônico ou não. Os sinais presentes no
enunciado promovem, portanto, no plano da significação, uma cumplicidade entre o
enunciador e o enunciatário, de tal modo que o último possa compreender que a posição
assumida e enunciada pelo enunciador não se trata do retrato ou recorte do acontecimento,
mas sim, de um posicionamento, o qual tem o viés do humor. De acordo com Hutcheon
(2000, p.28), a ironia tem, assim, dois participantes: o interpretador e o ironista.
49
Para ela, o
interpretador é aquele que, por definição, decide se a elocução é irônica ou não, e qual sentido
particular ela pode ter. Considera, assim, a ironia um “negócio arriscado”, pois exige a
49
Essa terminologia vem do trabalho Teoria e política na ironia de Hutcheon (2000). Entretanto, por adotarmos
uma perspectiva dialógica diante do corpus analisado, não assumimos “interpretador” e “ironista”, mas sim,
“enunciador” e “enunciatário”, como o faz Brait (1996). Portanto, ao nos referirmos a “interpretador”, leia-se,
“enunciatário”; e “ironista”, “enunciador”.
55
interpretação do que está dito pelo ironista - o qual transmite o discurso irônico – por parte do
interpretador. Portanto, para este
[...] a ironia é uma jogada interpretativa e intencional: é a criação ou
inferência de significado em acréscimo ao que se afirma – e diferentemente
do que se afirma – com uma atitude para com o dito e o não dito. A jogada é
geralmente disparada (e, então, direcionada) por alguma evidência textual ou
contextual ou por marcadores sobre os quais há concordância social.
(HUTCHEON, 2000, p. 28, grifo do autor)
Quanto ao ironista, veicula tanto a informação quanto a atitude avaliadora, a qual deve
ser interpretada além do que é apresentado explicitamente. Construtor da ironia, articula o dito
e o não-dito, instaurando uma terceira voz implícita. Nesse sentido, o enunciatário, como
agente, ao interpretar se um enunciado é irônico ou não, de acordo com Hutcheon (2000),
envolve inferências tanto semânticas quanto avaliadoras, uma vez que estas últimas sempre
estão presentes na ironia e é isso que a distingue de outras formas que parecem ter, com ela,
semelhanças estruturais, como a metáfora, a alegoria, o trocadilho.
50
Percebe-se, assim, que a
ironia é um jogo interpretativo, uma vez que o enunciador a produz e, por meio de pistas
lingüísticas presentes e pelas relações inter, intra e extra-textuais, faz com que o enunciatário
interprete além do que está dito no enunciado. O conteúdo estará assinalado por valores
atribuídos pelo enunciador, mas apresentados de tal forma que chamem a atenção do
enunciatário para que este participe do processo interpretativo da ironia. Essa participação, de
acordo com Brait (1996), pressupõe o compartilhamento de pontos de vista e valores pessoais
ou culturais, os quais são socialmente comungados e constitutivos de um imaginário coletivo.
A autora afirma:
A dupla leitura mobilizada por um enunciado irônico envolve formas de
interação entre sujeitos, bem como a relação com o objeto da ironia e com as
estratégias lingüístico-discursivas que põem em movimento o processo. (...)
O conteúdo, portanto, estará subjetivamente assinalado por valores
atribuídos pelo enunciador, mas apresentados de forma a exigir a
participação do enunciatário, sua perspicácia para o enunciado e suas
sinalizações, por vezes extremamente sutis. (...) É a organização discursivo-
textual que vai permitir esse chamar a atenção sobre o enunciado e,
especialmente, sobre o sujeito da enunciação. (BRAIT, 1996, p. 105).
50
Brait (1996), que aborda a ironia sob o viés dialógico da linguagem, também considera que a ironia difere
dessas outras formas de linguagem que também articulam o dito com o não-dito, pois há nela ambigüidade e um
viés de humor e de avaliação diante do objeto a que se reporta.
56
Partindo do pressuposto teórico de Bakhtin a respeito de um enunciatário previsto pelo
enunciador para a configuração do discurso, na ironia essa interação também se faz
imprescindível. O enunciatário, caracteristicamente instaurado na e pela enunciação, tal qual o
enunciador, funciona como um “enunciador intérprete” na ironia (BRAIT, 1996, p. 109). O
ironista supõe um auditório capaz de reconstruir e interpretar o que é proposto, promovendo
uma solidariedade implícita de sujeitos. Nesse sentido, a ironia mostra-se como uma forma de
apresentação da linguagem na qual os participantes têm papel ativo na produção e recepção
do sentido, o que concede caráter dialógico a ela. O sujeito que se marca nela não o faz
apagando o outro; os sentidos que a ironia desencadeia são negociados com o outro, o qual
tem uma participação ativa nesse processo, uma vez que participa tanto da interpretação do
discurso, quanto da seleção de elementos constitutivos da ironia. Sendo assim, para que haja a
ironia, é necessário que valores e sentidos sejam compartilhados pelo enunciador e pelo
enunciatário, sendo ambos responsáveis pela sua constituição. Nesse sentido, Brait afirma que
De maneira bastante genérica, pode-se dizer que a transposição se dá na
medida em que o enunciado, independentemente de sua extensão, será
observado através de marcas que aí estão assinaladas, produtos de um
processo que envolve as relações dialógicas necessariamente existentes entre
a instância de produção e a instância de recepção, o que significa considerar
no mínimo dois agentes responsáveis pela significação: enunciador e
enunciatário. Se o enunciatário não se der conta das articulações entre os
segmentos aí envolvidos, a significação irônica não terá lugar. (BRAIT,
1996, p. 65)
Portanto, a participação ativa do enunciatário como interpretador da ironia parte do
compartilhamento de pressupostos presentes na ironia, conduzindo a uma visão do enunciado
não como vozes isoladas, mas sim, inter-relacionadas: o dito e o não-dito, os quais não podem
ser separados na construção do efeito irônico. Considerando as discussões de M. Bakhtin e
seu Círculo acerca das relações entre vozes, percebe-se que a ironia pode ser caracterizada
como um processo dialógico, articulando enunciação e enunciado, com o objetivo de
subverter ou desmascarar valores, envolvendo, além do enunciatário e do enunciador, o seu
contexto de produção. Adotando essa perspectiva, entendemos a ironia como uma articulação
entre o dito e o não-dito (ou implícito), caracterizada por uma ambigüidade de sentido, tendo
sinalizado no texto para o enunciatário a “não seriedade” do que está posto no enunciado, isto
é, o não enquadramento do enunciador ao que é dito. O enunciador simula algo no enunciado,
indicando para o enunciatário, de alguma maneira, a simulação.
57
Para que o efeito irônico se faça, a desarticulação dessas vozes não é pertinente, uma
vez que se perde o jogo da duplicidade enunciativa, e, assim, conseqüentemente, desfaz-se a
ironia. O enunciatário, então, para interpretar o sentido irônico, não pode escolher entre o que
é dito e o que está implícito; ele deve aceitar as duas instâncias para reconhecer a ironia,
compartilhando com o enunciador a duplicidade da enunciação, pois o friccionamento entre
elas e sua impossibilidade de separação são o que a caracteriza. Assim, percebe-se que
estudos sobre a ironia procuram dar conta desse caráter de dissonância típico da linguagem
irônica.
Uma vez que a ironia é feita por meio de signos, seus significados e efeitos de sentido
dependem da sua organização e disposição no texto e, também, da sua contextualização.
Concordando com Bakhtin (2004), isso se dá pois nenhuma significação é dada, mas sim
criada no processo das complexas relações dialógicas de um enunciado com outro. Nesse
sentido, os significados não estão prontos, dados, mas emergem da relação estabelecida entre
os enunciados presentes no discurso ou entre os presentes e aqueles pressupostos pela
as tribuíc0 Tc5 da sua c3 sãeles pressupostosNesse .00043 TTc08(c0.1à0.1ircuD0.0007 To e, t8.8idas com)97r meio de2835
58
um sentido oposto àquele, levando à ambigüidade do discurso irônico. Nesses textos,
caracterizamos o sentido proposto como um discurso absurdo que é enunciado, que tem
implicado nele um outro sentido, o qual o enunciador defende e com o qual concorda.
51
Sabe-
se que se trata de uma afirmação absurda, pois ao levar em conta o sentido do texto como um
todo e o posicionamento defendido nele e, ainda, o contexto que o perpassa, percebe-se a não
adesão do enunciador ao que é dito, remetendo-se a um outro sentido, instaurando aí a
ambigüidade com um viés humorado. A ironia em Toledo faz-se, assim, por meio de uma
relação de sentidos, que só é interpretada e compreendida quando se relacionam discursos
entre si (sejam intra, inter ou extra textuais), já que o enunciador expõe pontos de vista dos
quais discorda, criticando-os ridiculamente por um jogo entre o dito e o implicado. Então,
assim como consideram os estudos sobre ironia apontados, nos textos em questão há a
necessidade também de um enunciatário que recupere os discursos aos quais o enunciador faz
referência e os relacione entre si no texto e, ainda, que relacione os discursos que perpassam o
texto, compreendendo, assim, o absurdo veiculado, o qual tem um viés avaliador e ambíguo e,
assim, irônico.
2.2. Ironia: um julgamento amenizado pela ambigüidade
Examinando o discurso sob a perspectiva dialógica, valorizamos em nossas análises a
relação entre vozes e privilegiamos a relação entre textos, seu contexto e os sujeitos do
discurso. Como visto, a ironia também é tratada sob essa perspectiva, caracterizando-se como
um processo dialógico entre enunciador e enunciatário e entre vozes que se articulam, as
quais, inter-relacionadas, dão um sentido terceiro, implícito nessa relação. Assim, há na ironia
elementos que se remetem à dimensão social e interativa da linguagem. De acordo com Castro
(1997), a ironia mostra-se como um caso típico de discurso bivocal. Nela,
51
Abordamos aqui a questão do discurso absurdo apoiados no trabalho de Passetti (1995), a qual assume a
perspcetiva teórica de Ducrot. Este entende a ironia como um enunciado humorístico, estabelecendo algumas
condições necessárias para sua ocorrência, que são: “entre os pontos de vista representados em um enunciado, há
ao menos um que é absurdo, insustentável; o ponto de vista absurdo não pode ser atribuído ao locutor”.
(DUCROT, 1988, apud BRAIT, 1996, p. 55).
59
[...] a palavra tem duplo sentido: volta-se para o objeto do discurso como
palavra comum e para um outro discurso. A consideração pelo discurso de
um outro implica, na verdade, o reconhecimento do segundo contexto como
meio de perceber o significado da ironia. (CASTRO, 1997, p. 130)
Os elementos levantados em relação à ironia, definindo-a como ambigüidade
discursiva, parecem traduzi-la, portanto, como o resultado de uma contradição percebida pelo
enunciatário por meio de relações de sentidos e a partir da dupla enunciação que a caracteriza.
Ao entrecruzar discursos, o enunciador faz entender o contrário do que se diz, atribuindo, ao
mesmo tempo, um juízo de valor, uma avaliação. Por meio da ambigüidade, a voz posta no
enunciado remete-se a um outro sentido, implícito, que, muitas vezes, é o oposto do que é
dito. Essa inversão semântica, característica da ironia, irá depender do contexto de produção e
de recepção do enunciado, já que ele pressupõe uma relação de conivência entre essas duas
instâncias. Nos artigos de opinião de Toledo, esse contexto refere-se tanto àqueles chamados
pelo enunciador no texto, quanto ao contexto que subjaz os textos, que em sua maioria é a
contemporaneidade.
Hutcheon (2000) afirma que a ironia diferencia-se de outras formas de linguagem uma
vez que trabalha com a ambigüidade, e tem sempre um viés julgador. Ela se caracteriza
também por relativizar a voz do enunciador, pois o sentido da ironia não está pronto no
enunciado, como algo dado pontualmente, mas está em processo, em construção, já que é
preciso reconhecê-la e interpretá-la, amenizando a afirmação da crítica feita por ela. A
ambigüidade, por sua vez, é gerada pela inter-relação de vozes, caracterizadora da ironia, na
qual se diz algo no enunciado, mas implicitamente, na enunciação, diz-se o contrário do que
está posto. Sendo assim, a ironia – a qual articula ao mesmo tempo enunciado e enunciação –
pode servir de “arma” contra autoridades vigentes e contra discursos cristalizados,
subvertendo ou desmascarando valores, contando com o envolvimento do leitor. Há estudos,
como o de Silva (2005), que apontam que
[...] há mesmo algo na ironia que a torna uma estratégia de linguagem
especial, seja porque ela quase sempre instaura uma suspeita em relação ao
sentido (idéia de dissimulação que acompanha historicamente o sentido do
termo), seja porque funciona nas relações de poder. (SILVA, 2005, p. 24/25)
A
ironia funciona estrategicamente a serviço de interesses e posições sociais,
veiculando um juízo de valor. Por meio da bivocalidade, ela revela uma avaliação do
60
enunciador ou um ponto de vista discordante que se instaura no discurso, podendo, assim, ser
usada como um instrumento de julgamento. A organização discursiva do que é dito no
enunciado e o que se quer dizer na enunciação faz com que a ironia desmascare ou subverta
valores, contando sempre com a participação do leitor ou ouvinte para a apreensão dessa
forma de dizer, o que, muitas vezes, gera o humor. Brait (1996) afirma que
Constituindo um fenômeno bivocal, dialógico, um sistema de interação, para
utilizar o termo de Bakhtin, as formas de recuperação do já-dito com
objetivo irônico não assumem, como tal, a função de erudição, no sentido de
invocação de autoridade e muito menos de simples ornamento. Ao contrário,
são formas de contestação da autoridade, de subversão de valores
estabelecidos que pela interdiscursividade instauram e qualificam o sujeito
da enunciação, ao mesmo tempo em que desqualificam determinados
elementos”. (BRAIT, 1996, p. 107).
Nos artigos de opinião de Toledo, o posicionamento de contrariedade do enunciador
frente a acontecimentos políticos e sociais do mundo e do Brasil feitos por meio da ironia
revelam um enunciador que se mostra crítico e julgador, que avalia os acontecimentos que
recupera, mas não com efeito categórico dessa voz, funcionando a ironia como uma forma de
julgamento, mas amenizada. O enunciador não afirma no enunciado sua crítica incisivamente;
ela fica implícita na inter-relação entre vozes da ironia, sendo interpretada pelo enunciatário.
Para que ela ocorra, como afirma Ducrot (1987, p. 60) “é necessário “fazer como se” esse
discurso fosse realmente sustentado, e sustentado na própria enunciação”, fazendo o
enunciatário ouvir um discurso absurdo, mas o ouve como um discurso de um outro, como um
discurso distanciado
52
. Além do mais, para que a ironia se instaure no discurso, ela requer um
jogo interpretativo, uma vez que quando se trata do significado irônico, tem-se “a
multiplicidade de sentidos, efeitos de sentido polissêmicos”, sendo o sentido irônico realizado
“nas malhas da interpretação” e, daí, pluralizando-se “na instância dos jogos de significados
jogados pelo enunciador e pelo enunciatário”. (HUTCHEON, 2000, p. 74). Percebe-se, assim,
que o sentido veiculado pela ironia não está “posto” no enunciado, mas está em construção,
pois inclui também a enunciação, tendo diferentes sentidos em cada uma dessas instâncias, o
52
Ducrot (1987) considera seu conceito de ironia relacionando-o a enunciados isolados, diferentemente de
Bakhtin, cuja linha teórica adotamos, que considera o texto como discurso, enunciado. Mesmo assim,
consideramos neste trabalho alguns pontos que se referem aos estudos de Ducrot sobre ironia, pois achamos
pertinentes às nossas hipóteses a relação entre discurso absurdo e discurso sério a que ele se remete. Entretanto,
não consideramos que haja enunciadores dissonantes para um único enunciado, como este autor define.
Entendemos o discurso absurdo e o discurso sério como uma relação de sentidos dissonantes que é estabelecida
por um mesmo enunciador.
61
que nos possibilita afirmar que a ironia dá o efeito de amenização desvencilhamento de um
dizer categórico, já que seu sentido não está pronto, mas se dá por meio da duplicidade da
enunciação, pelo jogo entre vozes. Entretanto, o julgamento feito por ela é incisivo, agudo,
instaurando-se, assim, uma “pseudo-relatividade” da voz do enunciador.
Considerando o tipo de texto a que se filiam os textos em análise (artigo de opinião),
de acordo com Melo (1985), nos textos jornalísticos opinativos, a ironia tem um lugar
propício para se instaurar, pois neles não há a preocupação em veicular a notícia somente,
mas, além disso, veicular um posicionamento sobre ela, sendo pertinente a expressão no texto
do colorido pessoal do autor. No artigo de opinião, há a instauração de um discurso polêmico,
o qual tem um marca autoral associada a uma assinatura. A função autoral desses textos,
então, faz-se muito importante, pois o autor de artigos jornalísticos veicula um
posicionamento não necessariamente vinculado à posição do jornal (mas não contraditório a
ela). No caso dos textos de Toledo, é característica autoral a contrariedade aos acontecimentos
chamados ao texto, como uma contestação a eles – sendo a ironia uma forma de os avaliar.
Esses acontecimentos, por sua vez, referem-se principalmente à política e a problemas sociais,
perpassados pelos valores autorais, como a defesa da ética e da moral.
Silva (2005, p. 125) afirma ainda que “um discurso que será criticado, pode ocorrer,
do ponto de vista do autor, a construção de estratégias que sutilmente tentam mascarar sua
posição, como forma de manter um distanciamento em relação ao discurso”. Por esse viés,
entendemos aqui que a ironia e os discursos reportados (tratados na seção 03) característicos
do estilo dos textos de Toledo, estratégias de tentativa de mascarar a voz julgadora do
enunciador.
53
Entretanto, pelas relações de sentido estabelecidas no texto e pela forma de
construção do posicionamento defendido ao longo dele, verificamos que tanto ao recuperar
discursos de outrem quanto ao recorrer ao discurso irônico, o autor desses artigos de opinião
constrói uma relativização, simulando desvencilhar-se de um dizer absoluto para, na verdade,
construí-lo como irrefutável, e, portanto, absoluto. Pois ao recorrer à ironia, o enunciador
veicula valores negativos agudos, tratados por ele como absolutos; e no caso dos discursos
reportados, o enunciador sustenta seu posicionamento em discursos de outrem, dando um
efeito de inquestionabilidade ao que defende. Sendo assim, ao recorrer à ironia e ao discurso
de outrem, o autor desvencilha sua forma de julgamento de ser classificada como categórica,
uma vez que a crítica é transmitida por meio de uma relação entre vozes e não incisivamente
53
No caso dos discursos reportados, trata-se de um mecanismo amenizador da voz crítica do enunciador, pois
este não afirma seu julgamento categoricamente no enunciado, mas o faz o faz por meio desses discursos (como
se um “outro” o estivesse afirmando).
62
no enunciado. Entretanto, o posicionamento defendido ao longo do texto, esse sim tem um
efeito de categorização, de irrefutabilidade. Dessa forma, ele mascara sua voz categórica,
construindo o que denominamos de “pseudo-relatividade”, já que sua voz não é relativizada
totalmente.
54
Ao analisarmos os 25 artigos de opinião de Toledo publicados entre 06 de julho de
2005 e 21 de dezembro de 2005, verificamos que dentre eles somente 6 (seis) não apresentam
o discurso irônico, que são: “Uma bela cena num filme ruim” (TOLEDO, 2005j)
55
; “Era
muita coisa contra o pequeno Fernando”(TOLEDO, 2005m)
56
; “O melão tentador e outras
histórias” (TOLEDO, 2005n)
57
, “O duplo estrago do bispo bomba” (TOLEDO, 2005o)
58
, ““Se
não comparecerdes...”” (TOLEDO, 2005r)
59
e “Sobre causas, efeitos e trepar em árvores”
(TOLEDO, 2005u)
60
. Nesses artigos de opinião, o enunciador aborda a temática política e
social que é peculiar dos seus textos, mas veicula seu posicionamento principalmente por
meio de discursos reportados. No primeiro artigo de opinião, contrapõe características
políticas de Fernando Gabeira e Severino Cavalcanti. Ao longo do texto, relaciona
circunstâncias políticas em que se inseriram os deputados, desde que se envolveram com a
política nas décadas de 60/70 até setembro de 2005 (período de publicação do artigo). Escolhe
propositalmente situações destoantes em objetivos e ações das quais Gabeira e Severino
participaram, levando o enunciatário à percepção dos valores políticos divergentes desses
deputados. Esse artigo de opinião não apresenta indícios de ironia, porém, é permeado por
relações entre discursos, peculiares do estilo dos textos. Em “Era muita coisa contra o
pequeno Fernando” (TOLEDO, 2005m), o enunciador recorre a relatos de acontecimentos de
ordem pública que envolveram a cidade de São Paulo no decorrer do primeiro semestre do
ano de 2005. Relaciona os furtos de objetos de utilidade pública (como fios de telefone,
tampas de bueiros, placas, etc.) e o ocorrido com um menino, Fernando, de 4 anos,
argumentando que é preciso haver uma punição a aqueles atos. O menino caiu em um bueiro
de poço em um bairro da Freguesia do Ó, correndo risco de vida pelo fato de não haver,
naquele instante, a tampa do bueiro, o que daria uma possível segurança a quem andasse
próximo ao local. No artigo de opinião “O melão tentador e outras histórias” (TOLEDO,
54
Essa característica da “pseudo-relatividade” da voz autoral que aqui definimos é abordada também na seção 03
deste trabalho, na qual aprofundamos as análises em torno do papel dos discursos reportados nos artigos de
opinião de Toledo.
55
Vide Anexo J.
56
Vide Anexo M.
57
Vide Anexo N.
58
Vide Anexo O.
59
Vide Anexo R.
60
Vide Anexo U.
63
2005n) o enunciador chama ao texto o caso do juiz de futebol Edílson Pereira dos Santos, que
confessou ter aceitado um suborno para favorecer o Juventude em um jogo do Campeonato
Paulista, no ano de 2005. Para expor sua crítica e discordância a tal atitude, o enunciador
recupera discursos que se relacionam à sua tese de que há um pressuposto no imaginário
coletivo de que todo juiz seja ladrão, trazendo como prova o caso de Edílson. Por meio de
uma relação entre discursos reportados e também por meio do relato da notícia sobre o juiz,
ambos feitos por um autor habilidoso, o enunciador vai veiculando seu posicionamento de
indignação. No artigo de opinião “O duplo estrago do bispo bomba” (TOLEDO, 2005o), há a
referência ao caso do bispo Dom Luis Flávio Cappio, que decretou greve de fome caso o
governo Lula não arquivasse o projeto de transposição do rio São Francisco na região
Nordeste do Brasil. Discordando da medida usada pelo bispo (pretender a morte), e não de sua
causa, o enunciador recupera discursos de membros da Igreja Católica, mostrando o que
acharam da atitude do bispo. Em ““Se não comparecerdes...”” (TOLEDO, 2005r) é chamada
ao texto uma carta expedida pelo INSS ao aposentado contribuinte, pedindo que este fosse
receber seu benefício em até 10 dias após o envio da carta. O enunciador, com uma voz
avaliadora diante de tal acontecimento, considera que há uma incoerência nas datas postas na
carta e também uma maneira impositiva com que os contribuintes são tratados pelo governo.
O autor organiza os discursos que recupera de tal forma que faz com que o leitor atente-se,
diante da carta, para as questões a que chama atenção. E no último artigo de opinião
mencionado, “Sobre causas, efeitos e trepar em árvores” (TOLEDO, 2005), o enunciador
retrata-se às ondas de protestos de jovens em Paris naquela época (novembro de 2005),
relacionando-o com a Tomada da Bastilha. Refere-se a um livro O Barão das Árvores para
dar sustentação a seu posicionamento de que não houve uma causa consistente para que
ocorresse tamanha manifestação dos jovens parisienses naquele período de 2005. Ainda nesse
artigo de opinião, por meio da relação com uma crônica publicada no Globo, de Cora Ronái e
também com o caso de Paris, o enunciador retrata-se à banalização dos tiroteios ocorridos na
cidade do Rio de Janeiro e à falta de ações contrárias a isso.
Diante desses artigos de opinião, verifica-se, pois, que, mesmo não recorrendo à
ironia, o enunciador elucida uma voz crítica sobre o Brasil e sobre o mundo por meio também
da relação entre discursos, o que caracteriza, assim como a ironia, um autor que sustenta seu
posicionamento por meio de um jogo entre vozes, o qual dá um efeito de não-categorização
da voz julgadora, já que o autor não afirma su
64
essa amenização da voz autoral como uma “pseudo-relativização”, uma vez que o autor tenta
regular o sentido do texto, fazendo com que o que é dito por ele tenha um efeito de
constatação, como algo irrefutável e inquestionável. Essa tentativa de regulação de sentido
também se dá por meio da ironia, pois para que essa seja interpretada, é preciso que o
enunciatário recupere os sentidos e textos que subjazem ao texto em questão e os relacione
inter, intra e extra-textualmente, senão o sentido irônico se perderá; e, além disso, ao ironizar
um discurso, uma personalidade, o autor imprime sobre eles uma qualificação de desdém e de
ridicularização, sendo preciso que o enunciatário também o faça para que o sentido do texto
seja apreendido responsivamente.
Ao analisarmos a ironia nos outros textos em questão, percebemos que em sua maior
parte ela é apresentada por meio da relação entre um discurso que pode ser denominado como
absurdo
61
que é posto no enunciado, que se remete a um outro discurso, tratado como sério, o
qual o enunciador defende. Ressaltamos que ao consideramos a terminologia de Ducrot
(1987) de “discurso absurdo” e de “discurso sério”, estamos nos referindo ao sentido do
termo. Não tratamos aqui das considerações que Ducrot (1987, SILVA, 2005) faz a respeito
da ironia quanto a diferentes enunciadores para um mesmo enunciado, e nem da existência de
um sujeito da enunciação dotado de estratégia intencional, consciente. Fundamentado na
perspectiva bakhtiniana, este trabalho considera o sujeito por um viés discursivo, entendendo
o termo “intenção” em uma perspectiva social.
Diante disso, percebemos em Toledo que a sinalização do discurso pouco crível
(denominado absurdo) é feita tanto no campo da frase quanto na do discurso, tendo que
ambos serem considerados para interpretar a ironia. Nesses textos, no nível do enunciado
podem ser observadas as seguintes pistas que levam à ironia: comparações inusitadas, com
pouca correspondência semântica, que levam a um sentido ambíguo; e adjetivos que
qualificam o referente de maneira humorada e até ridicularizada. Já no que se refere às
relações discursivas e textuais, observa-se o absurdo do que é dito pelo enunciador pelas
relações de sentido feitas inter, intra e extra-textuais. Percebe-se que o que é afirmado no
enunciado, ao se considerar o contexto de produção e o posicionamento a que se filia o autor
do texto, trata-se de uma afirmação com a qual o enunciador “finge” ou parece concordar,
mas a rejeita, tendo um sentido implicado, que é contrário ao que é posto. A interpretação da
ironia, portanto, requer que o enunciatário recorra à memória discursiva, recuperando os
61
É preciso considerar que o discurso absurdo é realmente absurdo para o enunciador. Caso contrário, a leitura
ingênua se processaria e não a irônica.
65
discursos a que o enunciador faz alusão e também os discursos que subjazem o texto; e, além
disso, é preciso que o enunciatário considere o que é defendido pelo enunciador, para assim
perceber as pistas deixadas ao longo do texto de que uma determinada afirmação é absurda e
ambígua, portanto, irônica.
Verifica-se, assim, que a ironia não se dá somente no nível do enunciado, mas também
no nível discursivo, uma vez que é preciso considerar a totalidade do texto e sua organização,
observando os pontos de vista contraditórios levantados pelo enunciador. Esse jogo entre
discurso absurdo e discurso sério trata-se daquilo que consideramos como o dito e o não-dito,
respectivamente. E é por meio desse entrecruzamento de vozes que se tem o sentido irônico,
como uma terceira voz, aquela que está inter-dita, revelando uma avaliação, permeada pelo
humor e pela ambigüidade. Sendo assim, concordamos com Passetti (1995, p. 48) quando
afirma que o enunciador irônico é aquele que “ao mesmo tempo expressa ou veicula um ponto
de vista e sinaliza ou orienta para outro” por meio das pistas deixadas no texto, como as
relações textuais, discursivas e lingüísticas. O modo de estruturação argumentativa, isto é, da
organização das estratégias é que permitirão “a recuperação do contexto, de outros textos, da
relação com os interlocutores e com a ideologia, de forma a orientar para a tese desejada”.
(PASSETTI, 1995, p. 63). Sendo assim, são essas estratégias que possibilitam ao enunciador
irônico expressar ou veicular um ponto de vista e sinalizar ou orientar para outro ao mesmo
tempo.
2.3 Analisando: como a ironia se dá nos artigos de opinião de Toledo
Como vimos, o enunciador, ao veicular o discurso irônico, deixa pistas ao longo do
texto para que ela seja percebida e, assim, interpretada. Selecionamos aqui alguns artigos de
opinião de Toledo que apresentam o discurso irônico e que dão conta dos modos de
construção da ironia na obra analisada. Então, quando nos referimos aos mecanismos de
construção da ironia em Toledo, deve-se levar em conta que não são características pontuais,
mas autorais, pois são semelhantes em todos os textos em análise.
66
O artigo de opinião “Nhô Lula e a tentativa de um último milagre” (TOLEDO,
2005b)
62
retrata algumas das características da ironia construída nesses textos e sua função.
Nele, o enunciador posiciona-se contrariamente ao fato de o presidente Lula não ter tomado
alguma atitude consistente diante do caso dos escândalos do mensalão, o qual envolveu
membros do seu partido (PT), políticos de sua confiança, e outros mais; além de o presidente
ter delegado funções importantes a membros de seu governo ao ser eleito, como ao ex-
deputado José Dirceu, não atuando, assim, ativamente na administração do seu país. Ao longo
do texto, o enunciador vai pontuando o que para ele seria um posicionamento sério e desejado
de um Presidente da República, de que podemos destacar:
Para qualquer um, na verdade, e não apenas para quem viveu infância de
retirante e adolescência de favelado, chegar à Presidência é uma proeza de
gloriosas proporções. Só que não é um fim em si mesma. É, ao mesmo
tempo, um começo – o começo do desafio de, por meio de ações diárias,
minuciosas e persistentes, transformar o mandato em algo profícuo.
(TOLEDO, 2005b).
Vê-se que para o enunciador o trabalho de um bom presidente é aquele no qual há uma
preocupação consistente com as questões políticas que envolvem o país e as realiza
efetivamente, como o caso do Fome Zero e das reuniões ministeriais, citadas no texto.
Após a afirmação aqui recuperada, o enunciador afirma: “Lula ignorou que a vitória
era um começo. Achou que era só um fim. Nesse engano, ele se perdeu”. (TOLEDO, 2005b).
A fim de defender essa sua posição, o enunciador vai, ao longo do texto, remetendo-se a
discursos do próprio Lula na tentativa de provar que há sim uma inconsistência política na sua
administração. Além disso, recupera algumas situações que envolveram o presidente desde
que iniciou seu primeiro mandato, pontuando o que há de incoerente entre elas e a proposição
defendida no texto. Assim, considerando o posicionamento do enunciador frente a esse
acontecimento e os discursos e sentidos que perpassam o texto, o discurso irônico vai sendo
construído e percebido ao longo dele, o que mostra que a ironia é um processo de linguagem
produzida por um jogo discursivo.
Já no início do texto, o enunciador remete-se ao fato de o presidente não ter se
pronunciado sobre as denúncias no caso do mensalão até aquele momento. Para aquele, essa
62
Vide Anexo B.
67
deveria ser uma atitude esperada de um presidente atuante, já que envolve a integridade
política do seu governo. Então, afirma:
Os últimos acontecimentos confirmam a impressão, já antiga, de que Lula,
como executivo, preferiu refugiar-se nas artes da levitação. Ele não governa.
Prefere flutuar acima dos desagradáveis assuntos do dia-a-dia. Não lhe
agrada ter as mãos sobre o leme da administração. (...). (TOLEDO, 2005b)
Ao longo do texto, o enunciador, recorrendo a discursos de outrem e também à ironia,
propõe-se a provar que Lula não governa. No trecho apresentado, ao afirmar que Lula
“Prefere flutuar acima dos assuntos desagradáveis”. (TOLEDO, 2005b), o enunciador
desqualifica o presidente por meio da ironia instaurada pela adjetivação. Relacionando os
discursos que perpassam o texto e o ponto de vista adotado pelo enunciador, o qual afirma que
as atitudes de um presidente deveriam ser suas ações diárias, transformando seu mandato em
algo profícuo, observa-se que o adjetivo “desagradáveis” refere-se a uma avaliação imprópria
para o presidente, cuja função seria administrar dificuldades. Afirma-se, então, no enunciado
um discurso absurdo, do qual o enunciador discorda, tendo implicado nele um discurso sério,
revelando a crítica aguda ao presidente: diz-se, indiretamente, que o presidente não leva a
sério suas funções. A ironia é aí percebida, pois se percebe que há uma afirmação com a qual
o enunciador parece concordar, mas que, pelas relações feitas entre seu posicionamento e os
discursos que perpassam o texto internamente e externamente, indicam um sentido outro,
contrário, o da enunciação – o qual o enunciador defende.
Adiante, o enunciador afirma que a agenda presidencial, ao longo dos dois anos e
meio da presidência de Lula, parecia mais à afeição das festividades do que de trabalho. Para
provar essa sua tese, o enunciador recupera estrategicamente algumas situações que
envolveram Lula e das quais discorda, dispondo-as com seu viés avaliativo. Refere-se à visita
do grupo de axé É o Tchan! ao presidente, alegando que ali ele se sentia em seu lugar; refere-
se às reuniões ministeriais, as quais em ocasiões para copiosas churrascadas e, ainda, às
viagens internacionais de Lula, afirmando:
E, para culminar, havia as viagens internacionais, meia centena, em dois
anos e meio – expressões de uma política externa que se queria tão
revolucionária que ia mudar as relações entre os povos. Enquanto se
mendigava, nos quatro cantos do mundo, um lugar no Conselho de
Segurança, bom mesmo era receber dos estrangeiros os louros devidos ao
68
espécime raro do operário tornado presidente. De quebra, as viagens
proporcionavam os prazeres do turismo, Paris, Roma, o Taj Mahal, os
palácios chineses – eh, mundão grande e cheio de coisa linda para se ver!
Quanto à chatice de traçar rumos e decidir, para que se incomodar, se ele
tinha formado “o melhor ministério que o país já teve?”” (TOLEDO,
2005b)
63
Referindo-se às constantes viagens internacionais do presidente Lula, o enunciador
mostra-se contrário a tal atitude, avaliando-a ironicamente. Recuperando o contexto que
subjaz o texto e a memória discursiva, infere-se que seria pouco crível que a política de Lula
em suas viagens internacionais conseguiria modificar as relações entre os povos – até mesmo
porque essa mudança tem suas resistências para ser feita, já que no mundo se vive permeado
por diferenças. Além disso, para o enunciador isso era o que se imaginava que Lula faria (ou,
pelo menos, alguns imaginavam). Então, recuperando a afirmação que o enunciador faz do
que seriam boas atitudes de um presidente (“[...] ações diárias, minuciosas e persistentes”
(TOLEDO, 2005b)) e ainda o contexto a que se refere o texto, vê-se que o esperado para o
enunciador seria que o presidente atuasse em seu país, principalmente naquele momento em
que políticos brasileiros viam-se envoltos em escândalos, deixando de fazer tantas viagens.
Tal discordância da atitude de Lula é percebida ainda quando se afirma que nessas
viagens, Lula mendigava aos quatro cantos do mundo um lugar no Conselho de Segurança –
“Enquanto se mendigava, nos quatro cantos do mundo, um lugar no Conselho de Segurança,
bom mesmo era receber dos estrangeiros os louros devidos ao espécime raro do operário
tornado presidente”. (TOLEDO, 2005b). Sendo assim, como seria possível que esse mesmo
país pudesse conseguir mudar a relação entre os povos, se mal tem um lugar dentre os países
mais importantes do mundo? Considerando tais relações de sentido que se estabelecem no
texto, vê-se que a afirmação de que a política externa brasileira ia mudar as relações entre os
povos é absurda, tendo, assim, um viés crítico irônico, já que instaura dois sentidos que se
friccionam (o do enunciado e o da enunciação). Por meio da ironia, o enunciador ridiculariza
a atitude de Lula, impingindo-lhe sua avaliação. A ironia é aí instaurada e interpretada, pois se
levou em consideração a relação entre o sentido do todo do texto e, ainda, os sentidos que o
constituem. Por isso, pode-se perceber que o que é dito no enunciado trata-se de um discurso
absurdo (pois o enunciador não concorda com ele, e além disso, seria pouco crível que isso
ocorresse), tendo na enunciação um outro sentido, contrário àquele: não havia a possibilidade
de Lula, em suas viagens, fazer uma política externa revolucionária, e naquele momento ele
63
Vide Anexo B.
69
deveria estar em seu país, administrando a “casa” e não viajando. Além do mais, com
expressões informais, o enunciador afirma a preferência de Lula pelas viagens internacionais
(“ [...] eh, mundão grande e cheio de coisa linda para se ver!”). Tais expressões querem fazer
parecer que são de Lula, sem serem diretamente atribuídas ao presidente. Portanto, remeda-se
(ou imita-se) aqui o outro, Lula.
Mais à frente, o enunciador atribui uma adjetivação também ao presidente, como se
ele a estivesse afirmando: “Quanto à chatice de traçar rumos e decidir, para que se incomodar,
se ele tinha formado “o melhor ministério que o país já teve?”” (TOLEDO, 2005b). O
adjetivo “chatice” aí empregado dá um viés irônico à afirmação, já que traçar rumos e decidir
sobre questões políticas para o enunciador deveriam ser as atitudes esperadas de um
presidente que governa seu país e não ser considerado como algo desprestigiado. Entretanto,
atribuindo tal qualificação a Lula como se ele a estivesse afirmando, o enunciador o
ridiculariza, pois aquela não seria uma atitude desejada de um presidente ativo em seu
governo. E, ainda, ao recuperar o discurso do próprio Lula de que ele havia feito o melhor
ministério que o Brasil já havia tido, o enunciador critica a postura dele, mas de uma maneira
relativizada, já que é preciso, para compreendê-la, que se recorra à memória discursiva e ao
contexto que perpassa o texto: naquele período, alguns dos ministros escolhidos pelo
presidente Lula viam-se envolvidos em alguns escândalos do mensalão. Há, então, uma
contradição de sentidos, pois como esse seria o melhor ministério, se alguns de seus membros
estavam envolvidos em corrupção? E ainda, em seguida, o enunciador habilmente afirma que
na época a reforma ministerial estava compondo uma história “aflitiva, tortuosa e sem rumo”
(TOLEDO, 2005b), recuperando o discurso dos seus poucos resultados consistentes. Então,
contra-argumenta o discurso atribuído ao próprio Lula ((...) para que se incomodar, se ele
tinha formado “o melhor ministério que o país já teve?”” (TOLEDO, 2005b)), dando um
efeito de constatação ao seu posicionamento: esse não é o melhor ministério, pois nem mesmo
a reforma ministerial conseguiu ser feita. O discurso irônico então é aí instaurado, já que a
afirmação posta no enunciado é absurda (considerando o ponto de vista do enunciador), tendo
um outro sentido, contrário, na enunciação. Além disso, traçar rumos deveria ser a atitude do
presidente e não de seus ministros, e não deveria ser considerado uma chatice, mas sim, uma
obrigação. A ironia é aí instaurada pois vê-se que o autor constrói o discurso de forma a
sinalizar sua distância frente aos pontos de vista absurdos que veicula, tendo, implicado neles,
um discurso sério, com o qual ele concorda.
