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JENIFFER ALVES CUTY
CINEMA & CIDADE: PORTO ALEGRE ENTRE A LENTE E A RETINA
Orientadora
Profa. Dra. Sandra Jatahy Pesavento
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Planejamento Urbano e Regional (PROPUR) da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul como requisito parcial à obtenção do grau de
Mestre em Planejamento Urbano e Regional.
Área de concentração
Planejamento Urbano e Regional e os Processos Sociais
Linha de Pesquisa
Cidade, Cultura e Política
Porto Alegre, junho de 2006.
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C991c Cuty, Jeniffer Alves
Cinema & cidade : Porto Alegre entre a lente e a
retina / Jeniffer Alves Cuty ; orientação de Sandra
Jatahy Pesavento. Porto Alegre : UFRGS, Faculdade
de Arquitetura, 2006.
184 p.: il.
Dissertação (mestrado) Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. Faculdade de Arquitetura. Programa
de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional.
Porto Alegre, RS, 2006.
CDU: 711.427(816.5)
791.43
DESCRITORES
Cidades imaginárias : Porto Alegre, RS
711.427(816.5)
Filmes de cinema
791.43
Bibliotecária Responsável
Elenice Avila da Silva – CRB-10/880
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CINEMA & CIDADE: PORTO ALEGRE ENTRE A LENTE E A RETINA
JENIFFER ALVES CUTY
Dissertação submetida à avaliação e aprovada pelas professoras:
Profa. Dra. Ana Luiza Carvalho da Rocha
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Laboratório de Antropologia Social / UFRGS
Profa. Dra. Miriam de Souza Rossini
Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação
Departamento de Comunicação / UFRGS
Profa. Dra. Célia Ferraz de Souza
Faculdade de Arquitetura
Programa de Pós-Graduação em
Planejamento Urbano e Regional / UFRGS
Defendida em 20 de junho de 2006.
Dedico esta dissertação à minha família. À minha mãe que, numa
permanente atmosfera poética, me ensinou a sonhar; ao meu pai que
me alicerça ao chão e à minha irmã que me acompanha em todos os
espaços da minha vida.
AGRADECIMENTOS
Ao Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional (PROPUR / UFRGS) –
e toda sua equipe de docentes e técnicos que acolheram minha pesquisa.
À minha amiga “parisiense” Alice Trusz pelo incentivo inicial.
Aos colegas de mestrado que se tornaram amigos,
especialmente aos arquitetos Artur Wilkoszynski e Lívia Capparelli.
À minha orientadora Profa. Dra. Sandra Jatahy Pesavento,
pela incrível sintonia, pelo exemplo e estímulo intelectual.
Aos amigos do BIEV e da disciplina de Antropologia Visual e da Imagem,
sobretudo às professoras Ana Luiza Carvalho da Rocha e Cornelia Eckert,
por terem me apresentado uma área tão densa e complexa que é a antropologia.
À minha amiga arquiteta Ceres Storchi,
pelos inúmeros momentos compartilhados, pessoal ou virtualmente.
Ao meu amigo de sempre Daniel Debiagi, pelo carinho, pelos almoços semanais na faculdade e
pelas conversas que me trazem de volta ao mundo.
Ao meu amigo cineasta, escritor e poeta Muriel Paraboni - companheiro de prazeres intelectuais -
pelas confluências filosóficas regadas a boas doses de café e/ou vinho.
Aos cineastas que me inspiraram e contribuíram para a realização desta dissertação,
em especial ao amigo Antônio Carlos Textor, pelo enorme entusiasmo.
Aos professores: Leandro Marino Vieira Andrade, por ter me recebido por dois semestres como
estagiária docente; João Rovatti, pela presença marcante no 5° andar e Eber Marzulo, pelos toques
sobre a inserção do cinema na minha vida profissional.
Aos amigos do StudioClio: Francisco Marshall, Raquel Rech e Eliza Ortiz
por terem aberto novos espaços de discussão para esta pesquisa.
À Capes por ter me cedido bolsa durante os dois anos de mestrado.
As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis
quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos
acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que
nenhuma palavra nunca pisou.
RAINER MARIA RILKE
GLOSSÁRIO
Cena: é um trecho do filme que se passa no mesmo lugar, num tempo aparentemente
contínuo.
Plano: é um trecho do filme rodado sem interrupção.
Seqüência: é um trecho do filme que se caracteriza por uma unidade de ação.
Plano – seqüência: quando a câmera se coloca dentro da ação, acompanhando-a.
Tomada: é cada uma das vezes que se roda um plano.
Close: é o plano fechado que enquadra um rosto ou um detalhe mais próximo.
Plano Geral (PG): é o plano mais aberto possível no qual se percebe as relações entre
personagem e cenário.
Plano Médio (PM): é o pano intermediário entre o Geral e o Close, enquadraria o
personagem da cintura pra cima e parte do cenário.
Plano Detalhe (PD): é o plano aproximado de alguma parte do corpo ou de algum objeto.
Às vezes é chamado de Big-Close, Superclose ou Primeiríssimo Plano (PPP).
Plano Conjunto (PC): é o plano que enquadra dois ou mais personagens, bem como o
cenário.
Plongée: câmera colocada acima da cena. Na tradução: mergulho. Plongée absoluto:
quando o ângulo formado com a superfície focada é de 90°.
Contre-plongée: câmera colocada abaixo da cena ou da personagem.
Fade in: a imagem surge gradualmente.
Fade out: a imagem desaparece gradualmente.
Insert: detalhe inserido de imagem ou de voz (ver roteiro de Ângelo Anda Sumido).
Panorâmica (Pan): movimento de câmera em que ela gira em torno de um eixo, horizontal
ou vertical. Alguns autores chamam a panorâmica vertical de Tilt (ver roteiro de O Oitavo
Selo).
Travelling: é todo movimento em que a câmera se desloca (sobre trilhos, por exemplo).
Zoom: é um tipo de lente que pode alterar o ângulo de visão. A percepção espacial do zoom
é diferente do travelling. Zoom in: fechamento ou aproximação. Zoom out: afastamento ou
abertura.
Voz off: dita por alguém que está fora do quadro, por personagem atuante no filme. Os
americanos chama a narração de Voice Over (V.O.).
SUMÁRIO
Resumo
09
Abstract
10
INTRODUÇÃO
Cenas e olhares que se cruzam sobre uma cidade representada pelo cinema 11
CAPÍTULO I – TEXTOS E CONTEXTOS SOBRE A PRODUÇÃO DE UMA
CIDADE CINEMÁTICA
1.1. Reflexão conceitual sobre Imagem & Imaginário
– trajeto epistemológico 20
1.2. Recortando fragmentos de uma cidade e produzindo imagens
dialéticas
25
1.3. Referências externas e flashbacks na cinematografia porto-alegrense 31
CAPÍTULO II – (CENA 1: O TEMPO) ACORDES URBANOS NUM MIX
ESPAÇO-TEMPORAL
2.1. A imagem e a materialidade do cenário urbano 44
2.2. Inquietações poéticas e imagéticas 50
2.3. A decifração da cidade filmada 62
CAPÍTULO III – (CENA 2: O OLHAR) A COTIDIANA SOLIDÃO NA
METRÓPOLE CONTEMPORÂNEA
3.1. A instauração de uma comunicação ininteligível entre indivíduo &
espaço 67
3.2. Revisitando a busca pelo outro
78
3.3. Fechando os olhos para ver a cidade 85
CAPÍTULO IV – (CENA 3: O LUGAR) TRAVELLINGS INTERPRETATIVOS
SOBRE UMA CIDADE FILMADA
4.1. A Intertextualidade presente na narrativa fílmica 88
4.2. Discursos e percursos que se articulam na interpretação da cidade
contemporânea 101
4.3 A cidade como uma escrita que não se completa 107
DESFECHO: CONSIDERAÇÕES FINAIS
109
CRÉDITOS
Referências Bibliográficas 113
Referências Filmográficas 118
ANEXOS
Roteiros 121
9
RESUMO
A investigação da metrópole contemporânea a partir do cinema comporta o recorte
de imagens produzidas em diferentes tempos e contextos, promovendo assim uma análise
pendular e intertextual sob a ótica do imaginário urbano. Cruzar o olhar crítico e poético da
cidade, captado pelo cinema de impressão, com a produção híbrida de filmes que abordam
aspectos cotidianos da cidade de Porto Alegre é um dos objetivos desta dissertação, assim
como revelar quais camadas de tempo e quais interfaces físicas e sociais estão sendo
representadas por esta filmografia. A representação da cidade filmada encontra-se num
universo tanto próximo das práticas individuais quanto universais. Parte-se então da leitura
superposta de filmes curtas-metragens produzidos no contexto porto-alegrense, entre as
décadas de 1970 e 90, organizados aos pares, e entendidos como fragmentos capazes de
promover a reflexão palimpséstica da cidade. A metodologia adotada para radiografar a
cidade filmada fundamenta-se nas técnicas de montagem desenvolvidas por Walter
Benjamin.
Palavras-chave: cidade filmada, imaginário urbano, Porto Alegre.
10
ABSTRACT
The investigation of the contemporary metropolis by means of the cinema
encompasses the cross-section of images produced at different periods and contexts, thus
promoting an intertextual and pendular analysis in the light of the urban imaginary. This work
aims at crossing the critical and poetical view on the city as captured by the impressive
cinema together with the hybrid production which approaches daily aspects in Porto Alegre,
as well as to reveal which time layers and which social and physical interfaces are being
expressed by means of this. The city`s representation which was filmed can be found not
only near individual practices but also universal ones. The superimposed examination of
short films, organized in pairs, produced within the context of the city, in the 70's and 90's, is
taken as the starting point. These films can be also considered as fragments capable of
promoting a palimpsestic reflexion on the city. The methodology employed in order to "X-ray"
the act of shooting is based on the editing techniques developed by Walter Benjamin.
Keywords: filmed city, urban imaginary, Porto Alegre.
11
INTRODUÇÃO
Cenas e olhares que se cruzam sobre uma cidade representada pelo cinema
Porto Alegre, primavera de 2005. A cidade encontra-se climaticamente instável, fato
que interfere nas percepções individuais sobre o espaço. Por vezes, a mínima interferência
ambiental abre janelas imaginárias despertando o resgate ou a projeção de imagens. A
paisagem compõe-se de uma série de idéias, sensações e sentimentos que se encontram
não no que está diante, mas no que se vê ou se permite ver. Eis aqui um primeiro elemento
– a percepção - a ser considerado nesta dissertação que busca examinar o imaginário
urbano a partir da cinematografia local recente, com o auxílio da decifração dos múltiplos
olhares que se lançam sobre a cidade filmada – no caso Porto Alegre. Sob a ótica do
imaginário, a cidade deixa de ser analisada apenas como local de produção ou ação social e
passa a ser encarada como o próprio objeto de reflexão.
No estudo do imaginário enquanto sistema de representações coletivas, os textos, as
palavras, as imagens e os sons se colocam no lugar do mundo, confirmando, negando ou
transfigurando esse universo percorrido no espaço e no tempo. Pode-se então deportar o
imaginário urbano às formas como o objeto – a cidade – e as relações encenadas nesse
palco são percebidas, identificadas e dotadas de sentido. Porém, nesta dissertação outras
camadas perceptivas, condicionadas à experiência temporal, encontram-se latentes ao
leitor, entre elas as especificidades na recepção dos filmes analisados e a percepção de
aspectos simbólicos, bem como de mitos presentes na leitura dos processos urbanos e
sociais do locus representado. A recepção de um filme, como de uma música, está sujeita a
uma capacidade de entrega do espectador, num determinado intervalo de tempo, ou seja,
na sua duração, podendo se prolongar num processo reflexivo posterior. Outra característica
que se observa na recepção fílmica é a transubstanciação, ou seja, a simultaneidade do eu
e do não-eu como uma espécie de dialética da unidade dos opostos interpenetrantes. Essa
dualidade é capaz de fazer com que o espectador se coloque no lugar do protagonista
esquecendo que assiste a uma representação. A percepção sócio-espacial – captada pelo
olhar curioso – e, no caso do cinema, pelo re-regard ou pelo duplo olhar, não é neutra, nem
estática. Ela registra inquietações, desejos e variações comportamentais. A investigação
desse conjunto de elaborações mentais, realizada a partir de um suporte midiático, fixo ou
dinâmico, predispõe ao pesquisador mergulhos e distanciamentos no seu repertório teórico
e cotidiano.
Perder-se num território conhecido não é tarefa fácil. Deixar-se levar pelo registro da
câmera, mergulhando num universo familiar ao seu e, logo a seguir, distanciar-se
12
suficientemente até chegar a um ponto seguro, quase neutro, longe da viagem imersiva
proposta pelo cinema é o desafio a ser vencido nesta trajetória. A arquiteta que analisa o
recorte fílmico, entendida como a agente habilitada a produzir a cidade, coloca-se na
posição de consumidora das representações cinematográficas produzidas em seu habitat
cotidiano, já visitado em outros momentos, através da literatura ou da poesia, com a mesma
disposição do espectador de um filme em estréia. A visão do indivíduo que questiona sua
condição na cidade, sobreposta ao enquadramento e ao movimento da câmera e, por fim,
exposta à interpretação daquele que filtra e analisa, é um processo suficientemente
predisposto à hermenêutica sobre o espaço recriado pelo cinema que deve ser levado em
consideração neste trajeto.
Os meus freqüentes deslocamentos para a faculdade ou para qualquer outro ponto
nas imediações do Campus Central da UFRGS são guiados pela estimulante convivência
com uma cidade que vai se revelando nos seus conjuntos urbanos descaracterizados, seus
traçados reconfigurados e, parodiando o poeta, nas suas esquinas esquecidas. Manter-se
alerta ao que acontece em volta, às macro e micro transformações urbanas, torna-se
privilégio quase exclusivo daquela que percorre a cidade a pé. Não é a simples pedestre,
que se desloca de A até B, no menor trajeto para otimizar o seu tempo, mas a transeunte
que sai de A prevendo ou não desvios até B e valendo-se destes percursos para se
apropriar de sua cidade.
E o cinema? Numa busca interna do repertório construído pelas muitas idas aos
cinemas, especialmente àquelas salas localizadas na Cidade Baixa e no Centro de Porto
Alegre, as quais ainda permanecem conectadas à rua, lá está a inesquecível Veneza
apoiada sobre suas águas – em certa medida semelhante a Porto Alegre - descoberta pelo
olhar sensível do diretor Luchino Visconti em Morte em Veneza (1971). Na história narrada
por Visconti, baseada no romance homônimo de Thomas Mann (1912), “Veneza aparece
como um balneário de luxo contaminado pela cólera, que faz afugentar os turistas,
permanecendo sombria e vazia, como um cenário simbólico para a paixão irrealizável”
(FALCIONE In: NAZARIO, 2005:131). Em um contexto mais próximo está o grande
condomínio carioca em O Edifício Master (2002), de Eduardo Coutinho, o qual compõe a
imagem de células independentes - os apartamentos organizados por grandes circulações –
quase ruas – que isolam todos os que o habitam. Localizo, em seguida, uma forte referência
ao cinema italiano das décadas de 1970 e 80, passando pelas construções oníricas de
Fellini – cineasta que comprova que o cinema pode ser absolutamente autoral sem perder
sua universalidade. Na década de 1920, lá estão os perturbadores surrealistas: René Clair e
Jean Cocteau, sem falar nos mergulhos filosóficos do cinema francês contemporâneo, os
quais permanecem atuantes nos meus espaços referenciais.
13
Vão se tecendo assim as múltiplas leituras do urbano registrado ou encenado pelo
cinema através de links teóricos e conceituais que se abrem à pesquisadora habituada às
plantas baixas e às perspectivas cônicas concebidas na necessidade de vislumbrar um
mundo até então imaginado no desenho e, freqüentemente, inexeqüível. Na representação
da arquitetura a imagem é estática; um enquadramento arbitrário que limita sua apreensão
por um olhar despreparado. O cinema, por sua vez, dispensa intérpretes, pois se utiliza de
elementos familiares ao espectador. A fruição da história se dá naturalmente, graças às
suas especificidades como arte e técnica do movimento e de sua impressão de realidade.
Para o semiólogo Christian Metz (1972), “o cinema não é uma escrita, é o que permite uma
escrita, por isso o definimos como linguagem”. A conformação dos ângulos que registram a
cena urbana – plongées e contre-plongées – somados às intenções de explicitar ou camuflar
a cidade compõem um texto complexo, uma confluência entre significado e significante, que
estimula a pesquisa a se realizar.
O estudo da representação da cidade através do cinema é uma importante
ferramenta didática para a compreensão de aspectos intrínsecos à dinâmica urbana e
social. Torna-se, segundo Bruno Zevi, a mais completa forma de representar a arquitetura,
bem como entender as suas relações de composição e suas interferências formais na
configuração urbana:
No último decênio do século passado, as pesquisas de Edison e depois as dos
irmãos Lumière levaram à invenção de uma máquina fotográfica munida de um
engenho capaz de fazer correr a película após cada impressão e de estabelecer
assim uma continuidade visual nas sucessivas tomadas. A descoberta da
cinematografia é altamente importante para a representação dos espaços
arquitetônicos porque, se bem aplicada, resolve praticamente todos os problemas
colocados pela quarta dimensão. Se percorrermos um edifício com uma filmadora e,
em seguida, projetarmos o filme, reviveremos os nossos passos e uma grande parte
da experiência espacial que os acompanhou. A cinematografia está entrando na
didática, e é preciso ter em mente que, quando a história da arquitetura for ensinada
mais com o cinema do que com os livros, a tarefa da educação espacial das massas
será amplamente facilitada. (ZEVI, 1996:84)
Assim como na concepção arquitetônica e no planejamento urbano, a produção
cinematográfica organiza-se em etapas de criação, que vão desde o argumento ou a idéia
central do filme, passando pelo roteiro ou a linguagem visual escrita, a qual sofre constantes
alterações durante as filmagens e que pode ser comparada ao anteprojeto arquitetônico ou
urbanístico. Se considerarmos a classificação de Marcel Roncayolo, descrita por Pesavento
(2002), na qual apresenta o urbanista como “produtor do espaço” e o habitante como
“consumidor do espaço”, parece-nos adequado criar uma classificação ao cineasta
enquanto “manipulador da materialidade e sociabilidade” do espaço urbano. A cidade, no
entanto, permite-se reinventar, “pode trazer em si sua história, pode torná-la visível ou
oculta” (WENDERS, 1994:183)
14
Reforçam-se as similaridades dos dois ofícios: do arquiteto urbanista e do cineasta,
através da aceitação de que o tempo – expresso no movimento do cinema, mais
explicitamente na duração do filme – está inscrito também na trajetória palimpséstica da
cidade, através de sua dimensão paradoxal, que soma, ao visível, a mistura do ontem, do
hoje e do amanhã e que extingue distâncias, reduzindo diferenças entre seres e culturas. O
tempo atua como um incansável e metódico escultor de pessoas e espaços habitados. Em
considerável medida, é ele (o tempo) que permite a construção do sentido de lugar. Resta
então voltar o olhar investigativo sobre os processos e os recortes urbanos. Ao olhar, o
sujeito perscruta e indaga a partir de e para além do visto.
A partir da perspectiva de consumo solitário e por vezes errante da cidade, real e
imaginária, bem como da hipótese de que o estudo da representação urbana através do
cinema pode revelar características tanto locais quanto universais da cidade analisada,
constrói-se esta dissertação. A livre inserção de figuras e contextos que viajam de um filme
a outro, bem como a manutenção, a transformação e a subversão de estereótipos sobre a
metrópole contemporânea são aspectos conferidos aos filmes analisados, encaminhando a
pesquisa para leituras hiper e intertextuais. Alguns autores-chave, entretanto, dialogam por
toda a dissertação, de maneira a construir imagens que possam encaminhar a solução da
trama proposta: (1) revelar que camadas de tempo e quais as interfaces físicas e sociais de
Porto Alegre estão representadas nesta filmografia? (2) Quais os elementos conceituais e
imagéticos compõem a leitura fílmica da metrópole contemporânea? (3) Com qual aspecto
principal esta cidade se dá a ver no cinema atual?
Entre os interlocutores mais presentes destacam-se: Walter Benjamin, em sua obra
Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo (2000), seguido de Willi Bolle com
Fisiognomia da Metrópole Moderna (1994); Lucian Boia, em Pour une Histoire de
L’Imaginaire (1998), Sandra Pesavento em suas duas obras que elucidam sobre os
caminhos do imaginário, sendo elas: O Imaginário da Cidade: visões literárias do urbano
(2002a) e História & História Cultural (2004); Michel de Certeau, em sua construção de uma
escrita cotidiana com A Invenção do Cotidiano – Vol. 1 - Artes de Fazer (1994); Gaston
Bachelard, em sua busca fenomenológica de A Poética do Espaço (2000). Paul Ricoeur nos
guia pelo tempo narrado, no artigo Arquitetura e Narratividade (1998) e na obra Tempo e
Narrativa (1994-1997). Kevin Lynch nos fala sobre o tempo do lugar, bem como sobre as
transformações repetidas ou definitivas da cidade, desde A Imagem da Cidade (1997) até
De qué tiempo es este lugar? (1972-1975). Ítalo Calvino pontua novas metáforas urbanas
com As Cidades Invisíveis (1990). Sobre olhar, o cineasta e pesquisador Jean-Louis Comolli
em seu artigo La Ville Filmée (1994), traduzido nos Cadernos de Antropologia da UFRJ em
1995, conduz uma curiosa reflexão teórica daquele que também produz cinema. Na
15
compreensão sobre linguagem e análise fílmica: Marcel Martin, com Linguagem
Cinematográfica (1990) e Jacques Aumont, com Análisis del Film (1993). Aumont contribui
também como referencial contemporâneo na análise do fragmento do filme – o fotograma –
enquanto opção no recorte da informação imagética a ser contemplada pela pesquisa, a
qual, nesta dissertação, não está relacionada à sequência fílmica ou à montagem descrita
por Eisenstein.
Com este panorama, parte-se para a execução da tarefa duplamente desafiadora:
analisar, de dentro dela, a cidade contemporânea do final do século XX e início do século
XXI, representada pelo cinema de curta-metragem porto-alegrense e, para tanto, definir um
recorte fílmico num período mais próximo ao atual e que contemple as aspirações propostas
pela pesquisa. Constata-se numa primeira apreciação dos quase trinta filmes selecionados
entre os anos de 1970 a 2004, depois reduzido à produção realizada a partir de 1993, que o
espaço urbano e sua paisagem não são o foco prioritário da produção local. Não se observa
uma grande amostra de filmes que possibilitem a fruição espacial da cidade.
(In)determinações culturais, o cotidiano revestido de uma curiosa excepcionalidade
registrado em locais da cena underground, bem como a referência a universos externos
(mitos da modernidade, por exemplo), são os argumentos mais amplamente visitados no
cinema urbano porto-alegrense.
O tempo do curta-metragem é, ou está, consoante com o tempo que a informação
navega na contemporaneidade. O formato curta irmana diferentes gêneros e formas de
registros da imagem, ampliando os limites estéticos. O curta-metragem parece ser a
alternativa escolhida pelos realizadores para representar lugares, percursos e identidades. A
hegemonia da ficção, que marca o início da popularidade deste formato - mais acadêmico e
experimental – e que convive e dialoga com a reestruturação formal do documentário,
muitas vezes híbrido, desperta um crescente interesse junto ao público. A partir daí define-
se o objeto empírico do estudo o qual se delimita em uma amostragem de dez filmes,
ficcionais e documentários, sobre a cidade de Porto Alegre, que transitam pelas temáticas
da relação espaço & tempo e da comunicação indivíduo & espaço, tendendo a uma
aproximação com os conceitos de solidão e desistência na metrópole contemporânea.
As relações que se estabelecem no estudo da cidade originam-se da busca pela
caracterização de um ethos representado pelo cinema em confrontação com a urbanidade
vivenciada fora da tela. O corpus da dissertação está balizado no período compreendido
entre os anos de 1993 e 2003, com uma licença temporal de abrir o estudo com um filme de
1970, abarcando a produção do experiente cineasta Antônio Carlos Textor – um curta-
metragista “assumido” – que roteirizou e dirigiu mais de vinte filmes sobre Porto Alegre,
desde 1963; passando por filmes de outros diretores, muitos dos quais principiantes e com
16
uma amostragem de filmes precários na sua execução, porém férteis nas possibilidades
interpretativas relacionadas ao tema desta investigação.
No Capítulo II – Cena 1: o tempo – propõe-se a análise das relações espaço-
temporais expressas nas arquiteturas e nas transformações sofridas pela cidade através dos
seguintes filmes:
Ano Filme Duração
1970 A Cidade e o Tempo, Antônio Carlos Textor (35mm) 11 min
1993 A Morte no Edifício Império, de Beto Souza (35mm) 11 min
No Capítulo III – Cena 2: o olhar – a análise se dá em dois momentos:
1. A comunicação ininteligível entre indivíduo & espaço ou ainda os diálogos anômalos que
se manifestam no palco urbano e a incapacidade de ação dos agentes sociais. A opção está
em observar distanciando-se da cidade que se apresenta. Os filmes são:
Ano Filme Duração
1993 Miragem, de Jaime Lerner (16mm) 6 min
2000 Miopia, de Muriel Paraboni (16mm) 12 min
2. A busca pelo outro num contexto desfavorável. Os filmes analisados sugerem incursões
pela temática da imaginação e dos mergulhos na bachelardiana imensidão íntima. São eles:
Ano Filme Duração
2000 O Branco, de Liliana Sulzbach e Ângela Pires (35mm) 22 min
2003 Pela rua, de Dimitre Lucho e Michele Maurente (16mm) 6 min
No Capítulo IV – Cena 3: o lugar – a análise se fecha na identificação de lugares
imaginários que podem levar o espectador a outros tempos: abrindo seus percursos
imagéticos ou enclausurando-o dentro de sua própria cidade. A cidade como lugar de ação
e interação, assim como as visões críticas e poéticas que se formam sobre os lugares na
cidade filmada. A análise se divide em:
17
1. A Intertextualidade presente na narrativa fílmica:
Ano Filme Duração
1997 Ângelo anda Sumido, de Jorge Furtado (35mm) 17 min
1999 O Oitavo Selo, de Tomás Creus (35mm) 15 min
2. Percurso e discursos que se articulam na interpretação da cidade filmada:
Ano Filme Duração
1996 Quando o Dia Surgir, de Antônio Carlos Textor (35mm) 10 min
2000 Outros, de Gustavo Spolidoro (35mm) 13 min
Não se concebe a cidade filmada apenas como cenário, sem pessoas interagindo
cotidianamente com este espaço. Afinal, como afirma o poeta Ferreira Gullar: “o homem
está na cidade assim como a cidade está no homem”. A tradição expressa na plástica e no
discurso fílmico pode ser entendida como uma necessidade de manter-se viva e presente
nesse cotidiano retratado. Talvez ela seja a mais forte expressão capaz de ser registrada
pela câmera. Venturi diz que “tentando representar a cidade como um todo, tendendo à
universalidade de uma experiência, o cinema, quando tenta representá-la, encarna a
tradição d(ess)a cidade, e não sua modernidade” (VENTURI apud COMOLLI, 1995:152). O
cineasta e pesquisador Jean-Louis Comolli pergunta, buscando inverter a proposição acima,
se:
a cidade, quando toma consciência de sua representabilidade não somente como
uma potencialidade (poesia) mas como uma obrigação (publicidade), não deseja se
fazer representar antes de tudo por este cinema que mantém justamente o sentido de
uma unidade, de uma tradição já perdida. Esta demanda de cinema seria produzida,
sobretudo, pela cidade. (COMOLLI, 1995:176)
A superposição de filmes, analisados aos pares, e dispostos pelos temas: o tempo, o
olhar e o lugar, seguem a metodologia adotada para radiografar a cidade descrita por Walter
Benjamin nas suas técnicas de montagem. Em sua obra Fisiognomia da Metrópole
Moderna, Willi Bolle explica que:
A partir da leitura da superfície da metrópole, o crítico procura ver o rosto da
Modernidade ‘de dentro’, investigando traços da mentalidade burguesa e pequeno-
burguesa, a mudança de padrões culturais, o imaginário social e político e a ação dos
intelectuais, mediadores culturais e produtores de imagens. (BOLLE, 1994:18)
O imaginário social é um dispositivo de controle da vida coletiva, ao mesmo tempo
em que ele se torna o lugar e o objeto dos conflitos sociais. A montagem dos fragmentos ou
rastros de uma modernidade presente na contemporaneidade pode produzir imagens
dialéticas revelando uma tradição escondida ou uma universalidade expressa nesta
cinematografia. Um conceito que cabe ser destacado é o de cinematografia o qual, segundo
18
Eisenstein, relaciona-se com montagem, diferenciando-se de cinema que, para o cineasta
russo, refere-se a custos, brilhos e polêmicas. Segundo Shklovski, para Eisenstein “o
pensamento humano é montagem e a cultura humana é resultado de um processo de
montagem onde o passado não desaparece e sim se reincorpora, reinterpretado no
presente” (SANTOS, 2004:3)
Numa proposta inicial de compreender o método benjaminiano – a ser descrito no
Capítulo I - cabe uma aproximação com a montagem eisensteiniana, a qual agrega
proposições da história cultural, de forma a auxiliar na sua teoria de conflito entre planos.
Obviamente a obra de Eisenstein mereceria uma atenção maior, mas nos interessa fazer um
recorte operacional e reflexivo que deverá nos acompanhar ao longo da dissertação.
Benjamin já descrevera a produção da imagem dialética a partir de um passado iluminado
no presente ou ainda de um choque temporal que cria novas leituras do imaginário. Para
Eisenstein, o conflito ou a colisão de planos é o cerne de sua discussão sobre montagem,
apresentada em A forma do filme (1990). Esse conflito se manifesta dentro do plano isolado,
analogamente podemos pensar que “a montagem seria como a série de explosões de um
motor de combustão interna” (SANTOS, 2004: 9). Existem diversos tipos de conflitos
cinematográficos dentro do quadro, entre eles: o conflito de direções gráficas (linhas
estáticas ou dinâmicas), o conflito de escalas, de volumes, de massas (volumes preenchidos
com várias intensidades de luz) e de profundidades. Eisenstein refere-se ainda aos
potenciais que esperam um pequeno impulso para trabalharem em antagonia com outros
fragmentos. São eles: primeiros planos e planos gerais, fragmentos de direções
graficamente variadas (resolvidos em volume ou área), fragmentos de escuridão e claridade.
Toda essa reflexão culmina no cinema enquanto síntese de dois contrapontos: o espacial
(gráfico) e o temporal (musical).
O método desenvolvido por Benjamin considera a construção analítica como obra
aberta, ou seja, sujeita a uma interpretação de cada leitor. O leitor / investigador da cidade
filmada combina e reagrupa os filmes em blocos temáticos a fim de salientar e questionar as
representações urbanas e sociais. O movimento, nesse percurso de choques e
superposições, se dá na imaginação do leitor, que reconfigura os quadros recortados dos
filmes enquanto rastros de memória ou partículas multi-significativas capazes de conter a
história. No cinema e na teoria eisensteiniana a montagem também pode ser compreendida
como superposição como destaca Santos:
Pictoricamente, a sensação de movimento é dada pela colocação de duas imagens
próximas uma da outra, mas mecanicamente o que realmente ocorre não é uma
seqüência, mas uma superposição de uma nova imagem sobre a antecedente
registrada na memória. Isto é, de fato, o motivo de percebermos a profundidade
espacial, como ocorre no estereoscópio. (SANTOS, 2004:11)
19
Opta-se aqui, portanto, não pela análise visual das seqüências, mas pelo recorte de
fragmentos (fotogramas e trechos de diálogos), que possam reforçar ou contrapor os
conceitos levantados pelo aporte teórico. Através do método benjaminiano, do quadro
interdisciplinar de interlocutores, bem como de variadas imagens, cenários e falas, que se
recortam dos filmes procura-se transitar pelo imaginário urbano da cidade contemporânea
filmada. A partir dos muitos fades
1
utilizados para compor esta história, acompanhado de
motivações retiradas da produção cinematográfica local, nacional e internacional pretende-
se tecer esta viagem por uma Porto Alegre filmada, representada por olhares críticos e
documentais, por vezes poéticos ou pessimistas, lançados pelos cineastas gaúchos sobre a
cidade nessas últimas décadas. A leitura integral dos filmes é proposta pelos roteiros
anexados ao final desta dissertação. Sua fruição se dá auxiliada pela imaginação de cada
leitor.
BOA VIAGEM!
1
Recursos de imagens que desaparecem ou surgem suavemente.
20
CAPÍTULO I – Textos e contextos sobre a produção de uma
cidade cinemática
O fenômeno cinematográfico é dependente da
capacidade criativa da mente que vê, é dependente do
sonho, da fantasia, da memória pessoal e coletiva; a
resposta a ele é cultural.
JEAN-LOUIS COMOLLI
1.1. REFLEXÃO TEÓRICA E CONCEITUAL SOBRE IMAGEM & IMAGINÁRIO
trajeto epistemológico
No estudo da imagem e das representações, cabe a busca evolutiva de conceitos nas
diferentes áreas envolvidas, entre elas a história cultural, a filosofia, a antropologia e as
próprias ciências sociais aplicadas. Sandra Pesavento nos traz, com sua obra História &
História Cultural, uma importante contribuição no sentido de desvendar os caminhos
percorridos pela musa Clio e as mudanças epistemológicas ocorridas nas possíveis leituras
do real e do imaginário desde o século XIX. No percurso histórico proposto pela autora,
surge a figura do historiador francês Jules Michelet que, na primeira metade do século XIX,
contribuiu para a identificação e caracterização de agentes sociais anônimos – o povo –
como personagem da história e protagonista dos acontecimentos, resgatando não fatos
precisos, mas sentimentos e sensibilidades. Este olhar pioneiro sobre os temas e problemas
do imaginário constrói uma “espécie de genética de novas formas de pensar”, num contexto
de significativos progressos nas ciências, desde o racionalismo cartesiano do século XIX,
passando pelo cientificismo novecentista, chegando ao materialismo do século XX, os quais
consolidavam verdades sobre o mundo, contrapondo-se às incertezas na apreensão do real
através do sensível.
Já no século XX, em plena era fascista, Walter Benjamin – importante intelectual
alemão de matriz judaica e embasamento teórico no materialismo histórico – traça como
objetivo decifrar as imagens produzidas pela cultura do século XIX - que os homens
construíram sobre a realidade.
Trabalhando com as representações sociais de uma época, Walter Benjamin parte
do conceito marxista do fetichismo da mercadoria para apresentá-la como
fantasmagoria: imagens e desejo, ilusórias, que reapresentam o mundo, dizendo-o
de uma outra forma, mostrando o que deve ser mostrado, travestindo a realidade e
ocultando o que é possível ser ocultado. (PESAVENTO, 2004:26)
21
Benjamin analisa as produções culturais da sociedade capitalista, destaca as figuras da
boêmia, do flâneur e do herói, entre outras, a partir da obra do poeta Charles Baudelaire,
numa Paris modernista, trabalhando com o imaginário social e mostrando que a leitura de
uma época se dá através da decifração de suas representações (Fig. 01 e Fig. 02).
Fig. 01 - A imagem produzida é fruto de seu contexto
cultural. Fonte: MACHADO, 2001:207.
Fig. 02 – Possíveis analogias para
a cidade de Metrópolis (1927), de
Fritz Lang. Fonte: NEUMAN,
1999:100.
Outros dois filósofos do imaginário a serem considerados são: Gaston Bachelard e Paul
Ricoeur. Na década de 1940, Bachelard, fenomenólogo que aproxima a ciência do sonho,
interpreta a efemeridade da experiência poética e entende que a potência criadora da
imaginação está presente na descoberta da inovação tecnológica. “A fenomenologia é a
ciência dos fenômenos puros, que busca compreender o que há de essencial e imutável em
um fenômeno.” (BACHELARD, 2000:4) Logo na introdução de A Poética do Espaço, obra de
referência para este estudo, a qual traz imagens do espaço feliz, amado “e vivido não em
sua positividade, mas com todas as parcialidades da imaginação” (BACHELARD, 2000:19),
o autor explica que um filósofo que se propõe estudar as questões da imaginação poética
precisa romper com o racionalismo da ciência contemporânea, afinal “o passado não conta”.
22
É necessário estar presente, presente à imagem no minuto da imagem: se há uma
filosofia da poesia, ela deve nascer e renascer por ocasião de um verso dominante,
na adesão total a uma imagem isolada, muito precisamente no próprio êxtase da
novidade da imagem. (BACHELARD, 2000:1)
A lógica de afastar-se de uma relação de passado para fazer a leitura da imagem
poética deságua num dinamismo próprio da poesia analisada por Bachelard, numa
fenomenologia da imaginação. “Este seria um estudo do fenômeno da imagem poética
quando a imagem emerge na consciência como um produto direto do coração, da alma, do
ser do homem tomado em sua atualidade.” (BACHELARD, 2000:2). Para o filósofo, a
imagem poética é essencialmente variacional e não-constitutiva. Pede-se ao leitor de
poemas, podendo-se estender ao espectador de filmes, que não encare a imagem como
objeto, mas que capte sua realidade específica. Encontramos na fenomenologia da
imaginação, aplicada na obra de Bachelard, importantes pistas no trajeto de leitura fílmica,
enquanto percepção da história narrada, inicialmente desvinculada de um saber prévio.
Podemos então adaptar os exemplos descritos pelo filósofo, na busca de revelar o primeiro
compromisso da obra poética, à compreensão da narrativa fílmica através do sentir e
identificar-se com o autor / cineasta. O filme assim como a poesia, salvo suas
impossibilidades de representação que não existem na obra literária, nos toma por inteiro ou
nos invade com uma marca fenomenológica. Para compreender e sentir a obra, “devemos
lançar-nos no centro, no âmago, no ponto central em que tudo se origina e adquire sentido:
e eis que reencontramos a palavra esquecida ou rejeitada, a alma” (BACHELARD, 2000:5).
Bachelard introduz a uma fenomenologia da alma, estudada em sua obra sobre o
devaneio poético, na qual considera o devaneio como “uma instância psíquica que muitas
vezes se confunde com o sonho”. A imaginação é a faculdade que produz imagens e nos
desprende ao mesmo tempo do passado e da realidade, abrindo-se para o futuro. Em A
Poética do Espaço, Bachelard refere-se ainda a uma topoanálise - definida como o estudo
psicológico sistemático dos locais de vida íntima. Ao analisar as imagens do segredo, o
filósofo estabelece a diferença entre metáfora e imagem:
A metáfora vem dar um corpo concreto a uma impressão difícil de exprimir. A
metáfora é relativa a um ser psíquico diferente dela. Ao contrário, a imagem, obra de
Imaginação absoluta, extrai todo o seu ser da imaginação. (BACHELARD, 2000:87)
A imagem, na fenomenologia, é criação do ser. Um bom exemplo de imagem levada
ao extremo são os versos do surrealista André Breton, dos quais Bachelard destaca: “o
armário está cheio de roupa. / Há até raios de luz que posso desdobrar.” (BACHELARD,
2000:93) O surrealismo contribui para as desconstruções ou transfigurações da imagem e
apresenta-se em diferentes mídias, desafiando as limitações do suporte utilizado para
comunicar. Pode-se ainda recordar a obra do cineasta e poeta francês Jean Cocteau. Este
23
artista inova na plasticidade de seus filmes, os quais agregam o valor de poema
transformado em imagem fílmica atemporal.
A partir da década de 1950, o filósofo Paul Ricoeur “discutia não só a possibilidade de
obtenção da verdade, mas a própria existência de uma finalidade na história”. É por meio de
sua hermenêutica que passam a ser questionados “os distanciamentos e as aproximações
entre as narrativas literária e histórica, pondo em causa as dimensões da verossimilhança e
da veracidade dos discursos” (PESAVENTO, 2004:27). Entre 1983 e 1985, Ricoeur publica
os três volumes de Tempo e Narrativa, obra na qual o autor considera que, para que ocorra
a configuração de uma narrativa, há uma refiguração de uma experiência temporal que
envolveria representação e reconstrução.
Reconstrução porque, ao reinscrever o tempo do vivido no tempo da narrativa,
ocorrem todas as variações imaginativas para possibilitar o reconhecimento e a
identificação. Representação porque a narrativa histórica tanto se coloca no lugar
daquilo que aconteceu quanto lhe atribui um significado. (PESAVENTO, 2004:36)
Ricoeur é um pensador fundamental no estudo da decifração da cidade e do tempo.
Contrapõe-se à materialidade da transformação espaço-temporal descrita por Kevin Lynch
em A Imagem da Cidade (1999) e De qué tiempo es este lugar?, exigindo, no seu diálogo,
um fade ou uma ponte entre a hermenêutica do filósofo francês e a leitura instrumental
proposta pelo pesquisador norte-americano.
Pesavento salienta ainda uma “ficcionalização da história”, pois, no caso da narrativa
histórica, o imaginário se coloca no lugar do passado descrito, figurando como se fosse uma
realidade. O debate sobre narrativa histórica ou, aristotelicamente, o relato de uma
seqüência de ações encadeadas no tempo passado, amplia-se influenciado pela
Antropologia que trabalha com o individual e o coletivo, “onde a análise se juntaria à
descrição e onde se registraria a descoberta de novas fontes e novos temas” (PESAVENTO,
2004:49) O cinema, por sua vez, enquanto linguagem que possibilita múltiplas escritas
coloca-se como a narrativa do que poderia ter acontecido ou mesmo daquilo que aconteceu
acrescido de elementos argumentativos ficcionais.
Sobre a escrita da história, Michel de Certeau, em 1975, publicou um livro através do
qual considera a escrita como um discurso de separação temporal, entre o passado e o
presente. Em 1980, Certeau lança outro estudo intrigante e elucidativo: A Invenção do
Cotidiano – Artes de Fazer, no qual desloca a sua atenção para a cultura comum e as
práticas cotidianas enquanto apropriação, traduzíveis em valores culturalmente sensíveis,
numa análise que se ordena em três estágios: as modalidades de ação, as formalidades das
práticas, os tipos de operação especificados pelas maneiras de fazer. As proposições deste
historiador abrem novos caminhos para se perder na multidão e para transitar pelos
conceitos de espaço e sociedade, e que, num certo sentido, compara lugar à língua.
24
As formulações de Marcel Mauss e Émile Durkheim, no início do século XX, reorientam
o estudo das representações, entendidas como uma realidade paralela à existência dos
indivíduos. “Indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio das representações que
constroem sobre a realidade” (PESAVENTO, 2004:39). A representação é um conceito
ambíguo e multifacetado. Ela não é uma cópia do real, mas uma reconstrução portadora do
simbólico – ou seja, diz mais do que aquilo que mostra, carrega sentidos ocultos construídos
social e historicamente, produz reconhecimento e legitimidade. “A representação tem a
capacidade de se substituir à realidade que representa, construindo o mundo paralelo de
sinais no qual as pessoas vivem” (PESAVENTO, 2004:41). O grande desafio do historiador
da cultura é, portanto, decifrar o passado por meio das representações discursivas e
imagéticas mesmo com uma considerável sobreposição de camadas de tempo que o
distancia do acontecido.
Tem-se, então, que a História Cultural se torna uma representação das representações,
trazendo ao debate o conceito de imaginário, entendido como “um sistema de idéias e
imagens de representação coletiva que os homens, em todas as épocas, construíram para
si, dando sentido ao mundo”. (PESAVENTO, 2004:43). Para o historiador Bronislaw Baczko
(1991), o imaginário é histórico e datado. Pesavento salienta ainda que “o imaginário
comporta crenças, mitos, ideologias, conceitos, valores, é construtor de identidades e
exclusões, hierarquiza, divide, aponta semelhanças e diferenças no social” (PESAVENTO,
2004:43). O historiador medievalista Jacques Le Goff se aproxima do filósofo Cornelius
Castoriadis quando amplia esta conceituação e diz que a sociedade só existe no plano do
simbólico, entendendo que tudo pode ser submetido a uma leitura imaginária.
Nesse trajeto epistemológico de tensões e complementaridades, guiado pela mão de
Pesavento, encontramos o historiador Lucian Boia (1998) disposto a solucionar a crise entre
as permanências dos arquétipos - ou elementos do imaginário que atravessam os tempos e
assinalam formas de pensar e construir representações sobre o mundo, presentes nas
discussões antropológicas - e as mudanças produzidas pela historização em cada contexto.
O autor tanto vê persistências estruturais do espírito quanto uma re-elaboração permanente
ao longo da história dos tais arquétipos imaginários, que sintetizam em oito exemplos a
atravessar as épocas: a consciência de uma realidade transcendente; a idéia de morte, do
duplo e do além; a alteridade; a unidade; a atualização das origens; a decifração do futuro; a
necessidade de evasão; as lutas ou polarização dos contrários. (PESAVENTO, 2004:46).
25
1.2. RECORTANDO FRAGMENTOS DE UMA CIDADE E PRODUZINDO IMAGENS
DIALÉTICAS
Na busca de um método para a leitura da cidade representada pelo cinema, toma-se
como princípio a capacidade de subjetivar a informação trazida nos filmes e, portanto, de ir
além do que está dito na película. Manter um olhar voltado aos traços secundários e um
espírito aberto aos desvios e imprevistos conceituais é condição sine qua non para este
percurso imagético. É fundamental ainda ter clareza de que a análise de filmes sob a ótica
do imaginário urbano envolve uma enorme sutileza, pois se corre o risco de privilegiar os
caminhos intertextuais de apropriação e ressignificação da cidade, desconsiderando as
peculiaridades do cinema.
Historicamente, no estudo da representação da cidade, encontramos três
convenções estéticas, descritas por Christine Boyer em The City of Colletive Memory,
claramente referenciadas ao tempo que as produz, sendo elas: “a cidade como obra de arte;
a cidade como panorama e a cidade enquanto espetáculo” (BOYER, 1996:32). A cidade
como obra de arte apresenta a imagem urbana como uma representação pictórica,
enquadrada pela fotografia, encontrando-se diretamente relacionada à modernidade do
século XIX. “A moldura pictórica definia também o espaço narrativo porque havia uma
história urbana a ser narrada dentro de seus limites” (BOYER, 1996:33).
O começo do século XX, por sua vez, é marcado por uma nova imagem da
metrópole moderna, então em processo de verticalização e conseqüente reconfiguração da
paisagem. Surge a descrição da cidade como panorama, a qual se encontra em permanente
transformação e está marcada por uma série de impressões flutuantes e encontros
momentâneos. Introduz-se assim a idéia de movimento multidimensional e uma nova
espacialização do tempo, tendo como imagem a continuidade de cenas produzidas pela
janela de um trem em movimento. A dualidade na percepção visual do real e da imagem
produzida pelo movimento é comparável à experiência de assistir a um filme. A percepção
da tela do cinema e as imagens nela projetadas provocam sensações semelhantes de
divisão, de alternação de um campo de visão para outro, do real para o ficcional.
Conseqüentemente, no começo do século XX, o cinema aparece como uma mídia
ideologicamente explicada pelo contexto contemporâneo. Nesse momento, o filme, dando
continuidade à concepção realista que justificou o aparecimento da fotografia, captura o
movimento contínuo de espaço e tempo e representa melhor os anseios e as sensações
contemporâneas. Por fim, nesta linha descritiva, Boyer refere-se à cidade como espetáculo,
que surge no contexto dos desenvolvimentos tecnológicos na comunicação e na informática,
26
os quais contribuem para transformar as formas de ver, compreender e representar a
cidade. Nesse sentido, a arquitetura representa uma consciência intensificada por signos e
cenas específicas que são produzidas e reproduzidas no intuito de fazer "saltar aos nossos
olhos" unicamente o elemento de efeito visual e sua qualidade dramática. Temos
significativos exemplos desta estética de representação urbana no cinema ao longo de
século XX (Foto 01 e Foto 02), sobretudo, nos diálogos propostos entre as cidades
formadas por sobreviventes da tecnologia e as cidades idealizadas por uma mescla de
elementos criados em ambientes virtuais.
Foto 01 - Crítica à cidade modernista na
representação de Metrópolis (1927), de
Fritz Lang. Fonte: NEUMAN, 1999:97.
Foto 02 – A construção em estúdio da cidade
de Metrópolis (1927), de Fritz Lang. Fonte:
NEUMAN, 1999:101.
Como síntese evolutiva na forma de representar a cidade, desde a fotografia,
passando pelo cinema e pelos programas de animação, os quais somam realidade histórica
com anseios imaginários, podemos considerar a caracterização de cada cidade a partir de
sua problemática social e urbana. Uma saída para estudar a representação desta cidade,
afetada pela confluência de traços locais e importados, é entendê-la a partir de fragmentos
sociais e urbanos (imagens) arrancados de seu contexto e rearranjados numa escrita fílmica
aberta e em permanente revisão. Toma-se ainda como motivação o estudo do cotidiano e
dos tempos expressos na arquitetura, nos fluxos urbanos e nas camadas narrativas
aproximando-se do momento atual – o agora representado e sua projeção imaginária.
