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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES
MÁRCIO SAMPAIO DE CASTRO
BEXIGA. UM BAIRRO AFRO-ITALIANO:
Comunicação, Cultura e Construção de Identidade Étnica
São Paulo
2006
Dissertação apresentada à Área de
Concentração em Comunicação d
a
Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do Título
de Mestre em Comunicação, sob
orientação da Profa. Dra. Solange
Martins Couceiro de Lima.
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES
MÁRCIO SAMPAIO DE CASTRO
BEXIGA. UM BAIRRO AFRO-ITALIANO:
Comunicação, Cultura e Construção de Identidade Étnica
São Paulo
2006
Dissertação apresentada à Área de
Concentração em Comunicação d
a
Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do
tulo de Mestre em Comunicação, sob
orientação da Profa. Dra. Solange
Martins Couceiro de Lima.
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Banca Examinadora:
________________________________
________________________________
________________________________
Data:
Agradecimentos
Aos meus pais, pelo imenso e inesgotável amor e pelo especialíssimo suporte em um
momento de profundas transformações em minha vida;
À professora e orientadora Dra. Solange Martins Couceiro de Lima por acreditar no
projeto, quando ele ainda se parecia com nuvens no céu;
Ao amigo e irmão Licio por sempre acreditar em mim e contribuir
providencialmente com o meu progresso;
À Rosa Malena, amiga e companheira de todas as horas;
À Cláudia Nonato pela sempre renovada amizade e especialmente por aquele
telefonema tão carinhoso e auspicioso que mudou minha vida;
Ao amigo Leandro pelo incentivo;
À amiga Maria Ângela Pavan pela revisão e pelas dicas preciosas nos momentos
finais dessa empreitada;
À amiga e companheira Cristina pelo amor, pelo carinho e pela especial ajuda na
decupagem das entrevistas;
A todos aqueles que sempre acreditaram em mim, torceram e torcem pelo meu
sucesso;
Ao continente africano. Matriz, berço e origem de tudo.
Resumo
Este trabalho é o resultado de pesquisas realizadas no bairro do Bexiga, na
cidade de São Paulo, com o objetivo de demonstrar a presença e as influências de
uma coletividade negra no local ao longo de sua história, seus reflexos no presente e
suas relações com o grupo dos imigrantes italianos e seus descendentes.
Paralelamente temos a discussão de temas relacionados à identidade cultural,
alteridade e hibridismo. Para tanto, foram realizadas pesquisas de campo que
valorizaram especialmente o resgate da memória, através da história oral, e o
acompanhamento das atividades lúdicas e religiosas desse grupo.
Como resultado pudemos evidenciar a profunda ligação física e simbólica que
uma significativa parcela de negros paulistanos tem com a localidade, ligação que
fez e ainda faz do Bexiga um bairro afro-italiano.
Palavras-chave: comunicação, cultura, identidade étnica, história oral, memória.
Linha de pesquisa: comunicação e cultura
Abstract
This research comes as a result of an intensive work inside Bexiga’s
neighborhood, in São Paulo, in order to demonstrate the influence of black people in
its history and present. At the same time, we have the discussion of subjects as
hybridism and cultural identity.
To accomplish these targets we conducted interviews, focused in oral history,
and took part in a several of enjoyment and religious activities.
As a result, became evident the deep physical and symbolic relations between
blackness and that neighborhood.
Key words: communication, culture, ethnic identity, oral history, and memory.
“A felicidade do Negro é uma felicidade guerreira”
(Gilberto Gil)
Sumário
Introdução ........................................................................................................................... 01
Capítulo 1 – Um trajetória sócio-cultural do negro no Brasil e sua relação com a identidade
nacional.................................................................................................................................07
1.1 – A Coisificação..............................................................................................................07
1.2 – O Problema da Abolição..............................................................................................11
1.3 – Condenado a ser brasileiro...........................................................................................13
1.4 – O emparedamento cultural...........................................................................................20
1.5 – Em busca de uma identidade negra..............................................................................23
1.6 – Mas afinal, qual é a identidade nacional?....................................................................26
Capítulo 2 A cidade deo Paulo e a negritude...............................................................32
2.1 – A maior população negra do Brasil..............................................................................32
2.2 – Primórdios e territorialidade........................................................................................33
2.3 – O Largo do Rosário......................................................................................................37
2.4 – Varrendo para baixo do tapete.....................................................................................39
2.5 – Reações articuladas......................................................................................................45
2.6 –Transições.....................................................................................................................49
Capítulo 3 O Bexiga..........................................................................................................51
3.1 – As origens.....................................................................................................................51
3.2 – A Calábria nos morros do Bixiga.................................................................................56
3.3 – O quadrilátero da Saracura...........................................................................................60
3.4 - Conversando com dois moradores................................................................................63
3.5 – As marcas do hibridismo cultural................................................................................70
Capítulo 4 – Heranças da Saracura......................................................................................77
4.1 – O Vai-Vai.....................................................................................................................77
4.2 – O Bloco Afro-Oriashé..................................................................................................86
4.3 – A Pastoral Afro da Acchiropita....................................................................................92
Capítulo 5 Considerações Finais.......................................................................................99
Capítulo 6 – Bibliografia....................................................................................................102
6.1 – Revisão bibliográfica.................................................................................................102
6.2 – Bibliografia complmentar..........................................................................................117
6.3 – Jornais e revistas........................................................................................................119
6.4 – Filmes documentários e discos...................................................................................120
6.5 – Internet.......................................................................................................................120
1
Introdução
Em certa oportunidade, ao viajar por alguns países vizinhos como Peru,
Bolívia e a região norte dos Andes Argentinos, pude perceber como estes países
procuravam manter uma estratificação social que se perpetuava nos
apresentadores de TV, out-doors e revistas
1
. Nas ruas, muitos indígenas,
descendentes ou mestiços. Na mídia, nos discursos e nos monumentos, os
crioulos (na acepção espanhola do termo)
2
. Imediatamente me transportei em
pensamento de volta ao Brasil, onde a mistura de contribuições étnicas, muito
mais intensa do que nesses países, igualmente não se reflete nos monumentos, na
memória coletiva ou na mídia de maneira que corresponda a realidade das ruas.
Tempos depois, conversando com meu pai, um antigo morador do Bexiga e
legítimo descendente do povo africano, dei-me conta de o quanto suas memórias
de infância e início de adolescência estavam atreladas àquele local. Não pude
deixar de me perguntar: mas este não era o bairro italiano? O que faziam meus
avós por lá? Constrangido, nada disse a ele. Posteriormente, conversando com a
mãe de uma amiga, também negra, descobri que se tratava de outra antiga
moradora daquele bairro. Estabeleci ali um padrão empírico, que imediatamente
associei com as experiências vividas nas ruas de La Paz, Salta e outras cidades
sul-americanas. Os indivíduos das ruas não correspondiam exatamente aos
indivíduos dos livros, dos jornais e da TV. Nascia o projeto: Bexiga, um Bairro
Afro-Italiano.
Localizado em uma região considerada central da cidade de São Paulo,
o Bexiga é, como dissemos, reconhecido por muitos paulistanos como um
1
Em janeiro de 2006, a Bolívia elegeu seu primeiro presidente indígena, Evo Morales, após quase dois
séculos de História como nação independente da Espanha.
2
Os descendentes diretos de espanhóis.
2
pedaço da Itália no coração da metrópole. Um bairro de colônia, que abrigou
grandes contingentes desta população no final do século XIX e início do século
XX. Suas cantinas, festas e tradições são cantadas em verso e prosa e isto
aparece freqüentemente estereotipado em diversos suportes midiáticos
3
.
Com base nas observações que fizemos nos primeiros parágrafos, este
conceito, porém, não nos pareceu exatamente verdadeiro. Saber se ele
corresponderia efetivamente à realidade contemporânea e histórica foi nosso
ponto de partida para este trabalho, mas não sob a perspectiva do povo italiano,
que vigorosa e inquestionavelmente ocupou o Bexiga. Mas sob a perspectiva do
povo negro, que nos parecia naquele momento dar indicações fortíssimas de suas
relações com aquele pedaço da cidade. Afinal, como explicar a presença de
famílias negras e da mais tradicional e popular escola de samba paulistana, o
Vai-Vai, que possui seu berço e domicílio ali, no “bairro italiano”?
Estas perguntas, se respondidas a contento dentro do seu recorte, poderiam
nos levar de maneira mais ambiciosa a outros horizontes atrelados às relações
sociais, étnicas e culturais no País, em seu passado e também em seu presente. É
claro que não é nossa pretensão esgotar o assunto, e sim propor novos elementos
para o debate. O Bexiga entra como uma fração desta análise por ser um
microcosmo rico em sua multiplicidade. O bairro reúne aspectos que remetem ao
Brasil e à identidade brasileira. Uma complexidade simplificada por imagens
consagradas pelo senso comum, contrapostas por elementos como o fato de ser
um bairro boêmio no coração da metrópole do trabalho, ou pela contradição da
escola de samba no ‘bairro italiano’, ou ainda pela existência de uma atuante
3
Para citarmos um exemplo, em novembro de 2005, a Rede Globo de Televisão estreou a novela “Belíssima”.
Segundo as declarações de seu autor, Silvio de Abreu, por ocasião do lançamento do folhetim, a intenção
seria a de retratar a multiplicidade étnica da cidade de São Paulo.
Além de não possuir um núcleo negro, a trama recorria ao estereótipo do personagem italiano, representado
pelo ator Gian Fracesco Guarnieri, morador do Bixiga, que se enrola com o português e que seria o símbolo
de um tipo humano passível de ser encontrado em cada esquina do bairro.
3
Pastoral Afro na igreja da Madonna Achiropita, e uma série de outras situações
intrigantes, para dizer o mínimo.
Ao explorar as questões da identidade do bairro e de seus moradores,
buscamos provar fundamentalmente a hipótese do bairro afro-italiano em
oposição à idéia que permeia o imaginário de uma exclusiva italianidade no
local. O leitor perceberá ao longo do texto que não nos debruçamos longamente
sobre os imigrantes, posto que existe farta documentação, leituras e releituras
sobre este aspecto
4
. Quisemos reconstruir histórica e culturalmente a dimensão
da negritude no Bexiga e de forma adjacente suas relações de troca com o outro
grupo, o chamado hibridismo cultural. Questionar as noções que dão ao
imigrante italiano e a outros povos seus merecidos papéis de destaque na
formação da São Paulo moderna, mas que relega o elemento negro ao nicho do
esquecimento e da indiferença.
O fio condutor escolhido como paradigma para pensar estas questões são os
Estudos Culturais. Não sob a perspectiva culturalista, dura e em vários aspectos
corretamente criticada por muitos, como os franceses Bourdieu (1998) e
Mattelart (2004), mas sob a perspectiva de analistas sérios como Stuart Hall
(2003) e os brasileiros Tomaz Silva (2000), Muniz Sodré (1999) e João Baptista
Borges Pereira (1984). Este último sem nenhuma relação direta com esta linha de
pensamento, mas com idéias muito úteis para a temática. Isto porque a partir dos
Estudos Culturais é possível fazer leituras com um olhar no passado e outro no
presente. É possível analisar-se o concreto, buscando suas bases e origens no
simbólico, pontuados com muita propriedade por Pereira ao cunhar os termos
dicotômicos: resistência da cultura negra e cultura negra de resistência, numa
alusão a apropriação de símbolos e práticas como forma de sobrevivência física e
espiritual dentro de uma sociedade hostil. Dimensões que vão muito além do
4
Ver bibliografia ao final do trabalho.
4
pensamento culturalista do “colorido e inofensivo” melting pot ou dos frios e
eurocêntricos estruturalismos.
Um trabalho com essa perspectiva nos exigiu, conseqüentemente, uma
abordagem multidisciplinar, envolvendo a observação e a análise do discurso de
diversas produções culturais nos suportes midiáticos, literatura e na principal
forma de se fazer cultura: o cotidiano. Em relação a esta última forma adotamos
a pesquisa participante. Não freqüentamos os ambientes apenas como
observadores, mas procuramos participar ativamente das atividades realizadas no
interior de cada elemento escolhido para compor o objeto da pesquisa.
Ainda dentro deste caráter multidisciplinar, temos a noção de que não nos
seria possível reconstruir a trajetória do povo negro dentro do Bexiga se não
recorrêssemos a um outro discurso. No caso, o discurso da História. Para tanto, o
trabalho se divide em três partes. Na primeira analisamos o processo histórico de
desmonte psicológico e cultural dos indivíduos escravizados e seus descendentes
na sociedade brasileira, e suas relações com as questões de identidade nacional.
Aqui temos o viés teórico deste estudo. Na segunda parte, reconstituímos este
processo de ocultação dos traços da negritude dentro da cidade de São Paulo,
pontuando mais detidamente as questões do discurso hegemônico produzido
principalmente pelos meios de comunicação. Na terceira e última, que trata sobre
as particularidades do objeto desta pesquisa, o processo histórico ganha a
dimensão da história oral. A reconstrução da memória da presença negra no
bairro por parte daqueles que fizeram e ainda fazem as produções culturais em
seu dia a dia, vivenciando as relações nos âmbitos interno e externo de uma
territorialidade muito mais simbólica do que concretamente física.
Para a construção desse objeto inicialmente havíamos planejado uma série de
entrevistas com pessoas idosas que nos ajudariam a reconstruir o lado afro do
5
bairro paulistano. Nessa trajetória visitamos por diversas vezes a quadra do Vai-
Vai, até então nosso melhor campo de trabalho, e conversamos com senhoras
idosas que nos contaram fragmentos de suas vidas, fornecendo dados
importantes para entender e recriar certas atmosferas descritas ao longo do texto.
Mas o contato mais próximo com o bairro nos fez perceber que, além das
perspectivas históricas, havia ali marcas vivas e pulsantes que nos ajudariam a
fazer uma interlocução entre a memória e o presente. Nossa hipótese começava a
se confirmar muito acima daquilo que havíamos originalmente imaginado.
Descobrimos no campo nossa ignorância quanto à existência da Pastoral Afro
na tradicional igreja da Madonna italiana, fomos informados sobre a existência
do bloco feminino Afro Oriashé, soubemos da existência de mais de um terreiro
de candomblé no bairro, nos contaram sobre as atividades do Movimento Negro
Unificado e vimos os últimos remanescentes dos outrora gigantescos cortiços
existentes ali. Enfim, uma gama de possibilidades e universos que não poderiam
ser totalmente ignorados, mas também não poderiam ser corretamente
acompanhados dentro do prazo que tínhamos para produzir a pesquisa.
.
Optamos pelos quatro ícones, em nossa avaliação, mais significativos ou pelo
menos mais visíveis daquele universo. Ficamos com os cortiços, a escola de
samba, o bloco feminino e a pastoral. A partir daí nosso trabalho se dividiu em
dois aspectos: reconstruir o histórico de cada um desses campos de observação e
apontar através de entrevistas a interseção entre a história pessoal dos indivíduos
que conseguimos contatar, seus campos de participação dentro do bairro e,
principalmente, a relação desses dois aspectos com as questões da negritude para
cada um dos entrevistados. A reconstrução da memória a partir dos referenciais
do presente (Bosi, 1994) (Rouchou, 2000).
6
No Vai-Vai freqüentamos a quadra da escola, seus ensaios e estivemos
inclusive na casa de integrantes para fazer um mergulho dentro daquele mundo.
No bloco Afro Oriashé também acompanhamos diversos ensaios, saímos no
carnaval fazendo parte do cordão de isolamento e fomos até a Cidade Tiradentes,
bairro periférico de São Paulo conhecer um pouco do trabalho de sua fundadora
e o destino de muitos dos ex-moradores do Bexiga. Finalmente, na Pastoral Afro
freqüentamos a casa paroquial, as atividades litúrgicas e sociais, reencontrando
por vezes pessoas que havíamos visto nos outros dois ambientes.
O resultado desses quase quatro anos de caminhadas (literalmente) pelas ruas
do Bexiga está nas próximas páginas. Peçamos axé à Madonna Achiropita e nos
aprofundemos nessa realidade paralela às concepções da grande maioria.
7
Capítulo 1
Uma Trajetória Sócio-Cultural do Negro no Brasil e sua
Relação com a Identidade Nacional
1.1 – A Coisificação
O Centro Cultural de São Paulo possui como uma das principais peças de
seu acervo de artes plásticas o mural Mineiração, de Clóvis Graciano. Pintado
em 1954, por ocasião do quarto centenário da capital paulista, o quadro procura
reproduzir a rotina de uma mina de extração aurífera do século XVIII, no interior
do Brasil. O observador atento perceberá que os feitores, que acompanham e
vigiam a atividade dos trabalhadores cativos, possuem um rosto e neste rosto,
feições bem definidas. Ou seja, um quê de humanidade, ainda que seu ofício seja
subjugar outros homens. Por outro lado, as demais figuras retratadas na pintura,
os escravos, não possuem feições. Distingue-se apenas a forma de seus corpos e
uma discreta mas significativa mancha em suas cabeças, que esconde suas
identidades, lhes nega a humanidade conferida aos seus algozes.
Graciano consegue metalingüisticamente transmitir a idéia que permeia o
processo de introdução dos africanos no Brasil, a coisificação, a ausência de
identidade, o não-ser. Um elemento fundamental para a consolidação da
escravidão por quase quatro séculos em terras brasileiras e com conseqüências
perceptíveis e dimensionáveis até nossos dias nos campos social, político e
cultural.
8
Segundo Darcy Ribeiro (1997), remonta a este período a invenção do “João
Ninguém”, a ninguendude, ou seja, o brasileiro sem voz, sem rosto e sem
história. Um fator que impactou negativamente nas questões de identidade e
auto-estima de milhões desses indivíduos. No caso, principalmente os
descendentes diretos das matrizes indígena e africana.
O historiador Luiz Felipe de Alencastro procura dar uma explicação para a
origem desta dinâmica de negação do outro.
Dado fundamental do sistema escravista, a dessocialização,
processo em que o indivíduo é capturado e apartado de sua
comunidade nativa, se complementa com a despersonalização,
na qual o cativo é convertido em mercadoria na seqüência da
reificxação, da coisificação, levada a efeito nas sociedades
escravistas. Ambos os processos transformam o escravo em
fator de produção polivalente, e apresentam-se como uma das
constantes dos sistemas escravistas estudados por historiadores e
antropólogos. (ALENCASTRO, 2000,144)
A despersonalização mencionada por Alencastro se dá pela negação dos
nomes próprios e o conseqüente rebatismo dos indivíduos com nomes
portugueses. Pela mistura de indivíduos das mais diversas etnias africanas em um
único espaço e a separação de famílias inteiras, ainda no porto de embarque da
Mina, na costa ocidental africana. Se verifica durante o degradante transporte no
tumbeiro, onde esses mesmos indivíduos são acorrentados e amontoados,
devendo comer, defecar e urinar no mesmo local em que dormem. E, por fim, no
trabalho nas fazendas e cidades, onde a vida média dos cativos raramente
ultrapassará os quarenta anos de idade.
9
O sucesso do sistema escravista, voltado para atender um mercado externo
consumidor dos produtos do Novo Mundo e a uma elite exploradora do trabalho
e da terra, depende intrinsecamente dessa despersonalização. É preciso sempre
lembrar ao escravo sua condição e para isso as técnicas inventadas ainda na
Antigüidade e que, a partir do século XV, ganham requintes de sofisticação,
como o confinamento de dezenas de homens e mulheres nas insalubres senzalas,
as marcas com ferro quente - a exemplo do que se faz com o gado -, pelourinhos,
bolas de ferro, correntes, galheiras e todas as demais técnicas e instrumentos de
tortura e submissão que a mente humana foi capaz de inventar, antes do advento
da eletricidade
1
, são formas relativamente eficientes de se manter a ordem. Pelo
terror e pelo suplício procura-se inibir no outro as motivações para a liberdade e
a vida, razão pela qual muitos cativos porão termo às suas existências através do
suicídio.
Mas as razões expostas acima não esgotam as técnicas desenvolvidas no
interior do sistema. A visão romântica da escravidão, que autores como Gilberto
Freyre nos proporcionaram dentro do esforço de criação do mito da “democracia
racial”, ao enfatizar aspectos de permissividades mútuas nas relações senhor x
escravo, por muito tempo também dificultou a clara percepção de uma outra
frente do processo de coisificação. Situações como a negação da religiosidade
africana, com a sistemática coibição de suas práticas e demonização do seu
panteão, ou ainda da possibilidade de existência de uma alma no escravizado –
visão defendida por muito tempo pela Igreja – serão marcantes. Também o
impedimento de uniões matrimoniais entre os próprios negros (postura alterada
somente com a proibição do tráfico negreiro, em 1850) e o tolhimento de
diversas práticas sociais, caracterizaram, enfim, o processo de despersonalização
1
Como se sabe, a eletricidade proporcionou uma outra dimeno às práticas de tortura.
10
pela negação da cultura, compreendendo-se aí todas as dimensões da vida
humana que esta palavra possa abarcar
2
.
Em resumo, ao se impor torturas físicas e psicológicas, somadas à
deculturação, fecha-se um ciclo perverso que muitos indivíduos sentirão
dificuldade para romper não só durante, mas igualmente muito tempo após a
escravidão.
A empresa escravista, fundada na apropriação de seres
humanos através dos castigos mais atrozes, atua como uma
mó desumanizadora e deculturadora de eficácia
incomparável. Submetido a essa compressão, qualquer povo é
desapropriado de si, deixando de ser ele próprio, primeiro,
para ser ninguém ao ver-se reduzido a uma condição de bem
semovente, como um animal de carga; depois, para ser outro,
quando transfigurado etnicamente na linha consentida pelo
senhor, que é a mais compatível com a preservação de seus
interesses. (RIBEIRO, 1997, 118)
2
Quanto à cultura, é preciso aqui que façamos duas distinções. A primeira é quanto ao dimensionamento
bastante apropriado que faz José L. Santos (1991) sobre o tema ao considerar cultura a somatória das práticas
do quotidiano e não como algo estanque, associado a manifestações específicas com peodos e locais
igualmente específicos para ocorrerem. A segunda distinção é quanto a posição de pensadores marxistas,
como Clóvis Moura e outros, que nutrem um ponto de vista antipático em relação aos estudos culturalistas por
considerá-los inóquos para as questões dos confrontos entre grupos distintos (classes) dentro da estrutura
social. É preciso levar-se em consideração que a prática cultural não prescinde de um posicionamento político
e de uma tomada de consciência frente aos desafios estruturais. Para o africano, por exemplo,o existe uma
separação entre a produção artística, cultural e política, das práticas drias. Visão esta herdada em grande
medida por seus descendentes no Brasil, que sempre tiveram em suas produções culturais uma forma de
identificação, consciência e luta.
11
1.2 - O Problema da Abolição
Se durante cerca de trezentos anos a justificativa para a coisificação busca
apoio em questões religiosas ou meramente mercantilistas - afinal a prática
escravista não pode se permitir ao luxo de crises de consciência -, este processo
ganhará contornos dramáticos no Brasil imperial, na medida em que a Abolição
se aproxima, principalmente em centros onde o escravismo tivera um impulso
significativo com a monocultura cafeeira e convivia com a perspectiva crescente
da imigração, como em São Paulo.
Enquanto pensadores como Joaquim Nabuco (2000), ainda nos anos 70 do
século XIX, chegavam a levantar a questão de que o confinamento e a
conseqüente bestialização dos indivíduos, gerada pela vida na senzala, legaria ao
País cidadãos de segunda classe, o que só poderia ser combatido por
significativos investimentos em educação e por uma reforma agrária justa, nascia
uma intelligentsia nacional bastante influenciada pelos determinismos biológicos
e teorias eugenistas importadas da Europa. É o caso de figuras clássicas como
Nina Rodrigues e Silvio Romero, entre outros, que advogam em suas obras
idéias relacionadas a degenerescência cultural e intelectual da raça negra e seu
nocivo impacto para a nação.
É preciso lembrar que a elite brasileira historicamente padece de um forte
complexo de inferioridade em relação a europeus e, mais recentemente, norte-
americanos. Sem dúvida, uma herança do período colonial, em que ser brasileiro
era sinônimo de uma condição menor em função dos reinóis
3
, este complexo
sempre legitimou a busca de paradigmas alienígenas adaptados de maneira
tortuosa a realidade local. O pensamento forjado na Europa, a partir de meados
3
Os portugueses que vinham administrar ou tentar a vida na colônia.
12
do século XIX, e amplamente importado por intelectuais e pesquisadores
nacionais, propunha uma hierarquização das raças. Neste processo, cabia ao
elemento branco o papel civilizador, ao índio o de objeto de árduos trabalhos
civilizatórios, enquanto ao negro, bem, ao negro o papel de fator de impedimento
ao progresso.Uma infeliz praga importada em excesso para o território
nacional ” , conforme textos encontrados nas publicações feitas à época pelo
Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (Schwarcz,1993).
Como dissemos anteriormente, este panorama ganha contornos dramáticos
com a aproximação da Abolição. Apresentam-se para a elite dilemas de ordem
econômica, política, social e cultural. No campo econômico era preciso substituir
a mão de obra escrava por uma assalariada e pretensamente mais qualificada.
Nos âmbitos político e social a Abolição daria aos ex-escravos um indesejável
status de cidadania às até então criaturas desprovidas dessa condição. Sem
dúvida, um abalo para a desde sempre assimétrica sociedade brasileira. E,
definitivamente, no campo cultural não interessava a construção de um Brasil
significativamente negro, alijado da “civilização e do progresso”.
