você apequenou e está nos maiores apuros, vai ter tempo de adaptar-se? Morre tudo
antes disso, como peixe fora d’água – e adeus Homo sapiens!
- Homo sapiens duma figa! Morrem muitos, bem sei. Morrem milhões, mas basta
que fique um casal de Adão e Eva para que tudo recomece. O mundo já andava
muito cheio de gente. A verdadeira causa das guerras estava nisso – gente demais,
como Dona Benta vivia dizendo. O que eu fiz foi uma limpeza. Aliviei o mundo. A
vida agora vai começar de novo – e muito mais interessante. Acabaram-se os
canhões, e tanques, e pólvora, e bombas incendiárias. Vamos ter coisas muito
superiores – besouros para voar, tropas de formiga para o transporte de cargas, o
problema da alimentação resolvido, porque com uma isca de qualquer coisa um
estômago se enche, et coetera e tal.
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O segundo procedimento diz respeito à utilização de uma “situação de carnaval”
8
:
subvertendo, na história, uma estrutura social reinante, a narrativa experimenta uma idéia
filosófica e verifica o comportamento das personagens diante dela, deixando, no final, o texto
com um efeito interrogativo. A humanidade é reduzida drasticamente graças a um gesto
inconseqüente da Emília e, agora, nus (clara referência ao despojamento das convenções e da
moral), os homens têm que buscar nova alternativa para se adaptarem a um ambiente
biológico hostil. Sendo o texto desestabilizador, ao inverter o regime social estabelecido,
oferece uma “nova ordem” para que os personagens possam vivenciar situações
enriquecedoras e apreender os novos valores éticos delas decorrentes. Dentre esses valores, o
relativismo
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é apresentado como uma nova forma de se pensar a realidade, presa, até então, a
um ponto de vista autoritário e absolutista. O raciocínio de Emília, na passagem abaixo, pode
refletir a filosofia de seu criador:
Emília demorou na resposta. Estava pensando. Isso de falar a verdade nem sempre
dá certo. Muitas vezes a coisa boa é a mentira. “Se a mentira fizer menos mal que a
verdade, viva a mentira!” Era uma das idéias emilianas. “Os adultos não querem
que as crianças mintam, e no entanto passam a vida mentindo de todas as maneiras
- para o bem. Há a mentira para o bem que é boa; e há a mentira para o mal, que é
ruim. Logo, isso de mentira depende. Se é para o bem, viva a mentira! Se é para o
mal, morra a mentira”.
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A narrativa, dessa forma, invertendo os seus aspectos convencionais, como o tempo e o
espaço, e incluindo personagens portadores de inteligência artificial - recurso de que o escritor
é pioneiro na literatura infantil brasileira - coloca em confronto, por meio do
“apequenamento”, duas dimensões da realidade para que se possa refletir sobre a relatividade
das coisas. Em carta a Godofredo Rangel, o autor descreve a obra A chave do tamanho como
“filosofia que gente burra não entende”. Segundo ele, a história é “uma demonstração
7
LOBATO, 2005, p. 44.
8
BAKHTIN, 1997, p. 101-180.
9
Leitor assíduo de Nietzsche, Monteiro Lobato acreditava que não existe uma verdade e, sim, diferentes
perspectivas por meio das quais se pode examinar o mundo. Cf. LOBATO, 1944, p. 31,37,109,159.
10
LOBATO, 2005, p. 26.