Destaca-se Certeau quando descreve a instauração de um presente no enunciado: “o
presente é propriamente a fonte do tempo, a organização de uma temporalidade (o presente
cria um antes e um depois) e a existência de um agora que é presença no mundo”
(CERTEAU, 1994:96)
A metodologia eleita para o tratamento dos dados deste estudo está apresentada na
obra Fisiognomia da Metrópole Moderna: Representação da história em Walter Benjamin, de
Willi Bolle. É indispensável explicitar partes da obra de Bolle para compreender o método de
27
montagem proposto por Benjamin e, assim, interpretá-lo, adaptando-o a esta investigação.
Nesta obra, Bolle aborda os fragmentos urbanos - a chamada fisiognomia benjaminiana da
grande cidade - entendida como um paradigma de reflexão sobre o fenômeno contraditório
da Modernidade. Como instrumento de leitura encontramos:
A figura multifacetada do flâneur é usada como instrumento de percepção e
mapeamento da paisagem social, chegando-se a um tableau final satírico que
procura ilustrar a técnica benjaminiana do ‘despertar’ do sonho da Modernidade.
(BOLLE, 1994:18).
Sérgio Rouanet, em seu texto intitulado Olhar Iluminista (ROUANET In: NOVAES,
2000:130), faz referência a uma significativa figura da Ilustração, o novelista Rétif de la
Bretonne. Em Les nuits de Paris, Rétif descreve um “espectador noturno”, num certo
sentido, um flâneur noturno – em contraponto ao flâneur diurno de Benjamin - que
perambula distraído pelas ruas de Paris em busca de sensações. Esta figura contemplativa,
usada como instrumento para radiografar a cidade moderna, pode ser encontrada no
cinema e servir também para os propósitos de verificação da cidade e da sociedade
representadas.
Na primeira parte do livro, Bolle resgata o trabalho das Passagens de Benjamin, no
qual aparece a descrição sobre a chamada imagem dialética. Benjamin considerou como a
questão mais urgente na sua historiografia a “construção”. Para ele, a história é objeto de
uma construção. Sua solução estaria ligada ao conhecimento dos “interesses históricos
decisivos de (sua) geração”, ou, metodologicamente falando, ao “agora da conhecibilidade”,
que foi, desde o início, um atributo essencial da imagem dialética. O saber é obtido através
de uma operação dialética: do ‘ainda não-consciente’ à consciência despertada, e vice-
versa. “O elemento técnico mais importante dessa história social da cidade de Paris é a
perspectiva de apresentação, ou seja, a construção do olhar sobre a metrópole moderna.”
(BOLLE, 1994:60)
Em A Paris do Segundo Império em Baudelaire, trabalho que combina ciência e
poesia, Benjamin descreve a história que procurou mostrar a coisa ‘tal como ela de fato
aconteceu’, como o mais forte narcótico do século XIX. “O instrumento do historiador para
desfazer o efeito do narcótico” e fazer surgir os rastros é a análise dos sonhos e a
fabricação de imagens dialéticas. Cabe considerar que essa preocupação com a
prospecção dos rastros está implicitamente demonstrada no lançamento dos subitens de
análise desta pesquisa: no tempo, no olhar individual e coletivo sobre a cidade e no lugar ou
nos lugares identificados.
Diferenciando-se de Hegel, Benjamin enfatiza, na interface com Baudelaire, um
“diferencial de tempo” e um “agora da conhecibilidade”, substituído mais tarde pelo conceito
de “tempo do agora”. Mais adiante, Benjamin detecta uma época de degradação na obra do
28
poeta, nos temas que recorrem ao lixo da sociedade como modelo para sua produção
literária. Destaca nessa seqüência de imagens “um homem que tem de recolher na capital o
lixo do dia que passou, tudo o que a grande cidade jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o
que desprezou e esmagou – ele registra e coleciona”.
O interesse pelas técnicas de representação da metrópole, na obra de Benjamin,
evidencia-se na crítica da cidade inabitável por conta da “concentração fascinante de (...)
pessoas” que “subjaz a crescente disposição ao suicídio coletivo”.
À caducidade do cenário corresponde a degradação do herói; no fim da seqüência
imagética do ’esgrimista’ está uma figura de tempos finais: o catador de lixo,
espetando com sua vara as imundícies da rua. (BOLLE, 1994:86)
Na Paris do século XIX, do estudo benjaminiano sobre Baudelaire e sua época, o
herói está descrito “como antítese da Modernidade”, ele é uma figura incompatível com ela e
catalisadora de suas contradições. Na metrópole contemporânea, o herói encontra-se
perdido nos descaminhos da cidade descaracterizada pela inversão de espaços públicos em
privados, cercada pela paranóia urbana em contraposição à indiferença com o outro. Em A
Invenção do Cotidiano, Michel de Certeau realiza coletivamente sua pesquisa dedicada ao
“homem ordinário. Herói comum. Personagem disseminada. Andarilho inumerável”
(CERTEAU, 1994:28) Na Paris do século XIX, “o cidadão moderno se percebe como
estranho, isolado, derrotado”. Retomando Bolle, Benjamin diz que
ao lidar com a historiografia alegórica, com sua superposição de épocas diferentes, é
preciso insistir no diferencial de tempo entre as épocas envolvidas – em nome do
conhecimento da história e da própria teoria da imagem dialética (BOLLE, 1994:87).
Para ele, é legítimo recuperar o projeto de Baudelaire, ideologicamente indeciso e
mais aberto. Observa-se, então, na seqüência de imagens fragmentadas, um acúmulo de
camadas de textos perfeitamente aplicáveis à realidade do cinema. A montagem – ou a
justaposição de fragmentos visuais isolados entre si - é considerada, por alguns teóricos, a
única criação realmente original do cinema. Ele se apropriou de outras, como a elipse ou
supressão de um episódio, a metáfora ou a representação de uma coisa através de outra, e
a metonímia ou a representação do todo por uma das partes. A montagem aparece também
em outras artes, como a pintura e a própria fotografia. Bolle destaca que, para Benjamin, o
princípio da montagem é a base de sua historiografia e já constitui uma interpretação.
Os procedimentos de montagem sublinham o seu caráter de ‘obra aberta’, fazendo
com que o leitor se torne co-autor do texto, efetuando a montagem por sua conta.
(BOLLE, 1994:88).
Segundo Bolle, Benjamin recorre, primeiramente, a cinco conceitos para elaborar as
suas técnicas específicas. Entre eles estão: (1) o conceito de montagem dadaísta, o qual se
utiliza de fragmentos da vida cotidiana colocados juntamente com elementos da pintura,
submetendo assim a arte ao teste de autenticidade – um dos conceitos-chave da estética
29
benjaminiana; a seguir, vem (2) o conceito de montagem surrealista, que evolui da
experimentação inicial ligada ao mito e ao sonho, até a politização em direção ao
comunismo. Bolle faz referência ao trabalho das Passagens, no qual Benjamin passa a
colecionar sistematicamente os sonhos coletivos de uma época para decifrá-los. (3) O
conceito do teatro épico influencia, em Benjamin, seu conceito de montagem como ruptura;
a ruptura versus hipnose; espanto versus empatia; arranjo experimental versus esquemas
prontos; extração do gestus – elemento fundamental para a construção da imagem dialética
- a partir do comportamento cotidiano. Benjamin se utiliza também do (4) conceito
jornalístico de montagem, ou seja, da não-linearidade espacial do texto jornalístico e da falta
de conexão entre os elementos – fato que impede a “formação” de experiência. Por fim, (5)
no cinema, o conceito de montagem “realiza, de forma radical, o princípio da fragmentação:
os elementos isolados ‘não significam nada’, o sentido nasce a partir de uma combinatória
‘segundo uma lei nova’. (...) o olhar da câmera conquista novas esferas de percepção”.
(BOLLE, 1994:92).
Bolle destaca, do texto de Benjamin, que: “na tomada em close, amplia-se o espaço,
em câmara lenta, o movimento (...) Assim fica evidente que a natureza que fala para a
câmara é diferente da que fala para o olho”. (BOLLE, 1994:92). Tem-se, a partir da
combinação do princípio cinematográfico da montagem aos procedimentos do trabalho
onírico, um meio adequado de investigação do imaginário coletivo.
As técnicas benjaminianas de montagem aparecem como princípio de montagem da
história. A coletânea de materiais mostra a planta da obra benjaminiana a partir de
determinados grupos temáticos e imagéticos, tais como: o flâneur e a massa, o herói, entre
outros, que expressam a vida social da época. Pode-se exemplificar contemporaneamente
com a imagem produzida pelo filme Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado, no qual uma
seqüência de fatos, aparentemente desconexos se justificam na narrativa que aborda a
condição humana, a miséria e a liberdade. Para Benjamin, a historiografia como construção
pressupõe um trabalho de “destruição e desmontagem”, que tem por objetivo formar uma
constelação, onde o passado se junta – como num relâmpago - com o agora. Não existe
uma seqüência lógica lançada, por exemplo, nos filmes: Spider (2002), de David
Cronenberg, em Irreversível (2001), de Gaspar Noé ou em Amnésia (2001), de Christopher
Nolan – todas histórias contadas a partir de uma desconstrução temporal. “Escrever a
história” é para Benjamin “citar a história”, e o conceito de citação implica que o objeto
histórico seja retirado do seu contexto.
“Apoiado nos procedimentos do cinema e do sonho, Benjamin penetra no imaginário
coletivo da Modernidade, dialogando com o mito”. (BOLLE, 1994:96) Define-se assim o
conceito de montagem como arte combinatória, na qual o autor combina o elemento contido
30
na narração através de imagens, com os conhecimentos da ciência moderna, buscando
radiografar os sonhos coletivos. Por outro lado, a montagem em forma de choque provoca a
irrupção imediata do despertar, apresentando-se como uma antítese da tomada de
consciência – que se dá aos poucos. “Sua função consiste em confrontar a visão amena da
metrópole expressa na mentalidade de flânerie, como seus aspectos inquietantes e
ameaçadores”. Canevacci faz uma consideração a esse respeito, dizendo que:
Como qualquer observador da contemporaneidade pode verificar com extrema
facilidade, esta tendência à acentuação dos movimentos por impulsos que envolvem
todo o sistema perceptivo resulta na multiplicação dos choques, dos estímulos, ou
seja, dos signos por unidade de imagem. O campo visual que se afirma é o
cruzamento sempre mais isomórfico entre o set televisivo e viário. Basta pensar na
cultura hip-hop, no rap, na tecnomusic (...), na invasão privada do fax. Na paisagem
urbana descrita por Benjamin, e que aparece quase plácida e imóvel aos nossos
olhares contemporâneos, está exposta uma montagem exemplar a arqueologia do
choque na percepção urbana. (CANEVACCI, 1993:104)
Por fim, Bolle descreve a montagem como superposição, considerada a mais
propícia, entre as técnicas benjaminianas, para radiografar o imaginário coletivo. Essa
técnica, inspirada no cinema, no sonho, na língua e na escrita, “expressa tanto a
simultaneidade de percepções diferentes, quanto o processo cognitivo no limiar entre
inconsciente e consciência” (BOLLE, 1994:99). A metáfora de “esfregar os olhos para
certificar-se de uma percepção” é bastante ilustrativa da técnica descrita. O questionamento
sobre “o que é alucinação e o que é realidade” é um bom exemplo de oscilação individual,
subjetiva da percepção – no plano micro. No trabalho das Passagens são apresentadas
oscilações do imaginário coletivo – no plano macro - tentando-se decifrar esses processos
em termos de história das mentalidades.
O cinema só se justifica quando revela o invisível, afirma o cineasta Jean-Louis
Comolli. O espaço urbano, como qualquer outro conjunto visível, não pode ser visto pelo
cinema como o vê o passante ou o andarilho. “O cinema não pode tratar o espaço
separadamente. É impossível apreender ou atravessar as partes do espaço sem transformá-
las em partes de tempo.” (COMOLLI, 1995:152) O autor busca assim estreitar a relação
entre o cinema, que se manifesta através do tempo, e a cidade que não é apenas uma
disposição de espaços, mas um prodigioso empilhamento de tempo. No exemplo da
filmagem na cidade de Marselha, ele diz que: “a cidade é um palimpsesto. Os mil degraus
de Notre-Dame-de-la-Garde se transformam nas marcas da lenda de Marselha, no corpo de
uma mãe marselhesa”. Aqui o cineasta se aproxima do historiador que, segundo Pesavento,
“precisa ter filigranas no olhar para ver, neste espaço transformado, destruído, desgastado,
renovado pelo tempo, a cidade do passado” (Foto 03).
31
Foto 03 – A cidade destruída em Things to
Come (1936), de William Cameron Menzies.
Fonte: NEUMAN, 1999:121
1.3. REFERÊNCIAS EXTERNAS E FLASHBACKS NA CINEMATOGRAFIA
PORTO-ALEGRENSE
Na história do cinema, observa-se a presença da cidade como personagem mutante
que pode ser lida como agente cênico definido a partir de uma intenção autoral de
caracterizar um lugar e uma cultura, ou como cenário
2
coadjuvante, transfigurado e
percebido apenas como pano de fundo. O caminho escolhido para resgatar as referências
externas é o resgate de contextos históricos e culturais, bem como dos realizadores
expoentes de cada época. O filme enquanto obra de arte é um produto que expressa às
inquietações do seu tempo. No cinema, como na música, essa atmosfera criada e
transformada gera sensações, perpetua lembranças e influencia gerações. Destaca-se
claramente a importância dessa relação ambiente criado/transformado e interações
sensíveis no cinema expressionista alemão (Fig. 03 e Foto 04), onde
todos os elementos construtores do espaço fílmico – móveis, cômodos, casas, ruas
– eram exageradamente distorcidos e psicologizados justamente para refletir o
interior de seus personagens. Diversos recursos formais de iluminação,
enquadramento, composição e escala eram utilizados na obtenção destes efeitos:
linhas oblíquas, diagonais, figuras angulosas e símbolos compunham um estilo
exagerado e não-realista. Sombras, penumbras e espaços amplos contrapostos a
ambientes claustrofóbicos também contribuíam para a externação de sentimentos.
(SANTOS, 2005:79-80)
2
Entende-se que a cidade-cenário pode descontextualizar e desterritorializar a história narrada pelo filme, o qual
poderia estar sendo produzido em qualquer outro lugar. A representação da cidade-mutante parece estar mais
adequada à investigação do imaginário urbano e a sua identificação é um dos objetos desta dissertação.
32
Fig. 03 – Cenário projetado de Das Cabinet
des Dr. Caligari (O Gabinete do Dr. Caligari,
1920), de Robert Wiene. Fonte: NEUMAN,
1999:53.
Foto 04 – Cenário “psicológico” de Genuine
– Die Tragödie eines seltsamen Hauses
(1920), de Robert Wiene. Fonte: NEUMAN,
1999:61.
No cinema italiano do diretor Ettore Scola – os espaços internos cenográficos
revelam-se protagonistas e capazes de conter a história em sua materialidade. Destacam-se
as cenas de circulações internas, nos filmes La Famiglia (A Família, 1986) e Una Giornata
Particolare (Um dia Muito Especial, 1977). No primeiro filme, cada plano do corredor marca
uma nova fase na vida da família. As transformações vão sendo marcadas pela imagem do
espaço de circulação que dá acesso à casa da família. Em Una Giornata Particolare, o
grande condomínio italiano está locado para contar a história de duas pessoas solitárias
que, em plena Roma fascista, compartilham seus dramas e suas esperanças ao longo de
um dia. Nas representações urbanas, Scola lança-se sobre uma Veneza histórica em La nuit
de Varennes (Casanova e a Revolução, 1982), filme que desmistifica espacialmente a
cidade de Veneza, pois a história se passa na França revolucionária.
Lugares concebidos em estúdio carregam uma forte carga simbólica e refletem o
repertório do diretor de arte misturado às intenções do diretor geral do filme. Joseph Urban,
arquiteto vienense nascido em 1872, deixou registrada sua autoralidade em filmes norte-
americanos, sobretudo da década de 1920, onde atuou como construtor cinematográfico
para a Cosmopolitan (Foto 05). Em 2003, o diretor Lars Von Trier filma Dogville sobre um
palco demarcado por linhas que caracterizam construções, ruas, arbustos e até o cão que
dá nome à cidade. O cenário (Foto 06) funciona como uma planta em escala real (1:1) de
um projeto arquitetônico, onde inclusive cada espaço é identificado por inserções textuais
que os definem: ‘casa de Thomas Edison’ e ‘Rua Elm’, por exemplo. Santos faz uma
interessante análise do espaço fílmico de Dogville em sua dissertação de mestrado e afirma
que:
33
o reducionismo adotado na caracterização do cenário nos permite ver a sociedade
como um todo, exterior e interior, ruas, casas e pessoas, indo do coletivo ao
privativo, à intimidade dos lares sem obstáculos, numa onipresença
perturbadoramente marcante. (SANTOS, 2005:164)
Foto 05 – A habitação esquecida
de Enchantment (1921). Concebida
por Urban como um interior muito
texturizado e iluminado de modo a
remeter à pintura de Rembrandt.
Fonte: RAMIREZ, 1986:33.
Foto 06 – Cenário atípico e minimalista da cidade de
Dogville (2003), de Lars Von Trier. “A artificialidade é
revelada pela ausência de obstáculos visuais, sugerindo que
‘só não se vê o que não se quer’” Fonte: SANTOS,
2005:166.
Diversos autores analisaram a relação do cinema com as cidades criadas em estúdio
e concebidas por uma mescla conceitual que refletia aspirações e críticas do seu momento.
Entre eles está o arquiteto Lineu Castello, no seu artigo intitulado Meu tio era um Blade
Runner: ascenção e queda da arquitetura moderna no cinema (2002), o qual transita pelo
conceito de modernidade e pela crítica à padronização da sociedade e dos espaços
modernos abordados em três filmes: Mon Oncle (Meu Tio, 1958), de Jacques Tati, Blade
Runner (1982), de Ridley Scott e The Truman Show (O Show de Truman, 1998), de Peter
Weir. Castello, neste artigo, faz ainda uma interessante retomada de temas emblemáticos
mostrados por uma cinematografia interessada em lançar-se sobre as novas posturas e
tecnologias da modernidade, como nos filmes: Playtime (1967), de Jacques Tati (Foto 07) –
o qual segue a abordagem crítica iniciada em Mon Oncle; e Metrópolis (1927), de Fritz Lang,
ambos expoentes na discussão de cenários criados para representar conceitos urbanos e
sociais decadentes.
O clássico Metrópolis, de Fritz Lang, (Foto 08) merece uma atenção maior no
resgate das referências fílmicas sobre cidades imaginárias, especialmente as cidades do
futuro. Além da ousadia na faraônica construção de um cenário-maquete que deveria
reforçar a dicotomia do eixo vertical proposto pelo filme, dentro do qual o diretor enfatiza a
hierarquia entre operários e patrões, Metrópolis pode ser lido como uma metáfora da cidade
modernista. Paulo Reyes, em artigo publicado na Revista Teorema (2003), traça um paralelo
entre a realidade das cidades modernistas e a ficcionalidade de Metrópolis, ambas
concebidas no auge da vida urbana atravessada pelos processos de industrialização.
34
Como uma possibilidade econômica para o desenvolvimento urbano, a indústria traz
junto dela uma realidade específica – a realidade do operário. Nesse processo de
migração, em que as pessoas se acumulam cada vez mais no espaço das cidades, a
indústria passa a exigir uma nova configuração espacial. (...) Em Metrópolis alguns
desses ícones da industrialização estão marcados pelas imagens de Fritz Lang: as
altas densidades e a vida operária apartada da realidade urbana. (REYES, 2003:53)
Podemos ainda inferir sobre uma modernidade de anônimos e desiludidos com a
agressiva transformação urbana. Dos diálogos entre operários e patrões e entre homens e
andróides, criados pela ficção, o cinema vai se aproximando da realidade no pós-guerra. A
cidade permite-se mostrar mais cruamente – em nível internacional – no período que
destaca a ascensão do neo-realismo, em especial na Itália, com filmes como Roma, Città
Aperta (Roma, Cidade Aberta, 1945), de Roberto Rossellini. O neo-realismo italiano estava
calcado por uma estética da ruína, da destruição ou da cidade bombardeada pela guerra.
Suas personagens eram incorporadas por pessoas comuns, sem o glamour hollywoodiano.
O neo-realismo aparece também no Brasil através de filmes que retratam o regionalismo
nordestino, como, por exemplo, no trabalho do diretor Glauber Rocha.
Foto 07 – A irônica e, ao mesmo
tempo, trágica cidade moderna
(ou Tativille) de Playtime (1967),
de Jacques Tati. Fonte:
NEUMAN, 1999:145.
Foto 08 – A opressora cidade de Metrópolis, de Fritz Lang,
(1927). Fonte: NEUMAN, 1999:10.
A cidade começa a ser vista como possibilidade mais usual e menos dispendiosa de
locação nos filmes franceses da Nouvelle Vague. O movimento surgido na segunda metade
da década de 1950 buscava filmar histórias simples, comumente produzidas pelas ruas de
Paris. Seus principais animadores foram críticos dos Cahiers du Cinéma: Jean-Luc Godard,
François Truffaut, Eric Rohmer, Claude Chabrol, Jacques Rivette, além de Louis Malle, Alain
Resnais e Jacques Demy. Nas produções francesas contemporâneas, observa-se uma
latente necessidade de retratar a vida cotidiana, por vezes existencialista, a qual resulta em
35
filmes com longos diálogos e destacados apelos poéticos. Vale lembrar o clássico filme de
Alain Resnais: Hiroshima Mon Amour (1959), o qual mobilizou artistas e intelectuais de todo
o mundo por conta de sua narrativa complexa, carregada de um enorme potencial poético-
dramático. O filme narra a história de dois amantes que se conhecem em Hiroshima, no
recente pós-guerra. A cidade atingida pela bomba atômica ainda se encontrava submersa
por uma nuvem sufocante de tristeza e de marcas irreversíveis da destruição.
Na construção narrativa, a memória dos personagens vai surgindo intimamente
relacionada às suas cidades de origem ou de passagem, até que essa história do lugar se
funde à história do indivíduo na própria surpresa com o nome de cada um deles. Para
Berzoini, o filme é:
um olhar trágico sobre a condição humana, condenada ao fracasso do
esquecimento, do entorpecimento da mente, da memória. Uma visão apocalíptica
sobre a condição do ser. Uma meditação sobre a censura imposta ao esquecimento
pela tortura dos labirintos da memória, pelos vestígios do passado. Uma reflexão
sobre a visão agonizante do homem moderno, sobre sua relação particular com o
passado, com o presente e com o futuro, incerto; imerso num desamparo absoluto e
indissolúvel. (BERZOINI, 2002, publicado na internet)
Os franceses se destacam na representação crítica da cidade e da sociedade
moderna e pós-moderna. Jean-Luc Godard, mais recentemente, lança seu olhar sobre a
contemporaneidade fragmentada através de diálogos bem construídos em Notre Musique
(Nossa Música, 2004), filme-réquiem falado em francês, árabe, inglês, hebraico, servo-
croata, espanhol e organizado em três reinos ou movimentos: o inferno, o purgatório e o
paraíso. A cidade em foco: Sarajevo, síntese da tensão entre uma Europa civilizada e uma
Europa em guerra. Na narração do inferno, com uma intenção de manter acessa a memória
sobre as pegadas sangrentas da humanidade numa estrada chamada civilização, o discurso
se dá:
Assim, no tempo das fábulas após as inundações e o dilúvio, homens armados
surgiram da terra e se exterminaram. Eles são terríveis, aqui, com sua mania de
decapitar as pessoas; o que me espanta é que ainda haja sobreviventes. Perdoa as
nossas ofensas como nós perdoamos, perdoa-nos. Você se lembra de Sarajevo?
(Transcrição da autora)
Contrapondo-se à lúcida crítica européia, não podemos esquecer, no contexto norte-
americano, da apologética homenagem de Woody Allen à sua Nova York, no filme
Manhattan (1979). Os primeiros quatro minutos do filme marcam a cidade festejada através
do backlight que pisca e da narração do escritor em crise:
Capítulo 1: - Ele adorava Nova York.
- Ele a idolatrava em excesso. Bem, vamos dizer que... Ele a romantizava em
excesso.
- Para ele, não importava a estação, a cidade ainda existia...em preto-e-branco e
pulsava ao som de George Gershwin. (Transcrição da autora)
36
Marc Ferro, em Cinéma et Histoire, retoma a relação entre história e cinema, fixando
conceitos fundamentais, dos quais alguns deles dizem respeito ao enquadramento do filme
enquanto documento historiográfico e como discurso sobre a história. O cinema como
agente da história está caracterizado, em determinados contextos socioculturais, pela
apropriação de seu potencial de abrangência e manipulação por parte de dirigentes
políticos, a fim de fixar ideologias. Por outro lado, verificam-se manifestações autônomas e
independentes de correntes ideológicas dominantes, nos filmes franceses da Nouvelle
Vague, por exemplo. Na década de 1980, constata-se uma multiplicação de câmeras super-
8: o cinema torna-se ainda mais ativo como agente de uma tomada de consciência social.
“Outrora (como) ‘objeto’ para uma vanguarda”, o cinema era manipulado por posturas
autoritárias; agora, a sociedade pode encarregar-se de si mesma.
Para Ferro, o cinema se manifesta através de modos de ação que tornam o filme
eficaz. Essa capacidade operatória está ligada à sociedade que produz o filme e àquela que
o recebe (ou consome). Segundo o autor, a prática desses modos de escrita específica
compõe “um arsenal de possibilidades da sociedade, que pode se valer, por exemplo, da
censura em todas as suas formas” ou ainda da inserção de elementos imaginários na sua
construção. O cineasta russo “Eisenstein já havia observado que toda sociedade recebe as
imagens em função de sua própria cultura.” (FERRO, 1993:17). Acrescente-se a essa
observação que a produção e recepção de imagens e textos, bem como a capacidade de
perceber nuances nas imagens captadas, depende de um olhar sensível e culto (no francês,
cultivée).
Ainda na revisão de autores que publicam suas impressões sobre a relação cinema e
cidade, destacam-se os artigos do arquiteto Leonardo Name, em O cinema e a cidade:
simulação, vivência e influência (2003a) e em Apontamentos sobre a relação entre cinema e
cidade (2003b), ambos voltados para uma revisão bibliográfica sobre a trajetória de
acompanhamento e de antecipação do cinema sobre a leitura urbana. O autor estende sua
leitura da cidade enquanto paisagem e contexto, na sua dissertação de mestrado, na qual
analisa a cidade do Rio de Janeiro vista pelos filmes produzidos no Brasil a partir da década
de 1990, justapondo-se a determinados filmes realizados desde os anos 30 nos Estados
Unidos. Nos filmes estrangeiros, “uma personagem americana viaja ao Rio de Janeiro e
nesse lugar tem experiências de identificação e alteridade” (NAME, 2004:X). Name propõe
então um cruzamento de olhares sobre uma cidade real e sobre uma mescla de percepções
culturais (Foto 09 e Foto 10).
37
Foto 09 – A cidade (paisagem) do Rio de
Janeiro enquadrada pela janela. Cena do filme
Bossa Nova (2000), de Bruno Barreto. Fonte:
pesquisa na internet
3
Foto 10 – A estrangeira no Rio de Janeiro,
palco de interações únicas. Cena do filme
Bossa Nova (2000), de Bruno Barreto. Fonte:
pesquisa na internet
4
A chegada do cinema ao Brasil deu-se em 1896, com a inauguração de um
omniographo (variação do cinematógrafo dos irmãos Lumière), no Rio de Janeiro. A
atividade progrediu, sobretudo, pelas iniciativas de Pascoal Segreto, apelidado ‘ministro das
diversões’, que produzia filmes de atualidades, abordando eventos cívicos e populares,
obras urbanísticas, casos policiais, entre outros, exibidos como complementos de
espetáculos de rua. O cinematógrafo consolidou-se por volta de 1907, enquanto o ano de
1908 marcaria o início da primeira fase áurea do cinema brasileiro.
Pesquisadores divergem quanto às filmagens precursoras feitas no Brasil. Sabe-se,
no entanto, que as primeiras imagens registraram a Baía de Guanabara, seguindo-se a elas
outras cenas das belezas naturais do Rio de Janeiro. Pode-se, portanto, afirmar que o Rio
de Janeiro foi pioneiro na captação de imagens locais e permaneceu produzindo filmes
mesmo nos períodos de maior crise da cinematografia brasileira, particularmente, durante o
governo Collor.
No Rio Grande do Sul, o cinematógrafo instala-se dois anos após a primeira sessão
pública de 28 de dezembro de 1895 no Grand Café du Boulevard des Capucines, em Paris:
“olimpo da intelectualidade e matriz da civilização”. A capital gaúcha iniciava sua história
cinematográfica num ar de fin-de-siècle e num contexto político pós-Revolução de 1893,
com o recém empossado (1898) presidente estadual Borges de Medeiros, assegurando
continuidade à administração que refletia a severidade e a disciplina do Partido Republicano
Rio-grandense. Testemunhos de remanescentes afirmaram que a cidade exibia certa
efervescência, miniatura da Belle Époque dos boulevares parisienses e dos salões
vienenses, especialmente na janela para o mundo que era a Rua da Praia, debruçada para
o Guaíba, por onde chegavam atualidades da Europa e da Capital Federal.
3
http://adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes/bossa-nova/bossa-nova.asp#Pôsters
4
http://adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes/bossa-nova/bossa-nova.asp#Pôsters
38
Porto Alegre, no início do século XX, apresentava um contexto urbano em formação,
a iluminação pública era a gás e os bondes eram puxados a burro, porque apenas em 1907
seria instalada a energia elétrica. “Qualquer solenidade ou reunião mais numerosa contava
com o apoio sonoro da banda de um dos batalhões da Brigada Militar ou do Exército”
(TODESCHINI In: BECKER, 1995:10). A convivência social se dava no Clube Haydn,
fundado em 1897 e na Estudantina Porto-Alegrense, criada em 1888. O lugar preferido para
audições era o Theatro São Pedro. O cinematógrafo exibiu, primeiramente, reproduções
apressadas dos originais dos Irmãos Lumière ou adaptações improvisadas de concorrentes
dos franceses. Já o Bioscópio Inglês do senhor José Fellipi fora anunciado no Jornal do
Comércio em 1904, exibindo fotografias animadas, principalmente dos combatentes de
forças russas, chegando a inovar no seu repertório com a exibição de “vistas animadas do
povo que assistia à festa na Igreja das Dores” e oferecendo também “a magnífica coleção
do Brasil Ilustrado” (TODESCHINI In: BECKER, 1995:12). Os assuntos predominantes dos
filmes eram: lugares pitorescos, desfiles militares, a coroação, os funerais de reis e duques,
flagrantes de estadistas e de solenidades. Eram, portanto, filmes com caráter documental e
de pequena duração.
O cinema, nessa época, permanecia como mero espetáculo de feira, complemento
ocasional em encenações de variedades ou atrativo suplementar em cafés-concertos
e music-halls. (TODESCHINI In: BECKER, 1995:13)
A inauguração, em 1908, do Recreio Ideal, na Rua dos Andradas, em plena Praça da
Alfândega, mereceu destaque pela infra-estrutura e pela possibilidade de ampliar e qualificar
a programação na cidade. Imediatamente surgiram outras casas cinematográficas na Rua
dos Andradas defronte à Praça da Alfândega, com proposta semelhante. Ao final de 1913,
surgiram os monumentais e suntuosos cine-teatros, sendo o primeiro o Guarany que, a
semelhança do Theatro São Pedro, tinha estrutura do tipo Scala, de Milão.
Nesse ambiente propício para a exibição de filmes, o fotógrafo Eduardo Hirtz lança-
se na trilha da realização audiovisual anunciando a disponibilidade de filmar festas de
aniversários e casamentos. Hirtz fixou o seu nome na história do cinema nacional
realizando, em 1909, Ranchinho do Sertão, “cuja ação dramática foi extraída de um dos
mais populares poemas de Lobo da Costa” (PFEIL In: BECKER, 1995:20). No panorama
gaúcho, Pelotas também se constituiu como pólo de produção audiovisual. José Brisolara
documentou a paisagem da região em: Uma excursão pelo Rio São Gonçalo, Panorama da
Represa, Uma excursão ao Cerro do Capão do Leão e A Chegada de Cassiano Nascimento
(1913).
Na década de 1920, o cinema já estava implantado em Porto Alegre, como elemento
fundamental no desenvolvimento social e cultural, através de casas exibidoras, em
que se destacam os cinemas Guarany, Central, Coliseu, Thalia, Apollo, Avenida,
Carlos Gomes, com suas programações amplamente divulgadas pela imprensa, em
39
extensos e destacados anúncios. Nomes mágicos como os de (...) Rodolfo
Valentino, Charles Chaplin, Greta Garbo e muitos outros formam a constelação dos
astros do écran (...) (PFEIL In: BECKER, 1995:22)
Em 1926 é inaugurada a Pindorama Film com a proposta clara de realizar filmes de
enredo e não os chamados filmes de cavação (feitos por encomenda). Objetivamente, a
Pindorama não chegou a produzir algo relevante, apenas salienta-se na escolha em
concurso do filme considerado até então a obra-prima rio-grandense: Amor que Redime,
produzido pela Ita-Film e lançado em 1928. A década seguinte traz o cinema sonoro e a
Revolução de 1930 que motivou roteiros para os cavadores ou tocadores de realejo. Porém,
o fato de maior notoriedade nesse período foi o lançamento, em 1931, da tela Actualidades
Gaúchas, da Leopoldis-Film, a qual passou a ser veículo obrigatório para qualquer
divulgação, principalmente política. O centenário da Revolução Farroupilha, comemorado
em 1935, ocasionou a vinda de alguns cinegrafistas, entre eles veteranos do ofício.
Os anos 40 são marcados pelo clima de guerra e de uma inexpressividade na
produção cinematográfica local. A enchente de 1941 mereceu as atenções das câmeras da
Leopoldis-Som, que realizou detalhada cobertura da tragédia. Com o fim da Segunda
Guerra apenas a Leopoldis se mantinha produzindo. Em âmbito nacional, o cinema volta a
se estabilizar, sobretudo no Rio de Janeiro. No extremo sul, os campos de Uruguaiana
serviram de cenário para Caminhos do Sul (1948), produção carioca homônima ao romance
de Ivan Pedro Martins, que “era provavelmente o melhor que se fazia até então no Brasil em
matéria de filme comercial” (PFEIL In: BECKER, 1995:27).
Em 1951 era lançado, em Porto Alegre, Vento Norte, o primeiro longa-metragem
sonoro realizado no Rio Grande do Sul, roteirizado, dirigido e produzido por Salomão Scliar.
Rodado em Torres, o filme enquadra-se na discussão sobre a temática neo-realista, talvez
em função do período que foi realizado, contando “uma história humana, passada numa
colônia de pescadores das costas do Atlântico” (PÓVOAS In BECKER, 1995:46).
A crítica de cinema em Porto Alegre, porém, se firma na década de 60. “Foi
apaixonante viver aqueles dias. Porto Alegre respirava o ar de Paris, França; embora
fôssemos Paris, Texas.” (SOUZA In BECKER, 1995:52). Para Enéas de Souza, o cinema
daquela época tinha uma intensidade que hoje não tem mais. O cinema internacional tocava
a filosofia e dava uma significativa abertura a experimentações. A mesma crítica que estava
convicta em combater o Cinema Novo, aclamava o cinema-espetáculo: de Visconti, Fellini e
Bergman, o qual difere do chamado cinema-experimental. A crítica sedenta por conceito
afirma que:
A palavra era uma forma admirável de pensar a imagem. Sem dúvida, a palavra não
é a imagem, nem a própria palavra imagem é imagem. Mas nessa diferença,
achávamos que valia a pena. A palavra trazia o mundo. Melhor, a prosa, a escrita
convocava a necessidade de acumular, na cultura do verbo, as idéias sobre
40
imagens. A crítica era isso: pensar em palavras, em metáforas, em conceitos as
questões do cinema, do pensar cinematográfico. (SOUZA In BECKER, 1995:53-54).
De um salto na história cronológica, chega-se ao final do século XX, nas
contraditórias décadas de 1980 e 90. Nos anos 90, observa-se uma afirmação da estética
amorfa pós-moderna e de uma fluidez da contemporaneidade, as quais impossibilitam –
satisfatoriamente ou não - a caracterização de uma produção artística rotulável. Já a década
anterior (1980) apresenta uma efervescência de final de ditadura e um expressivo
movimento no sentido da experimentação de novas linguagens. Nos consagrados anos
oitenta, o cinema passa por mudanças radicais com o desenvolvimento das tecnologias da
imagem, estabelecendo-se um diálogo eletrônico que impulsiona a narrativa na busca de
novos formatos. A partir desse período, as pesquisas estruturais desenvolvem-se com maior
rigor no campo do filme de curta-metragem. Diante dessas perspectivas, jovens cineastas
gaúchos resolvem trocar de registro e investir no formato curta. Interlúdio (1983), de Giba
Assis Brasil e Carlos Gerbase, e Temporal (1984), de Jorge Furtado e José Pedro Goulart,
são filmes que experimentam o código da linguagem ficcional no curta-metragem, tendo por
ambiente o espaço urbano.
Nestes filmes, o tratamento temático se distancia do descampado, espaço de
horizontes ilimitados, origem do produtivo cinema das lágrimas dos anos setenta.
Esse espaço é substituído pelas pequenas fronteiras da cidade com as suas ruas,
muros, prédios e avenidas. Deste modo, o lugar antes ocupado pelo herói romântico
(o gaúcho) é agora ocupado pelo jovem comum. (BECKER, 1986:53)
Apostando no aprimoramento técnico, na renovação temática e na inserção de
recursos narrativos caracterizados pelo uso da metalinguagem e da intertextualidade, a
produção gaúcha oitentista culmina, em 1989, em filmes curtas-metragens reconhecidos e
premiados internacionalmente, como Ilha das Flores, de Jorge Furtado. Além disso, não
podemos desconsiderar a realização de filmes de longa-metragem, dos quais destacam-se:
a produção em super-8 de Nelson Nadotti e Giba Assis Brasil: Deu Pra Ti, Anos 70 e
Inverno (1984), de Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil. Num período até então dominado
pelo regionalismo de Teixeirinha, Deu Pra Ti trouxe ao encontro do público a juventude
urbana do início da década de 80, com suas inquietações e rebeldias, além de referenciar
os lugares dessa juventude na cidade, os seus percursos pelas artérias da cidade, bem
como o seu envolvimento político e ideológico no panorama local. Aparece aqui um
importante registro da cidade mimetizada na postura do jovem da época, que se apresenta
como um organismo quase biológico.
Numa busca arqueológica pela produção cinematográfica mais relevante sobre a
capital gaúcha, fora do quadro comercial amplamente divulgado na mídia impressa, chega-
se ao nome e à significativa obra do cineasta Antônio Carlos Textor. Na década de 1960,
Textor debruçava-se pioneiramente sobre questões latentes da cidade grande,
41
declaradamente influenciado pela densidade poética-filosófica de Alain Resnais e pelos
escritos de Marcel Proust. O cineasta inicia sua longa trajetória – atualmente contabilizando
quarenta anos de produção urbana em curta-metragem – em 1963, com o filme: Um homem
e o destino. No seu segundo filme, A Última Estrela (1966), a “relação com a cidade se
esboça como indica a sinopse: a história de um homem que vem para a cidade em busca de
emprego e acaba marginalizado.” (PÓVOAS, 2001:10). A temática do indivíduo
marginalizado se repete em Urbano (1983) (Foto 11), filme com sete minutos de duração,
que narra, com poucos recursos de imagem e apenas um fundo musical, a relação de
abandono de um imigrante “jogado no lixo”. Sua única companhia na cidade é uma boneca
manequim – elemento reincidente nos filmes de Textor.
Foto 11 – A sobra humana e a apropriação da rua como espaço de
moradia no filme Urbano (1983), de Antônio Carlos Textor. Foto:
Acervo de A. C. Textor.
Textor se coloca assumidamente como um curta-metragista, assim como o cronista
que busca a essência literária em poucos parágrafos, o cineasta opta pelo formato curta e o
domina como ninguém. No curta-metragem, Textor inova e qualifica sua produção com os
planos gerais da cidade, os (re)cantos e as ruínas de Porto Alegre. Seus filmes de
impressão são isentos de diálogos e carregados de sua marca sensível e inconfundível. Um
mundo intertextual a ser decodificado, formado por personagens anônimos e solitários,
belas mulheres, por vezes nuas, manequins em vitrines iluminadas – todos jogados numa
cidade de contrastes.
Como roteirista e diretor, Textor realizou mais de vinte filmes, dois deles
selecionados para o percurso de imagem e imaginário desta dissertação, sendo eles: A
Cidade e o Tempo (1970), marco na cinematografia urbana gaúcha e Quando o Dia Surgir
42
(1996), filme que encerra a tetralogia sinfônica composta também por Urbano (1983), Grafite
(1984) e Carrossel (1985). No final da década de 1970, realizou seu primeiro filme sobre o
poeta Mário Quintana: Um maravilhoso espanto de viver (1978). Nos festejos dos oitenta
anos de Quintana, em 1986, Textor integra-se ao projeto que envolve a publicação de um
livro e a elaboração da série de gravuras da artista plástica Liana Timm e realiza o filme
Quintana dos 8 aos 80 (Fig. 04) – com uma narração primorosa de Walmor Chagas e Paulo
Cesar Pereio.
Fig. 04 – O poeta tinha todas as idades ao mesmo tempo.
Parafraseando-o, tinha também todas as cidades vividas ou apenas
duas: Alegrete e Porto Alegre. A tradução da poesia na gravura de Liana
Timm. Fonte: Acervo de A. C. Textor.
Em Quintana dos 8 aos 80, a tradução poética se dá na imagem do poeta dentro da
sua cidade. A narrativa oscila, ora aproximando o poeta que declama sua poesia, ora o
colocando como uma personagem da história e o distanciando do observador. No jogo da
fala poética, as imagens fixas dos painéis da artista são percorridas como quem
investigasse o corpo da mulher ou da cidade amada: Porto Alegre. O ato de escrever ou
narrar, bem como o de interpretar a obra do poeta – através da gravura e do cinema - é
amplamente composto da profundidade poética proposta pelo cineasta. Pela poesia, a
ilustre personagem viaja no espaço da cidade e viaja no tempo, trazendo a sua Alegrete da
infância para Porto Alegre da maturidade. Pesavento nos saúda com suas percepções sobre
o filme e afirma que:
43
Escrever sobre algo é, de certa forma, vencer o tempo. O ato de escrever sobre o
real é uma forma de dotar esse real de uma permanência que pode conter o tempo.
(PESAVENTO, 2006, debate em Festival
5
)
A partir do momento que uma obra é feita não pertence mais ao seu autor. Essa
afirmação está de acordo tanto para a poesia, quanto para a pintura ou para o cinema. “A
poesia e a memória de Quintana tocam de alguma forma a todos nós, porque nós nos
reencontramos nessa tradução do tempo em espaço.” (PESAVENTO, 2006, debate em
Festival). O que nos leva então a nos identificar com a Porto Alegre de Quintana?
Provavelmente dois elementos básicos: a solidão e a morte. Quintana foi um solitário e,
talvez, desta solidão, ele tenha tirado o distanciamento necessário para sua produção
intelectual. A sua definição de morte refere-se à perda de assunto ou à brevidade da vida.
5
Debate realizado no dia 2 de abril de 2006, durante o “I Festival Cinema & Cidade: Porto Alegre entre a lente e
a retina”, sediado no StudioClio: Instituto de Arte e Humanismo, em Porto Alegre, abril de 2006.
44
CAPÍTULO II (Cena 1: o tempo) Acordes urbanos num mix
espaço- temporal
Caminha-se por vários dias entre árvores e pedras. Raramente o
olhar se fixa numa coisa, e, quando isso acontece, ela é reconhecida
pelo símbolo de alguma outra coisa: a pegada na areia indica a
passagem de um tigre; o pântano anuncia uma veia de água; a flor do
hibisco, o fim de inverno. O resto é mudo e intercambiável – árvores e
pedras são apenas aquilo que são.
ITALO CALVINO
2.1. A IMAGEM E A MATERIALIDADE DO CENÁRIO URBANO
Será preciso conhecer uma cidade na sua materialidade para filmá-la? Como
assinala o urbanista norte-americano Kevin Lynch, em sua obra A Imagem da Cidade,
publicada no final da década de 1950: “a cidade é uma construção no espaço, mas uma
construção em grande escala; uma coisa só percebida no decorrer de longos períodos de
tempo” (LYNCH, 1999:1). O autor destaca que mesmo por ser o projeto da cidade uma arte
temporal não pode ser comparado a outras artes de duração como a música e o cinema,
pois na leitura urbana as seqüências são invertidas, abandonadas e atravessadas,
dependendo de quem a realiza e de quando ela se dá. A imagem da cidade é, para Lynch,
uma combinação de todos os sentidos. “Um ambiente urbano belo e aprazível constitui uma
singularidade, ou, como diriam alguns, uma impossibilidade” (LYNCH, 1999:2), pois a cidade
se constitui tanto dos seus marcos e de suas interfaces que a caracterizam e diferenciam
quanto de suas deformidades, de seus vícios e de sua monotonia.
Surpreender-se com o progresso desordenado, com o futuro incerto, é uma
manifestação compreensível. “O caos total, sem qualquer indício de conexão, não é nunca
agradável” (LYNCH, 1999:6). Numa linha reflexiva relacional da análise urbana, o autor
considera a busca por uma ordem, em meio ao caos da cidade, não definitiva, mas passível
de continuidade no seu desenvolvimento. Lynch lembra que a imagem ambiental se forma
na relação entre observador e ambiente, como um processo bilateral. Aqui podemos inferir
que o sujeito que observa e o ser observado são variáveis, pois a cidade olha para e
interfere no indivíduo, assim como o indivíduo a olha e a constrói nas suas ações e no seu
imaginário. A imagem e a percepção de realidade são formadas diferentemente por cada
indivíduo. As relações de identidade e familiaridade podem estar ajustadas a um estereótipo
criado pelo observador.
45
O observador deve ter um papel ativo na percepção do mundo e uma participação
criativa no desenvolvimento de sua imagem. Deve ser capaz de transformar essa
imagem de modo a ajustá-la a necessidades variáveis. (LYNCH, 1999:6)
Lynch sustenta que a cidade pode ser assimilada a partir de cinco elementos
imagísticos básicos
6
, os quais constituiriam um sistema de orientação e de reconhecimento
das características locais, amplamente trabalhados para instrumentalizar arquitetos e
urbanistas nos levantamentos de áreas destinadas a intervenções. “A identificação de um
objeto, o que implica sua diferenciação de outras coisas, seu reconhecimento enquanto
entidade separável” (LYNCH, 1999:9) sua identidade no sentido de individualidade ou
unicidade é tarefa inicial na delimitação de estratégias a serem adotadas pelos
planejadores. A compreensão de que a cidade vai se transformando e que muitos dos seus
espaços ainda não foram preenchidos deve estar clara àqueles que se propõe decifrá-la.
É preferível que a imagem seja aberta e adaptável à mudança, permitindo que o
indivíduo continue a investigar e organizar a realidade; deve haver espaços em
branco nos quais ele possa ampliar pessoalmente o desenho. (LYNCH, 1999:10)
No sentido da imaginabilidade, Lynch afirma que “uma cidade altamente ‘imaginável’,
(...) pareceria bem formada, distinta, digna de nota; convidaria o olho e o ouvido a uma
atenção e participação maiores” (LYNCH, 1999:11). A cidade de Veneza é um exemplo de
alta imaginabilidade a todos que percorreram suas ruas e consumiram suas imagens
impressas ou dinâmicas. O cinema tratou de se apropriar, desconstruir e desmistificar a
cidade em suas características históricas (ver Il Casanova di Federico Fellini
7
, 1976),
romântica (ver Everyone says I love You
8
, 1996, de Woody Allen) e decadente (ver Il
Giardino dei Finzi Contini
9
, 1971, de Vitório de Sica).
A forma peculiar da cidade, a aparente imobilidade das coisas que a rodeiam, a água
que a cerca e protege, mas que, ao mesmo tempo, parece querer engoli-la, reforçam
o efeito mágico daquele unicum que encanta os cineastas. (FALCIONE In:
NAZARIO, 2005:124)
Assim como Veneza e outras tantas cidades à beira d’água, Porto Alegre é uma
cidade banhada por águas fluviais e marcada pelos contrastes expressos na sua
espacialidade, sobretudo na área central, e no seu tecido que foi se consolidando
arbitrariamente, por força das ações de renovação. Cabe a nós, moradores e espectadores
desta cidade, promover percursos de reconhecimento e de estranhamento, identificando
6
Os cinco elementos trabalhados em A Imagem da Cidade buscam estabelecer um método de leitura para a
estrutura visual das cidades. São eles: vias, marcos, limites, pontos nodais e bairros. Os escritos lyncheanos
focalizam-se na preocupação com a noção de ambiente e sua obra vai se complementando e ampliando em
complexidade a partir de outros estudos ainda pouco explorados nos bancos acadêmicos.