Com a libertação dos escravos tornando-se iminente dia após dia, as pressões
econômicas pela substituição dessa mão de obra unem-se às demandas
eugenistas. É preciso branquear a nação. As instituições acadêmicas criam os
discursos que justificam este imperativo, enquanto os grandes jornais, além de
reproduzi-los, criam em seus espaços uma retórica com suas notícias e editoriais
onde o negro livre aparece como uma ameaça à sociedade por seu
comportamento bárbaro, degeneração sexual, vícios como a bebida e,
principalmente, um caráter violento e criminoso. Lilia Moritz Schwarcz (2001)
lembra em seu trabalho sobre os jornais paulistas no final do século XIX, que
não só se constrói, a partir desse período, uma imagem negativa sobre o negro no
Brasil, mas também inicia-se um processo de associar o continente africano com
13
tudo o que seja inferior e decadente. Enfim, cria-se uma condição para que a
dicotomia africano x europeu não deixe margens para dúvidas quanto à
necessidade de se excluir os primeiros em detrimento destes últimos.
O auge da campanha pelo branqueamento do Brasil surge
exatamente no momento em que o trabalho escravo (negro) é
descartado e substituído pelo assalariado. Aí coloca-se o
dilema do passado com o futuro, do atraso com o progresso e
do negro com o branco como trabalhadores. O primeiro
representaria a animalidade, o atraso, o passado, enquanto o
branco (europeu) era o símbolo do trabalho ordenado,
pacífico e progressista. Desta forma, para se modernizar e
desenvolver o Brasil havia um caminho: colocar no lugar
do negro o trabalhador imigrante, descartar o país dessa carga
passiva, exótica, fetichista e perigosa por uma populão
cristã, européia e morigerada. (MOURA, 1988, 79)
O africano e seus descendentes, que haviam sido massacrados e reduzidos
durante a escravidão a condição de peças, objetos, viam o limiar da Abolição
anunciar um processo mais sofisticado de emparedamento sócio-cultural.
1.3 – Condenado a ser brasileiro
Sem o valor comercial que tão avidamente havia impelido sua importação, o
ex-escravo ganha um status de pária na sociedade. Como conseqüência, a
Abolição e o início da imigração em massa no centro-sul marcarão uma paulatina
mudança na postura e nos discursos hegemônicos a seu respeito.
14
Em primeiro lugar, como constata Schwarcz (2001) em sua pesquisa, a
construção de um imaginário apocalíptico e totalmente negativo em relação aos
libertos - que permeou os últimos anos da escravidão -, dá lugar a um eloqüente
silêncio. O negro, enquanto grupo, enquanto identidade, ou designação, é
substituído pelos genéricos termos, “nacional” ou “brasileiro”, comumente
empregados como sinônimos de preguiça, ineficiência e incompetência, a partir
da reelaboração dos já citados discursos hegemônicos, verificáveis
principalmente na imprensa da época. Em locais como São Paulo, que receberam
significativos contingentes de imigrantes europeus, este silêncio consegue a
proeza de apagar do imaginário a figura de uma coletividade negra paulistana.
São Paulo é a cidade dos imigrantes e ponto. Nada além desta percepção faz
muito sentido. Um exemplo emblemático dessa nossa afirmação é a famosa obra
de Antonio de Alcântara Machado, Brás, Bexiga e Barra Funda. Nela,
corretamente o autor assinala as inegáveis influências da imigração italiana na
capital paulista, com narrativas sobre o cotidiano de diversos indivíduos que
ganham uma personificação cativante e atraente. Curiosamente, porém, as raras
personagens negras que aparecem ao longo da obra não possuem nomes ou
personalidade. Machado refere-se a elas genérica e pejorativamente empregando
termos como “o preto fedido” ou “o pixaim da negra”. Não mais do que isso. Na
verdade, o autor seguia a tendência dos paulistanos pertencentes aos círculos
cultos e influentes da época, que viam com desprezo e desgosto a presença dos
ex-escravos no cotidiano da cidade. Fator que analisaremos mais detalhadamente
no próximo capítulo.
Ainda, porém, hoje pode-se perceber facilmente a generalização e reificação
que a mídia de maneira geral faz em relação a negros e pardos. Por ocasião das
comemorações pelos 450 anos da cidade, raríssimos foram os veículos de
comunicação capazes de identificar a existência de uma coletividade negra na
capital paulista. Quase que invariavelmente reproduziu-se a idéia da São Paulo
15
dos imigrantes e até dos migrantes nordestinos, cabendo ao grupo negro a
designação genérica, neste contexto, de brasileiros. Um exemplo emblemático
pôde ser verificado durante as transmissões dos desfiles das escolas de samba
paulistanas neste ano (2004). A escola vencedora (Mocidade Alegre) fazia uma
homenagem aos diversos grupos étnicos que contribuíram para o
desenvolvimento da cidade. Um de seus carros alegóricos trazia a gigantesca
figura de uma mulher negra preparando uma feijoada, além de diversos
componentes, também negros, que simulavam o trabalho no cafezal.
Anacronicamente, enquanto o carro alegórico enchia a tela, o narrador da TV
Globo não parava de repetir, “a escola homenageia os imigrantes que ajudaram a
construir São Paulo”.
Particularmente no que tange ao processo de branqueamento, mesmo saudado
e cultivado pelas elites econômicas e intelectuais locais, o fluxo imigratório
europeu sofreria no período posterior a Primeira Grande Guerra um duro golpe.
As tensões demográficas e econômicas que haviam forçado a imigração em
massa, principalmente a partir dos anos 70 do século XIX, se abrandaram em
países até então fortemente influenciados por elas, como Itália, Espanha,
Portugal, Alemanha e, entre outros do leste europeu, a Polônia.
A crescente consolidação dos efeitos da segunda Revolução Industrial nesses
e em outros países, causadora num primeiro momento de uma pauperização da
vida no campo e dos seus conseqüentes êxodos rurais - então molas propulsoras
desse fluxo-, geraria um paulatino rearranjo de suas massas de trabalhadores, até
então confrontados com uma única opção, deixar seus locais de origem. A
tendência da emigração em massa cedia espaço para uma fixação maior dos
indivíduos em suas pátrias.
16
Além dessa consolidação, outros fatores concorreriam para a diminuição no
número de imigrantes nos anos posteriores a 1914. Um deles, sem dúvida, é o
crescimento da noção de nacionalismo experimentada nos dois lados do
Atlântico. Por um lado, as nações européias, respondendo aos desafios gerados
pela concorrência econômica e militar, nascidos durante o período da expansão
colonialista, e que vivenciariam o seu extremo na Segunda Grande Guerra,
passaram a adotar políticas mais restritivas a emigração. Havia uma real
necessidade de braços e mentes para os esforços de então. Deve-se somar a isso
os conceitos eugênicos, também levados ao limite naquele conflito, e que
misturavam-se com as idéias nacionalistas. Não fazia sentido incentivar cidadãos
europeus a tomar parte na aventura do Novo Mundo, em muitos aspectos
comparativos, considerado atrasado e nem sempre receptivo aos imigrantes.
Na margem ocidental do Atlântico, em países como o Brasil, as idéias
nacionalistas também ganhavam corpo na mesma proporção em que os portos
recebiam cada vez menos imigrantes. Era preciso repensar a nacionalidade e com
ela o “problema negro”. A partir dos anos 30, a quase total indiferença
experimentada em relação às contribuições do africano no país, salvo raríssimas
exceções, dá lugar a um esforço para a construção do “brasileiro”, não mais no
sentido pejorativo do início do século, mas enquanto fruto da mestiçagem. O
samba, a capoeira, e outras manifestações de origem africana, tornam-se
nacionais, populares, folclóricas. A cordialidade e a “invenção” do mulato, além
de reafirmar a nacionalidade, teriam por objetivo, e pretenso mérito, aproximar
as etnias, diluir as tensões, e evitar a todo custo o conflito e o confronto, como
afirma Roberto Da Matta (1987). De quebra, poderia manter-se a histórica
assimetria social dentro da qual comumente negros e pardos apareciam e
aparecem como elementos predominantes na base da pirâmide.
17
A respeito do mesmo tema o tamm antropólogo e sociólogo Renato Ortiz
faz uma longa, porém interessante, consideração sobre esta construção
ideológica.
A ideologia do Brasil-cadinho relata a epoia das três
raças que se fundem nos laboratórios das selvas tropicais.
Como nas sociedades primitivas, ela é um mito cosmológico,
e conta a origem do moderno Estado brasileiro, ponto de
partida de toda uma cosmogonia que antecede a própria
realidade. Sabemos em Antropologia que os mitos tendem a
se apresentar como eternos, imutáveis, o que de uma certa
forma se adequa ao tipo de sociedade em que são produzidos.
Torna-se, assim, difícil apreender o momento em que são
realmente elaborados. O antropólogo clássico opera sempre a
posteriori e tem poucos elementos para fixar a origem
histórica dos universos simbólicos. Numa sociedade como a
nossa, o problema se coloca de maneira diferente; pode-se
datar o momento da emergência da hisria tica, e não é
difícil constatar que essa fábula é engendrada no momento
em que a sociedade brasileira sofre transformações
profundas, passando de uma economia escravista para outra
de tipo capitalista, de uma organização monárquica para
republicana, e que se busca, por exemplo, resolver o
problema da o-de-obra incentivando-se a imigração
européia. Se o mito da mestiçagem é ambíguo é porque
existem dificuldades concretas que impedem sua plena
realização. A sociedade brasileira passa por um período de
transição, o que significa que as teorias raciológicas, quando
aplicadas ao Brasil, permitem aos intelectuais interpretar a
realidade, mas não modificá-la. Em jargão antropológico eu
diria que o mito das três raças não consegue ainda se
18
ritualizar, pois as condições materiais para a sua existência
são puramente simbólicas. Ele é linguagem e não celebração.
(ORTIZ,1994, 38-39) (Nosso grifo).
Este esforço pela construção do Brasil-cadinho, nascido no bojo do
nacionalismo daquele período, será levado adiante em diversas frentes. O poder
público legitimará e disciplinará as manifestações de origem negra – agora
folclóricas e brasileiras - através de normas e decretos que, ao contrário do
passado recente, não mais servirão para persegui-las, desde que, dentre outras
exigências, conformadas aos espaços e períodos pré-determinados. Nas artes
surgirão figuras como Jorge Amado e Ary Barroso, que exaltarão a mulata como
a “tal”. Símbolo de uma brasilidade lânguida e exótica, mas acima de tudo
pacífica e sem contradições explícitas. Talvez venha deste período a noção
sintetizada pela lapidar frase de Florestan Fernandes: o brasileiro tem
preconceito de ter preconceito.
A propósito, no campo acadêmico, o pensador mais proeminente deste
período será o já mencionado Gilberto Freyre. Destacando-se de seus
predecessores imediatos, Freyre terá o mérito de enxergar o negro dentro da
engrenagem social sem o ranço determinista, mas sua obra terá a marca de
reificações perigosas ao estabelecer uma hierarquização natural nas relações
interétnicas. Para ele, a visita do senhor de engenho à senzala, para escolher
mulheres para a satisfação de seus apetites sexuais, é vista com naturalidade. Um
momento máximo de tolerância e mistura, cujo resultado é o mítico mulato. O
símbolo da democracia racial.
O sociólogo pernambucano reconhece as diferenças entre os grupos, mas as
diminui de forma quase pueril, como podemos perceber neste trecho de Sobrados
e Mucambos, onde torna a ressaltar a mistura de raças como um processo
19
praticamente pacífico e desprovido de maiores altercações nas práticas
cotidianas.
Com a urbanização do país, ganharam tais antagonismos
uma intensidade nova; o equilíbrio entre brancos do sobrado
e pretos, caboclos e pardos livres dos mucambos não seria o
mesmo que entre os brancos das velhas casas-grandes e os
negros das senzalas. É verdade que ao mesmo tempo que se
acentuavam os antagonismos, tornavam-se maiores as
oportunidades de ascenção social, nas cidades, para os
escravos e para os filhos de escravos, que fossem indivíduos
dotados de aptidão artística ou intelectual extraordinária ou
de qualidades especiais de atração sexual. E a miscigenação,
tão grande como nas fazendas, amaciou, a seu modo,
antagonismos entre os extremos. (FREYRE,1951,345)
A “invenção” do mulato, dentro de um espectro discursivo, criará na verdade
uma escala de valores, onde o ser branco e europeu (ou descendente) continua
sendo a melhor das metas a se perseguir. Dentro dessa escala, o mulato é o
intermediário, o aspirante a uma ascendência nobre, ainda que em muitos
aspectos rejeitado e olhado com desconfiança pelos primeiros. Enquanto o negro,
por seu turno e mais do que qualquer outro grupo, está condenado a ser o
brasileiro, o sem origem, o João Ninguém de Ribeiro. Conseqüentemente, sem
direito a uma história que transcenda o já reiterado papel de escravo ou
descendente de escravo
5
.
5
É muito comum encontrarmos na mídia em geral referências aos negros como escravos ou descendentes de
escravos. Estes termos, além de reforçarem cotidianamente a noção de uma origem pretensamente inferior e
subalterna do grupo em relação aos demais grupos étnicos, acabam não sendo adequados, pois
etimologicamente a palavra escravo vem do latim skavon, termo empregado pelos romanos para se referirem
aos eslavos (no inglês, slaves). Portanto, é no mínimo anacrônico referir-se a um negro como descendente de
eslavos. Melhor seria adotar o termo descendente de africanos ou, o eminentemente ideológico, descendente
de negros escravizados.
20
Novamente retomemos Ortiz, que bem dimensiona o alcance que a
“invenção” do mulato acabou por adquirir entre nós, e com ela a “invenção” da
brasilidade.
A construção de uma identidade nacional mestiça deixa
ainda mais difícil o discernimento entre as fronteiras de cor.
Ao se promover o samba ao título de nacional, o que
efetivamente ele é hoje, esvazia-se sua especificidade de
origem, que era ser uma música negra. (ORTIZ,1994,43)
1.4 – O Emparedamento cultural
Este é o panorama construído ao longo de décadas do século XX. Enquanto
se erige o mito da mestiçagem, rouba-se a especificidade do negro. Aquele que
outrora havia sido reduzido à condição de coisa, e passado pela construção de um
imaginário, onde assumiu o lugar de incivilizado e violento, sofreria mais um
golpe: o emparedamento cultural assumido pelo discurso hegemônico, seja ele
midiático ou acadêmico. Daí a dificuldade para muitos, ainda hoje, em
enxergar nas manifestações culturais ou ocupações territoriais (como no caso do
Bexiga) particularidades e um grau de consciência de uma coletividade negra,
como bem lembra João Baptista Jorge Pereira.
(...) ao se folclorizar a cultura, folcloriza-se com ela, o
indivíduo e o grupo. Encarada desta perspectiva, a
folclorização é parte de um mecanismo histórico de produção
do homem-espetáculo ou espetaculoso, do ser exótico e
leviano e, como tal, incorporado à dimensão não-séria –
histriônica e mágica – da vida nacional. Em
oposição ao país
operoso, racional e capitalista, esta cultura é expressão e
21
suporte da dimensão amalandrada, mágica e preguiçosa da
vida brasileira. É o vagido inicial de Macunaíma. (PEREIRA,
1983, 261)
Este panorama de coisificação, seguido pela construção de um imaginário de
barbárie e finalmente coroado com uma prática de exotização e folclorização,
contribui para a espantosa distorção da visão que muitos de nós brasileiros temos
sobre as questões relacionadas a nossa identidade e sua construção através do
tempo, seja a partir da sobreposição dos fatos históricos, seja pela construção de
um ideário basicamente discursivo, reforçado pelas práticas diárias, onde
novamente a hierarquização aparece.
Para entendermos o profundo significado e as conseqüências dessas práticas
vale a pena evocarmos o conceito de Ideologia do Cotidiano cunhado por
Mikhail Bakhtin (1978), para quem o signo serviria como campo da luta entre
classes, ou para empregarmos uma concepção mais moderna, o embate entre os
diversos grupos sociais. A propósito do tema, vejamos o que diz Maria
Aparecida Baccega.
A opção por um ou outro signo, por uma ou outra palavra,
vale tanto mais quando se de maneira mais “relaxada, ou
seja, no cotidiano. Daí a importância desse estudo, uma vez
que é aí que se vão estabelecendo, como num jogo, as
perspectivas de futuro. Nele se reproduzem ou se produzem
relações de poder. É no cotidiano que se têm jogado as
partidas” decisivas da dominação. (BACCEGA, 1998, 86)
Pois bem, neste campo da ideologia do cotidiano nascem novas formas de
esvaziamento de uma coletividade negra. Exemplos emblemáticos dessa
afirmação, e que mostram a nem tão sutil forma de se travar as tais “partidas”
22
mencionadas por Baccega, são frases como: “isto é serviço de preto”, indicando
um erro ou uma atividade mal feita, ou a troça: “preto parado é suspeito,
correndo é ladrão”. Ainda que não sejam empregadas por todos os brasileiros,
pode-se dizer que boa parte de nós já as ouvimos ou pronunciamos, pelo menos
uma vez na vida. Ora, não há como dissociar o emprego de frases desse tipo de
uma prática que teima em se perpetuar geração após geração. A prática de
lembrar a todos o que normalmente pode se esperar de um indivíduo com este
perfil.
Enfim, estes elementos reunidos - a folclorização, as frases do cotidiano, que
reforçam o “papel do negro”, e por vezes o solene silêncio em relação ao grupo e
suas produções culturais, reificadas sob a alcunha genérica de nacionais –
constituem-se nos tijolos e cimento que propiciam este emparedamento sócio-
cultural ao qual nos referimos.
Por outro lado, ao não vislumbrarmos uma prática política e ideológica, desde
sempre consciente, no maracatu pernambucano, no jongo do Vale do Paraíba ou
nas reuniões de sambistas do antigo Bexiga, encarando-as apenas como diversão,
deixamos de apreendê-las como um movimento de resistência e sobrevivência
diante de quatro séculos de opressão. Ao desconhecermos ou deliberdamente
ignorarmos estes fatores, nos convertemos em cúmplices silenciosos de uma
antiga prática colonial. Colocar pessoas vivas no interior das paredes dos
casarões, ignorando seus gritos, na expectativa de que com o passar do tempo
silenciassem.
Lembremos que o mérito indiscutível de tais medidas era sumir com o
desafeto. O efeito colateral, porém, era a posterior aparição de supostos
fantasmas que teimavam em assombrar o casarão. O fantasma brasileiro é a
encruzilhada que ainda não nos permite entender e aceitar de maneira eqüânime
23
todos os elementos formadores daquilo que realmente somos. Não uma
identidade unicamente discursiva, como já dissemos, mas baseada em elementos
mais tangíveis. Entender a trajetória dos africanos e seus descendentes no Brasil,
e suas inter-relações com os demais grupos étnicos no passado e no presente, é
fundamental para escolhermos qual direção adotar.
1.5 – Em busca de uma identidade negra
Mas se até aqui analisamos o negro enquanto objeto de um processo sócio-
histórico que o descaracterizou, é preciso que o vejamos tamm como sujeito. É
também necessário, antes de passarmos a este novo enfoque, lembrarmos que o
negro, num primeiro momento, é uma invenção do conquistador europeu, o
mesmo que designaria os nativos americanos de índios, em uma alusão
originalmente equivocada aos habitantes da pretensa Índia, alcançada pelas
navegações rumo ao ocidente
6
.
É óbvio que na África subsaariana homens e mulheres, no convívio diário,
não se viam e não se veêm como negros, mas como elementos pertencentes a
grupos étnicos que interagem de acordo com suas tradições locais. A experiência
americana, contudo, criou o negro, a partir das situações já analisadas em linhas
anteriores, estabelecendo uma reificação e generalização que terminaria por
englobar todos os indivíduos de pele escura em um único grupo. A conseqüência
de tal dinâmica foi a necessidade de uma reinvenção desses indivíduos por eles
mesmos.
6
Na América espanhola, ainda hoje, constitui-se ofensa grave chamar um nativo de índio, tendo por objetivo
atingi-lo moralmente. Prova de que trata-se de uma alcunha imposta pelo “outro” e não aceita pelas
populações autóctones.
24
A identidade étnica dessas pessoas no Novo Mundo terá cada vez menos
relação com as noções de pertencimento atávicas e míticas, associadas a um mito
fundador e aos heróis da raça, dentro de uma concepção mais tradicional sobre o
tema (Poutignat e Streiff-Fenart, 1998), e passará a ganhar contornos históricos,
como bem lembra Stuart Hall, ao falar sobre a diáspora africana e os negros
caribenhos, numa leitura que cabe bem dentro da realidade brasileira.
As questões da identidade cultural na diáspora não podem
ser “pensadas” dessa forma
7
. Elas têm provado ser tão
inquietantes e desconcertantes para o povo caribenho
justamente porque, entre nós, a identidade é irrevogavelmente
uma questão histórica. Nossas sociedades são compostas não
de um, mas de muitos povos. Suas origens não são únicas,
mas diversas. Aqueles aos quais originalmente a terra
pertencia, em geral, pereceram há muito tempo – dizimados
pelo trabalho pesado e doença. A terra não pode ser
“sagrada”, pois foi “violada” – não vazia, mas esvaziada.
Longe de constituir uma continuidade com nossos passados,
nossa relação com essa história está marcada pelas rupturas
mais aterradoras, violentas e abruptas. Em vez de um pacto
de associação civil lentamente desenvolvido, tão central ao
discurso liberal da modernidade ocidental, nossa associação
civil” foi inaugurada por um ato de vontade imperial. (HALL,
2003, 30)
Portanto, antes de tudo, a identidade negra não foi criada somente pelo olhar
do outro, mas principalmente pela “mão pesada” do outro.
7
Sob a perspectiva da origem mítica.
25
Nas diversas latitudes brasileiras, por exemplo e como conseqüência, grupos
originalmente heterogêneos de africanos e crioulos
8
buscarão uma fusão a partir
de pontos em comum. No caso, ao não terem em princípio acesso a cultura
livresca, farão do corpo, da musicalidade e de elementos religiosos os traços que
definirão esta nova identidade étnica. Os folguedos sincréticos e multiculturais
como o bumba-meu-boi (norte), maracatu e afoxé (nordeste), congada e samba
(sudeste), entre outros, marcarão os pontos de encontro desta negritude que terá
fundamentalmente a noção de que ocupa uma posição determinada dentro do
extrato social. Essas manifestações “repetitivas e monótonas”, como Fernandes
(1968) chega a classificar, ao se referir ao jongo paulista, são na verdade o local
onde esses indivíduos se encontrarão, trabalharão sua auto-estima e reafirmarão
sua consciência de espoliados dentro de um universo que os vê com um misto de
sentimento de superioridade e desconfiança.
Diríamos que a aceitação desta identidade negra nasce muito mais de um
gesto de cumplicidade dentro do infortúnio do que exatamente por valores
ancestralmente compartilhados ou desejo de pertencimento ao grupo, como bem
lembram os pensadores franceses Poutignat e Streiff-Fenart.
Quanto mais forte é a dominação (o pólo máximo sendo a
situação da escravidão), mais as pessoas às quais se aplica a
exo-definição são coagidas a retomá-la por sua conta.
(POUTIGNAT E STREIFF-FENART, 145, 1998)
Além disso, como já vimos, outros fatores externos como o discurso oficial -
que inventará a democracia racial e o mulato como símbolo da tolerância
interétnica-, associado às diferenças regionais e a pequena mobilidade social
8
Segundo o Novo Dicionário Aurélio, o termo crioulo era empregado para designar os negros nascidos no
Brasil, diferenciando-os dos trazidos do continente africano.
26
alcançada apenas por uma minoria dentro do grupo, farão com que a noção de
identidade negra esteja realmente muito mais ligada a um passado comum e suas
conseqüências na realidade cotidiana do que efetivamente a outros elementos que
pudessem caracterizar de forma marcante tal identidade. Isto porém, não reduz o
impacto que o “ser” negro e reconhecer-se como negro pode trazer, e
efetivamente traz, para a valorização dos indivíduos, de suas lutas sociais e da
própria cultura, nascida deste auto-reconhecimento, tão importante dentro de um
concerto que propicia a existência de uma situação derivada: o ser brasileiro.
Aliás, insistimos, o resgate consciente da negritude, de seus valores e de sua
real importância, é um dos fatores fundamentais para a realização minimamente
concreta de uma identidade nacional.
1.6 – Mas afinal, qual é a identidade nacional?
Quando falamos, porém, de uma identidade negra forjada pelas vicissitudes
ou do mito do povo mestiço, nos referimos a situações que se fizeram presentes
de maneira muito mais decisiva no passado, a partir da intervenção do Estado,
por exemplo, do que comparativamente na atualidade. Não desconsideramos,
claro, suas conseqüências e sua reelaboração diante dos novos desafios
contemporâneos. Mas é possível reconhecer que, se a formação de uma
identidade negra se deu e se dá por uma exo-definição e pelas situações
históricas vividas por esta coletividade e a conseqüente e inexorável assunção
desta condição pelo grupo, a definição de uma identidade nacional se mostra
uma tarefa muito mais difícil.