70
Mais à frente o enunciador afirma que a vitória eleitoral fez um grande mal ao
presidente, pois ele passou a acreditar em si mesmo mais que o razoável, ainda mais que suas
origens foram a de um menino que “vendia amendoim e laranja no cais de Santos”
(TOLEDO, 2005b). Aludindo à sua tese da falta de ações políticas de Lula para a organização
do seu país, o enunciador recupera o discurso bíblico, afirmando implicitamente que o
presidente não governa, mas acredita que milagres ocorrerão, já que dominava seus segredos
– de acordo com o enunciador, a eleição de Lula se deu por um milagre. Diante disso, afirma:
Não precisaria mais se mexer, já dominava o segredo da varinha de condão.
“Faça-se o Fome Zero!”, e o Fome Zero se faria. “Faça-se o maior programa
social já visto neste país”, e o programa se faria. Faça-se a retomada do
crescimento, a distribuição de renda, o respeito pelo Brasil no mundo.
“Nunca se fez tanta coisa”, dizia, e o pior é que acreditava nisso. Enquanto o
presidente confiava na infalibilidade de suas mágicas, a devassidão e a
esbórnia corroíam as entranhas de seu governo.
64
(TOLEDO, 2005b)
Recuperando o contexto referido, o enunciador avalia que naquele período o projeto
Fome Zero tinha poucos resultados, não sendo praticado efetivamente. De acordo com o
enunciador, isso se deu em decorrência da falta de governância de Lula, o qual havia delegado
funções a ministros – dos quais alguns se viam envolvidos no caso do mensalão – e estava
preocupado com suas viagens internacionais. Já que Lula não governava efetivamente, para o
enunciador esse projeto só se concretizaria por meio de um milagre, o qual Lula já dominava.
Ridicularizando Lula e o criticando, o enunciador instaura aí a ironia, já que afirma no
enunciado um discurso absurdo, com o qual discorda, tendo, implicado nele, um discurso
sério, o qual apóia: o milagre só se realiza em discursos bíblicos, sendo algo sobrenatural; o
meio político não se trata desse contexto, sendo o milagre, portanto, incoerente nessa situação.
Além do mais, o enunciador defende que ações políticas são aquelas que envolvem um
compromisso do político com as funções que lhe foram delegadas; ações essas que fazem em
sua prática e não esperando que um milagre as resolva. Sendo assim, o enunciador afirma no
enunciado algo absurdo – de que projetos de Lula se concretizam por meio de um milagre –
tendo implicado, na enunciação, um outro sentido, o de que a instauração “do melhor
programa social” (TOLEDO, 2005b) já visto no país, “a retomada do crescimento, a
distribuição de renda, o respeito pelo Brasil no mundo” (TOLEDO, 2005b) – neste último
64
Vide Anexo B.
71
referindo-se às viagens internacionais recuperadas no texto – só se dariam por meio de ações
concretas, “diárias e minuciosas” do presidente (TOLEDO, 2005b).
Dessa forma, vê-se que a ironia não é feita pontualmente no texto, mas sim, ao se
recuperarem os discursos e sentidos que o constituem como um todo e, ainda, ao os relacionar
inter, intra e extra-textualmente. É preciso considerar também as pistas deixadas ao longo do
texto pelo seu autor para que a ironia possa ser interpretada. No caso desse artigo de opinião
exemplificado, essas pistas podem ser caracterizadas pelo uso de adjetivos, os quais dão uma
qualificação ao objeto a que se referem, mas com um viés de ridicularização; e, ainda, o uso
de comparações, as quais se fazem inusitadas, pois o enunciador relaciona em um mesmo
nível semântico elementos que têm pouca correspondência de sentido, o que deixa a
comparação crítica.
Além disso, a ironia funciona nesses artigos de opinião como uma avaliação negativa,
mas que sofrem, ao mesmo tempo, um efeito de relativização, pois o enunciador não afirma
diretamente sua crítica, mas a faz por meio de uma relação entre vozes, caracterizadora da
ironia. Entretanto, percebemos que pela forma de construção do seu discurso, o autor simula a
amenização de sua voz, mas indicando uma crítica engenhosa e aguda, como a de que Lula
não governa. Essa avaliação é tratada pelo enunciador como absoluta, como se fosse uma
constatação, propondo-se a prová-la pela recuperação de discursos de outrem, como os do
próprio presidente, e também acontecimentos que o envolveram, ridicularizando-os em sua
maior parte. Diante disso, percebe-se que nesses artigos de opinião há a configuração de um
autor que, tendo um projeto de dizer, tenta regular o sentido do seu texto, tratando sua opinião
como irrefutável, uma constatação.
As características apontadas em relação à configuração da ironia e seu papel nos textos
de Toledo se fazem semelhantes nos textos em que essa forma de dizer aparece. Portanto,
ilustramos com mais um artigo de opinião como a ironia se dá neles, confirmando o que já foi
dito sobre ela, e, ainda, constatando que se tratam de características autorais.
No artigo de opinião “Um prodígio chamado Duda Mendonça” (TOLEDO, 2005h)
65
,
o enunciador refere-se ao publicitário Duda Mendonça – que estava sendo investigado na CPI
dos Correios na época – aludindo à sua capacidade e habilidade em eleger políticos. Nesse
artigo, o enunciador assume o posicionamento de que o que realmente promove algum
político, tomando como exemplo novamente o presidente Lula, não é o seu caráter ou suas
65
Vide Anexo H.
72
propostas de governo, mas sim, a sua imagem ilusória e enaltecedora construída por
publicitários – neste caso, Duda Mendonça, que foi responsável por toda a campanha política
da candidatura de Lula à presidência e também de outros políticos, como Paulo Maluf, Celso
Pitta e Marta Suplicy, os quais são citados no texto. Diante disso, o enunciador, recuperando
discursos da campanha política de Lula para a eleição de 2002, propõe-se a constatar que há
uma incoerência com o que foi dito naquela campanha pelo presidente, em época de
candidatura, e o que nela não foi cumprido em seu mandato até então, enfatizando no artigo
de opinião a proposta eleitoral de que Lula iria acabar com a corrupção em seu mandato. O
enunciador afirma:
"Xô, corrupção." Assim pregava o primeiro comercial produzido por Duda
Mendonça para a campanha do PT, em 2002. A imagem era de um bando de
ratos roendo a bandeira nacional. "Ou a gente acaba com eles ou eles acabam
com o Brasil", dizia o texto, antes de soltar o "xô" que era a peça de
resistência, o fecho de ouro, o bordão concebido para impressionar e ficar na
memória. Talvez o "xô" tenha sido pronunciado sem a devida energia.
Talvez tivesse sido proclamado com os dedos fazendo figa. Naquele mesmo
momento em que era espantada, no mundo de sonho dos anúncios, a
corrupção se abria para o autor do "xô", no mundo real, farta e generosa
como o Mar Vermelho para Moisés. (TOLEDO, 2005h)
Vê-se que o enunciador recupera discursos da própria campanha eleitoral de Lula e
posiciona-se contrariamente a eles, mostrando que as propostas feitas não foram levadas em
conta, já que, como afirma, o governo Lula, após a eleição, marcou-se por uma onda de
corrupção, a qual se abriu com facilidade a partir do momento em que ele se elegeu.
Comparando hiperbolicamente o anúncio de corrupção do governo com a abertura do Mar
Vermelho, o enunciador critica Lula pelo discurso irônico. Por meio da comparação, afirma-
se no enunciado um discurso absurdo, que tem um sentido sério implicado, o de que o
governo Lula é corrupto. Além do mais, pela memória discursiva, recupera-se o contexto que
subjaz esse artigo de opinião, que indica que nessa época houve várias denúncias envolvendo
o governo, o PT e outros políticos. A fim de provar sua opinião, o enunciador recorre a
discursos de outrem que se referem a esse contexto o e também os do próprio publicitário,
posicionando-se diante deles.
66
A partir dessas relações de sentidos, apreende-se o
posicionamento do enunciador frente a esse acontecimento que chama para o texto: ele
discorda das atitudes de Duda Mendonça como publicitário que promove campanhas políticas
66
A tomada de posição do enunciador frente aos discursos que recupera e a relação que estabelece entre esses
discursos e o seu é abordada na seção 03 do trabalho.
73
capazes de eleger políticos corruptos, e, ainda, ao recuperar o discurso que se refere à
participação de Duda Mendonça na CPI dos Correios, remete-se ao ideário de que ele também
participou de conchavos – talvez por isso tenha se empenhado tanto em promover os políticos
citados no texto.
Então, nesse artigo de opinião, como dito, o enunciador recupera também dados
referentes às campanhas políticas de Paulo Maluf, Celso Pitta e Marta Suplicy, querendo, com
isso, mostrar o que acredita ser a não fidelidade de Duda Mendonça a uma ideologia política –
ora faz campanha a políticos de direita, ora aos de esquerda. Ao recuperar tais
acontecimentos, o enunciador se posiciona, afirmando que esses políticos, em razão do mal
governo que implantaram em seus mandatos, não deveriam ter sido eleitos; mas, como
tiveram uma campanha política habilmente realizada por um marqueteiro – Duda Mendonça –
assim o foram. Portanto, confere uma parcela de culpa a Duda, pois foi ele quem incutiu na
“cabeça” do eleitorado que tais políticos eram bons o suficiente para serem eleitos, mas, na
prática, não o foram.
Observa-se, porém que, ao longo do texto, o enunciador recupera somente
acontecimentos que desfavorecem os políticos de que trata, não recuperando no texto
nenhuma medida consistente que por ventura esses políticos possam ter feito durante seus
mandatos (no caso de Marta Suplicy, ela não conseguiu se eleger na campanha a que o
enunciador se refere, o que para ele foi algo bom, já que em sua campanha ela prometia a
construção do Céu Saúde, o que, para ele, daria um gasto exorbitante aos cofres públicos e
não daria o resultado esperado à população). Sendo assim, vê-se que o artigo de opinião é
habilmente construído por um autor que regula o sentido do seu texto, pois, ao recuperar
discursos que se remetem somente às medidas desprestigiadas de tais políticos, conduz o
enunciatário a constatar que Duda Mendonça realmente não deveria ter promovido a
campanha desses políticos e feito com que fossem eleitos, pois se trata de maus governantes.
Tratando-se da construção do discurso irônico nesse artigo de opinião, para que ele
seja compreendido e identificado, é preciso se considerar esses sentidos que permeiam o texto
e relacioná-los, pois assim é possível depreender o posicionamento do enunciador e identificar
os discursos absurdos que veicula – o qual, relacionado com discurso sério nele implicado,
constitui a ironia.
Posicionando-se contrariamente a Duda Mendonça, o enunciador, após retomar o
discurso da campanha política de Lula, com o bordão do “Xô, corrupção!”, remete-se à forma
como o publicitário se apresentou na CPI dos Correios. Ele afirma:
74
Curiosa figura do nosso tempo, esse Duda Mendonça. Tão emblemático de
sua categoria quanto Joãozinho Trinta do
75
a esse: Carlos Drummond de Andrade e Graciliano Ramos são artistas maiores, enquanto
Duda é o artista menor – aliás, nem é artista, como o enunciador mesmo afirma. O discurso
absurdo ainda se dá, pois a comparação feita entre tais personalidades é inusitada do ponto de
vista das semelhanças feitas: Drummond e Graciliano, ao contrário de Duda, defendiam o
ideário do respeito aos direitos dos cidadãos, questionando as mazelas sociais pelas quais o
povo brasileiro passava; já Duda, pelo o que se vê no artigo de opinião, é aquele que concorda
com a sujeição a qualquer partido político e a qualquer candidato, desde que lucre com isso.
Diante disso, vê-se que há uma relação entre um discurso absurdo, dito pelo enunciador, do
qual discorda; e um discurso sério, não-dito, mas implicado nessa relação entre vozes, o qual
apóia. Portanto, a ironia aí se instaura, servindo como mecanismo de avaliação à figura de
Duda Mendonça, mas de maneira implícita. Tal avaliação é feita por um autor habilidoso, que
veicula pontos de vista contraditórios, organizando o texto de tal forma que garanta a unidade
e a coerência de sentido. Mas para isso, exige-se que o enunciatário não tome ao “pé da letra”
o que é afirmado no enunciado, mas que relacione os sentidos que perpassam o texto,
entendendo que há um sentido implicado, outro, na comparação feita. Além disso, é
necessário um enunciatário capaz, ao menos, de recuperar quem foram tais autores, para
contrapô-los a Duda Mendonça, pois somente com essa relação de sentidos é que irá se
reconhecer a falta de similitude das personalidades, e, conseqüentemente, a ironia.
Mais adiante, o enunciador retoma o discurso da campanha publicitária de Lula em
2002, contrapondo-se às ações nela defendidas. Seu posicionamento é o de que tais atitudes
não passaram de um marketing instaurado por Duda Mendonça naquela campanha, já que na
prática pouco surtiram efeito. Referindo-se ao publicitário, o enunciador afirma:
Outro milagre foi incutir no eleitorado a noção de que o governo Lula seria
um primor de zelo, rigor e competência. Um anúncio da campanha de 2002
mostrava um grande escritório, com uma sucessão de escrivaninhas, onde
cérebros privilegiados estudavam cada pormenor da realidade nacional. Lula
passeava entre as mesas, com a desenvoltura do líder seguro e confiável,
dando tapinha nas costas de um, debruçando-se sobre o papel em que outro
trabalhava. Parecia a Nasa na véspera de lançamento espacial. Dava-se a
entender que o PT se preparava para o governo com idéias claras e soluções
na ponta da língua. Lula prometia lançar o foguete Brasil rumo ao futuro.
Hoje esse anúncio virou comédia. (TOLEDO, 2005h).
Já no início do excerto, vê-se uma afirmação da qual o enunciador discorda: em
decorrência do posicionamento que defende, percebe-se que o enunciador não contesta a
76
avaliação de que o governo de Lula seria “um primor de zelo, rigor e competência”.
(TOLEDO, 2005h). Relacionando tal afirmação ao contexto que subjaz ao texto, recuperam-
se, novamente, os problemas nos quais o governo de Lula estava envolvido, como o caso do
mensalão, a não concretização de fato de seus projetos sociais, etc., implicando em sua
afirmação o contrário do que disse: o governo Lula não é um primor de zelo e de
competência, como afirmou. Assim, estrategicamente o enunciador refere-se nesse texto
somente às falhas nas medidas tomadas durante o governo Lula, não recuperando ações
profícuas que possam ter sido feitas. Diante disso, vê-se a regulação de sentido que o autor
imprime ao texto, podendo ser considerado, ao utilizar a ironia (e também os discursos
reportados, vistos na seção 03), como uma “pseudo-relatividade” de sua voz, pois, ao mesmo
tempo em que ele ameniza sua crítica, não a afirmando diretamente no texto, ele constrói seu
posicionamento como se esse fosse irrefutável. Isso se dá pois ele recupera discursos e
sentidos que possam garantir a adesão do enunciatário ao que afirma, já que não chama ao
textos sentidos contrários à sua afirmação, que possam suscitar uma outra leitura. E, quando
porventura chama ao texto esses sentidos dos quais discorda, problematiza-os, contra-
argumentando-os.
Nesse trecho, então, percebe-se que em seu início há a instauração da ironia como
avaliadora da campanha política de Lula e do seu governo, pois o enunciador afirma no
enunciado algo do qual discorda e que para ele é absurdo (o governo Lula ser um primor de
zelo, rigor e competência), tendo, implicitamente um outro sentido o qual apóia e defende, o
de que esse governo é marcado por escândalos, como o da corrupção, o que o faz um governo
sem zelo e incompetente. O sentido ambíguo aí se instaura pela relação entre o dito e o não-
dito, levando a uma avaliação com um viés irônico.
A ironia se faz também pela comparação entre a campanha publicitária de Lula com as
ações da Nasa em véspera de lançamento, colocando em uma mesma instância sentidos
distintos, criticando Lula. Em nosso imaginário, figura a necessidade de extremo zelo,
competência, responsabilidade e habilidade de seus pesquisadores para enviar o homem ao
espaço. Ao afirmar que Lula, passeando dentre seus fictícios funcionários de governo em sua
campanha eleitoral, caracterizando um ambiente sério como o da Nasa, o enunciador
ridiculariza a atitude de Lula, contrapondo-se a ela. O enunciador afirma no enunciado algo
que, sob seu ponto de vista é absurdo, tendo um outro sentido na enunciação: o governo Lula
não se compara à Nasa em véspera de lançamento, pois, ao contrário do que afirma, esse
governo não tem idéias claras e soluções na ponta da língua. O que o publicitário monta,
77
então, seria uma farsa. Essa relação contraditória e ambígua de sentido instaurada pela ironia
é percebida quando se relaciona o posicionamento que o enunciador toma frente ao
acontecimento que recupera no texto, e, ainda, pela própria afirmação que faz no texto, de que
“Hoje esse anúncio virou comédia”. (TOLEDO, 2005h). O enunciador, ao imprimir o sentido
de comédia à campanha política de Lula, recupera os sentidos negativos que perpassam esse
governo, levando o enunciatário à percepção de que seu posicionamento é incontestável,
como se fosse uma prova: recuperando acontecimentos escandalosos noticiados em relação ao
governo Lula, o enunciador propõe-se a mostrar para o enunciatário que sim, hoje aquele
anúncio é uma comédia, já que tal governo se deixou contaminar pela corrupção e não tem
mostrado ações consistentes de mudanças sociais. Então, ao comparar a Nasa à proposta de
governo de Lula, o enunciador instaura aí a ironia, já que é posto no enunciado um discurso
absurdo para o enunciador, que assim o considera, tendo na enunciação um outro sentido,
contrário ao que é dito. E essa relação de vozes leva a uma ambigüidade de sentido, ao humor
e à crítica, caracterizadores da ironia. Percebe-se, então, que pelas pistas deixadas ao longo do
texto o enunciador sinaliza para o enunciatário a construção da ironia, avaliando as
personalidades recuperadas no texto.
Por isso, temos nesses artigos de opinião um autor habilidoso e sutil para expor seu
posicionamento, pois ele não o afirma diretamente no enunciado, mas deixa pistas para
compreendê-lo, que ao mesmo tempo veiculam uma crítica aguda ao alvo em questão. Além
disso, ele é estrategista, pois recupera sentidos e discursos relacionando-os de tal forma que
possam levar a um efeito de constatação da sua opinião.
Podemos perceber nos artigos de opinião de Toledo que a ironia é construída
principalmente por meio de comparações inusitadas, com pouca correspondência semântica, e
também por meio de adjetivos, os quais dão um sentido de desdém ao objeto a que se refere.
Ainda, para que ela seja interpretada, é preciso que sejam relacionados os discursos e sentidos
inter, intra e extra-textualmente, não sendo feita, portanto, somente pontualmente no texto,
mas sim, contaminando-o.
Além disso, a ironia funciona nesses textos como um mecanismo amenizador da voz
julgadora do enunciador, já que não a crítica não é feita diretamente no enunciado, como se
estivesse pronta, dada. Para compreendê-la, é preciso que o enunciatário a reconheça e
também a interprete, relacionando o dito e oo-dito, implicado na enunciação. Entretanto, a
avaliação feita por meio da ironia é aguda e engenhosa, tratada pelo enunciador como
categórica. Por isso, ela se trata de um mecanismo que “pseudo-relativiza” a voz do
78
enunciador, pois ao mesmo tempo em que ele é sutil para expor sua opinião, essa é
peremptória. A ironia funciona então, como afirma Hutcheon (2000), como uma arma dentre
do texto, pois ao mesmo tempo em que ameniza a voz julgadora do enunciador, não deixa de
instaurar uma voz avaliadora aguda dentro dele.
Portanto, conforme nos propusemos mostrar, a ironia acontece por uma relação entre
vozes, podendo ser caracteriza como um mecanismo dialógico, já que trabalha com o jogo
entre o dito e o não-dito e também com a relação entre enunciador e enunciatário. Além do
mais, ela ocorre pois se dispõe no texto de elementos histórico-sociais que permitem
reconhecer o discurso absurdo que é veiculado e o discurso sério nele implicado.
79
3 DISCURSOS DE OUTREM: UMA INTER-RELAÇÃO DE VOZES NO ARTIGO DE
OPINIÃO
O discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação,
mas é, ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação
sobre a enunciação. (BAKHTIN, 2004, p. 144, grifo do autor).
Como discutido na primeira seção, o dialogismo é o modo de funcionamento real da
linguagem. Para o Círculo de Bakhtin, em qualquer enunciado há pelo menos duas vozes, isto
é, duas posições: a do enunciador e aquela em oposição à qual ele se opõe. Sendo assim, o
enunciado não existe fora das relações dialógicas; nele estão sempre presentes ecos e
lembranças de outros enunciados com os quais ele pode concordar ou não. O enunciado é,
então, “a réplica de um diálogo, pois cada vez que se produz um enunciado o que se está
fazendo é participar de um diálogo com outros discursos”. (FIORIN, 2006, p. 21). Ao ser
pronunciado em um ato único e singular e veiculando um ponto de vista, o enunciado solicita
uma resposta, uma réplica, a qual pode ser de concordância ou não ao que é dito. Assim, o
caráter dialógico da linguagem mostra-se também pela presença de um enunciatário, o que a
caracteriza “tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para
alguém”. (BAKHTIN, 2004, p. 113, grifo do autor).
Essa concepção de dialogismo sucintamente apresentada e enfocada no trabalho como
um todo trata-se do que se pode chamar de “dialogismo constitutivo” (FIORIN, 2006, p.32),
uma vez que oferece uma perspectiva sobre a constituição da linguagem, enfatizando seu
caráter ideológico e dialógico. Segundo Fiorin (2006), além desse tipo de dialogismo, que é
intrínseco à linguagem, à palavra, há ainda, nos estudos de Bakhtin, um dialogismo que se
caracteriza pela incorporação de outras vozes no enunciado pelo enunciador – e que também
se apóia no caráter dialógico da linguagem. São maneiras mais explícitas e visíveis de se
veicular outras vozes no enunciado, as quais podem ser abertamente e nitidamente citadas no
texto, usando-se algumas marcas nele (como as aspas), ou internamente dialogizadas, não
havendo uma separação nítida entre a voz citada e a voz que a cita. Há, portanto, a presença
da palavra de outrem nos enunciados, estabelecendo uma relação ativa entre o discurso que o
reporta e o reportado.
80
Assim, por meio das duas concepções de dialogismo do Círculo de Bakhtin distintas
por Fiorin (2006), entendemos que o dialogismo ocorre em todos os momentos de nossas
atividades comunicativas, pois se trata da condição de existência do enunciado; entretanto,
não se realiza somente em um processo de interação verbal entre enunciador e enunciatário,
mas também pela interação entre textos, entre discursos.
Nos artigos de opinião em análise, verifica-se que em todos eles o enunciador recorre a
outros dizeres, a outros discursos, elucidando, por meio dessa estratégia, o seu
posicionamento, a sua voz. Utilizados, em sua maioria, como um recurso argumentativo para
dar um efeito de constatação ao posicionamento do enunciador, os discursos reportados
chamados ao texto, trata-se de um procedimento de transmissão valorativa, pois o autor desses
textos os escolhe propositalmente para assegurar o ponto de vista que defende, e, além disso,
ao fazer tal escolha dentre uma gama de possibilidades de discursos a que poderia recorrer, já
está implicando seu juízo de valor ao enunciado. Vê-se, então, que a escolha dos discursos
reportados já indica os valores defendidos e repudiados pelo enunciador (como a ética, por
exemplo, a qual defende), assim como o posicionamento assumido diante deles. Os discursos
reportados, nesse sentido, vêm caracterizar o estilo dos textos de Toledo, além, claro, do uso
da ironia e de adjetivos, vistos em seções anteriores. Assim, como mostra Bakhtin, os
discursos, que são dialógicos, também podem ser constituídos por outros dizeres, por outras
vozes de uma maneira mais explícita, configurando o intenso processo de confronto entre
es de 0 TD/itos característico da linguagem.
Ao analisarmos os 25 (vinte e cinco) artigos de opinião propostos, verificamos que o
enunciador recupera variados tipos de discursos, dos quais fizemos uma classificação.
Ressaltamos que tal classificação é relativa, uma vez que não se baseia em pressupostos
teóricos, mas em nossas considerações quanto à autoria e o conteúdo dos discursos
recuperados. Sendo assim, chamamos de discurso da “personagem-tema”, o discurso da
personalidade que é tratada no texto como tema da discussão e também os próprios temas
referidos nos artigos de opinião, quando não há uma personalidade específica sendo abordada,
como o caso do referendo sobre a venda de armas de fogo no Brasil. Já os discursos que se
referem a personalidades culturais, políticas e aqueles publicados em algum meio de
comunicação, como jornais ou revistas, tratamos como “discursos noticiados”, uma vez que,
tornaram-se públicos e de conhecimento em âmbito nacional, tendo outra autoria que não a da
“personagem-tema”. Quanto aos discursos que se referem a livros ou filmes, tratamos como
“discursos da arte”, uma vez que se caracterizam por terem uma linguagem própria,
81
trabalhada, e abordarem variadas questões de uma maneira peculiar. E os discursos que se
referem a alguma instituição, tratamos como “discursos institucionais”.
Cada um desses discursos é inserido em um contexto específico (o de cada artigo de
opinião em particular), referindo-se ao tema abordado no texto. São utilizados, em sua
maioria, para sustentar a questão chamada ao texto e, assim, dar o efeito de constatação à tese
do autor. As formas de tratamento dadas a esses discursos configuram-se, em sua maioria,
pelo uso das aspas, embora haja o uso também do estilo pictórico: pelo recursos dos discursos
reportados, ao posicionar-se diante de alguma questão política ou social, tanto do Brasil
quanto do mundo, chamadas no texto, expõe seu posicionamento crítico e avaliador, mas não
categorizando essa sua voz. Ao dar voz a um outro, o qual é conhecido e/ou respeitado em
âmbito nacional, desvencilha-se de um dizer categórico, uma vez que é o outro quem diz,
dando, ainda, um efeito de irrefutabilidade ao que é dito. Nos itens a seguir desta seção,
enfocaremos nossa discussão nas formas de transmissão desses discursos e em sua
importância para a configuração do posicionamento do enunciador.
3.1 Os discursos reportados
Ao abordar a linguagem na vida cotidiana, Bakhtin trata, dentre os estudos que
envolvem a língua, a sintaxe como o campo que melhor explora a língua em suas condições
reais de fala. Não desconsidera a importância dos estudos da morfologia e da fonologia, mas,
em razão da perspectiva sociológica com a qual se debruça diante da língua, entende que os
problemas de sintaxe tratam a língua não como uma abstração, mas sim, em seu potencial de
concretização, como um “corpo vivo da enunciação” (BAKHTIN, 2004, p. 140). Mesmo
assim, admite que “o elemento suplementar que faz [da] palavra uma enunciação completa
permanece inacessível a todas as categorizações ou determinações lingüísticas, quaisquer que
sejam”. (BAKHTIN, 2004, p. 140). Assim, ao se estudar a oração completa, mesmo que haja
os elementos constituintes para a sua atualização, não há, entretanto, uma enunciação, mas
sim, elementos que podem ser descritos e que contêm potencial de fala.
82
Ao refletir sobre o discurso citado em seus estudos, Bakhtin dá importância aos
problemas de sintaxe que envolvem esse processo, enfatizando as relações estabelecidas entre
o discurso citado e aquele que o cita. Para Bakhtin, há uma interação dinâmica entre esses
discursos, e eles somente existem e só se formam por meio dessa inter-relação. Há ainda uma
interação entre sujeitos, uma vez que há uma orientação para uma terceira pessoa, à qual o
enunciado será transmitido, reforçando a influência das forças sociais organizadoras do texto.
A língua, por essa perspectiva, não se trata de um sistema abstrato, mas antes,
caracteriza-se por ser um fenômeno social da interação verbal. Nela ocorre um embate entre
valores, entre discursos e também entre sujeitos. Esses, em relação dialógica, caracterizam a
linguagem como um fato social, sendo a expressão exterior do discurso interno não um
processo monológico, mas sim, um produto da interação social. Assim, “A atividade mental
do sujeito constitui, da mesma forma que a expressão exterior, um território social”.
(BAKHTIN, 2004, p. 117). O mundo interior, portanto, adapta-se às possibilidades que o
mundo exterior oferece para sua expressão, importando a quem será transmitido o discurso,
quais serão transmitidos e também o contexto de produção. Ao inserir discursos de outrem em
um texto, essas considerações devem ser privilegiadas, uma vez que, para Bakhtin, a reação
da palavra à palavra é um processo que envolve a língua em sua unidade real, devendo a
palavra alheia ser tratada como um objeto palpável. Nos artigos de opinião, percebe-se que
esses elementos caracterizam-se por um enunciatário contemporâneo, que recupera os
sentidos veiculados pelo enunciador (sentidos esses regulados pelo enunciador, de certa
forma), inserido em um contexto também contemporâneo, perpassando pelo suporte da revista
Veja. Quanto aos discursos recuperados, são aqueles chamamos de “discurso noticiado”,
como os de Nelson Rodrigues, Zagallo, deputados em geral, por exemplo, que são conhecidos
em âmbito nacional; também discursos das personalidades recuperadas no texto, tendo-as
como o objeto-tema da discussão, denominados discurso da “personagem-tema”; e ainda são
recuperados “discursos da arte” e “discursos institucionais”. A recuperação desses discursos
faz com que o seu dizer sofra um efeito de irrefutabilidade, uma vez que dá voz a outros
saberes, a outras vozes, as quais têm um peso no ideário nacional.
57
Para Bakhtin, o uso da citação trata-se de uma recepção ativa do discurso de outrem. O
enunciador, em relação dialógica com o enunciatário, escolhe discursos para transmitir,
estabelecendo uma relação ativa com eles, uma vez que os integra em seu discurso,
dialogando com eles, e, ao mesmo tempo, conservando sua autenticidade. Os mecanismos de
57
A classificação desses discursos está na página 79 desta seção.
83
apreensão e de transmissão do discurso de outrem são, portanto, sociais, pois o enunciador
adapta-os estruturalmente e gramaticalmente ao seu discurso, considerando as estruturas
gramaticais da língua e, ainda, se “têm fundamento na existência econômica de uma
comunidade lingüística dada”, se estão “dentro dos limites das formas existentes numa
determinada língua” que servem para transmitir o discurso. (BAKHTIN, 2004, p. 146/147).
Assim, há uma influência reguladora para a apreensão e transmissão dos discursos de outrem,
como esquemas padronizados, os quais surgiram em decorrência do uso e da função da língua
socialmente.
Orientado para uma terceira pessoa, o discurso citado, o qual tem uma significação
social, ao ser recuperado em um outro discurso, tem seu conteúdo conservado e também
alguns elementos de sua estrutura primitiva. Assim,
A enunciação do narrador, tendo integrado na sua composição uma outra
enunciação, elabora regras sintáticas, estilísticas e composicionais para
assimilá-la parcialmente, para associá-la à sua própria unidade sintática,
estilística e composicional, embora conservando, pelo menos sob uma forma
rudimentar, a autonomia primitiva do discurso de outrem, sem o que ele não
poderia ser completamente apreendido. (BAKHTIN, 2004, p. 145).
As formas de citação do discurso de outrem para Bakhtin, a título de organização, são
consideradas sob duas orientações, as quais se caracterizam pela suas formas de apreensão e
de transmissão. Uma delas é a que ele denomina estilo linear. Tal estilo caracteriza-se pela
criação de contornos externos nítidos ao discurso citado, preocupando-se com a conservação
de sua autenticidade de uma maneira visível. As formas lingüísticas são utilizadas com a
função de isolar o discurso citado, atingindo, o discurso citado, “uma sobriedade e uma
plasticidade máximas” (BAKHTIN, 2004, p. 150). Já o outro estilo é o estilo pictórico. Esse
se caracteriza pela atenuação dos “contornos exteriores nítidos da palavra de outrem”.
(BAKHTIN, 2004, p. 150). Nele, o discurso citado é absorvido no discurso que o cita,
apagando-se as fronteiras visíveis que o marcam. Esse apagamento faz com que se dê um
“colorido”
58
ao discurso citado, já que ele passa a integrar o discurso do enunciador, sendo
perpassado pelo estilo do autor e pela percepção que este tem do discurso que recupera.
58
Essa característica do estilo pictórico é apresentada por Bakhtin em Marxismo e Filosofia da Linguagem.
(1994).
84
Com base nos 25 artigos de opinião de Toledo analisados, percebe-se que quando o
enunciador chama ao textos outros discursos (quaisquer que sejam) e os cita, o estilo linear é
o mais recorrente, mesmo havendo o uso também do estilo pictórico. A delimitação visível do
discurso de outrem (estilo linear) é feita pelo uso das aspas e de recursos lingüísticos que
compõem esse tipo de citação em particular. Os exemplos abaixo ilustram essa delimitação do
discurso de outrem.
Discurso da arte:
Artigo de opinião “Nos labirintos do poder”
59
Se um ministro desejasse introduzir modificações em sua área, era mister
fazer o imperador crer que a idéia tinha nascido de seu próprio e privilegiado
cérebro. "Para ser sincero, devo admitir que o bondoso amo apreciava mais
os maus ministros", conta um depoente. Assim, ele ganhava chance "de se
destacar, pelo contraste". Era do agrado do imperador, por outro lado, que
os ministros trabalhassem em favor dos próprios patrimônios. "Não consigo
me lembrar de um só caso em que o gracioso monarca tenha anulado uma
promoção ou expulsado alguém do palácio por corrupção", diz outro
depoente. A ordem era: "Corrompam-se à vontade, desde que permaneçam
leais a mim!.(TOLEDO, 2005k, grifo nosso).
Artigo de opinião “ “Se não comparecerdes...””
60
A primeira é a busca da elegância. O "vós" faz bonito em textos como o
célebre soneto de Bilac: "Ora (direis) ouvir estrelas! Certo/ Perdeste o
senso! E eu vos direi no entanto/ Que, para ouvi-las, muitas vezes desperto/
E abro as janelas, pálido de espanto". (TOLEDO, 2005r, grifo nosso)
Discurso da personagem-tema:
Artigo de opinião “A mais estonteante das quartas-feiras”
61
Pouco antes ele tinha sido cassado por seus pares. E comemorava-se. Antes,
Jefferson se despedira dos jornalistas dizendo: "Esta é a última semana de
59
Vide Anexo K.
60
Vide Anexo R.
61
Vide Anexo L.
85
inverno. A primavera está chegando". Um enigmático fecho, de poéticas
ressonâncias, para uma ópera-bufa. (TOLEDO, 2005l, grifo nosso).
Artigo de opinião “Tudo o que é sólido derrete ao sol dos trópicos”
62
A mais contundente intervenção do comunista Aldo Rebelo no comando de
uma sessão da Câmara dos Deputados, até agora, foi uma invocação a Deus.
"Por favor, parem com isso, pelo amor de Deus", conclamou, enquanto os
deputados Arlindo Chinaglia e Inocêncio Oliveira ameaçavam trocar socos
no plenário. (TOLEDO, 2005p, grifo nosso).
Discurso noticiado:
Artigo de opinião “A democracia americana ensaia sua volta”
63
O governo Bush já tinha a lamentar ter encontrado no Iraque uma repetição
da tragédia do Vietnã. Ao Vietnã, somou-se agora um Watergate: um
escândalo que ameaça fazê-lo em estilhaços. Enquanto o governo se debate
entre um problemão e outro, salvam-se as instituições. "Quatro anos depois
do 11 de Setembro, começamos a ter nossa democracia de volta", escreveu o
colunista Jonathan Alter, da revista Newsweek. (TOLEDO, 2005s, grifo
nosso).
Artigo de opinião “O melão tentador e outras histórias”
64
Um comercial de televisão de pouco tempo atrás mostrava Ronaldinho
Gaúcho, ainda menino, metido num uniforme de juiz e de apito na boca. "Eu
não queria ser jogador, queria ser juiz", dizia ele. Até que um dia chutou
uma lata de refrigerante e descobriu sua verdadeira vocação. (TOLEDO,
2005n, grifo nosso).
Discurso institucional:
Artigo de opinião “A farsa cruel de um ponto de exclamação”
65
Eis um modo enviesado de ler a Constituição. Ali está escrito (artigo 37,
VII) que o direito de greve dos funcionários públicos “será exercido nos
termos e nos limites definidos em lei específica”. Opor obstáculos à
62
Vide Anexo P.
63
Vide Anexo S.
64
Vide Anexo N.
65
Vide Anexo V.
86
materialização da lei específica é desrespeitar o texto constitucional.
(TOLEDO, 2005v, grifo nosso).
Artigo de opinião “ “Se não comparecerdes...””
66
O texto vai em sua conturbada e sofrida literalidade:
"Para dar andamento ao processo do Benefício em referência, solicito-vos
comparecer, no endereço: Av. Santa Marina 1217, no horário de 07:00 às
15:00, para que as seguintes exigências sejam cumpridas:
- retirar a carteira profissional que se encontra em seu processo para que
empregador atualiza as alterações de salarios em vista da ultima anotação
foi 1990 e o salario de contribuição esta divergente da ultima alteração
(TOLEDO, 2005r, grifo do autor).
Com base nos exemplos citados e também na análise dos 25 artigos de opinião,
percebe-se que o enunciador marca no texto, em sua maioria, o discurso de outrem por meio
de aspas. Além disso, ao introduzir esses discursos ou após citá-los, utiliza-se de verbos do
campo semântico que se refere a “falar sobre algo”, como “proferir”, “escrever”,
“conclamar”, “dizer”, entre outros. Assim, esses elementos lingüísticos além de darem um
contorno visível ao discurso citado, caracterizam a forma composicional e sintática utilizada
pelo enunciador, configurando o estilo desses textos. Além disso, ao recuperar discursos de
outrem e marcá-los nitidamente no texto, o enunciador acaba desvencilhando-se de um dizer
categórico, pois ao mesmo tempo em que os utiliza para dar garantia ao que é dito, não o
assume como sendo seu: é um outro quem diz; e esse outro, por fazer parte da temática tratada
no texto – mesmo que não seja a “personagem-tema” – trata-se de alguém ou algo que impõe
respeito, sustentando sua argumentação. Entretanto, ao recuperar discursos de outrem,
amenizando a afirmação de sua crítica, o enunciador não só a sustenta, como também faz dela
algo irrefutável. Mais do que dar credibilidade ao dito, ao recorrer aos discursos reportados
faz com que esse seja tratado como inquestionável, e um dito que não se questiona, adquire
um peso absoluto. Assim, acreditamos que o autor simula no texto uma “pseudo-relatividade”,
pois utiliza estratégias que amenizam sua voz – já que dá voz a um outro (no caso dos
discursos reportados) – mas construindo-o, ao mesmo tempo, como algo irrefutável.