7
O filme mostra uma Veneza fantástica, inteiramente reconstruída em estúdio, “na qual Donald Sutherland
transporta-se, entre uma e outra aventura grotesca, em gôndolas que ondulam sobre vastas extensões de
plástico azul marinho” (Falcione In: Nazario, 2005:126)
8
Traduzido como Todos Dizem Eu Te Amo, o musical de Allen traz Julia Roberts como musa do diretor. Allen
realiza outros filmes em território veneziano, entre eles: Wild Man Blues (Woody Allen in Concert, 1998), o qual
retrata a paixão de Barbara Kopple pela música e seu trabalho como clarinetista.
9
O Jardim dos Finzi Contini, baseado na obra homônima de Giorgio Bassani, narra, com grande sensibilidade e
depuração plástica, a perseguição aos judeus durante os últimos anos do fascismo.
46
arquiteturas, usos, fluxos, temas
10
, interfaces
11
e tempos, mesmo que através de filmes.
Vale, então, imergir na analogia entre o espaço da tela de cinema (l’écran
12
) como interface
que comunica e possibilita a instauração do espaço diegético e da identificação de muitas
interfaces físicas e sociais da cidade real. Vamos partir do ponto de vista do observador
jogado na cidade e ser atuante da cena urbana. Essa delimitação de ponto de vista é
fundamental, pois no cinema a câmera pode estar acima ou abaixo de tudo, formando
ângulos não usuais e até impossíveis ao espectador real.
O pesquisador argentino Rubén Pesci em La Ciudad de la Urbanidad refere-se à
preocupação humana de situar-se na cidade e no mundo social. Desta realidade se
estabelecem necessidades de estabilidade e se destaca um princípio de diversidade, ou
seja, o ser humano necessita tanto de espaços de convivência restrita quanto de espaços
de máxima integração com o ambiente social ou natural. Daí resultam estudos sobre certos
lugares que nos fazem sentir bem ou não e sobre a sua caracterização em determinadas
culturas, como, por exemplo, a presença e a proliferação de cafés parisienses no extra-
muros da cidade de Paris.
O conceito de interface defendido por Pesci forma-se a partir de outros conceitos,
entre eles o de informação e comunicação. No ato de informar existe sempre um emissor e
um receptor, sendo que na comunicação o emissor é também receptor (Fig. 05). Numa
cidade banhada por um lago, como Porto Alegre, podemos constatar que a sua maior
interface física encontra-se na comunicação entre água e terra (Foto 12), a qual foi plena no
início de sua formação urbana, tendo em vista a intensa utilização no transporte fluvial e a
manutenção da permeabilidade física e visual da orla com o Centro da cidade. Logo, no
entanto, fez-se necessária a construção dos primeiros aterros, pois a porção plana da
cidade era insuficiente e as encostas revelavam-se inviáveis para o trânsito e para a
implantação de grandes equipamentos.
10
Lynch, em A Imagem da Cidade, refere-se, no conceito de “tema”, a uma ocupação de predominância de
determinados elementos na paisagem ou na estrutura e na identidade material de um bairro ou de uma cidade.
Em Porto Alegre, podemos pensar que o bairro Centro abriga temas superpostos: como o uso comercial na
Praça Parobé e na Rua do Andradas; o uso residencial nos eixos da Rua Riachuelo e Duque de Caxias desde o
Gasômetro até a Avenida Borges de Medeiros; o uso institucional na Praça da Matriz.
11
Interface parece-nos um conceito mais completo para compreender as fronteiras físicas e sociais das cidades.
Ruben Pesci defende que a “noção de interface cumpre todas as demandas que exigimos ao conceito de
situacionalidade e supera seus limites” (Pesci, 1999:53).
12
André Gardies, em L’Espace au Cinéma, transita pelos espaços no cinema, descrevendo desde a relação da
sala de cinema com a rua até os espaços fílmicos. Refere-se ao espaço da tela como o possibilitador da criação
do espaço diegético – espaço da narrativa fílmica – o qual se dá durante a exibição do filme, ou seja, é finito e
intangível.
47
Fig. 05 - Emissão de Informação e
Comunicação. Fonte: PESCI,
1999:53. Tradução e edição da
autora.
Foto 12 – Interface lago “Rio Guaíba” – Cais do Porto.
Foto da autora. 2003.
No decorrer do século XX, toda a borda original da península foi sendo
reconfigurada. De uma relação positiva foi-se estabelecendo um diálogo negativo da cidade
com o Guaíba – elemento estrutural de Porto Alegre:
De um lado, portanto, teríamos o que se poderia chamar de ‘crescimento natural’ do
núcleo, cujas necessidades se tornam complexas e dão nascimento a problemas
que extravasam as condições até então aceitáveis para a vida comum. Mas, por
outro lado, há a ressonância de outros tipos de cidade, que enfrentaram problemas
semelhantes e que sofreram a ação de medidas intervencionistas, redesenhando o
espaço e pautando as sociabilidades por outros valores. (PESAVENTO, 2002a:262)
A seqüência de transformações no espaço urbano, mesmo que realizadas num
tempo ampliado, vão sendo assimiladas de maneira contraditória pela população. No
cinema, observamos que a relação Porto Alegre-Guaíba protagoniza três momentos na
filmografia do cineasta Antônio Carlos Textor
13
e encontra-se modestamente revisitada por
outros realizadores gaúchos. No planejamento urbano, a borda da cidade foi e ainda é
objeto de estudo para grandes reformulações urbanas e intrigantes intervenções artísticas,
muitas delas restritas à produção destinada aos concursos públicos. Alguns desses projetos
valeram-se da recuperação na dimensão histórica das edificações que compõem o cais e
dos equipamentos de uso cultural, mesmo que instalados temporariamente. Outras
intervenções, por conseguinte, refletiram anseios presentes no imaginário coletivo,
configurando lugares originados da mescla entre as imagens cotidianas absorvidas por seus
moradores ao longo do tempo e pela capacidade individual de criar cidades não-reais.
13
Textor filmou, em 1970, A Cidade e o Tempo, marco do início de sua produção sobre a cidade de Porto Alegre,
sua evolução urbana e sua relação com o lago Guaíba. Em 1975, Textor realiza A Senhora do Rio, filme com
caráter etnográfico que aborda a apropriação máxima dos habitantes de Porto Alegre sobre o Guaíba durante a
Festa dos Navegantes. Em 1988, o cineasta roteiriza e dirige Crônica de um Rio.
48
Posturas paradoxais vão sendo agregadas aos estímulos imagéticos na proposição de
polêmicas intervenções, as quais intentam também mudanças culturais. Comportamentos
vão sendo revistos no ambiente urbano ou importados de outros contextos. Para não se
correr o risco de descontextualizações, é necessário sedimentar imagens de lugares
específicos e únicos. Ao nos aproximarmos do centro nervoso da capital gaúcha - território
marcado por fluxos humanos e veiculares - bem como por períodos que permanecem
registrados em tom sépia nas fotografias de Sioma Breitman e Virgílio Calegari e na
memória dos que ainda “se lembram”, Paulo Ricardo Zílio nos fornece uma interessante
descrição histórica da chamada “esquina da cidade” em Porto Alegre, além de transitar com
muita intimidade por tempos distintos:
um canto abandonado da cidade, destinado à sujeira do carvão e dos homens
trancafiados no presídio. (...) A Usina do Gasômetro marcava o perfil de Porto
Alegre. O porto e suas cores, sons e cheiros, aproximava o cidadão dos seus
caminhos; não havia ainda os muros e as desculpas burocráticas. O lugar era
maldito, sujo e escuro: a Praça da Forca ali próxima; a maldição do negro enforcado
pairando sobre a Igreja das Dores; os bêbados e as prostitutas nos desvãos do cais.
(ZÍLIO, texto publicado no Projeto Inundações: Porto Alegre e seus (des)aterros
14
,
2003)
O texto de Zílio possibilita focalizar a Ponta do Gasômetro e o Cais do Porto como
espaços de caráter excepcional na cidade, os quais servem de estímulo poético para a
argumentação de textos, imagens e projetos realizados ao longo da história de Porto Alegre.
Espaços reconhecidos por aqueles que consomem a cidade e estão ali compondo o descrito
cenário, como a inacabada Igreja das Dores. Cabe considerar que também habitam o texto
os mitos sobre aquele lugar, possíveis rearranjos físicos – como a construção do muro e de
suas desculpas burocráticas (e técnicas) - sem assumir uma visão reducionista sobre este
território e sobre as apropriações que as diversas tribos fazem dele:
Hoje aquele sítio, como a cidade da memória, está diferente. A eletricidade agora
vem de longe, mais anônima, menos dramática. A antiga chaminé de mais de cem
metros continua rasgando o céu do sul com a força das lendas construídas à beira
do Guaíba. Do Cadeião só mesmo as lendas, como a do indulto das pombas na
Sexta-feira Santa. Mas as barreiras se multiplicaram, justificadas por medos fáceis:
as enchentes, a violência urbana, a cronologia apressada dos homens-carro (ZÍLIO,
2003).
O texto configura uma imagem mental e projeta um caráter de sociabilidade no antes
espaço maldito. A narrativa contextualiza o presente promissor através de um passado
14
Projeto que representou a UFRGS na 5ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo (2003). A equipe
executora desse trabalho, composta por arquitetos recém-formados, recorreu especialmente à fotografia como fonte
de inspiração projetual e referência histórica, sem, no entanto, se privar da utilização de outras linguagens, como a
literatura e o cinema. O filme produzido para o projeto, com cinco minutos de duração, resgata a cidade do
passado, representada por registros fotográficos feitos a partir da década de 1940, e projeta a cidade do futuro,
com a implantação de canais navegáveis propostos pelo trabalho e da criação de uma nova imagem urbana através
da leitura de um conto. O argumento conceitual do filme é a evolução tecnológica apresentada através de recortes
visuais e de flashes urbanos que ilustram diferentes épocas.
49
carregado de figuras do underground que não mais habitam aquele lugar. O medo do rio,
fruto da enchente, ficou encoberto por um muro impermeável:
E aquele sítio foi se tornando a esquina da cidade, um lugar para Porto Alegre se
definir como passado e futuro, espaço para a charla, a festa, a polêmica, para verter
sensibilidade e inteligência. A sujeira se tornou menos perceptível, porque os guetos
tornaram-se menos óbvios, espalhados por bairros mais distantes. A ponta, outrora
maldita, virou símbolo de saudade e esperança numa cidade sem medo do seu rio,
cheia de espaços de encontro, praias de cultura e arte (ZÍLIO, 2003).
Representações de projetos que se encontram no limite entre as múltiplas mídias de
arte e de arquitetura merecem ser entendidas como opções de caráter moral, pois refletem
as aspirações de quem as produz. Os mapas (Fig. 06), para Walter Benjamin, “deveriam
poder representar não apenas os pontos abstratamente reconhecíveis, mas também
aqueles que comportam uma carga sensível, sendo instauradores de sentido”. (BENJAMIN,
1997:133) Os mapas afetivos - tal como os situacionistas vieram a desenhar posteriormente
- fazem parte do projeto filosófico-literário de Benjamin. Benjamin reorganizou os fragmentos
de vida retirados da obra de Baudelaire, por exemplo, e construiu suas valiosas reflexões
sobre a modernidade a partir de suas plantas de construção.
Fig. 06 - Planta de Porto Alegre datada de 1839, revelando o traçado
original da cidade. Fonte: MACEDO, 1998:83
Fatos remodelados pela imaginação de quem os narra recriam o Centro da cidade e
encaminham a novas intervenções. Cristina Freire, em seu estudo intitulado Além dos
Mapas, contempla-nos com uma visão plural na leitura palimpséstica do espaço e da
memória: “O espaço não se esgota em sua visibilidade, mas esconde camadas
desaparecidas de tempo. A memória funciona assim como um ‘antimuseu’ em que o
invisível se torna protagonista da cena. A lembrança pode ser despertada constantemente
ao caminharmos pelas ruas da cidade.” (FREIRE, 1997:177). Sobre isso escreve Michel de
Certeau (1990): “a lembrança é um príncipe encantado que acorda de repente a Bela
50
Adormecida de nossa história sem palavras: ‘aqui era uma padaria’, ‘aqui habitava a mãe de
fulano’. Os lugares vividos são como presenças-ausentes”. (CERTEAU, 1990:176)
Valendo-se da compreensão de que a memória é o meio de exploração do passado,
o sujeito que pretende se aproximar de imagens urbanas soterradas pelas grandes obras
públicas deve se colocar como um arqueólogo em plena atividade de campo. A prospecção
de um imaginário coletivo é instrumento de trabalho do pesquisador que se propõe
administrar tempos: um passado rememorado no presente e um futuro linkado a este
passado.
Porém, retomemos a materialidade urbana e questionemos o que são as interfaces
sem os impulsos de agregação e desagregação, renovação e intercâmbio, representação e
esquecimento. Pesci afirma que da identificação das interfaces físicas e sociais nascem: a
arquitetura da cidade, as necessidades de proteção e reabilitação de espaços e o próprio
conceito de lugar. As formas de interação indivíduo & espaço são tão diversas e complexas
na contemporaneidade, pois superam a idéia heidggeriana de ser-construir-habitar.
No espetáculo da cidade verificamos a presença das interfaces artificiais produzidas,
bem como das interfaces ativas ou aglutinadoras, as quais funcionam como agentes e filtros
de informação e que resultam, em geral, em zonas degradadas. Chega-se, então, a
considerar que uma cidade pode ser lida por seu sistema de interfaces, fato que está
plenamente de acordo com a dinâmica urbana.
2.2. INQUIETAÇÕES POÉTICAS E IMAGÉTICAS em A Cidade e o Tempo (1970), de
Antônio Carlos Textor e na híbrida narrativa d’A Morte no Edifício Império (1993), de Beto
Souza.
A CIDADE E O TEMPO
Antônio Carlos Textor. Brasil, 11 min,
captado em 35mm, pb/cor, 1970
Sinopse: Uma visão da Porto Alegre do início do
século. Conjugando imagens do passado a um
recitativo poético, o filme tenta, através do lento fluir
das imagens e dos sons, reconstituir um clima que
evoque o tempo perdido de uma cidade que já não
existe.
Roteiro e Direção: Antônio Carlos Textor.
51
A MORTE NO EDIFÍCIO IMPÉRIO
Beto Souza. Brasil, captado em 16mm
(primeiro transfer do RS para 35mm), 11 min,
pb & cor, 1993
Sinopse: documentário ficcional sobre o patrimônio
cultural de Porto Alegre. Os prédios históricos do
centro são mostrados pelo olhar de dois
personagens que circulam pela cidade que muda e
pela cidade que permanece.
Roteiro e Direção: Beto Souza.
Com licença temporal e poética de alterar os ponteiros do relógio controlador, sair do
período escolhido para a análise da dissertação, encontro-me a bordo de uma máquina do
tempo, que resgata imagens de outras épocas, dispostas com uma certa linearidade e
captadas pelo cineasta Antônio Carlos Textor, em A Cidade e o Tempo, filme produzido em
1970. Colagens com as fotografias de Virgílio Calegari (1868-1937) e com as cenas
registradas pelo cineasta compõem a história de uma cidade banhada pelas águas do lago
Guaíba (Foto 13 e Foto 14) – a Porto Alegre dos remotos tempos da chegada dos casais
açorianos, passando pela frenética ocupação da virada do século XIX para XX, chegando à
modernidade povoada pelos ilustres anônimos e pelas muitas desordens que ainda deverão
se instaurar. A cidade nasce da descoberta de seu colonizador que chega pelas águas. Ela
se vê. O som do movimento da água, somado a uma suave narração feminina, nos insere
num território ainda não explorado. A cidade narra: “de minha existência no tempo, apenas
acumulei uma imagem, uma vertente que rumina desde a minha origem mais remota: o rio”.
Foto 13 – As imagens em sépia marcam...
Foto da autora a partir do DVD.
Foto 14 – ...um diálogo saudável entre o
Guaíba e a Cidade antes da sua ocupação.
Foto da autora a partir do DVD.
52
E lá está ele, o imenso lago-rio, visto como imagem fixada na memória e como
grande parceiro dela – a cidade – nas suas facetas históricas. Ela nos conduz num tempo
poético através de sua lamentosa narração:
na ordem do imaginário onde vivemos, eu e essas águas (...) O ser em repouso e
movimento em que se alternam o curso de nossas esperanças não é senão uma
aparência (...) que nos deforma. Não, eu não tenho passado. Atrás desse relevo
ondulante, teu corpo sentido e a vertigem de nosso futuro contempla a nebulosa dos
signos em plenitude. (Transcrição da autora).
Seu corpo – marcado pelas curvas naturais da jovem cidade - está à espera de uma
ocupação que o reconheça e o recrie. “Seja eu um parto constante ou na articulação de
vosso silêncio, uma rosa ainda em botão: vermelha”. Pois ela ainda não desabrochou e as
fotografias lançadas ao espectador vão percorrendo os signos apresentados pela narração:
Nem a noite que desencaverna o sonho, nem as ilhas fraternas que vogam no
horizonte me reconheceriam nesta nova presença, neste ser, neste infinito que sou.
Os pássaros e as estrelas longínquas vieram morrer em meus crepúsculos. Fui
recriada, sou linguagem, fundação. E um cisne apaziguado é o lance de minha vida
no espaço. (Transcrição da autora).
O horizonte abriga o infinito, a imensidão do rio transformado em mar pela
imaginação. Bachelard acentua que descer na água é mudar de espaço; e, “deixando o
espaço das sensibilidades usuais, entramos em comunicação com um espaço
psiquicamente inovador. (...) Não mudamos de lugar, mudamos de natureza.”
(BACHELARD, 2000:210) Se nos lançarmos nele, podemos não voltar ou quem sabe
alcançar o sol que se põe tão esplendorosamente. A beleza do crepúsculo é marcada
também pela morte diária de criaturas e elementos que compõem esta paisagem tão
familiar. A cidade então se coloca como uma linguagem (Foto 15), pois comporta textos a
serem gravados no seu espaço que vai sofrendo alterações com o passar do tempo.
No princípio, ninguém que não viesse da origem libertária das estrelas ousava criar-
me. E muda era a natureza em meu redor. (...) E era tudo uns hálitos, uns sussurros
a ecoar. Como na concha opaca de meus olhos, os estímulos da solidão
circundante. Naquele tempo, eu elevava os meus chamados para que o verbo
intercedesse em meio a tantos vazios. Corriam regatas em minhas esperanças e
minhas potências elaboravam o tempo. (Transcrição da autora).
Foto 15 – Lá está a cidade em
formação. Foto da autora a partir do
DVD.
53
Ela não pára por aqui, segue presente, mas agora sem voz e sem o seu interlocutor
– já em processo de esquecimento. O verbo que intercede nos vazios constrói, interage com
a conformação natural. Identificam-se no skyline o Cais do Porto e as torres da Igreja das
Dores. A cidade passa a se revelar por suas imagens urbanas, as quais agregam a figura do
habitante somado às suas obras edificadas e por seus hábitos de convivência - registrados
pelo fotógrafo Virgílio Calegari. Do espaço externo para o interior da casa de uma velha
senhora, a memória é acessada através do pêndulo do relógio de parede (Foto 16). Ao abrir
a janela, surge a menina e sua “mágica” caixa de música que, ao ser acionada, a faz reviver
um charmoso passeio pelas ruas e pela conhecida escadaria da Rua Fernando Machado
(Foto 17).
A cidade da memória vivida por cada individualidade rememora uma cidade subjetiva
(...) formada por traços do meu percurso individual (...) construída tanto pelos
vestígios materiais remanescentes do passado, que eu identifico e reconheço,
quanto pelo imaginário das minhas lembranças (PESAVENTO, 2002b:6).
Foto 16 – A memória acessada através do
relógio... Foto da autora a partir do DVD.
Foto 17 – ...leva a personagem a um passeio
pela escadaria. Foto da autora a partir do DVD.
No processo de refiguração temporal, assinalado por Ricoeur, se constrói a cidade
pelo imaginário. A busca dos sentidos – ver e ouvir – está presente na narrativa de Textor,
que lança sons e ruídos da agitação que se dá no Largo do Mercado, a qual se aproxima do
imaginário do espectador que viu (vivenciou) ou ouviu falar sobre aquela Porto Alegre da
Belle Époque. As fotos marcam um registro estático sobre o qual o cinema vem animar com
a música da banda que toca aos seus espectadores. Na rua, as pessoas vêem e são vistas.
Pela cidade, os lugares percorridos no tempo registram a presença de uma lembrança no
espírito. “O confronto direto com o traço observável, sensível, desperta a evocação,
lembrança que permite o acesso ao passado no imaginário” (PESAVENTO, 2002b:7).
Essa memória individual que seleciona o que deve ser lembrado, na cidade toma
forma de memória social,
54
partilhada, construída historicamente, que se apresenta como patrimônio coletivo.
Ela é fruto de uma interação social, de um trabalho conjunto, de uma vivência em
comum que se define num tempo e num espaço. (PESAVENTO, 2002b:9)
No filme de Textor, a proposta é clara: fazer um percurso pela formação da cidade
desde os primórdios da sua colonização, podendo ser entendida como conquista em alguns
momentos; passando pela instauração das sociabilidades públicas (Foto 18 e Foto 19) que
deixaram saudades e chegando às incertezas de uma modernidade que se impõe. A Cidade
e o Tempo pode ser considerado um clássico não apenas por sua intenção de retratar a
evolução urbana de Porto Alegre, mas por seu caráter de obra aberta, por sua forma de não
dizer tudo o que tinha para dizer e possibilitar interpretações diversas a do seu autor. O
cineasta busca um tempo que se foi, igualmente imaginário, através da figura da velha
senhora. Cabe aqui o paralelo com a obra Em Busca do Tempo Perdido (A La Recherche du
Temps Perdu, 1917-1922), de Marcel Proust, a qual Ricoeur interpreta dizendo que:
tempo perdido e tempo redescoberto devem, portanto, ser ambos compreendidos
como as características de uma experiência fictícia desdobrada dentro de um mundo
fictício. (RICOEUR, 1995:226)
Foto 18 – No início do século XX, pela rua,
as pessoas socializam elegantemente...
Foto da autora a partir do DVD. Original de
Virgílio Callegari.
Foto 19 – ...enquanto pelas janelas, outras
tantas assistem ao espetáculo da rua. Foto da
autora a partir do DVD. Original de Virgílio
Callegari.
Essa busca não é pelo tempo e sim pela verdade, como completa Ricoeur, pois a
obra de Proust se baseia essencialmente na exposição de signos: da mundanalidade, do
amor, da arte. O filósofo nos fala ainda do ciclo de “Em busca... como uma elipse da qual
um dos focos é a busca e o outro, a visita” (RICOEUR, 1995:227). Obviamente Textor
conduz seu espectador por esta atmosfera poética inicialmente narrada pela cidade-menina,
a qual vai adquirindo a intensidade de mulher em uma sinfonia de acordes perdidos entre os
pretensiosos arranha-céus e os indesejados viadutos, sem falar nas cicatrizes deixadas
pelos remendos urbanos que enfeiam e rasgam a cidade. Interpretar este e outros filmes
envolve a dialética da explicação e de sua compreensão como produto de um tempo.
55
Assim como todo produto cultural, toda ação política, toda indústria, todo filme tem
uma história que é História, com sua rede de relações pessoais, seu estatuto dos
objetos e dos homens. (FERRO, 1993:24)
O contexto histórico e político da realização de A Cidade e o Tempo é a década de
1970. Na busca pela viabilidade do filme, Textor encaminhou o roteiro ao então prefeito de
Porto Alegre, Telmo Thompson Flores, “que se revelou um verdadeiro mecenas disposto a
proporcionar a realização do filme” (PORT apud PÓVOAS, 2001:11). O filme foi saudado
pela crítica local e percorreu algumas salas de São Paulo e do Rio de Janeiro, fato quase
desconhecido pelos realizadores locais, mas que certamente tem sua importância para a
história do cinema urbano porto-alegrense.
O filme explora três tempos: o passado como um momento mágico e inacessível, o
presente de uma cidade aparentemente consolidada e o futuro incerto das grandes
edificações que se impõem no cenário urbano. Os contrastes físicos estão representados
pela bela imagem da Fonte Talavera, na Praça Montevidéo, e a agressiva fachada de vidro
do Banco do Brasil, a qual domina em escala, consome mais energia do que deveria e
reflete a transformação do entorno da sede do poder municipal. Aspectos recorrentes na
obra de Textor estão aqui presentes: texturas, ruínas, diálogos anômalos entre a arquitetura
e o indivíduo, hábitos cotidianos. Os extremos da ambição e da degradação se justapõem
no espaço urbano: a partir da ruína se vêem as construções mais altas da cidade,
disseminadas pelo Centro. A câmera, tanto do fotógrafo quanto do cineasta que se apropria
das fotos, está na altura do observador, imersa na multidão, interagindo com os eventos
representados em imagem e som. Porém, as mudanças comprovadas na fisionomia urbana
vão afastando a câmera daquele ambiente familiar: a cidade conhecida (Fig. 26 e Fig. 27).
O mesmo travelling que acessa o Centro Histórico de então (1970), vem da rua e espanta-
se com a verticalização da cidade. A música orquestrada dá o tom de uma imprevisibilidade
percebida pelo diretor.
Foto 20 – O tempo e a câmera vão se
afastando... Foto da autora a partir do DVD.
Original de Virgílio Callegari.
Foto 21 – ...a cidade original vai ficando
apenas na memória. Foto da autora a partir do
DVD. Original de Virgílio Callegari.
56
Na análise das transformações urbanas anunciadas pelo olhar crítico e documental do
cineasta gaúcho, Kevin Lynch nos encaminha para a compreensão das transformações
ditas cíclicas e permanentes. O olhar se surpreende no final do filme, pois as mudanças
anunciadas parecem ter um caráter progressivo e irreversível, que significam alterações e
não recorrências, contrapondo-se à repetição rítmica, de que fala Lynch. Os ciclos estão
presentes, por exemplo, no ato de dormir e despertar. Entretanto, renovações na escala da
cidade através de demolições seqüenciais e da implantação desordenada de grandes
condomínios de uso comercial ou residencial são mutações de ordem estrutural. Os
condomínios vão se impondo na paisagem e se fechando em si mesmos.
A percepção da mudança, que implica não apenas na percepção das alterações
objetivas no estado das coisas, mas também em nosso modo de entendê-las e de
conectá-las com nossas esperanças, nossas recordações e nosso sentido do passo
do tempo. (LYNCH, 1972-75:33)
Sobre a presença do passado, Lynch afirma que: “o passado é uma possessão
conhecida e familiar na qual podemos nos sentir seguros.” (LYNCH, 1972-75:34) Uma
cidade que sabe envelhecer pode sentir-se segura com sua configuração consolidada. Já a
cidade consolidada ou altamente densificada pode não mais sofrer transformações, mas
mutações ou metamorfoses de mão única (Foto 22).
Foto 22 – A nova escala urbana se impõe
na paisagem. Foto da autora a partir do DVD
de A Cidade e o Tempo (1970), de A. C,
Textor.
Para Pesavento, “o espaço construído se propõe como uma leitura no tempo, em
uma ambivalência de dimensões, que se entrelaçam” (PESAVENTO, 2002b:3) As
dimensões, as narrativas e seus suportes se cruzam em A Morte no Edifício Império (1993),
filme de Beto Souza que vai muito além da representação do patrimônio cultural edificado de
Porto Alegre ou da experimentação técnica de recursos plásticos alternativos na sua
montagem. Colagens e recortes em direções variadas, nos eixos x, y e z, nas múltiplas
camadas de olhar e de tempo se voltam sobre uma cidade de monumentos isolados e
vivências perdidas. A narrativa literária costura as tramas: documental e ficcional, abordando
57
a relação entre a mudança ambiental (configuração urbana) e social (o ethos porto-
alegrense). Apropriações de trechos descritivos da cidade a partir da obra de Dionélio
Machado, Érico Veríssimo, Saint-Hilaire e Souza Brandão amarram a proposição de uma
história ficcional – com uma personagem que vai percorrendo a cidade-mutante e
destacando seus hábitos e lugares. A arquitetura enquadrada e devidamente datada (Foto
23 e Foto 24): Museu de Artes (1922), Correio e Telégrafos (1914), Paço Municipal (1901),
Mercado Público (1869-1912), Biblioteca Pública (1922), Ponte de Pedra (1848), Hidráulica
(1928), Edifício Ely (1922), caracterizada por fisionomias ecléticas, coloniais, neoclássicas, é
o elemento estruturador do filme. A figura feminina, como consumidora da cidade em
tempos distintos, se lança sobre essa louca cidade-mulher escondida pelo muro da Mauá.
Foto 23 – Arquitetura enquadrada e datada:
Usina do Gasômetro, 1928. Foto da autora a
partir do DVD.
Foto 24 – Museu de Arte – MARGS, 1922.
Foto da autora a partir do DVD.
Toda pessoa, toda arquitetura é histórica. O filme de Beto Souza se coloca como
uma trama híbrida a ser desenredada ou ainda como um registro documental dos diálogos
temporais expressos na arquitetura (Foto 25) e nos percursos literários daqueles que
registraram suas percepções sobre as múltiplas cidades:
Vinte anos após a chegada dos primeiros casais de açorianos, é criada a Freguesia
de São Francisco do Porto dos Casais. Era 25 de março do ano da graça de 1772.
Neste lugar existiram três cidades: a Porto Alegre colonial, do século XVIII até
meados do século XIX; o ecletismo do final de século XIX e do início do século XX; a
verticalização da cidade a partir de 1930, a destruição do antigo traçado, a memória
ameaçada pelo modernismo. (Transcrição da autora).
Eis que surge a imagem do Portão Central do Cais (Foto 26), inaugurado em 1913,
principal acesso da cidade àqueles que chegam pelo lago-rio. O modernismo, como vilão
recorrente, encontra-se inicialmente citado quase como um dos créditos do filme.
58
Foto 25 – Conjuntos urbanos mais homogêneos
na paisagem porto-alegrense do início do séc.
XX. Foto da autora a partir do DVD.
Foto 26 – Portão Central do Cais: porta de
entrada na cidade. Foto da autora a partir do
DVD.
Nessa relação temporal, a finitude da vida e da arquitetura confronta-se com a
proposta do roteiro de manter em aberto a narrativa ficcional. O desgaste da cidade e seu
encaminhamento à morte estão sugeridos com a impossibilidade de salvaguarda de seus
bens culturais, assim como a partir da evolução natural da metrópole retratada.
Uma rapariga precipitou-se do 13º andar do Ed. Império, deu uma viravolta no ar e
caiu hirta e de pé contra as pedras do calçamento, produzindo um ruído seco e
agudo, que ecoou no Largo como um tiro de pistola. (Transcrição da autora).
A partir de uma tentativa de decifrar o mistério da vida urbana, o roteiro se utiliza da
clássica obra de Érico Veríssimo, O Resto é Silêncio (1943), na qual o suicídio – elemento
desestabilizante – nos coloca diante da morte (Foto 27). O filme nos joga também frente ao
problema da solidão no contexto urbano: segundo o texto literário, a moça se suicida por
conta de uma desilusão amorosa. Este é o lado mau da cidade que isola e contribui para os
desencantamentos. A cidade, a arquitetura, as pessoas morrem - desistem da vida.
Foto 27 – A moça cai sobre o calçamento enquanto transeuntes
circulam pelo Centro da cidade. Foto: divulgação de A Morte do
Edifício Império (1993), Beto Souza.
59
De uma vida interrompida, a narrativa fílmica aproxima-se de um patchwork orgânico,
numa determinada cidade – Porto Alegre. Movimentações, territórios e grandes construções
estão destacadas desse cotidiano (Foto 28 e Foto 29):
A Rua da Praia, que é a única comercial, é extremamente movimentada, e nela se
encontram numerosas pessoas, a pé e a cavalo, marinheiros e muito negros,
carregando volumes diversos.
Duma casa de discos que funcionava na Galeria Chaves, vinha a voz possante de
um tenor italiano.
Concluí que, se me hospedasse no Hotel Majestic, isso me ajudaria a levantar o
moral.
Saiu a caminhar na direção da Igreja das Dores, acendeu um cigarro, olhou o
relógio. (Transcrição da autora).
Foto 28 – A Rua da Praia dos fluxos intensos
e... Fotos da autora a partir do DVD.
Foto 29 – ... do isolamento nos cafés. Fotos
da autora a partir do DVD.
Num outro contexto, podemos recordar a transformação da Paris baudelaireana, a
qual se deu através dos meios mais modestos possíveis: como pás, enxadas, alavancas,
provocando uma destruição de repercussão ilimitada. A cidade de Baudelaire, revista por
Benjamin, está além do bem e do mal. Ela tem vida, morte, suicídio, desistência.
o ser humano precisa do trabalho, isto é certo, mas tem também outras
necessidades, entre as quais a do suicídio, inserida nele e na sociedade que a
forma, e mais forte que o seu instinto de preservação. (BENJAMIN, 2000:83-84)
A caracterização da cidade resulta daqueles que a atravessam distraídos, perdidos
em pensamentos ou preocupações. Na revisão da obra do poeta francês, Benjamin destaca
as diferenças entre as figuras do flâneur e do basbaque, por exemplo. “O simples flâneur
está sempre em plena posse de sua individualidade; a do basbaque, ao contrário,
desaparece. Foi absorvida pelo mundo exterior” (BENJAMIN, 2000:69). Sobre esses
observadores-instrumentos da radiografia urbana, podemos pensar que o filme de Beto
Souza utiliza-se de uma flânerie encenada pela moça que narra e é narrada na trama
ficcional:
60
sentada a uma mesa (Foto 30), junto à janela do sétimo andar do Palácio do
Comércio, olhou com ar estúpido para uma garrafa de champanha Clicquot, que o
amigo mandara abrir. (Transcrição da autora).
Foto 30 – Momento contemplativo da personagem. Foto da
autora a partir do DVD.
Mas o que estará passando pela cabeça desta personagem que se confunde com a
cidade? Até que ponto esse mundo material está lhe interessando? Por vezes ela “defronta
o Portão Central” e noutras é a cidade que se lança como “miragem remota de gravuras ou
fitas já vistas”. O viaduto – Otávio Rocha – que fascina também apavora a consumidora da
cidade. As casinholas “velhas e tristes” da Cidade Baixa (Foto 31) são contempladas pela
janela da sua pensão e se contrapõem às edificações de grande porte e enorme riqueza de
detalhes do Centro (Foto 32).
Foto 31 – A Cidade dos contrastes urbanos:
as “velhas” e modestas casas da Cidade
Baixa e...
Foto 32 - ...os detalhes das grandes
construções do Centro. Antigo prédio dos
Correios e Telégrafos. Fotos da autora a partir
do DVD.
61
O curta-metragem nos aproxima e nos distancia com uma rapidez impressionante
aos tempos que já se foram, marcando o ritmo da cidade grande. O crescimento urbano, os
usos e os hábitos dos habitantes dessa cidade e os deslocamentos temporais ampliam os
contrastes conduzidos por uma densidade de imagens estáticas – fotografias emolduradas e
grafitadas através de recursos gráficos de computação – e pelo movimento da história
encenada no filme. A cidade que serve de palco-protagonista – desperta o espectador sobre
como se dá a vida em uma cidade-mutante. A arquitetura que registra um dado momento:
as técnicas e tecnologias predominantes (Foto 33 e Foto 34) – configura lugares de
convívio e de isolamento. Observa-se a transformação de espaço textual em espaço urbano
e imagético.
Nos passeios e no interior da praça (da Alfândega), existem bancos, em que se
assentam os cansados, os que esperam e os que espairecem.
Banco da Província do Rio Grande do Sul. É sólido e monumental.
É a segunda vez que consulta o relógio da Prefeitura esta manhã. Este relógio, lá no
alto, na torre, parece-lhe uma cara redonda e impassível. (Transcrição e grifos da
autora).
Foto 33 – A monumentalidade do prédio do
antigo Banco da Província e...
Foto 34 – ...do hospital da Santa Casa
(1826). Fotos da autora a partir do DVD.
Na cena final – uma cidade sem o muro – desenhada e idealizada pelo artista
plástico. O desejado restabelecimento de uma relação saudável com o lago-rio Guaíba
acontece no quadro do pintor Pinheiro Machado. A projeção de que num futuro essa
realidade se estabeleça amplia as possibilidades analíticas do filme.
62
2.3. A DECIFRAÇÃO DA CIDADE FILMADA
O poder do cinema, inicialmente, era de dar um efeito de real à ilusão, de presença à
ausência, de atualidade ao passado. Essas posições indicam uma dialética: cada elemento
supõe seu contrário, exatamente como o in e o off se opõem ao mesmo tempo. Há uma
perda de articulação quando todos os elementos da cena estão colocados no mesmo plano
de ausência e de virtualidade. Entra aqui a discussão das relações entre espaço e tempo,
pois a cidade – assim como o cinema – permanece em movimento. Além disso, o cinema
desconstrói o tempo real, podendo se apresentar linearmente ou não, de forma hiper ou
intertextual. Por outro lado, o território da cidade focalizado pelo investigador urbano oferece
camadas de tempo a serem decifradas com o auxílio de uma mescla teórica.
Segundo Martin, no cinema, por mais que o espaço fílmico seja um elemento
estruturador da narrativa, quando tomamos contato com o filme, “não é o espaço que se
impõe a nós desde o início, e sim o tempo” (MARTIN, 1990:200). O espaço fílmico é feito de
peças e fragmentos que a montagem se encarrega de dar unidade numa sucessão criadora.
Na discussão sobre tempos, Martin salienta ainda que “somos capazes de perceber o tempo
do filme (duração vivida), mesmo na ausência do tempo no filme (tempo da ação). (..) O
espaço é objeto de percepção, enquanto o tempo é objeto de intuição.” (MARTIN,
1990:201). O cinema valoriza o tempo e o subverte, transformando-o numa realidade livre
de constrangimentos externos.
O cinema, a literatura, a cidade e a própria arquitetura são narrativas que se
conjugam no passado, presente e futuro. O filósofo Paul Ricoeur faz uma analogia entre
arquitetura e narratividade, na qual considera que “a arquitetura seria para o espaço o que a
narrativa é para o tempo” (RICOEUR, 1998:44). Para o autor, edificar equivaleria a contar ou
criar uma intriga no tempo, ou seja, se afirmaria como uma operação configurante. No
primeiro tomo de sua obra Tempo e Narrativa, Ricoeur afirma que:
o tempo torna-se humano na medida em que está articulado de modo narrativo; em
compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da
experiência temporal. (RICOEUR, 1994:15)
Buscando comprovar o quanto a narrativa projeta no futuro o passado rememorado,
Ricoeur inicia sua reflexão a partir do paralelo entre o projeto arquitetural – inscrito no
espaço - e a narrativa literária – situada no tempo. O cinema se aproxima da literatura, pois
sua leitura se dá apenas durante a sua exibição, diferenciando-se da materialidade urbana
que está dada a ser vista a qualquer momento. “O espaço construído é uma espécie de
misto de lugares de vida que rodeiam o corpo vivo e um espaço geométrico de três
dimensões, no qual todos os pontos são lugares quaisquer” (RICOEUR, 1998:45). O sítio é
o centro do espaço que se constrói, à semelhança do presente. O tempo construído –
63
narrado – seria o estágio da configuração e sua releitura caracterizaria o estágio de
refiguração.
Para contar quase duzentos anos de história de Porto Alegre, em 1970, o cineasta
Antônio Carlos Textor precisou de onze minutos. Beto Souza, também em onze minutos,
mapeou boa parte das edificações e dos conjuntos urbanos da capital gaúcha, inventariados
e preservados pelo resguardo da memória escrita, das imagens estáticas e em movimento,
bem como pelas ações das políticas públicas de preservação cultural.
Sem maiores pretensões patrimonialistas, retomemos alguns conceitos apresentados
por Françoise Choay em sua obra A Alegoria do Patrimônio. A autora destaca as diferenças
entre patrimônio histórico e monumento, considerando patrimônio como uma expressão que
congrega os “trabalhos e produtos de todos os saberes e savoir-faire dos seres-humanos”
(CHOAY, 2001:11). Ele constitui um elemento revelador de valores e afetividades; remete a
uma instituição e a uma mentalidade. Os monumentos – constituídos pelos olhares
convergentes de técnicos e especialistas - representam uma parte dessa herança cultural, a
qual vem se configurando pela inclusão de outras arquiteturas – como os conjuntos
“modestos” da Travessa dos Venezianos na Cidade Baixa, mostrados no filme de Beto
Souza.
O domínio patrimonial não se limita mais aos edifícios individuais; ele agora
compreende os aglomerados de edificações e a malha urbana: aglomerados de
casas e bairros, aldeias, cidades inteiras e mesmo conjuntos de cidades. (CHOAY,
2001:13)
A cidade que é representada por seu patrimônio ou por seus bens culturais revela
ao seu leitor suas identidades e seus processos de ocupação espacial no tempo. “A
sedução de uma cidade como Paris deriva da diversidade estilística de suas arquiteturas e
de seus espaços” (CHOAY, 2001:16). A relação do monumento com o tempo vivido e com a
memória – “sua função antropológica” - constitui a sua essência. No caso do uso da
fotografia como registro de autenticidade e de memória, Choay faz algumas considerações.
“A fotografia contribui para a semantização do monumento-sinal” (CHOAY, 2001:22). Sua
utilização está cada vez mais difusa nas representações midiáticas e dirigem-se às
sociedades contemporâneas, constituindo “signo quando metamorfoseados em imagens,
em réplicas sem peso, nas quais se acumula seu valor simbólico assim dissociado de seu
valor utilitário” (CHOAY, 2001:22).
Textor e Beto Souza valeram-se de fotografias de lugares destacados na cidade
ocupados por pessoas comuns, não por celebridades. Largos, praças e monumentos, assim
como anônimos que se apropriam desses espaços, compõem a imagem urbana e fílmica.
No percurso benjaminiano sobre a obra de Baudelaire, o autor afirma que “no peito de seus
heróis não reside nenhum sentimento que não encontra lugar no peito dessa gente miúda,
64
reunida para ouvir a música militar” (BENJAMIN, 2000:73) Essa multidão se consome das
maravilhas, assim como aquela dos tempos modernos, constituída de heróis, que
emocionavam o poeta francês.
Numa aproximação com a obra de Walter Benjamin, em suas considerações Sobre o
conceito de história, o autor chega à conclusão de que o investigador historicista estabelece
uma relação de empatia com o vencedor:
Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que
venceram antes. (...) os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses
despojos são o que chamamos bens culturais. O materialismo histórico os contempla
com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre
a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao
esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia anônima dos seus
contemporâneos. Nunca houve um monumento de cultura que não fosse também
um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o
é, tampouco. (BOLLE, 1994:227)
Neste recorte, Benjamin reforça a intenção de investigar imagens, entre elas a figura
do anônimo e sua importância na materialização de uma cultura. Ressalta seu compromisso
em desviar sua atenção do mundo das pompas, assim como os monges o faziam no
claustro. Transparece sua condição de indivíduo lúcido inserido num contexto histórico e
político conflituoso e em violenta transformação: um homem do seu tempo e além dele. A
grande transformação físico-espacial amplamente descrita em sua obra é a modernização
da metrópole moderna, a qual vem seguida da modernidade enquanto conceito gravado no
indivíduo, e do progresso tratado como uma tempestade ameaçadora.
Foto 35 – O olhar sobre a cidade de
hoje, de ontem e do amanhã. Foto da
autora a partir do DVD de A Morte no
Edifício Império (1993), de Beto Souza.
65
Foto 36 – A Porto Alegre de ontem do
fotógrafo Calegari. Foto da autora a
partir do DVD de A Morte no Edifício
Império (1993), de Beto Souza.
Foto 37 – A Porto Alegre de hoje, vista do Guaíba.
Foto da autora a partir do DVD de A Morte no Edifício
Império (1993), de Beto Souza.
Os conflitos e as transformações na contemporaneidade são absorvidos
cotidianamente, num processo crônico e superdimensionado. O colapso da sociedade atual
e das grandes cidades está diariamente anunciado nas condições de miséria humana, na
violência urbana, na subutilização dos espaços e da histórica discussão sobre áreas de
interesse de preservação e nos conjuntos descaracterizados pela vontade de renovação.
Para Kevin Lynch, em De qué tiempo es este lugar?, a evidência do tempo está
plasmada no mundo físico; nos sinais temporais: a estética do tempo, a percepção do
tempo, a renovação e a revolução estão registrados na materialidade urbana. Lynch refere-
se a uma imagem flexível de um presente ampliado por suas conexões com o passado e o
futuro. Conservação, renovação, crescimento são processos que implicam apropriações
distintas, mas recorrem em uma percepção de mudança:
que implica não apenas daquelas alterações objetivas no estado das coisas
existentes, como também com o nosso modo de entendê-las e conectá-las com
nossas esperanças, recordações e nosso sentido de passagem do tempo. (LYNCH,
1972-75:33)
Fixando as imagens finais dos filmes: da ruína contrapondo-se à cidade verticalizada
desordenadamente, em A Cidade e o Tempo (1970), de Antônio Carlos Textor à interface
restaurada pelo desejo de diálogo saudável entre cidade e rio, em A Morte no Edifício
Império (1993), de Beto Souza, podemos provocar ainda interpretações referentes à morte e
à ruína enquanto desafio na remodelação urbana. Ana Luiza Rocha e Cornelia Eckert, em
sua obra O Tempo e a Cidade, nos contemplam com suas experiências na investigação
antropológica em Porto Alegre e afirmam que
a imagem da ruína, precisamente por sua apelação extrema ao esquecimento,
sugere, por sua permanência na paisagem urbana da cidade, a duração de uma
recordação, tendendo a subverter a consciência coletiva de uma comunidade que se
recusa a atingir os traços duráveis dos jogos da memória de seus habitantes no
sentido das camadas de suas existências passadas, muitas vezes dúbias. (ROCHA
e ECKERT, 2005:77)
66
Foto 38 - A ausência e a ruína na imagem
posterizada em tom sépia... Foto da autora a
partir do DVD de A Cidade e o Tempo (1970),
de A. C, Textor.
Foto 39 - ...a destruição deixa marcas pela
cidade. Foto da autora a partir do DVD de A
Cidade e o Tempo (1970), de A. C, Textor.
67
CAPÍTULO III - (Cena 2: o olhar) A cotidiana solidão na metrópole
contemporânea
(...) das inúmeras cidades imagináveis, devem-se excluir aquelas em que os
elementos se juntam sem um fio condutor, sem um código interno, uma
perspectiva, um discurso. É uma cidade igual a um sonho: tudo o que pode
ser imaginado pode ser sonhado, mas mesmo o mais inesperado dos sonhos
é um quebra-cabeça que esconde um desejo, ou então o seu oposto, um
medo.
ITALO CALVINO
3.1. A INSTAURAÇÃO DE UMA COMUNICAÇÃO ININTELIGÍVEL ENTRE
INDIVÍDUO & ESPAÇO em Miragem (1993), de Jaime Lerner e Miopia (2002), de
Muriel Paraboni.
MIRAGEM
Jaime Lerner. Brasil, 6 min, captado em
16mm, cor, 1993.
Sinopse: No documentário, o diretor amarra as
imagens do Centro de Porto Alegre – especialmente
da Praça Parobé, Mercado Público, Largo Glênio
Perez - à narração de um jovem sem nome. Um
jovem comum. Sua única diferença é que ele vê as
pessoas ao seu redor e não é visto por elas.
Roteiro e Direção: Jaime Lerner.
MIOPIA
Muriel Paraboni. Brasil, captado em 16mm 12
min, pb & cor, 2002
Sinopse: Um jovem está a caminho de um destino
que não dá pra saber direito qual é. Mas dá pra ver
que ele está assustado, que caminha com pressa,
que caminha nervoso, que caminha desconfiado.
Parece perturbado com o barulho da cidade, com a
imundície da cidade, com a violência da cidade, com
a feiura, com a pobreza, com a loucura da cidade.
Talvez ele esteja mesmo fugindo da cidade. Ou
quem sabe de si mesmo. Mas não dá pra saber
direito. Melhor então é ver mais de perto e tentar
entender melhor a confusa miopia de mais este
nosso pouco ilustre concidadão. Quem sabe ela não
é também a mesma que a nossa.
68
Roteiro e Direção de Muriel Paraboni.