Situações como a massificação cultural, a globalização e o esvaziamento do
Estado-Nação, que têm se intensificado nas últimas décadas, colaboram de
27
maneira decisiva para alterar percepções e reordenar algumas peças no tabuleiro
do xadrez da identidade. Estes novos paradigmas tornam o entendimento daquilo
que poderia ser considerado como uma identidade nacional algo complexo,
principalmente em países multiculturais e multiétnicos como o Brasil, e
francamente suscetível a influências alienígenas.
Não está em nosso alcance, e nem poderia ser diferente, esgotar o tema. Mas
abrir esta caixa e revirar seu conteúdo vai ao encontro do objetivo maior deste
trabalho: pensar a realidade brasileira, analisando suas contradições e
complementaridades propiciadas por sua condição diferenciada em relação a
outros países.
Pois bem, nos apoiando em Hall (2001), lembremos que a formação desta
identidade ainda se mantém em pleno processo. A amálgama entre negros,
brancos, asiáticos, indígenas, e qualquer outra categoria de indivíduos que se
possa denominar, é uma situação inconclusa, tanto sob o ponto de vista
biológico, como cultural, social e político. Aqui, bem vale a pena vermos o que
diz Tomaz Tadeu da Silva sobre esta questão ao discutir a noção de hibridismo
dentro de uma sociedade.
O hibridismo, por exemplo, tem sido analisado, sobretudo,
em relação com o processo de produção das identidades
nacionais, raciais e étnicas. Na perspectiva da teoria cultural
contemporânea, o hibridismo – a mistura, a conjunção, o
intercurso entre diferentes nacionalidades, entre diferentes
etnias, entre diferentes raças – coloca em xeque aqueles
processos que tendem a conceber as identidades como
fundamentalmente separadas, divididas, segregadas. O
processo de hibridização confunde a
suposta pureza e
insolubilidade dos grupos que se reúnem sob as diferentes
28
identidades nacionais, raciais ou étnicas. A identidade que se
forma por meio do hibridismo não é mais integralmente
nenhuma das identidades originais, embora guarde traços
delas.
Não se pode esquecer, entretanto, que a hibridização se dá
entre identidades situadas assimetricamente em relação ao
poder. Os processos de hibridização analisados pela teoria
cultural contemporânea nascem de relações conflituosas entre
diferentes grupos nacionais, raciais ou étnicos. Eles estão
ligados a histórias de ocupação, colonização e destruição.
Trata-se na maioria dos casos de uma hibridização forçada.
(SILVA, in SILVA, 2000, 87)
Esta hibridização forçada e assimétrica a que se refere Silva propicia escalas
de valores verificáveis nos discursos de muitos brasileiros, que buscam em uma
ascendência exógena um bálsamo para se contrapor às mazelas endêmicas do
país e reafirmar uma pretensa idéia de superioridade que justifique sutilmente as
diferenças dentro do conjunto. A velha idéia, já citada, de que tudo que é do
outro é melhor, entendendo-se o outro como os chamados países desenvolvidos,
permeia um imaginário que nunca permite a completa realização de um “ser
brasileiro”. Então, passa a ser comum ouvirmos nas mínimas coisas comparações
que apenas reforçam estereótipos e nos afastam da realidade e de uma elaboração
mais acurada de uma identidade coletiva, nacional. “Está fazendo um friozinho
europeu”, dizem alguns. Ora, mas na Bolívia, no Peru e na Mongólia também faz
frio. “Esta máquina é importada”, dizem outros, sendo este (o fato de ser
importada) o principal requisito de qualidade. Ou então, a esgarçada pergunta de
deslumbrados jornalistas diante de personalidades do mundo pop que visitam o
país: “o que você achou do Brasil?”. Numa clara demonstração da expectativa
ansiosa de um afago, que reproduz quase uma relação canina e obviamente
29
submissa. Mais uma vez, retornando ao campo do discurso, percebemos que o
paradigma é sempre exterior e repete uma mentalidade ainda colonial.
O que isto tem a ver com a identidade nacional? Tudo. Mas antes de amarrar
o raciocínio, reproduzamos mais um longo, porém elucidativo pensamento de
Tomaz Silva.
Fixar uma determinada identidade como a norma é uma
das formas privilegiadas de hierarquização das identidades e
das diferenças. A normalização é um dos processos mais sutis
pelos quais o poder se manifesta no campo da identidade e da
diferença. Normalizar significa eleger – arbitrariamente –
uma identidade específica como o parâmetro em relação ao
qual as outras identidades só podem ser avaliadas de forma
negativa. A identidade normal é “natural”, desejável, única.
A força da identidade normal é tal que ela nem sequer é vista
como uma identidade, mas simplesmente como a identidade.
Paradoxalmente, são as outras identidades que são marcadas
como tais. Numa sociedade em que impera a supremacia
branca, por exemplo, “ser branco” não é considerado uma
identidade
étnica ou racial. Num mundo governado pela
hegemonia cultural estadounidense, “étnica” é a música ou a
comida dos outros países. É a sexualuidade homossexual que
é “sexualizada”, não a heterossexual. A força
homogeneizadora da identidade normal é diretamente
proporcional à sua invisibilidade. (SILVA, in SILVA,
2000,83)
A normalização e a hierarquização remetem aos chamados sistemas
simbólicos cujas idéias estereotipadas só fazem reforçá-los. Se o empíreo a ser
30
alcançado é o padrão europeu ou norte-americano, deixa-se de mergulhar no
interior da sociedade nacional. Mantêm-se as diferenças históricas, com um ou
outro ajuste periódico, e empurra-se para um amanhã incerto a consolidação de
uma sociedade mais equânime.
A contribuição européia foi e continua sendo importantíssima para a
constituição da identidade brasileira, mas ao se subestimar a contribuição
cultural de uma coletividade negra, alija-se esses indivíduos de diversos
processos sociais. Ao criar-se lugares comuns para a herança indígena, não a
enxergamos no cotidiano, não a potencializamos. Ao não se praticar a
mestiçagem sócio-cultural, tirando-a de uma condição mítica e levando-a para os
diversos níveis de representação, mantém-se seu propósito original, vedar as
múltiplas fraturas do tecido social sem efetivamente saná-las.
Essas fraturas e a decisiva falta de auto-conhecimento constituem-se em
importantes fatores de atraso para a sociedade brasileira. A idéia de Darcy
Ribeiro (1997) de uma Roma Tropical, com o sentido de uma nova civilização,
continua em estado latente, ou na melhor das hipóteses, em um lento processo
seminal. Romper com certos valores torna-se fundamental para a realização de
um projeto que busque nos aproximar de uma verdadeira identidade nacional.
Dando, enfim, um rosto àqueles que não o têm. Mas para que se possa dar este
rosto é preciso que continuemos analisando como ele foi desfigurado e o quanto
isto passa desapercebido para a maioria.
Kabengele Munanga (2000), com seu olhar africano, afirma de maneira
bastante elucidativa que, por exemplo, os brancos brasileiros se encontram muito
mais africanizados do que imaginam, enquanto os negros não têm noção de o
quanto estão ocidentalizados. Para a concretização do entendimento daquilo que
somos, assim como indica Munanga com seu ponto de vista estrangeiro, é
31
preciso, reforçamos, abrir esta caixa, descobrir o que há nela, contar suas
histórias.
A cidade de São Paulo seja provavelmente, por suas características, um dos
melhores locais para se investigar tais questões, pois ao longo dos últimos dois
séculos foi capaz de construir uma dinâmica onde aparentemente sempre houve
espaço para todos, mas ao mesmo tempo foi igualmente capaz de manter
divisões baseadas nos modelos que acabamos de analisar. Talvez por isso, Clóvis
Graciano tenha optado por pintar o mural em que de maneira tão feliz
caracterizou essas relações, na homenagem que fez aos quatrocentos anos da
cidade. Como se montou e perpetuou esta engrenagem, que tanto guarda relação
com tudo o que foi dito até aqui, é o que veremos no próximo capítulo.
32
Capítulo 2
A cidade de São Paulo e a negritude
2.1 – A maior população negra do Brasil
A jornalista Marilene Felinto em mais de uma oportunidade escreveu em seus
artigos sobre as revistas de bordo e os filmes de divulgação das cidades
brasileiras, produzidos e difundidos por uma importante companhia aérea
nacional. Felinto comenta em um deles: “(...) No filme sobre São Paulo, por
exemplo, só tem gente rica e branca, como numa espécie de Suécia, uma
representação falsa e artificial da realidade”.
1
Não é, porém, só no imaginário dos produtores de filmes e revistas de bordo
que a cidade assume ares de capital de uma cultura e de uma imigração
fundamentalmente européias. As reificações do pensamento ordinário criaram
uma dicotomia entre o elemento negro e a metrópole paulista, que se tornaram
bastante sólidas, principalmente ao longo do último século. É muito provável que
por essa razão o poeta, compositor e cantor Vinícius de Moraes tenha cunhado o
epíteto: “São Paulo, túmulo do samba”, numa alusão enviesada à pretensa
ausência da negritude na cidade.
Seja como for, em contraposição às idéias pré-concebidas e estereotipadas,
encontramos no censo do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,
1
FELINTO, Marilene – A Varig, a TV a Cabo e a Enganação da Propaganda, in Revista Caros Amigos,
São Paulo,Ed.76, Julho/2003.
33
realizado no ano 2000, um dado mais do que interessante: em números absolutos,
São Paulo possui a maior população negra do País (!).
2
Se assim é, como essa
percepção equivocada, tão bem sintetizada pelo poeta carioca, consegue se
manter viva? Um rápido mergulho na história do povo negro dentro da paulicéia
talvez nos ajude a entender um pouco mais essas questões. E é exatamente isso o
que faremos neste capítulo, antes de estudarmos as particularidades do Bixiga.
2.2 – Primórdios e territorialidade
Quando os dados do primeiro censo do novo milênio falam de uma paulicéia
habitada por uma numerosa população negra, obviamente por uma questão
relacionada à frieza dos números, não refletem os primórdios desse grupo na
cidade. As dinâmicas das migrações nos anos que se seguiram a década de 50 do
século passado, premidas principalmente pelo amplo desenvolvimento industrial
experimentado por São Paulo nesse período, diferem relativamente de uma
primeira fase de crescimento vivida pela capital paulista no final do século XIX e
que, conseqüentemente, marca o primeiro fluxo significativo de afro-
descendentes para os seus domínios. Duas questões visceralmente interligadas
figuraram como as causas para que um considerável contingente dessas pessoas
fosse empurrado para o espaço urbano neste primeiro momento de expansão: a
possibilidade de ter contato na cidade com as riquezas geradas pelo café e a fuga
do modelo escravista, que apresentava no mundo rural sua principal força de
expressão.
Como conseqüência, nos anos finais da escravidão os principais centros da
época assistiram a uma verdadeira explosão no número de quilombos que se
2
DIAS, Edney Cielci – “Ilha Branca” revela a exclusão de negros , in jornal Folha de São Paulo, Caderno
Cotidiano, C1, 21/09/2003.
34
formaram em seus entornos. Muitas pessoas, ajudadas pelos movimentos
abolicionistas ou por ex-cativos, abandonavam as fazendas para buscar a
liberdade, misturando-se às pequenas multidões de anônimos que começavam a
se formar nas cidades, ou dirigiam-se para os chamados quilombos urbanos,
onde estabeleciam moradias precárias
3
.
Mesmo nos anos posteriores a abolição da escravatura, esse fluxo se manteve
intenso em cidades como São Paulo, verificando-se nas três primeiras décadas do
século XX uma migração caracterizada principalmente por grupos que vinham
do interior do estado. É o que explica o pesquisador José Carlos Gomes da Silva,
mencionando principalmente os trabalhadores informais negros, ao retomar uma
expressão cunhada por Florestan Fernandes.
(...) Estes migraram para a cidade no início doculo
quando famílias inteiras de negros do interior do estado
deslocaram-se para a metrópole. Possuíam também uma
posição definida na organização espacial e ocupacional da
cidade. Eram trabalhadores informais, carregadores,
serventes de pedreiros, posseiros, assentadores de dormentes,
etc. Concentraram-se em sua maioria na Barra Funda, um dos
territórios negros da cidade ao lado do Bexiga e Cambuci,
onde freqüentemente habitavam os porões das residências.
(SILVA, 1990, 13) (nosso grifo)
A ocupação de porões e cortiços como moradia e os subempregos como
forma de geração de renda serão duas marcas que acompanharão grande parte
3
CASTRO, Márcio Sampaio – Quilombos Urbanos, in Revista Aventuras na História,o Paulo, Ed.21,
Maio/2005.
35
dessa população ao longo de sua trajetória dentro da cidade. Como em qualquer
outra parte do país, apesar dos movimentos abolicionistas do século anterior, São
Paulo não havia se aparelhado psicológica, técnica e emocionalmente para tratar
o ex-escravo e seus descendentes como cidadãos. Cortiços e porões
representarão nos campos físico e simbólico os lugares reservados ao negro no
senso coletivo.
Diferentemente dos morros cariocas, mas seguindo a mesma lógica de
exclusão espacial, a capital paulista destinará a esse grupo as várzeas e baixios
insalubres dos rios Tamanduateí e Tietê, surgindo daí a ocupação de bairros
como o Cambuci, Glicério, várzeas do Saracura e a Barra Funda. Segundo
Rolnik(1989), surgiriam dessas concentrações aquilo que se poderia denominar
como territórios negros. Não nos moldes do gueto norte-americano, onde a
relação de exclusão é explícita e inconteste, mas sim seguindo o padrão luso-
brasileiro de hierarquização sutil, no qual jamais se admite claramente a
exclusão, que é, porém, aceita e praticada por todos no dia-a-dia.
Esses territórios terão características comuns e também peculiares. No caso
da Barra Funda, por exemplo, o principal fator de aglutinação será a
possibilidade de renda gerada pela proximidade do terminal de cargas da linha
férrea Santos-Jundiaí . Como vimos acima, uma das raras ocupações endereçadas
ao homem negro recém liberto do jugo da escravidão será a de carregador de
fardos. Ainda que esporádica e limitada, essa fonte de ganhos atrairá uma
significativa parcela desse grupo para os arredores do terminal e do então
existente largo da Banana
4
.
Já no caso do Bexiga, um dos fatores de atração será a proximidade das ricas
residências da avenida Paulista, onde as mulheres negras eram admitidas como
4
Logradouro eliminado para a constrão do viaduto Pacaembu, erguido exatamente sobre a linha férrea.
36
criadas ou prestavam serviços como lavadeiras, mesma atividade que concentrará
também um grande número dessas mulheres no Lavapés, às margens do rio
Tamanduateí.
A propósito da condição feminina, podemos citar como um dos fatores
comuns verificáveis nos diversos territórios negros paulistanos, no período pós-
abolição, a desagregação da célula familiar. A recém extinta prática escravista,
por sua natureza, fora delimitadora dos processos de constituição de tais células.
No início do novo século, as pressões econômicas geradas pela nova situação,
que retirava os indivíduos de um modelo pré-industrial para atirá-los numa
sociedade com padrões capitalistas cada vez mais sólidos, acentuaram a
desagregação de muitos núcleos familiares negros. Assim, não por opção cultural
e sim por pressões econômicas, homens desempregados e subempregados
abandonavam facilmente suas companheiras e sua prole, o que acabava
conferindo uma característica de matriarcado a muitas dessas pequenas famílias.
Um padrão que infelizmente não se alterou muito nas classes populares em
nossos dias.
Outro fator de comunhão entre os territórios eram as práticas culturais. O já
mencionado largo da Banana foi um notável ponto de concentração e trocas
culturais na paulicéia dos primeiros anos do século XX. Ali praticava-se a
tiririca
5
, o samba de roda, o samba de Pirapora e concentravam-se alguns dos
principais cordões carnavalescos durante o tríduo de Momo.
Numa escala menor, mas não menos importantes, se davam as repetições das
mesmas práticas nos demais territórios, o que gerava ao mesmo tempo
cumplicidade e rivalidade entre os grupos. Cumplicidade porque todos
experimentavam os mesmos preconceitos e perseguições do meio circundante,
5
Espécie de capoeira, em que os homens se confrontavam usando as pernadas.
37
principalmente no que tange às práticas repressivas muitas vezes praticadas pela
polícia. Rivalidade porque o resultado dessas atividades culturais era uma natural
concorrência entre os seus praticantes espalhados pelos principais grupos em
seus respectivos locais de concentração. Um exemplo conclusivo para esse
padrão de rivalidade e cumplicidade foi o surgimento, entre os anos de 1910 e
1930, dos três cordões carnavalescos mais tradicionais da cidade: o Camisa
Verde (Barra Funda), o Lavapés (Cambuci) e o Vai-Vai (Bexiga), o que só
poderia ter ocorrido dessa forma sob a égide desse movimento de ocupação
territorial.
2.3 – O largo do Rosário
O mais antigo e menos pesquisado território negro em São Paulo, porém, foi
o largo do Rosário no centro da cidade. Fundada ainda no final do século XVIII,
a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos cumpriria ao
longo do século seguinte dois importantes papéis. O primeiro foi o de
mobilização para a compra de cartas de alforria para os escravizados. O segundo
foi, ainda que sob o “verniz” da cristandade, o de se tornar um centro de
manutenção da cultura africana, bem no coração da paulicéia. A construção de
uma igreja pela Irmandade e a existência de um chafariz no largo faziam do local
um ponto de concentração de cativos e libertos. Era comum que congadas,
batuques e moçambiques ocorressem ali, principalmente nas celebrações do dia
de São Benedito e da padroeira da Irmandade. Afora isso, a concentração de
quituteiras, negros de ganho e ambulantes de toda sorte era bastante comum
naquela localidade. Mas como não poderia deixar de ser, tal vizinhança
incômoda em pleno centro causava comentários pouco lisonjeiros, como
podemos perceber na descrição feita pelo historiador Ernani Silva Bruno ao
evocar os apontamentos de seu colega Afonso A. de Freitas.
38
(...)Afonso A. de Freitas escreveu que após as procissões
faziam-se junto às igrejas de São Bento ou do Rosário,
congadas, batuques, sambas e moçambiques que, reprimidos
pelas autoridades, foram sendo substituídos pela dança dos
Caiapós, “arremedo dos costumes daqueles silvículas, sem
valor étnico, organização artificiosa que era de pretos
crioulos da capital”. (BRUNO, 1984, 785) (nosso grifo)
No início do século XX, o que havia sido tolerado até então passou a ser alvo
das mudanças que o progresso europeizante demandava. O prefeito Antonio
Prado, com apoio da Câmara Municipal, converter-se-ia em um ardoroso
defensor da reurbanização, que tinha por objetivo apagar os vestígios da memória
colonial. Uma tendência inspirada pelos ventos do positivismo republicano que
varriam o país. A concentração de negros e de seus batuques no coração da
capital do café definitivamente ia contra tais ventos.
A melhor maneira de atacar a questão, descobriu-se, era a demolição da
igreja, foco de concentração daquela coletividade. Em troca, ela poderia ser
reconstruída em outro local, mas obedecendo a rígidos padrões e normas
definidos pela municipalidade que impossibilitariam a Irmandade de retomar o
seu papel sociabilizante de outrora.
(...) após o ano de 1904 a imagem do largo do Rosário
surge na memória de muitos coetâneos como a de um espaço
remodelado. Dessa data em diante erguia-se ali a moderna
praça Antonio Prado, mais um símbolo do progresso e da
modernidade paulistana.
Conseguira-se esconder a antiga
“mácula” da existência da igreja da Irmandade
dos Homens
Pretos no solo da cidade, que com a demolição da igreja da
39
Nossa Senhora do Rosário a edilidade paulistana pudera
finalmente sanear e civilizar “por completo” aquele
logradouro que havia proporcionado a existência de um
espaço africanizado no antigo núcleo urbano de São Paulo.
Com a demolição da igrejinha de aparência colonial, a sede
da Irmandade do Rosário seria transferida para uma área
ainda próxima ao velho núcleo da cidade, o largo do
Paissandú, onde se ergueu uma nova igreja, de projeto
arquitetônico neo-rontico, cuja fachada certamente o
corromperia o aspecto cosmopolita que se queria dar à
paisagem citadina. (KOGURUMA, 2001, 174)
Iniciava-se assim o ciclo de remoções, urbanização e saneamento, sendo o
elemento popular, particularmente negros e mestiços, o alvo principal.
2.4 – Varrendo para baixo do tapete
A reorganização do espaço urbano implementada pela administração Antonio
Prado, com as reformas e demolições de cortiços na região da Sé, a demolição da
Igreja do Rosário, a criação dos Campos Elíseos e a construção das vilas
operárias como na Moóca e no Brás, completavam um ciclo que havia se iniciado
alguns anos antes com a edição dos diversos códigos de posturas do município,
que buscavam sempre civilizar e disciplinar a ocupação da cidade.
Saliente-se que civilizar e disciplinar iam sempre de encontro às práticas
populares. Por tais práticas podemos entender o comércio de quituteiras e seus
alimentos, a venda de ervas medicinais, os batuques, o entrudo carnavalesco e até
a vadiagem, sendo esta última arbitrada pelos critérios subjetivos das autoridades
policiais que se vissem envolvidas em alguma ocorrência com essa natureza.
40
Vejamos um exemplo extraído do Código de Posturas do Município de São
Paulo, sancionado em 06 de outubro de 1886:
tulo XVII
Sobre Vagabundos, Embusteiros, Tiradores de Esmolas,
Rifas (...)
Artigo 199 – Todos os que se intitularem curandeiros de
feitiços, ou efetivamente empregarem orações, gestos ou
quaisquer embustes, a pretexto de curar, incorrerão na multa
de 30$ e oito dias de prisão.
Artigo 200 – Os que se fingirem inspirados por algum ente
sobrenatural e prognosticarem acontecimentos que possam
causar sérias apreensões no ânimo dos crédulos, sofrerão a
multa de 30$ e dez dias de prisão. (apud SANTOS, 2003,
118)
Como se pode perceber, o alvo eram aqueles que não professassem uma fé
baseada nos preceitos do cristianismo. Segundo relata Koguruma (2001), as
denúncias e investidas policiais contra os rituais e práticas inspiradas no
panteísmo ou nas crenças de ancestralidade africanas se mostraram práticas
bastante comuns nas décadas que se seguiram a abolição. Mas esta visão,
digamos, atravessada das práticas culturais não brancas, não se restringiu
somente às leis e nem somente ao século XIX. O memorialista Paulo Cursino de
Moura escreveria nos anos setenta do século XX o seguinte relato:
À Irmandade de N. S. do Rosário dos Homens Pretos,
instituída em 1810, deveu a igrejinha, existente no antigo
Largo do Rosário, toda a sua história de lendas e bruxarias.
41
Não é para espanto esta revelação. Lendas e bruxarias, eis
o picaresco da crônica do Largo de onde irradia a cidade toda
na pujança de seu progresso.
É sabido como os negros, herdeiros de práticas idênticas
na Costa d’África, donde provieram, sempre primaram na
arte da feitiçaria, de rezas, de quebrantos, de maus olhados,
de mistificações, de dengues, de benzimentos. Toda a
indumentária a postos; terços, peles de lagarto, de sapo,
dentes de onça, figas de guiné, olho de cabra, paco’va, ervas,
terras de cemitério, pés de galinha, etc. Na série de
mandingas sobressaíam os engonços, quiçaça,
matirimbimebe ou picuanga. A igrejinha amparou toda a
coorte dantesca dos sortilégios africanos dos negros. (apud
KOGURUMA, 2001, 177) (nosso grifo)
O que faz Moura ao escrever estas linhas é repetir, à sua maneira, uma forma
de pensamento comungada em maior ou menor escala por celebrados autores
paulistanos e paulistas como Alcântara Machado, Monteiro Lobato e Paulo
Prado. Os ilustrados da São Paulo progressista e industrializada, a exceção dos
assumidamente modernistas, viam nos elementos não brancos da cultura local
algo que deveria ser silenciado ou tratado com escárnio. Alcântara Machado, em
seu celebrado Brás, Bexiga e Barra Funda, ignora solene e quase que totalmente
a presença negra no eixo Bexiga-Barra Funda. Nas raríssimas oportunidades em
que o faz utiliza-se de termos que sem sobra de dúvidas podem ser classificados
como racistas e que reforçam o tom de “paisagem” que se procurou colar aos
negros. Ao se referir às criadas que servem nas mansões e escritórios onde
algumas de suas crônicas se passam, o autor lhes confere um tratamento de
desprezo rarefeito, invariavelmente encontrado ao longo de sua obra. No texto
“A Sociedade”, por exemplo, ao descrever um encontro entre dois homens de
42
negócios, uma dessas figuras surge e desaparece quase que de maneira
fantasmagórica. Vejamos um pequeno excerto:
- Per Bacco, doutor! Mas io tenho o capital. O capital sono io.
O doutor entra com o terreno mais nada. E o lucro se divide
no meio.
O capital acendeu um charuto. O conselheiro coçou os
joelhos disfarçando a emoção. A negra de broche serviu o
café.
- Doppo o doutor me dá a resposta. Io só digo isto: pense
bem.
O capital levantou-se. Deu dois passos. Parou. Meio
embaraçado. Apontou para um quadro.
- Bonita pintura. (MACHADO, 43-44, s.d.)
