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Jovens indígenas numa peça de teatro para o Dia de Ação de Graças em Dakota do Norte, ca. 1900
(foto in Nabokov, 1978: 213)
CIDADÃOS E
SELVAGENS
Antropologia Aplicada e Administração Indígena nos Estados
Unidos, 1880-1940
Uma tese de doutorado para o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do
Museu Nacional, UFRJ, escrita e defendida por
Thaddeus Gregory Blanchette
Rio de Janeiro
1o de Agosto, 2006
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Folha de Aprovação
Cidadãos e Selvagens: Antropologia Aplicada e
Administração Indígena nos Estados Unidos, 1880-
1940
Thaddeus Gregory Blanchette
Tese submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro - PPGAS, MN,
UFRJ - como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor.
Aprovada por:
Profa. Dra. Giralda Seyferth (Orientadora)
Doutora em Anrtopologia Social - PPGAS/UFRJ
Prof. Dr. Antônio Carlos de Souza Lima:
Doutor em Anrtopologia Social - PPGAS/UFRJ
Prof. Dr. João Pacheco de Oliveira Filho:
Doutor em Anrtopologia Social - PPGAS/UFRJ
Prof. Dr. Seth Garfield:
Ph.D., Latin American History - Yale University
Prof. Dr. Stephen Grant Baines:
Doutor em Anrtopologia - UNB
II
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FICHA CATALOGRÁFICA
Blanchette, Thaddeus Gregory
Citizens and Savages: Applied Anthropology and Indian Administration in the
United States, 1870-1940 / Thaddeus Gregory Blanchette. - Rio de Janeiro: UFRJ/Museu
Nacional/PPGAS, 2006. (Versão inglês)
x/xxxp.
Tese - Universdiade Federal do Rio de Janeiro / Museu Nacional / PPGAS.
1. Índios 2. Antropólogos 3. Estados Unidos 4. 1880-1940 5. Tese (Dout. - UFRJ/
Museu Nacional/PPGAS) 6. Cidadãos e Selvagens: Antropologia Aplicada e
Administração Indígena nos Estados Unidos, 1880-1940
III
Dedicatória
Esse trabalho é dedicado a...
...minha tia Evie Huffer, cuja generosidade extrapolou os limites do dever familiar durante
minha pesquisa para essa tese, e....
...meu tio, Brett VanAkkren que, além de ser generoso e um dos poucos homens carecas
realmente bonitos nesse planeta, me ensinou a fazer perguntas e pensar sobre as respostas.
...e, finalmente, esse trabalho é dedicado à memória do saudoso Vine Deloria Junior, que
iluminou meu caminho.
IV
Resumo
BLANCHETTE, Thaddeus Gregory. Cidadãos e Selvagens: Antropologia Aplicada e
Administração Indígena nos Estados Unidos, 1870-1940. Orientadora: Giralda Seyferth. Rio de
Janeiro: UFRJ/Museu Nacional/PPGAS, 2006.
O presente trabalho analisa o uso da antropologia aplicada nos assuntos indígenas americanos no
período entre 1870 e 1940. A antropologia começou a institucionalizar-se como disciplina nos Estados
Unidos nos anos 1870 e, desse ponto em diante, assumiu como uma de suas responsabilidades o
fornecimento de apoio teórico e prático à Repartição de Assuntos Indígenas (Office of Indian Affairs,
ou OIA) em sua tarefa de administrar os povos indígenas dos EUA. Na década de 1880, os antropólogos
do Bureau of American Ethnology (BAE) utilizaram modelos de L.H Morgan de civilização e barbárie
para defender a distribuição individualizada de terras tribais e a transformação dos índios em
proprietários e fazendeiros cidadãos da república. Com a mudança nos valores e na teoria social
americana ocorrida nas primeiras décadas do séc. XX, os administradores indígenas começaram a
conceber as “tribos” (em vez dos índios indivíduais) como as unidades culturais que deveriam ser
administradas e, eventualmente, absorvidas pela nação americana. Mais uma vez, os antropólogos
foram recrutados para aconselhar a OIA quanto ao melhor jeito de conduzir essa tarefa. Durante três
quartos de século, portanto, a antropologia americana ajudou a constituir as sociedades indígenas
modernas que a disciplina supostamente estudava in natura. Esta tese propõe-se a investigar esse
processo e demonstrar algumas de suas conseqüências para os índios, os antropólogos e a administração
colonial em geral.
V
Abstract
BLANCHETTE, Thaddeus Gregory. Citizens and Savages: Applied Anthropology and In-
dian Administration in the United States, 1870-1940. Dissertation coordinator: Giralda Seyferth.
Rio de Janeiro: UFRJ/Museu NAcional/PPGAS, 2006.
The present work analyzes the use of applied anthropology in American Indian affairs from
roughly 1870 to 1940.Anthropology began to be institutionalized as a discipline in the United States
in the1870s and, from this point forward, one of its concerns was to provide theoretical and practical
support for the Office of Indian Affairs in its task of administering Native American alterity. In the
1880s, anthropologists used Morganian models of civilization and barbary to argue for the individual-
ized allotment of tribal lands and the transformation of Indians into yeoman farmer citizens of the
Republic. With the change in American values and social theory which occurred in the first decades of
the 20th century, Indian administrators began to conceive of “tribes” (rather than individuals) as the
socio-cultural units which were to be absorbed into the American nation and cultural anthropologists
were recruited in order to advise the OIA on how to best conduct this task. For three quarters of a
century, then, American Anthropology helped constitute the modern Indian societies which it suppos-
edly studies in natura. This dissertation attempts to investigate this process and demonstrate some of
its consequences for Indians, anthropologists and colonial administration in general.
VI
VII
Conteudo
Agradecimentos...............................................................................................................................................VIII
Prefácio................................................................................................................................................................X
Abreviações......................................................................................................................................................XI
INTRODUÇÃO..................................................................................................................................................1
PARTE I: EXTERMÍNIO, ASSIMILAÇÃO E O “DESTINO MANIFESTO”.............................................35
Capítulo 1:
Assuntos indígenas na América do Norte, 1600-1865.............................................40
Capítulo 2: Loteamento e o nascimento da etnologia offical............................................................81
Capítulo 3: Alice Fletcher: etnografia e práticas administrativas...............................................124
Conclusões.......................................................................................................................................172
PARTE II: (ANTI)MODERNIDADE E O NASCIMENTO DE CULTURA...............................................193
Capítulo 4: As Novas Ciências Sociais e a Reavaliação do Primitivo......................................................199
Capítulo 5: John Collier.................................................................................................................................242
Capítulo 6: Governo indireto, engenharia social e as origens do Indian New Deal...................................301
Conclusões.........................................................................................................................................333
PARTE III: (ANTI)MODERNIDADE E O NASCIMENTO DE CULTURA...............................................345
Capítulo 7: Antropologia aplicada na OIA..................................................................................................363
Capítulo 8: A organização do governo tribal entre os Lakota................................................................435
Capítulo 9: Antropologia aplicada na OIA após de 1938.......................................................................469
Conclusões.........................................................................................................................................489
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................................................510
APÊNDICE I................................................................................................................................................522
APÊNDICE I................................................................................................................................................527
APÊNDICE I................................................................................................................................................529
BIBLIOGRAFIA..........................................................................................................................................534
VIII
Muitas pessoas contribuiram à essa tese e, certamente, vou esquecer de mencionar algumas, mas os mais
importantes, que merecem meus agradecimentos sinceros, são...
No Smithsonian Institute’s National Museum of the American Indian, Heidi McKinnon e Anne McMullen,
que me convidaram para fazer pesquisa em Washington D.C. como um visiting scholar. Na biblioteca do NMAI,
Lynne Altstatt and Melinda White. Também do NMAI, Jill Norwood, que me providenciou com trabalhos
pagos durante meu estágio no Museu e Casey, que me indicou a obra de Demallie.
No National Anthropological Archives of the Smithsonian Institute, Bill Cox, Susan McElrath e Vyrtis Thomas.
No Smithsonian Anthropology Library, James Haug, Carmen Eyzaguirre and Maggie Dittemore.
...Aos funcionários e pesquisadores do Centro Cultural Casa Alberto Torres e do Museu do Índio da FUNAI.
...Ao CAPES e CNPq, que me providenciaram com bolsas de pesquisa e ao PPGAS, que me ofereceu um
“lar” acadêmico e um ambiente de aprendizagem da primeira qualidade durante os últimos sete anos. Em particular,
obrigado à Tânia, que me manteve a pé das minhas responsabilidades burocráticas e os funcionários da biblioteca
do PPGAS, que são uma equipe de profissionais fantásticos.
Agradecimentos a minha familia, particularmente minha mãe, Cheryl Blanchette, meu pai Ralph Blanchette,
meu padrasto Robert DiRenzo e meus tios, Mary Lou and Richard Lewis, que me apoiram financeira e
emocionalmente durante esse trabalho. Em particular, gostaria de agradecer meus tios, Evie Huffer e Brett
VanAkkren, que me abrigaram por 8 meses durante minha pesquisa em Washington D.C. Sem sua generosidade
e apoio, eu não teria acabado esse trabalho.
Agradecimentos a Manolo Florentino, João Fragoso, Olívia Carneiro Cunha, Michelle Markovitz, Pricila
Faulhauber, Wanda Antônio da Silva e Ana Paula da Silva, que leram pedaços desse trabalho durante sua
confeção e fizeram comentários valiosos ao respeito e para Antônio Carlos de Souza Lima and João Pacheco de
Oliveira Filho, que me incentivaram academica e intelectualmente, apesar de eu não ser um orientado deles.
Obrigado a Gilberto Velho, que me deu um impeto importante quando me mandou escrever sobre os EUA no
meu primeiro semestre do Museu. E quero agradecer minha co-orientada e amiga Miriam Santos, cujo apoio
emocional, criticismo construtivo e racionalidade calma têm me salvado do desespero inúmeras vezes.
Quero agradecer os membros da minha banca: Seth Garfield, Antônio Carlos de Souza Lima, Stephen Baines,
João Pacheco de Oliveira Filho e Giralda Seyferth, que tiveram que ler um texto enorme em inglês, e também
Dinah Papi Guimaraes e Bruna Franchetto, que concordaram em ser subsititutos.
E, finalmente, agradecimentos amorosos a minha esposa, Ana Paula da Silva que, mais que qualquer outro
individuo, teve que aguentar meu desespero, depressão, desorganização e bagunça durante os últimos quatro
anos e que discutiu muito essa tese comigo durante sua confeção. Boa parte do melhor conteudo intelectual
apresentado nessas páginas é, de fato, da responsabilidade dela.
Agradecimentos
IX
Um agradecimento especial
Devo um agradecimento especial a minha orientadora, Profa. Dra. Giralda Seyferth. A pesquisa de Dra. Seyferth
tem focalizada nos tópicos de raça, imigração e a sociologia rural no Brasil e, portanto, poucos títulos de sua
obra excepcionalmente valiosa encontram-se citadas na bibliografia abaixo. Essa situação é preocupante, pois
um leitor incauto, não familiarizado com a obra de Dra.Seyferth, poderia acreditar que sua contribuição a essa
tese foi mínima. Nada poderia ser mais errada: a Dra. Seyferth teve uma influência teorica extremamente
importante sob o trabalho apresentado nessas páginas. Sem sua analise de raça, etnicidade e nacionalidade
como campos interligados e politicamente motivados de produção indentitária, eu jamais poderia ter percebido
- muito menos analisado - o papel que os antropólogos detiveram na (re)produção de identidade indígena nos
EUA. Seus livros, artigos e aulas me inspiraram a analisar as ideologias sobre nação e alteridade que têm
sublinhado o projeto antropologico naquele país. Mais importante, a Dra. Seyferth me deixou explorar uma área
que ela não conhecia bem e, mesmo assim, me concedeu todo o apoio institucional, intelectual e emocional que
meu projeto precisava - algo excepcionalmente raro no jogo acadêmico. Sem dúvida alguma, o maior parte do
que é bom e útil nas páginas abaixo é um resultado das suggestóes e influência de Giralda Seyferth. Os erros, é
claro, são todos meus.
Prefácio
Consideraçóes sobre a versão portuguesa dessa tese
A versão original dessa tese foi escrita em inglês e defendida em português em agosto de 2006. Essa versão é
uma tradução daquele trabalho inicial, feito por quatro tradutores e um revisor. A versão original, em inglês, está
arquivada junto com essa versão na biblioteca do PPGAS, Museu Nacional, UFRJ.
O título dessa tese - “Citizens and Savages”, em inglês - é uma referência óbvia ao trabalho excelente de
Hinsley sobre o início do Bureau of American Ethnology (BAE), Scientists and Savages, que foi posteriormente
re-editado como The Smithsonian and the American Indian: Making a Moral Anthropology in Victorian America
(1981).
X
XI
Abreviações encontradas no texto
AAA - American Anthropological Association
AAU - Applied Anthropology Unit
BAE - Bureau of American Ethnology
BIA - Bureau of Indian Affairs
CNPI - Conselho Nacional de Proteção aos Índios
DASP - Departamento da Administração Pública
IEA - Institute for Ethnic Affairs
InInIn or III - Interamerican Indigenous Institute (também conhecido como o Inter-American Indian
Institute e o Instituto Indigenista Interamericano).
ISA - Institute for Social Anthropology
OIA - Office of Indian Affairs
NAA - National Anthropological Archives
NARA - National Archives and Research Administration
NII - National Indian Institute
PPGAS - Programa de Pós Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional
SPI - Serviço de Proteção aos Índios
WRA - War Relocation Administration
Cidadãos e Selvagens Introdução
1
Introdução
Atrás de cada homem bem sucedido, encontra-se uma mulher. E atrás de
cada política e plano que enpesteia os índios, se esse fosse completamente
examinado em termos de suas origens, encontra-se o antropólogo.
- Vine Deloris Jr. “Anthropologists and Other Friends”
1
.
...[P]or que não tentar aplicar [o atual refinamento téorico e
metodológico da antropologia] ao estudo das estruturas administrativas
desenvolvidas pelo conquistador para abordar os povos conquistados?
- Antonio Carlos de Souza Lima
2
.
A duas quadras da casa onde morei na infância, em Oshkosh, Wisconsin, em uma
alameda quase deserta margeada de um lado pelo edifício da Legião Americana e do
outro pela usina de tratamento de água da cidade, ergue-se sob um pedestal uma corroída
estátua de bronze que comemora um herói local. Quando eu era criança, a grama crescia
alta em torno da base do monumento e a terra ao redor estava coberta de arbustos e mato
de todo tipo, fornecendo à criançada um lugar para brincar de índios e caubóis e aos seus
irmãos mais velhos um lugar conveniente para experimentos sexuais adolescentes.
Minhas memórias pessoais da estátua são mais vividamente associadas ao dia em que,
durante a terceira série, um amigo próximo encontrou um prêmio na gincana realizada em
conjunção com os "Oshkosh Sawdust Days", um festival annual celebrando a herança da
cidade como assentamento de lenhadores de fronteira. Se me lembro bem, meu amigo
usou o dinheiro do prêmio para comprar duas caixas de soldadinhos da Guerra Civil
americana com que nos divertimos todo o resto do verão.
A estátua era um marco local, familiar a todos da vizinhança. Marcava onde a
Washington Avenue encontrava o Lago Winnebago, e nada mais. Mesmo o nome do
homem homenageado era tão genérico e fácil de esquecer que, até hoje, nunca encontrei
um amigo de infância que se lembrasse dele. O cavalheiro em questão vivera no fim do
séc. XIX e era — como a maior parte da cidade então — um imigrante alemão. Isso
1
IN: DELORIA, 1970: 81.
2
IN: SOUZA LIMA, 1995: 13.
Cidadãos e Selvagens Introdução
2
ficava óbvio pela maneira como estava vestido e pela inscrição na estátua. Porque a
estátua erguia-se em terreno da Legião Americana, a maioria de nós, crianças, presumia
que se tratasse de algum herói de guerra local, já que a Legião, é claro, fora criada para
honrar e apoiar os que morreram nas guerras dos Estados Unidos. Nenhum adulto jamais
pode me contar quem a estatua representava, porém, ou porque a pessoa representada era
considerada digna de representação, ou quando nós, como cidade, a havíamos removido
de nossa memória coletiva.
Foi com alguma surpresa, pois, que no verão de 2004, quando visitava minha
família, fiz uma caminhada até a Legião e imediatamente dei-me conta de que eu sabia
quem era o homem no pedestal e o que ele tinha feito. Na verdade, eu acabara de passar
boa parte dos dois meses anteriores lendo sobre ele na Biblioteca do Congresso dos
Estados Unidos, como parte de minha pesquisa para esta tese.
O busto na Washington Avenue era de Carl Schurz, um teuto-americano, herói de
guerra e ativista do Partido Republicano. Como Secretário do Interior durante a
administração do Presidente Rutherford B. Hayes (1877-1881), Schurz fora criticado por
vários reformadores da costa leste dos EUA (sobretudo Helen Hunt Jackson) que
acusaram a Repartição dos Assuntos Indígenas (Office of Indian Affairs/OIA, também
conhecido como Bureau of Indian Affairs, ou BIA) e o Departamento do Interior de
presidir um "século de desonra" no qual os povos antigos da América haviam sido
expoliados de vastas parcelas de terra. O papel de Schurz na reação republicana a esses
protestos foi crucial. Confrontado Helen Hunt Jackson e seus apoiadores, ele foi capaz de
desviar o sentimento reformista do apoio aos direitos estabelecidos em tratados das tribos
indígenas e canalizá-lo para a construção de um plano coeso para a assimilação de
indivíduos indígenas como cidadãos americanos. O General Allotment Act (ou Dawes
Act) de 1887, que constituiu o resultado desses debates, estabeleceu o loteamento das
reservas indígenas restantes do país como parcelas de terra de posse privada como um
meio pelo qual os direitos dos nativos americanos à terra podia ser acomodados com o
desejo de fazer passar estradas de ferro pelo que restara dos antigos territórios indígenas e
de instalar ali assentamentos de colonos brancos. Em uma grande medida, Schurz pode
pois ser considerado o último conquistador do Oeste Americano: o ministro federal que
primeiro articulou a ideologia que liberaria a maior parte das terras restantes da
Cidadãos e Selvagens Introdução
3
população nativa dos Estados Unidos para o desenvolvimento capitalista. Este era um
feito que merecia, no mínimo, uma estátua.
Evoco Schurz e a estátua misteriosa de minha infância para enfatizar um ponto
rapidamente reconhecível para a maior parte dos estudiosos da administração indígena:
com frequência, os aspectos mais importantes de qualquer questão dada neste campo
estão escondidas em plena luz, obnubladas pelas imagens populares dos índios e da assim
chamada Questão Indígena que nos encorajam a traduzir a história em mito. A estátua de
Schurz, embora desprovida de significado em minha infância, ocupava uma paisagem
plena de referências à história dos Estados Unidos e ao contato entre colonos e nativos.
"Our Greatest German American”
Cidadãos e Selvagens Introdução
4
"Nosso maior teuto-americano”. Estátua de Carl Schurz em
Oshkosh, Wisconsin, EUA. Foto por Richard Lewis.
O significado dessas referências me haviam sido inculcados pelo sistema de educação
pública. Washington, por exemplo, nome da rua em que se erguia a estátua, era é claro o
nome do primeiro presidente americano, o homem que nos fora apresentado durante as
celebrações de 1976 do bicentenato como o pai de nossa nação. O lago atrás da estátua,
Winnebago, recebera seu nome de um grupo de habitantes nativos da região assim como,
dois quarteirões adiante, o Parque Menominee recebera o de outro. No centro do Parque,
distante uns 500 metros do pedestal de Schurz, erguia-se outra estátua, dez vezes maior,
dedicada ao Chefe Oshkosh, o líder menominee que nossos professores diziam ter sido
um bom amigo dos colonos brancos da região, que como prova disso havia cedido as
terras em que se erguia a cidade sem lutar. Os Sawdust Days eram sempre celebrados no
Parque Menominee e, é claro, celebravam o passado de nossa cidade como um centro
madereiro cujas serrarias supriam os Estados Unidos com as matérias primas para seu
crescimento. A história do neto de Oshkosh, Reginald, como um empreendedor
madereiro, e da particulação dos Menominee na exploração de madeira ao longo dos rios
Fox e Wisconsin não foram incluídas em minha educação infantil, porém. Entendia-se
que os índios haviam desaparecido de nossa história coletiva pouco após Oshkosh ter
feito seu acordo territorial em meados do séc. XIX.
Quanto à Guerra Civil, se eu e meus colegas não conhecíamos os detalhes do
papel de Schurz, sabíamos o suficiente para saber que ele provavelmente lutara nela,
como haviam feito muitos dos imigrantes alemães seus contemporâneos, que formavam
boa parte das árvores geneológicas das nossas família locais. Os alemães, diziam-nos, se
notabilizaram pelo apoio que deram à União nessa guerra, e ficávamos orgulhosos de que
nosso estado e nossos ancestrais tivessem desempenhado um papel tão importante na
libertação dos escravos por Lincoln. Cresci sabendo que um de meus ancestrais lutara
nessa guerra e participara da Campanha de Vicksburg como um membro do regimento do
Wisconsin, um fato que eu não deixava ser esquecido por meus colegas.
Todos esses elementos foram parte da identidade consensual da cidade de
Oshkosh, de teuto-americanos, dos residentes do estado de Wisconsin e dos americanos
em geral. O fato de que eu e meus amigos de infância fôssemos fascinados pela história
Cidadãos e Selvagens Introdução
5
militar provavelmente nos permitiu tirar conclusões sobre a identidade de Schurz que a
maior parte das crianças de nossa idade não tiraria, mas fora isso nenhum dos elementos
que esbocei acima iriam surpreender qualquer pessoa crescida em minha velha cidade
natal. Eles são, de fato, elementos constitutivos do mito de nossas origens, identidade
partilhada e estatuto social. Servindo a esse propósito, criam exclusões, pois para
iluminar certos fatos, deixa inevitavelmente outros na sombra. Quais fatos são
incorporados no mito identitário e quais são esquecidos tem pouco a ver, contudo, com a
complexidade desses fatos. Reconhecendo Carl Schurz como uma importante figura na
história dos assuntos indígenas ou Reginald Oshkosh como um empresário madereiro não
é logicamente mais complicado que reconhecer Schurz como um herói de guerra teuto-
americano ou o Chefe Oshkosh como um grande nativo americano. O que torna o
segundo conjunto de fatos de conhecimento geral em minha cidade natal e faz do
primeiro dados recônditos quase esquecidos é algo que remete ao que é útil para o corpo
social da cidade reconhecer em sua história, e essas classificações mudam com o tempo,
formando a hermenêutica por meio da qual nos engajamos com a história e realidade
contemporâneas.
A antropologia é, é claro, um campo de produção de identidade tanto quanto a
cidade de Oshkosh ou o estado do Wisconsin — e, como tal, cria seu próprio conjunto de
fatos que são parte do conhecimento e senso comuns e um leque correspondente de
outros elementos que se entende como província de especialistas e detalhistas. Como
assinala Ernest Renan, a construção de uma herança comum obriga seus participantes a
esquecer muito mais fatos histórios do que os que lembram (Renan, 1990:45). Todavia,
como comentou sabiamente Homi K. Bhabha sobre o postulado de Renan, não é tanto por
meio do esquecimento quanto ao lembrar e então imediatamente lembrar de esquecer que
as narrativas de construção de identidade são formadas. Nesse sentido, pois, lembramos o
que fomos para poder recusá-lo em nome do que somos (Bhabha, 1990:311). No domínio
da história da antropologia, elementos comumente lembrados de modo a ser
imediatamente descartados incluem teorias obsoletas, o impacto da antropologia na
cultura política ou popular e, mais importante, as atividades práticas que foram
necessárias para que o campo pudesse se desenvolver. Essas, em particular, são as coisas
Cidadãos e Selvagens Introdução
6
que os antropólogos "lembram de esquecer", tocando nelas apenas para imediatamente
recusar sua relevância para as questões em pauta.
Dentro do campo da antropologia americana, um dos principais fatos que foi
constantemente lembrado apenas para ser rapidamente esquecido é o envolvimento
histórico da disciplina com a administração federal indígena e o grau em que ambos esses
campos ajudaram a constituir um ao outro e às modernas identidades indígenas nos EUA.
Com frequência, o engajamento da antropologia aplicada com a questão indígena é
situado como um produto do período seguindo-se à Segunda Guerra Mundial (o "Projeto
Fox" de Sol Tax é as vezes apresentado como o momento fundador). Historiadores da
antropologia mais exaustivos, engajados em recuperar fatos mais recônditos da história
da disciplina (como George Stocking), situam o nascimento do campo no período da
Grande Depressão anterior à Segunda Guerra, geralmente mencionado os experimentos
do OIA com a antropologia que são o objeto da segunda parte desta tese. Raramente, se
encontra um historiador da antropologia que vá relatar o envolvimento de um etnógrafo
do século XIX com o Office of Indian Affairs, e quando se o encontra, esse aspecto é
apresentado como um parêntese na vida do antropólogo em questão, não algo que fosse
parte de sua produção como cientista. Assim como Schurz era lembrado por seu histórico
na Guerra Civil em minha cidade natal (quando era lembrado), os etnógrafos americanos
de séc. XIX são lembrados por suas contribuições importantes — um estudo seminal da
linguística sioux, do parentesco omaha ou do xamanismo hopi — e nunca por seu
trabalho nos salões do Congresso ou como intermediários para acordos fundiários entre
os índiose os colonos. Essa parte de suas carreiras profissionais simplesmente não é
considerada uma "verdadeira antropologia" como agora a definimos, e podemos então
esquecê-la com a consciência limpa.
Um exemplo dessa memória "esquecida" em operação pode ser visto nos debates
em torno da crítica da antropologia formulado pelo falecido ativista e acadêmico sioux
Vine Deloria Jr., publicada em Custer Died for Your Sins em 1970. Se muita tinta foi
gasta debatendo o quanto Deloria foi ou não "duro demais" com os antropólogos ou se a
disciplina, como um todo, "apoiou" os índios ao longo das décadas, nenhum antropólogo
americano que eu conheça (com a possível exceção de Thomas Biolsi; ver Lurie, 1998;
Randall, 1971, e Heindenreich, 1972, para outras reações) atacou o ponto principal da
Cidadãos e Selvagens Introdução
7
crítica de Deloria, a saber, de que a antropologia sempre foi um cúmplice íntimo na
construção da política indigenista federal e, assim, um elemento constitutivo dos índios
que ela supostamente estuda en natura. Mesmo quando os debatedores se referem aos
trabalhos dos antropólogos do OIA, nenhum deles parece ter tomado a sério a afirmação
de Deloria de que na raiz de toda politica planejada para os índios, se encontrará um
antropólogo — a não ser, é claro, para arbitrariamente descartar essa afirmação como
uma mera retórica politica. Todavia, a crítica de Deloria (que, devemos notar, foi
articulada muitos anos antes que Edward Said publicasse um argumento similar relativo a
outro contexto colonial em Orientalism) é amplamente sustentada pelo registro histórico.
Esta tese consiste primariamente em uma tentativa de engajar-se com a
observação de Deloria e de atribuir significado a algumas das "estátuas esquecidas" que
pontuam a paisagem da moderna antropologia americana, particularmente com relação à
construção de ideologias e de planos administrativos relativos aos índios. Seu foco é o
envolvimento da antropologia com o Office of Indian Affairs em um período que se
estende dos anos 1880 aos anos 1940. Originalmente, esta tese contemplava um período
de tempo mais restrito: especificamente, os 13 anos durante os quais John Collier foi
Comissário para os Assuntos Indígenas nos Estados Unidos e antropólogos eram
oficialmente incluídos como parte do corpo de funcionários do OIA (1933-1945). A
pesquisa indicou, porém, que um recorte analítico baseado puramente no tempo não seria
tão frutífero quanto um que tentasse mostrar a co-evolução da antropologia e dos
Assuntos Indígenas em relação à tendências sociopolíticas maiores aparentes na história
dos Estados Unidos.
Mesmo com este recorte, porém, um foco diferente ou mais extenso poderia
facilmente ter sido escolhido. Eu poderia ter começada minha análise umas duas gerações
antes, com o trabalho de Henry Rowe Schoolcraft ou Louis Agassiz, por exemplo — ou
mesmo com aquele de Thomas Jefferson — e poderia tê-la extendido aos dias de hoje.
Escolhi o período em questão por três razões. Em primeiro lugar, corresponde ao período
formativo da antropologia moderna, profissional. Antes da Guerra Civil, os antropólogos
(ou os que seriam mais tarde classificados como proto-antropólogos) eram quase que
inteiramente amadores sem suporte institucional. Depois da Segunda Guerra Mundial,
estavam quase que totalmente institucionalizados no interior da academia, museus e
Cidadãos e Selvagens Introdução
8
governo. O período contemplado aqui, portanto, abarca a mais importante fase da
constituição da antropologia como disciplina nos Estados Unidos, a época reconhecida
pela maioria dos antropólogos americanos como a era "clássica" de seu campo. É também
o periodo em que a complexa dança da antropologia com as políticas do Estado para a
administração dos povos subordinados realmente começou. Além disso, os antropólogos
e administradores da primeira metade deste período mantiveram um relacionamento
discursivo direto com aqueles da segunda metade. As políticas planejadas para
"solucionar o Problema Indígena" em 1880 eram consistentemente citadas em 1930 como
tendo piorado a situação dos indígenas e os programas do período posterior foram
forjados com o objetivo de "corrigir" os erros criados por "concepções equivocadas"
anteriores — concepções equivocadas, entendam-se, que estavam enraizadas no que fora
um dia considerado como sólida teoria antropológica e uma boa prática de campo.
Por fim, esse período assistiu a transformação dos Estados Unidos de um país em
expansão intra-continental para um império internacional. Nessa mudança, os índios
vieram a ser situados como um problema "interno", enquanto que novos "nativos" — que
viriam a ser classificados como residentes do terceiro mundo — tomaram seus lugares
como Outros externos, racializados. Os interesses da antropologia marcharam segundo
essas mudanças, como revela a mais breve inspeção dos sumários da revista American
Anthropologist durante o período. Os povos indígenas dos EUA, entretanto, continuaram
a constituir um foco central de pesquisa antropológica e um campo onde novas teorias
(especialmente novas teorias envolvendo a engenharia social de populações humanas)
eram testadas. Mais importante, eles apareciam como uma população conveniente por
meio da qual diálogos quanto à similaridade entre os Estados Unidos e outras repúblicas
do hemisfério podiam ser construídas, um fato que foi explorado durante o pan-
americanismo dos anos 1930 e que resultou na construção de um corpo de idéias de
amplitude hemisférica quanto ao papel "apropriado" do Estado na administração da
alteridade indígena.
Esta tese analisa, portanto, as mudanças que ocorreram na administração indígena
nos Estados Unidos no interior do contexto de mudanças no pensamento sobre raça,
nação e minorias étnicas durante a primeira metade do século XX. Ela procura entender o
pequeno mas crucial papel que a antropologia teve nessas mudanças, analisando o
Cidadãos e Selvagens Introdução
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trabalho de antropólogos americanos no interior do campo político dos assuntos
indígenas. Procuro mapear alguns dos efeitos transnacionais que essas mudanças
provocaram, tanto dentro da antropologia (e particularmente no interior do recém-
formado campo da antropologia aplicada) e no interior dos assuntos coloniais — aquele
conjunto de ideologias e práticas relativas ao governo de povos dependentes. Finalmente,
tento recuperar uma peça vital da história do indigenismo brasileiro, revelando as
influências americanas nas tentativas brasileiras de reformar o Serviço de Proteção aos
Índios durante os anos 1930 e 1940 (embora, admito, eu tenha deixado a maior parte
desta questão para exploração futura).
Nos últimos anos do séc. XIX, os antropólogos — como muitos americanos
brancos — consideravam os índios americanos como uma raça às beiras da extinção,
cujos membros individuais só poderiam sobreviver por meio da rejeição do tribalismo e
da assimilação à vida nacional e à assim chamada civilização. Segundo essa
compreensão, os programas e leis que o Estado americano dirigiu para as populações
indígenas presumiam que esses povos iriam eventualmente ser eliminados como
elementos distintos, discretos, da sociedade americana. Os etnólogos dessa era
concentraram seus esforços na "salvage anthropology" (literalmente "antropologia de
resgate”), que procurava coletar elementos culturais típicos da vida indígena antes que
esses desaparecessem para sempre, e ajudando o Office of Indian Affairs a construir
práticas que buscavam civilizar os índios o mais rápida e eficientemente possível.
Por volta dos anos 1940, contudo, uma nova visão começou a se manifestar na
sociedade americana, que via os índios como membros minoritários de uma sociedade
pluralista cujas culturas representavam um recurso nacional, que merecia ser preservado.
O Office of Indian Affairs fôra reformulado para fortalecer o governo tribal e as leis do
estado americano havaim sido modificadas para presumir a reprodução contínua dos
grupos indígenas como entidades políticas. Os antropólogos foram convocados pelo
serviço indigenista para ajudar a formular políticas administrativas no interior desse novo
regime e os Estados Unidos se comprometeram, por meio do Inter-American Indigenous
Institute, a influenciar o indigenismo em todo o hemisfério. Embora a reação a essas
políticas tenha aparecido mais tarde, resultando em um retorno parcial ao
assimilacionismo nos anos 1950, as transformações envolvidas na administração indígena
Cidadãos e Selvagens Introdução
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nos anos 1930-1940 marcam uma mudança concreta no paradigma dominante relativo ao
índio americano nos Estados Unidos e, de fato, no hemisfério: nunca mais a presunção de
que os povos indígenas deveriam desaparecer se sustentaria sem desafio.
Como e porque essa mudança de paradigma ocorreu? Quais eram as novas formas
de dominação e contestação que trouxe para as vidas dos índios? Que mudanças
correlatas implicou nas visões dos americanos das relações entre nacionalidade e raça ou
etnicidade? Finalmente, que papel a antropologia desempenhou na emergência e
sustentação dessa nova ordem? Estas são as questões que pretendo abordar nesta tese,
explorando a administração indígena nos EUA de 1880 a 1945 e suas relações com a
antropologia e com noções americanas de identidade nacional. Meus objetivos nesta tese
são triplos:
1) Fornecer aos leitores brasileiros uma introdução ao assuntos indígenas dos EUA
durante o período pós-conquista do fim do século XIX e início do XX.
É curioso que praticamente nada tenha sido publicado em português sobre os
assuntos indígenas nos Estados Unidos. Isso é especialmente notável se lembramos
que aquele páis sempre foi um pólo comparativo para os estudos brasileiros de raça e
etnicidade. Literalmente centenas de artigos e livros foram produzidos em português a
propósito desses tópicos e de sua história nos EUA, mas quase nenhum desses toca na
questão indígena nos EUA. A situação chega aos limites do acreditável quando
lembramos que, junto com os Estados Unidos, o Brasil tem sido um dos poucos
países nesse hemisfério com uma experiência considerável de administração dos
índios como povos separados da população nacional. Presume-se, pois, que o estudo
das políticas americanas de administração indígena só pudesse ajudar a levantar
muitos pontos de interesse para historiadores e antropólogos brasileiros. Nesse
contexto, o quase total silêncio absoluto na produção intelectual brasileira sobre a
situação dos povos indígenas nos Estados Unidos é ensurdecedor. O principal
objetivo desta tese é dar um passo para enfrentar esse problema.
2) Explorar a relação dialética forjada entre a antropologia e a administração
indígena nos Estados Unidos durante este período.
Cidadãos e Selvagens Introdução
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O presente trabalho concerne o papel da antropologia na formação das políticas
e práticas da administração indígena americana. Algo deste material foi apresentado
alhures (Biolsi, 2001; Hoxie, 1984; Hinsley, 1981; Taylor, 1975, Philp, 1979; Kelly,
W., 1954), mas a maior parte permanece intocada por historiadores e antropólogos.
Nas poucas ocasiões em que aparece, é tratado como uma mera nota de pé-de-página
na descrição de outros fenômenos mais importantes (ver, por exemplo, Stocking,
1976). Tipicamente, o autor notará que um certo antropólogo foi contratado pelo
OIA, mas isso então é tratado como tendo sido um evento menor em sua carreira, um
breve desvio da antropologia verdadeira. Da mesma forma, trabalhos que discutem a
história da antropologia nos EUA não examinam os efeitos gerativos que a
antropologia teve sobre as práticas da administração indígena — e assim sobre a
constituição dos povos nativos eles próprios como entidades sócio-culturais e
políticas. Os autores geralmente limitam-se a notar que esse foi um dos "usos" que
foram feitos da antropologia. É preciso também admitir que, historicamente, existe
algo como um preconceito na antropologia americana contra a antropologia aplicada,
em oposição ao trabalho puro ou teórico, e de que muitas das pessoas que
trabalharam, em tempo integral, com aplicações antropológicas, foram consideradas
antropólogos de segunda linha por seus colegas (pelas costas, é claro).
Em suma, existe uma quase absoluta carência na academia americana do tipo de
estudo de antropologia política da administração indígena que se tornou comum no
Brasil na última década, e que situa os antropólogos como atores chave neste campo
(ver, em particular, Lima, 1995; Oliveira Filho 1998; e Rocha Freire 1990). Tais
estudos são tão raros nos EUA quanto livros sobre índios americanos o são no Brasil.
Esta tese é uma tentativa de remediar esta situação.
3) Abrir uma discussão sobre o modo como a Administração Indígena dos EUA
produziu práticas e ideologias que foram aplicadas a outros povos e lugares.
Há muito se reconhece que os componentes ideológicos das noções de
"selvageria", formulada durante os séculos de contato e conflito que viram a expansão
dos EUA sobre a face da América do Norte, serviu de base para ideologias
americanas relativas a outros povos em outros lugares e momentos (Drinnon, 1997;
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Williams, 1990; Borneman, 1995; Pearce, 1988 [1953]). Todavia, pouco se trabalhou
o modo como as práticas efetivas envolvidas na administração indígena americana
contribuíram para formulações discursivas alhures, e quando.
Estou interessado em mapear as alterações nas práticas, ideologias e especialistas
do campo dos assuntos indígenas para aquele do desenvolvimento, durante e depois
da Segunda Grande Guerra, e esta tese representa uma tentativa primeira, inicial, de
seguir nesta direção, embora deixe esta questão quase toda para o trabalho futuro.
Mais particular e concretamente, todavia, pretendo descrever aqui as tentativas
americanas de internacionalizar o Indian New Deal por meio da fundação, junto com
indigenistas mexicanos, do Interamerican Indigenous Institute (InInIn), e os efeitos
que isso teve sobre a administração indígena no Brasil. Embora o Brasil tenha se
furtado de assinar os protocolos do InInIn, preferindo manter-se livre de quaisquer
embaraços internacionais relativos à administração indígena, minha pesquisa,
seguindo a de Carlos Augusto Rocha Freire (1990), levou-me à conclusão de que as
reformas americanas das décadas de 1930 e 1940 constituíram um modelo que certos
brasileiros tentariam aplicar aos órgãos indigenistas de sua nação.
Dados os três objetivos acima, deve estar óbvio que esta tese não consiste em um
trabalho antropológico tradicional, e muito menos em uma etnografia. Ela toma como
objeto o estudo diacrônico da interação entre um campo político (administração indígena)
e uma disciplina científica (antropologia). Todavia, a análise que apresento aqui não é
nem propriamente histórica, nem política. Meu interesse é a formação da cultura como
um ato político e vice-versa; o vai e vêm entre uma ciência nominalmente objetiva mas
culturalmente condicionada e o campo subjetivo da política, cujo propósito afirmado é o
desenvolvimento de políticas racionais para a administração da diversidade humana. Esse
é um campo tremendamente desconfortável para os antropólogos, pois, como apontou
várias vezes Vine Deloria Jr., é aqui que a teoria erudita da diferença humana encontra-se
com as práticas efetivas designadas para ordenar vidas e comunidades humanas no
interior de polities hierarquizadas.
Um truísmo conhecido por todo antropólogo, mas sobre o qual poucos refletem, é
que Estados-nação não mantém coisas como museus nacionais ou universidades federais
Cidadãos e Selvagens Introdução
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com seus departamentos de antropologia porque os congressistas, presidentes e
burocratas caem de amores pela investigação da diversidade sociocultural humana. Uma
das principais razões pelas quais encontra-se dinheiro para pagar essas coisas é porque os
servos e mestres do Estado esperam conseguir uma fonte de consultoria especializada ao
elaborar leis regulando a existência de povos dominados e colonizados mas
imperfeitamente controlados. A manutenção dos mais famosos departamentos
antropológicos do mundo sempre dependeu deste fato. A antropologia desenvolveu-se
como uma disciplina acadêmica ao mesmo tempo que se desenvolvia como uma
disciplina no sentido focaultiano: i.e, como um instrumento utilizado para a transmissão
de poder (Foucault 206: 1984 [1977]). Uma face é absolutamente inseparável da outra,
com as teorias antropológicas alimentando suas aplicações e vice-versa, ambas as faces
partes integrais da mesma dialética única. Uma investigação das estruturas, ideologias e
conveniências que casaram a antropologia com a política do Estado no interior do campo
dos assuntos indígenas dos EUA é, portanto, um dever tanto histórico quanto
antropológico.
Estrutura da tese
Este trabalho é dividido em três partes, cada uma contendo três capítulos. A
primeira seção lida com as coordenadas históricas e filosóficas dos assuntos indígenas
nos EUA no séc. XIX, prestando uma atenção particular ao período de 1875-1890,
quando a política administrativa para os índios foi reformada pelo Dawes Act e novas
diretivas para o OIA foram estabelecidas. A Parte II aborda a mudança na visão sobre os
índios dos anos 1920 e 1930, bem como as fundações do Indian New Deal e seu principal
protagonista, John Collier. De 1934 a 1945, a facção reformista liderada por Collier lutou
para instalar e depois manter e estender suas políticas, as quais podiam ser descritas como
tentativas de estabilizar e desenvolver comunidades indígenas enquanto entidades
socioculturais e econômicas discretas, firmemente estabelecidas no interior da estrutura
mais ampla de um Estado-nação colonial dominante. Crucial para esse projeto era o
estabelecimento de governos tribais semi-soberanos que agiriam como intermediários
administrativos entre os povos indígenas e outras instâncias do governo americano,
incluindo o OIA. O sucesso dessa empreitada (no que toca à obtenção de um grau maior
Cidadãos e Selvagens Introdução
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de poder para os grupos indígenas) foi ambíguo, mas ela estabeleceu uma série de
entidades, tanto no nível tribal quanto federal, que se tornariam nexos importantes de
poder e formulação/implementação de políticas indígenas ao longo do meio século
seguinte. A Parte III discute a integração de antropólogos ao OIA sob a liderança de John
Collier na passagem entre as décadas de 1930 e 1940, e o papel desempenhado por
antropólogos americanos no estabelecimento dos governos tribais e no Inter-american
Indigenous Institute. Finalizo a dissertação com um breve capítulo apresentando algumas
considerações finais sobre a hermenêutica subjacente da antropologia americana, tal
como revelada nesta tese.
Há também três apêndices. Um contém uma lista de todos os antropólogos que
descobri terem trabalhado com o OIA durante a administração de Collier nos anos 1930 e
1940. Um segundo contém uma lista de publicações produzidas pelo Indian Educational
and Personality Research Project do início dos anos 1940. O terceiro apêndice consiste
em uma breve discussão de Indians at Work, a revista informativa oficial do OIA de
Collier. Embora eu não a cite extensivamente em minha pesquisa, esta publicação me
serviu como um guia cronológico geral aos temas e personalidades do OIA durante esse
período. Consiste em um recurso essencial para a pesquisa sobre o Indian New Deal e,
tanto quanto eu saiba, todas as coleções disponíveis no Brasil são incompletas. Para
remediar esta situação, estou incluindo na versão em português da tese uma coleção
digitalizada, basicamente completa (faltando só alguns exemplares), de Indians at Work.
Aviso aos pesquisadores que desejem usar este recurso que os números faltantes da
coleção digital podem ser encontradas na biblioteca do Museu Nacional no Rio de
Janeiro e na biblioteca da Casa Alberto Torres no município de Itaboraí, RJ (não garanto
a qualidade das imagens contidas no CD, que incluem várias fotos de meus dedos).
Origens e desenvolvimento da tese
Meu interesse pelos assuntos indígenas americanos e suas conexões com as
políticas coloniais e imperiais dos EUA é muitos anos anterior à minha entrada no
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional. De fato,
quando vim pela primeira vez ao Museu, esperava continuar a pesquisa de minha
monografia de graduação não-terminada, cujo tópico era o Bureau of Indian Affairs e as
Cidadãos e Selvagens Introdução
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tentativas do FBI de destruir o Movimento Indígena Americano (AIM) nos anos 1970. A
maior barreira que encontrei, todavia, era o fato de que precisava completar o mestrado
em dois anos. Não consegui imaginar como realizar tal projeto no Rio de Janeiro dentro
desses limites. Como eu estava também ansioso para praticar metodologias de campo
antropológicas, produzir em lugar disso uma etnografia que investigava a etnicidade e
etnogênese abordando várias comunidades falantes de inglês na cidade do Rio de Janeiro.
Ao entrar para o programa de doutorado em 2001, contudo, deparei-me mais uma
vez como meu desejo de realizar pesquisa no campo dos assuntos indígenas, e os eventos
de 11 de setembro de 2001 finalmente me fizeram decidir. Nas semanas que se seguiram
ao ataque contra o Pentágono e o World Trade Center, tornou-se óbvio para qualquer um
com algum conhecimento da história e política que os Estados Unidos estavam mais uma
vez às beiras de um momento imperial e expansivo. Minha crença de que a chave para a
compreensão americana do dito terceiro mundo e, em particular, daqueles que os
dirigentes daquele país percebem como seus inimigos neste mundo, podia ser encontrada
na história dos assuntos indígenas, adquiriu uma nova relevância à luz dessa situação.
Os dois anos de estudo anteriores me puseram em contato com o excelente
trabalho desenvolvido por doutores Antonio Carlos de Souza Lima e João Pacheco, dois
antropólogos brasileiros que devotaram muito tempo e energia em tratar a própria
administração indígena como objeto de investigação antropológica, bem como com o
trabalho de Giralda Seyferth, que investiga raça, etnicidade e nação como campos de
produção de identidade entrelaçados e politicamente estruturados. Meu trabalho com
estes pesquisadores colocou-me em contato com uma abundância de materiais
concernentes à raça e aos assuntos indígenas brasileiros, em particular no que se refere a
Candido Rondon, ao Serviço de Proteção aos Índios e ao Conselho Nacional de Proteção
aos Índios. Logo tornou-se claro para mim, à luz de minhas leituras prévias sobre os
assuntos indígenas americanos, que haviam consideráveis paralelos entre o que ocorrera
nos dois países e que os anos 1930 e 1940, em particular, pareciam algo como um
divisor de águas em termos da geração de novos ideologias à respeito da diferença
humana no Brasil e nos Estados Unidos.
No campo dos assuntos indígenas norte-americanos, eu sabia há muito que a
administração do comissário John Collier era considerada por estudiosos americanos
Cidadãos e Selvagens Introdução
16
como um ponto de virada diante das políticas anteriores que buscavam a assimilação
incondicional e imediata dos índios. Pesquisas para os cursos do Dr. Souza Lima,
entrentanto, logo me convenceram de que o alcance das reformas de Collier estendiam-se
bem além das fronteiras dos Estados Unidos por meio do estabelecimento do
Interamerican Indigenous Institute. Muitos de meus colegas sob a orientação de Souza
Lima estavam, com efeito, lendo as revistas deste Instituto em busca de informações
relativas às coordenadas filosóficas e políticas do indigenismo brasileiro no período pós-
Guerra. O que fui rapidamente capaz de perceber neste material, graças a meu trabalho de
graduação sobre o OIA (e que meus colegas brasileiros em geral não perceberam, não por
sua culpa mas por falta de familiaridade com os assuntos indígenas norte americanos) foi
a presença no Instituto de pessoas intimamente associadas à administração de Collier. O
próprio Collier encontrava-se listado como o primeiro presidente do InInIn e um membro
de seu comitê executivo original.
Essa foi a primeira indicação, para mim, de contatos entre as esferas do
indigenismo brasileira e americana. Se John Collier, então Comissário de Assuntos
Indígenas nos Estado Unidos, pensara ser o InInIn importante o suficiente para assumir
sua presidência, então certamente a influência americana no interior desse Instituto —
que, segundo Souza Lima, forneceu uma sólida plataforma para as idéias para muitos dos
mais famosos indigenistas brasileiros — ia além do meramente superficial (2002: 162-
169). Decidi então concentrar meus esforços de pesquisa nesse período e nos contatos
indigenistas americanos com o Brasil.
O trabalho de Carlos Augusto Rocha Freire (1990) tornou-se meu guia inicial para
a interseção entre o indigenismo brasileiro e outros indigenismos americanos, e foi muito
útil sob este aspecto. Rocha Freire leu e analisou as atas de reunião do Conselho Nacional
de Proteção aos Índios no arquivo da FUNAI no Museu do Índio. O CNPI era um órgão
indigenista formado sob a liderança de Cândido Rondon em 1939 para reformar e dirigir
o velho Serviço de Proteção aos Índios (SPI), e no curso de sua pesquisa sobre ele, Rocha
Freire desencavou uma pequena mina de ouro de informações sobre os contatos entre o
círculo de Rondon e o OIA de Collier. O projeto de Rocha Freire não estava orientado
para a análise desse material, mas sua descoberta permitiu-me referenciá-lo e estudá-lo.
Contatos pessoais com Rocha Freire convenceram-me de que ele acreditava que a
Cidadãos e Selvagens Introdução
17
experiência norte-americana tenha sido usada pelo CNPI como um modelo para suas
propostas de reforma. Como ele escreveu em sua tese:
[U]m ofício do conselheiro José da Gama Malcher, Diretor do SPI de 1951 a 1955,
sugere-nos a manutenção dos EUA como “modelo”, ao utilizar a lei Wheeler-Howard
(EUA, 1934) para apresentar uma proposta de regulamentação do artigo constitucional
sobre terras indígenas... Com tudo isto queremos afirmar que só uma pesquisa
específica pode dar conta das possíveis ‘relações indigenistas’ estabelecidas entre os
EUA e o Brasil, mostrando troca de idéias e experiências em âmbito continental.
(Rocha Freire, 1990: 54)
As palavras de Rocha Freire confirmavam que minhas suspeitas quanto à
influência do OIA sobre o indigenismo brasileiro não eram simples figmento de minha
imaginação. Para além disso, sua tese revelou um elemento significativo do campo
político indigenista oficial durante os anos 1930 e 1940: a presença de antropólogos
como elementos constitutivos da política indigenista.
A maior parte dos arquivos originais sobre o SPI/CNPI foram destruídos em um
incêndio (possivelmente criminoso) várias décadas atrás. Quem pesquisa a política
indígena no Brasil acostumaram-se, pois, a juntar pacientemente fragmentos de
informação encontrados nos materiais restantes na FUNAI, entrevistas com indigenistas
sobreviventes, fontes secundárias e outras coleções de documentos que, à primeira vista,
podem não parecer pertinentes para o assunto em pauta. Minha pesquisa seguiu esta
metodologia há muito estabelecida.
Meu primeiro objetivo, depois de percorrer os arquivos do SPI/CNPI no Museu
do Índio da FUNAI, era tentar reconstruir os arquivos de informação disponíveis para os
membros do CNPI relativos aos assuntos indígenas americanos em 1939. Essa acabou
sendo uma tarefa bastante simples, uma vez que a maior parte da biblioteca pessoal de
Rondon, assim como a do CNPI, encontra-se agora nas coleções do MI/FUNAI. Como
mostrou o trabalho de Freire, porém, antropólogos brasileiros ligados ao Museu Nacional
também foram membros importantes do círculo de Rondon. Em particular, Roquette-
Pinto, ex-diretor do Museu, e Heloisa Alberto Torres, sua sucessora, foram membros do
Conselho e muito ativos a esse respeito. Comecei assim a buscar nas coleções de livros e
documentos do Museu Nacional, tentando descobrir o que havia de disponível lá sobre os
índios americanos antes da Segunda Guerra.
Cidadãos e Selvagens Introdução
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Logo descobri alguns fatos interessantes. Tanto a biblioteca do Museu quanto a da
FUNAI continham coleções relativamente extensas de materiais concernentes aos índios
dos EUA publicados antes do início dos anos 1950. Daquele momento em diante, as
coleções diminuíam dramaticamente, voltando a recuperar-se apenas a partir do início
dos anos 1980. A maior parte desses livros e revistas eram edições originais. Além disso,
no interior dessas coleções, haviam quantidades significativas de materiais publicados
pelo OIA de Collier. Em particular, descobri que o Museu Nacional possuía uma extensa
coleção da revista do OIA, Indians at Work, e — ainda mais interessante — uma edição
original do monumental Handbook of Federal Indian Law, um dos mais importantes e
influentes documentos jamais produzidos pelo governo federal americano sobre os
assuntos indígenas. Quantidades de estudos de culturas indígenas da Smithsonian
também estavam disponíveis, bem como materiais produzidos pelo Arts and Crafts Board
do OIA. A biblioteca do MI/FUNAI tinha menos material, de modo geral, mas abrigava
cópias impressass e distribuídas dos discursos de Collier, bem como relatórios censitários
da população indígena dos Estados Unidos.
Em suma, parecia-me que o CNPI/SPI dos anos 1930/1940 e os antropólogos
associados do Museu Nacional brasileiro possuíam um montante bastante significativo de
informações quanto aos assuntos indígenas americanos, boa parte de muito boa
qualidade. De fato, pensei existir uma grande probabilidade de que os livros e revistas
que eu encontrara constituíssem a herança de uma doação maciça de material feita ao
governo brasileiro em resposta a uma requisição do chefe do SPI, Vicente de Paulo
Teixeira da Fonseca Vasconcelos, feita em 1938 e 1939.
3
Em dezembro de 2002, fiz uma rápida viagem a Washington D.C. para investigar
os documentos da OIA no National Archive and Research Administration (NARA). Ali,
3
Rocha Freire erroneamente diz que esse material foi doado pelo Instituto Indigena Nacional dos EUA
(National Indigenous Institution of the United States), uma organização que somente foi fundada dois anos
após a data da doação. A correspondência diplomática americana confirma que Vasconcelos, o chefe do
SPI, formalmente requereu informações sobre a administração indígena nos EUA da embaixada daquele
país no Rio de Janeiro em 9/12/38 (NARA, RG84, Box 30, Brazil, Rio de Janeiro Embassy Classified and
Unclassified Records, #1061), talvez sob incentivo do Luis Simões Lopes, chefe do DASP, que estava
viajando nessa época ao Washington D.C., onde ele encontrará com John Collier. O pedido de Vasconcelos
foi repassado pelo serviço de informações da OIA 18 dias mais tarde (NARA, RG75, CCF #78804). Quatro
meses mais tarde, no 13/4/1939, Vasconselos pediu mais informações da OIA pelo mesmo canal, mais
particularmente uma copia da Circular #2970 do OIA (NARA, RG75, CCF #23471). Esse documento foi
encontrado por mim, parcialmente traduzido, no arquivo morto de Heloisa Alberto Torres mantido pelo
LACED no Museu Nacional e é quase certo que seja parte dos documentos referidos por Rocha Freire.
Cidadãos e Selvagens Introdução
19
descobri indícios de uma extensiva correspondência entre a OIA e o SPI, mas, para a
minha frustração, os documentos originais haviam sido mal arquivados e não podiam ser
localizados. Então direcionei os meus esforços para a leitura do arquivo morto de John
Collier, mantido na NARA, e a correspondência diplomática da embaixada dos Estados
Unidos no Rio de Janeiro. Embora eu tenha localizado pouca coisa a respeito do Brasil,
encontrei uma profusão de informações sobre o papel da OIA de apoiar as iniciativas
diplomáticas americanas em todo o hemisfério antes e durante a Segunda Guerra
Mundial. Isso me confirmou que a administração indígena durante esse período era vista
como algo com o potencial de gerar impacto internacional pelos membros do governo de
Roosevelt, que estavam dispostos a usar a OIA como uma ferramenta de diplomacia
internacional nos esforços de unir as Américas contra o fascismo.
Ao retornar ao Brasil no início de 2003, comecei a pesquisar coleções de
documentos associados ao círculo de Rondon. Primeiro, olhei a correspondência a
respeito de Rondon no Museu Benjamin Constant. Isso confirmou que Collier havia
apoiado a candidatura de Rondon para o Prêmio Nobel da Paz nos anos 1950. Pesquisas
nos arquivos do Itamaraty e na correspondência do Museu Nacional não foram muito
produtivas, mas de fato me levaram a entender o papel essencial da antropóloga Dra.
Heloisa Alberto Torres (membro do CNPI e Diretora do Museu Nacional) na articulação
entre as antropologias dos Estados Unidos e do Brasil. Isso me levou, em contrapartida, a
averiguar a coleção Heloisa Alberto Torres do LACED (Laboratório de Pesquisas em
Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento) no Museu, que continha os originais dos
documentos da OIA que o Alberto Torres havia traduzido para o CNPI. Os arquivos do
LACED também continham uma correspondência fragmentária entre Heloisa e o
etnólogo germano-brasileiro Kurt Nimendaju a respeito da influência dos Estados Unidos
sobre o SPI.
Para descobrir mais dados dessa correspondência, comecei a trabalhar
simultaneamente com os arquivos Kurt Nimendaju no Museu e com os arquivos Heloisa
Alberto Torres no Centro Cultural Casa Alberto Torres em Itaboraí. Foi durante esse
estágio da pesquisa que as peças finalmente começaram a se encaixar. No CCCAT, a
biblioteca de Heloisa estava sendo catalogada e organizada e isso me permitiu um acesso
incomum às estantes, em quais descobri muitas outras cópias da revista Indians at Work
Cidadãos e Selvagens Introdução
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bem como vários livros produzidos pelos antropólogos da OIA. Juntando a
correspondência de Heloisa com aquela de Kurt Nimendaju, conheci os planos de se usar
o CNPI para formar um núcleo reformista dentro dos assuntos indígenas brasileiros que
seguiria, em grande medida, a trilha da administração do OIA de John Collier nos
Estados Unidos. Um dos elementos principais desse plano era a fundação – com a ajuda
do Museu Nacional sob a direção de Alberto Torres – de uma unidade de pesquisa
etnológica parecida com aquela implantada pela OIA para oferecer consultoria sobre
políticas administrativas indígenas racionais e culturalmente harmoniosas.
A essa altura, senti que eu havia realizado suficiente trabalho preliminar para
planejar um projeto viável. Parecia-me evidente que o OIA havia sido extensivamente
ativa no Brasil durante o período que antecedeu a Segunda Guerra Mundial e que os
indigenistas brasileiros estavam bastante cientes das reformas que haviam ocorrido nos
Estados Unidos, considerando-as modelos para suas próprias atividades.
Quando eu originalmente embarcara na minha pesquisa, eu pretendia vagamente
comparar as políticas indígenas e de imigração brasileiras e dos Estados Unidos em uma
tentativa de esboçar algum tipo de teoria-mor das práticas do Estado na administração de
sujeitos insuficientemente nacionalizados e da interação dessas práticas com a teoria
antropológica. Essa idéia havia sido deixada de lado após longas discussões com a minha
orientadora Dra. Giralda Seyferth e sua ex-orientada, Dra. Olívia Carneiro Cunha. Essas
duas estudiosas reagiram de forma parecida e me deram o mesmo bom conselho: “Que
idéia maravilhosa… Para uma carreira, não para uma tese de doutorado. Reduza o seu
campo de análise em ao menos 100 por cento e se livre dos índios ou dos imigrantes”. A
minha banca de tese secundou esse ponto de vista e, então, resolvido a concentrar-me na
questão dos índios – e particularmente, os índios dos Estados Unidos – comecei a
elaborar um projeto que pudesse supostamente ser terminado nos dois anos que restavam
do meu doutorado.
Minha pesquisa inicial deixara claro para mim que os antropólogos haviam
desempenhado um grande papel nas tentativas de reforma da administração indígena
tanto nos Estados Unidos como no Brasil, mas que pouco, se isso, havia sido escrito a
respeito, especialmente no lado americano. Novas visitas à biblioteca para folhear os
trabalhos dos Estados Unidos sobre a história da antropologia confirmaram que os
Cidadãos e Selvagens Introdução
21
antropólogos haviam sido usados em larga escala como especialistas na reforma dos
assuntos indígenas realizada pela administração da OIA por parte de Collier. Todavia,
poucos relatos históricos haviam sido escritos a respeito desse tópico e nenhum deles
estava disponível no Brasil. De fato, pouca informação de qualquer tipo sobre os anos de
Collier encontrava-se disponível no Brasil, embora trabalhos históricos mais gerais sobre
assuntos indígenas e etno-histórias tribais apontassem para as reformas desse período
como cruciais para a formação do campo moderno de assuntos indígenas nos Estados
Unidos.
Ao aplicar para uma bolsa sanduíche no Smithsonian Institute’s National Museum
of the American Indian em Washington D.C., e conseguí-la através da CAPES
(Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), passei 8 meses nos
Estados Unidos, a partir de janeiro, de 2004, conduzindo uma pesquisa básica sobre os
assuntos indígenas nos Estados Unidos. Qualquer minimamente familiar com esse tópico
entenderá que esta foi uma empreitada incrivelmente grande para realizar completa e
exaustivamente. Há milhares de títulos sobre índios e assuntos indígenas disponíveis na
American Library of Congress e a seção de “Periódicos” da Library of the National
Museum of the American Indian at the Smithsonian por si só ocupa um salão de bom
tamanho. Os arquivos da OIA no National Archive and Research Administration somam
milhares de caixas de documentos. Mesmo reduzindo o material ao que seria pertinente
para a administração de Collier, eu não poderia esperar conseguir mais do que uma visão
geral dos textos e documentos mais importantes nos 8 meses que me foram concedidos
pela agência financiadora.
Desse modo, fiz uma decisão desde o início de reduzir as minhas leituras de apoio
a uma bibliografia “esquemática”, usando o padre Francis Paul Prucha como meu guia.
Os textos históricos de Prucha, como The Great Father (1986), são trabalhos de pesquisa
e análise de alta qualidade sobre os assuntos indígenas e as relações entre os indígenas e
os brancos nos Estados Unidos e constituem uma leitura essencial para qualquer
estudante empenhado seriamente no estudo desses tópicos. Mostrando-se mais útil ainda,
Prucha produziu vários guias de pesquisa como os United States Indian Policy: A Critical
Bibliography (1977b) e A Bibliographical Guide to the History of Indian-White Relations
in the United States (1977a), que apresentam bibliografias úteis e relativamente
Cidadãos e Selvagens Introdução
22
completas para estudantes de assuntos indígenas dos Estados Unidos. Prucha também
editou coleções, como Documents of United States Indian Policy (2000), que reproduzem
e cotejam textos primários essenciais. Por fim, padre Prucha escreveu uma série de
trabalhos metodológicos, como o New Approaches to the Study of the Administration of
Indian Policy, que discutem minuciosamente as armadilhas e as questões que os
pesquisadores atuais enfrentam ao mergulhar na história dessa área de estudos. Embora
Prucha talvez sofra de uma leitura benevolente demais do papel que a religião – e
especialmente a igreja católica – desempenhou nos assuntos indígenas, a qualidade de sua
pesquisa histórica básica é inquestionável, o que é um elogio e tanto quando se considera
o quão altamente polarizado e polêmico pode ser o campo de estudo dos assuntos
indígenas nos Estados Unidos.
Com Prucha como guia, reuni e li a minha bibliografia básica, compilando uma
lista de trabalhos secundários a partir dessas leituras, em um efeito bola de neve, e
prestando atenção particular às referências às coleções de documentos. Após 3 meses nos
Estados Unidos, eu havia adquirido um mapa bastante preciso de onde no NARA e no
National Anthropological Archives eu conseguiria encontrar o material que me
interessava. Nesse momento, tive que tomar outra decisão que envolvia uma redução no
escopo do trabalho. Embora o envolvimento de Collier com os assuntos indígenas tenha
se dado há mais de meio século, os estudos sérios a respeito disso foram realizados
apenas, com algumas exceções, no fim dos anos 1970 e em grande parte se extinguiram
uma década mais tarde, como geralmente acontece com os modismos acadêmicos. Há
então uma imensa quantidade de trabalho a ser feito no mapeamento e análise de todos os
documentos referentes a essa era fascinante da administração indígena nos Estados
Unidos. Em direta oposição aos pesquisadores do SPI no Brasil, que lidam com a
escassez de registros, as pessoas que escolhem estudar a OIA disponham de uma
profusão de evidências documentais. Há duas coleções de documentos referentes a
Collier, que juntas compõem centenas de caixas, bem como grandes coleções relativas a
cada um dos principais oficiais e projetos de Collier, a cada uma das divisões
burocráticas da OIA e a cada tribo individual sob a tutela da Repartição. Há também a
massa amorfa dos “Central Classified Files”, uma série de documentos não organizados
que lidam, em sua maioria, com o funcionamento cotidiano da Repartição. Esses se
Cidadãos e Selvagens Introdução
23
acumulam em milhares de caixas, para quais nenhum mapa organizado ainda existe.
Além disso, há coleções referentes a agências com as quais a OIA usualmente lidava,
mais particularmente o Soil Conservation Service, que contratou vários antropólogos para
trabalharem em seus escritórios durante este período, e o Office of the Coordinator of
Inter-American Affairs, que supervisionava aberturas diplomáticas e culturais para a
América Latina como o trabalho da OIA com o InInIn. E isso sem levar em consideração
as resmas de documentos com a transcrição dos debates sobre assuntos indígenas
disponíveis nos registros da Library of Congress
No Smithsonian’s National Anthropological Archives (NAA), pode-se encontrar
milhares de caixas de materiais de fontes primárias referentes a muitos dos antropólogos
contratados pela OIA, mas há também várias coleções dedocumentos cruciais dispersas
pelo país. Os papeis de Alfred Kroeber, por exemplo, estão na Califórnia. Muito do
material sobre os antropólogos da Universidade Columbia ainda está para ser descoberto
nas coleções não organizadas nos porões daquela instituição em Nov Iorque. Os arquivos
de Julian Steward estão em Illinois e os documentos de Boas na Pensilvânia. Talvez em
outra década muito desse material esteja digitalizado e acessível a pesquisadores em
qualquer parte do mundo; em 2004, contudo, estava acessível apenas, em sua maioria,
mediante visitas físicas às coleções – algo que um estudante de pós-graduação contando
com um orçamento de pesquisa federal do Brasil simplesmente não consegue fazer
exaustivamente.
Então decidi limitar as minhas investigações a dois tópicos nos arquivos da OIA
no NARA: a contratação dos antropólogos e o envolvimento da OIA nos assuntos
indígenas da América Latina, com ênfase especial no Brasil. Além disso, exceto por uma
breve visita à Universidade de Columbia em Nova Iorque para olhar os documentos de
Scudder Mekeel e o envio de um pedido para Berkeley para alguns documentos de
Kroeber, a minha pesquisa das coleções antropológicas ficaria restrita ao NAA.
Mesmo essa investigação limitada logo ameaçou tornar-se extensiva demais e eu
teria ficado assoberbado não fosse a tecnologia que veio correndo me acudir. Minha
esposa, Ana Paula da Silva, comprara uma câmera digital com um tripé que eu utilizei
para tirar 50.000 fotos dos documentos da OIA, permitindo que eu realizasse a sua leitura
e análise por um período muito mais longo do que a minha bolsa de pesquisa de 8 meses
Cidadãos e Selvagens Introdução
24
normalmente permitiria (eu ainda não avaliei mais da metade desse material). A
descoberta tecnológica também interveio durante a minha breve investida nos registros da
Library of Congress, onde um mecanismo de passar as cópias para CD havia acabado de
ser instalado nos aparelhos de leitura de microfilme. Eu literalmente fui a primeira pessoa
a usar esse novo equipamento, que me permitiu copiar rapida e eficientemente centenas
de páginas dos debates no congresso a respeito dos assuntos indígenas sem custo algum
(uma consideração e tanto visto que no país em questão uma fotocópia pode chegar a
custar .40 USD por página…).
Até agosto, eu havia conseguido criar a minha própria biblioteca de documentos
sobre a OIA. Eu tinha praticamente conseguido obter tudo que fosse possível quando a
minha bolsa de estudos acabou e eu voltei para o Brasil. Uma vez em casa, comecei
imediatamente a organizar e analisar a imensa quantidade de dados que eu havia
coletado. Entre setembro de 2004 e setembro de 2005, eu li, organizei os documentos e
escrevi. Até dezembro, de 2005, contudo, decidi delimitar pela última vez o tópico da
minha tese.
Embora a minha investigação inicial tivesse a ver com comparar e relacionar o
indigenismo dos Estados Unidos com o do Brasil, eu finalmente decidi que, devido à
completa falta de estudos brasileiros sobre os assuntos indígenas americanos mencionada
acima, uma tarefa muito mais básica se estendia diante de mim em termos de escrita. Eu
simplesmente não poderia começar a escrever sobre a ligação CNPI/OIA, e o aumento do
uso dos antropólogos nos assuntos indígenas durante os anos 1930 e 1940, sem descrever
primeiro o Indian New Deal de John Collier. Isso, por sua vez, não faria sentido algum
para os leitores brasileiros sem uma avaliação do período anterior em assuntos indígenas
nos Estados Unidos que, por sua vez, acabaria inútil sem pelo menos um capítulo que
explorasse as raízes da história de contato entre índios e brancos na América do Norte.
Além disso, a minha pesquisa no NAA e na Library of Congress me convencera de que a
maioria do saber produzido sobre a antropologia aplicada nos Estados Unidos estava
errada: não começara durante a era de Collier, mas 50 anos antes quando o novato
Bureau of American Ethnology se envolveu com os debates no congresso a respeito da
distribuição de terras indígenas. Isso em si já constituía uma descoberta histórica
significativa. Por fim, as minhas leituras dos documentos de John Collier haviam me
Cidadãos e Selvagens Introdução
25
convencido de que uma parte chave do quebra-cabeça a respeito da fundação do InInIn
residia nos arquivos mexicanos que eu todavia não pesquisara.
Juntos, esses três fatores me convenceram a focar novamente a escrita da minha
tese sobre o desenvolvimento dos assuntos indígenas nos Estados Unidos no período
entre 1880 e 1940, enfatizando os papéis cruciais que a antropologia desempenhara na
criação da administração indígena moderna naquele país. Então decidi deixar
temporariamente de escrever sobre as conexões OIA/SPI/CNPI dos anos 1940, exceto
por um breve trecho que os leitores encontrarão no capítulo 9, abaixo. Até certo ponto,
pois, esta tese é meramente um trabalho preliminar – um ensaio geral, digamos assim –
pois estou atualmente planejando escrever uma série de artigos sobre as conexões entre o
indigenismo dos Estados Unidos e do Brasil. É, entretanto, um trabalho muito necessário
uma vez que apresenta o pano de fundo dos assuntos indígenas dos Estados Unidos
durante o período em questão, que servirá como base de toda a minha investigação futura
sobre o tópico.
O leitor deve ser avisado que durante a minha pesquisa, descobri que o Dr.
Lawrence Kelly, considerado um dos melhores estudiosos do período Collier, já havia
tentado escrever um livro sobre os antropólogos da OIA, tendo depois abandonado o
projeto pois, em suas palavras, ele “se desesperou com receio de nunca conseguir analisar
corretamente o que estava acontecendo”.
4
Kelly começou a sua pesquisa na década de
1970 e a conduziu durante muitos anos, visitando todas as grandes coleções de
documentos nos Estados Unidos e entrevistando muitas das pessoas – todas agora já
falecidas – envolvidas com os projetos antropológicos da Repartição. Como Kelly
escreveu a história dos primeiros anos de John Collier considerada a mais
meticulosamente pesquisada e metodologicamente consistente, bem como vários livros e
artigos sobre a OIA e índios durante esse período, é de se supor que à luz de sua
relutância de escrever sobre os antropólogos da OIA, sou um tolo entrando em regiões
onde os anjos temem pisar.
O leitor é, portanto, avisado de que esta tese é necessariamente superficial e uma
tentativa primária de mapear um campo que nos próximos anos certamente irá atrair a
atenção de pesquisadores muito mais preparados, maduros e com melhor financiamento
4
Conversa por telefone com Lawrence Kelly, 10/10/2004.
Cidadãos e Selvagens Introdução
26
do que eu. Todavia, poucas dessas pessoas tenderão a produzir conhecimento para um
público primordialmente brasileiro, ou olhar os agentes e as políticas de um ângulo
condicionado pelas questões da pesquisa indigenista brasileira. Esse fato é o que tornou
esse projeto valer a pena para mim. Durante o meu último mês em Washington D.C.,
finalmente localizei o arquivo perdido no NARA documentando os contatos OIA-
SPI/CNPI, escondida diante dos meus olhos em uma coleção não listada em nenhum dos
recursos de localização do Arquivo e as minhas suspeitas iniciais foram largamente
confirmadas: sem dúvida, a OIA de Collier influenciou o indigenismo interamericano – e
portanto o indigenismo brasileiro – de um modo significativo e primário. O que se segue
aqui, pois, é condicionado pelo conhecimento de que, mesmo que a minha pesquisa sobre
os assuntos indígenas nos Estados Unidos seja superficial para padrões americanos, suas
conexões com o campo da administração indígena brasileira irão apontar o caminho para
uma análise mais comparativa e menos paroquial das relações entre índios e brancos nas
Américas.
Reconhecimento especial
Um reconhecimento especial deve ser feito à minha orientadora de tese, Profa.
Dra. Giralda Seyferth. Devido ao foco de pesquisa da Dra. Seyferth sobre os tópicos da
raça, imigração e sociologia rural no Brasil, pouco de seu trabalho escrito (que é de valor
excepcional) é citado na bibliografia abaixo. Isso é uma pena, porque pode levar o leitor
desavisado (ou não familiarizado com o trabalho da Dra. Seyferth) a acreditar a
contribuição da minha orientadora a este projeto foi mínima. Este não foi o caso: a Dra.
Seyferth exerceu uma influência teórica importante sobre o trabalho que se segue. Sem a
sua análise de raça, etnicidade e nacionalidade como campos de produção de identidade
interdependentes e politicamente motivados, eu nunca teria sido capaz de perceber – e
muito menos analisar – o papel que os antropólogos exerceram na produção da identidade
indígena nos Estados Unidos, tampouco me daria conta das ideologias a respeito da
selvageria, barbárie e destino nacional que têm sustentado hermeuticamente o discurso da
antropologia a respeito do Outro. Suas aulas, artigos e livros têm sido uma inspiração
para mim e – mais importante – Dra. Seyferth me permitiu conduzir esta tese para
campos com os quais ela não era familiar, ainda oferecendo apoio institucional,
Cidadãos e Selvagens Introdução
27
intelectual e emocional para o meu projeto, um traço extremamente raro e precioso em
uma orientadora de tese. Com certeza, grande parte do que é bom e útil nas páginas
seguintes resultam da influência e sugestões de Giralda Seyferth. Os erros, é claro, são
todos meus.
Considerações a respeito de traduções e termos lexicos
A versão original desta tese foi escrita em inglês e entregue para a minha banca
examinadora no início de julho, de 2006. Naquela ocasião, eu estava trabalhando
simultaneamente na tradução do texto para o português e editando a versão final.
Algumas pequenas mudanças podem ter ocorrido na versão da tese em inglês que não são
refletidas na versão final em português, e vice-versa. Para facilitar a compreensão,
removi alguns arcaísmos das citações em língua inglesa apresentadas neste trabalho.
Termos originais em inglês são apresentados em itálicos. O título em inglês desta tese,
“Citizens and Savages”, é evidentemente uma referência ao excelente trabalho de Hinsley
sobre o Bureau of American Ethnology (BAE), Scientists and Savages, mais tarde re-
intitulado The Smithsonian and the American Indian: Making a Moral Anthropology in
Victorian America (1981).
Muitos termos léxicos foram incorporados ao texto. Alguns são de natureza
êmica, outros, ética, mas todos estão em geral em itálico e cada um merece muitas
páginas de explicação e investigação. Não disponho de tempo ou espaço para explorar
esses conceitos completamente, mas compilei uma lista, abaixo, de “definições de bolso”
que deve servir para orientar o leitor quanto ao seu conteúdo e intenção.
Americano
Sendo que “norte-americano” é um nome errôneo quando aplicado a um país (a
América do Norte é propriamente um continente e o Canadá e o México também se
situam no continente junto com os Estados Unidos) e “estadunidense” seria um termo
demasiadamente desajeitado, eu uso “americano” no presente trabalho para me referir aos
Estados Unidos da América. A palavra tem a vantagem de ser um “termo nativo” – i.e.
uma que os residentes daquela nação usam para denominarem a si mesmos. O meu uso
do termo não implica que os Estados Unidos seja a única e verdadeira “América".
Cidadãos e Selvagens Introdução
28
Anglo-Saxão
Por Anglo-Saxão, me refiro a um grupo étnico específico originado do sudoeste
da Inglaterra, de onde veio boa parte dos colonizadores das 13 colônias americanas
originais. Assim como Philips, entendo os americanos anglo-saxões como etnicamente
distintos dos colonos brancos da margem celtica britânica (Irlanda, País de Gales,
Cornualia e Escôcia) e dos imigrantes brancos oriundos do resto da Europa (PHILIPS,
1999). “Anglo-saxão” tem sido, é claro, empregado de um modo mais amplo no último
século da história americana, mas ainda se refere às famílias “antigas” de colonos,
preferencialmente da Nova Inglaterra ou do Velho Sul, com freqüência membros da
igreja anglicana e congregações protestantes de muitos séculos de existência. Durante o
período com o qual se lida aqui (1880-1945), o grupo tendia a se reconhecer como um
povo coeso – o que chamaríamos de um grupo étnico, seguindo a trilha de Max Weber
(WEBER, 1978: 361).
Quantum Sangüíneo
Tanto Karen Blu (1980) como David Schneider (1968) discutiram a crença
americana no “sangue” como algo capaz de transmitir a identidade étnica ou racial e o
quantum sangüíneo” deve ser entendido à luz dos escritos desses dois antropólogos.
Traditionalmente, o quantum sangüíneo tem sido usado nos Estados Unidos para medir o
grau de “indianidade” de uma pessoa, segundo as categorias mais comuns de full blood
("sangue puro”), half blood e quarter blood. “Sangues puros” são presumivelmente 100%
índios em ancestralidade e cultura, enquanto as outras gradações revelam
progressivamente menos “indianidade”. Diferente dos conceitos americanos de raça no
caso da ancestralidade africana, uma pessoa precisa de uma quantidade mínima de
“sangue” – generalmente 1/8 a 1/4 – para ser considerado um índio “real” (no caso da
identidade africana, a hipodescendência é a regra: i.e. “uma gota de sangue africano já é
suficiente para qualificar alguém como negro”). Como Scott Malsomson assinalou
(2000:110), embora o quantum sangüíneo implique ser possível medir a herança étnica e
biológica do indivíduo em termos precisos, não tem nada de preciso e objetivo. Pelo
contrário, o quantum sangüíneo tende a ser um traço culturalmente construído que
Cidadãos e Selvagens Introdução
29
determina traços físicos e sóciopolíticos que supostamente corresponderiam à
“indianidade”.
A Tese do Século da Desonra
A chamada “tese do século da desonra” toma de empréstimo o nome do livro
escrito por Helen Hunt Jackson e publicado em 1881. Basicamente, a tese assume que os
Estados Unidos trataram as populações indígenas de um modo incrivelmente injusto no
passado e que tal injustiça molda o imperativo moral da reforma dos assuntos indígenas
no presente. Esta tese tem sido revista a cada geração desde sua formulação e é
amplamente aceita por nativos americanos e amigos do índio em geral nos dias de hoje.
Civilização
Em sua acepção histórica e etnocêntrica empregada pela maioria dos indivíduos
envolvidos com os assuntos indígenas durante o período considerado aqui (segundo os
valores da América anglo-saxã de fins do séc. XIX e início do séc. XX), a civilização é
entendida como sinônimo da organização social urbana, industrial, capitalista e pequeno-
burguesa típica dos Estados Unidos durante esse período que, por sua vez, pode ser
entendida como o patamar mais alto e a finalidade da evolução social. Mais
científicamente, o processo é entendido segundo Norbet Elias (1993), como a
substituição das restrições externas sobre o comportamento individual por uma regulação
interna e moral de acordo com os valores característicos dessa forma de organização
social.
Amigos do índio
Americanos brancos que lutavam pela reforma dos assuntos indígenas. O termo
originou-se no séc. XIX e originalmente referia-se a tais pessoas como Alice Fletcher.
Rusco define os amigos dos índios como um pequeno grupo de indivíduos (brancos em
sua maioria) e organizações que se destacava no campo político dos assuntos indígenas
no fim do séc. XIX e início do séc. XX. Falando sobre esse grupo, Rusco diz que “eu
comecei os chamando de elite da política indígena, mas aos poucos concluí que as
pessoas que deveriam exercer um papel importante na determinação da política indígena
Cidadãos e Selvagens Introdução
30
nacional não dispunham de uma unanimidade consistente e tampouco (coletivamente) das
características estruturais implicadas por aquele termo.” (RUSCO, 2000: xiv).
Indígena, nativo americano, índio, nativo, povos indígenas
Como nomear apropriadamente os povos autóctones da América do Norte é um
debate político inesgotável. Nesta tese, preferi “nativo”, “povos indígenas” e “nativo
americano”, mas também uso ocasionalmente “índio”. Lembro os leitores que estou
lidando neste caso com os administradores dos nativos americanos e não com os nativos
americanos per se e que neste universo, nos Estados Unidos, o termo usado por tais
administradores para referir aos seus tutelados é “índio”. Estou consciente do fato de que
este termo é etnocêntrico ao extremo, já que pressupõe uma homogeneidade de
experiência e de vivência para os inúmeros povos nativos das Américas. Contudo,
qualquer termo que pudéssemos potencialmente usar neste contexto sofre do mesmo mal.
Índio pelo menos tem a vantagem de ser um “termo nativo” – os “nativos”, neste caso,
sendo os administradores, os representantes do congresso, os “amigos do índio” e os
antropólogos que definem o campo político dos assuntos indígenas nos Estados Unidos
(e por isso, é claro, os EUA têm um Bureau of Indian Affairs e um National Museum of
the American Indian).
Assuntos indígenas
O significado de “assuntos indígenas” e suas similaridades bem como diferenças dos
termos "indigenismo", "proteção dos índios” ou “missão civilizadora" no mínimo merece
um artigo à parte. Trata-se de um tópico denso demais para ser enfrentado aqui com
competência. Por ora, nos contentamos em dizer que “assuntos indígenas “ é um campo
político no sentido que Pierre Bordieu atribui ao termo (1981: 3-4), uma arena em que os
produtos políticos, problemas, programas, análises, comentários, conceitos e
acontecimentos são gerados pela competição dos agentes que atuam ali e entre os quais
os cidadãos comuns – reduzidos ao status de meros “consumidores” – devem escolher. O
termo “assuntos indígenas” engloba a totalidade das relações entre a posição dos colonos
americanos dos Estados Unidos e as políticas nativas – sejam estas caracterizadas pela
guerra, troca, segregação, ou tentativas missionárias de civilizar e assimilar. Assuntos
Cidadãos e Selvagens Introdução
31
indígenas é um termo consagrado pelo Office of Indian Affairs, fundado em 1824 para
administrar as relações do Governo Federal com as unidades políticas nativas americanas,
mas a própria OIA é apenas um agente só – embora importante – no campo político dos
assuntos indígenas. Outros agentes históricos incluem os grupos de brancos “amigos do
índio”, diferentes igrejas e missões, a indústria ferroviária, políticos branco e
especuladores de terras nos níveis do Estado e dos municípios, o Congresso Federal
(geralmente por meio dos comitês do Congresso e do Senado sobre os assuntos indígenas,
que criam as políticas e leis a respeito dos índios e gerenciam as atividades da OIA), o
ministério federal superior da OIA (o Departamento de Guerra até 1849 e o Departmento
do Interior depois disso), antropólogos e, é claro, os vários povos, tribos, nações, bandos
e pueblos indígenas em si.
Território indígena
A terra sob o controle nominal das políticas soberanas ou semi-soberanas dos nativos
americanos é tradicionalmente conhecida como Indian Country ou Indian Territory nos
Estados Unidos. Do início a meados do séc. XIX, o termo se referia genericamente a
todas as terras a Oeste do rio Mississippi. Hoje, o seu uso refere-se (não sem uma certa
ironia) às terras e reservas sob o controle dos governos tribais. “Território indígena”
também era o nome oficial da enorme reserva demarcada em meados do séc. XIX, atual
estado de Oklahoma. Esse uso do termo foi eliminado com a criação do estado de
Oklahoma em 1905.
Problema indígena/questão indígena
Geralmente entendemos questão indígena ou problema indígena como a capacidade
que as políticas nativas americanas têm de interferir de modo unilateral nos planos e
metas das nações que estão tentando absorver suas populações e terras. Podia-se dizer
que no seu nível mais básico e do ponto de visto do colonizador, a questão indígena pode
ser reduzida à pergunta: “Como podemos fazer para que os índios desapareçam?”
Contudo, é importante se dar conta de que a questão em si é geralmente articulada apenas
quando um ou outro grupo de nativos americanos representa uma barreira em potencial à
expansão do Estado e/ou faz exigências ativa ou passivamente quanto ao orçamento do
Cidadãos e Selvagens Introdução
32
Estado e suas forças militares. Em outras palavras, os índios são raramente visto como
um problema quando não se põem no caminho de uma empreitada de expansão colonial.
Indigenismo / Indigenista / Indianismo
Entendemos indigenismo segundo Antônio Carlos Souza Lima: “O conjunto de
idéias (e ideais, i.e. aquelas levadas à qualidade de metas a serem atingidas em termos
práticos) relativas à inserção de povos indígenas em sociedades subsumidas a Estados
nacionais, com ênfase especial na formulação de métodos para o tratamento de
populações nativas, operados, em especial, segundo uma definição do que seja índio. A
expressão política indigenista designaria as medidas práticas formuladas por distintos
poderes estatizados, direta ou indiretamente incidentes sobre os povos indígenas. Isto
exclui outros aparelhos de poder da esfera da definição, implicando em não se falar em
uma política indigenista eclesiástica, nem tampouco condicionar a idéia de atos oficias
afetando populações autóctones à existência de uma racionalidade onde as ações práticas
correspondem a um planejamento implícito e, sobretudo, explícito” (LIMA, 1995: 14-
15). Vale lembrar que o indigenismo foi também a ideologia no México durante a
primeira metade do séc. XX que pregava a recuperação e valorização das tradições e
modos de vida dos nativos americanos e a incorporação dessas características como
marcadores da identidade nacional. John Collier e muitos de seus aliados foram
profundamente influenciados por essa ideologia e tentaram conscientemente criar uma
versão dela nos Estados Unidos, a qual chamou de Indianism.
Repartição de Assuntos Indígenas/Bureau of Indian Affairs
A OIA/BIA foi e ainda é a instituição responsável pela administração dos programas
federais para os povos nativos do Alasca e tribos indígenas reconhecidas pelo governo
federal. O Bureau of Indian Affairs (BIA) tem tradicionalmente sido dirigido por um
comissário indicado diretamente pelo Presidente. O BIA foi estabelecido tecnicamente
em 1947 como sucessor da Repartição de Assuntos Indígenas (Office of Indian Affairs,
ou OIA), criada pelo Departamento de Guerra em 1824 e transferida para o Departamento
de Interior por ocasião da criação deste em 1849. Contudo, a mudança de 1947 foi
praticamente de natureza nominal e desde o início do séc. XX ambos os nomes têm sido
Cidadãos e Selvagens Introdução
33
empregados de modo intercambiável (junto com o Serviço indígena) para nomear essa
instituição. Nesta tese, privilegiei "Office of Indian Affairs" e “OIA" como nomes para
essa entidade, e embora os informantes empreguem “Bureau” ou “BIA”, mantive essa
denominação.
Destino manifesto
A frase “destino manifesto” expressa a crença de que os Estados Unidos têm uma missão
divinamente ditada de expansão política e econômica. Historicamente, a frase foi
cunhada pelo jornalista John O'Sullivan em 1845 no contexto do debate a respeito da
anexação dos estados do Texas e Oregon, que Sullivan apoiava por acreditar que cabia
aos Estados Unidos “o destino manifesto de se espalhar e tomar posse de todo o
continente, um presente da Providência para o desenvolvimento do grande experimento
de liberdade e de autogoverno federativo a nós confiado” (apud JOHANNSEN, 1997: 9-
10). O destino manifesto é geralmente associado ao período de expansão dos Estados
Unidos pelo continente norte-americano. Empregamos a expressão aqui, contudo, para
indicar a crença predominante no pensamento americano de que a expansão política e
econômica dos Estados Unidos estaria protegida por alguma força extra-humana (seja
Deus, a natureza, a história, ou o mercado) e que os contornos da nação seriam – graças a
essa força – mais cedo ou mais tarde congruentes com aqueles da própria Criação. Nesse
sentido, é importante enfatizar não apenas as faces expansivas e violentas do destino
manifesto, mas também seus aspectos missionários e persuasivos: como o capitalismo
americano e a democracia republicana são entendidos como formas evidentemente e por
natureza superiores de organização social e que mais cedo ou mais tarde englobarão toda
a humanidade, os americanos tradicionalmente procuraram uma confirmação dessa
crença na conversão de não-americanos para o capitalismo ao estilo americano e a
democracia republicana.
Abreviações citadas
AAA – American Anthropological Association
AAU – Applied Anthropology Unit
BAE – Bureau of American Ethnology
Cidadãos e Selvagens Introdução
34
BIA – Bureau of Indian Affairs
CNPI – Conselho Nacional de Proteção aos Índios
DASP – Departamento da Administração Pública
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
IEA – Institute for Ethnic Affairs
InInIn ou III – Interamerican Indigenous Institute (também conhecido como o Inter-
American Indian Institute e o Instituto Indigenista Interamericano).
ISA – Institute for Social Anthropology
MN – Museu Nacional
NAA – National Anthropological Archives
NARA – National Archives and Research Administration
NII – National Indian Institute
NMAI – National Museum of the American Indian
OIA – Office of Indian Affairs (veja BIA)
PPGAS – Programa de Pós Graduação em Antropologia Social do Museu
Nacional
SPI – Serviço de Proteção aos Índios
WRA – War Relocation Administration
Cidadãos e Selvagens Introdução Parte I
35
PARTE I
EXTERMÍNIO, ASSIMILAÇÃO E O “DESTINO MANIFESTO”
Our fathers wrung their bread from stocks and stones
And fenced their gardens with Redman’s bones;
Embarking from the Nether Land of Holland,
Pilgrims unhouseled by Geneva’s night,
They planted here the Serpent’s seeds of light;
And here the pivoting searchlights probe to shock
The riotous glass houses built on rock,
And candles gutter by an empty altar,
And light is where the landless blood of Cain
Is burning, burning the unburied grain.
- Robert Lowell, “Children of Light”, 1944
1
Essa tese discute a relação da antropologia americana com o Office of Indian Affairs
(Repartição de Assuntos Indígenas, ou OIA – tambem conhecido como o Bureau of
Indian Affairs, ou BIA), conferindo uma atenção especial às tentativas do Comissário de
Assuntos Indígenas John Collier (1933 a 1945) de integrar antropólogos ao OIA. Essas
tentativas de Collier constituíam parte de um esforço para derrubar as políticas que
haviam orientado a agência no meio século anterior, dirigidas para a assimilação forçada
dos índios americanos e para seu desaparecimento como povos discretos, semi-soberanos.
Para que possamos analisar as reformas de Collier nos anos 1930 e 1940, entretanto,
é preciso que nos debrucemos sobre as políticas para os índios americanos do período
anterior. Isto por duas razões: antes de tudo, as disposições legais do Dawes Act de 1887
— e, sobretudo, a hipótese assimilacionista subjacente a este — tornaram-se o "mal"
concreto contra o qual se dirigiam as políticas de Collier; em segundo lugar, a nascente
antropologia americana jogou, nos anos 1880 e 1890, um papel chave nos debates
políticos relativos aos indígenas e nas disposições administrativas aplicadas a eles.
Embora tenha sido considerável, o impacto deste envolvimento é muitas vezes esquecido
ou minimizado pelos historiadores da antropologia norte-americana (com certeza foi
esquecido pelos praticantes da antropologia aplicada das décadas de 1930 e 1940 e por
seus empregadores).
1
Apud Drinnon, 1997, p.443.
Cidadãos e Selvagens Introdução Parte I
36
Como Talal Assad afirma no caso da antropologia britânica (Assad, 1973: 17), as
contribuições da etnologia para a administração indígena nos EUA possam não ter sido
cruciais para a manutenção da burocracia indigenista. Todavia, foram muito importantes
para o estabelecimento da antropologia como campo científico. Por meio de seu
engajamento com os assuntos indígenas, a etnologia construiu para si mesma uma
posição no interior do Estado americano como uma ciência prática e séria, lançando
assim as fundações para o desenvolvimento da antropologia moderna. Além disso, o
engajamento dos etnólogos com a administração indígena proveu o fundo para muitas das
monografias clássicas da etnografia americana do fim do século XIX, como o trabalho
pioneiro de James Mooney sobre a Ghost Dance (Mooney, 1973 [1896]). Como
argumentarei adiante, porém, diferentemente dos antropólogos britânicos do fin de siècle,
seus colegas americanos tevem um impacto determinante sobre as políticas
administrativas indígenas de seu tempo, particularmente na construção do Dawes Act de
1887.
Para que possamos entender a antropologia aplicada da era Collier, precisamos
então nos voltar para o fim do século XIX e para o envolvimento dos antropólogos
americanos com a questão indígena daquele tempo. O capítulo 1 começa assim com um
"mapeamento" básico da Questão Indígena nos Estados Unidos, da época colonial até a
Guerra Civil, delineando dois temas interrelacionados nessa cartografia: a construção e
transformação do "discurso da selvageria" tal como aplicado aos índios; e os movimentos
legais e institucionais levados a cabo pelo governo americano conforme este tentava
restringir, reduzir e assimilar as populações indígenas e seu poder político. Esse capítulo
irá fornecer aos leitores uma compreensão básica do fluxo da história dos assuntos
indígenas desde o primeiro contato até o fim dos anos 1870. Sobretudo, irá ajudar a
corrigir a noção, disseminada entre historiadores e antropólogos brasileiros e
erroneamente sustentado por mais de um século de pensamento social brasileiro, de que
os povos anglo-saxões da América do Norte eliminaram fisicamente as populações
daquele continente.
O principal propósito do capítulo, todavia, é apresentar um tema onipresente ao
longo da história americana nas relações entre colonizadores americanos e povos
subordinados: a compreensão de que o desaparecimento destes últimos é um resultado
Cidadãos e Selvagens Introdução Parte I
37
inevitável de alguma agência extra-humana. Durante o início do período colonial, essa
agência era compreendida como sendo Deus. Fora a Divina Providência que trouxera os
anglo-saxões ao novo continente e o desejo de Deus que lhes garantira sua eventual e
total conquista. A expansão e progresso americanos era assim um mandato dos céus —
eram entendidos como o Destino Manifesto da nação.
O termo "Destino Manifesto" foi originalmente cunhado em 1845 por um editor
de jornal em Nova Iorque, John L. O'Sullivan, que afirmava que as tentativas européias
de bloquear a expansão americana seriam um ato contra Deus, pois este Ser teria
garantido "o cumprimento de nosso Destino Manifesto de espalhar-se pelo continente
reservado pela Providência para o livre desenvolvimento de nossos anualmente
multiplicados milhões". Dois anos depois, Robert J. Walker, então secretário do Tesouro,
ecoou esses sentimentos, declarando que "mais alto que qualquer poder terreno […] ainda
guarda e dirige nosso destino, nos impele adiante, e selecionou nosso grande e feliz país
como um modelo e centro último de atração para todas as nações do mundo" (Lafeber,
1989: 91-92). Nessas duas citações, podemos ver os três principais conceitos que
subjazem a essa ideologia: expansão (inicialmente sobre o continente, e em última
instância por todo o mundo), desenvolvimento econômico capitalista e competição com
outras nações numa empreitada que tem por sua finalidade o estabelecimento dos Estados
Unidos como a única civilização da humanidade. Embora o Destino Manifesto fosse
originalmente uma declaração contra a interferência de poderes imperiais estrangeiros em
assuntos norte-americanos, também continha em si a crença de que os antagonistas
nativos dos Estados Unidos seriam varridos de lado e desaparecidos. O elemento chave
dessa estrutura ideológica era de que o poder responsável por garantir a expansão política
e econômica americana não estava sob o controle de nenhuma coletividade humana, mas
nas mãos de um poder maior, extra-humano. No interior dessa mitologia, compreendia-se
que os índios do século XIX estavam morrendo de fome não porque caçadores
comerciais tivessem devastado a caça de seus territórios ou porque colonos tivesse
adquirido as terras indígenas por compra ou roubo. Embora se reconhecesse que essas
coisas tinham ocorrido, a mitologia do Destino Manifesto identificava-as como
manifestações terrenas de uma vontade supra-humana. Os índios americanos, em suma,
Cidadãos e Selvagens Introdução Parte I
38
estava desaparecendo porque Deus queria que fosse assim e não havia nada que os
homens pudessem fazer para evitar esta triste finalidade.
Os povos indígenas da América do Norte, entretanto, não desapareceram. De fato,
sua população havia estabilizado e começou a crescer a partir da segunda metade do
século XIX. No fim do século, tornara-se óbvio que, se nada fosse feito, as últimas terras
indígenas se extinguiriam muito antes dos próprios índios. Deus não havia dado um fim
ao problema indígena, como previsto. Em lugar disso, o problema se internalizara;
transformara-se de algo que podia ser removido para além da fronteira americana para
um fantasma que, nas vestes de "índios nômades, sem terra", ameaçava cada lar
americano e fazia demandas perpétuas ao tesouro nacional. O problema indígena,
descobriu-se assim, precisava ser administrado sobre uma base racional e cotidiana: os
índios precisavam ser governados.
Ao dizer governados, pretendo fazer referência aqui às idéias de Foucault sobre a
governamentalidade e o biopouvoir (Foucault, 1979).
2
Que os índios iriam desaparecer,
nunca foi posto em dúvida. Para que eles desaparecessem, porém, de uma maneira
aceitável para a consciência nacional dos Estados Unidos (isto é, uma maneira que não
incluísse o massacre aberto de centenas de milhares de nativos e que, acima de tudo, não
custasse muito aos cofres federais), era preciso uma intervenção direta. Essencialmente,
então, os índios precisavam ser ensinados a eliminar a si mesmos. A base moral para esta
decisão continuava a ser uma mitologia na qual a alteridade indígena cedia lugar,
inevitavelmente, à superioridade anglo-saxã. Diferentemente das primeiras enunciações
do Destino Manifesto, porém, o agente superhumano ao qual a eliminação do índio era
agora confiada era a Natureza — ou, mais especificamente, a evolução social natural.
Em grande medida, a antropologia forneceu a base ideológica para essa virada
secular no Destino Manifesto tal como aplicado aos povos indígenas. As políticas de
2
" Gouvernementalité sendo o estudo das maneiras através dos quais uma população pode ser governada
corretamente, o domínio de um conjunto de instituições, procedimentos, análises, reflexões , calculos e
táticas que permitem o excercício de uma forma de poder cujo objeto principal é uma população, cuja
forma principal é de natureza política-econômica e cuja instrumentação técnica essencial são os
instrumentos construidos pelo monopólio de força excercido por um dado Estado. Por biopoder, quero
dizer o poder sobre a vida: a governamentalização da vida biológica, mais particularmente (no caso dos
índios dos EUA) a construção de uma série de disposições legais que falam ao respeito da estruturização
das famílias indígenas, do uso da terra e dos direitos legais sobre a herança, tais disposições sendo
reforçado pelo poder disciplinar (e as vezes mortífera) do Estado.
Cidadãos e Selvagens Introdução Parte I
39
governança e de assimilação forçada que ocuparam o OIA durante meio século, de 1880
a 1930, portavam a forte marca das teorias antropológicas em voga durante o período em
questão. Se a natureza decretava o declínio do índio como tal, a antropologia era visto
como a linguagem por meio da qual esses decretos naturais eram revelados. A disciplina
fornecia uma ótica científicista que permitia a transformação dos preconceitos relativos
aos povos indígenas dos EUA em políticas concretas e aparentemente humanas que
visavam a eliminação da alteridade étnica e política, transmutando selvagens em
cidadãos. Os capítulos 2 e 3 tratam, portanto, do papel que os antropólogos
desempenharam na construção dessa política de assuntos indígenas assimilacionista
durante o final do século XIX.
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
40
Capítulo I
Assuntos indígenas nos Estados Unidos, 1600-1865
É um pouco supreendente, quando entramos em tratados como nossos irmãos, os brancos, que
a reclamação deles é para mais terra! De fato, no passado, parecia ser uma formalidade deles
insistir em receber aquilo que sabiam que não poderiamos recusar em dar. Mas, sob os
princípios da justiça, do qual recemebos garantias na ocasião de negociar o presente tratado, e
no nome de livre árbitro e da egualidade, preciso rejetar sua demanda... Novamente, se
fossemos perguntar sob qual lei ou autoridade vocês podem demandar nossas terras, eu
respoderia nenhuma! Suas leis não são válidas em nosso país e nunca foram. Vocês falam da lei
de natureza e da lei de nações e ambas são contra vocês.
-Corn Tassel, estadista Cherokee, falando aos comissários de paz dos EUA em 1785.
1
Civilização ou morte a todos os selvagens americanos!
- Brinde militar americano do século XIX.
2
Uma síntese de três narrativas
Como nos recorda Edward Brunner, "estruturas narrativas organizam e conferem
significado à experiência, mas há sempre sentimentos e experiências vividas que não são
plenamente englobadas pela narrativa dominante" (Brunner, 1986: 143). A história dos
assuntos indígenas nos Estados Unidos que apresento aqui sintetiza três estruturas
narrativas que começaram a adquirir visibilidade nas ciências sociais americanas nos
anos 1960 e foram se tornando dominantes ao longo dos terço final do século XX. Sua
atual aceitação nas humanidades enraiza-se mais em fenômenos históricos e políticos do
"mundo real" do que em qualquer (r)evolução no pensamento social americano. Como
Brunner assinala, "Novas narrativas não emergem da pesquisa de campo antropológica
[…] mas da história, de condições do mundo" (id: 152). É de se esperar que as estruturas
tratadas aqui sejam reavaliadas e transformadas e, na medida em que essas
transformações ocorram, justificativas históricas serão encontradas para apoiar os novos
valores assinalados a elas. Por enquanto, entretanto, sinto que ofecerem a melhor chave
para uma descrição concisa dos primeiros três séculos de assuntos indígenas nos Estados
Unidos.
1
In: Nabokov, 1978: 122-123.
2
In: Pearce, 1953: 55.
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
41
A primeira de nossas três estruturas narrativas envolve o que poderiam ser
chamados de estudos revisionistas da história americana, tentativas de reavaliar a
expansão americana à luz das experências da Guerra de Vietnã.
3
Muitos estudiosos hoje
destacados afiaram suas garras nos temas do anti-militarismo e dos direitos civis quando
frequentavam a universidade nos anos 1960 e 1970, e muito de sua produção subsequente
veio assim a refletir preocupações políticas mais amplas. A resultante "escola de
pensamento" (por assim dizer) inclui pessoas como Noam Chomsky (1969), William
Appleman Williams (1969), John Dower (1987), Howard Zinn (1980) e Walter LaFeber
(1989), entre muitos outros. Embora a maior parte desses autores situem as raízes do
imperialismo americano na ideologia do Destino Manifesto, alguns deles — incluindo
Richard Drinnon (1980), Francis Jennings (1975), David Stannard (1992) e Roy Harvey
Pearce (1953) — dispensaram uma atenção especial à história das relações entre colonos
brancos e povos indígenas, e ao papel que isso desempenhou na construção dos conceitos
americanos de conquista e missão civilizatória.
A principal contribuição dessa escola foi a criação de uma genealogia do
colonialismo americano que parte das tentativas inglesas do século XVII de pacificar a
Irlanda e prossegue até as aventuras ultramarinas americanas do século XX,
demonstrando como as imagens de Outros exteriores, racializados e as políticas dirigidas
a eles foram recicladas em vários momentos da história da expansão norte-americana. O
trabalho de Richard Drinnon (1980; 1987) é, sob este aspecto, o mais enfático. Onde
esses autores erra, infelizmente, é em leituras demasiado generalizadas da história. Mais
do que isso, os atores centrais de suas narrativas tendem a ser o poder estatal e o capital
americanos, um foco mais genêrico que muitas vezes falha em captar a rica interação
entre atores diversos que é a trama e a urdidura da história. Apesar de todas as suas
falhas, entretanto, esses autores foram importantes em delinear continuidades nas
ideologias do expansionismo americano, algo que estava conspicuamente ausente da
historiografia tradicional americana.
A segunda das estruturas utilizadas aqui pode ser rotulada etnonacionalista, e
emergiu do movimento dos direitos civis dos anos 1960 e 1970. Um dos efeitos colaterais
3
No capítulo 6 de seu livro, Culture, Adam Kuper oferece um tratamento adequado, ainda que
necessariamente amplo, de como essas experiências afetaram a academia americana.
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
42
da preocupação norte-americana com a raça durante essas décadas era a visibilidade
crescente de trabalhos de autores não-brancos, críticos das relações raicias nos Estados
Unidos. Por causa da luta para abrir o sistema universitário para um maior número de
estudantes não-brancos, esses trabalhos obtiveram um nível de aceitação sem precedentes
na academia americana, trazendo "as vozes dos oprimidos" para o debate sobre raça,
Império e o Outro. Alguns dos autores incluídos aqui são Angela Davis (1981), Ward
Churchill (1988) e Vine Deloria Jr. (1970). Seus trabalhos remetem àqueles de autores
não acadêmicos como Malcolm X (1970), Mary Crow Dog (1990), Peter Mathiessen
(1975), Robert Burnette (1974) e Eldridge Cleaver (1968). Muito do material produzido
por esses autores etnonacionalistas tende a ser politizado e segue o que podemos chamar
de a tese do Século da Desonra, na qual vilões e heróis são bem definidos, com os
colonos brancos caracterizados como traiçoeiros, egoístas, e malignos, e os índios como
heróis trágico-românticos defendendo suas terras e modos de vida contra a invasão
branca. Todavia, se esses autores são propensos à algum exagero retórico, eles também
abriram o caminho para uma história americana nativocêntrica. É muito fácil, quando
lemos as historiografias da expansão americana influenciadas por Frederick Jackson
Turner, esquecer aquilo que os políticos patrióticos americanos do final do século XIX
estavam sempre prontos a apontar: que o poder e riqueza dos Estados Unidos eram
baseados na usurpação da terra e vida de outros povos e que o sucesso dessa conquista
fornecia uma justificativa para empreendimentos imperiais no exterior. Dado isso, o
trabalho dos estudiosos etnonacionalistas nos provê de um antídoto contra o triunfalismo
frequentemente expresso na historiografia americana tradicional. Ela coloca os índigenas
americanos no centro da "conquista do Oeste", em lugar de em uma breve nota de rodapé
à marcha do progresso americano.
A última estrutura narrativa utilizada aqui é uma outra forma de revisionismo que
parece ter começado no fim do século XX conforme a historiografia tradicional reagia ao
desafio posto pelos revisionistas anti-imperialistas e pelos etnonacionalistas.
Historiadores como Francis Paul Prucha (1976; 1984) e Colin Calloway (1977), bem
como etnohistoriadores como James Axtell (1981) e James Clifton (1990), começaram a
criar descrições mais densas da história do contato entre brancos e peles-vermelhas, em
uma tentativa de tecer uma narrativa que não era nem triunfalista nem demasiado
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
43
influenciada por preocupações etno-políticas. Alguns desses autores foram criticados por
etnonacionalistas indígenas como promulgando um novo colonialismo que busca
obfuscar as relações de poder criadas pela conquista e dominação em nome da
recuperação de uma "sólida erudição [que] requer que todo esse material [relacionado aos
índios] seja (re)interpretado por acadêmicos euro-americanos 'responsáveis' que, acima
de tudo, incorporem a 'distância' e a 'objetividade' necessárias para chegar a
determinações 'realistas' sobre qualquer pessoa de cor […](Churchill, 1998: 124). Se essa
crítica é muitas vezes hiperbólica, seria um erro considerar essa segunda geração de
revisionistas como estudiosos neutros ou objetivos em oposição a "radicais"
etnonacionalistas. Mesmo o mais superficial leitor da obra do Padre Francis Paul
Prucha’s (S.J.), por exemplo, notará uma simpatia por missionários cristãos claramente
ausente da maior parte das outras historiografias.
Todavia, apesar de todas as alegadas simpatias dos neo-revisionistas pela empresa
imperical americana, o trabalho dos melhores deles mostra um denso envolvimento com
uma variedade de fontes históricas e etnográficas que recupera muito da textura real da
vida diária na zona de contato
4
entre euroamericanos e nativos. Uma tal visão, apoiada
por estudos cuidadosos, permitiu com efeito uma certa relativização das narrativas
tradicionais e heroísmo e vilania ao longo da fronteira americana.
É importante notar que as estruturas narrativas que seguimos aqui misturam-se
umas às outras, assim como a outras estruturas. A fertilização cruzada dessas três
narrativas pode talvez ser melhor vista no trabalho recente do filho de Vine Deloria Jr.,
Philip Deloria, historiador e professor na mesma universidade onde trabalha Ward
Churchill. Seu livro recente, Playing Indian (1998), é uma obra-prima que se utiliza de
um ponto de vista indiocêntrico para perguntar-se como os euro-americanos utilizaram-se
da imageria indígena para reinventarem-se a si mesmos, lançando mão de uma
metodologia que valoriza o uso de fontes primárias e análise micro-histórica.
Uma coisa que precisa ser lembrada acima de tudo neste capítulo, e ao longo de
toda essa tese: estou concentrando-me aqui não nos índios, mas nos assuntos indígenas.
Como sublinhou Edward Said sobre o Oriente, culturas, vidas e histórias nativas têm uma
4
Uso “zona de contato” no sentido dado por Mary Louise Pratt: um espaço social “where disparate
cultures meet, clash, and grapple with each other, often in highly asymmetrical relations of domination and
power.” (Pratt, 1992:4)
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
44
realidade bruta que é obviamente maior do que qualquer coisa que possa ser dita delas, e
sobre elas a síntese que se segue tem pouco a dizer (Said, 1978: 5). Aqui, estou tratando
da consistência interna das idéias americnaas sobre o índio em um período de expansão
colonial e das leis e políticas administrativas por meio das quais essas idéias eram
expressas. Estou interessado em apresentar os contornos do Índio: uma imagem icônica
constituída pelo — e constituinte do — entendimento do "Outro" por parte dos brancos
americanos, fusão que conformou esse entendimento bem como, inversamente, ajudou a
informar a esses brancos quem e o que eles próprios eram. Assim, o que estou visando
aqui é fundamentalmente a história de uma ilusão, uma generalização e, acima de tudo,
de um mito (entendido aqui como um elemento constitutivo da identidade americana);
algo a que não se deve atribuir nenhuma existência etnográfica para além do reino da
ideologia e da lei e que tampouco deve ser visto como representando qualquer
experiência individual particular — indígena ou não (Pearce, 1988 [1953]: 254-255).
Se as práticas efetivas no dia-a-dia dos assuntos indígenas foram fortemente
afetadas pelas (re)ações dos nativos, o impulso geral da política dos assuntos indígenas e
as ideologias que a embasavam seguiam uma lógica predominantemente interna à
sociedade colonial. É a história dessa política que empreendemos mapear aqui, de uma
forma confessadamente truncada. Nesse sentido, é preciso lembrar com cuidado que
aquilo que o governo dizia que iria fazer para ou aos índios raramente saía como
planejado: “De modo mais claro: não há uma correspondência necessária entre os planos
para os índios e as ações face a eles,” como apontou Antônio Carlos de Souza Lima no
contexto brasileiro (1995: 15). Além disso, o aparato de poder e as disciplinas científicas
que ocasionalmente o serve não devem ser confundidos com as culturas indígenas que
eles tentam englobar. Esse poder obedece a interesses específicos, segue vias lógicas
dadas e atualiza certas rotinas que são coloniais — e não nativas — por natureza. Acima
de tudo, esse poder não é a representação inevitável de uma agência supra-humana
qualquer. Como nos lembra João Pacheco de Oliveira Filho:
O destino dos povos e culturas indígenas, tal como o de qualquer outro grupo
étnico ou nação, não está escrito previamente em lugar algum. A sua feição primitiva, a
sua vulnerabilidade e a presumida tendência à extinção não foram jamais componentes
naturais de sua existência, mas sim o resultado da compulsão das elites coloniais em
instituir a homogeneidade, tentando abolir a ferro e fogo as diferenças culturais,
religiosas e políticas. (Oliveira Filho, 1998: 8)
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
45
Esse capítulo não deve ser erradamente tomado por uma história nativocêntrica,
embora use as palavras de vários historiadores que usam este conceito. Meu objetivo aqui
é deixar o leitor com uma clara idéia dos mecanismos e ideologias que transferiram 99%
das terras indígenas da América do Norte para mãos de brancos no espaço de 250 anos.
Dada a magnitude da derrota sofrida pelos índios neste período, é minha opinião que
apresentar ao leitor estórias e bon mots designadas para recuperar a "agência indígena",
especialmente no espaço limitado disponível, produziria uma falsa sensação de equilíbrio
entre os mundos branco e indígena, um "dá cá toma lá" que não é apropriado nem útil,
dado o foco dessa tese sobre a administração indígena nos EUA. Para aqueles que
lamentam este foco em objetivos e atitudes dos brancos, em detrimento de uma história
mais nuançada das relações nativos/brancos, existem muitos livros que oferecem um tal
tratamento (cf. Prucha, 1984; Axtell, 1981; Deloria, P. 1998, entre muitos outros).
Se existe uma coisa em que todos os atores do campo político dos assuntos
indígenas poderiam concordar, dos anos 1880 à década de 1930, era que em suas lutas
para proteger a terra e a soberania contra a expansão americana, os índios perderam.
"Tradicionalistas" nativos tinham esta visão, assim como os ditos "progressistas" e ela
consiste, sem exceção, na compreensão da América branca da história. A maior vitória
nativa durante esse período foi a simples sobrevivência dos povos indígenas como
unidades sociopolíticas e culturais discretas em face de uma sociedade que decretara sua
extinção. Como um ou outro grupo nativo arrancou essa vitória das mandíbulas da
derrota é, é claro, um tópico de estudo muito importante, mas que precisa ser deixado
para outros textos e momentos. Aqui, estamos preocupados com aquilo que surpreendeu a
América branca no fim do século XIX: o fato de que, a despeito da quase total derrota de
toda unidade política nativa organizada, os índios não haviam desaparecido como uma
raça, tal como esperado. Este capítulo procura mostrar algumas das razões para este fato.
Finalmente, é preciso lembrar, como observa Lyman Tyler, que uma ampla
varidade de táticas para "lidar com o problema indígena" (tais como assimilação,
remoção, loteamento e extensão das leis locais sobre as jurisdições tribais) foi utilizada
ao longo da história das relações EUA/índios. Uma delas pode ter sido enfatizada em um
dado período, mas as demais estavam sempre presentes como pano de fundo (Tyler,
1973: 5). Assim, quando digo que um período foi caracterizado por uma certa política,
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
46
isso deve ser interpretado como significando que uma táctica foi retirada de um conjunto
de práticas que foi ou viria a ser implementado antes e/ou depois do período em questão
(muitas vezes de modo ad hoc e imediato) e consagrada no período em questão como
política oficial, federal. Todavia, essa política oficial nunca excluiu outras táticas. Assim,
quando falo em redução, remoção, assimilação, tratados, ou reconhecimento da
soberania como sendo um tendência dominante em um momento ou área da política
indígena dos EUA, o leitor deve lembrar que nenhum desses conceitos jamais foi
completamente dominante ou ausente do campo político dos assuntos indígenas.
Acima de tudo, porém, o leitor não deve esquecer que, quaisquer que fossem as
intenções dos proponentes de um ou outro conjunto de políticas, há apenas uma coisa que
pode ser dita sobre estas com algum grau de certeza: elas transferiram enormes porções
de terra dos indígenas para os brancos. Como coloca Tyler, "Políticas que fracassaram em
atingir os objetivos da civilização e da assimilação estabelecidos para os índios muitas
vezes tiveram sucesso em garantir a posse da terra ou outros recursos para os não-índios,
como planejado". Retirar os nativos de suas terras e do caminho dos colonos brancos era
o objetivo primário dos assuntos indígenas durante o período de 1600 a 1890 e, nesse
sentido, os brancos alcançaram uma vitória quase completa (Tyler 1973: 7). Havia muito
pouco que os índios podiam fazer para bloquear ou mesmo influenciar esse movimento
geral. Embora tenham havido, é claro, muitas vitórias nativas locais ou contextuais, elas
foram em geral de escopo limitado e deixaram muitas vezes um gosto amargo na boca
dos índios.
Missão puritana na América
Como observa Edward Said a propósito do orientalismo, a dicotomia americana
entre selvageria e civilização constitui, mais do que expressa, uma certa vontade de
compreender, controlar e incorporar um mundo manifestamente diferente (Said, 1973:
12). É um discurso que foi produzido e que subsistiu dentro do contexto de um
intercâmbio constante com o poder durante todo o perído da expansão americana para o
oeste. Todavia, sua flexibilidade e sua capacidade de reforçar noções americanas de
identidade e missão permitiram que ele persistisse mesmo após o fechamento da
fronteira, até os dias de hoje. Além disso, esse discurso imprimiu sua marca
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
47
profundamente em outros campos de empreendimento e conhecimento americanos.
Como demonstraram muitos autores (Pearce, 1953; Deloria, P., 1998; Hoxie, 1984;
Hinsley, 1981), a antropologia americana e a administração indígena modernas foram
criadas por meio de um diálogo com noções populares de selvageria e civilização tal
como aplicadas aos índios americanos. Para compreender esse diálogo, é pois necessário
primeiro voltarmo-nos para uma breve história da dicotomia civilização/selvageria nos
Estados Unidos.
Esse discurso tem uma história definida que pode ser retraçada até a colonização
da Nova Inglaterra e mesmo antes. Foi aqui, nas colônias inglesas do norte, como afirma
Alexis de Toqueville, "que os dois ou três princípios agora formadores da teoria social
básica dos Estados Unidos foram combinados" (DeTocqueville, 1988: 35). Embora,
obviamente, isso constitua uma visão um tanto reducionista da história americana, é
inegável que a experiência da Nova Inglaterra do século XVII tenha projetado sua
sombra sobre desenvolvimentos subsequentes nos Estados Unidos, um fato que foi
atestado por vários autores.
5
Para começar, a Nova Inglaterra reproduziu-se
consistentemente por meio da disseminação de assentamentos ianques fora das limites
das colônias originais. Como nos lembra Frederick Jackson Turner:
A fronteira [do sec. XVIII] abrangeu as colônias da Nova Inglaterra em Vermont,
New York occidental, o valé de Wyoming, a Reserva de Connecticut e o assentamento
da Companhia de Ohio no Território do Velho Nordoeste. Antes do início da Guerra
Civil, as aldeias fronteiriças da Nova Inglaterra tinham ocupado a grande zona das
pradarias do Meio Oeste e alcançaram até o Utah dos Mormons e partes da costa
pacífica. Os filhos da Nova Inglaterra tinham sido os organizadores de uma Grande
Nova Inglaterra no Oeste… uma seção do país que influenciará os ideais e moldar o
destino da nação... (TURNER, 1997: 66)
O legado da Nova Inglaterra, entretanto, não aparece apenas na tendência de todos
os estados do oeste americano em ser agraciado com uma cidade batizada de
"Springfield". Em particular, uma visão puritana de missão sobreviveu da colônia para a
nação para o poder mundial, transmitindo um mito de destino nacional que permaneceu
central para a cultura americana bem depois do desvanecimento da teocracia dos
peregrinos e da perda de muito da influência da Nova Inglaterra. Esse mito foi
5
Além de quase todos os autores “revisionistas” citados aqui, podemos incluir tais críticos “tradicionais”
da história americana como Karl Marx, Adam Smith, Frederick Engels, Frederick Jackson Turner e Sergio
Buarque de Holanda.
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
48
retrabalhado sucessivamente, mas sua ideologia nuclear — de que os americanos são um
povo unicamente escolhido, engajado em uma busca nacional que eventualmente
redimirá o mundo aos olhos de Deus — é um exemplo impressionante de continuidade
cultural (Berkovitch, 1978: 17).
Em seu maravilhoso estudo da retórica e política americanas, Sacvan Bercovitch
comentou com bastante detalhe o efeito que a ideologia puritana da missão teve sobre a
cultura americana do presente. Falando de sua chegada aos EUA, Berkovitch sublinha
seu "[…] pasmo, como um imigrante canadense, ao tomar conhecimento da história
profética da América".
Não da América do Norte, pois as profecias pararam nas fronteiras canadenses e
mexicanas, mas de um país que, apesar de seus limites territoriais arbitrários, poderia
ler seu destino na paisagem e de uma população que, apesar de sua mistura confusa de
raças e crenças, poderia acreditar numa “missão americana” e que poderia atribuir
àquela ficção óbvia todo o apelo emocional, spiritual e intelectual de uma busca
religiosa. Então me senti Sancho Panza numa terra de Don Quixotes. Aqui estava o
anarquista Thoreau condenando seus vizinhos retrogrados com referencias à Marcha
para o Oeste; aqui, o cantor solitário Walt Whitman, se afirmando como o American
Way; aqui, o líder de direitos civis Martin Luther King, descendente de escravos,
denunciando a segregação como uma violação do Sonho Americano; aqui, um debate
sem fim sobre a identidade nacional, cheio de raiva e fé, os Jeffersonians dizendo que
eles – e não os herdeiros reprimidos de Calvin – eram os verdadeiros representantes da
Busca; políticos conservadores caçando socialistas como conspiradores contra o sonho;
polémicas de esquerda comprovando que o capitalismo era uma traição das origens
sagradas do país. A questão exposta nessas jeremiads, como em seus percursores do
século XVII, nunca era “Quem somos nós?” mas, quase sempre evitando esta questão,
o velho refrão profético: “Quando será que terá um fim para nossa busca? Quando, ô
Senhor, quando?” E as respostas, novamente como nos antigos jeremiads puritanos,
invariavelmente juntando lamentações e celebrações, reafirmando a missão da
América. (Berkovitch 1978: 11)
Como nota Berkovitch, muitos discursos nos EUA referem-se a esse mito central
dos americanos como um povo com um mandato especial e até divino. Com o decorrer
dos séculos, essa mensagem tornou-se cada vez mais secularizada, mas seu núcleo
permaneceu substancialmente inalterado. O sucesso econômico dos Estados Unidos em
relação a outras nações é, ainda hoje, consistentemente retratado como o trabalho
manifesto de uma força poderosa, extra-humana, uma providência suprema por trás do
destino americano, seja de natureza divina (a vontade de Deus), social (tipicamente, o
mercado livre), ou material (um ambiente favorecido com um exagero de recursos
naturais). No começo da colonização da Nova Inglaterra, o patriarca peregrino John
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
49
Winthrop articulou o que agora é considerado um exemplo clássico dessa leitura "divina"
do destino americano:
Eis então a Causa entre Deus e nós. Temos um Convênio com ele para esse
trabalho, temos uma Comissão, o Senhor tem nos dado licença para escrever nossos
próprios Artigos... [O]s homens dir-se-ão de fazendas sucedentes: que Deus a faz como
aquela da Nova Inglaterra: pois precisamos considerar o fato que seremos como uma
Cidade sob uma Colina, os olhos de todos os povos serão em nós....
6
A empresa puritana era a criação de uma Nova Canaã, uma missão nas terras
selvagens que produziria uma renovação do espírito no mundo. Embora essa visão da
expansão colonial fosse endêmica em toda América inglesa, foi nas colônias da Nova
Inglaterra, fundadas por refugiados religiosos protestantes radicais, que a conexão entre
expansão imperial e um senso de missão divina tornou-se mais aparente. Os peregrinos e
seus descendentes acreditavam que terras existentes fora do domínio de um Estado
propriamente organizado eram uma violação do mandamento de Deus "crescei e
multiplicai-vos". Terras incultas chamavam os fiéis a ocupá-las e desenvolvê-las em
nome da glória de Deus (Pearce, 1988: 20). Na visão de John Winthrop…
[T]oda a Terra é o jardim do Senhor e ele deu esse aos filhos de Adão para que
eles o cultive e melhore. Porque, então, devemos ficar aqui, carentes de lugares para
habitar… e deixar que países inteiros, que poderiam dar lucros ao trabalho do homem,
ficassem devolutos e sem melhorias?
(ibid, 1988: 21)
Para os puritanos da Nova Inglaterra, a posse da terra podia ser provada
recorrendo-se à Bíblia, uma sanção divina para desejos mundanos. Como diz Francis
Jennings, "Embora poder, riqueza e terra fossem objetos imediatos de tentação para até
mesmo o mais farisaico dos aristocratas puritanos, os pecados de orgulho e cobiça que
eles incentivavam era de um tipo que o Deus vingativo podia perdoar em seus filhos
favoritos". Adquirindo mais terra e poder, segundo essa lógica, os escolhidos do Senhor
poderiam melhor cumprir Sua vontade, e ao submeter os habitantes nativos dessa terra ao
Seu governo, eles fortificavam Seu reino. Para financiar a construção da "Cidade na
Colina", dando aos puritanos autorização para, nas palavras de Winthrop, "escrever
nossos próprios tratos", Deus assinara um cheque em branco para ser usado à serviço da
ambição humana: a moralidade cristã passaria para o banco de trás da extensão do
império (Jennings, 1975: 180-181).
6
In: Bellah, 1975: 14-15.
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
50
Nesse estágio inicial da colonização, pois, encontramos desejos pecuniários
firmemente conectados com uma noção de que era o dever do homem branco cristão
desenvolver "terras desperdiçadas" (ie., terras indígenas) para a glória do Senhor.
Estudiosos várias vezes comentaram as conexões entre protestantismo e capitalismo; os
trabalhos de Max Weber, por exemplo (1992 [1930]), vêm imediatamente à mente. Em
nenhuma outra parte do mundo, todavia, essas conexões seriam tão claramente
demonstradas — ou tão claramente ligadas à expansão imperialista — do que na Nova
Inglaterra do século XVII.
Reduzindo selvagens à civilização
Infelizmente, "a América, como Canaã, não era desabitada quando a nova Israel de
Deus chegou […] (Bella, 1975: 36). Se a expansão sobre o mundo era um mandato
divino, o que seria dos habitantes nativos cujas terras seriam reivindicadas? Assim como
os recursos naturais da América eram compreendidos como existindo para ser
reordenados no paraíso de Deus na terra, seus habitantes, os índios, deveriam também ser
remodelados em bons súditos de Deus (Pearce, 1988: 3).
Para os puritanos da Nova Inglaterra, os índios serviam tanto como desafio como
uma advertência objetiva. Aqui estava um homem — reconhecivelmente humano e
dotado de alma — mas que não reconhecia Cristo, vivendo além dos limites do que se
compreendia como uma sociedade ordenada por Deus. Como relata Pearce,
"Precisamente porque o puritano estava tão preocupado com o significado dos índios para
sua cultura como um todo, ele dificilmente poderia conceber uma descrição
desinteressada deste índio." (id: 26).
Visto na luz daquela natureza civil ordenada que era a aspiração de todos os
homens, como homens, [o índio] parecia ter decaido de seu estado próprio como um
ser humano. A lição a ser aprendida em todos os lugares nas Américas era profunda e
poderosa para aqueles cristões civilizados cujo intelecto era essencialmente medieval
mas cujo mundo estava rapidamente se transformando naquilo que chamamos de
moderno. No Novo Mundo, o ingles poderia… claramente vislumbrar o que ele poderia
ser se ele não viviesse de acordo com sua natureza mais alta. O Índio ficou importante
para a mente ingles, não por aquilo que ele era, mas porque ele demonstrava aos
homens civilizados o que eles não eram e não poderiam nunca se deixar a ser. (id: 4-5)
Muito dependia de como os índios reagiam. Enquanto seres humanos, os índios
podiam ser convertidos e unir-se à comunidade cristã. Frequentemente, porém, a prova
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
51
disso não estava na adesão dos índios ao cristianismo, mas em sua aculturação ao modo
de vida puritano "ordenado por Deus", um caminho que muitos índios convertidos
recusavam-se a tomar. Isso gerava acusações de diabolismo: "Todo europeu sabia que a
lei moral cristã era fundada nas “leis da natureza". E aqui estavam esses povos naturais
violando essas supostas leis naturais sem compunção. Eles exibiam pouca preocupação
em cobrir sua nudez. Era alegremente frouxos sobre o sexo pré-marital. Mulheres eram
donas de seus próprios corpos. Aos olhos de alguns europeus, não conheciam um
verdadeiro casamento. O divórcio era fácil e — abominação das abominações — a
homossexualidade masculina era abertamente tolerada, e até mesmo institucionalizada."
(Pearce, 1988: 4-5)
A visão demonizante da diferença cultural tinha raízes profundas na Inglaterra,
estendendo-se até a invasão e colonização da Irlanda no século anterior. Francis Jennings,
Robert Williams Jr. e Audrey Smedley demonstraram que a matriz inglesa para a
selvageria e para as respostas coloniais a ela foi originalmente desenvolvida durante a
conquista da ilha de São Patrício. Smedley cita comentadores do século XVI afirmando
que os irlandeses "[…] vivem como bestas […] pensa[ndo] que o maior prazer é não
trabalhar e a maior riqueza é gozar de liberdade." (Smedley, 1998: 57) "[O]s irlandeses
preferiam conservar-se em sua preguiça, em seu imundície, em sua rudeza, em desumana
repugnância, do que seguir qualquer exemplo dos ingleses, fosse de civilidade, de
humanidade, ou qualquer tipo de decência". Smedley prossegue, afirmando que
canibalismo, lascívia e comportamento sexual licensioso, roubo, superstição e idolatria,
eram todos atribuídos aos irlandeses por seus conquistadores ingleses (principalmente os
membros do exército influenciado pelos puritanos de Cromwell). Os paralelos entre essas
descrições e discursos ingleses sobre os índios são bastante notáveis. Smedley comenta
que "[C]ristalizou-se na mente inglesa, a partir dessa saga de tensão e hostilidade, uma
imagem muito real de barbarismo que tinha referentes concretos nos irlandeses mas que
podia ser abstraído para ser aplicado a outros." (id: 58-59). Jennings confirma a visão de
Smedley, adicionando que uma vez que a religião irlandesa diferia tão substancialmente
da ortodoxia inglesa, era bastante fácil para os últimos convencer-se do estado selvagem
e pagão dos primeiros. Os irlandeses, definidos como bárbaros sem Deus, foram
massacrados em massa durante a expedição de Cromwell a Ilha Esmeralda e muitos dos
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
52
homens que participaram dessa campanha vieram depois a tornar-se altas autoridades
militares durante a colonização da América do Norte (Jennings, 1975: 46).
7
Os índios americanos seriam igualmente dobrados ao jugo da civilização cristã.
Como James Axtell observa, os ingleses usavam um termo curioso para descrever seus
projetos para a América nativa:
Sempre quando foram criados planos para “humanizar” os nativos da América,
os missionaries ingleses escolherem uma frase peculiar que ilustra seus preconceitos
culturais e religiosa. Do século XVI até a Revolução Americana, o primeiro objetivo
dos ingleses era a “redução” dos índios da selvagaria a “civilidade”. A frase é curiosa,
pois esperariamos que um povo detentor de uma auto-imagem inculcada com noções de
superioriade iria tentat elevar povos inferiores em vez de os reduzir... (Axtell, 1981:
45-46)
A resposta ao mistério dessa estranha escolha etimológica repousa no fato de que
os ingleses sentiam que os índios precisavam ser reduzidos em auto-estima, liberdades e
— sobretudo — em sua liberdade de movimento e direitos territoriais de modo a se
tornarem verdadeiramente cristãos. Como o patriarca puritano da Nova Inglaterra
observou então, o objetivo era "convencer, refrear, restringir e civilizar" os índios "e
também humildá-los", submetendo-os ao "jugo de Cristo". Em outras palavras, para que
um índio se tornasse um bom cristão, ele precisava asssumir "a postura do gado
domesticado — dócil, obediente, submisso… O 'selvagem' daria lugar ao 'homem civil'
repremindo seus instintos, hábitos e desejos nativos, e quietamente se submentendo às
rédeas, aceitando o jugo religioso em seu pescoço". (id: 60-61)
Para completar essa redução, cerca de 91 aldeias foram estabelecida para "índios
devotos" na Nova Inglaterra antes da Revolução (id: 81). Nativos que se mudaram para
elas foram lá fixados e integrados nas mais baixas fileiras de trabalhadores manuais da
sociedade colonial. Como Axtell faz notar, esse esquema tinha dois benefícios do ponto
de vista do poder colonizador. Em primeiro lugar, ele criava na vida indígena a
necessidade de bens industrializados e de grandes quantidades de produtos agrícolas que
não podiam ser facilmente obtidos segundo os modos tradicionais. Em uma tal situação,
tornava-se difícil para índios "cristianizados" fugir para além da fronteira colonial sem
deixar para trás seus meios de vida. Além disso, a dependência crescente em uma forma
7
Para mais leituras nessa linha, veja-se Nicholas P. Canny, “The Ideology of English Colonization: From
Ireland to America,” in WMQ, 3rd Ser., (1973), um texto usado por ambos Jennings e Smedley.
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
53
de produção sedentária tornou esses nativos muito mais vulneráveis à retaliação militar
no caso de uma revolta. A esse respeito, Axtell cita um soldado colonial inglês que
observou que as "vilas devotas" eram uma útil solução para a questão de o que fazer com
os índios "já que podemos nos vingar em suas habitações fixas e em seu milho" no caso
de conflito (id: 65-66).
Mas um dos principais benefícios que a redução dos índios viria trazer era a
liberação de territórios de caça indígenas previamente utilizados. Conforme os índios
eram re-assentados em aldeias orientadas para o mercado, agrícolas e devotas, suas
necessidades territoriais diminuiam. Um resultado chave da redução, pois, foi colocar os
índios para fora da terra e sob a Coroa Britânica.
O inglês elizabetano viviam em um mundo conformado por poderes ocultos e
onipotentes, dos quais os principais eram Deus e Satã. Um dia que não estava dolado de
um só poderia estar do lado do outro. Em outras palavras, para parafrasear Francis
Jennings, os índios não estavam errados por ter um ritual para persuadir a divindade a
fazer chuva, eles estavam errado por dirigir suas preces para o endereço errado (Jennings,
1975: 51). Mesmo índios convertidos tinham de tomar cuidado: o paganismo não era
usualmente uma falta merecedora de punição capital para os puritanos, mas a
reincidência blasfema certamente o era: "O leque permitido de escolha para os índios
[convertidos] ia da observação perfunctória do ritual convencional, no mínimo, à plena
profissão de fé. Ficar fora deste leque era cometer blasfêmia, para o que a morte era
obrigatória" (id: 242).
As leis de uma vila devota de meados do século XVII dispensavam multas ou
chibatadas por brigar, por recorrer a curadores [medicine-men], por "fornicação" (sob a
lei puritana, fazer qualquer atividade sexual que não aquela entre marido e mulher
devidamente casados na igreja com propósitos procreativos), jogar, comer piolhos, usar
cabelos longos (se homens), despir os seios (para mulheres), passar graxa no corpo,
praticar poligamia, ou entrar em luto ostentatório. Adultério, feitiçaria e a adoração de
qualquer deus que não Cristo eram crimes punidos com a morte (Axtell, 1981: 64-65).
Como nota Pearce, a própria estreiteza das definições puritanas de termos como
Deus, ordem e civilização colocam os nativos reais, tal como viviam suas vidas, em
oposição à ideologi a puritana. "[O] puritano do século XVII, ao tentar resgatar para os
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
54
índios uma pureza civil e religiosa que ele estava certo de ter conseguido resgatar para si
mesmo, estava simplesmente definindo uma realidade em termos da outra […] o índio em
termos do puritano. E, na natureza das coisas, ele estava fadado ao erro" (Pearce, 1953:
31).
Esmagando as "serpentes brônzeas"
Desde o início da conquista ultramarina britânica, o extermínio e a assimilação de
selvagens eram política intimamente combinadas. Como a Rainha Elizabeth observou
para Walter Devereux, o Duque de Essex, um de seus donatários na Irlanda:
Quando você tiver a oportunidade, [deve]… trazer aquela nação rude e bárbara à
civilidade e ao reconhecimento de seus deveres a Deus e a nossa pessoa usando a
sabedoria e a discriçaõ em vez da força e o derramento de sangue; todavia, quando
necessário, você deve opor sua pessoa e forças contra aqueles que a razão e o dever não
consegue disciplinar. (IN: WILLIAMS, 1990: 146)
Nativos selvagens, não-reduzidos, refratários a jugos ou rédeas, deveriam pois ser
mortos. Onde quer que os povos indígenas se opusessem aos Novos Ingleses, eles eram
atacados com todas as forças militares que os colonos pudessem mobilizar, a resistência
sendo prova de que eram instrumentos do Diabo na terra. O índio devia ser ou
melhorado, ou eliminado. Se salvo, uma alma era arrancada das garras de Satã; se
destruído, um dos seguidores de Satã era enviado ao inferno. As "serpentes brônzeas"
["tawney serpents"], que ameaçavam os desígnios de Deus, segundo o patriarca
companheiro de John Winthrop, Cotton Mather, deviam ser "esmagadas" sem piedade
(Turner, 1988: 46).
O que isso significava, na prática, para os nativos, pode ser visto na Guerra
Pequot de 1636-1637, a primeira guerra entre índios e ingleses na Nova Inglaterra.
Famintos de vingança por um suposto assassinato, o exército de colonos caiu sobre o
principal forte Pequot sob o manto da escuridão, cercando-o e incendiando-o enquanto
atiravam em todos os índios — na maioria mulheres e crianças — que tentavam escapar.
O líder da expedição puritana descreveu o massacre como Deus rindo…
[...] de seus Inimigos e ods Inimigos de seu povo… fazendo deles como se
fossem num Forno cheio de chamas: e assim os Corações Bravos eram derrotados,
tendo sonhado seu ultimo Sonho, e nenhum de seus homens poderiam encontrar suas
mãos [i.e. os homens foram mortos desarmados]: É assim que o Senhor Julgou os
Pagões, enchendo o Lugar com seus Corpos mortos!
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
55
Respondendo a críticas a tal brutalidade, o Capitão Undehill — outro oficial da
expedição — justificou as ações de seus soldados da seguinte maneira: "Quando uma
povo chega a tal magnitude de sangue e pecado contra Deus e o homem […] então Ele
não tem o respeito pelas pessoas, mas as dilacera, e serra, e desce a espada sobre elas, e a
mais terrível morte que existe" (apud Drinnon, 1980: 41-42). As vítimas do massacre
opunham-se aos Escolhidos de Bay Colony; isso justificava sua execução, que poderia
ser lastimável, mas podia ser vista como totalmente necessária, se encaixada no quadro
do plano maior de Deus. O massacre, pois, não era um ato humano, mas a justa
retribuição divina.
Um aspecto final das relações iniciais dos ingleses com os povos nativos das
Américas precisa ser mencionado aqui (precisamente porque é ignorado ou ativamente
negado na maior parte do pensamento historiográfico brasileiro tradicional relativo à
América do Norte), a saber, a questão da escravidão indígena. Contrariamente às
expectativas de antropólogos brasileiros como Darcy Ribeiro, a América do Norte
colonial continha um florescente mercado para cativos indígenas, do mesmo modo que
no caso das colônias espanholas e portuguesas do sul das Américas. Após a destruição
dos Pequot em 1637, o patriarca puritano e governador assistente John Endicott requereu
uma parte do butim humano por meio de seu pastor em Salem, Hugh Peter:
Eu e Mr. Endicott te saudamos [Governor Winthrop] em nome do Senhor Jesus
etc. Ouvimos de uma divisão das mulheres e crianças na [colonia da] bahia [de
Massachusetts] e seriamos felizes e receber uma parte dessa: uma joven ou uma menina
e um menino se você acha bom: te escrevi pedindo alguns rapazes para as Bermudas,
que acho considerável (Apud Drinnon, 1980: 47)
Como aponta Elaine G. Breslaw em seu estudo da caça de bruxas de Salem, o uso
de escravos nativos decaiu na Nova Inglaterra depois da Guerra do Rei Phillip (1675-
1676). Naquele ano, o Tribunal Geral da colônia proibiu a compra ou posse de escravos
indígenas acima dos 12 anos por considerá-la uma prática demasiado perigosa para o
bem-estar da colônia. (Breslaw, 1996: 68-69).
Nas plantações das colônias inglesas meridionais, entretanto, a prática da
escravidão indígena durou muito mais tempo. Na história do patrimônio escravista de sua
família na Carolina do Norte, Edward Ball registra o primeiro ataque para captura de
escravos contra índios como tendo ocorrido em 1671, e relata a escravidão nativa como
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
56
florescente nas plantações da região nas primeiras décadas do século XVIII (Ball, 1998:
32-33; 90-93). Ball observa que a escravização de índios na Carolina do Sul acabou
apenas com a destruição da população nativa local nas guerras indígenas de 1715:
[Q]uando a fúria do assim chammado Guerra Yamasee War se dissipou, os
Nativos foram derrotados e forçados para uma diaspora. A nação Creek migrou para o
oeste até a colônia francesa de Luisiana. Outros povos, incluindo os Apalache e
Savannah, eram dizimados e dispersos… Com os vermelhos fora do alcance, a
escravidão dos nativos diminuiu rapidamente até que ficou como uma espécia de
curiosidade ao lado da escravidão dos negros.. (BALL, 1998: 95-96).
Só em 1716 a Carolina do Sul aprovou um regulamento similar ao de
Massachusetts, proibindo a compra, mas — reveladoramente — não a posse, de escravos
indígenas acima dos 14 anos. Mesmo mais tarde, em toda América do Norte inglesa,
nativos ainda eram vendidos acorrentados para as plantações no Caribe, um destino
dispensado, por exemplo, a muitos dos sobreviventes da Guerra do Rei Phillip (Breslaw,
1996: 68-69).
A transportação para as colônias açucareiras do Caribe era, de fato, uma outra
prática que os ingleses haviam previamente empregado na Irlanda. Alguns autores
afirmam que até 100 mil irlandeses foram transportados à força para as Índias Ocidentais
depois da conquista da ilha por Cromwell (Esson, 1971: 168; Novack, 1976: 142). Tanto
no caso da Irlanda quanto da América do Norte, a prática, mais uma vez, reunia a
justificativa ideológica (segurança colonial) com uma forte motivação de lucro: um morto
é um morto, mas um cativo podia ser lucrativameente vendido como escravo longe de sua
terra, uma forma de morte social que o removia como ameaça para a colônia ao mesmo
tempo que fornia os bolsos de seu captor.
Redução, massacre, escravização e transportação não resolveram o problema
indígena, nem eliminaram a presença indígena a leste das Apalaches. Embora os sécs.
XVI-XVIII fossem um período de grandes mudanças para os povos nativos da América
do Norte, essas mudanças não os "dobraram ao jugo" da obediência à "foi, loi et roi",
embora tenham crescentemente empurrado as unidades políticas nativas para fora das
principais zonas de colonização européia. Entretanto, mesmo os nativos cristãos
residentes nas "vilas devotas" eram relutantes em abrir mão de suas identidades como
povos soberanos e a suas reivindicações territoriais. Muitos estudiosos descrevem essas
coleções de nativos cristianizados como "nada mais que reservas […] lutando para
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
57
manter algum vestígio de coesão tribal […] submetidas à servidão […] [obtendo]
escassos meios de vida como agricultores arrendatários" (Breslaw, 1998: 68-69).
Como assinala Axtell, "estar na defensiva, porém, não significa uma perda total
de iniciativa".
Mesmo que a conversão [indígena] assinalou largas mudanças culturais, ela
preservou a identidade étnica de grupos indígenas e os mantiveram em terras
familiares, embutidas com sua história como um povo. Ao custo de um certo grau de
continuidade material e espiritual com seu passado, a aceitação de cristianidade –
sincera ou não – permitiu esses grupos indígenas a sobreviveram no presente e deram a
eles novas possibilidades de vida num momento em que seus senhores coloniais
ameaçaram fechar todos os caminhos para o futuro (AXTELL, 1981:85).
A experiência colonial inicial revelou assim um truísmo que se repetiria ao longo
de toda história dos Estados Unidos: os índios não podiam ser completamente eliminados
como grupos étnicos "Outros” por meio da conversão, guerra, massacre, escravização ou
abuso. O processo colonizatório, de fato, muitas vezes acabou por reificar identidades
grupais nativas na tentativa de eliminá-las. Se indivíduos pereceram aos milhares e
grupos inteiros foram eliminados da face do continente, os indígenas americanos, como
um todo, sobreviveram. Novas sociedades se formaram, outras antigas se reconsolidaram,
e tanto umas como outras buscaram apoios para defender suas terras dos poderes
europeus.
O nascimento dos tratados
Como descrevemos acima, as respostas inglesas aos nativos nas Américas seguiu a
lógica de uma cruzada ética. Nos termos de Roy Pearce, os ingleses que se tornaram
americanos guiavam-se por uma idéia de ordem, um princípio eterno e imutável que fazia
possível sua vida em sociedade. Era um princípio a ser expresso no progresso dos
homens civilizados que, esforçando-se para imitar seu Deus, trariam ordem ao caos. Para
eles, a América do Norte recém-descoberta era um caos que representava o último reduto
do estado primordial do mundo tal como Deus o havia criado no Gênesis (Pearce, 1988:3;
Bellah, 1975: 14-15). Variantes deste tipo de pensamento podem ser encontrados nos
registros da empresa colonial por todas as Américas, e a maior parte deles se enraiza no
mesmo lugar — ideologias cristãs medievais da extensão do domínio de Deus sobre
terrras selvagens e povos pagãos ou infiéis (Williams, 1990: 31; 59-81). Os teocratas
puritanos da Nova Inglaterra do século XVII, porém, adicionaram uma torção a essa
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
58
fórmula levando a lógica do imperialismo cristão a seus extremos filosóficos. Como
coloca Robert A. Williams Jr., o mais amplamente citado estudioso dos discursos de
conquista anglo-americanos dessa época, "Na Inglaterra da era dos descobrimentos, a
Reforma operou talvez as mais profuntadas transformações por todos os domínios
discursivos da sociedade, redefinindo e cristalizando uma visão de destino e identidade
nacionais".
A vontade imperial mais potente e agressiva do Ocidente é fruto da união da
rivalidade feroz entre o Protestantismo radical e o agente do Papa de Roma no Novo
Mundo (Espanha) e uma economia nacional liberada das restrições religiosas e
preparada para criar um excedente de riquezas nacionais no sistema de comércio
mundial (WILLIAMS, 1990: 118).
Os discursos elizabetanos da conquista do Novo Mundo harmonizavam noções
cristãs tradicionais de Guerra Santa com a livre busca de riquezas mundanas, envolvendo
esse estranho casamento na bandeira da luta religiosa/imperial contra a Espanha papista.
Conforme avançava o século XVII e diminuía a ameaça espanhola, o motivo do lucro na
colonização tomou cada vez mais a frente da cena. Nessa nova formulação, os habitantes
originais das Américas "vieram a ser vistos como a barreira desumanizada contra a
soberania legitimamente ordenada por Deus dos ingleses sobre as terras selvagens e
subutilizadas no Novo Mundo" (Williams, 1990: 193-194).
A partir do século treze, uma série de bulas papais estabeleceram as relações
apropriadas entre os cristão se os "infiéis" no reino mundano do comércio e dos direitos
de propriedade. Essas foram expandidas no século XVI por juristas espanhóis como
Franciscus de Vitoria e Matías de Paz, levando à articulação do que desde então passou a
ser chamada a "Doutrina da Descoberta" — um doutrina que era apoiada pelo endosso
papal e que formava a base legal para a expansão ultramarina européia (pelo menos aos
olhos de outros europeus) (Churchill, 1993: 35; Williams, 1990: 13-103).
A Doutrina da Descoberta sustentava que oas terras habitadas eram de posse de
seus habitantes — não importava que religião esse povo professasse. Todos os homens
eram homens e passíveis de salvação e todos os homens eram dotados de direitos de
propriedade. A Igreja garantia aos descobridores os direitos de comerciar com ou adquirir
terra de povos recém-descobertos, desde que os exploradores proselitizariam a fé cristão
entre os nativos. A aquisição de terra dos nativos só podia ocorrer em duas
circunstâncias: compra ou guerra justa, sendo a guerra considerada justa quando os
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
59
nativos recusavam-se a aceitar missionários ou atacavam cidadãos europeus (Lytle e
Deloria, 1983: 2-3). Como vimos acima, entretanto, essa doutrina poderia ser torcida para
justificar guerras por ambição territorial. Nisso, a Nova Inglaterra puritana e as colônias
inglesas em geral não eram diferentes de suas contrapartes ibéricas meridionais.
Como notam tanto Ward Churchill quanto Robert A. Williams, porém, com o
desenvolvimento do racha entre a Inglaterra e a Igreja Católica, a primeira marcou "sua
independência da regulação papal adicionando um elemento próprio à doutrina" das
guerras justas, legitimando os desejos protestantes de derrubar a proteção papal das
reivindições ibéricas no Novo Mundo. Segundo Churchill, nessa nova formulação da
Doutrina da Descoberta:
[O]s direitos de posse a terra eram em grande parte articulados ao desejo e às
habilidades de seus donos de “desenvolver” esses territórios de acordo com o mando
bíblico de excercer um “domínio” sob a natureza. A posse de título, então, era restrita
àquela quantidade de terra que um indivíduo ou povo poderia “domesticar. Essa critéria
deu aos colonos ingleses um direito inherente de expulsar os povos indígenas de todas
as terras além daquelas que poderiam “razoavelmente serem cultivadas”. Mais
importante ainda, essa inova;’ao doutrinária automaticamente situou a Coroa Inglesa
numa posição em que ela poderia disputar os direitos de descoberta de qualquer
potência europeia que não estava devidamente “domesticando as terras selvagens”
(CHURCHILL, 1993 :37).
Essa era, então, a contraparte secular da ideologia puritana de uso da terra acima
sublinhada: a terra realmente pertencia a seus habitantes originais; se eles não a estavam
utilizando adequadamente, porém, era considerada abandonada e pronta para ser tomada.
Churchill considera essa inovação legal extremamente importante, pois permitia à
Inglaterra e a suas colônias permanecer tecnicamente dentro da lei ao mesmo tempo em
que confrontava a França e a Espanha, ambos poderes católicos, por domínios nas
Américas.
Williams enfatiza como as tentativas do século XVI de colonizar a Irlanda mais
uma vez auxiliaram a estabelecer a conexão entre conquista, reforma de pagãos e geração
de renda na imaginação imperial inglesa:
A idéia de que a Irlanda tinha vastas regiões não desinhabitadas que eram
adequadas para a colonização inglesa refletiu uma longa tradição de preconceitos
negativos ingleses ao respeito da cultura e sociedade irlandesa. Desde a época
medieval, os ingleses criticaram como um desperdiço da terra a economia de
subsistência, sustentado na pastagem de gado, dos irlandeses tribais. A Inglaterra, é
claro, tinha historicamente utilizada boa parte de sua terra para a agricultura. Os
impulsos aquisitivos da época pós-henriqueana contribuiu à racionalização das
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
60
atividades econômicas do campo inglês e isto aumentou mais os profundos e históricos
preconceitos dos ingleses contra a cultura tribal e de subsistência dos irlandeses. Para
um inglês da época elizabeteana, a terra deveria ser usada para a produção agricola que
visava criar um excedente a ser vendido no mercado, ou - como foi no caso dos
frequentes enclosures de terras públicas nessa época - a pastagem comercial
Na Irlanda, pois, vemos que a suposta subutilização da terra por um povo
selvagem foi usada como justificativa para a empresa colonial inglesa. Um amplo motivo
para colonização (e lucro) era articulado aqui com uma igualmente ampla justificativa
moral (a reforma dos povos tribais e não-cristãos). Esse modelo foi levado adiante para as
Américas e lá ampliado (Williams, 1993: 139-140).
Williams nos lembra, todavia, que a Inglaterra nunca desenvolveu uma resposta
legal, ampla e formal à Doutrina da Descoberta papal. Em lugar disso, "a justiça do título
designado pela Coroa [inglesa] à compania [da Virginia] operaria simplesmente com base
na presunção dos direitos superiores dos ingleses na América […] A conquista da
América, ela própria, provaria o direito superior dos ingleses à América dos índios". A
Inglaterra baseou, assim, suas reivindicações na América do Norte no poder político nu e
cru — o poder de impedir que outros poderes imperiais europeus avançassem sobre
títulos adquiridos dos índios pelo direito de conquista (id: 204-205) e o poder de derrotar
e dominar qualquer unidade política indígena encontrada.
Para justificar suas ambições coloniais aos olhos dos monarcas da Europa, pois, a
Inglaterra não podia apoiar-se na autoridade papal: ela precisava apoiar-se na força.
Todavia, a precariedade relativa do projeto imperial da Inglaterra na América do Norte
significava que os colonos não podiam simplesmente impor sua vontade sobre os
habitantes nativos do continente. A Inglaterra tinha de enfrentar uma série de poderes
rivais europeus e nativos durante os dois séculos de sua ascensão à hegemonia na
América do Norte e essa situação continuava vigente até os anos imediatamente
anteriores à Revolução Americana. Nesses anos, os ingleses da América do Norte
estavam envolvidos em uma série de disputas quase contínuas com a Espanha, Holanda,
Suíca e (especialmente) França pelo controle do continente.
Comparada às lucrativas colônias tropicais do Caribe, a América do Norte
continental era um lugar de menos importância nas guerras correntes pela supremacia
colonial. Um indício da pouca importância relativa do continente pode ser visto no
Tratado de Paris de 1763, pelo qual a França concordava em desisitr de todas as suas
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
61
possessões continentais em troca do controle renovado sobre as ilhas produtoras de
açúcar da Martinica, Guadalupe e Marie Galante (Marston, 2001: 10, 77). Dada esta
situação, operações militares continentais muitas vezes tinham de ser conduzidas por
milícias provinciais e auxilares indígenas. Nesse contexto — e apesar do etnocentrismo
britânico — alianças militares e políticas com povos nativos assumiram uma importância
primária. Nas palavras de Louis Antoine de Bougainville, ajudante-de-campo do general
francês Marquês Louis Joseph de Montcalm durante a Guerra dos Sete Anos (1756-
1763), os índios eram fundamentais para as estratégias militares na América do Norte
colonial: "É necessário informá-los de todos os planos, consultá-los, e muitas vezes
seguir o que eles propõem. No meio dos bosques da América, eles são tão indispensáveis
quanto a cavalaria em terreno aberto" (apud Calloway, 1997: 105). Esse estado de coisas
levou ao desenvolvimento de um complexo conjunto de relações políticas baseado
naquele duradouro artefato da jurisprudência colonial, o tratado indígena.
Durante o período que se estende a colonização inicial até a Revolução, as
relações brancos/índios nas colônias inglesas da América do Norte eram caracterizadas
pelos seguintes traços:
1) Pequeno número de colonos, incapazes de projetar um poder militar
absolutamente dominante.
2) Grupos nativos com forças militares bastante significativas.
3) Um poder imperial relativamente fraco (Inglaterra) que via o Caribe como o
palco para suas ambições coloniais e a América do Norte como um teatro secundário.
4) Muitos povos nativos envolvidos em todo tipo de relação entre si, incluindo a
guerra.
5) Um grande número de poderes europeus em luta por um espaço no continente.
6) Dominância européia na produção de armas e munição.
Dado este estado de coisas, as relações políticas índios/brancos durante o período
colonial eram caracterizadas pelo reconhecimento dos povos nativos como entidades
políticas legítimas, capazes de estabelecer tratados com estados nacionais europeus.
Sendo uma retardatária na colonização americana, a Inglaterra precisava de aliados
militares indígenas para proteger seus colonos. Em troca, os ingleses estavam dispostas a
abastecer esses aliados de armas e pólvora, tornando-os dominantes em suas lutas contra
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
62
seus inimigos tradicionais (Lytle e Deloria, 1983: 3). O reconhecimento dos grupos
nativos como nações também facilitava sua destruição legalizada por meio da doutrina da
guerra justa, uma vez que, no final, apenas uma polity organizada podia ser declarada
como objeto de guerra, justa ou não.