O olhar atento e contraditoriamente descompromissado de um anônimo sobre uma
cidade em constante movimento. Num lapso de lucidez que sugere uma perplexidade
anunciada diante de uma espécie de perda da poesia do mundo - sentida nos
engarrafamentos de carros e de pessoas que abarrotam os ônibus - somado a uma mescla
de suas lembranças remotas e da real impossibilidade de comunicação, o narrador de
Miragem (1993), documentário de Jaime Lerner, coloca-se como mais um indivíduo da
multidão. Do alto do prédio, ele constrói “a ficção que cria leitores, que muda em legibilidade
a complexidade da cidade e fixa num texto transparente a sua opaca mobilidade”
(CERTEAU, 1994:171). Planos gerais do centro nervoso de Porto Alegre são usados para
representar esse quadro de fluxos humanos e veiculares que se superpõem (Foto 40).
A dinâmica urbana com seus ritmos acelerados que se auto-organizam a partir de
um panorama caótico está focalizada no filme de Lerner, somando-se à estética do
formigueiro humano que configura uma uniformidade visual daqueles que se deslocam
numa dialética de ordem e desordem. Eis que a cidade surge ao espectador através de
recortes cotidianos dessa multidão móvel e contínua, “densamente aglomerada como pano
inconsútil, uma multidão de heróis quantificados que perdem nomes e rostos tornando-se a
linguagem móvel de cálculos e racionalidades que não pertencem a ninguém” (CERTEAU,
1990:58). Essa massa silenciosa, representada por planos gerais e disposta num restrito
espaço urbano, contrapõe-se a alguns closes (Foto 41) de quem passa, de quem percorre
caminhos pré-determinados e de outros tantos marginais, pois compõem uma margem
silenciosa, que não sabem ao certo para onde vão. O movimento de aproximação reforça a
busca em saber o que passa pela cabeça desse produtor anônimo da cidade.
A fusão dessa gente miúda, muitos destes trabalhadores informais (carroceiros,
vendedores ambulantes) que convivem diariamente com a estrutura formal - aqui
representada pelas modernas fachadas de grandes centros empresariais – marca a
presença da diversidade e do contraditório no centro urbano. Em Tradição / Contradição,
Gerd Bornheim explica que “(..) toda a realidade seria entendida a partir da oposição de
contrários que, mesmo que nunca definitivamente superáveis, seriam instauradores da
dinamicidade do real.” (BORNHEIM, 1987:15). Aliás, as primeiras grandes edificações em
escala, altura, inovação técnica e tecnológica, estão localizadas no Centro da cidade e
configuram um espaço de muitos usos que dialoga com a informalidade do comércio e com
a própria tradição – como memória – arquitetônica e urbana.
69
Foto 40 – Zoom out: fluxos humanos e
veiculares no filme Miragem (1993), de Jaime
Lerner. Foto da autora a partir da VHS.
Foto 41 – Zoom in: closes de trabalhadores
informais. Miragem (1993), de Jaime Lerner.
Foto da autora a partir da VHS.
A Porto Alegre do terminal de ônibus Parobé vizinho ao Mercado Público e ao próprio
Cais do Porto vai se revelando numa seqüência de plongées absolutas
15
- verdadeiras
plantas baixas do Centro da cidade - que podem nos indicar um domínio ou uma dominação
do narrador sobre quem transita lá embaixo. Para Marcel Martin, o plano geral reduz o
homem a uma silhueta minúscula, o reintegra no mundo, fazendo com que as coisas o
devorem, ‘objetiva-o’; “dá uma tonalidade psicológica bastante pessimista, uma ambiência
moral um tanto negativa, mas às vezes também uma dominante dramática de exaltação,
lírica ou mesmo épica.” (MARTIN, 1990:38)
O plano geral exprimirá portanto: a solidão, a impotência às voltas com a fatalidade,
a ociosidade, uma espécie de fusão evanescente numa natureza corrupta, a
integração dos homens a uma paisagem que os protege absorvendo-os, (...), a
nobreza da vida livre e orgulhosa nos grandes espaços. (MARTIN, 1990:38) Grifo da
autora.
Ele - o narrador - observa o mundo a partir da janela do escritório que trabalha. “Sua
elevação o transfigura em voyeur” (CERTEAU, 1994:170). Metaforicamente, a janela, que
segundo o arquiteto Paulo Casé, é o “vão por onde entram as imagens da vida e por onde
escapa a solidão”, está em toda parte, dinâmica, possibilitando uma onipresença do
narrador. A enorme proximidade do narrador com quem assiste ao filme, cria um
distanciamento deste espectador em relação àquelas imagens produzidas da cidade, como
se ele compartilhasse com o narrador de sua percepção indignada e permanecesse
impotente a esta visão pessimista.
O filme lança um olhar sobre o conflito entre os mundos que habitam os indivíduos e
o mundo externo, bem como sobre a dificuldade de interagir com aspectos internos do
15
A chamada câmera alta – pode formar um ângulo qualquer com o objeto focado. Entende-se plongée absoluta
como a tomada de cima que forma um ângulo de 90° com a superfície. As demais são entendidas aqui apenas
como plongées (na tradução: mergulhos).
70
personagem que habita a grande cidade, como a sua própria indiferença ou desesperança.
O indivíduo – soma do in + divíduo: dividido e em conflito - que narra, localiza-se fora do
enquadramento e exprime sua inquietação na leitura do mundo, por vezes um pensamento
obsessivo na sua relação com a mulher (Foto 42) e com a cidade: um desejo e, ao mesmo
tempo, uma incapacidade de vivê-las na sua plenitude. Afinal, o protagonista de Miragem é
e está invisível. Ele expressa ainda sua tentativa frustrada de aproximação com o outro no
trecho: “tento chamar atenção, piscar o olho, fazer algum contato por telepatia. Não consigo
(pausa) as pessoas parecem miragens passando ao meu redor. Num instante elas estão e
no outro...”.
Foto 42 – A mulher como foco de desejo.
Miragem (1993), de Jaime Lerner. Foto da
autora a partir da VHS.
Mas Miragem onde? No espelho do herói baudelaireano incorporado pelo anônimo
narrador: desiludido e vítima de um projeto urbano e social inacabado ou dilacerado? Na
figura do contemporâneo homem da multidão aqui estático e muito mais um homem-tipo,
padrão, genérico e universal? Miragem como uma ilusão percebida pela janela do
escritório, através da qual se dá a ênfase sobre um anonimato nocivo que impossibilita o
registro de uma identidade no espaço e no tempo? Ou na leitura de uma cidade veloz e
caótica, fora do tempo humano, e de uma sociedade formada por indivíduos presos a esta
estrutura?
Numa busca etimológica do título, no Dicionário Houaiss, encontra-se Miragem como
o “efeito óptico que ocorre nas horas mais quentes, especialmente nos desertos, produzido
pela reflexão da luz solar, que cria uma imagem semelhante a um lago azul, onde, por
vezes, se refletem imagens de vegetação ou cidades distantes, e que desaparece à medida
que nos aproximamos” ou como “aquilo que se apresenta como algo muito bom”, “mas que
não é verdadeiro”; e sim uma “falsa realidade, ilusão, quimera, sonho; do francês mirer
‘olhar atentamente’, do latim mirãre ‘admirar-se, ver, olhar’”.
71
Mais uma vez a contradição recorrente do filme nos mostra uma cidade distante e
verdadeira dialogando com algo “muito bom”, talvez a idéia de liberdade ou libertação de
uma condição imposta pelos acordos sociais, mimetizado e preso a uma condição adversa:
a impossibilidade de comunicação. O filme aborda esta liberdade presa à memória do pai
debochado e desesperançado – que desistiu e “jogou tudo para o alto”. Valores que
desmancham no ar podem indicar uma metáfora da decadência social que começa com a
desestrutura familiar. O questionamento inicial sobre “por que a gente não pára?”, cada vez
mais atual – deixa de referenciar um lugar específico num tempo identificável – é verificável
em contextos urbanos universais. A liberdade como “aquilo que o indivíduo começa a
perder, quando, sem consulta prévia, lhe é ministrado um idioma, quando lhe é imposta uma
crença e lhe são impingidos costumes” (CASÉ, 2000:7), está irreversivelmente condicionada
a regras impostas.
“Perceber e colecionar sistematicamente os sonhos coletivos de uma época, para
decifrá-los” (BOLLE, 1994:90) pressupõe lucidez e vigilância. O menor fragmento autêntico
ou uma partícula de realidade da vida cotidiana diz muito sobre as práticas políticas e
sociais, bem como sobre a história da cidade. Para Certeau, “no espaço da língua (como no
dos jogos) uma sociedade explicita mais as regras formais do agir e os funcionamentos que
as diferenciam.” No documentário fica clara a intenção de registrar a condição do indivíduo
preso às regras do jogo urbano. Em A Cidade como um Jogo de Cartas, Carlos Nelson dos
Santos faz uma interessante analogia do jogo de cartas – enquanto um truque que serve
para representar as maneiras de estabelecer alianças e oposições – às práticas sociais que
se processam no espaço urbano. “O jogo urbano se joga sobre um sítio determinado que é
a sua ‘mesa’. Aí se juntam parceiros que se enfrentam segundo os grupos e filiações a que
pertençam” (SANTOS, 1988:37): governo, empresas e população. O autor transcreve, logo
no início de seu livro, trecho da entrevista feito pelo antropólogo Paul Rabinow com Michel
Foucault sobre a possibilidade de um projeto arquitetônico ser visto como força de liberação
ou resistência, na qual Foucault diz que:
Liberdade é uma prática. Portanto, podesempre existir um determinado número de
projetos cujos objetivos sejam a modificação de certa restrição, seu relaxamento ou
mesmo sua eliminação, mas nenhum desses projetos pode, simplesmente por sua
natureza própria, assegurar que as pessoas terão a liberdade automaticamente.
(SANTOS, 1988:21)
Carlos Nelson vai adiante interpretando as relações que o filósofo estabelece entre
poder e conhecimento, considerando que certas propostas arquitetônicas (e urbanas)
podem servir como base de estratégias políticas. Na cidade européia do século XVIII, “são
os políticos e não os arquitetos que impõem reflexões sobre a organização do espaço das
cidades, os serviços coletivos, a higiene e a construção de edifícios. Em seguida, procuram
os modelos e os tipos que materializem suas pretensões.” (SANTOS, 1988:22).
72
O filme analisado não se aprofunda na reflexão sobre problemas sociais derivantes
de um contexto político degradado, apenas sugere pistas, sem interpretar a situação atual.
Percorre cenas reais de apropriação do espaço público por moradores de rua,
acompanhadas da afirmação do protagonista de que “miséria (pausa) só em filme italiano”.
Assume displicentemente que “no escuro do cinema, a gente pode deixar se envolver sem o
compromisso de ter que fazer alguma coisa”. Propõe ainda pensar a rua, não só como
(possibilidade de) morada, mas também como espaço de prisão e privação dos direitos.
Situação semelhante ocorre em tempos de guerra e de libertação, na transição retratada
pelos filmes do Neo-realismo Cinematográfico Italiano. A guerra, o após-guerra e a
formação de uma nova Itália, como descreve Mariarosaria Fabris, passa a figurar como uma
estética aceita e inserida num contexto cultural e político reconhecido, o qual apresenta o
tema da Resistência, com todas as contradições que irão surgir entre os vários partidos
políticos após a libertação. Lino Micciché explica que:
A floração de uma corrente cinematográfica, que variadamente se inspirava em
fatos, episódios e questões políticas dos anos dramáticos da ditadura, da guerra
fascista, da Resistência e da queda do regime, não era somente um expediente de
produção, mas tinha, certamente, ligações precisas como o debate político que
naquela época de transição existia no país. As ambições neocapitalistas e as
esperanças reformadoras confluíam na necessidade comum de liquidar
historicamente o fascismo, por outro lado, como extrema ratio do paleocapitalismo
que tinha caracterizado a jovem sociedade italiana dos primórdios do século XX,
depois de Versalhes e, por outro, como a fase de um choque frontal, e sem possíveis
tréguas conciliatórias, entre burguesia e proletariado... Estava implícito nessas novas
tendências nacionais e internacionais que o fascismo fosse transformado em história
e que fosse representado com o desencanto psicológico e o distanciamento crítico
de uma sociedade, nacional e internacional, que se julgava definitivamente protegida
em relação àquela experiência histórica. (MICCICHÉ apud FABRIS, 1996:42) Grifo
da autora.
Esta breve revisão do Neo-realismo Italiano, sugerida na narração do protagonista,
pode se estender na compreensão dos períodos de transição e de contextos opressivos
retratados pelo cinema. No momento atual representado por Miragem, temos uma
sociedade de anônimos, indiferentes e incapazes de mudar sua condição ordinária. Lefebvre
refere-se ao processo de industrialização como ponto de partida da reflexão de nossa
época. “Quando a industrialização começa, quando nasce o capitalismo concorrencial com a
burguesia especificamente industrial, a Cidade já tem uma poderosa realidade”. As cidades
precursoras ao processo de industrialização já acumulavam riquezas e produziam obras
monumentais. Aqueles que produziam, mesmo como heróis do movimento das grandes
massas, encontravam-se inseridos num sistema urbano estruturado. “A própria cidade é
uma obra”, e esta característica contrasta com a orientação irreversível na direção do
dinheiro, do comércio, das trocas e dos produtos.
Convém ressaltar este paradoxo, este fato histórico mal elucidado: sociedades muito
opressivas foram muito criadoras e muito ricas em obras. Em seguida, a produção
de produtos substituiu a produção de obras e de relações sociais ligadas a essas
73
obras, notadamente na Cidade. A própria noção de ‘criação’ se detém ou degenera,
miniaturizando-se no ‘fazer’ e na ‘criatividade’ (o ‘faça-você-mesmo’). (LEFEBVRE,
2001:6)
A desesperança na desestrutura social que aprisiona física e mentalmente cada
participante desse jogo urbano evidencia-se no final. O ciclo fílmico se fecha quando o
narrador retoma suas memórias da infância e reafirma que seu “pai, que era um cara
superdebochado, provavelmente diria: meu filho, a esperança é a última que morre, mas um
dia a hora dela há de chegar”.
O filme coloca-se como uma soma de macropercepções do grande centro urbano, no
caso, da capital gaúcha identificada pela Praça Parobé e arredores, sem maiores
proposições críticas ou estéticas. Certamente o curta-metragem de Jaime Lerner restringe-
se a uma abordagem periférica de uma mescla de traços da contemporaneidade e utiliza-se
de recursos como a assimetria e o contraponto. Aquele que vê e não é visto. Aquele que
questiona sua condição e não tem com quem compartilhar, porque – segundo o próprio
personagem – os demais cidadãos não estão dispostos a mudar. O expediente acaba, a
noite chega e com ela a necessidade de interação. O narrador tenta estabelecer um
convívio social, toma o seu “pozinho de pirilimpimpim” e se transforma numa miragem
também. O anacronismo acentua-se na tentativa de inscrever a sua marca no meio da
multidão, tornando-se um deles, mesmo que por um tempo limitado. Segundo o narrador, “O
aparelho de TV é o melhor amigo do homem”. Certeau coloca a questão da leitura da cultura
contemporânea nos seguintes termos:
Da televisão ao jornal, da publicidade a todas as epifanias mercadológicas, a nossa
sociedade canceriza a vista, mede toda a realidade por sua capacidade de mostrar
ou de se mostrar e transforma as comunicações em viagens do olhar. É uma
epopéia do olho e da pulsão de ler. (...) A leitura (da imagem ou do texto) parece,
aliás, constituir o ponto máximo da passividade que caracterizaria o consumidor,
constituído em voyer (troglodita ou nômade) em uma sociedade do espetáculo.
(CERTEAU, 1994:48)
Eis um significativo link conceitual entre os filmes Miragem (1993) de Jaime Lerner e
Miopia (2002) do então estreante Muriel Paraboni. A margem interpretativa de Miopia
transita tanto na sua especulação poética que se quer psicológica e satírica ao mesmo
tempo, quanto na experimentação técnica marcada por uma montagem em contraste. O
suspense e a angústia acompanham o protagonista e o espectador que imerge no filme e,
logo em seguida, o abandonam, fazendo com que ele se questione sobre onde estará a
situação imaginária?
O protagonista está inserido, quase jogado, num mundo sujo e agressivo.
Provavelmente ilude-se com a certeza de não poder pertencer a esta sociedade a qual está
destinado. Aspectos inquietantes e ameaçadores da vida urbana vão construindo a trama
ficcional (Foto 43). A cidade invade o indivíduo e o seu consumo se dá como se fosse num
74
sonho – no sonho tudo é possível – afirmação que salienta o caráter surreal presente na
própria montagem do filme.
Foto 43O protagonista segue sozinho o seu
destino. Fotograma de Miopia (2002), de Muriel
Paraboni
O roteirista / diretor torna-se cúmplice do espectador na busca da compreensão
dessa confusa miopia. É preciso aproximar-se das sensações e percepções do protagonista
para decifrar a cidade que se apresenta. Observa-se ainda, na sinopse do filme, a figura do
pouco ilustre concidadão – o anônimo - que, desta vez, tem um destino pré-determinado que
“a gente” não sabe qual é. O cenário do filme é a própria metrópole universal composta pela
soma de ruínas (degradação física das edificações), de favelas nas bordas das vias de alto
tráfego e da estação de metrô (marcando os fluxos e deslocamentos). O cineasta busca
ícones de cidade universal na Porto Alegre cotidiana. A negação de uma realidade mais
amena ou a construção de uma realidade super-exposta, super-nítida, encaminham para
uma leitura sobre o olhar sensível do diretor. “O cinema é um olho por meio do qual eu vejo”,
profere Dziga Vertov. O cineasta Jean Epstein vai além, dizendo que “no cinema, não se
contempla a vida, penetra-se nela”. Essa invasão, na alma do indivíduo e da cidade,
percorre todas as intimidades, cria uma tensão diegética e uma aproximação ao campo de
consciência.
Em seu artigo A Cidade Filmada, Jean Louis Comolli parte da análise de filmes de
sua própria autoria ou de outros diretores, propondo uma apreciação sobre os diferentes
olhares que se cruzam na imagem fílmica e no consumo da cidade captada (ou capturada)
pela lente da câmera. O autor decompõe – no tempo e no espaço - esses olhares
conscientes sobre o visível e diz que:
outra esquisitice (...) que opõe a câmera à percepção visual normal, é a de recortar
mecanicamente os conjuntos de tempo e espaço que ela filma. (...) o cinema
acentua e intensifica a transformação do espaço em tempo (COMOLLI, 1995:151).
75
O cinema só se justifica quando revela o invisível. Segundo Comolli, o re-regard ou o
duplo olhar dirigido, no cinema, se dá através do retorno do olhar sobre si mesmo. Ele
refere-se ao olhar do espectador como a sobreposição do olhar de quem produziu o filme ou
o olhar do diretor sobre seus próprios anseios, estabelecendo, com esta mistura, a analogia
com os traços da cidade, gravados na mistura de tempos e de práticas sociais. Pode-se
inferir que esses olhares se cruzam ou não, em decorrência da capacidade ou predisposição
hermenêutica do espectador, bem como da articulação dessas imagens no imaginário
individual e, mais adiante, coletivo. Assim como na literatura e na poesia, o leitor se espelha,
se encontra, se contradiz. O cineasta capta aquilo que vê da cidade, até onde consegue ver
e sentir.
Em Miopia, o tempo é estendido no destino do protagonista – na sua viagem ao
oftalmologista - momento que marca uma ruptura na linguagem, como que num despertar
de um pesadelo, transformando esteticamente o mundo. A cidade mono ou gris é
substituída pela policromia. À percepção individual é aplicada um sedativo na forma de
óculos (lentes) para minimizar a exteriorização dos medos e fazer calar a consciência de
fatores hostis ironicamente potencializados pela deficiência visual. O absurdo situa-se não
exclusivamente dentro do sujeito ou no mundo, mas no enfrentamento de ambos (Foto 44 e
Foto 45).
Foto 44Estranha relação indivíduo &
espaço e absurdo abandono do... Fotograma
de Miopia (2002), de Muriel Paraboni.
Foto 45 – ...bebê no corredor do prédio.
Fotograma de Miopia (2002), de Muriel
Paraboni.
O contraste entre o estranhamento do indivíduo com o meio e entre os próprios
indivíduos, pela falta de solidariedade, no sentido da incapacidade de interação descrita por
Milton Santos, converge na busca por civilidade. É interessante destacar aqui trecho do Mito
narrado por Protágoras, no qual os mesmos homens que criaram a arte, os sons e as
habitações, viviam dispersos e eram destruídos por animais mais fortes que eles. Até que
eles reúnem-se e fundam as cidades para defender-se,
76
porém, uma vez reunidos, os homens feriam-se mutuamente, por carecer da arte da
política, e de novo começaram a dispersar-se e a morrer. Preocupado ao ver nossa
espécie ameaçada de desaparecimento, Zeus mandou Hermes trazer para os
homens o pudor e a justiça, para que nas cidades houvesse harmonia e laços
criadores de amizade. Hermes perguntou a Zeus de que maneira deveria dar aos
humanos o pudor e a justiça: "Deverei distribuí-los como as demais artes? Estas se
encontram distribuídas da seguinte maneira: um só médico é suficiente para muitos
profanos, e o mesmo ocorre com os demais artesãos. Será essa a maneira pela qual
deverei implantar a justiça e o pudor entre os humanos? Ou deverei distribuí-los
entre todos?". "Entre todos", responde Zeus. “Que cada um tenha a sua parte
nessas virtudes, já que se somente alguns as tiverem, as cidades não poderão
subsistir, pois neste caso não ocorre como nas demais artes – além disso,
estabelecerás em meu nome esta lei: todo homem incapaz de ter parte na justiça e
no pudor deve ser condenado à morte, como uma praga da cidade. (PLATÃO, 1974)
Na cidade, é inevitável o encontro de estranhos e, para o sucesso desse encontro, a
civilidade deve se manifestar em todos os participantes da cena urbana e social (Foto 46).
A geografia pública de uma cidade é a instituição da civilidade. Num mundo sem
rituais religiosos nem crenças transcendentais, as máscaras não são pré-fabricadas.
As máscaras precisam ser criadas por ensaio e erro, por aqueles que as usarão, por
intermédio de um desejo de viver com os outros, mais do que pela compulsão de
estar perto dos outros. Quanto mais esse comportamento tomar corpo, mais vivos se
tornarão a mentalidade da cidade e o amor pela cidade. (SENETT apud FREIRE,
1997:98)
Foto 46 – O espaço público-fechado que
abriga surpresas à personagem. Fotograma de
Miopia (2002), de Muriel Paraboni.
Paraboni exercita uma forma de ver a cidade contemporânea não apenas por suas
imagens concretas, mas por suas relações desarmônicas e esquizofrênicas. O protagonista
é aquele que agoniza simplesmente por fazer parte desta cidade. Situações que levam a
uma miopia e mantém uma estrutura ambivalente de desejo e temor; uma imobilidade ou
incapacidade de ação. Nesse mergulho nas percepções negativas, Bachelard nos fala sobre
a dialética exterior e interior, provocando sobre: “como acolher uma imagem exagerada,
senão exagerando-a um pouco mais, personalizando o exagero?” (BACHELARD,
2000:222). Há uma clara rejeição do real, que o instiga a reinventar uma natureza na qual a
imaginação e a fantasia introduzem novos comportamentos. O protagonista fica grato ao
77
ver-se capaz de filtrar uma cidade indigesta e revela-se fascinado com as possibilidades de
diálogo com o outro. O ato de despertar do pesadelo urbano marca o movimento pendular
proposto pela montagem: inicialmente um mergulho num universo ameaçador (para quem?)
e, por fim, um distanciamento das feridas urbanas e sociais que o coloca frente a uma
realidade aceitável (até quando?).
Poderíamos pensar em uma montagem inversa para o filme. Tendo em vista que
Miopia, etimologicamente, é um “distúrbio (óptico) de refração em que os raios luminosos
formam o foco antes da retina”; ou ainda, a “pouca ou nenhuma perspicácia para perceber e
entender as coisas”, entendendo-se que o estranhamento com o mundo cinza, violento e
sujo estaria camuflado por uma deficiência visual que, ao ser sanada, traria a dura realidade
à tona. Esta proposta de leitura impediria, certamente, o alívio final existente no filme de
Paraboni. Ao contrário de Miragem, há esperança no desfecho de Miopia. As pessoas
podem ser menos agressivas. Há a descoberta da cordialidade e da solidariedade.
Fecha-se, então, o caminho percorrido pelo jovem protagonista numa cidade grande
de hoje e abrem-se as possibilidades interpretativas em relação ao espaço. Uma cidade que
se expressa de diversas formas, entre elas, a partir dos seus ruídos que se misturam e
contribuem para a sua rejeição, mas que não está determinada por seus lugares ou
monumentos. O filme poderia muito bem estar locado no centro ou em algum bairro de Porto
Alegre ou de qualquer outra capital brasileira.
Se as cidades são únicas em sua topografia, elas se assemelham a cada dia em sua
dinâmica. Se elas abrigam a cada um de nós em sua particularidade, cada cidade
também nos expõe em nosso trânsito por seus espaços abertos, tantas vezes
metaforizados como o nosso próprio corpo pelas artérias de circulação. Há algum
tempo percebemos que deixamos de ser aqueles que dela usufruem para nos
convertermos em seu estofo. (PARAIZO In: NAZARIO, 2005:165)
Miopia e distopia rimam com utopia, termo modernista que relaciona a construção
ficcional de cidades e territórios ideais, réplicas mais ou menos engenhosas de
organizações sociais alternativas, superiores e mais perfeitas às conhecidas no cotidiano. A
modernidade e a contemporaneidade como épocas de degradação urbana e social, bem
como momentos de transição, estão aqui sugeridas, compondo surpreendentes estímulos
conceituais para a produção cinematográfica.
3.2. REVISITANDO A BUSCA PELO OUTRO na tradicional introspecção do poeta em
Pela Rua (2003), de Dimitre Lucho e na metáfora do não-olhar em O Branco (2000), de
Liliana Sulzbach.
PELA RUA
78
Dimitre Lucho e Michele Maurente. Brasil, 6
min, captado em 16mm, cor, 2003.
Sinopse: Livre adaptação do poema homônimo de
Ferreira Gullar. Um poeta procura por sua musa
pelas ruas do bairro Bom Fim, em Porto Alegre,
enquanto tenta construir um poema. Um filme sobre
o desencontro, a solidão e o intenso processo
criativo da poesia.
Direção: Dimitre Lucho e Michele Maurente. Roteiro: Leandro Cobelli e Dimitre Lucho.
O BRANCO
Liliana Sulzbach e Ângela Pires. Brasil, 22
min, captado em 35mm, cor, 2000.
Sinopse: Um garoto cego especula continuamente
sobre as cores das coisas e manifesta uma
predileção pela cor branca, síntese de tudo o que
para ele é inatingível.
Direção: Liliana Sulzbach e Ângela Pires. Roteiro: Ângela Pires, José Pedro Goulart e
Liliana Sulzbach
A cidade do poeta vai além do território e se funde nos domínios da imaginação. Em
Pela Rua (2003), curta-metragem de Dimitre Lucho e Michele Maurente, a transfiguração da
cidade se dá na leitura do poema homônimo de Ferreira Gullar – poeta maranhense nascido
em 1930 - somado às imagens urbanas de Porto Alegre capturadas pela lente dos diretores.
O protagonista encontra-se na busca de sua musa e revela-se um poeta circunstancial,
vivendo numa cidade de dois milhões de habitantes, sobreposta àquela de quatro milhões
de habitantes do poema. Fragmentos de cidades, textos e sentimentos são proferidos pelo
personagem: “um automóvel, um vitrina, esperança, coração dispara, rumo, misturada a
uma chance em dois milhões”. A probabilidade da concretização do encontro está delimitada
numa “chance em quatro milhões”. O poeta desesperançado fixa, por um instante, as
imagens que vão sendo substituídas por outros versos ao longo da narração. Lá está a
busca pela musa em:
A cidade é grande
79
tem quatro milhões de habitantes e tu és uma só.
A desconstrução e adaptação do poema de Ferreira Gullar acentuam a narrativa
fragmentária proposta pelo filme e, paradoxalmente, instaura uma procura pela personagem
em um território (re)conhecido. Entre “mil edifícios, tu dispara, miragem, sem qualquer
esperança, na Avenida Osvaldo Aranha”, aqui (Foto 47) ou na Avenida Nossa Senhora de
Copacabana, lá. A musa “se esvai acima dos edifícios” como uma deusa; e ele a espera, “de
azul, miragem, se desintegra”. “Parada ou andando és uma só”, insubstituível. A musa que
inspira o poeta cabe no seu espaço de imaginação, pois ele é infinito. Ela está em toda parte
e em lugar nenhum. Ela sai do poema, desloca-se de carro pela cidade e se perde na
miragem urbana. A cidade, por sua vez, permanece no seu ritmo impossível de ser
interrompido, habitada por seres em sintonias diversas. E o poema surge ao som da voz de
seu notório autor:
Sem qualquer esperança
te espero.
Na multidão que vai e vem
entra e sai dos bares e cinemas
surge teu rosto e some
num vislumbre
e o coração dispara.
Foto 47 – O corredor de ônibus na Avenida
Osvaldo Aranha marcado pelo ritmo das
palmeiras. Imagem característica de Porto
Alegre. Fotograma de Pela Rua (2003), de
Dimitre Lucho e Michele Maurente.
Originalmente perdida na cidade do Rio de Janeiro, dimensionada por sua densidade
duas vezes maior que a de Porto Alegre, cenário do filme (Foto 48), a musa surge como
num disparo (Foto 49). Eis que a imagem nos leva a outro espaço e tempo: a moderna
Paris baudelaireana. No poema “A Une Passante”, publicado em 1857, em sua obra Les
Fleurs du Mal, Baudelaire descreve seu encontro fortuito com uma bela e nobre mulher,
transformada em imagem eterna. Ele passa pela rua, a qual é descrita como “um frenético
alarido”; cruza com o olhar, numa fração de segundos, pela doçura que encanta e pelo
80
“prazer que assassina”. A paixão aflora como uma ventania sob o céu lívido dos olhos dela,
os quais movem o poeta a nascer outra vez até transpor esse instante à eternidade da
imaginação.
Longe daqui! Tarde demais! Nunca talvez!
Pois de ti me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!
16
Aqui se verifica a desistência na concretização do encontro real com a musa também
presente em Pela Rua. O momento está perdido, nunca mais ele vai encontrá-la, porém a
imaginação se encarrega de contar livre e infinitamente essa história. Bachelard defende
que a imensidão é uma categoria filosófica do devaneio: “o devaneio coloca o sonhador fora
do mundo próximo, diante de um mundo que traz o signo do infinito” (BACHELARD,
2000:189). No filme, a desistência é a solução adotada, ao contrário do personagem de
Miopia que busca uma alternativa para o seu sofrimento. O poeta se alimenta da solidão e,
em certa medida, do sofrimento – fonte de intensidade e de inspiração. O amor platônico
ganha projeção no universo do poeta e materializa-se na poesia escrita ou filmada.
Foto 48 – O poeta circula pela rua...
Fotograma de Pela Rua.(2003).
Foto 49 – ...sua musa o inspira no seu reflexo
e nos seus contornos. Enquanto a cidade não
pára. Fotograma de Pela Rua.(2003).
E o coração dispara, mas o personagem permanece fechado, quase paralisado,
talvez porque seu universo interior produza infinitas e confusas imagens (Foto 50 e Foto
51). “O poeta, como tantos outros, sonha atrás da vidraça.” (Bachelard, 2000:165). Pela rua,
“o sonhador faz correrem ondas de irrealidade sobre o que era o mundo real.”
(BACHELARD, 2000:165) Ele está na rua assim como poderia estar em qualquer outro
lugar. A consciência de despertar do sonho está camuflada pelo hábito de perder-se na
imensidão íntima e pelo prazer da intensidade produzida pela imaginação.
16
Ailleurs, bien loin d’ici ! trop tard ! jamais peut-être !
Car j’ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
Ô toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais ! (BAUDELAIRE, 1994:88)
81
A imensidão está em nós. Está ligada a uma espécie de expansão de ser que a vida
refreia, que a prudência detém, mas que retorna na solidão. Quando estamos
imóveis, estamos algures; sonhamos num mundo imenso. A imensidão é o
movimento do homem imóvel. A imensidão é uma das características dinâmicas do
devaneio tranqüilo. (BACHELARD, 2000:190).
A imensidão é um tema poético inesgotável. Confrontação do homem que medita
diante de um universo sem fronteiras. Vasto é uma das palavras mais baudelaireanas, a
palavra que, para o poeta, marca naturalmente a infinidade do espaço íntimo. “Vasto como a
noite e como a claridade”. Bachelard refere-se ainda às relações entre o uno e o múltiplo na
obra de Baudelaire. “O sentimento da existência é imensamente aumentado” (BACHELARD,
2000:197).
Foto 50 – O poeta interage com sua musa
apenas em seus devaneios, ... Fotograma de
Pela Rua.(2003), de Dimitre Lucho e Michele
Maurente.
Foto 51 – ...a contempla, em sonho, em
pleno Bar João. Fotograma de Pela
Rua.(2003), de Dimitre Lucho e Michele
Maurente.
Em Pela Rua, observamos o fenômeno da ressonância-repercussão descrito por
Bachelard. “Na ressonância ouvimos o poema; na repercussão o falamos, ele é nosso.”
(BACHELARD, 2000:7). As possibilidades perceptivas se abrem a partir da fruição deste
breve filme de apenas seis minutos de duração. O diálogo com a poesia e sua apropriação
autorizada pelo autor do poema, desperta para um olhar interno e psicológico, daquele que
circula cotidianamente pelas avenidas de grandes cidades, misturando-se aos seus
incontáveis parceiros de solidão.
Em algum lugar estás a esta hora, parada ou andando,
talvez na rua ao lado, talvez na praia
talvez converses num bar distante
ou no terraço desse edifício em frente,
talvez estejas vindo ao meu encontro, sem o saberes,
misturada às pessoas que vejo ao longo da Avenida.
Mas que esperança! Tenho
uma chance em quatro milhões.
Ah, se ao menos fosses mil
disseminada pela cidade.
A noite se ergue comercial
nas constelações da Avenida.
82
Sem qualquer esperança
continuo
e meu coração vai repetindo teu nome
abafado pelo barulho dos motores
solto ao fumo da gasolina queimada
17
No filme de Lucho e Maurente, o poeta torna-se incapaz de ser ouvido, pois o
barulho do trânsito abafa o nome de sua musa. Já em O Branco (2000), filme de Liliana
Sulzbach e Ângela Pires, o protagonista apresenta uma incapacidade real – a cegueira - que
não o impede de alcançar o seu propósito. Logo no prólogo do filme, na primeira fala do
menino, ele pergunta ao seu pai qual a cor do sol e assume que, entre as variações de cor
descritas, prefere o branco. Na cena seguinte, o menino se prepara para ir ao parque com
sua mãe (Foto 52). A casa do protagonista é o espaço de convívio exclusivo com a mãe e
eventual com outras pessoas. A cidade – como espaço de morada – é usufruída apenas na
companhia da mãe e nos lugares escolhidos por ela. Estranhos não são bem-vindos e não
devem receber atenção, apenas devem ser mantidos à distância.
Foto 52 – A casa como universo
protegido. Foto da autora a partir da VHS.
No trajeto ao parque, visitado sempre aos sábados, mãe e filho embarcam num
ônibus que os deixa num ponto identificado pela música alta de uma loja de discos. O
espaço externo à casa, habitado por seres desconhecidos, não tem a mesma tonalidade da
casa, pois “a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em
paz” (BACHELARD, 2000:26). Bachelard defende que “a casa é uma das maiores forças de
integração entre os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem” (BACHELARD,
2000:26). No ambiente externo, deve-se manter atento às variações do espaço e das
pessoas. Por outro lado, é no espaço público que se dá a possibilidade e o desafio do
encontro. Temos aqui uma questão central do filme e uma similaridade com Pela Rua: a
busca pelo encontro.
17
Trecho final do poema Pela Rua, de Ferreira Gullar.
83
Circular pela cidade em busca de alguém joga o protagonista numa imensidão: “O
excesso de espaço sufoca-nos muito mais do que a sua falta”. (RILKE apud BACHELARD,
2000:223). Mesmo não enxergando, ele não desiste e lança-se na sua busca (Foto 53 e
Foto 54). No percurso e na sua inevitável perda pelo Centro da cidade, evidenciam-se as
incompatibilidades e inacessibilidades do espaço urbano e sua precária infra-estrutura,
despreparada para abrigar quem não dispõe de visão ou de qualquer outro sentido. O filme
não chega a questionar a cidade e sua incapacidade de planejamento, mas abre curiosas
leituras poéticas e contraditórias.
Foto 53 – A porta da casa que protege do
desconhecido e, ao mesmo tempo,
possibilita... Foto da autora a partir da VHS.
Foto 54 – ...o início da jornada pelo percurso
urbano. Foto da autora a partir da VHS.
O ponto alto do filme certamente encontra-se no trajeto do ônibus (Foto 55) que leva
o menino ao parque, sozinho (Foto 56). O protagonista, que já está confuso com a mistura
de vozes e ruídos compartilha com o espectador de sua percepção no momento que o
ônibus entra no túnel da Conceição. Voilá, a “escuridão” da cena lança o espectador no
universo perceptivo da personagem.
Foto 55 – O ônibus leva o menino ao
encontro da imensa cidade de sua
imaginação... Foto da autora a partir da VHS.
Foto 56 – nela, ele compartilha com os
outros apenas o espaço físico. Foto da autora
a partir da VHS.
84
A estranha comunicação entre o indivíduo e o espaço está colocada numa seqüência
de planos (Foto 57) logo após a imersão no túnel. A metáfora é perfeita: no instante em que
se dá a escuridão absoluta, o fluxo de produção de imagens sobre a cidade poderia ser
substituído apenas por sons ou por outro recurso que mantivesse o espectador em sintonia
com a personagem.
A cidade que se apresenta à personagem pode ser qualquer uma. Ela é barulhenta e
superlotada de pessoas impacientes e indiferentes. Cada um segue sua enlouquecida
trajetória diária, enquanto a personagem se perde, se repetindo por caminhos já percorridos.
O seu lugar predileto no mundo, naquele momento, está situado no banco do parque, na
companhia da menina que o espera. E o filme segue infelizmente. A possibilidade de
construção e desconstrução espaço-temporal pelo espectador é negada pelas realizadoras
do filme.
Foto 57 – A cidade despreparada para
acolher o indivíduo. Foto da autora a
partir da VHS.
85
3.3. FECHANDO OS OLHOS PARA VER A CIDADE
E todos os espaços das nossas solidões passadas, os espaços
em que sofremos a solidão, desfrutamos a solidão, desejamos
a solidão, comprometemos a solidão, são indeléveis em nós.
GASTON
BACHELARD
“O ser começa pelo bem estar. Ou deveria começar” (BACHELARD, 2000: 116).
Viver numa cidade grande é estar jogado sobre uma implantação na qual se desconhece os
limites e, muitas vezes, se perde o controle da escala, pois não se tem acesso a uma visão
panorâmica dela e se o tivesse não se compreenderia todos os códigos e as cifras dessa
complexa representação. Nesse contexto, conhecer-se passa pela experiência do confronto
com o outro, a qual demanda pré-disposição.
Ah, como o mundo parece terrível para quem não se conhece! Quando te sentires
sozinho e abandonado diante do mar, imagina como devia ser a solidão das águas
na noite, e a solidão da noite no universo sem fim! (BACHELARD, 2000:195)
Em Miragem, a busca pelo bem-estar na cidade e por uma sociabilidade transforma
o protagonista em uma voz, onipresente e impotente. Ele está invisível e parece ser o único
a perceber as dificuldades urbanas e sociais dessa cidade que está logo ali embaixo.
Embaixo, os caminhantes da cidade “jogam com espaços que não se vêem” (CERTEAU,
1994:171), compondo um texto sem poder lê-lo. Aquele que se afasta para decifrar essa
escrita é tomado pela invisibilidade e pela incapacidade de interação, tornando-se leitor de
sua própria história. Aproxima-se da cidade que se apresenta através de níveis de zoom e
de travellings tomando esse espaço como uma novidade e transformando suas descobertas
em documentos fenomenológicos que vão além da palavra gasta. Todos os outros
participantes desse jogo não se aperceberam do movimento descontrolado que os leva para
algum lugar. Certeau desenvolve sua análise sobre as práticas urbanas da cidade habitada
e destaca que:
As redes dessas escrituras avançando e entrecruzando-se compõem uma história
múltipla, sem autor nem espectador, formada em fragmentos de trajetórias e em
alterações de espaços: com relação às representações, ela permanece
cotidianamente, indefinidamente, outra. (CERTEAU, 2000:171)
O limite da estranheza do cotidiano se destaca sobre o visível. “Uma cidade
transumante, ou metafórica, insinua-se assim no texto claro da cidade planejada e visível.”
(CERTEAU, 2000:172) Da dimensão visível da cidade e da imagem em suas instâncias
técnicas, culturais e históricas, podemos dialogar com Jacques Aumont, em sua obra A
Imagem. No livro, o pesquisador refere-se à visão e à percepção visual como “uma atividade
complexa que não se pode, na verdade, separar das grandes funções psíquicas, a
intelecção, a cognição, a memória, o desejo.” (AUMONT, 1993:14). A investigação sobre a
86
imagem inicia do exterior, considerando que o espectador está inserido num contexto
multiplamente determinado e que esse conjunto de fatores “situacionais” regula a relação
espectador e imagem. “A idéia de percepção de espaço está fundamentalmente vinculada
ao corpo e a seu deslocamento” (AUMONT, 2000:37). Nos filmes Miragem, Miopia, Pela
Rua e O Branco – as personagens se deslocam pela mesma situação geográfica, a cidade
de Porto Alegre, porém com intenções e destinos diferenciados. Aumont analisa ainda a
transição entre visual e imaginário, retomando o conceito de olhar como “o que define a
intencionalidade e a finalidade da visão”, ou seja, uma “dimensão propriamente humana da
visão.” (AUMONT, 2000:59)
No curta-metragem Miopia, a dialética da busca e do encontro se realiza no próprio
indivíduo sufocado pela sua sensível capacidade de ver todas as degradações urbanas e
sociais incrivelmente potencializadas. Na sua necessidade de respiro, ele vai ao
oftalmologista – especialista nas patologias da visão. A representação do homem
infeliz/temeroso x o homem feliz/tranqüilo é a alternativa encontrada pelo realizador para,
através de uma montagem baseada no contraponto, no contraste de cor e na dualidade,
sugerir reflexões filosóficas e psicológicas.
Do homem-invisível que tudo vê ao poeta que enxerga apenas o seu universo
interno, esbarramos na imaginação de personagens, construídos pelo imaginário de
cineastas, que tangenciam a realidade urbana. Nos devaneios do infinito, “os pormenores
apagam-se, o pitoresco desbota-se, a hora já não soa e o espaço estende-se sem limite”
(BACHELARD, 2000:194)
Já constatamos que a solidão dá margem à produção artística e intelectual. “O
sonhador pode dizer: o mundo é o ninho do homem. (...) o mundo do homem, nunca acaba.
E a imaginação ajuda a continuá-lo.” (BACHELARD, 2000:116) A imaginação da
personagem de O Branco é o seu instrumento de mobilidade e ação. “A imaginação nunca
se engana, (...) ela não precisa confrontar uma imagem com uma realidade objetiva.”
(BACHELARD, 2000:161) Na cidade, o ruído perturba tanto quanto o silêncio da casa. Na
concretização do encontro, o vasto mundo desaparece repentinamente; o conforto da
companhia e do espaço próximo se realiza. Uma estabilidade se dá nesse instante.
A confrontação de olhares sobre o universo íntimo encontra-se em Pela Rua. Será a
desistência do poeta, o encontro com a solidão absoluta? O poeta abandona os cenários do
mundo para viver o cenário único da imensidão e da busca sem fim, não podendo “conhecer
mais que uma abstração” (BACHELARD, 2000:200). “Em poesia, o não-saber é uma
condição prévia; se há ofício no poeta, é na tarefa subalterna de associar imagens.”
(BACHELARD, 2000:16) A imagem descrita por Bachelard é uma superação de todos os
87
dados da sensibilidade. O olhar externo do poeta maranhense, daquele que não é daqui,
registra sua marca na construção imagética de uma Porto Alegre filmada. Georg Simmel
definia o estrangeiro como uma “forma sociológica que unifica o ato de viajar - uma
liberação de qualquer ponto definido no espaço” - e sua oposição conceitual seria a de
fixação em determinado ponto no espaço.
A cidade é uma construção individual, ela está em nós. A comunicação entre
indivíduo e espaço e entre indivíduos depende da capacidade de interação que poderia se
dar nos espaços comuns entre os participantes dessa caminhada. Bachelard refere-se à
beleza dos caminhos, símbolo da vida ativa e variada. “Toda pessoa deveria então falar de
suas estradas, de suas encruzilhadas, de seus bancos” (BACHELARD, 2000:31). Toda
pessoa deveria perceber cada caminho e cada banco através de suas melhores intenções
de construí-los.
Embora pareça paradoxal, muitas vezes é essa imensidão interior que dá seu
verdadeiro significado a certas expressões referentes ao mundo que vemos.
(BACHELARD, 2000:191)
Sem esperança, o poeta segue. (Foto 58 e Foto 59).
Foto 58 – O poeta na companhia da cerveja
ou... Fotograma de Pela Rua (2003), de
Dimitre Lucho e Michele Maurente.
Foto 59 - ...do cigarro. Fotograma de Pela
Rua (2003), de Dimitre Lucho e Michele
Maurente.
A intenção analítica está em estabelecer laços entre o imaginário da cidade com as
leituras psicológicas. Eis a imensidão da grande cidade composta por becos e cantos
remanescentes, não atualizados e habitados pelo desconhecido. Cidade que produz ruídos
próprios, saídos de suas entranhas, latentes em determinados momentos, sugeridos em
outros. A paz interna que salienta a tranqüilidade do meio, do lugar, apazigua toda a
ansiedade do indivíduo e do espaço coletivo. A cidade, como a floresta bachelardiana, é um
estado de alma. “Somos, nas horas serenas, habitantes delicados das florestas de nós
mesmos.” (BACHELARD, 2000:193)
88
CAPÍTULO IV - (Cena 3 : o lugar) Travellings interpretativos
sobre uma cidade filmada
Os lugares são histórias fragmentárias e isoladas em si, dos passados
roubados à legibilidade por outro, tempos empilhados que podem se
desdobrar, mas que estão ali antes como histórias à espera e
permanecem no estado de quebra-cabeças, enigmas, enfim
simbolizações enquistadas na dor ou no prazer do corpo.
MICHEL DE CERTEAU
4.1. A INTERTEXTUALIDADE PRESENTE NA NARRATIVA FÍLMICA – leituras
possíveis de O Oitavo Selo (1999), de Tomás Creus e Ângelo anda Sumido (1997), de Jorge
Furtado
O OITAVO SELO
Tomás Creus. Brasil, 15 min, captado em
35mm, cor, 1999.
Sinopse: A Morte chega a Porto Alegre, cansada e
desiludida com o mundo. Entra num bar e passa a
conversar com um jovem que decidiu suicidar-se após
ter brigado com sua mulher. Depois da conversa, a
Morte e o jovem resolvem jogar uma partida de sinuca
de vida ou morte.
Roteiro e Direção: Tomás Creus.
ÂNGELO ANDA SUMIDO
Jorge Furtado. Brasil, captado em 35mm, 17
min, cor, 1997
Sinopse: Dois velhos amigos se reencontram e
combinam de jantar juntos, mas em seguida voltam a
se perder no labirinto de grades, cercas e muros de
uma grande cidade.
Direção: Jorge Furtado. Roteiro: Rosângela Cortinhas e Jorge Furtado.
89
Porto Alegre, 1999, bar Ocidente: tradicional reduto da noite porto-alegrense, espaço
que abriga a diversidade (Foto 60) e possibilita o desejado anonimato aos seus
freqüentadores. A conversa firmada entre a Morte e um jovem desempregado reforça a
universalidade do tema da desilusão (Foto 61). O estranho interlocutor da personagem
suicida adapta-se rapidamente ao lugar do encontro, mistura-se às pessoas e destaca suas
próximas vítimas, entre elas: um bêbado que deverá causar um acidente de trânsito e um
menino de rua que será fuzilado por um bando de justiceiros.
Foto 60 – A diversidade e o
inusitado presentes na noite do
bar Ocidente. Fotograma de O
Oitavo Selo (1999), de Tomás Creus.
Foto 61 – Conversa entre a Morte e o jovem em pleno
bar Ocidente. Fotograma de O Oitavo Selo (1999), de
Tomás Creus.