Como dito, além do estilo linear, o autor utiliza também o estilo pictórico como forma
de apreensão de discursos de outrem. O faz ao recuperar todos os tipos de discursos citados
(“discursos da personagem-tema”, “discursos noticiados”, “discursos da arte” e “discursos
66
Vide Anexo R.
87
institucionais”). Mesmo sendo o estilo linear o mais recorrente, o uso do estilo pictórico
também ameniza a crítica do enunciador, pois as vozes são diluídas uma na outra, não
havendo contornos nítidos entre a voz do enunciador e a voz citada. Alguns artigos de opinião
em que isso pode ser observado são:
Discurso da arte
Artigo de opinião “Sobre causas, efeitos e trepar em árvores”
67
Notícias de Paris... O povo pobre se inquieta Notícias de Paris... O povo
pobre se inquieta, o governo treme. Não, não se trata da revolta dos
queimadores de carros, é outra, anterior, aquela, o leitor se lembra – a da
Bastilha, da guilhotina, da execução do rei. As notícias de Paris causam
excitação em Ombrosa, cidade italiana à margem do Mar da Ligúria, onde
um audacioso barão, tomado pela revolta contra o autoritarismo paterno e
as convenções sociais em geral, decidiu, no dia 15 de junho de 1767,
quando tinha 12 anos, refugiar-se em cima das árvores, e de lá nunca mais
desceu, passando uma vida inteira a pular de galho em galho e
desenvolvendo habilidades que lhe permitiram comer, estudar, escrever,
caçar, lutar e amar sem jamais pôr os pés no solo.
Quem leu já sabe do que se está falando: o romance O Barão nas Árvores,
do italiano Italo Calvino. (TOLEDO, 2005u, grifo nosso).
Discurso da personagem-tema:
Artigo de opinião “Leoa de um lado, gata distraída de outro”
68
Renilda se disse "um pouco leoa" quando se trata de defender a família.
Exibiu avassaladora devoção aos filhos e ao marido. E disse que proibia
terminantemente encontros políticos ou de negócios no sagrado recesso do
lar. (TOLEDO, 2005e, grifo nosso).
Discurso noticiado:
Artigo de opinião “O “nosso” Delúbio, santo, mártir, herói”
69
O presidente do PT, Ricardo Berzoini, disse que a pessoa a quem Lula se
refere, quando se diz traído, como já dissera tempos atrás e repetiu no Roda
67
Vide Anexo U.
68
Vide Anexo E.
69
Vide Anexo T.
88
Viva, é Delúbio. Não, mil vezes não! Se fosse, Lula não o chamaria de
"nosso". (TOLEDO, 2005t, grifo nosso).
Discurso institucional:
Artigo de opinião “Anedota de brasileiro”
70
Para quem não está entendendo, voltemos aos pontos de partida desta
história. No dia 22 de dezembro de 2003, foi sancionada pelo presidente
Lula a Lei nº 10 826, apelidada de Estatuto do Desarmamento. Esse texto,
regulamentado pelo Decreto nº 5 123, de 1º de julho de 2004, determinou,
ao cabo de longos e acirrados debates no Congresso, quem pode possuir ou
portar armas, quando, onde e em que condições. O conjunto de disposições
então adotado não desmerece o nome de Estatuto do Desarmamento.
Dificultou, de modo considerável, a aquisição e o uso de armas de fogo no
país, para quem quer fazê-lo pelos meios legais. (TOLEDO, 2005q, grifo
nosso).
Percebe-se por esses exemplos que o estilo pictórico, assim como o estilo linear,
desvencilha a voz do enunciador de um dizer absoluto. Ao se referir, por exemplo, ao
referendo sobre a venda de armas de fogo no Brasil (artigo de opinião “Anedota de brasileiro”
(TOLEDO, 2005o)), o enunciador dilui em sua voz a voz institucional, misturando-as, não se
distinguindo nitidamente no texto qual seja a voz do enunciador e a voz recuperada. Dessa
forma, instaura-se no texto um autor habilidoso que relaciona sentidos e dizeres de forma a
dar um efeito de relatividade à sua voz autoral, mas que é, ao mesmo tempo, construída como
se fosse algo irrefutável. O que se defende no texto é tratado pelo autor como adequado e
pertinente, podendo-se se sustentar em outros saberes e dizeres de relevância. Assim, ao
recuperar habilmente discursos, o enunciador os coloca em relação de sentido com aquilo que
defende no texto, levando suas afirmações a um efeito de constatação, como algo
inquestionável. Entretanto, de acordo com a perspectiva bakhtiniana que adotamos, sabemos
que todo enunciado está aberto a múltiplas leituras e respostas. Por isso, não se pode afirmar
que necessariamente o enunciatário irá concordar com a opinião defendida no texto; ele pode
sim, ao contrário, discordar dela e contestá-la. Então, o sentido de irrefutabilidade dado ao
discurso dos textos de Toledo é dado pelo próprio autor: ele articula seu texto com certas
estratégias que o levam a um efeito de constatação. Mas, mesmo diante disso, o enunciatário
pode questioná-lo, dando um outro sentido que não o desejado pelo texto.
70
Vide Anexo Q.
89
Como apresentado nos exemplos, percebe-se, então, que o modo de apreensão do
discurso de outrem em Toledo se faz por ambos os estilos de citação: o linear e o pictórico.
Entretanto, observa-se que dentre os 25 artigos de opinião analisados, em apenas 11 há o
estilo pictórico como forma de citação do discurso reportado, enquanto que o estilo linear
pode ser visto em 24 artigos de opinião, caracterizando o estilo do autor. A tabela a seguir
mostra a quantidade de artigos de opinião (dentre os 25 analisados) em que há o uso do estilo
linear e do estilo pictórico, relacionando-os aos tipos de discurso que são recuperados.
Tabela 1. Formas de apreensão dos discursos
Formas de apreensão dos discursos
Tipos de discurso Estilo linear Estilo linear e
pictórico
Estilo pictórico
Discurso da
“personagem-tema”
11 artigos de opinião 02 artigos de
opinião
03 artigos de
opinião
Discurso noticiado
14 artigos de opinião 05 artigos de
opinião
01 artigo de
opinião
Discurso da arte
05 artigos de opinião 03 artigos de
opinião
02 artigos de
opinião
Discurso
institucional
02 artigos de opinião 01 artigo de
opinião
______
Observa-se pela Tabela 1 que não importa qual tipo de discurso seja recuperado nesses
textos, ambos estilos são utilizados nos artigos de opinião de Toledo para veicular seu
posicionamento não-categoricamente; porém, o estilo linear faz-se mais freqüente. Nesse
sentido, por meio dos discursos reportados, o enunciador elucida sua voz julgadora frente ao
tema tratado no texto tanto deixando marcas nítidas para distinguir a voz autoral da voz
recuperada no texto quanto as colorindo com seu estilo, desvencilhando-se de um dizer
absoluto. Sua voz julgadora é modalizada pela citação do discurso de outrem, sustentando seu
posicionamento.
Na Tabela 1, observa-se ainda que, ao se fazer uma somatória entre os artigos de
opinião em cada um dos estilos e também em cada tipo de discurso, não totalizam 25 artigos
90
de opinião – número de textos analisados. Isso se dá, pois, em um mesmo artigo de opinião, o
enunciador não recorre a apenas um tipo de discurso e também não recorre a apenas um estilo
de citação. Há uma mistura entre eles, o que leva à percepção de que não há uma exigência
em cada artigo de opinião sobre qual tipo de discurso utilizar e também qual estilo recorrer.
Isso vai depender do posicionamento do enunciador frente ao tema que recupera no texto e
também da forma usada para garantir a compreensão do seu julgamento e a ênfase que dá a
ele.
No item a seguir desta seção, trataremos dessas formas de apreensão do discurso de
outrem nos artigos de opinião de Toledo e o papel que cada uma delas desempenha no texto
para configurar o posicionamento do enunciador frente ao tema de que aborda.
3.2 Uma voz julgadora não categórica
Ao nos referirmos aos estudos de Bakhtin acerca do diálogo, observa-se que seu foco
não se trata do diálogo face-a-face; considera esse um dos espaços em que se pode observar a
interação das vozes sociais – as relações dialógicas. Para ele, o que importa são as relações de
sentido que se estabelecem entre enunciados no todo da interação verbal. Índices de valor são
relacionados, necessitando que o material lingüístico entre em uma esfera do discurso,
transformando-se em enunciado, fixando um sujeito social. Somente a partir do encontro de
posições avaliativas é que é possível estabelecer com a palavra de outrem relações que gerem
significações responsivas. Portanto, ao abordar o diálogo como uma interação verbal, havendo
a recuperação de discursos de outrem, o Círculo de Bakhtin entende as relações dialógicas
como espaços de tensão entre enunciados, não significando sempre consenso, mas sim, um
tenso combate dialógico. Inclusive a responsividade se faz no ponto de tensão deste dizer com
outras vozes sociais. Aceitar incondicionalmente um enunciado é também, implicitamente ou
explicitamente, recusar outros enunciados (outras vozes sociais) que podem se opor
dialogicamente a ela. Assim, o diálogo trata-se de uma “guerra” entre discursos, que podem
ser aceitos ou não.
91
Por concebermos a linguagem como predominantemente dialógica, ao tratarmos da
recuperação e do tratamento de discursos de outrem nos artigos de opinião, entendemos que
os enunciados são repletos de enunciados de outros; o outro aparece no enunciado por meio
da expressividade, da estrutura lingüística e do tom valorativo com que é assimilado,
reestruturando ou modificando o já dito, o já percebido. Percebe-se, então, que “as palavras
não pertencem a ninguém e não trazem somente um valor, pois qualquer enunciador pode se
apropriar de um enunciado alterando seu sentido ou acrescentando novos significados”.
(CAMPOS, 2003, p. 24). Assim, a recuperação de discursos de outrem não se explica como
um reflexo subjetivo-psicológico – uma vez que o contexto social de produção e o
enunciatário com os quais se articula são considerados – mas antes, uma atitude ativa diante
de discursos. Além disso, as formas usadas para fazer a citação de discursos de outrem
refletem as tendências sociais de uma determinada época e cultura, sendo então, socialmente
orientadas.
Nos textos em análise, o enunciador, ao recuperar discursos de outrem, posiciona-se
responsivamente diante deles, dando-lhes um novo sentido, uma vez que estão em um novo
contexto e perpassados por uma avaliação. Tal avaliação mostra sua voz julgadora e
avaliadora diante de acontecimentos contemporâneos recuperados no texto, sendo os
discursos reportados, portanto, um procedimento de transmissão valorativa. Entretanto,
através de um jogo dialógico com discursos de outrem, diz sem assumir peremptoriamente o
que é dito. Ele recupera discursos dos próprios “personagens-tema”, ou mesmo de
personalidades culturais ou políticas, e também discursos da arte e institucionais, para
elucidar sua posição, e, ao mesmo tempo, desvencilhar-se de um dizer absoluto, de
partidarizar seu julgamento, pois dá voz a um outro (não é ele quem diz, mas um outro). Suas
críticas e indignação são construídas, então, por meio de uma voz autoral não exclusiva, que
se nutre de discursos de outrem, os quais estão em relação dialógica com a proposição que
defende no texto. Ao recuperar esses discursos, o enunciador, além de recorrer à memória
discursiva do enunciatário, dá um efeito de credibilidade ao que é dito, já que são empregadas
pelo enunciador palavras atribuídas ao próprio sujeito questionado ou reconhecidas como de
âmbito público. Entretanto, acreditamos que o autor, ao recorrer a esta estratégia dos
discursos de outrem, simula no texto desvencilhar-se de um dizer categórico, já que recupera
discursos que dão sustentação à sua voz, considerando-a um dizer irrefutável, como uma
constatação. Dessa maneira, sua voz não é totalmente relativizada no texto, mas sim, “pseudo-
relativizada”, pois a estratégia dos discursos reportados confere a ela uma aparente
92
amenização – já que se dá voz a um outro – mas que é, ao mesmo tempo, mostrada como algo
irrefutável, com um peso absoluto.
Quanto ao tratamento dado ao discurso de outrem nos artigos de opinião de Toledo,
verifica-se que faz-se ora por uma contestação ao discurso recuperado, ora por uma
confirmação, o que o caracteriza por não ter uma única tomada de posição frente ao discurso
de outrem. Cada um desses tratamentos dependerão do tema abordado no texto e também da
opinião do enunciador frente a ele, veiculada no texto como um todo: ao mesmo tempo em
que contesta algum discurso da “personagem-tema” em um artigos de opinião, pode
concordar com um outro discurso de mesma autoria no mesmo texto ou em outro, por
exemplo.
Entretanto, mesmo o enunciador não tendo apenas um tipo de posicionamento frente
ao discurso que recupera, pode-se observar nos artigos de opinião que algumas formas de
tratamento são mais recorrentes que outras para cada tipo de discurso, o que vem caracterizar
o estilo do autor e sua tomada de posição. Mas, mesmo assim, todas as formas de tratamento,
independente de quais sejam, são utilizadas com um mesmo objetivo: problematizar o tema
tratado, sustentando a opinião do autor, conferindo-lhe um peso de irrefutabilidade. Isso se dá
pois, o enunciador, desde quando recupera esses discursos, quanto ao posicionar-se diante
deles e problematizá-los no texto, deixa entrever sua opinião, pondo-se a prová-la e sustentá-
la por meio desses outros dizeres e saberes.
Para efeito de organização das características do estilo dos textos em relação aos
discursos reportados, apresentamos nos itens a seguir quais as formas de tratamento dadas a
cada um dos tipos de discursos chamados ao texto, classificados no início desta seção.
3.2.1 O discurso da “personagem-tema”
Como já visto, consideramos o “discurso da personagem-tema” aquele cuja autoria
refere-se tanto à personalidade tratada como tema de discussão do texto quanto ao próprio
tema em si, quando não há uma pessoa física o representando, como o caso da greve nas
universidades públicas brasileiras.
93
Verificando as formas de tratamento aos discursos de outrem nos artigos de opinião
analisados, observou-se que o enunciador, ao recorrer ao discurso da “personagem-tema”,
utilizando tanto o estilo linear, quanto o estilo pictórico, assume, principalmente, a postura de
contestação ao que é dito pelo personagem tratado no texto. Dentre os 11 artigos de opinião
em que há a citação do discurso da “personagem-tema” com o uso das aspas somente como
forma de delimitação da voz do outro (estilo linear), 07 são os artigos de opinião em que o
enunciador se posiciona somente contra o que é dito por esse “personagem”. Esses artigos
são:
Anexo C: “O futebol nas malhas do subdesenvolvimento”
Anexo F: “Sapos, desculpas e proxenetas”
Anexo L: “A mais estonteante das quartas-feiras”
Anexo N: “O melão tentador e outras histórias”
Anexo O: “O duplo estrago do bispo-bomba”
Anexo Q: “Anedota de brasileiro”
Anexo X: “Perón, Bolívar, Dirceu, Aldo, Tevez etc.”
Dentre os 11 artigos de opinião, em 03 o enunciador ao mesmo tempo em que discorda
de algum discurso do personagem marcado pelas aspas, concorda com outro de mesma
autoria, mas sempre para problematizá-los diante do contexto em que se insere. Esses artigos
de opinião são:
Anexo A:Glória e desdita de um dono de butique”
Anexo B:Nhô Lula e a tentativa do último milagre”
94
Anexo P: “Tudo o que é sólido derrete ao sol dos trópicos”
E em 01 artigos de opinião o enunciador somente concorda com o discurso recuperado
da “personagem-tema”, marcando sua delimitação com o uso das aspas, que é o artigo de
opinião “Perón, Bolívar, Dirceu, Aldo, Tevez etc” (TOLEDO, 2005x).
Sendo assim, mesmo o enunciador tendo posturas distintas frente aos discursos das
“personagens” que recupera, a contestação a eles se faz mais característica. Isso se deve, pois,
neles, o enunciador critica e avalia essas “personagens”, problematizando acontecimentos
referentes a elas. A contestação dos seus próprios discursos vem enfatizar o posicionamento
do enunciador, já que são dizeres atribuídos às personalidades abordadas e às próprias
temáticas.
Em relação ainda ao discurso da “personagem-tema”, ele também é transmitido no
texto por meio do estilo pictórico, como já pôde ser visto nos exemplos do item 3.1 e na
Tabela 1. Entretanto, sua freqüência é menor, concorrendo com o uso do estilo linear. Mesmo
assim, por meio desse estilo, o enunciador elucida seu posicionamento frente ao tema
abordado. O tratamento dado ao discurso transmitido por esse estilo configura-se também
pelo posicionamento de contestação a ele: o discurso da “personagem-tema” é diluído no
discurso do enunciador, não tendo marcas visíveis de suas distinções, recebendo, ainda, uma
avaliação (a de contestação, principalmente).
Há 02 artigos de opinião em que há recorrência tanto ao estilo linear quanto ao estilo
pictórico como forma de apreensão do discurso da “personagem-tema”. Neles o enunciador
contra-argumenta o discurso recuperado. Esses artigos são:
Anexo E: “Leoa de um lado, gata distraída do outro”
Anexo T: “O "nosso" Delúbio, santo, mártir, herói”
Quanto ao uso somente do estilo pictórico como forma de apreensão desse tipo de
discurso, dá-se em 03 artigos de opinião, e neles o enunciador também contesta o discurso
recuperado. Esses artigos de opinião são:
Anexo I: “Huummm... Uau! Chi... Eureca!”
95
Anexo M: “Era muita coisa contra o pequeno Fernando”
Anexo V: “A farsa cruel de um ponto de exclamação”
Sendo assim, a tratamento ao discurso da “personagem-tema”, tanto pelo estilo linear
quanto pelo pictórico, caracteriza-se pela contestação desse outro dizer, o que enfatiza o
posicionamento crítico e julgador do enunciador frente ao tema tratado: ao longo do texto, o
enunciador vai expondo sua tomada de posição, sua visão de mundo; então, para sustentar ao
que é dito e ainda provar sua tese, recupera o discurso da “personagem-tema”, avaliando-o
negativamente, principalmente.
Observa-se também que, devido à maior recorrência ao estilo linear como forma de
transmissão dos discursos da “personagem-tema”, esse se faz caracterizador dos artigos de
opinião de Toledo, sendo a marca de distinção entre a voz do enunciador e a voz desse
“personagem” as aspas. Isso mostra o distanciamento entre a voz do enunciador e a voz
recuperada: é um outro quem diz, desvencilhando o dizer do enunciador de ser peremptório.
Além do mais, esse outro se faz importante para a credibilidade do dizer do enunciador, uma
vez que se trata da própria temática do texto. Dessa maneira, por meio da contra-
argumentação ao que é dito pelo “personagem-tema” do texto, o enunciador afirma seu
posicionamento de contrariedade a ele, principalmente, além de, ao relacionar esses discursos
ao seu, tratar sua opinião como se fosse uma constatação, como algo inquestionável, já que
ela é baseada no que foi dito pela personalidade/temática abordada.
No artigo de opinião “Glória e desdita de um dono de butique” (TOLEDO, 2005a)
71
,
por exemplo, o autor aborda a integridade e ética políticas de José Dirceu – uma vez que esse
período foi marcado pelos escândalos do mensalão – argumentando que aquele que um dia
fora um “defensor das políticas de esquerda” via-se agora envolvido em esquemas antes
combatidos severamente pela militância de esquerda. Para provar sua tese de que José Dirceu
possui uma “identidade dupla” e está perdido num labirinto político, o enunciador organiza
em seu texto relatos de fatos políticos ocorridos com o ex-ministro que culminaram com a
cassação de seus direitos políticos. Traça um panorama desde a saída da Câmara dos
Deputados, à entrega do seu cargo de chefe da Casa Civil a Dilma Rousseff, lembrando ainda
dos tempos da ditadura – em que Dirceu viveu clandestinamente na cidade de Cruzeiro do
71
Vide Anexo A.
96
Oeste (PR) sob o pseudônimo de Carlos Henrique Gouveia de Mello. Ao fazer esse percurso
de acontecimentos políticos que envolveram José Dirceu, o enunciador apropria-se de
discursos do próprio ex-deputado para, ora rebatendo-os, ora confirmando-os, garantir sua
tese de que “o verdadeiro” José Dirceu de esquerda não existe, mas foi, um personagem
criado. No início do artigo de opinião, ao falar da saída de José Dirceu da Câmara dos
Deputados, o enunciador utiliza-se do discurso do ex-ministro, para, logo em seguida, rebatê-
lo. O discurso recuperado é: “Vou mobilizar o PT para dar combate àqueles que querem
interromper o processo político democrático e querem desestabilizar o governo do presidente
Lula”. (TOLEDO, 2005a). Em seguida, o enunciador, adotando uma voz avaliadora e
rebatendo a citação, afirma que o que José Dirceu fez foi desestabilizar o governo em vez de
mobilizá-lo, como afirmou.
Ele saiu do governo cheio de ardor. "Vou percorrer o Brasil, vou mobilizar o
PT para dar combate àqueles que querem interromper o processo político
democrático e querem desestabilizar o governo do presidente Lula", disse.
Relevemos os misteriosos agentes da interrupção da democracia e ignoremos
o fato de que a desestabilização do governo Lula se origina em seus próprios
tremores internos. O que nos interessa é essa idéia de "mobilizar" o partido.
Ora, enquanto esteve no governo, Dirceu não fez senão desmobilizá-lo!
(TOLEDO, 2005a, grifo nosso).
Vê-se que, como característico do estilo desses textos, o enunciador recupera o
discurso de Dirceu para, em seguida, contestá-lo, baseado, principalmente, em dados e
acontecimentos que vieram a público envolvendo o ex-deputado.
Inicialmente o enunciador recupera o discurso de José Dirceu:
"Vou percorrer o Brasil, vou mobilizar o PT para dar combate àqueles que
querem interromper o processo político democrático e querem desestabilizar
o governo do presidente Lula", disse. (TOLEDO, 2005a)
Em seguida, rebate-o:
O que nos interessa é essa idéia de "mobilizar" o partido. Ora, enquanto
esteve no governo, Dirceu não fez senão desmobilizá-lo! (TOLEDO, 2005a,
grifo nosso).
97
A fim de provar essa sua opinião, ao longo do texto o enunciador vai, então,
recorrendo a outros dizeres do ex-deputado e também aquilo que se declarou sobre ele na
época, ora rebatendo ora confrontando-os entre si, mostrando que há neles contradições
internas, de modo a marcar a “duplicidade” do caráter político do ex-deputado.
Na transmissão do cargo de chefe da Casa Civil à ex-ministra das Minas e
Energia Dilma Rousseff, nova atropelada de papéis. "Camarada de armas"
foi assim que chamou a ministra, militante, como ele, de movimentos
nascidos com a intenção de dar combate armado à ditadura militar. Num
passo além, ele agora se fazia guerreiro – guerreiro como Simon Bolívar,
Garibaldi ou Che Guevara, a espada e o trabuco erguidos em defesa de justas
e nobres causas. Dilma Rousseff, sim, participou da chamada luta armada. Já
Dirceu, em diversos depoimentos anteriores, disse que chegou a treinar
guerrilha, mas nunca a praticou. "Não gostava daquilo, não me envolvi",
alegou numa reportagem desta revista, em 2002. (TOLEDO, 2005a, grifo
nosso).
Nesse trecho ilustrado, o enunciador trata da entrega do cargo de chefe da Casa Civil
de José Dirceu a Dilma Rousseff. Para expor seu posicionamento de que há uma farsa política
sustentada por Dirceu, recupera nesse trecho discursos que o envolvem e também declarações
feitas por ele mesmo em uma entrevista concedida à revista Veja em 2002, tensionando-os em
um embate discursivo:
"Camarada de armas" – foi assim que chamou a ministra, militante, como
ele [...].
“Já Dirceu, em diversos depoimentos anteriores, disse que chegou a treinar
guerrilha, mas nunca a praticou. "Não gostava daquilo, não me envolvi",
alegou numa reportagem desta revista, em 2002”. (TOLEDO, 2005a, grifo
nosso).
Ao recuperar o discurso referente à característica de militante político de José Dirceu,
o enunciador refuta-o, afirmando que Dilma Rousseff sim participara da luta armada, já
Dirceu nem ao menos se envolvera. O enunciador propõe-se a provar essa sua tese baseado no
discurso do próprio ex-ministro, que, como se observa no texto, afirmou que não gostava da
guerrilha e não havia se envolvido. Assim, recuperando discursos da própria personagem-
tema e tensionando-os, o enunciador propõe-se a provar a falta de personalidade política de
José Dirceu, desvencilhando sua voz de um dizer categórico, além de conferir credibilidade ao
98
que é dito, uma vez que recupera discursos da própria personagem questionada: ao recuperar
esses dois discursos em particular de José Dirceu e os tencionar, o enunciador leva o
enunciatário a perceber que o ex-deputado se contradisse. Vê-se que o enunciador não faz
essa afirmação categoricamente, mas sim, por meio da voz de Dirceu, a qual foi habilmente
tratada no texto. Dessa maneira, pode-se dizer que o enunciador diz sem apresentar o que é
dito como avaliação, mas sim como constatação. Ao trazer estrategicamente discursos
antagônicos como esses e opô-los entre si, confirma a tese desejada, ao mesmo tempo em que
sua voz julgadora, habilmente entoada, não pode ser acusada de moralista ou mentirosa.
Sendo assim, instaura-se no texto um autor habilidoso e perspicaz que, além de sustentar sua
voz crítica por meio dos discursos reportados, faz dessa crítica uma constatação, como se
fosse algo irrefutável.
Além disso, percebe-se que esse embate de vozes nos artigos de opinião de Toledo não
se restringe somente a algumas partes do texto, mas se configura na sua totalidade, já que um
texto se constitui de outros textos conjuntamente. Portanto, os discursos citados somente são
interpretados quando inseridos no contexto de sua produção e quando considerada a totalidade
do discurso do enunciador, no qual se configura seu posicionamento. No exemplo
apresentado, percebe-se que o sentido das citações se dá quando elas são consideradas no
contexto abordado no artigo de opinião – a participação de José Dirceu no esquema do
mensalão – e também quando perpassadas pela avaliação do enunciador, o qual questiona a
postura de Dirceu na política.
Um outro exemplo do tratamento do discurso da “personagem-tema” pode ser o do
artigo “Nhô Lula e a tentativa do último milagre” (TOLEDO, 2005b).
72
Nesse texto, o
enunciador questiona a postura política de Lula como governante do país, o qual afirmou na
época que não sabia dos esquemas de corrupção que estavam assolando seu governo e, ainda,
envolvendo pessoas de sua confiança, como o ex-ministro José Dirceu. O enunciador
considera que houve falta de governância do presidente, o qual delegou poderes a ministros,
tido por ele como confiáveis, não assumindo o papel que lhe cabe.
Para expor esse seu posicionamento, o enunciador parte de notícias que se referem às
denúncias de corrupção envolvendo membros do governo, avaliando-as, julgando-as
negativamente. Para isso, além de comparações, de adjetivos e de ironias, abordadas em
outras seções, o enunciador recorre a discursos do próprio sujeito que questiona – Lula – para
confirmar sua tese, mas não de maneira categórica.
72
Vide Anexo B.
99
Em parte do texto, o enunciador afirma que o erro original da presidência de Lula foi
ter confundido o começo com o fim: após a sua consagração nas urnas, teve preocupações
maiores, como a de se vangloriar e comemorar a vitória, ao invés de colocar em prática sua
ação como governante de um país. O enunciador afirma:
O pecado original desta Presidência é ter confundido o começo com o fim.
Ao se consagrar nas urnas, na histórica eleição que levou um antigo
metalúrgico ao posto máximo do país, Lula ficou tão feliz, mas tão feliz, que
a partir de então fez da existência um moto-contínuo de comemorações.
(TOLEDO, 2005b)
73
Para sustentar essa sua afirmação de que Lula não governa como deveria, dando mais
enfoque à comemoração de sua conquista, recupera-se o discurso em que este relembra os
tempos pobres de sua vida, a fim de afirmar a grandeza desse acontecimento.
Realmente não foi pouco para "o menino que vendia amendoim e laranja no
cais de Santos", como ele lembrou no discurso de posse, ter chegado aonde
chegou. Para qualquer um, na verdade, e não apenas para quem viveu
infância de retirante e adolescência de favelado, chegar à Presidência é uma
proeza de gloriosas proporções. (TOLEDO, 2005b)
Marcando visivelmente o discurso recuperado por meio das aspas e também com o uso
do verbo “lembrar”, o enunciador recorre ao “discurso da personagem-tema”,
problematizando-o. Após o discurso recuperado, o enunciador concorda com a grandiosidade
que é chegar ao cargo da presidência do país, ainda mais para uma pessoa pobre e que viveu a
infância como retirante. Entretanto, essa concordância se faz em termos, pois ela é contra-
argumentada logo em seguida pelo enunciador, que afirma:
[...] chegar à Presidência é uma proeza de gloriosas proporções. Só que não é
um fim em si mesma. É, ao mesmo tempo, um começo – o começo do
desafio de, por meio de ações diárias, minuciosas e persistentes, transformar
o mandato em algo profícuo. Lula ignorou que a vitória era um começo.
Achou que era só um fim. Nesse engano, ele se perdeu.” (TOLEDO, 2005b,
grifo nosso).
73
Vide Anexo B.
100
Utilizando-se da expressão “só que”, o enunciador refuta o discurso de Lula citado,
afirmando os valores que considera fundamentais para um governo sério: aquele cujas ações
diárias seriam “minuciosas e persistentes”, transformando o “mandato em algo profícuo”
(TOLEDO, 2005b). E essas, segundo o enunciador, Lula não demonstrou ter naquele
momento. Sendo assim, mesmo sendo de grande importância o acontecido com o presidente,
não deveriam ter sido ignoradas as ações de um governante do país; os louros não deveriam
suplantar as ações de uma governância séria e atuante. A fim de sustentar essa opinião, o
enunciador recorre ao discurso da personagem tratada no artigo de opinião, problematizando-
o, conferindo ênfase à sua tese. Mesmo concordando em parte com o discurso de Lula, recorre
a ele para refutá-lo principalmente, pois ao longo do texto, o enunciador vai apontando, sob
sua perspectiva, características da falta de governância do presidente, que conduzem ao efeito
de prova de sua contrariedade.
Mais à frente, o enunciador afirma que a agenda de Lula, após sua entrada na
presidência, esteve “mais à feição das festividades que do trabalho” (TOLEDO, 2005b),
merecendo privilégio em sua agenda encontro com astros da televisão e da música. Afirma
que isso ocorre, pois o presidente “nessas ocasiões, sentia-se em seu elemento” (TOLEDO,
2005b). Para provar essa sua tese, recorre estrategicamente a um outro discurso de Lula, o
qual afirma: “"Morram de inveja", disse aos jornalistas, ao posar para foto ao lado da
dançarina do É o Tchan!” (TOLEDO, 2005b). Recuperando esse discurso que foi proferido
em um contexto específico – quando Lula posou ao lado de uma dançarina de axé –, ao
transferi-lo para o contexto do artigo de opinião, em que problematiza a postura e os valores
do presidente Lula, o enunciador dá um novo sentido a esse discurso: é característico de Lula
prestigiar estar com personalidades famosas da época, postura que não corrobora com os
valores defendidos pelo autor em relação a um bom governante. Assim, o discurso recuperado
vem sustentar o posicionamento do enunciador frente à postura de Lula como presidente: ele é
aquele que valoriza mais acontecimentos públicos com astros em vez de se preocupar a fundo
com questões governamentais. Com isso, configura-se no texto um autor estrategista, que
escolhe propositalmente discursos de Lula (personagem-tema) que destoam daquilo que
considera como um bom governante. Além de que, ao contra-argumentar o discurso do
presidente, apoiado em seus próprios dizeres, confere um efeito de constatação, como se
dissesse: “Está claro, pelas próprias declarações e atitudes de Lula, que ele não governa o
país”. Entretanto, não faz essa afirmação categoricamente, mas sim pela relação que
estabelece entre seu discurso e o discurso de Lula.
101
No exemplo apresentado, ao introduzir o discurso da “personagem-tema” no texto, o
enunciador utiliza-se, como pode ser observado, do estilo linear, deixando limites visíveis
para a distinção entre o seu discurso e o de Lula. Para inserir esse outro dizer no seu, o
enunciador faz algumas adaptações na composição do texto, dando um efeito de continuidade
ao seu discurso: “Realmente não foi pouco para "o menino que vendia amendoim e laranja no
cais de Santos", como ele lembrou no discurso de posse, ter chegado aonde chegou”.
(TOLEDO, 2005b, grifo nosso). Introduzindo o discurso de outrem com a preposição “para”,
o enunciador integra-o à oração em que é enunciado, substituindo expressão “Lula” pela
expressão citada – “[...] o menino que vendia amendoim e laranja no cais de Santos”. Assim,
mesmo com o uso das aspas marcando a citação, distinguindo a voz do enunciador da voz
recuperada, esta dá continuidade ao complemento da oração em que se insere, entremeando-se
ao discurso do enunciador, mas se diluindo nele. Isso mostra que, mesmo o enunciador dando
voz a um outro, transmitindo-a em sua estrutura primitiva, ajusta-a ao seu discurso,
adaptando-a a ele.
Por meio desses dois exemplos apresentados, pode-se observar que o enunciador,
quando recorre à citação de discursos da “personagem-tema”, em sua maioria se contrapõe a
essa voz, mostrando que há nela incoerências e a avaliando.
Mesmo assim, em alguns textos, o enunciador concorda com a voz da “personagem”
recuperada, mas para problematizá-la no contexto do artigo de opinião. Por exemplo, no
artigo “Uma bela cena de um filme ruim” (TOLEDO, 2005j)
74
, como característico do gênero
a que se filiam esses textos, o enunciador posiciona-se diante de uma notícia, a qual, nesse
caso, foi o investimento do deputado Fernando Gabeira contra o presidente da Câmara na
época, Severino Cavalcanti, durante sessão plenária na Câmara dos Deputados. Nesse
episódio, aquele questionou a negação de Severino sobre a existência do mensalão na época e
também a defesa do abrandamento das punições que deveriam ser feitas nesse caso. Ao longo
do texto, o enunciador aponta características políticas de Fernando Gabeira e de Severino
Cavalcanti, fazendo uma trajetória política de ambos, até chegar ao ano de 2005. Por meio da
contraposição que é feita ao longo do texto, observa-se a disparidade de valores entre ambos
políticos, enfatizando-se a política de caráter social de Gabeira e a política de interesses e
aproveitadora de Severino. No trecho a seguir, mostra-se uma das contraposições feitas ao
longo do texto entre esses políticos:
74
Vide Anexo J.
102
No ano de 1968, Severino Cavalcanti cumpria seu primeiro mandato como
deputado estadual em Pernambuco. Agora pertencia à Arena, o partido que
dava sustentação aos governos militares. Fernando Gabeira selou, nesse
mesmo ano, num encontro com um militante mais antigo, na Praça Antero
de Quental, no Leblon, seu ingresso num movimento clandestino de combate
ao regime. Era uma tarde bonita. Gabeira olhou em volta e estranhou que
tudo continuasse no mesmo lugar: as babás que passeavam com as crianças
na praça, os carrinhos da Kibon que vendiam sorvete na Avenida Delfim
Moreira. (TOLEDO, 2005j)
75
O enunciador perfaz esse percurso ao longo do texto, até chegar ao ponto-chave de sua
discussão: o investimento de Gabeira contra Severino na Câmara dos Deputados naquele ano,
2005. O enunciador recorre, então, ao discurso de uma das “personagem-tema” tratadas no
texto, Fernando Gabeira, para elucidar seu posicionamento de contrariedade à atitude de
Severino Cavalcanti. O enunciador afirma:
“Vossa Excelência está se comportando de maneira indigna", começou
Gabeira. Ele falava com a fúria dos justos. Lembrou que até defender
empresa acusada de explorar trabalho escravo Severino já fez – é o caso de
uma destilaria pernambucana para a qual fez gestões, meses atrás. "Vossa
Excelência está em contradição com o Brasil", acrescentou, fazendo-se
porta-voz de todos quantos querem puxar o Brasil para a frente, na face de
alguém cujo propósito notório é empurrá-lo para trás.(TOLEDO, 2005j,
grifo nosso).
Como se pode observar, o enunciador recorre ao discurso de uma das “personagem-
tema” para concordar com ele, dando efeito de credibilidade ao seu posicionamento: é o
próprio Fernando Gabeira quem afirma que Severino está em contradição com o Brasil e não
se comporta como deveria se portar um presidente da Câmara dos Deputados – não
coadunando com os esquemas de corrupção. Concordando com o discurso de Gabeira, o
enunciador utiliza-o para problematizar o tema abordado, enfatizando sua crítica e pondo-se a
prová-la. Vê-se que ele concorda com o que Gabeira afirma, pois o qualifica positivamente
como “justo”, além de qualificar o deputado como representante daqueles que querem “puxar
o Brasil pra a frente” (TOLEDO, 2005j). Já Severino, ao contrário, é referencializado por
valores negativos, sendo aquele cujo propósito, segundo o enunciador, é de empurrar o Brasil
para trás, concordando com Gabeira que Severino “não está se comportando de maneira digna
no Congresso” (TOLEDO, 2005j). Entretanto, essa afirmação não é feita categoricamente
75
Vide Anexo J.
103
pela voz do enunciador, mas sim pela voz de Gabeira, a qual é assumida pelo enunciador
como correta e adequada para a questão que aborda – daí a consideração da amenização da
voz crítica do enunciador.
A citação do discurso de Gabeira é feita tanto pelo estilo linear quanto pelo pictórico,
o que ilustra as formas de tratamento dadas aos discursos de outrem nos artigos de opinião de
Toledo:
Estilo linear:
Vossa Excelência está se comportando de maneira indigna",
começou Gabeira. Ele falava com a fúria dos justos.
"Vossa Excelência está em contradição com o Brasil", acrescentou,
[...].(TOLEDO, 2005j, grifo nosso).
Estilo pictórico:
Lembrou que até defender empresa acusada de explorar trabalho
escravo Severino já fez – é o caso de uma destilaria pernambucana
para a qual fez gestões, meses atrás. (TOLEDO, 2005j, grifo nosso)
No estilo linear, verifica-se o uso das aspas e de verbos que enfatizam que as palavras
citadas não são do enunciador, como “começar” e “acrescentar”, deixando nítido no texto a
integridade do discurso de Gabeira; já no estilo pictórico, o discurso do personagem dilui-se
no discurso do enunciador, sendo veiculado não com sua plasticidade própria, mas perpassado
pela voz do enunciador. Independente dos estilos usados, os discursos recuperados
contribuem para a não categorização da voz do enunciador, já que ele se apóia em outros
dizeres para sustentar sua opinião, estando aqueles diluídos ou marcados no seu discurso.