Um efeito desses tratados foi sugar os povos indígenas da Costa Leste da América
do Norte e da bacia do Ohio um um século de guerra. Segundo Calloway:
Os europeus pagaram seus aliados indígenas, os dando armas e munições e os
dando uma oportunidade para atacar povos contra quais os índios já estavam se
guerreando. O enlistamento como soldados em excercitos coloniais possibilitava para
certos índios uma fuga de um mundo que estava em colapso e oferecia dinheiro num
momento em que as economias indígenas estavam entrando em caos. Também... era
uma maneira de continuar ser indígena: diferente da caça de baleias, trabalhos
domêsticos, ou outros papeis subordinados disponíveis na economia colonial... O custo
foi alto. Homens indígenas morriam em grandes números nos campos de batalha ou em
acampamentos insalubres.... (Calloway, 1997:105)
Se o recrutamento de índios como aliados e auxiliares para a guerra colonial pode
ter garantido a sobrevivência dos colonos ingleses, ele foi absolutamente devastador para
os povos nativos do leste da América do Norte.
Os índios diziam que sua posição, entre poderes europeus contestadores, era
como ser presso entre as láminas de uma tesoura que cortava tudo quando fechavam,
mas nunca se danificaram. Aldeias foram queimadas, a agricultura devastada e as
pessoas ficaram com fome... Gerações de índios nasceram num mundo onde a guerra
era endêmica, sendo criadas em comunidades que estavam premanentemente em pé de
guerra. (Ibid:111)
No fim do último quarto do século XVIII, a Inglaterra havia consolidado seu
domínio sobre a América do Norte. O Canadá francês fora conquistado e as colônias dos
outros poderes europeus igualmente absorvidas. Durante a Revolução Americana, porém,
tanto a coroa inglesa quanto os rebeldes americanos buscaram aliados nativos. No fim da
guerra, a fronteira norte-americana estava outra vez em chamas. Nas negociações do
Tratado de Paris de 1782, a Inglaterra tentou garantir a existência de um estado indígena
independente para seus aliados Haudenosaunee (Iroqueses) entre os Grandes Lagos e o
rio Ohio (Lytle e Deloria, 1983: 59; Churchill, 1993: 87-88). Essa manobra fracassou,
mas o fato de que foi tentada forncce uma indicação do poder relativo que as polities
nativas podiam ter em assuntos internacionais na América do Norte, mesmo em uma data
tão tardia.
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
63
A jovem república americana herdou toda a bagagem ideológica e legal acima
descrita — especialmente, a crença em si mesma como um povo com um mandato
especial e um destino glorioso aguardando-o em seu futuro e o uso preferencial de
tratados para resolver assuntos indígenas. Todavia, uma nova era estava nascendo na
América do Norte, que assistira a restrição dos outros poderes europeus às bordas do
continente. Alimentado por um amálgama revolucionário de ideologias seculares e
religiosas e sustentado por uma economia agro-industrial em rápida expansão, os Estados
Unidos estavam às beiras de explodir agressivamente para o oeste, seguindo seu "Destino
Manifesto". Conforme cresciam a auto-confiança e poder americanos — e recediam
intrusos europeus potenciais — o modo como os americanos viam e tratavam os índios
iria mudar.
Revolução e Remoção
A Revolução em si mesma não alterou fundamentalmente a visão americana dos
índios. O credo da selvageria e de seu contraponto, a civilização cristã, havia, nos anos
1770, se tornado um axioma tão disseminado que, como coloca Drinnon, "estava claro e
óbvio na certidão de nascimento dos Estados Unidos da América" (Drinnon, 1980: 99). A
filosofia iluminista de John Locke e Charles de Montesquieu substituíra, em uma certa
medida, certezas bíblicas puritanas. Entretanto, na célebre sentença de Benjamin Franklin
"God gives all things to industry" [ “O Deus dá tudo à indústria”] podemos ver uma
continuação do ascetismo mundano puritano e de noções de predestinação.
[N]ão é verdade que a base religiosa da ética protestante "tinha morrida" nos
anos 1770s. Essa continuou vivíssima em tais anacronismos como [as obras do poeta
nacionalista] Timothy Dwight. Estava físicamente presente no Congresso Continental
na pessoa de John Adams, que argumnetou em favor da Declaração [de Indepenêndia]
frente àquela instituição, descrevendo as razões do alforecimento da casa dos Adams
como as antigas virtudes de “indústria, frugalidade, regularidade, e religião”. A
hostilidade do Adams contra a dança, o canto e a celebração – por parte dos índios... ou
quaisquer “vagabundos, bêbados e fanfarrões” – era tão poderosa quanto a de Winthrop
ou Endicott. (Drinnon, 1980: 100)
É na filosofia de inspiração iluminista de Thomas Jefferson que podemos talvez
melhor ver o espírito dos tempos e suas similaridades e diferenças com as visões mais
abertamente religiosas do puritanismo. As tentativas de Jefferson de racionalizar o mundo
sob um mandato do Céu não eram menos determinadas que aquelas dos Eleitos da Nova
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
64
Inglaterra, ainda que aplicadas sob auspícios diferentes (id: 102). Segundo Jefferson,
"Aqueles que trabalham na terra são o povo escolhido de Deus, se Ele um dia teve um
povo escolhido”. Pearce chama isso de "idealismo agrário", distinguindo-o da injunção
"crescei e multiplicai-vos" que moldava a visão de mundo puritana (Pearce, 1953: 67).
Todavia, embora ideologia pós-revolucionária americana fosse um fruto do iluminismo e
de ênfase lockeana, a mensagem nuclear — de que os americanos eram um povo
especialmente favorecido, predestinado à grandeza e que tinha um direito natural a terras
"desocupadas" ou “sub-utilizadas" devido a sua industriosidade superior — permanecia a
mesma. Os americanos viam a si mesmos como novos homens, mais uma vez fazendo
um novo mundo, um mundo que inevitavelmente substituiria o índio como um
anacronismo cuja era havia passado (ibid, 1953: 135). Se os índios eram incapazes de
participar nesse grande empreendimento, então era preciso removê-los de seu caminho.
As visões americanas da selvageria, desta maneira, mudaram ao mesmo tempo em que
permaneciam essencialmente as mesmas. Se, antes, o índio era visto como um ser que
devia ser absorvido na vida cristã ou eliminado, agora era visto como pertencendo a uma
ordem de realidade de que estava desaparecendo rápida e inevitavelmente e que não
desempenharia nenhum papel ativo no destino americano (ibid: 4; 66-67). Em ambos os
casos, entendia-se que o progresso dos brancos excluiria inevitável e naturalmente um
futuro indígena independente.
Nessa nova formulação do selvagem, um abismo natural era visto como separando
as experiências de humanidade branca e vermelha. Enquanto os puritanos nunca
duvidaram da humanidade básica dos índios, os filósofos da América dos séculos XVIII e
XIX foram progressivamente construindo a selvageria como um estado de ser inevitavel
e naturalmente oposto à civilização. No interior dessa dicotomia, os selvagens eram
vistos como dotados de certas virtudes — resistência, bravura e fortitude, entre outras —
que poderiam "enobrecê-los". Infelizmente, as virtudes da civilização que os americanos
estavam dedicados a construir eram vistas como destrutivas das virtudes que faziam a
selvageria possível: "As dificuldades índios/brancos eram vistas […] como emergindo da
diferença entre duas concepções da boa vida, uma diferença tão grande que sempre
obrigaria à guerra até a morte":
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
65
A solução americana [ao problema indígena] fazia parte de uma idéia de
progresso – o progresso americano. Essa entednia as culturas como boas na medida que
essas permetiam o desenvolvimento completa da natureza moral, essencial e absoluta,
do Homem. O Homem realizava essa sua natureza progredindo historicamente e se
melhorando, avançando do simples ao complexo e da selvageria à civilização. O
progresso americano ao oeste seria visto, de fato, como uma reprodução desse
progresso histórico. O selvagem era entendido como alguém que não progrediu – e, de
fato, que não podia progredir – à civilização e que seria, então, necessariamente
destruido pelo civilizado, o bem maior subsumindo o bem menor... Se, no período
colonial, os americanos tentavam comprovar que o destino do selvagem e do civilizado
era único, esse esforço pereceu – como tinha que perecer – após de 1775. Depois da
Revolução, os americanos, tentando conhecer seu destino único, começaria a entender
esse destino em termos dos selvagens que supostamente não podiam compartilhar dele
(ibid, 1953: 48-49).
O lugar que o índio ocupava na ideologia americana, pois, foi sutilmente
modificado: inicialmente definido como um humano, capaz de alianças com Deus ou
com o Demônio, passou a ser visto cada vez mais como prisioneiro de sua natureza não-
desenvolvida. De modo a ter qualquer chance no futuro, ele tinha de abrir mão de sua
natureza e, sob a tutela dos brancos, tornar-se um com a civilização – um
empreendimento quase impossível. Na visão jeffersoniana do mundo, o índio
representava a desrazão: "Se ele escolhesse permanecer um índio, em face de todos os
esforços paternalistas contra isso, então ele se confessava um louco ou um tolo que se
recusava a entrar no mundo englobante da razão e da ordem. A criança pele-vermelha
tinha então de ser expulsa da paisagem da tranquilidade pastoral — ou ser enterrada sob
ela" (Drinnon, 1980: 102).
Henry Knox, o secretário da Guerra em 1789 (e portanto encarregado dos
assuntos indígenas no começo da república americana) acreditava que o cultivo de "um
amor pela propriedade exclusiva" poderia colocar o índio no caminho da civilização.
Como o presidente Andrew Jackson escreveu em 1817: "[A] existência e felicidade do
[índio] depende agora de uma mudança em seus costumes e hábitos" (apud Pearce, 1953:
70). Na falta da aceitação da tutela branca pelo índio, porém, a única solução restante
para o problema perene da recalcitrância cultural indígena seria remover as tribos para
além do alcance da civilização — índios que permanecessem no interior das terras dos
brancos estavam inevitavelmente condenados à eventual destruição.
O principal objetivo do governo federal durante a primeira metade do século XIX
tornou-se pois a remoção de todos os não-cidadãos pele-vermelha dos territórios
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
66
americanos a leste do Mississipi, uma política de segregação que consistia, nos assuntos
indígenas americanos, o extremo oposto da política anterior de assimilação cristã, mas
que pelo menos oferecia uma alternativa às guerras de extermínio. Como observa Francis
Paul Prucha, a partir do início do século XIX, essa dicotomia de segregação/assimilação
se tornaria uma característica definidora dos assuntos indígenas dos Estados Unidos.
A política indígena americana é, as vezes, pensada em termos de um moviemento
entre dois polos extremos. De um lado, há a idéia da assimilação dos índios e sua
absorbção pela a sociedade branca através das instituições aculturadoras da propriedade
privada, a economia agricultura (e não baseada na caça), educação formal em inglês e
cristianização. Do outro lado, tem a idéia da segregação...; os índios poderiam manter
sua autonomia política limitada, suas linguagens únicas e suas religiões e costumes,
mas só fora da sociedade branca, ou segregada em enclaves protegidas, ou
(preferencialmente) removidos para além da fronteira da colonização branca (Prucha,
1984abr: 64).
Como aponta Prucha, todavia, mesmo a remoção não era completamente
segregacionista. Em teoria, era planejada para dar aos índios "espaço para respirar",
removendo-os para além da fronteira oeste de modo que pudessem sobreviver ao contato
com os brancos e ajustar-se devagar à civilização. A segregação presumia que os índios
deviam ser removidos para suas próprias terras fora de contato com a sociedade branca.
Lá, sua alteridade devia ser gradualmente reduzida por meio das ações de missionários,
comerciantes e filantropos. Segundo essa visão, as unidades políticas nativas iriam,
eventualmente, desaparecer, mas os indivíduos indígenas que pudessem ser convencidos
a seguir o caminho do homem branco seriam absorvidos pela sociedade americana.
No interior do governo federal, o Office of Indian Affairs — também conhecido
como o Bureau of Indian Affairs ou o Indian Service — foi estabelecido em 1832 e se
tornou o principal órgão pelo qual o governo dos Estados Unidos administrava questões
indígenas (a política geral para os assuntos indígenas em si mesma sendo estabelecida
pelos comitês de Assuntos Indígenas da Câmara e do Senado. Embora o OIA fosse passar
pelas mãos de muitos políticos durante esse período, sua orientação geral permaneceu
relativamente consistente. Como observa James Gump:
A maioria dos comissários do Burô Indígena ganharam sua posição por razões
políticas e, portanto, não tinham nenhum conhecimento prévio dos índios. Todavia,
esses homens demonstravam princípios consistentes em seu trabalho: (1) como seres
humanos, os índios podiam ser eleveados de sua bárbarie e deveriam ser convencidos -
usando a força, se for necessário - a aceitrar as intenções benevolentes do governo a
civilizá-los; (2) para facilitar essa tal “civilização”, os índios devem ser concentrados
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
67
em reservas, tão longe quanto possíveç da maioria branca.... [P]ortanto, o Burô
Indígena abraço uma série de princípios que estava repleta de contradições. Os índios
deveriam ser forçados a aceitar um model branco de cultura, se liberando, dessa
maneira, de sua condição “barbárica”. Era bem provável que sua liberação só poderia
ser efeituada com sua subjugação completa, com a destruição da sociedade indígena em
nome de sua salvação (GUMP, 1994:56).
Figura 1.1: A remoão dos índios do sudeste para além do Rio Mississippi, 1820-1840. Nota a
concentração no "Território Indígena", o que seria o Estado de Oklahoma no século XX. Essa seria o novo
lar das assim chamadas “5 nações civilizadas” (IN: LAFEBER, 1989:96)
A força por trás de remoção e da segregação, porém, era a questão da posse da terra
e da extensão do controle federal (em oposição ao estadual) sobre os índios. Como o
presidente americano James Monroe observou em uma carta a Andrew Jackson em 1817,
"o estado caçador ou selvagem requer um território mais extenso para sustentar-se, e é
pois incompatível com o progresso e reivindições justas da vida civilizada, e precisa
ceder a ela" (Prucha, 1984abr: 65-66). Nessas palavras, mais uma vez, encontramos o
recurso retórico a forças extra-humanas indômitas como justificativa para a expropriação
das terras indígenas. Neste caso, o progresso inevitável da civilização demanda que a
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
68
vida indígena seja transformada de tal maneira que a necessidade nativa de terras seja
reduzida. Enquanto as políticas de redução dos tempos coloniais postulavam a absorção
dos índios na sociedade dos brancos por meio de sua cristianização e reassentamento em
enclaves étnicos circunstritos, a remoção procurava assentá-los além dos confins da
sociedade branca, do outro lado da fronteira occidental, onde, esperava-se, eles iriam
adaptar-se à civilização sob a tutela de professores brancos devidamente iluminados. Em
ambos os casos, porém, a terra devia ser liberada para o assentamento dos brancos e a
redução da alteridade indígena era, claramente, um objetivo secundário. O fato de que a
consolidação da jurisdição federal sobre a vida indígena e a liberação das terras para
colonização eram as características essenciais da remoção pode ser visto em uma carta
escrita pelo presidente Andrew Jackson em 1829:
Pode ter certeza que tenho começado uma política justa e human aos respeito dos
índios. Neste espírito, avisei a eles para deixar suas posses desse lado do rio Mississippi
e irem a uma terra onde é bem possível que serão sempre livres das influências
mercenárias dos brancos e longe dos autoridades locais: nessas circunstências, o
Governo Geral [Federal] pode excercer uma tutela sob seus interesses e, possívelmente,
perpetuar a raça (IN: PRUCHA, 1984abr: 72).
Com efeito, foram precisamente os grupos indígenas mais aculturados (no sentido
de puderem navigar com maior facilidade dentro dos códigos culturais entendidos como
brancos) que iriam sofrer o choque da política de remoção. A conversão indígena a
valores brancos não era suficiente para garantir o domínio nativo sobre suas demandas
territoriais, como os Creeks e Cherokees da Geórgia — cuja liderança era composta
principalmente de proprietários de terra e escravocratos, letrados e cristãos — logo iriam
descobrir. Mesmo os Cherokee — por civilizados que fossem — não foram permitidos a
continuar sob seu próprio governo em suas terras originais. Os supostamente
americanizados Cherokee provocavam respostas ansiosas de seus vizinhos, tipicamente
exemplificadas pelo então diretor do Office of Indian Affairs, Thomas L. McKenney:
"Eles procuram ser um Povo […] É de se lamentar que a idéia de soberania tenha se
enraizado tão profundamente nesse grupo". Como observa Priscilla Wald, essa ansiedade
nascia da ameaça que o nacionalismo cherokee colocava para a identidade americana: “os
Cherokee tornando-se como os Estados Unidos, mas não sendo dos Estados Unidos,
espelhando, mas não se cedando às reivindicações, dessa nação, atacavam os próprios
termos daquela identidade". (Drinnon, 1980: 85; Wald, 1993: 67).
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
69
Figura 1.2: Os grupos removidos em seus novos lares no Território Indígena por volta de 1850 (IN:
PRUCHA, 1984:96).
Como nos tempos coloniais, pois, o passo que teria permitido aos índios ser (pelo
menos condicionalmente) aceitos na sociedade branca era o abandono de qualquer
controle independente sobre seus destinos como povos. Só podia existir um único e
verdadeiro caminho em direção à "Cidade na Colina", e os selvagens indígenas que não
podiam seguir aquele caminho deviam ser removidos dele. Como coloca Pearce, "a
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
70
fortuna do índio após a Revolução foi aprender que ele não tinha direito de existir
independentemente…" (Pearce, 1953: 54).
A tese de Marshall
A tradição inglesa de lidar com os índios por meio de tratados continuou na
América do Norte depois da revolução: entre 1778 e 1888, mais de 600 tratados foram
assinados entre grupos indígenas e o governo dos Estados Unidos (Lytle e Deloria, 1983:
4-5).
8
Todavia, com o passar do tempo, a lógica original dos tratados — proteger os
interesses coloniais por meio de alianças — transformou-se. Depois da guerra de 1812, os
principais poderes europeus foram praticamente expulsos do continente norte-americano.
As nações e confederações indígenas que se haviam aliado à Grã-Bretanha depois da
revolução foram dizimadas.
9
Consequentemente, a razão original para fazer tratados
como os índios — segurança doméstica — perdera importância. Os tratados se tornaram
então um modo econômico de reduzir conflitos com povos nativos — e assim os gastos
militares — quando a colonização branca estendia-se sobre suas terras. O governador
George C. Gilmer da Geórgia capturou o novo papel do estabelecimento de tratados em
uma declaração de 1830 de que "tratados eram expedientes por meio dos quais pessoas
ignorantes, intratáveis e selvagens são induzidas, sem derramamento de sangue, a
entregar aquilo que povos civilizados tinham direito de possuir em virtude daquele
comando que o Criador deu aos homens em sua formação: crescei, multiplicai-vos, e
enchei a terra e submetei-a" (Prucha, 1984abr: 70).
O problema, então, era como liberar as terras indígenas que permaneciam ao leste
do Mississipi para o assentamento branco de uma maneira ordenada e sem recorrer a
guerras caras. A Segunda Guerra Seminole de 1835 demonstrara o que podia acontecer
quando o processo de estabelecimento de tratados se atrapalhava. Embora os Seminole
somassem menos de 5 mil, quase uma década de guerra não foi suficiente para colocá-los
de joelho. Depois de 7 anos de conflito e do dispêndio de quantidades significativas de
8
Apesar do Congresso Americano ter “oficialmente” acabado com os tratados indígenas em 1871.
9
Principalmente a Guerra de Tecumseh em 1811 e a Guerra da Confederação Pau Vermelho em 1813-14.
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
71
sangue e ouro, o exército dos Estados Unidos foi incapaz de realocar mais do que metade
do grupo no Território Indígena (o futuro estado de Oklahoma; Prucha, 1984abr: 82-84).
A política dos tratados via-se ainda mais complicada por conflitos entre as
jurisdições estaduais e federais. Os estados cobiçavam as terras indígenas enquanto que o
governo federal temia as despesas decorrentes das guerras indígenas geradas pela pressão
de colonos. Diante desse dilema, os americanos forjaram uma outra mutação legal da
"doutrina da descoberta". A partir de 1823, o juiz-mor [Chief Justice] federal John
Marshall deparou-se com uma série de casos referenes a conflitos fundiários entre a
nação cherokee e o Estado da Geórgia. As decisões a que Marshall chegou nesses casos
iriam definir a arena na qual a soberania indígena seria discutida nos próximos 175 anos.
Segundo Marshall, era verdade que as "nações indígenas sempre foram
consideradas comunidades polítics distintas e independentes, retendo seus direitos
naturais origianis, como os possuidores incontestáveis do solo, desde tempos imemoriais,
com a única exceção imposta pelo poder irresistível, que os excluía de intercurso com
qualquer outro potentado que não o primeiro descobridor da costa da região particular
reivindicada […]". Todavia, o Chief Justice continuava afirmando que "[…] um Estado
fraco, para poder garantir sua segurança, pode colocar-se sob a proteção de um mais
forte, sem abdicar do direito de se governar, e deixando de ser um estado" (apud Lytle e
Deloria, 1983: 17).
Era exatamente isso que Marshall propunha terem feito as nações indígenas: elas
tinham sido colocadas sob a proteção dos Estados Unidos e eram agora nações
dependentes domésticas, governadas pelo governo federal mas acima da lei de qualquer
grupo político estrangeiro ou menor (tais como a Grã-Bretanha ou o estado da Geórgia).
Os direitos indígenas à soberania não foram, nessa visão, extinguidos pela descoberta;
eles foram meramente restringidos pela autoridade mais alta do Estado-nação. Embora as
tribos não fossem mais consideradas como plenamente independentes, elas eram ainda
vistas como dotadas de algum grau de soberania, sendo entidades políticas e legais que
podiam administrar seus próprios assuntos internos e engajar-se em relações
significativas com o governo federal.
Como observa Vine Deloria Jr., a mutação de Marshall da doutrina da descoberta
não era inteiramente negativa do ponto de vista indígena: "A decisão de Marshall trocava
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
72
um direito inato de propriedade por um direito político reconhecido de quase-soberania
para as tribos". Os Cherokkes foram definidos como tutelados pelo governo federal;
retiveram, porém, um certo grau de espaço de manobra quanto às ameaças emandando
das elites locais encarnadas nos governos estaduais. "Uma boa parte da história
subsequente de conflitos entre os Estados Unidos e as tribos indígenas revolvia em torno
da questão da preservação do direito ao auto-governo e dos atributos da soberania
indígena, tal como sugerido na decisão de Marshall." (Lytle e Deloria, 1983: 30, 17). Ou,
como coloca Lyman Tyler, como a institucionalização da tese da nação dependente
doméstica, o governo federal dos Estados Unidos colocou-se como o defensor último dos
índios diante da aquisição ilegal de terras e propriedade por cidadãos não-indígenas
(Tyler, 1973: 11).
As primeiras três décadas de independência foram frágeis para o governo federal
americano, que tinha de resistir a diversos desafios estaduais a seu governo. Foi dentro
desse contexto que Marshall bloqueou o movimento do estado da Geórgia sobre o
território cherokee. Embora elas tenham se tornado a base jurídica dos assuntos indígenas
americanos, as decisões de Marshall foram tomadas principalmente para limitar a
extensão dos poderes estaduais, não para proteger os índios. A legislação resultante
fundava-se em uma contradição básica: de um lado, supunha-se serem as tribos nações
soberanas; de outro, situavam-se em sua relação com o governo federal "como o tutelado
para seu tutor". Tornou-se assim impossível prever o resultado de qualquer litígio,
legislação ou ação administrativa dados referentes a índios ou suas terras, pois não se
podia prever que conjunto de instrumentos interpretativos seria usado para caracterizar a
situação (Lytle e Deloria, 1983: 27-33).
Além disso, com a subordinação legal das tribos ao governo federal, porém, os
Estados Unidos podiam agora tratar de má-fé com os índios enquanto uma forma de
política institucionalizada. De 1815 em diante, tratados eram crescentemente negociados
porque constituíam a maneira mais econômica de tirar os índios de suas terras, não
porque eles reconheciam a soberania nativa (Churchill, 1993: 42-46). Sob o Indian Trade
and Intercourse Act de 1834, baseado em larga medida nas decisões de Marshall, definia-
se até mesmo "território indígena" ["Indian Country"] não cedido como território
conquistado, com os tratados sendo vistos como a maneira mais fácil de lidar com a
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
73
intransigência indígena. Frequentemente, esses tratados era imediatamente quebrados
logo depois de serem assinados, usualmente devido a ações de cidadãos privados, mas
muitas vezes ajudados e encorajados por políticas oficiais (Pearce, 1953: 54). Em outros
casos, depois de serem assinados os tratados, suas provisões eram alteradas à votade pelo
Congresso sem conhecimento ou aprovação indígena (Lytle e Deloria, 1983: 5).
A natureza farsesca dos tratados era visível para os críticos contemporâneos das
políticas administrativas indígenas. Em um artigo intitulado "The Indian System",
publicado na North American Review em 1864, Henry Whipple, um abolicionista
ardoroso, atacou os tratados nos seguintes termos:
Reconhecemos uma tribo vagamundo como uma nação independente e soberana.
Mandamos embaixadores para fazer um tratado com eles, como se fossem nossos
iguais, sabendo de antemão que cada provísio daquele tratado será estipulado por nós e
que o fazemos com um povo que não tem como nos forçar a observá-lo, que esse povo
deve viver dentro de nosso território mas não será sujeito a nossas leis, que eles não
tem seu próprio governo e ainda assim não receberá nosso governo; enfim, tratamos
como uma nação independente um povo que não vamos permitir execer um elemento
sequer do poder soberano que é a condição necessária da existência de uma nação
(apud Prucha, 1976: 64).
As palavras de Whipple apontam para um fato do qual muitas pessoas estavam
conscientes então: fazendo tratados com os grupos nativos como se eles fossem Estados-
nação, o congresso americano sabia que não estava agindo de boa-fé. Ele não via
realmente os povos nativos como nações soberanas, nem esperava que agissem como tal:
tratados, no início da república americana, constituíam simplesmente um modo
econômico de por as mãos nas terras indígenas.
A situação resultante deixou os nativos dependentes do governo federal para
proteção e reparação de agravos. Demasiado frequentemente, tropas federais seriam
usadas para manter os índios dentro do território indígena; elas não seriam usadas para
manter não-índios fora, porém (Tyler, 1973: 30). Além disso, como nota Ward Churchill,
qualquer movimentação dos nativos para proteger-se e policiar seu território poderia, sob
esta política, ser vista como justificativa para a guerra:
Dentro do raciocínio do Marshall, demasiadamente complexo e baseado em
premissas falsas, podia-se argumentar que as nações indígenas estavam agindo
ilegalmente quando essas tentaram resistir físicamente o "direito” dos EUA a
expropriar a propriedade indígena. Tal resistência podia ser entendido como “agressão”
contra os Estado Unidos. Nesse sentido, os EUA poderia declarar uma guerra “justa" –
e, então, legal – em qualquer momento em que a força das armas era necessária para o
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
74
país realizar suas ambições territoriais. Ipso facto, então, todos os esforços dos nativos
a se defenderem contra a subordinação e desapropriação sistemáticas poderiam ser
categorizados como "injustos" – e ilegais – pelos Estados Unidos (CHURCHILL, 1993:
45).
10
A Doutrina Marshall abriu assim caminho para a remoção em massa de povos
indígenas — primeiro para a área a oeste do Mississipi, depois para as reservas. Embora
essa prática teoricamente protegesse a "quase-soberania" indígena, tal proteção era, na
realidade, raramente posta em prática. Quando as reivindições fundiárias indígenas
entravam em conflito com as necessidades do capital americano, os nativos eram
empurrados de lado. Conforme os Estados Unidos cresciam em poder e em população em
relação às populações tribais remanescentes, a independência tribal tornou-se cada vez
mais uma noção do passado.
O desmembramento final do Território Indígena
O pensamento do início do século XIX sustentava que as terras a oeste do
Mississipi constituíam o "Grande Deserto Americano", e que eram inabitáveis para a
civilização branca. Por esta razão, a remoção das tribos remanescentes para lá era vista
como uma solução de longo prazo para o problema indígena. Conforme avançava o
século, porém, a região trans-Mississipi tornava-se cada vez mais valiosa para os Estados
Unidos. Segundo Francis Paul Prucha, "eventos dramáticos nos anos 1840 derrubaram as
premissas sobre as quais a política indígena americana fora baseada".
O programa formal de remoção seguiu a política (mais ou menos não planejada)
anterior de simplesmente remover os índios para o oeste e para longe do do avanço da
colonização branca. A linha seperando o território indiígena das terras dos barncos... foi
progressivamente empurrado para oeste, com os índios cedendo suas terras em troca de
anunidades e de terras novas e garantidas [para o oeste do Rio Mississippi]. Alugumas
pessoas achavam que as remoções dos anos 1830s foram o ponto cumulativo desse
processo e que os índios eram finalmente seguros atrás de uma linha que ia do Rio Red
para o Lago Superior.
Todavia, antes do final da década de '40, o conceito dessa linha foi
abruptamente apagado e, pouco após, a barreira em si foi físicamente rompida (Prucha,
1984abr: 108).
O evento que levou à destruição do "território indígena" como uma locação
geográfica interconectada e coesa foi a aquisição pelos Estados Unidos, em 1840, de
10
Veja-se Gump, The Dust Rose Like Smoke, e especialmente os capítulos 5 e 6 especially para uma
descrição fascinante desse processo nas interações entre os EUA e a nação Lakota.
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
75
terras significativas ao longo da costa oeste do continente (e de tudo que havia entre elas),
por meio de tratados com a Grã-Bretanha (o território do Oregon) e da guerra com o
México (Texas, os territórios do sudoeste e a California). Ouro foi descoberto na
California e revelou-se que o Oregon abrigava terras ricas para o cultivo, levando à
migração para essas áreas. Finalmente, os interesses marítimos americanos voltaram-se
para o comércio com a Ásia, tornando os portos da costa oeste — e as conexões
ferroviárias entre estes o leste metropolitano — desejáveis. Conforme o capital americano
e os colonos ocupavam a costa oeste, o território indígena via-se cada vez mais
entrecruzado por trilhas, fortes e ferrovias. (Lafeber, 1989: 91-97).
1849, o ano da corrida do ouro californiana, consiste em outro marco divisório na
história da Administração Indígena dos Estados Unidos: foi o ano em que o controle do
Bureau of Indian Affairs passou do Departamento da Guerra para o Departamento do
Interior, marcando simbolicamente a transição do índio do reino dos assuntos externos
para os assuntos domésticos (Chaput, 1972: 270).
11
Olhando para o futuro em 1856, o comissário do OIA George Manypenny anteviu
o dia em que os índios dos territórios ocidentais — tanto grupos autóctones quando os
povos orientais removidos para lá — seriam esmagados pela colonização branca:
Quando essa hora chega – e ela está em nosso futuro próximo; dentro de dez anos
se nosso país for abençoado com paz e prosperidade – onde será a habitação e qual o
destino das tribos indígenas, em declínio, das pradarias e de nossos novos Estados e
Territórios?
É certo que essas grandes mudanças físicas estão para vir. E tão certamente,
esses pobres silvícolos serão apagados da terra e sua poeira será pisado pelo pé da
civilização em rito de avanço, amenos que nossa grande nação determinar,
generosamente, que algum provísio necessário será feito e passos apropriados tomados
para designar terras ou reservas, em lugares apropriados, para as casas permanentes dos
índios e os meios para os assentarem nessas áreas (PRUCHA, 1984abr: 109-110).
No final das contas, os Estados Unidos não seria abençoados com uma década de
"paz e prosperidade". Todavia, depois da Guerra Civil (1861-1865) e da construção da
primeira ferrovia transcontinental, a pressão dos brancos contra as tribos ocidentais
11
Em seu artigo “American Anthropology as Foreign Policy”, John Borneman situate essa mudança 50
anos mais tarde, após da da guerra entre Espanha e os EUA de 1898 1898 (BORNEMAN, 1995: 666). Seria
mais proveitoso pensar nessa mudança como algo que ocorreu graduativamente durante a segunda metade
do século XIX, com o massacre de Joelho Ferido, em 1890, servindo como uma marca e a consolidação das
fronteiras americanas, na década de 1840, como outra.
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
76
aumentou, e varições ao tema de Mannypenny estavam nos lábios de todos os envolvidos
com os assuntos indígenas em Washington DC. Mais uma vez, as maquinações de um
poder sobrehumano foram utilizadas para justificar a redução das terras indígenas e a
remoação dos nativos para áreas de menor valor para a colonização. O território indígena
seria desmembrado em várias reservas, onde os grupos nativos deveriam ser segregados
em nome de sua própria proteção. Essas reservas, por sua vez, deveriam ser
preferencialmente localizadas em Territórios Indígenas, um dos quais seria situado ao
longo do alto Missouri e o outro no coração das terras ocupadas pelas tribos removidas
nos anos 1830, onde é o hoje o Oklahoma (Priest, 1942: 5-9; Prucha, 1976: 103-107).
Após a Guerra Civil Americana, pois, dois séculos e meio de política indígena
anglo-americana alcançaram sua fruição com a redução das últimas nações indígenas
independentes da América do Norte em reservas militarmente guardadas e governadas
pelo OIA. A breve síntese apresentada acima nos permite focalizar as características
salientes dos assuntos indígenas que permaneceriam bem depois do fechamento da
fronteira americana.
Em primeiro lugar, uma compreesão dicotômica da civilização e selvageria foi
estabelecida que situava os índios como pertencendo ao segundo pólo e, portanto, a um
conjunto de povos que iria inevitavelmente desaparecer devido à operação do destino, da
natureza, da história ou de Deus. Nessa visão, a alteridade indígena era compreendida
como algo que iria desaparecer devido à inescapável operação de algum desígnio
suprahumano, predestinado, que estava ligado à expansão inevitável do domínio e
prosperidade dos brancos. Nem toda a boa vontade do mundo, sustentava-se, poderia
mudar este fato das relações índios/brancos. A eliminação dos índios não viria, pois, por
meio da intervenção ativa dos escolhidos de Deus, mas da operação do próprio Destino
Manifesto.
No período colonial, o impulso para a total conversão ou extermínio dos
indígenas americanos era constrangido por um contexto em que as unidades políticas
indígenas eram aliados necessários em conflitos pela hegemonia política européia na
América do Norte. Isso estabeleceu o precedente de que as unidades políticas indígenas
eram essencialmente nações, e deviam ser tratadas como tal. Os tratados tornaram-se,
assim, o instrumento preferido dos Assuntos Indígenas.
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
77
Depois da revolução e da consolidação da hegemonia americana no continente, os
índios tornaram-se menos desejáveis como aliados, mas os tratados ainda eram
reconhecidos como instrumentos privilegiados para conduzir com expediência as
remoções necessárias para abrir caminho para a colonização branca sem criar as
demandas excessivas sobre o tesouro nacional tipicamente implicadas pelas guerras
indígenas.
Figura 2: A redução das terras indígenas nos EUA, 1810-1959.
As áreas em branco eram ocupados pelos EUA antes da década referida, as em preto eram
as terras ocupadas durante a década e as em cinza continuavam em mãos indígenas. Nota que
essa representação não inclue as reservas, portanto, o Território Indígena, em Oklahoma,
aparece em branco quando era, de fato, uma das concentrações mais densas de índios na
América do Norte.
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
78
Como Peter Nabokov observa apropriadamente, "embora o drama da guerra
índios/brancos tenha sempre capturado a imaginação popular, os nativos perderam muito
mais de sua terra e independência por meio do processo sem derramamento de sangue de
assinar tratados do que o fizeram em batalhas" (Nabokov, 1978: 117). Uma vez tirados
do caminho do progresso americano, sentia-se que os povos indígenas iriam
simplesmente, um dia, desaparecer de sua própria vontade, devido a sua incapacidade
natural de existir em conjunção com o homem civilizado.
Como chama a atenção Prucha, o impulso geral dessa política não era nem a
segregação nem a aniquilação direta, mas a eliminação das unidades políticas indígenas e
a eventual absorção dos indivíduos no corpo da nação por meio da assimilação. Uma vez
reduzidos às reservas, os índios eram induzidos a se tornarem pequenos fazendeiros livres
[yeomen farmers] e artesãos, aprendendo a língua, costumes e religião dos brancos, e
tornando-se eventualmente cidadãos livres e auto-suficientes da república (Prucha,
1984abr: 110).
Durante a primeira metade do século XIX, era também reafirmado que a unidade
política branca que iria tratar com os índios em nome da civilização seria o governo
central – e não os governos do estaduais, territoriais ou munipais controlados pelas elites
locais. Isso, por sua vez, reforçava o precedente de que os índios eram, de fato, povos
soberanos. As decisões de Marshall no início do séc. XIX eliminaram algo desta
soberania, redefinindo as unidades políticas nativas como nações dependentes
domésticas. Todavia, enquanto desprovia os grupos nativos de seu direito de tratar com
poderes estrangeiros, isso também estabelecia uma sólida base legal para sua existência
continuada como entidades sociopolíticas acima de qualquer instância do poder político
americano outras que o governo federal. Essa compreensão dos direitos e poderes tribais
iria ser de fundamental importância durante as tentativas da administração Collier de
reformar os Assuntos Indígenas nos anos 1930.
Ironicamente, as mesmas visões religiosas que sustentavam o senso nacional de
Destino Manifesto militavam contra o simples genocídio como uma solução oficial para o
Problema Indígena da nação. Por simples genocídio, quero referir-me à eliminação física
direta e planejada de um grupo étnico. Como Ward Churchill, seguindo Raphael Lemkin,
aponta apropriadamente, as políticas indígenas dos Estados Unidos podem facilmente ser
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
79
classificadas de “genocidas” se usamos uma definição estrita do conceito como "a recusa
do direito à existência de grupos humanos inteiros" (Churchill, 1997: 431-436). Parece-
me inegável que o objetivo das políticas para os assuntos indígenas durante o período
discutido acima era fazer desaparecerem os índios como povos reconhecíveis e, neste
sentido, essas políticas podem ser classificadas como genocidas. Todavia, embora
massacres, escravização, maus-tratos, caça de escalpos, racismo e a sanguinolência
pioneira em geral constituíssem parte significativa (talvez a parte principal) das
interações diárias na zona de contato brancos/índios na América do Norte de 1600 a
1879, tentativas diretas, planejadas centralmente, para eliminar fisicamente grupos
nativos inteiros — tais como o ataque dos puritanos aos Pequots em 1636 — não podiam
ser mantidas como política oficial a longo prazo.
Se é verdade que as políticas indígenas durante o período em questão podem ser
caracterizadas como alternando-se entre poticas de segregação e de assimilação, subjaz
a essa uma dicotomia ainda mais profunda entre o extermínio e a absorção dos índios.
Tanto a segregação quanto a assimilação presumiam que, em algum momento no futuro,
os índios deixariam de ser índios e ser tornariam homens brancos. Atividades de
assimilação buscavam apressar esse dia, enquanto a segregação buscava preservar os
índios para sua futura absorção, removendo-os para além da possibilidade de confronto
ativo e violento com colonos brancos. O reconhecimento puritano dos índios como
homens dotados de alma continha a possibilidade de sua conversão e reforma. A filosofia
iluminista secularizou esta crença. A conversão dos índios permaneceu pois um meio
chave pelo qual os Estados Unidos podiam referenciar a validade de sua crença em si
mesmo como a mais perfeita comunidade social. Talvez seja, portanto, mais correto ver a
política indígena como formada de longos períodos de tentativas de absorção, pontuada
por períodos relativamente breves de violência intensa nos quais o Estado colonizador
estabelecia os limites do que os índios não podiam fazer.
O processo que buscou alcançar "a solução final para o problema indígena", pois,
trabalhou no sentido da destruição do poder e alteridade dos índios mais do que da
eliminação física dos próprios indíos. A soberania tribal foi progressivamente
enfraquecida pela expansão americana na medida em que o coeso território indígena dos
anos 1830 deu lugar ao sistema de reservas dos anos 1850 e 1860. Primeiro as tribos
Cidadãos e Selvagens Capítulo I
80
foram postas sob a "proteção" do governo americano; depois elas foram removidas para o
"território indígena" a oeste do Mississipi. O território indígena em si mesmo foi então
desmantelado em reservas fragmentadas e os índios restritos a elas sob a supervisão do
exército americano (Tyler, 1973: 7). No fim da década de 1870, parecia que mesmo estes
últimos fragmentos de terras nativas estavam destinados a ser engolidos no fechamento
da fronteira. Nos anos 1880, porém, uma improvável aliança de políticos republicanos,
reformadores cristãos e etnólogos iria conduzir uma cruzada por uma profunda e séria
reforma dos assuntos indígenas. Seus esforços garantiriam algum controle nativo sobre a
terra ao mesmo tempo que sabotavam as estruturas sociopolíticas e culturais indígenas.
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
81
Capítulo 2
Loteamento e o nascimento da etnologia oficial
The more [Indians] we kill this year the less will have to be killed next year, for the more I see of
these Indians the more convinced I am that they all have to be killed or maintained as a species of
pauper.
-General William Tecumseh Sherman
1
[E]thnology aims to define in clear terms the influence which the geographical and other
environment exercises on the individual, the social group and the race; and, conversely, how
much in each remains unaltered by the external forces, and what elements are left, defiant of
surroundings and wholly personal, purely human. Thus, rising to wider and wider circles of
observation and generalization, it will be able at last to offer a conclusive and exhaustive
connotation of what man is – a necessary preliminary, mark you, to that other question, so often
and ignorantly answered in the past, as to what he should be…
Applied anthropology has for its aims to bring to bear on the improvement of the species,
regarded on the one hand as groups and on the other as individuals, the results obtained by
ethnography, ethnology and psychology.
Such an improvement is broadly referred to as an increased or higher civilization; and it is the
avowed aim of applied anthropology accurately to ascertain what are the criteria of civilization,
what individual or social elements have in the past contributed the most to it, how these can be
continued and strengthened, and what new forces, if any, may be called in to hasten the
progress.
Daniel G. Brinton, “The Aims of Anthropology”, Science Magazine, August 30
th
,
1895.
O Dawes Act de 1887
É uma unanimidade virtual entre estudiosos dos Assuntos Indígenas de que o
General Allotment Act [Decreto Geral de Loteamento] de 1887 (também conhecido como
o Dawes Act) marcou um divisor de águas na política para o setor (cf. Prucha, 1976,
1984abr; Loring, 1942; Lytle and Deloria 1975; Hoxie, 1984; Churchill, 1993; Spicer,
1969; Mcnickle, 1949; Cohen, 1940, entre muitos outros). Os autores diferem quanto aos
efeitos do decreto, as intenções de seus autores, o grau de apoio e rejeição entre os índios,
sobre se ele era ou não necessário, ou se teve um impacto em geral positivo, negativo ou
neutro sobre a vida indígena. Todos concordam, entretanto, de que o Dawes Act foi um
evento de fundamental importância na história dos Assuntos Indígenas.
1
APUD GRISWOLD, Wesley S. A Work of Giants: Building the First Transcontinental Railroad. NYC:
McGraw-Hill, 1962. p.216.
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
82
No nível mais básico, o Allotment Act, tal como aprovado pelo Congresso, tentava
livrar-se das reservas e garantir as reivindições fundiárias indígenas loteando terras tribais
coletivas em parcelas convertidas em propriedade privada de membros individuais do
grupo. As terras remanesccntes podia então ser vendidas para colonos brancos e os
rendimentos dessas vendas poderiam ser usados para treinar os índios na agricultura,
criação de animais, e outras formas de trabalho civilizado as quais, teoricamente, lhes
permitiriam sobreviver na economia de mercado rural dos Estados Unidos. O decreto
trazia as seguintes estipulações:
1) Autorizava o presidente dos Estados Unidos a ordenar a medição e loteamento das
terras de qualquer reserva para seus residentes índios. A quantidade loteada devia
seguir a antiga tradição anglo-saxã de 160 acres para cada chefe de família, 80
acres para cada adulto solteiro e criança orfã, e 40 acres para outras pessoas
solteiras de menos de 18 anos nascidas antes do loteamento. Onde a terra era
adequada para pasto, mas não para o plantio, os loteamentos deveriam ser
dobrados.
2) Os beneficiários deveriam selecionar terras dentre aquelas que haviam sido
medidas na reserva. Se não fizessem sua seleção dentro de quatro anos, o
secretário do Interior estava autorizado a instruir o agente tribal (branco, nomeado
pelo OIA) a fazê-lo por ele. Permitia-se àqueles índios que não eram residentes
das reservas a selecionar terras de domínio público em qualquer lugar para seu
lote.
3) Todos os loteamentos deveriam ser aprovados pelo secretário do Interior. Com a
aprovação, o governo federal iria manter as terras sob controle do Estado [in trust]
por 25 anos. Quando expirado esse período, os títulos das terras em questão
deviam ser convertidas em títulos fundiários [fee simple] — ou "normais". Em
outras palavras, por duas décadas e meia a terra não poderia ser taxada ou
vendida, e quaisquer disposições temporárias delas (como o aluguel) seriam
sujeitas à aprovação do OIA. Depois desse perîodo, todavia, seria transformada
em uma posse individual, normal, propriedade privada do beneficiário, sujeita à
taxação, vendas, confisco por dívidas e etc.
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
83
4) Depois que as terras fossem loteadas, ou mesmo antes segundo a vontade do
presidente, o secretário do Interior poderia negociar com a tribo para comprar as
terras restantes, esta compra devendo ser ratificada pelo Congresso antes de
tornar-se efetiva. O dinheiro obtido com a venda deveria ser mantido no tesouro
federal em nomes da tribos a quem a reserva pertencia, e seria sujeito à
apropriação pelo Congresso para a educação e civilização dos índios em questão.
5) Finalmente, o Dawes Act dispunha sobre a cidadania indígena. Índios
beneficiários (contanto que houvesse adotado a vida do homem branco)
tornariam-se cidadãos dos Estados Unidos. Isso não prejudicaria seu dito direito à
propriedade tribal. Todavia, quando o loteamento estivesse completo, o período
de trust terminado e patentes em fee simple concedidas, os índios assim
contemplados se tornariam plenamente submetidos à lei nacional e estadual — e
não tribal. (Prucha, 1976: 252-255).
Como apontam tanto Frederick Hoxie quando Francis Paul Prucha, o decreto em
si mesmo foi menos importante, em vários sentidos, que o complexo de atitudes e
políticas que se consolidaram em torno dele em nome da reforma do OIA e da civilização
do índio americano (Hoxie, 1984: X; Prucha, 1984abr: 224-225). Prucha nos lembra tanto
da centralidade da lei para os Assuntos Indígenas fim do séc. XIX/começo do séc. XX
quanto de sua contextualização no interior do impulso mais amplo para transformar os
índios em yeomen farmers e cidadãos cristãos da república americana (Prucha, 1984abr:
224). Hoxie afirma, corretamente, que a lei constituiu o resultado cumulativo de uma
série de batalhas políticas no campo dos Assuntos Indígenas, e não o começo de tais
batalhas. Ele também sublinha sua natureza flexível:
The law, which was approved in February 1887, established a pathway for the
legal, economic, and social integration of Native Americans into the United States. It was
the first piece of legislation intended for the general regulation of Indian affairs to be
passed in half a century, and it remained the keystone of federal action until 1934, when
[John Collier’s] Indian Reorganization Act replaced it.
Because supporters of the Dawes’ Act hailed it as the “Indians’ Magna Carta”,
historians have hailed its passage as an event that produced drastic shifts in policy. This
was not the case. Congress passed the allotment law toward the end of a decade of reform
activity. Consequently, its provisions embodied a number of ideas and expectations that
had already gained acceptance and become part of government action. In addition, the
new severalty statute was a remarkably plastic document; it required no immediate action
and gave administrators considerable discretionary power. The law set goals and ignored
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
84
many of the problems of implementation. It is properly viewed as a statement of its
sponsors’ common assumptions about the Indians’ place in American society rather than
as a technical prescription for immediate change (HOXIE, 1984: 70-71).
O Dawes Act servia a diversos interesses contraditórios, e os debates que levaram
à sua formulação e eventual aprovação os realçam. Para muitos reformadores
republicanos e protestantes, tratava-se de uma tentativa de garantir aos índios algum tipo
de futuro na república em suas próprias terras. Para outros de seus defensores, era
simplesmente um meio de liberar as vastas porções de terra restantes em mãos indígenas
para a colonização pública. Entre estes últimos, estavam as companhias ferroviárias.
Como mencionado no capítulo I acima, o boom fundiário pós-Guerra Civil havia
produzido pressões intoleráveis sobre as terras indígenas, especialmente pelos direitos de
passagem das estradas de ferro. A milhagem ferroviário total nos Estados Unidos saltou
de 31 mil milhas em 1860 para 259 mil milhas em 1900. Vastas faixas de terra (direitos
de passagem) foram doadas de cada lado das ferrovias pelo Congresso, em um esforço
para subsidiar essa construção. Em 1872, os Estados Unidos haviam dado aos
construtores privados de ferrovias algo em torno de 150 milhões de acres de terras
públicas — uma área equivalente ao tamanho da Nova Inglaterra mais Nova Iorque e
parte da Pensilvânia —, boa parte concentrada do recém-colonizado Oeste. Dada essa
generosidade pública, as companias de estrada de ferro estavam entre os interesses mais
significativos agitando pela abertura das reservas indígenas para esquemas de
desenvolvimento, já que muitas reservas estendiam-se diretamente sobre direitos-de-
passagem planejados (Lafeber, 1989: 149; Carlson, 1981).
Em 1871, o Congresso deu o primeiro passo no sentido da disposição final das
terras nativas restantes declarando que não mais se lidaria com as populações nativas por
meio de tratados. O congresso reivindicou para si o poder de abrogar unilateralmente
tratados indígenas vigentes. Em outras palavras, então, os tratados, que tinha servido com
arcabouço legal para a política indígena dos Estados Unidos desde antes da Revolução,
deveriam ser postos de lado em nome do expediente desenvolvimento do Oeste. Mas o
que tomaria o lugar do tratado? Se as terras indígenas restantes deviam ser abertas para
colonos brancos e ferrovias, o que aconteceria com seus residentes nativos? Já não existia
uma fronteira para além da qual pudessem ser removidos, ou quaisquer porções de terra
"baldia” onde pudessem ser concentrados longe do contato com colonos brancos.
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
85
Conforme o boom pós-Guerra Civil continuava, tornava-se óbvio que os indígenas logo
estariam diante de um futuro sem terra a não ser que passos fossem imediatametne dados
para garantir a eles algum tipo de base territorial. O prospecto de várias centenas de
milhares de índios sem terra, vagando pelo Oeste americano, era assustador para muitos
políticos brancos, não porque isso resultaria em sofrimento para os índios, mas porque
facilmente poderia levar a constantes pequenos furtos de propriedade branco e conflitos
com colonos que poderiam eventualmente criar uma guerrilha de baixa intensidade
disseminada por toda a região trans-Mississipi. Foi nesse contexto que o loteamento das
terras indígenas remanescentes foi originalmente proposto como uma solução para o
problema indígena americano.
O senador Henry Dawes era o principal paladino do loteamento no Congresso.
Em uma carta de 19 de setembro de 1882 ao então secretário do Interior, Henry Teller,
Dawes expressou seus temores sobre onde poderiam levar as pressões fundiárias das
companias ferroviárias. Na carta, Dawes observava que os debates na sessão anterior do
Congresso lhe haviam convencido de que uma nova fase da questão indígena estava em
curso. Segundo Dawes, em 1881, a "civilização" tinha caído em cima das posses
indígenas "com uma força jamais igualada". O senador via a intenção do Congresso de
passar as estradas de ferro pelos territórios indígenas a despeito dos direitos estabelecidos
nos tratados como o principal problema posto para os índios. Ele temia que este estado de
coisas colocasse todas as terras indígenas "a partir daqui nas mãos da maioria do
Congresso", o qual, a partir da abolição dos tratados em 1871, poderia votar para a
alienar a propriedade indígena quando bem entendesse.
Por causa disso, Dawes acreditava que "reserva[s] enquanto tal" (isto é, como
refúgios para índios em larga medida isolados do contato com brancos) iriam "dissolver-
se como uma bola de neve sob o sol". Ele notava que as reservas Sioux e Omaha já
estavam sendo divididas e prontas para a venda: "um espírito incontrolável está solto na
terra para apropriar-se para o que se chamam 'as demandas da civilização' de todo pé de
terra desejável não ocupado pelos índios. Não se pode resisti-lo… Antes que você
[Teller] saia do departamento do Interior, você terá uns bons 200 mil índios nas mão sem
terras indígenas adequadas para instalá-los […] O que podemos fazer com eles?".
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
86
Dawes olhava além da questão fundiária para um problema mais pertinente: a
assimilação dos indígenas.. Se o loteamento poderia garantir pelo menos alguma terra
para os índios, "ele não resolverá a presente dificuldade prática" que era incorporar índios
que não "podem ler ou escrever inglês, que não são capazes ou estão dispostos a trabalhar
no mundo dos brancos, que não conhecem ou não se importam com suas leis", no país
enquanto cidadãos. Dawes seguia remoendo a questão de como os índios podiam ser
transformados em cidadãos americanos. Apelava para Teller ajudá-lo a encontrar uma
solução para este problema: "não escrevo isso porque tenho um plano próprio, mas
porque não tenho um, e ao mesmo tempo vejo uma combinação de forças irresistíveis
empurrando os índios para cima de nós bem mais rapidamente do que estaremos
preparados para lidar com eles. Alimentá-los nas reservas já é bem ruim […] Os efeitos
sobre o todo de todos os processos ordinários de absorção são lentos e quase
imperceptíveis. Eles se mostrarão tão impotentes para resolver o problema quando a
colonização o foi para exterminar a escravidão (Henry Dawes Papers, LoC, Bx 26).
Na carte de Dawes podemos ver vários dos elementos que condicionaram o
pensamento reformista sobre a questão indígena dos anos 1870 e 1880. Em primeiro
lugar, a lembrança da recentemente concluída luta contra a escravidão, e a clara conexão
da questão indígena àquela da Abolição. Como aponta Hoxie, o impulso do Congresso
para a reforma indígena liderado por Dawes "levantava outra vez a possibilidade de o
governo 'libertar' uma minoria sitiada" da tirania, uma questão que tinha muito apelo
popular no estado de Massachusetts de Dawes, o centro histórico do puritanismo e um
canteiro de sentimentos abolicionistas e de reforma. De fato, não seria muito dizer, como
faz Hoxie, que o apelo popular da reforma indígena provavelmente salvou a carreira de
Dawes como funcionário eleito (Hoxie, 1984: 30-32; Kerber, 1978).
2
2
Robert Mardok assinala que os índios eram vistos por muitos dos reformadores como vitímas infelizes do
contato com os brancos, juntamente com os negros. Lucretia Mott, Lydia Maria Child, William Lloyd
Garrison, todos, em um momento ou outor, fizeram conexões diretas entre as injustiças da escravidão e
aquelas da fronteira. Particularmente em Boston e na Filadélfia, essas duas correntes se misturavam.
Lincoln garantia aos reformadores que ele iria lidar com o problema dos índios depois da Guerra Civil e em
sua mensagem ao Congresso, em 10 de dezembro de 1862 ele solicitou que este começasse a pensar na
reforma da administração indígena. Lincoln repetiu essa mensagem outra vez em 1863, embora o
Congresso tenha permanecido sem fazer nada. Mardok vê essa política embriônica que advogava o
progresso material, espiritual e intelectual dos índios como a semente do que viria nas décadas de 1870 e
1880. Durante aquele período, ele afirma que um humanitarismo cristão generalizado voltou-se da
escravidão para a reforma indígena. Mardok observa que muuitos dos artigos originais clamando por paz e
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
87
Ao relembrar a seu companheiro republicano Teller da história do movimento
abolicionista, Dawes tinha um outro propósito também: assinalar que a passividade diante
do problema das terras indígenas não era uma solução viável. Tinha-se suposto, como
Dawes recordava ao secretário, que a colonização do Oeste iria eventualmente resolver o
debate da escravidão por meio do "sufocamento" do sul escravocrata. Essa política
abolicionista tinha, é claro, levado a uma série de crises e compromissos políticos que
eventualmente levaram à guerra civil (Lafeber, 1989: 78-79). Uma passividade similar,
advertia Dawes, que deixasse a questão indígena apenas aos desígnios maiores de Deus,
do destino ou do mercado, poderia resultar em desastre.
A admissão de Dawes é especialmente interessante se lembramos as noções
puritanas do destino ordenado divianmente que discutimos no capítulo I. Eis aqui o
representante senatorial do coração da terra puritana — a velha colônia da baía de
Massachusetts — declarando que o funcionamente natural da realidade maior,
suprahumana, não levaria a uma solução aceitável para o problema indígena: Deus, em
outras palavras, teria de ser ajudado pelo homem para que os índios desaparecessem de
maneira e em um prazo aceitáveis, sendo transformado em cidadãos americanos em lugar
de exterminados. Robert Mardok descreve a mentalidade de seus mais ardorosos
defensores bostonianos como uma secularização da velha noção evangélica de salvação:
"Escorados por princípios cristãos, dirigiam sua campanha especificamente à salvação de
uma raça da extinção terrena, mais que à salvação de almas". A civilização do índio iria
validar o destino manifesto americano:
To the reformers, it was a question of whether the people of the United States
would be saved or damned together. The nation had already taken an important step in
redeeming itself by eliminating the sin of Negro slavery. The eradication of the sins
against the Indians must come next, and the brotherhood of the human race must be made
a reality. (Mardok, 1971: 2-3)
Prucha também equaciona o impulso evangélico para o império secular com o
impulso secular americano para o império material. Segundo sua história do movimento
de reforma indígena dos anos 1870 e 1880, o período subsequente à Guerra Civil assistiu
a um crescente desejo popular pela unidade naiconal e uma demanda abrangente por
progresso com/entre os índios aparrecem em jornais abolicionistas como o The National Anti-Slavery
Standard, de Child (Mardok, 1971:8-10).
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
88
realizações seculares que se acordassem com a moralidade evangélica: "A coincidência
de uma crise final nos Assuntos Indígenas, desencadeada pela pressão esmagadora da
civilização branca em agressiva expansão sobre os índios e suas reservas, e o impulso
religioso intensificado por uma sociedade americana unificada levou ao novo programa
de reforma indígena" (Prucha, 1976: 151-152).
A carta de Dawes deixa claro qual teria de ser a natureza dos trabalhos levando à
salvação indígena (e assim americana), e a que as prováveis consequências de sua
ausência iria levar. O perigo da passividade repousava no fato de que "forças
irresistíveis" estavam " forças irresistíveis empurrando os índios para cima de nós bem
mais rapidamente do que estaremos preparados para lidar com eles". A terra estava sendo
tomadas pelas ferrovias com o apoio do Congresso e a despeito dos tratados. Protestos
eram inúteis, pois os índios tinham poucos recursos contra as maquinações concertadas
do poder congressional. Se as coisas continuassem dessa maneira, logo iriam existir "200
mil índios nas mãos sem terras indígenas adequadas para instalá-los". Sem terra, esses
índios se tornariam totalmente dependentes da generosidade estatal ou, pior, recorreriam
a pilhagem de comunidades brancas para seu sustento. Dawes adveritu que se o custo de
fornecer rações para índios confinados em reservas era já alto, sustentar centenas de
milhares de índios sem terra "empurrados" pela civilização e vagando à vontade no
interior das fronteiras da nação seria com certeza ainda mais caro.
Dawes acreditava que a solução última para este dilema era a fixação dos índios
em parcelas de terra federalmente garantidas, seguida de sua civilização e eventual
absorção na nação como cidadãos produtivos. Nesse aspecto, estava reproduzindo
ideologias relativas à redução da alteridade indígena que, como vimos no capítulo I
acima, eram mais antigas que os próprios Estados Unidos. O loteamento era a redução
reescrita levando em consideração o fechamento da fronteira ocidental. Os índios não
podiam mais ser removidos e assim, consequentemente, mais atenção tinha de ser dada à
sua assimilação. A força por trás do loteamento continuava pois a ser um desejo de
passar as terras indígenas para o controle branco sem seja provocar os índios à guerra,
seja deixá-los como vagabundos e mendigos sem terra no interior do Estado americano.
Os antecedentes para essa velha/nova doutrina podem ser encontrados na "Política de
Paz" do fim dos anos 1860 e 1870.
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
89
A partir da Guerra Civil, e de forma mais intensa depois de seu final em 1865,
uma nova série de conflitos armados entre os Estados Unidos e vários grupos indígenas
ao longo da fronteira começaram a tomar forma. Em 1867, o Congresso criou a Indian
Peace Comission para dar um fim a esta guerra renovada. O relatório de 1868 da
comissão reiterava as noções americanas de destino manifesto, afirmando que "a
civilização não pode ter seu progresso paralisado por um punhado de selvagens". A
comissão também afirmava que a solução para o problema indígena não podia ser
alcançada por injustiça e violência, e advertia para o fato de que transações desonestas
com os índios tinha, de fato, criado as condições para a corrente onda de guerras. A
solução do problema indígena, segundo seus membros, era restringir os índios a reservas
protegidas — pela força, se necessário — e, isso feito, civilizá-los. Era preciso, em
particular, ensinar-lhes a língua inglesa: "Por meio da semelhança de linguagem produz-
se a semelhança de sentimento e pensamento. Costumes e hábitos são moldados e
assimilados da mesma maneira, e assim, ao longo do tempo, as diferenças que trazem
problemas serão gradualmente obliteradas". O objetivo geral desse processo era claro: "o
objeto de nosso maior atenção deve ser a quebra dos preconceitos tribais entre os índios;
borrar as linhas divisórias que os distinguem em diferentes nações, e fundi-los em uma
massa homogênea. Uniformidade de língua fará isso — nada mais o fará." (“Report of
the Indian Peace Commissioners,” House Executive Document #97, 40 Congress, second
session, serial 1337, 1868: 7-9, 16-18). Os índios, então, deviam perder seus governos
tribais e sua distintividade sociocultural como um primeiro passo para sua assimilação no
corpo político da nação americana.
As conclusões da comissão foram ampliadas um ano depois pelo novo Board of
Indian Comissioners, uma organização independente criada pelo presidente Grant para
aconselhar o governo federal em Assuntos Indígenas. O Board era composto de "não
mais de dez pessoas" selecionadas pelo presidente devido a sua "inteligência e filantropia,
para servir sem compensação pecuniária" no exercício de "controle conjunto com o
secretário do Interior" sobre a administração indígena e, mais particularmente, o
desembolso das apropriações para as tribos (Prucha 1984abr: 158). O primeiro Board foi
formado pelo que Prucha chamou "cavalheiros cristãos que haviam sido tomados pelo
segundo despertar evangélico [second evangelical awakening]” (PRUCHA, 1984abr:
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
90
159). Os relatórios anuais do Board reiteravam noções de destino manifesto, ecoando as
recomendações assimilacionistas da Peace Comission, ao mesmo tempo que situavam a
feitura de tratados como um dos principais motores que tinham levado ao aumento da
guerra na fronteira. Como reportou o segundo presidente do Board, Felix Brunot:
The United States first creates the fiction that a few thousand savages stand in the
position of equality in capacity, power, and right of negotiation with a civilized nation.
They next proceed to impress upon the savages, with all the form of treaty and the
solemnity of parchment, signatures and seals, the preposterous idea that they are owners
in fee of the fabulous tracts of country over which their nomadic habits have led them or
their ancestors to roam. The title thus being settled, they purchase and promise payment
for a portion of the territory, and further bind themselves in the most solemn manner to
protect and defend the Indians in the possession of some immense remainder defined by
boundary in the treaty, thus becoming, as it were particeps criminis with the savages in
resisting the “encroachments” of civilization and the progressive movement of the age.
Having entered into this last-named practical obligation, the fact of its non-performance
becomes the occasion of a disgraceful and expensive war to subdue their victims to the
point of submission to another treaty. And so the tragedy of war and the farce of treaty
have been enacted again and again, each time with increasing shame to the nation (Report
of Indian Commisioners, 1869: 10).
O Board recomendava a concentração dos índios em pequenas reservas que
seriam divididas em lotes de posse individual. Desencorajava relações tribais, clamava
pela abolição dos tratados, o abandono dos pagamentos monetários anuais para as tribos,
o estabelecimento de escolas com o ensino do inglês (as ditas escolas controladas, é claro,
por missionários cristãos) e pelo ensino da religão cristã, que se "acreditava consistir no
mais efetivo agente para a civilização de qualquer povo". Povos indígenas incivilizados
deviam ser mais firmemente estabelecidos como tutelados do Estado, "o dever do último
sendo protegê-los, educá-los na indústria, mas artes da civilização, e nos princípios da
Cristianidade; elevá-los aos direitos de cidadania, e sustentá-los até que possam sustentar-
se". O status das tribos como nações, não importa se domésticas e dependentes, devia
assim ser eliminado (In: Prucha, 1976: 40).
O Board não durou muito como uma força importante nos Assuntos Indígenas,
embora ofsse continuar a existir até que John Collier finalmente o aboliu em 1934. Sua
relação com o OIA prefigurava as muitas vezes tempestuosas relações entre o SPI e o
CNPI no Brasil, 70 anos depois:
3
3
É, de fato, interessante espectular que o Board of Indian Comissioners pode ter servido de instituição
modelo para o CNPI. A idéia — uma seleção de homens e mulheres de "ilibada reputação" que serviria
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
91
Antagonism between the Board of Indian Commissioners and officials of the
Interior Department was inevitable. As there was no reason for the Board’s existence if
proposed reforms could be rejected by the government, the commissioners refused to
accept an inferior position. Permanent administrators, on the other hand, could not
tolerate subordination to a temporary group of unpaid theorists and retain their self-
respect…. In the course of events, either the Board or Indian administrators must be
reduced to impotence.” In the ensuing struggles, the Board lost out, being transformed
into a largely powerless advisory group for the rest if its existence (PRIEST, 1942: 44-
50).
O breve mandato da Peace Comission e do primeiro Board of Indian
Commissioners, todavia, serviu para trazer as teorias assimilacionistas de volta para o
centro dos debates sobre a política indígena federal. Aqui, pois, estavam os elementos
para o "processo ordinário de absorção" que Dawes mencionava em sua carta a Teller:
cristianização, destruição de laços tribais, adoção da língua inglesa e inserção na
economia de mercado por meio da "educação na indústria" e — mais particularmente —
por meio da divisão das terras comunais tribais em lotes individualmente possuídos e
cultivados. Infelizmente, como o próprio Dawes apontava, não se podia esperar que essas
forças assimilacionistas operassem suficientemente rápido para eliminar o fantasma de
índios vagando pelo Oeste. Alguma solução interina precisava ser encontrada para prover
os índios de terra e sustento enquanto estivessem sendo civilizados, ao mesmo tempo que
liberasse terra indígena suficiente para ao menos amenizar as demandas dos colonos
ocidentais e, especialmente, das empresas de estrada de ferro. Essa, em suma, foi a
genêsis política e filosófica do Dawes Act.
Pressões populares pelo fim da remoção
O ímpeto popular para o debate no congresso com respeito aos Assuntos
Indígenas veio de uma série de escândalos e crises durante o período pós-Guerra Civil.
Ao longo da década de 1870, revoltas, guerras e breakouts (índios abandonando em
massa as reservas a que haviam sido confinados) contínuos atormentaram o OIA e o
para fiscalizar o serviço indígena oficial do governo e de modo geral traçar as coordenadas morais para as
políticas de tal órgão — era essencialmente a mesma em ambos os casos. Embora Collier não tenha
eliminado o Board, supunha-se que seu lugar deveria ser tomado por outro grupo consultor: "Collier
recomendou e [o secretário do Interior] Ickes aceitou o principal de que formem um grupo de consultores
de cientistas sociais especialistas nas artes e artesanato indígena, antropologia cultural, educação, o uso de
recursos naturais, planejamento regional, saúde e lei indígena (Philp, 1981: 119-120). As atribuições desse
comitê eram incrivelmente similares àquelas dos conselheiros do CNPI. Nesse sentido, pois, é possível que
o BIC tenha servido, de um modo indireto, como inspiração para o CNPI.
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
92
exército americano. Escândalos financeiros periódicos também prejudicaram a reputação
do Serviço Indígena. No fim da década, "o Serviço Indígena era uma das áreas mais
lucrativas em que os políticos podiam enriquecer", e o Bureau tornara-se sinônimo de
incompetência e corrupção federal, mesmo no contexto da administração
espetacularmente corrupta do presidente Ulysses S. Grant (Prucha, 1976: 62).
Durante o período imediatamente pós-guerra, políticas concretas referentes a
populações indígenas inconvenientes também revolviam em torno da noção de removê-
los de terras de primeira e concentrá-los em reservas, particularmente no chamado
"Território Indígena" do que seria um dia o Oklahoma. Essa política causou muitos
desastres e embaraços locais para o OIA. Como diz Prucha: "Os teóricos subestimaram
os índios, os quais estavam tão prontos a mover por aí como peças em um tabuleiro de
xadres. Os índios eram profundamente ligados a seus territórios, e as condições
topográficas e climáticas eram psciologicamente, senão fisicamente, de tremenda
importância para seu bem-estar. Os Sioux, há muito aclimatados às pradarias do norte,
previam apenas miséria e desastre se tivessem que mudar-se para as terras, na verdade
melhores (para o plantio) no sul do Território Indígena". O bando Nez Perce do chefe
Joseph lutou para retornar do Território Indígena para o Idaho (sendo bem sucedido em
1884) e os Cheyenne setentrionais de Dull Knife irromperam do mesmo lugar em 1878
para mostrar que os índios não se submetiam passivamente à realocação e eram mesmo
capazes de lutar com sucesso contra ela. Mas o evento que se revelaria o último prego no
cofre do política da remoção seria o irrompimento dos Poncas do Território Indígena em
1879 (Prucha, 1976: 113-128, 234).
Em um tratado de 1868 com os Sioux, o Congresso deu à tribo um pouco de terra
de seus rivais menores, os Poncas, que foram então atacados pelo grupo maior. A solução
encontrada pelo Congresso e pelo OIA foi realocar os Poncas a terras no Território
Indígena, centenas de quilômetros ao sul. A marcha começou em 1877 e foi assolada por
desastres. A nova reserva era flagelada por um calor opressivo e infestada de malária —
uma nova doença para os Poncas — e em apenas um ano a população da tribo caiu de
717 para 639. Quando o filho do principal chefe Ponca, Standing Bear, morreu de
malária, esse líder, juntamente com outros 30 membros, deixou o Território Indígena para
rogar a hospitalidade de seus primos, os Omaha (Mardok, 1971: 169-173).
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
93
Thomas Tibles, um joranlista que fora um velho membro do movimento anti-
escravidão de John Brown, um participante da “ferrovia clandestine” [underground
railroad]
4
e um imigrante recente na região dos Omaha, tomou conhecimento da causa
dos Poncas. Ele havia vivido entre as tribos das pradarias por muitos anos, fôra um
batedor durante as recentes guerras índias e reivindicava ser um membro do da Sociedade
dos Soldados Sioux. Tibbles deu início a uma campanha de crítica dirigida contra o
secretário do interior Carl Shurz por ter ordenado a remoção dos Ponca. A falta de
resposta às reclamações de Tibble da parte do secretário apenas reanimou o fogo do velho
abolicionista na alma do jornalista: "Estava claro que eu me encontrava diante de outra
luta na base do mesmo princípio que me levara ao Kansas ensanguentado em 1856, a
saber: de que diante da lei todos os homens são criados iguais" (Tibbles, 1961 [1905]:
138).
Tibbles estudou as leis que regulavam os Assuntos Indígenas de modo a descobrir
como resolver o problema dos Poncas e "redefinir toda a política indígena de nossa
nação". Ele também organizou uma missão à costa leste com Standing Bear e dois jovens
Omaha, Francis e Susette LaFlesche, para conquistar apoio público para "emancipar os
índios das garras" do OIA (Tibbles, 1961 [1905]: 139-141; Mardok, 1971: 175).
Essa missão diplomática de 1879 a Boston, e a outros centros de filantropia
republicana liberal da costa leste, causou um bom rebuliço, e o secretário Shurz, bem
como o Comissário do OIA, logo se viram sob ataque aberto nos jornais republicanos da
costa leste pelo tratamento que ministraram aos Poncas e por sua política "desumana" de
remoção. Uma das vozes mobilizadas foi Helen Hunt Jackson, que, inspirada pelos
encontros com a e articulada Susette LaFlesche, foi movida a escrever A Century of
Dishonor, a obra paradigmática do reformismo indígena dos brancos nos Estados Unidos,
que denunciava a sociedade branca em geral e o governo federal em particular por ter
sistematicamente traído a boa-fé dos índios por meio de guerras ilegais, massacres e do
sistema de tratados. A agitação de Tibbles, dos LaFlesches e de seus confederados do
4
A underground railroad [estrada de ferro subterrânea] era um movimento que ajudava escravos a
escaparem para os estados livres do norte nos anos anteriores à abolição. John Brown era um líder
guerrilheiro na muitas vezes violenta luta para tornar o Kansas um estado livre em 1856. Ele foi depois
preso e executado por seu plano de tomar o Arsenal de Harper's Ferry, armar escravos com as armas
guardadas lá, e liderar um revolta geral por tudo o sul. A morte de Brown transformou-o em um mártir para
os republicanos abolicionistas e reformadores em geral.
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
94
leste levou a um extenso debate, tanto na imprensa quanto no Congresso, sobre a questão
indígena e o Projeto Ponca de março de 1881, que permitia àquela tribo voltar a suas
terras de antes da remoção (Tibbles, 1961 [1905]: 151-160). Esses, então, eram os
debates da "prévia sessão do Congresso" a que Dawes se refere em sua carta para o
secretário Teller em 1882, que o convencera de que a reforma dos Assuntos Indígenas era
uma necessidade clara e presente. Eles também eram especiais porque marcavam a
primeira aparição oficial de um novo ator no campo políticos dos Assuntos Indígenas: o
etnólogo do governo na pessoa de J.W. Powell, diretor do recém-fundado Bureau of
Ethnology of the Smithsonian Institution.
John Wesley Powell
Poucos historiadores da antropologia americana prestaram atenção detalhada ao
contexto subjacente à fundação do Bureau of Ethnology do Smithsonian Institution, o
serviço etnográfico oficial do governo federal dos Estados Unidos. Como nos recorda
Curtis Hinsley (um dos poucos estudiosos a tentar uma história completa dos primeiros
anos da antropologia do governo), todavia, as revoltas e irropimentos recorrentes e as
guerras índias dos anos 1870 causaradas pelo fechamento da fronteira forneceram a
justificativa ideológica para a fundação do BE, que foi originalmente promovido por seu
primeiro diretor, John Wesley Powell, como uma instituição que forneceria ao Congresso
e ao OIA com a informação de que este precisava para transformar a vida indígena.
Mesmo Hinsley, porém, passa demasiado rapidamente por sobre um aspecto
central da fundação do Bureau of Ethnology, a saber, o debate político sobre o
loteamento e civilização indígena que formava o contexto no qual o Congresso
americano decidira financiar estudos etnológicos oficiais. O BE fora criado para orientar
o Congresso nas questões indígenas durante um momento crítico quando a fronteira
estava se fechando e estava claro que não havia mais nenhuma terra para onde os índios
pudessem ser removidos para longe das ambições dos brancos. Bastante consciente de
suas responsabilidades, o BE e seus antropólogos associados forneceram uma teoria
cientificamente plausível da assimilação indígena baseada dos conceitos de evolução
social de Lewis Henry Morgan aos reformadores envolvidos nos debates do decreto do
loteamento e ao público mais amplo.
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
95
De nosso ponto de vista pós-boasiano, as atitudes e atividades do BE podem
parecer simplesmente como um outro exercício de autoridade imperial racialista e
certamente não é minha intenção aqui elogiar o BE como um reduto de um bando de
proto-humanistas visionários. Todavia, é preciso lembrar que os conflitos indígenas
renovados dos anos 1860 e 1870 — e, em particular, a espetacular derrota do General
George Custer nas mãos dos Lakota e seus aliados em 1876 — levantaram clamores pelo
extermínio dos índios a uma altura jamais ouvida antes. Os colonos dos estados do oeste
e seus representantes no congresso não estavam dispostos a aceitar o que viam como uma
interferência federal quando se tratava de lidar com a questão indígena, e estavam
igualmente relutantes a apoiar quaisquer esquemas de resrva que resultassem em largas
concentrações de indígenas em suas jurisdições (Loring, 1942: 7-9). Durante esse
período, a tese da "América indígena desvanecente" (Dippie, 1982) ameaçava fazer uma
guinada aguda e literal no sentido da eliminação física. Segundo Hinsley, "a escolha entre
o extermínio e a civilização do índio era, desse ponto de vista, apenas um prolongamento
de uma sociedade organizada, culturalmente, de forma unilinear".
It was of course a choice only for the White man – the Indian no longer enjoyed
choice – between barbaric power and various milder forms of domination. That is
precisely the point: the parameters were established and unalterable after the Civil War,
leaving only issues of style and procedure open to discussion. Powell’s Bureau of
American Ethnology was originally founded to address such questions. (HINSLEY,
1981: 147).
Nesse cenário, Powell e os etnólogos associados a ele formavam uma muralha
contra propostas de que "a natureza seja permitida a seguir seu curso" e os índios
"deixados morrer", o tempo todo remetendo simultaneamente sua posição
assimilacionista a uma ordem natural, supostamente cientificamente observável. Eles
forneciam um justificativa racional para a extensão de um biopoder federal aumentado
sobre os grupos indígenas da América do Norte, uma intensificação das políticas
dirigidas para "gerar forças, fazê-las crescer, e ordená-las, em lugar de um dedicada a
bloqueá-las, fazê-las submeter-se, ou destruí-las". Mais importante, eles foram capazes e
estavam dispostas a argumentar que disciplinar e civilizar dos índios seria uma solução
bem mais econômica que eliminá-los fisicamente (Foucault, 1984: 259).
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
96
Como viria a ser o caso com Cândido Rondon no Brasil 40 anos depois, John
Wesley Powell começou seu envolvimento com os índios e a etnografia por meio de sua
carreira como explorador. De 1867 e 1874, dirigiu várias missões de reconhecimento para
o U.S. Geographical and Geological Survey da região das Montanhas Rochosas. Como
apontou Antônio Carlos de Souza Lima para o caso de Rondon, esse tipo de missão não
consistia em simples surveys empreendidos puramente em nome da expansão do
conhecimento científico: eram empresas estratégicas que buscavam aumentar o
conhecimento — e assim o poder — do governo federal sobre suas possessões
territoriais, aquelas legamente sob o domínio do Estado mas na verdade desocupadas por
seus agentes (Lima, 1992). Vale a pena lembrar aqui que as expedições de Powell
ocorreram apenas 19 anos depois de os Estados Unidos terem adquirido boa parte da
região do trans-Mississipi, por meio da invasão do México em 1848, e que as tensões
diplomáticas com o governo mexicano de Maximiliano apoiado pelos franceses tinham
recentemente ameaçado deflaragrar uma guerra aberta nas fronteiras meridionais dos
Estados Unidos.
Powell era um veterano e herói de guerra, tendo perdido um braço durante a
Guerra Civil. Ele deixou o Exército no fim daquele conflito com a graduação de "major",
um título que continuaria a usar por toda sua vida. Ele também era professor de geologia
e curador do museu da Universidade de Illinois Wesleyan em Bloomington. Como tal,
Powell portava uma combinação ideal de habilidades e conhecimentos em seus surveys
do potencial militar, econômico e social dos territórios do oeste para o governo
americano. Em particular, o secretário do Interior confiava em Powell para realizar
surveys etnográricos acurados dos habitantes nativos da região. Por meio desse trabalho,
ele adquiriu uma reputação como um dos primeiros etnólogos científicos no país, e seu
conhecimento seria muitas vezes evocado em debates que irrompiam no Congresso sobre
a política indígena oficial nos anos 1880 (Woodbury e Woodbury, 1999: 284; Powell
Museum biography, www.powellmuseum.org).
A intervenção de House no debate parlamentar sobre os Ute: 1874
Em 13 de janeiro de 1874, Powell foi chamado a testemunhar diante da Camera
dos Deputados (House of Representatives) a propósito de seu trabalho etnográfico no
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
97
extremo oeste. O relatório resultante é um documento fascinante, não apenas por revelar
o estado da investigação etnográfica dos Estados Unidos daquele tempo, mas também por
apontar como essa informação era apresentada ao congresso e indicar certos de seus
possíveis usos.
Nesse relatório, Powell descreve a maior parte dos grupos nativos que ele visitou
com as seguintes palavras: "Sua condição é mais ou menoas assim: foram quase
completamente derrotados (whipped), e não desejam entrar em conflito com o governo, e
apreciam plenamente a necessidade de cultivar o solo […] A caça está destruída." Ele
então observa que o maior problema diante do governo era adquirir uma quantidade
decente de terra para assentar esses índios, argumentando que seria difícil dar aos índios a
terra que ocupavam já que estava agora toda sob a posse de colonos brancos. Dada esta
situação, Powell sentia que seria melhor remover os índios restantes para os poucos
pontos onde o governo efetivamente possuía terras, estabelecendo reservas ali. As
palavras de Powell são reveladoras, pois eles situam as terras que os índios efetivamente
ocupadas como "possuídas por brancos" em uma situação em que "é difícil encontrar
boas terras". No argumento de Powell, o óbvio dever do governo, diante dessa situação,
seria não investigar as reivindicações fundiárias dos colonos, mas remover os índios para
reservas onde iriam ganhar seu sustento do plantio em terras do governo, mesmo que
estas terras fossem, admitia-se, na maior parte desertos.
Mais importante, todavia, era o reconhecimento de Powell do que causara essa
situação e trouxera essas tribos a esse ponto crítico: a destruição pelos colonos brancos da
caça de que os nativos dependiam para seu sustento. Isso era compreendido por Powell
como sendo a força que "batera" os índios e colocara-os em uma posição em que "não
desejam entrar em conflito com o governo" e, de fato, eram forçados a vir a este pedindo
ajuda. Esse ponto é de crucial importância para compreender o restante do relatório de
Powell (Powell, 1874: 5-6).
Em franco contraste com a descrição de Powell da maioria dos grupos indígenas
do território estava seu relatório dos Ute do oeste do Colorado, um grupo de annuity
Indians (significando que recebiam uma renda anual dos Estados para manter a paz). Os
tratados feitos com os Ute estipulavam claramente que nenhum branco podia entrar em
suas terras sem a permissão do grupo. Powell, todavia, afirmava que os recursos minerais
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
98
recentemente descobertos no interior de terras ute iriam com certeza atrair um grande
número de mineiros e prospectores. Diante disso, ele temia que "será impossível proteger
os índios em posse de uma extensão de território tão grande".
It certainly can’t be done without great expense to the Government. There is
much game on this reservation and these Indians have no desire to cultivate the soil. They
have never been thoroughly whipped by the forces of the United States, never having
been engaged in any great war, so they do not feel the full power of the Government.
They are very independent, and desire greatly to keep their country…. They can be
stirred up very easily. (Ibid, 7).
Aqui, Powell deixa claro quais eram as pré-condições para a resistência ute:
nenhuma derrota militar importante diante dos Estados Unidos (nunca tendo sido
"totalmente derrotados") e caça suficiente para sustentar a tribo. Dados esses dois fatores,
os Ute dificilmente cederiam suas terras para a colonização branca. Todavia, os atrativos
econômicos dessas terras — grande riqueza mineral — eram vistos por Powell como uma
isca inevitável para intrusos brancos. Aqui, uma vez mais, a apropriação de terras e
recursos indígenas e sua incorporação na economia de mercado eram retratadas como o
resultado de uma lei natural ou divina, uma força que não podia ser detida. Powell
admitia que o governo americano jurara em tratados proteger as terras dos Ute. Tal
proteção, porém, não poderia ser garantida com demandas excessivas sobre o tesouro
federal. A questão, pois, converteu-se naquela de como remover os Ute de suas terras
sem incorrer em custos excessivos.
Discutindo as opções abertas para o governo federal, Powell afirmava que a única
viável era a remoção dos Ute de seus territórios protegidos por tratados para uma reserva.
Ele rejeitava a consolidação dos Utes do Colorado com seus vizinhos e parentes, os
índios de Utah, todavia, que tinham bastante terra disponível. Isso porque ele duvidava
"se seria sábio aumentar o número de índios que se encontram em tal situação
independente, que temores possam ser levantados quanto a eles promoverem ataques
sobre os colonos. Em outras palavras, era preciso que a consolidação ocorresse de um
modo que reduzisse as capacidades militares dos índios. Powell também reconhecia que
era legalmente impossível remover os Ute de suas terras devido a obrigações de tratado e
ao risco de guerra (imagindo, como era provável, que índios que não haviam sido
derrotados pelo governo americano resistissem, com seu não desconsiderável poder
militar, ao que consideravam uma injustiça).
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
99
Powell chegou assim à conclusão de que os Ute deveriam ser por enquanto
deixados em paz. Todavia, ele aconselhava o Congresso de que mesmo se o governo
pudesse proteger o grupo da intrusão dos brancos:
I am inclined to think it would not be wisdom, for if white men do not enter that
region of country [the Ute] will have an abundance of game and can live by hunting, and
as long as that condition of affairs exists they will never desire to cultivate the soil, and
no substantial progress can be made in their civilization. The sooner the country is
entered by white people and the game destroyed so that the Indians will be compelled to
gain a subsistence by some other means than hunting, the better it will be for them. I am
inclined to think it will be best to let the influx of population, and the slow progress of
civilization in that way, settle the question (Ibid: 6-7).
Em outras palavras, pois, Powell advertiu o Congresso de que a melhor maneira
de lidar com os Ute era permitir a invasores brancos que matassem sua caça,
empobrecendo o grupo e forçando-o a recorrer à agricultura, uma condição econômica
na qual só poderiam engajar-se com consideravel apoio econômico e tecnológico dos
brancos. Powell estava bem consciente de que uma tal política acarretaria um certo risco
de causar uma guerra, pois fez imediatamente acompanhar seu conselho com
observaçnoes no sentido de que os temores de uma guerra índia geral eram grandemente
exagerados, uma vez que sua pesquisa etnográfica junto aos Ute mostrava que a tribo
somava não mais que 1600 indivíduos, em lugar dos 3000 afirmados pelo OIA. Aqui,
podemos ver uma clara aplicação militar dos dados etnográficos de Powell. Eles
informavam ao Congressos os riscos do não cumprimento do tratado ute pelo governo —
e isso em oposição às estimativas "oficiais" fornecidas pelo Serviço Indígena do próprio
governo! Em outras palavras, a etnologia era usada aqui como um meio privilegiado de
ganhar conhecimento estrategicamente útil, um instrumento para reduzir os prováveis
custos militares de movimentos políticos contra índios "não-derrotados". Esses usos
militares da etnografia são ainda mais enfatizados na página 7 do relatório, onde Powell
descreve as capacidades militares dos Ute com algum detalhe, e detalha suas rotas de
suprimentos para comerciantes em Utah e no Colorado.
Quando perguntado sobre as anuidades recebidas pelos Ute, Powell observou que
era mais barato dar eles essas moedas que lutar contra eles, notando mais uma vez que
esses índios ainda não se haviam envolvido em uma guerra contra os Estados Unidos e
não eram pois contrários a essa possibilidade. Ele faz então um interessante comentário:
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
100
Very little difficulties arising between Indians and white men sometimes result in
very serious consequences, entailing much expense. Some hungry Indian kills a beef or
tired Indians steal a horse; white men go in search of the thief, and perhaps kill the first
Indian they meet. Then the Indians retaliate, and the news is spread throughout the
country that we have an Indian war on hand, and troops are sent to the point, and the
expense of a war at least is incurred (Ibid: 7).
Powell acreditava que as guerras índias eram ruins por causa dos custos
resultantes para o governo federal. Todavia, dados seus comentários acima sobre matar a
caça, aprece que ele estava dando ao Congresso uma receita de como criar uma guerra
com os Ute sem arriscar a crítica dos eleitores por violação aberta de tratados. Em outras
palavras, quaisquer que fossem os desejos de Powell, suas observações etnográficas
poderiam ser usadas como um plano de ação para um Congresso inclinado a exterminar
os Ute. Primeiro, falha em proteger as fronteiras dos tratados, deixando a terra indígena
encher-se de invasores brancos para eliminar a caça da região. Então — quando índios
esfomeados recorressem ao roubo de gado dos brancos para sobreviver, ou matassem ou
roubassem invasores — o governo poderia declarar guerra e "totalmente derrotar" os
índios em questão.
Mas se Powell forneceu ao Congresso um porrete para golpear os Ute, ele
também providenciou um atrativo para os pacificar. Afirmando que 1/5 do dinheiro usado
para intimidar os índios com tropas devia ser usado em sua civilização, Powell notou que
"a questão indígena nessa região poderia ser resolvida sem muita dificuldade". 400 mil
dólares seriam suficientes para assentar os Ute em reservas e provê-los de rações,
moinhos, casas, vacas e etc. Powell afirmava que induzimentos como esses poderiam
levar os Ute para a reserva sem o uso de poder militar. "Digamos, 'nós vamos garantir a
vocês terra, construir-lhes casas, e dar-lhes uma vaca", e a maior parte dos índios irá".
Quando precssionado pelos parlamentares sobre sua estimativa de 400 mil dólares
americanos para assentar os Ute, Powell reafirmou sua posição, dizendo que essa quantia
seria apenas 200 mil a mais do que estava sendo gasto no sustento e anuidades para a
tribo. Ele também recomendou que não fossem dadas anuidades em comida ou roupas e
que os índios fossem forçados a trabalhar por seu sustento na reserva" "quando um índio
descobre que pode conseguir seu jantar mais facilmente trabalhando para você do que
cavando raízes, ele vai preferir trabalhar para você". Powell também assinalava que as
anuidades indígenas não deviam ser pagas em dinheiro. Afirmou que os índios deveriam
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
101
em vez disso receber tecidos e ser ensinados a fazer roupas para si mesmos. Eles não
deveriam, porém, ser supridos de tendas, o que aumentaria sua mobilidade. Essas
recomendações finais revelam a crença de Powell em como deveria ser o futuro dos
índios: pequenos yeomen farmers e produtores de base familiar, fixados à terra e bem
integrados ao mercado. As recomendações contra dar tendas aos índios são especialmente
reveladoras: não se deve permitir aos nativos viver da terra e seguir a caça como bem
entenderem. Eles devem ser fixados no lugar e reduzidos a vida civilizada por meio da
dependência de bens e sustento providos pelo mercado: "fixe-os em casas e dê a eles
alguma propriedade e eles terão um lar para cuidar e uma propriedade para preservar, e
eles se tornarão logo interessados nos direitos de propriedade" (ibid: 9-10).
Figura 2.1: Major John Wesley Powell em seu escritório, ca. 1886. Smithsonian Institution BAE negative
#64-2-13.
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
102
É importante compreender o impacto que as palavras de Powell devem ter tido
sobre os congressistas que assistiram a sua apresentação. Powell não era um idealista
iluminado ou um abolicionista da costa leste pregando a fraternidade humana. Era um
herói de guerra grisalho, de um braço só, que acabara de chegar de 7 anos de
perambulação pelas terras selvagens com régua e sextante enquanto vivia perto de seus
habitantes nativos. Ele poderia dar um relato preciso das disposições dos ditos habitantes,
de suas capacidades militares e prováveis reações a pressões dos brancos, muitas vezes
em contradição direta ao que o próprio Serviço Indígena do governo afirmava. O
chamado de Powell pela redução dos Ute à vida de reserva não se referia a qualquer
desejo abstrato de justiça, dever cristão, ou progresso humano: constituía um conjunto de
operações claramente definido, com os resultados prováveis de outras opções sendo bem
descritos. Mais do que isso, vinha com uma tabela de preços por item, que totalizava
pouco mai sde dois anos de contínuas anuidades e rações para os Ute. Em outras
palavras, Powell apresentava a redução indígena como um meio econômico de lidar com
um problema espinhoso em uma região que estava se tornando rapidamente uma das mais
ricas áreas de exploração de minérios dos Estados Unidos, e ele apoiava suas palavras em
estatísticas, dados etnográficos concretos e uma tabela de preços razoável.
Não é de espantar, pois, que o Congresso tenha em grande medida seguido os
planso de Powell. Por meio do porrete da redução da caça e da cenoura das casas e bens,
os Ute do Colorado foram alavancados para uma reserva na parte sul daquele estado.
5
Também não é de surpreender que, cinco anos depois do testemunho de Powell no
parlamento, em 1879, o Congresso tenha estabelecido o Bureau of Ethnology no interior
da Smithsonian Institution com Powell como seu dirigente (logo o nome seria mudado
para Bureau of American Ethnology).
5
Ironicamente, as tentativas de transformar os Ute em agricultores cristãos foi o que eventualmente os
levou às beiras da guerra com os Estados Unidos, e não a remoção para a reserva. Quatro anos após o
relatório de Powell, em 1878, um socialista agrário, Nathn C. Meeker, foi designado como Agente Indígena
para a White River Agency. Seguindo sua visão utópica, Meeker transferiu a agência rio abaixo e começou
a arar, irrigar e cercar os pastos usados pelos cavalos dos Ute. Enfrentando uma oposição indígena
crescente, Meeker pediu ajuda militar. A revolta dos Ute resultante acabou com sua morte e a de 19 outros
brancos, e trouxe uma pressão adicional ao movimento popular crescente no país pela reforma dos assuntos
indígenas (Prucha, 1984abr: 173).
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
103
A fundação do Bureau of Ethnology: 1878-79
A natureza estratégica do Bureau of Ethnology foi demonstrada pelo fato de que o
novo Bureau foi considerado como uma continuação lógica do trabalho etnográfico dos
surveys geográficos do Oeste que o precederam (de modo semelhante ao trabalho de
Rondon para a Comissão Telegráfica que seria depois considerada uma prévia para sua
elevação à direção do SPI no Brasil). O US Geological Survey oficial (que combinava
quatro surveys co-existentes e rivais na parte occidental dos EUA) foi estabelecido ao
mesmo tempo que o BE. Powell foi, com efeito, nomeado diretor de ambos os novos
estabelecimentos (Woodbury e Woodbury, 1999: 284). A data da fundação do BE
também não foi uma coincidência, vindo como o foi durante o pico da onda de outbreaks
e revoltas indígenas que iriam provocar os clamores populares por reforma dos Assuntos
Indígenas que detalhamos acima.
Em uma carta para o secretário do interior Carl Schurz em 1878 apresentou seu
argumento para o financiamento governanmental da pesquisa etnográfica. Notando que o
trabalho seria "de grande interesse acadêmico", especialmente porque "em muito poucos
anos será impossível estudar nossos índios norte-americanos em sua presente condição a
não ser da história registrada", o ponto central de Powell era de que a etnografia podia
ajudar na resoluçnao de um dos problemas chave da administração indígena: como
civilizar e assimilar os nativos.
Segundo Powell, a disseminação da civilização desde 1849 colocara índios e
brancos em conflito direto em todos os Estados Unidos continentais. Em palavras que
iriam prefigurar aquelas de Dawes quatro anos depois, ele afirmava que "[…] o 'problema
indígena' é pois imposto a nós, e precisa ser resolvido, sabiamente ou não".
Many of the difficulties are inherent and can’t be avoided, but an equal
number are unnecessary and are caused by the lack of our knowledge relating to
the Indians themselves. Savagery is not inchoate civilization; it is a distinct status
of society, with its own institutions, customs, philosophy, and religion; and all
these must necessarily be overthrown before new institutions, customs,
philosophy and religion can be introduced. The failure to recognize this fact has
wrought inconceivable mischief in our management of the Indians. For the proper
elucidation of this statement a volume is necessary, but I shall have to content
myself with some brief illustrations.
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
104
Aqui, Powell situa os dados etnográficos como um recurso necessário para criar
uma futura geração de antropólogos que chamaria de "mudança cultural" entre os nativos
americanos. A etnografia devia ajudar a derrubar as culturas indígenas, substituindo-as
por algo novo, talhado segundo os desejos da elite anglo-saxã da nação. Vale citar
longamente esta carta por várias razões. Em primeiro lugar, transformada em um
documento oficial do Congresso,
6
tornou-se a principal declaração ideológica de
fundação do serviço etnográfico federal. Em segundo lugar, ela revela ideologias
subjacentes quanto à selvageria e civilização utilizadas pela primeira geração de
antropólogos do governo relativas à incorporação de Outros subalternos a sociedades
nacionais.
Figura 2.2: Senadores Henry Laurens Dawes e John Morgan (retirados de www.bioguide.congress.gov e
www.senate.gov/artandhistory).
Powell começou com um discurso sobre a propriedade privada entre índios
americanos:
6
House Misc. Document #5, 45th Congress, 3rd Session, 1878: “Surveys of the Territories. Letter from the
Acting President of the National Academy of Sciences, Transmitting a Report on the Surveys of the
Territories. December 3, 1878.
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
105
Among all the North American Indians, when in a primitive condition, personal
property was almost unknown; ornaments and clothing only were recognized as the
property of the individual and these to a limited extent. The right to the soil as landed
property, the right to the products of the chase &c., was inherent in the gens, or clan, a
body of consanguinii, a group of relatives, in some cases on the male side, in some cases
on the female. Inheritance was never to the children of the deceased but always to the
gens. No other crime was so great, no other vice so abhorrent, as the attempt of the
individual to use for himself that which belonged to his gens in common; hence the
personal rights to property recognized in civilization are intensely obnoxious to the
Indian. He looks upon our whole system of property rights as an enormous evil and an
unpardonable sin, for which the gods will eventually punish the wicked and blasphemous
white man.
From these opinions, inherent alike in their social institutions and religion, arises
the difficulty which the government has always met in obtaining the consent of the
Indians to the distribution of lands among them in severalty. Tribes have been willing to
receive lands and distribute them themselves among their gens. Among those Indians
who have been longest in contact with the white man, as the tribes in Indian Territory and
Minnesota, much property has been accumulated, and with the increase of their wealth
the question of inheritance and individual ownership has at last spontaneously sprung up,
and at this time these tribes are intensely agitated on that subject; the parties holding
radical sentiments are rapidly increasing, and it is possible that soon, among these tribes,
the customs of civilization in this respect will be adopted. Among all other tribes the
ancient customs are still adhered to with tenacity. In this matter, and many others of a
similar character relating to their customs and belief, we must either deal with the Indian
as he is, looking to the slow but irresistible influence of civilization with which he is in
contact to affect a change, or we must reduce him to abject slavery.
The attempt to transform a savage into a civilized man by a law, a policy, an
administration, through a great conversion, ‘as in the twinkling of an eye,’ or in months,
or in a few years, is an impossibility clearly appreciated by scientific ethnologists who
understand the institutions and social condition of the Indians. This great fact has not in
general been recognized in the administration of Indian affairs….
Again, we have usually attempted to deal with the tribes through their chiefs, as
if they wielded absolute power; but an Indian tribe is a pure democracy; their chieftaincy
is not hereditary, and the chief is but the representative, the speaker of the tribe, and can
do no act by which his tribe is bound without being instructed thus to act in due and
established form. The blunders we have made and the wrongs we have inflicted upon the
Indians because of a failure to recognize this fact have been cruel and inexcusable, except
on the grounds of our ignorance.
Fica claro que Powell via a propriedade privada como, ao mesmo tempo, a força
impulsionadora subjacente e a condição necessária para o processo civilizatório. Nisso,
estava seguindo as teorias de seu mentor, Lewis Henry Morgan, que discutiremos com
mais profundidade adiante. Por enquanto, basta assinalar que a carta de Powell situava a
etnografia como um campo que oferecia três insights em relação aos índios que o
governo federal poderia aproveitar.
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
106
Em primeiro lugar, ele afirma que se a propriedade privada não existia nas tribos,
a propriedade coletiva existia, e que o incremento da riqueza coletiva iria provavelmente
gerar "espontaneamente" a demanda pela propriedade privada. Em outras palavras, pois,
aumento de riqueza indígena an reserva era visto por Powell como levando a demandas
por propriedade privada e à implementação de estruturas socio-jurídicas por meio das
quais isso poderia ser controlado e transmitido. Essas novas estruturas iriam
eventualmente suplantar os "costumes antigos" aos quais os índios se aferravam
"tenazmente".
Em segundo lugar, Powell advertia que o processo civilizatória tomaria
provavelmente um longo tempo, e que não iria acontecer por si mesmo em resposta a
simples mudanças nas leis ou nas políticas. Se a civilização exercia uma "influência
irresistível", ela era também lenta em efetivar quaisquer mudanças nas atitudes nativas,
que iriam acontecer apenas com o tempo. A reforma da política indígena era pois uma
condição necessária, mas insuficiente, para a civilização dos índios.
Por fim, Powell desmistificava o papel do "chefe" em sua carta, situando-o como
um porta-voz da tribo, e não como seu líder. Brancos cnvolvidos em Assuntos Indígenas
até então tinham em geral suposto que o chefe era um governante absolutista que
obrigaria os demais em sua tribo segundo sua vontade. Muito do processo de
estabelecimento de tratados nos Estados Unidos durante o período da remoção foi
empreendido por meio do expediente de declarar um ou outro personagem dentro da tribo
como "chefe", e então fazendo valer o tratado que ele assinara em nome da tribo (muitas
vezes contra os desejos da maioria) com os militares federais. Foi isso que aconteceu
durante as remoções dos Cherokee de 1835-1838, por exemplo (Malcomson, 2000: 86-
87). Os comentários de Powell aqui trazem a mente mais uma vez a observação de
Edward Brunner sobre ocmo as ideologias relativas às culturas indígenas mudaram com o
tempo segundo os ventos dados no campo político dos Assuntos Indígenas. Com o
fechamento da fronteira e a restrição das tribos às reservas, o papel do chefe — como
concebido pelos atores brancos no interior dos Assuntos Indígenas — tornou-se menos
importante. Não se tinha mais necessidade de uma tal figura política suprema para a
assinatura de tratados. Dado o desejo de reduzir os territórios indígenas remanescentes, a
existência de chefes podia ser de fato um inconveniente, já que eles podiam prover um
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
107
foco de reunião para dissidentes. Dos anos 1870 em diante, pois, administradores e
congressistas brancos deixaram de ver os chefes como dirigentes políticos ou figuras em
torno das quais recursos e poder podiam ser moibilizados. Em lugar disso, os chefes
indígenas passaram a ser cada vez mais retratados como personagens pitorescos e
irrelevantes cujo tempo ficara para trás e que se recusavam a retirar-se do cenário das
reservas (Biolsi, 1998: capítulos 1 e 2).
7
Powell não foi o primeiro homem branco a fazer observações sobre a democracia
indígena e a desmistificar o papel do chefe, mas sua inclusão da tese em uma proposta
designada para incentivar o Congresso a liberar fundos para a etnologia federal é uma
indicação de que ele estava sentido a direção em que os ventos políticos sopravam
naquele augusto órgão. Seu comentário sobre os chefes era um claro sinal para o
Congresso de que ele acreditava que a etnografia podia forncecer uma visão de como as
polities nativas eram estruturadas e de como podiam ser subvertidas.
Em seu relatório de 1878, Powell mais uma vez afirma o valor da etnografia para
a inteligência militar:
Within the United States there are about sixty radically different stocks of
Indians. The history of the country shows that no coalition between tribes of different
stocks has ever been successful; a few have been attempted, but these have been failures.
A knowledge of this fact, and the further knowledge of the extent of the several stocks as
they can be classed by linguistic abilities, would be of great value in our administration of
Indian affairs. In the late Nez Percé war much fear was entertained lest the Shoshones
and the Pai Utes of Utah and Nevada would join with the Nez Percés in their revolt, and
the officers of the Army, as well as those of the Indian Office, were exceedingly anxious
in regard to this matter; and the papers were filled with rumors that such a coalition had
been made; the result proves, what had been confidently predicted, that no such alliance
could be formed, and the Shoshones and the Pai Utes were enlisted to fight against the
Nez Percés.
Aqui Powell se refere a suas previsões de 1874, relembrando o Congresso que os
etnógrafos haviam mostrado que barreiras étnicas e linguísticas iriam evitar uma aliança
geral dos índios do Oeste. Se tivesse sido permitido que a histeria popular quanto a essa
aliança florescesse em uma resposta federal de larga escala, o governo dos Estdos Unidos
7
Thomas Biolsi descreveu em certo detalhe como chefes foram primeiro "entronados" e depois
"destronados" pelas políticas do BIA no caso dos Sioux. Ele prestou uma atenção particular a como apelos
democráticos ao povo eram usados para passar por cima da autoridade tribal na Grande Reserva Sioux
nesse período e nos anos 1880, concluindo que, na década de 1890, "o patrocínio administrativo do poder
dos chefes tinha, pois, dado lugar a uma política de individualizar as tribos indígenas e permitir aos chefes
caírem no esquecimento (Biolsi, 1992: 36-43).
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
108
teria gasto muito dinheiro sem nenhum propósito útil. Powell reivindica indiretamente a
reponsabilidade por essa economia dos cofres públicos, ao mesmo tempo que aponta que
conhecimento similar das divisões políticas/culturais indígenas poderia ser utilizada
efetivamente para o recrutamento de missionários para futuras guerras índias.
Powell conclui seu relatório com uma clara declaração de qual seria o principal
propósito de um escritório etnográfico financiado pelo governo federal, e onde este
deveria estar situado na estrutura do Estado:
I think that it would be apparent from what I have said that a thorough
investigation of North American ethnology would be of great value in our Indian
Office… Looking to this end, I would suggest that the Smithsonian Institution has
accomplished, in this direction, more than any or all other agencies.
Em 1879, o Congresso deu apoio financeiro à proposta de Powell e o Bureau of
Ethnology foi fundado no interior da Smithsonian, com Powell na direção e com uma
clara declaração do propósito de auxiliar o Bureau of Indian Affairs em sua
administração dos povos indígenas dos Estados Unidos. Uma das primeiras tarefas de
Powell nesse sentido seria ajudar o General Walker do U.S. Census Department a fazer
um censo dos índios (Smithsonian Institution, 1880: 62). Ele também produziria uma
monografia descrevendo as estruturas de parentesco e políticas do bando Wyandotte
(Smithsonian Institution, 1881: 506). Pouco depois disso, Powell foi envolvido nos
debates no Congresso sobre o loteamento, por meio do senador John Morgan do
Alabama. Sua inserção nesse debate ocorreu precisamente no contexto da discussão sobre
o avanço geral sobre as terras indígenas que o senador Dawes iria comentar um ano
depois em sua carta ao secretário do Interior Teller.
As intervenções de Powell no debate sobre o loteamento: 1881
Diante do senado, em 25 de janeiro de 1881, o senador Morgan dirigiu-se a seus
colegas a propósito do projeto de loteamento que fora apresentado ao Congresso:
This bill is of such importance, there is so much in it, it is so comprehensive, it
reaches down into the future so far, it fixes so many rights irrevocably, it deals with so
many important and delicate questions, that I confess my mind has been drawn to its
investigation with apprehension and awe, lest we might make some serious mistake in
dealing with this great question. For the purpose of finding out from those men who are
better informed than any other set of men in the United States as to the actual condition
of the Indians, I addressed a letter to Major Powell of the Geological Survey, who has
had the Indian subject under his study for perhaps thirty years, and for the last ten or
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
109
fifteen years has devoted almost his exclusive attention to it, and I asked him freely his
opinion about the measure that is now before Congress… in as much as the opinions of
the Secretary of the Interior and of the Commisioner of Indian Affairs have [already]
been quoted… I ask that the Secretary read the letter of Major Powell in reply to my
questions…”
Morgan situava assim Powell como uma autoridade equivalente ou superior ao
secretário do Interior e ao comissário do OIA no interior do debate sobre o loteamento,
em virtude da supostamente maior compreensão que o Major teria dos índios, uma
medida de o quanto a opinião do dirigente do mais novo escritório do governo era
respeitada no Senado. Na carta citada por Morgan, Powell começara oferecendo um
sobrevôo muito detalhado da população indígena dos Estados Unidos. Ele afirmava que a
diversidade de tribos e governos tribais era a maior dificuldade posta para os Assuntos
Indígenas. Cada tronco, ou família de línguas, continha um conjunto distinto de tradições,
leis, costumes e governo, e existiam nos Estados Unidos pelo menos 500 governos
indígens totalmente distintos identificados. Ele prosseguia então afirmando que, apesar
dessa diversidade, certas características gerais comuns a todas as estruturas políticas
nativas podiam ser descritas, e que estas eram partilhadas com povos selvagens em geral,
em particular com os "governos tribais primitivos da Índia e dos povos latinos e
teutônicos da Europa".
As características comuns da selvageria, como entendida por Powell, era as
seguintes:
1) Sociedades organizadas em torno do parentesco, não do território ou da
propriedade, com governos que protegem indivíduos, e não a propriedade.
2) Organizações familaires distintas e mais complexas do que as dos povos
civilizados.
3) Ocupação da terra por tribo e clã, em oposição à ocupação privativa
individualizada. Os direitos fundiários individuais e pessoais eram
cuidadosamente delineados, mas esses direitos estavam sob jurisdição clânica.
Segundo Powell, o maior crime neste tipo de sociedade seria um indivíduo
reivindicar terra independente da permissão coletiva.
Powell reconhecia que posse da terra nessa estrutura era um tópico extremamente
complexo cujas regras não podiam "ser expostas nos limites de uma carta como a
presente". O que é interessante notar aqui é que Powell reconhecia que os índios
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
110
"possuíam" terra: o problema não era a ausência de um conceito de propriedade
conectado à terra, mas o fato de que tal propriedade era detida coletivamente por meio do
clã, e não privativamente. Powell deixava claro que essa estrutura de posse da terra
estava intimamente articulada com as estruturas da família, do clã e da gens baseadas no
parenesco. Ele então aconselhava o Senado no sentido de que: "Para introduzir um novo
sistema de posse da terra entre os índios é necessário introduzir um novo sistema
familiar. Há três pré-requisitos para a civilização final dos índios norte-americanos. O
primeiro é: eles precisam adotar a família civilizada. O segundo é que precisam
reconhecer direitos de propriedade individual, incluindo a propriedade da terra, tal como
são reconhecidos sob as instituições da civilização. Em terceiro lugar, precisam
abandonar as indústrias da selvaria e engajar-se nas indústrias da civilização".
The changes in savage society cannot be abruptly made. Savagery cannot
suddenly be transformed by the magic of legal enactments into civilization. The three
classes of changes mentioned above must be made simultaneously. Civilized family
organization, civilized property rights, and civilized industries can only be acquired
slowly and contemporaneously.
For accomplishing these purposes the measure embraced in the bill above
mentioned in its general scope is eminently wise, but in its present form will be to a great
extent practically inoperative. The first step to be taken is a systematic and continuous
registration of the members of the several tribes by families, as the family is recognized
in civilized society so that legal lines of inheritance may be established.
Second, there should be a system of recording land titles connected with the
system of registration. These registrations and records should be carefully supervised by
competent men appointed by the Government; the Indians themselves cannot properly
perform the task. (CONGRESSIONAL RECORD, 1881: 904-913)
Powell delienava assim para o Congresso um plano arquitetônico de como
civilizar os índios. As famílias indígenas precisavam ser registradas segundo normas
anglo-saxãs de modo que a herança pudesse ser estabelecida no interior da família
nuclear. A terra precisava ser alocada segundo essa nova divisão por funcionários
brancos que garantiriram que esse loteamento seguisse a lógica do governo federal, e não
a da tribo.
Um dos pontos do decreto do loteamento em debate era de que a divisão da terra
iria ocorrer apenas com uma votação de 2/3 dos membros do grupo indígena envolvido a
favor. Powell objetava a esse artigo do projeto, dizendo que seria um tiro no pé. A seus
olhos, seria muito melhor que índios individuais se inscrevessem junto ao agente do OIA
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
111
da reserva por terras privativas, uma pequena casa e implementos agrícolas. Powell assim
aconselhava a tentar curto-circuitar o problema dos governos tribais simplesmente
ignorando-os e individualizando o processo de loteamento. Ele advertiu que "É duvidoso
se existem meia dúzia de tribos nos Estados Unidos onde uma votação de dois terços
possa ser assegurada em favor da posse civilizada da terra, mas é provável que em todas
as tribos existam indivíduos que queiram tirar vantagem dela, e é provável que seu
exemplo, ajudado pelo governo, induza outros a tentar o mesmo experimento". Em outras
palavras, pois, Powell sugeria que a decisão de dar terras privativas fosse completamente
tirada das mãos dos grupos indígenas envolvidos. As estruturas políticas tribais deveriam
ser ignoradas e os indíviduos indígenas deviam receber terra e implementos agrícolas na
medida em que e quando pedissem por esses. O propósito disso, assinalava Powell, era
minar a autoridade da sociedade e governo tribais. Powell terminava sua carta afirmando
que a cidadania americana era incompatível com a sociedade do parentesco e devia ser
concedida apenas aos índios que adotassem instituições civilizadas, "especialmente
aquelas relacionadas à família, propriedade e indústria" (id: ibid).
O senador Morgan prosseguia citando outra carta de Powell, esta escrita um dia
antes do debate, em 24 de janeiro de 1881. Essa segunda carta é instrutiva por causa da
ênfase diferente que o Major deu ao cronograma para a civilização indígena: "Não se
poderia elaborar uma medida mais eficiente para a civilização final dos índios nesse país
do que uma pela qual pudesse obter terras privativas rapidamente e com sucesso; e as
sugestões que faço são apresentadas nesse espírito".
Nessa segunda carta, o tratamento gradualista da civilização dos índios que
Powell esposava acima, e a natureza interconectada das mudanças na sociedade indígena
que o Major pensava necessárias eram todos dependentes da "rápida obtenção de terras
privativas". Aqui, pois, a rápida aquisição de terras privadas pelos índios era claramente
entendida como o motor que impulsionaria todos os demais aspectos do processo
civilizatório.
A segunda carta de Powell também aborda a questão de o quanto se deveria ou
não permitir que as tribos decidissem seus próprios destinos. Ele descreve os índios dos
Estados Unidos como "divididos em dois partidos — o conservador, composto de pessoas
que desejam permanecer em sua condição primitiva, e o progressista, ou aqueles que
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
112
desejam adotar a civilização". Dado isso, "seria especialmente desastroso se a lei exigisse
que esse passo fundamental no progresso no sentido da civilização não pudesse ser
tomado por índio algum até que dois terços dos votos de sua tribo o sancionassem".
It is probable that in every tribe there are persons who would avail themselves of
a privilege of this nature [allotment], and their prosperity would eventually induce others
to take the same step; and thus, gradually, tribal society would be transformed into
civilized society; but, if no step could be taken until a two-thirds veto of the entire tribe
should sanction it, the desired end would be postponed indefinitely.
Powell também objetava a uma condição do projeto de loteamento que permitia
ao Congresso tratar com os índios para a compra de terras não-utilizadas nas reservas,
especialmente em conjunção com o proviso dos 2/3 dos votos, citado acima. Sua objeção
à medida não tinha nada a ver como o temor de que os índios perdessem suas terras em
tais transações. Antes, Powell sentia que ela dava aos grupos indígenas excessivo poder
em monopolizar terras que ele acreditava pertencerem aos Estados Unidos: "O efeito
seria subtrair todas essas grandes áreas de terra, abarcando uma área total de mais de 72
milhões de acres, da colonização e da melhoria por uma longa e indefinida sequência de
anos".
The Indians would soon discover that they could hold these great bodies of land
in common perpetually, unless an agreement for their sale should be ratified by a two-
thirds vote. I do not believe that this would ever be secured. I fear that they would hold
these great tracts in perpetuity for pasturage and hunting purposes. I may be mistaken in
regard to the effect of the two provisions taken in conjunction, and I simply beg to call
your attention to the point.
As cartas de Powell mostram que ele estava bem consciente de que um
significativo número de índios nunca iria votar para alienar terras do controle tribal e que,
se deixados por sua conta, eles iriam dar a esta terra seus próprios usos. Isso seria
"desastroso", segundo o Major. Em uma tabela anexada a sua carta, Powell notava
cuidadosamente o número de índios em cada reserva ao lado dos acres de terra que
controlavam. Disso, podemos deduzir que o "desastre" que preocupava o Major era o uso
da terra para propósitos econômicos tradicionais em lugar de sua incorporação a seu
papel "apropriado" no interior de um sistema econômico de mercado. Powell temia que o
respeito pelo processo de decisões tribal significasse "terra demais para pouco índio". Sua
solução para esse problema era que o Congresso devia usar todos os meios em seu poder
para destruir e burlar as tribos indígenas enquanto unidades socioeconômicas e políticas,
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
113
reforçando — por meio do loteamento — a individualização da base fundiária da tribo e
o "alistamento compulsório" das pessoas, por meio desse mecanismo, para a economia de
mercado.
O senador Morgan compreendeu claramente a mensagem de Powell. Finalizando
sua leitura das cartas de Powell, Morgan observou que o decreto do loteamento diante do
Congresso, tal como redigido, iria permitir a 1/3 dos membros de qualquer tribo dada
bloquear as vendas de terras feitas pela tribo. Morgan concluiu, baseado no relatório de
Powell, que permitir aos índios votar se iriam ou não aceitar o loteamento —
especialmente se tal votação fosse baseada em uma maioria de 2/3 — iria "manter os
índios em sua organização tribal, e sob a lei como agora é, em absoluta perpetuidade",
congelando quaisquer planos dos brancos para sua "melhoria" ou pela abertura de suas
terras. Ele concluiu suas objeções lembrando ao Congresso que isso daria aos índios terra
equivalente a seis estados. Obviamente, não se podia permitir que os índios decidissem
por si mesmos, como uma unidade social, se eles desejavam ou não o loteamento. Tal
decisão precisava ser posta nas mãos de indivíduos — ou, melhor ainda, inteirmaente
removidas das mãos dos nativos (id: 1751-1753).
Morgan então requeriu que a monografia de Powell sobre "Wyandot
Government" fosse lido no próprio Congresso e colocado nos arqivos do mesmo como
documento official, afirmando que se tratava de um documento importanto porque
"talvez mais de dois terços das tribos de índios da América do Norte eram organizadas
em seus governos tribais na mesma base que o governo dos Wyandot". Fica bastante
claro nessas observações que Morgan pretendia que a monografia de Powell fosse
entendida pelo Senado como uma planta de como funcionava um "típico" governo
indígena. Em "Wyandot Government", Powell mostra que o grupo (e, por extensão, os
índios em geral) compreendiam sistemas de posse da terra e que seu sistema corrente era
bastante complexo. O problema, como delineado no monografia, não era que a
inexistência de um sistema nativo de posse da terra, mas o fato de que este sistema era
coletivo, sendo determinado pela autoridade tribal sobre as famílias e gens em questão, e
não privativo, ou individualizado. Isso, segundo Powell, era a principal força separando
os índios da civilização, pois a propriedade individualizada da terra era "aquela forma de
propriedade que é característica da civilização" (id: 1803-1811).
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
114
O senador Morgan compreendeu a mensagem de Powell subjacente em "Wyandot
Government" bastante bem. Ele descreveu o relatório como "muito instrutivo", e
sublinhou o fato de que veio "de uma autoridade tão elevada" na vida indígena. Morgan
então tirou as conclusões óbvias do material que Powell lhe deu, e declarou ao Senado
que a dissolução da relação familiar indígena iria necessariamente resultar na dissolução
de todas as relações tribais, e que isso, por sua vez, eliminaria a propriedade comunal
indígena da terra: "enquanto essa instituição tribal continuar, irá agarrar-se àquilo em que
se baseia, e isto é a comuna em tudo que se relaciona a terras".
I know we have got to get at the subject; we have to strike at the root; and in
order to do it effectually we need not expect to get the consent of the Indians. They will
not aid us thus to strike at their institutions. We must now commence to govern them.
The proper way to commence to govern them is to have written laws that will bear
directly upon them. Let the laws be just and wise, but do not hesitate to lay your hand
upon the plow, and then never look back when you march in the direction of the
civilization of the Indians. (Ibid: 1811)
Os efeitos das intervenções de Powell
A intervenção de Powell nos debates no Congresso relativos aos Assuntos
Indígenas demonstram dois fatos importantes. Em primeiro lugar, Powell apoiava
plenamente a civilização e assimilação compulsórias dos índios. Em outras palavras, ele
não acreditava que os índios devessem ser fisicamente exterminados, mas deveriam em
lugar disso ser absorvidos no corpo político americano. Isso, em si mesmo, é um fato
importante no contexto de um debate que ocorria apenas alguns anos depois de o General
Custer ter perdido seu comando e seu louro escalpo para os Sioux e seus aliados.
Em segundo lugar, as intervenções expõe a dívida de Powell às teorias
evolucionistas de Lewis Henry Morgan, bem como certos desvios significativos em
relação a elas. É preciso lembrar que Ancient Society foi publicado em 1877, três anos
depois da primeira intervenção de Powell diante do Congresso, e quatro anos antes de
suas cartas ao senador Teller, em 1881. Seu relatório de 1878, conclamando à fundação
do Bureau of Ethnology, é quase que uma reafirmação direta das teorias de Morgan sobre
a evolução social da humanidade. Como aponta Curtis Hinsley, a maior dívida do Major
para com Morgan foi sua crença de que as diversas tribos da América do Norte podiam
ser qualificadas quanto a seu progresso ao longo de uma série de estágios discretos e
claramente demarcados de civilização humana. A maioria delas, de fato, podia ser situada
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
115
no estágio selvagem, que o próprio Morgan chamara uma vez de "o [ponto] zero da
sociedade humana", qualificando sua afirmação com a declaração de que ënquanto o
pele-vermelha permanecer preso a seu encantamento, não havia esperança para sua
elevação". Powell também acreditava claramente na visão de Morgan de que as relações
de propriedade eram tanto o motor primário do desenvolvimento humano quanto a régua
pela qual a civilização podia ser medida (Hinsely, 1981: 147-148; Morgan, 1851: 141-
143).
Podemos ver o impacto da obra de Morgan sobre a compreensão de Powell da
questão indígena comparando seus comentários de 1874 com aqueles de 1878. Em 1874,
o Major restringia-se basicamente a apresentar dados puramente etnológicos ao
Congresso. A situação dos Ute obedecia a certos padrões históricos, mas era em grande
medida apreendida como sui generis. Era a percepção especial de Powell dessa tribo
particular e de suas relações concretas com seus vizinhos que faziam dele uma fonte
valiosa de informação para o Congresso. Em 1878, em contraste, Powell apresentou
àquele órgão toda uma teoria de evolução social, na qual grupos indígenas dados eram
situados como exemplos concretos de leis gerais e subjacentes do comportamento
humano. Foi essa virada em direção às teorias antropológicas do momento que fez de
Powell uma "tão alta autoridade" nos debates congressionais sobre o loteamento, e o
transformaram em um homem cujo valor o Congresso iria enfatizar por meio do
estabelecimento do Bureu of Ethnology. Na visão de Powell, as habilidades
classificatórias e analíticas da etnologia deviam ser usadas para fornecer uma base sólida
para uma compreensão geral da humanidade como um todo e, assim, para a engenharia
de um futuro humano comum. Hinsley aponta que esse projeto incluía a recuperação da
história e cultura nativas que proveria a base para o que seria mais tarde conhecido como
"etnografia de salvamento" [salvage ethnography]:
Powell’s report of 1878 presented the logic of the early BAE. In the first place,
Morgan had demonstrated that the American Indian must be understood not as a racial
category but as a savage state of human culture. Understanding of the Indian thus
required total comprehension of savagery, which could only be accomplished through
centralized, systematic study of aboriginal populations. At the same time, however,
Powell aimed at a second, distinct goal: tracing of historical migrations and contacts
between tribes and stocks. Thus at the founding Powell blended the historical and
classificatory orientations that had coexisted for decades within American anthropology.
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
116
He thereby built into the Bureau a dichotomy of purpose that would both enrich and
plague its operations for the rest of the century (Hinsley, 1981: 150).
Hinsley, no entanto, desconsidera dois pontos. É verdade que a leitura de Powell
de Morgan transformou índios racializados no selvagem primitivo, um homem como
qualquer outro, embora ocupante de uma posição distintamente inferior na escala da
evolução social humana. Embora isso possa ter de fato representado um salto quântico
adiante para o pensamento antropológico, a mudança não redefiniu radicalmente as
posições morais ou políticas dos índios americanos diante de seus vizinhos brancos. Os
índios continuaram a ser pensados como atrasados e subordinados, não importa o quão
perfeccionáveis pudessem ser. Como aponta Pearce, embora essa transformação tenha
tido lugar no interior de um arcabouço científico objetivista, que buscava descrever os
fatos por descrever, a noção do selvagem primitivo continuava a situar os índios em um
nível diferente da escala do progresso humano, atrás e abaixo dos brancos (Pearce, 1953:
130-134).
Além disso, concentrando-se na fusão das orientações histórica e classificatória
que Powell combinou no início do BE, Hinsley deixa de lado uma outra "dicotomia de
propósitos" que foi construída nesse período e que iria afligir a antropologia americana
para bem além do fim do século XIX. Refiro-me, é claro, ao entendimento contido nos
relatórios de Powell de que a antropologia pura ou teórica iria naturalmente levar a
aplicações na administração de povos subordinados insuficientemente civilizados. A
síntese morganiana de Powell não interessava ao Congresso devido a sua renovação do
projeto antropológico, mas antes porque prometia fornecder uma solução científica e
racional ao problema indígena. Esse era o ponto decisivo que permitiu o financiamento
federal para uma instituição antropológica nacional. Apresentando as múltiplas realidades
e histórias dos grupos nativos como exemplos particulares de uma lei geral subjacente e
situando-os em uma escala de evolução humana que tomavva a sociedade branca,
americana e protestante como seu ápice, Powell reforçava a noção de que todos os grupos
nativos eram simples variações do mesmo essencial problema indígena: ausência de
civilização devido à ausência de um conceito de propriedade privada, especialmente da
terra. Em suma, esse problema, como configurado pela Major, era que as estruturas
sociais e econômicas brancas tornavam impossível para os índiso sobreviver das
maneiras que estavam acostumados. Para sobreviver, os índios precisavam aprender um
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
117
novo modo de vida, um que revolvia em torno da adaptação de certas estruturas
familiares e de posse fundiária interligadas. A síntese por Powell das teorias morganianas
trazia a esperança de que esse problmea pudesse ser resolvido de uma maneira
razoavalmente econômica e rápida por meio da intervenção direta do Estado no problema
— o que uma geração posterior viria a entender como engenharia social.
O contato pessoal do Major com índios americanos durante essas explorações no
Oeste fizeram-no acreditar que eles precisavam ser transformados para poder sobreviver.
Suas leituras de Morgan fizeram-no dar-se conta de que as estruturas sociais, políticas, de
parentesco e econômicas de uma sociedade dada são intimamente entrelaçadas e que para
mudar uma é preciso mudar as outras. As aplicações de Powell de Morgan ao problema
indígena oferecia a esperanca de que os índios tornariam-se civilizados em pouco tempo
por meio de sua adoção da posse individualizada da terrra. Os índios eram
indisputavelmente parte da humanidade, e se o homem podia elevar-se à civilização (e o
homem europeu indisputavelmente o fizera), então os índios podiam fazer o mesmo. A
questão, pois, era de como fazer os índios internalizarem os hábitos e padrões de
pensamento do próximo nível de civilização. Isso, na opinião de Powell como etnólogo e
sertanista, poderia ser feito melhor por meio da instituição forçada das noções anglo-
saxãs de família e propriedade privada entre grupos nativos.
Powell não chegou a essa conclusão abstrata e academicamente. Dada a crise
pública nos Assuntos Indígenas no momento, ele viu uma oprtunidade para trazer suas
teorias à atenção do Congresso como conceitos que poderiam consitituir uma base prática
para uma nova política indígena. Nisso, Powell estava trabalhando por sua própria
promoção profissional e para a promoção da etnologia, em geral, como uma campo
científico respeitável. Em troca do financiamento e de um assento nos conselhos federais,
Powell essencialmente apresentou a etnologia como um instrumento para o uso do
Congresso na resolução do Indian problem. Fazendo isso, porém, ele criou uma distorção
significativa nas teorias de Morgan.
Enquanto Ancient Society dividisse a humanidade em vários estágios segundo seu
grau de civilização, tinha muito pouco a dizer sobre como qualquer grupo homano dado
poderia mover-se de um estágio para outro, e quanto tempo isso levaria. Morgan era
particularmente vago sobre este ponto e, quando pressionado a dar um cronograma, ele
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
118
geralmente indicava que tal transformação tomaria um bom tempo (Hoxie, 1981: 20;
Morgan, 1877; Prucha, 1976: 153).
O relatório de 1878 de Powell é igualmente vago em sua reafirmação das crenças
morganianas. A essência do relatório era que a etnologia poderia prover uma
compreensão básica do problema indígena e de como ele poderia ser eventualmente
resolvido, mas não fazia sugestões específicas sobre o que fazer para apressar essa
solução. De fato, em 1878, o Major advertia especificamente o Congresso de que os
índios não poderiam ser transformados "em um piscar de olhos".
Três anos depois, todavia, Powell modificara sua compreensão de Morgan.
Embora ele ainda lembrasse o senado de que "a selvageria não pode ser subitamente
transformado pela magia da lei em civilizaçao", ele agora acreditava que ele poderia, com
efeito, ser transformado em um intervalo razoável de tempo por meio de injeção de
noções anglo-saxãs de propriedade privada, estrutura familiar e posse fundiária. Além
disso, Powell deu ao Congresso um conjunto preciso de procedimentos que poderiam ser
usado para efetivar essa transformação.
Antes de mais nada, sociedades indígenas precisavam ser completamente
desmanteladas. "Wyandot Government" fornecia uma descrição relativamente acurada de
como as estruturas políticas, sociais e econômicas dos Wyandot encontravam-se
entrelaçadas e, em seguida, Powell deu ao Congresso uma "receita" para a demolição das
sociedades indígenas: ataque as estruturas da família extensa por meio da extensão da
propriedade privativa. Os censos deviam registrar as famílias indígenas conforme
conceitos brancos de parentesco e herança. A terra seria então medida e loteada segundo
este registro por agrimensores competentes do governo e não — crucialmente — por
índios. Finalmente, Powell enfatizava que as estruturas sociais e políticas indígenas
precisavam ser completamente transtornadas nesse processo. A terra devia ser dada a
qualquer um que a requisitasse, sem recurso a votação tribal. Essa provisão não era
devida à senilidade das estruturas sociais e políticas indígenas, mas antes a sua força e
relativo vigor. Powell estava bem consciente de que os chamados elementos progressistas
da maior parte das tribos — isto é, indivíduos que já estavam muito bem integrados nas
estruturas socioeconômicas e culturais da sociedade de mercado e buscavam sua
expansão na tribo — eram em geral minoria. A terra tinha então de ser parcelada segundo
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
119
os indivíduos o requisitassem e sem a permissão da tribo como um todo. Isso iria "atacar
pela raiz" da "terra comunitária" que estava na "base da instituição tribal", provocando
uma corrida pela terra entre os próprios índios, com cada chefe de família buscando
salvar o que pudesse para si e sua família. Terras indígenas restantes depois do
loteamento estariam então abertas à "melhoria" pela civilização branca.
A mensagem de Powell foi bem compreendida pelo Congresso, e a fundação do
Bureau of Ethnology da Smithsonian parece confirmar a observação de Talal Assad de
que a cooperação antropológica com autoridades do Estado em assuntos práticos relativos
à administração dos nativos resultou em benefício significativos para a antropologia
(Assad, 1973: 17). Mas, quão significavas foram as recomendações de Powell em termos
do estabelecimento da nova política indígena representada pelo Dawes Act de 1887?
É impossível, é claro, chegar a uma resposta conclusiva a essa questão sem uma
pesquisa mais extensa. É preciso lembrar que as opiniões de Powell estavam longe de ser
exclusivamente suas, sendo encontradas nos discursos de vários outros agentes então
ativos nos debates do loteamento — de maneira especialmente crucial, entre vários dos
missionários e reformadores protestantes ativos nas Conferências Mohonk sobre
Assuntos Indígenas
8
, e na recém-formada Indian Rights Association (Prucha, 1976: 136-
140). Como aponta William T. Hagan, a maior parte dos brancos mais inteligentes e
informados da época acreditava que a propriedade privada seria a "porta para a
civilização" indígena, durante e depois do período dos debates sobre o loteamento
(Hagan, 1956).
As idéias dos antropólogos, entretanto, não eram uma força que operasse
separadamente desses padrões de crença; antes, estavam intimamente envolvidos em sua
formação, por meio de um processo dialético de produção discursiva. Em um mundo
cada vez mais movido pelas necessidades da racionalidade, a antropologia social
evolucionista oferecia uma reelaboração adequadamente científica e secular dos
8
A Lake Mohonk Conference dos Amigos do Índio era um encontro anual que reunia os principais ativistas
lutando por reforma dos assuntos indígenas entre 1883 e 1916. A Conferência servia como um fórum onde
reformadores liberais discutiam métodos para melhoria da condição indígena, incluindo o desenvolvimento
das artes e indústrias indígenas, melhora da educação, controle da venda de alcóol e reforma do altamente
político Office of Indian Affairs". Um dos mais importantes programas apoiados pela conferência era o
plano para o loteamento em regime privativo.
(http://www.lexisnexis.com/academic/2upa/Anas/LakeMohonkConf.asp).
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
120
conceitos protestantes e anglo-americanos de destino manifesto. Como nos lembra Curtis
Hinsley, "No último terço do séc. XIX, as direções básicas do crescimento americanos já
não estavam mais abertas ao debate, e elas implicavam destruição para as culturas
aborígenes".
Social evolution was one way of dealing with discrete, unequal human fates.
Evolutionary modes of thought imbued the economically inevitable with a veneer of
moral grace as Americans turned to science to assure the rightness and acceptance of
current trends. Understandably, identity as a scientist in Victorian America provided not
only desirable status but the illusion of individual power to shape human affairs. The
fascination with science and the scientist may be seen, in fact, as an important part of an
effort to discover motivation and cause other than economics to justify the vulgar
prosperity and hidden misery of American society: if the transcendent Yankee was still
alive in Gilded Age America, then the task of social scientists was to uncover proof of his
existence. This need was as old as the Puritan settlements; only the language was new.
(HINSLEY, 1981: 146-147)
Nesse sentido, pois, uma das tarefas essenciais do Bureau of Ethnology era
fornecer uma continuação científica para ideologias americanas tradicionais do progresso
inevitável, determinado por forças supra-humanas. Isso era muito facilitado pelo fato de
quemuitos dos etnólogos empregados pelo Bureau não eram apenas cientistas, mas
cientistas, protestantes, republicanos e anglo-saxões. Esses estados identitários eram
inextrincavelmente entrelaçados com suas vidas cotidianas e trabalho profissional.
Embora missionários e reformadores republicanos fossem ainda rápidos em citar
mandatos divinos, esses sentimentos já não eram suficientes para ganhar os debates nos
Assuntos Indígenas, como demonstraram os escândalos que irroperam sobre o controle
missionário de reservas durante o período da Política de Paz de Grant (Prucha, 1983:
162-163). Dado isso, mesmo os clérigos e devotos estavam prontos para citar as provas
científicas providas pelos antropólogos. Em uma tal situação, não era de modo algum
incomum encontrar clérigos citando Sir Henry Maine sobre o papel da propriedade
privada no desenvolvimento da civilização ou etnólogos evocando as jeremiads (Hagan,
1956: 128). Pode-se testemunhar claramente está mistura de sagrado e sccular nas noções
oitocentistas de civilização nas palavras do reformador indígena Lyman Abbot,
proferidas na Lake Mohonk Conference de 1885:
[T]hree hundred thousand people have no right to hold a continent and keep at
bay a race able to people it and provide the happy homes of civilization. We do owe the
Indians sacred rights and obligations, but one of those duties is not the right to let them
hold forever the land they did not occupy, and which they were not making fruitful for
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
121
themselves or others… Christianity is not merely a thing of churches and school-houses.
The post-office is a Christianizing institution; the railroad, with all its corruptions, is a
Christianizing power, and will do more to teach the people punctuality than schoolmaster
or preacher can. (PRUCHA, 1976:160)
Seria impossível mapear realmente a influência da antropologia nesses debates
sem uma pesquisa mais específica que tentasse reconstruir as redes políticas e sociais do
período em questão. Todavia, pode-se concluir tentativamente que a influência da
antropologia no debate sobre o loteamento foi bastante significativa e, muito
provavelmente, crucial.
Nesse contexto, é preciso reconhecer que o modelo de loteamento seguido pelo
Dawes Act não era necessário nem inevitável: outras possibilidades estavam disponíveis e
foram discutidas. Os debates giravam em torno de diversos pontos cruciais da proposta.
Seria a terra loteada privativamente ou dada ao grupo como um todo? Como se deveria
compreender as famílias para os propósitos de posse da terra? Poderiam lotes individuais
ser separados da base fundiária comum sem a permissão da tribo? O próprio grupo
indígena tinha de reivindicar o loteamento, ou este poderia ser levado em frente sem
considerar as entidades sociopolíticas indígenas? Quem iria medir e distribuir os lotes? A
versão final do decreto, descrita no começo deste capítulo, seguia as sugestões de Powell
sob quase todos os aspectos. A terra loteada seria alocada a indivíduos, não a tribos. Seria
medida pelos agentes do governo federal e distribuída conforme padrões de família
anglo-saxões, com chefes masculinos de famílias nucleares recebendo tratamento
preferencial. Embora os lotes não pudessem ser dados para indivíduos índios que os
requeressem, como Powell aconselhara, tampouco sua distribuição estava ligada ao
consentimento social do grupo nativo em questão. O presidente dos Estados Unidos
deveria decidir quando e onde o loteamento seria feito, seguindo presumidamente a
requisição do Comissário do OIA ou dos comitês da Câmara e/ou do Senado — as
estruturas sociopolíticas indígenas deveriam ser completamente ignoradas.
De maneira reveladora, o loteamento não seria mais considerado como uma
maneria de conferir títulos de terra aos índios e preservar assim sua base territorial: seria
entendido como o primeiro passo em um processo que iria inevitavelmente fazer com que
os grupos indígenas desaparecessem como povos reconhecíveis, transformando-os em
cidadãos americanos indistinguíveis, em seus direitos e responsabilidades, de qualquer
Cidadãos e Selvagens Capítulo II
122
outro grupo de americanos. Os reformadores e etnólogos dos anos 1870 e 1880 viam a si
mesmos, e eram claramente vistos, como "amigos do índio". Todavia, como Prucha
assinala, esses "amigos do índio partiram com boas intenções para stamp out a
indianidade de uma vez e substituí-la por uma americanidade uniforme; para destruir
todos os resquícios de existência corporada ou tribalismo e substituí-los por um rude
individualismo absoluto que era estranho às tradições e corações dos povos indígenas"
(Prucha, 1976: 167-168). As intervenções de Powell no debate sobre loteamento foram
cruciais em transformar o loteamento, de um meio de garantir direitos territoriais
indígenas — como estipulado por Tibbles, pelos LaFlesches e por seus apoiadores da
costa leste como Helen Hunt Jackson — em uma grande tentativa de engenharia social.
Mas os antropólogos viriam a ter um impacto ainda mais importante e prático
sobre o debate do loteamento: eles iriam usar suas habilidades etnológicas para provar
sua viabilidade e implementá-lo como uma política prática. Para compreender esse
aspecto do envolvimento da antropologia nos Assuntos Indígenas no fim do séc. XIX,
precisamos nos voltar para a história de um dos etnógrafos mais ativos deste detabe,
Alice Cunningham Fletcher.
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
124
Capítulo 3
Alice Fletcher: etnografia e práticas administrativas
Science has her missionaries as well as religion, and the scientific study of peoples has noticeably
modified the methods of the Christian missionary. The conviction that savage races are in
possession of our family records, that they are our elder kindred, wrinkled and weather-beaten,
mayhap, but yet worthy of our highest respect, has revolutionized men’s thoughts and feelings
respecting them. The Bureau of Ethnology has its missionaries among many of the tribes in our
domain, no longer bent on their destruction, but treating them with the greatest consideration, in
order to win their confidence, to get down to their level, to think their thoughts, to charm them
from their sibylline secrets. It sounds something like the old Jesuit relations, to hear of Mr.
Cushing at Zuñi, eating vile food, wearing savage costume, worshipping nature gods, subjecting
himself to long fastings and vigils, committing to memory dreary rituals, standing between Indians
and their white enemies on every hand, in order to save their contributions to the early history of
mankind. You will recall the fact that, an honorable senator more than a year ago offered, as an
argument against sudden disruption of tribal affinities, an elaborate scheme of the Wyandotte
Confederacy [written by John Wesley Powell].”
- Otis T. Mason, “The Scope and Value of Anthropological Studies,” 1883.
1
A citação acima de Otis T. Mason, vice-presidente da seção H (Antropologia) da
American Association for the Advancement of Science, revela transformações e
continuidades no uso da metáfora "salvar o índio" no fim do século XIX. Embora
inserida em um projeto cientificista, objetivista, que buscava recuperar provas do passado
do homem civilizado nas vidas diárias de primitivos contemporâneos, as práticas
daqueles engajados nessa tarefa ecoavam, de diversas maneiras, aquelas dos missionários
cristãos que os antecederam. Basicamente, elas consistiam em "tratar os nativos com a
maior consideração" de maneira a "ganhar sua confiança", ao mesmo tempo "mantendo-
se entre eles e seus inimigos brancos". Além disso, como demonstra a citação de Brinton
que abre o capítulo 2, esse projeto seguia uma lógica subjacente, que teria sido muito
familiar aos fundadores cristãos das "vilas devotas" da Nova Inglaterra do séc. XVII. Em
ambos os casos, o envolvimento dos brancos com a alteridade indígena consistia, em
última instância, em uma tentativa de engenharia de uma sociedade que iria oferecer um
exemplo do que o homem deveria ser. No caso dos primeiros cristianizadores, esse
projeto buscava glorificar a natureza imanente do destino manifesto protestante por meio
1
Discurso feito na American Association for the Advancement of Science, Section H – Anthropology, pelo
Vice-Presidente da Seção, 15 de agosto de 1883. Publicadno em in Science, 14 de setembro de 1883.
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
125
da conquista bem-sucedida de almas pagãs. Para o etnógrafo do fim do séc. XIX, o
objetivo último de sua ciência era mapear um ponto originário da experiência humana —
"o grau zero da existência humana", para usar os termos de Morgan — que, daria um
ponto incial para a evolução social humana. Acompanhado essa linearmente através da
história da antiguidade, feudalismo e modernidade, permitiria a previsão — e assim a
engenharia — do que a humanidade seria no futuro. Em ambos os casos, o objeto era a
recuperação de essências indígenas como um instrumento para a construção de futuros
brancas.
A "salvage ethnography" do fim do séc. XIX evitava, formalmente, a civilização
dos índios como um projeto apropriado para a reflexão etnográfica, ao mesmo tempo que
os antropólogos apontavam para os políticas as contribuições pragmáticas que seu
conhecimento poderia fazer na transformação dos índios em cidadãos. A civilização,
nessa visão das coisas, era uma teoria antropológica dada, não um objeto a ser
questionado. Como demonstramos do capítulo 2, todavia, a questão indígena estava
muito presente no nascimento da antropologia moderna americana enquanto uma lógica
de apoio para o financiamento governamental. Iriam ser os etnógrafos em campo que
estariam mais sujeitos às contradições e cumplicidades criadas pela mistura das lógicas
da antropologia e da administrção indígena do que os teóricos do Bureau of Ethnology da
Smithsonian.
Algo aproximado das noções modernas de trabalho de campo etnográfico estava
em desenvolvimento na América do Norte durante o final do século XIX. Como aponta
George Stocking, estudiosos como Frank Hamilton Cushing, Alice Fletcher e James
Mooney estavam partindo para o campo já nas décadas de 1880 e 1890, de modo a viver
em íntima proximidade com os índios por períodos extensos. Os comentários de Otis
acima nos lembram que Cushing foi bem além do que Malinowski iria mais tarde
demonstrar em sua aproximação à vida e costumes nativos durante o trabalho de campo,
adotando a vestimenta e hábitos indígenas, sendo iniciado a uma sociedade secreta
religiosa e quase casando-se na tribo. Se, seguindo Loïc Wacquant, devemos entender
que a chave para uma etnografia bem sucedida é uma "inserção refletiva, incorporada, na
vida nativa", seria difícil ver qualquer coisa de revolucionária nas técnicas de campo
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
126
posteriores de Malinowski que não estivesse já prefigurado naquelas de certos etnógrafos
americanos do séc. XIX (Hinsley, 1989: 176; Mark, 1988: 40-41).
2
O poder no interior do Bureau of Ethnology e nas estruturas a eles associadas,
todavia, não residia nos pesquisadores de campo, mas de homens como Powell e Mason
(que era também o primeiro curador de etnologia do Museu Nacional). Washington DC
era um dos principais nexus do campo da antropologia em expansão, e os homens e
mulheres instalados nos salões da Smithsonian Institution na capital da nação constituíam
sua elite. Uma carreira de sucesso típica na antropologia daquele tempo seguia o padrão
de James Owen Dorsey que, depois de dois longos períodos de campo entre os Ponca e
Omaha em 1871-73 e 1878-80, retirou-se para Washington DC por praticamente o resto
de sua vida profissional para analisar e elaborar seus dados (Hinsley, 1981: 174).
Em uma tal situação, as práticas efetivas dos etnógrafos no campo tenderam a
desconectar-se de sua produção como antropólogos. Dizer isso não é negar, como
apontou Curtis Hinsley, que muitos etnógrafos americanos do fim do século XIX se
identificassem produndamente com os povos que estudaram, algumas vezes a ponto de
causar confusão em suas identidades pessoais. Todavia, enquanto que muitos
missionários do séc. XVII abordaram a salvação dos selvagens de uma perspectiva mais
holística, compreendendo sua presença entre os nativos e a atividade política de "manter-
se entre eles e seus inimigos brancos" como uma parte integrante do processo de
salvação, os etnógrafos do séc. XIX foram encorajados a separar lógica e
emocionalmente os processos pelos quais recuperavam os "segredos sibilinos" dos
selvagens de suas análises científicas dessess conhecimentos. Ia-se para o campo coletar
dados e depois retornava-se ao lar institucional para analizá-los. Os efeitos do
envolvimento etnográfico, as congruências políticas e emocionais necessárias para
"ganhar a confiança [dos índios] e descer ao nível deles" — as simpatias que Johannes
Fabian mais tarde descreveria como "partilhar momentos" [sharing time] — eram
2
Hinsley observa que faltava aos primeiros pesquisadores de campo, como Cushing e Mooney, um certo
profissionalismo e inserção profissionais que inibia o desenvolvimento do material que coletavam. Nesse
sentido, pois, diferiam fundamentalmente de Malinowski, que era, antes de tudo, um antropólogo
profissional, academicamente enquadrado. Todavia, tal crítica simplesmente desloca o foco da
singularidade da contribuição de Malinowski, que não estaria, neste caso, na descoberta da moderna técnica
de trabalho de campo, mas em seu desenvolvimento e reprodução (HINSLEY, 1981: 222-224). Os
comentários de Wacquant foram feitos em uma palestra proferida no IFCS/UFRJ em dezembro de 2005.)
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
127
compreendidas como um subproduto da prática etnográfica, não uma parte central de sua
produção. Como assinala Frederick Hoxie, "o que Fabian observa sobre os pesquisadores
europeus na África não era menos verdade dos euro-americanos no Território Indígena.
Ambos os grupos estavam sob 'o encantamento de uma […] ficção enganadora […] de
que o Tempo interpessoal, intergrupal, de fato, internacional, é 'tempo público', ali para
ser ocupado, medido e alocado pelos poderes constituídos'. Uma tal perspectiva permitiu
aos antropólogos nos Estados Unidos manterem-se simpáticos aos nativos reais e
desapaixonados em suas análises sobre eles. Uma vez descobertos, os índios podiam
tornar-se objeto para um 'estudo interessante', mas não deviam ser confundidos com co-
residentes humanos da república". Para que se tornassem membros da república, os
índios precisavam ser transformados, e a antropologia podia ajudar a traçar o caminho
para essa transformação. Com essa análise, concordavam quase todos os antropólogos
americanos do fim do séc. XIX (Hinsley, 1983: 55, Hoxie, 1992: 973; Fabian, 1983:
144).
Os etnógrafos do século XIX tinham "duas cabeças" quando se tratava de "seus"
índios: simpáticos a eles quando no campo e pragmáticos quando fora dele. A simpatia
envolvia demonstrar respeito pelas tradições, tecnologias e modos de vida dos nativos
para melhor registrá-los; o pragmatismo significava compreender que o futuro dos
nativos americanos estava já inscrito como o de uma raça conquistada que iria
necessariamente desaparecer. Onde a simpatia condicionava os etnógrafos a tentar
compreender os nativos de dentro, a pragmática determinava que qualquer solução
possível para o problema indígena fosse imposto de fora. Enquanto a maior parte dos
antropólogos recusasse as variantes mais violentas do que Brian Dippie chama a teoria da
"raça altiva mas desvancenente" [bold but wasting race] da dinâmica populacional
indígena, sua rejeição do genocídio físico não significava que vislumbrasse qualquer
futuro para os índios, enquanto tal, nos Estados Unidos. Se famílias e indivíduos nativos
podiam continuar, as polities, sociedades e tradições nativas precisavam inevitavelmente
desaparecer. O papel apropriado para os antropólogos desejosos de salvar os índios,
assim como seu conhecimento, era dirigir suas energias para a causa da civilização
indígena nos salões do Congresso e no campo. Era nessas duas arenas que o
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
128
conhecimento etnográfico podia ser transformado em políticas pragmáticas para a
América nativa.
Infelizmente, antropólogos, como um todo, não estavam dispostos a dedicar tanto
tempo e esforço a estudar os usos a que seu conhecimento estava sendo posto quanto
estavam em produzir esse conhecimento para começar. As observações de Mason
relativas aos usos políticos da monografia de Powell sobre os Wyandot mostram que ele
estava bem ciente — e mesmo orgulhoso — do fato de que o conhecimento antropolótica
era pragmaticamente aplic´avel a questões gerais no campo dos Assuntos Indígenas.
Elas também revelam, todavia, um interessante equívoco na interpretação desses usos.
Mason escreveu apenas dois anos depois do evento. Como curador do National Museum,
ele era um dos mais poderosos antropólogos de seu tempo. Dados esses fatos, é bastante
significativo que ele tenha entendido o uso pelo senador John Morgan de "Wyandotte
Government"como um "argumento contra a súbita ruptura das afinidades tribais". Na
verdade, como vimos no capítulo 2 acima, o senador leu a obra de Powell como uma
injunção para "cortar pela raiz" a posse coletiva índigena da terra precisamente por meio
da ruptura das afinidades tribais". O fato de que Mason pudesse interpretar erroneamente
o uso pelo Congresso dos dados antropológicos diante de um encontro nacional de seus
colegas indica duas coisas. Em primeiro lugar, mostra que os membros dos estratos
superiores da antropologia americana estavam bem cientes do valor pragmático de seu
trabalho e estavam preparados para citá-lo como justificativa do valor da antropologia
para a nação e humanidade. Em segundo lugar, indica uma falta de disposição para
abordar a substância de como os dados antropológicos estavam sendo usados. Não é
menos que notável que Powell pudesse defender que o Congresso dirigisse golpes
estratégicos diretos contra as estruturas sociopolíticas nativas enquanto, do outro lado do
National Mall, seu amigo e colega mais próximo, o curador etnográfico do National
Museum, representasse ao mesmo tempo essas duas intervenções diante da elite da
antropologia americana reunida como argumentos contra a "súbita ruptura das afinidades
tribais". Com certeza, nenhum dos dois homens preocupou-se muito sobre como os
informantes nativos de Powell teriam julgado a performance do Major para o Congresso.
Mas, se das alturas olímpicas do Castelo Smithsoniano as contradições potenciais
entre o "partilhar momentos" com os nativos e a colaboração com os assimilacionistas no
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
129
Capitólio parecem pouco preocupantes, para o etnógrafo individual no campo, a
navegação por essas contradições era muitas vezes uma condição para o trabalho de
campo bem sucedido. Os etnógrafos do século XIX, é claro, não escrutinizavam seu
envolvimento com os políticos tribais ou com o aparato administrativo oficial como uma
parte integrante da produção do conhecimento antropológico. Todavia, sua situação como
aliados ou inimigos de atores políticos localmente situados — tanto brancos quanto pele-
vermelhas — poderiam afetar os dados que afetam os dados que eles coletam e as
maneiras como eles eram apresentados.
Em primeiro lugar, o acesso aos índios dependia geralmente da disposição do
etnógrafo de não interferir com os planos dos administradores do OIA e, em particular, de
evitar coflitos com o principal funcionário do Bureau na reserva, o Agente. Como
assinala Clark Wissler, esses indivíduos eram, de fato, os governantes autocráticos das
reservas do final do século XIX:
In the days of which I write, a reservation was land under direct control from
Washington and all the laws passed by territorial and state governments were null and
void inside the reservation line… [The Agent] was supreme in his domain, responsible to
Washington only, so why should he condescend to recognize the local government? And
he was an autocrat, if ever there was one – a dictator we might call him now. (Wissler,
1938: 13-14)
Uma das funções primárias do Agente era determinar quais os brancos que
podiam entrar e/ou permanecer em terras indígenas:
When a white visitor stepped over the reservation line he proceeded at once to
the office of the [Agent]. If neither an Indian or an official of the United States, he would
be under suspicion until he could clear himself (Ibid: 15).
Wissler observa que mesmo um etnólogo com anos de experiência na reserva
precisava abordar o Agente com um certo grau de cautela, pois se este a personagem não
agradassem a aparência, simpatias ou credenciais do estudioso em questão, "não havia
alternativa senão partir imediatamente". Wissler então prossegue classificando esses
temores como "provavelmente sem fundamento", mas a maneira como o faz é
significativa. Neste caso, ele descreve sua aparência para o Agente como a de um
"inofensivo maluco acadêmico, [membro] de uma classe polidamente designada
localmente como 'bug hunters' […], visionário demais para ser perigoso" (id: 15). Wissler
então nos alerta para o fato de que uma das principais maneiras pelas quais um etnógrafo
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
130
pode resguardar-se de ser expulso da reserva era parecer interessando apenas naqueles
tópicos da vida indígena que eram considerados inofensivos pelo Agente. Estudos de
conflitos políticos nativos contemporâneos e de formas de resistência ao confinamento
nas reservas eram, pode-se suspeitar, tópicos que um etnógrafo sábio tenderia a evitar.
Embora não fosse um antropólogo, as experiências do reformador Thomas
Tibbles oferecem um exemplo do que poderia ocorrer a um indivíduo que se envolvia na
política das reservas contra a vontade do Agente. Após retornar de sua viagem de 1879
pela costa leste, buscando apoio dos brancos contra a remoção dos Poncas, Tibbles entrou
sorrateiramente na reserva dos Ponca no Território Indígena para informar os membros
daquele grupo de que haviamsido ilegalmente removidos de suas terras em Nebraska. Ele
foi prontamente expulso da reserva pelo Agente residente (Mardok, 1971: 181-182).
A política nativa era um segundo fator que exercia impacto sobre as atividades de
qualquer etnógrafo dado. A maior parte dos grupos nativos do além-Mississipi durante o
final do séc. XIX (exatamente os grupos "mais primivitivos" que interessavam etnólogos)
estavam passando por um período de extrema pressão, na medida em que seus territórios
de caça eram reduzidos ou eliminados e as tribos reduzidas à vida de reserva. Essas
mudanças econômicas e políticas muitas vezes resultavam na intensificação de disputas
políticas pré-existentes no interior da tribo, que normalmente tomavam como matriz mais
de 200 anos de divergências sobre como se deveria lidar com os brancos. O
desdobramento dessas disputas era a criação de várias facções no interior dos grupos
nativos, que os agentes do OIA e os reformadores tipicamente agrupavam em dois
partidos, progressista e tradicional (Berkhofer, 1963: 207; Prucha, 1984: 217-218).
Herbert Walsh, secretário da Indian Rights Association, a maior força reformista
organizada nos Assuntos Indígenas na Era Dourada Americana [Gilded Age], dá um
exemplo desta visão em um discurso de 1891:
There are two great and sharply defined parties [among Indians]…, either of
which is the creation and representation of an idea. These ideas are antagonistic and
irreconcilable.