Tendo como referência o texto acima, insistimos na afirmação de que esta é a
tônica no tratamento e nas abordagens referentes às personagens negras, se é que
se pode sob o ponto de vista literário chamá-las assim, que se verifica em quase
todo o corpo da obra de Machado. Como vimos, a criada dentro da narrativa tem
o mesmo peso ou até vale menos do que o quadro na parede. Quando arrisca uma
descrição que transcende o limiar das duas linhas, Machado torna-se ferino,
como na descrição que faz do Armazém Progresso, localizado no Bexiga, em
crônica homônima. Procurando descrever uma cena pitoresca do local, o autor
abre a segunda parte do texto, mencionando alguns fregueses. Vejamos:
- Dá aí duzentão de cachaça!
O negro fedido bebeu de um gole só. Começou a cuspir.
No quintal o pessoal do bocce gritava que nem no futebol.
Entusiasmos estalavam:
- Evviva il campionissimo! (MACHADO, 65, s.d.)
43
Na verdade, o autor não necessitou das duas ou três linhas para transmitir sua
mensagem. Em uma única apresenta o seu cartão de visitas. Consegue reforçar
dois estigmas, o do negro bêbado e fedido, com apenas duas frases.
Não se pode questionar o fato de ser Alcântara Machado um autor de
reconhecíveis méritos estilísticos, mas o respeito e a admiração que sempre
inspirou entre os apreciadores das letras, sem que vozes se levantassem de
maneira contundente para questionar a postura por ele adotada em suas
narrativas, é emblemático. Machado serve elonqüentemente como mais um
exemplo de como muitos dos heróis da Paulicéia, seja no campo artístico,
político ou econômico, contribuíram para o desmonte das noções de negritude na
cidade. Uma “cruzada cívica” que se valeu não só dos intelectuais e literatos,
mas também da imprensa e do poder público. No próximo exemplo, extraído da
edição de 28 de janeiro de 1907 do jornal Correio Paulistano, esta última
combinação aparece de forma bastante clara.
Em Polvorosa
O preto Francisco Ieno, morador á rua Pires da Motta,
numa pequena casinha, há muito tempo vive sob a
fiscalização do mulherio das redondezas, por suspeito de
fazer feitiçarias.
Hontem á noitinha, uma mulher que vinha para sua casa,
divisou o preto Francisco Ieno occulto atraz de um barranco e
ouviu umas pancadas leves sobre a madeira. Com o espírito
sobressaltado, a mulherzinha procurou descobrir o que fazia o
preto e, conseguindo o seu intento, recuou cheia de assombro.
Francisco Ieno entregava-se á construção de um caixão
mortuário!
44
A mulher em questão “poz a boca no mundo” e, em
poucos instantes, todas as mulheres e crianças das redondezas
berravam contra o preto, pretendendo trucidal-o. Quando o
escândalo já tomava proporções assustadoras interviu um
soldado, que effectuou a prisão do preto Francisco Ieno,
conduzindo-o, juntamente com o caixão á presença do sr. Dr.
Theophilo Nobrega 2
º
delegado que tomou conhecimento do
facto. Interrogado o preto, declarou á autoridade que o caixão
era destinado a deposito de água, mas, apesar da explicação,
Ieno foi recolhido ao xadrez. (apud KOGURUMA, 2001,
142-3)
O que se percebe no texto é um estado de desconfiança generalizado por parte
da coletividade em relação ao vizinho negro. Por seu turno, a matéria realça o
tempo todo a cor da tez de Francisco Ieno, como que a reforçar a relação entre a
sua origem étnica e a prática do delito do qual é acusado. Por fim, a má vontade
da autoridade policial para com o suposto infrator é flagrante.
Em resumo, os últimos cinco exemplos nos ajudam a entender como o grupo
negro na cidade de São Paulo foi emparedado sócio-culturalmente, em uma
perpetuação de modelos construídos ao longo dos séculos anteriores, conforme
analisamos no capítulo anterior. É relevante notar que essas práticas repressivas
não foram absorvidas de maneira absolutamente passiva. Além dos folguedos
indicados alguns parágrafos acima, que por si só caracterizam práticas de
resistência e sobrevivência cultural em um meio hostil, este grupo negro
procurou se organizar de outras formas para se manter vivo em um meio social
que procurava avidamente desintegrá-lo.
45
2.5 – Reações articuladas
Empregando o termo utilizado por alguns autores, podemos dizer que, em
meio à grande massa quase que totalmente desarticulada que emerge nos
primeiros decênios pós-abolição, surge uma “elite” negra. Pessoas que têm
acesso à educação formal e também conseguem ocupar cargos subalternos na
administração pública e que, portanto, se diferenciam da grande maioria
desinstrumentalizada.
Esses indivíduos articulados produzirão, inicialmente na cidade de São Paulo
e depois em outros grandes centros do País, uma experiência que por si só
merece uma análise bastante particular, tarefa que infelizmente não cabe neste
trabalho. Referimo-nos à Frente Negra Brasileira, uma articulação nascida em
1931, sediada no bairro da Liberdade, e que tinha por finalidade instrumentalizar
os homens e mulheres negras para atuarem na sociedade branca.
Através de cursos de alfabetização ou voltados para a qualificação
profissional, a implementação de normas rígidas de comportamento para seus
integrantes e ações como a cotização para a aquisição de terrenos para as famílias
dos integrantes, em bairros afastados da época como a Vila Formosa e o
Jabaquara, a Frente Negra chegou a despertar um certo respeito nas autoridades
do período, ainda que por vezes suas práticas tivessem uma inspiração um tanto
quanto fascista.
Em uma de nossas entrevistas com uma antiga moradora do bairro do Bexiga,
realizada em janeiro de 2002, pudemos colher um testemunho dos esforços da
entidade para a qualificação de seus associados. Contou-nos Saturnina Rodrigues
46
Penteado, então com 83 anos, que sua irmã mais velha (Sara) fez o curso de
Secretariado na sede da Liberdade.
(...) Mas ela não pôde trabalhar de secretária. Depois de
passar nos testes de taquigrafia numa firma lá no edifício
Martinelli, ela ficou sabendo por um moço que não ia ser
contratada porque a firma não queria uma secretária negra.
Ela ficou muito magoada.
Percebe-se pelo depoimento que nem todas as ações da Frente Negra
conseguiam resultados positivos, mas o real impacto que essas práticas poderiam
causar no seio da negritude paulistana jamais poderá ser medido. Com o advento
do Estado Novo, em 1937, a entidade que caminhava para assumir um status de
partido político foi cassada e todas as suas atividades abortadas. Contudo, seu
caráter de conscientização, articulação e resistência não pode ser desconsiderado,
mesmo com as já mencionadas inspirações de tipo nacional-socialista.
Um outro braço dessa necessidade de se contrapor às pressões explícitas de
um meio muitas vezes hostil foi a chamada Imprensa Negra. Em São Paulo ela
apresentou diversas ramificações ao longo de um período, que segundo
especialistas no tema, se estende de 1915 a 1963. A própria Frente Negra possuía
o seu veículo, denominado “A Voz da Raça”, onde as idéias da associação eram
propaladas.
Como observa Clóvis Moura, esta imprensa em suas duas primeiras etapas,
que vão até o advento do Estado Novo, assumirá um papel quase apolítico,
procurando inspirar na comunidade valores que permitam ao negro ingressar ou
ao menos interagir com o universo branco. Por vezes ratificando valores do
mundo do trabalho, o mesmo que o discrimina e relega ao subemprego, e por
47
outras reafirmando questões correlatas à negritude e à “raça”, essas publicações
se constituem em um marco eloqüente das articulações e mobilizações de setores
da comunidade negra em contraposição às ações discriminatórias perpetradas na
paulicéia das primeiras décadas do século XX.
Em toda a trajetória dessa imprensa há uma constante,
conforme já assinalamos: a ascenção do negro deverá
realizar-se através do seu aprimoramento cultural e do seu
bom comportamento social. Para que isto aconteça há,
sempre, a recomendação de que a família deve educar os
filhos dentro de padrões éticos puritanos, especialmente as
moças, para que assim consigam o reconhecimento social dos
brancos Souza são sempre invocados como símbolos. Há uma
reconstrução quase que tica dessas biografias, como, aliás,
Bastide salientou em seu trabalho. É por aí que o negro
conseguirá a redenção da “raça”.
E aqui cabe uma consideração maior sobre este conceito
de “raça” entre os negros.
A imprensa negra reflete como os negros articulam este
conceito em relação a si mesmos. Oprimidos e discriminados,
estigmatizados pela sua marca étnica, os negros concentram
nesta marca o seu potencial de revalorização simbólica de sua
personalidade. Daí porque sempre se referem à “raça”, à
“nossa raça” em nível de exaltação, pois tudo aquilo que para
a sociedade discriminadora é negativo passa a ser positivo
para o.
(...) Os negros devem destacar-se pela cultura, e os
exemplos de Ls Gama, José do Patrocínio e Cruz e negro, e
este fenômeno se reflete na sua imprensa. Não é por acaso
que o seu mais significativo jornal tem como título A Voz da
Raça. (MOURA, 2002, 11)
48
Além do A Voz da Raça, mais de uma dezena de títulos vieram à luz durante
esses quase cinqüenta anos. Um dos mais importantes foi o Clarim da Alvorada,
editado desde 1924 no bairro do Bexiga. Este jornal teve uma forte penetração
junto à comunidade, dentro de uma trajetória que será estudada no próximo
capítulo. De qualquer maneira, as ações de seus fundadores, dentre eles, José
Correia Leite, se mostram totalmente consonantes com uma consciência que, se
não é política no estrito senso da palavra, mostra-se preocupada em aglutinar e
refletir o ethos de uma coletividade claramente dotada naquele momento de
peculiaridades.
(...) José Correia Leite afirma em depoimento prestado em
1975: “A comunidade negra em São Paulo vivia – como
minoria que era – com as suas entidades e seus clubes. Por
isso tinha necessidade de ter um veículo de informação dos
acontecimentos sociais que tinham na comunidade, porque o
negro tinha a sua comunidade: uma série de comunidades
recreativas e sociedades culturais. Como é natural, a
imprensa branca não não ia cuidar de dar informações sobre
as atividades que essa comunidade tinha. Daí surgiu a
imprensa negra. Havia também nossos literatos, nossos
poetas que queriam publicar os seus trabalhos, e essa
imprensa cumpria tal função: de servir de meio de
comunicação. São Paulo era pequena e as comunicações
muito maisceis. Então, na nossa imprensa, fazíamos
notícias de aniversários, de casamentos, de falecimentos.
Tudo isso era feito pela nossa imprensa. As festas eram feitas
também pela nossa imprensa. Ainda não tinha surgido um
movimento ideológico, um movimento de luta de classes”.
(MOURA, 2002, 12)
49
2.6 – Transições
O interessante a ser observado neste depoimento de Correia Leite são dois
aspectos que nos ajudam a iniciar a conclusão deste capítulo. Vejamos que
procuramos analisar aqui principalmente as bases do movimento de ocultação do
negro na cidade de São Paulo, iniciado com o final do período escravista. O
depoimento de Leite corrobora exatamente esta realidade quando diz: “como é
natural, a imprensa branca não ia cuidar de dar informações sobre as atividades
que essa comunidade (negra) tinha”. Essa ocultação se dava, portanto, no campo
prático, da exclusão física com a expulsão para as áreas desvalorizadas da cidade,
e no campo discursivo, fosse com a construção de uma imagem negativa, fosse
com a adoção de uma postura indiferente.
O outro ponto a se destacar na fala de Leite é a transição histórica.Ainda
não tinha surgido um movimento ideológico”. Aí temos uma indicação de que as
práticas e concepções foram se alterando ao longo das décadas. Leite refere-se
especificamente aos anos 20 e 30, mas ao nos debruçarmos sobre a natureza das
alterações encontraremos a disseminação de idéias que perpassaram por temas
como a democracia racial, a luta de classes, as ditaduras do Estado Novo e do
regime militar e as ideologias liberais. Todas contribuindo para alterar, cada uma
a seu modo, as percepções sobre a questão racial na cidade de São Paulo.
Uma equivocada sensação, porém, permanece imanente. A de que a memória
da cidade pouco ou nada tem a ver com uma herança negra. Fatos que como
vimos nas linhas anteriores não guardam concordância com a realidade. Estudar
as relações complexas de uma etnia com uma cidade igualmente complexa como
São Paulo não é tarefa que possa se resumir a um único trecho de um trabalho.
50
Ainda assim, esperamos ter contribuído para o entendimento das dinâmicas,
verificáveis em um campo macro, que possibilitaram ao negro paulista e
paulistano desenvolver uma relação muito especial com alguns territórios da
cidade, merecendo especial atenção o “território negro do Bexiga”. Relação esta
que analisaremos mais detidamente a partir do próximo capítulo.
51
Capítulo 3
O Bexiga
3.1 – As origens
Quem passa hoje pela praça da Bandeira, soterrada pelo concreto e pelos
automóveis que circulam na azáfama do vai e vem da avenida Nove de Julho, no
coração de São Paulo, não pode imaginar que há pouco mais de dois séculos o
lugar era conhecido como o largo do Piques. Ali, em torno de um chafariz,
reuniam-se tropeiros extenuados das viagens pelo sertão, comercializavam-se
escravos, dos quais muitos voltavam ali depois de vendidos para buscar água
para as habitações onde trabalhavam, e consolidava-se um minúsculo núcleo
urbano, que tinha por referência uma pequena pousada conhecida por muitos
como hospedaria do Bexiga.
Curiosa e diferentemente da história de outros bairros paulistanos, a origem
do bairro e do nome Bexiga (oficialmente conhecido em nossos dias como Bela
Vista) é controversa. Até o final do terceiro quartel do século XIX a região fará
parte de uma chácara conhecida já desde 1791 por esta denominação.
O fato é que existem, no mínimo, três versões para a origem do nome. As que
mais nos parecem plausíveis são aquelas que vinculam o nome às epidemias de
varíola que regularmente assolaram São Paulo até meados dos anos de 1800.
Dizemos que essas hipóteses são as que mais nos parecem plausíveis por duas
razões muito próximas: a primeira deveria-se ao nome de Antonio Bexiga, dono
da hospedaria que abrigava os tropeiros no largo do Piques, e que teria marcas da
doença em seu rosto, daí o apelido. A outra é a de que, por se tratar de região
52
relativamente afastada do núcleo urbano daquele período, provavelmente
acolhesse a população de escravos acometida por esta enfermidade. Tanto em um
caso como em outro temos referências à doença, que recebeu a alcunha popular
de bexiga, estabelecendo um vínculo com a história do bairro.
Apesar desse ponto de vista, principalmente a segunda hipótese não se
sustenta para a maioria dos pesquisadores. Em 1729, por exemplo, de acordo
com Ernani Silva Bruno em seu História e Tradições da Cidade de São Paulo o
Juiz Ordinário da comarca despachava em sua Ordemgia:
“(...) o contágio das bexigas e sarampo e porquanto com a
nova freqüência das minas dos goiases se vem freqüentando
a muita quantidade de negros novos para esta cidade, e estes
de ordinário costumam trazer vários contágios de doenças, e
para evitarmos o prejuízo que destes se pode seguir
mandamos que nenhuma pessoa de qualquer qualidade e
condição que seja não entre nesta cidade sem que primeiro
faça declaração dos escravos que traz, deixando-os primeiro
no Moinho Velho, para se lhes dar e mandar a visita da
Saúde.” (nosso grifo, que destaca outros dois bairros
paulistanos) (BRUNO, 1984, 337)
Já João Sacchetto, em seu Bixiga: Pingos nos Is, cita a recomendação do
governador Lorena à Câmara Municipal em 1798:
“(...) todos os escravos e pobres miseráveis a ir curar-se no
sítio do Pacaembu, permitindo-se às famílias brancas
fazerem-no nas chácaras e sítios que cada uma escolhesse
nos pontos mais afastados do povoado”.(nosso grifo)
(SACCHETTO, 2001, 38)
53
Há que se lembrar que a então Chácara do Bexiga era ladeada por pelo menos
uma estrada importante que ligava São Paulo à Santo Amaro
5
, então importante
fonte de madeiras. A presença desta via desaconselharia a implementação de um
retiro sanitário. Ainda assim, a segunda hipótese não pode ser totalmente
descartada.
Apesar das controvérsias sobre as origens do nome não apontarem
conclusivamente para uma relação com a escravaria, a presença do africano e do
crioulo no Bexiga já era percebida muito antes da criação do bairro em função da
existência de um antigo quilombo ali.
“As capoeiras e campinas que havia em torno do Tanque
Reúno, no Bexiga, como em outros pontos da baixada em que
corriam o Anhangabaú e o Riacho Saracura, serviram de
esconderijo onde se aquilombavam negros rebelados. Esses
matos eram convidativos para esconderijos. Em 1831 foi
feito um documento com a tentativa de fechar o acesso do
Anhangabaú ao Bexiga, cujo objetivo era impedir o trânsito
de escravos fugitivos para o Bexiga”. (LUCENA, 1984, 24)
Este trecho da obra de Célia Toledo Lucena nos mostra, com base em fontes
mais antigas, como a região, provavelmente desde o século XVIII, já abrigava
populações negras. É mister salientarmos que o entorno do Saracura, afluente do
rio Anhangabaú, canalizado para a construção da avenida citada no começo do
capítulo, será o que no futuro abrigará os cortiços e fará parte do primeiro nome
da Escola de Samba Vai-Vai, conhecida então como Cordão Vai-Vai da
Saracura.
5
A atual avenida Brigadeiro Luis Antonio.
54
Segundo Afonso A. de Freitas
6
, citado por todos os pesquisadores, ainda
pelos idos de 1870, pouco antes portanto do surgimento do bairro, no Bexiga “se
caçavam veados, perdizes e até escravos fugidos”. Após o surgimento oficial do
bairro estas populações serão um contingente significativo em seu painel
demográfico, precedendo assim a chegada do imigrante.
Ressalte-se que ainda no início do século XX vamos encontrar no jornal
Correio Paulistano de 03 de outubro de 1907 uma menção à ocupação da região
por este grupo, que bem vale a pena aqui reproduzir.
A SARACURA
É um pedaço da África . As relíquias da pobre raça
impellida pela civilização cosmopolita que invadiu a cidade,
ao depois de 88, foi dar alli naquela furna.
Uma linha de casebres borda as margens do riacho.
O Valle é fundo e estreito. Poças dagua esverdeada
marcam os logares donde sahiu a argila transformada em
palacetes e resincias de luxo.
Cabras soltas na estrada, pretinhos semi-nus fazendo
gaiolas, chibarros de longa barba ao pé dos velhos de
carapinha embranquecida e lábio grosso de que pende o
cachimbo, dão áquelle recanto uns ares do Congo.
Alli pae Antonio, cujas mandingas celebram os
supersticiosos de Pinheiros, de Santo Amarão, da várzea
do
Tasbôa, pratica os seus mysterios e tange o urucungo,
apoiando ao ventre rugoso e despido a cabaça resonanta.
6
Freitas é citado por Ernani Bruno como autor de Tradições e Reminiscências Paulistanas, sendo este trecho
extraído da página 11 do original.
55
As casas são pequenas; as portas baixas. Há pinturas
enfumaçadas pelas paredes esburacadas. A mobília, caixas
velhas e tóros de pau, sobre ser pobre, é sórdida.
E alli o morrendo aos poucos – sacrificados pela
própria liberdade que não souberam gosar, recosidos pelo
álcool e estertorando nas angustias do brightismo que os
dizima, eliminados pela elaboração anthropologica da nova
raça paulista – os que vieram nos navios negreiros, que
plantaram o café, que cevaram este solo de suor e lágrimas,
acumulados alli, como o rebutalho da cidade, no fundo
lôbrego de um valle. (apud KOGURUMA, 2001, 210-211)
Passemos ao largo do conteúdo ideológico do texto, técnica extensivamente
utilizada no capítulo anterior, e nos atenhamos à descrição pormenorizada que
temos aqui deste trecho do nascente bairro. Topograficamente ele nasce nas
baixadas do rio Anhangabaú e vai se elevando pela encosta que busca atingir o
espigão da avenida Paulista, num sentido leste-oeste. Quanto mais distante dos
baixios do rio, mais valorizado o imóvel. Esta será a lógica que norteará o
loteamento dos terrenos, a partir de 1878, e isso explica porque o pai Antonio de
nosso artigo será encontrado 29 anos depois da criação do primeiro lote morando
com sua coletividade exatamente na parte inferior do bairro.
É importante que se deixe claro que essa valorização será de ordem relativa,
pois em comparação com outras regiões da cidade o Bexiga será um bairro com
valor imobiliário reduzido e que atrairá, além de portugueses, espanhóis e outros
grupos menores, um grande contingente de calabreses com um ritmo de vida
diferente de outros imigrantes oriundos da península itálica.
56
3.2 – A Calábria nos morros do Bixiga
A chegada do século XX consolidará dois fenômenos interligados. A
presença crescente do elemento italiano em São Paulo e o desenvolvimento da
cidade enquanto pólo industrial. O bairro do Bexiga não passará incólume por
essas transformações, o que se refletirá com freqüência em seu cotidiano.
Mas voltando a atenção particularmente aos imigrantes, é preciso lembrar que
o fenômeno do Estado italiano, enquanto unidade federativa, era algo
extremamente recente nos idos de 1880. As questões regionalistas, muito vivas
ainda hoje naquele país, davam a tônica para as características que os diversos
grupos oriundos da península itálica exibiriam em solo brasileiro. Calabreses,
lombardos, vênetos, sicilianos e tantos outros, adaptavam-se por aqui de maneira
distinta às pressões exercidas pelo trabalho agrário, que pouco evoluíra em
relação ao período recém extinto da escravidão.
No caso do campo, os chamados meridionais viam com reservas os trabalhos
nas fazendas, pois as memórias das privações e dificuldades enfrentadas no
mundo rural do sul italiano ainda se faziam presentes. Como resultado, sempre
que possível esses grupos dirigiam-se aos centros urbanos. Ali, as diversas faces
da imigração italiana também apareceriam, pois tais grupos igualmente tinham
suas peculiaridades de adaptação ao trabalho na cidade.
Alguns elementos, mais afeitos às demandas do capitalismo industrial, não
encontrarão muitos problemas ao se vincularem às fábricas e às nascentes vilas
operárias de cidades como São Paulo. Bairros como o Brás, a Mooca, Bom
Retiro e Belém terão as suas vilas e nelas os seus imigrantes. Uma parte desses
construirá a apaixonante história dos anarquistas e dos movimentos sindicais dos
57
primórdios da industrialização paulistana, mas de maneira geral não criarão
problemas para as engrenagens da crescente metrópole. Em relação a este último
ponto, o mesmo não se pode dizer de um grupo muito especial de oriundis.
“A presença do calabrês, no cenário paulistano, revestiu-
se de algumas características. Pobres, traziam consigo a forte
determinação de viver por conta própria, sem se
subordinarem à vontade de um patrão, fosse ele fazendeiro,
comerciante ou industrial”. (ALMEIDA, 1989, 41)
A combinação de dois elementos mencionados por Vera Lúcia Almeida no
pequeno excerto acima fará com que este grupo eleja o Bexiga, ou melhor
dizendo, o Bixiga
7
como seu ponto de concentração em São Paulo. A escassez
de recursos financeiros tornava os baixos preços dos imóveis extremamente
atraentes. Por outro lado, a ausência da disciplina e do controle social
representados pelas vilas operárias fazia com que o calabrês pudesse respirar os
tão almejados ares de liberdade.
Em meio a alfaiates, marceneiros, padeiros, costureiras, amoladores de facas,
surgiam as figuras dos capomastre, mestres de obras, que ajudaram a conceber e
construir grande parte do casario que ainda hoje caracteriza o Bixiga. Vejamos
este interessante relato de Armandinho Puglisi, o Armandinho do Bixiga, sobre
como esses homens ajudaram a consolidar a presença dos calabreses no bairro.
(...) Era interessante que o terreno que o meu avô
comprou e todos os terrenos, se você andar pelas casas
7
É comum encontrar-se as duas grafias em diversas fontes que tratem sobre o bairro. Mesmo ao longo deste
trabalho, deliberadamente optamos por adota-las alternadamente. Bexiga é a forma mais antiga e remete às
origens do nome como popularmente é conhecido o bairro, já que oficialmente seu nome é Bela Vista. Bixiga,
por sua vez, é uma corruptela surgida com a chegada dos italianos. Por não se tratar de nome oficial e guardar
consonância com a própria história do bairro, as duas formas têm pleno uso e aceitação.
58
antigas aqui do bairro, vê que eles têm pouca frente e muito
fundo. Por que? Porque valia a frente. O terreno que o meu
avô comprou está escrito: “Sete de frente por cinqüenta e
tanto, mais ou menos, de fundo”. Pegava quanto queria de
fundo. Então eles começaram a comprar esses terrenos.
Comprados esses terrenos, quem que vai fazer as casas?
Então eles começaram a escrever para a Calábria: “Quem é
pedreiro vem pra cá porque nós estamos comprando uns
terrenos, estamos ganhando um dinheiro”. Eno começaram
a vir os primeiros pedreiros italianos. Todo mundo sabe que o
italiano é chiacchiarone, gosta de contar vantagens. Então,
esses pedreiros já chegaram aqui e se intitularam os
capomastre, os mestres dos mestres”. (MORENO, 1996, 29-
30)
As diversas profissões e ocupações liberais davam ao calabrês a liberdade
desejada, enquanto os capomastre viabilizavam o sonho de uma moradia. Note-
se que na fala de Armandinho podemos perceber um sistema de auxílio mútuo
entre os imigrantes A questão da identidade estará sempre presente no processo
de ocupação do bairro, inclusive na indisposição com um outro grupo menor de
imigrantes: os ceringolanos.