Pelos exemplos apontados e pelas análises feitas, observa-se, então, que o enunciador
recupera discursos da “personagem-tema” principalmente para refutá-los, propondo-se a
provar seu ponto de vista. Uma vez que é característica de tais artigos de opinião a contra-
argumentação ao tema abordado, vê-se que há, conseqüentemente, o tratamento de
contestação ao “discurso da personagem-tema”, principalmente. Tal valoração dada a esse
tipo de discurso serve, assim, para enfatizar o posicionamento do autor e, mais que isso,
sustentá-lo, conferindo-lhe um efeito de constatação: está provado, pela declaração do próprio
104
personagem-tema, que há valores negativos que o envolvem (valores esses atribuídos pelo
enunciador), como o da desonestidade, da falta de ética e de caráter político, por exemplo.
Entretanto, em alguns artigos de opinião o enunciador recupera discursos da
“personagem-tema” também para concordar com eles. Ao se observar esse posicionamento do
enunciador, verifica-se que também é feito para sustentar o posicionamento defendido no
texto, no sentido de sua confirmação.
Nesses exemplos, tratamos da forma de recuperação dos discursos da “personagem-
tema” nos textos de Toledo e o seu tratamento. Entretanto, esse não é o único tipo de discurso
recuperado; há ainda a transmissão do “discurso noticiado”, do “discurso da arte” e do
“discurso institucional”.
3.2.2 O discurso noticiado
O discurso noticiado são tanto aqueles discursos de personalidades culturais e
políticas, tornados públicos, quanto discursos publicados em algum meio de comunicação.
Distingue-se do discurso da “personagem-tema”, pois não tem como autoria a “personagem
focada no texto, mas outra, que se tornou de conhecimento público e que foi publicado em
meios de comunicação.
Analisando os 25 artigos de opinião, observou-se que dentre eles, 20 apresentam a
recuperação do discurso noticiado. Dentre esses, 14 apresentam esse discurso somente por
meio do estilo linear; enquanto que em 05 ele é apreendido tanto pelo estilo linear quanto pelo
pictórico; e somente 01 artigo tem a transmissão desse tipo de discurso pelo estilo pictórico.
Isso pode ser visto na tabela a seguir:
105
Tabela 2. Formas de apreensão do discurso noticiado.
Formas de apreensão do discurso noticiado Total de artigos
de opinião
Estilo linear Estilo linear e pictórico Estilo pictórico
14 artigos de
opinião
05 artigos de opinião 01 artigo de
opinião
20 artigos de
opinião
Dentre os 04 tipos de discursos classificados, o discurso noticiado é o mais recorrente
nos artigos de opinião, uma vez que sua classificação é a mais abrangente que as outras.
Independente do estilo utilizado para apreensão desses discursos, observa-se nos
textos analisados que o enunciador tanto contesta esses discursos, quanto concorda com eles,
utilizando-os para sustentar sua opinião frente ao tema tratado no texto. Ao contestá-los, o
enunciador propõe-se a provar seu posicionamento de avaliação e de contrariedade à temática
abordada no texto. Para tal, recupera discursos que circulam em alguns meios de comunicação
e que se referem a um campo semântico semelhante ao do tema do texto, avaliando-os
negativamente. Já quando o enunciador concorda com o discurso noticiado, assume essa outra
voz como correta, apoiando-se nela para sustentar seu posicionamento, dando-lhe o efeito de
constatação.
Ressalta-se que em um mesmo artigo de opinião, o enunciador recupera mais de um
“discurso noticiado”, podendo referir-se no mesmo texto a autorias distintas, dependendo da
relação de sentido que estabelece entre o posicionamento que defende no texto e o discurso
que recupera. Sendo assim, essa miscelânea do posicionamento do enunciador em relação ao
“discurso noticiado” em um mesmo texto não se faz em relação a um único discurso de uma
personalidade conhecida ou em relação a um único discurso publicado em um meio de
comunicação. Portanto, quando nos referimos às formas de tratamento aos “discursos
noticiados”, tratamos de todos aqueles que por ventura apareçam em um mesmo artigo de
opinião, podendo ter autorias diferentes.
Dentre os 20 textos em que o enunciador recupera “discursos noticiados”, observa-se
que em 08 deles ele somente concorda com tais discursos, utilizando-os para apoiar sua
opinião. Essa forma de tratamento caracteriza-se pela recorrência ao discurso de outrem para,
sustentado nele, o enunciador veicular seu posicionamento frente ao tema abordado no texto.
Concordando com o dizer do outro, o enunciador reafirma seu posicionamento, enfatizando-o
106
com um outro saber, o qual se relaciona à temática abordada. Dessa forma, a recuperação dos
“discursos noticiados”, quando afirmados, sustenta a questão tratada pelo enunciador, dando o
efeito de prova ao posicionamento do enunciador. Os artigos de opinião em que há a
recuperação de “discursos noticiados” para somente apoiar-se neles são:
Anexo C: “O futebol nas malhas do subdesenvolvimento”
Anexo F: “Sapos, desculpas e proxenetas”
Anexo J: “Uma bela cena num filme ruim
Anexo O: “O duplo estrago do bispo-bomba”
Anexo P: “Tudo o que é sólido derrete ao sol dos trópicos”
Anexo Q: "Se não comparecerdes..."
Anexo T: “O "nosso" Delúbio, santo, mártir, herói”
Anexo W: “Do sonho de 1968 à realidade do mensalão”
Há outros artigos de opinião em que o enunciador recupera os “discursos noticiados”
apenas contestando-os. Essa contrariedade vem enfatizar o posicionamento do enunciador,
uma vez que ele contra-argumenta o discurso de uma personalidade que se insere em contexto
semelhante ao da temática abordada no texto, sustentando sua argumentação. Isso se dá nos
seguintes artigos:
Anexo E: “Leoa de um lado, gata distraída do outro”
Anexo K: “Nos labirintos do poder”
107
Isso mostra que o enunciador não assume uma única posição diante dos “discursos
noticiados” que recupera. O tratamento dado a esse tipo de discurso se faz em decorrência da
tomada de posição do enunciador frente ao tema que aborda.
Essa mistura de posicionamentos frente a esse tipo de discurso pode ser observada
também em outros 08 artigos de opinião. Nesses, o enunciador tanto concorda quanto contesta
o discurso do outro em um mesmo texto, dependendo do seu julgamento frente ao tema
tratado e, conseqüentemente, frente à relação mantida entre o discurso chamado ao texto e o
tema deste. O tratamento dado a esses discursos apresenta as mesmas características e papel
dos “discursos noticiados” com os quais o enunciador ou apenas concorda ou apenas contesta,
apresentados anteriormente. O fato de haver diferentes posicionamentos ao “discurso
noticiado” em um mesmo texto não influencia o tratamento dado àquele, uma vez que, a
tomada de posição do enunciador refere-se a discursos com autorias distintas. Essa forma de
tratamento apresenta-se nos seguintes artigos de opinião de Toledo:
Anexo D: “Uma furtiva lágrima”
Anexo G:A mesma e triste direita de sempre”
Anexo I:Huummm... Uau! Chi... Eureca!”
Anexo N: “O melão tentador e outras histórias”
Anexo U: “Sobre causas, efeitos e trepar em árvores”
Anexo V:A farsa cruel de um ponto de exclamação”
Anexo X: “Perón, Bolívar, Dirceu, Aldo, Tevez etc.”
Anexo Y:Um certo José”
Assim, uma vez inseridos em um contexto específico (artigos de opinião de Toledo) e
relacionados ao tema abordado nesses textos, o tratamento dado aos “discursos noticiados”
depende do tema abordado no texto e, conseqüentemente, do posicionamento do enunciador
108
defendido. Ao recuperar discursos de outrem que corroboram com a opinião que defende, o
enunciador assegura-os como estando corretos e pertinentes; já quando o discurso de outrem
condiz com aquilo que está contrariando, contra-argumenta-o, evidentemente, enfatizando sua
discordância e contestação. Dessa forma, verifica-se que o enunciador recupera
estrategicamente discursos que possam dar efeito de credibilidade à sua opinião, uma vez que
têm uma semelhança temática. Além disso, ao recuperar outros dizeres, o enunciador confere
à sua voz um caráter de irrefutabilidade, como se outras vozes confirmassem sua opinião.
No artigo de opinião “Tudo o que é sólido derrete ao sol dos trópicos” (TOLEDO,
2005p)
76
, o enunciador trata do partido PCdoB, afirmando que há algumas incoerências entre
as ideologias defendidas pelo partido na época de sua fundação, e as atitudes de parlamentares
e também da UNE – a qual se aliou ao partido – naquela época (ano de 2005). Em decorrência
do tema abordado, o enunciador recupera o discurso de Manuel Venâncio Campos da Paz,
personalidade representante da Aliança Nacional Libertadora e da “Intentona” de 1935. Tal
discurso refere-se ao dia da morte de Campos da Paz, no qual foi visitado por um padre da
Igreja Católica, que lhe ofereceu a extrema unção. Nesse contexto, Paz afirmou: "Não me
peça, num momento de fraqueza, que eu renegue tudo aquilo pelo que lutei. Morro como um
comunista".(TOLEDO, 2005p). Apoiado nesse discurso, o enunciador contrapõe a figura de
Campos da Paz e aquilo que ele representa, tido como símbolo do partido comunista, a
membros atuais do PCdoB, em especial Aldo Rebelo, Ademir da Guia e Leomar Quintanilha,
afirmando que esses não condizem com os ideais primários do partido, discordando desses
políticos. Baseia sua opinião em discursos dessas personalidades políticas e também em
“discursos da arte”, tratados no item 3.2.1., que se trata de um poema de João Cabral de Melo
Neto sobre Ademir da Guia, eleito vereador de São Paulo pelo PCdoB. Dessa forma, verifica-
se que a recuperação do “discurso noticiado” se faz em decorrência do tema que é abordado
no texto e também do posicionamento defendido pelo enunciador. O discurso recuperado
enfatiza, ainda, o julgamento do enunciador, desvencilhando-o da categorização de ser
fantasioso ou mesmo falso, já que o apóia em outros dizeres respeitados nacionalmente.
Contrapondo valores, o enunciador, então, apóia-se no discurso de Campos da Paz e
nos discursos que foram veiculados sobre o partido, como seu combate ao regime militar, para
mostrar que hoje o PCdoB não tem mais representantes dos ideais de base do partido, como o
comunismo. Assim, ele afirma sobre Leomar Quintanilha:
76
Vide Anexo P.
109
Maior surpresa ainda é esta última, em que o senador do Tocantins Leomar
Quintanilha, rico fazendeiro, antigo chefe regional da Arena, o partido do
regime militar, antigo companheiro de Paulo Maluf no PDS, ultimamente no
PMDB, anunciou seu ingresso na gloriosa agremiação da foice e do martelo.
Pelo amor de Deus, senador! Então era tudo um disfarce – o gosto pela
propriedade, as 800 cabeças de gado na fazenda de 1.600 hectares, as
alianças com a ditadura e a oligarquia? (TOLEDO, 2005p)
O enunciador lança mão no texto do currículo político do senador, como seu
envolvimento com a Arena, partido do regime militar, o qual o PCdoB, em tempos áureos,
combateu severemamente, propondo-se a provar que a formação atual do partido está
esfacelada e contaminada por valores contrários àqueles defendidos em seu tempo de
inauguração. Então, qualifica a agremiação de Leomar ao PCdoB como contraditória, já que
ele valoriza a propriedade privada e o acúmulo de capital para interesses próprios, ideais
repudiados pelo comunismo – ideologia de base do partido. Baseado em discursos que
envolvem Leomar e também o PCdoB atual e o do passado, o enunciador sustenta seu
posicionamento de que há uma contradição no partido de hoje, que se desvincula do seu
ideário fundador. Tais discursos além de sustentarem seu posicionamento, dão a ele um efeito
de constatação, pois os acontecimentos recuperados, como o acúmulo de capital de Leomar,
não podem ser negados, pois ocorreram de fato. Então, instaura-se no enunciado um autor
habilidoso, que sustenta sua opinião em discursos de outrem, dando um efeito de
inquestionabilidade ao que defende.
Abordamos neste item mais um artigo de opinião em particular para expor nossas
considerações a respeito da forma de tratamento dado aos “discursos noticiados”, pois as
interpretações e considerações feitas nele podem ser aplicadas aos outros artigos em que
aparecem esse tipo de discurso. Isso se dá pois, independente do autoria desses discursos e da
quantidade deles em um mesmo artigos de opinião, as características, forma de apreensão e de
tratamento têm comportamento semelhante nos outros artigos de opinião em que o “discurso
noticiado” é recuperado.
O texto selecionado para amostragem das características dos “discursos noticiados”
em Toledo é “O futebol nas malhas do subdesenvolvimento” (TOLEDO, 2005c)
77
. Nele, o
enunciador utiliza-se de “discursos noticiados” de autorias distintas para concordar com
alguns e discordar de outros, propondo-se a provar sua tese pela problematização que faz
entre o sentido que dá a esses “discursos noticiados” e o tema abordado no texto. As
77
Vide Anexo C.
110
características que serão apontadas e as relações entre o “discurso noticiado” e o todo do texto
fazem-se semelhantes nos outros artigos de opinião em que esse tipo de discurso é
recuperado.
Nesse artigo, o enunciador aborda o tema sobre a quantidade cada vez maior da venda
de jogadores de futebol brasileiros para times estrangeiros. Para ilustrar o seu posicionamento
contrário a essa questão, recupera o caso do jogador Robinho que, na época, estava em
negociação com o time Real Madrid, da Espanha. Ao longo do texto, o enunciador expõe essa
sua tese, recuperando discursos de outrem – tanto o de uma personalidade cultural, conhecida
em âmbito nacional (Nelson Rodrigues), quanto o de um publicado em um meio de
comunicação (matéria de futebol publicada por Don Rossé Cavaca), como a de um jogador
tomado como exemplo desse caso (Robinho). Tais discursos são problematizados pelo
enunciador no contexto do artigo de opinião, contribuindo para que a sua voz crítica não seja
vista como categórica.
No início do artigo, o enunciador chama ao texto o discurso de Nelson Rodrigues, que
diz:
Quando o Brasil ganhou a Copa do Mundo de 1958, Nelson Rodrigues
decretou o fim de nosso complexo de vira-latas. "Já ninguém tem vergonha
de sua condição nacional", escreveu. "E as moças na rua, as datilógrafas,
as comerciárias, as colegiais, andam pelas calçadas com um charme de
Joana d'Arc." O próprio Nelson, antes, usando o precioso laboratório de
análise do futebol, diagnosticara o complexo de vira-latas, traduzido pela
"inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do
resto do mundo". A primeira vitória numa Copa do Mundo teria operado até
mesmo o milagre da reversão do país de analfabetos que éramos então num
país de letrados. Escreveu Nelson: "Se analfabetos existiam, sumiram-se na
vertigem do triunfo. A partir do momento em que o rei Gustavo da Suécia
veio apertar as mãos dos Pelés, dos Didis, todo mundo a[a001ir dsofreu uma
alfabetização súbita. Sujeitos que não sabiam se gato se escreve com 'x' iam
ler a vitória no jornal".TOLEDO, 2005c, grifo nosso).
Marcado visivelmente pelo uso das aspas e também por verbos como “escrever”, o
enunciador deixa nítido no enunciado a diferenciação entre a sua voz e a voz de Nelson
Rodrigues. Personalidade conhecida e respeitada em âmbito nacional pela sua criticidade
frente às questões do mundo e pela literatura que fez, tem sua voz distanciada da voz do
enunciador, mostrando o respeito a esse discurso e também a conservação de sua integridade e
plasticidade, o que pode garantir credibilidade à tese defendida pelo enunciador no texto, uma
111
vez que as palavras proferidas são de Nelson Rodrigues e isso não pode ser contestado.
Mesmo utilizando o estilo linear como forma de apreensão desse discurso, o enunciador
integra-o ao seu, adaptando-o ao texto. Assim, o discurso de Nelson Rodrigues não fica
“solto” no texto, mas, ao contrário, torna-se parte dele através das relações que o enunciador
estabelece entre esse discurso e o seu. Isso pode ser visto por meio do verbo “escrever”, por
exemplo, que enfatiza a delimitação do discurso de outrem, dando uma seqüência ao
enunciado (A); também pelas considerações que o enunciador faz em relação a esse discurso,
retomando o autor a que está se referindo na citação (B); e pelo uso desse “discurso
noticiado” como complemento à oração em que se insere, introduzido pela preposição “pela”
(C). No texto, isso se configura da seguinte maneira:
(A) "Já ninguém tem vergonha de sua condição nacional", escreveu.
(B) "E as moças na rua, as datilógrafas, as comerciárias, as colegiais, andam pelas
calçadas com um charme de Joana d'Arc." O próprio Nelson, antes, usando o precioso
laboratório de análise do futebol, diagnosticara o complexo de vira-latas [...]”
(C) “[...] traduzido pela "inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em
face do resto do mundo". (TOLEDO, 2005c, grifo nosso)
78
Sendo assim, mesmo conservando a plasticidade do discurso de Nelson Rodrigues, o
enunciador apropria-se dele para assegurar seu posicionamento; ele concorda com o
dramaturgo, como se o que este disse fosse o que o enunciador quer dizer. Esse discurso
recebe, então, uma avaliação positiva do enunciador, uma vez que esse o considera pertinente
para a defesa do seu posicionamento.
Partindo do discurso de Nelson Rodrigues, o enunciador transfere o sentido desse
discurso para o tema recuperado, problematizando a questão e sustentando seu ponto de vista
de discordância à atual venda exorbitante de jogadores para times estrangeiros: em 1958, com
a vitória do Brasil na Copa do Mundo de futebol, houve um processo de alfabetização
repentino nos brasileiros, pois passaram a procurar informações nos jornais sobre a vitória do
78
Vide Anexo C.
112
Brasil. Na época, o Brasil era considerado um país subdesenvolvido, com grande quantidade
de brasileiros analfabetos. Trazendo essa questão para o contexto que aborda no texto, o
enunciador afirma, portanto, que, mesmo passados 50 anos, a situação social do Brasil
continua quase a mesma: um país ainda em desenvolvimento e dependente de outros países.
Para ele, isso se dá devido à mentalidade da maior parte dos brasileiros, que valorizam mais o
que é estrangeiro do que o que é nacional. Põe-se a provar essa sua tese apoiado no discurso
de Nelson Rodrigues e também, ao longo do texto, pela recuperação de outros discursos,
como o de Don Rossé Cavaca e o de Robinho.
A recuperação que o enunciador faz do discurso de Nelson Rodrigues, relacionando-o
ao tema da venda de jogadores na atualidade, faz-se por meio da retomada do sentido desse
discurso no parágrafo seguinte à citação:
A partir do momento em que o rei Gustavo da Suécia veio apertar as mãos
dos Pelés, dos Didis, todo mundo aqui sofreu uma alfabetização súbita.
Sujeitos que não sabiam se gato se escreve com 'x' iam ler a vitória no
jornal".
Pois a notícia que hoje cabe levar ao grande cronista e dramaturgo, lá no
assento etéreo onde repousa, é que, quase meio século depois da redentora
vitória na Suécia, a condição de vira-latas abateu-se de volta, implacável e
sinistra, sobre nós. (TOLEDO, 2005c, grifo nosso)
Utilizando-se a marca temporal “hoje”, o enunciador transfere o sentido do discurso de
Nelson Rodrigues para uma situação contemporânea; essa pista ainda se faz pelo uso da
expressão “quase meio século depois”, uma vez que o discurso recuperado é de 1958 e o
artigo de opinião de Toledo foi publicado em 2005. A transferência de sentido do “discurso
noticiado” para o discurso do enunciador faz-se ainda, nesse mesmo trecho, e principalmente,
pela afirmação “abateu-se de volta”, a qual, pelo seu sentido de “retorno”, enfatiza a relação
entre os sentidos dos discursos citados e aquele que os cita. Dessa forma, transferindo o
sentido do discurso de Nelson Rodrigues para o seu discurso, o enunciador veicula sua
tomada de posição de contrariedade à valorização, no Brasil, da venda de jogadores
brasileiros para times estrangeiros. Recuperando o discurso de Nelson, o qual trata de uma
personalidade renomada publicamente, o enunciador sustenta sua opinião, dando-lhe um
efeito de constatação, uma vez que a posição de Nelson daquela época corrobora com a
posição do enunciador na época atual, o que enfatiza que a situação de subdesenvolvimento
do Brasil pouco mudou em 50 anos.
113
Ao tratar dessa questão, o enunciador chama ao texto o caso do jogador Robinho, o
qual estava na época negociando com o Real Madrid. Para que haja uma resposta ativa do
enunciatário frente a essa questão, esse deve recuperar, pela memória discursiva, a
glamourização que é dada a esse time no Brasil e no mundo, e também os discursos
envolvidos em torno de tal negociação, como o desejo de Robinho em sair do Santos. Assim,
o enunciador expõe seu posicionamento de que a condição de país subdesenvolvido que
assola o Brasil desde a época de Nelson Rodrigues não mudou, pois há uma influência da
mentalidade do povo brasileiro nessa questão. Ele afirma:
Robinho, para quem não sabe, quer jogar no Real Madrid. A diferença, com
relação aos tempos de Nelson Rodrigues, começa por aí. Pelé nunca quis
jogar no Real Madrid. Hoje, craque brasileiro só se sente feliz ao mudar para
o exterior. (TOLEDO, 2005c)
Recuperando o discurso sobre Pelé, o qual, pela memória discursiva, sabe-se que foi
um grande jogador de futebol e há tempos é considerado o “rei” desse esporte mundialmente,
o enunciador transfere o sentido da época de Nelson Rodrigues, em que, ilustrado por Pelé, os
melhores jogadores brasileiros jogavam em times nacionais, e não iam para o exterior para
amadurecer tecnicamente. Transferindo o sentido do futebol daquela época para o da época
atual, o enunciador problematiza o tema tratado, dando um efeito de constatação à sua
opinião: se relacionarmos os sentidos propostos pelo enunciador entre a época de grandes
craques como Pelé e a época atual, vê-se que há certa coerência no que diz o enunciador.
Entretanto, isso se dá pois ele habilmente recupera os sentidos que possam dar sustentação à
sua opinião, e não outros que possam negá-la ou mesmo questioná-la.
Problematizando ainda essa questão, o enunciador recupera o discurso do humorista
Don Rossé Cavaca, proferido na mesma época de Nelson Rodrigues. Uma vez que o Brasil
havia ganhado a Copa de 1958, Cavaca afirma que “em matéria de futebol, “subdesenvolvidos
são os europeus””. (TOLEDO, 2005c). Enfatizado no texto pelo enunciador de que esse
discurso foi proferido por um humorista, e considerando que na época o Brasil era,
economicamente, um país subdesenvolvido, a afirmação de Cavaca reafirma a condição do
Brasil: em relação aos países desenvolvidos, o Brasil se destaca apenas no futebol. Dessa
forma, o enunciador se apóia nesse discurso para sustentar seu posicionamento de que na
atualidade, devido aos acontecimentos que envolvem o futebol brasileiro, como o caso do
jogador Robinho, verifica-se que a condição de subdesenvolvimento atacou novamente o
114
Brasil, mas agora, também na área do futebol. Isso se deve, segundo o enunciador, à
mentalidade da maior parte dos brasileiros e também dos jogadores, que valorizam jogar em
times estrangeiros, acreditando ser lá um lugar de crescimento profissional e técnico.
Para constatar esse seu posicionamento, o enunciador recorre, então, ao discurso do
próprio Robinho, que é um “discurso noticiado”, já que o jogador não se refere à temática
abordada, mas a uma exemplificação dela. O enunciador afirma:
O dinheiro, claro, é fator determinante nesse panorama, mas não é o único. O
subdesenvolvimento no futebol, como todo bom subdesenvolvimento,
começa nas cabeças. "Quero jogar no melhor time do mundo", diz Robinho,
justificando sua preferência pelo Real Madrid. (TOLEDO, 2005c, grifo
nosso).
Inserido no contexto do discurso do enunciador, este adapta o discurso de Robinho ao
seu, marcando visivelmente a distinção entre ambos. A plasticidade do discurso recuperado é
conservada pelas aspas, o que caracteriza o uso do estilo linear. O enunciador, ao recuperar
esse discurso, posiciona-se diante dele, contestando-o, afirmando que há nele uma
incoerência. Esse posicionamento frente ao discurso de Robinho é dado logo em seguida a
esse trecho, em que o enunciador afirma: “O tal "melhor time do mundo" não ganhou um
único campeonato no último ano, mas vá lá – o Real Madrid é o Real Madrid”.(TOLEDO,
2005c). Contrapondo sentidos, a contestação da qualificação dada por Robinho ao time
estrangeiro se faz por meio de dados referentes a esse time, os quais não podem ser
contestados: o Real Madrid não ganhou nenhum campeonato no último ano. Portanto, a
opinião do enunciador é a de que desejar jogar em um time estrangeiro, mesmo que esse não
tenha tido a melhor atuação no campeonato que disputou, é incoerente. Dessa forma, por meio
do uso de discursos reportados (no caso, aquele classificado como “discurso noticiado”), o
enunciador dá o efeito de constatação ao seu posicionamento: ele é contrário à venda
exorbitante de jogadores brasileiros para times estrangeiros e à sua valorização pelo ideário
nacional, enfatizando que essa é uma mentalidade de país subdesenvolvido – que ainda
depende de países estrangeiros, até mesmo no futebol.
Assim, nesse artigo de opinião, percebe-se que os “discursos noticiados” recuperados
pelo enunciador sustentam seu posicionamento, uma vez que se referem a uma temática em
comum – o futebol – mesmo sendo em épocas distintas. O enunciador parte desses discursos
para provar sua opinião, transferindo o sentido delas para o tema abordado, elucidando, assim,
115
seu posicionamento. Esses discursos nos quais o enunciador se apóia são utilizados para
problematizar e sustentar a questão abordada no texto, necessitando que o enunciatário
recupere os sentidos veiculados e os relacione no texto. Por meio dessa estratégia, vê-se,
ainda, que o enunciador, ao dar voz a um outro, mais do que sustentar sua opinião,
desvencilha-a de um dizer categórico. Ele não afirma no enunciado peremptoriamente, por
exemplo, que houve uma alfabetização súbita no Brasil após a Copa de 1958; quem o faz é
Nelson Rodrigues. Mas o enunciador apropria-se dessa afirmação, tratando-a como se fosse
sua também, já que com ela concorda. Dessa maneira, o modo de dizer do enunciador não
pode ser classificado como categórico, pois um é um outro que faz certas afirmações.
Entretanto, o enunciador ao recorrer a discursos de outrem, sustentando sua opinião, faz da
sua opinião algo irrefutável, como se a estivesse constatando. Veja-se o caso da citação de
Robinho: observa-se no enunciado que ele mesmo afirmou que queria jogar no Real Madrid, e
é de conhecimento público que o time não havia ganhado nenhum jogo no campeonato
daquele ano, o que não pode ser tratado pelo enunciatário como uma mentira. É nesse sentido,
então, que consideramos que o estilo desses textos é caracterizado pela “pseudo-relatividade”,
pois o enunciador simula no texto desvencilhar seu modo de dizer de ser categórico (no caso,
pelo uso dos discursos reportados), mas, ao mesmo tempo, confere um peso de
inquestionabilidade – e aquilo que não é questionável, adquire o peso absoluto.
Percebe-se, então, que o “discurso noticiado”, mesmo sendo contestado ou
confirmado, sustenta a opinião do enunciador frente ao tema de que trata, uma vez que, além
de ser um discurso publicado em meios de comunicação, tendo se tornado de conhecimento
público, aproximam-se da temática abordada no texto. Além disso, conferem à voz do
enunciador um efeito de amenização à sua crítica, pois não é ele que afirma categoricamente
aquilo que defende ou repudia, mas sim, um outro – no caso, uma personalidade conhecida
publicamente – discurso que ele apropria como se fosse seu.
3.2.3 Discurso da arte
Ao analisarmos os artigos de opinião de Toledo e verificarmos a recuperação de
discursos de outrem nesses textos, observa-se que o enunciador recorre a outro tipo de
116
discurso que denominamos “discurso da arte”. Classificamos tal discurso dessa maneira por
ser recuperado ou de um livro ou mesmo de um filme específico, o que caracteriza a cultura
do autor dos textos em questão. Esses discursos, os quais têm características peculiares quanto
à linguagem e veiculam uma visão de mundo, dão sustentação ao posicionamento do
enunciador, já que se tratam de discursos respeitados.
Dentre os 25 artigos de opinião analisados neste trabalho, em 10 deles o enunciador
recupera esse tipo de discurso, o que caracteriza o estilo dos textos. A Tabela 3, apresentada a
seguir, ilustra a disposição desse tipo de discurso nos artigos de opinião de Toledo e as suas
formas de apreensão.
Tabela 3. Formas de apreensão do discurso da arte
Formas de apreensão do discurso
Tipos de discurso Estilo linear Estilo linear e
pictórico
Estilo pictórico
Discurso da arte
05 artigos de opinião 03 artigos de
opinião
02 artigos de
opinião
Como se pode observar, a forma de recuperação do “discurso da arte” mais recorrente
é o estilo linear, o qual, como visto nos outros tipos de discursos apresentados, caracteriza o
estilo dos artigos de opinião em análise. Deixando marcas visíveis no texto, o enunciador
recupera, principalmente, o “discurso da arte” em sua integridade, adaptando-o ao texto. Uma
vez que tratam de discursos literários ou de filmes, o enunciador, ao recuperá-los,
principalmente recorre a elementos nítidos para delimitar o seu discurso e o recuperado.
Sendo assim, o estilo linear é usado com maior freqüência que o estilo pictórico, o que mostra
o respeito ao discurso recuperado e também o grau de autoridade que ele exerce dentro dos
artigos de opinião.
Entretanto, assim como nos outros tipos de discursos recuperados nos textos em
análise, o enunciador apresenta o “discurso da arte” também pelo estilo pictórico, diluindo
esse discurso no seu. Essa diluição é feita, principalmente, por meio da leitura que o
enunciador faz do discurso artístico que recupera: ele reconta a história do filme ou do livro a
que recorre, de maneira a ressaltar questões e sentidos que lhe interessam Dessa forma, ao ser
117
apreendido pelo discurso pictórico, o discurso recuperado ganha um novo “colorido”, como
qualifica Bakhtin em seus estudos, que nesse caso se dá pelo novo sentido que adquire pela
leitura do enunciador e também pela diluição da voz de outrem na voz do enunciador.
O “discurso da arte”, então, o qual exerce um grau de autoridade no contexto em que é
usado, entremeia-se ao discurso do enunciador, ora marcado nitidamente no texto ora
“misturado” ao discurso do enunciador, caracterizando-os com um viés cultural. Além do
mais, esse tipo de discurso dá efeito de garantia à tomada de posição do enunciador, já que se
trata de um dizer respeitado, o qual é assegurado pelo enunciador. E esse discurso sustenta o
posicionamento do enunciador, como uma confirmação à sua voz.
Dentre os artigos de opinião analisados, os que apresentam o “discurso da arte”
somente pelo estilo linear como forma de apreensão são:
Anexo E: “Leoa de um lado, gata distraída do outro”
Anexo L: A mais estonteante das quartas-feiras
Anexo P: Tudo o que é sólido derrete ao sol dos trópicos
Anexo R: "Se não comparecerdes..."
Anexo W: Do sonho de 1968 à realidade do mensalão
Já os artigos de opinião em que há tanto a marcação nítida do discurso de outrem pelo
estilo linear, quanto a apreensão desse discurso pelo estilo pictórico, são:
Anexo K: “Nos labirintos do poder”
Anexo N: “O melão tentador e outras histórias”
118
Anexo U: ”Sobre causas, efeitos e trepar em árvores”
E os artigos de opinião em que há somente a recuperação pelo estilo pictórico são:
Anexo O: “O duplo estrago do bispo-bomba”
Anexo S: “A democracia americana ensaia sua volta”
Verifica-se, então, que mesmo sendo o estilo linear o mais recorrente, caracterizando
os textos, o estilo pictórico também é utilizado, servindo ambos para sustentar a opinião do
enunciador. Ao recuperar os “discursos da arte”, o enunciador transfere o sentido do discurso
recuperado para o tema abordado, apropriando-se deles para sustentar seu ponto de vista.
Além disso, o enunciador, ao recorrer ao “discurso da arte”, desvencilha sua voz julgadora de
um dizer categórico, pois ele não afirma sua crítica peremptoriamente; ela é veiculada pela
relação feita entre o discurso citado e aquele que o cita.
A escolha de um dos estilos linear ou pictórico feita pelo enunciador dá-se em
decorrência da ênfase que dá a esse discurso em face da opinião que defende sobre o tema.
Quando utiliza o estilo linear, vê-se que o enunciador põe-se a provar a referência literária ou
de filme feita, assegurada pela citação. Dessa forma, não se pode afirmar que o enunciador
criou ou fantasiou a história recuperada, pois ela está apresentada com sua plasticidade
própria. Ao mesmo tempo, o enunciador utiliza o estilo pictórico para recontar a história que
recupera, não deixando entrever que se trata de uma cópia, mas sim, de sua visão sobre o
texto. Isso se dá pois ele aponta no texto quem é o autor e o título da obra, referencializando a
citação, mas a citando com a voz do outro entremeada à sua.
No artigo de opinião “Sobre causas, efeitos e trepar em árvores” (TOLEDO, 2005u)
79
,
verifica-se que há as duas formas de tratamento do “discurso da arte” – linear e pictórico – o
que mostra que as duas formas de apreensão se dão nos textos de Toledo em que aparece esse
tipo de discurso. As características apresentadas em relação a esses dois estilos nesse texto
podem ser aplicadas nos outros artigos de opinião em que há a recuperação do “discurso da
arte”, por isso esse artigo é aqui recorrido.
79
Vide Anexo U.
119
Nele, o enunciador elucida sua opinião em relação ao movimento de jovens franceses
na época de 2005, que almejavam melhores condições de emprego na França. Seu
posicionamento é o de indignação e de contrariedade a esse evento, afirmando que este até
tinha causas consistentes, porém com reivindicações não muito coerentes às propostas
desejadas pelos jovens.
Para sustentar esse seu posicionamento, recupera o discurso do livro O Barão nas
Árvores, de Italo Calvino. Levando em consideração o enunciatário e também o julgamento
que faz em relação a esse acontecimento parisiense, o enunciador escolhe o livro como
referência, citando parte do seu enredo.
O povo pobre se inquieta, o governo treme. Não, não se trata da revolta dos
queimadores de carros, é outra, anterior, aquela, o leitor se lembra – a da
Bastilha, da guilhotina, da execução do rei. As notícias de Paris causam
excitação em Ombrosa, cidade italiana à margem do Mar da Ligúria, onde
um audacioso barão, tomado pela revolta contra o autoritarismo paterno e as
convenções sociais em geral, decidiu, no dia 15 de junho de 1767, quando
tinha 12 anos, refugiar-se em cima das árvores, e de lá nunca mais desceu,
passando uma vida inteira a pular de galho em galho e desenvolvendo
habilidades que lhe permitiram comer, estudar, escrever, caçar, lutar e amar
sem jamais pôr os pés no solo. (TOLEDO, 2005u, grifo do autor)
80
Nessa citação, é usado o estilo pictórico como forma de apresentação do discurso
recuperado, pois há uma mistura da voz literária com a voz do enunciador. Podemos
distingui-las assim:
Voz do “discurso da arte”:
O povo pobre se inquieta, o governo treme. (...) As notícias de Paris causam
excitação em Ombrosa, cidade italiana à margem do Mar da Ligúria, onde
um audacioso barão, tomado pela revolta contra o autoritarismo paterno e as
convenções sociais em geral, decidiu, no dia 15 de junho de 1767, quando
tinha 12 anos, refugiar-se em cima das árvores, (...) (TOLEDO, 2005u)
Voz do enunciador:
Não, não se trata da revolta dos queimadores de carros, é outra, anterior,
aquela, o leitor se lembra – a da Bastilha, da guilhotina, da execução do rei.
(TOLEDO, 2005u)
80
Vide Anexo U.
120
Essas vozes se distinguem pelo conteúdo veiculado e também pelos seus estilos. Na
voz literária, há a referência a dados do livro O Barão nas Árvores, que só podem ser
recuperados quando se recorre ao texto em sua integridade, além de ter um estilo poético; já a
voz do enunciador têm características do seu estilo, como o diálogo com o enunciatário.
Misturadas, caracterizam o estilo pictórico, pois entremeada à voz literária tem-se também
marcas do enunciador, como a maneira que a dispõe e a relata.
Após a citação, o enunciador afirma que se trata de uma história inventada, escrita no
livro O Barão nas Árvores. Apoiado nela, expõe seu posicionamento sobre a revolta dos
estudantes, afirmando que essa se tratou de uma luta sem consistência, assim como ocorreu
em Ombrosa, cidade fictícia do livro. Dessa forma, o “discurso da arte” vem sustentar a tese
defendida pelo enunciador: esse, estrategicamente, coloca o sentido do discurso recuperado
em uma relação de semelhança à opinião que defende, tratando ambas como manifestações
que não tiveram fundamento. Além disso, mais à frente no texto, relata o final da história do
livro: não se fez a revolução em Ombrosa. Ao colocar em relação de similitude a opinião que
defende sobre as manifestações em Paris e o discurso de O Barão nas Árvores, é como se o
enunciador dissesse: “Veja, assim como não deu certo a revolução em Ombrosa, também não
dará na Paris de 2005, já que ambas têm certas semelhanças, como as causas consistentes,
mas sem efeitos plausíveis”. Entretanto, essa afirmação não é feita categoricamente no texto
pela voz do enunciador, mas sim, por meio da relação que faz entre seu discurso e o discurso
recuperado. Essa transferência de sentido entre os discursos é feita no texto da seguinte
maneira:
Verificou-se então que prevaleciam, em Ombrosa, condições semelhantes às
da França. Ou, para dar a palavra ao narrador:
"Em suma, também entre nós existiam todas as causas da Revolução
Francesa. Só que não estávamos na França, e a revolução não se fez.
Vivemos num país onde se verificam sempre as causas, não os efeitos".
Eis uma característica que, mais ainda do que a de ter um ilustre filho a viver
entre as árvores, singulariza Ombrosa: ali só as causas se fazem presentes,
nunca os efeitos. Voltamos ao tempo presente, das notícias da França que
dão conta não da Bastilha, mas dos Hosni e Ahmed do cinturão de Paris, [...]
(TOLEDO, 2005u, grifo nosso).
Após recuperar o “discurso da arte” pelo estilo linear nesse trecho, o enunciador cita o
discurso do narrador do livro em sua integridade ("Em suma, também entre nós existiam todas
as causas da Revolução Francesa. Só que não estávamos na França, e a revolução não se fez.
121
Vivemos num país onde se verificam sempre as causas, não os efeitos". (TOLEDO, 2005u).
Conservando sua autonomia e plasticidade, a recuperação desse discurso dá o efeito de
credibilidade ao que é dito pelo enunciador, uma vez que se trata de um discurso com grau de
autoridade, e que tem seu sentido transferido para a temática do texto: o mesmo que ocorreu
em Ombrosa, está ocorrendo em Paris.
