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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO – DOUTORADO
EDUARDO ANTONIO DE PONTES COSTA
DIÁRIO DE UM PESQUISADOR: JOVENS POBRES EM DEVIR NA
(IN)VISIBILIDADE DA FORMAÇÃO PROFISSIONAL
Niterói
2007
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ii
EDUARDO ANTONIO DE PONTES COSTA
DIÁRIO DE UM PESQUISADOR: JOVENS POBRES EM DEVIR NA
(IN)VISIBILIDADE DA FORMAÇÃO PROFISSIONAL
Tese apresentada ao Curso de Pós-
Graduação em Educação da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial
para obtenção do Grau de Doutor em
Educação. Campo de Confluência:
Movimentos Sociais e Políticas Públicas.
Orientadora: Profa. Dra. Cecília Maria Bouças Coimbra
Niterói
2007
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iii
C837 Costa, Eduardo Antonio de Pontes.
Diário de um pesquisador: jovens pobres em devir na
(in)visibilidade da formação profissional/ Eduardo Antonio de
Pontes Costa. – 2007.
235 f.
Orientador: Cecília Maria Bouças Coimbra.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense,
Faculdade de Educação, 2007.
Bibliografia: f. 176-185
1. Jovens pobres – Brasil. 2. Formação profissional. 3.
Trabalho – Juventude. I. Coimbra, Cecília Maria Bouças.
II. Universidade Federal Fluminense. Faculdade de
Educação. III. Título.
iv
EDUARDO ANTONIO DE PONTES COSTA
DIÁRIO DE UM PESQUISADOR: JOVENS POBRES EM DEVIR NA
(IN)VISIBILIDADE DA FORMAÇÃO PROFISSIONAL
Tese apresentada ao Curso de Pós-
Graduação em Educação da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial
para obtenção do Grau de Doutor em
Educação. Campo de Confluência:
Movimentos Sociais e Políticas Públicas.
Aprovada em março de 2007.
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________
Profa. Dra. Cecília Maria Bouças Coimbra - Orientadora
(UFF)
_______________________________________
Profa. Dra. Célia Soares Frazão Linhares
(UFF)
________________________________________
Profa. Dra. Maria de Fátima Pereira Alberto
(UFPB)
________________________________________
Profa. Dra. Lília Ferreira Lobo
(UFF)
________________________________________
Profa. Dra. Solange Jobim e Souza
(PUC-Rio)
____________________________________________
Profa. Dra. Estela Scheinvar – Suplente
(UERJ)
v
In memorian
Raimundo Costa
vi
AGRADECIMENTO
À minha mãe, Maria Luiza, que nos momentos difíceis de enfermidade de meu pai,
afirmava que a vida é sempre movimento, luta incessante. Dizia a partir de uma voz
saudosa, e, em alguns momentos, presa à dor: “Fique por aí. Você precisa terminar
seus estudos. Eu e os seus irmãos estamos resolvendo tudo”. Nesse cenário, em
que a angústia e a dor se fizeram presentes, é que esta tese, na maioria das vezes,
foi sendo tecida, trabalhada, desenhada, entrelaçada, pelas intensidades da vida.
Aos meus irmãos que aguardam ansiosos pelo término deste trabalho.
A Adalberto Mangueira pela amizade, pela paciência, pelo respeito sempre presente.
À família Mangueira pela acolhida na cidade do Rio de Janeiro.
À Cecília Coimbra pela confiança, pela generosidade, pela seriedade, pelo respeito,
pela parceria, na atividade de orientação... Parte da sua história pessoal e
profissional, do seu mundo sensível, foi fundamental para a realização deste
trabalho. Dizia sempre em relação às leituras teóricas que eram novas para mim: “É
assim mesmo. Procura sentir primeiro, depois você vai amadurecendo”. Confesso
que ela tem um afeto, um coração, grandioso como o infinito.
Aos colegas do doutorado, turma 2003. Em reunião para a definição dos
doutorandos que iriam configurar a lista para a concessão das bolsas, a turma
decidiu que, num primeiro momento, o critério não seria a classificação, mas a
questão particular de cada colega naquele instante. Nesse sentido e por razões
financeiras, fui o primeiro a ser agraciado pela bolsa. Obrigado a todos.
vii
À amiga Irene Machado, minha primeira professora de Psicologia, no curso de
viii
RESUMO
O presente trabalho fala de um relato sobre os jovens pobres inscritos numa
experiência de formação profissional na Escola de Comunicações (EsCom) do
Exército, e sobre o Projeto Rio Criança Cidadã (PRCC) responsável por essa
formação. Sentíamos que podíamos produzir um outro modo de conhecer, de
pesquisar em que o saber-fazer sensível nos permitiria pensar junto aos jovens,
entrelaçados por tantas histórias, por fluxos, pela vida em sua multiplicidade. Um
modo de pesquisar produtor de sentidos em itinerários possíveis de experimentação
em que diferentes interlocutores e suas idéias potentes foram imprescindíveis para
pensarmos o tempo do trabalho, em especial, a formação profissional; e para
produzirmos sentidos múltiplos com os jovens em relação à sua inserção numa
experiência profissionalizante, evidenciando, inclusive, a diversidade que compõe
esses jovens. Esta tese traduz as nossas invenções, criações, tentativas de produzir
diálogos com os jovens em que um outro modo de produzir conhecimento, também,
permitisse falar da nossa implicação como pesquisadores. O diário de campo, uma
das ferramentas da Análise Institucional, ao traduzir o cotidiano denso trazido pelos
jovens, nos permitiu o registro de memória sobre tantas vidas, não apenas a nossa,
a dos educadores e a dos responsáveis pelo projeto. Instaurar uma pesquisa em
devir, implicada com outro modo de conhecer, era a expressão das rupturas, das
intensidades, dos atravessamentos, sobre o saber e o fazer da psicologia e da
educação, e que nos constituía no instante da pesquisa. A produção de dados deu-
se no instante em que tentávamos desconstruir saberes e práticas que os jovens
experimentavam no projeto, objetivando potencializar sentidos múltiplos a partir do
diálogo, da experiência e dos encontros potentes com eles. No prisma do olhar de
quem sofre a intervenção, a perspectiva da “filiação” para os jovens significava uma
passagem transitória até conseguirem um emprego no mercado formal ou, até
mesmo, através da carreira militar. Alguns descreveram, com exatidão, o perfil ideal
de um militar (soldado): ter boa escolaridade e conduta, e uma qualificação. Decerto,
realizamos um trabalho em que um modo de experimentar, sob diferentes ângulos,
feito durante o momento da pesquisa, nos lançava a percursos sempre novos, de
uma vida extremamente diversa e múltipla frente à EsCom, que, por sua rigidez
disciplinar, também, se traduzia num espaço monolítico da experiência juvenil,
inclusive, para os que pensavam e faziam o projeto, e viviam, junto com os jovens,
uma realidade comum: a formação profissional.
Palavras-chave: jovens pobres, formação profissional, devir.
ix
ABSTRACT
The present work discusses a report on poor youngsters registered in a vocational
training experience at Army Communication School (EsCom) and on the Project Rio
Criança Cidadã (PRCC) – Child Citizenship – in charge of this training. We felt that
we could produce a new way of knowing, of doing research, in which a sensitive
approach would enable us to think together with youngsters, intertwined by so many
stories, by flows, by life in its diversity. A way of doing research that would produce
meanings in possible itineraries of experimentation, in which various interlocutors
and their potent ideas were fundamental for us to think about labour time, particularly
vocational training; and for us to produce multiple meanings with youngsters in
connection with their insertion in a vocational experience, evidencing the diversity of
these youngsters. This thesis describes our inventions, creations, attempts to
produce dialogues with youngsters in which another manner of producing knowledge
would also enable us to speak about our implication as researchers. The field book,
one of Institutional Analysis tools, by registering the dense daily life of youngsters,
enabled us to record the memory of so many lives, not only ours, of educators and
those in charge of the project. To perform a research implied with other manner of
knowing was the expression of ruptures, intensities, decentring, about the knowing
and making of psychology and education, and which constituted us as the research
was carried out. The production of knowledge occurred when we attempted to
deconstruct knowledges and practices which youngsters experimented in the project,
aimed to potentialize multiple meanings on the basis of dialogue, experience and the
potent meeetings with them. From the perspective of those submitted to intervention,
the feeling of “belonging” (“filiação”) for youngsters meant a transitory passage until
they found a job in the formal labour market or even a military career. Some
accurately described the ideal profile of a military (soldier): to have good education
and behaviour and a qualification. Certainly we carried out a work in which a mode of
experimenting, from different angles, during the course of the research, led us to ever
new paths, of an extremely diverse and multiple life in view of the EsCom, which,
owing to its rigid discipline, meant a monolithic space of juvenile experience.
Key-words: poor youngsters, vocational training, becoming
x
SUMÁRIO
Introdução
Capítulo 1
Caminhos Itinerantes e o Encontro com o Objeto de Estudo 15
Capítulo 2
Saberes e Discursos Múltiplos sobre os Jovens 27
Capítulo 3
Do Medo à Salvação: Capturando Subjetividades Juvenis em Terras de São
Sebastião
3.1 Crianças e Jovens nos Arsenais de Guerra do Exército 45
3.2 Crianças e Jovens e a Formação Profissional: o Exemplo do 61
Período Republicano
Capítulo 4
Caminhos Metodológicos por Intensidades e Fluxos 74
Capítulo 5
O Locus da Pesquisa por Desafios e Descobertas
5.1 Intensidades e Acontecimentos no Trabalho de Campo 87
5.2 O Contexto do PRCC na EsCom 96
5.3 A emergência do PRCC na EsCom: Memórias em Fragmentos 110
Capítulo 6
O Olhar em Fragmentos: a (in)visibilidade dos Educadores do PRCC 120
Capítulo 7
Produzindo Diálogos em Encontros com Moços Aprendizes
7.1 Modos de Desejar, de Sentir, de Afetar 142
7.2 Tempo e Espaço nas Tramas Juvenis 151
7.3 Tempo-Vivência Família 157
7.4 Tempo-Vivência Eles no Tempo 160
Algumas Conclusões, Algumas Inconclusões 167
Referências 176
Anexo A – Relatório Anual do PRCC (2004) 184
Anexo B Convênio PRCC (2004) 193
Anexo C – Distribuição do Número de Jovens Atendidos por Unidades de
Assistência 207
Anexo D – Diretriz de Serviços do PRCC (2005) 208
Anexo E – Cronograma das Atividades do PRCC 233
Anexo F – Distribuição dos Cursos nas Organizações Militares 234
Anexo G – Projetos Educar e Profissionalizar 235
INTRODUÇÃO
[...] Seria pensável um prazer e força
da autodeterminação, uma liberdade
da vontade, em que um espírito
se despede de toda crença, de todo
desejo de certeza, exercitado, como
ele está, em poder manter-se sobre
leves cordas e possibilidades,
e mesmo diante de abismos
dançar ainda [...]
(Friedrich Nietzsche)
Experiência, invenção, criação, potência. Tantas palavras, tantos desejos.
Falar da nossa trajetória de pesquisar é pode falar sobre tantas reflexões, memórias,
para pensar sobre os jovens pobres inscritos numa experiência de formação
profissional e o PRCC responsável por essa formação. Trata-se de um relato de
experiência, atravessado pelo nosso diário de campo, em que a pesquisa se fez pela
intensidade dos afetos. Éramos todos devires: jovens e pesquisadores. A pesquisa,
nesse instante, é produzida com o corpo implicado. Não havia separação entre
sujeitos pesquisados – objeto da observação –, e o sujeito detentor do
conhecimento. Sentíamos que podíamos produzir um outro modo de conhecer, de
pesquisar em que o saber-fazer sensível nos permitia pensar junto aos jovens,
entrelaçados por tantas histórias, por fluxos, pela vida em sua multiplicidade. É um
modo de pesquisar produtor de sentidos em itinerários possíveis de experimentação.
Nessas experimentações que vivemos, diferentes interlocutores e suas idéias
potentes foram imprescindíveis para pensarmos o tempo do trabalho, em especial, a
formação profissional, e para produzirmos sentidos múltiplos com os jovens em
relação à sua inserção numa experiência profissionalizante, evidenciando, inclusive,
12
a diversidade que compõe os jovens que participaram da nossa pesquisa. Portanto,
o presente trabalho de doutorado traduz as nossas invenções, criações, tentativas
de produzir diálogos com jovens em que um outro modo de conhecer, de produzir
conhecimento, também, permitisse falar da nossa implicação como pesquisadores. A
pesquisa de campo, os encontros com os jovens, os educadores e os
coordenadores, apesar de ricos e potentes, foram também incertos, difíceis, no
sentido de nos conduzirem, algumas vezes, ao desestímulo, à apatia. A vida em
imanência era o que desejávamos. Não há nesse trabalho uma leitura
transcendente, teleológica da vida, mas uma leitura e um sentir a vida como
produção, desejo, processo. Numa aproximação que nos solicita outros olhares,
outros saberes, sabores, desejos, sobre uma realidade que se faz e refaz diante da
crise do emprego formal em que o trabalho precário tende a ser dominante.
O caminho, desenhado por nossas experiências e expresso no presente
texto, ao traduzir a surpresa da vida, o devir, segue os seguintes itinerários. O
Capítulo 1 desse trabalho de doutoramento intitulado ITINERANTES OLHARES E O
ENCONTRO COM O “OBJETO DE ESTUDO” representa o momento em que
traçamos o nosso encontro com a temática juventude e formação profissional,
situando o contexto histórico-social das nossas experiências, numa dimensão
pessoal e profissional, situando, certamente, a produção, denominada por nós
“modo-jovem-trabalhador”. No chamado projeto social de formação para o trabalho
os jovens são percebidos como os sujeitos do risco e da prevenção.
No Capítulo 2 – SABERES E DISCURSOS MÚLTIPLOS SOBRE OS JOVENS
– colocamos em evidência como os diferentes modos de se pensar a produção
juvenil, num breve recorte da história do mundo ocidental, nos apontam para uma
história contínua, de pretensão unificadora, cujo tempo, único e homogêneo, nos
remete à história dos paradoxos, ao chrónos, como bem nos afirmaria Deleuze
(1992).
No Capítulo 3 intitulado DO MEDO À SALVAÇÃO: CAPTURANDO
SUBJETIVIDADES JUVENIS EM TERRAS DE SÃO SEBASTIÃO, focamos, num
primeiro momento, a descrição e a análise sobre o papel do Exército, a partir de
1832, nos seus Arsenais de Guerra, ao tomarem para si a função de educar crianças
e jovens pobres. Num segundo momento, situamos os jovens no contexto do Brasil
Republicano. Poder revisitar parte dessa história, num certo sentido, nos faz pensar
como eram produzidos discursos, em terras brasileiras, sobre os jovens pobres.
13
Entendemos que tentar situar o contexto dessa questão não se constitui e não foi,
efetivamente, tarefa fácil.
No Capítulo 4 – CAMINHOS METODOLÓGICOS POR INTENSIDADES E
FLUXOS – apresentamos algumas ferramentas metodológicas que serviram para
pôr em análise, também, o lugar que ocupamos como pesquisadores. Para isso,
recorremos a alguns conceitos-ferramentas da Análise Institucional: como os de
implicação – a recusa da neutralidade do pesquisador em que a análise não consiste
apenas em analisar o outro, mas em analisar a si mesmo; da pesquisa-intervenção –
a partir do dispositivo-encontro, em que pesquisador e pesquisado, sujeito e “objeto”
do conhecimento, se constituem no mesmo tempo; e do diário de campo – recurso
metodológico revelador da nossa condição de pesquisador com o chamado “objeto
de pesquisa”.
No Capítulo 5 – O LOCUS DA PESQUISA POR DESAFIOS E
DESCOBERTAS – entendemos que a análise de implicação de todo material que
ora produzimos, a partir do recorte pertinente para o referido trabalho, se constitui
num processo infinito, de múltiplos olhares e dizeres, certamente, quando nos
deparamos com um projeto de formação profissional tão complexo e controvertido
como descrito e analisado nesse capítulo, subdivido em três momentos. O primeiro
trata das “idas e vindas” do trabalho de campo quando as dificuldades para a
escolha e a definição do projeto pesquisado nos remeteram a experiências únicas e
difíceis. Num segundo momento, apresentamos, ao colocarmos em tensão o
discurso do projeto, o histórico do PRCC, seu objetivo e o contexto da sua
emergência em 1993 na cidade do Rio de Janeiro. Por último, situamos o contexto
do projeto em tela no instante em que ele surge na EsCom. Para tanto,
apresentamos esse percurso a partir de memórias tecidas em fragmentos que não
formando um todo, traduz o olhar de quem intervém sobre uma parcela da juventude
considerada pelo projeto como “em situação de risco social”. Nessa perspectiva,
ganha força a função de cuidado presente no discurso tênue entre preparar para o
mercado de trabalho e prevenir uma suposta “virtualidade perigosa”.
O Capítulo 6 intitulado O OLHAR EM FRAGMENTOS: A (IN)VISIBILIDADE
DOS EDUCADORES DO PRCC, mostra a nossa implicação, a partir da ferramenta
da pesquisa-intervenção, para falar do olhar dos educadores sobre os jovens; das
suas implicações na prática educativa; dos dilemas da experiência docente no
14
programa; e da relação de poder entre os educadores e os jovens. Esses são alguns
fios que atravessam a presente discussão.
O Capítulo 7 - PRODUZINDO DIÁLOGOS EM ENCONTROS COM MOÇOS
APRENDIZES – mostra o quanto da nossa aproximação com os jovens, a partir de
encontros potentes e múltiplos, traduz a escolha de um modo de conhecer e de
pesquisar que evidencia a produção desses encontros, num espaço instituído, ao
traçarmos desejos, dúvidas, certezas, incertezas, em relação a nós e aos jovens,
para além de uma formação para o trabalho.
Por último, apresentamos ALGUMAS CONCLUSÕES, ALGUMAS
INCONCLUSÕES em que ratificamos a importância do diário de campo e dos
encontros com os jovens, certamente, ancorados em autores potentes e diversos.
Tecemos, inclusive, algumas considerações sobre os itinerários invisíveis da
formação profissional que tenta dar conta de parte de uma realidade complexa e
controversa que é a juventude.
Capítulo 1
I
I
T
T
16
produzem juventudes. Os jovens aos quais nos referimos nesta pesquisa de
doutoramento são filhos de trabalhadores que vivem numa situação de pobreza mas
não de extrema miséria, em que o desemprego, o analfabetismo, a baixa
escolaridade, a pouca qualificação, a convivência com diversas situações de
violência configuram o cotidiano de suas vidas em algumas favelas da cidade do Rio
de Janeiro e cercanias. Excluídos de uma formação adequada às exigências do
mercado de trabalho formal, são levados, desde cedo, ao trabalho precário
2
ou à
inserção no mercado do tráfico de drogas, uma alternativa efêmera para os jovens
que, quando envolvidos, podem ter como destino a prisão ou uma morte violenta e
prematura
3
.
Como nossas vidas são atravessadas por tantas intensidades, que nos falam
de experiência, de luta, e que nos colocam sempre em movimento, acreditamos que
nenhum trabalho surge do acaso. Sendo assim, pesquisar representa não apenas
um esforço profissional, mas um entrelaçamento com as nossas experiências, com
nossos laços afetivo-emocionais, e tantos outros que nos lançam a muitos caminhos
itinerantes.
A lembrança, a memória, as imagens, os encontros, os desencontros,
quantos caminhos! Na complexidade de recompor os fragmentos, cabe a difícil
tarefa de indagar: lembrar. Por onde começar? Nossas lembranças são como
pequenos pontos de areia que, no sabor e des-sabor dos ventos e do tempo, vão
mudando as suas formas nunca definidas, nunca eternas. É como se quiséssemos
pegar a memória com as nossas próprias mãos. Tentativa inútil, pois a memória é
como fragmento de tantos desejos. Quando pensamos em expressar as nossas
motivações para a realização deste trabalho, elegemos caminhar por trilhas não
trilhadas, por travessias ainda não pisadas, que só as nossas memórias,
compactuadas com as lembranças do outro, podem ir compondo a difícil tarefa de
2
Em 2001, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por meio da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), havia, no Brasil, cerca de 5,5 milhões de crianças e
jovens trabalhando. Mais de um milhão deles não freqüentavam a escola e quase 49% trabalhavam
sem remuneração. Com relação à faixa etária entre 15 a 17 anos, do total de 10.306.707 jovens,
3.250.541 estavam exercendo algum tipo de atividade.
3
Conforme o Mapa da Violência VI, divulgado pela Organização dos Estados Ibero-Americanos para
a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI) no dia 16/11/2006, o número de homicídios entre os jovens,
de 15 a 24 anos, apresentou uma redução em relação aos dados oficiais de 1999 a 2004: 5,7% nos
assassinatos, no mesmo período. No ranking entre os estados, o Rio de Janeiro ainda apresenta o
maior número de homicídios entre os jovens: 102,8 mortes para cada 100 mil habitantes. Em 2002,
eram 118,9 assassinatos por cem mil habitantes (WAISELFISZ, 2006). Os dados, por si expressivos,
são preocupantes em termos de Brasil. Dos sete milhões de jovens, enfatiza o estudo, 20% não
estudam, não trabalham.
17
expressar, não o começo, não o início dos primeiros pontos que vão cruzando,
entrecruzando as nossas vidas.
Se não escrevemos com as próprias lembranças, segundo nos aponta
Deleuze (1997), é porque somos um encontro de múltiplas intensidades que nos
colocam em contato com a vida. A escolha em estudar jovens pobres e a formação
profissional nos permite falar de alguns fragmentos de nossas memórias, que
surgem como um quadro inacabado ressoando em nossas lembranças. Um percurso
entendido como um recomeçar que nos lança a cada movimento do corpo, a cada
olhar que escapa de nossos olhares, a uma recriação constante de nós mesmos,
algo como um desejo visceral pela existência do outro.
Somos oriundos de um Estado onde as marcas da miséria e da pobreza
parecem nutrir-se de um mesmo corpo: do homem brasileiro, nordestino. Assim
como Graciliano Ramos no seu livro Infância, suscitamos falar um pouco do nosso
pequeno mundo incongruente onde, talvez, a nossa infância seja o recorte inicial, de
um início que não existe, sobre as imagens ainda não esquecidas em nossas
memórias.
Quando pensamos em recompor alguns fatos da nossa travessia, não
estamos nos referindo a um tempo cronológico. Se optamos pelo olhar descontínuo
é porque acreditamos que a verdade é produção cristalizada numa suposta
concepção de homem e de mundo.
Assim como a certeza, talvez incerta, do dia ou da noite, ou da Esperança ter
permanecido no mito da Caixa de Pandora, para que continuássemos acreditando
que, diante de todos os males da humanidade, ainda há saída, alguns
acontecimentos importantes nos permitem falar da aproximação com o referido
objeto de investigação.
Em termos geográficos, nossas vidas espraiavam-se numa pequena cidade
do interior paraibano. Nos dias de sol ou de chuva que, para a nossa sorte,
apresentavam uma certa regularidade, nos intervalos das brincadeiras, quase que
diariamente, assistíamos à materialização do descaso público traduzido numa “micro
urna”, de cor azul, em que a mortalidade infantil lançava-se feroz e impiedosa sobre
tão poucas vidas. Tomados por uma certeza cristã, pensávamos que um desígnio
divino determinava a sobrevivência de algumas crianças. Aquelas que morressem,
seriam abrigadas no Reino do Céu. Eram puras, qualidade que nenhum humano
possuía. Aos que permaneciam vivos e tomados por um sentimento cristão,
18
restavam os olhos presos ao chão como se cada passo, em direção ao
sepultamento, traísse o seu próprio desejo. Talvez, consumar o acontecimento não
correspondesse ao desejo de tão pobres vidas que, sob o sol forte ou diante dos
pingos contáveis da chuva, rogavam a Deus pela boa acolhida.
Nas cercanias da infância onde as ruas vão tomando formas em nossas
memórias, além de produzirmos uma das maiores taxas de mortalidade infantil, a
nossa cidade também produzia migrantes. O “sul maravilha” representava a
“salvação” dos que ainda lutavam pela sobrevivência pois, entre as lágrimas partidas
na dor, eles tinham suas vidas marcadas pela presença da miséria e da pobreza que
os expulsavam de suas partes lenhosas.
Nesta tentativa de atualizar a nossa própria história assim como de alguma
forma o fez José Lins do Rego na sua obra memorialística, Menino de Engenho, nos
parecia que, entre lágrimas e despedidas, cabia aos migrantes levarem consigo
apenas a saudade, com a amarga sorte de poderem continuar escrevendo suas
histórias, brevemente, atravessadas por tantas outras vidas.
Nesse momento em que as lembranças vão povoando o nosso pensar, agora
entre a infância e a adolescência, mais um elemento apontava para uma dada
realidade complexa, difícil, que não pertencia mais ao nosso mundo mágico da
fantasia, quando éramos crianças. Agora a razão, no sentido da descoberta de
tantos eventos que nos atravessam, nos alerta sobre a existência de um certo
domínio, de um certo tipo de governo que pertencendo à ordem das maiorias, no
sentido deleuziano
4
, imprimia um modelo sob o qual tínhamos que nos conformar.
Possivelmente, a clareza escura nos fosse apontada não só pelo cotidiano da nossa
cidade, mas pelas trajetórias quebrantes que alguns insatisfeitos, as minorias,
insistiam cartografando. Nesse momento, a vida parecia ser tecida nas tramas do
medo, surgia, como uma experiência angustiante, algo que poderia nos marcar para
sempre.
Algo denunciava que estávamos sob um governo autoritário e tirânico, que a
golpes de suas verdades, colocava-se como o ideal para a solução de uma grave
4
Gilles Deleuze, em Conversações, nos apresenta dois modos de temporalidade. De um lado, o devir
e, do outro, a história, pois “[...] o que a história capta do acontecimento é sua efetuação em estados
de coisa, mas o acontecimento em seu devir escapa à história” (DELEUZE, 1992, p. 210). Neste
trabalho, estamos nos referindo à maioria, não em sua quantidade, mas no sentido de que há “um
modelo ao qual é preciso estar conforme” (Ibidem, p. 214). Nesse campo de “efetuação em estados
de coisas”, temos a história da Ditadura Militar impondo seus “regimes de verdade”. Uma história que
19
crise social e econômica vivida pela maioria da população brasileira, com expressivo
impacto sobre a vida de crianças e jovens pobres. Uma crise dilacerada em sua
amplitude pelas próprias mãos, ironicamente, de um regime militar que continuaria
imprimindo seus “regimes de verdades”
5
. Uma verdade que, para nós, como pensou
Clarice Lispector, nunca fez sentido.
Recordando as minúcias, a denúncia sobre a nossa crise política surgia
expressivamente nas transações que se davam durante a aquisição do chamado
jornal Tribuna Operária. É algo inconfundível. As cores vermelha e verde vestiam as
notícias com os fatos que não eram os relatados pelos órgãos oficiais.
Possivelmente, o jornal Brasil de Fato seja, na atualidade, um outro canal de
desconstrução de tantas outras verdades. Voltando ao Tribuna Operária, havia algo
de nebuloso no momento da aquisição do exemplar. João Pessoa e Campina
Grande representavam os únicos lugares possíveis para conhecer um outro “Brasil
de fato”. Era como se o jornaleiro conseguisse identificar, e nem todo jornaleiro
conseguia, alguém que se colocasse contra o regime instituído da época. Uma
dessas figuras era o nosso pai. Expressando um desejo socialista, para além das
páginas e de algumas discussões sobre Karl Marx, oriundas de outras vozes do
Recife, pensava no trabalho, enquanto produção, como algo pertencente ao campo
do coletivo.
Como socialista propiciou, através de suas relações moleculares, dar
visibilidade a um mundo que nos parecia único, de um real “intransponível”. O plural
nos proporcionaria, não mais no seu silêncio, perceber o mundo como um lugar das
batalhas, das lutas incessantes, das diferenças que nos constituem, na arena de
múltiplas vozes.
Tomando de empréstimo ainda a noção de tempo linear, após nos tornarmos
adultos, fomos atravessados por outras intensidades, não mais a da nossa pequena
cidade. A sensação que temos é que estamos produzindo, permanentemente, outras
intensidades, colocando a vida em dilatação constante com o tempo cronológico,
pois nos encontramos, nesse fluxo itinerante da vida, por vezes cartografando outras
existências, como afirma Rolnik (1989).
se cristalizaria no presente, algo como referência primeira, possuidora de um acabamento e de uma
finalidade única.
5
Por regimes de verdade, entendemos as normas e regras produzidas pelas práticas sociais, como o
bem e o mal, o bom e o mau, definindo, assim, a “normalização” da vida na sociedade (FOUCAULT,
1974).
20
Em 1994, através da nossa inserção no Setor de Estudos e Assessoria a
Movimentos Populares (SEAMPO), do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
(CCHLA) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), na cidade de João Pessoa,
passamos, como graduandos em psicologia, a integrar projetos de pesquisa e de
extensão cuja temática tratava de crianças e adolescentes pobres. A pesquisa
atendia à demanda de entidades governamentais e não governamentais, da cidade
de João Pessoa, que solicitaram ao referido Setor um estudo sobre as condições de
vida e de trabalho dos(as) meninos(as) em condição de rua, inclusive, sobre o seu
quantitativo. O estudo de extensão compreendia uma atividade de assessoria ao
Projeto Comunitário de Educação Popular (PROCEP) que, na época, lidava com
crianças e adolescentes, filhos de trabalhadores rurais e urbanos.
Pondo à parte as particularidades de cada trabalho, saltavam aos olhos
algumas questões flagrantes quanto à inserção de crianças e jovens precocemente
lançados no mercado de trabalho informal e precário. Inserção essa que não
representava uma escolha das crianças e dos jovens, mas uma imposição por sua
origem social e pelo tipo de sociedade que já se construía no Brasil.
Assim, no decorrer desses estudos, percebíamos que as discussões e as
leituras nos lançavam no campo da pesquisa para um futuro mestrado. Em
novembro de 1998, apresentamos uma “carta de intenção” ao Programa de
Mestrado em Saúde Pública, da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), da
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), objetivando estudar a trajetória de vida e de
trabalho de crianças e jovens na produção de redes, no município de São Bento,
localizado no sertão paraibano. Pretendíamos verificar, inclusive, em que medida
essas atividades desenvolvidas se configuravam como uma lógica de reprodução
social, que redundava na agressão à integridade moral, física e psíquica desses
sujeitos.
Em março de 1999 e vinculado à ENSP, dentro do Centro de Estudos da
Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (CESTEH), tivemos a oportunidade de
constatar que as questões mencionadas, que objetivávamos investigar inicialmente
na Paraíba, poderiam ser estudadas a partir da análise da realidade da atuação de
algumas ONGs no Rio de Janeiro, com jovens pobres, atendidos por programas de
formação profissional.
Assim, o nosso estudo abarcou duas entidades do terceiro setor: Associação
Beneficente São Martinho e o Centro Cultural AfroReagge sobre as condições de
21
vida e de trabalho de jovens egressos. Compreendíamos que a saúde dos jovens
não era o resultado só de fatores biológicos. Ela estava relacionada a fatores
ambientais, econômicos e sociais resultantes do desemprego, do subemprego e do
trabalho precário. Ressaltamos que o terceiro setor se refere a um fenômeno “[...]
que envolve um número significativo de organizações e instituições – organizações
não governamentais (ONGs), sem fins lucrativos (OSFL), instituições filantrópicas,
empresas cidadãs, entre outras – e sujeitos individuais – voluntários ou não”
(MONTAÑO, 2002, p. 14). Em seu trabalho, Carlos Montaño procura problematizar o
debate sobre o conceito do “terceiro setor”, colocando em questão a perspectiva de
transformação social presente nos projetos direcionados para a “questão social”
brasileira, notadamente, a partir dos anos 1990, período do ajuste neoliberal
6
no
Brasil.
Em linhas gerais, percebemos, mesmo diante de resultados exitosos
produzidos pelos programas, uma “regularidade” nas falas dos jovens. Os indícios
dessa “regularidade” sugerem pensar na existência de práticas, com suas regras e
prescrições de linguagens que, atravessadas por contradições dos efeitos
mencionados e, ao tentar orientar as suas ações para a aprendizagem profissional
dos jovens, se constituiriam enquanto espaços de produção de subjetividades.
Existe uma frase de Paulo Freire (1998, p. 111) que parece resumir adequadamente
o que propomos acerca da produção de subjetividades. “[...] Nem somos, mulheres e
homens, seres simplesmente determinados nem tampouco livres de
condicionamentos genéticos, culturais, sociais, históricos, de classe, de gênero, que
nos marcam e a que nos achamos referidos”. Assim como o pensamento freiriano,
destacamos que, ao falarmos de jovens, no presente trabalho de doutoramento,
estamos nos referindo a sujeitos que, ao produzirem multiplicidades, são, portanto,
pontos de inflexão de múltiplas forças, de múltiplas intensidades (DELEUZE &
GUATTARI, 1976).
Se questionar as certezas é fecundo, restava-nos indagar sobre tais práticas
no percurso do mestrado, não procurando entender apenas o que representou a
formação profissional para os jovens, mas os sentidos que eram produzidos no
6
Neoliberalismo refere-se ao movimento iniciado na década de 1970 que, além de reafirmar a
liberdade individual e o movimento “natural” da sociedade – liberalismo clássico –, constitui uma
reação teórica e política contra o Estado intervencionista e de bem-estar social. “[...] Trata-se de um
ataque apaixonado contra qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado,
22
cotidiano dos ingressos. Nesse sentido, ao buscarmos construir um caminho pelo
avesso, propondo produzir movimentos de ruptura com o instituído, o nosso olhar,
agora no percurso do doutorado, nos lançaria a outras questões: Em que medida
jovens pobres poderiam inscrever novos registros de realidade diante de uma
suposta formação para o trabalho? Que rupturas poderiam ser produzidas no
embate dos jovens com experiências profissionalizantes? Neste trabalho,
entendemos por formação profissional a definição proposta por Oris de Oliveira
(1993, p. 86).
Há aprendizagem, uma das primeiras fases da formação técnico-
profissional, quando o adolescente se insere em um programa com começo,
meio e fim, com operações alternadas (conjugando-se ensino teórico e
prático), metódico (operações em que se passa do menos para o mais
complexo) feito sob a orientação de um responsável (pessoa física ou
jurídica) em ambiente adequado (condições objetivas: pessoal docente,
equipamentos), sendo que ao final do programa se possa dizer que é um
profissional qualificado.
Entender o que nos levou a definir o nosso objeto de pesquisa foi perceber,
excetuando-se os diferentes aspectos regionais pertinentes ao Rio de Janeiro e à
Paraíba, uma produção de jovens marcada pela violência, pela negligência e pela
transgressão aos direitos “juvenis”. Além dessa percepção, salta aos olhos uma
expressiva ambigüidade presente em algumas entidades de natureza
profissionalizante do terceiro setor. Imbuídas por uma suposta salvação diante dos
que possuem uma virtualidade perigosa, duas lógicas germinam em direção aos
jovens pobres. De um lado, sentimentos de pena, de medo. E por outro, a
necessidade de intervir, de interditar possíveis “subjetividades desviantes”, para, em
seguida reintegrá-las a uma certa ordem moral e simbólica. Assim, o que motivou a
nossa escolha foi o fato de perceber como os jovens pobres vêm sendo
atravessados por essas lógicas.
Inicialmente e objetivando a definição do locus da pesquisa, dentre alguns
estabelecimentos contatados, a Fundação para a Infância e a Adolescência (FIA),
órgão responsável pelas políticas públicas no estado do Rio de Janeiro,
representava, ao se constituir num importante interlocutor, uma primeira tentativa de
abordagem do problema. Assim, nos permitíamos, nas trajetórias pelas ruas do Rio
de Janeiro, ser um pouco como um flâneur, personagem simbólico da multidão
denunciadas como uma ameaça letal à liberdade, não somente econômica, mas também política”
(ANDERSON, 1995, p. 9).
23
criado por Walter Benjamin
7
, até porque “[...] saber orientar-se numa cidade não
significa muito. No entanto, perder-se numa cidade, como alguém se perde numa
floresta, requer instrução. Nesse caso, o nome das ruas deve soar para aquele que
se perde como o estalar do graveto seco ao ser pisado [...]” (BENJAMIN, 1995, p.
73). O flâneur representa um tipo que ainda pertence ao passado, mas a multidão
que o envolve, enquanto perambula pelas ruas da cidade, começa a jogá-lo dentro
do mundo das mercadorias, onde, certamente, passará da condição de observador
para a de consumidor (BENJAMIN, 1989).
Mesmo assim, não estou me sentindo só. O Rio tem disso. Nas vidas que
se cruzam e entrecruzam nesta cidade, ainda há espaço para um sorriso
triste e alegre das pessoas. Na dialética do bem e do mal, do paraíso e do
inferno, o Rio mexe comigo. Seu cotidiano é extremamente complexo. São
várias as linguagens que compõem o universo polifônico desta cidade. Vou
tentando conhecê-la através de tantos olhares meus que buscam captar
uma densidade de fragmentos que compõem o seu cenário urbano.
Entender um pouco de seus múltiplos territórios, é importante para que eu
possa continuar construindo diálogos com uma história onde a vida social
de seus habitantes espraia-se pelas ruas, pelos becos, pelas calçadas.
Permitindo-me, inclusive, por suas avenidas e esquinas, continuar
escrevendo e narrando uma parte da minha história. (DIÁRIO DE CAMPO,
11/09/2003)
Desse modo e numa primeira tentativa, tivemos a oportunidade de
estabelecer um contato inicial com a FIA. Por meio dela, conhecemos a Associação
Beneficente Rio Criança Cidadã (ABRCC) que, desde outubro de 1993, vem
desenvolvendo atividades de formação profissionalizante através do PRCC. Fruto de
um convênio firmado, em setembro de 1993, com o Exército Brasileiro, Governo do
Estado do Rio de Janeiro, municípios de Campos de Goytacazes, Rio de Janeiro,
Petrópolis, Macaé, São Gonçalo, Arquidiocese do Rio de Janeiro e de Niterói, e a
ABRCC que apresenta como objetivo a “conquista da cidadania pela educação
integral”, a partir da inserção de jovens pobres nos cursos profissionalizantes,
realizados em unidades do Exército.
Assim, nos propusemos a conhecer o projeto na Escola de Comunicações
(EsCom), do Exército, a partir de um prévio agendamento para maio de 2004,
conforme descrito no Capítulo 5. Neste sentido:
7
O contato com Walter Benjamin surgiu a partir dos primeiros diálogos com a profa. Solange Jobim e
Souza, durante dois semestres de disciplinas no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica
da PUC-Rio. Ressaltamos que o primeiro foi sobre Mikhail Bakhtin no segundo período de 2003.
24
Iniciamos então a nossa reunião. Como ponto de partida, tentei esclarecer
para ambos as intenções da minha pesquisa, que está vinculado a uma
atividade de doutorado que tem como objetivo entender a concepção da
formação profissional na ótica dos jovens participantes, especificamente, do
PRCC. Enfatizei que estaria como pesquisador, e não como psicólogo.
Mencionei que o trabalho apresenta algumas demandas e, dentre elas, um
tempo de aproximação/contato com os jovens até mesmo para poder
acompanhar um pouco a relação deles com o projeto, no seu cotidiano.
Seria interessante, tendo a permissão dos oficiais, sistematizar um encontro
semanal com os jovens. Era necessário um contato sistematizado para
deixar de ser anônimo ou desconhecido por eles e o contrário disto. Quanto
à autorização para a realização da pesquisa, não houve problemas. Eles se
colocaram à disposição para contribuir no que fosse necessário. Coloquei
que seria interessante que os jovens se sentissem a vontade para escolher
participar ou não da pesquisa. O quantitativo não era importante. O
interessante seria que eles não se sentissem pressionados, inclusive, por
parte dos militares. (DIÁRIO DE CAMPO, 11/05/2004)
Diante da autorização para a realização da nossa pesquisa, o PRCC foi
escolhido, porque apresenta aspectos, no mínimo, instigantes. Trata-se, como já
referido, de um projeto em que cursos profissionalizantes são realizados em diversas
unidades do Exército. Ressaltamos, inclusive, a ausência de trabalhos analíticos
sobre a questão dos ingressos na EsCom. Nesse sentido, a mencionada escolha
nos lançou a uma indagação que poderia ser assim traduzida: O que move a
ABRCC a formar jovens pobres para o mercado de trabalho, diante de uma crise do
emprego formal? Em decorrência de políticas de caráter neoliberal, engendradas
com o auxílio de forças internacionais e com a globalização dos mercados, o que
temos, nos dias de hoje, é um agravamento da exclusão social, conjugada ao
crescimento da produção, da produtividade, da competitividade (CARDOSO, 1999;
FERRETI, 1997; RAMONET, 1998).
Nesse paradigma da produção, temos o sujeito submetido ao capital flexível,
diante da “[...] emergência de modos mais flexíveis de acumulação do capital e um
novo ciclo de ‘compreensão do tempo-espaço’ na organização do capitalismo”
(HARVEY, 1994, p. 7). Em sua obra A condição pós-moderna, David Harvey (op.
cit.), ao analisar as transformações político-econômicas do capitalismo do final do
século XX, parte do estudo do fordismo e de sua implicação com o keynesianismo, e
aponta, a partir dessa imbricação, para uma expressiva expansão do capitalismo,
além dos períodos de crise desse paradigma de organização e de produção, cujo
regime manteve-se firme ao menos até 1973.
25
[...] A acumulação flexível, como vou chamá-la, é marcada por um confronto
direto com a rigidez do fordismo. Ela se apóia na flexibilidade dos processos
de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de
consumo. [...] envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento
desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas [...]. (HARVEY,
op. cit., p. 140)
Nesse contexto, ao produzir um considerável grau de incertezas, foco de
novas tensões, e do agravamento das desigualdades sociais, questionamos: Que
tipo de formação para o trabalho, em específico para jovens pobres, será relevante
para uma situação de falta de emprego como a que enfrentamos hoje? Que
concepções de trabalho e de juventude atravessam as práticas da formação
profissional no PRCC? Haveria alguma adaptação, uma junção de outros elementos,
que buscariam localizar e situar os jovens antes do alistamento militar? Seria
necessário disciplinar, controlar, para além da área militar, o tempo e o espaço dos
jovens? Quais seriam os possíveis mecanismos de prevenção? Como os jovens
elaboram, sentem, pensam essas situações?
Enfim, é nessa trama de relações que nossa pesquisa se propõe a analisar, a
partir do diálogo da experiência com a juventude, os sentidos atribuídos pelos jovens
pobres à formação profissional realizada em um espaço militar, pensar os vários
sentidos que aí se atravessam.
Tomamos de Walter Benjamin (1994) o conceito de experiência que nos anos
1930, formulará a noção de vivência (Erlebnis) em oposição à noção de experiência
(Erfahrung). Para ele, a vivência não consegue ir além do tempo. A ação se esgota
no momento de sua realização, sendo, portanto, finita. Por outro lado, a experiência
só pode ser produzida e entendida pelo seu conteúdo histórico. Ela não esquece o
passado, pois ele representa o fio condutor para a construção de outro futuro.
Portanto, a experiência é coletiva, narrada, pensada e compartilhada para e com os
outros sujeitos. Assim, buscamos no diálogo com os jovens escapar aos fatalismos
postos pelos discursos de verdade, pelos escritos.
Entendemos que o referido estudo não pretende questionar per si o mundo do
trabalho, pois há uma juventude que precisa ser ouvida em suas múltiplas vozes.
Assim, o interesse da pesquisa e da reflexão teórica que se produz é no sentido de
dar visibilidade à relação entre sujeitos, num determinado espaço militar.
O que percebemos, ao longo da nossa trajetória de trabalho, é, certamente,
uma contenção real do risco potencial dos jovens pobres, diante da diversidade e da
26
complexidade presentes na categoria juventude apesar de alguns avanços
presentes em algumas associações e ONGs em investirem na reversão de um
quadro revelador tanto de uma grave crise social, quanto da fragilidade das políticas
sociais voltadas para a população juvenil, ao tentarem inibir a sua inserção,
principalmente, no subterrâneo mercado do tráfico de drogas e no trabalho precário.
No Capítulo 2, pretendemos colocar em evidência como os diferentes modos
de se pensar a juventude, ao marcá-la em seus traços e contornos da vida e da
alma, vão nos mostrando uma história contínua, de pretensão unificadora, cujo
tempo, único e homogêneo, nos remete à história dos paradoxos, ao chrónos, como
bem nos afirmaria Deleuze (1992). Nesse mesmo tempo, em seus paradoxos, é
como se a vida seguisse uma cronologia intransponível, cujo solo pavimentaria a via
sobre a qual os jovens teriam de se conformar, se modelar, se subjetivar. Neste
trabalho, entendemos a nossa história e a dos jovens como movimentos de ruptura
com o tempo contínuo. Assim, buscamos, a partir do devir, o aión, as linhas de fuga,
que nos remetem à luta, à vida pulsante (Ibidem, 1992).
As distinções entre história e devir, chrónos e aión, podem nos ajudar a
pensar numa dimensão intempestiva que habita todos nós, em especial, a
juventude. Talvez possamos pensar o já pensado para produzir outros lugares
minoritários, moleculares. Assim, como existem outras temporalidades, outras linhas
de fugas, existem também outras juventudes.
Aqui, rejeitamos a noção de uma juventude pertencente à ordem das
maiorias, da continuidade cronológica, do que oscila entre a infância e a vida adulta
que está por vir, conforme uma certa ordem moral e simbólica que habita a família, a
escola, as políticas públicas, etc. Acreditamos existirem outras juventudes que
podem ser afirmadas como experiência, como acontecimento, como ruptura da
história, que atravessam e interrompem o chrónos, e que trazem as
descontuinidades do aión. “[...] A única oportunidade dos homens está no devir
revolucionário, o único que pode conjurar a vergonha ou responder ao intolerável”
(DELEUZE, 1992, p. 211). Portanto, entendemos que não há uma “ordem
metafísica” que precisa ser alcançada ou buscada, e sim a produção de outros
fluxos que nos conecte com vidas em suas multiplicidades.
Capítulo 2
S
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Não buscaríamos origens mesmo perdidas
ou rasuradas, mas pegaríamos as coisas
onde elas crescem, pelo meio: rachar
as coisas, rachar as palavras. Não
buscaríamos o eterno, ainda que fosse
a eternidade do tempo, mas a formação
do novo, a emergência ou o que Foucault
chamou de “atualidade”.
(Gilles Deleuze)
Talvez tenha sido Foucault (2003) quem melhor conseguiu mostrar que
estamos inscritos numa “ordem do discurso” que acaba por reger nossas vidas.
Quando algo é descrito, colocado em termos de discurso, temos a linguagem
produzindo uma “verdade”, instituindo algo como uma essência ou natureza
humana. É como se uma certa causa sempre fosse dar origem a um certo efeito.
Neste contexto de como pensar e produzir “saberes”, temos a vida sendo marcada
pelas verdades do outro, pela história dos paradoxos, pelo chrónos (DELEUZE,
1992). Sendo assim:
[...] os sujeitos não são posicionados como objetos silenciosos, mas como
sujeitos falantes; não como objetos examinados, mas como sujeitos
confessantes; não em relação a uma verdade sobre si mesmos que lhes é
imposta de fora, mas em relação a uma verdade sobre si mesmos que eles
mesmos devem contribuir ativamente para produzir. (LARROSA, 1994, p.
54-55)
Embora não nos proponhamos a um trabalho historiográfico sobre os jovens,
uma vez que esse não se constitui em objeto de análise, queremos enfatizar como a
28
emergência produzida de diferentes rostos de juventude, a partir de um breve
recorte da história do mundo ocidental, pautava-se nela na lógica de numa certa
ordem moral e simbólica de algumas sociedades. Através desse overflying, é
possível situar a constituição, o mosaico, em que modos diversos de ser jovem são
produzidos.
Ainda que as datas aqui indicadas sinalizem para determinados períodos
históricos, e os consideramos, inclusive, fundamentais, ressaltamos que estamos
privilegiando, apenas como foco, os efeitos que se produzem nesses fatos, e que
anunciam, ao produzir seus “regimes de verdades”, a produção de diferentes modos
de existir juvenil.
É inegável que a temática juventude vem se configurando em objeto de
reflexão e de análise sobre a qual têm se debruçado diferentes visões teóricas, tanto
por parte “[...] da “opinião pública” (notadamente os meios de comunicação de
massa) como da academia, assim como por parte de atores políticos e de
instituições, governamentais e não governamentais, que prestam serviços sociais”
(ABRAMO, 1997, p. 25).
Em termos conceituais, Levi & Schmitt (1996, p. 8) afirmam que, em todas as
sociedades, a juventude “[...] é objeto de uma atenção ambígua, ao mesmo tempo
cautelosa e plena de expectativas”.
Tornando-se tema de expressiva relevância na nossa contemporaneidade, é
possível observar, ainda, que o referido termo surge, ao longo da história da
humanidade, adornado por vários personagens que vão compondo e entrelaçando
os diversos sentidos da vida e os diferentes modos de passagem de ser jovem. Em
uma das metáforas da condição humana apresentada por uma narrativa bíblica, no
mito do Gênese, trata-se de uma das passagens clássicas que relatam a
inquietação, a encarnação binária entre o bem e o mal nas fátrias de Caim e Abel,
supostamente dois irmãos, num momento de rivalidades em que o desfecho culmina
na morte de um “hipotético indefeso”, pelas mãos de Caim.
Na Grécia Antiga, duas cidades se destacam: Atenas e Esparta. A primeira
revelou-se com uma atividade cultural intensa, criativa, apresentada por meio da
filosofia e de gêneros como a tragédia, a comédia, a oratória. A democracia
ateniense, constituída pelas instituições políticas, foi muito importante para que os
artistas explorassem livremente seus talentos. Dentre os atenienses mais famosos
destacam-se: Sócrates (469-399 a.C.), Platão (427-347 a.C.) e Aristóteles (384-322
29
a.C.). Diferentemente dos espartanos, os meninos a partir dos sete anos, de origem
rica, começavam a freqüentar escolas particulares pagas, nas quais um pedagogo
lhes ensinava a ler, a escrever e a contar. Embora recebessem uma educação
voltada para a vida civil, o treinamento militar também fazia parte de sua educação.
Quanto à Esparta, sobressaiu-se pela dura aplicação das leis aos seus
cidadãos, os quais empenhavam-se integralmente em aprimorar a formação militar.
Assim, a partir dos sete anos, o governo se responsabilizava pela educação do
menino que, lançado num grupo militar, praticava luta, ginástica. Ao jovem
adolescente, com quatorze anos, cabia acompanhar um guerreiro adulto até os vinte
anos, quando o jovem recebia equipamento militar completo para a sua inserção no
exército. Amantes do corpo jovem e saudável, os gregos entendiam o serviço militar
dos jovens como o “[...] momento de uma aprendizagem complexa, de uma
preparação para a vida coletiva ritmada por uma disciplina severa – refeições frias,
ausência de serviçais e, sobretudo, controle incessante do território” (SCHNAPP,
1996, p. 31).
Tanto em Esparta, quanto em Atenas, a coluna vertebral da vida em
sociedade é a paidéia das Leis, a concepção de formar cidadãos completos, o que
iria permitir o acesso dos jovens a um saber compartilhado, sem o qual a cidade não
poderia existir. Por meio da caça, os jovens poderiam pensar relações entre a cidade
e o campo, entre a guerra e a educação, entre pólis militar e pólis democrática,
significando a caça um importante operador lógico. Diante de tal preocupação,
segundo Alain Schnapp (1996, p. 20):
[...] não estão compreendidas apenas as técnicas educativas mas o savoir-
faire que transforma o jovem em cidadão integral, capaz de um julgamento
que não confunda as causas e os efeitos. Se a coragem é a conseqüência
de uma boa educação, ela não se confunde com o mero exercício das
virtudes militares. Mais do que um militar vitorioso, o homem culto deve ser
um cidadão responsável.
Na antigüidade, a perspectiva geracional vai impondo suas frações
demográficas como forma de transmitir e de reproduzir uma história pautada na
tradição, na medida que:
[...] a paidéia está no centro das instituições cívicas não apenas por produzir
um ensinamento, mas por supor uma ordem social que, em última instância,
opõe radicalmente os jovens e os velhos e forma a base natural do
30
equilíbrio da cidade: aos jovens os atos, aos homens maduros as decisões
ponderadas, aos velhos as prescrições. (SCHNAPP, 1996, p. 30)
Portanto, sobre um corpo juvenil
8
, cabia aos homens maduros e aos velhos
inscreverem suas vidas normativas aos que se encontravam na plenitude de suas
forças. Segundo Aristóteles (1996), essa idade é chamada juventude devido à força
que está na pessoa, para ajudar a si mesma e aos outros. Ou para aniquilar o outro,
como no mito de Caim. Ou seja, a juventude representa um estado de graça. Assim,
o corpo dos jovens passava a ser o centro das preocupações da cidade, “quer se
trate de treinamento, de regime alimentar ou de aptidão para a vida coletiva, a
cidade cuida do mundo juvenil como se cuidasse de seu próprio coração”
(SCHNAPP, 1996, p. 31). Aqui vale a pena ressaltar que o corpo juvenil remete a
uma concepção naturalista e idílica de juventude.
Para os gregos, os jovens representavam a proteção da cidade, e eram
reconhecidamente identificados para as artes da caça e da guarda cívica, por suas
relações homossexuais, pelas atividades físicas, pelo serviço militar. Aqui, podemos
observar uma infância que, ao ficar para trás, vai se produzindo e se inaugurando
numa outra fase, expressivamente ilustrada e valorizada pela arte grega
9
, a
juventude.
Sobre as concepções pedagógicas gregas, as relações homossexuais
requerem comportamentos, atitudes e estilos de uma outra forma de sociabilidade.
Há uma diferença na forma de abordar e de inserir o jovem nas suas práticas
pedagógicas. “[...] o amor heterossexual está sob o signo da reciprocidade,
enquanto o amor homossexual está sob o da sociabilidade” (SCHNAPP, 1996, p.
24). O importante era levar o jovem, desde criança, ao deleite com os bens culturais,
entendido como o mundo fora do trabalho.
8
Neste trabalho, ao pensarmos o corpo, em especial, o juvenil, o entendemos como inscrição dos
acontecimentos, de marcas – nomes, gêneros, hábitos, prazeres, desejos, etc. Um corpo onde “[...] se
encontra o estigma dos acontecimentos passados do mesmo modo que dele nascem os desejos, os
desfalecimentos e os erros; nele também eles se atam e de repente se exprimem, mas nele também
eles se desatam, entram em luta, se apagam uns aos outros e continuam seu insuperável conflito”
(FOUCAULT, 1990, p. 22).
9
O cenário da iconografia juvenil reflete a expressão da arte de viver em sociedade pensada pelos
gregos. Para Schnapp (1996, p. 47), “[...] não há dúvida nenhuma de que esses pintores, que tinham
uma consciência aguda de seu talento, buscavam assim explorar um tema herdado da tradição, a fim
de melhor mostrar que seu trabalho estético era uma pesquisa de conteúdo, um esforço para
descrever a sociedade dos jovens tentando atingir uma espécie de verdade psicológica. Trata-se de
estabelecer entre o espectador – o comprador do vaso – e o artista certa conivência baseada em
experiências e numa sensibilidade comuns”.