Também oriundos do sul da Itália, os ceringolanos eram considerados pelos
calabreses como rivais. O ponto máximo dessa rivalidade explodiria em função
das devoções que cada grupo destinava a uma Maddona. No caso dos
ceringolanos, Nossa Senhora da Ripalta. No caso dos calabreses, Nossa Senhora
Acchiropita. Questões trazidas de além-mar.
Em meados dos anos 20, com a construção de uma igreja na rua Treze de
Maio, os ânimos se acirrariam a ponto de a paróquia ser denominada São José,
59
numa tentativa de se atenuar as rivalidades. Em maior número, porém, os
calabreses conseguiriam em 1949 alterar o nome da igreja para o de sua
Maddona.
O fato é que com o correr dos anos os calabreses conseguiram impor não
somente a sua santa de devoção, mas mais do que isso, impuseram sua presença
no bairro, ocupando extensivamente as cercanias, em detrimento de outros
grupos. Padarias, cantinas, moradias, religiosidade, enfim, quase tudo era
italiano, particularmente calabrês. Uma marca tão forte e significativa que quase
apagou os rastros dos demais.
Na historiografia local, este pequeno espaço da cidade
ganha significado somente quando de sua ocupação pelo
calabrês. Produz-se um ocultamento de tudo que antecedeu
esta presença, tendo-se a impressão de que os negros que ali
viviam, muitos dos quais ex-escravos, vagavam como
sombras pelo espaço. Para o calabrês, a existência do negro
no bairro é explicada, a partir de sua “boa vontade” em
permitir que o mesmo partilhasse dos porões das casas de
muitos cômodos de que era proprietário”. (ALMEIDA, 1989,
44)
Em resumo, com a chegada dos calabreses, com sua música, religião,
culinária e arquitetura, nascia também o mito do Bixiga italiano.
60
3.3 – O quadrilátero da Saracura
Além dos calabreses, ceringolanos e negros, outros grupos étnicos ocuparam
as ruas e vilas do Bexiga. Os portugueses, por exemplo, chegaram a criar um
clube chamado Lusitana. Uma herança clara das vinte famílias, que no início da
história do bairro, formaram uma vila, onde se localiza atualmente a rua Rui
Barbosa, conhecida à época como Vila dos Portugueses.
Mas, sem dúvida, depois dos calabreses, o grande contingente numérico será
o de negros, que ocuparão majoritariamente aquilo que será conhecido por
muitos anos como o quadrilátero negro ou da Saracura, formado pelas ruas
Rocha, Almirante Marques Leão e Una. Exatamente os logradouros que
determinam espacialmente, ainda hoje, os ensaios da Escola de Samba Vai-Vai,
localizada na rua Cardeal Leme, bem no coração desse território, que tem como
base do quadrado a avenida Nove de Julho.
Apesar de concentrado majoritariamente no quadrilátero, a presença do grupo
sempre extrapolou o território formado por inúmeros cortiços, dos quais
atualmente restam poucos. É curioso observar que a presença da comunidade
negra historicamente é tão grande na região que duas ruas terão seus nomes
marcados exatamente por esta influência. Serão elas as ruas da Abolição e Treze
de Maio. Vejamos o relato de Bernard Gontier a respeito da origem do nome
desta última.
Em 1912 casas vultosas já eram erguidas no antigo campo
de golfe, de onde se avistava todo o vale do Anhangabaú,
com a Serra da Cantareira na linha do horizonte. Tal
panorama de certo inspirou os homens públicos, pois dois
61
anos antes (26/12/1910) o Bexiga passou a pertencer ao 17
º
Subdistrito do Munipio deo Paulo, sendo oficialmente
denominado de Bela Vista.
Até então a rua Treze de Maio era conhecida como
rua Celeste, local de vários cortiços habitados por ex-
escravos e descendentes, que comemoravam a data da Lei
Áurea numa capela no largo São Manoel, na chamada festa
de Santa Cruz. Com a demolição da capela pouco antes da 1
ª
Guerra Mundial, as comemorações passaram a se realizar na
atual Treze de Maio – daí a origem do nome”. (GONTIER,
1990,37 e 38)
A festa de Santa Cruz citada acima era uma reminiscência da São Paulo
colonial. Marcada por fogos de artifício, folguedos e batuques, e que tinha o
Largo do Piques como ponto de concentração, perduraria até os anos 40, quando
seria definitivamente substituída pela festa de Achiropita como referência de
celebração religiosa no Bexiga. \
Já em relação à idéia dos cortiços, também mencionados no relato de
Gontier, lembremos que estes serão uma característica do bairro, que durará
fortemente até os dias do prefeito Jânio Quadros, em meados dos anos oitenta.
As sucessivas intervenções da iniciativa privada e do poder público mudariam
este status gradativamente, determinando a diminuição substancial dessas
habitações na paisagem, antes amplamente marcada por elas.
Os arcos do Bexiga, localizados na confluência entre as avenidas Brigadeiro
Luis Antonio, Vinte e Três de Maio e Radial Leste, são um exemplo do que
dizemos aqui. Estiveram por muitos anos escondidos por esse tipo de moradia.
Ao demoli-las, removendo a população ali presente para localidades extremas da
cidade, como o Conjunto Habitacional da Cidade Tiradentes, na zona leste, os
62
técnicos da prefeitura se surpreenderam com uma construção, destinada à
contenção de uma pequena encosta, erguida no final do século anterior.
Em que pese a plasticidade da obra, que acabou por se converter em mais
um marco da cidade, uma pergunta permanece: quem eram os habitantes desses
cortiços? Segundo a pesquisadora da Prefeitura Municipal de São Paulo, Nádia
Marzola, na primeira metade do século XX nós encontraremos nesses locais uma
forte presença de negros. Apesar do conjunto da obra de Marzola apresentar um
certo ar preconceituoso não podemos refutá-la enquanto fonte que corrobora os
objetivos deste estudo.
“Os tempos gloriosos do Bexiga correram paralelamente
à vida do cortiço Vaticano ou Navio Negreiro. Era formado
por dezenas de casas parede e meia onde centenas de
famílias habitavam conjuntamente(...)
(...) A maior parte dos habitantes do cortiço não eram
imigrantes e sim empregadas domésticas, operários sem
qualificação e, principalmente, pretos.
No velho Bixiga, o preto mais claro era da cor do
telefone, conta Paulo Vanzolin, poeta que teve no Bixiga sua
musa inspiradora..”(MARZOLA, 1985, 83-84)
Obviamente não será por acaso que um dos principais cortiços se chamará
Navio Negreiro. Porém, com as mudanças verificadas no mercado imobiliário,
principalmente a partir dos anos 60 e 70, os olhares dos especuladores e
investidores nesta área começaram a voltar-se para aquela região central da
cidade, até então pouco explorada por este ramo. Não será uma coincidência
também a investida da prefeitura sobre os cortiços do bairro nas décadas
seguintes e sim conseqüência dos lobbies do poder econômico sobre o poder
público.
63
O Bixiga de negros, calabreses e tantos outros, das vilas e dos cortiços
começava a dar lugar à Bela Vista dos mapas oficiais. A Saracura seria uma das
primeiras vítimas de tais transformações, permanecendo apenas na memória
daqueles que a conheceram. Ainda assim, é possível encontrar uma última
geração de moradores e ex-moradores que vivenciaram em seu cotidiano as
histórias dessas moradias.
3.4 – Conversando com dois moradores
Em nosso trabalho de campo encontramos dois típicos moradores desses
antigos cortiços, que representam duas visões distintas da vida no interior dessas
habitações e das relações dos negros com o bairro e com o grupo étnico italiano.
Walter Gomes de Oliveira Filho, o Patinho, é um deles. Quando foi entrevistado,
em janeiro de 2004, tinha 47 anos. Nascido no Bixiga, passou boa parte de sua
existência morando em um cortiço da Saracura, na rua Marques Leão. Patinho é
gráfico e, apesar de ainda ser morador do bairro, muitas de suas memórias estão
atreladas a sua adolescência. Jeito bonachão, quase se encaixando nos
estereótipos do típico malandro de uma crônica, surpreende ao falar com um
sotaque amplamente influenciado pela língua de Dante. Vejamos um pouco
desse diálogo:
- Fale um pouco de sua infância.
- Tive uma educaçãozinha vagamente de berço. Nasci e
cresci dentro da Acchiropita, inclusive tive grandes amigos.
Alguns casaram, outros descansaram e outro se formou
padre: o Roberto Dilazio. Vivíamos dentro de
uma doutrina e
dentro dela conseguimos separar o joio do trigo.
64
- Havia muitos negros no bairro?
- Olha..., dentro deste nosso circuito os que haviam (sic) da
cor era muito raro, não sei se por discriminação, não sei...
Mas eu era um privilegiado, pois fazia parte dessa base, desse
rculo”.
- Quais as difereas que você notava entre os grupos?
- “O pessoal da cor era mais expansivo, mais pra cima”.
- É correto dizer que o Bixiga é um bairro italiano?
- “É correto”.
- Mas não havia uma grande população negra?
- Havia, mas aí você está querendo criar um ligio com os
italianos.
- Não, só quero contar uma história, a sua história...
- Havia, mas era uma convivência sem discriminação.
Mesmo morando na Saracura eu podia ir aonde estavam os
brancos. Desde que não fosse para arreliar. O que vou fazer
lá, arreliar? É melhor não ir. Vou para ser discriminado?
Eno é melhor não ir.
- Chegava a ocorrer alguma coisa assim?
- “Não, acredito que não”.
- Mas e se você quisesse namorar a filha do italiano?
- “Ah, imagino que pra época, acho que seria uma
periculosidade (sic). Você não tinha tal cacife. Você fazia
parte, podia dormir na casa do vizinho, ir à festa na casa da
magnatinha e tal...”.
- Mas cada um em seu lugar?
- “Ah, claro, cada um em seu lugar”.
A fala de Patinho nos permite uma série de análises. Para ele, poder
conviver com os jovens descendentes de italianos era um privilégio. O que nos
65
dá algumas pistas sobre as condições por ele enfrentadas na Saracura. Por outro
lado, atesta a dificuldade de encarar a questão racial ao referir-se ao grupo negro
como “de cor” e ao não querer “criar litígio com os italianos”. Porém, uma vez
confrontado com as nuances de suas relações com o grupo branco, deixa escapar:
namorar a filha do italiano “seria uma periculosidade”.
Patinho é um exemplo de como as relações entre os grupos étnicos no
interior do Bixiga foram construídas ao longo de décadas. Não há em seu
discurso um ressentimento, pelo contrário, há um sentimento de gratidão por ter
sido aceito nos círculos exteriores à Saracura e o patrimônio mais explícito desta
simbiose aparece em sua fala. Na forma e no conteúdo. Ainda assim, apresenta
uma séria dificuldade para articular a complexidade de suas experiências e
inicialmente perceber (ou admitir) a linha divisória presente nessas relações.
Talvez Patinho tenha até brincado com outro garoto um pouco mais velho
que ele e também morador da Saracura na mesma época. Flávio Antonio da
Silva Neto tinha 52 anos quando nos concedeu uma entrevista, em fevereiro de
2005. Professor de História na Universidade Federal do Mato Grosso, Flávio
literalmente nasceu em um cortiço e, assim como Patinho, foi criado somente
por sua mãe.
Com uma fala mansa, com certeza herança de sua ancestralidade mineira, o
historiador é articulado e contundente em suas observações, que, ele admite, são
fruto muito mais de reflexões posteriores aos fatos narrados em seu testemunho
do que compreensões nascidas no momento em que os presenciou. De qualquer
maneira, Flávio nos ajuda a jogar uma luz sobre a vida nos cortiços nas últimas
décadas de predominância da população negra nesse tipo de moradia no bairro
do Bixiga. Vejamos:
66
- Fale um pouco de sua história e de sua vida no Bixiga.
- Eu nasci lá, em 1952, e como muitos negros do Bixiga
nasci em um cortiço. Já vim ao mundo cortiçado. O Bixiga
da minha época era cheio de cortiços. As casas velhas foram
reaproveitadas dessa forma, já que nasci em uma época em
que São Paulo estava se expandindo muito. A população que
vinha para São Paulo procurava essas moradias e minha mãe
era uma dessas pessoas. Ela veio de Minas com 16 anos para
ser empregada doméstica. Minha mãe ganhou dois
presentões: eu e minha irmã, que nascemos da união dela
com um homem branco, queo nos assumiu. E eu me
lembro que ficávamos trancados em nosso quarto, pois nossa
casa, nosso lar, era apenas um quarto. Nasci ali na rua Santo
Antonio”.
- E depois?
- “A partir dos 8 anos vivi experiências ricas. Fui para a
escola pública e convivi com outras crianças, inclusive
crianças de classe média, já que naquela época a escola não
era degradada, não era o depósito de pobres e negros que é
hoje”.
- No Bixiga?
- “É, ali na rua Manuel Dutra, no Grupo Escolar Maria José,
que está lá de pé até hoje. Foi ali que tive novas experiências.
Até então nunca havia convivido com gente branca. Mesmo
ali no Bixiga só ficava com minha família, pessoas negras”.
- Esse é um dado curioso. Quer dizer que dentro do cortiço,
em suas merias de infância, só havia negros?
- “Só negros e alguns nordestinos. Bom, na escola eu convivi
com os filhos de italianos, espanhóis, portugueses e fui
mudando minha compreensão do mundo. Sei que as pessoas
têm uma imagem um tanto quanto idílica de um sincretismo
67
cultural relevante, e em parte isso é verdadeiro, mas acho que
ficam excldos (nessa visão) os sincretismos negativos, os
preconceitos, as discriminações, que eram fortes já na escola.
Eu percebia isso superficialmente. Hoje, ao refletir sobre o
assunto, tenho a impressão do preconceito já na escola.
Primeiro porque havia poucos negros...”.
- o obstante haver nos cortiços do bairro muitos negros?
- “Muitos negros... e quando eu deixava de fazer a lição de
casa a atitude da professora era uma. Quando um garoto não
negro deixava de fazer a atitude era outra. Ela repreendia,
mas não esbofeteava. Eu fui esbofeteado várias vezes por
professoras loiras”.
- E dentro dos cortiços, como era?
- Você não imagina o grau de insalubridade que é. Quando
mudamos para um cortiço melhor havia quatorze quartos,
quatorze famílias. Havia um chuveiro coletivo. Saía briga a
para tomar banho. Isso é uma das coisas que as pessoas não
levam em consideração quando criticam a falta de higiene do
negro. Era muito sintomático onde morávamos que as
pessoas tomassem banho somente uma vez por semana. Via
de regra queimava o chuveiro e para arrumar a caixa de força
era um problema. Fazer coleta de dinheiro, arrumar quem
colaborasse... Mesmo assim, o cortiço se organizava, tinha
um zelador..., e eu, mesmo com pouca idade, aprendi a trocar
fusível e resistência, coisa que fiz diversas vezes”.
- Fale um pouco mais desse sincretismo positivo e negativo
que vo mencionou.
- “Existiam vários universos, claro que havia interação
cultural, claro que havia trocas, mas se a gente fosse observar
os negros estavam predominantemente nessas condões de
pobreza e miséria e ali surgia como que uma subcultura, no
68
sentido de subdivisão da cultura, não de inferioridade
cultural, assim como entre os italianos, portugueses e
espanhóis. Só que o patamar material deles era muito mais
elevado do que o nosso. Raramente a gente via um italiano
no cortiço. Mas no bairro as principais empresas, firmas e
negócios de quem eram? De quem era a marcenaria? Do
espanhol. A adega? Do português, do italiano. De quem eram
as pizzarias e cantinas? De italianos. E os empregados deles
todos? Os negros e os nordestinos. Assim mesmo, havia
interações e conflitos. Eu vi inúmeros conflitos”.
- Fale um pouco desses conflitos...
- “Desde que me lembro, minhae freqüentava o
catolicismo e o omolucu, uma espécie de candomblé de
caboclo, que havia ali no bairro. Para nós não havia
contradição. Domingo estávamos na missa, comungávamos
às vezes, e às quartas e sextas estávamos na gira. Mas eu vi
algumas vezes a pocia invadir o terreiro e quebrar tudo.
Quebravam os atabaques, destruíam as imagens”.
- Em que lugar do bairro ficava o terreiro?
- Na rua Conselheiro Ramalho. Inclusive o terreiro era num
cortiço, no subsolo de uma casa decadente de classe média. A
violência policial ocorria no terreiro provavelmente a partir
do pedido de algum vizinho. Afinal, fisicamente ali a
vizinhança era misturada, mas com universos culturais
distintos. Quantas vezes não vi isso? Eles vinham com uma
fúria impressionante. Não posso atribuir isso a outra coisa
que não seja ao racismo e à intolerância máxima. Eu vi
também inúmeras vezes a escola de samba ser reprimida”.
- Ah, a respeito disso que eu ia perguntar...
- Pois é, a Vai-Vai, nos anos 50 e 60, ensaiava na rua. Eu
gostava muito. Ia aos ensaios e me divertia. Mas
quantas
69
vezes precisei sair correndo porque a polícia chegou. E a
pocia chegava destruindo tudo, prendendo
indiscriminadamente as pessoas, batendo em mulheres,
crianças... Acho que simbolicamente isso é importante. Eles
tinham a pachorra de destruir os instrumentos. Faziam
questão de pisar nos surdos, amassar os agos, com uma
fúria... Eu, na minha cabeça de garoto, pensava, mas por que
não aproveitam os instrumentos?”.
- Mas, simbolicamente...?
- Simbolicamente penso que era uma tentativa de querer
destruir o outro. Não pode destruir fisicamente, destrói o
instrumento. Inclusive, vi policiais negros fazendo isso e foi
o que me atormentou depois”.
- Eles estavam tentando destruir uma parte deles mesmos?
- Sim, deles mesmos, pois eles haviam se embranquecido.
Mas, quem chamava a polícia? Provavelmente os vizinhos, a
classe média branca. Eu vi muito disso e fugi muito disso
também.
- Havia uma consciência de resistência?
- “Olha, falando no popular, sabíamos que era coisa de negro,
mas víamos tudo aquilo com naturalidade, não havia um
segundo degrau de consciência de que era necessário resistir
e de que nós estávamos na prática resistindo. Porque pra nós,
todos que quisessem participar podiam, era algo comunitário.
Não havia um entendimento, que é coisa de intelectual, de
que o branco é quase insensível. Era tudo espontâneo. Você
ouvia o rufar do tambor e corria pra lá”.
Como se percebe claramente, o depoimento de Flávio Antonio é rico em
detalhes. Provavelmente conseqüência de sua formação como historiador. Seja
como for, é o depoimento de alguém de “dentro”, de alguém que vivenciou as
70
terríveis experiências da vida no interior de um cortiço e que comprova com seu
testemunho a existência de certas especificidades do território negro dentro do
Bexiga. Outros dois dados reveladores em seu depoimento são a presença de
cultos religiosos de origem africana no chamado bairro italiano e a repressão
policial às práticas culturais negras, ainda nos anos 60 e 70 do século passado.
De qualquer forma, Flávio e Patinho guardam consonância em um aspecto,
ainda que por prismas diferentes: a convivência com o elemento branco
significou a possibilidade de trocas importantes, de um hibridismo cultural,
mesmo que hierarquizada pelas condições socioecômicas de cada grupo.
3.5 – Algumas marcas do hibridismo cultural
A propósito desse hibridismo, independente do tipo de moradia e das
experiências vividas no interior de cada grupo étnico, vejamos que neste período,
que vai do início do século passado até nossos dias, se inicia um processo de
intercâmbio cultural, que marcará fortemente o bairro. Figuras como
Armandinho do Bixiga e Adoniran Barbosa, entre outros, atestarão a influência
mútua sofrida pelas duas comunidades.
Na verdade, pandeiros e tambores ressoam no Bixiga
quase um século. As quermesses da Aquiropita eram
animadas pelo choro de violões e bandolins, alternando ou se
misturando com o batuque crioulo, que fazia fundo às
evoluções dos capoeiras e jogadores de pernada.
Todo ano, nos dias em que Momo era o rei, grupos
percorriam as ruas, sapateando e cantando em
descontraída
folia. Eram blocos informais, ranchos libertários,
bagunçados, pobres bate-latas, nos quais entrava quem
71
quisesse. Carnaval de rua autêntico”. (SACCHETTO, 2001,
113)
Voltando ao início da história do bairro, é possível dizer que, além da
capacidade festiva, o imigrante trouxe em sua bagagem habilidades importantes
para diversas áreas da sociedade moderna que se formava em São Paulo. Entre os
marceneiros, artesãos, padeiros, mestres de obras e operários virão elementos
com fortes noções de organização política e sindical. Essas habilidades e
organização serão predicados fundamentais para facilitar a eles e a seus
descendentes uma ascensão social que lhes permitirá ocupar postos importantes
no mercado de trabalho e contribuir para o desenvolvimento da cidade e
particularmente do bairro de forma decisiva.
A comunidade negra, até então fragmentada e pouco consciente das
possibilidades de mudança em sua condição inferiorizada, aprenderá com o
elemento italiano a enxergar possibilidades mais amplas na escala social.
(...)O esrito de luta substitui, pouco a pouco o de
submissão passiva e, quando o jornal italiano ‘Fanfula
publicou o seu célebre artigo contra os negros, bandos de
homens de cor tentaram penetrar nas oficinas do jornal para
empastelá-lo.
Entretanto, tratava-se ainda de uma pequena minoria
apenas, sem grande apoio numérico, uma elite racial. Mas a
crise de 29, agravando as condições de vida da classe baixa, e
aumentando a desocupação, criou um clima mais favorável
aos protestos até então isolados dessa elite. Os pretos
entusiasmaram-se pela Revolução de 30, dirigida contra o
Partido Republicano, apoiado pela velha aristocracia local.
Convém notar que todos os movimentos reivindicadores
72
nasceram no bairro do Bexiga, habitado também por italianos
e não na Barra Funda, que no entanto é a zona de maior
densidade da população de cor. É que o negro do Bexiga via
o imigrante elevar-se pouco a pouco na sociedade e descobria
assim um horizonte mais amplo para as suas próprias
ambições.” (nosso grifo) (BASTIDE e FERNANDES, 1971,
197)
A exemplo do Fanfula, um jornal destinado à comunidade italiana, alguns
elementos da comunidade negra resolvem criar uma publicação que possa
catalisar os anseios e servir de elo no interior dessa comunidade. Morador na rua
Rui Barbosa, no coração do Bexiga, o funcionário público Jayme Aguiar,
incentivado por um colega de repartição e jornalista de O Correio Paulistano
(José de Molina Quartin Filho) e espelhando-se na existência de outras
publicações segmentadas, deu início à trajetória daquele que seria um dos mais
importantes jornais da coletividade negra em São Paulo: O Clarim da Alvorada.
No depoimento que deu a Clóvis Moura, em 15 de junho de 1975, Aguiar fala
um pouco das motivações e de sua relação com José Correa Leite, o outro
fundador do jornal, que durante cerca de duas décadas seria editado na humilde
casa da Rui Barbosa. Vejamos um trecho deste depoimento:
“Os negros tinham jornais das sociedades dançantes e esses
jornais das sociedades dançantes só tratavam dos seus bailes,
dos seus associados, os dise-que-disse, as críticas adequadas
como faziam os jornais dos brancos que existiam naquela
época: jornal das costureiras, jornal das moças que
trabalhavam nas bricas etc. O negro ficava de lado porque
ele não tinha meios de comunicação. Então esse meio de
comunicação foi efetuado através dos jornais que nós
conhecemos e que tratavam do movimento associativo
das
73
sociedades dançantes. O Xauter, O Bandeirante, O
Menelick, O Alfinete, O Tamoio e outros mais. O Menelick
foi um dos primeiros jornais associativos que surgiram em
o Paulo, criado pelo poeta negro Deocleciano Nascimento,
falecido, mais ou menos há oito anos atrás. Esse O Menelick,
por causa da guerra da Abissínia com a Itália, teve
repercussão muito grande dentro de São Paulo. Todo negro
fazia questão de ler O Menelick. E tinha, também, O
Alfinete. Pelo título do jornal os senhores já estão vendo:
cutucava os negrinhos e as negrinhas... Depois, então, é que
surgiram os negros que queriam dar alguma coisa de mais
elevação, de cultura, de instrução e compreensão para o
negro. Então surgiram os primeiros jornais dos negros dentro
de um espírito de atividade profunda. Modéstia à parte, eu e
o Correia Leite, a 6 de janeiro de 1924, fundamos O
Clarim”. (MOURA, 2002, 07)
Reforçando as idéias defendidas por Bastide e Fernandes (1971), o
depoimento de Jayme Aguiar mostra como existia um paradigma, representado
não só pelas publicações voltadas ao público negro, mas também por aquelas
com outras especificidades. Como afirmam os célebres pesquisadores, a presença
de uma das mais importantes publicações da Imprensa Negra no Bexiga não se
reveste de casualidade e sim de causalidade, afinal os elementos de comparação
estavam lado a lado, sendo construídos na convivência cotidiana.