Em seguida, utilizando-se da expressão “Voltemos ao tempo presente” (TOLEDO,
2005u), o enunciador marca no texto que deve ser feita uma transferência de sentido entre o
discurso do livro e o tema abordado no texto. Por meio dessa relação de sentidos que é
estabelecida, é que se configura o posicionamento do enunciador, de que a Paris atual se faz
como Ombrosa: há causas sendo defendidas, mas os efeitos são desprezíveis. Seria como se
ele dissesse: “se não deu certo em Ombrosa, por que daria em Paris?” O enunciador não
afirma esse seu posicionamento categoricamente, mas o veicula pela relação que faz entre o
discurso citado e aquele que o cita. Portanto, para a apreensão de sua opinião é preciso que o
enunciatário reconheça e relacione os sentidos dos discursos, percebendo a indicação dada
pelo enunciador de que, assim como em Ombrosa, as manifestações de estudantes em Paris
não darão certo, já que também não têm efeitos consistentes. Sendo assim, o “discurso da
arte” apreendido tanto pelo estilo linear, quanto pelo estilo pictórico, ameniza a voz julgadora
do enunciador, pois sua opinião está diluída nesse discurso de outrem e somente será
apreendida quando o sentido do discurso citado e o do discurso do enunciador forem
relacionados. Além disso, por ter um grau de autoridade dentro do texto, já que são discursos
culturais/literários, dão sustentação ao ponto de vista defendido pelo enunciador. Isso se dá
pois, ao relacionar o “discurso da arte” com o seu, coloca-os em relação de semelhança,
indicando para o enunciatário os sentidos que deve recuperar, dando, ainda, um efeito de
prova à sua opinião.
E essa voz julgadora somente será interpretada se houver um enunciatário que
recupere o sentido do livro e também saiba sobre as causas e efeitos do movimento que estava
ocorrendo em Paris em 2005. Sendo assim, o enunciatário esperado dos textos em análise
trata-se de um que recupere tanto discursos de personalidades, quanto discursos da literatura
ou de filmes, e que também seja informado sobre os acontecimentos da atualidade.
Além do artigo de opinião apresentado, como visto no item 3.2.2., em “Tudo o que é
sólido derrete ao sol dos trópicos” (TOLEDO, 2005p), o enunciador recupera um poema de
João Cabral de Melo Neto, em que este descreve o estilo de jogo de Ademir da Guia, vereador
de São Paulo pelo PCdoB. Ele cita:
122
João Cabral de Melo Neto descreve seu estilo de jogo com precisão jamais
alcançada pelos cronistas esportivos – "Ademir impõe com seu jogo / o
ritmo do chumbo (e o peso), / da lesma, da câmara lenta, / do homem dentro
do pesadelo". (TOLEDO, 2005p)
Apropriando-se dessa citação, o enunciador sustenta seu posicionamento de que assim
como João Cabral tratou Ademir como um homem em câmera lenta, inflingindo um pesadelo
aos seus adversários, assim o fez quando entrou para a política. (“Eleito, pelo PCdoB,
vereador em São Paulo, pesadelo igual ao que infligia aos adversários passou a viver quando
foi acusado pelos assessores de embolsar-lhes parte dos salários”. (TOLEDO, 2005p)). Dessa
maneira, usando o “discurso da arte”, o enunciador confere ao texto um valor cultural, e ainda
sustenta seu posicionamento: não é só ele que desqualifica Ademir da Guia, mas também João
Cabral de Melo Neto. Além disso, não é ele que afirma categoricamente que Ademir é uma
lesma e causa pesadelos, mas João Cabral, dito que o enunciador se apropria, confirmando-o.
Portanto, como visto, ao recuperar o “discurso da arte”, o enunciador o apresenta
principalmente pelo estilo linear, indicando o respeito que tem sobre ele; mesmo quando o faz
pelo estilo pictórico, deixa características da autoria desses discursos, como a citação do autor
e do nome da obra. O “discurso da arte”, como os outros tipos de discursos usados nesses
textos, são usados para sustentar a opinião do enunciador, conferindo-lhe um valor de
credibilidade ao que é dito, além de terem um peso positivo no ideário nacional.
3.2.4 Discurso institucional
Como já apresentado na Tabela 1 deste capítulo, verifica-se que nos artigos de opinião
de Toledo o enunciador recupera também “discursos institucionais”. Tais discursos referem-se
a leis, discursos de alguma repartição pública, entre outros que se caracterizam por essa
nomeação. Nos textos de Toledo, dentre os 25 analisados, em 03 o enunciador recupera esse
tipo de discurso ao expor seu posicionamento sobre o tema recuperado no texto. Esses artigos
de opinião são: “Anedota de brasileiro” (TOLEDO, 2005q)
81
, no qual o enunciador trata do
81
Vide Anexo Q.
123
referendo sobre venda de armas de fogo no Brasil, recuperando leis que inviabilizam a
realização desse referendo; ““Se não comparecerdes...”” (TOLEDO, 2005r)
82
, no qual o
enunciador refere-se à declaração enviada pelo INSS ao seu contribuinte, dando-lhe um prazo
para a retirada de seus benefícios; e “A farsa cruel de um ponto de exclamação” (TOLEDO,
2005v), em que o enunciador aborda o tema da greve de professores nas universidades
públicas do Brasil, recuperando leis que dão o direito de greve a esse segmento.
Observa-se pela temática abordada nesses artigos de opinião que o enunciador trata de
questões referentes a decisões de instituições, como referendo, pagamento de contribuição e
greve. Sendo assim, a recuperação dos “discursos institucionais” é feita estrategicamente para
dar sustentação ao posicionamento do enunciador, uma vez que se referem à própria
instituição que é recuperada no texto.
O tratamento dado a esse discurso nos textos de Toledo é o de, principalmente, apoiar-
se neles, sustentando o posicionamento do enunciador. Uma vez tratam de discursos
institucionalizados, impõem respeito e poder, o que dá ênfase à opinião defendida pelo
enunciador. E por ter essa característica de ser um discurso de uma instituição, o qual deve ser
seguido pelos participantes e representantes do seu segmento, o enunciador, quando o
recupera, em sua maioria apreende-o pelo estilo linear. Dessa forma, mostra no texto o
distanciamento entre a voz recuperada e a voz do enunciador, enfatizando o poder ideológico
e de respeito que esse tipo de discurso exerce sobre a sociedade.
Dentre os 03 artigos de opinião em que há o discurso institucional, em apenas 01 deles
há uma mistura entre o estilo linear e o pictórico, sendo este caracterizado pela mistura do
discurso institucional ao discurso do enunciador. Essa diluição de um discurso no outro é feita
pela apresentação de leis e decretos ao longo do texto, entremeadas na voz do enunciador.
Assim como o “discurso da arte”, o “discurso institucional”, ao ser recuperado pelo estilo
linear, faz com que não se possa afirmar que as leis e decretos citados são invenções do
enunciador, já que são citadas com suas características primitivas. O estilo pictórico, por sua
vez, faz com que esse tipo de discurso dilua-se pelo texto, contaminando a voz do enunciador.
No artigo de opinião “Anedota de brasileiro” (TOLEDO, 2005q)
83
, o enunciador
transmite o “discurso institucional” tanto pelo estilo linear, quanto pelo estilo pictórico.
Portanto, usamo-lo como exemplo para mostrar como se dão as duas formas de apreensão
desse tipo de discurso e de que maneira ele sustenta o posicionamento do enunciador.
82
Vide Anexo R.
83
Vide Anexo Q.
124
Nesse artigo, o enunciador posiciona-se contrariamente ao referendo proposto pelo
governo Lula no ano de 2005, que questionava a proibição ou não do comércio de armas de
fogo no Brasil. Para sustentar esse seu posicionamento contrário, ao longo do texto o
enunciador recupera leis que foram promulgadas em anos anteriores, as quais contrariam a
execução da decisão favorável à questão proposta. Sendo assim, o enunciador defende que o
referendo, da maneira como foi proposto para a população, já teria uma resposta antes mesmo
de ter a votação executada: não se pode proibir o comércio de armas de fogo no Brasil.
Recuperando o “discurso institucional”, dá o efeito de prova ao seu posicionamento e a
incoerência do referendo. O enunciador afirma:
Para quem não está entendendo, voltemos aos pontos de partida desta
história. No dia 22 de dezembro de 2003, foi sancionada pelo presidente
Lula a Lei nº 10 826, apelidada de Estatuto do Desarmamento. Esse texto,
regulamentado pelo Decreto nº 5 123, de 1º de julho de 2004, determinou, ao
cabo de longos e acirrados debates no Congresso, quem pode possuir ou
portar armas, quando, onde e em que condições. O conjunto de disposições
então adotado não desmerece o nome de Estatuto do Desarmamento.
Dificultou, de modo considerável, a aquisição e o uso de armas de fogo no
país, para quem quer fazê-lo pelos meios legais. (TOLEDO, 2005q)
Recuperando o “discurso institucional”, que trata da Lei apelidada de Estatuto do
Desarmamento, o enunciador problematiza o tema abordado no texto, afirmando que foi
incoerente ter levado o povo às urnas para responder a um referendo que já tinha uma
resposta. O enunciador propõe-se a provar tal questão pela lei que recupera: essa tem como
decreto a distinção de quem pode ou não portar armas de fogo no Brasil. Portanto, de acordo
com o enunciador, seria incoerente a pergunta feita pelo governo no referendo, pois alguns
membros da sociedade têm o direito de porte de arma, portanto, precisam ter onde comprar
suas armas. Então, afirma:
Na verdade, se a proibição do comércio fosse para valer, a vitória do SIM
significaria a revogação de todo o restante da lei. Ficariam prejudicados os
numerosos artigos que cuidam de quem pode ter armas, e em que condições.
Se não se pode comprar, de que adianta contar com a permissão para ter?
(TOLEDO, 2005q)
Portanto, observa-se por esse artigo de opinião que o “discurso institucional” sustenta
e procura provar a tese do enunciador, dando a ela um efeito de credibilidade, já que são
125
discursos que veiculam direitos e deveres do cidadão. O enunciador, então, recorre ao
“discurso institucional” para, sustentado nele, afirmar que o referendo proposto foi
inconsistente e sem valia. Ao citar as leis do Estatuto do Desarmamento, relaciona-as
estrategicamente à questão apresentada (a adequação ou não da pergunta do referendo),
pondo-se a provar, por esse meio, que ela é incoerente, já que interfere no direito, garantido
por lei, de porte de arma de fogo no Brasil.
No primeiro trecho selecionado referente ao “discurso institucional”, vê-se que o
enunciador transmite esse discurso pelo estilo pictórico, diluindo-o no texto (No dia 22 de
dezembro de 2003, foi sancionada pelo presidente Lula a Lei nº 10 826, apelidada de Estatuto
do Desarmamento [...] (TOLEDO, 2005q)). Mesmo não deixando marcas visíveis no
enunciado da distinção entre seu discurso e o do outro, utiliza-o para provar e sustentar sua
opinião. Trata-se do estilo pictórico pois, entremeada à sua voz, o enunciador dialoga com leis
e suas datas de promulgação, como:
(...) foi sancionado pelo presidente Lula a Lei nº 10 826, apelidada de
Estatuto do Desarmamento. Esse texto, regulamentado pelo Decreto nº 5
123, de 1º de julho de 2004, determinou, ao cabo de longos e acirrados
debates no Congresso, quem pode possuir ou portar armas, quando, onde e
em que condições (...) (TOLEDO, 2005q)
Sobre tais leis, o enunciador implica seu julgamento, elucidando sua voz:
O conjunto de disposições então adotado não desmerece o nome de Estatuto
do Desarmamento. Dificultou, de modo considerável, a aquisição e o uso de
armas de fogo no país, para quem quer fazê-lo pelos meios legais.
(TOLEDO, 2005q)
No mesmo artigo de opinião, como afirmado, esse tipo de discurso também é
recuperado pelo estilo linear, como se pode observar neste trecho pelo uso das aspas:
Podem possuí-las, desde que as mantenham em casa ou no trabalho, todos
aqueles que comprovem "efetiva necessidade" disso, e desde que tenham no
mínimo 25 anos, não apresentem antecedentes criminais e passem nos testes
de "aptidão psicológica" e de "capacidade técnica para o manuseio de armas
de fogo", entre outras exigências. (TOLEDO, 2005q)
126
Observa-se que, mesmo utilizando o estilo linear como forma de apreensão desse tipo
de discurso, o enunciador o integra ao seu texto, fazendo modificações. Essas modificações
fazem com que o discurso recuperado passe a ser parte do discurso do enunciador,
entremeando-se nele. Entretanto, fica visível no texto que são vozes distintas, com autores
distintos, enfatizando o poder do “discurso institucional”. Além do mais, a transmissão do
discurso de outrem, marcada pelo uso das aspas, conserva a plasticidade primitiva do discurso
recuperado.
Observa-se também neste artigo de opinião que o enunciador tenta regular o sentido
do texto, característica do seu estilo. Dialogando com o enunciatário, chamado ao texto pelo
expressão “Para quem não está entendendo” e pela primeira pessoa do singular (“voltemos”),
o enunciador faz com que tanto aqueles que estão compreendendo os sentidos veiculados
quanto aqueles que não estão, considerem as afirmações que faz referentes às leis chamadas
ao texto. Dessa maneira, é preciso que o enunciatário faça essa relação de sentido e considere
as leis apresentadas, pois assim compreende o posicionamento do enunciador, respondendo-o
ativamente.
Além disso, ao recuperar as leis, vai construindo seu discurso como algo irrefutável,
pois considera que elas provam a inconsistência do referendo. Seria como se dissesse ao
leitor: “Está provado por lei que você foi enganado”. Entretanto, o enunciador não faz tal
afirmação categoricamente no texto, ela é habilmente dita pela relação feita entre os discursos
reportados (no caso, pelo “discurso institucional”) e também pela ironia, usada no final do
texto, que ridiculariza a proposta do referendo.
Em ““Se não comparecerdes..”” (TOLEDO, 2005r)
84
, o enunciador também recorre ao
discurso institucional, que se refere de uma carta enviada pelo INSS ao contribuinte, dando-
lhe um prazo para o recolhimento de seus benefícios. Ele cita no texto a carta em sua
integridade, fazendo suas asserções sobre ela, como a de que há um descaso do governo em
relação aos pensionistas e aposentados. Apoiado em discursos sobre o INSS na época, o
enunciador põe-se a provar que o prazo dado na carta para o recebimento dos benefícios não
foi pertinente, já que o INSS entrou em greve. Na carta enviada pelo INSS, afirma-se:
Comunico-vos que vosso pedido de Benefício será indeferido por desinteresse, se não
comparecerdes dentro de 10 dias a contar desta data.” (TOLEDO, 2005r, grifo do autor).
Sobre essa questão, o enunciador afirma:
84
Vide Anexo R.
127
Impressiona o ucasse desferido na penúltima linha contra o contribuinte: "...o
Benefício será indeferido se não comparecerdes..." Mais impressionante
ainda se torna quando se tem em conta que, antes de corridos os dez dias, o
INSS entrou em greve, parou tudo e que se danem os solicitantes, os
pleiteantes e os queixosos. Caso se queira mais uma dose de estupefação,
acrescente-se que a carta foi emitida em maio, as exigências foram
cumpridas, uma vez terminada a greve, e até agora nada. O benefício ainda
não foi concedido. (TOLEDO, 2005r)
Dessa maneira, baseado em discursos que circularam sobre o INSS, como a data de
postagem da carta e a greve no INSS, o enunciador dá um efeito de constatação à sua
proposição: o governo não respeita seus contribuintes, dificultando-lhes o recebimento de
seus direitos. Além disso, o enunciador questiona
128
enunciador confere a ela um valor de irrefutabilidade. É nesse sentido que consideramos que o
autor simula no texto uma voz crítica não-categórica, mas que é, ao mesmo tempo, elaborada
por ele como uma constatação.
129
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os artigos de opinião de Roberto Pompeu de Toledo publicados na revista Veja são
textos que veiculam posições acerca de acontecimentos sociais e políticos do mundo e do
Brasil, e assim se particularizam. Para tal, o enunciador, com um estilo próprio, confronta-se
com outras vozes, ora rebatendo-as, ora apoiando-se nelas, elucidando seu posicionamento.
Baseados nos estudos do Círculo de Bakhtin acerca da linguagem, objetivamos neste
trabalho verificar as formas de tratamento, recepção e transmissão das vozes sociais nos
artigos de opinião de Toledo. Enfocados principalmente no dialogismo, temática que permeia
toda a obra do Círculo, enfatizamos em nossas análises as relações dialógicas e ideológicas
intrínsecas à linguagem, as relações entre textos e também as relações entre sujeitos, dentre
elas, a relação com o enunciatário, uma vez que ele é relevante tanto para a configuração da
voz do enunciador quanto para a interpretação e apreensão dela. O enunciador, então, em
relação dialógica com o enunciatário, considera-o para as escolhas lingüísticas, textuais e
discursivas que faz para construir seu ponto de vista.
Nos artigos de opinião em análise, percebe-se que é uma tendência do estilo do autor a
contrariedade ao acontecimento tratado no texto. Defendendo valores como a ética, a moral, a
responsabilidade e a integridade política principalmente, o autor avalia os discursos que
chama ao texto sob esse viés, repudiando, assim, a corrupção política, beneficiamentos em
cargos públicos, a subordinação do Brasil a países estrangeiros, dentre outros. Uma vez que
faz parte do estilo desses textos a crítica negativa, espera-se deles a contra-argumentação à
temática abordada, que se refere a alguma notícia veiculada temporalmente próxima à
publicação do artigo na revista Veja. Assim, o cronótopo faz-se elemento fundador do
significado temático dos artigos de Toledo, pois é seu organizador. Dessa maneira, para que
se compreendam os sentidos veiculados nesses textos, é preciso que o enunciatário esteja
informado sobre os acontecimentos abordados e, ainda, recupere os sentidos subjacentes,
relacionando-os ao posicionamento defendido pelo autor do texto.
Esses textos, quando lidos de acordo com a periodicidade da revista, mostram-se
atuais tanto pela temática abordada quanto pelas marcas temporais deixadas ao longo dele.
Nos textos analisados, escritos entre julho e dezembro de 2005, o enunciador recupera eventos
130
da época, como cassação de deputados, morte de brasileiro na Inglaterra, venda de jogadores
para times estrangeiros, referendo sobre a venda de armas de fogo no Brasil, entre outros. E
há marcas dessa contemporaneidade no enunciado, como “na semana passada”, “na segunda-
feira passada”, “os últimos acontecimentos”, o que mostra a importância do contexto de
produção para a compreensão do texto e também a necessidade de um enunciatário informado
e atento aos acontecimentos políticos e sociais da atualidade.
Considerando a temporalidade desses textos é que passamos a tratá-los como “artigos
de opinião”, uma vez que, de acordo com a terminologia jornalística, o “ensaio” é o termo
atribuído a um suplemento especial do jornal ou revista, em que são analisados temas com
maior profundidade, baseados em outros textos/documentos. Já o “artigo de opinião”
caracteriza-se pela avaliação de alguma notícia enquanto os acontecimentos ainda estão
ocorrendo, e a opinião veiculada é baseada nos valores e na sensibilidade do próprio autor.
Mesmo que tenhamos preferido ficar fora da polêmica terminológica, não há porque não
adotar um uso já socialmente estabilizado no contexto desta pesquisa, em que interessa
principalmente a caracterizações dos textos.
O tratamento dado ao enunciatário desses textos também é característico do estilo
autoral. Chamado ao texto como “persona discursiva”, o enunciador o inclui no enunciado por
meio de algumas marcas, tais como pronomes e desinências verbais indicadores da primeira
pessoa do plural (nós); o vocábulo “leitor”, “leitora”; indicações de quem possa ser o leitor de
tais textos, como “para quem não sabe”, “para quem não está entendendo”, etc. Por esse
mecanismo, o enunciador, que tem um projeto de dizer, usa mecanismos para tentar regular o
sentido do texto, fazendo com que o enunciatário recupere os sentidos específicos propostos.
Assim, mesmo que não queira aderir a eles, o enunciatário precisa considerá-los, pois assim
responderá ativamente ao que lê. Com isso, instaura-se no texto um autor habilidoso na
construção do seu discurso, pois ressalta os sentidos que considera prioritários para a adesão à
sua avaliação.
Essa avaliação, caracterizada principalmente pela contestação e pela crítica, é
transmitida no texto principalmente por meio de um embate discursivo entre vozes sociais, as
quais são intrínsecas à linguagem e que também são chamadas ao texto. Os principais
recursos lingüísticos e discursivos usados pelo enunciador para tal fim e destacadas por nós
são 03: os adjetivos, a ironia e a recuperação de discursos de outrem, que foram analisados
sob a perspectiva bakhtiniana de linguagem, considerando-se, assim, as relações dialógicas
caracterizadoras da linguagem.
131
Os adjetivos são recorrentes nos artigos de opinião em análise, e, uma vez que têm
como característica semântica ser um modificador, exprimem um tom valorativo frente ao
objeto a que se referem. Utilizados pelo enunciador em contextos específicos, os adjetivos dão
aos artigos em análise, principalmente, o efeito de contrariedade e de crítica às temáticas
abordadas, caracterizando o estilo do autor. Como pressuposto teórico, podemos afirmar que
os adjetivos são escolhidos em face do enunciatário dos textos, tendo este que inseri-los no
contexto de produção para compreendê-los, e não tratá-los como signos isolados.
Ao serem utilizados como qualificadores, os adjetivos veiculam a tomada de posição
do enunciador diretamente, não amenizando sua crítica. Entretanto, algumas vezes os
adjetivos são usados ironicamente, relativizando, em termos, a voz crítica do enunciador –
estratégia que se dá também quando se recuperam discursos de outrem. Sendo assim, a voz
não pode ser classificada como categórica em um aspecto geral, mas sim, relativizada sob
alguns aspectos.
Ao tratarmos da ironia nos artigos de opinião de Toledo, então, observamos seu papel
nesses textos e como se configuram. Para tal, embasamo-nos em estudos de Brait (1996),
Huchteon (2000) e Ducrot (1987), observados pelo viés bakhtiniano. Dentre os 25 artigos
analisados, observou-se que apenas 03 não são plasmados pela ironia. Neles, o enunciador
apresenta sua voz crítica, veiculada principalmente por um embate discursivo com discursos
de outrem.
A ironia caracteriza-se em Toledo como uma das formas de apreensão e de
transmissão das vozes sociais, servindo como um instrumento de julgamento frente aos
acontecimentos do Brasil e do mundo que são tratados nos textos. Entretanto, ao mesmo
tempo em que a ironia tem um viés julgador, não a apresenta categoricamente, pois seu
sentido é apreendido pela inter-relação entre o dito e o não-dito, que não podem ser separados
na interpretação da ironia. Ao ser utilizada nos artigos de opinião de Toledo, a ironia
desvencilha a voz do enunciador de um dizer absoluto, pois, com ela, não se afirma
diretamente a crítica. Com a ironia, o sentido não é dado no enunciado, não está pronto, mas
está em construção, em processo, já que depende do reconhecimento do enunciatário e
também da interpretação dele. Entretanto, a crítica feita pela ironia é aguda e engenhosa, por
isso consideramos essa forma de discurso como um mecanismo que “pseudo-relativiza” a voz
do enunciador, já que a crítica ao seu alvo é aguda, mas amenizada pela sua forma de dizer.
A ironia monta um jogo interpretativo, sendo relevante para sua interpretação a relação
entre o enunciador, o enunciatário e o contexto de produção. O conteúdo do texto é assinalado
132
por valores atribuídos pelo enunciador, que deixa pistas que levam o enunciatário ao sentido
irônico. Como afirma Hutcheon (2000), a ironia é um jogo arriscado, pois o enunciatário
precisa reconhecer essas pistas e não interpretá-las “ao pé da letra”, mas sim, apreender o
inter-dito que há entre o enunciado e a proposição visada pelo enunciador na enunciação,
chegando a um terceiro sentido. Uma vez que os sentidos que a ironia desencadeia são
negociados com o outro, o enunciatário assume um papel ativo de interpretador, havendo uma
solidariedade implícita entre sujeitos (enunciador e enunciatário). Dessa forma, a ironia
caracteriza-se por uma relação dialógica entre vozes e sujeitos, já que há um não-dito
implicado no dito. Baseados em Passetti (1995), entendemos o dito como um discurso
absurdo, do qual o enunciador discorda, mas “finge” no enunciado concordar. Implicado nele
há um discurso sério, o qual o enunciador defende e concorda. Então, para compreender a
ironia, o enunciatário deve relacionar esses discursos dissonantes, não os tratando
separadamente. É nesse sentido, então, que tratamos a ironia como uma forma de discurso que
“pseudo-relativiza” a voz do enunciador, pois a crítica aguda só é compreendida ao se
relacionarem o dito e o não-dito.
Nesses textos, a ironia se constrói por meio de comparações entre discursos ou
situações distintas, que levam um sentido inusitado, absurdo, pois os elementos em
comparação têm pouca correspondência semântica; e também pelo uso de alguns adjetivos,
levando ao humor com um viés avaliador. As comparações podem ser consideradas como o
que é dito, o que é posto no enunciado, tendo um não-dito implícito, os quais, inter-
relacionados, levam a um terceiro sentido, o sentido irônico. Somente por meio da
interpretação desse embate discursivo é que se apreende a avaliação do enunciador. Os
adjetivos usados com o viés da ironia também são tratados no enunciado como um “discurso
absurdo”, mas que tem um sentido contrário na enunciação, ridicularizando o alvo a que se
refere.
A voz julgadora do enunciador é veiculada também pela recuperação de discursos de
outrem, os quais dão sustentação à argumentação feita no texto. Recorrendo a outros dizeres,
a outros saberes, o enunciador problematiza-os em seu texto, promovendo um embate entre o
seu discurso e o discurso citado. Ao recuperar esses discursos, posiciona-se diante deles,
escolhendo-os estrategicamente para veicular seu posicionamento frente à temática que
aborda no texto. Inserindo-os no contexto do artigo de opinião e perpassados por uma
avaliação, o enunciador, então, dá aos discursos que recupera um novo sentido.
133
Dentre os discursos recuperados nos textos, classificamo-los de acordo com suas
autorias e características semânticas, distinguindo: “discurso da personagem-tema”, que trata
de discursos que se referem à própria temática abordada no texto, seja ela uma personalidade,
ou mesmo um tema em si, como a greve em universidades públicas no Brasil; “discurso
noticiado”, que trata de discursos de personalidades renomadas no cenário nacional, que não a
personalidade temática do texto, e que se tornaram públicos; “discurso da arte”, que é o
discurso recuperado de livros ou filmes; e “discurso institucional”, que trata de leis, decretos,
entre outros discursos referentes a instituições. Percebe-se que não há uma homogeneidade de
tipos de discurso recuperados nesses artigos de opinião. Isso se dá pois o enunciador os
recupera em decorrência do posicionamento que defende em seu texto e da temática abordada.
As próprias autorias dos discursos recuperados e os sentidos que veiculam, impõem respeito,
o que sustenta a argumentação do enunciador ao problematizá-los com a temática abordada,
dando o efeito de credibilidade e de constatação ao que afirma. Trata-se, pois, do conhecido
“argumento de autoridade”, sobre o qual nos ensina a retórica.
O enunciador, ao recuperar discursos, utiliza tanto o estilo pictórico quanto o linear
para citá-los, sendo este, nos ensaios analisados, o usado com maior freqüência. Ao usar o
estilo linear, o enunciador deixa marcas visíveis no texto da diferenciação entre a voz citada e
a que a cita. Essas marcas se reconhecem principalmente pelo uso das aspas e também de
verbos que têm o sentido de “dizer”, “falar sobre algo”, introduzindo a citação, enfatizando a
distinção entre vozes. Já quando o enunciador utiliza o estilo pictórico, dilui a voz recuperada
na sua, não deixando marcas visíveis de diferenciação entre elas, dando o efeito de ser a
própria voz do enunciador a voz do outro.
Verificamos que o posicionamento do enunciador frente aos discursos recuperados é
tanto de concordância quanto de contestação a ele, dependendo da temática que aborda e do
ponto de vista que defende no texto. Quando recupera discursos da “personagem-tema”,
percebe-se que o enunciador se posiciona contrariamente a eles, principalmente. Isso se dá
pois os ensaios se caracterizam por uma contestação à temática abordada, criticando-a
negativamente. Assim, ao recuperar discursos da própria temática do texto, e contestá-los, o
enunciador enfatiza seu julgamento, pois se põe a provar que há nesses discursos falsidades
ou incoerências, sustentando o posicionamento que defende.
Ao recuperar “discursos noticiados”, o posicionamento do enunciador é tanto de
concordância quanto de contrariedade, não havendo uma avaliação pontual. Ele os avalia de
acordo com a temática abordada e com o posicionamento defendido, recuperando aqueles que
134
melhor sustentem sua discussão. Ao contestá-los, enfatiza a crítica elucidada ao longo do
texto, uma vez que são recuperados discursos que têm uma semelhança semântica à temática
de que trata. Ao confirmá-los, o enunciador os adota como corretos, reafirmando seu ponto de
vista. Observa-se que esse posicionamento de concordância ou contestação aos discursos da
“personagem-tema” e dos “discursos noticiados” também se dá nos “discursos da arte” e nos
“discursos institucionais” recuperados nos textos. Ao recuperá-los, o enunciador os utiliza
para sustentar sua argumentação, pois trata de discursos respeitados. Assim, ao contestar o
“discurso da arte” ou o “discurso institucional”, enfatiza seu posicionamento de contrariedade,
dando um efeito de constatação à sua opinião; e o mesmo se dá ao confirmá-los, pois mostra
que a literatura, a arte, ou as leis têm sentidos que correspondem ao seu posicionamento.
Verificamos que é mais recorrente nos textos analisados o uso do estilo linear para
citar o “discurso da arte” e o “discurso institucional”, mostrando o grau de autoridade que
exercem. Já quanto aos outros dois tipos de discurso, não há uma posição mais marcante
utilizado; dependerá da proposição do enunciador. Sobre o “discurso da arte”, ao delimitar
visivelmente o discurso recuperado e o seu, o enunciador não pode ser acusado de fantasioso
em relação à história que recupera, pois distingue nitidamente a voz do outro e a sua. Quando
utiliza o estilo pictórico como forma de citação desse tipo de discurso, o enunciador apresenta
a leitura que faz do filme ou livro que recupera, perpassando-o pelo seu ponto de vista. Assim,
relata o que é mais importante para sua argumentação, diluindo a voz citada na sua, não
podendo ser acusado de somente copiar o discurso de outrem.
O “discurso institucional” recebe a avaliação de concordância, principalmente, do
enunciador. Este se apóia nele para veicular sua crítica à temática abordada, dando o efeito de
constatação e de credibilidade ao que é dito. Por terem a característica de serem discursos
referentes a leis, ou decretos, são apresentados principalmente pelo estilo linear, marcando no
texto o grau de autoridade que exercem na sociedade. Recuperados em decorrência da
temática do texto, sustentam a argumentação do enunciador, já que são discursos que se
referem a direitos e deveres do cidadão.
Dessa forma, verificamos que o enunciador, ao recuperar discursos, o faz em
consonância com a temática abordada no texto e com o posicionamento que defende. O tipo
de discurso recuperado também é influenciado por essas características, dando sustentação à
argumentação do texto. Confrontados no interior do texto, esses discursos se diferenciam
pelas suas autorias e pelas características semânticas que apresentam, mas todos exercem uma
carga ideológica no contexto em que são inseridos. Além disso, o enunciador, ao recorrer a
135
outros dizeres, dá voz a um outro, desvencilhando-se de um dizer absoluto, uma vez que não
afirma diretamente sua crítica, mas a faz pelo jogo discursivo instaurado, nem por isso menos
contundente. Entretanto, ao recorrer a outros dizeres para sustentar sua avaliação, o
enunciador dá-lhe um efeito de constatação, como se mostrasse ao enunciatário que discursos
de outrem provam que sua opinião é correta. Com isso, a opinião do enunciador é mostrada
por ele como irrefutável, e o discurso que não se pode questionar tem um peso absoluto.
Nesse sentido, consideramos a recuperação de discursos de outrem como uma estratégia que
também “pseudo-relativiza” a voz crítica do enunciador, pois ele não afirma categoricamente
no texto sua avaliação, dá voz a um outro, mas ao fazê-lo, confere um efeito de constatação,
de irrefutabilidade ao seu dizer.
Os artigos de opinião de Toledo caracterizam-se, portanto, por um autor habilidoso e
perspicaz com o uso das palavras. Ao mesmo tempo em que ele recorre a maneiras sutis de
expressar sua opinião sobre as temáticas que aborda nos textos, faz críticas agudas e
engenhosas por meio dessas estratégias, o que requer também um enunciatário perspicaz e
bem informado, capaz de reconhecê-las e de interpretá-las, respondendo, assim, ativamente ao
que lê.
136
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143
ANEXOS
144
ANEXO A - Glória e desdita de um dono de butique (TOLEDO, 2005a)
Onde se revela a verdadeira identidade do homem que se passa por José Dirceu
Um dia, Carlos Henrique Gouveia de Melo sonhou ser José Dirceu e...
Melhor começar do começo. Surgiram razões, nas últimas semanas, para estranhar a
falta de coerência entre as diversas declarações e práticas do ex-ministro José Dirceu e suas
declarações e práticas do passado. Ele saiu do governo cheio de ardor. "Vou percorrer o
Brasil, vou mobilizar o PT para dar combate àqueles que querem interromper o processo
político democrático e querem desestabilizar o governo do presidente Lula", disse. Relevemos
os misteriosos agentes da interrupção da democracia e ignoremos o fato de que a
desestabilização do governo Lula se origina em seus próprios tremores internos. O que nos
interessa é essa idéia de "mobilizar" o partido. Ora, enquanto esteve no governo, Dirceu não
fez senão desmobilizá-lo!
Dias depois, uma tropa de choque de militantes, bandeiras do PT em punho, acolitou-o
na volta, que pretendia triunfal – acabou sendo constrangedoramente triunfal –, à Câmara dos
Deputados. O papel que ele representava era o de paladino da sagrada flama do partido, o
guardião de seus puros ideais. Ora, não foi ele que, como poderoso chefão do ministério, não
deu chance aos que apontavam a dissonância entre os rumos do governo e os antigos ideais do
partido? José Dirceu precipitava-se no novo papel traído pela inconsistência. Parecia às voltas
com uma crise de identidade. Quem sou eu? Que se espera de mim? Que espero eu mesmo de
mim?
Na transmissão do cargo de chefe da Casa Civil à ex-ministra das Minas e Energia
Dilma Rousseff, nova atropelada de papéis. "Camarada de armas" – foi assim que chamou a
ministra, militante, como ele, de movimentos nascidos com a intenção de dar combate armado
à ditadura militar. Num passo além, ele agora se fazia guerreiro – guerreiro como Simon
Bolívar, Garibaldi ou Che Guevara, a espada e o trabuco erguidos em defesa de justas e
nobres causas. Dilma Rousseff, sim, participou da chamada luta armada. Já Dirceu, em
diversos depoimentos anteriores, disse que chegou a treinar guerrilha, mas nunca a praticou.
"Não gostava daquilo, não me envolvi", alegou numa reportagem desta revista, em 2002.
Eis José Dirceu outra vez perdido no labirinto do ser e não ser. Ele próprio, numa
conversa com jornalistas, na semana passada, transcrita pelo Estado de S. Paulo de quarta-
feira, endossou as razões para crer que vive uma cruel crise de identidade ao afirmar:
"Descobri que eu sou dois, eu e o personagem Zé Dirceu". O conjunto de tais elementos leva
a uma única e inexorável conclusão. José Dirceu não existe. É uma invenção de Carlos
Henrique Gouveia de Melo.
Da biografia do ex-chefe da Casa Civil, caso alguém não se lembre, consta um período
de quatro anos em que viveu clandestinamente na pequena Cruzeiro do Oeste, no Paraná.
Fazia-se passar por um empresário sem nenhum interesse pela política, tanto que, quando o
viam com um jornal na mão, estava sempre aberto na página de esportes. Dizia-se corintiano
fanático. Acabou casando com a próspera dona da Clara Confecções, loja de roupas
femininas. Graças à ajuda dela, formou sua própria loja, o Magazine do Homem. O nome com
que se apresentava era Carlos Henrique Gouveia de Melo.
Diante dos últimos acontecimentos, começa-se a desconfiar que essa história tenha
sido contada ao inverso. Não foi José Dirceu quem inventou Carlos Henrique, mas Carlos
Henrique quem inventou José Dirceu. Não existe um José Dirceu de verdade. Existe um
145
Carlos Henrique. Um dia, cansado de Cruzeiro do Oeste e da monotonia da butique, Carlos
Henrique pôs-se à busca de novas aventuras, e, sob o pseudônimo de José Dirceu, trilhou uma
surpreendente carreira na política. No fundo, no entanto, continuou o mesmo pacato cidadão
que gosta, mesmo, é do Corinthians, daí que muita coisa, por falta de gosto e de experiência,
não tenha dado certo. Daí também tantas obscuras passagens na biografia de "José Dirceu" e
tantas vacilações em torno de seus papéis. Carlos Henrique não teve tempo de pensar o
personagem em todos os detalhes. Seria exigir demais do pobre dono do Magazine do
Homem.
• • •
146
ANEXO B - Nhô Lula e a tentativa do último milagre (TOLEDO, 2005b)
Algo de trágico se insinuou na pele desse presidente que tanto acreditou em si mesmo
Primeiro, a boa notícia: pelo que até agora aflorou do mar de denúncias que cerca o
governo, o presidente Lula parece realmente não ter tomado conhecimento das embrulhadas e
falcatruas praticadas em seu entorno, ou, se tomou, foi por notícia vaga e inconsistente.
Agora, a má notícia: pelo que até agora aflorou do mar de denúncias que cerca o governo, o
presidente Lula parece realmente não ter tomado conhecimento das embrulhadas e falcatruas
praticadas em seu entorno, ou, se tomou, foi por notícia vaga e inconsistente.
A boa notícia conforta quem não quer ver o país mergulhado num impasse que
conduza, de novo, à destituição do presidente, com toda a dor e o traumático sacolejo nas
instituições que isso significa. A má notícia decepciona os que acreditavam haver um
presidente a ocupar a Presidência. Os últimos acontecimentos confirmam a impressão, já
antiga, de que Lula, como executivo, preferiu refugiar-se nas artes da levitação. Ele não
governa. Prefere flutuar acima dos desagradáveis assuntos do dia-a-dia. Não lhe agrada ter as
mãos sobre o leme da administração. Prefere pairar acima, como gaivota.
O pecado original desta Presidência é ter confundido o começo com o fim. Ao se
consagrar nas urnas, na histórica eleição que levou um antigo metalúrgico ao posto máximo
do país, Lula ficou tão feliz, mas tão feliz, que a partir de então fez da existência um moto-
contínuo de comemorações. Realmente não foi pouco, para "o menino que vendia amendoim
e laranja no cais de Santos", como ele lembrou no discurso de posse, ter chegado aonde
chegou. Para qualquer um, na verdade, e não apenas para quem viveu infância de retirante e
adolescência de favelado, chegar à Presidência é uma proeza de gloriosas proporções. Só que
não é um fim em si mesma. É, ao mesmo tempo, um começo – o começo do desafio de, por
meio de ações diárias, minuciosas e persistentes, transformar o mandato em algo profícuo.