31
Pensando no regime educativo da Grécia, foi em Creta e em Esparta que
historiadores, filósofos e mitógrafos reconheceram, com maior antigüidade, o
nascimento das instituições educativas de um tipo original que condicionam a visão
grega da paidéia, a natureza particular das instituições cretenses e espartanas, o
papel atribuído aos dórios na criação de uma sociedade militar que teria sido a forma
primitiva da cidade (SCHNAPP, 1996).
No solo romano, por sua vez, a juventude (iuventa), no século VII d.C., é
marcada pelas definições dos grupos etários e pelos ciclos biológicos da vida
humana. Um dado curioso nos chama a atenção: ao contrário dos homens, as
mulheres não eram definidas pela idade, porém por sua condição física ou social.
Aos homens-jovens, o prolongamento da iuventus se circunscrevia ao espaço dos
vinte e oito anos aos cinqüenta. Tentando explicar tal prolongamento, Augusto
Fraschetti (1996, p. 71) recorre à instituição caracteristicamente romana do patria
potestas, o pátrio poder.
Não é casual que Roma tenha sido definida como uma “cidade de pais”:
uma cidade onde não apenas os pais têm sobre os filhos direito de vida e
morte, como também o de alargar sob a própria potestà todas as fases da
vida dos filhos, até que, depois da morte dos pais, eles mesmos se tornem
‘pais de família’, para reproduzir e azeitar por sua vez mecanismos de poder
idênticos aos que tinham experimentado.
Mesmo diante dessa diferença em relação às mulheres, ser “jovem” em
Roma, para ambos os sexos, implicava a passagem por alguns ritos. Para os
homens, além da juventude ser caracterizada também pelas brigas, pelas divisões
em grupos rivais, pelas corridas e pela “nudez”, Fraschetti (1996) menciona,
baseado em documentação iconográfica, sobre um tipo de aprendizagem sobretudo
militar: a preparação para o Exército.
Portanto, só em casos excepcionais e com autorização dos superiores
podiam os jovens, no exército romano, combater “fora das fileiras” (extra
ordinem), realizando gestos de bravura pessoal, cujas características
situavam-se não na ordem da disciplina, mas sim na da ferocitas ou também
da astúcia. Como no caso do desventurado filho de Tito Mânlio Torquato,
esses jovens amantes de duelos muitas vezes eram também cavaleiros de
famílias nobres e por isso serviam num setor do exército em que ainda
tendiam a prevalecer as regras dos choques individuais [...]. (FRASCHETTI,
1996, p. 80)
32
A existência de determinadas percepções sobre as diferentes etapas da vida
humana não é apenas uma exclusividade do mundo antigo. De forma geral, na
Europa do medievo, a juventude, como uma fase socialmente diferente, foi-se
constituindo no desenvolvimento da sociedade ocidental, por meio da progressiva
instituição de um espaço separado de preparação para a vida adulta. De acordo com
Philippe Ariès (1981), nesse período, não havia separação entre o mundo infantil e o
mundo do adulto. Ambos conviviam no mesmo espaço, não havendo, inclusive, a
separação entre o universo familiar e o universo social mais amplo.
Uma característica básica desse período em relação à família, é que a
mesma não existia enquanto um núcleo agregador de socialização, pois as formas
de sociabilidade se davam nos espaços coletivos. Os estudos iconográficos
descritos por Ariès levaram à conclusão de que na sociedade medieval não existia o
sentimento de infância.
Os diferentes mundos da juventude judaica foram analisados por Elliott
Horowitz (1996) no período de cinco séculos (de 1300 a 1800). Se, em Roma, a
juventude poderia ser compreendida e demarcada até os cinqüenta anos, para os
judeus, em diversos países da Europa, tal característica etária apresenta outros
recortes.
Embora pelo menos um filósofo medieval judeu tenha considerado o
período da juventude como se estendendo dos vinte aos quarenta anos, os
indícios nos cinco séculos aqui examinados sugerem que a idade de dez
anos foi com freqüência percebida como o final da infância, e a idade de
trinta associada, para o bem ou para o mal, à responsabilidade plena do
adulto. (HOROWITZ, 1996, p. 100-101)
Se, para Aristóteles (1996), a condição de ser jovem estava associada à força
que a pessoa tinha para ajudar a si mesma e aos outros, para os judeus, a idade de
trinta anos, considerada pelos rabinos como o momento em que o sujeito atinge o
ápice de sua força, era percebida como o início do seu declínio físico.
Ainda aqui é possível situar uma preocupação com a formação do caráter de
seus jovens. Há uma passagem citada por Horowitz (1996) emblemática das formas
de vigilância e de controle que se sobrepunham, notadamente, aos jovens pobres,
de ambos os sexos. Aos que costumavam realizar atos considerados vergonhosos e
imorais com mulheres jovens e solteiras que tinham deixado de ser virgens, e eram
criadas domésticas que viviam na casa de seus patrões, a suposta falta à moral
33
judaica, entenda-se no seu aspecto religioso, era passível de punições, culminando
com a expulsão do criado ou do aprendiz.
A literatura moral e pedagógica do século XVI, no bojo do Renascimento
cultural, aponta para um humanismo que colocava o homem como um ser singular,
na medida que todo o conhecimento deveria estar voltado para o próprio homem. No
tocante à educação das crianças e dos jovens, é fértil o pensamento de Erasmo de
Rotterdam (1466-1536) ao propor, a partir desse alinhamento cultural, uma
educação privilegiadora de aquisição de hábitos e atitudes aceitáveis aos olhos da
sociedade.
São expressivas, na sua proposição, duas obras que suscitam no
comportamento do pueril as boas maneiras de civilidade. No manual De Pueris (Dos
Meninos), Erasmo de Rotterdam (2004, p. 33), no Capítulo I – Nunca é cedo demais
para iniciar o processo educacional, Seção 24 – O direito à educação nasce no
berço, afirma:
A natureza, quando te dá o filho, ela não te outorga nada além de uma
massa uniforme. A ti cabe o dever de moldar até a perfeição, em todos os
detalhes, aquela matéria flexível e maleável. Se não levares a cabo a tarefa,
terás uma fera. Ao contrário, se lhe deres assistência, terás, diria eu, uma
divindade.
Sobre as boas maneiras, em A Civilidade Pueril, o referido autor assinala que
embora sejam corretas atitudes do corpo espontâneas numa “índole boa”, não raro
ocorre constatar que, por ausência de disciplina, elas ficam a desejar em pessoas
honestas e eruditas. Em relação a atitudes corretas e incorretas, como ele mesmo
aponta, cabem à criança e ao jovem várias observações que escrutinam e inscrevem
comportamentos desejáveis. Sobre As sobrancelhas, constatamos:
As sobrancelhas devem ficar naturalmente distendidas e não franzidas
porque então projetam um aspecto ameaçador. Não empurradas para cima
porque assim modelam um tipo de arrogante, nem mesmo caídas sobre os
olhos porque pressagiariam pensamentos malévolos. (ROTTERDAM, 2004,
p. 126)
Aqui temos o adulto começando a ver a criança como um ser singular. Uma
singularidade que remete à idéia de produzir essa subjetividade para uma vida que
vai sendo estabelecida. Erasmo nos aponta uma essência da infância, na medida
que essa lhe determina como um ser “curioso”, “ser ativo” que, ao manipular o
34
mundo, se caracteriza como um ser humano. Segundo o próprio Erasmo: o homem,
enfim, vale por si e em si. Nesse campo do essencialismo, a lógica pedagógica
pensada por Erasmo é de uma educação baseada na teoria do espelho, em que as
novas instituições fechadas ao acolhimento e à instrução da juventude, que
emergem a partir do século XVI, têm em comum uma funcionalidade ordeira e
moralizante. A teoria do espelho se refere à noção de encontrarmos “[...] a essência
do homem (a criança) – o modelo do que é o homem – e, então, por meio da
educação, fazer o homem espelhar tal modelo” (GHIRALDELLI JUNIOR, 2002. p.
34).
Com a melhora na qualidade de vida, tornando os investimentos nos jovens
importantes para a sociedade, porque eles viverão e trabalharão mais, planta-se a
idéia da família com poucos filhos, cujo acompanhamento dar-se-ia de perto,
permitindo perceber e marcar as diferenças entre os comportamentos das crianças e
dos adultos. Tal fato se deve ao auge da vida urbana e ao crescimento da classe
burguesa que tomava para si o cuidado e a proteção das crianças. Tomava para si a
atenção e o cuidado porque, segundo Foucault (1990), a burguesia não se
interessava pela sexualidade infantil, mas pelo conjunto de mecanismos de poder
que a controlaria, puniria, reformaria.
A infância foi conhecida de forma tardia, ao se conhecer que ela necessitava
de um tratamento socioeducativo diferenciado do adulto. Destaca-se uma época em
que a criança começava a ter impacto na vida doméstica, na estrutura social, nos
laços sociais que se fundavam na família e na escola, contribuindo-se, dessa forma,
para cristalizar a noção que a juventude está por “constituir-se”, por adquirir a sua
condição de etapa de vida. A idéia de fase da vida vai-se fazendo presente, também,
na perspectiva geracional. Para Guattari, com o surgimento de um novo tipo de força
coletiva de trabalho, com a delimitação de um novo tipo de individuação da
subjetividade, colocou-se a questão de inventar novas coordenadas de produção da
subjetividade (Apud GUATTARI & ROLNIK, 2000).
Philippe Ariès (1981), em sua tese sobre a invenção moderna do sentimento
da infância, seu confinamento e circunscrição nos fins do século XVII e início do
XVIII na Europa, defende que, ao se produzirem práticas nos diferentes aspectos da
35
vida social, havia uma preocupação com uma certa ordem moral que começava a se
delinear no campo da religião, da família, do trabalho e da escola
10
.
Com a época moderna, e em relação a uma sociedade agrária baseada no
campo, que sugere algo como atrasado, pouco desenvolvido, a escola passa a
produzir as necessidades de hábitos considerados civilizados
11
, conforme
evidenciamos em Erasmo de Rotterdam. Desde o início do século XV, afirma Ariès
(1981, p. 172):
[...] pelo menos, começou-se a dividir a população escolar em grupos da
mesma capacidade que eram colocados sob a direção de um mesmo
mestre, num único local – a Itália, por exemplo, durante muito tempo
permaneceu fiel a essa fórmula de transição. Mais tarde, ao longo do século
XV, passou-se a designar um professor especial para cada um desses
grupos, que continuaram a ser mantidos, porém, num local comum – essa
formação ainda subsistia na Inglaterra na segunda metade do século XIX.
Nessa produção de imagens sociais da infância e da juventude, e
notadamente a partir do século XVII, Foucault (1979) considera este período como a
época das sociedades chamadas burguesas, demarcadas por mecanismos
disciplinares dos comportamentos. A técnica disciplinar, uma forma de exercício de
poder que parte do princípio de que é mais rentável vigiar do que castigar, foi “[...]
não inteiramente inventada, mas elaborada em seus princípios fundamentais
durante o século XVIII” (FOUCAULT, 1990, p. 105). Portanto, os processos de
inclusão e exclusão dos indivíduos apresentam, de um modo geral, instâncias de
controle individual e funcional, atendendo a um duplo jogo de divisão binária e de
marcação; mostrando, inclusive, que a vida foi transformada em um objeto de
“poder-saber”.
Nessa produção de “saber-poder”, Foucault (2003, p. 16) vai identificar uma
forma de “vontade de saber”, produtora de um discurso verdadeiro sobre os
“sujeitos”.
10
Na educação escolar, a escola e o colégio que, na Idade Média, eram reservados a um pequeno
espírito de liberdade de costumes, “[...] se tornaram no início dos tempos modernos um meio de isolar
cada vez mais as crianças durante um período de formação tanto moral como intelectual, de adestrá-
las, graças a uma disciplina mais autoritária, e, desse modo, separá-las da sociedade dos adultos [...]”
(ARIÈS, 1981, p. 165).
11
Richard Sennett (2001) na sua obra Carne e Pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental,
identifica os espaços da vida urbana como produção do sujeito-indivíduo. Segundo o referido autor, a
noção de indivíduo é datada e histórica, e nem sempre existiu, na medida em que pode ser
encontrada numa determinada história do tempo e em determinadas circunstâncias. Assim, utilizou a
noção de corpo para verificar o surgimento de uma individualidade, evidenciando que, ao falar cada
vez mais do mundo urbano, fala-se de uma maior individualidade e racionalidade da vida.
36
Voltemos um pouco atrás: por volta do século XVI e do século XVII (na
Inglaterra sobretudo), apareceu uma vontade de saber que, antecipando-se
a seus conteúdos atuais, desenhava planos de objetos possíveis,
observáveis, mensuráveis, classificáveis; uma vontade de saber que
impunha ao sujeito cognoscente (e de certa forma antes de qualquer
experiência) certa posição, certo olhar e certa função (ver, em vez de ler,
verificar, em vez de comentar); uma vontade de saber que prescrevia (e de
um modo mais geral do que qualquer instrumento determinado) o nível
técnico do qual deveriam investir-se os conhecimentos para serem
verificáveis e úteis. Tudo se passa como se, a partir da grande divisão
platônica, a vontade de verdade tivesse sua própria história [...]
Quando pensamos nos modos de educação que irão se configurar a partir do
século XVI, esse conceito “poder-saber” é fundamental quando se analisam as
relações de poder na sociedade, notadamente, quando Foucault mostra como o
tempo e o espaço vão se reorganizando, pois não há:
[...] relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber,
nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de
poder. [...] Resumindo, não é a atividade do sujeito de conhecimento que
produziria um saber, útil ou arredio ao poder, mas o poder-saber, os
processos e as lutas que o atravessam e que o constituem, que determinam
as formas e os campos possíveis de conhecimento. (FOUCAULT, 2002a, p.
27)
Com relação ao conceito de infância com base em Foucault (1990), e desde o
advento da época moderna, ele teria sido, quando dela se começa a falar, um feixe
de técnicas e normas que revela apenas o exercer o poder, de modo que, se
tirarmos cada uma das técnicas – da psicologia, da pedagogia, da medicina – do
feixe, como em um jogo de palitos, o que restaria seria o vazio, assinala Ghiraldelli
Júnior (2002). Para Donzelot (1980), a medicina, aliada ao Estado, vai intervir e aliar-
se às famílias, em especial às mães, contribuindo para valorizar a criança, o núcleo
conjugal e o espaço privado do lar. Temos, portanto, entre “[...] as últimas décadas
do século XVIII e o fim do século XIX os médicos elaborando para as famílias
burguesas uma série de livros sobre a criação, a educação, e a medicação das
crianças [...]” (DONZELOT, 1980, p. 22). Como salienta Michel Foucault (1990, p.
189), nas sociedades modernas:
[...] os poderes se exercem através e a partir do próprio jogo da
heterogeneidade entre um direito público da soberania e o mecanismo
polimorfo das disciplinas. [...] As disciplinas veicularão um discurso que será
o da regra, não da regra jurídica derivada da soberania, mas o da regra
‘natural’, quer dizer, da norma; definirão um código que não será o da lei
37
mas o da normalização; referir-se-ão a um horizonte teórico que não pode
ser de maneira alguma o edifício do direito mas o domínio das ciências
humanas; a sua jurisprudência será a de um saber clínico.
Nesse cenário, Foucault (1990; 2002a) nos ajuda a entender a emergência de
um certo tipo de poder disciplinar que surge, a partir da necessidade do capitalismo
de produzir novos controles sociais. Um certo tipo de poder que se inscreve num
regime de produção em que o indivíduo passa a ser confinado a espaços de
extração de energias produtivas e de reprodução, seja escola, família, orfanato,
fábrica, quartéis, prisões, que, além de distingui-lo enquanto sujeito individualizado,
faz funcionar um controle total da vida da população, dos mortos, dos vivos, dos
corpos, que o autor denominará de biopoder
12
.
A superação histórica da forma de poder soberano, dominante na Idade
Média, pela emergência da disciplinarização no final do século XVII e a partir do
século XVIII, pode ser entendida como decorrência da expansão do sistema fabril na
Europa e da progressiva especialização do trabalho que ele demandava. Portanto, o
poder disciplinar se centrava no adestramento do corpo, não que ele tenha que se
tornar mais obediente, ajustado e um melhor aproveitamento do tempo para as
atividades produtivas (FOUCAULT, 2002a).
Esse modelo de poder está ligado a profundas transformações que ocorreram
a partir do século XVIII. Segundo Foucault (2002b), se antes o poder soberano
operava sobre o direito de fazer morrer e deixar viver, essa antiga mecânica do
poder soberano torna-se “inoperante” diante do crescimento das cidades, do
desenvolvimento do capitalismo e da emergência da industrialização. Diante das
transformações do direito político, emerge um poder inverso ao do soberano: poder
de fazer viver e deixar morrer. Sobre esse aspecto, para Pelbart (2003, p. 57), o
fazer viver a que se refere Foucault, característico do biopoder, se reveste de dois
aspectos fundamentais: a disciplina e a biopolítica. “[...] A primeira acomodação teria
sido em cima do corpo individual, a vigilância e o treinamento, na escola, no hospital,
12
Numa leitura que “atualiza” a noção de biopoder proposta por Foucault, Michael Hardt & Antonio
Negri (2000, p. 42-43) ao afirmarem que o biopoder e a sociedade de controle são os substratos de
uma nova ordem mundial, que eles conceituam na atualidade de Império, defendem que o biopoder é
a forma de poder que norteia a vida social por dentro, interpretando-a e rearticulando-a. Para o
biopoder, o que está diretamente em jogo no poder, é a produção e a reprodução da própria vida.
38
na caserna, na oficina – e a segunda acomodação, sobre os fenômenos globais, de
população”.
No século XVIII, Rousseau, em Emílio ou Da Educação, quer que os adultos
deixem a criança ser criança, de modo que a infância aconteça, pois ela é o que há
de melhor nos homens. Na história do discurso pedagógico moderno, para
Rousseau (1978), a criança é heterônoma e essa é sua essência, necessitando da
ação adulta que a transforme – por meio da educação – num ser autônomo. A esse
dispositivo
13
e dentre as várias formas de disciplina, temos a escola como o espaço
mais coeso de controle para as futuras gerações.
O primeiro sentimento de infância – caracterizado pela “paparicação” –
surgiu no meio familiar [...] O segundo, ao contrário, proveio de uma fonte
exterior à família: dos eclesiásticos ou dos homens da lei, raros até o século
XVI, e de um maior número de moralistas no século XVII, preocupados com
a disciplina e a racionalidade dos costumes. (ARIÈS, 1981, p. 163)
Assim, a idéia de escola como pensamos hoje, com disciplina, regras,
conteúdos programáticos, divisão por série a partir da faixa etária, é algo que se
constitui organizado ao surgimento de um novo sentimento dos adultos em relação
às crianças e que está na base de infância produzida com a emergência da época
moderna. Não é algo eterno, como se fosse naturalmente dado, conforme propõe
uma acepção transcendente: um “homem-corpo” dotado de consciência e de livre-
arbítrio, e “vazio” de experiência (HARDT & NEGRI, 2004, p. 98), mas uma produção
social, como afirma Foucault (1990), ao assinalar que não existem senão correlatos
de práticas datadas historicamente.
Ainda no século XVIII, temos o movimento Iluminista reforçando a idéia de
individualidade humana. Assim, encontramos na família mais um novo elemento
associado ao sentimento de preservação e de disciplina: a preocupação com a
higiene e a saúde física. O corpo dos que gozavam de “boa saúde”, não se
constituía em objeto de atenção, a não ser com um objetivo moral. Os que não
apresentavam “boa saúde”, tornavam-se objeto de preocupação, de cuidado, pois
13
A noção de dispositivo, neste contexto, refere-se a um certo tipo de rede que, simultaneamente,
constitui práticas e atravessa as instituições: é um instrumento de poder. Foucault (1990, p. 244),
Sobre a História da Sexualidade, nos aponta algumas definições de dispositivo. Em sua terceira
definição e que corrobora nossas análises, o autor afirma que um dispositivo “[...] pode ser um tipo de
formação que, em um determinado momento histórico, teve como função principal responder a uma
urgência. [...] tem, portanto, uma função estratégica importante”.
39
“um corpo mal enrijecido inclinava à moleza, à preguiça, à concupiscência, a todos
os vícios” (ARIÈS, 1981, p. 164).
Portanto, a ciência moderna nas sociedades disciplinares vai-se produzindo
na produção do OUTRO esculpido, pari passu, com base no conhecimento dito
científico. Assim, sobre “[...] o louco, a criança, o jovem, [...] foram construídos
itinerários e subjetividades mediante um processo social e quotidiano, definidamente
institucional como: a família, a escola, a fábrica [...]” (ADAD, 2003, p. 45).
Se a educação passou a ser para as crianças e os jovens, o espaço
considerado o mundo da escola; agora, os oriundos do campo e os pobres urbanos
seriam, com a emergência da Revolução Industrial, inseridos, crescentemente, no
mundo do trabalho. Portanto, o trabalhador, na modernidade, vai ser definido a partir
de um “regime de verdades” (FOUCAULT, 1974) que irá determinar um modo de ser
e de existir, no qual o trabalho passará a se constituir como centralidade e
determinante para as regras de conduta das famílias, da educação e do cuidado dos
filhos. Engels (1985) ao analisar o proletariado inglês, modelo de classe
trabalhadora que irá surgir com a industrialização, afirma que esse é fruto da
revolução ocorrida a partir da segunda metade do século XVIII. Antes da introdução
das máquinas, a maioria dos trabalhadores morava no campo onde fiava e tecia em
suas casas. Administrando seu processo de trabalho, havia uma experiência
corporal do tempo para o descanso, para o cultivo da terra. Nas cidades, onde a vida
se deparava com o desespero e o encantamento dos “tempos modernos”, o trabalho
nas fábricas, em específico de crianças e jovens, apresentava jornadas de até
dezesseis horas diárias.
Sendo assim, o jovem pobre, trabalhador desqualificado, de mãos ágeis e
braços flexíveis, representava apenas uma mão-de-obra necessária aos capitalistas.
A educação para o trabalho passaria a se constituir em aspecto fundamental para o
processo de socialização infanto-juvenil. A partir desta lógica, eles “[...] afirmavam
sua independência dos pais através do trabalho na fábrica, onde eram praticamente
socializados [...]” (BRUSCHINI, 1997, p. 53).
A utilização do trabalho coletivo, envolvendo toda a família, foi um efeito do
advento da industrialização, chegando a corresponder que:
[...] a compra de quatro forças de trabalho componentes de uma família
talvez custe mais do que a aquisição, anteriormente, da força de trabalho do
chefe da família; mas, em compensação, se obtém quatro jornadas de
40
trabalho em lugar de uma, e o preço da força de trabalho cai na proporção
em que o trabalho excedente dos quatro ultrapassa o trabalho excedente de
um [...]. (MARX, 1988, p. 450)
Nesse período, em que o corpo humano se torna essencialmente força
produtiva para atender à lógica de acumulação do processo de produção capitalista,
a ênfase na juventude é um efeito da compressão da vida de trabalho, conforme
afirma Sennett (1999, p. 110):
No século dezenove, a preferência pela juventude era uma questão de mão-
de-obra barata; as “moças de fábrica” de Lowel, Massachusetts, e os
“meninos da mina” do norte da Inglaterra trabalhavam por salários bem
abaixo daqueles dos adultos.
Não à parte dessa realidade e no tocante às instituições militares, o serviço
não precedia ao ingresso no mundo do trabalho, bem como havia pouca importância
quanto à idade dos supostos recrutas, até o final do século XIX, pois “[...] quem
quisesse podia alistar-se. O que contava, no momento do engajamento, era o
aspecto físico”, afirma Loriga (1996, p. 22). A participação de jovens nesses
estabelecimentos tornou-se freqüente, principalmente, nos exércitos. O trabalho
coletivo era algo percebido como fundamental nos estabelecimentos militares.
[...] mulheres e filhos surgiam também como um elemento de coesão do
exército. Enquanto os soldados solteiros eram desarraigados, capazes de
fugir por qualquer coisa, os casados eram bastante estáveis: desertavam
menos e mais dificilmente sofriam de nostalgia [...] Além disso, a presença
de crianças era apreciada do ponto de vista profissional. Na segunda
metade do século XVIII, difundiu-se a idéia de dar uma educação militar aos
órfãos, aos bastardos, aos abandonados e, sobretudo, aos filhos de
soldados, na esperança de que demonstrassem acentuadas inclinações
marciais. (LORIGA, 1996, p. 24)
Durante o período napoleônico (1802-1815), os estabelecimentos destinados
a prestar assistência às crianças e aos jovens pobres, passaram a adotar a
educação militar em suas ordens. A idéia de militarizar esses estabelecimentos
residia na crença de que os assistidos poderiam tornar-se exímios soldados
militares, dentro de um certo ideal de moral e de civismo que se forjava no leito das
espadas.
Em 1798, é introduzida, pela primeira vez, na França a conscrição, ou seja, a
convocação obrigatória. O alistamento para o serviço militar se tornava um fato
41
peculiar aos homens dos vinte aos 26 anos. Por outro lado, e mesmo diante da
obrigatoriedade, a literatura aponta para movimentos de resistência dos jovens.
Àquele que não podia casar ou não se fingia de doente, e que não queria servir,
restava-lhe apenas a fuga. Entre 1792 e 1814, centenas de milhares de jovens
desertores e de insubmissos foram acolhidos nas casas de parentes, de amigos,
segundo assinala Loriga (1996). Ainda sobre essa questão, um dado interessante
nos é relevado por Torrieri Guimarães (1975). Afirma ele que, em 1617, antes da
obrigação para o serviço militar francês, o jovem René Descartes, aos dezenove
anos, a pedido de seu pai, conselheiro municipal de Rennes, entrou para o Exército,
servindo por quatro anos sob o comando do Duque de Nassau e da Baviera.
Descartes, percorrendo vários países europeus, abandonou a carreira das armas, se
dedicando exclusivamente ao estudo da filosofia, na Holanda.
Do ponto de vista da formação profissional, a noção de constituir crianças e
jovens pobres em hábeis soldados ou marinheiros, surgiu, significativamente, no
período napoleônico. Tais mudanças:
[...] baseavam-se na idéia de que as crianças órfãs, bastardas ou
abandonadas tornar-se-iam facilmente soldados ou marinheiros ideais [...]
Eles formariam os então denominados “batalhões da esperança” e
supostamente dedicariam à “nação” todo amor, fidelidade e lealdade que os
demais mortais costumavam consagrar às famílias. (VENANCIO, 2002, p.
195)
O treinamento militar dava-se sistematicamente durante semanas, em escolas
ginasiais e superiores na França, e objetivava incentivar os jovens para o futuro
ingresso na carreira militar. Como assinala Loriga (1996, p. 25):
[...] entre 1805 e 1807, os estudantes universitários e ginasiais,
enquadrados em companhias especiais receberam uniformes e começaram
a ter quatro horas semanais de exercícios militares, ao passo que, em 1811,
foi constituído o régiment des pupilles de la Garde, um corpo especial de
seis mil rapazes entre quinze e dezoito anos [...] os rapazes deviam adquirir
força física e apropriar-se da disciplina do soldado não no quartel, mas em
outras instituições.
Sobre um corpo juvenil havia a existência de uma prática direcionada, em
especial, para os pobres, que atravessava todo o serviço no Exército (LORIGA,
1996). Durante as constantes investidas napoleônicas, a presença de jovens
afortunados era inexpressiva. Diante de uma França que pregava, a partir de 1789,
42
a Liberté, Égalité, Fraternité e, ao mesmo tempo em que a Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão representava as aspirações de liberdade e de igualdade,
lançando as bases para as ditas sociedades democráticas contemporâneas, algo
parecia se avizinhar na contramão do que os revolucionários franceses lutavam.
Uma certa conivência, talvez, tácita, se alinhava entre os filhos da burguesia e
os militares. Os jovens burgueses chegavam a pagar para serem substituídos nos
serviços militares. Entretanto, segundo Venancio (1999, p. 192), nos séculos XVI e
XVII os meninos recrutados para as guerras não provinham, exclusivamente, dos
setores mais pobres da sociedade. Esse autor afirma que “[...] da mesma maneira
que os meninos pobres, os filhos de aristocracia dos séculos XVI e XVII possuíam,
aos 14 e 15 anos, ampla experiência bélica”.
Mas também provocava escândalo a quantidade de abastados que, após
terem sido sorteados para servir, se faziam substituir por um coetâneo,
pagando uma cifra equivalente a cerca de dez anos de trabalho de um
braçal agrícola. Uma soma considerável, que induzia os jovens de Maine a
guardar, desde criança, os pequenos ganhos obtidos com a colheita de
frutos selvagens, flores ou cogumelos. (LORIGA, 1996, p. 27)
Tentando responder aos recentes escândalos produzidos pela classe
burguesa, Forrest (Apud LORIGA, 1996, p. 33) levanta algumas questões:
Por que fatalidade ocorre que o sangue [dos pobres] corre com abundância
enquanto o dos ricos é economizado? Por que, apesar de todas as leis que
foram sancionadas, esses pequenos senhores encontram sempre meios de
encher os escritórios e os hospitais, de manejar a pena ou o bisturi,
enquanto seus companheiros dão tiros de fuzil?
Ainda sobre a experiência francesa, em 1816, foram criadas as primeiras
escolas para jovens soldados analfabetos nos quartéis e, após quinze anos, os
cursos para os soldados passaram a ser de caráter obrigatório, com, no mínimo,
uma hora por dia, para aprender a ler, escrever e contar. Temia-se a
vagabundagem, a delinqüência, e os possíveis atos contestadores, conforme
esclarece Michel Perrot (1996), para conter essas formas de comportamentos
desviantes, produziu-se um consenso para tentar “salvar” essa juventude.
Enfim, o que gostaríamos de acentuar, neste breve percurso histórico, é a
intensidade de subjetividades juvenis, como produção social, de vidas que se
expressam diante de uma certa ordem moral e simbólica presentes em
43
determinadas sociedades. Os jovens referidos aqui, em diversas tramas da história
da juventude, nos remetem, prioritariamente, àqueles pertencentes a um tempo da
aristocracia, da burguesia, em detrimento dos jovens pobres, trabalhadores. Nesses
dispositivos discursivos que não são fixos, mas historicamente mutantes, diante de
temporalidades diversas, de ritos de passagem, da ordem estabelecida, da arte de
guerrear, de caçar, das corridas, do trabalho, presentes, em especial, na vida dos
jovens, podemos afirmar que, ao se naturalizarem as diferenças sociais, em seus
atravessamentos, formas hegemônicas são forjadas, efeitos são produzidos,
expressando-se, inclusive, nos modos de sentir, de agir e de pensar.
Como observamos em algumas sociedades, a atribuição de um sentido de
construção social e cultural, em que determinadas marcas da transitoriedade, do
conflito, da inquietude, iriam caracterizar a história da juventude, produziam-se, ao
se perceberem esses jovens como um problema social, outras junções, a partir de
dispositivos para o (re)estabelecimento de uma ordem. Portanto, tal contexto sugere
a necessidade de políticas de intervenção por parte do Estado para a manutenção e
o desenvolvimento de uma suposta ordem moral e simbólica, em específico, a partir
da criação de escolas nos quartéis do Exército para jovens soldados na França no
início do século XIX. Havia um temor, na sociedade dessa época, àqueles
considerados “vagabundos, delinqüentes”.
Sobre a história dos jovens percebidos como “vagabundos, delinqüentes”, no
Brasil, nos parece que o papel de intervenção do Estado para “salvar” essa mesma
população, em meados do século XIX, irá enfatizar seu comportamento “desviante”,
normalmente associado à noção de periculosidade. De modo que poder revisitar
parte da história dos jovens, num certo sentido, nos faz pensar sobre como eram
produzidos esses discursos em terras brasileiras. Entendemos que tentar situar o
contexto dessa questão não se constitui tarefa fácil. De modo geral, é o que
propomos no Capítulo 3, além de apontar para outras políticas de intervenção,
objetivamos focar, num primeiro momento, a descrição e a análise sobre o papel do
Exército, a partir de 1832, nos seus Arsenais de Guerra, ao tomarem para si a
função de educar crianças e jovens pobres. Que tipo de poder, capaz de produzir
esses e outros discursos, dotados de efeitos tão potentes, foram e são produzidos
ao longo da história social da criança e do jovem pobres no Brasil, levando-se em
conta, certamente, suas intensidades?
Capítulo 3
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A existência, porque humana, não pode
ser muda, silenciosa, nem tampouco pode
nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras
verdadeiras, com que os homens transformam
o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar
o mundo, é modificá-lo [...].
(Paulo Freire)
3.1 CRIANÇAS E JOVENS NOS ARSENAIS DE GUERRA DO EXÉRCITO
A partir do século XIX, produzem-se, no Brasil, discursos sobrdo sJoestão da
salvação
14
da criança e do jovem. A expressiva tendência à institucionalização da
infância pobrdoJoe, sob o olhar da justiça e da filantropia – essa “sabiamente”
entendida como amor à humanidade –, passariao slançar mão ddo ções no
atendimento e no cuidado aos menores
15
, os miseráveis, “[...] o ddfeituoso, o
14
“Salvar”, antesoJoe elesose tornem ddgenerados, irrecuperáveis. Essa erao smissão Joe
ultrapassava os limites da religião e da família. Assumia, certamente, a dimensão política do controle,
sob a justificativa ddoJoe a sociedaddonecessitava se ddfender em nome da ordem e da paz social
(RIZZINI, 1997a).
15
A idealização para “salvar” as crianças no Brasil foi adotada pelos reformadores sociais, a partir de
um discurso da Justiça e da Assistência, respaldado, inclusive, pelo amplo debate internacional sobre
o movimento de reforma da Justiça. Tal idealização preconizava “[...] a importância da regeneração
do indivíduo através da educação, em detrimento da simples penalização pelo crime cometido. Mais
sentido ainda fazia pensar-se na aplicação desse movimento para crianças e jovens, cuja plasticidade
de caráter, tornavam maiores as chances de recuperação [...]” (RIZZINI, 1997a, p. 82-83).
Como os delinqüentes e abandonados passaram a ser objeto de preocupação da justiça e de uma
classe dirigente que se formava no Brasil, a partir da chegada da família real em 1808, pode-se “[...]
dizer que a primeira construção burguesa relativa à criança no Brasil se dá através da relação social
‘menor’. ‘Menor’ é um símbolo de exclusão; é a afirmação da diferença estrutural entre os vários
grupos, tornando-a ineludível, naturalizada [...] Assim, as crianças que não vivem sob modelos
46
desvalido, seguirão sendo o pobre-coitado das obras caridosas. Com a diferença
que sobre ele cairá o autoritarismo das verdades científicas, que irão transferir a
virtude e o pecado para a ordem moral e a doença” (LOBO, 1997, p. 21). Nesse
contexto e no processo crescente de urbanização, o Rio de Janeiro, Capital do
Estado Imperial
16
, em específico, se revelava o mais flagrante espaço urbano da
desordem, da doença, da criminalidade. “A cidade propiciava, enfim, uma mistura
populacional desconhecida, assustadora. Em meio à fervilhante movimentação
ostentatória de riqueza, circulavam e vadiavam nas cidades tipos humanos de toda
espécie [...]” (RIZZINI, 1997a, p. 74). Nesse cenário urbano, as crianças e jovens
“[...] representavam seus papéis de ‘pequenos agentes’ na luta cotidiana. Moleques
de recados, vendedores ambulantes, criados e aprendizes, [...] exerceram diversas
funções na sociedade e teceram com suas mãos um quinhão da história. [...]”
(SCHUELER, 1999, p. 63).
Em nome desse suposto “amor”, objetivava-se atender às demandas
impostas pela instituição de uma nova ordem política, econômica e social
17
. “[...] A
força da filantropia resultou da urgência em ajustar as bases do Estado liberal, na
lógica capitalista, à realidade da sociedade moderna, uma espécie de ajuste entre
liberdade e ordem, mercado livre e trabalho. [...]” (RIZZINI, 1997b, p. 152-153).
No lugar em que constava algo relativo à infância e à juventude pobres, lá
estava implícita a noção de periculosidade, carregada da ambigüidade anteriormente
assinalada: ou a criança personificava o perigo ou ameaça propriamente dita
(viciosa, pervertida, criminosa) ou era representada como potencialmente perigosa
(em perigo de o ser). Havia um projeto da elite da época que:
[...] estava convencida de sua missão patriótica de construir a nação, cuja
proposta baseava-se em idéias de circulação internacional, a respeito das
causas da “degradação das sociedades modernas” e dos corretivos a serem
aplicados no “organismo social”, para o seu “saneamento moral”. Não por
acaso, pobreza e degradação moral estavam sempre associadas. Aos olhos
hegemônicos são diferenciadas jurídica e socialmente por meio da categoria ‘menor’” (SCHEINVAR,
2002, p. 88).
16
Em 1808 a família real portuguesa transfere-se para a colônia, elegendo o Rio de Janeiro, como o
Município da Corte (VIEIRA & FREIRAS, 2003).
17
Ainda sobre a questão da caridade e da filantropia, Passetti (2002, p. 350) assinala que, a partir
dos anos de 1920, “[...] a caridade misericordiosa e privada praticada prioritariamente por instituições
religiosas tanto nas capitais como nas pequenas cidades cede lugar às ações governamentais como
políticas sociais. A sua expansão ocorrerá entre as duas ditaduras (Estado Novo, de 1937 a 1945 e a
Ditadura Militar, de 1964 a 1985), quando aparecem os dois primeiros códigos de menores: o de 1927
e o de 1979”.
47
da elite, os pobres, com sua aura de viciosidade, não se encaixavam no
ideal de nação. (RIZZINI, 1997b, p. 65)
Desde meados do século XIX, a educação das crianças, dos jovens e adultos
de parte da população considerada livre, nacional e estrangeira, tornou-se um dos
projetos de reforma debatidos pelos dirigentes do Estado e por outros setores da
sociedade Imperial. Segundo Schueler (1999, p. 64-65):
[...] A ênfase na instrução e na educação popular, viabilizada pela
construção de escolas públicas e colégios, e pelo desenvolvimento da
escolarização, acompanhavam outros planos de intervenção dos poderes
públicos na vida da população e nos espaços das cidades, como a
construção de ferrovias e bondes, a instalação da iluminação pública, os
projetos de saneamento, ajardinamento e cercamento de praças, a
regulamentação das festas, além da “ideologia da higiene”, responsável
pela prevenção e erradicação das doenças como a febre amarela, que
atingiam em cheio os setores mais pobres da população.
O processo de consolidação do Estado Imperial, além de estabelecer a
constituição de uma elite dirigente para o país, permitiu a difusão e o debate em
torno da instrução e da educação direcionadas a crianças e jovens. Para Schueler
(1999), embora com resultados duvidosos, escolas públicas, Casas de Educandos
Artífices, Asilos, Colégios, Escolas Normais para a formação de professores
primários representavam as primeiras iniciativas. Também foi criada a Academia
Militar de Marinha (1808), a Academia Real Militar (1810), dentre outras.
Paradigmas de “civilização” e “progresso”, veiculadas a partir dos
referenciais europeus e norte-americanos, informavam os setores das
classes dirigentes imperiais que buscavam construir um Estado Moderno,
distante do “atraso”, então representado pela suposta desordem das ruas e
becos sujos, escuros e estreitos das cidades coloniais. (SCHUELER, 1999,
p. 62)
Entre as poucas alternativas institucionais de aprendizagem profissional
destinada à infância e à juventude pobres no referido período, a educação punitiva e
repressiva passaria a ser substituída pela noção de uma educação preventiva.
Nesse contexto de constituição de modelos de intervenção e, a partir dos nossos
primeiros contatos com o PRCC, algumas questões surgiam: teria o Exército
18
18
Tentando estabelecer uma aproximação de um certo discurso e prática presentes no Exército, nos
grandes Estados europeus, Foucault (2002a) aponta para alguns indícios de um certo poder e saber
que também passam a se constituir na sociedade: o da instituição militar. O Exército não
representava apenas uma força armada para garantir a paz na sociedade, porém uma técnica da paz
48
algum papel, sobretudo no período referido, século XIX, com ações institucionais em
prol de crianças e jovens “delinqüentes”, “abandonados”? Apesar de o Exército estar
presente na formação profissional de parte da juventude pobre nos dias atuais,
entendemos que a produção desse investimento possa vir de longa data, sendo
assim histórica. Portanto, indagamos como esse discurso foi-se constituindo na
produção de um saber e de uma prática sobre os jovens pobres? Assumindo esse
pressuposto como um dado histórico, será que houve alguma alteração nas regras,
nos regulamentos, ao longo do tempo? Diante dessas considerações, acreditávamos
que, por meio de uma pesquisa documental à Biblioteca do Exército (Biblioex),
poderíamos responder às questões em tela.
Decidi ir de trem para a cidade onde se localiza a Biblioex. Dez horas da
manhã, Estação Madureira. Ramal de transferência para qualquer lugar
esquecido ou em vias de esquecimento na memória de tantos cariocas,
paraíbas, mineiros, que compõem o cenário urbano do chamado Grande
Rio. Peguei o “direto”, como eles chamam. Pára em poucas estações e faz
o percurso, a partir de Madureira até a Central, sem imprevistos, em trinta
minutos, em média. Japeri foi a origem de um começo do nada. Do nada,
também, emergem olhares perdidos e distantes das pessoas nos vagões.
Algumas olham para a janela, como se quisessem encontrar alguma
resposta no infinito. Qual infinito? Em seguida, outras procuram, na tensão
do olhar, nas bolsas ou no bolso de uma camisa, seus telefones móveis.
Olham não sei exatamente o quê ou no quê. Talvez seja o nada naquilo que
buscam não ser. Outras parecem dormir na perpendicular, tendo o ângulo
alterado em cada sobressalto ou nas curvas que ajudam a desenhar o que
não produz uma forma. Mais adiante, ouço vozes, em outros vagões,
anunciando, por um lado, a salvação eterna. São os evangélicos em ação,
tentando do nada e aos gritos, salvar os já condenados em vida à
eternidade. Por outro, vendedores anunciam produtos diversos e duvidosos
a preços de custo. É da goiabada cascão com queijo branco de minas, que,
na aparência, é difícil localizar o branco, ao último lançamento de DVD ou
CD no mercado. Até a Estação de São Cristóvão, é o comércio, de idas e
vindas, de trabalhadores informais sobre os trilhos. Subitamente, dou-me
conta que cheguei ao destino final. Na Central do Brasil, desço entre
centenas de pessoas, em direção ao Palácio Duque de Caxias. (DIÁRIO DE
CAMPO, 24/06/2004)
Não imaginávamos que, no percurso desta pesquisa, iríamos adentrar o
Comando Militar do Leste (CML), Palácio Duque de Caxias, do Exército. Na
recepção, fomos abordados por um jovem soldado que, com um tom de voz quase
palaciano, perguntou qual seria o nosso destino na imensidão do palácio. Falamos
que pretendíamos ir à Biblioteca do Exército (Biblioex). Ele ordenou que
e da ordem. Assim, não há como negar a existência do desejo de uma sociedade perfeita, não
apenas aos filósofos e juristas do século XVIII, mas aos militares. Diante de uma espada sempre
49
deixássemos qualquer objeto de metal com os soldados à nossa esquerda. Apenas
as chaves eram de metal. Passando pelo detector, fomos para uma segunda etapa.
A abordagem requeria, agora, um documento de identificação, adicionado a um
número de telefone, e com direito a uma foto digitalizada do nosso rosto. Esse
aspecto nos conduziu a pensar sobre algumas questões. Primeiro: Esse ritual de
“identificação-permissão”, de controle, não seria só exclusividade desse espaço.
Segundo: isso reflete uma sociedade em crise nos seus valores que, ao tentar se
proteger, utiliza-se de diversos instrumentos de guarda, de vigilância, para amenizar,
quase que, num sono hipnótico, os seus medos.
O prédio traduz, interna e externamente, uma linguagem instituída numa
forma de organização, de instituição, que, na rigidez de sua estrutura,
parece escamotear determinadas práticas disciplinares militarizadas. Diante
dessa realidade e no tocante à disciplina, me aproximo de Foucault (2002a,
p. 119) que, ao falar da “invenção” dessa nova anatomia política do homem
como objeto de saber, no século XVIII, assinala que tal invenção não deve
ser entendida como uma descoberta súbita. Ela contém uma “multiplicidade
de processos muitas vezes mínimos, de origens diferentes, de localizações
esparsas, que se recordam, se repetem, ou se imitam, apóiam-se uns sobre
os outros, distinguem-se segundo seu campo de aplicação, entram em
convergência e esboçam aos poucos a fachada de um método geral.
Encontramo-los em funcionamento nos colégios, muito cedo: mais tarde,
nas escolas primárias; investiram lentamente o espaço hospitalar; e em
algumas dezenas de anos reestruturaram a organização militar”.
Internamente, e cercados por diversos olhares, visíveis e invisíveis, ainda
como um flâneur, e tentando “ler” esse espaço para além do que poderia se
chamar “espaço real”, sou tomado pelas formalidades que, ao me perder
objetivamente, procurava perguntar onde estava localizada a Biblioex? Às
vezes, diante da disciplina e do controle militares, tinha a impressão de que
estava em algum convento ou mosteiro. Essa mesma sensação tive na
Escola de Comunicações. Se há alguma semelhança, não é mera
coincidência. Um soldado me disse que ficava no terceiro andar, aos fundos
e à frente de um grande estacionamento no centro do quadrante que
compõe a arquitetura do palácio. Na verdade, a imponência do palácio
localiza-se apenas na parte que dá para a Avenida Presidente Vargas.
(DIÁRIO DE CAMPO, 24/06/2004)
Ao chegarmos à Biblioex, fomos falar com a responsável pelo setor. Após
apresentarmos o nosso objetivo, perguntamos se havia algum registro histórico
sobre alguma forma de prática educativa promovida pelo Exército, direcionada a
crianças e jovens pobres. Com um olhar confuso e parecendo não conhecer bem o
acervo da biblioteca, procurou, no mesmo momento, em seu sistema, a existência,
por meio de algumas palavras-chave, o que estávamos procurando. Parecendo-nos
ameaçadora, “[...] há também um sonho militar de sociedade”, como bem afirma Foucault (2002a, p.
142).
50
gentil, nos apresentou dois exemplares, com uma interessante ilustração, sobre a
história da sua corporação. Enquanto folheávamos o material, a bibliotecária tentou
procurar um livro sobre a educação, a preparação para a formação de um tenente.
Na verdade, o livro versava sobre a prática curricular para a formação de um oficial.
Infelizmente, esses eram os únicos exemplares que a tenente tentou aproximar ao
que havíamos informado.
Diante dos fatos, sugeriu que procurasse a oficial responsável pelo setor de
Comunicação Social que fica no oitavo andar, só que do lado oposto onde
estava. Acrescentou, inclusive, da existência do Arquivo Histórico do
Exército (AHEx), localizado no sexto andar. Como já era meio-dia, não havia
ninguém no setor, disse-me a tenente. Perguntei, então, se havia alguma
cantina. Tive sorte pois ela fica no mesmo andar. Aproveitei para almoçar e
fiquei esperando, no mesmo local, até às 13h. Mais uma vez, me perco
entre tantos corredores e portas. Recorro mais uma vez aos olhos atentos e
desatentos dos militares. Nesse instante, um oficial me ajudou. Com uma
exceção de formalismo, sou tomado de súbito por um soldado que fazia a
recepção do setor. Parecendo ter decorado um texto pronto, lido algum
material explicativo para determinadas conveniências do cotidiano, e com
um olhar aparentemente ingênuo, fez um relato pontual e necessário para
falar apenas da ausência da tenente. Entretanto, informou ele, outra
tenente, uma assistente social, a estava substituindo. Pediu-me para
aguardar alguns minutos. Na verdade, não foram precisos alguns. Me
apresentei e expus o mesmo texto que havia posto na Biblioex. Agora, sem
muita ansiedade. Mais calmo. Penso ser isso o resultado do risco constante
com o qual, enquanto pesquisador e como pessoa também, me deparo.
Como só tinha três meses no Exército e a temática lhe era familiar, pelo
menos, no seu setor, ela não conhecia qualquer registro histórico do
exército. Quis saber se eu poderia conhecer o quantitativo de projetos que o
exército vem desenvolvendo, em específico, junto à juventude pobre.
Mencionou que sim, mas que isso iria demorar algum tempo. Ela se
prontificou em fazer esse levantamento e passar-me por correio eletrônico.
Bem, o que consegui aqui já representa um avanço, mas não sei
exatamente qual. Nesse momento, recuso-me a tentar entender esse
avanço. Quero descobrir outras formas de sensibilidade diante do novo.
Segui para o sexto andar à procura do Arquivo Histórico do Exército. Como
não é mais novidade, procurei ajuda. Realmente, há uma dificuldade para
localizar os setores. Além do aspecto sombrio que paira nos andares e no
tom quase negro dos mármores rigidamente revestidos nas paredes e nos
pisos, falta uma melhor sinalização para situar os visitantes. Isso é evidente.
Na recepção, sou recebido por um cabo. Repasso o texto diante de um
jovem rapaz que parecia oco de tão magro. Demonstrando uma certa
ansiedade, me conduziu até o responsável pelo arquivo. Sou, então,
apresentado a um oficial. Tentei explicar os motivos da minha visita ao
arquivo, inclusive, repassando o texto pela quarta vez. Mencionou que
existia sim algo sobre o trabalho do exército junto à educação de jovens
abandonados, carentes. A dificuldade, segundo o tenente, era que o
material se encontrava disperso em seus registros. Não havia uma
sistematização para relatar esses eventos. Disse-me que teria de ser feito
um trabalho de garimpagem. Falei que não teria problema, caso eu pudesse
ter acesso ao material. Afirmou que eu poderia ter acesso. Combinamos
para o dia 28/06, o início do levantamento. Quis saber se seria possível,
caso necessário, fotocopiar o original e quanto custaria cada cópia. Quanto
a fotocopiar, não há problema, respondeu o tenente. O valor de cada cópia
varia, de acordo com o ano da obra, de um a dez reais. Não tive como
51
conter o susto. Tudo isso, tenente? Existe algum preço que se aproxime de
um estudante pobre? Aqui, ele começou a rir, dizendo-me que poderia ver
outras possibilidades. Bem, mais uma vez, agradeci a atenção, ficando de
retornar no dia 28/06. Na saída do palácio, fiquei pensando o quanto essas
instituições dificultam, por um lado, qualquer trabalho de pesquisa ao
estipular um valor absurdo de uma fotocópia. Um pesquisador, diante de
suas parcas condições, como no meu caso, seria impedido, possivelmente,
de realizar uma atividade exaustiva, pois, além de demandar um tempo
significativo, o custo é altíssimo. (DIÁRIO DE CAMPO, 24/06/2004)
Conforme combinamos, chegamos por volta das 08h50min à recepção do
CML. Aguardamos alguns minutos em função do horário de funcionamento do AHEx:
de 2ª a 6ª, das 9h às 11h30min e das 13h às 16h30min. Passando por todo o ritual
de identificação e de destino final, chegamos ao 6º andar, e fomos direto ao AHEx.
Para a nossa surpresa, o tenente já havia selecionado uma certa quantidade de
livros
19
. Colocou à nossa disposição algumas raridades da primeira metade do
século XIX, do ano de 1832; outros, de 1875, 1876, e vários relatórios do início do
século passado. Em seguida, solicitou o preenchimento de um cadastro no setor, a
partir de uma ficha padronizada, com o seu respectivo termo de responsabilidade.
Confesso que não pude conter a emoção de poder pegar, com cuidado,
obras e registros tão antigos. O tom amarelado de suas páginas solicita o
respeito e a delicadeza diante de tantas vidas que passaram e construíram
cada registro da memória dessa instituição, independente do seu conteúdo.
(DIÁRIO DE CAMPO, 28/06/2004)
Sobre a aprendizagem profissional do século XIX até início do XX, temos a
presença da criança e do jovem pobre marcada nos Arsenais de Guerra do Exército,
em especial, na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, a partir do Decreto da
Administração do Arsenal, de 21 de Fevereiro de 1832
20
. Para o ano de 1821, o
Brasil já contava com dezoito províncias: Grão-Pará, Maranhão, Ceará, Piauí, Rio
Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia, Goiás, Mato
19
O tenente responsável pelo setor nos forneceu um primeiro relatório sobre a criação dos Arsenais
de Guerra do Exército em 1832, em que havia um decreto mencionando a autorização para a
permanência de crianças e jovens nas atividades de formação profissional. A partir desse relatório,
passamos à leitura de outros em que íamos identificando o registro dessa população nos Arsenais. A
atividade apenas se restringiu a leituras e a transcrições manuais do conteúdo que considerávamos
importantes. Ressaltamos, inclusive, apenas transcrição, sem a devida análise do material, extenso e
complexo. De 1832 a 1911, pelo que pudemos depreender, não havia registro sistemático sobre as
atividades com crianças e jovens. Alguns mencionavam, outros não. Entendemos que esses
aspectos, por si só, ganham dimensão relevante para uma futura investigação.
20
Dois anos antes da criação do Arsenal de Guerra, temos o Código Penal de 1830 como o primeiro
legislador sobre os códigos penais. A emergência de um dispositivo institucional – o espaço fechado
52
Grosso, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina e
Rio Grande do Sul.
O referido decreto determina a criação dos arsenais e da fábrica de pólvora
da Estrella. Nas demais províncias do país, deveriam ser organizados os Arsenais
ou Armazéns de Guerra.
Esse Decreto veio acompanhado dos novos regulamentos destinados às
instituições citadas e foi assinado por Manoel da Fonseca Lima e Silva que,
na época, era Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Guerra, bem
como, pelo Brigadeiro Francisco de Lima e Silva, dentre outros.
(CARDOSO, 2001, p. 98)
Não havia arsenais em todas as províncias. Segundo o Relatório de 1847,
redigido por João Paulo dos Santos Barreto, havia seis arsenais de guerra, em
Pernambuco, Bahia, São Pedro do Rio Grande (atual Rio Grande do Sul), Mato
Grosso, Maranhão e o da Corte, atual cidade do Rio de Janeiro, que se destacava
pela sua importância.
Os jovens aprendizes deveriam ser instruídos nas primeiras letras, com aulas
de leitura, escrita, numeração, tabuada e desenho, aritmética, geometria, desenho
de máquinas, etc. As atividades desenvolvidas nas oficinas compreendiam:
construção, torneiros, tanoeiros, coronheiros, ferreiros, serralheiros, espingardeiros,
latoeiros, correieros, barraqueiros, gravadores, dentre outras. Como observado no
Art. 26, do mesmo Decreto, Capítulo I, Título II, deveria haver, nas oficinas, um
mestre responsável por um determinado número de oficinas, auxiliado por um
contra-mestre.