First. There is the old pagan and non-progressive party. Inspired by sentiments of
hostility towards the Government and to white civilization, it believes in what is Indian,
and hates what belongs to the white man. It delights in the past, and its dream is that the
past shall come back again – the illimitable prairie, with vast herds of the vanished
buffalo, the deer, the antelope, all the excitement of the chase, and the still fiercer thrill of
bloody struggles with rival savage men…
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
131
Second. A new, progressive, and what may properly be termed Christian party,
whose life was begotten, nourished, and trained by missionary enterprise and devotion…
In these Christian Indians is to be found abundant food for a study of the germs and first
awakenings of civilized life rich in variety and suggestion. They present all possible
differences of age, condition, and of moral and mental attainments… And yet in all this
diversity to be found in the progressive party… is clearly shown one controlling principle
– an awakened moral purpose, newborn, or well-developed, the stirring of an enlightened
conscience, and of a long-dormant intellect (IN: Prucha, 1984: 217-218).
Como apontam David Lewis e William Wash, acompanhando Frederick Hoxie,
esses rótulos partidários são simplificações grosseiras das coalizões políticas muitas
vezes instáveis, fluidas, informais, pontuais, que funcionavam entre os nativos
americanos durante o final do século XIX e início do XX: "existiam normalmente mais
de dois lados [nativos] na maior parte das questões e nenhum dos lados coincidia com a
causa da resistência para a sobrevivência da cultura tribal" (Lewis e Wash, 1991: 146-
147; Hoxie, 1989: 96). Todavia, fosse ou não a dicotomia progressista/tradicional
adequada para descrever as relações políticas em qualquer reserva dada durante o final do
séc. XIX, esse era o arcabouço usado pelos administradores indígenas, etnógrafos e
reformistas para captar os detalhes da política nativa.
A dicotomia "progressista/tradicional" pode ser expandida e relativizada quando
se reconhece o fato de que muitas das tribos do oeste eram dificilmente homogêneas
cultural ou "racialmente". Grupos como os Ponca e Omaha vinham casando-se entre si e
trocando tradições e tecnologias já há algum tempo. Outros, como os Sioux, estavam ao
mesmo tempo fragmentando-se em entidades socioculturais distintas — embora
relacionadas. E em 1880, depois de dois ou mais séculos de contato com os brancos,
quase todas as polities nativas incluíam membros brancos e mestiços [mixed-blood].
Durante o período inicial do contato, as tribos do oeste se conectavam às
sociedades dos brancos e aos mercados globais por meio de comerciantes brancos. Esses
homens muitas vezes casavam-se nas tribos e a prole dessas uniões em geral permanecia
com o grupo nativo se e quando o pai retornava para o Leste. Muitas vezes, essas crianças
e seus pais brancos formavam um grupo identificável no interior da sociedade nativa.
Entre os Sioux em 1868, por exemplo, homens brancos morando na reserva com suas
esposas sioux e seus filhos misturados eram considerados membros plenos da tribo tanto
por nativos quanto por autoridades brancas (Green, 1969: 2; Anderson, 1991: 70-75).
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
132
Mestiços [mixed-bloods] eram muitas vezes vistos — por índios e brancos —
como intermediários entre os dois grupos, e essa visão das coisas era reforçada pelo fato
de que muitos deles falavam tanto a língua indígena quanto a não-indígena (inglês e
francês, em particular). Eles frequentemente seguiam seus pais no comércio e isso dava a
eles uma compreensão tanto da sociedade branca quanto nativa, e de como estas
interagiam, assim como uma vantagem financeira entre os grupos nativos. Comerciantes
mestiços estavam em uma posição ideal para tirar vantagem de quaisquer mudanças na
política administrativa para uma dada tribo, e, como aponta Harry H. Anderson, o
crescimento da quantidade de mestiços e a virada para as políticas assimilacionistas no
fim do séc. XIX de modo geral "adaptava-se aos interesses, necessidades e capacidades
dos mestiços, e servia para elevar ainda mais seu status". Na medida em que as categorias
raciais se cristalizavam no fim do séc. XIX e início do XX, o "progressismo" indígena
tornava-se mais e mais codificado na mente das autoridades brancas (e também nas
descrições dos etnógrafos, como assinala Thomas Biolsi [1997]), como sinônimo do
status de mestiço (Anderson, 1991: 74).
Os etnógrafos raramente chegavam na reserva como uma força neutra. Seus guias,
intérpretes e anfitriões nativos eram geralmente posicionados em um ou outro partido —
muitas vezes, naquele que os brancos viam como o partido mestiço ou progressista — e
os habitantes da reserva eles mesmos estavam bem conscientes dessa posição e de como
esta era interpretada. Os etnógrafos do fim do séc. XIX estavam, é claro, quase que
exclusivamente interessados em informantes puros [full blood] ou tradicionais. Todavia,
enquanto que um índio rotulado como "progressista" pudesse não ser de muito interesse
como informante para um etnógrafo engajado na salvage ethnography, ele poderia valer
seu peso em outro como um interlocutor. Do ponto de vista nativo, uma aliança como um
etnógrafo representava um canal privilegiado de comunicação com a sociedade branca,
um benefício potencialmente significativo durante um período no qual as reservas
estavam sendo desmembradas por ordem do giverno federal e os antropólogos chamados
a testemunhar perante o Congresso. Mais imediatamente, conexões com antropólogos
podiam representar acesso à educação extra-tribal para os filhos, tratamento preferencial
durante o loteamento da terra, e pagamento em espécie por serviços prestados.
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
133
Como discutimos acima, os etnógrafos do final do sec. XIX raramente eram
simples etnógrafos. Como seus predecessores mais abertamente religosos, muitos
"missionários" etnográficos estavam também profundamente engajados em projetos para
transformar os índios. Esses projetos eram muitas vezes conscientemente enraizados em
entendimentos protestantes, republicanos, do destino nacional e do lugar dos índios nisso.
Segundo Prucha, reformadores brancos viam sua missão como sendo a de eliminar os
tradicionalistas nativos e apoiar os progressistas; nesse contexto, é preciso lembrar que
muitos etnógrafos do final do séc. XIX eram reformadores ou pelo menos simpáticos a
sua causa (Prucha, 1984: 217-218).
Entre esses indivíduos, nenhum era mais ativo politicamente nos debates em torno
da reforma dos Assuntos Indígenas e os projetos de loteamento do que Alice
Cunningham Fletcher. Em uma certa medida, foi o trabalho dela entre os Omaha em
meados de 1881 que criou o cenário para a intervenção de Powell e dos antropólogos de
Washington nos debates no Congresso do ano subsequente, descritos no capítulo 2 acima.
É assim para a história da viagem de Fletcher à reserva omaha que devemos nos voltar
agora para desenhar um quadro mais claro de como etnógrafos, administradores e
reformadores interagiram durante o século XIX.
Alice Fletcher
Alice Cunningham Fletcher é uma figura pivotal, tanto na história do
desenvolvimento da moderna antropologia americana quanto na história dos Assuntos
Indígenas. Quando ela partiu da cidade de Omaha para as reservas do médio Missouri em
16 de setembro de 1881, ela era a primeira antropóloga mulher americana a embarcar
para um período de trabalho de campo extenso entre ditos povos primitivos. Além disso,
era um dos primeiros antropólogos de todos os tempos a fazer pesquisa de campo extensa
no estilo da observação participante. Frank Cushing estava a esta altura vivendo em Zuñi,
mas não tinha ainda retornado, nem tampouco suas observações haviam sido publicadas.
A viagem de Fletcher ao Missouri foi assim vista como marcando um dos momentos
definidores do nascimento da moderna técnica etnográfica. Ela se tornou um dos autores
fundadores da antropologia americana, sendo co-autora do que é considerada uma
monografia clássica sobre os Omaha, muito citada mesmo hoje, quase um século depois
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
134
de sua morte. Ela foi também co-fundadora da American Anthropological Association
(Hinsley, 1989: 176; Mark, 1988: 40-41; Lurie, 1968; Gay, 1981).
Figura 3.1 e 3.2: Alice Fletcher joven e nos anos 1880s, quando começou sua pesquisa entre os índios das
Grandes Pradarias. (Smithsonian Institute, NAA, Alice Cunningham Fletcher and Francis LaFlesche
Papers).
Quanto a Fletcher ela própria, todavia, muito pouco foi efetivamente escrito.
Talvez um fator que tenha contribuído para sua obscuridade histórica relativa seja a
posição intersticial que ela ocupava entre a antropologia e os Assuntos Indígenas. Alice
Fletcher não era apenas uma antropóloga, mas uma reformadora, fortemente engajada nos
debates do loteamento dos anos 1880 e, mais tarde, uma funcionária do Bureau of Indian
Affairs, encarregada do loteamento das reservas Omaha, Winnebago e Nez Percé. No
campo dos Assuntos Indígenas, uma autoridade não menor que o senador Henry Dawes,
autor do Dawes Severalty Act de 1887, saudou as contribuições de Fletcher ao
movimento de rforma que ele representava no Congresso. Dawes afirmou inclusive que o
trabalho de Fletcher entre os Omaha durante o debate do loteamento foi a pedra de
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
135
fundação do decreto que levava o nome dele, dizendo que "eu estou para [ela] como
Américo Vespúcio para Colombo." (Mark, 1988: 119).
Alice Fletcher era o que muitos estudiosos latino-americanos chamariam hoje um
indigenista: seguindo Lima e Marroquín, um indivíduo encarregado da implementação de
políticas designadas para integrar populações indígenas a Estados-nação conquistadores
(Lima, 1995: 14; Marroquín, 1977). Além disso, sua formação como antropóloga foi
diretamente articulada com seu trabalho como indigenista. Como veremos abaixo,
Fletcher usou suas credenciais como etnógrafa para situar-se em uma posição
privilegiada no debate do loteamento de maneira a pressionar por uma definição de
loteamento que fosse coerente com as teorias da civilização de Morgan e Powell.
Adicionalmente, em seu trabalho para o governo federal, ela produziu o que
consistiu provavelmente no primeiro sobrevôo coerente maior da população indígena nos
Estados Unidos, um documento que serviu para orientar os Assuntos Indígenas por várias
décadas: Indian Education and Civilization: A Report Prepared in Answer to Senate
Resolution of February 23rd, 1885 (Fletcher, 1888). Finalmente, Alice Fletcher tentou
utilizar sua compreensão da diversidade e unidade humanas, tal como promulgada pela
teoria morganiana, de modo a intervir diretamente nas vidas dos grupos nativos entre os
quais trabalhava, orientando-os no sentido que ela via como a “estrada para a
civilização”. Nesse sentido, pois, Alice Fletcher foi um dos primeiros praticantes
americanos da antropologia aplicada — um fato que Lurie reconhece em sua biografia,
mas que está ausente da maior parte das análises histórias da antropologia aplicada
(Lurie, 1966:31).
No pico dos debates do loteamento, o trabalho de campo e ativismo político de
Alice Fletcher situavam-na como uma das principais autoridades na questão de como os
índios se tornariam membros civilizados da república americana. Suas palavras eram
escutadas com atenção na Casa Branca, nos salões do Congresso e em ocasiões civis
como as Conferências do Lago Mohonk dos Amigos do Índio. Mais do que qualquer
outro antropólogo de sua geração, Alice Fletcher tentou transformar as teorias
morganianas da civilização em práticas civilizatórias. O que Powell pregava, Fletcher
colocava na prátic, misturando etnografia, disciplinamento civilizatório dos índios e
atividade política (em vários níveis) de tal maneira a tornar cada uma dessas atividades
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
136
essencialmente inseparável das outras. Elas assim fornece algo como um enigma para
aqueles antropólogos americanos que acreditam ser e dever ser sua profissão uma simples
ciência objetiva. Sua história é especialmente perturbadora para aqueles que acreditam
que a etnografia clássica colocal um contra-exemplo para a supostamente politizada
antropologia de hoje.
Na obra de Fletcher, encontramos uma série de problemas que geralmente se
presume serem desenvolvimentos recentes ou “pós-modernos” no campo da
antropologia: a mistura de trabalho etnográfico com ação política direta junto ao povo
estudado; envolvimento profundo do etnógrafo com disputas políticas internas ao grupo
que está sendo descrito; formação de antropólogos nativos; e relatos diferenciais, da parte
dos informantes nativos, segundo a posição destes em sua sociedade e sua percepção das
simpatias do etnógrafo.
3
O que não encontramos, todavia, é qualquer problematização das
condições em que a pesquisa foi conduzida. A produção de Alice Fletcher como
antropóloga navega à distância de qualquer menção — e muito menos análise — de como
esta produção foi possibilitada por aquilo que Johannes Fabian chamaria mais tarde de
“partilhar momentos” [time sharing] com seus informantes nativos. Se é verdade que o
trabalho etnográfico de Fletcher é ainda considerado clássico, é igualmente verdade que
uma das razões para isso é que houve pouco esforço para compreender exatamente sob
que condições ele foi realizado e como estas podem ter interferido sobre seus dados e
conclusões (o trabalho de R.H. Barnes sendo uma exceção a esta regra geral).
Alice Fletcher nasceu em Cuba em 1838, filha de Lucia Adeline Jenks e Thomas
Gilman Fletcher. Ambos os pais eram membros de famílias de elite anglo-saxã de
Boston, que podiam retraçar suas origens na região de Massachusetts até o séc. XVII.
Pouco depois do nascimento de Alice, sua família mudou-se para a cidade de Nova
Iorque, onde seu pai faleceu. Segundo seu mais prolífero biógrafo, Joan Mark, a vida de
Fletcher entre os 12 e 34 anos de idade "foi tão traumática que ela preferiu apagá-la".
Embora a mãe de Fletcher tenha se casado de novo, há indícios de que o padrasto a
3
O trabalho etnográfico de Fletcher e de seus amigos e colegas, James Owen Dorsey e Francis LaFlesche,
deram origem ao dito "problema Crow-Omaha", muito caro a estruturalistas como Lévi-Strauss. Como
apontou R.H. Barnes, todavia, os conjuntos de relações de parentesco e proibições matrimoniais reportados
por Fletcher e seus colegas entre os Omaha podem muito bem ter sido relatados pro informantes nativos
(dois quais, lembre-se, Francis LaFlesche era um) de modo a reforçar a legitimidade de certas reivindições
à liderança tribal feitas pelo primeiro Joseph LaFlesche (Barnes, 1984).
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
137
perseguisse sexualmente, nas palavras de Mark, com "cruel malícia". Talvez por esta
razão, Alice Fletcher tenha feito a incomum escolha (para uma mulher da burguesia do
séc. XIX) de permanecer solteira e concentrar-se em seus estudos e na política pública. A
introdução de Fletcher ao campo das políticas públicas parece ter sde dado por meio de
seu ativismo no movimento feminista e sufragista nos anos 1870. Ela estava fortemente
envolvida com reformadoras femininas neste período, muitas das quais eram relacionadas
a proeminentes abolicionistas republicanos, e suas atividades neste campo culminaram
com sua nomeação como secretária da Association for the Advancement of Women de
1873 a 1876 (Mark, 1988: 3-21).
Philip Deloria recentemente recuperou um aspecto da carreira pré-antropológica
de Lewis Henry Morgan geralmente desprezado, que forma uma interessante contraparte
a de Fletcher. No início dos anos 1840, bem antes de envolver-se no estudo da América
indígena, Morgan era dirigente e co-fundador da sociedade "Cayunga", cujos membros
vestiam-se como imaginavam vestir-se os índios iroqueses para inspirar-se a escrever
uma poesia e prosa que formaria a base de um épico literário puramente americano. Foi
por meio deste "brincar de ser índio" que Morgan entrou em contato com Ely S. Parker,
um jovem advogado sêneca que servia como tradutor para os líderes políticos de sua tribo
nas negociações de novos tratados com o estado de Nova Iorque. Esse contato — que
Morgan inicialmente tomou como uma oportunidade para aperfeiçoar a imitação dos
modos iroqueses — eventualmente floresceu em um relacionamento que formou a base
para o trabalho posterior de Morgan como etnógrafo (Deloria, Philip, 1998: 71-94).
Assim como Morgan, a aproximação inicial de Fletcher aos índios por meio do
campo da arqueologia parece ter sido firmemente enraizado em uma investigação
profunda do que significava ser americano, e, como Morgan, esses interesses colocaram-
na em contato com verdadeiros nativos americanos e seus problemas, que por sua vez a
empurraram para o campo nascente da antropologia. Como explica Mark, em 1878 e
1879, Fletcher formava parte de um grupo de mulheres bostonianas no circuito de leitura
que estava tentando "encontrar na história americana um senso de missão para substituir
aquele que unia os puritanos". Anúncios para suas palestras em 1878-79 revelam uma
série de tópicos que refletem essa preocupação. Duas de suas falas eram intituladas
"Lectures on America" e "Our Nationality", e tratavam do crescimento e estabelecimento
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
138
da democracia, que Fletcher via como tendo atingido seu ponto máximo nos Estados
Unidos. Os tópicos mais populares, porém, tinha a ver com arqueologia americana pré-
histórica, que estava então começando a atrair ampla atenção com os americanos
buscando um "passado heróico" na história nativa. Os interesses de Fletcher reiteravam
assim um tema chava e da antropologia americana oitocentista: a conexão da história
nativa pré-contato com o presente republicano em um contexto de ativismo político e
intelectual que buscava moldar o futuro americano em acordo com o senso puritano de
missão e destino. (Mark, 1988: 29-31; NAA, AFP, 1878-1879 folder).
Os interesses de Fletcher chamaram a atenção de Frederic W. Putnam do Peabody
Museum of American Archeology and Ethnology. Putnam fora treinado por Louis
Agassiz e fora o fundador do departamento de antropologia na Universidade de Harvard,
bem como de outros dois departamentos e um par de museus. Ele trabalhara como o
Major John Powell investigando tesos indígenas do Tenessee em 1878 e, como o Major,
tinha trabalhado antes nos surveys do Oeste. Putnam iria tornar-se um mentor para o
jovem Franz Boas em 1886, e, junto com Powell, é considerado um dos principais
fundadores da moderna antropologia nos Estados Unidos. Putnam era também um amigo
íntimo de Lewis Henry Morgan e, no fim da década de 1870, esses dois antropólogos
pioneiros tinham elaborado um planod e trabalho de campo etnográfico para coletar
dados relativos a suas teorias. Foi nesse contexto que Putnam encontrou Alice Fletcher,
agora com 42 anos, e a encorajou a continuar seus estudos em antropologia. Por meio
dessa influência, Fletcher juntou-se ao Archeological Institute of America e, em 1880,
estava trabalhando no Peabody Museum, aprendendo os rudimentos do método científico
sob a tutela de Putnam. Por volta dessa época, conheceu dois índios omaha que iriam
influenciar decisivamente sua vida: Joseph e Susette LaFlesche (Hinsley, 1985; Mark,
1980: 23-28, 64; Mark, 1988: 34-36; NAA, AFP, Biography and Memorabilia Folder).
A família LaFlesche
Mencionamos brevemente a viagem de 1879 dos LaFlesche para o Leste no
capítulo 2 acima. Para situar plenamente o envolvimento de Fletcher com essa notável
família e os efeitos que este teve no trabalho de campo dela, porém, precisamos nos
voltar para uma história mais completa dos LaFlesches dos Omaha, uma família bem
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
139
conhecida dos historiadores da vida indígena do séc. XIX, tendo sido uma das poucas
famílias nativas do período que deixaram um registro escrito extenso.
Figura 3.3: A migração e localização final da divisão omaha do grupo linguístico sioux, ca.
1830. (MEYERS, 1991).
Os Omaha, junto com os Quapaw, Ponca, Osage e Kansa, compõe uma pequena
divisão do grupo linguístico Sioux mais amplo. Eles primeiro apareceram nos registros
dos EUA nos diários de 1804 dos famosos exploradores do Oeste, Lewis e Clark.
Naquele tempo, o grupo estava situado ao longo do baixo e médio Missouri. As tradições
tribais indicam um território original no vale do Ohio, mas no séc. XVI, pelo menos, eles
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
140
já se haviam descolado para a região em torno da confluência do Missouri e do
Mississipi. A partir daí, migraram lentamente rio acima em direção ao que é hoje o estado
de Nebraska. Em 1880, os Omaha, todavia, estavam em contato com brancos por mais de
um século e meio, envolvendo-se em comércio com negociantes de peles, ingleses e
franceses, que operavam a oeste do Mississipi. Muitos desses negociantes casaram-se na
tribo e um deles, Joseph LaFlesche Sr., foi o fundador da família LaFlesche (Green,
1969: 1).
Figura 3.4: Joseph LaFlesche Junior (Inshtamaza ou Olho de Ferro), ca. 1860. Foto de
http://www.nebraskastudies.org.
Como Barnes observa, há alguma controvérsia se Joseph Sr. casou-se com uma
mulher ponca ou omaha (Barnes, 1985: 219), mas, para nossos propósitos, a questão é um
tanto acadêmica. Segundo Norma Green, os Omaha casavam-se com grupos aparentados
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
141
de sua divisão linguística e a adoção era também frequente, "movida por afeição e
necessidade, e mesmo estendendo-se para membros de outras tribos e raças. Tudo isso
levoava a uma série de relacionamentos encadeados tornando difícil designar exatamente
a origem tribal de certas palavras e costumes, e mesmo de linhas de descendência exatas
(Green, 1969:1).
O que está claro é que o filho de Joseph Sr., Joseph LaFlesche Jr. (Inshtamaza, ou
Iron Eye (Olho de Ferro), nascido por volta de 1818) foi criado principalmente por suas
tias e mãe depois que ela divorciou-se de Joseph Sr. quando o menino tinha cerca de
cinco anos. Ela então casou-se com um omaha e Joseph Jr. foi mais tarde adotado no
grupo. O irmão de Joseph Jr., Frank LaFlesche, permaneceu com os Ponca e depois
tornou-se chefe daquela tribo (Barnes, 1985: 218-219). Quando Joseph Sr. voltou às
pradarias em uma outra viagem de comércio no início dos anos 1830, encontrou seu filho
com sua ex-mulher com aquele grupo. Joseph Sr. tomou o jovem Olho de Ferro sob suas
asas para ensinar a ele a profissão de negociante nas pradarias da América do Norte. A
dupla passou provavelmente algum tempo em St. Louis, onde Joseph Jr. aprendeu francês
e outras línguas nativas, mas não inglês. Isso, somado à sua habilidade de falar Sioux, fez
de Olho de Ferro um intéprete e negociante multi-língue, uma posição de alguma
importância ao longo do Missouri nos anos 1830 (Green, 1969: 4-5).
No fim dos anos 1820, os Estados Unidos haviam solidificado sua presença na
região por meio de uma série de fortes. Os Omaha haviam sofrido muito com a varíola
em 1800 e isso, associado às pressões dos Sioux que se expandiam para o sudeste,
aproximou-os da órbita do Estado americano em busca de proteção. Tanto em 1815
quanto em 1820, os Omaha assinaram tratados com os EUA, reconhecendo a suserania
do governo sobre a tribo. Eles então deslocaram-se para o sudeste, aproximando-se da
boca do rio Platte, para colocar alguma distância entre eles e os Sioux (Boughter, 1998:
5; Green, 1969: 7).
Em algum momento neste período, Joseph Jr. retornou ao povo de seu padrasto.
Ele começou a escutar os anciãos omaha e aprendeu sobre ritos e tradições tribais.
Segundo Green (seguindo Fletcher e Francis LaFlesche), Joseph Jr. estava determinado a
obter uma posição de influência entre os Omaha para ajudá-los a ajustarem-se à onda de
civilização branca que ele sentia que iria se abater em breve sobre eles. Embora a chefia
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
142
entre os Omaha fosse parcialmente hereditária, era possível para um homem ser adotado
em uma linha de chefes por meio de uma série de cerimônias. O chefe Big Elk adotou
Joseph Jr. em torno de 1845, declarando que Inshtamaza era seu filho mais velho e
herdeiro da chefia cerca de dois anos depois (Green, 1969: 7). Como nos recorda Barnes,
entretanto, seria um erro ver Joseph LaFlesche Jr. como simplesmente um Omaha que
tinha "retornado a suas raízes" com o objetivo de "ajudar seu povo". Olho de Ferro era
certamente um homem com muitos talenos, que podia navegar com sucesso por vários
universos:
[H]e was a Franco-Indian Métis, drawn into Omaha society where he was,
through his adopted status, uneasily situated, though influential… We misunderstand…
Omaha history, if we view Joseph LaFlesche only in terms of his assumed Native
American identity and neglect the obvious fact that by traveling with his father he learned
to participate in his father’s world, too, eventually enabling him as trader to the tribe to
secure his chieftainship… (BARNES, 1985: 220)
Em 1840, o búfalo e outros animais de pele e caça tinha começado a desaparecer
do território omaha (os Omaha iriam fazer sua última — fracassada — caçada de búfalos
em 1876) e a tribo continuava sofrendo uma pressão cada vez maior dos Sioux.
Conversas sobre os Omaha giravam em torno de propostas de vender algo de suas terras,
já que eles não poderia defendê-las de seus rivais Sioux em todo caso. Joseph LaFlesche,
como um negociante mestiço multilíngue e membro prestigiado da tribo, estava em uma
posição ideal para aproveitar-se de qualquer novo acordo que a tribo chegasse com o
governo dos Estados Unidos, pois, como nos lembra Green, "Acordos com tribos
indígenas repousavam na tradução de línguas extremamente diferentes. Tudo dependia do
intérprete, que era muitas vezes um mestiço [half-breed], capaz de tratar de assuntos
cotidianos mas que compreendia o inglês falado muito melhor do que o inglês escrito
(Green, 1969: 10; Mark, 1988: 71).
Em 1853, o pai adotivo de LaFlesche, Black Elk, já havia aberto negociações com
o governo dos EUA para a venda de terras. Um ano depois, Black Elk estava morto, e os
Omaha haviam cedido seus territórios de caça ao norte do Platte e oeste do Missouri em
troca de 300 mil acres de terra nas Blackbird Hills, ao norte do povoado branco de
Omaha City. Tentativas de realocar a tribo nessas terras, porém, foram interrompidas
quando os Sioux atacaram grupos de reconhecimento Omaha e mataram o principal rival
de LaFlesche pelo poder na tribo, Logan Fontenelle, um outro negociante e tradutor
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
143
franco-omaha. Em 1856, encorajado pelo estabelecimento de uma missão e uma escola,
os Omaha retornaram à reserva das Blackbird Hills e Joseph LaFlesche consolidou sua
posição como um dos principais chefes da tribo (Green, 1969: 11-20).
Sob a liderança da facção política de LaFlesche, o Young Man’s Party ou
Citizen’s Party (compreendido pelos brancos como o partido progressista na política
omaha), os Omaha ganharam uma reputação como a mais pacífica, moderada e
industriosa tribo indígena da fronteira oeste. Em 1857, LaFlesche começou a construção
de uma aldeia em estilo branco em torno da escola da missão nas Blackbird Hills — as
primeiras casas de tábuas construídas por índios das pradarias nos Estados Unidos. Seus
oponentes dentro do "Chief's Party" da tribo imediatamente rotularam essa aldeia como
"a aldeia dos brancos de mentira". Eles também ameaçaram a vida de Olho de Ferro.
LaFlesche dominou a política de reserva durante esse período e há indicações de que ele
governava com algo como uma mão de ferro. Ele usou 1000 dólares dos fundos tribais
para organizar uma força policial indígena — que pode ter fornecido o modelo original
para a polícia tribal do OIA — para prender e chicotear bêbados. Como um dos
negociantes oficiais da tribo, ele também estava em posição para colher consideráveis
recompensas financeiras. LaFlesche converteu-se ao cristianismo no fim dos anos 1860,
mas Charles Sturges, então superintendente da escola da missão na reserva, afirmou que
"o dinheiro é seu ídolo" (Boughter, 1998: 76-78; Green, 1969: 20-30; Mark, 1988; 66-
68).
Um dos benefícios que a posição e relativa prosperidade de Olho de Ferro trouse à
família LaFlesche foi uma educação de elite branca para seis de seus filhos, incluindo sua
filha Susette. Como aponta Norma Green, "os filhos de Joseph todos falavam e liam
inglês; todos escreviam com uma letra belamente legível. Lidavam com dinheiro de
forma competente… Em uma grande medida, aprenderam e usaram o novo método de
negócio e comércio […] adquiriam habilidades e técnicas [brancos] […]". Um dos
oponentes político sde LaFlesche, porém, o Agente da reserva Robert Furnas, via essa
educação com um esquema calculado para manter o poder tribal no interior da família
LaFlesche. Notando que Joseph se opusera a uma emeda ao tratado de 1865 que teria
provido educação universal para as criancas indígenas, Furnas o acusou de estar
atrasando a tribo. O agente chamou LaFlesche de um "terrível íncubo na tribo", que não
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
144
queria que as massas recebessem educação "pois então elas estariam em pé de igualdade
com ele" (Green 1969: 211; Boughter, 1998: 78).
No fim dos anos 1860, conflitos com Furnas e seus patronos políticos no governo
do estado fizeram com que Joseph LaFlesche perdesse sua posição como o interlocutor
privilegiado dos Omaha com a sociedade branca. Baseando-se em extensas leituras nos
arquivos da Nebraska State Historical Society, Judith Boughter acredita que ele foi posto
de lado por obra de uma aliança puramente branca composta do Agente Furnas, do
Comissário Indígena William P. Dole e pelo substituto de LaFlesche como negociante,
Robert Teare. Boughter chama essa organização de "um típico círculo indígena",
composto de um político, um agente e um negociante que trabalhavam juntos para lucrar
o máximo possível com o comércio e administração em uma dada reserva. A tese de
Boughter é de que a solução de LaFlesche para as dificuldades dos Omaha — que,
qualquer que possa ter sido, era nascida das lutas sociais e políticas internas ao grupo —
foi suplantada por uma solução imposta de fora por agentes brancos locais agindo em
conjunção com políticos baseados em Washington. Com Joseph LaFlesche fora do
caminho, começaram a ser feitos planos para a solução final do problema omaha: a
liquidação das posses da tribo ao longo do Missouri e sua remoção para o Território
Indígena (Boughter, 1998: 76-78).
Um tratado de 1854 estipulava que a reserva omaha fosse medida e loteada; em
1872, 350 certificados de loteamento haviam sido expedidos pelo OIA para membros da
tribo. Em meados da década de 1860, todavia, a legislatura do estado de Nebraska havia
autorizado um projeto de remoção indígena. Em 1877, os Poncas, os mais próximos
parentes e vizinhos dos Omaha, foram abruptamente removidos para o Território
Indígena. Como coloca Mark, "O tratado garantindo a reserva ponca foi era, subitamente,
desprovido de valor". Simultaneamente, os Omaha descobriram que não possuíam na
verdade títulos de seus lotes, pois os certificados do OIA que lhes haviam sido
concedidos não tinha valor sob este aspecto (Mark, 1988: 69).
Com o trabalho de quase toda uma geração investido na reserva ao longo do
Missouri, o Young Man’s Party, liderado por Joseph LaFlesche e seus aliados, buscou
maneiras tanto de retornar a uma posição de poder dentro da tribo quanto de obter um
título firme sobre as terras que possuíam. Nesse contexto, o loteamento das terras para
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
145
indivíduos omaha e a expedição de títulos formais dos lotes aparecia como um remédio
para o dilema do grupo (Fletcher e LaFlesche, 1911: 633; Green, 1969: 20-30).
Figuras 3.5 e 3.6: O jornalista abolicionista Thomas Tibbles e Urso-em-Pé (em seus trajes indígenas), ca.
1877. Fotos de http://www.nebraskastudies.org.
O desastre da remoção dos Ponca para o Território Indígena e o "breakout" de um
grupo de remanescentes daquela tribo para suas terras no Missouri forçou os Omaha a
encarar o que possivelmente lhes ocorria caso a remoção fosse realizada. Aconselhando-
se com o jornalista e reformador branco Thomas Tibbles e com o chefe ponca "renegado"
Urso-em-Pé (Standing Bear), o Young Man’s Party dos Omaha chegou à conclusão de
que os Omaha precisavam obter alguma forma de título fundiário que fosse relativamente
imune a pressões políticas locais ou federais. A assinatura de tratados havia sido, a esta
altura, legalmente abolida, e tratados já existentes, como vimos no capítulo 2, estavam
sendo rotineiramente derrubados pelo Congresso. Uma possível solução para o problema,
tal como viam Tibbles e os militantes do Young Man’s Party, era a extensão da cidadania
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
146
americana e de direitos de propriedade para os Omaha. Isso iria, com sorte, evitar que o
governo os trata-se como um povo conquistado submetido à livre vontade do governo
federal. Como um benefício adicional, qualquer solução aos problemas fundiários dos
Omaha que o Young Man’s Party pudesse arquitetar iria ajudar a reestabelecer Joseph
LaFlesche e seus seguidores como uma força dominante dentro da tribo.
Figuras 3.7 e 3.8: Francis e Susette LaFlesche ca. 1877. Fotos de http://www.nebraskastudies.org.
Como relatamos no capítulo 2 acima, enquanto Tibbles desencadeou um processo
contra o governo dos EUA em nome da tribo dos Ponca, uma embaixada formada por
Tibbles, Urso-em-Pé, e dois dos filhos de Joseph LaFlesche, Francis e Susette, foi às
cidades da Costa Leste para defender a causa dos Omaha e dos Poncas. Chegaram ao
Leste no outono de 1879, no mesmo momento em que tinha lugar na reser va dos Ute
uma rebelião sangrenta, e que a incompetência do OIA ocupava, outra vez, a primeira
página dos jornais.
O modo como os membros indígenas da embaixada Ponca/Omaha manipularam a
imageria indígena em suas apresentações diante da sociedade do Leste revelava uma
sofisticada apreensão e compreensão das atitudes dos brancos daquele momento. Urso-
em-Pé, um homem há muito acostumado a "roupas de cidadão" (isto é, roupas de
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
147
branco), portava os trajes ponca mais tradicionais possíveis. Enquanto isso, Susette e
Francis, que operavam como intérpretes, trocavam os trajes tradicionais por aqueles da
classe média branca. O grupo apresentava assim uma tipologia do progresso indígena,
indo do sombrio primitivismo do vanishing redman até a polidez civilizada de uma
Susette educada no colégio interno do Leste. Aqui estava um representação gráfica da
noção de que o "desaparecimento" do índio estava ligado à incompetência do OIA, que
não permitia que os nativos se civilizassem a si mesmos, possuindo propriedade, votando
e se assimilando.
Reveladoramente, Susette não foi apresentada à sociedade do leste sob seu nome
cristão, mestiço. Em lugar disso, foi apresentada a todos como "Bright Eyes", para
melhor salientar sua alteridade indígena. Essa estratégia atingiu, aparentemente, o efeito
desejado, tendo a mídia começado a descrever Susette LaFlesche/Bright Eyes, usando a
linguagem do indigenismo romântico, como uma "princesa indígena".
4
Quando o grupo
conheceu H.W. Longfellow, o autor do poema épico indigenista Hiawatha, essa
celebridade botou os olhos sobre a jovem omaha e declarou ser ela a encarnação viva de
Minnehaha, sua heroína. Como assinala Green, Susette LaFlesche conscientemente
manipulou esse papel em prol de sua tribo, usando-o para abrir portas para alguns dos
mais exclusivos salões na Costa Leste: "Bem escolado no simbolismo do poema, o
público aceitou-a como a encarnação de Minnehaha e ela se tornou o símbolo da "Bela
Virgem Índia". Esse símbolo durou mais do que o de Urso-em-Pé como “o pele-vermelha
injustiçado”. Com efeito, Susette nunca conseguiu estabelecer-se diante do público como
uma entidade separada da Virgem Índia" (Green, 1969: 30-62).
Relatei acima como a embaixada Omaha/Ponca à Costa Leste despertou um
debate já acrimonioso referente à reforma dos Assuntos Indígenas. Essa viagem iria ter
quatro importantes efeitos colaterais que influenciariam o futuro dos Omaha. Em
primeiro lugar, como mencionado acima, criou um furor na elite liberal republicana da
Costa Leste, e um dos efeitos concretos desse furor foi um debate no Congresso que
resultou na restituição de algumas terras ponca ao longo do Missouri. Em segundo lugar,
o jovem Francis LaFlesche foi contratado pelo Bureau of Indian Affairs como um
4
Aqui, deve ser notado, estamos falando de indigenismo no sentido do movimento literário romântico das
Américas do fim do século XIX.
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
148
funcionário, intérprete e "agente especial". Em tercerio, a embaixada foi capaz de atrair
os etnógrafos da Smithsonian para o debate. Em Washington, Francis LaFlesche e Urso-
em-Pé contataram um velho conhecido, o missionário Reverendo James Owen Dorsey,
que estava agora empregado fazendo trabalho linguístico para o Bureau of Ethnology,
para pedir que ele trabalhasse em favor da revogação da remoção dos Ponca. Dorsey
acabou como tradutor para o chefe Ponca na audiência no congresso relativa à remoção
da tribo e suas conversações com LaFlesche nesse período forma a base para muito do
trabalho etnográfico existente sobre o parentesco omaha (Mark, 1988: 69; Library of
Congress, Dawes Papers, Box#25, “Letter from Rev. J Owen Dorsey”, 14/1/1882).
5
O mais significativo efeito colateral da viagem, entretanto, pelo menos da
perspectiva dos Omaha, foi que, durante sua excursão pela sociedade bostoniana, Tibble
e os jovens LaFlesche conheceram Alice Fletcher. Depois deste encontro, e de um outro
em fevereiro de 1881, Alice Fletcher, ansiosa por estudar "índios de verdade" no campo,
recebeu um convite para visitar os Omaha (Mark, 1988: 38-39).
Alice no país dos Omaha
Existem duas principais fontes para os que desejam investigar a aproximação
inicial de Alice Fletcher às reservas indígenas: suas cartas e seus diários de campo, em
sua maior parte reunidos nos National Anthropological Archives da Smithsonian
Institution, e o livro de Thomas Henry Tibbles, Buckskin and Blanket Days. Embora as
duas fontes difiram em pontos menores, a informação básica contida nelas é
essencialmente a mesma. Segundo ambas, Fletcher veio para as reservas do médio
5
R.H. Barnes escreveu um estudo fascinante do material de Dorsey e de modo este refletia
desavisadamente a política de então. Segundo Barnes, representações inacuradas por parte de informantes
omaha que buscavam camuflar as escolhas matrimoniais "inapropriadas" de seus amigos e aliados no
"Young Men's Party", podem ter levado diretamente à criação do chamado "problema Crow-Omaha", que
desde então confundiu diversos antropólogos envolvidos nos estudos de parentesco, incluindo Lévi-Strauss.
Como aponta Barnes, duas das principais acusações levantadas contra o pai de Francis, Joseph, por seus
oponentes omaha no "Chief's Party" era a de que ele não era realmente um Omaha, e/ou de que sua
inserção na tribo era por meio de um grupo de parentesco não elegível para a chefia que ele pretendia. O
próprio Joseph LaFlesche era tremendamente sensível quanto aos estudos de parentesco de Dorsey,
assinalando amargamente em uma carta ao etnógrafo que "Demasiados assuntos privados de muitos omaha
foram publicados pelo Bureau of Ethnology sem seu consentimento, e não pretendo adicionar outros"
(Barnes, 1984; Mark, 1988: 69). Não há espaço nesta tese para explorar esse tema aprofudadamente, mas o
trabalho de Barnes deveria servir de advertência para aqueles que presumem que os fatos da etnografia
"clássica" não sejam de alguma maneira manchados por preocupações políticas.
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
149
Missouri convidada por Tibbles e sua futura noiva, Susette LaFlesche, no início de
setembro de 1881.
6
Neste momento, o debate no Congresso sobre o corrente "problema
indígena" estava já avançado. O senador Henry Dawes já se envolvera nos Assuntos
Indígenas pro meio de seu trabalho com a questão fundiária dos Ponca e esta fora já
resolvida, pelo menos parcialmente, com a concessão aos Ponca de terras ao longo do
Missouri e algum dinheiro. Tibbles e sua noiva Susette eram amplamente reconhecidos,
tanto nas reservas do Missouri quanto na polida sociedade da Costa Leste, como os
maiores autores do recente debate e sua subsequente resolução no caso Ponca. Por meio
desta vitória, a família LaFlesche tinha também recuperado algum prestígio entre aqueles
Omaha que temiam a remoção para o Território Indígena (Prucha, 1984: 185; Tibbles,
1905; Mark, 1988: 119).
No plano nacional, entretanto, nada fora decidido sobre os índios. Os principais
tópicos do debate continuavam sendo a ab-rogação unilateral dos tratados pelo governo
federal e a corrupção endêmica no interior do OIA, onde se presumia que "Indian rigns"
— conluios entre funcionários de diferentes níveis da burocracia federal — estavam
defraudando os índios no comércio e no pagamento de concessões territorias passadas.
Reconhecia-se amplamente nos salões do Congresso que algo precisava ser feito, mas o
que seria este algo era ainda incerto. Brancos que se consideravam amigos do índio
estavam chegando à conclusão de que os índios necessitavam de títulos seguros para suas
terras. Construtores locais do Oeste desejavam ver as reservas indígenas abertas à
exploração econômica. Republicanos e reformadores liberais e missionários cristãos
estavam determinados a garantir que qualquer solução que fosse alcançada envolvesse a
"elevação e civilização do índio". A espinhosa questão do loteamento fora levantada e
discutida no debate sobre os Ponca, mas ainda estava pouco claro se o loteamento seria
em forma privativa (isto é, as terras sendo distribuídas entre indivíduos) ou dadas às
tribos como um todo. Estava também pouco claro o quanto o loteamento era uma
6
A maior parte das biografias do casal afirma que se casaram no início de 1882. Boughter, todavia, observa
que Francis LaFlesche conta que Tibbles e sua irmã eram sexualmente íntimos durante sua viagem à Costa
Leste em 1879 (a primeira esposa de Tibbles faleceu no Nebraska enquanto ele estava fora nessa viagem).
Correspondência do período, contida nos papéis de LaFlesche, fazem parecer que o casal estava vivendo
como marido e mulher desde pelo menos 1881 (Boughter, 1998: 109; NAA, Francis LaFlesche Papers,
Letter to Rosalie, June 6
th
, 1887).
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
150
estratégia para resolver o problema indígena como um todo, em lugar de apenas os
problemas de alguns índios.
Fletcher chegou assim no Missouri em um momento estratégico como a
convidada de um casal amplamente associado ao movimento pela reforma indígena. Isso
era potencialmente problemático, dadas as diferenças de opinião de Tibbles e da famíia
LaFlesche em relação aquelas das autoridades brancas da reserva ao longo dos anos.
Tanto Fletcher quanto Tibbles concordam, entretanto, que a etnógrafa aprendiz chegara
com recomendações escritas de "poderosos amigos em Washington" não especificados. O
relato de Tibbles de seu primeiro, fundamental, contato com o Agente da reserva
Rosebud é bastante revelador sob este aspecto:
[The agent] shook hands with each one except me [Tibbles]. Whether he
skipped me merely by accident I cannot say. The ethnologist thereupon calmly
introduced me to him all over again. This time he shook hands with me, remarking, “I’ve
heard of you”. His tone implied that what he had heard had not been very good.
[Fletcher] then spoke casually about the weather, and the agent commented:
“I regulate everything here except the weather.”
This, I knew, was a favorite remark of agents, a ready made device for asserting
their supreme authority. [Fletcher], however, failed to take it in its full significance and
merely made some light and pleasant reply. Then she handed the man her letters of
introduction from her powerful government friends in Washington. He read them – in
fact, studied them intently – and finally told her with a total change of manner: “This is a
satisfactory account of your appearance here.”
At the last he even gave our Bostonian lady a key to one of the stockade gates
(Tibbles, 1905: 191).
Em outras palavras, as cartas de recomendação de Alice Fletcher eram
suficientemente poderosas para impressionar um Agente de reserva que já estava
desfavoravelmente disposto diante da etnóloga devido a sua associação com Thomas
Tibbles. Quem eram esses "amigos poderosos" não se sabe, mas dado o patrocínio de
Fletcher por Putnam, é bem possível que estes incluam funcionários do OIA ou
Smithsonian. É bom lembrar que, neste momento da história americana, a elite anglo-
saxã do eixo Boston-Philadelphia-Nova Iorque, era bem relacionada e gozava talvez do
mais alto grau de prestígio nos assuntos nacionais. Uma marca dessas inter-relações pode
ser vista no fato de que, ao visitar o Forte Randall, Fletcher descobriu que a esposa do
comandante era ninguém mais do que a prima da noiva de seu mentor Putnam. Fletcher
era pois uma espécie de personagem ao longo do Missouri, mesmo antes de começar a
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
151
escrever seus textos etnográficos, um fato revelado pelo comentário de um de seus
anfitriões durante sua viagem: "Você precisa me dizer seu nome para que, quando você
for famosa, eu possa dizer às pessoas que você esteve aqui". Ainda que a intenção possa
ter sido algo jocosa, o comentário revela a percepção de que Fletcher estava marcada para
grandes realizações: uma mulher da sociedade bostoniana viajando entre os Sioux, afinal,
não era uma ocorrência comum (“Camping with the Sioux: Fieldwork Diary of Alice
Cunningham Fletcher” NAA online access).
Quantos problemas potenciais as conexões e apresentações certas podem ter
resolvido para Fletcher em sua introdução à reserva pode, de fato, ser visto quando
comparamos sua experiência com as de Catherine Weldon, uma outra mulher da
sociedade da Costa Leste que viajou pelo mesmo território alguns anos depois.
Envolvida, como Fletcher, em movimentos de reforma indígena, e com muitos aliados
indígenas próximos, mas sem "amigos poderosos em Washington", Weldon viu-se
bloqueada em todas as oportunidades possíveis por agentes de reserva hostis que
difamavam seu nome em jornais da Costa Leste espalhando rumores de que ela estava
romanticamente envolvida com o chefe sioux Sitting Bull. Weldon acabou pobre,
sozinha, desacreditada por seus amigos nativos em Kansas City, enquanto que seu amigo
Sitting Bull foi assassinado pela polícia da agência (Miller, 1964).
Uma espiada nos diários de campo de Fletcher impressiona o leitor de hoje em
dois aspectos. Em primeiro lugar, é óbvio que essa viagem, que durou apenas cerca de
oito semanas, não resultou em uma etnografia muito substantiva. Antes, tratou-se daquilo
que os antropólogos de hoje chamariam uma "aproximação inicial do campo". Em
segundo lugar, os diários de campo de Alice Fletcher tornam seu compromisso com o
evolucionismo social dolorosamente claro. Em particular, ela estava obviamente
influencida pelas teorias de Morgan e acreditava que a cooperação era a linha entre
barbarismo e civilização. Como classificava os índios como bárbaros, acreditava que eles
simplesmente não podiam cooperar. Como um resultado dessa pré-noção teórica, Fletcher
reconhecia entre os nativos americanos que observava ao longo do Missouri muito pouca
organização social, classificando-os como motivados essencialmente por caprichos
individuais. Essa, na visão dela, era a razão para a subordinação nativa ao poder dos
brancos. Nas palavras de Mark, "Não importa como os índios errassem, eram eles que
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
152
estavam em error, estava convencida [Fletcher], pois seus modos eram diferentes dos da
sociedade branca européia que ela, em comum com a maior parte de seus
contemporâneos brancos, tomava como o ponto mais alto da evolução social" (MARK,
1988: 63-64; “Camping with the Sioux: Fieldwork Diary of Alice Cunningham Fletcher”,
NAA online access).
Depois de oito semanas no campo, Fletcher retirou-se para a residência dos
LaFlesche na reserva Omaha, onde ela passaria a maior parte do inverno. Todos os seus
biógrafos reconhecem esse período como o momento em que ela se viu totalmente
envolvida no debate da reforma indígena. Houve várias tentativas de interpretar
exatamente como isso se deu e quem foi a força motivadora.
Lurie, por exemplo, apresenta a inserção de Alice Fletcher na família LaFlesche
como quase acidental, e situa a agência para os eventos subsequentes nas costas da
etnóloga, que aparentemente teria manipulado os politicamente ingênuos LaFlesches:
"Mesmo índios educados, que permaneciam valiosos informantes bilíngues, não podiam
enxergar além das soluções apresentadas prontas para eles por brancos de bom coração"
(Lurie, 1966:80).
Boughter e Green, todavia, acreditam que o envolvimento de Fletcher com os
LaFlesches não era acidental. Alice Fletcher gostava de lidar socialmente com aqueles
que ela sentia ser seus iguais e sua correspondência sugere que era assim que realmente
se sentia sobre a família de Olho de Ferro. Todos os três autores, entretanto, afirmam que
Fletcher não parecia se dar conta de que os LaFlesches eram Omaha atípicos; não
obstante, seus escritos contradizem essa interpretação: ela obviamente percebia que seus
amigos eram uma minoria, mas os considerava uma minoria exemplar. Cristãos, letrados
e agricultores bem sucedidos, negociantes e pioneiros que haviam adotado roupas e
hábitos brancos, os LaFlesches podiam ser apresentados como uma prova concreta das
teorias evolutivas morganianas. Aparentemente, aqui estavam índios que haviam deixado
seus modos de vida anteriores para trás e que haviam se fixado para tentar tornar-se
gentlemen farmers. Seu sucesso financeiro e social — e particularmente o da geração
mais nova, escolarizada e falante de inglês — apresentava um contraste direto com o dos
índios tradicionais. Os LaFlesches, aos olhos de Fletcher, mereciam ser líderes dos
Omaha, precisamente porque eram atípicos e precisamente porque eram mais parecidos
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
153
com ela do que a vasta maioria de personalidades da fronteira, brancas, vermelhas ou
negras. Em poucas palavras, os LaFlesche eram – como se dizia na época – “de
qualidade" . Eles eram as contrapartes nativas da sociedade protestante bostoniana,
liberal, bem-pensante; as pessoas que deviam, pois, ser postas à frente da América Nativa
como um exemplo e guia para o futuro. Alice Fletcher não tomou erradamente os
LaFlesche como "típicos Omaha": ela os valorizava precisamente por saber que eles não
o eram.
A maior parte dos autores que estudaram Fletcher observa os limites de sua
compreensão da vida indígena, uma vez que havia passado apenas três meses no Missouri
no momento em que começøu a envolver-se nos problemas dos Omaha. Lurie, por
exemplo, observa que "É possível que, caso Alice Fletcher tivesse estudado os Omaha
profundamente primeiro — como ela fez depois — em lugar de mergulhado
imediatamente na questão da terra, ela teria buscado alguma outra solução para os
problemas econômicos dos índios diferente daquela que trouxe consigo para o campo"
(Lurie, 1966; 83). Todavia, se é verdade que Alice Fletcher tinha muito pouca
experiência substantiva entre os nativos americanos no início de seu envolvimento
político com os Omaha, isso, por si mesmo, não era reconhecido como um impedimento
naquele tempo, fosse por seus aliados e oponentes políticos, ou por seus colegas
antropólogos. O fato é que três meses de observação no campo não eram, em 1881,
considerados uma estadia demasiado breve para o tipo de observação que Fletcher estava
fazendo. Se ela estivesse envolvida em trabalho linguístico, algumas sobrancelhas
acadêmcias poderiam ter sido levantadas para sua reivindicação de conhecimento. Mas,
na verdade, ela estava confirmando o que as fileiras superiores dos antropólogos da Costa
Leste já acreditavam sobre o índio e a civilização. Fletcher acreditava piamente que suas
experiências recentes tinham feito dela algo como uma especialista no índio. Depois de
chegar à casa de seus anfitriõe no início de novembro de 1881, ela escreveu a seu mentor
Putnam, observando que
I have taken such a ‘header into barbarism’… as I would not advise any lady to
attempt. For over two months I have been nearly all the time living with Indians, as far as
possible, like one of them… The hardships and the horrors of it are not to be told, but
from a scientific point of view, the experience has been valuable. I have worked myself
round to where the Indian stands and looked at his life and ways as he does”.
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
154
Ela repetiu esses sentimentos em outra carta, uma semana depois, dizendo que
"Nos últimos meses, estive com eles [os índios] não como uma forasteira, mas como um
deles, um hóspede sem dúvida, mas ainda como um índio seria recebido". Não encontrei
registro de nenhum de seus colegas contradizendo essa visão. Aparentemente, as opiniões
de Alice Fletcher foram bem recebidas no Congresso e na academia não a despeito do
fato de que passara apenas três meses enre os índios, mas pelo fato de que passara três
meses inteiros vivendo entre índios (NAA, Alice Fletcher Papres, Letter to F. Putnam
Box 11, 7/11/1881; Letter to John Reed, 14/11/1881).
Finalmente, a idéia de que Fletcher veio com "soluções prontas" que ela então
empurrou para os Omaha politicamente ingênuos também não é apoiada pelas evidências.
Lurie parece sustentar seu argumento de que este foi o caso baseado em um comentário
de Francis LaFlesche, feito cerca de trinta anos depois.
[Alice Fletcher] visited the Indians in their homes and began to make friends
with them. At first, they were not disposed to talk, but after a time it occurred to one to
ask: “Why are you here?” She replied: “I came to learn, if you will let me, something
about your tribal organization, social customs, tribal rites, traditions and songs. Also to
see if I can help you in any way”.
At the suggestion of help, the faces of the Indians brightened with hope. The
Indian continued: “You have come at a time when we are in distress. We have learned
that the ‘land paper’ given us by the Great Father does not make us secure in our homes;
that we could be ousted and driven to the Indian Territory as the Poncas were. We want a
‘strong paper.’ We are told that we can get one through an Act of Congress. Can you help
us? (apud Lurie, 1966:80)
Com toda sua poesia, o relato de Francis LaFlesche deixa de fora vários fatores
importantes: em primeiro lugar, a própria família LaFlesche fora instrumental em
pressionar pelo loteamento e títulos individuais no Congresso e na sociedade da Costa
Leste desde cedo em 1879, pelo menos. O próprio Francis não era inocente sob este
aspecto. Seus esforços no Capitólio haviam sido recentemente reconhecidos pelo governo
federal com sua nomeação como funcionário e tradutor do OIA. Como assinala Boughter,
parece que Joseph LaFlesche buscou a ajuda da Alice Fletcher quando os esforços mais
recentes de seus filhos e de Tibbles não obtiveram os resultados esperados.
Joseph LaFlesche e sua família e aliados vinham observando Alice Fletcher por
algum tempo, e parecem ter chegado à conclusão de que ela era a pessoa mais lógica para
ajudar a evitar a remoção dos Omaha para o Território Indígena. De fato, durante o
outono inteiro, Fletcher vinha escutando dos índiso que queriam "um papel forte" que
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
155
garantisse sua presença em suas terras correntes. No caso do Young Men's Party dos
Omaha, um tal "papel forte" significava recurso aos tratados de 1854 e 1872, que haviam
prometido a eles lotes individuais de terra onde correntemente residiam. No fim de
dezembro, Fletcher relatou a seus colegas no Peabody Museum que ela iria participar de
"um encontro dos homens mais importantes para falar comigo sobre seus esforços na
direção da Civilização, e na próxima semana devo dirigir-me a tantos membros da tribo
quanto puderem ser reunidos em seu futuro esforço nessa direção". Essa declaração
apresenta seu papel na questão como muito menos ativo do que deixa acreditar Francis
LaFlesche, citado acima. Aqui, vemos Fletcher dirigindo-se a um encontro dos mais
importantes homens da tribo que vieram falar com ela. Se fica claro de suas palavras que
ela estava mais do que disposta a discursar a esses homens sobre o futuro deles, também
é aparente que alguém deu-se ao trabalho de reunir estes cavalheiros, e a expectativa
parece ter sido de que a etnógrafa iria ouvir o que eles, como um grupo (e não como uma
coleçnao de indivíduos dispersos e perplexos) tinham a dizer. Dado que Fletcher havia
estado entre os Omaha apenas por poucos meses até aquela altura, e não falava a língua
nativa, suspeita-se que a família LaFlesche tenha organizado este encontro. Em outras
palavras, a evidência disponível indica que os LaFlesches é que apresentaram a hipótese
do loteamento e de como este podia ser implementado para Fletcher, e não o contrário
(Mark, 1988: 70).
Em 31 de dezembro de 1881, após seu encontro com os "principais homens" da
tribo, Alice Fletcher redigiu uma petição em nome dos Omaha e enviou-a para o senador
John Morgan em Washington. Na carta de apresentação da petição, ela caracterizava os
Omaha como uma tribo dividida em duas facções, "uma deseja a cidadania e outra que se
agarra ao passado". Ela afirmava que os 53 signatários de sua petição eram basicamente
do primeiro partido e de que o segundo, curiosamente, era composto principalmente por
pessoas de sangue misturado [mixed blood] que tinham "todos se unido contra o avanço
dos índios". Essa era uma descrição bastante incomum, dado o fato de que os anfitriões
de Fletcher, a família LaFlesche, era uma das mas notórias famílias de sangue misturado
na reserva. O mistério torna-se ainda mais profundo, dado que Fletcher descreve a facção
de sangue misturado, mas "tradicional", como tradutores e intermediários que "estão
interessados em manter os índios em seu estado presente" — precisamente a acusação
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
156
levantada pelo agente Furnas contra Joseph LaFlesche (NAA, Alice Fletcher Papers, Box
1, Letter to John Morgan, 31/12/1881).
Uma explicação possível para as palavras de Fletcher é de que, longe de descrever
a situação com um olho treinado, ela estava meramente repetindo uma das mais comuns
acusações na política indígena daquele tempo — talvez mesmo ensaiada pelos próprios
LaFlesche. É preciso lembrar que, embora sangue misturado tenha vindo a tornar-se mais
tarde sinônimo de progressismo conforme se aproximava a virada do século e o
evolucionismo social morganiano era mais e mais substituído pelo darwinismo social
spenceriano, no início dos anos 1880, as coisas eram diferentes. Ao longo do Missouri,
em particular, membros tribais de sangue misturado haviam muitas vezes entrado em
conflito com as autoridades das reservas, nativas e brancas, e o termo pejorativo "squaw
man" — um homem branco casado com uma mulher índia — era considerado sinônimo
de inconstância, preguiça e corrupção. A prole dessas uniões eram também muitas vezes
consideradas "manchadas" por esses traços (Anderson, 1973: 253-255).
Em outras palavras, pois, a carta de Alice Fletcher para Morgan fazia amplo uso
de acusações emocionalmente carregadas para representar seus peticionários como (em
suas palavras) "os verdadeiros líderes de seu povo", um grupo que estava sendo
injustamente oprimido por seus oponentes que não desejavam "o progresso dos índios".
Isso, provavelmente dado ao fato de que ela precisava explicar porque apenas 53 chefes
de família assinavam a petição — uma clara minoria entre os Omaha. A própria Alice
Fletcher estava bem consciente de que menos de um terço dos Omaha apoiava o
loteamento como solução para seus problemas.
7
Mais uma vez, suas lições evolucionárias
eram bem claras quanto a isso: essa clara minoria era composta, a seus olhos, de Omaha
que mereciam ser líderes tribais, pois, devido a sua disposição de adotar o estilo de vida
do yeoman farmer sedentário, assinalavam seu compromisso com a civilização. Fletcher
finalizava seu apelo afirmando que "verifiquei quase todas as declarações [contidas na
petição] por meio de observação pessoal". Ela assim sublinhava as razões para sua
7
Mark estima a partir das assinaturas em várias petições enviadas a Washington neste período que cerca de
¼ da tribo apoiava o loteamento, que 1/3 se opunha ativamente a ele, "e o resto, embora não estivesse a
favor do novo plano, estava persuadido a ir em frente com ele". Na conferência do Lago Mohonk de 1884,
a própria Fletcher admitiu que 2/3 da tribo se opunham originalmente ao loteamento. (Mark, 1988: 93;
Boughter, 1998: 104).
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
157
presença na reserva: "O estudo científico conectado com a vida doméstica dos índios me
trouxe até aqui", e terminava sugerindo que o senador Morgan verificasse suas
reivindições de respeitabilidade científica junto ao Professor Putnam do Peabody
Museum (NAA, Alice Fletcher Papers, Box 1, Letter to John Morgan, 31/12/1881).
Os dados que Fletcher enviou a Morgan em apoio a sua petição — e que foram
lidos e registrados no Congresso em 11 de janeiro de 1882 — são também bastante
interessantes. Cada um dos signatários era apresentado como um homem "chefe de
família". Ao lado de seus nomes, Fletcher fez constar sua idade, seu status "sanguíneo"
[blood status] (full, half, ou one-quarter blood, e em um caso, branco casado com uma
mulher omaha), seus direitos prévios a lotes tal como condificados em tratados anteriores,
o que produziam em suas terras, que melhorias haviam feito nelas ("melhorias"
significando, é claro, a construção de edifícios em estilo branco e a abertura de terras para
cultivo), e quantas pessoas eles sustentavam com seu trabalho. Ela também incluía outras
marcas notáveis de civilização, como "ele foi um dos sete índios que há vinte e cinco
anos atrás se juntaram […] e compraram um arado, o primeiro que jamais usaram"; "Está
agora no Serviço Policial Indígena dos Estados Unidos"; "Foi um dos três índios a
comprar uma segadora". Esses dados retratavam os peticionários como um grupo de
patriarcas liderando famílias de estilo não-indígena, ocupados em aprender tecnologias
dos brancos, integrando-se nas estruturas legais dos brancos e produzindo, como bons
agricultores devem, bens agrícolas para seu sustento e para o mercado. Finalmente,
Fletcher anexou uma série de testemunhos omaha que sublinhavam a empresa
civilizatória e o papel da facção de Joseph LaFlesche em sua implementação na reserva:
"Antes de começar a cultivar, eu era apenas um índio selvagem, fazendo como bem
entendia"; "Eu pertenço ao partido dos cidadãos. Eu fui um de seus fundadores. Nós
queremos ser cidadãos" (NAA, Alice Fletcher Papers, Box 3, 47th Congress, 1st, Jan.
11th, 1882. “Session Memorial of the Members of the Omaha Tribe of Indians for a
Grant of Land in Severalty”).
Fletcher assim apresentava seus peticionários como índios reais, ao mesmo tempo
que os situava como os verdadeiros líderes de uma minoria oprimida, dedicada ao
progresso de seu povo por meio da civilização — civilização, nesse sentido, significando
sua transformação em agricultores proprietários individuais de terra. Nisso, ela estava
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
158
intencionalmente tocando todas as campainhas na catedral republicana abolicionista e
liberal. Suas observações finais sobre suas credenciais científicas são bastante
significativas no interior desse projeto, uma vez que seu status como etnógrafa dava a
suas análises da situação política omaha, altamente preconcebidas e muito superficiais,
um verniz de objetividades científica.
Mas o que a maioria dos Omaha realmente queria? Quando lemos a própria
petição, uma coisa sobressai: todos os signatários queriam ficar na terra onde estavam.
Isso parece ter sido o maior impulso do requerimento do Citizen’s Party ou Young Men’s
Party ao Congresso. Os Omaha que apoiavam o loteamento parecem tê-lo feito não
porque acreditavam ser necessário caminhar para a civilização (embora estivessem mais
do que satisfeitos em apresentar-se dessa maneira), mas porque tratados anteriores, que
asseguravam sua permanência ao longo do Missouri, o estabeleciam. Os peticionários
retornavam a esse ponto várias vezes. Como assinala Judith Boughter (1988: 99), os
Omaha pediram a ajuda de Fletcher para obter um "papel forte". Seguindo suas
inclinações morganianas, ela interpretou isso como significando, necessariamente, o
loteamento privativo como primeiro passo para a assimilação na sociedade americana,
quando, de fato, tudo indica que o que os Omaha realmente queriam era um título seguro
para suas terras. Seguindo sua inclinação teórica, Fletcher acreditava que o que a maior
parte dos signatários omaha queria era um fim para os "costumes antigos" — isto é,
tribalismo Omaha — e para este fim ela trabalhou para garantir aos índios a propriedade
privada individualizada, que consistia, em sua mente, em seu “bilhete de entrada” para a
sociedade civilizada.
Os objetivos de Fletcher sob esse aspecto parecem ter sido pelo menos
parcialmente congruentes com aqueles da família de Joseph LaFlesche e seus aliados
imediatos, a maior parte dos quais iria lucrar com o loteamento. Cewrtamente Francis,
Joseph, e a educada Susan davam-se conta do valor da terra como propriedade e a própria
família, como líder do Citizen's Party, estava bem posicionada para colher os benefícios
de qualquer resolução que garantisse terra para indivíduos. Dizer isso não é retratar os
LaFlesche como "traidores" dos interesses tribais dos Omaha, pois o registro posterior da
história da família mostra que a maior parte deles permaneceu muito dedicada a manter a
vida tribal pelo século XX adentro. Mas pode-se desculpar-me por tirar a conclusão de
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
159
que os LaFlesche estavam operando com um conjunto de instrumentos culturais que a
maior parte de seus irmãos tribais simplesmente não possuía, e que iria inevitavelmente
resultar em vantagens pessoais em qualquer loteamento que o governo fosse propor.
A contribuição de Fletcher foi transformar essa solução local em uma resposta
cientificamente fundada ao problema indígena em geral. Sua perspectiva morganiana
traduziu as preocupações dos Omaha quanto à terra em um desejo nativo de civilização.
Ela rapidamente adotou a dicotomia "tradicional/progressista" então usada como uma
chave para a política nativa e, carimbando o rótulo de "progressista" na facção de Joseph
LaFlesche, decidiu trabalhar para tornar esse grupo representativo de todos os Omaha no
Capitólio. Isso, é claro, era congruente com os objetivos da própria família LaFlesche.
Onde os dois divergiam era na opinião quanto a se o loteamento iria significar
necessariamente a destruição da tribo como uma sociedade coerente.
Fletcher em Washington
A petição omaha de Alice Fletcher parece ter sido um dos fatores que
desencadeou o segundo round de debates congressionais sobre a reforma indígena
mencionados pelo senador Dawes e discutidos em profundidade no capítulo 2 acima.
Janeiro de 1882 parece ter sido um momento de maré alta para a intervenção
antropológica no debate da reforma indígena, pois além das consultas do senador Morgan
junto a Powell e de sua apresentação da petição de Fletcher, outros antropólogos também
entraram na batalha política.
No meio de janeiro, o Rev. J. Owen Dorsey, predecessor de Fletcher ocmo
etnógrafo entre os Omaha e então empregado no Bureau of Ethnology, escreveu duas
cartas ao senador Henry Laurens Dawes, recém nomeado presidente do Comitê do
Senado em Assuntos Indígenas. As cartas de Dorsey enfatizavam as mesmas
preocupações de Fletcher e Powell. Ele afirmava que os Omaha estavam determinados a
"aprender os modos da civilização" e que seu trabalho na reserva lhe permitia
testemunhar o quanto os Omaha haviam "melhorado" ao longo dos anos. Como um
exemplo desse melhoramento, Dorsey relatava como a tribo havia recentemente vendido
2500 alqueires de batatas a uma firma de Sioux City, "e poderia ter vendido mais de 5000
alqueires de o capitão do barco tivesse concordado em esperar um dia a mais no porto".
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
160
Dorsey também afirma que ele não tinha conseguido contratar nenhum Omaha "para me
ajudar com o trabalho linguístico até que eles terminassem as tarefas do outono, colhendo
seu milho, etc" (sublinhado no original). Dorsey então assinalava que o fato saliente que
trabalhava contra essa melhoramento era o "constante receio de remoção para o
Terr[itório] Indígena ocasionado pelo tratamento dos Ponca. Esse evento contribuía para
desencorajá-los a plantar, a mandar suas crianças para a escola, e também a frequentar a
igreja". Diante dessas apreensões, os Omaha podiam ser acusados por ter feito menos do
que "deviam" (Library of Congress, Dawes Papers, Box 25, Letters from Dorsey, Jan
14th and 19th, 1882).
Nessas cartas, mais uma vez encontramos um antropólogo reiterandoo tema de
que o melhoramento indígena podia ser medido pela cristianização, educação formal
escolar branca, e assimilação de tecnologias e ritmos de trabalho envolvidos na
produçnao de bens para o mercado segundo os requerimentos de uma economia agrícola
rural. Esse era o futuro a que os antropólogos sentiam ser necessário guiar os índios e os
Omaha, neste sentido, eram exemplares do processo de civilização indígena. Remova-se
as inseguranças criadas pela ausência de um título seguro à terra, argumentava Dorsey, e
nada iria impedir os Omaha de transformarem-se rapidamente em produtivos cidadãos
cristãos da república.
Conforme o debate no Congresso se aquecia, ao longo dos meses de janeiro e
fevereiro, Alice Fletcher mantinha uma correspondência constante com as principais
figuras envolvidas nos Assuntos Indígenas no Capitólio, em particular os senadores
Dawes, Morgan e Teller (que iria em breve substituir Shurz como secretário do Interior).
Uma de suas cartas a Dawes explicita suas preocupações com os Omaha. Nessa carta, ela
reitera que sua posição como uma etnógrafa no campo lhe conferia uma visão
privilegiada quanto à vida nativa. Ela então começava uma descrição prolongada do
progresso dos Omaha, de como este fora bloqueado pelo temor de remoção, e de como
poderia ser aumentado por meio da ação do governo de de uma "legislação judiciosa".
Mais uma vez, o melhoramento dos Ohama era enfatizado, tal melhoramento sendo
medido pela construção de casas de estilo não-indígena por alguns membros da tribo e
por seu envolvimento na agricultura. Fletcher então observava que um dos impedimentos
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
161
ao progresso indígena, em geral, era o relativo isolamente das populações nativas da
influência dos brancos:
The invisible line that marks off an Indian reserve arrests all familiar incentives
to progress. Beyond the fateful boundary, our busy world of thought and action hardly
finds and echo. No thoroughfares cross the hills, no trains come and go, no mill bell
breaks the silence; there is nothing to even so much as mark the days or hours.
Civilization is shut out by enactment and a few government officials are expected to be
substitutes for the numberless little and great forces, both social and civil, which foster
and hold our strong unshackled life. Yet we expect the people we have hemmed in to
adopt a mode of life they have hardly seen in outline even…We have been more or less
successful iconoclasts among the Indians, but as up builders, we have greatly failed.
Para derrubar os muros das reservas, era necessário passar estradas de ferro por
elas e submeter os Omaha ao tempo estruturado do relógio da fábrica. A eliminação do
modo de vida corrente dos Omaha era entendido por Fletcher como o objetivo da ação
governamental. Os antropólogos tinham um papel muito importante e claro a
desempenhar nesse projeto. Em palavras que ecoavam as mensagens de Powell ao
Congresso, Fletcher assinalava que "Parece claro que a ignorância etnológica repousa na
raiz de muito de nossas ações equivocadas perante esta raça [índios]". Como resultado
dessa ignorância, o governo americano tende a tratar os índios genericamente, como
membros indistintos de uma massa homogênea, "simplesmente como índios, e não como
homens ou comunidades em estágios variados de desenvolvimento". Um dos papéis da
etnografia, pois, era prover um conhecimento especializado dos grupos nativos
subordinados e diferenciados aos funcionários do Estado cujo trabalho era reduzir a dita
alteridade dos grupos. O eixo ao longo do qual esses grupos eram diferenciados não era
horizontal, definido pela cultura, mas vertical, definido pela progressão ao longo de uma
escada evolutiva que ia da selvageria, o "grau zero da sociedade humana", progredia pela
barbárie e eventualmente chegava à civilização.
Fica bastante óbvio dos comentários de Fletcher para Dawes em que ponto dessa
escada ela pensava estarem situados os Omaha. Seus argumentos em apoio do loteamento
privativo na tribo eram baseados na noção de que a propriedade individual constituía um
influência inerentemente civilizatória. O título às terras criaria uma "classe fixada e
industriosa" entre os Omaha, com sua posição baseada em conquistas positivas. Isso, por
sua vez, daria início a uma "sociedade organizada" e tornaria "quase inevitável" o
progresso futuro. Outros passos para a civilização seguiriam-se automaticamente. Em
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
162
outras palavras, Fletcher entendia que os Omaha não possuíam uma sociedade
organizada, um estado de coisas que só poderia existir depois da instituição da posse
individual da terra e da submissão a valores orientados para o mercado.
Fletcher concluía sua carta solicitando a Dawes que lhe enviasse sementes, pois
queria ensinar os Omaha a cultivar hortas. Ela também pedia por sementes de flores, pois
"gostaria de iniciar as mulheres índias na cultura de flores. Ostensivos canteiros
florescentes em torno de uma casa ajudam a tornar a arrumação e a ordem desejáveis…
Mudança de vida inclui mudança de alimento, de prazeres". Assim, Fletcher situava seu
papel como etnógrafa como incluindo o de inculcar mudanças na alimentação e nos
prazeres que seriam necessárias para que os Omaha progredissem para o próximo estágio
da evolução social (Library of Congress, Dawes Papers, Box #25, Letter from A.C.
Fletcher, Feb. 4th, 1882).
Podemos ver claramente a congruência entre as visões de Fletcher e de Powell,
apresentadas no capítulo 2 acima. A diferença entre eles não se expressa em uma divisão
entre uma antropologia supostamente pura (ou teórica) e outra aplicada, mas, antes, entre
a do administrador antropológico e a do etnólogo no campo. Em ambos os casos, o
conhecimento antropológico era claramente compreendido como condição preliminar
para produzir mudanças nos hábitos e modos de vida de povos subordinados. Enquanto
que a substância do trabalho de Alice Fletcher consistia no registro desses modos de vida
em extinção — a "descoberta de segredos sibilinos" tão apreciado por Otis —, esse
trabalho envolvia também a preparação desse povo para "uma mudança na alimentação [e
uma] mudança nos prazeres". Esse trabalho não era uma questão de investigação
intelectual: não necessivava nem elaboração, nem análise, pois era auto-evidente para os
antropólogos de então.
Típica das respostas dos senadores republicanos às cartas de Fletcher é a resposta
do senador Morgan datada de 12 de janeiro. Nela, ele informa Fletcher de que sua petição
fora apresentada no Congresso no dia anterior e de que as observações de Dawes sobre
ela foram "muito vigorosas". Morgan comenta que os índios dos EUA eram agora "pela
primeira vez, um povo conquistado e submetido
" (ênfase no original). Sendo este o caso,
chegara o momento de "ajudá-los a dar um único passo adiante…"
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
163
I will surrender to the Indians what service I can in their redemption from
savagery and am glad to find a woman in the field who works with the zeal and wisdom
you evidence in gathering the truth to the minds of our people… I have a settled
conviction that a large proportion of the Indians (far greater than that of the Negroes and
nearly as great as in our own family) are endowed with high capacity for the
understanding and performance of the best labors of an advanced civilization. (NAA,
Alice Fletcher Papers, Box #1, Letter from John T. Morgan, Jan. 12
th
, 1882)
Morgan e Fletcher partilhavam preocupações fundamentalmente idênticas quanto
à civilização dos índios e ao papel que os povos nativos desempenhariam no futuro dos
Estados Unidos. A comparação de Morgan entre índios, negros e "nossa própria família"
é, de fato, uma ordenação de povos bastante similar àquela do "mito das três raças" tão
bem descrito no Brasil por Roberto DaMatta (1981). O aspecto fundamental dessa visão
de mundo é que ambas as populações não brancas estão situadas em um nível inferior a
dos brancos,
8
cuja maior suposta capacidade para a civilização os situa como guias e
professores naturais para seus irmãos mais escuros na construção do destino nacional.
A correspondência de Fletcher pode ter tido um impacto ainda maior no debate do
que possamos supor, pois pouco depois de recebê-la, Morgan escreveu para John Wesley
Powell no Bureau of Ethnography, solicitando maior apoio antropológico para o debate
no Congresso sobre o loteamento. Já tratamos das respostas de Powell, que foram lidas
no Senado em 25 de janeiro, no capítulo 2.
Com o debate do loteamento esquentando mais uma vez na chegada da primavera,
Alice Fletcher decidiu ser a hora de voltar à Costa Leste e fazer campanha por um projeto
que pelo menos provesse os Omaha de títulos fixos e individuais a suas terras. Ela tomou
o trem para Washington e passou a primavera fazendo campanha pelo projeto de lei
Omaha. Sua correspondência deixa claro que uma de suas táticas prediletas para
conseguir acesso aos senadores chave era trabalhar por meio de suas esposas e filhas.
Seus papéis deste período são cheios de mementos e cartas relativos a suas interações
com mulheres como Ana, Nina e Electra Dawes e a esposa do senador Teller. Fletcher
também pôs para funcionar seus contatos na sociedade civil, correspondendo-se com
líderes e organizações sociais e religiosos que haviam estado envolvidos no movimento
sufragista e/ou abolicionista, ou que estavam presentemente envolvidos no debate sobre a
8
A opinião de Morgan de que os índios tinham uma capacidade para a civilização "muito maior" que os
negros era típica do período nos Estados Unidos, e isso relativiza a visão de DaMatta de que a fronteira de
cor naquela nação era e é um simples construto binário.
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
164
reforma indígena. Finalmente, fez também campanha entre seus colegas cientistas, tendo
sido chamada a falar diante da American Social Science Association em 13 de maio. Seus
anos na alta sociedade bostoniana e nos movimentos políticos femininos ajudaram-lhe,
aparentemente, a moldar sua mensagem para os ouvidos das mulheres por trás dos tronos
de Washington. Como observou Nina Dawes, "Mrs. Teller acha que você é encantadora,
e têm idéias muito acessíveis". É significativo que muitas dessas mulheres — mas
particularmente as Dawes — tenham vindo depois a ser muito ativas nos Assuntos
Indígenas na década seguinte, em sua participação nas Lake Mohonk Conferences (NAA,
Alice Fletcher Papers, Box #1, correspondence from Electra S. Dawes, Apr. 24th, 1882;
correspondence from Emily Talbot, May 13th, 1882; correspondence from Nina Dawes,
May 16th, 1882; Library of Congress, Dawes Papers, Box 14, correspondence from Alice
Fletcher, Apr. 24th, 1882).
Os esforços de Fletcher constituíam uma parte importante das mudanças que
ocorreram quase do dia para a noite nos debates sobre os Assuntos Indígenas no início de
1882. Sua intervenção mostrou-se crucial no caso dos Omaha, cujo projeto de lei,
autorizando o loteamento e a permanência da tribo no Missouri, foi aprovado naquele
ano. Suas atividades também formavam parte de uma transformação geral do debate em
torno dos Assuntos Indígenas. Como vários historiadores apontaram, o movimento
original dos amigos do índio havia, desde 1879, reivindicado quase sempre pela
aderência escrupulosa aos tratados. No outono de 1882, o foco mudar para o loteamento,
e o senador Dawes havia escrito sua histórica carta para Teller, detalhada no capítulo 2,
arrolando as proposições prinicpais que deveriam orientar o debate pelo resto da década.
Dessa maneira, a intervenção de Fletcher concretamente contribuiu para uma
generalização da questão do loteamento, transformando-a de uma maneira de lidar com
os problemas de um dado grupo nativo em uma estratégia global para resolver o
problema indígena como um todo. A primeira organização civil importante dos amigos
do índio, a Indian Reform Association (ou IRA), foi fundada com base na premissa da
civilização forcada por meio do loteamento individual, em dezembro de 1882. Contava
entre seus membros com muitos dos correspondentes de Alice Fletcher (Mark, 1988: 70-
76).
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
165
Mas o envolvimento de Fletcher com a civilização dos índios estava longe de
acabado. Depois de três meses de campanha pelo projeto fundiário dos Omaha, ela partiu
para o Missouri para observa o ritual da dança-do-sol Sioux [Sioux Sundance], cujo
estudo a transformaria em uma antropóloga universalmente reconhecida.
Acompanharam-na nesta viagem estudantes da Carlisle Indian School — a principal
academia do governo para estudantes nativos — que estavam de retorno. O capitão
Richard Pratt, fundador e diretor da escola, contratou-a por 50 dólares por mês para
recrutar promissores jovens nativos para o semestre de outono da Carlisle. No fim do
verão, ela encontrara 26, e também arranjara para que Lucy LaFlesche e o marido de
Lucy, Noah, frequentassem a academia-irmã da Carslile, Hampton. Em sua volta, no
outono de 1882, Fletcher envolveu-se em fazer lobby no Congresso para aumentar o
financiamento da Carslile, levando senadores e suas famílias para visitar a escola. Como
relata Mark, "O dramático crescimento das apropriações para a educação indígena
americana em cinco anos — de $ 475.000 em 1880 para $ 992.000 em 1885 — foi em
boa medida devido aos esforços de Alice Fletcher.
Naquele outono, Fletcher viu-se centro de atenções dos liberais republicanos de
Washington. Ela foi convidada à Casa Branca pela irmã do presidente e anfitriã oficial,
Rose Cleveland. No campo da antropologia, ela estava igualmente em alta. Powell lhe
disse que esperava publicar seu trabalho, mas, como relatou Fletcher a sua confidente,
Mrs. Dawes, "Vi o Major Powell e ele pediu-me que lhe desse meu m[anu]s[crito], mas
penso que prefiro ficar com o Peabody Museum em lugar do Ethnological Bureau
(Library of Congress, Dawes Papers, letter from Alice Fletcher, Jan. 25th, 1883). Longe
de ser ostracizada por seu trabalho civilizatório e político junto aos Omaha, as atividades
de Fletcher deram-lhe ainda mais capital simbólico entre seus pares na academia. Em
menos de dois anos, ela foi de uma desconhecida etnógrafa aprendiz a uma respeitada,
mesmo que iniciante, estudiosa, que tinha o luxo de escolher quais das duas mais
importantes instituições de seu tempo iria publicar seu trabalho. Fazer o bem para os
Omaha, obviamente, fizera bem para a carreira da etnógrafa. No fim de novembro, Alice
Fletcher estava de volta a Massachusetts, montando uma exposição para o Peabody
Museum com o material que trouxera da Dança-do-Sol. Isso seria seu último trabalho
etnográfico substantivo por muitos anos, pois passaria a maior parte do resto desta década
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
166
como funcionária do Bureau of Indian Affairs e ativista pelo loteamento e civilização
indígenas (Mark, 1988: 78-79).
Alice Fletcher: Agente Indígena
Em 16 de março de 1883, o ex-senador Teller, agora secretário do Interior,
contratou Fletcher como agente especial do OIA para levar adiante o loteamento na
reserva Omaha. Por este trabalho, ela receberia dinheiro para as viagens e despesas de
manutençnao, bem como uma diária de 5 dólares.
9
Francis LaFlesche foi designado para
acompanhá-la como ajudante e tradutor. O trabalho de Fletcher era supervisionar a
medição da reserva e o processo de seleção dos loteamentos resultantes. Em particular,
esperava-se que ela encontrasse uma maneira de lidar com a facção "recalcitrante" dos
Omaha (que pode bem ter constituído a maioria da tribo), que se recusava a aceitar o
loteamento.
Durante seu mandato como agente de loteamento, entretanto, Fletcher esteve
envolvida em numerosos projetos que iam além do escopo dessas responsabilidades. Ela
continuou a recrutar estudantes para a Carlisle School e também trabalhou para facilitar
empréstimos de modo que os casais omaha recém-casados pudessem comprar casas de
tábua em "estilo não-indígena". (NAA, Alice Fletcher Papers, Box #3, letter from
Commissioner Price to Teller, April 20th, 1883; Mark, 1988: 106)
O processo de loteamento em si mesmo foi muito mais complicado do que
Fletcher presumira, mas ela perseverou. Sua descrição da situação no relatório final que
apresentou ao comissário Price do OIA dá uma idéia do que acarretava esse processo:
I arrived at the Omaha Agency and began preparations at once to carry out the
work in the manner which my knowledge of the people led me to believe would be of
most benefit to them in the future and give them an insight into the forms and obligations
of our modes of doing business. To this end I was soon camped among the people to
whom I was no stranger and who gathered about me in daily increasing numbers…
In connection with this close personal superintendence in allotting the lands, the
laws of property and of legal descent were explained to the people, a matter difficult for
them to fully comprehend, owing to their previous customs and modes of thought. This
difficulty was marked in regard to the rights of children upon their deceased parents
property, such claim being secondary to those of lateral relationship in Indian society,
and also the absorbing of the wife’s right to land in that of her husband, it seeming
9
A considerable amount of money in 1883. 50 years later, John Collier considered the same 5 dollar per
diem to be more than adequate in order to maintain an anthropologist in the field on a reservation.
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
167
anguish to the Indian that the wife should not possess land distinctive from her husband,
she being as responsible as he regarding the family.
Como implicado pelas observações de Powell diante do Congresso, o loteamento
não era apenas uma questão de dar terra para os índios, mas de destruir as estruturas
socio-ecônomicas e legais correntes da tribo e fazer com que se adaptassem a noções
anglo-saxãs de família, individualismo e posse da terra. Fletcher não estava apenas
dividindo a reserva em lotes, mas tentando garantir que os ditos lotes fossem apenas
trabalhados e transmitidos à próxima geração segundo o que Morgan afirmava constituir
a maneira civilizada de fazê-lo. Sob esse aspecto, a terra precisava passar de pai para
filho, não de irmão para irmão. Mais importante, as mulheres precisavam entender que
seu papel no interior da unidade detentora da terra era subordinado: elas não iriam ter
títulos próprios, mas apenas indiretamente, por meio dos lotes de seus maridos ou filhos.
Vale a pena notar aqui que Fletcher observara que seu conhecimento etnográfico prévio
dos Omaha era indispensável para planejar seu futuro para eles e para dar-lhes "uma idéia
das formas de obrigações dos modos [brancos] de fazer negócios".
Para dar uma base sólida para seu trabalho, Fletcher realizou um censo dos
Omaha. Ela prestou uma atenção particular às conexões entre as famílias, parentesco e
descendência, par que futuros administradores do OIA pudessem saber quem era
"realmente" relacionado com quem, a "realidade" aqui sendo definida em termos das
noções anglo-saxãs de parentesco. Em outras palavras, ela trabalhou para criar indivíduos
que pudessem ser administrados segundo as exigências da racionalidade branca (NAA,
Alice Fletcher Papers, Box #3, Report to Commissioner Price, June 1884).
Alice Fletcher usou seu tempo na reserva para conduzir trabalho etnográfico também,
e nisso foi ajudada competentemente por Francis LaFlesche. Quando finalmente foi
embora em 1884, levou consigo uma riqueza de dados etnográficos que seriam
transformados em livros e artigos nas décadas seguintes. A curiosidade etnográfica,
porém, estava no banco de trás em relação a seus trabalhos como agente de loteamento. O
objetivo principal de Fletcher era a destruição da vida omaha tradicional que ela estava
registrando para a posteridade. Ela aproveitous oportunidades para minar autoridades
tribais associadas com o "Chief's Party" e apoiar os LaFlesche e seus aliados
"progressistas". Pouco depois de ter chegado à reserva, Fletcher fiou muito doente e um
grupo de omaha "tradicionais" começou a espalhar que isso era um sinal qde que ela
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
168
estava fazendo o mal. Para abafar esses comentários, Fletcher começou a fazer o
loteamento de sua cama de doente, e quando um xamã [medicine man] amigável pediu
para realizar um ritual mágico para curá-la, ela se recusou, "pois iria ferir a muitos e
colocar uma pedra no caminho da civilização" se um agente civilizador fosse visto
baixando a cabeça para a magia nativa. Mesmo a saúde pessoal do etnógrafo, pois, era
uma consideração secundária comparada à empresa civilizatória (Mark, 1988:92).
Os LaFlesche e seus aliados foram os primeiros a receber loteamentos, "e os receberam
onde Fletcher achava que deviam, a oeste de Sioux City e da Ferrovia de Nebraska",
perto da ferrovia, de vizinhos brancos e da futura cidade branca de Bancroft:
precisamente o mais valioso canto da reserva. Um quarto da tribo — 326 pessoas em
1179 — recebeu lotes na área favorecida por Fletcher, e ela se referia a esses Omaha
consistentemente como em seus relatórios como "as famílias mais progressistas". Depois
de sete meses de processo de loteamento, todavia, quase um terço da tribo ainda se
recusava a participar do processo. Fletcher decidiu que o tempo para a persuasão estava
terminado e era a hora de usar a força: "Com permissão do agente, estou agora forçando a
atenção dos elementos refratários e problemáticos", informou aos funcionários do OIA
em Washington. Pouco depois, a força policial indígena da agência reuniu os dissidentes
e forçou-os a comparecer diante de Fletcher para fazer sua marca nos documentos dela,
aceitando o lote que ela mesmo escolhera para eles.
Treze meses após chegar para lotear a reserva omaha, Alice Fletcher retornou a
Washington DC. Ela perdera quase 14 quilos durante sua doença e seu cabelo caira, para
crescer outra vez completamente grisalho, mas sua missão foi julgada um completo
sucesso por seus superiores no Departamento do Interior e por seus amigos no Capitólio.
O loteamento dos Omaha por Fletcher foi considerado um dos mais completos e
competentes entre os realizados nos cinquenta anos seguintes. 75.931 acres de terra
omaha foram loteados para chefes de família separados sob a supervisão de Fletcher.
Essa terra seria isenta de impostos e removida do mercado, sob supervisão do OIA, pelos
próximos 25 anos, enquanto os Omaha, presumivelmente, aprenderiam os modos da
civilização. Cerca de 50.000 acres a oeste da ferrovia deveriam ser vendidos a colonos
brancos, com a renda sendo usada para pagar pela tutelagem da tribo. 55.450 acres finais
seriam mantidos reservados para as crianças por nascer no próximo quarto de século.
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
169
Mais importante, Fletcher havia mapeado completamente a tribo e suas relações de
parentesco de maneira a que os direitos à terra eram relativamente claros, pelo menos
para os administradores do OIA. Obviamente, o treinamento dela nas técnicas de
observação etnográfica do período, que priorizavam relações de parentesco, tinham
auxiliado sua tarefa como agente de loteamento (Mark, 1988: 89-94).
No outono daquele ano, Alice Fletcher compareceu à segunda conferência sobre
Assuntos Indígenas no Lago Mohonk, Nova Iorque, onde os amigos do índio tinham
começado a encontrar-se anualmente para discutir o futuro da população nativa do país.
Alice Fletcher era em boa medida a celebridade do encontro. Ao longo dos vários anos
seguintes, conforme intensificava-se o debate do loteamento, Fletcher era chamada para
dar testemunho de sua experiência no loteamento omaha. Ela continuou a trabalhar para o
governo federal como uma especialista em índios, sendo contratada em 1885 pelo
Departamento de Educação para redigir um sobrevôo da história dos Assuntos Indígenas
e do estado presente da América Nativa, um relatório que acabou contando com 695
páginas e foi muito utilizado como fonte primária durante os debates sobre o loteamento
e depois. Foi convocada para realizar dois outros loteamentos: o dos vizinhos dos Omaha,
os Winnebago, em 1887-1889, e o dos Nez Percé do Idaho, em 1889-1890. Finalmente,
organizou também várias exposições etnográficas para seu mentor Putnam durante este
período (NAA, Alice Fletcher Papers, Box #12, Biography and Memorabilia).
No curso dessas atividades, Alice Fletcher exerceu uma poderosa influência sobre
a direção do debate do loteamento. De 1880 em diante, três diferentes versões do projeto
geral do loteamento foram discutidas. A primeira, apresentada em maio de 1880 pelo
senador Richard Coke do Texas (predecessor de Dawes como presidente do Comitê de
Assuntos Indígenas), permitia às tribos escolherem se queriam títulos individuais ou
preferiam manter a terra sob posse comum. A segunda versão, introduzida por Dawes em
1884, também permitia títulos tanto individuais quanto tribais, e mantinha que o
loteamento só podia ocorrer se dois terços dos adultos da tribo o desejassem. Nas
conferências do Lago Mohonk e em outras ocasiões ao longo desses anos, Alice Fletcher
iria argumenta contra essas versões do projeto de loteamento, insistindo que lotes fosse
dados exclusivamente para indivíduos e que as tribos, para seu próprio bem, não
deveriam ter escolha quanto a esse processo: "Sob nenhuma circunstância o título à terra
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
170
deve ser concedido para uma tribo. O princípio está errado […] [Além disso], o trabalho
precisa ser feito para os índios com ou sem sua aprovação." ((NAA, Alice Fletcher
Papers, Box #12, Biography and Memorabilia)
Um artigo escrito por Fletcher em 1885 oferece um apanhado de seus
pensamentos sobre o loteamento e a civilização indígena durante este período. Nele, ela
descreve corretamente a estrutura da reserva como algo que desenvolveu-se de modo a
remover os índios do caminho da expansão branca. Infelizmente, segundo Fletcher, as
reservas tiveram o efeito negativo de manter a sociedade indígena viva e saudável,
restringindo o individualismo e acúmulo de riquezas. Por causa disso, o loteamento
precisava ser obrigatório — mesmo forçado — porque em toda comunidade nativa, os
"homens progressistas estão em minoria". O índio médio estava ainda "nas garras de sua
'gens', [que] impede a acumulação de propriedade e o estabelecimento da família sobre
uma sólida base legal." Essa situação tornaria "demasiado pesado" para o índio decidir
sobre seu próprio futuro:
He has no power to choose the safe course for his future, because he has no
experience of the conditions that are coming upon him, which neither he nor anyone can
turn aside, and leave the Indians untouched, unmodified. Because of this lack of vision…
we owe it… to act as faithful guardians, since act we must… Tribal control, therefore,
which ignores the individual and the family, (as established in civil society) must be
overturned, and this can only be effected surely, by giving individual ownership of the
land…” (NAA, Alice Fletcher Papers, Box #5, “Land, Law, Education – The Three
Things Needed by the Indian”, 1885).
As experiências de Alice Fletcher com os Omaha levaram-na à mesma conclusão
que Powell apresentara ao Congresso em 1882 e que seria consagrada na lei na versão
final do projeto geral de loteamento, o Dawes Act de 1887. Sentia-se que enquanto o
governo tratasse com os índios enquanto sociedades coesas, pressões sociais e políticas
iriam conservar a terra e o poder nas mãos dos "não-progressistas". A solução óbvia era
sabotar a soberania nativa forçando a divisão individualizada da terra. Mas isso, por si
mesmo, não era suficiente: os lotes precisavam ser distribuídos segundo estruturas
familiares nucleares, patriarcais e monogâmicas. O período de trust de 25 anos
subsequente ao loteamento deveria garantir, entre outras coisas, que as terras loteadas
permanecessem congeladas neste molde. O objetivo do loteamento era claramente aquele
delineado por Powell: a completa destruição das estruturas sociais, religiosas, de
Cidadãos e Selvagens Capítulo III
171
parentesco e de posse da terra indígenas, de modo que um novo futuro pudesse ser
construído para o índio enquanto um americano idealizado.
Como conclui Mark, a forma final do Dawes Act deveu mais ao trabalho de Alice
Fletcher do que ao de qualquer outro indivíduo. O próprio Dawes o admitiu. Na
conferência do Lago Mohonk de 1886, o senador finalmente retirou o conceito de título
de terra coletivo tribal, atribuindo esta mudança de idéia ao "forte sentimento"
prevalescente entre reformadores e antropólogos da Costa Leste, cuja voz mais
"encantadora e acessível" permanecia sendo a da querida amiga de sua esposa e filha,
Alice Fletcher.
O consenso entre os reformadores no campo dos Assuntos Indígenas havia sido
revertido. A explosão original de protesto sobre as remoções Omaha e Ponca centrava-se
na tese do "século da desonra", que estipulava que o governo federal tratara com as tribos
em má-fé. Um tal argumento, é claro, priorizava a existência dos grupos indígenas como
tais, mesmo que apenas indiretamente. Sete anos depois, o consenso deslocara-se para a
posição de que a relação tribal precisava ser quebrada para que os nativos americanos
tivessem um futuro. Esse deslocamento devia-se em grande medida ao trabalho de
antropólogos como Powell e Fletcher, e à sua tradução das teorias de L.H. Morgan em
prática administrativa. Em 1887, a terceira e final versão do decreto geral de loteamento
foi aprovada praticamente sem nenhum debate (Mark, 1988: 116-119).
Esse, pois, é o contexto subjacente ao comentário de Henry Dawes de que ele
estava para o trabalho de Alice Fletcher "como Américo Vespúcio para Colombo." Não
se tratava de uma retórica vazia ou emoção cavalheiresca, mas de uma sóbria apreciação
de onde estava a principal fonte de responsabilidade pela forma final da nova lei:
diretamente nas mãos de uma mulher de meia-idade da sociedade anglo-saxão
bostoniana, que foi uma das primeiras "missionárias científicas" antropológicas da
América do Norte.
Cidadãos e Selvagens Parte I Conclusões
172
Parte I Conclusões
A antropologia contribuiu, acima de tudo, para a justificação intellectual da empreitada colonialista.
Ela forneceu à política e à economia – uma crença firme no tempo ‘natural’, isto é evolutivo. Ela
promoveu um esquema em termo do qual não somente culturas passadas mas todas as sociedades
foram colocadas irrevogavelmente em uma ladeira temporal, uma corrente de tempo – algumas
corrente acima, outras corrente abaixo. Civilização, evolução, desenvolvimento, aculturação,
modernização (e seus primos, industrialização, urbanização) são todos termos cujo conceito deriva,
de formas que podem ser especificadas, da escalala evolucionária do tempo.”
- Johannes Fabian, Time and the Other, pág. 17.
Desde o primeiro contato entre europeus de fala inglesa na América do Norte e os
habitantes nativos daquele continente até o final do século XIX, o mais o importante
movimento interior assegurava que o contato o deslocamento dos últimos pelos
primeiros. Como eliminar os nativos americanos enquanto um fator ativo e autônomo que
pudesse ter um impacto negativo sobre o Destino Manifesto dos Estados Unidos,
entendido, em última instância, como a expansão política e econômica daquela nação até
que suas fronteiras fossem congruentes com as da sua própria criação – foi geralmente
entendido como o Problema Indígena dos Estados Unidos.
Lidar com o Problema Indígena em um âmbito nacional concertadamente foi a
responsabilidade dos Assuntos Indígenas, um campo político no sentido que Bourdieu
atribui ao termo: um lugar onde produtos politicos, problemas, programas, análises,
comentários, conceitos, acontecimentos são gerados pelo competição de agentes
envolvidos no campo, com os cidadãos comuns sendo reduzidos à qualidade de meros
‘consumidores’ destes produtos, escolhendo entre aqueles oferecidos por esses agentes.
No caso dos Assuntos Indígenas, durante o período em questão, os principais agentes
foram as ferrovias e as companhias que comerciavam com terras, o governo local
(representado pelos congressistas em Washington), o OIA (que em 1879 tinha se tornado
totalmente desacreditado aos olhos do público), e os “amigos dos indígenas” – aqui
entendidos como aquela aliança amorfa de grupos reformistas, em geral de orientação
Republicana e Protestante, que procuravam redimir os indígenas como futuros cidadãos
da nação (incluo como amigos dos indígenas a Diretoria de Comissários Indígenas, a
conferência de Lake Mohonk e os muitos outros grupos de missionários, entre outros).
Os próprios grupos indígenas eram agentes primarios nessa agente política, mas durante o
Cidadãos e Selvagens Parte I Conclusões
173
período sob análise, seu poder estava muitas vezes limitado, devido à falta do status de
cidadania da maioria dos americanos nativos.
Falando de uma maneira geral, o objetivo dos Assuntos Indígenas durante o período
sendo investigado era o de promover o desaparecimento dos americanos natives, ao
menos à medida que as polities eram capazes de exercer influência em relação aos
Estados Unidos. De uma maneira geral, as políticas que foram empregadas para atingir
esse objetivo podem se identificadas como abrangendo dois pólos, um marcado por
extermínio ativo e o outro por acomodação. O segundo polo foi mais prevalente que o
primeiro como a relação brancos/nativos “normativa” na América do Norte, embora não
se deva confundir que políticas de “acomodação” tenham sido mais confortáveis para os
americanos nativos do que as políticas de claro extermínio.
Acomodação deve ser entendida como seguindo três estratégias gerais: aliança,
remoção/segregação e assimilação. Todas essas três estratégias foram usadas em
qualquer período da América do Norte, embora certas estratégias tenham sido mais
comuns durante certos períodos. O extermínio ativo era geralmente um recurso ultimo e
altamente contingente contra algumas polities nativas que não aceitavam as estratégias de
acomodação, embora isso não fosse devido a qualquer preocupação com os direitos
humanos e com a dignidade dos americanos nativos. O extermínio foi relativamente
pouco empregado como política estipulada pelas autoridades políticas centrais (ao
contrário de elites locais or grupos de interesses dos brancos ao longo da fronteira) por
três razões. In the first place, Indian wars were more expensive and unpredictable than
accommodation. Em primeiro lugar, as guerras indígenas eram mais caras e impredizíveis
do que a acomodação. Em segundo lugar, o extermínio completo de povos subordinados
ia frontalmente contra o projeto do colono de criar uma sociedade exemplar, segundo os
padrões rigorosos Cristãos-Protestantes. Mais importante do que isso, tais extermínios
fizeram os Estados Unidos mais vulneráveis à crítica, particularmente da parte dos
europeus.
A estratégia da aliança foi mais comum durante o período colonial, quando as
potências européias estavam lutando pelo domínio da América do Norte. Ela queria dizer
tratar as polities nativas como se fossem nominalmente o mesmo que as nações
européias. A estratégia da aliança tornou-se muito menos comum depois que os Estados
Cidadãos e Selvagens Parte I Conclusões
174
Unidos chegaram à hegemonia sobre a América do Norte nas primeiras décadas do
século XIX, embora tenha aberto o precedente de tratas as polities nativas como unidades
coesas, com um certo grau de soberania.
A estratégia de remoção/segregação comumente envolvia negociar com as polities
norte-americanas, para afastá-las da colonização dos brancos, liberando terra e recursos
para uso dos brancos, em troca de contribuições para grupos nativos. O desenvolvimento
final dessa estratégia foi a construção de reserves, onde os nativos seriam afastados do
contato com o branco, geralmente em terras não ideais para a agricultura. A estratégia da
remoção reforçou o conceito de grupos nativos americanos como polities coesas, com as
quais se podia negociar através de tratados. As decisões do Marshall no começo do
século XIX, no entanto, estabeleceram limites a essa soberania. Ao mesmo tempo em que
confirmavam as polities como sendo grupos coesos, semelhantes a nações, colocava-os
firmemente debaixo das asas do gvoerno federal dos Estados Unidos, uma medida
legalmente contraditória, que entendia as polities nativas como sendo “nações domésticas
dependentes". À medida que se avançou no século XIX e o poder das polities nativas
diminuiu dramaticamente em relação ao poder do governo federal dos Estados Unidos, o
aspecto “dependente” e “doméstico” começou a ser mais enfatizado na estratégia de
remoção/segregação, ao invés da soberania pressuposta pela noção de “nação”. Em 1871
esse processo chegou a sua conclusão lógica , quando o Congresso assumiu o direito de
fazer leis diretamente para as tribos indígenas, sem qualquer consulta aos nativos, e o
sistema de tratados foi abolido.
As estratégias de assimilação foram sempre pressupostas pelo ímpeto da tendência de
acordo dentro dos Assuntos Indígenas, na medida em que foi geralmente entendido que a
aliança e a remoção/segregação iriam finalmente levar à redução da alteridade nativa.
Especificamente, essa era a lógica subjacente ao sistema de reserve, que procurava
“proteger” os americanos nativos de contato não autorizado por parte dos brancos, até
que eles pudessem se civilizer. Civilização pode ser entendida neste sentido, de uma
forma parecida com a estipulada por Norbert Elias, como a internalização de normas que
reprimem os desejos e as emoções individuais a favor de um comportamento que é
considerado economicamente racional, dentro dos rigores do capitalismo de mercado
livre e do estado (ELIAS, 1990: 13-20) Uma das palavras-chave usadas para
Cidadãos e Selvagens Parte I Conclusões
175
conceitualizar esse processo durante o período colonial foi redução, e ele serve para
mostrar exatamente qual era essa estratégia: a redução das liberdades dos indígenas e –
sobretudo – de liberdade de movimento e de direitos às terras.
O objetivo da assimilação sempre foi a eliminação dos americanos ativos como povos
diferentes e culturalmente, etnicamente, politicamente e culturalmente distintos. Em um
sentido estrito, então, as políticas de assimilação podem ser entendidas como sendo de
cunho genocida, mesmo que não tenham tido esse resultado final. Nos períodos colonial e
antecedente à Guerra Civil, a assimilação geralmente acontecia sob os auspícios da
conversão e da cristianização. No entanto, como James Axtell observou, a conversão
religiosa muitas vezes funcionou para preserver as identidades étnicas e políticas, ao
invest de reduzi-las (AXTELL, 1985: 81). Isso não foi um problema imediato quando a
alteridade continuada podia ser tratada com uma nova leva de remoções e segregação
para uma nova reserva. No entanto, quando o fim do século XIX se aproximou, não havia
mais uma fronteira além da qual os índios pudessem ser levados. À medida que terra não
colonizada começou a ser absorvida à economia de Mercado, as reservas indígenas – que
perfaziam um total de 156 milhões de acres sob proteção federal em 1881, o equivalente
a duas vezes e meia a terra do Estado da Georgia (CARSLON, 1981: 3) – sofreram
pressão imensa dos interesses dos colonizadores e dos donos de ferrovias.
Resumindo, o problema era que a população nativa dos Estados Unidos não podia
mais ser removida ou segregada e seu extermínio ativo era politicamente e
economicamente inviável. Nem era possível simplesmente ignorar o problema: a
diminuição continua e descontrolada da terra dos indígenas resultaria em mais guerras
por parte dos indígenas. O grande insight de senador Henry Dawes foi que medidas
tinham de ser tomadas para evitar a completa dissolução dos Negócios Indígenas. A
questão era o que podia ser feito para finalmente resolver a Questão Indígena, sem
recorrer aos custos politicos e econômicos associados ao extermínio explícito? A solução
era a invenção de uma forma de assimilação científica e racional, bem como loteamento
individual, das terras em poder das tribos indígenas, que se tornou a peça central dessas
novas políticas. Ambas essas novas políticas foram em sua maioria formuladas e postas
em prática por antropólogos.
Cidadãos e Selvagens Parte I Conclusões
176
Os Efeitos do Loteamento nos Assuntos Indígenas
O Dawes General Allotment Act (Decreto Geral de Loteamento de Dawes) foi o
ponto culminante de uma onde de atividades intensificadas de assimilação que tomou
conta dos Assuntos Indígenas, durante a década de 80 do século XIX. Por si próprio, o
Ato não ordenava nada: ele meramente permitia o loteamento individual de terras das
reservas e a incorporação dos indígenas como cidadãos. Certos autores (HOXIE, 1984;
PRUCHA, 1976; CARLSON, 1981) observaram que o Ato era basicamente uma
legislação neutral: embora fosse mandatório quando aplicado, poderia ser aplicado
segundo a vontade do Presidente ou do Secretário do Interior. A OIA e o Congresso
afirmaram que só devia ser usado em relação às reservas indígenas que fossem se
beneficiar amplamente do loteamento. No entanto, como vimos acima, muitos dos
principais proponentes do Ato interpretavam “benefício” como um fruto inevitável do
loteamento forçado. Era uma ferramenta ponderosa que podia ser usada de diferentes
formas, mas o jogo de poder no campo político dos assuntos indígenas durante o final do
século XIX e o começo do século XX asseguravam que, em geral, ele não seria usado
para promover os interesses dos nativos.
One of the most important, but often overlooked, aspects of allotment was its use as a
tool which placed the final disposition of remaining Indian lands out of Native hands and
into the hands of the Federal government. Um dos aspectos mais importantes, embora
freqüentemente ignorado, do loteamento foi seu uso como uma ferramenta que colocava
a disposição final das terras remanescentes dos indígenas fora do alcance das mãos dos
nativos, nas mãos do governo federal. In this sense, allotment proved to be a measure
through which the Federal government asserted sovereignty over the last remaining
independent lands within the United States and disciplined their residents. Nesse sentido,
o loteamento foi uma medida pela qual o governo federal exerceu soberania sobre as
últimas terras independentes remanescentes dentro dos Estados Unidos e disciplinou os
residentes destas terras.
As últimas décadas do século XIX e a primeira do século XX viram um significativo
aumento em governamentalité federal com respeito aos americanos nativos. Até a época
da Guerra Civil e durante o período da “Política de Paz” dos anos 70 do século XIX, os
indígenas foram deixados por sua própria conta, para se governarem da forma que
Cidadãos e Selvagens Parte I Conclusões
177
desejassem, desde que não saíssen de suas reservas ou perturbassem os colonizadores
brancos e a propriedade. Tudo isso começou a mudar com a conscientização , durante o
final do século XIX, que os americanos nativos não eram mais externos aos Estados
Unidos, mas totalmente internos a eles. Como governar de forma apropriada os
indígenas, ao invest de removê-los, segregá-los, ou exterminá-los tornou-se, assim, a
principal preocupação dos assuntos indígenas.
Foucault situa governamentalité como um fenômeno específico, que se origina na
Europa do século XV e XVI, onde o Estado de justiça medieval se transfomou
gradativamente no moderno Estado administrativo. Foi marcado pelo desenvolvimento de
uma conjunto inteligado de instituições , procedimentos, analyses, reflexes, calculus e
táticas que possibilitaram o exercício de uma forma complexa de poder, disciplinando os
indivíduos em nome da instrumentalização do conhecimento econômico e da manutenção
do controle sobre a sociedade por mecanismos de segurança (FOUCAULT, 1979: 291-
293) Os anos 70 e 80 do século XIX testemunharam uma onda de atividades
governamentais que caíram sobre as reservas indígenas dos Estados Unidos. Começando
pela declaração formal do Congresso de sua soberania em relação às terras dos indígenas
em 1871, houve tentativas maiores de converter os indígenas ao cristianismo, dividindo
as reservas em distritos missionários, supervisados por diferenças fés, organizando o
financiamento de construção de casas ao estilo do homem branco para casais indígenas
recém-casados, criando internatos para crianças indígenas, extendendo a jurisdição legal
dos Estados Unidos para incluir as reservas, proibindo as vendas e o consumo de álcool
para e pelos indígenas, reforçando as estruturas de parentesco anglo-saxãs (mais
especificamente pela proibição de coabitação “indígena” e da poligamia) e reforçando o
recrutamento forçado dos indígenas para as brigadas de trabalho.
A maior parte da ampliação do poder do governo dos Estados Unidos para chegar às
terras indígenas foi possível por um aumento do biopoder que o governo federal dos
Estados Unidos exerceu em relação às populacões nativas, especialmente na região para
além do Rio Mississipi. À medida que a caça (e o buffalo em especial) era dizimada por
caçadores brancos e os americanos nativos eram retirados para terras não ideias para o
cultivo, os grupos indígenas se tornaram totalmente dependentes dos suprimentos e
rações federais. Como observa Foucault, biopoder é o exercício do poder segundo sua
Cidadãos e Selvagens Parte I Conclusões
178
habilidade de criar e sustentar a vida, ao invés de destruí-la (FOUCAULT, 258-260). À
medida que as tribos perderam a possibilidade de se sustentarem, eles se tornaram cada
vez mais vulneráveis à ação deste tipo de poder.
A política chave da expansão de governabilidade nas reservas foi o loteamento de
terras em poder das tribos como propriedade privada. Como observa Thomas Biolsi,
embora o loteamento em si não tenha tido o efeito civilizador nos americanos nativos que
seus mais árduos defensores predisseram, ele em verdade provocou vários conseqüências
pressentidas por Powell, mais especificamente a subordinação final da tribo ao poder
federal dos Estados Unidos:
Dar a posse das terras aos indígenas teve, em verdade, conseqüências “fantásmicas”,
para usar o termo cunhado por Marx, se não mágicas: além de trazer a terra indígena para
o mercado, ajudou a assegurar uma nova soberania às reservas. Isso porque a
propriedade privada, sob o capitalismo – instituída no caso do americano nativo pelo
loteamento de terras indígenas como propriedade privada – pressupõe o estado como o
protetor dos interesses dos proprietários individuais. (BIOLSI, 1995: 31)
Em outras palavras, então, pelo loteamento o governo federal adquiriu claro poder
soberano em relação às faixas de terra indígena remanascentes nos Estados Unidos. Isso
significou poder direto no caso daquela terra que foi alienada de controle dos nativos para
ser vendida a colonos brancos, ou no caso dos loteamentos em si, durante o período de 25
anos de custódia e administração do governo, quando qualquer mudança na alocação de
terra tinha de ser ratificados pela OIA. Mas esse poder soberano também existia no caso
daqueles loteamentos que foram finalmente liberados por falta de controle do OIA, pois
sua alocação não mais seria decidida pela tribo ou pelo clã, mas pelas leis do mercado –
leis que, como Biolsi observa, foram subscritas pelo poder do Estado como protetor.
Como mostramos acima, antropólogos como Powell, Dorsey e Fletcher não estavam
simplesmente moralmente implicados no processo mas epistemologicamente ligados a
ele.
Os Efeitos do Loteamento nos Indígenas
Mas quais foram os resultados mais pragmáticos do loteamento? Powell, Dawes,
Flethcer e outros amigos dos indígenas repetidamente descreveram-no como a única
política capaz de evitar a eliminação final da reserva original de terra americana nativa e
Cidadãos e Selvagens Parte I Conclusões
179
a redução dos indígenas a uma população sem terra, itinerante, dentro dos limites dos
Estados Unidos. O loteamento obteve sucesso ao menos neste aspecto?
Quaisquer que tenham sido os seus efeitos em outra areas, a loteamento teve o
seguinte efeito: no decorrer do tempo, ele transfeiu enormes quantidades das terras
remanescentes dos indígenas para as mãos dos homens brancos e deixou os americanos
nativos com uma reserva original de terra que não poderia, de forma alguma, dar sustento
à sua população. Esse efeito do loteamento foi aceito como tendo existido por parte de
todos os acadêmicos da história dos indígenas americanos que investigaram essa questão
(ver CARLSON, 1981; FEY and MCNICKLE, 1959; HOXIE, 1984; MCDONNELL,
1991; OTIS, 1983 [1937] entre outros). Dos quase 156 milhões de acres de terras dos
indígenas em 1881, menos de 53.000.000 acrestes restavam em 1933. Daquela
quantidade, perto de 42.000.000 de acres – or 79% -- já tinha sido loteada e, portanto,
estava teoricamente à disposição do Mercado em um futuro próximo. Em 1933, a terra
não loteada de reserva chegava a somente 7% do que tinha sido a reserva original
indígena em 1881. Em outras palavras, mais de nove-décimos das terras americanas
nativas que tinha existido em 1881 tinham sido transformados em propriedade particular
comerciável meio século mais tarde. Enquanto isso, a população indígena dos Estados
Unidos cresceu de 248.000 em 1890 para mais de 332.000 em 1930, com mais de 90%
desta população concentrada em reservas ou à volta das mesmas (CARLSON, 1981: 183-
195).
A terra tinha a tendência de não permanecer nas mãos dos indígenas, uma vez fora do
patrulhamento da OIA e era transformada em título simples. Leonard Carlson, o
acadêmico que analisou em maior profundidade os efeitos do Dawes Act na agricultura e
posse de terras dos indígenas, afirma que a evidência que se apresenta indica que mais do
que 80 por cento ou mais dos loteamentos indígenas foram vendidos pelos seus
proprietários nativos poucos anos depois de terem sido declarados em sua posse legal
definitiva pelas autoridades federais (CARLSON, 1981: 158)
Havia várias formas pelas quais o loteamento podia transferir terras dos indígenas
para as mãos dos homens brancos e está além do âmbito deste trabalho descer a detalhes
sobre essas formas de transferência de terra. O loteamento tem uma história muito
complexa que foi muito influenciada por condições locais e cada grupo nativo teve sua
Cidadãos e Selvagens Parte I Conclusões
180
experiência única em lidar com o Dawes Act. Alguns dele, em verdade, nunca tiveram
suas terras loteadas. Outros ficaram relativamente satisfeitos com os resultados do
processo. Os leitores devem observer, portanto, que somente etnohistórias de grupos
nativos específicos têm alguma chance de dar uma noção clara de qual o impacto do
loteamento em cada caso particular. century
1
. No entanto, uma sucinta visão da história
do pós loteamento dos Omaha pode ilustrar alguns dos mecanismos do esfacelamento da
reserva original nativa que ocorreu nas terras além do oeste do Mississipi durante os
últimos anos do século XIX e primeiros anos do século XX.
O primeiro problema que os Omaha tiveram de enfrentar foi que eles não tinham
dinheiro e estavam em situação política instável imediatamente após Alice Fletcher ter
conduzido seu loteamento. A tribo foi oficialmente considerada como composta de
indígenas “não civilizados” que possuiam cidadania Americana. No entanto, essa
situação era um pouco dificultada pelo periodo de custódia de 25 anos imposto pelo
Dawes Act, durante o qual da terra não podiam ser cobrados impostos, ou ser vendida.
Os Omaha não tinha qualquer influência na estrutura política ou legal do estado de
Nebraska, mesmo quando eram cidadãos dos Estados Unidos. Assim eles não tinha
acesso à maior parte dos serviços públicos oferecidos pelo estado, cidades e condados.
Nem era do interesse de Nebraska que os Omaha se tornassem cidadãos em perspectiva:
do ponto de vista do governo local, o loteamento tinha criando um grupo de pessoas com
direito presumível de cidadania, mas sem quaisquer responsabilidades – mais
especificamente a responsabilidade de pagar impostod para os serviços do estado.
Os Omaha reagiram pedindo ao OIA para que deixasse que eles tivessem seu governo
próprio, pedindo fundos das vendas de terras, para que o dinheiro fosse diretamente para
a tribo, a fim de que eles pudessem se governor. Até 1885, todo o pessoal do OIA tinha
sido despedido ou tinha deixado a reserve e os Omaha estavam, em última instância, sós,
sem apoio administrativo do OIA mas também sem um governo tribal reconhecido._
Velhas divisões tribais rapidamente vieram à tona, entre a facção de LaFlesche e outras e
havia desacordo até mesmo dentro da família LaFlesche, pois determinados segmentos
1
A informação na seção seguinte é retirada do excelente trabalho de Judith Boughter, a não ser que seja indicado em
contrário
Cidadãos e Selvagens Parte I Conclusões
181
tentavam ganhar o direito de oferecer terra da reserva em arrendamento para a próxima
geração de descendentes Omaha.
Em 1887, a reserva estava em caos e a tribo estava à beira da dissolução. Alice
Fletcher tinha liberado cerca de 50.000 acres – cerca de 28% da reserva – como
excedente. Os Omaha tinham sorte que Fletcher tentou se assegurar que ao menos parte
das terras da reserve próprias para a agricultura permanecessem sob controle dos
indígenas, pois outros tribos muitas vezes descobriam que seu agente tinha reservado a
melhor parte de suas terras para ser vendida ao homem branco. Não obstante, os Omaha
precisavam de dinheiro vivo para fazer as melhorias que possibilitariam a agricultura
nessas terras.
Em teoria, o pagamento pela venda de terras da reserva excedentes deveria ser feito
em três prestações, logo após a efetivação das vendas. Na prática, o Congresso
freqüentemente dava aos homens brancos compradores tempo a mais para quitarem seus
débitos. Até 1890, quase todo o excedente dos Omaha tinha sido vendido mas menos de
1/3 do preço de venda tinha sido depositado nas contas da tribo. Mais de 4.000 dólares
em juros sobre essas vendas também estavam em atraso mas o governo federal não
mostrava sinais de querer restabelecer a posse dessas terras por por quebra de contrato.
O pagamento final pelas terras iria se arrastar por mais de 13 anos após as transações
originais terem sido efetuadas.
Enquanto isso, a infraestrutura da reserva tinha se dilapidado. Sem dinheiro para a
manutenção e com desacordo no conselho tribal (que não era nem ao menos formalmente
reconhecido pelo OIA, o destino dos Omaha entrou em colapso. Em 1889, a reserva,
junto com uma pequena faixa de terra de propriedade dos colonos brancos, tornou-se o
Condado de Thurston. As terras indígenas ainda eram isentas de impostos e para levantar
o dinheiro necessário para terem fundos para construir estradas e escolas, o condado
começou a taxar a propriedade pessoal dos indígenas a preços incrivelmente altos, ao
mesmo tempo que faziam campanha nas legislaturas estadual e federal para cobrar
imposto territorial dos Omaha.
Sem dinheiro entrando e com débitos pessoais crescents, a maioria dos Omaha não
teve possibilidade de comprar ou alugar o equipamente pesado necessário para revolver o
terreno duro da pradaria e começar a arar seus loteamentos. Esse problema era endêmico
Cidadãos e Selvagens Parte I Conclusões
182
pelas reservas indígenas do oeste Americano. Em uma tentativa de achar uma solução
para este problema, o Senador Dawes propôs e aprovou uma emenda a seu decreto de
loteamento em 1891, permitindo que o OIA arrendar terras quando um indígena “por
motivos de idade ou falta de competência ... não pudesse pessoalmente e com benefício
para si próprio ocupar seu loteamento or qualquer parte dele” (OTIS, 1983 [1934]: 187)
Essa emenda teria conseqüências bem abrangentes. O loteamento deveria originalmente
transformer americanos nativos em pequenos prorprietários rurais. O arrendamento, no
entanto, abriu as portas para que eles se tornassem proprietários ausentes – ou, mais
precisamente, para que o OIA administrasse suas terras diretamente para eles. Até 1892,
90 por cento dos Omaha estavam arrendando suas terras e vivendo de renda.
Segundo Judith Boughter, “doze anos passados dos início da custódia, [os Omaha]
estavam muito piores do que quando primeiro receberam seus loteamentos. Eles recebiam
somente o suficiente em aluguéis que permitia que eles comprassem uísque e eles ainda
não sabiam de nada sobre cidadania... Nos anos 90 do século XIX, quase todo agente
interessado ou reformador citava a crescente dependência dos Omaha em relação ao
álcool” (153) 30 anos antes, o abuso do álcool era praticamente desconhecido entre a
tribo mas nas primeiras décadas do século XX “poucos Omaha controlavam seus
loteamentos, muitos bebiam muito e ninguém parecia se importar” (120)
Um outro problema logo surgiu à medida em que o tempo passava. No caso de morte
do receptor original do lote, a terra era dividida entre os herdeiros sobreviventes, segundo
as leis do estado onde o receptor original residia. À medida que as gerações se passavam,
essa situação criou padrões incrivelmente complexos de posse de terra, onde um dado
Omaha podia possuir o direito a fragmentos de muitos acres, espalhados em loteamentos
em lugares bem distintos. Em tais casos, a única solução era o arrendamento desses
fragmentos por administração do OIA (/BAI) or a venda, por intermédio do OIA, desses
assim chamados “loteamentos de herdeiros”. O Indian Appropriation Act de 1902
permitiu que os herdeiros adultos de indígena falecido vendesse suas terras, com os
compradores recebendo de imediato os títulos sem obrigações restantes. Os Omaha, em
geral, se opunham a essas vendas mas muitos indíviduos, nessa tripo com absoluta falta
de dinheiro, tinha pouca alternativa outra. O homem branco do condado de Thurston
ficaram animados com essa nova lei e uma nova corrida atrás da terra dos Omaha se
Cidadãos e Selvagens Parte I Conclusões
183
iniciou. Os jornais locais chegaram a ponto de imprimir mapas da reserva, mostrando que
terra poderia ser comprada. Uma tática comum utilizada por negociantes brancos para
aumentar as vendas era ampliar o crédito aos herdeiros de um indígena falecido,
freqüentemente a taxas de juros que oscilavam entre 100 e 1.500 por cento.
Alice Fletcher tinha em um primeiro momento prometido aos Omaha que suas terras
não seriam passíveis de impostos e seriam inalienáveis por um quarto de século. Em
1906, no entanto, sua promessa foi quebrada pelo governo federal com o Burke Act.
Essa lei declarava que a competência dos receptores de loteamento deveria ser julgada
em uma consideração caso-a-caso, com a cidadania somente dada depois de que o status
de tutelado tivesse sido rescindido. Ainda pior que isso, ela previa que um indivíduo
poderia ser declarado competente, pelo Secretário do Interior (geralmente pelo aparato
administrativo do OIA), antes que seu período de 25 anos de tutela tivesse se completado.
Da mesma forma, o perído de tutela podia ser ampliado.
Dois anos depois do Burke Act, mais de cem Omaha tinham sido declarados
competentes. No entanto, em 1909, Presidente Taft ampliou o período de tutela, por mais
uma década, para quase todos os membros da tribo afundados em débitos. Os homens
brancos locais, que estavam contando com o fim do período tutela para taxarem a reserva
e (provável) confisco e revenda de terras por impostos atrasados ficaram furiosos.
Motivados pela forte reação do homem branco, o Comissário Assistente Indígena,
Fred H. Abbot, abriu a primeira audiência de competência do OIA sobre a reserva Omaha
em outubro de 1909. Dois empregados do OIA e o editor do jornal Thurston County
percorreram a reserva, entrevistando os membros da tribo. Baseados em seu testemunho,
o OIA dividiu os Omaha em três classes: Classe Um, totalmente competentes; Classe
Dois, semi-competentes, com direito a arrendar terras mas não a vender loteamentos.; e
Classe Três, totalmente incompentes, que deveriam permanecer sob total supervisão do
governo, sem direito ao dinheiro coletado em seu nome dos arrendamentos. Em 10 de
março de 1910, 294 Omaha foram declarados competentes da Classe Um e 244 títulos-
de-impostos foram emitidos para a terra indígena.
Muitos regulamentos de competência foram descaradamento violados pelos
comissários durante suas investigações. Beneficiários de loteamento que não sabiam
falar, ler, ou escrever em inglês foram declarados totalmente competentes e os
Cidadãos e Selvagens Parte I Conclusões
184
comissários até decidiram declarar competentes, alguns Omaha que eles nem tinham
visto. Os homens brancos locais, logicamente, tentaram convencer os Comissários a
declararem tantos Omaha competentes de Classe Um quanto possível. Muitas das terras
patenteadas já tinha, em verdade, sido postas em juízo pelos homens brancos e o
pagamento aos indígenas por essas terras estava muitas vezes no valor do mercado.
Aconteceu um escândalo imediato e uma investigação que se seguiu interrompeu todas as
vendas de terras. Durante esse período, muitos dos Omaha que já tinham vendido suas
terras foram reclassificados como “incompetentes”, ficando, assim, “sem terra”, além de
totalmente enquadrados sob a tutela do OIA. De acordo com Judith Boughter, “Uma lista
cuidadosamente investigada, de transações de terras envolvendo tanto receptores de
loteamentos “velhos” como “novos” que receberam carnês de impostos em março de
1910 e logo depois disso, revelou um padrão de patentes forçadas, hipotecas, e vendas
rápidas. Muitos receptores de loteamentos venderam suas terras inteiramente após poucas
semanas de as terem recebido. Um número assustador de Omaha hipotecaram e
rehipotecaram suas terras” alguns 10, 15 e até 21 vezes, antes de as venderem por 1 dólar.
No período até 1912, 90 por cento dos Omaha com patentes tinham vendido suas terras, 8
por cento tinham-nas hipotecados e somente 2 por cento ainda permaneciam com seus
loteamentos.
No entanto, o OIA continuou a declararar unilateralmente os indígenas como
competentes. Em 1912, o Comissário do OIA Cato Sells deu a todos os indígenas com
menos de metade de sangue indígena patentes, e reinstaurou as comissões de
competência. Sells também ordenou uma outra investigação dos carnês de impostos
patentes dos Omaha e seus resultados foram significativos. De uma lista de 140 Omaha,
18 tinham mantido suas terras, 10 tinham-na vendido mas tinham usado o dinheiro
apurado de forma inteligente e 111 deles – 80% do total – não tinham mais nada. Na
mesma época, relatórios de 222 indígenas com patenteados na reserva Sisseton indicaram
que somente 9 tinham mantido suas terras. No entanto, essas descobertas não parecem ter
diminuído o ímpeto de Sell para patentear tantos indígenas quanto possível.
Até a primeira década do século XX, um último problema com loteamento começou a
aparecer. A política (de loteamento) tinha sido planejada como parte integral da solução
final para o problema indígena dos Estados Unidos. Ao final de uma geração, esperava-se
Cidadãos e Selvagens Parte I Conclusões
185
que o poder mágico da propriedade de terra individualizada já tivesse operado seu efeito
de transformar os indígenas selvagens ou bárbaros em cidadãos americanos que eram
pequenos produtores rurais.
Os Omaha tiveram sorte porque Alice Fletcher era uma agente relativamente
competente de loteamento. Ela alocou cerca de 55.000 acres de terra da reserva para as
crianças Omaha que ainda iriam nascer. No entanto, em 1893, como parte do ato de posse
indígena, o loteamento dos Omaha se ampliou para dar 80 acres para as mulheres, 40
adicionais para os indivíduos que tivessem recebido somente 40 no loteamento original e
80 para crianças nascidas entre 1883 e 1893. As crianças que viessem a nascer depois de
1893 não eram tratadas por este ato e, assim, não possuiriam terras. Nada aconteceu com
a nova terra por seis anos mas, quando aconteceu a distribuição, a terra foi distribuída
preferencialmente para aqueles jovens Omaha que concordaram em arrendarem para os
rancheiros brancos. Até o ano de 1900, a nova terra tinha sido alocada e quase toda foi
arrendada. Até o ano de 1909, havia 520 Omaha que tinham nascido desde 1893 e
sobravam somente 4.500 acres de terra não loteada. Essa terra foi também vendida e cada
criança sem loteamento recebeu cerca de 285 dólares quando fiólares quando fizeram 15
anos – esse valor fio diminuído, devido a taxas de vendas e de transações.
Em 1916, um Indian Appropriations Act sujeitou o restante dos lotes indígenas aos
impostos. Até essa data, menos que 300 dos 175.000 acres originais da reserva
permaneciam sob controle tribal. A maioria dos loteamentos tinha sido vendido para
pagar débitos e os Omaha tinham sido reduzidos a um estado de pobreza, endividamento
e sem terra, agarrando-se aos poucos fragmentos da reserva que sobraram. E a situação
dos Omaha não era pouco comum. A vida pela América Nativa – e especialmente em
reservas que tinham sido loteadas – era caracterizada por uma população rural
empobrescida, crescente espremendo sua subsistência de uma reserva original de terra
sub-capitalizada e desgastada. Até o final do anos 20 do século XX, os indígenas, como
um todo, eram umas das mais pobres populações dos Estados Unidos (Meriam, 1928).
O Efeito do Loteamento na Antropologia
O papel da antropologia durante os debates dos anos 80 do século XIX foi o de dar
uma releitura ao mito americano da missão civilizatória e ao Destino Manifesto. Pelas
Cidadãos e Selvagens Parte I Conclusões
186
palavra do trabalho de “missionários científicos” como Alice Fletcher, a antropoligia
também forneceu um conjunto de procedimentos rationais e pragmáticos que podiam
reorganizar as terras e as vidas dos americanos nativos segundo as teorias de civilização
defendidas pelo Bureau of Ethnology e adotadas como ideologia pela OIA.
A tendência entre os autores americanos que pesquisaram essa questão tem sido de
desconsiderar o impacto da antropologia no destino dos assuntos indígenas americanos.
Aqueles que estudaram a contribuição de Alice Fletcher concordam que ele teve um
efeito determinante na atribuição de loteamento para os Omaha. Mas Joan Mark, que
talvez tenha estudado a vida de Fletcher mais intensamente, afirma que a campanha tinha
sido predeterminada para ser bem sucedida, porque o terreno já havia sido preparado. Isto
talvez seja verdade e, se assim o for, confirma as interpretações dados para o período de
reforma dos anos 80 do século XIX, proposta por Loring, Priest, Prucha e outros
acadêmicos. O consenso entre esses autores parece ser que o loteamento tornou-se uma
nova política indígena por todos os Estados Unidos porque tratava de uma série de
interesses geralmente conflitantes do homem branco de uma forma publicamente
palatável. Embora tenha violado tratados e tenha tirado o “excesso” de terras dos
indígenas, foi palatável para a opinião pública liberal de elite da costa leste, porque
enfatizava o que estava sendo dado aos indígenas: uma alternativa outra, diferente da
eliminação do território indígena, cidadania americana e um título de terra de até 160
acres para cada indivíduo nativo. Essa aparente generosidade tornou mais fácil para a
América branca finalmente desconsiderar os tratados indígenas e o conceito de soberania
nativa com uma consciência limpa. No entanto, os biógrafos de Fletcher tendem a se
concentrar no seu papel como indivíduo, ao invés de sua integração em um projeto mais
abrangente, que viu no problema indígena do final do século XIX como uma
oportunidade de ouro para fundar e financiar a antropologia como uma ciência
oficialmente reconhecida. Quando esses autores finalmente decidem partir para examinar
a questão da antropologia em geral, eles geralmente admitem que o caso de Alice
Fletcher não foi um caso isolado e aberrante. Até mesmo Mark afirma que a antropologia
desempenhou um papel habilitador importante na construção desta solução para o
problema indígena: “praticamente da noite para o dia, a assimilação, proposta em termos
de loteamento de terras e eventual cidadania, tornou-se o programa aceito para os
Cidadãos e Selvagens Parte I Conclusões
187
indígenas entre os funcionários federais e maioria dos reformadores. Era humano,
prático, e até parecia apoiado pela melhor e mais nova teorização sociológica, a do
antropólogo Lewis Henry Morgan” (MARK, 1988: 70-76; Priest, 1942; PRUCHA,
1976).
Por outro lado, a maioria dos autores que estudaram o debate sobre o loteamento dos
anos 80 do século XIX de um ponto de vista mais geral mantiveram-se distantes do papel
dos antropólogos nesse assunto. Em seu estudo do período, Padre Francis Paul Prucha
devota somente umas poucas páginas aos antropólogos, preferindo se concentrar nos
missionários da agência ou nos reformistas escondidos no congresso e na sociedade civil.
Há reconhecimento, onde apropriado, às teorias de Morgan e às intervenções de Fletcher
mas, no todo, a produção científica do período – sem mencionar a produção política do
cientista – é deixada de lado (PRUCHA, 1976).
Dos autores que estudaram os debates dos anos 80 do século XIX, um que deu
atenção especial ao papel da antropologia foi Frederick Hoxie, que sintetizou aquela
atuação da seguinte forma:
O impacto dos antropólogos na elaboração da política indígena foi cumulativo e
indireto. Consistiu da influência da teoria social dinâmica de Morgan sobre discussões de
progresso, o peso do otimismo de Powell e a perícia e constribuições científicas de Alice
Fletcher. Até a metade da década de 80 do século XIX, o público tinha um plano
específico para interpretar e moldar eventos e uma estrutura de especialistas para inspirá-
los. Powell podia enfatizar o potencial positivo da evolução social e Fletcher podia
demonstrar o tipo de ação que a nova disciplina exigia, mas os críticos do Escritório
Indígena não tinham de se basear nesses antropólogos. Eles agora tinham uma explicação
coerente para as falhas do governo e um esquema prático de reforma. A ciência do
homem dizia que a incorporação rápida dos indígenas americanos na sociedade
“civilizada” era tanto possível como desejável. A assmilação total serviria de exemplo e
encorajaria a irresistível marcha do progresso (HOXIE, 1984: 28).
A análise de Hoxie corretamente identifica a antropologia como tendo tido um papel
importante no debate e corretamente identifica Morgan como o principal teórico, Powell
como o principal interlocutor com o Congresso e Fletcher como o trabalhador de campo
que demonstrava que as teorias da civilização podiam ser transformadas em ação
pragmática entre os indígenas. Mas até mesmo Hoxie classifica esse impacto como
“indireto”. Hoxie aqui parece separar as ações dos antropólogos da construção do “plano
específico para a interpretação e delineamento” do problema indígena. Pode realmente
ser verdade que uma vez que este plano foi estabelecido na mente do público e codificado
Cidadãos e Selvagens Parte I Conclusões
188
em lei pelo Dawes Act, não havia mais necessidade dos antropólogos para sua
implementação bem sucedida. No entanto, o impacto da antropologia na criação deste
plano, como podemos ver pelos dados apresentados acima, foi bem direto e mesmo
determinante.
Se examinarmos o trabalho de Alice Fletcher entre os Omaha como parte de uma
campo mais amplo de atividade antropológica, limitado por um lado pelas teorias de
Morgan e pelo outro pelas intervenções junto ao congresso de Powell, começamos e
entender que ela não era simplesmente um etnógrafo novato e inocente envolvidos nos
acontecimentos. Sua tragédia não foi, como Mark diria, de se ter “enredado na política
antes que tivesse tempo de se tornar antropóloga”. Ainda menos pode ela ser
simplesmente classificada como uma mulher que via sua primeira obrigação para com a
humanidade, ao invés da ciência, como Lurie a descreveu (MARK, 1988: 66; LURIE,
1966a: 84) Essas leituras da carreira de Fletcher deixam de considerar o aspecto mais
importante: na antropologia americana do final do século XIX, não havia uma divisão
clara entre a etnografia entre os nativos e o trabalho político e social em nome deles.
Ambos eram claramente baseados em teorias antropológicas. Como observamos acima, a
etnografia era considerada parte integrante de um um projeto maior envolvendo a
evolução guiada da humanidade.
Depois que seu trabalho entre os (índios) Nez Percé tinha terminado, Fletcher
retornou a Washington D.C. e dedicou a maior parte do resto de sua carreira – como
Owen Dorsey tinha feito antes dela – a escrever os resultados das observações que ela fez
ao longo de seu trabalho missionário. Ela era bem respeitada pela antropologia da época,
tendo se tornado uma colaboradora do Bureau de Etnologia Smithsonian, presidente da
Sociedade Washington de Antropologia e uma membro fundadora da Associação
Antropológica Americana. Essas conquista não ocorreram a despeito de seu trabalho
anterior no OIA mas principalmente por causa dele. Nunca encontrei qualquer registro de
alguma crítica a ela, por parte de seus pares, por ter privilegiado a antropologia prática
em detrimento da antropologia teórica: não encontrei qualquer indicação de que esse tipo
de divisão foi ao menos reconhecido por seus pares, em um sentido absoluto, como a
citação de Mason que começa o capítulo 3 ilustra.
Cidadãos e Selvagens Parte I Conclusões
189
Dentro do campo da disciplina nascente da antropologia nos Estados Unidos, no final
do século XIX, o trabalho de Fletcher claramente complementava o de Morgan e Powell.
Ela oferecia a experiência que demonstrava a habilidade da antropologia para contribuir
para a administração científica de povos subordinados. Powell podia afirmar que a
antropologia tinha esse potencial: Fletcher mostrava como esse potencial podia funcionar
na prática. Ela demonstrou como se poderia “atingir a raiz” da coerência social dos
indígenas reforçando um certo tipo de individualismo, exatamente como a leitura que
Powell fez de Morgan tinha predito.
Como Thomas Biolsi observa, o problema para o OIA no final do século XIX era
como criar um “indivíduo” indígena que pudesse se encaixar facilmente no esquema
administrativo do governo e na economia de mercado na qual a terra e o trabalho eram
visto como commodities. À medida que os indígenas se desenvolveram de povos com um
papel especializado na fronteira exterior da sociedade nacional para um povo, não
importa quão sem poder, no âmago dessa sociedade, eles tinham de ser pressionados a se
conformarem com uma certa definição mínima de individualidade moderna, baseado no
mercado. Somente dessa maneira eles podiam ser reconstruídos como pessoas sociais
que se encaixariam no estado-nação americano e na economia capitalista. Seguindo
Foucault, Biolsi entende esse processo como sendo de sujeição, com espaços sendo
construídos nos quais os seres humanos são habilitados a participar na vida social das
instituições públicas, na economia e no corpo de política nacional.
Invoca a promulgação oficial de classificações sociais fundamentais pelas quais
os indivíduos passam a ser conhecidos (por eles próprios, por outros indivíduos e pelos
burocratas) e que lhes deixam agir. A sujeição também invoca ligações a essas
classificações de poder, tanto negativo como positivo: não somente podem os indivíduos
ser punidos pelos funcionários por violarem essas classificações sociais, mas eles
rapidamente descobrem que obedecê-las providencia avenidas de capacitação. Pontanto,
sujeição não é imposta absolutamente de cima; ela também seduz o subalterno a viver por
seus regulamentos e assim forma interesses próprios novos e predizíveis, modos de ver o
mundo e padrões comportamentais. (BIOLSI, 1995: 29-30; FOUCAULT, 1979)
Alice Fletcher trabalhou para sujeitar os indígenas em vários níveis distintos. Um
deles, é lógico, era o de possuidores de “segredos proféticos” de uma “estilo de vida
moribundo” que tinha de ser importunada e preservada pela etnografia. Esta forma de
sujeição, no entanto, era completamente congruente com seus esforços de reconstruir os
indígenas como pequenos produtores rurais americanos. Para atingir esse objetivo, ela os
Cidadãos e Selvagens Parte I Conclusões
190
considerou donos de loteamentos individuais; como de sangue misturado ou puro-
sangue; como progressistas ou como tradicionais e refratários;como membros de
famílias nucleares, ligados por estruturas de herança vertical, ao invés de membros de
gens ligados horizontalmente. Mais importante ainda, ela ligava todas essas categorias a
um processo de cima para baixo de distribuição de terra que assumiu o controle das terras
da reserva, tirando-as das mãos dos Omaha, alocando-as com as do OIA, premiando oa
Omaha que estavam dispostos a trabalhar dentro deste esquema de coisa, ao mesmo
tempo que punia os que não estavam disposto a isso. Depois do loteamento, os Omaha
podiam ser de dois tipos principais (embora esses tipos viessem a se diversificar pelos
próximos 50 anos): cidadãos americanos competentes de traços individualizados ou
indígenas incompetentes sob a tutela da OIA cujo uso da terra era supervisionado Serviço
Indígena. Dependia do indivíduo nativo provar sua competência para o Serviço, que não
obstante se reservava ao direito de declarar competência quase ao seu bel-prazer, sem
nenhuma prova disso. Isso era um aspecto importante, porque os indígenas competentes
eram sujeito a impostos de terra municipais e estaduais, podia vender seus loteamentos e
– crucialmente – podiam ter seus loteamentos confiscados para cobrir débitos, enquando
que indígenas incompetentes podiam, em essência, ser forçados a deixar o Serviço fazer o
que quer que desejasse com suas terras.
É errado atribuir responsabilidade por essa estrutura inteiramente inteiramente aos
antropólogos. Mas também é incorreto ver o papel do antropólogo como indireto ou
inconseqüente. Quando considerado dentro do contexto maior das atividades
antropológicas da época, é óbviou que o trabalho de Fletcher produziu os resultados
pragmáticos que Powell ensinava e Morgan predizia. Isso ajudou a consagrar a
antropologia como um ramo útil da ciência governamental e isso, por seu lado, deu o
espaço e os fundos que tornaram possível estudar as questões mais problemáticas. Nesse
sentido, então, a antropologia aplicada pode ser vista como tendo nascido antes – ou ao
menos simultaneamente com – suas variantes mais teóricas e puras: a fundação da
antropologia teórica foi em parte assegurada pelo trabalho da antropologia como uma
ciência aplicada durantes os debates de loteamento.
Podemos assim ampliar as observações de Talal Assad sobre a relação entre
colonialismo no caso dos Estados Unidos: engajamento com as práticas dos nativos no
Cidadãos e Selvagens Parte I Conclusões
191
governo era muito importante, mesmo, para a fundação e reprodução da antropologia
como uma ciência naquela nação. No entanto, podemos também ir bem além das
observações de Assad, pois, como vimos acima, a antropologia não era de pouca
importância para as estruturas estatais que governavam os nativos nos anos oitenta do
século XIX: ela ajudou a mostrar a eles a estrada para o futuro.
Mas o trabalho antropológico aplicado do final do século XIX nos Estados Unidos
também teve um impacto indireto maior na própria antropologia por seu trabalho em
construir o indígena moderno culturalmente disorganizado que viria a se tornar o foco da
antropologia aplicada durante os anos 30 e os anos 40 do século XX, o foco da segunda
parte dessa tese.
Como Thomas Biolsi observou no contexto dos Lakotas, embora as políticas da OIA
durante o meio século de 1880 a 1930 possam ser descritas como “aculturação direta” ou
“etnocídio”, elas são mais utilmente compreendidas como políticas que geraram e
sustentaram a individualida dos Lakotas, mesmo que de uma forma mais aceitável aos
fazedores de política brancos (BIOLSI, 1995: 30) Nesse sentido, então, os Assuntos
Indígenas podem ser vistos como uma parte absolutamente constitutiva do que significa
ser um indígena moderno, um ponto repetidamente enfatizado por Vine Deloria Junior
(DELORIA, 1970; 1997).
Assim, a antropologia do século XIX ajudou concretamente a formaular o “ser-índio”
moderno – situando-o como um sinônimo de pobreza rural, alcoolismo e uma queda para
comportamentos “criminosos” e “dissolutos” – pelo engajamento prático da disciplina
com os Assuntos Indígenas. Como discutiremos em profundidade no Capítulo 4, abaixo,
Margaret Mead iria visitas os Omaha nos anos 20 do século XX e pronunciou a tribo
como seriamente desmoralizada e culturalmente disorganizada. Mead atribuiu esse
estado ao funcionamento natural de processos de aculturação. Como vimos acima, no
entanto, a pobreza e disorganização dos Omaha nos anos 20 do século XX eram o
resultado de uma política bem planejada e eficientemente executada que foi
implementada de acordo com as melhores teorias antropológicas da época.
Mas os esforços de Fletcher, Powell e seus aliados viriam a ter um efeito mais
sutil e de longo alcance sobre a antropologia. Como Johannes Fabian observa em Time
and the Other, a revolução de Darwin na ciência foi primariamente responsável pela
Cidadãos e Selvagens Parte I Conclusões
192
transformação do Outro pagão, eternamente marcado para a conversão e a salvação, no
Outro selvagem, eternamente não preparado para a civilização. No entanto, de forma
irônica, a antropologia federal americana do final do século XIX, nascida em um
contexto republicano e abolicionista, seguinte à vitória do norte na Guerra Civil, serviu
para reinserir um paradigma de conversão nos Assuntos Indígenas americanos. Ela
secularizou a salvação do Outro primitivo e, assim fazendo, inseriu um estilo evangélico
no âmago da antropologia americana que estava em desacordo com as modernas noções
de distanciamento temporal/espacial do Outro. Embora esta tendência nunca se tenha
tornado hegemônica, de forma semelhante, nunca conseguiu ser totalmente exorcisada.
Talvez esse fato esteja na raiz da tendência que a antropologia americana contemporânea
tem de “lembrar para esquecer”; sua constante descrição dessas atividades como lapsos
momentâneos de razão objetiva ou shows paralelos entediantes daqueles que de outra
forma seriam considerados engajamentos científicos puros. Em um país cujos mitos
fundacionais estão profundamente marcados por excepcionalismo utópico, é talvez
inevitável que nenhuma cosmologia do homem pudesse estar longe das tentativas de (nas
palavras de Fabian) “acertar” o que se considera como a periferia da humanidade,
trazendo-o de “volta aos limites do rebanho guardado pelo Pastor Divino” (FABIAN,
1983: 26) Essa característica, no entanto, é fudamentalmente embaraçosa para os
praticantes de uma disciplina que, nos últimos 125 anos, procurou cultivar uma
objetividade marcada por um distanciamento sempre crescente do objeto de seus estudos.
Cidadãos e Selvagens Parte II Introdução
193
PARTE II
(ANTI)MODERNIDADE E O NASCIMENTO DE CULTURA
Era uma vez um índio que se tornou cristão… Era um homem muito bom. E ele morreu.
Primeiro, foi para o além dos índios, mas não o deixaram entrar porque ele era cristão. Então,
foi para o céu, mas também não o deixaram entrar porque ele era índio. Depois, foi para o
inferno, mas não o deixaram entrar lá também não, porque ele era um homem tão bom. Então,
o índio voltou à vida e foi participar da Dança do Búfalo e das outras danças, ensinando
seus filhos a fazerem o mesmo.
História Fox
1
Introdução
Tradicionalmente, o Dawes Act e a assimilação forçada foram considerados uma
das épocas mais sombrias dos American Indian Affairs (Assuntos Indígenas Americanos).
As políticas forçadas de assimilação do final do século XIX prepararam o terreno para
uma perda maciça das terras em poder dos indígenas americanos. Além disso, não há
dúvida de que tais políticas eram freqüentemente de caráter autoritário e propensas à ao
extermínio total dos Indígenas Americanos como povos com soberania cultural e política.
Nesse sentido, as políticas da era de Dawes são justificadamente consideradas etnocidas,
se não genocidas. O mundo acadêmico recente, no entanto, começou a examinar essa era
mais de perto e a questionar a noção de uma política homogênea de racismo e coerção
não mitigadas (AHERN, 1977; HOXIE, 1982, 1984, 1995; PRUCHA, 1976;
TRENNERT, 1982, 1983). Essas novas análises fazem uma distinção entre as crenças
evolutivas sociais dos reformadores dos anos 80 do século XIX e o racismo que se tornou
manifesto no Repartição de Assuntos Indígenas durante as primeiras décadas do século
XX.
Surpreendentemente para os que acreditavam no etnocentrismo da evolução social
humana uniaxial, muitos antropólogos e políticos do final do século XIX viam os
indígenas como seus iguais em potencial – cidadãos em formação. Um dos aspectos mais
positivos da síntese Powell/Morgana e do liberalismo protestante Republicano era a
crença de que todos os seres humanos tinham a mesma capacidade essencial de
manipulação e compreensão de símbolos. Por não terem um conceito essencialista de
1
Nabokov chama esta história de uma “luta sem vencedores”. Diria que é um relato resumido da
persistência do índio apesar de todas as tentativas de assimilá-lo ou exterminá-lo. (Nabokov, p. 57)
Cidadãos e Selvagens Parte II Introdução
194
cultura e por rejeitarem o conceito de determinismo biológico, liberais como Henry
Dawes, Alice Fletcher, John Wesley Powell não acreditavam haver qualquer
impedimento necessário para o progresso sócio-econômico imediato dos indígenas
americanos pela educação, nem achavam que houvesse qualquer barreira necessária para
a ascensão de, ao menos, alguns indígenas às camadas mais altas da sociedade Vitoriana.
Fletcher, em especial, queria aceitar os indígenas americanos como seus iguais em
intelecto e espiritualidade, especialmente indígenas “de qualidade”, como a família
LaFlesche. Fletcher chegou até a adotar Francis LaFlesche como seu filho em 1891. Ela
também o integrou à antropologia como um colega de profissão. LaFlesche foi contratado
pelo Smithsonian Institution como etnógrafo, em 1910, e teve uma carreira ilustre nessa
profissão. Com a morte de Alice Fletcher, em 1923, Francis LaFlesche herdou seus bens
materiais.
No entanto, como observam Clifford Lytle e Vine Deloria Jr., considerando a
época, os objetivos dos assimilacionistas liberais eram pouco realistas, em termos
políticos:
[Em 1887, a reconstrução [pós-guerra] estava completa, o acordo Hays-Tilden
tinha sido efetuado e os sulistas brancos estavam outra vez no controle do Sul, enquanto
que o Ato de Exclusão [do emigrante] Chinês já apontava no rumos futuros da política
racial federal. A sugestão de que uma minoria de pele escura, que havia resistido à
aproximação americana durante séculos de hostilidade, poderia ser pacificamente
assimilada com plenos direitos de cidadania na sociedade daquela época era ousada, se
bem que um tanto idealista. (LYTLE e DELORIA, Vine Jr., 1983:9)
Ao aproximar-se o fim do século XIX, a ideologia Republicana Protestante de
Americanismo começou a se encasular, transformando-se um uma ideologia que se
pautou nas obras de Spencer e Goubineau como seus guias científico-sociais. O
Republicanismo inclusivista, assimilacionista e abolicionista dos anos setenta e oitenta do
século XIX deu lugar a uma ideologia racista e segregacionista de superioridade anglo-
saxã. .Como isso afetou a percepção americana dos Outros racializados, que levou, em
última instância, a um novo entendimento do Problema Indígena e a uma aliança
renovada entre a antropologia e os Assuntos Indígenas, é o assunto da segunda parte
desta tese.
No início do século XX, uma mudança na imagem pública dos indígenas,
ocasionada por uma popularidade crescente do evolucionismo social e do racismo
Cidadãos e Selvagens Parte II Introdução
195
Spencerianos começou a minar a consenso assimilacionista forjado na década de ’80 do
século XIX. Segundo Frederick Hoxie, o novo entendimento dos indígenas e do seu lugar
na vida americana modificou a política de distribuição de lotes, que foi originalmente
concebido como um meio de tornar os indígenas cidadãos proprietários de terras e
engajados na economia de mercado agro-industrial. Como vimos acima, o Dawes Act foi
aos poucos modificado, de forma a permitir a remoção gradual do controle das terras
indígenas das mãos dos nativos.Subjacente a essas mudanças havia a visão cada vez mais
prevalecente de que os indígenas eram constitucionalmente incompetentes:
As leis e políticas adotadas nos anos ’80 do século XIX tinham tido a intenção de
definir uma relação nova e permanente entre os indígenas americanos e os Estados
Unidos. Terra, educação e cidadania esperavam os que se decidissem a “trilhar o caminho
do homem branco”. Mas as reformas dessa era só teriam o efeito desejado na medida em
que as esperanças assimilacionistas que as alimentavam fossem amplamente
compartilhadas. Se o compromisso com a rápida “civilização” começasse a enfraquecer,
os programas federais – como os tratados que os precediam – tornar-se-iam meros
compromissos no papel, a serem alterados, evitados ou ignorados. Uma opinião otimista
em relação aos indígenas era crucial para a implementação da agenda dos reformadores.
Desde que os geradores de políticas considerassem os indígenas como um povo em
transição – “progredindo” de um estágio de cultura para outro—a campanha de
assimilação total continuaria sem interrupções. Se essa percepção mudasse, as palavras
ambíguas da lei e das políticas perderiam seu significado primeiro e a “questão indígena”
... sofreria uma transformação. (HOXIE, 1984: 85).
Quando Spencer tomou o lugar de Morgan como o teórico social mais popular da
nação, os indígenas foram vistos como mais e mais restritos por sua biologia e incapazes
de chegar a verdadeiramente “trilhar o caminho do homem branco”.Essa mudança
exerceu grande influência nas concepções dos americanos quanto ao potencial dos
nativos e o papel dos indígenas no futuro da nação. No campo político dos Assuntos
Indígenas, como vimos acima no caso dos Omaha, isso freqüentemente significou que o
estilo de “observador-participante” do compromisso administrativo quotidiano advogado
por Alice Fletcher, com o treinamento dos indígenas na lavoura, jardinagem, tapeçaria,
etc., foi abandonado a favor de uma administração paternal das terras dos indígenas
‘incompetentes’ via a Agência local ou o Escritório de Washington do OIA (Office of
Indian Affairs/Repartição de Assuntos Indígenas). No campo da educação indígena,
como evidenciado em Hoxie (1982; 1984), Trennert (1982, 1983) e Ahern (1997),
programas educacionais ao estilo das classes-superiores em academias como Hampton e
Carlisle foram substituídos por internatos com menor tradição acadêmica, que tentavam
Cidadãos e Selvagens Parte II Introdução
196
alocar os indígenas como trabalhadores braçais nas camadas inferiores da sociedade dos
brancos. As oportunidades de empregos para profissionais indígenas começaram a
escassear. Wilbert Ahern deu um exemplo desse processo no próprio OIA (Repartição de
Assuntos Indígenas). Entre 1888 e 1899, o número de indígenas empregados pelo Serviço
de Escola Indígena do OIA aumentou de 137 para 1160, com indígenas totalizando 45%
dos empregados do Serviço de Escola Indígena na virada do século.Em 1905, no entanto,
esse número havia diminuído para 602 empregados indígenas – cerca de 25% do total de
empregados do Serviço Escolar Indígena da OIA (AHERN, 1997: 272-281). Em outras
palavras, à medida que o racialismo tornou-se mais popular durante o início do século
XX, a integração e assimilação dos indígenas significava, cada vez mais, sua integração
nas esferas inferiores da sociedade rural, como cidadãos de segunda classe, racialmente
distintos.
À medida que se aproximava o século XX, no entanto, uma outra transformação
ocorreu na percepção do público americano quanto ao indígena. Com o fechamento da
fronteira e o maciço fluxo de imigrantes estrangeiros, os indígenas americanos tornaram-
se cada vez mais um símbolo de um autêntico passado nacional. Como descrito por
Hoxie…
A fronteira foi adquirindo um novo significado… Tornou-se um objeto que
homens como [o Historiador Frederick Jackson] Turner ou [o Presidente Theodore]
Roosevelt podiam compreender como um contraponto ao presente – um modelo para o
caráter americano. Dentro desse contexto, a percepção do público quanto aos indígenas
tinha que sofrer uma metamorfose sutil mas significativa. Como as carroças dos pioneiros
ou as cabana rústicas de madeira, o indígena também passaria a pertencer à história. A
raça tornar-se-ia mais importante pelo que representava do que pelo que poderia vir a se
tornar. À medida que a fronteira começou a evocar nostalgia, ao invés de temor, os
indígenas americanos cessariam de representar uma ameaça iminente que tinha de ser
esmagada ou “civilizada”. No novo século, os indígenas seriam redefinidos como atores
vitais no dramático passado americano. Eles passariam a fazer parte valiosa de uma
paisagem rústica em gradual extinção (HOXIE, 1984: 85).