Lula ignorou que a vitória era um começo. Achou que era só um fim. Nesse engano, ele se
perdeu.
A agenda presidencial se constituiu, ao longo desses dois anos e meio de governo,
mais à feição das festividades que do trabalho. Os compromissos com astros da TV, do samba
ou da música caipira mereceram nela lugar privilegiado. O presidente, nessas ocasiões, sentia-
se em seu elemento. "Morram de inveja", disse aos jornalistas, ao posar para foto ao lado da
dançarina do É o Tchan!. As reuniões ministeriais eram ocasião para copiosas churrascadas.
E, para culminar, havia as viagens internacionais, meia centena, em dois anos e meio –
expressões de uma política externa que se queria tão revolucionária que ia mudar as relações
entre os povos. Enquanto se mendigava, nos quatro cantos do mundo, um lugar no Conselho
de Segurança, bom mesmo era receber dos estrangeiros os louros devidos ao espécime raro do
operário tornado presidente. De quebra, as viagens proporcionavam os prazeres do turismo,
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que outros se seguiriam? Não precisaria mais se mexer, já dominava o segredo da varinha de
condão. "Faça-se o Fome Zero", e o Fome Zero se faria. "Faça-se o maior programa social já
visto neste país", e o programa se faria. Faça-se a retomada do crescimento, a distribuição de
renda, o respeito pelo Brasil no mundo. "Nunca se fez tanta coisa", dizia, e o pior é que
acreditava nisso. Enquanto o presidente confiava na infalibilidade de suas mágicas, a
devassidão e a esbórnia corroíam as entranhas de seu governo.
E assim chegamos à festa de São João celebrada no Rancho do Torto enquanto
Brasília ardia na fogueira dos escândalos. Não, não foi uma nova edição do baile da Ilha
Fiscal. Na Ilha Fiscal, o governo imperial ofereceu uma faustosa recepção aos chilenos em
visita ao país, e os grandes do regime dançaram até 5 da manhã, sem saber que a conspirata
republicana estava na iminência de dar o bote. No Torto, dançou-se o forró sabendo que a
República ardia em chamas. Foi uma tentativa de perpetrar o último milagre: o de fazer crer
que a vida seguia, e no mesmo ambiente de celebração de sempre. Nhô Lula era no entanto
um rei nu, sob os farrapos de caipira. Algo não só de patético, mas de trágico, se insinuou,
com o veneno dos escândalos, na pele desse presidente que acreditou tanto em si mesmo.
148
ANEXO C - O futebol nas malhas do subdesenvolvimento (TOLEDO, 2005c)
O caso de Robinho é o último exemplo da submissão brasileira ao império das
metrópoles da bola
Quando o Brasil ganhou a Copa do Mundo de 1958, Nelson Rodrigues decretou o fim
de nosso complexo de vira-latas. "Já ninguém tem vergonha de sua condição nacional",
escreveu. "E as moças na rua, as datilógrafas, as comerciárias, as colegiais, andam pelas
calçadas com um charme de Joana d'Arc." O próprio Nelson, antes, usando o precioso
laboratório de análise do futebol, diagnosticara o complexo de vira-latas, traduzido pela
"inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo". A
primeira vitória numa Copa do Mundo teria operado até mesmo o milagre da reversão do país
de analfabetos que éramos então num país de letrados. Escreveu Nelson: "Se analfabetos
existiam, sumiram-se na vertigem do triunfo. A partir do momento em que o rei Gustavo da
Suécia veio apertar as mãos dos Pelés, dos Didis, todo mundo aqui sofreu uma alfabetização
súbita. Sujeitos que não sabiam se gato se escreve com 'x' iam ler a vitória no jornal".
Pois a notícia que hoje cabe levar ao grande cronista e dramaturgo, lá no assento
etéreo onde repousa, é que, quase meio século depois da redentora vitória na Suécia, a
condição de vira-latas abateu-se de volta, implacável e sinistra, sobre nós. E não por causa do
mensalão, dos Delúbios e dos Valérios. Ou melhor, por isso também, mas, e é isto que aqui
vai nos interessar, por força do mesmo futebol que Nelson Rodrigues imaginou com poderes
para resgatar a dignidade da pátria. Está aí o caso de Robinho, a última grande revelação dos
gramados brasileiros, para prová-lo.
Robinho, para quem não sabe, quer jogar no Real Madrid. A diferença, com relação
aos tempos de Nelson Rodrigues, começa por aí. Pelé nunca quis jogar no Real Madrid. Hoje,
craque brasileiro só se sente feliz ao mudar para o exterior. E não só para a Espanha ou a
Itália. Qualquer Turquia serve. Robinho tem um contrato com o Santos que estipula multa de
50 milhões de dólares para ser rompido. O Real Madrid dispõe-se a pagar 25 milhões de
dólares. Claro que depois se for revender o jogador o Real Madrid exigirá os 50 milhões e
mais alguma coisa. Mas para um time brasileiro? O Brasil que se enxergue. Paga a metade e
olhe lá. Robinho decidiu que não joga mais no Santos e se ausentou dos jogos e dos treinos.
Ele e o Real Madrid estão numa campanha para o Santos baixar o preço. Até a semana
passada, o Santos resistia, mas até quando? O Santos era o lado vira-latas da questão. Tinha
tudo para perder.
A imagem do capitão Bellini erguendo a taça Jules Rimet, no estádio Solna, em
Estocolmo, congelou-se num épico nacional. Para o orgulho brasileiro, equivaleu, digamos, à
imagem dos soldados americanos fincando sua bandeira na Ilha de Iwo Jima. Outro conhecido
profissional de imprensa da época, o humorista Don Rossé Cavaca, escreveu que, em matéria
de futebol, "subdesenvolvidos são os europeus". A palavra "subdesenvolvido" estava no auge.
Não tinham entrado em cena eufemismos como "em desenvolvimento" ou "emergente". O
Brasil era subdesenvolvido mesmo, e como doía!
Pois a notícia a transmitir, via ondas da eternidade, a Cavaca, que como Nelson
repousa no assento etéreo, é que regredimos, no futebol, ao estado de puro
subdesenvolvimento. O Brasil é um reles fornecedor de matéria-prima. E quem determina o
preço, como no caso dos botocudos que plantam cana-de-açúcar ou café, é o comprador
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estrangeiro. Os clubes nacionais começam os campeonatos com um determinado elenco e ao
longo dele vão perdendo pedaços. Quando se trata de promover um campeonato de seleções,
escolhe-se o mês de recesso dos campeonatos europeus. Já os campeonatos brasileiros... ora,
os campeonatos brasileiros. O universo do futebol arma-se de acordo com os interesses das
metrópoles.
O dinheiro, claro, é fator determinante nesse panorama, mas não é o único. O
subdesenvolvimento no futebol, como todo bom subdesenvolvimento, começa nas cabeças.
"Quero jogar no melhor time do mundo", diz Robinho, justificando sua preferência pelo Real
Madrid. O tal "melhor time do mundo" não ganhou um único campeonato no último ano, mas
vá lá – o Real Madrid é o Real Madrid. Outros vão para o Fenerbahce, da Turquia, ou o
Dínamo, da Ucrânia. Importa mesmo é fugir do Santos, do Flamengo, do Cruzeiro.
Prestigioso é o Lokomotiv Plovdiv, da Bulgária. Argumento corrente, entre torcedores e
jornalistas esportivos, é que Robinho deve jogar na Europa "para amadurecer". Nem Pelé nem
Tostão nem Gérson precisaram ir à Europa para amadurecer. Como é da lógica do
subdesenvolvimento, as mentes subjugaram-se uniformemente aos imperativos das
metrópoles.
P.S.: Esta página nesta semana escapou do mensalão, mas não foi longe. Ficou no tema do
escândalo. Além do escândalo configurado pela situação do futebol brasileiro em si, também
aqui há transações nebulosas, intermediários suspeitos e dinheiro que corre por obscuras vias.
A Polícia Federal, tão pressurosa ultimamente, bem poderia voltar sua atenção para as
transferências de jogadores para o exterior. Podia começar com o caso de Robinho.
150
ANEXO D - Uma furtiva lágrima (TOLEDO, 2005d)
Uma tentativa de explicar a origem da barafunda em que se meteram o governo e o
PT
Que se passava na cabeça deles? Eis o supremo enigma. A esta altura já emerge claro,
com base não só nos indícios como nos documentos, não só no que foi dito nos depoimentos
como, mais ainda, no que neles foi silenciado, que a grande obra do governo Lula foi a
montagem de uma gigantesca estrutura de compra de pessoas e solapamento das instituições
do Estado. Qual era a idéia por trás disso? Qual o projeto? O primeiro motivo de perplexidade
é a própria insistência num estratagema que, não faz muito, foi tentado, neste mesmo e pobre
país, com resultado desastroso para seus artífices. Se já não deu certo com Collor, por que ia
dar agora? O governo do PT lembra o de George W. Bush. Os Estados Unidos conheceram o
maior desastre militar de sua história, entre os anos 1960 e 1970, ao se enfiarem numa terra
estranha e se engajarem numa guerra impossível de ser ganha. Imaginava-se que a lição do
Vietnã tinha sido assimilada para não se repetir jamais. Pois, com o desastre ainda fresco na
memória histórica da nação, ainda assim lá vai W. Bush e enfia de novo o país numa terra
estranha, e engaja-o numa guerra impossível de ser ganha. Se não deu certo no Vietnã, por
que daria no Iraque?
Mas a questão principal não é essa. É o porquê. Por que fizeram isso? Com que
objetivo? Uma possível explicação começa com uma certa lágrima derramada em Havana, em
setembro de 2003. A lágrima escorreu do olho do então todo-poderoso chefe da Casa Civil,
José Dirceu, em visita oficial a Cuba, como membro da comitiva do presidente Lula, ao ser
abraçado por Fidel Castro. A saudação do comandante foi demais para ele. Não passou
despercebida, na ocasião, a fragilidade do coração do número 1 do gabinete, o "capitão do
time", como o classificava Lula. Mas a lágrima era também um manifesto político. Exprimia a
duradoura fé no regime personificado pelo comandante. Pouco antes, em Cuba, setenta
intelectuais opositores do regime tinham sido encarcerados e três pessoas executadas por
seqüestrar um barco. Dirceu não chorou por eles. O lado para o qual direcionou o choro
indicava um persistente desprezo pelo "Estado burguês". Para o dono da lágrima, apesar das
afirmações em contrário, e em desacordo com a conclusão a que uma ampla maioria das
esquerdas mundiais chegou, ao cabo de um doloroso processo de purgação de seus erros, a
democracia continuava um meio, não um fim.
Daí que a chegada ao poder devesse ser aproveitada para iniciar um processo ao
término do qual um outro regime, radioso e libertador, seria instalado no país. Desde logo se
desencadeou um movimento de pinça pelo qual, por um lado, os órgãos do Estado foram
assaltados pelos apparatchiks, seguindo a cartilha dos regimes totalitários, e por outro se saiu
comprando os apoios e silêncios disponíveis – e eles estão sempre disponíveis em abundância
– na praça. Assim se preparava o caminho para uma longa permanência no poder, durante a
qual se assistiria à derrocada do vício e ao triunfo da virtude. É paradoxal que, na montagem
de tal estratagema, Dirceu e os cabeças do partido sofressem a oposição da esquerda, ao
mesmo tempo em que cumulavam a direita de gentilezas. Eram conseqüências inevitáveis da
tática escolhida, semelhante à dos agentes secretos que se infiltram no ambiente onde lhes
cabe agir, nele se entrosam e com ele se confundem, sem levantar suspeitas, até o dia em que
se sentem seguros o bastante para começar a operar.
Se não isso, por quê? A hipótese aventada é no fundo uma homenagem a José Dirceu.
Qualquer outra, para a origem do festival de roubalheiras e safadezas que assola o país, lhe
151
seria mais desairosa. Esta lhe permite distinguir-se, no fim último, do esquema Collor. Diga-
se de passagem que aqui se insiste tanto em Dirceu porque não se é promovido a capitão do
time impunemente. Quanto a Lula, estava ocupado demais em festejar a vitória, e satisfeito
demais em ter quem governasse por ele, para se incomodar com tais questiúnculas.
Se tem um lado de homenagem, no entanto, a hipótese é ao mesmo tempo devastadora
para a reputação do ex-chefe da Casa Civil. Como é que ele foi imaginar que isso podia dar
certo? "Não podia dar, os senhores são muito atrapalhados", sentenciou a deputada Denise
Frossard, na CPI dos Correios, ao expor tese parecida de golpe nas instituições. Dirceu não
calculou o potencial explosivo da contradição em que estava montado, ao unir
revolucionários, oportunistas, corruptos e inocentes úteis no mesmo barco. Não levou em
conta logo a "contradição", palavra tão preciosa no dicionário marxista, e ela estourou-lhe na
cara com as denúncias de Roberto Jefferson. Não levou em conta, além disso, que, uma vez
solta, a corrupção impõe sua própria lógica, e que mesmo entre os melhores soldados o carrão
da moda, o apartamento de luxo e a casa na praia não demoram para virar objetivos em si
mesmos, delícias irrecusáveis, regalos com mais promessas de gozo e prazer do que o nirvana
da revolução.
152
ANEXO E - Leoa de um lado, gata distraída do outro (TOLEDO, 2005e)
Depoimento da mulher de Marcos Valério representou vitória estrondosa da família
sobre o Estado
Imagine-se o leitor, ou a leitora, morador(a) do exclusivo condomínio Retiro do Chalé,
ao sul de Belo Horizonte, perto da casa onde mora a senhora Renilda Santiago Fernandes de
Souza. Que sorte contar com uma vizinha como essa. A aparência, os modos, a fala, não
deixam dúvida – é uma pessoa em quem se pode confiar. É o tipo de pessoa a que se pode
recorrer de olhos fechados, se um dia surgir o problema de ter de deixar as crianças com
alguém.
Renilda é a mulher do hoje célebre Marcos Valério Fernandes de Souza, e não há
nenhuma ironia no que acima se disse dela. Seu depoimento na CPI dos Correios, na semana
153
mesmo pensamento, por estes Brasis tão ardentes de amor familiar e tão órfãos de respeito à
esfera pública? É muito fácil execrar "os políticos" e escandalizar-se com a corrupção. Raro é
examinar no mais recôndito da consciência como seria o próprio comportamento caso se
tivesse o Erário ao alcance da mão.
154
ANEXO F - Sapos, desculpas e proxenetas (TOLEDO, 2005f)
Do "vão ter que me engolir" à cafetina Jane: fecundos capítulos da novela do
mensalão
Em Zagallo já era feio. O então técnico da seleção tinha o rosto transtornado de fúria,
a voz cheia de rancor, e encarava a câmera de TV com ganas de pit bull ferido, quando
despejou sua famosa frase: "VOCES VÃO TER QUE ME ENGOLIR!". No presidente da
República, fica muito pior. O "eles vão ter que me engolir" destinado pelo presidente Lula aos
adversários na semana passada inscreve-se na galeria das grandes grosserias já disparadas
pelos presidentes do Brasil. Lembra o "Me esqueçam" do general João Figueiredo quando, em
sua última entrevista como presidente, o jornalista Alexandre Garcia lhe perguntou que
palavras gostaria de endereçar naquele momento ao povo brasileiro. Com a ameaça de
adentrar goela abaixo de uma parcela de brasileiros, o "Lulinha paz e amor" dava abrupta
marcha a ré em direção aos tempos espinhudos do sapo barbudo.
O presidente Lula tem andado exaltado em seus pronunciamentos. Um dia diz que
"ninguém tem mais moral e ética" do que ele, no outro que a "elite brasileira" não vai fazê-lo
baixar a cabeça. Por duas vezes, bateu na tecla de que, se se deve investigar até o fim as
denúncias que sacodem o país e punir os culpados, deve-se, também, absolver os inocentes e
pedir-lhes desculpas. "Que pelo menos a imprensa brasileira divulgue e peça desculpas
àqueles que foram acusados injustamente", disse, no mesmo discurso do "vão ter que me
engolir". É nessa hora que eleva o tom de voz e embica num fraseado compassado, sinal para
a claque dos comícios de que é hora de aplaudir. Fica a impressão de que a pregação que veio
antes, de punição aos culpados, foi, além de obrigatório tributo à obviedade, mero contraponto
ao apelo à absolvição, o ponto que realmente interessa ao presidente. "Vamos inocentar!",
isso, na verdade, é o que ele mais está querendo dizer.
• • •
Rica e criativa é a coleção de primeiras desculpas na atual série de escândalos –
aquelas explicações que primeiro vêm à cabeça dos implicados, quando apanhados fazendo o
que não se deve. A primeira justificativa do insuperável Marcos Valério para suas retiradas
em dinheiro vivo é que era para comprar vacas. Quando surgiu o nome da assessora do
deputado Paulo Rocha, então líder do PT na Câmara, entre os que freqüentavam o Banco
Rural, ele disse que ela costumava ir a um médico no mesmo prédio. O deputado João Paulo,
ex-presidente da Câmara, foi mais pitoresco. Disse que sua mulher foi ao Banco Rural para
pagar uma mensalidade de TV a cabo. Revelou-se depois que a senhora João Paulo retirara
50.000 reais da dadivosa conta dos favorecidos do petismo. As TVs a cabo ainda não cobram
tanto.
Na semana passada, Marcos Valério explicou que o tesoureiro do PTB, Emerson
Palmieri, viajou com ele para Portugal "como amigo". Ele estava "estressado" e queria
relaxar. A viagem foi realizada entre os dias 24 e 26 de janeiro deste ano. Três dias apenas,
dos quais é preciso descontar as cerca de dez horas de ida e dez de volta no avião. Claro que a
dupla viajou de primeira classe, mas, mesmo assim, vinte horas de avião são vinte horas de
avião – um período de confinamento num ambiente pequeno e fechado, com sacrifício para as
pernas e ronco permanente de motores nos ouvidos. O que sobrou de tempo certamente não
foi suficiente para um passeio vagabundo pelo charmoso centro de Lisboa, ou para apreciar o
pôr-do-sol à beira do Tejo, muito menos para uma escapada até as delícias serranas da vizinha
Sintra. Pobre amigo Palmieri. Só pode ter voltado com os nervos à flor da pele.
155
• • •
"Nossa!", reagiu alguém. Momento mais assustador do confronto de terça-feira foi
quando o deputado Roberto Jefferson disse ao ex-ministro José Dirceu: "Vossa excelência
provoca em mim os instintos mais primitivos". Que instintos seriam esses? O de bater,
esganar? São os que ocorrem mais fácil. O de matar, talvez? Nossa! Mas há outros instintos
primitivos. O de cheirar o outro, por exemplo, como os cães. O de morder. Ou... deve-se
dizer?... vá lá: o instinto sexual. Não, afastemos esse pensamento espúrio, essa idéia grotesca
de um entrevero sensual entre os dois titãs da novela do mensalão...
Mesmo porque a temporada já está por demais carregada dos selvagens e insidiosos
eflúvios do sexo. Primeiro foi a secretária Fernanda Karina ameaçando tirar a roupa – e os
mais maldosos enfatizariam nesse caso o sentido amedrontador do verbo "ameaçar". Depois,
durante o interrogatório de Simone Vasconcelos, a diretora financeira das empresas de
Marcos Valério, surgiu em cena a cafetina Jane Mary Corner, também conhecida como Jane
Maria Esquina. "A senhora conhece uma cafetina de Brasília chamada Jane?", perguntou o
senador Demostenes Torres. A depoente negou, indignada. É sempre assim. Pela lógica da
atual conjuntura, à negação do primeiro momento segue-se invariavelmente a confirmação no
dia seguinte. Naquele momento, o país assistia à aparição gloriosa da proxeneta do mensalão.
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ANEXO G - A mesma e triste direita de sempre (TOLEDO, 2005g)
Enquanto a esquerda entra em colapso, o outro lado persiste nos velhos e históricos
vícios
Que sucesso! A platéia ria, deleitada, desvanecia-se com as tiradas do palestrante,
embevecia-se com seus arroubos. Aplaudia, aplaudia. Era o deputado Roberto Jefferson,
apresentando-se num evento da Associação Comercial de São Paulo. Em princípio, como é de
praxe nos eventos organizados pela entidade, também este seria realizado em seu próprio
auditório. Mas, pelos telefonemas dos associados, pelo clima de expectativa e pela espécie de
frisson que se adivinhava no ar, os organizadores sentiram, dias antes, que desta vez o
auditório de oitenta lugares seria modesto demais. Alugaram o de um hotel próximo, o
Jaraguá, que, além de acomodar 280 pessoas sentadas, dispõe do reforço de uma sala anexa
com dois telões e outras 250 poltronas. E não só os lugares sentados foram todos ocupados,
como havia gente de pé, num e noutro ambiente, a recepcionar o palestrante com o
entusiasmo de uma platéia de adolescentes. Conclusão: a direita brasileira não tem jeito,
mesmo.
Primeiro, antes que o(a) leitor(a) se sinta desnorteado(a), ou até chocado(a), explique-
se o recurso à palavra "direita". Se a esquerda não tem nenhum problema em assumir-se como
tal, por que a direita tem? Isso não faz bem à política brasileira. Contribui para disfarçar
tendências e embaralhar o quadro partidário. Na França, onde se inventaram os conceitos de
"esquerda" e "direita", não existe esse pudor. "Sou de direita", confessa-se, com a mesma
naturalidade com que o outro lado se declara "de esquerda". Os direitistas são defensores da
ordem e do status quo e se orgulham disso. Há também a extrema-direita, liderada por Jean-
Marie Le Pen e defensora de bandeiras racistas, e esta sim tem adeptos envergonhados, que
jamais dirão em quem votam. Mas o eleitor de Jacques Chirac não tem problemas em se
assumir como de "direita", nem, antes dele, tinha o eleitor do general De Gaulle.
No Brasil, "direita" é praga. "Esquerda" é uma qualificação não só aceita como
desejada, "centro-esquerda" também tem potencial para acolher multidões e "centro" não fica
atrás. Já "direita"... Mais fácil encontrar quem se diga a serviço de Satanás. Com isso, a
balança das tendências políticas brasileiras – as tendências políticas declaradas, bem
entendido – apresenta-se como uma engenhoca defeituosa, grotescamente pensa para um
lado. É uma pena. Os conceitos de direita e esquerda, por mais que se procure desvalorizá-los,
nestes últimos tempos, ainda são úteis para marcar posições e clarear o jogo político.
Também não deve causar espanto a identificação de uma platéia da Associação
Comercial de São Paulo como "de direita". Pode-se presumir com segurança que a classe
representada nessa entidade comunga, em sua maioria, dos princípios de ordem, de defesa da
liberdade econômica e da aceitação das desigualdades sociais que caracteriza, grosso modo, o
pensamento direitista. Acrescente-se que a Associação Comercial de São Paulo foi presidida
durante muitos anos por um político que, embora tenha tanta ojeriza quanto todos os outros a
declarar-se como tal, construiu toda a carreira como um baluarte da direita – o ex-prefeito e
ex-governador Paulo Maluf. Reduto da "esquerda", ou da "centro-esquerda", é que a
Associação Comercial não é.
Se já estamos entendidos que não é pecado nem ofensa chamar a "direita" de "direita",
retomemos o fio da meada. A direita brasileira não se emenda, mesmo... Tem a tendência
irresistível a deixar-se cativar pelos políticos de discurso mistificador e reputação suspeita.
Roberto Jefferson é acusado de montar um esquema de corrupção nos Correios e em outros
157
recantos da máquina estatal e paraestatal. E, no entanto, é recebido na Associação Comercial
como o herói do momento. Mais condignamente o receberam os estudantes da Faculdade de
Direito da USP, no mesmo dia – com vaias. O fato de ter contribuído decisivamente para
estourar, com suas denúncias, um dos mais capilares esquemas de corrupção já montados no
país não o redime. O Brasil ficará melhor no dia em que tiver uma direita decente, que escolha
melhor seus ícones. E que, na questão dos bons costumes, se proponha a ser melhor do que o
outro lado, e não se contente em gozar um momento delicioso como o atual com o risinho
safado de quem diz: "Viu? Eles são como nós".
• • •
Quem mais fala nas CPIs em curso não é o depoente nem os inquisidores. É a
campainha do presidente, pedindo silêncio. "É inacreditável", dizia o senador Delcidio
Amaral, de dois em dois minutos, no depoimento do publicitário Duda Mendonça. Ele sofria
como o mestre-escola diante de uma malta de baderneiros. Já é de desconfiar que algo não vai
bem com um método de trabalho que permite sessões de dez, doze ou catorze horas. Não
bastasse isso, tem a conversalhada da turma dos fundos e os celulares que não merecem
descanso. A bagunça reinante explica a razão de tantas perguntas repetitivas. Uns não prestam
atenção nos outros.
158
ANEXO H - Um prodígio chamado Duda Mendonça (TOLEDO, 2005h)
Entre outras proezas, ele é responsável por jogar fora 460 milhões do contribuinte
paulistano
"Xô, corrupção." Assim pregava o primeiro comercial produzido por Duda Mendonça
para a campanha do PT, em 2002. A imagem era de um bando de ratos roendo a bandeira
nacional. "Ou a gente acaba com eles ou eles acabam com o Brasil", dizia o texto, antes de
soltar o "xô" que era a peça de resistência, o fecho de ouro, o bordão concebido para
impressionar e ficar na memória. Talvez o "xô" tenha sido pronunciado sem a devida energia.
Talvez tivesse sido proclamado com os dedos fazendo figa. Naquele mesmo momento em que
era espantada, no mundo de sonho dos anúncios, a corrupção se abria para o autor do "xô", no
mundo real, farta e generosa como o Mar Vermelho para Moisés. O anúncio do "xô" foi a
peça inaugural de uma campanha em que os pagamentos seriam feitos em ilhas caribenhas,
paradisíacas não apenas pelo sol generoso, ou em pacotes de dinheiro que a sócia do
marqueteiro ia diligentemente buscar na Avenida Paulista.
Curiosa figura do nosso tempo, esse Duda Mendonça. Tão emblemático de sua
categoria quanto Joãosinho Trinta dos carnavalescos, ele se apresentou à CPI dos Correios
com paletó escuro sobre camiseta escura. Nada de camisa branca e gravata. Ele é diferente.
Os publicitários, ou, pelo menos, boa parte dos publicitários, pretendem-se artistas, e ao
artista, como se sabe, não basta ser – é preciso parecer artista. Esse negócio de se apresentar
como o comum das pessoas fica para os artistas menores – um Carlos Drummond de
Andrade, que num sarau de poesia seria tomado pelo encarregado de recolher os ingressos,
um Graciliano Ramos, que continuaria a ter cara de amanuense mesmo num mundo onde não
existiam mais amanuenses. Mas o problema não é Duda Mendonça tomar ares de artista
quando, evidentemente, não é. O problema é ele tomar ares de simples publicitário, quando,
evidentemente, também não é – ou, pelo menos, não é só isso.
É muito mais. Ele faz milagres. Um deles foi vender a idéia de que Paulo Maluf é um
ser humano. Isso ocorreu durante a eleição para prefeito de São Paulo de 1992. Duda
Mendonça, contratado pelo veterano político, concebido e desenvolvido na incubadeira do
regime militar, teve a ousadia de inventar como símbolo da campanha... um coração! Nada
menos que um coração, órgão que, como é de geral conhecimento, Maluf não possui. O
empenho em operar na natureza mesma do candidato, transformando-o quase num vizinho a
quem se confiaria a chave de casa quando se vai viajar (quase, pois até Duda tem seus
limites), foi tão bem-sucedido que Maluf obteve, na ocasião, a única vitória em eleições
majoritárias pelo voto direto que ostenta em seu currículo.
Outro milagre foi incutir no eleitorado a noção de que o governo Lula seria um primor
de zelo, rigor e competência. Um anúncio da campanha de 2002 mostrava um grande
escritório, com uma sucessão de escrivaninhas, onde cérebros privilegiados estudavam cada
pormenor da realidade nacional. Lula passeava entre as mesas, com a desenvoltura do líder
seguro e confiável, dando tapinha nas costas de um, debruçando-se sobre o papel em que
outro trabalhava. Parecia a Nasa na véspera de lançamento espacial. Dava-se a entender que o
PT se preparava para o governo com idéias claras e soluções na ponta da língua. Lula
prometia lançar o foguete Brasil rumo ao futuro. Hoje esse anúncio virou comédia.
Curiosa figura do nosso tempo, essa do marqueteiro. Duda Mendonça foi de Maluf a
Lula, e ninguém achou nada de mais. Reclama-se do futebol de hoje porque os jogadores
vivem mudando de clube. Reclama-se do político que muda de partido. Mas ao marqueteiro
159
se permite que em um dia se entregue ao campeão da direita e no outro ao da esquerda, um
dia acenda velas a Jesus Cristo e no outro reze a Maomé. E no entanto seu poder vai além do
da maioria dos políticos. Na campanha de 1996 para a prefeitura de São Paulo, Duda
Mendonça inventou para o candidato Celso Pitta uma engenhoca a que deu o nome de "fura-
fila". Tratava-se de um fabuloso meio de transporte, capaz de vencer distâncias de modo
rápido e seguro, sobre trilhos que repousavam em vias suspensas.
O pior é que Pitta ganhou a eleição (mais um milagre) e teve mesmo de construir o
fura-fila. Foram gastos na obra exatos 468.688 000 reais, em valor atualizado, e o resultado
são estruturas que apodrecem em alguns recantos da cidade. A obra não foi concluída e talvez
jamais será, dada sua duvidosa utilidade. O responsável em última análise pelos 468.688 000
reais do contribuinte paulistano jogados fora é Duda Mendonça. E ainda bem que Marta
Suplicy não ganhou a última eleição em São Paulo. Duda Mendonça havia preparado para ela
(agora ele tinha trocado, também em âmbito municipal, Jesus por Maomé) um certo Céu
Saúde – majestosos palácios onde a população seria curada de suas moléstias.
Essa instituição do marqueteiro político, nas proporções que tomou no Brasil, tem jeito
de não ter similar no mundo. A política brasileira está clamando por um "Xô, marqueteiro".
160
ANEXO I - Huummm... Uau! Chi... Eureca! (TOLEDO, 2005i)
Do Brasil de Lula aos EUA de Bush, são muitos e variados os motivos para
exclamações
Huummm... O "huummm" é uma imprescindível ferramenta, no estoque dos
murmúrios e exclamações. Expressa uma mistura de dúvida com reticência, incredulidade
com desconfiança. Na semana passada, uma missão do governo brasileiro, chefiada pelo
embaixador Manoel Gomes Pereira, e composta ainda de um representante do Ministério da
Justiça e um do Ministério Público, andava para cá e para lá, em Londres, batendo à porta de
órgãos policiais, defensores dos direitos humanos e da comissão incumbida de investigar a
morte de Jean Charles de Menezes, o mineiro assassinado pela polícia britânica. O objetivo?
Bem... Informar-se, exigir apuração de responsabilidades, coisas assim. Huummm...
O governo brasileiro precisava mandar uma missão especial para esse fim? Não que
seja reprovável seu interesse pelo assunto. Pelo contrário, tem o dever de preocupar-se com a
sorte dos brasileiros no exterior. Mas o Brasil mantém em Londres uma embaixada e um
consulado. Eles poderiam, até com mais vantagem, conhecedores que são, por dever de ofício,
ou que devem ser, dos meandros da vida britânica, desincumbir-se da tarefa. Mas... Claro,
uma missão especial é mais vistosa. Garante uma cobertura de imprensa que as representações
permanentes, por operar numa base mais rotineira, nem sempre atraem. Huummm... Fica a
desconfiança de que até à tragédia de Jean Charles não se poupa o padrão Duda Mendonça de
governança marqueteira. Ainda mais que quem cuida do assunto é o Itamaraty, recanto do
governo tão chegado à marquetagem quanto a uma coleção de fracassos que vai de derrotadas
candidaturas a órgãos multilaterais a "alianças estratégicas" com países que lhe passam a
perna.
Huummm... Se o leitor viu o anúncio do governo convocando para a campanha de
vacinação contra a paralisia infantil, vai concordar que também merece um "huummm".
Como pano de fundo apareciam alegres bebês brincando com uma bola, um bonito filme que,
vai dito de passagem, deve ter custado um bom dinheiro – mas marcante, mesmo, foi a
atuação do ministro da Saúde. Enquanto os bebês evoluíam, ele, em primeiro plano, fazia um
discurso cheio de ternura, com graciosas entonações de voz. Huummm... O ministro... Como
se chama ele mesmo? É um tal de entra-e-sai no governo... Ah, sim, Saraiva Felipe (será que
está certo? ou ele tem se apresentado com nome e sobrenome invertidos?)... O ministro foi
chamado de "fofo" na coluna de Ancelmo Gois, no Globo. O governo Lula nos apronta cada
surpresa!
Uau!!! Estamos agora diante de uma exclamação bem diferente. Se o "huummm" se dá
num diapasão discreto e sutilmente irônico, o "uau" é uma aberta expressão de admiração, de
surpresa, de júbilo. Vem do "wow" do inglês. O ex-ministro José Dirceu tem dito e repetido
que os adversários não estão atrás dele, e sim do que ele significa. Uau! Que significa José
Dirceu? Sabe-se o que Lula significa, o que Brizola, Ulysses ou Tancredo significaram. Sabe-
se, para lembrar a mais preciosa flor do orquidário do ex-ministro, o que Fidel Castro
significa. Já Dirceu... Os jovens inventaram um novo jeito de se referir às pessoas com alto
conceito de si mesmas. São pessoas que "se acham", forma abreviada de "se acham o
máximo". Uau! Como se acha, esse Dirceu! Até merece congratulações, pela auto-estima lá
no céu, em meio à tormenta.
Chiiii... O "chi" exprime perigo. Emprega-se quando as coisas ficam feias, e, para dar
uma folga ao governo Lula, vai dedicado a George W. Bush. Escândalo não foi o pastor Pat
161
Robertson ter recomendado o assassinato de Hugo Chávez. Robertson é um notório
maluquinho da direita religiosa, que já disse disparates semelhantes. Escândalo foi o
Departamento de Estado ter classificado a recomendação do pastor de "inapropriada".
Inapropriada? A reação cairia bem nos lábios de um mordomo inglês a exibir seu domínio do
understatement, a arte, tão característica de sua nacionalidade, de conferir um cômico
abatimento ao real peso do que se quer dizer. Já num governo que se diz em guerra de vida ou
morte contra o terrorismo – chiiii –, é assustador. Dá margem à conclusão de que o governo
americano faz uma exceção ao terrorismo a favor.
Eureca! Será que alguém ainda se lembra do "eureca"? Quer dizer "achei", "descobri",
"encontrei a solução". A explicação é dedicada aos jovens, a quem a palavra deve soar tão
enigmática quanto "caluda" ou "homessa". Eureca! Há solução para a missão especial do
embaixador Manoel Gomes Pereira. Não é de esperar que, em Londres, ela tenha êxito em
apressar as investigações em torno do assassinato de Jean Charles, nem que tenha o condão de
agitar o assunto mais do que já está agitado na opinião pública inglesa. Mas, no Brasil, se
voltada para os casos nacionais de mortes praticadas pela polícia, aí, sim, encontraria um
campo de atuação muito mais fértil, e muito mais carente de seus bons ofícios. Temos
inclusive casos de estrangeiros, como o do chinês que morreu sob tortura depois de preso no
aeroporto, não faz muito. Aqui, sim, a missão teria tarefa útil a desempenhar.
162
ANEXO J - Uma bela cena num filme ruim (TOLEDO, 2005j)
Gabeira faz crer que quem sabe um dia sejam derrotadas a safadeza e a estultície
Severino José Cavalcanti Ferreira nasceu em João Alfredo, Pernambuco, em 1930. No
ano entre todos memorável de 1964, elegeu-se prefeito de sua cidade natal. Estava por cima.
Abrigava-o a legenda da UDN, partido que apoiou o golpe militar contra o governo Goulart.
Fernando Paulo Nagle Gabeira nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 1941. Em 1964, era
redator do Jornal do Brasil e no dia 1º de abril tentou entrar na fila da distribuição de armas
ao povo que seria promovida pelo almirante Cândido Aragão. Estava por baixo. Não havia
armas a distribuir, não havia resistência.
No ano de 1968, Severino Cavancanti cumpria seu primeiro mandato como deputado
estadual em Pernambuco. Agora pertencia à Arena, o partido que dava sustentação aos
governos militares. Fernando Gabeira selou, nesse mesmo ano, num encontro com um
militante mais antigo, na Praça Antero de Quental, no Leblon, seu ingresso num movimento
clandestino de combate ao regime. Era uma tarde bonita. Gabeira olhou em volta e estranhou
que tudo continuasse no mesmo lugar: as babás que passeavam com as crianças na praça, os
carrinhos da Kibon que vendiam sorvete na Avenida Delfim Moreira.
Em 1969, Gabeira integrou o grupo que seqüestrou o embaixador americano Charles
Burke Elbrick. Em 1971, Severino Cavalcanti foi eleito para o segundo dos sete mandatos de
deputado estadual que exerceria em Pernambuco. Em 1973, no exílio no Chile, Gabeira sofreu
nova derrota com o golpe que derrubou Salvador Allende do poder. Em 1975, Severino
Cavalcanti tornou-se o vice-líder da bancada da Arena da Assembléia pernambucana. Gabeira
agora vivia na Europa. Na Suécia, exerceu a função de condutor do metrô.
Em 1978, Severino Cavalcanti recebeu a medalha da Soberana Ordem dos Cavaleiros
do Estado de São Paulo e, no ano seguinte, a Pernambucana do Mérito, classe ouro. Em 1979,
Gabeira voltou ao Brasil, beneficiado pela anistia, e apresentou-se na Praia de Ipanema com
uma minúscula sunga de crochê. A sunga era um manifesto político. Significava que a política
do corpo se acrescentara a seu ideário. Em 1980, Severino Cavalcanti perpetrou sua primeira
ação de repercussão nacional ao denunciar o padre italiano Vito Miracapillo, que se recusara a
celebrar missa no dia 7 de setembro em protesto contra o regime. A denúncia foi acolhida
pelo ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel, e o padre, expulso do Brasil.
Se a vida de cada pessoa pudesse ser traduzida em rabiscos de eletrocardiograma, a de
Gabeira configuraria uma disparada de impulsos que desembestam em tropelia, enquanto a de
Severino Cavalcanti exibiria a linearidade da planície. Uma é complexa, a outra simples. A
primeira tem a marca da inquietação, responsável tanto por explorações inovadoras como por
equívocos, a segunda se nutre da acomodação fronteiriça e da cautela esperta. Esses dois
homens tão diferentes encontraram-se, em 1995, onde os diferentes devem mesmo se
encontrar: a Câmara dos Deputados. Por coincidência, iniciam no mesmo ano uma carreira
federal, Gabeira eleito pelo Partido Verde do Rio de Janeiro, Severino pelo PFL de
Pernambuco. Gabeira se destacaria por causas novas como a do meio ambiente ou polêmicas
como a descriminação da maconha. Severino, pela defesa do aumento de salário dos
deputados e pelo direito de nomear parentes para o serviço público.