O numero de officinas dos Arsenaes de Guerra provinciaes se
determinado segundo a necessidade, que dellas hover, guardando-se com
tudo a classificação estabelecida no Regulamento da Administração do
Arsenal de Guerra na Côrte do Rio de Janeiro, tit.2 cap. 2, para que nas
officinas analogas não haja mais do que um Mestre, e os Contra-mestres
necessários. (COLEÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRAZIL, 1832, p. 60).
Além das aulas e das oficinas, as crianças e os jovens estavam sujeitos à
numeração em seus vestuários e em suas camas. Atentos a moldá-los para o bem
(RIZZINI, 1997a), eram acordados ao romper do dia, pois as atividades começavam
cedo, deveriam estar lavados e vestidos para a primeira ceia do dia. Depois,
– passa a caracterizar as novas instituições destinadas ao acolhimento e à instrução, em específico,
da infância e da juventude pobres.
53
entrariam em forma de revista, e marchariam para as aulas ou oficinas. Além desses
critérios, outros de caráter obrigatório acentuavam o controle: o regulamento interno
previa também meia hora para o almoço, a partir do meio dia, com regresso às duas
horas, para as referidas atividades. Na ceia da noite, teriam meia hora para a
refeição. Em seguida, deveriam receber instruções, antes do descanso, baseadas
nas “doutrinas e rezas christãs”.
[...] Darão graças a Deus ao levantar da cama, depois de jantar, e da cêa:
ouviráõ missa todos os domingos e dias santos, e cumpriráõ annualmente
com o preceito da desobriga quadragesimal. O tempo que ficar livre aos
menores de suas obrigações ordinarias, será empregado em recreações
innocentes, exercicios gymnasticos, e passeios fóra do Arsenal nos dias que
não forem de trabalho. (Art. 17, RELATÓRIO DA REPARTIÇÃO DOS
NEGÓCIOS DA GUERRA, 1842, p. 07)
Assim, ao compreenderem os ensinamentos da religião católica, aprendiam,
conseqüentemente, a rezar. Mesmo que no Brasil, ainda na condição de colônia,
tenha-se adotado a “instrução pública estatal”, em 1759, com a expulsão dos padres
jesuítas por Sebastião José de Carvalho e Melo
21
, o Marquês de Pombal, a situação
não mudou em suas bases (ROMANELLI, 2001, p. 36). “[...] Foram estes que
formaram a massa de tios-padres e capelães de engenho [...]”. A doutrina da fé
católica está posta. Dentre possíveis subversões e resistência, a cultura da Igreja de
Roma ainda reivindicava para si a sua participação, inclusive diante da sua influência
e formação de seus representantes junto ao poder político, na constituição de uma
classe dirigente que, a partir dos interesses da coroa portuguesa, iriam forjar um tipo
de Estado Imperial em meados do século XIX (ROMANELLI, 2001). Em comunhão
com a ação pedagógica dos Arsenais, o discurso da doutrina de Roma, adicionada
à aprendizagem dos ofícios, revestia-se, expressivamente, das virtudes da
humildade, da paciência, da resignação e da submissão à ordem estabelecida.
Para o ano de 1835, o Arsenal de Guerra da Corte já contabilizava 114
meninos inscritos em seu estabelecimento, na condição de aprendizes menores,
oriundos da Santa Casa de Misericórdia ou órfãos indigentes. Segundo o Relatório
da Repartição dos Negócios da Guerra (1835, p. 12):
21
Marquês de Pombal, em sua administração, entrou em conflito com os jesuítas, atribuindo-lhes
intenções de opor-se ao controle do governo português. Do conflito chegou-se ao rompimento, em
1759. Sobre esse assunto, ver Vieira & Freitas (2003); Romanelli (2001).
54
[...] entre elles alguns dão esperanças de ser optimos Artistas. O Governo
condoído de sorte de tantos meninos, que nascidos na esteira da miseria,
se atolavão nos vicios vagando pelas ruas da Cidade e Villas da Provincia,
expedio as convenientes ordens para serem recebidos, educados, e
tratados nos Arsenaes, todos os que estivessem nas circunstancias.
Embora uma parte desses menores fosse órfã e como a pobreza marcasse a
vida de expressiva parcela da população livre do meio urbano, havia crianças que
eram encaminhadas pelos próprios pais para a formação profissional. As
possibilidades de se encontrar uma instituição que mantivesse, educasse e
providenciasse ocupação para os menores eram pequenas, na maior parte do
século XIX. Dessa maneira, “enviá-los aos artesãos ou às companhias e arsenais
representava, nas parcas esperanças dos pais, a possibilidade de garantir um ofício
para os filhos, além de se tornarem também menos uma boca para alimentar”
(FRAGA FILHO Apud NASCIMENTO, 2001, p. 78). Mas essa oferta era delimitada
por um corte cronológico.
Retomei as pesquisas nas mesmas obras consultadas no dia 28/06. Na
“Coleção das Ordens do Dia do Ano de 1871”, na página 645 há uma
menção, em forma de AVISO, quanto à idade mínima para que o menor
seja considerado aprendiz e que se refere ao Art. 51.: os maiores de
quatorze anos ou estando a completar essa idade. No dicionário editado em
Lisboa, em 1911, aprendiz é definido como aquele que principalmente
aprende arte ou ofício. Quis saber se havia um outro dicionário, por exemplo
do século XIX, que fizesse menção ao conceito de aprendiz. No Arquivo
Histórico do Exército (AHEx) não havia, afirmou o tenente, responsável pelo
setor. Este era o único e primeiro exemplar. (DIÁRIO DE CAMPO,
01/07/2004)
Além desse aspecto, o aprendizado profissional nos arsenais se constituía em
prática rara em uma sociedade na qual:
[...] o número de alunos matriculados em escolas primárias e secundárias
era também muito baixo. De acordo com o Censo de 1872, somente 16,85%
da população entre 6 e 15 anos freqüentava a escola. E havia menos de
12.000 alunos matriculados nas escolas secundárias numa população livre
de 8.490.910 habitantes. (CARVALHO, 1980, p. 65)
A inserção dessa população nos arsenais já sinalizava para uma certa
preocupação com a faixa etária. Era como se a criança ou o jovem, como um ser
despreparado, necessitasse ser disciplinado por uma pedagogia do trabalho, para
tornar-se, a partir de suas utilidades, um sujeito mantenedor de uma certa ordem
55
moral e simbólica. Sendo assim, entrava-se ainda criança, constituindo-se jovem
dentro dos muros do Exército. Ou seja, a educação “[...] era por muitos considerada
como um instrumento capaz de reverter a influência ‘perniciosa’ da sociedade, desde
que se iniciasse em tenra idade” (SCHUELER, 1999, p. 83). Nesse sentido, e como
forma de se prevenirem as possíveis conseqüências da miséria e da pobreza, os
Arsenais, como espaços de produção de subjetividades, já editavam em seus
relatórios, a importância da educação militar para a formação da moral e do caráter
das crianças e dos jovens pobres.
[...] muito se compraz o Governo de que aquelle asilo de caridade, onde os
desgraçados orphãos encontrão a necessaria subsistencia, vestuario, e
ensino, para virem a ser uteis a si, e ao Estado [...] Acostumados assim
desde a primeira infancia a hum arremedo da disciplina Militar, adquirem
facilmente a subordinação e respeito, que devem guardar nas Officinas do
trabalho aos seus Mestres e Superiores. (RELATÓRIO DA REPARTIÇÃO
DOS NEGÓCIOS DA GUERRA, 1839, p. 6-7)
Há uma menção no Capítulo II, cujo título se inicia com a seguinte expressão
Dos Menores, do mesmo decreto, referindo-se à colocação e à freqüência dos
menores
22
, a partir da demanda estabelecida pelo Presidente da Província. Passa a
se estabelecer uma nova organização, quanto às companhias de aprendizes
menores, a partir do Decreto de 29 de Dezembro de 1837. No Art. 1º, os aprendizes
menores do Arsenal de Guerra da Corte não poderiam ser “alistados” antes dos oito
22
O Art. 28 menciona que “haverá em cada um dos Arsenaes de Guerra provinciaes, um numero de
menores determinado pelo Presidente da Provincia, á vista da consignação decretada para as
despezas dos ditos Arsenaes, e do numero e importancia das suas officinas” (COLEÇÃO DAS LEIS
DO IMPÉRIO DO BRAZIL, 1832, p. 60).
O Art. 29 do mesmo capítulo estabelece critérios para definir quem são os menores que poderiam
participar das atividades nos Arsenais. “Só tem direito a serem recebidos para de educarem na
qualidade de Aprendizes dos Arsenaes de Guerra provinciaes: os expostos; os orphãos indigentes e
os filhos de pais nimiamente pobres” (Ibidem, p. 60).
O Art. 30 menciona como eles seriam instruídos, tanto nas chamadas primeiras letras como no
desenho, inclusive, seriam aplicados à arte ou ofício para que pudessem aprimorar a sua vocação.
O Art. 31 diz: “Pela féria das officinas se abonará aos menores, em os dois uteis, um jornal sufficiente
para a sua sustentação diaria, deduzindo-se a quantia necessaria para o vestuario” (Ibidem, 1832, p.
60).
O Art. 32 diz que diante de alguma enfermidade, os menores seriam tratados nos devidos hospitais
de caridade, inclusive, acompanhados por um guia e, previamente, autorizados pelo ajudante do
diretor. Devia conter, no verso, o fato ocorrido.
Há um dado curioso: o Art. 33 proibia a ida dos menores à casa dos pais ou de outras pessoas. Salvo
nos dias de domingo e dias “santos de guarda”. Mesmo assim, deveria obter a autorização do diretor.
O Art. 34 trata dos espaços destinados aos menores nos Arsenais. Diz: “A casa, e utensio para a
habilitação e serviço domestico dos menores serão fornecidos pelo Arsenal” (Ibidem, p. 61).
56
anos nas referidas companhias, e nem depois que houver em completado doze
anos
23
.
Além das prerrogativas mencionadas, as crianças deveriam permanecer nos
arsenais até a idade de vinte e um anos. Quando jovens, poderiam ser considerados
mestres. Havia, inclusive, um tempo demarcado para a permanência dos sujeitos
nas diversas unidades dos arsenais: a educação era realizada no período de sete
anos, podendo ser contratados pelo próprio arsenal.
Identificamos a presença de um especialista: o pedagogo. No Capítulo III –
Do pedagogo dos Aprendizes Menores – no seu Art. 35 menciona: “Haverá um
pedagogo immediatamente sujeito ao ajudante do Director, que terá a seu cargo a
educação moral, e arranjos domesticos dos menores [...]” (COLEÇÃO DAS LEIS DO
IMPÉRIO DO BRAZIL, 1ª Parte, 1832, p. 61). Nomeado pelo Presidente da
Província, tinha a prerrogativa de ter a sua indicação sugerida pelo diretor do
arsenal, estando subordinado, inclusive, ao diretor. Nessa arte de governar, tais
práticas são “[...] múltiplas, na medida em que muita gente pode governar: o pai de
família, o superior do convento, o pedagogo e o professor em relação à criança e ao
discípulo” (FOUCAULT, 1990, p. 280).
Não há menção à expressão jovens, nos relatórios. Constatamos, apenas, a
expressão “rapazes” no Relatório de 14 de Janeiro de 1837 quando autoriza a vinda
de:
[...] oito rapazes pobres que estejão nas circunstâncias do Art. Do
Regulamento dos Arsenaes de Guerra de 21 de Fevereiro de 1832 [...] para
fazer á custa dessa Provincia [do Maranhão] a despeza com outros tantos
aprendizes dos que ora se mandão vir, os envie da mesma forma para o
Arsenal de Guerra da Corte, onde acharáo os commodos necessarios.
(COLEÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, VOLUME VIII, 1837, p.
24-25)
Deveriam, também, ser remunerados pelos trabalhos realizados nas oficinas.
Por outro lado, as companhias de aprendizes apresentavam uma saída para os
problemas financeiros dos pais, já que havia um:
[...] “prêmio” de 100$000:00 para aqueles que entregassem seus filhos
voluntariamente, que poderia ser revertido para o jovem aprendiz se assim
23
No Art. 4, menciona que “logo que o educando estiver em estado de por si só exercer o seu officio,
e tiver 21 annos de idade, receberá hum certificado do Mestre da Officina respectiva, e do Pedagogo,
rubricado pelo vice-Diretor, e então poderá ser contratado como operario effectivo do Arsenal de
Guerra, e dispor de qualquer quantia que por ventura lhe pertença” (RELATÓRIO DA REPARTIÇÃO
DOS NEGÓCIOS DA GUERRA, 1837, p. 630-632).
57
quisessem os pais ou tutores. Caso estes voltassem atrás e quisessem ter
novamente a guarda do filho, deveriam restituir ao erário público, tostão por
tostão, tudo aquilo gasto com o aprendiz, no período de internação somado
ao prêmio recebido na ocasião do alistamento. (FRAGA FILHO Apud
NASCIMENTO, 2001, p. 78)
Até mesmo durante o período da aprendizagem, havia uma premiação para
aqueles que se sobressaíssem nas atividades e nos estudos. Segundo Cardoso
(2001, p. 104), “[...] o governo regencial distribuía prêmios, em dinheiro, duas vezes
por ano, aos aprendizes que mais se destacavam nos estudos e nos ofícios.
Entretanto, tais aprendizes só poderiam dispor dessas quantias, aos 21 anos de
idade”.
No relatório de 1842, há menção sobre as conseqüências pelas eventuais
fugas dos menores e as formas de punição, sem descrever, entretanto, alguma
possível forma de maus-tratos, bem como do registro sobre possíveis fugas. Mesmo
que o Arsenal determine a punição para eventuais fugas, havia uma vigilância
permanente e atenta, como bem nos afirma Foucault (2002a) em A Vigilância
Hierárquica. Desenha-se uma rede de olhares, a partir de práticas visíveis e dizíveis,
que controlam uns aos outros. Uma vez articuladas, essas práticas passam a
constituir um saber sobre as crianças e os jovens. Como assinala Roberto Machado
(1990), tais práticas, características do poder disciplinar, implicam um registro
contínuo do conhecimento, pois ao mesmo tempo que exerce um poder, produz um
saber.
A partir dessa lógica, dos olhares que devem ver sem serem vistos, era,
terminantemente, proibido aos aprendizes menores saírem dos arsenais, sem a
prévia autorização do diretor. O Regulamento de 1842, no seu art. 13, diz que os:
[...] aprendizes menores não poderão sahir para fora dos Arsenaes de
Guerra, sem licença por escripto do Director, que a não se oppondo este
com motivos plausivies. Os que se ausentarem sem licença serão
apprehendidos onde forem encontrados: as pessoas que houverem
alliciado, ou addmittido em suas casas, officinas, ou seviço, serão punidas
com as penas impostas pela lei que os aconselhão, dão asylo, ou auxilio
para desertar a soldados da primeira linha do exercito. (RELATÓRIO DA
REPARTIÇÃO DOS NEGÓCIOS DA GUERRA, 1842, p. 3)
Com relação aos castigos, às práticas corretivas, o Art. 14 do referido
regulamento determina que “aos mesmos Aprendizes Menores poderão ser
apllicados correccionalmente, pelas faltas que commetterem, os castigos
58
moderados, com que é licito aos pais corrigir as faltas de seus filhos, e aos mestres
as de seus discipulos” (Ibidem, p. 3). Assim como a escola, nos parece que outras
junções constituem as ações pedagógicas nos Arsenais. A vigilância permanente, a
obrigação de denunciar e a imposição dos castigos, cumpririam, juntamente com as
famílias, a dupla tarefa de impor a tática das disciplinas individualizantes, permitindo
marcar, medir, controlar e corrigir. Nesse contexto, é possível afirmar que o apelo à
autoridade e à disciplina se concretizava nas varas de marmelo e nas palmatórias de
sucupira, parafraseando Nelson Werneck Sodré (1970), ao se referir às práticas
educativas, dentro dessa “pedagogia da submissão”, no “ensino público estatal”, a
partir do século XVIII.
Na tentativa de ofertar uma instrução primária e, em seguida, serem
encaminhadas as crianças pobres para os arsenais para a aprendizagem de ofícios,
o governo imperial determina, no seu Regulamento de 1854, da Instrução Pública
da Corte, que as crianças com menos de doze anos, identificadas e encontradas
“vagando pelas ruas” da Corte, na condição de pobreza e de indigência, deveriam
ser matriculadas nas escolas públicas ou particulares subsidiadas com verbas do
Estado.
Aos meninos pobres, o governo fornecia vestuário e material escolar,
obrigando os pais a garantirem instrução elementar aos seus filhos. Depois
de freqüentarem as aulas primárias, os meninos seriam enviados aos
Arsenais de Marinha e de Guerra, ou às oficinas particulares, mediante
contrato com o Estado, para a aprendizagem de ofícios que lhes
garantissem o sustento e o trabalho. Pelo regulamento de 1854, os meninos
pobres só poderiam dar continuidade aos estudos no caso de
demonstrarem acentuada distinção e “capacidade” para tal. Em geral, seu
destino deveria ser a aprendizagem de ofícios por meio dos quais seriam
integrados na categoria de trabalhadores livres. (SCHUELER, 1999, p. 68)
De uma forma geral, descobrimos que os arsenais foram extintos a partir do
governo Campos Salles, nos idos de 1898 a 1902. Tal evidência foi constatada no
Relatório da Repartição dos Negócios da Guerra, de 1911, no relato suplicador de
um oficial ao se referir aos arsenais como “viveiros” bem organizados e conduzidos a
aprendizes. O referido documento reafirma e apregoa o destino dos jovens
aprendizes que se tornarão homens de bons costumes e disciplinados, cumprindo
assim seu destino social para servir de mão-de-obra obreira e cordata. Nas palavras
do referido relatório, os Arsenais serviam como “viveiros” para os jovens pobres.
Nesse argumento de época, os “viveiros”, lugares de aquisição de um ofício, se
59
constituíam para as “classes perigosas”, sinônimo de “classes pobres” (CHALHOUB,
1986), em espaços de “purificação”, já que eles vinham de um meio “miserável”
(darwinismo social), tendo em vista que ser pobre era trazer não “apenas no corpo,
mas também na alma”, o risco potencial do perigo à sociedade.
A existência e a valorização de regras para a manutenção da disciplina no
estabelecimento parecia atuar como instrumento para a moralização dos desvios de
conduta. Nesse sentido, são pertinentes as afirmações de Passetti (2002, p. 350), ao
sugerir que, na história das crianças e dos jovens pobres, caracterizados como
abandonados e delinqüentes, a produção de conhecimento pensada por diversos
especialistas “[...] médicos, juízes, promotores, advogados, psicólogos, padres,
pastores, assistentes sociais, sociólogos e economistas –, deve ser anotada como
parte da história da caridade com os pobres e a intenção de integrá-los à vida
normalizada”.
A despeito desses discursos que devem “[...] ser registrados como
componentes da história contemporânea da crueldade” (PASSETTI, 2002, p. 350),
se é possível qualquer tipo de assistência com recursos financeiros, assim como as
filantropias privadas e as governamentais dedicadas ao atendimento de crianças e
jovens pobres, o Exército também padecia com a ausência de verbas.
O levantamento historiográfico tem a sua importância, mas durante o pouco
tempo junto ao AHEx, pude constatar a ausência de trabalhos analíticos
sobre o período de existência do Arsenal de Guerra. Há, entretanto, um
considerável número de relatórios e de livros, necessitando de cuidados
especiais, de um trabalho de restauração, para que se tenha uma melhor
compreensão sobre as políticas de assistência direcionadas à infância e à
juventude pobres. Não sei se a decisão é a correta, mas não posso fazer
dois trabalhos com enfoques diferentes. Nesse sentido, encerro hoje,
temporariamente, a minha ida ao Arquivo Histórico do Exército. (DIÁRIO DE
CAMPO, 31/07/2004)
Sob a intervenção do Exército, via seus Arsenais, além de seus discursos
serem hegemônicos na produção dessas “subjetividades desviantes”, ainda assim é
possível estabelecer outras reflexões. Sobre as leituras dos relatórios no AHEx, salta
aos olhos a presença apenas das falas oficiais. Sobre esse aspecto, e, como nos
diria Benjamin (1994), impondo-se a história dos vencedores, não há polifonia
nesses documentos que permitam contar uma outra história. As diferentes vozes das
crianças, dos jovens, das mães, dos pais estão silenciadas. O nosso acesso às
leituras tinha seu ponto de partida e de chegada sob uma única ótica: a do discurso
60
oficial. Por que as falas dos denominados “pobres e desviantes” não aparecem? Por
que, além da repetição dos conteúdos, expressivamente, na maioria dos relatórios –
1832 a 1911, há vários que não fazem referências aos aprendizes?
Além dessas considerações, o que pudemos perceber, tanto sobre o acesso à
instrução e à educação nas oficinas, quanto à instrução primária editada pelo
governo imperial, é que as práticas traduzem a produção de uma educação dual
(ROMANELLI, 2001). Dual no sentido de que havia os que tinham acesso ao ensino
propedêutico, com vistas aos cursos superiores, e aqueles que, pelo menos, com a
instrução primária, representada pela maioria da população livre e pobre, tinham o
“privilégio”, como menciona Schueler (1999), de exercer o trabalho manual da
sociedade. Para os dirigentes da época, essa modalidade de ensino se constituía
suficiente para a população pobre. Segundo nos aponta Romanelli (2001), tal
realidade reflete, por seu turno, a bifurcação do ensino na história da educação
brasileira. Nesse sentido, deve-se levar em consideração, certamente, dois fatores
fundamentais: a nossa herança cultural e o poder político. O primeiro, atuando sobre
os valores procurados na escola pela demanda social da educação, como forma de
ascensão social; e o segundo, expressando o jogo antagônico entre as forças
conservadoras e modernizadoras presentes em nossa sociedade.
Toda essa produção histórica nos Arsenais de Guerra do Exército, ao mesmo
tempo que permite dar visibilidade às produções sociais de um passado não tão
distante, criadoras de domínios de saber, ao tomarem para si a função de educar
crianças e jovens pobres, passaria a instituir sobre essa mesma população, inscrita
na sua “ordem do discurso”, uma “realidade”, que permitiria falar sobre a constituição
desses sujeitos, de seu funcionamento, dos atributos que possuem, definindo,
portanto, o que tem ou não estatuto de “verdade” em suas vidas, como nos afirmaria
Foucault (1974).
3.2 CRIANÇAS E JOVENS E A FORMAÇÃO PROFISSIONAL: O EXEMPLO DO
PERÍODO REPUBLICANO
A educação das crianças e dos jovens ainda se constituía em desafio para os
republicanos, pretensos construtores de uma nova nação. Havia uma idéia de que o
país para se modernizar frente às nações desenvolvidas, deveria investir em seus
61
quadros profissionais. Para Schueler (1999), a questão do acesso à escola pública
estava colocada, mas nem todos podiam permanecer nas escolas porque
necessitavam contribuir com a renda familiar. A herança cultural, desde o Brasil
colonial, já delineava um tipo de educação que a escola deveria produzir e
reproduzir em seus currículos, com ênfase na instrução primária, e para o
encaminhamento ao aprendizado profissionalizante.
[...] Se se leva em conta que as elites, que passaram desde logo a controlar
o poder, representavam as oligarquias do café, às quais se juntaram, pouco
a pouco, as velhas oligarquias rurais de atuante ação política, no tempo do
Império, é justo concluir-se que o tipo de educação reivindicado por essa
classe para a Nação só poderia ser aquele ao qual ela mesma vinha sendo
submetida. (ROMANELLI, 2001, p. 43)
Além da assistência dentro dos Arsenais do Exército e ainda no século XIX, a
partir de 1870, a idéia de ocupar jovens “delinqüentes” ou “desocupados” passa a
ser discutida por outros setores da sociedade civil, notadamente, pelos proprietários
de terra que sinalizavam para a necessidade de criação de um ensino primário
aliado à agricultura, com a finalidade de suprir os imensos latifúndios com mão-de-
obra, em decorrência de tão propalada “falta de braços” em suas lavouras. A
transição do trabalho escravo para o trabalho livre, segundo Sidney Chalhoub
(1986), foi marcada pela continuação da dominação social dos proprietários dos
meios de produção. Ainda sobre essa questão, Kátia Mattoso (1982, p. 240) assinala
que, para o escravo brasileiro, a abolição não propiciou qualquer garantia de
segurança econômica e assistência a milhares de escravos libertos. A autora
enfatiza que a Lei Áurea, certamente, abandona à sua sorte o liberto,
desorganizando, assim, as estruturas de trabalho. “[...] Lá escravos buscam trabalho
na cidade, um emprego que ela nem sempre lhes pode oferecer [...]”.
Um dos possíveis encaminhamentos seria o envio de jovens pobres das
cidades, para serem “instruídos” pelos senhores de terra. Por outro lado, propunha-
se, também, “[...] a resolução do problema da chamada ‘transição do trabalho
escravo para o livre’, mormente no contexto do pós-1871” (SCHUELER, 1999, p.
77). Essa idéia vinculada ao que já prenunciava o Código Penal, pautado na lógica
do trabalho e instituído em 1890, estabelecia a ida de jovens pobres para as
colônias correcionais. Tal legislação determinava a ociosidade como “crime” e, como
tal, objeto de punição. Reconhecida e legitimada abertamente, tal prática da
62
repressão aos pobres “[...] ficava clara no discurso dos responsáveis pela segurança
pública e pela ordem das cidades” (PEDROSO, 1999, p. 25).
Para citar um exemplo, desde o século XIX, São Paulo já contava com o
Instituto Disciplinar que era dividido em duas seções diferenciadas e incomunicáveis,
separando crianças e jovens em duas categorias:
[...] A primeira seção recebia os maiores de nove e menores de 14 anos que
obraram com “discernimento” (ou seja, criminosos de acordo com o disposto
no artigo 30 do Código Penal), além daqueles maiores de 14 anos
processados por vadiagem, sempre em cumprimento de sentença expedida
por juiz de Direito. A Segunda seção recebia aqueles que não tivessem sido
considerados criminosos: “pequenos mendigos, vadios, viciosos,
abandonados”, entre nove e 14 anos à ordem do chefe de polícia ou
autoridade policial [...]. (SANTOS, 2002, p. 224-225)
Mediante a autorização do juiz, o diretor do reformatório poderia desligar o
interno, contratando-o em seguida como operário em uma das oficinas, podendo,
inclusive, receber salário. Esse mesmo fato pode ser observado nas práticas do
Exército para o aproveitamento da mão-de-obra do jovem egresso, nos Arsenais de
Guerra, do século XIX, conforme já evidenciado.
Diante dessa suposta verdade que se reafirmava na linguagem de diferentes
práticas institucionais, a arte de educar os que se encontravam afetados nessa
condição, coadunava-se à crescente violência praticada por jovens através de
pequenos furtos que só podia ser explicada pela calaçaria, ou seja, pela ociosidade,
indolência dos mesmos. Assim, produzia-se um consenso entre os diversos setores
do Estado Imperial de que a educação, ao ser capaz de produzir riquezas, poderia
incutir nos jovens pobres o “amor ao trabalho” (SCHUELER, 1999). Por outro lado e
como um ranço da escola herdado do Império, no Estado Republicano, o próprio uso
da expressão “educação” apresentava uma peculiaridade, quando o foco recaía
sobre as supostas “classes perigosas”.
Segundo Marta Maria de Carvalho (Apud RIZZINI, 1997b), o que
predominava, num sentido particular, era uma educação como um antídoto à
ociosidade e à criminalidade e não como um instrumento que proporcionasse
melhores chances de igualdade social. É ilustrativa, na cidade do Rio de Janeiro, a
conhecida Escola Quinze de Novembro idealizada para a “correção de menores”. Tal
estabelecimento:
63
[...] encaixava-se bem como parte do movimento de reestruturação e
modernização da capital da República no Governo de Rodrigues Alves,
liderado pelo Prefeito Pereira Passos (1903-1906). Em seu Regulamento
(02/03/1903), constava que: “Sendo a Escola destinada a gente
desclassificada, a instrucção ministrada na mesma não ultrapassará o
indispensável á integração do internado na vida social. Dar-se-lhe-a, pois o
cultivo necessario ao exercicio profissional”. (RIZZINI, 1997b, p. 240)
Como percebemos, o direito ao não trabalho era, tão somente, permitido a
quem fosse de família abastada. Os pobres incorriam em pena por vadiagem, que
era o próprio trabalho. Condições de vida, pena por transgressão
64
desvio. Na articulação entre a prevenção e a intervenção, o Estado, com o seu
discurso higienista e jurídico, passaria a interpelar tal população, produzindo-se,
assim, a partir do mito das “classes perigosas”, diversos discursos de verdade e
diferentes formas de intervenção sobre tal população (COIMBRA, 2001).
No tocante ao conceito de “classes perigosas”, Sidney Chalhoub (1986)
afirma que os parlamentares do início do século XX reconheciam e manifestavam
em público, o desejo de reprimir os ditos miseráveis. A vadiagem poderia, para essa
época, se constituir em um ato para a vida do crime, daí a necessidade de se pensar
em construir dispositivos de repressão. Assim, passaram a utilizar o referido
conceito, embora já existente em solos europeus. Citando Alberto Passos
Guimarães, Chalhoub diz que o termo “classes perigosas” surgiu:
[...] originalmente na Inglaterra e se referia às pessoas que já houvessem
passado pela prisão ou às que, mesmo ainda não tendo sido presas,
haviam optado por obter o seu sustento e o de sua família através da
prática de furtos e não do trabalho [...] Os nossos deputados, contudo, citam
principalmente autores franceses e alargam consideravelmente as
proporções do termo. Os legisladores brasileiros utilizam o termo “classes
perigosas” como sinônimo de “classe pobres”, e isto significa dizer que o
fato de ser pobre torna o indivíduo automaticamente perigoso à sociedade.
(CHALHOUB, 1986, p. 47-48)
Nessa perspectiva, sobre as crianças e os jovens recai o “recrutamento” para
outros espaços: as indústrias. Com a idéia de reproduzir uma verdade sobre
possíveis virtualidades “criminosas” e com a finalidade de evitar a degeneração
social e moral dos menores, aos olhos do patronato, salienta Rago (1997, p. 136),
“[...] a função moralizadora do trabalho justifica a introdução de um vasto contingente
de menores nas indústrias, especialmente têxteis”. Assim, o trabalho vai se
reafirmando como uma maneira salutar de impedir a vagabundagem e o desperdício
das energias das crianças e dos jovens.
Além deles assumirem um papel importante na produção, percebiam ínfimos
salários e contribuíam para o processo de acumulação do capital. Rago (1997, p.
136) afirma que, dentre os empresários, a mão-de-obra infantil e juvenil era
considerada como necessária para impedir futuros atos delinqüentes. Havia
empresários que chegavam ao ponto de se vangloriaram de “[...] dirigir em suas
fábricas ‘um grande número de crianças entre doze e quinze anos, cerca de
65
trezentas, de ambos os sexos’, que trabalhavam cerca de dez horas diárias, como
todos os adultos”.
Com relação às condições de trabalho
25
e seu impacto na saúde
26
da criança
e do jovem, os efeitos da inserção dessa população nos espaços fabris eram objeto
de denúncia pela imprensa operária que, em uma das suas matérias, retratava as
marcas produzidas pelo trabalho.
As energias infantis se atrofiam, a falta de iluminação, a péssima ventilação,
o odor fétido exalado pelos gases, óleos, vapores das máquinas e materiais
industriais, a impossibilidade de uma boa alimentação, as longas horas de
trabalho ininterrupto, tudo favorece a propagação de moléstias perigosas na
fábrica, ameaçando dizimar esta geração de pequenos proletários. (RAGO,
1997, p. 138)
Aqui é interessante atentarmos para a análise de Lília Lobo (1997) sobre as
políticas e o papel de tutela do Estado e da iniciativa privada no tocante à
assistência aos necessitados no início do século XX.
[...] Trata-se de estratégias de manutenção do domínio sobre a pobreza e a
concomitante reconciliação entre pobres e ricos. Do momento em que o
mundo burguês problematizou a pobreza, criando a responsabilidade do
Estado pelos problemas sociais, a questão será manter o pobre sob a tutela
do rico, deixá-lo desassistido (como até hoje acontece no Brasil) e assim
docilizá-lo através de gratidão para a obediência, diminuir-lhe a potência de
conquista não de um dom, mas de um direito. [...]. (LOBO, 1997, p. 27-28)
Na passagem para o século XX, ao contrário dos períodos anteriores, a
juventude passa a ser entendida como operária. Aqui, a educação vai assumindo um
papel determinante. Educar para o trabalho se constituía uma importante noção que
se consolidava com o tempo do trabalho industrial. Nesse contexto, segundo Rago
25
Entendemos por condições de trabalho, o ambiente físico (temperatura, pressão, barulho, etc.);
ambiente químico (produtos manipulados, vapores e gases tóxicos, poeiras, fumaças etc.) e o
biológico (vírus, bactérias, parasitas, fungos). Sobre essa discussão ver Laurell & Noriega (1989).
26
Por saúde, entendemos não apenas o resultado de fatores biológicos, mas relacionada a fatores
sociais, econômicos e ambientais, resultantes do desemprego, subemprego e do trabalho precário,
conforme mencionamos no Capítulo 1. A influência desses fatores no “desenvolvimento” e no
“crescimento” de qualquer jovem, especificamente, os pertencentes às camadas excluídas e
marginalizadas da sociedade, é determinante para compreender que, no campo de luta entre a saúde
e a doença, essa batalha é mais complexa. Pensar a saúde como condicionante de vários fatores que
se interligam frente a essa realidade, é percebê-la, certamente, como algo a ser conquistado a cada
momento. Nosso entendimento do conceito de saúde e de doença parte da análise de George
Canguilhem (Apud COSTA, 2001) a mesma não pode ser reduzida a um mero equilíbrio ou
capacidade adaptativa, mas entendida como a possibilidade de instaurar novas normas diante das
situações adversas, implicando desobedecer, produzir ou acompanhar uma transformação. Ainda,
66
(1997, p. 120), o que se reafirmava, por outro lado, era a legimitação de um discurso
cujo interesse “[...] pela educação dos operários desde a infância reflete a intenção
disciplinadora de formar ‘cidadãos’ adaptados que internalizassem a ética puritana
do trabalho comportando-se de modo a não ameaçar a ordem social. [...]”.
Constatamos, ainda, a criação dos primeiros cursos profissionais por meio
das escolas federais de aprendizes artífices
27
subordinados ao Ministério da
Agricultura, Indústria e Comércio, através do Decreto n.º 7.566, de 23 de setembro
de 1909, com o então presidente Nilo Peçanha. As referidas escolas objetivavam a
formação de operários e contramestres, mediante ensino prático e conhecimentos
técnicos necessários aos jovens que pretendessem aprender um ofício.
Na esteira das legislações do governo, pactuada por uma elite rural e urbana,
em 1927, surge o Código de Menores Mello Mattos, refletindo como a sociedade
entendia a relação Estado/menores. De acordo com o Código, o Estado passou a
intervir de forma mais efetiva na organização das famílias. É uma forma de intervir,
punindo as famílias na medida que os poderes públicos deveriam investigar se os
pais supriam ou não as necessidades de seus filhos, e se esses estavam sendo
“controlados”, para que não incomodassem a ordem social. Nessa “pedagogia da
punição”, caso os pais não cumprissem suas obrigações junto à família, poderia ser
retirada a autoridade paterna, favorecendo, portanto, à emergência de um Estado
protetor.
Ainda sobre o referido código, com a idéia de prevenir a criminalidade e a
delinqüência de crianças e jovens, do ponto de vista jurídico, ele proporcionou um
novo tratamento aos sujeitos, com menos de dezoito anos, na medida que,
mapeados e “catalogados” os pobres, surgiu uma preocupação com a infância e a
juventude que, num futuro próximo, poderiam compor as “classes perigosas”. As
crianças e os jovens “em perigo” deveriam ter suas virtualidades sob controle
permanente (COIMBRA & NASCIMENTO, 2002).
Na década de 1930, em nome do “propalado” desenvolvimento nacional, o
Brasil começava lentamente a dividir um solo eminentemente agroexportador, em
decorrência de uma sensível melhora no seu processo de industrialização. A idéia
segundo o autor, a doença é aqui entendida como determinada e condicionada pelo confronto do
corpo frente às “infidelidades do meio”.
27
Tais escolas após a Lei Orgânica de 1943 serão transformadas em escolas industriais a partir de
parâmetros previstos pela legislação e quase todas passaram a dar cursos técnicos. Sobre essa
discussão, ver CUNHA (1977).
67
era permitir o preparo do cidadão para melhor correspondê-lo aos interesses da vida
social democratizada, em que o caminho para a cidadania passaria pela sua
inserção no mundo do trabalho, das fábricas e das oficinas, refletindo, por seu turno,
as “contradições” postas pelos interesses do capital.
O Estado que irá se forjar para dar conta desse paradigma, agora urbano-
industrial, é criado no governo de Getúlio Vargas (1930-1945) que, por suas
características centralizadora e autoritária, irá impulsionar o desenvolvimento
econômico por meio de uma intervenção crescente de seu governo (ROMANELLI,
2001). A respeito desse assunto, qual seja, a formulação das políticas públicas para
a qualificação dos trabalhadores, alguns autores trazem, como pano de fundo, um
modelo de cidadania em que o indivíduo termina por ser subsumido a uma
corporação profissional. O vínculo do trabalhador ao emprego formal representava o
acesso a determinados direitos, produzindo, certamente, uma prática dual em suas
ações: para os pobres, a assistência
28
; para os trabalhadores, inseridos em alguma
atividade produtiva, uma certa produção de “cidadania”. Destacamos aqui o que
Wanderley Guilherme dos Santos (1994, p. 68-69) denominou de “cidadania
regulada”, cujas raízes encontram-se, não em um código de valores políticos:
[...] mas em um sistema de estratificação ocupacional, e que, ademais, tal
sistema de estratificação ocupacional é definido por norma legal [...] O
instrumento jurídico comprovante do contrato entre o Estado e a cidadania
regulada é a carteira profissional que se torna, em realidade, mais do que
uma evidência trabalhista, uma certidão de nascimento cívico.
Portanto, a carteira de trabalho exercia o importante papel de um atestado de
“moralidade” para os trabalhadores. Tentando discutir as diferentes maneiras através
das quais o Estado tradicionalmente assegura a sua hegemonia, Sérgio Pinheiro
(1991, p. 20) apresenta a tese de que não é por acaso que:
[...] a cidadania no interior das classes populares é ainda hoje percebida
com significado aproximado à repressão, o que não constitui traço original
nas sociedades contemporâneas, mas que no Brasil atinge uma enorme
intensidade, porque há grupos que não são desprovidos de poder, mas de
significação, como possuidores de uma identidade coletiva conhecida:
28
Sobre essa questão, Guattari (Apud GUATTARI & ROLNIK, 2000, p. 148) afirma que “O Estado
assistencial começa pela organização de uma segregação que empurra, para fora dos circuitos
econômicos, uma parte considerável da população. E num segundo momento ele vem socorrer, vem
dar assistência a essa população, mas com a condição de ela passar por esse sistema de controle
[...]” (Apud GUATTARI & ROLNIK, 2000, p. 148).
68
trabalhadores, pobres sem atividades fixas, miseráveis, indigentes,
mulheres, velhos, crianças, negros, homossexuais, loucos, criminosos.
Na década de 1940, com as Leis Orgânicas de Ensino – Reforma Gustavo
Capanema (1942-1946), em específico sobre a Lei Orgânica do Ensino Industrial,
forjaram-se as bases da formação técnico-profissional para a indústria e o comércio,
através de normas institucionais delegadas pelo Estado e em parceria com a
iniciativa privada. Procurou-se formatar o ensino profissionalizante, com inúmeros
decretos-lei que normatizaram o ensino industrial (1942), o ensino comercial (1943),
o ensino agrícola (1946), com a criação, também, do SENAI (1942) e do SENAC
(1946). O governo começava a engajar as indústrias e o comércio no processo
educacional, acreditando-se que a formação profissional seria a mola propulsora
para colocar o Brasil nas economias ditas “avançadas” (CUNHA, 1977).
Tal formação foi sendo organizada no interior do próprio aparelho produtivo,
com destaque para as fábricas, brotando daí organizações que, refletindo a
tendência dominante, assumiram a forma de escolas do tipo especial, as escolas
profissionalizantes, como um sistema
29
paralelo e independente da escola
propriamente dita. A formação dos que necessitavam trabalhar, produzir os meios de
existência, se dava no próprio processo de trabalho, ao passo que a formação dos
que não necessitavam produzir os meios de vida, se dava fora do trabalho, em um
espaço e tempo próprios, definidos como escola. Os primeiros se educavam fora da
escola; os segundos, nela (SAVIANI, 1994).
Apresentando uma crítica frente à política educacional vigente no chamado
Estado Novo, Freitag (1986) alerta que tal política não se limita apenas à legislação
e a sua implantação. “[...] Essa política visa acima de tudo, transformar o sistema
educacional em um instrumento mais eficaz de manipulação das classes
subalternizadas. Outrora totalmente excluídas do acesso ao sistema educacional,
agora se lhes abre generosamente uma chance” (FREITAG, 1986, p. 52).
29
A noção de sistema aqui mencionada corresponde com base em Luiz Antonio Cunha (1977, p. 52),
a um “[...] conjunto de estabelecimentos que ministram ensino de um determinado tipo, seguindo uma
mesma legislação que lhe dá os objetivos e os traços fundamentais da organização dos recursos
educacionais para atingi-los”. Por outro lado, a emergência das escolas profissionais de
aprendizagem e de aperfeiçoamento passou a apresentar duas vertentes: a das escolas profissionais
para operários e a das escolas de engenharia. Isto ocorreu com o SENAI, o SENAC, que instalou
cursos direcionados para os operários, mas que passou a se constituir, também, de escolas técnicas.
69
Frigotto (1984), em consonância com a análise posta por Freitag (1986),
afirma que, diante dessas políticas de formação profissional, o que percebemos é a
presença cada vez maior de jovens pobres no ensino profissionalizante. Na outra
ponta, o que observamos é a presença cada vez mais marcante de jovens
afortunados nas universidades. Aqui os autores reafirmam a existência de um
sistema educacional dual, já sinalizado na gênese da educação republicana como
mencionado anteriormente.
Em sua maioria, tais cursos, mormente de curta e média duração e
destinados às camadas pauperizadas da sociedade, reforçavam a dicotomia entre a
formação intelectual do trabalhador e das demais classes sociais, conforme assinala
Kuenzer (2002). A educação vinculada ao trabalho se estruturou como um sistema
diferenciado do sistema regular de ensino, reproduzindo a cisão entre trabalho
intelectual e manual, criando-se, assim, um sistema educacional no Estado Novo
que iria reproduzir, em sua dualidade, a dicotomia da estrutura de “classes” em
consolidação.
Nessa divisão social do trabalho, prepara-se apenas o indivíduo para o
trabalho, fazendo com que ele aprenda o necessário e suficiente para lidar com seus
instrumentos de trabalho, ao disciplinar e treinar um corpo juvenil da classe
trabalhadora para que possa desempenhar, certamente, suas atividades laborativas.
Na década de 1970, período da ditadura militar em nosso país (1964-1984),
ocorre a reforma do ensino de 1º e 2º graus – Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDBEN), n.º 5.692 – de 1971, que pretendia “corrigir” as inadequações do
sistema de ensino médio da LDB, de 1961, Lei n.º 4.024
30
. O ensino
profissionalizante estava sendo utilizado pelos pobres como um meio de inserção no
curso superior, gerando uma corrida geral para as universidades, produzindo, assim,
uma pressão sobre as mesmas. Tal reforma, ao criar a profissionalização
compulsória do ensino médio, teria que funcionar como um filtro eficaz que
desviasse potenciais pretendentes ao ensino superior (FREITAG, 1986; CUNHA,
1977).
30
Do ponto de vista da estrutura e da organização do ensino, o que temos, a grosso modo, é “[...] o
colegial, de três anos, divididos horizontalmente, por sua vez, nos ramos secundário, normal e técnico
sendo este, por seu turno, subdividido em industrial, agrícola e comercial” (SAVIANI, 2004, p. 20).
Mesmo que o ensino secundário apenas desse acesso ao ensino superior, a nossa primeira LDB
apresentava um caráter flexível, na medida que “[...] tornou possível que, concluído qualquer ramo do
ensino médio, o aluno tivesse acesso, mediante vestibular, a qualquer carreira do ensino superior”
(Ibidem, p. 21).
70
Em 1979, temos a emergência do dispositivo da Doutrina de Proteção ao
Menor em Situação Irregular, através do Código de Menores, Lei n.º 6.697, uma
reforma do Código de 1927, que, entre alguns aspectos, define a criança e o jovem
pobre como em situação irregular. Como afirma Estela Scheinvar (2002, p. 103), o
argumento para acionar o Código: “[...] éTz rgu]7veianlg
71
Abramo (1997) reforça essa perspectiva de análise, ao afirmar que a maior
parte dos projetos destinava-se a prestar atendimento para adolescentes em
situação de “desvantagem social” ou de “risco”: Os submetidos à exploração sexual,
ou os envolvidos direta ou indiretamente com o tráfico de drogas ou em atos de
delinqüência. A autora, também, aponta para as fragilidades desses projetos, e
alerta que, numa primeira visão panorâmica, o que se busca “[...] explícita ou
implicitamente, é uma contenção do risco real ou potencial desses garotos, pelo seu
‘afastamento das ruas’ ou pela ocupação de ‘suas mãos ociosas’” (ABRAMO, 1997,
p. 26).
A criação e a implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente
31
(ECA), em 1990, e as transformações ocorridas na gestão da produção e nas
relações de trabalho e de emprego passaram a repensar a superação da educação
para o trabalho e pelo trabalho, como forma de “socializar” jovens pobres para o
mercado de trabalho formal. Entretanto, o desafio agora residiria na conjugação de
uma formação unitária (educação escolar básica e formação técnico-profissional).
Mesmo que o ECA instaure um novo horizonte em relação às formas de entender e
de agir sobre a infância e a juventude, ao mencionar sujeitos em situação de risco
pessoal e social, o que observamos são políticas de assistência que dão indícios de
reprodução de uma linguagem instrumentalista em que se reforçaria o dispositivo de
periculosidade.
Se, no século XIX, havia práticas de contenção pelo Exército afirmando que a
criança e jovem deveriam ser considerados, também, por suas virtualidades e não
apenas por seus atos, o que percebemos ao longo do nosso trabalho são ações
que, ainda, reafirmam tal paradigma, ao apontar crianças e jovens pobres como
risco para a ordem societária. Assim, diante das altas taxas de desemprego, do
prolongamento do tempo da escola, da fragilidade nos vínculos sociais, de uma crise
ético-política engendrada por uma nova ordem fundada no culto ao consumismo e
ao indivíduo isolado, porém livre, como produzir modos de dialogar com uma
juventude, em sua multiplicidade, mesmo para uma parte percebida como
31
Da Lei n.º 8.069, de 13 de Julho de 1990, o ECA e no que diz respeito à história social da infância e
da juventude, a referida lei ao substituir os Códigos de Menores (1927-1990), passa a marcar uma
diferença pois não contempla apenas a criança e o jovem em “situação de risco”, “abandonado”, etc.,
presente no discurso dos antigos Códigos de Menores. O Estatuto trata dos direitos de todas as
crianças e jovens brasileiros ao considerá-los “sujeitos de direitos”. Ao mesmo tempo, essa mudança
de paradigma regulamenta e chama a atenção para a responsabilidade do Estado, da sociedade, dos
72
virtualmente perigosa à sociedade? Considerados, os jovens, um problema social,
como podem ser percebidos como atores que produzem acontecimentos?
Considerando essas questões, adentrar a prática da formação profissional
oferecida pelo PRCC
32
é, no mínimo, lançar-se num campo de muitas indagações.
Entendemos que compreender o universo juvenil não é percebê-lo como algo já
dado, a partir de uma suposta natureza ou essência. Pelo contrário, o que se
procura é percebê-los como vozes ativas capazes de redefinir e colocar em
movimento sua própria história. Neste sentido e capturados por práticas
profissionalizantes, pensar nos jovens que passam parte do seu dia num projeto
desenvolvido pelo Exército com cursos que oscilam entre a produção de vassouras à
função de eletricista predial, nos lança a levantar muitas questões. Será que as
exigências pedagógicas prevalecem sobre o aspecto produtivo, conforme diz o Art.
68
33
do ECA? Há uma capacitação adequada ao mercado de trabalho, respeitando a
condição peculiar de desenvolvimento, segundo Art. 69
34
do ECA? Que movimentos
de ruptura os jovens podem estar produzindo? O que escapa a uma subjetividade
normalizada? O que pode ser potencializado diante de uma formação profissional?
Sem perder de vista esses diversos aspectos aqui pontuados, é possível
afirmarmos que, ainda, a questão da criança e do jovem pobre continua na ordem do
dia. Hoje, como em épocas passadas, clama-se por mais instituições devotadas a
um tipo de concepção de trabalho e de jovem pobre. Talvez tenhamos apenas
pontuado a emergência de diferentes ações institucionais (eufemismo destinado a
designar diferentes modos de intervenção). Esses diferentes fatos, antigos e novos,
estabelecimentos de atendimentos e das famílias para com estes “sujeitos em processo de
desenvolvimento” (RIZZINI, 2000).
32
De uma formal geral e nos dias de hoje, algumas entidades do terceiro setor ao se proporem
interventoras, têm estabelecido relações ambíguas com o “antigo” associativismo advindo dos
movimentos populares (na maioria urbanos) dos anos 1970 e 1980. Maria da Glória Gohn (2001) nos
alerta de que tais movimentos, atualmente e na maioria das vezes, são pouco ou nada politizados,
integrando-se cada vez mais às políticas neoliberais. Corroborando com o pensamento de Gohn (op.
cit.), Montaño (2003) afirma que diante da existência de um Estado Mínimo conforme proposto pelas
políticas neoliberais, o que se vê na sociedade civil é a parceria entre seus diversos setores por
supostos “interesses comuns” .
33
Menciona o Art. 68 – O programa social que tenha por base o trabalho educativo, sob
responsabilidade de entidade governamental ou não governamental sem fins lucrativos, deverá
assegurar ao adolescente que dele participe condições de capacitação para o exercício de atividade
regular remunerada. No seu § 1º entende por trabalho educativo a atividade laboral em que as
exigências pedagógicas relativas ao desenvolvimento pessoal e social do educando prevalecem
sobre o aspecto produtivo.
34
No Art. 69 – O adolescente tem direito à profissionalização e à proteção no trabalho. Dos Artigos 60
ao 69, são estabelecidos os regulamentos do trabalho enquanto aprendizagem, os deveres dos
empregadores e as normatizações de como devem ser executadas a inserção do jovem no mercado
de trabalho.
73
nos apontam para uma produção de jovens que foram e ainda são distingüidos e
identificados como um problema social.
Enfim, nosso trabalho de pesquisa não pretende ser produtor de uma suposta
verdade, pois se insere na dimensão do inacabamento. Assim como Deleuze (1997),
acreditamos que escrever é sempre um devir, como afirmamos no Capítulo 1. Afinal,
“[...] quem escreve termina por gerar um fluxo que não se completa naquela que lê,
mas, ao contrário disso, está sempre à espera de uma nova conexão, de um novo
olhar que lhe permita continuar em movimento” (SCHÖPKE, 2004, p. 21).
Além da tentativa de respondermos às questões suscitadas neste estudo,
pretendemos apresentar no Capítulo 4, algumas ferramentas metodológicas que
serviram para pôr em análise, também, o lugar que ocupamos como pesquisadores.
Capítulo 4
C
C
A
A
M
75
que a verdade penso, logo existo era tão sólida e tão exata que sequer as mais
extravagantes suposições dos céticos conseguiriam abalá-la [...] não deveria ter
escrúpulo em aceitá-la como sendo o primeiro princípio da filosofia [...]”
(DESCARTES, 1975, p. 44). Reconhecendo-se no direito de compreender a verdade
do mundo ao iluminá-lo com a própria racionalidade, o sujeito moderno, produzido
por uma forma-indivíduo, paradoxalmente, faz da ciência ferramenta de expressiva
cisão homem x experiência. Ao negar as multiplicidades e as formas fragmentárias
com que a subjetividade é produzida no social (DELEUZE & GUATARRI, 1976), “[...]
a equivalência sujeito-indivíduo cria uma fantasia unitária e centralizadora que reduz
o conhecimento do mundo àquilo que se revela à consciência de seu pretenso
‘senhor’” (PAULON, 2005, p. 21).
Assim, livre de questionamentos políticos, sociais, etc. esse mesmo homem
passaria a fundar a certeza de uma suposta neutralidade científica, produzindo,
certamente, um sentido de ação do pesquisador em relação ao objeto pesquisado.
Nesse discurso universalizante e forjado pela modernidade, é como se o tempo
fosse incorporado a uma entidade cronológica, a uma história contínua, que se
cristalizaria num presente vivido. Como bem afirma Daniel Lins (2001, p. 106), o que
é verdade “[...] permanece verdade, assim reza o princípio de identidade, princípio
fundamental da coerência e do pensamento, axioma primordial da metafísica,
filosofia que se define como busca de uma verdade permanente”.
Nessa esteira de um sujeito metafísico, parece-nos que a regularidade do
pensar atrela-se à uma razão em que não mais é possível afirmar uma nova
experiência de vida. Porém, refutamos esse olhar e reafirmamos outra concepção de
experiência. Experiência que nos permite perceber que outras formas de leitura de
realidade, de concepções de homem e de mundo, podem ser construídas no
presente, um presente entendido em permanente dilatação. Experimentar é da
ordem do devir-pensamento, pois o pensar “[...] é sempre experimentar, não
interpretar, mas experimentar, e a experimentação é sempre o atual, o nascente, o
novo, o que está em vias de se fazer” (DELEUZE, 1992, p. 132).
Como diz Deleuze (1992) valendo-se de Foucault, não buscamos no presente
trabalho o eterno, ainda que fosse a eternidade do tempo, mas a análise sobre a
emergência de uma prática de formação profissional que se atualiza na vida de parte
de uma juventude pobre.
76
Nessa perspectiva, acreditamos que, ao romper com o tempo cronológico,
possamos colocar as nossas vidas numa não-montagem de acontecimentos do
passado, selecionados e organizados. Assim como Walter Benjamin (1994),
rejeitamos a repetição do passado pela criação do futuro, a partir do presente.
Talvez, sejamos como um ponto em movimento. Algo que escapa, que guarda em si
o poder da criação, que respira e produz potência, que se refaz a todo momento.
Acontecimentos esses que atravessam o presente trabalho e que são evidenciados
por fragmentos do nosso diário de campo, ao focarmos os jovens numa experiência
profissionalizante desenvolvida pelo PRCC na EsCom.
Hoje começo a redigir meu diário de campo sobre as minhas primeiras
entradas e trajetórias que irão compor o meu perder-me e reencontrar-me
constantes nesse trabalho de doutoramento. Quero poder me multiplicar na
diversidade da vida, para que eu possa ver o mundo sob diferentes ângulos,
como tentou fazê-lo, numa outra perspectiva, o poeta Fernando Pessoa.