A sátira com a figura da Morte – onipresente e perspicaz - e a paródia ao clássico
filme europeu da década de 1950, são recursos inteligíveis e decifráveis não só àqueles que
assistiram ao filme O Sétimo Selo, de Bergman. , após dez anos, um cavaleiro retorna
das Cruzadas e encontra o seu país devastado pela peste negra. Sua fé em Deus é abalada
e, enquanto reflete sobre o significado da vida (Foto 62), a Morte surge à sua frente
querendo levá-lo. Objetivando ganhar tempo, o cavaleiro convida-a para um jogo de xadrez
que decidirá se ele parte com ela ou não (Foto 63). A Morte concorda com o desafio, pois
ela nunca perde. O trecho de apocalipse dá o tom do filme:
Quando o Cordeiro abriu o sétimo selo, houve silêncio no céu cerca de meia hora.
Então vi os sete anjos que se acham em pé diante de Deus, e lhes foram dadas sete
trombetas. Veio outro anjo e ficou de pé junto ao altar, com um incensário de ouro, e
foi-lhe dado muito incenso para oferecê-lo com as orações de todos os santos sobre
o altar de ouro que se acha diante do trono; e da mão do anjo subiu à presença de
Deus o fumo do incenso, com as orações dos santos. E o anjo tomou o incensário,
encheu-o do fogo do altar e o atirou à terra. E houve trovões, vozes, relâmpagos e
terremoto. Então os sete anjos que tinham as sete trombetas prepararam-se para
tocar. (Apocalipse 8, 1-6)
90
Foto 62 - O cansaço e a descrença expressos
na fisionomia do cavaleiro. O Sétimo Selo
(1956), de Ingmar Bergman. Foto da autora a
partir do DVD.
Foto 63 – A Morte joga xadrez com o
cavaleiro. O Sétimo Selo (1956), de Ingmar
Berman. Foto da autora a partir do DVD.
Do Oitavo ao Sétimo Selo: da Porto Alegre underground no final do século XX à
Suécia nômade na Idade Média. Camadas narrativas percorridas por espectadores em
tempos e espaços distintos – no contexto europeu como Det Sjunde Inseglet (O Sétimo
Selo, 1956), de Ingmar Bergman, passando pela produção norte-americana como o conto A
Morte bate à Porta, de Woody Allen, bem como a um tempo mais remoto revelado no filme
Der Müde Tod (A Morte Cansada, 1921), de Fritz Lang – são prováveis links intertextuais do
filme O Oitavo Selo, de Tomás Creus. Entretanto, o diálogo espaço-temporal proposto pelo
filme gaúcho vai além da brincadeira com o nome. Ele possibilita mergulhos analíticos sobre
as posturas contemporâneas diante do incerto, do desemprego que gera instabilidade
familiar, da degradação social e da interferência do olhar do outro sobre a percepção do
contexto local.
Cabe aqui uma aproximação ao filme citado de Lang, o qual representa a própria
metáfora da intertextualidade espaço-temporal, pois, através de uma trama complexa e bem
armada, o diretor conduz seu espectador pela exótica Pérsia, pela Veneza renascentista e
pela China imperial, amarrando essas histórias no desafio lançado pela figura da Morte à
personagem que busca resgatar o seu amado. Na narração inicial, a desterritorialidade e a
atemporalidade estão marcadas:
Em algum tempo, em algum lugar
Para uma aldeia, em um vale, sem tempo, como em um sonho...
Vieram dois jovens cantando alegremente o amor
Mas, assim como a prosperidade deixa o outono e voa...
No sopro breve de inverno, nas tranqüilas encruzilhadas do vilarejo...
Espera, em silêncio, por eles
A Morte... (Transcrição da autora)
Na analogia do curta-metragem gaúcho com o filme de Bergman, o patético versus o
fantástico vão sendo apresentados. No primeiro plano de O Oitavo Selo, o velho colador de
91
selo está em plena atividade profissional e acaba se engasgando com o oitavo selo. Surge
então a figura da Morte entediada com o acontecimento. Na outra narrativa, a tela negra
ocupa a visão do espectador e, logo, surge um clarão acompanhado por um coro. Em
seguida, outro clarão que vai definindo o tenebroso céu claro-escuro. Uma águia paira no
céu (Foto 64), como se flutuasse numa maré calma de fim de tarde. A introdução de O
Sétimo Selo nos aterroriza e deslumbra ao mesmo tempo. Soma-se a isso a religiosidade,
tão característica da Idade Média, presente em todo o filme, reforçando a dualidade medo e
fascínio.
Foto 64 – A águia pairando no céu. Clima
apocalíptico de O Sétimo Selo. Foto da autora a
partir do DVD.
Foto 65 – A religiosidade que conforta e
amedronta é característica do período
retratado pelo filme. O Sétimo Selo (1956),
de Ingmar Berman. Foto da autora a partir do
DVD.
Dois momentos críticos representados pelo cinema e a intervenção da figura
imaginária como eixo de ligação. O cinema tem a atribuição de recriar lugares e tempos
mesclando intenções narrativas que vão se renovando ou se repetindo, as quais refletem o
momento e o contexto que as produzem. Sobre o recorte intertextual fílmico, cabe destacar
as considerações de Christian Metz apresentadas em Linguagem e Cinema:
os filmes determinam-se, em larga escala, uns em relação aos outros, (...)
respondem-se, citam-se, parodiam-se, 'ultrapassam-se', e todos estes jogos de
contextura contribuem de modo muito central para fazer caminhar em direção ao seu
desenvolvimento ininterrupto, à produção do texto indefinido e coletivo que o
cinematográfico nos apresenta. (METZ, 1980:78)
As possíveis leituras textuais ou urbanas estão descritas por Michel de Certeau, em A
Invenção do Cotidiano. No capítulo inicial sobre a produção dos consumidores, Certeau
afirma que o leitor se utiliza da astúcia, da metáfora, da combinatória como uma invenção de
memória, instaurando uma arte isenta de passividade:
92
O legível se transforma em memorável: Barthes lê Proust no texto de Stendhal; o
espectador lê a paisagem de sua infância na reportagem de atualidade. A fina
película do escrito se torna um remover de camadas, um jogo de espaços. Um
mundo diferente (o do leitor) se introduz no lugar do autor. Esta mutação torna o
texto habitável. (...) Da mesma forma, os usuários dos códigos sociais os
transformam em metáforas e elipses de suas caçadas. (CERTEAU, 1994: 49)
O leitor/espectador do cinema ou da cidade vai compondo sua trajetória interpretativa
e fazendo suas derivações individuais. Certeau explica que a mutação do texto habitável
“transforma a propriedade do outro em lugar tomado de empréstimo, por alguns instantes,
por um passante” (CERTEAU, 1994:40). O pesquisador das representações urbanas precisa
se valer da capacidade de leitura palimpséstica e, ao mesmo tempo, projetiva do seu
corpus, mostrando-se disposto a trânsitos internos (na memória) e externos (no imaginário
coletivo). Esses percursos pelas apropriações imagéticas e lingüísticas são aplicáveis à
leitura fílmica e urbana e conduzem o espectador por uma viagem inesperada.
Então, diante das referências às configurações urbanas e posturas medievais que se
revelam sobre a metrópole atual, por que não falar sobre as similaridades entre a cidade
contemporânea e a cidade medieval? O especialista em Idade Média Jacques Le Goff, no
seu livro Por Amor às Cidades, traz uma interessante análise neste sentido. Já na
introdução, Le Goff polemiza dizendo que: “uma das idéias preferidas é que há mais
semelhanças entre a cidade contemporânea e a cidade medieval do que entre a cidade
medieval e a antiga”. (LE GOFF, 1998: 9)
Quanto à estrutura urbana, a cidade da Idade Média apresenta-se, historicamente,
cercada por muralhas e povoada por cavaleiros e caçadores, dialogando, assim,
intimamente com a cidade contemporânea - cercada por vias de tráfego rápido e habitada
por trabalhadores de outras tecnologias. A figura da muralha está representada pelas
perimetrais e, até mesmo, pelas linhas de trem que delimitam a cidade dos dias de hoje.
Esta barreira pode se dar também no plano social: através das interfaces de apropriação
que nem sempre se harmonizam no convívio intramuros da metrópole multifacetada. Os
séculos X e XI representaram um grande período de urbanização, caracterizando-se pela
formação dos núcleos configurados pela cidade e pelos burgos da periferia. Poderíamos
ampliar esta descrição da periferia, mas nos interessa salientar a importância da periferia
das cidades – o chamado subúrbio. “A unidade contemporânea entre cidade e seu subúrbio,
tão interdependente, data da Idade Média”. (LE GOFF, 1998: 17) O subúrbio deixa suas
marcas logo ao lado do grande centro urbano ou mesmo dentro dele.
A cidade contemporânea vai se nucleando em parcelas que se opõem ao princípio de
permeabilidade e acessibilidade urbana, criando um diálogo desarmônico entre público e
privado. Os mais abastados vão se cercando nos condomínios altamente vigiados e
93
providos de uma infra-estrutura quase independente da cidade que os abriga. Na cidade
medieval é preciso defender essencialmente duas coisas: as pessoas e os bens.
A cidade da Idade Média é um espaço fechado. A muralha a define. Penetra-se nela
por portas e nela se caminha por ruas infernais que, infelizmente, desembocam em
praças paradisíacas. Ela é guarnecida das torres das igrejas, das casas dos ricos e
da muralha que a cerca. Lugar de cobiça, a cidade aspira à segurança. Seus
habitantes fecham suas casas à chave, cuidadosamente, e o roubo é severamente
reprimido. (LE GOFF, 1998: 71)
Economicamente, Le Goff destaca as funções essenciais de uma cidade que são: a
troca, a informação, a vida cultural e o poder. Como lugar de troca e de diálogo, a cidade
conhece um formidável desenvolvimento. A essência da cidade contemporânea está
alicerçada na troca e no trabalho, o qual possui uma grande valorização urbana. Esta é uma
das funções essenciais da cidade: nela são vistos os resultados criadores e produtivos do
trabalho. “A ociosidade é depreciada: o preguiçoso não tem lugar na cidade”. (LE GOFF,
1998:49)
A cidade, como palco da igualdade, inova na forma de lidar com o Outro. O
estrangeiro, durante muito tempo, na Idade Média, foi recebido com interesse, curiosidade e
honra. A migração poderia representar o aprendizado de novas técnicas de trabalho. Já o
nativo gozava de um privilégio, em relação ao camponês, que é a vinculação com o lugar.
“O citadino é alguém que talvez parta em peregrinação, mas que, normalmente, tem um
lugar: freqüentemente ele tem uma casa, ao passo que o camponês pode perder sua terra”.
(LE GOFF, 1998:55). Na cidade contemporânea, o lugar tem uma identidade determinada
histórica e socialmente. Os grupos ou tribos se identificam a partir do seu lugar. Os lugares
que abrigam a diversidade podem ser entendidos como uma metáfora da metrópole, pois só
nas grandes cidades encontram-se vários padrões num mesmo espaço e a um só tempo. O
controle social e as formas de conviviabilidade estão diretamente ligados à escala da
cidade. Segundo Le Goff, na Idade Média, os burgueses configuravam a cidade igualitária,
pois os camponeses não tinham muitos direitos. “As cidades são, portanto, uma revolução,
porque sua aparência torna os homens livres e iguais, mesmo que a realidade, com
freqüência, permaneça longe do ideal”. (LE GOFF, 1998:73).
Em seu diálogo com Le Goff, Lebrun destaca que:
hoje, estaríamos quase que mais preocupados com as incivilidades, os
desentendimentos cotidianos aparentemente sem gravidade, as pequenas
agressões, os pequenos atritos que não constituem importantes atentados à
legalidade, mas que estabelecem um clima de tensão. (LE GOFF, 1998:73)
O medievalista rebate dizendo que, já “na Idade Média, encontramos a defesa do
domicílio, sobretudo do domicílio urbano, presente no nosso Código Penal” (LE GOFF,
1998:73)
94
Retomemos às reflexões sobre a existência e o divino, bem como sobre os signos e
símbolos presentes nas narrativas análogas em questão. No filme de Bergman está
registrada a parábola do cavaleiro medieval que, no momento em que retorna para casa,
após um grande período de ausência, recebe a visita da Morte. Essa figura estrategista – a
Morte – viaja no tempo e no espaço, chegando a Porto Alegre e encontrando um jovem
comum, curioso com a novidade que se apresenta e, ao mesmo tempo, passivo à situação
excepcional. Nessa conversa entre o ordinário e o extraordinário, revelações de um fracasso
pessoal vão sendo apresentadas ao espectador. As doenças da sociedade vão sendo
pinçadas pelos dois roteiros. No clássico, a peste bubônica, somada a uma sociedade
retratada de forma árida, numa película em preto e branco. O filme percorre vastos campos
vazios, onde se encontram perdidas as moradias castigadas por aquele período terrível,
regado pela fome, doença e guerra (Foto 66). O cineasta paulista Hugo Harris publica na
Internet um texto crítico sobre o filme e diz que:
A escolha do sétimo selo como situação aparente daquela realidade toma-se exatamente
por aquela terra já estar sendo assolada pelos outros selos abertos anteriormente, onde
haviam se revelado, em meio a terremotos, os quatro cavaleiros do Apocalipse,
exatamente os agentes da guerra e destruição, doença e peste, fome e desespero, além
da Morte, sempre presente e criadora do paradoxo entre certeza e incerteza quanto ao
futuro de todos nós. (HARRIS, 2004, publicado na internet)
Foto 66 – Vila quase inabitada, em O Sétimo Selo
(1956), de Ingmar Bergman Foto da autora a partir
do DVD.
No contemporâneo, uma sociedade livre de apegos espirituais e propícia às
condições para que se estabeleçam vínculos afetivos e profissionais mostra-se caricaturada
pela aceitação do extraordinário. Aquela Morte imaginária – vestindo roupa preta e com uma
maquiagem pesada – é vista agora como um “cara” excêntrico perdido na noite alternativa.
O diálogo entre a freqüentadora do bar e o barman confirma esta constatação: “- Coisa mais
95
esquisita aquele cara ali! – Acho que ele é um viado de uma banda de rock” (Transcrição da
autora).
O lugar da festa e da catarse, que acolhe o bizarro, é palco também para a morte da
“guria” anoréxica, do menino de rua que vai ser fuzilado daqui a pouco e daquela que vai ser
vitimada pela overdose. A dança da Morte (Foto 67 e Foto 68) é apresentada como hábito
universal, ao som da adaptação da Marcha Fúnebre de Chopin. O aceitável, o imprevisível e
o pouco provável estão aqui expostos e dados a ver pelo estrangeiro. Porto Alegre com
seus sotaques e seu boêmio bairro Bom Fim – como cenário mais adequado a esta história -
aparece no filme através da sombra, como um reflexo do imaginário coletivo.
Foto 67 – A Morte dança com sua futura
vítima, em O Oitavo Selo. Fotograma de O
Oitavo Selo (1999), de Tomás Creus.
Foto 68 – A Morte conduz suas vítimas, em
O Sétimo Selo. Foto da autora a partir do DVD.
Na metrópole gaúcha contemporânea, assim como na sociedade medieval sueca, o
desencanto com a vida e a curiosidade pela morte são características universais e
atemporais. Citando Walter Benjamin a partir do estudo de Willi Bolle, o filósofo diz que, “ao
lidar com a historiografia alegórica, com sua superposição de épocas diferentes, é preciso
insistir no diferencial de tempo entre as épocas envolvidas – em nome do conhecimento da
história e da própria teoria da imagem dialética” (BOLLE, 1994:87). Na Paris do século XIX,
do estudo benjaminiano sobre Baudelaire e sua época, o herói está descrito como antítese
da Modernidade, ele “é uma figura incompatível com ela e catalisadora de suas
contradições. O cidadão moderno se percebe estranho, isolado e derrotado” (BENJAMIN,
2000:73). Para viver a modernidade de Baudelaire, é preciso uma constituição heróica. A
figura do herói baudelaireano analisado por Benjamin brota das chamadas classes
dangereuses: ele é o anônimo, a gente miúda.
O espetáculo dessa multidão doentia, que traga a poeira das fábricas, inspira
partículas de algodão, que se deixa penetrar pelo alvaiade, pelo mercúrio e todos os
venenos usados na fabricação de obras-primas...Essa multidão se consome pelas
96
maravilhas (...) Essa população é o pano de fundo do qual se destaca o perfil do
herói. (BENJAMIN, 2000:73)
A condição ordinária, num ambiente em violenta transformação, coloca o herói em
uma posição instável. “Compreende-se que ele se vá enfraquecendo e busque refúgio na
morte. A modernidade deve manter-se sob o signo do suicídio, selo de uma vontade
heróica, que nada concede a um modo de pensar hostil.” (BENJAMIN, 2000:74). Baudelaire
poderia entender que o suicídio representaria o único ato heróico naqueles tempos
reacionários. Num salto para a contemporaneidade, a acomodação e a falta de perplexidade
diante das carências urbanas e sociais mantém as amarras nos sobreviventes da cidade,
impedindo-os até mesmo de atos heróicos.
A modernidade de Baudelaire se revela como uma fatalidade. “Nela o herói não
cabe; ela não tem emprego algum para esse tipo. (...) abandona-o a uma eterna ociosidade”
(BENJAMIN, 2000:75). Mesmo sendo a cidade grande o ambiente ideal para as
oportunidades profissionais e para a valorização do trabalho: o despreparo, a
desorganização e a vulnerabilidade do operário contemporâneo impedem sua inserção
exitosa e, conseqüentemente, esse fracasso provoca uma desestruturação da família e das
relações pessoais. Os não-trabalhadores provocam medo e representam uma ameaça
urbana e social, apropriando-se do espaço público que ainda resta na confusa metrópole
contemporânea.
No filme Ângelo anda Sumido (1997), de Jorge Furtado, o hipertexto conecta-se aos
conceitos de insegurança, paranóia urbana, esquecimento e anonimato. O conflito homem-
espaço urbano & social repete-se nesta narrativa. Nele dois amigos tentam chegar a um
restaurante para jantar e se perdem entre as grades, os muros e as cercas que poluem e
protegem a metrópole contemporânea (Foto 69). Numa cidade sombria e solitária, a rua
ameaçadora, paralisa e impossibilita as relações de convívio amistoso. A unidade urbana –
o condomínio privado – encontra-se rigorosamente vigiada, bem como a rua que deixou de
ser pública. A cidade que se esconde é formada por desconhecidos que se perdem no
tempo. A incomunicabilidade entre os indivíduos e entre o indivíduo e o espaço transforma o
meio urbano num ambiente hostil. A noite guarda e revela segredos. As pessoas vão sendo
mimetizadas na escuridão e na imensidão urbana.
97
Foto 69 – Preso nas ruas da sua própria
cidade. Fotograma de Ângelo anda Sumido
(1997), de Jorge Furtado.
Neste momento, o espectador coloca-se ao nível da rua: suporte de múltiplos usos e
imprevistos. Para Roberto DaMatta, “na rua está o transitório, o ambíguo, o excitante e o
perigoso” (DAMATTA, 1987:32). Contrapondo-se ao espaço público, é no domínio privado
que se encontra o estável e a certeza da própria identidade. O filme de Jorge Furtado
sugere curiosas reflexões sobre a antítese espacial urbana. O traçado urbano é ilógico como
a postura paranóica dos personagens. A cidade da ficção é um emaranhado de ruas
liquidificadas e descontextualizadas. O irreal percurso pela Rua Sete de Setembro,
passando pela República, depois pela Dom Pedro e chegando na Praça XV, evidencia a
intenção do diretor de confundir e desterritorializar, numa geografia criativa às avessas, pois
a intenção de desfigurar a cidade sobrepõe-se à lógica de encurtar distâncias e aproximar
espaços como explica Kulechov. A cidade real está sugerida no mapa refletido sobre os
personagens. Legibilidade e clareza na leitura da cidade não são aspectos buscados pelo
diretor neste e em outros filmes.
Santos em suas reflexões sobre a estrutura urbana destaca que na cidade:
os espaços se articulam em muitos padrões que nada mais são que a combinação
estilística de elementos fundamentais. Frases com seus sujeitos e predicados
amarrados através de espaços conectivos, sublinhadas por orações adjetivas e
adverbiais. Um discurso que, percorrendo a um repertório de códigos (leis, tradições,
interesses de grupos e indivíduos) vai dizendo o que é preciso. O meio urbano é e
tem de ser contraditório. Nele, a tensão é condição necessária e suficiente e,
sobretudo, desejável de existência. (SANTOS, 1988:67)
O filme encaminha interpretações sobre o medo urbano, o qual leva, contrariamente
ao filme de Tomás Creus, a uma inevitável desconfiança do Outro – o estranho -
explicitamente perceptível na narração em off do protagonista que diz que: “no Brasil: dente
é salvo conduto. Não sai de casa sem eles”. Por sorte, o personagem, no papel de estranho,
é branco e possui todos os dentes, podendo assim obter o passaporte de ingresso no
condomínio alheio. Sobre o julgamento da aparência, Robert Pechman refere-se à
fisiognomonia – uma espécie de ciência do rosto ou uma forma de definição das qualidades
98
morais da alma a partir da aparência e da expressão do corpo. Esta técnica, já descrita por
Benjamin, passa a ter uma base comum com a civilidade: “a equivalência entre o homem
exterior e interior, que se alinham na conquista da harmonia social”.
Em sua tese, intitulada Cidades Estreitamente Vigiadas: o detetive e o urbanista,
Pechman contextualiza sua análise sobre uma política traduzida como processo de
formação de uma sociabilidade urbana, no século XIX, numa cidade movida a braço
escravo. Tem como objeto de estudo a cidade do Rio de Janeiro, na qual uma sociedade
vigiada e cercada pela mata tropical é invadida por uma classe de “homens destituídos de
tudo”. Sua leitura da cidade, através dos folhetins, organiza o mundo em dois pólos: o bem e
o mal. Descreve que:
a sociedade descobre o outro do civilizado e se dá conta que o inimigo não está
mais do lado de fora das muralhas da cidade (aliás, as cidades nem têm mais
muralhas), mas que convive lado a lado com o cidadão. (PECHMAN, 2002:16)
Passa-se com isso a interpretar a sociedade a partir do olhar sobre a cidade. A cidade
contemporânea não mais está cercada pelas muralhas medievais ou pelas florestas
tropicais, mas configura-se através do parcelamento de condomínios e áreas privadas
amplamente vigiadas. “A irrupção da sociedade de massas e o advento das multidões na
cidade potencializaram o sentimento de insegurança” (PECHMAN, 2002:248).
A hostilidade declarada no filme Ângelo Anda Sumido indica também um
individualismo a ser preservado – na cena do confronto com os vizinhos do quase
inacessível amigo “fechado a sete chaves” (Foto 70 e Foto 71). Bachelard afirma que o
medo não vem do exterior, “nem tampouco é feito de velhas lembranças. Ele não tem
passado. (...) O medo é aqui o próprio ser” (BACHELARD, 2000:217). Neste sentido,
poderíamos entender que o medo do Outro enquanto manifestação interna reflete na
configuração do espaço individual e também coletivo. O medo que isola torna-se cíclico:
Fechado no ser, sempre há de ser necessário sair dele. Apenas saído do ser,
sempre há de ser preciso voltar a ele. Assim, no ser, tudo é circuito, tudo é rodeio,
retorno, discurso, tudo é rosário de permanências, tudo é refrão de estrofes sem fim.
(BACHELARD, 2000:217)
99
Foto 70 – As muitas barreiras até chegar ao
encontro com Ângelo. Fotograma de Ângelo
anda Sumido (1997), de Jorge Furtado.
Foto 71 – A piada inicial do filme: entre as
grades, Ângelo está protegido de tudo e de
todos. Fotograma de Ângelo anda Sumido
(1997), de Jorge Furtado.
Uma cidade vigiada nos remete à figura
arquitetural do Panóptico de Bentham (Fig. 07).
Segundo Michel Foucault, “o Panóptico
despertou interesse pelo fato de ser aplicável a
muitos domínios diferentes” (FOUCAULT,
1997:83). Não se tratava apenas de uma prisão,
o Panóptico é um princípio geral de construção,
um dispositivo polivalente de vigilância, uma
máquina óptica universal das concentrações
humanas. Retoma aqui a discussão sobre
liberdade e liberação na representação da
sociedade contemporânea. Medita-se sobre a
cidade como alegoria do pensamento que
comporta barreiras reais e imaginárias. No filme
de Furtado, o Panóptico fica sugerido no prédio
do personagem Ângelo, onde cada janela (olho)
volta-se implacavelmente para o estranho preso
ao acesso. Ao entrar no condomínio, os olhares
desconfiados dos moradores aproximam-se do
ser observado, buscando um controle do
percurso do invasor no domínio privado. A cidade
panóptica está também representada pelas
muitas guaritas e câmeras dispostas no ambiente
urbano atual.
Fig. 07 – Panóptico de Bentham.
Fonte: SANTOS, 1988:23.
100
O vigia, que controla a rua privada, consolida o caráter opressor e autoritário da
cidade – citando artigo da constituição do regime militar brasileiro. Na cena em que os
personagens Ângelo e José fogem do cachorro “Louco”, a voz do vigia permanece próxima
e clara, como que onipresente.
Ângelo Anda Sumido compartilha com o recurso usado em O Oitavo Selo de dar a
ver ao espectador os problemas sociais, fazendo-o pensar sobre a cidade e a sociedade
que vive, sem, no entanto, apresentar propostas de solução. A cidade é a vilã / antagonista
que (re)produz a paranóia individual. A cidade que se protege violentamente da convivência
dos seus habitantes permanece escura e inacessível, devorando todos aqueles não aptos a
decifrá-la (Foto 72). Nos seus novos limites, impostos pela apropriação de seus moradores
civilizados versus os bárbaros ou as sobras humanas, encontram-se configurações e
posturas particionadas. A aparência pré-determinada abre portas e o olhar controlador
sanciona. Porém, estas posturas estão gravadas na fascinante trajetória humana pelas
cidades, vêm da soma de fatos históricos e da distorção ou manipulação de valores, bem
como da crise da vida pública ocasionada pela invasão de estranhos que vieram do campo
e das pequenas localidades. A estética noturna reforça a desconfiança no Outro e o medo
urbano, traços universais e recorrentes na leitura da representação da cidade.
Paradoxalmente o filme se encerra com fundo musical “bem nosso”: a música Baladas
17
, de
Nei Lisboa.
Foto 72 – A cidade
isola, exclui,
particiona, controla e
devora. Fotograma de
Ângelo anda Sumido
(1997), de Jorge
Furtado.
17
Só | Nem ao menos deus por perto | Mil idéias brilham | Mas não molham meu deserto | E já faz tempo | Que
eu escuto ladainhas | As minhas | As ondas de verão | Que irão bater na mesma tecla | A mesma porta | Baladas
| De uma época remota | Não há saídas | Só delírios de outro Midas | Lambendo a tua cruz | É ouro que reluz |
Oh! Mama | Não vale a pena pagar | Um centavo, um retalho de prazer | Oh! Mama | Eu quero morrer | Bem
velhinho, assim, sozinho | Ali, bebendo vinho
E olhando a bunda de alguém (...) (Transcrição da autora)
101
4.2 DISCURSOS E PERCURSOS QUE SE ARTICULAM NA INTERPRETAÇÃO DA
CIDADE CONTEMPORÂNEA nos filmes: Outros (2000), de Gustavo Spolidoro e Quando
o Dia Surgir (1996), de Antônio Carlos Textor
OUTROS
Gustavo Spolidoro. Brasil, 13 min, captado
em 35mm, cor, 2000.
Sinopse: Porto Alegre hoje. Numa das mais
tradicionais avenidas da capital gaúcha, pessoas
discutem as suas e as nossas vidas. A ficção a serviço
da realidade e vice-versa.
Roteiro e Direção: Gustavo Spolidoro.
QUANDO O DIA SURGIR
Antônio Carlos Textor. Brasil, captado em
35mm, 10 min, cor, 1996
Sinopse: O dia numa grande concentração urbana, do
amanhecer até o começo da noite, em uma
concepção ao mesmo tempo realista e poética, entre
luzes e sombras.
Roteiro e Direção: Antônio Carlos Textor.
A cidade grande e sua artéria, assumidamente reconhecíveis, estão retratadas no
curta-metragem Outros (2000), de Gustavo Spolidoro. Em ininterruptos treze minutos,
pessoas se cruzam, interagem e compõem um verdadeiro patchwork imaginário. Tão curto
quanto o tempo do filme é seu roteiro, destacado por diálogos carregados de banalidades.
Sua contribuição está na exploração da técnica e na possibilidade de surpreender o
espectador sobre uma Porto Alegre escrita por aqueles que percorrem a Avenida Osvaldo
Aranha (Fig. 08). A câmera transita dentro do carro, do ônibus ou a pé, evidencia-se como
tal, e revela pessoas e discursos cotidianos.
102
Fig. 08 – Planta da Avenida Osvaldo Aranha utilizada na filmagem de Outros (2000), de
Gustavo Spolidoro, cedida pelo diretor.
O filme de Spolidoro abre importantes reflexões sobre a comunicação e a escrita na
cidade. Certeau explica que o ato de falar coloca em jogo uma apropriação ou reapropriação
da língua por locutores; “instaura um presente relativo a um momento e a um lugar; e
estabelece um contrato com o outro (o interlocutor) numa rede de lugares e de relações”
(CERTEAU, 1994:40). Em Outros, as retóricas da conversa ordinária vão sendo recortadas
pela câmera que, num movimento pendular, aproxima-se suficientemente até a busca de
uma essência que se perde no vazio da filosofia barata, afastando-se na procura de novos
quadros. No diálogo inicial entre a moça e o rapaz da Van destaca-se o niilismo e o lugar-
comum:
- Ah, eu sempre fui confusa com esse lance de governo, política, plano econômico,
todo esse blábláblá...
- Mas qué sabê: prefiro mesmo é ser alienada do que me estressar com todo esse
caos que é o mundo lá fora! (Diálogo extraído do roteiro cedido pelo diretor)
Parece mais cômodo assim: não se preocupar ou ainda basear-se em apologias
vulgares. Certeau destaca o pressuposto geral: “não sei nada de sério. Sou como todo o
mundo” (CERTEAU, 1994:63). O homem ordinário tem na mão algumas verdades banais e
amargas; ele é locutor da cidade, de seus espaços e lugares. “Ele é no discurso o ponto de
junção entre o sábio e o comum – o retorno do outro (todo mundo e ninguém)” (CERTEAU,
1994:63). Na ânsia por auto-afirmação, o rapaz teoriza e, antes que ele vá adiante, nós – os
espectadores – descemos da Van e nos aproximamos de outras cenas urbanas, entre elas:
do militante, que argumenta com o office-boy, convencido de que suas frágeis verdades irão
mudar a imprensa e os “pseudopolíticos eleitos pela mídia”; do índio – representante
legítimo do nosso povo – que é filmado e, logo a seguir, vítima de sua própria ingenuidade,
é assaltado pela mesma dupla de malandros que irá esfaquear a moça adiante; do pai que
sai do pronto-socorro com a filha e das duas jovens que correm felizes e entram no ônibus
onde está a velhinha insatisfeita com sua vida (Foto 73 e Foto 74).
103
Foto 73 – O office-boy que ouve a
argumentação do militante de esquerda.
Fotograma de Outros (2000), de Gustavo
Spolidoro.
Foto 74 – Casal sofre um assalto em plena luz
do dia. Fotograma de Outros (2000), de Gustavo
Spolidoro.
Eis um recorte teatral da cidade, pois cada quadro se dá pela “deixa” do anterior. A
velhinha que reclama da vida, desce do ônibus e quase é atropelada pelo rapaz da Van. Ele
retoma sua filosofia proferida no início do filme que vai se diluindo na música. Personagens
anônimos registram singularidades questionáveis. Mesmo não aplicável a esta análise, o
estudo dos papéis e dos comportamentos no ambiente público pode trazer à superfície a
imagem do palco urbano. “Uma das mais antigas concepções ocidentais da sociedade é vê-
la como se fosse um teatro. É a tradição do theatrum mundi” (SENETT, 1998:52-53)
Observa-se que o deslocamento da câmera marca uma trajetória, ou seja, um
movimento temporal no espaço. Esse movimento é identificado por Certeau como “uma
sucessão diacrônica de pontos percorridos, e não a figura que esses pontos formam num
lugar supostamente sincrônico ou acrônico” (CERTEAU, 1994:98). O cinema possibilita
fechar o percurso pela avenida em treze minutos, os quais poderiam se estender por duas
horas. O ciclo do filme está marcado pelas suas interfaces de comunicação que definem o
lugar (comum) do discurso e o espaço (anônimo) de seu desenvolvimento. O espaço do
filme é diferente daquele definido pelos planejadores urbanos. O lugar-comum é o ponto de
chegada de cada trajetória.
Outros são aqueles que ali estão construindo esta cidade de estranhos. Eles estão
espalhados por todos os cantos e impossibilitados de falar como no filme Quando o Dia
Surgir (1996), de Antônio Carlos Textor. Uma seqüência de cenas urbanas acompanhadas
por uma música que roteiriza o filme. Imagens de anônimos numa sociedade de consumo e
uma soma de imagens-clichês presentes em outros filmes do cineasta (Foto 75). A câmera
capta a exclusão (Foto 76): crianças cheirando cola, pedindo mais do que um trocado no
sinal de trânsito. Indesejáveis indivíduos retirados de circulação. O silêncio e a indiferença
que caracterizam uma época de quem não tem tempo a perder. A mesma distância que
protege, impede interações saudáveis. Certeau afirma que é difícil estar por baixo quando
104
se está em cima, referindo-se ao ponto de vista do observador da cena urbana, podendo ser
aplicável às hierarquias sociais.
Foto 75 – Ao lado dos cavalinhos do
carrossel... Foto da autora a partir do DVD.
Foto 76 - ...crianças dormem no chão. Foto
da autora a partir do DVD.
Uma cidade é uma reunião de cidadãos, habitantes e indivíduos que se acham no
juízo de direitos. Muitos desses indivíduos estão invisíveis e mudos no processo de
transformação urbana. Outros tantos estão jogados em vias, centros e lugares de grande
aglomeração. O maior mistério dos destinos humanos apresenta-se como o mistério da
cidade. Para Pechman, “o mistério da cidade revela-se por meio de seu cidadão, o indivíduo
perdido na multidão da metrópole”. (PECHMAN apud NAZARIO, 2005:107).
Foto 77 – A câmera invade a favela e... Foto da
autora a partir do DVD.
Foto 78 - ...logo a seguir, registra a
violoncelista. Foto da autora a partir do DVD.
As formas de exclusão representadas pelo filme de Textor são mais complexas e
refletem o trato desigual dado ao espaço ocupado e compartilhado por todos: locais
públicos, como praças, largos, parques e canteiros de avenidas. Num instante a câmera se
detém nas movimentações das crianças de rua e, logo a seguir, ela nos leva a uma favela
na periferia (Foto 77). Para suavizar e contrapor o registro do travelling pela favela, o diretor
busca a imagem da violoncelista (Foto 78), seguido da cena do ciclista que contorna a
105
esquina da edificação imponente e, assim, conduz o seu espectador por recortes imagéticos
da cidade que acorda e que, certamente, irá adormecer em algum momento. Personagens
anônimos e solitários povoam casas noturnas (Foto 79) e shoppings centers (Foto 80).
Foto 79 – A madrugada acompanha a
saída da casa noturna. Foto da autora a
partir do DVD.
Foto 80 – Durante as tardes e noites,
pessoas ocupam os shoppings centers.
Foto da autora a partir do DVD.
Resíduos humanos permitem perseguir os rastros da individualidade e singularidade
dos homens e das mulheres anônimos engolidos pela multidão. Retomando o diálogo com
Certeau, o autor nos fala sobre a escrita daqueles que vagam ou passeiam pela cidade,
também personagens de Quando o Dia Surgir. Olhar as vitrines é uma atividade “transposta
em pontos que compõem sobre o plano uma linha totalizante e reversível” (CERTEAU,
1994: 176). A fala desses passos perdidos deixa captar um resíduo visível e firma-se como
uma maneira de estar no mundo. “Caminhar é ter falta de lugar. (...) A errância, multiplicada
e reunida pela cidade, faz dela uma imensa experiência social da privação de lugar”
(CERTEAU, 1994:183). Certeau refere-se ainda à identidade simbólica fornecida a esse
lugar de locações freqüentadas por um não-lugar ou por lugares sonhados. Lá estão esses
habitantes do espaço emprestado, os passantes que circulam por lugares liberados e
ocupáveis (Foto 81 e Foto 82).
Alberto Cavalcanti, cineasta brasileiro que se instalou na Europa na década de 1920
e passou a dialogar intimamente com o surrealismo na própria fonte: Paris, já havia
sintonizado a lente de sua câmera para o dia de uma cidade – o cotidiano e as relações que
se estabelecem durante um ciclo de vinte e quatro horas – em Rien que les heures (1926),
filme que anuncia as sinfonias urbanas de Walter Ruttmann e Dziga Vertov, Adalberto
Kemeny e Rodolfo Rex Lustig. A fusão criativa da imagem e do som, a pesquisa em torno
do ritmo, são aspectos encontrados já na cinematografia de Cavalcanti e resgatada por
Textor, no contexto porto-alegrense contemporâneo, e encontram um campo de expressão
que se adequa à necessária sensibilidade para captar o tempo, as relações humanas e
desumanas da cidade grande.
106
Foto 81 – O menino que tem a rua como
espaço de estada e de passagem. Foto da
autora a partir do DVD.
Foto 82 – O fim do dia anunciado pelo
crepúsculo. Momento que marca o fim e o
recomeço: o ciclo se completa. Foto da autora a
partir do DVD.
Na chamada Sinfonia das Metrópoles européia encontra-se o retrato de cidades que
se mantém produtivas a partir das caldeiras e das chaminés das fábricas. Um ambiente
fabril visto de cima, em câmera alta, contrapõe-se às pessoas que configuram as micro
leituras do urbano. As regiões portuárias são temas preferidos dos cineastas deste
movimento. Rien que les heures retrata a pobreza abandonada pelas ruas da cidade que na
pode parar. No filme gaúcho, o dia passa e o tempo corre implacavelmente (Foto 83 e Foto
84). Quando o próximo dia surgir talvez esses ocupantes da rua não estejam mais aqui.
Porém, é possível que tudo ainda permaneça como está. Enquanto isso, a cidade vai se
transformando lenta ou rapidamente, dependendo do ponto de vista.
Foto 81 – O relógio de bolso é individual.
Foto da autora a partir do DVD.
Foto 82 – O relógio de fachada é público.
Foto da autora a partir do DVD.
107
4.3 A CIDADE COMO UMA ESCRITA QUE NÃO SE COMPLETA
Se a cidade é um texto, ela é lida a partir do percurso sobre seus espaços. Certeau
determina três possibilidades de operar sobre a cidade: através da produção de um espaço
próprio (organização racional); do estabelecimento de um não-tempo ou de um sistema
sincrônico, “para substituir as resistências inapreensíveis e teimosas das tradições (...) que
reintroduzem por toda parte as opacidades da história” (CERTEAU, 1994:173) e pela
criação de um sujeito universal e anônimo que é a própria cidade. “Nesse lugar organizado
por operações ‘especulativas’ e classificatórias combinam-se gestão e eliminação”
(CERTEAU, 1994:173). A cidade-conceito de Certeau é lugar de transformações e
apropriações: ela é, ao mesmo tempo, a maquinaria e o herói da modernidade. Ela está se
degradando, talvez simultaneamente aos procedimentos que a organizam. Certeau ainda
define lugar com a referida carga de memória, entendida como a presença de ausências.
Só há lugar quando freqüentado por espíritos múltiplos, ali escondidos em silêncio, e
que se pode ‘evocar’ ou não. Só se pode morar num lugar assim povoado de
lembranças – esquema inverso daquele do Panopticon. (CERTEAU, 1994:189).
Para o pesquisador francês, um lugar é uma ordem segundo a qual se distribuem
elementos nas relações de coexistência. Por outro lado, o espaço é um lugar praticado.
“Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o
temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de
proximidades contratuais” (CERTEAU, 1994:202). Ainda sobre o conceito de lugar, Ricoeur
considera que “os lugares são locais onde algo se passa, onde algo chega, onde mudanças
temporais seguem trajetos afetivos ao longo dos intervalos que os separam e os ligam”
(RICOEUR, 1998:47). Entendido tradicionalmente como um espaço qualificado, o qual se
“torna percebido pela população por conter significados profundos, representados por
imagens referenciais fortes” (CASTELLO, 2003:27). Lineu Castello, em seu artigo Há lugar
para o lugar na cidade do século XXI, amplia esta conceituação ao fazer referência aos
projetos de placemaking mais recentes, considerando que:
lugar remete-se mais à construção de imagens que rompem com a realidade
contextual e, até mesmo, a fantasiam. O projeto de lugar nesses casos ou reforça e
reproduz uma imagem, já intensamente percebida naquela realidade; ou introduz um
cenário representando intencionalmente uma imagem fantasiosa. (CASTELLO,
2003:27).
Lineu desenvolve sua análise inicialmente sobre as imagens temáticas que mimetizam
os elementos do contexto ou reconstroem as formas, somando elementos externos à
identidade local. Nessa linha reflexiva, podemos considerar que os filmes analisados
constroem e transfiguram imagens de um momento muito próximo ao atual e flutuam em
108
imagens importadas de outros contextos. Eles nos revelam as práticas cotidianas, o espaço
vivido e percorrido, bem como uma inquietante familiaridade e um desejado estranhamento.
Essa construção de uma escrita diversificada, que aceita tudo, é marca da cidade
grande. Na metrópole, o convívio com o estranho e com o estrangeiro é possível,
compreensível e assimilável. A metrópole mantém ainda rastros de cidadezinha, em
recantos que se avizinham aos trilhos do metrô ou de vias e áreas de altos fluxos e tráfegos.
Ela abriga os pequenos universos livres de preconceito, que sobrevivem ao tempo, como o
bar Ocidente e, paradoxalmente, cria outros espaços de intolerância e pseudo-neutralidade.
Eis o confronto entre o real e o imaginário como solução para a visibilidade entre o saudável
e o patológico - o outro que enxerga mais e melhor que o nativo, porque permanece
distante.
A desalienação na cidade tradicional envolve, então, a reconquista prática de um
sentido de localização ou a assumida flutuação pelos espaços hiper e intertextuais.
“Reconstrução de um conjunto articulado que pode ser retido na memória e que o sujeito
individual pode mapear e remapear, a cada momento das trajetórias variáveis e opcionais”
(LYNCH, 1972-75:77). A intertextualidade palimpséstica como um operador de uma nova
conotação de anterioridade e de profundidade pseudo-histórica é um instrumento eficaz de
mergulho nos estimulantes lugares imaginários.
109
DESFECHO: Considerações finais
Aprender uma cidade é, na verdade, uma coisa lenta. É preciso,
entretanto, saber algumas coisas, e precisamos andar
distraídos, bem distraídos, para reparar nessa alguma coisa.
RUBEM BRAGA
Na leitura da cidade filmada entram em choque os olhares de quem a lê e de quem a
captura. Quem lê o filme busca a “sua” cidade. A desconstrução desta cidade contempla os
sentidos da visão e da audição. A intelectualidade do cinematográfico reflete uma série de
questões sociais e urbanas, sem as quais essa arte se perderia no universo da mera
diversão. A reflexão da realidade retratada, ou encenada, passa pela consciência e pelo
envolvimento crítico de cada realizador, que a recria com maior ou menor veemência
estética e filosófica, conforme sua predisposição e seu contexto formador.
O estudo dessa cidade transposta para o cinema (locus deslocado) lança-nos sobre
um universo infinito – a imaginação - bem como sobre a cotidiana dificuldade de estabelecer
relações e práticas sociais. Conectada com a realidade de seu tempo e com seus anseios
particulares, a cidade, como a casa sonhada, pode ser “um concentrado de tudo o que é
considerado cômodo, confortável, saudável, sólido ou mesmo desejável para os outros”.
(BACHELARD, 2000:74) Na casa descrita por Bachelard, deve ter tudo. Por mais amplo que
seja o seu espaço, ela deve ser uma choupana e deve comportar os maiores imprevistos em
escala e proporção.
Como auxílio da literatura e de suas possibilidades expressivas, cognoscitivas e
imaginativas, bem como do questionamento dos mitos da virada do século XIX para o
século XX, foi-se percorrendo aqui múltiplas cidades filmadas na tensão de final do século
XX e início do século XXI. Iluminar as figuras do herói e do progresso, chocando-as com as
consolidações urbanas e sociais de um século de história porto-alegrense, como recurso
comparativo, foi um dos desafios da dissertação. O herói está historicamente referenciado
pelo cinema. Entre as preocupações desta leitura esteve presente, o tempo todo, o exercício
de deixar que as imagens depositadas na memória se manifestassem sem que se corresse
o risco de cair na armadilha de interpretar os mitos, impondo acréscimos que poderiam
sufocá-los. A escrita poética deste texto científico inspirou-se e legitimou-se nos símbolos
presentes na cinematografia local, tanto de jovens cineastas que compartilham, com a
pesquisadora anseios e visões, por vezes pessimistas, da metrópole contemporânea,
quanto por aqueles realizadores que não desanimaram ao longo do tempo, registrando
110
lugares e personagens, reais e imaginários, mergulhando em acontecimentos individuais e
coletivos, dramáticos ou grotescos, dentro de uma única cidade: Porto Alegre.
Considerando que a cidade é o lugar em que o fato e a imaginação teriam de se
fundir, aceitando, por outro lado, o fragmentário, o descontínuo, e contemplando as
diferenças, os discursos contemporâneos cenarizam e grafam a cidade, com sua
polifonia, sua mistura de estilos, sua multiplicidade de signos, na busca de decifrar o
urbano que se situa no limite extremo e poroso entre realidade e ficção. A cidade,
mais do que nunca, continua sendo uma paisagem inevitável, ao mesmo tempo que
"morada incerta" (GOMES, 1997)
Numa tentativa de caracterizar esse contexto de produção cinematográfica local e de
sua repercussão nas leituras urbanas de Porto Alegre, constata-se que um caminho
possível está no diálogo firmado com a literatura, nas reflexões a partir das cidades
imaginárias construídas por autores como Baudelaire – primeiro poeta que fez da cidade o
centro de sua poesia moderna, como investigou Benjamin. Ler textos que lêem as cidades,
a partir do estímulo visual do cinema, produz um cruzamento entre imaginário, história,
memória da cidade e cidade da memória. Escrever a cidade é também lê-la, tentando
mapear seus múltiplos sentidos, mesmo que ela se esconda na representação analisada. A
cidade, na verdade, é um palco de narrar e produzir imagens.
Esse processo torna-se mais complexo na modernidade que tem na cidade o lugar
privilegiado. Modernidade e experiência urbana formam um binômio de dupla
implicação. A cidade, assim, constitui uma questão fundamental para os modernos;
torna-se uma paisagem inevitável, pólo de atração e de repúdio, paradoxalmente
uma utopia e um inferno. Foi traço forte na pauta das vanguardas históricas do início
do século XX, e continua, neste final de século, a ser um problema, objeto do debate
pós-moderno, num momento em que a era das cidades ideais caiu por terra.
A modernidade elegeu o futuro como tempo privilegiado e identificou-se com a
mudança, assimilando-a ao progresso. (GOMES, 1997)
O progresso acabou fazendo da metrópole o “paradigma da saturação”, como
assinala Nelson Brissac Peixoto. O cinema vem se transformando junto com as cidades. No
estudo das representações urbanas talvez o cinema ainda esteja engatinhando em
descobertas identitárias e em metodologias próprias que consigam se aproximar de uma
essência localista satisfatória. Na literatura, a narrativa contemporânea “que tematiza o
mundo urbano ganha dominância incontestável, dramatizando a ‘cidade global’,
apresentando cenários urbanos largamente deslocalizados, onde tudo é implicitamente
urbano, onde não é mais praticamente possível uma geografia” (GOMES, 1997), nem um
compromisso com os traços locais. Provavelmente o cinema venha acompanhando essa
tendência e se apropriando também dos preceitos que revelam a “cidade qualquer ou
nenhuma”.
A cidade filmada universal que não pára poderia ser arbitrariamente provocada a
parar como no filme Paris qui dort (Paris Adormecida, 1925), de René Clair, ou assumir sua
111
esquizofrenia como na Tativille (Foto 83) em Playtime, de Jacques Tati, e na Porto Alegre
inacessível de Jaime Lerner (Foto 84).
Foto 83 – A esquizofrenia parisiense
reproduzida em Tativille, no filme Playtime
(1967)de Jacques Tati. NEUMAN, 1999:143
Foto 84 – A esquizofrenia porto-alegrense no
filme Miragem (1993), de Jaime Lerner. Foto da
autora a partir da VHS.