Mas sem dúvida as marcas mais eloqüentes desse hibridismo cultural nascido
nas ruas do bairro apareceria na música. Adoniran Barbosa, ícone da boemia
paulistana e freqüentador assíduo das ruas e cantinas do Bixiga, costumava
declarar-se “o branco mais negro do Brasil”, sendo duas de suas composições
mais curiosas denominadas “O Samba Italiano” e o “Samba do Bixiga”.
74
Samba Italiano
Pioue, piove
Fá tempo que piove quá Gigi
E io, sempre io
Sotto la tua finestra
E voi senza me sentire
Ridere, ridere
Di questo infelice qui
Ti ricordi Gioconda
De quella sera in Guarujá
Quando il mare
Ti portava via
E me chiamaste: "Aiuto,
Marcello"
La tua Gioconda à paura di
quest'onda
Samba do Bixiga
Domingois fumo num samba no Bixiga
Na Rua Major, na casa do Nicola
à mezza notte o'clock, saiu urna baita duma briga
Era só pizza que avoava, junto com as brajola
is era estranho no lugar
E não quisemo se meter
Não fumo pra brigar
75
Nóis fumo pra comer
Na hora H se enfiemo debaixo da mesa
Fiquemo ali de beleza, vendo o Nicola brigar
Dali a pouco escuitemo a patrulha chegar
E o sargento Oliveira falar:
"Num tem importância, vou chamar ditas ambulância!"
Calma pessoar! A situação aqui tá muito cínica!
Os mais pior vai pras clínicas.
Apesar de não ser originário da cidade de São Paulo (nasceu na cidade de
Valinhos, no interior do estado), o bardo de origem italiana tem sua memória em
grande medida associada ao bairro, o que não é de se estranhar se tomarmos por
base e como exemplo as duas canções de sua autoria que reproduzimos acima.
Adoniran, como poucos, foi capaz de captar a essência do intercurso cultural que
se construiu na capital paulista ao longo do século XX e, também como poucos,
foi capaz de enxergar no Bixiga um núcleo relevante desse hibridismo. Ao
construir o “samba italiano” traz para o campo das artes aquilo que vê nas ruas.
Outro ícone que serve como exemplo dessa troca simbólica é Armandinho do
Bixiga. Filho de calabreses e talvez um dos maiores memorialistas do bairro,
Armandinho seria um dos primeiros brancos a integrar a diretoria da Escola de
Samba Vai-Vai, sendo inclusive presidente no biênio 1967/1968. Quem visita o
Museu do Bixiga, fundado por ele, encontra não somente inúmeros objetos e
fotos relacionados aos imigrantes calabreses, como também um salão específico
onde estão expostas indumentárias e homenagens relacionadas ao Vai-Vai.
Assim como Adoniran, Armandinho foi capaz de perceber claramente a simbiose
diária que se processava no interior de seu bairro natal. O Bixiga calabrês dos
Puglisisi, e de tantas outras famílias, das cantinas, da Madonna Acchiropita, das
76
construções dos capomastres é também o Bexiga de Agostinho dos Santos, do
samba e do batuque, da luta pela sobrevivência nos cortiços e da memória do
Saracura, que ainda corre sob a dureza do asfalto.
77
Capítulo 4
Heranças da Saracura
4.1 – O Vai-Vai
Tradição
Quem nunca viu o samba amanhecer
Vai no Bexiga pra ver
Vai no Bexiga pra ver
O samba não levanta mais poeira
Asfalto hoje cobriu nosso chão
Lembrança eu tenho da Saracura
Saudade tenho do nosso cordão
Bexiga hoje é só aranha-céu
E não se vê mais a luz da lua
Mas o “Vai-Vai” esfirme no pedaço
É tradição e o samba continua
(Geraldo Filme)
Sábado de carnaval. O sambódromo do Anhembi está lotado. É madrugada, e
a principal atração para o público que lota as arquibancadas acaba de ser
anunciada pelo serviço de som. “Da Bela Vista para o mundo, aí vem o... Vai-
Vai!”. Fogos de artifício espocam e, enquanto Tobias, o puxador de samba
oficial da escola inicia a cantoria, as arquibancadas tremem. A escola do povo
chegou.
Muitos daqueles que acompanham o espetáculo televisivo em que se
converteu o desfile de uma escola de samba neste limiar do século XXI não
imaginam os segredos que se escondem por trás da música Tradição escrita e
interpretada pelo sambista Geraldo Filme, e que muitas vezes é cantada
78
momentos antes de a agremiação iniciar sua jornada pela avenida em busca de
mais um título carnavalesco.
O samba que levanta poeira é uma reminiscência dos anos em que se
praticava o samba de bumbo e o batuque em diversas localidades paulistas e
paulistanas, inclusive nas várzeas do Bexiga.
Ao falarmos sobre as origens do batuque paulistano, no princípio do século
XX, e suas relações com o Bexiga lembremos que o samba de roda, em um
primeiro momento, e os cordões carnavalescos, de maneira geral, surgem como
uma manifestação artística e cultural do elemento negro a quem se impedia ou
dificultava a participação nos corsos
8
e entrudos
9
. É curioso observar-se que,
mesmo sendo o carnaval uma manifestação de alegria e confraternização,
mantinha um caráter segregacionista e de hierarquia social. Por outro lado, este
momento que acentuava as diferenças serviu como ponto de aglutinação e
afirmação para o afro-descendente como veremos nestes dois momentos a seguir:
Os cordões, reunindo a população de origem africana na
cidade de São Paulo, surgiram nas décadas de 10, 20 e 30
deste século em três zonas distintas da cidade: Barra Funda,
Bexiga
, e Baixada do Glicério, locais que concentravam
contingentes maiores desta população” (nosso grifo)
(Simson, 1983, 22)
“Os nossos informantes, entretanto, mostram que desde,
pelo menos, 1913, essa modalidade de samba de
Pirapora ou
samba campineiro, podia ser observado na cidade de São
8
Desfile de carros e carruagens que marcava o carnaval das elites paulistanas, posteriormente adotado pelas
famílias de imigrantes radicadas em bairros como o Brás ou a Lapa.
9
Segundo definição do dicionário Aurélio, folguedo carnavalesco antigo, que consistia em lançar uns aos
outros água, farinha, tinta, etc.
79
Paulo, principalmente em três centros: Barra Funda, Bela
Vista (Bexiga) e Glicério, ou melhor, baixada do Glicério.
Augusto dos Santos, com seus 70 anos de vida e 65 de Bela
Vista, informa que nas festas de Nossa Senhora Achiropita,
no dia 15 de agosto, a rua 13 de Maio e as ruas adjacentes
eram enfeitadas para a festança, onde não faltavam as
brincadeiras do pau-de-sebo e o quebrapotes. Ali o ‘samba o
dia intêro comia sôrto’. Ele deu a esse samba uma
denominação bastante corrente entre pessoas do povo da
Capital: samba de bumbo”. (nosso grifo) (Moraes, 1971)
É nesse ambiente reproduzido nas citações acima, embalado pelo samba que
corria solto, que surgirá o cordão carnavalesco Vai-Vai. Assim como a origem
do nome do bairro do Bexiga é controversa, a origem do cordão e de seu próprio
nome também o são. É provável que o cordão tenha nascido de uma dissidência
de um pequeno time de futebol existente na Saracura, o Cai-Cai, cujas cores
eram o preto e o branco.
Além de se reunir para o futebol, os simpatizantes do time costumavam
organizar rodas de choro e samba. Benedito Sardinha, também morador do
bairro, não fazia parte do Cai-Cai, mas sempre dava um jeito de, acompanhado
por seu amigo Livinho, participar das animadas rodas festivas dos futebolistas.
Em função desse hábito ficaram conhecidos pelos demais como a turma do vai-
vai.
Mais interessado pela música do que pela bola, Sardinha reuniu um grupo
de amigos e resolveu fundar um bloco onde a única regra era vestir-se de uma
maneira diferente das indumentárias do cotidiano. Nascia no carnaval de 1930 o
“Esfarrapado”, bloco que até hoje ocupa as ruas do Bexiga nos dias de Momo.
No ano seguinte, entusiasmados pelo sucesso alcançado na folia anterior,
80
resolveram fundar um cordão carnavalesco. O apelido ganho junto aos amigos do
Cai-Cai serviu de inspiração e as cores foram escolhidas como uma homenagem.
Nascia o Vai-Vai da Saracura.
Durante três décadas o Vai-vai construiu fama e se tornou uma referência do
carnaval negro em São Paulo. Com características absolutamente artesanais na
produção de fantasias e na forma de organização, o cordão resistiu enquanto
pôde à idéia de se transformar em uma escola de samba. Na segunda metade dos
anos 60 esse processo de transformação havia se tornado inexorável e esta
caminhada em direção à profissionalização provavelmente tenha sido
determinante para uma abertura inimaginável nos primórdios do cordão: o Vai-
Vai, uma agremiação fechada aos brancos, começava a permitir que estes
também participassem de seus desfiles e, principalmente, de sua organização.
Como vimos anteriormente, os agrupamentos negros na capital paulista
carregavam consigo uma consciência, ainda que não formalmente articulada, de
seu papel de resistência e sobrevivência. Não permitir que brancos participassem
do grêmio era demonstrar claramente que o discurso do país mestiço não era
assimilado por seus integrantes, que enfrentavam no cotidiano da cidade diversas
situações de discriminação, que apareciam também em seu espaço de diversão
com as freqüentes visitas de intimidação da polícia.
Esta foi a época dos heróis do asfalto, os heróis do samba. Pato N’água, Pé
Rachado, Geraldo Filme e tantos outros eram os responsáveis por manter a
chama acesa. Eram referências para os seus contemporâneos na luta a favor do
samba e contra a intolerância. Daí a grande comoção causada pela morte de Pato
N’água, nos anos 70, reverenciado e imortalizado pela canção de seu
companheiro Geraldo Filme.
81
Silêncio no Bexiga
Silêncio...
O sambista está dormindo
Ele foi, mas foi sorrindo
A notícia chegou quando anoiteceu
Escolas, eu peço o silêncio de um minuto
O Bexiga está de luto
O apito de Pato n'Água emudeceu
Partiu, não tem placa de bronze
Nem fica na história...
Sambista de rua morre sem glória,
Depois de tanta alegria que ele nos deu...
Assim, o fato se repete de novo,
Sambista de rua artista do povo...
E é mais um que foi sem dizer adeus...
(Silêncio)
(Geraldo Filme)
Pato N’água era um apitador de samba, o que hoje é conhecido nas escolas
como mestre de bateria. Seu apito ressoava à frente da bateria do Vai-Vai,
permitindo que o cordão se tornasse vencedor em diversos concursos e desfiles
do carnaval. Depois, preocupado com a possível desvalorização das
concorrentes, migrava para a Barra Funda ou para o Peruche para colaborar com
os ensaios e a organização do Camisa Verde e do Unidos do Peruche. Após uma
temporada fora do seu meio, este filho do Bexiga voltava para a Saracura e
tornava a assoprar seu apito no Vai-Vai.
Este pequeno perfil de Pato N’água mostra sua preocupação com a
manutenção de um espírito cultural que transcendia em muito as ruas da
Saracura. Por essa razão, ele e seus companheiros eram reconhecidos e ainda são
82
lembrados por seus contemporâneos não só como heróis do samba, mas como
heróis da negritude. Daí o profundo significado contido no epitáfio musical de
Geraldo Filme.
Mas, retornando ao processo de transformação do cordão em escola de samba
e da sua abertura aos brancos, vejamos que tivemos figuras importantes para essa
transição. Figuras como o já mencionado Armandinho do Bixiga e Oswaldinho
da Cuíca. Entusiastas que conseguiram furar um bloqueio histórico, chegando a
ocupar cargos de diretoria e a ser reconhecidos em nossos dias como legítimos
representantes do Vai-Vai. A mudança para o status de escola implicava também
em maiores gastos, aumento no número de componentes e nas complexidades da
burocracia interna e junto ao poder público. Definitivamente chegava a hora não
só de abrir as portas a novos integrantes, mas também de incentivar sua vinda.
Era o cordão dos tempos heróicos de luta pela sobrevivência dando espaço ao
empreendimento carnavalesco.
Em conseqüência do grande investimento financeiro e do
crescimento domero de associados, houve a necessidade
de um maior controle da direção sobre a base, havendo uma
maior ênfase na estrutura hierárquica, ao mesmo tempo, em
que a escola necessitou da presença de brancos de classe
média, devido ao aumento de custos com o carnaval.
(SOARES, 1999,42)
Um dos maiores indicadores dessa abertura é que desde 1993 o presidente do
Vai-Vai tem sido Sólon Tadeu Pereira. Na opinião de alguns integrantes uma
83
liderança fundamental, “uma vez que para interagir com o mundo da política e
dos negócios é melhor que a escola tenha um branco à sua frente”, afirmam,
pedindo sigilo. Em nossas visitas à quadra da agremiação pudemos comprovar
que diversos componentes compartilham desse ponto de vista, ainda que não se
sintam muito confortáveis diante dessa constatação. Alguns chegaram a se
afastar, não reconhecendo mais no carnaval e particularmente na escola de samba
as heranças das lutas passadas.
Este é o caso de Manoel Vitório Alves, o Feijoada. Mestre de Bateria no
Bexiga durante anos, Feijoada é um dos que não enxergam mais no Vai-Vai
quase nenhum traço de um passado em que se podia perceber nos ensaios e
desfiles um espírito de comunidade. Ao ser contatado para nos dar uma
entrevista, disse que somente o faria se fosse fora da escola, pois havia se
afastado por não concordar com os rumos da agremiação. Feijoada nos contou
histórias do carnaval antigo, dos constantes entreveros com as pessoas que
implicavam com “aquela coisa de negro”, e que chegavam inclusive a atirar
copos com urina e a freqüentemente chamar a polícia, que resolvia o “problema”
quebrando os instrumentos. Teimosamente no outro dia, lá estavam ele e seus
amigos tocando novamente. Para Feijoada, a sobrevivência do carnaval e do
samba implicava na própria sobrevivência.
Dentro da quadra também pudemos colher depoimentos interessantes, como
o prestado por Sandra Aparecida Maria, então com 51 anos, em janeiro de 2002.
Moradora do Bexiga desde os 18 anos, contou-nos que seu pai nascera e crescera
ali, tendo portanto uma história de vida ligada ao bairro e à escola.
84
- “Desde que vim morar aqui sempre convivi com a
comunidade do Vai-Vai. Era uma época em que havia um
número muito maior de negros. A união era grande, não só na
escola como no bairro também. De uns dez anos pra cá tudo
mudou muito. Começa que só tem prédios, os cortos
acabaram quase todos. A escola também mudou totalmente.
Existe mais o povo branco do que o negro. Em tudo, quase”.
- A quê se devia essa união que você menciona? Era um
processo consciente?
- “Ah era, era sim. Veja, vou falar o que sinto. Quase todos
os negros que saíam no Vai-Vai eram do bairro. Então, era
uma coisa de unir forças contra os preconceitos, que eu acho
que tinha sim. Porque o povo italiano dava aquele apoio,
passavam o livro de ouro
10
, aquela história toda..., mas era
assim: eles lá e nós aqui. Então, era uma união mais
comercial”.
- Mas por que os brancos não freqüentavam?
- “Volto a te dizer, era uma coisa assim: eles lá e nós aqui”.
- E essas transformações na escola e no bairro, como você vê
esse processo?
- “A maioria saiu daqui. Por que? Porque o poder aquisitivo
do bairro ficou caro, muito caro. Tanto que agora eu moro
num prédio, que é bom, mas construíram outro ao lado que é
monumental e o povo fala: sabe aquele prédio feio ali, pois é,
é o meu prédio. Essas coisas fizeram o negro mudar pros
bairros mais afastados”.
- O que os jovens negros que freqüentam o Vai-Vaim de
consciência sobre tudo isso?
- “Nenhuma!”.
10
Uma espécie de caixa de contribuição que circulava entre os comerciantes do bairro voltada para arrecadar
fundos para os desfiles de carnaval do Vai-Vai.
85
Confrontadas com as observações feitas por nós no interior da escola, as
ponderações de Sandra nos dão uma série de pistas. A primeira é que, apesar de
perceber as mudanças, ela e uma série de outros antigos integrantes não deixam
de freqüentar a quadra e os desfiles. A ligação afetiva e o processo de
identificação falam mais alto. Outra constatação é que, de fato, muitos dos
sambistas e simpatizantes que circulam no Vai-Vai vêm de longe, não são
moradores da Bela Vista. A terceira observação é que o espaço se tornou
multiétnico, ainda que mantenha uma predominância de negros. Um dado
curioso é que na bateria pudemos verificar em várias oportunidades a presença
até de nisseis tamborinistas. Por fim, a impressão que se tem dos jovens é a de
que estão num happening. Mesmo que se veja aqui e ali alguém usando uma
camiseta com a inscrição “100% negro”, numa reafirmação de uma postura
política, a grande maioria está no local apenas para se divertir.
O Vai-Vai reproduz em seu interior os processos vividos pelas escolas de
samba no Rio de Janeiro e em São Paulo. O carnaval se tornou um negócio em
que, por exemplo, a aquisição de uma fantasia muitas vezes não sai por um valor
inferior a U$500,00 (quinhentos dólares) e os desfiles são eventos midiáticos e,
portanto, milionários. Estar na quadra da escola nos meses de janeiro e fevereiro
é participar de um evento da moda e o compromisso com o passado se dilui em
idéias vagas no imaginário dos freqüentadores, sejam eles brancos ou negros.
Mesmo com todas essas influências do capitalismo contemporâneo, é
possível identificar no interior de uma das duas escolas de samba mais
tradicionais de São Paulo - a outra é o Camisa Verde e Branco - marcados traços
da negritude, tão bem representados por um de seus símbolos: o criolé. A figura
86
estilizada de um jovem negro vestindo uma camisa listrada em preto e branco e
tocando tamborim. Igualmente eles podem ser percebidos no lema: Meu povo,
minha gente, minha raça, minha escola, que aparece escrito sobre o palco
ocupado pelos puxadores dos enredos no local dos ensaios. Surgem na memória
da Saracura, que é constantemente evocada nas letras das músicas e nos
discursos e, acima de tudo, é impossível não se perceber as especificidades de
uma produção cultural negra encravada bem no coração da capital paulista ao se
freqüentar as baixadas do antigo riacho, onde se localiza a sede da agremiação.
Afinal, como diria Geraldo Filme, o “Vai-Vai” está firme no pedaço. É tradição
e o samba continua.
4.2 – O Bloco Afro Oriashé
Primeiro de abril de 1988. Dia da lavagem da “Rua da Mentira”. A idéia
arrojada, nascida da cabeça de uma filha de Iansã, e efetivamente implementada
nesta data, serviu para marcar dois momentos importantes. O primeiro foi a
lavagem simbólica da Rua Treze de Maio, no Bexiga, no ano das comemorações
oficiais pelo centenário da abolição da escravatura. As razões para o termo “Rua
da Mentira” nasceram nos debates ocorridos dentro do Movimento Negro
Unificado (MNU), onde Valquíria de Souza Santos, a Kika, militara durante
anos, e também a partir da análise da realidade e dos dados do IBGE – Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística, que insistiam à época, e ainda insistem, em
demonstrar a condição de cidadão de segunda classe relegada aos negros no País.
O segundo momento referia-se ao ato de fundação, pela mesma Kika, do Bloco
Afro Oriashé, que embalou com seu ritmo e canto o processo de lavagem da rua
idealizado por ela.
87
A exemplo do Vai-Vai, o bloco, ou oficialmente: Oriashé Sociedade de
Cultura e Arte Negra, tem sua história atrelada ao Bexiga. Mas diferentemente da
escola de samba, nasce evocando e articulando explicitamente a idéia de cultura
de resistência (Pereira, 1984), a partir da qual os negros da diáspora tiveram que
se reinventar culturalmente para fazer frente à opressão e à discriminação. No
caso do Oriashé esta articulação fica clara porque, segundo nos contou Kika, a
idéia original era a de demonstrar através da arte os valores da cultura negra
como mais uma forma de quebrar as barreiras do preconceito. Essa opção pelo
lúdico seria uma alternativa ao engajamento político proposto pelos diversos
militantes do Movimento Negro Unificado, que com freqüência se reuniam na
Bela Vista, em meados dos anos 80, para debater as diretrizes do Movimento.
Vejamos um trecho da fala de Kika.
Essa idéia do Oriashé tem muita gente do Movimento
Negro. O Oriashé foi um espaço que proporcionou mudanças
nas relações entre as pessoas do Movimento e aquelas que
tinham uma orientação sexual diferente, foi um espaço de
luta e organização, através da arte e da cultura. O Oriashé não
foi criado com o intuito de ganhar dinheiro, mas sim de
aproximar as pessoas, o ser humano negro que está excluído,
e isso ele tem cumprido ao longo desses 16 anos.
Quando falo sobre o Orias, vejo como se fosse um
cinema, como foi no Bexiga, as pessoas... Hoje tem gente
que está no PT, no PSDB, mas todos passaram por lá. Dr.
Hélio Santos
11
, dr. Hédio
12
, que na época estava entrando na
faculdade, Sueli Carneiro
13
, Edna Rolam
14
, queo
11
Hélio Santos, ex-presidente fundador do Conselho de Participação da Comunidade
Negra de São Paulo; professor universitário do curso de Pós Graduação da Faculdade de Administração
- Universidade São Marcos.
12
Hédio Silva Júnior, diretor do centro de Estudo das Relações do Trabalho e Desigualdades, secretário da
Justiça e da Defesa da Cidadania no governo Geraldo Alckmin e membro da diretoria da OAB-SP.
13
Sueli Carneiro, diretora do Geledés - Instituto da Mulher Negra.
88
expoentes, que estão aí. Flavinho, Gê, Juarez
15
, que na época
não tinha entrado na faculdade e estava se criando a
UNEGRO. Então, eu tenho até um dia de criar um vídeo para
colher um depoimento. É uma pena que a gente não tenha
recursos, porque a história do Oriashé é um pouco a história
do Movimento Negro aqui em São Paulo e das pessoas que
hoje têm visibilidade.
O Oriashé nasce para ser uma manifestação de rua
para os negros, com os negros e nas ruas do Bexiga, que a
gente tinha a compreensão que era o Quilombo da Saracura.
Projetado para ser um grupo de canto, dança e percussão, o bloco teve como
sua primeira sede o salão de cabeleireiro Orilê, ainda hoje localizado na rua
Santo Antonio, 830. Na época, o salão pertencia a Kika e à sua amiga Maria da
Penha do Nascimento, a Penha. Inspiradas nos blocos carnavalescos baianos,
como Olodum e Ile-Ayê, as amigas resolveram convidar duas jovens
percursionistas para cuidar da parte musical. Juntavam-se ao projeto Girley
Luiza Miranda e Elizabeth Belisário.
Girley possuía uma profunda ligação com a escola de samba Unidos do
Peruche, onde desde criança desfilava no carnaval. Em seu currículo também
trazia participações em grupos de inspiração africana como a banda Lá, o Coral
Cantafro e o grupo de dança afro-contemporânea Bata-Koto, todos radicados em
São Paulo. Beth, por sua vez, havia passado pelos mesmos grupos e recebera de
mestre Lumumba, músico e virtuose em percussão, muitas noções musicais.
Lumumba, também amigo de Kika e companheiro de Movimento, foi um
importante nome para as primeiras atividades do Oriashé.
14
Edna Rolam, fundadora da Organização Não Governamental Fala Preta, a exemplo do Geledés,
especializado no atendimento das demandas da mulher negra.
15
Juarez Tadeu de Paula Xavier, professor universitário e fundador da Unegro (União de Negros pela
Igualdade).
89
Com Beth, Girley e Kika à sua frente o bloco começou a ganhar duas
características marcantes. A primeira foi a forte influência do candomblé nas
músicas, indumentárias e nos toques percussivos. O próprio nome Oriashé (força
que emana da cabeça) tem estreita relação com a religião. A segunda
característica foi a crescente presença feminina, principalmente de orientação
homossexual, dentro do grupo. O sexismo por parte de muitos dos próprios
homens negros acabaria transformando, ao longo do tempo, o bloco em um
núcleo formado somente por mulheres.
Desde a sua fundação o Oriashé fez da sexta-feira que abre o carnaval uma
referência de diversão nas ruas do Bexiga. Apresentando-se a partir da Rua Santo
Antonio e circulando por outras como a Treze de Maio e a Rui Barbosa, suas
apresentações sempre tiveram uma forte participação de inúmeros representantes
do MNU, como cita Kika em sua fala. O ano de 1995, porém, marcou a primeira
das muitas cisões que fazem parte da história do bloco. Kika e Penha romperam
a sociedade no salão de cabeleireiro e a primeira se mudou do Bexiga para a
Cohab Tiradentes, como tantos outros haviam feito antes dela. As apresentações
no carnaval sofreriam uma longa paralisação.
Morando no conjunto habitacional, Kika procurou implementar um novo
braço de ação para o Oriashé, tornando-o um promotor de cidadania,
principalmente junto às mulheres negras, através de cursos e parcerias que
firmou com a prefeitura, valendo-se da personalidade jurídica que o bloco
possui. Essa nova forma de atuação a levou a mais de uma edição do Fórum
Social Mundial e a tem aproximado cada vez mais das ações políticas, em
detrimento das atividades culturais por ela advogadas anteriormente, e é atuando
desta maneira que ela foi encontrada, em julho de 2004, para nos conceder um
relato.