(DIÁRIO DE CAMPO, 10/09/2003)
Entendemos que esse poder da criação se faz presente, em especial, no
olhar crítico da juventude que contesta e tenta subverter as “coisas” do mundo, com
uma linguagem possuidora de uma visão utópica e transformadora da história.
Uma concepção de homem que representa outras formas de construção de
conhecimento ao colocar em xeque a noção de neutralidade na produção científica
tão presente nas ciências da objetividade, e acolhidos pelas ciências humanas e
sociais. Questionando o estatuto de neutralidade nas ciências, Hilton Japiassu
(1975) afirma que, se examinarmos em sua atividade real, em suas condições
concretas de trabalho, vemos que a “razão” científica não é imutável. Ela muda. É
histórica. Ele conclui que:
[...] não há ciência ‘pura’, ‘autônoma’ e neutra’, como se fosse possível
gozar do privilégio de não se sabe que ‘imaculada concepção’.
Espontaneamente, somos levados a crer que o cientista é um indivíduo cujo
saber é inteiramente racional e objetivo, isento não somente das
perturbações da subjetividade pessoal, mas também das influências sociais.
(JAPIASSU, 1975, p. 9)
Pretendemos não discutir os aspectos quali-quanti na produção de
conhecimento. Entendemos a pesquisa como produção histórica e social. Sendo
histórica, há o envolvimento de diferentes saberes, olhares, opiniões, crenças. Há
uma produção de conhecimento que se processa no movimento da vida, no
77
encontro da vida que se produz em seu imediato, pela surpresa, pelos afetos, na
reinvenção de nós mesmos (Paulo Freire).
Em seguida, passei na sala de aula, então, para conhecer os jovens. Todos
estavam me aguardando. Sabiam da presença de uma figura que estava ali
para conhecê-los. Havia na sala algo em torno de trinta e cinco jovens:
negros e mestiços. Me apresento, confesso, com um certo nervosismo. Sou
tímido e isso me prejudica bastante. Tenho consciência desse meu traço.
Para vencer cada momento de timidez, só mesmo enfrentando-a. Às vezes
tenho a impressão de que pensamento e linguagem não estabelecem uma
boa conexão com as minhas palavras. Bem, de qualquer forma, falei um
pouco do meu trabalho. Claro, numa linguagem mais próxima possível para
o entendimento de todos. Usei de poucos exemplos para ilustrar o que
venho desenvolvendo. Acredito que todos entenderam, até porque fiz
algumas perguntas para os jovens. As respostas foram o alento para
acreditar que eles de fato entendiam o que eu falava. O capitão, o tenente e
o educador me acompanharam até onde estavam os jovens. Inclusive,
ambos, capitão e tenente afirmaram diante de todos que a unidade da
Escola de Comunicações estaria à minha disposição para qualquer
atividade que eu pretendesse desenvolver, caso eu assim o desejasse. Mais
uma vez agradeci pela abertura de um possível campo de trabalho para o
desenvolvimento da minha pesquisa. (DIÁRIO DE CAMPO, 24/03/2004)
Para as atividades desta pesquisa não assumimos uma postura de
afastamento, de isolamento, mas de aproximação a uma instituição de natureza
profissionalizante. Para isso, recorremos a alguns conceitos-ferramentas
35
da
Análise Institucional: como os de implicação – a recusa da neutralidade do
pesquisador; da pesquisa-intervenção – a partir do dispositivo-encontro; e do diário
de campo – revelador das nossas intensas travessias, que iremos analisar ao longo
deste capítulo.
Complementar aos meus futuros registros em diário de campo, penso na
articulação de mais um instrumento metodológico – a pesquisa-intervenção
–, ambos sensivelmente sugeridos pela profa. Cecília Coimbra, e acolhidos
nas minhas “descontínuas” e constantes entradas no campo empírico pois,
se não há um caminho real para aquiescer à “verdade”, todos devem ser
tentados e sentidos. (DIÁRIO DE CAMPO, 10/09/2003)
Em linhas gerais, a Análise Institucional busca, ao opor-se à lógica identitária
das “ciências da objetividade”, desarticular práticas e discursos instituídos. Segundo
Coimbra (1995, p. 66), tal análise “[...] vai nos falar do intelectual implicado [...]
35
Em relação aos conceitos, Deleuze (1990a) propõe que eles sejam como uma caixa de
ferramentas, que sirvam, que funcionem. Dentro desta perspectiva, o nosso estudo não se pretende
produtor de pretensas verdades, mas pensar outras formas de leitura de realidade a partir de
conceitos que nos auxiliem a questionar e a dessacralizar determinadas práticas sociais.
78
Portanto, analisa-se [sic] [...] os diferentes lugares que se ocupa no cotidiano e em
outros locais da vida profissional; em suma, na história [...]”.
Nessas trajetórias de intenso desejo nômade, passamos a perceber que os
conceitos são como intensidades (DELEUZE, 1992), algo que se move diante do
que nos parece imóvel. Nessa busca por outros saberes e sabores, Michel
Foucault
36
, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Walter Benjamin representam outras
possibilidades de leitura diante de um mundo produzido pelo homem, onde as
“verdades” desejam ser eternas e uma suposta “linha da história” tenha a pretensão
de infinita. Como se pudéssemos aprisionar outras dimensões da vida, do corpo,
como a emoção, a intuição, a sensibilidade, a intensidade dos afetos
37
, o desejo.
Venho há dias pensando comigo mesmo como poderia ser desenvolvido um
trabalho junto com os jovens. Nesses momentos, a angústia tem sido a
companheira das minhas preocupações. Deparar-me com um projeto novo
não é tarefa fácil. Esse enfrentamento com o novo produz uma angústia de
não saber, uma ansiedade, um desamparo, um desassossego. Será que
conseguirei a aprovação dos coordenadores para a realização do meu
trabalho de pesquisa? [...] A definição do local é importante para o
desenvolvimento do trabalho, mas até chegar lá, acredito que seja mais
complicado. Há uma série de fatores que convergem a favor e contra diante
desse perfil de trabalho. Não sou apenas eu que observo, sinto, percebo.
Mas uma convergência de sujeitos com sensações diferentes, outras
percepções, outros movimentos de vida, outros saberes, outros
conhecimentos que, sendo o resultado da confrontação, da tensão, pode
me fazer perceber que estou em algum lugar desse movimento. (DIÁRIO
DE CAMPO, 05/05/2004)
Como a nossa pesquisa não transita em torno da validação estatística, do
rigor e do controle de variáveis, é necessário situar um certo diálogo estabelecido
entre Foucault e Deleuze (1990) sobre o lugar do intelectual na produção da ciência,
onde Foucault (1990, p. 71) considera que o papel do intelectual não é mais o de
“[...] se colocar ‘um pouco na frente ou um pouco de lado’, para dizer a muda
verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele
é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da ‘verdade’, da
‘consciência’, do discurso”. Como já mencionado, Foucault (1974) assinala que a
36
A profa. Lília Lobo representou, durante um semestre de disciplina sobre Michel Foucault, no
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFF, uma das interlocutoras sobre alguns conceitos-
ferramentas pensados por esse autor, e que, no presente trabalho, se encontram em intensos
diálogos.
37
O termo “afeto” neste trabalho refere-se ao sentido posto por Espinosa, ou seja, como sinônimo de
“paixão”. Todo corpo, todo ser existente tem o poder de afetar e de ser afetado por outros corpos ou
seres (PELBART, 2003).
79
verdade
38
é produzida, historicamente, de diferentes maneiras. Em relação à
ciência, Roberto Machado (1981, p. 20) afirma que ela é “[...] essencialmente
discurso, um conjunto de proposições articuladas sistematicamente. Mas além disso,
é um tipo específico de discurso: é um discurso que tem a pretensão de verdade”.
Sobre a noção de instituição, nos ancoramos em René Lourau (1993) ao
afirmar que a mesma não é uma coisa observável, mas uma dinâmica construindo-
se na (e em) história, ou tempo, pois “[...] o tempo, o social-histórico, é sempre
primordial, pois tomamos instituição como dinamismo, movimento; jamais como
imobilidade. Até instituições como Igreja e Exército estão sempre em movimento,
mesmo que não tenhamos essa impressão” (LOURAU, 1993, p. 11). É oportuno
destacar aqui que entendemos instituição como um devir permanente, produtor de
significados e sentidos históricos.
Ao produzir ciência, concebemos o pesquisador não como um sujeito que
produz um saber neutro, à margem de questionamentos sociais e políticos sobre os
fins de sua pesquisa. Fazer pesquisa significa subverter os lugares tradicionalmente
ocupados pelo pesquisador e pelo objeto a ser pesquisado (COIMBRA & NEVES,
2002). A noção de implicação reafirma e recusa a neutralidade do pesquisador, na
medida que há sempre uma implicação política, social e histórica que nos permita
questionar o lugar que ocupamos na divisão social do trabalho nos modos de
produção capitalista. Sobre o papel do pesquisador, do intelectual, da sua
implicação na produção de conhecimento, é expressiva uma afirmação de Félix
Guattari (2003, p. 24): “Chernobyl e a Aids nos revelaram brutalmente os limites dos
poderes técnico-científicos da humanidade e as ‘marchas à ré’ que a ‘natureza’ nos
pode reservar [...]”.
Tentávamos a todo tempo não “[...] fazer um isolamento entre o ato de
pesquisar e o momento em que a pesquisa acontece na construção do
conhecimento.” pois, quando falamos “[...] em implicação com uma pesquisa, nos
referimos ao conjunto de condições da pesquisa” (LOURAU, 1993, p. 16). Um
conjunto de condições, dentre algumas, aquela que nos solicitou a produção de uma
38
Segundo sua hipótese, há nas práticas sociais a produção de duas histórias da verdade. Uma
produzida pela ciência, como o autor bem afirma [...] a história da verdade tal como se faz na ou a
partir da história das ciências (FOUCAULT, 1974, p. 8). Por outro lado, há em nossas sociedades
vários lugares onde a verdade se produz, se forma, onde certas formas de subjetividades são
inventadas, em específico, de um corpo juvenil sendo produzido por uma prática de formação
profissional.
80
escrita “fora do texto”, através do diário de campo, significando, ao enfocar a nossa
temporalidade no ato de pesquisar, de nos envolvermos naquilo que pode ser
sempre desfeito, como aponta Deleuze (1992). Não se trata de um material empírico
a ser trabalhado em torno de um instrumental lógico-científico.
O diário nos permite o conhecimento da vivência cotidiana de campo (não o
“como fazer” das normas, mas o “como foi feito” da prática). Tal
conhecimento possibilita compreender melhor as condições de produção da
vida intelectual e evita a construção daquilo que chamarei “lado mágico” ou
“ilusório” da pesquisa (fantasias, em torno da CIENTIFICIDADE, geradas
pela “asséptica” leitura dos “resultados finais”). (LOURAU, 1993, p. 77)
Enquanto analisador das nossas implicações, o diário de campo nos permitiu
reconstruir, através das memórias compactuadas com as lembranças do outro, a
história das nossas trajetórias, dos lugares diversos percorridos, dos nossos
encontros com os jovens, reafirmando, certamente, as relações de implicação
produzidas no momento da pesquisa. Neste sentido, a análise não consiste apenas
em analisar o outro, mas em analisar a si mesmo, a todo momento, inclusive, no
instante da própria intervenção (LOURAU, 1993).
Para se ter um pouco a dimensão do sentido de implicação, certo dia, para
além dos muros da Escola de Comunicações do Exército, por volta das 18h,
desço na Estação de Madureira. Para a minha surpresa, isso já na rua
Domingos Lopes onde passam algumas linhas de ônibus para Jacarepaguá,
encontrei, por acaso, um dos militares do projeto. Parecendo-me surpreso
também, disse-me que estava confirmado o nosso encontro para o dia 29,
na próxima quinta-feira. Comentei que havia estado no CML, e estava indo
para casa. De fato, eu não esperava encontrá-lo. Percebi que ele gostaria
de falar-me algo, mas não sabia exatamente o quê. A rua em que
estávamos não era o melhor lugar para conversarmos. Normalmente
hipertensa pelo grande fluxo de pessoas que por lá transitam, tive a
sensação de que deveria ‘segurar’ um pouco o meu desejo de chegar a
casa, e escutar ou não um ‘silêncio falante’ que tanto o denunciava, através
de seus olhos, de sua pele. (DIÁRIO DE CAMPO, 26/07/2004)
Assim, todas as percepções, as observações, sentimentos de medo, de
alegria, que experimentamos ao longo do processo da pesquisa, eram registrados
em nosso diário.
Talvez o diário (e outros dispositivos inventados ou a inventar) possa
auxiliar a produzir outro tipo de intelectual: não mais o orgânico (ou de
partido), de Gramsci; nem o engajado, de Sartre (que, muitas vezes, parece
se esquecer de analisar as implicações de seu “engajamento”); mas o
IMPLICADO (cujo projeto político inclui transformar a si e a seu lugar social,
81
a partir de estratégias de coletivização das experiências e análises).
(LOURAU, 1993, p. 85)
Nosso diário de campo, em fragmentos feito memória, nos permite analisar,
num certo sentido, tal lógica pensada por Walter Benjamin (1994) ao se referir às
noções de linguagem e de experiência. Ao recolhermos alguns fios do diário,
desejamos colocar em foco também em que medida nos implicamos no presente
estudo num determinado espaço institucional.
Nessa perspectiva e a partir do dispositivo-encontro, buscamos construir com
os jovens um modo de pesquisar, no PRCC, em que deixávamos de ser indivíduos,
para tentarmos estabelecer alguns fios das nossas histórias, com toda a carga que
nos atravessa de emoções, de desejos, de insegurança, etc. Aqui, a noção de
dispositivo corresponde a uma situação produzida num instante da pesquisa
objetivando produzir determinadas falas, atitudes, comportamentos, que no espaço
instituído são mediados por atitudes normatizadas. Conforme assinala Deleuze
(1990b, p. 156), “[...] implica líneas de fuerzas. [...] operan idas y venidas, desde el
ver al decir e inversamente, actuando como flechas que no cesan de penetrar las
cosas y las palabras [...]”.
[...] Vozes se cruzam afirmando a existência do dicionário. Um jovem se
levantou, foi até uma pequena estante ao fundo da sala e começou a
procurar a palavra. Aqui a dispersão começou. Alguns começaram a brincar,
tirar a atenção de outro colega, jogando papel etc. Diante da agitação, do
barulho, fiquei pensando comigo mesmo: e agora, o que devo fazer? usar
de uma possível ordem inútil, acreditando que a tenha? será que o tenente
vai ouvir e chegará em breve para impor a sua ordem instituída, fazendo
valer a sua autoridade? que códigos devo utilizar? da psicologia? Sei que
há vários, mas aqui não é o momento. Tenho, inclusive, dúvidas quanto à
sua aplicabilidade. Não quero ficar atrás das técnicas da ciência. Tudo é
novo para mim e para eles. (DIÁRIO DE CAMPO, 21/05/2004)
Produzia-se, a partir da reinvenção de cada encontro, uma mútua revelação
no olhar que, muitas vezes, expressava aceitação e resistência, cumplicidade e
desconfiança. Éramos, na dilatação dos olhares e no lampejo das palavras,
observados e observávamos. “[...] Não quero ser associado a um instrumento de
disciplina, de controle. Ao contrário, entendo o contato com os jovens como uma
multiplicidade de movimentos que pode fazer emergir um território existencial não
mais da ‘ordem indivíduo’, mas do coletivo” (DIÁRIO DE CAMPO, 21/05/2004).
82
Como numa relação onde o homem se faz fazendo o mundo, e se constitui como
sujeito se fazendo na linguagem, na coletividade (BENJAMIN, 1994).
Assim, as falas e os silêncios, às vezes “soltos no tempo”, nos chegavam de
forma direta e indireta. Pretendíamos, por meio do diário, romper com a lógica do
que se é perguntado e o que se pode responder. Sair do campo das certezas, das
entrevistas prontas, de questões previamente já respondidas a partir de suas
formulações. Ressaltamos que, nos encontros com os jovens, não utilizamos de
atividades previamente determinadas por nós, constituídas por modelos prévios.
Realizamos apenas uma oficina onde pretendíamos dialogar a partir da narrativa do
olhar sobre algumas fotografias de Sebastião Salgado, tendo como pano de fundo o
jovem no cotidiano da miséria, da guerra. Entendíamos que esse material poderia se
constituir em ferramenta para pensar. Sendo assim, optamos pela emergência de
cada encontro percebido como único e produtor de muitos sentidos. Se a tônica era
suscitar diálogos com os jovens, fazê-los falar por si, ousamos através do bricoleurs
refazer outros espaços num lugar instituído, militarizado. Como não há uma tradução
exata para o português, bricolage pode significar o aproveitamento de coisas
usadas, danificadas e adaptadas para outras funções. Portanto, trata-se “[...] sempre
de libertar a vida lá onde ela é prisioneira [...]” (DELEUZE & GUATTARI, 1992, p.
222).
Lembro-me que no primeiro encontro, já havia queixa de um educador sobre
comportamentos e atitudes apresentados por alguns jovens. Ou seja, é
como se o psicólogo tivesse o poder da cura. Lembro-me, mais uma vez, do
sentimento de desassossego que surge diante de cada enfrentamento novo
vivido por mim. Com formação em psicologia e diante da constituição de um
determinado tecido social onde cada sujeito corresponde a um lugar e, cada
lugar, um sujeito, deveria dar conta de possíveis “anormalidades”.
Acreditava que diante da certeza e do suposto conhecido, era preciso
produzir novos fatos. Para o educador, se algum jovem apresentasse um
comportamento “anormal”, deveria ser medicalizado para, em seguida,
tornado “obediente”, integrar-se às atividades. Pude perceber também que
essa leitura se fazia presente no texto do tenente. Sendo assim, foi a partir
dessas constatações que resolvi colocar um pouco “às claras” o que,
efetivamente, objetivava realizar neste espaço. (DIÁRIO DE CAMPO,
06/05/2004)
Sendo assim e a partir deste contexto, a pesquisa-intervenção representou
mais uma ferramenta de trabalho. Optávamos por esta ferramenta para que
pudéssemos nos tornar cada vez mais implicados com outras formas de leituras da
realidade e da vida. Era uma pesquisa sendo produzida com o corpo todo. Um corpo
que recusa o conformismo, já posto. Um corpo que deseja produzir outros
83
movimentos. Uma pesquisa-intervenção que implica o corpo implicado. Uma
intervenção que, como procedimento de aproximação com o campo, “[...] mostra-nos
que ambos – pesquisador e pesquisado, ou seja, sujeito e objeto do conhecimento –
se constituem no mesmo tempo, no mesmo processo” (BARROS, 1994, p. 308).
Com as nossas diferenças, íamos nos complementando e nos diferenciando,
na arena de múltiplas vozes, onde as escutas, as falas em silêncio, nos colocavam
em conflito com o que os jovens diziam, com o que nós dizíamos, na intimidade, na
cumplicidade. Assim como Deleuze pensa o devir, as linhas de fuga, acreditávamos
que poderíamos ressignificar sentidos postos em suas vidas e pelas práticas de
devmo ttodolcom g[(q6dos phasoar ssib341tiTdarmo8.10st)-7(o)1(s )]TJ-0.6751 Tc 0.773 Tw 21.ad[(1lisátificasignifica1.72diferi)2(do e tal naqst)-7(o)1(s 2]TJ-016 pr]TJ0.073 Tw -20.205 -0 Td[(s atrib(se aol naqsm o qu0 Tdicidade. icasignifiifersflito com o queatrib(se aoimidade, na)-4( 8. )TjEEMC T*5 -suele es))1(PRCC10spar, asumpliávamos2. )TjE pr]TJ173 Tw 21.ar seamação piz(que ta.ade, n308). )TjETEMC 2P <</MCID 1 >>BDC BT/TT0 1 Tf0 Tz 0 Tr 10.02198 0 04779345.08 796.820308). )TjETEMC 3P <</MCID 1 >>BDC BT0 Tz 0 Tr 10.02198 0 0467.125.08 796.820308).
84
jovem, embora não tenha afirmado enfaticamente seu suposto envolvimento
no tráfico, parece-me que a sua possível participação se dá de maneira
indireta, segundo mencionou, jocosamente, um outro jovem. “Professor,
esse moleque aqui tem um pai que é rico. Ele é dono de Antares”. Antares?
Perguntei. Em seguida, respondeu o jovem: “é uma comunidade que fica em
Santa Cruz”. Nesse momento, todos os colegas mergulharam no riso.
Pondo os dilemas e possíveis verdades à parte, relataram que é expressivo
o número de amigos ou conhecidos que estão envolvidos no tráfico de
drogas, tanto aqueles que fazem uso quanto os que efetivamente trabalham
para o mercado de vendas de drogas. Os números frios da matemática
contabilizam quarenta e quatro jovens envolvidos com o tráfico, conforme
suposto levantamento evidenciado por eles. Confronto entre facções do
mercado de tráfico de drogas é freqüente na minha comunidade, afirmou um
jovem, morador de Miguel Couto, Nova Iguaçu. (DIÁRIO DE CAMPO,
16/07/2004)
Nesse movimento de aproximação e de constante descoberta, falávamos,
como mencionamos anteriormente, suscitando diálogos a partir do conceito de
experiência de Walter Benjamin (1994). É esse aspecto coletivo que buscávamos no
nosso trabalho com os jovens construir o tempo todo.
Antes de reiniciarmos o acordo de trabalho, quis saber como tinha sido o
encontro passado para eles e como tinha sido para mim também.
Realmente, para mim foi surpresa pois percebi que eles queriam dizer algo
para além do encontro, mas que tinha a ver com o encontro. A sensação
que eu tive era como se todos quisessem falar ao mesmo tempo. E foi isso
que aconteceu. Pensei então em organizar as falas. Não por inscrição.
Nada disso. Tentei não interferir no movimento que estava sendo novo para
eles, e para mim também. Poder falar e ser escutado por eles mesmos e por
todos. Tentar captar o ritmo da percepção de todos que é o ritmo da vida,
isso sim, faz sentido. (DIÁRIO DE CAMPO, 28/05/2004)
Pretendíamos romper, no diálogo das palavras, com as “verdades” inscritas
sobre os jovens participantes do projeto.
Mesmo do lado de fora, não tinha prestado atenção que a professora estava
dentro da sala. Em seguida, ao sair da sala, ela vem em minha direção para
acrescentar algo mais do que o tenente já havia dito. Nesse momento,
encontrava-se, ao meu lado, um jovem que estava aguardando o tenente.
Sou tomado de súbito por ela que me chama ao lado para dizer-me que
eles não são fáceis. Reforçou seu texto com o exemplo do jovem que
estava próximo a nós, afirmando que ele já tinha “aprontado” algumas no
PRCC. Revelou, também, que ele vinha de uma família de sete irmãos, cuja
mãe não sabe quem são os pais. Seu texto é, ao mesmo tempo,
perturbador e cativo de uma essência. O tempo todo, no que eu pude
perceber em suas afirmações e na forma como ela olha e fala com os
jovens, procura apenas, através do discurso da moralidade, culpá-los,
juntamente com as suas famílias, pelas situações, pelos problemas, que
eles produzem no PRCC. Fico pensando aqui, o quanto de implicação o seu
discurso tem nas suas ações. Permanecendo no campo do confronto, da
negação, é como se ela não permitisse que a potência que cada jovem tem
85
fosse evidenciada, liberada, e, assim, ele pudesse ser sujeito de uma outra
vida, de uma outra história. (DIÁRIO DE CAMPO, 18/06/2004)
Nesse desejo pelas rupturas como laços
39
, reafirmávamos a existência de
uma outra temporalidade, na perspectiva benjaminiana, e de um devir deuleziano
que, em ambos, não é a história dos sujeitos portadores de uma virtualidade
perigosa.
Foi necessário esclarecer, desde logo, algumas questões junto à
86
processo infinito, de múltiplos olhares e dizeres, certamente, quando nos deparamos
com um projeto de formação profissional tão complexo e controvertido como descrito
e analisado no Capítulo 5.
incertezas, num espaço que produz um “modo-jovem-trabalhador”. Afirma a referida autora que esses
“[...] laços carregam, intrinsecamente soldados, prazer e risco, passado e futuro, realidade e ficção”.
Capítulo 5
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Quando estamos nos olhando,
dois mundos diferentes se refletem
na pupila dos nossos olhos.
(Mikhail Bakhtin)
5.1 INTENSIDADES E ACONTECIMENTOS
40
NO TRABALHO DE CAMPO
Na relação de tantos olhares que atravessam as nossas vidas, do
pesquisador com o objeto pesquisado, durante o levantamento de dados, alguns
contatos com organizações governamentais e não governamentais foram se
delineando e nos apontando, em 2003, apenas a existência de duas entidades que,
efetivamente, na elaboração de seus projetos, já contemplavam a Lei do Menor
Aprendiz
41
. No entanto, aguardavam, tão somente, o retorno do Ministério do
Trabalho quanto à viabilidade dos mesmos e às diretrizes colocadas pela referida
40
Acontecimento é utilizado neste trabalho no sentido enunciado por Foucault (1990, p. 28) como
surgido no acaso, inflexão de múltiplas forças que alteram os rumos já traçados, mapeados. “[...] É
preciso entender por acontecimento não uma decisão, um tratado, um reino, ou uma batalha, mas
uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado, um vocabulário retomado e voltado
contra seus utilizadores, uma dominação que se enfraquece, se distende, se envenena e uma outra
que faz sua entrada, mascarada. As forças que se encontram em jogo na história não obedecem nem
a uma destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta [...]”.
41
A Lei do Menor Aprendiz, no Art. 28 – Contrato de aprendizagem – parágrafo 4º, considera a
formação técnico-profissional como caracterizada por atividades teórica e prática, metodicamente
organizadas em tarefas de complexidade progressiva desenvolvidas no ambiente de trabalho. Por
seu turno, esta Lei, de n.º 10.097 de 19 de Dezembro de 2000, altera os dispositivos da Consolidação
das Leis do Trabalho (CLT) na questão da aprendizagem, reconhecendo em seu Art. 430, que a
formação profissional deverá ser realizada por entidades que objetivam a educação profissional e
assistência a adolescentes, desde que haja inexistência de cursos ou insuficiências de vagas por
parte do Sistema S de capacitação profissional, tradicionalmente SENAI e o SENAC. A lei refere que
estas entidades devem estar devidamente registradas nos Conselhos Municipais dos Direitos da
Criança e do Adolescente.
88
Lei. Sobre os estabelecimentos contatados, o primeiro foi a Secretaria Municipal de
Assistência Social (SMAS), através de uma psicóloga, conselheira municipal.
Pouco tempo depois, a psicóloga me recebeu e fomos para a sua mesa
repleta de papéis, canetas, borracha, e algumas outras coisas que não
davam para decifrar. Demonstrando-se disponível, perguntou-me no que ela
poderia me ajudar. Como já havíamos mantido contato antes e ao retomar
um pouco à trajetória do meu trabalho, quis saber se o conselho teria
informação do quantitativo de instituições no Rio de Janeiro que trabalham
com jovens pobres, numa perspectiva de formação profissionalizante. Caso
afirmativo, quantas já haviam implantando ou dado encaminhamento às
adequações colocadas pela Lei 10.097. Para a minha surpresa, havia
apenas duas instituições: Projeto Ânima e Associação Beneficente São
Martinho. Confesso que fiquei decepcionado pois o universo de projetos
sociais que lidam com população pobre, me parece ser expressivo na
cidade do Rio de Janeiro. Detalhe: a mais recente era o projeto Ânima,
localizado em São Cristóvão. Não dava para querer mais. O que se tinha
era algo muito pouco. O Ânima representava agora a única visita dentro do
perfil de entidades do terceiro setor que busco analisar [...]. (DIÁRIO DE
CAMPO, 11/09/2003)
Nessas trajetórias traçadas por encontros e desencontros, visitamos o projeto
social Ânima, segundo referência a nós passada pela SMAS, em outubro de 2003.
Diante das coordenadoras, colocamos um pouco do objetivo do nosso trabalho e,
em seguida, fizemos algumas perguntas sobre o perfil do jovem participante do
projeto; que cursos de formação profissional o projeto estaria proporcionando. São
jovens pobres da cidade do Rio de Janeiro e do Grande Rio, com idade a partir dos
15 anos. Cursos que buscam formar “mensageiros jurídicos”, alocados em alguns
fóruns e defensorias públicas, para distribuição de correspondências. Sobre a Lei do
Menor Aprendiz, nos informaram que ela não havia sido implantada, mas que havia
um encaminhamento do projeto para sua reformulação.
Perguntaram-me novamente se eu não queria almoçar, respondi que não,
agradecendo. Acredito que elas estavam querendo almoçar. Mas a
conversa foi tomando fôlego e as coordenadoras passaram a mostrar as
fotos dos eventos em que aparecem os jovens sendo “diplomados”, com a
presença de alguns juízes, no término do curso. Dezenas de fotografias me
cercaram. Não havia algo heterogêneo, que se destacasse do todo. É como
se a primeira foto fosse igual à última. Ou a última igual à primeira? Preciso
ficar menos crítico. O tom da conversa, claro, girava em torno das
explicações, sempre as mesmas, sobre as comemorações e alguns
encontros realizados pelo projeto. (DIÁRIO DE CAMPO, 13/10/2003)
89
Em janeiro de 2004, realizamos o primeiro contato com a FIA, em sua sede,
em Botafogo, conforme referido no Capítulo 1. Por questões inerentes aos
estabelecimentos, só foi possível agendar nossos encontros para março, isso sem
contar com idas e vindas para entrega da declaração, em que deveria constar a
nossa vinculação à UFF e o objetivo do nosso trabalho, devidamente direcionada e
encaminhada à presidente da FIA.
Em março do referido ano, e agendados com a assistente social, descemos
na estação do metrô São Clemente, e como numa paisagem naturalizada pela vida
urbana, tudo nos pareceu difícil e, ao mesmo tempo, fomos pegos por uma
sensação de insegurança.
Desci na Estação de Botafogo às 10h45min. Não foi fácil. Vou explicar.
Como essas questões sociais me incomodam. Em uma das praças (saída
do metrô para a rua São Clemente) havia uns sete jovens cheirando cola.
Não eram crianças na aparência. O desenho de seus corpos já denunciava
uma infância que ficava para trás. Não pude ficar na praça. Mas como existe
no local um ponto de ônibus próximo, passei alguns minutos parado,
tentando observar a cena, que não é das melhores. São formas de
degradação de tão jovens vidas não escolhidas, mas alocadas ou marcadas
por uma história de exclusão, de pobreza, de violência. Nestes corpos
juvenis, em suas histórias e condições de existência, espelham-se várias
produções de subjetividades que os evidenciam como, potencialmente,
perigosos e irrecuperáveis. [...] Não é fácil! Não podia mais ficar no ponto de
ônibus. A hora marcada com o instituído estava próxima. Saí meio que em
ziguezague em direção à rua Voluntários da Pátria. Uma confusão de carros
e ônibus estacionados. Vendedores com suas barracas. Aquelas barracas
que extrapolam as dimensões para expor os produtos e perturbar os
transeuntes. Parecem alegorias de carnaval. Bonecos, roupas, chinelos,
artigos femininos, bijuterias, pipocas doces, enfim, uma miscelânea de
produtos dependurados. Compondo esse cenário, pessoas à espera do
ônibus para Niterói. Nossa, tudo isso num espaço relativamente pequeno e
bastante movimentado. Coisas da rua, é isso. (DIÁRIO DE CAMPO,
02/03/2004)
Mesmo diante do agendamento, percebíamos que não éramos “especiais”. O
horário com o instituído estava definido, mas como o instituído lida com o tempo do
outro representou um instante de surpresa para nós.
Quando íamos começar a nossa conversa, toca o telefone. Não tive
alternativa. Fiquei esperando quase meia hora. Ou seja, qualquer tentativa
de prolongar um pouco mais o nosso encontro, não iria obter resultados.
Isso levando-se em consideração um agendamento prévio desde janeiro de
2004. Assim, mais uma vez era impossível permanecer neutro no espaço. O
tom da conversa, me pareceu, caminhava pelo que fazer com um suposto
jovem que precisava ir para um dos projetos específicos da FIA. Não sei
qual, realmente. Sentia que ali também funcionava como um setor de
triagem e decisões políticas onde alguém centraliza as suas decisões.
90
Negocia aqui, ali, acolá. É complicado! Mas são apenas impressões.
(DIÁRIO DE CAMPO, 02/03/2004)
Ao término da ligação, retomamos a conversa, e fomos informados de que o
quantitativo dos projetos era mínimo; enfim, estávamos diante de poucos avanços.
Dos estabelecimentos por ela mencionados já tínhamos algum conhecimento,
inclusive, de atuação profissional como psicólogo na Associação Beneficente São
Martinho. Talvez pudéssemos realizar a pesquisa na São Martinho, mas, como
nossa experiência produziu alguns embates numa equipe que se propunha
“interdisciplinar”, por questões profissionais, decidimos não retornar ao
estabelecimento como campo de pesquisa. O projeto Ânima, em São Cristóvão, foi
objeto de nossa visita, em 2003.
Apenas duas entidades não conhecíamos: Associação Centro de Integração e
Assistência à Criança (ACIAC), localizada em Niterói; e a ABRCC, na cidade do Rio
de Janeiro. Diante de poucas escolhas, a assistente social se colocou à disposição
para intermediar a nossa ida ao Palácio Duque de Caxias para um encontro com o
diretor da ABRCC. Entretanto, enfatizou que, por meio de pedagoga da FIA, no
Largo do Estácio, responsável pelo encaminhamento dos jovens às unidades
localizadas nos quartéis do Exército, poderia articular a nossa visita à direção.
Após a nossa saída da FIA, em Botafogo, conseguimos agendar um encontro
com a pedagoga, via telefone, para o dia 09 de março. Agora no Largo do Estácio,
na coordenação estadual do PRCC.
Sentei-me numa poltrona, possivelmente doada e pelos seus traços
característicos, parecia ser originária da década de 60 e quem sabe 70.
Aquela mobília, possivelmente, cansada aos olhos de uma classe média ou
dos ricos que costumam doar a projetos sociais, aquilo que precisa ser
renovado. O ambiente lembra uma sala de estar para os degradados e
pedintes. Fui o primeiro a chegar na parte da tarde. Fui assistindo por um
breve momento mães levando seus filhos para a creche que fica localizada
dentro do prédio. Detalhe: mulheres negras, pobres e obesas. Depois veio
uma senhora, com traços de retirante, tendendo à obesa. Em seguida, um
senhor, magro, mas com um aparência de sofrimento em seus olhos. E
assim, a pequena sala de estar ia sendo preenchida por sujeitos
homogêneos, na sua condição de pedintes. [...] Passando das 14h e
nenhuma materialização concreta da pedagoga. Restava-me apenas olhar
em círculos e não deixar que o desconforto das cadeiras e as estruturas de
pré-moldados, diante de um calor insuportável, me conduzissem a imagens
do semi-árido nordestino ou do asfalto em plena Av. Presidente Vargas.
Confesso que pensei em desistir por alguns momentos. O calor e a fome
incitavam-me à impaciência. Para a minha sorte e todos os famintos que
dividiam comigo a primeira etapa do purgatório, não. Mesmo atrasada, ela
chegou às 14h30min. Atravessou como se não existissem pessoas à sua
91
espera. Havia pedintes, é claro, e possivelmente, como de costume. Ao
caminhar em direção à sua sala, ao que me parece, balbucia algum som
desprezível, mas rico de sentido: “o primeiro que chegou, pode entrar e tem
que ser rápido”. Nesse instante, sob olhares ansiosos dos pedintes e dos
meus, fui ao seu encontro. Chegou a hora. Não dá para voltar atrás.
(DIÁRIO DE CAMPO, 09/03/2004)
Retomando a questão dos contatos, previamente agendados pela pedagoga
da FIA com o coordenador do programa na EsCom, o mesmo representou o nosso
primeiro encontro com os oficiais responsáveis pelo PRCC. A EsCom fica localizada
na Vila Militar, um bairro da Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, onde está
concentrado o maior aquartelamento do Brasil, sendo a maior concentração militar
da América Latina, com a construção de diversos quartéis e residências apenas para
a corporação do Exército. Essa mesma área compreende um complexo conjunto de
quartéis que, por sua localização geográfica, sua paisagem, seus contornos
estratégicos, nos apontam para a importância política e para o legado histórico que
os militares imprimiram, quando o Rio de Janeiro era a capital federal.
Como as atividades nas unidades, segundo a pedagoga, normalmente
começam às 8h, tentei chegar às 9h30min. Deu certo! Confesso que estava
um pouco apreensivo, pois nunca havia conhecido um projeto em que suas
atividades fossem realizadas num quartel. Ao chegar à portaria, perguntei
ao soldado, onde ficava o PRCC pois tinha uma reunião marcada com o
tenente. Não me pediu documentação, e recebendo ordens de um outro
colega, me acompanhou até a coordenação. (DIÁRIO DE CAMPO,
24/03/2004)
No dia 06 de maio de 2004, fomos abordados, de forma contundente, por um
soldado. Havia no portão principal cinco soldados ancorados, parecendo tensos e
assustados
42
, os olhares mestiços alertavam para algum possível evento surpresa.
Pareciam assustados, como se algum inimigo fosse surgir repentinamente
diante de seus olhos, atravessá-los, e destruir o oco de suas almas. Antes
de passar pelo setor de documentação (protocolo), tive que abrir minha
mochila, e mostrar o nada que emergia do seu escuro. Que sensação
terrível! Em seguida, liberado das mãos e bocas dos soldados, apenas um
42
Talvez tentando explicar a atitude dos soldados, recorremos a um evento que ocorreu nessa
mesma semana numa unidade militar que foi invadida por bandidos na área do Complexo da Maré,
culminando com roubos de algumas armas de uso exclusivo das forças armadas. “O capitão não
demorou. Parecendo simpático, me recebeu com alegria. Aproveitei a situação para indagar algo que
já suspeitava: capitão, por que hoje há um profundo rigor na recepção? Respondeu-me: diante dos
fatos, o comandante teve que tomar essas providências. Penso que não seja apenas por questões de
segurança. Outros aspectos atravessam esses entendimentos. O espaço disciplinar, em específico a
unidade militar da Escola de Comunicações, produz o que Foucault (2002a) apontou como o princípio
de localização, existente nos estabelecimentos” (DIÁRIO DE CAMPO, 06/05/2004).
92
me acompanhou até o protocolo. Lá pediram meu documento de identidade.
Ao lado, estava um sargento fiscalizando as atividades. Insólito soldado que
começava a tomar nota! Nesse momento, portava a carteira profissional. Ele
parecia não saber identificar o número do registro. Meu documento circulava
em suas mãos, perdido entre seus dedos, como se quisesse identificar
algum símbolo familiar ao seu cotidiano. Dantesco! Passei então a indicar a
forma de como deveria tomar nota do registro. De súbito, eis que surge a
voz de um militar: “essas identidades profissionais deveriam ser todas
iguais, do médico, do psicólogo, do dentista”. Após a segunda liberação,
chego ao setor de relações públicas (RP), e o soldado avisou a seu par que
havia uma pessoa (EU), para conversar com os militares responsáveis pelo
projeto. Finalizando o ritual do acompanhamento, o soldado me conduziu a
uma sala em frente à do RP. Permaneci aguardando o retorno do RP.
Passados alguns minutos, não muitos, eis que chega o RP pedindo meu
documento. Diante do fato, perguntei: terei que mostrá-la mais uma vez?
Sim, respondeu-se o RP. Tomou nota daquilo que demarca minha
existência concreta em números, solicitando para aguardar mais uma vez.
Nesse instante, o RP tentava localizá-los. A sensação que ficou é que eu
estava dentro de um suposto convento. Há algo que aproxima essas
instituições? Existe um ritual insuportável de controle. Impressionante e
fatídico o formalismo nesses espaços. (DIÁRIO DE CAMPO, 06/05/2004)
Na coordenação, fomos apresentados a um oficial da reserva contratado pela
ABRCC, solicitando que aguardássemos. Nesse momento, passamos a observar um
pouco do ambiente, percebendo que é possível circular tanto nas laterais, quanto
pelo centro da sala.
Lembro-me que havia na sala um pequeno local à esquerda, logo após a
entrada, onde são colocadas roupas e sapatos cansados dos outros, e
doados àqueles que insistem em escolher algo que não mais pertence ao
desejo do consumo do doador. Ainda não consegui digerir legal essa cena.
Preciso amadurecer. Talvez não seja importante nesse momento. (DIÁRIO
DE CAMPO, 24/03/2004)
Assim como o mito de Pandora nos mostra que a curiosidade é uma virtude
humana, não restava dúvida de que o referido oficial da reserva iria nos interpelar
sobre o que pretendíamos estudar. Parece-nos que o silêncio insistia em incomodar.
Éramos o centro da sala, e ele, um ponto no retângulo configurador do espaço. Só
nos restavam dois movimentos motores. Um para a direita, saída da sala. E o
segundo, à esquerda, para o oficial.
[...] A idéia da hierarquia para mim era muito presente. Estava no Exército e
talvez tivesse que esperar alguém me dirigir a fala. Sentia mesmo era o
desejo de conhecer os jovens e os educadores, enfim, todas as atividades
que já conhecera pela fala de outros. Depois de conhecer alguns jovens, os
oficiais nos convidaram para o almoço. No local foi possível ter uma
dimensão de como o exército vai produzindo as suas verdades. Retornei
para fazer o meu prato e sentei-me junto ao educador para trocar algumas
93
idéias. Num primeiro momento, não foi fácil nem olhar para a minha comida.
O capitão veio falar comigo. Comigo não. Parecia que o tom da fala era para
o coletivo, penso eu. Acho que ele queria falar mais de suas “glórias”. O
texto agora dirigiu-se para o tamanho dos pratos dos jovens. Com
observações absurdas, o capitão referia-se ao volume da comida,
comparando-o ao tamanho de uma montanha. “Olha, aqui eles comem
bem”; “A gente libera tudo”; “Não faz restrição porque a gente sabe que
muitos deles só têm essa refeição. A do café da manhã e do almoço a gente
garante”, afirmou o capitão. (DIÁRIO DE CAMPO, 24/03/2004)
Mediante o acordo, iniciamos o nosso primeiro encontro com os jovens no dia
21 de maio de 2004, perfazendo um total de dezenove. Nesse período, havia 42
jovens atendidos pelo projeto, mas apenas quinze jovens participaram inicialmente
da pesquisa. Esse número foi reduzido a partir de alguns fatores: a) pelo
desligamento do jovem do projeto; b) por não mais querer participar das atividades
de pesquisa. Ressaltamos que, apenas, nove jovens permaneceram até o final deste
trabalho, e que essas questões serão apresentadas e discutidas no Capítulo 7.
Discutimos qual seria o melhor dia para a realização do trabalho. Chegamos
à conclusão de que sexta-feira seria o ideal, pois há uma escala já
distribuída para os educadores e oficiais. As duas educadoras estão no
projeto de segunda a sexta. Como um outro educador teve problema de
horário numa outra unidade militar, foi possível recolocá-lo para a sexta.
Ficou acordado começar as atividades com os jovens a partir das 8h,
finalizando às 10h. (DIÁRIO DE CAMPO, 11/05/2004)
O tenente nos conduziu até a sala onde estavam os jovens. Nesse espaço,
são realizadas as atividades de reforço escolar. Procuramos falar um pouco da
nossa trajetória de vida e de trabalho, das motivações para a realização desta
pesquisa, que tenta entender como os jovens são produzidos por uma formação
profissionalizante dentro da EsCom.
[...] Mesmo tentando socializar isso para os jovens, confesso que não me
senti seguro e à vontade. Tive a sensação de que eles estavam prestando
atenção, mas não entendiam. Posteriormente, tentei fazer um paralelo, e
retomar a noção de pesquisa para fazer com que eles pudessem entender
as minhas intenções. (DIÁRIO DE CAMPO, 21/05/2004)
Do ponto de vista estrutural, a sala de aula não escapa aos fatalismos de uma
pretensa tradição instituída no campo educacional, notadamente, na lógica militar.
Posição tradicional das carteiras, com um número elevado delas, impossibilitando,
inclusive, quaisquer atividades que demandem outras formas de movimento. Além
das carteiras, há armários com livros, estantes, uma TV com um vídeo cassete etc.
94
O espaço destinado à atividade prática da oficina para eletricista é bastante
interessante. Estruturalmente, me pareceu bem aparelhado. Há simuladores
para se montar uma rede monofásica ou trifásica, instalação de chuveiro
elétrico ou de bomba d’água. Num primeiro olhar, me pareceu que há uma
infra-estrutura interessante.Com relação à oficina de informática, os jovens
têm aulas nas salas destinadas a soldados e oficiais. Segundo o capitão,
nesse espaço eles aprendem o teórico. Há uma outra sala, tipo laboratório,
com equipamentos financiados com recursos doados pelo BNDES que,
mesmo apresentando boas condições, o número de máquinas ainda é
reduzido para o número de jovens que participam das atividades. Não foi
possível conhecer a oficina de audiovisual. Já eram praticamente 11h30min.
Os jovens já faziam fila para seguirem rumo ao rancho (restaurante). Pelo
que foi declarado pelo capitão, os cursos de audiovisual, com o de
informática, pertence às atividades do quartel como um todo. Entretanto, os
jovens participam também desses espaços. Com o tempo estourando, fiquei
de conhecer esse espaço um outro dia. (DIÁRIO DE CAMPO, 24/03/2004)
Enfim, prosseguimos em direção ao novo espaço cedido pelo tenente. Trata-
se, de fato, de uma outra sala de aula, porém, um pouco maior e com mais
mobilidade para trabalhos em grupo. A distância é relativamente pequena em
relação à coordenação.
Chegando ao local, a educadora me pediu para fechar a sala – nesse
momento ela me deu um cadeado –, dizendo-me que não confiava nos
jovens, que poderiam deixar a sala aberta no término das atividades. Falei
que não precisava se preocupar, que eu mesmo me responsabilizaria, junto
com eles, para deixar tudo como havíamos encontrado. Percebi na sua fala
uma tendência para culpabilizar os jovens sempre que eles não
cumprem/obedecem às suas ordens ou aos seus mandos. (DIÁRIO DE
CAMPO, 21/05/2004)
Neste momento, é preciso pensar em outros movimentos. Das carteiras
dispostas simetricamente dentro da sala de aula, iniciávamos os nossos encontros
em círculo. Não como movimento fechado em si mesmo, porém numa perspectiva
de constante abertura.
Mesmo assim, percebi que havia um clima de rejeição entre os que,
aparentemente, gostam de dormir. Alguns que gostariam de tirar uns
soninhos, parecem não ter gostado da idéia. Como a maioria concordou,
fomos reordenar a posição das carteiras. Percebi esse momento como novo
para eles. Demonstravam-se disponíveis e abertos para uma nova
experiência. Em seguida, propus que as mochilas de alguns ficassem
sozinhas, até porque elas precisavam descansar. O riso veio à tona. Penso
que redesenhar o espaço irá produzir uma série de movimentos. Ao
sentarmos em círculo e favorecer o desejo de participação de todos,
entendo que se produzirá constantemente um ambiente onde a questão da
democracia, do diálogo, passa a ser também um movimento de todos.
(DIÁRIO DE CAMPO, 21/05/2004)
95
Na sala de aula, com a ausência dos coordenadores e dos educadores,
pudemos, então, afastar as carteiras para os lados, e fomos dando um outro
movimento para que todos pudessem perceber a todos. Sentíamos que, ao
proporcionar a formação de um outro movimento neste espaço, iríamos nos
aproximando e quebrando, cada vez mais, o medo que tomava a todos, inclusive, a
nós – eu.
Pensávamos que redesenhar o espaço pudesse proporcionar outros
movimentos. Assim, a partir dessa proposta, acreditávamos na construção de um
ambiente onde a questão da democracia, do diálogo, do confronto de idéias, de
opiniões, passa a ser também um movimento de todos, onde o sentido de
experiência pudesse ser partilhado. Entendemos que o sentido de uma experiência
pode ter algum ponto de interseção com a história do outro.
Era este (des)caminho que pretendíamos construir com eles. A partir das
nossas diferenças, íamos complementando e diferenciando. Assim como Benjamin
(1994), concordamos que compreender esse outro e a mim mesmo requer uma
experiência comum partilhada.
Passei a perceber que o barulho não os impedia de realizar a pesquisa no
dicionário. O desejo de responder ao desafio estava presente. Foi quando
um jovem passou com o auxílio de um outro a procurar a palavra. Como
eles estavam demorando um pouco, tentei me aproximar de um pequeno
grupo que havia pego um outro dicionário e acabou encontrando primeiro.
Não localizei para eles a palavra, eles já haviam identificado. Enfim, tive a
sensação de que eles entenderam o que se pretendia, de alguma forma,
fazer ali. (DIÁRIO DE CAMPO, 21/05/2004)
“Fazer ali” significava ser atravessado por outras formas de fazer e inventar
linguagens, pela curiosidade, pelas interrogações que circundavam a todos,
inclusive a nós, diante de tantos jovens que, em sua multiplicidade de olhares e no
entrecruzamento de tantas vidas, vão compondo essas suas histórias. Conforme
registramos em nosso diário de campo, algumas formas de silenciar, por uma
“pedagogia do medo”, as falas dos jovens, na experiência de sala de aula que
carregavam, ganharam visibilidade a partir de alguns relatos.
Nesse instante, algumas vozes revelaram qual o encaminhamento que seria
dado ao nosso encontro. A fala inicial de um jovem, se deu por
comparações. Começou, dizendo que o encontro passado tinha sido
interessante porque eles nunca tinham tido uma oportunidade de falar, de
96
conversar. Houve oportunidade de diálogo para todos, acrescentou um
outro jovem. Nesse instante, entra em cena na voz de um outro jovem a
educadora mais antiga do projeto, pelo menos nesta unidade do exército,
segundo informações do tenente. Não lhe poupando críticas. Relatou uma
série de eventos desagradáveis que ocorreram e ocorrem em sala de aula e
também durante as refeições. Durante a exposição de alguns e,
paralelamente, aos debates que iam se dando, afirmaram que as aulas de
reforço, principalmente sob a orientação da educadora, são baseadas nos
conteúdos de português e de matemática para alunos do ensino
fundamental, primeiro ciclo. A maioria afirmou que não aceita tal situação
até porque se encontram em outra série escolar. Inclusive, relataram que
não se sentem estimulados e motivados para prestar atenção em nada do
que é oferecido pela professora. Diante do conflito, segundo as falas dos
jovens, a educadora passa a usar da sua autoridade para fazer valer os
seus interesses. Caso alguns não aceitem realizar as atividades sugeridas
por ela, como recurso de punição, a professora recorre à anotação dos
nomes para em seguida passá-los aos oficiais responsáveis pelo projeto.
(DIÁRIO DE CAMPO, 28/05/2004)
Assim, fomos reconstruindo a experiência dos jovens, a partir das narrativas
contidas em suas histórias, tentando compreender parte de uma realidade do PRCC,
pois, tal como Walter Benjamin, acreditamos ser possível resgatar a linguagem de
seu caráter instrumental, para que não continuemos conhecendo “[...] outros
pedagogos cuja amargura não nos proporciona nem sequer os curtos anos de
‘juventude’. [...]” (BENJAMIN, 1984, p. 23).
5.2 O CONTEXTO DO PRCC NA ESCOM
Aqui, algumas breves considerações necessitam ser analisadas. De forma
geral, o PRCC, como experiência local de atendimento a jovens pobres, descortina a
fragilidade de políticas específicas para a juventude. E, ao mesmo tempo, aponta
para a produção de diferentes modos de intervenção em que são editadas ações
pontuais e fragmentárias direcionadas certamente, para programas denominados de
ressocialização e de formação profissional para uma parcela definida da juventude.
O foco de abordagem procura, num certo sentido, a sua inserção a uma certa ordem
moral da sociedade, e por que não afirmarmos de uma noção de moral e civismo
presente no Exército?
Uma compreensão sobre a emergência do PRCC suscita, certamente, um
olhar sobre diversos fatores que, numa determinada época, produziram a sua
emergência. Assim, privilegiamos nessa trajetória situar o programa em relação a
um tipo de sociedade e de produção capitalista engendrada em nossa história, bem
97
como apreender aspectos da conjuntura econômica e política que presidem a
emergência de tal programa, tentando entender as forças presentes nessas
conjunturas.
As transformações no mercado de trabalho, aliadas às mudanças nos
sistemas de emprego, produzem um cenário de exclusão em que se encontram
parcelas majoritárias de trabalhadores integrados no mercado formal que, diante das
políticas neoliberais, da reestruturação produtiva, se deparam com elevadas taxas
de desemprego, conjugadas ao crescimento do trabalho precário e do subemprego.
Tal conjuntura imprime maior impacto, certamente, sobre os jovens com baixa
escolaridade, pouca ou nenhuma qualificação, como os referidos neste estudo.
É ilustrativo um fragmento sobre o objetivo do programa que, ao buscar o
“resgate” da cidadania dos jovens, apresenta um caráter preventivo na medida que o
espaço do quartel seria:
[...] propício à educação, vivenciam exemplos de ordem, civismo, disciplina,
trabalho e o culto ao amor à Pátria, com os jovens soldados que compõem
os efetivos dos quartéis e estabelecimentos militares. Têm, portanto,
oportunidade de adquirir hábitos e costumes sociais sadios e participam da
prática de atividades físicas, esportivas e recreativas, que contribuem para
lhes dar corretas referências sociais e novas esperanças de sonhos para o
futuro. (REVISTA CIDADANIA, 2003, p. 11)
Sobre essa questão, é importante que façamos algumas reflexões. Se
pensarmos na definição de juventude numa perspectiva funcionalista que a
compreende como uma fase entre a infância e a vida adulta – um tempo em que se
buscam formas de integração social a partir de uma ordem moral –, o que podemos
perceber, a partir do PRCC, é uma preocupação com uma coesão social de parte da
juventude pobre. Ao enfocar a noção de “resgate”, um olhar desfocado recai sobre
os jovens, refletindo uma tendência que, fundamentada por tais idéias, pauta as
ações do referido programa. Assim, tentar estabelecer um paralelo entre cidadania e
resgate é, no mínimo, caminhar por terrenos pantanosos. Como os jovens pobres
podem resgatar algo que nunca tiveram? Cidadania significa conquista de direitos, e
não algo “doado” ou intermediado por outrem. Na sociedade brasileira em que a
desigualdade e a exclusão social existem sob diferentes formas e tempos a partir do
tipo de sociedade e dos modos de produção capitalista que se forjaram em nosso
país, o que nos apresenta, numa certa dimensão, é o que Wanderley Guilherme dos
Santos (1994) denominou de “cidadania regulada”. Portanto, não é qualquer forma
98
de “resgate”, mas aquela cujo dispositivo ao mesmo tempo que produz diferentes
modos de ser jovem, reafirma, ao capturá-lo, a estigmatizada relação entre pobreza
e marginalidade.