O olhar sobre a cidade contemporânea está embaçado ou, no mínimo, míope, na
cinematografia analisada. A policromia deste locus marca a perspectiva de novos
encadeamentos. A cidade gris sufoca e limita. A prospecção de aspectos históricos nos leva
a tempos em tom sépia, guardados nos armários da memória. Para acessá-los, é preciso
digitar o código nem sempre disponível a todos. O cineasta que se propõe investigar esse
passado pode se acometer de resgates apologéticos duvidosos ou, no mínimo, festejar
tempos mesclados por muitas camadas de leituras diversas. Ele pode ainda se firmar nas
representações concretas da cidade – as arquiteturas e rearquiteturas que compõem o
panorama urbano. Todas as imagens são boas desde que saibamos nos servir delas, afirma
Bachelard. Mais ainda, diz que: “as verdadeiras imagens são gravuras. A imaginação grava-
as em nossa memória.” (BACHELARD, 2000:49)
No instante que se aproxima ao nível do indivíduo e de suas inquietações, a cidade
parece assumir uma agitação que não existe ou, por outro lado, uma acomodação e/ou
incapacidade de ação. Nesse movimento de zoom, o palco está tomado por personagens
que o reconfiguram mesmo sem ter noção de sua interferência no processo de mutação.
Esses indivíduos podem ser identificados por sua forma de consumir a cidade, por seus
percursos anônimos, errantes ou determinados. Cada personagem dessa cidade
contemporânea está fechada no seu universo, vislumbrando seu destino pré-determinado ou
impossibilitada de interagir com quem passa ao seu lado. São flâneurs às avessas, aqueles
impostamente desocupados, que desconhecem a cidade e constroem imagens desconexas.
112
Eles são heróis do tempo da máquina, talvez sobreviventes ou meros habitantes de um
panorama em permanente transformação.
Nada de materialidade industrial presente nos filmes selecionados. Pouca paisagem
– vista nas panorâmicas dos filmes de Textor ou de algum outro diretor de fotografia
desavisado. A representação está num universo mais próximo, das práticas individuais e
universais que compõem um imaginário. Porto Alegre vista como uma capital universal, num
país de contrastes, de configurações urbanas caóticas, de fluxos humanos e veiculares
acelerados e de anônimos em busca de seu lugar ao sol. Numa busca pela caracterização
de uma imagem predominantemente vista nos filmes selecionados, podemos destacar a
área central e sua adjacência: a ponta da península e suas múltiplas leituras e intervenções
imaginárias; o morro da Duque de Caxias no Centro da cidade; os eixos residenciais e
comerciais do Centro; o Mercado Público; o Largo Glênio Perez; o bairro Bom Fim –
amplamente utilizado como locação de filmes – a sua principal artéria, a Avenida Osvaldo
Aranha. Os bares das ruas transversais à Osvaldo e à Independência. O bar Ocidente e sua
capacidade de representar um microuniverso diversificado. O metrô de superfície - periférico
– que liga a capital à região metropolitana, mas que – no filme de Paraboni – poderia ou
deveria estar dentro da cidade. Lugares particularmente distintos e descobertos (recriados)
pelo cineasta que quer ver cidade ou o que ele entende por. Porto Alegre do centro; Porto
Alegre do “bom fim”. Porto Alegre anônima como tantas outras metrópoles contemporâneas
habitadas por anônimos.
O que nos é dado a ver na tela nos chega através de uma engrenagem mecânica de
tal maneira que não percebemos os efeitos que sofremos. É como uma tradução tão
bem feita que dissimularia a outra língua da máquina, fazendo com que
acreditássemos ser a língua natural dos nossos sentidos. (COMOLLI, 1995:151)
O cineasta busca muitas cidades ou apenas uma. Busca uma cidade grande, em
muitos casos, com a infra-estrutura mínima de qualquer outra metrópole, como a presença
de um metrô para ser tomado nas proximidades de casa e que pode nos levar ao Centro ou
quem sabe até a Zona Sul. Busca uma cidade pequena, com ares de aconchego, que está
presente em muitos bairros periféricos e até centrais. Busca uma mescla de cidades
visitadas em algum momento, por algum motivo. Busca cidades vistas no cinema e já tão
familiares no seu imaginário.
113
CRÉDITOS
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PÁGINAS DA INTERNET CONSULTADAS
Adoro Cinema: http://adorocinema.cidadeinternet.com.br
Associação dos Profissionais e Técnicos de Cinema do Rio Grande do Sul:
www.aptc.com.br
Casa de Cinema de Porto Alegre: www.casacinepoa.com.br
Mnemocine: www.mnemocine.com.br
Portal Vitruvius: www.vitruvius.com.br
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Notre Musique (Nossa Música). Jean-Luc Godard, França/Suíça, 2004. Filme
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Temporal. Jorge Furtado e José Pedro Goulart, Casa de Cinema de Porto Alegre, Brasil,
1984. Filme cinematográfico, DVD.
Deu Pra Ti, Anos 70. Nelson Nadotti e Giba Assis Brasil, Casa de Cinema de Porto Alegre,
Brasil, 1981. Filme cinematográfico, VHS.
Inverno. Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil, Casa de Cinema de Porto Alegre, Brasil, 1983.
Filme cinematográfico, VHS.
Um homem e o destino. Antônio Carlos Textor, Textor Produções, Brasil, 1963. Filme
cinematográfico.
A Última Estrela. Antônio Carlos Textor, Textor Produções, Brasil, 1966. Filme
cinematográfico.
Urbano. Antônio Carlos Textor, Textor Produções, Brasil, 1983. Filme cinematográfico, DVD.
Grafite. Antônio Carlos Textor, Textor Produções, Brasil, 1984. Filme cinematográfico, DVD.
Carrossel. Antônio Carlos Textor, Textor Produções, Brasil, 1985. Filme cinematográfico,
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Um maravilhoso espanto de viver. Antônio Carlos Textor, Textor Produções, Brasil, 1978.
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cinematográfico, DVD.
A Cidade e o Tempo. Antônio Carlos Textor, Textor Produções, Brasil, 1970. Filme
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O Oitavo Selo. Tomás Creus. Porto Alegre, Brasil, 1999. Filme cinematográfico, VHS.
Det Sjunde Inseglet (O Sétimo Selo). Ingmar Bergman, Suécia, 1956. Filme cinematográfico,
DVD.
Der Müde Tod (A Morte Cansada). Fritz Lang, Alemanha, 1921. Filme cinematográfico,
DVD.
Ângelo anda Sumido. Jorge Furtado, Porto Alegre, Brasil, 1997. Filme cinematográfico,
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cinematográfico, DVD.
Rien que les heures. Alberto Cavalcanti, França, 1926. Filme cinematográfico.
Paris qui dort (Paris Adormecida). René Clair, França, 1925. Filme cinematográfico, DVD.
121
ANEXOS
ROTEIROS
A CIDADE E O TEMPO (1970), de Antônio Carlos Textor
FICHA TÉCNICA
Roteiro e Direção: Antônio Carlos Textor.
Produção: Alpheu Ney Godinho.
Elenco: Adriana da Cruz (senhora), Silvana Silva (menina), Miriam Ribeiro (moça). Narração: Ana Maria Stahl.
Texto: Pedro Port (Transcrição da autora).
CENA 1 (fotografia animada)
Rio e ao fundo ilhas com vegetação (ponto de vista do rio).
CIDADE (off)
De minha existência no tempo, apenas acumulei uma imagem, uma vertente que rumina desde a minha
origem mais remota: o rio (...) meu desígnio ao lado dele. Na ordem do imaginário onde vivemos, eu e
essas águas (...) são as mesmas águas que levam o passado à memória. O ser em repouso e
movimento em que se alternam o curso de nossas esperanças não é senão uma aparência sem (...)
que nos deforma. Não, eu não tenho passado. Atrás desse relevo ondulante, teu corpo sentido e a
vertigem de nosso futuro contempla a nebulosa dos signos em plenitude.
Terra de ninguém, hospedaria do jamais, nos desertos todos, que de vossos (...) eu me recrie. Seja eu
um parto constante ou articulação de vosso silêncio, uma rosa ainda em botão: vermelha.
Nem a noite que desencaverna o sonho, nem as ilhas fraternas que vogam no horizonte me
reconheceriam nesta nova presença, neste ser, neste infinito que sou. Os pássaros e as estrelas
longínquas vieram morrer em meus crepúsculos. Fui recriada, sou linguagem, fundação. E um cisne
apaziguado é o lance de minha vida no espaço.
No princípio, ninguém que não viesse da origem libertária das estrelas ousava criar-me. E muda era a
natureza em meu redor. Como o tenro pilar de fogo que subiste do centro da terra, as minhas palavras
aparavam o céu em sua queda. E era tudo uns hálitos, uns sussurros a ecoar. Como na concha opaca
de meus olhos, os estímulos da solidão circundante. Naquele tempo, eu elevava os meus chamados
para que o verbo intercedesse em meio a tantos vazios. Corriam regatas em minhas esperanças e
minhas potências elaboravam o tempo.
CENA 2 (fotografia fixa)
A cidade de Porto Alegre vista desde o Rio Guaíba; o cais. Telhados com a Igreja N. S. das Dores ao fundo.
Atelier Photographico Calegari. Casa Senhor. Agência de Loteria. Igreja N. S. do Rosário ao lado do Restaurant
Leopoldina. Esquina da Rua da Praia com a Rua General Câmara, com a Livraria Americana. Rua da Praia, com
bonde. Fachadas.
122
CENA 3 A 10 (fotografia animada e fixa)
Interior de uma casa. Uma velha entra na sala, caminha até o relógio de parede. Mexe no pêndulo. Abre a janela:
uma foto antiga. Fecha a janela: é uma criança. A menina dá corda em uma caixa de música. Passeio de
carruagem da menina com uma moça; a menina aponta para cima: torre de igreja. Homens, trabalhadores. A
criança e a moça descem a escadaria da Duque de Caxias – Fernando Machado. Foto do Mercado. Descem a
escadaria. Caminham numa rua.
CENA 11 (fotografia fixa)
Largo do Mercado. Multidão, uma banda passa, o “espetáculo da rua”. A banda vai embora. Fachada do antigo
Banco da Província. A cidade vista desde o rio.
CENA 12 e 17 (fotografia animada)
Casa destruída, em contraste com edifícios ao fundo. Viaduto Loureiro da Silva (indo em direção ao Centro).
Igreja com edifícios ao fundo. Cúpulas antigas em oposição aos edifícios. Fonte Talavera de la Reina. Ponte,
cidade ao fundo (ponto de vista do rio).
A MORTE NO EDIFÍCIO IMPÉRIO (1993), de Beto Souza
FICHA TÉCNICA
Roteiro e Direção: Beto Souza
Produção: Bibi Iankilevich. Secretaria Municipal de Cultura e Beto Souza.
Direção de Fotografia: Roberto Henkin.
Narração: Júlia Barth e Edu K. Elenco: Flávia Moraes e Pedro Santos.
Texto: Transcrição da autora.
Vinte anos após a chegada dos primeiros casais de açorianos, é criada a Freguesia de São Francisco do Porto
dos Casais. Era 25 de março do ano da graça de 1772. Neste lugar existiram três cidades: a Porto Alegre
colonial, do século XVIII até meados do século XIX; o ecletismo do final de século XIX e do início do século XX; a
verticalização da cidade a partir de 1930, a destruição do antigo traçado, a memória ameaçada pelo
modernismo.
Portão Central – Cais do Porto – 1913
A Morte no Edifício Império - ATRÁS DO MURO TEM UMA CIDADE
Uma rapariga precipitou-se do 13º andar do Ed. Império deu uma viravolta no ar e caiu hirta e de pé contra as
pedras do calçamento, produzindo um ruído seco e agudo, que ecoou no Largo como um tiro de pistola.
A Rua da Praia, que é a única comercial, é extremamente movimentada, e nela se encontram numerosas
pessoas, a pé e a cavalo, marinheiros e muito negros, carregando volumes diversos.
Duma casa de discos que funcionava na Galeria Chaves, vinha a voz possante de um tenor italiano.
Concluí que, se me hospedasse no Hotel Majestic, isso me ajudaria a levantar o moral.
Saiu a caminhar na direção da Igreja das Dores, acendeu um cigarro, olhou o relógio.
123
Museu de Artes – 1922
Correios e Telégrafos – 1914
Praça da Alfândega
Nos passeios e no interior da praça, existem bancos, em que se assentam os cansados, os que esperam e os
que espairecem.
Banco da Província do Rio Grande do Sul. É sólido e monumental.
É a segunda vez que consulta o relógio da Prefeitura esta manhã. Este relógio, lá no alto, na torre, parece-lhe
uma cara redonda e impassível.
Paço Municipal – 1901
Sentada a uma mesa, junto à janela do sétimo andar do Palácio do Comércio, olhou com ar estúpido para uma
garrafa de champanha Clicquot, que o amigo mandara abrir.
Quando defronta o portão central, abre-se lhe lá dentro uma perspectiva de rua oriental, cheia de bazares,
miragem remota de certas gravuras ou de certas fitas que viu.
Mercado Público – 1869-1912
Quem não conhece e a cidade, e de longe, pela primeira vez contempla o Palácio, tem a impressão de ver um
colossal reservatório, em cujo interior se armazenam milhões de litros.
Praça da Matriz
Biblioteca Pública – 1922
Apressou o passo e aproximou-se do viaduto, com um fascínio que era também pavor.
De um lado, o caminho é guarnecido por uma linha de salgueiros e, no outro, existem casas de campo e jardins
cercados de sebes de uma mimosácea espinhosa.
Achamo-nos agora sentados no parapeito da ponte do riacho, olhando o reflexo da lua na água parada e falando
na vida, de um ângulo impessoal.
Ponte de Pedra - 1848
Estava sem sono e me debrucei à janela de minha pensão e fiquei olhando as casinholas velhas e tristes da
Cidade Baixa.
Fora da cidade, sobre um dos pontos mais altos da colina onde ela se desenvolve, iniciou-se a construção de um
hospital, cujas proporções são tamanhas, que talvez não seja terminado tão cedo.
124
Desfilam as casas da Independência, fachadas claras e escuras, postes, vitrinas, pessoas, árvores. Depois, os
Moinhos de Vento. Passam-se alguns minutos.
Dora achava-se junto da balaustrada, olhando para os tanques da Hidráulica. Do jardim, lá embaixo, subia o
perfume adocicado e espesso dos jasmins-do-cabo.
Hidráulica – 1928
Edifício Ely – 1922
MIRAGEM (1993), de Jaime Lerner
FICHA TÉCNICA
Roteiro e Direção: Jaime Lerner.
Produção: Cristiano Zanella.
Elenco: Rosângela do Brasil e o povo de Porto Alegre.
Música: Cláudio Donder. Narração: Fernando Waschburger.
Decupagem da autora feita em agosto de 2005.
Time
Code
Imagem Narração (off) Som
00:00
Créditos iniciais
- Meu pai era um cara muito debochado. Quando
mamãe, super ocupada, pedia pra ele me ninar:
Percussão
00:09 Miragem ele deitava na cama, apagava a luz, cantava assim:
00:12 Performance com as
mãos
- Deixe pedir, pense que vá
00:39 Travelling Lateral de um
ônibus
- Vocês conseguem imaginar um lugar mais solitário
do que um ônibus público abarrotado de gente?
Cello +
violinos
00:46 Pessoas descendo do
ônibus
Mais do que isso, só dois ônibus públicos abarrotados
de gente.
00:52 Plongée absoluta Pça
XV
- Mais do que isso...
00:56 PC Ônibus+pessoas
- Toda manhã eu me coloco na solitária, atravesso a
cidade e sou despejado no Centro
01:03 Contra-plongée na rua
01:14 PM Pça XV vista do cais
ao fundo
- O ônibus que me largou vai buscar mais uma carga
de condenados.
01:20 Vista da fachada de
vidro
Close janelas
- Atrás dessas janelas, cumpro oito horas de
trabalhos forçados.
01:24 Plongée Mercado
Público, Cais do Porto,
Guaíba
Às vezes olho a paisagem,
01:29 Plongée um cruzamento olho o turbilhão de gente lá embaixo e tenho vontade
de gritar:
01:34 Varredora de rua - Hei, por que que a gente não pára? Não tem uma lei
que nos obriga a trabalhar, nem um guarda armado,
de óculos Rayban e chapéu de cowboy, cuidando dos
nossos passos, nem uma cerca de arame farpado,
nem um chicote _ as nossas costas. É só largar tudo
e sair caminhando. Afinal, somos homens livres.
02:07 PP Frontão do mercado
- Meu pai fez isso, disse: Som grave
02:14 PG Pessoas pela rua Eu não brinco mais. Largou tudo e saiu caminhando.
02:18 - Vocês gostariam de saber o que aconteceu com
ele?
125
02:26 Seqüência de cenas que
se repetem
Eu também. Violinos
retornam
02:33 PD Ovo frito - Na hora do intervalo,
02:34 eu desço pra rua e fico embriagado olhando as
pessoas, tendo dar um estilo pra cada um, imaginar
da onde elas vêm, pra onde elas estão indo, o que
elas têm na cabeça.
02:46 PC Mulher com turbante
rosa
- Essa senhora, por exemplo, deve ter os
pensamentos cor-de-rosa.
02:54 - Tento chamar atenção, piscar o olho, fazer algum
contato por telepatia.
03:08 PG Pessoas fluxo lento - Não consigo...As pessoas parecem miragens
passando ao meu redor
Música
reduzindo
03:20 PG Pessoas pela rua - Num instante elas estão e no outro...
03:23 Filtro vermelho
PD Mãos de pianista
Piano
03:29 PP Mulher - a beleza toca o nosso coração
03:33 PC Meninos de rua - a miséria: (pausa) só em filme italiano
03:37 PG Pessoas morando e
andando pela rua
- no escuro do cinema, a gente pode deixar se
envolver sem o compromisso ter que fazer alguma
coisa. Na rua, temos que usar um escudo, uma
armadura. Afinal de contas, que é que não tem a sua
desgraça particular.
03:56 PD Mãos de pianista
PD Mulher
- eu nunca cheguei a tocar uma mulher de verdade.
Já belisquei alguns mamilos, acariciei muitos ventres,
mas nunca cheguei a tocar de verdade uma mulher.
04:11 PD Mulher com os
cabelos no rosto.
- meu pai, um dia me escreveu: não se deixe levar
pelas belezas esculturais. Meu filho, as aparências
enganam.
04:20 PG Pôr do sol no Guaíba - misturando assim, todos esses pensamentos, eu
consigo atravessar o dia. - Agora é só chegar em
casa,
04:26 PD Liquidificador, ovos,
leite, “batida”
recarregar as energias. Música de
academia
04:34 PD Imagem da TV
pixelada, sorrisos,
pessoas comendo
- o melhor amigo do homem é o aparelho de
televisão. Sua maior invenção é o controle remoto.
Quando se bota todo mundo junto, no mesmo canal,
chega a formar uma família. Depois desse conforto,
04:50 PD Casaco de couro - É hora da caça.
04:56 PD fogo - Um jovem como eu, tem certas obrigações para com
o seu organismo.
05:00 PG Luzes da cidade à
noite
05:16
05:40
Pessoas dançando
(flashes)
- eu sei que é tudo ilusão, (pausa) mas eu tomo o
meu pozinho de pirilimpimpim e viro também uma
miragem.
05:42 Créditos finais
- meu pai, que era uma cara super debochado,
provavelmente diria: meu filho, a esperança é a última
que morre,
mas um dia a hora dela ainda há de chegar.
Batida
Entram os
violinos
MIOPIA (2000), de Muriel Paraboni
FICHA TÉCNICA
Roteiro e Direção: Muriel Paraboni.
Direção de Arte: Angélica Pernau.
Elenco: Júlio Andrade (Duda), Débora Finochiaro (recepcionista), Dani Gris (porteiro), Pedro Machado
(aposentado), Rodrigo Najar (marido), Betina Müller (esposa), Almiro Petry (doutor).
Produção: Margem Cinematográfica. Recursos: próprios, finalização Fumproarte.
126
Porto Alegre, julho de 1997 - (Tratamento: 15 de dezembro de 1999)
CENA 1 Calçadas Decadentes Ext (Dia)
Tela preta: créditos de introdução do filme (produtores e co-produtores), surgindo fora de foco, entrando em foco
e saindo de foco novamente, sob o som ambiente dos passos de alguém sobre um assoalho frágil, um noticiário
de televisão que é logo desligado, novos passos, ruído de chaves abrindo uma porta.
Entra em foco: Duda, 24 anos, estudante, aparência saudável e normal, abre a porta, sai de casa, um prédio
térreo e antigo localizado em zona urbana e barulhenta. Ele parece assustado, olha em torno (inserts
documentais: automóveis passando, uma dona de casa atrapalhada no outro lado da rua, etc), chaveia a porta,
tem pressa e segue adiante.
Tela preta: créditos do filme (ator principal), entrando e saindo de foco, sempre com o som ambiente ao fundo.
Entra em foco: Duda caminha pela calçada, apressado e sentindo-se nitidamente pouco à vontade ao disputar o
lugar com outras pessoas. Insert documental: gente feia passando. Ele caminha, desvia, esbarra, tenta seguir
adiante (novo insert documental: crianças arrastadas pelos braços pelos pais), mas sente dificuldades.
Tela preta: novos créditos (atores secundários), entrando e saindo de foco, com o som ambiente seguindo
normalmente ao fundo.
Entra em foco: o rapaz tenta atravessar uma faixa de segurança que ninguém respeita, nem pedestres, nem
automóveis, motoristas ficam nervosos, gente para todos os lados, Duda parece tenso. Inserts documentais de
situações similares.
Tela preta: nome do filme entra e sai de foco, o som ambiente segue ao fundo.
Entra em foco: os pés de Duda pela calçada, sujeira, depredação, desolação, lixeiras, baganas de cigarro, trapos
(inserts documentais ao longo dos passos de Duda: meninos de rua, trombadinhas, maltrapilhos, mendigos).
Tela preta: novos créditos do filme (produção executiva e direção de produção), entrando e saindo de foco, o
som ambiente seguindo ao fundo.
Entra em foco: um muro com uma pichação e uma lixeira por perto, Duda passando ao fundo, com sua pressa e
sua inquietude.
Tela preta: novos créditos do filme (direção de arte e fotografia), entrando e saindo de foco, o som ambiente
seguindo ao fundo.
Entra em foco: Duda pára em frente à fachada de um prédio decadente. Confere o endereço, confirma e então
entra.
Tela preta: créditos do filme (roteiro e direção), entrando e saindo de foco, o som ambiente seguindo ao fundo.
CENA 2 Galeria Decadente/Corredor Principal Int (Dia)
Um criança de pouco mais de um ano de idade brinca sozinha, com um chocalho sujo nas mãos, pelo corredor
do prédio decadente. O corredor não tem luz e só temos sombras e a claridade da rua. A criança é maltrapilha,
suja, babada, feia, porém de olhar inocente. Duda vem pelo corredor, seus passos ecoando e chamando a
atenção da criança. Ele passa por ela e não consegue deixar de notá-la. Olha a criança, olha em torno como
quem busca a mãe, olha de novo, às vezes quase hesita, a criança também olha, embora sem deixar de brincar
com o chocalho, mas segue adiante.
Ele chega ao saguão, ainda olhando a criança que ficara sozinha lá para trás. O rapaz chama o elevador e fica
esperando. Dois velhos maltrapilhos e com aparência de bêbados, o PORTEIRO e um APOSENTADO amigo
seu, conversam e riem mais adiante, ali pelo saguão. A risada chama a atenção de Duda, que olha,
imediatamente sentindo-se angustiado. A imagem parece lhe ferir.
PORTEIRO
(Rindo e fazendo uma cara de tarado) Ai, olha que a gente tem que
arrastá aquelas duas uma hora dessas, viu?! A Dulce é minha... nêga
gostosa... (Ri, numa expressão abominavelmente maníaca)
APOSENTADO
127
(Rindo, maníaco, os olhos esbugalhados) E então imagina ela
chupando... Uhhh... que par de beiço...
PORTEIRO
(Morrendo de rir) Pois eu queria pegá aquela nêga pela anca e comê ela
de quatro... (Ele então encena o episódio, fazendo caretas e soltando
urros, segurando na cintura imaginária da mulher)
Os dois velhos não param mais de rir. Duda parece apavorado, constrangido pelo próprio estado miserável
daqueles homens. Inquieto, ele olha de novo a criança, lá atrás, que vai engatinhando pelo corredor até sumir de
sua vista. Ele olha os velhos de novo e então, nervoso, volta-se a si mesmo, como quem espera e reza para que
o tempo passe rápido.
PORTEIRO
(Rindo, quase que zombando do rapaz) Esse elevador não funciona, não,
rapaz... (E segue rindo)
Duda olha para ele, nervoso, acena positivo e sai dali, na direção das escadarias, sem falar nada.
CENA 3 Galeria Decadente/Escadarias e Corredores Int (Dia)
Duda sobe pelas sombrias escadarias do prédio, alcançando o corredor do primeiro andar. Perturbado pelo
aspecto do lugar, ele tateia para chegar ao segundo lance de escadas. Na subida, Duda já escuta ruídos
bruscos, objetos em queda, uma porta batendo, passos acelerados.
Enquanto sobe pelas escadas, em meio à escuridão do lugar, Duda é empurrado, com violência, de encontro à
parede, quase perdendo o equilíbrio. Ele se volta assustado para a base da escada, tentando descobrir o que
quase fê-lo cair. Vê, então, a figura suja, maltrapilha e castigada de um MARGINAL, rapaz negro, 15 anos, miúdo
e de aparência sensível, que, parado junto da escada à fitá-lo, traz nas mãos um pequeno e usado rádio portátil.
Sem palavras, o marginalzinho desaparece, deixando o olhar de Duda, que segue adiante. Chegando ao
segundo andar, o rapaz já se depara com a dona de casa, aflita em meio ao corredor.
DONA DE CASA
(Choramingando, dirigindo-se para Duda assim que ele surge à sua
frente) Ai, rapaz, me ajuda, me ajuda, por favor! Viu aquele marginal?! Ai,
ele me levou meu aparelho de som... levou meu dinheiro... (Tom) minhas
jóias... Aiii... me ajuda... Ele levou quase tudo o que eu tinha de valor...
Sem falar nada e sem mesmo parar no corredor, Duda desvencilha-se da mulher, caminhando rápido em direção
ao terceiro andar. Um pouco assustado e sem saber como proceder, temos apenas a leitura labial melancólica
das palavras “sinto muito” proferidas por ele.
Duda sobe um lance de escadas e, chegando no próximo andar, pára para conferir novamente o endereço. É ali.
Desta vez, então, ele segue pelo corredor naquele mesmo andar. E caminha rápido. Há lixo por toda a parte. Um
cachorro sem raça passa por ele normalmente. Através do corredor, Duda vai escutando fragmentos de uma
exaltada briga conjugal, MARIDO versus ESPOSA.
MARIDO
(Off) E eu tenho sempre que fazer isso? Meu orgulho não quer dizer nada?!!
ESPOSA
(Off) Não vem com essa agora, pô... Se tá errado, então assuma! (Pausa)
Nada de orgulho!
MARIDO
(Off) Errado... a porra! Desde quando confia mais nos outros do que em
mim?!
ESPOSA
(Off) Os outros não têm motivos para mentir...
MARIDO
(Off, enlouquecido) Ah... então acha que eu não sei das tuas... (Hesita) vaca!
E ainda quer me acusar?!!
128
A mulher começa a chorar, de repente, aflita, ante a provável injustiça levantada pelo marido. Exatamente
quando Duda passa pelo apartamento do casal, ela solta um grito de revolta e algo se estilhaça contra a porta
(jogara algo no homem, o qual estava parado por ali). Duda sobressalta, apavorado.
ESPOSA
(Off, chorando) Eu nunca fiz nada e você sabe disso!
MARIDO
(Off, visivelmente cínico) Puta ignorante... Podia ter me acertado... Quer
saber?! Dá um tempo, tá!? Dá um tempo! Eu nâo tenho que ficar escutando
essa merda...
O marido sai decidido para o corredor. Duda, que já passara pela porta, dá uma olhada para trás, a fim de ver o
que está acontecendo, mas segue seu rumo indiferente. A mulher não dá um segundo e salta sobre o marido,
gritando de raiva, em pleno corredor. Ela passa a agredi-lo possessamente. O personagem principal confere
rápido, por mais uma vez, aquela cena. No entanto, ele prossegue se distanciando da briga, até atingir o final do
corredor, onde há uma porta, na qual ele percebe uma placa. Arregala os olhos, numa careta quase cômica, a
fim de conferir se ele está no lugar certo. Através dos olhos míopes do personagem, percebemos sua enorme
dificuldade em ler algo que está ali escrito com letras garrafais. Entra em foco a placa: “OFTALMOLOGISTA”.
Duda abre a porta.
CENA 4 Consultório Decadente/Sala de Espera Int (Dia)
Há uma explosão de música popular romântica soando no interior da sala de espera. O ambiente é, mais uma
vez, a expressão da decadência: tudo o quanto for possível está quebrado, há muita sujeira e quinquilharias
espalhadas, a decoração é de péssimo gosto, mal distribuída, sofás depredados, paredes riscadas com lápis ou
caneta, revistas amarrotadas ou rasgadas. Um homem de meia idade e aparência muito humilde, mal vestido,
aguarda a sua vez de ser atendido. Por trás de um balcão, uma horrorosa RECEPCIONISTA, a mais abominável
das criaturas, com seus 35 anos, fala ao telefone em sua voz estridente e de volume indescritível. Duda entra e
aproxima-se do balcão, onde está a recepcionista, que não lhe confere a menor atenção. Apenas olha para o
rapaz num sorriso que não é para ele e segue na conversa.
RECEPCIONISTA
(Ao telefone) Hum... Isso mesmo... deve ser... Mas então ela deve estar bem
louca, não acha!? (Começa a rir e faz uma pausa) Ai, nem me fala disso...
Como será que foi, heim!? (Pausa) É, eu tava doida pra ir... (Pausa) Pois eu
andava desesperada naquele dia, sabe, porque levei aquele meu vestido
bege, sabe?! (Pausa) Aquele!? (Pausa) Com golinha bordada! (Pausa) Não,
não! Aquele que eu usei na festa da Janaína, lembra?! (Pausa) Pois não foi
que eu deixei o vestido na lavanderia, e quando fui buscar já tinha fechado?!
Que ódio, viu... Eu tava com o pé que era um leque pra ir... (Pausa)
Enquanto ela fala ao telefone, sem mostrar interesse em qualquer outra coisa que seja, Duda permanece parado
diante dela, aborrecido, mas paciente. Ele observa o ambiente a sua volta, move-se sem sair do lugar, arrasta
sutilmente os pés, cruza e descruza os braços, mostrando-se cada vez mais inquieto.
RECEPCIONISTA
(Enquanto escuta a amiga no outro lado da linha, olha para Duda e os dois
duelam olhares fulminantes) Só um pouquinho aí, tá, Vera...
A mulher tampa o fone com a mão, distanciando-o de si, e volta-se para Duda, com a expressão de quem acha-
se importunada.
RECEPCIONISTA
(Para Duda, de forma cínica e grosseira)
Pois não?!
DUDA
(Humilde) Tenho hora marcada...
RECEPCIONISTA
(Já voltando-se para o telefone) É só esperar, então...
Duda fita a recepcionista, em silêncio, e acaba reagindo de forma humilde.
DUDA
129
(Retirando-se, mas sem dar as costas) Obrigado...
A recepcionista sequer aguarda por Duda para voltar ao telefone. E o rapaz, por sua vez, dirigi-se para um último
modulado, mais adiante. Ele senta com cuidado e passa a observar o lugar. Em seguida, captando com mais
precisão aquilo de que fala a recepcionista, ao telefone, passa a olhá-la com expressão de pavor.
RECEPCIONISTA
(Off, ao telefone) Oi, Vera, pode falar... (Pausa) Ai, coisa horrível, né?! (Tom)
Menina, sabe que há duas semanas não vou aos pés?! Que agonia que isso
me dá... já tentei uma infinidade de laxantes, mas não vai!!! (Pausa) Ahh...
mas esse probleminha eu tenho desde que me conheço por gente, sabe...
(Pausa) Não... não é isso, não... acho que é coisa mais dos meus nervos,
sabe, Vera... quando ando muito ansiosa, aiii, me tranca tudo!!!
Na pausa em que sua amiga fala, pelo outro lado da linha, a recepcionista não se contém em permanecer,
enquanto escuta, respondendo, incessantemente, com “hum-huns” e “ah-hãs”, olhando o nada, como se
vislumbrasse a amiga, até encontrar Duda, no sofá, a fitá-la, com certa expressão de assombro e repulsa em
relação à sua conversa. Ele desvia imediatamente.
RECEPCIONISTA
(Interrompendo a amiga asperamente) Vera, vamos fazer assim: te ligo
depois... (Pausa) É que agora eu tenho que atender umas pessoas... (Pausa)
Beijo...
Sorrindo, ainda, para Vera, do outro lado da linha, a mulher bate o telefone, apanhando uma caneta Bic e uma
agenda que mais parece a sua caderneta de receitas. Ela procura a página correta e verifica.
RECEPCIONISTA
(Off, para Duda) Aírton?!
DUDA
Não. Meu nome é Eduardo...
RECEPCIONISTA
Algum plano de saúde?
DUDA
Não. É particular...
RECEPCIONISTA
(Rabiscando sua agenda, volta-se então para o homem que já estava
esperando) Tu é do plano de saúde, né?
Ele acena positivo com a cabeça, soltando um “hum-hum”.
RECEPCIONISTA
É, então vai ter que esperar...
Duda nada fala, mas sente-se constrangido diante da imagem daquele pobre e humilde homem. A recepcionista
pega uma revista de fofocas para folhar. Duda permanece sentado, inquieto, rezando para o tempo correr, e
cada vez mais nervoso, alternado com a calma da recepcionista folhando sua revista e com a figura paciente e
submissa daquele homem que está sentada ao seu lado.
Então abre-se a porta do consultório. Duda se volta, aliviado. A recepcionista insiste em sua leitura. De uma sala
pouco iluminada, a qual não podemos ver em função da porta entreaberta, sai uma velhinha, pobre, coitada,
simples, usando óculos de fundo-de-garrafa e sorrindo, feliz da vida. Ela dá “tchal“ ao médico, que não vemos, e
vai embora. É então que surge na porta a imagem inacreditável do médico. Duda procura arregalar os olhos para
clarear a vista. Trata-se de um homem muito feio e vulgar, risonho, trajado em roupas velhas, imundas, de gosto
duvidoso, coberto por um jaleco velho. É um homem completamente asqueroso, tentando passar com um sorrido
nojento uma simpatia que ele não tem. A recepcionista, sentada ao balcão, olha por cima da revista.
RECEPCIONISTA
(Por sobre a revista, para Duda) É a sua vez...
Duda olha brevemente para ela e ergue-se do modulado, sem palavras, caminhando pelo corredorzinho na
direção daquela figura abominável que ainda está parada diante da porta. O rapaz aproxima-se e, o homem abre
130
espaço. Ele entra e o doutor fecha a porta, deixando-nos alguns segundos com a recepcionista e o paciente que
aguarda ali sentado.
Passados alguns segundos de monotonia, o paciente sentado inerte à espera, a recepcionista folhando a sua
revista, abre-se a porta principal e entra uma mulher, uma SECRETÁRIA da vizinhança, com cerca de 35 anos,
levando o mesmo estilo da recepcionista. Apressada, ela nem fecha a porta, aproximando-se da amiga.
RECEPCIONISTA
Humm... quem é viva...
SECRETÁRIA
(Dando três beijinhos na amiga) Nem me fala! Parece que tá todo mundo com
a macaca naquele escritório, hoje... Só dei uma escapada pra te trazer a
revista... (Já vai saindo do consultório) Chefão tá com dor de barriga e eu
tenho que comprar papel higiênico...
RECEPCIONISTA
Ai, Má, quem dera eu tivesse com dor de barriga...
A secretária sorri, numa careta curiosa, sem entender direito aquela estranha afirmação. Ela então dá “tchal-
tchal” para a amiga, que retribui, e vai embora. E ficamos mais uma vez com a monotonia do cunsultório, o
paciente à espera, a recepcionista folhando sua nova revista.
CENA 5 Consultório Sofisticado/Sala de Espera Int (Dia)
A porta se abre e Duda ressurge imediatamente. Notamos, claramente, que, agora, ele usa óculos de fina
armação, por trás de cujas lentes exibe uma olhar e uma expressão de total alívio e satisfação. O personagem
veste as mesmas roupas anteriores e seu aspecto não se alterou. Quando o rapaz afasta-se, percebemos que
ele se encontra numa sala de espera, cujas disposições físicas são idênticas à anterior. Mas tudo agora mudou:
temos, neste momento, um lugar belo e requintado, bem e sobriamente decorado, claro, iluminado, equipado
com móveis caros, modernos, sofás confortáveis, um dos quais ocupado pelo mesmo homem anterior, o qual
mostra-se trajado, desta vez, de modo sóbrio e elegante, numa postura respeitosa, um verdadeiro cavalheiro. A
recepcionista também mudou, pois, bem vestida, graciosa e simpática, não parece em nada com a mulher
nojenta de antes. Duda olha em sua volta, satisfeito, como quem aproveita os primeiros segundos com o seu
óculos novo, o seu novo modo de “ver” a vida. O doutor aparece na porta, em seguida, e percebemos que ele
também parece outra pessoa: usa terno e gravata, sobre os quais ostenta um jaleco limpo e decente. Seu perfil é
impecável, respeitável, extremamente sóbrio.
DOUTOR
(Simpático e prestativo) Foi um prazer...
Ele estende a mão para cumprimentar Duda, que faz o mesmo, com prazer e um sorriso estampado no rosto.
DOUTOR
(Ainda apertando firmemente a mão de Duda) Passe bem, amigo...
DUDA
Muito obrigado... até logo...
Duda encaminha-se calmamente para a porta principal da sala. O oftalmologista permanece sorrindo. Duda leva
a mão à maçaneta, mas hesita, tomado por um pensamento. Ele confere, por mais uma vez, aquilo em que se
transformara a sala de espera anterior. Temos sua visão subjetiva sobre o paciente ali sentado, que lê um
exemplar da Times americana. Ele olha por cima da publicação e oferece um sorriso cordial para o personagem,
que sorri em resposta e já se volta, agora, para a recepcionista, a qual lhe retribui a atenção também com um
sorriso simpático.
RECEPCIONISTA
(Simpática) Tenha um excelente dia, senhor Eduardo...
DUDA
(Sorrindo orgulhoso e satisfeito) Obrigado...
Duda abre a porta e sai, fechando-a atrás de si.
CENA 6 Galeria Sofisticada/Escadarias e Corredores Int (Dia)
131
Duda vem caminhando, com expressão tranqüila, satisfeita, como se fosse um executivo de sucesso numa
propaganda de cigarros, pelo corredor do prédio. Tudo agora é limpo, sofisticado, decorado com lustres e plantas
floridas, num ambiente bonito, bem cuidado, de extremo bom gosto. Mas as disposições físicas são idênticas às
do prédio anterior, indicando tratar-se do mesmo lugar, agora transformado.
O personagem vai aproximando-se então da porta em que antes o jovem casal brigava violentamente. O Marido,
usando terno e trazendo uma pasta de couro, abre a porta do apartamento e entra, fechando-a na cara de Duda.
MULHER
(Off) Oi, meu amor, já chegou! (Beijo ruidoso) Como foi o dia?! Tudo certo?!
Satisfeito, Duda passa pela porta e segue até o elevador, que está em perfeito funcionamento. Ele aperta o
botão de chamada e, segundos depois, abre-se a porta. Em seu interior, Duda vê uma GAROTA, de seus 18
anos, linda e vestida com minissaia branca, trazendo, pela coleira, um delicado cãozinho poodle.
GAROTA
(Sorrindo) Desce...
Sorrindo, Duda entra no elevador, aperta o térreo, as portas se fecham. Quando abrem, estamos no térreo. A
menina sai com seu cachorrinho e Duda sai logo depois, notando que aguardam o elevador uma mãe com um
carrinho de bebê. O rapaz dá uma olhada ao passar pelo carrinho, e sorri satisfeito ao perceber que ali está o
bebê que antes ele vira brincando sozinho pelo corredor do prédio.
CENA 7 Calçadas Sofisticadas Ext (Dia)
Duda sai pelo majestoso portal de um prédio moderno e muito sofisticado. Agora já habituado com sua “nova”
visão, ele vai andando normalmente pela calçada, na direção da sua casa. Pelo caminho, tudo é limpo, tranqüilo,
poucas pessoas, e todas bonitas, ninguém com pressa, nada de empurra-empurra. De repente, então, Duda
sobressalta, apavorado, com um mendigo que parece destoar naquela bela paisagem. E é o mesmo mendigo
que ele tinha visto antes. Duda hesita, pára, pensa, olha o mendigo, olha tudo ao seu redor, e então tem uma
idéia: tira os óculos, limpa as lentes em sua camiseta, dá uma olhada, e então recoloca. Agora, sim, não há mais
sujeiras, o mendigo sumiu, e Duda pode seguir seu caminho tranqüilo e satisfeito. A tela fica preta e então temos
os créditos finais do filme.
Fim
PELA RUA (2003), de Dimitre Lucho e Michele Maurente
FICHA TÉCNICA
Direção: Dimitre Lucho e Michele Maurente.
Roteiro: Leandro Caobelli e Dimitre Lucho.
Produção: Mônica Schmitt.
Elenco: Alexandre Vargas, Julia Presotto, Jesse Guelfi e Carlos Azevedo.
Decupagem da autora feita em novembro de 2005.
Time
Code
Imagem Narração (off) e Diálogo Narração (off)
Insert da voz de Ferreira
Gullar
00:00
EXT/DIA/AVENIDA
Osvaldo Aranha, o
corredor de
ônibus, o poeta
(protagonista), a
musa, a menina
que vende flores
na calçada
Dois milhões de habitantes
Um automóvel | vitrina | esperança |
coração dispara | motores | rumo |
misturado em uma chance em dois
milhões
Quatro milhões de habitantes
Coração
Misturado em uma chance em
quatro milhões
01:05 EXT/DIA/AVENIDA
Violinista na
calçada entre os
Miragem | sem qualquer esperança | na
Avenida Osvaldo Aranha
Na Avenida Nossa Senhora de
Copacabana
132
vendedores
ambulantes. Musa
e o poeta se
desencontram pela
rua.
02:18 PG Calçada
Plongée da
Avenida Osvaldo
Aranha próx. José
Bonifácio
E se esvai assim entre os edifícios
Te espero | te vejo | de azul | miragem |
a pé se desintegra | parada ou andando |
és uma só | talvez
- um xis coração e uma cerveja (poeta)
Comercial | coração | abafado | sem
qualquer esperança | detenho-me diante
de
- 500 litros de cachaça (poeta)
- Pô, não era cerveja, meu querido
(garçom)
- ta bom assim. Obrigado. (poeta)
Domingo | rumo | te espero Sem qualquer esperança |
detenho-me diante de uma vitrina
de bolsas |
na Avenida Nossa Senhora de
Copacabana, domingo |
enquanto o crepúsculo se desata
sobre o bairro
Sem qualquer esperança
te espero | Na multidão que vai e
vem | entra e sai dos bares e
cinemas
surge teu rosto e some
num vislumbre
03:07 INT/BAR
JOÃO/DIA
- um xis coração (moça)
- solta mais um coração (garçom, off)
e o coração dispara.
04:26 EXT/MUSA
No carro, na
calçada, se olha
no espelho
Te vejo no restaurante
na fila do cinema | de azul
diriges um automóvel, a pé
cruzas a rua | miragem
que finalmente se desintegra
com a tarde acima dos edifícios
05:15 INT/BAR JOÃO
PPP GARRAFAS
De cerveja
e se esvai nas nuvens.
A cidade é grande | tem quatro
milhões de habitantes e tu és
uma só.
Em algum lugar estás a esta
hora, parada ou andando, | talvez
na rua ao lado, talvez na praia |
talvez converses num bar
distante
ou no terraço desse edifício em
frente, | talvez estejas vindo ao
meu encontro, sem o saberes, |
misturada às pessoas que vejo
ao longo da Avenida. | Mas que
esperança! Tenho
uma chance em quatro milhões. |
Ah, se ao menos fosses mil |
disseminada pela cidade.
06:00 EXT/SAÍDA BAR
JOÃO/NOITE
A noite se ergue comercial
nas constelações da Avenida. |
Sem qualquer esperança
continuo | e meu coração vai
repetindo teu nome | abafado
pelo barulho dos motores
133
solto ao fumo da gasolina
queimada.
Créditos finais
O BRANCO (2000), de Liliana Sulzbach
FICHA TÉCNICA
Direção: Ângela Pires e Liliana Sulzbach.
Roteiro: Ângela Pires, José Pedro Goulart e Liliana Sulzbach.
Argumento: Marcelo Carneiro da Cunha. Direção de Arte: Ênio Ortiz.
Música: Nico Nicolaiewsky. Narração: Antônio Abujamra.
Elenco: Francisco Milanez (Fredi), Laura Coelho, Lígia Rigo.
Prólogo - Cais do Porto - Ext/Dia
Um intenso pôr-do-sol. Um garoto de uns cinco anos de idade caminha pelo cais, enquanto conversa com o pai.
Fredi:
– Pai, de que cor é o sol?
Pai:
- Depende, Fredi
Fredi:
- Como assim?
Pai:
- Depende da hora. (pausa) Ao meio dia ele é branco.
Fredi:
- Branco?
Pai:
- Branco. E vai ficando amarelo quando é tarde e vai puxando pro vermelho quando começa a
escurecer.
Fredi:
- Eu gosto dele assim, branco.
Pai:
- Agora ele tá vermelho, Fredi.
Fredi:
- Pode ser...Mas eu prefiro ele branco. Eu não gosto quando escurece.
Pai:
- Acho que entendi. É simbólico.
Fredi:
- Que que é Simbólico?
Pai:
- Deixa eu ver...é mais ou menos como quando a tua mãe diz que está com dor de cabeça mas na
verdade ela tá de mal humor.
Pai:
- Ou quando eu te dou um abraço bem apertado...que quer dizer que eu vou ficar contigo pra
sempre.
Cena 1 Banheiro - Int / Dia
Detalhes de um menino, Fredi, agora com 11 anos, se arrumando no banheiro.
134
Narração: Hoje era sábado, Fredi sabia e a mãe nem precisava dizer. Assim como ele sabia sempre os dias da
semana. E cada dia tinha seu jeito.
Cena 2 Cozinha - Int / Dia
A mãe coloca uma xícara na pia, pega uma sacola e sai pela porta. Tudo fica no maior silêncio.
Narração: Na segunda a mãe saía cedo pra fazer a entrega das costuras e a casa ficava em silêncio como
nunca fica. Só ficava o cheiro do café que Fredi não tomava, porque era preto.
Cena 3 Cozinha/ sala de Costura - Int / Dia
Na porta, a irmã entrega o bebê para a mãe e rapidamente se despede.
Narração: Às terças a irmã vinha trazer o bebê bem cedo porque tinha que trabalhar e não tinha onde deixar. E
Fredi escutava a campainha tocando e o bebê chorando. O sobrinho tinha cheiro de leite. E leite era branco.
Cena 4 Feira Livre - Ext / Dia
Barulho de pessoas gritando na feira. Pessoas caminham entre as barracas, feirantes gritam. Fredi e a mãe
caminham entre as pessoas.
Narração: Na quarta e na sexta era dia de feira. A mãe comprava alface, que era verde e couve que era verde e
repolho que era menos verde e podia ser roxo, mas Fredi então não comia. Beterraba ele também não comia,
mas gostava de nabo. E nabo era branco.
Cena 5 Sala de Costura - Int / Dia
Uma mulher experimenta um vestido no qual a mãe faz ajustes com alfinete.
Narração: Entre a feira da quarta e da sexta tinha a quinta no meio. E quinta era o dia em que as freguesas da
mãe iam experimentar as roupas que ela entregava na próxima segunda.
Cena 6 – Sala - Int / Dia
Fredi está sentado na sala, com os ouvidos tapados.
Narração: O que confundia Fredi era o caminhão do gás, que passava todos os dias tocando aquela música
chata que fala da chama azul. Fogo é vermelho, mas a chama da Liquigás é azul.
Cena 7 Banheiro - Int / Dia
Novamente Fredi no banheiro.
Narração: E hoje era sábado. E não estava chovendo. Então ele e a mãe iam sair.
Cena 8 Sala de Costura - Int / Dia
Sons de máquina de costura e um rádio ligado ao fundo. Fredi, agora sim visto de frente e de corpo inteiro,
coloca os óculos escuros. De frente para a costureira, pergunta:
Fredi:
- bonito, mãe?
Narração: Fredi sabia quando a mãe olhava pra ele só pelo barulho da máquina. Quando a máquina parava de
zunir era sinal de que ela estava olhando pra ele.
Mãe:
- Claro que tá meu filho.