90
Meses antes, em janeiro daquele mesmo ano, o Afro Oriashé estava de volta
às ruas se preparando para o seu terceiro carnaval desde o reinício de suas
atividades lúdicas, após sete anos de paralisação. Nos ensaios realizados na Rua
Santo Antonio, embaixo do viaduto que liga a Rua Rui Barbosa ao Elevado
Costa e Silva, um grupo relativamente diferente daquele dos primeiros anos
começara a reunir-se todos os sábados e domingos, ao final da tarde. Na bateria,
com Beth e Girley no comando, a presença continuava sendo permitida
exclusivamente às mulheres, mas as negras no grupo eram uma minoria.
Sonho
Yabas
Eu tive um sonho
Eu tive um sonho
Yabas
Eu tive um sonho
Sonhei
Que fazia um padê
E logo me vinha um E
Dizendo e pedindo
Bença tia (Kolofé / Kolofé)
Me vi em um lago encantado
Yaos por todo lado
Águas para o Ori
Arco Íris
Foi quando o Erê me acordou
Pra vê
Oxumarê Loquereloquê
91
Oxumarê
Oxumarê Loquereloquê
Eloquerê
Yabas
Eu tive um sonho
Esta foi a música escolhida para ser uma das principais do carnaval, e numa
mistura de coreografia e batidas fortes elas conseguem inundar com uma
sonoridade inconfundivelmente negra as ruas daquela parte do Bexiga. Kika não
está presente e as líderes no local preferem não conceder nenhum tipo de
entrevista, dizem que ela deve ser procurada para falar sobre o bloco. As demais
integrantes, quando questionadas sobre o Oriashé, ressaltam a importância de
uma bateria composta por mulheres, ainda que tenham consciência de outras
especificidades. “Um bloco de mulheres negras representa a minoria das
minorias”, chega a afirmar uma delas. Mais tarde, quando perguntada a respeito,
Kika dirá que não tem nada contra as mulheres brancas, mas que dessa forma o
espírito original havia se perdido.
Sexta-feira, 20 de fevereiro. O carnaval de 2004 tem como tema “Os Arco-
Íris de Bessen”, numa homenagem ao orixá Oxumarê. Na Rua Major Quedinho,
um grande palco montado pela prefeitura serve de ponto de concentração para
músicas e foliões. “Africaniza, africaniza sete cores, africaniza os tambores,
diz o refrão de uma das canções. O Oriashé desce do palco e ganha as ruas,
movimenta-se, faz evoluções, arrasta pelas ruas do bairro uma pequena multidão.
Num gesto simbólico estanca sua marcha em frente ao número 830 da Rua Santo
Antonio. Os tambores silenciam. No meio do círculo formado pelas músicas uma
mãe de santo se abaixa e entoa uma oração em yorubá, a língua dos terreiros. A
oração é forte, arrepia. É um agradecimento por mais um ano vitorioso. Talvez
nem tanto. É o último carnaval do Oriashé com Beth e Girley à sua frente.
92
Preocupadas com sua profissionalização e as contas para pagar, vão fundar o
“Mulheres de Ilu”. Não é possível viver só de militância.
Provavelmente esta tenha sido a cisão mais aguda ocorrida no interior do
bloco. Kika diz que ele voltará a existir, mas procurando reencontrar suas
características originais. Por ora, ela se dedica ao seu trabalho no espaço que
construiu na Cidade Tiradentes, possivelmente a Saracura do século XXI. O
“Mulheres de Ilu” se profissionaliza a cada dia com shows e apresentações, mas
na sexta-feira “sagrada” do carnaval continuará ocupando um espaço dentro do
Bexiga, o espaço que outrora foi ocupado pelo Oriashé..
4.3 – A Pastoral Afro da Achiropita
“Estamos chegando, vocês não nos vêem, porque estamos nas senzalas, nos
porões, nas favelas, nas periferias e nos morros. Vocês não nos vêem por que
não querem, mas nós estamos aqui”. Este foi o cântico de abertura da Missa dos
Quilombos, celebrada na Praça do Carmo, no Recife, em 1981. Organizada pela
semente daquilo que viria a se transformar nos Agentes de Pastorais Negros, um
grupo de padres católicos preocupados com as questões raciais dentro da Igreja e
no País, a missa contaria com a participação de figuras importantes do mundo da
cultura, como Milton Nascimento - que contribuiu com as músicas - e figuras
fundamentais para a criação da Pastoral Afro, Brasil afora.
Uma dessas figuras era Antonio Aparecido da Silva, o padre Toninho. Um
entusiasta de primeira hora das questões relacionadas à negritude, o padre seria
nomeado, no ano de 1988, pároco da igreja de Nossa Senhora Achiropita, no
Bexiga. Até então, ao longo de suas seis décadas de existência, a paróquia só
93
havia recebido padres italianos para cumprir essa função. O novo pároco chegava
para quebrar este e outros paradigmas.
Na verdade, por diversas razões a Achiropita sempre foi um campo fértil para
o surgimento de uma pastoral com este perfil. Além das questões relacionadas
aos moradores da Saracura, a história da igreja e da ordem por ela responsável
também propiciou desde o início condições para que um dia isso ocorresse.
Quem nos conta um pouco dessa trajetória é Rosângela Borges (2001). Segundo
ela relata, tudo começou no longínquo ano de 1913 com a chegada dos primeiros
missionários orionitas. Tratava-se de um grupo enviado pelo padre italiano Luis
Orione, fundador da Congregação da Pequena Obra da Divina Providência, que
se correspondia regularmente com o arcebispo de Mariana, Dom Silvério Gomes
Pimenta.
Pimenta foi o primeiro arcebispo negro na história do Brasil. Seu
relacionamento com Orione se estreitou na medida em que este último sempre
manifestou o interesse em trabalhar com os pobres e oprimidos. O padre italiano
chegou a solicitar a criação de uma congregação que facilitasse o ingresso de
negros e índios no meio eclesiástico, o que foi barrado pela Arquidiocese de São
Paulo, em 1922.
Ainda nos anos 20, a Arquidiocese ofereceria a paróquia do bairro do
Bexiga para os orionitas, o que foi aceito. Somente cerca de vinte anos depois a
congregação conseguiria admitir seminaristas negros em suas dependências.
Padre Toninho foi um desses jovens vocacionados que passaram pelos
seminários orionitas. Ao assumir a paróquia muitos anos depois, finalmente
poderia dar vazão aos seus sonhos e aos de Dom Orione. Fundava a Pastoral
Afro da igreja da Achiropita.
94
Nascida sob o olhar de desconfiança de muitos que não acreditavam em sua
longevidade, a Pastoral e suas atividades vêm desde o final dos anos 80 se
tornando um marco não só no Bexiga, mas na cidade de São Paulo. Para a
comunidade local são oferecidos cursos como preparatórios pré-vestibulares,
capoeira e dança. Mas o que chama a atenção e catalisa o interesse de muitos são
as celebrações realizadas no interior da igreja. As atividades instituídas com um
viés especial envolvem os sacramentos da Igreja, como os batizados afro, os
casamentos afro e os dois principais eventos do ano: as celebrações da Semana
da Consciência Negra, realizadas nos meses de novembro, e a Missa da Mãe
Negra, que ocorre em todo mês de maio.
A Missa da Mãe Negra é um evento concorridíssimo e as dependências da
igreja se tornam diminutas diante do número de interessados. No altar, Padre
Toninho, ladeado por um babalorixá, um pastor evangélico e por seu amigo, o
também padre, Renato Scano, oficia uma cerimônia com fortes elementos da
cultura negra. Em primeiro lugar, os dois padres utilizam uma bata com temas
africanos. Próximo ao altar um grupo toca atabaques e berimbau, enchendo com
um ritmo contagiante o salão. As canções misturam temáticas relacionadas ao
povo negro e elementos do catolicismo.
A celebração vai ganhando vulto até chegar a um de seus principais
momentos: o ofertório. Resgatando uma prática ancestral, mulheres vestidas com
roupas que se convencionou chamar de baianas adentram a igreja, trazendo
diversos alimentos como frutas e quitutes, água de cheiro em ânforas de barro,
além do pão e vinho, claro. Neste momento os atabaques ressoam fortemente e
as mulheres dançam enquanto se aproximam do altar.
Num gesto explícito de ecumenismo, Padre Toninho convida seus
companheiros de púlpito a proferir algumas palavras. Na cerimônia que
95
acompanhamos, em maio de 2004, o puxador de samba, Tobias do Vai-Vai,
cantou a canção “Um Abraço Negro”
16
, enquanto os presentes eram convidados
a se cumprimentar. A água de cheiro trazida durante o ofertório seria aspergida
ao final pelo padre e por seus companheiros no culto. Ao final da celebração,
como de praxe, uma concorrida feijoada foi servida no salão de festas e
recreação da paróquia.
É interessante observar que a presença de Tobias na celebração marca
também a aproximação entre a escola de samba e a pastoral afro, num gesto de
reconhecimento mútuo, que se dá também de diversas outras formas. A água de
cheiro aspergida durante a missa, também costuma ser levada pelo próprio padre
Toninho à quadra da escola onde é por ele igualmente aspergida. Em
contrapartida, ao final de todos os carnavais integrantes da escola saem da
quadra e caminham com a marcação do surdo em direção à igreja. Uma vez
diante dela, ajoelham-se e rezam em agradecimento.
Durante nossas atividades de campo, porém, o que mais nos chamou a
atenção foi a figura do padre Renato Scano. Filho de pai italiano e mãe negra,
nascido e criado no Bexiga, Scano é quem melhor poderia sintetizar nosso
trabalho. Também membro da congregação dos orionitas, onde ingressou com 14
anos, o padre retornaria ao bairro em duas oportunidades. A primeira, quando da
nomeação de Padre Toninho como pároco da Achiropita, permanecendo ali por
quase uma década. A segunda, já mais recentemente, quando por força da idade
começou paulatinamente a se afastar das atividades mais pesadas. Encontramos o
padre no dia 15 de janeiro de 2005, quando então contava 75 anos, nas
dependências da igreja de Nossa Senhora de Achiropita. Sua lucidez e histórias
familiares, que remontam até a escravidão de alguns membros da família, no
16
“Um abraço negro, um sorriso negro, traz felicidade. Negro sem emprego fica sem sossego, negro é a raiz
da liberdade. Negro é uma cor de respeito, negro é a inspiração. Negro é silêncio, é luta, negro é a solução.
Negro que já foi escravo, negro é a voz da verdade. Negro é o destino e amor, negro também é saudade”.
96
interior do Rio de Janeiro, e a vinda da nona italiana da Sardenha, nos dariam
elementos para um outro trabalho. De qualquer maneira, o seu depoimento é tão
elucidativo que optamos por deixa-lo para o final.
O padre Renato Scano é o símbolo maior do hibridismo concretizado no
interior do Bexiga. Sua fala, porém, nos dá diversos elementos das
complexidades e dificuldades no processo de trocas culturais verificáveis desde o
início da história do cotidiano, não só do bairro paulistano, mas de todo o País. O
padre encontrou a sua resposta e sua fala é paradigmática não só para sintetizar
este estudo, mas para indicar caminhos para aqueles que dele precisem.
Sinto um misto de vergonha e alegria ao contar minha
história. Desde pequeno sempre senti muito orgulho de
minha família negra. Meu coração era negro, mas minha
cabeça, não. Até meus 14 anos eu tinha vergonha mental.
Mas no coração, não.
Naquele tempo, 36, 37, teve a Guerra da Absínia
17
, era a
guerra de italianos com negros. Eu tinha uns sete anos e
vibrei com aquela guerra. Quando eu via nos jornais ou ouvia
falar de qualquer vitória dos negros, eu uuhh...!!!, vibrava.
Me lembro quando um aviador absínio, ele era chamado de
asa negra”, derrubou vários aviões italianos, eu uuhh...!!!
Quer dizer, meu coração era negro, mas na cabeça a
formação era outra, a cabeça da cultura brasileira. Que
branco é bom, que negro não presta, que negro é vagabundo,
que negro é sem vergonha... Eu ficava arrebentado.
Mentalmente eu tinha vergonha de ser negro, tanto
que eu fazia questão de dizer que eu era moreno claro,
17
A invasão da Etiópia pelo exército fascista de Benito Mussolini, posteriormente expulso pelos próprios
etíopes.
97
veja bem, moreno claro. Nem pensar em dizer que era
negro...
Me lembro que na escola quando falaram do Quilombo
dos Palmares, e eu nunca tinha ouvido nada a respeito,
falaram de maneira vergonhosa, que era uma revolução de
negros e o herói era o Jorge Velho, o paulista que foi e
venceu e acabou com Palmares. Aquilo me doeu. Aí eu
perguntei, “por que não deixaram os negros em paz?”. A
professora me respondeu: “você já pensou que desgraça se
aquilo tivesse continuado, o Brasil seria um país negro.
Vergonha no mundo. Fiquei nessa contradição.
Quando fui ao seminário, em Minas, com 14 anos
comecei a ver as coisas de forma diferente. Primeiro porque
ali havia uns padres holandeses que criticavam tudo o que
fosse catolicismo popular. Aí comecei a ver que a
implicância deles não era com o popular, era com o popular
negro. As danças, as congadas, festa de reis...
Nos anos 40, os orionitas começaram a receber negros e
eu fui o segundo a ingressar na ordem. Lá em Minas, no
seminário, comecei a procurar os outros jovens negros para
conversar sobre a nossa situação. Havia uns dez meninos
negros. O único que topou a conversa, pois os outros tinham
medo, era um rapaz mais novo e também mais escuro do que
eu. O nome dele era Toninho, padre Toninho (...). Depois de
alguns
anos eu o reencontrei e ele me disse: “sou padre,
católico e cristão, porque assim decidi, mas negro foi Deus
que me fez”. Eu ouvi aquilo e me disse e te digo: isso eu não
largo nunca mais. Foi uma arrancada para eu entrar no
Movimento Negro (...). Quem faz essa caminhada pode se
libertar, ficar em paz consigo
mesmo, senão vai ficar pra
sempre arrebentado por dentro.
98
A caminhada que muitos de nós brasileiros, negros ou não, precisamos
fazer.
99
Capítulo 5
Considerações Finais
Chegamos ao capítulo final deste trabalho, nos recordando de que nosso
primeiro impulso para produzir uma pesquisa para o mestrado tinha como foco
original a cidadania. Uma idéia difusa e sem objeto definido. Com o tempo, ao
amadurecer os pensamentos sobre um tema e a partir de algumas experiências
vividas fora do País, a afinidade maior acabaria por recair sobre o bairro do
Bexiga e as questões relacionadas à negritude. Na verdade, sem perceber, ao
explorar o assunto sob a perspectiva escolhida acabaríamos por tratar ao mesmo
tempo sobre negritude e cidadania.
No ponto de conclusão dessa empreitada podemos afirmar seguramente,
respondendo à problematização original, que o Bexiga foi e, em certa medida,
ainda é um bairro afro-italiano. Foi porque, como vimos, ao lado da significativa
presença de calabreses, o fenômeno da Saracura constituiu-se em uma
impressionante marca de territorialidade no interior de uma cidade que insiste
historicamente em não reconhecer suas especificidades negras. O em certa
medida” do presente refere-se ao desaparecimento da presença ostensiva dos dois
grupos. As mamas, nonas e capomastres não são mais vistos pelas ruas do bairro
conversando alegremente sentados em suas cadeiras, ao final de uma tarde
ensolarada. Alguns de seus filhos e netos ainda vivem por ali, mas o forte
componente de suas heranças está nas construções, que teimosamente resistem
ao tempo, e nas cantinas e trattorias, que se transformaram em um grande
atrativo turístico.
100
Por seu turno, a Saracura, demolida e empurrada para os conjuntos
habitacionais da periferia, permanece viva nas manifestações culturais de seus
herdeiros que, a exemplo dos salmões na natureza, sempre retornam às suas
origens, não importando o quanto se distanciem delas ao longo da vida. Escola
de samba, blocos, pastoral afro e terreiros de candomblé são a prova viva dessa
permanência e imanência.
Mas o Bexiga é também atualmente o produto de uma cidade que luta para
combinar o velho, representado pelo casario erigido pelos imigrantes, memória
viva do bairro, com o novo, representado pelos edifícios e avenidas, que o
rasgam e descaracterizam, centros comerciais e, em um futuro próximo, um
shopping center. É igualmente fruto das insistentes dinâmicas populacionais da
metrópole, que trazem como mais um componente da paisagem uma coletividade
nordestina que ocupa suas ruas, salões de baile e moradias com sua música e sua
crescente presença. São em sua maioria os novos habitantes dos cortiços
remanescentes.
No que tange, porém, especificamente ao apagamento da presença da
negritude e de seus fazeres, o Bexiga é um exemplo eloqüente. Como vimos ao
longo deste trabalho, jamais existiu casualidade neste processo e sim
causalidade. Apagar a presença do outro não só no plano físico, mas no
imaginário, no simbólico, seria uma forma supostamente eficiente de dominação.
Persiste ainda hoje a utopia civilizatória da Europa. Após
cinco séculos de colonização da América, os europeus –
diretamente ou por meio das elites nacionais mediadoras,
atualmente secundadas pelas elites dos meios de
comunicação – continuam reproduzindo o discurso de
enaltecimento de seu valor universalista, como garantia da
101
colonialidade do poder. Costuma-se esquecer o genocídio
“fundador” de Pizarro e Cortez, mas igualmente o fato de que
o desenvolvimento econômico, o progresso, a modernização
tecnológica (cujos pametros de realização partem da
civilização euroia) impõem-se a amplas parcelas
populacionais com efeitos tão ou mais radicais do que os
primeiros genocídios. Deixam, assim, de lado a questão
“humana”, sempre viva na temática da cidadania e da
identidade americanas. (SODRÉ, 2000, 33)
Este apagamento, aliado à utopia civilizatória mencionada por Sodré, tem
como efeito a perpetuação da encruzilhada identitária. O brasileiro rico e de
classe média alta (leia-se branco) sabe que quando está circulando pelos lados do
chamado primeiro mundo assume o papel do Outro, e que ao buscar em si
elementos de brasilidade precisa recorrer inevitavelmente à sua herança mestiça,
ou recorrer a artifícios, empregados por alguns, que se constituem na negação de
si mesmo e de sua nacionalidade. Um recurso que beira o masoquismo.
Pela herança mestiça mencionada acima entenda-se o resultado do inevitável
hibridismo que a convivência entre povos de origens diversas dentro de um
mesmo espaço geográfico gera. Não uma mestiçagem ideológica, como a
fabricada nos anos 30 do século anterior, mas factual. Quando este viajante
necessita evocar marcas de brasilidade recorre aos motivos negro-indígenas,
aliados a um ou outro contorno de sua ascendência européia. Algo muito bem
sintetizado por Vinícius de Moraes - a quem temos que recorrer novamente - em
seu “Samba da Benção”, ao dizer que se o “samba é branco na poesia, é negro
demais no coração”. Ou seja, quer queiramos ou não, gostemos ou não, as
alteridades, trocas e hibridismos estão presentes em nosso dia-a-dia.
102
O fato é que esses hibridismos, quando reconhecidos, são tratados de forma
folclórica, como bem pontua Pereira (1983). Isto explica o “repentino
aparecimento de uma escola de samba como o Vai-Vai em pleno “bairro
italiano” nas semanas que cercam o tríduo de momo e seu “total
desaparecimento” nos demais meses do ano. São a pândega e o lúdico do negro
momentaneamente abraçados por todos para em seguida serem descartados e
ocultados dos fazeres sérios da lida diária.
A dominação física e simbólica representadas pelo ideário europeizante,
ainda muito vivo no imaginário nacional, constituem-se na verdade no ponto de
atraso do País, tantas vezes creditado a negros e índios. As elites nacionais são
capazes de conviver com uma massa de fantasmas, a quem negam um passado
histórico e um presente cidadão, e colhem como conseqüência os alarmantes
índices de desigualdade social, violência urbana e atraso no desenvolvimento
humano e econômico da nação. Ignoram que ao negarem a esses supostos
fantasmas a cidadania e a identidade, negam a si mesmos sua cidadania e
brasilidade.
O Bexiga e suas histórias, assim como tantos outros locais Brasil afora, é um
exemplo do que fizemos e fazemos com a nossa memória, com nosso presente e
com os outros, que são uma parte de nós mesmos. É também um exemplo de
como os processos de eliminação física ou simbólica, ainda que nocivos, não são
suficientemente eficientes diante de uma realidade que se impõe, a realidade das
pessoas que estão vivas, interagindo com o cotidiano e produzindo cultura.
103
6 – Bibliografia
6.1 – Revisão bibliográfica
ALENCASTRO, Luiz Felipe - Trato dos Viventes. Formação do Brasil no
Atlântico Sul. São Paulo, Cia. das Letras, 2000. Análise histórica sobre a
formação do Brasil durante os séculos XVI e XVII e as influências mútuas entre
as colônias portuguesas nos dois lados do Atlântico. O autor dá especial ênfase
ao tráfico negreiro e suas conseqüências na constituição do País.
BACCEGA, Maria Aparecida – Comunicação e Linguagem. Discursos e
Ciência São Paulo, Moderna, 1998. A professora da Escola de Comunicações e
Artes da USP procura neste trabalho traçar um panorama sobre os estudos sobre
o Discurso e suas possíveis leituras em campos como o cotidiano, a história, a
literatura e a mídia. Baccega aborda também aspectos das relações do campo
científico com as noções de Linguagem e da Comunicação.
BAKHTIN, Mikhail – Marxismo e Filosofia da Linguagem – São Paulo,
Hucitec, 1978. Livro raríssimo, publicado originalmente em 1929, apresenta
algumas concepções interessantes para se pensar a relação entre comunicação,
práticas do cotidiano e ideologia. Daí o termo cunhado pelo próprio Bakhtin,
Ideologia do Cotidiano, ao analisar as apropriações do signo verbal como
instrumento de refração e deformação dos indivíduos.
104
BASTIDE, Roger e FERNANDES, Florestan Brancos e Negros em São Paulo
- São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1971. Um dos primeiros estudos sobre a presença
do elemento negro no Estado e na cidade de São Paulo realizado sem o ranço do
determinismo positivista do século XIX.
BOSI, Ecléa – Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos – São Paulo, Cia.
das Letras, 1994. Estudo sobre a memória e sua relação com a História sob uma
perspectiva popular. Com o rigor de um trabalho acadêmico, a autora estrutura
teoricamente esta nova abordagem e complementa o estudo com o testemunho de
oito idosos paulistanos que reconstituem, a partir de suas recordações, a São
Paulo da primeira metade do século XX.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues (Org.) – Repensando a Pesquisa Participante
São Paulo, Brasiliense, 1987 – Conjunto de artigos científicos, assinados por
diversos autores, que analisam as perspectivas da pesquisa participante como
instrumento efetivo nas análises sociológicas. Com avaliações que vão desde a
descrição de técnicas de pesquisa, passam pela defesa desta ferramenta como
uma evolução das ciências e chegam a uma crítica deste método como possível
panacéia para as deficiências dos estudos em sociologia, o livro procura mais
abrir o leque de discussões e reflexões sobre o tema do que efetivamente
apresentar uma resposta definitiva.
BRITTO, Iêda MarquesSamba na Cidade de São Paulo (1900 – 1930): Um
Exercício de Resistência Cultural – São Paulo, FFLCH/USP (Antropologia,
v.14), 1986. Panorama sobre a transposição da cultura negra do samba de bumbo,
jongo e umbigada de suas origens rurais para a cidade de São Paulo. A autora
procura registrar o momento exato do nascimento do samba paulistano, ainda nos
anos 20 do século passado.
105
BRUNO, Ernani Silva – História e Tradições da Cidade de São Paulo - o
Paulo, Hucitec, 1984. Lançada originalmente em 1954, por ocasião do
quadricentenário da cidade, a obra de três volumes procura reconstituir a história
da cidade, desde sua fundação até o seu período de industrialização e crescimento
vertiginoso.
CENNI, Franco – Italianos no Brasil – São Paulo, EDUSP, 1975. Entusiástico
panorama sobre a imigração italiana no país e sua contribuição nos campos
econômico, social e cultural.
CHAUI, Marilena – Conformismo e Resistência. Aspectos da Cultura Popular
no Brasil – São Paulo, Brasiliense, 1986. Escrito em meados da década de 80, o
livro tem o mérito de levantar questões como o culturalismo visto sob
perspectivas que vão do Iluminismo a pensadores contemporâneos como Barbero
e Canclini. A obra carece, porém, de uma análise sobre um ou mais objetos
específicos analisados no campo.
CURRAN, James; MORLEY, David e WALKERDINE, Valerie (Orgs.) –
Cultural Studies and Communications – Londres, Arnold, 1996. Contando com
artigos de intelectuais como Stuart Hall e Paul Gilroy, entre outros, o livro
procura traçar um panorama dos Estudos Culturais e suas relações com a pós-
modernidade, etnografia e a comunicação de massa.
DA MATTA, Roberto – Carnavais, Malandros e Heróis. Para Uma Sociologia
do Dilema Brasileiro – Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1983. Ao traçar uma
comparação entre as cerimônias oficiais, como as comemorações pelo “Sete de
Setembro”, e os ritos populares, como o carnaval, Da Matta busca enxergar os
parâmetros que norteiam as relações dentro da sociedade brasileira. Nesta obra o
106
antropólogo carioca faz a célebre análise sobre a já caricata frase “você sabe com
quem está falando?” que tantos brasileiros gostam de empregar como sinal de
distinção e superioridade moral, hierárquica e social.