Essa revalorização dos nativos americanos como lembranças primitivas do
passado nacional encaixou-se inesperadamente com uma outra mutação teórica nas
ciências sociais: o nascimento do pluralismo e do relativismo cultural.
Em meados da segunda década do século XX, um novo movimento de reforma
havia se estabelecido no cenário político dos Assuntos Indígenas, movimento esse que
via os grupos de nativos americanos como valiosos, precisamente pela sua diferença
Cidadãos e Selvagens Parte II Introdução
197
sócio-cultural. Esse movimento foi liderado por intelectuais liberais que procuravam uma
renovação do espírito americano moderno no primitivismo nativo e justificavam suas
propostas por uma nova orientação em relação à administração indígena com apelos ao
novo campo da antropologia cultural.Com a crise econômica da Grande Depressão e o
subseqüente surgimento de uma Partido Democrático multiétnico, liderado por Franklin
Delano Roosevelt, esses reformistas vieram a ter poder dentro do OIA, bem como um
mandato para conduzirem uma ampla reforma saneadora no Serviço Indígena. Eles
usaram essa oportunidade para reconstruírem parcialmente a soberania tribal e para pôr
um fim nas políticas de loteamento e de assimilação forçados que tinham marcado o meio
século anterior dos Assuntos Indígenas. Como embasamento científico para este projeto,
esses reformadores incorporaram a antropologia ao OIA, com a instituição da Unidade de
Antropologia Aplicada, em 1935. A próxima seção detalha as mudanças que ocorreram
na vida intelectual americana durante a primeira parte do século XX, em particular no
âmbito da antropologia. Depois, é delineado o surgimento do novo movimento de
reforma dos Assuntos Indígenas, culminando com o Ato de Reorganização Indígena de
1934 [1934 Indian Reorganization Act].
O Capítulo 4 analisa o crescimento do racialismo e do anglo-saxonismo, bem
como das tendências contra-hegemônicas de pluralismo e culturalismo, codificados no
escopo das Novas Ciências Sociais dos anos 20 e 30 do século XX. Especificamente,
analisaremos como a batalha entre o determinismo racial e cultural na antropologia criou
uma nova base para o entendimento da alteridade do nativo americano. O capítulo
termina com uma discussão da reforma do Partido Democrata, enquanto voz do
liberalismo multiétnico e urbano nos Estados Unidos, bem como a subida ao poder de
Franklin Delano Roosevelt e o New Deal no contexto da Grande Depressão dos anos 30
do século XX.
O Capítulo 5 trata do nascimento de um novo movimento de reforma nos
Assuntos Indígenas dos anos 20 e 30 do século XX. Em particular, examinamos a carreira
de John Collier, um assistente social envolvido no movimento antiloteamento no Novo
México durante os anos 20 do século XX, que veio a ser a força motriz por trás do
movimento antiassimilacionista, que chegou ao posto de Comissário dos Assuntos
Indígenas no governo de FDR em 1933. Como Comissário, Collier instituiu políticas que
Cidadãos e Selvagens Parte II Introdução
198
puseram um fim ao loteamento e que resultaram no Ato de Reorganização Indígena de
1934 .
O Capítulo 6 descreve algumas das principais influências teóricas e práticas aos
planos de Collier para a reforma dos Assuntos Indígenas, mostrando especificamente
como essa formulação apresentou diferenças e semelhanças qualitativas em relação ao
modo anterior de ver os indígenas e a administração indígena. Concluo a seção com uma
breve discussão da construção do Ato de Reforma Indígena de 1934, o projeto de lei que
iria substituir o Ato Dawes, como o documento fundamental para a administração
indígena nos Estados Unidos, que abriria as portas para a reintegração dos antropólogos
ao OIA.
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
199
Capítulo 4
As Novas Ciências Sociais e a Reavaliação do Primitivo
Preconceito racial é uma coisa terrível, Yossarian; é mesmo. É uma coisa terrível tratar um
indio decente e leal como se fosse um preto sujo, um judoca, um carcamano, ou um cucaracha.
- Chefe White Halfoat. Ardil 22, Joseph Heller. 1961.
O Nascimento e Morte do Anglo-Saxonismo
Como discutimos brevemente no Capítulo 1 e muitos autores já comentaram
anteriormente (BERKHOFFER, 1965; DRINNON, 1997; JENNINGS, 1975; MARTIN,
1970, 1986; MCLOUGHLIN, 1978), a imaginação Americana foi marcada por um
entendimento de destino nacional que vê a expansão dos Estados Unidos para as terras e
vidas de outros povos como um ato manifesto de Deus ou outra força sobre-humana –
Sua Bênção sobre um povo especialmente escolhido. Esta visão do mundo era
hegemônica no período que antecedeu a Primeira Guerra Mundial. Os Estados Unidos
eram vistos como um agente do Senhor, espalhando a civilização, o capitalismo, o
protestantismo e a dominação étnica anglo-saxã na marcha da nação para o oeste.
Berkhoffer descreve a ideologia dominante no período com as seguintes palavras:
Nesse período, a civilização era concebida pelos americanos como um
desenvolvimento unilinear ascendente da sociedade humana, com os Estados Unidos
perto do ápice. A civilização estava contida em um punhado de arranjos institucionais
que os americanos conseguiram atingir entre a Revolução e a Guerra Civil. No que
concerne à economia, eles caminharam para permitir um que individualismo econômico
tivesse rédeas livres sob o estado liberal. No que concerne à política, eles primeiramente
tornaram realidade o republicanismo, depois a democracia. Por último, a liberdade do
indivíduo estava primordialmente presente em suas mentes; por isso, todas as instituições
sociais só deveriam existir para o benefício dos membros (brancos) da sociedade. Os
americanos, etnocêntricos, acreditavam que a idéia de progresso apontava para um futuro
modelado de acordo com seu modo de vida; assim, seu destino manifesto, senão sua
missão, era divulgar suas instituições superiores para o oeste selvagem e até mesmo além
das fronteiras da nação (BERKHOFFER, 1965: 7).
Com o fechamento da fronteira oeste, o foco imperial dos EUA voltou-se para
fora, mas a ligação entre providência imperial, protestantismo e anglo-saxonismo
continuou. Em verdade, a expansão imperial além das fronteiras dos Estados Unidos era
em geral entendida como sendo uma continuação sócio-cultural e econômica direta do
destino manifesto americano. O maior historiador da fronteira daquela era – e talvez um
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
200
dos mais influentes intelectuais do período—Frederick Jackson Turner, explicitou essa
conexão em 1910, em seu artigo “Social Forces in American History”:
Tendo colonizado o Faroeste, tendo dominado as riquezas internas, a nação
dirigiu-se, no término do século XIX e começo do século XX, para o Leste Distante, para
se ocupar com a política internacional do Oceano Pacífico. Tendo continuado sua
expansão histórica, apoderando-se de terras do velho império espanhol pela bem
sucedida guerra recente [1898], os Estados Unidos se tornaram senhores das Filipinas, ao
mesmo tempo em que tomaram posse das Ilhas do Havaí. No início da presente década,
os americanos conectaram as costas do Atlântico e do Pacífico pelo Canal do Panamá,
tendo se tornado uma república imperial com dependências e protetorados – um novo
poder mundial, com influência potencial para interferir nos problemas da Europa, Ásia e
África. A expansão de poder, essa tomada de graves responsabilidades em novas áreas,
essa entrada na na comunidade das nações não foi um evento isolado. Foi, em verdade, de
alguma forma, o resultado lógico da marcha da nação para o Pacífico, a seqüência de uma
era em que essa nação estava empenhada em ocupar as terras livres [sic] e em explorar as
reservas do Oeste (TURNER, 1910: 315).
O trabalho de Turner, junto com o trabalho do estrategista naval Americano,
Alfred Thayer Mahan, forneceu uma base intelectual para afirmações políticas, como o
comentário de Theodore Roosevelt que “a causa da expansão é a causa da paz”
(ROOSEVELT, 1899; LAFEBER, 1989: 175-177; SCHOULTZ, 2000: 108-110;
DRINNON, 1980: 460).) Intimamente ligada a essa crença havia também aa
representação ideológica dos Estados Unidos como uma nação homogeneamente anglo-
saxônica e, como tal (nas palavras contemporâneas de John Burgess, o fundador do
Departamento de Ciências Políticas da Universidade da Columbia), um povo
“particularmente predestinado com a capacidade de estabelecer estados nacionais ...
confiado ... com a missão de conduzir a civilização política do mundo moderno (Apud
ZINN, 1980:4)
Muitos historiadores (LAFEBER, 1980; SCHLESINGER, 1957; ZINN, 1980,
entre outros) discorreram, de fato, sobre como as pretensões imperiais americanas e o
chauvinismo nacional foram forçados a se ajustar às realidades da contenda internacional
durante as primeiras décadas do século XX. Tipicamente, no entanto, essas análises
históricas ignoram ou minimizam fatores internos sócio-culturais que existiam durante
este período e que minaram o consenso nacional de que os Estados Unidos eram uma
nação essencialmente monocultural anglo-saxônica. O próprio Frederick Jackson Turner
previu esse processo. Seu ensaio de 1893, “The Significance of the Frontier in American
History” (=A Importância da Fronteira na História Americana”), foi amplamente
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
201
considerado – tanto por seus contemporâneos quanto por acadêmicos posteriores – como
marcando o fim de um período característico da história americana, período esse
dominado pelo movimento em direção ao oeste. .Com o fechamento da fronteira, avisou
Turner, era provável que a época da excepcionalismo americano estivesse também
chegando ao fim
1
. Escrevendo em 1910, Turner constatou que depois da marcha dos
Estados Unidos para o oeste, “o país se confrontou também com a necessidade de um
reajuste constitucional, causado pelas relações do governo federal e pela aquisição
territorial”.
A nação teve de reconsiderar questões dos direitos do homem e ideais
tradicionais de liberdade e democracia, em virtude da tarefa de governar outras raças
sem experiência política e subdesenvolvidas. (TURNER, 1910: 315)
Embora possa parecer que Turner está se referindo apenas à conquista dos
indígenas nessa citação, as palavras que se seguiram mostram que ele possuía um
conceito mais amplo em mente quando falou da “tarefa de governar outras raças”.
Se considerarmos o efeito sobre a sociedade americana e sobre a política
doméstica nessas duas décadas de transição [de 1890 a 1910] somos confrontados com
evidências palpáveis da invasão da velha ordem democrática [leia-se anglo-saxã]
pioneira. Óbvio entre elas é o efeito da imigração sem precedente para fornecer ao
exército móvel mão-de-obra barata para os centros de vida industrial. Nos últimos dez
anos, começando em 1900, mais de oito milhões de imigrantes chegaram [aos Estados
Unidos]. Os recém chegados nos oito anos desde 1900 iriam, segundo um escritor em
1908, “repovoar todos os cinco Estados mais antigos da Nova Inglaterra; ou, se
corretamente distribuídos pelas regiões mais recentes do país, eles serviriam para
preencher não menos do que dezenove estados da União” (Ibid, 316).
2
O fluxo de novos imigrantes era perturbador porque, como observado por
Turner, essa população era crescentemente oriunda das regiões sul e leste da Europa,
“imigrantes de nacionalidade estrangeira e de padrões de vida mais baixos” (Ibid, 317).
Turner via “o individualismo do velho pioneiro” da América anglo-saxã sendo
substituído pelas “forças da combinação social”, manifesta em sindicados e monopólios
comerciais. A classe, de acordo com Turner, tinha assim vindo para a América nos
ombros do novo exército do trabalho imigrante etnicamente diverso, que era necessário
para manter as fábricas da nação operando. Forças econômicas, políticas e (o que uma
1
Para uma discussão mais profunda sobre o assunto, ver The End of American Exceptionalism: Frontier
Anxiety from the Old West to the New Deal, de David M. Wrobel . (Lawrence: University of Kansas, 1993)
2
Turner cita aqui do Atlantic Monthly, Dezembro de 1908, vii, pág. 745.
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
202
outra geração chamaria) étnicas estavam claramente funcionando para minar o consenso
republicano da pós-Guerra Civil, de “uma nação, sob Deus, indivisível”. Na nova era
americana, de acordo com Turner, “temos de levar em consideração a composição social
mutante, as crenças herdadas e a atitude habitual das massas, a psicologia da nação e das
seções separadas, bem como dos líderes... Não podemos negligenciar as tendências
morais e os ideais”. A nova América precisava se virar para o governo, a fim de
salvaguardar os ideais de democracia, perigosamente ampliados até limites extremos por
um eleitorado cada vez mais estridente e diverso. Mesmo quando os Estados Unidos se
esforçaram por levar a civilização, tanto internamente quanto para os nativos do além-
mar, muitos de seus intelectuais famosos viam a base das liberdades e prosperidade do
país sendo minadas pela quebra da hegemonia sócio-política e da hegemonia nacional
“racial” (leia-se étnica) (Ibid, 322).
Figura 4.1: “O lixão proposto para os imigrantes. Estátua da Liberdade: Mr. Windorn, se você vai
transformar esta ilha num lixão, voltarei à França!" No final do século XIX, os americanos preocuparam-
se que a hegemonia cultura e política anglo-saxã seria ameaçada pela nova onda de imigrantes oriunda do
sul e leste da Europa (F. Victor Gillam, 1890. The Granger Collection, NYC).
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
203
Como Barbara Solomon observa em Ancestors and Immigrants: A Changing
New England Tradition (=Ancestrais e imigrantes: uma tradição da Nova Inglaterra em
mutação) a industrialização e a imigração durante o período pós-Guerra Civil abalou
bastante a crença da aristocracia
3
liberal da Nova Inglaterra na sua capacidade
assimiladora, americanizante: a crescente imigração levou a uma crise na ideologia
Brahmin
4
. O republicanismo liberal protestante adotado por Henry Dawes e Alice
Fletcher defendia que todos os homens eram capazes de progredir em um ambiente
propício. Presumia-se que novos imigrantes iriam finalmente “aprender a se comportar”,
provando o conceito da perfeição da humanidade de acordo com as censuras protestantes.
“Bom comportamento”, é lógico, sempre foi definido neste contexto como agir “como os
habitantes [de classe-alta, anglo-saxões] de Boston”. Quando a nova onda de imigrantes,
de uma maneira geral, recusou-se a mudar para agradar as preferências Brahmin, sua
falha em se assimilar pôs a crença liberal Protestante em cheque. Isso, de acordo com
Solomon, deu motivo a uma crescente crença na superioridade e exclusionismo anglo-
saxões entre os membros da elite da “velha estirpe”) da costa leste americana. O
assimilacionismo liberal típico da época de Alice Fletcher foi substituído por um
exclusionismo étnico e racista (SOLOMON, 1956: 5-60)
Vale a pena insistir nesse aspecto, pois muitos autores brasileiros que estudam os
Estados Unidos não perceberam isso, apesar de sua ampla aceitação dentro da
historiografia americana: o exclusivismo anglo-saxão não era um resquício da Inglaterra
colonial, como autores brasileiros como Paulo Prado, Darcy Ribeiro e H.T. Gomes
sugeriram. Como vimos acima, apesar de toda a sua violência e etnocentrismo, o projeto
puritano Protestante de Destino Manifesto foi, com freqüência, profundamente
assimilacionista. A maioria dos amigos dos indígenas que apoiaram as medidas do Dawes
3
O conceito aqui é de Digby Baltzell. Baltzell define aristocracia como “(1) uma comunidade de famílias
da classe-alta, cujos membros nasceram para ocupar posições de alto prestígio e de dignidade assegurada,
porque seus ancestrais foram líderes (líderes de elite) por uma geração ou mais; (2) essas famílias são
guardiães de um conjunto tradicional de valores que impõem autoridade, por representarem as aspirações
tanto da elite como do resto da população; e (3) que essa classe continua a justificar sua autoridade (a)
contribuindo com seu quinhão de líderes contemporâneos e (b) continuando a assimilar, em cada geração,
as famílias de novos membros da elite.” (BALTZELL, 1964: 7).
4
As famílias anglo-saxãs de elite de Boston e dos arredores da Nova Inglaterra que podem localizar suas
raízes no período colonial são freqüentemente mencionadas na fala americana comum como os
“Brahmins”. Obviamente, esse termo é uma referência – talvez irônica – à casta de elite Brahmin da Índia.
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
204
Act durante os debates sobre a reforma da assuntos indígenas dos anos 80 do século XIX
provinham da elite liberal Republicana e abolicionista do nordeste.
Depois da virada do século, no entanto, a crença de que o país estava rapidamente
perdendo sua referência moral e histórica parece ter ganhado força entre a intelligentsia
dos Estados Unidos. Muitos dos intelectuais da nação começaram a questionar a
industrialização e urbanização escancaradas da era pós-Guerra Civil. A expansão
americana tinha posto os Estados Unidos em contato com diferentes povos do mundo
inteiro. Além disso, ela tinha trazido para o país dezenas de milhões de estrangeiros,
aparentemente não assimiláveis como mão de obra necessária a atender as crescentes
exigências da indústria americana. Começou a surgir o grande consenso social da “Época
Dourada” [Gilded Age] pós-Guerra Civil , segundo o qual os Estados Unidos deveriam
permanecer essencialmente e eternamente uma nação anglo-saxã e moderna, formada por
um povo antecipando um futuro glorioso. Esse movimento incipiente tomou vulto nos
anos seguintes aos excessos patrióticos da Grande Guerra, que – como incontáveis
autores já observaram
5
– enterrou o progressismo vitoriano da Época Dourada.
Enfrentando o que parecia ser dissolução e sentindo-se ameaçados por números
crescentes de imigrantes do leste e do sul da Europa, que resistiam à assimilação, muitos
americanos viraram-se para o racismo.
O ponto alto do nativismo anglo-saxão aconteceu nos anos que imediatamente se
seguiram à Primeira Guerra Mundial. Em 1919, a Klu Klux Klan foi revivida como um
movimento popular para colocar em seus lugares
6
os católicos não-americanos, os judeus
5
A lista é extensa demais para ser explicitada aqui, mas uma bibliografia curta teria de incluir as obras de
poetas e escritores da guerra (Remarque, Sassoon, Yeats, Owen, Graves, para nomear uns poucos), bem
como aqueles talentos literários que surgiram no seu rastro (Hemmingway, Joyce, Dos Passos, etc.). Para
relatos específicos da guerra e seus efeitos na alma humana, sugerimos o excelente The Face of Battle
(1976), de Keegan, bem como The Great War and Modern Memory, (1975) de Paul Fussell. A coleção
recente Wars, editada por Angus Calder e publicada pela Penguin Books (1999) é , no entanto,
provavelmente a melhor visão geral de como a brutalidade do começo ao meio do século XX alterou as
predições “civilizadas” do futuro, que era visualizado como uma marcha homogênea e sem fim para o
progresso.
6
Esse ponto pode parecer estanho aos leitores sem formação na literatura especializada relativa à Ku Klux
Klan e demanda maiores esclarecimentos. Enquanto que a KKK era, em verdade, a primeira organização de
supremacia branca dos Estados Unidos durante o começo do século XX, como o historiador Wyn Craig
Wade observou, a Klan atingiu importância nacional nos anos 10 e 20, enfatizando o Nativismo Cristão
Protestante, bem como a supremacia branca. (WADE, 1987: 140-156) Um dos principais objetivos desta
“nova” Klan era evitar que os imigrantes e não protestantes dominassem a América da “velha estirpe”. A
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
205
e os imigrantes e o período que se estendeu de 1919 a 1921 viu uma onde de histeria
antiimigração e racista nunca vista na história dos Estados Unidos. O longo discurso
racista e influente de Madison Grant, The Passing of the Great Race, foi republicado e
amplamente lido naquela época, assim como o segundo livro de Grant, The Rising Tide of
Color. Albert Johnson, um nativista do Estado de Washington, foi apontado como
presidente do Comité da Cámara Sobre Imigração Estrangeira, em um Congresso
controlado pelos Republicanos, em 1919. Sob sua administração, foram criadas cotas,
regulando estritamente o número de imigrantes “inaceitáveis” (leia-se não-brancos, não-
europeus ocidentais e/ou não cristãos) cuja entrada seria permitida anualmente nos
Estados Unidos. O antropólogo liberal Franz Boas perdeu seu posto na Associação
Americana de Antropologia, censurado por criticar o uso de antropólogos como espiões
pelos Estados Unidos, durante a guerra recém-terminada. O espírito nativista levou o
Partido Republicano bem para a direita, em contradição direta com os idéias republicanas
assimilacionistas que haviam motivado os fundadores do partido no século anterior
(BALTZELL, 1964: 178-190; SCHLESINGER, 1957: 10-60; STOCKING 1976;
WADE, 1987: 140-156).
Essa guinada reacionária, no entanto, não oferecia qualquer solução para a
contradição ocasionada pela crescente imigração e industrialização. Para que o
capitalismo americano pudesse prosperar e o país progredir de acordo com o Destino
Manifesto, uma grande quantidade de novos trabalhadores era necessária. Esses, no
entanto, de uma maneira geral, somente estavam disponíveis em nações cujas populações
a elite anglo-saxã considerava inferiores. Defrontados com quantidades cada vez maiores
de imigrantes de “sangue inferior”, a aristocracia de patrícios da “velha estirpe” dos
Estados Unidos tentou se isolar e seus contrapartes populares se juntaram à Klan em
números recordes. Isso, no entanto, só fez aumentar a agitação social, pois os novos
americanos – ou mais provavelmente seus filhos e filhas – ganharam poder e riqueza.
Como Digby Baltzell observa sobre a divisão entre elites e aristocracias, “O problema
surge quando classes inteiras de novos homens, devido a acidentes de ancestralidade, são
impedidos de transformar seu poder e talento em algum tipo de autoridade familiar”
avó do autor, ela mesma filha de imigrantes católicos, lembrava claramente da Klan acendendo cruzes nos
gramados dos moradores judeus e católicos da cidade de Oshkosh, cuja população era, na sua
maioria,composta de brancos, no Wisconsin, nos anos seguintes à Primeira Guerra Mundial.
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
206
(BALTZELL, 1964: 72). Nos anos finais da segunda década do século XX, ficou claro
que a aristocracia anglo-saxã teria de reservar espaços no topo da hierarquia para
membros das elites étnicas, ou então teriam de arriscar enfrentar agitação social.
Digby Baltzell estudou o período entre a Guerra Civil e a Segunda Guerra
Mundial, em termos das mudanças que ela trouxe para a elite dirigente americana e suas
atitudes. Como ele observa, “O paradoxo desconfortável da sociedade americana no
[começo do] século XX é que tentou-se combinar o ideal democrático de igualdade de
oportunidade em uma sociedade etnicamente diversa com as tradições persistentes e
conservadoras de um ideal de casta anglo-saxã no topo da pirâmide. Essas tradições eram
carregadas de retórica científica, nos anos imediatamente antes e depois da Primeira
Guerra Mundial. De acordo com Baltzell, o evolucionismo social spenceriano dava uma
justificação científica para o desmoronamento da moralidade igualitária protestante entre
a aristocracia americana da costa leste (1958; 1979). A partir da última década do século
XIX, a sociologia de Herbert Spencer tornou-se ainda mais proeminente como a
ideologia da classe dominante nos Estados Unidos. Deixando de lado a variante anterior
de Morgan, o evolucionismo social spenceriano convenceu a elite americana “que os
milionários anglo-saxões que mandavam na nação naquela época eram os homens mais
adequados, por natureza, à essa tarefa.”
Spencer tinha a maior aceitação na América. Quase todo intelectual – de Jack
London e Theodore Dreiser ao igualitário extremado Walt Whitman, os fundadores da
sociologia, como Summer, Ward, Giddings e Cooley, economistas como John R.
Commons e Thorstein Veblen, e filósofos como John Dewey e Josiah Royce –
encantaram-se com Spencer. Mas o mais importante de tudo é que suas teorias deram um
tremendo impulso à já absoluta confiança do establishment de negócios capitalista. Em
verdade, ele era um verdadeiro Marx dos milionários da Época Dourada.
O anglo-saxonismo da primeiras décadas do século XX, no entanto, provocou
uma reação liberal pluralista, que foi sustentada por noções de relativismo cultural. À
medida que o tempo passava, essa segunda tendência começou a dominar os círculos
liberais urbanos e profissionais e pela metade da segunda década do século XX, os
excessos nativistas da recém pós-guerra tinham gerado uma reação liberal. “A segunda
década do século XX marcou a última década, na história americana, em que os membros
do establishment WASP, protegidos por inúmeras barreiras de casta do resto da
população, tinham tudo mais ou menos da forma que queriam”, afirma Digby Baltzell.
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
207
Foi também, no entanto, uma época de revolta individual apaixonada entre os
intelectuais, nos quais “o Evangelho Social foi substituído pelo evangelho segundo
Freud.” O jornalista H.L. Mencken, talvez o comentarista político mais notável dos
Estados Unidos da Época do Jazz, rotulou os anos 20 do século XX como “a década da
morte anglo-saxã” (apud, BALTZELL, 219-200).
O enfraquecimento, por parte de Darwin, da divindade da lei natural fortalecia a
doutrina evolucionária social spenceriana, mas também lançava as bases do relativismo
que estava subjacente ao culturalismo de Boas. A racialização era uma tendência
hegemônica dentro das ciências sociais e da cultura popular americanas, durante o
período de 1890 a 1920, com os evolucionistas sociais morganianos e utópicos, como
Alice Fletcher, contrariando a corrente majoritária desses anos (HOXIE, 1984: 1-83). No
entanto, a cada década que se passava ganhava força “uma ética naturalista, urbana,
ambiental, igualitária, coletivista e, em última instância, democrática”. Isso “finalmente
solapou a ética protestante, rural, hereditária, oportunista, individualista e republicana que
servia de base racional para o Direito Natural ao poder do businessman da “velha estirpe”
na América, entre 1860 e 1929. O que um Republicano rural atribuía à hereditariedade,
com bastante naturalidade, nos anos 70 do século XIX foi imputado, sem sombra de
dúvida, ao meio-ambiente, por seu neto urbano e democrático dos anos 20 do século
XX.” (Ibid, 100)
Um fator chave nesta transformação foi o surgimento do que Baltzell chama a
Nova Ciência Social. Por ora, no entanto, é importante perceber que a guinada para o
relativismo foi um movimento geral no estudo do homem e da sociedade que tem seu
paralelo no crescimento dos movementos populares do evangelho social [social gospel],
settlement house e de reforma política do fim do século XIX e começo do século XX. À
medida que a nova geração de pensadores sociais começou a se firmar nos primeiros anos
do século XX, sua influência começou a ser sentida nos mais diversos ramos do esforço
intelectual . De acordo com Baltzell, a Nova Ciência Social “foi delineada nas obras de
líderes da estirpe de William James e John Dewey, na filosofia e psicologia social,
Charles A. Beard e Frederick Jackson Turner, na história, Thorstein Veblen, na
economia, Lester F. Ward e Charles H. Cooley, na sociologia, Oliver Wendell Holmes
Jr., no direito, e Franz Boas, na antropologia. Todos se opunham ao racismo, ao
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
208
Darwinismo Social, ao imperialismo e a todas as formas de determinismo hereditário; e
todos pressupunham a maleabilidade da natureza humana que era capaz de corresponder
a condições sociais aperfeiçoadas...” O denominador comum desses intelectuais era uma
crença no poder do ambiente sobre a hereditariedade biológica; a noção de que a
educação fazia o homem. A diferença fundamental que estava por trás dessas atitudes, ao
contrário daquelas da geração de Fletcher, foi precisamente a incorporação da noção de
sociedade propriamente dita, que era vista como criando as condições que fatalmente
moldavam a individualidade humana. Freqüentemente, essas crenças tinham traços do
que só pode ser descrito como engenharia social.
O juiz Oliver Wendel Holmes ditou as regras para a Nova Ciência Social em
1905, quando afirmou que o estado tinha o dever de elaborar nova legislação em resposta
às novas condições da indústria. Holmes via a lei como derivada dos constantes ajustes
do homem para as situações ambientais e sociológicas que se modificavam, e não de
princípios fixos ou imutáveis da verdade natural. Baltzell descreve essa Nova Ciência
Social como enraizada na tradição filosófica americana de pragmatismo. Ele descreve as
idéias de Holmes como uma espécie de pragmatismo legal, que enfatizava a relatividade
do conhecimento, negava a verdade absoluta e considerava a atividade legal como
experimental e em aberto. No campo da educação, John Dewey foi o inquestionável líder
do movimento da Nova Ciência Social. Baltzell o descreve como “o Herbert Spencer da
Nova Ciência Social”. O tipo de pragmatismo de Dewey foi ambientalismo ou
instrumentalismo evolucionário e sua crença de que a educação era uma questão de
experiência, não de lógica, foi, de acordo com Baltzell, “a filosofia ideal do novo partido
democrático” sob Franklin Delano Roosevelt. (Ibid, 161-167)
No final dos anos vinte do século XX, o exclusivismo nativista anglo-saxão,
embora ainda poderoso, era uma ideologia condenada a desaparecer. Baltzell, em
verdade, considera a revolta nativista do período pós-guerra o último ímpeto de
nativismo ativo a ser liderado e apoiado pelos americanos de classe alta e de velha
estirpe, residentes no leste .
No que diz respeito à comunidade intelectual Americana, os anos vinte foram
anos de revolta moral e psicológica dos valores puritanos, costumes da Main Street e
complacência de uma cultura fria de negócios. Foi uma década individualista dominada
por artistas. Os anos trinta, mais coletivos e políticos, por outro lado, foram anos de
radicalismo e de reforma, dominados por cientistas sociais e artistas socialmente
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
209
conscientes. A década testemunhou o declínio de Freud e o avanço do Marxismo, quando
o sexo deu lugar à sociologia, e os conflitos internos foram projetados em várias cruzadas
para corrigir os males do ambiente externo.” (BALTZELL, 1964: 202-203)
Nos anos 30, os princípios centrais da Nova Ciência Social se firmariam. A
década testemunhou o triunfo do relativismo sobre o absolutismo, o condicionamento
pelo ambiente externo sobre a consciência universalista e a antropologia sobre a teologia.
Em especial, os princípios da desigualdade racial foram frontalmente desafiados. Os
testes Alpha do Exército Americano, durante a Primeira Guerra Mundial, provaram, para
a satisfação da maioria dos cientistas sociais, que os afro-americanos se beneficiavam de
uma mudança ambiental: embora os negros tivessem obtido notas mais baixas que as dos
brancos, no cômputo geral, em testes de inteligência, os negros do norte tiveram notas
mais altas , no cômputo geral, do que seus irmãos do sul (em verdade, os negros dos
estados do norte tinham médias mais altas do que os brancos do Sul Profundo [Deep
South]. Esses estudos iniciaram uma longa série de investigações sobre os efeitos do
meio-ambiente nas diferenças dos grupos e, embora a sociologia instrumentalista tivesse
um papel importante na rejeição eventual das ideologias da superioridade anglo-saxã, “foi
a nova ciência da antropologia cultural que se mostrou uma aliada por excelência do
reformador.” (BALTZELL, 1964, 168-170)
O trabalho do antropólogo Franz Boas situava-se bem no núcleo central da Nova
Ciência Social. O “Mind of Primitiva Man” (= A mente do homem primitivo”) era uma
magna carta para os antiracistas e seu trabalho demonstrava, em termos claros e
científicos, que a história, o status social e o meio-ambiente , e não características físicas
inatas, estão atrás das diferenças das raças. Como vamos discutir abaixo, no entanto, o
paradigma de Boas, enquanto que possa ser visto como uma melhora em relação ao
racismo, compartilhava com sua suposta antítese uma certa fé no determinismo:
As teorias revolucionárias de Darwin na biologia pareciam negar a validade de
nossas tradições transcendentais e judaico-cristãs. E, uma vez que esse absolutismo
transcendental foi destruído, surgiram duas alternativas naturalísticas: por um lado, havia
as teorias dos Darwinistas Sociais e dos racistas que, implícita e explicitamente,
desembocaram em vários graus de determinismo hereditário; por outro lado, e em parte
em reação a essas idéias de determinismo hereditário, a Nova Ciência Social adquiriu vida
própria na virada do século. Mas essa visão do homem também derivou para uma visão
do destino do homem como um prisioneiro de seu meio-ambiente.
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
210
No entanto, quaisquer que fossem seus problemas, a Nova Ciência Social
pressupunha um mundo mais aberto, em contraste com a visão hereditária da
superioridade anglo-saxã . Os valores defendidos por Boas e seus discípulos estavam
mais de acordo com as idéias de aristocracia de Toqueville e se opunham às noções de
casta de Gabineau. À medida que o novo século despontava, eles ganhavam força com
cada década que se passava. (BALTZELL, 1964: 168-178)
O (anti)modernismo e a busca pelo primitivo
Uma das tendências que reforçaram a popularidade da antropologia de Boas foi
uma reação antimoderna na elite cultural americana e uma conseqüente revalorização do
primitivo. Os etnógrafos que eram aceitos nas vidas cotidianas dos assim chamados
povos primitivos não eram mais vistos como excêntricos inofensivos que registravam, em
nome da ciência, os modos de vida de povos que estavam rapidamente desaparecendo.
Ao invés disso, eles passaram a ser taxados de intermediários vitais entre o passado e o
futuro, intérpretes que eram capazes de informar sobre aspectos cruciais do espírito
humano que a civilização tinha deixado no meio do caminho, em sua marcha para a
humanidade. Seus informantes começaram a ser vistos não somente como sobreviventes
pitorescos de um período anterior – e felizmente ultrapassado – da evolução humana, mas
sim como guias na luta contra os males prementes da humanidade. Em grande parte, esse
movimento representou um restabelecimento da visão romântica do indígena como um
ser primitivo imaculado e nobre selvagem, primeiramente popularizado no pensamento
ocidental pelo filósofo francês Rousseau. Sua manifestação específica no começo do
século XX nos Estados Unidos, no entanto, comprometeu-se com uma tradição
americana de “brincar de índio” em momentos de percepção de crise nacional, para
chamar à cena a renovação espiritual e política. (DELORIA, Philip: 1998)
Ann Douglas, cronista da política cultural da Nova Iorque modernista dos anos 20
do século XX, escreve de forma evocativa, sobre os medos e excitações do Outro não-
branco apresentado ao homem civilizado moderno, dilacerado em suas pretensões
progressivas pela Primeira Guerra Mundial e o papel que a antropologia – tanto cultural
quanto racialista – teve, ao dar a esse homem no que pensar:
A disciplina da antropologia, fortemente influenciada por Freud e por sua
equação da neurose moderna, com o “selvagem” e a “mente primitiva”, estava em seus
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
211
estágios formativos, nas primeiras décadas do século XX … A América estava na
posição privilegiada [do mundo da antropologia] e única entre as nações mais poderosas
do mundo, de contar, dentro de suas fronteiras, com dois povos ‘primitivos’, os
‘Indígenas’ Nativos Americanos e os Negros, bem mais numerosos e exigentes... De
acordo com o ethos [de Freud] de ‘honestidade terrível’, o selvagem estava à espreita,
atrás do homem civilizado... A principal tarefa que a ‘honestidade terrível’ apresentava
aos modernos americanos brancos urbanos era a de ‘encarar a a realidade’, como Harold
Stearns escreveu em Civilization in the United States, que a América não é mais, se
jamais o foi, um país ‘anglo-saxão’.
O debate tornou-se acirrado sobre se a raça branca seria eclipsada ou reanimada
pelos povos mais escuros do mundo. No The Passing of the Great Race (1916), Madison
Grant
7
(um nova iorquino) exortava contra a ‘reversão’ dos brancos ao nível animal do
Negro; Lathrop Sotddard elaborou as advertências de Madison em 1920 no The Rising
Tide of Color e Le Crépuscule dês Nations Blanches (1925), de Maurice Muret, foi logo
traduzido para o inglês e publicado em Nova Iorque como The Twilight of the White Race
(DOUGLAS, 1995: 49).
Como George Stocking e outros observadores da antropologia americana
repetidamente observaram (STOCKING, 1992; DELORIA, Philip, 1998: 71-95;
HINSLEY, 1989), o primitivismo romântico e um senso de relativismo há muito tempo
são características de muitos dos homens e mulheres que fazem a disciplina. Os pontos de
vista de etnógrafos como Alice Fletcher, Frank Hamilton Cushing e James Mooney, em
relação ao valor das tradições e hábitos dos indígenas, no entanto, era visto como um
defeito de personalidade pitoresco pela maioria dos contemporâneos do fim da época
vitoriana. Esse estado de coisas iria mudar dramaticamente nas três décadas seguintes ao
nascer do século XX.
Uma análise completa do namoro moderno com o primitivismo durante as
primeiras décadas do século XX está além do escopo do presente trabalho. Não se pode
ignorá-lo, no entanto, por ter sido um componente crucial da atmosfera intelectual que
resultou na derrubada do consenso do Ato Dawes entre os amigos dos indígenas e em
uma ênfase renovada na soberania cultural e política indígena. Além disso, tal flerte com
o primitivismo teve um papel decisivo na formação de opinião, ideologias e
personalidade de John Collier, o homem que viria a ser o Comissário de Assuntos
Indígenas de Franklin Delano Roosevelt, o indivíduo mais diretamente responsável pelas
reformas da Administração dos Assuntos Indígenas dos anos 30 do século XX, bem como
pela integração dos antropólogos ao OIA.
7
Um erro tipográfico de Douglases grifa o nome como “Grant Madison”, no original. Mudamos para a
versão correta aqui.
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
212
A antropologia americana do período entre-guerras teve uma popularidade nunca
antes observada e raramente vista desde então. À medida que a crítica racialista de
diversidade humana tornou-se progressivamente mais solapada durante as primeiras
décadas do século XX – e especialmente após a Primeira Guerra Mundial – a apreciação
relativista da antropologia cultural em relação ao primitivo tornou-se a la mode em
círculos progressistas intelectuais. O caminho para o futuro parecia ligado a uma
reincorporação do ethos do passado. Foi sob essa ótica que Margaret Mead iria estudar os
hábitos sexuais dos adolescentes de Samoa e seu livro, Growing Up in Samoa (1928), foi
considerado como leitura essencial por uma geração de americanos. O impacto do livro
foi bem além dos círculos antropológicos, tendo sido incorporado à vida intelectual geral
da nação. Até hoje, é o livro mais vendido de antropologia de todos os tempos. Douglas
descreve o trabalho de Mead como “um sucesso controverso surpreendente com o
público leitor não acadêmico”:
Mead explicou que o conceito de celibato era “absolutamente sem sentido” na
cultura primitiva de Samoa e Mecken, comentando o livro na edição de novembro de
1928 do American Mercury alegremente expandiu seu ponto de vista: o habitante de
Samoa “evita a repressão dedicando-se a amores leves e transitórios.” Freda Kirchney,
editor de The Nation, notou, na edição de 17 de outubro de 1928, que, pelo relato de
Mead, os habitantes de Samoa permitiam-se ao que os povos civilizados chamavam de
‘promiscuidade’ e prosperavam, como um resultado disso. Estava Mead sugerindo que
os americanos modernos/da atualidade fariam bem em imitar seus ancestrais mais
saudáveis chamados de primitivos? Mead, que parecia ter um novo amante ou marido a
cada nova expedição que fazia, tentou defender seu livro daqueles ansiosos em criticá-
lo ou atacá-lo como um tratado para a liberação sexual, observando que tão-somente 68
páginas (de um total de 297) tratavam de sexo. Mas essas 68 páginas ajudaram a fazer
do livro um sucesso de vendas e puseram a antropologia em destaque. (Ibid, 50)
A preocupação de Mead em usar o estudo da sexualidade do “primitivo” como
um guia para refletir sobre dilemas modernos foi bem óbvio em seu trabalho anterior com
os Omaha (que trataremos adiante). Embora seu livro sobre Samoa possa ter atraído a
atenção do público para a antropologia, a preocupação com a “sexualidade selvagem
havia sido uma preocupação da antropologia há bastante tempo. De qualquer maneira,
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
213
pareceu à boa parte da república americana liberal, com instrução superior, que os
habitantes “primitivos” de Samoa poderiam em verdade ter a cura para os problemas
sexuais que Freud identificou no homem moderno.
Os americanos nativos chegaram a uma situação privilegiada nessa reavaliação
geral do primitivo.Embora outros “primitivos” étnicos – tanto externos como internos –
fossem vistos com novos olhos durante esse período, os indígenas tinha uma vantagem
considerável na medida em que eles foram indelevelmente associados, aos olhos do
público, com o passado colonial dos Estados Unidos. Em resumo, nada poderia ser mais
americano do que um indígena. A citação sobre o personagem de Joseph Heller, Chefe
Halfoat, com a qual iniciamos este capítulo, embora com um certo humor negro,
simplesmente repete uma posição de bom senso, defendida por muitos americanos
durante a primeira metade do século XX. Enquanto os indígenas eram indubitavelmente
um Outro racializado, ninguém podia questionar sua americanidade essencial, algo que
não poderia ser dito a respeito dos negros e dos imigrantes americanos. Além disso, dada
a centralidade da imagem indígena na literatura americana, na arte e na poesia, “ser
indígena” era uma forma étnica de ser que muitos americanos achavam ser fácil de
imitar.
O trabalho recente de Philip Doloria delineia a mimesis branca do que
considerava serem “hábitos indígenas”, do último período colonial em diante. O capítulo
“Natural Indians and Identities of Modernity” presta especial atenção aos usos populares
da etnografia durante o período imediatamente anterior e posterior à Primeira Guerra
Mundial. O antimodernismo modernista (para usar um termo de Phillip Deloria)
possibilitou um diálogo com oposições radicais temporais e raciais que escondia o “olho
imperial” moderno, branco, em uma posição de poder cultural. De acordo com Deloria,
os americanos, durante esse período, sentiram a necessidade de reafirmar a identidade
moderna, representando um encontro heurístico com o Outro primitivo. Os americanos
nativos em especial, menos ameaçadores racialmente do que os negros e mais acessíveis
do que os habitantes das ilhas do Pacífico, forneceram uma das telas privilegiadas para
essa espécie de projeção de fantasia social. Nesse esforço, a antropologia desempenhou
um papel chave:
Talvez nenhuma disciplina estivesse mais bem equipada para ajudar na
construção de um exterior tão favorável à figura do indígena do que o campo em
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
214
desenvolvimento da etnografia. Quando Lewis Mortan começou a ver os povos nativos
como objetos de investigação, ele inaugurou uma tradição que ajudou a mudar os
indígenas para uma posição bastante além das fronteiras nacionais. A salvação de
culturas nativas em extinção exigia imaginá-las em um “presente etnográfico” de pré-
contato, sempre temporalmente fora da modernidade. O sentido contraditório da
etnografia, do indígena como alguém que existiu tanto no passado como no presente,
provou ser um elemento-chave na ambigüidade (anti)moderna. (DELORIA, Phillip,
1998: 105-107). À medida que a etnografia ganhou mais legitimação popular, nas últimas
décadas do século XIX, seus impulsos primitivistas se infiltraram na cultura americana...
(DELORIA, Phillip, 1998: 105-7).
No final do século XIX, o indígena seria valorizado pelos reformistas liberais,
porque sua assimilação justificava o sentido protestante anglo-saxão de missão
civilizadora e de destino manifesto. Este valor estava em sua habilidade de dominar os
códigos culturais da sociedade branca – mais particularmente, da classe alta, da costa
leste, protestante, anglo-saxã, branca. No começo do século XX, o indígena seria
reavaliado no pensamento e na cultura popular, tornando-se cada vez mais valioso, como
uma eterna lembrança de e um elo com o passado pioneiro dos Estados Unidos. Nessa
nova formação, o valor do indígena não estava no que ele poderia se tornar mas no que
ele tinha sido e – presumia-se – continuou a ser em algum nível: um ser humano cuja
essência era única e isolada da essência do homem americano científico moderno.
Embora o pensamento antropológico Boasiano rejeitasse o racismo, seu uso do conceito
de cultura para descrever a alteridade humana freqüentemente provou ser tão
essencialista e determinista como o racismo. O que ambas as teorias tinham em comum
era um essencialismo reducionista que considerava nativos autênticos como congelados
em um estado de ser não- (ou mesmo anti) moderno. Como os americanos nativos que
lidavam com seguidores culturalistas de Boas iriam logo descobrir, um indígena que
vivia fora do que era considerada sua cultura original ou autêntica era considerado,
simplesmente, como sendo um não indígena.
Culture and the Determinist Paradigm
Seguindo Kuhn (1961), George Stocking descreveu as primeiras décadas do
século XX como a época em que a antropologia americana sofreu uma mudança de
paradigma científico, mudando de visões ambientalistas e racialistas sociais evolutivas
para o culturalismo Boasian:
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
215
Na verdade, há a tentação de ir além da “reforma” para a “revolução” e sugerir
que aquele foi um dos momentos na história das ciências sociais que pode, até um certo
ponto, ser iluminado pelo conceito de mudança de “paradigma”... Substantivamente, a
concepção de cultura e de determinismo cultural implícitos na crítica de Boas ao
evolucionismo forneceu a base para uma visão disciplinar do mundo radicalmente
diferente, embora suas implicações tenham se desenvolvido com lentidão.
(STOCKING, 1976: 6).
Como o próprio Stocking observa, no entanto (ibid, 6-7), essa mudança de
paradigma foi um tanto imperfeita. Uma das “imperfeições” foi uma continuação, dentro
do paradigma de Boas, da noção de que os povos americanos nativos dos Estados Unidos
eram grupos marcados para uma dissolução inevitável. . Nas décadas próximas à Segunda
Guerra Mundial, essa visão começou a mudar – nem um pouco entre os alunos mais
jovens de Boas e os alunos que eram chamados para o trabalho de antropologia aplicada
na OIA. A principal corrente da antropologia americana, no entanto, a despeito da
crescente sofisticação teórica e da substituição da noção unidirecional de assimilação
pelo conceito bidirecional de aculturação como o agente de mudança cultural, considerou
os indígenas como uma “raça em extinção”.
A grande modificação que aconteceu nas visões antropológicas dos indígenas,
expressas no campo político dos assuntos indígenas dos Estados Unidos nos 50 anos que
vão de 1880 a 1930, não foi uma simples mudança de darwinismo social para
culturalismo. Ao contrário, o que ocorreu foi uma mudança de evolucionismo social
morganiano para pluralismo, filtrado pelos entendimentos populares e científicos do
racialismo e do culturalismo. Em outras palavras, a antropologia morganiana do final do
século XIX via os indígenas como um estágio anterior da evolução humana. À medida
que eles progrediam – rapidamente, supunha-se, com a ajuda de seus benfeitores brancos
mais evoluídos – eles se tornariam mais indistinguíveis dos americanos anglo-saxões.
Esta tese tinha até uma vertente biologicista nos círculos etnográficos do Smithsonian,
que pregava a absorção física dos indígenas pelo casamento entre as raças. Em contraste,
a antropologia do começo para o meio do século XX veria os indígenas como um ramo
da humanidade distinto e sui generis, distinta, pela própria essência, dos co-cidadãos
americanos brancos. Se a origem desta separação está na natureza (raça) ou na criação
(cultura), é uma questão de acirrado debate entre escolas antropológicas rivais, mas
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
216
ambas as escolas concordam: indígenas e brancos não eram os mesmos, nem indígenas
iam se transformar em brancos.
Os antropólogos do final
do século XIX que tiveram uma
participação ativa nas reformas
do Dawes Act acreditavam
firmemente que o indígena era
um membro de uma espécie
unificada de humanos – um
membro primitivo, em verdade,
mas um membro que podia, com
investimentos apropriados em
educação e treinamento, ser
elevado a um padrão homogêneo
definido como “americano”.
Como observado por George
Stocking e Frederick E. Hoxie,
no entanto, até os primeiros anos
do século XX, os preceitos
evolutivos sociais segundo
Morgan e defendidos por
etnógrafos americanos como
Fletcher e Powell tinham
ganhado um rival científico.
Formalistas raciais spencerianos,
como Madison Grant e Lothrop
Stoddard, cada vez mais
identificavam os americanos
Figura 4.2: Em sua conceituação da variação racial humana,
o antropólogo Henry Holmes (do BAE) percebeu diferenciação
e integração. De acordo com essa esquemática, as diferenças
raciais seriam eliminadas por uma unidade biologica
construida através da miscegenação e da competição.
(HOLMES, 1910: 160)
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
217
nativos como membros de uma raça única e inferior, separados do ramo branco da
humanidade pela inabilidade biologicamente determinada de dominar as técnicas e
hábitos da civilização. Até mesmo os etnologistas profissionais do Smithsonian
começaram a ter suas dúvidas quanto à unidade essencial da humanidade (HOXIE, 1984:
115-145; STOCKING, RCE: 238-243).
Vale a pena observar, no entanto, que, embora W.J. McGee e William Henry
Holmes, sucessores de Powell como diretores do Bureau American Ethnology
Americana, poderiam ser descritos como racialistas, sua idéia de raça era marcadamente
diferente daquelas exibidas por formalistas raciais e darwinistas sociais. Como observado
por Stocking (ibid, 255-256), ela continuava a adotar uma visão geral da unidade
humana. A idéia de Holmes da evolução humana, amplamente descrita em dois artigos do
American Anthropologist, identificava a diversidade humana como originária de uma raiz
comum e dirigida, inevitavelmente, de volta a uma crescente uniformidade, à medida que
a comunicação intensificada entre as diversas linhas de família da humanidade levam à
competição e à miscigenação: (ver Figura M).
O mundo se transbordará com uma raça generalizada, na qual o sangue dominante
será o da raça que hoje tem a mais forte reivindicação, física e intelectualmente, para
estabelecer a posse de todos os recursos da terra e do mar. O sangue e a cultura serão
cosmopolitas. (HOLMES, 1902)
Apesar de fazer amplo uso da retórica Darwinista Social relacionada à
“sobrevivência do mais forte”, o argumento de Holmes também compreendeu a
amalgamação através da miscigenação como uma força que tornará “o sangue e a cultura
cosmopolitas”. Esta visão quase não se encaixa nas noções racialistas estritas de
identidade humana, como aquelas defendidas por Goubineau, que viam a mistura das
raças como a raiz de toda a degeneração humana. Holmes prosseguiu na mesma linha de
raciocínio em seu segundo artigo:
As barreiras de terra e mar estão quase totalmente destruídas e a única barreira
remanescente das raças é o preconceito racial, cuja atitude retardará o progresso de
integração mas não evitará seu triunfo final...
…[Embora ainda distante, prevemos uma redução final de todos os povos para
uma única raça comum. . Se a amalgamação pacífica fracassar, a extinção do mais fraco
por meios menos suaves vai funcionar. Nenhum outro resultado pode ser antecipado, a
não ser que a agência milagrosa da tecnologia moderna de transportação torne possível a
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
218
migração para mundos diferentes do nosso. A batalha final das raças para a posse do
mundo já começou... (HOLMES, 1910: 161)
Na opinião de Holmes, a humanidade estava empenhada em uma batalha racial,
onde as raças mais fracas seriam amalgamadas às mais fortes, pela conquista, se
necessário. No entanto, o modo mais lógico de alcançar esse objetivo era pela
miscigenação e a única barreira que restava no caminho disso era o “preconceito da raça”.
Se a visão de Holmes era racista, era um racismo que via a humanidade como
inevitavelmente ligada a uma unidade sólida e homogênea, em suas raízes e em seu
destino final. Longe de defender a separação das raças, Holmes aplaudia sua inevitável
amálgama, pela miscigenação sexual e social, levando à cosmopolização do “sangue e
cultura”. Embora seja verdade que Holmes achava que a raça com “o apelo mais forte”
dentro desse mundo “cosmopolita” era a caucasiana, é igualmente verdade que o sangue e
a cultura dessa unidade final humana estariam longe de ser puros.
É bem fácil, à luz do que agora acreditamos em relação a raça e cultura, interpretar
o trabalho de Holmes como genericamente racista. No entanto, como observa Hoxie, foi
uma tentativa de conciliar uma visão dinâmica do evolucionismo social tradicional com
os dados concretos vindos dos estudos de campo, que parecia indicar vastas diferenças em
comportamentos e crenças separando os grupos sociais humanos. As teorias de Holmes,
em verdade, refletem de muitas maneiras as visões de raça e evolução dos brasileiros
contemporâneos, nas quais a miscigenação foi vista como levando à diluição das
características dos indígenas e africanos, por um processo de “branqueamento”
progressivo (SEYFERTH, 1985; SÍLVIO ROMERO, 1888: 86-87; NINA RODRIGUES,
1905: 7-7; SCHWARTZ, 1993: 320n). É interessante notar que até mesmo nessa leitura
da diversidade humana mais racializada e caucasianamente triunfalista, os evolucionistas
sociais do Smithsonian não conseguiram negar as raízes comuns da humanidade, nem
rejeitar a visão de que a humanidade tinha um futuro comum homogêneo.
Mas o evolucionismo social dos primeiros anos de funcionamento do Bureau of
Ameican Ethnology do Smithsonian estava se tornando cada vez mais irrelevante para a
antropologia americana. Era uma tradição intelectual em declínio.
Enquanto Holmes escrevia, começou a se formar uma outra teoria de diferença
humana, que identificava a diversidade como um fruto dos hábitos educados e
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
219
socialmente inculcados da mente humana, ou cultura. Frederick Hoxie descreve o
nascimento do conceito de cultura como a “transformação da “Questão Indígena”: o
afastamento dos Estados Unidos do velho ideal republicano de igualdade moral para
todos. Como Hoxie afirma, na nova visão das coisas, as sociedades nativas não mais
estavam em transição para a civilização, “elas estavam se adaptando vagarosamente – se
estivessem – às forças da modernidade. O homem primitivo se apegaria a velhos hábitos
tanto tempo quanto possível. A lição foi clara: o processo de assimilação foi um
empreendimento excessivamente problemático. E embora os antropólogos culturais
geralmente concordassem que a adoção da cultura ocidental européia pelos indígenas
seria um evento positivo e inevitável, em 1920 já era claro que os cientistas sociais
tinham trocado de lado. Não mais torcendo pelo progresso de um povo em transição, eles
agora lembravam ao público que os indígenas pertenciam a culturas primitivas e estáticas
que precisariam de anos de instrução e treinamento, antes que pudessem se juntar a uma
sociedade industrial complexa. A opinião acadêmica moderna sugeriu que a assimilação
total era um objetivo não realista; talvez acomodação parcial a padrões ‘civilizados’ fosse
tudo que os implementadores de política poderiam almejar.” (HOXIE, 1984: 144-145)
Hoje, o culturalismo é quase entendido como sendo uma mudança de paradigma
que reverteu as teorias racistas e evolucionistas sociais. No entanto, como vários
pesquisadores têm observado recentemente (mais notadamente Kenan Malik (1997),
Adam Kuper (1999) e George Stocking (1976)), as visões de culturalismo – e
particularmente aquelas de seu mais notável oponente, Franz Boas – não se colocaram
necessariamente em total oposição ao racismo, embora suplantassem o evolucionismo
social como a teoria dominante na antropologia americana. E embora o culturalismo
formalmente se opusesse ao formalismo racial de Stoddard, Grant e sua estirpe, ele
freqüentemente repetia algumas das mesmas crenças essencialistas e deterministas do
racismo científico.
Por um lado, o surgimento do paradigma culturalista não levou a uma visão de
culturas nativas como entidades vivas e mutantes. De uma maneira geral, os primeiros
antropólogos culturais ainda tinham a tendência de retratar os nativos americanos como
figuras trágicas, cujas culturas tinham sido destruídas pela debilitação de suas raízes
sociais e econômicas e que foram conseqüentemente mal ajustados à civilização
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
220
dominante à sua volta. A “cultura indígena”, nesse modo de ver as coisas, persistiu bem
depois de que suas raízes funcionais tivessem sido eliminadas, mas geralmente de uma
forma mal ajustada. Podemos observar essa visão claramente delineada em “Culture,
Genuine and Spurious” (1924) um artigo escrito pelo protegé de Boas, Edward Sapir, que
foi responsável por um importante momento definidor para o conceito de primitivo e de
mudança cultural dos anos 30 e dos anos 20 do século XX. Segundo Sapir, uma cultura
genuína é “inerentemente harmônica, equilibrada, auto-satisfatória”. (410) Influências de
fora correm o risco de adulterar culturas genuínas, atirando-as para a desintegração e
desarmonia. No caso das culturas dos indígenas americanos, quase por definição
genuínas, segundo Sapir, o contato ampliado e intenso com as culturas orientadas para o
mercado e de base urbana da Europa ocidental e suas descendentes nas Américas tinham
resultado na destruição da integridade da cultura primitiva. Isso, por seu turno, resultou
no surgimento de indivíduos indígenas mal ajustados:
Quando a integridade política de uma tribo [indígena] é destruída pelo contato
com os brancos e os velhos valores culturais deixam de ter a atmosfera necessária para
sua vitalidade continuada, o indígena se encontra desnorteado em um estado de vácuo.
Mesmo que ele tenha sucesso em alcançar um meio termo bem satisfatório em seu novo
ambiente, em fazer o que pessoas bem-intencionadas consideram um grande progresso
para o conhecimento, ele pode reter um desconfortável senso da perda de um bem vago e
grande, algum tipo de estado de espírito que ele acharia difícil definir, mas que dava a ele
uma coragem e uma alegria que a prosperidade recente não parece ter-lhe devolvido. O
que aconteceu é que ele escorregou do abraço quente de uma cultura para o ar frio da
existência fragmentada. O que é triste sobre o indígena não é a vazio da vida na reserva, é
o desaparecimento gradual de culturas genuínas, embora fossem construídas com
matérias primas de pouca sofisticação. (SAPIR, 1924: 414)
Em outras palavras, segundo Sapir, quando o estado original de inocência cultural
dos indígenas é destruído, eles estão condenados a viver uma espécie de meia-vida
cultural, jamais à vontade no novo ambiente social mas incapazes de recapturar o
(ambiente social) anterior. Seguindo Boas, Sapir também recriou um tipo distintamente
culturalista de dicotomia primitivo/civilizado: em sua visão das coisas, culturas
primitivas genuínas eram “de uma ordem menor de sofisticação” quando comparadas a
culturas civilizadas modernas que trazem “prosperidade”.
Ruth Benedict, uma outra estudante de Boas e uma figura chave na antropologia
americana do período entre-guerras, apresentou uma variação desse mesmo tema em sua
“Configurations of Culture in North America” em 1932, um trabalho que George
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
221
Stocking cita como tendo tido um grande impacto teórico no conceito de cultura
(Stocking, 1976: 16). Segundo Benedict, culturas diferentes “padronizam a existência e
condicionam as reações emocionais e cognitivas de seus portadores de tal forma que as
reações tornam-se dados incomensuráveis, cada uma especializando-se em certos tipos
selecionados de comportamento e rejeitando o comportamento próprio a seus opostos”.
Aqui a cultura é apresentada como um estado mental não somente holístico, contido em
si mesmo e único (embora estranhamente incomensurável), mas também capaz de
programar indivíduos a tal ponto que eles se tornam especializados em determinados
tipos de atividades e se tornam incapazes de conceber outras. Thomas Bilosi, seguindo
Fox, chama essa abordagem de relativismo integracionista, descrevendo-o como a visão
de que as culturas formam conjuntos integrados, coerentes, discretos e distintos, maiores
do que os vários retalhos e remendos que constituem suas partes, e que não poderiam ser
descritas como “melhores” ou “piores”, quando comparadas umas com as outras
(BILOSI, 1997: 136; FOX, 1991: 106)
No entanto, embora a guinada na direção do relativismo tenha permitido que os
antropólogos americanos entendessem as culturas indígenas como positivas e funcionais,
ela não evitou que eles simultaneamente identificassem essas culturas em uma estrutura
claramente bipolar onde o binômio primitivo e passado foi contraposto a civilizado e
moderno.Dentro desta estrutura, o pólo civilizado era claramente o que Mamoot
Mamdani chama o “termo principal” – um estado “a que se atribuía tanto valor analítico
como status universal”, em oposição ao pólo secundário, residual e particularista. A
tendência clara nessa estrutura bipolar era entender o pólo secundário como uma mera
aproximação ou cópia, um substituto que ficava aquém do desempenho real. “Enquanto
que o termo principal [tem] conteúdo analítico, o termo residual [não tem] uma história
original ou um futuro autêntico.” Nessa estrutura, o indígena primitivo era visto como
um conjunto de povos claramente identificados a caminho da dissolução, esmagado pelas
forças da modernidade. Diferente do paradigma social evolucionista, no entanto, o
culturalismo nem teve muita esperança de que muitos indígenas pudessem ser salvos pela
absorção na corrente principal da vida americana.
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
222
Ajuste Cultural e o Indígena Americano
No começo dos anos 30 do século XX, o culturalismo, apesar de se mostrar cada
vez mais vitorioso nas batalhas ideológicas dentro da antropologia americana
(STOCKING, 1976), ainda tinha que tentar explicar, de forma coerente, como as
culturas mudam. Esse problema ocuparia um bom número de antropólogos americanos
pelas duas décadas seguintes e os esforços para esclarecer essa questão resultariam na
teoria da aculturação. Em especial, os esforços da antropologia para entender a mudança
cultural giravam em torno da pesquisa sobre a situação de contato criada pela conquista
européia da América do Norte. Enquanto uma vertente da antropologia cultural, liderada
por Franz Boas, concentrava-se em “salvar” a maior quantidade possível de informações
sobre o que lhes parecia ser culturas aborígenes do continente em rápido declínio, outras
vertentes começaram a direcionar a nova geração de estudantes pós-graduados para a
pesquisa de como as culturas aborígenes haviam sido modificadas pela conquista e pelo
contato.
Uma das pessoas mais responsáveis por essa iniciativa foi o aluno de Boas e mais
tarde seu colega na Columbia University, Clark Wissler. Ao contrário de Boas, Wissler
era extremamente interessado em como cultura transferia ou transformava. Suas teorias
difusionistas foram duramente criticadas e, talvez por causa disso, ele foi quase
totalmente esquecido como um dos pais da moderna antropologia Americana; um homem
que – juntamente com Boas – foi diretamente responsável para profissionalização da
disciplina durante o começo do século XX. (MURDOCK, 1948: 292-293) No entanto,
devido ao interesse de Wissler pelo difusionismo, seu trabalho – mais especificamente o
trabalho dos muitos alunos que orientou – tornou-se a base para as teorias de mudança
cultural que começaram a se aglutinar dentro da antropologia cultural americana durante
as décadas de 30 e de 40 do século XX. Especificamente, dois estudantes de Wissler,
Margaret Mead e H. Scudder Mekeel, iriam produzir trabalhos que foram considerados
por muitos contemporâneos monografias clássicas relacionadas à mudança cultural e
aculturação em situações de contato (MACGREGOR, 1948: 96; MEKEEL, 1932;
MEAD, 1923). Essas essas abordagens teóricas nortearam o trabalho antropológico feito
pelo Repartição de Assuntos Indígenas durante os anos 30 e 40 do século XX, mais
especificamente, como veremos no Capítulo 6 adiante, os esforços de Mekeel.
Um bom exemplo culturalista da tese do "indígena americano em vias de
extinção” (“vanishing American thesis”, DIPPIE, 1982) que também demonstra os pontos
de vista de Wissler sobre a transmissão cultural, pode ser encontrado em uma descrição
popular, pitoresca e não científica da vida em reserva indígena escrita por Wissler em
1938 (mas baseada em trabalho de campo realizado durante mais de quatro décadas).
Nesse livro, Wissler fornece um retrato intrigante de um índio assimilado, conhecido
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
223
como Coming Sun (“Sol Nascente”), descrito como uma pessoa que freqüentemente “ao
jogar no campo do homem branco, jogava a bola de forma atabalhoada”, apesar de seus
hábitos e costumes civilizados adquiridos há muito tempo. Isso era particularmente
comum nos momentos em que o Coming Sun estava “sob stress”, quando sua
“ascendência indígena ... transparecia em seus hábitos de homem branco” Wissler
afirmava que, nessas ocasiões, o Coming Sun racional, literato, cristão, “transforma-se
em curandeiro”. Embora Coming Sun achasse “satisfação intelectual e emocional na
igreja do homem branco bem mais do que o freqüentador médio de igreja....” [ele
também] ficava de tanga e se cobria de tinta; era um pagão de coração. Como muitos
representantes de sua raça, Coming Sun não achava difícil ser um devoto sincero, como
um católico, um protestante e um pagão; tudo para ele eram meras manifestações da
mesma galáxia do superpoder humano”. Wissler via esse comportamento como uma
reversão ao caráter verdadeiro. Não dispondo de um aparato teórico que pudesse incluir
sincronismo cultural ou simultaneidade, Wissler entendia o comportamento de Coming
Sun como uma aproximação imperfeita e mal ajustada ao mundo do homem branco,
típica “de sua raça”. Vemos aqui uma visão essencialista da humanidade transparecendo
no que é nominalmente uma descrição de ajuste cultural aprendido. Na medida em que
Coming Sun não agia exatamente da forma que, Wissler acreditava, um homem branco
agiria em uma situação semelhante, seu comportamento alter traía sua “verdadeira forma
de ser” para a qual ele voltava nos momentos de tensão (WISSLER, 1938: 270-273)
A cultura na zona de contato era dividida em dois padrões, na visão de Wissler,
com tentativas de sincronizar or mesclar esses dois padrões, resultando em erros
divertidos e/ou esterilidade geral. Wissler encerrou seu livro com um discurso
apaixonado de um informante indígena nonagenário, “o último cavaleiro solitário,
demorando-se ao fim da cavalgada já terminada”, sobre presumíveis indígenas reais:
[O homem branco] tirou-nos o búfalo e matou nossos melhores guerreiros.
Tomaram nossas terras e nos confinaram com cercas. Os soldados acamparam, com seus
canhões, para nos aniquilar. Eliminaram os vestígios de nosso povo da face das pradarias.
Forçaram nossos filhos a renegarem os costumes de seus pais. Quando me viro para o
leste, não vejo o nascer do sol. Quando me viro para o oeste, a noite que se aproxima
esconde tudo. (WISSLER, 1938: 296-297)
Embora Wissler estivesse bem ciente de que o indígena americano iria
verdadeiramente sobreviver, essa citação final trai a crença básica de que o fim das
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
224
culturas de caça ao búfalo das pradarias necessariamente significava o fim da “cultura
indígena” em si mesma. Os indígenas sobreviveriam mas somente como substitutos mais
ou menos eficientes de uma cultura branca relativamente uniforme e homogênea que
nunca poderia verdadeiramente ser a sua. A informação do informante serviu tão-somente
como suporte para as próprias opiniões de Wissler, articuladas no “Prefácio” de Indian
Cavalcade:
Ninguém precisa ter estado em uma reserva por muito tempo, para ver que o
modo de viver dos indígenas estava acabando e que um outro tipo de vida chegava. Os
indígenas mais velhos sabiam que seu sol estava, mesmo naquela ocasião, abaixo do
horizonte e que o crepúsculo do esquecimento se aprofundava. Por outro lado, o homem
branco que estava por perto via no céu a luz de um nascer do sol glorioso… Portanto, se
as personalidades indígenas que você encontra [no livro] parecem contidas e
melancólicas, lembre-se que o crepúsculo as envolveu e não haveria um amanhecer.
Mas não pense que elas sofriam de complexo de inferioridade, pois aceitavam seu
destino com estoicismo... (WISSLER, 1938: XVIII-XIX)
Aqui, então, achamos uma reedição culturalista da “tese do indígena em
extinção”, que entende a eliminação de sociedades indígenas enquanto entidades sócio-
políticas e culturais distintas como um resultado inevitável do processo de contato. Mais
problemático, ao contrário das articulações anteriores de Morgan a respeito dessa teoria,
o culturalismo de Wissler proporcionava pouco espaço para uma escapatória individual
pela educação formal e pela civilização. Se era verdade que, de acordo com Wissler, “o
modo de viver indígena” estava caindo no esquecimento, também era igualmente verdade
que a cultura (como o sangue, na visão dos colegas contemporâneos racistas de Wissler)
iria “revelar-se”, eliminando todas as veleidades e hábitos aprendidos, para revelar,
subjacente, o indígena essencial, atavístico e sem futuro. O verniz de civilização de
Coming Sun era imperfeito e da espessura das roupas do homem branco que ele usava:
retornos aos comportamentos primitivos eram esperados e, quando ocorriam, o indígena
em questão nunca podia ser considerado como verdadeiramente ajustado às realidades
culturais que o cercavam.
A aluna de Wissler, Margaret Mead, demonstrou uma apreensão parecida sobre a
assimilação e a situação de contato, em seu livro The Changing Culture of an Indian
Tribe (A cultura mutante de uma tribo indígena), publicado em 1932, baseado em
pesquisa feita alguns anos antes. Neste livro, ela revisitou o mesmo grupo estudado e
analisado por Alice Fletcher meio século antes. A leitura de Mead da história dos Omaha
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
225
é bastante reveladora, por incluir muito poucas reflexões sobre as políticas do OIA, que
ajudaram a transformar o grupo em um povo empobrecido e desmoralizado no começo
do século XX. . Em verdade, os problemas dos Omaha foram descritos como derivando
da desorganização cultural inerente à própria situação de contato.
Segundo Mead, o contato com os brancos, no período que chegou ao final da
década de 80 do século XIX, tinha “apagado e atenuado” a cultura dos Omaha que, a
muito custo, alcançaram um “tênue equilíbrio” no final do século XIX, permitindo uma
sobrevivência precária dos indígenas como povo (MEAD, 1923: 30). Infelizmente, a
invasão subseqüente da reserva, durante o período que se seguiu ao mandato de Alice
Fletcher, como funcionária encarregada da distribuição de lotes, reduziu os Omaha “de
uma unidade autogovernante, politicamente autoconsciente... a um grupo misturado de
pessoas degradadas, que têm direitos hereditários a receber tratamento especial e não têm
nada a dar em troca”. (MEAD, 1923: 76) Assim, Mead situa a cultura como a causa do
caos sócio-político dos Omaha, não as políticas de terra do OIA e sua inabilidade em
reconhecer o autogoverno tribal. Além disso, essa “invasão” está identificada na
monografia de Mead como se fosse uma força inevitável da natureza, e não o resultado de
uma política consciente de loteamento planejada do OIA, que procurava pôr os Omaha
em contato tão próximo quanto possível com a “influência civilizadora” dos brancos.
Por todo o livro de Mead, os Omaha são descritos como não tendo se “ajustado”
à cultura dos brancos, enquanto que sua forma anterior de organização sócio-econômica é
entendida como tendo sido quase totalmente destruída – embora a autora não descreva,
com clareza, exatamente como ou por que essa situação se estabeleceu
8
. As opiniões de
8
Por exemplo, Mead lida com o loteamento e os 50 anos de administração de recursos tribais pelo BIA
OIA em 9 páginas, que começam com a premissa de que o loteamento tinha sido um processo de “dar terra
ao povo que nunca teve terra, que não tinha qualquer inciso do direito consuetudinário ou de uso para
regular seu uso” (MEAD, 1932: 51) . O registro histórico teria mostrado bem claramente que os próprios
Omaha solicitaram o título de propriedade da suas terras (que eles já tinham começado a cultivar e a
desenvolver) do Congresso dos Estados Unidos, como um meio de se protegerem de sua remoção para
Oklahoma. Como vimos no Capítulo 3, uma minoria significativa de Omaha tinha sido integrada na
estrutura econômica dos brancos já por algum tempo, em 1880, e um acordo tinha sido feito para lotear
terras para individuos Omaha já em 1854. Quaisquer que fossem os méritos do loteamento, o processo
finalmente empreendido por Alice Fletcher em 1883 não podia ser classificado como “dar terra ao povo
que nunca possuiu terra”, que não tinha nenhuma noção de a terra poderia ser valiosa. (MARK, 1988: 66-
89. See also GREENE, 1965: 8-45)Vale a pena também observar, nesse contexto, o comentário de Thomas
Tibbles, uma testemunha contemporânea da crise dos Omaha da oitava década do século XIX. De acordo
com Tibbles, logo depois do primeiro encontro de Fletcher com os Omaha, a conversa rapidamente
direcionou-se a títulos de terras: “Esses Omaha sabiam muito bem que somente esses títulos poderiam
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
226
Mead referentes à situação são mais claramente expostas no capítulo intitulado
“Maladjusment as an Index of Conflict” (“Má adaptação como índice de conflito”). Aqui,
o conflito de padrões antigos com novos valores é entendido como um efeito colateral da
má adaptação dos Omaha, que tentam se confrontar com novas situações, a partir de
formas culturais obsoletas. Mead descreve a cultura Omaha como uma casa que está
sendo demolida, afirmando que “o processo de desintegração cultural, no qual o
progresso inevitável da cultura mais complexa gradualmente desintegra a cultura nativa, é
tão sem sentido e tão aleatório quanto o desmoronamento de uma casa por uma máquina
de demolição. Não é possível, como o é em uma sociedade homogênea, estudar o
indivíduo em relação a um background social definido...”
Algumas dessas formas sociais desapareceram completamente, outras estão
mutiladas além do possível entendimento de suas formas anteriores, enquanto que ainda
outras estão distorcidas para usos novos e anômalos. Dentro desta estrutura social em
desintegração, o indivíduo desenvolve um caráter sem forma e descoordenado.
Nos centros de civilização moderna, é possível achar os que desenvolveram
padrões individuais de comportamento que os permite, de alguma forma, viver sem um
background de forma social coerente... Mas entre os desafortunados povos primitivos,
que somente uma ou duas gerações atrás possuíam um background primitivo coerente,
essa autoconsciência iluminadora não ocorre. O estudioso não acha nem a ordem formal
e as características típicas de sociedades homogêneas, nem a individualização
autoconsciente das comunidades cosmopolitas… É possível somente registrar o caráter
completamente fortuito do processo pelo qual a cultura primitiva desmorona e o membro
individual da sociedade primitiva acaba se debatendo inutilmente em uma confusão
heterogênea de instituições sem sentido, descoordenadas e se desintegrando. (p.222)
Mead constrói uma distinção qualitativa entre dois tipos de humanidade: as
primitivas e as cosmopolitas. O sincronismo cultural e os padrões individuais de
comportamento são entendidos como o campo privilegiado de domínio das elites brancas
urbanas e educadas. “Povos primitivos desafortunados”, que estão somente a poucos
passos de distância de seu presumido “background primitivo coerente”, acabam se
debatendo inutilmente por causa da mudança, que é sempre descrita em termos negativos
no trabalho de Mead: “mutilante”, “distorcido” e “anômalo”. Mead afirma que os Omaha
“que estão se debatendo inutilmente” não são suficientemente competentes para entender
e utilizar adequadamente o que sobrou de sua própria cultura. Ela também aponta, com
precisão, quem é competente para analisar e compreender a tal “confusão heterogênea”: o
salvá-los do extermínio.” (TIBBLES, 1905: 167) Vale lembrar que o relato de Tibbles sobre a luta pelas
terras dos Omaha na última parte do século XIX estava disponível como fonte de consulta para Mead.
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
227
antropólogo educado, cosmopolita e (presume-se) branco.Estamos aqui diante de um
entendimento essencialista de cultura, entendimento este que permite, além disso, uma
rearticulação de velhas e respeitáveis teorias. Uma vez mais, a cultura é descrita de
acordo com um padrão dicotômico, como velha e debilitada (indígena) ou moderna,
liberadora e envolvente (branco), sem nenhuma possibilidade de quaisquer outras opções.
Na página 206, por exemplo, Mead afirma que “o impacto da civilização dos
brancos sobre os [Omaha] foi tão prolongada, organizada de forma tão insatisfatória e
desorganizada, do ponto de vista das agências missionárias e da aculturação, que não
houve resposta consistente [Omaha] à influência branca.” Essa afirmação só faria sentido
se se pressupusesse a priori que as culturas deveriam fornecer uma resposta consistente a
certos estímulos externos. Além disso, ela situa o papel apropriado de influências
“aculturantes” (pressupondo que elas são organizadas de forma correta e consistente)
como causando uma absorção homogênea de um povo conquistado pela tendência
dominante da sociedade. Note-se que aculturação aqui (vários anos antes do famoso
memorandum de Redfield, Linton e Hersokvits sobre o assunto) é entendido como sendo
praticamente sinônimo de assimilação a padrões culturais brancos. Mead então prossegue
e lista o que ela considera como “contradições” criadas pela aculturação mal organizada
entre os Omaha:
Embora, em geral, a geração dos avós seja menos aculturada do que a dos pais, e
estes menos do que os adolescentes, isso é somente verdade em termos relativos. Há avós
que falam inglês bem melhor do que seus netos; há avós que estiveram em Washington
ou na Califórnia e há jovens que nunca saíram da reserva. Há avós que usaram vestidos
parisienses e há netas que nunca vestiram nada além do uniforme escolar pardo e o
tradicional conjunto de duas peças de chita,usado na reserva. Há homens de sessenta
anos com cabelo comprido que estiveram em Nova Iorque e rapazes de vinte que sabem
dirigir carros grandes, mas que não falam inglês. Há um avô cético e um filho que
demonstra intenso temor das antigas sociedades religiosas. Em cada família há um
diferente alinhamento de interesses e experiências, de forma que é impossível
generalizar, além do fato de que a estrutura familiar é de imensa importância porque
todos os outros tipos de estrutura formadora do caráter individual desapareceram, (206-
207)
Mead não descrevia simplesmente uma ampla gama de atitudes, treinamentos,
classes e disposições que poderiam ser encontradas na reserva dos Omaha no princípio
dos anos 30 do século XX: ela julgava essa heterogeneidade profundamente errada
quando encontrada em um ambiente rural, populado por pessoas que estavam,
supostamente, “somente a uma ou duas gerações de distância de um background
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
228
primitivo coerente”
9
. A má adaptação era entendida como sendo precisamente essa
heterogeneidade. A aculturação realizada adequadamente teria resultado em uma
população dividida em duas categorias: jovens Omaha, de cabelo curto, falantes de
inglês, motoristas, freqüentadores da igreja, céticos e trajando ternos e velhos Omaha, de
cabelos longos, falantes de Omaha, cavaleiros, vestindo chita, pagãos e supersticiosos.
Mead obviamente considerou a situação vigente anômala e altamente prejudicial à vida
em grupo dos Omaha, que não mais podia ser descrita como uma cultura coerente, uma
vez que essa vida em grupo não conseguia mais treinar o caráter adequadamente, .
Embora Mead tenha, em geral, se afastado das recomendações das políticas
referentes aos Omaha, é claro que achava que, se algum tipo de intervenção externa não
ocorresse, a cultura Omaha continuaria a se degenerar, criando outros indivíduos
delinqüentes e mal-adaptados. No final de sua monografia, a antropóloga aponta para o
que poderia ser uma “solução para a situação atual”: “a amalgamação gradual dos Omaha
com a população branca, tanto pela residência em moradias espalhadas geograficamente
quanto pela absorção em várias atividades industriais”. Em outras palavras, Mead
hipotizava a dispersão e a assimilação forçada dos Omaha como uma maneira possível de
acabar com o “problema” de sua “assimilação imperfeita”. Tal proposta está situada em
franca oposição à “vida na reserva, que promete produzir, a cada nova década, [pessoas]
com menos fibra moral, menos desejo de lutar e menos hábitos confiáveis.” (MEAD,
1923: 220) O mais interessante é que o trabalho de Mead atribui ao etnologista o papel
de desvendar a teia complexa das culturas primitivas falidas e más adaptações à
civilização moderna, que supostamente caracterizaram a vida em grupo dos Omaha: os
próprios indígenas eram considerados incapazes de perceber seu dilema correta ou
adequadamente. O culturalismo expresso por Mead em The Changing Culture of an
Indian Tribe (A cultura mutante de uma tribo indígena) imita, de muitas formas, noções
pré-sociais evolutivas do “selvagem em extinção”. Suas idéias sobre os Omaha como um
9
Vale a pena lembrar que os Omaha participaram, sem sucesso, de sua última caça ao búfalo em
1874 (TIBBLES, 1905: 239), cerca de 70 anos depois de terem sido contatados pelos Estados
Unidos e ao menos 170 anos após terem começado o contato e o comércio com os europeus e seus
descendentes nas Américas. (GREENE, 1969: 1). Se estabelecermos em 21 anos a duração de uma
geração, os Omaha estavam, pelo menos, 3 gerações distantes de qualquer coisa remotamente
parecida com um estilo de vida tradicional nativo e cerca de 12 gerações distantes de sua
incorporação inicial na economia global.
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
229
povo são, em verdade, menos otimistas e menos democráticas do que aquelas defendidas
pelos evolucionistas do final do século XIX, suplantados pela escola de Boas.
Está ausente da monografia de Mead uma análise de como as políticas da OIA,
antropologicamente orientadas, criaram os Omaha modernos. Por ironia, os Omaha mais
velhos, a quem Mead descreve como céticos falantes de inglês, conhecedores da cidade
de Nova Iorque e da textura da seda fina francesa eram, quase certamente, as crianças
que Fletcher havia recrutado para ir para o leste, para os internatos de Carlisle e Hampton
meio século antes, onde foram educados para se tornarem senhoras e cavalheiros
vitorianos. A falta de tipos semelhantes entre os contemporâneos Omaha de Mead tem
pouco a ver com a “desorganização cultural” dos Omaha: antes, foi o resultado da
política governamental que reduziu cada vez mais os gastos com a educação de jovens
indígenas em instituições de ponta na costa leste, optando por investir no treinamento de
artes manuais em internatos dentro das reservas ou regionais. (AHERN 1997; HOXIE,
1982; TRENNERT, 1983) A falta de fazendeiros bem sucedidos Omaha não se deveu à
falta de vontade de um povo primitivo em se engajar em atividades que fossem contra sua
natureza cultural, mas antes devido a uma série de determinações administrativas da OIA
que fez com que o leasing de terras para fazendeiros brancos fosse uma atividade
econômica mais racional do que cultivar a terra eles próprios (BOUGHTER, 1998: 7-8;
ver também CARLSON, 1981). Finalmente, a falta de uma estrutura sócio-política tribal
coesa não foi o resultado de a referida estrutura estar inevitavelmente minada por
“tentativas de aculturação mal organizadas e esporádicas”: foi o resultado final de uma
política de eliminação consciente das polities nativas pela destruição das estruturas
sociais nativas. Resumindo, a desorganização social dos Omaha não foi causada por
algum desajuste inevitável resultante de uma situação de contato: foi o resultado lógico
previsível da política antropologicamente instruída dos Assuntos Indígenas. A
“desorganização” testemunhada por Mead tinha sido predita, em verdade, por Powell
cerca de 40 anos antes; o único efeito não previsível da política mencionada foi que a
destruição das estruturas tribais dos Omaha não havia acarretado, automaticamente, sua
absorção final.
Enquanto fosse verdade que Mead não atribuiu o dilema dos Omaha à biologia, a
visão de cultura como um padrão hermético e holístico, impresso na primeira infância,
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
230
expressava um essencialismo que era funcionalmente indistinguível do racismo e que não
possuía, ao menos, o encanto salvador das pretensões democráticas do evolucionismo
social. Se o comportamento moral não era transmitido pelo sangue, era aparentemente
transmitido por técnicas de educação infantil. Uma vez gravado, no entanto, o
comportamento moral dificilmente podia ser modificado, exceto em casos excepcionais.
Embora indígenas, os Omaha eram culturalmente desajustados, porque as perspectivas de
vida aprendidas nos braços de seus ancestrais não eram relevantes para o mundo onde
estavam inseridos. Esse desajuste só podia ser efetivamente remediado pela aculturação,
que Mead entendeu como significando a eliminação eventual dos Omaha como um
grupo social e uma população distintos. A teorização da antropóloga sobre o ajuste
cultural toma o lugar da história como uma forma de entendimento do dilema Omaha e a
única solução fornecida para o problema da tribo é uma simples reelaboração da teoria
social evolutiva que ajudou a pôr a tribo na situação em que ela os encontrou.
Podemos achar um exemplo ainda mais relevante de entendimentos culturalistas
precoces da mudança cultural, preservação e aculturação na obra de outro aluno de
Wissler e Sapir, H. Scudder Mekeel, um antropólogo que foi destinado a exercer um
papel- chave no desenvolvimento da antropologia aplicada americana moderna.
No verão de 1930, Mekeel conduziu um trabalho de campo etnográfico sobre a
reserva Pine Ridge em South Dokota que, em última instância, resultou em sua tese de
doutorado na Universidade de Yale e no cargo de antropólogo chefe na Repartição de
Assuntos Indígenas. As anotações de campo de Mekeel demonstram uma preocupação
especial com o problema da aculturação entre os Lakota. Como observa Biolsi, a
aculturação somente foi problematizada como um assunto de investigação antropológica
no meio da terceira década do século XX, principalmente após “Memorandum for the
Study of Acculturation”, de Redfield, Linton e Herskovits, originalmente publicado no
American Anthropologist em 1936. O conceito de aculturação tinha existido
anteriormente, não obstante, como um tipo de sinônimo de assimilação: “a perda trágica
de integridade cultural pela tribos primitivas”, segundo Biolsi (1997: 142-144).
Enquanto se dirigia à reserva naquele verão longo e quente na época da
Depressão, Mekeel anotou seus pensamentos relacionados aos fenômenos que pretendia
investigar em Pine Ridge:
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
231
Pensando sobre o problema de aculturação, pensei que seria bom pôr as cartas na
mesa desde o princípio. Tenho uma teoria pré-concebida. Apesar disso, não creio que
deixarei que influencie os fatos, à medida que eles se apresentarem. Minha teoria atual é
que certos padrões culturais do homem branco foram impostos aos indígenas – a pressão
tendo a ver, de uma maneira geral, com fatores de natureza econômica. Mais tarde, o zelo
religioso adicionou seu quinhão – sendo ajudado pela impotência face à mudança,
acompanhada ) de depressão mental. Essa última também produziu muitos dos bêbados.
No entanto, ao adotar esses padrões, os estímulos sociais e incentivos que acompanham
esses padrões não foram adotados também. Sendo assim, como um resultado dessa
situação, temos nosso indígena inepto, preguiçoso, que não vale nada, que pode até saber
o modo do homem branco de fazer as coisas, sem o modo do homem branco de sentir as
coisas. A antiga cultura indígena tinha como base estimular os homens a alcançarem
certas realizações necessárias (em termos sociais e econômicos) – da mesma forma que a
nossa – mas a dificuldade é que as realizações em cada uma são radicalmente diferentes,
de forma que a transição de uma para outra demoliria toda a estrutura. Não serviria para
os novos usos… Novos padrões culturais [existem] sem qualquer cimento para uni-los
em um todo espiritual. Daí, a depressão mental, a saúde precária, a preguiça, os pequenos
crimes. Que outro resultado poderia advir? Conseqüentemente, as crianças, herdando
pelo contato com seus pais as mesmas atitudes emocionais, fazem o mesmo, mas não
inteiramente pela mesma razão. O pai sente, a criança sente, portanto o homem sente –
todos da mesma maneira. A solução: o cristianismo completa enquanto em emoção ou
algum tipo de cimento espiritual novo, a confusão de padrões culturais disjuntos
híbridos – e o cristianismo está sendo abandonado pelos brancos!
Mekeel denunciou o racismo em várias ocasiões durante sua vida. Mesmo assim,
as anotações de campo categorizam os indígenas em cristãos, pagãos e um meio-termo:
“As duas primeiras categorias são de pessoas boas – a terceira (sem dúvida, a maioria)
são todos vagabundos.” (BIOLSI, 1997: 134) Biolsi vê essa caracterização como
resultante de contradições inerentes ao aparato intelectual que Mekeel levou para o
campo:
Sua visão intelectual foi sistematicamente disciplinada pela antropologia e pela
atmosfera intelectual do período. A caracterização negativa de Meekel da maior parte do
povo Oglala não foi o pensamento particular e idiossincrático de um acadêmico que
mantinha, em outros aspectos, uma atitude humana, nem a impressão inocente de um
pesquisador noviço que afinal amadureceu, mas sim o efeito intelectual direto de sua
procura pelo primitivo ... um conceito originado na da dinâmica social e cultural das
sociedades dominados pelo Estado e pela modernidade... O primitivismo é, por definição,
diametricamente oposto à modernidade: em termos negativos, o primitivo pode
representar, para a modernidade as profundezas de onde progredimos e para as quais
estamos em perigo de regressar se não houver uma vigilância contínua, ou, em termos
positivos, o mundo perdido que encerra possibilidades humanas intocadas pela disciplina
opressiva da modernidade. (Ibid: 135-136)
Mekeel, como Mead, via a aculturação como um processo assimilativo que deu
errado. Não era problemático porque substituiu a cultura indígena pela do homem branco:
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
232
ao contrário, a aculturação criou problemas porque substituiu a cultura indígena pela
cultura do homem branco de uma forma incompleta – “sem sentido e aleatória”, para usar
as palavras de Mead –, gerando indígenas que entendiam “o modo de viver dos homens
brancos” mas que não conseguiam “senti-lo”. Além disso, as opiniões de Mekeel
identificam claramente os vetores para essa desorganização cultural: os pais indígenas.
Uma vez que uma cultura tenha sido desorganizada, sua autenticidade eliminada, a
desorganização é passada de pai para filho, como se fosse uma doença hereditária, e
somente a intervenção de fora é capaz de resolver esse dilema. Segundo Mekeel, uma
intervenção dessas tem de assimilar os indígenas completamente (“Cristianismo completo
em emoção”), ou fornecer um novo “cimento espiritual”, permitindo que o grupo se
reforme em uma massa cultural holística coesa.
Como afirma Bilosi a respeito das teorias de Mekeel, “O aparato cultural
relativista gerou um problema classificatório grave para Mekeel, no qual a maioria do
povo Oglala e a maior parte do que eles pensavam e faziam no mundo real da reserva não
podia parecer autenticamente indígena.” Dentro desse paradigma, ser puro-sangue
tornou-se uma indicação de “ser um verdadeiro indígena”. Seguindo Foucault, Biolsi
identifica as idéias de Mekeel sobre os informantes Lakota e os indígenas em geral como
uma formação discursiva, que produz as aparências e silêncios através dos quais ele
identificava a existência dos indígenas: “O conceito relativista de culturas, como todos
integrados, formados separadamente, tornou inevitável que (o que pareceu serem)
culturas ‘mistas’ e portadores de culturas mistas fossem inevitavelmente considerados
não-autênticos.” (Ibid, 136) Embora Mekeel obviamente tivesse grande empatia pessoal
com os Lakota que conheceu e tivesse repulsa pela opinião de certos residentes brancos
da reserva, que tachavam os indígenas de inferiores, seu discurso construiu os povos
Lakota e não Lakota dentro dos limites do aparato relativista cultural, de uma maneira
que era funcionalmente indistinguível de classificações baseadas em teorias racialistas de
sangue. Os índios puros [full-bloods] eram biológica e culturalmente congruentes,
identificados como “indígenas pagãos”, enquanto que “os de sangue misturado” eram,
em geral, “os half-breeds – vadios, criminosos e delinqüentes”, repetidamente descritos
como “ineptos” e “preguiçosos”. Além disso, embora a agência causadora dessa
“inaptidão” não fosse a biologia mas sim a cultura, as idéias de Mekeel da dita cultura –
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
233
seguindo o relativismo cultural essencialista que Benedict iria articular dois anos mais
tarde em “Configurations of Culture” (=”Configurações da cultura”) – identificavam- na
como algo imutavelmente inscrito na personalidade de um indivíduo pela socialização
precoce da família e dos pais: um entendimento quase-biológico de cultura, no qual
traços morais passaram de pai para filho com a mesma eficácia que traços físicos (Ibid,
1997: 136-148; BENEDICT, 1932).
H. Scudder Mekeel iria morrer de um ataque cardíaco repentino em 1946, no
exato momento em que estava começando a se tornar independente, como cientista e
acadêmico. Por essa razão, talvez, sua obra não tenha sido lembrada ou utilizada tanto
quanto a de Margaret Mead, Edward Sapir e Ruth Benedict. Como vimos acima, no
entanto, as idéias de Mekeel sobre a cultura e a aculturação eram absolutamente normais
para a antropologia cultural americana de seu tempo. Longe de ser um participante
periférico naquela antropologia, Mekeel foi treinado e socializado no campo pelos
mesmos cientistas boasianos que trabalharam com os mais famosos antropólogos de sua
geração e suas teorias refletiram as ideologias contemporâneas dominantes daquela
escola. Mas talvez a maior contribuição e a maior influência de Mekeel tenham advindo
de seu envolvimento com a nova disciplina de antropologia aplicada, através de seu
emprego no OIA. Enquanto que outros seguidores de Boas mais famosos geralmente se
esquivavam de empregos no governo durante os anos 30 e os anos 40 antes da guerra,
Mekeel optou por levar a antropologia para as estruturas que dirigiram as populações
indígenas dos Estados Unidos. Na época – e, com freqüência, em épocas posteriores –
esse trabalho não era considerado “verdadeira antropologia” e, por essa razão talvez,
Mekeel e a geração de antropólogos aplicados com quem trabalhou tenham sido
destituídos, da memória institucional da antropologia americana, da condição de
“teóricos importantes”. Argumentarei abaixo, no entanto, que a antropologia aplicada que
Mekeel ajudou a fundar não somente influenciou as teorias de aculturação que ganhavam
aceitação na época de sua morte
10
, mas também exerceu um papel decisivo na fundação
da antropologia desenvolvimentista no período do pós-guerra.
10
É significativo que a segunda formulação em caráter exploratório do Social Science Research Council
(=Conselho de Pesquisa em Ciências Sociais), publicado em 1953, por Barnet, Broom, Seigel, Vogt e
Watson, cite Mekeel – bem como Thompson, Stewart, Underhill e outros antropólogos OIA – como fonte
primária (BARNET et al., 1953).
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
234
O novo paradigma do culturalismo relativista pode ter derrubado de forma
decisiva o domínio do evolucionismo social no campo cada vez mais profissional da
antropologia americana durante o século XX. Quando se tratou de crenças com respeito
ao valor das vidas indígenas como foram vividas, no entanto, o culturalismo não
significou uma melhora em relação às ideologias expressas por Powell e Alice Fletcher,
por volta do final do século XIX. Em muitos aspectos, com respeito à crença em um
futuro indígena, a ideologia antropológica nascente era tão pessimista quanto a ideologia
do racialismo, que era, supunha-se,diametralmente oposta. .
Tanto o culturalismo quanto o racismo se colocaram em oposição ao
evolucionismo social, em sua crença que o homem estava dividido em duas unidades
essencialmente separadas, distintas e permanentes. E, enquanto os culturalistas
censuravam publicamente as crenças racistas de que as diferenças humanas eram eternas
e objetivas, o preconceito (/viés) holístico e funcionalista do começo do culturalismo (a
crença de que as culturas eram entidades sincrônicas feitas de hábitos, tradições, modos
de vida, tecnologias e crenças intimamente interligadas e interdependentes) levou a uma
objetificação das culturas como sendo praticamente imutáveis. Qualquer mudança, por
menor que fosse, ameaçaria a suposta integridade – e, assim, enfraqueceria – a cultura em
questão. Por causa disso, como reconhece Adam Kuper, com uma leve mudança de
ênfase, de contingência para inatismo, a cultura pode ser facilmente utilizada como um
eufemismo para raça (KUPER, 1999: 14).
Se compararmos as duas principais correntes do pensamento antropológico
americano nas primeiras três décadas do século XX – o culturalismo e o racialismo – às
idéias monogenistas e sócio-evolucionistas de Powell, Fletcher e os antropólogos
americanos do final do século XIX (e, em grau menor, às idéias sócio-evolucionistas
modificadas e racializadas de seus sucessores na OIA, podemos rapidamente ver algumas
diferenças-chave. Mais importante de tudo, destaca-se a tendência geral crescente da
disciplina de criar divisões essencialistas e aparentemente intransponíveis na
humanidade. .
O que estava ocorrendo nas primeiras décadas do século XX foi que a
antropologia americana estava mudando de noções cristãs da unidade humana como
monogenística, republicana e evangélica para uma crença na diversidade essencial
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
235
humana. O debate entre formalistas raciais e culturalistas desenvolveu-se em torno do
que, exatamente, foi a força motivadora por trás dessa diversidade. Enquanto os
formalistas raciais procuravam “explicar a presumida superioridade dos homens
civilizados de cor branca em relação aos selvagens de pele escura, classificando a ambos
em uma única escada evolutiva que tinha sua origem nos primatas” (STOCKING,
1976:3) os culturalistas seguidores de Boas, nas palavras de Kenan Malik, viraram essa
escada evolutiva de lado, entendendo a humanidade como estando horizontalmente
segmentada pela cultura, ao invés de verticalmente segmentada pela evolução (MALIK,
1997:156). No entanto, tanto os culturalistas como os racialistas acreditavam que
diferenças humanas essenciais levavam, inevitavelmente, a formas diferentes e inatas de
comportamento; em oposição à geração anterior de antropólogos americanos, que
supunham uma unidade e perfeição essenciais – embora definida etnocentricamente – da
experiência humana. O ponto em comum entre os racialistas e os culturalistas era a
crença de que o passado coletivo exercia um enorme peso sobre o presente do indivíduo
e somente um homem muito especial era, raras vezes, capaz de romper as amarras de sua
herança cultural
11
. Boasian notions of culture, while eschewing racialism, could be just
as deterministic and reductionist in their own right. As noções de cultura bosnianas,
apesar de fugir do racialismo, podiam ser igualmente deterministas e reducionistas em si
mesmas. Como Stocking observa, “A idéia de cultura, que outrora queria dizer tudo que
libertava os homens do peso cego da tradição, era agora identificada com esse mesmo
peso, e esse peso era visto como fundamental para a continuação da existência diária de
indivíduos em qualquer cultura e a qualquer nível de civilização.” (apud MALIK, 1997:
154, nota 12). Enquanto os evolucionistas sociais, como Powell e Fletcher, acreditavam
que, com a quantidade apropriada e o tipo adequado de educação, um indígena podia se
11
A herança cultural (/heritage) propriamente dita é um conceito bem americano que vale a pena explorar
antropologicamente no futuro. Dito de forma sucinta, pode ser visto como essencialmente um conjunto de
características e traços adquiridos por um indivíduo por uma conexão personalizada que o liga, por meio de
sua família, a um determinado passado coletivo. Nesse sentido, o termo herança cultural é relacionado ao
conjunto de conceitos que informam as noções modernas americanas de “identidade verdadeira”, que
Adam Kuper descreve como levando consigo uma carga moral, possivelmente com suas raízes no
protestantismo evangélico (KUPER, 199: 235) A herança cultural implica a posse, como de um
patrimônio, de certos conceitos, tradições e técnicas que somente pessoas de descendência adequada podem
manipular de forma autêntica. Em grande parte, adaptações populares das noções de cultura boasianas
podem ser encontradas na raiz das noções americanas de herança cultural. Esse ponto foi comentado tanto
por Malik quanto por Kuper. (MALIK, 1997; KUPER 1999)
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
236
tornar um cavalheiro tão refinado como um homem branco, tanto os culturalistas como os
racialistas acreditavam cada vez mais em tipos humanos essenciais que só podiam ser
modificados – se é que podiam ser modificados – através de um esforço extenso e
prolongado e somente em casos raros. Pode-se dizer, assim, que a antropologia
americana do começo do século XX foi testemunha da consolidação do essencialismo no
estudo da humanidade.
O culturalismo também não era necessariamente desprovido de uma certa
ordenação hierárquica dos povos, em um continuum definido pela intensificação de
civilização. Como ô próprio Boas disse: “há uma indubitável tendência no progresso da
civilização para suprimir elementos tradicionais e ganhar uma visão cada vez mais clara
sobre a base hipotética do raciocínio. Não é, portanto, surpreendente que, com o
progresso da civilização, o raciocínio torne-se cada vez mais lógico.” (BOAS, 1911: 206;
HOXIE, 1984: 116-145) A noção de progresso social hierárquico, em outras palavras,
não foi eliminada do arsenal intelectual dos culturalistas, embora tal noção tenha sido
descrita, com freqüência cada vez maior, em termos tecnológicos.
Finalmente, enquanto o relativismo possibilitava aos antropólogos olharem as
culturas nativas sob um enfoque positivo, as novas conceitualizações culturalistas da
cultura nativa (geralmente apresentada como um termo no singular) situavam isso no
passado. Os modos de vida dos grupos indígenas norte-americanos eram descritos como
mal ajustados, uma espécie de meio-termo cultural entre a cultura indígena primitiva do
passado e modernidade espúria sempre mutante, na qual os indígenas seriam, em última
análise, incluídos.
Essa, então, era a corrente dominante da antropologia à qual a Repartição de
Assuntos Indígenas recorreria no começo da década de 30 do século XX, para
reconfigurar a existência humana nas reservas indígenas nos Estados Unidos. Era um
campo cada vez mais profissional e institucionalizado nos museus e universidades – uma
disciplina de verdade, por assim dizer, no sentido Foucaltiano. Essa abordagem rejeitava
explicações biológicas para o comportamento humano e pregava o entendimento e a
aceitação dos modos nativos de ser. No entanto, parecia haver uma certa dificuldade em
perceber as culturas nativas de fato, se por cultura queremos dizer os hábitos, tradições e
tecnologias de um povo, socialmente inculcados, conforme expressos na vida diária. Essa
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
237
corrente da antropologia estava, também, cada vez mais comprometida com a noção de
diferenças duradouras, quase-essenciais e efetivamente insolúveis entre os diferentes
ramos da humanidade.
A inclusão étnica na revolução de Roosevelt
Para entender como a antropologia conseguiu resgatar um papel relevante aos
Assuntos Indígenas no começo do século XX, temos de voltar a uma análise do clima
político e cultural dos Estados Unidos durante os anos 20 e 30 do século XX. Mais
precisamente, temos de analisar como os líderes comprometidos com o pluralismo
conseguiram chegar ao poder no clima anglo-saxão, nativista da política americana do
pós-guerra.
Como observa M. Schlesing Jr., a filosofia dos anos 20 do século XX era “caráter,
trabalho e altos salários; o desejo de ganho particular dando lugar à idéia de função
social, com o lucro ainda entrando”. Infelizmente, “a nova fé não possuía convicção
total”.
Talvez fosse a distância entre o princípio e a ação: homens conversavam sobre
caráter em seus clubes, enquanto tramavam como fazer parte de listas de favoritos e ter
informações privilegiadas; ou falavam com eloqüência sobre trabalho no Rotary,
enquanto xingavam os fazendeiros, os trabalhadores, os estrangeiros e os intelectuais no
vestiário... Apesar das palavras nobres e da esperança altiva, para muitos a Nova Era
parecia, no fundo, uma disparada para ganhar dinheiro. (SCHLESINGER, 1957:74)
. No campo da política, o clima social em mudança dos Estados Unidos pôde ser
sentido pela ascensão ao poder de Franklin Delano Roosevelt e por um Partido
Democrático renovado, que começou a arregimentar a massa de seu apoio político dos
guetos industriais e étnicos do norte urbano – e não mais exclusivamente do sul de
supremacia branca, pós-guerra. Digby Baltzell vê a transição do Presidente Herbert
Hoover para FDR como uma revolução social cuja causa imediata pode ter sido a Grande
Depressão, mas cujas raízes foram as forças sociais que vinham se acumulando nos 30
anos anteriores. Entre essas forças, Batltzell salienta:
1) O urbanismo: entre 1910 e 1930, a maioria dos americanos passou a viver nas
cidades.
2) A heterogeneidade étnica dentro da cidade, particularmente em grandes áreas
industriais do norte, que agora eram o principal lugar de disputa da política americana. .
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
238
Isso foi o resultado de migração tanto externa quanto interna – europeus do leste, judeus e
italianos (e outros europeus brancos, que eram tradicionalmente “não aceitáveis” para a
elite anglo-saxã compondo a primeira corrente de migrantes e pretos e brancos pobres,
vindos do meio rural, integrando a segunda corrente. Depois da Primeira Guerra Mundial
e a promulgação de leis de cotas de imigração, essa migração interna aumentou, à medida
que a indústria americana enfrentava problemas com a falta de mão de obra.
3) A crescente mobilidade social dos filhos de imigrantes para a fronteira urbana,
que aos poucos melhoravam sua posição econômica, social e política. (BALTZELL, 229-
230)
Como Baltzell explica: “Entre as presidências de Abraham Lincoln e Herbert
Hoover, os republicanos permaneceram como o partido de maioria, em uma nação cujos
cidadãos ainda eram protestantes de origem predominantemente rural, com pensamento
provinciano e da “velha estirpe”, cujas aspirações se concentravam na procura individual
do sucesso nos negócios.”No entanto, entre a quebra das bolsas de 1929 e as eleições de
1936, os Democratas, sob Franklin D. Roosevelt, tornaram-se o partido majoritário, em
uma nação cada vez mais composta de um eleitorado urbano e etnicamente misto.
As reformas políticas instituídas pelo New Deal para tirar a nação como um todo
da Grande Depressão ... contaram com o forte apoio dos grupos de minoria racial e
étnica, cuja vasta maioria ainda se encontrava nos níveis inferiores da pirâmide
econômica. A luta econômica para acabar com a Depressão fundiu-se à luta das minorias
para acabar tanto com a herança da escravidão quanto com o status de cidadão de
segunda classe do americano “hifenado”. O ramo norte do Partido Democrático, que
havia permanecido ativo desde a Guerra Civil pelas máquinas políticas comandadas pelos
filhos de imigrantes irlandeses, tornou-se agora o partido de toda a mistura racial e
assimilação cultural, feita de poloneses, italianos, judeus e tchecottchecos, bem como a
crescente maré de caipiras negros e brancos, desenraizados e vindo do sul. Da mesma
forma que Andrew Jackson havia transformado os Democratas em maioria como o herói
dos imigrantes escoceses-irlandeses que se dirigiram para a fronteira do Meio-Oeste ...
Franklin Roosevelt tornou-se o herói, como observado por Samuel Lubell, da massa
heterogênea de recém-chegados à Fronteira Urbana. (BALTZELL, 227-230)
. As políticas de FDR eram uma espécie de reformismo conservador, seguidas
com o intuito de afastar o espectro de soluções mais radicais ou reacionárias. À época da
Grande Depressão, o mundo como um todo estava perdendo fé na democracia e os
Estados Unidos não eram exceção. Uma grande parte da elite anglo-saxã do país
admirava a disciplina de Hitler e sua forma de lidar com o comunismo. A velha estirpe –
ou ao menos parte dela – tinha caído em desespero, ante uma democracia sobre a qual
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
239
não detinham completo controle e que parecia pronta a representar uma ameaça radical
às raízes de sua prosperidade. Isso, por seu turno, produziu uma espécie de esquizofrenia
dentro da elite americana: “Aqueles que acreditavam no ideal aristocrático de assimilação
e serviço a todo o povo responderam à ameaça de revolução violenta, apoiando as
reformas do New Deal... Aqueles que se apegavam à idéia de proteção da casta e de
procura pelo sucesso individual tinham maior probabilidade de se tornarem parte de uma
oposição rica e ressentida.” No curso da campanha em 1936, FDR deixou bem claro onde
ele se colocava, publicamente repetindo a afirmação que algumas mudanças eram
necessárias para preservar os Estados Unidos como um todo: “O liberalismo torna-se a
proteção do conservador de visão ... ‘Reforme se você quiser preservar.” Eu sou esse tipo
de conservador, porque eu sou esse tipo de liberal.”(BALTZELL, 231-233)
Um compromisso com o assimilacionsimo estava por trás do componente étnico
dessa política, bem explicitado na afirmação de FDR que “se eu pudesse fazer qualquer
coisa que quisesse durante vinte e quatro horas, a coisa que mais gostaria de fazer seria
completar a mistura racial e assimilação cultural” (apud BALTZELL, 235) Esse
assimilacionismo, no entanto, foi efetivado por políticas direcionadas à inclusão étnica.
FDR fugiu da organização habitual do partido ao fazer uma transformação nos
Democratas, recrutando uma ampla coalizão de líderes até então independentes (e
perdendo vários velhos líderes conservadores, ao longo desse processo) para salvar a
nação do que ele denominava “uma mentalidade mercantilista estreita”. FDR apelou para
aqueles que se sentiam alienados pela elite, predominantemente de negócios, anglo-saxã:
fazendeiros, mulheres, negros, minorias, intelectuais, mulheres instruídas e moradores do
Sul. Seria errado identificar FDR e o Partido Democrata como paladinos do antiracismo,
especialmente levando-se em consideração o fato de que o partido ainda tinha uma
vertente tradicional e virulentamente segregacionista entre os “Dixiecrats” do Sul . No
entanto, é também inegável que os primeiros anos do New Deal testemunharam o
governo federal forçando a inclusão mais do que nunca, especialmente para os grupos
étnicos brancos de “segunda classe”, como os judeus e italianos. Em grande medida, os
democratas se tornaram um partido da minoria étnica batalhadora. Embora as tentativas
do Partido de incluir os americanos de origem africana nunca tenham alcançado o mesmo
grau de atividade que os esforços em favor das etnias brancas, essas tentativas foram
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
240
também significativas. Ao longo de seus anos no poder, FDR manteve um “gabinete
governamental negro” de líderes americanos de origem africana, que o aconselhavam a
respeito de políticas a favor de seus constituintes e ele, por seu turno, teve o apoio em
suas pretensões eleitorais no NAACP
12
, a primeira vez que aquela organização apoiou
um candidato presidencial desde 1912 (BALTZELL, 231-236; KREYDER, 2000: 51-52).
Assim, o partido de Roosevelt apoiava uma idéia de assimilação pela inclusão que
era bem semelhante, em suas crenças enraizadas, às idéias dos primeiros americanos, de
absorção dos outros raciais e étnicos. No centro desta estrutura de crença, estava a visão
de que qualquer pessoa podia se tornar americana e que todos os residentes dos Estados
Unidos deveriam. Tanto Digby Baltzell como Arthur Schlesinger situam as raízes dessa
crença no republicanismo progressista de uma geração anterior. Baltzell entende essa
crença como “a convicção universalista de que todos os homens deveriam ser julgados
pelos seus próprios méritos – e não pelos seus antecedentes, sua raça, ou sua religião” e
opõe isso à xenofobia anglo-saxã do republicanismo pós-1910, que era “devido a valores
de casta profundamente enraizados, bem como um medo irracional, se não horror, de
desigualdade social e racial”. Esses Republicanos odiavam FDR com paixão e o
ressentimento racista e de casta fica aparente em um trecho de versos malfeitos,
contemporâneos, anti-Roosevelt que demonstram como o poder “daquele homem” era
popularmente percebido como baseado em políticas de inclusão étnica:
Você beija os Pretos
E eu vou beijar os Judeus.
Nós ficaremos na Casa Branca
Tanto tempo quanto quisermos.
[You kiss the niggers
And I’ll kiss the Jews;
We’ll stay in power
As long as we choose.]
(BALTZELL, 244; SCHLESINGER, 498)
12
,Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor [National Association for the Advancement of
Colored People], a principal organização de direitos civis de políticos dos negros.
Cidadãos e Selvagens Capítulo IV
241
Nesse contexto político, os indígenas americanos tinham um papel especial entre
os grupos étnicos não saxões dos Estados Unidos. Em primeiro lugar, entre todos os
Outros racializados da nação, os indígenas americanos eram os mais simbolicamente
associados ao passado americano e às raízes ideologicamente constituídas do
nacionalismo americano. Em segundo lugar, no que concerne os grupos étnicos, os
indígenas americanos eram em número relativamente pequeno – menos do que meio
milhão, ao todo, em 1936. Em terceiro lugar, a grande maioria dos indígenas se
concentrava nos estados do oeste, que estavam sob o controle do Partido Republicano (e
não sob o controle dos Dixiecrats) . Finalmente, no início da segunda década do século
XX, o fracasso cada vez mais aparente da política de loteamento e o crescente fascínio
romântico pelos indígenas como remanescentes primitivos do passado da humanidade,
cujas lições culturais podiam servir como um antídoto aos males da modernidade, haviam
criado um novo movimento de reforma dos Assuntos Indígenas entre liberais brancos
amigos do indígena, muitos deles profundamente envolvidos na revolução de Roosevelt.
.Esse conjunto de fatores serviu para identificar os indígenas americanos como a grande
população de não brancos que podia se beneficiar com as políticas de New Deal sem
gerar sérias divisões internas dentro do Partido Democrata.
13
Uma história completa do nascente New Deal indígena está, é claro, além do
escopo desta tese. No entanto, a história de como o movimento de reforma dos Assuntos
Indígenas cresceu uma vez mais durante a segunda década do século XX e finalmente
tomou o poder dentro do OIA da administração Roosevelt, revertendo as políticas de
loteamento e assimilação forçada, bem como restaurando a soberania tribal pelo 1934
Indian Reform Act, pode ser geralmente contada pela história de um homem: John
Collier.
13
Esse, é claro, não era o caso dos americanos de origem africana, um grupo cuja maioria ainda vivia no
sul democrático e rural em 1936. Os direitos civis dos negros não eram uma questão perene no Partido
Democrático de Roosevelt, na medida em que cada acomodação às preocupações dos negros deixava
furiosos os Dixiecrats conservadores do sul. Para mais discussões relacionadas à política racial e aos
direitos civis durante a era Roosevelt, ver KRYDER: 2000 e MCWHORTER, 2001.
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
242
Capítulo 5
John Collier
The reformer is apt to be self-righteous, untidy in dress, truculent, humorless, with a single-track
mind and an almost ostentatious liking for the hair shirt of martyrdom: he makes virtue
repulsive…. The reformer, in other words, is a disturber of peace. He trespasses on forbidden
ground and commits assault and battery on human complacency.
Arthur M. Schleinger, “The American as Reformer”.
1
Four nearly two hundred years in Europe and in White America there has been going forward a
disintegration of institutions and of heritages. It has gone to the point where millions of men, even
majorities in whole nations, have become sundered from the traditions of religion, of liberty, of
chivalry, of justice, of neighborliness, and from ruling ideas which since ancient Greece and
ancient Israel have guided the best minds of the White race like stars over a desert. And yet
individual personality has not grown more; certainly it has grown less. Because heritage has been
neglected, assimilation has failed, and at present Europe, dominated across half its area by the
mob mind, and meshed and paralyzed through nearly all its nations by cynicism, is the dreadful
fruit of that twofold failure… The Indians, and those who work with them, can make a true
contribution to this world problem by choosing not assimilation and not heritage, but by ardently
and skillfully choosing both.
John Collier. "Editorial, Indians at Work", 2/1/1936. (p. 4-5)
John Collier é um indivíduo complexo e pouco examinado. Ele dominou o campo
político dos assuntos indígenas nos Estados Unidos por quase um quarto de século e
pode-se argumentar que se trata da figura individual mais importante neste campo. De
fato, seria difícil encontrar uma única pessoa na história dos assuntos indígenas
americanos — com a possível exceção do Senador Henry L. Dawes — que tenha
exercido uma influência tão pessoal sobre a administração indígena dos E.U.A. por um
período tão extenso. A tentação de comparar Collier com Cândido Rondon é, para um
autor brasileiro, praticamente irresistível. Como no caso de Rondon e do Serviço de
Proteção aos Índios (SPI), a relação de Collier com o Bureau of Indian Affairs durante o
período 1930-50 foi de tal modo personalizada e percebida como tão dominante que sua
vontade e aquela da agência indigenista dirigida por ele eram frequentemente descritas
como uma mesma coisa. O período foi, com efeito, rotulado por muitos estudiosos como
a Era Collier, uma personalização da política que, na historiografia dos assuntos
indígenas, repetiu-se apenas uma vez, com a Era Dawes.
1
Citado por Kelly, L. 1983: XXV. Kelly afirma que a descrição de Schlesinger do reformador americano é
“particularmente adequada para John Collier”.
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
243
Diferentemente de Rondon, todavia, Collier exerceu um grande poder de decisão
no campo político dos assuntos indígenas. Como assinalou Antônio Carlos de Souza
Lima (1985; 1995), o papel de Rondon no interior do aparato do SPI/CNPI era, muitas
vezes, largamente simbólico da "redenção positivista" dos índios. Ele poderia ser
brandido, quando necessário, para assegurar aos brasileiros e ao mundo de que o Brasil
levava a sério seu papel de "protetor dos povos indígenas". Apesar de ser formalmente o
diretor do SPI, o Marechal na realidade dirigiu a agência apenas por poucos anos e seu
trabalho como chefe do CNPI não foi muito ativo em termos da geração de políticas
efetivas (Freire, 1990). Em contraste, John Collier era um administrador ativo, um
organizador político talentoso e um burocrata astuto capaz de propor políticas, de fazer
com que passassem no Congresso e de implementá-las, com maior ou menor sucesso, no
interior da burocracia que ele supervisionava. Mais importante, John Collier contava com
o apoio de seus superiores no governo federal, incluindo o presidente Franklin Delano
Roosevelt. Em um grau muito maior que Rondon, pois, John Collier gerou com sucesso a
política dos assuntos indígenas em diversos níveis: das reservas indígenas aos salões do
Congresso.
Também de modo diferente de Rondon, Collier nunca foi glorificado por seu
trabalho. Sua derrocada no interior do governo federal foi rápida e quase total, e muitas
de suas políticas foram revogadas ainda durante sua vida. Ele tornou-se algo como uma
persona non-grata em Washington durante os anos da revanche conservadora após a
Segunda Guerra, e uma das ironias de sua vida é que as reformas que ele fez passar
viriam a ser veementemente criticadas por uma geração posterior de militantes indígenas
como uma forma revigorada de colonialismo (Churchill, 1993: 53-54; Burnette 1974:
115-116).
Mapeando a literatura sobre John Collier e o Indian New Deal
Escrever sobre John Collier é problemático. Para o historiador dos assuntos
indígenas, hiper-enfatizar seu papel nas transformações que ocorreram entre 1928 e 1945
é uma constante tentação. A história do movimento de reforma dos assuntos indígenas no
período do entre-guerras e de sua ascensão no interior da OIA é bastante complexa e
envolvem várias personagens. Entretanto — e sob o risco de atribuir a um único
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
244
indivíduo uma agência exagerada no processo de mudança social — é preciso admitir
que, por quase três décadas, o homem mais poderoso e mais influente no campo político
dos assuntos indígenas foi John Collier. Como chamou atenção Elmer Rusco (seguindo
Randolph C. Downes), Collier foi o principal responsável pelo consenso obtido entre os
amigos dos índios [friends of the Indians]
2
de que as Reformas Dawes do final do século
XIX tinham levado a uma política de assimilação forçada que não estava funcionando
(Rusco, 2000:62; Downes, 1945).
Collier foi o principal responsável pela construção, formatação e
acompanhamento da tramitação no Congresso do pacote legislativo conhecido como
Indian Reform Act (IRA) de 1934, que pôs um fim ao loteamento e à assimilação forçada.
Finalmente, enquanto Comissário para Assuntos Indígenas de Roosevelt, Collier foi a
pessoa chave na articulação do IRA com uma série de disposições administrativas no
interior da OIA que favoreciam a retenção de terras indígenas e o fortalecimento de
estruturas sócio-políticas nativas, utilizando cientistas sociais e antropólogos treinados
para alcançar esse objetivo. Tomadas como um todo, essas disposições, juntamente com
o IRA, são conhecidas como o Indian New Deal — e qualquer que tenha sido sua eficácia
em conferir aos índios dos EUA algum grau de autonomia cultural e política, mesmo os
seus mais ferozes críticos admitem que Collier canalizou recursos consideráveis para a
tentativa de resolver, não o problema do índio, mas os problemas dos índios.
Como nos lembra Rusco, o campo político dos Assuntos Indígenas, em princípios
do século XX, era extremamente restrito e marginalizado no quadro nacional.
For a long time at the national level [in Indian affairs]… particularly when the
most important general policy decisions were made, the relevant political actors were
very few, and almost no Native Americas can be included in this group. Both legislative
and major administrative policy at the national level were the domain of a quite small
group of people. Few senators and representatives knew much about Indian policy or
were interested in it, partly because Indian voters were of minor importance except in a
handful of states. Likewise, few administrators at top levels were well-informed on the
issues arising out of Indian policy and/or more than superficially interested in them.
2
Adotando o termo do século XIX usado por pessoas como Alice Fletcher para definir seu papel político,
Rusco situa os amigos dos índios como um pequeno grupo de indivíduos e organizações
predominantemente brancos que eram os principais atores no camo político dos assuntos indígenas na
passagem do século XIX para o XX. Falando deste grupo, Rusco diz que "comecei por chamá-los a elite da
política indigenista, mas acabei concluindo que faltava às pessoas que foram as mais importantes na
determinação da política indigenista nacional tanto a unanimidade consistente quanto (coletivamente) as
características estruturais implicadas pelo termo [‘elite’]” (Rusco, 2000: xiv).
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
245
Outside the government, the same general situation prevailed. Except for matters
narrowly affecting specific groups (when they could get congressional attention at all) the
number of individuals and groups informed and concerned about national Indian policy
can be described only as tiny. It has not been possible to learn all of the contacts with
congressional offices that had some direct impact on the passage of the IRA, but it is
clear that the key legislators dealt primarily with only a few individuals in the Bureau of
Indian Affairs and the Department of the Interior and a few groups outside the
government.” (RUSCO, 2000: XIII-XIV)
3
No interior desse campo político restrito, Collier inseriu-se, primeiro, como o
mais vocífero e ativo crítico da OIA, liderando a maior organização não-governamental
voltada para os assuntos indígenas do período. Por meio da notoriedade assim obtida,
ascendeu à liderança do próprio Bureau durante a administração de Franklin Delano
Roosevelt. Seu principal papel na luta pela reforma indígena dos anos 1920 e 1930 foi o
de sintetizar as muitas críticas dirigidas à política indigenista oficial. Ele reuniu essas
críticas em um amplo consenso entre os amigos do índio de que era preciso dar um fim à
política de assimilação forçada e de alienação territorial por meio do loteamento.
Enquanto Comissário, pois, ele tentou substituir essas políticas por iniciativas dirigidas
para a recriação de entidades sociopolíticas nativas auto-governadas e auto-suficientes
(Rusco, 2000: IX-XII, 67, 292-303). Mesmo os mais severos críticos de Collier admitem
que ele foi o homem mais diretamente responsável pelas mudanças na administração
indígena durante os anos 1930 que, para melhor ou pior, "prepararam o terreno para uma
expressão inteiramente nova da existência corporada e comunitária indígena" (Deloria e
Lytle, 1984: 264; ver também Churchill, 1997: 246-247). Essas mudanças foram imensas
e de longo alcance, mas poucos de seus frutos últimos podiam ser percebidos durante o
mandato de Collier como comissário — ou mesmo quando de sua morte em 1968.
Todavia, muito do que hoje é considerado apropriado com respeito à administração
indígena e às relações entre os governos estaduais e federal e as polities indígenas nos
Estados Unidos — e, com efeito, em todas as Américas — pode ser retraçado direta ou
indiretamente até John Collier e o Indian New Deal. Mais importante, no contexto desta
tese, John Collier empenhou-se pela incorporação de cientistas sociais na OIA e seu
3
Rusco também adverte que a vasta maioria das políticas, na forma que foram realmente, praticamente,
implementadas, foram implementadas não no nível nacional, mas naquele do local, das reservas, um nível
com o qual nem ele nem eu estamos no momento preocupados (Rusco, 2000: XIV).
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
246
próprio trabalho como cientista social iria influenciar o modo como a antropologia
olharia para os povos nativos e suas relações com os estados nacionais durante a segunda
metade do século XX.
Embora a importância de Collier como uma figura chave nos assuntos indígenas
seja indisputada, existe uma relativa carência de estudos concernetes a ele e ao
IRA/Indian New Deal, do qual foi o principal protagonista. Com algumas importantes
exceções, quase nada foi escrito sobre o próprio Collier. Kenneth Philp produziu uma
biografia excelente — ainda que necessariamente ampla — focalizada sobre seu mandato
como Comissário da OIA, bem como artigos sobre as conexões inter-americanas de
Collier e sobre o começo de seu ativismo pró-indígena (1972; 1973; 1977; 1979).
Lawrence C. Kelly escreveu o que pretendia ser o primeiro de dois volumes cobrindo a
vida de Collier em detalhe. O primeiro (Kelly, 1983) oferece uma excelente cobertura do
trabalho social de Collier na cidade de Nova Iorque e de sua ascensão à proeminência nos
assuntos indígenas, mas detém-se em sua nominação como Comissário de Assuntos
indígenas em 1933. Kelly insiste que o próximo livro da série será um dia publicado, mas
22 anos depois, nada mais veio à luz.
4
Laurence Hauptmann escreveu um pequeno artigo
sobre as conexões de Collier com os teóricos britânicos da administração indireta,
enquanto Bill Cooke o descreveu como um dos fundadores, juntamente com Kurt Lewin,
da action research (Hauptmann, 1982; Cooke, 2002). Wright escreveu sobre o papel de
Collier na extensão do IRA para os índios do Oklahoma, enquanto Helen Marie Bannan
produziu uma excelente tese de doutorado comparando a trajetória de Collier como
aquelas dos amigos do índio da época Dawes (1976). O próprio Collier escreveu uma
autobiografia (1963) e Stephen J. Kunitz, aparentemente com algum subsídio de Collier,
5
produziu um artigo de sobrevôo sobre sua filosofia social (1971). Finalmente, Elmer R.
Rusco publicou recentemente um livro que sintetiza muito do que já fora dito sobre
Collier, combinado a novas pesquisas de arquivo sobre seu papel no desenvolvimento do
consenso social e das políticas que eventualmente floresceriam no Indian New Deal.
Para além desses trabalhos, pode-se encontrar apenas referências ocasionais a
John Collier no trabalho e correspondência de alguns de seus amigos e contemporâneos,
4
Conversa minha com Kelly, 18 de novembro de 2004.
5
O artigo em questão está listado nos arquivos online de Ethnohistory no JStor como de co-autoria de
Kunitz e Collier, mas a página de título lista apenas Kunitz (Kunitz e Collier 1971).
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
247
como os de Mabel Dodge Luhan (1936) e de D.H. Lawrence (Trilling, 1958), ou em
histórias mais gerais das relações índios/brancos durante o período do entre-guerras. Para
um homem que deixou duas grandes coleções de documentos e que é universalmente
reconhecido como um reformador social importante e como a figura capital nos assuntos
indígenas norte-americanos do século XX, John Collier atraiu pouca atenção como objeto
de pesquisa. Para dar uma idéia de sua posição marginal nas correntes hegemonicas da
historiografia americana, a maioria dos tratados históricos gerais sobre o governo
Roosevelt ou das biografias de seus principais atores raramente menciona Collier ou o
Indian New Deal. Ironicamente, muitos dos seus principais interlocutores, pessoas que
desempenharam papéis muito mais marginais nas lutas políticas e culturais daqueles
tempos, são mais conhecidos que ele. Este é o caso, por exemplo, de Mabel Dodge
Luhan, uma amiga e aliada de Collier universalmente reconhecida como "amiga do
índio", que foi objeto de várias biografias, impressas e na internet, muitas das quais
sequer mencionam Collier.
Em termos da história das ciências sociais, a OIA de John Collier é apontado
como a pedra fundamental da antropologia aplicada norte-americana (Foster, 1969;
Macgregor e Kennard, 1963). O próprio Collier era um cientista social auto-didata que
terminou seus dias como antropólogo reconhecido. Enquanto dirigente da OIA, financiou
e apoiou muitas das que hoje são consideradas monografias clássicas sobre os povos
nativos do sudoeste americano. Foi o co-fundador e a principal força atrás do Instituto
Interamericano Indígena, uma organização criada para ser uma clearinghouse
[literalmente um "galpão de vendas"] de dados antropológicos sobre os índios das
Américas. Juntamente com Kurt Lewin, é reconhecido como um dos pais da action
research. E todavia, apesar de toda essa atividade no campo da antropologia, o silêncio
que o cerca no interior deste campo é quase ensurdecedor. Nenhum livro jamais foi
preparado sobre as atividades antropológicas de Collier. Nem mesmo George Stocking,
em suas excelentes histórias da antropologia norte-americana, tem algo de substância a
dizer sobre o homem, um fato ainda mais interessante quando nos damos conta de que ele
mapeia corretamente o nexo Nova Iorque/Taos de artistas, boêmios e antropólogos que
catapultaram Collier para o centro do cenário dos assuntos indígenas (Stocking, 1976;
1992).
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
248
A cobertura é um pouco melhor quando nos voltamos para o tema do Indian New
Deal/IRA. Mas, mesmo aqui, o arquivo analítico é relativamente raso, especialmente
quando comparado com os trabalhos volumosos dedicados a outras eras e tópicos do
campo dos assuntos indígenas. Os principais estudos publicados em livros incluem Biolsi
(1998), Boyce (1974), Rusco (2000), Deloria (2002), Deloria e Lytle (1984), Freeman
(1952), Hauptmann (1981), Kelly, W. (1954), Lafarge (1942), Parman (1976), Schrader
(1983) Taylor (1974, 1980). Artigos incluem Berkely (1976 a, b, c), Biolsi (1985),
Dobyns (1948, 1968), Downes (1945), Embree (1949), Haas (1954), Hauptmann (1982,
1983, 1984), Jensen (1983), Kelly, L. (1974, 1975, 1976), Mcnickle (1981), Mekeel
(1944), Parman (1971), Philp (1981, 1983, 1999), Steward (1969), Taylor (1974, 1975) e
Zimmerman (1957).
6
A maior parte de trabalhos gerais sobre relações índios/brancos
também menciona o Indian New Deal, bem como o fazem diversos trabalhos a respeito
de povos específicos ou políticas mais gerais.
Das datas de publicação acima, emerge um claro padrão. A discussão sobre
Collier e o IRA intensificou-se durante dois períodos principais: o início da época das
terminações (do fim dos anos 1940 em diante), quando muitas das políticas de Collier
estavam sendo anuladas por seus inimigos no Congresso, e o fim dos anos 1970/começo
dos 1980, depois do auge do movimento Red Power, quando — mais uma vez — as
políticas da OIA estavam sob ataque contínuo e pesado, dessa vez por militantes pan-
indigenistas e seus aliados. Da quantidade de autores acima relacionados, fica claro que
essas discussões ficaram, em grande medida, nas mãos de um pequeno grupo de
especialistas.
A questão chave em torno da qual giram muitos dos estudos existentes sobre o
período Collier refere-se ao grau em que as reformas do IRA representaram uma ruptura
com conceitos anteriores de administração indigena e, em particular, com a idéia de
assimilação. Uma preocupação subsidiária é o quanto essas reformas foram bem
sucedidas em atacar os problemas que os índios enfrentavam em 1933. Mesmo os mais
ácidos críticos de Collier (ver, por exemplo, Churchill, 1997 e Burnette, 1974) admitem,
a contragosto, que suas políticas, no mínimo, puseram fim à contínua erosão da base
6
Essa lista é exaustiva mas de modo algum completa. É preciso lembar que novos trabalhos estão sendo
produzidos o tempo todo, e que muitas teses e dissertações simplesmente não estão disponíveis para
consulta via internet ou empréstimo inter-bibliotecas.
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
249
territorial indígena. A queixa mais comum, todavia, especialmente entre autores
indígenas, é a de que, a despeito de suas vestes democráticas e de sua preocupação
professa em reforçar o poder tribal, o Indian New Deal consistia, na verdade, em um
aparato colonialista que, em grande medida, ignorava os anseios indígenas por soberania
e intensificava o controle da sociedade dominante sobre as terras tribais, por meio da
instituição da administração indireta exercida por governos tribais dominados pela OIA.
O estudioso e ativista nativo Ward Churchill analisa as mudanças trazidas pela
administração Collier exatamente dessa maneira:
By the late 1920s, two belated discoveries had been made. First, it was becoming
clear that the “useless” tracts of real estate left [as reservations] to Indians actually
contained vast quantities of coal, oil, natural gas, copper and other minerals… Second, as
the experience of the Oklahoma oil boom had amply demonstrated, placing these
resources in public domain was not the most efficient, or even profitable, manner in
which to exploit them. Only by continuing to hold reserved native lands in trust could the
federal government retain its prerogative to engage in centralized planning – which
resources would be “developed” at what pace, by whom, and at what royalty rates – with
respect to the minerals within them. It thus became necessary to preserve the reservations
and at least some of the peoples resident to them, albeit in a perpetually destitute and
subjugated condition (CHURCHILL, 1997: 246-247).
Do ponto de vista dessa análise mais militante, pois, o Indian Reform Act de
Collier não passava de uma conspiração colossal para o exercício de interesses que nada
tinham a ver com o bem-estar dos povos nativos dos Estados Unidos.
Em seu estudo da implementação do IRA na reserva de Pine Ridge, Biolsi oferece
uma variante menos radical da crítica de Churchill, formulando a hipótese de que
implantação das políticas do Indian New Deal naquela reserva seguiam principalmente os
objetivos econômicos e políticos da OIA e não aqueles do próprio povo Lakota.
Encontramos outras variações deste tema, que podemos rotular de a tese do "colonialismo
interno", em Taylor (1980) e Hauptmann (1981, 1983). Os estudiosos que sustentam essa
visão das reformas de Collier estipulam, basicamente, que essas eram necessárias para
manter o controle do governo sobre a base territorial indígena que estava sendo
rapidamente dissipada em mãos privadas, e/ou sobre os próprios índios, que — como a
maior parte dos povos colonizados naquele momento — desencantavam-se cada vez mais
com o administração colonial direta. Nessa visão das coisas, o que a administração
Collier mudou na vida indígena foi, como coloca Biolsi, "a representação do poder".
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
250
…the [post-Collier OIA] continued to dominate both individuals and tribes
through various technologies of power, but the discourse, the symbols, the models, the
performances, and the rituals of power were radically revised. [OIA] personnel were now
expected to ‘consult’ with Indian people, to ‘cooperate’ with Indian people, and to
respect and – when possible – preserve Indian culture….
This new representation of power remained after Collier left office, and the
postcolonial structure of Indian affairs is as important a legacy of the Indian New Deal as
is the IRA. Once the pluralist idea of Indian people having a right to self-determination
had become respectable in the political dialogue of Indian affairs in the United States,
there could be no going back to the old representation of power in which Indian people
were neither competent nor authorized to speak for themselves (BIOLSI, 1992: 185-186).
Outra crítica repetida e saliente feita a Collier é a de que ele deixou que suas
noções românticas de primitivismo e gemeinschaft o cegassem para as complexidades das
realidades indígenas. Isso, combinado com sua crença na engenharia social e uma
tendência para um estilo de governo de baixo para cima, autoritário, levou-o a criar uma
OIA mais apegado a seu controle sobre as vidas nativas do que nunca, mas que entretanto
não podia ainda englobar realisticamente os desejos e objetivos das pessoas que
administrava. Como coloca Philps:
The commissioner wanted to build a cooperative commonwealth through a
managerial reorganization of society. He believed that the Indians could assist other
Americans in bringing about the good society where personal relationships and ethical
values found in an earlier America merged with the benefits of an industrial state. Yet his
social engineering only centralized the machinery of control in the Indian Bureau and
often led to coercion rather than the promotion of social justice or spontaneous
community endeavors. The reconciliation of local democracy with the bureaucratic
expertise needed in Washington D.C., to run a complex colonial policy was a
fundamental challenge that Collier failed to meet. (PHILPS, 1981: 242)
Uma crítica final, relacionada a esta, era de que Collier era simplesmente um
indigenista romântico que pensava que as sociedades indígenas "primitivas" podiam ser
"protegidas do progresso" ou até mesmo que, em alguns casos, o "tempo podia voltar
para trás" e costumes tradicionais podiam ser revivificados por políticas solidárias da
OIA. A mais convincente enunciação dessa crítica vem da pena de Julian Steward, um
antropólogo que deteve um papel fundamental na tentativa de integrar a antropologia
aplicada á OIA. Steward acusa Collier de querer "voltar no tempo" e descreve o Indian
New Deal como "verdadeiramente um movimento messiânico ou revivalista, [com]
Collier [como] seu profeta” (Steward, 1969: 337 -339).
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
251
The new Indian policy was messianic, compassionate, intolerant, and unrealistic,
and it presented anthropologists with a dilemma. The pre-New Deal efforts at
assimilation had been disastrous, but the new goals were unobtainable for several
fundamental reasons. First, the egalitarian goal of the new policy could not be realized
within the context of a larger society based on competition and social stratification. This
policy presented a partial revolution – an attempt to revolutionize the Indian subcultures
without affecting the total national culture. Although many persons thought that a
national revolution might occur during the Great Depression, the Roosevelt measures
served to perpetuate the American system.
Second, the factors and processes of modernization continued to affect Indian
societies to the point that many lost had their identity and others were in various stages of
transformation. These changes entailed unavoidable and often traumatic conflict between
generations and factions, which at best could only be mitigated but not averted. All
Indians were undergoing fundamental readaptations from a variety of institutions based
on a subsistence economy to a dependency linkage with national institutions. Even if
anthropology had a body of theory about modernization, it would not have been
permitted to use it, for the utopian dream of preserving “Indianhood” was unassailable.
(STEWARD, 1969: 343-344)
Voltaremos a uma crítica mais detalhada dos pensamentos de Steward em
capítulo 7, abaixo. Cito dele extensivamente aqui, todavia, por que trata-se de um
exemplo excelente do tipo de crítica funcional e evolucionista que foi levantado contra o
Indian New Deal por muitos congressistas e funcionários federais. Basicamente, consiste
em uma reafirmação da tese do desaparecimento inevitável do índio, situando a
"indianidade" como sinônimo de vidas indígenas vividas de formas socioeconômica e
culturalmente indistinguíveis daquelas de seus ancestrais pré-contato. Em tal visão das
coisas, adaptação tecnológica ou mudança cultural inevitavelmente descaracteriza os
índios como tais. Em outras palavras, um índio que escolha dirigir uma caminhote ao
invés de montar um cavalo (esquecendo, como fez Steward, que muito da cultura
"tradicional" nativa, como o cavalo, era de fato uma adaptação a elementos não
autóctones) se torna o equivalente funcional de um homem branco.
No interior dessa visão da alteridade humana, a insistência de Collier de que os
índios permanecem índios não importa as tecnologias que usem ou as categorias culturais
que dominem parecia ser o máximo da loucura romântica. Obviamente, índios que usam
a mesma tecnologia, praticam a mesma religião e falam as mesmas línguas de seus
vizinhos brancos não eram mais culturalmente índios e reinvindicar que eles fossem era
expressar a crença em uma "indianidade" espiritual que não podia ser objetivamente
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
252
verificada. Tal afirmação poderia apenas "atrasar os índios" em sua evolução "natural"
em direção à condição de cidadãos americanos indistinguíveis dos demais.
Hoje, depois da reconsideração da identidade étnica de que foi pioneiro Max
Weber, e posta em evidência na antropologia por Frederick Barth (WEBER, 1972: 267-
277; BARTH, 1969), essas leituras funcional-evolucionistas da cultural caíram elas
próprias sob cerrada crítica. Como nota Barth, a mudança cultural dentro de uma dada
população não leva necessariamente a uma redefinição à dita identidade comunal do
grupo. Dado que a identidade é manifestamente um artefato político, não há conexão
necessária entre mudança tecnológica ou adaptação institucional e uma reformulação ou
dissolução da identidade coletiva de uma população. Essa visão da identidade — como
uma fronteira mantida sociopoliticamente para demarcar os limites do grupo, em lugar de
um conjunto de fenômenos ou aparatos culturais — tornou-se agora tão dominante na
antropologia e nas ciências sociais americanas que se pode dizê-la praticamente
hegemônica.
É à luz dessas noções correntes de etnicidade e identidade que se vê um nítido
contraste entre John Collier e seus contemporâneos antropológicos e políticos, pois,
quaisquer que fossem suas visões pessoais do valor comparativo das culturas nativas,
suas reformas colocaram nas mãos dos índios um conjunto de instrumentos jurídicos e
legais que não podem de modo algum ser rotulados "tradicionais", mas que — como
Biolsi e DeMallie apontaram no contexto dos Lakota de Pine Ridge (Biolsi, 1992;
Demallie, 1978) — foram instrumentais na formação e continuidade das identidades e
existência nativas na América do Norte.
Uma breve biografia de John Collier
Devemos nos voltar agora para uma discussão da vida de John Collier. Pode-se, é
claro, escrever sobre ele toda uma história social. Abstenho-me de fazê-lo aqui porque é
minha opinião que tal empresa reduziria o foco sobre nossa preocupação principal — a
relação entre a antropologia e a administração indígena nos Estados Unidos. Iria também
necessariamente enfatizar o papel de Collier como ator individual nas mudanças dos anos
1930 e 1940 em detrimento de um foco mais amplo no campo políticos dos Assuntos
Indígenas.
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
253
Se não é nosso objetivo aqui situar Collier como um reformador heróico cuja
compreensão individualizada e formação político-intelectual sui generis tornaram
possível o Indian New Deal, é preciso reconhecer que o papel que ele desempenhou nos
assuntos indígenas foi crucial e, em alguns casos, decisivo. Isso me coloca em um certo
dilema. Descrever a formação de Collier e sua entrada no campo dos assuntos indígenas
deixa-me vulnerável à acusação de hiper-enfatizar a biografia em detrimento de uma
descrição completa das forças políticas ou sociais. Por outro lado, passar superficialmente
sobre a vida de Collier (com talvez uma nota biográfica como alguns de meus leitores
iniciais sugeriram) parece-me depender demasiado de uma visão da história hiper-
compartimentalizada e determinista, onde as trajetórias de vida individuais são simples
expressões de termos sociológicos como classe, raça e cultura, que são deixados a
funcionar como se fossem "caixas-pretas", penduradas no ar sem nenhuma conexão
necessária com a vida e agência humana, tal como efetivamente vividas.
Como um compromisso — em lugar de tentar resolver a espinhosa questão de
onde termina a agência individual e assume a sociedade — decidi apresentar uma breve
história da vida de John Collier que enfatiza as tendências intelectuais mais amplas então
circulando nos Estados Unidos e no mundo, que discutimos no capítulo anterior, e que
seria particularmente aparentes entre os intelectuais urbanos liberais da costa leste que
criaram as bases do New Deal de Franklin Delano Roosevelt. O que tentarei mostrar
abaixo é como a trajetória de vida de John Collier e suas opiniões foram formadas por
essas tendências, mas também como suas escolhas de vida e projetos pessoais reforçaram
ou conferiram maior expressão pública a essas tendências e também as transformaram.
Como aponta Pierre Bourdieu, "a relação prática de um dado agente com o futuro,
que governa suas práticas no presente, é definida na relação entre, por um lado, seu
habitus com as estruturas temporais desse e suas disposições perante o futuro, constituído
no curso de uma relação particular com um universo particular de possibilidades, e, de
outro lado, um certo estado das chances objetivamente abertas a ele pelo mundo social"
(Bourdieu, 1980: 64). Nesse sentido, uma discussão da vida de Collier representa uma
oportunidade de demonstrar como certas de suas idéias e crenças, aparentemente bastante
radicais, eram de fato expressões de disposições inculcadas por uma formação
relativamente não-excepcional. Acima de tudo, Collier era o produto de seu tempo e, se
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
254
seu desempenho pessoal no interior das estruturas sociais e culturais que deram forma à
sua vida pública podem de fato ter sido sui generis, sua compreensão das estruturas e
ideologias que conformaram o leque de possibilidades de seu tempo era dificilmente
único. Em suma, o habitus de Collier e o universo de possibilidades oferecido pela crise
na identidade americana discutida no capítulo 4 abriram para ele os Assuntos indígenas
como um campo para a atividade política. As chances abertas na vida política americana
pela Depressão e o New Deal subsequente deram-lhe a oportunidade de dominar o campo
político dos Assuntos indígenas em um grau que não foram visto desde o fechamento dos
debates sobre o loteamento quase meio século antes.
Nesse sentido, podemos ver a trajetória de vida de John Collier como revelando
diversas províncias de significado e mecanismos de socialização que estavam em
evidência nos Estados Unidos e que formaram os códigos e discursos através dos quais a
vida moderna era vivida e os Outros primitivos eram pensados. A biografia de Collier nos
revela não tanto sua singularidade como ator e pensador, mas o grau em que seus projetos
e propostas para os índios dos Estados Unidos refletiam uma série de crenças
amplamente partilhadas — senão hegemônicas — nos EUA do início do século XX
(Velho, 1994: 28-30; Schutz, 1979: 249). Os leitores devem abordar o restante deste
capítulo desta perspectiva.
A vida de um menino no novo velho Sul
Antes de mais nada, é importante situar o jovem John Collier como uma criança
das classes superiores na sociedade anglo-saxã do Sul pós-guerra civil. A primeira página
da autobiografia de Collier estabelece esse ponto. John Collier nasceu em Atlanta,
Georgia, em 4 de maio de 1884, filho de Susie Rawlson Collier e Charles A. Collier. Ele
era o do meio entre sete filhos e recebeu o nome de seu avô paterno, que fora um dos
primeiros residentes da cidade. Pelo lado materno, descendia de um yankee de Vermont
que imigrara para a Georgia pouco depois da remoção dos índios Cherokee de sua
fronteira sudoeste em 1832. Esse homem, William A. Rawson, acabou possuindo mais de
uma centena de escravos antes da Guerra Civil. A mãe de John era uma southern belle
com educação universitária da classe de plantadores, que viajara pela Europa depois da
graduação. Seu pai era o filho de um jurista proeminente que servira o exército americano
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
255
na campanha contra os Cherokee. Charles Collier fora educado como advogado e
trabalhara como homem de negócios, vice-presidente ou presidente de diversas firmas
sediadas em Atlanta. Seu casamento em 1875 situara-os no interior de "uma 'família
extensa', de início próspera e sempre de status alto no novo-velho Sul" (Collier, 1963:
19).
7
Collier lembra o início de sua infância como idílica, "cheia de vida, de alegria". O
valor da educação e literatura era supremo em sua família. Ele leu Tolstoy ainda quando
pequeno, junto com sua mãe, que parece ter se esforçado muito para inculcar em seus
filhos o respeito pela educação formal e também pelo que hoje pode ser chamado
"inteligência emocional" — isto é, a crença de que as experiências emocionais subjetivas
são também uma parte importante de uma vida saudável.
Em sua biografia, John Collier retrata o pai de sua mãe como um paladino do
"novo Sul", um político progressista que procurava reconstruir aquela região como um
poder industrial moderno:
He passionately advocated the economic, social, cultural, and esthetic rebirth of
the South. He sought… to heal the wounds of the Civil War and the Reconstruction
Period, and above all, to rid the South of its hatreds, and to build in the South a sense of
community at home and in relation to the world (COLLIER, 1963: 23).
Os primeiros contatos de Collier com americanos não anglo-saxões, não-
protestantes, parece ter sido com duas figuras. Primeiro, havia "Tia Burke, uma austera
convertida à fé católica romana, que era a amiga mais próxima de minha mãe".
8
Embora
a família de Collier fosse metodista, as crianças frequentavam uma escola católica, e o
joven John chegou a se converter ao catolicismo por um curto período. Em segundo
lugar, havia Lucy, "nossa cozinheira, uma negra", que Collier, escrevendo em 1963, lista
reveladoramente como estando "entre nossas outras origens", mencionando que sua
família "se importava com o bem-star dos negros".
9
(Collier, 1963: 16-22).
7
The material in this section comes from 2 main sources: Lawrence Kelly’s 1983 biography of Collier’s
pre-BIA days and Collier’s 1963 autobiography. Where material is quoted directly, the appropriate notes
are listed in composite form at the end of the paragraph.
8
It should be remembered that Catholicism was far from accepted by the Anglo-Saxon elite throughout the
U.S. and particularly in the South at this time.
9
Lawrence Kelly says this about John Collier’s relationship with African Americans: “Like his father, John
Collier would always be sympathetic to the plight of the Negro, but his southern upbringing apparently
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
256
Podemos assim situar John Collier como um filho bastante típico de uma família
liberal anglo-saxã de classe alta, do tipo da que gerou Alice Fletcher na geração anterior.
Embora sulista, a família Collier exibia atitudes típicas do republicanismo reformista do
fim do século XIX, do qual falamos na Seção I acima. A família teve uma atitude
paternalista perante os subordinados negros que era típica de sua raça e classe nesse
período da história americana, mas não eram xenófobos. Os contatos da família com o
catolicismo também ajudaram a situá-los como relativamente liberais em um período em
que os sentimentos anti-católicos e anti-negros estavam crescendo em todo o país.
A partir dos nove anos de Collier, sua mãe passou a viver uma batalha contra o
vício do láudano, uma luta que ela perdeu em 1897 com sua morte de "prostração
nervosa" (Philps, 1981: 4-5; Kelly, L. 1983: 5-6). Charles Collier, enquanto isso, tornara-
se um vereador de Atlanta e um dos mais eminentes cidadãos da cidade, sendo afinal
eleito prefeito em 1897, o ano da morte de sua esposa. Em 1900, entretanto, Charles C.
Collier suicidou-se com um tiro. A perda de seus pais era lembrada por Collier em 1963
como tendo exercido um efeito decisivo sobre o curso de sua vida. Foi, em suas palavras,
"uma crise na qual a determinação de minha vida foi estabelecida — em uma rejeição que
foi também uma afirmação no coração de meu ser, na fonte imutável de minha vontade.
O lugar e momento dessa rejeição e afirmação não é apenas completamente lembrado
[…]"
The place was beside my mother’s and father’s tomb, and the time was the
beginning of October in 1900. The details of what had killed my mother… and had killed
my father… shall have no place in this writing…. My identification with my mother and
father was complete – deep as my brain and heart and soul. Where they had failed,
through long torture ending in hopeless death, it was not I who could want to succeed.
But the event within myself was not wholly negative, was not only the rejection
of all desire for worldly or hedonistic success – of all that from within their own souls
and from within social fate had been ultimately denied to each of these two. It was an
affirmation of my own life’s positive choice: to live in behalf of the world’s hope
(Collier, 1963: 25; Kelly, L. 1983: 10).
Em um esboço biográfico não datado, contido em seus papéis e aparentemente
anterior à confecção de sua autobiografia, Collier foi ainda mais explícito quanto ao que
never permitted him to view the Negro minority in the same way that he would view the immigrant masses
of the North or the American Indian” (KELLY, L. 1983: 10)
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
257
pensava ser o impacto da morte de seus pais, descrevendo a revelação que lhe chegara do
"estilhaçamento e esvanescimento de ambos os mundos [dos dois pais]: de que o sucesso
mundano não tem nenhuma relevância, eu o rejeitava e não queria ter nada a ver com
qualquer sucesso tal como lhes fora negado… Eu resistia ao ‘mundo’ e o rejeitava, mas
não o culpava. Escolhi o destino dos meus pais para meu próprio.
Em outras palavras, Collier estava convencido, em sua vida posterior, de que a
morte de seus pais o colocara em um caminho averso á busca da fama e fortuna no
interior da vida burguesa sulista, longe dos "valores puritanos, da moralidade pequeno
burguês e interioriana e da complacência de uma fria cultura dos negócios", e em direção
a uma vida de curiosidade intelectual e serviço público (Baltzell, 1964: 202-203). Além
disso, ele recordava esse sentimento não como de rejeição, mas como de abertura para
seu verdadeiro destino, em harmonia com a sabedoria revelada e a vontade do universo.
Collier parece pois ter tido uma dessas experiências revelatórias que Adam Kuper com
perspicácia situou na tradição protestante, de comunhão direta com a "voz quieta" de
Deus, que "fala dentro da pessoa, a voz da consciência, aquela que é preciso ouvir,
calando o mundo", e informa a pessoa de sua verdadeira natureza (KUPER, 1999: 235).
A experiência revelatória de Collier coincidiu com sua descoberta das sociedades
pobres das montanhas Apalaches meridionais, onde Collier passou a maior parte de seus
verões, caminhando sozinho em comunhão (em sua visão) com uma realidade espiritual
mais ampla. Todo um capítulo de sua autobiografia é dedicado a essas experiências.
Nessas caminhadas através do que era então uma região rural extremamente pobre,
isolada da maior parte da nação circundante, Collier sentia que entrava em contato com
uma "cultura folclórica, remontando a mil anos de Escócia, País de Gales, e Irlanda, e
vivendo ainda por um século em nossas Apalaches meridionais". Ele parece ter formado
profundas ressonâncias emocionais com sua visão de Deus, sua auto-identidade e com
essas "culturas folclóricas". Isso, aparentemente, tornou-se a fonte emocional de onde
brotaram suas futuras crenças relativas à preservação e renascimento cultural. Ele
descrevia os pobre montanheses brancos que encontrou como "homens vivendo uma vida
folclórica e nobre, interrelacionado com uma natureza que eles não tinham como salvar;
esse foi meu portão para nosso muito amplo mundo de desperdício da natureza
combinado com o desperdício das culturas humanas". Em sua autobiografia, Collier
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
258
articula uma compreensão anti-modernista bastante padrão de como o capitalismo urbano
industrial estava destruindo essas culturas e do que ele sentia que isso significava para a
humanidade em geral.
The man-nature relationship was being sundered by man. Man was sundering
himself from the life-web; he was wounding or killing the estranged life-web which is the
home of the Spirit of the Universe; man was foreswearing the source and goal of his own
being. And along with the rejected life-web, man’s own human grouphoods, a hundred
ages old, were being rejected and destroyed – his grouphoods embosomed within the life-
web which was being trampled down (COLLIER, 1963: 27, 31-32).
É importante reconhecer que isso foi escrito próximo ao fim da vida de Collier.
Não temos outra prova, além de sua própria palavra, de que era isso que sentia na
ocasião. Todavia, sua reconstrução dessa memória lembra os populares movimentos de
faça-você-mesmo, de retorno à natureza, pro-folklore que estavam se tornando populares
nos Estados Unidos naquele momento e que foram discutidos com tanta competência por
T.J. Jackson Lears (1981). É bastante provável, dada sua formação e o clima geral dos
tempos, que Collier tenha de fato ido buscar nos montanheses "folclóricos" e na "teia da
vida" do sertão subdesenvolvida um bálsamo para sua alma aflita. O que é interessante,
todavia, é que Collier também lembra que seu sentimento de unidade com a natureza era
acompanhado por um sentimento de reverência pelas populações supostamente milenares
que eram "interrelacionadas com a natureza". Esse entendimento veio provavelmente
como um resultado dos estudos universitários de Collier, que tiveram lugar durante as
três outras estações do ano quando John não estava perambulando pelas Apalaches.
Em 1902, John Collier matriculou-se como calouro na Columbia University na
cidade de Nova Iorque, financiado por uma pequena herança deixada por seus pais. Ele
seria residente da cidade por 16 anos (fora viagens) e sua educação seria de amplo
escopo. Todavia, embora tenha passeado por várias disciplinas, parece que nunca
conseguiu formar-se da de nenhum curso em particular. Com efeito, seria difícil imaginar
um programa de estudos mais eclético que aquele seguido pelo jovem Collier.
Originalmente matriculou-se com aluno de literatura e teatro, mas depois de um ano
trocou isso por biologia marinha. Essa mudança foi feita sob a insistência de Lucy
Crozier, uma mulher que trabalhava como tutora de jovens nova-iorquinos de classe alta
e que parece ter tomado Collier sob suas asas como um pupilo especial. Crozier
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
259
apresentou Collier ao estudo da filosofia e sociologia, interessando-o particularmente
pelas obras de Frederick Nietzsche e de Lester Ward, um dos paladinos das Novas
Ciências Sociais. Ambos provocaram um impacto profundo sobre o jovem John Collier.
Como sublinha Lawrence Kelly, esses autores "tinham duas coisas em comum: uma
ênfase sobre a habilidade do homem em crescer, exercer sua vontade e dar forma a seu
futuro; e uma convicção de que a emoção e a intuição eram mais importantes que o
intelecto na obtenção dos objetivos a serem buscados" (KELLY, 1983: 12).
Crozier conduziu Collier para os estudos biológicos de modo que ele pudesse
aprender a metodologia científica. Em 1904, todavia, ela convencera Collier de que ele
precisava deixar a biologia para trás e entrar no campo dos "empreendimentos públicos".
Por quase um ano, ele trabalhou em um plano para reassentar imigrantes estrangeiros
desempregados de Nova Iorque para as áreas montanhosas empobrecidas do Alabama, da
Georgia e das Carolinas, em uma tentativa de revitalizar a região por meio da
"fertilização cruzada de biológia e de cultura para modificar o caráter do velho-novo
Sul". Quando o plano falhou, Collier recuou-se para a reclusão, mais uma vez, nas
montanhas Apalaches, emergindo em novembro de 1905 para assumir um emprego como
repórter para o jornal Macon Telegraph. Em junho de 1906, demitiu-se desse emprego e
deixou os EUA para ir estudar psicologia patológica em Paris por um ano e meio. Nessa
viagem, conheceu Lucy Woods e apaixonou-se, casando-se com ela (Collier, 1963: 37-
48; Kelly, L. 1983: 11-17).