Este quadro, diante da incapacidade do poder público em gerir e atender às
necessidades básicas da população pobre, torna essa mesma população sua
principal vítima. Segundo Moreira (2000), neste campo de vulnerabilidade social,
encontra-se uma gama de pessoas, de instituições e de atividades, acenando com
respostas às suas demandas. Dentro dessa lógica e no que diz respeito ao tráfico de
drogas, as quadrilhas de traficantes fizeram das favelas fluminenses no Rio de
Janeiro seu espaço de ditadura e tirania.
Como alvo e argumento para o apelo ao assistencialismo, pautado na lógica
do “resgate” da cidadania dos jovens, o programa, após definidas as parcerias e
como sociedade civil sem fins lucrativos, foi instituído em 22 de setembro de 1993 a
partir do convênio, inicialmente, com o Exército Brasileiro, através do CML, Governo
do Estado e do Município do Rio de Janeiro, a Arquidiocese do Rio de Janeiro e a
ABRCC. Até 2004, estabelecia parcerias com outros municípios como Campos de
Goytacazes, Petrópolis, Macaé, São Gonçalo, Arquidiocese de Niterói, sendo o
mesmo ratificado a cada ano e de acordo com as seguintes normas, dispostas:
[...] pela Lei Federal n.º 8.666 de 21 de junho de 1993 – Licitações e
Contratos da Administração Pública, Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990
(Estatuto da Criança e do Adolescente), Portaria n.º 182 de 28 de março de
1995 do Exmo Sr Ministro do Exército – delegação de competência e pelo
Código de Administração Financeira e Contabilidade Pública do Município
do Rio de Janeiro (Lei n.º 207/80) e pelo seu Regulamento – RGCAF (Dec.
n.º 3221/81), pela Legislação pertinente do Estado do Rio de Janeiro e do
Município do Rio de Janeiro. (CONVÊNIO PRCC, 2004 – ANEXO A)
Algumas falas e documentos dão indícios de que o programa tenha surgido
da motivação de determinados setores dos Poderes Públicos Federal, Estadual e
Municipal, preocupados com a questão social que, em 1993, apontava para grave
crise social na cidade do Rio de Janeiro, em específico, a segurança pública.
Segundo a Revista Cidadania (2003, p. 10), o programa “[...] nasceu [...] numa
época em que a sociedade estava bastante mobilizada devido ao trágico episódio da
‘chacina da Candelária’, ocorrida em agosto do mesmo ano, que acabou ocupando o
noticiário do mundo inteiro”. Ressaltamos não apenas a morte de sete crianças
indefesas na madrugada do dia 23 de julho de 1993, como do dia 29 de julho do
99
mesmo ano, ou seja, seis dias após a chacina da Candelária, homens encapuzados
e ferozmente armados, policiais militares, chegam à comunidade de Vigário Geral,
exterminando vinte e uma vidas.
Ainda em 1993 se formou uma comissão com as instâncias supracitadas para
pensar e estruturar o programa, cujo foco priorizava o atendimento preventivo à
marginalização infantil e juvenil, por se tratar de uma população, cujos fatores de
constrangimento sócio-econômicos submetiam pais e responsáveis (RELATÓRIO
ANUAL PRCC, 2004 – ANEXO B). Será que, além da ameaça à ordem social por
meio da delinqüência juvenil, outros fatores motivaram tais setores públicos a
direcionar a sua atenção para a realidade do jovem pobre? Em resposta, portanto,
qualificando uma importância secundária à educação dos pais, sem avaliar as
condições históricas da família pobre brasileira, é possível afirmarmos que os
parceiros deste projeto, além de proporcionarem uma formação profissionalizante,
acreditam, possivelmente, que o único meio para resolver tal problemática, seria
também educar os jovens a partir de normas de comportamento, de hábitos e de
determinados valores culturais. Nesse sentido, tal intervenção dos parceiros
43
,
representantes do Estado e da Igreja, é justificada e referendada pelo discurso da
prevenção que em si se assemelha às práticas de intervenção do século XIX. Como
nos referimos no Capítulo 3, em que constava algo relativo à infância e à juventude
pobres, lá estava implícita a noção de periculosidade, carregada da ambigüidade
anteriormente assinalada: ou personificava o perigo ou ameaça propriamente dita
(viciosa, pervertida, criminosa), ou era representada como potencialmente perigosa
(em perigo de o ser) (RIZZINI, 1997b).
Diante do comportamento e da atitude dos jovens, importa poder a cada
instante, a partir desse espaço disciplinar, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as
qualidades ou os méritos, para conhecê-lo, dominá-lo. Entendo, ainda no
campo das incertezas, que só assim seja possível, num futuro próximo e,
após a aprimoração de um determinado saber que se produz
constantemente sobre um corpo juvenil, integrá-lo como soldado à
corporação? Porém, talvez para eles seja preciso controlar uma massa de
jovens aparentemente inúteis. Será preciso controlá-los, tirar vantagens,
neutralizar possíveis virtualidades perigosas? Mesmo assim, confesso que
estou mergulhando em dúvidas diante de pontos que vão se entrecruzando,
ao passo que vou sistematizando minhas entradas no PRCC. Diante dos
fatos, convém indagar mais uma vez ou até mesmo apontar para um
43
Como já referido, enfatizamos que o caráter de prevenção é objeto de atenção contida no ECA, em
seu Título III – Da Prevenção. A própria legislação específica, expressivamente, conduz a legitimação
de diversas formas de intervenção não apenas pelo Estado, mas pela sociedade civil.
100
pressuposto: será essa a intenção que move o Exército na captura de
possíveis subjetividades juvenis? (DIÁRIO DE CAMPO, 18/06/2004)
Tal perspectiva nos permite atentar para uma possível correlação da
emergência do PRCC com as políticas de intervenção do Exército, notadamente, a
partir de uma certa rotina da violência que tomava com mais fôlego diversos setores
da mídia nacional e internacional. Aqui é oportuno observarmos a análise de Regina
Célia Pedroso (1999, p. 77-78) que, ao propor elucidar aspectos da violência
institucional que se produz no Brasil, ao longo da nossa história, nos alerta sobre o
papel do Exército na questão da segurança pública. Suas palavras são bastante
esclarecedoras ao afirmar que:
Em reação ao clima de insegurança, o exército elaborou um plano para
auxiliar as polícias civil e militar no combate ao narcotráfico. Durante o
Congresso Ecológico Rio 92, o exército atuara no combate às drogas [...]
Assim, com a deterioração da imagem da polícia militar, a participação do
exército na repressão ao crime foi bem vista pela população. [...] O perfil do
traficante descrito pelo exército era: idade na faixa de 15 a 25 anos [...]
Oriundo da camada social baixa, escolaridade correspondente ao primeiro
grau incompleto, estatura média inferior a 1,70 m, peso na faixa de 60 a 70
kg, o traficante que reside nas favelas normalmente usa drogas. [...] Visando
controlar preferencialmente o universo da população pobre, as Forças
Armadas ocuparam as favelas em 18 de novembro de 1994. [...] As favelas
passaram a ser vistas como o local, por excelência, do crime. Mega-
operações foram realizadas, visando a “limpeza” e o “saneamento” dessas
áreas.
Em 2004, o PRCC, em todas as unidades militares, contabilizou 700 jovens
inscritos nos cursos profissionalizantes (RELATÓRIO ANUAL PRCC, 2004). A
ABRCC, fundada em outubro de 1993, é a responsável pelo desenvolvimento do
programa, ao proporcionar-lhe condições materiais ou recursos financeiros para a
sua operacionalização, bem como contribuir na sua coordenação. Os recursos
financeiros são oriundos de instituições governamentais e de empresas privadas,
cuja logística na arrecadação de doações é de responsabilidade, também, da
ABRCC.
Por se tratar de um convênio, e em conformidade com o ECA, há uma série
de atribuições gerais e específicas para cada conveniado. De acordo com o
101
aos comandantes a função de gestores do PRCC em suas Unidades de Assistência
(UA), conforme pode ser constatado no ANEXO C. Há dezessete UAs localizadas na
cidade do Rio de Janeiro, e uma para cada um dos seguintes municípios: Campos
de Goytacazes, Macaé, Petrópolis e São Gonçalo. Contabilizando vinte e uma UAs,
segundo Relatório Anual do PRCC de 2004. Sobre o acompanhamento, supervisão
e avaliação, o programa tem uma comissão presidida por um representante da 5ª
Seção do CML, e composta por coordenadores designados por todas as entidades
participantes do convênio, conforme evidenciado no ANEXO A. Em termos
proporcionais, os conveniados obrigam-se a manter, a partir da demanda, a
indicação de jovens no seguinte quantitativo: 210 (FIA), 280 (SMAS) e 210 para a
Pastoral do Menor.
A literatura que trata de situar a história da criança e do jovem pobre no
Brasil, conforme evidenciamos no Capítulo 3, além de apontar para a importância da
criação do ECA ao retirar o princípio da “situação irregular”, desconstruindo a cisão
entre criança e menor, e ao preconizar a lógica de “proteção integral”, por outro lado,
é objeto também de outras reflexões. Nesse sentido, é pertinente atentarmos para
uma crítica contundente colocada por Passetti (2002, p. 350) sobre o ECA, ao
afirmar que “[...] com a restauração das eleições presidenciais e a retomada do
regime político democrático – mesmo com as limitações impostas pelo voto
obrigatório – , surge o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) [...]. Uma nova
dimensão da caridade está concretizada combinando, com especial equilíbrio, ações
privadas e governamentais”, num certo dispositivo de ação “combinada” entre o
primeiro (Estado-mínimo numa perspectiva neoliberal) e o terceiro setor. Com o
ECA, defende-se o caráter de prevenção e ressocialização, em substituição ao
cerceamento e à punição.
Com relação ao estágio profissionalizante, apenas os jovens encaminhados
pela Pastoral do Menor, após um ano no programa, podem concorrer a uma vaga de
estágio em alguns destes estabelecimentos: RIOURBS, RIOZOO, RIOLUZ. Aos
encaminhados pela FIA, cabe à Secretaria de Estado do Trabalho (SETRAB)
disponibilizar aos jovens programas de microcrédito e de primeiro emprego. Apenas
a Pastoral encaminha os jovens para o estágio. Mesmo integrando o contrato, por
que a SETRAB não conseguiu proporcionar aos jovens, do PRCC na EsCom, e
encaminhados pela FIA, formas de inserção no mercado formal? Os profissionais do
PRCC na EsCom não conseguem explicar os motivos do não cumprimento acordado
102
em parceria. Em que medida essas questões devem ficar no silêncio? O que produz
um silêncio? Além desse acordo, há outros que não são cumpridos?
O discurso oficial do programa desde a sua implantação é revelador de que,
além de propor o “resgate” da cidadania por meio da educação integral, objetiva
prestar assistência a adolescentes, com referência familiar, em circunstâncias
especialmente difíceis, na faixa de 14 a 17 anos, que estejam em situação de risco
social; proporcionar aos referidos adolescentes educação geral e cívica, por meio do
reforço escolar; desenvolver aprendizado prático de profissionalização, criando
condições de, futuramente, ingressar no mercado de trabalho; fortalecer a cidadania,
por meio do aprendizado de normas de moral, ética, comportamento social, de
educação sexual, atitude anti-drogas e de religiosidade; oferecer assistência médica,
odontológica e sócio-pedagógica, bem como alimentação, para todo o efetivo do
PRCC; e proporcionar esporte, cultura e lazer (DIRETRIZ DE SERVIÇO PRCC,
2005 – ANEXO D).
Sobre a questão do mercado de trabalho, percebemos a presença, portanto,
dos mesmos princípios liberais que impregnam um discurso hegemônico, ao
preconizar uma suposta igualdade de oportunidades por meio de cursos
profissionalizantes como propiciadores para a sua inserção no mercado formal.
Entendemos que, para o programa, o trabalho é transmitido como algo que “dignifica
o jovem”, “limpando sua alma das impurezas maléficas”, ao se constituir no único
caminho de sobrevivência e ascensão social, necessário à existência e à
manutenção da sociedade capitalista.
A concepção, que se expressa na figura do jovem em situação de risco social,
configura uma noção de subjetividade que, em primeiro lugar, reafirma uma prática
que, num certo sentido, busca a contenção real do risco ou potencial desses jovens.
Uma contenção que suscita diferentes modos de intervenção para integrá-los a uma
certa ordem moral e simbólica. Em segundo lugar, ao enfocar a noção do risco, as
instituições que pensaram e estruturaram o programa, produzem dispositivos de
ações dirigidas a essa população em que o olhar de uma suposta periculosidade,
afirma uma condição de marginalizados que os jovens representam para si e para a
sociedade.
Nesse sentido, e de acordo com a hipótese defendida por Abramo (1997) de
que, nos anos de 1990, era forte a imagem dos jovens que assustavam e
ameaçavam a integridade social, passa a ser um dos elementos que ratifica, além
103
dos aspectos já citados sobre a emergência do PRCC, uma lógica de intervenção
que se atualiza e se define por tais parâmetros. Como bem assinala Abramo (1997,
p. 35), podem “[...] tornar-se, assim, junto com o medo, objeto da nossa compaixão e
de esforços para denunciar a lógica que os constrói como vítimas e de ações para
salvá-los dessa situação”.
Por outro lado, e ainda sobre essa questão, é importante percebermos como
determinadas ações governamentais nos dias atuais ainda se “esmeram” em
práticas, cujo foco recai sobre a noção de risco. Corroborando a análise de Abramo
(1997) e pensando nas políticas públicas que incorporam os segmentos da
juventude em sua esfera de intervenção, Marilia Sposito (2003) afirma que algumas
ações gestadas por alguns municípios ainda apresentam características
compensatórias e se identificam com a denominação de “risco social”, na maioria
das vezes traduzindo-se em ações reparadoras ou de controle social.
Os projetos sociais, ancorados no discurso da formação profissional,
especificamente, ONGs, identificadas como do terceiro setor da economia, além de
serem pouco ou quase nada politizados, como já referido por Gohn (2001), ainda
formulam, em sua maioria, as suas ações enfocando a noção de risco que a criança
e o jovem pobres representam para si e para a sociedade. Em interessante estudo
realizado em 1998, essa mesma lógica foi identificada por Ferreira (1998), ao
analisar uma proposta de formação profissionalizante, desenvolvida por uma ONG,
na cidade do Rio de Janeiro, oito anos após a sanção e a promulgação do ECA.
Conclui, em outros aspectos, que as políticas de atendimento à juventude pobre
precisamente ainda se orientam numa concepção de educação para o trabalho
como solução para os problemas sociais da nossa sociedade. “[...] O uso do trabalho
sugere que, através da ocupação profissional, torna-se possível resolver parte dos
‘males’ que atingem estes jovens” (FERREIRA, 1998, p. 21). Ainda sobre essa
questão, Coimbra (2001) afirma que na história das políticas de assistência a
crianças e jovens pobres no Brasil, na medida que os pobres representam um
“perigo social” para a sociedade, a mesma vem sempre associada às políticas de
segurança pública.
O programa na UA da EsCom é composto de um coordenador (no início das
nossas atividades de pesquisa, havia um oficial que respondia pelo projeto e por ter
sido reformado, o programa passou a ser coordenado por um sub-tenente), dois
auxiliares (soldado e um sargento), três educadores (professores da Secretaria
104
Estadual de Educação remanejados para o programa), um professor de canto e
outro de ensino religioso, de base cristã, três instrutores
44
para os cursos (eletricista
residencial, informática e audiovisual). Nesse espaço de combinação de
visibilidades, cabe indagar: estaríamos diante do “encaixamento espacial das
vigilâncias hierarquizadas”, conforme nos aponta Foucault (2002a, p. 143), em que
“[...] o exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar”?
Ainda sobre a faixa etária, inicialmente o programa recebia crianças e jovens
com idade entre 11 e 17 anos. Com relação à mudança, a mesma se deve em
função do estabelecido pelo ECA, ao preconizar a idade mínima para a
aprendizagem a partir dos quatorze anos. São aceitos jovens de ambos os sexos
para todas as unidades de assistência, exceto do 1º Depósito de Suprimento (1º
DSup) que desenvolve atividades apenas com as jovens. O programa estabelece
como responsabilidade do jovem: assiduidade e freqüência à escola regular,
cumprimento com o regulamento da instituição notadamente quanto à assiduidade
no programa, pontualidade, obediência às ordens superiores, zelo e presteza no
desempenho de suas atividades, e com seu uniforme. Ao final de cada período
escolar, o jovem deverá apresentar o seu desempenho ao programa.
O quadro geral dos educadores lida com o reforço escolar, e apresenta
formação pedagógica e experiência anteriores em educação. Esse apoio aparece
como um espaço de ajuda aos jovens nas suas atividades escolares. O uso de livros
didáticos, de trabalhos com artes, recorte e colagem de jornais e revistas, constitui
instrumentos pedagógicos utilizados pelos educadores num espaço da EsCom
reservado à referida atividade. Na verdade, tais atividades, em função da demanda
dos jovens, são realizadas também na sala da coordenação do programa onde há
um bom acervo de livros didáticos direcionados para os ensinos fundamental e
médio. As atividades ocorrem às segundas, quartas e sextas. O horário da sexta
entre 8h e 10h ficou disponível para os nossos encontros com os jovens.
Sobre a questão da escola, as falas dos educadores indicam que, em relação
às atividades de reforço escolar, os próprios educadores reconhecem o limite de
suas atividades, apesar de suas tentativas para explicarem uma série de dúvidas
44
No Exército, apenas os oficiais são consideradores como instrutores. Denominam-se de monitores
os “praças”, os não oficiais. Ao utilizarmos a expressão instrutores para os cursos, estamos nos
referindo aos “praças”, cabo ou sargento que os ministravam, mas que também poderia ser
ministrado por um oficial, sendo também, por seu turno, expressão comumente utilizada pelas
técnicos que pensam e fazem o programa na EsCom.
105
advindas de várias matérias, além daqueles que apresentam dificuldades de leitura
e escrita. A despeito dessa realidade, e com traços anacrônicos, tais tentativas
produzem leituras diversas sobre a condição dos jovens que passam, em sua
maioria, a ser estigmatizados pelos próprios colegas e também pelos educadores,
como “preguiçosos”, “burros”. Nesses deslocamentos, cabe perguntar: O que fazer
para superar as ambigüidades que a própria escola formal produz no tocante aos
jovens, quando garante o acesso, mas por outro lado reafirma a noção de
“incapazes”? E o programa, como repensar seu papel em relação à escola?
Com relação aos cursos profissionalizantes, os instrutores são responsáveis
pelo acompanhamento e desempenho dos jovens, cuja avaliação se dá por meio de
provas teórica e prática. O curso de informática é obrigatório para todas as OM/UA,
utilizando-se de equipamentos doados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento
Social (BNDES). Cada curso possui uma carga horária total de 180 horas, realizado
às terças e quintas, das 08h55min às 11h30min (Ver CRONOGRAMA DAS
ATIVIDADES DO PRCC – ANEXO E). Ressaltamos que cada curso tem duração
anual, sendo a primeira parte teórica, e a segunda, conseqüentemente, prática,
prevalecendo, inclusive, essa mesma carga até o término da nossa pesquisa, maio
de 2005. Se o jovem ingressar no programa aos quatorze anos, ele terá,
provavelmente, a possibilidade de passar pelos três cursos que a UA da EsCom
proporciona, conforme citamos.
A escolha e a decisão pelo coordenador do programa parte do comandante
da OM, cabendo ao coordenador estar habilitado para organizar e acompanhar as
ações que serão desenvolvidas no trabalho do PRCC, apresentando, inclusive,
capacidade de articulação com diversos setores que circundam o programa, que vai
desde o encaminhamento do jovem para o serviço de odontologia numa Unidade
Básica de Saúde (UBS), até o contato com os pais ou responsáveis. Anualmente, o
coordenador realiza reuniões com as famílias para expor o andamento dos
trabalhos. Entretanto, caso algum jovem apresente “problema de conduta”, de
“comportamento”, a família é “convocada” ao PRCC. Além de outras atribuições, ele
é o responsável pelo planejamento do Plano Geral de Ensino (PGE), do Plano de
Disciplina (PLADIS), e das atividades junto aos educadores e instrutores, definindo a
carga horária de cada atividade tomando como referência as Diretrizes de Serviços
(ANEXO D) pensadas e estruturadas pelo programa que é comum a todas as UAs,
mas com características peculiares a cada OM.
106
Com relação à escolha dos cursos, cabe ao coordenador decidir pela
indicação, levando-se em consideração alguns aspectos. Pelo menos, na gestão do
coordenador que, durante a nossa pesquisa, era o responsável pelo programa, o
mesmo procurava saber qual seria a possível afinidade do jovem em relação aos
cursos. As vagas para cada curso eram distribuídas em: oito para audiovisual,
dezessete, para informática e eletricista residencial, respectivamente, totalizando
quarenta e duas, e correspondendo ao quantitativo de ingressos anuais no
programa. Caso o jovem adolescente ingressasse aos quatorze anos, ele teria a
possibilidade de realizar os três cursos, como sinalizamos, sendo priorizado,
inicialmente, o de informática ou o de eletricista residencial. O de audiovisual era
disponibilizado no final, segundo a coordenação, por algumas questões. Primeiro,
pelo alto custo do material envolvido: laboratório de relevação, filmagem, etc; e,
segundo, para se ter um melhor conhecimento do jovem sobre seu comportamento
pois, conforme enfatizou a coordenação, o aluno precisaria ser cuidadoso com o
manuseio das ferramentas do referido curso. É atribuição também do coordenador
participar mensalmente de uma reunião na ABRCC, em sua sede, no CML.
No tocante à Formatura Geral, ela representa o momento quando o
comandante se dirige às tropas e exige a participação dos jovens nesse momento
simbólico, em que a questão cívica é reafirmada em seus discursos e práticas.
Numa análise relevante sobre os rituais, cerimônias e símbolos do Exército, Celso
Castro (2002, p. 79) afirma que não basta que os sujeitos pensem que fazem parte
de uma determinada coletividade. “[...] É preciso também comemorar – lembrar em
conjunto. [...] É a repetição regular e coletiva dos rituais que cria e recria a própria
coletividade enquanto tal, renovando em seus participantes o sentimento de
pertencerem a algo em comum – no caso, o Exército Brasileiro”. Durante a
Formatura Geral, cabe ao coordenador acompanhar os jovens durante todo o
evento. Durante a semana, são ensinadas lições militares de conduta e
comportamento sobre como se portar, se conduzir na formatura. Eles aprendem por
meio da “ordem unida, movimento a pé firme”: “sentido, direita, esquerda,
descansar”. Cabe ao coordenador, também, a incumbência de fiscalizar o uniforme
dos jovens quanto à higiene, adequação e manutenção (calça jeans, camiseta
branca com a logomarca do projeto e tênis). Os jovens que compõem o projeto
podem ser, facilmente, identificados, entre as cores branca e azul da EsCom e a
107
verde que (re)veste os militares, pelo uniforme que faz parte do material fornecido
pelo projeto.
Desde a sua emergência, o programa em todas as OMs já atendeu a mais de
oito mil jovens, através da educação complementar e da formação profissional nas
vinte e uma unidades militares onde funcionam cursos para eletricista residencial,
eletricidade de automóveis, mecânica, lanternagem e pintura, capotaria, auxiliar de
cozinha, padaria, vassouraria, bombeiro hidráulico, serigrafia, informática, atividades
de lazer, tais como: atletismo, artes marciais, futebol, coral. Para as jovens, o
projeto, também, abrange artesanato, manicure, pedicure, cabeleireiro, estética,
conforme constatado no ANEXO E. Diante dos cursos elencados, indagamos: Em
que medida a implantação desses não representa, portanto, um meio para a
reprodução da força de trabalho? Não estariam funcionando como um mecanismo
de controle social?
No tocante ao desligamento, o mesmo ocorre quando o coordenador percebe
alguma atitude de “indisciplina” e, dependendo da causa, o desligamento não
precisa ser informado à assistente social da FIA. Do ponto de vista do ECA, a idade
para o desligamento deve ocorrer no mês anterior àquele em que completa dezoito
anos e é dentro desse parâmetro que o programa estabelece seus critérios. Por
exemplo, caso o jovem ingresse no programa aos dezesseis anos, teoricamente ele
poderia realizar dois cursos. Porém, se o mesmo estiver no segundo ano no PRCC e
completar dezoito anos no mês de maio, ele não poderá participar das atividades.
O “fator disciplinar” é o que determina a saída do jovem do PRCC, mas há
tolerância. Nesse caso, o coordenador da unidade militar precisa informar a
situação para a assistente social da FIA. Se a indisciplina for por desacato,
o desligamento é automático, não necessitando informar à assistente a
decisão do coordenador. O correto, acrescentou o tenente, seria comunicar
a assistente social, mas diante de uma situação de desacato, o próprio
coordenador decide. (DIÁRIO DE CAMPO, 29/07/2004)
Sobre a questão dos egressos que participaram de todas as UAs nos últimos
dez anos, alguns dados dão indícios de como se encontram alguns jovens. Segundo
a publicação da Revista Cidadania (2002, p. 08), o programa:
[...] registrou o ingresso de 61 desses jovens em escolas técnicas, 10 em
universidades e colégios militares e outros 60 em cursos preparatórios para
concursos, em diversas áreas. Segundo o Diretor-Presidente da ABRCC,
Coronel Alfredo Sebastião Seixas, do efetivo total atendido de 860
108
adolescentes por ano, meninos e meninas entre 14 e 18 anos, a média de
aprovação escolar alcançou 87%, com 85% de presença nas atividades do
Programa. Mais de 10 desses jovens estão na UERJ e em outras
universidades, onde ingressaram por concurso e fora da cota.
Num breve olhar sobre o fragmento acima e mesmo que o PRCC não se
constitua em objeto de análise, pela amplitude e complexidade das UAs, é
necessário estabelecer alguns paralelos. Se tomarmos em termos quantitativos, tais
indicadores sugerem que os dados registrados pelo programa, ao longo de seus dez
anos, não são significativos para um público de oito mil jovens atendidos. Sendo
assim, 61 jovens em escolas técnicas, corresponderia a uma média de 0,8%; 10
jovens em universidades e colégios militares, a 0,13%. Em termos representativos,
como esses dados são percebidos pelo programa? Se o programa propõe uma
formação profissional como “resgate da cidadania e condição social necessária para
os jovens”, objetivando a sua posterior inserção no mercado de trabalho, o que
esses números, em si, sinalizam? Diante de um Estado, pretensamente mínimo,
num contexto neoliberal, o projeto dá conta dessa problemática? Nessa lógica do
Estado, Passetti (2002, P. 136) também nos forneceu algumas pistas para entender
a “gerência das vidas”. Segundo o referido autor, “[...] O Estado, então, existe como
agenciador produtivo ao lado das empresas e organizações não-governamentais
para administração de corpos desnecessários, trazendo para o centro das
controvérsias a ética da fraternidade”. Ele se refere à triangulação perfeita da
revolução francesa como mencionada por nós no Capítulo 2. Uma suposta
“fraternidade” que conduz os jovens à “tutela” dos outros, ao “arbítrio das
intervenções e decisões alheias”, à “ditadura” dos projetos sociais.
Desde a sua implantação, o PRCC na EsCom não possui um registro dos
egressos sobre as suas condições de vida e de trabalho. Apenas em 2002, o
programa realizou um encontro em que foram convidados os jovens que
participaram de suas oficinas e que, na época, entre 1993 a 1995, a faixa etária
permitida era de 11 a 17 anos. O que eles dispõem sobre os egressos representa
apenas parte das memórias, dos educadores e dos coordenadores, conforme
pudemos observar. De modo geral, o referido encontro deu pistas e de forma não
substancial, quase como um efeito pontual, de jovens inscritos no serviço militar do
Exército. “Temos alunos que estão como militares já efetivos. Então isso é um
ganho. Agora nesse encontro a gente ficou feliz porque os alunos se apresentaram
109
como trabalhando. Nem todos têm aquele emprego que queria. Mas tá trabalhando”,
afirmou em entrevista o primeiro coordenador
45
do projeto. Por que não há um
registro sobre os jovens egressos? Caso houvesse um acompanhamento
sistemático, que variáveis poderiam ser identificadas?
[...] Nós temos ex-alunos aqui exemplares. Voltando então ao resultado
m 3 C /t1Dnlta-xem/trofissio/t /taliza/t te,ta-xe3o a/ttornltdl/tlls eir/t sa/tguirder6(pl)TJ-0.0003 T1470025 Tw 011.725[(uveC /tcaixa/tr)-2( nltmerca/tulta/tueá tr)7(hmeirse ae esa/tnta en7 ent temm 3/t1tceridentif temsr6(pl)T0006 Tc 10.025T*5[(dnos d)5(asos?)escola,( dovaico)5(eriam)7(psos? son)5(o)5(s)-3 Tmeixfirm)7(usos?ito felize)5(s)-3 eriuDtque6(unll)osr6(pl)TJ-0.0003 T3 0.25660.958 -1.1D3 Tm /t1 qugasnlta/tmercad temm a/tá tra tem, i /t1er en7 ent temmnlta/tmercad temm a/t(pl)TJ-0.0001 T05140025 Tw 011.725[(341 tra 5em)6(o. A p)5(asos?ridr /tulte)7(m)6(oe)7(nham am)7(ico)5(er1(snlta/tcurr e55cullta/tele(unp)5(re)5(snha)9(avdere)5(s)-3 uve-4( )]TJ-0.0004]TJ-2.025T*5[(ceridentifojeIegr foiesserpro)5(rnlta-9(muito b)5(o)5(m( da ge)5( te. (MILITAR)e-4( ))TjETEMC /P <</M6ID 3 >>BDC BT/TT1 1 Tf0 Tc 0 Tw 10.02 0 0 10.02 198561 790.0003 Tm( )TjETEMC /P <</M7ID 1 >>BDC BT/TT1 1 Tf0.0002 Tc 93Tc 0 Tw 10.02 0 0 10.02 198544.16-0.003 TC[(c(coC /ta/tnte haviatme/tncio/t ad temmtro/tr)-2(sobtmerca/tul)5( ueá tra tem, pergx-al)teD)7(r6(pl)TJ-0.0003 T033225660.958 -1.1D3 Tuvetiompessata/terevdos 5sam 3/t que72mermm temsr66( os jovqu1(s em/tassarderpel3/t do pro er6(pl)TJ-0.0002 Tc4530025 Tw 011.725[(m[(/t uveC /tcoem der66(hmje. 66(Menci)7(m)6/tu q/tur que n temmtmou /t faz /tresser)7(evantamnha)9(l)5( 6(pl)TJ-0.0001 T05140025T*5[(firvdos 1te)7(e)6(o)e)7(messe )5(c)-3 o)5(m)1(p)5(aompa)7(nham /t1eriatm)7(usos?ito difos 5)9(cil. Um /tul)5(sr66(motivmsros 1t tem)67(r6(pl)TJ39425660.958 -1.1D3 Tque72me)5(r)-2(o elev )5(dltdl) os j)5(s)-3 T)xequ em )5(ssam /tpel3 PRCC. 66(Parderplatar /tssefatltdl)6(pl)TJ-040006 Tc 110025 Tw 011.725[(sse os ou gx-as egrta/te na m/tr)4(esa/tn en7 ag6/tra/tm 3 ca/tpio ent,T)xequ e/tch gx-aarde66(h3o halgu/t sr6(pl)TJ-0.0002 Tc7530025T*5[(minutos, di)7(ouv-mevqu1(s ec /trevivez, po. 6(pl)TJ-0.0006 Tc7492566 Tw11400.144 Taca/ts)-2(o, 3 capio)9( entuve a/tpar6/tu irseum)7(r6(pl)TJ-0.0002 Tc7530025- Tw1140958 -1.144 T os ouqu e/tm/tassfir/tpel3 )xem/tr)-2(o pro, eT)xequ e/t341 tra teavdeir/tmo eletri)7(ci)7(rev/t qa and3Ca/t1)-3 a)-4( )]TJ-0.0003 T 0.2477T*5[(&Vos 5dehando. Ét tedifos 5cil sabe)5(r oT)xequ )5( faz m o)5(s)-3 T)xe gx5(re)5(sgre,)4,)TD(af)5(u o)5(rvdu )5(l/t(pl)TJ-030004]TJ-2.2477T*5[(iro/tr)-2( a/t ad temr.t/t1IÁRIO DE T)xCAMPO, 29/.t/200T)x4R)e-4( ))TjETEMC /P <</86ID 3 >>BDC BT/TT1 1 Tf0 Tc 0 Tw 10.02 0 0 10.02 19429.2018.0003 Tm( )TjETEMC /P <</9CID 4 >>BDC BT/TT1 1 Tf10.02 0 0 10.02 194- T6818.0003 Tm( )TjETEMC /P <</10CID 5 >>BDC BT/TT1 1 Tf-040006 T2 0.2476 Tw 12 0 120.54 404.3730.7003Oouqu fazr, datnteduvesstmercao( ueveis )Tj-640006 T2 8.2566 Tw 10.635 4 T1 trgr frmal ntifvive Td[(exig(nhemento)-4( )TJ 8.256-20.89 Tw 0 635 4 dl)2cta-xltquuser e? S1er e1ouqu m( do prãtzr,eir-4( )TJ80.255792 70.635 4 nheciamnha-8(gistro sga)tcodir en7 65le( ueviifveme5to)-4( )]TJ-0.0001 T72530025-92 70.295 -1.72/tueá themm se os ou as egz, pw (po( dduztado )Tj0.0002 Tc3225620.837.958 0iriesserdiamnssinmpanhamm a)tursgreltado )Tj0.0001 4271.256-20.830.295 -1.724 dlrvdos 1tesme3o pmnstarsuasme5totcocepr enme5t7 65le-4( )]TJ-0.0001 4292.255792 0..635 4 sistro s a)( os jme5t? Ddatnteda bcaixaento)-4( )T102530025-92 0..295 -1.724 ae odizags oda Tdo(pod a)( os jt qaejme5teir-4( )]TJ-0.0001 1013225620.737.958 0lrdergultaruqu ir( dmentee impacrevveis )Tj-0.0001 2126.256-20.730.295 -1.72/tierpmpanhte nasuar frmar en7 enm( dofissin trado .0001 2122.255792 70.635 4 ,m)67(n( entu(poimpotrenhtepaardm( dgm d a)-4( )]TJ-0.0003 019130025-92 70.295 -1.72/iser identrsga)tausga)ter3veis )Tj-5.0003 0169425611 T010.635 4 uturd[(equ e dduzte5tem,hados ods ea)-4( )]TJ-0.0003 01753002[(deraliifde,ho pmvdos2encfveme4/t(pl)TJ-930025-1 T010.295 -1.72/gr rTac egr)escolr? Tm( )TjETEMC /P <</11CID 5 >>BDC BT/TT1 1 Tf0.0001 T048.2476 Tw 12 0 85.08 232.7630.70035.3. AEMERG NCIA DO3 PRC N AESveis )Tj-0.0001 J-930026 T5010.635 4 COM: MEMÓRIASAEM FRAGMENTte5tOS)e-4( ) sfipan a
110
Diante da amplitude e das atividades do PRCC desenvolvidas em várias UAs
do Exército, recorremos à especificidade do referido programa na EsCom não
apenas para uma melhor compreensão, como para delimitação do nosso objeto de
estudo. Assim, buscamos nos educadores e coordenadores, a partir das memórias,
fragmentos de sua história que, ao apelo constante do outro, suscita e confirma seus
múltiplos olhares.
A EsCom, situada na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, numa área
denominada Vila Militar por agregar alguns quartéis tanto do Exército quanto da
Aeronáutica, em 1993 e por determinação do CML, assumia a responsabilidade pelo
acolhimento e pela formação profissional direcionada a crianças e jovens pobres,
oriundos, não apenas da cidade do Rio de Janeiro, mas em torno desta. Na ocasião,
nos meses de setembro e outubro do referido ano, a escola passaria a receber “[...]
um agrupamento de crianças carentes para serem assistidas” (MILITAR).
Tal fato produziu na corporação uma reação de perplexidade, pois sendo um
quartel com características de formação profissionalizante, havia um consenso entre
os militares na época de que esse espaço não possuía condições necessárias para
atender às “crianças carentes”.
Diante da assistência a uma natureza supostamente “bárbara”, temiam-se,
inclusive, os vícios impregnados, não apenas no corpo, mas na alma. Não somente
“perigoso” como uma matéria que habita a alma, mas algo que transcende e ressoa
à sua existência, e o impregna em sua completude. Enfim, o que seria preciso fazer
para reverter um suposto corpo juvenil em situação de risco ou um corpo
dissolvente
46
?
Inicialmente não se chegou bem definido qual era a origem desses garotos.
A idéia inicial era que seria meninos de rua. Padre Severino, tipo. Então
tinha um temor disso. Então a resistência foi essa. O temor inicial. Mas isso
aí dentro da unidade era o desconhecimento. Que em verdade a partir daí já
era determinação do comandante militar do leste. O programa já tava
implantado. O acordo já tava feito. Então cabia a cada quartel cumprir. Essa
era a ordem. Essa reação inicial era que eram meninos de rua, jovens
delinqüentes. Tanto é que quando os garotos chegaram aqui eles
perceberam que não tinha nada, não era nada daquela expectativa de ser
jovens infratores. Tanto é que eles são todos apadrinhados. (MILITAR)
46
Segundo Adad (2003, p. 63), é “[...] aquele que cheira solvente, e não outro. Um corpo que se
movimenta excessivamente e se dissolve no ar, desfaz e refaz a cada enfrentamento com a polícia, a
piedade, a violência, enfim, a morte. O solvente é o ritual que institui o jovem de rua, sua marca.[...]”.
111
Numa espécie de véu nebuloso que abarcava a todos, e diante da sensação
de medo que circundava e penetrava um espaço instituído, indagamos: De quem os
militares estariam falando? Dos anormais de Michel Foucault (2002a)? Havia uma
percepção de que as crianças e os jovens oriundos das ruas, traziam consigo a
amarga vida impregnada de pequenos atos infracionais, de delitos. Além de o
espaço não proporcionar condições para a inserção e a manutenção dos “menores”,
nutria-se, com vigor, uma outra questão: Como “tratá-los” diferentemente dos
militares? Que dispositivos inventar?
Na tentativa de responder a essa indagação, a relação da Corporação com
essa população é reveladora da seguinte lógica:
[...] a gente passou a tratar esse aluno diferentemente do militar. O militar é
um profissional e pode ser enquadrado a qualquer hora. Não teria nenhuma
dificuldade porque há um regulamento. O jovem não. Como o jovem tem
que aprender a ser firme com ele, mas em nenhum momento humilhá-lo ou
hostilizá-lo. Evitar a todo custo a discussão, o bate boca com ele. Tá errado,
tá certo. E eles começavam a assimilar isso também. Diferente da realidade
dele. Pra ele reagir a uma agressão verbal é a coisa mais fácil na realidade
deles. Ao ponto que a gente não gritar com ele, mostrar pra ele que ele está
errado, e ele concordar que está errado, aí sim. Aí eles passavam a
acreditar na gente na maneira como eles eram abordados. (MILITAR)
Aqui é importante tecermos algumas reflexões. No momento atual, em que é
perceptível uma fragmentação e um forte esgarçamento do tecido social, em que os
lugares não estão mais determinados, em que cada desarranjo é uma ameaça ao
todo, a pura exclusão gera uma generalizada ameaça aos incluídos. Não podemos
mais governar pela exclusão: é necessário incluir para conhecer, para controlar, para
normalizar. Ao discutir a arte de governar, Foucault (1990, p. 280) afirma que “[...] as
práticas de governo são, por um lado, práticas múltiplas, na medida em que muita
gente pode governar: o pai de família, o superior do convento, o pedagogo e o
professor em relação à criança e ao discípulo. Existem portanto muitos governos, em
relação aos quais o do príncipe governando seu Estado é apenas uma modalidade.
Por outro lado, todos estes governos estão dentro do Estado ou da sociedade”. Para
Foucault (2002b), trata-se, portanto, de deslocar o conceito antigo de soberania,
para uma nova mecânica de poder que é “inventada”, como sinalizado no Capítulo 2,
nos séculos XVII e XVIII, e que se exerce por vigilância: um poder disciplinar, alheio
à forma da soberania.
112
Nessa perspectiva de captura e controle, abrem-se, na EsCom, espaços para
os anormais referidos por Foucault (2002a), na medida que se traçam e se
desenham mapas da ordem do desejo, da cognição, da estética, da moral,
necessários a uma vida ordeira e segura; e atravessada pela seguinte lógica: “[...] a
gente observou no início que boa parte era agressivo, era ‘selvagens’, nas
brincadeiras. Na hora da refeição era nítido o instinto de sobrevivência. [...] Aos
poucos, a gente foi mostrando como educar, como se portar à mesa” (MILITAR).
Ainda imersos nos dilemas institucionais, em 17 de novembro do referido ano,
um oficial recebera a incumbência de realizar uma missão com dois objetivos:
pensar e estruturar uma coordenação para o PRCC na EsCom. Cumprindo ordens
superiores, esse mesmo oficial buscou constituir uma equipe a partir de alguns
subordinados. Definida a equipe e o espaço para a realização das atividades, a
referida UA passou a receber, inicialmente, crianças e jovens, de ambos os sexos,
cujas idades oscilavam entre 11 e 17 anos conforme mencionamos.
Nesse mesmo período, a Pastoral do Menor e SMAS passaram a realizar a
seleção e o encaminhamento de crianças e jovens para algumas unidades do
Exército. A partir de 1998, o Estado passaria a selecioná-los através da FIA. Sobre o
planejamento geral, a EsCom e as demais UAs devem manter durante as férias
escolares atividades esportivas, culturais e de lazer. No tocante à dinâmica interna
do programa, a própria EsCom estabelece o Quadro de Trabalho Semanal (QTS),
priorizando os projetos Educar e Profissionalizar, porém buscando integralizá-los aos
demais no planejamento do QTS, como podemos evidenciar no ANEXO F.
A despeito do desafio colocado àqueles que direta e indiretamente seriam os
responsáveis pelas crianças e jovens na EsCom, a realidade introduziu para todos
um outro olhar na vida militar. Por se tratar de uma escola com uma concepção
pedagógico-militar, cujo sistema de administração e gestão escolar atua de forma
centralizada, e sem alterar o cotidiano da escola, a equipe deveria adaptar alguns
cursos, a partir de parâmetros pertinentes à educação formal, desenvolvidos pela
EsCom para, em seguida, constituir os cursos de formação profissional.
Quanto ao processo de escolhas dos cursos e para uma tentativa de
amenizar os dilemas que envolviam a definição dos mesmos, inicialmente pensaram
em atividades que as concebiam, na época, como aprendizado e não como cursos
profissionalizantes.
113
Sobre o impacto da verticalização do projeto na EsCom, demarcam-se duas
fases do movimento de implantação do PRCC nesta unidade. Numa primeira,
carpintaria, datilografia, mecânica de auto, informática, eletricista predial e de
audiovisual, passaram a se constituir em atividades dentro das dependências da
escola. Por outro lado, tal tentativa não obteve resultados significativos por uma
série de motivos. Na questão da formação profissional dos jovens, e consonante
com a finalidade da instituição, não havia oficinas adequadas que apontavam,
inclusive, para a falta de técnicos disponíveis para ministrar as atividades, advertia a
coordenação. Segundo, a ausência de motivação dos jovens para determinadas
oficinas. Por fim, um último aspecto sinalizava para a necessidade de regularizar as
atividades de “educação escolar” que eles instituíram nas dependências da EsCom.
Lembro que antes de a gente implantar esses cursos profissionalizantes,
definitivamente, numa ocasião eu escutei na sala de aula um ex-aluno
nosso que está bem graças a Deus, é, questionando a professora. Não
sabia o que tava fazendo aqui porque não tava aprendendo nada. E eu senti
naquela ocasião, eu entendi a mensagem dele. Eu já tinha vontade junto
com a equipe tocar esse profissionalizante pra frente. E a partir daquele
instante que o aluno falou desse detalhe, temos que botar esse
profissionalizante. Aí foi. Esse trabalho não foi fácil porque o PRCC, ele
também é trabalho, ele dá muito trabalho pra gente conduzir os garotos,
atender a documentação. (MILITAR)
No segundo semestre de 1994, quando a coordenação decide pelo término
das atividades, dá-se início à segunda fase caracterizada por eles como de
reformulação. Em 1995, ocorre, portanto, a redução de algumas oficinas,
prevalecendo apenas informática, eletricista residencial e audiovisual, denominadas,
enfim, de cursos profissionalizantes.
No tocante à linguagem presente no curso de informática, ainda
preponderava o sistema operacional DOS-Windows 3.1, sendo substituído mais
tarde por três microcomputadores doados pela ABRCC. Sobre o curso de eletricista
residencial, não houve mudanças porque a EsCom é formada por profissionais na
área de manutenção de equipamentos elétricos e eletrônicos. De audiovisual, o
conteúdo basicamente versava sobre noções de como trabalhar com fotografias,
relevação e filmagem.
Entretanto, e apesar da primeira reformulação em que se reafirmavam os
objetivos propostos pelo programa, a construção pedagógica das oficinas não
estava estruturada. Ainda em 1995, a EsCom criou o PGE cujas bases articulavam
114
didática e pedagogicamente os cursos profissionalizantes. Produzido por toda a
equipe de trabalho, constituiu-se na primeira experiência de reflexão sistematizada,
ao oportunizar uma orientação pedagógica mais definida, ao anunciar cursos
pertinentes ao espaço da EsCom, com conteúdos, metodologia, recursos e
cronograma de atividades que orientassem cada curso, descrevendo, inclusive, as
funções de cada instrutor.
Paralelo ao PGE, elaborou-se o PLADIS, objetivando a regularização de
todas as disciplinas que seriam ministradas por cada curso anualmente. Ambos
sistematizaram o planejamento com o quadro de trabalho semanal, distribuídos e
articulados com a carga horária, a disponibilidade de sala, o instrutor responsável, e
as disciplinas que seriam ministradas ao longo de cada curso.
A partir daí notei que a qualidade do aprendizado do aluno melhorou muito;
e eles passaram a se identificar com as oficinas. Eles começaram a vibrar
com as aulas de informática. O curso de eletricista, num primeiro momento,
que era a parte teórica, básica, e com pouca prática, não encontrou o aluno,
mas a partir do 2º semestre, que era exclusivamente prática, instalar
lâmpadas, tomadas, chuveiro elétrico, eletrobomba, então, conquistou eles
de uma forma espetacular. E de audiovisuais também porque eles
passaram a trabalhar com fotografias, filmar, revelar, copiar fotografias;
fazer filmagem, então eles se realizavam. (MILITAR)
Inicialmente e a partir da introdução oficial dos cursos, o de eletricista
residencial apresentava uma maior carga teórica em relação à prática, o que, por
sua vez, não motivava os jovens. A partir do segundo semestre de 1996, o referido
curso passou a ter uma maior carga horária prática em que eles aprendiam a parte
de instalação de lâmpadas, de tomadas, de chuveiro elétrico, de eletrobomba. De
audiovisual, houve um investimento na ampliação das aulas práticas em que foi
possível trabalhar com fotografias, em laboratório de revelação, fazer filmagem. Ao
final, os alunos produzem um audiovisual como critério de avaliação. Enfim, a partir
de 1996, os cursos profissionalizantes passaram a funcionar efetivamente.
Do ponto de vista estrutural e diante de alguns resultados exitosos, o PRCC
na EsCom passou a se diferenciar pela sua estrutura e formulação de seus cursos
em relação às demais UAs. Um dos aspectos para explicar esse caráter
diferenciador é a característica própria da EsCom que favoreceu à criação dos
mesmos. Assim, a coordenação passou, efetivamente, a implantá-los, seguindo
115
parâmetros definidos por eles como fundamentais na tentativa de propiciar uma
profissionalização, a partir da constituição de cursos em módulos.
Disse-me que hoje não seria possível conversar com os jovens pois
estavam fazendo prova. As terças e quintas são destinadas para a parte
prática do curso, inclusive, para a aplicação de testes de avaliação. Esse
dado era novo para mim. Levou-me então para conhecer os locais onde os
jovens estavam realizando as provas teóricas. Fomos em duas salas. Em
cada uma, tinha um sargento (instrutor) fiscalizando a turma. Me pareceu
tudo muito organizado. Excetuando-se as questões inerentes ao quartel, a
sensação que eu tive é que há um respeito (parte pedagógica) quando
procuram valorizar o conteúdo apreendido pelos jovens. Como nessa
unidade funciona a Escola de Comunicações, as questões de ordem
pedagógica ficam mais acessíveis e fáceis de serem postas em prática,
mesmo que readaptando junto aos jovens. Além das aulas teóricas, eles
têm a prática e, finalmente, a avaliação através da aplicação de provas.
Percebi, também, que o capitão é uma pessoa sempre presente em
qualquer atividade do PRCC nesta unidade. (DIÁRIO DE CAMPO,
06/05/2004)
Paralelo à criação dos cursos, o projeto instituiu também o diploma, um tipo
de certificado de conclusão de curso, que seria concedido ao jovem, a partir de um
modelo já existente dentro da EsCom. Adaptado para os cursos, o diploma entrou
em vigor na medida que havia um programa de ensino implantado na escola e,
posteriormente, publicado num boletim interno da instituição que regula as
atividades do quartel. Nesse sentido, o diploma passaria a ter a “chancelaria” do
comandante, permitindo, inclusive, a realização de formaturas, presente até os dias
atuais.
Lembro-me aqui do que foi dito pelos oficiais na reunião do dia 11/05
quando definimos alguns encaminhamentos para a realização do trabalho
de pesquisa. Segundo eles, no final dos cursos profissionalizantes, é dado
aos jovens um certificado emitido pelo exército onde consta, além das
questões de natureza profissionalizante como a avaliação do jovem e a
carga horária de cada curso, uma menção à conduta de cada um. Para o
capitão, o certificado representa um instrumento importante para qualquer
jovem, já que, numa possível triagem para o serviço obrigatório militar, tal
documento serve como uma referência para a inclusão ou não do jovem nas
forças armadas, especificamente, no Exército. (DIÁRIO DE CAMPO,
28/05/2005)
O ato da formatura, momento simbólico na vida dos jovens, é realizado ao
final de cada ano, quando são entregues aos concluintes os certificados de término
do curso. Por sua característica de rito de passagem, vem-se configurando como um
importante evento para as famílias e a EsCom, contando, inclusive, com a presença
116
do seu comandante, de oficiais e dos educadores. É realizada num espaço interno
da escola num auditório destinado a uma série de eventos.
A partir de 1996, foram introduzidas oficinas de teatro coordenadas por uma
educadora da SEE, com a participação também das jovens onde eram realizadas
apresentações em datas simbólicas como Dia das Mães e Natal, dentre outras.
Sobre a participação das jovens nos cursos, no acordo renovado em 1999 se decidiu
pela transferência destas para uma outra unidade militar que, inicialmente, era a
Escola de Saúde do Exército. Isto não favoreceu à produção de outras encenações
devido à ausência das jovens. Apenas em 2000 e 2001, algumas retornam à
EsCom, de forma voluntária, para compor as personagens. Em 2003, ocorreu o
término das oficinas de teatro em função da falta de recursos da ABRCC.
Atualmente, encontram-se no 1º DSup.
Por outro lado, o projeto aponta para a importância dessas oficinas como
propiciadoras de espaço coletivo onde pais, responsáveis, autoridades civis,
militares e religiosas se fazem presentes. Notadamente, no final de cada ano, com a
entrega dos diplomas e para os jovens, cujo desempenho se destaca, os jovens
recebem uma premiação das autoridades, o que, por sua vez, favoreceu à criação
da figura do “padrinho”. Esse mecanismo apresenta a seguinte característica:
quando o jovem é inserido no projeto, a coordenação busca um militar voluntário
para “apadrinhá-lo”. Acordadas as “filiações”, no encerramento anual das atividades,
o “padrinho” participa da cerimônia, presenteando seu “afilhado”.
Então fica muito bonito. Então é uma festa de interação muito grande.
Sempre foi um momento de muita felicidade pra gente. Nesses seis anos
que eu fiquei à frente do programa, eu observei o seguinte: o aluno que vem
lá, a maioria é do Estado, do epicentro de áreas de alto risco, onde a
linguagem, as reações, as identificações, é a pior possível. Quando eles são
ofendidos verbal e fisicamente, discriminados, ameaçados, eles começam a
enxergar aqui no programa, algo muito importante que é chamado de
organização. Eles começam a ver que o horário aqui começa a ser
cumprido; que as brincadeiras têm hora; que eles devem ter postura em
sala de aula; compromisso com o que se está aprendendo; compromisso
em uma formatura; sempre participando das formaturas militares; então ele
começa a ver a organização; tem um quadro de trabalho semanal que
regula as aulas, e vê que na 2ª ele já vê as aulas da semana. E realmente
ele constata que naquele dia, naquela aula, o instrutor tá lá para dar aquela
matéria. (MILITAR)
Ao pensarmos essas questões, num registro em que possamos combinar
disciplina e controle, torna-se importante indicarmos a extensão de um certo
117
dispositivo militar: a vigilância permanente. Aqui, consideramos oportuno retomar o
trabalho sobre as noções de exclusão e inclusão desenvolvidas por Foucault
(2002a), vistas como duas formas explicativas de constituição de relações de poder-
saber.
Assim, ao objetivarem os jovens em práticas de exclusão, por meio das quais
se estabeleceria a oposição entre o criminoso e o bom rapaz, essa mesma vigilância
passa a esquadrinhar, a produzir um saber sobre um corpo juvenil, não a partir de
uma estratégia que toma o corpo em si, mas que estabelece uma “[...] multiplicidade
de processos muitas vezes mínimos, de origens diferentes, de localizações
esparsas, que se recordam, se repetem, ou se imitam [...]” (FOUCAULT, 2002a, p.
119).
Dentro da proposta pedagógica na EsCom, a prática esportiva passou a
integrar a escala de atividades semanais dos jovens. Foi desenvolvida, ao longo dos
anos, desde 1993, uma série de modalidades como corrida, saltos, levantamento de
peso, o que favoreceu, inclusive, a participação de vários jovens nas competições da
ABRCC. Para o PRCC, os cursos profissionalizantes, as oficinas de teatro, as
atividades desportivas, representavam o fator de expressiva motivação para os
jovens.
A escola sempre se saiu vencedora nessas competições. O desempenho
sempre foi espetacular. Praticamente nós só perdemos uma competição
que foi a primeira, a partir daí nós ganhamos todas as competições. Em
1999 a gente teve a felicidade das meninas que ainda estavam conosco,
elas ganharam medalhas dos 1º e 2º lugares. Não ganharam em 3º porque
uma aluna só podia concorrer em apenas duas provas. Então isso foi
espetacular. Então isso foi um tipo de atividade que contribuiu muito para a
auto-estima dos alunos. (MILITAR)
Nessas diferentes produções de subjetividades, em específico, do jovem
trabalhador, e objetivado numa suposta virtualidade perigosa, o dispositivo da
disciplina e do controle são fundamentais, como demonstra o depoimento a seguir:
O nosso aluno aqui, que o índice de indisciplina aqui na Escola, de exclusão
por indisciplina aqui, pode dizer que é muito baixa. Mas por causa desse
trabalho que requer da gente uma vigilância permanente. Eles não podem
ficar agrupados ou às escondidas. Aí eles podem se identificar com uma
facção criminosa. As brincadeiras violentas mais afloram num segundo!