Cena 9 - Rua do Bairro - Ext / Dia
Fredi e sua mãe descem uma rua.
Narração: A rua era pra baixo quando saiam e pra cima quando voltavam.
Fredi já sabia até quantos passos eram. Cento e oitenta na ida, duzentos e um na volta. Cansado o passo é
menor.
135
Cena 10 - Parada de Ônibus - Int / Dia
Fredi e a mãe estão na parada de ônibus.
Cena 11- Ônibus - Int / Dia
Mãe e Fredi no ônibus, sentados lado a lado.
A mãe levanta-se e puxa o cordão do ônibus para parar. De fora, ouve-se uma música muito alta, vindo de uma
loja de discos.
Cena 12 - Calçada em Frente à Loja de Discos - Ext / Dia
Fredi e a mãe descem do ônibus.
Cena 13 – Parque - Ext / Dia
Fredi e a mãe estão sentados em um banco no parque.
Narração: Todo sábado a mãe ligava do parque pra alguém que ela dizia se chamar Alice. Ela não gostava que
Fredi escutasse, e ele escutava tudo, de longe mesmo.
Mãe:
- Filho, eu preciso telefonar.
Mãe olha para os lados.
Mãe:
- Não fala com ninguém. Não deixa que percebam nada, senão te roubam até os óculos.
Narração: Fredi sabia que a mãe, mesmo caminhando pra frente, sempre olhava pra trás. Ele então contava até
dez e dava um sorriso, amarelo.
Fredi fica sentado no banco, sozinho.
Narração: De muita gente Fredi não gostava só pelo cheiro quando passavam por ele. De costas o cheiro é de
pó nas roupas. De lado, o cheiro é de suor, descendo da testa pelo lado, entre o colarinho e o pescoço
vermelho. De frente o cheiro é da boca deles, do que eles falam de longe: Colgate, Kolinos, Close-up. Carne,
Feijão, Mentex, algodão doce, sorvete de menta.
Uma menina se aproxima do banco onde Fredi está. Ela tem numa das mãos uma casquinha de sorvete de
menta.
Cláudia:
- Segura aqui um pouco?
Fredi estende a mão, mas o sorvete passa raspando em sua mão e cai ao lado de seu pé.
Cláudia:
- Meu sorvete! Custava ter segurado? Tem gente péssima nesse mundo, nossa!!! Gostou de
ver cair? Queria prá ti, não é mesmo?
Cláudia limpa a calça suja de sorvete.
Cláudia:
- Não vai me responder? Não vai pedir desculpa, nem nada?
Fredi:
- Desculpa.
Cláudia se levanta e passa a mão na frente do rosto de Fredi.
Cláudia:
- Desculpa. Que besteira a minha.
Mulher (off):
- Cláudiaaaa!!! Cláudia.
136
Cláudia (abanando):
- Já vou!
Cláudia (para Fredi):
- Eu tenho que ir. A gente se vê. Tchau!
Cena 14 - Casa de Fredi / Feira Livre - Int - Ext / Dia
Cenas que caracterizam os dias da semana se repetem, dando a noção da passagem do tempo.
Cena 15 - Sala de Costura - Int / Dia
Fredi entra no quarto de costura.
Fredi:
- Tô bonito, mãe?
Fredi sorri.
Cena 16 – Ônibus - Int / Dia
Fredi e a mãe estão no ônibus.
Cena 17 - Calçada em frente à Loja de Discos - Ext / Dia
Fredi e a mãe descem do ônibus.
Cena 18 – Parque - Ext / Dia
Fredi e a mãe estão no parque sentados no mesmo banco do sábado anterior.
Mãe:
- Eu vou telefonar. Fica aqui e não fala com ninguém, hein? Não deixa que percebam nada.
A mãe sai. Fredi fica sozinho no banco.
Cena 19 - Cais do Porto/Parque - Ext/Dia
Flash back. Um intenso sol no cais do porto. Fredi, menor, está com o pai, como na cena do prólogo. No parque,
Cláudia se aproxima de Fredi.
Cláudia:
- Aconteceu alguma coisa?
Fredi:
- Cláudia?
Cláudia:
- Ã hã.
Fredi:
- Não nada, já passou.
Cláudia:
- Você tá sozinho aí?
Fredi:
- Um hum.
Cláudia:
- Eu gosto muito do outro lado do parque, na frente do rio. A gente podia ir até lá.
Cena 20 - Beira do Rio - Ext / dia
Fredi e Cláudia caminham na beira do rio.
137
Cláudia:
- Eu já tinha te dito meu nome?
Fredi:
- Não.
Cláudia:
- E como você sabia que meu nome era Cláudia?
Fredi:
- Eu ouvi quando te chamarem do carro no outro dia.
Cláudia:
- É verdade que os cegos ouvem mais?
Fredi:
- Eu acho que a gente presta mais atenção.
Cláudia:
- E o teu nome, qual é?
Fredi:
- Fredi.
Cena 21 - Beira do Rio - Ext / dia
Fredi e Cláudia estão sentados nos balanços na beira do rio.
Cláudia:
- Fredi, se você pudesse enxergar, o que que você mais gostaria de ver?
Fredi:
- O branco.
Cláudia:
- O branco?
Fredi:
- É, o branco.
(Pausa)
Fredi:
- É... é simbólico, entende?
Cláudia:
- Deve ser duro. Deve ser duro a gente não ver.
Fredi:
- Podia ser pior.
Cláudia:
- Pior?
138
Fredi:
- Podia ser menina.
Cláudia sorri.
Cláudia:
- Desculpa.
Fredi:
- Tudo bem.
Os dois ficam em silêncio, olhando pro rio.
Mãe (off):
- Frediiiii!
A mãe de Fredi se aproxima e puxa Fredi pela mão.
Mãe:
- Te procurei pelo parque todo. Vem! Levanta!
Cena 22 – Banheiro - Int / Dia
Fredi está no banheiro, terminando de se arrumar. Coloca perfume.
Cena 23 - Sala de costura - Int / Dia
Fredi entra na sala de costura.
Fredi:
- bonito, mãe?
O som da máquina de costura continua constante.
Fredi:
- Mãe, a gente não vai no parque hoje?
Mãe:
- Nada de parque por uns tempos, viu Fredi.
Fredi:
- Mas eu preciso, mãe.
Mãe:
- Não e fim. E essa conversa me deu enxaqueca. Vou me deitar.
A mãe sai da sala.
Fredi resolve sair sozinho.
Cena 24 - Parada de Ônibus - Ext / Dia
Fredi está sozinho na parada de ônibus.
Cena 25 – Ônibus - Int / Dia
Fredi está sentado num dos bancos da frente do ônibus. Ele presta atenção aos sons à sua volta. Quando houve
uma música característica, levanta e desce do ônibus.
Cena 26 - Calçada em Frente ao Carro de Som - Ext / Dia
Fredi desce do ônibus, numa rua bastante movimentada.
139
Cena 27 - Ruas do centro da cidade - Ext / Dia
Fredi caminha no meio de uma multidão de pessoas. Esbarra em algumas delas. Está desorientado. Pede ajuda
e tenta se orientar em direção ao parque.
Cena 28 – Parque - Ext / Dia
Fredi finalmente chega ao parque e senta no banco costumeiro. Sorri.
Cláudia (off):
- Oi, Fredi.
Cena 29 - Beira do rio - Ext / Dia
Fredi e Cláudia estão sentados na beira do rio.
Fredi:
- Sabe Cláudia, quando eu tô assim de frente pro sol eu sinto como se eu enxergasse.
Cláudia:
- Mas quando você olha pro sol, você enxerga alguma coisa, alguma luz?
Fredi:
- Não...nada. Mas eu sei que o sol tá lá. Eu sinto um calor no rosto.
(Pausa)
Fredi:
- Cláudia, de que cor é o sol?
Cláudia:
- Ué, nunca te disseram?
Fredi:
- Não...nunca.
Cláudia
- Depende...
Fredi:
- Depende?
Cláudia:
- É, depende. Agora por exemplo...tá totalmente branco.
Vemos um sol inteiramente branco, se pondo no infinito de um rio.
FIM
O OITAVO SELO (1999), de Tomás Creus
FICHA TÉCNICA
Roteiro e Direção: Tomás Creus.
Produção Executiva: Luciana Tomasi e Nora Goulart.
Elenco: Roberto Oliveira (morte), Tiago Real (Francisco), Letícia Liesenfeld (Mariana), Lutti Pereira, Lígia Rigo,
Nélson Diniz.
CENA 1. INT/DIA. REPARTIÇÃO PÚBLICA
140
01. [#1] PR Velho lambendo selo.
02. [#2] PD Mãos de velho colando selo em um envelope.
03. [#3] PD Carimbo carimbando o número 001 no envelope.
04. [#1] PJ Velhinho de pé, atrás de uma mesa, numa repartição pública velha e empoeirada. Atrás e ao
lado, estantes com papéis e pastas de processos amontoados. A iluminação é precária. Os móveis e
objetos de escritório são adequadamente antigos. O velho lambe um selo, cola-o no envelope, e pega o
carimbo.
05. [#3] PD Carimbo carimbando o número 002 no envelope.
06. [#1] PP Velho lambendo um selo.
07. [#2] D Mãos de velho colando selo em um envelope.
08. [#3] PD Carimbo carimbando o número 003 no envelope.
09. [#1] PP Velho lambendo um selo.
10. [#2] PD Mãos de velho colando selo em um envelope.
11. [#1] PD Carimbo carimbando o número 004 no envelope.
12. [#1] PP Velho lambendo selo.
13. [#2] PD Mãos de velho colando selo em um envelope.
14. [#3] PD Carimbo carimbando o número 005 no envelope.
15. [#1] PP Velho lambendo um selo.
16. [#2] PD Mãos de velho colando selo em um envelope.
17. [#3] PD Carimbo carimbando o número 006 no envelope.
18. [#1] PJ Velho lambe selo, cola no envelope, pega carimbo.
19. [#3] PD Carimbo carimbando o número 007 no envelope.
20. [#1] PC Velho coloca envelope sobre a pilha.
21. PD Oitavo selo é pego pelos dedos do velho e levado até a boca.
22. PD Língua de velho engole oitavo selo ao lamber.
23. PC Velho se engasga com selo e tosse.
24. PD Mão de velho derruba pilha de envelopes com a mão. Barulho dele caindo ao chão ao lado da
mesa. Envelopes caindo.
25. Travelling. PC Corpo de velho estendido no chão, de bruços. Pés de alguém e preto param ao lado do
corpo. Câmera se afasta e mostra Morte em PG fumando. Pega carimbo da mesa.
26. PC Morte com cigarro na boca pegando e olhando carimbo. Move carimbo em direção ao envelope.
27. PD Carimbo, visto de cima, indo em direção ao envelope.
CENA 2. EXT/NOITE – RUA. FRENTE BAR OCIDENTE
28. PG Fachada Ocidente. Morte caminhando pela frente do Ocidente (Osvaldo) e freqüentadores na
esquina.
28a. Travelling. PP Morte dobrando a esquina e caminhando entre freqüentadores (um punk, um rasta, dois
clubbers, outros de tribos diversas) que não prestam atenção nela.
28b. PI Morte de costas parando, levantando olhar e olhando para a janela acima dela.
CENA 3. INT/NOITE. BAR OCIDENTE
29. Pan. PG Ambiente. Pessoas dançando, bebendo. Morte chegando.
30. PSOD Barman à direita do quadro secando um copo até aparecer ombro e cabeça de Morte à
esquerda. Barman levanta o olhar e se espante.
141
BARMAN
Ai meu Deus do céu!
30a. PR Morte olhando fixamente para Barman com expressão aparentemente ameaçadora.
31. PC Barman.
BARMAN
Cara, como você ta pálido! Ta precisando de um drinque mesmo. Não te preocupa, o primeiro vai ser
por conta da casa.
Barman serve drinque.
32. PC Morte recusa o drinque com um gesto e tira uma foto do bolso. Estende-a para Barman.
MORTE
Não, obrigado. Eu só estou procurando este homem.
33. PP Barman pegando foto e olhando. Coça a cabeça.
MORTE (FQ)
Viu se ele tá por aí?
34. PD Foto, que mostra FRANCISCO sorridente.
35. PC FRANCISCO sentado numa mesa próxima à janela, sua expressão triste contrastando com o sorriso
da foto anterior. Cadeira à frente da mesa vazia. Francisco está fumando. Ao fundo, Morte, de costas,
conversa com Barman. Francisco olha para o retrato que tem nas mãos.
CENA 4. INT/NOITE – APARTAMENTO
36. PD Retrato de Mariana. Foto é abaixada e revela:
PP Mariana, em pose praticamente igual do que na foto, e no mesmo cenário: a sala de um apartamento
qualquer, meio desarrumado e pequeno. Ela fica um ou dois segundos congelada num sorriso idêntico ao da
fotografia, e então sua expressão de repente se transforma numa careta de raiva.
MARIANA
Va-ga-bun-do ! ! ! ! !
37. PX Francisco e Mariana no apartamento, um de frente para o outro, discutindo.
MARIANA
Escuta aqui, seis meses! Seis meses sem emprego. Você não acha que é demais, não, hein? Eu
segurei por um tempo, mas não vou ficar sustentando você pra sempre!
FRANCISCO
Mari...Puxa, você acha que eu gosto desta situação? Mas é a crise, está todo mundo passando por isso.
Ou por acaso sou só eu que estou desempregado?
MARIANA
142
Não, mas garanto que você é o único que recebeu uma ótima proposta e recusou porque “o ambiente
de trabalho não era bom”.
FRANCISCO
Mas não era mesmo...
MARIANA
Pô, o que você queria, sofás acolchoados, uma massagem no final do expediente?!?
38. PSOE Francisco
FRANCISCO
Pô, Mari, eu fiz faculdade!! Você acha que eu mereço ficar socado num escritório fedorento lambendo
selo o dia inteiro? Pra ganhar uma merreca no final do mês? Ah, pelo amor de Deus!
39. PSOD Mariana de frente.
MARIANA
Olha, eu acho que qualquer coisa é melhor do que NADA!
40. PC2 Francisco e Mariana frente a frente. Breve silêncio. Francisco se vira. Mariana começa a sentar.
41. PJ Mariana de perfil senta no sofá. Francisco ao fundo de costas para ela, próximo à mesa. Mariana
respira fundo. Fica mais calma. Seus movimentos são mais lentos, suaves.
MARIANA
Desculpa. Vai dar tudo certo. A gente vai ficar junto e tudo vai se resolver...
42. PC Francisco de frente e Mariana no sofá ao fundo se restabelecendo. Francisco pegando um papel
(carta) sobre a mesa. Mariana sorrindo.
MARIANA
Lembra quando eu disse que a gente ia ficar junto, mesmo que fosse embaixo de uma ponte?
Francisco olha carta preocupado.
FRANCISCO
Lembro...
(para si mesmo)
Aliás... Talvez seja bom a gente ir procurando uma ponte decente...
MARIANA
(Sem entender)
Quê?
43. PJ2 Francisco se vira, esconde carta às costas.
143
FRANCISCO
Não, nada...
Mariana vê que ele está escondendo algo.
MARIANA
O que é isso aí?
FRANCISCO
(sem olhar pra ela)
Hã... Isso... Chegou hoje de manhã...
44. Travelling. PP Mariana lê a carta.
45. PD Carta. Lê-se “MANDADO DE DESPEJO.”
46. PC Mariana leva as mãos ao rosto, horrorizada, desabando no encosto do sofá. Francisco senta ao seu
lado.
FRANCISCO
Calma, eu conversei com o síndico. É só uma carta de despejo! A gente podia dar um tempo na casa de
amigos e...
Mariana olha para Francisco, o rosto contorcido numa expressão de incredulidade.
MARIANA
A gente o quê?
FRANCISCO
É, eu até já falei com o Beto...
Mariana incrédula.
MARIANA
O Beto?!?
(levanta)
47. PJ Mariana levantando e Francisco sentado.
MARIANA
Ah, claro! A gente pode ficar na casa do Beto, não é?
Mariana se vira para Francisco.
48. PP Mariana
144
MARIANA
Ou até na casa da minha mãe, por que não? Aliás, você pode trazer todos aqueles seus amigos
bêbados e desempregados pra morar lá com a gente. Não tem problema! Pode até trazer alguns desses
miseráveis que moram na rua também, o que você acha? Tem espaço pra todos!
49. PC Mariana se vira, raivosa. Francisco levanta e se aproxima, preocupado.
FRANCISCO
Mariana, meu amor, calma...Puxa vida, o que você quer que eu faça?
Francisco tenta tocar Mariana. Ela não deixa que ele toque nela e se vira novamente para ele.
50. PP Mariana termina de se virar.
MARIANA
(gritando)
Eu quero que você MORRA seu MERDAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH!
50a. PP Francisco atônito.
CENA 5. INT/NOITE – BAR OCIDENTE
51. PC Francisco, sentado na mesa, tira um vidrinho do bolso. Abre e começa a vertê-lo no copo de
cerveja.
52. PD Vidrinho Plongée. Podemos ler claramente o rótulo: “CIANURETO 100mg”. Plano plongée Cianureto
sendo vertido no cidrinho.
53. PD Copo borbulhando. Mãos de Francisco pegam o copo e o erguem.
54. PP Francisco bebe tudo até o fim. Uma sombra passa por ele. Francisco se ira.
55. PV Pan. Francisco olhando pista de dança. Pessoas nas mesas. Quando chega à sua mesa vê Morte
sentada na cadeira da frente.
MORTE
Olá.
56. PSOD Francisco olhando Morte surpreso.
MORTE
Puxa, você veio rápido, hein?
57. PC2 Francisco e Morte frente a frente na mesa de bar. Vemos a cena bem de perfil. Francisco olha para
vidrinho.
FRANCISCO
Eu achava que demorava mais.
MORTE
145
Bom, na verdade eu vim um pouco antes. Tava aqui por perto mesmo. Mas não te preocupa: tu ainda
tem um tempinho.
Morte faz gesto explicando o “tempinho”.
FRANCISCO
Então ta. Quer beber alguma coisa?
MORTE
Não... Mas um cigarrinho eu aceito.
Morte pega um cigarro da carteira de Francisco, o acende.
FRANCISCO
Eu tinha parado de fumar, mas acho que agora não tem problema.
MORTE
Pra mim esse negócio só faz bem. Me revigora completamente.
FRANCISCO
Você está meio acabadinho, hein? Meio gordo. E parece mais velho do que eu imaginava.
MORTE
O tempo passa pra todo mundo.
FRANCISCO
No filme você parecia mais novo.
MORTE
Filme?
FRANCISCO
“O Sétimo Selo”, do Bergman.
MORTE
Ah. Mas ali eles capricharam na maquiagem.
58. PSOE Morte
MORTE
Escuta, vamo deixar de bobagem... Por que tu me chamou?
59. PSOD Francisco
FRANCISCO
Como assim?
146
60. PSOE Morte.
MORTE
Por que tu me chamou? Quer dizer, tu não podia simplesmente esperar tua vê?
61. PSOD Francisco
FRANCISCO
O que você tem a ver com isso?
62. PSOD Morte.
MORTE
Tudo! Eu tenho tudo a ver com isso!
63. PC2 Francisco e morte, um de frente para o outro.
MORTE
Talvez tu não tenha notado, mas eu tou sobrecarregado de trabalho. Olha só. Ta vendo aquele sujeito
lá?
Morte aponta para rapaz bebendo. Francisco se vira para o lado do balcão.
64. PX Rapaz próximo ao balcão, rindo. Completamente bêbado.
MORTE (FQ)
Vou ter que buscar ele logo mais, num acidente de trânsito envolvendo três carros, um ônibus e um
cachorro pequinês
65. cont. 63 PC2 Morte aponta para uma mesa próxima.
FRANCISCO
Um cachorro pequinês?
MORTE
É. E aquele menino de rua lá, ta vendo?
66. PJ Menino de rua vendendo flores.
MORTE (Off)
Fuzilado amanhã de manhã, por um grupo de justiceiros. Que tal?
67. Cont. 65. PC2 Morte aponta ainda para outro lugar.
147
MORTE
Tem mais. Aquela mulher? Disfarça, disfarça.
Francisco se vira, pára, se vira.
68. PC Moça com olheiras debruçada perto da janela.
MORTE (FQ, sussurrando)
Pffff. Overdose. Daqui a duas horas.
69. Cont. 67. PC2 Morte e Francisco frente a frente.
MORTE
E tem mais uma menina que fez uma dieta absurdamente fraca em calorias, ficou com anorexia, e daqui
a...
Morte tira um relógio do bolso. Olha.
70. PD Relógio de Morte.
71. Cont. 69. PC2 Morte e Francisco.
MORTE
Ahn...três minutos vai ter um troço na pista de dança.
72. PP Morte.
MORTE
Olha aqui... A gente vive num mundo em que as pessoas me procuram por qualquer bobagem. E você
ainda me chama, assim, sem razão nenhuma, só pra complicar o meu dia.
73. PSOD Francisco constrangido.
FRANCISCO
Desculpa.
74. PSOE Morte.
MORTE
AGORA você me pede desculpas.
75. PSOD Francisco.
FRANCISCO
Eu... Eu só tava curioso.
148
76. PSOE Morte.
MORTE
Curioso? Gracinha...
77. PC2 Morte e Francisco.
FRANCISCO
É. Eu queria saber como é depois... O outro lado, entende...
Francisco gesticula, sem encontrar palavras. Morte imita o seu gesto.
FRANCISCO
Ah... Quer cerveja?
MORTE
Não bebo em serviço.
FRANCISCO
Ah, deixa de bobagem. Bebe aí.
Francisco lhe serve um copo. Morte olha para o vidrinho sobre a mesa. Aponta para vidrinho.
MORTE
Isso aqui... é cianureto?
FRANCISCO
100% puro.
78. PP Morte pega o vidrinho e se prepara para colocar um pouco no seu copo.
MORTE
Posso?
FRANCISCO (FQ)
Claro.
Morte coloca cianureto na sua cerveja, depois bebe.
MORTE
Ah... Adoro esse negócio...
79. PC2 Morte e Francisco frente a frente.
FRANCISCO
149
Tá. Agora me conta...
80. PSOD Francisco.
FRANCISCO
O que existe do outro lado?
81. PSOE Morte da de ombros.
MORTE
Ah, tu logo vai descobrir...
82. PSOD Francisco.
FRANCISCO
Eu prefiro que você me conte. Não gosto muito de surpresas.
83. PSOE Morte.
MORTE
Sinto muito, mas não posso dizer.
84. PC2 Morte e Francisco frente a frente.
FRANCISCO
Tá, mas pelo menos me responde isto... Tem alguma coisa mesmo, qualquer coisa que seja... ou é só o
vazio infinito? O nada total?
Morte fica pensando. Abre a boca como se fosse dizer algo, mas desiste.
MORTE
Ahn... Olha, eu gostaria de dizer, mas não posso. Realmente não posso. Ordens superiores.
FRANCISCO
Bom. Então pelo menos eu sei que tem um Deus lá em cima mandando em ti...
MORTE
Bobagem. Deus não existe.
Morte bebe cerveja.
85. PSOD Francisco surpreso.
FRANCISCO
Não? Mas você falou em “ordens superiores”...
150
86. PSOE Morte.
MORTE
Tem um diretor geral de operações terrestres. É um cargo eletivo, com um ocupante terráqueo que
muda a cada quatro anos.
87. PSOE Francisco.
FRANCISCO
Uau... E quem é o chefe agora? Vamos lá, você pode dizer pra mim... Quem é?
88. PC2 Morte e Francisco. Morte se servindo cianureto. Começando a levar o copo à boca.
FRANCISCO
É o Bill Clinton? Leonardo Di Caprio?... Bill Gates?
Morte arqueia as sobrancelhas como se Francisco houvesse batido em alguma tecla próxima.
89. PP Francisco
FRANCISCO
Bill Gates? Não acredito, é o Bill Gates?
90. PJ Morte levanta. Francisco fica sentado.
MORTE
Já disse, não posso dizer NADA. Já falei mais do que devia. E depois, tá quase na hora de eu te levar.
Vambora.
FRANCISCO
Não, peraí... Eu juro que não faço mais perguntas. Por favor, senta aí. Vamos tomar a saideira. Garçom!
(faz sinal com a mão, chamando)
Morte senta de novo. Os dois ficam em silêncio alguns segundos.
FRANCISCO
Posso fazer... ahn... só mais UMA PERGUNTA? Não é nada “metafísico” não, é só uma curiosidade.
Barman põe a cerveja e mais um copo na mesa.
91. PSOE Morte, expressão irritada.
MORTE
O quê?
151
92. PSOD Francisco.
FRANCISCO
É sobre essa tal “dança da morte”. Como é isso? Você DANÇA mesmo com as pessoas?
93. PSOE Morte.
MORTE
Claro! E danço MUITO bem por sinal. Quer ver? Presta atenção.
Morte começa a levantar.
94. PJ Morte levanta e vai em direção a pista de dança.
95. PX Pista de dança. Música alta. Pessoas dançando.
96. PP Francisco (de costas para a câmera) olhando a cena. Morte dançando ao fundo (PG).
97. Cont. 95. PX Morte dançando com menina.
98. PC Mulher e um companheiro, ele com expressão triste. Estão olhando para a pista de dança. Barman
atrás do balcão também olha.
MULHER
Que engraçado aquele cara todo de preto dançando... Tenho a impressão de já ter visto ele antes...
Barman debruça-se sobre o balcão.
BARMAN
É, acho que é vocalista de uma banda famosa.
Mulher assente com a cabeça. HOMEM não dá bola, continua triste, olhando fixamente para a pista de dança.
MULHER (para HOMEM)
Você tá bem?
99. PC2 Morte e menina, dançando bem próximos.
100. PP Menina sorrindo inocentemente.
101. PP Morte sorrindo soturnamente.
102. PJ Morte e menina dançam frente a frente. Morte pega a menina pela mão e a faz girar.
103. Travelling girando PV menina.
104. PP menina sorrindo depois de parar de girar.
105. PC2 Morte se aproxima e toca com a mão no rosto da menina. Ela fica olhando fixamente para Morte,
como que em transe. Morte tira a mão. A menina cai ao chão.
106. PP Cabeça de menina caindo ao chão. Pessoas se abaixam.
107. PG Pessoas aglomeradas em torno a menina caída. Morte vem vindo em direção a mesa.
108. PJ Morte volta para a mesa, senta. Francisco segue olhando para a pista com expressão perplexa.
152
MORTE
E então? Que achou? Gostou da classe?
FRANCISCO
É, não estava mal... Mas... Ela...
Francisco aponta para pista de dança.
FRANCISCO
Ela tá morta mesmo?
MORTE
É a vida... Ou é a morte? Ah, tu entende.
Morte bebe um gole de cerveja e olha para Francisco, que se vira para Morte.
FRANCISCO
Ela era tão jovem... Por quê?
MORTE
Por quê? Por quê? Os humanos e seus eternos “porquês”... Vamo falar do teu caso. Por quê? Hein?
Por que tu quis te matar? Não vem com essa que foi só curiosidade...
FRANCISCO
Como assim?
MORTE
Garanto que foi por causa de mulher.
FRANCISCO
Ah... De onde você tirou essa idéia absurda?
MORTE
Escuta... Eu trabalho nesse negócio há milhares de anos. Sempre que um sujeito tenta se matar, é
batata: tem uma mulher no meio. Às vezes até duas.
FRANCISCO
Bom... Tá certo, tem UMA mulher. Mas a culpa não foi dela. A gente se desentendeu, brigou...
109. PP Morte.
MORTE
É, vocês humanos vivem brigando... Matam e morrem por motivos tão (faz gesto) fúteis... Porra, viver
não é tão ruim assim! Tá certo...
153
Morte pega cerveja, se serve.
MORTE
... o cara tem que andar sem rumo, num universo incompreensível...
Morte pega cianureto e coloca no seu copo.
MORTE
... seguindo uma rotina repetitiva dia após dia...
Morte termina se servir cianureto, bate bem pra sair tudo, Francisco fica olhando. Morte bebe um golinho.
MORTE
... em busca de uma felicidade que sempre foge...
Morte avança para carteira de cigarros sobre a mesa. Francisco pega ela antes que ele.
110. PSOD Francisco olhando carteira entregando um cigarro a Morte.
111. Cont. 109. PP Morte pegando cigarro das mãos de Francisco.
MORTE
... sentindo a irreversível degradação do corpo...
Morte leva cigarro apagado até a boca.
MORTE
... e sabendo que algum dia vai morrer...
Morte dá uma pequena pausa. Tira cigarro da boca. Parece pensar sobre o que acabou de dizer.
MORTE
Porra... Pensando bem, deve ser uma merda mesmo... (acende cigarro)
Bom, mas vocês já estão acostumados. E depois, a maioria dos suicídios e assassinatos são uma coisa
tão fácil de evitar, tão desnecessária! Mas não adianta, vocês vão em frente. E depois, claro, quem
paga o pato sou eu.
Morte solta uma baforada. Olha o relógio.
112. PJ Morte e Francisco.
Olhando para o relógio, se assusta. Morte levanta. Francisco permanece sentado, com uma expressão
pensativa.
MORTE
Bom, chega de papo. Vamo lá que ainda tenho uma longa noite de trabalho.
154
FRANCISCO
Não, espera. Eu... Ahn... Eu mudei de idéia.
Morte dá uma gargalhada.
113. PP Gargalhada morte.
114. PC Francisco sentado olhando para morte.
FRANCISCO
É sério. Escuta, você me convenceu. A vida deve ser vivida até o fim, mesmo que às vezes pareça
ridícula ou sem sentido. Tudo dura tão pouco tempo mesmo! É você ta atrolhado de trabalho, não quero
causar incômodo...
Francisco tenta se levantar.
FRANCISCO
Tô liberado?
Morte pousa a mão sobre o ombro, fazendo-o sentar de novo.
MORTE
É um pouco tarde para arrependimentos. Agora tu já me chamou.
FRANCISCO
Ta, mas se você tivesse calado essa matraca eu não ia ter mudado de idéia!
MORTE
Eu só dei minha opinião! Não tenho culpa se você é mais um desses babacas sem convicções!
Francisco levanta e encara Morte.
FRANCISCO
ÔOO!
115. PP2 Morte e Francisco se encarando. Francisco se dá conta do erro e recua.
116. PJ Morte e Francisco.
FRANCISCO
Olha aqui... Vamos fazer o seguinte.
FRANCISCO
Vamos resolver isto num jogo.
MORTE
155
Jogo?
FRANCISCO
É. Você já fez com outras pessoas, que eu sei. Acho que eu também tenho o direito.
MORTE
Tá bom... Mas olha que eu não jogo xadrez desde a Idade Média.
FRANCISCO
E quem falou em xadrez? Não, este jogo é muito mais divertido. Vem cá.
Morte vai atrás de Francisco.
CENA 6 – INT/NOITE – BAR – MESA DE SINUCA
117. PJ Morte e Francisco atrás de mesa. Francisco apontando.
FRANCISCO
Entendeu? Você tem que colocar as bolas coloridas nas caçapas. A bola preta é a última. Quem colocar
ela primeiro ganha. Ah, e se só estiver faltando a bola preta e você colocar a bola branca dentro, ou
errar, você também perde. Tá?
MORTE
Eu já entendi, eu já entendi.
Morte pega o taco ao contrário e se prepara para jogar.
118. PP Morte mirando com taco ao contrário.
119. Cont. 17. PJ Francisco o corrige.
120. PP Francisco sorri com certa superioridade, sacudindo a cabeça e colocando giz no seu taco.
121. PC Morte vai dar a tacada, agora com o taco certo.
122. PD Taco batendo na bola branca. Pan acompanha bola branca, que bate na bola 1. Bola 1 vai indo em
direção à caçapa. Entra.
123. PP Francisco olhando como quem pensa “sorte de principiante”.
124. PC Morte mirando e jogando.
125. PD Mesa de sinuca. Bola branca batendo em bola 2.
126. PD Bola 2 batendo em bola 3.
127. PD Caçapa. Bola 2 entrando.
128. PD Caçapa. Bola 3 entrando.
129. PP Francisco, mais preocupado.
130. PC Morte jogando com o taco as costas, se exibindo.
131. PD Ponta do taco. Bola 4 em jogada de tabela, entrando na caçapa.
132. PP Francisco preocupado.
133. PP Morte jogando.
156
134. PD Caçapa. Bola 5 entrando.
135. PD Caçapa. Bola 6 entrando.
136. PD Caçapa. Bola 7 entrando.
137. PJ Mesa com só bola preta faltando. Tilt. Morte olha para Francisco.
MORTE
Estou fazendo certo?
138. PC Francisco lança um olhar desanimado, de quem não acredita no que vê, e senta.
139. PP Morte pega giz e passa no taco.
MORTE
Well, well... Parece que tá tudo terminado. Uma pena, porque eu tava até começando a gostar de ti...
Mas sabe como é, tenho que fazer o meu trabalho.
140. PD Mão de Morte passando giz no taco.
CENA 7. INT. BAR – PRÓXIMO BALCÃO
141. PC Mulher e seu companheiro, de pé, próximos ao balcão. Ele triste.
MULHER
Não fica assim... Sorri um pouco.
HOMEM
Hmrhrnhpfghfpf.
MULHER
Eu sei que você está triste pelo seu avô, mas puxa, ele já estava com noventa e tantos anos, né... Já
era mais do que hora!
HOMEM
Eu sei... Não é a morte em si, é COMO ele morreu. Porra,engasgado com um selo?!? Que morte mais
estúpida! Ridícula! O que eu vou dizer pras pessoas?
MULHER
Ah, também não é causa para tanto drama. Existem mortes mais ridículas!
VOLTA CENA 6. INT. BAR – MESA DE SINUCA
142. PP Morte, com cara meio ridícula, arqueando as sobrancelhas. Olha para a bola preta, a última. Se
abaixa e mira. Bola fora de foco em PD.
157
MORTE
Hasta la vista, Gustavo.
Correção de foco para bola em PD. Morte começa a pegar impulso para acertar a bola.
143. PX Francisco e Morte.
FRANCISCO
(Surpreso)
Espera aí! Meu nome Não é Gustavo!!
Surpreendida, Morte desvia o taco e acerta uma cacetada na bola branca,que sai voando da mesa.
143a. Close Francisco olha o trajeto da bola.
144. PD Bola em cima da caixa de som.
VOLTA CENA 7. INT. BAR – PRÓXIMO BALCÃO
145. PC Homem e mulher.
HOMEM
Mortes MAIS ridículas? Me dá um exemplo! Me dá um exemplo!
146. PD Bola de cima, caindo em direção a cabeça do homem.
147. PC Mulher e homem. Bola cai lá de cima, bem na cabeça do homem. Ele grita e cai ao chão.
VOLTA CENA 6. INT. BAR – MESA DE SINUCA
148. PC Morte e Francisco
MORTE
(Surpresa)
Você não é o Gustavo?
FRANCISCO
Não, eu sou Francisco. Francisco Rosa. Pode ver, tá aqui na minha carteira de identidade.
Francisco mostra a sua carteira de identidade para Morte.
CENA 9. INT. HOSPITAL – QUARTO DE FRANCISCO
155. PD Olhos abrindo.
158
156. PV Olhos se abrindo. Quarto de hospital. Cama e arredores. Imagem primeiro desfocada, depois normal.
Mariana chorando.
MARIANA
Chico... Chico... Por que você foi fazer uma coisa dessas? E se você morresse? Eu não falava sério,
jamais poderia viver sem você... eu te amo, droga.
157. Travelling. PC Mariana de costas e Francisco de frente.
Os dois se abraçam. Câmera se afasta até que vemos ombro e cabeça de Morte atrás deles, de costas, olhando
a cena.
158. PP Morte fumando um cigarro ao lado de uma placa que diz “Proibido Fumar”, olhando a cena com um
sorriso que é meio de simpatia e meio de desdém.
159. Cont. 157. PC Morte de costas. Vai virando o olhar. Passa pelo biombo que divide duas camas. Vemos um
médico que fala com mulher de Gustavo. Gustavo está na cama, entre eles e a Morte.
160. PC MÉDICO fala com a MULHER de Gustavo.
MULHER
Doutor... Ele ainda tem chances de sobreviver?
MÉDICO (acendendo um cigarro)
É claro. Somos uma equipe ALTAMENTE especializada! Não precisa se preocupar com nada.
Médico deixa carteira de cigarros sobre mesinha ao lado da cama.
MULHER
Mas... o senhor mesmo não falou que ele está em coma profundo... com diversas fraturas cranianas... e
danos cerebrais irreversíveis?
MÉDICO
Confie em nós. Estamos trabalhando 24 horas por dia na recuperação do paciente.
Entra enfermeira.
ENFERMEIRA
Doutor, doutor, o jogo começou!
MÉDICO
(olhando relógio)
Já?!? Cacete...
O médico sai com pressa da sala atrás da enfermeira. Mulher fica olhando com cara de tacho.
159
MULHER
Doutor? Doutor?
Mulher sai atrás deles.
161. PP Morte olha para a cama onde está o paciente. Atira o cigarro ao chão.
162. PP Morte de costas indo em direção à cama de Gustavo.
163. PC Morte de frente perto da cama de Gustavo. Pega carteira de cigarros de médico sobre a mesinha e
coloca no bolso.
164. PD Eletrocardiograma bipando. Mão da Morte aproxima e estala as mãos. Eletrocardiograma começa a
bipar em ritmo pop. Começa a mesma música da pista de dança.
165. PC Morte tira Gustavo da cama. Fica dançando ao ritmo da música com ele, que está quase desmaiado.
166. Travelling. PJ Morte e Gustavo dançando. Gustavo cai ao chão. Câmera se aproxima até chegar no rosto
de Morte. Morte vira-se para a câmera, olha o espectador e pisca sinistramente.
SEQÜÊNCIA DE CRÉDITOS FINAIS
ÂNGELO ANDA SUMIDO (1997), de Jorge Furtado
FICHA TÉCNICA
Roteiro: Rosângela Cortinhas e Jorge Furtado.
Direção: Jorge Furtado.
Produção: Casa de Cinema de Porto Alegre.
Produção Executiva: Nora Goulart e Luciana Tomasi.
Elenco Principal: Sérgio Lulkin (José) / Antônio Carlos Falcão (Ângelo) / Carlos Cunha Filho (vigia na guarita).
CENA 0 - TV / ESTÚDIO (ARQUIVO)
Comercial de páscoa. A televisão muda rapidamente de canal,
mostrando fragmentos de vários programas. Trilha e créditos.
CENA 1 - INT/NOITE - CORREDOR DO EDIFÍCIO DE JOSÉ
José, pouco mais de 30 anos, ar tranqüilo, sentado numa poltrona,
com o controle remoto na mão, desliga a televisão. Ele se
levanta, pega uma mochila e caminha em direção à porta.
JOSÉ (OFF)
Eu lembro que saí de casa antes das nove porque a novela
estava começando. Eu desliguei a tevê e saí. Eu não tinha
almoçado e estava com muita fome.
José sai e fecha a porta de seu apartamento. No corredor, ele
abre a caixa de correspondência. Ele examina alguns cartões.
JOSÉ (OFF)
Eu lembro também que eu peguei a correspondência. Tinha a
conta da luz, um cartão de uma desentupidora que eu não
lembro o nome e um anúncio de uma loja chamada Siamarrô,
tudo junto. Inesquecível.
160
Põe o cartão no bolso.
CENA 2 - EXT/NOITE - FRENTE DO PRÉDIO DE JOSÉ
José sai do prédio. O porteiro, 45 anos, gordo, ar relaxado, que
estava numa cadeira ao lado da porta, ergue-se e acompanha José
até o portão do prédio, descendo as escadas.
PORTEIRO
E esse calorão?
JOSÉ
Esquentou mesmo.
PORTEIRO
Minha prima passou este fim de semana na praia, voltou com a
pele em carne viva.
José guarda suas chaves no bolso. Com um molho de chaves, o
porteiro abre o portão.
PORTEIRO
É o ozônio do sol que provoca estes buracos nas camadas da
pele. O ozônio que eles usam para fazer desodorante e motor
de geladeira. Eu vi uma reportagem na tevê. Impressionante.
José fica pensando alguns segundos antes de responder.
JOSÉ
Pois é.
José sai, o porteiro fecha e chaveia o portão.
JOSÉ
(ao porteiro) Boa noite.
José caminha pela calçada.
JOSÉ (OFF)
Onde eu estava? Ah, sim, indo para a casa do Ângelo.
Caminhei até o ponto do ônibus.
José pára. Olha para trás como se tivesse esquecido de algo.
JOSÉ
Não, não...
Fecha os olhos.
José sai, o porteiro fecha e chaveia o portão.
JOSÉ
(ao porteiro) Boa noite.
JOSÉ (OFF)
Acho que eu peguei um táxi.
José faz sinal para um táxi.
JOSÉ
Táxi!
O táxi pára.
JOSÉ (OFF)
161
É, foi isso, peguei um táxi. Eu estava morrendo de fome.
Ele entra no táxi.
CENA 3 - INT/NOITE - TÁXI
O rádio do táxi toca uma música em altíssimo volume.
JOSÉ
Eu estou indo para o centro.
O motorista aciona o taxímetro.
JOSÉ
O senhor pode abaixar um pouco o rádio?
O motorista diminui o volume do rádio. José pega no bolso a
carteira e dela tira um papel.
JOSÉ (OFF)
Eu não via o Ângelo desde a faculdade.
CENA 4 - EXT/DIA - RUA E ÔNIBUS
Ângelo está dentro de um ônibus, na janela. José está de pé, ao
lado do ônibus. Ângelo anota alguma coisa num caderno, rasga e
entrega para José enquanto o ônibus parte.
JOSÉ (OFF)
A gente se encontrou uns dias antes e marcou de jantar no
sábado.
CENA 5 - EXT/NOITE - TÁXI
O papel está rasgado. Falta um pedaço do número do apartamento:
40... O táxi dá uma freada brusca.
MOTORISTA
(gritando) Quer morrer, animal?!
José guarda o papel e dá uma olhada na conta da luz.
MOTORISTA
(resmungando) Maloqueiro, raça de vagabundo! Só matando
tudo!
JOSÉ (OFF)
Não lembro que caminho o táxi fez.
CENA 6 - TABLE-TOP - MAPAS
Animação mostrando o caminho do táxi pelas ruas da cidade.
JOSÉ (OFF)
Ele pode ter dobrado a esquerda, logo depois da praça, e
seguido direto até o centro. Ou ele pode ter feito a volta
na praça e descido até a perimetral. Não lembro.
CENA 7 - EXT/NOITE - RUAS (VIADUTO)
José desce do táxi.
JOSÉ
162
Eu lembro que ele me deixou a umas duas quadras da casa do
Ângelo, porque a rua dele era contramão.
José caminha sob o viaduto. Cruza com um homem que tem dois cabos
de vassouras nos ombros e, em cada um deles, sacolas plásticas de
diferentes tamanhos. O homem fala sozinho.
MENDIGO
Eu sabia que aquela era a minha chance. Desgraçado,
bagaceiro! Eu sabia! Coisa de bagaceiro, mesmo! (resmungos
incompreensíveis].
José não pára. Cruza com um grupo de mendigos que, aparentemente,
passa as noites sob o viaduto.
CENA 8 - EXT/NOITE - FRENTE DO PRÉDIO DE ÂNGELO
José chega na frente de um prédio. É um prédio antigo, cinza,
quatro andares. Ângelo examina o porteiro eletrônico, confere o
endereço no papel.
JOSÉ (OFF)
Duas chances: quatrocentos e um ou quatrocentos e dois.
(toca no porteiro eletrônico) Apertei no quatrocentos e um.
Ninguém responde. De uma janela aberta do prédio vem uma música
muito alta.
JOSÉ (OFF)
Alguém estava ouvindo uma música altíssima. Pelo que eu me
lembrava do Ângelo, podia até ser ele.
Ele toca outra vez.
JOSÉ (OFF)
Toquei também no quatrocentos e dois.
Nada. Uma moça sai do prédio. Ela lê um cartão-postal e sorri.
Quando vê José, seu rosto se modifica, se fecha. Ela se aproxima
de José, cautelosa.
JOSÉ
Boa noite. Podia abrir para mim? O meu amigo não está
escutando.
MOÇA
Onde é que o senhor vai?
JOSÉ (OFF)
E agora?
JOSÉ
No apartamento de um amigo meu, o Ângelo do... (cobrindo a
boca com a mão) quatrocentos e (grhums).
A moça olha para ele, de baixo para cima, lentamente. Detalhes do
tênis de José, da calça de José, mãos e rosto de José.
JOSÉ (OFF)
Ela olhou para mim, de baixo para cima. Se eu estivesse de
chinelo, ou de calção, ou tivesse as mãos muito fortes, ou
se a minha pele fosse marcada pelo trabalho ao sol, ou,
simplesmente, se eu fosse preto, não teria a menor chance.
José sorri.
163
INSERT: Ficha odontológica de José.
JOSÉ (OFF)
Eu sorri, passando no último teste: todos os dentes.
Ela abre a porta.
JOSÉ (OFF)
No Brasil, dente é salvo conduto. Não saia de casa sem eles.
Ela sai, sempre olhando para José com alguma desconfiança, fecha
e chaveia o portão externo do prédio.
JOSÉ
Obrigado.
José atravessa a ponte do edifício e se depara com a porta do
prédio fechada. Tenta abri-la. Toca em outro porteiro eletrônico.
Nada. Os Replicantes continuam aos gritos. Abre-se uma janela no
terceiro andar. Ele se afasta do prédio e tenta ver alguém. Uma
mulher surge na janela com um saco plástico nas mãos.
JOSÉ
Senhora!
Ela não responde e joga o saco pela janela. O saco cai na calçada
ao lado de uma lixeira. Ao cair, o saco se abre espalhando lixo
pela calçada. Mendigos se aproximam e catam o lixo.
JOSÉ
Senhora!
MULHER 1
Que que é?
JOSÉ
A senhora podia abrir para mim?
MULHER 1
Como é que tu entrou?
JOSÉ
Eu estou indo na casa de um amigo meu...
MULHER 1
Não pode ficar aí. É proibido. Eu vou chamar a polícia.
JOSÉ
Senhora!
Ela entra e fecha a janela. Ele aperta mais uma vez no porteiro.
JOSÉ
(gritando) Ângelo!
Ninguém responde. A música segue alta. Ele senta no degrau da
porta. Um mendigo passa caminhando na calçada. José olha para
ele. A música pára. Ele se ergue rapidamente.
JOSÉ
(gritando) Ângelo! Ângelo! Ângelo!
Ele aperta muitas vezes o botão do porteiro eletrônico.
JOSÉ
Ângelo!
164
A música recomeça. José desiste e tenta sair do prédio. Não
consegue, o portão está trancado. Ele sacode o portão, muito
irritado, os Replicantes aos gritos. Ângelo tem um surto, sacode
e chuta o portão. Dois novos moradores, um homem e um velho,
surgem nas janelas do prédio e do prédio vizinho.
HOMEM 2
O que está acontecendo aí?
Ele tenta se acalmar.
JOSÉ
Desculpe, mas é que eu fiquei preso aqui.
A Mulher abre a janela.
HOMEM 3
Que barulho é esse? Tem gente doente no prédio!
MULHER 1
Ele tá emaconhado! A polícia já vem vindo.
JOSÉ
Eu sou amigo do Ângelo, do quatrocentos e dois.
HOMEM 2
Quem mora no quatrocentos e dois é a dona Marilda
Cantarelli!
MULHER 1
Eu não disse que ele tá emaconhado?
Um carro da polícia se aproxima e pára.
MULHER 1
Olha eles aí. (ao Homem 3) Eu sou tia do delegado Soares da
décima primeira.
Um policial desce e se aproxima de José.
POLICIAL
Qual é o problema?
MULHER 1
Ele tá emaconhado!
HOMEM 3
Ele invadiu o prédio!
JOSÉ
(ao policial) Eu fiquei preso aqui. Estou tentando ir na
casa de um amigo meu, o Ângelo, do quatrocentos e um.
HOMEM 2
Antes ele disse que era no quatrocentos e dois.
MULHER 1
Viu?
HOMEM 3
Ele tentou quebrar o portão.
JOSÉ
Eu fiquei preso, estava tentando sair. É só tocar no
apartamento 401, chamar pelo Ângelo.
O policial olha José de baixo a alto. José sorri.
165
POLICIAL
(para a Mulher) A senhora podia tocar no 401, por favor?
Como é o nome do seu amigo?
JOSÉ
Ângelo.
POLICIAL
Ângelo de que?
JOSÉ
Como?
POLICIAL
Qual o sobrenome nome dele?
JOSÉ
Não sei. Acho que é Ângelo Chaves. Todo mundo sempre chamou
ele de Ângelo.
A Mulher sai da janela.
HOMEM 3
A gente não tem mais sossego nessa rua. Eu estou com a minha
mulher doente numa cama com problema de rins. Um inferno.
A música pára. Ângelo aparece na janela.