Durante seus estudos no College de France, Collier entrou em contato com outra
tendência socio-política que muito influenciaria sua vida: o socialismo utópico. Sob a
tutela de James Ford, um professor de ética social que conhecera enquanto viajava a pé
pela Irlanda, Collier foi apresentado ao sindicalismo e ao movimento cooperativo. Ele
também travou conhecimento com o Renascimento Irlandês, o movimento que buscava
fazer renascer uma nação irlandesa política e culturalmente soberana depois de séculos de
ocupação britânica.
"Nesses primeiros movimentos [sindicais e cooperativos]", recorda-se Collier em
1963, "encontrei compartilhamento e esforços de puro altruísmo, esforços em favor
daqueles esmagados pela sociedade industrial. Li os livros de William Morris e Robert
Owen, Sidney e Beatrice Webb, dos utópicos europeus, e absorvi outra vez o espírito de
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
260
Schelley e Byron e do primeiro Wordsworth" (Collier, 1963: 64). É bastante interessante
notar, entretanto, que o socialismo de Collier parece ter sido mais inspirado por uma
rejeição romântica da sociedade capitalista industrial moderna do que pela promessa de
um novo e bravo mundo technocrático. Em termos de sua visão da utopia, ele tinha seus
olhos voltados para o que presumia ser um passado comunal e não para a promessa de um
futuro socialista industrial e mecanizado. Nessa visão das coisas, a sociedade capitalista e
industrial da Europa ocidental e da América do Norte era uma degeneração de tudo o que
era belo e verdadeiro na experiência humana. Enquanto os contemporâneos marxistas de
Collier viam o capitalismo industrial como um estágio necessário do desenvolvimento
humano rumo a uma Era de Ouro futura, Collier — como é comum entre os românticos
— via-o como uma queda de uma Era de Outro passada de comunalismo aldeão e tribal.
Esse socialismo utópico combinou-se com suas leituras de Tolstoy e Nietzsche para
inverter a escala evolucionária do marxismo: na visão de Collier, o homem degenerara de
seu passado heróico, e esse declínio o transformara em um ser mais restrito, estreito, do
que a natureza ou Deus teriam planejado. Collier sentia que um dos grandes problemas
do socialismo europeu era sua falha em captar essa natureza limitada do homem sob o
capitalismo.
[T]he vision of even these movements was walled within the concept that
enclosed all nineteenth-century philosophy — the concept of the economic, the selfish,
the isolated center of man’s motivation. Liberals, socialists, cooperative commonwealth
proponents, all believed in the same nature of man as did those who opposed their
doctrines of human sameness, and all believed that the narrow segment of man they saw,
or thought they saw — nineteenth-century, western man — was universal man.
How out of ages far gone in pre-history, out of formation of the central nervous
system long before the last ice age, man is something decisively other than the isolated,
economic man, was barely, if at all, suspected by thinkers then… (Collier, 1963: 64).
Esse foi, pois, a culminação da educação do jovem John Collier. Ele, como
muitos outros rebeldes de classe média de sua geração — e mais ainda da geração
seguinte, a "Geração Perdida" pós-Primeira Guerra —, tinha sido criado no colo do
conforto e respeitabilidade burguesa anglo-saxão, mas fora levado a rejeitar o sistema
social que tornara esse conforto possível. No caso de Collier, a rejeição parece ter se
enraizado em um profundo sentimento de traição, um sentimento de que a sociedade que
o alimentara também o privara de sua mãe e de seu pai. Essa rejeição o levou a duas
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
261
atividades paralelas: um intenso engajamento com a natureza e com o que ele entendia
como "povos naturais", e um igualmente intenso — embora acidentado — programa de
engajamento de estudo das ciências humanas, em uma tentativa de apreender os meios
pelos quais a sociedade podia ser melhorada. Sua estadia na Europa e seus contatos com
o socialismo utópico e com o Renascimento Irlandês parecem ter criado uma síntese
dessas duas tendências, e quando ele retornou para os EUA em 1907, John Collier parece
ter se dedicado à idéia de usar formas pré-capitalistas e rurais de cultura para combater a
anomia da vida urbana moderna. A seguinte passagem de sua autobiografia retrata essa
nova síntese em termos poéticos:
At this time I was still deeply involved intellectually and poetically with the
writings of [Irish romanticist and nationalist] Fiona Macleod, A.E. William Butler Yeats,
and Sir Horace Plunkett. Thus, one day, there came upon me the need to go alone, to
experience in solitude the northern land and Achill Island. I walked on through a long
twilight and late into the night, along the cliffsides which plunged more than 1500 feet
into the Atlantic, whose roar boomed up to me, and as I walked along, one after another
of the ancient watchtowers were encountered, towers more than 1000 years old. These
watchtowers had been beacon towers and also signal lights, communicating one to
another through open fire atop each tower. This way were the long gone folk warned of
the coming of the Vikings. In all that night I must have walked twenty miles or more, yet
I met no human being, nor any sign of human existence since the times, a thousand years
ago, when those towers flamed in the nights. As I walked, in the dark, the moving poems
and prose of the Sagas of the Vikings also were in my mind. Alone, I was absorbing a
world of old times, the world told of in the great writings of the Icelanders and the Celts...
Thereafter, together, Lucy and I saw the Hill of Howth which was the
playground of Dublin, and it was a beautiful green hill, used by thousands of the Irish
people, and always kept spotless, with every bit of vegetation carefully spared.
Soon we sailed from Glasgow and arrived at Boston, where we encountered a
grizzly contrast to the Hill of Howth. The urbanized Irish of Boston wrestled and
galloped and trampled over the landscape. All vegetation was crushed and garbage was
heaped here, there and everywhere. I had known urban American life in earlier years, and
had known and loved the immigrant multitudes in New York. But here, at Boston, I
encountered the deculturizing work of the suddenly over-grown, unplanned, and inhuman
urban America (COLLIER, 1963: 65).
A passagem acima é interessante por várias razões. Ela revela a noção de Collier
da vida social humana como algo antitético à vida urbana. A cultura existia entre os
irlandeses da Hill of Howth em Dublin; não entre os irlandeses de Boston, que foram
despojados de sua cultura pela América urbana e desumana. Em segundo lugar, a
ausência da cultura foi evidenciada primariamente por perturbações ao senso de decoro
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
262
pequeno-burguês: irlandeses desaculturados jogavam lixo por todo lado. Eles corriam
desordenadamente e brigavam. Eles destruiam o ambiente natural. Irlandeses culturados
mantinham seus espaços verdes impecáveis, preservando cuidadosamente a vegetação
nativa. A cultura criava um jardim; a falta de cultura, um depósito de lixo. Finalmente, a
cultura estava conectada à antiguidade e a um senso de enraizamento. Os irlandeses de
Dublin tinham suas torres de vigia de mil anos para lembrá-los quem ream, mas o que
sabiam os irlandeses de Boston de seu passado?
Este último ponto é mais importante do que pode parecer à primeira vista. É
preciso lembrar que, na seção acima citada, a reconstrução de Collier desse passado era
essencialmente uma empresa solitária, guiada pelos escritos de um punhado de autores,
alguns dos quais, como Yeats, estavam ativamente engajados na construção de mitos
utilizáveis sobre os quais um futuro nacionalismo irlandês podia ser fundado. Na
caminhada pré-matinal que Collier lembrava com tanta clareza, ele estava livre para
associar os restos arquitetônicos de uma outra era com o nacionalsimo literário e projetos
românticos de Yeats e McLeod. Não tinha necessidade de um residente local para
explicar-lhe a terra, já que carregava o significado a atribuir a ela em sua cabeça, provido
pelos autores do Renascimento Irlandês. Nesse sentido, então, Collier tomou os "grandes
textos dos islandeses e dos celtas", escritos mais de mil anos antes, como guia para a
realidade irlandesa contemporânea. Isso não era tanto um embebimento da história
irlandesa quanto uma compactação e mitologização dela: os mil anos entre a construção
das torres e a aurora da Revolução Irlandesa passaram voando para Collier. A história
desdobrou para colocar os dois pontos em contato. Para construir a cultura irlandesa,
pois, que tanto deliciou seu espírito e seus olhos na Hill of Howth, Collier precisava
esquecer tanto um milênio da história da ilha quanto o modo como a maioria dos
irlandeses contemporâneos contruíam suas vidas. O passado romântico dos heróis celtas
era muito mais importante para Collier do que as atividades reais e contemporâneas do
Exército Republicano Irlandês e do líder guerrilheiro Michael Collins.
O entendimento de Collier da cultura pode ter sido pessoal, mas — como vimos
no capítulo 4 acima — certamente não era particular. Em suas reações aos irlandeses de
Boston, ele repetia, de uma maneira mais poética, a visão de Margaret Mead da
desorganização cultural e a compreensão de Edward Sapir das culturas genuínas vs. As
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
263
espúrias. Todas as três visões evidenciavam uma certa rejeição da modernidade e
situavam a verdadeira cultura — compreendida como harmônica e holística — no
passado.
Se Collier sentia que a experiência urbana americana levava à destruição da
cultura, todavia, sua infância e sua educação em Columbia também o levaram a acreditar
que a engenharia social podia oferecer uma solução ao problema da desorganização
cultural. Kenneth Philp oferece uma interessante análise do início da formação intelectual
e política de Collier, qualificando-o como um "darwinista reformista e um sociólogo
auto-didata que argumentava que o homem precisa modelar o futuro da sociedade por
meio da inovação deliberada e da criatividade individual".
According to Collier, whose arguments sound similar to those found in
Kropotkin’s Mutual Aid, there were four epochs in history… The dilemma of modern
man in the fourth epoch…, the industrial age, especially concerned Collier. He worried
about the impact of industrialization and urbanization on the quality of human life,
believing that organic society with its sense of community was being replaced by one in
which the individual found himself isolated. Collier felt that the supremacy of machine
over man led only to the uprooting of populations, the disintegration of neighborhoods,
and the starvation of the soul. He knew that only through social planning could man
regain a social consciousness and control over his future (PHILP, 1977: 10).
Nos anos que se seguiram a sua viagem à Europa, Collier veio a envolver-se cada
vez mais no trabalho social e na política de vanguarda em Nova Iorque. Com sua noiva,
fixou residência em um dos cortiços-modelo da cidade no distrito boênio de Greenwich
Village e sustentava-se como escritor freelance até que conseguiu empregar-se na
educação comunitária (Kelly, L. 1983: 17). Dos anos de 1907 e 1920, passados
principalmente em NYC, Collier diria que eles "foram controlados por uma firme crença
minha: a crença de que o que posso chamar de o ethos e genius ocidental eram a
esperança do mundo; de que eles também podiam tornar-se a condenação do mundo; e de
que minha tarefa incansável seria fazer alguma diferença nesse ethos e genius ocidental"
(Collier, 1963: 68).
O campo ao qual Collier iria se dedicar na década seguinte era o da aculturação de
imigrantes estrangeiros no ambiente urbano de Nova Iorque. Em 1907, foi contratado
pelo People's Institute, uma organização criada por Charles Sprague-Smith em 1897. Essa
organização fora fundada devido à confluência de duas forças diferentes:
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
264
One was the necessity to find an acceptable outlet for the mounting restlessness
in [New York’s] immigrant and working-class districts, a restlessness that had become
particularly noticeable since the severe depression which began in 1893. The second was
the need of the Cooper Institute, founded in 1859 by the manufacturer and philanthropist,
Peter Cooper, to fulfill the terms of its charter which provided that “courses of instruction
on social and political science should have preference over all other subjects of
expenditure”. The physical proximity of the Cooper Institute to the city’s Lower East
Side, where the poorest and most radical of the city’s inhabitants lived, suggested to
Sprague-Smith that both problems could be solved by a common program, a series of
nightly lectures and forums that would “bring together the world of culture and labor to
cope with the problems of social unrest and assist in the peaceful, democratic evolution
of our society”
10
(KELLY, L. 1983: 23-24).
Collier foi empregado pelo Instituto como um "trabalhador cívico" [civic worker]
(mais tarde, "secretário cívico") em fevereiro de 1908. Um de seus primeiros trabalhos
envolvia uma investigação das casas de cinema da cidade. Collier descobrira que alguns
dos filmes exibidos eram, de seu ponto de vista, inadequados para todas as audiências.
Outra questão com a qual Collier envolveu-se durante esse período foi o que uma geração
depois iria chamar de delinquência juvenil. Juntamente com Edward J. Barrows e Fred
M. Stein, instigou um estudo da "vida infantil" no bairro de Hell's Kitchen em Manhattan
que resultou em um livro. Um incidente relatado por Collier durante esse estudo ilustra
mais uma vez sua crença de que a cultura estava morrendo na vida urbana, sendo
substituída, neste caso, pela criminalidade juvenil:
A Sicilian family, the Pareses, operated a marionette theater. The marionettes
were of life-size, and were made to move and perform by the boys of the Parese family,
while Signor Parese recited sonorously the dialogue of the Moors and their Christian
enemies. This marionette show’s story was hundreds of years old, in Sicily, as was the
marionette form of theatrical entertainment.... Alas, the movies enticed away nearly all of
the audiences of the marionette shows, which thus fades away – as did the Chinese
Theater – and the charming Parese sons found their outlet in street gangs; the police
descended on a gang battle, and among the boys taken to jail were the Parese sons
(COLLIER, 1963: 80).
Aqui, mais uma vez, temos a cultura, supostamente milenar, em oposição à não-
cultura, na forma das atividades diárias da vida de gueto na Nova Iorque contemporânea
e dos filmes que destruíram o teatro de marionetes dos Parese. E, outra vez, nessa citação
vemos a noção tyloriana, ou social-evolucionista, de cultura — a cultura como o mais
10
Jacob Riis. “The People’s Institute of New York.” Century Magazine, April 1910, pp.850-863 and New
York Times, 22
nd
April, 1906. Apud KELLY, L. 1983: 387.
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
265
alto desenvolvimento do conhecimento humano em um campo dado — virada de ponta
cabeça. Na visão de Collier, a verdadeira cultura era precisamente aquilo que estava
ameaçado pelo desenvolvimento do conhecimento humano no campo da tecnologia do
entretenimento. Os filmes levaram à destruição do show de marionetes que, por sua vez,
levou à prisão dos irmãos Parese e, no final, ao retorno da família, "derrotada por Nova
Iorque", à Sicília.
Figura 5.1: John Collier em 1910: “…um sulino loiro e pequeno, intenso, preocupado, e sempre
desarrumado. Pelo fato que ele, aparentemente, não podia amar seu próprio povo, e sendo ele
cheio do entusiasmo de um reformador para a humanidade, ele se virou para outras raças e
trabalhou em favor deles” (Mabel Dodge). Photo from the John Collier Papers, Yale University
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
266
A resposta de Collier a esta situação foi persuadir o governo de Nova Iorque, por
meio do People's Institute, a abrir escolas públicas à noite e nos fins de semana como
centros comunitários e sociais. Collier parece ter pensado que a criação desses "espaços
vitais" criariam oportunidades para a formação de laços comunitários e a eliminação da
anomia urbana. Como parte desse esforço, Collier tentou mobilizar o que hoje seria
chamado de sentimento étnico, organizado um Festival das Nações na Escola Pública 63,
o centro comunitário emblema de sua organização.
Figura 4.2: Crianças imigrantes participam do Festival das nações organizada por John Collier em
1914. (IN: PHILP, 1977: 17)
Contra a maquinaria do economicismo, Collier postulava a preservação e
exaltação da vida coletiva de imigrantes em Nova Iorque, afirmando que isso iria
"produzir no homem médio uma visão mais candente e positiva da vida coletiva" e
preservar a "herança de beleza, lealdade e civilização" humanas. Collier acreditava que a
renovação étnica poderia prover uma maneira para o homem urbano organizar uma
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
267
cidade que fosse mais que uma conglomeração de fábricas, terminais e casas de
comércio". O Festival apresentou, no final, grupos de italianos, judeus, irlandes, boêmios,
russos e poloneses que, em 6 de junho de 1914, desfilaram, em trajes típicos, pelo lado
leste de Manhattan, acompanhados por bandas e dançarinos (Philp, 1977: 22).
Collier, a Nova Ciência Social e o Movimento Settlement House
Stephen J. Kunitz, analisando “The Social Philosophy of John Collier” (1971)
nota que as visões de vida coletiva e comunitária de Collier enraizavam-se em
concepções sociológicas do fim do século XIX e início do XX que, se anti-racistas, eram
essencialmente conservadores. Segundo Kunitz, "muitos pensadores responderam à
Revolução Francesa, à crescente industrialização, e à urbanização, de uma maneira
essencialmente conservadora".
Whereas the liberal economists celebrated the free individual, the conservatives
celebrated the idea of communities in which everyone knew his position and understood
his reciprocal obligations to everyone else. It is no accident that the nineteenth century
saw a flowering of medieval scholarship in which the idea of a great chain of being was
most clearly manifested. Democracy, as Tocqueville and many others pointed out, had
shattered the links of this chain. The result was mass society where men were alone,
alienated and anomic, and where an increasingly powerful central government was more
and more able to penetrate and dominate the lives of the citizenry (KUNITZ and
COLLIER, 1971: 214).
Em seus apelos à "grande cadeia do ser" ameaçada pelo crescimento da vida
industrial e urbana, Collier situava-se claramente no interior desta tradição. Kunitz
localiza Collier de maneira ainda mais precisa, todavia, situando-o no interior da nascente
Nova Ciência Social, descrevendo essa filosofia como construída em grande medida por
"americanos nativos de pequenas cidades — muitas vezes, filhos de pastores ou treinados
eles mesmos para o ministério [Collier era o neto de um pastor]". Esses pensadores não
viam a imigração estrangeira e o crescimento das favelas urbanas como ameaças
inevitáveis ao modo de vida americano. Em lugar disso, assim como o fizeram os social-
evolucionistas morganianos que os antecederam, viam a assimilação de Outros não-
civilizados como uma chance para provar o valor essencial do Destino Manifesto
americano. A inclusão das massas de imigrantes camponeses empobrecidos judeus,
irlandeses, italianos, poloneses e húngaros no sistema americano, sua assimilação e
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
268
absorção no corpo da nação era, para essa ala das ciências sociais americanas,
absolutamente necessária à saúde na nação.
Como mencionamos no capítulo 4 acima, a Nova Ciência Social era,
predominantemente, uma reação ao determinismo biológico e à popularidade do
darwinismo social de Herbert Spencer na elite anglo-saxã americana. Segundo os novos
cientistas sociais, a pobreza, crime e caos dos guetos étnicos urbanos dos Estados Unidos
não eram causados por qualquer disposição inerente de seus residentes, mas pela
dissolução dos constrangimentos e controles sociais que existiam em suas comunidades
camponesas de origem. No lugar dessas restrições, nova instituições desenvolveram-se
que socializaram os filhos dos imigrantes nos guetos em uma vida de crime. Talvez o
mais célebre e bem desenvolvido exemplo desse tipo de pensamento possa ser encontrado
em The Polish Peasant, de Thomas e Zanwecki, um estudo amplamente visto como o
trabalho fundador da sociologia urbana da Escola de Chicago. Entretanto, essas
preocupações eram generalizadas nas ciências sociais americanas de então, como mostra
o trabalho de Boas com imigrantes (THOMAS et al, 1995; Chi school; STOCKING,
1982: Chap. 8; KUNITZ and COLLIER, 1971: 214).
Pode-se facilmente ligar as concepções de cultura de Collier àquelas de Edward
Sapir e Margaret Mead, que discutimos no capítulo 4 acima, e é tentador vê-las como
tendo sido estabelecidas bem antes que os antropólogos começassem a escrever. Todavia,
é preciso lembrar que quase nenhum dos trabalhos do começo da carreira de Collier
sobreviveu e que nosso principal guia para aquele período foi o que ele mesmo produziu
sobre isso depois. Sabemos que Collier interessava-se muito pelos escritos posteriores de
Sapir e Mead e é impossível dizer o quanto suas memórias do período pré-Primeira
Guerra não são, de fato, reconstruções do que ele veio mais tarde a acreditar.
Mas, em uma certa medida, essa questão é irrelevante. O que os devaneios de
Collier sobre este período indicam, quanto tomados em conjunto com as idéias de Sapir
sobre a cultura genuína e espúria, e com a crítica de Mead da desorganização cultural, é
o quão comuns e disseminadas era a visão da cultura como uma artefato pré-moderno na
época da Primeira Guerra. Existe, todavia, uma clara diferença entre as primeiras
concepções de cultura de Collier e aquela de seus contemporâneos boasianos dos anos
1920 que precisamos abordar antes de prosseguir.
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
269
Collier parece ter vindo a apreciar as culturas dos Outros não anglo-saxões não
pela via do relativismo etnológico (isto é, a crença de que todas as culturas consistem
fundamentalmente em respostas a condições de vida específicas e não podem, portanto,
ser avaliadas como melhores ou piores umas que as outras), mas por meio de sua
insatisfação com o capitalismo urbano industrial moderno. Ele postulava "uma nobre
folklife [uma vida social calcada por cima de valores populares e presumívelmente
milenares]" como o remédio para um economicismo que ameaçava transformar "a
humanidade em algo pálido" (Collier, 1917: 43-45). Collier acreditava que o que eram
consideradas culturas primitivas podiam ensinar ao homem moderno coisas necessárias à
continuidade da existência da raça humana. Isso é praticamente o oposto das visões
expressas pelos antropólogos culturalistas da época que, apesar de todo seu compromisso
com o relativismo, continuavam a ver o sentido geral da história humana em termos
evolutivos, com as culturas chamdas primitivas destinadas a desaparecem, pressionadas
pela vida moderna. Collier acreditava que não essas culturas primitivas não apenas
podiam ser preservadas, pelo menos em parte, como também precisavam adaptar-se à
vida urbana moderna para que a humanidade pudesse sobreviver à idade moderna.
Despidos de sua cultura, camponeses sicilianos seriam sempre "derrotados por Nova
Iorque". Com sua cultura reforçada, todavia, poderiam talhar para si um nicho viável na
metrópole e, assim fazendo, torná-la um ambiente melhor e mais vibrante para todos os
seus habitantes.
Collier veio mais tarde a questionar a viabilidade desse projeto. Em sua
autobiografia de 1963, analisou o trabalho que fez na Nova Iorque do pré-Guerra nos
seguintes termos:
Our western way of life (sociologically, it may be called the gesellschaft mode of
life – life lived solitarily by individuals who are divorced from communion with one
another towards ends greater than any of them, as individuals), has us in its grip. It
conquered the programs and purposes of the People’s Institute, which was formed
expressly to counteract this isolating of the self within the crowd. The People’s Institute
was seeking to bring to the common folks of New York, as we now in retrospect realize,
what is known as the gemeinschaft mode of life (the sufficing brotherhood, within
innumerable local communities which are moved by shared purpose), but that effort and,
for the “modern western world,” that mode of life, faded before the scorching onset of the
gesellschaft mode of life – before the staggering, aggressive drive toward competitive
utility (COLLIER, 1963: 93).
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
270
Embora Collier tenha vindo a reconhecer mais tarde que seus objetivos em Nova
Iorque não eram realistas, ele nunca questionou o que via como o papel essencial da
gemeinschaft na existência continuada da humanidade. A recriação de "mecanismos e
organizações sociais para uma sustentada grandeza partilhada e pública que pudesse unir
os homens, grandes e humildes, em propósitos e empreendimentos comuns", que ele
presumia essencial para o modo de vida da gemeinschaft, era "nossa tarefa no mundo. De
fato, é crítica para nossa sobrevivência, se quisermos viver além da guerra fria e,
espreitando ainda mais sinistro, do holocausto nuclear final" (Collier, 1963: 94).
Um corolário chave da visão da nova ciência social de que o crime, a pobreza e a
dissolução podiam ter suas origens retraçadas à desorganização social era, é claro, o de
que tal desorganização podia ser remediada por uma intervenção proativa. Como assinala
Kunitz, o foco de estudo — e assim qualquer intervenção — tornou-se o que veio a ser
rotulado "a unidade social primária", particularmente a família e grupos de brincadeiras
infantis: "Era no interior do grupo que o comportamente era apreendido, fosse social ou
anti-social, e era portanto a organização e composição dos grupos que precisava ser
mudada para que o comportamento individual fosse modificado (Kunitz e Collier, 1971:
216). Isso, é claro, era outra diferença chave entre o perfil de Collier e aquele da maior
parte dos antropólogos de seu tempo. Como nos esforçamos para mostrar acima, a
aplicação de dados antropológicos sempre fora uma parte do projeto antropológico nos
Estados Unidos. Nas primeiras décadas do século XX, todavia, a antropologia
hegemônica tinha passado por uma espécie de recuo em relação às posições ativistas que
marcaram seus primeiros anos. Em seu lugar, as novas ciências sociais, mais organizadas
em torno da florescente nova disciplina da sociologia, tomara a frente da antropologia
com respeito à questões aplicadas. Quando Margaret Mead usou a linguagem da
"desorganização social" para descrever os Omaha e sugeriu sua assimilação forçada final
como uma solução possível para os problemas que a continuidade da existência daquele
povo colocava, ela obvaimente considerava tais aplicações práticas da antropologia uma
parte menor de seu trabalho. Collier, por outro lado, combinava os descobrimentos das
novas ciências sociais com a perspectiva do reformador prático e do engenheiro social, o
que hoje seria chamado um assistente social urbano. Ele via aplicações práticas da
sociologia e antropologia como elements essenciais do planejamento comunitário que
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
271
construiria uma utopia. Nessa visão, ele era apoiado por muitos de seus colegas,
particularmente aqueles engajados no movimento de reforma urbana.
É importante dar-se conta de que, na virada do século XIX para o XX, os pobres
urbanos tinham começado a substituir os índios na posição de os principais outros
selvagens enfrentados pelas sociedades ocidentais. Com respeito a esta mudança, o
urbanista Mike Davis observa que os pobres e muitas vezes imigrantes ou ex-camponeses
das favelas urbanas eram reimaginados como contrapartes das incomensuravelmente
selvagens culturas das florestas e desertos. Citando Les Mysteries de Paris de Eugene
Sue, por exemplo, Davis mostra como essa obra e outras como ela constituíam nada mais
"nada menos que uma urbanização de The Last of the Mohicans". Como assinala Sue:
Everyone has read those admirable pages in which James Fennimore Cooper…
traces the ferocious customs of savages, their picturesque, poetic language, the thousand
ruses be means of which they flee or pursue their enemies… The [urban] barbarians of
whom we speak are in our midst; we can rub elbows with them by venturing into their
lairs where they congregate to plot murder or theft, and to divvy up the spoils. These men
have mores all their own, Women different from others, a language incomprehensible to
use, a mysterious language thick with baneful images, with metaphors dripping blood
(Sue, apud Davis, 2002: 128).
Assim como os antropólogos e amigos do índio tinham formado uma aliança
pragmática para reformar os selvagens nativos nos anos 1880, então, os sociólogos
juntaram-se com reformadores urganos para civilizar os bárbaros urbanos da nova
métropole americana. Ironicamente, Collier seria o principal agente por meio do qual esse
impulso de engenharia social viria a ser re-exportado de volta para os Assuntos
Indígenas.
Uma variante moderna do trabalho civilizatório urbano nos Estados Unidos
começou com a fundação do movimento Settlement House em 1886. Settlement houses
eram edifícios, geralmente situados no coração de guetos de imigrantes empobrecidos e
estrangeiros, e tomados por assistentes sociais e reformadores com o propósito expresso
de assimilar novos imigrantes e amenizar o choque cultural da vida na cidade. Segundo
as descreve Lawrence Kelly, settlement houses "buscavam prover ajuda prática e
instrução conforme […] recém-chegados [à América] adaptavam-se a uma sociedade
industrializada e urbana às vezes assustadora, sempre desnorteante, e elas procuravam
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
272
criar um senso de comunidade entre os frequentemente disparatados segmentos da
vizinhança".
They taught young mothers the proper methods of childcare; they dispensed
advice on sanitation, nutrition, homemaking, and personal hygiene; they provided
midwives, nurses and medical care. They conducted classes in sewing, cooking, civics,
English, and they prepared adults for their naturalization examinations. They attempted to
provide recreational outlets for children and juveniles, and they formed social and
cultural clubs for the adults. They were, as Eric Goldman has noted, the leaders in “the
first systematic ‘Americanization work’”, and as he has also observed, “the
Americanization that they advocated was no one-way street”
11
. Recognizing that the
acceptance of new ideas and customs from abroad would enrich American culture by
increasing its diversity, the settlement workers invariably encouraged the immigrants to
preserve those parts of their heritage that did not conflict with their adjustment to
American life (Kelly, 1983:20).
Mas settlement houses tinham também um outro lado: eram instituições criadas
para a civilização, domesticação e eventual controle de massas de imigrantes estrangeiros
que enchiam as cidades da costa leste americana durante o princípio do século XX. A
civilização das settlement houses seguiam o padrão mais celebremente descrito por
Norbert Elias em The Civilizatory Process, como o ensino e disciplinamento de hábitos
projetados para controlar o corpo e limitar a expressão emocional. Enquanto algumas
settlement houses realmente valorizavam as culturas do imigrantes, elas o faziam de
maneira fragmentada, tentando preservar, como assinala Kelly, apenas aquelas partes que
não entravam em conflito com o que os reformadores das settlement houses entendiam
ser a "vida americana". Como mostra o trabalho de William Foote-Whyte em uma
settlement house de Boston durante os anos 1930, as idéias dos assistentes sociais das
settlement houses estavam longe de apolíticas. Em seu Street Corner Society, Foote-
Whyte forneceu uma descrição clássica do papel da settlement house como um agente de
dominação e controle no interior do bairro de imigrantes italiano "Commerville" na
"Eastern City".
The social workers whose actions defined the role of the settlement were middle-
class people of non-Italian (largely Yankee [i.e. northeastern Anglo-Saxon]) stock. The
boards of directors… were composed of upper-middle-class and upper-class people of
Yankee racial background. [They] represented the socially elite of Eastern City…
11
Eric Goldman. Rendevous With Destiny. NYC: Vintage Books, 1956. P.60.
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
273
The social worker’s conception of his functions was quite evident. He thought in
terms of a one-way adaptation. Although, in relation to the background of the
community, the settlement was an alien institution, nevertheless the community was
expected to adapt itself to the standards of the settlement house…
The primary function of the settlement house is to stimulate social mobility, to
hold out middle-class standards and middle-class rewards to lower-class people.
(FOOTE-WHYTE, 1943: 98-104)
12
Nas settlement houses — e também em associações como o People's Institute,
onde Collier trabalhava — modelos de conflito de classe e étnicos eram rejeitados em
favor de um "ideal de comunidade no qual homens de todos os níveis estavam ligados
uns aos outros por seu senso de comunidade e obrigações compartilhadas". Como Kunitz
observa, é claro, um tal entendimento da sociedade urbana e de seus descontentes, se
tinha muito em comum com críticas radicais, é profundamente conservador. Vê o conflito
como uma coisa essencialmente negativa, o resultado da "desorganização social", e evita
uma análise histórica da mudança em favor de uma compreensão mitopoética do passado
em que uma harmonia recíproca era supostamente mantida entre todos os membros da
sociedade. A despeito de todos os seus flertes com o socialismo, então — e
diferentemente de muitos de seus contemporâneos — Collier estava muito firmemente
situado bem fora do campo marxista. A idéia da luta de classes não tinha apelo para ele.
Antes, ele parecia concordar com Charles Sprague Smith, o fundador do People's
Institute, de que "termos como 'massas' e 'classes' parecem ao assistente social totalmente
enganadores, implicando e divisões entre os homens que são mais aparentes que reais"
(Smith, apud Kunitz e Collier, 1971: 213).
O fim do experimento de Nova Iorque
Collier, todavia, tinha grandes divergências com certos líderes dos movimentos
das settlement houses e dos centros comunitários, e esses seriam postos sob nítido foco
conforme os Estados Unidos movia-se em direção à guerra com a Alemanha e o
nativismo americano mais uma vez começava a crescer. Se Collier acreditava na
engenharia social e o papel das ciências sociais podia jogar para ajudar os camponeses
imigrantes estrangeiros a adotarem a vida urbana americana, seus contatos anteriores com
12
Scudder Mekeel would later write an article which would explicitly compare the role of the settlement
house and that of the reservation bureaucracy of John Collier’s BIA (MEKEEL, 1943c).
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
274
o anarquismo russo (por meio de Tolstoy e Kropotkin), Nietzsche, o socialismo
romântico e o movimento do Renascimento Irlandês o tinham levado a questionar o valor
inerente da vida moderna e a abraçar um conceito de diversidade cultural mais amplo que
o de vários de seus contemporâneos. Enquanto os revolucionários marxistas evitavam o
cultural em favor do político, e os evolucionistas sociais (tanto da variedade morganiana
quanto spenceriana) acreditavam que o futuro da humanidade repousava em sua
dominação pelas "raças superiores", Collier visava uma integração da vida moderna com
as culturas do passado supostamente mais primitivo. Nesse sentido, pode-se definir
Collier como um proto-pluralista ou multiculturalista. Se ele acreditava que os Outros
estrangeiros precisavam "adaptar-se" à vida americana, ele também acreditava — como
os assistentes sociais das settlement houses descritos por Eric Goldberg acima — que a
adaptação não significava necessariamente a completa eliminação do que hoje seria
chamado etnicidade. Apesar de todo seu conservadorismo essencial, era aparente para
todos que John Collier era profundamente insatisfeito com o que se entendia como vida
anglo-saxã moderna. Ele efetivamente gostava dos imigrantes com quem trabalha e sentia
que podia aprender deles quase tanto quanto eles podiam aprender com ele.
A amiga e confidente de Collier, Mabel Dodge, talvez tenha mais concisamente
capturado esse lado do jovem reformador no retrato que dele traçou em Movers and
Shakers, seu relato autobiográfico de seus anos em Nova Iorque antes de Primeira Guerra
Mundia.
John Collier… worked at the People’s Institute a little way above me on Fifth
Avenue and 13
th
Street. Have I told you how he looked then? He was a small, blond
Southerner, intense, preoccupied, and always looking wind-blown on the quietest day.
Because he could not seem to love his own people, and as he was full of a reformer’s
enthusiasm for humanity, he turned to other races and worked for them.
He… had the job of trying to preserve the flavors of other nationalities when they
came to New York. Singly, he tried to stem the ponderous tide of Americanization. He
worked indefatigably; with committees and sub-committees he strove by means of
pageants, parades and prizes to persuade Italians, Russians, Germans and all the others, to
keep their national dress, their customs, their diets, their religions, and all their folk ways.
Breathless, his green eyes burning, he dashed about looking like a Blake drawing by
Peter Newell… His drawback was that he seemed to be all in the air, wind-blown, as I
have said, and not down on solid ground (DODGE LUHAN, 1936: 323).
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
275
A falta de enraizamento de Collier e sua pendência para apreciar a companhia e os
costumes folclóricos de Outros exóticos iria contrubiuir para sua queda na cena política
de Nova Iorque. No contexto das incertezas criadas pela Primeira Guerra Mundial e pela
Revolução Russa — enquanto nos Estados Unidos presenciava-se a explosão de ativismo
nativista mencionada no capítulo 4 acima — a posição de John Collier e de pessoas como
ele tornou-se cada vez mais suscetível a acusações de anti-americanismo e bolchevismo.
Em 1915, Collier organizou a "New York Training School for Community Center
Workers" com a benção do People's Institute. O objetivo da escola era, aparentemente,
instruir os assistentes sociais em escolas-centro sociais nas bases da teoria social moderna
e da prática da assistência social. O próprio Collier organizou o currículo. A base
filosófica do curso parece ter sido os trabalhos de John Dewey, filósofo progressista e
educador. Social Psychology de William McDougall era utilizado como um texto básico
e o curso também incluía textos de Lester Frank Ward (Philp, 1971: 20-21).
Juntamente com esses esforços em Nova Iorque, Collier trabalhou para organizar
o movimento dos centros comunitários a nível nacional. Em 1916, ajudou a montar a
National Conference on Community Center Problems, que se reuniu na cidade de Nova
Iorque entre 19 e 22 de abril A lista de líderes comunitários que apoiavam a conferência é
como que um "Quem é Quem" da Nova Ciência Social e incluía luminares como Lillian
Wald, John Dewey e Franz Boas. Um evento ocorrido durante a conferência revela
algumas das diferenças de Collier diante de outros líderes do movimento de centros
comunitários e ressalta a maneira como mesmo um programa relativamente conservador
como o de Collier era visto com crescente desconfiança, conforme o espaço para a
manobra política estreitava-se nos dias que levaram à declaração de guerrra dos EUA
contra os Poderes Centrais (Kelly, L. 1983: 61-63).
Na conferência, Collier foi duramente criticado por Edward J. Ward, um
representante do US Bureau of Education. Collier já entrara em conflito com as visões de
Ward em 1913, e a discussão entre os dois centrava-se nas noções de Collier para maior
inclusão do envolvimento da comunidade nos centros comunitários. Ward acreditava que
o chefe titular do centro deveria ser o diretor da escola em que este estava sediado. Ele
também acreditava que a filiação ao centro deveria ser em bases individualizadas. Collier
argumentava que essa "democracia absoluta de indivíduos" sabotava as tentativas dos
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
276
Centros de cimentar vizinhanças mais estreitamente. Ele pensava que a afiliação deveria
ser aberta apenas para "grupos sociais coesivos, sindicatos, clubes políticos, sociedades
de dança e organizações étnicas". Ele também argumentava que os diretores dos centros
deveriam ser "um líder assalariado pela comunidade". Diante dessa crítica, Ward
denunciou os apoiadores de Collier como "pequena claque de extremistas nova-
iorquinos" que "representavam as idéias e filosofia de Bill Haywood, o líder da IWW"
13
e
"sindicalismo de um tipo radical". Ward acusou que as propostas de Collier de darem
mais poder nas mãos das comunidades eram o equivalente de "remover as listras e
estrelas
14
dos edifícios das escolas e levantar a águia de duas cabeças
15
" (Kelly, L. 1983:
62-62; Philp, 1977: 22-23).
O debate entre Collier e Ward ressalta o poder de algumas das suposições
populares relativas ao americanismo e à identidade americana no início do século XX, e
as maneiras como a alteridade étnica era administrada pelo estado nacional naquele
momento. Ward presumia que o controle da comunidade sobre os centros comunitários
levaria a uma maior alteridade étnica e resultaria nas ditas comunidades articularem uma
ruptura política com o governo dos Estados Unidos (de onde o fantasma da bandeira
americana sendo substituída nas escolas por aquela da Alemanha Imperial). Deve-se
lembrar que, ruante os primeiros dias do envolvimento dos EUA na Primeira Guerra, uma
onda de sentimento anti-germânico varreu a nação. Escolas, jornais e centros
comunitários onde se falava alemão foram arbitrariamente fechados em uma atitude
reminiscente da campanha de nacionalização brasileira durante a Segunda Guerra. Como
a estudiosa da etnicidade Giralda Seyferth assinala, é precisamente durante esses
momentos de crise política nacional que os supostos laços da identidade monocultural
nacional são enfatizados. A identidade imaginada como nacional nesses momentos segue
geralmente os desejos e necessidades do grupo étnico dominante e tende a ver a
diversidade como uma ameaça à sobrevivência nacional. Desafiando a noção de que a
cultura imigrante precisava ser supervisionada por "verdadeiros americanos" na aurora
do envolvimento dos EUA na Guerra, Collier estava pois em um caminho que, para
13
Haywood was the leader of the Industrial Workers of the World, an anarcho-socialist union which was
extremely militant in its opposition to the United States’ entry into WWI. (ZINN, 1998: 94-95).
14
A popular name for the U.S. flag.
15
A reference to the German Imperial flag.
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
277
muitos olhos patriotas, o conduzia perigosamente perto da traição (Zinn, 1998: 77-98;
SEYFERTH, 1997 ).
O desfecho não tardou. Nas eleições de 1917, o principal apoiador de Collier, o
prefeito liberal John P. Mitchell, foi deposto da Prefeitura e substuído por um
conservador. Após a entrada dos Estados Unidos na Guerra em abril de 1917, os vários
projetos de Collier foram ou desmantelados, ou ficaram sem financiamento, ou foram
atropelados pela febre da guerra. Naquele outono, Collier estava chegando à conclusão de
que "o trabalho comunitário precisa ser transformado em trabalho de guerra para poder
continuar existindo em Nova Iorque", e fez tentativas para transformar os centros
comunitários baseados nas escolas nesse sentido. O novo Board of Education de Nova
Iorque passou o controle dos centros para os National Community Councils of Defense,
que se utilizaram dos espaços para vender bônus de guerra e para outras atividades
patrióticas — entre elas, aulas de americanização para imigrantes. Collier esperava que,
permanecendo com o programa de centros comunitários, este pudesse ser revificado
como um movimento de reforma urbana após a guerra, dessa vez em escala nacional e
com financiamento federal (Kelly, L. 1983: 76-79).
O nativismo não acabou com a guerra em 1918, todavia, e conforme crescia o
sentimento contra estrangeiros, Collier via sua influência no interior do movimento de
centros comunitários cada vez mais erodida. Em 1919, ele finalmente renunciou do
People's Institute para assumir a posição de Secretário de Organização da National
League for Constructive Immigration Legislation (NLCIL), a organização que foi no final
responsável pelo estabelecimento de cotas de imigração pelos Estados Unidos em 1921.
Originalmente, segundo Kelly, o impulso do NLCIL era anti-discrimitório. Sob a pressão
da guerra e do crescente nativismo, todavia, a posição da Liga mudou, de modo que em
1921 sua literatura afirmava que os EUA estavam sofrendo de "uma indigestão de
estrangeiros não-americanizados […] [que] se fixam em massas congestionadas e
tornam-se votantes sem serem adequamente qualificados. Eles ameaçam nossa
democracia e reduzem nosso padrão de vida". Não se pode imaginar uma mais clara
refutação das crenças de Collier e ele retirou-se da Liga no outono de 1919, menos de um
ano após juntar-se a ela. Logo depois, o movimento de conselhos comunitários que
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
278
Collier lutara por tanto tempo para nutrir e proteger entrou em colapso e a carreira de
Collier em Nova Iorque chegou ao fim (Kelly, L. 1983: 93-95).
"[Uma] cidade e uma nação, que venceram o inimigo na Primeira Guerra
Mundial", escreveu Collier sobre este período em sua autobiografia, "permitiram não que
suas próprias almas perecessem, mas que caíssem em […] um sono de mais de uma
década. O sono de Nova Iorque não foi interrompido até 1933, quando Fiorello H.
LaGuardia tornou-se prefeito […] Na nação em geral, não houve despertar até que, em
1933, Franklin D. Roosevelt tornou-se presidente e grandes eventos sociais começaram a
marchar sobre a terra e nos corações e mentes de milhões (Collier, 1963: 91). Naquela
altura, todavia, Collier deixara a reforma urbana para trás, abandonando a luta para
recriar a gesellschaft entre os imigrantes em favor do trabalho com outroo grupo
minoritário como Comissário de Assuntos indígenas do Roosevelt.
Collier e a boémia nova-iorquina
Um importante aspecto da vida de John Collier na cidade de Nova Iorque, que se
tornaria crucial para sua introdução aos Assuntos Indígenas, foi seu lado boêmio — uma
faceta de sua personalidade que ele partilhava com muitos antropólogos da escola
boasiana (incluindo o antropólogo brasileiro Gilberto Freyre) bem como incontáveis
poetas, dramaturgos, autores, músicos e produtores culturais da cidade. Muitos desses
indivíduos frequentavam os mesmos círculos sociais, intelectuais e políticos em Nova
Iorque durante as primeiras décadas do século XX, quando a intelligentsia boêmia da
cidade estava fortemente envolvida na construção de uma crítica anti-moderna. Nova
Iorque, como descreveu Ann Douglas, era a capital da fermentação (anti)modernista e o
principal canteiro para tanto o que ser tornaria a nova política Democrata quanto para as
Novas Ciências Sociais. No coração dessa fermentação estava a Universidade de
Columbia, lar do antropólogo Franz Boas e de seus discípulos. É importante dar-se conta
de que para jovens intelectuais modernos morando na cidade naquele momento, as vidas
política, cultural e acadêmica eram todas uma coisa só. Collier esteve na cidade apenas
durante os primeiros anos da revolução socio-cultural descrita por Douglas, mas,
entretanto, ela afetou o profundamente. George Stocking retraçou algo deste jogo em seu
excelente estudo da sensibilidade etnográfica dos anos 1920. Vale notar, todavia, que
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
279
apesar de sua finamente afiada percepção das conexões entre os artistas boêmios de Nova
Iorque e o nascimento da moderna etnografia no Sudoeste, Stocking aparentemente não
percebeu o papel que este mesmo nexo desempenhou na gestação dos modernos Assuntos
Indígenas. É a esse nexo e ao papel que ele desempenhou apresentando a Questão
Indígena a John Collier que precisamos agora nos voltar (Douglas, 1995; Stocking:
1992).
Apesar de toda sua simpatia pelos pobres étnicos de Nova Iorque, Collier sentia-
se muito à vontade entre a elite literária e artística da Cidade. Um dos seus principais
interlocutores neste período era a socialite e artista Mabel Dodge, nascida Ganson, depois
Luhan. Como Collier, Dodge crescera em uma família anglo-saxã de classe alta,
frequentando um colégio interno exclusivo quando menina, onde conheceu a futura
antropóloga boasiana Ruth Benedict e tornou-se sua amiga (Stocking, 1992: 293). Ela
casou-se em uma família rica mas, com o fracasso de seu casamento ela, como Collier,
auto-exilou-se na Europa por vários anos. Retornando a Nova Iorque em 1912, Dodge
logo estabeleceu um dos mais notórios salões avant-garde da cidade e, dessa maneira, ela
conheceu John Collier.
Mencionamos acima o retrato de Collier por Dodge em sua autobiografia, livro
que nos faculta vislumbrar o homem, suas atitudes e seu modus operandi durante o
período em que estava ativo em Nova Iorque, mostrando como sua vida política e boêmia
muitas vezes se imbricava com seus contatos sociais com a elite da cidade.
Um uma ocasião particular, Dodge convidou vários proeminentes amigos da
sociedade a seu apartamento para experimentar o peyote. Durante a viagem, um dos
membros do grupo desapareceu do apartamento e supôs-se que estava andando pelas
ruais sob influência do halucionógeno. A principal preocupação de Dodge, além de uma
compreensível preocupação com o bem estar do jovem, "era de que eu ficasse
pessoalmente implicada, aos olhos de meus conhecidos, com uma situação ambígua o
suficiente para merecer, de qualquer ângulo inclusive, o nome de uma festa de drogados.
Que horror!"
Os amigos de Dodge eram igualmente enfáticos em seu desejo de evitar uma má-
reputação e a solução que propuseram para o problema foi bastante interesssante.
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
280
We must not let this get into the papers,’ [her friend Hutch] said, with the
journalist’s realization of the possibilities. ‘Yet we may need to notify the police,’ he
went on. ‘I think I’ll call John Collier’.
Collier, segundo Dodge, "conhecia todos os funcionários da cidade".
Telefonaram-lhe e ele veio imediatamente.
He came into the apartment with his green eyes slightly malicious, but always
amused, and his untidy hair falling over his brow – a small, chétif boyish figure with a
great many strings in his hands that we knew he could pull if he wanted to (DODGE,
1936: 276-277).
Foi a inteligência de Collier, sua mente aberta, e o que ela chamava sua "chama
profunda" que parecem tê-la atraído, e os dois iriam partilhar uma correspondência ampla
e íntima durante as décadas seguintes. Dodge chegou a recrutar Collier em 1915 para
uma tentativa de reabilitar a dançarina e famosa libertina Isadora Duncan. Collier
considerava Duncan "genial, órfica e dioniaca ao mesmo tempo", e escreveu e dedicou
vários poemas em sua homenagem, mas o plano de estabelecê-la em uma academia
municipal como instrutora de dança para meninas da classe trabalhadora caiu por terra
quando a instável e alcóltra Isadora tentou molestar o prefeito de Nova Iorque John P.
Mitchell em uma reunião organizada para ela por Collier e Dodge. Esse desafortunado
evento, todavia, não tolheu a amizade de Dodge e Collier (Dodge, 1936: 276-329;
Collier, 1963: 107; Kelly, L. 1983: 54-55).
Em 1917, depois de um tempestuoso caso de amor com o jornalista John Reed
(cronista da revolução bolchevique), Mabel Dodge entediou-se com a correria de Nova
Iorque e com o "mundo de escapistas entre os quais eu vivia, essa turma de reformadores,
artistas, escritores, líderes trabalhistas, filósofos e cientistas" (Luhan, 1937: 273) e —
como muitos americanos urbanos em busca de um tônico para as dores de cabeça da
existência moderna — partiu para "selvagem" Sudoeste Americano para renovar sua
vida.
Por mais de uma década, o Sudoentes Americano e o Novo México em particular
tinham sido cada vez mais pintados pelas companias de turismo e ferroviárias como o
remédio autêntico, primitivo, para o mal-estar moderno. Como narra Shelby Tisdale, no
início dos anos 1900, "o Sudoeste Americano era visto tanto como a última fronteira
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
281
quanto como a nova fronteira — um escape dos rigores da Costa Leste, um excelente
ambiente para recuperar a saúde física e mental, e um lugar que capturava a imaginação".
A estrada de ferro trouxe turistas que queriam ver povos nativos em seu ambiente
"natural". Ela também criou a demanda pelo artesanato indígena que, por sua vez,
estimulou o interesse de artistas modernos de Nova Iorque a Paris (Shelby, 1996: 434).
George Stocking descreve a estranha conexão entre a Nova Iorque boêmia e o
Novo México rural da seguinte forma:
For intellectuals searching for genuine culture in the postwar period, there were
several localities in the cultural geography of the United States that were clearly marked
off from the surrounding “flat cultural morass”. In New York City, there was [Mabel
Dodge’s and John Collier’s home neighborhood of] Greenwich Village, where just before
the war the cheap rents of a disintegrating traditional neighborhood… had opened a
cultural space for rebel-seekers… Their ‘counter-culture’ was soon to a considerable
extent co-opted by the middle-class culture…
For those intellectuals, like Mabel Dodge, whose primitivist urges required a
more “genuine” culture than urban bohemia could provide,… there was another oasis far
out across the great cultural desert of middle America: the pueblo Southwest
(STOCKING, 1992: 290).
Taos New Mexico e seu pituresco pueblo indígena tinham se tornado algo como
um retiro alternativo para artistas da Costa Leste desde que fora "descoberto" pelos
empresários de turismo das ferrovias e etnógrafos (em particular o colega de Alice
Fletcher no BAE, Franklin Hamilton Cushing) no fim do século XIX (Stocking, 1992:
292). Em 1914, uma florescente colônia de artistas tinha sido fundada na vila, e durante a
Primeira Guerra "pintores, escritores, escultores e poetas afluíam para [o Novo México].
Alguns vinham em busca das fortes, nítidas cores que diziam não se podia achar em
nenhum outro lugar da terra; alguns buscavam refúgio da civilização e um escape para o
"primitivo". Encontraram um baixo custo de vida e um ambiente encantador" (Kelly, L.
1983: 116). Logo, imigrantes da Costa Leste buscando inspiração e refúgio tornaram-se
uma porção substancial da população da vila. O autor regionalista e residente do Novo
México John Nichols deu-nos um retrato dessa invasão em sua novela The Magic
Journey, que faz a crônica da brutal integração da vila ficcional do Novo México
Chamisaville no capitalismo turístico e arte do século XX.
The first client to purchase an allotment of bricks was a noted American artist
formerly of New York and Kansas City… Judson Babbitt was a famous painter,
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
282
paramour, roué and moneybags. Wanting to live within a half-mile of the plaza, he
purchased the Antiliano Montoya land from Jerry Bonney, hired Pueblo Indians to clear
away the haunted-house debris, purchased ten thousand adobes from Chavo and J.B.
LeDoux at enormously inflated prices, and hired the brothers to build an ornate adobe
mansion, expansively paying quadruple the going construction wages…
Up late, Judson Babbitt scribbled letters to his famous painter friends, singing the
praises of Chamisaville, urging them to come and settle. After all, there was a mint to be
made off of Indian portraits alone: “I never saw a race with such marketable pathos and
dignity. And they are so poor that they’re willing to pose almost for free!” (NICHOLS,
1978: 67)
Figura 4.3: Mabel Dodge Luhan e seu marido, Tony Luhan, índio pueblo, ca. 1925.
Mas Mabel Dodge não veio para Taos para juntar-se ao nascente movimento de
arte primitivista que estava se consolidando no Novo México. Ela veio para renovar sua
vida dedicando-se a uma nobre causa: o salvamento dos índios pueblo da vila. Como
conta Lawrence Kelly, seu segundo marido, o pintor russo Maurice Stern (que Dodge
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
283
antes despachara para o Sudoeste em uma lua-de-mel solitária) a convocara para esta
tarefa em sua carta convidando-a para a vila:
Do you want an object in life? Save the Indians; their art-culture – reveal it to the
world! I hear astonishing things here about the insensitiveness of our Indian Office [the
OIA] – through ignorance, solely, for they mean well – the stupidity and the pathetic
crimes created by its agents through a sense of superiority of the white color and white
civilization (including, I suppose, the “Great White Way”…) That which Emilie
Hapgood and others are doing for the Negroes, you could, if you wanted to, do for the
Indians… (Stern, Nov. 30
th
, 1917. Apud KELLY, 1983: 116).
Dodge mudou-se para Taos por incentivo de Sterne, mas um ano depois seu atual
marido tomou o destino do anterior. Depois do divórcio, ela ligou-se a um índio do
Pueble, Tony Luhan. Os dois casaram-se em 1923 e — aparentemente encontrando
algum descanso de sua vida até então atribulada — Mabel Dodge Luhan iria permanecer
ao lado dele até sua morte em 1962. A espaçosa casa de adobe de Mabel tornou-se um
retiro espiritual para sua vasta rede de amigos artistas da costa leste e europeus. Os
escritores D.H. Lawrence e Mary Austin passaram ambos consideráveis períodos de
tempo lá, e acabaram se envonvendo da cruzada intermitente de Mabel para salvar os
Pueblos da modernidade. Foi aceitando o convite de Mabel para visitar Taos que John
Collier entrou finalmente em contato direto com o campo dos Assuntos indígenas
(Bannan, 1976).
Collier na California
Depois do colapso do movimento de centro comunitários em Nova Iorque, a
família Collier mudou-se para Los Angeles, California, onde John empregou-se
trabalhando para a State Housing and Immigration Commission como um especialista em
educação de adultos. O trabalho de Collier era organizar institutos de "americanização",
sob uma lei californiana que tornava aulas de cidadania compulsórias para todos aqueles
acima de 21 anos cujo domínio da língua inglesa estava no nível da 6a. série ou abaixo.
As tarefas de Collier eram desenvolver um sistema de educação de adultos em inglês e
cidadania, treinar assistentes sociais em técnicas de americanização, e organizar centros
comunitários baseados em escolas em todo o estado. Como se poderia esperar, Collier
aplicou seus métodos à essa tarefa, concentrando-se no ensino da cidadania por meio da
participação direta nos assuntos da comunidade local ao invés de fazê-lo por meio de
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
284
rituais patrióticos e supressão da liberdade de expressão. Desafortunadamente para o
jovem reformador, uma onda de sentimento popular extremamente nativista e anti-
comunista varria o sul da California e Collier logo descobriu que suas idéias de
pluralismo e democracia não era mais bem vindas entre certos membros da elite angelina
local do que haviam sido na costa leste (Collier, 1963: 115-117; Kelly, 1983: 105-108).
Collier estava fascinado com a então nascente revolução bolchevique e não
hesitou em discutir isso publicamente em suas aulas: "Falei longamente dos dois
assuntos mais importantes na mente de todos naqueles tempos: o movimento cooperativo
e a experiência comunista russa". Seus interesses, todavia, logo levantaram nas mentes de
alguns a suspeita de que ele era um ativista comunista, uma acusação que assombraria
Collier repetidamente em toda sua carreira pública. Como ele rememora os eventos,
"Aqueles eram os dias da histeria da caça às bruxas vermelhas de Palmer, e me
advertiram de que eu estava sendo vigiado, de que o Departamento de Justiça tinha
agentes assistindo a minhas aulas. Continuei sem dar atenção a esses avisos, e em minhas
aulas contei, entre outras coisas, especialmente tudo o que eu pudera aprender sobre a
Rússia desde sua revolução" (Collier, 1963: 117-118).
O interesse de Collier na Revolução parece ter sido impulsionado por seus mais
antigos e persistentes interesses no cooperativismo e socialismo utópico experimental, e
não por qualquer simpatia particular pelo bolchevismo. Todavia, tratava-se, como ele
lembra, dos tempos da histeria popular anti-comunista cujas chamas foram alimentadas
pelo Procurador Geral A. Mitchell Palmer. Sob a liderança de Palmer, agentes federais
conduziam investidas maciças contra sindicatos e associações trabalhistas de todos os
tipos. A organização anarco-sindicalista Industrial Workers of the World foi
desmantelada como um movimento de massa nesse período, suas lideranças sendo
aprisionadas. Cerca de 250 "agitadores trabalhistas estrangeiros" — incluindo a
anarquista Emma Goldman, que Collier apresentara ao salão de Mabel Dodge — foram
sumariamente deportados dos EUA e mais de 10 mil presos, muitas vezes sem
julgamento ou apresentação de acusações formais (Zinn, 1980: 97-98). Era um período
no qual especulações sobre socialismo e direitos trabalhistas eram geralmente vistos por
muitos americanos como uma clara indicação de motivações sinistras. Uma organização
chamada Better America Federation, apoiada pelo proprietário do Los Angeles Times e
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
285
um forte sustentáculo dos anti-sindicalistas no estado, atacou subsequentemente os
patrocinadores de Collier no CSHIC por meio da legislatura estatal e, em 1
o
de novembro
de 1920, John Collier viu-se mais uma vez desempregado (Kelly, L. 1983: 109-110).
"Toda a desilusão de meu último ano em Nova Iorque, quando todos os nossos
esforços falharam, retornou sobre mim outra vez", recorda Collier em 1963. "Decidi que
não iria continuar; que eu pararia ali, de uma vez por todas. […] [C]om [a esposa] Lucy e
nossos três meninos e dois cachorros, e nosso equipamento da camping, demos o que
pensamos seria um adeus duradouro para a região da Baía da California, e seguimos para
as montanhas de Sonora, México, buscando um sertão remoto". Aqui, como tantas outras
vezes antes e depois em sua vida, John Collier iria enfrentar o fracasso pessoal com um
retiro monástico no sertão, buscando renovação espiritual longe da civilização. Neste
caso particuar, pelo menos da perspectiva de algo como quatro décadas adiante em sua
vida, John Collier parecia sentir que o mundo todo que ele lutara para melhorar desde a
adolescência estava desabando em torno dele. "Eu sabia que o mundo antigo estava
terminado", escreveu. "Um só golpe de forças, incalculável e desconhecido, estava
abraçando o mundo inteiro tal como eu o conhecia" (Collier, 1963: 121).
É preciso lembrar, como sempre quando lemos From Every Zenith, que essas
palavras refletem os pensamentos do Collier maduro, olhando para trás para sua carreira e
tentando apresentá-la como um todo coeso. Entretanto, no caso aqui apresentado, suas
palavras são geralmente congruentes com seus escritos no período e também com aqueles
contidos em Indians of the Americas, escrito em 1946, após seu mandato como
Comissário de Assuntos Indígenas. Em 1920, Collier parece que estava lutando com o
que percebia como sendo a morte final da gemeinschaft na sociedade moderna. Seu
fracasso em revigorá-la em Nova Iorque e na California deve lhe ter parecido
particularmente ominosa, dada a histeria em massa em torno do Perigo Vermelho e seu
virtual banimento da vida pública como um suspeito comunista. Para um homem que
absorvera profundamente Nietzsche e acreditava em uma democracia liberal, baseada na
comunidade, deve ter parecido como se toda a criação houvesse sido tomada por massas
inflamadas, orquestradas por indivíduos poderosos como Chandler e Palmer. Como
Collier coloca, "Os anos anteriores à Primeira Guerra eram de muita esperança para a
comunidade. Nos anos que se seguiram àquela guerra havia pouco lugar para a
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
286
esperança" (Collier 1963: 123). A raiz desse desespero parecia ser o avanço implacável
do individualismo economicista:
Well into the 1920s, and even yet spread far and wide, the nineteenth-century
view of man was still the all-prevailing view… The nature of man was believed to be
founded in traffic and acquisition of goods – and the human personality was therefore
base, calculating, and shallow. Nothing beyond the individual was perceived; the human
group was nothing more than a contract between self-seeking individuals. The meager
optimism of this view rested in the belief that diffusion of knowledge and an increase in
security and conveniences would mitigate the age-old aberrant tendencies of man. Man
had always been, it held, and would always be, an isolate, an address, a role in a
competitive society.
A civilização moderna deformara a natureza human, que na visão de Collier era
eminentemente social e poderia florescer apenas em um mundo baseado em
relacionamentos primários, em pequenos grupos:
Yet the basic fact, the most universal problem of man, is, and has been,
throughout his hundred thousand or more years of history, that he is primordially,
positively, undefeatable social…
Through ninety-nine per cent of his huge time on earth – down to a few hundred
years ago in Europe, down to the present in Africa, Indonesia, Asia, and among the
Indians of the Americas – mankind lived the determining part of its life in face-to-face,
primary, social groups; in village communities and federations of village communities. It
is man’s nature to be a creator of the social… In the main, this marvelous and diverse
yield of social creativeness is a yield of pre-literate and pre-scientific times; as in essence
were even the times of Greece’s glory and the medieval splendors of Europe.
Even now, even still, for half the world’s people the controlling society is the
local community… The primary social group is hardly less essential for the realization of
human life than language itself, or than some essential organic structure […] (COLLIER,
1963:119)
As idéias de Collier aqui são, é claro, a última forma da reflexão de toda sua vida
sobre a relação do homem à vida social. Todavia, enunciações similares aparecem em
todos os seus escritos nos anos 1920, 30 e 40. Basicamente, as visões de John Collier
sobre as unidades sociais primárias e seu papel na vida social haviam lhe dado uma visão
da do potencial humano que era diametralmente oposta à de Lewis Henry Morgan.
Enquanto Morgan se entusiasmava com o individualismo crescente — julgando a
civilização como o aperfeiçoamento do homem econômico, do indivíduo liberal — e sua
disseminação em todas as esferas da existência humana, Collier olhava para o mesmo
futuro e via algo que deve ter parecido muito similar à visão de Nietzsche do último
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
287
homem: "Alas! There cometh the time of the most despicable man, who can no longer
despise himself. The earth hath then become small, and on it there hoppeth the last man
who maketh everything small. His species is ineradicable like that of the ground-flea; the
last man liveth longest." (NEITZCHE, 1891: Prologue). Tanto Morgan quanto Collier
viam o mesmo futuro, mas enquanto que Morgan o abraçava e chamava-lhe o ápice do
desenvolvimento humano, Collier via nele a degradação e eventual destruição da espécie
humana. Essa visão das coisas só iria enrigecer-se nos anos vindouros, com a ascensão do
totalitarismo em todo o mundo. "A humanidade cruzou o divisor de águas para um novo
mundo", escreveu a respeito dos anos 1920, da perspectiva de quatro décadas depois, "e
deste divisor de águas fomos desde então varridos, através de terrificantes movimentos
retrocessivos de massa, para a Segunda Guerra Mundial, e desde o final desta, às beiras
de uma outra, uma guerra final" (Collier, 1963: 121).
A descoberta de uma Atlântida Vermelha
Nas profundezas de seus desespero e à beira do que poderia ser uma viagem de
auto-exílio ao México pós-revolucionários, porém, Collier recebeu uma carta de Mabel
Dodge: "e em Redondo [uma vila californiana onde os Collier haviam parado por um mês
em seu caminho para o sul] chegaram cartas e telegramas de Mabel […] em Taos,
repetindo suas histórias da mágica habitação lá de seiscentos índios mágicos, e insistindo
a pelo menos visitar Taos, a vir […] como seus convidados" (Collier, 1963: 124).
Em 11 de dezembro de 1920, a família Collier chegou em Taos, Novo México,
durante uma nevasca. O final das cerimônias anuais estava em curso no pueblo quando
chegaram, e a mistura de ritual nativo e critão produziu um impacto profundo em John
Collier. Lendo seus escritos posteriores sobre a experiência, têm-se a impressão de um
evento que se impôs sobre sua consciência com a força de uma revelação religiosa:
...[A]fter three days, the Red Dear Dance began. There, in the plaza of the
Pueblo, a forthgiving religious (as we white people know it) and cosmical (as we white
people do not know) ceremony by men and women, old and young, transported all the
Indians, and us, the few spectators, into a region of existence where thousands of years
bloomed coldly in the hearts and brains of simple, hardworking, present day humans.
…None has described adequately, in words, the great dances of the Pueblos, of
which the Red Deer is one. And I cannot describe any of them; but they entered into
myself and each one of my family as a new direction of life – a new, even wildly new,
hope for the Race of Man.
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
288
…The discovery that came to me there, in that tiny group of a few hundred
Indians, was of personality-forming institutions, even now unweakened, which had
survived repeated and immense historical shocks, and which were going right on in the
production of states of mind, attitudes of mind, earth-loyalties and human loyalties, amid
a context of beauty which suffused all the life of the group…
And the experience was not a fantasy… I was conscious, all the time, that the
significance was not local to the Indians, but universal. Yet it might be that only the
Indians, among the peoples of this hemisphere at least, were still the possessors and users
of the fundamental secret of human life – the secret of building great personality through
the instrumentality of social institutions. And it might be, as well, that the Indian life
would not survive (Collier, 1963: 126).
Pode-se justificadamente questionar, como fez Lawrence Kelly, o quão
exatamento fiéis são as descrições posteriores de Collier de suas experiências em Taos
(Kelly, L. 1983: 120). Todavia, é inquestionável que elas tiveram um potente impacto
emocional sobre ele. Collier iria se referir a este impacto em seus escritos ao longo de
toda a década seguinte e, com efeito, de toda sua vida, e em suas descrições desse
momento, é sempre apresentado como se ele o tivesse atingido como uma revelação
religiosa. Qualquer que tenha sido o impacto pessoal da experiência, entretanto, é preciso
também reconhecer que toda a experiência intelectual, emocional e política de John
Collier até os anos 1920 o haviam preparado para reagir exatamente da maneira como
reagiu.
Já discutimos acima o amor de Collier pelos sertões dos EUA, pelo folclore, pela
comunidade e seu envolvimento com o Renascimento Irlandês. Collier, em suma, era um
(anti)modernista romântico que estava comprometido com reforçar a vida de grupos
primários e comunidade como um antídoto para a anomia existência capitalista urbana.
Pode-se dizer que, até 1920, Collier não tivera nenhum contato com índios, mas isso não
é inteiramente verdadeiro. Lawrence Kelly recuperou o que considerou um fragmento
interessante mas trivial que, no entanto, pode ser mais revelador e importante do que se
poderia pensar à primeira vista:
Before his Taos visit, Collier’s only acquaintance with the American Indian had
been a brief, romantic experience during his New York days. In 1910-11, when he and
Luther Gulick were forming the first school-social centers, he had spent ‘hundreds of
hours with the Gulicks in their home’ where preparations were underway for the
founding of a girl’s organization similar to the Boy Scouts. Gulick and his wife,
Charlotte, both of whom were active in outdoor recreation projects, particularly summer
camps, worked closely with Daniel Beard and Ernest Thompson in the creation of the
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
289
Boy scouts of America. In 1912, the Gulicks created the Camp Fire Girls. At Gulick’s
request, Collier served as one of the first directors and in 1912 he composed the ‘Fire
Makers Delight,’ a pledge used in the ritual (KELLY, L. 1983: 119)
Philip Deloria estudou extensivamente o nascimento do movimento de escoteiros
moderno em sua descrição dos usos dos brancos americanos da imageria indígena,
Playing Indian (1998). Em particular, ele recupera as raízes do movimento de escoteiros
como algo projetado para atender as crianças dos guetos urbanos que eram vistas como
em risco de "re-socialização para o crime". Por meio da utilização de rituais, histórias e
lições morais supostamente indígenas, esses jovens selvagens modernos das ruas das
cidades deveriam ser atraídos para longe do canto de sereia do crime e propriamente
socializados com valores de classe média americanos: "Para reafirmar a identidade
moderna, os americanos precisavam experimentar aquilo que não era moderno. Da
mesma maneira que se visita a natureza para que se possa viver na cidade e que se usufrui
do lazer para poder trabalhar mais efetivamente, voltava-se para o passado de modo a
compreender o presente e o futuro" (Deloria, P. 1998: 105).
At the early boys’ camps, the contradictions inherent in using antimodern nature
study to prepare children for modernity dovetailed with the accumulated ambiguities
surrounding a primitivist construction of the Indian Other. Whereas the parents of
modern campers feared that they (and their children) were becoming cynical and
artificial, Indians appeared childlike and natural. Whereas moderns lived a high-density,
mass-mediated, urban life, Indians were rural and face-to-face. One of the primary
indicators of a healthy summer camp experience was a good tan. A brown face, of course,
demonstrated one’s contact with the out-of-doors and nature, but it also signified a step
back into a pre-modern time zone, a new self that was kin to the authentic Indians of…
[Louis Henry] Morgan, and the ethnographers (DELORIA, P. 1998: 106).
O trabalho de Collier com a delinquência jovem urbana deu a ele, obviamente, um
interesse em programas como os de Escoteiros e os de Bandeirantes. Mais do que isso,
porém: como Alice Fletcher e Lewis Henry Morgan, bem antes que Collier conhecesse
qualquer nativo em carne e osso, ele já internalizara uma noção do índio como um
elemento chave em seu projeto de revitalização nacional. O movimento de escoteiros,
visto sob essa luz, pode ser considerado como tendo desempenhado um papel crucial ao
conectar as idéias de Collier com a altamente icônica figura do índio americano.
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
290
Figura 4.4: O Acampamento Sinaway (literalmente “vápecado") em Wyndygoul, Connecticut em 1903
era uma das manifestações do movimento de “camping” nos Estados Unidos. Esse movimento
buscava "resgatar" a juventude das cidades, colocando-os em contato com a natureza e com supostos
elementos da "cultura indígena". Antes de conhecer os pueblo de Taos, Collier trabalhava com uma
das alas femininas do movimento, os Campfire Girls (lit. "meninas da fogueira do acampamento"). IN:
DELORIA, P. 1998: 97.
Se concordo que é altamente improvável que um plano completo para a renovação
cultural indígena tenha brotado na mente de Collier, plenamente formado, na noite em
que ele primeiro testemunhou a Dança do Veado Vermelho, não existe razão para duvidar
de que algo "clicou" em seu cérebro e que, pela primeira vez, ele fez uma conexão entre a
preservação da vida tribal indígena e a revitalização da vida comunitária americana pela
qual lutara por tanto tempo. Em escritos desse período, ele comparou sua "descoberta" da
sobrevivência cultural e social indígena em Taos à revelação de uma "Atlântida
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
291
Vermelha", que fora o título de um de seus, de fato, primeiros artigos sobre a questão
indígena, publicado na revista Survey Graphic em 1922. Descrevendo o pueblo de Taos,
ele o chama de "potencialmente um herdeiro do futuro e um doador para o futuro de dons
inestimáveis, que o homem branco do futuro saberá utilizar" (Collier, 1922: 16).
Nesse artigo, Collier expôs claramente a idéia de um processo de contato que ele
mais tarde classificaria como sendo ao mesmo tempo de assimilação e de preservação da
herança cultural (Collier, 1936: 23). Collier acreditava que o Pueblo podia ser trazido à
vida moderna ao mesmo tempo em que mantia sua singularidade como povo. "Podem os
Pueblos continuar vivendo", perguntava-se, "e interagir com o mundo do homem branco
ao mesmo tempo em que mantém e fortalecem seus próprios valores?" Respondendo esta
pergunta com um cauteloso "sim", ele levantava o exemplo do Renascimento Céltico da
Irlanda:
Forty years ago there virtually were none who believed that Ireland could be
reborn in her ancientness and in the same act create a postmodern world. Scholars in
Germany, in France and even in Ireland had deeply studied the Irish folk-components.
Ireland herself had striven, had taken her political “cue” from the dominating British
neighbor. Passionately and mournfully was Ireland loved, by many not Irish as by her
own children. Bur Frederick W.H. Mayes, one of those who loved, wrote of Ireland’s
“desperate incompatibility with the mechanisms of modern progress”…
Only after the event, for minds realistically endowed, does the improbable
become conceivable. Horace Plunkett in his Ireland and the New Century prescribed how
Ireland might save herself through adapting her ancient folkways to mechanisms
borrowed from Denmark, England and the United States. And the inconceivable [i.e. the
rebirth of Ireland as a state and an independent culture], as Goethe says, “here it is done”
(COLLIER, 1922: 63).
Podemos encontrar outra visão claramente enunciada do que Collier via na vida
tribal em um artigo que ele escreveu para o Sunset Magazine, intitulado "Our Indian
Policy", publicado em 1923. Nele, Collier descrevia as "relações tribais" como "o sistema
de relações humanas tradicional, desenvolvido vagarosamente, no interior do grupo
indígena […] Elas constituem a relação do indivíduo indígena com sua complexa
comunidade — com todas as suas crenças, seus códigos morais, suas lealdades e
tolerâncias, suas necessidades práticas e seus sonhos. Em suma, as relações tribais são a
própria vida". Collier então continuava comparando a vida tribal à vida a que a OIA
estava tentando forçar os índios: "Tiramos o índio de sua comunidade, tomamos sua
comunidade dele, mas ao mesmo tempo o situamos em comunidade nenhuma, e o não o
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
292
ajudamos em direção a nenhum desenvolvimento comunitário. E em toda essa rapinagem
sociológica, não é com 'barulhentos selvagens' que estamos lidando. É uma vida
civilizada e bela que estamos retalhando aos pedaços a um custo caro aos pagantes de
impostos para o processo de retalhamento" (Collier, 1923: 15, 89).
Figure 4.5: O filho de Collier, John Collier Jr., brincando de índio no Pueblo de
Taos em 1921. IN: COLLIER, 1963: 121.
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
293
Em ambos esses textos, escritos pouco depois de sua apresentação ao Pueblo de
Taos, John Collier trai sua crença de que é olhando para o passado que a humanidade
pode se salvar. Não apenas povos colonizados e dominados, como os irlandeses e os
índios, mas a própria raça humana é recriada no "mundo pós-moderno" trazido pelo
renascimento de povos supostamente antigos e perdidos. Ao invés de a civilização ser
criada pela assimilação forçada, ela é destruída por ela. Nutrindo a alteridade social e
cultural dos índios americanos — sempre dentro dos limites da necessidade de "interagir
com o mundo do homem branco" do capitalismo de mercado, nacionalismo e
industrialismo, é claro — o índio transforma-se em "um doador para o futuro de dons
inestimáveis", que o "homem branco saberá utilizar".
É importante aqui dar-se conta de que Collier obviamente não estava invertendo
as idéias do Destino Manifesto Americano. Antes, ele estava reafirmando-as de maneira
tal que a alteridade cultura indígena se transformava em uma peça importante e
constituinte do glorioso futuro em direção ao qual todos os americanos estavam
supostamente se encaminhando. Suas primeiras enunciações dessa visão não eram
marcadas pelo mesmo grau de pessimismo que seus escritos tardios evidenciariam, mas é
bastante claro do que está citado acima de que tão cedo quanto um ano após sua
apresentação ao Pueblo, Collier via a recuperação do passado e sua integração ao
presente como uma estrada para um futuro melhor tanto para os índios quanto para os
brancos.
Estava também claro desde este tempo o que ele concebia como a força que traria
esse futuro utópico mais perto da realidade: a intervenção consciente de engenheiros
sociais e cientistas não-nativos empregados pelo governo federal. "A eficácia de qualquer
comunidade eficiente socialmente precisa de tempos em tempos ser re-aplicada em
direções alteradas", escreveu Collier em 1922. "Usualmente (como Gumplowitz, entre
outros sociólogos, deixaram claro), o grupo em adaptação age sob uma necessidade
imposta de fora, e muitas vezes sob a sugestão ou liderança que vem de fora do grupo,
aplicada por aquele que tem prestígio ou um poder irresistível".
The general social law holds good of the pueblo. Social change or social
intervention could be promoted only with considerable difficulty by a pueblo dweller,
himself a pueblo creation, addressing himself unaided to the tribal functionaries.
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
294
The needed developments could assuredly be promoted by, or with the express
endorsement of, just one agency – the United States government. Humiliating to its own
citizens as the government may appear in its Indian methods, and perverse, inscrutable as
it may appear to the Indians, yet to the Indians the government is supreme – supreme by
conquest, by enveloping, arbitrary power. With government indorsement [sic],
cooperative modern enterprise could be set in motion within the pueblos, and a wealth of
loyalty and of effort and passion could be swung behind it which would cause great
excitement among the well-wishers of the American cooperative movement. This
cooperative enterprise would be economic primarily but esthetic likewise; and not
swiftly, but through the years, as the liaison with the tribal institutions became more
complete, it would become educational in directions not only important to the Pueblo but
to mankind (COLLIER, 1922: 66).
Por um ano e meio depois de sua experiência inicial em Taos, Collier iria
empregar-se como professor de sociologia no San Francisco State Teacher’s College.
Todavia, seus pensamentos frequentemente retornavam ao Pueblo e ele gradualmente
envolveu-se no crescente movimento que buscava impedir o loteamento final de suas
terras e a assimilação forçada de seus habitantes. Ele voltou várias vezes à colônia dos
artistas em Taos, onde, segundo Kenneth Philp, rotineiramente tinha discussões com
gente como os romancistas Mary Austin e D.H. Lawrence sobre o significado da vida
indígena e o desenvolvimento da consciência coletiva no mundo moderno. Ambos os
escritores haviam sido envolvidos na luta para preservar o Pueble por Mabel Dodge, e
Austin logo recrutou a ajuda de Collier também, embora Lawrence tenha manifesto
receios de que o reformador pudesse acabar por destruir os índios "cravando-lhes as
garras de sua própria benevolente volição". Em setembro de 1922, Collier obteve uma
licença de seu contrato de professor em São Francisco e preparou-se para engajar-se em
tempo integral no compo políticos dos Assuntos indígenas (Philp, 1977: 24; Kelly, L.
1983: 131).
O nascimento do novo movimento de reforma dos assuntos indígenas
O curso dos eventos que levaram John Collier de seu momento revelatório em
Taos em 1920 até sua nominaçnao como Comissário do Bureau of Indian Affairs por
Franklin Delano Roosevelt em 1933 é relativamente bem conhecido e direto. O leitor irá
pois me desculpar se, por motivos de espaço, ofereço apenas uma breve sobrevôo desse
processo que foi bem descrito por outros pesquisadores e autores (Bannan (1976),
Downes (1945), Hauptmann (1983), Lawrence Kelly (1974, 1976, 1983), Philp (1972a,
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
295
1972b, 1973, 1977), Rusco (2000), Taylor (1975, 1980) and, of course, by Collier himself
(1963)).
Como o movimento de reforma dos anos 1880, que detalhamos nos capítulos 2 e
3 acima, o movimento dos anos 1920 e 30 foi desencadeado por um ato particular de
reconhecida injustiça contra um povo indígena, que rapidamente mobilizou aliados
brancos para sua causa.
Os pueblos do Novo México estavam envolvidos em uma série de disputas
territoriais que remontavam à conquista da região pelos Estados Unidos. Depois da
guerra de 1848 com o México, o governo federal americano confirmou a posse pelos
índios pueblos de cerca de 700 mil acres de terra. Residentes dos territórios recém-
organizados supuseram que os índios tinham o direito de dispor dessa terra como bem
entendesse, incluindo vendê-la, e a Suprema Corte americana confirmou isso em 1876,
julgando que, devido à sua "avançada civilização", os Pueblos não eram tutelados do
governo. Essa situação mudou, todavia, quando o Novo México entrou na União como
um estado. Em 1913, a Suprema Corte reverteu sua decisão e afirmou que os Pueblos
estavam sim sob a tutela do governo federal, e isso, por sua vez, colocou em dúvida a
legalidade de todas as compras de terra dos índios pueblos desde 1848. Algo como 70 mil
acres, incluindo os lotes melhor irrigados e a maior parte das reservas de água, estavam
incluídos nessas terras sob litígio, e a fricção que isso causava ameaçava desembocar em
violência entre índios pueblos e colonos não-indígenas (Philp, 1977: 29-30).
Sob a insistência de Albert Bacon Fall, secretário do interior, o senador Holm O.
Bursum do Novo México apresentou um projeto de lei no Congresso em maio de 1921
que tentava cortar o nó górdo das reivindicações de terra conflitantes confirmando todos
os títulos reivindicados por não-indígenas portado spor mais de dez anos antes de 1912.
Essa manobra gerou rapidamente uma série de protestos que envolveu Mabel Dodge e
sua corte de reformadores e artistas, incluindo John Collier. Segundo Philp, "Durante o
outono e o início do inverno de 1922-23, os artistas e escritores substituiram seus poemas
e pinturas por resoluções e ensaios. Muitos deles assinaram uma 'Proclamation to the
American Public' protestando contra a destruição dos direitos territoriais dos Pueblos […]
Os intelectuais de Santa Fé e Taos apelaram para muitos de seus amigos editores para
publicar artigos contra a solução de Fall à disputa territorial dos Pueblos […] Esse coro
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
296
de protesto cresceu com a formação, em 1922, de organizações voluntárias cujo propósito
consistia em defender os Pueblos contra as políticas do Departamento do Interior (Philp,
1977: 34-35).
Com financiamento da General Federation of Women’s Clubs, Collier começou a
trabalhar informado os Pueblos e o público em geral sobre o Projeto Bursum, em
particular organizando todas as reuniões dos Pueblos para discutir a situação. Ele estudou
ampla e profundamente a história dos assuntos indígenas nos Estados Unidos, educando-
se sobre o tema tão rápido quanto podia, e quase que imediatamente transcrevendo seus
novos entendimentos em uma série de artigos publicados em várias revistas e jornais
liberais da costa oeste. Cedo em janeiro de 1923, uma delegação de 17 índios pueblo
partiu para a costa leste, sob a direção de John Collier, para tentar levantar mais protesto
público contra o Projeto Bursum. Seguindo as pegdas de Tiblle e dos LaFlesches 43 anos
antes, eles primeiro pararam em Chicago para uma série de reuniões com a elite branca
liberal daquela cidade (onde iriam recrutar para sua causa Harold Ickes, que mais tarde
tornaria-se Secretário do Interior e superior imediato de Collier na administração
Roosevelt). Eles então prosseguiram para Nova Iorque, onde Collier usou suas conexões
para colocar os Pueblo diante de grupos liberais locais e da mídia. Proibidos de protestar
verbalmente com discursos e panfletos diante da Bolsa de Valores de Nova Iorque,
tocaram tambores e cantaram. Segundo o New York Times, a Bolsa de Valores
"enlouqueceu" com essa manifestação e muitos de seus membros mandaram telegramas
de emergência para seus representantes no Congresso demandando que eles "matassem o
projeto Bursum" (Philp, 1977: 38-39; New York Times, January 15th, 1923: 28).
De Nova Iorque, a delegação viajou para Washington, onde testemunharam diante
do Comitê do Senado sobre Public Lands and Surveys em 15 de janeiro. Em março
daquele ano, o secretário Fall anunciou sua renúncia, totalmente desacreditado por
escândalos, incluindo o Projeto Bursum. O projeto de lei em si acabou por viver uma
longa morte, seguida de várias tentativas de ressurreição que foram derrotadas pelos
Pueblo e seus aliados.
Em maio de 1923, John Collier começou a organizar a American Indian Defense
Association (AIDA), uma aliança ampla de amigos do índio que se tornaria a maior
organização desse tipo na história dos EUA até então. Collier foi nomeado secretário
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
297
executivo da associação nascente e o "Announcement of Purposes" da AIDA era de
orientação claramente colleriana. Nela, a AIDA clamava por programas de educação
financiados pelo estado que buscassem reforçar ao invés de reudzir as lealdades ao grupo
indígena, e pelo estabelecimento de políticas que permitissem aos índios americanos
liberdade religiosa e cultural em todos os assuntos "que não contrariassem a moral
pública" (Philp, 1977: 46-47). Por meio da AIDA, John Collier pressionou por uma
completa reforma do Bureau of Indian Affairs e logo se tornou uma notória pedra no
sapato junto àquela agência.
No fim de 1923, o clamor criado pelo Projeto Bursum e sua derrota levara o novo
secretário do Interior, Dr. Hubert Work, a criar um National Advisory Committee
composto por quase cem distintos cidadãos preocupados de todas as áreas,
ostensivamente para aconselhá-lo na área de assuntos indígenas. Embora esse comitê
tenha sido rapidamente tomado por uma facção conseradora que rejeitava as críticas dos
reformistas da assimilação e da OIA, ele abriu as portas para a re-politização dos
Assuntos Indígenas, atestando que as atividades do Bureau não eram mais simplesmente
de interesse interno e burocrático.
No decorrer dos vários anos subsequentes, Collier e a AIDA iriam atacar
consistentemente as suposições assimilacionistas dos assuntos indígenas. Defenderam as
danças dos Pueblos (entendidas pelo pessoa conservador dos Assuntos indígenas como
"bárbaras" e "dissolutas") e, da mesma maneira, o exercício de religiões nativas
tradicionais e não-tradicionais (como o culto do peiote). Ele também lutou por
compensação por terras arrebatadas ilegalmente dos índios e, em particular, por maior
controle nativo sobre seu território e recursos. Os esforços da AIDA e de seus aliados
transformaram os Assuntos indígenas em um assunto controverso e politizado no
discurso político nacional e catapultaram John Collier para uma posição nacionalmente
proeminente como o mais conhecido e respeitado (ou desprezado) amigo do índio.
Helen Marie Bannan traçou um série de paralelos interessantes entre os
movimentos de reforma indígena dos anos 1880 e dos anos 1920:
1) Ambos os movimentos foram desencadeados por uma crise quanto à posse de
terras, entre os Poncas nos anos 1880 e entre os Pueblos em 1920.
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
298
2) Em ambos os casos, os índios em questão voltaram-se para aliados brancos locais
para auxiliá-los: Tibbles e Crook nos anos 1880 e Collier e Luhan na década de
1920.
3) Viagens organizadas ao Leste desempenharam um grande papel na mobilização
da opinião de massa entre os brancos. Em 1879, todavia, a viagem enfatizava a
civilizibilidade do índio, vista na cuidadosamente orquestrada dicotomia entre o
velho Standing Bear e o jovem Susette LaFlesch. Em 1923, a viagem enfatizava a
alteridade incomensurável dos índios, de modo mais dramático na demonstração
de tambores em Wall Street.
4) Ambas as viagens geraram grande fervor popular e foram acompanhadas por
campanhas de cartas e mídia que resultaram em uma séria crise para o secretário
do interior — Schurz em 1879 e Fall em 1923.
5) Ambos os movimentos de reforma enfatizavam a situação indefesa e o caráter
inofensivo dos índigenas americanos, que supostamente enfrentavam a total
destruição a não ser que passos imediatos fossem tomados para atender a suas
reivindicações.
6) Em ambos os casos, a OIA foi criticado por não fazer nada e acusado de ser um
instrumento de homens corruptos ou não-americanos. Em 1879, o foco fora o
suposto papel do secretário Schurz no apoio à corrupção dentro da OIA; em 1923,
o papel de Albert Fall na redação do Projeto Bursum e sua participação em vários
outros escândalos envolvendo vendas corruptas de terras federais, notadamente o
escândalo do Teapot Dome.
7) Em ambos os casos, reformadores retratavam a questão em causa como tocando
profundamente a força e honra americanas. No caso dos Poncas e dos Omaha, a
promoção de selvagens à cidadania e civilização era vista como algo que podia
fortalecer a nação por meio da adesão da valorosos novos cidadãos; no caso dos
Pueblos, a proteção de terras de reservas era vista como preservando um recurso
cultural insubstituível, o que por sua vez fortaleceria a nação reforçando um
arcabouço pluralista de culturas mutuamente cooperativas.
8) Ambos os grupos de reformistas foram atacados pela OIA como propagandistas
usando os índios para a promoção de seus próprios ideais.
9) Ambos os esforços reforçaram críticas já existentes contra as políticas de assuntos
indígenas contemporânes e eventualmente levaram à sua mudança, por meio do
Dawes Severalty Act em 1887 e do IRA em 1934.
10) Ambos os esforços levaram à solução de um problema imediato: um melhor
projeto de lei territorial para os Pueblos e a permanência dos Omaha em suas
próprias terras próximas ao Missouri.
11) Reformadores de ambos os esforços foram em frente para liderar a luta por uma
reforma global nos assuntos indígenas: Dawes e Fletcher na década de 1880 e
Collier nos anos 1920.
12) Ambos os grupos de reforma se dividiram depois que o problema inicial foi
solucionado, mas em ambos os casos um dos grupos logo tomou a frente,
revindicando o moralismo nos assuntos indígenas e redefinindo a política do
governo em conjunção com a OIA. Nos anos 1880, esse grupo foi a conferência
de Lake Mohonk de reformadores, incluindo Dawes e Fletcher. Nos anos 1920,
foi a AIDA de John Collier (Bannan, 1976: 41-89).
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
299
O mais interessante, entretanto, foi o impulso geral de ambos os movimentos, que
apenas aparentam ter-se movido em direções opostas. Se os reformadores de 1880
organizaram-se em torno do conceito de civilizar os índios, transformando indígenas
americanos em cidadãos da República como todos os outros, aqueles de 1920 lutaram
para preservar a alteridade social e cultural dos índios. Essa aparente dicotomia, porém,
desaparece quando nos damos conta de que em ambos os casos o que não estava sendo
discutido era o futuro do índio, mas o futuro do Destino Manifesto Americano. Em 1880,
com a fronteira fechando-se e a Guerra Civil terminada, chegara aparentemente o
momento de provar a viabilidade e a natureza essencialmente civilizada da democracia
americana por meio da absorção do índio como um cidadão indiferenciado. Já em 1920, a
alteridade indígena passara mais uma vez à frente como um símbolo chave para a
mobilização da luta política sobre o futuro do país. Neste caso, porém, a grandeza
americana podia ser melhor demonstrada pela proteção consciente do que era visto como
um recurso cultural inestimável e insubstituível: a construção de um conceito de
americanismo que iria abarcar e envelopar um grau de alteridade cultural. Como enfatiza
Bannan, os reformadores tanto dos anos 1880 quanto 1920 eram muito ativos em outros
assuntos nacionais do período, especificamente a emancipação, o feminismo, imigração e
reforma do serviço público. Em ambas as eras, os reformadores exibiam um certo grau de
insatisfação com a sociedade dos Estados Unidos e esperavam melhorá-la por meio de
seus esforços. O foco chave para ambos os grupos era pois o que a reforma indígena
significava, em última instância, para a sociedade branca e burguesa: "os reformadores da
política indígena de ambas as eras […] trabalharam para tanto controlar quanto a
poluição da sociedade hegemônica e para auxiliar aqueles esmasgados por ela, incluindo
os pobres, os doentes, e as minorias raciais (Bannan, 1976: 139-142).
O mais crucial do ponto de vista de nossas preocupações, todavia, é o fato de que
nas lutas políticas que revolviam em torno dos grupos reformistas, a ciência era
convocada para suportar os argumentos dos reformistas sobre os índios. Antropólogos e
outros cientistas sociais, em particular, deviam dar testemunho especializado diante do
Congresso e prover demonstrações práticas de como as novas políticas nos Assuntos
Cidadãos e Selvagens Capítulo V
300
indígenas podia ser levada a cabo em campo. É para esse aspecto das batalhas por
reforma nos anos 1920 e 1930 que devemos agora nos voltar.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
301
Capítulo 6
Governo indireto, engenharia social e as origens do Indian New
Deal
The poverty of the Indians and their lack of adjustment to the dominant economic and social
systems produce the vicious circle ordinarily found among any people in such circumstances.
Because of interrelationships, causes can not be differentiated from effects. The only course is to
state briefly the conditions found in this vicious circle of poverty and maladjustment…
The economic basis of the primitive culture of the Indians has been largely destroyed by the
encroachment of white civilization. The Indians can no longer make a living as they did in the past
by hunting, fishing, gathering wild products and the extremely limited practice of primitive
agriculture. The social system that evolved from their past economic life is ill suited to the
conditions that now confront them… They are by no means yet adjusted to the new economic and
social conditions that confront them.
The Problem of Indian Administration, pp3-6. 1929
Os detalhes da transformação de John Collier de crítico da OIA em Comissário
dos Indian Affairs na administração de Roosevelt são relativamente simples e foram
amplamente documentados em vários lugares. Não necessitamos descer a detalhes sobre
eles aqui. Suficiente dizer que na década entre a fundação da AIDA, em 1923, e a
nomeação de Collier em 1933 por Roosevelt, a vitória do movimento de reforma dos
Indian Affairs, de que Collier foi o mais hábil proponente, era tal que era quase
inconcebível que qualquer um que não fosse Collier ou algum aliado seu ganharia um
emprego de Comissário indígena de Roosevelt. As cartas já estavam na mesa, na verdade,
desde 1928, quando o presidente republicano Herbert Hoover nomeou dois reformadores
moderados – Charles J. Rhoads e J. Henry Scattergood – como comissário e comissário
assistente da OIA. Esse movimento não representou, conudo, uma reviravolta do
paradigma assimilacionista que Collier e seus aliados envisavam. O chefe direto de
Scattergood e Rhoad, o Secretário do Interior Ray Lyman Wilbur, estava tão engajado na
absoluta eliminação da alteridade indígena quanto qualquer missionário protestante do
século XIX, declarando que “a civilização do pele-vermelha deve ser substituída pela do
homem branco [...] o índio deve desistir de seu papel como membro da raça que guarda
distancia, enquanto outras raças entram em nosso melting pot e saem como unidades de
um grande novo propósito. Mais importante, Wilbur recusou-se a reverter a política dos
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
302
loteamentos, que Collier e seus associados estavam convencidos de que estava na origem
de todos os problemas indígenas americanos.
Por volta de 1930, a AIDA e seus aliados seguiam em conflito aberto com
Scattergood e Rhoads e seus superiores do Departamento do Interior. Como a chegada da
Grande Depressão, a imolação de Hoover e a subseqüente eleição de Franklin Delano
Roosevelt para a presidência, torna-se obvio que a hora havia chegado para todos os
novos reformistas colocarem suas sugestões políticas em pratica. Em 1932, então, a
decisão final sobre a escolha de Roosevelt para uma nova chefia para os Indian Affairs
recaia sobre o nome de John Collier ou outro dos membros da AIDA e friends of the
Indian, Harold Ickes. A nomeação de Ickes para Secretário do Interior e a subseqüente de
Collier para comissário dos Indian Affairs, sob a batuta de Ickes, abriu caminho para
transformações substantivas nos Indian Affairs (PHILP, 1977: 97-115; see KELLY, L,
1974 para maiores detalhes sobre esse processo).
Ickes era um dos aliados mais próximos de Roosevelt e o Departamento do
Interior tornaria-se uma agência maior na mobilização nacional de pessoas e recursos que
o New Deal de Roosevelt antevia trazer a baila como antídoto para a depressão
econômica. Com a nomeação de Ickes para a Secretaria do Interior, Roosevelt também
assegurava que Collier não apenas teria um chefe empático, mas que ele teria uma linha
direta com a presidência para tudo o que precisasse do apoio considerável da Casa Branca
a qualquer projeto. J. Leiper Freeman descreve a congruência de visões entre Collier,
Ickes e Roosevelt sobre os Indian Affairs como o resultado de uma aliança política em
torno desse tópico como “extrema em dois níveis [direções]”.
[F]irst, in the long span of their simultaneous incumbencies [12 years] and
second, in the degree of their personal and ideological proximity. All three men saw the
New Deal through from its inception. All three were committed to the “progressive”
point of view… Ickes was put forward at first for the office of Commissioner of Indian
Affairs under the New Deal, at which time he was supported by Collier and others.
Roosevelt instead selected Ickes – almost sight unseen – to be Secretary of the Interior.
Forthwith, Ickes, the party maverick in the Cabinet, gained the President’s support and
confidence, something he generally succeeded in holding for the next twelve years. The
Secretary in turn got Roosevelt to appoint Collier as Commissioner, beginning a similar
pattern of relations between the Bureau chief and the Department head. This was
reinforced by the interest in Indians held by Anan Willmarth Ickes, the Secretary’s first
wife, and by her assistance to Collier (FREEMAN, 1955: 35-36).
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
303
A posição de Collier era reforçada ainda por muitas outras escolhas pessoais de
Ickes: como comissário assistente dos Indian Affairs, o novo secretario do interior
escolheu William Zimmerman – homem-de-necios extremamente liberal que defendia
o controle dos trabalhadores sobre as corporações. Mais importante, como procurador e
procurador assistente do departamento do interior, Ickes nomeou Nathan Margold,
Charles Fahy e Felix Cohen, todos advogados que haviam trabalhado antes com a AIDA
e problemas indígenas e que foram associados e aliados de Collier. Seria função deles –
função muito central – transformar as idéias dos novos comissários para os Indian
Affairs, em projetos viáveis que teriam chance de serem implementados sem a menor
chance de serem vetados pela base legal, constitucional ou do rito do congresso (PHILP,
1977, 116-117).
No entanto, nem tudo era perfeito. Enquanto o assimilacionismo compulsório já
vinha sendo desacreditado desde a ultima década de mobilização política, as pessoas
pensavam a eliminação da “indianidade” como uma categoria federalmente protegida (e a
subseqüente liberação para o mercado das consideráveis extensões de terra ainda sob
posse dos índios) ainda vicejava e esses tinham seus representantes eleitos no congresso.
Mais ainda, os baixos escalões da OIA, particularmente no nível das reservas, era, em sua
maioria, controlados por servidores públicos de carreira que tinham ascendido a esses
escalões durante os quarenta anos anteriores de políticas assimilacionistas. Ambos esses
grupos evidenciariam significativas resistências aos planos de Collier para os próximos
anos.
Representações federais dos índios: uma analise de dois documentos
Analisando dois documentos característicos dos pensamentos circulantes no
campo dos Indian Affairs do período que estamos tratando, podemos divisar um cenário
mais claro de duas visões que foram conflituosas durante esse tempo. Podemos também
alcançar uma visão do universo nativo para o qual Collier foi feito responsável em 1933.
Ambos os documentos procuram chegar a um consenso acerca da questão de quem,
exatamente, eram os índios. Ambos foram quase simultaneamente produzidos por
diferentes órgãos do governo federal americano. Um documento relacionava-se as visões
primeiras dos índios como uma raça, definidas por associação com caracteres morais e
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
304
biológicos, que estavam envolvidos em um processo inevitável de extinção pela
assimilação, enquanto o segundo abria uma nova linha, tornando-se o documento
fundacional de idéias sobre os índios como suportes legais de direitos e responsabilidades
que deveriam ser perpetuamente garantidas pelo governo federal. Essa segunda visão era
a característica da administração de Collier.
O The Indian Population of the United States and Alaska, publicado pela Agência
Censitária norte-americana em 1937, procura apresentar um panorama demográfico clara
da população indígena baseada em dados de quatro censos demográficos, entre 1890 e
1930. A finalidade da Agência Censitária com publicação desses dados era oferecer aos
administradores, legisladores e população em geral, dos contornos estatísticos de uma
população afetada por leis e diretivas acerca dos indígenas. Como tal, era uma fotografia
supostamente objetiva, produzida por uma agência governamental compreendida como
“acima” das políticas e envolvida apenas com a produção acurada de dados
cientificamente medidos.
Indian Population da a impressão de exatidão, com suas colunas de estatísticas
meticulosamente organizadas. Tomando esses como valores nominais, nós temos um
total de 332,397 índios na parte continental dos EUA e uns 29.983 no Alaska. Essa
população está longe de ser eqüitativamente dispersa, com os dez estados mais povoados
por índios contando com 271,692 (ou 81,7%) do total dos EUA continentais:
Estado Região Geográfica # de indígenas
Oklahoma Oeste Sul Central 92,725
Arizona Montanhas 43,726
New Mexico Montanhas 28,941
South Dakota Oeste Norte Central 21,833
California Pacifico 19,212
North Carolina Atlântico Sul 16,579
Montana Montanhas 14,798
Wisconsin Oeste Norte Central 11,548
Washington Pacifico 11,253
Minnesota Oeste Norte Central 11,077
(CENSUS BUREAU, 1937: 3-4)
Os indígenas são posteriormente distintos por grupos lingüísticos e tribos, sendo
40 do primeiro e 100 do segundo escolhidos desde os formulários de censos. A discussão
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
305
da fabricação dessas estatísticas apresenta algumas informações interessantes, já que
aparentemente existiam 52 grupos lingüísticos e 280 tribos presentes no censo de 1910.
Explicando as razões para esse declínio, a Agência Censitária menciona que certos
pequenos grupos haviam amalgamado-se e também discute as dificuldades inerentes em
delinear uma dada tribo indígena. A atribuição tribal era dificultada pelo fato de que
“nomes locais” para uma dado grupo não correspondiam a nomes “etnográficos” ou
“indígenas”. Nesses casos, o censor tomou de nomes “locais”, que eram então, de alguma
forma, relacionados a intrincada lista de “grupos lingüísticos e tribos” preparadas pela
Agência, presumivelmente usando informações da Agência de Etnologia (CENSUS
BUREAU, 1937: 33-37). Nós assim descobrimos que os dados relativos a populações de
grupos indígenas não eram simplesmente derivados de contagens empíricas, mas de uma
dupla construção: em primeiro lugar, o uso de “local”, como oposto a nomes “indígenas”
ou “etnográficos” indica que os censores estariam agrupando os indígenas de acordo com
percepções de vizinhanças brancas. Segundo, os mecanismos pelos quais esses nomes
“locais” foram então traduzidos entre as 100 tribos e 40 grupos lingüísticos da Agência
não são clarificados. É quase certo que essa divisão foi decidida na própria Agência –
como indica o comentário de que “pequenos grupos foram combinados” – e que a
nomeação tribal era ativamente construída pelos próprios analistas da Agência Censitária,
que decidiam que termos locais corresponderiam a que tribos sem necessariamente tomar
as preferências nativas em consideração.
As estatísticas gerais também trazem importantes postas para como eles foram
construídos. Primeiramente, é consenso de que o senso de 1930 usava um método de
contagem distinto daqueles anteriores por incluir indígenas encontrados em
“comunidades brancas” (Ibid:1). Censos anteriores tinham suas empreitadas
particularmente restritas aos territórios e reservas indígenas. Em segundo lugar, a
Agência Censitária admitiu que esse processo era apenas uma de várias possibilidades de
contagem dos índios:
If the definition of the Indian population were limited to Indians maintaining
tribal relations, the enumeration of the Bureau of Indian Affairs is probably more nearly
accurate than that of the census. This enumeration in 1932 showed a total of 228,381. On
the other hand, if all persons having even a trace of Indian blood were returned as
Indians, the number would far exceed even the total returned at the census of 1930
(Ibid:2).
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
306
De acordo com o censo, portanto, “índios mantendo relações tribais” eram
considerados como um subgrupo da população contada que era, por outro lado, um
subgrupo de todas as pessoas com sangue indígena. A Agência Censitária fez algumas
curiosas pressuposições aqui. Em primeiro lugar, presumia que a OIA dispusesse de uma
acurada reflexão sobre o número de índios nessa condição já que muitas tribos,
particularmente aquelas da costa oeste, não estavam sob a tutela do Governo Federal em
1932 (BENEDICT, 2000: 4-30). Mais especificamente, muitas das pessoas que a Agência
Censitária classifica como “mantendo relações tribais” por razão de estarem incluídas nas
contagens da OIA – os Cherokees de Oklahoma, por exemplo – também eram descritos
pelo censo como “assimilados” e vivendo “na população geral com direitos totais de
cidadania” e assim provavelmente não contabilizados como índios antes dos anos 1930
(p.73). Obviamente, assim, nem as contagens da OIA nem a Agência Censitária eram
indicadores confiáveis de que os índios estavam “mantendo relações tribais”. A escolha
da Agência Censitária de palavras também revela a suposição de que o próprio papel da
OIA era aquele de guardião e tutor daquilo a que o próprio censo se refere como “índios
de reserva” (p.73), presumidos de serem os guardiões de uma “cultura mais primitiva”,
menos misturada biologicamente e assim “mais indígena”.
O cenário projetado pela Agência Censitária da população indígena americana
durante os anos 1930 está representado na figura 6.1. apenas aqueles na área cinza seriam
contabilizados pelos censores da Agência Censitária. Essa é a população compreendida
pelo censo, de uma perspectiva demográfica, como “índios reais” o que também era
bastante congruente com a perspectiva administrativa da OIA, antes de 1933:
FIG. 6.1
Todos os índios em
potencial, por virtude de
terem algum quantum de
Índios, “com relações
tribais” AKA “índios
Índios, de acordo
com a Agência
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
307
Saber aonde desenhar a linha em torno da qual população indígena deveria ser
contabilizada tornou-se um dos maiores problemas da Agência Censitária. O principio
regente parece ter sido biológico, com atributos como pertencimento tribal ou residência
em reservas sendo usados como indicadores-chave do status de “índio pleno” [“full-
bloodedness]. Mas o quanto de ancestralidade nativa alguém precisava para ser
considerado índio? Muito esforço foi feito pelo censo para procurar discernir o quantum
sanguíneo para, como a Agência admitia em sua pagina 2, “o tamanho da população
indígena depende inteiramente da atenção dada a enumeração de mestiços [mixed
bloods], e a interpretação do termo ‘indígena’ nas instruções ao censor.”
Foi apenas no censo de 1960 que aos respondentes de censos federais americanos
foi permitida julgar sua própria raça. Em 1930, censores foram encarregados de
contabilizar tanto sangues “plenos” como “mestiços”, “à exceção de lugares aonde a
percentagem de sangue indígena fosse muito pequena” ou onde a pessoa em questão
fosse “vista como branca na comunidade em que vivia”. Também, “uma pessoa mestiça
de sangue índio e negro deveria ser classificada como negra, a menos que o sangue índio
predominasse e o status como indígena seja amplamente aceito na comunidade”.
Quais eram precisamente os censores classificatórios da Agência? Como Scott
Malcomson remarca (seguindo Russel Thornton), as instruções soavam muito mais
cientificas do que realmente eram. Censores não estavam verdadeiramente buscando
“sangue”: “eles estavam olhando para o rosto das pessoas, e provavelmente perguntando
por ali se os vizinhos de Jack acreditavam que Jack fosse índio”.
We must keep in mind, first, that the term blood had little to do with the red fluid
universally recognized as blood. It had to do with facial features and skin tone; dress,
perhaps; language, maybe; family name (surely someone called Whitekiller is an
Indian?); and the general tenor of a community. We should also bear in mind that the
enumerators were overwhelmingly white. The enumerator’s perception of community
acceptance is especially interesting to ponder. Given that the enumerators could hardly be
expected to know when a person’s “percentage of Indian blood is very small” – how
could you tell? – the weight of the judgment must have fallen on whether that person was
“regarded as a white person”. But regarded by whom? Similarly, the status of a black
Indian must have been determined largely by whether or not that person was “generally
accepted in the community” as Indian. The fascinating thing was that the enumerators
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
308
were not ordered to find out whether a black Indian was “accepted” as black or a white
Indian “regarded” as Indian... Presumably it was whites who did the “regarding” in the
first instance and Indians who did the “accepting” in the second. A dark person’s being
accepted as black was of no interest or consequence, nor was a light person’s being
accepted as Indian (MALCOMSON, 2000:110).
As observações de Malcomson eram mais evidentes nas advertências da Agencia
Censitária feitas a seus censores que um cuidado especial deveria ser tomado “para
diferenciar entre trabalhadores mexicanos e índios [no sudoeste]. Alguns trabalhadores
mexicanos podem tentar se passar por índios. Pessoas vivendo na região não devem ter
dificuldades em diferenciar entre os tipos.” . Novamente a questão de quem exatamente
eram “as pessoas residindo na região” imbuídas do poder para julgar a raça é deixada em
aberto, mas é muito provável que muitos – se não todos – fossem brancos.
Nas instruções do censo, as únicas pessoas que são definitivamente contabilizadas
como indígenas são as de “sangue pleno”, ainda que, como vimos acima, essa
categorização fosse necessariamente deixada a cargo da interpretação dos censores, já
que não existia uma definição precisa de como determinar o quantum de sangue. Pode ser
evidenciado a partir de uma série de comentários encontrados no Indian Population, que
a Agência Censitária estava confortável em usar a costumeira mistura entre
características morais e físicas na determinação do “quantum de sangue”:
Admixture of the blood of other races is usually accompanied by a breakdown of
tribal customs, and by adoption, in whole or in part, of the habits and manner of life of
another race...
Indians living in states thickly settled by people of other races are fast becoming
assimilated into the general population and are losing their languages and Indian
characteristics. (p.70)
The admixture of white and to a lesser extent, of the blood of Negroes and other
races, is an important factor in breaking down tribal organization and characteristics.
(p.71)
A Agencia Censitária argumentava que o característico “full-blood” estava
relacionado a uma população das fronteiras da reserva, não falante de inglês, analfabeta,
empobrecida e envelhecida, com poucas de suas crianças na escola. Em outras palavras,
misturar o sangue era “assimilar na população geral” e progredir em termos de classe e
educação. Podemos ver essa lógica claramente expressa na página 75 aonde a Agencia
compara os Cherokee de Oklahoma (17.85% sangue-plenos) com seus primos da
Carolina do Norte (43.4% sangue-plenos):
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
309
The Oklahoma Cherokee are much more white than Indian and live in the general
population with full rights of citizenship. The North Carolina Cherokee on the other
hand, are reservation Indians, with rather large admixture of white and some Negro
blood, but with a distinctly more primitive culture (p.73).
Muitos dos da Carolina do Norte escolhem ser chamados índios de “full-blood
antes do que “negros de sangue mestiço”, e é importante acentuar que os índios mais
escuros eram apenas considerados índios pelo censo se o “sangue índio” predominasse e
eles fossem “amplamente aceitos na comunidade”. No contexto de estrita segregação
racista da Carolina do Norte de 1930, é fácil compreender porque informantes deveriam
insistir na falta de “sangue negro” sua e de seus vizinhos e provavelmente escolhessem
“índio” como a marca para explicar suas fisionomias anglo-saxãs menos perfeitas. O
censo salientou esse estado de coisas em seu relatório com um pálido tom de
desaprovação, atribuindo a volta do alto índice de “sangue pleno” no censo da Carolina
do Norte à “ignorância acerca da mistura racial ou ao desejo de conciliar a mistura, pelo
censor.” A base desse julgamento é quase certamente a opinião das “pessoas [brancas]
vivendo na região” (p.39).
A constante correlação entre características de sangue e morais expostas no
Indian Population, indica que a Agencia Censitária estava comprometida em reproduzir
uma tautologia: censores tomavam como indicadores de status de “full-blood”,
precisamente aquelas características que o Indian Population encontrou mais tarde
correlacionadas com status de “full-blood”. Em sua irreconhecível compreensão do índio
como uma classificação zoológica com características morais associadas, a Agencia
Censitária contribuiu para construir e perpetuar uma categoria populacional conhecida
como “indígena”, dividindo sua população entre categorias “assimiladas” e “não-
assimiladas” que eram supostamente congruentes com misturas biológicas, “full-bloods”
sendo, naturalmente, menos assimilados do que “sangues mestiços”. Em grande medida,
esse era o contexto dos indígenas que estiveram soberanos nas salas do congresso
nacional desde a ultima década do século XIX e que nosso próximo documento,
produzido pela administração Collier da OIA, procurava desafiar.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
310
O manual da legislação federal indígena
Felix Cohen, promotor assistente para o departamento do interior (mais tarde
promotor) e um especialista na legislação indígena, escreveu o segundo documento que
analisaremos, The Handbook of Federal Indian Law, a pedido do
Secretario do Interior Harold L. Ickes e do comissário indígena John Collier. Cohen,
descrito por Richard Drinnon como “um intelectual combativo em defesa dos Afro-
americanos, imigrantes, trabalhadores migrantes [e] nativos americanos” (DRINNON,
1987: 215), foi ativo no movimento de reforma indígena dos anos 1920 e um
representante legal da American Indian Defense Association de Collier. Como promotor
assistente, Cohen era questionado a olhar e clarificar problemas legais do departamento
tanto quanto a escrita e revisão da legislação afeta a suas preocupações. Como a OIA
estava situada no Departamento do Interior, isso significava que existia um forte eixo de
atividade formada no interior daquele Departamento em torno do projeto de mudança de
regras da administração indígena. O Handbook é um dos documentos mais importantes a
emergir daquela aliança. É considerado por muitos como a mais precisa e exaustiva
revisão de quem e a que um indígena sob a legislação americana e seus preceitos servia e
uma lanterna de popa para a OIA de Collier, mesmo quando eles contradiziam os desejos
do comissário. É também muito bem sucedido em investigar as demandas legais dos
nativos americanos contra o governo dos EUA que, seguindo a aposentadoria de Collier
do escritório e a retomada parcial das políticas assimilacionistas da OIA, a Agencia
recusou a reimprimir por muitos anos (DRINNON, 1980).
Cohen finalizou o Handbook enquanto estava cedido pelo Departamento de
Justiça para assumir uma análise da legislação indígena e o livro é uma compilação
acadêmica de 46 volumes sobre legislação indígena que ele reuniu para essa análise.
Permanece até hoje como a mais completa tentativa de explicar e analisar concisamente
as implicações de vários relacionamentos mantidos entre os governos federais e estaduais
dos Estados Unidos e os muitos grupos que dominaram os indígenas pelas suas bordas. O
fato de que o Handbook – uma compilação da legislação indígena – contenha 662 paginas
de tamanho padrão deveria dar uma idéia de o quanto complexo esse campo era e é.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
311
Figuras 6.2 e 6.3: Harold Ickes (esq.), o Secretary of the Interior dos EUA de 1933-1946, era o
chefe e um aliado importante do Collier no governo federal. Como advogado para o Department
of the Interior, o Felix Cohen (dir.) sintetizou as leis regulando as tribos indígenas nos EUA e teve
um papel importante na construção do Indian New Deal. (COLLIER, 1963: 212; Morris R. Cohen
Library, NYC).
A sessão que estamos tratando aqui é o Capitulo 1, Sessão 2, “Definições de
‘Índio’”, que vai da pagina 2 a 5. Nela, Cohen define sucintamente “índio” de acordo
com os direitos e responsabilidades aos quais essa categoria esteve associada durante
décadas. Cohen não apenas negou a categorização racial da indianidade como mostrou
que ela não era conclusiva de um ponto de vista legal ou administrativo:
Ethnologically, the Indian race may be distinguished from the Caucasian, Negro,
Mongolian, and other races. If a person is three-fourths Caucasian and one-fourth Indian,
it is absurd, from the ethnological standpoint, to assign him to the Indian race. Yet legally
such a person may be an Indian. (p.2)
Na sessão acima, podemos ver que Cohen, que teria muitos contatos com
antropólogos americanos através de seu trabalho na AIDA e a OIA, ainda compreendia os
índios como uma raça e ainda que essa descrição deles como tal fosse propriamente o
trabalho da etnografia. Ele não combatia abertamente a noção de que essa classificação
fisiológica era de alguma forma associada a alguns valores morais. Cohen, contudo,
curto-circuitou essa lógica por tornar clara que a herança biológica, enquanto um fator de
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
312
determinação de status legal, estava longe de ser um fator conclusivo. O que importava
eram os relacionamentos sócio-politicos que a pessoa mantinha com dadas comunidades:
Legal status [as an Indian] depends not only upon biological, but also upon social
factors, such as the relation of the individual concerned to a white or Indian community.
This relationship, in turn, has two ends – an individual and a community. The individual
may withdraw from a tribe or be expelled from a tribe; or he may be adopted by a tribe.
He may or may not reside on an Indian reservation. He may or may not be subject to the
control of the Federal Government with respect to various transactions. All of these
social or political factors may effect the classification of an individual as an ‘Indian’ or
‘non-Indian’ for legal purposes, or certain legal purposes. Indeed... a white man adopted
into an Indian tribe has been held to be an Indian, and the decided [legal] cases do not
foreclose the argument that a person of entirely Indian ancestry who has never had any
relations with any Indian tribe or reservation may be considered a non-Indian for most
legal purposes (p.2).
“Índio” era assim uma categoria legal que não era de todo homogênea. Uma
pessoa poderia ser um índio para alguns propósitos e não-indio para outros.
Extremamente importante para um status pessoal eram as decisões exercidas pelas
próprias políticas indígenas (tribos). Mais ainda, o status indígena poderia mudar durante
a vida de uma pessoa.
A visão legal da população indígena oferecida pelo Handbook pode ser melhor
representada pelo gráfico na Figura 6.4, aonde a elipse grande contém todas as pessoas
que teriam ao menos alguma ancestralidade indígena e cada um dos círculos menores
circunscritos por linhas pontilhadas indicam determinadas características sócio-políticas
legalmente associadas com indianidade (como o pertencimento tribal, a residência na
reserva, o estatuto de zona federal etc). Índios, tal como construídos pela legislação
americana deveriam ser encontrados na área cinza:
FIG. 6.4
População com algum
grau, ainda que pequeno,
de ancestralidade indígena
Índios, de acordo
com a legislação
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
313
Uma pessoa que sentia-se dentro da área delimitada pela elipse sólida e, ao menos
um dos círculos pontilhados, era possível de ser considerada um índio, por muitos
propósitos. Aqueles que sentiam-se em áreas simultaneamente circunscritas por mais de
um circulo e a elipse estavam aptos a serem tratados como índios através de um campo
amplo de assuntos. A área cinza denota a população mais suposta de ser constante e
legalmente considerada como indígena. Aqueles indivíduos que sentiam-se fora da elipse
sólida não estavam aptos de forma alguma a serem considerados índios, não importa
quantas outras elipses os incluíssem, ainda que uma tal definição era certamente possível,
ao menos para alguns propósitos.
Alguém poderia tornar-se legalmente um índio ou deixar de sê-lo. Mais ainda,
esse estatuto não tinha necessariamente nada a ver com sua ancestralidade, ainda que
Collier remarque mais tarde que ao menos algum grau de ancestralidade nativa era quase
sempre necessário para que o status indígena fosse reconhecido. “Reconhecendo a
possível diversidade de definições de ‘indianidade’”, ele concluía “podemos, não
obstante, encontrar algum valor prático na definição de ‘índio’ como uma pessoa
englobando duas qualificações: a) que alguns de seus antepassados viveram na América
antes de sua descoberta pela raça branca, e b) que um individuo é considerado como
“índio” pela comunidade na qual ele vive” (p.2). Dessa forma, Cohen situava firmemente
a indianidade biológica no domínio do precedente legal, enquanto nunca usando o termo
sangue como um marcador supostamente científico de raça, referindo-se a isso sempre
em sua acepção popular ou estritamente legal, como a citação seguinte mostra:
The term ‘mixed blood Indian’ has been held to include not only those of half
white or more than half-white blood, but every Indian having an identifiable mixture of
white blood, however small (p.3).
Cohen também estava ciente do papel popular que noções de indianidade tiveram
em criar e reproduzir legalmente populações indígenas. Sangue, como mencionamos
acima, não significava nada mais do que os políticos e a opinião pública compreendia
disto:
What must be remembered is that legislators, when they use the term “Indian” to
establish special rules of law applicable to “Indians,” are generally trying to deal with a
group distinguished from “non-Indian” groups by public opinion, and this public opinion
varied so widely that on certain reservations it is common to refer to a person as Indian
although 15 of his 16 ancestors, 4 generations back, were white persons; while in other
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
314
parts of the country, as in the Southwest, a person may be considered a Spanish-
American rather than an Indian although his blood is predominantly Indian (p.2).
Através dessa observação, Cohen lidou especificamente com noções de
indianidade e como isso afetou as contagens de censos ao longo do tempo. Cohen tomou
cuidado ao notar que, enquanto o governo federal classificou legalmente os índios por
vários propósitos e de várias formas, nunca determinou especificamente que aqueles que
não se enquadrassem nessas categorias NÃO seriam índios e que isso levou a uma
situação na qual compreensões vulgares do quantum de sangue passou para a legislação.
Contudo, essas tentativas de codificar a indianidade em termos biológicos não construiu
uma definição coesa, de um quantum aceitável de sangue que foi definido em diferentes
níveis e lugares e períodos distintos.
Cohen conclui sua exposição afirmando que, dada a confusão que definições
históricas, legais e etnográficas de indianidade criaram, o Bureau of Indian Affairs sob a
coordenação de John Collier estabeleceu uma política de “ordinariamente considerar uma
pessoa que fosse de sangue índio e membro de uma tribo, a despeito do grau de sangue,
[como sendo] um índio” (p. 5, minha ênfase). Nas palavras de Cohen:
This definition exemplifies the idea that in dealing with Indians the Federal
Government is dealing primarily not with a particular race as such but with members of
certain social-political groups towards which the Federal Government has assumed
special responsibilities (p.5).
Essa definição era muito diferente daquele estipulada pela Agencia Censitária três
anos antes, na qual “indígenas mantendo relações tribais” eram compreendidos como um
grupo com um alto grau de “plenitude sanguínea” e correspondendo a características
morais de “indianidade”. Índios, de acordo com o Handbook, não eram primariamente
definidos por sua biologia, nem mesmo uma manutenção de relações tribais deveria
significar seu estatuto como um índio. A definição “ordinária administrativa” de “índio”,
estabelecida por Cohen como uma diretiva para a OIA de Collier, presumia um grau de
sangue indígena, ainda que pequeno, e o enquadramento em uma política nativa
existente. Nesse sentido, o The Handbook of Federal Indian Law marcou uma acentuada
mudança em relação àquelas antigas compreensões racialistas e etnográficas de
indianidade do nível federal. A visão dos indígenas da OIA de Collier é graficamente
descrita na Figura 6.5, abaixo:
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
315
FIG. 6.5
Tais idéias foram articuladas antes no campo dos Indian Affairs, é claro, mas
nunca tinham sido tão presentemente enunciadas. Sessenta e três anos depois da
publicação, o Handbook permanece sendo um dos documentos mais amplamente citados
e aprovados jamais produzidos no campo político da administração indígena. Definições
raciológicas anteriores de “índio” seriam incluídas no Indian Reform Act de 1934, por
decreto do congresso. A versão escrita do IRA, por insistência de determinados
senadores, também definiria como “indígenas” aquelas pessoas que pudessem provar, ao
menos ½ ancestralidade nativa americana, mas que não fossem reconhecidos como
membros de nenhuma tribo existente. Nesse sentido, uma definição raciológica de
“indígena” era parcialmente recuperada e a definição administrativa de “indígena” nunca
era completamente destituída da biologia, a pesar dos esforços contrários de Cohen
(DELORIA, 2002).
Provavelmente a melhor maneira de acessar o período Collier é compreender essa
enquanto uma era na qual um movimento especifico, ainda que imperfeito, deflagrou uma
recuperação na definição de nativos americanos como membros de políticas distintas –
nações domesticas dependentes, nos termos de Justice Marshall. Isso, é claro, estava em
contradição direta com o período anterior dos Indian Affairs, que emergiu dos debates
sobre loteamento. Cohen retornou às origens coloniais dos Indian Affairs e exerceu e
codificou uma ampla massa de tratados que motivaram a legislação indígena e que foram
especialmente esquecidos ou ignorados desde os anos 1870. cada um desses tratados foi
direcionado, claramente, a um grupo indígena particular e existiu em isolamento político
População com algum
grau, embora pequeno,
de ancestralidade
Índios, de acordo
com a BIA de
Collier
Índios, por
pertencimento
tribal
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
316
sob a soberania do governo federal dos Estados Unidos. Por recuperar esse material e
preservá-lo de forma coesa, a OIA e o Departamento de Justiça abriram a porta para o
renascimento de definições de tribos indígenas como entidades semi-soberanas e legais.
Isso era a pedra-lapidar legal e administrativa sob a qual o Indian New Deal estava
erigido e mantido e que desde então tornou-se a descrição dominante de indianidade
dentro do aparato federal dos Estados Unidos. Que uma tal definição fosse tão movediça
nos salões do congresso quanto aquela promulgada pela Agencia Censitária era uma
medida da vulnerabilidade dos Indian Affairs como um campo político mesmo depois da
ascensão de Collier como comissário da OIA e uma predição de embates políticos que
estavam por vir.
John Collier dedicou os anos entre 1923 e 1933 para tornar-se uma das maiores
autoridades mundiais em Indian Affairs. Seus estudos durante essa década iriam oferecer-
lhe muitos modelos de ação administrativa que, quando combinados com seu pendor pela
engenharia social, sua utopia e o mandato político para mudanças que o congresso
cautelosamente sustentou no fim dos anos 1920, ofereceram a fundação para a
redefinição dos índios e dos Indian Affairs como descrita acima. Ao fim e ao cabo, o
Indian New Deal seria inspirado por crenças românticas de uma renascença cultural
nativa e de práticas administrativas que olhavam para teorias político-antropológicas de
governo indireto como sua lanterna de popa.
É verdade que Collier acreditava que o “modo de vida indígena” oferecia um
modelo de uma utopia social para toda a humanidade; é igualmente verdade que ele via-
se a si mesmo como um cientista social e um trabalhador social e, como tal, um homem
qualificado para engajar-se na intervenção direta em grupos sociais humanos com vistas a
promover seu melhoramento. Ademais, como afirmamos acima, Collier e seus aliados
não estavam trabalhando em um vácuo político. Não obstante o tanto desejassem dar
origem em uma nova realidade nativa nos Estados Unidos, eles estiveram constrangidos
em seus desejos por um congresso que não compartilhava suas preocupações
compreendidas para serem de escopo “nacional”. Em outras palavras, enquanto Collier
procurava atacar o que lhe pareciam ser os problemas dos índios, o congresso americano
ainda estava muito preocupado em resolver o problema indígena. Esse “problema”
continuou a ser definido pelo congresso em termos de prevenir os nativos americanos e as
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
317
políticas nativas de impactar negativamente na manutenção política e econômica e na
expansão dos Estados Unidos. No século XX, contudo, o dito impacto foram apreendidos
mais em termos de seus possíveis efeitos no orçamento federal e no prestigio
internacional americano do que em termos de baixas diretas devidas a atividades militares
nativas.
Examinamos as origens do pluralismo incipiente de John Collier, suas duvidas
acerca do capitalismo industrial moderno e da vida urbana e seus conceitos românticos de
cultura no Capitulo 5, acima. Devemos agora voltar atenção ao mandato operacional que
o Congresso determinou para a reforma indígena (e aquele assim situado nos limites do
possível) e as leituras de Collier acerca das teorias antropológicas de governo indireto
emanando do México e do Império Britânico. Essas teorias facultaram ao Indian New
Deal um modelo para ação – um no qual, como devemos ver abaixo, as aplicações
praticas de dados antropológicos foram muito importantes.
O relatório Meriam como um Contrato para a Engenharia Social
Até o grau que uma opinião de consenso pode ser dita como tendo desenvolvida
no campo político dos Indian Affairs, durante o movimento de reforma de 1920, um
consenso pode ser encontrado no The Problem of Indian Administration, também
conhecido como “Relatório Meriam”. Esse documento de mais de oitocentas paginas que
sumariza uma investigação encomendada pelo Secretario do Interior Hubert Work, em
1926, com o sentido de oferecer ao governo federal uma visão de base ampla e
apartidária sobre as condições sócio-econômicas das populações nativas dos Estados
Unidos. Como descreve Donald Parman, era o “primeiro estudo sobre as condições gerais
dos índios desde os anos de 1850 [e] era uma resposta a muitas controvérsias a respeito
da condução dos Indian Affairs, começando pelas disputas de terras dos Pueblo no Novo
México (1921-24) e a publicidade gerada pelo reformador social John Collier e a
American Indian Defense Association” (PARMAN, 1982: 253-254)
1
. O estudo foi
1
O comentário de Parman, de que o estudo foi o primeiro desde a década de 1850, é tecnicamente errado,
pois no final da década de 1880, Alice Fletcher produziu um relatório sobre as condições da população
indígena para o BIA e o Departamento de Educação. Todavia, o Relatório Meriam era o primeiro estudo
sistemático e multidisciplinário desse tipo feito por pesquisadores engajados com trabalho de campo
moderno.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
318
realizado por um corpo de pesquisadores multi-disciplinares do Institute for Government
Research
2
, uma organização privada dirigida pelo estatístico Lewis Meriam e publicado
em fevereiro de 1928, sendo imediatamente apresentado a maioria dos envolvidos no
campo político dos Indian Affairs.
O Relatório Meriam oferecia uma critica sistemática e de largo escopo da
administração federal indígena dos Estados Unidos, associando muitos dos problemas
que ela não assumia à persistente inabilidade do congresso em financiar a OIA com o
aporte monetário necessário para a agencia para cumprir suas responsabilidades. Com
esse argumento, de que como um todo “os índios são pobres, paupérrimos até”, o
relatório indicava que uma boa porção de responsabilidade por essa situação recaia
diretamente sobre a política de loteamentos individuais de terras detidas pelas tribos:
“admirável como foram objetos de loteamento individual, os resultados tem sido
freqüentemente desapontadores. Muita credibilidade foi dada ao efeito absoluto da
propriedade individual de terra, e não foi feito o suficiente para educar os índios em seu
uso da terra. A força dos costumes indígenas antigos de propriedade comunal da terra não
foi compreendido.” O Relatório Meriam assim concluía-se com o grande experimento
proposto pela leitura de Powell acerca de Morgan e adotado pelo congresso americano
como a base cientifica do Dawes Act. A mera posse individual da propriedade da terra,
isso foi finalmente reconhecido, não era suficiente para converter os índios em pequenos
proprietários rurais. Nem, a despeito dos esforços da OIA, os costumes nativos poderiam
ser facilmente exterminados ou substituídos através do simples recurso da introdução
e/ou aquilo que o loteamento fez, admiravelmente bem, oferecer um mecanismo para o
exercício de uma pressão branca continuada sobre as terras nativas:
As time went on, the shift in property from tribal to individual ownership was
sometimes brought about not because sound educational and business principles
demanded it, but rather by pressure brought to bear by the Indian and his white
neighbors, both of whom saw, in the creation of individual holdings the first step towards
giving the Indian complete control of his property, including the power to alienate it….
The result has been to put many Indians in possession of allotments of land and
of other property before they had advanced sufficiently to feel any real responsibility for
the conservation and development of such property. They have often displayed a
childlike disregard for the future, and commonly have a lack of standards in maintaining
a home, and in too many cases an eager desire to have restrictions removed in order that
2
Que mais tarde se tranformaria no Institutp Brookings.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
319
the property might be sold and the money squandered for immediate pleasure (MERIAM
et all, 1928: 460-461).
O Relatório Meriam não reverteu as compreensões essenciais acerca dos índios
enquanto grupos de pessoas desesperadamente necessitadas de tutela para que pudessem
galgar estados mais altos de bem estado físico e social. Ao invés, ele reafirmava essa
visão, mas reconhecia que a política corrente era incapaz de atingir a dita meta. A
intervenção direta em uma base cotidiana – educação – era necessária para que os índios
progredissem e tomassem seus assentos devidos na mesa nacional de co-cidadãos da
republica e até que esse dia chegasse, eles precisavam manter-se sob a tutela do governo.
Embora a percepção de conceder cidadania aos nativos americanos fosse inquestionável
de acordo com os autores do Relatório, isso não transformava índios em cidadãos
americanos indiferenciados:
The Supreme Court of the United States has held that citizenship is not
incompatible with continued guardianship or special protective legislation for Indians.
The soundness of this decision is not open to question. It is good law and sound
economic policy. In handling property, most of the restricted Indians are still children.
True friends of the Indians should urge retention of restrictions until the Indian is
economically on his feet and able to support himself by his own efforts according to a
minimum standard of health and decency in the presence of white civilization.
(MERIAM, et al, 1928: 48. Our italics.)
Como o Relatório Meriam demonstra, os índios não estavam apenas sob o
domínio da tutela do governo dos Estados Unidos: era ai onde eles deviam manter-se para
o futuro previsível. Ainda que os relatórios dos autores e, de fato, os reformadores que
ascenderiam ao poder durante a administração Collier, tendessem a evitar o uso da
palavra “civilizado”, já que tinha desagradáveis conexões com a era de assimilação
indígena forçada que eles procuravam superar, a citação acima estabelece uma verdade
guia da critica ao relatório bastante básica: índios devem ser educados dentro dos padrões
da civilização branca antes que sejam permitidos a operar por conta própria. Esses
padrões não incluíam apenas essas considerações como saúde, mas também
“descendência”, um termo muito vago que foi, no passado, usado para justificar ataques
de todas as formas ao patrimônio cultural indígena, desde costumes de casamento, a
religião e entretenimento. Em outras palavras, enquanto o Relatório Meriam reconhecia
que os índios eram americanos de fato, eles não eram vistos como americanos
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
320
responsáveis que poderiam ser responsabilizados por seus próprios destinos sem a tutela
do governo.
É correto afirmar portanto, como faz Parman, que o Relatório Meriam não tocou
“nas controvérsias filosóficas básicas entre o assimilacionismo da velha guarda e o
pluralismo cultural de Collier”. Na batalha que acontecia então violentamente entre o
circulo de Collier e as velhas trincheiras do assimilacionismo no campo político dos
Indian Affairs, o Relatório era muito obviamente, ainda que de foram silenciosa, pendido
para o lado dos assimilacionistas por reafirmar que a meta final da administração
indígena era reformar os hábitos e culturas nativas americanas de acordo com os desejos
brancos (PARMAN, 1982: 258).
O The Problem of Indian Administration é muito marcadamente assimilacionista
em suas diretivas gerais, mesmo que seus autores reconhecessem a deficiência da política
corrente, que presumia que a operação laissez faire do capitalismo seria suficiente par
trazer civilização aos índios americanos. Os autores do Relatório deixaram essa visão
explicita no capitulo intitulado “The Object of Work with or for the Indians”:
The object of work with or for the Indians is to fit them either to merge into the
social and economic life of the prevailing civilization as developed or to live in the
presence of that civilization at least in accordance with a minimum standard of health and
decency. The first of these alternatives is apparently so clear on its face as to require no
further explanation. The second, however, requires further explanation.
Some Indians proud of their race and devoted to their culture and their mode of
life have no desire to be as the white man is. They wish to remain Indians, to preserve
what they have inherited from their fathers, and insofar as possible escape from the ever
increasing contact with and pressure from the white civilization. In this desire they are
supported by intelligent, liberal whites who find real merit in their art, music, religion,
form of government and other things which may be covered by the broad term culture.
Some of these whites would even go so far, metaphorically speaking, as to enclose these
Indians in a glass cage so as to preserve them as museum specimens for future
generations to study and enjoy, because of the value of their culture and its
picturesqueness in a world rapidly advancing in high organization and mass production.
With this view as a whole if not in its extremities, the survey staff has great sympathy. It
would not recommend the attempt to force individual Indians or groups of Indians to be
what they do not want to be, to break their pride in themselves or in their Indian race, or
to deprive them of their Indian culture. Such efforts may break down the good in the old
without replacing it with compensating good from the new.
The fact remains, however, that the hands of the clock cannot be turned
backward. These Indians are face to face with the predominating civilization of the
whites. This advancing tide of white civilization has as a rule destroyed the economic
foundations upon which the Indian culture rested. This economic foundation cannot be
restored as it was. The Indians cannot be set apart from contact with the whites… The
glass case policy us impracticable. (MERIAM, et al, 1928: 86-87)
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
321
Aqui os índios eram reconhecidos como tendo uma cultura, elementos os quais
são validos de serem preservados. O Relatório usava o conceito de cultura em sua
acepção contemporânea e situava a propriedade dessa cultura pelos índios como um
estado de coisas potencialmente positivo. Seguindo o conceito contemporâneo de cultura,
contudo, isso era compreendido como um item único e coesivo e não como modelos
compartilhados (plural) de vida social produzidos por diferentes grupos nativos. Esse era
apresentado como o estilo especifico de vida partilhado por todos os índios que estava
por detrás ou abaixo da civilização branca em termos evolutivos e que permanecia a
frente de estruturas econômicas pré-contratuais e agora arcaicas. Uma vez que essas
estruturas haviam sido irremediavelmente destruídas, os autores do Relatório Meriam
postulavam apenas dois possíveis caminhos para o futuro indígena: os índios deveriam
tanto agregarem-se a civilização dominante, tornando-se social e economicamente
indistinguíveis do americano “normal” (leia-se anglo-saxão branco), ou deveriam
adaptar-se a vida naquilo que essa civilização considerava ser um padrão de vida
“decente”. Em ambos os casos, os índios necessitavam da intervenção da engenharia
social: moldados para enquadrarem-se a padrões aceitáveis que deveriam ser encontrados
por eles na sociedade dominante que os circundava. Essa engenharia social era, de fato, o
inteiro objetivo do Indian Work, compreendido no Relatório como sendo qualquer
esforço exógeno que visasse resolver os problemas e demandas dos índios.
O Relatório Meriam, enquanto servia como um mandado para uma reforma no
campo dos Indian Affairs, também ilustrava assim a compreensão básica da cultura
nativa (singular) que deveria ser atingida por essas reformas. Seguindo os usos das
ciências sociais contemporâneas, discutidas no capitulo 4 e 5 acima, os índios eram
compreendidos como possuindo uma cultura desajustada. Eles precisavam libertar-se
dessa cultura, “aderindo a vida social e econômica da civilização existente como
desenvolvida”, ou aceitar a reconstrução de sua vida econômica através da intervenção
ativa de outsiders. Em todo caso, a vida indígena “pitoresca” tal como era vivida era
inaceitável para as premissas da modernidade americana, preocupada como estava com a
“alta organização e a produção de massa”. Qualquer argumento contrário eram nada mais
do que tentativas de objetivas os índios, “preservando-os como espécimes de museus para
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
322
o prazer e o estudo de gerações futuras”. Nessa visão da vida indígena promulgada pelo
Relatório Meriam, portanto, solucionar os problemas indígenas – tais como a falta de
cuidados médicos, subnutrição e educação inadequada – era sinônimo de resolver o
problema do índio: também pela remoção dos nativos americanos enquanto grupos sócio-
culturais modificados que poderiam impactar sobre a política americana. De uma forma
ou de outra, os índios precisavam ser “altamente organizados” e transformados em
cidadãos bons e produtivos da república, através de uma intervenção externa. A cultura
indígena, conquanto fosse permitida a continuar a existir dentro desse cenário, não
deveria ser tão preservada como remodelada através da intervenção direta da OIA. Essa
orientação do Relatório é mais aparente em sua rejeição da participação de antropólogos
em equipes de pesquisa multi-disciplinares que conduziam o estudo, por medo que esses
indivíduos tivessem de “idéias preconcebidas” em relação ao valor inerente de culturas
indígenas (PARMAN, 1982:255).
O Relatório Meriam apresentava assim as limitações ideológicas da reforma de
1930. A reforma dos Indian Affairs era o foco de uma eventual assimilação total dos
nativos americanos a economia industrial de mercado e qualquer flerte com a crescente
soberania tribal ou a renovação cultural precisava ser esclarecida para ser subordinada a
uma tal finalidade. O Relatório deu a Collier a munição suficiente para impulsionar
reformas na OIA, mas ao mesmo tempo, evitava apoiar seus pressupostos pluralistas
acerca da cultura nativa. Ele delineou várias soluções possíveis para o “problema da
administração indígena” que foi eventualmente incorporado pelo Indian New Deal, dois
dos quais são de particular importância a nosso foco aqui.
Em primeiro lugar, enquanto o Relatório Meriam não rejeitava explicitamente o
loteamento, admitia que essa política tinha levado diretamente ao empobrecimento
indígena e, mormente, que isso criou um prejuízo quase insustentável nos recursos da
OIA. Ressaltando que “umas poucas unidades tribais são mais facilmente administradas e
conservadas do que muitas propriedades individuais”, o Relatório argumentava que “a
rápida mudança de posses tribais para individuais também teria aumentado o trabalho,
tanto quanto as complexidades e dificuldades de administração pelo governo” porque
“lidar com pessoas em amplos grupos e propriedades dentro de poucas unidades era mais
simples do que lidar com grupos enquanto indivíduos e com propriedades em milhares de
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
323
pequenas unidades” (MERIAM et al, 1928: 460). Dado que os loteamentos falharam em
transformar índios em prósperos cidadãos americanos, que elas precisavam ser mantidos
sob a vigilância e tutela do governo federal (ao menos pelo momento) e que a dita
proteção e tutela precisava ser conduzida de maneira lucrativa, o Relatório Meriam
indicava que ela teve um bom senso administrativo ao suspender os loteamentos e
trabalhar com índios em unidades tribais. Essa proposta foi imediatamente carreada por
Collier, logo após assumir como comissário em 1933 diante da proibição de Harold Icke,
feita a seu pedido, de vendas de todas as terras loteadas com o sentido de prevenir
maiores erosões na base de terras indígena. Essa proibição viria a tornar-se permanente
(IAW, #2, s/d).
Uma segunda proposta que teria um enorme efeito na OIA foi a sugestão do
Relatório Meriam que uma divisão planejada técnico-científica fosse estabelecida
naquela agência.
Como Parman sinaliza, Meriam, tal como Collier, “epitomizaram a fé progressiva
na administração cientifica” e acreditavam firmemente que os problemas sociais
poderiam ser resolvidos através da intervenção da ciência social aplicada (PARMAN,
1982: 256). Refletindo essa visão, o Relatório recomendava enfaticamente que o
Secretario do Interior pedisse ao Congresso 250 mil dólares “para estabelecer, em
conexão com o escritório central [da OIA], mas com muitras tarefas no campo, uma
Divisão de Planejamento e Desenvolvimento cientifica e técnica”. Os autores do
Relatório acreditavam firmemente que o estabelecimento dessa divisão era um passo
essencial para fazer do Indian Service uma agencia de educação eficiente” (MERIAM, et
all, 1928: 23). À luz de suas semelhanças às responsabilidades da Unidade de
Antropologia Aplicada da OIA (que discutiremos no próximo capitulo), é interessante
notar que o Relatório considerava serem funções da Divisão:
1) Aconselhar o comissário dos Indian Affais em matérias que requeriam
conhecimento técnico ou cientifico de problemas particulares.
2) A pedido do comissário e sujeita a sua aprovação, formular programas e
desenvolver políticas para serem aplicadas pelos oficiais administrativos ou para
assistir ao planejamento de programas cooperativos que as autoridades estaduais e
locais com organizações missionárias ou outras agencias privadas.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
324
3) Visitar escolas e agencias para relatar ao comissário sobre a eficiência da
administração desses ramos do trabalho de caráter profissional, técnico ou
cientifico.
4) Visitar escolas e agencias para aconselhar e recomendar com os superintendentes
e outros empregados acerca do desenvolvimento e melhoria dessas atividades
especializadas.
5) Sob a direção do comissário, investigar e manter-se alertas em assuntos de
especial preocupação que envolvam assuntos técnicos ou científicos.
A divisão deveria operar em uma base de projetos. Para o desenvolvimento de
programas fundamentais para jurisdições importantes, comitês seriam organizados
incluindo cientistas e oficiais administrativos e esses formulariam recomendações apos
conduzir pesquisas de campo sistemáticas (MERIAM et al, 1928: 23-24). Ainda que o
AAU nunca seria oficialmente responsabilizado por todas as atividades descritas acima –
e certamente seus membros nunca fossem isoladamente responsabilizados por suportá-los
em práticas – a Unidade dos Antropólogos, como devemos ver abaixo, envolveu a eles
mesmos em todas as áreas descritas pelo Relatório Meriam como estando sob a
competência da Divisão Técnica e Cientifica proposta.
Podemos portanto concluir que o Relatório Meriam não era nada menos que um
rascunho para a reformulação dos indígenas americanos via, entre outras coisas, a
aplicação da ciência social. É importante lembrar que pelos anos 1920-30, os indígenas
americanos eram perfeitamente situados como o grupo teste para a aplicação de teorias
acerca da criação consciente de mudanças na vida social humana. Como um grupo de
pessoas situada sob a tutela do governo, os indígenas americanos foram alvos
preferenciais de intervenções sociais unilaterais. Ademais, eles foram um grupo
relativamente pequeno e bem concentrado espalhado por quase 200 reservas do governo,
bem definidas e controladas.
Em outras palavras, no sentido das observações de James Scott, com respeito às
características de alvos privilegiados para esquemas autoritários, controlados pelo Estado,
e socialmente centralizados de engenharia, os nativos americanos nos Estados Unidos do
principio do século XX foram incrivelmente “privilegiados”. Scott marca que duas das
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
325
precondições necessárias para a geração de tais esquemas são um regime autoritário e
uma “sociedade civil prostrada”. Ainda que os EUA não fosse mesmo um estado
autoritário, a regra da OIA acerca das acusações nativas dificilmente poderia ser
qualificada como algo que não fosse isso. Similarmente, ainda que a sociedade civil em
geral dos Estados Unidos estivesse longe de ser passiva durante os anos 1930, a
participação política indígena americana dentro daquela sociedade civil era no mínimo
marginal. O terceiro maior elemento que Scott aponta como necessário para uma
engenharia social desencadeada pelo Estado é uma ideologia altamente moderna, descrita
pelo autor como uma “versão hipertrofiada da auto-confiança sobre o progresso
cientifico, a expansão da produção, o crescimento da satisfação das necessidades
humanas, o controle da natureza (inclusive da natureza humana) e, acima de tudo o
delineamento de uma ordem social proporcional a compreensão cientifica das leis
naturais” (SCOTT, 1998: 4). No campo dos Indian Affairs norte-americanos dos anos
1930, essa ideologia estaria alimentadas por compreensões antropológicas dos indígenas
e sobretudo seu papel na estrutura social mais ampla dos Estados Unidos como uma raça
invariavelmente em extinção e pela fé de pessoas como John Collier na capacidade dos
cientistas sociais em dirigir intervenções positivas e significativas aos assuntos da
comunidade.
Governo indireto e o indigenismo mexicano: diretivas para uma nova política
Se o Relatório Meriam ofereceu um mandato para a reforma dos Indian Affairs e
indicou que aplicações das ciências sociais seriam um componente necessário para essa
tarefa, existia pouca experiência pragmática no governo americano com a administração
cientifica com grupos tutelados. Por essa razão, John Collier foi forçado a observar para
fora das fronteiras do país para modelos administrativos que pudessem ser adaptados a
situação dos índios americanos. Suas duas maiores inspirações vieram do México e do
Império Britânico.
John Collier estava fascinado pelas possibilidades dos filósofos do “governo
indireto”, então em voga pelos antropólogos britânicos na administração de várias
populações nativas de seu império. Ele compreendeu esse conceito (citando Julian
Huxley em Africa View) como “o emprego de instituições existentes dos [nativos] para
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
326
todos os propósitos para os quais fossem adequadas [...] Sua moldagem gradual em
canais de mudança progressiva, e o encorajamento, dentro dos limites mais amplos, de
tradição local, orgulho local e iniciativa local, e assim para a maior liberdade e variedade
de desenvolvimento local possíveis [...]” Collier escreveu sobre a aplicação de políticas
de governo indireto Britânico aos Indian Affairs norte-americanos quase dois anos antes
de aceitar o posto de comissário da OIA e fez a requerida leitura do livro de Huxley para
os empregados da OIA posteriormente (COLLIER, 1931; 1963: 348-349; HUXLEY,
1931; HAUPTMANN, 1986: 367).
O governo indireto oferecia um significado de ... as filosofias assimilacionistas
que ... os Indian Affairs norte-americanos com a crença pessoal de Collier de que culturas
e tradições nativas precisavam ser reforçadas. Ainda que isso tenha funcionado no
sentido da assimilação (a “moldagem gradual em canais de mudança progressiva”),
também presumiu que a alteridade nativa não necessariamente desapareceria pela ênfase
na necessidade de “tradições locais [...] orgulho [...] iniciativa, e [...] liberdade e
variedade de desenvolvimento local”. Essa era uma concepção que via os índios tão
moldáveis as necessidades brancas sem que necessariamente tornassem-se brancos. Nesse
sentido, “governo indireto”, tal como aplicado aos índios americanos, revitalizou o
impulso segregacionista dos Indian Affairs americanos, mas em uma nova direção:
fronteiras étnicas fora substituídas pelas autenticas fronteiras físicas como as linhas
divisórias que protegeriam os índios durante o processo de assimilação. Como as antigas
formas de segregação, contudo, a força política que subjacente que impulsionava a
implementação do governo indireto para os nativos americanos era a preservação de
metas políticas e econômicas de poder dominante do cenário do mundo mais amplo.
Collier deixa essa assertiva absolutamente transparente em sua autobiografia, escrita em
1963:
Indirect rule must, to serve faithfully its purposes, be a partnership between the
ruling power and the “native” people; a partnership whose goal is complete
independence, but whose goal is also a partnership continuing past independence. This
view is well and fully stated in the Penguin Special, Attitude to Africa. These sentences
from this study are illustrative:
"While Britain is committed, both by her political ideals and by the inherent
political forces of her empire, to the progressive abdication of power and the
transformation of authority into influence, her moral responsibility does not decrease…
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
327
for the devolution of power… is the most delicate, difficult and exacting of all the roles
that can be played by an imperial state.”
This practice of the highest of human arts is accompanied with but minor
deviations all the way. To concentrate on the deviations, on the temporary haltings, and
on the economic interferences, is to lose the meaning of a great, shared effort of will,
shared between the ruling sovereignty and the ruled people. (COLLIER, 1963: 350-351)
Collier assim viu o governo indireto como uma parceria entre os nativos e o poder
imperial dominante. Essa parceria parece ter recuperado um bom quinhão das velhas
definições de Justice Marshall dos índios como “nações domesticas dependentes”. Em
uma tal parceria, grupos nativos deveriam receber uma medida de sua soberania, mas
apenas no grau de que eles não traíssem os interesses nacionais do poder dominante. Em
outras palavras, portanto, se definimos o Problema Indígena como a capacidade dos
povos nativos oporem-se a expansão e consolidação político-econômica, o governo
indireto propunha colocar maior controle interno das políticas nativas nas mãos dos
nativos, mas que não criariam problemas ou conflitos significativos com a sociedade
dominante – nesse caso, o governo federal.
Outra grande influencia sobre o pensamento de Collier nos anos próximos a sua
admissão como comissário da OIA – e um que era completamente ignorado pelos
intelectuais dos Indian Affairs – foram os experimentos de governo indireto do governo
mexicano. Muito pouco é sabido acerca da conexão de Collier com o México antes de
1933, mas não há duvidas de que pelo período ele entrou para a OIA, ele era
especialmente capacitado nos elementos da história da administração indígena na
América Latina (particularmente a historia das missões jesuíticas dos séculos XVII e
XVIII) e que ele fez muitos contatos significativos entre indigenistas mexicanos.
Em sua auto-biografia, Collier menciona uma viagem ao México em 1930, uma
data que pode ser ratificada pelas pesquisas de Philp. Em Indians of the Americas,
contudo, Collier argumenta ter estado no México onze anos antes de sua viagem ao Taos,
que dataria essa viagem por volta de 1931. A conclusão do livro de Kelly por volta do
fim dos anos 1920, não diz nada sob esse aspecto (COLLIER, 1947: 9; 1963: 326;
KELLY, 1983; PHILPS, 1977: 97). Em um artigo separado, Philps descreve sua viagem
e objetivos diretos em alguns detalhes:
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
328
Collier went to Mexico in order to hold discussions with “Indianist workers”
3
about the possibility of establishing an inter-American Indian institute. He was especially
impressed with the work of two anthropologists, Manuel Gamio and Moisés Saénz.
Gamio was an authority on Mexican immigration to the United States and had been
responsible for the excavations of the ruins of Teotihuacan. Saénz had served in the
Ministry of Education and played an active role in the construction of rural schools for
Indians…. Gamio and Saénz glorified Indian civilization and favored group integration to
strengthen Mexican nationalism (PHILPS, 1979: 6).
O indigenismo mexicano é um tópico que contou com uma literatura própria
sensivelmente extensa que está muito além do escopo dessa tese
4
. De acordo com
Alexander S. Dawson, o movimento caracterizou-se por uma reapropriação de imagens
de culturas nativas em uma tentativa de redefinir o relacionamento entre índios e o Estado
no México. Através de muito da história mexicana, indígenas desconsiderados como o
problema negativo da nação, um elemento que precisaria desaparecer para que o
verdadeiro progresso acontecesse. O indigenismo, por outro lado, não apenas celebra os
indígenas como parte de uma fonte para o passado da nação mexicana, mas também
olhava para sua total incorporação como cidadãos mexicanos, como a chave para o futuro
do México. Como muitos autores revisionistas sinalizaram contudo, essa re-orientação
era mais aparente do que real, como continuava a ver os índios como seres
imperfeitamente civilizados entre os quais o Estado Mexicano precisava intervir
ativamente (DAWSON, 1998; BONFIL, 1996).
Tanto Dawson como Souza Lima marcaram o papel que teve a antropologia no
indigenismo mexicano desse período. Manuel Gamio foi o primeiro mexicano a obter o
titulo de doutor fora do México, tendo estudado com Franz Boas em Columbia e tem sido
amplamente considerado como “o pai da antropologia mexicana” (DAWSON, 1989:
281). Como Souza Lima relata, a antropologia de Gamio tinha uma orientação
acentuadamente nacionalista. Em um de seus trabalhos mais famosos, Forjando Patria:
3
Nos poucos trabalhos americanos que lidam com o fenômeno do indigenismo na América Latina, a
palavra é geralmente traduzida como “indianism” e os indigenistas são transformados em “indianist
workers” ou "indianists”. Devemos lembrar os leitores que, para os fins do presente trabalho, entendemos o
indigenismo, seguindo Antônio Carlos de Souza Lima, como "o conjunto de idéias (e ideais, i.e., aquelas
elevadas à qualidade de metas a serem atingidas em termos práticos) relativas à inserção de povos
indígenas em sociedades subsumidas a Estados Nacionais". Dentro dessa definição, os indigenistas são
aqueles representativos do Estado cuja responsabilidade é a implementação das políticas práticas que
buscam atingir essa meta (SOUZA LIMA, 1995: 14-15).
4
Os leitores interessados no indigenismo Mexicano devem ler TORRES, 1990; MATZAL, 1989;
DELPAR, 1992; ADLER, 1992; ARMAS, 1970; BONFIL, 1970 e 1981; e COMAS, 1964 entre outros.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
329
Pro-Nacionalismo (1916), Gamio articulou uma clara conexão entre o trabalho
antropológico com grupos indígenas e a construção do nacionalismo mexicano moderno,
sendo esse que a população nativa era compreendida pelo antropólogo como uma das
origens mais importantes da nação. Sendo esse o caso, Gamio argumentava que o estudo
antropológico das sociedades indígenas contemporâneas ofereceria ao Estado mexicano
“o verdadeiro evangelho do bom governo” (GAMIO, APUD SOUZA LIMA, 2002: 163).
Os paralelos entre esse tipo de pensamento e aquele de Collier devem ser óbvios.
Em ambos os casos, supunha-se que as realidades nativas deveriam oferecer um
elemento-chave constitutivo para futuros nacionais. Em ambos os casos, grupos nativos
eram vistos como estando necessitados de intervenção direta de fora com sentido de
“ajustá-los” às sociedades que os cercavam. Finalmente, em ambos os casos, as ciências
sociais aplicadas eram compreendidas como tendo um orgulho ... em realizar esses
ajustes. Enquanto era verdade que tanto o indigenismo mexicano e a filosofia social de
John Collier não envisavam aos índios distantes como Outros alienígenas, mas antes
procuravam incluí-los como membros incipientes e valorosos da comunidade nacional, e
também é igualmente verdade que uma tal valorização dos indígenas coloca-o
diretamente subordinado a sua realidade nacional mais ampla.
John Collier formou uma parceria com Gamio e Saénz que duraria a vida toda dos
trio e que resultaria, entre outras coisas, na fundação do Interameican Indigenous
Institute, que mencionaremos em nosso capitulo final. A carta de Collier a Lewis Meriam
(arquiteto do Relatório Meriam), em setembro de 1931, ilustra a profunda impressão que
os indigenistas mexicanos tiveram em suas visões da administração indígena:
My impression as to the importance of what has grown up in Mexico under [Dr.