Então quando eles sentem o tempo todo que estão as nossas vistas. Não é
que vão ter sua liberdade tolhida não. É mostrar que aqui dentro é um
quartel, que ele tem normas a cumprir. (MILITAR)
118
De fato e sobre tais questões, indagamos: Não estaria o jovem sendo
constituído, numa combinação de disciplina e controle, em suas dimensões afetivas,
psicológicas e comportamentais? Nessa combinação de processos de produção e
regulação, se há algo que “aflora” nos jovens, é preciso produzir a docilidade do
corpo a partir de um certo funcionamento em rede. “Não há espaço para divulgação,
atritos de facções criminosas. Atritos violentos, agressão violenta? Raríssimo. Então,
a realidade deles é uma realidade bem como se diz, se eles estão agrupados, essa
violência aflora” (MILITAR).
Nesse sentido, é como se houvesse de um lado, e em qualquer espaço da
EsCom, um corpo “[...] preso no interior de poderes muito apertados, que lhe
impõem limitações, proibições ou obrigações”, como nos aponta FOUCAULT
(2002a, p. 118).
De outro, nas relações entre poder e saber, antes que algo sinalize para a
manifestação de uma periculosidade, é necessário lançar mão de um conjunto de
tecnologias objetivando nos jovens a produção de certas qualidades, características
e habilidades que permitam “[...] o controle minucioso das operações do corpo, que
realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de
docilidade-utilidade [...]” (FOUCAULT, 2002a, p. 118), por meio, inclusive, de uma
educação baseada na teoria do espelho para que tenham como exemplo “[...] a
postura nossa, o horário, a maneira de vestir, a expressão, a atitude de respeito. A
gente começa esse trabalho de reeducá-los. Comportamento numa fila, durante uma
refeição, do banho, durante a prática de esporte” (MILITAR).
Baseados ainda em Foucault (1997), é importante recorrermos à idéia de
governo para entendermos as implicações da formação profissionalizante na
constituição de jovens trabalhadores. Para o referido autor, a arte de governar e que
se atualiza nessas práticas educativas, implica a atividade de afetar os jovens em
suas condutas para que se tornem um certo tipo de sujeito. O nosso argumento é
que este programa, com suas ferramentas pedagógicas pautadas em seus objetivos,
princípios, procedimentos e estratégias de cunho pedagógico-militar, além de
constituírem um “modo-jovem-trabalhador” direcionado para a disciplina e para a
interdição de seus corpos, acaba por produzir uma série de saberes estruturantes na
forma como lida e gesta a vida dos jovens. Como afirma um atual coordenador: “[...]
você não pode deixar eles sozinhos, no rancho, no vestuário, na sala de aula ou nas
atividades desportivas, a liberdade é sempre vigiada” (DIÁRIO DE CAMPO,
119
29/07/2004). Tal afirmação surgiu de um encontro com o coordenador numa
situação em que o programa se encontrava em recesso de quinze dias para o mês
de julho.
Manhã produtiva é a sensação de que eu tenho em relação ao encontro
com o tenente hoje. É impressionante retirar do meu olhar o vício
contagioso que tudo busca numa primeira conversa, num primeiro contato, e
que parece cegar aquilo que não é constituído apenas pela visão, mas por
outros sentidos. Um vício que até engana o meu próprio olhar, o meu sentir,
o meu afetar-se em tantos encontros e desencontros da vida. Para além das
informações que busquei nesta manhã, me alegra e até mesmo me sinto
estimulado ao perceber o quanto da minha inserção nessa unidade militar,
específico ao PRCC, tem me tornado um sujeito-pesquisador cada vez mais
implicado, não apenas com os jovens, mas com os educadores e
coordenador de uma forma geral. (DIÁRIO DE CAMPO, 29/07/2004)
Em linhas gerais, de 1993 até o ano de 2004, o PRCC na unidade da EsCom
contabilizou uma média de 400 jovens que passaram por seus cursos. Não podemos
deixar de observar que o quantitativo representa, também, o universo dos que
deixaram o projeto sem justificativa de ausência, e os que foram desligados por
indisciplina. Segundo a coordenação, há registros de jovens que abandonam o
programa sem nenhuma explicação. Eles não conseguem retorno nem mesmo da
família sobre a saída do jovem. Instaura-se um hiato entre o programa e a família.
Em que medida o programa poderia construir outras formas de relação com as
famílias que não se pautassem apenas pela burocratização? Na prática, de que
modo o aspecto quantitativo da ação poderia voltar-se para a análise qualitativa do
atendimento e do redimensionamento das ações?
Capítulo 6
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O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás ...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto, [...]
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo ...
(Fernando Pessoa)
Como a epígrafe acima, acreditamos na eterna novidade do mundo como um
devir de surpresas e de lampejos a cada olhar. A cada desejo, desejar; a cada
sonho, sonhar; a cada encontro, encontrar; a cada sentido, sentir. Sentir a
invisibilidade que atravessa o nosso trabalho de campo e evoca em nós,
pesquisadores, uma análise sempre inacabada das nossas leituras.
Parecendo-nos como um eterno retorno da diferença
47
, o nosso diário
configura a cada olhar suscitado pelos movimentos de nossas mãos, de nossos
dedos, uma descoberta a cada leitura. Uma leitura que solicita outras ferramentas de
“fazer-pensar” com a razão sensível, duvidosa, inquieta, ruidosa, melancólica,
ansiosa, que escape a uma racionalidade puramente instrumental. Como já
assinalamos, não estamos procurando a essência, a origem que nos ligaria a algo.
47
Conceito filosófico formulado por Friedrich W. Nietzsche, em 1881, defende a tese de que o mundo
passa indefinidamente pela alternância da criação e da destruição, da dor e do prazer, do bem e do
mal. Tudo retorna sem cessar. In: SILVA, Mário da. Nota do tradutor a NIETZSCHE, Friedrich W.
Assim falou Zaratustra. Um livro para todos os homens. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
121
Pensei hoje em retomar a discussão sobre os nossos encontros com os
jovens. Saí de casa com esse desejo rondando os meus pensamentos. São
tantos pensamentos, que sinto o quanto da minha implicação nessa
pesquisa dentro de uma unidade militar, que os levo comigo para continuar
compondo o caos dos fragmentos que irão constituir a memória de tantos
afetos, fatos, de tantas vidas, que se cruzam com a minha. Confesso, para
mim mesmo, que estou desanimado hoje. Mesmo assim, chego às 08h no
projeto. Na passagem pelos primeiros soldados, supostos “guardiães da
ordem” da Escola de Comunicações, deparo-me com uma abordagem, que
não lembro mais, de um possível cabo ou sargento que viera ao meu
encontro, indagando para onde iria. Minha inocência traiu os meus olhos.
Achando que já estaria codificado e decodificado aos olhares de alguns
militares e do “chefe de dia”, não havia necessidade para informação para
onde estaria me dirigindo. Diante da abordagem, respondi ao “chefe de dia”
que iria ao PRCC. Enfim, disse-me tudo bem, um cabo ou sargento, não
lembro. Resolvi, então, respirar fundo e caminhar em direção à
coordenação. Retirando a rigidez naturalizada do espaço e de possíveis
olhares que, no invisível, parecem acompanhar o meu trajeto, o lugar é
lindo! Além dos enormes espaços que caracterizam essa unidade, há
recantos verdes, com uma imensa área para prática de esportes, que o meu
caminhar vai circundando parte da geografia da EsCom. (DIÁRIO DE
CAMPO, 16/07/2004)
Pensar nos sentidos atribuídos pelos jovens à formação profissionalizante
num espaço militar é, no mínimo, poder articular a categoria trabalho a outras
temáticas afins. Ao colocarmos a nossa escuta nos modos de experimentar juvenil,
percebíamos que éramos atravessados, num certo movimento de idas e vindas, pelo
que dizíamos, sentíamos e pensávamos.
O olhar do educador sobre os jovens; as implicações de suas práticas
educativas; os dilemas da experiência docente no programa; e a relação de poder
entre o educador e os jovens, são alguns fios que atravessam a presente discussão,
ao utilizarmos as análises a respeito da nossa implicação.
Nesse campo de tensões múltiplas e, no contexto da nossa pesquisa, não
poderíamos perder a dimensão dos educadores que, juntamente com os militares,
são os responsáveis institucionais pelo acompanhamento e formação dos jovens,
cuja responsabilidade parece projetar-se numa mescla de assistência e de
mapeamento sobre o que eles pensam, fazem, desejam.
Uma lógica de assistência que, ao atravessá-los, se desdobra numa
perspectiva movida pela solidariedade tal como pensada pelo liberalismo de “ajuda
aos mais necessitados”, aos mais pobres.
Durante o percurso até o rancho, o capitão continuou contando as “glórias”
que o PRCC faz na vida dos jovens. Relatou um caso de um jovem negro
que tinha chegado ao projeto com todas as carências possíveis. Destacou a
precariedade de sua saúde bucal. Como na época o quartel não tinha
122
convênio ainda para atendimento odontógico, ele mesmo (o capitão)
conseguiu com uma policlínica na cidade os serviços. O que mais me
impressionou foi a alegria do capitão em ter reabilitado o jovem através da
extração de todos os seus dentes, da arcada superior. A prótese foi a saída,
afirmou. “Ele ficou tão contente”. “Consegue sorrir sem medo”, acrescentou
o oficial reformado. Que absurdo!? Tive que perguntar: não era possível
restaurar os cariados e outros comprometidos? Não. A saída foi mesmo a
extração. Ah! Se ele estiver no rancho, vou te apresentar. Você vai ver
como ele está contente. Falei, tudo bem! Na chegada ao rancho, já estavam
todos os jovens que conheci na sala de aula, juntamente com alguns
soldados, suboficiais e o educador [...]. (DIÁRIO DE CAMPO, 24/03/2004)
O desejo pela desconstrução, pela ruptura, diante do paradigma de que
aprender é repetir o já repetido, é dizer o já dito, é pensar o já pensado, fazia com
que acreditássemos numa escuta pelo entrelaçamento de diferentes modos de
existência: o ritmo da vida era pensado a partir de um certo caos, de uma vida
entendida como processo de atualização, de produção. Segundo Barros (2000, p.
34-35), e nessa perspectiva:
[...] redimensionar nossas práticas implicam, necessariamente, recusar os
lugares fixos e as verdades a serem descobertas, ocupando a posição de
intelectual nômade, que desmonta verdades e faz toda afirmação ser
provisória. As perspectivas cientificistas acabam por retirar a potencialidade
da criação e da ruptura. Não há verdades a serem descobertas ou
transmitidas, só existem máscaras e, se tudo é máscara, a possibilidade de
mudança nos pertence.
Desse modo, entendemos que muitas questões ainda lampejam em nossas
mentes em que memórias coletivas e individuais fluem e “quebram” a certeza de que
o que nós pensamos não é exatamente como pensamos. Acreditamos em
dispositivos em que o fluxo rompe com a seqüência dos fatos, num certo cenário em
que os nossos olhares, ao se perderem na multiplicidade de pessoas, eram
atravessados pela ordem e desordem, pelo desejo e frustração, pelo medo e ruptura,
pela aproximação e repulsa, pela proibição e transgressão. Um cenário que traduz,
expressa e transversaliza, certamente, na sua complexidade, os movimentos do
programa na EsCom.
Compreendemos que outras formas de apresentar um “fluxo pesquisa” sobre
uma parte da juventude pobre podem ser percebidas por alguns fragmentos de
123
nossas memórias evocadas nas “línguas pensadas, linguagens faladas” na acepção
de Walter Benjamin
48
. Numa experiência em que a nossa narrativa:
[...] não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como
uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador
para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do
narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso [...]. (BENJAMIN, 1994, p.
205)
Na sua filosofia da linguagem, Benjamin (1994) pretende ir contra qualquer
interpretação habitual. Tudo, percebido por si, rumava, certamente, num movimento
diferente; havia uma novidade em sua forma de pensar o mundo, o homem. É por
isso que a noção de história defendida por Benjamin é como uma tarefa nunca
concluída.
Ao discutir as teses sobre o conceito de história em Walter Benjamin,
Gagnebin (1999) chama a atenção para as formulações do referido autor, afirmando
que o seu pensamento não pode ser entendido nos marcos nostálgicos de um
retorno ao começo cronológico. Pelo contrário, menciona que, na sua filosofia da
história, Benjamin propõe que:
[...] a exigência de rememoração do passado não implica simplesmente a
restauração do passado, mas também uma transformação do presente tal
que, se o passado perdido aí for reencontrado, ele não fique o mesmo, mas
seja, ele também, retomado e transformado. (GAGNEBIN, 1999, p. 16)
Ao propor uma teoria crítica da cultura e da modernidade, Benjamin aponta
para um outro conceito de história que, não privilegiando uma imagem eterna do
passado, a concebe articulada e narrada à experiência. A lógica que é impressa por
tal historiador é estranha ao passado, já que a época pretérita, quando vivida –
qualquer que seja a época – se mostra complexa, rica de virtualidades, sendo,
portanto, impossível de ser apreendida por simples conexões, tal como o faz o texto
da história contínua, regular.
Segundo Muricy (1999, p. 46), em carta a Hugo von Hofmannsthal, em 1924,
Benjamin irá definir o princípio que fundamenta o seu pensamento. “[...] É no espaço
48
Na sua obra Alegoria da dialética: imagem e pensamento em Walter Benjamin, Kátia Muricy (1999)
pretende discutir alguns temas da filosofia benjaminiana ao assinalar que os seus temas que se
repetem ao longo de sua obra, são como fragmentos de um todo que podem ser sempre rearticulados
dentro de um novo conjunto.
124
da questão da linguagem que se exerce a atividade filosófica. A tarefa da filosofia é
uma ‘volta às palavras’ [...]. E, neste retorno, o objetivo é salvar as ‘formas de vida
de uma língua’, libertando as palavras de sua ‘servidão terminológica’[...]”. “Servidão”
que parece se reafirmar na prática educativa do programa ao anunciar que “[...] o
nosso jovem não tem hábitos, até porque a vida deles é muito dura, difícil. É uma
família que não tem estrutura saudável para encaminhá-los, e eles estão meio que
perdidos realmente” (Educadora A). Na visão ainda dessa educadora, seria a “falta
de hábitos” o resultado da pobreza e da família sem uma “estrutura saudável”?
Utilizando-se de metáforas que, na busca de outros significados se
transformam em alegorias, Walter Benjamin pretende romper com qualquer teoria da
linguagem que associe a palavra humana a funções meramente pragmáticas, uma
característica burguesa da linguagem.
[...] ao caracterizar a linguagem humana como a única capaz de dar nome
às coisas, isto é, de enfatizar o aspecto nomeador da linguagem, Benjamin
está dando seqüência a sua crítica à concepção de linguagem como meio.
Considerar a linguagem a partir de seu uso trivial, na experiência cotidiana
de troca de informações ou na comunicação de conteúdos verbais de
qualquer natureza, é próprio do que Benjamin chama de concepção
burguesa. (MURICY, 1999, p. 101)
Ressaltamos que não se trata de buscar um começo que dá origem aos
nossos pensamentos, mas entender, a partir de uma questão central, como os
jovens se colocam numa experiência profissionalizante. Entendermos, para além de
uma suposta unidade de juventude, em busca de outras dimensões da vida diversa
dos jovens inscritos no PRCC.
São gerações e gerações de dissociação do núcleo familiar. De que os
valores são outros. Outros valores que não são os nossos que viemos
passando, portanto, ao longo dos anos. Então o trabalho é como passar.
Então esse momento, até mesmo eu converso com os colegas com que
trabalho, que a gente vê esse momento de nós pararmos para observar e
saber como atuar. Eu não tenho segurança nenhuma e nem sei interferir. Já
soube. Agora não. Agora devemos perceber e criar um outro caminho. Os
jovens, específico do PRCC, ele é oriundo dessa realidade também.
(Educadora B)
Afetados pelo desencanto, pelas incertezas, pelo descrédito de suas ações,
como pensam seus limites? Se pautam suas ações por manuais didáticos e
psicopedagógicos, onde o olhar sobre a criança e o jovem aponta para uma
125
perspectiva biologicista, como pensar essas questões que, para os educadores, não
correspondem à complexidade dos processos de produção de subjetividades no
mundo
49
em que, em especial, os jovens vivem?
Além desse aspecto, percebíamos que havia uma implicação na forma como
os educadores poderiam ou não estar pensando suas práticas. É como se
existissem dois mundos circundando a vida dos educadores e dos jovens. De um
lado, o limite diante daquilo que eles não poderiam responder, ou até mesmo, um
não “saber-fazer”, gerando uma angústia naquele momento; ou “um não abrir mão”
de uma certeza cristalizada diante de um olhar que naturalizava os jovens. De outro,
as demandas cotidianas dos jovens por respostas aos seus dilemas. Sob esta
perspectiva, indagamos: Qual a implicação de suas práticas educativas numa
dimensão histórico-política que os constitui e os atravessa?
[...] Agora, fundamentalmente, o único instrumento que acho e considero é o
amor. É tratar o indivíduo como indivíduo. Eu acho que o único instrumento
que esteja atingindo é a emoção até mesmo pra você saber o que este
indivíduo está trazendo. Vejo essa questão com otimismo em termos de
trabalho. O nosso trabalho para com esses jovens, e aí envolve a resposta
de todo segmento do trabalho, trabalho como um sonho. Que forma todos
devem sonhar. [...] Eu já tive alunos que estão no ensino médio, que estão
entrando para a universidade. Eu encontrei um dia desse trabalhando numa
farmácia mas eu encontro jovens trabalhando próximos à subida do morro,
guardando carros. E nesse encontro eu tive até receios, mas me senti
segura porque eu sabia que eu tinha passado pra ele uma relação afetiva
boa, né? Foi interessante ele virar pro grupo, nesse dia eles estavam com
capuzes porque era um dia de chuva, eu fiquei meio assustada porque eu ia
entrar no carro, aí um virou pra o grupo e falou, não cobra o estacionamento
dela não, essa é a minha professora. Sabe, o que eu dei a ele? Eu só dei
pra ele um olhar que o tratasse como gente, não que ele não me inspire até
medo, mas a relação de amor pra eles, eu acho que é fundamental.
(Educadora B)
Sob o manto do ensino a partir do “amor ao próximo”, ainda é possível
conceber os jovens como imaginados pelas teorias, a partir do século XVI até os
nossos dias? Erasmo de Rotterdam (2004), no século XVI, chegou a afirmar que
49
No mercado globalizado do capitalismo tardio do século XX e início do século XXI, não podemos
perder a dimensão que são postas em circulação imagens e significados sobre a infância e a
juventude, e que colocam a escola cada vez mais numa espécie de “campo minado”. Nos modos de
produção capitalista que tudo inventa, Guattari (2000) nos alerta sobre como as crianças e os jovens
são, na atualidade, situados em seus mundos. Sobre a criança, o referido autor ressalta que seu
tempo “[...] é passado principalmente diante da televisão, absorvendo relações de imagem, de
palavras, de significação. Tais crianças terão toda a sua subjetividade modelizada por esse tipo de
aparelho” (Apud GUATTARI & ROLNIK, 2000, p. 32-33).
126
sem uma “boa” educação, o homem se degrada-se; propôs, como medida
preventiva, manusear a cera, enquanto mole, a modelar a argila, enquanto úmida; a
encher o vaso de bons licores, enquanto novo; a tingir a lã, quando sai nívea do
pisoeiro e, ainda, isenta de manchas.
Hoje, os acontecimentos da vida, refiro-me aqui aos do tenente, pareciam
ter encontrado uma terra fértil para expor as suas angústias. Referindo-se a
um jovem egresso que havia se destacado no PRCC, foi tecendo a sua fala,
mesmo sinalizando que iria ouvir as minhas dúvidas. No início dessa
semana, recebeu uma ligação telefônica da mãe desse jovem, preocupada
com a saúde do seu filho. Segundo informou o tenente, o jovem vem
apresentando um quadro de perda de memória, associado a momentos de
angústia. Como foi um jovem que recebeu alguns prêmios durante a sua
permanência no projeto, a equipe estava surpresa com tal fato. Outro dado
que preocupava a mãe do jovem era que o mesmo iria passar pelo processo
seletivo para o serviço militar “agora” em julho. Diante do problema e para o
tenente, não havia mais a possibilidade do jovem ingressar no Exército. Ao
mesmo tempo que buscava ajuda de um neurologista para avaliar tal
quadro, a mãe havia falado também com a educadora nesse mesmo dia,
antes mesmo da minha chegada ao projeto. Segundo o tenente, a
educadora sugeriu a mãe do jovem para levá-lo a uma “consulta espiritual
numa mesa branca” que poderia amenizar o problema da família; sendo a
educadora iria levar a família para os “cuidados” de um grupo espírita do
qual faz parte. Diante desse fato, percebi no tenente um olhar cético em
relação à proposta da educadora. Mencionou, inclusive, que estava
decepcionado porque o jovem tinha um “bom conceito” dentro do projeto.
(DIÁRIO DE CAMPO, 23/07/2004)
Sabíamos e sentíamos que não estávamos neutros aos questionamentos dos
educadores: havia um “desejo-implicante” sendo evocado no “entre-nós”? Seria
interessante estender a nossa escuta aos movimentos, aos fluxos (GUATTARI,
2000, Apud GUATTARI & ROLNIK, 2000), das relações de forças que compõem os
modos de relação do programa na EsCom? Com os educadores procuramos
exercitar, especificamente, o “dom de ouvir”, pois quanto “[...] mais o ouvinte se
esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. [...]”
(BENJAMIN, 1994, p. 205), como ocorreu ao final do encontro casual pelos
corredores, num dos momentos de diálogos inesperados:
Antes de terminarmos a conversa, trocamos telefones e agendamos para o
dia 11/05, às 14h. Logo em seguida, uma educadora me pediu para esperar
um pouquinho que gostaria de falar comigo. Respondi com um sorriso
afirmativamente. Terminada a conversa com o tenente, fui ao seu encontro.
Soube que gostaria de saber se a parapsicologia seria uma ciência. Tentei
explicar, mesmo não sendo desta área e com cuidadosas colocações,
dizendo que há grupos que se debruçam sobre esse assunto, mas não
necessariamente debatido e produzido pela academia. Tentei fazer um
paralelo com a prática da acupuntura que, antes da legalização concedida
127
pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), ocupava apenas os bastidores
da prática médica. Talvez um dia, mencionei, a parapsicologia possa ser
debatida numa esfera mais ampla, e com diversos setores da sociedade.
Aproveitou, também, para me mostrar uma atividade de pesquisa, com
característica quantitativa, sobre o que os jovens desejam numa carreira
profissional. A maioria respondeu que gostaria de ser militar; e o que não
gostaria, era ser professor. Um levantamento curioso esse realizado pelas
educadoras. Talvez devesse inferir algumas considerações sobre essas
questões, mas não irei. Aqui talvez fosse interessante pensar numa
linguagem que reproduz, possivelmente, não o desejo dos jovens, mas do
próprio programa, a partir do instituído pelo Exército. Seguir a carreira
militar, conforme detectado no levantamento das educadoras, confere aos
jovens uma sensação de não se sentirem desfiliados em relação à própria
instituição. Diante de poucas alternativas, é a mais próxima de sua
realidade. Não fiz nenhum comentário. Talvez as tenha decepcionado. Por
outro lado, também, acredito que a educadora ao ouvir a minha conversa
com o tenente, se sentiu motivada para falar um pouco de seu trabalho.
Legal! Pelo menos houve uma primeira abertura com ela e a outra
educadora. Será que é isso mesmo? Já estávamos próximo do meio-dia,
me despedi de todos e voltei para casa pensando na conversa. (DIÁRIO DE
CAMPO, 06/05/2004)
Não apenas pelas palavras perdidas e desencontradas pelos corredores ou
pelos imensos espaços que configuram a EsCom, certamente, não tínhamos o
controle sobre a nossa implicação, ou seja, com os riscos que isso implica (PASSOS
& BARROS, 2000). Talvez funcionássemos como “catalisadores”, como um corpo
que produz análise, mas também é analisado pelo outro. Entendíamos que havia
uma concepção de educação e de trabalho direcionada a um “tipo” de jovem.
O Educador C falou um pouco do seu trabalho, que tinha feito a graduação
em Biologia e agora era professor da rede pública. Estava no projeto por
conta de um convênio do estado com o PRCC, há quase dois anos. Falou
com entusiasmo do projeto, mas não deixou de colocar alguns limites que
ele vem percebendo, enquanto educador, junto aos jovens. Queixou-se que
não consegue dar retorno aos problemas familiares que a maioria dos
jovens trazem para as atividades, e também de questões relacionadas à
sexualidade. Mencionou que gostaria de conhecer alguma forma de ajudá-
los neste sentido, mas sentia-se inútil. Segundo sua fala, isso é freqüente. É
exatamente essa continuidade que tanto o incomoda. Fiquei pensando
comigo mesmo: esse dilema do educador já o conheço por outros canais. É
verdadeiro e mostra o quanto cada projeto deve buscar saídas diante de
várias questões que vão surgindo ao longo das atividades. A sensação que
tenho é que o PRCC, de uma forma geral, utiliza-se da idéia de ocupar o
tempo ocioso do jovem pobre, para a partir dessa realidade, impor as suas
“verdades” de civismo, moral e ética? (DIÁRIO DE CAMPO, 24/03/2004)
Nos fragmentos da nossa memória, é oportuno situarmos alguns movimentos
suscitados por esse Educador C na tentativa de sermos, naquele momento, um
“lampejo coletivo” para as suas angústias. Após o término do nosso encontro com os
oficiais sobre a viabilidade da pesquisa, em março de 2004, um educador nos
128
procurou, perguntando se tínhamos alguma literatura sobre a juventude que
pudéssemos disponibilizar.
“Claro. Temos e podemos disponibilizar”, afirmamos. Após os encontros com
os jovens, às vezes acabávamos por estabelecer alguns diálogos que, em sua
maioria, redundavam nas dificuldades, nos percalços, na angústia por “não saber”
lidar com os jovens. Sobre a literatura juvenil, Walter Benjamin significava, também,
a primeira tentativa para que, juntos, pudéssemos pensar.
Se sua questão inicial remetia à família e à sexualidade dos jovens, a partir de
nossos encontros, talvez outras demandas apresentassem força na medida que o
referido educador percebia que podíamos “pensar juntos” a sua prática e a forma
como ele lida com essas questões. Entretanto, o impasse sobre diferentes “visões
de mundo” parecia estar colocado. De um lado, um educador, biólogo, e de outro,
um pesquisador, tentando entender os sentidos que os jovens atribuem à formação
profissional.
Talvez tivéssemos produzido outros atravessamentos desestabilizadores
como a surpresa do educador, quando não havia respostas às suas indagações
sobre os jovens. Seria a nossa “voz muda” a diferença (já que privilegiávamos os
lugares indefinidos), algo que produzisse ruptura com o equilíbrio? Possivelmente,
as suas dúvidas representavam a existência de um comportamento, uma conduta,
que tomada como um sintoma de “anormalidade”, deveria ser localizada, antes da
aplicação das técnicas de cura e do controle. A informação inicial, ainda inscrita na
verdade do Educador C sobre o jovem, soava como uma solicitação de “reparo
sobre um corpo juvenil e suas engrenagens”.
Hoje, revendo esses momentos, percebemos o dilema que circunscreve um
profissional em sua prática educativa. Será que ele também percebia o limite do
nosso trabalho? Acreditava que tínhamos o domínio dos especialismos da psicologia
com relação aos modelos de atendimento clínico ou de acompanhamento
pedagógico? Afinal, outras questões também estavam nos mobilizando no momento
da pesquisa. Pensar analiticamente cada momento na EsCom para nós se constituía
em matéria-prima para rever as nossas atitudes e falas; o que escutávamos e como
poderia se dar essa escuta num intervir que não é o do tempo seqüencial.
Nessa experiência pelo inesperado, pela surpresa, pensávamos no devir
deleuziano que, como Benjamin, embora cada um ao seu modo, não é o da história
dos jovens portadores de uma virtualidade perigosa, como citado no Capítulo 4.
129
Até o momento não sabíamos se deveríamos permanecer em nosso lugar:
desejar ou não desejar conhecer parte de sua realidade, de sua história. Se, em
algum momento, o nosso poder-saber poderia se evidenciar, sentíamos que algo
poderia ser partilhado, independente da situação em que ambos se encontravam.
Nesse campo, que poderíamos definir como relações de luta e de poder, Foucault
(1974, p. 17) propõe, baseado em Nietzsche, que se quisermos entender como o
conhecimento é fabricado, produzido, devemos entender quais são as relações de
luta e de poder. “[...] os homens entre si se odeiam, lutam, procuram dominar uns
aos outros, querem exercer, uns sobre os outros, relações de poder que
compreendemos em que consiste o conhecimento”.
Talvez estivéssemos nesses encontros “únicos” tentando conectar passado e
presente na medida que a lembrança “[...] do passado desperta no presente o eco
de um futuro perdido do qual a ação política deve, hoje, dar conta. [...]” (GAGNEBIN,
1999, p. 89). Retomar não no sentido de buscar algo que tenha se perdido no
passado, mas, como um lampejo na coletividade, ressignificar sentidos postos, em
especial, na prática do educador.
De qualquer forma, sentíamos que o presente poderia penetrar na sua
opacidade, para retomar o fio de uma história que havia se exaurido, como assinala
Gagnebin (1999). Acreditávamos na afirmação de modos de pensar que se
apresentassem:
[...] como problema, como multiplicidade dispersa, onde a pergunta não
cessa de se mover e as respostas se transformam, incessantemente, em
novas perguntas. Não se trata de procurar respostas universalizantes e
totalizadoras, e sim de poder acompanhar movimentos do cotidiano
educacional – na escola, na rua, na fábrica, enfim, nos diferentes espaços –
e produzir um pensamento problematizante. Procurar provocar o debate, de
forma que cada aspecto, analisado, se desdobre em infinitos pontos.
Diríamos, como Nietzsche, que a interrogação é uma das formas de nos
tornarmos “mestre e senhor de algo”. Fazer crescer o desconhecimento
como parte do conhecer. (BARROS, 2000, p. 33)
Ainda o Educador C, em seus relatos, narra a experiência de crescer em
áreas consideradas de “risco” na cidade do Rio de Janeiro. Evocando em suas
memórias alguns fios de sua história, seu olhar tornava-se aguçado e evidenciava
um olhar “sensível” à realidade dos jovens. Nessa dimensão, essas memórias e “[...]
as narrações – coletivas e individuais – são recortes e versões feitas nas múltiplas e
infinitas possibilidades de combinações e implicam perspectivas em que do
130
presente, os sujeitos redescobrem o ontem com os olhos do amanhã”, assinala Célia
Linhares (2001, p. 42). Dos fatos passados, recordava o Educador C, o mundo
incongruente do jovem-adolescente, a sedução que o tráfico de drogas exercia
também sobre ele e seus amigos. Em relato contundente, afirmava que, para alguns,
a vida já tinha tomado “seu rumo”. “Cara, já perdi alguns amigos”, afirmou certa vez
num tom pessimista. Nessa produção de “subjetividades desviantes”, a figura do
“bandido” coloca-se como uma alternativa real para a maior parte da população
masculina jovem, pobre e marginalizada. Mesmo aqueles que mantêm vínculos com
o mundo da legalidade, geralmente, admitem a possibilidade de ingresso na vida da
transgressão e do crime (VELHO, 1996).
Era como se o cotidiano em que “agora” estamos, uma imagem “banalizada”
ainda ressoasse como numa espécie de “paisagem comum” que sobrepõe crianças
e jovens pobres
50
, com maior expressividade, nas grandes cidades brasileiras.
Expostos e alvo de assédios, certamente, pela dinâmica perversa do mercado do
tráfico de drogas, suas vidas espraiam-se nas favelas, territórios de exclusão e de
violência, onde a vida, em sua potência, insiste em reafirmar a sua existência. Como
pudemos observar no relato de um jovem: “[...] no mercado de trabalho, a gente
numa empresa, com um currículo, já tem alguma coisa para ser reconhecido [...]
(JOVEMe, 15 ANOS).
Por questões da nossa própria limitação do tempo e que para nós assumia
papel importante na EsCom, não havia uma linearidade nos encontros, em
específico, com o Educador C. Havia horários e jornadas de trabalho que impingiam
ritmos diferenciados entre os educadores. Não tínhamos o controle do tempo. A
velocidade e a sobrevivência de cada um imprimia, certamente, outros
atravessamentos em seus modos de vida. No segundo semestre de 2004, este
educador assumia outras escolas, impossibilitando, inclusive, seus trabalhos no
programa.
50
Diferentes estudos sobre a juventude apontam para uma amarga e flagrante vulnerabilidade. Tanto
a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) quanto o Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro (TJ) indicam uma juventude que se torna, cada vez mais, o principal alvo da
violência. Para a Unesco, o Rio de Janeiro apresenta o maior número de homicídios entre os jovens
que, em 1993, já apontava para uma taxa preocupante de 73,2%, entre os jovens de 15 a 24 anos.
Para se ter uma idéia, em 2002, esses números saltam para 118,9% (O Globo, 08/06/2004). Segundo
o TJ, dos 14.429 processos da Vara de Execuções Penais (VEP), de 1º de janeiro a 31 de junho de
2004, 53% são de jovens que, no momento do delito, apresentavam idades entre 18 e 24 anos (O
Globo, 08/08/2004).
131
Na “descontinuidade” dos olhares, fomos abordados, certa vez, após um
encontro com os jovens, por uma educadora que interpelava sobre o que fazíamos
nos encontros; o que pretendíamos realizar; o que objetivávamos e porque não
utilizávamos questionários, entrevistas, por exemplo.
Nesse instante e diante de uma “conversa informal”, afirmamos que o nosso
trabalho não se centrava na busca para descrever e identificar uma “forma-jovem”,
mas pensar junto com os jovens o que sonhavam, desejavam, pensavam, diziam,
sentiam.
Sabemos que retratar os fatos como se produziram, é uma tarefa, no mínimo,
impossível (BENJAMIN, 1994; FOUCAULT, 2003), porém, em casa, convidamos a
memória para pensar sobre a nossa implicação nesse espaço. Por que essas
questões foram evocadas pela Educadora A? Seria apenas um esforço da
curiosidade ou algo mais? Em que medida os nossos encontros com os jovens
tomavam outras dimensões mais coletivas?
A partir da nossa experiência com os educadores e a coordenação, conforme
narramos em capítulos anteriores, pudemos perceber uma lógica de poder difuso
que eles exercem sobre os jovens.
Na coordenação, encontro-me com uma educadora já bastante antiga no
PRCC. Me pareceu simpática. É professora do SEE do Rio de Janeiro. Após
cumprimentos, ela me pediu para que eu saísse da sala rapidinho. Motivo:
os jovens tinham jogado futebol no dia anterior e deixaram as suas meias e
os tênis na sala. Resultado, com a chuva e a umidade, somando-se à sala
fechada a noite toda, o cheiro estava insuportável. Ficamos do lado de fora
e perguntei pelo tenente. Disse-me que ele estava no vestiário e que eu
poderia ir até lá. Na portaria, fui informado que o tenente não havia
chegado. E aí? Alguns jovens já estavam no PRCC. Não todos. Vinte e dois
ao todo. São quarenta e três. O quantitativo já me respondia a questão que
eu mesmo me fiz antes de chegar ao projeto. Consegui, então, falar com o
tenente. Ao mesmo tempo, encontramos um jovem com o rosto sujo de
branco, me pareceu pasta de dente. E era. Em seguida, um outro. Nesse
momento, o militar mandou os jovens para o banheiro. Alguns minutos
depois, fomos todos para a sala. Antes do militar me deixar com eles,
chamou a atenção de todos, reclamando, inclusive, da brincadeira. Disse
que não aceitaria este tipo de brincadeira e que gostaria de saber quem foi
o responsável. (DIÁRIO DE CAMPO, 21/05/2004)
A expressão da autoridade demonstrada na atitude do militar é apenas um,
dentre vários outros momentos do funcionamento do exercício do poder. Em ações
que se integram e imersos numa concepção naturalizada, acreditam “que é assim
mesmo e a única saída é o trabalho para os jovens”.
132
Atentos às palavras de ordem, preconizam em suas práticas a importância do
disciplinamento, do respeito às normas e às regras do programa e, em especial, do
Exército. “[...] Seja qualquer tipo de arte, de atividade, que eles tenham as noções de
regras, e que há noções [...] pautadas em regras, regulamentadas, de alguma forma,
na cabeça deles [...] por causa desse conceito de trabalho que a gente tem aqui”
(Educadora B). Essa concepção naturalizada da educadora, apoiada nas palavras
de ordem, aponta para uma professora que “[...] não se questiona quando interroga
um aluno, assim como não se questiona quando ensina uma regra de gramática ou
de cálculo. Ela ‘ensigna’, dá ordens, comanda” (DELEUZE & GUATTARI, 1997a, p.
11), proporcionando, inclusive, a “gestão das vidas” como afirma Lourau (1993, p.
14), pois nos estabelecimentos somos “[...] ‘geridos’ por ‘outrem’. E a vivemos,
geralmente, como coisa natural”.
Essa idéia ainda pode ser analisada por outros ângulos. São máquinas de
capturas, o biopoder, com seus dispositivos de controle permanente. Sob essa
perspectiva, e mesmo quando pensamos no programa como um campo de forças,
há uma tendência, ao tentar impor aos jovens a ordem pedagógica, para destituí-los
de seu poder-saber ao torná-los apenas “objeto” a ser manipulado pela instituição
pedagógico-militar. “[...] se todos já estavam em silêncio, é claro que ninguém
respondeu. Mas o tenente falou que iria conversar com eles depois. Passada a
‘bronca’, o tenente liberou a sala e eu entro em cena. Me sentia calmo, mas ansioso
porque iria falar com os jovens” (DIÁRIO DE CAMPO, 21/05/2004).
A sentença sobre a vida dos jovens já está previamente determinada. Há, nas
práticas pedagógicas, uma representação linear, fatalista, sobre os jovens que,
certamente, ao constituí-los, bloqueia sua potência, ao percebê-los apenas como um
problema social. Como pensar essas práticas como mecanismos de poder e
produtoras de subjetividades? Parafraseando Paul Veyne (1982, p. 154), talvez
fosse necessário “[...] desviar os olhos dos objetos naturais para perceber uma certa
prática, muito bem datada, que os objetivou [...]”; e objetiva um “tipo” de jovem,
inventado em cada momento histórico e social, em especial, do PRCC.
[...] alguém que está em formação. O jovem é aquela criatura que está em
processo de tomar decisões sem entender muito bem ainda o que ele quer;
ele pensa em trabalhar porque como são jovens oriundos de famílias
carentes, e como a necessidade de dinheiro é grande, ele pensa em
trabalhar, mas ele ainda não sabe o muito bem em quê [...] (Educadora A).
133
O conceito de jovem que se desprende do fragmento acima revela um
entendimento de juventude vinculado a etapas de vida, num tempo contínuo, do
chrónos, importante, inclusive, para os diferentes modos de intervir no campo
educacional.
Ainda sobre esse aspecto e, num presenteísmo sobre as tarefas, o
fundamental é prepará-lo para o trabalho, para a profissão, é objetivá-los a uma
forma de pensamento. “[...] Trabalho pra mim é toda ocupação útil. Então não vejo,
assim, que o nosso menino precise ser alguém diplomado, mas que ele tenha uma
ocupação útil e que ele possa viver com dignidade. Ele faça sua opção para viver
com dignidade [...]” (Educadora A). Nessa prática respaldada pelo exercício de
poder, Benjamin (1984) irá se opor a qualquer forma de ceticismo presente na
“verdade” do adulto, pois o mesmo julga, segundo esse autor, em nome de um
conhecimento que considera como único e absoluto.
Sim! Na verdade, o absurdo e a brutalidade da vida é a única coisa que
experimentaram. Por acaso eles nos encorajaram alguma vez a realizar
coisas grandiosas, novas, futuras? Oh não! pois isto não se pode
experimentar. Tudo o que tem sentido, que é verdadeiro, bom, belo está
fundamentado sobre si mesmo – o que a experiência tem a ver com tudo
isso? E aqui está o segredo: a experiência se transformou no evangelho do
filisteu porque ele jamais levanta os olhos para as coisas grandes e plenas
de sentido; a experiência se torna para ele a mensagem da vulgaridade da
vida. Ele jamais compreendeu que existem outras coisas além da
experiência, que existem valores aos quais nós servimos e que não se
prestam à experiência. (BENJAMIN, 1984, p. 23)
Em linhas gerais, há uma perspectiva naturalizante das práticas pedagógicas
dos educadores do programa. É como se houvesse uma natureza de jovem pobre a
ser descoberta. “[...] Eu quero estar sonhando que eu não vou conseguir transformar
esses indivíduos, não vou conseguir passar alguma coisa. Que futuramente eu digo
a eles: eu quero encontrá-los numa situação muito boa. Eu quero vê-los como
amigos [...]” (Educadora B). Abre-se mão da possibilidade de elaborar o inesperado
e aplicar-se o fazer repetitivo dos livros, exercícios, programas prontos.
Se havia críticas ao projeto por parte dos educadores, algumas remetiam,
entre outros aspectos, à maneira como o programa era pensado pelas parcerias.
Enfim, os dilemas são coletivizados para a ABRCC? Qual a implicação quando eles
não questionam o instituído?
134
Caminhamos em direção à coordenação, pois teria que devolver a chave ao
tenente. Ao encontrá-lo, agradeci por mais uma oportunidade. Saindo da
coordenação, me deparei com um educador. Acompanhando-me até a
saída do quartel, relatou que a coordenação geral do PRCC determinou
mais um critério para os jovens. O teste de capacidade física será solicitado
para os futuros candidatos. Perguntei, então, se a discussão fora debatida
pela ABRCC que engloba, além do Exército, as arquidioceses do Rio e
Niterói, a prefeitura e o estado. Nesse instante, não poupou risos. Disse-me
que a decisão final quem dá é o Exército. Quis saber se tal decisão não iria
excluir cada vez mais jovens. Com certeza, afirmou o educador. Diante do
exposto pelo educador, indago: se a decisão tomada pelo exército é
verticalizada e imposta para todas as unidades, em que medida o PRCC,
nos seus dez anos de trajetória, permitiu ou permite a construção de
espaços democráticos onde o diálogo com as instituições associadas seja
possível? Qual é, efetivamente, o papel da arquidiocese, do município e do
estado, na associação? (DIÁRIO DE CAMPO, 28/05/2004)
Numa sociedade capitalista, e atendendo à problemática de parte da
juventude pobre, os educadores acreditam, além dos aspectos já citados que, ao
propiciar uma formação profissionalizante, possam proporcionar aos jovens uma
colocação futura no mercado de trabalho. Afinal, como incluí-lo numa sociedade
cada vez mais excludente? Em se tratando do mundo do trabalho, nada indica que
haverá a inclusão dos qualificados no trabalho formal. Nesse sentido e para
Forrester (1997, p. 20):
[...] Se ‘trabalho’ e, por conseguinte, ‘desemprego’ resistem, esvaziados do
sentido que parecem veicular, é porque, pelo seu caráter sagrado,
intimidante, eles servem para preservar um resto de organização
certamente caduca, mas suscetível de salvaguardar, por algum tempo, a
‘coesão social’ [...].
As já referidas “empregabilidade”, “qualificação”, “sujeito flexível”, “sociedade
do conhecimento” passam a configurar uma nova ordem do capital. Generalizam-se,
com maior força, entre os jovens, itinerários profissionais marcados pela
instabilidade, pela precariedade e pelo risco. O desemprego, um fenômeno peculiar
aos modos de produção capitalista, e que se intensifica a partir da década de 1970
(RIFKIN, 2004), vai produzir a emergência de uma nova questão social como Robert
Castel (1998) irá estudar no caso particular da França
51
. Nesse cenário de crise e de
51
Castel (1998), ao apontar para a idéia de uma nova questão social, situa o debate em torno das
mudanças produzidas no mundo do trabalho, onde a função integradora de uma sociedade do salário
expressa no modelo do Estado de Bem-Estar Social, ou seja, proteção social, segurança e garantia
de direitos sociais notadamente nos países de capitalismo central, tem, nos dias atuais, com maior
força, um modelo de economia quase totalmente automatizada (RIFKIN, 2004). A automação da
economia passa a redefinir esse modelo de proteção em que cada vez mais os trabalhadores estão
desprotegidos, e alocados numa precarização nas relações de trabalho.
135
exclusão
52
, há uma produção dos “desfiliados”, certamente para os “[...] jovens à
procura de um primeiro emprego e que vagam de estágio em estágio e de um
pequeno serviço a um outro [...] que passam, até a exaustão e sem grande sucesso,
por requalificações ou motivações” (CASTEL, 1998, p. 529-530).
Nessa nova ordem de trabalhadores eternamente precários ou de
desempregados crônicos, “[...] como vegetam, em particular os jovens, numa
vacuidade sem limites [...] e como são detestados por isso; [...]”, conforme corrobora
Forrester (1997, p. 16), num tom incisivo
Mas, para a Educadora B ainda é possível encaminhar o jovem pobre do
projeto ao trabalho. Esquece ela a precariedade dos vínculos laborais e dos
empregos temporários, forjados pela sociedade contemporânea e contidos nos
projetos neoliberais, que permeiam o mercado de trabalho formal.
[...] ajudá-lo a descobrir qual é a sua verdadeira identificação com alguma
coisa, né? Independente das coisas pré-estabelecidas, médico, dentista, ser
mecânico, ser bombeiro, ser polícia militar como eles falam, ser militar do
Exército como eles estão dizendo, quer dizer, é tentar descobrir qual a
potencialidade, a veia de vida que vá conduzi-lo ao trabalho. (Educadora B)
Numa perspectiva benjaminiana, trata-se de negar qualquer forma de utopia
da vida, em especial, da juventude. É preciso lançá-la no mundo das subjetividades
normalizadas, pois nada “[...] é mais odioso ao filisteu que os ‘sonhos de sua
juventude’” (BENJAMIN, 1984, p. 25).
Está posto! O jovem, constituído pelo tempo seqüencial, tem no programa a
oportunidade de aprender, através das rotinas disciplinares, tomadas como
educativas, habilidades e capacidades necessárias para o “bom homem”. “[...] Em
alguns momentos, as atividades dos educadores e da coordenação parecem se
restringir apenas em organizar os jovens nas atividades programadas pelo PRCC:
avaliar desempenho escolar; assiduidade, pontualidade, comportamentos e
condutas” (DIÁRIO DE CAMPO, 23/07/2004).
52
Aqui, Peter Pal Pelbart (2003, p. 21) nos ajuda a pensar nos processos de captura produzidos pelo
capitalismo que opera por fluxos, redes. Ao tomar a noção de Império proposta por Hardt & Negri
(2004) para pensar a produção de subjetividades na atualidade, afirma que o “[...] novo capitalismo
em rede, que enaltece as conexões, a movência, a fluidez, produz novas formas de exploração e de
exclusão, novas elites e novas misérias, e sobretudo uma nova angústia – a do desligamento. [...]. O
que se vê então é uma expropriação das redes de vida da maioria da população pelo capital, por
meio de mecanismos cuja inventividade e perversão parecem ilimitadas”.
136
Eu concordo e penso, assim, junto com a colega, penso muito na questão
do jovem, não só o jovem do PRCC, mas o jovem no sentido de toda a
juventude. Eu trabalho na Rede Estadual na Educação de Jovens e Adultos
há muitos anos. Então eu penso, são quase vinte quatro anos nas escolas
supletivas. Hoje eu vejo o jovem no perfil há anos atrás, era um jovem com
outras características, ele formado. Esse sofrimento que ele vive porque ele
vive esse sofrimento porque ele quer se descobrir, ele se quer tornar
independente, porque ele tá em processo de crescimento. É um processo
doloroso a gente sabe. Agora hoje a juventude está me preocupando muito
mais porque eles estão, esse sofrimento que nós às vezes nos
encontrávamos. Hoje há um cuidado maior que devemos ter. Acredito que
outros agentes externos a questão da violência, a questão das drogas é, a
dissolução das famílias, né? São gerações e gerações de dissociação do
núcleo familiar. (Educadora B)
Nessa perspectiva, “[...] quem tentará, sequer, lidar com a juventude
invocando a sua experiência?” (BENJAMIN, 1994, p. 114). O que se faz em nome da
experiência, quando a mesma ainda se encontra ausente de sensibilidade? Será
que é possível homogeneizar o sentir? É possível produzir outros modos de sentir e
experimentar se “nós ainda não experimentamos nada”?
Aqui, o educador parece se posicionar na figura do filisteu
53
, expressão que
nos afigura adequada, que aliada a outros pedagogos sisudos e cruéis, apresenta à
juventude “[...] aquela experiência cinzenta e poderosa, [...] Sobretudo porque
‘vivenciar’ sem o espírito é confortável, embora funesto”. Desse ponto de vista
dogmático, é essa experiência que Benjamin (1984, p. 23) ironiza e denomina de
“pobreza de idéias e monotonia”.
E o nosso jovem? O perfil de nosso jovem é aquele que não tem em casa
um incentivo muito grande para estudar e se preparar para entrar no
mercado profissional. Então, ele está tateando, está ao sabor do vento, ele
não sabe direito o que ele quer. Então, o nosso jovem é aquele jovem que
nós precisamos ser é também um pouco mãe, um pouco assistente social,
um pouco psicólogo, vamos assim dizer, nós precisamos ter uma
versatilidade muito grande para lidar com eles, e para encaminhá-los.
(Educadora A)
Diante de um olhar atento à ordem, os jovens são entendidos como diferentes
e precisam ser adaptados ao mundo do adulto – do trabalho e da razão instrumental.
Em nome do conhecimento acumulado do adulto se desautoriza a experiência do
53
Não resta dúvida sobre a importância da produção intelectual, filosófica, de Walter Benjamin
(1984). Sobre a noção de experiência, ele explicita como objeto de crítica, entre alguns aspectos, a
figura do filisteu-pedagogo que concebe a educação como exercício para reafirmar princípios morais,
e imperativos da cultura burguesa nos jovens, conforme mencionado. Sua crítica se dirige à noção de
experiência, entendida como "máscara" do adulto e "evangelho do filisteu" que despotencializa a vida
da criança e do jovem.
137
jovem, e como assinala Benjamin (1994), se a experiência não se vincula ao
homem, como espaços outros podem ser pensados para que não se produzam o
que o jovem pode ou deva ser?
Com relação às atividades de reforço, o tenente afirmou que há resistências
por parte dos jovens. Afinal, questiono: por que os jovens resistem também
a essas formas de enquadramento? Será que eles buscam outras
maneiras? Acreditam no que eles estão fazendo? Sentem-se motivados?
Poucos são aqueles que se sentem empenhados para tirar as dúvidas com
as professoras. Para se ter uma idéia, alguns jovens dormem durante as
aulas; outros ficam tentando tirar a atenção de outros, conversando,
brincando. Isso é muito ruim, afirmou o tenente. Eles só demonstram
interesse pelas práticas esportivas. Mas na sala de aula é difícil para eles se
concentrarem. O tenente acredita que muitos só participam do projeto por
influência e desejo das famílias. A maioria não tem comida em casa e isso
também conta muito, acrescentou. (DIÁRIO DE CAMPO,11/05/2004)
Ainda sobre tais questões e numa dimensão assistencialista, por que as
atividades de reforço escolar não são questionadas? Por que não se discute o tipo
de escola que é direcionada para os jovens do programa? Como lidar com os jovens
que, em sua maioria, não desejam a escola e o reforço escolar? Representaria o
reforço escolar uma espécie de quebra-galho para os jovens? O que se atualiza e o
que se reforça nessa relação?
Quando o jovem não se adequa ao programa, há uma tendência para
culpabilizar a família. A pedagogia moderna vai definir o mau aluno, mas também irá
definir o mau pai ou a má família (NARODOWSKI, 1996). “No espaço escolar, as
estratégias de normalização se individualizaram como processos educacionais,
culpabilizando alunos, professores e pais pelos rendimentos escolares” (HECKERT
et al, 2001, p. 240). Rendimentos entendidos também naquilo que o comportamento
e a atitude dos jovens expressam.
O tenente relatou um caso de uma mãe que, sendo convocada para ir ao
projeto por problemas de comportamento do filho, não conseguiu conter as
emoções diante de todos. Indignada porque também estava faltando ao
trabalho como diarista, partiu, diante de todos, para agredir o filho porque
ele não conseguia, de forma alguma, integrar-se às atividades do programa.
Frente à atitude de revolta da mãe, o tenente relatou que correu em sua
direção, pedindo que ela procurasse entender seu filho; que é difícil lidar
com os jovens nos dias de hoje. Mencionou, também, que ela precisaria ter
mais paciência com ele. Aqui, o discurso da moralidade deita em “berço
esplêndido”. A culpa é da família, afirmou o tenente. Afirmaram os militares
que é difícil trabalhar com os jovens até porque esse comportamento
apenas reflete o cotidiano deles com as suas famílias e nas comunidades
138
onde moram. Como é difícil desconstruir a fala que os oficiais têm desses
jovens. Como compreender que eles são produzidos em e por condições
que marcam suas existências? Como não percebê-los enquanto sujeitos
portadores de uma suposta essência ou natureza? (DIÁRIO DE CAMPO,
11/05/2004)
Ainda que se registrem críticas às famílias, é expressivo para as mesmas,
segundo afirmaram educadores e coordenação, ser o programa um espaço de
“alento”. Sentem-se as famílias “incapazes” de propiciarem as condições
necessárias para que seus filhos possam realizar cursos profissionalizantes,
percebendo esse lugar como uma espécie de “porto seguro” vinculado, inclusive, à
idéia de que tornados participantes do PRCC, os filhos não se expõem aos riscos
produzidos pela pobreza.
A Escola de Comunicações entra apenas com o espaço do refeitório e da
cozinha. O responsável pelo rancho se encarrega de preparar apenas as
refeições. Acha, inclusive, que o apelo das famílias para que tenham os
seus filhos nos projetos deve-se, primeiro, à idéia de ocupar o seu tempo
com alguma atividade. Segundo, atrela-se à questão da alimentação pois,
praticamente, afirmou o tenente, as refeições começam no projeto e
terminam na escola, no período da tarde. (DIÁRIO DE CAMPO, 11/05/2004)
Nessa dinâmica, é oportuno situar a fala de uma educadora que também
acentua essa expectativa.
[...] Então a gente tenta conversar com eles, mostrar que a vida é difícil, que
a gente tem que superar muitos obstáculos, mas que esses obstáculos não
podem nos abater, que fazem parte do processo, e tentar dentro da nossa
possibilidade, colaborar para esse crescimento, principalmente, para o
crescimento moral deles. Eu vejo, então, assim os jovens. (Educadora A)
Nessa perspectiva de intervenção pedagógica que atenda à constituição de
subjetividades juvenis, constituídas por determinados modos hegemônicos de existir,
sentir, aprender, trabalhar, sonhar, por exemplo, o que temos, numa certa dimensão,
são dispositivos “[...] como a punição e a recompensa articulados nos exames, as
regras disciplinares, entre outros, ao se efetivarem no cotidiano das práticas
escolares, colocam e recolocam, permanentemente, o alunado [...]” (BARROS, 2000,
p. 33).