JOSÉ
Porra, Ângelo!
ÂNGELO
O porteiro está estragado. Ele é meu amigo, pode subir.
JOSÉ
(ao policial) Eu não lhe disse?
Ângelo joga um grande molho de chaves.
ÂNGELO
(grita) Não pega que dói a mão!
José protege a cabeça. Um grande molho de chaves se aproxima do
chão. A chave cai, com um estrondo. José se abaixa e pega.
JOSÉ
Muito obrigado. (para os moradores, irônico) Obrigado para
vocês também. Tudo de bom.
Ele tenta abrir a porta do prédio, testando as muitas chaves.
ÂNGELO
(grita) Na fechadura de cima é uma com o cabo preto, mais
velha. A de baixo é uma doberman.
Os moradores, o policial e os mendigos ficam todos olhando para
José. Ele, nervosamente, tenta abrir a porta. Finalmente ele
consegue e sorri, aliviado. José abana para o policial e entra.
CENA 9 - INT/NOITE - CORREDORES DO PRÉDIO, TÉRREO
As portas dos apartamentos do térreo têm sobreportas de grades de
ferro. José passa por uma porta onde, pela janelinha, dois olhos
o observam. José entra no elevador.
166
CENA 10 - INT/NOITE - ELEVADOR
José aperta o botão do quarto andar e se encosta na parede do
elevador, tentando relaxar.
JOSÉ (OFF)
Só lembrei da minha fome quando entrei no elevador. Minha
última refeição quente tinha sido o almoço do dia anterior:
lombinho de porco, daquele bem fininho, arroz, com o molho
do lombinho assim, por cima, purê de maçã e uma saladinha de
maionese.
José chega no quarto andar e descobre que a porta do elevador
também tem chave. Tenta descobrir no molho de chaves qual é a do
elevador. A porta pantográfica do elevador começa a se fechar.
José aperta o botão de "abrir" e tenta, só com uma mão, descobrir
qual é a chave certa. A porta pantográfica fica enlouquecida,
tentando se fechar. Finalmente ele abre a porta e sai do
elevador.
CENA 11 - INT/NOITE - CORREDORES DO PRÉDIO, QUARTO ANDAR
No meio do corredor há uma grade de ferro que isola os
apartamentos do resto do prédio. Ele aperta na campainha do 401 e
os olhos de Ângelo aparecem na janelinha da porta. Ângelo põe a
boca na janelinha.
ÂNGELO
Você vai ter que abrir. Está no mesmo chaveiro, a outra cópia sumiu.
Procurando no chaveiro.
JOSÉ
Qual é?
ÂNGELO
Uma gold amarelinha, meio torta. Uma mais quadrada.
JOSÉ
Achei.
José abre a grade e se aproxima da porta do apartamento. Tenta
passar as chaves para o amigo pelo visor da porta mas o chaveiro
é muito grande.
ÂNGELO
Não passa.
JOSÉ
Ai meu Deus!
ÂNGELO
Abre você. A de cima é uma comprida, redonda, acho que é
Jorajas, Jojoras, uma coisa assim. Prateada.
Experimenta a chave.
JOSÉ
Achei, mas não vira.
ÂNGELO
Tem um jeitinho. Empurra o miolo da fechadura com o polegar
da mão esquerda e gira com a direita, ao mesmo tempo.
A chave gira.
167
JOSÉ
Deu.
ÂNGELO
A do meio está do lado, na mesma argola. Acho que é Papaiz.
Experimenta. A chave gira.
JOSÉ
Deu. Eu estou morrendo de fome.
Ângelo passa uma bolacha pela janelinha.
ÂNGELO
Quer uma bolacha?
JOSÉ
Quero. Qual é a de baixo?
José pega a bolacha e come.
ÂNGELO
A de baixo é fácil, uma vermelha.
José acha a chave, põe na fechadura, gira a chave. Experimenta o
trinco mas a porta não abre.
ÂNGELO
Acho que na de cima você só deu uma volta.
José procura a chave.
JOSÉ
Qual é a de cima mesmo?
ÂNGELO
Uma comprida.
José põe a chave, gira e tenta a maçaneta. A porta abre mas
tranca numa correntinha.
ÂNGELO
Deu. Fecha para eu abrir.
José fecha a porta. Som da correntinha sendo aberta. A porta se
abre. Ângelo, com duas bolachas na mão, sai do apartamento.
ÂNGELO
Nem entra, que a reserva no restaurante é para às dez. Tudo
bem? Você emagreceu.
JOSÉ
Deve ser a fome. Estou morrendo de fome.
ÂNGELO
Quer outra bolacha?
José pega a bolacha e come. Ângelo pega as chaves e começa a
fechar a porta.
ÂNGELO
A gente não se via há...
JOSÉ
Sei lá. Um tempão.
ÂNGELO
168
Vem cá, você lembra da Jane?
JOSÉ
Jane?
ÂNGELO
Da escola. Uma baixinha, morena, cabelo liso, bonitinha.
Namorava aquele cara do segundo ano, o... como era o nome
dele? Um que tinha uma cinentinha, namorava todo mundo. A
moto fazia mais sucesso que ele.
JOSÉ
Lembro. Um magrão.
Ângelo começa a fechar a grade do corredor.
ÂNGELO
Ele mesmo. Como era mesmo o nome dele?
JOSÉ
Não lembro.
Pausa.
JOSÉ
Afinal o que houve com ele?
ÂNGELO
Com ele? Não sei.
JOSÉ
Mas de quem nós estamos falando então?
ÂNGELO
Da Jane.
JOSÉ
Jane... Não lembro. O que houve com ela?
ÂNGELO
Também não sei. Sumiu.
Ele chama o elevador e põe a chave na porta.
JOSÉ
Mas porque você lembrou dela?
ÂNGELO
Não sei, achei que você talvez soubesse dela, ela era amiga
da Cris.
JOSÉ
Cris?
ÂNGELO
Ué? A Cris. Vocês não eram namorados?
JOSÉ
Cris? Ah, lembrei. A Cris, claro.
O elevador chega.
CENA 12 - INT/NOITE - ELEVADOR
Eles entram.
169
JOSÉ
Encontrei ela uma vez no supermercado. Nunca mais vi. Sumiu
também.
Pausa. Ficam sem assunto. José examina os detalhes do elevador.
Lê a plaquinha: "É proibido fumar ou conduzir aceso cigarros ou
assemelhados. Capacidade máxima permitida: seis pessoas ou
quatrocentos e noventa quilos. A utilização acima desta capacidade é ilegal e perigosa".
JOSÉ
Quanto você pesa?
ÂNGELO
Sessenta e oito.
JOSÉ
Perfeito! Eu peso setenta e dois.
ÂNGELO
Antes da bolacha.
JOSÉ
Não deve fazer muita diferença. Uma bolacha...
ÂNGELO
Duas.
JOSÉ
Duas. Hoje eu nem almocei.
ÂNGELO
Você fuma?
JOSÉ
Não.
ÂNGELO
Eu também não. Estamos dentro da média e da lei. Isso não te
dá assim... uma sensação de segurança?
O elevador chega no térreo e abre.
CENA 13 - INT/NOITE - CORREDORES DO PRÉDIO, TÉRREO
Eles vão abrir a porta do prédio. A porta está chaveada.
JOSÉ
Eu deixei aberta.
ÂNGELO
Alguém já fechou. Olha o aviso.
Na parede, ao lado da porta, há um aviso: A PORTA DEVE PERMANECER
FECHADA A CHAVE DEPOIS DAS 20 HORAS. Ângelo abre a porta. Eles
saem.
CENA 14 - EXT/NOITE - FRENTE DO PRÉDIO
Eles atravessam o pátio do prédio. Ângelo procura a chave para
abrir o portão.
ÂNGELO
Você veio de carro?
JOSÉ
170
De táxi.
ÂNGELO
Vamos pegar um ali na praça Quinze, passa toda hora.
Ângelo abre o portão. Eles saem. Ângelo fecha o portão. José
começa a caminhar.
ÂNGELO
Não, vamos pelo outro lado.
JOSÉ
(apontando) Por aqui não é mais perto?
ÂNGELO
Nesta esquina tem uns mendigos que moram na calçada, eu
prefiro passar pelo outro lado. A gente dá a volta...
Eles saem caminhando.
CENA 15 - TABLE-TOP - MAPAS
Animação do trajeto num mapa.
Ângelo (OFF)
... pela Andradas e entra na Sete de Setembro. Não dá para
ir sempre pela Sete porque ali tem uma boates meio barra
pesada, mas a gente pega aquela travessinha, acho que é a
Tiradentes, e depois vai reto pela Dom Pedro até a praça
Quinze. Talvez a gente já consiga um táxi na Dom Pedro.
CENA 16 - EXT/NOITE - RUAS
Eles caminham pelas ruas. Ângelo estende a mão com o chaveiro
para José.
ÂNGELO
Posso por na tua mochila?
José guarda as chaves na mochila.
ÂNGELO
Vamos atravessar que ali na frente tem uma obra onde moram
umas pessoas.
Atravessam a rua. Ao fundo, uma obra abandonada cercada por um
tapume. Mendigos na obra. Uma forte luz ilumina a cena. A luz vem
da máquina de um soldador que está colocando uma grade. Caminham
mais. Dobram uma esquina e se aproximam do fim da rua, onde uma
grade fecha a passagem.
JOSÉ
E agora?
ÂNGELO
Eu não sabia que tinham fechado isso aqui. Será que tem uma
passagem?
JOSÉ
Parece que não.
ÂNGELO
E se a gente pulasse?
JOSÉ
171
Não. É muito alto.
Ângelo tenta subir na grade, mas não tem onde apoiar o pé.
ÂNGELO
Tem essa ponta aqui que não dá para por o pé. Que largura
tem entre uma grade e outra?
JOSÉ
O suficiente para não passar a cabeça de uma criança.
José mede com a mão.
ÂNGELO
Vamos dar a volta.
Eles dão meia volta e procuram um novo caminho. Assustam-se com o
soldador mascarado armado de um maçarico.
JOSÉ
Ô! Desculpe...
Seguem caminhando, sempre cercados de grades. Vêem uns mendigos na
calçada, a frente.
ÂNGELO
É melhor a gente atravessar aqui.
Atravessam. Um mendigo caminha na direção deles.
ÂNGELO
(ao mendigo) Eu não tenho nada.
Afastam-se.
CENA 17 - EXT/NOITE - GUARITA
Continuam caminhando até encontrar uma guarita com um guarda. Ao
lado da guarita, um cachorro policial está deitado.
GUARDA
Boa noite.
JOSÉ
Boa noite.
GUARDA
Não pode passar por aqui.
ÂNGELO
Como não? A rua é pública.
GUARDA
Essa aqui não é mais. O pessoal aí comprou.
ÂNGELO
O senhor tá brincando...
JOSÉ
Mas a gente só quer passar para o outro lado.
GUARDA
Não dá. Vocês vão ter que dar a volta.
JOSÉ
Isso é um absurdo!
172
ÂNGELO
Quem é que vai ficar sabendo?
GUARDA
Eu. Vocês vão ter que dar a volta.
ÂNGELO
A gente atravessa bem rapidinho.
GUARDA
Não dá. Vocês vão ter que dar a volta.
Ângelo avança.
ÂNGELO
O senhor me desculpe, mas eu vou passar. A gente está morrendo
de fome, aqui não passa táxi, eu vou passar.
O guarda sai da guarita. Ângelo pára.
GUARDA
Ao cruzar o limite da guarita o senhor estará cometendo o
crime definido no artigo cento e cinquenta do código penal;
violação de domicílio: entrar ou permanecer clandestina ou
astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem
de direito, em casa alheia OU EM SUAS DEPENDÊNCIAS.
Ângelo e José ficam alguns segundos parados, olhando para o
porteiro.
JOSÉ
(baixinho, para Ângelo) Esse cara é louco.
GUARDA
Louco? Não, não. Louco é o meu cachorro. (para o cachorro)
Pega Louco!
Louco se ergue num salto, latindo, e parte em direção a José e
Ângelo. Eles saem correndo, Louco nos seus calcanhares.
GUARDA
(discursando) A casa é o asilo inviolável do indivíduo;
ninguém pode penetrar nela, à noite, sem consentimento do
morador, a não ser em caso de crime ou desastre, nem durante
o dia, fora dos casos e na forma que a lei estabelecer. Artigo cento e cinqüenta e três,
parágrafo décimo da constituição
federal de mil novecentos e sessenta e cinco!
José e Ângelo correm do cachorro.
CENA 18 - EXT/NOITE - RUAS
José corre pela rua, desesperado.
JOSÉ
Essa constituição nem vale mais!
José chega a uma cerca. Tenta pular. A mochila prende na grade.
Louco se aproxima. José se desfaz da mochila e pula. Louco mastiga
a mochila. José ergue-se e sai correndo. José dobra uma esquina.
CENA 19 - EXT/NOITE - RUAS
José corre mais um pouco e, sem fôlego, diminui o ritmo. Olha para
173
trás e para os lados. Pára. Respira fundo.
JOSÉ
Ângelo!
Ao longe, Louco late. José começa a caminhar.
JOSÉ
Ângelo!
José caminha mais um pouco.
ÂNGELO (OFF)
José!
JOSÉ
(gritando) Estou aqui!
ÂNGELO (OFF)
Aqui onde?
José dobra uma esquina. Dá de cara com Ângelo, só que do outro lado
de uma grade.
ÂNGELO
Que que é isso?
JOSÉ
Vamos sair daqui. Que loucura!
Os dois tentam recuperar o fôlego.
JOSÉ
Vamos para casa pedir uma pizza. Eu estou morrendo de fome.
ÂNGELO
Cadê a mochila?
JOSÉ
O Louco comeu. Tudo bem, não tinha nada. Minha conta da luz...
Eu peço uma segunda via.
José tira dos bolsos a carteira, o cartão da Siamarrô e suas
chaves.
JOSÉ
Minhas coisas estão nos bolsos: carteira, chaves...
José olha para as chaves e para Ângelo. Ângelo olha para José.
JOSÉ
Não acredito!
ÂNGELO
Onde foi?
JOSÉ
Ali atrás. Eu vou voltar para buscar.
José vai saindo.
JOSÉ
Espere aqui.
ÂNGELO
Não, eu vou pela outra rua. Não quero ficar aqui parado.
174
Ângelo se afasta, dá uma olhadinha para trás e desaparece depois da
esquina. José caminha pelo meio da rua.
CENA 20 - EXT/NOITE - RUA
Dobra a esquina e vê a cerca que ele havia pulado. Nem sinal de
Louco. Ele se aproxima da cerca. A mochila não está ali. Ele fica
parado, olhando para o outro lado da rua, por trás da grade, para
o lugar onde Ângelo deve surgir. Ele espera. Muito ao longe, a luz
de uma solda. Mais ao longe, um latido.
JOSÉ (OFF)
Fiquei esperando uns... cinco minutos, não sei. Talvez mais.
José caminha no meio da rua.
JOSÉ (OFF)
Fiz todo o caminho de volta, até a casa do Ângelo. Em cada
esquina eu olhava, chamei por ele.
José dobra uma esquina e se depara com outra grade fechando a rua.
Muda de direção. Cruza com um homem que solda uma grade. Cruza com
um mendigo.
JOSÉ (OFF)
Voltei para casa, esperei que ele me ligasse. Talvez ele
tivesse encontrado a mochila. Liguei para casa dele várias
vezes, naquela noite e no dia seguinte. Fiquei preocupado.
José dobra uma esquina.
CENA 21 - EXT/NOITE RUA
José entra numa grande e larga avenida onde há um carrinho de
cachorro-quente. José se aproxima e pede um. O homem prepara o
cachorro-quente. Detalhes.
JOSÉ (OFF)
Uns dias depois, passei na casa dele. Chamei, ninguém atendeu.
Também não sei se já tinham arrumado o porteiro, achei melhor
não falar com os vizinhos. Aí, eu viajei, fiquei um tempo
fora.
O homem lhe entrega o cachorro quente. Ele paga, dá a primeira
mordida e sai caminhando.
JOSÉ (OFF)
Depois que eu voltei, ainda procurei por ele uma vez. O
edifício tinha sido reformado, o porteiro estava funcionando.
Falei com um cara no apartamento dele que era inquilino novo.
Alugou de imobiliária e não sabia do antigo morador.
José se afasta pela avenida quase deserta. Ao longe, um soldador
trabalha colocando num prédio mais uma grade.
JOSÉ (OFF)
Nunca mais procurei nem ouvi falar do Ângelo. Já passou um
ano, eu só lembrei por causa da páscoa. A última vez que a
gente se viu foi naquela noite, atrás daquela grade. O Ângelo
anda sumido. Eu também.
FADE OUT. SOBEM CRÉDITOS FINAIS.
FIM
175
OUTROS (2000), de Gustavo Spolidoro
FICHA TÉCNICA
Roteiro e Direção: Gustavo Spolidoro
Direção de Fotografia: André Luis da Cunha.
Produção: Gusgus Cinema.
Projeto financiado pelo: Concurso de Curtas do MinC.
Elenco: Biño Sauitzky, Cléo de Páris, Eduardo Normann, Evandro Soldatelli, Gustavo Spolidoro, Heinz
Limaverde, Jeffie Lopes, João Carlos Padilha, João Filho, Juliana Spolidoro, Júlio Andrade, Kapri, Leonardo
Machado, Luciano Moreira, Mariana Kircher, Odette Picheco, Paula Carmona, Quenxé, Renata de Lélis, Solange
Sotille, Tarcísio Lara Puiati.
ROTEIRO FILMADO - Tratamento 6 – 15.01.2000
CENA 1 - EXT. – DIA
PRETO. Música (sub-jazz). O ruído de um motor indica que estamos dentro de um carro. Casal conversa.
CRÉDITOS INICIAIS.
MOÇA (off)
Ah, eu sempre fui muito confusa com esse lance de governo, política, plano econômico,
todo esse blábláblá...
Inclusive um dos meus namorados, acho que foi o terceiro. Não, não, foi o quarto que
era jornalista, o terceiro era pagodeiro.
RAPAZ (off)
Pagodeiro! Que baixaria, héin!
MOÇA (off)
Tá, mas deixa eu falar. Esse cara, que na real era só um casinho besta, esse cara vivia
dizendo que eu era alienada, que não tinha percepção crítica e social da realidade,
essas besteiras. Mas qué sabê: eu prefiro mesmo é ser alienada do que me estressar
com todo esse caos que é o mundo lá fora!
TERMINAM OS CRÉDITOS. FADE OUT.
Estamos em uma avenida larga, ao lado direito um parque muito arborizado. Vemos um anfiteatro. PAN. Vemos
o Rapaz. Aparenta uns 30 anos. A moça não aparece muito bem. Estamos do lado direito do carro, atrás do
banco do carona. Vemos à frente a Avenida. Grande e extensa, com um corredor de ônibus no meio. Entre as
duas pistas para automóveis existem palmeiras por toda a extensão das duas calçadas que separam os
corredores. Do lado esquerdo, prédios e lojas. A música continua.
RAPAZ (off)
É...Não sei...Eu tenho uma filosofia bem diferente da tua. Pra mim, tem uma coisa que
está acima de tudo, que é fundamental na vida de todo o mortal, que traz a verdadeira
felicidade...
MOÇA (off)
Ah não! Vai falar de Deus agora?!! Era só o que faltava!
RAPAZ (off)
Não, não, não, tô falando de uma cagada!!!
MOÇA
Sério?
RAPAZ
É! Sério!!!
176
MOÇA
Uma cagada!?!
RAPAZ
Sério! Cagada, cocô!. Acompanha o meu raciocínio. Se eu cago, é porque eu como,
certo?! Se eu comi, meu corpo tem energia pra qualquer coisa. Pra trabalhar, pensar,
estudar, trepar. Absolutamente tudo. Depois, imagina o prazer de uma boa cagada. As
pessoas que não cagam bem não podem viver felizes com um monte de merda presa
nos intestinos. A pessoa fica séria, enfezada, se sentindo um bostão. O cara que não
caga, pra mim, não é feliz.
E tem mais: a diarréia. Tu não imagina a importância que tem uma diarréia.
MOÇA (põe a mão na boca como se fosse vomitar)
Uuuugggghhh, que nojo! Deixa eu pegar um ar.
MÚSICO (o cara que toca violão -- ele está dentro do carro, atrás do motorista, de frente
para uma menina que toca clarinete)
Posso dar um pitaco?
RAPAZ
Que pitaco, malandro? Tu não faz parte deste diálogo. E vê se pára com essa música
de merda.
A música pára. O carro pára atrás de um outro carro. De dentro saem dois jovens.
RAPAZ
Aqueles dois ali, por exemplo, (aponta os jovens que saem do carro) sem dúvida têm
um modo de cagar bem diferente do teu. Vou te explicar melhor...
SOM VAI A FADE SEM QUE OUÇAMOS O FINAL DA TEORIA. SAÍMOS DO CARRO e VAMOS EM DIREÇÃO
AOS DOIS JOVENS QUE HÁ POUCO FORAM CITADOS. Um veste-se como office-boy, o outro é um perfeito
militante de esquerda.
OFFICE-BOY
(para o motorista)Valeu, brigado, foi mal, héin, desculpa, desculpa mesmo...
...viu só (para o militante), te falei que isso ia acontecer, agora o problema é teu, te vira!
MILITANTE
Tá, mas vamos mudar de assunto. Eu tenho uma coisa para te mostrar. Tá vendo isso?!
(tira algo de uma pasta e mostra com cuidado para o office-boy, mas não conseguimos
ver o que é). Isso aqui ó, isso aqui é que vai fudê de vez com essa imprensa pelega e
com todos esses pseudopolíticos eleitos pela mídia.
O office-boy tenta pegar o objeto da mão do militante.
OFFICE-BOY
Porra tchê, me dá isso antes que alguém veja!
O militante guarda o objeto na pasta, sem que possamos ver o que é.
MILITANTE
Não dá nada, companheiro! Eu vou apresentar isso agora, na reunião do partido. Os
caras vão babar. É o único jeito de fazer com que pare a manipulação da massa, tá
entendendo. Tá pior do que na época da ditadura, mermão. Saem os militares entram o
Padre Marcelo, o Edir Macedo, o MENDELSKI. Só os fudidos!
OFFICE-BOY
Cara, tu tem coragem mesmo. Qué sabê? Eu tenho
mais é que largar dessa vidinha de
assalariado bundão e tomar uma atitude mais radical. Até tive uma idéia cara, olha só:
sabe aquele relógio da Globo, o dos 500 anos...
Antes que possamos ouvir do que se trata, um índio com dois filhos pequenos vem pedir esmola, com a mão
estendida.
177
MILITANTE (perguntando para o amigo)
Bicho, tu tem algum trocado, eu só tô com uma nota de 50 pra ir ao show mais tarde.
OFFICE-BOY
Acho que eu tenho umas moedinhas. (entrega para o índio). Mas tchê, presta atenção
no que eu tava dizendo, imagina se a gente...
SEGUIMOS O ÍNDIO, a voz dos dois jovens vai ficando cada vez mais baixa, sem que consigamos ouvir o final
da idéia. O índio anda em direção ao cordão da calçada, seguido pelos meninos. DE REPENTE, A CÂMERA VAI
RÁPIDO EM SUA DIREÇÃO. Ele é chamado, se vira e olha assustado. Ouve-se a voz de uma pessoa (o diretor),
atrás da câmera, que conversa com o índio, sem aparecer.
DIRETOR (off)
Ô, ô, licencinha. Amigo, cacique, licencinha, por favor. A gente está fazendo a gravação
para um programa sobre os 500 anos do Brasil e queria que o senhor, como um legítimo
representante do nosso povo, participasse com a gente, tá entendendo? É só o senhor
fazer um legal, assim (uma mão, com o polegar em riste aparece em frente a câmera),
pra nossa câmera e dar um sorriso bem largo, como se o senhor estivesse lá na sua
aldeia, feliz, com toda a sua tribo. As crianças também. A gente paga dez reais. Pode
ser? Tudo bem pro senhor? Então tá: faz um legal aí!
O índio está constrangido, mas lentamente vai abrindo um sorriso tímido e fazendo legal para a câmera.
DIRETOR
Isso, assim, vai, levanta mais a mão. Agora, aquele sorrisão. Iiiiiisssooo!!!
O índio sorri, um sorriso banguela e amarelo. As crianças permanecem sérias.
A mão do diretor estica dez reais na frente da câmera. O índio vem mais próximo e pega o dinheiro. Atrás do
índio, olhando para a câmera, vemos dois malandros.
DIRETOR
Beleza meu cacique. Toma aqui ó, 10 reais, e vê se vai comemorar, porque não é todo
o dia que se faz quinhentos anos héin!!!
O índio está olhando o dinheiro. Os dois malandros pulam à sua frente. Um pega a nota de dinheiro e o outro
põe a mão na frente da câmera. Os dois saem correndo. A CÂMERA VIRA-SE RAPIDAMENTE. VAMOS ATRÁS
DELES, FRENETICAMENTE. Os malandros param mais adiante, contando o dinheiro. Estão eufóricos e
sorridentes.
MALANDRO 1 (o que pegou o dinheiro)
Mais umas três dessas e a gente fecha a grana das passagens, lôco!
MALANDRO 2 (o que tapou a nossa visão)
Cancun, aí vamos nós...
MALANDRO 1
Cancun! Sol, cerveja e mulher... Vai ser du caralho.
MALANDRO 2
Aí! Não tem nada mais fácil que assaltar mendigos e casais apaixonados, né loco!?!
MALANDRO 1
Lôoooco, e por falar em casal apaixonado...
Os malandros caminham e saem de quadro.
NAMORADA
Mas escuta leãozinho, pra mim, OS IDIOTAS é o melhor filme experimental do ano
passado.
NAMORADO
Por favor né! Eu vou ser sincero contigo: eu não suporto o tal DOGMA 95. Os caras
ficam ali, tremendo a câmera, inventando um falso realismo, criticando a sociedade,
achando que tão fazendo cinema. Isso não é cinema porra
nenhuma: Cinema é ação,
sangue e tripas, tudo ali ó, jogado na tela. Agora se tu abre a boca para falar isso numa
mesa de bar, todo mundo te fuzila. É que nem falar mal do Cinema Novo, é proibido,
178
todo mundo sabe que era um saco, mas ninguém diz nada. Hoje, pra ser IN, tem que
gostar desse tal de DOGMA, freqüentar essas festinhas alternativas, andar com
roupinhas
fashion. Isso é ser IN? Pra mim isso é ser INbecil. Parece que têm chulé na
cabeça. Vão se fuder! Eu gosto mesmo é de mortadela!
NAMORADA
Ah, deixa de ser exagerado leãozinho.
CÂMERA FECHA EM PRIMEIRO PLANO NA NAMORADA. Ouvimos a voz de um dos malandros, mas não o
vemos.
MALANDRO 1 (OFF)
Passa a bolsa!!!
CÂMERA FIXA, EM CLOSE NA NAMORADA. A Namorada tem uma reação como se tivessem puxado a bolsa
dela.
NAMORADA (resistindo e segurando a bolsa)
O que que é isso?!?
NAMORADO
Solta ela cara!!!
MALANDRO 1 (OFF)
Fica na tua ô cagalhão!
Larga a bolsa agora, se não eu vou te furar, sua cadela!
A namorada dá um grito, se contorce e cai. Fica o namorado em quadro. Ele olha em direção ao beco.
NAMORADO
´tá merda, alguém aí vai atrás deles!
O namorado se abaixa. CÂMERA ABAIXA JUNTO. Vemos a namorada caída, sangrando na barriga. O
namorado está apavorado.
NAMORADO
Tu tá bem meu amor,???
NAMORADA
Tá tudo bem, foi só uma facadinha aqui ó.
RISADAS TIPO CLAQUE DE PROGRAMAS HUMORÍSTICOS.
O namorado olha para a CÂMERA e pergunta:
NAMORADO
Vocês não vão fazer nada porra!
OLHAMOS EM 360º A NOSSA VOLTA. Transeuntes de carne e osso observam a cena. Também a equipe do
filme, o índio e seus filhos, os dois rapazes que deram esmola a eles. Todos parados. VOLTAMOS PARA O
CASAL. Eles voltam a caminhar na mesma direção de antes.
NAMORADO (off)
Bando de covardes, não fazem nada, ficam só tremendo a câmera.
NAMORADA (off)
Deixa de ser estúpido. Eles não têm nada que ver com isso.
RISADAS TIPO CLAQUE DE PROGRAMAS HUMORÍSTICOS.
NAMORADO (off)
Vamos até o hospital, é logo ali.
NAMORADA
179
Não! Eu tô bem... A gente vai se atrasar para o cinema e depois não consegue mais ver
esse iraniano.
RISADAS TIPO CLAQUE DE PROGRAMAS HUMORÍSTICOS.
NAMORADO
Tu e estes teus filmes?! Vamos pro hospital sim! Olha um táxi ali!
O Namorado pára o táxi. Entram. Vamos junto. A CÂMERA ENTRA MEIO MAL, FICANDO EM DUTCH ANGLE.
NAMORADA
Pro cinema!
NAMORADO
Não, pro Pronto Socorro, cara!
NAMORADA
Rápido moço...a gente tem que vê um filme ainda.
RISADAS TIPO CLAQUE DE PROGRAMAS HUMORÍSTICOS.
NAMORADO
Pra quê a pressa, logo logo esse filme sai em vídeo. Aí a gente assiste.
NAMORADA
“A vida não imita a arte, imita programas de TV ruins”.
RISADAS TIPO CLAQUE DE PROGRAMAS HUMORÍSTICOS.
NAMORADO
O que que tu disse?
NAMORADA
Não fui eu, foi o Woody Allen!
NAMORADO
Aquele pederasta!
RISADAS TIPO CLAQUE DE PROGRAMAS HUMORÍSTICOS.
NAMORADO
Ali, ali, pode dá uma subidinha ali.
O táxi sobe a calçada. Eles desembarcam. NÓS TAMBÉM.
NAMORADO
Dá uma seguradinha aí que a gente já acerta.
Sobem a rampa que dá acesso ao saguão. Na entrada, um médico se despede de um homem e sua filha, de uns
7 anos, e coloca um chiclé na boca da menina. O médico chega junto ao casal de namorados, para socorrer a
garota esfaqueada. O homem desce a escada central com a menina no colo. OS SEGUIMOS.
PAI
Viu só. Não tem problema nenhum, é só a gente tomar todos os remédios que as coisas
se estabilizam. Além disso não tem nem gosto ruim, é só engolir.
FILHA
Ah, eu não sou boba pai. Eu sei que esses remédios têm efeito colateral.
PAI
Efeito colateral!?!
FILHA
É, mas não te preocupa, eu sei do nosso problema e vou tomar todos os remédios, ta
bom?!
180
PAI
Obrigado filha, assim tu me ajuda a segurar melhor essa barra. Tua mãe ia ficar
orgulhosa de ti.
FILHA
Ah, não esquenta pai, a mamãe me ensinou tudo o que eu precisava saber.
PAI
E pelo jeito ensinou bem.
FILHA
É, ela sempre dizia pra gente encarar a realidade de frente e curtir mais os momentos
que temos juntos.
PAI
Topa comer um livro ali!?
Pai olha para os lados para atravessar a avenida. Atravessam.
A CÂMERA ACELERA (6qps) ATÉ CHEGARMOS AO LADO DE UMA LIVRARIA. CÂMERA VOLTA A
VELOCIDADE NORMAL.
Quando entram na livraria quase são derrubados por um casal de duas lindas jovens em uma frenética escapada
com um livro roubado na mão. Elas estão felizes. Correm rindo muito. Vemos suas mãos unidas. Chegam ao
corredor de ônibus. Um ônibus está parado com a porta aberta. Elas entram. ENTRAMOS PELA PORTA DA
FRENTE. Elas pulam a roleta sob o olhar atônito do cobrador e dos passageiros. CÂMERA VAI A SLOW
(75qps). Continuam rindo, esbaforidas, não falam nada. Vão até a frente e param, em pé, junto aos primeiros
bancos, se beijam apaixonadamente. Uma velhinha cutuca a moça que está ao seu lado, interrompendo o beijo.
CÂMERA VOLTA A VELOCIDADE NORMAL.
VELHINHA
Mas é o fim do mundo!... Imagina uma senhora de 72 anos como eu passar horas na fila
de um banco para receber 263 reais e 57 centavos e depois mais uma hora em pé, num
hospital público, para pegar uns remedinhos. Eu queria era ter esse fôlego de vocês.
Elas se olham, não dizem nada, não concordam nem discordam, riem maliciosamente.
VELHINHA
A minha vida foi toda uma droga. Casei forçada aos 17 anos, com um homem que não
amava. Tive 3 filhos. Um morreu ainda menino, de afogamento. Outro é home-mulhé,
mora na Itália, e o que ficou comigo é retardado mental. Meu marido teve um derrame e
há cinco anos está em cima duma cama. Isso não é vida para uma pessoa de idade
como eu.
A velhinha olha para a outra moça, aponta e pergunta às jovens:
VELHINHA
É o seu namorado?
Elas olham para trás sem entender.
MENINA MORENA
Quem?
VELHINHA
Deixa pra lá, chegou minha hora mesmo... Eu desço aqui, puxa a campainha pra mim
menininha?
O ônibus pára. Ela desce. DESCEMOS JUNTO E VAMOS ATRÁS DELA. A velhinha se dirige à faixa de
segurança e atravessa a rua. Um carro vem em sua direção, buzinando. O carro dá uma freada brusca, mas não
a atropela. O motorista põe parte do corpo para fora do carro e grita:
RAPAZ
Que cagada minha senhora! Não, a senhora deve estar doida! Que ca-ga-da! A senhora
não conhece sinaleira, minha senhora! Eu conheço gente que morreu na faixa! Que
181
cagada minha senhora, que cagada, que cagada!!! Olha aqui ó, outra coisa, a senhora
quando chegar em casa vê se não tá toda borrada!
VELHINHA (descutindo com o rapaz)
Olha aqui! Eu to na faixa de pedestre! Diacho de sinaleira, eu to atravessando na faixa,
eu tenho os meus direitos! Que que tu ta pensando? Só porque tem esse carro acha
que é o dono da rua!?! Ah vai, vai! Vai te criar piá!
A CÂMERA ENTRA NOVAMENTE NO CARRO. OS MÚSICOS aparecem. Começam a tocar. Carro arranca.
RAPAZ está irritado, socando a direção. Vemos a velhinha parada, olhando para o carro.
RAPAZ
Bosta mesmo! Merda!!!
O rapaz respira fundo e fala com sua acompanhante. Ouvimos uma música, é um jazz.
RAPAZ
Entendeu! Entendeu o que eu estava tentando explicar? É por isso que eu falo que tudo
o que acontece no mundo passa por uma boa cagada...
FADE LENTO. CRÉDITOS FINAIS.
RAPAZ (EM OFF)
E tem mais: a diarréia. Te liga no valor que tem uma diarréia. Pensa bem o quanto ela
pode ser importante para a sociedade. Imagine o Mick Jaeger tendo uma diarréia,
daquelas furiosa, antes de entrar no palco. Não tem show dos Stones no Beira-Rio. E se
na hora da missa o Papa tiver uma diarréia daquelas brabas, de lambuzá a batina? Não
tem celebração eucarística. Tudo no mundo passa por uma boa cagada. Aliás, nós
somos frutos da cagada. Todo mundo caga. E a forma de cagar reflete no modo de ver
o mundo, nos sentimentos, nas posições políticas e ideológicas, nas opções sexuais,
nas posições sexuais. Tudo, tudo!!!
O Bibi já dizia: tudo tem alguma coisa que está acima de tudo!
PAUSA
RAPAZ (off)
Tu não vai dizer nada?
MOÇA (off)
Acho que eu te amo.
O carro pára e desliga o motor.
FADE DE SOM NA FALA E NO SOM AMBIENTE. A MÚSICA CONTINUA ATÉ O FIM DOS CRÉDITOS.
É ISSO AÍ!
QUANDO O DIA SURGIR (1996), de Antônio Carlos Textor
FICHA TÉCNICA
Roteiro e Direção: Antônio Carlos Textor.
Fotografia: Antônio Oliveira.
Direção de Arte: Ana Nardi.
Música: Carlos Trozan.
Elenco: Adriane Sauytzky.
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Produção: Textor Produções Cinematográficas.
IMAGEM SOM
SEQÜÊNCIA 01
1. INT/Noite/PPP – Câmera enquadra um fundo escuro, indefinível
2. INT/Noite/PPP – Começa a surgir, aos poucos, a espiral de fumaça de
cigarro, que ondula no ar, subindo suavemente.
Trilha abre com som em volume
baixo, de sax e bateria, tocando
em ritmo lento. Mixados em BG,
ruídos de um salão pobre de
boate de bairro.
3. INT/Noite/PPP – Sobre essas espirais de fumaça entram (projetadas)
em letras brancas, os créditos iniciais do filme, em fusão contínua.
4. INT/Noite/PPP-PG – A câmera inicia um suave movimento zoom-in,
enquadrando o cigarro aceso no cinzeiro sobre a mesa, com copos e
garrafas, na beira da pista de dança de uma velha boate de bairro. A cena
transcorre num clima de final de noite, sob uma luz fraca e difusa. No
canto oposto da pista, um único casal balança lentamente, abraçado ao
som da música. No fundo, sobre o pequeno tablado do palco, uma luz
fraca ilumina um homem que toca sax e outro que toca bateria, ambos
com ar de cansaço.
Sons gravados em locação e
editados no clima da seqüência.
SEQÜÊNCIA 02
5. EXT/Noite/PG – Plano com câmera baixa. Rua ao amanhecer, ainda
noite, postes com luz refletida no chão molhado, uma pessoa passa ao
longe, encolhida e apressada.
6. EXT/Noite/PM – No degrau de uma porta larga de loja, com cortinas
fechadas, três meninos de rua dormem, encolhidos, uns de encontro aos
outros, um deles segura sob o braço uma lata de cola de sapateiro.
Sons de rua, à noite, gravados
nos locais e editados no clima da
seqüência.
7. EXT/Noite/PG – Frente da boate, vista em plano geral. Abre-se a porta e
saem na madrugada fria duas mulheres, pintadas, sapatos de salto alto,
saias bem curtas e vestindo capotes curtos de lã. Elas se afastam
apressadas. Na parede junto à porta apagam-se então as luzes de um
painel de vidro, com velhas fotos dos artistas da casa.
Trilha sonora prossegue como
acima.
8. EXT/Dia/PG – Uma larga avenida, ao amanhecer. Passa um solitário
ciclista, pedalando encurvado na bicicleta.
9. EXT/Dia/PG – Vista lateral de baixo, em plano geral. A Igreja das Dores
ao amanhecer.
Sobre o som anterior sobrepõe-
se em volume baixo o repicar
muito lento de um sino da Igreja.
10. EXT/Dia/PG – A longa escadaria da Igreja. Vista em perfil aberto, vai
subindo lentamente uma mulher velhinha, pequenina e encurvada, com
chalé preto na cabeça.
11. EXT/Dia/PM – Visto de cima, molhado pelo sereno da noite, um dos
cavalinhos de madeira do carrossel da Praça José Bonifácio.
Debaixo dele, deitados no piso do carrossel, dois meninos de rua dormem
encolhidos.
12. EXT/Dia/PG – Um homem levanta a cortina de aço de uma vitrine de
loja, com manequins femininos e masculinos elegantemente vestidos.
13. EXT/Dia/PM – Tomada rápida dos rostos dos manequins, olhando para
a câmera.
SEQÜENCIA 03
14. EXT/Dia/PM – tele: Um relógio de rua marca nesse instante 7hs (da
manhã)
Som de tique-taque de relógio
sobre o ruído da rua
15. EXT/Dia/PG – Tele: Câmera enquadra os telhados dos prédios da
cidade ao amanhecer, com dezenas de antenas de TV e parabólicas.
16. INT/Dia/PM – Interior de um atelier de pintura, numa espécie de um
grande sótão, janela enorme, na parede dos fundos três painéis com
desenhos semi-acabados de grandes caras de homens velhos, com olhar
interrogativo para quem observa.
Sentado em frente aos painéis, num banco de madeira, uma jovem,
vestido longo, claro, cabelos compridos soltos, toca num violoncello.
Entra o som do violoncello,
tocando trecho de música suave
e compassada.
17. EXT/Dia/PM – Primeiro plano. Os balanços, vazios, que oscilam
levemente, na Praça Otávio Rocha. Ao fundo, dois meninos de rua,
sentados na grama. Um deles levanta e põe no ombro uma caixa de
engraxate.
Som do solo de violoncello, em
contraponto montado no clima
tonal das cenas.
18. EXT/Dia/PG – Praça XV – Plano Geral. A praça, com bancos, onde
estão sentadas algumas pessoas. Os fotógrafos da praça, as floristas, e
meninos de rua que circulam por ali.
183
19. EXT/Dia/PM – Um menino, com caixa de engraxate no ombro traz pela
mão um homem cego, óculos redondos escuros, camisa e calça rotos,
casaco rasgado, chapéu de feltro, velho, de onde pendem de ambos os
lados, presos com joaninhas, pedaços compridos de bilhetes de loteria.
Ele senta num dos bancos, conduzido pelo menino.
20. EXT/Dia/PP – O rosto sério do menino, ajudando o ceguinho a sentar.
21. EXT/Dia/PP – Contraplano. O rosto do ceguinho, cabeça um pouco
erguida, que levanta a mão em direção ao rosto do menino.
22. EXT/Dia/PP – Contraplano. A mão tateante do ceguinho apalpando
(reconhecendo) o rosto do menino.
23. EXT/Dia/PPP – Tele: A troca de números num relógio de rua. Entra
“10:25 hs”
SEQÜENCIA 04
24. INT/Dia/PP – O rosto suave da jovem, cabelos caídos para a frente
sobre o rosto abaixado, tocando o violoncello, agora num tom mais suave
e triste.
25. INT/Dia/Insert – Take do arco tocando as cordas do cello.
26. INT/Dia/PM – Câmera de baixo, um pouco lateral: pessoas erectas,
sérias, subindo e descendo numa escada rolante de Shopping Center.
Som do cello passa a um tom
mais grave e pesado
27. EXT/Dia/PM – PAN – PG: Câmera baixa: A frente de um carro grande,
preto, a porta traseira está aberta, e junto a ela um homem negro, óculos
escuros, quépi (cap) de motorista, roupa cinza, está parado, erecto,
aguardando o passageiro (que não vê). A câmera faz então uma pan para
esquerda, lenta, e enquadra em perfil, parado junto a um telefone orelhão,
um homem magrinho, com macacão velho e sujo de posto de gasolina,
capacete de posto na cabeça, falando ao telefone, meio encurvado, com a
mão em concha sobre o bocal do aparelho. Ao seu lado, afastada uns 2
metros, uma mulher, magrinha, vestido velho, chora, de lado para a
câmera, com as duas mãos no rosto.
Continua o som grave e
pungente do violoncello tocando.
28. EXT/Dia?PM – De cima do viaduto Conceição, a câmera enquadra na
perpendicular os carros que surgem rápidos, de baixo para cima,
passando pelo quadro.
SEQÜENCIA 05
29. EXT/Dia/PG – Câmera alta. Uma larga avenida, os carros parados no
sinal do cruzamento. Entre os carros circulam meninos e meninas de
diversas idades, maltrapilhos, pedindo dinheiro às pessoas dos carros.
Entra uma fusão de vozes
infantis numa espécie de
murmúrio ou reza continuada,
indefinível, em tom baixo e
monocórdio.
30. EXT/Dia/PP – Câmera ao nível, de dentro de um carro: os rostos
escuros, coestados pelo sol, olhares suplicantes de meninos e meninas
que então vão passando (como se fora um desfile de rostos) e olhando
para a câmera (subjetiva), suas bocas murmurando palavras como numa
toada, emoldurados pela janela da porta do carro. Ao final do longo desfile,
sobe o vidro elétrico da porta, cortando o murmúrio e superpondo aos
rostos dos meninos o reflexo forte do interior, luxuoso e iluminado pelas
luzes coloridas digitais, do painel do carro.
31. INT/Dia/PP – Detalhe contrastando da mão do motorista ligando o
rádio do carro, que se ilumina mais, com luzes coloridas, digitais.
32. EXT/Dia/PM – Travelling / 32qps. Câmera na mão vai andando em
slow-motion para frente, numa viela da Vila Cruzeiro, num longuíssimo
(45’) plano, passando pelos barracos miseráveis, escuros, crianças
sentadas no chão, onde escorre uma água escura, mulheres olham para a
câmera que passa, numa atitude estática, paradas, mudas.
Irrompe forte, trecho de “Jesus
Joy of Man’s Desiring” de J.S.
Bach
33. EXT/Dia/PG – Tele. Câmera baixa, junto ao asfalto: Uma longa
avenida, com a massa visual de pessoas, carros, caminhões, ônibus,
anúncios luminosos, um caos urbano total, sintetizado pela imagem
achatada em teleobjetiva.
Entra forte o ruído caótico da
rua, gravado em locação.
34. EXT/Dia/PP – A câmera ao nível: As mãos pequenas e encardidas de
um menino, contando o dinheiro arrecadado.
35. EXT/Dia/PP – Câmera fechada no rosto do menino, contando o
dinheiro, movendo os lábios, sério.
SEQÜÊNCIA 06
36. EXT/Dia/PM – Tele. Plano médio de baixo: A torre e o relógio do prédio
dos Correios, marcando 5:15 hs (da tarde)
Retorna a música tocada pelo
violoncello, agora num tom ainda
mais baixo e lento.
37. EXT/Dia/PG – Tele. No largo da Usina do Gasômetro, o pôr-do-sol,
184
nuvens coloridas. Alguns meninos de rua surgem pela direita do quadro e
se juntam, conversando, em silhueta contra o céu vermelho.
38. EXT/Noite/PG – Câmera de cima do terraço do Edifício Itália, mostra a
cidade que começa a acender suas luzes.
39/40. EXT/Noite/PG – Outros dois planos como em 38.
41. EXT/Noite/PM – Câmera ao nível: Plano noturno da Rua da Praia, vista
desde o interior de uma vitrine de loja, com reflexos nos vidros, poucas
pessoas que passam.
42. EXT/Noite/PM – Sentados no chão, junto a outra vitrine, três meninos
trocam entre si uma lata de cola, que vão cheirando, com os olhos semi-
cerrados. Por trás dos meninos, na vitrine, televisores ligados exibem
variadas imagens, anúncios, novelas, noticiários.
43. EXT/Noite/PP-PAM – Câmera em PP/tele faz pan fechada sobre os
rostos dos meninos que cheiram cola.
44. EXT/Noite/PM – Uma loja, vista desde o outro lado da rua, tem a
cortina baixada por um homem e apagam-se suas luzes.
45. EXT/Noite/PM – De cima do viaduto da Conceição, na mesma posição
do Plano 28. Automóveis passam na vertical, de baixo para cima, vê-se
somente as luzes dos faróis e das sinaleiras vermelhas, que passam como
riscos de luz.
SEQÜÊNCIA 07
46. EXT/Noite/PP – Close do mostrador iluminado de um relógio de rua:
23:40 hs.
Som gravado em locação e
editado.
47. EXT/Noite/PM – Câmera solta na mão. Num recanto próximo a uma
avenida, onde piscam longe, luzes de carros que passam, um grupo de
meninos prepara uma fogueira para se aquecer, com caixas velhas de
papelão. Eles acendem o fogo, que começa a crepitar aos poucos.
48/55. EXT/Noite/PX’s – Uma série de oito planos mostra os rostos sérios
dos meninos ao redor do fogo.
Numa montagem em crescendo, cenas dos meninos e o fogo, as chamas,
os reflexos nos rostos, as sombras projetadas dançando nas paredes dos
prédios próximos.
56. EXT/Noite/PM-PP – Câmera na mão sai do rosto de um dos meninos e
enquadra o fogo crepitando, com as chamas agora enchendo todo o
quadro.
SEQÜÊNCIA 08
57. EXT/Dia/PG-PAM 32qps. – Corte seco. A câmera agora está junto a
um chão relevado, verde, alegre, de um belo e claro parque arborizado,
onde filtram-se raios do sol na ramagem.
Girando sobre seu próprio eixo, a câmera enquadra a ramagem batida
pelo sol e, aos poucos, vai baixando e enquadrando os meninos que
estavam na cena anterior junto ao fogo. Eles agora correm em roda
formando um grande círculo à volta da câmera, que os acompanha em
panorâmica circular. Eles se movem em câmera lenta, como se
flutuassem, sorridentes; suas roupas, velhas e rasgadas, agora refletem
um brilho forte e prateado, que ofusca sob os raios do sol.
Irrompe forte e alegre um trecho
em arranjo da 3ª parte da Nona
Sinfonia de Beethoven, que
prossegue até o encerramento
dos créditos finais do filme.
58. EXT/PG – A cena congela. Começam a subir em superposição os
créditos finais do filme.
FIM
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