Saénz’] hand strengthens as I get perspective by being away from it... [W]e have a world
to learn from Mexico’s policy and experience with Indians… That policy is one which
we all in the U.S.A. would want for our Indians but we haven’t anywhere been able to get
it (JCP Reel #4).
Collier ainda desposaria dessas visões em um artigo para Progressive Education
de fevereiro de 1932, intitulado “Mexico: a Challenge”. Nesse, ele argumentava que “o
México tinha lições a ensinar aos Estados Unidos nessa questão [...] da administração
indígena”. Collier exaltou o uso mexicano do comunalismo, da iniciativa local e do
governo local na elaboração de um novo sistema educacional indígena. De acordo com
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
330
Collier, pobreza forçou o México “a usar atração, ao invés de compulsão, para emular os
grupos locais com as principais questões do trabalho e a renunciar aos fetiches do assim
treinamento assim chamado reducionista acadêmico e a estandarização dos professores
das faculdades, tal como conhecida nos Estados Unidos.” Essa iniciativa fez da “pobreza
[...] em si, criativa”. Collier apreendeu a experiência mexicana como uma forma de
reduzir as despesas da OIA na educação indígena, enquanto reforçava socialmente as
comunidades nativas. “As ofertas do México para audar a comunidade, torna-se sua
própria escola”, argumentava Collier, “e a escola no México [...[ é uma propriedade da
comunidade, uma comunidade florescente e incandescente, e uma ferramenta comunitária
para melhorar a vida em suas condições locais.” O México, assim, tinha aparentemente
resolvido o problema que teria assolado Collier durante seu trabalho para o People’s
Institute em Nova Iorque: ele criou um mecanismo civilizacionista que estava
supostamente sob o controle de aqueles que deveriam ser civilizados (COLLIER, 1932:
95-96).
Collier traçou uma série de conclusões a partir da experiência mexicana. A
primeira era que ele viu isso como a confirmação que ele considerou como uma parte
essencial da vida indígena – o corporativismo:
The Indian tends towards the corporate life which he lived for many ages in the
past. As a member of a commune or corporation he is, relatively speaking, satisfied,
laborious and ambitious; and his social frictions tend to disappear. His whole nature, not
merely his desire for property, adjusts into a corporate embodiment.
Collier via no México a confirmação de suas crenças no nativo americano como
um comunista natural, um homem comunal cuja vida social era caracterizada por
gemeinschaft. Ao invés de tentar inserir o índio em relacionamentos capitalistas
individuais, a tarefa própria do administrador era de respeitar a natureza e lidar com os
grupos indígenas como entidades corporadas. México teria feito isso por encorajar
“consciente e oficialmente [...] ao invés de tentar banir as disposições corporativas dos
índios.” A terra era distribuída sobe o esquema mexicano do edijo, apenas àqueles
“indivíduos que agremiavam-se em corpos corporados, e que operavam corporativamente
não apenas na industria da terra, mas em problemas de cultura social [...]. O governo
submeteu-se a, e agora está explorando por razões de economia e eficiência e por maiores
objetivos remotos, uma tendência inveterada e auto-consciente da tradição social dos
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
331
índios”. Como resultado dessa política, Collier acreditava que o México criou uma
sociedade socialista utópica naturalmente corporativa que era “fragilmente consciente, ou
totalmente inconsciente, de doutrinas filosóficas revolucionarias ou conturbações em
outras partes do mundo. E uma sociedade ocupada com o trabalho de equipar0se a si
mesma com modernas técnicas de ação cooperativa” (COLLIER, 1932: 96-97). “O
desenvolvimento do Serviço Indígena Mexicano (auto-serviço) não aconteceu
meramente,” ele argumentaria posteriormente na revista mensal da OIA: “ele foi
planejado por um homem de estado sociologicamente informado, que tinha asas na
imaginação tanto quanto, e os planos foram testados através de controle e de
experimentos e demonstrações cuidadosamente recolhidos” (IaW, #8, 1933: 4).
É tentador concluir que o indigenismo mexicano foi, de fato, a principal
influencia pode detrás dos planos de John Collier para reformar a OIA. Mesmo sem
contar com profundas investigações em arquivos mexicanos essa é, certamente, uma
hipótese que não pode ser descartada. Minha pesquisa, entretanto, levou-me a acreditar
que ambas as reformas que ocorreram nas administrações indígenas mexicana e norte-
americana podem ter tido fontes comuns e essa fonte era a série de encontros entre os
cientistas sociais românticos como John Collier e Manuel Gamio no México em fins dos
anos 1920, princípios dos 1930. Nas publicações de Collier, ele apresenta um
indigenismo mexicano como um modelo administrativo totalmente estabelecido e
operante do qual os Estados Unidos fariam bem em emular-se. Contudo, um artigo em
uma cópia de um periódico oficial do governo mexicano, dado ao delegado brasileiro
Roquette-Pinto por ocasião da Conferência Patzcuaro, mosrta que a nação já tinha
estabelecido seu próprio serviço administrativo indígena em 1936 – 3 anos depois da
ascensão de Collier ao posto de comissário da OIA e ao menos 5 anos após seu primeiro
contato registrado com is indigenistas mexicanos. Mais ainda, a linguagem desse artigo
ecoa o tom e contem muitas das primeiras proclamações de Collier acerca dos Indian
Affairs norte-americanos e o próprio titulo da nova agencia – El Departamento de
Assuntos Indigenas – parece ter sido diretamente inspirado pelo nome da Agencia dos
Indian Affairs (Arquivos de Roquete-Pinto na ABL). Collier e Saenz certamente
comunicaram-se freqüentemente e intimamente acerca dos Indian Affairs e seus planos
em conjunto para a reforma disso em uma escala hemisférica muito antes da
Cidadãos e Selvagens Capítulo VI
332
homologação formal de Collier na OIA e até a morte de Saenz em 1941. Como devemos
discutir no Capitulo 9, foi o dinheiro americano e a pressão diplomática que finalmente
viabilizaram a Conferência Patzcuaro de sobre a vida indígena e a subseqüente formação
do Instituto Indigenista Interamericana, no qual tanto Collier quanto Saenz participaram
do alto comissariado.
Dado esses fatos e a ausência de maiores pesquisas nos arquivos mexicanos, é
prematuro concluir que tanto o indigenismo mexicano dirigiu o indigenismo de Collier e
seus aliados, quanto que foi o Indian New Deal que deu nova vida ao indigenismo
mexicano, ou ainda – o que parece mais plausível – que ambos os indigenismos,
mexicano e norte-americano, usaram experiências de seus contra-partidos com o sentido
de reforçar argumentos de uma arena nacional, política e orçamentária. Em qualquer
caso, uma coisa é bem certa: a associação entre os lideres da administração de Collier na
OIA e os principais indigenistas mexicanos como Manuel Gamio, Moises Saenz e Juan
Comas era o principal, perdurável e profundo eixo juntamente com idéias e praticas
acerca da administração moderna de comunidades nativas no contexto de que os estados-
nação coloniais desenvolviam suas idas e vindas.
Cidadãos e Selvagens Parte II Conclusões
333
PARTE II - Conclusões
It is recognized that the Indians of each reservation have a right to fully participate in the handling
of their own affairs. It is, therefore, suggested that under suitable legislation Indian communities,
wherever they desire increased powers of self-government and are equipped by tradition, experience
or education to exercise such powers should be organized and chartered as municipal corporations,
and that such municipal corporations be entrusted with powers and responsibilities similar to those
customarily exercised by a village or county government…
It is the belief of the Administration that any satisfactory community plan must be based upon a
system of land tenure that secures the economic use of the land. In place of the present system with
its scattered individual holdings, growing more complicated with every inheritance, the Indian
Community should be empowered to promulgate a plan of community development, to block out
Indian lands in economic units fit for farming, grazing, or timber operations, and adaptable to
satisfactory location of private homes and community buildings, and to secure the most satisfactory
use of Indian lands by Indians.
BIA Circular80426, Indian Self-Government, 20-1-1934 (NARA Docs - Indian Organization - RG
75 1011 Box 8)
No século XIX, o problema do índio estava referido a questão de como remover
os índios de suas terras sem criar dispendiosas guerras de fronteira. Pelo período Dawes,
isso transformou-se. Ainda que a terra continuasse a ser o interesse primário (alguns
diriam o principal) do problema do índio, a questão mais debatida tornou-se como
integrar os índios em uma república da forma mais financeiramente eficiente possível.
Isso continuou a ser o principal referente do problema dos índios durante as primeiras
décadas do século XX. O Relatório Meriam fez isso extremamente claro. “Trabalho
especial com ou para um índio individualmente seria necessário”, dizia “até que ele possa
manter-se por seus próprios esforços na presença da civilização branca, de acordo com
um mínimo padrão de decência e saúde. Até que ele atinja o desenvolvimento, continua a
ser um problema tanto para o estado nacional, o governo local ou a filantropia privada”
(MERIAM et al, 1928: 89).
O que mudou entre 1887 e 1928 foi a visão de que as políticas indígenas deveriam
participar desse “desenvolvimento”. Como vimos na Sessão I, os antropólogos e
administradores dos 1880 presumiram que foram essas políticas que, de fato, impediram
os indígenas de progredir e, finalmente, sua remoção da tutela da OIA (e,
conseqüentemente, de todos os direitos e responsabilidades que o status de índio
francamente compreendido como dependente da tutela – davam-lhe). O Relatório
Meriam admitia o que reformadores como John Collier estiveram bradando por quase
Cidadãos e Selvagens Parte II Conclusões
334
uma década: que o loteamento individual de terra e a tentativa de colapsar as estruturas
sócio-politicas nativas não diminuíram o número de nativos americanos ou eliminou suas
sociedades: o que isso fez, contudo, foi eliminar uma porção substantiva da base de terras
indígenas. Como resultado, os nativos americanos tornaram-se um dos grupos
populacionais mais depauperados dos Estados Unidos. A proposta que John Collier
trouxe para a OIA era de usar as estruturas sociais nativas para indexar essa situação e há
uma certa indicação, como vimos acima, de que ele também olhou no sentido de uma
reprodução indefinida das sociedades nativas através desse método. Quais fossem as
crenças pessoais de Collier, a lógica arrogante prevalescente no campo político dos
Indian Affairs, como espressa no Relatório Meriam e as atitudes dos congressistas
compondo o senado e a ... dos Indian Affairs, era aquela dos Indian Affairs finalmente
constituídos para fazerem os índios desaparecerem, ao menos enquanto um elemento de
preocupação do governo federal.
O que Collier propunha essencialmente era que políticas nativas fossem
reforçadas com a colaboração da OIA, que se formasse governos tribais, auxílios
orçamentários e econômicos fossem dados e que o poder passasse gradualmente para
aquelas estruturas para que eventualmente tornariam-se os maiores promotores e gestores
daquilo que estava, naquele momento, tornando-se conhecido como desenvolvimento
1
.
Como essas políticas tornaram-se mais eficientes em se auto governarem, era suposto que
elas fossem tornar-se inevitavelmente auto-suficientes em termos econômicos. Isso, por
outro lado, significaria que o governo federal poderia gradualmente reduzir seu interesse
pelos Indian Affairs até um ponto tal no futuro aonde a OIA pudesse ser totalmente
desmontada.
Em 1933, instalado no poder dentro da OIA e firmemente apoiado por seus
superiores e um quadro de competentes oficiais, John Collier teve a visão, o poder e uma
série de diretrizes pragmáticas para uma reformulação total das praticas administrativas
norte-americanas. Ambos o indigenismo mexicano e a política de governo indireto do
império britânico, apontavam claramente no sentido das idéias de Collier acerca do futuro
da política norte-americana dos Indian Affairs. Essa política deveria almejar primeira e
1
Segundo Ferguson (1994) e Escobar (1991; 1995) a modernização de sociedades tradicionais é
geralmente “entendida como a incorporação destas nas economias nacional e mundial” (FERGUSON,
1991: 663-664).
Cidadãos e Selvagens Parte II Conclusões
335
fundamentalmente para prevenir futuras erosões da base territorial nativa pela proibição
de vendas de terras dos índios americanos. Isso seria incorporado a natureza, tratando os
índios enquanto grupos e não como indivíduos e procurando prover-lhes com tanta
soberania local quanto fosse possível, dentro das estruturas gerais impostas pelos
conceitos americanos do Destino Manifesto que estipulava a subordinação dos índios aos
tesouros gerais da nação. Isso, ademais, procuraria fazer dos índios agentes coletivos e
conscientes de sua própria assimilação, permitindo-lhes viver “de acordo com um padrão
mínimo de saúde e decência na presença da civilização branca”, enquanto
simultaneamente preservasse sua essência enquanto “outro” étnico. Isso seria, no jargão
de uma geração mais tardia de antropólogos, uma tentativa de transformar os índios em
americanos hifenizados: cidadãos da nação plural que a herança étnica proveria de uma
cor não ameaçadora para a vida nacional. Finalmente, reforçando a vida grupal dos
nativos americanos, ele procurava fazer deles um tipo de homo-cooperativus – uma
resposta viva ao totalitarismo crescente da crise do capitalismo industrial.
Esse projeto, contudo, seria assumido por um mandato político do congresso que
não rejeitaria a assimilação indígena total – ou mesmo a assimilação forçada – e que viu a
consolidação e proteção das terras e recursos indígenas como meios de reduzir as
despesas da OIA e não como um mandato para reforçar, e assim perpetuar, o tribalismo
nativo americano. Essa contradição básica acerca das metas voltaria a acossar John
Collier diversas vezes durante seu período como comissário. Os comitês da Casa e do
Senado, que haviam originalmente ordenado a investigação de Meriam, renovariam
periodicamente a resolução do congresso outorgando-lhes um poder de primeiro plano,
assim situando-os acima como algo tipo um comitê supervisor com o poder de veto à
qualquer das propostas de Collier através do simples expediente de cortar seu orçamento.
Em outras palavras, mesmo que Collier, diferente de outros comissários antes dele,
tivesse atingido uma aliança notável de compatibilidade com os friends of the Indian e ao
redor da OIA por volta de 1933, ele estaria trabalhando sob o olhar aguçado da
supervisão direta do congresso durante seu mandato. Como Vine Deloria explana, esse
comitê “procurava manter as rédeas dos programas do New Deal pelo medo de que
qualquer influencia ‘estrangeira’ fosse desenvolvida. Ele não poderia conceber a
Cidadãos e Selvagens Parte II Conclusões
336
devolução do auto-governo a grupos que deveriam ter desaparecido a muito tempo atrás”
(DELORIA, V. 1970: 55).
O direcionamento era assim por re-corporizar as comunidades nativas americanas
assentando-as firmemente em terras não-alienáveis, de posse comunitária e de
administração das reservas, estruturas tribais tipo oficiais, unidades auto-governativas,
(administradas, contudo, através do Departamento do Interior e da OIA) e,
eventualmente, passava o controle diário das operações da administração indígena para as
mãos daqueles governos nativos. O mote geral dessa política era duplo: procurava reduzir
os gastos federais na administração dos nativos, fazendo dessas comunidades tão auto-
sustentáveis e auto-administrativas quanto possível; e divisava absorver e assimilar esses
grupos enquanto comunidades, antes do que indivíduos. Nas palavras de uma testemunha
antropológica contemporânea – palavras que seriam muitas vezes repetidas, de uma
forma ou outra, por Collier e seus principais conselheiros durante o curso do Indian New
Deal – “de alguma forma os índios deveriam fazerem-se valer enquanto indivíduos. Ele
apenas pode fazer isso por um senso de orgulho em seu grupo”.
Placed in village communities with outlying farms cared for communally, the
proceeds shared communally, the stock raised in herds as a common venture, a water
supply for each village where the Indian love of personal cleanliness which was in old
days a religious and therapeutic duty could be satisfied and a water supply for house and
garden could be available, especially freed from exploitation by the whites and taught to
depend on his own resources within the reservation as far as possible, the Indian would
be in a far better way to develop an interesting and successful culture which would
enrich our American life [our emphasis] (Martha Beckwith. NARA RG 75 (BIA), Entry
1011, 4894-1934-066 Pt. 10-A
).
2
É importante indicar que essa mesma antropóloga teve opiniões muito claras
acerca do que reduziu os nativos americanos ao seu atual estado de pobreza e miséria:
loteamento de terras individuais. Isso deixou os índios “espalhados ao longo das reservas
em fazendas solitariamente isoladas”, ainda que isso fosse “suposto para reestruturar
inteiramente seu modo de vida de acordo com o padrão do homem branco!” (Ibid.). suas
palavras ecoaram amplamente em quase todos os antropólogos que aconselhariam a OIA
durante os anos de Collier. Era de reconhecimento geral que a tentativa do governo,
2
A enunciação mais bem conhecida e comunamente citada dessa ideologia, feita por John Collier, pode ser
encontrada no editorial escrita pelo mesmo para a edição de 1/2/1936 de Indians at Work e do qual citamos
acima.
Cidadãos e Selvagens Parte II Conclusões
337
antropologicamente aconselhada, federal recorrendo a tentativas de eliminar as
identidades grupais através de uma desestruturação da estrutura da família, do clã e da
estrutura tribal com o Dawes Act, falhou. Essa tentativa, longe de criar cidadãos nativos
americanos individualizados e assimilados, resultou na criação do que o Dawes Act era
suposto prevenir: grupos de nativos americanos depauperados e sem-terras que, nos
dizeres do Relatório Meriam, não se enquadrariam em “viver na presença da civilização
[branca] ou ao menos de acordo com padrões mínimos de saúde e decência.”
Tendo falhado na individualização e absorção dos índios, então, parecia
impossível que uma solução ao perene problema indígena poderia incorporar os índios ao
tecido nacional como grupos, preparando uma dissolução mais ampla. Esse era o aspecto-
chave do Indian New Deal que havia escapado a muitos analistas, apesar de haver sido
amplamente enunciado por Collier e seus aliados em diversas ocasiões. A diretiva do
IND não era necessariamente de preservar ou recriar antigas organizações e costumes
tribais (ainda que ficasse feliz se criasse grupos mais facilmente administráveis): antes, o
IND procurava criar novas identidades comunais mais facilmente administráveis entre os
índios americanos, com o sentido de reduzir custos e, finalmente, absorver os nativos
americanos na vida nacional. Sua ênfase fundamental era sempre, como sinaliza Martha
Beckwith, enriquecer as vidas americana. Em um Estados Unidos cada vez mais
arruinado por duvidas acerca da modernidade e da identidade étnica, para não mencionar
a implosão econômica e política da Grande Depressão, um certo grau de alteridade nativa
americana poderia ser tolerado e, de fato, cultivado aromatizado como esse era pelas
implicações pela (re)criação de uma herança nacional sui generis. Depois de tudo, como
Joseph Heller o chefe do White Half-oat aponta, o que poderia ser mais inteiramente
americano do que um índio? E o que poderia ser mais eficiente para as políticas liberais
do New Deal de Roosevelt do que um índio trazido de volta da beira da extinção coletiva
através de políticas de organização comunal que foram de orientação nem comunistas e
nem nacional-socialistas?
Quaisquer que fossem as crenças pessoais de Collier acerca do valor das culturas
nativas americanas (e, como vimos no capitulo 5 acima, essas não eram simplesmente um
valor positivo das formas de vida nativas pelo seu próprio bem), o próprio IND era
claramente uma enunciação do Destino Manifesto americano. Ele procurava reorganizar
Cidadãos e Selvagens Parte II Conclusões
338
as vidas dos nativos americanos, uma vez mais, em função de uma melhoria percebida da
capacidade da nação em sobreviver e expandir-se. A regeneração das tribos americanas
ocorreria porque melhoraria espiritual e materialmente as chances dos Estados Unidos em
reformar o mundo à sua imagem, sendo a dita reforma intimamente conectada ao
desenvolvimento e expansão do capitalismo e a preservação da democracia liberal
burguesa. Durante os anos da Segunda Guerra Mundial, os oficiais da OIA assinalar
repetidamente acerca da capacidade do IND sobre essa conseqüência, remarcando isso
“porque os índios foram decente e inteligentemente cuidados durante os últimos 12 ou 15
anos, eles estão hoje fazendo toda contribuição possível para a guerra”.
[Indians] could have been a serious fifth column, or at least a potential liability.
Instead, 12,000 are in the armed forces; they have purchased two million dollars worth of
bonds; they have supplied 5 per cent of all the timber used for war purposes; their food
production program has increased, - they are definitely an asset, not a liability (NAA,
Records of the Handbook of South American Indians, Box 6, Applied Anthropology
Folder; “Anthropology during the war and After”, March 10
th
, 1943).
Considerando a “circular do auto-governo” da OIA, editada a 20 de janeiro de
1934, citada acima, podemos ver claramente a orientação pragmática dos planos da OIA
para a re-ordenação da vida indígena. Em grande medida, muitas das fundações
ideológicas dessa circular não são particularmente distintas daquelas enunciadas pelo ou
Dawes Act, a esse respeito, e daqueles que orientaram a administração de “comunidades
de oração” trezentos anos antes. As comunidades indígenas seriam organizadas de acordo
com as necessidades da produção racional para uma economia de mercado, às quais
seriam dados recursos e treinamento suficientes para fazê-lo e tanta terra quanto eles
pudessem assegurar o uso econômico. Os tipos de produção a serem desenvolvidas
nessas terras previam um uso extrativo e para a agricultura, com pouca necessidade do
uso de equipamentos tecnológicos especializados. Mais ainda, enquanto a comunidade
auto-governada era oferecida como uma cenoura, a competência para tal seria julgada
pela OIA de acordo com a habilidade das ditas comunidades para envolverem-se em
produções econômicas e administrativas racionais. Tal produção era imaginada como de
natureza comunal, mas quando isso olhamo-la diretamente, a racionalidade por detrás das
noções de administração indígena da OIA de Collier não eram, afinal, tão diferentes
daquelas de seus antecessores. Em resumo, essa buscava transformar os índios em
cidadãos produtivos e membros de uma republica burguesa democrática.
Cidadãos e Selvagens Parte II Conclusões
339
O advento do Indian New Deal
A peça central do Indian New Deal, era o Indian Reform Act de Wheeler e
Howard, de 1934. Essa não é a porção da tese aonde exploraremos profundamente os
conflitos de Collier com o Congresso, missionários e algumas determinadas organizações
políticas nativas americanas durante suas tentativas de promulgar e defender esse Ato;
entretanto apresentamos aos leitores interessados o trabalho de Elmer Rusco (2000), que
analisa os relatos das manobras feitas nesse período e suas analises acerca da fabricação e
eventual aprovação do Indian Reorganization Act. O trabalho mais recente de Vine
Deloria, The Indian Reorganization Act, Congresses and Bills (2002), condensa em um
tomo as transcrições de 10 extensivos encontros de Collier com os nativos americanos
com o sentido de mobilizar apoio para o IRA. A análise de Deloria da história do Ato é
também válida por apresentar outras fontes inspiradoras da reforma de Collier, muitas das
quais vieram das próprias tribos. Com o objetivo de situar os leitores acerca das imensas
transformações que tiveram lugar durante a administração de Collier devemos discutir,
ainda que de maneira ligeira, a construção do que é universalmente reconhecido como
aquele Ato de maior amplitude na história dos Indian Affairs norte-americanos no que
concerne a reestruturação da administração indígena – após apenas, possivelmente, o
próprio Dawes Act de 1887.
Durante os primeiros meses da administração Collier, os novos diretores da OIA
realizaram todas as reformas administrativas que puderam, usando a estrutura já
existente. Foi durante esse período que Collier redigiu a famosa Circular da Agencia
2970 (mais tarde traduzida para o português e extensivamente citada pelos membros do
círculo de Rondon no Brasil), intitulado “Indian Religious Freedom and Indian Culture”.
Essa circular proibia a interferência na vida religiosa ou cultural indígena e era seguida de
perto por outra que limitava as ações missionárias às escolas indígenas internas e de dia
(RUSCO, 2000: 183-184; VASCONCELOS, 1939:51). Era óbvio que para todos, como o
veto do Secretario Ickes a venda de terras loteadas, que essas medidas eram os primeiros
passos e que uma modificação legal total dos Indian Affairs era necessária, um trabalho
que requeria a aprovação do Congresso. Em fevereiro de 1934, John Collier apresentou
uma proposta altamente detalhada ao Congresso de um projeto que conduziria a uma
Cidadãos e Selvagens Parte II Conclusões
340
reforma extensa dos Indian Affairs. A primeira sessão do projeto, intitulada “o auto-
governo indígena”, procurava “garantir aqueles índios vivendo sob a tutela e o controle
da liberdade federais organizar-se para um auto-governo local e uma empreitada
econômica, com a finalidade de que a liberdade civil, a responsabilidade política e a
independência econômica devem ser alcançadas entre os povos indígenas dos Estados
Unidos [...]”. Esse titulo autorizou o Secretario do Interior a editar licenças para os
índios, procurando formar governos e corporações tribais com a direção de ¼ de
população adulta de qualquer reserva. Mais ainda, ele estipulava que o Secretario do
Interior poderia eventualmente transferir a administração das funções e instituições de
governo a esses governos tribais. Titulo I sessão 13, determina os direitos,
responsabilidades e significados inerentes a essa proposta de forma bastante detalhada
(H.R. 7902, 73
rd
Congress, 2
nd
Session).
O titulo II da proposta de Collier lidava com a educação indígena, muito en
passant, enquanto o titulo III, a respeito das terras indígenas, declarava a política do
congresso como carreando um “programa construtivo do uso das terras indígenas e do
desenvolvimento econômico, com vistas a estabelecer uma base permanente de existência
indígena auto-sustentável debaixo da tutela federal [...]”. Ele proibia severamente o
loteamento e, de fato, autorizava o Secretario do Interior a realizar as compras de terras
que achasse necessárias para prover os grupos indígenas com uma base de terras
adequada permanente e inalienável para as necessidades econômicas de suas
comunidades. O ultimo titulo do projeto lidava com o estabelecimento de uma Corte de
Indian Affairs, que poderia oferecer um corpo legal permanente para resolver acusações
de nativos americanos, processar crimes sobre terras indígenas, julgar todos os casos nos
quais índios ou tribos fossem uma parte, e resolver disputas legais que surgissem de
praticas administrativas, tais como disposições sobre heranças de terras. O titulo final
compunha a mais larga sessão de todas (H.R. 7902, 73
rd
Congress, 2
nd
Session).
Vine Deloria Jr. denomina essa proposta original de “a visão mais compreensiva e
de maior alcance jamais oferecida ao congresso” cobrindo “toda área possível que
poderia ter sido antecipada pelo governo dos índios” (DELORIA, 2002: xi). O congresso,
contudo, estava cético. Em particular os senadores Elmer Thomas e Burton K. Wheeler,
ambos membros poderosos do Comitê do Senado para os Indian Affairs, possuíam
Cidadãos e Selvagens Parte II Conclusões
341
objeções às visões de reforma de Collier baseadas em seu apoio a ideologia da
assimilação forçada. Thomas, em particular, fez conhecido seu apoio à “política de
governo para tentar tratar esses indígenas de uma forma desenvolvida e eventualmente
disseminar e desintegrá-los e misturando-os com as comunidades brancas, para que assim
o problema gradualmente desaparecesse como uma fumaça” (RUSCO, 2000: 234).
Figure CII.1: Commissário John Collier em conferença com lideranças seminole em Florida, 1940
(NABOKOV, 1991: 304).
Ao fim e ao cabo, apenas a intervenção direta de Harold Ickes e do presidente
Roosevelt mantiveram o projeto no congresso. Collier realizou uma série viagens através
das reservas dos Estados Unidos com o intuito de angariar apoio entre as próprias
comunidades nativas americanas, incluindo diversas emendas propostas pelos índios à
Cidadãos e Selvagens Parte II Conclusões
342
uma segunda versão do projeto. Em sua forma final, a proposta finamente detalhada em
12 paginas foi reduzida a 3 paginas e meia – notavelmente diferente da original em vários
aspectos. O titulo IV, acerca da Corte dos Indian Affairs, foi completamente removido.
Enquanto novos loteamentos foram banidos em grande número, terras supérfluas não-
loteadas devolvidas ao controle tribal, a consolidação voluntária de loteamentos
fragmentados foi permitida e 2 milhões de dólares foram anualmente disponibilizados
para compras de terras para índios sem-terras
3
, a venda de terras já loteadas não foi
banida – períodos de expectativas eram meramente estendidos “até dirigidos em contrario
pelo congresso.” Mais importante, contudo, foram as transformações acerca do auto-
governo indígena. Ao invés de um mandato ilimitado que poderia dar tempo aos índios
de escolherem se eles queriam ou não ser incluídos no Ato e assim permitidos de
estabelecer governos e corporações tribais, o congresso determinou uma imediata votação
sobre o Ato dentro de seis meses a partir de sua passagem em cada reserva para
determinar se o Ato seria ou não aplicado naquela reserva. Mais ainda, o Ato não se
aplicaria aquelas reservas aonde a maioria dos índios votaram contra isso e os índios do
Alasca e Oklahoma estariam especificamente excluídos do Ato (ambos seriam mais tarde
incluídos através de uma legislação especifica). Em outras palavras, os índios poderiam
decidir aceitar o Ato ou não (esse mesmo um passo positivo em termos da crescente
soberania indígena), mas eles tinham de fazê-lo imediatamente e uma rejeição inicial não
seria seguramente redimida mais tarde. Conseqüentemente, não deveria haver nenhum
lento ajuste ao IRA: seria um tudo ou nada desde o principio. Finalmente, ao invés da
perspectiva inicial e altamente detalhada de Collier acerca estruturação das autoridades
dos governos indígenas, o IRA aprovou um desnudamento dessa proposta para
especificar apenas três pontos: o emprego do conselho, o dever de prevenir a perda de
terras tribais sem o consentimento da tribo e o direito de negociar com governos federais,
estaduais e locais. Como Rusco enfatiza, “esse fato, combinado com a referência
explicita à legislação indígena existente como fonte de autoridade, impõe a conclusão de
que o congresso não teve a intenção de definir para a sociedade indígena ampla como
3
De acordo com Lawrence Kelly, somente 5 milhões de dólares foram apropriados para a compra de novas
terras indígenas antes de 1942. Após dessa data, a entrada dos EUA na Segunda Guerra pôs um fim a esse
programa (KELLY, L. 1975: 306).
Cidadãos e Selvagens Parte II Conclusões
343
eles deveriam exercer a autoridade da qual realmente desposavam” (RUSCO, 2000: 264-
281).
Até a aprovação do Indian Reorganization Act, em 18 de junho de 1934, a OIA
foi contraposta com a imensa tarefa de organizar eleições imediatas em centenas de
reservas ao longo dos Estados Unidos entre um publico que tinha uma idéia pouco clara
acerca daquilo sobre o que estava votando, uma parte substancial da qual não poderia ler
ou fala o inglês. Lawrence Kelly, analisando os resultados imediatos do Ato, argumenta
que das 252 tribos que organizaram eleições, apenas 174 votaram em favor do Ato. Mais
ainda, muitas das tribos mais populosas, incluindo os Navajo, os Klamath e os Sisseton
votaram contra ele. Quando somados aos 95.000 índios de Oklahoma que não estavam
contemplados pelo Ato, isso significava que cerca de 40% da população indígena elegível
dos Estados Unidos estava inicialmente deixada de fora do IRA (KELLY, L. 1975: 301).
Para os grupos nativos que votaram favoravelmente ao Ato, suas duas maiores
vantagens (ao lado do fim dos loteamentos), foram as provisões para a organização de
governos e corporações tribais. O Congresso destinou 250.000 dólares anuais para
auxiliar a organização de corporações indígenas e estabeleceu ainda mais um fundo
rotativo de 10 milhões de dólares a partir do qual essas corporações poderiam fazer
empréstimos para o desenvolvimento econômico das tribos. Isso representou um
quantitativo expressivo de dinheiro, chegando a representar cerca de metade do
orçamento da OIA em 1933 (RUSCO, 2000: 182-183) e veio com o beneficio adicional
de poder ser gasto diretamente pelos próprios índios ao invés de para eles por
administradores bem intencionados.
O primeiro passo que um grupo nativo deveria tomar para colocar as mãos nesse
dinheiro seria, contudo, a organização de um governo tribal, apenas aí passos poderiam
ser dados no sentido da organização de uma corporação tribal e a liberação dos recursos
para projetos de desenvolvimento do fundo circulante. Ainda que nada previsse um grupo
de estabelecer sua própria paz no processo de organização – ou na eventual recusa em
desenvolver isso inteiramente – os 10 milhoes de dólares do fundo rotativo ofereciam um
incentivo considerável nos Estados Unidos empobrecidos da Depressão para levar o
programa adiante. Mais ainda, tribos que votaram para serem objetos do IRA, estavam
sobre considerável pressão do escritório da OIA de Washington para se reorganizarem
Cidadãos e Selvagens Parte II Conclusões
344
tão logo fosse possível. Essa pressão pode ter resultada da apreensão do que poderia ter
acontecido com as tribos não-organizadas se Roosevelt fosse removido do cargo e o New
Deal virado de ponta cabeça. De fato, John Collier indicou que isso poderia ter realmente
acontecido em seu editorial Indians at Work, de 15 de abril de 1937. De um tipo mais
impetuoso era o fato de que o futuro do Indian New Deal e, particularmente, seus
financiamentos requeriam uma grande demonstração de entusiasmo nativo para o
programa através do país – um entusiasmo que poderia ser melhor demonstrado pela
rápida governamentalização e incorporação de tribos indígenas. Com o sentido de atingir
tais resultados, Collier seguiu seus modelos no México e Grã Bretanha e mudou para a
antropologia aplicada. É sobre a história da antropologia aplicada dentro da OIA de 1930
que trataremos agora.
Cidadãos e Selvagens Parte III Introdução
345
Figura IIIc.1: Reservas indígenas nos EUA, ca. 1936. (Indians at Work, Reorganization Number, 1936)
Cidadãos e Selvagens Parte III Introdução
346
Figura IIIc.2: O efeito de 55 anos de loteamento nas terras da reserve Lac du Flambeau em Wisconsin. As
terras tribais somam 4.921 hectares de um total de 69.831. (Indians at Work, Reorganization Number,
1936)
Cidadãos e Selvagens Parte III Introdução
347
Figura IIIc.3: Essa imagem e as duas seguintes capturam o espirito ideológico da política da
administração de Collier. Aqui, a absorção de novas tecnologias e a educação para o mundo capitalista e
industrial não são em oposição à sobrevivência étnica dos povos indígenas. "Aprenderemos usar todas as
engenhocas do homem branco, usaremos seus ferramentos para nossos fins. Seremos mestres de suas
máquinas...”
Cidadãos e Selvagens Parte III Introdução
348
Figura IIIc.4: “…suas invenções, suas habilidades, sua medicina…."
Figura IIIc.4: “…seu planejamento... e…ainda…seremos…índios."
Cidadãos e Selvagens Parte III Introdução
349
PARTE III
OS ANTROPÓLOGOS E O INDIAN NEW DEAL
Em poucas palavras, o grande experimento está bem encaminhado: o experimento de um ajuste
consciente e direcionado ao grupo, conduzido por povos primitivos organizados como empresas
corporativas e majoritariamente preocupados em preservar valores comuns, considerados mais
importantes do que qualquer vida pessoal. Se os Estados Unidos vão tolerar o experimento ou
esmagá-lo ... dependerá não da disposição amigável do povo americano mas da desagregação
do sistema do Serviço Indígena.
John Collier, “Ameríndios”, pág. 121. 1929
Como vimos nos capítulos precedentes, as raízes da antropologia americana
moderna ficaram intimamente ligadas à administração indígena desde os seus primórdios.
Quer pensemos em Powell, demonstrando os usos pragmáticos do conhecimento
etnológico a um Congresso compreensivo, ou Fletcher, aplicando seu entendimento dos
Omahas para distribuir os loteamentos entre eles, um fato fica claro: os primeiros
antropólogos americanos ficaram concretamente envolvidos na estruturação de políticas
indigenistas e freqüentemente utilizaram seu conhecimento etnológico em prol de
objetivos políticos.
Parece haver um consenso entre os historiadores da antropologia americana, no
entanto, que a antropologia aplicada, no sentido moderno deste termo, conseguiu
alcançar um tipo de apoteose nos anos que antecederam e durante a Segunda Guerra
Mundial, ficando amplamente reconhecida e estabelecida como um campo distinto de
estudo dentro da antropologia nos Estados Unidos, assemelhando-se e – em muitos casos
– excedendo seu desenvolvimento no Império Britânico (FOSTER, 1969: 196-197;
PARTRIDGE e EDDY 1978: 20-27; MACGREGOR, 1955: 421-422; KENNARD e
MACGREGOR, 1953: 932-839; MEAD, 1979: 145-154; STOCKING, 1976: 30-37).
Partridge e Eddy, bem como George Stocking, corretamente estabelecem uma conexão
entre este desenvolvimento e o amadurecimento da antropologia como disciplina e seu
subseqüente estabelecimento como uma ciência social inserida no relicário da academia.
Com sua passagem dos “museus para o pensamento dominante das ciências sociais” entre
os anos 20 e os anos 50 do século XX, a antropologia americana tornou-se
progressivamente mais influenciada por tendências políticas (LINTON, A. and
Cidadãos e Selvagens Parte III Introdução
350
WAGLEY, 1971). Como Melville J. Herskovits declarou, ao comentar sobre o estado
das coisas na metade da década de 30 do século XX, “hoje, quando ... a curiosidade
natural é reforçada pela filosofia pragmática de nosso tempo, torna-se cada vez mais
difícil para os estudantes da humanidade manterem-se afastados dos cientistas que
trabalham com materiais não-humanos”. (HERSKOVITS; 1936: 215).
As opiniões de Herskovits sobre a antropologia aplicada foram expressas em um
artigo para a revista Science publicado em 1936, no qual ele analisou as implicações e as
suposições subjacentes ao campo de estudo que estava então em processo de definição. .
Seu artigo foi uma das primeiras grandes análises minuciosas da antropologia aplicada a
ser publicada na imprensa científica americana. Uma das principais observações de
Herskovits foi seu entendimento de que a disciplina era relacionada à administração de
povos nativos conquistados. Embora Herskovits tenha observado que não havia qualquer
impedimento ao uso da antropologia aplicada ao estudo de “sua própria cultura”
1
, ele
seguiu Malinowski (1929) e outros antropólogos sociais britânicos ao descrever a
antropologia aplicada dos anos 30 do século XX como “principalmente ... aquelas
aplicações da antropologia que podem ser dirigidas aos problemas da educação com que
se defrontam os funcionários do governo, assim como outros, que têm de lidar com os
povos primitivos sob sua guarda ... a ênfase na aplicação da antropologia aos problemas
práticos da administração dos povos primitivos, que tem uso tão generalizado no tempo
presente, é um problema pragmático ao extremo e o antropólogo tem de ser
suficientemente realista para encará-lo como tal.” (HERSKOVITS, 1936: 216)
Como Herskovits reconheceu, a antropologia nos anos 30 e 40 do século XX estava
sendo requisitada por uma gama cada vez mais ampla de agentes, tanto de dentro quanto
de fora do governo, para fornecer dados científicos relacionados a uma série de
populações consideradas (para usar a terminologia da época) dependentes. Seu propósito
específico era informar aos elaboradores de políticas que estavam preocupados em
controlar e manipular essas populações e, mais do que isso, utilizar os insights fornecidos
pela antropologia para atingir objetivos politicamente definidos.
1
Em verdade, Herskovits reconhece que os antropólogos aplicados americanos, em particular, tinham uma
propensão em aplicar a disciplina de volta à sociedade “civilizada”.
Cidadãos e Selvagens Parte III Introdução
351
O artigo de Herskovits situa o centro do discurso da antropologia aplicada nos anos
30 do século XX no Império Britânico, onde os antropólogos estavam engajados em
fazer políticas de regra indireta ou dependente (definida por Malinowski como “controle
dos nativos por meio de sua própria organização”) enquanto que simultaneamente
eliminando todos os elementos da sociedade nativa “que poderiam ofender as
sensibilidades européias, ou serem uma ameaça às boas relações”. (MALINOWSKI,
1929: 23-25) Como disse Herskovits, o principal impulso da antropologia aplicada nos
anos 30 do século XX veio, “logicamente, daqueles países europeus que têm grandes
impérios, compostos de populações de povos primitivos, cujo menosprezo às tradições
traz irritação, agitação e, se levados longe demais, desmoralização” (HERSKOVITS,
1936: 216).
Devido ao fato de que, à luz da contemporaneidade, os Estados Unidos não fossem
bem um poder colonial
2
, poder-se-ia questionar que uso, se algum uso, os elaboradores de
políticas (indígenas) americanas pudessem encontrar nesses tipos de aplicações
antropológicas. Vários historiadores da antropologia, em verdade, pulam o período da
pré-guerra em sua procura pela genealogia do tipo americano de antropologia aplicada,
indo direto para a Segunda Guerra Mundial, quando a disciplina supostamente afinal
decolou com estudos de populações conquistadas ou cativas, como os japoneses-
americanos internados em campos de concentração durante o conflito. Mead argumenta
de forma parecida em seu “Evolving Ethics of the Applied Anthropology”
(“Desenvolvimento Ética da Antropologia Aplicada”), quase não registrando o
desenvolvimento da área antes da Segunda Guerra Mundial, antes de mergulhar em uma
discussão sobre o seu papel em popularizar os usos da disciplina durante aquela guerra.
(MEAD, 1978).
Apesar disso, Herskovits, nossa testemunha contemporânea, atribuiu, de forma
categórica, o foco inicial do interesse americano na antropologia aplicada ao Serviço
Indígena dos Estados Unidos (OIA). A maioria dos historiadores seguem essa orientação,
enquanto que alguns também citam o Serviço de Conservação de Solos como sendo outra
grande agência governamental que começou a utilizar a antropologia aplicada na mesma
2
Com a exceção do Porto Rico, Alasca, Havaí e um punhado de Ilhas do Pacífico, os Estados Unidos não
controlavam nenhuma colônia em 1936, embora tivessem estado envolvidos em ocupações esporádicas de
vários países caribenhos e da América Central nas décadas anteriores.
Cidadãos e Selvagens Parte III Introdução
352
época. Stocking, o autor mais citado neste contexto, afirma que “o New Deal, no
princípio, [testemunhou] dois projetos para a ‘aplicação’ da antropologia pelo governo
federal: um no Serviço de Conservação de Solos do Departamento de Agricultura, o outro
na Unidade de Antropologia Aplicada do Bureau de Assuntos Indígenas. Stocking parece
ter conseguido as informações básicas a respeito desse tópico de Foster, que afirma a
mesma coisa (FOSTER, 1969: 200). Embora isso pareça apontar para um
desenvolvimento simultâneo da antropologia aplicada no âmbito de duas agências
governamentais, o resto do artigo de Foster deixa claro que o uso de antropólogos pelo
SCS foi em sua maioria ligado ao OIA. Enquanto que o antecessor do SCS, o Serviço de
Erosão do Solo, tinha usados uns poucos cientistas sociais em estudos piloto, a história
oficial daquele daquela repartição registra o primeiro grande uso de antropólogos no
contexto de um projeto conjunto OIA-SCS (BEATTY DAVIS, 1997: 7-27). Como
mostrarei abaixo, em 1935, quando o SCS foi criado, o Bureau de Assuntos Indígenas
americano já estava se utilizado de antropólogos em programas aplicados por mais de um
ano. Os projetos do SCS mencionados por Stocking e Foster foram desenvolvidos em sua
grande parte a pedido do OIA acerca de terras indígenas.
Um outro grupo de historiadores da antropologia – composto principalmente de ex-
participantes dos programas aplicados de antropologia do OIA – são mais firmes em suas
declarações de que as raízes da antropologia aplicada “oficial” nos Estados Unidos são
encontradas no OIA de John Collier. Kennard e MacGregor, por exemplo, são bem
categóricos quanto a este fato. Embora estes autores também mencionem o SCS, eles
situam as iniciativas antropológicas como se originando em seu trabalho para o OIA:
“Em meados dos anos 30 do século XX, mais antropólogos também foram empregados,
juntamente com outros cientistas sociais, economistas e especialistas em recursos naturais
no planejamento de programas de desenvolvimento econômico para reservas indígenas...
[em] uma unidade conhecida como a Cooperação Técnica – Bureau de Assuntos
Indígenas do Serviço de Conservação de Solos, Departamento de Agricultura dos Estados
Unidos...” (KENNARD e MACGREGOR, 1953: 832-833). MacGregor repetiu essa
mesma história em um segundo artigo, publicado dois anos mais tarde (MACGREGOR,
1955).
Cidadãos e Selvagens Parte III Introdução
353
Quando nos voltamos para trabalhos mais específicos de acadêmicos da história
indígena, descobrimos que poucos tratados que versam sobre a relação entre a
antropologia e os indígenas tratam do período de Collier. Quando Vine Deloria Jr.
apresentou sua observação, bastante citada, de que atrás de cada política do OIA há um
antropólogo (DELORIA, 1988: 81), muito antropólogos, como Nancy Oestreich Lurie,
entenderam suas palavras como uma mera hipérbole. É, portanto, interessante notar que
o artigo produzido por Lurie para o Smithsonian Handbook of North American Indians,
“Relações Entre Indígenas e Antropólogos”, somente trata brevemente do programa de
antropologia aplicada do OIA, um fato tão mais notável porque, como mencionado
alhures por Lurie, H. Scudder Mekeel, o diretor do programa, foi o primeiro professor de
antropologia dela (LURIE, 1988: 552; 1998: 572-574). Um artigo semelhante, neste
espírito, é o de Robert E. Beider, “A Antropologia e a História do Indígena Americano”
que, enquanto fornece uma visão geral útil de como a antropologia americana via os
indígenas americanos através dos séculos, não inclui qualquer menção dos compromissos
práticos da disciplina com o OIA (BEIDER, 1981).
Atitudes como as de Lurie e Beider fazem com que se especule que talvez a
antropologia americana esteja comprometida com um processo de “lembrar-se de
esquecer” quando ela olha para sua própria história em uma tentativa de formular sua
identidade atual como disciplina
3
. Afinal, a antropologia aplicada moderna foi um
grande sucesso como uma sub-área e a influência da administração de Collier em
estabelecê-la nos Estados Unidos foi bem conhecida durante cerca de 70 anos, como o
artigo de Herskovits deixa claro. Por alguma razão, no entanto, não há praticamente
nenhum estudo de suas origens.
É somente quando examinamos os poucos estudos específicos mais recentes das
próprias iniciativas da antropologia aplicada do OIA que começamos a ver o verdadeiro
escopo dos esforços do Serviço nesta área. D’arcy McNickle parece ter sido o primeiro
acadêmico a mergulhar nessa história usando os próprios registros do Bureau. Para tal,
ele foi ajudado pelo fato de ter sido um empregado do OIA durante os anos 30 e 40 do
século XX, tendo assim acesso privilegiado aos documentos desse período. O artigo de
3
A frase é de Homi Bhabha e se refere à construção da etnicidade como um processo onde identidades
passadas são lembradas e imediatamente após negadas para serem integradas em uma identidade mais
moderna (Bhabha, 1990: 311)
Cidadãos e Selvagens Parte III Introdução
354
McNickle contém muitos lapsos em sua descrição das iniciativas do OIA, mas tem a
qualidade de apresentar uma cronologia relativamente completa de como o conhecimento
antropológico veio a ser usado pelo Bureau (MCNICKLE, 1979: 51-60). O historiador do
OIA Graham D. Taylor também fez uma investigação exaustiva dos arquivos da National
Archives and Research Administration (Administração de Pesquisa e dos Arquivos
Nacionais) à cata de informação relativa à antropologia para escrever um artigo em 1975
(TAYLOR, 1975: 151-162). O artigo de 1972 de David L. Marden, “Os antropólogos e a
Política Federal Anterior a 1940” também dá uma visão geral das tentativas de utilizar
antropólogos nos Assuntos Indígenas durante os primeiros anos da administração de
Collier. Finalmente, o novo estudo de Rusco sobre a implantação do Indian New Deal
dedica várias páginas ao papel que os antropólogos desempenharam neste projeto. O
trabalho desses homens foi suplementado por estudos mais gerais do OIA de Collier,
publicados nos anos 70 e 80 do século XX, que freqüentemente mencionam o uso da
antropologia por parte do Bureau e, considerado em sua totalidade, esse corpus, muito
embora possa estar espalhado e truncado, forma um mapa indispensável para o
historiador da antropologia que procura chegar às raízes das origens da antropologia
aplicada moderna nos Estados Unidos
4
.
Finalmente, temos de levar em consideração dois artigos escritos por dois
antropólogos que estiveram intimamente envolvidos com o AAU, H. Scudder Mekeel e
Julian Steward. O artigo de Mekeel foi escrito para o American Anthropologist em 1944,
enquanto que o de Steward foi escrito em 1969. Ambos os artigos tentaram fornecer uma
análise post-mortem do uso de antropólogos por parte do Serviço Indígena. Ambos os
autores tinham trabalhado para o OIA e saíram descontentes com suas políticas e atitudes
relativas à pesquisa “pura” ou “livre-de-valores” (entendido como pesquisa que não
seguia as necessidades das diretivas políticas do Bureau) e seus artigos refletem essa
atitude.
Houve dois grandes obstáculos à produção de uma história do uso da antropologia
pelo OIA durante os anos Roosevelt. O primeiro é de natureza filosófica e tem a ver com
4
Para trabalhos versando sobre a antropologia no OIA durante o período Collier, veja BOYCE, 1974;
COLLIER, 1944; HAUPTMANN, 1981; 1982; KELLY, Lawrence, 1968; 1975; 1983; KELLY, William,
1953; 1954; KLUCKHON, 1943; 1954; LAFARGE, 1942; MEKEEL, 1944; PARMAN, 1976; PHILP,
1977; 1979; PROVINSE, 1943; STEWARD, 1969; TAYLOR, 1980; THOMPSON, 1950; THOMPSON
and COLLIER, 1946.
Cidadãos e Selvagens Parte III Introdução
355
o fato de que esta área fica na fronteira de três disciplinas relacionadas, embora
separadas, nos Estados Unidos – antropologia, história e estudos dos Indígenas
Americanos – nenhuma das quais mostrou muito interesse por esse assunto. O segundo
tem a ver com a história específica das tentativas de integrar a antropologia aplicada ao
OIA. Nunca foi criada uma divisão de Antropologia Aplicada dentro do quadro
organizacional formal do Serviço
5
e, por toda a administração de Collier, os antropólogos
que foram capazes de trabalhar com o OIA foram alocados a uma série de órgãos
temporários e vários empregos administrativos tradicionais.
O estudioso de antropologia aplicada dentro do OIA irá procurar em vão por uma
coleção unitária de documentos que possa explicitar os fatos acerca do trabalho
antropológico no Bureau durante este período. O material encontra-se espalhado pelos
Arquivos Nacionais dos Estados Unidos (US National Archives - NARA), pelos Arquivos
Antropológicos Nacionais (National Anthropological Archives - NAA), e uma dúzia de
coleções menores (incluindo os Documentos de Collier (Collier Papers) na Universidade
de Yale, os Documentos de Julian Steward (Julian Steward Papers) na Universidade de
Illinois e os Registros da Universidade de Columbia na Cidade de Nova Iorque. Porque
nenhuma sub-seção, dentro do OIA, jamais foi designada como responsável única pelo
trabalho em antropologia aplicada, não há um conjunto único de registros NARA
relacionados ao OIA que contenha o que os pesquisadores precisam. Ao invés disso,
pode-se encontrar uma trilha de arquivos que passa pelas coleções no Record Group 75
que tratam da Organização Indígena (Indian Organization), John Collier e seus
assessores, pelos registros tribais e – infelizmente – pelos Arquivos Classificados do OIA
de 1907-1939, onde há um grande número de documentos para os quais ainda não se
descobriu uma fórmula para recuperação . Com freqüência, um pesquisador se defronta
com um documento que faz referência a outras que não conseguem ser encontrados.
A história do trabalho em antropologia aplicada na OIA de John Collier dada abaixo
é baseada em 8 meses de pesquisa nos Estados Unidos, durante os quais três coleções de
documentos foram consultadas: Record Group 75 (OIA) em NARA, os arquivos
Nacionais Antropológicos (National Anthropological Archives) no Smithsonian Institute
5
Membros do OIA reconheceram a existência de sua AAU, mas ela nunca teve verba separada e não
aparece nos fluxogramas organizacionais do OIA.
Cidadãos e Selvagens Parte III Introdução
356
e os Documentos de John Collier (John Collier Papers) na Universidade de Yale
6
.
Devido a restrições de tempo e orçamentárias, só consegui consultar brevemente os
arquivos da Universidade de Columbia e não consegui consultar os Julian Steward
Papers em Illinois, outra fonte importante de material sobre esse tópico. Há, assim,
lacunas aqui que só poderão ser preenchidas com mais pesquisa.
Organização da seção
A Seção III é composta de três capítulos. O primeiro deles, o Capítulo 7, analisa o
recrutamento da administração de Collier e o uso dos antropólogos como ajuda ao IRA,
prestando especial atenção à criação de uma Unidade de Antropologia Aplicada e às
tentativas de institucionalizar essa Unidade junto com o Bureau de Etnografia Americana
do Smithsonian Institute (Instituto Smithsonian). De importância considerável aqui é o
papel que a união entre o OIA e o BAE teve em estabelecer a antropologia aplicada
como um ramo do esforço antropológico separado de e (presumivelmente) inferior à
antropologia social ou cultural “normal”.
O envolvimento do OIA com a antropologia durante o período de Collier pode ser
subdividido em 4 estágios:
1) Uma aproximação inicial, que começou antes de Collier ser nomeado
Comissário e que durou até aproximadamente o estabelecimento do IRA em junho
de 1934.
2) Um período curto dominado por dollar-a-year-men (literalmente homens-
pagos-um-dolar-por-ano) e no qual o foco principal do trabalho era a organização
de governos e corporações tribais. Neste período, o trabalho do OIA foi feito em
conjunto com o BAE. Este período merge com…
3) ... a criação da Unidade de Antropologia Aplicada do OIA e do TC-BIA.
Neste terceiro período, os antropólogos foram oficialmente contratados pelo OIA e
trabalhavam em uma série de projetos, a maioria dos quais lidando com a
organização tribal do governo/corporação e o mapeamento dos recursos das
6
Esses últimos foram consultados e microfilmados no Museu Smithsonian de História Americana
(/Smithsonian Museum of American History).
Cidadãos e Selvagens Parte III Introdução
357
reservas. Este período abrange de 1936 até o começo de 1938, quando o AAU foi
fechado por falta de verbas oriundas do congresso.
4) Um quarto período final, que começou em 1940, no qual os antropólogos
eram contratados pelo OIA para o Indian Personality Project (Projeto de
Personalidade Indígena) e outros projetos menores e também eram usados na
criação do Instituto Interamericano Indígena. Este período foi brevemente discutido
na seção de conclusão, abaixo.
O OIA se utilizou de antropólogos fora de sua estrutura, à medida que determinados
projetos ou controvérsias aconteceram dentro do campo político dos assuntos indígenas.
Em particular, em 1936, um antropólogo físico foi contratado para tentar determinar a
validade das solicitações de status indígena, há muito tempo pendentes, por parte de
certos grupos, tentando usar a biometria para determinar se eles eram indígenas
“verdadeiros”. Uma série de outros antropólogos foi mobilizada durante as tentativas do
OIA de defender o uso da droga extraída do mescal por parte das Igrejas dos Indígenas
Americanos. Os antropólogos eram freqüentemente chamados para aconselharem o OIA
em relação a tribos específicas com as quais eles estivessem familiarizados. Tal
conselho poderia ser tão breve como uma carta dizendo “Não sei nada além do que está
em meu livro” até uma síntese de muitas páginas das descobertas anteriores dos
antropólogos. Finalmente, o próprio Collier manteve freqüentemente correspondência
com certos antropólogos, pedindo a eles opiniões ou conselhos sobre determinados
assuntos nos Assuntos Indígenas, ou simplesmente conversando com eles a respeito do
que na época era na época conhecido como “a Crise Mundial”
7
. Por qualquer parâmetro,
então, a presença antropológica no OIA de Collier era extensiva e intensiva e há muito
ainda o que se investigar. O Capítulo 7 foca principalmente o AAU do OIA porque esse
7
“A Crise Mundial”, em geral, sendo a ameaça ao governo democrático e à iniciativa privada trazida pela
Grande Depressão e o subseqüente surgimento do fascismo e do comunismo como competidores pelo
poder global. Durante este período, os antropólogos sentiram a necessidade, como nunca sentiram antes ou
desde então, de aplicar sua perícia para a resolução desta crise. Veja Linton (“A Ciência do Homem na
Crise Mundial”, 1945) para um bom exemplo dos tipos de reflexões correntes neste período. A celebrada
“antropologia do caráter nacional”, da qual Margaret Mead (And Keep Your Powder Dry, 1965 [1942]) e
Ruth Benedict (O Crisântemo e a Espada, 1946) são também exemplos excelentes do tipo de macro-
teorização relacionada ao destino humano e nacional a que muitos antropólogos se entregaram como uma
resposta à noção de “Crise Mundial”.
Cidadãos e Selvagens Parte III Introdução
358
grupo ficou diretamente envolvido com a manifestação mais longa e importante das
reformas de Collier, a construção dos governos tribais indígenas.
O Capítulo 8 discute o processo de reorganização em uma reserva específica, a dos
Lakota Oglala (Sioux) de Pine Ridge. De todo o trabalho que os antropólogos fizeram
para o OIA de Collier, seu engajamento com a Organização Indígena (Indian
Organization) foi que viria a ter os efeitos mais duradouros. Os governos e corporações
tribais criados pelo Indian Reorganization Act de 1934 continuam a existir até os dias de
hoje. Em um processo que se assemelha à reação ao loteamento, muitas destas
instituições acabaram por dar um foco para o chamado por reforma da próxima geração.
Como Ward Churchill e Peter Matthiessen documentaram (CHURCHILL, 1988;
MATTHIESSEN, 1995 [1975]), no final da década de 60 do século XX, a natureza
colonial de muitos governos tribais tinha se tornado aparente aos ativistas Nativos e aos
amigos dos Índios, dando um ponto focal para um outro conjunto de acusações
relacionadas à corrupção no OIA e à necessidade de uma reforma imediata para salvar a
existência indígena. Durante este período, os governos tribais organizados pelo IRA
foram duramente criticados pelos ativistas indígenas como ferramentas do colonialismo
dos brancos (BURENTTE e KOSTER, 1974). Como afima Raymond J. De Mallie,
escrevendo no auge dos protestos do Movimento Indígena Americano (American Indian
Movement) contra o Governo Tribal Sioux Oglala na Reserva Pine Ridge durante os
primeiros anos da década de 70 do século XX:
Muitos dos problemas da reserva parecem atribuíveis à organização [do governo] tribal. É,
no final das contas, uma forma de governo estranha que foi forçada aos Oglala. A organização
tribal foi forçada a aceitar a responsabilidade administrativa em relação a toda a reserva, mas
parece que os povos locais, já que os Oglalas viviam em várias comunidades distritais, não
acreditam como um todo em uma forma representativa de governo. Eles não se identificam com a
tribo como um grupo político e prefeririam gerir seus próprios negócios a nível local, sob a
orientação de líderes locais cujo apoio vem da fé da comunidade em suas habilidades.
A tribo … não conseguiu obter apoio das pessoas. Os programas tribais são geralmente
considerados de forma crítica pelas comunidades, a aceitação é passiva, na melhor das hipóteses, e
o sucesso foi mínimo (DEMALLIE, 1972: 274-275).
Até esses Nativos ou amigos do indígena que viam os governos tribais como legítimos
representantes de alguma forma de auto-determinação foram altamente críticos de suas práticas. .
Edward Lazarus (filho do advogado tribal Sioux Arthur Lazarus), por exemplo, afirmou que os
governos tribais organizados pelo IRA resultaram em uma forma real de auto-gestão mas que isso
foi restrito pela pouca familiaridade dos nativos com o conceito. No entanto, até mesmo Lazarus
admite que a auto-gestão dos indígenas é e foi fortemente restringida pelo Departamento do
Cidadãos e Selvagens Parte III Introdução
359
Interior, com a argumentação de que a maioria dos governos tribais está “em uma constante luta
com o Serviço Indígena para poderem exercer plenamente a parte substancial de poder soberano
concedida pelo IRA” (LAZARUS, 1991: 295). Podemos considerar, ou não, que os governos
tribais foram uma tentativa (mal sucedida) de governo próprio e democrático ou uma estrutura
externa implantada com o intuito de aumentar o controle imperial sobre os povos indígenas dos
Estados Unidos, mas uma coisa é consensual: os governos tribais organizados pelo IRA não
resultaram na emancipação dos povos nativos da tutela federal, como também não resultaram em
seu desenvolvimento econômico. Dado que esses eram objetivos conjuntos do IRA, como
articulados por John Collier, temos de concluir, então, que os governos tribais não alcançaram )
seus objetivos originais.
Além disso, como os comentários de Biolsi acima ilustram, é evidente que os esforços
antropológicos para erigir governos tribais viáveis para o OIA também não foram bem sucedidos
em seu objetivo expresso de fazer constituições “baseadas na vida social real do grupo”, de forma
que “o governo seja verdadeiramente representativo” e que “utilize as organizações nativas dos
povos” para sua “reabilitação econômica” (NAA, William Duncan Strong Papers, Box 47,
Bureau of Indian Affairs folder, 1934-1937) Biolsi mostrou que a instituição do governo tribal
aumentou de várias formas a presença do governo federal na vida dos índios (BIOLSI, 1998
[1992]: 183-186). Mas como o comentário feito acima, de um humor cáustico, de Dick Mouse,
um humorista e cantor Dakota, bem ilustra, a ajuda e atenção federais maiores para os problemas
indígenas não necessariamente resultaram em melhores escolhas de vida ou prosperidade para os
indígenas individualmente ou para os grupos nativos.
Dados os resultados altamente criticados do Indian New Deal, não é de admirar que, da
mesma forma que o envolvimento antropológico no Dawes Act, o trabalho do AAU em organizar
constituições e corporações tribais tenha sido um desses eventos na história da disciplina que será
lembrado pela maioria dos antropólogos americanos – se eles se lembrarem – e imediatamente
depois será esquecido. Mas o trabalho do AUU nesta área foi bem importante aos olhos dos
administradores indígenas contemporâneos. Estes consideraram o trabalho principal da Unidade
dar apoio à Divisão da Organização Indígena (Indian Organization Division) (as vezes conhecida
como Divisão de Reorganização / Reorganization Division) em seus esforços para criar governos
tribais estáveis e funcionais de acordo com as determinações do IRA. Como John Collier
descreveu o trabalho da Unidade em uma carta ao National Resources Board em 1938, “A
pesquisa antropológica do Serviço Indígena é feita por um pequeno número de antropólogos
treinados, cuja tarefa é fazer uma análise objetiva das sociedades indígenas contemporâneas como
base para a preparação de constituições sob o Indian Reorganization Act de 1934 e como base
Cidadãos e Selvagens Parte III Introdução
360
para a recuperação econômica e para o assentamento de terras indígenas, recém adquiridas, por
grupos homogêneos”.
Esta unidade também é responsável pela pesquisa em problemas especiais que envolvem
antropologia física e os padrões culturais que possam ajudar a Divio de Extensão e Educação em
desenvolver programas eficientes em áreas específicas. Por ultimo, este grupo é responsável por
acompanhar os resultados sociais do Indian Reorganization Act. Registros contínuos e estudos intensivos
periódicos dos resultados da organização e incorporação tribais, sob o Indian Reorganization Act, são
realizados por funcionários habilitados (NARA RG75, E191, Collier-Wood 11/4/38)
Assim, enquanto os antropólogos estavam envolvidos em uma variedade de trabalhos para
o OIA, sua pesquisa e acompanhamento das mudanças advindas do IRS eram obviamente sua
preocupação principal, ao menos na mente de John Collier. Suas “Instruções…”, de julho de
1936, circulares a antropológicas (citadas no Capítulo 7 acima), reforçaram esse papel e também
explicitaram, concretamente, o que os antropólogos deveriam fazer em seu trabalho para a Indian
Reorganization (Reorganização Indígena): “A tarefa única mais importante da Unidade de
Antropologia Aplicada é estudar a organização social contemporânea de cada organização de
grupo de forma que a constituição [tribal] feita será baseada na vida social real do grupo. Desta
forma, a constituição não será meramente um pedaço de papel mas fluirá da vida dos povos”
(NAA, William Duncan Strong Papers, Box 47, Bureau of Indian Affairs, arquivo de 1934-1937 ,
9 de julho de 1936).
Então, os antropólogos deveriam investigar as condições sociais sob as quais os grupos
indígenas viviam à época e deveriam sugerir estruturas políticas apropriadas que refletissem essas
condições, ao mesmo tempo que deveriam agir legalmente, de acordo com as determinações do
IRA. Eles também deveriam acompanhar a implementação das constituições tribais, “seguindo
os resultados sociais” do IRA e, idealmente, ajudando o Serviço a ajustar seus programas às
realidades indígenas.
Analisar de forma exaustiva o papel dos antropólogos em um determinado processo de
organização tribal está além do nosso escopo, devido às restrições mencionadas no Capítulo 8
acima. Uma análise desse teor exigiria, minimamente, pesquisas em Washington D.C. sobre a
reserva em questão e, onde quer que mencionado, registros antropológicos e artigos que foram
coletados e guardados. Assim, uma investigação tão abrangente ficou além de nossas
possibilidades.
Considerando isso, decidimos descrever como o processo de organização funcionou em
uma reserva, mostrando como a vida política indígena mudou e mostrando algumas das
intervenções antropológicas feitas por membros da AAU. Isso dará uma visão geral das tarefas
que eram exigidas dos antropólogos e como elas eram incorporadas – ou não – ao processo
organizacional. . Os leitores são informados, no entanto, que a organização não foi um processo
Cidadãos e Selvagens Parte III Introdução
361
homogêneo: ela foi aplicada de formas diferentes a diferentes grupos indígenas em momentos
distintos. Assim, esta descrição não deveria ser entendida como paradigmática, somente como
indicativa.
Este capítulo é uma tentativa de rastrear a fundação do governo oficial nativo em um grupo
indígena específico (a Tribo (Lakota) Sioux Oglala da Reserva Pine Ridge, no Dakota do Sul) à
luz dos aspectos políticos e sociais anteriores daquele grupo, concentrando-se na forma como eles
foram afetados pelo IRA de 1934 e destacando alguns dos efeitos que a organização teve sobre os
Lakota Oglala.
Cumpre lembrar aqui que nossa análise não finge ser uma etnografia Lakota, embora se
baseie em análise etnográfica. Ao invés disso, é uma investigação de como certas estruturas
político-sociais geralmente aceitas estiveram historicamente presentes entre os Lakotas por 4
gerações de antropólogos e seus informantes Lakotas (DEMALLIE, 1978, 2001a,b;
GOLDFRANK, 1943; HYDE, 1937; MACGREGOR, 1946; MEKEEL, 1943a, 1932;
PROVINSE, 1937; PRICE, 1994; WALKER, 1914, 1982) se comparam àquelas projetadas nos
Lakotas pelo IRA.
Escolhi os Lakotas – e a tribo Oglala desta nação indígena – em particular – como o foco
para uma análise de processo da organização do OIA
8
por várias razões. Primeiramente, os
Lakotas (e especialmente sua divisão tribal Oglala) foram historicamente um dos mais poderosos
e intratáveis grupos indígenas a confrontarem a colonização dos Estados Unidos. Até hoje, eles
são a única nação indígena na história a ter derrotado os Estados Unidos em uma guerra, no
sentido de forçarem aquela nação a negociar uma paz nos termos dos seus inimigos (LAZARUS,
1991: 48). Isso, combinado com a legendária destruição pelos Lakotas do General George
Armstrong Custer e suas tropas, elevaram-nos a mito nacional e internacional, a respeito dos
Índios Norte Americanos. Não é exagero afirmar – como vários autores o fizeram (HYDE, 1937;
WHITE, 1978; DELORIA, 1970) – que os Lakotas representam o Índio Norte Americano no
entendimento popular da maior parte do mundo. Esse status só se intensificou em épocas recentes
como um resultado de protestos e violência amplamente divulgados na reserva dos Oglalas nos
anos 70 do século XX, aludidos acima, que resultaram na morte de dois agentes do FBI, à
semelhança do General Custer (o julgamento errôneo da capacidade militar dos Lakotas tem sido
um tema recorrente na história). Devido a esta notoriedade, mais filmes, histórias, etnografias,
relatos históricos (populares ou não) e etnografias foram fabricadas sobre os Lakotas do que sobre
qualquer outro grupo indígena do mundo, dando ao pesquisador – especialmente àquele que não
pode visitar pessoalmente o grupo em questão – uma abrangência variada de dados com os quais
8
Veja OLIVEIRA FILHO 1998, página 8, para uma definição de trabalho deste conceito.
Cidadãos e Selvagens Parte III Introdução
362
possa trabalhar. Além disso, a notoriedade dos Lakotas – e seu relativo sucesso em manter sua
base de terra e população intactas e não dispersas – fez deles um nexo privilegiado no campo dos
Assuntos Indígenas Americanos. Eles são freqüentemente procurados (se não admirados) por
grupos indígenas menores e menos poderosos quando necessitam de liderança no âmbito federal.
Além disso, muitos dos principais trabalhadores de campo e diretores da Unidade de
Antropologia Aplicada da OIA durante os dias de “reorganização” dos anos 30 e 40 do século XX
– W. Duncan Strong, H. Scudder Mekeel e Gordon MacGregor – eram especialistas nos Lakotas.
Desssa forma, pode ser que o trabalho antropológico entre os Lakotas, durante o período em que
seu governo tribal estava sendo elaborado, teria sido conduzido com um alto grau de
profissionalismo e teria efeitos significativos, tanto sobre os Lakotas quanto sobre a teoria
antropológica. Finalmente, como sugerido por DeMallie, o papel de Mekeel em organizar o
governo tribal da reserva dos Sioux Oglalas de Pine Ridge parece ser lembrado localmente como
tendo sido determinante no processo de organização (DEMALLIE, 1972: 260).
Finalmente, o capítulo 9 dessa seção conclui a tese, discutindo brevemente alguns dos usos
da antropologia dentro do OIA durante o período da Segunda Guerra Mundial.
O leitor é advertido de que o trabalho apresentado aqui é, assim, sujeito a revisão. Não
obstante, sinto que é acurado em seus detalhes e serve como ponto de partida para a discussão
sobre o engajamento da antropologia com o OIA durante a era de Collier, mais particularmente
durante o período que se estende de 1933 a 1940 Decidi evitar uma discussão aprofundada dos
últimos cinco anos da administração de Collier, que viram a promulgação do Indian Personality
Project (Projeto de Personalidade Indígena) e o envolvimento do OIA com a pesquisa
antropológica nos campos de concentração feitos para os nipo-americanos durante a Segunda
Guerra Mundial, entre outras iniciativas. Minha pesquisa me levou a acreditar que a antropologia
durante esse último período foi quantitativamente e qualitativamente diferente daquela conduzida
durante os anos 30 do século XX (sendo uma espécie de antecessora dos estudos multi-
disciplinares do período pós Segunda Guerra Mundial) e que a pesquisa dos arquivos da
Universidade de Chicago seriam necessárias para um tratamento adequado do assunto. Da
mesma forma, embora minha pesquisa tenha trazido à tona uma grande quantidade de material
relacionado ao uso que o OIA fez de antropólogos ao fundar o Instituto Indígena Interamericano,
como não houve pesquisas nos arquivos daquele Instituto na Cidade do México, pouco de
importante pode ser dito agora. A conclusão da seção mencionará esses tópicos mas não
apresentará uma análise exaustiva de nenhum deles. Isto será deixado para trabalhos futuros.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
363
Capítulo Sete
Antropologia Aplicada na OIA.
A vida indígena tornou-se um campo para experimentos sociológicos.
John Collier, 1932.
Aproximações iniciais com a antropologia 1931-1934
O envolvimento de John Collier com a antropologia começou antes de ele se
tornar comissário da OIA, no dia 21 de abril de 1933. Como mencionei anteriormente,
Collier fora freqüentador assíduo do salão de Mabel Dodge Luhan em Nova York, um
círculo social descrito por George Stocking como “um ambiente boasiano importante”. O
contato de Collier com os antropólogos ligados a esse grupo certamente se intensificou
com a mudança de Luhan para Taos Pueblo e seu engajamento subseqüente com questões
indígenas
1
. Durante suas atividades como líder da AIDA, Collier recrutou vários
antropólogos em seus esforços para combater a assimilação forçada, entre os quais
Frederick Webb Hodge, John L. Harrington, Father John M. Cooper e Alfred Kroeber
(COLLIER, 1963: 216-217; KELLY, Lawrence, 1983: 323-326)
2
.
Em sua autobiografia, Collier afirma que “os propósitos do New Deal indígena e
suas diversas implicações não foram satisfeitos por antropólogos” (COLLIER, 1963:
217). Isso é verdade apenas em parte. Embora poucos antropólogos americanos
conhecidos tenham influenciado o pensamento de Collier antes de 1930, em suas visitas
ao México, Collier se familiarizara com o uso que o governo mexicano fazia dos
antropólogos na administração indígena, conhecendo inclusive o educador mexicano e
futuro co-fundador do InInIn, Moisés Saénz Garza, e o arqueólogo e pupilo de Boas,
Manuel Gamio. Mesmo não sendo antropólogo então, John Collier travara contato com
muitos praticantes da disciplina antes de assumir o seu cargo, e havia realizado leituras
nesse campo (COLLIER, 1963: 172). Era bastante evidente que os antropólogos teriam
1
Collier conheceu Boas em 1922, mas aparentemente os dois homens não simpatizaram um com o outro
(COLLIER, 1963: 216).
2
As tentativas de Collier de recrutar Franz Boas para o movimento de reforma, entretanto, foram recebidas
com desdém (COLLIER, 1963: 216).
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
364
destaque como engenheiros sociais na proposta feita por Collier de reconstrução da
América nativa, e no fim dos anos 1920 ele já começara a fortalecer suas conexões com
antropólogos, tanto nos Estados Unidos, como no México.
Em setembro de 1931, últimos anos da administração Rhoads-Scattergood na
OIA, Collier pediu a Lewis Meriam que convidasse Moisés Saénz aos Estados Unidos
para trabalhar para a Repartição. Em janeiro do ano seguinte, Collier encontrava-se
ocupado com a organização de uma palestra sobre a vida indígena ao lado do antropólogo
físico Ernest Huber, da John Hopkins para o 3° Congresso Internacional de Eugenia que
se aproximava. Collier sugeriu que a apresentação contemplasse tanto índios da América
do Norte como do Sul, e que contasse com a participação de autoridades canadenses e
mexicanas sobre a vida nativa, especialmente Moises Saénz. A exposição deveria
ressaltar a existência continuada dos nativos americanos como povos, e refutar leituras
anteriores de seu “inevitável” desaparecimento. Serviria para situá-los como “uma raça
em expansão, e não em extinção”, cada vez mais “conscientes de si”, tendo “conquistado
muito poder político e social, particularmente desde 1910 (México), e considerados,
simultaneamente, uma grande riqueza e um problema em vários países da América
Central e do Sul”. Além disso, a exposição mostraria como “a vida indígena [havia] se
tornado um campo para experimentos sociológicos no México, Estados Unidos e, até
certo ponto, Alasca e Canadá”.
Entre os outros membros do comitê figuravam o Dr. Frank Tannenbaum (uma
autoridade em trabalho indígena no México) e Roy Nash, um representante especial da
OIA e também um aventureiro que trabalhara nas Filipinas e no Brasil. Nash escrevera
um livro sobre este último país e aparentemente travara contato com o Serviço de
Proteção aos Índios, de Cândido Rondon (NASH: 1926)
3
. As autoridades antropológicas
nomeadas por Collier para fornecerem os dados para a exposição eram “Boaz [sic],
Kroaber [sic], Spinden, Hodge, Hjirdlika ou Ganio [sic], este último, mexicano”.
Essa exposição foi o primeiro fruto da aliança entre Collier e Saénz, e mostra que
John Collier tinha uma clara idéia a respeito de quais antropólogos serviriam melhor aos
seus propósitos de transmitir para a opinião blica a idéia dos índios como sociedades
3
Nash, deve-se ressaltar, era também tio do antropólogo e futuro comissário da Repartição de Assuntos
Indígenas, Phileo Nash.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
365
vivas (a despeito de Collier com freqüência errar a grafia de seus nomes). Por fim, a
inclusão de Roy Nash como autoridade em assuntos indígenas na América do Sul ressalta
a probabilidade de Collier ter conhecido os esforços brasileiros de proteção aos índios
mesmo antes de se tornar comissário da OIA. Em carta para Huber, Collier afirma, a
respeito de Nash, que seu “grande tratado sobre o Brasil é bem conhecido”. A
correspondência subseqüente de Collier revela que ele já estava pensando além das
fronteiras dos Estados Unidos. “A Exposição Visual das Raças Nativas da América”
(Graphic Display of the Native Races of America) seria internacional tanto em seu
tamanho como em seu alcance: em cartas para Saénz, Collier ressaltou que o Congresso
de Eugenia seria prestigiado por representantes de muitos países e que estes veriam algo
de útil na exposição. Além disso, ele manifestou esperança de que por meio dos
mexicanos, o comitê poderia contatar “autoridades competentes sobre os índios nos
países da América do Central e do Sul”. Em seu formato final, a exposição, que foi
organizada com o apoio do Smithsonian Institute, seria itinerante e Collier queria que esta
circulasse pelas Américas como uma exposição educacional. (NARA RG 75, E195A,
Box 7, Indian Institute, Mexico D.F Folder; JCP reel 4, Correspondence with Saénz, May
16-18, 1932).
Os documentos são imprecisos quanto ao fato de Saénz ter vindo aos Estados
Unidos em 1931 ou 32. Collier, entretanto, continuou a direcionar seus aliados para o
México para que vissem por si mesmos a antropologia aplicada indigenista daquele país.
Ele também começou a procurar apoio financeiro para implantar iniciativas não-nacionais
em nome dos nativos americanos. Em maio de 1933, logo após ser nomeado comissário
da OIA, Collier recebeu uma carta de Hubert Herring, o Diretor Executivo do Comitê de
Relações Culturais para a América Latina, lembrando-o que haviam “se conhecido na
varanda de Moises Saenz em Taxco” e solicitando a ajuda de Collier para viabilizar “uma
cooperação significativa” com o México. Collier respondeu que “a situação no
Congresso… ainda me impossibilita de planejar qualquer coisa com relação ao México”,
mas que a esposa de Harold Ickes, ela própria um membro da AIDA, iria ao México
estudar “o trabalho indígena do governo do México” (JCP, reel 20, Collier – Herring
Correspondence).
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
366
Três meses depois, em sua correspondência com Oliver LaFarge, antropólogo e
presidente da Associação Nacional de Assuntos Indígenas (um aliado da AIDA), Collier
reclamou que Moisés Saénz não tinha verba para vir aos Estados Unidos e trabalhar para
a OIA. Ele perguntou se LaFarge conhecia algum grupo que pudesse ajudar, e LaFarge
sugeriu que a Fundação Guggenheim talvez pudesse ajudar a cobrir os custos do
indigenista mexicano. LaFarge então reclamou da falta de interesse pelas experiências
mexicanas por parte da antropologia americana: “Por que raios não conseguimos fazer
com que nossos etnólogos se interessem pela ‘antropologia aplicada’, do jeito como os
mexicanos a concebem?... Os homens da Bureau of Ethnology estão todos de mãos
atadas no momento, por falta de verba, o que significa que têm mais do que o dobro de
tempo do que o normal para rebuscar suas hipóteses de maneira ininteligível. Por que não
são transferidos para a sua repartição para trabalhar de modo prático na amalgamação das
culturas...?” (JCP reel 15, Collier-LaFarge correspondence, August, 1933).
Até novembro de 1933, a verba para o Dr. Saénz havia sido encontrada. Ele
chegou em Washington D.C. para dar uma série de palestras na sede da OIA que foram
assistidas por oficiais da repartição e pelo Secretário do Interior Ickes e pelo Secretário da
Agricultura Wallace. Saénz trabalharia com a OIA durante dois ou três meses durante
esse período, que foi crucial para a formulação do projeto de lei Wheeler-Howard
(RUSCO, 2000). Ele também visitou reservas durante a sua estada (IAW, 15-1-1934: 15;
1-11-1933: 1-2). Em um editorial para a publicação Indians at Work,
4
Collier descreve “a
vinda do Dr. Saénz” como um “marco em potencial na história indígena”.
A atual política indígena do México (da qual o Dr. Saénz tem sido o líder
criativo) servirá para expandir as terras indígenas. E para assegurar essa expansão por
meio de uma organização indígena – sociedades cooperativas de ajuda mútua, que
praticamente são corporações de uso e propriedade de terras. A vida tribal indígena
rediviva, digamos assim – voltados para os valores tribais e ideais e voltados para as
formas mais modernas e experimentais de iniciativa rural e vida rural.
Esses grupos cooperativos indígenas, em vez do governo mexicano, fazem a
vez de loco parentis para os indivíduos indígenas. Tendo acabado a tutela mexicana, ou
serviço para o indígena, este procura o grupo por iniciativa própria, e assim a tutela
4
Revista de circulação interna da BIA, estabelecida por John Collier e publicada ao longo do seu trabalho
como Comissário. Anunciada como um “Informativo para Índios e para o Serviço Indígena” (A News
Sheet for Indians and the Indian Service), a visão de mundo da IAW apresentava os indígenas e os
administradores como parte de um todo orgânico que presumivelmente teriam os mesmos interesses. A
revista com freqüência servia de vitrine para os projetos da IND e Collier redigia pessoalmente cada um de
seus editoriais.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
367
governamental é substituída pelo apoio do grupo. Isso é “governo indireto” – e sempre
foi, e sempre deverá ser, o governo liberal, democrático e econômico e produtivo…
…O desenvolvimento do serviço indígena mexicano (na verdade uma espécie
de auto-serviço) não aconteceu simplesmente. Foi planejado por um governo
sociologicamente informado, que também contou com a imaginação, e os planos foram
testados por meio de experiências e demonstrações controladas e cuidadosamente
documentadas.
Aqui, no nosso Serviço Indígena dos Estados Unidos, estamos tentando revisar
as leis e políticas territoriais – da terra em diminuição à terra em expansão, da terra
indígena usada pelos brancos à terra indígena usada pelos indígenas, da terra
individualizada à terra corporativa. E estamos tentando revisar a política social; em vez
de combater a vida tribal, valorizá-la e apoiá-la. E passar do controle centralizado
arbitrário ao serviço descentralizado. E passar dos internatos às escolas normais, para
uma nova instituição perfeitamente exemplificada pelas edijas e escolas mexicanas.
Mais do que tudo isso, estamos querendo libertar os poderes e ambições dos indígenas,
para que sigam conquistando o seu próprio futuro – como os indígenas do México,
“com armamento prático e estandartes místicos ao vento” (IAW, 1-11-1933:1).
A citação acima indica a dívida intelectual dos planos de John Collier para os
indígenas dos Estados Unidos com relação ao indigenismo mexicano. Do mesmo modo
que ele se apegave anteriormente ao Renascimento Irlandês e á idéia de uma Atlântida
Vermelha, Collier via no indigenismo mexicano outro exemplo do renascimento
romântico de uma cultura supostamente morta. Acreditava que o facilitador desse
renascimento seria o planejamento comunitário cooperativo de um gênero socialista e
utópico – exatamente o que ele tentara implantar em Nova York mais de uma década
antes. Ele até empregava o termo de Kropotkin mutual aid (ajuda mútua) para descrever
isso. Os elementos culturais das comunidades seriam fortalecidos com o objetivo de
aproximá-las, e a atmosfera de confiança e coesão social resultante promoveria planos
comunitários de auto-desenvolvimento. Dessa maneira, ao fortalecer os “estandartes
místicos” do grupo (suas noções romantizadas de identidade), o processo assimilativo –
anteriormente uma tentativa de integrar indivíduos em uma estrutura social nacional
homogênea – passaria a ter como foco a integração de grupos dentro de uma estrutura
pluralista. Os comentários de Collier de que o grupo se posicionaria “in loco parentis
diante do indivíduo ao invés do estado-nação indicava claramente, entretanto, o impulso
assimilativo desse plano. Enquanto os indígenas teriam mais controle dos assuntos locais
por meio de uma organização coletiva, esse controle seria subordinado às necessidades
do estado-nação circundante. Os elementos culturais do grupo seriam usados, em última
instância, para fortalecer o processo assimilativo. Nesse sentido, Collier acreditava que o
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
368
indigenismo mexicano apontava na direção de uma conciliação de dois aspectos a
princípio discordantes para os índios: fazer uso de tecnologias e habilidades necessárias
para competir no mercado capitalista sem perder a identidade nativa dos grupos. Dentro
desse projeto, os antropólogos tinham uma posição privilegiada: eles é que em última
instância se incumbiriam de uma política sociologicamente informada que organizaria as
comunidades nativas, fazendo relatórios sobre a atual organização social dos grupos
indígenas e sugerindo maneiras de modificá-la com o objetivo de propiciar a utopia
vislumbrada.
O fato de que tanto a Secretaria de Agricultura como a do Interior estivessem
presentes nas palestras de Saénz é significativo, pois a OIA não era a única instituição
federal que procurava unir o desenvolvimento tecnológico/industrial ao social durante
esse período. A expansão do cooperativismo e desenvolvimento rural federal durante os
primeiros anos da administração Roosevelt é bastante conhecida. A “Autoridade para o
Vale do Tennessee” (Tennessee Valley Authority), por exemplo, era constituída de uma
série de represas ao longo do Rio Tennessee, construídas para gerar eletricidade e
promover desenvolvimento rural em uma das regiões mais pobres do Estados Unidos.
Iniciada pelo Departamento do Interior no início dos anos 1930, a TVA visava
simultaneamente o desenvolvimento sociológico, como mostra o seguinte trecho de
propaganda:
Você da Região do Vale Tennessee está vivendo hoje de um modo diferente de
como estará daqui vinte e cinco anos. Suas vidas serão modificadas, primeiro de tudo
pela eletricidade. Depois vocês serão transformados pela responsabilidade de operar a
instituição que trará essa eletricidade. Isso tornará você mais cooperativo e menos
competitivo; mais ousado do que agora preso às tradições de um passado mofado; mais
livre do que escravizado por uma economia de terra brutal; mais esperançoso quanto ao
futuro do que dependente apenas de um desconhecido e imperceptível além. (Apud
WOODS, 1935: 292-293; see also MORGAN, A: 1937).
A visão que a Autoridade para o Vale do Tennessee tinha do desenvolvimento
social rural era substancialmente diferente daquela apresentada por Collier no
entendimento do papel exercido pela cultura no desenvolvimento econômico. Em ambos
os casos, o engajamento cooperativo da população-alvo com o seu próprio
desenvolvimento a modificaria, assegurando um lugar para ela no futuro. De acordo com
a Autoridade , entretanto, as culturas da população rural pobre do Vale do Tennessee (que
incluía as populações da montanha “folclórica” que Collier tanto admirara em sua
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
369
juventude) deveriam pôr de lado as “tradições de um passado mofado” e uma agricultura
escravizadora com o intuito de saltar para o brilhante futuro industrial da eletricidade. Os
indígenas, na concepção de desenvolvimento da OIA, segundo Collier, deveriam reforçar
suas identidades culturais com vistas a uma produção agrícola mais eficaz. Tanto a
filosofia da engenharia social da Autoridade para o Vale do Tennessee como a de John
Collier tinha raízes nas Novas Ciências Sociais (New Social Sciences) segundo os escritos
de John Dewey (COMMAGER, 1950: 342). A disparidade entre os dois projetos,
entretanto, reflete a marca que o romantismo de John Collier, realçado pela experiência
do indigenismo mexicano, deixou nos assuntos indígenas. Tal romantismo também
aponta para um racha que vem assombrando a filosofia do desenvolvimento desde então,
em que os outros “etnicizados” (ethnicized) são vistos como portadores de valores
culturais que devem ser protegidos em oposição às populações rurais “não-etnicizadas”
(non-ethnicized) cujos valores deveriam ser eliminados.
Pesquisando antropólogos americanos
No fim de 1933, a OIA começou a procurar americanos que pudessem trabalhar
de um modo análogo aos seus correlatos indigenistas mexicanos. No dia 20 de novembro,
John Collier fez circular um questionário entre os melhores antropólogos da nação,
pedindo que relatassem as condições econômicas e políticas dos grupos nativos que
estudavam. A capa desse questionário dizia que era parte de uma investigação sobre as
“potencialidades das atividades econômicas cooperativas existentes hoje dentro da
organização social de diferentes tribos e comunidades indígenas, visando a ampliação da
propriedade tribal em lugar do presente sistema de loteamento individual”
5
. Elmer Rusco
definiu o questionário como um modo de obter a opinião dos antropólogos a respeito da
elaboração da primeira versão da Lei de Reforma Indígena (Indian Reform Act – IRA).
Ressaltando que muitos dos antropólogos mais eminentes do país responderam ao
questionário, Rusco classifica a sua influência sobre a IRA como “leve”, uma vez que
nenhuma mudança notável na lei derivou das propostas feitas por antropólogos.
Entretanto, quando levamos em conta a influência do indigenismo mexicano sobre os
5
Toda informação a respeito do questionário antropológico de 1933 provém de NARA RG 75 (BIA), Entry
1011, 4894-1934-066 Pt. 10-A, salvo quando observado.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
370
planos de Collier com relação aos Assuntos Indígenas, outra interpretação desse
questionário se torna aparente. Em vez de considerá-lo um documento que buscava suprir
a IRA de dados antropológicos, podemos entendê-lo como uma pesquisa sobre a
comunidade antropológica, tanto para obter declarações de apoio à Lei como para sondar
quais antropólogos estariam dispostos a trabalhar com a OIA no futuro (RUSCO, 2000:
188-189).
Essa interpretação é apoiada por comentários de Felix Cohen a respeito dos
questionários. Embora Cohen tenha classificado estes como “extremamente úteis para o
nosso trabalho até agora”, nada indica que ele estivesse se referindo especificamente à
elaboração da IRA. Dentro dos arquivos contendo esse material, há duas pastas de
questionários: uma contém as respostas originais e a outra contém uma versão
condensada das mesmas, editadas segundo as necessidades ideológicas do círculo de
Collier. Justamente, foi esse material editado que foi apresentado ao Congresso durantes
dos debates sobre a Lei de Reforma Indigena (LC, H474-3, 1934, Senate Hearings on
S.2755 and S.3645: 271-281).
Um exemplo desse tipo de edição pode ser visto nas respostas de Elsie Clew
Parsons ao questionário. A versão condensada reproduz apenas metade da sua declaração
sobre a intervenção entre os Second Mesa Pueblos: “Os Pueblos me parecem ter um
sistema bastante equilibrado de atividades individuais e comunitárias. Eu sugiro não
perturbá-lo. Deixe que eles adotem por vontade própria, caso prefiram, outras formas de
cooperação econômica”. A versão original da resposta, entretanto, sugere áreas
específicas onde a Repartição pudesse intervir e uma advertência bem mais forte contra
outras formas de interferência na vida tribal: “Fora a escola, as instalações de saúde e de
problemas legais com os vizinhos brancos, o meu slogan para os Pueblos é ‘tirem as
mãos deles’!” Parsons, então, inicialmente aconselhou a OIA a não erguer corporações
tribais ou governos oficiais entre os Pueblo, mas esse conselho foi deixado de fora da
versão condensada dos seus comentários.
Outros questionários mostram um padrão similar de edição. O relatório de Forrest
Clements, que não considerava os índios com os quais ele trabalhara como competentes
para o auto-governo político e econômico, ficou de fora da pasta editada, bem como o
relatório de Thurman Michelson, também desconfiado do auto-governo. A afirmação de
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
371
H. Scudder Mekeel de que os Sioux eram naquele momento incapazes de gerenciar os
seus assuntos foi eliminada da versão editada junto com uma afirmação similar feita por
Morris Opler sobre os povos Mescalero e Chiricahua Apache. Em outras palavras, a
versão editada dos comentários dos antropólogos ignorava as avaliações negativas sobre
a capacidade dos grupos nativos de sustentar um auto-governo político e econômico. Nas
poucas ocasiões em que essas foram apresentadas, pareciam claramente ligadas a
políticas passadas de assimilação forçada e ao loteamento individual da terra, sempre
apresentado em termos negativos. Isso foi visto como a forma “individualista” de
administração em oposição à proposta “cooperativista” de Collier.
Com certeza, os 50 antropólogos que responderam ao questionário eram bastante
desconfiados das políticas passadas da OIA. Pelo menos 18 demonstraram algum grau de
apoio à proposta de Collier de “re-comuninalização” da vida indígena e ninguém mostrou
apoio algum ao loteamento continuado ou às políticas de assimilação forçada. Além
disso, entretanto, os questionários originais não mostram um consenso claro entre os
antropólogos quanto ao próximo passo da reforma dos Assuntos Indígenas. Em sua carta
referente aos questionários, Cohen aponta aqueles respondidos por Kroeber, Boas,
LaFarge, DuBois, Bowers, Swanton e Colton como sendo particularmente interessantes,
contendo sugestões que “serão importantes na definição da política da Repartição
Indígena na conferência no próximo domingo”. Todos esses antropólogos criticaram
duramente o loteamento de terras e/ou declararam apoiar a proposta de Collier de
reavivar a vida comunitária nativa. Diante disso, parece bastante evidente que a
importância dessas sugestões antropológicas relacionava-se com o impacto político que
as versões editadas teriam no Congresso. Em outras palavras, a OIA de Collier já sabia o
que queria dos antropólogos, e o questionário foi simplesmente utilizado para coletar
respostas que apoiassem esse ponto de vista. Foi desse modo, de fato, que a versão
editada das respostas dos antropólogos foram usadas, sendo lidos no e registrados como
oficial pelo Congresso americano [(LC, H474-3, 1934, Senate Hearings on S.2755 and
S.3645).
Mas a carta de Felix Cohen também nos dá uma outra pista relativamente aos usos
intencionados pelo questionário. O material, Cohen declarou, teria valor “inestimável” no
futuro, quando “finalmente estivermos em posição de seguir adiante com o nosso
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
372
programa referente às diferentes jurisdições indígenas”. Por causa disso, eles “devem ser
considerados como base das pesquisas ulteriores”. Cohen estava então evidentemente
planejando o desempenho futuro dos antropólogos em uma função aplicada nos esquemas
propostos pela Repartição para os indígenas. O questionário também serviria como
primeira lista de contato para esse projeto.
Graham Taylor observa que a antropologia cultural americana, conforme
sintetizada por Boas, evitava o tipo de pesquisa diretamente aplicável que Collier estava
querendo que os antropólogos realizassem. Isso seria recebido com grande dificuldade
por determinados antropólogos mais tarde. Contudo, como o próprio Taylor admite, a
opinião estava bastante dividida entre aqueles que responderam ao questionário quanto ao
possível emprego de sua disciplina para suprir as necessidades concretas da
administração indígena (TAYLOR, 1975: 157, 160). Julian Steward, olhando para trás,
em 1969, fez uma observação parecida: “Quando a assistência dos antropólogos foi
finalmente procurada pela OIA em 1934, estávamos despreparados para oferecer algo
valioso” (STEWARD, 1969: 335-336).
Na verdade, muitos antropólogos que responderam ao questionário declararam
despreparo para respondê-lo porque (nas palavras de Martha Beckwith) eles nunca
haviam estudado as “presentes condições governamentais e sociais” sobre as reservas
indígenas. Ao contrário, haviam se debruçado sobre a salvage anthropology: recuperando
memórias a respeito de presumíveis condições aborígines ou “dados folclóricos”. Tanto
Franz Boas como George Herzog advertiram Collier de que os antropólogos americanos
não estavam muito preparados para suprir os dados que ele estava solicitando. Segundo
Boas, era “muito difícil naquele momento encontrar qualquer um bem preparado para
lidar com os problemas práticos da vida indígena pelo motivo de que nenhuma posição
desse tipo estava disponível para qualquer um que tivesse estudado antropologia”.
Herzog secundou essa preocupação, dizendo que “Por força do hábito, a maioria dos
antropólogos nesse país tem se mostrado relativamente desinteressada até agora das
questões práticas referentes ao ajuste dos índios à civilização moderna.” Herzog ainda
alertou que enquanto “podemos confiar no antropólogo quanto à sua capacidade de
considerar o ponto de vista do indígena – já que o background histórico desse ponto de
vista é mais ou menos conhecido pelo antropólogo… mas como tal, ele está por sua
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
373
própria posição e interesse identificado à antiga (e quase extinta) cultura indígena; talvez
ele não veja uma situação de fato, complicada pela presença dos colonos, comerciantes
brancos, etc. com suficiente realismo.”
Contudo, muitos daqueles mesmos que responderam aos questionários e que
alegaram ter pouca informação sobre as estruturas econômicas e políticas nativas
contemporâneas, como Martha Beckwith, ainda fizeram análises consideravelmente
detalhadas dos problemas econômicos e políticos dos “seus” índios. Muitos outros, como
Kroeber, DuBois, Bowers e Colton, forneceram uma quantidade substancial de
informação em suas respostas às perguntas da OIA. Outros, como Voegelin – e até Boas
– forneceram conselhos bastante específicos a respeito de como antropólogos podiam
auxiliar administradores indígenas, principalmente ensinando-os a considerar os pontos
de vista indígenas com mais simpatia. Voegelin aconselhou que os administradores da
OIA “deveriam receber treinamento especial sobre as culturas indígenas, da mesma
maneira como se orienta alguns servidores públicos na Inglaterra”. Faye Cooper-Cole,
mesmo não dispondo de informações específicas a respeito dos indígenas dos Estados
Unidos, escreveu várias páginas em resposta ao questionário elogiando o governo
indireto britânico na Malásia. Em outras palavras, enquanto alguns dos que responderam
afirmaram não ter as informações detalhadas que Collier procurava, quase todos tinham
algum conselho para dar à Repartição, seja a respeito da Administração Indígena, seja
relativamente ao emprego dos antropólogos em funções aplicadas. A hipótese, então, de
que a antropologia aplicada era um conceito além do alcance dos antropólogos
americanos do período é falsa. Nem um antropólogo sequer dos que responderam ao
questionário rejeitou o uso da antropologia nos Assuntos Indígenas e muitos ofereceram
sugestões concretas de como a disciplina poderia ser útil para a OIA.
Três jovem antropólogos em particular – Oliver LaFarge, H. Scudder Mekeel, e
Morris Opler – forneceram respostas detalhadas e de muitas páginas para as perguntas da
pesquisa e especificamente convidaram Collier a utilizar seus serviços. Mekeel foi
particularmente explícito nesse quesito, dizendo que ele tinha uma “grande simpatia com
o que você tem em mente e ansioso para ouvir mais a respeito”, e afirmando que “eu
tenho desejado uma oportunidade de disponibilizar para alguém em sua posição o que
aprendi por meio do meu trabalho sobre as forças dinâmicas nas culturas indígenas
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
374
modernas – um conhecimento que pode ter um valor inestimável na formulação de
qualquer política administrativa.” Mekeel terminou o seu detalhado resumo das
condições econômicas e políticas dos Lakota modernos dizendo que ele estaria mais do
que disponível para vir à [Washington] D.C. para conversar com Collier, uma vez que a
OIA financiasse a sua viagem. O relatório de Mekeel sobre os Lakota foi extensivamente
citado inúmeras vezes por Collier diante do Congresso durante os debates da IRA (exceto
a observação de que os Lakota seriam incompetentes para administrar coletivamente os
seus assuntos econômicos e políticos, é claro) e LaFarge chegou a participar das
audiências com o intuito de fazer uma declaração em sua posição de presidente da
“Associação Nacional de Assuntos Indígenas” (National Association on Indian Affairs)
(LC, H474-3, 1934, Senate Hearings on S.2755 and S.3645). Todos os três homens foram
contratados mais tarde pela OIA para realizar trabalho de antropologia aplicada –
LaFarge para ajudar a organizar a constituição Hopi, Opler como um membro da AAU e
Mekeel como diretor dessa unidade. Entres outros que responderam ao questionário e
ajudaram a Repartição de um modo ou de outro durante os anos que se seguiram estavam
Duncan Strong, John Harrington, Fred Eggan, George Herzog, Frank Speck, Aldes
Hrdlicka e A.L. Kroeber.
6
O conselho antropológico se reúne
No dia 28 de maio 1934, realizou-se uma reunião em Washington D.C. com a
presença da OIA e alguns antropólogos proeminentes que foram chamados às expensas
do governo.
7
Participaram dessa reunião H.R. Radcliffe-Brown e Fay-Cooper Cole, da
Universidade de Chicago, John Cooper da Universidade Católica, John Swanton do
Smithsonian’s Bureau of American Ethnology (BAE), John R. Merriam Carnegie
6
Uma lista dos antropólogos que trabalharam na OIA durante o período de Collier encontra-se também no
Apêndice I. Embora não esteja completa, a lista transmite uma idéia da amplitude da cooperação
evidenciada durante esses anos.
7
Fay Cooper-Cole mais tarde reclamaria de que ela não recebera pagamento das repartições gerais de
contabilidade do governo Federal por ter participado da reunião. Collier lamentou, comentando que
“Pareceria que a noção é a de que os cientistas devem pagar o governo pelo privilégio de trabalhar para ele
em troca de nada” (JCP reel 20, Collier - Cooper-Cole correspondence, June 19th 1934). Situações desse
tipo se repetiriam ao longo do período de Collier e ilustram uma das desvantagens da “organização
informal” do grupo de consultoria antropológica da OIA. Na medida em que esse grupo nunca integrou
oficialmente o orçamento da Repartição, verbas destinadas a ele teriam que se originar de outras fontes –
fontes que com freqüência não se encontravam sob o controle direto da Repartição e, portanto, ficavam
sujeitas a inconstâncias no pagamento.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
375
Institution e Donald Young do “Conselho de Pesquisa em Ciências Sociais” (Social
Science Research Council). Lloyd Warner, Leslie Spier, Mat Stirling Robert Lynd e L.K.
Frank foram convidados, mas não puderam vir. Da parte da OIA, a reunião incluiu John
Collier, vários representantes de departamento e Felix Cohen.
8
Vale a pena lembrar que essa reunião aconteceu durante os dias mais negros da
Grande Depressão. Os orçamentos governamentais e universitários estavam sendo
cortados e as disciplinas mais “teóricas”, como a antropologia, estavam sendo forçadas e
procurar novas fontes de financiamento
9
. Propostas de acabar com o Smithsonian Bureau
of American Ethnology estavam, de fato, circulando no Congresso (NAA Duncan Strong
Papers, Box 14, Folder STEF-Steward J. 1940, Steward-Strong Correspondence, Feb.
14
th
, 1936). Nessas circunstâncias, a possibilidade de um braço do governo americano
estar buscando empregar antropólogos e financiar pesquisa era para despertar interesse.
A reunião do dia 28 abriu com uma apresentação de Radcliffe-Brown sobre como
os britânicos usaram antropólogos no treinamento de administradores coloniais. Fay-
Cooper Cole então descreveu o sistema holandês de treinamento de administradores,
enfatizando, mais uma vez, os proveitos que suas escolas tiraram da antropologia para
essa tarefa. Esses dois antropólogos indicaram que seus colegas de disciplina seriam úteis
familiarizando os administradores coloniais com os hábitos e crenças dos povos que eles
estariam administrando e, se possível, também com as línguas nativas.
A discussão então contemplou os possíveis modos de adaptar esses modelos para
treinar administradores da OIA. As propostas apresentadas eram bastante detalhadas,
incluindo postos dentro da Repartição que requeriam esse tipo de treinamento, e que tipo
de aulas que pudessem ser oferecidas. Foi concordado que cerca de 4.000 empregados da
OIA precisavam urgentemente receber algum treinamento básico em antropologia. O
próprio Collier considerava que três tipos de cursos pudessem ser oferecidos: um
programa de um ano, um curso de verão e uma introdução ao campo com sessões de 2 a 3
semanas. Esses cursos apresentariam a “antropologia como algo relacionado às carreiras
do Serviço Indígena” e o material apresentado seria adaptado do currículo da
8
Salvo quando observado, a informação referente a essa reunião provém de “Notes on discussion between
OIA and ethnologists, May 28, 1934” NAA, Duncan Strong Papers, Box 47 BIA.
9
Com relação ao arrocho geral de verbas na antropologia durante o fim dos anos 20 e início dos anos 30,
ver STOCKING, 1992.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
376
Universidade de Chicago. Radcliffe-Brown e Fay-Cooper Cole disponibilizaram cursos
de treinamento especiais na Universidade de Chicago
10
para pessoas buscando postos na
OIA, contanto que houvesse demanda. Discutiu-se a possibilidade de um curso de dois
anos com pesquisa de campo e John Collier também sondou a possibilidade de
treinamento universitário para indígenas sem diploma de segundo grau (high school) para
postos administrativos em um curso de 2 a 3 anos voltado especificamente para as
necessidades deles.
A reunião então lidou com o problema prático das “possibilidades imediatas de
conseguir antropólogos com as verbas existentes”. Collier mencionou que provavelmente
não haveria de imediato dinheiro extra concedido para o trabalho antropológico na OIA.
Ele perguntou se seria possível pôr os funcionários das reservas em contato direto com os
pesquisadores antropólogos atualmente trabalhando dentro da jurisdição da OIA. Ele
sugeriu que esses antropólogos fossem transferidos para os quadros funcionais das
reservas e pagos com o dinheiro do caixa da Repartição, uma vez que havia verba
disponível para esse tipo de trabalho temporário mas não para empregar antropólogos em
tempo integral. Uma das principais vantagens mencionadas durante a reunião com
relação a essa proposta foi o fato de que os índios provavelmente confiariam mais nos
antropólogos, justamente por não serem membros “oficiais” da OIA.
Exemplos específicos do que a antropologia poderia fazer pela Repartição foram
mencionados: orientações de como lidar com a erosão do solo na reserva Navaho, como
“organizar os índios das planícies para governarem a si mesmos, e devolvê-los às suas
próprias terras” e “resgatar da cultura indígena os elementos que tivessem valor para o
modo de vida americano atual”. Dr. Donald Young ressaltou que o Conselho de Pesquisa
em Ciências Sociais tinha verba disponível para bolsas de estudo para apoiar alunos que
estivessem trabalhando para formar uma base prática para suas teses. Ele também
afirmou que “talvez seja possível encaixar uma ou duas dessas pessoas aqui no Serviço
Indígena.”
10
Vale a pena ressaltar, nesse contexto, que o filho de John Collier, Donald, estava estudando para ser
antropólogo na Universidade de Chicago nesse período (JCP, reel 20, Collier-Lasswell correspondence,
7/11/34).
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
377
Por fim, “após alguma discussão, foi informalmente acordado que o Serviço
Indígena deveria empregar em regime de tempo integral um antropólogo competente que
pudesse integrar o trabalho do Serviço Indígena bem como atender às demandas no
campo e manter o contato com as pessoas de fora e com as eventualidades.” Essa pessoa
“deveria ser apoiada, e mais ou menos orientada, por “um conselho informal de
antropólogos”, e seu salário ficaria em torno de 3.600 a 6.500 dólares por ano,
dependendo de sua experiência. Quanto ao conselho, “Dr. John C. Merriam foi enfático
em sua posição de que a verdadeira força de um arranjo como esse residia no
agrupamento e re-agrupamento informal em torno de uma opinião interessada e de
comum acordo, em vez de residir em um tipo de organização rígida e talvez mecânica;
ele ressaltou que um grupo interessado e organizado de um modo fluido não poderia ser
desalojado pela mudança política”. Um intermediário empregado pela OIA organizaria
esse grupo e convocaria indivíduos à medida que demandas específicas surgissem.
A conversa então se voltou para a questão de quem deveria integrar esse conselho
e quais antropólogos poderiam ser convocados para cada reserva. O plano esboçado na
reunião e logo posto em prática tirava proveito de uma lei federal recentemente aprovada
que permitia às repartições governamentais empregarem especialistas. Em tais casos, os
especialistas recebiam um salário simbólico de um dólar por ano, além de uma diária e as
demais despesas. A OIA não era, é claro, a única repartição federal a fazer uso dessa lei
durante a administração Roosevelt. A vantagem do programa, do ponto de vista da
Repartição, era poder pagar os antropólogos com fundos não sujeitos às restrições
orçamentárias normais. Para os antropólogos, o combinado era vantajoso porque provia
uma quantia pequena mas fixa de dinheiro que poderia complementar subvenções e
bolsas de pesquisa. Isso foi muito importante para os alunos que faziam campo para suas
dissertações na época da Depressão. Durante a administração de Collier, muitos entre os
jovens e promissores antropólogos escreveram sobre suas pesquisas desse modo, pelo
menos em parte
11
.
11
Parece que um pesquisador teria que se comprometer a cooperar com a burocracia da agência local e
também escrever um relatório voltado para as questões administrativas no fim de sua estadia no campo. É
também importante ressaltar que esses pesquisadores nunca foram considerados parte da equipe
propriamente dita de Antropologia Aplicada do Departamento. Não há um arquivo central que contenha os
seus relatórios na NARA, mas a minha pesquisa indica que muitos antropólogos foram subsidiados desse
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
378
A reunião chegou ao fim com um resumo das decisões que haviam sido tomadas.
Planos definitivos para treinamento antropológico interno haviam sido feitos e para isso
foram sugeridos quarto centros regionais, oferecendo cursos de 60 dias a cada dois anos.
A Universidade de Chicago avaliaria a possibilidade de oferecer um curso de treinamento
para aproximadamente 25 candidatos da OIA, começando no outono. A OIA procuraria e
empregaria um antropólogo competente como intermediário de um comitê informal
consultivo de antropologia, cujos membros seriam convocados para cumprir tarefas para
a OIA, a título de consulta, por “um dólar por ano”. A Universidade de Chicago
concordou em indicar Padre Berard Haile como consultor para a equipe de administração
da reserva Navajo nesses termos. Por fim, o SSRC concordou em premiar com uma ou
duas bolsas de pesquisa candidatos interessados nos problemas do Serviço Indígena.
Como podemos ver, muito longe de ficarem admirados com o pedido de ajuda por
parte de Collier, os antropólogos na reunião ofereceram várias sugestões concretas de
como a antropologia poderia melhorar a OIA. O Comissário ficou obviamente satisfeito
com os resultados da reunião e sentiu que muito fora conseguido. Ao longo das semanas
seguintes, ele escreveu para Lloyd Warner, W.W. Hill e Edward Sapir, relatando o que
havia sido discutido. Em seu relatório para o Secretário do Interior Ickes no dia 21 de
junho de 1934, Collier enfatizou o sucesso da reunião e nomeou John Merriam, Dr.
Kidder (Carnegie Institution), John Cooper (Universidade Católica da América), os Drs.
Stirling e Swenton (ambos do Bureau of American Ethnology), Fay-Cooper Cole e
Radcliffe-Brown (Universidade de Chicago), Lloyd Warner (Harvard), Donald Young
(Conselho de Pesquisa em Ciências Sociais) e Lewis Meriam (Brookings Institution)
como membros do conselho consultivo antropológico “não-oficial” da OIA. Ele também
afirmou estar negociando com Kroeber e Lowie (Universidade da Califórnia), Loram
(Yale), E.R. Embree (Rosenwald Fund), Robert Lynde (Columbia) e L.K. Frank (General
Education Board ) quanto a sua participação no grupo, comentando que esses “indivíduos
foram convidados devido ao seu interesse especial, mas também devido à necessidade de
termos os mais influentes contatos institucionais” (JCP reel 20 6-Jun-34, 7-Jun-34, 19-
Jun-34).
modo e que, devido ao seu trabalho, a OIA logo adquiriu uma biblioteca bastante respeitável de relatórios
etnográficos a respeito de seus tutelados.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
379
Collier ressaltou em sua carta para Ickes que a OIA estava em negociação com o
Bureau of American Ethnology (BAE) para obter ajuda antropológica competente. Nesse
momento, o BAE estava sofrendo ataques por parte do Congresso e teve suas verbas
cortadas. Conforme Oliver LaFarge mencionou, isso significava que os empregados da
Repartição estavam todos “de mãos atadas no momento, devido a falta de verbas”. A
possibilidade de uma aliança de pesquisa com a OIA nesse momento crucial deve ter
parecido particularmente atraente para o BAE. Em sua carta a Ickes, Collier afirmou que
o antropólogo e funcionário do BAE Duncan Strong seria transferido para a Repartição
de Assuntos Indígenas (OIA) em regime temporário como um intermediário
especializado em antropologia até a OIA liberar verba suficiente para empregar alguém
para a posição. “O Bureau of American Ethnology foi estabelecido para ajudar o governo
na formulação das Políticas Indígenas e para o dimensionamento dessas políticas,”
Collier ressaltou. “A partir de agora, me parece apropriado ‘dar vida’ àquilo que foi há
muito tempo intencionado mas impedido pela Repartição Indígena”.
12
No início de julho,
logo após a aprovação da IRA, o Indians at Work também lembrou seus leitores que uma
das razões principais pela qual o BAE tinha sido estabelecido foi para orientar a política
de assuntos indígenas, mas que a OIA preferira ignorar esse ponto, e fora inclusive hostil
com relação ao BAE. Agora, entretanto, a hora chegara para as duas repartições
trabalharem juntas do modo como o Congresso havia sempre planejado, já que “a
consultoria dos antropólogos é essencial para fazer vingar inteiramente a Lei Wheeler-
Howard. A consultoria está sendo buscada agora, e generosamente fornecida por um
certo número de etnólogos proeminentes. Entre eles está a equipe da Bureau of American
Ethnology .” (JCP reel 22, Collier – Ickes Correspondence, 21/06/1934; IAW, 1/7/1934:
11-12).
O serviço inicial dos antropólogos na OIA
Entre o questionário de antropologia, a reunião de maio e as convocações
subseqüentes de Collier, uma parte significativa da antropologia nos Estados Unidos
havia sido sondada sobre as possíveis contribuições da disciplina aos Assuntos Indígenas.
12
Collier parecia ter a impressão de que o BAE não divulgou nenhuma descoberta prática no Congresso
após a sua fundação em 1878, e que a OIA era culpada por isso. Entretanto, como vimos na sessão I acima,
não era esse o caso.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
380
Além disso, planos foram implantados para recrutar o Bureau of American Ethnology
para formalmente desempenhar o papel que o Congresso havia vislumbrado para ele mais
de meio século antes: o de servir como instituição de pesquisa científica para a OIA.
Até o início do verão de 1934, a OIA já havia começado a empregar antropólogos
tanto no regime de “um dólar por dia” quanto na posição de trabalhadores temporários
em aplicações específicas de seu conhecimento. Em junho de 1934, Gladys Reichard,
Berard Haile e Edward Sapir estavam envolvidos com a implantação de programas
educacionais bilíngües na reserva Navaho sob a orientação da Divisão de Educação da
OIA. De primeiro de junho a 31 de agosto, o projeto “Hogan School” de Reichard
recebeu um estipêndio de 1.500 dólares para ensinar 24 adultos Navaho a ler e escrever
em sua língua nativa. Um número indeterminado de alunos acabou participando do
programa, mas infelizmente, devido a pressões de trabalho, ninguém pôde freqüentar as
aulas por mais de 18 dias. A experiência se repetiu cedo no ano seguinte com a
implantação de um Instituto de Intérpretes por Father Berard Haile no Forte Wingate de
janeiro a abril de 1935. Haile havia sido indicado consultor especial em educação Navaho
em janeiro daquele ano, e foi autorizado a supervisionar os programas de língua Navaho.
O propósito primordial do Instituto, assim como aquele da Escola Hogan de Reichard no
ano anterior, era ensinar um grupo de Navajos a ler e escrever em sua própria língua.
Enquanto isso, Edward Sapir recebeu 2.000 dólares da Repartição para produzir o Livro
de Língua Navaho para Iniciantes (Beginner’s Book of the Navaho Language) para ser
usado como cartilha nas escolas primárias da reserva.
13
Esse trabalho lingüístico inicial demonstraria alguns dos problemas práticos que o
trabalho antropológico para a OIA apresentava. Era mal planejado e modestamente
financiado. Todos os três lingüistas reclamaram terem recebido pagamentos atrasados e
ainda baixos. Além disso, planos de cursos futuros teriam que ser arquivados pelo ano de
1935 quando o diretor da Divisão de Educação, Carson Ryan, saiu de licença e o dinheiro
destinado ao programa de lingüística foi distribuído para outros projetos sem aviso
prévio. Os egos antropológicos ficaram feridos pelo que foi considerada uma atitude dura
13
Salvo quando observado, a informação sobre lingüística apresentada nesta sessão provém de NAA
William Duncan Strong Papers, Box 47, Bureau of Indian Affairs, 1934-1937 folder: Memo on Navaho Bi-
lingual Program, Nov. 20th, 1935.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
381
da Repartição. Reichard usava uma fonética simples e uma didática informal, e quando
seu programa foi substituído por aquele de Sapir e Haile, que adotavam uma fonética
mais complexa e metodologias formalizadas, ela sentiu que seu trabalho havia sido
injustamente rejeitado pela OIA. O trabalho de Haile foi então bruscamente encerrado, e
seu pagamento retido por dificuldades administrativas, deixando-o sentindo-se
desanimado e alienado. Por fim, os planos de Sapir de desenvolver um curso de verão
foram cancelados durante a ausência de Ryan. “Como resultado”, de acordo com a
análise da situação feita pela OIA, “três das mais proeminentes autoridades sobre os
Navaho e sua língua ficaram desnecessariamente desanimados ou rancorosos, e um
programa cultural e educacional promissor foi no mínimo temporariamente suspenso.”
Outros problemas ocorreram devido ao fato de que os três lingüistas envolvidos
não estavam usando uma única ortografia Navaho. A OIA reclamou sobre a falta de
consenso entre os lingüistas, e sua incapacidade de relevar as dificuldades administrativas
“e, em alguns casos, a sua tendência de considerar as verbas da OIA assim alocadas como
contribuições para a pesquisa científica pura e não como parte de um programa
educacional prático e definido.” Mesmo assim, todos que estiveram envolvidos nesse
projeto inicial consideraram o trabalho útil e promissor. “O mecanismo, e não o fim
almejado, provocou até agora as maiores dificuldades,” segundo a OIA. “Se a
conscientização cultural indígena será melhorada pelo desenvolvimento das línguas
escritas para as tribos maiores esse mecanismo tem que ser posto em ordem.”
Vários outros projetos lingüísticos foram revisados pela Repartição naquela
época, mas os dados não são claros quanto ao fato de como ou se qualquer um deles foi
diretamente apoiado. Entre estes se encontravam o “Projeto Lingüístico Yuma” (Yuma
Linguistics Project) sob a orientação de A.L. Kroeber e A.M. Halpern, em que 20 Yuma
passaram 3 meses aprendendo a ler e escrever a sua própria língua, e a proposta de Dr.
J.P. Harrington de produzir um livro didático Hopi para a OIA. Harrington apresentou
essa proposta como um meio de preservar o conhecimento tradicional e estimular nas
crianças indígenas o orgulho pela sua “língua e raça”. Ele também afirmou que o livro
“registraria muito material lingüístico de todo tipo, e de um modo tão completo que as
pessoas irão estudá-lo muito depois das línguas terem finalmente se esvaído e sido
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
382
suplantadas pelas européias. Irá produzir uma mina para psicólogos, pesquisadores de
religião, historiadores e os futuros maníacos por línguas.”
Os comentários de Harrington e as reclamações da OIA a respeito da “pesquisa
pura” ilustram a dificuldade que viria assombrar o trabalho antropológico para a
Repartição ao longo do período de Collier. Em grande medida, muitos dos antropólogos
envolvidos pareciam acreditar que o destino final e lógico dos índios dos Estados Unidos
seria a assimilação total. Proporcionar às crianças Hopi orgulho de sua herança étnica era
uma boa intenção, mas isso era visto como um mero adiamento do inevitável dia em que
a dita herança desapareceria nos museus. Diante dessa perspectiva, as soluções
antropológicas para as questões administrativas raramente postulavam a sobrevivência
dos povos nativos americanos a longo prazo, enquanto a preferência dos antropólogos por
“pesquisa pura” também mostrava que eles com freqüência nem estavam ajustados à
meta de curto prazo da OIA de produzir agrupamentos sócio-políticos viáveis por meio
dos quais o governo nativo pudesse ser pragmaticamente administrado.
Outro projeto antropológico inicial para a OIA era um curso verão de
antropologia na escola indígena de Santa Fe para uns 70 funcionários da OIA ensinados
pela antropóloga Ruth Underhill, além de incorporar palestras feitas por visitantes a
respeito de seu trabalho de campo. Os tópicos mencionados incluíam “a importância do
milho na vida indígena”, problemas de saúde entre os Pueblo, etno-biologia (ou o uso de
plantas nativas) e a “questão” da educação bilíngüe (IAW, #24 1/9/1934: 24-25). Essas
sessões de treinamento de verão se tornariam uma espécie de febre nos anos seguintes.
Em 1936, as aulas foram ministradas no forte Wingate da reserva de Pine Ridge e no
Colorado State College, totalizando por volta de 300 alunos. Em 1937, 400 alunos
atenderam um curso em Wingate e mais 300 em Pine Ridge enquanto outros 550
assistiram às aulas em Oklahoma. Em 1938, entretanto, apenas 1 curso foi ministrado
para aproximadamente 300 alunos. Em sua maioria, esses cursos cumpriram o propósito
de ensinar antropologia básica e sociologia rural para professores de escolas indígenas,
como fora planejado durante a primeira reunião do conselho antropológico em maio de
1934. Os antropólogos da OIA, bem como os membros associados do conselho
consultivo foram convocados para ministrarem aulas, e essas responsabilidades com
freqüência interferiam com o seu trabalho de campo. As aulas, entretanto, faziam
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
383
bastante sucesso entre os alunos. “A avidez com a qual todos os cursos em antropologia
social são recebidos indicam que os professores leriam muito a respeito dos índios uma
vez orientados por nós sobre o que ler,” constava em um relatório (NAA William Duncan
Strong Papers, Box 47, Bureau of Indian Affairs, 1934-1937 folder; Box 9, McCORD-
MEK Folder; NARA RG75, Central Classified Files, 1907-39 General Services 61822-
37-808).
Em algum momento em 1934, a OIA começou a contratar consultores em regime
de “um dólar por ano” e também a fazer uso de suas conexões para questionar
antropólogos a respeito das condições atuais nas reservas. Oliver LaFarge foi consultado
a respeito dos Hopi e Harold Lasswell da Universidade de Chicago produziu um estudo
sobre os Pueblo (JCP, reel 20, Collier-LaFarge correspondence, 7/11/34; reel 15, Collier-
Lasswell correspondence, 21/9/1934). Um dos primeiros homens no regime de “um dólar
por ano” foi Dr. William Gates, assistente de pesquisa na Universidade John Hopkins,
presidente da Maya Society, membro da AIDA, etnólogo e lingüista. Gates foi contratado
para fazer um relatório sobre a situação na reserva Yuma e para recomendar como
organizar seus residentes em um governo tribal viável. Nessa mesma função, Gates
também foi enviado para o México para ver o que os indigenistas naquele país haviam
feito com relação à proteção das terras nativas. Gates escreveu o seu relatório, mas
infelizmente foi além dos limites de seu contrato quando começou a investigar uma
denúncia de corrupção do serviço médico da reserva. Isso o pôs em conflito com os
funcionários da OIA e Gates foi forçado a abandonar sua posição em abril de 1935
(NARA RG 75, E 178, Office File of Commissioner John Collier, 1933-1945).
Durante o verão de 1934, John Collier também começou a buscar antropólogos
qualificados para assumir posições como agentes em reservas estratégicas como a dos
Pueblo e dos Hopi. Uma das pessoas que ele contatou foi Sophie Aberle, que seria
nomeada superintendente da Agência Indígena dos United Pueblos no verão de 1935
(JCP reel 27, Collier-Ickes correspondence, 18/7/35).
Um outro uso dos consultores antropológicos da OIA ocorreu no início do verão
de 1934, quando John Collier pediu sugestões da parte de antropólogos americanos a
respeito do “Congresso interamericano de especialistas da vida indígena” (Inter-
American congress of experts on Indian life), aparentemente planejado junto com
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
384
indigenistas mexicanos para 1935. Essa conferência, evidentemente, não ocorreria até
1940 em Patzcuaro, México e será abordada no Capítulo 9 desta tese. É interessante
ressaltar, entretanto, que muitos dos indivíduos mencionados ou listados na reunião de 28
de maio, bem como aqueles que haviam respondido ao questionário em 1933 também
foram consultados nessa ocasião. Entre os mais proeminentes antropólogos e sociólogos,
podemos citar A.V. Kidder, John C. Merriam, Fay-Cooper Cole, John M. Cooper,
Charles T. Loram e W. Lloyd Warner (que forneceu 15 páginas de sugestões detalhadas
para Collier. JCP reel 20, 26/6/1934; NARA RG 75, E195A, Office of the Coordinator
of Inter-American Affairs, Records of the Inter-American Indian Program, ca. 1933-49,
Box 7, Commissioner’s File, Agenda, Inter-American Conference on Indian Life, La Paz,
1939).
Até o verão de 1934, a Lei de Reforma Indígena (IRA) havia sido aprovada no
Congresso e a OIA começou a buscar com afinco uma consultoria antropológica a
respeito da organização futura dos governos tribais. Em um documento de circulação
interna da OIA nesse período, “O trabalho a ser realizado [sobre organização tribal] até
primeiro de agosto” incluía a “compilação de materiais antropológicos, incluindo [um]
índice do trabalho público sobre a organização política, econômica e social, [um] índice
dos especialistas capazes de dar assistência à execução [do] programa e possivelmente [à]
compilação e extensão [dos] materiais de questionários antropológicos”. Até primeiro de
setembro, o escritório da OIA localizado em Washington deveria elaborar “constituições-
modelo, regimentos e decretos [corporativos] à luz [do] estudo [desses] materiais...
antropológicos”. Desde o início, então, os dados antropológicos deveriam desempenhar
um grande papel na capacitação dos funcionários da OIA a respeito das tribos que estes
estavam tentando organizar. À medida que o programa indígena começou a funcionar a
todo vapor, os antropólogos então foram cada vez mais envolvidos nas práticas de
organização de governos tribais estáveis nas reservas dos Estados Unidos. (NARA RG
75, E1011, Records of the Indian Organization Division, Records Concerning the
Wheeler-Howard Act, 1933-1937, 4894-1934-066 Pt.8, s/d).
Organizando a aliança OIA-BAE
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
385
Boatos a respeito do suposto plano da OIA de unir forças com o Bureau of
American Ethnology (BAE) também já começavam a circular no meio antropológico,
duramente afetado pela Depressão. Correram rumores de que antropólogos seriam
empregados para realizar trabalho de campo, e membros mais jovens da profissão, sem
estabilidade, enfrentando o desemprego, começaram a preparar os seus currículos. No
centro dessa especulação encontrava-se o Dr. William Duncan Strong da Bureau o
American Ethnology (BAE). No outono de 1934, ele começou a trabalhar com a OIA
como um intermediário temporário. Nesse posto, Strong recebeu muitas cartas de colegas
de profissão mais jovens buscando informação a respeito de trabalho e, particularmente,
de dois jovem antropólogos que ele conhecia bastante bem: Julian Steward e H. Scudder
Mekeel. (NARA, RG 75 E1013 Correspondence with officials, 1934-1946).
William Duncan Strong era um protegido de Alfred Kroeber, completando os seu
doutorado sob essa tutela privilegiada na Universidade da Califórnia in 1926. Nos anos
1930, ele trabalhara tanto com Steward (com quem ele publicou um artigo) quanto com
Mekeel (com o qual ele manteve uma correspondência extensa durante a pesquisa de
doutorado deste na reserva de Pine Ridge) antes de obter um posto no BAE como
antropólogo. Nessa posição, ele acabou envolvido com as tentativas de John Collier de
recrutar antropólogos do BAE para a OIA. Ele parece ter exercido ao longo de 1934 uma
função não-oficial como o representante da OIA para contatos com a comunidade
antropológica e essa posição foi oficialmente confirmada por um acordo conjunto OIA-
BAE no início de 1935.
Julian Steward logo enviou o seu currículo para a nova mesa de Duncan Strong na
OIA, apoiado pelo amigo e mentor mútuo, A.L. Kroeber, na época envolvido com a
organização de trabalho voluntário de assistência a antropólogos na Califórnia atingidos
pela Depressão. Steward havia acabado de se divorciar de sua primeira mulher e seu
contrato de professor na Universidade de Utah acabaria no fim do ano. Dado essa
situação, ele comentou em sua carta para Strong, datada 15 de julho de 1934, que ele
“estaria com certeza interessado em qualquer coisa que aparecesse na Repartição. Após
dezembro estarei totalmente livre e sem nada em vista”. Strong aconselhou Steward a
prestar o novo exame para o serviço público promovido pelo governo federal para
etnógrafos (aparentemente solicitado pela OIA - ver NARA RG75, E191, Collier
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
386
correspondence with Dr. Wood, 11/04/1938) no qual o antropólogo infelizmente não
passou:
Após muita burocracia, ter juntado os documentos e coisas desse tipo, consegui
um requerimento para esse negócio de Serviço Indígena que culminou com um exame
para o Serviço Público. E agora, nossa, recebo a notícia de que fui declarado “inelegível”
devido à minha colocação no Serviço Público. Embora eu confesse que nunca me senti
muito animado a respeito da coisa toda, eu não gosto e não entendo isso. É improvável
que eu queria o trabalho. De qualquer jeito, é irritante.
14
Steward então discutiu o assunto com Kroeber, que leu para ele um parágrafo de
uma carta anterior de Strong a respeito dos diferentes tipos de trabalho sendo implantados
no Serviço Indígena. Steward ficou animado com a notícia de que a OIA estava
planejando empregar antropólogos para pesquisa e imediatamente escreveu para Strong
pedindo mais informações:
Eu não sabia da existência de dotações para pesquisa pura. Se estas de fato forem
aprovadas, o meu interesse na coisa toda fica muito mais vivo, pois no momento, como
eu já te disse, a perspectiva de uma cargo administrativo me deixa bastante indiferente de
modo que eu ficaria inclinado a aceitar tal posição apenas como último recurso, uma
oportunidade real de realizar pesquisa é outra coisa.
Nesse contexto, Steward mencionou que ele e sua ex-mulher Dorothy tinham
enviado à OIA uma proposta de estudo dos índios Ute “com o intuito de fornecer uma
demonstração de sua atual condição [de vida] e dos problemas de aculturação que, além
de constituirem um projeto de pesquisa válido em si mesmo, constituiria uma base para o
trabalho no programa de serviço indígena”. Ele afirmou ter trabalhado um pouco nesse
projeto antes de ter se sentido desanimado diante da aparente falta de interesse da OIA.
Ele também afirmou ter um projeto de pesquisa similar, embora mais ambicioso, pronto
para ser desenvolvido junto aos Navajo. Ele pensou que ambos os projetos teriam valor
para a OIA “porque tais investigações são indispensáveis e devem ser realizadas para
tornar qualquer programa administrativo inteligente. Eu havia pensado em tudo isso
como uma coisa eminentemente desejável, independente de qualquer papel que eu
pudesse desempenhar.”
14
Salvo quando observado, toda informação nesta seção a respeito da correspondência de Steward com
Strong provém de NAA William Duncan Strong Papers Box14, Folder STEF-Steward, J. 1940; Folder
Steward, J. (1941) –STI, Sept-Oct, 1934.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
387
Dada a possibilidade de vagas na OIA e o fantasma do desemprego iminente, A.L.
Kroeber aconselhou Steward a vir para Washington D.C. no fim do outono para
apresentar seus projetos pessoalmente a Strong e Collier. A futura correspondência com
Strong, contudo, acabou por dar cabo desses planos. Strong ressaltou que a OIA ainda
estava tateando na elaboração de uma política antropológica útil e, afora prestar o exame
para o Serviço Público com vistas a um posto de etnógrafo, havia pouco que Steward
pudesse fazer imediatamente: “O traço principal da presente situação é que eles [a OIA]
têm muitas idéias, mas atualmente nenhuma verba para implantá-las. Eu sei que você está
sendo considerado com seriedade, mas para o quê e para quando eu não sei.” Strong
concluiu dizendo que ele informaria Steward na eventualidade de qualquer emprego no
Serviço Indígena.
Em outra carta para Strong, Steward afirmou que a sua situação financeira era tal
que ele consideraria assumir um posto administrativo dentro da OIA. “A Repartição
funciona [“procedes [sic]”] de um modo tão incrivelmente misterioso que eu fico sem
saber o que fazer,” disse Steward, mas declarou que não iria para Washington a não ser
que fosse chamado diretamente pela OIA: “Eu não tenho prazer em fingir que estou bem
empregado quando o propósito da excursão seria informar às pessoas que eu estou à
venda.” Embora o trabalho administrativo o atraísse apenas como um último recurso, ele
mencionou que gostaria de receber um convite para algum posto, mesmo que de
superintendente de reserva “pois pode ser o caso de que eu tenha de aceitá-lo, estando
agora encarregado de cuidar da minha mãe e irmã. Caso contrário, eu vou acabar
preferindo levar uma vida de penúria fazendo pesquisa sabe-se lá de que e aonde. É
provável que você entenda o meu sentimento facilmente. A falta de perspectiva real de
um trabalho de pesquisa decente pode pôr as coisas sob outra luz.”
Kroeber não foi o único estudioso mais velho a sondar Strong sobre possíveis
oportunidades de emprego na OIA para certos alunos. No início de outubro de 1934,
Melville Herskovits também escreveu para o novo intermediário, dando parabéns pela
indicação e comentando que “Eu me ponho mais do que disponível para manter em
mente o fato de que talvez haja oportunidades na repartição indígena para alunos de
antropologia.” Embora Herskovits tenha ressaltado que ele não tinha ninguém para
indicar para Strong naquele momento, já que seus interesses concentravam-se na
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
388
“Etnologia Africana e Negra” tal oportunidade poderia se dar no futuro. Herskovits
terminou sua carta lembrando a Strong de que ele gostaria de ajudar a OIA de qualquer
modo possível: “A antropologia ‘aplicada’ tem prosperado nos últimos anos no campo
africano, e talvez eu possa ser útil passando para você o que eu aprendi em termos
técnicos e a partir dos meus resultados.” (NARA, RG 75, E1013 Correspondence with
officials, 1934-1946).
Scudder Mekeel também começou a enviar cartas para Duncan Strong em
setembro de 1935, ressaltando que “adoraria uma oportunidade de colocar seu dedo na
política administrativa!” No início de janeiro, Mekeel enviou cópias de sua dissertação
para Carson Ryan na Divisão Educativa da OIA, comentando que o seu trabalho tinha
incorporado “a velha política da assimilação rapidamente – de jeito nenhum considerada
por mim com preconceito, mas como algo em que eu via uma atitude imutável da parte
dos Estados Unidos com relação ao problema indígena.” Logo depois disso, Strong
escreveu para Mekeel dizendo que, embora os planos concretos para o trabalho
antropológico ainda estivessem incompletos “Se vagas abrirem e eles [a OIA]
conseguirem verbas, eu acho que há uma boa chance de você ser enviado para Pine Ridge
num futuro próximo para elaborar um relatório” (NAA William Duncan Strong Papers,
Box 9, Folder McCORD-MEK, Sept. –Feb.1934).
A correspondência supracitada demonstra duas coisas. Em primeiro lugar, revela
em que medida os contatos iniciais com os potenciais contratados para os programas de
antropologia da OIA se deram via uma rede social já existente, constituída por mentores e
alunos. Kroeber, em particular, se empenhava em instigar os seus alunos a contatarem a
Repartição por meio de seu ex-aluno e amigo Duncan Strong. Embora Mekeel nunca
tenha sido formalmente um aluno de Kroeber ou de Strong, ele conhecia este último
bastante bem desde que fizera, alguns anos antes, pesquisa para sua dissertação entre os
Lakota na reserva Pine Ridge. A correspondência que ocorreria entre esses homens nos
anos seguintes era bastante informal e o tom relativamente íntimo (NAA William Duncan
Strong Papers, Box 9, Folder McCORD-MEK).
Mais importante, entretanto, é o fato de essa correspondência demonstrar mais
uma vez que a proposta da OIA não havia despencado do nada sobre a antropologia
americana. Mekeel havia estudado os efeitos da assimilação sobre a organização social
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
389
Lakota durante a pesquisa para sua dissertação, e foram precisamente trechos desse
material que ele enviou para a Repartição em janeiro. Embora Herskovits não tivesse
nada de substancial para contribuir para o problema particular da aplicação da
antropologia na administração indígena dos Estados Unidos, como outros antropólogos
15
,
ele acreditava firmemente que os esforços britânicos recentes apontavam na direção desse
objetivo, e ofereceu os seus serviços na divulgação das técnicas e resultados britânicos.
Por fim, Julian Steward – longe de se mostrar perplexo diante do pedido da OIA de dados
sobre as condições socio-políticas atuais nas reservas – admitiu ter tentado vender um
projeto de pesquisa a respeito desse tipo de dados para os predecessores de Collier no
posto de Comissário, Scattergood e Rhoads. Além disso, ele tinha um outro projeto do
mesmo tipo, porém muito mais ambicioso, pronto para ser apresentado ao Comissário
pessoalmente. Essas declarações são bastante interessantes quando se considera os
comentários tardios de Steward (em 1969) de que o pedido da OIA de ajuda
antropológica pegara a disciplina despreparada.
No dia 29
de dezembro de 1934, a OIA apresentou formalmente suas propostas
para a antropologia como um todo na reunião anual da Seção H de Antropologia da
“Associação Americana para o Avanço da Ciência” (American Association for the
15
Mencionamos acima as citações específicas de Fay-Cooper Cole, Radcliffe-Brown e Voegelin a respeito
da antropologia aplicada britânica como um modelo para a OIA. Também, na edição de 15 de outubro de
1934 da Indians at Work, Dr. Charles Loram do Departamento para Relações entre as Raças (Department
of Race Relations) da Universidade de Yale, escreveu um artigo em que ele comentava que…
“A posição da Repartição de Assuntos Indígenas está de pernas para o ar [parecendo] com aquela com
a qual nos deparamos na África do Sul durante os dez anos em que eu servi na Comissão de Assuntos
Indígenas do Governo (Union Government Native Affairs Commission)… Os elementos essenciais
dessa posição eram:
‘a/ A necessidade de formulação de uma política de longo prazo.
‘b/ A necessidade de intensa atividade imediata segundo essa política.
‘c/ A necessidade de conciliar a política passada de ‘assimilação’ com a mais recente de maior
preservação possível da cultura indígena.
‘d/ Parece-me que a Repartição Indígena terá que adotar a política de ‘adaptação’, que manteria em seu
formato presente ou em outro, reformulado, o que seria de valor atual permanente nas culturas
indígenas enquanto deliberadamente introduzindo elementos importantes (isto é, saúde, saneamento,
uso da terra, sociedades cooperativas) que estão funcionando melhor em civilizações ocidentais.
’…Uma das dificuldades que vivenciamos e uma que o seu departamento sem dúvida está vivenciando
no momento é conciliar ...
a/ Pessoas… que desejam preservar a civilização indígena in toto e
b/ Grupos, e sentimentalistas, que almejam a completa ocidentalização dos índios.”
A carta de Loram simplesmente sublinha ainda mais o fato de experimentos de antropologia aplicada no
exterior serem praticamente desconhecidos entre os antropólogos nos Estados Unidos dessa época. Esses
experimentos foram citados repetidamente também em conversas junto a OIA.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
390
Advancement of Science) em Pittsburg. Convites personalizados foram enviados para
John M. Cooper, Fay Cooper-Cole, Berard Haile, Melville J. Herskowits, George Herzog,
E.A. Hooton, A.E. Jenks, Diamond Jenness, A.V. Kidder, W.M. Krogman, Alexander
Lesser, Ralph Linton, Margaret Mead, H. Scudder Mekeel, Cornelius Osgood, Elsie
Clews Parsons, Radcliffe-Brown, Robert Redfield, Gladys Reichard, E. Sapir, Frank
Speck, Leslie Spier, H.J. Spinden, Matthew Stirling, Duncan Strong e Leslie White
convidando-os para uma reunião de um dia inteiro com oficiais da OIA por ocasião da
conferência regular. Todos exceto Speck, Osgood, Mekeel, Krogman, Stirling e Kidder
estiveram presentes (IaW #32 1/1/35; 15/1/35).
Collier conduziu a reunião, discutindo as medidas que haviam sido tomadas
durante o ano que passara, e pedindo uma promessa de apoio antropológico para o
programa da OIA de “reabilitação de comunidades indígenas”. De acordo com os
repórteres da revista Science, “Uma discussão inflamada seguiu-se à apresentação do
Comissário, em que uma aprovação entusiasmada manifestou-se com relação a muitos
dos esforços que estão sendo implantados para ajudar os indígenas a obter oportunidades
culturais, sociais e econômicas” (Science, Feb. 15, 1935:170).
Três questões foram levantadas pela OIA durante esse evento:
1) Como as contribuições dos antropólogos poderiam ser usadas mais eficientemente
na organização das comunidades indígenas sob a IRA?
2) Que tipo de treinamento deveria ser organizado tanto para funcionários indígenas
como para brancos da OIA?
3) Que formato deveria ter a cooperação continuada entre a OIA e os antropólogos?
Várias sugestões foram feitas pelos que prestigiaram a conferência, embora a
maioria tenha repetido sugestões feitas previamente pelo conselho consultivo na reunião
de maio. Os antropólogos concordaram que seria necessário fazer um censo da profissão
para que a OIA soubesse identificar as pessoas mais qualificadas para falar sobre cada
grupo. Também foi sugerido, mais uma vez, que um consultor antropológico deveria ficar
encarregado da equipe da Repartição Indígena, com a incumbência de contatar
antropólogos da nação toda. Os oficiais da OIA então apresentaram uma lista de projetos,
pedindo aos antropólogos para julgar sua viabilidade. Estes incluíam:
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
391
1) Participação antropológica no planejamento e organização dos novos governos
tribais implantados pela IRA.
2) Consultoria a respeito de questões culturais.
3) Trabalho para dar forma escrita à língua dos Navajo e de outros povos indígenas.
A OIA também queria aconselhamento profissional a respeito de qual papel as
línguas indígenas deveriam exercer nos programas educacionais e qual seria o
modo mais eficiente de desenvolver tais programas em línguas nativas. Uma
questão particular relacionada a esse tema: “Até que ponto devemos tentar
reavivar a língua em áreas que não sejam etnicamente puras? – Cherokee, North
Carolina, por exemplo?”
4) Treinamento antropológico para funcionários do Serviço Indígena.
5) O emprego direto de antropólogos pelo Serviço Indígena. A OIA afirmou que
haveria cargos de consultoria e organização abertos tanto em Washington como
no campo, mas também queria saber se cabia “um planejamento para usar
antropólogos em trabalho administrativo direto ou como parte da equipe de uma
agência superintendente, e em caso afirmativo, em que função?”
6) Usando a antropologia para direcionar as atividades do serviço indígena, em
particular apresentando aos diretores de programa o conhecimento dos
antropólogos que possa ajudar na resolução dos problemas práticos enfrentados
por esses diretores.
7) Aplicação do conhecimento antropológico no programa de comercialização de
arte e artesanato indígena da OIA.
8) Ajuda na elaboração de programas de música indígena, particularmente na coleta
e documentação de cantos indígenas (RYAN, IaW, 15/1/1935).
Em geral, então, esse evento apresentou formalmente à comunidade antropológica
mais ampla dos Estados Unidos as questões levantas e discutidas pelo conselho
consultivo ao longo do ano anterior. Também, contudo, mencionou-se uma série de
projetos novos para os quais a OIA achava que os antropólogos poderiam ser úteis.
Observando a lista acima, podemos ver que a maioria dessas demandas certamente não
excedia as habilidades dos antropólogos contemporâneos. O projeto principal dessa lista,
que ocuparia a maior parte dos consultores antropológicos da OIA ao longo dos próximos
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
392
anos, entretanto, era o número 1: pesquisar e descrever as sociedades nativas
contemporâneas com o intuito de criar uma base para a formação de novos governos
tribais.
O acordo BAE-OIA
No início de maio 1935, a OIA fez um acordo com o Bureau of American
Ethnology (BAE) formalizando o posto temporário de Duncan Strong como
intermediário antropológico. Carson Ryan escreveu para Collier a respeito em 13 de abril
dizendo que “Podemos conseguir Duncan Strong, emprestado do Smithsonian, como o
nosso homem da antropologia, contanto que nós digamos desde o início que manteremos
o lado de investigação e pesquisa (quer dizer, o estudo científico de cada situação) à parte
da promoção e administração”.
Dr. Strong considera isso essencial e eu imagino que todos nós concordamos com
ele, não é mesmo? Precisamos de Strong de fato aqui na Repartição, é claro, para
oferecer ajuda e consultoria permanente sobre o programa, ao alcance de Jennings
[coordenador da Divisão de Organização Indígena] e dos outros o tempo todo. Espera-se
dele que conduza e direcione estudos com cada grupo indígena conforme o necessário, e
todos nós que pudemos contar com a sua ajuda no ano passado sabemos o quão valioso
ele será. Sua posição como investigador e aluno da situação em vez de promotor da causa
deve, portanto, ser respeitada. A própria declaração do Dr. Strong foi de que para exercer
a sua parte do trabalho ele precisava ter ‘o coração quente e a cabeça fria’. Teremos que
compor sua equipe (temporária e meio-expediente) nessas bases.
Esse foi o primeiro passo concreto na direção de compor uma equipe de
antropologia aplicada que se dedicasse ao estudo dos problemas da administração
indígena, um passo repleto de incertezas. Em primeiro lugar, Strong não seria
oficialmente empregado como antropólogo propriamente dito, mas como “um dos
representantes no campo indicado pela organização indígena”. Esse comentário deixava
transparecer uma realidade fundamental: a despeito da vitoriosa aprovação da IRA e um
ano repleto de batalhas com o Congresso, a OIA ainda não tinha autoridade ou verbas
para implantar uma unidade antropológica formal. O Serviço Indígena tentou
simultaneamente contornar essa dificuldade e fortalecer as suas relações com o BAE
determinando que este ficasse encarregado da nova unidade. Em segundo lugar, a posição
de Strong como intermediário entre duas Repartições seria estritamente temporária –
duraria apenas um ano, ao final do qual ele sairia em expedição para Honduras.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
393
Conforme Ryan, Diretor Educacional da OIA, lembrou Collier, “Podemos provavelmente
dispor de [Strong] até fevereiro – talvez por mais tempo. Você deve estar lembrado de
que ele está disposto a nos ajudar durante o período de organização, mas dificilmente
gostaria de continuar na repartição como antropólogo permanente”.
Em outras palavras, a indicação de Strong para a OIA foi uma medida provisória
para dar início à seleção da equipe antropológica tendo em vista o trabalho imediato na
organização dos governos tribais. De onde viria o dinheiro para sustentar essa equipe
ninguém sabia, e tampouco como o que aconteceria em 1936. Ryan, contudo, estava
confiante de que a escolha de Strong como intermediário da Repartição fosse um
primeiro passo necessário para o recrutamento de antropólogos para o trabalho de
organização indígena: “Nossa convicção inicial ainda é válida, creio eu, que ele é
admiravelmente bem posicionado para se encarregar da tarefa antropológica de
intermediação – estabelecendo contatos e ajudando-nos de outras formas a fortalecermos
a ligação entre a antropologia e a administração indígena ” (NAA, William Duncan
Strong Papers, Box 47, Bureau of Indian Affairs, 1934-1937 folder, Ryan-Collier,
13/4/1935; Agreement with BAE, 1/5/1935).
O acordo entre a OIA e o BAE, assinado no dia primeiro de maio de 1935,
estipulava que Strong figuraria na folha de pagamento do BAE, porém trabalhando nos
escritórios da OIA:
Desse modo, ele pode estar em contato com todos os chefes de departamento e
agir como um posto de recolhimento e distribuição entre eles e a equipe científica.
Pedidos de dados científicos específicos serão então transmitidos diretamente para os
pesquisadores em campo para que eles possam obtê-los. Do mesmo modo, os dados
provenientes de todas essas fontes serão arquivados e estarão disponíveis no BIA. Os
relatórios científicos completos decorrentes do programa serão arquivados ou publicados
pelo BAE.
Entre as suas responsabilidades estava implantar “uma unidade chefiada para
incluir toda a pesquisa lingüística (nativa) e antropológica e as instruções para as equipes
em campo. Esses “novos postos antropológicos criados pela OIA [seriam então]
transferidos para o BAE com as verbas necessárias para a subsistência em campo,
transporte, e pagamento de informantes e intérpretes.” Os antropólogos seriam então
empregados pelo BAE, mas distribuídos de acordo com as necessidades da OIA para
obterem “informações precisas sobre o status e complexos culturais atuais e sobre os
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
394
diferentes grupos [nativos]. Inicialmente, a OIA queria resumos e análises etnológicas
das condições presentes e sobre “os problemas específicos das reservas que afetavam o
novo programa [IRA].” Todos os investigadores reportariam a Strong, que centralizaria
os seus trabalhos e os disponibilizaria para a OIA, conforme a demanda.
Uma segunda função da unidade de antropologia aplicada era a preparação de
relatórios gerais sobre as tribos que seriam distribuídos entre o pessoal em campo. Eles
também deveriam fornecer instruções antropológicas para o pessoal em campo,
principalmente por meio do programa de treinamento residente de verão promovido pela
OIA, mencionado acima. Por fim, a unidade deveria manter uma proximidade entre a
OIA e os departamentos de antropologia das universidades do país, bem como manter-se
próxima da AAA, com o intuito de mobilizar mais conhecimento antropológico
específico sobre problemas determinados à medida que estes aparecessem, e manter o
Serviço Indígena informado sobre o que estava sendo produzido e quem estaria
disponível para realizar trabalho de campo.
A OIA tinha uma idéia bastante clara do que queria:
No programa implantado para a reorganização tribal indígena, que é a nossa
tarefa mais urgente e imediata, teremos que dispor de um considerável volume de
informação etnológica referente a um grande número de grupos indígenas. As verbas
mencionadas acima seriam destinadas para esses estudos. Os trabalhadores seriam
selecionados a partir do aconselhamento do Dr. Strong segundo as listas do serviço
público; eles seriam indicados pelo Departamento de Interior e seus salários pagos pelo
Departamento, mas eles seriam empregados imediatamente após serem indicados pelo
Bureau of American Ethnology.
16
A essa altura então, a OIA considerava o BAE a agência controladora de seus
antropólogos, embora o Departamento do Interior (presumivelmente por meio da OIA)
fosse pagar seus salários. A divisão entre esses investigadores antropológicos e os
administradores da OIA seria bastante clara. Fora estarem tecnicamente sob o controle do
BAE, a natureza do trabalho daqueles teria que ser explicitamente científica:
Apenas como etnólogos científicos conscienciosos, realizando trabalho
etnológico (em si), até certo ponto alheios aos quartéis-generais de tais agências, podem
os investigadores esperar obter dados de valor tanto imediato quanto científico. Uma vez
16
As informações a respeito do acordo entre a OIA e BAE provém de NAA, William Duncan Strong
Papers, Box 47, Bureau of Indian Affairs, 1934-1937 folder “Suggested Anthropological Program for
Combined Bureau of Indian Affairs and Bureau of American Ethnology Investigations”; and Collier
Correspondence with Strong, 06/05/1935.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
395
misturados aos administradores, assistentes sociais, ou agentes especiais, seu valor em
grande parte desaparecerá.
Em meados de maio, Strong se reuniu com o chefe da Divisão de Organização
Indígena, Joe Jennings, para esboçar um primeiro orçamento para a nova unidade.
Jennings estimou que o custo de manter um antropólogo em campo por 10 meses (6
meses de pesquisa e 4 para escrita) em 3.000 dólares, incluindo diária de 5 dólares, 360
dólares de combustível (uma média de 9.000 milhas por veículo), 590 dólares para ser
gasto com intérpretes e informantes, 300 dólares para datilógrafos, 150 dólares para
passagens de trem e, por fim, 100 dólares para “custos variados”. Strong, por outro lado,
entregou um orçamento estimado em duas vezes esse valor, incluindo verbas para um
salário de 3.200 dólares. Isso revela uma diferença básica entre os pontos de vista das
duas Repartições a respeito desses trabalhadores. A OIA ainda estava operando
improvisadamente, tentando posicionar o maior número de trabalhadores em campo o
mais rápido possível para auxiliar a tarefa urgente de organizar governos e corporações
tribais. Para essa tarefa, “homens de um dólar por ano” pagos per diem era mais do que
suficiente. O BAE, por outro lado, estava buscando oportunidades profissionais para os
seus pesquisadores mais jovens, com salários fixos e substanciais. Nesse como em outros
conflitos a posição da OIA prevaleceria.
Strong também tinha idéias bastante claras quanto ao modo de estruturação da
nova organização. Em seu “Memorando a respeito dos trabalhadores de assistência
federal que poderiam ser empregados pela unidade antropológica em conexão com o
trabalho de Organização Tribal”, ele apontou a necessidade de 6 etnólogos com pós-
graduação em universidades com departamentos de antropologia reconhecidos para
realizar pesquisa de campo e preparar relatórios, outros 4 etnólogos com formação de
graduação ou pós-graduação para realizar pesquisa em escritórios e preparar relatórios
sobre tribos indígenas e 4 estenógrafos (copistas) para trabalho de escritório. Esses
antropólogos seriam escolhidos de acordo com o seu background e treinamento
“necessário para trabalho eficiente com tribos e reservas específicas onde tal pesquisa é
mais essencial para os programas presentes.” Eles teriam que ser enviados para o campo
com os custos pagos pela OIA. Além do trabalho de campo, eles passariam tempo em
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
396
diferentes “sedes universitárias, com bibliotecas antropológicas adequadas, para corrigir
seus relatórios antes de serem submetidos ao escritório central.”
A segunda classe de trabalhadores não seria tão altamente qualificada. As suas
obrigações incluiriam “pesquisa, compilação, e preparação de relatórios para serem
mimeografados e distribuídos para o pessoal em campo.” Strong também tinha uma idéia
bastante clara ainda nesse primeiro momento quanto a quem ele gostaria que o
substituísse nessa unidade: O nome “Dr. Mekeel” está escrito a lápis na parte de cima do
memorando.
17
Como conclusão das discussões entre Strong e Jennings, um esboço básico foi
criado a respeito de o quê os antropólogos poderiam estar investigando nas reservas. O
“Esboço sugerido para um estudo da aculturação” feito por Strong inclui cinco pontos
principais:
I. Uma “História passada da Tribo”, incluindo uma apresentação condensada e
sistemática da cronologia geral e dos períodos de mudança, com ênfase nos contatos
culturais e eventos históricos que afetam a vida social e econômica do grupo.
II. Uma “sinopse da cultura tribal original” que deve ser legível e incluir uma
apresentação integrada das afiliações lingüísticas, objetivos econômicos, padrões
estéticos, religiosos e sociais do grupo “em condições nativas” (i.e.
presumivelmente antes do contato com o branco). Nessa sinopse, a precisão e a
compreensão deveriam cobrir uma descrição completa de minúcias culturais: “um
retrato do escopo total da vida tribal nativa é [o] desideratum primordial”.
III. Um relatório sobre “a cultura atual da tribo”, que deveria ser um estudo completo
da vida moderna nas reservas. Diferenças e conflitos intra-tribais deveriam ser
enfatizados nesse relatório e “de maneira parecida, as variações regionais ou de
outro tipo na assimilação (aos padrões brancos), aculturação (mistura cultural) e
hibridez (miscigenação com outras raças ou outras tribos) devem ser avaliados. E as
atitudes resultantes dessas situações serem retratadas da forma mais completa e
17
As informações a respeito dessas discussões de orçamento e sobre as sugestões organizacionais de Strong
provêm de duas fontes: NAA, William Duncan Strong Papers, Box 47, Bureau of Indian Affairs, 1934-
1937 folder “Suggested Anthropological Program for Combined Bureau of Indian Affairs and Bureau of
American Ethnology Investigations”; and NARA, William Duncan Strong Papers, Box #47.
RG 75 E1013, Box 2, Duncan Strong Folder, Memorandum regarding relief workers that could be
employed by the Anthropological unit in connection with Tribal Organization work”, 18/05/1935.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
397
precisa possível. O grau de auto-suficiência econômica, ou o seu oposto, entre cada
um dos sub-grupos contemplados é uma consideração importante.”