Na terça-feira passada, quem assistiu à cena do deputado Fernando Gabeira, o dedo em
riste, investindo contra o colega Severino Cavancanti, durante sessão plenária da Câmara, viu
uma cena bela, de recuperar a crença no Parlamento. Como no começo desta história,
163
Severino estava por cima, encarapitado na presidência da mesa, e Gabeira por baixo, um
cavaleiro solitário no centro do redemoinho que cerca o microfone dos apartes. Naquela
manhã, a Folha de S.Paulo trouxera uma entrevista em que Severino Cavalcanti negava a
existência do mensalão e defendia que as punições no Congresso se limitassem a "censuras",
sem chegar ao rigor das cassações de mandatos.
"Vossa Excelência está se comportando de maneira indigna", começou Gabeira. Ele
falava com a fúria dos justos. Lembrou que até defender empresa acusada de explorar trabalho
escravo Severino já fez – é o caso de uma destilaria pernambucana para a qual fez gestões,
meses atrás. "Vossa Excelência está em contradição com o Brasil", acrescentou, fazendo-se
porta-voz de todos quantos querem puxar o Brasil para a frente, na face de alguém cujo
propósito notório é empurrá-lo para trás. É ironia da grossa que Gabeira, ícone da esquerda no
passado e hoje paladino das causas de vanguarda, atacasse um estado de coisas semeado por
obra e graça do atual governo enquanto a defesa ficava por conta de Severino. "A sua
presença na presidência da Câmara é um desastre para o Brasil e para a imagem do país",
disse ainda Gabeira, e encerrou prometendo iniciar um movimento para derrubá-lo. Ficou no
ar a esperança de que um dia, quem sabe, contra todas as evidências oferecidas pela hora
presente, possam ser derrotadas a mediocridade, a safadeza e a estultície.
164
ANEXO K - Nos labirintos do poder (TOLEDO, 2005k)
O leitor acha fácil a tarefa de abrir a porta para o augusto governante? Aprenda que
não
Governante esperto era aquele. Jamais escrevia o que quer que fosse e jamais assinou
um documento. Tinha sempre ao lado, nas audiências, o auxiliar chamado de "ministro da
Pena", cujas atribuições consistiam em anotar suas ordens. O governante falava baixo, pouco
movendo os lábios, o que obrigava o ministro da Pena a colar o ouvido junto à sua boca, qual
um microfone. Acresce que as ordens eram em geral confusas, o que duplicava o trabalho do
auxiliar – mas que sabedoria, que modo mais engenhoso de governar! Caso uma determinada
decisão fosse do agrado geral, seria mais uma prova de sua inigualável sapiência. Caso
desagradasse, a culpa seria do ministro, que não entendera suas ponderações.
O governante em questão é o antigo imperador da Etiópia Hailé Selassié, o "Escolhido
de Deus", o "Rei dos Reis", que governou de 1930 a 1974. Selassié era baixinho, o que
impunha a necessidade de um outro singular auxiliar a seu lado – o "colocador de almofadas".
Assim que ele se sentava no trono, esse profissional colocava uma almofada a seus pés. A
ação tinha de ser executada com rapidez e precisão, para que Sua Majestade não ficasse com
os pés a balançar ridiculamente no ar, como uma criança. Os mais distraídos argumentariam
que um trono de assento mais baixo resolveria mais simplesmente a questão. Mas e a
imponência? E o plano necessariamente mais alto em que se deve situar o soberano? O
colocador de almofadas era imprescindível mesmo nas viagens. A cada subida num trono,
entrava em ação. E, como os tronos podiam ser de diferentes alturas, levava almofadas de
diversas dimensões. No total, possuía 52 diferentes almofadas. Com o tempo, adquiriu tal
domínio de sua especialidade que era só pôr os olhos num trono e já sabia a qual almofada
recorrer.
Essas histórias estão em O Imperador, de Ryszard Kapuscinski, livro de 1978, mas só
agora lançado no Brasil (Companhia das Letras). Kapuscinski, jornalista polonês com muitos
anos de experiência na África, entrevistou antigos assessores e funcionários palacianos,
depois da deposição de Selassié, com a idéia de oferecer um quadro do regime visto de
dentro. Não bastasse o colocador de almofadas, havia também o abridor de portas do
imperador. Pensa o leitor que era tarefa fácil? Exigia perspicácia e treino para abri-las no
preciso instante – não cedo demais, para não dar a impressão de querer despachar logo o
monarca do salão, nem tarde demais, de modo a obrigá-lo a diminuir o passo, ou mesmo
parar.
A Hora das Nomeações consistia numa cerimônia em que, em filas, as pessoas se
aproximavam, uma a uma, do soberano, e, inclinadas até o chão, ouviam da imperial boca o
cargo para o qual tinham sido nomeadas. Os nomeados recuavam cheios de mesuras, mas,
assim que deixavam o salão, se tinham ganho posto que valia a pena, metamorfoseavam-se
em seres de postura firme e decidida. As cabeças, até há pouco capazes de manobras normais,
ganhavam, logo após a nomeação, segundo um dos entrevistados de Kapuscinski, "uma
extraordinária limitação de movimentos, passando a dispor de apenas dois: o de se voltar para
o chão, quando em presença do augusto senhor, e o de se voltar para o alto, quando em
presença das demais pessoas".
O nomeado precisava ter cuidado. Nada de avançar reformas ou projetos audaciosos.
Não que o imperador os desprezasse. O que não se podia era ousar passar-lhe à frente nas
iniciativas. Se um ministro desejasse introduzir modificações em sua área, era mister fazer o
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imperador crer que a idéia tinha nascido de seu próprio e privilegiado cérebro. "Para ser
sincero, devo admitir que o bondoso amo apreciava mais os maus ministros", conta um
depoente. Assim, ele ganhava chance "de se destacar, pelo contraste". Era do agrado do
imperador, por outro lado, que os ministros trabalhassem em favor dos próprios patrimônios.
"Não consigo me lembrar de um só caso em que o gracioso monarca tenha anulado uma
promoção ou expulsado alguém do palácio por corrupção", diz outro depoente. A ordem era:
"Corrompam-se à vontade, desde que permaneçam leais a mim!".
Seria fácil trazer as histórias do livro para circunstâncias mais próximas. Se tivessem
seguido a regra de nada escrever nem assinar documentos, por exemplo, muitos personagens
do presente escândalo brasileiro, de Genoínos a Severinos, estariam em melhor situação, e um
ex-presidente seria poupado do constrangimento de pedir que esquecessem o que escreveu.
Mas não é o que vem ao caso. O alcance do livro é muito maior. Embora tratando de uma
situação em particular, e das mais grotescas, oferece lições sobre o poder valiosas como as de
Maquiavel em O Príncipe. Ao ser deposto, Selassié foi conduzido até o pátio do palácio, onde
estava estacionado um Volkswagen. O oficial que o dirigia desceu, abriu a porta, puxou o
encosto do banco dianteiro e o convidou a acomodar-se atrás. "O quê? Vocês esperam que eu
entre num carro desses?", reagiu ele. Foi seu único protesto. Aquilo era o mais doloroso, em
toda aquela situação.
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ANEXO L - A mais estonteante das quartas-feiras (TOLEDO, 2005)
Notas sobre o dia em que Severino tombou de um lado e Roberto Jefferson do outro
Tudo tão Brasil... O dono do restaurante da Câmara capricha no jeitão de galã maduro
de novela do SBT, a cabeleira coroada por um laborioso topete, a gravata vermelha
caprichosamente armada sob o terno escuro, na hora entre todas triunfal de apresentar o
cheque, sim, "o" cheque, aquele. A seu lado, o mulherão de pernas bonitas, saltos altíssimos.
Ele, 54; ela, 30. Vai mostrar o cheque, mas aproveita o momento para uma oração: "Obrigado,
meu Deus, obrigado pela força, pelos meus filhos, pela família maravilhosa..." Era um tributo
à onda evangélico-carismática que assola o país. Tão Brasil... A contrição da prece em
oposição às sugestões da morenaça ao lado. A Bíblia e a Playboy em estado de alerta. No
momento culminante, o dono do restaurante levanta ao alto uma cópia ampliada do cheque,
tal o capitão Cafu ao exibir a taça do pentacampeonato. O caneco é nosso!
Foi uma quarta-feira estonteante. Se de manhã teve Sebastião Buani, o dono de
restaurante que pôs a nocaute o presidente da Câmara, à tarde seria votada pela Câmara a
cassação do deputado Roberto Jefferson. A Câmara, como se sabe – e, quem não sabia, ficou
sabendo agora, com a ampla divulgação de suas sessões – é a casa-da-mãe-joana. É lá que fica
esse famoso estabelecimento. Todo mundo conversa ou fala ao celular, ninguém presta
atenção em ninguém, e grande parte prefere, em vez de se sentar, ficar circulando ou
formando rodinha junto ao microfone de apartes. Assim ia a sessão, enquanto falavam o
relator/acusador e os advogados de defesa, na bagunça habitual, até que... Chegou a vez dele!
O ambiente transmudou-se. Silêncio absoluto. Respirações suspensas.
O Congresso parecia voltar aos grandes dias, o tempo dos grandes oradores. Carlos
Lacerda vai falar! E então era aquele frenesi, a tensa expectativa, depois o silêncio
reverencial. Ou, antes, nos tempos em que Machado de Assis cobria as sessões do Senado...
Eusébio de Queiroz vai falar!, Zacharias vai falar! "Nenhum tumulto nas sessões. A atenção
era grande e constante", escreveu o autor de Dom Casmurro, numa crônica célebre. Roberto
Jefferson vai falar! E ele realmente magnetizou a platéia, um virtuose das entonações que vão
lá em cima e descem cá em baixo em esmerada cadência, das pausas de fazer parar o coração,
do gesto singelo de imitar um aviãozinho quando disse que o presidente Lula gosta, mesmo, é
de voar. Tão Brasil de hoje... O homem que confessadamente sumiu com 4 milhões de reais e,
também confessadamente, uma vez reuniu sua bancada para saber se queria receber o
mensalão é o único capaz de silenciar a Câmara.
"Saudade, ai que saudade do baixo clero." Era o que devia estar pensando Severino
Cavalcanti naquele momento. O repórter Diego Escosteguy contou, em O Estado de S. Paulo,
que assim que recebeu a notícia de que tinha aparecido o famoso cheque o presidente da
Câmara olhou para o chão e não disse nada. Fez-se silêncio na sala de sua casa, cheia de
assessores e advogados. Saudade do baixo clero... Severino é a típica vítima da síndrome do
passo maior que a perna. Se tivesse ficado no seu canto, estaria tocando a vidinha, praticando
em paz um golpezinho aqui e outro acolá... Agora, restava-lhe o silêncio, o segundo grande
silêncio do dia, a cara de caranguejo, como descobriu o genial cartunista Loredano, enterrada
no chão.
A assessoria de Severino dá o que pensar. Nela pontificou, nestes dias críticos, o chefe
da assessoria jurídica da Câmara, Marcos Vasconcelos. Ele é da assessoria da casa como um
todo, deve zelar pela integridade e pela respeitabilidade da instituição, e, no entanto,
mergulhou de cabeça na defesa pessoal de um chefe bichado até as vísceras. Severino baixou
167
as armas, diante do cheque fatídico, mas não sem antes praticar uma última indignidade: pôs a
culpa num morto, e logo um filho morto – o filho, vitimado num desastre de automóvel, teria
sido, ele, sim, o beneficiário do cheque, para cobrir despesas de campanha.
A quarta-feira gorda terminou num clima alucinatório. Na janela do apartamento
brasiliense de Roberto Jefferson, vislumbrava-se, à noite, a sombra de um garçom que servia
champanhe. Comemorava-se. Pouco antes ele tinha sido cassado por seus pares. E
comemorava-se. Antes, Jefferson se despedira dos jornalistas dizendo: "Esta é a última
semana de inverno. A primavera está chegando". Um enigmático fecho, de poéticas
ressonâncias, para uma ópera-bufa. Estaria chegando a primavera da democracia brasileira,
depois do inverno de todas as vilezas? Sempre se espera que, desta vez, vamos. Depois de
Collor, jamais seríamos os mesmos. Depois dos anões do Orçamento, jamais seríamos os
mesmos. Mas somos os mesmos. E alguém duvida que Severino, renunciando, será
reconduzido pelo fiel eleitorado? Ou o bispo Rodrigues, se escapar da cadeia, ou o Valdemar?
Alguém duvida que a filha de Roberto Jefferson, hoje vereadora no Rio de Janeiro, colherá
estrondosa votação? Tão Brasil... Quanto mais pensamos que nos mexemos, mais
continuamos no mesmo lugar.
168
ANEXO M - Era muita coisa contra o pequeno Fernando (TOLEDO, 2005m)
O que há de exemplar na história do menino que caiu no bueiro e foi tragado pelas
águas, em São Paulo
O menino Fernando, de 4 anos, vinha brincando e pulando, esperto como sempre, pelo
canteiro central de uma movimentada avenida de São Paulo, ao cair da tarde do domingo 18,
quando, num passo em falso, caiu num buraco. Ou melhor, não propriamente num buraco,
mas num bueiro. Ou, melhor ainda, nem bem num bueiro, mas numa espécie de poço. A mãe,
que vinha com ele, viu o menino desaparecer debaixo do chão. Fernando foi tragado para o
reino sombrio das galerias subterrâneas de água da cidade. Na quinta-feira passada, os
bombeiros ainda escarafunchavam aquelas funduras. Não havia esperança de resgatar o
menino vivo. Talvez nem morto.
O escorregão que precipitou Fernando para dentro do poço foi apenas o último elo de
uma cadeia de infortúnios que o levou ao encontro do fim ingrato. Recuperar, elo por elo, a
cadeia que o vitimou é juntar as peças que compõem uma história típica do país em que
vivemos. O primeiro elo é a condição de menino pobre. Fernando morava, com os pais, no
Jardim Damasceno, na região, desesperadamente pobre, da Brasilândia. É uma brincadeira de
mau gosto dos loteadores de lugares desse tipo lhes darem o nome de "jardim". Não há jardins
neles. Também não há praças. O acidente ocorreu em outra região, longe de casa. Foi na
Avenida Inajar de Sousa, bairro da Freguesia do Ó, onde ele participara de uma festinha de
criança. A Freguesia do Ó é melhor, muito melhor, do que o Jardim Damasceno. Mas é pior,
muito pior, do que a Vila Nova Conceição ou Higienópolis, bairros ricos, onde o equipamento
urbano é menos deteriorado.
O segundo elo é ter cabido a Fernando viver numa cidade historicamente especializada
em rasgar avenidas onde antes corriam, a céu aberto, rios ou córregos. Instalam-se as avenidas
em cima e os córregos ficam aprisionados, embaixo da terra. É o caso da Avenida Inajar de
Sousa. Trata-se de situação que, entre outros efeitos indesejáveis, facilita as enchentes, ao
sufocar os escoadouros naturais debaixo de um leito de asfalto. A Inajar de Sousa assenta-se
sobre um córrego importante, o Cabuçu, afluente do Rio Tietê. Aquilo que de início
chamamos de bueiro, e depois corrigimos para poço, na verdade não é uma coisa nem outra.
O nome técnico é "posto de visita". É um buraco pelo qual se esgueiram os operários e os
engenheiros quando necessitam inspecionar as galerias de água, lá embaixo. Isso quer dizer
que o menino Fernando teve o azar de cair num buraco grande, capaz de engolir com folga
seu pequeno corpo, e ainda por cima acabou por mergulhar num fluxo de água volumoso,
onde dificilmente escaparia ao afogamento.
O próximo elo na cadeia de infortúnios é o menino ter nascido num país de ladrões,
alguns de grande porte, como os que freqüentam os escândalos político-empresariais, e outros
de miúdas, ou miudíssimas proporções, desesperados filhos da miséria, mas todos ladrões. Ele
caiu no buraco porque estava destampado. E estava destampado porque roubaram a tampa. É
espantoso o que se rouba de equipamento urbano – fios, placas de sinalização – no Brasil. A
Telefônica, concessionária da telefonia em São Paulo, contabilizou 1.700 quilômetros de fios
roubados no primeiro semestre do ano, no estado. A CET, órgão que controla o trânsito na
cidade de São Paulo, repõe dez placas de sinalização a cada dia, em razão de roubo ou
vandalismo, e mesmo assim não consegue repor tudo o que seria necessário. No caso do
buraco em que caiu Fernando, ele deveria estar coberto por uma tampa de ferro. Há 57.000
tampas dessas na cidade. Quinhentas são repostas por mês. Num número ignorado mas
169
certamente grande de sumiços, as tampas nem são repostas. O roubo de tampas decorre do
feliz casamento da miséria com o crime organizado. A miséria fornece a mão-de-obra de que
se aproveitam as redes de receptadores e o comércio de ferro-velho. Uma tampa como a da
Avenida Inajar de Sousa custa 150 reais à prefeitura de São Paulo. O ladrãozinho a vende por
talvez 10% disso ao interessado final.
O último elo é a debilidade do poder público no Brasil. A polícia devia coibir os
roubos, mas... Já se sabe. As prefeituras, ou os governos estaduais, ou o federal, deviam repor
de imediato os respectivos equipamentos roubados, mas... Mesmo que não haja corrupção,
incompetência ou má vontade, o que freqüentemente é o caso, o Estado, seja em que nível for,
nunca dá conta. São questões que o ultrapassam. O buraco em que caiu o menino, segundo os
moradores do local, estava sem tampa havia muito tempo. Cobriam-no duas pedras, e mesmo
assim só pela metade.
Havia fatores demais conspirando contra a sorte do pequeno Fernando, naquele
momento fatídico em que ele pousou o pé no vazio e desapareceu debaixo da avenida, ao
voltar da festinha. O secretário municipal Walter Feldman fez uma visita de solidariedade à
família. Encontrou a mãe chocada, mas em todo caso capaz de manter um diálogo. O pai não.
Permaneceu deitado o tempo todo, com uma toalha cobrindo o rosto.
170
ANEXO N - O melão tentador e outras histórias (TOLEDO, 2005n)
Variações em torno desse singular exemplar do gênero humano que é o juiz de futebol
Antes, eles só se vestiam de preto. Já no uniforme se denunciavam como figuras
cavernosas, urubus azarentos, anjos maus do luto e do agouro. Depois, assim como os padres,
foram liberados do traje funéreo. E os juízes de futebol passaram a se apresentar com camisas
e calções de outras cores. Numa outra e mais revolucionária mudança, e ao contrário do que
acontece entre os padres, mulheres passaram a ser admitidas em seu meio. Uma coisa, porém,
não mudou por mais que as camisas sejam azuis ou amarelas, em vez de pretas, e as coxas
sejam roliças e suaves, em vez de ásperas e peludas. O juiz é um salafrário. Todo juiz é
culpado até prova em contrário. Pensando bem, é culpado mesmo com prova em contrário.
Já quando ele entra no gramado, é recebido com vaia. Não há caso similar, em
nenhuma outra atividade humana. É a "vaia preventiva", como bem chamou o colunista Luiz
Zanin, no Estado de S. Paulo. Os minutos que antecedem o jogo são festivos. Ninguém ainda
tem motivo para queixa. As torcidas cantam. Paira no ar aquela eletricidade em parte feita de
alegria, em parte de tensa expectativa. Então desponta em campo "sua senhoria", como era
chamado, ou talvez ainda seja, pela crônica esportiva, e desaba sobre ela, bem como sobre os
bandeirinhas, que a escoltam, uma vaia estrondosa, avassaladora, acachapante. É o único
momento em que o estádio todo se une. Durante o jogo o juiz será vaiado por uma ou outra
torcida, mas agora são as duas juntas, e mesmo os eventuais neutros, e talvez até os
estrangeiros presentes sem outro propósito senão fazer turismo, que se irmanam num
desmoralizante uníssono. Trata-se de um dos mais antigos e mais sagrados rituais do futebol.
Ele não fez nada ainda, nem de certo nem de errado. Por isso mesmo, merece vaia.
A quadrilha dos gramados denunciada na última edição desta revista pôs em evidência
essa extraordinária variante do gênero humano que é o juiz de futebol. Que culpas, que
necessidade de expiações colossais leva alguém a abraçar tal profissão? Um comercial de
televisão de pouco tempo atrás mostrava Ronaldinho Gaúcho, ainda menino, metido num
uniforme de juiz e de apito na boca. "Eu não queria ser jogador, queria ser juiz", dizia ele. Até
que um dia chutou uma lata de refrigerante e descobriu sua verdadeira vocação. O comercial
provocava pasmo e hilaridade, menos pelo paradoxo de um craque, e um craque do calibre de
Ronaldinho Gaúcho, estar a apregoar que queria mesmo era ser juiz, mas, mais ainda, pelo
fato de um garoto dizer que queria ser juiz. Não há isso. Juiz de futebol é profissão com a qual
não se sonha na infância.
Um juiz pode ser honestíssimo, a grande maioria deles sem dúvida é honesta, mas o
protótipo da classe, irremediavelmente, é o juiz ladrão. Sobre esse personagem correm, desde
os primórdios do futebol, lendas espantosas. Há a história do juiz tão ladrão, mas tão ladrão,
que se vendeu para os dois lados, e passou o jogo todo roubando descaradamente, ora para um
time, ora para o outro. Aparentada a essa é a do juiz tão ladrão, mas tão ladrão, que os times
costumavam juntar-se e pagar-lhe um contra-suborno, para que não roubasse.
No atual escândalo, dignos de entrar no repertório são os casos em que o juiz Edilson
Pereira de Carvalho confessa que não conseguiu roubar como queria. No jogo Juventude x
Figueirense, ele devia fazer o Juventude ganhar, mas ganhou o Figueirense – 4 a 1. "O
Edmundo jogou demais", desculpou-se. No jogo Santos x Corinthians, o serviço devia ser
feito para o Corinthians, mas ganhou o Santos – 4 a 2. As escutas telefônicas revelam um
Edilson abatido com o fracasso e ansioso por se recuperar no jogo seguinte. Estava em jogo
sua reputação. Ele não podia suportar o vexame da inépcia na prática da ladroagem.
171
O juiz desonesto, nos tempos heróicos do futebol, era chamado pelo romântico
qualificativo de "gaveteiro". No futebol de São Paulo, fama de gaveteiro por excelência coube
durante muitos anos a um personagem célebre em seu tempo, João Etzel Filho. É atribuída a
ele uma história aproveitada no filme Boleiros, de Ugo Giorgetti, aquela em que o juiz cansa
de mandar repetir um pênalti, batido por um jogador inepto, e decide, ele próprio, impedir
aquele jogador de tentar de novo. Que o time arrumasse outro cobrador. Etzel não chegou a
admitir que roubava, mas se vangloriava de saber apitar "politicamente". Seja lá isso o que
for, não deve ser boa coisa.
Uma vez, durante um jogo Palmeiras x Portuguesa, um torcedor junto do alambrado
insistia em chamar a atenção de Etzel para um melão que tinha na mão. O juiz olhava para o
torcedor e este lhe apontava o melão. Olhava, e lá vinha o melão. Terminado o jogo, Etzel foi
perguntar ao homem que diabos significava aquilo. O torcedor explicou: dentro do melão
estava escondido um dinheiro para sua senhoria. Etzel, ao contar essa história, dizia que
reagiu indignado e denunciou o caso à federação, mas sabe-se como é – melão, assim como
mensalão, só se oferece a quem se sabe de antemão que tende a apreciá-los.
172
ANEXO O - O duplo estrago do bispo-bomba (TOLEDO, 2005o)
Dom Cappio embaralhou tanto o projeto do São Francisco quanto a doutrina católica
sobre o suicídio
Os monges budistas que se opunham à presença dos Estados Unidos no Vietnã, nos
anos 60, tiveram no suicídio sua arma. Eles surgiam de repente, em algum ponto de Saigon, a
capital do então Vietnã do Sul, e formavam um círculo, com um deles no meio. Os que
estavam em volta jogavam gasolina no do meio. Este sacava de um fósforo e ateava-se fogo.
Os religiosos feitos línguas de fogo no meio da rua desempenharam papel decisivo na causa
que levaria os americanos à derrota. Anos depois, o recurso ao suicídio foi retomado pelo Islã.
Entraram na moda os homens-bomba que em nome de Alá se explodem em Israel e no Iraque,
em Madri e em Londres. O grau de perversidade, na passagem de Buda para Maomé,
aumentou esponencialmente. Os homens-bomba não se contentam em acabar com a própria
vida, mas têm sua razão de ser em levar outros junto. A Igreja Católica fez seu ingresso no
mundo do suicídio como instrumento de ação política nestes últimos dias, às margens do Rio
São Francisco, na pessoa do bispo Luis Flávio Cappio.
Nada contra a causa do bispo. O arquivamento do projeto de transposição das águas do
São Francisco, como queria dom Cappio, com a greve de fome "até a morte" que iniciou no
dia 26, constitui-se, para o governo, na única saída possível para a encrenca em que se meteu.
Há incertezas tanto quanto ao impacto ambiental da obra como quanto aos benefícios que ela
se propõe a gerar. Num governo motivado pelo padrão Duda Mendonça de governança
marqueteira, sobram razões para desconfiar de que motivos sobretudo propagandísticos e
eleitoreiros conduziram à decisão de encetar, no semi-árido nordestino, uma empreitada que
lembra alucinações faraônicas como a Transamazônica dos tempos do regime militar. Melhor
para o governo, a essa altura, será dobrar o projeto, escondê-lo debaixo do braço e sair de
fininho. E para isso o gesto de dom Cappio prestou bom serviço. Já quanto ao método... Pode
um católico dar cabo à própria vida? Os suicidas, para a doutrina católica, são párias, a quem
não se admite ser enterrados em cemitérios consagrados pela Igreja. Na Divina Comédia, de
Dante, os suicidas, transformados em árvores, habitam o sétimo círculo do inferno, o mesmo
reservado aos tiranos e assassinos.
A mensagem em que o bispo anunciou a decisão de fazer greve de fome "até a
reversão" do projeto do governo balança entre o Altíssimo e a pragmática cartorial. Começa
no Altíssimo, invocando "Jesus ressuscitado", e cede a detalhes como o de exigir do
presidente da República um "documento assinado" revogando o projeto de transposição, ou
como o de transcrever, abaixo da assinatura de dom Cappio, para bem assegurar os efeitos
civis do documento, o número de seu RG (3.609.560) e o do CPF (291.828.835-72). O
sagrado enlaçava-se à boa ordem tabeliã. A invocação às esferas sobrenaturais reforçava-se
com a segurança das assinaturas e dos carimbos. Mais calculada busca de eficácia impossível.
Ainda mais que se seguiu uma carta ao presidente Lula em que dom Cappio, depois de lhe
expressar sua admiração, e de garantir que não havia em seu gesto nenhuma "atitude anti-
Lula" (imagine-se se houvesse), passou-lhe o terrível recado, duro como um anátema: "Minha
vida está em suas mãos". Não contente em enveredar pela trilha do suicídio, o bispo lançava a
culpa em outro. Aos cuidados cartoriais com que revestiu a causa, acrescentava a arma
insuperável da chantagem.
Dom Cappio provocou divisões na Igreja. O secretário-geral da CNBB, dom Odilo
Scherer, considerou "moralmente inaceitável" a greve de fome. Mas dom Tomás Balduino,
173
presidente da Comissão Pastoral da Terra, derreteu-se em elogios ao grevista da fome e seu
"audacioso gesto", fruto de "heróica inspiração". O contra-ataque veio da parte do arcebispo
da Paraíba, dom Aldo Pagotto, que não só condenou a "atitude isolada" de dom Cappio, que
"não se identifica com a opinião nem com a postura de muitos outros bispos brasileiros",
como também – suprema heresia – se pôs ao lado do projeto do governo, a seu ver "uma
bênção para o povo do semi-árido". Para quê? Dom Tomás Balduino respondeu com um tiro
de canhão. Para ele, dom Pagotto abriga "o nefasto objetivo de dividir o episcopado
brasileiro". E assim os bispos do Nordeste afundavam em bate-boca digno de CPI do
Congresso.
Na quinta-feira, depois de receber uma carta do presidente Lula, entregue
pessoalmente pelo ministro Jaques Wagner, dom Cappio suspendeu a greve de fome. O bispo-
bomba ganhou a parada. O presidente não se comprometeu a arquivar o projeto, mas disse que
ia "prolongar o diálogo", o que talvez signifique a mesma coisa. E assinou embaixo! Saiu
perdendo a doutrina católica. Dom Cappio, dom Balduino e outros relativizaram a
condenação que, até então, se supunha pairar sobre o suicídio. Quando a serviço de uma boa
causa, vale. Espera-se que daqui para a frente os eclesiásticos que se filiam a essa linha de
pensamento deixem de condenar a eutanásia e o aborto. Se o fizerem, incorrerão no pecado da
hipocrisia.
174
ANEXO P - Tudo o que é sólido derrete ao sol dos trópicos (TOLEDO, 2005p)
O PCdoB que já foi da Albânia e da guerrilha no Araguaia rasgou a fantasia e caiu
na gandaia
A mais contundente intervenção do comunista Aldo Rebelo no comando de uma
sessão da Câmara dos Deputados, até agora, foi uma invocação a Deus. "Por favor, parem
com isso, pelo amor de Deus", conclamou, enquanto os deputados Arlindo Chinaglia e
Inocêncio Oliveira ameaçavam trocar socos no plenário. O comunismo é uma doutrina
materialista que fez sua estréia mundial com um apelo aos fantasmas ("Um fantasma ronda a
Europa", diz, em sua primeira linha, o Manifesto de Marx e Engels, de 1848), o que é uma
atenuante em favor do novo presidente da Câmara. Mesmo assim, que distância em relação a
comunistas da cepa de um Manuel Venâncio Campos da Paz, prócer da época da Aliança
Nacional Libertadora e da chamada "Intentona" de 1935. Em seu leito de morte, Campos da
175
Maior surpresa ainda é esta última, em que o senador do Tocantins Leomar
Quintanilha, rico fazendeiro, antigo chefe regional da Arena, o partido do regime militar,
antigo companheiro de Paulo Maluf no PDS, ultimamente no PMDB, anunciou seu ingresso
na gloriosa agremiação da foice e do martelo. Pelo amor de Deus, senador! Então era tudo um
disfarce – o gosto pela propriedade, as 800 cabeças de gado na fazenda de 1.600 hectares, as
alianças com a ditadura e a oligarquia? Tudo para, como bom capa preta, melhor lhe encobrir
as ações destinadas a induzir à revolução e à ditadura do proletariado?
Em outros tempos, os tempos heróicos de Manuel Venâncio Campos da Paz, a
interpretação seria essa mesma. Bom serviço prestava à causa o militante enrustido, dedicado
a solapar o inimigo por dentro, "se infiltrando no adversário", para voltar ao poema de João
Cabral sobre Ademir da Guia, "mandando nele, apodrecendo-o". Cumprida a missão, o agente
encoberto podia permitir-se sair do armário, triunfante. Nestes tempos, é outro o caso. Quem
está saindo do armário não é o senador Quintanilha, mas o PCdoB. O velho partido da
guerrilha no Araguaia rasga a fantasia e cai na gandaia. "Tudo o que é sólido desmancha no
ar", constatava o mesmo Manifesto Comunista de Marx e Engels. Para eles, o Brasil era uma
realidade (ou uma irrealidade) muito distante. Se não, eles poderiam ter acrescentado que tudo
o que começa pretendendo-se sério acaba por derreter-se ao sol dos trópicos.
176
ANEXO Q - Anedota de brasileiro(TOLEDO, 2005q)
O referendo das armas foi um exercício de sair do nada para chegar a lugar nenhum
Os brasileiros foram convocados a participar, neste domingo, 23 de outubro de 2005,
de uma consulta popular sobre coisa nenhuma. Trata-se de algo possivelmente inédito no
mundo. Discutiram-se durante semanas, com paixão, questões já previamente resolvidas.
Tomaram-se partidos que não vinham ao caso. Ninguém, em posição de fazê-lo, se dignou a
esclarecer o fato singelo de que o que estava em jogo era nada. A pergunta a que os brasileiros
foram intimados a responder, "Deve o comércio de armas ser proibido?", chocava-se contra
um obstáculo lógico: o comércio de armas não pode ser proibido. Ele estava garantido pela
própria lei que determinou o referendo.
Para quem não está entendendo, voltemos aos pontos de partida desta história. No dia
22 de dezembro de 2003, foi sancionada pelo presidente Lula a Lei nº 10 826, apelidada de
Estatuto do Desarmamento. Esse texto, regulamentado pelo Decreto nº 5 123, de 1º de julho
de 2004, determinou, ao cabo de longos e acirrados debates no Congresso, quem pode possuir
ou portar armas, quando, onde e em que condições. O conjunto de disposições então adotado
não desmerece o nome de Estatuto do Desarmamento. Dificultou, de modo considerável, a
aquisição e o uso de armas de fogo no país, para quem quer fazê-lo pelos meios legais.
Eis um primeiro ponto a reter: foram essa lei e o decreto que a regulamentou, ambos
aprovados e já em vigor, que determinaram quem pode possuir ou portar armas. O referendo
nada tem a acrescentar ao assunto. Podem portar armas, isto é, levá-las consigo, integrantes de
oito categorias diferentes de corporações, das Forças Armadas à Receita Federal, passando
pelas polícias e as empresas privadas de segurança. Cidadão particular não pode. Podem
possuí-las, desde que as mantenham em casa ou no trabalho, todos aqueles que comprovem
"efetiva necessidade" disso, e desde que tenham no mínimo 25 anos, não apresentem
antecedentes criminais e passem nos testes de "aptidão psicológica" e de "capacidade técnica
para o manuseio de armas de fogo", entre outras exigências. Se tudo isso já está decidido, não
caberia discutir, no quadro da campanha do referendo, como foi feito à exaustão, se os
cidadãos devem ou não se armar, ou se isso ajuda ou atrapalha a defesa contra os criminosos.
O Congresso já o decidiu por nós, como aliás é de sua obrigação – e decidiu, dadas as
múltiplas exigências que estabeleceu para o cidadão comum ter acesso a armas, que elas são
nocivas, tanto à segurança coletiva quanto à individual.
Ao eleitorado, acompanhada de boa dose de absurdo, foi deixada a incumbência de
decidir sobre a inclusão, no Estatuto, da proibição do comércio de armas. Proibir a compra e
venda, é isso? Mas como, se a lei faculta que toda uma gama de gente, dos integrantes das
Forças Armadas ao cidadão que comprove "efetiva necessidade", as possua? Como podem
possuir sem comprá-las? Na verdade, se a proibição do comércio fosse para valer, a vitória do
SIM significaria a revogação de todo o restante da lei. Ficariam prejudicados os numerosos
artigos que cuidam de quem pode ter armas, e em que condições. Se não se pode comprar, de
que adianta contar com a permissão para ter? A menos que o governo desejasse,
deliberadamente, jogar uma parte da população no mercado negro. A loucura não chegou a
tanto. A realidade singela é que não há como proibir, pura e simplesmente, a compra e venda
de armas, o que significa dizer que, mesmo com a vitória do SIM, as pessoas autorizadas a
possuí-las, inclusive o cidadão avulso tomado da tal "efetiva necessidade", continuarão
podendo comprá-las. Em direito vige o princípio de que quem pode o mais pode o menos.
177
Quem pode ter armas claro que pode comprá-las. E quem pode comprá-las claro que pode
também comprar munição para alimentá-las.
Para que serve então o referendo? Vá lá, façamos um desconto: não é que ele seja
completamente sobre coisa nenhuma. Mas também não é sobre o que o eleitorado foi induzido
a pensar. O que está em jogo é o modo como serão comercializadas as armas. Se devem ser
mantidas as atuais lojas ou se deve ser instituído um novo sistema de vendas. Essa é a única e
escassa questão. Vencendo o NÃO, continuam em operação as lojas atualmente existentes.
Vencendo o SIM, abre-se um leque de opções, para futura deliberação. A primeira é a
manutenção das lojas, reestruturadas. A segunda é a venda em departamento do Exército ou
da Polícia Federal. A terceira é a compra direto das fábricas. A pergunta certa, para que o
referendo chegasse com clareza ao eleitorado, deveria girar em torno da botica da preferência
do freguês, mas lá isso é coisa que se pergunte ao pobre do eleitor? Abusou-se da paciência
do coitado. Levaram-no a pensar no assunto à toa. Para piorar, fizeram-no enfrentar fila e
perder a praia. E produziu-se, com um referendo que parte do nada para chegar a lugar
nenhum, mais uma anedota de brasileiro. "Sabe da última?", perguntarão, pelo mundo. E
então rirão muito, rirão de sacudir a barriga e de sair lágrima dos olhos.
178
ANEXO R - "Se não comparecerdes..." (TOLEDO, 2005r)
Considerações sobre a relação entre o pronome "vós" e as diabruras do Estado
brasileiro
Uma pessoa humilde, ora pleiteando sua aposentadoria junto ao INSS, em São Paulo,
recebeu a seguinte "carta de exigências" da instituição. Os nomes, tanto da pessoa que pleiteia
a aposentadoria quanto de quem assina a carta, serão omitidos. O texto vai em sua conturbada
e sofrida literalidade:
"Para dar andamento ao processo do Benefício em referência, solicito-vos
comparecer, no endereço: Av. Santa Marina 1217, no horário de 07:00 às 15:00, para que as
seguintes exigências sejam cumpridas:
- retirar a carteira profissional que se encontra em seu processo para que
empregador atualiza as alterações de salarios em vista da ultima anotação foi 1990 e o
salario de contribuição esta divergente da ultima alteração
- recolher o 13 referente ao periodo de 1995 a 2004 que não foram recolhidos e 1 de
ferias conforme consta os meses a serem recolhidos na carteira profissional
Comunico-vos que vosso pedido de Benefício sera indeferido por desinteresse, se não
comparecerdes dentro de 10 dias a contar desta data.
Deveis apresentar esta carta no ato do comparecimento".
Impressiona o ucasse desferido na penúltima linha contra o contribuinte: "...o
Benefício será indeferido se não comparecerdes..." Mais impressionante ainda se torna
quando se tem em conta que, antes de corridos os dez dias, o INSS entrou em greve, parou
tudo e que se danem os solicitantes, os pleiteantes e os queixosos. Caso se queira mais uma
dose de estupefação, acrescente-se que a carta foi emitida em maio, as exigências foram
cumpridas, uma vez terminada a greve, e até agora nada. O benefício ainda não foi concedido.
Mas releve-se. Não é esse o nosso ponto. Nem bem seriam as aflições infligidas à língua
portuguesa, ao longo daquelas poucas linhas em que o idioma de Camões caminha aos trancos
e barrancos, como um veículo desgovernado que despenca ladeira abaixo e bate um pára-lama
aqui e outro ali, cai num buraco, sofre bruscos solavancos, corcoveia, raspa a porta no
barranco, capota, desliza – para enfim se estatelar sem remédio contra um último e
insuperável obstáculo.
É este último obstáculo que nos interessa: o pronome "vós". É verdade que a opção
pelo vós, como tudo o mais, vai no vai-da-valsa, e sofre um retrocesso quando se fala em "seu
processo", a alturas tantas, mas sem dúvida é a da preferência do autor da carta, tanto assim
que se afirma, triunfal, nas duas últimas linhas. Que razão teria conduzido a tal preferência?
Arrisquemos algumas hipóteses.