-------------------------- – Relativizando. Uma Introdução à Antropologia Social
Rio de Janeiro, Rocco, 1987. Nesta obra Da Matta procura traçar um panorama
da Antropologia e explicar seus novos paradigmas. É de especial interesse o
trecho intitulado “Digressão: a fábula das três raças ou o problema do racismo à
brasileira”, onde analisa o mito da democracia racial.
DIAS, Maria Odila Leite da Silva – Quotidiano e Poder em São Paulo no
Século XIX - São Paulo, Brasiliense, 1995. Inovador estudo sobre a São Paulo do
século XIX, com ênfase na importância das mulheres simples do povo, como
quitandeiras, lavadeiras e vendedoras de tabuleiros. A autora mostra como estas
personagens ocupavam o espaço urbano e contribuiram para a manutenção e
sobrevivência de seus lares.
ELIAS, Norbert e SCOTSON, John L. – Os Estabelecidos e os Outsiders:
Sociologia das Relações de Poder a Partir de uma Pequena Comunidade – Rio
de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2000. Originalmente lançado no final dos anos
60, este estudo do sociólogo alemão Norbert Elias só veio a ser editado no Brasil
cerca de trinta anos depois. Tomando como campo de observação uma pequena
cidade britânica, Elias advoga a tese de que as relações intergrupais apóiam-se
em idéias como antigüidade, tradição e nível moral, que tendem invariavelmente
a privilegiar o grupo dominante.
FERNANDES, FlorestanA Integração do Negro na Sociedade de Classes.
São Paulo, Ática, 1978. Sob uma perspectiva marxista, Fernandes procura
mostrar como, aliada ao racismo, a escravidão serviu para desinstrumentalizar o
107
negro diante da realidade da sociedade industrial. Em comparação com o
imigrante, o negro tenderá sempre a ocupar-se em atividades subalternas e pouco
qualificadas, o que será mais um fator de atraso e desvantagem para competir no
mundo capitalista.
--------------------- Significado do Protesto Negro - São Paulo, Cortez Editora,
1989. Conjunto de palestras proferidas por Fernandes, principalmente junto a
integrantes do Movimento Negro, em que traça um panorama de suas pesquisas
conjuntas com Roger Bastide e analisa as possibilidades do Movimento diante da
redemocratização do País e dos movimentos de esquerda em geral.
-------------------- O Negro em São Paulo, in São Paulo, Espírito, Povo e
Instituições (Orgs. Marcondes, J.V. Freitas e Pimentel, Osmar) – São Paulo,
Pioneira, 1968. Artigo publicado em um amplo estudo sobre a cidade de São
Paulo. No artigo, Fernandes retoma a problemática da população negra
paulistana desde o período escravista até meados do século XX. O autor, além de
trabalhar com dados quantitativos sobre esta população, analisa o processo de
assimilação cultural a que o negro foi submetido.
FERNANDES, Paula Porta S. (Org.) Guia dos Documentos Históricos na
Cidade de São Paulo - São Paulo, Hucitec, 1998. Panorama sobre as origens dos
diversos bairros paulistanos.
FREYRE, Gilberto – Casa Grande e Senzala: Formação da Família Brasileira
Sob o Regime de Economia Patriarcal Rio de Janeiro, José Olympio, 1961.
Clássico fundador do mito da democracia racial. Freyre contrapõe-se aos
deterministas, ressaltando os processos de miscigenação e tolerância como
elementos fundamentais da natureza do brasileiro.
108
--------------------- - Sobrados e Mucambos: Decadência do Patriarcado Rural e
Desenvolvimento Urbano – Rio de Janeiro, José Olympio, 1951. Nesta obra o
pensador pernambucano procura traçar um panorama do processo de
transferência das relações raciais do campo para a cidade. Segundo Freyre, tal
processo teria beneficiado a coletividade negra ao lhe permitir mais liberdade
para consolidar sua presença cultural e mobilidade social no cenário nacional, a
partir do meio urbano.
GONTIER, Bernard – Bexiga - São Paulo, Mundo Impresso, 1990.
Reconstituição autobiográfica do Bexiga dos anos 40 e 50. Apesar de útil, não
tem a mesma riqueza de detalhes encontrada nas memórias de Armandinho do
Bixiga.
HALL, Stuart - A Identidade Cultural na Pós-Modernidade - Rio de Janeiro,
DP&A, 2001. Análise sobre questões como etnia, fundamentalismo e
comunidades culturais dentro da realidade pós-moderna. Hall analisa estes e
outros fatores como produtos de uma construção discursiva e dialética.
--------------------- - Da Diáspora. Identidades e Mediações Culturais (Org.
Sovik, Liv) –Belo Horizonte, Editora UFMG, 2003. Compilação de textos de um
dos principais ícones dos Estudos Culturais, que procura traçar um panorama de
sua trajetória pessoal e de seus pensamentos sobre temas como identidade
cultural, etnia, diáspora negra e cultura popular. Obra indispensável para se
entender as bases da linha de estudos fundada em Birmingham, no final dos anos
60.
109
HOBSBAWM, Eric J.A Era do Capital (1848-1875) – Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1996. No segundo capítulo de sua quadrilogia sobre as transformões
experimentadas pela humanidade, a partir do advento da Revolução Industrial, o
historiador britânico procura analisar a consolidação do mundo burguês sob a
égide do capital e os movimentos de constituição dos Estados nacionais dentro da
nova ordem que se estabelecia.
--------------------------- - A Era dos Impérios (1875-1914) - Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1988. Vigoroso panorama da sociedade ocidental no período
compreendido pela virada do século XIX para o XX. No terceiro capítulo de sua
quadrilogia sobre a Modernidade, Hobsbawm mantém sua peculiar e bastante útil
característica de fazer imbricações entre a História e outras áreas do saber,
conferindo um importante caráter multidisciplinar aos seus escritos.
KOGURUMA, Paulo – Conflitos do Imaginário. A Reelaboração das Práticas e
Crenças Afro-Brasileiras na “Metrópole do Café” (1890 – 1920) – São Paulo,
Annablume/Fapesp, 2001. A partir de pesquisa realizada sobre fontes
bibliográficas, merecendo destaque jornais do período indicado no título, o autor
procura demonstrar como se fortaleceu a demonização e fetichização das práticas
culturais de origem africana no seio da sociedade paulistana.
KOWARICK, Lúcio e ANT, Clara – Cem Anos de Promiscuidade: O Cortiço
na Cidade de São Paulo, in As Lutas Sociais na Cidade (Org. Kowarick, Lúcio)
– Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988. Neste texto o autor procura traçar um
panorama das forças sociais e econômicas que empurram, desde o final do século
XIX, amplas parcelas da população paulistana para condições pauperizadas de
110
habitação, onde o cortiço surge como uma das alternativas mais procuradas ao
longo da história recente da cidade.
LIMA, Roberto Kant e Lima, Magali Alonso – Capoeira e Cidadania:
Negritude e Identidade no Brasil Republicano São Paulo, Revista de
Antropologia, Volume 34, FFLCH/USP, 1991. Neste artigo os autores analisam
as perseguições às quais foi submetida a cultura negra ao longo da história.
Tendo como pano de fundo a capoeira, o casal Lima procura mostrar como no
Brasil se construiu o discurso da democracia racial, enquanto as próprias leis se
incumbiram de enfatizar as diferenças.
LOPES, Maria Immacolata V. – Pesquisa em Comunicação – São Paulo,
Edições Loyola, 2001. Exposição das complexidades e paradigmas que
envolvem as pesquisas no campo das ciências humanas, particularmente na
comunicação. Indicando o percurso para a execução de um projeto de pesquisa,
Lopes pontua os principais fatores que devem ser observados metodológica e
intelectualmente pelos pesquisadores que se propõem a um trabalho respeitável.
LUCENA, Célia Toledo – Bairro do Bexiga. A Sobrevivência Cultural - São
Paulo, Brasiliense, 1984. Importante estudo sobre o bairro e sua relevância no
cenário paulistano. Lucena é uma das raras autoras que reconhece a importância
do elemento negro na constituição do bairro.
MACHADO, A. Alcântara Brás, Bexiga e Barra FundaSão Paulo, Sistema
Anglo de Ensino, S.d. Conjunto de crônicas redigidas pelo jornalista paulistano
na segunda década do século passado. Ao mesmo tempo em que demonstra um
imenso carinho e respeito pelas comunidades italianas espalhadas pela cidade
(vítimas à época de preconceito por uma parte da população), Machado usa
111
termos extremamente depreciativos para se referir aos negros (como, preto
fedido” e “o pixaim da negra”), aos quais nunca se referirá pelos nomes.
MARZOLA, Nádia – Bela Vista - São Paulo, Pref. Municipal de São Paulo, 2
ª
Ed., 1985. Apesar de estudo encomendado pela prefeitura de São Paulo,
publicado em conjunto com títulos sobre outros bairros paulistanos, o trabalho de
Marzola serve apenas para reforçar estereótipos do bairro. Nas duas únicas vezes
em que se refere aos negros no bairro a autora o faz com uma indisfarçável
conotação preconceituosa.
MATTELART, Armand e Neveu, Érik – Introdução aos Estudos Culturais
São Paulo, Parábola Editorial, 2004. Amplo panorama da trajetória dos Estudos
Culturais nos campos institucional e do pensamento. Mattelart faz críticas duras
às correntes culturalistas, mesmo fazendo ressalvas quanto à sua importância.
MENDONÇA, Luciana F. Moura – As Mulheres Negras do Oriashé: Música e
Negritude no Contexto Urbano São Paulo, Cadernos de Campo 3, Revista dos
Alunos de Pós-Graduação em Antropologia da FFLCH, USP,1993. Uma leitura
dos primeiros anos do bloco Afro Oriashé, com depoimentos importantes de sua
fundadora, Valquíria de Souza Santos, e uma reflexão sobre o papel do grupo
musical como instrumento de luta contra a discriminação e de conscientização da
coletividade negra.
MORENO, Júlio – Memórias de Armandinho do Bixiga – São Paulo, Ed. Senac,
1996. Fundador do museu do Bixiga, Armandinho teve sua história de vida
totalmente atrelada ao bairro do Bixiga (com “i”), como gostava de frisar. Em um
depoimento sensível e rico em detalhes, ele traça o processo de desenvolvimento
do bairro e os intercursos culturais verificados a partir daí.
112
MOURA, Clóvis – Sociologia do Negro Brasileiro – São Paulo, Ática, 1988.
Também sob uma perspectiva marxista, o autor procura traçar um panorama da
inserção do negro na sociedade brasileira. Moura faz uma análise crítica dos
estudos realizados até então e procura interpretar seu objeto de estudo por dois
ângulos: a sociedade branca e o “enquadramento” do negro versus a resistência
negra e sua inserção na sociedade nacional.
-------------------- - Imprensa Negra. Estudo Crítico – São Paulo, Imprensa
Oficial do Estado, 2002. Trata-se de uma edição fac-similar, originalmente
publicada em 1975, com uma amostra dos principais títulos da imprensa negra
paulista, compreendida entre os anos de 1915 a 1963. Moura faz uma análise do
conteúdo dessas publicações, complementando-a com os depoimentos de três
importantes ícones fundadores de um de seus principais jornais: o Clarim da
Alvorada.
MORAES, Wilson Rodrigues de - Escolas de Samba e Cordões da Cidade de
São Paulo São Paulo, Revista do Arquivo Municipal, Jan/Dez 1971. Panorama
sobre a origem das atuais escolas de samba paulistantas, remontando às antigas
manifestações de jongos, samba de Pirapora e cordões carnavalescos, ainda na
década de 10 do século passado.
----------------------------------------- Escolas de Samba de São Paulo (Capital)
São Paulo, Cons. Estadual de Artes e Ciências Humanas (Coleção Folclore,
no.14), 1978. Seguindo a linha de seu texto anterior, Moraes traça um panorama
histórico das principais escolas de samba de São Paulo.
MUNANGA, Kabengele – Mestiçagem e Experiências Interculturais no Brasil,
in Negras Imagens. Ensaios sobre Cultura e Escravidão no Brasil (Orgs.
Schwarcz, Lilia Moritz e Reis, Letícia V. de Souza) – São Paulo, Edusp, 2000.
113
Munanga faz um amplo panorama sobre a formação cultural brasileira, a partir
dos processos de colonização e escravidão. Perpassando pelos embates históricos
sobre identidade no país, o autor conclui que os brancos brasileiros se encontram
muito mais africanizados do que pensam, enquanto, em contrapartida, os negros
são muito mais ocidentalizados do que acreditam.
------------------------------ - Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil - Petrópolis,
Vozes,1999. Confrontando os diversos discursos construídos sobre a mestiçagem
no Brasil, o autor procura fazer o que exatamente propõe o título da obra. Em
comparação com outros pensadores, Munanga apresenta um diferencial no
mínimo interessante, a visão de um africano sobre uma temática tão brasileira,
normalmente pensada por intelectuais nativos, norte-americanos e europeus.
NABUCO, Joaquim – O AbolicionismoRio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000.
Um clássico fundador da sociologia brasileira. Joaquim Nabuco escreveu esta
obra ainda nos anos 70 do século XIX. Demonstrando uma visão muito além de
seu tempo, apontou os malefícios que a escravidão traria para o futuro da nação e
já naquela época indicava a educação e a reforma agrária como os remédios para
este quadro sombrio.
ORTIZ, Renato - Cultura Brasileira e Identidade Nacional - São Paulo,
Brasiliense, 1994. Importante discussão sobre a interferência do discurso
unificador do Estado no estabelecimento daquilo que, ao longo da história
republicana, vem sendo considerado como identidade brasileira e de como outros
elementos da sociedade têm contribuído para esta questão.
PEREIRA, João Baptista B. – A Folclorização da Cultura Negra no Brasil, in
Eurípedes Simões de Paula in Memorian (Vários Autores) -. São Paulo,
FFLCH/USP, 1983. Em um pequeno artigo Pereira consegue sintetizar a imagem
114
que a sociedade brasileira construiu do negro, ao longo de sua história, limitando
seu espaço cultural e folclorizando suas manifestações artísticas.
--------------------------------- - A Cultura Negra: Resistência de Cultura à
Cultura de Resistência - São Paulo, Dédalo, vol.23, USP, 1984. Neste artigo o
professor da FFLCH/USP procura debater as possíveis abordagens para se pensar
a cultura negra no Brasil. Como o título propõe, Pereira faz uma diferenciação
entre resistência de uma cultura e a reelaboração da mesma enquanto estratégia
de luta por espaços dentro da sociedade.
PRADO JR., Caio – Formação do Brasil Contemporâneo – São Paulo,
Brasiliense, 2000. Panorama histórico e econômico da formação brasileira a
partir de suas diversas regiões e etnias.
RIBEIRO, Darcy – O Povo Brasileiro. A Formação e o Sentido do Brasil - São
Paulo, Cia. das Letras, 1997. O antropólogo faz uma meticulosa análise das
diversas contribuições étnicas para a formação do povo brasileiro,
contextualizando-as no tempo e no espaço. Ribeiro lança as bases para o
pensamento de uma raça mestiça sob a perspectiva antropológica (longo prazo) e
não sociológica (curto prazo).
ROLNIK, Raquel – Territórios Negros nas Cidades Brasileiras, in Revista de
Estudos Afro-Asiáticos, n º 17, Rio de Janeiro, 1989. Em um artigo, que tem
servido de referência para pesquisadores, a arquiteta e urbanista procura mostrar
como as duas principais cidades brasileiras testemunharam ao longo da história o
surgimento de territórios predominantemente negros, ainda que estes não tenham
se constituído em guetos.
115
---------------------- A Cidade e a Lei: Legislação, Política Urbana e Territórios
na Cidade de São Paulo - São Paulo, Stúdio Nobel/Fapesp, 1997. A partir de seu
artigo, escrito quase dez anos antes, Rolnik mostra como o Estado atuou e atua
como legitimador da exclusão social e até racial dentro dos espaços urbanos.
SACCHETTO, João – Bixiga: Pingos nos Is - São Paulo, Lemos Editorial, 2001.
Num esforço de reconstituir os principais elementos icônicos do bairro,
Sacchetto apresenta, em forma de tópicos, a história de ruas e personagens do
bairro.
SANTOS, Carlos J. Ferreira – Nem Tudo Era Italiano – São Paulo e Pobreza
(1890-1915) São Paulo, Annablume, 2003. Partindo principalmente de análises
iconográficas (fotos), Santos procura mostrar como neste período, que marca a
virada do século XIX para o XX, procurou-se construir a imagem de uma São
Paulo européia. O contraste em relação a esse discurso construído, demonstra o
autor, aparece nas próprias fotos que buscavam demonstrar uma cidade branca e
moderna. Nelas, com freqüência, detecta-se as figuras dos chamados nacionais
(brasileiros negros e pardos). Sempre em segundo plano.
SANTOS, José Luiz - O Que é Cultura - São Paulo, Brasiliense, 1991.
Apresentação da cultura como somatória dos acontecimentos do cotidiano e não
somente como o produto de atividades específicas.
SCHWARCZ, Lilia Moritz – Retrato em Branco e Negro: Jornais, Escravos e
Cidadãos em São Paulo no Final do Século XIX. São Paulo, Cia. das Letras,
2001. Neste estudo, a autora mostra como os jornais paulistas trataram o negro
em seus enunciados nos anos imediatamente anteriores e posteriores a abolição.
Schwarcz procura provar como estes jornais contribuiram para a formação de um
imaginário pejorativo em relação a este grupo étnico.
116
------------------------------ - O Espetáculo das Raças –Cientistas, Instituições e
Questão Racial no Brasil (1870-1930). São Paulo, Cia. das Letras, 1993.
Traçando um panorama das principais instituições educacionais e de pesquisa do
país, na virada do século XIX para o XX, Schwarcz procura contextualizar e
dimensionar os discursos e práticas raciais adotados no país durante este período,
a partir de matrizes européias.
SILVA, Carlos Gomes da – Os Sub Urbanos e a Outra Face da Cidade. Negros
em São Paulo (1900-1930) – Cotidiano, Lazer e Cidadania – Campinas,
Dissertação de Mestrado, IFCH/Unicamp, 1990. A partir do bairro paulistano da
Barra Funda, categorizado por Silva como território negro, a dissertação procura
mostrar como o processo da Abolição implicará em uma forte migração negra da
zona rural paulista para a capital, o que acabaria por determinar a ocupação de
alguns espaços urbanos por fatias significativas deste grupo e as conseqüências
desta ocupação nas relações com o poder institucionalizado.
SILVA, Tomaz Tadeu (org.) – Identidade e Diferença. A Perspectiva dos
Estudos Culturais – Petróplois, Vozes, 2000. Compilação de três artigos
produzidos pelo autor, por Kathryn Woodward e Stuart Hall, que procura dar um
panorama de como os Estudos Culturais fazem a leitura das questões de
identidade e seus usos políticos na modernidade e na pós-modernidade.
SIMSON, Olga Rodrigues de Moraes Von – Carnavais Paulistanos de Outrora:
Lembranças de Préstitos, Corsos, Cordões e Escolas de Samba (1915-1978)
São Paulo,Centro de Apoio à Pesquisa Histórica – Depto. de
História/FFLCH/USP, 1983. Comparação entre o carnaval de brancos e negros
no início do século XX até a consolidação das escolas de samba e sua aceitação
pelo Estado e pela sociedade em geral no final dos anos 70.
117
SKIDMORE, Thomas E. – Preto no Branco. Raça e Nacionalidade no
Pensamento Brasileiro Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976. O brasilianista
procura nesse texto traçar um amplo panorama dos movimentos históricos,
culturais e até políticos, que marcaram o final do século XIX e a primeira metade
do século XX, e suas relações com as noções de identidade, nacionalidade e raça
no país.
SODRÉ, Muniz – O Terreiro e a Cidade. A Forma Social Negro Brasileira
Rio de Janeiro, Imago, 2002. Demonstrando uma profunda erudição, combinada
com o conhecimento prático daqueles que pertencem ao círculo fechado dos
iniciados nos mistérios religiosos, Sodré traça um panorama interessantíssimo da
cosmovisão negra e seu contato com o mundo ocidental.
--------------------- - Claros e Escuros. Identidade, Povo e Mídia no Brasil
Petrópolis, Vozes, 2000. Neste trabalho, o professor da UFRJ, faz um amplo
panorama sobre os conceitos de identidade até trazer a discussão para a realidade
brasileira. O diferencial de Sodré é a discussão do tema sob a perspectiva do
negro sobre si mesmo e sua relação com o Brasil. Na segunda parte do trabalho,
Sodré discute o papel da mídia, enquanto instrumento de poder, para a
perpetuação de estereótipos e a manutenção de uma hierarquia na sociedade
nacional baseada nos valores étnicos.
THIOLLENT, Michel – Metodologia da Pesquisa-Ação – São Paulo, Cortez
Editora, 2000. Thiollent estabelece as relações e a importância da pesquisa-ação
(e participante) para as ciências sociais. Como o título sugere, o livro procura
apresentar um arcabouço teórico/metodológico para este tipo de pesquisa.
118
6.2 – Bibliografia complementar
ALMEIDA, Vera Lúcia Valsecchi - O Sagrado no Catolicismo do Bixiga – São
Paulo, Dissertação de Mestrado, PUC/SP, 1989.
BARTH, Frederik – Grupos Étnicos e Suas Fronteiras, in POUTIGNAT,
Philippe e STREIFF-FENART, Jocelyne - Teorias da Etnicidade – São Paulo,
Unesp, 1998.
BORDIEU, Pierre – A Economia das Trocas Simbólicas (Org. Miceli, Sérgio)-
São Paulo, Perspectiva, 2004.
----------------------- e WACQUANT, Loic – Sobre as Artimanhas da Razão
Imperialista, in NOGUEIRA, M. Alice e CATANI, Afrânio – Pierre Bourdieu:
Escritos de Educação – Petrópolis, Vozes, 1998.
BORGES, Rosângela – Axé, Madona Achiropita. Presença da Cultura Afro-
Brasileira nas Celebrações da Igreja de Nossa Senhora Achiropita – São Paulo,
Pulsar, 2001.
FOUCAULT, Michel – Microfísica do Poder – Rio de Janeiro, Graal, 1979.
HOBSBAWM, Eric J. e RANGER, T. – A Invenção das Tradições – São Paulo,
Paz e Terra, 1984.
119
LIMA, Solange M. Couceiro – Mulher e Famílias Negras. Realidade e
Representação na Obra de Nina Rodrigues São Paulo, Tese de Doutorado,
ECA/USP, 1984.
MUGNAINI Jr., Ayrton – Adoniran. Dá Licença de Contar... – São Paulo,
Ed.34, 2002.
POUTIGNAT, Philippe e STREIFF-FENART, Jocelyne - Teorias da Etnicidade
– São Paulo, Unesp, 1998.
ROUCHOU, Joëlle – História Oral: Entrevista-Reportagem X Entrevista
História, in Revista Brasileira de Ciências da Comunicação – São Paulo, volume
23, n º 1, janeiro-junho de 2000.
----------------------- - Noites de Verão com Cheiro de Jasmim: Memórias de
Judeus do Egito no Rio de Janeiro (1956/57) – São Paulo, Tese de Doutorado,
ECA/USP,2003.
SANTOS, Deborah Silva – Memória e Oralidade. Mulheres Negras no Bixiga.
São Paulo 1930/40/50 – São Paulo, Dissertação de Mestrado, PUC/SP, 1993.
SOARES, Reinaldo da Silva – O Cotidiano de uma Escola de Samba
Paulistana: O Caso do Vai-Vai – São Paulo, Dissertação de Mestrado,
FFLCH/USP, 1999.
6.3 – Jornais e Revistas
120
CASTRO, Márcio Sampaio – Quilombos Urbanos, in Revista Aventuras na
História, São Paulo, Ed.21, Maio de 2005.
---------------------------------- - Excluídos do Samba, in Revista Esquinas de São
Paulo, São Paulo, Ed.26, Abril de 2002.
DIAS, Edney Cielci“Ilha Branca” revela a exclusão de negros, in jornal
Folha de São Paulo, São Paulo, 21 /09/2003, Caderno Cotidiano, C1.
FELINTO, Marilene – A Varig, a TV a Cabo e a Enganação da Propaganda, in
Revista Caros Amigos, São Paulo, Nr.76, Julho de 2003.
FOLHA DE O PAULO - “Cidade Tiradentes é a Memória Negra”, São
Paulo, 21/09/2003. Caderno Cotidiano, C4.
6.4 – Filmes, Documentários e Discos
SÃO PAULO: Memória em Pedaços – Bairro do Bixiga – Direção: Neide
Duarte e Maria Cristina Poli, São Paulo, 1997. Vídeo (VHS), 30 min., cor.
GERALDO Filme – Direção: Carlos Cortez, São Paulo, 1998. Vídeo (VHS), 70
min, cor.
FILME, Geraldo – Memória Eldorado – Coordenação artística: Aluízio Falcão.
São Paulo, Estúdio Eldorado, 1980. (Fonograma originalmente gravado para
Long Play, relançado em 2004 em Compact Disc)
121
6.5 – Internet
PADRE TONINHO, entrevista ao Portal Afro. Disponível em:
http://www.portalafro.com.br/entrevistas/padretoni/toninho.htm
.
Acessado em: dez/2004.
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