IV. “Uma comparação entre sessões II e III para tornar explícitas as mudanças
decorrentes do contato com o branco. Os aparentes efeitos negativos ou benéficos
desse contato sobre a saúde, estado de ânimo e integridade do grupo, e satisfação
cultural devem ser resumidos aqui.”
V. Por fim, o estudo deveria ser concluído com “recomendações antropológicas
tendendo para a melhora do estado de ânimo do grupo”. Tais sugestões deveriam
incluir mudanças propostas nas políticas administrativas que levariam a “maior
auto-suficiência cultural e econômica por parte da tribo… Devem incluir
considerações de todas as atividades econômicas possíveis e qualquer programa
concebível de utilização e aquisição de terras. A possibilidade de fortalecer tanto os
atributos culturais nativos quanto aqueles recentemente adquiridos tendentes a
aumentar a satisfação do grupo deve ser enfatizada.”
Strong também forneceu sugestões concisas quanto aos temas do Seminário sobre
Antropologia Administrativa (Seminar in Administrative Anthropology) promovido no
verão pela OIA para seus funcionários, incluindo uma descrição da abordagem
antropológica nas ciências sociais, o uso da etnologia na produção de parâmetros para a
administração, o significado da cultura e finalmente o pano de fundo da administração
indígena com relação à dinâmica cultural, com exemplos da administração nativa em
outras partes do mundo.
Esse material mostra mais uma vez que antropólogos como Strong estavam
razoavelmente bem preparados para fornecer sugestões para a OIA a respeito do que a
antropologia podia fazer pelo Serviço Indígena. Se a Repartição pôs em prática ou não
essas sugestões era inteiramente outra questão. A maior parte dos conselhos
organizacionais de Strong não foi implementada pela OIA, primeiro aparentemente
devido às considerações de orçamento sob o qual a divisão recém-criada [ou nova
divisão] estaria operando, pelo menos no início. Em uma carta para A.L. Kroeber de 22
de maio, Strong pareceu ambivalente sobre o seu novo trabalho – resignado e ainda assim
entusiasmado. Ele comentou que “Cá entre nós, trata-se de um trabalho monstruoso, mas
um que teria que ser feito e eu não vejo meios de evitá-lo em boa consciência… Devido à
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
398
motivação em grande parte emocional ao invés de intelectual em determinados
departamentos, é extremamente difícil realizar qualquer coisa numa base científica.
Contudo, a nova estruturação dos Assuntos Indígenas, para bem ou para mal, tem
potencialidades enormes, tanto para os índios quanto para as pessoas com um interesse
científico ou de outra ordem neles”.
18
Monstruoso ou não, Strong acreditava que o seu trabalho envolveria uma pesquisa
antropológica plenamente desenvolvida: “Estou preocupado com a coleta de dados e de
nenhum modo em administração, e o mesmo vale para qualquer um dos antropólogos que
serão contratados sob a minha direção”. E, pela primeira vez, ele tinha um orçamento
com o qual trabalhar proveniente das verbas da OIA para a organização dos governos
tribais. O orçamento de 1935 para a unidade antropológica chegaria a 16.500 dólares
(15.000 dólares para estudos e 1.500 dólares para um fundo de viagens de Strong), com
verbas sendo transferidas do dinheiro que o Congresso havia destinado para a
Reorganização Indígena sob a IRA. Esse seria um arranjo temporário até a OIA e o BAE
poderem convencer o Congresso a custear a nova unidade (NAA, William Duncan Strong
Papers, Box 47, Bureau of Indian Affairs, 1934-1937 folder, Collier-Graf correspondence
25/02/36):
Atualmente dispomos de mais de $15.000 para estudos de etnologia moderna
nas reservas mais importantes. No momento presente eu pretendo trabalhar entre os
Seminole (Gene Stirling, em cooperação com Harvard), Dakota, Blackfoot, Ojibwa e um
homem correlacionando costumes nativos e uma aplicação legal moderna entre os
pueblos. Não estamos pagando salários, mas há uma quantia para viagem mais do que
adequada, de modo que o aluno terá a oportunidade de realizar algo com base nos seus
próprios gastos. Parece-me que tais estudos são essenciais para o novo tipo de
organização ser conduzido de um jeito razoável.
Essa primeira leva de recrutados para as iniciativas antropológicas da OIA seria
em sua maioria composta por jovem estudantes ou recém-doutores fazendo pesquisa de
campo no sistema do “um dólar por ano” mais gastos. Entretanto, essas pessoas já
estariam com um pé dentro da Repartição quando, presumivelmente no ano seguinte, a
OIA empregasse antropólogos numa base mais permanente. “Você provavelmente já viu
18
Salvo quando observado, toda a correspondência de Kroeber-Strong nesta seção provém de NAA,
William Duncan Strong Papers, Box 9, Kroeber 1929-1957 – Kroeber, Karl Folder. Strong to A.L.
Kroeber, May-July, 1935.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
399
os formulários para os novos empregos propostos pelo BIA”, Strong comentou para
Kroeber. “Confidencialmente, eu não sei se eles de fato têm ou não um plano para
viabilizar esses postos. A idéia principal é ter uma lista de pessoas treinadas em
antropologia a quem recorrer para pesquisa e administração. Conforme o que está
combinado atualmente, eu não acho que eles interfeririam junto ao BAE, mas a questão
toda é extremamente complexa, sendo mais fácil falar do que escrever sobre ela. Se
alguma dos postos se confirmarem, eu suspeito que as pessoas que se mostrarem
eficientes no arranjo temporário serão privilegiados”.
Com base nisso, Strong então perguntou a Kroeber se ele tinha alguma sugestão
para possíveis recrutados, particularmente “qualquer pessoa com treinamento
antropológico que poderia estar interessado e capaz de exercer a função de
superintendente dos Hopi? Você também conhece alguém que estaria interessado em
realizar um estudo moderno entre os Dakota ou os Blackfoot à luz de seu presente?”
Kroeber também se mostrou ambivalente sobre o novo comunicado de Strong
perguntando “Estarei indo longe demais se eu expressar privativa e confidencialmente a
minha esperança de que você possa logo sair dessa posição e ser redesignado para o seu
próprio trabalho científico [no BAE]?... Você certamente é o homem mais bem
qualificado para lidar com a tarefa presente de um modo satisfatório, mas eu tenho
dúvidas terríveis a respeito da possibilidade de que algo permanente seja realizado.” Um
mês depois, contudo, ele pediu desculpas a Strong por esse comentário, ressaltando que o
fizera enquanto “…eu mesmo me sentia desanimado.”
Eu já estava acabando, com atraso de um mês, o mais horripilante [“horridest
[sic]”] semestre que eu jamais vivi, e a idéia da administração e de ter que tomar conta
dos afazeres de outras pessoas me deixou entojado. Como consolação, os meus
comentários evidentemente erraram o alvo… Eu tenho uma perspectiva melhor agora que
eu estou aqui em cima, e sou novamente um homem livre. Ninguém sabe melhor do que
eu que essas coisas devem ser feitas num mundo civilizado, e não há dúvida de que o que
você está fazendo seja importante, extremamente até.
Antropólogos na Organização Indígena
A ligação BAE-OIA então começou com uma lacuna de orientação profissional,
muitas esperanças e muito pouca verba. As pessoas que integravam a nova divisão no
primeiro ano, com a exceção de Duncan Strong, seriam trabalhadores temporários,
empregados numa base per diem e enviados com urgência para as áreas consideradas
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
400
pela OIA de máxima importância. Um dos principais receios de John Collier durante
esse período era de que a lei (IRA) recentemente estabelecida, e ainda frágil, seria
liquidada antes de ser propriamente implementada. Em um editorial para a Indians at
Work de 15 de outubro de 1935, Collier expressou receios de que a iminente eleição
poderia desbancar Roosevelt da presidência e ele próprio da OIA: “Até onde
sabemos… uma reação nefasta pode engolir o New Deal e todos os seus projetos.”
Embora Collier sentisse que seria improvável que o New Deal indígena pudesse ser
completamente abolido, o apoio financeiro para os governos tribais indígenas poderia
faltar com um novo governo. Dada à urgência sentida pelo círculo de Collier no
governo federal de implantar uma organização indígena
19
, não era surpreendente que a
maior parte dos esforços da nova equipe antropológica da OIA fossem aplicados
diretamente na luta da organização.
19
Biolsi comenta que “o processo de elaboração de constituições e regimentos, e de oferecer assistência e
orientação para todos os novos governos tribais, era conhecido no léxico [da OIA] como organização de
tribos…” (BIOLSI, 1998: vii).
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
401
Figura 7.1: H. Scudder Mekeel foi um dos primeiros antropólogos
empregados pela OIA. Ele foi nomeado chefe da Unidade de
Antropologia Aplicada e deixou o Serviço Indígena após do fechamento
da Unidade em 1938 (MACGREGOR: 1946).
Devido aos arranjos de contratação impostos à OIA pela falta de apoio
financeiro à Divisão de Antropologia por parte do Congresso, é impossível compor uma
lista completa dos antropólogos envolvidos com a Repartição durante esse período. Tal
lista incluía os antropólogos que forneceram relatórios para a OIA com base em
pesquisa de campo prévia (William Fenton, que traçou para a OIA um panorama das
políticas tribais da Nação Seneca em setembro 1934; W.W. Hill que fez o mesmo para
os Navajo; Oliver LaFarge que escreveu vários relatórios sobre os Hopi e Pueblo), os
supracitados pesquisadores jovens que passariam para a OIA um relatório junto com
seus outros resultados (Julian Steward entre os Ute), os antropólogos contratados para
lidar com problemas específicos (como a questão da língua Navajo), e homens de “um
dólar por ano” que seriam contratados por meio do novo programa de Duncan Strong.
Esse último grupo parece ter sido o mais numeroso. Incluía gente como Gates e (no
início de 1936) LaFarge, que foram contratados diretamente por John Collier em
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
402
regime per-diem para estudarem grupos nativos, e também um quadro de pesquisadores
jovens, selecionados da nova lista de etnógrafos do serviço público, que estavam sendo
preparados para assumir posteriormente empregos em tempo integral na Repartição,
quando, presumivelmente, dinheiro para a unidade de antropologia aplicada seria
incluído no orçamento.
Esses antropólogos foram contratados entre os verões de 1935 e 1936, entre os
quais Scudder Mekeel, Abraham Halperin, Ruth Underhill, Margaret Fisher, David
Rodnick e Charles Wisdom. Desde o início, Mekeel aparentemente recebeu um
tratamento diferenciado. Em uma carta sem data, de meados de 1935, para Mekeel, que
se encontrava em Cambridge Mass, Collier notificou o antropólogo que ele agora seria
um Representante de Campo da divisão de Organização Indígena da OIA. Isso
significava, segundo Collier, que Mekeel estaria com freqüência trabalhando tanto
como um funcionário administrativo quanto como pesquisador de campo, “devido à
atual emergência envolvendo tantos problemas urgentes de organização e reabilitação
tribal.” Em geral, entretanto, a atividade principal de Mekeel seria “a aplicação dos
resultados das pesquisas antropológicas e afins aos problemas de administração
indígena, um dever para o qual o seu treinamento e experiência de campo
especialmente o qualificam.” Collier também prometeu que após janeiro de 1935, com
a saída de Duncan Strong da OIA, Mekeel seria posto no comando de toda pesquisa
antropológica dentro da Repartição. Antes disso, ele trabalharia sob a orientação de
Strong e aprenderia a respeito de suas futuras funções (NAA, Documentos William
Duncan Strong, Caixa 47, Repartição de Assuntos Indígenas [Bureau Indian Affairs],
1934-1937 folder, s/d).
Julian Steward também foi empregado para elaborar um relatório sobre a reserva
Ute naquele momento. Em uma carta de junho 1935, Strong explicou para Steward que
“Eu tenho milhares dólares para gastar em estudos de aculturação [“culturation [sic]”] e
queria saber se seria possível cobrir os seus gastos entre os Ute com essa verba em troca
do que você elaboraria e entregaria ao B.I.A. um relatório sobre as condições atuais
desses índios com recomendações para as reabilitações que você julgue pertinentes.” A
essa altura, Steward estava em campo nos Ute com uma bolsa de estudos do “Laboratório
Antropológico de Santa Fé” (Santa Fé Anthropological Laboratory), mas Strong pensou
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
403
que seria possível unir o trabalho para o SFAL e a OIA: “seria possível para a BIA pagar
os seus gastos ajudando-o financeiramente, e ao mesmo tempo obter um relatório sobre
aculturação [culturation].” Esse pedido é um bom exemplo das condições sob as quais
muitos dos antropólogos da Repartição iniciaram o seu trabalho.
Strong também aproveitou a oportunidade para sondar Steward a respeito da sua
contratação como superintendente de reserva entre os Ute do sul. Nesse momento, muitos
antropólogos estavam sendo sondados para o cargo de superintendente e pelo menos dois
seriam com o tempo contratados para essa função: Sophie Aberle para os United Pueblos
e Louis Balsam para os Chippewa de Red Lake e mais tarde para Forte Berthold. A
reação de Steward à oferta é bastante esclarecedora, especialmente frente ao seu horror
declarado de misturar trabalho administrativo e antropológico. Steward queria que tal
trabalho o ajudasse a dar um salto em sua carreira como etnógrafo:
Eu reconheço, evidentemente, que qualquer trabalho bom em antropologia
implica um pouco de administração e não faço objeção a isso. Não desgosto da
administração. O meu receio é de que qualquer investida puramente administrativa, não
importa o quão financeiramente compensadora, me deixaria em desvantagem na atual
disputa para obter um emprego verdadeiramente antropológico. Você, como qualquer
um, pode entender o meu desejo de permanecer um cientista. É por essa razão que eu
disse a Collier ano passado que eu aceitaria uma posição de superintendente na repartição
indígena, trabalhador de centro comunitário, ou qualquer coisa que o valha, sem a
intenção de fazer disso uma carreira. Pode ter sido um gesto bastante indiscreto de uma
pessoa mais ou menos falida, mas é verdade!
As palavras de Steward evidenciam que ele considerava o trabalho dentro da OIA
como um degrau para o desenvolvimento de sua carreira de antropólogo. Se ao trabalhar
como superintendente por um tempo lhe trouxesse uma posição de etnólogo do serviço
público, contratado pelo governo federal, então ele estaria disposto a assumir a posição
de superintendente de reserva. O que Steward não queria fazer, contudo, era “sociologia
aplicada”, que ele descrevia como algo que “essencialmente solucionava problemas
indígenas”. Em outras palavras, a visão básica de Steward do que uma “pesquisa
verdadeira” em trabalho de antropologia aplicada deveria ser era diametralmente oposta
àquela de Collier (que, vale lembrar, chegou na antropologia precisamente por meio de
um background de sociologia aplicada). Steward sublinhou a natureza instrumental de
sua proposta de engajamento na administração indígena pedindo ao seu amigo Strong que
o aconselhasse quanto ao que fazer, já que “você sabe quais são as minhas ambições e
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
404
você sabe melhor do que ninguém o que é mais passível de acontecer na Repartição
indígena” (NAA, William Duncan Strong Papers, Box14, Folder STEF-Steward, J. 1940;
Folder Steward, J. (1941) –STI, Correspondence Steward-Strong, June-July 1935).
Um mês depois, entretanto, outra oportunidade se abriu para Steward: ele recebeu
a proposta de uma posição no Bureau of American Ethnology. Isso teria conseqüências
fatais para a Unidade de Antropologia Aplicada (NAA Records of the BAE,
correspondence Steward-Strong, Aug. 13
th
, 1935).
O trabalho no primeiro ano
Como pode se esperar de um início tão incerto, os resultados do trabalho
antropológico durante o primeiro ano dentro da OIA foram variados. Por um lado,
relativamente pouco foi realizado e muito do que foi feito (por exemplo, o trabalho de
Gate entre os Yuma) mostrou-se inútil para todos os implicados. Por outro lado, Scudder
Mekeel, Margaret Fisher, Julian Steward, W.W. Hill, Ruth Underhill e William Fenton
produziram relatórios que parecem ter tido algum valor para a OIA, uma vez que foram
razoavelmente bem distribuídos entre os funcionários da Repartição e citados por muitos
deles.
Devemos lembrar que a OIA estava nessa época organizando governos tribais o
mais rápido possível e os antropólogos eram então muito encorajados a relatar os
resultados que pudessem ter algum impacto prático sobre esse processo. A organização,
entretanto, era geralmente conduzida de cima para baixo: para bem ou para mal, a OIA de
John Collier tinha idéias muito específicas quanto ao que os grupos nativos deveriam
fazer. Essas idéias diferiam de acordo com cada tribo, dependendo da história passada da
Repartição em relação à política e aos políticos de cada reserva, mas elas todas giravam
em torno de dois pontos principais: a organização de um governo tribal de acordo com as
constrições da IRA e o desenvolvimento
20
ou reabilitação econômica
21
das reservas. O
primeiro termo aplicava-se a todo trabalho realizado com o intuito de implantar conselhos
20
O termo específico era com freqüência usado por Collier e outros oficiais da OIA, várias décadas antes
do termo desenvolvimento se tornar corrente no que tangia o Terceiro Mundo.
21
As palavras são de Collier: NARA, RG75, E191, Box 1, John Collier to Dr. Wood, National Resources
Board, April 11
th
, 1938.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
405
tribais democráticos reconhecidos pelo governo federal que estivessem de acordo com as
políticas do New Deal indígena. Nesse contexto, a OIA não se furtava a manipular os
cronogramas de eleição, a organizar campanhas de propaganda e a tentar desmerecer
oponentes políticos nativos se em troca conseguisse instituir rapidamente um governo
tribal que supostamente apoiasse as metas administrativas de Collier. Em relativamente
poucos casos os grupos nativos se auto-organizaram sem a intervenção da OIA. O
segundo termo, desenvolvimento, relacionava-se à ordem do Meriam Report de aos
poucos eliminar a Indianidade como uma categoria protegida pelo governo federal
integrando grupos nativos à economia de mercado de tal modo que eles não precisassem
mais de apoio financeiro do governo federal. No palavreado da OIA, isso se chamava
auto-suficiência, o estado final para o qual o desenvolvimento supostamente levaria.
É importante questionar o significado desses termos da perspectiva dos nativos,
pois o seu valor é com freqüência considerado evidente dentro do discurso moderno
ocidental. Vamos discutir o tópico organização mais a fundo no capítulo 8 no contexto
da reserva Pine Ridge. Quanto ao desenvolvimento e a auto-suficiência, não era de
maneira alguma um consenso a opinião entre os americanos nativos de que os subsídios
econômicos federais deveriam jamais cessar. De fato, tal ajuda não era considerada um
subsídio, mas como uma dívida aos americanos nativos. Por isso, embora o
desenvolvimento econômico nas reservas fosse com freqüência apoiado pelos índios com
entusiasmo, o propósito do ponto de vista da OIA, do governo federal e da pluralidade de
antropólogos – a remoção dos gastos relativos aos assuntos indígenas do orçamento
federal – era absolutamente divergente com relação aos modos como os grupos nativos
concebiam a sua relação com os Estados Unidos da América.
Nesse contexto, os antropólogos trabalhando para a OIA com freqüência se
encontravam na posição de direta ou indiretamente “vender” os programas da IND – isto
é, convencer os residentes da reserva que tais programas seriam para o seu próprio bem.
Alguns antropólogos, como Margaret Fisher e Ruth Underhill, parecem ter sido
particularmente úteis ao Serviço Indígena nesse aspecto, já que seus relatórios continham
material que permitia à Repartição otimizar as chances de aceitação dos seus programas.
Como vimos acima, era reconhecido que os antropólogos pudessem servir de
espiões para a Repartição, coletando informação que normalmente ficaria escondida dos
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
406
funcionários do Serviço Indígena. Tanto Fisher quanto Underhill parecem ter se adaptado
adequadamente a esse papel. Em seu estudo dos Chippewa de Red Lake, por exemplo,
Fisher descreve um líder político nativo que estava tentando usar o processo
organizacional para forçar a participação da OIA em uma negociação de terras e na
segregação do grupo de Red Lake dos outros Chippewa. Esse homem, Fisher alertou,
provavelmente conquistaria a presidência tribal se uma votação popular fosse promovida
imediatamente. Ela ofereceu uma solução para o problema, entretanto: “O truque mais
legal seria oferecer a Paul um emprego no Serviço Indígena, bastante longe daqui”,
presumivelmente antes da eleição organizada pela OIA para o conselho tribal (NARA RG
75, E1012, Red Lake Folder, Fisher’s report, 14/11/35). Enquanto isso, Ruth Underhill
aparentemente passou grande parte de seu tempo investigando como implantar uma
cooperativa de gado entre os Papago e identificando os membros da tribo resistentes a
esse e outros projetos da IND. Em particular, ela forneceu informação sobre um líder
tribal que ela descreveu como “um verdadeiro político”. Em todo caso, “desacreditá-lo
não era de todo ineficaz”, de acordo com Underhill, que relatou vários rumores graves
sobre o homem que poderiam ser jogados contra ele na arena política tribal. Underhill
também deu uma contribuição de valor inestimável para a OIA ao descrever como a
proposta da cooperativa de gado estava sendo mal traduzida e, portanto, não
compreendida pelos Papago “tradicionais” (NARA RG 75, E1012, Papago Folder,
Underhill's reports, Oct.-Nov. 1935).
Tais comentários sublinham o fato de que “o embate entre a extrema valorização
do relativismo na teoria antropológica e a necessidade evidente de fazer julgamentos de
valor na prática política”, identificado por Johannes Fabian nos estudos de caráter
nacional da Segunda Guerra Mundial, já existiam há alguns anos na antropologia
aplicada da OIA. Como Fabian aponta, tal aliança entre o relativismo teórico e a luta por
uma causa não era um grande problema lógico para seus autores, que se mostravam
bastante confortáveis com o uso de estudos relativistas dos valores com o intuito de
produzir conhecimento para o combate ao “inimigo” e assegurar o controle efetivo e a
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
407
transformação desses valores de acordo com o modelo de sociedade do antropólogo
(FABIAN, 1983: 46-47)
22
.
Evidentemente, nem todos os antropólogos da OIA se mostravam tão confortáveis
com esse tipo de trabalho como Fisher e Underhill aparentemente se mostravam. Scudder
Mekeel, por exemplo, fez objeções. O trabalho de doutorado de Mekeel entre os Lakota
havia identificado a persistência de certas estruturas sociais dos tempos pré-contato (mais
notavelmente nas sub-divisões tribais tiyospaye, que discutiremos mais a fundo no
capítulo 8). Ele veio trabalhar para a OIA certo de que o seu trabalho fosse trazer essas
unidades sociais nativas para a estrutura de governo sendo implantada de acordo com a
lei Wheeler-Howard. Ele ficou consternado pela rapidez com a qual as constituições
tribais estavam sendo elaboradas sem a pesquisa apropriada sobre o que os grupos
nativos em questão realmente necessitavam, e pelo fato de que promessas quanto à
organização tribal estavam sendo feitas para grupos nativos e depois imediatamente
descumpridas. (NAA RG 75 E1012, Box 12 Flathead, Mekeel-Collier Correspondence,
Dec. 10
th
, 1935).
Mas mesmo Mekeel considerava o propósito do seu trabalho uma forma
melhorada de tutela. Ele repetia com freqüência sua opinião anterior de que a
administração da OIA havia enfraquecido e desorganizado demais as políticas indígenas
para que eles controlassem seus próprios assuntos. Por causa disso, “Deve haver uma
política consistente de diminuição gradual de controle integrada ao Serviço Indígena.
Expondo a questão rapidamente, eu sou a favor de oferecer gradualmente poderes amplos
e gerais nos regimentos, mas creio que isto não deve ser senão parte de um programa
geral que busque a liquidação eventual do problema indígena” (Ibid). Em outras palavras
então, o objetivo mais geral de organizar o trabalho entre os índios era eliminar o
problema indígena ao afastar as tribos do controle ou proteção federal. No fim, de acordo
com Mekeel, a organização tribal sob as constituições eliminaria a vida indígena “real”
ou “autêntica”. Comentando atividades organizacionais entre os Pueblo no fim de 1935,
Mekeel escreveu que “Não se pode ter as duas coisas ao mesmo tempo e deve-se esperar
22
Nesse contexto, vale ressaltar que Underhill estudou antropologia na Columbia com Franz Boas e Ruth
Benedict. Não consegui encontrar informações a respeito do início da carreira de Margaret Fisher.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
408
que os pueblo que aceitarem um governo constitucional percam suas características
pueblo particulares”.
Uma visão realista da situação pueblo claramente indica que essas pequenas e
isoladas ilhas culturais acabarão submersas na onda cada vez maior da vida
contemporânea. No entanto, quanto mais eles sobreviverem, maior o efeito de
nivelamento do amálgama cultural final. Talvez o maior mérito da política indígena atual
seja a tentativa de desacelerar o inevitável processo de aculturação de tal modo que os
grupos nativos em transição possam incorporar os atributos da vida moderna que desejem
sem a conseqüente destruição do equilíbrio social e econômico enquanto ao mesmo
tempo mantêm os valores distintivos e válidos de sua antiga cultura (NAA, William
Duncan Strong Papers, Box 47, Bureau of Indian Affairs, 1934-1937 folder, Mekeel -
Collier Correspondence 26/10/35).
Mekeel via, então, o trabalho antropológico para a OIA como essencialmente de
natureza assimilacionista, embora ele se aproximasse da noção que Collier tinha de uma
assimilação que não necessariamente eliminaria os grupos nativos como povos distintos.
Não obstante, o trabalho de Mekeel para a Repartição durante esse período indica uma
clara compreensão do papel do antropólogo na promoção de um ajuste de “cima para
baixo” das culturas nativas por meio do mecanismo do governo tribal. A opinião
consensual entre os antropólogos da OIA – de fato, entre os antropólogos americanos
contemporâneos em geral – era de que as estruturas socio-políticas nativas precisavam
mudar, mas precisavam mudar de acordo com o que a “realidade” – definida como as
condições e necessidades sócio-econômicas hegemônicas da sociedade branca
circundante – possibilitava. Como Ruth Underhill comentou em sua análise dos Papago,
as novas constituições eram “…de fato, uma oportunidade para [os Pagago] darem
continuidade a algumas de suas velhas formas de governo, se praticáveis [grifo nosso]”
(NARA RG 75, E1012, Pasta Papago, relatórios de Underhill, out.-nov. 1935).
“Praticáveis”, nesse caso, significava a formação de estruturas tribais de governo e
desenvolvimento que, no final das contas desencadeassem a integração bem sucedida da
tribo no mercado global como uma unidade auto-sustentada.
Esses pontos de vista, quando considerados à luz daqueles de John Collier,
discutidos anteriormente nos capítulos 5 e 6, demonstram o consenso por trás dos
Assuntos Indígenas nesse momento entre os antropólogos e os administradores. Como no
fim do século XIX, a ênfase dos reformadores não recaía sobre cumprir à risca os tratados
indígenas ou consultar os índios sobre o que gostariam, mas, ao contrário, construir os
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
409
meios através dos quais o problema indígena pudesse ser resolvido. Nos anos 1930 e 40,
isso efetivamente significava tirar os americanos nativos da jurisdição federal como um
grupo de povos especialmente protegidos e subsidiados. A integração total de índios na
sociedade Americana continuou a ser o objetivo final, e isso continuou a ser pensado em
termos de uma eventual, mas absoluta redução da alteridade étnica. Isso foi certamente
compreendido por todos os envolvidos como a eventual eliminação das responsabilidades
fiscais do governo com relação às tribos. Dentro dessa ideologia, a insistência indígena
com relação aos subsídios do governo era entendida como, nas palavras de Scudder
Mekeel, uma forma de “vida parasitária” (APUD BIOLSI, 1998:32):
Assistência para os índios Sioux se encaixa em um modo de pensar inteiramente
diferente do que para o homem branco. Assistência aos Sioux é uma longa tradição de
distribuição geral, de ração, que tem sido bastante empobrecedora e destrutiva para a
integridade pessoal. Para o homem branco, pelo menos teoricamente, a ajuda é uma
medida provisória até que a indústria possa lidar com as faltas. Para os Sioux trata-se da
continuação, numa escala mais generosa, da velha tradição assistencialista (NARA
RG75, E191, Mekeel Memo, 6/8/35).
Como o recente estudo de Thomas Biolsi sobre a organization dos Lakota aponta,
contudo, os pontos de vista nativos dessa “tradição da distribuição” tinham a propensão
de serem completamente diferentes. Para povos como os Lakota, a ajuda financeira e
alimentar do governo federal não era um assistencialismo gratuito ou parasitismo:
tratava-se de parte e parcela do pagamento concedido por tratados anteriores. Rações e
outras doações para a reserva “haviam sido pagos há muito tempo pelos milhares de acres
cedidos para os Estados Unidos. Em troca, o governo havia prometido dar alimento para
os Lakota até que estes fossem capazes de se alimentarem, e dadas as condições agrícolas
e econômicas que prevaleciam nas reservas, como iriam se alimentar?” (BIOLSI, 1998:
32).
Como era o caso no século XIX, não era tanto o fato de que os antropólogos não
entendessem os pontos de vista indígenas ou o modo de funcionar de suas sociedades:
mas sim que os antropólogos acreditavam que os ditos pontos de vista e estruturas sociais
estavam erradas. Obviamente, havia algumas exceções a essa regra, como a
recomendação de “não intervenção” de Elsie Clew Parsons com respeito aos Pueblo,
citada acima. Em sua maioria, contudo, a crítica antropológica pública da OIA que existia
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
410
tendia a apontar que Collier estava tentando preservar ou reconstruir as estruturas sociais
nativas.
Um relatório intitulado “Notas sobre o Lugar da Antropologia em Assuntos de
Administração Indígena” (“Notes on the Place of Anthropology in the Administration of
Indian Affairs”), enviado para Collier em dezembro de 1935 por um antropólogo cujo
nome não foi citado, é bastante ilustrativo quanto a isso, já que oferece uma discussão
ponderada sobre o que muitos antropólogos consideravam questões relevantes à aplicação
da antropologia aos Assuntos Indígenas.
23
O relatório começa descrevendo a tendência contemporânea de se aplicar a
antropologia às questões da administração nativa. Embora o autor descreva essa
tendência como recente, ele também afirma que “vários antropólogos americanos
finalmente repudiaram a concepção tradicional de que a antropologia só pode ser
estudada à luz da pureza do passado e que as coisas modernas não são antropológicas”.
Isso havia desencadeado uma compreensão maior das comunidades indígenas como
unidades “dinâmicas”, “cultura[s] em um processo de mudança” e portanto o “esnobismo
[da antropologia] com relação ao presente” estava desaparecendo. “A situação da vida
indígena em um mundo em mutação, se deparando com o colapso dos recursos e valores
tradicionais, está sendo reconhecida pelos antropólogos como algo digno de estudo.
Alguns trabalhos publicados e uma grande quantidade de teses não publicadas se
multiplicando rapidamente comprovam esse interesse crescente”.
Esses sentimentos claramente situavam a vida americana nativa da época como
um foco de interesse para muitos antropólogos, independente dos desejos da OIA.
Contudo, esse interesse ainda repousava em uma concepção dos índios como povos
tradicionais passando por um processo de mudança que havia desorganizado a sua
sociedade. Enquanto o autor do relatório admite que tal mudança tenha existido ao longo
23
O relatório encontra-se NAA, William Duncan Strong Papers, Box 47, Bureau of Indian Affairs, 1934-
1937 folder. Está sem assinatura e é evidentemente o trabalho de um estudioso sério de antropologia, mas
com certeza não escrito por Strong, Mekeel ou Steward, os três homens mais associados com a
antropologia aplicada na OIA. O autor do relatório afirma estar enviando uma cópia para ambos, Mekeel e
Strong, e que “o tempo de sua mulher está atualmente tomado pelo trabalho que ela está realizando para a
Secretaria [presumivelmente do Interior ou da Agricultura, as duas “Secretarias” (com maiúscula) nas quais
Collier tinha contatos consistentes]”. Em seu trabalho recente (2003), e em comunicações pessoais comigo,
a biógrafa de Steward, Virginia Kerns, confirma que nenhuma das antigas mulheres de Julian Steward, nem
a contemporânea, se encaixam nessa declaração. Todas as citações na seção seguinte, salvo quando
observado, foram extraídas desse documento.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
411
da história cultural em geral, ele obviamente não rejeita o divisor dicotômico que situa os
índios em oposição aos brancos, que discutimos anteriormente, no capítulo 4.
À medida em que os antropólogos voltaram seu olhar para a vida contemporânea
nas reservas, o relatório prosseguia, tornou-se inevitável que eles se envolvessem com a
política local. Isso, por sua vez, fez com que os pesquisadores nas reservas se tornassem
“um comitê de reclamação” para os seus “clientes indígenas”. Além disso, o trabalho de
campo em sociedades nativas contemporâneas tornou os antropólogos intensamente
cientes da presença da burocracia da OIA como um fator de influência na vida nativa:
“Se o pesquisador volta o seu olhar antropológico para a vida dos funcionários do Serviço
Indígena, ele consegue entender de um modo mais claro o processo de aculturação entre
os índios... Uma compreensão mais clara dos hábitos dos funcionários do Serviço
Indígena e dos interesses que moldam os objetivos do Serviço Indígena acabará
aumentando o valor dos estudos antropológicos sobre o processo de dupla-face de
aculturação”.
Esta é uma declaração bastante radical, na medida em que veio alguns anos antes
da consolidação formal da teoria de aculturação. Aqui, vemos uma percepção clara da
vida nas reservas como um processo de duas faces, atado de um lado às totalidades
sociais nativas e de outro à administração da OIA. E, no entanto, por outro lado, trata-se
simplesmente de uma reafirmação das realidades que haviam sido tanto evidentes quanto
manipuladas pelos antropólogos desde os dias de Alice Fletcher. Enquanto os
evolucionistas sociais que seguiam Morgan certamente não vislumbraram um processo de
aculturação de dois lados, eles estavam bastante cientes do poder que a OIA exercia sobre
a vida nas reservas e estavam dispostos a se engajar a tal poder. Além disso, como os
comentários de Clark Wissler a respeito dos “caçadores de insetos” (citado anteriormente,
no capítulo 4) demonstram, os antropólogos estavam há muito tempo cientes do que o
envolvimento com os estudos da vida contemporânea nas reservas inevitavelmente
significaria: engajamento com a “política” que potencialmente poderia destruir a carreira
de alguém. O estudo da vida indígena contemporânea fatalmente desbancou os
antropólogos do papel de “caçadores de insetos inofensivos” e os puseram no papel de
agentes políticos potenciais. Tal situação preocupava alguns antropólogos não porque
colocava em perigo a sua objetividade científica (pois como Johannes Fabian ressaltou,
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
412
tal objetividade não existia na realidade em lugar nenhum, mas, ao contrário, fora
construída na mente antropológica por meio do distanciamento consciente das realidades
nativas (1983)), mas porque os colocava a perigo. A nova situação forçava os
antropólogos a tomarem decisões morais e a atribuir responsabilidade pessoal a essas
decisões.
Nesse sentido, “Notas sobre o Lugar da Antropologia” (“Notes on the Place of
Anthropology”) não é tanto um relatório sobre a descoberta da contemporaneidade dos
nativos americanos quanto uma admissão daquilo que os antropólogos haviam sabido
durante todo o tempo. Como diz o autor, a ciência do homem não era diferente nesse
sentido de qualquer outra ciência: produção de conhecimento implica o uso eventual de
tal conhecimento, e tais usos constituem não uma questão científica, mas moral. “A ação
política efetiva pressupõe conhecimento dos fatos, que é a função da ciência buscar.”
Mas o conhecimento dos fatos não dá origem a ideais. Nenhum acúmulo dos
fatos da economia, antropologia, ou qualquer outra ciência pode fornecer um guia para a
ação. Há sempre a escolha de metas humanas, que constituem um problema político ou
ético em vez de um problema das ciências positivas. É óbvio, portanto, que o
antropólogo, como antropólogo, nunca poder dizer a um superintendente indígena o que
ele deve fazer...
Desse modo, o antropólogo pode ser utilizado de vários modos. A Inglaterra
imperial ou a Itália irão buscar assistência antropológica no processo de transformação
dos nativos em trabalhadores ou soldados eficientes para os senhores brancos. O
administrador indígena que pretende transformar os seus tutelados de peles-vermelhas
em cem por cento americanos terão prazer em aprender do antropólogo como proceder de
um modo mais eficiente nessa direção. Então, também, o administrador indígena que
quer preservar e salvaguardar a herança da cultura indígena pode buscar no antropólogo
ajuda nessa tarefa.
A ciência, então, era uma questão alheia à ética e à política, mas o trabalho
científico não eximia o praticante da responsabilidade de escolher um lado. Dado esse
fato, em qual “lado” estaria o autor de “Notas…” (“Notes”)? Dito de modo simples, ele
prefere uma reiteração mais sofisticada da tradicional crença protestante anglo-saxã de
que o objetivo final da administração indígena é encontrar trabalho razoavelmente
produtivo para os índios.
O autor claramente entendeu que os pontos de vista Sioux a respeito da
“caridade” – descritos por Mekeel como “parasitários” – derivam de diferentes
circunstâncias históricas que não eram, todavia, completamente alheias à experiência do
branco: “O veterano Sioux que traz para casa cinco libras de bacon da mesma Agência da
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
413
Nação que uma vez ele e seu povo derrotaram na guerra está engajado em uma ocupação
honrosa, de acordo com os valores tradicionais Sioux. Até entre os brancos o recebimento
de recursos sem contrapartida de trabalho é considerado honroso se for o resultado de
vitória em guerra militar ou econômica".
Entretanto, ele então afirma que o objetivo final da raça humana é o trabalho
produtivo: “Em toda cultura há gradações de ocupações da mais a menos honrosa. Essas
gradações não podem ser ignoradas com segurança na escolha de atividades econômicas
apropriadas para uma dada comunidade. Os antropólogos podem oferecer um importante
serviço ao descobrir os parâmetros e incentivos que irão produzir trabalho eficiente e
gratificante”. Distanciando-se da construção histórica do comportamento social Sioux, o
autor volta-se para uma reificação mais tradicional da cultura nativa, como um todo
essencial que perdura, de natureza quase atemporal: “O caçador que aprendeu de sua avó
ou avô sobre as glórias dos antigos caçadores, que aprendeu a considerar o sucesso na
caçada a primeira demonstração de sua masculinidade, que acostumou o seu corpo aos
períodos intermitentes de atividade vigorosa prolongada e a sua mente à face do perigo,
talvez não fique satisfeito em arrancar batatas ou cultivar as suas próprias – mas há outras
ocupações na vida moderna, como a de conduzir o gado ou de operar um trator ou uma
escavadeira a vapor, que podem se adequar aos mesmos impulsos profundamente
enraizados que uma vez produziram grandes caçadores”.
Vale refletir aqui que, até 1935, pelo menos 3 gerações haviam se sucedido desde
que as últimas caçadas de búfalos haviam acontecido nas Grandes Planícies. O autor de
“Notas…” (“Notes…”) obviamente não acreditava que ele próprio tivesse algum
“impulso profundamente enraizado” que justificasse a reprodução das atividades
produtivas prováveis de seu bisavô como o plantio, o trabalho remunerado, ou o
artesanato em pequena escala. Ele aparentemente se sentia satisfeito eficientemente
produzindo como um antropólogo. Ele tampouco fornece qualquer conexão necessária ou
lógica entre a caça aos búfalos e a condução de um trator que não estivesse também
potencialmente aparente entre perseguir um bisão nas planícies e perseguir informação
em uma biblioteca universitária. Não obstante, os únicos exemplos que o autor de
“Notas…” (“Notes…”) nos fornece de “trabalho eficiente e gratificante” para os
indígenas modernos seriam atividades mal-remuneradas de trabalho manual ou de
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
414
agricultura. Os índios aqui têm uma cultura que os situam no passado da América branca
e os predispõem à integração econômica nos níveis mais baixos da sociedade americana.
Os antropólogos brancos e cosmopolitas, por outro lado, estão livres para escolherem por
si próprios qual trabalho eles julgam gratificantes, de acordo com os seus desejos
individuais. Nesse relatório, crenças a respeito das relações de mercado e de trabalho
foram sutilmente re-naturalizadas por meio da aplicação do mecanismo antropológico da
cultura. De acordo com o nosso autor anônimo, o papel da humanidade no mundo seria
produzir para o mercado, e os índios estavam fadados por sua cultura a produzirem de
modos que proporcionariam pouco dinheiro e menos poder.
Os comentários do autor a respeito da organização das reservas sob a IRA
também são reveladores na medida em que naturalizam um conjunto de valores
inculcados culturalmente e re-situam os índios como necessitando de tutela para se
adaptarem a esses valores e os internalizarem. O autor reconhece que os valores e as
formas democráticas, conforme entendidas pelos “Americanos caucasianos”, podem “ser
bastante ineptos” para se lidar com as “tradições vivas” das tribos que “incorporam
instituições não democráticas”. Nesses casos, os antropólogos precisavam ajudar os
oficiais da OIA a determinarem até que ponto os padrões tradicionais “ainda eram
funcionais... incompatíveis com os ideais democráticos... reinterpret[áveis] em um modo
democrático, e... produ[tivos] de conseqüências seriamente não desejadas sob condições
modernas". Enquanto deixava em aberto a questão de o que deveria ser feito nessas
situações, o relatório claramente situava a democracia, da forma como é entendida pelos
americanos, como um bem natural, em direção a qual as comunidades nativas deveriam
ser direcionadas, se possível, por meio da ajuda antropológica.
O relatório tem uma característica final que nos interessa aqui: ele claramente
apresenta dois dos maiores problemas inerentes ao programa organizacional da IRA. Em
particular, reconheceu que as tradições de democracia direta de certos grupos nativos
conflitava com a variante eleitoral praticada pela América branca e que o auto-governo
sob a lei Wheeler-Howard era inerentemente limitado, visto que a maioria das decisões
governamentais tribais podiam ser vetadas pela OIA. Como discutiremos no capítulo 8,
ambos esses fatores causariam problemas imediatos que se estenderiam por mais meio
século, criando uma outra crise nos assuntos indígenas nos anos 1970 e 80.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
415
Como podemos ver, então, os pontos de vistas expressos em “Notas sobre o Lugar
da Antropologia...” (“Notes on the Place of Anthropology…”) não eram nem um pouco
radicais, pelo menos no que tangia ao trabalho do governo com a tutela dos índios. O que
era de fato radical, como mencionamos acima, eram as suas reflexões a respeito de como
os dados antropológicos poderiam ser usados dentro desse contexto. O relatório, em
suma, situava a antropologia como uma ciência que inevitavelmente se engajava com
questões políticas cada vez que lidava com a vida indígena contemporânea e – em
particular – quando trabalhava com administradores indígenas. Era um chamado, mesmo
que imperfeito, para refletir sobre a Administração Indígena em si como objeto
antropológico, com a vida moderna nas reservas situadas como uma construção criada
pelos embates e aparentes congruências entre os grupos nativos, facções e gerentes da
OIA. Corretamente situava o estudo da aculturação como um ato político dúplice –
político no sentido de que suas conclusões seriam obviamente usadas pelos
administradores para modificar as vidas nativas e também no sentido de que a coleta dos
dados para o estudo significava o engajamento com grupos politicamente ativos que
inevitavelmente tentariam manipular o antropólogo para os seus próprios fins. O autor do
relatório não ofereceu nenhuma solução para esse dilema, apenas o situou como a
condição definidora da pesquisa antropológica sobre a vida indígena contemporânea. Se
fosse verdade que havia uma divisão filosófica entre a ciência e a política (nenhum
antropólogo pode dizer para um superintendente o que ele deve fazer), era também
verdade que o funcionamento concreto da ciência nessa esfera nunca poderia estar
claramente destacado da política, já que o conhecimento antropológico seria posto em
uso para fins políticos.
Essa foi a lição que o primeiro ano de trabalho com a OIA ensinou a muitos dos
seus colaboradores antropológicos e deixou um gosto amargo na boca de alguns cientistas
– mais particularmente de Julian Steward.
Rompendo com o Consenso
Até o fim de 1935, a OIA e o BAE haviam trabalhado em parceria, concordando
que esta última agência controlaria a pesquisa antropológica para a primeira. Após o
primeiro ano de trabalho antropológico aplicado no Serviço Indígena, entretanto, esse
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
416
acordo começou a ruir. O principal agente na exacerbação da divisão entre a OIA e o
BAE foi Julian Steward.
Steward foi contratado em regime experimental pelo BAE em agosto de 1935,
aparentemente chamado por Duncan Strong, que estava se preparando para deixar os
Estados Unidos para realizar trabalho de campo em Honduras. Embora o primeiro
trabalho de Steward para a Repartição tenha sido realizado em uma escavação
arqueológica na Flórida, dada a extensa correspondência anterior entre ele e Strong a
respeito do trabalho com assuntos indígenas, parece bastante provável que ele tenha sido
empregado especificamente para assumir a posição de intermediário entre o BAE e a
OIA.
Steward assumiu o trabalho em um momento crucial. Desde o fim de outubro,
propostas haviam circulado entre as duas Repartições a respeito de como financiar a
unidade proposta de antropologia aplicada no orçamento do ano seguinte. Foi concordado
que seriam necessários 5 antropólogos para investigar “as situações sociais em mutação”
da população indígena do país, para instruir os funcionários das reservas sobre as
“características particulares” dos grupos nativos e para “inculcar em tais funcionários as
atitudes objetivas das ciências sociais essenciais para uma administração eficiente e
saudável”. Em uma carta para o Oficial Financeiro Federal (Federal Financial Officer)
Dodd, Strong reiterou o ponto de que “Etnólogos têm há muito sido contratados para essa
função por todas as outras nações envolvidas com os problemas da administração nativa e
tais investigadores treinados são urgentemente necessários na Repartição Indígena no
presente momento". Strong pediu que 5 homens fossem indicados da lista do Serviço
Público de etnólogos qualificados para a posição de “Etnólogo Associado, Grau P3” e
que 35.000 dólares fossem acrescidos ao orçamento da OIA com o propósito de cobrir
esses salários:
A investigação científica do índio Americano é, e tem sido, a atividade
especial e o propósito essencial do Bureau of American Ethnology of the
Smithsonian Institution. A Repartição de Assuntos Indígenas não deseja nem tem
a intenção de recobrir ou substituir o trabalho dessa instituição. O presente pedido
deve-se inteiramente ao fato de que as verbas existentes e o pessoal do Bureau of
American Ethnology são atualmente inadequados para atender a essa demanda
administrativa e científica muito especializada além das obrigações regulares
(NAA, William Duncan Strong Papers, Box 47, Bureau of Indian Affairs, 1934-
1937 folder. 23/10/35).
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
417
Strong ressaltou que o orçamento do BAE estava fechado e que o pedido de
financiamento não podia então ser encaminhado através desse departamento. Portanto, o
dinheiro deveria ir para a OIA, que pagaria o BAE pelo trabalho antropológico até 1937-
1938, quando este último departamento provavelmente assumiria a responsabilidade
orçamentária total. As negociações estavam então em um “ponto delicado” segundo
Strong. Envolviam manter a responsabilidade e o controle das investigações
antropológicas da vida indígena contemporânea (chamadas pelo BAE de “estudos de
aculturação”) nas mãos do Smithsonian, mas permitindo à OIA pagar por essa pesquisa,
pelo menos durante o ano seguinte. Os oficiais financeiros federais precisavam ser
convencidos de que esse arranjo bastante não ortodoxo era legal. Por fim, as discussões a
respeito dessa pesquisa estavam se dando em uma atmosfera de crescente hostilidade no
Congresso com relação a John Collier e o New Deal indígena.
No início de novembro, Strong pediu a Stirling, chefe do BAE, que seu substituto
chegasse o mais rápido possível já que ele sentia que, embora tedioso e complicado, o
trabalho do BAE para o Serviço Indígena era tremendamente importante. “Eu devo
confessar que me sentia terrivelmente preso antes de ouvir de você que Steward ainda
estava indicado para me substituir… na Repartição Indígena”, ele escreveu em meados de
novembro.
Eu honestamente acredito que sem colocar alguém lá, fisicamente em contato,
não teremos nenhum meio possível de acompanhar o trabalho. Enquanto estar presente
pode gerar complicações, o meu sentimento pessoal é que não estar pode gerar ainda
mais complicações. Também, temos realmente um serviço específico que podemos
realizar deixando o verdadeiro trabalho antropológico de interesse direto para os índios
de algum jeito em primeiro plano.
24
Strong revela aqui dois dos objetivos primordiais do BAE em sua relação com a
OIA: manter o trabalho antropológico federal um monopólio da Ethnological Bureau e
mostrar que tal trabalho poderia ter resultados pragmáticos para o governo federal. Isso
foi, como mencionamos acima, uma consideração especialmente importante durante os
24
Em uma carta desse mesmo período, Julian Steward descreveu as razões de Strong de manter o elo entre
a OIA e o BAE como "a iminência potencial de um grupo de pesquisa em algum lugar, o perigo deste ficar
perdido na própria OIA ou ser roubado por alguma universidade, o perigo para o Bureau de perder os seus
contatos na OIA e o valor para o Bureau de se manter a par da teoria antropológica e de estudar índios
aculturados bem como os aborígenes puros " (NAA, William Duncan Strong Papers, Box14, Folder STEF-
Steward, J. 1940; Folder Steward, J. (1941) –STI, 24/11/36).
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
418
cortes de orçamento na Depressão. Strong então sugeriu que seu substituto viesse para
Washington até dia 8 de dezembro, no máximo, de modo que ele pudesse aprender o
trabalho enquanto Strong ainda estivesse na cidade. Julian Steward, entretanto, não
demonstrou entusiasmo algum em assumir a posição de intermediário entre a OIA e o
BAE, e permaneceu na Flórida até o fim de dezembro. Imediatamente após assumir suas
responsabilidades, o atrito entre as duas agências aumentou dramaticamente (NAA,
Records of the BAE, Mathew Stirling Papers, 13/11/35, s/d/11/35 and 25/11/35;
Hauptman, 1983).
Foi precisamente a respeito do ponto se os índios teriam um futuro enquanto
índios que Julian Steward começou a questionar o programa da OIA de Collier. Como ele
lembraria em 1969, “‘Indianidade’ era para Collier uma mística e um modo de vida de
uma qualidade estática que não se referia a 1900, 1850, ou a qualquer período particular”.
Steward, entretanto, acreditava que “embora a natureza das culturas nativas tivesse
constituído o interesse passado da antropologia e a meta de Collier fosse recriar essas
culturas, era aparente para a maioria de nós que o curso da modernização não podia ser
detido, e muito menos revertido para alguma condição anterior, mas não especificada, de
‘Indianidade’”. Devido a essa modernização, “muitas tribos foram assimiladas até um
ponto sem retorno”, um fato para o qual Collier se mostrava cego devido às suas crenças.
“Quando eu informei Collier que os jovens que coletavam o dinheiro de admissão para a
Dança do Sol em Fort Hall, Idaho se vangloriavam de guardar o dinheiro para si, ele
declarou com uma descrença chocada que nenhum índio trairia a confiança comunitária,
e viu esse episódio como mais uma evidência de que eu estava tentando minar o
programa” (STEWARD, 1969: 339-340).
Os comentários de Steward são interessantes por vários motivos. Primeiro, eles
contradizem diretamente tudo que Collier escreveu sobre a sobrevivência cultural
indígena, bem como os pontos de vista expressados pelo próprio Steward em um artigo
anterior
25
. Como vimos acima, as políticas de Collier não foram concebidas como um
25
O artigo escrito por Steward em 1943 para America Indigena (revista da InInIn, da qual Collier era
então presidente) explica que as diferenças filosóficas entre os indigenistas e os antropólogos são mais
aparentes do que reais. De fato, os comentários se contradizem, pois se Collier acreditava que
“Indianidade" fosse uma “qualidade estática”, não ligada à “período particular algum”, então logicamente
ele também não poderia acreditar que a IRA reverteria a existência nativa para uma condição anterior de
“Indianidade”.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
419
meio de “recriar” as culturas nativas pré-contato, mas para modernizar a identidade étnica
nativa, pondo os índios em uma relação mais estreita, embora pluralista, com o estado
nação americano a la governo indireto britânico e, ao fazer isso, reduzir a dependência
com relação ao governo federal e os gastos desse governo com os Assuntos Indígenas.
Em contraste, Steward entendia os índios “modernizados” que adotavam novas
tecnologias e se tornavam fluentes nas categorias culturais de outras sociedades não mais
como índios “reais” (leia-se “não mais suficientemente outros”) e, portanto, não mais de
interesse para a antropologia. A sua descrição dos índios como sendo o “interesse anterior
da antropologia” é bastante revelador nesse sentido, e a inabilidade de Julian Steward de
lembrar-se em 1969 que até 1935 os seus interesses antropológicos haviam se
concentrado sobre os índios norte-americanos indica os limites da confiabilidade da sua
memória a respeito desse período.
Quando olhamos os registros contemporâneos, descobrimos que os
desentendimentos entre a OIA e o BAE eram mais complicados do que Julian Steward
recordava em 1969. Com certeza, as notas de Steward sobre o período são apimentadas
com comentários sobre o fato de que as políticas de Collier estariam estancando uma
inevitável onda evolucionária e eram, portanto, incorretas do ponto de vista da
antropologia. Mas o problema real parece ter sido uma crise institucional provocada por
um contra-ataque conservador no Congresso contra a IRA, pela confusão organizacional
na OIA quanto ao melhor uso dos antropólogos, e as ambições e simples falta de interesse
pessoal de Julian Steward pelo que ele havia antes chamado de “sociologia aplicada”.
Nesse cenário, Julian Steward sentiu que o BAE estava a ponto de ser sugado para dentro
de um embate político que podia deixá-la vulnerável ao ataque do Congresso e ameaçar a
autonomia do Bureau. Por causa disso, ele se sentiu cada vez mais impelido a apresentar
o trabalho antropológico da OIA para os seus colegas e superiores como uma espécie
inferior de etnologia, de natureza técnica, não realmente científica e, portanto, não
encaixada na esfera de ação natural do BAE. Nas primeiras 6 semanas após assumir a
posição de Strong, Steward havia articulado uma teoria em que a antropologia pura,
científica ou teórica (como o Smithsonian supostamente realizava) se opunha diretamente
à antropologia administrativa, aplicada ou técnica que a OIA a primeira vista desejava:
Em suma, a antropologia não pode ser ao mesmo tempo aplicada e científica.
Enquanto em um dos casos, trata-se de um compêndio de fatos imparciais, no outro,
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
420
trata-se da aplicação dos fatos apresentados de tal modo para mostrar como produzir
resultados particulares. Enquanto uma requer um cientista, a outra requer um técnico com
treinamento científico (NAA, William Duncan Strong Papers, Box 47, Bureau of Indian
Affairs, 1934-1937 folder. s/d)
Com base nessa suposta divisão, Steward discutiu tanto com o seu superior no
BAE, Matt Stirling, como com Scudder Mekeel na OIA, convencendo-os de que o
Bureau of American Ethnology deveria se eximir do trabalho mais direto com a
antropologia aplicada nos Assuntos Indígenas (ibid).
A raiz do problema residia na confusão a respeito de qual repartição seria
responsável pelos estudos de aculturação e quem pagaria por estes. O acordo original
OIA-BAE estipulava que ambas responsabilidades estariam no fim das contas nas mãos
do Smithsonian, mas que o Serviço Indígena financiaria o BAE burocraticamente em seu
embate por mais financiamento proveniente do Congresso para bancar os estudos
antropológicos com as verbas liberadas da Organização Indígena. Infelizmente, o Serviço
Indígena encontrou resistência de um Congresso cada vez mais hostil a essa empreitada.
Por causa disso, o Bureau of American Ethnology decidiu solicitar tal financiamento por
conta própria por meio de um ato de financiamento emergencial
26
, mas o pedido não foi
devidamente apoiado pela OIA e não passou. De acordo com Steward, “eu decidi deixar a
coisa acontecer por si mesma por um tempo até o caleidoscópio da BIA girar de novo.
Logo girou… o Rep[resentante] McGroarty (que ano passado, me disseram, tentou
extinguir o BAE) conseguiu que o Congresso cortasse o orçamento do BIA de 500.000
para 25.000 dólares e as verbas de Reorganização de 160.000 para 10.000. As somas
originais foram restituídas e aprovadas pelo Congresso no dia seguinte, mas a moral era
evidente”. A moral aqui, aparentemente, era a de que a OIA de Collier não tinha mais o
apoio do Congresso e que as agências federais associadas a ele podiam acabar se
deparando com represálias quando o momento de aprovar seus orçamentos chegasse
(NAA, William Duncan Strong Papers, Box 47, Bureau of Indian Affairs, 1934-1937
folder. 14/2/36).
Para piorar a situação, os planos da OIA de transferir dinheiro da Organização
Indígena para o Smithsonian para bancar os estudos sobre aculturação ficaram atados
pela burocracia. Indicações para os novos postos de pesquisa (ainda sem financiamento)
26
Um pedido de solicitação por mais financiamento após o processo orçamentário federal para dada
repartição ou agência ser oficialmente encerrado.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
421
fugiam das diretrizes do Serviço Público e do Departamento do Interior (ibid). O plano
modificado para 1936 solicitava que 3 antropólogos fossem enviados para o campo pelo
BAE para conduzir estudos sobre aculturação (pagos com verbas da OIA transferidas da
divisão de Trabalho de Conservação Emergencial) e mais 4 pela OIA sob os auspícios da
Divisão de Organização Indígena. Os salários para os 7 antropólogos totalizavam 18.401
dólares, com apenas um pesquisador de campo contratado sobe o regime “um dólar por
ano”. Até meados de fevereiro, entretanto, esses planos ainda não haviam sido postos em
prática e Julian Steward estava frustrado com um trabalho que ele nem ao menos tinha
desejado muito desde o começo. Essa frustração foi canalizada em tentativas de destruir a
ligação OIA-BAE (NAA, William Duncan Strong Papers, Box 47, Bureau of Indian
Affairs, 1934-1937 folder, 25/1/36; 14/2/36).
Em uma longa carta para Duncan Strong de meados de fevereiro, 1935, Steward
reclamou muito sobre a suposta falta de respeito pelo trabalho etnográfico tradicional por
parte do Serviço Indígena:
Um relatório que o BIA reconheça como valioso não pode falar sem parar sobre
história tribal, não pode apresentar uma catalogação completa de traços nativos, não pode
ser um receptáculo para todo o material que a pessoa desencavou. Deve apenas incluir
aquilo que o administrador pode reconhecer como elucidativo do problema com o qual
ele tem que lidar. Eu cheguei a essa conclusão – que vai contra a minha índole – ao
perceber a reação das pessoas da Repartição Indígena aos fatos etnográficos. Eles
esperam ser apresentados aos fatos que são pertinentes para os problemas imediatos, e é
claro muito do material em um estudo geral sobre aculturação não é pertinente. Além
disso, surge a questão de o que precisamente uma pessoa enviada para o campo faz. Se
nós vamos vender a antropologia agora, temos que mostrar o seu valor, o que significa
nos concentrarmos nos problemas administrativos importantes, não em estudos gerais.
Você pode dizer que estudos gerais são valiosos, mas a Repartição Indígena
simplesmente não vê o porquê, mesmo que nós o vejamos. Em suma, eu começo a ver
uma grande diferença entre realizar um estudo sobre aculturação perfeitamente objetivo e
outro geral e prestando atenção nas questões com as quais a Repartição Indígena se
preocupa. E foi com base em tais diferenças que Scud rachou com Woehlke. Eles vão
coletar material de segundo plano sobre os Papago ou irão descobrir especificamente se e
como os Papago podem implantar uma economia de criação de gado? Etc.
Quase todo dia, alguém do BIA diz, com efeito, “Não queremos declarações de
fatos, descrições sobre cultura. Nós somos pessoas de ação. Queremos saber o que fazer.
Eu poderia citar cada pessoa importante do BIA com relação a isso.
Steward descreveu o trabalho verdadeiramente científico como uma “busca
imparcial de fatos”, que ele sentia estar em direta contradição com o foco da OIA de
resolver dificuldades administrativas. Esse foco necessariamente “envolveu os membros
do Smithsonian até certo ponto em assuntos administrativos" e significava que "o
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
422
problema sobre o qual o homem do Smithsonian irá trabalhar não é primordialmente um
problema científico, mas um de significado pessoal imediato". Tal trabalho, Steward
reclamou, era como pedir a "um designer e engenheiro de automóveis... para visitar
oficinas e dizer por que os carros não estão funcionando".
Para resolver esse problema, Steward sugeriu que o BAE se restringisse a fazer
estudos científicos sobre aculturação "em vez dos [estudos] práticos (almejados pelo
BIA)". Os resultados seriam então apresentados ao Serviço Indígena para serem
utilizados conforme sua intenção:
O BIA, então, teria um antropólogo de sua própria equipe que serviria de
intermediário e que, considerando os achados dos estudos realmente científicos,
mergulharia nas discussões da administração até dizer chega, assegurando-se de que as
coisas certas fossem feitas. Mas nesse caso, se as suas recomendações não fossem
consideradas, o BAE não poderia ser acusado de estar atravancando o programa do BIA,
de estar fazendo política, tomando partido e todas as outras acusações graves que podiam
ocorrer tão facilmente. Naturalmente, o pessoal da aculturação do BAE seria razoável na
realização de estudos que se aproximassem das necessidades do BIA.
Eu acho que a coisa que tem se tornado cada vez mais clara para mim é
realmente a grande diferença entre um estudo prático e outro realmente científico. Qual
mestre deve a equipe de campo servir? Se estamos convencidos de que as presentes
metas de Collier, por exemplo, são válidas, podemos nos sentir justificados em mostrar
como uma tribo poderia ser melhor organizada, como as cerimônias nativas podem ser
reavivadas, etc. Mas supondo que não concordamos com os seus objetivos fundamentais?
E eu suspeito que eu sou muito mais desconfiado deles do que você. E se Collier
dissesse, como de fato ele disse uns dois dias atrás, “Como podemos reavivar velhos
cantos Navajo?” “Como fazer com que os dicos os entoe nos pátios das escolas?”,
como disse um membro do BAE, e eu não me furtei a dizer, “Você não pode. As
cerimônias vão acabar à medida que os pacientes acabem, já que vocês pedem que eles
freqüentem os seus hospitais” e se eu tivesse dito mais, como quase fiz, “E o seu
programa inteiro de reavivar as cerimônias e costumes nativos é incrivelmente ridículo
porque as outras coisas que você está introduzindo simultaneamente as solapa,” eu
obviamente seria uma persona muito non grata. E se ele ainda solicitasse que a coisa
mais valiosa que a equipe – se houvesse uma – pudesse fazer seria descobrir como
reavivar essas coisas, eu ficaria numa posição que não desejaria para ninguém. Mas se eu
fosse um membro do BIA e fosse lutar por tais assuntos, o ônus não recairia sobre o BAE
(NAA, William Duncan Strong Papers, Box 47, Bureau of Indian Affairs, 1934-1937
folder, 14/2/36).
A carta de Steward demonstra a necessidade do BAE de “vender a antropologia”
durante esse período. Essa foi, é claro, a principal razão para a ligação com a OIA. A
carta também sublinha até que ponto o evolucionismo social influenciou as idéias de
Steward a respeito dos programas da IND. De novo, o foco principal do desentendimento
entre Collier e Julian Steward parece ter sido a avaliação “científica” deste último de que
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
423
os elementos étnicos distintivos da vida nativa acabariam desaparecendo à medida que
essas populações adotassem novas tecnologias e hábitos.
Mas o ponto principal revelado pela carta é a lógica por trás da dicotomia
nascente de Steward entre estudos antropológicos “realmente científicos” e “práticos”.
Não que a ciência fosse impossível dentro dos quadros da OIA, mas que ali as verdades
dos antropólogos eram apenas mais um produto dentro do campo político dos Assuntos
Indígenas. O trabalho científico podia ser realizado na OIA, mas tal trabalho
necessariamente implicava na necessidade de apoiar as teorias antropológicas em meio a
outras exigências. Isso criaria conflitos, e tais conflitos poderiam minar a autoridade
científica da antropologia em si. Podiam com certeza minar a autoridade do BAE
enquanto instituição científica federal escolhida para gerar conhecimento sobre
alteridades subordinadas e racializadas. Devemos lembrar, nesse contexto, que entrar no
debate com teorias e opiniões opostas automaticamente politiza as suas próprias opiniões
e confere um certo grau de plausibilidade aos argumentos do oponente. A presunção da
antropologia enquanto ciência, no sentido clássico e positivista do termo, é que a
disciplina está acima e além de tal questionamento.
Como vimos na Seção II, acima, John Collier não era ingênuo no que dizia
respeito à antropologia e às ciências sociais. Ele era um consumidor bem-informado das
teorias e produtos antropológicos que conseguia se sair muito bem em debates
acadêmicos e escolásticos e, contudo, ele não tinha nenhum compromisso emocional,
político ou profissional com a antropologia per se. Ele era então uma pessoa perigosa
para se debater o cânone da antropologia já que se tratava de um tipo de pessoa que
podia, como efetivamente costumava fazer, pôr o dedo nos furos das pedras de toque
mais reverenciadas da disciplina. O problema fundamental de Julian Steward era que ele
no fim das contas não podia provar as suas pressuposições evolucionistas. De fato, como
os eventos que se seguiram mostraram, não há nenhuma razão necessária por que os
hospitais precisem substituir inteiramente os cantos de cura Navajo, e Collier era
exatamente o tipo de pessoa que pediria a Steward que mostrasse por que ele presumia
que havia essa necessidade. Visto que as crenças de Steward nesse sentido não adviessem
da realidade observada, mas dos dogmas acumulados da teoria evolucionista social
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
424
Americana, não havia uma resposta aceitável que Steward pudesse dar exceto se
esconder, taciturno, por trás do manto presumivelmente objetivo da autoridade científica.
Sugerir isso não significa situar Julian Steward como vilão ou Collier como herói.
Trata-se simplesmente de dizer o óbvio: com relação aos seus pontos de vista sobre o
“inevitável” desaparecimento dos elementos da vida indígena, Steward estava
provavelmente errado e Collier certo. Tal prova está, é claro, ligada ao fato de que as
crenças de Collier ajudaram a reforçar a etnogênese entre os índios dos Estados Unidos,
entendida aqui (segundo Gerald Sider (1976)) como a (re)produção da vida étnica
indígena. Isso é quase irrelevante, entretanto, já que as presunções de Steward
estipulavam uma ordem evolucionária social natural inerente que é não dialética e
essencialmente alheia à intervenção humana. O sucesso relativo do New Deal indígena na
prevenção do desaparecimento de fenômenos sociopolíticos e culturais claramente
nativos não deveria ter acontecido se, de fato, o tal desaparecimento fosse motivado pelas
leis naturais ou sociais.
O próprio Collier era bastante ciente do conflito de autoridade que estava
acontecendo entre certos administradores e antropólogos. No fim de 1935, a Repartição
fez um acordo com o “Serviço de Conservação do Solo do Departamento de
Agricultura” (“Department of Agriculture’s Soil Conservation Service”) para implantar
uma série de estudos multidisciplinares dos recursos das reservas com um olho no
desenvolvimento de planos quanto ao melhor jeito de explorar esses recursos para o
avanço econômico. Uma das seções criadas por esse “Acordo de Cooperação Técnica”
(Technical Cooperation Agreement) entre o SCS e a OIA (conhecido como "TC-BIA")
era responsável por “Pesquisas sobre Dependência e Economia Humana” (“Human
Dependency and Economic Surveys”) nas reservas e isso, por sua vez, demandava o
envolvimento de antropólogos e sociólogos. Dispondo de poucas opções, a OIA buscou
exatamente as mesmas pessoas que o BAE estava pensando para realizar seus estudos.
Scudder Mekeel, o recém-contratado chefe de antropologia aplicada do Serviço Indígena,
que fora temporariamente afastado de seu planejamento dos estudos sobre aculturação da
próxima estação para coordenar a equipe socioeconômica TC-BIA até acharem um
diretor permanente (NAA, William Duncan Strong Papers, Box 47, Bureau of Indian
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
425
Affairs, 1934-1937 folder. 25/1/36)
27
ficou furioso com o gesto da OIA, o que resultou
em um confronto entre Mekeel e Collier. Steward relatou o ocorrido para Strong:
Scud [Mekeel] havia voltado do Sudoeste onde, após uma desavença com
Collier e Woehlke, ele havia deixado o posto de Director Provisório. Quando Woehlke
revisou por completo os planos de Scud para a equipe após Scud ter voltado para cá,
Scud se demitiu como Consultor [de Antropologia Aplicada]. De fato, um memorando
que vinha junto com o pedido de demissão de algum posto ameaçou tornar-se um
hábito. Mas Collier não prestou a mínima atenção, fracassou totalmente em entender a
verdadeira diferença entre Woehlke e Scud (que provavelmente também quer dizer
entre Collier e Scud) com relação ao trabalho científico, e permanece em silêncio a
respeito do retorno de Scud para o S.W. [Sudoeste] (NAA, William Duncan Strong
Papers, Box 47, Bureau of Indian Affairs, 1934-1937 folder, 14/2/36).
Em uma carta para o representante de campo da OIA Walter Woehlke, entretanto,
Collier desabafou a respeito de suas frustrações, afirmando que ele havia se deparado
com um certo desdém por parte dos antropólogos com relação aos sociólogos, que eram
considerados uma “raça inferior” de cientista social. “Terá a antropologia ultrapassado
essa filosofia juvenil?”, Collier se perguntou.
Será que [a antropologia], talvez, outorgue ao seu acólito, ou vítima, uma
pseudo-técnica, essencialmente tão esotérica quanto a Ciência Cristã ou Iogue, por meio
da qual a imunidade e a superioridade são retidas às custas da realidade? Precisamente o
caráter juvenil da ciência e seu fracasso em ter se aplicado sobre as questões reais da vida
pode ser o segredo de seu poder de criar essa imunidade e superioridade nas mentes de
seus praticantes.
Collier então prosseguiu fazendo uma acusação que era uma contrapartida direta
àquela feita por Julian Steward a respeito da credibilidade do Comissário, citada acima.
Ele afirmou ter ouvido comentários a respeito “de alguns integrantes do grupo
antropológico estarem bebendo” e disse que tais comentários não o surpreendiam já que
“durante uma dança cerimonial na Califórnia, uma ocasião realmente sagrada, eu vi um
grupo antropológico, liderado por um antropólogo eminente, passando uma garrafa de
mão em mão… fico realmente me perguntando o quão seguro é soltar sobre os índios
antropólogos que não passaram nos testes de atitude do Sr. Beatty”
28
(JCP Reel 18,
Collier-Woehlke correspondence, April 18
th
, 1936).
27
Ruth Underhill e Gordon Macgregor, ambos contratados pela OIA como consultores de antropologia,
também foram aparentemente transferidos para a TC-BIA neste momento (JCP, Reel #21, 13/12/1935).
28
Não faço idéia do que eram esses testes. Willard Beatty substituiu Carson Ryan como diretor da
Educação Indígena no início de 1936.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
426
A resposta de Woehlke a essa carta é também bastante reveladora sobre o choque
de sensibilidades que havia acontecido durante a criação da TC-BIA.
Sem dúvida você está ciente da colisão frontal entre as práticas iogue do grupo
antropológico e a minha insistência em dar conta das realidades… O choque na
sensibilidade antropológica foi tão grande que para o mundo de fora eles tinham que
manter uma atitude cínica com o intuito de proteger a sua dignidade antropológica
decadente…
[E]les começaram a se dar conta aos poucos da completa não confiabilidade do
ponto de vista científico dos métodos antropológicos de investigação. Mesmo que não
admitam isso diretamente, eles viram que o método usual de sentar-se à sombra com um
informante pago, e de ouvir as suas histórias de terceira ou quarta mão, produzia material
de valor questionável. Forçados a sair e a entrevistar um ser humano vivo após outro, dia
após dia, forçados a checar um com o outro os resultados desse questionamento, eles
começaram a enxergar o seu trabalho sob uma luz completamente diferente e a desconfiar
da validade do material coletado a partir do velho método. Agora os mais ativos do grupo
estão intelectualmente excitados diante da nova aventura. (JCP, reel #21, 22/4/36).
Obviamente, então, a OIA não estava completamente perdida quanto a entender a
metodologia científica social. O choque entre antropólogos e administradores aqui não
dizia respeito aos métodos científicos versus métodos não-científicos. Como Steward
admite, tratava-se de quem estabeleceria as questões a serem estudadas: antropólogos ou
administradores?
O incidente acima mostra que o trabalho científico dentro da OIA e do BAE pode
ser pensado melhor em termos de produção de um conhecimento diferenciado para dois
campos políticos separados (embora ligados). No caso do Serviço Indígena, o trabalho
acabou voltado para as realidades do campo político dos Assuntos Indígenas. Isso
significava produzir uma ciência que pudesse ajudar a resolver os problemas levantados
pelos debates da reforma no fim dos anos 1920 – a saber, como criar americanos nativos
economicamente auto-suficientes. O trabalho na Agência Etnológica, por outro lado, era
voltado para a produção da instituição como uma agência federal e como a melhor
instituição no campo da investigação científica americana. A segunda meta estipulou um
foco em questões teóricas mais do que se ou não "os Papago podem aderir a uma
economia de criação de gado” e sobre comunidades que eram mais exóticas do que os
índios “aculturados” dos Estados Unidos, já que estas eram as investigações que
conferiam status no campo da antropologia.
A divisão fácil de Steward entre o trabalho antropológico “realmente científico” e
“prático” era simplista, na melhor hipótese, e não era apoiada pelas suas próprias
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
427
atividades no campo da antropologia. Após abandonar o trabalho da OIA, Steward
envolveu-se com uma série de outros projetos para o Smithsonian que eram
eminentemente de natureza política. Ele freqüentemente justificava o seu trabalho
editorial para o Handbook of South American Indians em termos assumidamente
políticos, por exemplo, descrevendo o Handbook para o Congresso e para os colegas
como uma arma efetiva na luta contra o fascismo e o comunismo (NAA, Records of the
Handbook of South American Indians, Steward to Lowie, 21/6/44; Senate Appropriations
Bill hearings for 1942, 77
th
Congress, on H.R. 4276). Do mesmo modo, o Instituto de
Antropologia Social (Institute for Social Anthropology – ISA), fundado por Steward em
1942, nunca foi avesso a servir “as necessidades de implementar programas de ação
presente na América Latina e de fornecer informação básica para o futuro planejamento
por meio de uma unidade de ciência social centrada no Smithsonian”, precisamente o
tipo de papel ao qual Steward fez objeção para a atuação do BAE no caso da OIA ((NAA,
Institute for Social Anthropology, Box 1, Annual Reports 1942-1952).
A objeção de Steward à ligação OIA-BAE tinha pouco a ver com a divisão entre a
antropologia “prática” e “científica”. Ao contrário, foi feita em defesa da autonomia
institucional do BAE e da autoridade antropológica em geral. Isso pode ser claramente
visto em um comentário de Steward para Strong em setembro, 1936, ao saber que a
“Divisão Nacional de Parques do Departamento do Interior” (“National Parks Division of
the Department of the Interior”) tinha um programa de arqueologia independente que
estava sendo financiado pela Agência de Trabalho Emergencial (Work Projects
Administration) sem nenhuma participação do Smithsonian: “Eis o tipo de coisa que me
deixa enojado. Parece-me que o Smithsonian + B.A.E. estão perdendo tempo enquanto
uma oportunidade clama diante deles. A ligação com a OIA valeu a pena enquanto durou
mas não é para nós”. O golpe da Divisão de Parques (Parks Division) havia posto uma
boa parte da arqueologia financiada pelo governo federal fora da jurisdição do
Smithsonian e Steward sentiu que o BAE estava rapidamente sendo posto de lado. Ele
sugeriu que o Bureau imediatamente tomasse providências para tentar encampar esse
projeto, mesmo que isso significasse muito trabalho e embate político, “mas, que inferno,
faz parte da nossa jurisdição e é necessário para a nossa sobrevivência + não seria pior do
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
428
que o que você + eu tivemos que agüentar no BIA” (NAA, William Duncan Strong
Papers, Box14, Folder STEF-Steward, J. 1940; Folder Steward, J. (1941) –STI; 4/9/36).
Obviamente, então, Steward não era avesso a misturar ciência com política,
contanto que fosse ele a pessoa coordenando as ações políticas. O projeto da OIA o
perturbou não porque os antropólogos do Smithsonian estivessem se engajando com a
política, mas porque eles estavam sendo chamados a fazê-lo dentro de um papel
subordinado em um campo político que prometia poucas perspectivas de avanço para a
autoridade antropológica.
Até o verão de 1936, o BAE havia se retirado dos Assuntos Indígenas e seu
acordo com a OIA era um artigo morto. Não é exagero atribuir a responsabilidade última
por esse estado das coisas à atitude de Julian Steward. A despeito dos desentendimentos
inevitáveis e dos erros operacionais criados pela OIA em suas tentativas de colocar o
conhecimento antropológico a serviço da administração indígena, Duncan Strong havia
trabalhado por quase dois anos com o Serviço Indígena sem grandes reclamações,
produzindo – sem dúvida – um material valioso. Menos de um mês após Steward
assumir a posição de Strong, a OIA e seus antropólogos aliados no BAE estavam em
desavenças. Obviamente, muito desse mal-estar tinha sido causado pelo trabalho
incompleto e com freqüência obstruído do ano anterior. Tão óbvio quanto, entretanto, era
o fato de que tais problemas eram esperados nos estágios iniciais do novo programa. O
trabalho do intermediário entre a OIA e o BAE era suavizar essas dificuldades e tentar
promover um entendimento maior entre os antropólogos e os administradores indígenas.
Steward, contudo, começou a trabalhar em prol da retirada do BAE do programa logo
após chegar em Washington. Ele deixa isso claro em uma carta de 14 de fevereiro, em
que ele afirma ter convencido Matt Stirling (após 4 horas de discussão) e Scudder Mekeel
que o BAE deveria se retirar do trabalho de antropologia aplicada no Serviço Indígena. A
sua carta deixa o seu empenho individual bastante claro, bem como as suas diferenças de
opinião com Strong, a quem Steward não obstante sentia uma certa necessidade de
prestar contas a respeito de suas ações como intermediário:
Esta é uma conclusão provisória, embora eu tenha convencido Mat e Scud a
respeito. Talvez se trate de uma redução ad absurdum. E eu chego nela com relutância
porque se trata da antítese do que você [“your [sic]”] estava tentando fazer. Ou será? Eu
não vou fazer nada de modo precipitado, pois eu odiaria ter a tarefa infeliz de sufocar
essa bela criança, especialmente se o seu crescimento é visto com grande interesse por
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
429
antropólogos no país todo (NAA, William Duncan Strong Papers, Box 47, Bureau of
Indian Affairs, 1934-1937 folder, 14/2/36).
Precipitado ou não, até o fim da primavera, Steward tinha praticamente
abandonado o trabalho para a OIA, até mesmo cancelando a sua aula marcada para a
sessão de treinamento para os funcionários da divisão educacional da OIA no verão.
Logo depois, ele ficou doente e até se recuperar no fim do verão, a ligação da OIA com o
BAE tinha acabado (NAA, Records of the BAE, 1/6/36; 15/7/36).
A Unidade de Antropologia Aplicada
A retirada do Bureau of American Ethnology do trabalho direto com a OIA
transferiu a responsabilidade pelo trabalho de antropologia aplicada diretamente para as
mãos do Serviço Indígena, sob a direção de H. Scudder Mekeel, como Julian Steward
havia planejado. Além disso, a retirada fez com que tal trabalho fosse descrito como
“técnico” e de natureza não “verdadeiramente científica”. Dentro da OIA em si, contudo,
o trabalho da unidade antropológica tornou-se ainda mais institucionalizado em 1936. Em
maio desse ano, a Unidade de Antropologia Aplicada (Applied Anthropology Unit)
contratou Margaret Fisher, C.E. Schaeffer, A.M. Halpern, Charles Wisdom e David
Rodnick como pesquisadores de campo engajados na organização de governos tribais sob
a orientação de Mekeel como “Representante de Campo Encarregado da Antropologia”
(Field Representative in Charge of Anthropology) (NARA RG75 E178, Box 19, S: staff –
from 1937 folder). Como o New Deal indígena foi expandido durante os anos que se
seguiram para incluir Oklahoma e Alaska (originalmente não incluídos na IRA), esses
antropólogos além de outros (McKennan, Olsen, Lipps e Osgood) conduziram trabalho
de pesquisa e organização nessas áreas. Sophie Aberle estava trabalhando como
superintendente da Agência Indígena dos United Pueblos e Louis Balsam como um dos
assistentes especiais de Collier (ele também seria mais tarde transferido para o trabalho
de superintendência). Carl C. Seltzer estava contratado como antropólogo físico da
Repartição, trabalhando com Ella Deloria, lingüista do idioma Dakota e ex-aluna de
Boas, na investigação da “Indianidade” dos Lumbee de North Carolina, durante o verão
de 1936.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
430
Por meio da revista Indians at Work, a OIA manteve um fórum público para a
pesquisa antropológica a respeito dos índios. Ruth Benedict, Margaret Mead e Clark
Wissler (entre muitos outros) teriam o seu trabalho (re)publicado em suas páginas ao
longo dos anos 1930. Da mesma maneira, John Collier manteve uma correspondência
extensiva com antropólogos do país inteiro por meio de um grupo informal de
consultoria da OIA, mais particularmente antropólogos das Universidades de Chicago e
Berkeley. Por fim, depoimentos de antropólogos foram extensivamente usados pela OIA
em debates no Congresso. Franz Boas, Aldes Hrdlicka, Weston La Barre, Vincenzo
Petrullo e Richard Schultes, por exemplo, todos contribuíram com breves relatórios
solicitando a descriminalização do uso do peyote entre os índios durante sessões do
Congresso no fim dos anos 1930. Enquanto isso, a TC-BIA contratou Willard W. Hill,
Frederica Laguna, Ruth Underhill e Gordon MacGregor para os projetos de pesquisa nas
reservas. Os antropólogos do “Serviço de Conservação do Solo” (Soil Conservation
Service) eram também com freqüência convocados para essas sessões.
A OIA aceitou em grande parte a hipótese de Steward de que a antropologia
aplicada era diferente de sua versão “verdadeira”, “pura”, ou “teórica”, talvez porque essa
posição tornava mais fácil ditar as condições de trabalho dos antropólogos e outros
cientistas sociais contratados pela Repartição. O reconhecimento da “antropologia
aplicada” como um campo qualitativamente diferente teve o efeito conveniente de situar
a OIA como uma agência especializada nessa modalidade de produção de conhecimento
antropológico. Afinal de contas, se o BAE havia rejeitado a antropologia aplicada e
nenhuma outra instituição antropológica estava engajada nessa especialidade, quem
melhor descreveria o significado dela do que a OIA, a agência que contratou o maior
número de antropólogos aplicados nos Estados Unidos?
No dia 9 de julho, 1936, John Collier pôs em circulação “Instruções para
Pesquisadores de Campo – Unidade de Antropologia Aplicada” (Instructions to Field
Workers – Applied Anthropology Unit), que explicitamente reafirmava e
institucionalizava a divisão aplicada/teórica. Nessa publicação, ele diz que esse “tipo de
trabalho… demanda o ponto de vista e a abordagem culturalmente objetiva que o
treinamento do pesquisador de campo deve ter fornecido. Também demanda os métodos
e técnicas usuais da antropologia social como algo distinto da etnografia".
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
431
Entretanto, a meta do trabalho é inteiramente diferente da antropologia social
científica. A meta não é a ciência, mas a cooperação com a solução prática de problemas
administrativos por meio da abordagem da ciência social. Embora não-científico em sua
meta
, o procedimento de coleta de dados deve ser tão rigorosamente científico quanto
qualquer estudo científico.
Os critérios quanto aos dados que devem ser coletados devem ser determinados
por problemas administrativos que de fato precisam ser resolvidos. Tais problemas serão
explicitamente declarados nos trabalhos de campo atribuídos a cada pesquisador de
campo. Essa é a característica que distingue o trabalho de antropologia aplicada tanto da
antropologia social (o estudo da cultura de um povo primitivo em termos dinâmicos e
funcionais), como da aculturação (os estudo de como uma cultura se modifica sob a
influência dominante de outra cultura).
A publicação de Collier então prossegue, subordinando os interesses
antropológicos aos da OIA, em geral, e dos superintendentes das reservas,
especificamente. Também reitera que a meta atual do trabalho antropológico dentro da
OIA deveria ser em grande parte direcionada para a implantação de governos tribais
(NAA, William Duncan Strong Papers, Box 47, Bureau of Indian Affairs, 1934-1937
folder).
Se a definição da antropologia aplicada como um campo separado e inferior “à
antropologia social científica” permitiu que a OIA direcionasse e disciplinasse os seus
investigadores antropológicos de acordo com as demandas do Serviço Indígena, ela
também serviu para distanciar o trabalho que esses indivíduos estavam fazendo da
antropologia corrente como um todo. No início de 1937, quando Mekeel enviou um
artigo para a American Anthropologist a respeito da antropologia aplicada na OIA, o
editor Leslie Spier o rejeitou, afirmando que a revista não tinha nenhum interesse em
publicar material que não solucionasse problemas antropológicos: “O caso é
precisamente análogo à proposição de uma discussão sobre design de engenharia para
uma revista puramente matemática,” afirmou Spier. “Eu nunca me convenci de que as
assim chamadas aplicações tenham qualquer contribuição a fazer para a antropologia
social” (NAA, William Duncan Strong Papers, Box 47, Bureau of Indian Affairs, 1934-
1937 folder, 16/1/37).
Em outras palavras, então, ao recrutar antropólogos que se adequavam às suas
necessidades e ao disciplinar os seus esforços para suprir tais necessidades, a OIA
acabou criando uma antropologia aplicada que se situava como qualitativamente diferente
da antropologia social como um todo. Tendo em vista que seus praticantes eram
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
432
considerados técnicos e não cientistas, o trabalho antropológico dentro da OIA
obviamente não era o melhor modo de adquirir status frente ao conjunto da disciplina.
Antropólogos jovens e ambiciosos como Scudder Mekeel logo perceberam esse fato. A
resposta de Mekeel foi continuar a lutar pelo que ele concebia como “pesquisa científica
pura” dentro da OIA. Em uma carta para Duncan Strong na primavera de 1937, um ano
após a saída efetiva de Julian Steward, ele mencionou que "Eu não estou tão morto como
Stew evidentemente fez crer em sua carta”.
Eu ainda estou empenhado no combate. Em vez de combater a questão
simplesmente pelo controle da unidade de antropologia, eu estou combatendo fogo com
fogo – e propondo uma Divisão de Pesquisa e Estatística separada, e comigo na direção!
Esta é a única saída que eu vejo, e mesmo que isso não se concretize, eu terei voltado o
pensamento para outra direção…!
Eu tenho muitas coisas para conversar com você sobre esse trabalho –
particularmente com relação ao Smithsonian… No momento, a decisão de Stew de se
retirar, na verdade, embora não obviamente, parece sábia de sua parte, bem como da
parte do B.A.E…
As chances parecem melhores após a briga com Harper do que antes – mas
Woehlke está voltando para a Repartição em 20 de junho. O que isso pode querer dizer
para nós ainda vamos ver… Estou disposto a mergulhar [no trabalho de antropologia
aplicada] por mais um ano, e realmente dar uma chance para ele. Contudo, eu ainda
posso pedir demissão se as coisas piorarem (NAA, William Duncan Strong Papers, Box
9, Folder McCORD-MEK).
Até meados de 1937, entretanto, com o financiamento do Congresso ainda não
vindo para a AAU e os conflitos com os administradores da OIA aumentando, Mekeel
providenciou seu pedido de demissão. No dia primeiro de janeiro de 1938, ele se tornou
Diretor do Laboratório de Antropologia (Director of the Laboratory of Anthropology)
em Santa Fé, Novo México, e mais tarde foi dar aula na Universidade de Wisconsin em
1940, sucedendo a Ralph Linton nessa posição. Tragicamente, ele morreu 7 anos depois,
aos 45 anos de idade (MACGREGOR, 1947).
Com a partida de Mekeel, a Unidade de Antropologia Aplicada da OIA – um
órgão inicialmente não oficial – entrou em colapso. A morte da AAU foi acompanhada
de uma certa controvérsia devido a um artigo escrito por Mekeel e publicado na
American Anthropologist em 1944. Nesse artigo, Mekeel acusou que “parte da minha
razão de ter me desfeito da equipe foi o corte nos fundos” para a Organização Indígena,
que financiou o grupo entre 1934 e 1938, “mas parte deveu-se sem dúvida ao resultado
das fricções que vinham se desenvolvendo" entre os antropólogos e os administradores
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
433
indígenas. Mekeel sugeriu que o experimento fosse realizado de novo, apenas “dessa vez
deve haver um intermediário, ou intérprete, entre a equipe científica e a administrativa"
(MEKEEL, 1944: 212-213).
Collier, contudo, negou a ocorrência de atritos substanciais entre os antropólogos
e os administradores em resposta a Mekeel, publicada no mesmo número da AA: “Há
uma insinuação nos comentários [de Mekeel] de que a unidade antropológica do Serviço
Indígena não fosse valorizada o suficiente, e que ao descontinuá-la o Serviço Indígena
estivesse abandonando os métodos científicos. O contrário é verdadeiro, em ambos os
casos."
A Unidade Antropológica foi abandonada apenas porque as verbas pararam de
vir. Subseqüentemente, as verbas para a Reorganização Indígena pararam de chegar, e
essa unidade também acabou… Dr. Mekeel insinua que o trabalho antropológico tenha
acabado quando ele deixou o serviço. Na verdade, embora por meio de diversos
dispositivos, o trabalho antropológico tem sido efetuado sem interrupção, e nos últimos
anos, tanto o volume, como a eficiência administrativa – e do mesmo modo a produção
heurística – do trabalho antropológico do Serviço Indígena aumentou.
Collier então prosseguiu, sublinhando a suposta diferença entre o trabalho
antropológico aplicado e “regular” que a sua Repartição ajudou a criar: “Em vez de
depender, como em anos anteriores, de antropólogos isolados que geralmente não
praticavam antropologia aplicada, o Serviço Indígena agora emprega uma enorme gama
de técnicos (no original technics; sic, grifo nosso), e os emprega de modo integrado sob a
supervisão de uma variedade de especialistas, inclusive antropólogos” (COLLIER, 1944:
423-424).
As palavras de Collier, contudo, não contam a história toda. Uma carta do
Comissário Indígena Assistente (Assistant Indian Commissioner) Joseph McCaskill para
o Diretor de Educação Indígena (Director of Indian Education) W. Carson Ryan, de 5 de
maio de 1939 diz que “Eu tenho ficado um pouco perplexo quanto ao problema de lidar
com as atitudes [negativas] de tantos membros da nossa equipe com relação à
antropologia e aos antropólogos”. Do mesmo modo, em abril de 1938, Alan Harper, um
membro da equipe da OIA, comentou com Gordon MacGregor que "a opinião do
escritório central a respeito da Unidade Antropológica mudou para melhor desde que
você chegou". Obviamente, então, a AAU sob Mekeel não tinha conquistado uma boa
reputação no círculo de Collier. Harper então insinuou que o Serviço Indígena ficou feliz
Cidadãos e Selvagens Capítulo VII
434
de ver a AAU ruir a favor de um uso mais atomizado, interdisciplinar e controlado da
antropologia: "Por meio do manejo inepto de uma oportunidade rara, Mekeel desmereceu
a antropologia no Serviço Indígena. Trabalhando sozinho, você pode mudar essa
situação, mas na direção da organização [indígena], você inconscientemente transferiria
para o trabalho daquela unidade toda a oposição que tem despontado com relação à
outra”. Em vez da chefia da (que seria em breve extinta, de qualquer modo) Divisão da
Organização Indígena (Indian Organization Division), Harper ofereceu a MacGregor o
cargo de superintendente na reserva Hopi (NARA RG75 E191, 5/5/39;NARA, RG 114
TC-BIA Director's Files, 1937-39, 19/04/38).
Após 1938, então, a OIA contratou antropólogos por empreitada ou – como foi o
caso de Gordon MacGregor, Sophie Aberle, Louis Balsam e Ruth Underhill – como
funcionários regulares da OIA. Embora muitos antropólogos então continuassem a
trabalhar no Serviço Indígena e em torno deste, eles geralmente o faziam sob outros
nomes ou títulos, como superintendentes de reservas, assistentes de divisões
educacionais, ou como membros de equipes multi-disciplinares convocados para
pesquisar problemas particulares para a Repartição. A OIA continuou a fazer uso do seu
conhecimento antropológico, mas nunca mais (pelo menos na administração de Collier)
esta tentaria institucionalizar um órgão específico para estudar a vida contemporânea de
uma perspectiva antropológica.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
435
Capítulo 8
A organização do governo tribal entre os Oglala
Fiodaputa de agente do governo me deu ordi di compra. Num pode comprar laranja. Num pode
comprar nem maçã.
Dick Mouse, índio sioux, cerca de 1940.
1
A estrada para a dupla cidadania
O Ato de Reforms Indígena de 1934 (1934 Indian Reform Act - IRA) aproveitou a
brecha legal criada pela definição de Marshall de grupos indígenas como “nações” (não
importando seu grau de domesticidade ou dependência) e a reafirmação do Ato de
Cidadania, de 1924, de que a cidadania note-americana não era antitética ao interesse em
propriedades tribais, para inaugurar o conceito de governo tribal, que Collier
repetidamente comparou ao governo municipal ou provincial, situando-o como uma
polity subordinada à estrutura nacional e, ocasionalmente, estadual (COLLIER, 1949; 1-
20-34 “Indian Self-Government Circular”, NARA, RG75, E1011, Pasta 4894-1934-066
Pt.8). Grupos nativos que decidissem aceitar o IRA (o que não era obrigatório) poderiam
adotar constituições e regimentos internos tribais e se organizar como uma entidade
corporativa, administrar as terras da tribo em conjunto e ter acesso a um fundo de crédito
rotativo administrado pelo OIA para a aquisição de terras adicionais e/ou revitalização de
terras existentes.
Em outras palavras, então, o IRA considerava a organização do governo tribal como
a forma privilegiada para o desenvolvimento das terras e recursos indígenas. Essa medida
era aceita com entusiasmo em algumas partes do Território Indígena, enquanto que
rechaçada com veemência em outras partes. Para nossos objetivos presentes, no entanto,
é suficiente observar que, depois de um intenso lobby por parte do OIA de Collier, a
reserva Oglala de Pine Ridge votou em novembro de 1934, aceitando o Ato, por 1.169
votos a 1.095, com um total de 55 por cento dos votantes legais indo às urnas (NARA,
RG75, registro 1012, Pasta 9684-1936-066).
1
IN: BURNETTER e KOSTER, 1974: 188.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
436
Após essa votação, agentes da Divisão de Organização Indígena do Bureau,
incluindo antropólogos da Unidade de Antropologia Aplicada, foram à reserva se
encontrar com, pelo menos, dois comitês diferentes dos Oglala para elaborarem a
constituição do grupo, que foi depois encaminhada a Washington D.C., para ratificação
pelo Secretário do Interior (BIOLSI, 1998: 92). Esse processo levou aproximadamente
um ano e o documento resultante foi aceito por uma votação geral na reserva no dia 14 de
dezembro de 1935, por 1.348 a 1.041 votos. Collier descreveu, 29 anos mais tarde, esse
processo como um “esforço cooperativo, da parte dos indígenas e do Departamento [do
Interior], para elaborar um documento mutuamente satisfatório … uma constituição
adaptada a suas necessidades, de acordo com seus costumes e tradições.” (COLLIER,
1963: 177)
Thomas Biolsi chama essa exposição sobre a elaboração e a aceitação da
constituição dos Oglala e de outras constituições de tribos indígenas de o “mito de origem
de governo tribal do Departamento de Interior dos Estados Unidos”, classificando-o
como “mais do que um pouco distorcido”, dado que a maquinaria de governo tribal
baseada nas constituições foi, em sua maioria, elaborada pelo OIA e não pelos próprios
indígenas (BIOLSI, 1998: 85-86). Minha pesquisa concorda com esse posicionamento,
de uma maneira geral. Em geral, as constituições dos vários grupos Lakota seguiram um
modelo fornecido pelo Procurador Assistente do Departmento do Interior (o modelo pode
ser visto em NARA RG75, E1011, Pasta 4894-1934-066 Pt.8). Biolsi atribui esse fato a
um desejo do Serviço de promover uma aculturação direcionada dos Oglala,
supervisionando de perto sua formação de governo e o processo político daí resultante
(BIOLSI, 1985: 657). Essa opinião vem também parcialmente de encontro a minha
pesquisa de arquivos. No entanto, como o historiador Wilcomb E. Washburn observa, há
também ampla evidência que as constituições orientadas pelo OIA de outros grupos –
particularmente os Hopi – demonstram modelos bem diferentes de governabilidade e
níveis mais profundos de colaboração indígena do que os promulgados para os Lakota,
uma situação que aparentemente contradiz a tese de Biolsi de que o OIA estava tentando
forçar, de uma forma global, os governos tribais em um molde geral (WASHBURN,
1984).
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
437
Para entender essa aparente contradição, analisamos como o OIA “organizou” os
Oglala de Pine Ridge e como esse processo foi diferente daquele que parece ter ocorrido
com outros grupos indígenas. Resumindo uma história longa, parece que a notoriedade
dos Lakota tornou suas reservas um projeto de alta prioridade para a organização e eles se
tornaram uma espécie de grupo de teste para as atividades organizacionais do Serviço.
Em uma carta de 1936, um Procurador Assistente do Departamento do Interior disse ao
antropólogo designado para o projeto de reorganização dos Hopi que as constituições
padronizadas tinham, de fato, se originado durante a organização dos Lakota.
“… Seguindo a linha de mínima resistência, essa forma se espalhou por quase
toda a nação indígena. Mas essa forma não é legalmente necessária. A constituição pode
adquirir qualquer formato, embora deva descrever a organização do código de leis, o
território e a associação, o procedimento de governo e os poderes… Além disso, o
palavreado legal não é imutável. Enquanto que há, inegavelmente, algumas palavras
mágicas, elas podem ser fornecidas pela OIA, quando surge a ocasião.” (NARA, RG75,
E1012, Pasta #9603-A-1936-068, 12 de junho de 1936)
Em outras palavras, as constituições Lakota foram promulgadas e vigoraram antes
da constituição da maioria das outras tribos e foram, em verdade, usadas como modelos
para outros processos de organização tribal. Isso vai de encontro à necessidade do OIA de
“vender” a organização indígena aos vários grupos indígenas espalhados pelo país e a
posição Lakota, dentro do Território Indígena, como uma das tribos mais poderosas e de
maior prestígio. Além disso, como a citação acima indica, o uso por parte da OIA das
constituições Lakota como modelos para outros grupos parece ter sido uma questão de
conveniência, não de ideologia. Segundo um memo do OIA de 1934, intitulado
“Programa de Organização: trabalho a ser realizado antes do dia 02 de julho”, encontrado
nos registros da Divisão da Organização dos Indígenas relacionados ao Wheeler-Howard
Act (NARA, RG75, E1011, Pasta 4894-1934-066 Pt.8), o processo de organização tribal
foi idealizado da seguinte forma:
1) A organização sócio-política existente na reserva deveria ser investigada
de todas as formas possíveis, incluindo pesquisas por parte dos antropólogos da
Unidade de Antropologia Aplicada. Enquanto isso estivesse acontecendo, os
comitês indígenas nas reservas deveriam “estudar e discutir” o Wheeler-Howards
Act, as necessidades de seu governo e também as estruturas do governo local dos
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
438
brancos , em uma tentativa de “formular reivindicações imediatas para poderes
específicos do Governo”.
2) Constituições modelo e regimentos internos deveriam ser elaborados “à
luz do estudo de materiais da antropologia e da OIA, possibilidades legais,
relatórios da equipe de campo sobre a experiência com conselhos tribais
[existentes, a maioria deles informais], bem como as reivindicações indígenas para
a obtenção de poderes específicos”.
3) Essas constituições deveriam, então, ser enviadas de volta às reservas para
discussão com os representantes da equipe de campo da Organização Indígena.
Comitês constitucionais tribais deveriam ser organizados para modificar os modelos
constitucionais da OIA e essas modificações, por seu turno, deveriam ser avaliadas
por uma série de diferentes especialistas do OIA e do Ministério do Interior para
verificar sua legalidade e praticidade. As Divisões de Conservação do Solo e de
Florestas, por exemplo, deveriam emitir sua opinião em relação a como a
constituição iria provavelmente afetar os recursos das tribos. O Escritório do
Procurador deveria resolver quaisquer contradições entre o documento tribal e a
constituição mais abrangente dos Estados Unidos À medida que questões eram
levadas a esses especialistas e por eles solucionadas, eram feitas modificações ao
documento da tribo.
4) O documento modificado deveria finalmente ser enviado de volta ao
comitê constitucional da tribo para aceitação e, se aceito, o comitê deveria obter
assinaturas suficientes para solicitar oficialmente uma votação para adotar a
constituição. Seguia-se, então, um voto geral “sim/não” para decidir se se adotava a
constituição pela tribo como um todo. Se aceita, a constituição e os regimentos
internos pertinentes tornavam-se lei.
A Divisão de Organização Indígena entendia que as constituições das tribos
deveriam ser as concretizações legais das necessidades e desejos de uma série de
interesses presentes dentro do âmbito da administração indígena, dos quais somente um
grupo era formado pelos próprios indígenas. Uma preocupação fundamental era o fato de
que o plano de autogoverno de Collier, exemplificado pelas constituições do IRA e das
tribos, era, evidentemente, a “menina dos olhos” do próprio Comissário. Como
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
439
mencionamos acima, o Relatório Meriam de 1928, considerado pela maioria do
Congresso como o modelo para mudanças positivas na administração indígena, nada fala
sobre o estabelecimento formal de um governo tribal indígena. Durante todo o período
em que exerceu a função de Comissário de Assuntos Indígenas, o IRA de Collier seria
constantemente questionado sobre esse ponto específico pelo Congresso e, além disso,
como Freeman afirma (1955: 35-36), a eficiência do Comissário estava em grande parte
ligada ao mandato de Franklin Delano Roosevelt como presidente. Em 1936, vale
observar, havia muito especulação de que FDR não seria reeleito. Além disso, por sanção
do Congresso, a vigência do próprio IRA estava programada para terminar em 1936. As
tribos que quisessem se organizar sob o Ato teriam de votar favoravelmente antes do fim
daquele ano, ou seriam impedidos de fazê-lo.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
440
Figura 8.1: A constituição modelo da OIA Tribal Organization Division, escrita por
Felix Cohen e que daria a estrutura básica do governo tribal oglala fundado em 1935.
(NARA, RG75, E1011, Folder 4894-1934-066, pt.8; DEMALLIE, 1972: 260)
O OIA sob Collier estava, assim, sob intensa pressão para organizar o maior
número possível de tribos no prazo mais curto possível. Uma vez organizadas, as tribos
sempre podiam votar para modificar suas constituições (embora se soubesse que isso
poderia ser difícil), mas após 1936 não haveria nenhuma garantia de que a possibilidade
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
441
de autogoverno, dada pelo IRA, estaria ainda disponível. Dado o prestígio das tribos
Lakota dentro do campo de assuntos indígenas, tais tribos eram, sem dúvida, um alvo
prioritário para organização imediata. Não é de admirar, então, que o pessoal da
Organização Indígena tenha ido a Pine Ridge, munidos de consituições modelos, abertos
a qualquer coisa que abreviasse o tempo necessário para os Oglala serem organizados
como um modelo de governo tribal, para que outros grupos indígenas pudessem segui-
los.
Os antropólogos desempenharam um papel importante no processo de organização.
Originalmente, deveriam aconselhar o OIA sobre a organização moderna de grupos
sócio-políticos, para dar ao Serviço uma “base” etnológica a partir da qual pudessem
elaborar as constituições das tribos. O que acabou acontecendo é que os funcionários da
Unidade de Antropologia Aplicada também tiveram que realizar trabalho de campo, na
fase 3 do processo delineado acima, para aconselhar ao OIA sobre quais aspectos da
constituição promulgada violavam as formas “naturais” da organização social do grupo.
Em outras palavras, uma das tarefas dos homens e mulheres da Unidade de Antropologia
Aplicada era agir como uma espécie de advogados culturais,defendendo, no campo
político do OIA, os interesses dos indígenas, dada sua existência político-social
supostamente “orgânica”.
Essa situação, também, evoluiu para os primeiros estágios da organização dos
Lakota e dos Oglala, em especial. H. Scudder Mekeel tinha defendido sua tese de
doutorado sob a orientação do Dr. Clark Wissler, na Universidade de Colombia, sobre os
Lakota Oglala da Reserva de Pine Ridge. Devemos nos lembrar que Mekeel foi um dos
primeiros antropólogos empregados pelo OIA, bem como um amigo pessoal do diretor da
Unidade de Antropologia Aplicada, Dr. W. Duncan Strong, ele próprio um especialista
nos Lakota. Sua rápida ascenção à prominência como o principal pesquisador de campo
da Unidade (e eventual líder, depois que Steward afastou o BAE do trabalho do OIA)
atesta sua presumida competência, no julgamento do OIA – ou ao menos de Collier. Com
Scud designado como o antropólogo encarregado dos Oglala e dos outros grupos Lakota,
a suposição era que esses processos de organização dessas tribos teriam um alto grau de
ajuda especializada.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
442
Isso, no entanto, não veio a acontecer. Como Biolsi muito bem documenta, a
organização dos Oglala teve muitas dificuldades Três anos depois da organização feita
pela tribo sob a tutela de Scud, o superintendente da reserva designado para Pine Ridge
avisou que, se fosse posta à votação (como um número significativo de Oglala insistiam
em fazer), a constituição recém elaborada seria certamente rejeitada:
Tem sido meu esforço sincero aperfeiçoar essa constituição, ao invés de aboli-la.
Não vejo como, no entanto, desconsiderar a petição [para revocação] que está diante de
mim, no Serviço. Parece-me que agir assim seria uma attitude destrutiva. Um voto sim
ou não provavelmente irá resultar na revogação da constituição. É minha crença sincera,
no entanto, que uma nova constituição poderia ser logo elaborada, uma que fosse mais
apropriada ao temperamento e disposição dos Sioux Oglala (NARA RG75, E1012, Pasta
9684-1936c-057 pt.2, 14 de abril de 1939).
Em outras palavras, portanto, o superintendente da reserva de Pine Ridge estava
convencido que os Oglala não queriam a nova constituição e o regimento interno (apesar
de terem votado anteriormente a favor). Além disso, as próprias estruturas de governo
estavam mal planejadas e não levavam em consideração o “temperamento e disposição”
dos indígenas, justamente aqueles aspectos que os antropólogos do OIA tinham sido
contratados para priorizar. Como um plano de organização tribal, aparentemente
meticuloso, apoiado pelos melhores especialistas que o OIA pôde arrebanhar, resultou em
uma constituição que, 40 meses mais tarde, seria rejeitada por uma parte substancial da
reserva, que, em revolta, exigia sua revogação? Para responder a essa pergunta, temos de
nos reportar à história da organização sócio-política dos Lakota e investigar como isso
era entendido pelos antropólogos e administradores que estavam a cargo da organização
da tribo.
Sócio-política Lakota
O grupo de povos Lakota/Dakotas que finalmente resultou na Tribo Oglala de Pine
Ridge passou por mudanças culturais, econômicas e políticas significativas nos três
últimos séculos, dividindo-se e se recombinando à medida que seguiam para o oeste,
partindo do Vale do Mississipi, algo que freqüentemente confunde os observadores que
procuram, em um presente etnográfico construído artificialmente , formas subjacentes de
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
443
organização social dos povos igualmente construídas de forma artificial. Por causa disso,
a evolução diacrônica foi muitas vezes identificada na etnografia como uma divisão
hierárquica sincrônica, freqüentemente fazendo parecer que existem ligações políticas
concretas entre grupos que, no máximo, mantinham relações cordiais baseadas em
ligações de parentesco relativamente distantes e em afinidades etnolingüísticas.
Figure 8.2: Oyate lakota/dakota por volta de 1860, demonstrando as três grandes divisões etnopolíticas
e vários sub-grupos. (DEMALLIE, 2001a: 719)
Freqüentemente chamados de Oceti Sakowin, ou “as sete fogueiras de conselho”, o
típico mito antropológico de origem dos Sioux os descreve como organizados em três
grandes subdivisões no século XVIII: os Lakota, os Nakotas e os Dakotas ou,
alternativamente, os Tetons, os Yanktons e os Santees. Essas “tribos” são, por sua vez,
subdivididas em “bandas”. Os Oglala são tradicionalmente classificados como uma das
sete “bandas” da divisão Teton/Lakota (LAZARUS, 1991:5-6 WHELAN, 1993: 247-248;
GROBSMITH, 1981:8-12; HAGEN, 1960: Cap.3; MEKEEL, 1943:141-142).
No entanto, uma análise etnohistórica recente conduzida por Raymond DeMallie
(em grande parte, com base nas pesquisas realizadas, no princípio do século XX, pelo
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
444
etnólogo J.R.Walker e pela antropóloga Sioux Ella C. Deloria) levou a uma reavaliação
da estrutura política histórica desses povos, identificando a unidade etnopolítica dos
Sioux descrita acima como diluída no tempo, seguindo um padrão geral de organização,
fragmentação e reforma social mais consistente com temas recorrentes da sociologia
Sioux. Nessa visão das coisas , os “sete fogueiras de conselho” representam a estrutura
original do grupo, ao longo dos afluentes na cabeceira do Mississipi, durante o final do
século XVII, como um grupo não coeso de aldeias semelhantes lingüística e
culturalmente, inter-relacionadas pelo casamento e aliadas por oposição aos Chippewa da
Bacia dos Grandes Lagos. “Lakota” ou “Dakota” significa “amigos ou aliados” nos dois
principais dialetos desse grupo e foram termos historicamente usados pelos membros do
grupo para se referirem entre si.
2
Figure 8.3: Cessões de terra pelos teton dakota, 1851-1910. A reserva Pine Ridge fica na área em cinza
no sudoeste da Dakota do Sul. (PRUCHA, 1991:35)
À época do contato europeu no final do século XVII, a pressão dos Chippewa, que
eram mais bem armados, bem como a vinda dos grandes rebanhos de búfalos para o
oeste, começaram a atrair os “Sioux do Oeste”, ou os Lakota, para as as Grandes
2
Concordando com Ella Deloria, DeMallie discorda que os “Nakotas” fossem uma divisão legítima desse
grupo, referindo-se, ao invés disso, aos Assiboines, relacionados a estes, “que eram parentes próximos dos
Sioux mas politicamente e etnicamente separados deles, desde antes do começo do século XVIII, se não
pre-historicamente” (DEMALLIE, 2001a: 718)
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
445
Planícies. Os “Sioux do Leste”, os Dakota (mais tarde dividindo-se nos grupos Yankton
e Santee), seguiram seus passos, a uma certa distância. A ritmo da mudança para as
planícies aumentou com a aquisição de cavalos e armas pelos Sioux dos europeus,
permitindo uma exploração mais intensa dos búfalos e permitindo o domínio militar do
grupo com relação aos povos das altas planícies, em sua maioria isolados, que viviam do
cultivo e da caça. Como afirma DeMallie, “O uso de cavalos pelos Sioux durante este
período foi uma mudança crucial que se encaixou na velha economia nômade de caça ao
búfalo e pode ser caracterizada como um intensificador de padrões culturais anteriores.
Durante essa época, os Sioux desenvolveram traços culturais que se tornaram centrais
para a cultura das Planícies, incorporando, sem dúvida, velhos elementos aos novos,
emprestados de outras tribos.” (DEMALLIE, 2001a: 727)
O que uma abordagem etnohistórica da sociologia Sioux destaca, sobretudo, são as
mudanças na cultura material Lakota, que mudou de uma base de caça nas matas, caça
com armadilhas e cultivo, para a economia do cavalo e do búfalo, tão notoriamente (e
mal) retratada por Hollywood, como sendo “típica” dos grupos de indígenas das Grandes
Planícies. Enquanto essa transformação claramente envolvia mudanças na cultura
imaterial – geralmente reconhecida como sendo uma maior ênfase no papel de guerreiro
homem e uma crescente independência para os subgrupos – o bloco de construção básico
da sociedade Lakota, o grupo autônomo conhecido como tiyospaye
3
, permanecia
relativamente estável. “Era a estrutura de bandas que permitia aos Sioux manterem a
estabilidade em suas vidas diárias, enquanto, ao mesmo tempo, se adaptavam às rápidas
mudanças trazidas pela migração para o oeste,” afirma DeMallie.
A estrutura da banda, compartilhada por todas as tribos Sioux, era baseada no
lodge group” (literalmente “grupo de residências”) do tiyospaye, um termo que
designava uma família extensa ou grupo de famílias extensas. O lodge group era uma
unidade mínima de estrutura social que permanecia junta o ano inteiro; algumas vezes,
dois ou três lodge groups se associavam durante o verão mas se separavam durante o
inverno, para encontrar abrigo e comida em diferentes partes da riacho. Esses lodge
groups, que podem ser designados como bandas, provavelmente tinham em media 10-20
famílias e por volta de 100 pessoas. As bandas eram unidades de parentesco, cujos
membros eram comumente, mas nem sempre, relacionados uns aos outros por uma rede
de indivíduos…” (DEMALLIE, 2001a: 734-735)
3
Releva notar que não tenho acesso ao conjunto de caracteres apropriados para o Lakota. A grafia das
palavras naquela lingua é, assim, aproximada.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
446
Os tiyospaye se uniam para o comércio, ou para a caça no verão, baseados nas
afinidades pessoais de seus membros e líderes e aqueles que normalmente acampavam
juntos durante os meses quentes ficaram conhecidos como “tribos”. É importante notar,
no entanto, que não existe palavra em Lakota que distingue “tribo” de qualquer outro
grupo social. Oyate, geralmente traduzido por “povos”, o termo mais comumente usado
pelos próprios Sioux para expressar a divisão política da tribo, pode potencialmente se
referir a qualquer agrupamento sócio-político, do tiyospaye para cima, percorrendo a
miríade de divisões dos próprios Sioux, considerados como um todo (embora isso
também seja conhecido como Lakota/Dakota. Ibid. 735; DEMALLIE, 1970: 244). Dentro
dessa forma de ver as coisas, a estrutura política não era claramente diferenciada da
estrutura de parentesco. A identidade primária de grupo de qualquer indivíduo Lakota
era seu tiyospaye, mas associação a uma banda não se dava tão-somente por nascimento
mas por escolha, com os indivíduos freqüentemente se casando ou sendo adotados por
uma banda (Ibid. 243-245).
Assim, parece que havia três níveis políticos funcionando entre os Lakota durante o
século XIX:
1) Os Lakota/Dakotas como um todo, definidos de uma maneira geral
como “aliados”, lingüisticamente unificados, com alguma incidência de casamentos
entre os grupos mas pouca interação política, além das raras e enormes feiras de
comércio, nas quais centenas de bandas individuais – mas nunca todas as bandas do
universo Sioux – se reuniam (Um bom exemplo disso é o encontro de 1851, em
Forte Laramie, que reuniu os Tetons Lakota e os Yanktons Dakotas, juntamente
com diversos outros povos, para discutir a paz nas Grandes Planícies com
representantes do governo dos Estados Unidos. DEMALLIE, 2001b: 794-795).
2) A unidade social “atômica” tiyospaye, que permanecia junta o ano todo.
3) Grupos intermediários de vários tiyospaye, que se reuniam para a
guerra, para a caça ou para o comércio, durante os meses de verão. Na medida em
que esses grupos se uniam consistentemente, tornavam-se conhecidos como
“tribos” ou “povos”: oyate. É muito provável que todos os agrupamentos
Lakota/Dakotas menores que o grupo de “aliados” e maiores que os tiyospaye
possam ser classificados originalmente nessa categoria.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
447
É importante ter em mente que os tiyospaye eram, portanto, os blocos básicos de
construção da política dos Lakota e mesmo eles, embora geralmente estáveis, eram bem
flexíveis em sua constituição, especialmente ao longo de várias gerações. Como George
Hyde observa, um acampamento que era pouco importante poderia, com um líder forte
podia, de repente se destacar na política Lakota, ganhar força das outras bandas por
adoções e casamentos e, por algum tempo, liderar uma oyate de tiyospaye aliados. Da
mesma forma, uma banda predominante podia mergulhar na obscuridade com a morte ou
a queda de um líder ou por perda de prestígio devido ao comportamento desastroso dos
seus membros. De qualquer jeito, a organização política do grupo estava constantemente
se alterando, à medida que alianças tiyospaye eram formadas e desfeitas e à medida que
as bandas individuais se dividiam ou se juntavam. Nesse contexto, os Oglala eram
originalmente um oyate do Teton Dakota, ele próprio uma divisão oyate que foi muito
provavelmente o resultado de uma divisão anterior das aldeias “aliadas”, perto da
nascente do Mississipi (HYDE, 1937: 315).
Uma banda se formava quando seu acampamento podia abrigar homens suficientes
para formar um conselho de acampamento e preencher as funções de wakiconza
(administrador do acampamento) e akicita (encarregado do cumprimento das decisões do
conselho) O conselho em si era composto de itancan (os “pais” das bandas), o chefe e os
guerreiros ativos. O conselho reconhecia um itancan como seu “chefe principal”. O
successor desse homem era provavelmente seu filho, embora fosse necessária a
aprovação do conselho para o repasse de poder de uma geração para outra. Os chefes
podiam também ser destituídos. O conselho também tinha a atribuição de indicar os
wakiconza, que eram responsáveis pela administração do dia-a-dia dos afazeres da aldeia
e, sobretudo, por manter a ordem na marcha, quando o acampamento mudava de local.
Os wakiconza, por seu turno, indicavam um homem, ou grupo de homens (algumas
vezes, uma sociedade formada inteiramente por guerreiros) como aikicita, um posto que
muitos pesquisadores traduziriam como a polícia do acampamento, encarregados de
exigir o cumprimento das decisões do conselho. Como Catherine Price observa, isso
significa que a autoridade entre as pessoas nunca era consolidada em um determinado
posto , mas parecia uma “roda em movimento”, que ela exemplifica com uma descrição
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
448
da forma pela qual a autoridade passava de mão em mão, durante uma mudança de
acampamento:
Quando chegava a hora de mudar a aldeia de lugar, os wakiconza mandavam as
pessoas desarmarem suas tendas e partirem para um novo lugar, escolhido pelos
wakiconza. Quando estavam em trânsito, a autoridade se transferia para os akicita, que
faziam com que os habitantes das aldeias indígenas permanecessem juntos durante a
marcha e construíssem o acampamento no destino indicado. Se a fileira de indígenas
em trânsito se visse repentinamente ameaçada por inimigos, como os Crow ou os
Pawnee, os wakiconza e os akicita imediatamente passavam o poder para os líderes da
Guerra, ou blotahunka, e os homens selecionados para a batalha. Quando o perigo
passava, no entanto, o poder de decisão voltava aos wakiconza, que, por sua vez,
[passava-o adiante aos akicitas]. Enquanto a fileira de indígenas em trânsito seguia seu
curso, a autoridade Lakota para a tomada de decisões , girava imperceptivelmente,
como uma roda simbólica, passando pelos wakiconzas, akicitas, blotahunkas e seus
guerreiros, a caminho de volta para os wakiconzas.” (PRICE, 1994: 447-453).
Vale a pena observar que H. Scudder Mekeel constatou que essa estrutura de
autoridade permanecia quase intacta durante as viagens Oglala para os rodeios e outros
acontecimentos fora da reserva dos Dakotas durante a primeira parte dos anos 30 do
século XX, ao mesmo tempo em que ocorriam outras formas sociais Lakota, como os
tiyospaye.
A organização política tribal – ou oyate – era a mesma dos tiyospaye, com um
conselho constituído pelos homens de mais prestígio de cada banda, presidido por 4
chefes escolhidos, os wicasa yatapika, que eram considerados “os parentes mais idosos e
supremos” de toda a tribo. Embora não tivessem nenhuma autoridade formal, a
popularidade e o prestígio desses indivíduos nas sociedades dos homens e de guerra os
tornava uma voz ponderosa nos assuntos indígenas e eles geralmente estavam em
primeiro plano na vida política do grupo, quer na guerra, quer na paz. Como DeMallie
observa, suas vidas eram consideradas modelares pela sociedade Lakota em geral e,
assim, eles eram obrigados a manter padrões de conduta tão elevados que eram quase
impossíveis, estando sujeitos a serem destituídos de suas honras, ao menor deslize.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
449
Figura 8.4: O fluxo circular de autoridade entre os lakota durante o deslocamento de um acampamento
de caça, ca. 1870. (PRICE, 1994:454)
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
450
Figura 8.5: Modelo da organização política tradicional dos lakota. (DEMALLIE,1978:302)
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
451
DeMallie representou o fluxo de autoridade e poder na organização política
tradicional dos Lakota de acordo com o modelo representado pela Figura 8.4. É
importante ter em mente que, dentro desta estrutura, o conselho era o lugar chave de
tomada de decisões e que todas as decisões tomadas por este conselho deveriam ser
consensuais. Obviamente, como Price observa, não era sempre possível atingir um
consenso e, nesses casos, o conselho geralmente adiava as questões, até que fossem
resolvidas. Se essa situação continuava – e causava grande discordância – a banda se
dividia, com os membros insatisfeitos se juntando a um outro tiyospaye, ou formando um
novo tiyospaye independente, ao invés de se submeterem ao desejo do grupo (Ibid, idem:
PRICE, 1994: 452-452).
Qualquer um podia expressar sua opinião em um conselho, embora a associação ao
conselho fosse somente por convite. O conselho se constituía em um forum permanente
para a solução dos problemas a banda, diretamente responsável perante a pressão dos
membros do tiyospaye. Procurava-se a unidade em todas as decisões e esperava-se dos
conselheiros que eles relatassem, com precisão, as decisões do grupo menor aos grupos
políticos mais abrangentes. Neste sentido, eles não eram “delegados” ou mesmo
“representantes”, no uso normal democrático dessas palavras, mas antes “portadores de
palavras” que falavam na primeira pessoa, quando representando seu grupo, para mostrar
a unidade total do grupo face a uma determinada questão. Note-se que tal fala, traduzida
literalmente, poderia ser facilmente interpretada pelos observadores anglo-americanos
como “prova” de uma organização política essencialmente “déspota”, quando, de fato,
isso não poderia estar mais distante da verdade! (DEMALLIE, 1993: 531)
Os grupos que vieram a se tornar os Oglala da Reserva Pine Ridge eram
originalmente uma divisão tribal oyate dos Tetons Lakota, composta de vários tiyospaye.
No começo da segunda metade do século XIX, quando o poder militar e político dos
Estados Unidos finalmente começou a invadir o território Lakota, a tribo deu sinais que
iria se dividir em dois oyate separados, os povos Fumaça) e Urso, talvez por causa de
uma briga em 1841, em que um chefe popular, Bull Bear, tinha sido assassinado pelo
jovem guerreiro em ascensão, Red Cloud (Nuvem Vermelha), que mais tarde se tornou
um famoso wicasa yatapika da tribo. (HYDE, 1937: 312; LAZARUS, 1991: 13). Durante
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
452
as guerras dos anos 60 e 70 do século XIX, essa divisão parece ter sido expressa, em
parte, pela formação dos dois grupos, um dos quais seguiu Red Cloud para o território do
Rio Powder, em Montana, conhecidos pelos homens brancos como “hostis”, e um
segundo grupo que se contentou em viver da generosidade dos fortes gerenciados pelo
governo americano, às margens do Rio Missouri. Esse último grupo foi chamado de
“pacíficos” pelos homens brancos mas também se tornaram conhecidos como
“indolentes” (ou ”vagabundos”) entre os seguidores de Red Cloud. Assim, muito antes do
confinamento na Reserva de Pine Ridge, os Oglaga Lakota estavam no meio do processo
de separação em, no mínimo, dois novos oyate.
A organização Oglala na era da reserva
A derrota final nas guerras contra os Estados Unidos teve como resultado que
ambos os grupos dos Oglala – e algumas partes de outros oyate – ficaram restritos à
mesma seção da da Grande Reserva Sioux (e mais tarde à Reserva Pine Ridge, no canto
ocidental inferior da Dakota do Sul, já que o território havia sido retalhado e fragmentado
por outros tratados de cessão de terras). No começo da vida em reserva e até os primeiros
anos do século XX, o conselho tribal parecia continuar ativo, embora sob o olhar
vigilante da Repartição dos Assuntos Indígenas, apoiado pelos militares dos Estados
Unidos. Um tema recorrente nas reclamações do agente da OIA para o escritório de
Washington, durante sua luta de meio século para obrigar os Oglala a se integrarem, foi o
suposto domínio do conselho tribal pelos “chefes velhos, tradicionais, incultos,
conservadores ou não progressistas”. Em 1885 o Agente de Reserva da OIA, Valentine
McGillicuddy, baniu o conselho tribal Oglala e fundou uma nova organização para
reduzir a influência dos chefes e para trazer os líderes mais jovens, supostamente mais
progressistas, para uma posição de destaque. Este conselho foi, por sua vez, dissolvido
pelo Agente que se seguiu a McGillicuddy, um homem que também reclamava da
influência perniciosa dos “chefes conservadores”. Um novo Conselho Oglala,
organizado em 1891, não foi melhor, sob o ponto de visto da OIA, continuando a
representar os “índios mais velhos, não progressistas”. Nos anos 80 e 90 do século XIX,
os Oglala foram forçados a dividir seus acampamentos e a se estabelecerem ao longo dos
riachos da reserva, para começarem a se dedicar à agricultura (na realidade, uma
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
453
empreitada sem muitas chances de dar certo, dado o meio ambiente da reserva
extremamente hostil a qualquer outra coisa que não fosse a criação de gado). Isso,
somado às campanhas da agência para reduzir a influência dos “chefes tradicionais” teve
o efeito de multiplicar – mas não de eliminar – os tiyospaye Ogalala, cuja quantidade
aumentou de 11 para cerca de 30 durante o período de McGillicuddy como agente e para
mais de 40 na época do IRA. (BIOLSI, 1998:52-53; DEMALLIE, 1978: 256-257;
McNickle, 1971)
Em 1918, o conselho tribal foi uma vez mais dissolvido pela OIA por causa de suas
attitudes “não-progressistas”, após uma briga com o superintendente da reserva.
4
A
organização tribal passou a uma nova associação, conhecida como o Black Hills Treaty
and Claims Council, (Conselho das Colinas Negras para Tratados e Reivindicações), que
foi criado para dar prosseguimento legal às pretensões dos Lakota de ocupar Black Hills,
mas que acabou sendo utilizado pelo superintendente de Pine Ridge, tal como os
conselhos anteriores tinham sido usados, como um interlocutor entre o Bureau e os
residentes da reserva, antes que tal conselho fosse também extinto. Segundo Biolsi, no
entanto, um Conselho Oglala informal continuou a se reunir por toda a década de 20 do
século XX, sendo, como era de se esperar, criticado pelos funcionários da OIA, por suas
attitudes tradicionais. Em 1926, o superintendente da reserva tentou restabelecer um
Conselho Tribal Oglala formal – e, presumia-se, mais progressista, mas viu seu plano
fracassar devido a um maciço desinteresse dos Oglala pelo processo eleitoral. (BIOLSI,
1998:55-56; DEMALLIE, 1978: 258-259)
É bem fácil sugerir uma hipótese sobre o que estava ocorrendo, mesmo que os
registros etnográficos sobre a organização política Lakota contemporânea para esse
período seja escassa. A OIA estava decidido a acabar com os itancan, vendo neles o
poder supostamente despótico dos chefes “selvagens”. Eles tentaram instalar um modelo
democrático de organização tribal e tiveram, até um certo ponto, sucesso. O slogan de
organização tribal de McGillicuddy de “todo homem um chefe” certamente encontrou
ressonância na aceitação dos Lakota em relação ao conceito de voto, durante as
negociações de 1889 para reduzir a quantidade das terras em poder dos índios. Biolsi tem
4
“Agentes”, os homens do BIA encarregados da supervisão da reserva, foram renomeados
“Superintendentes”, nos primeiros anos do século XX.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
454
a hipótese de que as noções tradicionais dos Lakota da independência do indivíduo
tinham eco na insistência do governo dos Estados Unidos de “um homem, um voto”, para
estabelecer o voto como um meio aceitável de tomar decisões. Mesmo assim, como ele
observa, a aceitação do sufrágio estava longe de ser a completa integração ao modelo
democrático americano (BIOLSI, 1998: 41) . Em primeiro lugar, incapazes de forçar os
Estados Unidos a aceitarem o processo decisório consensual tradicional, os Lakota se
conformaram com a segunda melhor opção nas circunstâncias, insistindo em um voto
majoritário de três quartos para aprovarem qualquer negócio associado aos interesses da
tribo, declarando tal processo estabelecido no tratado de 1868 com o governo federal.
Além disso, parece que as noções de representatividade no conselho tribal continuaram a
seguir os modelos tradicionais Lakota.
Esses fatos talvez dêem conta do processo contínuo de criação e extinção dos
Conselhos Tribais pela OIA durante o período pré-IRA. A idéia de um “Conselho Tribal”
possuía atrativos óbvios para os Agentes e Superintendentes, que viam como uma
obrigação instruir os Oglala quanto aos processos de decisão democráticos preparatórios
para a obtenção de cidadania americana, da mesma forma que os Conselhos eram bem
aceitos pelos Oglala como uma forma tradicional de tomada de decisão.Como Biolsi
observa, no entanto, “modelos de democracia parlamentar e regras que exigem maioria de
três quartos dos votos não eram facilmente reconciliáveis”. A OIA preferia ter pequenos
conselhos tribais onde “delegados” devidamente eleitos se reuniam para decidir sobre os
negócios da tribo.Esses cavalheiros, idealmente, deveriam ser eleitos por voto majoritário
por um dado prazo, medido em anos, através de eleições que envolviam toda a tribo, por
voto secreto. Os Oglala queriam ter conselhos que fosse tão inclusivos quanto possível,
onde todos que tivessem uma opinião sobre algum tópico pudessem, ao menos, ser
ouvidos, e onde “portadores de palavras” fossem imediatamente considerados
responsáveis por seus eleitores – o que, efetivamente, significava que um “impeachment”
instantâneo teria de ser possível, se necessário.
Dada essa situação, não é de se admirar que os agentes e superintendentes da OIA
repetidamente organizavam conselhos de “progressistas” que viriam a se transformar
magicamente em centros de resistência “tradicional”. Reproduzindo códigos tradicionais
Lakota de como os conselhos podiam representar, de forma legítima, o desejo das
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
455
pessoas, os conselhos tribais da OIA inevitavelmente se tornaram rapidamente
impraticáveis como ferramentas para um “progresso” que era inevitavelmente medido
pelo grau de assimilação dos Lakota às formas de ser anglo-americanas.
Parece que os Lakota só queriam aceitar representantes eleitos para períodos mais
longos se fosse seguido o padrão estabelecido para os velhos wicasa yatapika e, não
tendo meios de formalmente declarar que tais representantes seguiam as velhas tradições,
os Lakota forçavam tais figuras da vida política das tribos a, no mínimo, seguir os
padrões mais rígidos possíveis de comportamento moral. É significativo que, quando
perguntado por John Collier em uma reunião dos Conselho de Todas as Planícies em
Rapid City, em março de 1934, quanto a seus desejos de formar um autogoverno de
acordo com o modelo democrático, um dos representantes da tribo dos Lakota respondeu
que “Em todo o momento de crise da história sempre surgiu o homem da hora e agora,
durante os últimos três ou quatro meses, nós estamos tentando achar um homem que
aparecerá como o homem da hora e não conseguimos achá-lo.” (RG75,1011,4894-1934-
066-Parte 2aa) Merece também ser mencionado o fato de que nos 70 anos que se
seguiram ao estabelecimento da constituição do IRA, somente dois homens foram
reeleitos para o cargo de presidente da tribo, ambos após denúncias generalizadas de
fraude eleitoral e intimidação dos votantes.
O último conselho tribal Oglala antes do período do IRA – estabelecido em 1928,
temporariamente substituído por um conselho de negócios mais ao agrado da OIA em
1931, e reestabelecido por aclamação popular em 1933 – continha alguns sinais positivos
importantes para a compreensão que os Lakota tinham da democracia tribal. Em
primeiro lugar, embora a votação fosse feita pelos sete distritos agrícolas (e não pelos
tiyospaye), com 6 dos 7 distritos elegendo 5 conselheiros e o distrito mais numeroso
elegendo 10, o voto era aberto, ao invés de por votação secreta, forçando os eleitores a se
posicionarem publicamente e empenharem seu prestígio em apoio a seu candidato. Mais
importante do que isso, as eleições deveriam acontecer imediatamente antes de CADA
reunião quadrimestral do Conselho, permitindo que os distritos que não se sentissem
satisfeitos com sua representatividade fizessem mudanças imediatas. Os 6 funcionários
executivos do conselho eram eleitos por por dois períodos bianuais mas, como no sistema
tradicional Lakota, os próprios membros do conselho os elegiam. Além disso, é
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
456
interessante notar que os cargos administrativos principais – Presidente, Vice-Presidente,
Tesoureiro e Secretário – eram quatro, o mesmo número que o dos administradores do
acampamento no velho sistema. Por fim, diferentemente de uma estrutura representativa
anglo-americana típica, o conselho tribal Oglala tinha dois funcionários executivos,
aparentemente designados para manter a ordem nas reuniões –um oficial de justiça e um
“crítico” – imitando o velho papel do akicita como um grupo de indivíduos designados
para manter a ordem, tanto dentro do conselho quanto no acampamento. Da mesma
forma que no velho sistema político Lakota, além disso, essa estrutura se repetia a nível
local em cada distrito agrícola. Embora os tiyospaye não selecionassem diretamente os
funcionários da tribo sob esse sistema, tem-se de lembrar que eles também não o faziam
na política tradicional Lakota. Ao invés disso, cada banda enviava um grupo selecionado
de seus membros de maior prestígio para o conselho geral, durante os encontros das
tribos. Da mesma forma, o conselho da tribo Oglala de 1928/1933 orientou os tiyospaye
baseados no distrito a selecionar seus membros de maior prestígio para participarem dos
encontros do conselho da tribo
5
(RG75, E191, Pasta dos South Dakota).
De uma maneira geral, então, o Conselho Tribal Oglala de 1928/1033, enquanto
contou com elementos da tradição democrática americana (eleições, executivos tribais
exercendo cargos por períodos pré-estabelecidos, voto por distrito), também incorporou
elementos crucias da tradição política Lakota (responsabilidade imediata dos delegados
em relação a seus constituintes, eleição indireta de funcionários da tribo e votos abertos,
ao invés de votação secreta). É interessante notar que, apesar da utilização de
especialistas antropólogos cuja função era descrever as estruturas políticas Oglala
vigentes, bem como repassar informações claras sobre o governo tribal vigente,
fornecidas pelo superintendente da reserva, a divisão de Organização Indígena da OIA
escreveu uma nova constituição que eliminava praticamente todos os elementos políticos
tradicionais dos Lakota que tinham sido contemplados na constituição anterior.
5
As funções de polícia na reserva estavam, é lógico, além da competência do Conselho nesta ocasião,
sendo diretamente controladas pelo Superintendente.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
457
A Constitução do IRA de Pine Ridge
O encarregado de trabalho antropológico designado para a reserva de Pine Ridge,
H. Scudder Mekeel, estava bem consciente do papel que os tiyospaye haviam
tradicionalmente exercido na sócio-política Lakota. De fato, como mencionado acima,
foi ele quem havia descoberto que os tiyospaye e os papéis políticos tradicionais ainda
existiam na reserva no começo dos anos 30 do século XX. Para todos os efeitos, o plano
original de Mekeel era de ter um conselho no qual os representantes fossem escolhidos
pelos próprios tiyospaye e, com a ajuda de Benjamin Reifel, um empregado Sioux da
OIA designado como agente de campo para a divisão de Organização Indígena, ele
imediatamente começou a enumerar as bandas e a identificar suas fronteiras em Pine
Ridge.
Um dos principais problemas de Mekeel era a falta de tempo. Sendo um dos
poucos antropólogos especialmente treinados para entender a cultura Lakota, ele ficava
de plantão, durante o verão e o outono, para atender a reservas em toda a planície do
norte dos EUA. Pouquíssimos registros restaram do tempo que passou em Pine Ridge
mas parece que pode ser medido em dias. Podemos supor que, com tantos grupos para
organizar ao mesmo tempo, tão pouco tempo para fazer esse trabalho e tanta experiência
de campo já acumulada em Pine Ridge durante seus estudos de pós-graduação, que
Mekeel se sentisse justificado em deixar que Reifel conduzisse a maior parte da pesquisa
sobre a reserva.
O mapeamento e enumeração originais dos tiyospaye em Pine Ridge levaram
apenas três dias e, logo após, Mekeel partiu para a Reserva de Cheyenne Rive e depois
para Washington D.C. Em alguma época, em agosto ou setembro, Reifel enviou uma
carta a Mekeel, descrevendo o que tinha sido feito em Pine Ridge durante sua ausência.
Apresentando uma lista bem rudimentar dos tiyospaye, organizados por distritos
agrícolas, Reifel menciona que as coisas estavam “confusas depois de 3 dias de trabalho
intenso mas a lista vai dar uma idéia geral das coisas. Ele disse que planejava mapear
tudo com maior clareza depois de se encontrar com líderes distritais em um futuro
próximo. Reifel então encerra sua carta, pedindo a Mekeel que “ore um pouco por nós
aqui, ao menos até que obtenhamos, das comunidades, 5 nomes para representar cada
distrito.” (NARA, RG75, E1012, Pasta 9684-1936-066).
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
458
Pelo conteúdo desta carta, parece que Mekeel e Reifel já estavam tentando adaptar
o número de tiyospaye às exigências da OIA, ao invés de elaborarem uma constituição
que incorporasse exatamente as bandas existentes à estrutura de representação do
Conselho. . Essa impressão é reforçada quando observamos os registros do trabalho de
Mekeel em Cheyenne River, uma outra reserva Lakota.
Em uma carta de 15 de agosto de 1935 para W. Duncan Strong, Mekeel revelou que
sua principal preocupação era conseguir mapear as comunidades da reserva “já que o
tempo passou a ser agora um elemento importante”. Ele menciona que seu companheiro
de trabalho da Organização Indígena em Cheyenne River “está também completamente
convencido da importância da comunidade natural [isto é, tiyospaye] para os Sioux e vê
que possibilidades podem ser exploradas com sucesso, se elas forem desenvolvidas de
forma apropriada. No entanto, Mekeel diz que o superintendente da reserva preferia votar
em representantes por distritos, a fim de manter os números de representantes reduzidos
no conselho tribal. O antropólogo aceita isso como uma possibilidade desde que os
indígenas não reclamem, achando que a constituição pode ser modificada em data
posterior, se necessário, para incluir a representação por tiyospaye.
Junto com a carta de Mekeel – e presume-se que ele não tenha visto isso – está uma
comunicação do superintendente da reserva junto ao comissário assistente da OIA, com
comentários à carta de Mekeel. Essa carta mostra bem como o trabalho do antropólogo
era visto por ao menos alguns dos administradores da OIA:
Nossos amigos fundamentalistas, Mekeel e Thomas, enviaram o memorando
anexo, sugerindo soluções quanto a minha assim chamada ‘organização da comunidade
de grupo distrital’, como esboçado na constituição para os Índios Cheyennes Dakotas.
Tal memorandum conta com a minha aprovação e representa uma melhora, na medida em
que dá a idéia de assentamento comunitário. O Sr. Thomas fez um mapa, localizando os
vários grupos na reserva, eles desenharam no mapa as linhas distritais e isso mostrou não
haver muita divisão das comunidades por linhas distritais; de fato, sete dos distritos
tinham em suas linhas de fronteira sete grupos distintos. O Sr. Mekeel e o Sr. Thomas,
contando com meu total apoio , acharam que nós podíamos convencer os grupos
indígenas a aceitar a Reorganização dos Indígenas ou a Constituição, quando eles
conseguissem ver as vantagens e vissem que a organização geral dá representatividade a
cada grupo, direito ao desenvolvimento, auto-determinação, etc., etc. (NARA, RG75,
E1012, Pastas dos Cheyenne River, 15 de agosto de 1935)
Em outras palavras, do ponto de vista do superintendente desta reserva, a insistência
antropológica em respeitar os padrões sociais dos Lakota era considerada como uma
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
459
posição de um “fanático”, mas era aceitável, desde que não se opusesse drasticamente às
divisões administrativas propostas pela OIA, pois isso permitiria ao Serviço Indígena
“vender” o esquema de constituição tribal e do IRA para os grupos dissidentes. Que o
superintendente era bem mais inteirado do esquema administrativo da OIA do que o
próprio antropólogo é revelado pelo adendo amistoso à sua carta, revelando que o
Comissário Assistente tinha mandado um garrafa de bebida alcoólica (proibida na
reserva) em uma encomenda recente de Washington D.C.
A idéia de “autogoverno baseado em comunidades nativas naturais” era
fundamental para as crenças de John Collier de organização social e estava repetidamente
presente nos memorandos do Comissário da OIA daquela época. Que tanto Mekeel
quanto o superintendente o utilizassem revelam como o jargão aceito pelo escritório
central veio a dominar as conversas até mesmo das mais isoladas agências da burocracia
da OIA. No caso de Mekeel, era evidente que ele via os tiyospaye como as comunidades
a serem privilegiadas pela OIA e é raro vê-lo usando o termo sem o qualificativo
“natural”, dando à estrutura flexível e bem plástica dos tiyospaye um ar de permanência
original, emanada de forças sobre-humanas. No entanto, o superintendente usou “assim
chamado” para se referir à organização da comunidade. É evidente que ele se sentia bem
mais satisfeito com a existência de distritos eleitorais impostos nos termos da OIA, mas
estava também disposto a fazer concessões mínimas ao plano de Mekeel, desde que ele
satisfizesse aos indígenas – e ao Comissário também, presume-se.
Tanto em Cheyenne River quanto em Pine Ridge, podemos claramente ver que a
organização por comunidade foi considerada como modificadora do voto básico por
distrito (em Pine Ridge, esses eram os velhos distritos agrícolas organizados pelo Agente
Valentine McGillicudy nos anos 80 do século XIX). Em Cheyenne River, Mekeel ficou
desapontado com o resultado final, que poderia ser, em sua essência, resumido como o
redelineamento mínimo das fronteiras distritais de votos, de forma que alguns poucos
tiyospaye não foram divididos em dois. Ele criticou a constituição por não fazer bom uso
da estrutura social Lakota mas, em um memorando do dia 05 de setembro de 1535 para a
Divisão de Organização Indígenas, ele disse que “em vista da situação na reserva e
também do fato de que há provisão para a re-divisão em distritos na reserva, não acredito
que fosse prudente impedir a constituição de ser aprovada . É possível que haja atritos em
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
460
dois dos distritos (eleitorais) onde há mais do que uma comunidade … no entanto, se
surgisse algum atrito, isso poderia ser resolvido pela provisão de um parágrafo na
constituição que permita a reorganização dos distritos da reserva. (RG75, E1012, Pastas
de Cheyenne River).
Em Pine Ridge, Ben Reifel parece ter colaborado para convencer Mekeel de que os
membros do conselho deveriam ser eleitos por distrito e não por tiyospaye. No dia 5 de
outubro, Reifel escreveu para Mekeel, dizendo “Vai dar um p__a trabalho conseguir a
representação combinando alguns dos tiyospaye. E acredito que, mesmo que
conseguíssemos combiná-los, não poderíamos, em espaço tão curto, fazê-lo de forma
eficaz”. Reifel então disse que cada área agrícola era “em verdade uma comunidade
distinta” e que a tentativa de dividi-las em 5 sub-comunidades causaria problemas. Não
havia nenhum problema específico com a representação por distrito, na opinião de Reifel,
“já que cada tiyospaye terá a oportunidade de nomear seus próprios candidatos e depois
votar em escrutínio secreto”. Essa forma de selecionar representantes para o Conselho vai
eliminar, por sua própria natureza, a injustiça anterior de que um grupo pequeno se
reunisse e indicasse uns aos outros, dentro do grupo, como representantes para um
determinado conselho. A attitude em Pine Ridge é, de uma maneira geral, bastante
positiva e o importante, me parece, é realizar a eleição. O plano da comunidade, na
medida em que os distritos são, de fato, comunidades, é, na verdade, uma questão
marginal, mas que poderia facilmente ter um papel na derrota da constituição.” Em uma
carta anexada,com a mesma data, para John Collier, Reifel reiterou suas afirmações:
Há um complexo tiyospaye diferente em cada distrito, embora um tiyospaye
possa ter somente oito famílias, como é o caso do acampamento de Afraid of His Horses
(Com Medo de Seus Cavalos), no distrito de White Clay. Este acampamento específico
sempre teve um papel ativo nos assuntos tribais e quando for feita a tentativa de combiná-
lo com qualquer outro acampamento, haverá atrito. Se se começar a atribuir
representação, ao invés de obter ampla representação no distrito, não seremos capazes de
eliminar esse atrito. O Distrito de White Clay tem nove tiyospaye, cada um deles com
vontade de ser representado no Conselho e, se cada um deles fosse reconhecido, isso
criaria uma tendência entre os outros Distritos que têm população praticamente igual a
também exigirem o mesmo número de representantes, o que tornaria o conselho
verdadeiramente impraticável [tudo sic] (NARA RG75, E191, Pasta de South Dakota)
Desta forma, o principal aliado nativo de Mekeel e “homem do batente” em Pine
Ridge adotou a mesma decisão do Superintendente de Cheyenne Ride quanto ao uso dos
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
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tiyospaye, embora por razões ligeiramente diferentes. Reifel também temia que o
conselho se tornasse grande demais para os propósitos admininstrativos do OIA, embora
conselhos amplos e abertos fossem tão “naturais” quanto qualquer outra coisa que
pudesse ser identificada na política tradicional Lakota. Seu principal motivo para se opor
à eleição de conselheiros baseada em tiyospaye, no entanto, era que, dada a limitação de
tamanho nos conselhos tribais, parece que unilateralmente imposta pelo OIA, haveria
violação das noções Lakota de autonomia tiyospaye. Ante a escolha entre combinar
grupos familiares (/famílias ampliadas) ou estabelecer eleições a nível distrital e deixar
os grupos familiares (/ as famílias ampliadas) fazerem o que eles achavam melhor,
Reifel, ele próprio um Lakota, achou que a última opção era infinitamente preferível. Ele
achava que os grupos familiares (/as famílias ampliadas) seriam capazes de chegar a
soluções, elas mesmas, a nível distrital, sem a interferência do OIA.
Mekeel acabou por concordar com o ponto de visto de Reifel, apresentando ao
superintendente de Pine Ridge, no dia 07 de outubro de 1935, um mapa de distritos
eleitorais baseado nos velhos distritos agrícolas. A constituição de Pine Ridge,
finalmente votada e aceita pelos Oglala em dezembro de 1935, previa a eleição de
membros do conselho por distritos agrícolas (NARA, RG75, E1012, Pasta 9684-1936-
066).
Mekeel iria afirmar mais tarde que seus protestos de que as “estruturas sociais e
econômicas” dos Oglala, como identificadas por ele próprio e pelos demais membros da
Unidade de Antropologia Aplicda (AAU), foram desconsideradas pela OIA no processo
de organização e que essa foi uma das principais razões por que os governos tribais do
IRA fracassaram em corresponder às expectativas neles depositadas. Como observado
por Biolsi, no entanto, não parece razoável supor que o plano de Mekeel para a eleição
de candidatos por tiyospaye teria resultado em uma constituição melhor para os Oglala. É
provável que a disposição das bandas contemporâneas dos Oglala iria petrificar o que, na
sócio-política tradicional dos Lakota, eram organismos politicamente plásticos e
flexíveis, baseados em estruturas de parentesco. Vale a pena lembrar que as reservas que,
em última instância, se organizaram por distritos eleitorais baseados nos tiyospaye não
vieram, mais tarde, a ter mais harmonia ou estabilidade política do que Pine Ridge.
Porém, a constatação de que Mekeel preferiria gastar o pouco tempo que tinha no campo
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
462
com a questão de organizar constituições baseadas nas estruturas dos grupos familiares
(/das famílias ampliadas) mostra como outros fatores na etno-política Lakota eram
pouco valorizados, tanto por administradores como pelos antropólogos da AAU.
(BIOLSI, 1998: 105)
A constituição de Pine Ridge, quando foi finalmente elaborada, violava vários
princípios tradicionais da organização política Lakota. Em primeiro lugar e
principalmente, a eleição dos representantes no Conselho era por períodos de dois anos,
ao invés de uma eleição específica para cada conselho, como tinha acontecido com a
estrutura de conselho imediatamente precedente. Em segundo lugar, os executivos do
Conselho eram escolhidos por voto direto, ao invés de indireto. Em terceiro lugar, o voto
deveria ser secreto e o direito de voto foi estabelecido por sufrágio universal. As formas
de votação anteriores, baseadas em votação aberta, – e com o voto limitado a homens
adultos mais velhos – ajudavam a preservar a autoridade tradicional dos itancan pela
censura pública daqueles que tentavam votar sem possuir o prestígio adequado. É de
conhecimento geral (LAZARUS, 1991; BIOLISI, 1998; BURNETTE, 1973, entre outros)
que os “conservadores” boicoitavam as eleições do IRA, por não acreditarem na
democracia representativa ao estilo americano. Considerando-se, no entanto, que a OIA,
na pessoa de John Collier, tinha se dado ao trabalho de assegurar aos Lakota (durante o
encontro em Rapid City e em outros encontros diretos) que suas tradições seriam
respeitadas pelas novas constituições, é bem provável que muitos dos “conservadores”
simplesmente não achavam que precisassem votar em representantes. Afinal, qual a
relação entre o voto majoritário para representantes semipermanentes em um conselho
tribal e as tradições Lakota?
Vale a pena observar, no entanto, que a constitução de Pine Ridge também não era,
por mais que se quisesse, um documento ‘tradicional’ do governo americano. Longe de
enxertar noções americanas de governo nas estruturas sociais dos Oglala (LAZARUS,
161-164), ela violava algumas das mais caras tradições anglo-americanas da democracia
eleitoral. Em primeiro lugar, e de forma trágica, não havia verificações e “auditorias” em
relação ao conselho tribal, além de recurso ao Secretário do Interior. O impeachment era
a única forma de se tirar um membro do conselho, ou executivo da tribo, de sua função.
As cortes da tribo não tinham controle sobre os negócios políticos da tribo, como
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
463
acontece na tradicional democracia americana. Além disso, o presidente da tribo, não
tinha poder de veto sobre as decisões do conselho. Como Thomas Biolsi observou, no
entanto, “A noção de que o governo tribal era ‘unificado’ foi uma ficção – havia
separação de poderes, não entre os poderes do governo tribal, mas entre os conselhos
tribais e o Departamento de Interior dos Estados Unidos”. Já que o Secretário do Interior
e os superintendentes, não as cortes tribais, iriam supostamente proteger os membros da
tribo, estatutos tribais também não eram necessários: “o sábio critério do secretário e do
superintendente seria suficiente”. (BIOLSI, 1998:103; see also FARBER, 1970).
O resultado desta estrutura, como numerosos autores testemunharam, (DEMALLIE,
1971; BILOSI, 1985, 1998; BURNETTE, 1973; CHURCHILL, 1993; DANIELS, 1970;
MEKEEL, 1944), foi um sistema político que estava mais preparado para reproduzir a
governabilidade OIA dos Oglala do que o autogoverno democrático. Um organograma de
como o poder era exercido sob a nova constituição tribal IRA pode ser visto na Figura
8.6. As diferenças em relação à estrutura do governo tradicional Lakota, como
apresentado por DeMallie nas Figuras 8.3 e 8.4, são bem significativas e não necessitam
maiores comentários. Essa estrutura foi talvez adequada durante um período em que
amigos dos indígenas como John Collier e seu círculo dominaram a OIA (e, mesmo
naquela ocasião, aconteceram abusos – ver HAUPTMAN, 1983; JENSEN, 1983; PHILP,
1977; 1999), mas tornou-se completamente desastrosa no período seguinte, no qual os
simpatizantes de Collier foram afastados da OIA e o Serviço voltou a tentar solucionar o
problema indígena acabando com o status das tribos como protegidas pelo poder federal.
Como Richard Drinnon demonstra, nesse clima de mudança política nos Assuntos
Indígenas, a estrutura de supervisão criada pelas constituições do IRA poderia ser e, na
realidade, foi transformada facilmente em uma arma para ameaçar a existência e o
governo tribais (DRINNON, 1989 [1987]).
Os resultados da organização
Ao estabelecerem uma estrutura política tribal oficial de “auto-determinação” para a
reserva Oglala, os administradores e antropólogos da OIA, ironicamente, retiravam o
poder dos Oglala, criando um sistema “democrático” que iria inevitavelmente reproduzir
os freqüentes abusos de poder e que, estruturalmente, exigiam a supervisão do Bureau
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464
para funcionarem adequadamente. Mais de metade das 20 atribuições confiadas ao
conselho pela constituição exige a aprovação do Secretário do Interior ou seu vice
(geralmente o Comissário de Assuntos Indígenas). Se o governo tribal era uma versão
indígena dos governos municipal e provincial para usar a metáfora favorita de John
Collier, era um governo local intimamente ligado, como um gêmeo siamês, aos níveis
mais altos de burocracia federal da maneira mais autoritária possível.
Figura 8.5: Organização política do governo formal dos oglala após do estabelecimento da constituição
tribal seguindo o Ato de Reforma Indígena de 1934.
Mekeel estava bem consciente dos abusos – tanto potenciais como reais – que o
processo de organização tribal do governo reproduzia nos negócios indígenas e passou
boa parte do tempo em que foi diretor do AAUU alertando os funcionários da OIA para
tais abusos, afirmando que “sob a égide de processos democráticos, medidas podem ser
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465
impostas aos conselhos tribais, ou várias formas podem ser usadas para influenciar a
eleição de membros do conselho tribal que seja favoráveis… Até sob a presente
administração, que é esclarecida, há tribos que estão sofrendo influências e rupturas,
consistente e persistentemente, em seus próprios costumes [e] há outras tribos onde, sob o
disfarce da democracia, medidas estão sendo impostas aos povos indígenas” em prol do
interesse dos administradores da OIA (NAA, Documentos William Duncan Strong, Caixa
47, Bureau of Indian Affairs, arquivo de 1934-1937, 9/9/37).
No entanto, a leitura das críticas publicadas por Mekeel sobre a administração dos
indígenas adianta pouco no sentido de se obter soluções concretas para esse problema
(MEKEEL, 1936: 1943; 1945). Mekeel parece ter acreditado que a situação, a um nível
básico, foi criada por ignorância: tanto dos indígenas, que não tinham idéia de como se
governarem, e também dos administradores dos indígenas, que não compreendiam de
forma adequada as culturas nativas americanas como unidades holísticas. Subjacente a
essa visão, no entanto, como a citação acima indica, havia o compromisso com a
ideologia de que o papel acertado dos administradores dos indígenas era guiar as
comunidades dos nativos americanos para que elas se tornassem unidades produtivas
harmoniosas dentro da estrutura maior da república norte-americana. Merkeel não
rejeitava essa assimilação: ao invés disso, ele sentia que a assimilação tinha de ocorrer
com base na comunidade e nãono indivíduo. “Uma cultura não pode ser transformada de
forma adequada pela simples educação formal de cada indíviduo”, ele afirmou, antes,
“Ela tem de ser acompanhada por uma reformação ou redirecionamento das instituições
dentro daquela sociedade” (MERKEEL, 1936: 156).
Fazendo um paralelo com o trabalho de William Foote-Whyte, relativo aos
settlement houses em comunidades imigrantes (FOOTE-WHYTE, 1941; 1943), Mekeel
afirmou que o funcionário médio da OIA “pensava em termos de uma adaptação em uma
única direção” dos indígenas às necessidades e objetivos do Serviço de Indígenas. Isso
fez com que a OIA lidasse tão-somente com indígenas “transviados” , que – como os
“meninos de faculdade” estudados por Foote-Whyte – tinham abandonado os valores
tradicionais para se adaptarem aos “padrões estabelecidos pela sociedade branca
americana” e, com isso, tinham essencialmente se alienado de seus pares, sendo “mal-
ajustados em termos da sociedade local” (MEKEEL, 1943: 7). Segundo Mekeel,
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
466
portanto, os indígenas assimilados se retiravam das sociedades onde tinham nascido e
assim não podiam exercer a função de líderes para se tornarem agentes de mudança.