A primeira é a busca da elegância. O "vós" faz bonito em textos como o célebre soneto
de Bilac: "Ora (direis) ouvir estrelas! Certo/ Perdeste o senso! E eu vos direi no entanto/ Que,
para ouvi-las, muitas vezes desperto/ E abro as janelas, pálido de espanto". A segunda seria a
intenção de mostrar-se educado, num comunicado que afinal representa a palavra do próprio
Estado brasileiro. Seria aconselhável, dada essa alta responsabilidade, o recurso a um
pronome que assinala respeito e deferência. Mas... será? Elegância? Educação? São hipóteses
que de saída sabemos pouco críveis. Tampouco se pode acreditar que o redator tenha
empregado o "vós" porque lhe sai natural. Para isso, precisaríamos supô-lo alguém que tem a
179
segunda pessoa do plural como ferramenta tão banal que é com ela que se comunica com a
mulher em casa, os colegas no trabalho, os vendedores na feira. Não, não é possível.
Examinemos de novo o documento. Pensemos nele no contexto da relação do Estado
com os cidadãos, no Brasil. Essa relação, segundo expôs recentemente a cientista política
Lucia Hippolito, é de desconfiança. "Para a burocracia", escreveu ela, "o cidadão tem sempre
culpa, está sempre devendo, está sempre na obrigação de provar sua inocência com mais um
documento, mais uma firma reconhecida, mais uma certidão autenticada em cartório." Uma
suspeita começa a se firmar. A crase não foi feita para humilhar ninguém, mas o "vós" foi. O
desejo de acuar o cidadão, de encostar-lhe no peito a ponta da espada, de fazê-lo sentir-se
pequeno, diante da majestade do Estado, foi esse, sim, só pode ter sido esse, o motivo pelo
qual o redator da carta escolheu o "vós".
O "vós", tal qual se apresenta no texto, ressoa amedrontador como um castigo.
Humilhar? Não, ainda é pouco. A intenção é aterrorizar. Volte-se ao texto: "Se não
comparecerdes..." Isso é muito mais assustador do que "se você não comparecer", ou "se o
senhor não comparecer". Soa como decreto vindo das alturas inatingíveis, dos príncipes
incontrastáveis, do céu. Faz tremer como um trovão. E esse "vós" é tristemente significativo
do Brasil. Simboliza o massacre cotidiano a que o Estado submete os cidadãos, os mais
humildes em primeiro lugar. Entra governo e sai governo, entra década e sai década, essa é
uma situação que permanece, inelutável como fenômeno da natureza. O presidente, os
ministros, as CPIs, estes estão sempre preocupados com outras coisas. Cá em baixo, a relação
entre o Estado e o cidadão comum sempre foi, e continua sendo, feita de pequenas
atrocidades.
180
ANEXO S - A democracia americana ensaia sua volta (TOLEDO, 2005s)
As instituições enfim despertam e Bush, que já tinha um Vietnã, ganha um Watergate
Os americanos gostam de dizer que suas instituições funcionam. São educados, desde
cedo, no culto da Constituição e dos Pais Fundadores (os Founding Fathers, o grupo de
homens, George Washington à frente, que serviram de parteiros da nação) e se deleitam com a
idéia de que, entra crise e sai crise, o país consegue encontrar saídas justas e pacíficas com o
simples recurso aos mecanismos legais. "As instituições mais uma vez funcionaram", dizem
uns para os outros, inchados de orgulho autocongratulatório, quando superam episódios como
a destituição de um presidente prevaricador como Richard Nixon, nos anos 70. Ou quando se
desata o nó que, em 2000, deixou pendente, por semanas a fio, o resultado das eleições para a
sucessão do presidente Bill Clinton, em razão dos vícios na apuração dos votos.
Por um lado, eles têm toda a razão. Mais de 200 anos atrás, a Constituição fixou uma
rotina eleitoral que, desde então, tem sido rigorosamente cumprida. Um paralelo entre a
história da América Latina, com seus golpes, "revoluções" e pronunciamientos, e a dos
Estados Unidos, com sua ritual promoção de eleições a cada quatro anos, chova ou faça sol,
esteja o país em paz ou em guerra, nos enche de vergonha. Mas, por outro lado, os americanos
incorrem em pura mistificação. A eleição de 2000, em que George W. Bush foi declarado
vencedor, consistiu, de ponta a ponta, num engodo, com início numa apuração de votos
fraudulenta, na Flórida, e final na conivência do Judiciário. Dizer, como muitos disseram na
ocasião, que as instituições funcionaram, já que se chegou a um desfecho sem mortos nem
feridos, é passar por um Babbitt, o hoje esquecido personagem de Sinclair Lewis, símbolo do
americanão ingênuo e pateta. Se funcionaram, foi para escamotear o fundamento da
democracia, que é a vontade expressa nas urnas.
Entre as ocasiões em que as instituições realmente funcionam e aquelas em que entram
em colapso existe uma terceira modalidade: as situações em que durante longo tempo as
instituições ficam adormecidas, deixando-se ignorar e manipular, mas subitamente despertam.
É o que experimentam os Estados Unidos neste momento.
Os anos Bush, desde a fraude nas eleições, foram de apagão institucional. A instituição
da Presidência foi usada para mentir e enganar. A fim de desencadear a guerra ao Iraque,
recorreu-se à mentira das armas de destruição em massa. Outras mentiras se seguiram, para
sustentar a primeira, como a de que Saddam Hussein teria comprado urânio enriquecido no
Níger, no afã de ter sua bomba nuclear. Se não eram mentiras, eram mistificações, como a de
que o objetivo seria levar a democracia ao Iraque. Ou então a de que se combatia o terrorismo,
quando na verdade se aumentava ao infinito o número de terroristas no conflagrado território
iraquiano. Outra sagrada instituição, a imprensa, foi tragada na roda-viva das mentiras e
mistificações. Depois dos atentados de 11 de setembro, impôs-se às consciências, para grande
alegria dos detentores do poder, a regra não escrita de que se opor ao governo era
antipatriótico. A imprensa acovardou-se. Cobriu a guerra como cobriria os ataques contra os
índios montada na garupa do cavalo de John Wayne. Mas eis que...
Eis que um episódio secundário começa a tirar o chão debaixo de Bush. Um promotor,
Patrick Fitzgerald, põe-se a investigar como é que uma certa senhora, mulher de um
diplomata, teve revelada na imprensa sua condição de agente secreta da CIA. Expor a
qualidade de espião de alguém não é apenas danoso para as operações secretas – é crime. A
espiã em questão, Valerie Plame, é mulher de Joseph Wilson, um diplomata que foi conferir
no Níger se era verdade que Saddam Hussein tinha comprado urânio lá e concluiu que não.
181
Wilson publicou na imprensa um artigo em que, ao expor sua conclusão, desmontava a
argumentação do governo para invadir o Iraque. Não podia ser coincidência que, logo depois,
aparecesse a notícia de que sua mulher era agente da CIA. Investiga daqui e dali, e o promotor
Fitzgerald chega à conclusão de que o vazamento à imprensa, arquitetado como vingança
contra Wilson, saíra dos altos escalões do governo. Lewis Libby, o principal assessor do vice-
presidente Dick Cheney, já foi indiciado. Outros poderão segui-lo, inclusive o próprio Cheney
e Karl Rove, o principal assessor de Bush.
Configura-se um quadro em que, antes tarde do que nunca, as instituições se põem em
marcha. Um promotor, um simples e até então anônimo membro do Ministério Público, como
se diria no Brasil, movido por nenhuma outra razão senão a observância da lei, faz tremer um
governo. O governo Bush já tinha a lamentar ter encontrado no Iraque uma repetição da
tragédia do Vietnã. Ao Vietnã, somou-se agora um Watergate: um escândalo que ameaça
fazê-lo em estilhaços. Enquanto o governo se debate entre um problemão e outro, salvam-se
as instituições. "Quatro anos depois do 11 de Setembro, começamos a ter nossa democracia de
volta", escreveu o colunista Jonathan Alter, da revista Newsweek.
182
ANEXO T - O "nosso" Delúbio, santo, mártir, herói (TOLEDO, 2005t)
Por ter salvado o PT e o governo, ele mereceu, no Roda Viva, o carinho do presidente
O melhor do programa Roda Viva em que se apresentou o presidente Luiz Inácio Lula
da Silva, o mais significativo e mais expressivo, em meio às toneladas de frases pronunciadas
pelo entrevistado, foi uma simples palavrinha de duas sílabas e cinco letras, um banal
pronome possessivo – "nosso". Quantas e quantas vezes um "nosso" é pronunciado sem
causar a mínima comoção! Por dia, uma pessoa deve recorrer a essa tão sovada quanto útil
palavrinha umas dez, vinte, talvez cinqüenta vezes, e nem se dá conta disso. Já o "nosso" do
presidente foi carregado de sentido, um "nosso" denso de emoção. Foi quando ele se referiu
ao antigo tesoureiro do Partido dos Trabalhadores Delúbio Soares como o "nosso" Delúbio.
O presidente estava certo. Em mais de 90% de suas falas no programa ele se dedicou
ou à embromação ou à inverdade pura e simples. Garantiu que nunca quis impedir CPIs e
inventou que Roberto Jefferson foi cassado porque não provou as acusações da existência do
mensalão, entre outras espantosas afirmações. Insistiu em que nada está provado quando há
uma enxurrada de documentos mostrando de onde vieram e para onde foram os milhões de
reais manipulados por operadores a serviço do PT.
Já na escolha do "nosso" para qualificar Delúbio, Lula foi feliz como poucas vezes, ele
que, habituado a engrenar os discursos no puro piloto automático, sem atenção ao significado
das palavras, tão freqüentemente se atrapalha ou erra. O "nosso", quando aplicado a uma
pessoa, é uma maneira de demonstrar carinho. É dizer que aquela pessoa está perto, e é
querida. Delúbio merece tal tratamento da parte do presidente. Ele é o esteio que escora o PT
e o governo. A figura de olhos mortiços e grossos lábios do antes misterioso tesoureiro, hoje
tão familiar aos brasileiros, merece ser cultuada, pelos petistas e governistas, como um herói,
um mártir e um santo – nada menos do que isso.
Observe-se, antes de voltar a Delúbio, que, depois do Roda Viva, ficaram claras duas
coisas. Primeiro: a crise acabou. Segundo: Lula ganhou. Com relação ao conteúdo do que ele
disse no programa, o desempenho do presidente foi desastroso. Raramente se viu o primeiro
mandatário da nação tão disponível para se pôr em desacordo com os fatos. Mas quem liga
para conteúdos? Mais importante é que Lula estava à vontade e seguro de si. Os fatos, ora, os
fatos, eram sombras indistintas, por trás da característica fumaça de verbosidade. Nesta era de
política-espetáculo, política-televisão, política-marketing, é o que importa. Ele driblou as
perguntas, muitas vezes incisivas, dos entrevistadores com a esperteza e a rapidez de um
Tevez, a principal estrela do time presidencial, entre os zagueiros adversários.
Uma dúvida insistente – como é que ele vai enfrentar uma campanha eleitoral depois
de tanto escândalo? – foi desfeita. Vai se comportar como no Roda Viva. Ele mostrou no
programa que concluiu seu doutorado nos truques do ilusionismo. Ajuda-o muito o fato de,
seis meses depois, o cansaço ter vencido a opinião pública. Na semana anterior, a CPI dos
Correios tinha provado pela primeira vez como o dinheiro de uma estatal, no caso o Banco do
Brasil, acabara na conta do PT. A revelação equivale a uma pistola fumegante encontrada na
mão do assassino. No entanto... E daí? Não importa que milhões de reais tenham sido
perfeitamente rastreados, em seus tortuosos e escusos caminhos. Ei-lo um candidato
competitivo, talvez até favorito, na eleição do ano que vem.
E todos esses ventos a favor, graças a quem? À figura incomparável do "nosso"
Delúbio. Porque – eis o ponto que o glorifica e o faz merecer o tratamento de "nosso" – ele
183
chamou toda a culpa para si. Desde Tiradentes o país não assistia a nada igual. Os
companheiros dizem que tudo é culpa dele, que ele agia sozinho, que ninguém mais sabia de
nada – e ele cala, quando não consente expressamente. Os homens-bomba do Oriente Médio
sacrificam a própria vida. Ele sacrificou a honra e o futuro. Não merece senão as homenagens
dos correligionários.
O presidente do PT, Ricardo Berzoini, disse que a pessoa a quem Lula se refere,
quando se diz traído, como já dissera tempos atrás e repetiu no Roda Viva, é Delúbio. Não,
mil vezes não! Se fosse, Lula não o chamaria de "nosso". Não se pode imaginar um Cláudio
Manuel da Costa ou um Tomás Antônio Gonzaga a dizer "o nosso Silvério dos Reis".
Definitivamente, Delúbio Soares não é um Joaquim Silvério dos Reis. Antes, para voltar à
figura do mártir da Inconfidência Mineira, é um Tiradentes. Escolheu ir sozinho para a forca.
Vilipendiá-lo de um lado, como fez Berzoini, e acariciá-lo de outro, como fez Lula, é parte de
uma encenação teatral representada entre petistas. No z2i-lo5 Tntigu ir(senão288 50.00orla, ue ninguénão já disu um Tom)tte é parte d4
184
ANEXO U - Sobre causas, efeitos e trepar em árvores (TOLEDO, 2005u)
Divagações de um escriba dividido entre a leitura dos jornais e a de Italo Calvino
Notícias de Paris... O povo pobre se inquieta, o governo treme. Não, não se trata da
revolta dos queimadores de carros, é outra, anterior, aquela, o leitor se lembra – a da Bastilha,
da guilhotina, da execução do rei. As notícias de Paris causam excitação em Ombrosa, cidade
italiana à margem do Mar da Ligúria, onde um audacioso barão, tomado pela revolta contra o
autoritarismo paterno e as convenções sociais em geral, decidiu, no dia 15 de junho de 1767,
quando tinha 12 anos, refugiar-se em cima das árvores, e de lá nunca mais desceu, passando
uma vida inteira a pular de galho em galho e desenvolvendo habilidades que lhe permitiram
comer, estudar, escrever, caçar, lutar e amar sem jamais pôr os pés no solo.
Quem leu já sabe do que se está falando: o romance O Barão nas Árvores, do italiano
Italo Calvino. A Ombrosa onde se ambienta a história é fictícia, mas as notícias que, a partir
de 1789, lá chegam da França são reais. O barão Cosimo Piovasco de Rondó, que apesar de
viver nas árvores é um homem ilustrado, dado a trocar correspondência com Voltaire e
Rousseau, resolve seguir o exemplo dos franceses e abrir um caderno em que a população
inscreveria suas queixas. Choveram protestos: sobre o preço dos gêneros, os dízimos cobrados
dos camponeses, os limites impostos aos pastores no uso dos pastos, as prisões, os abusos dos
nobres contra as mulheres do povo. Verificou-se então que prevaleciam, em Ombrosa,
condições semelhantes às da França. Ou, para dar a palavra ao narrador:
"Em suma, também entre nós existiam todas as causas da Revolução Francesa. Só que
não estávamos na França, e a revolução não se fez. Vivemos num país onde se verificam
sempre as causas, não os efeitos".
Eis uma característica que, mais ainda do que a de ter um ilustre filho a viver entre as
árvores, singulariza Ombrosa: ali só as causas se fazem presentes, nunca os efeitos. Voltamos
ao tempo presente, das notícias da França que dão conta não da Bastilha, mas dos Hosni e
Ahmed do cinturão de Paris, e pensamos: "Engraçado. Aqui também temos jovens
desempregados e sem horizontes, aqui também temos comunidades marginalizadas – e no
entanto aqui não se queimam carros". Seria tentador concluir que, tal qual em Ombrosa, aqui
também causas vagam órfãs, sem os efeitos que as completem.
• • •
A cronista Cora Rónai fez outro dia no Globo a perfeita crônica dos dias que correm
no Rio de Janeiro. Começa descrevendo um almoço entre amigos, num sábado, no Leblon. A
certa altura, a filha da dona da casa avisa: "Pessoal, o túnel está fechado, se alguém de São
Conrado ou da Barra quiser dormir aqui, não tem problema, a gente se ajeita". Fechado por
quê? Tiroteio. Ah, de novo... E retomou-se a conversa no ponto em que tinha sido deixada.
Dois dias depois, Cora foi visitar uma amiga na Gávea. Encontrou-a exausta. "O problema é
que não consegui pregar o olho a noite inteira. O barulho do tiroteio estava insuportável.
Tinha uma metralhadora que parecia estar dentro do meu quarto." E nessa tecla segue a
crônica, de caso em caso. Conclui a cronista:
"Assim se vive numa guerra, sem espanto, aceitando os inconvenientes táticos
causados pelas batalhas; assim se vive num mundo conflagrado, porque a nossa alma cria
carapaças que a defendem da barbárie cotidiana – ou morreríamos todos de puro horror antes
mesmo de sermos atingidos pela bala, perdida ou não, que, mais dia, menos dia, vai nos
encontrar numa esquina qualquer. Assim vivemos na nossa cidade, achando 'normal' o que em
185
qualquer lugar civilizado é impensável; e temos sorte, somos privilegiados por não
precisarmos conviver com policiais e traficantes trocando tiros na laje de casa, como acontece
com quem vive o terror nos morros".
Conclusão: por aqui, ao contrário de Ombrosa, os efeitos comem soltos, alucinados,
incontroláveis, tão desgovernados que as causas, estas sim, somem a distância, perdidas,
obscuras.
• • •
A Revolução Francesa que incendiava a imaginação do barão Cosimo Piovasco de
Rondó foi marcada, numa de suas fases, pelo clima que os historiadores batizaram de "O
Grande Medo". Uma boataria sem freios dava conta de bandidos que atacariam aldeias,
nobres que arrasariam plantações, batalhões que prenderiam e fuzilariam. O medo teve no
campo sua origem e território ideal para expandir-se. Nos dias de hoje, são as cidades a
escolha inevitável de quem quer amedrontar. Paris ficou tão assustada com os queimadores de
carros que impulsou a popularidade do ministro Nicolas Sarkozy, um durão cujas posições
confinam com as da direita racista. Nova York, antes, e com muito mais razões, ficou
apavorada com os aviões que derrubam prédios. O medo toma essas cidades em surtos
pontuais. No Rio de Janeiro e em outras cidades brasileiras ele é permanente como a
paisagem. Se fôssemos decididos como o grande barão Cosimo, lúcidos e corajosos como ele,
subiríamos nas árvores e nunca mais desceríamos, mas... Cadê as árvores? Cadê as árvores?
186
ANEXO V - A farsa cruel de um ponto de exclamação (TOLEDO, 2005v)
O grevismo na universidade recorre a pose de herói para esconder o papel de vilão
A greve continua! Assim terminava o comunicado expedido na segunda-feira passada
pelo comando de greve do Andes – o Sindicato Nacional dos Docentes de Ensino Superior –,
dando conta das últimas notícias do movimento deflagrado já lá iam mais de oitenta dias nas
universidades federais. O ponto de exclamação ao fim da frase dizia mais de suas intenções
do que as palavras. Caso estivesse escrito "A greve continua", sem ponto de exclamação, se
trataria de uma informação, não mais que isso, aos associados. O ponto de exclamação
mudava tudo. Conferia à frase épicos tons de heroísmo, de ardor pela causa, de brado
retumbante. Não, a questão não era apenas que a greve continuava. Era que a greve continua!
O ponto de exclamação, até pela forma, representava uma espada desembainhada
contra o inimigo. En garde! Era um convite à arremetida contra o tirano, o opressor, o infiel.
Ele vai ver só! Quem vai ver? Quando há greve numa fábrica, quem "vai ver só" é o patrão,
que sentirá seus efeitos no bolso. Numa greve em universidade, com perdão para repisar no
óbvio, são os alunos. É contra eles, ao fim e ao cabo, que se produzem seus resultados. O
ponto de exclamação do Andes era uma espada espetada contra a barriga da estudantada.
O Andes, em temporada de euforia cívica, informou que patrocinou dezesseis greves
nas universidades federais desde 1980, perfazendo 978 dias de paralisação. Santo Deus, que
proeza! – e lá vai outro ponto de exclamação, que é isso que o Andes julga merecer com tal
performance. O jornal O Globo fez algumas singelas continhas e chegou a conclusões não tão
lisonjeiras para o sindicato dos docentes. Os 978 dias equivalem a dois anos e oito meses.
Descontados os fins de semana, e levando em conta que o ano letivo tem 200 dias úteis,
chega-se a três anos e meio sem aulas. Mais seis meses e se completariam os quatro anos
equivalentes a bom número de cursos de graduação. Claro, há as famosas reposições. Mas, até
acontecerem, já quebraram o ritmo que, como em qualquer atividade, é fundamental para os
bons resultados. E, quando acontecem, é em meio aos atropelos do Natal ou do Ano-Novo, às
preguiças do verão ou do Carnaval, quando as cabeças não estão na melhor forma para os
rigores do estudo.
O deputado Paulo Delgado (PT-MG), alertado pela reportagem do Globo, iniciou,
como presidente da Comissão de Educação e Cultura da Câmara, um movimento para
regulamentar o direito de greve nas universidades públicas. A providência, tal qual a famosa
reforma política, inclui-se entre as que caem de podres, de tão necessárias para desentravar o
país, mas que, por contrariar interesses corporativos, são sempre jogadas para as calendas
gregas. "Há um abuso do direito de greve", diz Delgado. A presidente do Andes, Marina
Barbosa, reage: "O direito de greve está previsto na Constituição. Qualquer regulamentação
restringirá esse direito". Eis um modo enviesado de ler a Constituição. Ali está escrito (artigo
37, VII) que o direito de greve dos funcionários públicos "será exercido nos termos e nos
limites definidos em lei específica". Opor obstáculos à materialização da lei específica é
desrespeitar o texto constitucional.
Para citar um exemplo, só um, de como o espeto do Andes encosta na barriga dos
estudantes, atente-se para uma decisão tomada pelo comando de greve da Universidade
Federal de Campina Grande, na Paraíba. Comunicaram os grevistas na quarta-feira passada
que não corrigirão as provas da primeira etapa do vestibular de 2006. Com isso, e enquanto
durar a greve, não poderá ser realizada a segunda etapa. Sabe-se o que significa para um
jovem o ano do vestibular – muito trabalho, tensões, angústias. Os grevistas de Campina
187
Grande resolveram adicionar a esse amargo coquetel a incerteza em torno de quando – e se –
as provas serão realizadas.
"É preciso atualizar a agenda da indignação", afirma o deputado Paulo Delgado. "A
greve continua!" é irmã gêmea de "A luta continua!". Que por sua vez é prima de "O povo
unido jamais será vencido!" e cunhada de "Abaixo a ditadura!". Pertencem todas a uma
família de slogans apropriados ao combate contra os regimes castradores de direitos e
opressores do povo. Tiveram seu papel durante o regime militar. Na democracia, merecem ser
usados com cuidado. Quando menos, o cuidado de verificar se o direito de um – o de greve,
da parte do docente – não fere o do outro – o de ter aulas, da parte do estudante.
A greve nas universidades federais, desgastada como costuma acontecer com esses
movimentos que se esticam sem rumo e sem nexo, ameaçava morrer de morte natural no fim
da semana passada. Ao completar 88 dias, na sexta-feira, tinha chance de escapar (por pouco)
do terrível anátema lançado pelo senador Cristovam Buarque, o primeiro dos três ministros da
Educação do governo Lula. "Uma greve que ultrapassa os 100 dias mostra que a universidade
não é mais necessária, da forma como está estruturada", disse ele ao Globo. "Imagine um
banco parado por 100 dias."
188
ANEXO W - Do sonho de 1968 à realidade do mensalão (TOLEDO, 2005w)
José Dirceu virou símbolo não da glória, mas da perdição de uma geração
O clima na Câmara dos Deputados era quase de velório no exato momento em que se
selou a sorte do deputado José Dirceu. O plenário estava esvaziado. Muitos deputados,
cumprida a obrigação de votar, tinham corrido ao aeroporto, para não perder o vôo ao estado
de origem. Outros tinham ido embora porque talvez não quisessem mesmo assistir ao
esperado desfecho. Quando, na apuração a que se procedia na Mesa, se chegou ao voto "sim"
de número 257, o que configurava uma maioria absoluta em favor da cassação, não houve
uma única manifestação.
Não seria mesmo de bom-tom repetir as explosões de euforia com que o lado vencedor
costuma saudar o momento em que se definem as votações importantes na casa. Afinal, era a
cabeça de um colega que rolava. Mas que alguém sussurrasse uma expressão de agrado ou
desagrado, que voltasse os olhos para o companheiro ao lado, em sinal de aprovação ou
desaprovação, ou que fizesse um sinal de cabeça – isso, pelo menos, seria de esperar. Nada.
Na mesa da Câmara, que era mostrada por inteiro na TV, e onde se apinhavam os deputados
encarregados da apuração e da fiscalização, além dos curiosos, ninguém se importou em dar
sinal de que a sorte estava selada. José Dirceu, como no verso célebre de T.S. Eliot, teve sua
morte política decretada "não com um estrondo, mas com um murmúrio".
Convinha que assim fosse, e não apenas pelo dever de discrição, pelo desgosto ou pelo
cansaço, que eventualmente acometiam a Câmara – havia outros motivos, mais profundos,
para tristeza. Dirceu gosta de se instituir em personificação da geração de 1968. Nos
momentos cruciais, ele, como Clark Kent quando vira Superman, abre o paletó e exibe a
fantasia de ícone da geração do sonho e da rebeldia. Foi assim no discurso emocionado com
que tomou posse como ministro e assim também em vários momentos quando, já tragado
pelas denúncias que haveriam de perdê-lo, fez discursos em sua defesa. Há um tanto de
exagero, e outro tanto de irritante pretensão, nessa sua mania. Mas vá lá – concedamos em
tomá-lo como símbolo dos moços e moças do belo e doido ano de 1968. Nesse caso, e tendo
em vista sua atuação no poder, ele terá cumprido um ciclo que descreve não a glória, mas a
queda de uma geração, sugada pelas vilezas da idade madura e pelas perversidades da política
brasileira.
Quem foi moço em 1968 e nos três ou quatro anos seguintes se lembra de um tipo de
sobressalto que costumava assaltá-lo no período. Olhava-se para o companheiro de faculdade
ou de emprego que ultimamente vinha exibindo hábitos diferentes e indagava-se a si mesmo
"Será que ele aderiu?". A dúvida era se ele tinha aderido à luta armada contra a ditadura. E a
dúvida seguinte era: "Será que devo aderir também?". Nos meios onde circulava a juventude
mais politizada, ébria de desejo de justiça, de contestação e de Che Guevara, tais dúvidas
eram freqüentes e mortificantes.
As décadas se passaram e, hoje, quando aqueles antigos moços olham para o
companheiro que mudou de hábitos e se perguntam "Será que ele aderiu?", a adesão a que se
referem é à corrupção. "Será que ele também?". Para alguns, a questão seguinte será: "Estarei
bancando o bobo não aderindo igualmente?". O aceno antigo era por uma adesão equivocada,
mas movida a utopia. O de hoje é o aceno do bas-fond das transações tenebrosas. Dirceu foi
um ícone da utopia, a aceitá-lo como personificação de 1968. Acabou cassado por corrupção,
ainda que não em proveito próprio. Pode agora ser tido como símbolo da perdição de uma
geração.
189
A desgraça do ex-capitão do time começou com um apelo vulgar, "Sai daí, Zé",
proferido pelo antigo aliado Roberto Jefferson, e terminou com uma manifestação que até se
diria cavalheiresca, se não doesse no lombo – as bengaladas que lhe desferiu, na véspera da
cassação, um senhor bem-composto, de respeitável barba branca, que depois se soube chamar-
se Yves Hublet e ser autor de livros infantis. Se o apelo de Jefferson traía o escracho
característico da vida parlamentar nos dias que correm, a agressão de Hublet, até pela arma
que escolheu, lembrava a nobreza vetusta do Parlamento do Império. Talvez isso queira dizer
alguma coisa, sabe-se lá, mas o que quer dizer muito, isso sim, foi o insulto lançado pelo
agressor da bengala contra sua vítima. "Frestão!, Frestão!", gritava ele, enquanto brandia o
instrumento de cabo prateado em forma de cabeça de pássaro que tinha nas mãos.
O agressor não chamou Dirceu de Dom Quixote. Chamou-o, ao contrário, pelo nome
do arquiinimigo do cavalheiro da Mancha, o mago Frestão, cujos poderes perfidamente
transformaram em moinhos de vento os gigantes contra os quais Quixote havia investido, no
momento mesmo em que estava a ponto de derrotá-los. Dirceu não foi identificado ao
campeão das utopias, ainda que loucas, encarnado, há quatro séculos, pelo herói de Cervantes.
Foi chamado, em vez disso, pelo nome do trapaceiro dos truques rasteiros. Cumpria-se, na
escolha do agressor, parábola similar à que conduz do sonho de 1968 à realidade do mensalão.
190
ANEXO X - Perón, Bolívar, Dirceu, Aldo, Tevez etc. (TOLEDO, 2005x)
Notas que vão da nova composição do Mercosul à síndrome da criação do mundo que
ataca o presidente
A Argentina teve em Carlos Menem um fiel seguidor da economia de mercado e,
como dizia seu chanceler Di Tella, um aliado "carnal" dos Estados Unidos. Menem era
peronista. Eduardo Duhalde foi menos entusiasta, tanto da economia de mercado quanto dos
EUA. Era peronista, igualmente. Néstor Kirchner não gosta dos EUA e, com a nomeação da
nova ministra da Economia, Felisa Miceli, prepara uma reação contra o império da
globalização e da economia de mercado. Mais um peronista. Antes deles o país conheceu o
movimento dos Montoneros, guerrilheiros de esquerda dos anos 70. Peronistas. E, durante o
governo de Isabelita, a viúva de Perón, o mais influente ministro, José López Rega, dirigia
nos bastidores a organização paramilitar Aliança Anticomunista Argentina (AAA). Em nome
do peronismo, claro.
A explicação está na velha anedota que começa com o próprio Juan Domingo Perón
explicando a um estrangeiro o quadro político argentino: "Temos à direita desde golpistas até
um civilizado movimento conservador. Importante setor é o dos liberais. Não esqueçamos os
social-democratas, que juntam o desejo de eficácia com a preocupação social. Temos ainda
um centro, uma democracia cristã, um forte núcleo nacional-desenvolvimentista... A esquerda
divide-se entre os revolucionários e aqueles, mais moderados, que já se dispõem a integrar o
jogo eleitoral e parlamentar. Nomes expressivos integram todos esses...". O interlocutor o
interrompe: "Mas... e os peronistas?". "Como, os peronistas?!", surpreende-se o caudilho.
"Peronistas son todos."
•••
Com o ingresso da Venezuela no Mercosul, sob o alto patrocínio da Argentina, ao
peronismo junta-se o bolivarianismo. Agora vai.
•••
O presidente da Câmara, Aldo Rebelo, questionado se a Casa não devia reagir diante
das sucessivas interferências do Supremo Tribunal Federal no processo a que era submetido o
deputado José Dirceu, respondeu que longe dele querer desafiar as determinações dos
magistrados. "Sou um homem temente a Deus e respeitador da Justiça", argumentou. Segundo
contabilidade do colunista Jorge Bastos Moreno, de O Globo, Rebelo, desde que assumiu seu
atual cargo, já participou de três novenas (sendo que em uma puxou o terço), presidiu sessão
em homenagem aos 80 anos do arcebispo emérito de Brasília, dom José Freire Falcão, esteve
à frente de dois cultos ecumênicos e, no Dia de Ação de Graças, se fez presente a um culto e a
uma missa. Rebelo é comunista, como se sabe. Ah, se aquelas senhoras soubessem... aquelas
senhoras que, terço nas mãos, se manifestavam nas ruas contra o comunismo ateu, algum
tempo atrás... se elas soubessem, teriam logo entregado tudo aos comunistas, de uma vez.
•••
Da mesma série "Ah, se eu soubesse", temos a reação daquele empresário diante da
performance do governo Lula: "Se eu soubesse que o PT iria adotar a política econômica do
Malan e depois se suicidar, teria votado nele".
•••
191
O ex-deputado José Dirceu, numa entrevista à revista Fórum, disse que o presidente
Lula é uma pessoa difícil. Suas palavras: "O personagem (Lula) é difícil. Está ficando claro
isso". Meses atrás, quando o senador Eduardo Suplicy, contrariando a posição do governo,
assinou o pedido de constituição da CPI dos Correios, Dirceu dissera que Suplicy era "um
caso à parte, hors-concours". E acrescentara: "(Suplicy) é um pouco estranho". Dirceu é
aquele que adotou outro nome e durante anos não revelou sua identidade à mulher com quem
vivia e com quem teve um filho. E ainda acha que esquisitos são os outros.
•••
Ainda bem que, para contrabalançar a aliança Kirchner-Hugo Chávez, temos a aliança
Lula-Carlitos Tevez, formalizada durante a visita dos jogadores do Corinthians ao Palácio do
Planalto, na semana passada. Lula fez elogios ao craque argentino, acariciou-lhe a curiosa
cabeleira e atribuiu seu sucesso às relações com a Argentina, que "nunca foram tão boas".
"Imagine há dez anos um jogador argentino fazer esse sucesso no Brasil", acrescentou. Mais
uma vez atacava-o a síndrome da criação do mundo, segundo a qual nada de bom ocorreu
antes de sua chegada à Presidência. De Sastre, companheiro de Leônidas numa histórica
formação do São Paulo, a Sorín, ídolo da torcida do Cruzeiro, são inúmeros os jogadores
argentinos bem-sucedidos no Brasil.
•••
A greve nas universidades federais completou 100 dias na quarta-feira passada. Passou
a ter pleno direito ao anátema do senador e ex-ministro da Educação Cristovam Buarque:
"Uma greve que ultrapassa os 100 dias mostra que a universidade não é mais necessária, da
forma como está estruturada. Imagine um banco parado por 100 dias".
192
ANEXO Y - Um certo José (TOLEDO, 2005y)
Pensemos neste Natal em sua figura quieta, singela, trancafiada em sua solidão e,
talvez, em sua tristeza
No Natal garantem-lhe um lugar. É quando ele assume seu posto no presépio, junto
com a mulher, o menino, o burro, a vaca, os pastores e os misteriosos personagens chamados
"reis magos". É um dos poucos papéis que lhe atribuem. A rigor, um de apenas dois papéis –
o outro é o de comandar a fuga da família para o Egito. Depois ele desaparece dessa história,
talvez a mais conhecida do mundo, sem deixar rastro. Não avisam se morreu ou se foi
embora. Ele é produto de dois roteiristas desatentos que, mal nos dão conta de sua existência,
mudam de assunto e se esquecem dele sem remédio.
Estamos falando de José, esposo de Maria, mãe de Jesus – um estranho personagem,
que se imagina solitário e taciturno, talvez triste, algo desamparado, mas cumpridor. Os dois
roteiristas desatentos são os evangelistas Mateus e Lucas, os únicos a tratar da infância de
Jesus. Mateus ainda lhe dedica um pouco mais de cuidado, e descreve seu incômodo ao saber
que a mulher, que nunca tocara, estava grávida. É o melhor momento de José, o mais humano,
o travo do marido traído a amargar-lhe a garganta – e a doer-lhe na testa. Estava ele
ruminando sua infelicidade e o troco que iria dar a Maria – repudiá-la, ainda que
discretamente, sem expô-la à execração pública – quando lhe aparece, em sonho, o Anjo do
Senhor e informa que a gravidez era obra do Espírito Santo. Ah, bom, se é assim... José
conforma-se a seu destino de marido de conveniência e pai de mentira.
Grande coisa, diriam os mais céticos. Contando com a intimidade do Anjo do Senhor e
as privilegiadas informações que este lhe sussurrava em sonho, quem ousaria agir
diferentemente? Não nos deixemos corromper. O fato é que José era bom. O melhor dos
homens. É possível supô-lo dia após dia em sua oficina de carpinteiro, silencioso, modesto,
enquanto no filho despontavam excêntricos dotes e a mulher resplandecia no prestígio sem
paralelo de ter dado à luz sendo virgem. Nos primeiros 1 000 anos do cristianismo, José não
mereceu homenagens da Igreja Católica. Só em 1129 surge a primeira igreja a ele dedicada –
em Bolonha, na Itália. Na famosa Legenda Áurea, um repositório de vidas de santos escrito
por Jacopo de Varazze no século XIII, José nem foi incluído. Seu culto só começa de verdade
no século XV, graças às pregações de São Bernardino de Siena, Jean de Gerson e outros.
Nesse mesmo século o papa Sisto IV (1471-1484) finalmente o encaixa no calendário
romano, reservando-lhe a data de 19 de março.
José é desses personagens concebidos para resolver certos problemas no enredo. Logo
na abertura do Evangelho de Mateus, ele resolve o primeiro, o de estabelecer uma conexão
entre Jesus e o rei Davi. Mateus apresenta uma genealogia que começa com Abrão, chega a
Davi, e de Davi, 27 gerações depois, deságua em José. Cumpria-se assim a profecia de que o
Messias nasceria no tronco de Davi, aparentemente tão necessária para convencer os incréus
que para esse efeito o evangelista se esquece de que José não era um pai de verdade. Outro
problema que ele ajuda a resolver é o das várias menções, no Novo Testamento, aos "irmãos
de Jesus". Como a Igreja fazia questão de preservar a virgindade de Maria, mesmo depois do
parto, surgiu a solução de atribuir os tais irmãos a um casamento anterior de José. Esta tese
concorre com outra, mais favorecida pela Igreja Católica, segundo a qual, quando nos
Evangelhos está escrito "irmãos", deve-se ler "primos".
Sobretudo, José resolve o problema de completar uma família em torno de Jesus. Esta
a sua grande função no presépio: a de celebrar as virtudes da família nuclear, tão prestigiosa,
193
no seu caso, que passa (e isso acontece na mesma época em que começa a ser cultuado) a se
chamar de "sagrada". Não menos de acordo com as realidades da vida é a família da mãe
sozinha, e isso não só no tempo de Jesus como em todos os outros, o nosso inclusive. No
Brasil, a cada quatro famílias, uma tem a mulher no comando. Mas um marido foi julgado
necessário, mesmo que a mulher prescindisse de seus préstimos para gerar filhos, e lá foi José,
obsequioso como era de sua natureza, assumir o encargo, ainda que intimamente talvez
mortificado, ferido em seus brios de varão e de macho. Assim que se cumprem os relatos da
infância de Jesus, ele desaparece de cena. Teria agora abandonado a família, assim como
tantos pais? Prefere-se, em seu favor, imaginar que morreu. E, se morreu, babau. Morreu tão
completamente que os evangelistas não se deram ao trabalho de noticiar-lhe a morte.
José é, por excelência, aquilo que no teatro e no cinema se chama de ator coadjuvante.
Sua função é criar condições para que os outros brilhem. É uma função que exige nobreza de
sentimentos, essenciais que lhe são a renúncia e o sacrifício. Pensemos em José, neste Natal,
quieto em seu canto, rústico, singelo, trancafiado em sua solidão e seu sacrifício, talvez
também em sua tristeza. Por uma vez, pensemos em sua sorte, ao contemplar as figuras do
presépio.
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