Como eles estão dentro de uma unidade militar, eles é, na cabeça deles,
eles pensam que os militares ganham muito e não fazem nada. Então,
existe um grande número de jovens que querem ser militares. Aí quando a
gente vai conversar com eles sobre o que é ser militar, o que é que precisa,
139
hoje nós estamos aonde nós queremos chegar, eles não se situam muito
bem. Quando eu digo pra ele que militar precisa ter disciplina, que o
indivíduo indisciplinado não chega a lugar nenhum, que a vida exige
disciplina. E já é uma coisa meio difícil pra eles. Eles querem fazer aquilo
que eles acham que devem, tanto que a gente vê no Exército, muitos
jovens, eles desertam. Eles não tem nem idéia de que desertar cria um
problema para ele. Porque eles não têm muita informação. (Educadora A)
A decisão dos pais ou responsáveis pelo encaminhamento dos filhos ao
programa sinaliza para uma percepção das famílias que vêem esse espaço como a
“salvação”, a “redenção” para os seus filhos. Além disso, o “abandono” do projeto
por alguns jovens é entendido pelo coordenador como uma situação de indignação
para o programa, pois não há justificativa e nem retorno das famílias sobre a
desistência de seus filhos.
Mencionou que há vários casos de abandono por parte dos jovens durante
a permanência no PRCC. Afirmou que acaba o programa assumindo
diversas responsabilidades que, além de coordenador, se vê no papel, na
maioria das vezes, de pai, de professor, de conselheiro, porque os
problemas dos jovens são enormes. Mesmo desconhecendo o motivo do
abandono, ele arriscou afirmar que poderia ser por conta de um trabalho, no
mercado formal ou informal. O que ele não concorda é com o silêncio da
família que, diante do abandono, não estabelece qualquer comunicação
com o projeto. “Não há aviso da família”, relatou o tenente com um tom de
indignação. (DIÁRIO DE CAMPO, 29/07/2004)
Diante desse contexto em que suas ações parecem se tornar mais
complexas, perguntamos: O que fazer com o jovem que se desliga sem justificar ou
que deseja abandonar o programa? Os cursos são atrativos para as suas demandas
e para a realidade do mercado de trabalho?
Aqui nós fazemos sempre um trabalho no mês de maio, não é? No primeiro
de maio, e estamos nos aprofundando até nisso, já viemos há uns dois
anos, e a gente faz um levantamento dos desejos, das profissões, e aí
tabulamos essas respostas e ainda pretendemos avançar mais nisso, trazer
pessoas pra as orientações para o trabalho, profissionais dentro das
profissões que seja a preferência da maioria, pra passar pra eles os pró e os
contra, os pontos positivos e negativos. Pra eles, seria um panorama do
trabalho. (Educadora B)
Durante a nossa experiência no programa, o que esses fragmentos apontam
na (in)visibilidade dos educadores? Percebemos que os profissionais que trabalham
nessa perspectiva, servem como amortecedores a uma lógica que atravessa e
produz uma juventude pobre. As atividades com os jovens sugerem reafirmar as
140
rotinas disciplinares do respeito aos direitos e deveres, a importância da freqüência à
escola, a formação profissional, o tipo de comportamento que deverão ter nas
dependências do quartel, ressaltando, inclusive, o respeito aos educadores e aos
militares, a maneira de falar e a conduta com a higiene corporal. A atitude
doutrinária, por exemplo, de apontar para o jovem sobre o que é certo ou errado em
relação ao comportamento, à aquisição de “bons hábitos”, é muito comum no dia-a-
dia do projeto.
Mais uma vez a questão se coloca: “Por que estas práticas se instituem?
São um meio de promoção social ou de proteção da ordem? Ao pré julgar
estes jovens, condenando suas ações, por acreditar que a pobreza e a
“desorganização” familiar e comunitária gerem “deformações” morais,
planejando-se formas de lhes ensinar o que é certo ou errado, o educador
mantém uma visão médica do trabalho enquanto “tratamento”, assim, o que
é saudável vai ser ensinado por ele como o comportamento que o
adolescente deve ter. (FERREIRA, 1998, p. 160)
Retomando alguns fragmentos, e num certo tipo de conformação, os
educadores parecem focar suas práticas educativas na produção de um certo
“modo-jovem-trabalhador”, militar ou civil, levando-se em consideração, com maior
expressão, a sua adequação aos diversos modos de sentir e de viver hegemônicos
na sociedade.
Aqui, ainda seria preciso indagarmos: De que maneira a análise e a avaliação
do que fazem e por que fazem não permitiriam aos profissionais uma visão sobre
suas implicações? Que tipo de análise e, conseqüentemente, de avaliação poderiam
ser pensadas? Como partir das experiências juvenis para produzir outros modos de
pensar a vida e, até mesmo, os jovens no “processo” de aprendizagem?
Parafraseando Benjamin (1994), seria preciso “escovar” as práticas educativas do
programa no presente a contrapelo, para que outras formas de pensar sejam
produzidas, e outros modos de experimentar juvenil possam ser sentidos, em que o
experimentar é da ordem do devir-pensamento, sempre atual, em vias de se fazer,
conforme assinala Deleuze (1992).
Capítulo 7
P
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[...] Nosotros decimos más bien que en una sociedad
todo huye, y que una sociedad se define
precisamente por esas líneas de fuga que afectan
a masas de cualquier naturaleza (una vez
más <masa> es una noción molecular).
Una sociedad, pero también un agenciamento
colectivo, se define en primer lugar por sus máximas
de desterritorialización, por sus flujos de
desterritorialización.
(Gilles Deleuze & Claire Parnet)
7.1 MODOS DE DESEJAR, DE SENTIR, DE AFETAR
143
A partir dessas considerações, e quando demos início ao nosso trabalho de
pesquisa, em 2003, um aspecto recorrente nos parecia desafiador: Como produzir
um conhecimento sobre uma parcela da juventude pobre em que a análise sobre a
nossa implicação fosse, ao mesmo tempo, também objeto constante de pensar no
sentido deleuziano. Analisar a implicação de cada um nesse processo nos permitiria
uma redefinição teórico-metodológica sobre a participação ativa, como nos diz
Paulon (2005), implicada das pessoas, em que as pretensões do paradigma da
objetividade e da neutralidade científica pudessem ser questionadas e superadas.
Se afirmamos que a nossa implicação estava a todo tempo, também, se produzindo,
é porque a análise das implicações não consiste em analisar apenas os outros, mas
colocar em análise a si mesmo a todo momento, inclusive, no instante da própria
intervenção, como já referido por Lourau (1993).
Sem a pretensão de retomarmos o longo percurso que a nossa pesquisa
produziu, hoje nos perguntamos como foi, para nós, produzir um dispositivo-encontro
com os jovens, em que há uma produção constante de tantas verdades que, num
espaço instituído, são mediadas por atitudes normatizadas. Trazíamos, ao nos
aproximarmos do PRCC, uma questão primeira que se constituía em entender os
sentidos que os jovens atribuem à formação profissional proporcionada pelo projeto.
Porém, por outro lado, questionávamos, constantemente, que
atravessamentos outros poderiam estar sendo produzidos, para além de uma
formação profissionalizante. Sendo assim, percebíamos que, para tentarmos
entender a questão primeira, teríamos, certamente, que buscar compreender,
também, os diferentes sentidos que atravessam e produzem esses jovens, nesse
espaço de formação para o trabalho.
Talvez, falar nos modos de como fomos afetados e afetamos, numa
perspectiva espinoziana, nesses modos de pesquisar, nos permita dizer de um modo
como funcionamos, a partir de uma concepção de desejo enquanto produção. “[...]
No encontro, os corpos, em seu poder de afetar e serem afetados, se atraem ou se
repelem. Dos movimentos de atração e repulsa geram-se efeitos: os corpos são
tomados por uma mistura de afetos [...]” (ROLNIK, 1989, p. 25). Como uma
experiência afetiva, funcionávamos com e por fluxos que se constituíam no instante
da intervenção. Fluxo entendido como intensivo, lampejo, que se desterritorializa
para se conjugar com outros fluxos, em um movimento sem passado ou futuro,
sempre em um devir. Pensávamos na vida como potência, como produção.
144
Sobre a desterritorialização, Deleuze e Guattari (1976), ao situarem dois
modos diferentes de agenciamentos coletivos, afirmam que o capitalismo apresenta
como condições de existência um modo específico de produção de subjetividade.
Baseados em Karl Marx, sinalizam que essa produção se processa em dois
movimentos: desterritorialização e reterritorialização. Assim observada, a
desterritorialização arranca os sujeitos de seus modos de trabalhar, experimentar e
viver o tempo que lhes são familiares; a reterritorialização captura-os, novamente
moldados às necessidades colocadas pelo sistema capitalista. Ressaltamos que não
se trata essa produção de uma relação de causa e efeito, tal a complexidade que a
abarca.
O desejo não se caracteriza por ter uma falta inerente, como o fabricado pela
psicanálise (DELEUZE & GUATTARI, 1976, p. 60). “Nas máquinas desejantes tudo
funciona ao mesmo tempo, mas nos hiatos e nas rupturas, nos enguiços e nas
falhas [...] nas distâncias e nos despedaçamentos, numa soma que nunca reúne
suas partes em um todo [...]”. Como Deleuze e Guattari (1992) afirmam que os
conceitos devem ser inventados, desejo para eles é a vida como potência, uma força
que inventa, cria, corta, recorta, desvia o olhar físico da vida, coloca em movimento
constante outras afirmações diante de uma vida normatizada.
Em maio de 2004, iniciamos os nossos encontros com os jovens. A clareza do
nosso ato em ação, não tínhamos. Sabíamos que o paradigma do saber-poder havia
sido colocado em questão. Não tínhamos certeza de como trabalharíamos com eles.
Ressaltamos que a noção de encontro aqui utilizada é na mesma acepção pensada
por Deleuze (Apud DELEUZE & PARNET, 2004, p. 11). Portanto, tem a ver com
captura, com achar, com devir. Acreditávamos que se poderíamos produzir outras
formas de captura, é porque podíamos construir o pensamento em devir para
ressignificar os sentidos postos na vida dos jovens.
[...] Un encuentro quizá sea lo mismo que un devenir o que unas bodas.
Encontramos personas (y a veces sin conocerlas ni haberlas visto jamás),
pero también movimientos, ideas, acontecimientos, entidades. [...] Encontrar
es hallar, é capturar, robar, pero no hay método, tan sólo una larga
preparación. Robar es lo contrario de plagiar, de copiar, de imitar o de hacer
como. La captura siempre es una doble-captura; el robo, un doble-robo; así
es como se crea un bloque asimétrico y no algo mutuo, una evolución a-
paralela, unas bodas, siempre <fuera> y <entre>. Una conversación seria
precisamente eso.
145
Se a noção de encontros para a psicologia e a educação ainda se traduz por
abordagens de pesquisas vinculadas a atividades, técnicas, aplicação de
questionários, etc., restava-nos, portanto, “[...] livrar a escuta de todo e qualquer
preconceito psicológico, sociológico, pedagógico ou mesmo terapêutico [...]”
(GUATTARI, 1987, p. 95). Segundo afirmam Deleuze e Parnet (2004), indivíduos e
grupos são atravessados por linhas de diversa natureza. Uma primeira seria a de
segmentaridade dura, constituída pela família, pelo trabalho, pela profissão, pela
escola, dentre outras. Mas, também, existem as linhas flexíveis, em certa medida,
moleculares. São os pequenos desvios, as linhas de fuga, os micro-devires. Colocar
em análise algumas das linhas duras – da instituição formação –, em especial da
psicologia e da educação, é promover desvios diante de um ofício, de um saber, que
nos constitui em sujeitos dos “especialismos”. Portanto, nessa perspectiva, está em
análise, certamente, o lugar e o fazer da psicologia e da educação, no sentido de as
duas poderem se submeter aos especialismos ou ir além de traduzi-los, na sua
dimensão teórico-prática. O ato de ensinar, também, pode cair nessa armadilha e
confirmar esse olhar funcionalista, como bem nos afirma Parnet (Apud DELEUZE &
PARNET, 2004, p. 28) sobre a relação professor-aluno, em que, especificamente:
[...] Cuando la maestra explica una operación a los niños, o cuando les
enseña la sintaxis, no puede decirse (propiamente hablando) que les dé
información: les dá órdenes, les transmite consignas, les obriga a producir
enunciados correctos, ideas <justas>, necesariamente conformes a las
significaciones dominantes [...].
Quando pensamos em outra psicologia, outra educação, que não julga e
avalia, provocamos em nós uma desconstrução que nos parecia, inicialmente, difícil
porque implicava “abrir mão”, renunciar aos lugares instituídos pela ciência. Foram
momentos vários em que a angústia acompanhou o nosso percurso no projeto.
Nesse vácuo em que a angústia parecia nos remeter à eternidade, pensar a partir de
alguns conceitos-ferramentas da filosofia da diferença e da análise institucional foi
fundamental para o andamento dos nossos trabalhos.
Lançar-se ao desconhecido. Estávamos certos de que havia uma angústia,
talvez numa face existencial, como diz Rolnik (1989, p. 49). Existia um “[...] medo de
a forma de exteriorização das intensidades perder credibilidade, ou seja, de certos
modos perderem legitimidade, desabarem [...]”. Desconstruir o que havia nos
enraizado, nos tornado um “corpo-vício” em técnicas especializadas, representaria o
146
instante possível para outras aberturas da vida, para diferentes lugares, inclusive,
para a psicologia e a educação, com os riscos que tudo isso poderia implicar. Cada
encontro era sempre revisto, refeito, nunca o mesmo, em torno de vidas em
movimento: as dos jovens e as nossas.
Tínhamos clareza que não estávamos seguros no início, e talvez ainda não
tenhamos essa sensação, mas deveríamos olhar para outros fluxos, outros modos
de pesquisar, principalmente, nos momentos de dúvida, de angústia. Para Rolnik
(1989, p. 49), “Essa angústia gera uma tentativa, sempre recomeçada, de abolição
da ambigüidade. É isso que vai definir as diferentes estratégias do desejo. É em
torno disso que se fazem todos os dramas, todas as narrativas, todas os
personagens, todos os destinos [...]”.
Nossa experiência, inicialmente, denunciava para um olhar ainda preso a um
modelo estrutural que conhecíamos até então. Romper com essa perspectiva, com o
paradigma da ciência positivista, é analisar, sem precedentes, a dimensão em que
lançamos a vida não mais baseada numa estrutura de produção de conhecimento
forjada a partir de um olhar metafísico da vida. Desejávamos o não lugar-comum, a
multiplicidade que não forma um todo (ROLNIK, 1989).
Possivelmente, o impacto desse referencial se deu em função do nosso
desejo em convidar a vida, reafirmamos, para o que sentíamos em cada encontro
com alguns estabelecimentos durante a nossa escolha em relação ao campo de
pesquisa. Esse desejo nos lançava, em termos subjetivos, “[...] como sensação de
irreconhecível, de estranhamento, de perda de sentido – em suma, de crise [...]”
(ROLNIK, 1989, p. 49). Um desejo que também ia nos proporcionando outros
descobrimentos, sensações outras. Como dizem Deleuze & Parnet (2004, p. 91):
“[...] El deseo es revolucionario porque siempre quiere más conexiones y más
agenciamentos [...]”.
Talvez olhar para além do olhar correspondesse ao pensado por Rolnik
(1989, p. 219) ao propor um repensar sobre o desejo e o papel do “cartógrafo” pelos
circuitos do cotidiano.
Você entra. De cara, você é tomado por um estranhamento. É como se o
seu olhar habitual não desse conta de alguma coisa. Você sabe que ali
se passa algo. Você percorre toda a exposição e sai. Junto, você leva essa
estranha sensação. Pouco a pouco, alguma coisa vai tomando corpo em
você. Algum tempo depois, você volta ao museu. Essa estranha impressão
o conduz, apesar de você mesmo. Não há indicações, mas você caminha
147
pela exposição em direções como que predeterminadas. Uma trama de
sentidos invisíveis vai se articulando. É como se você cobrisse e
descobrisse aquele espaço, numa espécie de roteiro iniciático. Você
está levado a percorrer/traçar, descobrir/inventar uma cartografia. E as
direções são múltiplas.
Sentíamos que havia, no programa, práticas de formação para o trabalho
atravessadas por uma lógica hegemônica de pensar, sentir, sonhar, desejar, etc.
Talvez, propor subverter a ordem, transgredir uma prática cristalizada, sinalizasse,
diante dos nossos momentos difíceis, convidar o desejo coletivo, entendido no
sentido de uma multiplicidade que se desenvolve para além do indivíduo
(GUATTARI, 1992), a inventar movimentos outros possíveis com os jovens.
Talvez estivéssemos não buscando compreender os sentidos, mas produzir,
criar, sentidos para os jovens e para nós no mesmo processo coletivo. Nesses
atravessamentos, passamos a perceber que “[...] El quid no está en responder a las
preguntas, sino en escapar, en escaparse de ellas [...]” (DELEUZE, Apud DELEUZE
& PARNET, 2004, p. 5). Como afirma Rolnik (1989, p. 74), em relação ao
“cartógrafo”, não há sentidos a serem revelados por ele, mas ele “[...] os ‘cria’, já que
não está dissociado de seu corpo vibrátil: pelo contrário, é através desse corpo,
associado aos seus olhos, que procura captar o estado das coisas, seu clima, e para
eles criar sentido”.
No quadro, propomos um novo desenho para a sala. Fiz um círculo no
quadro, indicando como nos olharíamos naquele instante. Queríamos
construir um movimento, inventar e reinventar outras relações, outros
olhares. Produzir outras ressonâncias, de entrar em contato com os nossos
limites e fracassos. Produzir, constantemente, movimentos de criação e de
abertura de e para todos. (DIÁRIO DE CAMPO, 21/05/2004)
Desejo, sensação, afetação. Desde que começamos o trabalho no projeto,
sentíamos que havia um tensionamento atravessando os nossos encontros. Não
havia um esquema de atividades previamente determinadas. Um tensionamento,
também, produzido pelo programa, em especial, sobre o desligamento do jovem por
atitudes de indisciplina, por faltas não justificadas, dentre outros.
Hoje fiquei sabendo da saída do JOVEMj (15 anos). Parece-me que há algo
de estranho que se avizinha ao destino desse jovem. Suspenso algumas
vezes, foi pego furtando objetos no quartel. [...] Essa notícia desagradável,
de ruído familiar para todos no sentido de que parece ser assim mesmo que
acontece, e que pode acontecer com a vida desses jovens, foi passada
entre os dentes prendidos à língua quase como um silêncio, em relação à
148
sentença dada pelo programa. Mais um jovem é marcado pelo ritual do
desligamento. (DIÁRIO DE CAMPO, 08/10/2004)
Esse aspecto, também, nos lançou à angústia. Acreditávamos que cada
encontro representava, certamente, um fio analítico onde o diário de campo se
constituiu em ferramenta fundamental para as nossas análises.
Diante de mundos diferentes que se refletem nos meus olhos e vice-versa,
mais uma vez, retomei um pouco da minha apresentação, falando da
trajetória do meu trabalho e o que, efetivamente, estaria tentando realizar
enquanto pesquisa com os jovens, no PRCC. Perguntei, também, quem
gostaria de participar da pesquisa, sem se sentir obrigado. A decisão
deveria ser espontânea. Sem pressão. Diante do silêncio, mesmo com a
inquietação de alguns jovens que não param de mexer com suas pernas e
braços, aqueles que gostariam de participar levantassem a mão. Apenas
uma não levantou. Os colegas começaram a “tirar onda”, dizendo que ele
era assim mesmo; que não participava das atividades. Que ele é sempre
quieto. Mesmo percebendo que o jovem não queria falar nada, perguntei se
ele gostaria de dizer algo. Respondeu-me com um sorriso tímido que não.
Agradeci, então, a participação dele naquele momento e pedi que ele
retornasse para as atividades de reforço que, normalmente, eles têm às
segundas, quartas e sextas. (DIÁRIO DE CAMPO, 21/05/2004)
Após a definição dos jovens sobre a sua participação nos encontros – desejo
– foi a expressão-potência (presença opcional) que, juntamente com o dispositivo-
encontro, representariam a implicação de todos ao longo dos diálogos. A escolha
não significaria uma atitude de rigidez, ou seja, uma obrigatoriedade para a
continuação dos encontros conosco. Poderiam escolher ficar ou não permanecer, e
isso pressupunha assumir decisões, posicionar-se diante do caminho tomado. Não
queríamos centralizar as decisões. Tensionávamos que os jovens se tornassem
participantes desse espaço: a apropriação do espaço era uma criação de todos nós.
Definidos, estavam no total de quinze jovens. A média de idade é de 15
anos, mas há jovens entre quatorze e dezesseis anos. Como estamos nos
organizando para os encontros, coloquei que seria interessante pensarmos
num acordo de trabalho. Perguntei então o que seria necessário para formar
um encontro. Logo em seguida, uma primeira voz ecoa: respeito. Depois
surgiram palavras como diálogo, união, compreensão, disciplina,
cooperação, solidariedade. Por conta da hora avançada, não foi possível
refletir sobre as expressões que foram saindo de dentro dos jovens. Como o
combinado era ficar até às 10h, ficou inviável continuar as atividades.
Acredito que no próximo encontro, eu retome essas reflexões até porque
ainda não fechamos o nosso acordo. (DIÁRIO DE CAMPO, 21/05/2004)
149
Assim como definido entre nós e os militares, acordamos com os jovens que
cada encontro seria semanal. Devemos reconhecer que cada encontro representou
desafios e embates. Acreditávamos que essa realidade seria constante com os
jovens. Certo o encontro e por determinação de um dos coordenadores, tivemos que
permanecer na sala de reforço, ao lado da coordenação. Antes, o coordenador nos
perguntou se haveria algum problema de permanecermos naquela sala com os
jovens. Afirmamos que não. Por alguns instantes, ele passou a separar os jovens
entre aqueles que decidiram participar dos encontros.
Após a saída dos que iriam fazer atividades de reforço escolar, ficamos na
sala para o nosso sétimo encontro. Nesse momento, o coordenador ainda se
encontrava conosco. Subitamente, Joveml (16 anos) que fazia parte dos encontros,
saiu da sala. Diante dessa situação, o coordenador questionou: “você não faz parte
da pesquisa?”. Nessa tensão partida de uma interpelação instituída, o jovem afirmou
que não iria mais participar dos trabalhos. Nesse instante, ficamos sem entender,
acreditando haver algum problema que até então nós não conhecíamos. Ou talvez,
apenas, o pesquisador.
Nesse mesmo dia, havia uma agitação de outra ordem na EsCom. A atividade
esportiva estava liberada para todos os soldados e suboficiais. Iriam premiar quem
conseguisse arrecadar, a partir de doações, o maior número de medicamentos para
a UA. Comemorações à parte, entramos na sala e fomos tentar redimensionar a
rigidez das carteiras, conseguindo, enfim, formar alguma coisa sem forma. Ficamos
no total em doze. Joveml (17 anos) permaneceu na sala e foi dormir. É claro que
havíamos combinado que as presenças não eram obrigatórias se não quisessem
participar, mas a atitude de Joveml (17 anos) proporcionou a todos um debate sobre
o compromisso, a implicação de cada um. Estaria o jovem resistindo ao projeto e a
nós, também? O seu aparente desinteresse o que estaria apontando? O que estava
sendo enunciado para todos?
Como eles se encontram no período de provas, Jovemj (16 anos) e Jovemi
(16 anos) pediram para ir à aula de reforço. Diante da solicitação, trouxemos para o
debate, o desejo pela continuação de cada um. A decisão seria de todos. Mesmo
que, na época, estivéssemos experimentando esses desafios, tínhamos a sensação
de que esse espaço representava mais um aprendizado para nós, e acreditamos
que para eles, também. O debate sobre o desinteresse, a ausência, o interesse,
enfim, se mostrou muito promissor. Alguns eram agitados, dispersos, brincavam o
150
tempo inteiro. Mas havia aqueles que procuravam chamar todos para o debate
mesmo ainda na onda da dispersão. Apresentamos a preocupação sobre o aparente
desinteresse, as ausências. De alguma forma, a angústia tomava conta do desejo,
do nosso, inclusive. Será que trabalhar com dispositivo-encontro apresentava esses
movimentos? Resistências? Fragilidades? Dúvidas? Seria um movimento que queria
se desfazer? Será que o desejo de resistir e inventar representa isso? Desejo.
Sensação. Afetação. Atravessamentos. Fluxos. Seria esse o “início” da produção de
linhas de fuga (DELEUZE & GUATTARI, 1997b)? Para Deleuze & Parnet (2004, p.
45): “[...] Huir es trazar una línea, líneas, toda una cartografía. Sólo hay una manera
de descubrir mundos: a través de una larga fuga quebrada [...]”. Entendíamos, enfim,
que o dispositivo-encontro poderia funcionar como “um quebra do tempo” para os
jovens.
Se só descobrem mundos a partir de uma longa “fuga quebrada”. Os
diálogos, num sempre “fora” e “entre”, tiveram papel fundamental nos encontros.
Entendíamos algumas faltas, mas seria interessante eles planejarem seus estudos
para não haver ausência. Levantamos o debate a respeito das reações do Jovemj
(16 anos) e Jovemi (16 anos). O interessante, depois das justificativas dos jovens, foi
a decisão tomada pelos demais. A compreensão e o direito de poder opinar, de
decidir, levou todos à participação. Concordaram com as justificativas sobre a
ausência dos colegas.
Tentamos falar um pouco sobre o que estávamos sentindo acerca do que
Jovemc (17 anos) havia falado. Num tom incisivo, afirmara: “[...] é isso mesmo,
pessoal, vocês querem ficar aqui para não assistir à aula da professora”. Essa fala,
já registrada em nosso diário em encontros anteriores, foi retomada pelo jovem.
Esse fato, ou melhor, esse movimento do Jovemc (17 anos) em apoio a todos os
participantes, nos remeteu a um evento anterior. Ele pediu para participar da
pesquisa mesmo não estando no dia do nosso primeiro encontro.
Alguns jovens afirmaram que a posição de Jovemc (17 anos) não significava
o desejo de todos, por isso decidiram permanecer conosco. Diante desse fato,
sentimos que seria interessante retomar a discussão da participação de todos e o
que representava aquele dia, aquela escolha para todos, para cada um. Enfatizamos
que um dos aspectos que admiramos nos jovens era os modos de expressar suas
sensações, desejos, de dizer, de falar as coisas sem censura, sem medo, sem
tantos cuidados. Seria interessante que todos, inclusive nós, fôssemos honestos.
151
Esse era o momento para repensar o espaço de cada um dos nossos encontros.
Enfim, colocamos as questões para o debate, para a “troca de idéias”.
Por um momento, somos surpreendidos por Joveml (17 anos) que pediu para
ficar na sala, pois não estava se sentindo bem, com uma possível dor de cabeça,
relatou. Mencionamos que não havia problema. A dispersão inicia a sua segunda
etapa. O Jovemc (17 anos) pediu silêncio e conseguimos retomar o debate. Quase
todos afirmaram que iriam continuar, revendo, inclusive, futuras ausências. Apenas o
Jovemm (15 anos) expressou o desejo de não participar do encontro. Perguntamos
se ele gostaria de dizer a razão ou o motivo para nós. Aparentemente tímido, não
quis falar. “Ficou na dele”, como eles enunciam.
Deleuze (1990b) assinala que um dispositivo opera idas e vindas entre o ver e
o dizer e inversamente, agindo como setas que não cessam de penetrar as palavras
e as coisas, assim, sentíamos que os nossos encontros, atravessados por nossas
anotações em diário, nos remetiam a diversas direções, a olhares bifurcados, a
desejos emaranhados, como um novelo em intenso movimento de enrolar e
desenrolar. Novelo, não como um todo argumentativo, mas como fios de surpresa,
de intensidades. Nesses (des)caminhos ... ruídos ... um fio invisível solta-se em
algum emaranhado ... é o fluxo da vida ...
7.2 TEMPO E ESPAÇO NAS TRAMAS JUVENIS
Ao trazermos a noção de tempo e de espaço para os encontros com os
jovens, pretendíamos, certamente, afirmar a dimensão produtiva de um tempo que
não se repete. Nesse sentido, revisitar Walter Benjamin para reafirmar, também, a
produção de outra temporalidade, de outras conexões. Em Canteiro de Obra, entre
seus diversos fragmentos, Benjamin (1995), ao situar a noção da temporalidade, nos
aponta, em especial, para a sensibilidade e para a visão questionadora da criança
ante o mundo.
Elucubrar pedantemente sobre a fabricação de objetos – material educativo,
brinquedos ou livros – que fossem apropriados para crianças é tolice. Desde
o Iluminismo essa é uma das mais bolorentas especulações dos
pedagogos. Seu enrabichamento pela psicologia impede-os de reconhecer
que a Terra está repleta dos mais incomparáveis objetos de atenção e
exercício infantis. E dos mais apropriados. Ou seja, as crianças são
152
inclinadas de modo especial a procurar todo e qualquer lugar de trabalho
onde visivelmente transcorre a atividade sobre as coisas. Sentem-se
irresistivelmente atraídas pelo resíduo que surge na construção, no trabalho
de jardinagem ou doméstico, na costura ou na marcenaria. Em produtos
residuais reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente
para elas, e para elas unicamente [...]. (BENJAMIN, 1995, p. 18-19)
Tal fragmento nos faz pensar a representatividade da força do olhar crítico,
em especial, das crianças que, ao subverterem o tempo cronológico da história e ao
romperem com o seu fatalismo, buscam nos resíduos e nos estilhaços do que restou
no Canteiro de Obra ver o mundo a partir de um olhar que inverte a ordem das
“coisas”. Um olhar que produz uma linguagem mágica, produtora de um sopro tão
redentor que somente elas estariam à altura de compreendê-las. Entendemos que
experimentar devires como expresso no olhar da criança também se faz presente no
olhar crítico, especificamente, do jovem, ao explorar e cartografar os meios por onde
circula, improvisa e experimenta outros territórios de existência, num exercício
imanente de potência, como nos diria Deleuze (1992).
Nesse tempo e espaço que inverte um tempo cronológico, eu desejo. Tu não
desejas. Ele não deseja. Nós desejamos ... Enfim, o que é o desejo? Guattari (2000)
sinaliza, nos modos de produção capitalista, que há uma constituição de
subjetividades modeladas, serializadas, onde o desejo
54
é produção de
subjetividade. “A ordem capitalística produz os modos das relações humanas até em
suas representações inconscientes: os modos como se trabalha, como se é
ensinado, como se ama etc. [...] Ela fabrica a relação do homem com o mundo e
consigo mesmo” (GUATTARI Apud GUATTARI & ROLNIK, 2000, p. 42).
Certamente, a nossa proposta, ao produzir movimentos de rupturas com esse
paradigma instituído, hegemônico, privilegiava, o desejo produzido na relação
criativa com os jovens, de cunho instituinte. Desejado em sua diferença, potência e
criatividade. Um desejo que produz fluxos de inconsciente (DELEUZE & PARNET,
2004).
54
Ainda sobre a questão do desejo e nessa perspectiva apontada por Guattari ao se referir aos
modos de produção capitalista, Deleuze & Parnet (2004, p. 150) afirmam que em relação aos
agenciamentos de desejo. “[...] A la pregunta ¿cómo puede el deseo desear su propia represión, sua
esclavitud?, nosotros respondemos que los poderes que aplastan el deseo o que lo someten ya
forman parte de los mismos agenciamientos de deseo; basta com que el deseo siga esa línea, con
que quede atrapado, como un barco, en esse viento. Ni hay deseo de revolución, ni deseo de poder,
ni deseo de oprimir o de ser oprimido; revolución, opresión, poder, etc., son líneas componentes
actuales de un agenciamiento dado [...]”.
153
Em alguns momentos, nós e eles éramos dize-tu-direi-eu. Entre suspiros,
risos, desordem, ordem, fomos, ao longo dos encontros, percebendo, nos jovens,
uma tendência de se perceberem a partir de um fatalismo, de uma vida pré-existente
produzida por modelos previamente elaborados, fabricados. Uma vida sendo
atravessada por uma lógica que ao esvaziar o desejo, parece remetê-los ao lugar
comum, em especial, porque carregam consigo, possivelmente, uma virtualidade
perigosa. Essa realidade sugere a produção de uma certa perpetuação do papel do
próprio projeto que passa a ser a solução para os problemas dos jovens pobres.
Hoje o dia foi difícil e interessante para nós. Mas, antes de lembrar alguns
acontecimentos com eles, penso começar não pelo início, pela origem, até
porque não sei onde ela se localiza. Mas, a partir de alguns
entrelaçamentos que vão tecendo os encontros e desencontros, quando me
debruço diante de um trabalho de pesquisa. Não desejo remontar aos
pontos, mas trilhar e desemaranhar as linhas. Não é apenas o aspecto de
se fazer pesquisa, mas o de se envolver naquilo que pode ser desfeito,
como aponta Deleuze (1992). [...] Hoje, fiquei surpreso com o Jovema (16
anos). Considerado pelos colegas como um dos que procuram o cantinho
da sala para dormir, ele apresentou um relato, certamente, expressivo na
vida deles, pois são, segundo os próprios jovens, moradores de área de
risco no Grande Rio. Os jovens, participantes do PRCC nessa unidade
militar, apresentam os mesmos rostos da juventude pobre. São negros e
mestiços. O Jovema (16 anos) para falar do que ele entende por
desigualdade, mencionou uma situação vivida frente a uma abordagem dos
policiais, próximo à sua comunidade. Referiu-se à abordagem como uma
prática preconceituosa. Por estar ao lado de um amigo que, segundo ele era
de cor branca, apenas ele ficou com os policiais. Acharam que ele estaria
envolvido com os traficantes, por ser negro e morador de uma favela. A sua
liberação por parte dos policiais só foi possível porque um morador da sua
comunidade o reconheceu e se aproximou dos policiais, dizendo que ele era
“gente de bem”. (DIÁRIO DE CAMPO, 18/06/2004)
Sobre as motivações para estudar no PRCC, podemos identificar os
seguintes aspectos. Em comum, o ingresso dos jovens revela interesse e
expectativa, principalmente, pela família, quanto à valorização da carreira militar.
Assim sendo, para alguns, o ingresso no programa se deu a partir da inserção
anterior de irmãos no projeto e, certamente, pelas mães que procuram no programa
uma forma de ocupação para eles.
Tipo assim, eu estudava à tarde, aí eu acordava cedo, não fazia nada. Aí
ficava na rua, era cortando pipa na laje, aí ficava até o meio dia na laje
soltando pipa. Depois eu ia para a escola. Quando eu voltava, aí de noite,
eu ia jogar bola. Aí sempre era assim. Mas antes da minha mãe falar isso,
meu irmão trava aqui, eu por mim mesmo tinha me interessando assim, pô!
Aqui deve ser maneiro, então é a mesma coisa que eu falei antes, eu não
me arrependo não por isso. Mas tem gente aqui tipo, moleque perturba em
154
casa de manhã, tipo a mãe manda para cá, tipo, desculpe a expressão, tipo,
“foda-se”, deixa ele lá mesmo, é melhor mesmo que ele não fica
perturbando aqui. De tarde ele vai para a escola, a noite ele chega cansado,
e vai dormir. Aí tá entendendo, professor? Aí o moleque vai para o curso,
depois vai para a escola, chega em casa, toma um café, aí professor, tipo
assim, não perturba mais, não sai para a rua, tá entendendo? De manhã,
maluco, o moleque perturba. [...] É por isso que a mãe manda pra cá e não
tá nem aí, tá mandando pra cá só para não ficar dentro de casa. (JOVEMa,
16 anos)
Foi a minha mãe quem me trouxe para cá. Ela falou que ia ser uma coisa
boa, ia ser bom. Que tinha jovens assim, ia ser uma coisa que ia incentivar
para aprender melhor, tinha professores aqui que seria produtivo assim.
Viver assim com os jovens iria aprender um pouco mais daquilo que não sei.
Achei que ir ser muito bom até mesmo eu completar dezoito anos, devido ao
preparamento que tem aqui. (JOVEMb, 17 anos)
Eu vim para cá porque o padrinho do meu irmão era um militar. Aí arrumou
pra ele aqui dentro, mas ele veio como ouvinte. Igual ao (JOVEMa, 16
anos), todo evento que tinha, eu vinha com ele assim mesmo, com a minha
mãe. Aí depois disso eu encontrei com um militar, falei com ele direitinho. Aí
ele falou que ia arrumar aqui pra mim. Aí depois de um ano do meu irmão
aqui; aí pô eu já queria porque pô, como eu gosto do “negócio” de quartel,
pô, ia me ajudar mais porque depois que eu fizesse dezoito anos ia tá
preparado. Ia saber do que acontece aqui dentro e do que não acontece. Aí
já ia me ajudar. Aí também esses cursos, vai ajudar pra caramba que eu sei
porque é difícil o cara arrumar um curso aqui dentro do quartel. (JOVEMc,
17 anos)
Eu gostei porque eu tenho um primo que já tinha passado pelo PRCC. Ele
me falou, ele falou, é, depois aí minha mãe me perguntou se eu queria vir
para o quartel para fazer curso. Aí eu falei que sim. Depois eu fui lá na
pastoral, me inscrevi, só isso só. (JOVEMd, 15 anos)
A questão de “não ficar à toa” também se fez presente na fala da maioria.
Querem se profissionalizar para não serem identificados como “vagabundos”,
“bandidos”. Ser morador da favela é trazer a “marca do perigo”. Como desconstruir
uma identidade social pautada na idéia de pobreza, de miséria? Perguntamos o que
a palavra “vagabundos” significava para eles? A maioria afirmou que para os seus
pais e responsáveis, eles não podiam apenas freqüentar a escola. Era preciso,
também, se constituírem como trabalhadores. A relação entre formação profissional
“versus” ociosidade dá indícios que sugerem pensar como esses discursos são
aceitos e naturalizados, inclusive, pelo PRCC, ao tomar para si a educação para o
trabalho, ao iniciá-los em alguma atividade produtiva, do ponto de vista do
aprendizado. Primeiro, atender a uma solicitação moral das famílias, pois não basta
apenas freqüentar a escola formal. Segundo, a sua inserção num certo tipo de
formação profissionalizante – em específico da UA da EsCom – representava o
reconhecimento de serem, ao mesmo tempo, percebidos como estudantes e futuros
155
trabalhadores. Neste contexto, é possível afirmar a existência do caráter preventivo
do projeto na fala das famílias e expresso no texto oficial.
Em encontros passados, lembro-me que os jovens colocaram que a
motivação primeira para estar no PRCC partiu do desejo de suas famílias,
certamente, das mães. Com um discurso comum que parece se generalizar
na representação das famílias pobres, ocupar a criança e o jovem para não
“ficarem à toa” é a tônica na fala das famílias. Parece-me que a questão do
trabalho, enquanto motivação primeira, não faz parte do desejo desses
jovens. Por pressão familiar, são conduzidos, em geral, por suas próprias
mães para o projeto. O trabalho surge como um anteparo aos perigos
vividos “na rua”, nas vielas quebrantes das favelas, aos riscos da
marginalidade. “Minha mãe falou que se eu entrasse para a vida do crime,
ela se mataria”, relatou um jovem. Talvez o trabalho seja pensado, via
família, como elemento de prevenção. (DIÁRIO DE CAMPO, 16/07/2004)
Segundo relatos de um coordenador que realizou várias entrevistas, no
período do processo de seleção, junto às famílias dos jovens, a maioria não tem
alimento em casa, inclusive, são sorteadas mensalmente duas cestas básicas para
as famílias, cuja doação parte de uma proprietária de uma lanchonete localizada no
interior da EsCom. Por outro lado, os jovens encaminhados pela SMAS e
cadastrados no setor de serviço social, recebem mensalmente uma cesta básica.
Ressaltamos que alguns jovens já haviam participado de outros programas de
formação profissional.
Enfim, como colocar em análise os jovens, suas vidas, essas “verdades”? Em
alguns momentos da nossa pesquisa, escutávamos, com freqüência, afirmações
pelos “corredores” sobre uma suposta natureza que habita esses jovens como
mencionamos em capítulos anteriores. Havia uma “natureza” a ser descoberta para
parte dessa juventude. Nisso, acreditavam os que faziam o programa nessa UA.
Relatou que possivelmente Joveml (16 anos) seria desligado do projeto.
Durante a semana, ele tinha partido para “bater” num colega, e não apenas
isso. Ele tem um comportamento violento, como quase todos, afirmou o
militar. Quanto ao Jovemn (15 anos), disse-me que sua mãe havia
telefonado, informando que ele estava estudando para tentar uma vaga no
colégio militar. E por isso teria que faltar às sextas. Com relação ao Jovemo
(16 anos) é a mesma situação. Outro desligamento poderia acontecer com o
Jovemp (16 anos). Segundo seu entendimento, ele não deveria estar no
projeto. “Olha, Eduardo, se você prestar atenção nas roupas dele, ele se
diferencia dos demais. Primeiro, não usa a camiseta do PRCC e nem
mesmo da escola. O tênis que usa é de marca e, normalmente, é importado.
Digo isso porque já comprei para os meus filhos. Custa, em média,
duzentos reais”, sustenta, de forma contundente, o militar. Diante de sua
afirmação, quis saber então quem era o possível financiador dos gastos do
jovem. “Eduardo, o pai do jovem é dono de uma boca de fumo em ‘XYZ’”.
Como ele é separado da mãe do jovem, e ela, querendo evitar o contato do
156
filho com o pai, buscou encaminhá-lo para o PRCC. Mas, como vo
percebeu, ele mantém contato com o pai, afirmou. Além disso, Jovemp (16
anos) não participa das atividades, inclusive, se recusa a tomar parte dos
cursos de profissionalização. Como teremos uma reunião com os
responsáveis no dia 03 de agosto, essas questões serão colocadas para a
sua mãe. Diante dessas questões que se colocam nesse sentido, lembro-
me dos nossos encontros em que o referido jovem, se não dorme, pouco
participa dos encontros. Tal atitude sinalizada pelo militar, em algum
momento, tem ressonância. Expressiva parte dos jovens que participa dos
encontros, usa uniforme do projeto que, notadamente, diverge das usadas
por Jovemp (16 anos). Tenho dúvidas se o projeto teria alguma contribuição
para o jovem diante desses fatos. [...] O dinheiro “fácil” do pai, mesmo que
em algum momento seja efêmero, pode bloquear qualquer desejo de busca
de ultrapassar uma realidade que o coloca, o tempo todo, no caminho de
outros modos de existir, inclusive, de participar do “desvendamento” de
outros mundos que produzem outras existências. (DIÁRIO DE CAMPO,
09/07/2004)
Tínhamos a sensação presente de que não poderíamos partilhar dessa
“verdade” com o projeto. Aprisionar a vida em seu movimento era o que não
desejávamos. Na medida que os jovens expressavam essa realidade, seu pensar
parecia abrir-se à apatia. Será que deveríamos colocar a nossa apatia, também, em
análise? Como improvisar outros territórios de existência diante de vidas
atravessadas por uma multiplicidade juvenil de incertezas, mas também de
possibilidades? Suas falas e gírias desnudam seus territórios: modos de vestir e de
existir, brincadeiras, risos, tristezas, histórias de vida, lazer, resistências,
transgressões, sexualidade, drogas, escola, trabalho, enfim, apontam para uma
diversidade que, também, nos permite entendê-los como movimento, em que a vida
se dilata para além de numa suposta natureza ou essência de jovens pobres.
Fechamos a sala e fomos em direção à coordenação. Lá encontro com um
educador. Ficamos alguns minutos observando o prazer que eles sentem
nas atividades de educação física, principalmente, no futebol. Os que
costumam dormir, transformam-se em verdadeiras máquinas de guerra
frente ao time adversário. Não há um desejo de contenção de um poder,
mas um movimento de luta, de afirmação de uma força que eles possuem,
mas que é contida ou sufocada no discurso instituído do Exército. Livres e
temporariamente afastados dos bloqueios normalizadores, parecem liberar
a potência imanente em cada um. (DIÁRIO DE CAMPO, 03/07/2004)
Talvez esses movimentos sinalizem para uma “complexidade positiva” quando
falamos numa atividade de pesquisa que nos solicita a presença do nosso corpo, um
corpo implicado, pesquisador e objeto se constituindo ao mesmo tempo, segundo
nos afirmou Barros (1994). Tentar sair dos especialismos pautados pelo instituído,
157
pela vida normatizada, nos conduz a um eterno olhar caleidoscópico. Sempre que
olhamos, outros movimentos possíveis em suas intensidades serão produzidos.
Entendemos que a nossa escolha teórico-metodológica apresenta,
certamente, a possibilidade de produzir outros devires possíveis, em que a produção
de um outro corpo pesquisador se faça em devir, em busca de um outro mundo a
conhecer. “Ficamos sabendo que Jovemd (15 anos) faz uso de calmante. Afirmaram
que ele tem ‘doença dos nervos’. [...] No futebol, como pude presenciar e, mesmo
parecendo paradoxal para os que o consideram ‘incapaz’, ele corre, luta, vai para o
embate com os adversários. [...]” (DIÁRIO DE CAMPO, 17/07/2004). É a linha do
tempo que, ao contextualizar suas trajetórias pessoais, aponta para essas
“verdades” que produzem, nem sempre, dependência ... fragilizando a potência ... E
o nosso novelo segue o seu (des)caminho ...
7.3 TEMPO-VIVÊNCIA FAMÍLIA
Em determinado momento, solicitamos aos jovens que sugerissem um tema
para aquela manhã. O silêncio passou a tomar a cena do dia. Apenas distantes
suspiros, olhares podiam ser sentidos. Nada mais além da resistência. O espaço,
inventado por nós, se constituía num campo de constante dilatação. Não estava em
questão a obediência a algo. Não éramos o panóptico, a disciplina, a gerência das
vidas (FOUCAULT, 2002a).
O que, aparentemente, representou uma relutância, uma resistência, para não
fazerem nada, inclusive, para não pensar e numa atividade em que o desejo
pudesse ser coletivizado, dava indícios de como essa realidade era percebida pelos
educadores e coordenadores, ao afirmarem que “eles não querem nada”. Essas
“verdades” que pareciam já estar dadas, eram, com freqüência, ouvidas pelos
corredores. Para a nossa compreensão, essa relutância representava o
tensionamento necessário para colocarmos em análise um fio que havia se perdido
em encontros passados.
Se o tempo e o espaço enunciados pelos jovens trazia suas famílias na
relação com o projeto em termos de encaminhamento, uma voz dissonante ao
silêncio, numa aparente brincadeira, diz: “professor, a irmã desse moleque é muito
158
gostosa”. Era o Jovemc (17 anos) referindo-se à irmã de Joveme (16 anos). A
palavra desejo, prazer entra em cena. Não havia mais espaço para o silêncio.
A vida, agora traduzida num jovem desejo, ofusca a angústia, e produz outros
desejos nesse encontro, aparentemente, frio, difícil, cansativo. Agora somos mais
uma vez atravessados: o jovem produz uma linha do tempo. São os fios invisíveis de
Ariadne. Eram invadidos por um desconforto, por uma inquietação, efeitos da
desterritorialização, dos caminhos produzidos na cartografia que os conduziam a
caminhos não percorridos. “Um lembrete: o inconsciente [...] ele é o próprio
movimento de desterritorialização produzindo devires inéditos, múltiplos e
imprevisíveis [...]” (ROLNIK, 1989, p. 53).
Apenas dois jovens moram com seus pais, dentro de uma composição que
poderíamos pensar numa “família nuclear”. Os demais vivem com as mães e os
reordenamentos vão delineando outras nuances na relação familiar, em sua maioria,
por separações ou por não terem conhecido o pai biológico. Em suma, há um
entrelaçamento de histórias de vida, de amor entre jovens, em que os conflitos
familiares ora são traduzidos por cenas de ciúmes, de incompreensão, de tensão, de
medo. Ora por “aceitação”, quando algumas famílias partilham a alegria, a
solidariedade, na medida que vão organizando a vida coletiva em torno, em
especial, da inserção dos jovens no programa.
Lembrar. Mas pode onde começar? Esse será sempre um dilema na
composição do meu diário de campo. Por exemplo, lembro-me que
conversamos também sobre a questão da família. O Jovemc (17 anos) que
estava do meu lado direito, iniciou a conversa. Disse-nos que mora com sua
tia. Sua mãe, separada de seu pai, não tem condições de prover todos os
filhos. Jovemg (16 anos), cujo pai, possivelmente, é “dono de uma boca de
fumo”, mora com a sua mãe, padrasto e com as irmãs. Afirmou que não se
sente bem vendo sua mãe dividir sua casa com um outro homem. Nesse
caso, o padrasto. A violência doméstica me parece ser expressiva na vida
desses jovens. Jovemg (16 anos) nos relatou que “se um dia ele visse a
mãe sendo agredida pelo seu padrasto, ele o mataria”. A convivência
familiar também não é significativa para o Jovemh (17 anos). Normalmente,
ele não participa dos debates no grupo. Para falar um pouco de sua
experiência com a sua família, mencionou que mora com a mãe, padrasto,
com irmão e com duas irmãs. Ao todo, são seis pessoas na família. Com um
tom de fala baixo, queixou-se da atitude de sua mãe que descobrira que
suas irmãs “fazem coisas erradas” fora de casa. Nesse instante, um jovem
disse: “professor! Elas são mulheres da vida”. Parecendo não se incomodar
diante da afirmação do colega, Jovemh (17 anos) faz um sinal com a
cabeça como se quisesse reafirmar a colocação do mesmo. Não apenas
pela vida de trabalho que as irmãs se encontram, mas pelo fato da mãe ficar
mais agressiva diante dessa realidade, ele acaba sendo o mais afetado
pelas atitudes da mãe. Segundo ele, ela, normalmente, quando agitada,
parte para a violência, tentando agredi-lo, mesmo quando não há razão
159
existente, afirmou Jovemh (17 anos). Na tentativa de ilustrar um pouco a
sua realidade, Joveme (16 anos) relatou uma situação em que foi
necessária a intervenção do irmão mais velho que teve que imobilizar a mãe
por meio de um golpe, tipo “gravata”, em que o braço circunda o pescoço,
provocando uma sensação de asfixia, para separá-la de uma altercação
com a irmã mais velha. Segundo ele, atualmente mora com a mãe, o
padrasto, um irmão e uma irmã. Diante desse relato, percebo um silêncio
entre os jovens. Um silêncio que, impiedoso num mundo sem falas, nos
coloca lado a lado frente aos relatos iniciais que cada um vem expondo na
manhã do dia 16 de Julho. Jovemj (17 anos) e Jovemd (15 anos) são os
únicos que moram com os pais. Nos finais de semana, Jovemj (17 anos)
afirmou que costuma tomar “uns vinhos” com os irmãos maiores na porta de
sua casa. Encontra-se na quinta série, aos quinze anos, e acredita que,
através do PRCC, pode conseguir um trabalho já que está adquirindo uma
experiência profissional. [...] No tocante à família do Jovemf (16 anos)
mencionou que, mesmo não morando com o seu pai, gosta da relação que
tem com o seu padrasto, que divide com sua mãe e irmãs o espaço da casa
atualmente. Como ele mesmo afirmou: “lá em casa, a relação da gente é
boa!”. (DIÁRIO DE CAMPO, 17/07/2004)
Sobre a escolaridade, alguns apresentam histórias de repetência e de evasão
escolar o que sugere, para a maioria, uma inserção precária seja pela situação
escolar, seja pela condição de pobreza ou pela entrada precoce no mercado de
trabalho informal. O que, por seu turno, se apresenta como fator expressivo e
provavelmente, não há só isso, para alguns demonstrarem histórias de repetência e
evasão escolar. Apenas um jovem, na época, era aluno de Educação de Jovens e
Adultos (EJA). Aos dezessete anos, pretendia terminar o ensino médio ainda em
2004. Apenas dois jovens configuravam o paradigma da fase escolar, a
“normalidade” entre idade/série, o que, por sua vez, seria o contrário do que se
define comumente por defasagem escolar para a maioria dos jovens pesquisados.
Nessa realidade prepondera, certamente, o olhar do jovem, com maior impacto de
suas famílias, que busca privilegiar a formação profissional. Mesmo que o programa
em análise vincule compulsoriamente a matrícula e o rendimento escolar do jovem à
sua permanência nos cursos profissionalizantes.
Aqui todos os sentidos vão sendo cristalizados. O tempo é algo angustiante.
Não querer escolher uma atividade para esse encontro, o que estava sendo lançado
no tempo e no espaço era a possibilidade de que eles experimentassem outras
formas de pensar o tempo presente, das tarefas prontos. Experimentar falar da
família, nesse espaço, poderia ser uma tentativa de produzir outras intensidades
(DELEUZE & GUATTARI, 1976).
Éramos, sentíamos, atuávamos, a partir dos fluxos que iam traçando outras
experimentações. Como afirmamos antes, experimentar em devir significa um entre,
160
e não se trata de um ou de outro, já que tudo está em permanente construção. Aqui,
uma ponta do novelo ... a partir dele ... uma parte do nosso olhar ... o diário de
campo ... Como afirma Rolnik (1989, p. 80), estávamos experimentando, sempre no
momento da pesquisa, perceber dentro de um certo “vácuo” a produção de outros
movimentos de expressão, para a produção de outros sentidos.
[...] a análise do desejo, aqui, é o exercício de aproximação do finito
ilimitado. O exercício de criação de um campo onde se possa conquistar
intimidade com o finito ilimitado, o que, muitas vezes, só é possível fazer
acompanhado. Um campo onde se possa vivenciar e reconhecer as formas
de resistência a essa intimidade que se costuma acionar no dia-a-dia, as
estratégias que o desejo monta para sabotá-la. Vivenciar e reconhecer o
desperdício da vida que há nessas estratégias. E aí, afrontar as rupturas do
desejo, os vácuos dos territórios, sem recorrer a esses velhos vícios.
Vivenciar os vácuos e, dentro deles, buscar matéria de expressão para
administrar as partículas de afeto enlouquecidas, dando-lhes sentido [...].
7.4 TEMPO-VIVÊNCIA ELES NO TEMPO
Sempre em movimento, a dimensão dos encontros, em sintonia com uma
razão sensível e ruidosa, nos proporcionava, a partir da multiplicidade dos olhares,
modos de experimentar outros devires, escutar os jovens quando uma “verdade”
instituída sugere que “eles não têm nada a dizer”.