Como resultado disso, as sociedades indígenas persistiam em seus velhos padrões
culturais, com as atividades da OIA destinadas à mudança desses padrões criando
simplesmente “desordem”.
Embora Mekeel fosse solidário para com as culturas nativas, ele obviamente
acreditava que resolver o problema indígena envolvia reduzir a alteridade Nativa. Isso
podia ser feito de duas maneiras: ou pela partição de comunidades indígenas e a dispersão
forçada de suas populações pelos quatro cantos dos Estados Unidos (“uma alternativa
impensável nos dias de hoje com nossas tendências humanistas”), ou a administração
inteligente da alteridade nativa por missionários e funcionários da OIA. Uma
administração assim, segundo Mekeel, tentaria assimilar a comunidade – e não somente o
indíviduo – pela cooptação e manipulação inteligentes das estruturas sociais nativas.
Nesse sentido, seus pontos de vista são muito parecidos com os de John Colliers, como
descrito no Capítulo 6 acima (MEKEEL, 1936: 159; 1943: 8).
O culturalismo de Mekeel fez com que ele rejeitasse explicações históricas e
políticas para a situação em Pine Ridge. Ele pensou nos Oglala como uma unidade
natural, com uma cultura coesa, que se opunha aos valores dos brancos. Como vimos
acima, no entanto, um dos principais problemas com a forma como o IRA foi
implementado em Pine Ridge era que, em verdade, foi implementado um sistema
unificado em um povo que era apenas, e nominalmente, uma tribo através de um decreto
burocrático. Todas as indicações são que, se tivessem podido escolher, os Oglala teriam
se subdividido há muito em duas oyate separadas. A divisão, começada no tempo de Red
Cloud, continuou depois do confinamento dos Oglala na reserva, sendo codificadas em
diferenças entre facções “sangue pleno” (full-blood) e “sangue misturado” (mixed-blood),
que parecia retratar, em muitos aspectos, os velhos segmentos “hostil” e “vagabundo” do
grupo. Mekeel pressupôs, assim, uma homogeneidade cultural tribal que, se respeitada,
iria dilacerar as reais divisões políticas e históricas que tinham se tornado evidentes na
sociedade Lakota pela maior parte de um século, em 1936. A tribo em si era um artefato
da conquista e o processo de confinamento em reserva e organização reificou essa
identidade.
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
467
Como Biolsi observa (1978: 303), para o melhor ou para o pior, o IRA teve sucesso
em codificar uma identidade corporativa Oglala – por mais que fosse contestada – que
poderia e pode fazer interface com a burocracia federal dos Assuntos Indígenas e que é,
ao menos em teoria, capaz de uma boa dose de controle exclusivo sobre a conduta de
vida e de negócios na Reserva Pine Ridge. A organização por tiyospayel/comunidade, ao
invés de por tribo, que parece ter sido a intenção de Mekeel, poderia ter minorado parte
da confusão política na Reserva Pine Ridge mas, como observado por Wilcomb E.
Wahburn (1988), esse plano era politicamente inviável. Quaisquer que tenham sido os
objetivos pessoais de Collier ou de Mekeel, o Congresso dos Estados Unidos não estava
disposto a permitir mais fragmentação política da América Nativa. As tribos foram
escolhidas como a unidade de trabalho da administração indígena e – fora a conversa
“fanática” das “comunidades naturais” – elas continuariam a ser o bloco básico de
construção da política indígena dos Estados Unidos durante todo o período do IRA, bem
como depois dele. Tem-se de ter em mente que, enquanto Collier lutava pelo autogoverno
indígena, muitos indigenistas de carreira abaixo dele na OIA não estavam convencidos do
valor dessa política. . Além disso, como observamos na Seção II acima, o Congresso,
durante este período, apoiava o autogoverno indígena somente na medida em que isso
parecia manter a esperança de, em última instância, poder reduzir os gastos federais com
os indígenas, pela eliminação da responsabilidade federal por sua manutenção e bem
estar. A tentativa de Collier de que as tribos se organizassem segundo o IRA foi frenética
e mal-planejada porque o Comissário estava bastante ciente de que sua administração
poderia ser privada da aprovação do congresso a qualquer momento. O que acabou
acontecendo foi que Collier serviu como Comissário da OIA por 12 anos – o período
mais longo até hoje. Em 1935, no entanto, quando os Lakota estavam sendo organizados,
tal resultado não era esperado.
Mas se o conselho de Mekeel tivesse sido seguido e os tiyospaye ‘naturais’ tivessem
sido escolhidos para ser as unidades organizacionais da Reserva de Pine Ridge, é difícil
ver que mudança isso teria ocasionado. O problema é que uma oganização burocrática
modelada na democracia constitucional americana era difícil de ajustar às formas
democráticas fluidas, consensuais e mutantes praticadas pelos Lakota. Quando uma
organização assim também era limitada em sua soberania por supervisão federal em seus
Cidadãos e Selvagens Capítulo VIII
468
níveis mais elevados e não tinha divisões de poderes internos, ela ficava também
paralisada, até mesmo no contexto de seu modelo de inspiração. Uma organização assim
era fadada ao fracasso ou, ao menos, a gerar crises recorrentes de legitimidade. Dado esse
fato, decidir se a votação deveria ser por distrito agrícola ou tiyospaye era, em verdade,
uma questão de menor importância.
Cidadãos e Selvagens Capítulo IX
469
Capítulo 9
Antropologia aplicada na OIA depois de 1938
Se o serviço indígena pode prosseguir com sucesso em ajudar os indígenas a construir democracias
criativas, esse sucesso ajudará o mundo inteiro.
- John Collier, “Man Can Half Control His Doom”, 21-4-1942.
1
A destruição da Applied Anthropology Unit (Unidade de Antropologia Aplicada)
não marcou o fim da antropologia na OIA. Marcava sim, de várias maneiras, seu começo.
Ainda que os antropólogos não estivessem jamais concentrados em uma sub-unidade
especifica da Agencia, sua presença certamente aumentou nos anos seguintes a 1938 e
eles aplicariam seu talento e treinamento em uma série de problemas administrativos.
Ademais, enquanto o mundo envolvia-se na Segunda Guerra Mundial, a antropologia
aplicada começou a expandir-se por outras áreas da burocracia federal Americana,
estando os antropólogos que trabalharam para a OIA na vanguarda desse movimento.
No inicio dos anos 1940, muitos projetos iriam utilizar antropólogos
pesquisadores na OIA. O primeiro foi “O estudo da alimentação na cultura popular da
América indígena”. Esse projeto envolveu pesquisas de campo em, ao menos, quatro
comunidades indígenas ou hispânicas, feitas por antropólogos, nutricionistas e médicos.
O coordenador do projeto foi o professor Fred Eggan do departamento de antropologia da
Universidade de Chicago e envolveu John Provinse (analista sênior em ciências sociais,
divisão de população agrícola e recursos rurais, do departamento da agricultura dos
Estados Unidos e, mais tarde, Comissário Indígena Assistente), Sol Limball, Malcolm
Carr, Emma Reh, Michael Pijoan, como também o filho de John Collier, o antropólogo
Charles Collier. Como seu titulo indica, o estudo visava mapear as possibilidades de
melhoria dos patrões de alimentação de grupos não brancos dos sudoeste americano.
Aparentemente serviu de base para um estudo semelhante de Pijoan no México e na
América do Sul Andina (e possivelmente no Brasil) durante a Segunda Guerra Mundial
tanto quanto em medidas de aumento da produção nos tempos da guerra (NARA, RG75
BIA Registros, E195A, Oficio do Coordenador de Assuntos Inter-americanos, Registros
1
IN: NARA, RG 75 BIA, E178, John Collier Office File.
Cidadãos e Selvagens Capítulo IX
470
do Programa Indígena Inter-americano, c. 1933-49; NAA, Laura Thompson Papers, Box
41, Correspondência profissional, Kelly, Lawrence [1971-77], 30/6/77).
Um segundo estudo importante desse período (1939-1940) foi a investigação de
Dorothy e Alexander Leighton que resultou no estudo clássico The Navaho Door (1944).
Com o auxilio do Indian Office e a orientação de Clyde Kluckhohn (então em Harvard),
os Leighton mobilizaram uma equipe multidisciplinar de médicos, antropólogos e
psiquiatras para investigar as condições de saúde da reserva dos Navaho e as técnicas
tradicionais de cura da tribo. Collier estava tão impressionado com seu trabalho que
escreveu a introdução do livro argumentando que “as descobertas e generalizações dos
Leighton, nessa área Navaho, são úteis para os administradores [...] eu acredito que eles
deveriam ter imediata e pratica utilização por administradores diante dos desafios e
oportunidades que são em tudo semelhantes, e eu acredito que isso pode significar todos
os administradores, ao menos no campo “colonial” e das “minorias” (Leighton, 1944:
xv).
O Projeto Personalidade
O trabalho de campo realizado pelos Leighton parece ter inspirado Collier a tentar
uma vez mais recrutar antropólogos para um estudo de maior fôlego, que deveria
procurar discernir as mudanças trazidas para a vida em reserva devido ao Indian
Reorganization Act. Como Collier remarca, seu trabalho com antropólogos fez ele
duvidar do compromisso da disciplina com a sobrevivência sociológica dos povos
nativos. Porque então, perguntava-se retoricamente, “eu iria na direção de tentar utilizar
antropólogos para iluminar questões indígenas fundamentais” depois de seus conflitos
com membros do campo durante os anos da AAU?
1) Eu acreditava que os dados, ainda que incompletos, serviriam para iluminar problemas
práticos, e que isso poderia ser utilizado mesmo sem recorrermos a distorções de
valores dos julgamentos dos antropólogos.
2) Eu acreditava que a disciplina antropológica poderia e deveria mover-se a outro plano;
que certamente poderiam ser encontrados antropólogos que poderiam ser utilizados de
maneira funcional e integrada, e que deveriam possuir senso das realidades correntes da
vida indígena (NARA, RG 75 BIA, E178, John Collier Office File, 24-12-43).
Collier estava então tentando conscientemente transformar a antropologia em uma
disciplina aplicada, da forma como a sociologia americana amplamente havia tornado-se,
Cidadãos e Selvagens Capítulo IX
471
seguindo as estruturas pragmáticas da Nova Ciência Social de John Dewey. Ainda que
Collier divisasse um futuro aonde os índios estariam totalmente integrados como
produtores efetivos no tecido sócio-economico nacional, como vimos no Capítulo 6
acima, ele também acreditava que esse projeto não necessariamente os transformaria em
algo que não índios. O projeto de pesquisas não que ele imaginava utilizaria antropólogos
para investigar as formas de vida contemporâneas dos nativos e produzir dados que
ajudariam a OIA a resolver o problema de como eles poderiam integrá-los no mundo
moderno sem eliminá-los enquanto um grupo nativo. O novo estudo, desenvolvido
durante o curso de 1941, seria denominado “Indian Educational and Personality Research
Project” (Projeto de Personalidade Indígena). Ele utilizaria equipes multidisciplinares de
antropólogos, sociólogos e psiquiatras para estudar e comparar como as personalidades
eram construídas em diversos grupos nativos distintos, enfatizando o desenvolvimento
infantil e a socialização. O projeto deveria ter dois comitês diretores. O primeiro deles
composto por acadêmicos e baseado na Universidade de Chicago. Deveria oferecer
diretrizes metodológicas para os pesquisadores de campo e sintetizar e analisar os
resultados de pesquisa. O segundo comitê estava baseado na OIA. Deveria dirigir a
administração do projeto e ser responsável por traduzir os resultados em recomendações
políticas concretas para os assuntos indígenas. O coordenador geral do campo para o
projeto e mediador para os dois comitês era Laura Thompson, uma jovem antropóloga
cujos trabalho anterior havia sido nas ilhas Fiji, no Pacífico. Em agosto de 1943,
Thompson viria tornar-se a segunda esposa de Collier (NAA, Laura Thompson Papers,
Box 41, Professional Correspondence Kelly, Lawrence [1971-77], 11/5/77).
O projeto original, como elaborado, deveria tratar-se de um estudo massivo
investigando o desenvolvimento da personalidade indígena em muitas reservas diferentes.
Duas semanas após a divulgação dos planos de pesquisa pela mídia, contudo, o império
japonês atacou os Estados Unidos em Pearl Harbor e os assuntos indígenas
repentinamente tornaram-se uma esfera menos importante de esforço político em
Washington D.C. Como uma conseqüência da entrada dos Estados Unidos na Segunda
Guerra, o escritório dos Servíço Indígena seria transferido da capital do país para
Chicago, com o sentido de liberar espaço para a burocracia da guerra. Como ressalta J.
Leiper Freeman, isso colocou a OIA em uma posição vulnerável, longe do contato
Cidadãos e Selvagens Capítulo IX
472
imediato e do suporte de seus aliados na Casa Branca e no Capitólio. As intensas
comunicações entre Collier, Roosevelt e Ickes foram suspensas a medida que a atenção
do governo concentrava-se na condução da guerra. Como resultado, Collier e o escritório
que ele liderava começaram a tornar-se progressivamente vulneráveis a ataques do
congresso. Anos de antipatia crescente entre certos homens do congresso e o Comissário
dos Assuntos Indígenas, suspeito de socialista, estavam agora vindo à tona. Como
Freeman aponta, “um fator crucial era o histórico [de Collier] de embates consistentes em
favor das visões do New Deal e o uso do poder de administrador para proteger políticas
instaladas no campo política dos assuntos indígenas no principio do New Deal. Faltando
o apoio recíproco, consistente e continuado da administração durante o período da guerra,
o comissário não era capaz de manter um equilíbrio favorável”. Nessa situação, Collier
estava apto a auxiliar a sobrevivência do Escritório, mas não poderia fazer nada mais
(NARA, RG 75 BIA, E178, John Collier Office File, Press Release, 26/11/41;
FREEMAN, 1955:38).
O Projeto de Personalidade Indígena (Indian Personality Project) era assim
retrabalhado de forma menos ambiciosa. Não obstante, através do expediente de recrutar
e treinar pesquisadores não habilitados (especialmente enfermeiras, médicos e
professores empregados pela OIA como trabalhadores nas reservas), ele era capaz de
conduzir estudos em seis reservas diferentes (Papago, Hopi, Navajo, Pine Ridge, United
Pueblos and in the Pacific Northwest) em doze comunidades nativas. Lloyd Warner,
Robert Havinghurst, Ralph Tyler e Laura Thompson coordenaram a pesquisa através da
Universidade de Chicago e os antropólogos envolvidos nesse estudo (conduzido em
1942) incluíam Sophie Aberle, Solon Kimball, Clyde Kluckhohn, Edward A. Kennard,
Gordon MacGregor, Fred Eggan (que foi rapidamente transferido do projeto para o
trabalho na guerra em outra parte), Robert Redfield e Ruth Underhill. Sob os auspícios do
Instituto Indígena Interamericano e sua filial norte-americana, o Instituto Indígena
Nacional (National Indian Institute – NII – cuja fundação que discutiremos abaixo), o
Projeto Personalidade também expandiu-se para o México, com Oscar Lewis sendo
admitido para levar adiante o trabalho de campo necessário em 1943 e 44.
De acordo com Bill Cooke, o Projeto de Personalidade foi pioneiro em pesquisa
de ação. O que correspondia ao uso de pesquisadores não-antropólogos que eram
Cidadãos e Selvagens Capítulo IX
473
membros das comunidades a ser estudadas, nas palavras de Ronald Lippit e Kurt Lewin –
a verificação dos fatos “para o grupo e pelo próprio grupo” que buscava traduzir as
descobertas de pesquisa em ações sociais tão rápida e prontamente quanto possível
(COOKE, 2002: 8-9). O projeto teve uma seqüela mais sinistra e menos conhecida: os
estudos antropológicos de Nipo-americanos confinados em campos de concentração
durante a Segunda Guerra Mundial, circunstancia que foi extremamente bem analisada
por Peter Suzuki (1999a e 1999b).
A OIA e a WRA
Logo após o ataque japonês a Pearl Harbor, o presidente Roosevelt assinou a
Ordem de Execução de Guerra 9102, indicando a remoção forçada de todos os cidadãos
japoneses e americanos de ascendência japonesa para a costa oeste e seu confinamento no
que foram, efetivamente, campos de concentração. A agencia que deveria cuidar disso foi
nomeada como a War Relocation Authority (WRA – Autoridade de Relocação de Guerra)
cujo staff era composto por muitos dos mesmos oficiais do Departamento do Interior que
haviam trabalhado no Indian New Deal e em projetos de desenvolvimento rural do
período da depressão. Como Richard Drinnon enfatiza, sob os auspícios da segurança do
tempo de guerra, a WRA incorporava uma tendência fundamental do New Deal em
relação a seu pendor pela engenharia social, quase tornando-se algo como uma “espécie
de Repartição de Assuntos Japoneses” (DRINNON, 1987: 40). A meta original da WRA
era remover o que fosse visto como grupos etnicamente suspeitos de um setor estratégico
do país. Com a evolução das coisas, contudo, a WRA começou paulatinamente a
compreender seu papel como sendo o da destruição da etnicidade nipo-americana através
da dispersão forcada e permanente de prisioneiros ao longo da metade oriental dos
Estados Unidos (DRINNON, 1987).
A OIA terminou administrando dois dos campos de concentração da WRA (Gila
River e Poston) em uma tentativa de fazer-se útil enquanto uma agencia em tempo de
guerra. Também procurava que os “colonos” nipo-americanos desses campos
desenvolvessem uma infra-estrutura física (sistemas de irrigação, escolas e terras
desmatadas) que seriam usadas por nativos habitantes das reservas depois da guerra.
Seguindo as sugestões de Laura Thompson, contudo, Collier propôs que as lições do
Cidadãos e Selvagens Capítulo IX
474
Indian New Deal fossem aplicadas nessa nova “comunidade”, “produzindo o
agrupamento de envolvidos mais feliz e natural” e “assegurando lideres efetivos” entre a
população dos campos “fossem ou não democraticamente orientados desde o principio”.
Esses lideres internados seriam então treinados pelo pessoal da OIA em “liderança
democrática”, presumivelmente da mesma maneira que o escritório procurava treinar
governos tribais em “auto-regulação”. Como empregado da OIA, McCaskill deixava isso
claro em uma carta para Ickes, “a vasta experiência do serviço indígena em lidar com
grupos minoritários capacita-o fundamentalmente para dirigir esse programa e agir na
eventual reabilitação desse grupo e sua reintegração no cerne da vida americana”
(DRINNON, 2002; NARA, RG 75 BIA, E178, John Collier Office File, Collier to Ickes,
4/6/42; McCaskill to Ickes 4/3/42).
O trabalho de ciências sociais nos campos de concentração, contudo, não deveria
ser limitado ao reajustamento dos prisioneiros às suas novas vidas: os “japoneses”
também deveriam ser colocados “sob e através um escrutínio cientifico com que podemos
desnudar”. O Projeto da Personalidade Indígena era, assim, partido em dois, com parte de
seu pessoal (mais notavelmente Alexander Leighton) sendo transferido para a WRA e
alguns (especialmente Laura Thompson e Robert Redfield) trabalhando em ambos os
projetos. Na pratica, isso significava aplicar as metodologias de estudo do Projeto
Personalidade aos internos e, seguindo essa ação de orientação antropológica, recrutar
pesquisadores nativos (NARA, RG 75 BIA, E178, John Collier Office File, Collier to
DuBois, 17/4/42; John Collier Office File, Leighton to Collier 16/9/42).
O próprio Collier almejava dirigir a WRA, mas essa foi passada por Roosevelt
para Milton Eisenhower (filho do General Eisenhower) e, mais tarde, Dillon Myer, do
Serviço de Conservação do Solo. Logo ficaria claro que suas visões e as de Myer acerca
dos campos de concentração eram diametralmente opostas. Por todo o apoio no processo
de internação, a OIA de Collier compreendia que isso seria uma medida temporária e
uma que deveria respeitar a vida da comunidade Nipo-americana. As palavras do diretor
de planejamento da OIA, Joseph McCaskil, são muito claras a esse respeito: “para
aqueles detidos sob custódia, famílias devem ser mantidas juntas e, tanto quanto possível,
grupos relativamente pequenos e comunidades devem ser mantidos intactos”. McCaskill
acreditava que era necessário ter claramente compreendido que os colonos japoneses
Cidadãos e Selvagens Capítulo IX
475
deveriam ser cuidadosamente segregados de quaisquer outras partes da população e que
eles deveriam ser definitivamente removidos [...] de volta as áreas de onde eram
provenientes com o fim da guerra.” Nesse sentido, portanto, o plano da OIA para os
Nipo-americanos espelhava aquelas estruturas essenciais do IND: com respeito e mesmo
com vistas ao reforço da identidade étnica associada à engenharia social imaginada para
assimilar outros grupos como elementos economicamente produtivos de uma nação
pluralista (NARA, RG 75 BIA, E178, John Collier Office File John Collier Office File,
McCaskill to Ickes 4/3/42).
Figura 9.1: Dillon S. Myer, “O Grande Pai Branco” e chefe da WRA, em Topaz, um campo de
concentração para cidadãos nipo-americanos em 1943. Em 1950, Myer foi nomeado comissário da BIA e
inaugurou uma retomada das políticas de assimilação do século anterior (DRINNON, 1987: 68).
Cidadãos e Selvagens Capítulo IX
476
O diretor da WRA, Dillon Myer, contudo, via no programa de internações e
relocações uma oportunidade singular para resolver o Problema Japonês dos Estados
Unidos, através da remoção da alteridade étnica nissei – por força, se necessário. Como
Richard Drinnon documenta, a meta de Myer era retirar os nipo-americanos dos campos
de concentração e espalhá-los ao longo da nação de uma forma tal que fosse possível
remover toda possível etno-genese. Com esse objetivo, o questionário utilizado pela
WRA para determinar se um interno estava ou não apto a ser liberado dentre a população
americana em geral, continha as seguintes questões:
Você acatará o programa geral de assentamentos, ficando longe de grandes
grupos de japoneses?
Você tentará desenvolver hábitos de tipo americano que terão como
conseqüência sua pronta aceitação entre grupos sociais americanos?
Você se enquadrará aos novos costumes e formas de vestir de seu novo lar?
(DRINNON, 1987: 53)
Internos que respondessem negativamente a quaisquer dessas questões não
estariam aptos a serem libertados. Myer deixou bastante claro que esse era seu intento
que o distúrbio causado na vida da comunidade nipo-americana pela guerra fosse
permanente, removendo todos ou quase, isseis e nisseis originários da costa oeste. A meta
especifica de Myer era que os nipo-americanos não fossem assentados em concentrações
étnicas “semelhantes a reservas indígenas” depois da guerra e seu programa de liberação
cuidaram de espalhar através dos Estados Unidos a leste das Montanhas Rochosas e
impedir seu retorno a Califórnia (DRINNON, 1987: 50-60).
Como Collier relembra em sua autobiografia, a participação do escritório na
WRA era contingente até “a condição expressa que nós validamos a perda de confiança
no espírito do Indian New Deal e o Indian Reorganization Act. Eisenhower concordou
enfaticamente. O acordo, tal como resolvido, deveria ter sido escrito. Ele foi deixado
verbal e o sucessor de Eisenhower, Dillon Myer, considerou o acordo de forma nenhuma
necessário” (COLLIER, 1963: 301-302). Seguindo repetidos conflitos com Myer e seus
apoiadores dentro do departamento do interior (que incluía Harold Ickes), a OIA
distanciou-se da WRA. Está para além do escopo dessa tese discutir a morte do Indian
New Deal e a aposentadoria de John Collier de seu posto na OIA em 1945, mas leitores
podem ter alguma idéia do período que seguiu Collier no campo político dos assuntos
indígenas refletindo sobre o fato de que Dillon Myers havia sido nomeado Comissário
Cidadãos e Selvagens Capítulo IX
477
dos Assuntos Indígenas em 1950 e que sua principal meta era a extinção do status de
tribos, federalmente salvaguardadas, e a tentativa de reverter a tendência da OIA, e assim
promover políticas de assimilação forçada (DRINNON, 1987: Chapter XI).
Figura 9.2: Propaganda da BIA da época de Comissário Dillon Meyer. Com a volta da assimilação como
a política ofícial do Serviço Indígena, os índios eram incentivados a se relocalizarem para areas urbanas
em busca de empregos. (NABAKOV, 1978: 332)
Enquanto o experimento da OIA em administrar campos de concentração para
nipo-americanos, como se eles fossem reservas indígenas organizados à maneira do IRA,
o Projeto de Personalidade, em ambas suas áreas de estudo, gerou uma serie de
monografias e livros (uma lista restrita das publicações que resultaram do Estudo da
Personalidade Indígena pode ser visto no apêndice II). Conflitos com a Universidade de
Chicago acerca dos calendários de publicações e traduções desde a primeira fase do
projeto para a segunda (a tradução do estudo resulta em uma proposta concreta para os
administradores da OIA) levou o escritório a romper com a instituição em meados de
1944. Um novo acordo foi desenhado com a recém-formada Sociedade para a
Cidadãos e Selvagens Capítulo IX
478
Antropologia Aplicada (SAA, editores da revista Applied Anthropology – mais tarde
Human Organization) para supervisionar a escrita e publicação da fase administrativa da
pesquisa. Sob os auspícios da SAA, Laura Thompson eventualmente publicou The Hopi
Crisis: A Report to Administrators (1946), mas pouco mais foi feito com o material
seguinte a abdicação de Collier como Comissário dos Assuntos Indígenas em 1945
(NAA, Laura Thompson Papers, Box 12, Meetings – Office of Indian Affairs + the
Society for Applied Anthropology, 1944-45).
Índios das Américas
O efeito do Indian New Deal e da incorporação da antropologia na administração
indígena não seria restrito aos Estados Unidos, contudo. No período pós-AAU, John
Collier voltou a seu projeto original, discutido com Moises Saenz e outro indigenistas
mexicanos durante o principio dos anos 1930, em torno da construção de uma agencia
interamericana de assuntos indígenas. Pela concepção original de Collier e Saenz', essa
instituição serviria como uma clearinghouse (uma espécie de "depósito e distribuidor”)
para dados antropológicos acerca da administração racional de povos nativos de todas as
nações das Américas
2
.
Já discutimos nos capítulos 6 e 7, como Collier havia sido influenciado pelo
indigenismo mexicano e mesmo como havia empregado certos antropólogos mexicanos
para orientar a OIA no principio do Indian New Deal. Como mencionamos acima, a idéia
de uma clearinghouse interamericana para dados indigenistas e antropológicos parece ter
sido anterior a ascensão de Collier ao posto de comissário da BIA e esse foi um dos
primeiros projetos para o qual ele procurou recrutar antropólogos americanos. No
principio de 1934, Collier já tinha começado a organizar planos para uma “conferencia
interamericana de especialistas na vida indígena nas Américas” e, no verão daquele ano,
ele circulou um questionário pedindo sugestões a antropólogos americanos para uma
agenda do encontro (Lloyd Warner, da Universidade de Chicago, terminou enviando 15
2
Deve-se notar que a documentação que eu descobri acerca da OIA e das atividades de John Collier quanto
ao financiamento e apoio ao Instituto Indígena Interamericano é extensa. Mais ainda, parte do material
necessário para uma analise completa ainda esta sendo digitalizado pelo InInIn e nao estará disponível até o
fim desse ano. Isto posto e dada a falta de espaço para uma analise completa no presente trabalho, o
material que eu apresento aqui é simplesmente uma breve impressão daquilo que descobri.
Cidadãos e Selvagens Capítulo IX
479
paginas de sugestões à OIA). Esse plano foi cancelado devido à “circunstâncias”
inexplicáveis. Contudo, esse foi revivido tanto no Terceira Conferencia Internacional de
Educação na Cidade do México (agosto de 1937), quanto na 8ª Conferencia
Internacional de Estados Americanos em Lima (dezembro de 1938), aonde delegados
passaram resoluções chamando convidando para uma conferência Pan-americana da vida
indígena a ser realizada em La Paz, Bolívia, 1939. correspondências confidenciais entre
Collier e Saenz indicam que essa resolução era, de fato, orquestrada pelos dois homens
em conformidade com suas metas de longa data (NARA, RG75, E195a, Commissioner’s
File, Agenda, Inter-American Conference on Indian Life, La Paz, 1939; Collier to Ickes,
8/11/1939; JCP Reel #23, Collier to Saenz 14/11/1938)
3
.
Na correspondência que circulou entre a OIA e os vários e diversos escritórios e
gabinetes diplomáticos americanos interessados na Conferencia Pan-Americana da Vida
Indígena, o amplo contexto diplomático do evento foi feito bastante evidente. Enquanto
Collier e Saenz estiveram interessados no projeto por motivos próprios desde (ao menos)
o principio de 1930, os burocratas do governo federal que eram responsáveis por
assegurar a participação americana no evento eram bastante claros que seu principal valor
para os Estados Unidos era uma iniciativa diplomática para os “bons vizinhos” da
America Latina em resposta à crescente crise na Europa. Ernest Gruening, diretor da
divisão dos territórios e possessões insulares do Departamento do Interior, ressaltou que a
conferencia tinha um valor particular já que lidava com um campo aonde as contribuições
latino-americanas poderiam ser divisadas como extremamente válidas. “É um fato
evidente que na maioria dos intercâmbios de visões e trocas de serviços, os Estados
Unidos estão na posição de doador”, escreveu Gruening. “Esse é um relacionamento
unilateral e, a longo prazo, indesejável. Amizades reais e melhor compreensão, se são
para serem valorizados, são promovidos por relacionamentos recíprocos.” Nesse
contexto, discussões da vida e da administração indígena são privilegiadas porque
3
A Conferencia já havia sido agendada para agosto de 1939, pelo governo boliviano, mas parece que a
pressão política pelos Estados Unidos e México foi responsável pela mudança desse para um evento da
União Pan-americana. Saenz fez um pedido a Rockefeller Foundation demandando fundos para um “Centro
Inter-americano de Estudos de Políticas Indígenas” em março de 1938 e Collier assinalou a Ickes que a
proposta tinha surgido inicialmente na reunião da União em Montevideo (1933); tão obvia a idéia de uma
associação Pan-americana de indigenistas não surgiu inesperadamente apenas do governo Boliviano
(NARA, RG75, E195a, Commissioner’s File, Agenda, Inter-American Conference on Indian Life, La Paz,
1939, Collier to Ickes, 8/11/38; Saenz to the Rockefeller Foundation, 13/4/38).
Cidadãos e Selvagens Capítulo IX
480
“muitos dos paises latino-americanos, notadamente o México, [...] possuem contribuições
definitivas para dar. Eles podem dar-nos algo [ênfase original].” Mais importante,
contudo, essas discussões iriam promover a aproximação de laços diplomáticos entre os
Estados Unidos e as republicas Americanas. “[...] seria desejável se contatos definitivos
fossem mantidos pelo Escritório dos Indian Affairs com as agencias [indigenistas]
apropriadas” dos países da America Latina, escreveu Gruening, como tais contatos
permanentes, a parte de sua utilidade para a Repartição de Assuntos Indígenas em sua
tarefa estabeleceriam dez laços entre os povos dos Estados Unidos e dos Estados Latino-
americanos, laços que eventualmente nenhum poder europeu poderia estabelecer.” Nesse
sentido, portanto, índios deveriam servir como um recurso nacional estratégico, discussão
a qual poderia promover laços entre a América Latina, e que as nações européias não
poderiam duplicar (NARA, RG75, E195a, Commissioner’s File, Agenda, Inter-American
Conference on Indian Life, La Paz, 1939, Gruening to Ickes, 11/1/39).
Vale a pena lembrar que a Segunda Guerra Mundial estava no horizonte naquele
contexto, o plano de longa data de Collier e Saenz em favor de uma clearinghouse
interamericana de dados indigenistas e antropológicos tornou-se repentinamente popular
entre os oficiais do departamento de Estado e de Interior dos EUA como uma iniciativa
diplomática imediatamente viável para a América Latina. Ela recebeu suporte
considerável do governo federal e do corpo diplomático dos Estados Unidos. Seguindo a
Conferencia de Lima, a União Pan-Americana convidou a OIA para contribuir no
planejamento da agenda da Conferencia de La Paz (Collier reclamou com Saenz que a
agenda fornecida pelo governo boliviano um anos antes era desgraçadamente
inadequada). Collier prontamente reenviou seu questionário em 1934 para seus
correspondentes antropológicos originais (acrescidos de algumas novas pessoas)
4
,
juntamente com suas respostas, perguntando se eles tinham algo a acrescentar à suas
4
Isso incluía Wendell Bennett (University of Wisconsin Madison, Fay-Cooper Cole (University of
Chicago), Charles Collier (U.S. Department of Agriculture), Donald Collier (Crow Agency, Montana),
John P. Harrington (Bureau of American Ethnology), A.L. Kroeber (University of California, Berkeley),
Robert Redfield (University of Chicago), A.V. Kidder (Carnegie Institute), Oliver LaFarge (American
Association of Indian Affairs), Paul Martin (Anthropology Field Museum, Chicago), Gordon MacGregor
(OIA), H. Scudder Mekeel (Anthropology Laboratory, Santa Fe), John C. Merriam (Carnegie Institution),
Alfred Metraux (Yale), Bernhard Mishkin (Columbia), W. Lloyd Warner (University of Chicago),
Vincenzo Petrullo (Works Progress Administration), J. Alden Mason (University Museum, Philadelphia)
and Ralph L. Beals (University of California). Todos esses indivíduos responderam às cartas de Collier,
muitos com sugestões extensas para a conferência.
Cidadãos e Selvagens Capítulo IX
481
sugestões de cinco anos antes. As respostas que voltaram não apenas informaram a OIA
sobre preocupações excepcionais das nações latino-americanas sobre o problema
indígena, elas também deram conselhos consistentes de como lidar com os governos
envolvidos. A. L. Kroeber advertiu que “alguns dos países das cordilheiras andinas, com
grandes contingentes de indígenas entre sua população são apontados como sendo
definitivamente preocupados em evitar que esses tornem-se racialmente conscientes,
economicamente desafiadores ou seguir o caminho do México. Se minhas insinuações a
esse respeito são válidas, conferências internacionais sobre essa matéria poderiam ser
sabotadas por governos relutantes.” O filho de Collier, Donald (antropólogo com
experiência no Peru) também advertia que “se o México tiver uma posição
excessivamente proeminente ou parecer dominar o [imaginado] instituto, alguns dos
paises sul-americanos sentiriam-se ressentidos e suspeitos e [assim] retirar seu apoio.”
Com criticas como essas em mente, Collier começa a espreitar por outros aliados entre as
nações da América Latina com as quais formar uma frente comum (JCP Reel #23, Collier
to Saenz 13/2/39; NARA, RG75, E195a, Commissioner’s File, Agenda, Inter-American
Conference on Indian Life, La Paz, 1939).
Figura 9.3: Indigenistas das Américas se reunem em Patzcuaro, México, em abril 1940 (ABL –
Arquivos Roquette-Pinto, Cx17, #48).
Cidadãos e Selvagens Capítulo IX
482
Uma possibilidade parecia ser o Brasil de Getulio Vargas. A chefia do serviço
indígena daquele país (o Serviço de Proteção aos Índios, ou SPI), Vicente de Paulo
Teixeira Vasconcelos, já havia pedido informações da embaixada norte-americana no Rio
de Janeiro acerca da organização da OIA em princípios de 1938 (NARA, RG84, Box 30,
Brazil, Rio de Janeiro Embassy Classified and Unclassified Records, #1061, 9/12/38).
Em princípios de 1939, o chanceler brasileiro Oswaldo Aranha liderou uma delegação
para encontrar o presidente Roosevelt e seu gabinete. Um dos membros da delegação
brasileira era Luiz Simão Lopes, presidente do Departamento Administrativo do Serviço
Público. Lopes encontrou Collier extensivamente enquanto em Washington e ambos
discutiram o Indian New Deal e planos para reformar o SPI. Lopes retorna ao Brasil
carregado de publicações da OIA sobre o Indian New Deal. Pouco depois, em novembro
de 1939, o governo Vargas edita o Decreto lei 1.794, estabelecendo o Conselho Nacional
de Proteção aos Índios e provendo para o “estudo de todas as questões relacionadas a
assistência e proteção para os [índios], suas línguas e costumes.” Lopes imediatamente
enviou uma copia da nova lei a Collier, ressaltando os membros do novo conselho
estavam “largamente interessados no desenvolvimento do problema [indígena] nos
Estados Unidos” e perguntaram por “outro conjunto” de publicações da OIA,
“particularmente aquelas que lidassem com os índios nas reservas.” Uma segunda série
de declarações, livros, panfletos e revistas foram apropriadamente mandadas para o
Brasil através da embaixada americana e muito desse material foi posteriormente
traduzido pela membro do conselho (e diretora do Museu Nacional) Heloisa Alberto
Torres
5
(NARA, RG75, E195a, Commissioner’s File, Agenda, Inter-American
Conference on Indian Life, La Paz, 1939; Brazil folder; ROCHA FREIRE, 1990; IAW,
May 1939).
5
Os originais permanecem até o presente parte na biblioteca do Museu Nacional Brasileiro, constituindo
possivelmente a maior e mais concentrada coleção de material da OIA de Collier fora dos Estados Unidos e
México. A evidencia apresentada acima aponta para a OIA de Collier como a agencia inspiradora por detas
do nascimento do CNPI brasileiro, dado que o próprio Marechal Rondon argumentava conhecer a razão por
detrás da fundação do conselho e a única publicação, com o estatuto de livro, nesse sentido (ROCHA
FREIRE, 1990), também não apresenta hipóteses conclusivas mas confirma o papel central de Luiz Simões
Lopes nesse processo.
Cidadãos e Selvagens Capítulo IX
483
Figura 9.4: O antropólogo e indigenista brasileiro Roquette-Pinto divide um palco com John
Collier, o presidente de México Lázaro Cardenas e outros indigenistas no Patzcuaro, 1940 (ABL
– Arquivos Roquette-Pinto, Cx17, #48).
Collier tinha altas expectativas de que o Brasil enviaria uma forte delegação para
a conferencia de La Paz e que isso formaria uma terceira perna da aliança indigenistas
que espalharia os cânones básicos do indigenismo mexicano e do Indian New Deal,
trabalhando juntamente com antropólogos para transformar isso em políticas concretas
que poderiam então ser reproduzidas através do hemisfério. Em correspondência com
Lopes seguindo sua visita a Washington, Collier e os membros de seu circulo
expressaram esperanças de que os brasileiros poderiam juntar-se aos mexicanos e norte-
americanos para apresentar itens adicionais para a agenda do encontro da Bolívia. Isso
era especificamente importante já que, nas palavras de Collier, “o Brasil é um de uma
minoria de paises que é atualmente capaz de apresentar experiências especificas em
administração indígena como uma raça à parte.” Com financiamento da Rockefeller
Foundation, Collier manda uma representante pessoal, Mary Louise Doherty, para a
América do Sul para percutir o interesse na conferência e fazer contato direto com
indigenistas do continente (NARA, RG75, E195a, Box 7, (Miss) Mary Louis Doherty, La
Cidadãos e Selvagens Capítulo IX
484
Paz Conference and Previous, 8/3/39; First Inter-American Conference on Indian Life, La
Paz, 2-12, 1939, 23/2/39).
Por volta de maio de 1939, o governo boliviano indica que não seria capaz de
organizar a conferencia naquele ano, ou talvez nunca. O México então interveio e
ofereceu-se para sediar a conferencia em Patzcuaro, em princípios de 1940 e foi ali que
indigenistas e os modernos amigos dos índios de todo o hemisfério encontraram-se entre
14 e 24 de abril, 1940. As delegações americana e mexicana foram de longe maiores do
que todas as outras delegações juntas. A norte-americana tinha 10 oficiais (entre os quais
dois antropólogos: John Cooper e Mathew Stirling) e dúzias de delegados não-oficiais,
incluindo muitos indígenas americanos (o marido de Mabel Dodge Luhan, Tony Luhan
estava presente) e antropólogos aplicados da OIA (como Sophie Aberle). A delegação
dos EUA também produziu uma publicação para o evento intitulada Indians of the United
States, contendo os artigos apresentados pelos muitos membros da delegação na
conferencia (ACTA FINAL, 1940; OIA, 1940).
O Brasil, contudo, enviou apenas um delegado: Edgard Roquette-Pinto. Ainda
que as contribuições de Roquette-Pinto tenham sido muito ovacionadas pelas autoridades
civis e cientificas mexicanas, e o antropólogo brasileiro tenha até coordenado uma das
comissões da conferencia, o Brasil não iria desempenhar um papel ativo no Instituto
Indígena Interamericano, fundado em Patzcuaro. O representante do corpo diplomático
brasileiro presente à conferencia, Calos de Lima Cavalcanti, ressaltou aquilo que ele
considerou o tom ideológico e político do evento e salientou a presença de numerosos
comunistas na delegação mexicana em seu relatório. Especialmente ofensivo para a
sensibilidade de Lima Cavalcanti era a apresentação do indigenismo mexicano como a
solução para o problema indígena em todas as nações das Américas:
A peculiaridade insofismável do problema indígena existente em cada país foi
encampado pela tese indígena mexicana, como si os princípios que a esta devem reger
devessem presidir a massa indígena das outras nações. Assim é que Brasil, por exemplo,
que possui, na realidade, um problema circunscrito, o problema silvícola, pois defronta
uma parcela mínima de sua população, inteiramente isolada como uma minoria dentro da
demografia nacional, teria que pautar a sua política indigenista pelas normas mexicanas,
onde a população é, quase por inteiro, de formação índia (ABL, Arquivos Roquette Pinto,
Cx23 Doc76, 9/5/40).
Cidadãos e Selvagens Capítulo IX
485
Lima Cavalcanti não pareceu compreender que essas mesmas políticas também
eram recomendadas pelo serviço indígena norte-americano. Não obstante, rejeitou a
conferência como um “centro tendencioso” formado “sob a aparência panamericana e
cientifica”, advertindo ainda que assinando o tratado promulgado pela conferencia que
formaria o Instituto Indígena Interamericano (a longamente imaginada clearinghouse de
Saenz e Collier), o Brasil pagaria pelo funcionamento de uma instituição que iria contra
seus próprios interesses. Por causa desse relatório e do medo do comunismo mexicano,
Vargas bloqueia a entrada oficial do Brasil no InInIn. A OIA de Collier continuaria a
corresponder-se com membros do CNPI (mais particularmente o SPI chefiado por
Vicente de Paulo Teixeira Vasconcelos) e antropólogos e indigenistas brasileiros
contribuiriam com material para a revista do instituto, mas o Brasil apenas se tornaria um
membro do recém-formado instituto em 1953, a pesar das repetidas tentativas tanto de
oficiais mexicanos quanto de norte-americanos para que o pais ratificasse o tratado
(ROCHA FREIRE, 1990: 53-69; NARA, RG75, E195a, Brazil folder).
Pelos dois anos que se seguiram, Collier e Saenz lutaram (com o apoio financeiro
da Rockefeller Foundation) para conseguir que tantos paises quanto possível assinassem
e ratificassem o tratado proposto pela Conferencia de Patzcuaro, que estabeleceu a InInIn.
Com a morte de Saenz em outubro de 1941, Manuel Gamio toma seu lugar como o
principal representante mexicano. Em princípios de 1942, o sonho finalmente torna-se
realidade e o Instituto Indígena Interamericano abriu suas portas na Cidade do México,
tendo John Collier como seu primeiro presidente. A presença de antropólogos norte-
americanos que trabalharam para a OIA em ocasiões anteriores foi muito notável na
América Indígena, a revista oficial do InInIn. Nos primeiros cinco anos de existência da
publicação, artigos de Julian Steward, Vicenzo Petrullo, Fred Eggan, Miguel Pijoan,
Robert Redfield, , Dorothea Leighton, Frank Speck, J. Alden Mason, Ralph Beals,
Donald Collier, Oscar Lewis e Edward Spicer foram publicados em suas páginas.
A fundação da InInIn ofereceu a Collier um caminho para contornar as limitações
do Congresso em suas atividades dentro da esfera da antropologia aplicada. O Decreto de
Apropriações Congressionais de 1938, que cortou todos os financiamentos da Unidade de
Antropologia Aplicada da OIA também proibia os recursos da instituição de serem
usados “para viagens em estudos ou observações de qualquer pratica ou sistema
Cidadãos e Selvagens Capítulo IX
486
educacional fora dos EUA e Alasca” (JCP reel #22, Collier to Ickes, 23/4/38). Essa
proibição tinha forcado Collier a buscar fontes alternativas para financiamentos toda vez
que quisesse trazer indigenistas mexicanos aos EUA ou enviar seu pessoal ao México. O
tratado que estabelecia a InInIn, contudo, determinava que os paises membros formassem
seus próprios institutos de estudos indígenas com o propósito de estudar problemas
nativos e orientando atividades indigenistas e administrativas oficiais. Collier
prontamente formou o Instituto Indígena Nacional dos Estados Unidos e – com o suporte
do presidente Roosevelt – conseguiu obter o apoio da Rockefeller Foundation para
sustentá-lo. O NII rapidamente tornou-se uma organização através da qual recursos e
pessoas poderiam circular entre os Estados Unidos e o México. O Instituto Nacional
norte-americano era responsável por organizar e financiar parcialmente a sessão de
Robert Redfield no Projeto de Personalidade e também ofereceu recursos financeiros e
físicos para apoiar o Instituto Interamericano (em uma instância adquirindo suprimentos
de papel, durante os pesados anos da guerra, quando, devido a falta de papel, a revista da
InInIn não podia ser publicada). O NII mantinha um pessoal na Cidade do México por
boa parte de 1941 e 1942. Também mandou outro funcionário – Ernest E. Maes – em
uma viagem pela América do Sul que detalhou as estruturas de serviços indígenas do
continente através de volumosos relatórios. Maes enviou esses detalhados relatórios
esmiuçando as estruturas administrativas indígenas e os principais atores do campo dos
Indian Affairs em todos os paises por onde passou (NARA, RG75, E195a, Box 6,
Division of Inter-American Cooperation).
Entretanto, a iniciativa diplomática pessoal de Collier para a América Latina foi
rapidamente superada por acontecimentos. Com o aumento do clima de tesão mundial e a
probabilidade que os Estados Unidos entrassem na Segunda Guerra Mundial a qualquer
momento, a administração Roosevelt decidiu criar um escritório especial para centralizar
todas as varias iniciativas diplomáticas, culturais, cientificas, econômicas e militares que
a nação estava realizando na América Latina. O Escritório para a Coordenação das
Relações Comerciais e Culturais entre as Republicas Americanas (mais tarde conhecido
como o Escritório de Coordenação de Assuntos Inter-americanos, ou OCIAA) foi
fundado em agosto, 1940, sob o controle de Nelson Rockefeller. Com a liderança da
Rockefeller Foundation, agora fracamente direcionada e sancionada pelo governo
Cidadãos e Selvagens Capítulo IX
487
americano para criar e coordenar a diplomacia com a América Latina, iniciativas como as
do InInIn começaram a falir. Como Colby e Dennet documentaram amplamente,
Rockefeller olhava para a expansão do capital norte-americano em geral e seus próprios
interesses particulares de negócios na região no pós-guerra e planos para ações como
internacionalizar o Indian New Deal, como não exatamente execrados, mas simplesmente
como não sendo de grande interesse para Rockefeller. Assim, por meados de 1944,
quando os financiamentos originais da Rockefeller Foundation começaram a extinguir-se,
Collier descobriu que ele estava tendo algumas dificuldades em conseguir fundos para o
NII (NARA, RG 229, Office of the Coordinator of Inter-American Affairs, E2, Boxes 1
and 2, A History of the OCIAA; COLBY and DENNET, 1995).
Com a demissão de Collier como Comissário Indígena, a responsabilidade sobre a
NII passou para as mãos do Departamento do Interior e para o controle do recém surgido
Instituto para Assuntos Étnicos, aonde ficou por cinco anos. Durante esse período, a NII,
sob a direção de Collier, participou em um projeto que enviou Miguel Pijoan para a
Nicarágua para estabelecer clínicas para os indígenas daquele país e ajudou na realização
de um survey lingüístico da população nativa da Guatemala. Apesar disso, entretanto, o
instituto permaneceu fundamentalmente letárgico. Em 1949, o Congresso finalmente
direcionou verbas, através da a OIA, para a administração do NII, e o Instituto retornou
ao controle federal total em tempo de participar da Segunda Conferencia Indígena Inter-
americana, em Cuzco, Peru. Logo após, contudo, o instituto foi desativado de acordo com
conservadoras reduções de gastos gerais no campo político dos assuntos indígenas. O
desaparecimento do NII do campo político dos assuntos indígenas norte-americanos foi
tão completo que quando um membro do CNPI visitou os escritórios da BIA em
Washington, em 1953, antes da assinatura do Brasil dos protocolos de Patzcuaro,
indagando acerca do Instituto Indígena Nacional norte-americano, foi informado por seus
anfitriões que eles não possuíam informações sobre a existência de qualquer instituição
como essa (NARA, RG75, E195a Box 4, Memo of origin and function of NII and III,
1950; PHILP, 1977: 223-224; FUNAI, Atas do CNPI, 1953).
Isso então, foi a ironia apoteótica do Indian New Deal de Collier. O Instituto
Indígena Interamericano foi fundado em grande medida porque o comissário norte-
americano dos Indian Affairs acreditava que isso estenderia o Indian New Deal através da
Cidadãos e Selvagens Capítulo IX
488
America Latina, utilizando estudos antropológicos para oferecer uma base racional para a
administração de povos nativos enquanto distintas entidades culturais auto-perpetuadas
(NAA, Laura Thompson Papers, Box 41, Professional Correspondence Kelly, Lawrence
[1971-77], June 30
th
, 1977). O sonho continuaria a existir no México e, através de
trabalhados mexicanos, influenciaria a administração indígena por todo o hemisfério.
Suas origens americanas, entretanto, seriam sobejamente esquecidas pela OIA e pela
antropologia norte-americana, dois campos institucionais que eram primariamente
responsáveis pela ratificação pratica do Indian New Deal e pela propagação de valores
através do hemisfério.
Cidadãos e Selvagens Parte III Conclusões
489
PARTE III – Conclusões
Essecialmente, então, As comunidades indígenas existem para que os outros podem fazer
experiências com elas. Burocraticamente, isto quer dizer a elaboração de "projetos pilotos”.
Antropologicamente, como temos visto, quer dizer um tratamento contínuo dos povos indígenas
como objetos que devem ser observados..
Vine Deloria Junior.
1
A administração Collier da OIA via o mais intenso e extensivo uso de
antropólogos nos assuntos indígenas americanos até aquele ponto na história. Os
governos tribais que esses pesquisadores e acadêmicos ajudaram a formar sobreviveriam
muito mais do que o regime de Collier, contudo, e a sistemática desestabilização da
autoridade tribal do Departamento do Interior, que foi preservada em todas as
constituições da OIA, causaria graves efeitos sob a vida nativa americana no período que
seguiria o Indian New Deal.
Antes que a maioria das publicações resultantes do Projeto de Personalidade
saíssem na imprensa, John Collier foi demitido de seu posto como Comissário Indígena,
em 22 de janeiro de 1945. Ele continuou como presidente do Instituto Indígena Nacional
(sobre o qual veremos mais abaixo) e por volta de julho daquele ano formou uma nova
associação: o Instituto de Assuntos Étnicos. Seguindo a Segunda Guerra Mundial, ele foi
nomeado por Secretário Ickes como conselheiro da delegação americana ao primeiro
encontro geral das Nações Unidas que discutiria acerca de territórios tutelados. Nos anos
seguintes, Collier procurou expandir a filosofia básica por detrás do Indian New Deal
para outras áreas da empresa colonial, mais particularmente os territórios recém
adquiridos e tutelados pelos Estados Unidos no Pacifico (particularmente Guam e
Samoa). Por fins de 1940, contudo, as constantes diferenças de Collier com a marinha
americana acerca da administração dessas ilhas levou a alienação do IEA do governo
federal. Por um curto período seguindo o anúncio do presidente Truman do Plano dos
Quatro Pontos, Collier foi capaz de associar o Instituto a novas iniciativas de
desenvolvimento levadas adiante pelos Estados Unidos no terceiro mundo, mais
particularmente na África. Contudo, sua firme recusa em adotar uma visão dicótica
1
IN: DELORIA, 1988 [1970]: 98.
Cidadãos e Selvagens Parte III Conclusões
490
acerca da guerra fria levou o governo Truman a cancelar a participação do IEA no
Programa dos Quatro Pontos, em 1951. Logo a seguir, o Instituto Nacional Indígena
também foi forçado a fechar as portas devido a falta de financiamento e apoio federal.
Collier terminou sua carreira profissional como um professor de antropologia, primeiro
no City College of New York e posteriormente no Knox College in Galesburg, Illinois.
Collier, que teve um relacionamento de amor e ódio com a antropologia e que nunca
recebeu, aparentemente, um diploma universitário, terminava assim sua carreira
profissional como um antropólogo, ensinando novas gerações sobre a diversidade sócio-
cultural humana (PHILPS, 1977: Chapter 7).
Figura IIIc.1: Professor de sociologia e antropologia, John Collier, espera para seus alunos na City
College of New York, 1947-1954 (COLLIER, 1963: 423).
O fim de Collier enquanto Comissário dos Assuntos Indígenas marcou uma
retração conservadora do ápice do Indian New Deal no campo político dos Indian Affairs
em fins dos anos 1940, principio dos 50. Com a nomeação de Dillon Myer enquanto
Cidadãos e Selvagens Parte III Conclusões
491
Comissário em 1950, a política federal indígena retornou ao assimilacionismo latente que
sempre assombrou o IND desde os dias do Meriam Report. A nova política sob a direção
de Myer tornou-se de “extermínio” ou “abandono” das tribos e era divulgada como sendo
um ato de liberalização, “desenhado para promover a extinção realista primária de toda a
supervisão e o controle federal sobre os indígenas” (H.R. 698 apud DRINNON, 1987:
234). Na pratica, isso resultaria no extermínio do auxilio e subsidio federais para as
tribos, arremessando sua existência corporativa futura aos caprichos do mercado. A
principal proposta de Myer a esse respeito era um eco de suas atividades iniciais na
WRA: ele propôs que os índios fossem relocados das reservas para o cerne industrial
urbano americano. Como Drinnon descreve essa política, "Extinção, nos termos da
linguagem anglo-americana de Myer, tinha um sentido preciso. Isso significava levar o
‘problema indígena’ a um fim, cortando suas ligações com os povos tribais, tanto deles à
terra, quanto vice-versa.” Myer alemjava “relocar [os índios] em uma escala que seria o
triplo ou o quádruplo daquela dos campos da WRA”, demandando finalmente em 1953
perto de oito milhões de dólares para o “treinamento, assentamento e relocação” dos
índios em cidades (nesse contexto deveríamos apenas lembrar que o orçamento inteiro da
BIA para 1949 era de 49 milhões de dólares; DRINNON, 1987: 233, 240).
De acordo com Drinnon, Myer fiou-se em sua experiência na WRA para elaborar
uma campanha de relações publicas "na qual os trabalhadores de campo da BIA colocava
cartazes e fotos mostrando índios oriundos das reservas e vivendo uma vida fácil em
cidades como Los Angeles e Chicago – posando ao lado de suas novas televisões e
geladeiras reluzentes; construindo aeroplanos; e fazendo isso na ‘civilização industrial
altamente complexa’, que Myer exibia como infinitamente desejável para todos”
(DRINNON, 1987: 240).
Como o próprio Myer falava, “eu acredito que deveríamos fazer o possível, o
mais rápido que possível, para ajudar os índios do país integrar-se ao modelo geral, ao
invés de mantê-los como grupos segregados” (Apud DRINNON, 1987: 236). A medida
que Myer consolidava seu poder, atacando os defensores do New Deal, sobreviventes
desde os anos 1930-40 na BIA, John Collier novamente assumiu seu papel de critico do
Serviço Indígena, descrevendo as novas políticas como “autoritárias, racistas e
estereotipadas” e advertindo que a tentativa de liquidação da BIA poderia resultar na
Cidadãos e Selvagens Parte III Conclusões
492
alienação massiva de terras indígenas. Em vez dos planos de Myer, Colleir demandava o
retorno das políticas de “tutela bilateral” que haviam caracterizado o IND (PHILP, 1977:
326).
Figure IIIc.2: John Collier reune-se com antropólogos numa sessão especial da 52a reunião da
Associação Americana de Antropologia que foi organizada para discutir o legado do Indian New Deal.
Na foto: Alan G. Harper (OIA), Joseph R. Garry, Theodore H. Haas, Clyde Kluckhon e Clarence Wesley
(COLLIER, 1963: 427)
O ativismo de Collier, contudo, não foi suficiente para deter a tendência para
extinção das tribos e em agosto de 1953, o Congresso aprovou a Lei Publica 280, que
deveria preparar o terreno para o próximo round da reforma dos assuntos indígenas, a
exemplo do que fez o Ato Dawes em 1887 e o IRA em 1934. PL 280 situou varias tribos
vivendo em Wisconsin, California, Minnesota, Nebraska e Oregon sob a autoridade direta
de seus estados respectivos e autorizou qualquer estado, de acordo com seu próprio
julgamento (e sem o consentimento nativo), a substituir os costumes e leis tribais por
Cidadãos e Selvagens Parte III Conclusões
493
códigos estaduais. PL280 efetivamente destruiu a obrigação do governo federal para com
as tribos e virou de ponta-cabeça a tendência pró-soberania da administração do Collier.
Irritado pelo fato do presidente Truman não haver vetado o projeto de lei, Collier
(agora com 70 anos de idade) tentou mais uma vez recrutar antropólogos para uma
batalha contra a assimilação forçada. Ele organizou um simpósio na qüinquagésima
segunda reunião anual da American Anthropological Association para discutir o histórico
dos vinte anos do IRA/IND e arregimentar antropólogos em sua defesa (PHILP, 1977:
228-229). Todavia, ainda que o simpósio tenha sido geralmente solicito de Collier e seu
histórico como comissário da BIA (KELLY, W. 1953), nada foi feito no sentido de
oposições concretas pelo impedimento do PL280 .
Assim, em um eco do que havia acontecido nos anos 1890, uma política que foi
originalmente construída para o beneficio dos nativos americanos tornou-se gradualmente
o oposto do que seus arquitetos originais divisaram. Loteamento, que foi concebido para
garantir terra para os nativos americanos, tornou-se um mecanismo através do qual eles
foram sistematicamente vilipendiados de seus territórios remanescentes e, da mesma
maneira, o governo tribal, que foi endossado para encorajar o desenvolvimento
econômico e social das reservas como unidades sócio-políticas e culturais dentro do
tecido de uma nação pluralista, tornou-se um mecanismo através do qual a pobreza
indígena persistente seria administrada na tentativa de forçar os indígenas ao “cerne da
sociedade americana.” Em ambos os casos, políticas que foram feitas para “liberarem”
os indígenas do controle federal terminaram aumentando o biopoder federal nas reservas
e segurava, assim, a centralidade da OIA para a reprodução da vida tribal contemporânea.
E em ambos os casos, antropólogos – que desempenharam um papel primário na
definição e implementação das políticas de reforma – foram notavelmente ausentes dos
debates públicos quando os programas que eles haviam ajudado a estabelecer começaram
a desmoronar.
Como Vine Deloria Jr. amargamente lembrava, “Durante os dias cruciais de 1954,
quando o Senado estava forçando a extermínio de todos os direitos indígenas, nenhum
acadêmico sequer – antropólogo, sociólogo, historiador ou economista – veio a suportar
as tribos contra aquela política degenerativa”. As palavras de Deloria podem ser vistas
como sendo mais hiperbólicas do que estritamente verdadeiras, como Heidenreich (1972)
Cidadãos e Selvagens Parte III Conclusões
494
e Lurie (1988; 1998) salientaram, e o próprio Deloria admitiu, em outro momento, que
um punhado de antropólogos realmente “realizaram um [consistente e] útil trabalho [...]
em favor dos índios americanos” durante esse período (DELORIA, V. 1997: 210).
Contudo, devemos ressaltar que, para uma disciplina que denunciou francamente a
assimilação forcada de nativos americanos e apoiou publicamente o IRA em 1934, a falta
de critica organizada da política de extinção/abandono de Myer e seus efeitos sobre os
nativos dos EUA foi notável. A antropologia americana não era apenas uma simples
testemunha do Indian New Deal mas, como vimos acima, um participante ativo,
consciente e apoiador. Podemos desculpar uma certa falta de hipérbole da parte de
Deloria quando refletia que o campo da antropologia americana, que respondeu de forma
disciplinada ao pedido de ajuda de Collier, reagiria a extinção dos direitos tribais com o
que foi, essencialmente, um trabalho de caridade desordenada organizado por um
pequeno punhado de antropólogos indivíduais. Quando os recursos do governo federal e
as oportunidades de emprego estavam disponíveis para antropólogos no campo dos
Indian Affairs, a antropologia americana – representada pela BAE, a AAA e varias e
diversos departamentos acadêmicos do sistema universitário americano – responderam
com alarido. Duas décadas mais tarde, porém, quando não haviam mais recursos da BIA
dedicados a pesquisa antropológica, a disciplina manteve seu silencio enquanto Myer e
seus apoiadores no Congresso faziam seu melhor para desmantelar aquilo que os
antropólogos tinham ajudados a construir.
Dada a ausência de protestos públicos em larga escala, a política de extinção tribal
prosseguiu. O 83º Congresso aprovou seis leis de extinção tribal, reduzindo a tutela
federal (e proteção) de grupos nativos em cinco estados. Subseqüentemente, a
administração Eisenhower congelou seis milhões de dólares dos créditos circulantes do
fundo da IRA e removeu as restrições de venda por cima de 1.6 milhões de acres de terras
loteadas (colocando-as efetivamente no mercado). Os governos tribais organizados pelo
IRA de 1934 encontravam-se seriamente impedidos pelo novo regime no Serviço
Indígena, pois seus orçamentos e a permissão para muitas das suas atividades tinham que
vir diretamente do Secretario do Interior ou do Comissário da BIA (o Serviço Indígena
officialmente mudou seu nome para o Bureau of Indian Affairs em 1947). Isso já havia
causado problemas durante o período do IND, quando indivíduos simpáticos a
Cidadãos e Selvagens Parte III Conclusões
495
sobrevivência cultural indígena ocuparam essas posições. Na administração do
Comissário Myer, o Departamento do Interior e a BIA usariam seu poder para interferir
nos níveis mais básicos do governo tribal (como por exemplo, quando o Myer tentou
negar às tribos o direito de empregar determinados advogados em disputas legais). Como
Richard Drinnon coloca, “Myer reverteu a política de seu predecessor em um ponto
essencial: os índios deveriam ser feitos tão desconfortáveis dentro, e confortáveis fora,
das reservas quanto possível e o poder para fazer isto estava a cargo do governo federal”
(DRINNON, 1987: 192).
A extinção tribal seria preservada como a política indígena oficial até a
administração do Presidente Richard Nixon nos anos 1970. Em 1957, John Collier sairia
da vida publica ativa para aposentá-se na comunidade que ele tanta amava: Taos, Novo
México, morrendo lá em 1968. Seu último pedido, para ser sepultado nas terras do
Pueblo, não poderia ser honrado pelo Pueblo Taos (PHILP, 1977).
A experiência da OIA e o nascimento da antropologia do desenvolvimento
Enquanto os índios não receberam muita coisa de valor duradouro do
comprometimento antropológico com o Indian New Deal, a experiência foi muito
decisiva para a antropologia mais ativista que se consolidaria durante a Segunda Guerra
Mundial e que transoformaria-se na “antropologia do desenvolvimento” durante a Guerra
Fria.
Como vimos acima, a moderna antropologia aplicada, como uma sub-disciplina
distinta da antropologia em geral, foi criada nos Estados Unidos, ao menos parcialmente,
a partir de um desejo de distanciar o trabalho antropológico do BAE (Escritório de
Etnologia Americana) àquele conduzido pela OIA. Originalmente, essa divisão era vista
como similar àquela entre “engenheiros” e “mecânicos”, com os antropólogos aplicados
ocupando a posição menos prestigiada e subordinada.
Em princípios de 1940, contudo, as coisas começaram a mudar. A mobilização
que seguiu a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra envolveu a utilização de
cientistas sociais em papeis aplicados dentro do governo e os antropólogos não foram
exceção. Pelo fato que a antropologia aplicada tinha sido tão fortemente concentrada em
e ao redor da OIA, muitos dos ex-empregados da Unidade de Antropologia Aplicada e as
Cidadãos e Selvagens Parte III Conclusões
496
outras iniciativas da OIA acabaram sendo idealmente posicionados para conseguir
trabalhos com o governo federal durante a guerra. Essa tendência continuou depois da
guerra com o desgaste das relações com a União Soviética.
A antropologia aplicada da OIA foi obscurecida pelo uso mais amplo e intenso ao
qual a antropologia foi submetida na Segunda Guerra Mundial e posteriormente.
Contudo, mesmo a luz de esses esforços expandidos, os programas da OIA tiveram uma
performance respeitável. Em 1943, a Divisão de Antropologia e Psicologia do Conselho
Nacional de Pesquisas liberou um documento bastante singular, intitulado “Anthropology
During the War and After”, um relatório que foi amplificado dois anos mais tarde pelo
Comitê do Conselho de Antropólogos a Serviço da Guerra. Esse relatório mostra que, dos
quarenta antropólogos que trabalhavam em programas de ação para o governo durante a
guerra, sete eram da OIA. Esses eram apenas parte de um contingente maior em tempos
de paz, muitos dos quais foram requisitados de outras agencias para serviços na guerra
(mais particularmente a Agência de Relocação da Guerra, aonde os antropólogos da OIA
procuraram transformar os campos de concentração, destinados a internos nipo-
americanos, em comunidades funcionais). Nas reportagens anexados ao relatório pelas
agencias do governo federal acerca de suas experiências com em recorrer a antropólogos,
a OIA foi, de longe, o mais entusiasmado, argumentando que:
A administração inteligente dos assuntos indígenas é quase completamente
dependente das descobertas da antropologia […]
Pelo fato que os índios foram cuidados decente e inteligentemente durante os
últimos 12 a 15 anos, eles estão hoje fazendo todo a contribuição possível para a guerra.
Eles poderiam ter sido uma quinta coluna significante ou, ao menos, um perigo potencial.
Ao invés disto, 12.000 deles estão nas forças armadas; compraram dois milhões de
dólares de ações do governo; forneceram cinco por cento de toda a madeira usada para
propósitos de guerra; seu programa de produção de alimentos cresceu, - eles são
definitivamente uma vantagem [para o país] e não um peso.
Podemos perceber, portanto, que a antropologia está realizando uma das
contribuições para importantes para a guerra através do Serviço Indígena. (Report of the
Committee on War Service of Anthropologists, 1945).
Em outras áreas do relatório, o OIA salientou que suas experiências com a
antropologia (especialmente nos campos do WRA) podiam “indubitavelmente ser
aplicadas a situações em muitas partes do mundo”, mencionando, particularmente, seu
Cidadãos e Selvagens Parte III Conclusões
497
potencial no re-assentamento do número expressivo de refugiados gerados pela guerra
2
(Report of the Committee on War Service of Anthropologists, 1945)
Como o relatório acima mostra, a influencia dos antropólogos da OIA nas
atividades do governo federal era bem maior do que seus números poderiam indicar.
Muitos pesquisadores que passaram através da OIA ou que ajudaram a formular seus
programas desde 1934 terminaram trabalhando para agencias governamentais durante a
guerra. A fundação da Sociedade pela Antropologia Aplicada, no pós-guerra, envolveu
um numero significativo de veteranos de programas da OIA. Uns 15% dos artigos
publicados pela revista da Sociedade, ao longo de seus sete primeiros anos de existência,
foram escritos tendo pesquisas realizadas em programas da OIA, TC-BIA ou BIA-WRA
como base. Finalmente, muitos dos ex-antropólogos trabalhadores da OIA, mais
notadamente Gordon MacGregor, foram recrutados para iniciativas de antropologia
aplicada no exterior, sendo utilizados no Programa dos Quatro Pontos do governo
Truman, a primeira iniciativa norte-americana que recorreu ao termo “terceiro-mundo”.
De forma bem real, a antropologia aplicada da BIA tornou-se uma das origens
fundamentais da antropologia do desenvolvimento moderna.
A trajetória de Gordon MacGregor é bastante ilustrativa nesse sentido.
Aparentemente, ele foi originalmente contratado como pesquisador na Carolina do Norte
para a Unidade de Antropologia Aplicada da BIA, em 1936, mas foi rapidamente
transferido para o projeto da TC-BIA na reserva do Forte Hall, em 1937. Esse
envolvimento ajudou-o a sobreviver ao fim da AAU em 1938, e pelos seis anos seguintes
ele seria contratado como um conselheiro antropológico, ainda que sua posição oficial
fosse “Superintendente Associado de Educação Indígena”
3
. Em 1942, ele foi trazido ao
“Projeto de Personalidade Indígena” de Collier, aonde fez um estudo dos Lakota de Pine
Ridge que seria mais tarde publicado na forma de um livro (1946) e citado por Vine
2
Registros da NAA do Handbook of South American Indians, Box #7, NRC Folder, Committee on War
Service of Anthropologists, 1945.
3
A Divisão de Educação da BIA parece ter facultado um lar para antropólogos que queriam continuar a
trabalhar com o Escritório depois da dissolução da AAU: Ruth Underhill também empregada pela Divisão
e Underhill e Macgregor foram descritos como “os dois antropólogos que estamos mantendo em nossa
folha de pagamento permanente” em 1942 (NARA RG75, E178, March 19
th
, 1942, Laura Thompson to
John Collier). As palavras de Thompson são, de certa forma, ambíguas, contudo, como antropóloga Sophie
Aberle foi Superintendente na Consolidated Pueblo Agency nesse período e a própria Thompson tanto
quanto muitos outros antropólogos estiveram trabalhando para a BIA como empregados temporários ou
"dollar-a-year men”.
Cidadãos e Selvagens Parte III Conclusões
498
Deloria Jr. como um dos trabalhos antropológicos mais influentes de seu tempo
(DELORIA, Vine 1969: 90-93). De 1945 a 1947, MacGregor foi empregado pela OIA
como Superintendente para a agencia Northern Cheyenne. Ele deixou aquele posto para
trabalhar para o Serviço como economista social na Unidade de Missouri River Basin,
supervisionando a remoção dos índios da reserva Fort Berthold de suas terras para que o
Serviço Indígena poderia abrir caminho para uma represa.
Em 1949, MacGregor deixou o BIA e foi trabalhar como consultor antropólogo
para o Departamento do Interior no Escritório dos Territórios do Pacifico. Finalmente, em
reconhecimento de seus trabalhos para a OIA/BIA, ele foi admitido pelo Departamento
de Estado em 1951 como coordenador para atividades antropológicas dentro do Programa
Quatro Pontos, o primeiro projeto externo de desenvolvimento americano de larga escala
no período pós-guerra.
4
Os antropólogos aplicados da OIA estavam bastante cientes das conexões reais e
simbólicas entre seus trabalhos nas reservas indígenas dos Estados Unidos durante o
Indian New Deal e o trabalho que iam realizar entre os novos selvagens da fronteira
imperial americana em expansão no período pós-guerra. John Provinse (que trabalhou
para a TC-BIA, foi um dos membros fundadores da Sociedade para a Antropologia
Aplicada e seu presidente entre 1942-46 (supervisionando os estágios finais do Projeto de
Personalidade), foi o responsável pela administração de comunidades na Autoridade de
Relocação de Guerra (WRA) e nomeado Comissário Assistente dos Assuntos Indígenas
no ano em que John Collier deixou a OIA) tornou explicita essa ligação em um discurso
que deu para uma turma de formandos da Escola Indígena do Forte Sill, em 19 de maio
de 1950. Province começou seu discurso associando a expansão através da America do
Norte com a atual expansão dos Estados Unidos através do mundo:
Como a Europa descobriu a América 400 anos atrás, a América está descobrindo
não apenas a Europa, mas o mundo inteiro. E o mundo descobriu a América. A América
tornou-se grande e poderosa, e sua grandeza e poder tornaram-se conhecidos por toda
parte. A América desenvolveu o know how [literalmente o "saber-como”] e sabe como
fazer as coisas. E junto com sua reputação internacional, a América esta aos poucos
tornando-se ciente de uma responsabilidade maior de viver com o resto do mundo e pela
condição das outras pessoas no mundo. Alguns americanos podem não gostar disso, mas
é verdade; a America encontra-se forçada a fazer algo acerca dessa responsabilidade, já
que ela não pode mais manter-se a parte do resto do mundo, mesmo que desejasse.
4
Informações acerca da carreira de MacGregor vem da coleção de papeis Gordon Macgregor, na NAA.
Cidadãos e Selvagens Parte III Conclusões
499
(NARA RG75 BIA, E192 Box 1 Misc 2 of 2 Folder, Speech to Commencement, May
19
th
, 1950, Ft. Sill Indian School)
Provinse então argumentou que, inspirado no exemplo dos Estados Unidos,
milhões de pessoas ao redor do mundo demandavam direitos democráticos e melhores
condições de vida. De acordo com ele, as Nações Unidas, o Plano Marshall para a
reconstrução da Europa e o Programa dos Quatro Pontos de Truman para o
desenvolvimento de nações recém-emergentes eram todas respostas a essa demanda
geral. O Vice-Comissário então argumentou que os EUA estavam envolvidos no
desenvolvimento das massas de pobres e subjugados do mundo, em parte porque estava
disposto a partilhar a riqueza e “em parte por que se não fizessemos assim, esses recém-
chegados no mundo – e há milhões deles – tomarão o problema em suas próprias mãos e
farão algo acerca disso.” A juventude indígena recém-graduada da escola do Fort Sill
teve um papel importante para desempenhar nesse processo, na ótica de Provinse:
Atualmente, se você examinar um mapa aonde as assim-chamadas áreas
subdesenvolvidas do mundo estejam marcadas – e para onde esperamos colaborar através
da exportação de “know-how” e “show-how” [literalmente “mostrar-como”] – você
encontrará muitas dessas áreas – na África, Ásia e América do Sul – habitadas por
pessoas cujos modos de vida, hábitos de pensamento, desejos e motivações [estão] muito
distantes das formas que muitos americanos têm dessas coisas. Os códigos morais que
eles seguem, suas atitudes frente a propriedade, os deuses que eles cultuam e os valores
que eles partilham, diferirão muito daqueles nossos códigos e modos de vida americanos.
Muitas dessas formas de vida e valores diferentes não são melhores ou piores do que os
nossos – eles são apenas diferentes. E eles são diferentes da mesma forma e no mesmo
grau que os valores e formas de vida de nossos índios americanos diferem dos valores e
formas de vida europeus. A experiência dos Estados Unidos com os índios americanos é
um dos experimentos mais significantes, em termos de relações humanas e inter-grupais,
que já aconteceram no mundo. E ele ainda está acontecendo e continuará a acontecer por
muitos anos. E vocês estão bem no meio disso.
A América infelizmente não compreende o quanto nessa busca por aproximações
aceitáveis em relação a povos não-industrializados em outras partes do mundo, esses
tinham em suas próprias historias nacionais e suas populações indígenas atuais, as
respostas para muitas das questões que estamos agora tentando resolver. A América
precisa saber o que pode acontecer nesses diversos lugares distantes do mundo para onde
nosso conhecimento tecnológico será exportado. Nós precisamos saber o que significa
para grupos de pessoas, diferentes de nós, mudar suas formas de viver, adotando novas
praticas, aceitando diferentes valores e, ao menos que saibamos e compreendamos essas
circunstancias, nossas ofertas de auxilio, não importa o quão bem-intencionadas, far-nos-
ão antes inimigos do que aliados. América precisa lucrar, nesse momento critico de
necessidade, de sua experiência com a América Indígena (ibid).
Cidadãos e Selvagens Parte III Conclusões
500
Provinse então disse que os americanos deveriam pensar, já que entraram em
“áreas em desenvolvimento e entre povos estranhos”, em como evitar os “enganos que
aconteceram com os indígenas americanos”. Ele dizia aos estudantes que “pelo fato
[deles] terem nascido o que nasceram, sujeitos a forças às quais foram sujeitados, tendo
crescido no período que cresceram, [eles] dispõem de um treinamento vocacional para as
relações humanas e o trabalho de paz mais importante do mundo e que nunca poderia ter
sido aprendido na escola.” Provinse recontou a história de dois rapazes Apaches que
estavam fazendo sinais de fumaça na reserva Mescalero quando a primeira bomba
atômica explodiu, nas cercanias de Los Alamos. Ao ver aquela nuvem em forma de
cogumelo, Provinse explicou, um dos rapazes Apaches virou-se ao outro e disse: “Puxa
amigo! Gostaria que nós tivéssemos dito isso!”
Durante suas vidas, vocês talvez não serão os primeiros, no campo da ciência
física, a explodir uma bomba atômica mas vocês têm, em seu histórico e experiências,
como construir uma enormidade de pequenas bombas atômicas no campo das relações
humanas, auxiliando no desenvolvimento desse campo [e criando] entendimentos entre
pessoas de tal maneira que vocês podem ajudar que o mundo fique longe de explodir-se
ou espalhar-se em pedacinhos, e fazer dessa terra um melhor lugar para viver (ibid).
Finalizando seu discurso com essa curiosa historia, Provinse então literalmente
situou os índios dos Estados Unidos como uma força de paz equivalente em poder ao
armamento atômico recém-desenvolvido do país, uma série de “pequenas bombas
atômicas no campo das relações humanas” cuja existência e experiência passada
habilitaria os Estados Unidos a conduzir a uma expansão mais racional e
(presumivelmente) menos sangrenta em novas fronteiras econômicas e políticas como
uma superpotência. Dessa maneira, os alunos da Escola Indígena de Fort Sill eram
chamados para dar tudo de si na nova e heróica fronteira construido por um renovado
Destino Manifesto Americano nos alvores da segunda metade do século XX.
Os administradores indígenas e seus aliados podiam argumentar, como haviam
feito antes nos anos de 1870-80, que suas experiências como “mecânicos” sociais,
administrando e ajustando a população mais anteriormente conquistada e colonizada dos
Estados Unidos, poderiam ter uma importância real no novo mundo de ameaças nucleares
e lutas de liberação no terceiro mundo. Com a aceitação crescente da antropologia
aplicada nos mais altos níveis do governo federal, mesmo os “engenheiros teóricos”
como Julian Steward começaram a repensar seus objetivos. Em uma discussão com o
Cidadãos e Selvagens Parte III Conclusões
501
antropólogo Frederick Richardson Jr. nos princípios de 1941 acerca da formação da
Sociedade de Antropologia Aplicada, Steward remarcou que “eu francamente não fui
capaz de convencer-me das implicações de uma sociedade de antropologia aplicada”.
Eu estou perturbado com as recentes tendências na antropologia. Lembre-se que
em pouco mais de cinco anos, a antropologia ao – ou pelo menos a geração mais jovem
dela – transformou-se, largando as preocupações com os estudos dos costumes dos
aborígines nativos para preocupar-se com os estudos de aculturação e mudança cultural,
tanto entre brancos quanto nativos. Parte dessa tendência incluiu a tentativa de empregar
a antropologia para a solução de problemas pragmáticos. Esse desenvolvimento parece
ter levado a antropologia tão além daquilo que ela era antigamente que muito de seus
objetos e metodologias agora são quase indistintos da sociologia. Mesmo naqueles casos
onde a antropologia trouxe novos métodos para problemas que tradicionalmente seriam
aqueles da sociologia, não estou certo que isso seja motivo para chamá-la antropologia.
John Province, [sic] por exemplo, está muito em duvida acerca do que deveria chamar-se
a si mesmo. De fato, seu único apelo a antropologia é o fato de que teve aí seu
treinamento inicial. Eu penso que deveria haver alguma questão se seu [N.T: referindo-se
aqui ao Richardson] estudo de mineiros de carvão seria antropologia ou sociologia
(NAA, Records of the Handbook of South American Indians, Box 6, Applied
Anthropology).
Não obstante sua perturbações, o Steward sabia surfar na nova onda da
antropologia moderna. Um ano após de sua carta a Richardson, Steward estaria ocupando
um cargo no Instituto de Antropologia Social, uma sub-divisão do Bureau of American
Ethnology. O principal propósito da ISA parece ter sido oferecer apoio às iniciativas
político-econômicas dos aliados políticos dos EUA (mais particularmente as nações
latino-americanas) com dados antropológicos – precisamente o tipo de trabalho “político”
e "mecanicamente aplicado” que Steward rejeitou antes na OIA. De acordo com o
Relatório Anual do Instituto para 1944, “a necessidade de compreender o elemento social
ou humano em qualquer desenvolvimento na América Latina está agora manifestando-se
na inclusão de um numero de cientistas sociais em programas de ação designados para a
América Latina, ou seja, no saneamento, borracha, desenvolvimento etc”.
Isso não apenas manifesta, mas cria, uma necessidade para de um grupo central
dedicado a estudos básicos e compreensivos do elemento humano em todas as partes da
[América Latina] – um programa sistemático dedicado a pesquisa compreensiva,
continuada [...] Assim, dados serão coligidos de cada área para colaborar em todas os
programas de ação que toquem nessa área ao invés de serem restritos a contextos
específicos, como no presente. Isso será atingido pela orientação de problemas com
referencia às necessidades de agencias de governo tanto quanto dentro dos limites de um
plano mais amplo (NAA, Institute for Social Anthropology, Box 1, Annual Reports,
1944).
Cidadãos e Selvagens Parte III Conclusões
502
O ISA avançaria, envolvendo-se em uma série de iniciativas de desenvolvimento,
tanto na America Latina quanto em outras partes nos anos seguintes a Segunda Guerra
Mundial, no mesmo sentido de ações para a melhoria da humanidade que Alice Fletcher
havia detonado no loteamento das reservas indígenas 70 anos antes.
Mas é no uso de antropólogos aplicados dentro do Programa dos Quatro Pontos
aonde podemos encontrar um claro exemplo de continuidade com o “missionarismo
cientifico” dos antropólogos da américa vitoriana. Em 1951, a AAA (American
Anthropological Association) preparou uma publicação intitulada Intercultural Transfer
of Techniques: A Manual of Applied Social Science for Point IV Technicians and
Administrators Overseas, sob a orientação do ex-funcionário da OIA, Gordon
MacGregor. Como o titulo indica, o manual era concebido para oferecer aos oficiais
americanos envolvidos em projetos de desenvolvimento no exterior tudo aquilo que a
antropologia havia aprendido nos últimos 100 anos acerca da melhoria tecnológica e da
inserção de nativos recalcitrantes na economia do mercado. Nesse relatório, podemos
encontrar muitos dos pressupostos sobre o mundo e seus povos que orientaram o
pensamento americano desde os primeiros dias da nação, agora retrabalhados para as
necessidades de expansão política-econômica de uma superpotência.
O manual apresenta uma visão da alteridade humana extremamente reducionista e
determinista, ainda que tudo a força motivadora da diferença seja atribuida a cultura e
não a biologia. Rejeitando o racismo e as determinações mais brutamente
homogenizantes, o relatório apresenta os nativos do recém-inventado terceiro mundo de
forma atomística e compartimentada. Nessa visão do mundo, cada povo representa uma
nação com uma cultura (singular e homogênica) associada e a cultura domina
absolutamente as crenças e atividades desse povo, ao ponto de ser historicamente
transcendente. “Todas os povos possuem características nacionais duráveis e modelos
institucionais duráveis próprios”, de acordo com os autores do manual:
Eles possuem uma continuidade que freqüentemente transfere algumas de suas
formas de vida através das gerações. Essas sobrevivem sucessivas modernizações,
revoluções, e mudanças de moda e ciência. Assim, a postura dos agricultores egípcios ao
cortar os grãos (com uma foice curta) é a mesma postura que aparece desenhada nos
murais das pirâmides, e os mesmos hábitos descritos por nosso primeiro cronista
europeu, de Tocqueville, por volta de 1800, são ainda reconhecíveis [nos EUA de] hoje
(NAA, Gordon MacGregor Papers, Box 1, Point IV Manual: Chapter I, p.5).
Cidadãos e Selvagens Parte III Conclusões
503
Esses modelos culturais profundamente arraigados, ainda que merecendo respeito,
são também compreendidos como sendo de uma força implacável no impedimento do
progresso humano – progresso definido pelos autores do manual, da mesma forma que foi
descrito nos fins do século XIX, como melhoria tecnológica e a aproximação como a
economia do mercado. “Resistências que nascem do conservadorismo dos costumes
locais estão por toda a parte”, criando “falência humana” em programas de
desenvolvimento, tais como quando fazendeiros “abandonando o cultivo de um tipo de
milho novo pelo fato de suas mulheres não quererem ou não poderem usá-lo para fazer
tortillas (que fazem grande parte de sua dieta de subsistência) pois elas simplesmente não
gostam do paladar”. Esses “fatores de resistência” foram classificados pelos antropólogos
do Programa dos Quatro Pontos como impedimentos ilógicos para a melhorias que
deveriam acontecer no mundo se as populações “não-ocidentais” fossem partilhar a
abundancia da riqueza material americana (ibid. 5-12).
Dada essa situação, os técnicos e administradores americanos nas novas fronteiras
de expansão colonial devem “conhecer algo geral da natureza do processo de contato e
algo das experiências históricas do contato entre americanos e outros povos ocidentais e
estrangeiros”.
Ele deve ser capaz de reconhecer os fatores cruciais nesse contato que podem
viabilizar ou impedir o sucesso da transferência de suas próprias técnicas e em obter
soluções para problemas aceitos pelos povos locais. Sua missão é persuadir povos de
hábitos e interesses desconhecidos a ajudarem-se a si próprios. Ele deve apressá-los em
tomar medidas que seu estudo desinteressado e especializado indica, funcionarão. Mas
ele não pode esperar que tais medidas se resolvam por si. Ele deve também saber como
identificar o que é possível para os povos locais, julgados pelas condições reais de suas
vidas, e o que envolve suas cooperações ativas e desejos pessoais para auto-ajuda. Ele
deve ser capaz de identificar as atitudes psicológicas nativas e as características nativas
de organização social e de trabalho e os hábitos os quais ajudarão ou impedirão os povos
de incorporar, de sua própria maneira, as inovações que ele lhes oferecer.” (ibid: 2)
Nessa empreitada, a antropologia estava idealmente posicionada para auxiliar o
tribulado trabalhador do desenvolvimento, pois “a antropologia cultural, algumas vezes
chamada etnologia” estudava “as culturas e raças da humanidade em toda a parte, os
diversos modelos da adaptação humana ao ambiente e à vida em geral, e as diversas
formas tradicionais de grupos humanos ao redor do mundo”. Prestando atenção a esses
estudos, o trabalhador do desenvolvimento poderia identificar os “fatores de resistência”
Cidadãos e Selvagens Parte III Conclusões
504
que impediam a mudança tecnológica e, de fato, fazer a cultura trabalhar para seus
programas em vez de contra eles. O trabalhador do desenvolvimento precisava cultivar
uma compreensão da cultura, sendo que “a cultura é o conceito chave das novas ciências
sociais e psicológicas”.
A cultura é a soma total daquilo que seres humanos individuais aprenderam em
comum com outros membros dos grupos que eles participam. Um humano adulto é um
individuo que aprendeu as maneiras do povo que o criou como seu próprio e o ensinou o
que sabe. Sua raça, sua origem nacional, sua hereditariedade, todos esses fatores são
secundários; é sua cultura que determina o que ele é, como ele atua e sente em
comparação com outros seres humanos (ibid: 29).
Na ótica dos autores do relatório, a própria história americana apontou para a
supremacia da cultura como um poder motivador humano: “De fato, o melting-pot
americano nós mostra o poder formador do comportamento apreendido [learned
behavior] entre os seres humanos, mesmo se a ciência não o mostrasse” (Ibid: 30). Nessa
formulação, as antigas teorias americanas do assimilacionismo foram re-acondicionadas
pelo novo jargão sócio-científico da cultura. Os Estados Unidos “provaram” o poder que
a nurture tem sobre a nature, precisamente porque “o melting-pot” transformou uma
mistura poliglota de pessoas em uma cultura presumivelmente homogênea que,
subseqüentemente, venceu duas guerras mundiais e tornou-se a nação mais rica da Terra.
Prestando atenção aos achados antropológicos, os trabalhadores do desenvolvimento
poderiam adicionar o mundo inteiro a esse melting-pot, aprendendo a manipular as
próprias culturas dos nativos “resistentes” e usando essas contra eles (pelo seu próprio
bem, é claro!). Como as tribas indígenas do século XIX, as “áreas em desenvolvimento”
eram vistas como o passado – um passado que, inevitavelmente, ia desaparecer. Tais
culturas eram descritas pelo relatório como partes “de um circulo de vida, velho, cheio e
balanceado, mas que desapareceu. Nem nós, nem eles, podemos voltar os ponteiros do
relógio” (ibid: 25). “O progresso”, contudo, “pode trazer lucros, novos problemas, ou
ambos.” Encontrando rotas de progresso que foram congruentes com as formas de vida
de determinadas culturas contemporâneas, o trabalhador do desenvolvimento do
Programa dos Quatro Pontos poderia, de fato, mudar a cultura, mas ele poderia também
aumentar a chance de que suas mudanças propostas fossem adotadas:
O técnico dos Quatro Pontos que sugere uma solução para um problema local
define uma cadeia de mudanças em seqüência. Como a mudança cultural é cumulativa,
Cidadãos e Selvagens Parte III Conclusões
505
uma nova técnica adiciona a uma antiga forma de vida, causaria muitas mudanças em
costumes e hábitos. Cada forma de vida é também um ajustamento pratico e estável para
seus seguidores. O técnico que encontra nisso algo para admirar, e que descobre alguns
particulares aos quais ele pode atrelar suas inovações, pode também amaciar o impacto
da mudança e aumentar as chances de que seu remédio ganhará adoção permanente.
(ibid: 28)
Era de fundamental para os autores do manual que as mudanças propostas fossem
adotadas. Essa era a meta mais importante para a atividade de desenvolvimento, já que
era suposto que os trabalhadores do desenvolvimento estivessem em uma harmonia mais
afinada com a realidade do que as povos que eles procuraram ajudar. Era reconhecido
que as áreas subdesenvolvidas tinham suas próprias “ciências nativas altamente
desenvolvidas”, mas essas não eram “ciências lógicas e indutivas” e eram supostas de
serem falaciosas. Povos subdesenvolvidos necessitavam, assim, de ser induzidos a aceitar
melhorias ocidentais e, dadas suas naturezas não racionais, os técnicos dos Quatro Pontos
precisavam encontrar alguma outra razãoo-lógica, não-indutiva para eles fazerem
aquilo. Era precisamente neste ponto que o conhecimento meticuloso da cultura nativa,
oferecido pelos antropólogos, poderia ser precioso para a nova geração de
administradores (supostamente pós-) coloniais (ibid: 16).
Os autores do manual Programa dos Quatro Pontos eram bastante cientes do fato
de que essa nova fase da empresa civilizatória era, de varias maneiras, similar àquela
conduzida entre os índios americanos e outras populações nativas subalternas não-
brancas, reconhecendo que “os Quatro Pontos, de um ponto de vista limitado, é o ultimo
de uma série de tentativas pelas nações do Ocidente para trazer áreas subdesenvolvidas
para um novo mundo civilizacional, com padrões de vida e estados físico, mental e social
de bem-estar comparados aqueles de nações ricas e auspiciosas tal como a nossa própria”
(Ibid: 23). Nesse sentido, era compreendido que “os Quatro Pontos trilham um antigo
caminho. Sua doutrina de auto-ajuda é nova, mas a historia dos contatos entre paises
Ocidentais e Não-ocidentais está qualhada com as ruínas de muitas tentativas de
desenvolver áreas subdesenvolvidas” (ibid: 16). Como os índios antes deles, “pessoas de
paises subdesenvolvidos ainda estão no meio-caminho de trabalhar diversas soluções para
conflitos ainda não resolvidos entre o novo e o antigo”.
Cidadãos e Selvagens Parte III Conclusões
506
As terras subdesenvolvidas do mundo eram, portanto, vistas como caracterizadas
por uma natureza dupla. Elas eram divididas entre componentes tradicionais e modernos,
uma divisão bastante parecida com as antigas caracterizações dos nativos americanos
como povos divididos entre tradicionais e progressivos. Esses novos primitivos eram
presos entre as antigas e as novas maneiras de ser, no meio da mudança, diferentemente
das terras “ocidentais” que já teriam presumivelmente passado exatamente por essas
mesmas mudanças. “Povos em paises em desenvolvimento estão ainda no meio do
caminho, no que tange a trabalhar com diversas soluções para conflitos ainda irresolutos
entre o novo e o antigo.”
Isso significa que alguns deles estão alienados das origens que construíram seus
próprios irmãos e irmãs tanto quanto seus pais e mães. Isso significa luta e conflito e
escolhas difíceis em suas próprias vidas e em seus relacionamentos e entre suas facções
em cada território misturado e em mudança. Os países subdesenvolvidos estão
atravessando o processo que as ciências sociais vieram a nomear aculturação
, que surge
do contato entre culturas, e mostra-se como mudanças culturais na forma de vida e hábito
de pensamento de um grupo social (ibid: 23).
Bem semelhante aos civilizadores do século XIX, portanto, o trabalhador do
desenvolvimento do Programa dos Quatro Pontos deveria intervir nessa situação
reforçando os progressivos e solapando os tradicionais – freqüentemente usando suas
próprias crenças culturais contra eles da mesma forma que Fletcher tirou vantagem de sua
enfermidade para apoiar o esquema de loteamento da OIA entre os Omaha. O papel dos
antropólogos nesse projeto era de oferecer o conhecimento cultural que formaria o
arsenal do trabalhador do desenvolvimento na luta do novo contra o antigo. Ainda que os
autores do manual definissem aculturação como “empréstimo cultural” e admitissem
formalmente que esse fosse um processo que andava nos dois sentidos, no contexto do
trabalho de desenvolvimento, todos esses “empréstimos” eram presumidos de ser em
apenas uma direção: dos povos presumivelmente mais avançados para aqueles
presumivelmente mais atrasados (ibid: Chapter IV, p.1).
Como podemos ver então, a antropologia aplicada do Programa dos Quatro
Pontos, a ISA e a antropologia americana em geral (através da AAA e da Sociedade para
Antropologia Aplicada) não tinham problemas em trabalhar com projetos politicamente
orientados durante e seguindo a Segunda Guerra Mundial, tanto quanto esses projetos
Cidadãos e Selvagens Parte III Conclusões
507
seguissem políticas estipulando a preservação e expansão do poder econômico e militar e
do prestigio político dos Estados Unidos.
O uso pela Repartição de Assuntos Indígenas de antropólogos teve um impacto
direto e formativo no desenvolvimento da antropologia aplicada americana nos anos
quando os Estados Unidos assumiu sua responsabilidade enquanto um poder global e a
antropologia tornou-se estabelecida como uma disciplina cientifica central,
freqüentemente chamada a produzir dados para o Estado americano. Com esse respeito, é
interessante lembrar a descrição de Talal Assad da antropologia como uma disciplina
fundada no encontro desigual no qual uma sociedade acumula informação cultural e
histórica sobre a outra a qual domina, gerando uma compreensão supostamente universal
da humanidade mas também simultaneamente reforçando desigualdades de capacidades
entre os dois universos em questão. No contexto desse encontro, as sociedades nativas
são objetivadas de acordo com um modo de pensamento, em si próprio baseado em
poderes desiguais de relacionamento. Esse relacionamento é o que “fixa” o objeto
antropológico, fazendo-o acessível e seguro para o estudioso acadêmico, sublinhando a
intimidade sob a qual o moderno trabalho de campo é fundado mas simultaneamente
garantindo que tal intimidade será unilateral e provisória. Quando alguém lê o Diário no
Estrito Senso do Termo, de Malinowski, não pode evitar de ser atingido pela
profundidade e vastidão da empresa colonial que tencionava “civilizar” os trobriandeses e
que tornou possível a presença do antropólogo no campo. Vine Deloria Jr. ilustrou de
forma magistral a natureza das relações de poder entre antropólogos e os povos
estudados por esses, muitos anos antes que Assad tinha conclusões semelhantes: “Os
antropólogos só entraram nos territórios indígenas depois que as tribos concordaram em
viver em reservas e desistiram de seus hábitos bélicos.”
Se as tribos tiveram que escolher entre lutar contra a cavalaria ou os
antropólogos, existem poucas duvidas de qual adversário teriam escolhido. Em
situações de crise, os homens sempre atacam o maior empecilho a sua sobrevivência.
Um guerreiro abatido em guerra poderia sempre ir para [o ceu indígena d]os Happy
Hunting Grounds. Mas para onde vão os índios abatidos por um antropólogo? Para a
biblioteca? (ASSAD, 1973: 16-17; MALINOWSKI, 1967; DELORIA, Vine, Jr.
1970:81)
Como Assad sinaliza, numa dada estrutura colonial de poder e conhecimento, as
descobertas da antropologia são mais propriamente usadas por aqueles com a maior
Cidadãos e Selvagens Parte III Conclusões
508
capacidade de exploração. Em resposta às eventuais acusações de que a antropologia
desempenhou um papel central na estruturação do colonialismo, os antropólogos
tipicamente subestimem os efeitos pragmáticos do conhecimento que produzem,
enfatizando que são raras as vezes que o Estado, de fato, segue as recomendações deles.
Mas isso, Assad reforça, é apenas metade da história, pois se é verdade que as
contribuições da antropologia podem não ser de importância crucial para a manutenção
do colonialismo, é inegável que o colonialismo tem sido, de fato, muito importante pra a
manutenção da antropologia. Apesar de tudo, é bastante comum “vender” o potencial da
antropologia de contribuir para construções políticas colonialistas pragmáticas para que a
disciplina consegue adquirir os recursos para se reproduzir: bolsas que colocam os
estudantes no campo ou em um programa intensivo de estudo de línguas; financiamento
para cadeiras acadêmicas nas universidades mais importantes; dinheiro para a impressão
de tomos de conhecimento etnológico esotérico e etc. (ASSAD, 1973: 16-17).
Nesse sentido, então, recuperar as experiências aplicadas da disciplina durante o
Indian New Deal dos anos 1930-40 é crucial para compreender o papel da antropologia
durante a Segunda Guerra Mundial e o começo da Guerra Fria. Essa experiência ajudou a
OIA re-estruturar suas políticas administrativas numa base cientifica moderna, mas seus
efeitos na antropologia foram também enormes. Através de sua aliança com o Serviço
Indígena, a disciplina recebeu recursos cruciais para a reprodução de seus quadros
durante a Grande Depressão, provavelmente a pior crise de financiamento na historia da
academia americana. Mais ainda, o trabalho dos antropólogos da OIA permitiu à
disciplina um lugar no quadro de orçamentos federais quando veio a hora de distribuir os
lauros da vitória da guerra e da distribuir verbas para a reconstrução da Europa e o
desenvolvimento do mundo pós-colonial. Com esse aumento no apoio federal dentro do
alcance da disciplina, foi possivelmente inevitável que os primeiros experimentos da
OIA, em termos da antropologia aplicada, fossem nublados e eventualmente esquecidos,
mas este fato é lamentável, desde que era precisamente nesse campo que a substituição
do conceito de raça pelo de etnicidade nas teorias antropológicas sobre a diversidade
humana pode ser visto em maior relevo.
Com o passar dos anos e com a maior institucionalização da antropologia fora da
OIA, as objeções iniciais em relação a seu uso “político” pela OIA de Collier foram
Cidadãos e Selvagens Parte III Conclusões
509
substituídos por criticas tais como aquela articulada por Julian Steward, em 1969 (e
investigada no Capitulo 7, acima), que situava o Indian New Deal como uma tentativa
malfadada de “voltar o relógio” da aculturação indígena. Contudo, como Laura
Thompson relembra, “eu não me lembro de ver [de Collier] expressando a idéia de que as
culturas indígenas deveriam ser 'preservadas’ ou algo parecido. Nem foi essa posição
sustentada por ele em qualquer discussão acerca dos indígenas [...]”
Sua posição no momento em que estive associada a ele (nos princípios
de 1941), expressada não apenas em palavras, mas em políticas, programas, e
ações, estava centrada na necessidade de compreender as culturas nativas em
todos suas sutilezas, suas constante mudanças e reações às pressões de forças
humanas e naturais, com o intúito de permitir esses povos a reconstruir suas
próprias fundações baseadas em metas auto-determinadas ou direções auto-
motivadas. A filosofia, assim chamada, democrática de Collier, – traduzida em
termos de políticas e programas administrativos – tentava colaborar com que os
índios para que esses pudesse ajudar a si próprios. Ele estava bem familiarizado
com as tremendas dificuldades praticas, tanto no nível local (das reservas),
quanto no regional e no central, (no ámbito federal) que trabalharam contra essa
finalidade. Ele também sabia que, mesmo com os melhores aconselhamentos e
pareceres, ninguém naquele momento realmente sabia como tal filosofia poderia
ser implementada. Mas ele estava sempre buscando iluminação para esse
problema prático e tentando colocar para trabalhar pessoas e idéias que
funcionariam para essa finalidade [...](NAA, Laura Thompson Papers, Box 41,
Professional Correspondence Kelly, Lawrence [1971-77], 8/8/77).
O que Collier pregava, com efeito, era o apoio federal para a etnogênese nativa –
e esse conceito, vale lembrar, não apareceria no léxico antropológico por muitas décadas
ainda. Parece que essa posição estava na base de seus desentendimentos com certos
antropólogos que, apesar da incorporação do conceito de cultura e da substituição de
teorias de assimilação por aquelas de aculturação, ainda tendiam a indexar a alteridade
humana seguindo uma lógica reducionista, determinista e (ocasionalmente) sócio-
evolucionista.
Como Richard Drinnon coloca, “qualquer que fosse seu sucesso ou fracasso na
utilização de uma estrutura burocrática calcificada para atingir fins libertários, Collier
conseguiu mudar a política indígena e – supreendentemente – a opinião pública, com a
proposta revolucionaria de que os índios não eram obstáculos e sim pessoas” e que o
próprio trabalho da OIA era solucionar os problemas dos índios e não o problema
indígena (DRINNON, 1987: 191). Drinnon provavelmente sobre-enfatiza o papel de
Cidadãos e Selvagens Parte III Conclusões
510
Collier como individuo, já que, como vimos na Sessão II acima, seu trabalho e vida eram
expressões de conceitos e escolhas culturalmente inculcadas que estavam longe de serem
incomuns na sociedade norte-americana do período – mesmo sendo anti-hegemônicas.
Mas é inegável que, mais do que qualquer outro individuo, o John Collier trouxe esses
conceitos para o campo político dos Indian Affairs, institucionalizou-os ali e convidou os
antropólogos a se envolverem com grupos nativos como entidades sociais viventes e não
como remanescentes culturais de algum outro tempo, agendados uma para eventual mas
inevitável remoção do palco dos assuntos humanos.
Muito antes do conceito tornar-se brilhante no léxico antropológico, John Collier
já havia articulado a teoria da etnicidade e empregou a dita teoria para os fins da
engenharia social. Nesse sentido, portanto, ele deveria ser considerado como um dos
maiores “ancestrais esquecidos” dos estudos de etnicidade. Como Laura Thompson
apontou pouco antes de sua morte em 1970, “um interessante desenvolvimento, que
ocorreu só recentemente, foi que a posição de Collier, tão nova e pouco compreendida
durante sua vida, tem tornado-se fundamental para a antropologia aplicada, um principio
básico sob qual a disciplina está desenvolvendo, não-obstante seu viés político”.
Collier era também profundamente consciente das tremendas diferenças
culturais e pessoais entre as tribos indígenas. E muito antes que os sociólogos
começassem a questionar o estereotipo do “melting pot” com relação a cultura
americana, ele tinha rejeitado isso. Sua posição a esse respeito é agora aceita
tanto em círculos profissionais quanto entre os leigos (NAA, Laura Thompson
Papers, Box 41, Professional Correspondence Kelly, Lawrence [1971-77],
8/8/77).
Cidadãos e Selvagens Considerações Finais
510
Considerações Finais
[...] Nas discussões dos assuntos humanos, a questão da justiça entra apenas aonde há poder
igual para impô-la [...] Os poderosos exigem o que eles podem, e os fracos dão o que eles
precisam.
The Melian Dialogue, Thucydides, 416BC
Se os indígenas tivessem um exercito tão grande quanto [aquele da] União Soviética, eles
poderiam ser soberanos. Mas eles não possuem um exercito. Somos parte dos Estados Unidos da
America [...] sujeitos aos poderes plenários do congresso [...] Temos que fazer aquelas coisas que
são praticas no governo.
Robert Burnette, Tribal Chairman of the Rosebud Sioux, ca. 1972.
1
Apenas os índios recebam os serviços do Bureau of Indian Affairs, não os cidadãos em geral. A
BIA é, então, classificada como paternalista, pois algumas pessoas acham que esses serviços
estão segurando os índios em seu atual estado. Poucos jamais definiram “segurar em seu atual
estado” para mim. Eu definiria isso, como o Congresso o fez em 1819, como segurando os contra
a extinção.
Vine Deloria Jr.
2
O fato mais importante que confronta a vida e a etnogênese dos grupos nativos
americanos nos Estados Unidos (e, podemos presumir, ao longo das Américas) tem sido a
conquista e a tentativa de absorção das polities indígenas pelos estados nacionais
colonizadores. Nesse cenário, desde o fim do século XIX, nenhuma agência ou
instituição tem tido um efeito mais notável nas vidas e nas culturas dos índios americanos
do que o Office (e mais tarde, o Bureau) of Indian Affairs. Como tanto Thomas Biolsi
(1997) quanto Vine Deloria Junior (1970) salientaram em repetidas ocasiões, apesar de
toda sua interferência na vida nativa e de sua inércia burocrática, de certa forma, a OIA
serviu aos propósitos nativos, pois ofereceu subsídios econômicos à vida na reserva e
esse fato, por sua vez, permitiu às comunidades nativas (ainda que modificadas ou “não-
tradicionais”) a sobreviverem como unidades culturais e sócio-políticas.
Como vimos acima, a antropologia foi de importância fundamental para a
construção e consolidação da presença da OIA nas terras indígenas e os antropólogos
eram peça chave na formulação daspolíticas do Serviço Indígena. De forma bem real,
portanto, a antropologia americana contribuiu para a (re)criação da “vida indígena” que
cada geração de investigadores de campo encaram, novamente, como um fenômeno
1
Apud LAZARUS, 1991: 296.
2
IN: DELORIA, 1988 [1970]: 98.
Cidadãos e Selvagens Considerações Finais
511
cultural que tinha se evoluido fora da história. Em outras palavras, a antropologia tem
sido extremamente cúmplice na construção do objeto que ele presume estudar in natura.
As palavras de Vine Deloria com as quais abrimos essa tese podem assim ser
consideradas como uma verdade literal: por detrás de toda política administrativa que os
indígenas americanos foram submetidos (ou, ao menos, por detrás de duas das mais
importantes reformas políticas no campo indigenista nos últimos 125 anos) encontra-se o
antropólogo.
Nossa questão final deve ser, portanto, porque essa historia foi largamente
esquecida pelos antropólogos americanos, não apenas uma, mas repetidas vezes? Depois
Afinal das contas, o papel da antropologia nas reformas indígenas dos últimos dois
séculos tem sido fundamental para ambos os campos e não foi desonroso. Existem razões
para criticar as contribuições de antropólogos tanto nos debates de loteamentos quanto no
Indian New Deal, é claro, mas quando damos um passo por trás e consideramos as
prováveis alternativas políticas durante ambos os períodos, podemos admitir que, para
mal ou para bem, os esforços antropológicos foram cruciais para uma reformulação dos
assuntos indígenas que permitiram a existência continuada de povos nativos enquanto
tais. A provável alternativa política do Ato Dawes, deve ser lembrado, não teria sido a
soberania tribal, mas a eventual eliminação de toda as terras nativas e a eliminação mais
ou menos imediata das tribos como coletividades sociais. E apesar de todas suas faltas e
desventuras, o Indian New Deal recuperou os povos indígenas enquanto unidades
políticas concretas que existiam dentro da estrutura política formal e mais ampla do
estado nação americano. Como Biolsi aponta, seguindo Stephen Cornell, as reformas do
Indian New Deal não eram de natureza meramente simbólica: elas “abriram espaço
político para os povos [indígenas] de todas as linhas políticas e extrairam suas demandas
– recém definidas como não apenas legitimas, mas necessárias – para representação e
autoridade”, facilitando e legitimando a mobilização política indígena, mesmo se essa
não aumentasse o poder dos índios sobre a OIA e o governo federal (BIOLSI, 1997: 185).
Passando em revista os resultados de ambas as reformas, é claro que uma das
principais falhas dos antropólogos foi uma falta quase completa de follow-through. Em
ambas as áreas, a antropologia, como uma disciplina, procurava envolver-se com os
Indian Affairs apenas aonde o esforço antropológico havia sido subsidiado por recursos
Cidadãos e Selvagens Considerações Finais
512
aumentados, oportunidades de carreiras, ou reconhecimento federal. Aonde esses bens
circulavam ou quando o clima político nos assuntos indígenas mudou, o interesse da
antropologia em acompanhar o processo de reforma, que ela ajudou a instituir, caiu
drasticamente. Por causa disso, as reformas em ambos os períodos foram afastados de
seus objetivos iniciais, quase sem nenhum protesto ou critica da antropologia americana.
É importante lembrar, nesse contexto, que as atividades antropológicas em ambas
as reformas foram caracterizadas pelo envolvimento de instituições antropológicas
consideradas coms chaves e que essas foram ágeis em assumir uma responsabilidade
coletiva pelas atividades da antropologia aplicada, quando tais atividades refletiam
positivamente na disciplina como um todo. Em outras palavras, as atividades
antropológicas na reforma indígena dos Estados Unidos não podem ser caracterizadas
como uma simples coleção de esforços individuais e desnexos.
A explicação mais comum que é consistentemente oferecida acerca da estranha
tendência de “lembrar para esquecer” que a antropologia tem mostrada frente seu
envolvimento com os assuntos indígenas é que tal envolvimento era de natureza
eminentemente “política” e que a antropologia, como uma ciência presumivelmente
objetiva, esteve bastante desconfortável com tais engajamentos. Essa explicação,
contudo, é insuficiente porque naturaliza a atividade política naquelas instâncias quando
essa foi consistente com a ideologia americana do nacionalismo e do Destino Manifesto.
Tradicionalmente, a historia da antropologia norte-americana é apresentada como
uma de evolução linear, aonde novas teorias sobrepõe antigas à medida em que essas são
provadas incorretas e obsoletas. Nessa historia, de acordo com muitos analistas, não
houve maior mudança do que aquela da teoria da evolução social para a teoria da cultura,
uma transformação compreendida como sendo tão grande que ela apenas seria
adequadamente descrita como uma “mudança de paradigma” (STOCKING: 1976, 6).
Como Edward Brunner nos faz recordar, porém, as novas narrativas na antropologia são
geralmente advindas de mudanças no contexto político que as cerca, pois a disciplina é
inevitavelmente engajada em uma dialética com a sociedade que a produz (1986:141).
Freqüentemente, então, as narrativas que focalizam nas mudanças na teoria antropologica
acabam camuflando continuidades no pensamento dos antropólogos. No caso da
antropologia americana, do final dos anos 1870 ao começo dos 1950 (e posteriormente),
Cidadãos e Selvagens Considerações Finais
513
uma das maiores continuidades era a crença na nação como a ápice evolucionista da
existência social e (em menor grau) a crença nos Estados Unidos como uma nação com
um mandato especial, um cuja expansão foi providenciada por uma Força extrahumana.
Essa visão de mundo situava os nativos americanos como Outros subordinados,
vivendo em condições sociais típicas do passado humano e imperfeitamente integrados
no corpo nacional que os circundava. Essa integração – cujo resultado final tinha que ser
a exterminação – era compreendida como o destino natural dos nativos americanos. A
relutância dos nativos americanos em seguirem seu papel e desaparecerem da cena
nacional era compreendida como sendo um elemento primordial do Problema Indígena e,
desde o fim dos oitocentos, a antropologia encampou a tarefa de intervir na vida indígena
americana para tentar resolver essa relutância. Esse era um ato político de primeira
magnitude, mas não é geralmente reconhecido como tal – ou relembrado dessa forma –
pela antropologia americana, exatamente porque a nação americana não estava sendo
examinada como uma formação social com a mesma objetividade usada para dissecar
tribos e guetos de imigrantes. A nação era naturalizada como um fenômeno social:
selvagens tribalizados deveriam necessariamente tornar-se cidadãos das nações ou
desaparecer da face da Terra. O nacionalismo, portanto, tornou-se um grande discurso
que subscrevia a antropologia americana, geralmente incontestado pela maior parte do
século que essa tese trata. A supremacia natural da nação e a visão da Nação Americana
como uma formulação socio-cultural de valor excepcional era defendida, unha e dente,
sempre que desafiada (ainda que timidamente) durante o período sob consideração aqui.
Precisamos apenas lembrar, por exemplo, que a AAA censurou Franz Boas após da
Primeira Guerra Mundial devido a critica dele acerca do uso de antropólogos como
espiões pelo governo federal durante a guerra. Ainda que geralmente lembrado como o
última vitória da Velha Guarda Anglo-Saxã na antropologia, a censura de Boas
aparentemente causou uma impressão sensível na disciplina, uma vez que nenhuma
critica extensiva da política externa americana ou do uso de antropólogos nela seria
estruturada dentro das fileiras da AAA até a Guerra de Vietnam. Os antropólogos
aderiram otimisticamente à “boa luta” durante a Segunda Guerra Mundial. Embora é
verdade que a reação ao anti-semitismo nazista pode explicar porque o Boas e outros
antropólogos judeus não fizeram nenhuma objeção ao papel da antropologia durante essa
Cidadãos e Selvagens Considerações Finais
514
guerra, isto não serve para explicar a porque o resto da disciplina empenhava-se em favor
d’A Causa com tanto vigor e dedicação. Para aqueles que apontam para as supostas
“tendências anti-racistas inerentes” da antropologia cultural como um fator nessa adesão
ideológica, deve ser lembrado que esses mesmos anti-racistas não ofereceram nenhuma
objeção intensa contra o internamento de dez mil cidadãos americanos nos campos de
concentração durante a guerra, somente baseados na etnicidade desses. De fato, a
antropologia americana foi cúmplice dessas atividades, providenciando voluntários para
fazer desses campos lugares mais humanos através de seus estudos e intervenções. Como
mostra Peter Suzuki, os trabalhos que que esses estudiosos da cultura produziram
situavam a identidade étnica nipo-americana como um futuro problema étnico que
precisava ser resolvido para o bem da nação.
Semelhantemente, o simples desejo por consolidação e avanço profissional não
pode explicar a duradoura aliança da antropologia americana com o estado americano e
seus objetivos. Como vimos acima, enquanto a disciplina, como um todo, adquiria status
e recursos substanciais através de suas periódicas alianças com o governo federal
americano, os trabalhos em prol do governo eram geralmente feitos com uma extrema
boa fé, realizando contribuições substanciais para as praticas da administração indígena e,
mais tarde, à expansão imperial transnacional. Consultando os registros dos assuntos
indígenas, é difícil encontrar um antropólogo que não acreditava na eventual subsunção
dos nativos americanos ao corpo nacional. Os argumentos políticos mais comumente
empregados giravam em torno da preocupação sobre como isso deveria ser feito, e não se
isso deveria ser realizado. Como vimos acima, a maioria das criticas apontadas para
Collier por antropólogos salientam as imperfeições do Indian New Deal como um
mecanismo assimilacionista.
O fato é que os antropólogos americanos envolveram-se com os assuntos indígenas
de maneira que o fizeram largamente por acreditarem na nação americana e em sua
contínua expansão em direção às terras e vidas de outros povos. Parece, então, apropriado
que finalizemos essa nossa tese com uma breve investigação do que essa crença envolve,
especialmente com respeito aos povos nativos que o governo federal americano fez tanto
esforço por integrar totalmente ao corpo nacional.
Cidadãos e Selvagens Considerações Finais
515
Os Índios e a Narrativa Nacional de Unidade
Quase todos os poderes europeus ocidentais estiveram, em algum momento,
engajados na colonização e exploração das Américas e seus estados sucessores nessas
empreitadas continuam esses projetos atualmente, procurando subsumir as identidades de
distintos povos indígenas à uma totalidade nacional mais ampla. A lógica da
nacionalidade é e foi o elemento chave para forjar as redes “pluralísticas” de etnicidades
que são hoje encontradas nas Américas, efetuando transformações políticas e
organizacionais pelas quais passsaram os povos nativos desses continentes. Como João
Pacheco de Oliveira Filho nos relembra, “Se muitos fatores (internos e externos) podem
ser indicados para explicar a passagem de uma sociedade segmentar à condição de
sociedade centralizada, o elemento mais repetitivo e constante responsável por tal
transformação é a sua incorporação dentro de uma situação colonial, sujeita, portanto, a
um aparato político-administrativo que integra e representa um Estado (ou politicamente
soberano ou somente com status colonial).” (OLIVEIRA, 1997: 20).”
Por boa parte dos últimos 500 anos, os europeus e seus descendentes coloniais
consideraram a nação como a pedra fundamental da organização social ao redor da qual
humanos de toda parte da terra poderiam ser agrupados e classificados. Benedict
Anderson classifica a nação como “um amplo sistema cultural”, um status que ela
partilhar com a religião e as monarquias. Por essa razão, Anderson separa a historia da
colonização das Américas em dois estágios. No primeiro, o Estado é largamente a
expressão de interesses dinásticos expandidos para as Américas, justificando seu projeto
colonial através do recurso a religião e as políticas maquiavélicas de poder. O segundo
estágio vê o desenvolvimento de projetos nacionais independentes nas Américas, na qual
o Estado colonial é localmente deposto. A nação que substitui o poder colonial embarca,
então, em busca por sua “distinção” como povo – uma busca que quase inevitavelmente
leva a apropriação dos indígenas como tipos nacionais (ANDERSON:12-14. DELORIA.
1998, OLIVEIRA, 2006).
Apesar de muitas teorias do século XIX e seus derivados modernos postulam a
nação como um fenômeno essencial e natural humano, uma das mais influentes
definições e certamente uma das que melhor resiste ao tempo (sendo citada pelos
principais investigadores modernos da nação: cf ANDERSON; GELLNER; BHABHA;
Cidadãos e Selvagens Considerações Finais
516
STOLCKE, 2000), foi articulada pelo filosofo e historiador francês, Ernest Renan, em
seu ensaio clássico: “Qu’est-ce qu’une nation?”
Publicado 12 anos depois da devastação da guerra franco-prussiana de 1870, o
ensaio de Renan enfatiza as origens voluntaristicas e culturalistas da nação em resposta
aos argumentos naturalistas e essencialistas, então em voga como apologias da expansão
nacionalista alemã (GELLNER:7). Descartando raça, língua, interesse material, afinidade
religiosa, geografia e necessidade militar como argumentos, em si mesmos insuficientes
para uma bem sucedida reprodução e fundação da nação, Renan a classifica como “uma
alma, um princípio espiritual” comumente partilhado por um dado grupo de pessoas. Esse
principio é construído de dois componentes: a possessão comum de um “rico legado de
memórias” e um desejo constantemente renovado de convívio no sentido de “perpetuar o
valor da herança que recebemos de forma individida.” Renan chama esse estado de coisas
de um “plebiscito diário”, sublinhando a natureza contingencial, temporal e artificial da
nação como uma “solidariedade em larga escala, constituída por sentimentos dos
sacrifícios que foram feitos no passado e aqueles que se preparam para fazer no futuro”.
Ele ancora esse plebiscito firmemente nos “desejos e necessidades humanos” e não na
natureza (RENAN: 52-53). Em outras palavras, as pessoas constantemente reproduzem
sua nação em bases consensuais, enfatizando uma “herança comum” que é, em si mesmo,
uma construção artificial, pois é verdade – como Renan tão conhecidamente apontou –
que esses indivíduos, em construir seu sentimento de pertencimento a uma nação, são
obrigados a manter muitas das coisas em comum, mas também são obrigados a esquecer
muitas outras (RENAN: 45).
Uma leitura cuidadosa de “Qu’est-ce qu’une nation?”, porém, deixa aparente que
tudo não é como pode aparecer ao primeiro olhar. Como Verena Stolcke aponta, apesar
do ensaio de Renan ser mais comumente lido como implicando a definição moderna,
liberal e “aberta” da nação, ele, de fato, não confronta ou contradiz abertamente as visões
conservadoras e essencialistas do mesmo fenômeno:
Los defensores liberales de una idea de “nación” coherente con el moderno
individualismo democrático suelen cita la célebre metáfora de Renan “La existencia de
una nación es un plebiscito cotidiano”. Sin embargo, tienden a pasear por alto que Renan
invocó al mismo tiempo otro argumento culturalista para resolver o problema de cómo
circunscribir al “pueblo” habitado a participar en es plebiscito: “la posesión común de
una rica herencia de memorias... El culto de los antepasados es el más legítimo de todos
Cidadãos e Selvagens Considerações Finais
517
los cultos. Los antepasados han hecho de nosotros o que los somos...” (STOLCKE, 2000:
31)
Em outras palavras, ainda que as pessoas possam diariamente escolher participar
da nação, sua habilidade para tal parece estar condicionada por uma pré-condição
comumente apreendida e sexualmente transmitida. Renan usa “herança” para descrever
essa condição, enfatizando ainda mais sua natureza quase-biológica, com seu comentário
de que “os ancestrais nos fizeram aquilo que somos” (RENAN: 52). Ainda que a nação
possa ser “consensual”, aqueles que são mais obviamente “herdeiros” do “culto dos
ancestrais” atingem com maior sucesso o desígnio de seus pares como membros da
nação. Não deveria ser surpresa, portanto, que os marcadores de fenótipos, comumente
entendidos como a evidência da existência de “raças”, tradicionalmente têm sido um dos
mais óbvios marcadores de nacionalidade, especialmente nas Américas.
A nação de Renan também não é tão relativística quanto pode parecer a primeira
vista. Ainda que ela seja criada por um número grande de diferentes fatos convergentes e
existe outras nações como membro de uma pluralidade competitiva e comparativa, Renan
claramente situa o Estado-nação soberano como a apoteose de uma hierarquia evolutiva
de organizações sociais humanas. Ele argumenta que “as nações participam do trabalho
comum de civilização; cada uma soa uma nota em um grande concerto da humanidade,
que, afinal das contas, é a realidade ideal mais alta que somos capazes de atingir” (Ibid:
45, 53). Hoje, é bastante fácil ler essa declaração como uma reiteração insípida do
pluralismo cultural já que, afinal, não são todas as nações juntas que constroem a
“civilização”? Vale a pena relembrar, porém, que em 1882 a “civilização” não era um
conceito pluralista (STOCKING, 1968; 1987). Renan torna claro que ele imagina
“civilização” no singular: um fenômeno iluminista, amplo e transnacional, caracterizado
pelo ápice do desenvolvimento humano em todos os campos. Ele dá um lugar de
destaque a França por ter “proclamando que a nação existe em si própria” (RENAN: 46),
e serenamente prevê o eventual triunfo do modelo liberal e consensual da nação em
assuntos internacionais (Ibid: 54). Essas afirmações não fariam sentido a menos que
Renan acreditasse na soberania do Estado-nação, democraticamente reproduzido, como
um estágio evolutivo próximo no devir do desenvolvimento humano.
Cidadãos e Selvagens Considerações Finais
518
Uma chave final característica sustenta o conceito da nação formado por Renan, e
para nossos propósitos aqui ela seja, possivelmente, a mais importante. Ainda que a
unidade nacional possa ser “consensual”, ela também é totalizante e construída como tal a
partir da violência ancestral. O próprio Renan foi bastante claro no papel que a conquista
desempenhou em fundir as populações componentes dos Estados da Europa ocidental em
nações: “era, de fato, as invasões germânicas que introduziram no mundo o principio que,
mais tarde, serviria de base para a existência das nacionalidades [...]” A fusão da nobreza
germânica com o campesinato céltico-latino, sob os auspícios de um único Estado,
tornou-se “com o passar dos séculos, a matriz contemporânea da nação.” Esses
comentários precedem imediatamente o dictum famoso de Renan sobre o “esquecimento”
e ele sublinha sua importância por seguir o dictum com a observação de que “nenhum
cidadão francês sabe se ele é Burgúndio, Alão, Taifale, ou Visigodo [...]” (Ibid: 44-45). A
violência, portanto, forja a unidade, mesmo contra a vontade dos povos envolvidos e o
“plebiscito diário” revela-se como uma união forçada pela espada. Ainda que Renan
argumente que “alguém não tem o direito de andar pelo mundo dizendo [...] ‘você é do
nosso sangue; você pertence a nós!’”, nada aparentemente impeça a inversão da ordem
desses acontecimentos, ie.: "Você pertence a nós; você é do nosso sangue” (Ibid: 49).
Como Homi K. Bhabha salienta, para que a nação se reproduza, as precondições
violentas da unidade nacional devem não apenas serem esquecidas, como lembradas para
após serem esquecidas. Enquanto uma das principais características da nacionalidade é
uma simultaneidade comunal imaginada (ou seja, “todos juntos somos franceses, não
importa onde que estejamos”, ANDERSON.23-24), outra é uma ordenação cronológica
na qual o sinal nacional é repetido contra um aparente fundo de negação (ou seja, “nossos
ancestrais podem ter sido Huguenotes, mas nós somos franceses por que os Huguenotes
são parte do que constitui a França”):
O próprio devir de Renan é em si mesmo, o lugar de um estranho esquecimento
da história do passado da nação: a violência envolvida no estabelecimento da vontade
nacional. É esse esquecimento – um defeito de origem – que constitui o principio da
narrativa da nação [...] é através dessa sintaxe de esquecimento – ou sendo obrigado a
esquecer – que a identificação problemática do povo nacional torna-se visível [...] A
equivalência de vontade e plebiscito, a identidade da parte e do tudo, passado e presente,
é cortada pela ‘obrigação de esquecer’, ou de esquecendo-se de lembrar” (BHABHA:
p.310).
Cidadãos e Selvagens Considerações Finais
519
Não é através do esquecimento, então, mas através da lembrança e assim
imediatamente lembrando de esquecer que a lógica da nação funciona como uma
narrativa de construção de identidade (BHABHA: 311). Nas palavras de Benedict
Anderson, as nações são imaginadas a partir da inversão de uma lógica genealógica:
inicia-se com o presente ordinário e trabalha-se no sentido do retorno aos fundadores
míticos (ANDERSON: 205).
Pode-se ver claramente, então, que longe de ser “pluralista”, a lógica da nação
apresentada por Renan – seu mais clássico expoente – tende para um vertiginoso
totalitarismo. Ela ordena não apenas o espaço, mas também a história e nossa relação
com o próprio tempo. Ela repele a reflexão sobre as origens violentas da unidade
nacional, organizando a história como um fenômeno singular e linear cujo propósito é
criar um “nós”, um “povo”, que assim seu consentimento para ser governado. Nas
palavras de Ernest Gellner, a nação só pode ser definida no contexto do nacionalismo,
pois – ao contrario da crença popular – o nacionalismo engendra nações, e não o inverso
(GELLNER: 169).
A nação é, resumidamente, um artefato de poder: sua unidade é forjada através da
conquista; sua história e sociedade refletem uma coleção estreita e “herdável” de escolhas
culturais; seu ambiente mais amplo é uma “civilização” envolvente na qual a nação
compete e interage com outras organizações sociais do mesmo tipo. Como Werner
Sollors nos lembra, “É sempre a especificidade das relações de poder em um dado
momento histórico e em um lugar particular que gerou a estratégia de explicações
pseudo-históricas que camuflam o ato inventivo em si” (SOLLORS: xvi). A nação é um
artefato particular de um dado tempo e lugar: a Europa pós-renascentista. Sua existência
no hemisfério ocidental é o resultado de uma expansão transatlântica histórica. Como
uma crença cultural partilhada pelos europeus que inicialmente visitaram e depois
conquistaram essas costas, não é surprendente que o estado-nação foi gerou fenômenos
reconhecivelmente semelhantes – se enormemente variáveis – através das Américas,
aonde quer que tenha se chocado com as formas nativas de organização social.
Os povos indígenas ocupam uma posição interessante nas imagens nacionais das
Américas. Do Canadá à Tierra del Fuego, eles foram universalmente assumidos como a
pedra de fundação da nação. Como Vine Deloria Jr. remarca, é quase impossível
Cidadãos e Selvagens Considerações Finais
520
encontrar um “branco” norte-americano que orgulhosamente declare que tem alguma
princesa indígena escondida em algum ponto de sua arvore geneológica (DELORIA,
VINE, 1969). No Brasil (e em muitas outras nações latino-americanas), declarações de
herança indígena são, sobremaneira, ainda mais marcadas. Essas suposições são um
excelente exemplo do “esquecimento” de Renan, como esse é compreendido por Bhabha,
Stolcke e Anderson. Do ponto de vista de um “americano” auto-identificado, portanto,
nada pode parecer mais natural do que uma herança indígena pois, através da lógica da
nação, a historia é vista como encontrando seu ponto cumulativo na atual reiterante
narrativa nacional de unidade e identidade. Nessa história, os índios foram conquistados,
tanto como foram os romano-celtas pelos invasores germânicos, e a miscigenação, tanto
cultural como física, assim criou um povo “novo”. Dentro dessa narrativa da nação, os
índios são apresentados como incorporando a dinâmica de lembrar para esquecer.
Romantizados como Outros exóticos, eles são lembranças do passado da nação e sua
formação como uma comunidade sócio-politica distinta. É precisamente esse uso
simbólico dos nativos americanos como elementos fundadores da narrativa nacional que
tem, historicamente, ocultado a compreensão da antropologia americana da alteridade
nativa e não quaisquer preocupações teórico-epistemológicas. Em outras palavras, os
antropólogos americanos tem sido tradicionalmente americanos primeiro e só depois
antropólogos e isso, em minha visão, é a dinâmica que marca a curiosa relutância da
antropologia americana em engajar-se com seu passado como uma disciplina aplicada.
Por boa parte de sua história, a antropologia tem sido uma cúmplice da álgebra
básica do poder nacional nas Américas. Ainda que certamente não seja sua meta
primária, um dos efeitos colaterais da prática da etnografia tradicional é a tendência de
concentrar-se nos detalhes mínimos da vida cotidiana local, freqüentemente ao custo de
ignorar como os fenômenos mais amplos, externos e trans-locais (como o estado-nação)
podem ter um impacto crucial sobre as vidas e identidades locais. Durante sua vida, Vine
Deloria Jr. apontava repetidamente para os resultados absurdos que o saber etnográfico
poderia gerar quando esse não era aliado com o bom senso, uma compreensão aguda da
história e – crucialmente – um conhecimento profundo e objetivo da cultura do etnógrafo.
Pouco antes de sua morte, Deloria chamava os cientistas sociais para virar suas lentes
analíticas de volta a suas sociedades de origem ao invés de tratar os indígenas como
Cidadãos e Selvagens Considerações Finais
521
Outros perpétuos e primitivos, contra os quais sociedades “mais desenvolvidas” poderiam
ser medidas:
[…] Desde que a antropologia e os antropólogos continuam focalizando-se nos
indígenas e mandando seus relatórios à suas próprias sociedades sobre os povos
pitorescos e as vezes românticos que eles estão estudando, não existirá nenhum respeito
para os povos tribais desse mundo, apesar dos repúdios piedosos e promessas de alianças
emocionais dadas por tais acadêmicos. Todavia, se os antropólogos e outros cientistas
sociais começarem a falar criticamente das deficiências de suas próprias sociedades,
usando o conhecimento que eles dizem ter derivado da observação de povos tribais, isso
será um sinal de que algo de real valor está contido no contexto tribal (DELORIA,
1997:220-221).
Eu sugeriria que a análise de Deloria é fundamentalmente correta e que sua
sugestão é boa. Ainda que chamados para maior reflexividade dentro da antropologia
estejam sido presentemente considerados como um pouco passé e “politicamente
correta”, é obvio – ao menos para esse autor – que a antropologia americana não se
envolveu suficientemente nessa tarefa, dados os anúncios de recrutamento para operações
da CIA e do Pentágono na “Guerra contra o terrorismo” que atualmente grassam nas
páginas do American Anthropologist. A antropologia aplicada tem estado desde sempre
conosco e sempre estará. Mas o tempo em que podemos “inocentemente” argumentar que
não estivemos alertas às pressuposições acerca da natureza humana que marcam as
origens de nossa disciplina está muito atrás no passado.
Cidadãos e Selvagens Apêndices
522
APPENDIX I
Anthropologists or Anthropologically-trained Individuals who
worked for the BIA: 1934-1945
Sophie Aberle. Named reservation superintendent by Collier for the United Pueblos and
later a U.S. representative at the Patzcuaro Conference. Also John Collier’s lover
(MCNICKLE, 1979; JCP reel 24, 27; NARA, Laura Thompson Papers; TAYLOR,
1975).
Louis Balsam. Worked with Applied Anthropology staff in several regions, particularly
among the Chippewa in Minnesota. Later reservation superintendent, first at Red Lake,
among the Chippewa and then in Oregon, at Ft. Berthold. American delegate at
Patzcuaro Conference (JCP reel 11; TAYLOR, 1975).
Byron Cummings. Advised the BIA regarding the Hopi, 1942. (NARA RG75 E1012).
Ella Carr Deloria, worked for BIA on Lumbee case in North Carolina, 1936 or ’37
(DELORIA, E, 1998).
Fred Eggan. Worked on BIA dietary study among the Indians of the Southwest in early
1940s. Advisor on Indian Personality Project. (SCHUSKY and EGGAN, 1989; NAA
Robert Havinghurst Papers).
William N. Fenton. Reports on New York Indians in late 1934, early ’35. Community
worker among the Seneca, 1935. (NARA RG 75, E1012 ).
Margaret Fisher. Associated with the AAU. Worked among the Chippewas of Minnesota
in 1935-36 and in the Southwest, May 1936. (MCNICKLE, 1979; NARA RG75
E1012).
William Gates, hired by Collier in Jan. 1934 to study Yuma situation and later goes to
Mexico to check out their land reform polices. (JCP reel 20, 27)
Mr. Abraham Halpern. Associated with the AAU. Assigned to Sacramento Agency in
CA. Working on rancherias. 1935-36. (MCNICKLE, 1979)
John Harrington, Applied Anthro Staff member, worked in Southwest. Views used to
support BIA’s position on peyote in May, 1937. (TAYLOR, 1975).
Robert Havinghurst. Though not an anthropologist, together with Lloyd Warner,
Personality Project supervisor for the Committee on Human Development of the
Cidadãos e Selvagens Apêndices
523
University of Chicago. (SCHUSKY and EGGAN, 1989; NAA Robert Havinghurst
Papers).
George Herzog, Consulted by Collier regarding a Native American music program
(IAW, 15/1/1935.
Willard W. Hill, worked for TC-BIA in New Mexico. Made a report on the Navajo in
1935. (NARA RG75, E178).
Alice Joseph. Worked on the Personality Project among the Hopi. Co-authored The
Desert People monograph for that project. (MCNICKLE, 1979)
Edward Kennard. Aided the BIA as a consultant regarding problems arising from the
Hopi tribal government. Advisor on Indian Personality Project. (MCNICKLE, 1979;
NAARA RG75, E1012; NAA Robert Havinghurst Papers).
Sol Kimball, studied Navaho land use for the TC-BIA. (SCHUSKY and EGGAN, 1989).
Clyde Kluckhohn Worked on the Personality Project among the Navaho. Co-authored
The Navaho and Children of the People monographs for that project. Advised Collier
on a series of anthropological questions during the final years of his administration.
(MCNICKLE, 1979; TAYLOR, 1975; JCP reel 21; NAA Robert Havinghurst Papers)
A.L. Kroeber funneled students and relief workers into BIA projects in California,
1936-37. Views used to support BIA’s position on peyote in May 1937. Provided
statistics and information on Indians in Latin America (JCP reel 23)
Dorothea Leighton. Worked on the Personality Project among the Navaho. Co-authored
The Navaho and Children of the People monographs for that project. (MCNICKLE,
1979; SCHUSKY and EGGAN, 1989).
Alexander Leighton. Worked on anthropology project among Japanese-American
inmates at BIA-administered Poston concentration camp. Worked on Personality
Project (JCP reel 15; (SCHUSKY and EGGAN, 1989).
Oliver LaFarge, Indian reform lobbyist and Applied Anthro Staff member; worked with
Hopi. (MCNICKLE, 1979; JCP reel 15; TAYLOR, 1975; ; NARA RG75, E1012)
Frederica de Laguna, worked for TC-BIA in New Mexico, 1936. (MCCLELLAN, 1989).
Oscar Lewis, Applied Anthropology Staff member, worked in SW. Conducted
Personality Project Study in Mexico under the auspices of the NII/InInIn (TAYLOR,
1975; NARA RG 75 BIA, E178, John Collier Office File, Leighton to Collier 16/9/42).
Cidadãos e Selvagens Apêndices
524
Oscar H. Lipps, produced reports on Alaska situation, 1936. (STERN et al, 1980).
Gordon MacGregor, Associated with the Applied Anthro. Worked with plains tribes.
Northwest reses (Pit River) in 1936. Worked with the Yuchi, Ukiah and Pit River
Indians in 1936. Later worked with TC-BIA, 1937; later reservation superintendent;
then participated in Personality Project, writing Warriors Without Weapons monograph
on the Pine Ridge Sioux. Indians. (JCP reel 22; NARA RG75, E191).
H.S. Mekeel, Applied Anthro Staff member and later head, works with Dakota Sioux.
Taught Summer School, Ft. Collins CO, summer 1936. (TAYLOR, 1975; SCHUSKY
and EGGAN, 1989).
C. Hart Merriam, advised BIA on self-government for Pit River Indians in 1934
Ronald L. Olson, produced reports on Alaska situation, 1936-37. (TAYLOR, 1975).
Morris E. Opler, Applied Anthro Staff member works with Comanche, Apache, Kiowa.
Works on Mescaleros, summer 1936. Works on Creek and other 5 civilized tribes,
1937. (TAYLOR, 1975; SCHUSKY and EGGAN, 1989; NARA RG75, E1012; ;
NARA RG75, CCF).
Vincenzo Petrullo. Advises BIA on peyote debate for Congress. Writes large article
concerning Brazil’s SPI and Rondon for Indians at Work. Active in the foundation of
the InInIn and in liaison work with Mexican indigenists. (IAW, 15/2/37 and 1/3/37;
NARA RG75, E195a).
Archie Phinney, Indian, graduate of Haskell institute in 1926, worked for two years in
BIA and took ethnology classes at night at GWU. Worked out of commissioner’s office
as field agent for Indian Organization in Great Lakes area. In 1928, studied anthro at
New York University and also did work at Columbia under Boas, researching Indian
tribal life and including an 8 month study of his own Nez Perce people. Superintendent
of Concolidated Chippewa Reservation in 1940. Went to St. Regis, NY in 1942.
Associated with (IAW 12/37, 15; TAYLOR, 1975; NARA RG75, E1012).
John Provinse, studied Navaho land use for the TC-BIA. Assistant Commissioner, BIA,
after Collier’s retirement from office. (SCHUSKY and EGGAN, 1989).
Robert Redfield. Advised Collier on preparations for Patzcuaro Conference. Personality
Project supervisor for the Committee on Human Development of the University of
Cidadãos e Selvagens Apêndices
525
Chicago, worked with both the Indian Personality Project and the branch established by
the OIA in the wartime concentration camps for Japanese-Americans. (JCP reel 23, 24).
Frank H.H. Roberts Jr. BAE worker. Helped prepare 13 part radio show on Indians,
aired on 170 stations, 1937. (IAW, 1/2/37)
David Rodnick. Associated with the AAU. Worked among Assinibones at Ft. Belknap
and Blackfeet in Montana, 1935-36. Later work at Potawatomi, summer 1936.
(MCNICKLE, 1975; NARA RG75, E1012)
Moises Saenz, came to work in central office for three months in 1933 to consult with
BIA on Mexico’s ejida program, particularly schooling. (JCP reel 4, 9).
Edward Sapir, worked on written form of the Navaho language for the BIA with Oliver
LaFarge.
C.E. Schaeffer.Associated with the AAU. Worked among the Flatheads, 1935-36.
(MCNICKLE, 1979; NARA RG75, E1012)
C.C. Seltzer, appointed BIA physical anthropologist on Dec. 4
th
, 1936 (RG 75, E616).
Frank Speck, did two reports for the BIA, one on the Creek in 1941, and one sometime
later on the Houmea Indians of Louisiana. (NARA, RG75, E191).
Edward Spicer, worked on the BIA’s research projects among Japanese-American
internees during WWII (NARA, RG 75 BIA, E178, John Collier Office File, Leighton
to Collier 16/9/42).
Julian Steward, worked out of commisioner’s office. Says he was “loaned” by the BAE
to take Strong’s place as AAS head in 1935 and “together with H. Scudder Mekeel”
spent “a full year” in the BIA. Wrote report on the Shoshone for the BIA, apparently in
early 1935. (TAYLOR, 1975)
Gene Stirling. Worked on studying the Seminole reservation for the Indian Organization
Division of the BIA. (NAA, William Duncan Strong Papers, Box 9, Kroeber 1929-1957
– Kroeber, Karl Folder. Strong to A.L. Kroeber, May-July, 1935).
Mathew Stirling. BAE head. Helped prepare 13 part radio show on Indians, aired on 170
stations, 1937. Official U.S. delegate at Patcuaro Conference, 1940 (IAW, 1/2/37;
NARA RG75, E195a)
Cidadãos e Selvagens Apêndices
526
W. Duncan Strong, initial Applied Anthropology Staff head. Worked for the BAE.
Replaced by Mekeel. Helped prepare 13 part radio show on Indians, aired on 170
stations, 1937. (TAYLOR, 1975; (IAW, 1/2/37).
Laura Thompson. Worked as Personality Project field director, both on the Indian and on
the Japanese-American sides of the project. Produced The Hopi Way monograph and
Culture in Crisis regarding the administration of the Hopi as part of that project. John
Collier’s second wife (m. 1943) Wrote for the InInIn. (MCNICKLE, 1979; SCHUSKY
and EGGAN, 1989).
Ruth Underhill, Associated with the Applied Anthro Staff. Worked in Southwest,
particularly among the Papagos and Pimas. Also worked for the TC-BIA in New
Mexico, 1937. Taught course in anthropology for Indian workers at Santa Fe Indians
school, 1934 1939, Associate Supervisor of Indian Education, BIA Washington.
(Zimmerman papers; TAYLOR, 1975; NARA RG75, E1012).
Lloyd Warner. Personality Project supervisor for the Committee on Human
Development of the University of Chicago. Advised Collier on the possibility of
founding an Interamerican Indigenous Institute in August, 1934 (SCHUSKY and
EGGAN, 1989; NARA RG75, E195a).
Charles Wisdom, Applied Anthro Staff member, 1935-1936 (MCNICKLE, 1979).
Worked at the Choctaw Agency in Mississippi and in the Great Lakes area reservations
in the summer 1936. Worked with the Kiowa and Oklahoma area groups in 1937.
(MCNICKLE, 1975; NARA RG 75, E190; NARA RG75, E1012)
Cidadãos e Selvagens Apêndices
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APPENDIX II
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Cidadãos e Selvagens Apêndices
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Appendix III
Indians at Work
Indians at Work was the house organ of the BIA during the 1930s and ‘40s and is
almost entirely associated with the administration of Commissioner John Collier, who
wrote all of the magazine’s editorials. Collier had become extremely aware of the power
of the press in his struggle for reform during the 1920s, when his frequent articles for
magazines such as Sunset became a key part of the mobilization of public opinion in
favor of Indian Affairs reform. The Bureau began publishing the magazine sometime in
early 1933, shortly after Collier’s assumption of the office of Commissioner (the exact
date is unclear as early numbers were not dated). The publication was originally subtitled
“An Emergency Conservation News Sheet for Ourselves” and this betrays two key
characteristics which the magazine would display in its varied articles until its end in
1946. In the first place, IAW attempted to speak for a “we” which included BIA
employees and their Native American charges as part of one organization. In the
worldview of IAW, both Indians and administrators were part of an organic whole and
presumably had the same interests. This orientation became even more explicit in 1934’s
January 1
st
issue, when the subtitle changed to “A News Sheet for Indians and the Indian
Service”. Secondly, while the magazine would soon branch out to cover all imaginable
aspects of Indian administration and Native American life, first among its interests were
reports of the concrete work which was being done to develop reservations; i.e. make
them more economically viable and, presumably, self-sustaining. In this sense, we can
consider IAW to represent the Collier BIA’s emphasis on a very particular understanding
of acculturation versus earlier policies of assimilation.
1
1
The difference lies in the fact that acculturationists declared that they sought to preserve as much as they
could of native life-ways and culture while simultaneously “developing” native societies through the
introduction of new technologies and life-habits, as opposed to the assimilationists who sought to
completely eliminate native peoples as distinct socio-cultural and political groups. While in actual practice,
this distinction may have not resulted in much, Collier’s BIA – and particularly the anthropologists
involved with it – made much of it. The Collier view of acculturation distinguishes itself from mainstream
anthropological thought about the same topic of the day in that it doesn’t necessarily see that adoption of
new technologies or traits would inevitably lead to the progressive abandonment of previously established
ones, much less to a general disintegration of a people’s reproduction of themselves as a culturally distinct
entity.
Cidadãos e Selvagens Apêndices
530
The first issues of IAW were published as an adjunct to what was to become
popularly known as the Indian Civilian Conservation Corps, or more properly, Indian
Emergency Conservation Work (IECW). This was an injection of a considerable quantity
of funds into Indian lands through lateral transfers from the Interior Department’s CCC.
In the first year alone, over 6,000,000 dollars were spent and some 15,000 Native
Americans employed in reservation improvement projects, such as building erosion
breaks, rangeland maintenance, road construction, fire trail blazing, etc. It seems that
Collier’s basic goal with the IECW was to get as much money into Indian hands as
possible, as quickly as possible and, preferably, from sources other than the BIA budget,
while using it simultaneously to develop reservation resources. The rhetoric used to
justify conservation expenditures was that it allowed Indians to improve their own lands,
making them more economically viable, a state which would hopefully eventually reduce
their financial dependence upon the federal government. Practically, however, the IECW
was an immense make-work program, a justification for giving a salary to thousands of
men and women in some of the hardest hit rural areas of the U.S. during the Depression.
While improvements were indeed made on reservations by the program, it is quite
obvious, when one reads Indian correspondence from the period, that it was popularly
seen among Native Americans as a relief program – one which, incidentally, meant the
difference between starvation and barely getting by for many Native Americans during
the Depression.
The purpose of IAW in this scenario was three-fold. First of all, it was to boost the
morale of the Native Americans involved in BIa reservation development programs by
publicizing their work. Secondly, it was to inform BIA employees of the measures being
taken, across the continent, to reorganize Indian affairs and revitalize native lives and
lands. Finally – and most importantly – it was to publicize the plight of Native America
while simultaneously painting Indians as hard-working citizens struggling to rebuild their
lives. The target public for this last set of images were the many and varied groups and
individuals who made up the political field of Indian Affairs outside the realm of the
BIA. These included religious groups and missionaries, anthropologists and – most
importantly – congressmen and government officials.
Cidadãos e Selvagens Apêndices
531
These purposes remained with the magazine as it expanded out from conservation
work over the next few years and they were reflected in the growing diversity of the
articles and images published by IAW. For today’s researcher paging through IAW, this
gives the magazine a bit of a schizophrenic feel. On the one hand, it is undeniable that
one of the primary themes of IAW was the valorization of native cultures, both traditional
and contemporary, with articles translating Sioux winter counts, describing how to skin
buffalos and displaying the works of Indian artists, poets and writers. On the other hand,
there’s an obvious tendency running through the pages of IAW to define “progress” as
Indian adoption of the dominant cultures’ technologies and ethos – if not their life-styles–
with long articles being presented on job training programs and the insertion of Indians
into contemporary American society. The editors of IAW attempted to harmonize these
tendencies as best they could. One photo essay which expresses this shows Indians
working as mechanics, nurses and machinery operators with a quotation to the effect that
“we will master the white man’s skills and knowledge and still remain Indians.”
IAW’s diverse readership and missions impelled it to include somewhat
contradictory visions in its pages. Collier and his division heads recognized it as a very
important propaganda tool, and the BIA archives are full of letters sent in response to
criticism – particularly congressional criticism – which were mailed together with a copy
of IAW or an article from the magazine. Collier was also in the habit of reading its pages
direct into the Congressional record during hearings regarding his reforms of Indian
affairs. IAW thus had to showcase the Collier reforms to people who didn’t care in the
slightest about Native American cultural and social survival and who in fact still thought
in terms of total assimilation of the Indian. For these people, IAW presented the BIA’s
economic development plans with the clear intent to show that the Indian tribes and tribal
corporations created by the 1934 Indian Reform Act could be and in fact already were
going economic concerns. This was best demonstrated by showing the results of job-
training programs, IECW land-improvement schemes and housing rehabilitation projects.
On the other hand, IAW was to inculcate respect for native cultures in BIA employees and
demonstrate to Native Americans themselves that the Bureau had truly changed and was
now in the business of protecting tribes as distinct socio-cultural entities. Finally, IAW
needed to defend BIA policies to the Native American polities themselves, polities which
Cidadãos e Selvagens Apêndices
532
were almost always extremely internally fragmented. In particular, especially in the pre-
war years, IAW attempted to respond to Native American accusations (generally coming
from the American Indian Federation and their allies) that Collier’s BIA was trying to
lead Indians “back to the blanket” (i.e. “decivilize” them by renewing traditional cultures
and technologies) or “renew pagan beliefs”.
Collier perhaps best expressed the contradictory impulses of IAW – and, indeed,
his own administration – in an editorial for the February 1
st
, 1936 edition of IAW.
Three or four interesting visitors from British Africa, and a learned Hindu,
recently have queried me concerning Indian policy. “Is the policy assimilation, or is it, in
contrast, the preservation of native culture?” I have answered them: “It is both”.
And I did not merely mean: “In one place assimilation is the policy and in
another case preservation of native culture is the policy”. I meant that in all
places the
policy, if it is to be realistic and not merely dogmatic, has to be both policies in one.
What Collier was expressing here was his unique view of acculturation: his firm
belief that, somehow, new technologies and lifeways could be incorporated into a discrete
socio-cultural entity without said entity disappearing into the surrounding social mass.
With the United States’ entry into WWII, the magazine almost literally became
Indians at War, with practically every article of every issue highlighting native
America’s contribution to the war effort. In this final phase of the magazine, assimilative
tendencies became much more highlighted within its pages: “good Indian” practically
becomes synonymous with “soldier” or “war production worker”. It’s worth pointing out,
however, that the BIA was dislodged from its Washington D.C. offices during the war,
being relocated to Chicago and its budgets were drastically cut. The WWII period of IAW
thus represents a certain “selling” of Indians and the Collier BIA’s plans for them in
much the same way that consumer goods factories, drafted into war production, would
run war-related propaganda in their name to keep their “brand” firmly anchored in the
customer’s mind for the peace that was sure to come. During the war period, then, IAW,
was trying to show how the earlier Collier reforms had created an addition to the
country’s war making capacities. As a contemporary report upon the uses of
anthropology during war time put it:
Because Indians have been handled decently and intelligently during the past 12-
15 years, they are today making every possible contribution to the war. They could have
been a serious fifth column, or at least a potential liability. Instead, 12,000 are in the
armed forces; they have purchased two million dollars worth of bonds; they have
Cidadãos e Selvagens Apêndices
533
supplied 5 per cent of all the timber used for war purposes; their food production program
has increased, - they are definitely an asset, not a liability (NAA, American
Anthropological Association Papers, 1945).
A final use of IAW was as a powerful propaganda organ for IRA-style reforms in the
Indian Services of the other American republics. During the run-up to the 1940 Patzcuaro
Conference, which was to establish the Interamerican Indigenous Institute, the BIA
produced a special bi-lingual edition of Indians at Work in order to showcase what had
been done in the field of Indian Affairs in the U.S. over the past 6 years. This publication
grew beyond the bounds of the magazine and was eventually renamed Indians in the
United States. Nevertheless, it is instructive that the first publication turned to when the
topic of indoctrinating foreign dignitaries as to the Collier plan for Indian reform came up
was almost always the IAW. The magazine was routinely sent to anyone asking for it
across the Americas. In the case of Brazil, it was sent to the SPI, the CNPI and to several
of the individual councilors and employees of both groups. IAW was also sent to a rather
wide-ranging and eclectic group of Brazilian individuals and groups, including the Museu
Nacional, the IBGE, the Instituto Nacional do Livro, the Faculdade de Filosofia, Ciencias
e Letras of USP, the Museu Nacional de Belas Artes, the Museu Paulista, the Servico de
Patrimonio Historico e Artistico Nacional, the Casa do Estudante do Brasil, the
Ministerio de Educacao, DASP, the Museu Goeldi, the Museu Historico Nacional, among
others. The variety of these groups attests to the wide-spread – if not necessarily deeply
penetrating – divulgation of Collier’s views regarding modern Indian administration
within the Brazilian state and academia. Indians at Work collapsed shortly after John
Collier left the post of BIA Commissioner.
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Coleções de Documentos
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Arquivo Roquette-Pinto
AMH - American Museum of Natural History, New York, NY.
Archival Collection, Scudder Mekeel Papers (currently unindexed).
LC - Library of Congress, Washington D.C.
Annual Report of the Commissioner of Indian Affairs
Congressional Records
Henry Dawes Papers Collection
IAW- Indians at Work, OIA magazine, 1933-1946.
NAA - National Anthropological Archives, Smithsonian Institute, Washington D.C.
Alice Cunningham Fletcher and Francis LaFlesche Papers
Dorothea Cross Leighton Papers
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551
Gordon MacGregor Papers
Julian Steward Papers
Laura Thompson Papers
Records of the American Anthropological Association
Records of the Bureau of American Ethnology
Records of the Handbook of South American Indians
Records of the Institute for Social Anthropology
Robert Havinghurst Papers
William Duncan Strong Papers
NARA - Washington D.C, National Archives and Records Administrations.
Record Group 75, Bureau of Indian Affairs.
Central Classified Files, 1907-39
Entry 178, John Collier Office File
Entry 179, John Collier Reference File, 1
Entry 180, John Collier Reference File, 2
Entry 190, Records of the offices of Chief Clerk and Assistant Commissioner of Indian Affairs,
Memoranda of Assistant Commissioner William Zimmerman, 1935-48
Entry 191, Records of the Offices of Chief Clerk and Assistant Commissioner of Indian Affairs,
Office Files of Joseph McCaskill, 1939-1946
Entry 192, Records of the Offices of Chief clerk and Assistant Commissioner of Indian Affairs, Office
File of Assistant Commisioner, John H. Provinse, 1946-1950
Entry 194, Records of Assistants to the Commissioner, Office File of Fred H. Daiker, 1929-43
Entry 195-A (1), Records of the Assistants to the Commissioner, Advisor on Natural Resources,
Records of Advisor Ward Shepard, 1936-48
Entry 195-A (2), Office of the Coordinator of Inter-American Affairs, Records of the Inter-American
Indian Program, ca. 1933-49
1
Entry 616, Other Enrollment Records, applications and other records relating to registrations
under the Indian Reorganization Act of 1934, 1935-1942
Entry 723, Office File of W. Carson Ryan, Director of Education, 1931-1935
Entry 792, CWA Social and Economic Survey, 1933-1934.
Entry 1011, Records of the Indian Organization Division, Records Concerning the Wheeler-Howard
Act, 1933-1937
1
Por alguma razão, os arquivos documentando o envolvimento da OIA de Collier com o InInIn e o
Intstituto Indígena Nacional dos EUA foram guradados junto com os papeis referentes ao funcionário da
OIA, Ward Shepard. Os pesquisadores não encontrarão esse material amenos que sabem pedí-lo
específicamente. Portanto, Entry 195a deve ser devidido em duas partes: o material referente ao Ward
Shepard e os arquivos referentes à OIA/NII/InInIn.
Cidadãos e Selvagens Bibliografia
552
Entry 1012, Records of the Indian Organization Division, General Records Concerning Indian
Organization, 1934-1956
Entry 1013, Records of the Indian Organization Division, Correspondence with officials, 1934-1946
Record Group 114, Soil Conservation Service
Entry 183, Chief of Operations, Project for Technical Cooperation with the Bureau of Indian
Affairs, Files of the Director, 1937-1939.
Record Group 229, Office of the Coordinator of Inter-American Affairs
Entry 2, Boxes 1 and 2, A History of the OCIAA
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