Outro aspecto destacado pelos jovens diz respeito à exposição das notas
que são atribuídas pelas professoras e, mediante o baixo desempenho de
alguns, seus nomes são fixados em sala, com as respectivas notas para
que todos vejam os seus rendimentos que, para eles, uma educadora os
considera como incapazes. Parece-me que os absurdos não param por aí
até porque as queixas foram surgindo de várias partes. Claro que os mais
tímidos não se pronunciaram. Mas, concordavam, pelo menos
mimeticamente, com os seus colegas. Reforçar negativamente o não
aprendizado deles, é uma constante na fala da educadora, afirmaram. Quis
saber como tudo isso era para eles. Relataram que se sentiam humilhados,
que a professora não tinha paciência com eles e que os considerava,
inclusive, como “burrinhos”. (DIÁRIO DE CAMPO, 28/05/2004)
Entrava em cena o lugar atribuído a eles. Jovema (16 anos) irrompe com a
seguinte frase: “professor, licença! mas é foda. É isso mermo meu irmão!”. Estava
em cena o lugar do suposto professor. Impregnados pelo instituído e pela aparente
cristalização, a nossa presença, questionada inclusive na perspectiva docente,
porque não estávamos lá como professores e nem psicólogos, estava sempre
161
associada ao instituído. A frase, supostamente apelo-socorro-urgência, enunciava a
emergência de uma sensação que num lampejo coletivo faz repensar o lugar em que
eles se encontram.
Como o espaço do programa se constitui, também, em produtor de
subjetividades, esses jovens necessitavam ser tutelados e preparados a partir de
uma determinada ordem moral e simbólica instituída pelo programa. Portanto: ter um
certificado emitido pela UA significa o reconhecimento, inclusive, para que eles
possam ser identificados e reconhecidos, caso almejem a carreira militar. Por outro
lado, possibilita, inclusive, o reconhecimento no mercado de trabalho formal. O lugar
atribuído era o de “coitados”, sendo esse espaço a salvação, a última redenção para
os jovens pobres. Ressaltamos que, embora o programa apresentasse essa
proposta, acreditávamos na produção de outros desfechos com os jovens.
Na refeição do almoço, segundo eles, ela não poupa comentários
desagradáveis quando eles estão fazendo seus pratos. Jovemm (15 anos)
nos contou que ela, certa vez, disse que “ele era pequeno, mas fazia um
prato de gente grande”. Lembro-me que este comentário também fora feito
por um militar no primeiro dia em que estive no projeto. Inclusive, na frente
dos jovens, durante o almoço. Não específico ao prato do Jovemm (15
anos), mas como um comentário geral. Ressaltou que nem todos têm
refeição em casa diariamente. No período da tarde, eles vão para a escola
onde somente terão a merenda matutina. Quis, mais uma vez, saber como é
para eles essa experiência no projeto. Com relação ao momento do almoço,
mencionaram que se sentem humilhados com os comentários. “Que não
acham legal”. (DIÁRIO DE CAMPO, 28/05/2004)
Em vários encontros, além desse aspecto enunciado pelos jovens, colocamos
em análise esse espaço em suas vidas. Certamente, eles não se colocavam numa
posição de vítimas. Serem associados como “coitados”, “burrinhos”, não os lançava
no território de vítimas. O que vinha demarcando uma certa freqüência era associar
determinados colegas à incapacidade sobre a participação nos cursos. Atentos aos
fios que iam se abrindo, fomos escutando essas falas como uma forma de não
esvaziar o desejo, mas trazê-lo para o diálogo.
Achamos nesse instante que deveríamos colocar o que estávamos sentindo
em relação às recorrências que também despontecializavam os próprios colegas.
Era o momento que deveríamos colocar em análise o que sentíamos. Dissemos a
eles. Por que vocês, na maioria dos encontros, vêm colocando a questão da
dificuldade de alguns colegas nos cursos, denominando-os de “burros”? Pronto:
estava sentenciada a nossa sensação. Como é, para vocês, denunciar a atitude de
162
alguns educadores em relação aos seus comportamentos? E, ao mesmo tempo,
despontecializar o outro? Enfim e diante dessas questões, sentíamos que havíamos
produzido uma “certa fratura” nas palavras, ao colocarmos em vibração o que
aparentemente havia se cristalizado em suas “verdades”.
Atentos às indagações, aos deslocamentos desestabilizadores, de súbito,
imediata se fez a reação de alguns. Tentaram justificar suas falas, alegando o não
compromisso de alguns colegas. Ao acionarem o dispositivo da ordem instituída, nos
parecia, então, que eles não conseguiam pensar algo de si, se não estivesse
associado ao proposto pela pedagogia do programa, inserido e, certamente, com
maior impacto, a partir das dependências da EsCom. Nesse encontro, nenhum dos
jovens conseguiu relacionar sua história, se não estivesse vinculada ao contexto do
projeto.
Havia uma espécie de filiação inconsciente em suas vidas vinculando um
pensar sobre si, a partir de uma referência identitária aprisionada (GUATTARI,
1992). Parafraseando ainda Guattari (1987) cabe indagar: Por que os jovens não
conseguem se perceber, além dessas subjetividades modeladas? Seria preciso
livrar-se das “couraças” de que falava Wilhelm Reich, diria-nos o referido autor.
Sabemos que essa lógica de funcionamento nos diversos códigos dos modos de
existir e de sentir o mundo que vão definir a maneira de perceber o mundo, se
produz porque “[...] Nós experimentamos a linguagem, criamos socialmente a
linguagem e nos tornamos afinal lingüisticamente competentes” (FREIRE, 1991, p.
138).
Na saída do projeto, deparei-me com um militar que estava acompanhando
dois jovens, entre eles, o Jovemc (17 anos). Tentando justificar a saída do
jovem durante as nossas atividades, falou que era preciso que eles também
realizassem outras tarefas dentro do quartel. Nesse dia, o militar os colocou
para limpar uma pequena capela que fica na saída da Escola de
Comunicações: quase que imperceptível no tamanho, mas poderosa no
domínio da consciência daqueles que se “definem” cristãos. No embate
dessas forças, fico pensando em algumas questões que parecem
perpassar, invisíveis, ao cotidiano dos jovens. Segundo o militar, quando
eles saem do programa, além de receber os certificados dos três cursos de
formação profissional, recebem, quando solicitado, também um certificado
de “conduta” que favorecerá, expressivamente, nas palavras do militar, aos
jovens egressos para a sua admissão, durante a fase do alistamento militar.
Vale destacar que esse fato já relatei anteriormente. Diante desse dado de
realidade, interessa aqui pensar em Michel Foucault (2002a, p. 119) quando
buscou analisar um certo tipo de sujeição, de domínio sobre o corpo, que
surgiu no século XVIII e que se desenvolveu a partir do século XIX: a
disciplina. Ao produzir corpos conformados e aptos, e, conseqüentemente,
tornados “dóceis”, “[...] ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado
uma “aptidão”, uma “capacidade” que ela procura aumentar; e inverte por
163
outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma
relação de sujeição estrita. Se a exploração econômica separa a força e o
produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo
o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação
acentuada”. (DIÁRIO DE CAMPO, 18/06/2004)
Na perspectiva ainda de tensionar algumas falas sedimentadas dos jovens, os
afetos ensacados, tentamos, mesmo diante do limite do tempo, colocar uma situação
de parte de um cotidiano da cidade do Rio de Janeiro. Levantamos a seguinte
questão: como podem, numa sexta-feira, de uma manhã fria, estar no projeto, e um
jovem da mesma idade, morador de algum condomínio na Barra estar na escola e,
possivelmente, ficar de “bobeira” o restante do dia? O Joveml (16 anos) foi rápido.
Mencionou que o jovem tinha condições, tinha dinheiro. E eles não. Eram pobres. O
Jovemc (17 anos), em seguida, afirmou que a maioria dos colegas não tinha comida
em casa. Reforçou, inclusive, o que Joveml (16 anos) já havia colocado (DIÁRIO DE
CAMPO, 04/06/2004).
Nesse movimento, percebíamos que havíamos “roubado”, mais uma vez, a
certeza de um tempo contínuo. Eis que uma outra voz dissonante e ocultada pela
história surge, produzindo vibração no nosso espaço: “ah, isso acontece por conta
da desigualdade social”, afirmou Joveme (15 anos). Nesse instante, uma “palavra-
revolução” faz repensar aquilo que produz suas formas de vida, e como essas
produções se reproduzem em seu cotidiano.
Deslocávamos, tensionávamos a sua realidade, mesmo na multiplicidade para
pensar outros modos de subjetivar: falar de si e apontar as capturas que os
constituem num certo “modo-jovem-trabalhador”. Era uma tentativa para apontar os
dualismos de um cotidiano desigual em que se reafirma um lugar definido para uma
parcela da juventude pobre. E pode sinalizar para outras formas de ser. Nesse
instante, outra voz dissonante entra em cena, questionando o projeto e as famílias ...
Silêncio ... A ponta do novelo segue uma dobra: o desejo de um moço-jovem
também quer revolucionar. Deseja interromper um trajeto do tempo linear ...
Chrónos.
Meu outro irmão era daqui, sempre quando tinha assim, tipo, reunião que
marcava com os pais, assim, aí que vinha. Na época era um outro militar. Aí
no final de ano na festa aqui no auditório, as comidas, é legal! Na moral! E
meu irmão tinha passado por aqui, dizia que era “manero”. E eu vou sair
esse ano porque não tá dando pra ficar aqui não. Minha mãe tá
pressionando muito para trabalhar, e eu não vou ficar não. Eu não me
arrependo de ficar aqui não, não me arrependo mesmo. Tem gente que tá
aqui obrigada sabe por quê? Porque a mãe mandou, os pais obrigaram.
164
Igual a um outro moleque, ele só tá aqui porque a mãe obrigou, ele não
queria vir para cá. Ele não tá aqui porque ele quer. Pode ver, ele falta pra
caramba! Se um dia eu sair, hoje ou amanhã, não vai me fazer falta, tá
entendendo? (JOVEMa, 16 anos)
Ainda desenrolando o novelo, uma outra ponta sinaliza para o que eles
pensam sobre o trabalho, a partir da sua inserção nos cursos profissionalizantes.
Trata-se, enfim, de pensar como eles experimentam tempos possíveis em relação à
formação profissional e à implicação dessa nos seus modos de viver esse tempo.
Um tempo que produz modos de trabalhar onde convergem as transformações do
próprio trabalho e a constituição de um novo tipo de trabalhador. Ainda aqui cabe
indagar: Como pensar a subjetividade juvenil atravessada por essa lógica
paradigmática nos modos de viver e de subjetivar contemporâneos?
Nessa linha do tempo ... chrónos ... nos parece que o trabalho surge como
algo moralizador para os jovens. “Trabalho é tudo. De preferência trabalho ‘bom’.
Você pode sustentar a família. Trabalho para comprar um tênis, roupas maneiras.
Você tem que ter estudo primeiro”, afirmou Jovemc (17 anos). “Eu tô aqui para
ajudar a minha família. Hoje tá muito sinistro emprego. Você vai ter um currículo
melhor. Quando você sair daqui, pra mim, é mais fácil arrumar um emprego”
(Jovema, 16 anos). “Trabalho para mim é essencial porque sem trabalho você não
vai ter dinheiro para sobreviver. Mas trabalho também você tem que fazer alguma
coisa que você gosta. Não é só trabalhar para se ter dinheiro. [...] Não basta só
trabalhar para ganhar dinheiro” (Jovemb, 16 anos). “Trabalho tem que ter estudo
primeiro. O cara da faculdade vai ficar na tua frente. Lá em casa meu pai fala, eu te
dei o melhor para tu passar pro teus filhos. É isso que eles passam lá em casa”
(Jovemc, 17 anos). “Ganhar o seu dinheiro. Comprar o que quer” (Jovemd, 17 anos).
Alguns afirmaram trabalhar fazendo “um bico” nos finais de semana em atividades
que requerem pouca qualificação. Na produção de um “modo-jovem-trabalhador”,
percebem a profissionalização proporcionada pelo PRCC como uma posterior
inserção no mercado de trabalho.
Hoje em dia tá difícil. Mas muito difícil mesmo. Tenho uma prima minha, ela
fez um monte de cursos, e hoje tá desempregada. Pô, você tem que estudar
muito. Mas mesmo assim tá difícil. O mercado não tá muito difícil não, o
negócio é o estudo. Você só estudar, você vai se dar bem, é assim que
minha avô fala em casa. Antes você precisa do terceiro ano. Agora você
precisa da faculdade, de aparência, de se vestir bem. (JOVEMc, 17 ANOS)
165
Nesse tempo contínuo, das rotinas disciplinares, das certezas, a idéia de uma
potencialidade nos jovens que precisa ser produzida, a partir de uma formação para
o trabalho desarticulada, inclusive, do sistema formal de ensino. A imagem
construída por alguns jovens sobre si parecia não desejar romper com o tempo
contínuo que privilegiava, naquele instante, alguma forma de “filiação” (CASTEL,
1998). Em relação à EsCom: “agora eu tenho mais chance que tenho curso de que
ele só tem o 2º grau. Então eles não querem só apenas com o 2º grau, mas que não
sabe fazer nada pra soldado. Eu vou ser mais utilizado aqui do que ele” (Jovemc, 17
anos). Pareciam não querer experimentar outros movimentos possíveis, mas
tomavam para si um tempo “de vida prêt-à-porter” (Célia Linhares). Essa tentativa de
“filiação”, segundo Zaluar (Apud COSTA, 2001), já estava presente no modelo
dicotômico do Rio de Janeiro, como uma cidade dividida, no imaginário da
população, e eternizada na obra de João do Rio que, ao falar da favela, sentia-se na
roça, longe dos benefícios oferecidos pela cidade. A percepção de ser estranho no
mundo do asfalto faz surgir a necessidade de se integrar nele para os que vivem em
favelas.
O Sílvio Santos começou vendendo picolé no trem. Engraxate. Por exemplo,
tem gente que já foi rico, e tá na rua morando como mendigo. O senhor já
sabe da história assim, não sabe? Tem gente que é mais pobre do que a
gente tá aqui. Pobre mesmo, não tem nada pra comer em casa. Não
trabalha, tipo assim, tem filho. O cara ir, tipo assim, para a igreja, fazer uma
corrente de oração, tá entendendo? Ele sabe que se Deus honrar mesmo
aquele moço, professor, ele vai ter tudo o que ele quiser. Ele vai ter um
carro, um casarão, vai ter uma família boa, vai ter. (Jovema, 16 anos)
Tomar a questão do trabalho como analisador permitiu que isso fosse
colocado em movimento. Se estávamos renunciando ao nosso lugar instituído para
que outros movimentos pudessem ser produzidos, eles também poderiam renunciar
aos lugares fixos, estruturantes. Repensar os sentidos da formação é arriscar-se ao
novo, ao que conduz ao desconforto, à insegurança. Questionar a formação
166
por eles. Onde fica a possibilidade mínima de “escolha profissional”, perguntamos?
Nesse contexto, que parece não desafiar o instituído, o suposto equilíbrio pensado
pela modernidade, o projeto parecia cumprir seu papel específico: o de enquadrar o
jovem pobre a essa mesma ordem. Nessas “verdades”, “[...] produz-se um raciocínio
linear, de causa e efeito, de que onde se encontra a pobreza está a marginalidade, a
criminalidade [...]” (COIMBRA, 2001, p. 58). Além dessa conjuntura, cabe indagar:
Seria o projeto um espaço de “contenção” de uma parcela da juventude pobre?
Relacionar a formação profissional com a condição de pobres de cada jovem
se constituía na produção de outros fios que o novelo ia dispondo na elaboração
coletiva que nos incluía num tempo não seqüencial. No tocante à entrada no
programa, de forma geral, entendemos que são, comumente, cursos
profissionalizantes desenvolvidos por organizações do terceiro setor e direcionados
a jovens de segmentos pauperizados. Refletindo, por seu turno, uma tendência para
indicar uma seleção prévia pensada nesse caso pelo PRCC, pelo instituído, em que,
apenas, cabe ao jovem não escolher, mas direcionar seu olhar pela escolha do
outro, até porque fazê-lo não significa, possivelmente, o curso que o mesmo
possivelmente idealizava.
Hoje foi mais uma manhã fria de outono. Acho que estou me tornando mais
familiar aos olhos dos soldados. Cheguei ao quartel às 8h. Junto comigo,
estava o Jovemj (17 anos), um jovem do projeto. Como existem vários
nomes iguais, os jovens, em sua maioria, são chamados pelo sobrenome.
Acredito que isso não seja apenas pelos homônimos, mas como uma
estratégia para que os jovens se percebam identificados com as questões
pertinentes ao cotidiano do quartel. Bem, seguimos juntos para a
coordenação do projeto. No caminho, tentei quebrar um pouco o silêncio.
Perguntei ao Jovemj (17 anos) em que ano da escola ele estava. Disse-me
que está cursando a quinta série e que se sente atrasado na escola pois
tem quinze anos, e acredita que deveria estar em outra série. Quis saber
como ele passou a conhecer o projeto. Disse-me que ficou sabendo por
conta do seu irmão que já tinha passado pelo PRCC e, inclusive, que havia
a possibilidade de ser incorporado ao Exército no momento do alistamento.
Relatou, também, que após a saída do PRCC, o quartel sugere aos jovens
retornarem às unidades, pelo menos, três vezes antes de completarem a
maioridade. Diante dessa informação, fico pensando, tentando fazer um
paralelo com relação aos soldados engajados e após cumpridos seu tempo
no Exército, há uma exigência que o mesmo retorne a unidade onde prestou
o serviço militar durante cinco anos consecutivos. Haveria alguma
adaptação, uma junção de outros elementos, que buscariam localizar e
situar os jovens antes do alistamento militar? É necessário controlar, para
além da área militar, o tempo e o espaço dos jovens? Seriam esses
mecanismos de prevenção instituídos pelo PRCC? (DIÁRIO DE CAMPO,
28/05/2004)
167
Algo anunciava a produção de outros campos relacionais. Na medida que
tentávamos pensar a questão da formação profissional desde o início do nosso
trabalho com os jovens, percebíamos que outros planos passavam a se fazer
presentes em suas vidas. Estávamos experimentando outros sentires, em que cada
história poderia vibrar ou quebrar um “ponto fixo” diante da produção de um “modo-
jovem-trabalhador”.
Na votação, todos concordaram. Faltando cinco minutos, quis saber deles
como tinha sido esse encontro. Uma palavra apenas poderia ser
expressada. “Bom”, “interessante”, “legal”, “maneiro”, davam o tom no
sentimento de todos. Na verdade, confesso que esperava que algum jovem
me questionasse também como tinha sido o encontro. E não deu outra. Que
maravilha! Respirei tranqüilo. Jovemc (17 anos) olhou para mim e falou:
‘professor’, como foi para você também? Calma aí pessoal, vamos ouvir o
‘professor’, solicitou o Jovemc (17 anos). Achei que deveria dizer aquilo que
estava sentindo. Talvez se falasse o contrário, eles poderiam perceber que
eu não estava sendo verdadeiro comigo mesmo e com todos. Falei da
dificuldade, por conta do barulho, de dar prosseguimento às discussões que
estavam sendo colocadas por nós [...]. (DIÁRIO DE CAMPO, 04/06/2004)
Experimentar é da ordem do devir-pensamento, “é sempre o atual, o
nascente”, segundo nos afirmou Deleuze (1992). O termo profissionalização
implicou, certamente, diferentes formas de produção de sentidos. Não optamos por
“marcar” o que a formação profissional produziu nos jovens, mas por poder produzir
outras transgressões do olhar, transgressões de encontros possíveis com eles nessa
prática educativa. Experimentar outros devires que, para além de uma formação
para o trabalho, nos apontaria para vidas em potências que inventam, criam outros
modos de pensar, de questionar.
ALGUMAS CONCLUSÕES, ALGUMAS INCONCLUSÕES
Não entendo. Isso é tão vasto
que ultrapassa qualquer entender.
Entender é sempre limitado.
Mas não entender pode não
ter fronteiras. Sinto que sou muito
mais completa quando não entendo. [...]
Só que de vez em quando vem
a inquietação: quero entender um pouco.
Não demais: mas pelo menos
entender que não entendo.
(Clarice Lispector)
A inquietação, as palavras incertas e pretensiosas, ainda fustigam o nosso
pensar sobre o que dizer diante do término do presente trabalho.
Entre os afetos, os medos, as angústias, as ansiedades, por onde começar?
O que devemos focar? É possível separar acontecimentos diversos que redefiniram
e redefinem o nosso olhar diante do mundo? Como pesquisar num espaço instituído
em que as palavras de ordem dão o tom e o movimento do que deve ser ensinado?
Como situar os jovens, os educadores, a coordenação, num tipo de “teia complexa”
que não apenas perpassa o projeto, mas também o nosso pensar?
Traduzir alguns acontecimentos, evidenciar a vida em movimento, em que a
surpresa salta aos olhos, silencia os nossos ouvidos, emudece a nossa voz, traz a
potência, em especial, para pensar a produção de um “modo-jovem-trabalhador”.
Como traçar territórios potentes na (in)visibilidade por onde os jovens transitavam na
EsCom? Nesse sentido, expressar a potência de um corpo juvenil é falar do jovem
em devir, e da constituição de um pesquisador, também, em devir que se refaz, se
168
pergunta, que busca e rebusca os sentidos que atravessam e tensionam o que antes
nos parecia tão seguro, tão afeito às nossas convicções, à nossa interpretação
metafísica da vida.
Na intensidade dos afetos, que desdobramentos possíveis foram produzidos?
As nossas trajetórias produziram, a respeito da escolha e da definição do PRCC,
contatos de várias ordens que, em alguns estabelecimentos, nos lançavam à ilusão,
à falta de motivação, a um “vazio seco” que produzia alguma forma de medo, de
angústia. O cenário que nos parecia único, num primeiro instante, traduzia as
intensidades, as multiplicidades de tantas vidas, do cotidiano da cidade de São
Sebastião do Rio de Janeiro. Desde 2003, início do nosso doutoramento,
experimentamos, como flâneur, o nomadismo de outras territorialidades, de outras
ruas, becos, avenidas, desse universo complexo. Cartografar outras linhas, desfocar
nossos olhares, escapar aos códigos hegemônicos que regem os modos de viver e
pensar, era o que buscávamos.
Ainda atravessados pelas incertezas, pelo estranhamento, como produzir e
experimentar um outro modo de conhecer? Experimentar é da ordem do devir-
pensamento. Conforme Deleuze (1992, p. 132) “[...] Pensar é sempre experimentar,
não interpretar, mas experimentar, e a experimentação é sempre o atual, o
nascente, o novo, o que está em vias de se fazer [...]”. Percebíamos que, ao
colocarmos em análise a constituição de um “modo-jovem-trabalhador”, poderíamos
desterritorializar o que nos era próximo, habitual, “verdadeiro” sobre nós mesmos e,
certamente, em relação aos jovens.
Como registrar tantas percepções? Dúvidas? Incertezas? Como reinventar o
nosso próprio olhar inventado na relação com o outro? Nesse movimento de idas e
vindas, de certa instabilidade, o diário de campo se constituiu em ferramenta
fundamental para o registro das impressões que, pouco a pouco, nos proporcionou
uma leitura sobre a nossa condição de pesquisa. Ainda “presos” aos nossos
especialismos, à segmentaridade dura (DELEUZE & PARNET, 2004) que nos
constituía, e nos remetia a um fazer ciência que privilegiava a observação, a
classificação, a marcação do tempo e do outro, como pôr em análise essa “forma-
pesquisa”? De fato, essa questão passou a tensionar a nossa maneira de pensar, de
refletir. Sentíamos que, sob essa dimensão, estaríamos tensionando, também, a
169
nossa percepção do mundo, pois desejávamos ser o antípoda do sábio, “doutor da
finalidade da existência” (Friedrich Nietzsche).
O que nos saltava aos olhos quando o suporte prêt-à-porter de pesquisar foi
questionado? Pensar os jovens inscritos no PRCC, a partir de outros interlocutores,
inclusive refletindo sobre o lugar e o fazer da psicologia e da educação, influenciou o
nosso exercício contínuo de perceber, de sentir, de olhar, em especial, os jovens.
Permitindo-nos, até mesmo, transitar e nos apropriar dos diversos conceitos-
ferramentas, acentuados e marcados pela complexidade para compreender o que os
jovens pensam e afirmam sobre os sentidos diversos, que atravessavam as suas
vidas, para além de uma formação para o trabalho. Nesse contexto, Walter
Benjamin, Gilles Deleuze, Michel Foucault, Félix Guattari, Clarice Lispector, Friedrich
Nietzsche, Paulo Freire, Fernando Pessoa, René Lourau, e tantos outros
interlocutores, possibilitaram, cada um a seu modo e junto às suas reflexões, nos
afastarmos do pensamento e da interpretação lógica do mundo, de um modo ainda
cartesiano de vida.
Confessamos que esse movimento não se constituiu em tarefa fácil.
Entretanto, mesmo diante desse caos temporário, o diário, essa escrita fora do texto,
como assinala Lourau (1993), nos permitiu traçar um movimento em que a teoria e a
prática não se constituíam isoladamente. Como escolha metodológica, o referido
instrumento dava indícios de uma produção, no mínimo, implicada com a produção
de conhecimento ao revelar a nossa condição de pesquisador.
Ressaltamos, também, que tal escolha não nos colocou numa posição
“confortável”. Ao longo do trabalho, fomos tomados pelas dúvidas, com maior
expressividade, a partir dos encontros com os jovens. Os pontos, considerados
importantes, eram registrados num pequeno caderno de notas, onde um turbilhão de
palavras, rumores, sabores, desejos, medos, etc. eram grafados em tópicos, durante
o nosso deslocamento, na maioria das vezes, de retorno para casa ou para outros
itinerários urbanos. Um tempo depois, e diante da tela branca do microcomputador,
eles passavam a tomar forma em nosso diário. Decerto não estávamos sós. As
lembranças, compactuadas com a história do outro, faziam uma espécie de “cola”
em nossas memórias. Em alguns momentos, e impactados pela narrativa de certos
jovens, os fragmentos, ainda ferventes de vida, nos pareciam duros, difíceis, de
serem lembrados.
170
No meu dilema para relembrar fragmentos de um cotidiano violento na vida
desses jovens, retomo à difícil continuação do acontecimento relatado pelo
Jovemc (17 anos). Não apenas diante de um corpo que agoniza, os
“homens”, referindo-se ainda ao Jovemc (17 anos), dispararam vários tiros
em direção à cabeça de um suposto inimigo. Não apenas poder narrar esse
fato, mas expressá-lo com o movimento de seu corpo. Ele não apenas
relata, mas se utiliza de gestos como se desejasse desvelar uma linguagem
que é comum no cotidiano de comunidades pobres, mas não exclusiva.
Pelos desenhos que vão sendo modelados pelos seus braços, pela força do
seu olhar e por uma boca que parece reproduzir o som de tiros de uma
arma, suas lembranças indicam um instrumento que, na linguagem policial,
trata-se, possivelmente, de uma arma de grosso calibre. (DIÁRIO DE
CAMPO, Continuação do registro do meu diário referente ao oitavo encontro
com os jovens em 17/07/2004)
No diário se traduziu muito do cotidiano denso trazido pelos jovens, como no
registro acima. Ele parecia ser, em vários momentos, a metáfora Canteiro de Obra,
de Walter Benjamin (1995). Às vezes, a nossa curiosidade, para produzir outras
formas de pensar, nos remetia à desordem, a conexões, a desconexões. Algo como
um eterno retorno à escrita, fora do texto, que nos lançava, o tempo todo, às nossas
análises, de modo que não tínhamos clareza, inicialmente, sobre o que escrevíamos,
e o que líamos nessa escrita. Mesmo diante de tantas pausas, tudo era registrado
quase como num exercício infinito de pensar. Era o momento, também, em que não
tínhamos a clareza em torno do objeto de estudo, da sua problematização. E, assim
sendo, e assim se fazendo, nessa “argamassa” que não se fixa, não se cola às
páginas, a sensação é que estávamos, ao revermos o nosso diário, procurando um
“fio eterno” de um novelo que anunciava algo sempre novo a encontrar. Tentávamos
buscar, nos fragmentos, algo de memória sobre tantas vidas, não apenas a nossa,
mas a dos jovens, a dos educadores e a dos responsáveis pelo projeto. Assim,
instaurar uma pesquisa em devir, implicada com outro modo de conhecer, era a
expressão das rupturas, das intensidades, dos atravessamentos, sobre o saber e o
fazer da psicologia e da educação, e que nos constituía no instante da pesquisa.
Nosso foco era tentar desconstruir saberes e práticas que os jovens
experimentavam no projeto. Ao privilegiarmos o acontecimento, o devir de
surpresas, procurávamos produzir algumas incertezas que pudessem “bloquear” o
chronós que, no projeto, parecia reafirmar a história dos jovens pobres considerados
como virtualmente “perigosos”.
Era aqui que o devir encontrava seu campo de combate, sua luta incessante,
sua potência. A partir dessa perspectiva, a nossa escolha produziu encontros
171
potentes e diferentes, difíceis e estranhos, mágicos e reais, em que a surpresa do
outro e com o outro desmontava aquilo de que tínhamos a certeza sobre nós e os
jovens. Assim como não procurávamos identificar uma “natureza humana” que
pudesse ser encontrada em sua pureza original em relação aos jovens, não
desejávamos ser percebidos por eles como sujeitos detentores das palavras de
ordem. Nesse sentido, sentíamos a necessidade de nos desterritorializar, “tirar os
pés do chão”, “criar uma outra terra ao nosso mundo”, para, em seguida, nos
reterritorializarmos, ao sermos aceitos pelo projeto e, posteriormente, pelos jovens.
Ainda sob esse prisma, entendíamos que o devir de surpresas poderia
desmobilizar uma história que nos aparecia como um passado que se cristaliza no
presente, significando-o, sobre o que é ser um jovem. Portanto, a noção de
encontros, esse conceito-ferramenta pensado por Deleuze e Parnet (2004), permitiu
que, nos diálogos com os jovens, todos nós, inclusive, ampliássemos os nossos
sentidos, em que as supostas “certezas” do outro, e mesmo a nossa, eram
“roubadas”, somadas, subtraídas, multiplicadas e divididas. Eram fragmentos de
sentidos, sobras de sentidos sobre os jovens em devir numa experiência
profissionalizante. Como essa dimensão de produzir encontros foi possível? Talvez,
pelo aspecto imprevisível e irrepetível dos mesmos, sempre refeitos, à medida em
que havia uma produção incessante de interrogações e de questionamentos
potentes, e sempre inacabados.
Além desses aspectos, a emergência da ABRCC ao propor, em tempos
neoliberais, a profissionalização do jovem pobre, logo após as chacinas da
Candelária e de Vigário Geral, é, no mínimo, discutível. Trata-se, aí, de novos
elementos para uma futura análise das parcerias, identificadas como terceiro setor,
produzidas entre o CML, Estado e Município do Rio de Janeiro, e a Arquidiocese do
Rio de Janeiro. Nos matizes do cotidiano do Rio de Janeiro, seria o discurso desses
“parceiros”, ao intervir sobre os jovens pobres, investido pela ética da fraternidade
(PASSETTI, 2002)? A que vem essa questão? Nessa forma de naturalização das
tutelas, esse discurso se expressava em vários momentos por onde os jovens
transitavam na EsCom: nas atividades de reforço escolar; no refeitório; na repartição
de roupas doadas e de calçados; na distribuição, mensal, de cestas básicas para
algumas famílias, etc. Promove-se a hegemonia da prevenção por parte do projeto
para uma parcela de jovens pobres que ainda se constituem “desfocadamente
172
visíveis”. Embora seja possível assinalar que haja exceções, por exemplo, nos
projetos que buscam dialogar com a idéia de protagonismo juvenil, concordamos
com Abramo (1997) que a grande maioria deles se limita ao enquadramento do
jovem, bem como o PRCC, inclusive por suas razões implícitas. É indiscutível a
criação de espaços que percebam os jovens como colaboradores e participantes dos
processos educativos. Quando isso não acontece, um suporte de vida prêt-à-porter
se produz: são os efeitos dos modelos hegemônicos de identificação, são as
subjetividades produzidas em “série”. Daí sendo razoável afirmar que esses jovens
eram, certamente, sujeito e objeto da assistência.
Os jovens capturados pelos imperativos éticos e morais do projeto e
entregues à tutela dos outros, diferentemente das crianças e dos jovens da
Candelária que, percebidos como “irrecuperáveis”, foram exterminados, expressam
um tipo de olhar de quem propõe a intervenção. Se o Exército interveio sobre uma
parcela de crianças e jovens abandonados, pobres, no século XIX, em seus
Arsenais de Guerra, por que ele ressurge, a partir de 1993, como “parceiro”, através
da ABRCC, acenando com respostas às demandas das famílias pauperizadas, em
sua maioria, mestiças e negras? Que sentidos teria uma “tecnologia do poder sobre
o corpo” para um jovem que transita pelo PRCC? Talvez o fragmento que se segue
aponte para essa produção de sentidos.
Além dos cursos profissionalizantes, [...] o que eles deveriam aprender no
cotidiano do projeto? Pergunto. A maioria dos jovens afirmou que há alguns
procedimentos como aprender a marchar (ordem unida, como direita e
esquerda, descansar, formar pilotão, dentre outros); formatura (cerimônia,
evento importante no quartel); respeitar o uniforme (normalmente, [...]
respeitar as normas do PRCC; manter o vestuário sempre limpo, banheiro
coletivo e armários para cada um. Há uma escala para a limpeza do
banheiro definida pela coordenação. (DIÁRIO DE CAMPO, 17/07/2004)
Na produção de um “modo-jovem-trabalhador”, a via, a paisagem, os circuitos,
por onde o jovem transitava, iam constituindo determinadas relações dele consigo
mesmo a partir de alguns códigos binários: do jovem bom-ruim, capaz-incapaz,
normal-anormal, por exemplo. Portanto, uns eram excluídos, e outros, incluídos,
produzidos em “série”, para continuar a exclusão, como bem nos afirma Foucault
(2002a). No prisma do olhar de quem sofre a intervenção, a perspectiva da “filiação”,
como já referido, significava, para os jovens, uma passagem transitória até
173
conseguirem um emprego no mercado formal ou, até mesmo, através da carreira
militar. Mesmo que o lugar do projeto, em suas vidas, aponte para algumas
ambigüidades – “ocupar” o seu tempo como anteparo aos perigos vividos da rua e a
aquisição de um certo tipo de profissionalização – eles afirmaram que buscavam
novas “oportunidades”, não apenas sobre as exigências do mercado de trabalho
formal. Alguns descreveram, com exatidão, o perfil ideal de um militar (soldado): ter
boa escolaridade e conduta, e uma qualificação.
Outros apontavam, com mais expressividade, o dilema entre se sentirem
pertencidos a um tempo “provisório” e a perspectiva de se filiarem a um tempo
“menos provisório” (carreira militar). O alistamento, para a maioria dos jovens,
poderia significar essa filiação. Caso viessem a ser considerados aptos, teriam a
possibilidade de realizar outras qualificações na carreira militar. Em 2005, dois
jovens que participaram dos nossos encontros foram aprovados para o serviço
militar obrigatório, na Aeronáutica, conforme informações posteriores de um dos
coordenadores do PRCC na EsCom.
É inegável que as mudanças no mundo do trabalho passam, nesse atual
contexto do capital, a exigir uma nova relação do trabalhador com a chamada
“sociedade do conhecimento”. Como também é indubitável que, na sua faceta
perversa, o sistema econômico tenda a localizar e a delegar ao trabalhador a
responsabilidade pela sua inserção e permanência no emprego. De todo modo,
alguns jovens percebem a escolaridade como condição importante mesmo diante da
falta de trabalho para os qualificados. “[...] Antes você precisava do terceiro ano.
Agora você precisa da faculdade, da aparência, de se vestir bem [...]” (JOVEMe, 15
anos). Ainda nessa perspectiva, tais transformações, aliadas à reestruturação
produtiva, à globalização dos mercados, produzem, certamente, um cenário de
exclusão, e que nos conduzem a outras questões: Qual o lugar da escola na vida
dos jovens em tela? A educação deve corresponder apenas aos imperativos da
“empregabilidade”, da “competência” e da “habilidade”? Sendo o foco no
adestramento e no treinamento, no caso da formação profissional, qual o sentido do
PRCC diante do aumento do desemprego, conjugado ao crescimento do trabalho
precário, que tende a ser dominante?
A despeito do esforço de todos que pensam e fazem o projeto na EsCom, há
uma distância nítida, do ponto de vista das articulações, entre a formação
174
profissional e a escola. Passemos aos detalhes. Nessa suposta junção de esforços
que também revela a complexidade que entrelaça os diversos sentidos da vida dos
jovens, o lugar que a escola ocupa em suas vidas é revelador de um tipo de
conteúdo que, num contexto neoliberal, ainda não corresponde a uma formação
adequada às exigências do mercado de trabalho. Trata-se de jovens que
experimentam, em sua maioria, um limite tênue entre o trabalho precário e o trabalho
subterrâneo no mercado do tráfico de drogas, conforme o depoimento flagrante que
se segue:
[...] porque eu conheço gente assim que treina em clube, tipo em Madureira,
e mora tudo em favela, tá entendendo? Tem gente que entra na vida do
tráfico, é, à toa. Ninguém te força a entrar. Eu tô mentindo? Não tô
mentindo. Ah! professor, toma a arma aí. Vai trabalhar pra mim agora. O
bandido não faz assim. São esperto. Começam te dando uma moral, qual é,
toma esse dinheiro aí, toma esse tênis aqui. Quando ele vê que tu tá legal
de roupa, calçado, aí ele vai falar, aí, tu vai trabalhar pra mim. Tá
entendendo? Aí o garoto não vai ter como recusar. Se o maluco disser, pô,
eu não quero não. Pô, o maluco vai jogar na cara. Ah! tá envolvido, já te dei
várias parada já. Ah! pô! Só quero que você faça isso pra mim hoje. Aí o
maluco vai e faz. Aí o maluco faz, ganha um dinheiro. Aí no outro dia, passa
de dois dias, o maluco já tá no tráfico. [...]. (JOVEMa, 16 anos)
Essa realidade social que explicita situações de vulnerabilidade dos jovens, o
que se torna cada vez mais preocupante é a maneira como o projeto lida para tentar
dar conta de parte do conteúdo que o jovem não conseguiu aprender na escola. Não
resta dúvida, argumenta Frigotto (1998), que a educação básica e a formação
técnico-profissional ressurgem como a “galinha dos ovos de ouro” para a
“competitividade”, a segurança para a manutenção do emprego de milhares de
brasileiros que entram nas estatísticas do desemprego estrutural ou do trabalho
precário. Enfim, mais uma vez questionamos: Seria a qualidade da escola uma
preocupação apenas restrita às camadas de média e de alta renda? Mesmo que a
profissionalização seja um direito do “jovem”, como previsto no Art. 69 do ECA,
como responder aos desafios da continuidade dos estudos e do acesso ao trabalho
formal?
Afinal, que outros itinerantes olhares ainda podemos mencionar? Desde a
nossa saída da Paraíba, sentimos que não somos mais os mesmos. Foram tantas as
intensidades, desde a Graduação em Psicologia na UFPB até a conclusão desta
tese de Doutoramento na UFF, que tudo mudou. Quando falamos, sentimos,
pensamos, cheiramos, cantamos, percebemos que diferentes sons, diversas
175
palavras em movimento vibram em nossa língua, numa vida atravessada pela
Paraíba, por São Paulo e, atualmente, pelo Rio de Janeiro. São fluxos, variações de
sons, de sotaques que denotam como a vida é rica e complexa. O doutorado foi,
também, fundamental para reafirmar essa complexidade. Decerto, realizamos um
trabalho, sob diferentes ângulos, difícil, em que um modo de experimentar, feito
durante o momento da pesquisa, nos lançava a bifurcações, a incertezas, a
invenções, a percursos sempre novos, de uma vida extremamente diversa e múltipla
frente à EsCom que, por sua rigidez disciplinar, também, se traduzia num espaço
monolítico da experiência juvenil, inclusive, para os que pensavam e faziam o
projeto, e viviam, junto com os jovens, uma realidade comum: a formação
profissional.
Enfim, no presente trabalho, acreditamos existir em outras juventudes que
podem ser afirmadas como experiência, como ruptura ante um tempo contínuo, ao
experimentarem suas escolhas, expressarem suas percepções, sensações,
poderem correr riscos, ao apontarem para as incertezas que atravessam as suas
vidas. Nessa vibração de diferentes vozes, os jovens pesquisados afirmam o que a
vida tem mais de fecundo: a multiplicidade. Expressam na emoção – “[...] é pegar
muita mulher, muita gatinha, na Vila Mimosa” (JOVEMa, 16 anos); na curiosidade –
“[...] Ficar indo pra baile, só que eu não vou porque a mãe não deixa” (JOVEMd, 15
anos); na dúvida, no medo – “[...] Meu projeto é continuar pra frente. Meu projeto é
ser advogado. Eu não vou ficar na 6a. série a vida toda” (JOVEMg, 16 anos); na
ansiedade, na alegria – “Meu projeto é ser dono de uma boate. Não é comer mulher,
não. É tipo assim, ter um bar” (JOVEMh, 17 anos); no sentir, em comum, da
preocupação com o tempo presente – “[...] Ter seus estudos, se formar, curtir a vida
porque ninguém é de ferro, zuar com os amigos [...]” (JOVEMc, 17 anos), e com o
tempo futuro, às vezes, distante. Por vezes, tão perto para alguns que afirmavam o
“espaço militar” como um ideal, uma busca a “ser alcançada” – “Eu só quero ser
pára-quedista só [...]” (JOVEMe, 15 anos). Assim, essas vidas vão experimentando
devires, ensaiando conexões e desconexões, atravessadas pelo discurso forjado
pela ABRCC que enfatiza a noção do risco e da prevenção sobre esses jovens.
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infância no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Universitária Santa Úrsula, Amais, 1997b.
_________. A criança e a lei no Brasil. Rio de Janeiro: UNICEF-
CESPI/Universidade Santa Úrsula, 2000.
ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da Educação no Brasil
(1930/1973). 25. ed. Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 2001.
RAMONET, Ignacio. Geopolítica do caos. 4. ed. Petrópolis/RJ: Editora
Vozes, 2001.
ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental. Transformações contemporâneas
do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989.
ROUSSEAU, Jean Jacques. Emílio ou Da Educação. São Paulo: Difel,
1978.
ROTTERDAM, Erasmo de. De Pueris (Dos Meninos); A Civilidade Pueril.
São Paulo: Ed. Escala, 2004. (Coleção Grandes Obras do Pensamento
Universal).
SANTOS, Marcos Antonio Cabral dos. Crianças e criminalidade no início do
século. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das Crianças no Brasil. 3.
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SANTOS, Benedito Rodrigues. “A regulamentação do trabalho educativo”.
In: Por uma agenda de compromissos. São Paulo: Cadernos ABONG,
(18), agosto, 1997.
184
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 9. ed.
Porto: Edições Afrontamento, 1999.
SAVIANI, Dermeval. O Trabalho Como Princípio Educativo Frente às Novas
Tecnologias. In: FERRETI, Celso et al (Orgs.). Novas Tecnologias, Trabalho e
Educação: um debate multidisciplinar. 2. ed. Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 1994.
SCHNAPP, Alain. A imagem dos jovens na cidade grega. In: LEVI, Giovanni;
SHMITT, Jean Claude. Histórias dos jovens. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996. Volumes 1.
SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: conseqüências pessoais do trabalho no
novo capitalismo. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 1999.
__________. Carne e Pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. 2. Ed. Rio
de Janeiro: Record, 2001.
SCHEINVAR, Estela. Idade e Proteção: fundamentos legais para a criminalização da
criança, do adolescente e da família (pobres). In: NASCIMENTO, Maria Lívia do.
(Org.). Pivetes. A produção de infância desiguais. Rio de Janeiro: Oficina da Arte;
Niterói: Intertexto, 2002.
SCHÖPKE, Regina. Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador
nômade. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Edusp, 2004.
SCHUELER, Alessandra F. Martinez de. Crianças e escolas na passagem do
Império para a República. In: Revista Brasileira de História. Dossiê Infância e
Adolescência. São Paulo, v. 19, n.º 37, p. 59-84. 1999.
SOBRE, Nelson Werneck. Síntese de História da Cultura Brasileira. Rio de
Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1970.
SPOSITO, Marília Pontes. Algumas hipóteses sobre as relações entre movimentos
sociais, juventude e educação. In: Revista Brasileira de Educação, n.º 13, ANPED,
2000.
___________. Os jovens no Brasil: desigualdades multiplicadas e novas
demandas políticas. São Paulo: Ação Educativa, 2003.
VELHO, Gilberto. Violência, reciprocidade e desigualdade: uma perspectiva
antropológica. In: VELHO, Gilberto; ALVITO, Marcos. (Orgs.). Cidadania e
Violência. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/FGV, 1996.
VENANCIO, Renato Pinto. Os aprendizes da guerra. In: PRIORE, Mary Del
(Org.). História das Crianças no Brasil. 3. ed. São Paulo: Editora
Contexto, 2002.
185
VEYNE, Paul Marie. Foucault revoluciona a história. In: VEYNE, Paul Marie.
Como se escreve a história. Brasília: Universidade de Brasília, 1982.
VIEIRA, S.; FREITAS, I. Política educacional no Brasil – introdução histórica.
Brasília: Editora Plano, 2003.
ZALUAR, Alba. Cidadãos não vão ao paraíso: juventude e política social.
Campinas: Ed. UNICAMP; Ed. Escuta, 1994.
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência VI: Os Jovens do Brasil.
Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura,
2006.
PRINCIPAIS FONTES MANUSCRITOS CONSULTADOS
Arquivo Histórico do Exército
Leis, Decretos, Relatórios
BRASIL. Collecção das Leis do Imperio do Brazil de 1832. 1ª Parte. Rio de
Janeiro: Typographia Nacional, 1871.
BRASIL. Collecção das Leis do Imperio do Brazil de 1832. 1ª Parte. Rio de
Janeiro: Typographia Nacional, 1874.
BRASIL. Collecção das Leis do Imperio do Brazil de 1842. Tomo V. Parte II. Rio
de Janeiro: Typographia Nacional, 1874.
BRASIL, Relatório da Repartição dos Negócios da Guerra apresentado á
Assemblea Geral Legislativa de 1835. Redigido pelo Barão de Itapicurú-Mirim,
general José Felix Pereira Pinto, Ministro do Império.
BRASIL, Relatório da Repartição dos Negócios da Guerra apresentado á
Assemblea Geral Legislativa de 1837. Redigido por Conde de Lages, tenente-
coronel reformado João Vieira de Carvalho.
BRASIL, Relatório da Repartição dos Negócios da Guerra apresentado á
Assemblea Geral Legislativa de 1839. Redigido por Sebastião do Rego Barros,
capitão de engenheiros, militar, brasileiro.
BRASIL, Relatório da Repartição dos Negócios da Guerra apresentado á
Assemblea Geral Legislativa de 1847. Redigido por João Paulo dos Santos
Barreto, militar, coronel, brasileiro.
ANEXO C - Distribuição do Número de Jovens Atendidos
por Unidade de Assistência
207
Unidades de
Assistência
Jovens Atendidos
Rio de Janeiro
Diretoria de Pesquisa e Estudo de Pessoal (DPEP) –
30
Campo de Provas da Marambaia (CPrM) – 40
Centro de Preparação de Oficiais da Reserva do Rio
de Janeiro (CPOR-RJ) – 40
Escola de Material Bélico (EsMB) – 50
Escola de Comunicações (EsCom) – 42
Escola de Instrução Especializada (EsIE) – 40
1º Depósito de Suprimento (1º DSup) – 40 (sexo
feminino)
5ª Divisão de Levantamento (5ª DL) – 50
1º Batalhão de Guardas (1º BGd) – 40
2º Batalhão de Infantaria Motorizado (Escola) (2º
BIMtz-Es) – 42
57º Batalhão de Infantaria Motorizado (57º BIMtz-Es) –
42
Regimento Escola de Cavalaria (REsC) – 42
21º Grupo de Artilharia de Campanha (21º GAC) – 40
31º Grupo de Artilharia de Campanha (Escola) (31º
GAC-Es) – 42
24º Batalhão de Infantaria Blindada (24º BIB – 40
Batalhão Escola de Engenharia (BesEng) – 40
1º Batalhão Logístico (1º Blog) – 40
Macaé
1º/10º Grupo de Artilharia de Costa Motorizado (1º/10º
GACosM) – 40
Campos de Goytacazes
56º Batalhão de Infantaria (56º BI) – 40
Petrópolis
32º Batalhão de Infantaria Motorizado (Escola) (32º
BIMtz-Es) – 40
São Gonçalo
3º Batalhão de Infantaria (3º BI) – 40
Fonte: Relatório Anual PRCC (2004).
Elaborado pelo autor.
ANEXO F - Distribuição dos Cursos nas Organizações Militares
234
UNIDADES DE ASSISTÊNCIA CURSOS DESENVOLVIDOS
Diretoria de Pesquisa e Estudo de
Pessoal (DPEP)
Informática, atletismo, turismo e inglês.
Campo de Provas da Marambaia
(CPrM)
Informática, marcenaria, carpintaria, estamparia,
serralheria, bombeiro hidráulico, padaria, garçonaria e
refrigeração.
Centro de Preparação de Oficiais da
Reserva do Rio de Janeiro (CPOR-
RJ)
Informática, estamparia, padaria, mecânica auto e
eletricista residencial.
Escola de Material Bélico (EsMB)
Informática, mecânico auto, garçonaria, cozinheiro,
auxiliar administrativo e padaria.
Escola de Comunicações (EsCom) Informática, eletricista residencial, áudio visual e
música/coral.
Escola de Instrução Especializada
(EsIE)
Informática, eletricista auto, estamparia e padaria.
1º Depósito de Suprimento
(1º DSup)
Informática, estamparia, mecânica de auto, eletricista
auto e residencial, padaria, refrigeração, serralheria e
auxiliar odontológico.
5ª Divisão de Levantamento
(5ª DL)
Informática, estamparia, mecânica de auto, eletricista
auto e residencial, lanternagem/pintura, padaria,
refrigeração, serralheria e auxiliar odontológico.
1º Batalhão de Guardas (1º BGd) Informática, estamparia, padaria, mecânica auto,
música e garçonaria.
2º Batalhão de Infantaria Motorizado
(Escola) (2º BIMtz-Es)
Informática, estamparia, padaria, mecânica de auto,
cozinheiro, vassouraria, música, capotaria,
lanternagem/pintura, eletricista auto.
32º Batalhão de Infantaria Motorizado
(Escola)
(32º BIMtz-Es)
Informática, marcenaria, carpintaria, padaria,
garçonaria, cozinheiro, estamparia, música, mecânica
de auto e jardinagem.
56º Batalhão de Infantaria (56º BI) Informática, marcenaria, carpintaria, padaria,
garçonaria, cozinheiro e estamparia.
57º Batalhão de Infantaria Motorizado
(57º BIMtz-Es)
Informática, padaria, música e artes marciais.
Regimento Escola de Cavalaria
(REsC)
Informática, padaria, música e auxiliar veterinário.
21º Grupo de Artilharia de Campanha
(21º GAC)
Informática, estamparia, bombeiro hidráulico,
eletricista residencial, música, barbearia e auxiliar
odontológico.
31º Grupo de Artilharia de Campanha
(Escola) (31º GAC-Es)
Informática, estamparia, padaria, serralheria,
marcenaria, carpintaria, vassouraria, cozinheiro e
refrigeração.
Batalhão Escola de Engenharia
(BEsEng)
Informática, padaria, música, refrigeração e artes
marciais.
24º Batalhão de Infantaria Blindada
(24º BIB)
Informática, mecânica auto, padaria, garçonaria e
cozinheiro.
1º Batalhão Logístico (1º BLog) Informática, lanternagem/pintura, estamparia,
borracharia, e eletricista auto.
1º/10º Grupo de Artilharia de Costa
Motorizado (1º/10º GACosM)
Informática, marcenaria, carpintaria, estamparia,
padaria, mecânica auto, vassouraria e música.
3º Batalhão de Infantaria (3º BI) Informática, estamparia e música.
Fonte: Relatório das Atividades do PRCC (2004).
Elaborado pelo autor.
ANEXO G - Demonstrativo dos Projetos Educar e Profissionalizar
235
PROJETO EDUCAR PROJETO PROFISSIONALIZAR
OBJETIVOS OBJETIVOS
Obter bons resultados nos estudos
Desenvolver a criatividade
Cooperar na formação da personalidade e
no fortalecimento do caráter
Desenvolver o aprendizado de normas de
ética, moral e boa conduta social
Desenvolver os sentimentos de civismo e
patriotismo
Resgatar a cidadania criando condições
para a iniciação ao trabalho; a qualificação
profissional; a introdução ao mercado de
trabalho e a integração com entidades
ligadas ao ensino profissionalizante.
PREMISSAS BÁSICAS PREMISSAS BÁSICAS
Todos os integrantes do programa devem
cursar a rede pública de ensino.
Nos quartéis, professores das Secretarias
de Estado e Municípios de Educação
deverão se encarregar do reforço da
aprendizagem, criando hábitos de estudo
que têm evitado tanto a repetência como a
evasão escolar.
Deve considerar critérios de capacitação e
aspirações individuais objetivando o
mercado de trabalho, incluindo a
implementação de sistemas de avaliação e
aproveitamento dos alunos.
Nos quartéis, o esforço na qualificação
profissional deverá considerar a vocação de
cada OM.
CONDIÇÕES DE EXECUÇÃO CONDIÇÕES DE EXECUÇÃO
Cada OM/UA deverá organizar uma sala de
aula, devidamente equipada para
possibilitar a atuação dos professores.
O reforço escolar deverá objetivar a
obtenção de resultados favoráveis na
escola.
O reforço deverá ser ofertado durante todo
o ano letivo e dentro de cada OM/UA.
Os jovens serão acompanhados nos seus
desempenhos escolares pelos professores,
coordenadores e monitores.
SELEÇÃO DOS ALUNOS – deverá ser feita
uma entrevista com os jovens para levantar
suas aspirações de profissionalização,
dentro do rol de cursos práticos ofertados
pela OM/UA.
DESENVOLVIMENTO DOS CURSOS –
devem primar pelas atividades práticas. Os
alunos que se destacarem, poderão ser
encaminhados para outras entidades
especializadas. As instruções deverão ser
ministradas por oficinas em sistema de
rodízio de turmas.
LOCAIS DE INSTRUÇÃO – as OM/UA
poderão utilizar as oficinas existentes ou
outras específicas do programa.
HORÁRIOS DAS INSTRUÇÕES – serão
regulados de acordo com cada OM/UA.
MODALIDADE DOS CURSOS – serão
indicados por cada OM/UA.
PRESCRIÇÕES DIVERSAS PRESCRIÇÕES DIVERSAS
Os comandantes deverão promover o
acompanhamento e o apoio necessário
para atingir os objetivos do projeto.
O material didático deverá ser solicitado
pela OM/UA de acordo com o estabelecido
no convênio do PRCC.
Cada OM/UA desenvolverá, no mínimo, três
cursos profissionalizantes.
O de informática é obrigatório para todas as
unidades de assistência. Deverá, em
princípio, seguir currículo elaborado pela
EsCom, e ser ministrado por militares da
OM, sem prejuízo do serviço.
Fonte: Diretriz de Serviço do CML (2005).
Elaborado pelo autor.
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